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Preparação de texto
Heyk Pimenta, Ismar Tirelli Neto, Larissa Pinho Alves e Luana Maria | Azougue Editorial
Revisão
Eduardo Coelho, Evelyn Rocha, Letícia Féres e Victor Heringer
Fotografias
Gabriela Barreto, Leo Caobelli, Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes | Garapa Multimídia
Pesquisa
Georgia Nicolau, Fernanda Versolatto e Laura Godoy
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
P956
v.1
ISBN 978-85-7920-046-5
1. Cultura - Brasil. 2. Intelectuais - Brasil - Entrevistas. 3. Brasil - Política cultural. I. Cohn, Sergio. II. Male-
ronka, Fábio.
[ 2010 ]
Beco do Azougue Editorial Ltda.
Rua Jardim Botânico, 674 sala 605
CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJ
Tel/fax 55_21_2259-7712
www.azougue.com.br
azougue - mais que uma editora, um pacto com a cultura
MINISTÉRIO DA CULTURA
Alfredo Manevy
Secretário Executivo
Afonso Luz
Diretor de Estudos e Monitoramento de Políticas Culturais
CINEMATECA
Carlos Magalhães
Diretor Executivo
Leopold Nosek
Vice-Presidente da Diretoria Executiva
Os depoimentos reunidos nestes livros – bem como os materiais audiovi-
suais relativos, à disposição de todos, na internet – são esclarecedores e to-
cantes. São testemunhos de como se realiza a arte e a cultura no Brasil, não
apenas nos anos mais recentes, mas ao longo das últimas décadas. A escolha
dos entrevistados reflete esse interesse comparativo e reflete a disposição
de ouvir diferentes gerações, profissionais de múltiplas procedências, com
variada formação, variadas trajetórias e experiências complementares. Essa
diversidade constitui a riqueza desta série, sobretudo quando considerada
em seu conjunto, aliás, sem precedentes na vida cultural brasileira.
Sabemos que o Brasil é um país multifacetado, com particularidades e
disparidades regionais e locais. Um país cuja compreensão exige de nós um
olhar aberto para essas variações. Num projeto como este, este olhar é fun-
damental. Se aquilo que está em questão é tentarmos compreender a com-
plexidade de uma cultura e seus modos de elaboração, isso é impensável
sem um cuidado especial, sem um olhar atento para essa diversidade.
Nesses cinco volumes, todos temos a oportunidade de conhecer melhor
figuras estruturais do sistema artístico e cultural brasileiro. Seus leitores te-
rão também a opotunidade de reencontrar antigos conhecidos – além de
poderem conhecer os “novos”, os que surgiram na cena da nossa produção
cultural mais recente. Desses contrastes e dessas perspectivas faz-se a for-
ça da produção artística e cultural brasileira, de nossos artistas, produtores,
técnicos, pesquisadores e gestores de instituições públicas e privadas.
A política cultural brasileira atingiu um nível inédito de formulação, base
para o surgimento de instrumentos de planejamento e marcos legais que
fortaleçam as instituições culturais brasileiras e tornem os dispositivos de
financiamento à arte e à cultura, bem como o sistema de propriedade inte-
lectual, capazes de enfrentar os desafios do Século XXI.
Nada disso seria possível, contudo, sem o intenso e extenso diálogo que a
série Produção Cultural no Brasil representa, como conquista, sim, de todos
os que estão presentes no projeto, mas também dos milhares de profissio-
nais eventualmente ausentes desse recorte.
Nossos aplausos para todos eles!
GEStores culturais
Juca Ferreira
Ministro da Cultura – 2008-
17
Gilberto Gil
Ministro da Cultura – 2003-2008
25
Francisco Weffort
Ministro da Cultura – 1995-2002
33
Alfredo Manevy
Secretário Executivo do Ministério da Cultura
45
Márcio Meirelles
Secretário de Cultura do Governo da Bahia
67
Claudia Leitão
Ex-Secretária de Cultura do Governo do Ceará
97
Joãozinho Ribeiro
Ex-Secretário de Estado da Cultura do Maranhão
107
INSTITUIÇÕEs culturais
Heitor Martins
Presidente da Fundação Bienal de São Paulo
119
Fábio Coutinho
Superintendente cultural da Fundação Iberê Camargo
141
Gérald Perret
Presidente da Sociedade de Cultura Artística
149
Lárcio Benedetti
Gerente de desenvolvimento sociocultural do Instituto Votorantim
159
José Martins
Diretor do Instituto Gerdau
169
Eduardo Saron
Diretor superintendente do Itaú Cultural
185
Luciane Gorgulho
Chefe do Departamento de Cultura, Entretenimento e Turismo do BNDES
203
Roberto Smith
Presidente do Banco do Nordeste
211
Décio Coutinho
Gestor Cultural do Sebrae de Goiás
227
Ana Toni
Representante do Escritório Brasil da Fundação Ford
237
Gilberto Freyre Neto
Coordenador geral de projetos da Fundação Gilberto Freyre
249
Carlos Dowling
Diretor da Associação Brasileira de Documentaristas - seção Paraíba
257
CRÉDITOS GERAIS
269
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APRESEN
TAÇÃO
Afonso Luz |
Diretor de Estudos e Monitoramentos |
Secretaria de Políticas Culturais
Produzir cultura significa muitas vezes criar condições para que ela exis-
ta e prospere, fazendo com que os profissionais ali envolvidos operem do
plano mais elementar ao mais sofisticado dos níveis. Sendo que, muitas ve-
zes, uma única pessoa precisa se desdobrar em inúmeras funções e até mes-
mo inventar, de maneira informal, seus postos de trabalho. Este parece ser
um dos nossos maiores estigmas na sobrevivência através das adversidades
marcadas no tempo eivado de crises e contratempos. Como diz um amigo,
“no Brasil, não basta que sejamos artistas bons, precisamos ser um pouco
empresários, financiadores, instituições e até críticos de nós mesmo, isso
para que as coisas funcionem direito”. Por outro lado, esta situação pode-
ria ser tomada por alguns analistas como algo positivo, uma vez que nossa
baixa capacidade de estruturação e fixação de sistemas produtivos nos põe,
ironicamente, à frente de muitos países no momento em que vivenciam for-
te crise. Nesta hipótese, nossa precariedade também pode significar uma
“versatilidade benéfica” que acaba parecendo atual nesse mundo organiza-
do em torno do trabalho altamente flexível. Aqui, como diz a expressão, so-
mos “pau-pra-toda-obra”, desde sempre. Mas precisamos olhar para o futu-
ro, porque nossos potenciais só frutificarão verdadeiramente se soubermos
construir novos modelos levando em conta vantagens e desvantagens lo-
cais, ou melhor, se conseguirmos construir ambientes de empreendedoris-
mo e trabalho adequados à economia da cultura em toda a nossa diversifi-
cada extensão brasileira, absorvendo diferenças territoriais, populacionais,
simbólicas e históricas.
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Creio que hoje vivenciemos um período de transição, a meu ver, mais
adequado e que dignifica os profissionais da cultura, uma vez que vamos
superando as primeiras modalidades épicas de instauração de um sistema
cultural nos trópicos deveras regionalizado, quando não fechado em con-
textos absurdamente locais, com suas demais tragédias decorrentes. Esta-
mos prestes a chegar a níveis básicos de formalização dos empreendimen-
tos em termos modernos, com graus de formação e capacitação continuada.
No último período tivemos significativas adoções de medidas como, por
exemplo, o enquadramento tributário dos CNPJs no simples, o que dá novos
recursos ao nosso universo produtivo. Esta constante evolução é algo neces-
sário aos negócios no campo da economia da cultura, no sentido de criar
perfis mais gabaritados para um novo agente capaz de dinamizar seu setor;
familiarizado com seus meios globais e conhecedor do repertório estético
do campo que se atualiza. Do mesmo modo, este agente precisa dominar
as expectativas sociais de um público consumidor traduzidas em números
e indicadores, assim como as leis e normativas que regem e regulam sua
atividade, para não “comer bola” num complexo sistema de financiamentos
e contratos. Hoje, o produtor cultural – desde a escola até o escritório de
negócios – já vai dominando um jargão conceitual e uma habilidade técnica
que supomos cada vez mais generalizadas, conhecendo melhor como fun-
cionam seus meios congêneres, como atuam seus colegas nos sistemas e
meios análogos ao seu em outros cantos do país e do mundo.
Mas será que faremos mesmo bem esta passagem do artesanato produ-
tivo semiarcaico para as indústrias criativas contemporâneas? Conseguire-
mos nos transformar sem perder alguns dos diferenciais que nos animaram
simbolicamente a inventar soluções econômicas fantásticas, a exemplo das
aparelhagens do tecnobrega paraense ou dos bailes funk carioca? Como
podemos nos profissionalizar e misturar desabusadamente modelos pro-
dutivos ocidentais em benefício do atendimento às realidades de consumo
heterogêneas que caracterizam nosso mercado interno? Eis uma série de
questões que parecem ser flagradas neste conjunto inusitado de entrevistas,
dentre tantas outras que nos dão o que pensar, e muito! Este foi o propósito
maior deste projeto; além de estudar economicamente o campo e suas ca-
deias de agregação de valor com pesquisadores e economistas, pensamos
que seria necessário ouvir expoentes significativos das diversas gerações
que aqui atuam, numa espécie de amostragem qualificada do todo que é
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bem mais amplo do que o recorte de nomes que elegemos aqui, mas que
nos dá grandes exemplos do que acontece. Este é um desafio inerente a uma
gestão governamental que tem na democratização e no diálogo um dos seus
esteios mais estruturantes, e que pensa a política cultural de forma partici-
pativa sem desprezar as diferenças de acúmulos e as hierarquias de valores
que existem historicamente nos campos artísticos e nos segmentos cultu-
rais, buscando sempre acolher diversificadamente os graus de contribuição
que cada agente pode dar.
Esta ação – que esperamos ver continuada nos próximos anos – deve ge-
rar também um documento de grande importância para a história futura e
a memória presente de nossos meios. Estamos aqui afirmando o propósito
que, desde o início da gestão de Gilberto Gil sob o governo Lula, alimentou
a equipe do MinC: desenvolver a economia da cultura como agenda estraté-
gica para o país que queremos amanhã. Estamos aqui falando de um vetor
decisivo na estabilização sustentável de nosso grau de crescimento e inter-
nacionalização: o fator humano da criatividade. É ele que vai facultar uma
crescente evolução de nossos produtos e serviços, assim como da incorpo-
ração de trabalho e tecnologias frente ao mercado global, gerando assim a
tão desejada inovação que nos fará mais competitivos e mais ricos social-
mente, como já nos apontava o Ministro Celso Furtado.
Neste ano de 2010 a Secretaria de Políticas Culturais abriu agendas es-
tratégicas com os setores de moda, design, arquitetura, artesanato e cultura
digital. Já podemos ver aqui depoimentos de algumas das figuras pionei-
ras que nos ajudaram a compreender a importância destes novos segmen-
tos, uma vez que sua atuação no horizonte cultural se intensifica cada vez
mais. Mas creio que ainda precisamos avançar mais e mais, e seria talvez um
apontamento para uma futura extensão do projeto na captação de novos
materiais e depoimentos, já que aqui ainda é escasso no reconhecimento
da importância de nos voltarmos também para estas áreas. Hoje temos um
programa junto ao Fundo Nacional de Cultura que ganhou o nome Culturas
Urbanas e Cidades Criativas para abrigar a agenda destes cinco setores; eles
serão atores vitais ao projeto das doze capitais das cinco regiões brasilei-
ras tornarem-se espaços internacionais e metrópoles contemporâneas no
calendário que envolve Copa do Mundo e Olimpíadas no Brasil. Creio que
os produtores culturais de todos os setores consolidados e reconhecidos há
décadas como arte e cultura, como a música, o cinema, o teatro, a dança, as
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artes visuais, a literatura e mesmo as culturas tradicionais e as cosmologias
étnicas, podem se beneficiar enormemente com a incorporação da moda e
do design tanto quanto do artesanato e da cultura digital, como dinâmicas
transversais e complementares a eles, sem falar na arquitetura.
Gostaria de agradecer a equipe empenhada neste empreendimento da
maior importância e deixar que cada um de vocês parta para a deliciosa lei-
tura dos personagens que fizeram, fazem e farão a história da produção cul-
tural no país. Os que sentirem, ao final, a falta de alguns importantes nomes,
não deixem de nos apontar. Descrever um fenômeno vivo como este requer
a visada e a audição de todos; sem dúvida seu depoimento será compilado
quando uma nova fase do projeto vier a público.
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Juca Ferreira
Gilberto Gil
Francisco Weffort
Alfredo Manevy
José Luiz Herencia
GESTORES
CULTURAIS
Márcio Meirelles
Carlos Augusto Calil
Daniel Zen
Claudia Leitão
Joãozinho Ribeiro
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16
Juca
Ferreira
Ministro da Cultura 2008- .
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pública, é um termo que está na moda, mas não sei o que é”. E nos obrigou a
aprofundar o conceito: como é que define ação do Estado, ações, programas,
políticas e qual é o papel do estado. Até onde o estado deve ir, onde não deve
ir. Isso foi muito amadurecido. Tanto é que por mais que os que são contra
as reformas, os que se beneficiam da situação anterior, de dinheiro sendo
disponibilizado sem critério, vêm para cima da gente falando em dirigismo
e tal, não convence. O projeto não é dirigista, nem é do Estado sufocando a
iniciativa privada ou a iniciativa da sociedade. O projeto é o contrário, é o
empoderamento da sociedade, desenvolvimento de um acesso pleno à cul-
tura, de uma economia cultural importante e criação de uma infraestrutura
e uma regulação para que a cultura se desenvolva plenamente.
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Ministério da Cultura. Isso é um escândalo. É um estrangulamento, é matar
no nascedouro as possibilidades culturais. E é claro que as mudanças nesse
panorama que propusemos não acontecem sem resistências. Quando nós
quisemos revitalizar o cinema brasileiro, houve uma luta para que o dinheiro
só ficasse no Rio e São Paulo, e nós tivemos que lutar por essa abertura. Teve
um dia muito bonito, no Teatro Leblon, primeiros meses de Governo Lula. O
teatro estava cheio, dava para pedir autógrafo para mais da metade do público.
Era todo mundo gente fina, todos artistas consagrados, conhecidos, muitos
populares através das novelas. E Gil disse: “Olha, vocês terão que acostumar
com a ideia que eu vou distribuir esse dinheiro para o Brasil inteiro. Não se
justifica que 80% do dinheiro fique em apenas dois estados. E aí um rapaz
levantou o dedo lá e disse: “Ministro!”, aí Gil passou a palavra para ele que
disse: “Olha, não diga mais que 80% do dinheiro fica no Rio e São Paulo,
porque eu dirijo o maior complexo cultural da Baixada Fluminense e a gente
nunca viu um tostão do Ministério da Cultura. Dentro daqui, o processo de
concentração é tão grande que reproduz o mesmo processo de concentração
em relação a esses dois estados.” Então entedemos que isso era fundamental.
Temos que, primeiro, nos relacionar com todas as formas de cultura, todas elas
vale a pena. Temos que nos relacionar com todas as manifestações, matrizes,
singularidades, linguagens. O corpo simbólico brasileiro é muito mais amplo
até do que só arte. É preciso considerar tudo: moda, design, manifestações
tradicionais, valores, tradições cromáticas. A leitura que o povo da Bahia faz
das cores é completamente diferente, porque tem uma influência nitidamente
africana. Tudo isso é parte da nossa riqueza e pode ser potencializado se for
assumido sem discriminação, sem preconceito. Essa lucidez inicial de alargar
o conceito de cultura, de assumir a diversidade cultural brasileira, foi o que
possibilitou toda generosidade posterior. Porque, quando a gente foi pensar
construção de política pública, já estava meio consolidado, dentro do Minis-
tério e para fora, na nossa relação com o mundo cultural e com a sociedade,
que nós trataríamos com a mesma relevância as manifestações culturais de
todo território nacional. Hoje, eu vejo publicidade falando dessa diversidade
cultural. Isso tornou-se visível no Brasil. Já é um motivo de orgulho. Essa é
uma pequena contribuição que nós demos. Não é que nós tenhamos sido os
primeiros, mas nós escancaramos. Nós viemos aqui para escancarar, abrir
todas as portas e permitir que isso acontecesse permanente.
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O Plano Nacional de Cultura é uma forma de institucionalizar esse
processo.
Não só o Plano Nacional de Cultura. Tudo que a gente tem feito. Os nossos
editais têm disponibilizado dinheiro para todo mundo. Quando nós começa-
mos a abrir a política de cinema, foi uma chiadeira enorme. Tentaram inventar
uma teoria econômica de que o cinema precisa de uma infraestrutura. Claro,
precisa de uma infraestrutura. Mas cada vez menos, diga-se de passagem,
porque o cinema brasileiro nunca será baseado em grandes estúdios, como
é o cinema americano. Mas mesmo considerando essa necessidade, que é
real, de concentração tecnológica, a criatividade tem que ser nacional. A
cinematografia brasileira tem que refletir Pernambuco, tem que captar Rio
Grande do Sul, a Bahia, Amazonas. Então, essas ideias tiveram resistências,
algumas bastante violentas. E Gil foi de uma grandeza enorme. Foi um acer-
to do Presidente Lula ter trazido o Gilberto Gil para o Ministério. Ele é um
grande artista popular, um artista reconhecido e querido pela população
brasileira, um dos mais populares. E usou todo o seu capital simbólico para
apoiar essas mudanças. No início, era um momento de inflexão mesmo, um
momento de botar todas as fichas nessa mudança de conceito. Nós saímos
de uma situação a qual o Estado não tinha nenhuma responsabilidade, para
ser um desbravador, ser quem tem aberto, nesses anos, as portas para que a
cultura brasileira seja generosa com todos.
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duro. Toda denúncia contra o Ministério nós passamos imediatamente para
a Polícia Federal, que procederam em todas as investigações, independente
de quem estava sendo acusado. Isso não significava uma adesão à acusação,
mas uma possibilidade de investigação, de, inclusive, liberar a pessoa que
estava sendo acusada para que não ficasse uma suspeição sem consequência,
um enfraquecimento da pessoa. E isso tem servido como um paradigma. Nós
construímos uma coesão do Ministério em cima de um programa político,
mas em cima também de uma postura diante da coisa pública. Nós fomos
muito além da média nesse grau de compromisso republicano com a coisa
pública. Isso foi fundamental para o acerto do Ministério.
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século XXI. E o mundo está demandando isso. A curiosidade em relação à
cultura brasileira, o que pensamos, os nossos valores, é enorme. Nós temos
uma imagem muito boa no mundo. As pesquisas indicam que é um dos paí-
ses que tem a melhor imagem no mundo, por nossa cultura e singularidade.
Nós demonstramos, na formação do Brasil, uma capacidade de superar
certos limites que o ocidente tem, por exemplo, em relação ao corpo. Aqui
o corpo existe, tem inteligência, tem exuberância. E é preciso sistematizar
isso como parte da nossa identidade, diferentemente de países cheio de
taras repressivas, onde uma criança de nove anos encosta num outro na fila
e pode ser processado por assédio sexual, pelo temor que eles têm de liberar
essa energia vital, tão importante, que é a energia sexual. Então, o Brasil tem
conquistas, tem riquezas acumuladas e precisa ter orgulho disso. E tem que
produzir culturalmente. É importante montar uma indústria cultural sólida
no Brasil, que tenha, em termos econômicos, a mesma importância que tem
os commodities, que tem a indústria tradicional e os serviços tradicionais.
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nas nossas portas. Essa inclusão ainda é precária, é preciso consolidar de
fato, abrir a economia, abrir a educação pra que todos tenham acesso, pos-
sibilitar que a economia supere as amarras atuais. Uma delas é essa tradição
de se basear apenas no agronegócio. E nem a indústria automobilística. É
preciso diversificar, é preciso compreender, ter um pensamento estratégico.
E a economia cultural, a economia criativa como um todo, é importante. É
a segunda economia norte-americana desde o meado do século passado. É
a terceira na Inglaterra. Ou seja, nós não estamos inventando nada, apenas
temos que entrar em uma escala de um tipo de economia de valor agregado,
que até hoje é secundarizado porque não nasce de geração espontânea. Nos
Estados Unidos, foi fruto de uma ação pactuada entre o estado, os empre-
sários e os criadores, no sentido de desenvolver a economia do cinema e a
economia da música. E a gente precisa entrar nessa também. Então, os que
ficam defendendo seus “privilegiozinhos” não resistirão ao impulso do capital
internacional, que está batendo nas portas brasileiras. O capital internacional
já percebeu que o mercado brasileiro é significativo e que a economia brasi-
leira tende a viver um processo de crescimento por pelo menos duas décadas.
Então, é preciso que os agentes econômicos nacionais, os agentes políticos,
as elites brasileiras, percebam que é preciso pensar o Brasil com grandeza e
não apenas como escravo do passado. É preciso que a economia da cultura se
torne uma economia pujante no Brasil, não só no mercado interno brasileiro,
mas no mercado internacional.
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Gilberto
Gil
Ministro da Cultura – 2003-2008.
Qual foi seu primeiro contato com a produção cultural? Você começou
produzindo seus próprios shows?
Não, não comecei produzindo meus próprios shows. Meu primeiro en-
contro com a produção artística, com essa interface teatro/música, deu-se
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através do pessoal do Teatro dos Novos, em Salvador. Nesse primeiro grupo
– que contava com Caetano, Bethânia, Gal, Tom Zé – atuei não só como mú-
sico e compositor, mas também ajudava a conceituar as apresentações, e me
inteirava da questão cênica também, que envolvia todo um mundo até então
desconhecido: iluminação, cenário, cenografia, figurino. Os primeiros con-
tatos com essas várias dimensões e aspectos da produção artística deram-se
ali em Salvador, a partir da formação desse grupo. Quando da inauguração
do Teatro dos Novos, o diretor da Companhia Teatro dos Novos pediu que
nós fizéssemos um show para a ocasião, e foi aí que surgiram esses primeiros
contatos: a escolha dos temas, do repertório, a composição de canções. Ro-
berto Santana, que era ligado a teatro, veio fazer a direção. Caetano também
já era ligado ao teatro naquela época – inclusive, já tinha desenvolvido um
trabalho de música para teatro com Álvaro Guimarães – e tinha muito mais
gosto por aquilo tudo do que eu. Havia João Augusto, Roberto Santana, Cae-
tano. Bethânia também já era muito interessada por toda essa dimensão da
dramaturgia na música. Esses ingredientes todos estavam presentes naquela
primeira produção, que foi o Nós, por exemplo, em Salvador. Em seguida,
vieram outros shows individuais de cada um, que nos colocavam novas ques-
tões cenográficas, musicais, práticas etc. Foi como um treinamento. Durante
aquele período – 1964 a 1965, mais ou menos – travei esse primeiro contato
com o universo da produção musical. Era um processo coletivo, todo mundo
palpitava, segundo suas afinidades. Eu, por exemplo, me restringia mais às
questões propriamente musicais, mas não deixava de me impactar por todas
aquelas outras dimensões da feitura de um show.
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universos. Por exemplo, muito do teatro que se fez no Brasil durante esse
período – e depois – fortaleceu-se de artistas que haviam cumprido seus
estágios na televisão, de tal modo que a relação televisão/teatro acabou
se caracterizando por uma profunda interdependência. Quanto à música,
houve o caso dos festivais, que revelaram novos cantores, compositores e
acabaram fornecendo uma base para todo o esparramamento posterior que
a música teve para outros territórios. Evidentemente, há também uma série
de manifestações que, por várias razões, passaram ao largo da televisão, ofe-
recendo uma alternativa ao mainstream. Também isso vai se fortalecendo.
O registro de fenômenos como o Dzi Croquettes, ou até mesmo os Doces
Bárbaros, ficou a cargo do cinema e do disco. Há centenas de exemplos
dessa cultura à margem, que não vinha da televisão nem do show business
mais arrumado.
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agora me envolvia numa gestão municipal, sob a égide de um prefeito, um
homem político. Presidi a Fundação por um ano. Ser vereador desdobrou-se
disso tudo, como disse. O grupo achava que poderíamos postular uma can-
didatura a prefeito, mas acabou não dando certo. Naquela época, eu tinha a
opção de voltar diretamente a meu trabalho artístico ou continuar servindo
ao projeto de alguma maneira, tentando desenvolver um pouco mais seu lado
político. Como poderia fazê-lo, naquele momento? A serviço da Câmara de
Vereadores, onde fiquei por quatro anos.
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ção de um querer, uma vontade. Mas eu não estava mais pensando em nada
disso quando recebi o convite. Não tinha mais vontade de trabalhar a gestão
criativa em política. O presidente Lula que foi eleito e me chamou. Do nada,
da cabeça dele. O PT fez uma pressão danada, mas Lula acabou ganhando a
queda de braço.
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uma reorganização. Fizemos um novo organograma logo após a criação das
secretarias e a separação de algumas dessas coligadas. Era um Ministério
desarrumado e destituído de uma visão clara da nova complexificação da
questão cultural no Brasil. Afinal, novas tecnologias geram novos problemas.
Essas tecnologias – nominalmente digitais – já eram exaustivamente utilizadas
pela produção cultural, e o Ministério ainda não olhava propriamente para
o impacto disso na questão autoral. Era um ministério diferente do que eu
imaginava que devesse ser, e diferente daquilo que esperava o presidente Lula.
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sul-americanos. Foi um trabalho forte para que a convenção da diversidade
cultural fosse aprovada. Depois, o Ministério continuou a lutar para que os
países a reconhecessem. No desdobramento desse ativismo internacional,
promoveu-se todo um conjunto de atividades de intensificação cultural com a
ONU, a Unesco, organismos sul-americanos e pan-americanos. Esse trabalho
de identificação de um protagonismo popular cultural até então encoberto,
não propriamente visível, que precisava vir à tona. O programa Cultura Viva
e os Pontos de Cultura, bem como todas as suas variantes, começaram a dar
conta desse mundo submergido, que é a produção cultural popular. Além
disse, houve também o trabalho na área do cinema, com o fortalecimento
da Ancine. Conseguimos retirá-la do âmbito do Comércio e da Indústria e
trazê-la para o Ministério da Cultura, o que proporcionou – com a criação da
Secretaria do Audiovisual – a promoção de uma interação, de uma parceria
importante entre a Secretaria e a Agência, no sentido de dar ao cinema um
panorama novo, uma porta de reentrada no Ministério e no Governo, com
o fortalecimento das políticas de financiamento. As políticas de distribuição
foram mais discutidas, assim como a questão dos déficits de sala de cinema no
país. Uma coisa importante foi o desenvolvimento da área de política digital.
O Ministério da Cultura começou a se preocupar com as novas tecnologias
da comunicação, das telecomunicações, as novidades nesse campo e todas
as questões relativas a ele. A criação de uma diretoria de cultura digital no
Ministério foi muito importante, inclusive do ponto de vista regulatório. E
houve também movimentos pontuais: criar o Sistema Nacional de Cultura.
Criar junto com o Congresso Nacional um plano nacional de cultura. Rever a
lei do Direito Autoral. Assumir a necessidade de fortalecimento da televisão
pública no Brasil. Assumir as responsabilidades do governo com relação à
TV digital, e tantas outras.
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32
Francisco
Weffort
Ministro da Cultura – 1995-2002.
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de São Paulo, mais recente do que em outros estados, ou pelo menos mais
recente do que no estado do Rio de Janeiro.
O grande teórico marxista que nós tínhamos em São Paulo era o Caio Prado
Júnior, que era vivo, um historiador importante, mas que não era membro da
universidade. Então, dentro da universidade mesmo, o marxismo passa a ser
adotado, como matéria de reflexão, com esse grupo de estudo. Era um grupo
pequeno, formado por José Arthur Giannotti, Fernando Henrique Cardoso,
Paulo Singer e alguns poucos alunos, entre os quais Roberto Schwarz, Michel
Löwy, eu e Fernando Novaes. Pegamos O capital, que são três volumes im-
portantíssimos, complexos, e passamos praticamente três anos lendo o texto.
Não tinha nada o que fazer, quer dizer, era uma gente jovem, o Brasil era um
país mais calmo, mais pacífico, ninguém estava fazendo política, então de 15
em 15 dias as pessoas se reuniam. Um lia um capítulo, o outro comentava, e
passávamos duas ou três horas trabalhando aqueles textos. Basicamente, a
formação intelectual de várias dessas pessoas vem desse grupo, embora nem
todos tenham virado marxistas. Isso deu um caminho para a política, mas
essas pessoas, na verdade, não faziam política, porque as alternativas políticas
que existiam na época eram aquelas que o quadro brasileiro apresentava, que
não interessavam àqueles intelectuais que tinham uma visão mais crítica.
Eu entendo que a participação política dessas pessoas não se deu como tur-
ma, mas individualmente. O Fernando Henrique sempre foi um fulano que
participava de atividades políticas e administrativas da universidade. Ele era
representante dos auxiliares de ensino, do conselho universitário. Hoje isso é
rotineiro, mas na época tinha muita importância, até porque não havia essa
tradição de jovens universitários assumindo essa responsabilidade. Ele era um
cara importante, do ponto de vista político, por causa disso. Era um homem
de esquerda, sempre foi. Ou seja, o caminho para a política foi individual e
ocorreu, na verdade, em fins dos anos 1970 e início dos anos 1980.
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mento notável. Provavelmente, o primeiro grande movimento dirigido pelo
Lula, que já vinha participando com outros sindicalistas de uma renovação
sindical no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Então são várias
coisas que vão ocorrendo na sociedade e que levam a uma discussão sobre
que tipo de partido se criaria quando se restabelecesse a democracia. Havia
diversas propostas, o Partido Socialista, uma reforma do MDB, e também um
Partido dos Trabalhadores.
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de tal forma, que houve uma polarização totalmente inesperada no segundo
turno, entre Lula e Fernando Collor. É preciso lembrar que, na passagem do
primeiro para o segundo, a diferença entre a votação do Lula e a do Brizola foi
de menos de 1%. Então, no segundo turno, Lula concentra a atenção de todos
que estavam daquele lado. Foi uma grande surpresa. O processo eleitoral como
um todo foi uma surpresa, e a eleição do Collor foi, ainda, menos surpreendente
do que o Lula ter ido para o segundo turno. As pessoas que têm a imagem do
Lula como “Lulinha paz e amor” deveriam se lembrar do que foi o Lula em
1982 e 1989, porque ele aparecia como uma figura muito mais ríspida, radical.
O Collor também tinha a sua maneira de ser radical, porque ele falava contra
os marajás. Foi nessa atmosfera radical que se deu a eleição de 1989.
Professor, quando o senhor foi chamado para ser ministro, o que en-
controu quando chegou ao Ministério?
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Quando eu cheguei ao Ministério, encontrei a Lei Rouanet e a Lei do
Cinema, que eu acho que são leis importantes, com todos os defeitos que
possam ter. Encontrei algumas experiências deixadas pelas administra-
ções anteriores. Por exemplo, programa de bandas de música, uma pro-
posta de recuperação da documentação histórica brasileira na Europa,
do período dos descobrimentos até a independência – uma proposta extre-
mamente interessante, que nós implementamos. Encontrei frangalhos nas
instituições do Ministério da Cultura, especialmente a FUNARTE, que é uma
grande instituição, e um clima na área da cultura de muita desesperança. Exa-
tamente o que o período Collor deixou de mais forte, à parte a Lei Rouanet,
foi um clima de depressão. As pessoas que já acreditavam pouco passaram a
acreditar menos ainda, então foi preciso recuperar isso. O período da minha
administração foi de um grande esforço em recuperar a possibilidade de um
Ministério da Cultura, porque desde sua fundação até a minha chegada nove
ministros tinham passado por lá, em um período de oito anos. Tinha ministro
que ficava seis meses, outro que ficava três meses, era uma coisa muito frag-
mentada, muito parcelada, muito sem rumo. Nós fomos capazes de acreditar
e de fazer com que acreditassem que era preciso ter um Ministério da Cultura.
37
ça brasileira, conservadoríssima e tradicionalíssima, para as coisas modernas
que viessem. Então, até hoje, nós temos uma visão de política cultural que é
muito inspirada naquela época. Quer dizer, patrimônio histórico, defesa da
tradição cultural, defesa da memória histórica nacional, e este projeto, que
depois nós realizamos, de recuperação de toda a documentação histórica
brasileira. Então, seria sempre um esforço de garantir a tradição, recuperar a
memória, afirmar a identidade e abrir-se para as inovações que possam surgir.
Outro ponto que deveria ser acrescentado à presença do Estado, e à presença
do mercado através dos incentivos, seria o desenvolvimento de uma política
de Estado na área da cultura, visando o mercado como mercado, porque há
um mercado de cultura no Brasil que não é bem avaliado. Tem que ter um
olho para o crescimento do mercado da cultura, para que o Estado tenha
responsabilidades tanto com a proteção que tem que dar às tradições da
cultura brasileira, quanto em colaborar com a empresa privada nos projetos
e estimular o desenvolvimento. A cultura enquanto mercado é uma indústria.
Nós temos que ter uma política industrial voltada para a cultura, para o livro,
para a codificação das obras de arte.
38
companheiro dele de partido mais próximo em ideias, porque, por exemplo,
se eu sou professor, vou buscar votos nas pessoas que foram meus alunos, do
mesmo modo o meu colega do partido que tem ideias semelhantes.
39
política de cultura. Tem que ter os dois. Se só tiver a dedução fiscal, vai ter muito
mais política de cultura para o eixo Rio–São Paulo do que para o resto do Brasil,
porque 80% dos benefícios fiscais ficam na região que tem maior mercado. Se
só tiver o fundo de cultura, se criará um pequeno gueto e, no correr do tempo,
haverá uma triste distribuição de minguados recursos para os amigos de chope.
Não é sério. A melhor coisa a fazer é tentar aprimorar os mecanismos de um
lado e de outro, democratizar, abrir mais e, sobretudo, conseguir mais recursos.
Muito dessa polêmica entre dedução fiscal de um lado e fundo de cultura do
outro vem da discussão da margem, da marginália do orçamento, do pessoal
que ficou com zero vírgula zero não sei quanto do orçamento. Tem que haver
uma significação financeira maior, para que essa discussão seja mais produti-
va, criar políticas para realmente fazer com que o Estado tenha capacidade de
estimular o mercado. A música popular brasileira, por exemplo, é reconhecida
no mundo todo, mas isso não tem relação com a nossa significação em termos
de mercado. Precisamos ter uma política que jogue isso para o mundo. Os
norte-americanos fazem isso, por que nós não podemos fazer?
40
O cinema sempre foi uma preocupação da política de cultura do Brasil,
desde o período do Juscelino. O período militar teve um cinema expressivo
para as condições brasileiras. Depois ele cai e começa e ser recuperado no
governo Itamar. Na minha opinião, há um problema de falta de política de
mercado. Na Argentina, por exemplo, o público de cinema é maior que no
Brasil. Não é porque eles são mais ricos, pelo contrário: para a miséria dos
argentinos, hoje eles são mais pobres. Então eu acho que precisamos discutir
essas políticas com clareza, com franqueza.
41
de participar da cultura. Quando eu vejo alguém com autoridade na área do
Ministério da Cultura fazendo críticas à Lei Rouanet, eu imagino quanto dinhei-
ro está deixando de entrar de empresas que poderiam participar da atividade
cultural e ficam inibidas. Deixa eu dizer o seguinte: empresa não participa de
atividade cultural; quem participa é um cidadão que está dentro dela, porque
a empresa que produz pneu de automóvel não está preocupada com cultura.
O objetivo dela é produzir pneu, mas tem um fulano lá dentro que é, por uma
razão qualquer, fanático por cultura. Apesar de ser diretor comercial, quer aju-
dar, e tem a possibilidade de ajudar. Ele é um numa diretoria de 12, vamos dizer.
Então é preciso criar um clima na área do Ministério da Cultura para que essas
pessoas sejam recebidas adequadamente, porque, por exemplo, se você ganha
um prêmio de cultura de alguma empresa e não sai divulgando que ganhou o
prêmio dela, a empresa para de dar o prêmio nos anos seguintes.
42
Agora verifique as que efetivamente participam. O problema das políticas
de cultura no Brasil é conquistar empresas para participar do processo
cultural brasileiro por meio da renúncia fiscal, aumentando, portanto,
os recursos que podem ser utilizados para o desenvolvimento cultural. Nós
batalhamos para conseguir o dinheiro do Banco Interamericano de Desenvol-
vimento para a recuperação do patrimônio cultural brasileiro. Um dinheirão,
para as condições brasileiras. Eu estava contente porque achava que nós íamos
aumentar o orçamento, mas não: na cabeça da equipe econômica, o dinheiro
que entrava de empréstimo ano a ano não aumentava o meu teto. Ele entrava
suprindo uma entrada que o tesouro deixava de fazer, ou seja, mesmo dentro
do Estado existe uma ótica segundo a qual a cultura é secundária. Mesmo que
a cultura consiga dinheiro para aumentar o seu próprio orçamento, chega um
momento em que o sujeito acha que tem coisas mais importantes para fazer.
43
44
Alfredo
Manevy
Secretário Executivo do Ministério da Cultura.
45
Não há um continente no mundo que não tenha deixado uma marca mui-
to forte de aporte linguístico, cultural, simbólico, na formação da sociedade
brasileira. E todo esse amálgama e essa constituição são diversidade cultural.
Do ponto de vista de política pública, o conceito de diversidade cultural é um
ponto de partida muito importante. Com ele, o Estado brasileiro deixa de ser
o vilão da história, aquele que atrapalhava, que vinha atrás perseguir, e passa
a ser proativo, reconhecedor e apoiador dessa força.
46
Você considera o resultado final satisfatório?
É só um primeiro passo, porque a Convenção da Diversidade Cultural é
um documento político. É um acordo muito importante, mas precisa de ser
implementado e assegurado. É preocupante que, em função da alternância
natural de poder, muitos países que apoiaram essa convenção passaram,
depois que trocaram de governo, a não ver com bons olhos esses tratados
assinados e mudaram as suas políticas, reorientaram suas posições. Hoje os
países do hemisfério norte estão se unindo para propor a ideia de que o mais
importante dessa convenção é o fundo de apoio à diversidade cultural. Isso
se tornaria uma espécie de FMI (Fundo Monetário Internacional) da cultura,
algo que eu não vejo com bons olhos. A grande força dessa convenção é o
poder regulatório, de colocar regras e estimular os estados-nação, os gover-
nos, a exercer políticas culturais. Esta é a força da Convenção da Diversidade
Cultural: transformá-la num pequeno fundo para distribuir remessas de re-
curso para projetos de países pobres. É um modelo que volta ao passado. É
uma tentativa de esvaziar essa convenção. Estamos vigilantes, muitos países
têm observatórios da convenção, mas não podemos esperar a catástrofe que
aconteceu com o meio ambiente para que a sociedade ganhe lucidez. Espero
que, na cultura, a gente consiga se antecipar ao momento de catástrofe, que
seria a perda de mais línguas indígenas, num ritmo mais acelerado do que
o que temos visto no século passado, o fim de industriais culturais em paí-
ses emergentes, de cinematografias, como o fim da Cinecittá, na Itália, por
exemplo. A Itália não tem um cinema tão pungente quanto o dos anos 1960,
e isso se deve à falta de políticas, de estratégias de Estado em mercado e de
diversidade cultural, para criar espaços culturais autônomos, independentes.
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binômio de um Estado presente, mas autoritário, para um Estado democrático,
porém ausente. Na Nova República, o Estado se democratiza, mas as princi-
pais instituições culturais, como a Embrafilme e a Funarte, são eliminadas
do arcabouço institucional. O próprio Ministério da Cultura é criado, depois
desaparece, e volta a ser criado. Não há, de fato, uma percepção no Estado
moderno brasileiro de que a cultura é um direito e uma necessidade básica
da população. Ela é vista quase como uma esmola, que tem que ser dada para
os artistas e produtores, que vão lá pressionar, que causam um incômodo.
Política cultural no Brasil, até pouco tempo atrás, era somente uma reação
à pressão de certos setores mais organizados da cultura, que conseguem se
organizar, pressionar o Estado e retirar algum dividendo. As leis de incentivo
refletem muito essa visão, a de um Estado que não quer se responsabilizar e
formular políticas. Então, ele passa dinheiro da forma menos compromissada
que existe, que é o incentivo fiscal: o dinheiro não passa pelo Estado, é retirado
antes de entrar, via arrecadação de imposto.
O Plano Nacional de Cultura é a expressão de um terceiro momento, de um
Estado democrático, porém republicano, que se relaciona e que tem um papel
na cultura. O Plano Nacional de Cultura visa estabelecer indicadores e fixar
metas de dez anos, para que a política cultural possa pactuar bases comuns
que transcendam oscilações políticas, mudanças de presidente e ministros da
Cultura. A educação já tem o Plano Nacional de Educação. Um plano é muito
importante, é um indicador de Estado, permite que a sociedade se organize
para cobrar as políticas públicas. Eu defendo que o plano de cultura tenha
metas para o Estado e metas para o mercado também, porque o mercado
tem que ter indicadores de investimento e de participação nesse processo.
Como pensar uma política que junte as urgências da área cultural, para,
como você disse, evitar as catástrofes, com estratégias de longo prazo?
O Brasil careceu e carece ainda de pensamento estratégico. Como socieda-
de, ainda estamos nos organizando para constituir estratégias consistentes de
afirmação de aspectos potenciais da nação e da sociedade. O que a China está
fazendo com animação, por exemplo, mostra o que é ter uma estratégia. Em
dez anos, a China quer ser o terceiro maior produtor de animação do mundo.
Eles fizeram uma análise e perceberam que são frágeis em software e profis-
sionais na área, mas possuem uma tradição cultural forte, além de excelência
em escolas de belas artes. Então, eles desenharam um diagnóstico do que
48
eles tinham, do que eles não tinham, e começaram a promover migração de
cérebros dos Estados Unidos, de talentos da Índia, onde o software é ênfase, e
já estão começando a produzir. O Brasil tem uma animação de primeiríssima
qualidade. Há grandes talentos, que até pouco tempo atrás se expressavam
só pelo curta-metragem. Agora, grandes nomes da animação brasileira estão
indo para Hollywood. Então, tem que ter estratégia para manter os talentos
no Brasil, e fazer da força da cultura brasileira, que é reconhecida no mundo
inteiro, uma estratégia de constituição de um campo. O que o Ministério da
Cultura vem defendendo é isso, que é preciso trabalhar no longo prazo, é
preciso que o Estado tenha um papel fundamental nessa constituição desse
campo. O Estado não substitui a sociedade; quem faz cultura é a sociedade,
não é o Estado, mas ele cria as bases para a sociedade poder deslanchar e
potencializar tudo que está aí presente.
49
economia da cultura como um vilão da história, o que é um erro que vem
de lá detrás. É preciso amadurecer. A esquerda moderna tem que olhar para
a economia da cultura como um traço emancipatório e qualificador desse
mercado, não como um inimigo. Não dá para criar uma sociedade alternativa
para os artistas e para os produtores viverem separados da economia real. É
preciso criar, na verdade, um deslocamento para novos modelos de negócios,
uma economia descentralizada, pequenas e microempresas que possam se
desenvolver criando uma economia, desonerando essa cadeia.
50
A Lei Rouanet completa agora vinte anos e está em processo de mudança.
No momento em que foi criada, a vida cultural brasileira tinha duas opções: ou
a Lei Rouanet ou nada. A Lei Rouanet foi o que se ofereceu para a vida cultural
do país. Uma instituição entrar em crise é normal. Só que na hora em que
se entra em crise, o que você tem que fazer é modernizá-la, não suprimi-la,
porque aquela necessidade, para a qual aquela instituição foi criada, conti-
nua existindo e vai se transformando. A posição política daquele momento,
quando as ideias neoliberais eram muito fortes, no Brasil, na América Latina
e no mundo de modo geral, era a de que o Estado não tinha papel na cultura,
não cabia ter orçamentos públicos para a cultura. Pensava-se que cultura não
é parte das tarefas essenciais do Estado brasileiro.
Vinte anos depois, nós fizemos um diagnóstico, e os números falam me-
lhor por si do que qualquer outro comentário mais ideológico ou político que
possa ser feito. Três por cento dos proponentes captaram mais da metade de
todo dinheiro. É uma concentração acintosa. Dos dez mil projetos/ano que
são apresentados ao ministério, só 20% conseguem um patrocinador. O que
eu mais vejo, quando circulo pelo Brasil, são bons projetos debaixo do braço
do artista e do produtor. É o amadorismo, a informalidade, a dependência.
A Lei Rouanet prometia uma relação madura com o setor privado, mas essa
relação não se deu. O que existe hoje, no Brasil, é um modelo excêntrico. Nós
não criamos uma economia da cultura, nem o chamado capitalismo cultural,
que, em tese, a Lei Rouanet prometia. A Lei Rouanet aumentou a dependên-
cia do Estado, travestida de promoção privada. As marcas das empresas que
usaram a Rouanet hoje desfrutam de uma imagem, na sociedade brasileira,
que eu diria muito positiva. E eu não tenho dúvida que a Lei Rouanet fez isso.
O problema é que as pessoas não sabem que esse dinheiro é público, que não
há dinheiro dessas empresas na cultura. E é aí que a Lei Rouanet fracassou.
Ela é 95% de dinheiro público e só 5% de dinheiro dessas marcas privadas. E
se é o contribuinte quem está bancando, o dinheiro não pode ser distribuído
dessa maneira, com essa concentração tão absurda.
51
tural brasileiro de maneira profunda. Quando eu digo desorganizaram, é que
o empresário cultural que existia nos anos 1970, criativo, que assumia o risco
e construía processos culturais, deixou de existir e foi substituído pela figura
do captador, que é uma nova forma edulcorada de chamar o dependente do
Estado brasileiro. Eliminamos a figura do empresário, eliminamos a figura do
risco. O risco é um conceito tão importante para o empreendimento quanto
para a arte. Então, por consequência, também eliminamos o risco no campo
simbólico, porque eliminamos a relação com o público, que é uma relação
tensa e saudável. A Lei Rouanet absolve a arte da relação com o seu público
e elimina a circulação social. Ela realmente diminuiu a esfera pública na qual
a arte circula, é pensada e é interpretada. Ela engana, ao colocar marca pri-
vada com dinheiro público; ela concentra, na medida em que é muito difícil
de captar; e ela constrange, na medida em que artistas precisam adequar
seus trabalhos aos interesses do marketing das empresas. A arte não pode
ser higienizada.
52
Então, o Estado tem que entender que o seu papel é criar as condições para
que esse produtor possa trabalhar de forma inventiva. E, para desburocratizar,
acho que é preciso aumentar o mercado cultural brasileiro. Nesse sentido,
o ministério defende, em primeira instância, o acesso à cultura como uma
política de cidadania, de qualificação da cidadania. No Brasil, os números são
muito ruins. Em torno de 90% da população, segundo o IBGE, não acessam
cinema, teatro, livro, livraria etc. Então, um projeto como o Vale-Cultura visa
incorporar em torno de 14 milhões de pessoas na economia da cultura no
país. É a primeira política cultural que tira o seu foco da subvenção ao artista,
para ampliar plateias e criar uma economia. No momento atual, se você qui-
ser entrar no mercado e trabalhar para os 8% da população que consomem
cultura, vai ter que bater na porta do Estado em algum momento, porque
não terá como se bancar. O espaço é muito restrito. Então, é decisivo quando
o Ministério da Cultura chama para si a responsabilidade de universalizar o
acesso, em projetos concretos como o Vale-Cultura. E também desburocra-
tizar os processos. Na reforma da Lei Rouanet, uma das metas é modernizar
a gestão pública, justamente para esvaziar a figura dos intermediários. Para
isso, propomos transparência, acesso e um processo mais dinâmico.
53
dos anos 1990, que era um momento muito difícil para o cinema brasileiro.
Era difícil pensar em fazer cinema sem esbarrar em questões estruturais muito
profundas do campo. Isso me atraiu muito para a política pública, porque eu
vi que daquele jeito a gente ia ficar muito isolado num gueto de produção.
Isolado da sociedade e da reflexão também. E, naquele momento, também
percebi que a reflexão cultural tem um papel muito importante para evitar
o corporativismo, que é um mal da forma política como a cultura brasileira
se organiza para demandar, seja diante do Estado ou diante da sociedade. O
costume é passar a mão na cabeça em nome da afirmação. É claro que eu
entendo que, depois de um vazio que foi o período do Fernando Collor de
Mello, o período do Fernando Henrique Cardoso, o setor tenha cerrado filei-
ras para defender a necessidade da cultura brasileira, mas não houve uma
visão estratégica de incorporar uma visão independente do que estava sendo
feito. O Brasil tem que desenvolver instituições independentes que consigam
produzir a esfera pública, porque é ela que qualifica o artista nesse processo
de debate. Todos os grandes momentos da arte brasileira estavam misturados
a um processo de debates de ideias e de arejamento extraordinário. O papel
do Estado nesse processo, e a gente defende isso no Ministério da Cultura, é
fomentar essa crítica, criar espaços de autonomia desse pensamento crítico,
com encontros, com periódicos, com publicações. Agora, no novo Fundo
Nacional de Cultura, que é parte do Procultura, existirá um mecanismo de
apoio para a crítica. A cultura e a arte brasileira são de imensa qualidade. A
gente não pode arriscar perder força e dinamismo por um espírito de prote-
cionismo, que não combina com a inovação.
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Na área de internet, da banda larga, a gente precisa ter uma política para
os conteúdos digitais, no sentido de criar polos de inovação, polos criativos
de uploads de conteúdos culturais, para enriquecer a rede e ser o contrapeso
da universalização da banda larga. Porque não adianta universalizar o serviço
de conexão se a sociedade não está com todas as condições de trabalho, de
ferramentas, de debate e de fluxos culturais para fazer o uso pleno dessas
novas ferramentas. E tem a economia da cultura também. O Ministério da
Cultura, nesses últimos oito anos, afirmou essa agenda no Brasil.
O ministério abriu uma relação inovadora com o BNDES, que criou um
departamento para a economia da cultura com a PECS, fez os estudos com
o IBGE, ensaiou movimentos com a moda, com os jogos eletrônicos. Tudo
isso é positivo. Agora, está na hora de ter uma política para a economia da
cultura, percebendo que a universalização do acesso, combinada com uma
política para pequenas e médias empresas culturais, contribuirá com um
sistema de inovação, onde cultura, ciência e tecnologia estarão juntos. Essa é
a grande tarefa, é uma onda que o Brasil não pode perder, porque a gente tem
um grande potencial. Para o Brasil não ser somente um país agroexportador
daqui a 50 anos, e depender desse modelo de economia, temos que pegar
carona nesse momento, ter lucidez de afirmar esse terreno da economia da
cultura como algo estratégico. É preciso, para isso, enfrentar alguns donos de
terrenos, donos da bola, que tem aí na cultura brasileira e que não querem se
modernizar. É um debate tem que ser feito. Tem que abrir essas caixas pretas
e ter um arejamento, o Estado precisa ter políticas de capacitação, formação,
apoio a esses núcleos, potencializar essa economia da cultura, assim como os
americanos fizeram no início do século XX, quando o Estado entrou e criou
Hollywood, botou bases para que aquelas nascentes companhias pudessem
se desenvolver. Aquilo foi o modelo americano, eu acho que o modelo brasi-
leiro não vai ser esse, de um cartel de empresas dominando o mercado. Pelo
menos, não é isso que a gente quer. Acredito numa economia descentralizada,
horizontal, valorizando os artistas e produtores, o direito autoral, o direito
de acesso à cultura, e tudo isso bem harmonizado. Não precisamos imitar
nenhum outro modelo.
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56
José
Luiz
Herencia
Secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura.
57
entende por política cultural, na verdade, é um conjunto de políticas, de
programas e de ações, que tem sequência e consequência na vida do país. A
visibilidade que o Ministério da Cultura tem hoje é, na verdade, um sintoma
de uma recomposição, de uma reconfiguração de todo o campo das artes, da
cultura e da relação do Estado com a sociedade. Não é mais uma relação de
sociedade contra Estado, num velho mote do nosso querido Pierre Clastres.
Não é nem Estado mínimo, característico dos anos 90, nem o Estado máximo,
que interferia no conteúdo das políticas culturais, característico do período
militar. É um estado democrático, consciente das suas responsabilidades, e
disposto a construir ações, programas e políticas para todos os setores, da
moda ao design, da poesia à arquitetura, em parceria, em colaboração com
os artistas e com os produtores culturais.
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Agora, no meu ponto de vista – e aqui eu vou radicalizar um pouco alguns
fundamentos do nosso próprio discurso, porque eu acho que a gente está
num momento de debater as nossas próprias premissas –, é preciso entender
que cultura não é necessariamente algo bom. Eu acho que todos lembram de
uma frase do Stockhausen, quando os companheiros de Bin Laden invadiram
as torres gêmeas, e ele disse que a aquela era talvez a maior obra de arte da
história. Radicalizando o entendimento antropológico da cultura, é preciso
pensar que isso tudo faz parte da cultura, todas as belezas e todas as tragédias
da experiência, da saga humana sobre o mundo, da digital humana sobre o
mundo. Então, o que me preocupa, quando a gente acentua, talvez de forma
um pouco irrefletida, a importância e a abrangência do conceito de cultura, é
que a gente comece adotar uma ideia de cultura como o reino das belas posi-
tividades. É preciso pensar e incorporar outras questões, como, por exemplo,
a violência, a própria saúde, ou outros âmbitos de preocupação, para dentro
do horizonte do pensamento cultural. Nós viemos de um ciclo de afirmação
da cultura como algo maior do que uma relação estreita entre classe política
e artistas de territórios muito específicos, mas é preciso também ampliar esse
debate, e começar a trazer questões mais complexas e mais duras, que as
pessoas têm muito pudor de debater. A cultura não é apenas o território das
positividades. É também o lugar onde se dão debates muito difíceis, e onde
existe violência simbólica. Isso é importante.
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qualquer competência em relação à cultura, ficou com todas as dificuldades.
Então, hoje, quando se fala em Lei Rouanet, é preciso pensar que todo custo
econômico da operação de incentivo fiscal fica por conta do Estado, mas quando
ele mesmo precisa investir e fazer o dinheiro público chegar a um grupo cultu-
ral, não encontra nenhuma das facilidades. Quando eu debato com produtores
culturais, eles falam que a lei de incentivo fiscal é extremamente burocrática,
que é muito difícil usar a Lei Rouanet. É triste dizer isso, mas é muito mais fácil
para o produtor cultural do que para o próprio Estado. Se quisermos apoiar um
grupo de cultura, como um teatro de rua ou uma ópera, dentro de uma política
de apoio e estímulo à produção cultural no país, temos que exigir que esse
grupo tenha a capacidade de se estruturar como uma grande empreiteira, e
isso é brutal. Essa é, na verdade, a melhor forma da gente não conseguir fazer
nada. Ou seja, nós estamos hoje tocando na ferida da lei de incentivo, do sis-
tema federal de financiamento à cultura, mas é preciso perceber que existem
questões que vão muito além de uma lei específica e que precisam ser discuti-
das e modificadas. O Estado brasileiro precisa ser reformado, essa é a questão.
Se o Brasil quiser, de fato, se reposicionar numa configuração geopolítica
mundial, como um player, e não como um display numa suposta sociedade
de conhecimento, é preciso que o Estado brasileiro deixe de ser o impeditivo
do desenvolvimento do país. E deixar de ser um entrave não significa não ter
responsabilidade. Pelo contrário, ele precisa assumir a responsabilidade que
tem sobre vários campos, como a cultura, a saúde, o meio ambiente, a educação.
Precisa assumir a regulação e a indução das políticas nesses campos. E precisa
também ter condições de financiar, atuar, fazer o recurso chegar e conseguir
acompanhar a execução daqueles projetos. Hoje, na Secretaria de Fomento
do Ministério de Cultura, tem milhares de projetos cuja prestação de contas
ainda está pendente. Alguns projetos de dois, três anos atrás. O volume é
muito grande. Em 1992, quando a Lei Rouanet foi criada, foram aprovados 10
projetos. Em 2009, foram aprovados 12 mil projetos, e o ministério não cresceu
1.200 vezes. Eu olho aquela sala gigantesca, cheia de projetos e processos acu-
mulados, e me pergunto qual é a importância fiscal daqueles documentos. Em
algum momento o Estado percebeu, ou está percebendo, que é isso que precisa
mudar. A preocupação sobre o acompanhamento desses projetos não deveria
estar na prestação de contas fiscal, porque isso, na verdade, não revela nada, ou
revela muito pouco. É claro que precisa ter uma segurança fiscal, de que aquele
investimento foi feito, mas num grau muito diferenciado do que existe hoje.
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Quando tivemos uma política cultural confundida, praticamente, com
a renúncia fiscal, nós tivemos o modelo mais radical de privatização de
todo o processo de privatização?
A renúncia fiscal se travestiu de política cultural durante esses 18 anos,
isso é algo que precisa ser enxergado com total clareza. Não existia, até
recentemente, uma política cultural contemporânea no país, existia um
mecanismo de lei de incentivo, que brincou, se fantasiou, de política cultu-
ral. O Estado brasileiro, na sua configuração neoliberal, ao contrário do que
ele preconizava, gerou mais dependência do que qualquer coisa. O risco,
que é tão importante para o negócio quanto para a criação, saiu da atividade
artística. A lei de incentivo não estimula as duas pontas do sistema cultural,
que são, por um lado, o risco, a inovação, e, por outro, as instituições. Elas
também vivem à míngua, e hoje disputam com o produtor cultural um
recurso que é escasso no país inteiro. Hoje, a Pinacoteca do estado de São
Paulo disputa um recurso, dentro da lei de incentivo, com qualquer produtor
cultural do país. Não só a Pinacoteca, mas as nossas principais instituições.
Essas instituições, para existirem, custam muito caro, porque precisam ter
um planejamento e uma perspectiva de longo prazo, que é outra coisa que
a lei de incentivo atual não patrocina sobre nenhuma hipótese. O horizonte
da lei de incentivo é sempre um horizonte humano. O projeto hoje é algo
que tem data de fabricação e prazo validade. Não pode durar mais do que
aquilo. Se durar mais, o cara tem problema de prestação de contas, e a re-
lação com o patrocinador azeda, porque o patrocinador tem que perceber
e aferir as suas conquistas, do ponto de vista de mídia espontânea, de uma
comunicação de marca mais imediata. Então, é um sistema que é medíocre
nesse sentido. Só estimula o médio. No limite, quando o Estado brasileiro
aponta a necessidade de se tratar com clareza esse problema, o que ele está
fazendo é um deslocamento de dinheiro, por um lado, e um deslocamento
de poder político, por outro.
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nosso de debate, por exemplo, que fala que o teatro brasileiro nunca vai dar
dinheiro, que é necessariamente deficitário, e que ninguém vive de bilheteria.
Essa é talvez a frase mais desoladora de se ouvir. O teatro, o cinema, e muitos
outros campos artísticos do Brasil, não conseguiram se definir entre arte e
entretenimento. Portanto não conseguem se definir entre risco, inovação, e
negócio. Não percebem que essas são moedas cambiantes, que é possível gerar
negócio gerando inovação. E que é possível gerar risco onde, normalmente, só
se enxerga a preservação de uma zona de conforto. E esse é, também, o papel
do produtor cultural. Uma coisa que precisa ser debatida é o que aconteceu
com o produtor cultural brasileiro, que sempre foi um instrumento, ou um
elemento, de indução do risco. E que fazia, muitas vezes, com que os artistas
embarcassem no risco e produzissem resultados fantásticos para o cinema,
para a música, para as artes cênicas. Hoje, o produtor funciona quase como
um controle, como um tribunal de contas permanente na cabeça do artista,
sempre zelando para que ele tome muito cuidado, não exagere. O motivo
disso é que eles têm, por detrás deles, um sistema legal de avaliação de pro-
jetos que só aceita a parte fiscal. Não existe comprometimento da produção
cultural com algo diferente da logística do projeto e da prestação de contas.
Isso precisa mudar.
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Eu estou aqui hoje fazendo um pouco o papel de crítico de nós mesmos.
Parece que no Brasil, subjacente à formação cultural, existe uma disposição
para formas associativas. Vejo isso muito claramente hoje. Isso está tomando
conta, em alguma medida, da produção cultural. Mas é preciso tomar muito
cuidado com isso também. E esse é um debate que a gente deveria fazer, por
exemplo, em relação aos Pontos de Cultura, que são uma grande rede de
iniciativas da comunidade. Sem querer fazer o exercício de cânone, é preciso
tomar cuidado em relação ao grau de apuro, ou de intensidade de voltagem
estética, do que é produzido nesse universo. E eu sinto certa despreocupação
com o acabamento, com a arte-finalização dos projetos culturais que são
desenvolvidos nessas relações de rede. Como se a rede fosse, por si só, um
produto estético. E a gente sabe que não é. O Gil fala em uma música do disco
Banda Larga Cordel que é preciso tomar muito cuidado, porque você pode
fazer seu samba, mas tem sempre o samba bom e o samba ruim. Isso é uma
coisa que deve estar no foco de atenção de todos nós.
63
aparece num desses horizontes. Isso cria até uma situação engraçada, que é
ter o Estado estimulando a crítica.
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Não é dizer que aqui tem índios, negros, ciganos. É muito mais sofisticado
do que isso. Tem relação com a predisposição fundamental da sociedade
brasileira em se realizar através de formas associativas, ou em rede. O Brasil
pode ser um elo muito importante numa grande rede de re-humanização,
ou de humanização da política, que passa pela qualificação de modelos de
desenvolvimento, geração de riqueza sob um novo patamar, muito diferente
do que ainda se dá no debate político interno. As conquistas que o Ministé-
rio da Cultura e o Ministério do Meio Ambiente, por exemplo, realizaram ao
longo desses anos, não são conquistas apenas desses órgãos. São sintomas,
reflexos, de um conjunto muito amplo de conquistas da sociedade brasileira,
que está tendo coragem de debater. Tudo está sendo debatido no país. Muitos
têm medo e manifestam esse medo. O que é uma coisa assustadora no nosso
campo: os artistas se tornaram conservadores. Eles, que sempre estiveram à
frente de grandes processos de mudança de ordem comportamental, cultural,
hoje, muitas vezes, são conservadores. Mas, de qualquer forma, estamos num
momento em que tudo está sendo debatido.
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66
Márcio
Meirelles
Secretário de Cultura do Governo da Bahia.
A Bahia, na sua história recente, viu uma relação muito próxima da cul-
tura com a política. Conte um pouco sobre isso.
A Bahia, de 1945 a 1964, viveu um período incrível de desenvolvimento
econômico, cultural e intelectual. A descoberta do petróleo foi acompanhada
por um grande desenvolvimento cultural. Aquela época foi a última vez em
que se pensou, de fato, a cidade de Salvador, que se fez um plano diretor. A
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Lina Bo Bardi foi para lá, o Edgard Santos criou as escolas de arte e o Seminário
de Música, o Martim Gonçalves criou a escola de teatro. Foi um momento
de referência para o Brasil e o mundo, que possibilitou depois o surgimento
do Cinema Novo e da tropicália. Tudo isso vem desse caldo de pensamento
que estava ali borbulhando. Em 1964, houve o golpe, e esse cenário foi, de
certa forma, desarrumado. A ditadura começou a tomar para si o mérito do
desenvolvimento, mas o que houve, na verdade, foi uma interrupção. E essa
política, esse grupo político e econômico que foi se consolidando a partir
de 1964, continuou no poder até há pouco tempo. Houve alguns momentos
de oxigenação, como o governo do Roberto Santos, que, apesar de ser um
governador colocado pela ditadura, tinha outro pensamento. Ele era filho de
Edgard Santos, então trazia todo um pensamento cultural. E também o go-
verno do Waldir Pires, que infelizmente foi um caos, uma loucura, porque ele
estava cercado por todos os lados. Não era possível um governo de esquerda
naquele momento e naquele lugar. Foi uma votação expressiva, uma vitória
incrível, mas depois Waldir Pires não conseguiu governar. E ele se cercou de
bons nomes, que traziam uma proposta interessante para a cultura.
A Bahia é um dos estados que passa por uma junção entre uma arte de
vanguarda e a questão da arte popular. Como criar uma política que
permita que essas duas áreas se desenvolvam?
O Estado tem que lidar com a cultura de duas formas. De um lado é
pensar a cultura como direito básico, como serviço. Disponibilizar o acesso
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à cultura de uma maneira geral. Por outro lado tem que fomentar essa pro-
dução. Evidentemente que cada setor merece um olhar especial e tem que
ter ferramentas especiais. Se você faz um edital, é possível que o produtor
cultural que faz, por exemplo, o Terno de Reis, no interior da Bahia, tenha
dificuldade em concorrer e em dialogar com o Estado. Então, é preciso pensar
programas como o Agricultura Familiar, por exemplo, para pegar toda essa
produção cultural popular.
É muito complexo lidar com os mestres populares, é preciso tratar esse
tema de maneira muito delicada. É preciso ser muito delicada a intervenção
do Estado nesse tipo de produção. A produção cultural da Bahia, hoje, é muito
conduzida pelo turismo, porque durante os 12 últimos anos, antes de 2007,
tivemos uma secretaria única para a Cultura e o Turismo. Essas lógicas estavam
muito próximas, muito uma a serviço da outra, o que é muito complicado.
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Jorge conversamos. Ele queria trabalhar com outras linguagens no Olodum e
eu queria me associar a alguma instituição ou a alguma casa de candomblé,
ou de afoxé. Enfim, alguma instituição com matriz nessa cultura afro-brasileira.
Comecei a trabalhar com eles, e criamos o Bando de Teatro do Olodum.
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do teatro popular nos ensinava isso: esses arlequins, esses joãos-grilos, são
personagens que aparecem em várias histórias e têm uma função. No teatro
popular, o personagem tem aquela função, mas aparece em várias situações
diferentes e reage de formas diferentes. Ele representa a classe operária, a
elite, o intelectual ou seja lá o que for, mas ele se move de forma diferente
dependendo da situação e tem uma linha de conduta que é reconhecida pela
audiência. Essa é a nossa praia era para ser uma peça de final de oficina, mas
foi um sucesso. Ficamos quatro anos em cartaz e a partir dela fizemos mais
duas peças com esses mesmos personagens, Ó Paí Ó e Bye, Bye Pelô. Assim
se formou a Trilogia do Pelô.
Quando fizemos a primeira peça, a reforma no Pelourinho ainda não tinha
começado; na segunda, ela já estava em andamento, e as pessoas já estavam
sendo botadas para fora. A terceira peça já é sobre a reforma, sobre as pesso-
as que saíram, as que ficaram, sobre como a cultura se transformou e como
as relações se transformaram a partir da interferência da reforma naquele
espaço urbano. Ao mesmo tempo, a gente ia pesquisando essas questões de
candomblé no novo mundo, trabalhando também com dramaturgia clássica,
e aí, finalmente, fizemos A Medeia Material, que foi o primeiro grande salto
do grupo. Trabalhamos com Vera Holtz, Guilherme Leme e o Heiner Goeb-
bels, em uma peça de Heiner Müller. O Heiner Goebbels era um músico que
trabalhava muito com Heiner Müller, e juntamos ele com o Neguinho do
Samba. Ele compunha a trilha de Jazão, que era o colonizador. O Neguinho
do Samba era o ritmo do povo.
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uma classe média consumidora, então por que que essa classe média não
vai ao teatro? Fizemos, num golpe de marketing, uma política afirmativa.
Quando se estava começando a discutir sistema de cotas, anunciamos que
íamos cobrar meia-entrada para negros, e isso foi um escândalo nacional. O
Boris Casoy disse que era uma vergonha, que era racismo ao contrário e por
aí vai. O Ministério Público pressionou a gente a mudar de ideia, porque o
promotor não queria que o primeiro processo contra racismo fosse contra
nós. A gente fez um grande debate sobre essa questão das cotas, de política
afirmativa, e todos na Bahia assumiram que eram negros, então todos podiam
pagar meia-entrada. Aí foi bom, porque foi um grande debate, e percebemos
que a plateia negra não era toda de amigos, convidados, parentes, pessoal
da comunidade. A partir de Cabaret da Raça, 60% da plateia do Bando, pelo
menos, eram negros e pagantes. E isso para a gente é um grande mérito.
Passando para o seu trabalho como gestor cultural, como manter esse
acervo vivo, em eterna mutação, da arte popular,tradicional, sem enges-
sar o processo desse trabalho?
Isso também é um desafio. No carnaval, a gente tem um programa cha-
mado Ouro Negro, porque um setor enorme do carnaval é de matriz africana,
são os blocos afros, afoxés, de percussão, com uma herança africana forte.
Eles são a base do carnaval, são a matéria-prima do carnaval industrial, mas
não recebem royalties dos ritmos. Não existe a legislação dos direitos autorais
comunitários, que permitiriam isso. Então fomos apoiar o segmento de matriz
africana e paralelamente ao apoio financeiro começamos a trabalhar a qua-
lificação de gestão, a fazer oficinas de média e de longa duração, e agora eles
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já estão criando uma espécie de associação. O carnaval ficou fortalecido, vivo
e vibrante, e a gestão se reflete também no desfile. Agora queremos trabalhar
a questão estética também, porque foi se misturando e se perdendo. É um
processo que você não tem como controlar, e nem deve ser controlado, mas
a gente precisa dizer aos afoxés que eles têm história, que eles podem fazer
o que quiserem, mas podem se retroalimentar.
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identidade, de inclusão. E, para isso, temos muito a fazer. Partimos de um
orçamento que ficava 90% na capital e na região metropolitana. Temos 417
municípios, uma área de 570 km². A Bahia é muito grande, maior que a Fran-
ça. A pergunta era como chegar até lá. A partir daí, começamos a trabalhar
com um sistema. O governo da Bahia assumiu como divisão de unidade de
planejamento os territórios de identidade definidos pelo Ministério de De-
senvolvimento Agrário. Isso, para a gente, foi genial, porque é uma estrutura
entre o município e o estado, que são os territórios de identidade, que têm
tudo a ver com cultura. Criamos um fórum de dirigentes municipais, que
tem um representante de cada um dos 26 territórios. Temos representantes
da Secretaria de Cultura em cada território. Então começamos a trabalhar
em sistemas e em redes. Demos visibilidade para essas redes e trabalhamos a
questão de cadastramento, e isso vai gerando um entendimento do fomento e
da economia, do que se gera, do que se produz dentro da economia, e como
isso é importante como identidade e como fator de inclusão. Por exemplo, no
caso dos blocos afro, eles sabem da importância que têm para a comunidade,
mas percebem agora a questão econômica ligada a isso, como eles geram
a economia e como precisam discutir e estar inseridos nisso. Então há um
amadurecimento, mas também é muito complicado criar ferramentas para
tudo isso. Temos o fundo de cultura, que é basicamente o orçamento para o
fomento, para a produção da sociedade. E isso é muito pouco, porque são R$
20 milhões ou R$ 25 milhões por ano, que a gente divide em editais. Criamos
esse programa das instituições e achamos que é preciso transmigrar, parar de
apoiar a produção direta e passar a apoiar as entidades, as estruturas. Sejam
elas os grupos de teatro, as atividades de matriz africana, as bandas de música,
sejam os teatros, os museus, bibliotecas. E então, através delas, se construir
políticas de produção, circulação.
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temos uma imagem do que é a Bahia. Durante muito tempo, o baiano ficou
sendo esse personagem de Jorge Amado, Dorival Caymmi, Pierre Verger e
Carybé, que são os quatro cavalheiros que construíram a identidade da Bahia.
Ela é reconhecida por essas quatro obras. Isso, como tudo na vida, tem um
lado bom e um lado ruim. O lado bom é que isso é internacional, a Bahia é
referência, é desejável, todo mundo quer conhecer. É uma imagem “super”
positiva que foi construída, mas, por outro lado, é também uma coisa atávica,
porque é uma identidade antiga. É uma identidade que admite o coronel,
que admite o racismo, a discriminação, a desigualdade social. É difícil lidar
com isso. A literatura baiana, sob a sombra de Jorge Amado, é complicada.
É preciso, então, gerar produtos culturais em vários territórios diferentes,
exatamente para a gente ter uma visão mais plural da Bahia. Esse é o grande
desafio, irrigar a cultura, a produção cultural da Bahia inteira.
75
76
Carlos
Augusto
Calil
Secretário Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo.
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ados por alguém, pelo governo, pelo público que frustrou. Tem essa vitimi-
zação que é terrível. Tanto que o Lima Barreto e o Anselmo Duarte morreram
amargurados. Glauber Rocha morreu frustrado, e o Humberto, certamente,
morreu frustrado também. Isso provocou um choque, na ocasião, e ele passou
a advogar e a nos exigir que fôssemos ver os filmes da pornochanchada. A
gente torcia o nariz, porque era de mau gosto, mas ele mostrava que aquele
mau gosto tinha muito a ver com o nosso mau gosto brasileiro, com a pre-
cariedade da nação, da cultura brasileira. Então, naquele momento, a gente
percebeu o contraste entre o que a geração do Cinema Novo desenhou para
o Brasil, que é um país em que o cinema faria a diferença política, e, digamos,
o enfrentamento com a mediocridade, com a precariedade, a que o Paulo
Emílio, disciplinarmente, nos obrigava. O que sobrou hoje, curiosamente, é
essa ideia do Cinema Novo, de contribuir para o avanço político do país. Mas
isso levou também a uma crise, porque o cinema é apenas o cinema, não é
a política. Esse projeto do Cinema Novo, de repensar o Brasil a partir de ma-
trizes populares, de uma certa ambição de fazer política através da arte, se
transformou hoje numa caricatura terrível.
Isso é diferente nas outras áreas da cultura ou é uma crise de expressão geral?
Outras áreas, como as artes plásticas, por exemplo, estão botando em xeque
a cultura brasileira, a inserção brasileira no mundo, a nossa capacidade de
improvisar e de criar a partir do quase nada. O cinema brasileiro é que ficou
acadêmico. O cinema brasileiro de hoje é bem feito, mas eu não posso dizer
que ele é bom. E a perspectiva de transformar o país ficou completamente
distante. Ficou, inclusive, fora de quadro. Um filme como Cidade de Deus,
por exemplo, transforma muito mais o país pelo efeito que a linguagem tem
do que pelo projeto político dele. Esse filme virou cult. Se você fala de Cidade
de Deus nos Estados Unidos, os jovens sabem, eles falam diálogos de cor. Na
Tailândia, Filipinas, as pessoas conhecem, e imitam. Enquanto aqui, nossos
críticos ficam esnobando.
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Depois, os próprios cineastas ficavam muito incomodados de receber dinhei-
ro de um órgão da ditadura, então acontecia uma coisa esquizofrênica, eles
recebiam dinheiro e falavam mal da Embrafilme. O Glauber Rocha foi o único
que teve a coragem de dizer que ela era muito importante para os cineastas,
porque ele tinha esse desassombro, assumia as contradições, enquanto todos
os outros desprezavam e não compreendiam que o papel da Embrafilme
era crucial naquele momento. Ela era ponta de lança e, de fato, obrigou o
cinema americano a recuar, ocupando 35% do mercado. No entanto, o fato
de não agradar nenhum dos dois lados, somado à crise financeira dos anos
80, fez com que o órgão se tornasse frágil. Os custos de produção subiram,
mas a renda diminuiu, e isso levou a Embrafilme a uma crise de produção.
Ela fazia 18 longas-metragens por ano e distribuía 22, incluindo alguns filmes
que não eram feitos por ela. Além de fazer muita coisa de curta metragem,
de preservação de filmes. Mas essa fragilidade era muito impressionante,
e ela acabou fechando, foi liquidada pelos cineastas. O Collor só assinou
o atestado de óbito, porque ela já não tinha mais nenhuma capacidade de
manter-se. As pessoas podem achar que eu sou um saudosista da Embrafil-
me, mas eu não sou. Ela foi um fenômeno histórico, era uma contradição da
ditadura militar. Montar a Embrafilme hoje seria sem sentido, porque ela era,
na verdade, uma distribuidora exclusiva de filmes brasileiros, e essa situação
não é mais possível. O cinema brasileiro já disputa mercado com os filmes
norte-americanos, o que era impensável na época, com os territórios muito
bem definidos. É uma pena que a Embrafilme não tenha sido compreendida
nas suas contradições, na época, e que tenha sido objeto de disputa política
entre os cineastas. Uma disputa feroz, uma bobajada entre cultura e mercado.
Porque havia os pró-mercado e os pró-cultura, como se a cultura tivesse que
rejeitar o mercado, e o mercado tivesse que ser anticultural. Era um território
muito de disputa política. Claro que essa disputa significava dinheiro, porque
era dinheiro que, no fundo, saía da Embrafilme. E se saía para um, deixava
de sair para outro. A principal fragilidade da Embrafilme era que ela era um
guichê único, e, portanto, muito visada.
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Coutinho confirma. Na época já havia um controle muito próximo do SNI, e,
portanto, nós não pudemos assumir. Compramos os direitos não comerciais
da obra do Vladimir Carvalho e, com isso, demos um dinheiro a ele, que re-
passava para a produção do Cabra Marcado pra Morrer. Então, indiretamente,
financiamos o filme até a sua realização em 16 mm. Depois eles conseguiram
o dinheiro necessário para ampliar para 35 mm. Poder fazer isso foi uma
enorme satisfação. Teve ainda muitos outros momentos interessantes, mas
era uma tensão permanente, um tiroteio permanente, e uma batalha pelo
dinheiro que às vezes era suja, feia, e que não é nem bom lembrar.
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eles. O ano de 2003, para mim, é paradigmático, porque o público do cinema
brasileiro se multiplicou muito, e atingiu 22% do mercado. Isso quer dizer que
existe público, mas que é preciso apresentar produções que lhe sejam inte-
ressantes e cativantes. O que fez a diferença em 2003 foi a carteira de filmes
exibidos. Hoje, não é mais preciso tirar o sujeito da sala de filme estrangeiro,
nós podemos apresentar ao público filmes brasileiros assistíveis, e isso não
impede que certas experiências radicais, extraordinárias, como Jogo de cena,
sejam feitas. Até porque são muito baratas. Mas não podemos ficar fazendo
filme para cineclube, ou para os parentes dos cineastas, e excluir o público
dessa equação. As pessoas dizem que o público é burro, que só gosta de
vulgaridade, mas seja como for, é melhor negociar com eles do que ignorar.
O cinema brasileiro é completamente desfocado da realidade. O grosso da
produção brasileira é completamente equivocada, não tem destinatário. Nem
o comercial é comercial, nem o cultural é cultural.
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em Olinda, ou mesmo na Bahia, porque nesses lugares, e talvez no nordeste,
o espaço público sempre tenha sido do público, da população. Em São Paulo
não. Então, a Virada Cultural, que era apenas um festival de 24 horas, hoje é
um festival de 24 horas que reocupa um território estratégico da cidade, que é
o centro. Foi por isso que deu certo. A graça da Virada é encontrar as pessoas
mais disparatadas, em termos de classe social, de idade, de gosto, num território
definido, que é o território simbólico da cidade de São Paulo. Vou tentar fazer
esse tipo de política agora com artes plásticas. Nós acabamos de lançar um
edital para que os artistas proponham a ocupação dos espaços públicos com
obras de arte. Se der certo, eu pretendo ampliar o projeto, para que a cidade
seja, enfim, embelezada, ou problematizada, pela arte contemporânea. Quer
dizer, o espaço público pode ser reocupado pela população com estímulo do
poder público. A Virada não tem patrocinador, ela não tem mediador, e nunca
terá. É a prefeitura devolvendo o imposto recolhido à população para que
ela participe da festa da cidade. Outra coisa que falta, e que eu acho que não
vou conseguir fazer, é uma ação mais presente na periferia. Eu consigo fazer
algumas coisas na periferia, mas ela é imensa. Talvez eu consiga, até o final da
gestão, iluminar pontos na periferia que são irradiadores da boa cultura e da
boa disciplina artística, que possam, enfim, sinalizar. A periferia de São Paulo
é completamente desprovida de equipamento urbano, de espaço público.
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inteligência significa dramaturgia, ator, diálogo, roteiro. Mas alterou e sim-
plificou a realização de tal maneira que, quando eu penso como eu filmava e
montava, a impressão que tenho é que era uma coisa pré-histórica. A gente
pegava a película com a mão, cortava com uma guilhotina, colava com durex.
Hoje não se tem mais contato com a película, a imagem está na sua frente,
o montador está operando nela, mas sem nenhum contato físico. Mas isso
não significa que os cineastas farão filmes melhores agora. Os roteiristas con-
tinuam tão valorizados quanto antes, e uma boa história, um bom diálogo,
bons atores, são coisas que têm valor em qualquer época. Agora, a ideia de
produzir para qualquer plataforma é genial. A imagem não fica prisioneira
de um suporte, restrita ao vídeo, ou ao cinema. Percorre todas as plataformas
e suportes, sem fronteiras. E, entre as consequências negativas, está o fato
das pessoas filmarem muito hoje, e na hora da montagem dá um grande nó,
um grande problema. A filmagem tem que ser feita com clareza, sabendo
quais os objetivos. Filmar demais não necessariamente ajudará o projeto ou
melhorará o produto. Isso é ilusório.
Qual caminho poderia seguir um jovem que está começando a fazer ci-
nema hoje?
Tem que aprender técnica, que é o que pode fazer diferença. O talento
acaba aparecendo em algum momento, se for o caso. O pessoal do Cinema
Novo, por exemplo, negou a técnica, eles não sabiam decupar. Por isso a
câmera na mão, do Glauber Rocha: porque ele não decupava. Ele inventou
uma maneira de filmar para ele, para geração dele, mas negou a técnica. Hoje
é impossível negar a técnica. Impossível e inútil. Então, a primeira coisa é
aprender os instrumentos, e em seguida treinar a sua dicção
E esse jovem que estuda técnica, como ele pode viabilizar a produção
dele? O que ele deve procurar?
Quem tem força, e quem tem talento, viabiliza-se. Pode não se viabilizar
no nível que se deseja, pode até ter algum nível de frustração, mas acaba fa-
zendo. Existe demanda por projetos bons, existe dinheiro oferecido a projetos
bons, a questão é que nem sempre temos projetos bons, projetos maduros.
E, sobretudo, é preciso inverter um pouco, pensar no público. Nós estamos
muito viciados na coisa romântica de querer fazer o seu longa-metragem.
Mas para quem é o seu longa, além de para você mesmo?
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84
Daniel
Zen
Presidente da Fundação Elias Mansour e
do Conselho Estadual de Cultura do Acre.
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um momento interessante cultural, isso se deve em muito à militância das
décadas anteriores, que batalhou pela consolidação de políticas públicas,
de investimento em formação cultural, nas diversas formas de produção, de
circulação, e que surtiram respostas a longuíssimo prazo.
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algum dos municípios, como por exemplo o do Jordão, que é um dos menores
municípios acreanos, e em que a maioria absoluta da população é de índios,
existe praticamente um apartheid entre os índios e os não índios, entre aqueles
que habitam um quase minúsculo núcleo urbano do município do Jordão e
a maioria avassaladora de índios, que estão espalhados nas diferentes terras
indígenas, nas dezenas de aldeias de cada uma dessas terras indígenas. Quem
não é do norte, e não conhece a realidade dos estados da Amazônia de uma
forma mais próxima, não tem a ideia da dimensão desse apartheid cultural
ainda existente.
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Brasil tínhamos fluxos de japoneses, italianos, alemães, para trabalhar na
lavoura do café, em outras atividades agrícolas e em atividades de cunho
econômico e industrial. Na Amazônia, houve um tipo de migração inter-
na, regional, muito propiciada, também, pela seca do nordeste, em que as
pessoas não foram trabalhar com atividades convencionais, mas com algo
que se descobria como uma grande alternativa para a indústria em geral,
que era a borracha, as aplicações da goma elástica vulcanizada. E ali elas
estabeleceram realmente um tipo de colonização diferenciada, sui generis.
Há esse choque de civilizações entre o migrante nordestino famélico, saindo
do sertão, fugindo de uma situação de seca, e o índio, o nativo. Depois, na
década de 1970, com o desenvolvimento dos seringais de cultivo na Malásia,
esse sistema de coleta extrativista do látex para produção de borracha entra
em colapso, e o governo militar implementa políticas para a expansão dessa
fronteira agrícola. Quando os estímulos federais e oficiais para desenvolver
outro tipo de atividade, que se julgava mais pertinente naquele período,
chegam ao Acre, encontram uma resistência que não se encontrou em
outros lugares, como, por exemplo, em Rondônia e no Mato Grosso, onde
houve uma expansão quase que completa e a consolidação do modelo das
monoculturas, do plantio da soja, ou da criação de pastagem. No Acre se deu
a aliança dos povos da floresta, uma junção dos esforços de seringueiros,
índios, ribeirinhos, extrativistas, no sentido de preservar seu modo de vida,
seu status de habitante da floresta, tirando dali seu sustento, seu modo de
ser e de viver. Essa é uma característica cultural fundamental, que norteia
os rumos da produção cultural do Acre e da Amazônia em geral.
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Fale um pouco sobre a cena do rock no Acre, que é fortíssima, e também
sobre como a produção acreana dialoga e se comunica com o resto do
Brasil e do mundo.
Nos anos 70 e 80, a produção musical acreana vivenciava, com algum
delay, o contexto daqueles grandes festivais de música. Havia uma estética
fortemente vinculada à MPB, que misturava isso com a temática bucólico-
florestal. Num determinado período, na produção de alguns artistas de música
autoral acreana, houve uma temática florestal muito consistente, como em
Keilah Diniz, Damião Hamilton, Heloy de Castro, Felipe Jardim, Pia Vila e uma
série de artistas que, naquele contexto, produziam para um público acreano.
Eram artistas muito presentes nos festivais acreanos de música popular, os
conhecidos FAMPs, que eram uma espécie de versão acreana dos grandes
festivais das televisões, com alguns anos de diferença. Passado esse período
de efervescência, houve um lapso, com o processo de assunção de algumas
dessas figuras a outros postos, inclusive a cargos políticos, o que deixou a
produção cultural um pouco órfã. Tem muita gente que produzia, que era
músico, artista plástico, e que foi ser funcionário público, ou empreendedor
da iniciativa privada, em outras áreas que não as culturais. A realidade do
cotidiano engoliu boa parte das pessoas que militavam nesse movimento, e
aí você tem um período, na música, em específico, de uma desarticulação,
uma desmobilização, inclusive com a extinção do Festival Acreano de Música
Popular. No final da década de 1990 e início dos anos 2000, uma nova geração
de músicos surge, tentando fazer a ligação com aqueles músicos antigos, que
tinham uma certa produção e até uma discografia posta, e se desvencilhar do
contexto que viviam, que era de uma grande quantidade de bandas cover de
rock and roll, passando pelo último suspiro do movimento do Rock Brasil. A
tentativa era de encontrar um caminho de resgate da música autoral, da au-
toralidade acreana, e aí começam a aparecer novos compositores e músicos.
Algumas iniciativas foram fundamentais para esse tipo de articulação. Na
ausência do Festival Acreano de Música Popular, surgiu, em 1999, o Festival
Universitário da Canção, na Universidade Federal do Acre, que teve três ou
quatro edições. Outro projeto importante foi o Projeto Fábrica, que nada mais
era do que um ajuntamento de bandas. Eles faziam eventos em quadras de es-
colas, de colégios secundaristas, e reuniam as bandas de garagem que estavam
na obscuridade. Eu não posso nem dizer bandas de garagem, num tema mais
acreano seriam bandas de quintal. Então as bandas dos quintais acreanos, de
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Rio Branco, da capital, tinham nesse Projeto Fábrica uma alternativa para se
encontrar e tocar. E, entre essas bandas, as que tinham uma preocupação com
autoralidade acabaram, através desses projetos, se encontrando e tentando
articular algo mais sistêmico, mais consistente. Disso nasce uma iniciativa
interessante, que foi o selo Catraia Records, da qual eu participei também. Era
uma tentativa de fundar um selo fonográfico voltado para a música autoral.
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integração maior, que era essa interação com outros estados também con-
siderados periféricos do ponto de vista da produção cultural e que viviam a
mesma situação, como Mato Grosso, Goiás.
Vamos falar sobre seu salto para gestor cultural. Qual foi a vontade e
quais foram os desafios desse salto?
Foi algo natural também. Eu nunca pensei, projetei ou sonhei ser Secretário
de Cultura do Estado. No caso, diretor presidente da Fundação de Cultura e
Comunicação Elias Mansour, que é a autarquia responsável pela gestão da
política cultural do estado. A minha formação é em Direito, pela Universidade
Federal do Acre. Depois, ingressei no mestrado de Relações Internacionais, na
Universidade Federal de Santa Catarina, mas através de um programa da CAPS,
que se chama Mestrados Interinstitucionais, pude cursar sem ter que sair do
Acre. Depois, prestei concurso para o estado, na carreira de Gestor de políticas
públicas, que é uma carreira recente, inspirada no cargo de Especialista em
políticas públicas e gestão governamental, do Ministério do Planejamento
do governo federal, que por sua vez é um cargo inspirado numa carreira do
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estado francês. E que é aquele perfil do profissional generalista, de várias
áreas, que atua de forma sistêmica em diferentes campos da gestão pública.
Então, acho que começou ali o distanciamento daquilo que era a minha área
de formação mesmo. E, em paralelo a tudo isso, eu participava desse proces-
so da música autoral. Participei da organização do Guerrilha Festival, que,
depois da sua primeira edição, passou a se chamar Varadouro. A intenção
era render uma justa homenagem a outras iniciativas anteriores, como a do
Jornal Varadouro, que foi um dos principais jornais de resistência do norte, no
período da ditadura, e que pós-ditadura também era o veículo de denúncia
dos acontecimentos, dos grandes conflitos agrários no Acre. E também por-
que varadouro é o nome dos caminhos que se trilham na floresta, que ligam
seringais e colocações, é a estrada, é o highway florestal, o caminho pelo qual
você escoa a produção, porque no varadouro as tropas de burro carregam a
produção de um seringal ao outro, do centro do seringal para a margem do
rio. E foram esses festivais que abriram o horizonte para um contexto mais
nacional, de integração, e possibilitaram dialogar de forma mais próxima
com os representantes do poder público. Eu já era recém-concursado, e isso
despertou uma certa atenção do vice-governador e secretário de Educação
da época, e também do presidente da Fundação Cultural, com quem a gente
mantinha esse diálogo para estabelecimento de parcerias, através do fomento,
do financiamento, dos projetos de lei de incentivo. Então, a partir disso, fui
chamado para assumir a presidência da Fundação Cultural.
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profissionais, que já atuavam em diferentes linguagens artísticas culturais, e
pessoas também que eram da área de gestão.
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que dialoga com um outro grande objetivo, que é o estimular as cadeias pro-
dutivas da economia da cultura, para realmente permitir a democratização
e a universalização do acesso aos bens e serviços culturais.
E o terceiro objetivo é a gestão das políticas culturais de forma com-
partilhada com a sociedade. Ou seja, pautar realmente a gestão pública de
cultura com os preceitos da cidadania, da democracia participativa. Não só
a participação social por meio dos canais institucionais, nos conselhos, nos
fóruns, nas conferências, mas também de forma mais horizontal. Fazer com
que realmente esses espaços públicos de debate, de discussão, deliberação,
existam numa quantidade cada vez maior, se multipliquem, e se consolidem.
Quer dizer, permitam realmente, através da cultura, que você tenha uma ra-
dicalização dos processos democráticos no nosso país, que ainda tem uma
resistência muito grande a esse tipo de debate, a esse tipo de diálogo.
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com pessoas, cenários, quadros, filmes, equipamentos de projeção, para um
município isolado. Agora, quando você parte para olhar sob esse outro pris-
ma, ou seja, do Acre numa situação geopolítica privilegiada em relação aos
demais países da América Latina, em especial Peru e Bolívia, e os países que
fazem fronteira com o território acreano, a coisa muda de figura. Mas é algo
que ainda está em processo de construção. A abertura da rodovia em si não
resolve a questão, até porque é uma questão histórica de séculos. O Brasil,
talvez por ser o único país da América do Sul que fala a língua portuguesa,
está virado de costas para os seus vizinhos. Esforços como o Mercosul, ou
como o Merconorte, que é uma discussão muito presente no Acre, e outros
esforços integracionistas, passarão também pela necessidade de quebra dessa
resistência cultural, linguística e de costumes, e isso é algo que vai demandar
bastante tempo. Então, outras relações comerciais, de fluxos migratórios, que
serão permitidos, e que já estão sendo permitidos pela integração da estrada,
não vão transformar o cenário num prazo muito curto. Mas vão lançar outra
perspectiva de circulação de produção, de relações até de mercado, e talvez de
costumes, de hábitos, de identidade cultural. E do ponto de vista da inserção
comercial e da produção, acho que novos horizontes vão se abrir para o Acre,
e para a produção cultural do norte.
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Claudia
Leitão
Ex-Secretária de Cultura do Governo do Ceará.
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Como foi o convite para se tornar secretária de Cultura do Ceará?
Foi um choque! Quando o governador Lúcio Alcântara me fez o convite,
eu estava no Senac, montando vários projetos apaixonantes voltados à edu-
cação profissional e tecnológica. Aceitei o posto, mesmo não sendo filiada a
nenhum partido político. Na verdade, não tenho apetência nem competência
para política partidária; sou professora. Mas, como ia dizendo, foi um choque.
Quando da solenidade em que os antigos secretários passariam seus cargos
para os novos, meu colega que havia deixado o mandato não compareceu!
Foi quando percebi o quão especial era a área da cultura. É muito mais difícil
e específica do que as outras: poucos recursos e muita vitrine. Quando as
pessoas citam determinadas secretarias, geralmente fazem menção ao tempo
do mandato – já no caso da cultura, cita-se o nome. É um trabalho muito per-
sonalista. A pasta da Cultura é muito representativa da formação da sociedade
brasileira: personalismo, voluntarismo. No princípio, tive alguma dificuldade
com isso. Mesmo assim, resolvi propor ao governador a realização de um
seminário chamado “Cultura XXI”, onde se tentaria fazer um diagnóstico
da situação da cultura. Eu era tão ingênua, tão neófita, que chamei o então
ministro Gilberto Gil. E ele compareceu. Chamei o Brasil inteiro. E o Brasil
compareceu. Eu não estava preparada para tanto. O ministro disse que esse
foi o primeiro convite que havia recebido desde assumir o cargo. Ele também
estava chegando a Brasília, e recebeu um ofício meu que dizia: “Ministro,
estou organizando um seminário, no longo do qual pretendo discutir cinco
pilares que me parecem importantes para podermos começar um trabalho
de gestão cultural e formulação de política pública”.
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muito distintos. Primeiro, a necessidade de ampliar o conceito de cultura, de
modo que abarcasse não só as linguagens ditas artísticas. A vida inteira ouvi
que o povo do Ceará não tinha cultura, o que é um absurdo, já que o nordeste é
uma espécie de epicentro da cultura latino-americana, tão importante quanto
o Vale Inca do Peru. Poucos dão acordo do potencial cultural dessa região
magnífica, porque o próprio termo cultura é geralmente associado, tanto no
discurso do senso comum quanto no da elite, ao academicismo, à erudição. O
segundo viés era a inclusão, a questão da cidadania cultural, um dos primeiros
pontos que discuti com minha equipe quando cheguei à Secretaria. O terceiro
era a profissionalização, a necessidade de dotar os profissionais do campo
da cultura e torná-los menos amadores, porque cultura também é emprego
e renda. Quando percebi que esses pontos também eram prioritários para o
ministro, entendi que a Secretaria de Estado do Ceará não teria dificuldades
de trabalhar com o governo federal, muito embora eu representasse um par-
tido de oposição. Mas essa oposição, felizmente, nunca se colocou. Inclusive,
quando o governador deu as boas-vindas ao ministro, falou uma frase muito
simpática: “Ministro, seja bem-vindo ao Ceará, aqui somos todos do partido
das culturas”. Daí a cumplicidade e amizade que vieram a caracterizar nossas
relações dali em diante.
Cláudia, lemos uma entrevista sua na qual você afirmava que “não existe
gestor cultural triste”. Você ainda acha isso?
Sim, acho. Há tanta criatividade na gestão cultural que não posso deixar
de pensar que temos algo a ensinar a todos os outros ramos de gestão pública
do país. Evidentemente, essa gestão enfrenta diversos impeditivos, porque a
cultura é um produto inteiramente diferente dos demais produtos. Quando
pegamos, por exemplo, uma Lei 8666 para trabalhar uma licitação, começamos
a perceber que nossa área é muito difícil. Outro dia eu estava discutindo com
uma aluna a respeito do papel desempenhado pelas OSCIP e OS nessa questão.
Há quem diga que as OSCIP e as OS não são constitucionais e vão acabar. Não
acredito nisso. Creio que são instrumentos interessantes, merecedores de uma
análise menos partidária. OSCIP ou OS, independentemente do partido a que
se associam, são formatos válidos de gestão não estatal, porque nosso direito
administrativo tem tudo para entristecer o gestor. Um dos entraves à gestão
pública no Brasil hoje em dia é esse direito que encara o gestor com extrema
desconfiança. O que significa ser gestor hoje no Brasil? Um gestor que inova,
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um gestor que não se deixa desencorajar pela burocracia dos processos, vai ter
de pagar por suas obsessões depois. Penso que, no caso do Ceará, nós inova-
mos. Inovamos no sentido da gestão, criamos um plano estadual de cultura.
Queríamos fazer um trabalho de interiorização, formular políticas de cultura
capazes de dar voz e vez às diversas regiões do estado. Criamos o programa
Valorização das Culturas Regionais, carro-chefe da nossa gestão. Mas como
alcançar um município como Salitre, por exemplo, que tem o menor IDH do
estado? O Ceará é muito pobre. A questão que se apresentava era: como sair
da capital? O direito administrativo, o direito constitucional brasileiros não
nos permitem chegar lá na ponta! Ou seja, as formas que encontramos de
chegar lá foram jurisprudências. Não são legais. Por mais que minha gestão
tenha sido honesta, tenho mais de 20 processos contra minha pessoa! Em
nome da alegria e da criatividade do gestor brasileiro, é preciso transformar
o aparato jurídico onde ele trabalha. Trabalhar com cultura não é como licitar
carteira escolar, leito de hospital ou vacina.
Você poderia nos dar uma narrativa desses lugares afastados do centro
que sua gestão alcançou?
Pouca gente sabe disso, mas a Secretaria de Cultura do Ceará é a mais antiga
do Brasil. Foi criada em 1968, é mais antiga que a de São Paulo. Muito embora
tenha toda essa tradição, ela sempre se limitou a uma ação de capital, como,
100
aliás, todas as secretarias de cultura. Em alguma medida, nosso (no dizer de
Sergio Miceli) “clientelismo” sempre fez refém todas as políticas culturais – você
só consegue servir aos artistas de plantão, aqueles que estão mais próximos
das secretarias. É quase inimaginável uma política pública que sirva a toda a
população e não exclusivamente ao artista. É preciso trabalhar contra essa lógica
canhestra de que uma Secretaria de Cultura só existe em função de um grupo
de 10 cineastas, 20 artistas plásticos, 50 literários, todos com acesso à mídia,
aos jornais. É uma situação dramática. Os gestores de cultura pública vivem
acossados por esses lobbies poderosos que dominam as leis de incentivo. São
eles que têm os contatos e chantageiam os departamentos de marketing dos
bancos. Sei o preço que paguei por elaborar uma política que leva em consi-
deração 8 milhões de cearenses. Ao final desse seminário que realizamos em
março de 2003, fizemos um planejamento estratégico e saímos com um plano
de cultura, que logo depois foi publicado em livro e distribuído pelo Brasil todo.
Mandei o livro para o ministério, dizendo que precisava criar um chão insti-
tucional para dizer aonde estávamos indo – e estávamos indo para o interior
do Ceará, doesse a quem doesse. Por uma questão estratégica, resolvemos nos
aproximar do turismo. O prefeito não vai entender que cultura pode ser um
instrumento econômico até que se fale em turismo cultural. Só então a cultura
começa a assumir, para ele, um vulto que ultrapassa as festas de padroeiro, de
município ou as datas patrióticas. Nesse painel, a cultura serve ou à educação,
ou à assistência social, que é o mais perigoso dos problemas da cultura. Quan-
do a cultura vai para as mãos dos secretários de ação social, é quando vemos
o produto de pior qualidade – é o coral desafinado, a peça de teatro que não
presta, é a cultura feita de forma “filantrópica”. Mas, como ia dizendo, cami-
nhamos para essa parceria com o turismo. O secretário raramente participava
das ações, mas cedia sua equipe. Foi essa junção de pessoal que viabilizou a
criação dos fóruns regionais que implementamos em todas as regiões do esta-
do. Isso foi uma grande mudança. Como os fóruns eram itinerantes e serviam
a todos os municípios de sua região, isso dava oportunidades de diálogo que
não existiam antes. Por exemplo, era um momento em que os administradores
do hotel-resort de Camocim podiam conversar com a Associação de Jangadei-
ros. No geral, promovemos interlocuções muito interessantes. O encontro de
Cearás totalmente diferentes que conviviam numa mesma região. Para tanto,
contamos com a presença do SEBRAE, do SESC, do SENAC, do Banco do Nor-
deste, das associações, dos artistas. Quando os fóruns começaram a, por assim
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dizer, “pegar no embalo”, começamos a levantar as vocações culturais de cada
região. Dentro do Programa de Valorização de Culturas Regionais, um de nossos
maiores projetos era a criação de uma Secretaria Itinerante. Passamos dois anos
elaborando as condições logísticas para tal e mantendo diálogos estreitos com o
interior do estado. Essa iniciativa era tão inusitada que, quando eu chegava aos
municípios, as pessoas me perguntavam se eu era Secretária da Agricultura. E eu
brincava, citando a Marilena Chauí em seu Cultura e Democracia, dizendo que
cultura vem de “cultivo”. Então realmente são coisas parecidas. Durante esses
dois anos iniciais, fizemos um mapeamento territorial minucioso. Entendi o que
era o maciço de Baturité, a serra da Ibiapaba, o Sertão Central, os Inhamuns,
o Cariri, o vale do Acaraú, o vale do Jaguaribe. A partir daí, já com uma noção
bem mais ampla do que nos aguardava fora de Fortaleza, fizemos um projeto
chamado “Cultura em Movimento – SECULT Itinerante”. Durante esse período,
contei muito com a ajuda do governador quanto à captação.
102
anos, conseguimos ter ações estruturantes em todas as regiões, em função de
suas vocações culturais. Por detrás de todos esses festivais, havia uma lógica de
financiamento tripartida. Um terço do dinheiro vinha do Fundo Estadual de
Cultura, outro terço vinha do dinheiro que eu captava nas estatais brasileiras,
e o outro terço era escambo. Eu chamava os prefeitos e dizia, em linhas gerais:
“O senhor sozinho não pode nada, mas regionalmente podemos muito. Não
quero seu dinheiro, mas quero parceria. Preciso de hospedagem, transporte,
restaurante”. Com esse escambo, fechávamos o orçamento. O Ceará, portanto,
começou a ter uma agenda cultural em todas as regiões. Uma vez isso tudo
montado, saímos de Fortaleza.
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sobre Federalismo Cultural e Investimos Culturais, mostrando o caminho
para prefeitos, vereadores e as populações como um todo. Minha meta nas
câmaras era construir secretarias. Quando assumi o cargo, havia algo entre
20 e 25 secretarias no estado. Quando saí, havia 100.
O que mais nos chama a atenção no que diz respeito à sua gestão é essa
iniciativa de criar a produção para depois geri-la. Isso dá uma eventidade
ao gestor que o gabinete não daria, não é?
Praticamente não estive no gabinete. O ministro Gilberto Gil esteve muito
aqui durante os primeiros anos de gestão, e nunca encontrei com ele numa
situação de ar-condicionado. Era sempre no chão do sertão, andando. Ainda
acho a itinerância o melhor formato. Não fosse por isso, não teria conseguido
alcançar os municípios que alcancei com minha equipe. Mas, na minha opi-
nião, a coisa mais importante que ficou da gestão foi o livro bem extenso de
leis que publicamos. Afinal, os programas se acabam, as políticas são sempre
muito vulneráveis, mas as leis ficam. Segundo o sistema jurídico brasileiro,
lei é melhor que programa. Torne-se a política lei, e ela sobreviverá.
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guimos garantir-lhes uma sobrevivência financeira e assegurar uma primeira
ação de transmissão. É apenas lógico. Se o mestre tem condições, ele vai tra-
balhar no processo de transmissão com o Estado. De resto, não ignoramos o
fato de que eles já eram mestres em suas próprias vizinhanças, apenas criamos
situações específicas de encontro, como o Festival Mestres do Mundo, para
o qual trouxemos mestres do Japão, da Índia, do México, e juntamos com os
mestres do Cariri, de Minas Gerais e do resto do Brasil.
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106
Joãozinho
Ribeiro
Ex-Secretário de Estado da Cultura do Maranhão.
107
diferente, um sotaque. Essa manifestação foi incluindo outros elementos,
como os instrumentos que eram utilizados de maneira bem rústica. Os sota-
ques variados acabam tendo influências também das populações indígenas,
da população africana e até da população europeia, quando alguns grupos
começam a utilizar instrumentos de sopro. Várias outras manifestações,
que derivam dessa matriz, hoje compõem o imenso mosaico que é a cultura
maranhense. Isso tem influência nas danças, nas músicas e nas várias ma-
nifestações artísticas que hoje são objeto de pesquisa e de trabalho artístico
em todo o mundo. Essa herança cultural tem uma matriz bastante singular
em relação às outras regiões do país.
108
matrizes africanas tradicionais, como o bumba-boi de zabumba, o tambor
de crioula, a dança do lelê. Esse é um fenômeno novo, que talvez ainda não
esteja nessa cena oficial, traduzida para outras plagas, mas é um aspecto que
deve ser considerado atualmente, quando a gente fala numa cena maranhense
de cultura.
E o reggae?
O reggae começou na zona do baixo meretrício, do lado da ilha de São Luís.
Como aconteceu em quase todo o país, depois do grande boom do comércio,
no final de todo esse apogeu, a área portuária ficou degradada, se transformou
no que a gente chamava de ZBM, zona do baixo meretrício. Eu nasci e me criei
no centro histórico de São Luís. Quando eu era garoto, me deparei com várias
paisagens assim, um território povoado por levas e levas de marinheiros, que
vinham de muitos mares navegados, de muitas noites, e ansiavam por terra e
por mulheres. Eles traziam muitos souvenirs de outros países. A primeira vez
que eu ouvi a palavra “reggae”, e esse ritmo, foi lá. Os discos provavelmente eram
trazidos das Guianas Francesa e Holandesa, que, em geral, era a procedência
desses navios. E o reggae se espalhou como um fenômeno pelos bairros de
periferia de São Luís, a princípio, e teve um diálogo muito fecundo com essas
populações. Naquele tempo, o Caribe já tinha uma influência muito grande
em São Luís, pelas músicas que eram tocadas lá, o merengue, a salsa, o calipso.
Então o reggae foi se espraiando. No primeiro momento, criou um fenômeno
chamado radiola de reggae, que são imensas caixas de som, operadas por DJs.
Caiu na graça do povo e virou grandes bailes populares.
Hoje o reggae já é um fenômeno concentrador de renda, se transformou em
um tipo de exploração, o que a gente chama de um novo tipo de escravidão
oficializado. A maioria dos negros, que incorporaram, dançam e praticam o
reggae, sustenta um grupo de, no máximo, dez empresários, que são donos
das radiolas e que entraram também no mundo político. Vários deles são
deputados, têm mandato. Essa população toda que chega a pagar às vezes
até R$ 50,00 por show é quem sustenta toda essa indústria, que é apropriada
por um grupo bem pequeno de pessoas.
Então, essa ideia que passa para fora, de que São Luís é a Jamaica brasilei-
ra, e que o reggae é a grande manifestação, é preciso ser vista com bastante
cautela. O Maranhão possui diversas manifestações culturais, e não é positivo
que esteja apenas associado a um estereótipo do reggae.
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Há semelhanças entre as radiolas do reggae e as aparelhagens do tecno-
brega do Pará?
Eu estive recentemente em Belém e estava conversando sobre isso com
os gestores de cultura de lá. Esse fenômeno do tecnobrega, que mereceu um
estudo da Fundação Getúlio Vargas, é um tipo de economia de cultura que
fugiu aos padrões de modelos de negócios que se conhece. No Pará, a coisa
é bastante democratizada. Percebo que é um fenômeno apropriado de uma
forma mais descentralizada e que até agora é alvo de estudo. Já no Maranhão,
para vocês terem uma ideia, os parlamentares que são empresários do reggae
buscam eleger vereadores em cada cidade para defender, em cada câmara,
o Dia do Reggae. Querem que no calendário de cada município exista o Dia
do Reggae. Por trás disso está uma grande rede de apropriação também de
recursos públicos, para que os 217 municípios maranhenses tenham, de uma
forma mecânica, de uma forma de cima para baixo, criado um circuito de
radiolas contratadas. É uma estratégia bastante definida e bem planejada.
Existem outros problemas, inclusive no diálogo das radiolas com as festas
tradicionais. Estive há algum tempo na Festa do Divino, em Alcântara, e lá
o pessoal só podia fazer os ritos e as missas depois que a radiola parasse de
tocar na praça, num som bem alto, quebrando toda uma tradição secular, sem
conseguir construir um diálogo. Isso é perigoso. Segundo a Marilena Chauí,
que estudou esse fenômeno de culturas diferentes, quando elas se colocam
face a face, se não se consegue construir um diálogo generoso, fazer o que
a gente chama de interculturalidade, há o perigo imanente de uma querer
absorver a outra, ou destruir.
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absorveu e conseguiu colocar em prática, mas na maioria dos lugares isso
não acontece.
Há algum tempo eu estive em alguns povoados remanescentes de quilom-
bos e fiquei preocupado com o fenômeno das radiolas, que não respeitam os
ritos e nem as manifestações de matrizes africanas. Um fenômeno também
complicado é que as novas gerações que vão se achegando à cena cultural
ficam a mercê de um fenômeno que traz consigo uma carga de extermínio
dessas raízes. Essa nova geração, encantada pelo fenômeno do reggae, fica
um pouco envergonhada das suas raízes. É preocupante porque, sem esse rito
de passagem, sem essa ponte entre as duas manifestações, prevalece aquela
que está mais ligada à indústria cultural. Além da questão do Dia do Reggae
em todo município, há também uma compra de programas em tudo quanto
é rádio, seja comunitária, seja oficial, para tocar reggae durante uma grande
parte do dia. Então, há um modelo de negócio bastante agressivo em torno
da indústria do reggae.
111
como um modelo de desenvolvimento, traz consigo também a possibilidade
daquele espaço cultural ser preenchido por fenômenos que eu chamaria da
cultura do espetáculo. Aí começam os grandes shows de sertanejos, de sam-
banejo, das micaretas. É um fenômeno que, do ponto de vista da economia da
cultura, tem causado um processo de evasão de renda cruel em todas aquelas
regiões do sul do Maranhão.
Quando eu era secretário de Cultura, os prefeitos sempre nos procuravam
para apoiar projetos desse tipo. Um deles até me disse que, se não fizesse
essas grandes festas, não se elegia na próxima eleição. Uma vez eu perguntei
para eles como ficava a economia dos municípios depois desses eventos de
grande porte. Eles disseram que passam três ou quatro meses com quase
toda atividade de serviços e comércio bem em baixa. Esse modelo de negócio,
que vem das micaretas e esses outros tipos de produção cultural, tem esta
particularidade: os direitos autorais, desde do artista que está no palco, além
dos equipamentos, dos royalties e das licenças, são pagos pela compra de
abadás e pelo município e são recolhidos em escritórios de outros estados.
Isso causa uma evasão imensa de recursos em municípios pobres. E também,
na maioria desses municípios, principalmente os de características rurais, a
renda é das pessoas mais velhas, que vem das aposentadorias rurais, do INSS,
e agora dos programas sociais do governo, Bolsa Família. Os avós ou os pais,
movidos pelos desejos dos netos e filhos, ficam com prestações a pagar dos
abadás e dos outros produtos gerados por essas micaretas. Isso causa uma
queda em todo o comércio da cidade.
Quais são os caminhos para lidar com os direitos autorais sob a perspec-
tiva das culturas tradicionais, em que a autoria é coletiva?
Talvez quem nos dê a melhor lição sobre essa questão sejam as popula-
ções indígenas. Nós temos aqui, no Brasil, a questão do direito autoral de
domínio público, que é uma faca de dois gumes. Ele coloca a possibilidade
de democratizar a informação, a cultura, mas, por outro lado, também coloca
o fenômeno da invisibilidade cultural, que talvez seja a forma mais cruel de
exclusão, do ponto de vista humano. Então, a gente tem que ter um equilíbrio
entre esse processo da criação e a apropriação dos seus resultados. Vou pegar
uma manifestação tradicional do Maranhão para caracterizar essa questão
do direito autoral coletivo. As comunidades que já têm mais de cem anos,
onde o bumba-meu-boi é tido como a maior manifestação, com as toadas e
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as canções que vêm dele, quem tentava se apropriar dessas toadas e colocar
como suas era expurgado da comunidade à base da paulada de matraca, que
é um instrumento de percussão feito de madeira. Essa era uma forma que eles
tinham de dizer para o mundo que aquela criação era coletiva. E isso valeu
até pouco tempo atrás. Se alguém perguntasse de quem eram as toadas, as
mais antigas, as pessoas respondiam que eram do boi, não identificavam os
autores, mas, depois, com a comercialização da produção musical, e com o
bumba-meu-boi vendendo cerca de 15 mil CDs na época da festa de São João,
no Maranhão, os autores passaram a querer ser identificados. Então essas
comunidades passaram por esse fenômeno e individualizam a autoria, mas
vários grupos indígenas, para proteger a sua produção e a autoria, construí-
ram associações e defendem que esse reconhecimento da autoria seja dado a
essa associação, do ponto de vista econômico e do ponto de vista simbólico.
É a maneira que eles encontraram para tentar proteger suas criações. Por
incrível que pareça, o direito brasileiro ainda não abriga isso. É uma questão
que, de fato, já acontece, mas o direito brasileiro identifica o autor somente
por pessoa física.
Quando a Lei 9.610 foi aprovada, em 1998, ela resolvia um conflito que
existia anteriormente, das pessoas jurídicas, esse fenômeno abstrato, sem
alma, incorpóreo, que o direito ocidental abrigou, e hoje se expandiu pelo
mundo inteiro. Antes, a pessoa jurídica poderia ser considerada criadora de
uma obra intelectual. Então, o direito brasileiro, a partir de 1998, consagrou
que o autor só pode ser pessoa física. Esse direito moral só pode ser atribuído
à pessoa física. Isso resolveu um conflito entre autores e essas grandes corpo-
rações, mas, por outro lado, não teve um olhar para o Brasil inteiro. Resolveu
apenas o conflito individual. Lembro do Gilberto Gil, numa briga terrível
com a Warner em torno dos seus direitos autorais. Hoje é a sua produtora, a
GG, que a sua mulher dirige, quem negocia caso a caso cada produção, cada
autorização de exploração da sua obra musical.
A legislação autoral brasileira tem de ser revista o mais urgente possível,
porque ela não comporta casos como esse que nós estamos discutindo, da
criação coletiva, e muitas populações ainda trabalham assim, não só as po-
pulações indígenas, mas populações ribeirinhas, populações tradicionais,
remanescentes de quilombolas. Isso faz parte da nossa realidade, desses
“brasis”, que nós temos. Costumo brincar, mas falando sério também, que o
Brasil, embora não seja um verbo, não pode ser conjugado no singular: ele
113
tem que ser conjugado sempre no plural. Porque nós temos vários “brasis”
dentro desta nação continental.
114
camente duas famílias, a do senador José Sarney e a do ministro Edison Lobão.
Isso faz com que tenhamos como resultado uma prática perversa, que inibe o
acionamento daquele gatilho, de que eu falei no início aqui da entrevista. O
gatilho que não pode disparar um tiro mortal, mas pode disparar uma aber-
tura para essa produção cultural tão grande que o Maranhão tem. Eu tenho
a convicção, desde os meus tempos de fórum intermunicipal de cultura, que
não há como se construir uma política pública de cultura no Brasil, desde os
rincões mais recônditos até as zonas urbanas mais aquinhoadas, se o tripé
cultura, comunicação e educação não estiver bastante azeitado. Se você não
tiver na base da produção educacional uma valorização da cultura local, você
já perdeu 90% de possibilidade de desenvolvimento dessa matriz. E mesmo se
você conseguir essa formação na educação e, posteriormente, não conseguir
a difusão da produção cultural local, essa possibilidade é também perdida.
Por último, se mesmo tendo esses meios, você não conseguir democratizar e
descentralizar essa diversidade, essa formação e essa difusão, não se completa.
Hoje, esses maribondos de fogo queimam toda essa possibilidade que o Ma-
ranhão tem, porque os próprios artistas e produtores maranhenses precisam
pedir licença ao coronelato para que a sua produção possa vingar como uma
planta, como algo da natureza. Esse é um fenômeno que conseguiu atravessar
os séculos e, em pleno século XXI, ainda é uma realidade.
115
116
Heitor Martins
Luiz Camillo Osório
Fábio Coutinho
Gérald Perret
Lárcio Benedetti
José Martins
Maria Arlete Gonçalves
Eduardo Saron
INSTITUIÇÕES
CULTURAIS
Eliane Sarmento Costa
Luciane Gorgulho
Roberto Smith
Danilo Santos de Miranda
Décio Coutinho
Ana Toni
Gilberto Freyre Neto
Carlos Dowling
117
118
Heitor
Martins
Presidente da Fundação Bienal de São Paulo.
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O que é a Fundação Bienal e como que ela surgiu?
Ela começou em 1950, com o projeto de Ciccillo Matarazzo. Acredito que a
base desse projeto é justamente o que a gente está reafirmando agora, que é o
desejo de conexão do Brasil com o resto do mundo no plano das artes plásticas,
mas também num plano político. Tem um interesse de afirmação nacional,
de inserção do Brasil dentro de um contexto de produção cultural global,
de fazer com que o Brasil seja, de fato, um expoente dentro desse processo.
A bienal cumpriu esse papel. O Brasil saía de um período de pós-guerra, de
um período de afluência, como é o período de hoje, de desenvolvimento, e se
projetava internacionalmente em várias dimensões. A bienal era uma forma
de projeção da nossa cultura e de inserção do Brasil no debate cultural, no
debate plástico.
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A Fundação Bienal fará sessenta anos. Isso traz tradições, que podem
fortalecer, mas também dificultar o processo de criação. Como você vê
isso?
Claramente fortalece. Porque a tradição lhe traz uma reputação, um pres-
tígio e uma capacidade de alavancar recursos e mobilização. Não existe outra
instituição no Brasil que tenha essa condição. Temos uma lista de 150 artistas,
e nenhum deles recusou o convite. Você consegue ligar para qualquer artista,
em qualquer lugar do mundo, e convidar para participar da nossa bienal, e
muitos deles, além de aceitar participar, se dispõem a produzir trabalhos
novos. Se você não tivesse essa tradição, esse olhar, não conseguiria fazer isso,
haja vista as dificuldades que outras bienais têm de mobilização. Esse é um
enorme patrimônio brasileiro. Países como a Espanha, a França adorariam
ter uma bienal como a nossa, mas não têm.
121
fica um vale. Cria-se uma estrutura e essa estrutura fica completamente sem
utilização por todo um ano ou é desmontada.
Sob o ponto de vista de produção, seria muito melhor você ter eventos
anuais. Você teria um ritmo de relação mais constante com a sociedade. Mas,
sob o ponto de vista das artes, há artistas e críticos que acham que um ciclo
mais longo, como o de Kassel, é mais apropriado. É uma questão que precisa
ser tratada, há limitações e forças dentro dessa estrutura.
Como lidar com arte e educação, fazer essa ponte, e ter uma continui-
dade, não ser um projeto intermitente?
Nós delimitamos que uma das grandes vocações da bienal é a educação,
no seu sentido mais amplo. Nosso país é bastante carente. Menos de 10% da
população foi alguma vez na sua vida a um museu. Quando se faz uma mos-
tra de trinta mil metros quadrados, é uma oportunidade única de aproximar
a população das artes. E para fazer isso com a arte contemporânea é muito
importante que essa aproximação seja mediada, porque a produção con-
temporânea é muito hermética. Então, para fazer com que essa experiência
seja enriquecedora, é importante ter um programa educativo que facilite
esse diálogo entre o espectador, que está indo a uma mostra pela primeira
vez, e a obra. Daí toda uma ênfase no programa educativo, o que no Brasil é
realmente pioneiro, porque não existe em nenhum outro lugar do mundo um
programa educativo com esse alcance, com essa complexidade. A fundação
realizou convênios com a Secretaria de Educação de São Paulo, do estado, do
município, das cidades ao redor; com um grupo de mais de 25 Ongs e insti-
tuições privadas, e desenvolveu um projeto que trabalha a bienal a partir do
educador. O processo começa bem antes da bienal, trazendo os professores
para um treinamento, um laboratório de dois dias sobre arte contemporânea,
onde eles têm um contato com a bienal, com a programação, com a proposta
da curadoria. Eles recebem um material didático e recebem uma formação
de como trabalhar esses temas na sala de aula. A partir daí, eles voltam para
as escolas, ou no caso das Ongs, para as comunidades de base, e trabalham
o tema da bienal em sala de aula com os alunos. Isso deve ocorrer ao longo
de todo o semestre, com um material didático superinteressante, lúdico. Em
setembro, haverá uma pré-abertura antes da bienal, e, durante os dois pri-
meiros dias, a mostra estará aberta só para os professores que participaram
desse processo, de modo que eles possam vir tendo já participado do programa
122
de formação e tendo trabalhado o tema em sala de aula. Nossa meta é trazer
algo como quatrocentos mil estudantes ou participantes do programa para
a mostra, em visitas guiadas. É um programa absolutamente único, seja pela
extensão e magnitude, seja pela complexidade. Para se ter uma ideia, a bienal
de Veneza inteira recebe trezentos mil visitantes.
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O Programa Brasil Arte Contemporânea é um projeto de apoio à divul-
gação da arte brasileira no exterior. Na Inglaterra, por exemplo, existe o
British Council. Então, quando um artista britânico é convidado para vir
participar da nossa bienal, o British Council apoia e provê recursos, crian-
do instrumentos para que artistas britânicos possam viajar e trabalhar no
exterior, divulgando a sua produção. Eles apoiam centenas de artistas todos
os anos, para fazer os mais diversos tipos de mostra ao redor do mundo. É
um instrumento de divulgação da cultura britânica e da arte britânica. A
França, a Espanha e os Estados Unidos têm a mesma coisa. E o Brasil não.
Cada vez que um artista nosso é convidado para participar de algum evento
fora do Brasil, tem uma dificuldade tremenda na busca de recursos. Mesmo
em mostras importantes, como as de Kassel ou de Veneza, os artistas têm
muita dificuldade de se organizar e de conseguir recursos, conseguir apoio
para poder participar. O Programa Brasil Arte Contemporânea visa justa-
mente suprir essa carência, apoiando viagens, publicações, textos técnicos,
residências. É um programa central. Se queremos desenvolver a nossa arte
e projetar a arte brasileira no exterior, é muito importante ter esse tipo de
apoio de base.
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A nossa relação principal é com o Ministério da Cultura. Ele é o nosso inter-
locutor, o nosso grande parceiro. Nosso contato com o Itamaraty é muito mais
limitado, até porque o Itamaraty atua muito mais fora do Brasil do que dentro.
Temos uma certa cooperação com mostras oficiais, em Veneza, e com algumas
outras bienais ou eventos que demandem uma representação nacional.
125
Claro. Tanto que existem programas de seminário muito significativos. E
isso não é uma característica dessa bienal apenas, vem marcando as bienais
ao longo do tempo. Inclusive a última bienal, a do Ivo Mesquita, se dava muito
mais nesse plano acadêmico, intelectual, do que no plano plástico.
Como fazer para que o fomento da cultura deixe de ser uma questão do
governo e passe a ser uma questão de Estado? O que fazer para que os
recursos públicos para a cultura não sofram tanto com a inconstância?
Tem que ser um passo depois do outro. Na medida em que se tenham
projetos mais claros, mais consistentes, vão-se criando mecanismos de apoio
que também sejam mais consistentes e mais estáveis. Não dá para culpar o
governo por essa inconstância, pelo menos ao que se refere à bienal. Nossa
126
instituição também precisaria ser mais estável, esse processo de trocar tudo
a cada dois anos, mudar o presidente, a filosofia, a abordagem, também não
é muito saudável. Agora, dito isso, seria interessante ter mecanismos de co-
operação que pudessem ser de mais longo prazo, ter endowments, convênios
e programas de patrocínio plurianuais. Esse processo é muito transacional
hoje. Cada mostra, cada ação tem que ser estruturada por si mesma.
Você disse em uma entrevista que 70% dos recursos da bienal vêm de pa-
trocínio, e a maioria deles com renúncia fiscal. Como é essa dependência
da renúncia fiscal para criar um evento?
É preciso desmistificar um pouco a questão da renúncia fiscal. No mundo
inteiro, essa atividade de fundo da cultura se dá com recurso público. Na Eu-
ropa, através de recursos diretos, e, nos Estados Unidos, através de recursos
de incentivo fiscal, por exemplo. Os Estados Unidos têm incentivos enormes,
há doação de obras de artes, doação de bens, e há criação de endowments,
que são baseados nos incentivos fiscais. Então, ter dinheiro privado sendo
canalizado por esse tipo de atividade de fundos é uma coisa que não acontece
em lugar nenhum, porque esse tipo de atividade é de interesse da sociedade
como um todo, não é uma atividade de interesse de A ou B. É típica de pro-
grama de Estado, de programa de governo e de recursos públicos. O que falta
aqui, no Brasil, são mecanismos que permitam que esses recursos fluam de
uma maneira mais estável, mais constante e mais bem planejada. O nosso
sistema é um pouco amarrado.
127
128
Luiz
Camillo
Osório
Curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
129
Foram anos difíceis desde o incêndio, até porque é um museu privado. É
uma situação muito particular no cenário brasileiro: os seus dois palcos da
arte moderna são museus privados, que quando foram criados tiveram como
modelo o Museu de Arte de Nova York, que também é um museu privado.
Foi feito no pós-guerra, a partir da política de boa vizinhança do governo
americano e brasileiro. A relação MOMA-MAM, tanto no Rio de Janeiro
quanto em São Paulo, é direta. Rockefeller fez uma primeira doação, em
1946, de dez obras, divididas entre os dois museus. Todo o modelo, toda a
logística, a direção, foi dada pelo MOMA. Então, reerguer e manter um museu
privado, dada as dificuldades de uma presença ativa e efetiva da iniciativa
privada na sociedade, foi muito difícil. Principalmente no Rio, que é mais
complicado do que São Paulo, não só pela diferença de vigor econômico
entre as duas cidades, mas também pela relação entre a sociedade civil e
os equipamentos culturais.
130
Pelo que pude acompanhar, na sua gestão há uma tentativa de fixar nova-
mente o MAM como um espaço de referência para o debate cultural do
Rio de Janeiro. Uma tentativa de reativar o MAM como espaço de reflexão,
de troca, de cursos. Como está se desenvolvendo essa gestão?
Na primeira edição da SPArte, uma feira de arte de São Paulo, pediram-me
para fazer uma entrevista com o Gilberto Chateaubriand. Na época, eu não
tinha nada a ver com o MAM, estou lá há seis meses. Então eu fiz a entrevista
com o Gilberto e, evidentemente, o assunto MAM apareceu. Eu perguntei
sobre a história do MAM, o passado do MAM e essa nostalgia em relação ao
que teria sido e como recuperar essa mística dos anos 1960. E ele me deu uma
resposta que eu achei muito boa. Ele falou: “Olha, tem uma coisa meio sebas-
tianista em relação ao MAM. Não vai voltar. Não adianta. Vamos pensar numa
reinvenção, numa outra coisa, num outro momento da história, da cultura,
da política brasileira e das artes brasileiras. Tem que criar um outro modelo.”
E essa imagem do Gilberto vem quebrar um pouco com essa mística do que
foi, do que teria sido, do como recuperar o passado. Essa coisa sebastianista é
uma imagem forte para a cultura luso-brasileira. Quando eu assumi o MAM,
tomei isso meio como uma bandeira. Quando chamei o Frederico Coelho
para ser meu assistente, a ideia era realmente trabalhar com uma pessoa que
tem uma convivência tangencial com as artes plásticas. Porque ele fez uma
tese de literatura sobre o Hélio Oiticica, fez uma dissertação de mestrado
sobre música brasileira e trabalha com esse universo da cultura brasileira. Eu
queria justamente apostar no MAM como um espaço para pensar cultura de
uma maneira horizontal, no sentido de abraçar a discussão cultural fora do
nicho “artes plásticas”. E evidentemente é um museu de arte, tem um acervo
a ser cuidado, a ser tratado, a ser exposto. A pesquisa sobre arte brasileira
é da maior importância para qualificar o museu, mas a discussão que essa
pesquisa, que essas exposições travam têm de abrir para um outro universo,
que beira a discussão específica das artes plásticas mas que vê a partir de um
outro lugar, de uma outra perspectiva, e que tem pontos em comum. Então,
essa é a discussão. E o Rio tem um pouco essa coisa de ser um espaço que
foi muito permeável a essas hibridações, a essas trocas. O museu tem de ser
um lugar de troca.
O Rio sempre foi um lugar que teve um ponto de encontro. O MAM nos
anos 1960, o parque Lage nos anos 1970, o Circo Voador nos anos 1980. Ele
131
está carente disso neste momento, não é? Como você vê a cultura em volta
do MAM neste momento?
Eu acho que é uma tarefa difícil. A cidade do Rio de Janeiro se deslocou
daquele eixo em torno do MAM, do Centro da cidade, para a zona Sul. Isto é
uma coisa que eu insisto em relação ao incêndio: não foi só ele que trouxe uma
certa crise para o museu. Existe um processo, já vem de algum tempo, de esva-
ziamento político e econômico do Rio de Janeiro. Não só pela saída da capital,
mas pela cidade ter sido sempre um foco opositor e de resistência à ditadura.
A ditadura foi muito impiedosa com o Rio. Então houve um esvaziamento
político e econômico e, ao mesmo tempo, a cidade mudou o eixo cultural,
que saiu do Centro da cidade e foi para a zona Sul. As pessoas que iam para o
MAM para se encontrar no final da tarde, tomar uma cerveja e conversar, ver
uma exposição, uma performance, um filme, discutir, passaram a fazer isso
em outros lugares. No parque Lage, no Baixo Leblon, no Baixo Gávea. Hoje,
de um modo geral, as pessoas acham que o MAM fica longe. Mas não é longe.
E é um lugar magnífico, de frente para a baía de Guanabara, com o parque do
Burle Marx ali ao lado, o prédio do Afonso Eduardo Reidy, que é um marco da
arquitetura. Venta, é menos quente. É muito mais agradável do ponto de vista
do horizonte, melhor do que ficar enfurnado em um bar. Ali você pode ficar
em um bar e ter uma relação muito mais agradável com o entorno. Mas as
pessoas têm dificuldade, acham perigoso atravessar ali da Cinelândia para o
museu, cruzar aquela passagem. E de fato o aterro do Flamengo também está
muito abandonado e precisa de um investimento da prefeitura para qualificar
aquela área. Então é muito difícil pensar aquele lugar como sendo outra vez
atrativo para as pessoas irem e ficarem, se sentirem ambientadas. Esse é um
trabalho que tem de ser feito com muito vagar, criando atrativos. E eu acho
que, para criar atrativos, você tem de ter um conjunto de atividades, como tem
o CCBB, que é ali perto e consegue isso, até porque atrai outros públicos, da
zona Norte ou de Niterói, que chega de barca. É gratis, tem ar-condicionado,
tem um conjunto de atividades interessante de teatro, biblioteca, cinema,
exposições, o bar. Isso é o que eu acho que precisa ser feito, ter tudo isso, ter
conexão sem fio de internet. As pessoas irem, ficarem, namorarem e verem
as exposições.
132
É uma sociedade civil sem fins lucrativos e que tem um conselho. Esse
conselho elege o presidente. Tem alguns mantenedores, a Petrobras, a Light,
e alguns parceiros. Estamos empenhados em aumentar o número de man-
tenedores, o que é fundamental, e de parceiros também.
Como pensar essa vida social em volta do MAM? Como viabilizar? Existe
uma resistência a isso ou a instituição está aberta?
Está absolutamente aberta em relação a isso. Os últimos cinco anos foram
muito importantes na tentativa de resgatar este ambiente. Eu digo isso porque,
nestes últimos anos, foi construído o teatro, o que é importante. Se hoje você
entrar em um táxi e pedir “Por favor, me leva ao MAM”, eu acho que um em
cada vinte não conhece. E boa parte dos 19 conhece porque tem o teatro ali
agora. Música é o que de fato atravessa e dissemina. Então tem o teatro, um
bom restaurante, sofisticado, que é importante para executivos que ainda
frequentam o Centro, o aeroporto, a loja de design. São ambientes que foram
criados nestes últimos anos e que têm, como objetivo, essa qualificação do
espaço. E eu acho que agora é levar isso mais adiante. Explorar mais o bar, fazer
atividades para o público mais jovem, mais diversificado, tentar mobilizar.
133
do jornal e das novas mídias eletrônicas e tentar fazer a partir daí um outro
canal, um outro processo de avaliação reflexiva. Eu acho que a gente está
passando por um momento muito interessante de redefinição do próprio
papel do jornal impresso, e eu tendo a achar que o futuro do jornal impresso
é quase que algo perto de revistas mais analíticas de situação e de conjuntura
do que de informação e serviço. Eu acho que a informação e o serviço vão ser
totalmente mobilizados pelas novas tecnologias, que são muito mais ágeis e
abrangentes, e vai caber ao jornal uma análise mais reflexiva.
A Cinemateca do MAM tem mais de trinta mil rolos de filme. Como fun-
ciona isso? Como está esse acervo?
A cinemateca tem um outro curador, que é o Gilberto Santeiro. Ela funciona
de quinta até domingo, tem cursos e discussões em torno do cinema. É tam-
bém uma batalha difícil hoje manter uma cinemateca, seja pela quantidade
de cinemas no shopping, seja pela dificuldade de se deslocar até lá, os DVDs...
É uma coisa mais complicada. Mas as escolas de cinema no Rio, por exemplo,
usam muito a cinemateca. Tanto a UFF quanto a PUC têm uma relação estreita
com a Cinemateca do MAM; utilizam-na para cursos, audições, pequenos
grupos de filme, e também para o acervo de filme produzidos internamente
nas escolas de cinema. Então esse é um pouco o papel dela.
134
interessante. São atividades lúdicas que complementam o trabalho educativo
e, principalmente, aquecem o museu. O trabalho educativo tem o papel
de aquecer o espaço. A atividade, a discussão, acontecendo no museu faz
com que ele se torne mais acolhedor, dinâmico e está, evidentemente,
construindo o público. E se for um trabalho legal, se a criança for cativada,
sem ser uma sedução demagógica, se ela percebe que aquele espaço pode
abrir uma perspectiva diferente e ao mesmo tempo ser um espaço diver-
tido, lúdico, então ela pode voltar com a família e começar a frequentar
realmente esse espaço.
135
existir uma reserva técnica, climatizada, com técnicos especializados. É um
conjunto de problemas muito difícil. Os museus que têm acervos importantes
precisam ter uma linha verde para aprovação de Lei Rouanet. Esses museus
não podem entrar no mesmo processo de um produtor cultural que está fa-
zendo uma exposição de dois meses de duração. É preciso pensar justamente
nessa complexidade, no volume de verba necessária para manter o acervo
e no potencial educativo deste acervo. São poucos os museus que podem
contar a história da arte moderna e contemporânea a partir do seu acervo.
Esse é um diferencial a ser estimulado.
136
aos anos 1970. Aí você faz uma curadoria de uma exposição de arte concreta
ou neoconcreta fora do Brasil e a dificuldade para exportação temporária é
um problema, atrapalha muito. Essa legislação não adianta mais, a coleção
já foi vendida. Ao invés de criar uma legislação que dificulte a saída, é preciso
criar uma que facilite a compra dessas obras aqui. É um pensamento errado,
de bloquear, e não de alimentar o fluxo e fortalecer um mercado interno para
que ele se torne competitivo. O mercado de arte é um mercado globalizado, e
quão melhor representada a arte brasileira estiver lá fora, melhor.
137
respeita a arquitetura, o paisagismo do Glauco Campello e que revitaliza
aquele espaço em volta. Que era o que eu estava falando antes, aquele espaço
estava muito degradado. Ter um anexo será importante para qualificar aquela
área também, para criar um fato novo naquele espaço que ajude a circulação
de pessoas, que qualifique o equipamento.
O Anexo vai ser importante também para abrigar a coleção Marcantônio
Vilaça, uma importante coleção contemporânea, brasileira e internacional.
Isso abre a possibilidade de outras coleções irem também para lá. Haverá
um estacionamento no subsolo. Sendo do lado do aeroporto, isso é fonte de
arrecadação para o museu e viabiliza a construção. Há um conjunto de fatores
que se potencializam e que tendem a dar uma outra envergadura para esse
complexo humano. Tem o bloco-escola, que vai ser reformado agora, toda
a parte de documentação, biblioteca, a cinemateca, o bloco de exposição, o
teatro. E vai ter esse anexo. Haverá um empenho grande. Vamos aumentar a
reserva técnica do museu porque, enfim, a coleção cresce. É um dado extre-
mamente positivo e eu estou muito otimista com esse Anexo.
E sobre essa relação com o espaço em volta, do MAM com a cidade, com a
prefeitura? Seria interessante criar uma rede de instituições culturais
que pudessem ser interligadas de alguma forma, por condução? Esse
tipo de pensamento poderia ser um caminho para a cidade reabsorver
seus aparelhos culturais?
Sem dúvida. Isso poderia acontecer do ponto de vista da conexão dos
equipamentos culturais, e para potencializar o trabalho educativo no museu.
Porque um dos problemas do trabalho educativo é o transporte da escola para
o museu, então se você cria três ou quatro pontos, já facilita. Eu estava no
avião com o Márcio Doctors, da fundação Eva Klabin, que tem uma coleção
clássica, e estava pensando na possibilidade de articular o MAM, a Eva Klabin,
o Museu do Pontal e o Museu de Belas Artes. Você teria a arte popular, o século
XIX, o começo do século XX, a arte moderna e contemporânea e a arte clássica
interligados, e poderia fazer um trabalho educativo combinado entre essas
quatro instituições. Criar um transporte para circular desde Vargem Grande
até o centro da cidade seria uma possibilidade muito interessante, fortalecida
por aquela orla belíssima. Além de ser uma coisa para as escolas, poderia ser
um circuito de ônibus conectando estes quatro pontos: Lagoa Rodrigo de
Freitas, Vargem Grande, o aterro do Flamengo e a Cinelândia.
138
Como você vê a questão da profissionalização e qualificação dos gestores
culturais no Brasil?
A gente tem percebido, com o próprio fortalecimento da cena artístico-
cultural brasileira, uma profissionalização e um esforço de institucionalização.
O resultado disso será a criação de gestores com uma formação especializada.
Esse é o caminho, não tem outro. Não tem como pensar um equipamento
cultural e a complexidade que é a administração disso sem uma preparação
focada. Isso é crucial. Eu sou curador do MAM e sou professor da PUC. A pos-
sibilidade de criar convênios entre museu e universidade é interessante até
para pensar gestão. Pensar junto com o departamento de artes e arquitetura,
a museografia, a montagem de exposição, a iluminação, a curadoria. Enfim,
pensar o museu nas suas várias entradas e facetas. Então, tem que haver uma
profissionalização e uma preparação mais focada. Não tem outra alternativa.
139
140
Fábio
Coutinho
Superintendente cultural da Fundação Iberê Camargo.
141
definir como seria essa sede. Aí entra o governo do estado do Rio Grande do
Sul, entra a prefeitura de Porto Alegre, que cedeu o espaço. A Fundação não
tinha espaço físico. Havia, sim, a casa do Iberê e o ateliê. O Iberê tinha dois
ateliês em Porto Alegre: o primeiro, que ficava na zona central da cidade;
e o segundo ateliê, que ele abre quando volta do Rio de Janeiro – onde ele
também tinha um ateliê. Esse ateliê ainda existe – ele construiu uma grande
área, residência e ateliê, e a Fundação iniciou lá. Era muito grande, mas muito
pequeno para tudo que se desejava para a Fundação Iberê Camargo. Então,
o governo do estado cedeu um terreno em frente ao lago Guaíba, um local
muito privilegiado geograficamente, com uma vista muito bonita, em uma
antiga saibreira, na encosta de um morro. E depois foi definido quem iria
projetar a Fundação Iberê Camargo.
142
Conte um pouco dos projetos da Fundação Iberê.
O centro do projeto é a preservação e a divulgação da obra do Iberê Ca-
margo. Nós temos, dentro da Fundação, inúmeros projetos. A base de tudo é
o acervo. A Maria Camargo doou, para a Fundação, todas as as obras que ela
possuía. São mais de duas mil obras. Depois houve uma aquisição também
das obras da filha do Iberê, a senhora Gerci. Compramos o acervo dela. A
Fundação tem hoje mais de quatro mil obras, entre gravuras, desenhos,
aquarelas e pinturas. Então, o núcleo central de tudo isso é o acervo. Nós
temos também outro setor muito importante, que é a catalogação. Estamos
em processo da catalogação da obra do Iberê. Já catalogamos todas as gra-
vuras e agora estamos trabalhando com as peças únicas: pintura, desenho,
guache, aquarela etc. Temos uma exposição permanente do Iberê Camargo,
que ocupa um dos três andares da Fundação. Nós fazemos duas exposições
por ano da obra do Iberê. Temos um projeto pedagógico, que é um desdo-
bramento do projeto do acervo. Esse projeto é desenvolvido para atender
um grande número de escolas, de alunos de todos os níveis educacionais,
mas não só estudantes, outros grupos também: os turistas, a terceira idade,
pessoas da comunidade. O objetivo é que a ida ao museu não aconteça de
forma tradicional, como na maioria dos museus em que a visita se encerra
ali. Além do projeto pedagógico, para ver a obra do Iberê, nós temos meia
dúzia de visitas diferenciadas, inclusive, com tempos diferenciados, e que
podem resultar em oficinas práticas. Saímos da visita teórica e entramos
na parte prática da visita no nosso ateliê educativo. Temos, ainda, ligado a
Iberê Camargo, o projeto Artista Convidado. Convidamos, mensalmente, um
artista plástico, gravurista ou não, para realizar gravuras no nosso ateliê, na
mesma prensa que foi do Iberê. Esse ateliê está montado hoje na sede da
Fundação. O artista faz uma tiragem de gravuras. Já estamos com 70 artistas
e aproximadamente 200 gravuras diferentes. Esse projeto resultou numa
exposição belíssima, que foi feita no ano passado,e que se chamou Dentro
do Traço, Mesmo. Também temos um projeto para bolsistas. Todo ano, a
Fundação Iberê contempla dois artistas brasileiros, em uma temporada de
aperfeiçoamento em um centro internacional. Estamos na 10ª edição do
projeto, e já enviamos artistas para diversos países, sempre em projetos de
residência, específicos para as artes visuais. Temos projetos de exposições
permanentes, de exposições temporárias, sempre relacionados à arte mo-
derna e contemporânea.
143
Pela localização geográfica, como que é a relação com o Mercosul
Cultural?
Em 2009 foi realizada a 7ª edição da Bienal do Mercosul. A nossa bienal
acontece nos anos ímpares. A relação com a Bienal do Mercosul sempre foi
muito próxima. Mesmo antes de a Fundação Iberê Camargo ter esta nova
sede, ou melhor, esta sede pronta, sempre houve integração de atividades
pedagógicas, culturais, congressos, seminários, junto com a Fundação Bienal.
Mas a Fundação Iberê Camargo não participa da Bienal do Mercosul como
um espaço expositivo. A Bienal do Mercosul acontece na área central de
Porto Alegre. Normalmente, utilizamos prédios históricos, museus do centro
da cidade, e, principalmente, o Cais do Porto, os armazéns do Cais do Porto.
144
professor que não fez formação não possa levar alunos. Claro que pode, e
é sempre bem-vindo à Fundação. Naturalmente que aquele professor que
teve uma formação especifica chega com seus alunos com um grau maior de
intimidade e de conhecimento do que vai ser mostrado a eles. Até porque ele
recebeu o material sobre a exposição antes. Então, quando os alunos chegam
à Fundação, já vêm com informações a respeito dela.
Nos últimos anos, houve uma extrema valorização das obras de arte
brasileiras, no mercado internacional. Como isso influi na Fundação
Iberê Camargo?
Eu não tenho mais participação em mercado. Embora eu já tenha tido
uma galeria de artes, afastei-me completamente do sistema de artes no
mercado e não olho para uma obra pensando o quanto ela custa, quanto
ela custou ou quanto ela poderá custar. Essa análise não faz parte do meu
cotidiano. Mas a arte brasileira, realmente, está tendo uma valorização muito
grande. Isso a gente percebe já há algum tempo, desde que começamos a en-
trar em um sistema internacional de leilões, de galerias e de feiras. Estamos
em um momento muito especial. É obvio que o mercado também é muito
importante para que as instituições tenham um trabalho de divulgação e
de afirmação desses nomes. E isso acontece com o Iberê, naturalmente.
Iberê é um artista que tem uma excelente valorização no mercado de arte
brasileiro e no internacional.
145
parte desse conselho – é que se desenvolve toda a programação da Fundação
Iberê Camargo. Esse colegiado é que decide.
146
classes sociais, culturais, financeiras, todas em Porto Alegre. Um dos Fóruns
– acho que o segundo – foi próximo das eleições na França, no ano seguinte,
e nada mais, nada menos do que seis ou sete candidatos à presidência da
França passaram por Porto Alegre. Naquele fórum tinha ministros e chefes
de estado do mundo todo. Foi uma coisa gigantesca.
147
148
Gérald
Perret
Presidente da Sociedade de Cultura Artística.
149
só vai ser construído no fim da década de 1940 e inaugurado em 1950, com
Villa-Lobos e Guarnieri.
150
dedicados. Além disso, trabalha-se um pouco com o ego de pessoas influentes,
cujos serviços prestados a nós abrem uma série de portas.
151
mas, no caso de uma instituição – não temos subsídio nenhum, nunca rece-
bemos um centavo sequer do poder público –, creio que uma mescla seja o
mais aconselhável. À medida que a empresa vai se “profissionalizando”, passa
a entender os editais. Mas, quando se analisa mais de perto, vê-se que essas
grandes empresas que fazem os editais destinam um percentual bem peque-
no aos mesmos. A grande parte do dinheiro disponível para fazer cultura, ou
para descontar do imposto de renda, não vai pelo caminho do edital. Então,
creio que o relacionamento pessoal seja muito importante.
152
que apoia projetos que não são tão interessantes, nem necessários, mas que
interessam por alguma outra razão.
153
Como a Cultura Artística seleciona as pessoas com quem trabalha?
Confesso que sou um pouco centralizador. Aprendi que os erros dos outros
são muito mais difíceis de corrigir que os nossos. Então, faço tudo. Tanto que,
na minha idade, ainda vou ao aeroporto buscar os artistas. Mas é um prazer,
e minha equipe funciona muito bem. Não tem escola, aprenderam fazendo.
Tampouco eu tenho formação de produtor. No interior de São Paulo, tenho
uma parceria com a Regina Vieira, da RVA Cultural. Conseguimos adminis-
trar perfeitamente esses concertos, que são numerosos. Já para os eventos
internacionais, os prazos são de outra natureza, como disse. Precisamos co-
meçar o processo com dois ou três anos de antecedência. Existem gargalos,
afinal, a burocracia é muito grande neste país. É o único país do mundo que
pede nome de pai e mãe de cada artista. Eles não estão habituados a isso e
estranham um pouco.
154
de dinheiro do que sobrou da Excelsior, fizeram alguns acordos. A Secretaria
de Estado pagou um aluguel adiantado, para que o teatro pudesse se reerguer.
Quanto ao incêndio, creio que nada acontece à toa. Sou uma pessoa muito
positiva. Aprendi com Ming a sorrir e olhar para frente. Em algum sentido,
a tragédia foi até salutar. Pelo menos, obrigou-nos a repensar uma série de
coisas. Bem ou mal, o teatro configurava uma garantia de receita. Através dos
espetáculos, conseguíamos cobrir o aluguel da sala. Subitamente, isso desapa-
receu. Isso nos levou, evidentemente, a uma redução das estruturas. Além do
mais, havia nossa responsabilidade para com as pessoas que trabalhavam no
teatro, lanterninhas, faxineiras e outros. Mantivemos o seguro-saúde desses
funcionários por muito tempo, até todos estarem recolocados.
Mas com a reforma iniciada em março deste ano (2010) o teatro deve
dobrar de tamanho, não é?
Sim, mas por outro lado, teremos só uma sala ao invés de duas. Dobra
não em termos de capacidade da sala, mas em termos de volume. Havia uma
série de defeitos no teatro. O palco era muito difícil de trabalhar, não havia
espaço suficiente para os artistas. Para o público, então, era muito desconfor-
tável. A capacidade da sala não era a mesma dos saguões, e não havia como
aumentar. Até fizemos um projeto de um prédio ao lado, mas mesmo assim
era insuficiente. Quando chegou o momento da reconstrução, decidimos
levar em consideração todas essas insuficiências anteriores. Então, o teatro
crescerá muito em termos de espaço para o público. Os camarins também vão
melhorar muito. Por acaso, a prefeitura tinha um projeto no início dos anos
1990, chamado Operação Interligada, em que se podia comprar o direito de
construir mais do que a função da sua lei de zoneamento. Esse investimento
de então foi providencial, porque nos permite crescer três vezes em termos
de volume agora. Isso tudo será muito positivo para nossos funcionários e
para a instituição em si.
155
outros espaços que possam surgir. Já nos ofereceram muitos. A cidade está
cheia de teatros fechados.
Como você vê o processo do Cine Belas Artes, que está quase fechando
as portas porque perdeu o patrocínio do HSBC?
É bem Brasil isso. E muito São Paulo. Acho essa falta de apreço pela me-
mória muito triste. Adoro aquele cinema. Há tantos lugares em São Paulo
que mereciam ser preservados. O prédio onde ficava o Teatro Brasileiro de
Comédia, por exemplo, devia ser um marco cultural de São Paulo. O que
aconteceu lá dentro foi uma verdadeira revolução na vida teatral da cidade.
Mas, felizmente, outras coisas surgem para equilibrar. A Sala São Paulo, por
exemplo, não era nada. De repente, transformou-se num polo fundamental
da cidade. Mas acho que esforços poderiam ser feitos no sentir de manter
aquilo que já existe. No nosso caso, tentamos comprar a Boate Kilt, na praça
Roosevelt, porque foi desapropriada e será demolida em breve. O governo
também comprou um prédio na praça.
156
Investir em formação?
Educação não é bem nosso papel, e sim facilitar o acesso. Sinto que o
público quer saber mais, não quer ser apenas passivo. Ele quer participar
e entender um pouco mais o processo. Estou trabalhando atualmente na
elaboração de um projeto para tentar desmistificar um pouquinho a peça de
teatro. Queria que o público acompanhasse a montagem da peça: a escolha
do texto, as leituras, o figurino. Queria que o público acompanhasse essas
decisões todas, porque o público precisa saber. No mais dos casos, eles não
fazem ideia de como aquele produto final surgiu.
157
158
Lárcio
Benedetti
Gerente de desenvolvimento sociocultural do Instituto Votorantim.
159
trabalhos bem relevantes nessa área de políticas privadas de patrocínio cul-
tural. O maior de todos foi para a Petrobras, entre 2000 e 2002, quando foram
instaurados os primeiros editais de seleção pública no país, fruto do nosso
trabalho. A Petrobras foi nosso principal cliente durante vários anos. Por ser
a maior patrocinadora de cultura do país, e apesar de ser uma empresa de
capital misto, ser conhecida como uma empresa brasileira, a Petrobras queria
dar um caráter um pouco mais democrático para os seus patrocínios da área
de cultura, de esportes e da área ambiental e social. Os editais surgiram para
atender a esse desejo, de ter um caráter mais democrático na distribuição
dos seus recursos, em que todo e qualquer produtor ou agente cultural do
país tivesse as mesmas chances de participar, de ter acesso a recursos de uma
empresa privada.
160
A terceira é a formação de curadorias, bancas e grupos de seleção, que
também é uma outra inteligência que se forma a partir disso.
A primeira ação meritória ou esperada de uma empresa que queira atuar
de uma forma profissional, de uma forma séria na área de cultura, é defi-
nir a sua linha de atuação. Se isso vai desaguar num edital ou não, é outra
coisa, mas, primeiro, a empresa tem que olhar para dentro e para fora, para
ver as demandas do meio cultural, para ver no que ela vai focar. Então, a
Natura, por exemplo, através de vários estudos, chegou à música brasileira
como foco de atuação. Assim como a Votorantim, em que o recorte não
foi por área cultural, não foi por música, literatura, patrimônio, mas sim
por aquilo que a gente chama de uma causa na cultura, um tema, que é a
democratização cultural. A Votorantim trabalha sempre com projetos que
promovam o acesso da população, e não projetos de produção. Em vez de
patrocinar a produção de um filme, a Votorantim patrocina projetos que
façam com que a população brasileira tenha acesso aos filmes produzidos,
como festivais de cinema, por exemplo. O primeiro passo é a empresa definir
o seu foco, definir a sua linha de atuação, e essa definição se dá por alguns
fatores. Primeiramente, são os objetivos, o que a empresa espera. Se quer
ter um programa de patrocínio para se relacionar com seus públicos, para
demonstrar participação social, mostrar uma preocupação com a sociedade,
com o desenvolvimento do país. A empresa pode ter várias intenções com
relação ao patrocínio, pode ter motivações de marketing, mercadológicas, de
comunicação, ou pode patrocinar simplesmente para aproveitar mecanis-
mos de benefícios fiscais. Não importa se o motivo é mais ou menos nobre:
importa que a empresa olhe para dentro e questione os motivos de entrar
nessa seara. É uma decisão estratégica da empresa, não é algo para começar
hoje e parar daqui a alguns meses. A partir da definição dos objetivos, a em-
presa tem que pensar do ponto de vista da comunicação, pensar o que ela
quer comunicar pelos patrocínios, que atributos de marca. A Petrobras, por
exemplo, há dez anos, quando pensou na sua política de patrocínio, falava
que queria ser reconhecida como uma empresa brasileira, uma empresa de
ponta, um Brasil que dá certo lá fora, que é reconhecido lá fora. Então nos
patrocínios de cultura, assim como na área de esporte, na área social, os
projetos que ela deveria apoiar deveriam estar alinhados com essa questão,
com essa preocupação brasileira, com esses atributos de brasilidade, de
desenvolvimento, de crescimento. O segundo item é isso, o que a empresa
161
quer transmitir por meio da sua atuação em cultura. O terceiro é qual o
público alvo que ela quer atingir com isso. No caso da Votorantim, quando
ela fala de projetos de acesso à cultura, tem que saber para quem vai dar
acesso, para população brasileira como um todo, para população de baixa
renda, jovem, criança, adulto. Quem ela quer beneficiar com isso. E o quarto
acho que é a própria localização geográfica, saber se vai apoiar projetos no
país inteiro, num estado, numa região, numa cidade. Esses são pontos que
funcionam como filtros para a empresa definir o seu foco de atuação e, a
partir daí, formalizar em um edital ou alguma outra forma de apoio.
O edital tem todos os seus méritos, mas o balcão, às vezes, tem as suas
funções também, por abarcar áreas que ainda não desenvolveram esse
saber em trabalhar o edital. Você acha que existe a possibilidade de ter
um núcleo de balcão dentro das empresas, ou isso é complicado?
Chegamos a um momento em que parece que o edital é a única solução,
a mais elogiável, e o balcão é o oposto. É a mais criticada, digamos assim. Eu
162
acho que não podemos ser oito ou oitenta. Se a empresa utiliza-se de um edi-
tal, do balcão ou vai desenvolver um projeto próprio, dependerá daquilo que
ela espera ao atuar na área de patrocínio. Por exemplo, a Votorantim queria
sair do eixo Rio–São Paulo e apoiar projetos do Brasil inteiro, que tivessem
a característica da marca, quer dizer, que tivessem uma preocupação com
o desenvolvimento do país. Achamos que criar um edital já seria uma solu-
ção. Achamos que íamos receber milhares de projetos de todas as regiões e
conseguir pegar bons projetos em todos os estados, mas alguns estados nem
mandaram projeto. Então a Votorantim, ano a ano, passou a escolher alguns
municípios onde ela queria desenvolver a economia, a cultura local, mas
não recebia projetos nos editais, e convidar proponentes locais para elaborar
projetos. Fazia uma mínima consultoria para ajudar essas pessoas a tirarem a
ideia da cabeça e transformarem num projeto e, em seguida, submetia esses
projetos a alguns critérios de seleção. Isso é uma ação mais focada, para de
fato desenvolver localmente alguns projetos que ainda não tinham condições
de competir de igual para igual num edital grande.
A empresa não deve ser elogiada porque faz um edital ou criticada porque
não faz. O edital é apenas uma forma de a empresa selecionar projetos. Só que
na área de cultura, mais de 90% do recurso empresarial são provenientes de
lei de incentivo, e ninguém pode esquecer que é um recurso público. O edital
acaba sendo muito elogiado por conta disso, é uma forma mais democrática
de se investir. Mas, se a empresa entender que tem uma outra forma e, prin-
cipalmente, se a empresa colocar recursos próprios, que é algo elogiável de
ser feito, ela pode escolher sua forma de incentivar a cultura.
163
investir em cultura se ela tiver o benefício fiscal? Não deveria ser assim. Na
área ambiental, por exemplo, as empresas investem em projetos com recursos
próprios. Na área esportiva, também sempre foi assim, até ser promulgada
agora a Lei de Incentivo ao Esporte. Marketing esportivo é uma coisa que vem
crescendo muito no país, e até existe o receio de acontecer com o esporte o
que acontece hoje com cultura, que daqui a dez, 15 anos as empresas só vão
investir no esporte se tiver os 100% de isenção. Então existem alguns desafios
a serem vencidos. O principal é fazer com que as empresas patrocinem a
cultura não mais de forma reativa, através de demanda de balcão, mas ativa,
que as empresas planejem sua atuação em cultura.
Para isso precisa formar gestores culturais dentro das empresas. Como
fazer isso?
Hoje existem cursos de formação para pessoas que querem trabalhar na
cultura como agentes culturais, produtores culturais. São cursos focados na
captação de recursos, mas a formação para profissionais de empresas que
trabalham com patrocínio cultural, de fato, não existe no país. O que existe
hoje são cursos de curtíssima duração e sempre focados em leis de incentivo.
Quer dizer, mais uma vez educando mal o meio empresarial, com o discurso
de que investir em cultura é usar a lei de incentivo. Do ponto de vista estra-
tégico, o profissional que trabalha nas empresas precisa ter uma formação
que possibilite conhecer as áreas culturais, ter um mínimo de conhecimento
do que é o meio cultural hoje. Com essa base, ele pode partir ainda para um
patamar mais complexo, ligar cultura com educação, com políticas culturais,
com desenvolvimento, com reflexão crítica. Além de desenvolver conheci-
mentos sobre como gerir projetos, como pensar a comunicação, como se
relacionar com o projeto patrocinado, com o prestador de contas do projeto,
como gerir o dia a dia dessa relação.
Prestar contas deveria ser mostrar em que foi gasto o recurso ou quais
foram os resultados conquistados? As duas coisas são importantes?
O mundo empresarial e o mundo cultural têm alguns mecanismos, algu-
mas formas de operar o dia a dia, que são particulares. Cada um tem as suas.
E esse relacionamento tem muito a contribuir para os dois lados, principal-
mente em relação ao respeito a algumas características, algumas peculiari-
dades do outro lado. Acredito em prestar contas mais do ponto de vista de
164
resultado mesmo. A partir do momento em que o patrocínio cultural ganha
um caráter mais estratégico, ele acaba adquirindo certa importância dentro
da empresa. Então, de tempos em tempos, os gestores precisam prestar contas
a seus conselhos, a suas diretorias. É natural que elas queiram saber como
andam os projetos. Já nas empresas que ainda estão no estágio reativo, isso
não acontece, não importa se vai dar certo ou não: eles não acompanham o
projeto, a empresa não tem uma estratégia. Já vi muitos gestores e produtores
culturais elogiando a postura da empresa que acompanha, porque é muito
bacana mesmo quando a empresa tem esse interesse. E, para a empresa que
apoia projetos pelo país inteiro, fica difícil acompanhar de perto. São dezenas
de projetos todo ano. Elas recebem telefonemas dos produtores perguntando
quando irão visitar os projetos.
Quando você cria uma situação de parceria, deixa claro para seu propo-
nente que ele é um parceiro, a relação é totalmente harmônica. Os dois lados
entendem que prestar contas, mostrar resultado e, às vezes, até mostrar como
está gastando o recurso, é uma relação transparente e muito produtiva. Agora,
quando vira um sinônimo de cobrança, do ponto de vista da contrapartida,
da comunicação, aí o relacionamento fica, de fato, desgastado.
165
A Votorantim investiu em torno de R$ 54 milhões em cultura nos úl-
timos 12 anos. Uma política cultural dentro da empresa faz com que o
investimento aumente?
Acredito que sim. Eu não digo com toda certeza, porque podem ter dois
cenários. Depois que a empresa pensa na sua atuação e define um programa,
ela precisa pensar em várias outras coisas, como, por exemplo, a sua estrutura
de gestão cultural. Ela precisa ter pessoas qualificadas, às vezes precisa de uma
consultoria, quer dizer, tem toda uma situação de retaguarda, uma inteligência
por trás. Então, quando a empresa começa a atuar e a perceber que está alcan-
çando os objetivos, que está tendo resultado e repercussão, ela pode aumentar
o recurso investido ou qualificar mais esse investimento. A Petrobras, depois
que definiu sua política cultural e a implementou por meio dos editais, con-
seguiu uma visibilidade enorme se comparada a 15 ou vinte anos atrás. Ela já
era a principal patrocinadora do país, mas ganhou ainda mais visibilidade e
reconhecimento. É um crescimento quantitativo em termos de recurso, mas
qualitativo também. Ela poderia continuar com a política de balcão, colocando
mais e mais recursos, mas ela continuaria sem esse reconhecimento.
166
E a educação da cultura? Quando essas empresas tinham suas bandas de
música, elas ensinavam às crianças a tocar instrumentos, havia dentro
das empresas uma educação cultural. Você acha que as empresas cria-
rem escolas de teatro, escolas de música, para seus funcionários, é um
caminho interessante para a cultura também?
Sim. Do ponto de vista de empresa, o mais importante é fazer algo que,
de fato, vá desenvolver a cultura, a sociedade, o público, a comunidade, mas
atuando em alguma situação que também tenha a ver com os valores e as
crenças da própria empresa, porque se fizer isso por mero assistencialismo,
sem acreditar, vira uma ação pontual, e não será perceptível o resultado. Então
aquilo está fadado a qualquer corte de orçamento. Agora, se é uma empresa
que está num município muito pequeno e tem que se relacionar com ele,
fazer algo por aquela sociedade, aquilo vira um investimento estratégico para
ela. Acredito que o ponto de partida sempre é esse trabalho preliminar de
planejamento, de olhar a atuação da cultura como uma atuação estratégica,
e não como uma ação filantrópica.
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168
José
Martins
Diretor do Instituto Gerdau.
169
Sinfônica de Porto Alegre, bem como a Orquestra de Câmara do Teatro São
Pedro. Na década de 1970 começa a gestão de Jorge Gerdau Johannpeter,
grande apreciador das artes e cofundador de uma das primeiras galerias de
arte do Rio Grande do Sul. A arte sempre esteve tão presente na família que
acabou se tornando parte da organização também. À medida que a gestão da
empresa foi amadurecendo, a questão da cultura começou a ser trabalhada
de maneira um pouco mais estratégica.
Um marco para essa visão deu-se em 1992, quando começamos a preparar
as comemorações dos 100 anos da Gerdau (que se dariam em 2001). Lembro
que, em uma das reuniões, Jorge Gerdau disse: “Talvez a maior contribuição
que possamos dar a Porto Alegre – cidade que deu origem a nossa organiza-
ção – seja transformá-la numa Barcelona da América Latina. Para tanto, nosso
primeiro desafio é criar um polo de investimentos na região Sul”. O segundo
desafio seria encontrar uma figura emblemática que incorporasse o ideal
de “herói gaúcho das artes”, pois, no dizer do próprio Jorge Gerdau, “a gente
não faz nada sem um herói”. Foi assim que chegamos ao trabalho do artista
plástico Iberê Camargo, que ainda era vivo na época. Quando Iberê chegou
ao estágio terminal de sua doença, convidou-nos para organizar a Fundação
Iberê Camargo. Realizou-se, por conta disso, todo um trabalho de organização
da fundação: construção da sede, organização do acervo, e o desenvolvimento
de uma programação cultural intensa. Ou seja, à guisa de recapitulação, dois
movimentos importantes tiveram início em 1992 – a tentativa de tornar o Sul
um polo de investimentos tão interessante quanto o Sudeste, e a criação de
um herói local. Esses movimentos eventualmente redundaram na criação da
Bienal de Artes Visuais do Mercosul, atividade bastante complexa que conse-
guimos estruturar satisfatoriamente, garantindo-lhe continuidade.
170
o adolescente. Por isso a ênfase em programas de educação pela cultura –
mesmo que estejamos envolvidos na gestão de uma operação enorme como
a Bienal Mercosul, participando do conselho e da diretoria desse organismo,
nosso principal objetivo é trabalhar o tema da educação, encorajando o maior
número possível de jovens a passar por esses espaços de exposição. Para nós,
isso é fundamental: a arte e a cultura como alicerces para a juventude.
171
mata nativa e do carvão até os fornos das siderúrgicas, que trabalham de forma
integrada. Essas são cadeias muito impactantes em termos sociais. Nossa or-
ganização tem realizado alguns programas no sentido de fazer inclusão social
nessas cadeias. Por exemplo, na cadeia do carvão, temos programas básicos
de formação de cidadania, no intuito de evitar práticas agressivas do ponto
de vista ambiental. Ultimamente, temos debatido muito com o Ministério da
Cultura e com a Câmara dos Deputados uma possível reformulação das leis de
renúncia fiscal e incentivo, e uma de nossas propostas envolve justamente o
aumento de vantagens para pequenas empresas e pessoas físicas que quiserem
investir na cultura. Bom, esse é um tema. O outro tema é a possibilidade de
realizar isso através de cooperativas de pequenas empresas, o que significaria
um valor maior de investimento. Eu diria que a legislação, hoje, não favorece
esse tipo de iniciativa. Por isso estamos atacando primeiro o tema da legislação,
para que, com ela e com o programa de educação, possamos dar continuidade
aos programas de inclusão. Isso não é um problema só da Gerdau, é algo que
abrange todas as grandes empresas e suas cadeias de fornecimento.
172
Veja bem, na década de 1970, eu me considerava hippie. Até levava jeito,
era magrinho, tinha cabelo comprido, andava de macacão para lá e para cá e
acreditava que minha geração seria capaz de promover grandes mudanças na
sociedade, o que não foi o caso. Isso para dizer que não temos ilusões quanto
ao alcance de nosso trabalho. Resta saber se é possível fazer com que essas
iniciativas correspondam às necessidades de uma sociedade como a nossa.
Ainda temos uma trajetória enorme pela frente. Até lá, fazemos nossa parte e
contamos todo ganho como positivo. Temos uma experiência importante com
milhares de jovens que passaram por nossos programas educativos no Rio
Grande do Sul, em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Recife. Mas essa medição
que você me pede é difícil. Muitos desses jovens acabam largando tudo para
poder sobreviver ao dia a dia, manter uma família. É cruel.
173
Bom, tomemos dois cenários distintos. No cenário A, a empresa reconhece
que precisa fortalecer sua imagem junto a uma determinada comunidade
próxima, e vê na música um bom instrumento para tal. Portanto, essa decisão
estratégica já está tomada, independente da possibilidade de usar renúncia
fiscal. No cenário B, temos uma empresa que pensa assim: “É provável que eu
tenha uma renúncia fiscal de tanto, então, para não dar para o imposto, vou
dar para qualquer um”. Acho que a tendência das empresas é caminhar para
o cenário A, o que não quer dizer que o cenário B não exista. Mas acho que
a tendência é a prevalência do cenário A, mesmo que não seja de imediato.
174
Como o senhor se posiciona quanto ao vale-cultura e demais questões
de acesso?
Em princípio, nossa política é de que todo programa apoiado por nossa
organização via renúncia fiscal não cobre ingresso. Isso gera uma discussão
terrível, porque muitas vezes não é possível garantir gratuidade. Na Fundação
Iberê Camargo e na Bienal Mercosul – programas em que temos um papel
duplo, de investidor e gestor interno – conseguimos gratuidade absoluta para
tudo. Na Feira do Livro também. Já com o teatro, é um pouco mais compli-
cado. Quanto ao vale-cultura, creio que desempenhe um papel importante,
mas provisório, de inclusão. É preciso tomar cuidado para que não se crie o
ônus de uma dependência absoluta.
175
176
Maria
Arlete
Gonçalves
Diretora de Cultura do Oi Futuro.
177
tecnologia. Ela também apoia projetos de outras organizações no campo
social e faz a gestão dos patrocínios culturais incentivados da Oi. Ou seja,
houve aí um entendimento por parte da empresa de que os patrocínios
culturais incentivados, valendo-se das leis de incentivo, estão na realidade
utilizando recursos públicos, dinheiro do contribuinte. Portanto, seria preciso
ter um olhar responsável sobre a administração desse capital e da produção
que surge dele. Temos hoje três centros culturais próprios, voltados à arte e
à tecnologia: dois no Rio de Janeiro e um Belo Horizonte. Além disso, temos
projetos sociais que trabalham a partir desse mesmo viés, como a Oi Kabum,
que é uma escola de arte e tecnologia para jovens de comunidades. No campo
exclusivo da educação temos outros tantos projetos, entre os quais se destaca o
Nave, que é uma escola de jogos eletrônicos. Todos os projetos são fortemente
marcados pela presença da cultura digital.
178
Acreditamos totalmente que sim. A cultura digital já é cultura, e o game,
os jogos eletrônicos, é um instrumento muito poderoso. Já é uma das lingua-
gens mais atuantes deste século. Não só isso, mas uma linguagem particu-
larmente dominada pela juventude, grupo com o qual trabalhamos sempre.
O Brasil precisa formar mais profissionais nessa área, e é essa a proposta do
Nave, que significa Núcleo Avançado de Ensino. São duas escolas – uma no
Rio de Janeiro e outra no Recife. Pela manhã, os alunos estudam disciplinas
normais de 2º Grau. À tarde, têm aulas de desenvolvimento de games, roteiro,
criação de softwares. São três anos de formação. Sabemos que é um mercado
promissor, no qual o Brasil apenas começa a engatinhar. Nossa intenção é
– dentro de um esquema de economia criativa, economia de cultura – gerar
novos profissionais que atuarão em novos campos.
Hermano Vianna fala muito sobre o game como uma nova forma de nar-
rativa, explicitamente interativa, na qual o jogador atua também como
interlocutor. Qual é o seu posicionamento quanto a isso? Como você
avalia o impacto dessa nova narratividade na cultura, como um todo?
Creio que seja um processo natural. Talvez seja exagero da minha parte,
mas o game me parece praticamente uma extensão física de alguns jovens.
Hoje em dia existem jogos totalmente interativos, games que se jogam com
o corpo inteiro. Isso nos remete ao McLuhan, à sua visão do telefone como
extensão do ouvido humano. Além de uma quase-extensão do corpo do
jovem, o game é também uma maneira nova de pensar, uma nova lógica de
raciocínio, e, por extensão, um instrumento poderosíssimo de educação. Além
desses cursos que temos promovido no Nave, fizemos um festival de games
ano passado, em tudo estruturado como um festival de cinema. Premiou-se o
melhor roteiro, o melhor desenho etc. É preciso entender que ainda estamos
engatinhando nessas novas formas, mas é preciso dar passos adiante, ajudar
a quem quer dar passos adiante. É por isso que nos chamamos Oi Futuro.
179
lógico, em tempos de debate acerca de energias renováveis, do que focar na
criatividade. A criatividade é altamente renovável. Não é à toa que a China
mandou buscar designers e criadores no Brasil e em vários outros países. É
por isso que, dentro dos editais do Oi Futuro, a tecnologia exerce um papel
tão crucial. É por isso que nossos projetos próprios, como o Nave, o Oi Kabum
e os Centros Culturais, são tão calcados na convergência das linguagens. Os
Centros Culturais são modelares nesse sentido, pois você vê a tecnologia
dialogando com as artes cênicas, a música, as artes visuais. Mas, embora as
novas tecnologias tenham um papel vultoso nos patrocínios culturais da Oi,
há também o patrocínio a manifestações culturais de raiz, patrimônio cultural
e tudo o mais. Nosso compromisso é com a diversidade cultural brasileira,
não se pode esquecer isso.
180
Recentemente,alguns periódicos de grande circulação começaram a dar
espaço para uma reflexão critica da cultura digital. Hoje em dia vemos,
em jornais como o Correio da Bahia, resenhas críticas de blogs, discussões
voltadas às novas tecnologias, às novas linguagens. Como você encara
essa questão?
Acho que ainda é pouco. Mas estamos num processo de amadurecimento.
Além do mais, o próprio ritmo das coisas faz com que você esteja correndo
atrás o tempo inteiro. É uma loucura. Estamos aqui conversando, e as coisas
estão lá fora, acontecendo. Lidamos com objetos em mutação permanente.
Por exemplo, temos um museu de telecomunicações no Oi Futuro. Como
nosso objeto é a própria tecnologia, como fazer um museu que não seja,
em si, datado? Temos a obrigação de pensar o próprio museu da maneira
mais atual possível. Por exemplo, estruturamos o espaço físico do museu
de maneira a torná-lo um hipermuseu. Há várias camadas de informação
superpostas, ou seja, customiza-se a visita. Você pode se demorar cinco
minutos ou cinco horas e meia, dependendo do quanto quer interagir com
as informações. Mesmo assim, estamos sempre correndo atrás. Para tentar
dar conta dessa velocidade, pusemos um lettering na saída do museu, que
dá as últimas notícias que saíram nos jornais sobre informação e tecnologia
de comunicação.
Você acha que o digital de “cultura digital” está com os dias contados?
Não, acho que não. Acho que se tornará uma categoria em si. Assim como
se tem cultura, patrimônio, cinema, teatro, breve se terá o digital.
181
Um grande festival dessa área de arte e tecnologia é o Campus Party,
evento criado na Espanha em 1997. Como pensar eventos desse porte?
Vocês preferem ações mais descentralizadas?
Bom, nós temos alguns festivais. Temos o festival de games que mencionei
há pouco. Temos o CELUCINE, um festival de filmes feitos com celular. São
festivais idealizados pelo nosso pessoal, que não se resumem à exibição do
produto, geralmente envolvem outras atividades. No caso do CELUCINE,
que é um festival móvel, sem data fixa (afora a premiação, que geralmente se
dá durante o Festival de Cinema do Rio), realizamos workshops em todos os
estados, para que as pessoas entendam a novidade do formato, suas possi-
bilidades em termos estéticos, enquadramento. São atividades de fomento e
desenvolvimento. Daqui a pouco, teremos um Festival de Música Digital, do
Marco Mazzola. Creio que seja o primeiro festival desse tipo na América Latina.
Você estava falando desses novos enquadramentos. Como pensar esse novo
olhar suscitado pelas mudanças tecnológicas?
No caso específico do cinema feito com celulares, há um mundo de novas
possibilidades a considerar. Aconteceu uma coisa interessantíssima no últi-
mo CELUCINE; num dos workshops, um diretor criou uma grua para celular,
uma varetinha assim, tipo um bambu. (risos) Mas, voltando, os ângulos que
o celular permite são incríveis, e o diretor não precisa de um aparato técnico
muito grande. Você é obrigado a trabalhar menos elementos, já que a tela é
tão pequena. E a própria questão do tempo do cinema precisa ser repensada,
nesse caso. O olhar de quem vê é diferente; você tem que levar em conside-
ração que o espectador não vai assistir àquilo numa sala escura.
A concentração é outra.
Exatamente. Acho que foi o Godard quem disse que, numa tela de cinema,
todos os artistas viram deuses – eles enormes na tela, nós apequenados na sala.
Pois isso mudou. Agora, eles podem ser até menores que nós. São mudanças
que estão acontecendo, leva um tempo até absorver.
Como lidar com a questão da qualidade? Quais são os critérios que devem
ser levados em consideração?
Ótima pergunta. Acho que ainda estamos aprendendo a lidar com isso.
Hoje em dia praticamente todos têm acesso aos meios de captação – mas nem
182
tudo que se produz é arte. Então, o que é arte? O que distingue arte do mero
registro? Há que se pensar sobre isso. Nesse tempo de multimeios, onde po-
demos situar a arte? O pensamento e velocidade são duas coisas que não vão
muito bem juntas, infelizmente. Minha preocupação, falando pessoalmente,
é esse ritmo que te impede de exercer um pensamento crítico.
O produtor cultural hoje em dia precisa estar aberto para o novo? Não
há manuais possíveis?
No mundo em que vivemos, em que as coisas não param de acontecer, é
preciso pensar fora da caixa o tempo inteiro. A arte é isso, não é? Um olhar
enviesado que se lança sobre as coisas. E isso é maravilhoso, você se sente
desafiado o tempo inteiro! E as propostas são incríveis. Por exemplo, estamos
com uma peça no Oi Futuro chamada Hotel Medea. São seis horas de espe-
táculo, o público vai e dorme no espaço. É muito bom dar lugar a propostas
desse tipo.
183
184
Eduardo
Saron
Diretor superintendente do Itaú Cultural.
185
havia um abismo entre o universo da escola privada e o da pública, e que
era importante se mobilizar para, ao menos, tentar diminuir essa diferença.
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e pragmático, se você coloca essa organização, ou esse núcleo, dentro do
marketing. Mas ele optou pela segunda. Ele percebeu que, se colocasse uma
unidade dentro do marketing, não é que não pudessem acontecer bons pro-
jetos, mas, necessariamente, seriam feitos projetos sempre de curto prazo,
de impacto pragmático, de retorno imediato. Se ele fizesse uma organização
à parte, ela teria certa independência, certa qualidade de tempo para poder
pensar, porque o tempo da cultura, o tempo da arte, é diferente do tempo do
marketing, que precisa ter um retorno o mais rápido possível para a marca.
Então, ao escolher a instituição, ele criou as condições para que se criassem
produtos como, por exemplo, as enciclopédias. Hoje nossa página na internet
é um dos sites mais acessados de uma instituição cultural com o nosso perfil.
Desses acessos, a metade é para as enciclopédias. É claro que, quando o doutor
Olavo pensou em criar uma organização que tivesse uma identidade própria,
uma missão e uma política, ele pensou também que, se essa organização desse
certo, iria agregar valor à marca. Isso seria um desdobramento natural. É o
que ocorre hoje. O Itaú Cultural tem praticamente 25% de mídia espontânea
de toda a empresa Itaú.
187
Temos também um conjunto de comitês, um conjunto de núcleos inter-
nos, que compõem uma governança que não é exclusiva do Itaú Unibanco.
É um grupo composto também por pessoas da sociedade. E decidimos,
estrategicamente, não fazermos espaços culturais nos estados. A partir de
São Paulo, a gente dialoga com o país inteiro. A nossa compreensão é que os
espaços culturais existem, o que não existe, em condições suficientemente
bem colocadas para atender o consumo cultural no país, é uma programa-
ção, um produto de qualidade. A ideia é construir programações locais com
os espaços que já são legitimados nas suas cidades. E nós já temos vários
programas. O primeiro, e um dos mais importantes, são as enciclopédias.
Hoje temos enciclopédias de artes visuais, de teatro, literatura e arte e tec-
nologia. Em breve, teremos também de cinema, música, dança e política
cultural. Além disso, temos o programa Rumos, que já tem 11 anos e é um
edital público que trabalha em 11 áreas. Não só áreas artísticas, mas áreas
do pensamento. Eu diria que o programa Rumos e as enciclopédias são as
principais ações do Itaú Cultural.
188
ele teve a sua criatividade, a sua importância minimizada. Esse é o primeiro
ponto. Quando o artista se associa a um patrocinador, independente se é
renúncia ou não, ele se vincula de tal forma que a sua criatividade fica em
segundo plano, em relação ao interesse do patrocinador? A história prova que
existem coisas maravilhosas que foram patrocinadas. Há uma outra questão
que se coloca: se o incentivo atual é público ou privado. Quanto a isso, o
que está distorcido nesse modelo é o desequilíbrio entre os outros espaços
de capacidade de investimento na cultura. Se pegarmos historicamente, o
mecenato, e a Lei Rouanet é mecenato, foi o que conseguiu avançar mais
rapidamente, se descolou de maneira muito dramática do Fundo Nacional
de Cultura e do próprio orçamento público. E é esse desequilíbrio que gerou
esse desconforto todo. Agora, esse desequilíbrio não é culpa do mecenato, é
culpa da diminuição do investimento para o fundo e do orçamento público,
federal, estadual e municipal. Em 2008, o mecenato era quatro vezes maior
que o Fundo Nacional de Cultura, e o orçamento do Ministério da Cultura
era o penúltimo orçamento da União. Só ganhava do Ministério da Pesca,
que tinha acabado de ser criado. Esse desequilíbrio é o grande problema, em
relação ao patrocínio, ao incentivo público brasileiro, ou à operação de injeção
de recursos no mundo da cultura. Foi esse desequilíbrio que fez com que o
mecenato virasse a ovelha negra, mas, na verdade, o mecenato não é ovelha
negra. A ovelha negra é a distância desses outros dois espaços de recursos. É
preciso mexer na Lei Rouanet, porque, afinal, ela tem 18 anos. Sempre falo
que a Lei Rouanet surge antes da internet, e só por isso já merece ser revista,
porque o mundo da internet, para a cultura e para a arte, fez uma revolução.
Além de mexer na lei, é preciso crescer o Fundo Nacional de Cultura e o or-
çamento ministerial. Senão, não terá efeito.
O Itaú Unibanco acabou de passar por uma das maiores fusões de bancos.
As duas instituições culturais dos bancos, o Itaú Cultural e o Instituto
Moreira Salles,têm características bastante particulares, sendo que os
próprios donos do Unibanco fazem parte da presidência, do conselho,
do Instituto Moreira Salles. Como você vê essa fusão?
Para mim, é fundamental, para se conseguir um projeto cultural, que
existam instituições e organizações com o sentido de perenidade, de
construção de legado, de pensamento estratégico e visão de longo prazo.
Se existem instituições assim no Brasil, são as ligadas aos bancos: o Itaú
189
Cultural, o Instituto Moreira Salles, o Centro Cultural Banco do Brasil. Essas
instituições conseguem transformar a sua capacidade de ação num projeto
de médio e longo prazo, o que é fundamental na perspectiva de construção
de política pública. Não se constrói política pública num curto prazo, num
evento pontual. O Itaú Cultural tem um programa de edital público há 11
anos, então há uma dinâmica junto aos artistas, ao mundo cultural, e, faça
chuva ou faça sol, todo ano, em março, os editais são abertos. O sentido de
perenidade do legado está muito presente nessas organizações, e isso é um
grande diferencial para quem quer fazer cultura benfeita. Eu sempre faço
duas perguntas quando me apresentam projetos: se ele tem condição de ser
perene, e qual o legado, qual o rastro que ele vai deixar para a cultura e para
a arte brasileira. Se pelo menos uma dessas perguntas tiver uma resposta
negativa, esse projeto não merece estar próximo do que a gente pensa de
apoio, de fomento, de construção, de difusão de arte e cultura no Brasil.
Aí, voltando para o nosso universo, o Instituto Moreira Salles tem essas
duas características muito presentes. Eles constituem acervo, digitalizam
e difundem esse acervo, estão presentes no país, têm uma série de publi-
cações fundamentais para essa reflexão a respeito do mundo da cultura,
que se aproxima muito das características do Itaú Cultural. É interessante
que o Itaú e o Unibanco se juntaram agora, mas são duas organizações que
tinham espíritos muito parecidos. Os dois bancos vieram de uma série de
fusões entre bancos e também são frutos dessa diversidade de pensamentos
sobre banco e sistema financeiro. Quando a gente olha para as instituições
culturais dessas duas organizações, vê que são muito parecidas na sua ori-
gem, com dois importantes patrocinadores, Walter Moreira Salles e Olavo
Setubal, e são muito parecidas no seu objeto de trabalho, na sua forma de
trabalho. Agora, do ponto de vista prático, o Instituto Unibanco não entrou
na fusão, ele é hoje um instituto da família Moreira Salles, e o Itaú Cultural
também não entrou na fusão, porque o Itaú Cultural é do grupo da Itaú SA,
que é parte da família Villela e Setúbal. O que a gente tem feito, neste mo-
mento, é conversado muito mais do que nós conversávamos antes. Talvez
esse seja também um dos gaps da cultura: a falta de articulação entre as
organizações, a falta de diálogo entre o mundo cultural faz com que alguns
projetos sejam sobrepostos e outros nem aconteçam. Então, a gente tem
conversado mais, numa perspectiva dos princípios que nos aproximam
muito, que é essa questão do legado e da perenidade.
190
A questão da formação de público foi um ponto que pesou bastante na
Lei Rouanet, nesses oito anos. Como realizá-la?
A formação de público está intimamente ligada a uma outra questão
estrutural do Brasil, que é a educação. Não se faz um grande projeto e um
grande programa, um grande processo de formação de público, sem dialogar
firmemente com a educação. Não se faz um programa de formação de público
imediatista. Faz-se um programa de formação de público para vinte anos. Por
outro lado, é comum a cultura se aproximar da educação como uma simples
e medíocre ferramenta, um instrumento de melhoria das condições metodo-
lógicas, pedagógicas do mundo da educação, mas não como um espaço de
efetiva transformação e de construção de pensamento crítico. Então, enquanto
a educação e a cultura não se juntarem, não para serem instrumentos uma
da outra, mas para terem um pensamento estratégico unificado, em que a
educação perceba que a cultura e a arte são fundamentais para a construção
do pensamento crítico de uma nação, não se consegue fazer um programa
de formação de público que tenha, de fato, impacto.
191
192
Eliane
Sarmento
Costa
Gerente de patrocínios da Petrobrás.
193
que, ao longo desse período, fui migrando mais para a área de comunicação.
Paralelo a isso, fui pesquisadora freelancer da FUNARTE (Fundação Nacional
de Artes) sobre a história do choro. Sou fundadora de um bloco chamado
Escravos da Mauá, onde toco cavaquinho todo mês, na região portuária do
Rio de Janeiro. Participei de algumas monografias como pesquisadora. Nesse
período, em 1982, pedi demissão da Petrobras e fiz formação em psicanálise.
É uma carreira de muitas pontas.
Meu pai dizia que eu tinha muita iniciativa e pouca “acabativa”. Só que
hoje isso meio que juntou, fez sentido. Fiquei um ano e meio fora da Petro-
bras e acabei voltando para a área de sistemas mesmo, de informática, mas
percebendo que a minha relação não era com o suporte. Trabalhava com o
relacionamento com o cliente. Fui gerente de apoio ao usuário, estruturei uma
pequena área de comunicação na área internacional. Depois fui para o Órgão
de Comunicação Corporativa, institucional, onde tem a área de cultura. Foi
uma casualidade baseada no meu gosto: eu sempre trabalhei com cultura fora
da Petrobras. Além de fazer pesquisa para a FUNARTE, fui produtora cultural,
desenvolvi dois trabalhos em CD-Rom sobre histórias de dois bairros do Rio
de Janeiro e acabei ganhando o prêmio América Latina de Multimídia. Fiz
um elogio tão entusiasmado de um projeto patrocinado pela empresa que a
gerente de patrocínio quis me conhecer e me chamou para trabalhar como
fiscal de contrato de música, na área de patrocínios. No final de 2003, ela saiu
e eu assumi essa gerência de patrocínios culturais. Para mim, isso foi muito
significativo porque juntei as duas vidas paralelas. Ainda mais hoje, que es-
tou fazendo mestrado sobre a questão da cultura digital. Senti que consegui
juntar efetivamente meus 17 ou vinte anos de tecnologia, com dez ou 15 de
comunicação e cultura.
194
recebia algumas perguntas e ouvia muito nas assembleias de sindicato que,
em vez de a empresa patrocinar, deveria aumentar os salários. É uma falta
de compreensão, de não perceber até que são dinheiros diferentes. Quando
se fala de apoio à cultura, e principalmente do apoio à cultura com as leis de
incentivo, está se falando de uma oportunidade numa questão tributária, e
o salário tem uma outra localização dentro das contas da companhia. Então,
no ano passado, começamos a fazer uns programas de televisão corporativa,
junto com a área de comunicação interna, explicando a questão do patrocínio,
que não é absolutamente uma coisa voluntarista, personalista, de alguém
que está ali e resolveu patrocinar cultura. Queremos trabalhar o entendi-
mento das pessoas, fazer com que elas compreendam que o patrocínio é uma
ferramenta de comunicação da empresa, é também uma ação da empresa
junto à imprensa, à publicidade. É uma ferramenta de relacionamento, de
comunicação com o seu público de interesse, com os seus investidores, com
os seus consumidores, com o público em geral. Num patrocínio, você pode
estabelecer oportunidades de relacionamento, não só de comunicação. O pa-
trocínio é uma ferramenta, por isso os projetos têm que ser bem escolhidos. É
através dessa ferramenta que você busca comunicar a identidade da empresa.
O correto é se pensar uma política de patrocínio que esteja em sintonia com
o planejamento estratégico daquela empresa, aonde ela quer chegar, qual a
sua visão, a sua missão e quais são os valores associados a ela. Tem empresas
que trabalham patrocínio muito na base da veiculação da marca a qualquer
custo, disputando mais selvagemente o mercado. A Petrobras trabalha num
viés de agregar mais reputação à marca através das suas escolhas, à medida
que a marca de qualquer empresa hoje é um ativo da companhia, não só de
um ponto de vista conceitual e subjetivo, mas também de valor. A marca da
companhia tem crescido barbaramente nos últimos anos, e eu acredito que
o patrocínio cultural contribua para isso.
195
A Petrobras já patrocinava desde a década de 1980, inclusive o Flamengo
e a Orquestra Petrobras Sinfônica, mas não existia uma política de patrocínio
estruturada. O Yacoff foi nosso consultor em 2001 e estruturou a política de
patrocínios, as prioridades e, principalmente, a estratégia de seleções públicas.
Inicialmente, isso foi feito de forma segmentada para música, artes cênicas,
curtas-metragens e audiovisuais. Em 2003, quando entrei, juntamos todas
essas áreas em um programa só, o Programa Petrobras Cultural. Passava por
isso uma indicação de política pública, de fortalecer a questão dos editais,
democratizar o acesso às verbas de patrocínio. Nos últimos anos, um dos
grandes ganhos da Petrobras na cultura foi ter começado a trabalhar numa
sintonia muito grande e muito permanente com as políticas públicas, porque
é inadmissível que uma empresa que chegou a colocar em um só ano R$ 205
milhões na cultura andasse para um lado e a política pública, para o outro. A
convergência era fundamental.
O Conselho Petrobras Cultural conta com a presença de um representante
do Ministério da Cultura e o diretor de patrocínios da SECOM, que preside
o comitê de patrocínios estatais. É importante que nossas diretrizes este-
jam caminhando em sintonia com o Ministério da Cultura, sem perda de
autonomia para a empresa. É preciso manter um equilíbrio, coisa que nós
conseguimos nesses anos.
Mais especificamente sobre a pergunta, a opção por políticas públicas é
fundamental, e esses processos sempre podem ser melhorados. A concepção
de comissões de seleção pública compostas por pessoas externas à companhia
foi muito importante porque agregou um olhar muito mais amplo. A Petrobras
também participa do processo, é a mediadora, mas não tem direito a voto, que
fica a cargo da comissão externa. Essas bases que foram lançadas em 2001,
com a consultoria do Sarkovas, ainda permanecem, e foram potencializadas
pelo ministro Gilberto Gil, a partir de 2003. E tivemos a felicidade de já estar
no meio do caminho. Quando o Gil começou a trabalhar a questão dos edi-
tais, da democratização do acesso, com uma profunda preocupação com a
questão da diversidade cultural, que foram as marcas de sua gestão, a gente
ja estava nesse processo. Então muitos desses valores e práticas da Petrobras
já existiam, e foram reforçados. Claro que alguns outros nós incorporamos,
como essa questão do patrimônio imaterial, por exemplo, que ganhou muita
força na gestão Gil, e que nós incorporamos no edital de 2003. Ou como a
questão da cultura digital, que incorporamos em 2007, se não me engano. O
196
edital procura ser dinâmico, não se colocar como uma coisa que já chegou
ao seu apogeu. Pelo contrário.
197
No caso de projetos que a Petrobras considera estratégicos, por exem-
plo.
A Petrobras tem patrocínios por seleção pública e tem projetos que são
convidados. O Grupo Corpo e a orquestra, por exemplo, são patrocinados
em caráter de continuidade, assim como grandes festivais de cinema. Temos
seleção pública para a área de cinema, mas apenas para festivais de médio
e pequeno porte. Os grandes festivais são projetos de continuidade da Pe-
trobras, no sentido realmente de uma associação de valores e de marcas, de
uma forma mais permanente. Então, tanto ocorre a seleção pública quanto
a escolha direta, permitida por essa inexigibilidade da licitação, pela legisla-
ção e pelo próprio manual de contratação da companhia. Ano passado, nós
tivemos uma CPI. Em vez de fazer o que tínhamos que fazer, que era trabalhar
em articulação com a cultura, passei praticamente o ano inteiro falando o
que eu faço, escrevendo sobre o que eu faço. Atendi a demandas de como é
que faz, como fiscaliza. De uma certa forma, é razoável, na medida em que
a gente trabalha com dinheiro que é público, mas encontrar o meio termo
entre a burocracia e o zelo pelo dinheiro público é difícil.
198
por um fluxo de pessoas e consequentemente de culturas. Aí você tem uma
série de questões. A cultura passa a representar, nesse momento, uma forma
de mediação de conflito, é um recurso de promoção de sustentabilidade.
Então, antes do papel da Petrobras nesse mundo, eu vejo o papel da cultura.
A Petrobras está em 26 países hoje, é uma empresa multinacional brasi-
leira. E não só o Lula é “o cara” para o mundo, como alguns personagens já
colocaram o Brasil como “o país”. Eu recebo várias pessoas querendo entender
como é a política de patrocínio da Petrobras, como uma empresa de energia
se relaciona com a cultura, como são os programas socioculturais brasileiros,
como é isso de AfroReggae, de fazer cultura em área de conflito. Isso tudo é
muito novo. A Petrobras, na medida em que vai para 26 países, é meio con-
fundida com o Brasil. Fora do país, como as pessoas veem sempre o nome da
empresa nos filmes brasileiros, acham que a Petrobras é uma produtora de
cinema. A empresa é muito confundida com a cultura brasileira. E a cultura
brasileira está num momento especial no mundo.
199
da ótica da política cultural sem incentivo, porque a Petrobras trabalha sem
incentivo no social, no ambiental e até mesmo em projetos culturais, mas
com um viés mais de evento, de relacionamento com praças prioritárias,
uma questão mais institucional, mais negocial. Mas isso não é uma posição
da empresa. Então há estudos conjuntos dentro da Petrobras, mas os pontos
de vista realmente são diferentes.
200
estão interessadas em cultura, e não há também o fomento público. Há uma
carência, uma demanda muito grande de uma ação mais estruturada, não
só focada nas leis de incentivo.
Mas, indo além disso, como fazer para que o incentivo não seja a única
forma de realizar cultura? Como fazer com que a cultura se torne, em
algumas áreas, autossustentável?
Acho que esse é o mundo ideal, mas eu não sei até que ponto podemos
ter essa expectativa de uma forma mais geral. Quando você vê que as grandes
companhias de dança não são sustentáveis, que o cinema não é sustentável,
como você vai exigir sustentabilidade de um projeto como o Nós do Morro,
que é um projeto sensacional? Como você vai exigir sustentabilidade desses
projetos, se você não consegue ter sustentabilidade no âmbito da maior
companhia de dança do Brasil? A questão é muito complexa. A autossusten-
tabilidade na cultura seria o melhor dos mundos, mas eu não sei se é possível.
201
202
Luciane
Gorgulho
Chefe do Departamento de Cultura, Entretenimento e Turismo do BNDES.
203
O que é o BNDES Procult?
O Procult foi um programa piloto, que nós desenvolvemos em 2006, quando
começamos a olhar para a cultura com esse novo olhar. Nós entendemos que o
BNDES, como um banco de desenvolvimento, tinha que ter um papel diferen-
ciado dentre as outras estatais, como a Petrobras, a Eletrobras, ou das grandes
empresas privadas, porque elas não têm o desenvolvimento como parte da sua
missão institucional. Dentro desse conceito, nós desenvolvemos um estudo
pioneiro, preliminar, sobre o setor audiovisual, baseado na experiência que o
banco já tinha, por ter apoiado durante muitos anos a produção cinematográ-
fica, com editais de cinemas anuais. Esse foi o setor eleito para um olhar mais
aprofundado, no primeiro momento, para entender a sua dinâmica, os seus elos.
A escolha foi realizada principalmente por ser um setor que já conhecíamos
melhor, e que tinha um custo de aprendizado menor nesse processo.
Nós analisamos o setor em toda a sua cadeia produtiva, desde a produção
até a distribuição, exibição, e também o que nós chamamos de infraestrutura,
que são empresas que permeiam todos esses três elos. Analisamos a agrega-
ção de valor em cada um desses elos da cadeia, e existe hoje, por exemplo,
uma dificuldade muito grande de geração de valor no elo da produção. Isso
foi muito fruto da estrutura que se criou ao longo dos anos, pelas leis de
incentivo, pelo desmantelamento da produção cinematográfica. Já no elo
da distribuição, você tem talvez a maior agregação de valor da cadeia, mas é
dominado pelas empresas estrangeiras. E se isso, por um lado, através do artigo
terceiro, ajuda a financiar a produção nacional, por outro, tem elementos que
prejudicam o florescimento da distribuição nacional e da produção de filmes
brasileiros. Quer dizer, no Brasil, durante muitos anos, se desenvolveram
leis de incentivo muito focadas na produção. Outros elos, especialmente a
exibição, ficaram de fora. Não houve praticamente nenhum tipo de incentivo
para isso. O resultado é que o parque exibidor brasileiro caiu de quatro mil
salas, na década de 1970, para cerca de duas mil salas. Agora, está voltando
a se recuperar lentamente, e um dos fatores que está contribuindo para isso
são as prioridades de linhas de financiamento do BNDES.
O Procult entrou com uma linha de financiamento reembolsável, que é o
principal instrumento do banco. Ou seja, é um empréstimo, mas tem carac-
terísticas adequadas aos setores culturais. Na política convencional de crédito
do BNDES, por força de regras de risco, existem limitações do máximo de risco
que o banco pode tomar diante de determinados clientes, e existe também
204
uma classificação de risco que a nossa área de crédito faz, e que estabelece um
patamar abaixo do qual nós não podemos emprestar. Além disso, a política
do banco é de trabalhar em termos de garantia real, e garantia real significa
imóveis e ativos fixos. Isso era uma barreira muito grande para setores que
não são baseados em ativos fixos, que não têm fábrica, trabalham com valores
intangíveis. Hoje em dia, em geral, o exibidor não é dono do imóvel, da sala
de cinema. Ele aluga, é um prestador de serviço, não tem aquela garantia
para oferecer. Por conta disso, nós flexibilizamos essas regras internas, tanto
de exposição ao risco, quanto das garantias, para poder viabilizar essa linha
de financiamento chamada Procult. Por exemplo, em salas de cinema, nós
passamos a aceitar como garantia o fluxo de recebíveis da bilheteria. E, em
termos de limite de exposição ao risco, flexibilizamos, no âmbito do Procult,
até R$ 10 milhões por grupo econômico. Nós podemos emprestar para cada
grupo econômico, grupo de empresas, até R$ 10 milhões, abrindo mão das
regras de risco genéricas que o BNDES segue.
205
Não trabalhamos ainda com serviços. O BNDES começou a inserir, no Car-
tão BNDES, os serviços ligados à questão da inovação, à pesquisa científica,
universitária. Isso já é um primeiro passo para começar a tentar abranger os
setores de serviços, que são um pouco mais difíceis de controlar, de apropriar.
Fale sobre a articulação que o BNDES fez com o BNB, que é sempre citado
como exemplo de sucesso.
Essa articulação com o BNB foi realizada com recurso não reembolsável,
que é chamado “a fundo perdido”. Esse recurso, no BNDES, é bastante escasso.
Enquanto o BNDES fez o desembolso de R$ 120 ou R$ 130 milhões, no ano
passado, para todos os setores industriais, apenas 1% disso é recurso não
reembolsável. A parceria com o BNB é um edital de apoio a pequenos proje-
tos culturais com recursos não reembolsáveis. Apoio ao desenvolvimento de
projetos, em vários setores, de linguagem das artes, sempre na região nordeste.
A forma com que eles trabalham é interessante, com oficinas de capacitação
dos proponentes. É um trabalho muito bonito, que vem a cada ano mostrando
mais resultados concretos. O que nós fizemos foi aumentar os recursos que o
BNB tinha disponível, que de R$ 3 milhões por ano passou para R$ 6 milhões,
e eles puderam apoiar mais projetos e com valores maiores. Essa foi uma
ação de atender ao segmento dos pequenos. Lógico que não conseguimos
atender diretamente, nós somos um banco sem agências, temos uma sede
única. O BNDES é um banco voltado para grandes projetos, então a gente
tem que ter criatividade para conseguir atender pequenos projetos, e essa
é uma das formas, através de parcerias com outras instituições financeiras.
Estamos pensando outras ações não reembolsáveis, que estão ainda sendo
estruturadas, dentro do escopo de ações estruturantes da cadeia produtiva
da cultura.
206
isso são os setores intensivos em tecnologia, para minimizar o consumo de
recursos naturais e sofisticar o uso dos recursos escassos do país. E, certa-
mente, os setores culturais e criativos. O crescimento de setores de serviços,
de conteúdo, lazer e entretenimento, é estratégico para se pensar a geração
de renda, de empregos de qualidade, mais bem remunerados. São setores
que podem contribuir, inclusive, com a formação cultural e educacional da
população. Isso é uma tendência mundial, e o Brasil tem que atuar nela.
207
desenvolver ações permanentes, que não dependam de uma abertura de
edital, de uma convocatória. Enfim, eu acho que é um instrumento excelente.
208
O que é economia criativa?
Existem vários conceitos. No BNDES nós adotamos mais economia da cul-
tura do que a economia criativa. Existe a criatividade técnica, que é o que deriva
para inovação, para o software, para o desenvolvimento usando a tecnologia, e
existe a criatividade mais autoral, de conteúdo. Esse lado da economia criativa
mais técnica o banco, de alguma forma, já apoia. São as empresas de softwares,
de telecomunicações, fármacos. Toda a parte de inovação mais afeita à pesquisa
científica já é uma área de atuação do banco. Então, a novidade é a economia da
cultura, que são esses outros setores que, anteriormente, eram apoiados, mas
com uma ótica de patrocínio, e que agora passaram a ser vistos como setores
meritórios de receberem créditos, se desenvolverem e terem políticas públicas.
209
210
Roberto
Smith
Presidente do Banco do Nordeste.
211
valorização e do desenvolvimento regional. Não vemos a cultura apenas como
aproveitamento das leis de incentivo fiscais, como fazem outras instituições,
para promoção de marca e de pontos estratégicos de marketing. Isso deu ensejo
ao desenvolvimento de uma concepção de cultura muito mais ampla do que
aquelas que estão normalmente atreladas a fatores de ordem mercadológica.
212
rápida do diferencial, em relação à economia brasileira. Porém, o Banco do
Nordeste desempenha um papel muito importante nesse processo; somos
hoje responsáveis por mais ou menos 60% da carteira de investimentos na
região, e somos responsáveis por 35% de todo o crédito da região. Isso nos
coloca entre as maiores instituições regionais ou nacionais. Atualmente, es-
tamos em oitavo lugar no ranking bancário brasileiro. Dentro das linhas de
financiamento do banco, tentou-se um apelo mercadológico via financiamen-
to cultural. Gostaria de salientar que os resultados ainda são bastante pífios.
Portanto, ainda que haja alguma movimentação nesse sentido, a infraestru-
tura da área cultural segue muito precária. Nossa percepção é de que esse é
um fator importantíssimo na estruturação do desenvolvimento regional. É
verdade que os centros mais dinâmicos da economia têm o condão de reunir
todo aparato de produção e geração cultural, e que atraem fortemente todas
as expressões culturais para essas áreas mais desenvolvidas, que muitas vezes
se encontram fora do próprio Brasil.
213
Como o senhor encara projetos em pequenos municípios e a questão do
microcrédito cultural?
Lembro de ter lido em algum lugar – assim que assumi o banco – a res-
peito de um professor carioca que doara uma enorme biblioteca para sua
cidade natal, nos confins de Alagoas. Entrei em contato com esse professor
e fiquei sabendo que, a partir dessa doação, o município organizara um cen-
tro cultural que realmente estava fazendo a diferença. Portanto, decidi fazer
uma doação, para esse mesmo município, de 10 computadores que o banco
iria vender. O efeito disso foi enorme. Os jovens do município começaram
a trabalhar com teatro, música. Em suma, alguma efervescência começou
a se estabelecer. Sabe-se que, no interior do país, essas oportunidades são
praticamente inexistentes. Perpassam inevitavelmente a construção de pe-
quenos cinemas, bibliotecas, centros de cultura. Pois, fiquei remoendo isso e
comecei a conversar com o pessoal do INEC – nosso Instituto de Cidadania do
Nordeste, uma OSCIP. Dessas conversas, acabou brotando a ideia de montar
algo como um foco de cultura autossustentável em pequenas cidades onde
não havia nada e onde pudéssemos jogar um pedaço de nosso microcrédito,
do Agromigo, do PRONAF. Depois de mais algumas discussões, optamos por
realizar a experiência-piloto em Pedro II.
214
do banco. O prefeito ficou entusiasmadíssimo. Ele não acreditava que aquela
revitalização fosse possível a custos tão baixos. Estamos avançando nisso,
hoje. O projeto – chama-se “Cresce Nordeste Cultura” – já conta com mais
30 unidades dessas pelo nordeste. O Ministério da Cultura entrou no projeto
também, porque eles têm os Pontos de Cultura. Mas os pontos não têm essa
virtude da autossustentabilidade. Eles dão recursos por três anos, e depois
a coisa pode morrer.
Por que isso não é visto como demanda real pelo setor bancário como
um todo?
Bom, creio que seja importante dizer aqui que o grande demandante do
microcrédito, atualmente, é o setor comercial, strictu sensu. A demanda do
setor cultural ainda é relativamente baixa, por conta de questões estruturais.
O que me traz a outro ponto: os setores culturais, no Brasil, se acostumaram
a uma grande dependência de um Estado supostamente benemérito. Essa
dependência faz com que os projetos percam sua capacidade de autogestão
e autoestruturação. Mas creio que exista um campo muito grande para alcan-
çarmos. O Nordeste tem fatores relevantes que ainda não foram explorados
devidamente, pois sua formação socioeconômica é muito distinta com relação
ao resto do país. Por exemplo, o Nordeste não foi tão amplamente abordado
pelas correntes migratórias quanto o Sul e o Sudeste do país. Por quê? Não foi
apenas o clima proibitivo, como querem alguns historiadores. O que acon-
teceu foi um fechamento precoce das terras nordestinas, sobretudo para a
agricultura canavieira e, na esteira disso, para a pecuária. O imigrante não
215
se sentia atraído pelo nordeste porque não havia terras lá, e a migração toda
se baseia no sonho de se tornar proprietário. Em verdade, quase ninguém se
tornava proprietário. A maioria era obrigada a trabalhar dentro dos regimes, e
hoje em dia vemos como prosperam a cana-de-açúcar e o café no sul do país.
Porém, no nordeste, as correntes migratórias não vieram em função dessa
impossibilidade de se tornar proprietário de terra. Com isso, tivemos uma
formação social em que certos valores mais tradicionais ficaram preserva-
dos da influência indígena, negra, portuguesa. É isso que caracterizou nossa
formação, o sotaque, a música, a arte. Tudo isso em meio a um programa de
real crise econômica que pega o nordeste logo nos primórdios, em função
da crise da cana-de-açúcar. Isso gera fatores interessantes, mas que muitas
vezes entram naquele quadro de desprezo e desvalorização ao qual aludi há
pouco. Aos poucos, esses traços começam a se mostrar mais em nossa geleia
cultural, em conjunto com influências mais modernas. Mas são aspectos de
nossa formação histórica que permanecem no cerne de nossa sociedade.
216
viajar por todos os lugares onde tínhamos agências. Na agência de Juazeiro
havia quatro andares desocupados, guardando lixo. Fizemos o Centro Cultural
lá, e deu certo. Essa política de aproveitamento para espaços desocupados
levou-nos a realizar a mesma coisa em Souza, na Paraíba, onde a agência local
tinha um andar inteiro fazendo as vezes de lixeira. Em Souza escreve-se muito.
É um povo com valores literários, que resolvemos cultivar. Nunca me esqueço
de quando inauguramos o centro de Souza. A rádio local criticava-nos o tempo
inteiro, dizendo que o Centro não passava de fogo de palha, uma atitude que
o Banco do Nordeste tomava só para se mostrar, mas que em seis meses já
teria acabado. Porém, o Centro cresce cada vez mais. Tivemos de ampliar a
disponibilidade de horário e da equipe, porque a demanda é tão grande. Isso
só vem nos mostrar o quão corretos estamos em nosso trabalho com a cultura.
É um trabalho que joga fortemente com fatores como a formação de público, a
valorização da leitura, do teatro, de todos os eventos culturais. Só gostaria que
pudéssemos avançar um pouco mais com o cinema, porque acho essencial.
Em suma, somos um banco de desenvolvimento, e desenvolvimento se faz
com alma. Qual é a alma do desenvolvimento? A cultura. Desenvolvimento
sem cultura é um desenvolvimento capenga.
217
218
Danilo
Santos
de
Miranda
Diretor do SESC de São Paulo.
219
Você também trabalhou no Senac, o Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial, não foi?
Sim, um pouco mais tarde eu me transferi para o Senac, porque é uma
instituição ligada ao SESC, voltada à questão da formação profissional. A
nossa função no Senac era a de discutir a amplitude desse conceito, traba-
lhando a formação profissional não apenas do ponto de vista da transmissão
da técnica, ou de tecnologia, mas também com arte e cultura. Eu fiquei no
Senac por bastante tempo. Nesse período, houve um esforço das entidades,
tanto do Senac quanto do SESC, para aprimorar os seus profissionais, os seus
executivos, e eu tive a oportunidade de viajar para a Suíça e fazer um curso
no Management Development Institute, o IMEDE, que é uma importante
instituição suíça. Foi um curso bastante expressivo e forte, sobretudo no
campo da administração. O curso era mais ligado à questão da informação
e do preparo de especialistas para a alta administração: finanças, marketing,
administração de pessoal no sentido mais amplo. Fiz esse curso em 1977, e
ele foi muito importante profissionalmente para mim. Em 1984, eu entrei no
SESC já como diretor regional, convidado pelo presidente.
220
você atende a alimentação, habitação, transporte, vestuário, saúde, e acha
que está resolvido, você, de alguma forma, mantém a população num quadro
de dependência permanente do atendimento dessas necessidades. Se você
não ampliar esse quadro, atuando no campo da educação e da cultura – e
aqui a cultura no sentido bem amplo, não apenas da arte e do espetáculo –,
você não resolve a questão. O Programa Bolsa Família, por exemplo, é im-
portantíssimo, mas não terá a menor condição de atender a necessidade da
população a médio e longo prazo, se não vier acompanhado de um processo
de educação e cultura.
221
vai estimular o pensamento, a reflexão, o debate. É um animador. Isso tem a
ver com uma proposta francesa dos anos 1950, que revolucionou a ação cul-
tural na França. Então, muito mais importante do que produzir eventos, ou
até mesmo uma programação cultural, é oferecer uma proposta permanente
de reflexão em torno daquilo em que as pessoas têm interesse, sobretudo no
interior do país. Aí eu abro um parêntese importante: ultimamente, no Bra-
sil, temos um desempenho econômico extraordinário. Estamos crescendo,
desenvolvendo, melhorando a vida das pessoas das classes C e D e também
de outras categorias, mas o desenvolvimento econômico esvaziado do desen-
volvimento cultural – essa frase não é minha, mas eu a acho fundamental – é
escola de fascismo. Em uma sociedade em que as pessoas têm acesso aos bens
materiais em grande escala, também tem que existir uma proposta de reflexão
social, dos problemas das diferenças de classe, dos problemas dos excluídos.
Tem que haver uma discussão sobre as questões culturais e comportamentais,
sobre as diferenças. Se eu não tenho isso embutido nesse processo, eu formo
uma sociedade absolutamente reativa do diferente. A cultura é fundamental
para a transformação e evolução da sociedade brasileira, não apenas do ponto
de vista econômico, mas também do ponto de vista educacional e cultural.
Isso é absolutamente indispensável.
222
Isso realmente é uma pujança fantástica. Do outro lado, percebo claramente
um esforço descomunal para se ter uma presença forte da cultura: novos
museus, modernos, avançados, com tecnologia de primeira linha. Um centro
de convenções com uma série de possibilidades de discussões e debates. Há
esta tendência lá: a valorização cultural de um lado e a pujança econômica
do outro. O Brasil precisa projetar seu crescimento também.
Nós, no SESC, estamos planejando o futuro da instituição, então temos
que pensar no crescimento da cidade, do estado e do país permanentemente.
Planejamos uma expansão do ponto de vista físico: construir novas unidades,
colocar mais equipamentos à disposição da população, como está acontecendo
na cidade de São Paulo. São cinco novas unidades sendo planejadas para os
próximos quatro anos. Uma delas, o SESC Belenzinho, está em fase final para
ser inaugurada até o final do ano de 2010. É maior que o SESC Pompeia. É uma
unidade com três teatros, com um equipamento fantástico, com uma piscina
muito grande etc. Do ponto de vista conceitual, percebemos que a ampliação
do conhecimento, a educação permanente, é um assunto cada vez mais pre-
sente no interesse da população. Por isso estamos ampliando nossas mídias, a
nossa presença na rede, a nossa presença via televisão. Enfim, desenvolvendo
o nosso trabalho de tal forma que possamos atingir um número cada vez maior
de pessoas, porque sabemos que essa questão tem um caráter essencial para
a população. Nós não lidamos com o supérfluo. Nós não lidamos com a cereja
do bolo, como antes a cultura era tratada. A cultura hoje precisa ser vista como
uma questão importante política, econômica e socialmente.
223
Qual é a concepção de cultura do SESC?
Existe um entendimento ainda muito presente, não apenas na sociedade,
mas em administradores públicos, de que a cultura é vinculada somente ao
mundo das artes, do espetáculo e das manifestações artísticas. Quando muito,
se agrega a memória imaterial e a preservação do patrimônio histórico. Tudo
isso é importantíssimo, é fundamental para a nossa realidade, mas é pouco.
Cultura é muito mais do que isso. Para mim, a grande questão a ser vencida, a
ser colocada na mesa, é discutir de fato a centralidade da cultura. É claro que
saúde, educação, justiça e tudo mais também pode ser central, mas a cultura
tem uma centralidade mais própria, que diz respeito ao seguinte: tudo que é
desenvolvido pelo ser humano, pela mente humana, pelo engenho humano,
seja na criação artística, seja na criação material pura e simples, é cultura. Isso
é o conceito antropológico fundamental. A cultura é mais do que a questão
artística, é mais do que a questão do patrimônio e a memória. Ela diz respeito
a toda a capacidade humana de se relacionar consigo, com o outro e com o
seu meio ambiente.
224
Claro. Aliás, só existe salvação pela cultura. Essa para mim é a questão.
Sem nenhuma conotação religiosa ou política, mas somente a cultura salva,
de fato. Por que é que eu digo isso? Porque eu estou falando de informação, de
conhecimento, de valorização do ser humano, da inteligência humana, como
a capacidade fundamental do ser humano. O que nos diferencia dos demais
seres vivos? É a nossa capacidade de refletir, de aprofundar, de ter cultura,
no sentido mais amplo possível do termo. Ter cultura não só no sentido de
informação, mas com informação elaborar, criar, desenvolver, refletir, avan-
çar, entender melhor, conhecer melhor o que está à sua volta, refletir sobre
o que está acontecendo. O que falta no mundo de hoje, no mundo político,
econômico, social, religioso, e muitas vezes até em outros campos também,
é cultura. Todos deveriam ter uma visão mais completa: os nossos dirigen-
tes, políticos, líderes e todo mundo que tem poder deveria ter uma cultura,
no sentido mais amplo. Porque cultura não é informação, é articulação da
informação de um modo inteligente.
225
226
Décio
Coutinho
Gestor Cultural do Sebrae de Goiás.
227
É permitir que o seu produto chegue às pessoas interessadas em comprar,
ou mesmo, na falta de interesse, provocar um estímulo ao consumo desses
produtos. É uma forma de se levar um grupo de artesãos para uma feira, para
uma rodada de negócios, para um diálogo com outros grupos de artesãos, e
fazer trocas. Existem diversas formas de acesso, seja através de um modelo
de economia solidária, comércio justo ou da economia tradicional mesmo.
Na hora em que você chama um artesão para uma oficina, você acaba
criando também um modo de ensinar empreendedorismo e negócio. Como
fazer para que o artesanato não se padronize?
Isso aí é um desafio imenso, porque no momento em que se fala em mercado,
se fala em produção em escala. E aí se propicia um encontro de um artesão, ou
de um grupo de artesãos, com um comprador que pede, por exemplo, mil
produtos, enquanto o artesão só faz 20. Então se gera esse tipo de conflito.
O que a gente vem fazendo é criar sistemas de associações, cooperativas e
coletivos, para que essa pessoa que faz 20 produtos consiga agregar pessoas
da comunidade e possa trabalhar com uma quantidade um pouco maior.
Mas sempre trazendo o seu toque pessoal, porque o artesanato subentende
isso, que cada um tenha um toque pessoal. A ideia é que o mestre artesão
crie um modelo de produção coletiva, transmita o conhecimento, e consiga
entregar os produtos.
228
Isso nem sempre dá certo. É bem complexo, então procuramos deixar claro
que ele não precisa disso. Ele tem a opção de aderir ou não, pode continuar
buscando seu mercado dos 20 produtos e tratar o artesanato de forma que
possa contar a história dele, narrar o processo da colheita do barro, mostrar a
tradição que está imbuída naquela produção. As pessoas, muitas vezes, veem
um prato, mas não entendem que aquilo é uma tradição secular, familiar, que
existe um momento certo de fazer, que tem toda uma história por trás daquilo.
Trabalhar o artesanato, e isso vale para a música, para o cinema e tudo mais,
é saber contar a história daquilo que está sendo apresentado. E no momento
em que se trabalha com commodity, isso fica praticamente inviável, até por-
que não tem muita história para contar. O ideal é a gente conseguir trabalhar
essa história valorizando aquele produto, com a singularidade que ele tem.
Quando você começa a vender cocar de índio em larga escala, você passa
a matar muito mais araras. Como fazer para ter uma produção em escala
que seja sustentável?
Em alguns casos, como o do cocar, por exemplo, o pessoal tem usado
muito a criação de animais em cativeiro, legalizado pelo Ibama. E outros
estão substituindo, até por pena de galinha mesmo. Hoje há uma produção
tradicional indígena feita com miçanga, que é comprada nas cidades. É mi-
çanga, é plástico, é industrializado, mas é artesanato indígena. A semente
pode ser substituída pela miçanga, mas a tradição do saber, aquela forma,
229
aquela cultura, aqueles traços, a geometria, é preservada. É um processo
que não se pode impedir, é dinâmico. Existem várias formas de preservação,
uma é o manejo, outra a substituição de materiais, mas preservando o fazer.
230
porque ela achou um canal, um caminho para virar o negócio dela. A questão
do empreendedorismo é interessante que seja entendida como uma atitude
de transformação positiva, de comportamento, de ousadia, de criatividade e
inovação. O empreendedorismo cultural já é trazer para a cultura esse tipo de
atitude. No momento em que você tem um grupo de teatro, de circo, artesãos
que tratam a cultura de uma forma inovadora, que buscam mostrar o que eles
fazem com uma atitude, que buscam inovar e trabalhar algum elemento novo,
agregando e misturando outras coisas, já tem uma atitude empreendedora.
231
tes, isso era praticamente impossível. Então, se o movimento gerado naquele
evento for feito através de uma moeda, pode-se ter acesso aos números e ver
quanto de troca o evento gerou. É óbvio que tem um desdobramento, com
essa informação, pode dialogar com qualquer instância. Pode chegar numa
prefeitura, no estado, e apresentar essa estatística. Além do valor da troca,
do valor da cooperação, do valor do trabalhar coletivo, se cria uma forma de
medir, de mensurar. Isso é muito legal e muito inédito.
E o câmbio?
O câmbio é 1 por 1. O que facilita é que você agrega. Por exemplo, no
momento em que o cara da padaria, que fornece o lanche para os mú-
sicos do festival, aceita a sua moeda em troca de pães, você começa a
gerar um comprometimento e envolvimento daquela padaria, daquele
açougue, daquele hotel, daquele restaurante, com o seu evento, com o
seu movimento, e até com os seus valores. Então passa a ser uma coisa não
só comercial, de troca e de lucro, mas também de envolvimento e de engaja-
mento numa causa, que geralmente todos esses festivais, ações e feiras têm.
É possível envolver a localidade, a comunidade, não só na questão comercial,
mas também na questão dos valores. A moeda é muito interesse nesse sentido.
232
Estamos aprendendo. Não é fácil, porque ensinar a vender uma calça jeans
ou um tomate é diferente de ensinar a trabalhar com arte. Na verdade, o que
existe hoje é uma série de mecanismos, ferramentas, suporte, associações,
sindicados, voltados para essa economia tradicional. E em relação a essa
economia da inovação, do conhecimento, da atenção, não importa o nome,
ainda estamos numa fase de aprendizado, de entender como trabalhar com
esse tipo de inovação. E isso vem sendo construído meio que na experiência.
233
Isso ainda está muito longe da nossa realidade. Estou falando do meu esta-
do de Goiás. Ainda estamos num momento de tentar garantir o que já existe,
assegurar que o que existe não se perca, sem refletir muito sobre a questão
estética ou crítica. E, em paralelo, gerar esses encontros, essas trocas e essa
sabedoria no território. Talvez a gente parta para outra fase talvez daqui uns
quatro ou cinco anos, e comece a refletir em cima disso que aconteceu. Mas
hoje o que está acontecendo é um movimento muito forte de produção. Agora
tudo que está sendo feito está sendo absorvido.
234
a questão do talento, da tolerância, da tecnologia, e ampliar um pouco esse
conceito, envolvendo moda, software, TI. Uma série de outros elementos
que tradicionalmente não são de uma essência cultural, que não dependem
de elementos de identidade e cultura para serem produzidos. Eu entendo a
economia da cultura como toda essa produção em que o insumo principal
é a questão da identidade, do patrimônio, do talento. E a economia criativa
seria mais ampla, tendo dentro dela a economia da cultura.
235
236
Ana
Toni
Representante do Escritório Brasil da Fundação Ford.
237
fundação teve um papel importantíssimo para a história do país, mandando
pessoas – principalmente acadêmicos – para fora do Brasil. Desde o come-
ço, a Fundação Ford teve uma posição bastante progressista com relação ao
país. Ela ajudou essas pessoas a conseguirem asilo político em outros países,
muitas tiveram que migrar para os Estados Unidos, o Chile ou a França. Entre
elas, estava Fernando Henrique Cardoso e o pessoal do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento, o CEBRAP. A fundação também teve a possibilidade
de apoiar, com bolsas individuais, pessoas aqui no Brasil, porque muitos deles
foram expulsos das universidades. Elas conseguiram, com as bolsas, manter
um grupo qualificado de pessoas atuando durante aquele período. Esse foi o
papel principal da fundação até o final dos anos 1970.
No processo de democratização, a fundação mudou um pouco o seu papel
e começou a atuar junto à sociedade civil. A partir daí, o apoio da fundação
é mais institucional, para que esses grupos ligados à sociedade civil se cons-
tituam como organizações não governamentais. Começa a financiar novas
vozes do processo democrático, organizações ligadas às mulheres, aos grupos
indígenas, aos afro-brasileiros. Na época, todos estavam com o mesmo objeti-
vo, que era conquistar uma nova Constituição. Então, não havia muita dúvida
de que forma a Fundação Ford se inseria naquele momento histórico. Depois
da Constituição, da democracia ter sido estabelecida, a fundação começou a
expandir os seus horizontes, como o Brasil todo, para novos desafios.
1 Sigla que se refere a Brasil, Rússia, Índia e China, cujas economias estão em significativa ex-
pansão.
238
países. A Índia vinha de um império, a África do Sul, do apartheid, e o Brasil,
de uma ditadura militar. E foi um estudo muito interessante acompanhar os
direitos humanos desses diversos países, dessas diversas perspectivas, e ver o
quanto é possível aprender um com o outro. Infelizmente, é uma área pouco
valorizada, mesmo dentro de uma Fundação Ford, e tivemos que acabar com
o programa. Mas não tenho a menor dúvida que explorar os BRICs é o futuro.
239
dinheiro do que deixar a eles uma instituição filantrópica ou deixar para o
país uma instituição. Até mudar a legislação brasileira para que estimule uma
filantropia mais independente, mais familiar, menos empresarial, eu duvido
que isso mude. Agora, há esforços muito importantes nessa direção. Ainda
não se teve nenhuma resposta, mas imagine o quão difícil é mudar a Lei de
Herança no Brasil.
Vamos passar para outro ponto. Conte um pouco dos projetos que a Ford
desenvolve hoje.
Na Ford, hoje, trabalhamos com cinco áreas de atuação. Uma é a do fortale-
cimento da justiça, do monitoramento da justiça, dos direitos humanos, que é
uma área forte, tem toda uma infraestrutura de organizações de direitos huma-
240
nos. A segunda é a dos povos tradicionais e da questão da terra, na Amazônia, e
aí tem novos conhecimentos de grupos indígenas, ribeirinhos – e posso contar
um pouco de um trabalho muito bonito nessa área. A terceira é a da democrati-
zação da comunicação, do acesso à comunicação, do direito à comunicação. A
quarta é voltada para a questão da discriminação e das relações étnicas e raciais.
E a quinta área, na qual começamos a trabalhar um pouco mais, é a de ensino
superior. Sempre trabalhamos, sempre financiamos universidades. Cinquenta
por cento do nosso recurso ainda vai para a academia, para as novas pesquisas,
mas agora estamos com o trabalho de olhar o sistema acadêmico brasileiro e
saber o que precisa ser mudado para que novos conhecimentos possam florir
dentro de um sistema acadêmico tão elitizado, na nossa sociedade. Então, essas
são as cinco áreas com as quais trabalhamos.
241
povos da floresta, não só está se fortalecendo como uma voz própria,
como começou novamente a ser absorvida de uma forma original e viva
pelas manifestações culturais; pelo teatro paulista, pelo cinema mineiro,
pela literatura carioca. Quer dizer, você tem um diálogo efervescente,
que nasce disso aí. Aí entra o ponto de cultura também: como fazer
para fomentar esse diálogo com a Fundação? Como fomentar o diálogo
cultural?
Não financiamos cultura indígena, especificamente. Estamos tentando
financiar o conhecimento indígena e a sua aplicação nas diversas áreas de
conhecimento. Quando pensamos no indígena, pensamos no indígena que
vai proteger a floresta, ou naquele ser. Temos um trabalho com o indígena.
Tem o índio que quer ser físico, o que quer ser advogado, e, ao conseguir
formar-se, ele leva a sua cultura para dentro da física e da advocacia. Ele não
é de maneira alguma aculturado à nossa cultura; não é essa proposta, mas
nem é aquela outra proposta, a de que o indígena só pode morar na aldeia. É
preciso saber, dos indígenas, exatamente o que eles querem.
Hoje em dia, há uma demanda muito grande da comunidade indígena
de se capacitar para outras áreas. Estamos trabalhando nessa outra área, de
que eu estava falando, na área de ensino superior, pensando nos indígenas
que querem ir para a faculdade, ter acessos a outros conhecimentos, misturar
com os seus próprios conhecimentos. Isso está trazendo uma legitimidade
para pensar o indígena, não só como aquele que observamos e pelo qual temos
curiosidade, mas como aquele com quem podemos aprender. É um processo
longo, e eles são muito poucos no Brasil. São 0,4% da população brasileira, mas
o conhecimento que eles têm é imenso. Como trazer isso para a nossa cultura do
dia a dia, e não só para o apêndice do que vemos? Acho que ainda é um desafio.
242
se capacitam em conjunto. Nós financiamos diretamente essa associação
dos advogados indígenas com o propósito de fortalecer as instituições in-
dígenas. Eu não tenho nada contra o intermediário, acho que todos ali têm
boa vontade, mas chegou o momento de termos a voz indígena. Ela sempre
teve importância, mas agora mais do que nunca ela precisa ser ouvida com
mais clareza e diretamente; ela não precisa de intermediários. Ela já é forte
o suficiente para ser ouvida por todos nós. E é a voz de pessoas extrema-
mente qualificadas.
Acabei de vir do Mato Grosso. Um menino de lá, que está fazendo direito,
mora na aldeia, e sua mãe resolveu ser empregada doméstica em Campo
Grande para que ele pudesse continuar seus estudos; essa história está inse-
rida em um projeto que nós financiamos da universidade e que consiste em
dar apoio acadêmico aos indígenas, que, logicamente, têm mais dificuldades.
Para eles, é como uma segunda língua; e eles têm algumas outras dificuldades,
pois não tiveram acesso a muita literatura ou à língua inglesa. Então, a gente
oferece, para esses indígenas, um tipo de reforço dentro da universidade.
Aquele menino do Mato Grosso de que eu falava é muito capaz. Ele tem um
professor de direito, que é filho do governador, e, na primeira aula, o professor
falou: “Eu não vou dar esse capítulo sobre direito indígena, porque eu acho
irrelevante, a gente não vai trabalhar esse capítulo em classe.” Aí o menino
respondeu: “Por favor, eu sou indígena, eu gostaria muito de ter essa aula.”
O professor insistiu: “Isso é uma bobagem. Eu me recuso a dar esta aula.” O
professor sempre tratou o menino muito mal dentro de sala de aula, mas o
menino é muito capacitado e conseguiu um estágio dentro do Tribunal de
Contas do Estado. Por acaso, ele pegou uma causa na qual o professor era o
advogado. O professor foi conversar com o juiz da vara, do qual o indígena era
o assessor. O advogado tinha perdido algum prazo, tentou insistir para o juiz
deixar passar, mas o menino respondeu assim: “Infelizmente, não.” Então ele
vai ganhando uma autoestima. O problema de terra em Mato Grosso é imenso.
Como aquele professor e advogado é de uma família de donos de terra, ele
se recusa a ensinar direito indígena em sala de aula, mas essas coisas estão
mudando mesmo que não no passo em que a gente queria que mudassem.
Eu acho que a gente não pode colocar os indígenas só naquele espaço da
aldeia; eles querem ser físicos, eles querem ser economistas, eles querem ser
advogados, e podem, pois são muito competentes. E isso tem que entrar no
nosso dia a dia, sem estranhamento.
243
Vocês financiam pensamento e inovação; pensamento e inovação dão re-
sultados, e vocês têm que lidar com isso. Como vocês pensam a construção
de agendas políticas sociais futuras dentro da Ford?
É fundamental que a gente não tenha uma agenda política. A gente tem,
por assim dizer, o pensamento de que dar qualificação para um determinado
grupo social, sejam os afro-brasileiros, sejam os ribeirinhos, sejam os indí-
genas, é permitir que ele possua suas próprias vozes qualificadas. Isso vale
não só para esses grupos – vale também para as mulheres, logicamente. A
partir do momento em que esses grupos sociais têm uma nova capacitação,
eles têm uma nova voz.
244
Eu acho que o fundamental é acreditar nos atores com os quais você faz as
parcerias e aprender com eles, porque a gente aprende o tempo inteiro. São
parcerias de visão.
245
dados seja aberto. Ao mesmo tempo, sempre estimulamos a organização de
seminários ou a publicação da pesquisa. Muita gente agora está fazendo pu-
blicação de livros on-line, e muitos dos nossos projetos envolvem publicações
desse tipo. Outros envolvem a produção de vídeos.
A academia brasileira estava muito baseada em discutir ideologias, em
discutir o certo e o errado, e, assim, possuía poucos números que a mídia
pudesse utilizar para que ficasse um pouco mais clara essa comunicação. Isso
também está mudando. A maioria das pesquisas que a gente financia hoje tem
como componente trazer dados reais e números mais palpáveis. Isso também
tem facilitado muito. O surgimento dessas pesquisas mais quantitativas tem
facilitado a habilidade de outros grupos trabalharem com esses dados.
E quanto às universidades: que lugar elas ocupam hoje? Elas estão pró-
ximas ou não do debate contemporâneo?
Eu acho que as universidades realmente devem se repensar. A universi-
dade brasileira é uma contradição imensa. Se a gente olha a porcentagem de
pessoas de 17 a 25 anos que estão na universidade no Brasil, são só 15% dessa
faixa. Num país como a Índia, já há 32%. Um país como a África do Sul, 24%.
Não somente quem vai para as universidades brasileiras ainda é a minoria
da minoria, mas, dentro dessa minoria da minoria, é uma classe específica,
246
um grupo específico de pessoas. Enquanto isso, há no Brasil universidades
excelentes, de qualidade internacional, no mesmo nível de universidades
europeias e americanas. Eu acho que a universidade brasileira – e, de novo, eu
acho que esse governo deu alguns passos para isso – tem que ser repensada.
Primeiro, ela tem que se abrir a novos grupos e a novos conhecimentos. E
acho que o PROUNI, e a discussão das cotas nas universidades, com a deci-
são destas de se abrirem à entrada de indígenas, deu um novo ar dentro dos
campos universitários, mas esse ar ainda não é o suficiente para fazer com
que as universidades – principalmente as universidades de elite – se repen-
sem, porque elas têm uma qualidade muito boa, realmente muito boa, dentro
de um projeto elitista muito forte. Então, é como se, ao deixar novos atores
entrarem, a qualidade fosse cair. Eu acredito no oposto: eu acho que se você
deixa novos atores entrarem, essa qualidade torna-se ainda mais rica; dife-
renciada, certamente, mas ainda mais rica. A maneira de financiamento das
universidades é um grande tema; o quanto é sustentável ou não é, o acesso
a ela, a questão do vestibular, onde elas estão localizadas etc. Universidades
rurais, são pouquíssimas as que a gente ainda tem, apesar de previstas por
um projeto do governo. Então, a gente está caminhando, mas acredito que a
universidade brasileira está em xeque-mate: deve se repensar para se colocar
em um novo patamar no mundo. Se quiser ter esse lugar, terá que trabalhar
muito. E algumas estão trabalhando. O que se salva, no Brasil, é a autonomia
das universidades, o que dá espaço para algumas delas se repensarem e se
refazerem, mesmo que outras ainda se mantenham fechadas e não queiram
se abrir.
247
248
Gilberto
Freyre
Neto
Coordenador geral de projetos da Fundação Gilberto Freyre.
249
to Freyre, não tentamos protegê-lo. Nosso principal objetivo é fazer com que
seus acervos pessoal e intelectual – e entendemos por pessoal todo o acervo de
pesquisa que foi utilizado por ele para gerar suas obras, ou seja, os documentos
que são primários para sua pesquisa, como fotografias, correspondências,
artigos e periódicos científicos dos mais diversos lugares do mundo – sejam
difundidos e analisados. Então, a casa se mantém numa neutralidade enorme
em relação às críticas, sejam positivas ou não, à obra de Gilberto, e tenta, ao
máximo, ofertar seu acervo aos pesquisadores. É com muita dificuldade que
mantemos nosso acervo, porque fizemos questão que ele permanecesse em
Pernambuco. É um acervo que podia estar melhor acondicionado e sendo
melhor utilizado, se estivesse em universidades estrangeiras ou em centros de
pesquisa que dessem a ele uma melhor condição de divulgação. Mas optamos
por seguir alguns princípios que são bem gilbertianos. Gilberto fixou-se em
Pernambuco, era filho de Pernambuco, e jamais saiu do estado. Então, para
a gente, também era uma questão de honra permanecer em Pernambuco e
fazer de lá a base desse acervo.
É muito curioso receber estrangeiros que estudam a obra de Gilberto
Freyre, ou se utilizam das suas fontes de pesquisa, como ferramenta para
interpretar e analisar a Europa, sob a perspectiva da miscigenação cultural.
Esses estudos estão sendo feitos a partir de uma visão gilbertiana. As pessoas
estão vindo ao Brasil e à Fundação, analisando alguns cenários e tentando
identificar as origens do pensamento de Gilberto Freyre lá fora. Tivemos, nos
últimos cinco anos, por exemplo, dois grandes livros publicados pelo casal
Burke, da Universidade de Cambridge, a Maria Lucia Pallares-Burke, de São
Paulo, e o Peter Burke, que é um historiador inglês dos mais renomados. Os
dois livros tentam interpretar o método de Gilberto Freyre, e boa parte da
pesquisa foi realizada na Fundação Gilberto Freyre. Inclusive o Peter Burke
chegou a dizer que teve acesso, na Fundação, a um acervo que não consegue,
de forma centralizada, em nenhuma universidade europeia. E ele tem boa
parte da rede das universidades europeias à sua disposição. Então, nós temos
essa virtude.
250
divulgação. Mas para disponibilizar o acervo, eu preciso de recursos, porque
não tenho como digitalizar toda a biblioteca, com seus 42 mil volumes. En-
tão, o pesquisador que está distante, vai uma vez à Fundação, analisa todos
os aspectos inerentes à sua pesquisa, identifica o que quer, a Fundação faz
a digitalização e disponibiliza esse material na internet, para que ele possa,
à distância, ter relação com nossa base de indexação. Trabalhamos com
demandas específicas e passamos a alimentar essas bases de dados a partir
dessas demandas.
251
Como vocês analisam e trabalham toda a polêmica em torno da obra de
Gilberto Freyre?
A casa se mantém muito neutra em relação a isso, não entramos muito na
polêmica. Na verdade, a polêmica faz parte da vida de Gilberto, que escrevia
o que achava que tinha que escrever. E se ele não está mais aqui pra se defen-
der, a Fundação também não está aqui pra defendê-lo. As perspectivas que
Gilberto Freyre tinha em relação à sua obra, ele ou escreveu, ou se posicionou
nas entrevistas que deu. Acho que não existe, desde que a Fundação Gilberto
Freyre foi criada, nenhum tipo de manifestação da casa em relação a nenhum
tipo de crítica, nem positiva, nem negativa, da obra. O que nós fazemos é
estimular os pesquisadores a analisar, se posicionar e ter uma opinião sobre
a obra de Gilberto Freyre. Trabalhar a obra do Gilberto é sempre trabalhar
o homem, e talvez esse seja o grande problema, ou a grande deficiência de
alguns críticos, que fazem a crítica à obra sem conhecer o homem, ou sem
conhecer a profundidade que levou o homem a escrever determinado texto.
O Gilberto viveu muito, teve muitos críticos, ele tem obras com mais de 70
anos de publicação. Mas muitas críticas são escritas sem que se analise críticas
anteriores. Então, nós estimulamos a releitura, a reutilização, as pesquisas que
estejam ligadas à modernização dos conceitos. O Casa Grande e Senzala não
é o livro que mais reflete a civilização brasileira hoje, mas ele tem o seu valor
do ponto de vista histórico e sócioantropológico e queremos que esse valor
seja transferido para os dias de hoje. Esse é o papel que a Fundação Gilberto
Freyre desempenha. Ela faz com que as pessoas não tenham essa miopia, não
interpretem o livro apenas a partir do próprio livro. Nesse sentido, fazemos
junto com a Editora Global, que é responsável pela linha editorial da Fundação
Gilberto Freyre, ou por uma das linhas editoriais da Fundação Gilberto Freyre,
um trabalho de atualização, colocando novos índices, novas ferramentas de
pesquisa e cadernos de imagens, que não necessariamente faziam parte do
livro original, mas que tentam pontuar o momento histórico em que aquele
livro foi publicado. Tentamos colocar o leitor na perspectiva do autor e isso
é uma coisa muito interessante de ser feita.
252
claro que a interpretação é sua. Além do respeito aos direitos autorais, que
algumas vezes são nossos e outras são de terceiros. Nossa relação com a obra
se dá muito mais do ponto de vista do acervo em si, do que nas análises e opi-
niões que podem surgir a partir do acervo. A família de Gilberto Freyre criou
a Fundação na perspectiva de gerenciar seu patrimônio pessoal e intelectual,
mas, muitas vezes, existem questões que passam pela relação familiar. Por
exemplo, nós temos correspondências de amor entre Gilberto e Madalena
Freyre e o filho deles resolveu não publicar. A Fundação é, certamente, pro-
prietária desse acervo do ponto de vista legal, mas nesse caso, respeitou-se
a condição de filho.
253
conceito, mas que não estão relacionadas ao intramuros. Ou seja, não estão
relacionadas ao gerenciamento do seu próprio acervo, mas à transferência
da base de conhecimento que existe, para estruturas que estão fora da casa
e na gastronomia, isso é muito claro pra gente. Hoje, no Recife, nós temos
uma relação muito forte com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes
(ABRASEL), porque começamos a pontuar o alimento não apenas como o que
é produzido e entregue para você saciar uma necessidade, mas como uma
ferramenta de congraçamento, o que é um conceito muito gilbertiano. Então,
vamos atrás das origens daquele hábito de consumo, da produção daquele
alimento, de como ele foi forjado, a partir de que influências, de onde veio
o tempero. Começamos a fortalecer essa base de conhecimento a partir da
perspectiva gilbertiana. Essa é a forma que a gente tem para tirar a obra de
dentro do nosso acervo e transferir para as gerações, fazendo com que as
pessoas absorvam esses valores a partir da nossa base de conhecimento. Ou
seja, não precisa ler Gilberto Freyre, basta viver Gilberto Freyre.
254
O Tannenbaum criou um centro de estudos dentro de uma perspectiva de
análise multicultural, com grandes pesquisadores estudando características
de determinados povos que não estavam dentro da base de estudos originária
daquela universidade. Gilberto participou muito dessas discussões, sentado
na mesa com atrizes, diretores de cinema, políticos, engenheiros, físicos,
pessoas das mais diversas áreas de conhecimento, que entrevistavam e dis-
cutiam com pessoas que tinham uma base de conhecimento que precisava
ser sociabilizada. Havia um físico falando sobre a fissão nuclear e um teatró-
logo que não entendia absolutamente nada disso, mas queria saber como o
assunto poderia se relacionar com o teatro. A discussão se dava num nível em
que todos podiam compartilhar e o Gilberto se interessou pela forma como
elas eram criadas, fez alguns ajustes no modelo de Tannenbaum e aplicou no
Brasil. Esse modelo funcionou, em Recife, durante mais de 40 anos. Não era
um seminário aberto à discussão pública, era uma ferramenta extremamente
controlada. Havia um palestrante, um debatedor, e o Gilberto mediava esse
processo. E tinham 12 seminaristas, que faziam, provocados pelo debatedor,
discussões cruzadas em relação ao tema, dentro da base de conhecimento
de cada um. Isso gerou um acervo riquíssimo de conteúdo sobre o Brasil. E
hoje todo mundo quer saber o que é o Brasil, o país está na crista da onda,
no foco da mídia internacional, e temos um acervo de 40 anos que pode ser
colocado à disposição das grandes universidades para se trabalhar, para se
discutir. O Seminário de Tropicologia durante muito tempo funcionou na
Fundação Joaquim Nabuco, então existem as revistas do Seminário, mas que
circulam num ambiente muito pequeno de consumo, porque a tiragem é mui-
to curta. É um material de belíssima coletânea de conhecimento, que marca
períodos do Brasil muito interessantes, com discussões fantásticas mediadas
por Gilberto Freyre, como a do General do 4° Exército com o presidente das
ligas camponesas, por exemplo. As pessoas não conseguiam imaginar como
é que o caçador e o caçado estariam juntos numa mesma mesa, mediada por
alguém com livre trânsito, em uma discussão, que, na época, era inconcebível.
E Gilberto conseguia se posicionar no meio, controlar e ordenar esse processo
de uma forma muito mágica.
255
256
Carlos
Dowling
Diretor da Associação Brasileira de Documentaristas - seção Paraíba.
257
rais, especificamente para o audiovisual, foram iniciativas governamentais
muito importantes.
Começamos o trabalho em 2005 e 2006, mas tivemos problemas, e até
agora, em 2010, estamos esperando a última parcela do que seria os dois
anos de trabalho, que deviam ter acabado em 2007. Formamos uma parte
do grupo que fez o primeiro convênio dos Pontos de Cultura, que têm uma
serie de problemas de gestão. É interessante ter essa consciência. A figura do
boi de piranha não é muito benevolente, mas é fundamental ter a clareza de
que são modelos novos, que abrem perspectivas importantes de inovações na
área da gestão. Por outro lado, os procedimentos e as soluções de uma série
de problemas não estão muito claros, não estão estabelecidos. É um processo
em construção. Quer dizer, o programa Cultura Viva tem um ótimo conceito,
mas, na prática, tem problemas de aplicação.
258
Na verdade, foi uma aposta lançar o projeto com essa série de problemas e
de impedimentos, na esperança de bons resultados e, ainda que com todas
essas dificuldades, os resultados são muito interessantes. As comunidades,
antes do programa Cultura Viva, não costumavam ter uma perspectiva muito
clara, muito organizada, de como iam ser essas ações de formação e difusão
cultural. A partir do momento em que você promete e não dá, cria-se uma
sensação e uma situação de desconforto, que têm que ser corrigidas.
E qual é a solução?
Eu acho que o próprio governo federal está pensando mecanismos para
resolver os problemas através da municipalização e estadualização dos no-
vos pontos de cultura. Mas não é muito simples também, porque, se por um
lado, o fato de se descentralizar pode aproximar os gestores dos produtores
culturais, por outro, existe uma série de problemas políticos locais, que aca-
bam influenciando na condução desses processos. Então, eu acho que é um
modelo que não está muito claro, a solução não está clara. Acho importante
comentar que uma possível solução a esse problema é o modelo de pontão de
cultura, processo que conseguimos estabelecer entre 2007 e 2008. Pensava-se
que, ao descentralizar o programa Cultura Viva, você teria células culturais
que, naturalmente, iriam se organizar em rede. Mas, na prática, era notável
que essa articulação em rede acontecia muito pontualmente, e de maneira
descontínua. Então, surgiu o conceito dos pontões de cultura, que, basica-
mente, fariam essa articulação entre os pontos de cultura. E aí, em 2007, o
governo federal abriu um edital. Preparamos o projeto Pontão Cultural Rede
Nordestina Audiovisual, que pretendia articular os pontos de cultura da região
Nordeste. Num primeiro momento, tínhamos centrado nos pontos de cultu-
ra, mas logo vimos que era interessante agregar outras iniciativas, inclusive
porque o conceito do Cultura Viva é de cada vez mais ampliar o número de
pontos de cultura. Então, trabalhamos pontos de cultura, associações de au-
diovisual, núcleos de produção digital e coletivos de produção audiovisual,
de maneira geral. Acredito que o governo federal deve ter aprendido com a
série de problemas na gestão dos primeiros convênios do programa Cultura
Viva, e propôs um modelo diferente para os pontões de cultura. Em vez de
parcelas de financiamentos, o dinheiro, quando aprovado, entrava de uma
única vez, o que facilitou muito, e resolveu os problemas de atraso no repasse.
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O que vocês fazem no Pontão?
A meta principal do Pontão é construir um espaço de articulação, inter-
locução e intercâmbio de processos, procedimentos e, inclusive, de modelos
de gestão, que é uma coisa que precisamos refinar um pouco. São três linhas
principais de ação. A primeira é catalogar e fazer um levantamento histórico
das filmografias. Começamos pela Paraíba. Fizemos um levantamento, ca-
talogamos e estamos verificando a qualidade dos curtas-metragens, desde a
década de 1960, que é quando tivemos o primeiro acesso, até as produções
atuais. Feita essa catalogação e esse levantamento, vamos estar disponibili-
zando isso em boxes de DVDs, que serão distribuídos entre pontos de cultura e
cineclubes. A princípio não são para fins comerciais: só para uma distribuição,
para difusão. Além dessa distribuição física, também estamos preparando um
portal, o www.rna.org.br.
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Como trabalhar com os direitos autorais se o download é gratuito?
Essa foi uma discussão que levantamos em vários momentos, sobre qual
modelo de licenciamento trabalharíamos, e pensamos que o mais interessante
seria delegar, ou deixar que os produtores de conteúdo resolvessem como iam
disponibilizar as suas obras. Então, quando você se cadastra no portal para
disponibilizar um vídeo, surgem as opções de modelos de licenciamento.
Temos quatro modelos de Creative Commons, com algumas variações para
usos não-comerciais, para obras derivadas. Temos a opção Arte Livre, que é
uma licença que surgiu a partir da discussão do Creative Commons, que é um
pouco mais aberta. Uma opção em que o usuário aponta que licença ele está
usando, além da opção em que o usuário opta por nenhuma licença específica,
o que significa que ele está usando a atual lei dos direitos autorais, com uma
série de restrições. E eu acho que isso tem uma função até didática, estamos
levantando a questão. É um momento interessante, porque é a primeira vez
que se delega ao artista, ao detentor dos direitos, a opção de licenciamento.
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e formatos novos, que podem até não dar uma resposta, mas que levantam
hipóteses.
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alunos do ensino público da Bahia, e qualquer conteúdo do portal tem que
estar necessariamente em licença livre, para que cada professor e cada alu-
no possa baixar o vídeo, fazer reedições, utilizá-lo. É uma linha diferente da
que usamos no nosso portal, porque temos uma comunidade específica de
utilizadores, onde não era interessante obrigar um modelo de licenciamento
ou outro, mas estar divulgando. Nosso portal ainda está em teste, estamos
resolvendo questões de cadastro. Até agora só tem dois vídeos disponibili-
zados, e um deles é um vídeo meu. Disponibilizei no Creative Commons, no
licenciamento mais geral, porque me interessa, até para servir como exemplo,
colocar minhas obras nesses modelos de licenciamento livre.
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será direcionada para um fórum de discussão com alguns tópicos centrais. A
primeira catalogação é estadual, através dos nove estados do Nordeste, que
teriam fóruns para discussão da produção local. Eu acho que o interessante é
refinar essas tags de indexação e pensar como podemos juntar essa troca de
conteúdo com a discussão crítica. Além da discussão crítica sobre política e
gestão, tem toda parte da discussão sobre a estética, e é interessante pensar
em pontos de convergência entre essas discussões. O portal vai nessa linha.
Tenho a impressão que está faltando ainda pensar em alguma ferramenta,
algum dispositivo que torne esse diálogo mais fluido. Ainda estamos acostu-
mados com o modelo do YouTube, que é um repositório, em que no máximo
você pode baixar e fazer algum comentário. Mas como indexar discussões
com outros conteúdos é uma grande pergunta, estamos experimentando e
tentando ver se é possível apresentar alguns modelos através do portal.
A TV digital é uma questão em aberto, que, se não for pensada logo, será
dominada, e será um espaço fechado de novo.
Tem dois pontos importantes quando se fala na TV digital, que são duas
linhas. Uma é a alta resolução de vídeo, ou seja, a quantidade de linhas e pixels
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vai aumentar. Mas tem outra linha, que é a interatividade, que eu acho que
ainda é uma incógnita: não se sabe como isso vai ser processado. No meu
entendimento, fica muito claro que o papel da rede pública de televisão é de
estabelecer esses novos padrões de uso da interatividade na TV digital. Por-
que, pensando na lógica das TVs comerciais – e aí até estou falando baseado
em algumas falas de Guido Lemos –, se você está trabalhando interatividade
com quatro finais diferentes, vai ter que quadruplicar o investimento. Mas o
retorno, nesse modelo de comercialização, é o mesmo. Então, como justificar
que eu vou aumentar o meu investimento e diminuir o meu lucro? Dentro da
lógica das televisões comerciais, a forma de lidar com a interatividade não é
um ponto pacífico. Acho que a rede pública, por ter outras especificidades e
outros interesses, é o espaço para se pensar a interatividade e potencializar
a televisão como um instrumento de utilidade pública, de serviços. E, na
parte estética, da narrativa audiovisual, abre-se também uma série de possi-
bilidades, até de uma dramaturgia estendida, com roteiro interativo, que eu
acho muito bacana. A ideia da interação já está no conceito básico do drama,
desde Aristóteles, mas tecnicamente temos como fazer com que o leitor, ou
no caso, o espectador, deixe de ter uma atitude espectral passiva e passe a
ter uma relação ativa. Nessa linha, dentro da interatividade, o que mais me
encanta é a abertura do canal de retorno, que, para além de botar sim ou não,
o espectador ou a espectadora pode mandar o conteúdo que faz em casa
de maneira amadora. Essa é uma perspectiva muito rica, mas, no ponto em
que estamos, isso ainda não é possível de ser testado na TV digital. Então é
importante estimular e criar canais de experimentação para que, com sorte,
a TV digital se transforme em algo mais do que apenas uma TV no mesmo
modelo analógico que conhecemos, com os mesmos vícios, só que com uma
tela maior, com mais brilho e mais linhas.
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público também é uma das discussões, e também pensar na rede pública de
ensino, no audiovisual como instrumento pedagógico. Aí volta a questão da
indexação dos tags, dos metadados e de como os professores podem utilizar
esse repositório audiovisual como instrumento pedagógico. Nesse sentido, o
público se amplia, entram os professores e, concomitantemente, os alunos e
alunas da rede pública de ensino. Mas tem que existir um freio também. Não
dá para querer ampliar demais, porque pode perder o foco. A ideia não é fazer
um YouTube público, em software livre; é trabalhar no conceito de comunida-
de, ou seja, reunir um grupo de usuários interagentes, que tenham o mínimo
de afinidades, o mínimo de proximidades no perfil. Isso é interessante porque
dá força ao projeto. Outra perspectiva para a ampliação do portal é a relação
com a rede pública de televisões, que pode ser muito rica para os dois lados.
Mas ainda não ficou claro como seria a relação dos produtores com as TVs. É
uma perspectiva muito plausível e interessante, e vale um investimento para
ampliação da ferramenta.
Nos anos 1970, houve uma grande onda de super-8, que unia João Pessoa,
Recife e Natal. Essas redes naturais continuam existindo nessas cidades
ou estão sendo reconstruídas?
Nós fizemos esse levantamento do conteúdo do super-8, principalmente
do final da década de 1970 e dos anos 1980. Existem algumas obras muito
interessantes, que trazem essa relação entre Pernambuco, Paraíba, especial-
mente com a obra de Jomard Muniz de Britto, que foi professor na UFPB, e
depois foi morar em Recife. O fato de Recife ter seu centro de produção mais
bem consolidado faz com que sejam mais detectáveis essas redes de criação
natural. Fizemos um encontro em João Pessoa com uma média de cinco a
seis representantes de cada estado, para discutir as caixas de DVDs, o portal e
o Pontão de Cultura, para, efetivamente, levantar essa rede que estava sendo
proposta. Não está muito claro como vamos articular essas redes de produção
de conteúdo colaborativo, compartilhado, mas uma experiência que está em
processo agora é o projeto do XPTA.LAB, que é um edital de inovações tecno-
lógicas, proposto pela Secretaria do Audiovisual e pelo Ministério da Cultura,
em parceria com a Sociedade Amigos da Cinemateca. Entramos com um
projeto junto com o LAVID e conseguimos articular nove estados da região,
quer dizer, dois estados da região Norte e sete estados da região Nordeste.
Basicamente, cada estado parceiro vai produzir um programa-piloto, que
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trabalha com interatividade na televisão. E a relação de programadores de
informática com os roteiristas, essa junção da expertise das Ciências Exatas
com as Ciências Humanas, com a expressão artística, está sendo muito rica.
Então, respondendo a sua pergunta sobre essa possibilidade de articulação,
não está muito claro como vamos fazer isso na prática, mas existem alguns
experimentos e processos nessa linha, que provocam e estimulam essa criação
regional compartilhada.
Por que até hoje existe essa timidez da produção audiovisual brasilei-
ra mais independente em criar diálogos com outras formas, como, por
exemplo, o jogo eletrônico, a toy art?
Não acho que o problema seja a falta de recurso. Acho que faltam esses
espaços híbridos, olhar com mais tenacidade, digamos assim, essas novas
formas de expressão. Essa é uma postura um pouco equivocada: não pensar
o fluxo dos processos expressivos como uma coisa dinâmica. Tenho um in-
teresse muito grande em trabalhar com os videojogos. Esse projeto que eu
estava comentando, do XPTA.LAB, trabalha interatividade e teledramaturgia, e
tem uma estrutura de composição narrativa muito inspirada nos videogames,
nessa composição das múltiplas possibilidades dos jogos eletrônicos. Noto
uma tendência de abertura a esses espaços híbridos, de experimentação de
linguagens, e temos que ver como estimular e ajudar para que isso se forta-
leça e se amplie. De maneira geral, o cinema comercial, o cinema de autor, a
priori torce a cara para essas novas experimentações, mas acho que estamos
num processo de aproximação com as novas linguagens e com as inovações
tecnológicas.
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PRODUÇÃO CULTURAL NO BRASIL
Sergio Cohn
Coordenação editorial
Carolina Noury
Projeto gráfico e capa
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Giselle Coelho, Marta Lozano e Evelyn Rocha | Azougue Editorial
Equipe editorial
Rafael Mantarro
Design gráfico
Entrevistas
Sergio Cohn
Edição final das entrevistas
Aline Rabelo, Aloísio Milani, Lia Rangel, Lucas Pretti e Rodrigo Savazoni
Participação especial
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Colaboradores
Alícia Peres, Aline Rabelo, Aloísio Milani, Daniel Barosa, Daniel Yuhasz,
Fabio Koji Tashiro, Gideoni Junior, Luís Pini Nader, Quadradão,
Roberta Carteiro, Roberto Taddei, Simone Andrade,
Sylvio do Amaral Rocha e Valterlei Borges
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