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Universidade de São Paulo

Biblioteca Digital da Produção Intelectual - BDPI

Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada Artigos e Materiais de Revistas Científicas - FE/EDM
- FE/EDM

2014-04

Estudos da infância: outra abordagem para a


pesquisa em educação [Apresentação]

Linhas Críticas, Brasília, v.20, n.41, p.11-22, jan/abr, 2014


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Apresentação
Estudos da infância: outra abordagem para a pesquisa em
educação

Fernanda Müller
Universidade de Brasília
Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento
Universidade de São Paulo

Os estudos da infância

Na década de 1990 foram consolidados novos campos de estudo da infância,


além da psicologia e da própria educação, que proporcionaram outra interpretação
sobre as relações sociais estabelecidas entre adultos e crianças e/ou entre os
grupos de pares infantis, e que modificaram o entendimento dos processos pelos
quais as crianças se apropriam dos mundos sociais nos quais vivem.
Do ponto de vista da antropologia, embora Cohn (2005) reconheça que estudar
crianças ainda é um desafio, visto que nem sempre elas são reconhecidas como
sujeitos legítimos de estudo, há quarenta anos a antropóloga Charlotte Hardman
(1973) afirmava que crianças manifestam um conjunto de crenças sociais, valores
e interação social que é próprio delas. Neste caso, poderíamos entendê-las ao
observá-las e escutá-las, e nos valer de vários métodos para interpretar suas
manifestações. Essa autora (1973, p. 516) apresentava o desenvolvimento de uma
antropologia das crianças ao perceber:
1. A elaboração de um sistema semântico que depende não somente da
oralidade, mas do ambiente biofísico;
2. A construção de noções analíticas relacionadas ao pensamento mágico, à
ordenação, à metonímia, compilada nas obras de Lévi-Strauss, Piaget, Vygotsky
ou Saussure;
3. A análise das falas das crianças;
4. O estudo das tradições orais, jogos e brincadeiras e os valores a eles
subjacentes, e
5. A análise dos desenhos das crianças.
Nos anos 1980, a nova sociologia da infância emergiu com críticas às noções
tradicionais de socialização, contra os paradigmas dominantes que associavam

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a infância a um período de imaturidade biológica. Trabalhos sociológicos dessa
década (Corsaro, 1979; Jenks, 1982; Qvortrup, 1987; Alanen, 1988) constituíram a
emergência do campo, sobretudo ao posicionar a infância como um componente
estrutural das sociedades – as crianças crescem, mas a infância permanece como
categoria social. Já nos anos 1990, um novo paradigma da infância, introduzido
por Prout e James (1999), defenderia que crianças são e devem ser vistas como
ativas na construção e determinação de suas próprias vidas sociais, da vida de
todos ao seu redor, na sociedade em que elas vivem. Esta nova concepção de
criança superou as visões tradicionais de socialização, que associavam a criança
à passividade e à dependência.
A redefinição da infância, assim como a ideia de que crianças têm direito de ser
estudadas em seu próprio mérito (Prout; James, 1999), motivou o crescimento e o
desenvolvimento desta área de estudos, sobretudo na elaboração de metodologias
que passaram a considerar as crianças como coparticipantes/informantes
principais de pesquisas conduzidas com elas. Igualmente, outras áreas de
pesquisa associaram-se a esta sociologia da infância em desenvolvimento, dentre
elas a psicologia, a geografia, a educação, o direito, a antropologia, a história,
o que motivou o reconhecimento de uma área acadêmica mais abrangente nas
ciências humanas e sociais, que chamamos de estudos da infância.
Allison James e Adrian James (2008, p. 25) explicam que os estudos da infância
podem ser compreendidos como o estudo interdisciplinar do período inicial da
vida, reconhecido legalmente e definido socialmente como infância. James e
James (2008, p. 26) argumentam ainda que os estudos da infância tratam-na como
um fenômeno social complexo, que não pode depender de uma única perspectiva
epistemológica ou disciplinar, mas de uma abordagem multi e interdisciplinar de
pesquisa.
No Brasil, Rosemberg (1976, p. 1470) já apontava, na década de 1970, a
necessidade de estudos interdisciplinares sobre a infância, na contracorrente
da tradição de pesquisa na psicologia: “enquanto a psicologia não fizer apelo à
antropologia, continuaremos apenas a ensinar crianças”. Passados mais de
trinta anos, parece ainda difícil, sobretudo no Brasil, empreender este exercício
interdisciplinar no estudo da infância, que permanece como um objeto de estudo
fragmentado em disciplinas.
Por outro lado, identificamos que, na contracorrente, os estudos desenvolvidos
na área de educação têm dado atenção à infância e às manifestações coletivas das
crianças a partir de um referencial que se conecta teórica e metodologicamente a
outras áreas. Rocha (1999) mostra que os trabalhos sobre a infância produzidos no
campo da educação buscam um diálogo com as demais áreas das ciências sociais,
o que é evidenciado pelo uso de metodologias e pressupostos teóricos comuns.

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A autora (1999, p. 48) encontrou conceitos de infância voltados “à diferença e à
influência de contextos específicos na construção da diversidade, como afirmação
positiva e contrária ao estabelecimento de padrões de normalidade”, indicando
tanto a negação do conceito de infância como categoria homogênea quanto a
necessidade de consideração das vozes das crianças nas pesquisas. Destaque-se
que, nos anos 1990, no campo da psicologia, foi realizada leitura diferenciada das
teorias do desenvolvimento infantil, com destaque para os processos interativo
e cultural (Jobim e Souza, 1996); e, no campo da educação, foi delineada uma
pedagogia pautada pelo reconhecimento da agência da criança, com base no
projeto pedagógico desenvolvido no norte da Itália.
Em artigo publicado em 2010, Silva, Luz e Faria Filho (2010) informam-nos que
há 322 grupos de pesquisa que investigam a temática “infância, criança e educação
infantil” no Brasil, dos quais 182 em educação, 105 em psicologia, 13 em sociologia,
11 em história, 8 em antropologia, 2 em filosofia e 1 em teologia. Afirmam os
autores (2010, p. 88) que “nas ciências políticas, na geografia e na arqueologia, não
foi localizado um único grupo de pesquisa sobre essas temáticas”. A investigação
reforça a predominância dos estudos da infância no campo da educação, ainda que
diferentes campos busquem estudá-la.
No mesmo 2010, foi publicado um estado da arte da sociologia da infância em
diferentes países, em edição especial do periódico Current Sociology. Sobre o Brasil,
Castro; Kosminsky (2010) apresentam um texto sobre os estudos da infância a partir
de uma análise da contribuição das ciências sociais para a visibilidade da infância,
título do artigo. As pesquisadoras referem: 1. O estudo pioneiro de Florestan
Fernandes sobre as culturas infantis, publicado em 1961; 2. As décadas de 1960 e
1980, quando as pesquisas focalizavam as crianças do ponto de vista da estrutura
da desigualdade social – sobre o menor, ou seja, crianças pobres, em situação de
risco ou nos limites da marginalidade, ou sobre o aluno, em pesquisas sobre e
na escola e “em ambos os casos as crianças não eram vistas como sujeitos, mas
objetos de proteção, cuidado e controle, vitimizadas ou não pelas circunstâncias”
(p. 213, tradução nossa); e 3. As décadas de 1990 e 2000, quando a pesquisa sobre a
infância foi desenvolvida a partir da concepção de criança como sujeito de direitos,
sustentada pela legislação (Constituição Federal de 1988 e Estatuto da Criança
e do Adolescente – ECA, de 1990), pela presença de Organizações Internacionais
(Unesco, Unicef, OIT) e organizações não governamentais internacionais.
Já o estudo de Nascimento (2013) teve como objetivo mapear os grupos de
pesquisa brasileiros que trabalham com a sociologia da infância, identificando os
conceitos da área mais utilizados por cada um deles para delinear a extensão
da pesquisa nesse campo. A pesquisa verificou que a sociologia da infância vem
sendo utilizada por pesquisadores de diferentes maneiras, ora sendo tomada

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como referencial teórico, ora como campo de interlocução. Também esse estudo
identificou a predominância do campo da educação, mais especificamente da
educação infantil. Dos 23 grupos pesquisados, 16 estão situados na área da
educação; 4 grupos, na psicologia; e 3, na sociologia. Dentre os 16 que estão
na educação, 6 utilizam “educação infantil” como parte do nome do grupo e 11
trabalham com pesquisa na educação infantil como área predominante. Todos os
que se encontram na psicologia também o fazem. Nascimento (2013, p.118) afirma
que:

Com configurações estáveis e em constante produção teórica, é possível considerar


que metade dos grupos hoje existentes, que tratam da sociologia da infância em seus
estudos e produções, foram se apropriando de questões do campo e o incorporando em
suas reflexões sobre a primeira etapa da educação básica, a educação infantil. Pode-
se afirmar, portanto, que a relação entre sociologia da infância e educação infantil no
Brasil foi estabelecida na própria origem dos estudos nacionais da temática.

Ainda em relação à pesquisa, se é possível reconhecer que os conceitos


desenvolvidos pela sociologia da infância vieram a contribuir para o fortalecimento
dos estudos da pequena infância, a partir de uma nova interpretação dela,
pode-se perguntar o que significa para a sociologia da infância estar presente
particularmente no campo da educação. Nessa aproximação, preponderam
os estudos desenvolvidos na perspectiva da agência, do cotidiano das crianças
pequenas e do método etnográfico.
De forma geral, podemos constatar que, no desenvolvimento dos estudos
da infância, tanto no Brasil como em outros países, alguns pontos-chave se
consolidaram, tais como: a infância como construção social, o reconhecimento da
agência das crianças e a atenção a suas vozes, que referimos a seguir:
1. A infância é uma construção social: se biologicamente a criança foi considerada
incompleta e a infância, um estágio de imaturidade física e emocional, nas ciências
sociais a infância é uma categoria social, assim como a idade adulta e a velhice,
por exemplo. De acordo com Qvortrup (2002, p. 48, tradução nossa), “um conceito
estrutural [...] visa caracterizar a infância como parte de uma dada arquitetura
social”. Há, porém, de se considerar que todos os seres humanos são biológica e
socialmente incompletos, circunscritos, assim não fazendo mais sentido pensar
em campos sociais e biológicos separados e opostos. As oposições criadas na
modernidade entre a infância e a idade adulta, direcionando a última a um patamar
superior, cada vez ficam mais enfraquecidas, quando se assume que todos somos
seres humanos em formação. Para Prout (2005), a infância deve ser vista como
parte da cultura e da natureza, sendo um campo híbrido de investigação. Mais do

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que isso, a infância seria:

[...] cultural, biológica, social, individual, histórica, tecnológica, espacial, material,


discursiva... e mais. A infância não pode ser vista como um fenômeno unitário, mas
um conjunto múltiplo de construções emergentes da conexão e desconexão, fusão e
separação destes materiais heterogêneos. (Prout, 2005, p. 144, tradução nossa)

2. A agência das crianças: algumas questões conceituais sobre a agência das


crianças foram expostas por Mayall (2002). Essa autora assume que crianças são
atores sociais, já que demonstram apego, expressam desejos, fazem parte das
relações de família. Alerta, contudo, que o estudo das crianças na sociologia exige
que elas sejam consideradas agentes. Assim, para a autora (2002, p. 21, tradução
nossa):

Um ator social faz alguma coisa, talvez algo motivado por um desejo subjetivo. O termo
agente sugere outra dimensão: negociação com outros, com o efeito de que a interação
gera impactos – para um relacionamento ou uma decisão, para o funcionamento de um
conjunto de restrições ou pressupostos sociais.

Bluebond-Langner e Korbin (2007), a partir do campo antropológico, reconhecem


a agência coletiva e individual das crianças em um conjunto de situações sociais.
Apontam, todavia, para algumas pendências teóricas sobre o nível, o impacto e
a natureza desta agência. Essas autoras afirmam ainda que a coexistência de
agência e vulnerabilidade influencia a forma como conduzimos pesquisas com
crianças e afeta nossa responsabilidade ética nas pesquisas e para o futuro das
crianças.
3. Vozes das crianças: a tendência do estudo do presente das crianças, e de suas
vozes, pode ser encontrada em algumas publicações recentes (Delgado; Müller,
2005; Cruz, 2006, 2008; Faria, 2007, 2008; Gouvêa; Sarmento, 2008), nas quais as
crianças têm sido pesquisadas nas interações e brincadeiras que estabelecem
nas creches, pré-escolas e escolas, nos grupos que frequentam e em suas
rotinas. O foco das investigações tem sido principalmente as falas e ações entre
as crianças e o que há de novo e interessante nessa perspectiva é a participação
das crianças na pesquisa. O desenvolvimento de pesquisas com crianças, e não
somente sobre elas, além de requisitar novos aportes metodológicos, permite
diferentes caracterizações de grupos de crianças e a discussão de relações de
classe, gênero, etnia e idade presentes em suas vidas. Nesse sentido, parecem
ser criadas novas:

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Dificuldades para aqueles que pretendem realizar estudos sobre a criança e infância,
que se complexificam na medida em que temos que produzir formas de entender e de
escutar o que as crianças dizem. Por vezes o cardápio de sentidos de que dispomos
é insuficiente para compreender estas falas. A criança é portadora da diferença, da
diversidade e da alteridade. (Abramowicz; Oliveira, 2010, p. 44)

Os estudos da infância e o campo da educação

De acordo com Honig (2009, p. 73), “o que distingue os estudos sociais da


infância e todas as outras formas de conhecimento relacionadas com as crianças
é a perspectiva sobre a constituição de seu objeto, com a qual ela aborda as
crianças e a infância”. Os artigos aqui apresentados diferenciam-se ao responder
e problematizar seus objetos de estudo, ao mesmo tempo em que se aproximam ao
se disporem a entender a infância a partir de referenciais dos estudos da infância.
Em outras palavras, os textos abdicam da naturalização da infância, perpetrada
ao longo de anos de explicações lineares e etapistas, para conceber o seu objeto e
sua abordagem de maneira mais abstrata e complexa. (Honig, 2009; Abramowicz;
Oliveira, 2010)
Por outro lado, considerando que a maior parte dos estudos sobre a infância em
contextos sociais coletivos, dentre eles o da Educação Infantil, tem sido realizada
na área de educação, no Brasil, pode-se pensar em algumas convergências entre
os estudos da infância e suas implicações para o campo da educação da criança
pequena. Nessa linha, se tomamos Sgritta (1987), torna-se possível localizar
a institucionalização da infância como o momento que sinaliza a entrada da
criança no universo simbólico de regras e disciplinas identificadas com lógicas
e práticas do conhecimento técnico-científico. Sarmento (2002, 2004) avança ao
posicionar a reinstitucionalização da infância como um dos fatores modernos da
institucionalização da infância – sobretudo a universalização da escola de massas
e o predomínio da organização nuclear da família.
A investigação da infância através das instituições sociais, tais como a família e
a escola, faz parte da agenda dos estudos da infância, mesmo que, como destaca
o artigo de Qvortrup (1987, p. 14), sejam instituições que tornam visíveis/invisíveis
a infância moderna. Esse é um campo onde podem ser investigadas questões
relacionadas às dicotomias público-privado, natureza-cultura (Prout, 2005),
proteção-participação.
Consideramos também que é por meio da família e da escola que um conjunto
de espaços e rotinas da infância pode ser investigado, assim como os lugares para
as crianças e das crianças (Rasmussen, 2004). Destaque-se que investigações

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da infância enquanto categoria geracional, das práticas sociais e das relações
de poder estabelecidas intra e intergeracionalmente, também têm lugar nessas
instituições.
Uma segunda implicação dos estudos da infância para a educação refere o
fortalecimento de linhas de pesquisa sobre a pequena infância, uma vez que essa
é uma agenda que, se ainda pouco desenvolvida, envolve compromisso político.
Ainda que avanços tenham sido feitos no campo das metodologias de pesquisa
com crianças, observa-se que a aproximação do pesquisador às crianças que
ainda não falam, que ainda não andam ou que ainda não se manifestam por meio
dos mesmos códigos de comunicação dos adultos tem sido problemática, como
reflete a pouca produção nessa área. A leitura do artigo de Tebet; Abramovicz
(p. 30) pode apontar caminhos para esses estudos; mas, mais do que isso, indica
possibilidades de outras investigações. Um número maior de investigações, com
referencial teórico-metodológico mais apurado, parece ser um caminho para a
consolidação de novos estudos.
Do ponto de vista das políticas públicas, reconhecemos um terceiro aspecto
dos estudos da infância para o campo da educação, qual seja:

Não é possível afirmar que a SI [sociologia da infância] tem tido um forte impacto na
elaboração de políticas públicas, ainda que alguns grupos afirmem suas relações com
o poder público ou sua atuação em instâncias que defendem os direitos das crianças.
Se por um lado a atuação e militância são apresentadas como fatores importantes para
a educação infantil, isso não garante que o paradigma da SI [sociologia da infância]
(James; Prout, 1990) alcance projeção significativa, exceto na referência aos métodos
etnográficos como particularmente úteis para o estudo da infância. (Nascimento, 2013,
p. 130)

Os artigos que compõem o dossiê

Apresentados brevemente os pontos-chave, e alguns dos desafios deles


decorrentes, buscamos compor um dossiê que apresentasse pesquisas nacionais
e internacionais discutindo diferentes aspectos do campo dos estudos da
infância. Consideramos, para a publicação, artigos que revisitassem questões ou
apresentassem pontos de vista que, ao mesmo tempo em que informassem sobre
o campo, pudessem estabelecer novas questões pertinentes à consolidação dos
estudos da infância no Brasil.
O texto de Jens Qvortrup (2002), Visibilidades das Crianças e da Infância, convida-
nos a rever os conceitos de criança, crianças e infância e retomar sua visibilidade,

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obtida historicamente por meio das ciências que dela se ocuparam. Ao mesmo
tempo em que analisa a perspectiva arièsiana de constituição da infância moderna,
e o paradoxo posto de que as crianças eram muito mais visíveis socialmente
quando a infância moderna ainda não havia sido inventada, argumenta sobre a
responsabilidade pública ou privada sobre as crianças, desencadeando reflexão
sobre a dicotomia proteção/participação. A partir de crítica à concepção de
criança, considerada isoladamente, o sociólogo põe em cheque sua necessidade de
proteção, bem como o papel dos pais como seus principais responsáveis, mesmo
frente ao surgimento do estado de bem-estar em alguns países, no século XX, e o
enfraquecimento da responsabilidade pública para com as crianças e a infância.
Trata-se de texto polêmico e desafiador, como costumam ser os artigos desse
pesquisador, sobretudo ao assumir a ambiguidade da visibilidade – se, por um
lado, são criados espaços específicos para a infância moderna (escola, educação
infantil, espaços de recreação, entre outros), por outro, as crianças cada vez se
distanciam mais da vida pública.
Principalmente no Brasil, a temática bebês/crianças/sociologia da infância tem
ganhado fôlego, provavelmente pela relação de proximidade entre a sociologia
da infância e a educação infantil, como referido no segmento anterior. O artigo
de Gabriela Tebet e Anete Abramowicz, O bebê interroga a sociologia da infância,
apresenta um exercício analítico complexo, que confronta a genealogia proposta
por Foucault com o campo da sociologia da infância. Além disso, sugere linhas
para que bebês sejam concebidos de forma singular nos estudos da infância, o que
demanda reconhecer tanto a especificidade dos bebês na tessitura social como as
limitações de uma área de estudo sobre eles.
Raquel Gonçalves Salgado, em Infância, gerações e temporalidades: experiências
de crianças e professoras em diálogo, explora conceitos bastante caros aos
estudos da infância, quais sejam o de geração e o de experiência. A partir de
uma pesquisa empírica realizada no âmbito da brinquedoteca da Universidade
Federal de Mato Grosso, a autora compara e contrasta analiticamente diálogos
sobre experiências de infância de sujeitos pertencentes a diferentes gerações:
professoras de educação infantil e crianças de cinco e seis anos. Esse estudo
permite-nos visualizar experiências diversas e múltiplas e sobretudo a infância
contemporânea conectada aos processos de globalização, o que nem sempre é
fácil de ser compreendido pela geração mais velha. O artigo convida-nos a pensar,
sem dúvida, que a compreensão das experiências e modos de vida das crianças,
intrageracionalmente, é absolutamente necessária para viabilizar uma agenda
política voltada a elas.
Os conceitos interconectados de agência e estrutura merecem atenção teórica.
Phillip Mizen e Yaw Ofusu-Kusi, em Agência como vulnerabilidade: explicando a ida

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das crianças para as ruas de Acra, apresentam insights interessantes. Os autores
reconhecem que o conceito de agência tem sido amplamente utilizado, mas pouco
analisado. E é justamente a pesquisa empírica realizada nas ruas de Acra, Gana,
com crianças trabalhadoras e de rua, que motivará um resultado inovador: os
autores associam vulnerabilidade ao alicerce da agência humana. Essa capacidade
de ação é reconhecida quando crianças deixam suas casas a partir de uma escolha
individual. O artigo apresenta-se especialmente interessante porque rompe com
a ideia intuitivamente construída que posiciona vulnerabilidade como resultado
dos constrangimentos sociais, relacionados à estrutura. Assim, o artigo provê
algumas pistas para pensarmos na pergunta já posta por Bluebond-Langner e
Korbin (2007, p. 243, tradução nossa):

Quando nos distanciamos de uma visão de crianças como recipientes passivos da ação
e atribuímos agência e competência a elas, ou mesmo quando destacamos a agência
e nos distanciamos da visão de crianças como seres em desenvolvimento carentes de
proteção, o que ocorre com a vulnerabilidade?

Manuela Ferreira e Ângela Nunes, em Estudos da Infância, Antropologia e


Etnografia: potencialidades, limites e desafios, apresentam um trabalho primoroso
de inventariado no campo da antropologia, associado à consolidação dos estudos
da infância e sobretudo à defesa pelo uso da etnografia nos estudos conduzidos
com crianças. O texto considera um conjunto de referências antropológicas no
estudo da infância, incluindo a clássica escola de cultura e personalidade, mas
mais do que isso propõe-se a analisar criticamente o emprego de metodologias
e métodos que talvez venham sendo tomados como dados na pesquisa com
crianças, mas que devem ser discutidos e analisados. As autoras trazem ainda
contribuição para um aprofundamento da reflexão sobre o segundo e o terceiro
pontos-chave destacados anteriormente, a saber: a agência das crianças e suas
vozes, respectivamente.
No artigo Perspectivas de crianças acolhidas institucional sobre suas famílias
de origem, Fernanda Müller inspira-se na etnografia para mapear trajetórias de
abrigamento de seis crianças, três duplas de irmãos, que mantêm vínculos com
suas famílias. Essa permanência prolongada no campo motivará a elaboração de
procedimentos metodológicos que visam sobretudo à escuta atenta às crianças.
O texto explora a relação entre essa escuta no campo da pesquisa e suas
potencialidades no campo da elaboração de políticas integradas para a infância e
a família, o que remete à “necessidade da pesquisa da infância em desenvolver e
praticar métodos novos e ‘orientados à criança’ a fim de incentivar as crianças a
apresentarem suas próprias imagens e representações de suas vidas” (Corsaro,

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2011, p. 68). Ainda que com abordagem e análise distintas, o artigo que se segue
evoca a mesma citação.
Os desenhos das crianças como linguagem e expressão são o objeto do texto de
Marcia Aparecida Gobbi, Mundos na ponta do lápis: desenhos de crianças pequenas
ou de como estranhar o familiar quando o assunto é criação infantil. O texto apresenta
os desenhos das crianças em sua relação com os estudos da infância, focalizando
o desenho numa perspectiva multidisciplinar, na qual os campos da sociologia e
antropologia dialogam com estudos da educação em abordagens historiográficas.
A autora revisita desenhos de mais de dez anos e, de modo objetivo e ao mesmo
tempo instigante, propõe um novo modo de ver o desenho infantil, como registro
histórico e como documento historiográfico. Ao mesmo tempo em que reconhece
questões de ordem estética, desafia-nos a lapidar o olhar para o desenho infantil,
compreendido como manifestação própria da infância.
Para finalizar, cabe retomar os propósitos da organização desse dossiê:
o compromisso com as atividades de ensino e pesquisa desenvolvidas em
universidades públicas e o esforço em consolidar no Brasil o campo dos estudos
da infância. A seleção e a organização dos artigos que compõem este volume
certamente dão conta desses propósitos. Fica o convite à sua leitura.

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Fernanda Müller é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande


do Sul e professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.
É líder do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa sobre a Infância (GIPI). E-mail:
fernandamuller@unb.br.

Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento é doutora em Educação pela


Universidade de São Paulo, professora da Faculdade de Educação da USP, e
coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Sociologia da Infância e
Educação Infantil (GEPSI). E-mail: letician@usp.br.

22 MÜLLER; NASCIMENTO. Apresentação

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