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"O Diabo não é menos que um dogma que depende de todos os demais. Tocar o
eterno vencido não é tocar o eterno vencedor? Duvidar dos atos do primeiro é a mesma coisa
que duvidar dos atos do segundo, dos milagres que fez precisamente para combater o Diabo.
As colunas do céu têm o seu pé no abismo. 0 insensato que move essa base infernal pode
queimar o Paraiso" (Jules Michelet, "A feiticeira").
Desde seus primórdios, o alvo principal do repúdio pentecostal foi a Igreja Católica.
Reproduzindo a antiga rivalidade entre protestantes históricos e católicos, sua identidade foi
sendo moldada em oposição ao catolicismo. Certas igrejas neopentecostais mudaram
parcialmente isso. Embora continuem combatendo vigorosamente o catolicismo, suas baterias
bélicas apontam prioritariamente para as religiões mediúnicas, fato que trará conseqüências
para a demarcação de sua identidade.
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Neopentecostais – Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil
Com inimigos bem conhecidos e tangíveis, Universal e Internacional da Graça, tal como Deus
é Amor e Casa da Benção, para combatê-los, incorporam até sua "linguagem". Para
Mariza Soares (1990: 88), "essas igrejas se utilizam de um simbolismo muito semelhante
ao encontrado nas religiões afro-brasileiras. Nossa opinião é que apenas os valores (positivo e
negativo) se apresentam invertidos, sendo os elementos em jogo os mesmos (...) Na verdade,
nessas igrejas, no Candomblé e na Umbanda se fala uma mesma linguagem". Resulta
disso que essas igrejas dispendem grandes esforços para retirar encostos, desfazer a inveja e
o olho-grande, libertar pessoas da feitiçaria, dos despachos de macumba, das possessões por
orixás, guias e espíritos. Distribuído pela Casa da Bênção, o folheto intitulado "Qual é o
seu problema?", já com as prováveis respostas incluídas, como "desemprego,
sentimental, financeiro, vícios, enfermidades, nervosismo, depressão, familiar", divulga as
especialidades terapêuticas da igreja conforme o dia da semana. Com calendário idêntico aos
da Universal e Internacional da Graça, uma das sedes da Casa da Benção em Sao Paulo
realiza às sextas-feiras a Corrente da Libertação. Nela, Os pastores fazem orações por
"todos que têm os seus caminhos amarrados por obras de bruxaria, feitiçaria,
macumbaria, inveja, olho grande, pessoas que tiveram contatos com entidades, que ouvem
vozes, vêem vultos".
Quando combatidos nos cultos, os demônios são devidamente identificados pelos respectivos
nomes e qualidades, tal como os denominam os próprios pais e mães-de-santo. Da mesma
forma, os diferentes tipos de sofrimento e infortúnio dos fiéis são atribuídos estereotipadamente
à ação de tal ou qual entidade demoníaca.
Como exemplo, relato oração para prosperidade financeira feita no templo de Santa Cecília,
sede regional da Universal, em 19.8.90: com uma suave música de fundo, os fiéis, em pé, de
olhos fechados, alguns contritos, outros gesticulando os braços ardorosamente, falam com
Deus, seguindo as ordens do pastor. Enquanto isso, os obreiros caminham pela igreja
perscrutando nos semblantes dos fiéis possíveis sinais de possessão ou a presença de
demônios escondidos. E o pastor ora: "Que o Senhor venha atender os nossos pedidos.
Venha nos dar prosperidade, saúde... (agora em tom colérico, tal como o fiel da Universal deve
tratar os demônios e se dirigir a eles). Eu quero que os espíritos malditos, os demônios que
estão na vida destas pessoas colocando a miséria, os problemas, o desemprego, saiam.
Podem manifestar, vamos. Manifesta o Tranca-Rua. Você que está trancando os aumentos
salariais das pessoas. Você que está tirando a felicidade das pessoas. Você que está no
estômago, nas pernas, na cabeça, na vida financeira, vai saindo. Os Exús-Caveira, o Oxalufa,
a Pomba-Gira, sai, sai. Você que esta colocando o vírus da aids, a gastrite, a infelicidade, pode
manifestar agora. 0 Lúcifer, a Maria-Bonita, a Pomba-Gira Sete Gargalhadas do Bordel, podem
manifestar agora. 0 Exú-Veludo Veludinho, o Preto-Velho, a Maria-Conga, vão manifestando.
Vocês vão ser queimados, queimados, queimados. Vamos, começa a manifestar agora,
vamos. Você que coloca caroço no seio, coloca câncer, sai agora. Vai sendo queimado agora,
em nome de Jesus. Vai queimando, Jesus, todo mal, toda doença, toda enfermidade. Você que
está no esposo, na esposa, nos pais, nos filhos, nos primos, vai queimando. Você que trabalha
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nas encruzilhadas, nas praias, no roncó, vai manifestando agora, saja, saia". Em seguida,
pede a todos que digam: "Senhor Jesus, eu quero que as minhas mãos sejam
abençoadas agora para eu ser abençoado e queimar todos os problemas". Benzidas as
mãos, ordena aos fiéis que segurem ou coloquem as mãos em objetos que simbolizem a
prosperidade financeira, como carteira, bolso, talão de cheque, orem com fé e peçam o
aumento salarial, o bem material desejado. Por fim, acompanham o pastor, amaldiçoando e
expulsando toda miséria e todo mal. Esbravejam "sai, sai".
Nos cultos de libertação, o panteão dos deuses, os espíritos e guias das religiões mediúnicas
são invocados para, depois de manifestados e amarrados, fatalmente ceder às coações
exorcistas e confessar a culpa pelos males com que afligem os possessos. Após admitirem sua
culpa, são humilhados, achincalhados e, por fim, expulsos dos corpos, como demonstração do
poder de Cristo sobre o Diabo. Na Universal e em sua costela, a Internacional da Graça,
sexta-feira é o dia reservado ao concorrido culto de libertação, frequentado por quem deseja,
literalmente, se libertar de demônios ou de seus males. A escolha desse dia, segundo Mariza
Soares, não se deu por acaso.
"A sexta-feira é conhecida na Umbanda como o dia das giras de Exú que se dão
geralmente à noite. À meia-noite, 'hora grande' de sexta para sábado é o momento em que os
Exús se manifestam e trabalham. É justamente nesta mesma hora que nas igrejas estão sendo
realizadas as cerimônias onde esses Exús são invocados para, em seguida, serem expulsos,
dos corpos das pessoas presentes" (Soares, 199O: 86, 87).
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voltados para trás e as mãos em forma de garra. Logo o demônio é amarrado e a possessa
levada ao púlpito. 0 pastor pergunta, gritando, qual é o nome do demônio que a está
possuindo. Vencida a resistência inicial, recebe a resposta, com a voz cavernosa de sempre:
"Exú Capa-Preta". Insolente, o Exú diz odiá-lo. 0 pastor, então, escarnece dele,
dizendo estar tremendo de medo. Todos riem. 0 pastor indaga o que Exú está fazendo na vida
da possessa. "Estou matando-a aos pouquinhos", responde ele. Segurando-a pelos
cabelos, o pastor pergunta com qual doença ele a infligiu. Descobre que são várias as doenças
que a acometem. Interroga também o marido da possessa, presente ao culto. Este menciona
várias enfermidades, a elevada quantia gasta com remédios e hospitais, cita nomes de exames
laboratoriais sofisticados e médicos famosos consultados e lamenta, apesar dos gastos e
esforços, os pífios resultados obtidos até então. Do alto de sua experiência com o fenômeno, o
pastor diagnostica que o problema é de natureza espiritual. Em seguida, começa por retirar
Lúcifer, rei dos demônios. Diante da resistência deste, persiste, agora com o auxílio dos fiéis
que batem os pés no chão enquanto bradam "queima, queima", até o pastor
amarrar Lúcifer, deixá-lo de joelhos e obrigá-lo a admitir, oralmente e por mais de uma vez,
estar derrotado por Jesus. Depois de humilhá-lo, ordena a ele que retire todo o mal posto na
fiel e desfaça os pontos. Pede para Jesus queimar o Lúcifer, o Capa-Preta, toda legião de
demônios e as enfermidades. "Queima agora", esbraveja. Após a expulsão do Exú
Capa-Preta, o pastor diz que ela está curada em nome de Jesus e a orienta para que se dirija à
obreira. Saciados com mais esta pujante vitória de Jesus, todos cantam entusiasmados.
Aproveitando o clima de regozijo, o pastor pergunta quem trouxe o envelope com as ofertas... (
bairro de Santa Cecília, 1º.2.89 .
Diante dos excessos desse rotineiro diálogo inamistoso, muitos evangélicos passaram a
criticar a ênfase ritual e teológica nos demônios. Como notou, com ironia, o pastor Miguel
Ângelo, o Diabo, além do mundo e das religiões não-cristãs, invadiu o próprio reduto dos
crentes: "Hoje o Diabo tem muito mais força dentro das igrejas; se cultua mais a
libertação, Diabo, demônio, Pomba-Gira, isto e aquilo, do que se ensina a respeito de
Deus". Fabio Damasceno, psiquiatra e pastor da Comunidade Evangélica S8, Rio, que
diz não subestimar o poder do Diabo e até exorciza pacientes, durante palestra num templo
batista de São Paulo denunciou a invasão do inimigo nas igrejas e na própria psique dos fiéis.
"Não poucas vezes pude falar de Cristo para as pessoas no consultório (...) já houve
casos de pessoas ficarem endemoninhadas dentro do consultório. Endemoninhado, não era
psicose. Eu sei o que é psicose. Não era distúrbio mental, era demônio puro. E eu tive que
enfrentar essa realidade. Graças a Deus, eu tinha respaldo do Senhor e pude repreender, em
nome de Jesus, esse demônio (...) Como disse o pastor Caio [Fabio] de manhã, contra
demônio não há Aplictil. Aplictil é um remédio que se usa para psicose, quando o indivíduo está
muito agitado. É o sossega-leão. E óbvio, já trabalhei em pronto-socorro psiquiátrico e já vi que
tem surtos psicóticos em que a questão é dar Aplictil. Mas já vi que tem surtos, entre aspas,
que a questao é amarrar os demônios e expulsar em nome de Jesus (...) É uma paranóia
coletiva. Há certos setores, certas igrejas onde se fala mais em Satanás e nos demônios que
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em Cristo, que em Deus. Então isso vai exagerando (...) Outro dia uma paciente minha disse:
'eu estava no banheiro tomando banho e olhei para o chão e tinha uma figura demoníaca no
desenho do mármore do chão e eu comecei a repreender em nome de Jesus. Misericórdia!
Está vendo demônio até em mancha de mármore" (I Consulta sobre Crescimento dos
Evangélicos no Brasil, 2.6.93).
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