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Afonso Luz

Fabio Maleronka Ferron


José Luiz Herencia
Rodrigo Savazoni
Sergio Cohn
Organização
Coordenação geral do projeto e entrevistas
Fabio Maleronka Ferron | Beijo Técnico

Coordenação editorial, entrevistas e edição final dos textos


Sergio Cohn | Azougue Editorial

Projeto gráfico e capa


Carolina Noury | Azougue Editorial

Preparação de texto
Heyk Pimenta, Ismar Tirelli Neto, Larissa Pinho Alves e Luana Maria | Azougue Editorial

Revisão
Eduardo Coelho, Evelyn Rocha, Letícia Féres e Victor Heringer

Fotografias
Gabriela Barreto, Leo Caobelli, Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes | Garapa Multimídia

Pesquisa
Georgia Nicolau, Fernanda Versolatto e Laura Godoy

Participação especial em entrevistas


Aline Rabelo, Aloísio Milani, Lia Rangel, Lucas Pretti e Rodrigo Savazoni

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

P956
v.1

Produção cultural, volume 1 / - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2010.


5v.

ISBN 978-85-7920-046-5

1. Cultura - Brasil. 2. Intelectuais - Brasil - Entrevistas. 3. Brasil - Política cultural. I. Cohn, Sergio. II. Male-
ronka, Fábio.

10-5887. CDD: 306


CDU: 316.7

11.11.10 18.11.10 022683

[ 2010 ]
Beco do Azougue Editorial Ltda.
Rua Jardim Botânico, 674 sala 605
CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJ
Tel/fax 55_21_2259-7712

www.azougue.com.br
azougue - mais que uma editora, um pacto com a cultura
MINISTÉRIO DA CULTURA

João Luiz Silva Ferreira (Juca Ferreira)


Ministro de Estado da Cultura

Alfredo Manevy
Secretário Executivo

José Luiz Herencia


Secretário de Políticas Culturais

Afonso Luz
Diretor de Estudos e Monitoramento de Políticas Culturais

CINEMATECA

Carlos Magalhães
Diretor Executivo

SAC | SOCIEDADE AMIGOS DA CINEMATECA

Maria Dora Genis Mourão


Presidente da Diretoria Executiva

Leopold Nosek
Vice-Presidente da Diretoria Executiva
Os depoimentos reunidos nestes livros – bem como os materiais audiovi-
suais relativos, à disposição de todos, na internet – são esclarecedores e to-
cantes. São testemunhos de como se realiza a arte e a cultura no Brasil, não
apenas nos anos mais recentes, mas ao longo das últimas décadas. A escolha
dos entrevistados reflete esse interesse comparativo e reflete a disposição
de ouvir diferentes gerações, profissionais de múltiplas procedências, com
variada formação, variadas trajetórias e experiências complementares. Essa
diversidade constitui a riqueza desta série, sobretudo quando considerada
em seu conjunto, aliás, sem precedentes na vida cultural brasileira.
Sabemos que o Brasil é um país multifacetado, com particularidades e
disparidades regionais e locais. Um país cuja compreensão exige de nós um
olhar aberto para essas variações. Num projeto como este, este olhar é fun-
damental. Se aquilo que está em questão é tentarmos compreender a com-
plexidade de uma cultura e seus modos de elaboração, isso é impensável
sem um cuidado especial, sem um olhar atento para essa diversidade.
Nesses cinco volumes, todos temos a oportunidade de conhecer melhor
figuras estruturais do sistema artístico e cultural brasileiro. Seus leitores te-
rão também a opotunidade de reencontrar antigos conhecidos – além de
poderem conhecer os “novos”, os que surgiram na cena da nossa produção
cultural mais recente. Desses contrastes e dessas perspectivas faz-se a for-
ça da produção artística e cultural brasileira, de nossos artistas, produtores,
técnicos, pesquisadores e gestores de instituições públicas e privadas.
A política cultural brasileira atingiu um nível inédito de formulação, base
para o surgimento de instrumentos de planejamento e marcos legais que
fortaleçam as instituições culturais brasileiras e tornem os dispositivos de
financiamento à arte e à cultura, bem como o sistema de propriedade inte-
lectual, capazes de enfrentar os desafios do Século XXI.
Nada disso seria possível, contudo, sem o intenso e extenso diálogo que a
série Produção Cultural no Brasil representa, como conquista, sim, de todos
os que estão presentes no projeto, mas também dos milhares de profissio-
nais eventualmente ausentes desse recorte.
Nossos aplausos para todos eles!

José Luiz Herencia


Secretário de Políticas Culturais
Ministério da Cultura
Apresentação
Afonso Luz
11

GEStores culturais

Juca Ferreira
Ministro da Cultura – 2008-
17

Gilberto Gil
Ministro da Cultura – 2003-2008
25

Francisco Weffort
Ministro da Cultura – 1995-2002
33

Alfredo Manevy
Secretário Executivo do Ministério da Cultura
45

José Luiz Herencia


Secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura
57

Márcio Meirelles
Secretário de Cultura do Governo da Bahia
67

Carlos Augusto Calil


Secretário Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo
77
Daniel Zen
Presidente da Fundação Elias Mansour e
do Conselho Estadual de Cultura do Acre
85

Claudia Leitão
Ex-Secretária de Cultura do Governo do Ceará
97

Joãozinho Ribeiro
Ex-Secretário de Estado da Cultura do Maranhão
107

INSTITUIÇÕEs culturais

Heitor Martins
Presidente da Fundação Bienal de São Paulo
119

Luiz Camillo Osório


Curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
129

Fábio Coutinho
Superintendente cultural da Fundação Iberê Camargo
141

Gérald Perret
Presidente da Sociedade de Cultura Artística
149

Lárcio Benedetti
Gerente de desenvolvimento sociocultural do Instituto Votorantim
159
José Martins
Diretor do Instituto Gerdau
169

Maria Arlete Gonçalves


Diretora de Cultura do Oi Futuro
177

Eduardo Saron
Diretor superintendente do Itaú Cultural
185

Eliane Sarmento Costa


Gerente de patrocínios da Petrobrás
193

Luciane Gorgulho
Chefe do Departamento de Cultura, Entretenimento e Turismo do BNDES
203

Roberto Smith
Presidente do Banco do Nordeste
211

Danilo Santos de Miranda


Diretor do SESC de São Paulo
219

Décio Coutinho
Gestor Cultural do Sebrae de Goiás
227

Ana Toni
Representante do Escritório Brasil da Fundação Ford
237
Gilberto Freyre Neto
Coordenador geral de projetos da Fundação Gilberto Freyre
249

Carlos Dowling
Diretor da Associação Brasileira de Documentaristas - seção Paraíba
257

CRÉDITOS GERAIS
269

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APRESEN
TAÇÃO
Afonso Luz |
Diretor de Estudos e Monitoramentos |
Secretaria de Políticas Culturais

Produzir cultura significa muitas vezes criar condições para que ela exis-
ta e prospere, fazendo com que os profissionais ali envolvidos operem do
plano mais elementar ao mais sofisticado dos níveis. Sendo que, muitas ve-
zes, uma única pessoa precisa se desdobrar em inúmeras funções e até mes-
mo inventar, de maneira informal, seus postos de trabalho. Este parece ser
um dos nossos maiores estigmas na sobrevivência através das adversidades
marcadas no tempo eivado de crises e contratempos. Como diz um amigo,
“no Brasil, não basta que sejamos artistas bons, precisamos ser um pouco
empresários, financiadores, instituições e até críticos de nós mesmo, isso
para que as coisas funcionem direito”. Por outro lado, esta situação pode-
ria ser tomada por alguns analistas como algo positivo, uma vez que nossa
baixa capacidade de estruturação e fixação de sistemas produtivos nos põe,
ironicamente, à frente de muitos países no momento em que vivenciam for-
te crise. Nesta hipótese, nossa precariedade também pode significar uma
“versatilidade benéfica” que acaba parecendo atual nesse mundo organiza-
do em torno do trabalho altamente flexível. Aqui, como diz a expressão, so-
mos “pau-pra-toda-obra”, desde sempre. Mas precisamos olhar para o futu-
ro, porque nossos potenciais só frutificarão verdadeiramente se soubermos
construir novos modelos levando em conta vantagens e desvantagens lo-
cais, ou melhor, se conseguirmos construir ambientes de empreendedoris-
mo e trabalho adequados à economia da cultura em toda a nossa diversifi-
cada extensão brasileira, absorvendo diferenças territoriais, populacionais,
simbólicas e históricas.

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Creio que hoje vivenciemos um período de transição, a meu ver, mais
adequado e que dignifica os profissionais da cultura, uma vez que vamos
superando as primeiras modalidades épicas de instauração de um sistema
cultural nos trópicos deveras regionalizado, quando não fechado em con-
textos absurdamente locais, com suas demais tragédias decorrentes. Esta-
mos prestes a chegar a níveis básicos de formalização dos empreendimen-
tos em termos modernos, com graus de formação e capacitação continuada.
No último período tivemos significativas adoções de medidas como, por
exemplo, o enquadramento tributário dos CNPJs no simples, o que dá novos
recursos ao nosso universo produtivo. Esta constante evolução é algo neces-
sário aos negócios no campo da economia da cultura, no sentido de criar
perfis mais gabaritados para um novo agente capaz de dinamizar seu setor;
familiarizado com seus meios globais e conhecedor do repertório estético
do campo que se atualiza. Do mesmo modo, este agente precisa dominar
as expectativas sociais de um público consumidor traduzidas em números
e indicadores, assim como as leis e normativas que regem e regulam sua
atividade, para não “comer bola” num complexo sistema de financiamentos
e contratos. Hoje, o produtor cultural – desde a escola até o escritório de
negócios – já vai dominando um jargão conceitual e uma habilidade técnica
que supomos cada vez mais generalizadas, conhecendo melhor como fun-
cionam seus meios congêneres, como atuam seus colegas nos sistemas e
meios análogos ao seu em outros cantos do país e do mundo.
Mas será que faremos mesmo bem esta passagem do artesanato produ-
tivo semiarcaico para as indústrias criativas contemporâneas? Conseguire-
mos nos transformar sem perder alguns dos diferenciais que nos animaram
simbolicamente a inventar soluções econômicas fantásticas, a exemplo das
aparelhagens do tecnobrega paraense ou dos bailes funk carioca? Como
podemos nos profissionalizar e misturar desabusadamente modelos pro-
dutivos ocidentais em benefício do atendimento às realidades de consumo
heterogêneas que caracterizam nosso mercado interno? Eis uma série de
questões que parecem ser flagradas neste conjunto inusitado de entrevistas,
dentre tantas outras que nos dão o que pensar, e muito! Este foi o propósito
maior deste projeto; além de estudar economicamente o campo e suas ca-
deias de agregação de valor com pesquisadores e economistas, pensamos
que seria necessário ouvir expoentes significativos das diversas gerações
que aqui atuam, numa espécie de amostragem qualificada do todo que é

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bem mais amplo do que o recorte de nomes que elegemos aqui, mas que
nos dá grandes exemplos do que acontece. Este é um desafio inerente a uma
gestão governamental que tem na democratização e no diálogo um dos seus
esteios mais estruturantes, e que pensa a política cultural de forma partici-
pativa sem desprezar as diferenças de acúmulos e as hierarquias de valores
que existem historicamente nos campos artísticos e nos segmentos cultu-
rais, buscando sempre acolher diversificadamente os graus de contribuição
que cada agente pode dar.
Esta ação – que esperamos ver continuada nos próximos anos – deve ge-
rar também um documento de grande importância para a história futura e
a memória presente de nossos meios. Estamos aqui afirmando o propósito
que, desde o início da gestão de Gilberto Gil sob o governo Lula, alimentou
a equipe do MinC: desenvolver a economia da cultura como agenda estraté-
gica para o país que queremos amanhã. Estamos aqui falando de um vetor
decisivo na estabilização sustentável de nosso grau de crescimento e inter-
nacionalização: o fator humano da criatividade. É ele que vai facultar uma
crescente evolução de nossos produtos e serviços, assim como da incorpo-
ração de trabalho e tecnologias frente ao mercado global, gerando assim a
tão desejada inovação que nos fará mais competitivos e mais ricos social-
mente, como já nos apontava o Ministro Celso Furtado.
Neste ano de 2010 a Secretaria de Políticas Culturais abriu agendas es-
tratégicas com os setores de moda, design, arquitetura, artesanato e cultura
digital. Já podemos ver aqui depoimentos de algumas das figuras pionei-
ras que nos ajudaram a compreender a importância destes novos segmen-
tos, uma vez que sua atuação no horizonte cultural se intensifica cada vez
mais. Mas creio que ainda precisamos avançar mais e mais, e seria talvez um
apontamento para uma futura extensão do projeto na captação de novos
materiais e depoimentos, já que aqui ainda é escasso no reconhecimento
da importância de nos voltarmos também para estas áreas. Hoje temos um
programa junto ao Fundo Nacional de Cultura que ganhou o nome Culturas
Urbanas e Cidades Criativas para abrigar a agenda destes cinco setores; eles
serão atores vitais ao projeto das doze capitais das cinco regiões brasilei-
ras tornarem-se espaços internacionais e metrópoles contemporâneas no
calendário que envolve Copa do Mundo e Olimpíadas no Brasil. Creio que
os produtores culturais de todos os setores consolidados e reconhecidos há
décadas como arte e cultura, como a música, o cinema, o teatro, a dança, as

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artes visuais, a literatura e mesmo as culturas tradicionais e as cosmologias
étnicas, podem se beneficiar enormemente com a incorporação da moda e
do design tanto quanto do artesanato e da cultura digital, como dinâmicas
transversais e complementares a eles, sem falar na arquitetura.
Gostaria de agradecer a equipe empenhada neste empreendimento da
maior importância e deixar que cada um de vocês parta para a deliciosa lei-
tura dos personagens que fizeram, fazem e farão a história da produção cul-
tural no país. Os que sentirem, ao final, a falta de alguns importantes nomes,
não deixem de nos apontar. Descrever um fenômeno vivo como este requer
a visada e a audição de todos; sem dúvida seu depoimento será compilado
quando uma nova fase do projeto vier a público.

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Juca Ferreira
Gilberto Gil
Francisco Weffort
Alfredo Manevy
José Luiz Herencia

GESTORES
CULTURAIS
Márcio Meirelles
Carlos Augusto Calil
Daniel Zen
Claudia Leitão
Joãozinho Ribeiro

15
16
Juca
Ferreira
Ministro da Cultura 2008- .

Qual o diagnóstico do Ministério da Cultura quando você entrou?


A primeira coisa que percebemos quando chegamos ao Ministério da Cul-
tura foi a fragilidade do estado brasileiro. É uma casquinha de ovo. O Estado
brasileiro foi muito fragilizado nos anos nos quais a ideia de que o estado
tinha que ser o menor possível, sem grande importância na sociedade. Essa
foi a grande contribuição do neoliberalismo: o enfraquecimento do Estado. O
Ministério não tinha relação com nada relevante no mundo da cultura, nem
sob o ponto de vista da economia, nem de inclusão das pessoas de acesso
à cultura, nem de desenvolvimento dos processos mais fundamentais. Pelo
contrário, 80% do dinheiro do Ministério ia para a renúncia fiscal, e quem
decidia como usar o dinheiro eram os departamentos de marketing das em-
presas privadas. Então, o Ministério era um quase nada, o menor orçamento
da área pública, 0,2%, e não se tinha nem noção de política pública. O Estado
não se sentia responsável de cumprir certas funções. Então, primeiro tivemos
a consciência de que nós tínhamos que ser arautos de um novo período,
fundantes de um novo processo. Isso era muito difícil. O Gilberto Gil, com
toda a sinceridade, numa das primeiras reuniões com todos do Ministério,
diz: “Eu não sei o que é política pública. Vocês vão ter que me dizer. Eu sinto
que o Estado tem que definir sua ação, mas eu ouço falar muito em política

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pública, é um termo que está na moda, mas não sei o que é”. E nos obrigou a
aprofundar o conceito: como é que define ação do Estado, ações, programas,
políticas e qual é o papel do estado. Até onde o estado deve ir, onde não deve
ir. Isso foi muito amadurecido. Tanto é que por mais que os que são contra
as reformas, os que se beneficiam da situação anterior, de dinheiro sendo
disponibilizado sem critério, vêm para cima da gente falando em dirigismo
e tal, não convence. O projeto não é dirigista, nem é do Estado sufocando a
iniciativa privada ou a iniciativa da sociedade. O projeto é o contrário, é o
empoderamento da sociedade, desenvolvimento de um acesso pleno à cul-
tura, de uma economia cultural importante e criação de uma infraestrutura
e uma regulação para que a cultura se desenvolva plenamente.

Qual foi a influência da Convenção da Diversidade Cultural nesse


processo?
Essa foi uma grande contribuição do Ministério da Cultura. Muitos tinham
uma ideia de que o que é relevante na cultura brasileira está no Rio de Janeiro
e em São Paulo e não conseguiam compreender a complexidade do Brasil e
a necessidade de se relacionar com nossa diversidade cultural. O Brasil tem
matrizes nas culturas dos povos indígenas, nas culturas dos povos africanos
que vieram como escravos, dos portugueses e de uma gama muito maior de
migrantes que vieram formar a sociedade brasileira desde o final do século
XIX e hoje são componentes importantes do Brasil. São 30 milhões de des-
cendentes de italianos. Há mais libaneses no Brasil do que no Líbano. Somos
a maior colônia japonesa no exterior e temos 500 mil eslavos, ucranianos e
poloneses. Isso é parte do Brasil hoje. O Brasil se tornou muito complexo e,
ao mesmo tempo, tem uma singularidade, uma identidade, uma personali-
dade muito fincada. Não tem uma música que traduza o Brasil inteiro, apesar
de você poder até mentir que o samba é o que mais galvaniza a experiência
brasileira na área musical. O samba é enriquecido com toda essa comple-
xidade que envolve todas essas culturas, essas matrizes, essas experiências
regionais, locais. Isso em todas áreas, estou dando a música como exemplo.
Então, nós começamos a insistir nisso. Quando chegamos ao Ministério
da Cultura, havia uma série de privilégios constituídos. Por exemplo, 80%
do dinheiro do Ministério era destinado para o Rio de Janeiro e São Paulo.
Desses 80%, 60% ia para as capitais desses estados. E dentro dessas cidades,
3% dos proponentes ficavam com mais da metade do dinheiro que saía do

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Ministério da Cultura. Isso é um escândalo. É um estrangulamento, é matar
no nascedouro as possibilidades culturais. E é claro que as mudanças nesse
panorama que propusemos não acontecem sem resistências. Quando nós
quisemos revitalizar o cinema brasileiro, houve uma luta para que o dinheiro
só ficasse no Rio e São Paulo, e nós tivemos que lutar por essa abertura. Teve
um dia muito bonito, no Teatro Leblon, primeiros meses de Governo Lula. O
teatro estava cheio, dava para pedir autógrafo para mais da metade do público.
Era todo mundo gente fina, todos artistas consagrados, conhecidos, muitos
populares através das novelas. E Gil disse: “Olha, vocês terão que acostumar
com a ideia que eu vou distribuir esse dinheiro para o Brasil inteiro. Não se
justifica que 80% do dinheiro fique em apenas dois estados. E aí um rapaz
levantou o dedo lá e disse: “Ministro!”, aí Gil passou a palavra para ele que
disse: “Olha, não diga mais que 80% do dinheiro fica no Rio e São Paulo,
porque eu dirijo o maior complexo cultural da Baixada Fluminense e a gente
nunca viu um tostão do Ministério da Cultura. Dentro daqui, o processo de
concentração é tão grande que reproduz o mesmo processo de concentração
em relação a esses dois estados.” Então entedemos que isso era fundamental.
Temos que, primeiro, nos relacionar com todas as formas de cultura, todas elas
vale a pena. Temos que nos relacionar com todas as manifestações, matrizes,
singularidades, linguagens. O corpo simbólico brasileiro é muito mais amplo
até do que só arte. É preciso considerar tudo: moda, design, manifestações
tradicionais, valores, tradições cromáticas. A leitura que o povo da Bahia faz
das cores é completamente diferente, porque tem uma influência nitidamente
africana. Tudo isso é parte da nossa riqueza e pode ser potencializado se for
assumido sem discriminação, sem preconceito. Essa lucidez inicial de alargar
o conceito de cultura, de assumir a diversidade cultural brasileira, foi o que
possibilitou toda generosidade posterior. Porque, quando a gente foi pensar
construção de política pública, já estava meio consolidado, dentro do Minis-
tério e para fora, na nossa relação com o mundo cultural e com a sociedade,
que nós trataríamos com a mesma relevância as manifestações culturais de
todo território nacional. Hoje, eu vejo publicidade falando dessa diversidade
cultural. Isso tornou-se visível no Brasil. Já é um motivo de orgulho. Essa é
uma pequena contribuição que nós demos. Não é que nós tenhamos sido os
primeiros, mas nós escancaramos. Nós viemos aqui para escancarar, abrir
todas as portas e permitir que isso acontecesse permanente.

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O Plano Nacional de Cultura é uma forma de institucionalizar esse
processo.
Não só o Plano Nacional de Cultura. Tudo que a gente tem feito. Os nossos
editais têm disponibilizado dinheiro para todo mundo. Quando nós começa-
mos a abrir a política de cinema, foi uma chiadeira enorme. Tentaram inventar
uma teoria econômica de que o cinema precisa de uma infraestrutura. Claro,
precisa de uma infraestrutura. Mas cada vez menos, diga-se de passagem,
porque o cinema brasileiro nunca será baseado em grandes estúdios, como
é o cinema americano. Mas mesmo considerando essa necessidade, que é
real, de concentração tecnológica, a criatividade tem que ser nacional. A
cinematografia brasileira tem que refletir Pernambuco, tem que captar Rio
Grande do Sul, a Bahia, Amazonas. Então, essas ideias tiveram resistências,
algumas bastante violentas. E Gil foi de uma grandeza enorme. Foi um acer-
to do Presidente Lula ter trazido o Gilberto Gil para o Ministério. Ele é um
grande artista popular, um artista reconhecido e querido pela população
brasileira, um dos mais populares. E usou todo o seu capital simbólico para
apoiar essas mudanças. No início, era um momento de inflexão mesmo, um
momento de botar todas as fichas nessa mudança de conceito. Nós saímos
de uma situação a qual o Estado não tinha nenhuma responsabilidade, para
ser um desbravador, ser quem tem aberto, nesses anos, as portas para que a
cultura brasileira seja generosa com todos.

Quais os dias mais difíceis desse processo no Ministério?


Nesses oito anos? O início é muito difícil, primeiro porque o Estado é muito
frágil, as possibilidades de gerir dinheiro público são muito grandes. Dinheiro
sendo usado sem critério é porta aberta para malandragem. A cultura política
é muito complicada. Mas nós somos republicanos, temos tratado a questão
pública com uma responsabilidade muito grande. Os erros advêm da tentativa
de acertar. São muitos os erros. No processo você vai errando, mas vai incor-
porando o aprendizado na tentativa de acerto. O que fizemos aqui não foi para
fortalecer partido político. Pelo contrário, tivemos uma batalha enorme para
mostrar que a coisa mais avançada é o partido servir ao interesse público e não
o inverso. Isso é uma mudança de paradigma político que muitas vezes dá um
trabalho enorme. Tivemos que separar o joio do trigo. Não há possibilidade de
misturar grandeza com miudeza. Ou seja, quem quer pegar dinheiro público
para se beneficiar não pode fazer parte dessa experiência. Isso também foi

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duro. Toda denúncia contra o Ministério nós passamos imediatamente para
a Polícia Federal, que procederam em todas as investigações, independente
de quem estava sendo acusado. Isso não significava uma adesão à acusação,
mas uma possibilidade de investigação, de, inclusive, liberar a pessoa que
estava sendo acusada para que não ficasse uma suspeição sem consequência,
um enfraquecimento da pessoa. E isso tem servido como um paradigma. Nós
construímos uma coesão do Ministério em cima de um programa político,
mas em cima também de uma postura diante da coisa pública. Nós fomos
muito além da média nesse grau de compromisso republicano com a coisa
pública. Isso foi fundamental para o acerto do Ministério.

Se o Brasil continuar sustentando esse ritmo de crescimento econô-


mico, provavelmente nós vamos conviver com questões de outros países.
Como por exemplo, a presença de imigrantes no Brasil novamente. Como
você vê isso?
Olha, a mudança de tamanho do Brasil, da grandeza do Brasil no mundo,
terá várias consequências e é preciso ter uma visão estratégica no tratamento
disso. Primeiro, esse crescimento para ser sustentável, a longo prazo, tem que
garantir uma educação de qualidade para todos. Temos que resolver esse
problema. Junto com isso, o acesso pleno à cultura para possibilitar que a
sociedade, de fato, tenha condições de viver os desafios do século XXI, tanto
no manejo de tecnologia quanto de compreensão do mundo. É preciso ter
maturidade. A gente tem que fortalecer a coesão social. No Brasil, as desi-
gualdades precisam ter uma resolução definitiva. A gente tem que estimular
cada vez mais o diálogo intercultural e o fortalecimento desses vínculos; nós
temos essa possibilidade. O Brasil é um país que não vive uma democracia
racial, nem cultural, mas pode vir a produzir plenamente o primeiro grande
exemplo prático dessa convivência. É preciso atentar a isso, porque lá adiante,
pode ser que a gente precise de uma coesão muito mais sólida do que a que
temos hoje.
Outra coisa, não há possibilidade de garantir um Brasil grande e bem su-
cedido na base de uma economia de commodities. Isso tem data de validade.
O Brasil precisa migrar para uma economia de valor agregado. E não será
baseado na indústria tradicional, nem no serviço tradicional. Toda econo-
mia criativa, economia cultural, tem que ganhar uma importância no Brasil
que possibilite que a gente se consolide de fato como uma grande nação do

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século XXI. E o mundo está demandando isso. A curiosidade em relação à
cultura brasileira, o que pensamos, os nossos valores, é enorme. Nós temos
uma imagem muito boa no mundo. As pesquisas indicam que é um dos paí-
ses que tem a melhor imagem no mundo, por nossa cultura e singularidade.
Nós demonstramos, na formação do Brasil, uma capacidade de superar
certos limites que o ocidente tem, por exemplo, em relação ao corpo. Aqui
o corpo existe, tem inteligência, tem exuberância. E é preciso sistematizar
isso como parte da nossa identidade, diferentemente de países cheio de
taras repressivas, onde uma criança de nove anos encosta num outro na fila
e pode ser processado por assédio sexual, pelo temor que eles têm de liberar
essa energia vital, tão importante, que é a energia sexual. Então, o Brasil tem
conquistas, tem riquezas acumuladas e precisa ter orgulho disso. E tem que
produzir culturalmente. É importante montar uma indústria cultural sólida
no Brasil, que tenha, em termos econômicos, a mesma importância que tem
os commodities, que tem a indústria tradicional e os serviços tradicionais.

Como você vê a virada do Brasil pro Pacífico, inclusive com obras de


infraestrutura, BRICS, Mercosul cultural?
Tem uma discussão que está implantada nesse momento: até que ponto
o Governo Lula é continuidade do governo anterior, ou até que ponto ele
contribuiu. Foi uma lucidez, uma grandeza ter incorporado o que havia de
positivo na experiência anterior, que é basicamente a administração da mo-
eda, combate à inflação, a estabilidade para que o Brasil possa de fato pensar
um projeto de médio e longo prazo. Foi importante o Presidente Lula ter
compreendido isso. Agora, o Presidente Lula agregou uma série de elemen-
tos ao projeto de desenvolvimento do país. E eu diria que esses elementos
se tornaram irreversíveis. Primeiro, a inclusão de milhões de brasileiros.
Não é só por bondade, por espírito social igualitário do socialismo, que se
deve agregar as pessoas. É também porque precisamos de consumidores.
Pensando no sentido mais restrito, menos grandioso da questão humana, o
Brasil não pode ter um mercado do tamanho do mercado da Inglaterra, que
é uma ilhazinha pequena, perdida ali, no Mar do Norte. O mercado brasileiro
precisa ter o tamanho da nação brasileira. Até sob esse ponto de vista menor,
o que o Presidente Lula fez foi incorporar uma população do tamanho da
Espanha na economia. Isso é estratégico para o Brasil. Foi essa população
quem segurou o Brasil na hora que a crise econômica internacional bateu

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nas nossas portas. Essa inclusão ainda é precária, é preciso consolidar de
fato, abrir a economia, abrir a educação pra que todos tenham acesso, pos-
sibilitar que a economia supere as amarras atuais. Uma delas é essa tradição
de se basear apenas no agronegócio. E nem a indústria automobilística. É
preciso diversificar, é preciso compreender, ter um pensamento estratégico.
E a economia cultural, a economia criativa como um todo, é importante. É
a segunda economia norte-americana desde o meado do século passado. É
a terceira na Inglaterra. Ou seja, nós não estamos inventando nada, apenas
temos que entrar em uma escala de um tipo de economia de valor agregado,
que até hoje é secundarizado porque não nasce de geração espontânea. Nos
Estados Unidos, foi fruto de uma ação pactuada entre o estado, os empre-
sários e os criadores, no sentido de desenvolver a economia do cinema e a
economia da música. E a gente precisa entrar nessa também. Então, os que
ficam defendendo seus “privilegiozinhos” não resistirão ao impulso do capital
internacional, que está batendo nas portas brasileiras. O capital internacional
já percebeu que o mercado brasileiro é significativo e que a economia brasi-
leira tende a viver um processo de crescimento por pelo menos duas décadas.
Então, é preciso que os agentes econômicos nacionais, os agentes políticos,
as elites brasileiras, percebam que é preciso pensar o Brasil com grandeza e
não apenas como escravo do passado. É preciso que a economia da cultura se
torne uma economia pujante no Brasil, não só no mercado interno brasileiro,
mas no mercado internacional.

23
24
Gilberto
Gil
Ministro da Cultura – 2003-2008.

Por que você optou, num primeiro momento, pela Administração?


Não tenho muita clareza quanto às razões objetivas. Não sabia muito bem
o que era um administrador, tampouco conhecia o universo onde ele propria-
mente operava. Em pequeno, quis ser médico como meu pai. Fui desistindo ao
longo da vida, e acabei me fixando em Engenharia no ginásio. Naquele perío-
do, nós escolhíamos basicamente as carreiras que eram ofertadas: advogado,
médico, engenheiro. Gostava um pouco de desenhar e resolvi que queria ser
engenheiro. Prestei o primeiro vestibular de Engenharia em Salvador e não
passei. Quando estava me preparando para fazer o segundo vestibular, vi um
anúncio da Escola de Administração de Empresas que havia sido instalada na
Universidade da Bahia. Imaginei que era algo novo, engraçado, estranho, e
acabei me decidindo por aquilo no fim das contas. Era mais fácil, também; as
exigências com relação à Química, Física e Matemática não eram tão grandes;
em verdade, nem figuravam no vestibular de Administração de Empresas.

Qual foi seu primeiro contato com a produção cultural? Você começou
produzindo seus próprios shows?
Não, não comecei produzindo meus próprios shows. Meu primeiro en-
contro com a produção artística, com essa interface teatro/música, deu-se

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através do pessoal do Teatro dos Novos, em Salvador. Nesse primeiro grupo
– que contava com Caetano, Bethânia, Gal, Tom Zé – atuei não só como mú-
sico e compositor, mas também ajudava a conceituar as apresentações, e me
inteirava da questão cênica também, que envolvia todo um mundo até então
desconhecido: iluminação, cenário, cenografia, figurino. Os primeiros con-
tatos com essas várias dimensões e aspectos da produção artística deram-se
ali em Salvador, a partir da formação desse grupo. Quando da inauguração
do Teatro dos Novos, o diretor da Companhia Teatro dos Novos pediu que
nós fizéssemos um show para a ocasião, e foi aí que surgiram esses primeiros
contatos: a escolha dos temas, do repertório, a composição de canções. Ro-
berto Santana, que era ligado a teatro, veio fazer a direção. Caetano também
já era ligado ao teatro naquela época – inclusive, já tinha desenvolvido um
trabalho de música para teatro com Álvaro Guimarães – e tinha muito mais
gosto por aquilo tudo do que eu. Havia João Augusto, Roberto Santana, Cae-
tano. Bethânia também já era muito interessada por toda essa dimensão da
dramaturgia na música. Esses ingredientes todos estavam presentes naquela
primeira produção, que foi o Nós, por exemplo, em Salvador. Em seguida,
vieram outros shows individuais de cada um, que nos colocavam novas ques-
tões cenográficas, musicais, práticas etc. Foi como um treinamento. Durante
aquele período – 1964 a 1965, mais ou menos – travei esse primeiro contato
com o universo da produção musical. Era um processo coletivo, todo mundo
palpitava, segundo suas afinidades. Eu, por exemplo, me restringia mais às
questões propriamente musicais, mas não deixava de me impactar por todas
aquelas outras dimensões da feitura de um show.

Você, que acompanha a produção cultural no Brasil desde os anos 1960,


como analisa as mudanças que vêm ocorrendo desde então?
Quando falamos em termos de mudança, a primeira coisa que me vem
à cabeça é a televisão. A televisão imprimiu um modo muito específico de
consumir cultura. Ela foi exigindo um enquadramento à sua própria tela,
à telinha. A televisão também teve um papel importantíssimo por juntar
diversos coletivos – músicos, orquestras, cenógrafos, figurinistas, maquia-
dores – num mesmo contexto. De meados dos anos 1960 até o final dos anos
1970, a televisão se consolida de maneira muito forte. Ela absorveu todos
esses universos (teatro, cinema, música), mas isto não foi uma via de mão
única. Por seu turno, a televisão exerceu enorme influência sobre esses

26
universos. Por exemplo, muito do teatro que se fez no Brasil durante esse
período – e depois – fortaleceu-se de artistas que haviam cumprido seus
estágios na televisão, de tal modo que a relação televisão/teatro acabou
se caracterizando por uma profunda interdependência. Quanto à música,
houve o caso dos festivais, que revelaram novos cantores, compositores e
acabaram fornecendo uma base para todo o esparramamento posterior que
a música teve para outros territórios. Evidentemente, há também uma série
de manifestações que, por várias razões, passaram ao largo da televisão, ofe-
recendo uma alternativa ao mainstream. Também isso vai se fortalecendo.
O registro de fenômenos como o Dzi Croquettes, ou até mesmo os Doces
Bárbaros, ficou a cargo do cinema e do disco. Há centenas de exemplos
dessa cultura à margem, que não vinha da televisão nem do show business
mais arrumado.

Por que você se candidatou a vereador em Salvador?


A candidatura foi um desdobramento natural de uma série de outros
momentos de abordagem da vida política. No primeiro momento, fui para a
Fundação Gregório de Matos, que era o equivalente à Secretaria Municipal de
Cultura de Salvador, na gestão do então prefeito Mário Kertész. Era o momento
seguinte à perestroika e à glasnost, dois braços de uma importante revisão da
questão soviética, a influência do comunismo real sobre o resto do mundo.
Gorbachev fora o agente daquele desmonte, que me pareceu muito interes-
sante e significativo. Se por um lado havia toda uma crítica das esquerdas às
formas perversas de gestão capitalista da sociedade, por outro, faltava um
pouco de autocrítica às esquerdas. Aquele desmonte foi uma comprovação
de que essa autocrítica era possível, o que servia de alerta para o mundo
todo. Então, foram os vários significados daquele momento que me levaram a
pensar que havia, de fato, lugar para novas formas de política, mais criativas,
mais artísticas. A política pôde reclamar sua dimensão artística mais ampla,
porque política é arte. Naquele momento, havia na prefeitura de Mário Ker-
tész um grupo composto por João Santana, Roberto Pinho, Antonio Risério,
entre outros, que já apontava para uma interface entre pessoas criativas e o
poder, a gestão, a administração municipal. Então fui para a Fundação Gre-
gório de Matos como presidente, pois foi a única maneira encontrada pelo
grupo de me levar para lá. Eu não era propriamente um técnico de alguma
área específica. Eu tinha minha passagem pela administração, era artista, e

27
agora me envolvia numa gestão municipal, sob a égide de um prefeito, um
homem político. Presidi a Fundação por um ano. Ser vereador desdobrou-se
disso tudo, como disse. O grupo achava que poderíamos postular uma can-
didatura a prefeito, mas acabou não dando certo. Naquela época, eu tinha a
opção de voltar diretamente a meu trabalho artístico ou continuar servindo
ao projeto de alguma maneira, tentando desenvolver um pouco mais seu lado
político. Como poderia fazê-lo, naquele momento? A serviço da Câmara de
Vereadores, onde fiquei por quatro anos.

Como foi esse primeiro embate do artista com a gestão pública?


As características artísticas desse grupo que mencionei davam à gestão um
tom de nítida aproximação com o campo de criatividade artística. Houve uma
releitura das formas de fazer projeto. As escolhas dos investimentos técnicos
passaram por uma reavaliação, além do pessoal. Uma série de projetos foi
surgindo, como o apoio aos grupos afro, a construção da sede do Olodum.
Criamos os terreiros de candomblé, tentamos intensificar as relações Bahia/
África, para potencializar o legado africano ali e dar visibilidade a seus vários
produtos. Pensamos também a questão dos poetas de rua, os poetas da praça,
o teatro ambulante. Era mesmo a criatividade a serviço da gestão, e a gestão
criativa a serviço do poder. Ali, foi gestado o tipo de relação que eu acredito.
Não é à toa que, quando fui para o ministério, levei boa parte dessa turma.

Como você vê o desmonte da cultura durante o período Collor?


Há aquela lenda de que esse desmonte deu-se por vingança, já que a
candidatura de Collor não contou com o apoio da classe artística. Isso pode
ter pesado um pouco, mas creio que tenha a mais a ver com sua visão de
gestão, de estado, de política pública. Ele seguia o catecismo neoliberal, e
queria entregar a gestão das coisas públicas ao mundo privado. Ele tinha uma
crença muito forte na autogestão, na autorregulação por parte da sociedade
civil, com apoio direto do mundo corporativo. Por isso acabaram com o mi-
nistério, a Embrafilme, o Conselho Nacional de Direitos Autorais, bem como
uma série de organizações

Como surgiu o convite para ser Ministro da Cultura?


Falei sobre a Fundação Gregório de Matos, e minha relação com a prefeitura
de Salvador. Creio que tudo isso tenha servido como base para a manuten-

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ção de um querer, uma vontade. Mas eu não estava mais pensando em nada
disso quando recebi o convite. Não tinha mais vontade de trabalhar a gestão
criativa em política. O presidente Lula que foi eleito e me chamou. Do nada,
da cabeça dele. O PT fez uma pressão danada, mas Lula acabou ganhando a
queda de braço.

Você era amigo do Fernando Henrique, participou de seu governo...


Mas apoiei Lula. E mais, quando fui lhe apresentar meu apoio, um ano e
meio antes da eleição de 2002, fui como PV. Fomos eu, Juca Ferreira e Alfredo
Sirkis levar, em nome de boa parte do Partido Verde, nosso apoio ao Presi-
dente Lula. Mas eu falei que esse apoio que estava trazendo não anulava o
apoio que eu continuava a dar ao Governo Fernando Henrique Cardoso, até
seu final. Durante a campanha de Lula, enquanto o PT falava da herança
maldita, eu falava da bendita herança de Fernando Henrique. Muito embo-
ra tivesse prosseguido o receituário neoliberal em certos aspectos, foi um
governo que teve significados importantes. Essa importância se comprovou
depois, afinal, a gestão de Lula se beneficiou muitíssimo de ações iniciadas
no governo FHC. Enfim, minha vinda para o Ministério foi algo que partiu
de Lula pessoalmente, por respeito, admiração pessoal por minha trajetória
como artista e atenção a meus experimentos políticos na Bahia. Isso, junto a
uma dimensão do Partido Verde, que era importante.

Mas o partido não assume você como PV no governo, depois.


É uma questão difícil. Naquela época, há oito anos, o PV era um partido
ainda muito pequeno. Ele cresceu muito desde então, mas à época tinha
poucos parlamentares, poucos representantes. E já era bastante dividido:
tinha um PV de São Paulo, tinha um PV do Rio de Janeiro, tinha um PV da
Bahia, tinha um PV do Paraná. Eram grupos mais ou menos autônomos. Mas
a parte que apoiou o presidente, a parte que ele queria reconhecer, era a parte
que estava a meu lado. Na verdade, Lula não dá o ministério ao PV. Ele me
aborda diretamente.

Que Ministério da Cultura você encontra?


Era um Ministério desarrumado, no sentido das atribuições das áreas
de gestão. Muita confusão entre secretarias e as coligadas, IPHAN, Funarte
etc. Havia muitas sobreposições de tarefas e coisas desse tipo, o que pedia

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uma reorganização. Fizemos um novo organograma logo após a criação das
secretarias e a separação de algumas dessas coligadas. Era um Ministério
desarrumado e destituído de uma visão clara da nova complexificação da
questão cultural no Brasil. Afinal, novas tecnologias geram novos problemas.
Essas tecnologias – nominalmente digitais – já eram exaustivamente utilizadas
pela produção cultural, e o Ministério ainda não olhava propriamente para
o impacto disso na questão autoral. Era um ministério diferente do que eu
imaginava que devesse ser, e diferente daquilo que esperava o presidente Lula.

Lula propôs alguma coisa?


Não. Ele disse: “Vá para o Ministério como se fosse seu palco, e faça o que
achar melhor.”

Quantos anos você ficou?


Foram cinco anos e meio, quase seis.

Durante esse período, qual foi o momento mais árduo?


Foi difícil aprender a ler o ministério, o que ele era, o que ele deveria ser,
o que deveria deixar de ser. Ler o ministério ideal, o novo ministério, e o que
deveríamos absorver do velho ministério. Desenhar novos programas, novos
projetos, novos meios de realização desses programas e projetos. Igualmente
difícil foi lidar com tanta gente. Naquela época, eram 2.500 pessoas trabalhan-
do em conjunto com o ministério, contando com as coligações, as secretarias,
as interfaces com governos estaduais, municipais etc. Outra dificuldade foi
integrar um governo permanentemente em questão, que chegava com mil
interrogações, apesar da simpatia.

Das suas realizações como ministro, quais você destacaria?


Várias coisas, especialmente no que tange a questão do patrimônio
imaterial. O fortalecimento das políticas de museu no Brasil, a idealização
de novos museus que vinham atender demandas novas e mais específicas:
o Museu do Pantanal, o Museu da Língua Portuguesa, o Museu do Futebol.
Uma reavaliação do trabalho do IPHAN. Um apoio decidido ao conceito di-
versidade cultural, inclusive objetivamente no trabalho junto a Unesco e a um
grande número de países. Naquele momento, o Brasil realizou um trabalho
importantíssimo junto à Espanha, ao Canadá, a vários países africanos e a

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sul-americanos. Foi um trabalho forte para que a convenção da diversidade
cultural fosse aprovada. Depois, o Ministério continuou a lutar para que os
países a reconhecessem. No desdobramento desse ativismo internacional,
promoveu-se todo um conjunto de atividades de intensificação cultural com a
ONU, a Unesco, organismos sul-americanos e pan-americanos. Esse trabalho
de identificação de um protagonismo popular cultural até então encoberto,
não propriamente visível, que precisava vir à tona. O programa Cultura Viva
e os Pontos de Cultura, bem como todas as suas variantes, começaram a dar
conta desse mundo submergido, que é a produção cultural popular. Além
disse, houve também o trabalho na área do cinema, com o fortalecimento
da Ancine. Conseguimos retirá-la do âmbito do Comércio e da Indústria e
trazê-la para o Ministério da Cultura, o que proporcionou – com a criação da
Secretaria do Audiovisual – a promoção de uma interação, de uma parceria
importante entre a Secretaria e a Agência, no sentido de dar ao cinema um
panorama novo, uma porta de reentrada no Ministério e no Governo, com
o fortalecimento das políticas de financiamento. As políticas de distribuição
foram mais discutidas, assim como a questão dos déficits de sala de cinema no
país. Uma coisa importante foi o desenvolvimento da área de política digital.
O Ministério da Cultura começou a se preocupar com as novas tecnologias
da comunicação, das telecomunicações, as novidades nesse campo e todas
as questões relativas a ele. A criação de uma diretoria de cultura digital no
Ministério foi muito importante, inclusive do ponto de vista regulatório. E
houve também movimentos pontuais: criar o Sistema Nacional de Cultura.
Criar junto com o Congresso Nacional um plano nacional de cultura. Rever a
lei do Direito Autoral. Assumir a necessidade de fortalecimento da televisão
pública no Brasil. Assumir as responsabilidades do governo com relação à
TV digital, e tantas outras.

Qual o futuro do Gil político?


Não tenho a menor ideia, tampouco tenho vontade nesse momento. Acho
difíceis as relações do mundo político hoje com o resto. Não consigo antever
uma possível contribuição verdadeiramente interessante, que eu pudesse
dar nesse campo. Mas não dou certeza. Minha vida é uma permanente in-
terrogação.

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32
Francisco
Weffort
Ministro da Cultura – 1995-2002.

O senhor participou de um importante grupo de intelectuais que es-


tudou O capital, de Karl Marx, na Universidade de São Paulo. Conte um
pouco essa história.
Eu sou um professor, me formei na Universidade de São Paulo, em so-
ciologia política. O meu interesse maior sempre foi estudar a história da
política brasileira, o populismo, o sindicalismo. Fiz toda a minha carreira
junto à Universidade de São Paulo. Quer dizer, alguma coisa eu fiz na In-
glaterra, também houve um periodo no Chile, mas basicamente a minha
vinculação universitária é na Universidade de São Paulo. Alguns de nós
chegamos a uma opção política, evidentemente, através de estudos e de
leituras. Quando se diz a Universidade de São Paulo, se fala de um com-
plexo muito maior do que aquele do qual nós fazíamos parte, que era uma
faculdade relativamente pequena na época, na rua Maria Antônia, em São
Paulo, onde havia um grupo ligado à história, ciências humanas e filosofia.
Florestan Fernandes e Antonio Candido eram lideranças importantes na
época, e o Fernando Henrique Cardoso e o Arthur Giannotti eram ainda
jovens professores. Em meados dos anos 1950, ainda no período Juscelino
Kubitschek, esses jovens professores criam um grupo de estudos marxistas.
O conhecimento de marxismo no Brasil é relativamente recente, e, no caso

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de São Paulo, mais recente do que em outros estados, ou pelo menos mais
recente do que no estado do Rio de Janeiro.
O grande teórico marxista que nós tínhamos em São Paulo era o Caio Prado
Júnior, que era vivo, um historiador importante, mas que não era membro da
universidade. Então, dentro da universidade mesmo, o marxismo passa a ser
adotado, como matéria de reflexão, com esse grupo de estudo. Era um grupo
pequeno, formado por José Arthur Giannotti, Fernando Henrique Cardoso,
Paulo Singer e alguns poucos alunos, entre os quais Roberto Schwarz, Michel
Löwy, eu e Fernando Novaes. Pegamos O capital, que são três volumes im-
portantíssimos, complexos, e passamos praticamente três anos lendo o texto.
Não tinha nada o que fazer, quer dizer, era uma gente jovem, o Brasil era um
país mais calmo, mais pacífico, ninguém estava fazendo política, então de 15
em 15 dias as pessoas se reuniam. Um lia um capítulo, o outro comentava, e
passávamos duas ou três horas trabalhando aqueles textos. Basicamente, a
formação intelectual de várias dessas pessoas vem desse grupo, embora nem
todos tenham virado marxistas. Isso deu um caminho para a política, mas
essas pessoas, na verdade, não faziam política, porque as alternativas políticas
que existiam na época eram aquelas que o quadro brasileiro apresentava, que
não interessavam àqueles intelectuais que tinham uma visão mais crítica.
Eu entendo que a participação política dessas pessoas não se deu como tur-
ma, mas individualmente. O Fernando Henrique sempre foi um fulano que
participava de atividades políticas e administrativas da universidade. Ele era
representante dos auxiliares de ensino, do conselho universitário. Hoje isso é
rotineiro, mas na época tinha muita importância, até porque não havia essa
tradição de jovens universitários assumindo essa responsabilidade. Ele era um
cara importante, do ponto de vista político, por causa disso. Era um homem
de esquerda, sempre foi. Ou seja, o caminho para a política foi individual e
ocorreu, na verdade, em fins dos anos 1970 e início dos anos 1980.

Então não havia um posicionamento político comum?


No início, todo mundo era do MDB, do Movimento Democrático Brasi-
leiro. Eram pessoas das mais diferentes opções, opiniões e que queriam o
restabelecimento da democracia no Brasil. Em 1974, quando o MDB surpre-
endentemente elege senadores na maioria dos estados, as pessoas começam
a acreditar que é possível restabelecer a democracia. Nessa mesma época,
ocorrem o restabelecimento do sindicalismo e a greve do ABC, um aconteci-

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mento notável. Provavelmente, o primeiro grande movimento dirigido pelo
Lula, que já vinha participando com outros sindicalistas de uma renovação
sindical no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Então são várias
coisas que vão ocorrendo na sociedade e que levam a uma discussão sobre
que tipo de partido se criaria quando se restabelecesse a democracia. Havia
diversas propostas, o Partido Socialista, uma reforma do MDB, e também um
Partido dos Trabalhadores.

O senhor foi um dos fundadores do PT?


Essa era uma época, os anos 1970 e 1980, em que o Brasil vivia uma di-
tadura militar. A fundação do PT é um dos movimentos que ocorrem nessa
época, em busca de um restabelecimento da democracia no país. Ocorreu
uma série de movimentos democráticos nesse momento, o restabelecimento
do sindicalismo, que tinha parado em 1964 e seria retomado dez anos depois,
o movimento por eleições diretas, o restabelecimento de estado de direito.
No caso específico do PT, o partido surgiu de uma consciência que havia no
meio sindical e no meio intelectual sobre a necessidade do reconhecimento
democrático nas reivindicações dos trabalhadores na sociedade brasileira.
A grande tradição brasileira nesse assunto é que a questão social é questão
de polícia, ou então que a questão social estava submetida à presidência da
República, ao populismo do Getúlio Vargas. Depois de muitos anos de ditadura
militar, o PT surgiu como um dos vários movimentos democráticos.

O que foi a eleição de 1989?


A eleição de 1989 foi realmente a primeira eleição direta, veio imediatamente
depois da campanha das Diretas Já. Foi uma grande surpresa, porque todo de-
bate político estava concentrado no confronto entre opiniões pró-democracia,
que vinham do MDB, e opiniões pró algum tipo de sucessão ligada ao regime,
que vinham do Arena, posteriormente chamado de PDS. Nesse quadro, os dois
nomes que poderiam significar mudança, antes das eleições, eram Aureliano
Chaves e Ulisses Guimarães, duas lideranças políticas altamente expressivas.
Além deles, tinha o Lula, que não tinha um centésimo da significação política
que tem hoje e que era candidato pelo PT, o Fernando Collor, que criou um
partido para se candidatar, e o Leonel Brizola, que era um nome conhecido da
política brasileira. Só que todos eram nomes menores em face aos dois primei-
ros, mas deu-se uma virada no humor da opinião pública, na atmosfera pública,

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de tal forma, que houve uma polarização totalmente inesperada no segundo
turno, entre Lula e Fernando Collor. É preciso lembrar que, na passagem do
primeiro para o segundo, a diferença entre a votação do Lula e a do Brizola foi
de menos de 1%. Então, no segundo turno, Lula concentra a atenção de todos
que estavam daquele lado. Foi uma grande surpresa. O processo eleitoral como
um todo foi uma surpresa, e a eleição do Collor foi, ainda, menos surpreendente
do que o Lula ter ido para o segundo turno. As pessoas que têm a imagem do
Lula como “Lulinha paz e amor” deveriam se lembrar do que foi o Lula em
1982 e 1989, porque ele aparecia como uma figura muito mais ríspida, radical.
O Collor também tinha a sua maneira de ser radical, porque ele falava contra
os marajás. Foi nessa atmosfera radical que se deu a eleição de 1989.

Por que o Collor desmontou a estrutura cultural do Brasil?


Esse é um dos itens realmente difíceis de entender. Uma hipótese é a
de que o Collor teve que construir uma imagem anti-Sarney para fazer a
campanha eleitoral. O Sarney tinha feito uma lei de incentivo cultural. Quer
dizer, quem fez a lei foi o Celso Furtado, mas, de qualquer maneira, a lei foi
chamada de Lei Sarney. O Collor, que era o Ferrabrás do moralismo, atacou a
Lei Sarney com tudo que pode. Ele aproveitou a onda de supostas fraudes em
torno da lei e acabou com ela. Reformou o IPHAN (Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional), a FUNARTE (Fundação Nacional de Artes),
várias instituições culturais, mas, que eu saiba, não beneficiou nenhuma. O
que o período Collor deixou de benéfico, e que eu não sei se é da influência
direta do presidente ou de algum dos seus ministros, foi a Lei Rouanet, que
foi criada para enterrar a Lei Sarney.
A Lei Rouanet é uma espécie de Lei Sarney reformada, como, aliás, não dá
muito para fazer diferente. É preciso inventar leis mais ou menos dentro da
nossa tradição cultural. Eu acho que no caso do Collor havia um profundo
ressentimento com a área cultural em geral. No fundo é isso, a área cultural
não o reconhecia, ele não era visto como uma figura importante. E, embora
a área cultural não tenha muitos votos, ela tem prestígio e, naturalmente,
carimbou o Collor de muitas maneiras. Acho que na verdade foi uma pequena
vingança, não fez bem nenhum.

Professor, quando o senhor foi chamado para ser ministro, o que en-
controu quando chegou ao Ministério?

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Quando eu cheguei ao Ministério, encontrei a Lei Rouanet e a Lei do
Cinema, que eu acho que são leis importantes, com todos os defeitos que
possam ter. Encontrei algumas experiências deixadas pelas administra-
ções anteriores. Por exemplo, programa de bandas de música, uma pro-
posta de recuperação da documentação histórica brasileira na Europa,
do período dos descobrimentos até a independência – uma proposta extre-
mamente interessante, que nós implementamos. Encontrei frangalhos nas
instituições do Ministério da Cultura, especialmente a FUNARTE, que é uma
grande instituição, e um clima na área da cultura de muita desesperança. Exa-
tamente o que o período Collor deixou de mais forte, à parte a Lei Rouanet,
foi um clima de depressão. As pessoas que já acreditavam pouco passaram a
acreditar menos ainda, então foi preciso recuperar isso. O período da minha
administração foi de um grande esforço em recuperar a possibilidade de um
Ministério da Cultura, porque desde sua fundação até a minha chegada nove
ministros tinham passado por lá, em um período de oito anos. Tinha ministro
que ficava seis meses, outro que ficava três meses, era uma coisa muito frag-
mentada, muito parcelada, muito sem rumo. Nós fomos capazes de acreditar
e de fazer com que acreditassem que era preciso ter um Ministério da Cultura.

Quais foram as políticas em que vocês pensaram? Qual era o projeto


político do ministério frente a essa situação?
Na área da cultura, eu sempre acreditei e continuo acreditando que, nas
condições do Brasil, o Estado tem o dever da cultura, tanto quanto o dever
da educação. Isso não significa que deva haver um dirigismo de Estado para
a cultura, como também não deve haver para a educação. A sociedade, a co-
meçar pela família, tem um dever fundamental com a educação, assim como
tem, por parte das famílias, das instituições culturais e das empresas, o dever
também com a cultura. Portanto, a política da cultura tem que ser trabalhada
com duas mãos. Ela tem que ter, como aliás tinha, em escala bem pequena, e
hoje maior, fundos públicos, que deveriam ser aplicados a fundo perdido, e a
possibilidade de captar recursos nas empresas com dedução fiscal.
Há um pedacinho do Estado que atua na cultura, e há um pedaço das leis
que possibilita a captação de recursos no mercado, mas o que se capta é muito
pouco, tanto no Estado quanto no mercado. Tudo que nós concebemos como
política de cultura é coisa dos anos 1920, dos anos 1930, que foi melhorando.
Os anos 1920 e os anos 1930 são os do modernismo no Brasil, que abriu a cabe-

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ça brasileira, conservadoríssima e tradicionalíssima, para as coisas modernas
que viessem. Então, até hoje, nós temos uma visão de política cultural que é
muito inspirada naquela época. Quer dizer, patrimônio histórico, defesa da
tradição cultural, defesa da memória histórica nacional, e este projeto, que
depois nós realizamos, de recuperação de toda a documentação histórica
brasileira. Então, seria sempre um esforço de garantir a tradição, recuperar a
memória, afirmar a identidade e abrir-se para as inovações que possam surgir.
Outro ponto que deveria ser acrescentado à presença do Estado, e à presença
do mercado através dos incentivos, seria o desenvolvimento de uma política
de Estado na área da cultura, visando o mercado como mercado, porque há
um mercado de cultura no Brasil que não é bem avaliado. Tem que ter um
olho para o crescimento do mercado da cultura, para que o Estado tenha
responsabilidades tanto com a proteção que tem que dar às tradições da
cultura brasileira, quanto em colaborar com a empresa privada nos projetos
e estimular o desenvolvimento. A cultura enquanto mercado é uma indústria.
Nós temos que ter uma política industrial voltada para a cultura, para o livro,
para a codificação das obras de arte.

Voltando à origem da sua gestão: como foi sua saída do PT e a entrada


no governo do Fernando Henrique Cardoso, do PSDB?
Eu estive no PT durante alguns anos, depois saí do partido e entrei no
governo Fernando Henrique. Na minha avaliação, o PT mudou muito do
começo até agora. É óbvio, todo mundo vê. O PT dos primeiros anos tinha
uma utopia extremamente generosa, que eu acho que se mantém na cabeça
de muitos petistas.
O PT foi criado em 1980, nove anos antes da queda do muro de Berlim,
e grande número dos petistas acreditava verdadeiramente no socialismo.
O choque que todo mundo levou com a queda do muro de Berlim não foi
brincadeira, mas havia um senso de companheirismo que participava de
uma tradição socialista, que queria ser crítica do stalinismo, do getulismo,
do imposto sindical, do estatismo. Quer dizer, o PT nas origens estava no
limite de um partido de socialismo libertário. Ocorre que nós temos eleições
no país, e a campanha eleitoral é a competitividade individual levada ao ex-
tremo. Na campanha eleitoral, pelo menos nos quadros das leis brasileiras, o
que importa é a figura do candidato; o partido aparece se for conveniente. Se
não for, nem aparece. O candidato, sobretudo, está disputando votos com o

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companheiro dele de partido mais próximo em ideias, porque, por exemplo,
se eu sou professor, vou buscar votos nas pessoas que foram meus alunos, do
mesmo modo o meu colega do partido que tem ideias semelhantes.

Foi isso o que aconteceu na eleição em que o senhor se candidatou ao


mesmo tempo que o Florestan Fernandes?
Essa eleição é bem um exemplo disso que eu estou dizendo. O professora-
do de São Paulo não aguentava ter dois ou três candidatos, só podia ter um!
Agora, quem vai, vai, e quem não vai? Isso não é apenas em relação ao PT, é
em relação a qualquer partido. No Brasil, a competitividade individual é tre-
menda, não há companheirismo que aguente. O que estou querendo sugerir
é que o clima do PT foi mudando de um clima de movimento de resistência
democrática para um clima cada vez mais próximo, em certos momentos, que
eram sobretudo os momentos eleitorais, daquele “cada um por si e Deus por
todos’’. Então chega um certo momento em que você vai perdendo a ener-
gia, a não ser que você seja um político casca-grossa, firme, ou tenha uma
vontade política muito mais consistente: vai e toca de qualquer jeito, tenta
superar as dificuldades e mudar a situação. Se você não está a fim de tudo
isso, chega um momento em que você pensa: “O que eu vim fazer aqui?” A
motivação para que você participe de um partido tipo o Socialista é que você
tenha a ilusão ou a utopia de que algo se está fazendo pela coletividade. Aí
você chega nesse momento... A imagem não fica, não junta uma coisa com
a outra, fica inconsistente.
Eu, pessoalmente, tinha uma ligação muito pessoal com o Lula e uma
ligação pessoal muito mais antiga com o Fernando Henrique. Eu fui aluno
do Fernando Henrique, trabalhei com ele no Chile durante muito tempo.
Para mim, são dois tipos inteligentíssimos, os dois! Duas figuras notáveis da
história brasileira, ponto. Isso para mim é o que importa. Quanto ao mais, eu
gosto deles. Bom, a coisa é a seguinte: provavelmente vale a pena lutar para
se manter num partido para quem quer. Eu não queria tanto.

Como o senhor vê os três instrumentos da Lei Rouanet: a renúncia fiscal,


o Ficart e o Fundo Nacional de Cultura?
O Ficart eu nunca vi aplicado, mas, em todo caso, é uma abertura para par-
cerias com empresas privadas, possibilidade de uma entrada no mercado da
cultura. Eu acho que sem fundo de cultura e sem o incentivo fiscal não existe

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política de cultura. Tem que ter os dois. Se só tiver a dedução fiscal, vai ter muito
mais política de cultura para o eixo Rio–São Paulo do que para o resto do Brasil,
porque 80% dos benefícios fiscais ficam na região que tem maior mercado. Se
só tiver o fundo de cultura, se criará um pequeno gueto e, no correr do tempo,
haverá uma triste distribuição de minguados recursos para os amigos de chope.
Não é sério. A melhor coisa a fazer é tentar aprimorar os mecanismos de um
lado e de outro, democratizar, abrir mais e, sobretudo, conseguir mais recursos.
Muito dessa polêmica entre dedução fiscal de um lado e fundo de cultura do
outro vem da discussão da margem, da marginália do orçamento, do pessoal
que ficou com zero vírgula zero não sei quanto do orçamento. Tem que haver
uma significação financeira maior, para que essa discussão seja mais produti-
va, criar políticas para realmente fazer com que o Estado tenha capacidade de
estimular o mercado. A música popular brasileira, por exemplo, é reconhecida
no mundo todo, mas isso não tem relação com a nossa significação em termos
de mercado. Precisamos ter uma política que jogue isso para o mundo. Os
norte-americanos fazem isso, por que nós não podemos fazer?

A Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual são mais voltadas para a produção do


que para a distribuição do produto cultural. Como vocês pensaram isso?
Esse é um problema sobretudo para a área do audiovisual. É um tremendo
problema, que está sendo tratado mais pela Agência Nacional do Cinema, a
Ancine. Do jeito que a lei está definida, o filme se paga na produção e, sendo
assim, o estímulo do produtor para jogar o filme ao mercado é menor. Ele
praticamente não tem risco, mas nunca deixará de ser um produtor medío-
cre. Se o Brasil quer ter uma indústria de cinema, e pelo jeito parece querer,
porque já tem cem anos que insiste, nós precisamos nos comprometer com o
mercado. Isso não significa tirar o Estado, porque quando as pessoas falam em
mercado, pensam logo em anti-Estado. Acho que precisamos de uma política
de Estado que permita uma audácia de mercado real. Houve uma acomodação
na área da produção cinematográfica, não no campo artístico, mas do ponto
de vista econômico. O produtor faz o filme, que tem uma circulação medíocre,
e o Estado está com a consciência tranquila, porque financiou a produção.

Mas houve um grande foco no cinema durante a sua gestão no Ministério


da Cultura, com a Lei do Audiovisual se fortalecendo, com grande parte
do incentivo fiscal indo para essa área.

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O cinema sempre foi uma preocupação da política de cultura do Brasil,
desde o período do Juscelino. O período militar teve um cinema expressivo
para as condições brasileiras. Depois ele cai e começa e ser recuperado no
governo Itamar. Na minha opinião, há um problema de falta de política de
mercado. Na Argentina, por exemplo, o público de cinema é maior que no
Brasil. Não é porque eles são mais ricos, pelo contrário: para a miséria dos
argentinos, hoje eles são mais pobres. Então eu acho que precisamos discutir
essas políticas com clareza, com franqueza.

Como o senhor avalia a sua gestão no ministério, nos oito anos?


Tendo em conta as circunstâncias da política de cultura na época em que
nós chegamos ao governo, nós fizemos muito, porque o Collor deixou a terra
arrasada. Essa que é a verdade. As heranças positivas eram a Lei Rouanet, do
Collor, e a Lei do Cinema, do Itamar. Era isso que nós tínhamos. Muito do
que foi feito de lá para cá fomos nós que começamos. Algumas coisas vinham
de antes, por exemplo, o projeto de banda de música. Não sei se alguém dá
atenção, se alguém acha que isso é importante, eu acho importantíssimo. Esse
projeto começou na Funarte, em 1974, e é um kit de banda de música que o
poder público distribui nas cidades do interior. Isso é importantíssimo, porque
é uma maneira pela qual a garotada aprende música, aprende a ler partitura,
e é uma coisa fantástica você ver uma banda de música, especialmente nas
cidades de interior. O projeto Monumenta também foi uma negociação da
minha gestão no Ministério da Cultura, de recuperação do patrimônio histó-
rico. Logo no início da gestão, nós entramos com muita força no patrimônio.
Realizamos um bocado de coisa, ainda assim há muito o que fazer. A crítica
mais fácil no Brasil é dizer que o sujeito não fez tudo o que devia ter feito. Bem,
geralmente ele não faz nem tudo que queria. E isso não é só na cultura: é na
economia, na presidência da República. O Brasil é enorme e tem necessidades
seculares. A minha sensação é de ter conseguido superar o patamar inicial de
onde começamos, que era um buraco deixado pelo Collor, e ter consolidado
um ponto de partida significativo para outras gestões.

Como você tem visto a reforma da Lei Rouanet?


Eu acho que tem que reformar, mas é preciso ir devagar. Vamos assumir
claramente que vamos fazer duas reforminhas nos pontos tal e tal, não vir com
essa zoeira toda, que só serve para inibir os já inibidos empresários brasileiros

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de participar da cultura. Quando eu vejo alguém com autoridade na área do
Ministério da Cultura fazendo críticas à Lei Rouanet, eu imagino quanto dinhei-
ro está deixando de entrar de empresas que poderiam participar da atividade
cultural e ficam inibidas. Deixa eu dizer o seguinte: empresa não participa de
atividade cultural; quem participa é um cidadão que está dentro dela, porque
a empresa que produz pneu de automóvel não está preocupada com cultura.
O objetivo dela é produzir pneu, mas tem um fulano lá dentro que é, por uma
razão qualquer, fanático por cultura. Apesar de ser diretor comercial, quer aju-
dar, e tem a possibilidade de ajudar. Ele é um numa diretoria de 12, vamos dizer.
Então é preciso criar um clima na área do Ministério da Cultura para que essas
pessoas sejam recebidas adequadamente, porque, por exemplo, se você ganha
um prêmio de cultura de alguma empresa e não sai divulgando que ganhou o
prêmio dela, a empresa para de dar o prêmio nos anos seguintes.

Mas cabe ao diretor de marketing julgar o mérito dos projetos?


Não, não cabe julgar mérito nenhum. O diretor de marketing não julga o
mérito de um grande maestro, de uma grande orquestra sinfônica. Não tem
diretor de marketing no mundo capaz disso. Se eu sou produtor cultural e
programo a orquestra sinfônica com o maestro tal, que é um grande maestro,
eu apresento o projeto a um diretor de marketing; se ele quiser, tudo bem,
se não, eu vou procurar outro. Quer dizer, não é o diretor de marketing que
julga. Nós temos que avaliar a capacidade que têm os produtores culturais de
formular projetos que tenham uma tal significação em si, que os marqueteiros
vão brigar entre eles para pegar o projeto.

No seu entendimento, a renúncia fiscal é ou não é dinheiro público?


É dinheiro público, óbvio que é. É dinheiro público que o Estado permite,
na lei atual, que numa parcela, num percentual, seja utilizado para determi-
nada finalidade, mas é dinheiro público, claro que é! É uma renúncia fiscal do
Estado. Ele renuncia captar aquele dinheiro se a empresa for utilizá-lo para
determinada finalidade que o Estado considera pública. O Estado tem um
critério de interesse público para realizar a renúncia, ele define o motivo que o
leva a renunciar aquela parcela, que, aliás, é 4% do imposto a pagar da empresa.
Considere o pacote todo do Brasil, o dinheiro que entra na Receita, que
não é pequeno, o renunciável é até 4%. Se vocês se dedicarem a verificar
o número de empresas que poderia participar desses 4%, são milhares.

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Agora verifique as que efetivamente participam. O problema das políticas
de cultura no Brasil é conquistar empresas para participar do processo
cultural brasileiro por meio da renúncia fiscal, aumentando, portanto,
os recursos que podem ser utilizados para o desenvolvimento cultural. Nós
batalhamos para conseguir o dinheiro do Banco Interamericano de Desenvol-
vimento para a recuperação do patrimônio cultural brasileiro. Um dinheirão,
para as condições brasileiras. Eu estava contente porque achava que nós íamos
aumentar o orçamento, mas não: na cabeça da equipe econômica, o dinheiro
que entrava de empréstimo ano a ano não aumentava o meu teto. Ele entrava
suprindo uma entrada que o tesouro deixava de fazer, ou seja, mesmo dentro
do Estado existe uma ótica segundo a qual a cultura é secundária. Mesmo que
a cultura consiga dinheiro para aumentar o seu próprio orçamento, chega um
momento em que o sujeito acha que tem coisas mais importantes para fazer.

Sobre a relação entre cultura e tecnologia, qual a reflexão que o se-


nhor faz?
Eu entendo que por mais que a atividade cultural tenha sido descuidada
pelo Estado, e creio que vá continuar sendo por muito tempo, o Brasil nunca
deixará de dar atenção à política cultural. Ela envolve uma série de atividades
que desde a independência do Brasil, desde o Império, o Estado considera
importantes. Nós vamos continuar fazendo. E eu acho que um dos principais
aceleradores disso vai ser esse desenvolvimento tecnológico, pelo seu lado
democrático. Logo teremos bibliotecas virtuais se espalhando pelo país todo,
até porque interessa à indústria vender aparelho de computação. Isso é uma
coisa que, por um lado, tem consequências positivas, porque nós vamos abrir
possibilidades de informação cultural para milhões e milhões de pessoas. Por
outro lado, a revolução tecnológica é um fenômeno universal, que vai se dando
em todo o mundo, que ameaça realmente o significado da cultura no mundo,
o desenvolvimento de tudo que você possa imaginar como atividade cultural
no mundo. Eu não sei o que vem por aí. Eu acho que isso tudo significa uma
revalorização da cultura. Vou mais longe: uma revalorização da tradição, por-
que as pessoas se assustam. As pessoas precisam ter um pé no chão, precisam
ter um senso de identidade, não precisa ser identidade nacional, precisa ser
um senso de identidade cultural de algum tipo. As pessoas não são átomos
soltos no espaço. Essa grande revolução tecnológica, pelo bem e pelo mal,
vai acabar resultando em mais desenvolvimento cultural.

43
44
Alfredo
Manevy
Secretário Executivo do Ministério da Cultura.

O que é diversidade cultural?


Diversidade cultural é um espaço de convivência da diferença, das alter-
nativas, das diversas formas culturais que fazem o Brasil. É um conceito que a
ONU (Organização das Nações Unidas) e a UNESCO (Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) vêm trabalhando no plano
internacional. A teoria da cultura usa muito essa expressão, mas, no caso do
Brasil, ela tem uma conotação política muito forte e muito poderosa, que é
o reconhecimento de que a nossa diversidade, que as diversas expressões
artísticas, culturais, das diversas regiões do país são uma força e não uma
fraqueza. Parece pouco dizer isso, mas eu acho que é muito significativo
lembrar que, há trinta anos, os governos militares viam a diversidade cultural
como uma ameaça, como um perigo de dispersão territorial. Havia a preocu-
pação que essa diversidade causasse a dispersão de uma visão de Brasil, de
uma identidade que queria se criar de cima para baixo. E isso correspondia
a conceitos e valores não só de quem estava no poder, mas de uma parcela
grande da sociedade brasileira, que tinha vergonha da sua herança indígena
e africana. Um complexo colonial que sufocava – e sufoca, podemos dizer
ainda –, em certos setores da sociedade, a percepção de que essa diversidade
é uma grande força, uma grande riqueza e um grande potencial do Brasil.

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Não há um continente no mundo que não tenha deixado uma marca mui-
to forte de aporte linguístico, cultural, simbólico, na formação da sociedade
brasileira. E todo esse amálgama e essa constituição são diversidade cultural.
Do ponto de vista de política pública, o conceito de diversidade cultural é um
ponto de partida muito importante. Com ele, o Estado brasileiro deixa de ser
o vilão da história, aquele que atrapalhava, que vinha atrás perseguir, e passa
a ser proativo, reconhecedor e apoiador dessa força.

O que foi a Convenção da Diversidade Cultural?


A Convenção da Diversidade Cultural, promovida por diversos países que
compõem a UNESCO, do sistema ONU, está para a cultura assim como o Pro-
tocolo de Kyoto está para o meio ambiente. Na globalização e na liberalização
econômica, que está num estágio muito avançado no mundo, a tendência é a
produção de uma homogeneidade de valores e de cultura pela circulação de
mercadoria. Quem tem mais força econômica, tem mais poder de impor sua
própria cultura para o consumo de outros países. Então, a tendência é ter-se
poucos países produtores e muitos países consumidores de bens culturais. Só
que bem cultural não pode ser tratado como sapato, como geladeira, como
automóvel, como uma outra mercadoria que participa dessa globalização
econômica. Um bem cultural diz respeito aos valores, às identidades, às tra-
dições, aos pensamentos das sociedades.
Essa convenção da UNESCO busca justamente resguardar o direito de cada
país utilizar mecanismos de regulação econômica e jurídica para garantir o
desenvolvimento dos seus mercados culturais e o acesso à cultura. E vai além,
porque essa convenção não é só nacionalista. Há nela a preocupação de mostrar
que é uma obrigação dos Estados, em relação a toda humanidade, preservar
essa diversidade cultural, que eles têm direitos e deveres. E o Brasil teve um
papel muito importante nesse processo. Gilberto Gil, o ex-ministro da Cultura,
por ser um grande nome da cultura brasileira e mundial, usou muito da sua
força simbólica para botar o Brasil, na reta final, como um dos países líderes
dessa negociação. O Brasil e o Canadá tiveram um papel moderador, político,
essencial nessa arena internacional. Houve um momento em que alguns países,
como os Estados Unidos e Israel, não queriam assinar a convenção, e outros
países, como a França, estavam preocupados em trabalhar a exceção cultural,
utilizar a convenção para fortalecer uma política protecionista. O Brasil teve um
papel muito importante na efetivação da Convenção da Diversidade Cultural.

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Você considera o resultado final satisfatório?
É só um primeiro passo, porque a Convenção da Diversidade Cultural é
um documento político. É um acordo muito importante, mas precisa de ser
implementado e assegurado. É preocupante que, em função da alternância
natural de poder, muitos países que apoiaram essa convenção passaram,
depois que trocaram de governo, a não ver com bons olhos esses tratados
assinados e mudaram as suas políticas, reorientaram suas posições. Hoje os
países do hemisfério norte estão se unindo para propor a ideia de que o mais
importante dessa convenção é o fundo de apoio à diversidade cultural. Isso
se tornaria uma espécie de FMI (Fundo Monetário Internacional) da cultura,
algo que eu não vejo com bons olhos. A grande força dessa convenção é o
poder regulatório, de colocar regras e estimular os estados-nação, os gover-
nos, a exercer políticas culturais. Esta é a força da Convenção da Diversidade
Cultural: transformá-la num pequeno fundo para distribuir remessas de re-
curso para projetos de países pobres. É um modelo que volta ao passado. É
uma tentativa de esvaziar essa convenção. Estamos vigilantes, muitos países
têm observatórios da convenção, mas não podemos esperar a catástrofe que
aconteceu com o meio ambiente para que a sociedade ganhe lucidez. Espero
que, na cultura, a gente consiga se antecipar ao momento de catástrofe, que
seria a perda de mais línguas indígenas, num ritmo mais acelerado do que
o que temos visto no século passado, o fim de industriais culturais em paí-
ses emergentes, de cinematografias, como o fim da Cinecittá, na Itália, por
exemplo. A Itália não tem um cinema tão pungente quanto o dos anos 1960,
e isso se deve à falta de políticas, de estratégias de Estado em mercado e de
diversidade cultural, para criar espaços culturais autônomos, independentes.

O que é o Plano Nacional de Cultura?


A política pública de cultura no Brasil nunca foi pensada como uma po-
lítica estratégica de Estado. Em alguns períodos do Brasil, no século XX, o
Estado tinha uma relação com a cultura, mas o objetivo era criar totens de
identidade, se associar, capitalizar uma relação com certos artistas, fomentar
alguns, excluir outros, e censurar, cooptar uma relação. Claro que eu não
posso deixar de reconhecer que, por exemplo, no Estado do Getúlio Vargas,
quando Mário de Andrade trabalhou com o ministro Gustavo Capanema, foi
criado o IPHAN, o primeiro serviço de patrimônio histórico do país. Mas isso
foi num momento de exceção. Com a redemocratização do país, saímos do

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binômio de um Estado presente, mas autoritário, para um Estado democrático,
porém ausente. Na Nova República, o Estado se democratiza, mas as princi-
pais instituições culturais, como a Embrafilme e a Funarte, são eliminadas
do arcabouço institucional. O próprio Ministério da Cultura é criado, depois
desaparece, e volta a ser criado. Não há, de fato, uma percepção no Estado
moderno brasileiro de que a cultura é um direito e uma necessidade básica
da população. Ela é vista quase como uma esmola, que tem que ser dada para
os artistas e produtores, que vão lá pressionar, que causam um incômodo.
Política cultural no Brasil, até pouco tempo atrás, era somente uma reação
à pressão de certos setores mais organizados da cultura, que conseguem se
organizar, pressionar o Estado e retirar algum dividendo. As leis de incentivo
refletem muito essa visão, a de um Estado que não quer se responsabilizar e
formular políticas. Então, ele passa dinheiro da forma menos compromissada
que existe, que é o incentivo fiscal: o dinheiro não passa pelo Estado, é retirado
antes de entrar, via arrecadação de imposto.
O Plano Nacional de Cultura é a expressão de um terceiro momento, de um
Estado democrático, porém republicano, que se relaciona e que tem um papel
na cultura. O Plano Nacional de Cultura visa estabelecer indicadores e fixar
metas de dez anos, para que a política cultural possa pactuar bases comuns
que transcendam oscilações políticas, mudanças de presidente e ministros da
Cultura. A educação já tem o Plano Nacional de Educação. Um plano é muito
importante, é um indicador de Estado, permite que a sociedade se organize
para cobrar as políticas públicas. Eu defendo que o plano de cultura tenha
metas para o Estado e metas para o mercado também, porque o mercado
tem que ter indicadores de investimento e de participação nesse processo.

Como pensar uma política que junte as urgências da área cultural, para,
como você disse, evitar as catástrofes, com estratégias de longo prazo?
O Brasil careceu e carece ainda de pensamento estratégico. Como socieda-
de, ainda estamos nos organizando para constituir estratégias consistentes de
afirmação de aspectos potenciais da nação e da sociedade. O que a China está
fazendo com animação, por exemplo, mostra o que é ter uma estratégia. Em
dez anos, a China quer ser o terceiro maior produtor de animação do mundo.
Eles fizeram uma análise e perceberam que são frágeis em software e profis-
sionais na área, mas possuem uma tradição cultural forte, além de excelência
em escolas de belas artes. Então, eles desenharam um diagnóstico do que

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eles tinham, do que eles não tinham, e começaram a promover migração de
cérebros dos Estados Unidos, de talentos da Índia, onde o software é ênfase, e
já estão começando a produzir. O Brasil tem uma animação de primeiríssima
qualidade. Há grandes talentos, que até pouco tempo atrás se expressavam
só pelo curta-metragem. Agora, grandes nomes da animação brasileira estão
indo para Hollywood. Então, tem que ter estratégia para manter os talentos
no Brasil, e fazer da força da cultura brasileira, que é reconhecida no mundo
inteiro, uma estratégia de constituição de um campo. O que o Ministério da
Cultura vem defendendo é isso, que é preciso trabalhar no longo prazo, é
preciso que o Estado tenha um papel fundamental nessa constituição desse
campo. O Estado não substitui a sociedade; quem faz cultura é a sociedade,
não é o Estado, mas ele cria as bases para a sociedade poder deslanchar e
potencializar tudo que está aí presente.

As livrarias, as videolocadoras, por exemplo, não são apenas espaços co-


merciais, mas também aparelhos culturais que estão enfrentando grande
dificuldade de sobrevivência. Como evitar que fechem ou estimular a
abertura de outros espaços?
Com políticas públicas. É preciso ter políticas públicas em consórcio com
o mercado. Agora, o mercado cultural tem que amadurecer no Brasil. Há uma
desconfiança do Estado, há um imediatismo. Eu acredito muito em estratégia,
mas o mercado cultural brasileiro é feito para poucos. É tudo para as parcelas
A e B da população. O mercado não tem políticas promocionais para as classes
C, D e E, salvo honrosas exceções. A TV a cabo ocupa uma faixa banal do mer-
cado: não passa de dez milhões de brasileiros. Na Argentina, um país vizinho,
a TV a cabo atinge metade da população. O mercado brasileiro é tímido, é
tacanho, é para poucos, e são raros os setores que topam pensar estrategica-
mente, fazer propostas, se abrir para um debate maduro de construção de
parceria Estado-mercado. Em outras áreas da economia brasileira se vê essa
parceria, como siderurgia e agronegócio, mas a economia da cultura é tímida,
não consegue se estruturar numa estratégia, tem muitos monopólios, cartéis,
e quem é independente, pequenas e médias empresas, tem dificuldade de se
estruturar. O que o atual Ministério da Cultura vem fazendo é reconhecer a
economia da cultura como uma economia de estratégia.
O Estado tem que se aliar a esse potencial da economia da cultura, e não
olhar com desconfiança. Existe uma parcela da esquerda que olha para a

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economia da cultura como um vilão da história, o que é um erro que vem
de lá detrás. É preciso amadurecer. A esquerda moderna tem que olhar para
a economia da cultura como um traço emancipatório e qualificador desse
mercado, não como um inimigo. Não dá para criar uma sociedade alternativa
para os artistas e para os produtores viverem separados da economia real. É
preciso criar, na verdade, um deslocamento para novos modelos de negócios,
uma economia descentralizada, pequenas e microempresas que possam se
desenvolver criando uma economia, desonerando essa cadeia.

Se o país mantiver esse nível de crescimento econômico, provavelmente,


em décadas, nós teremos outras questões culturais, como novas imigra-
ções e a integração com o oceano Pacífico. Como você vê isso?
Você tocou em pontos que são decisivos. Esta é uma demanda do mundo
hoje, em relação ao Brasil: que ele ocupe um papel de destaque internacional.
Há um vazio de lideranças no mundo hoje, com o fim da Guerra Fria e a perda
de credibilidade das lideranças que ainda são hegemônicas economicamente,
mas não conseguem constituir discurso político. A grande contribuição que
Lula deu, do ponto de vista dessa geopolítica internacional, foi ter percebido
isso e colocado o país num patamar que se ajusta à demanda internacional.
É uma questão de não se acanhar, abandonar aquele complexo colonial,
complexo de vira-lata. O momento geopolítico internacional favorece re-
posicionamentos. Então o país não pode ficar olhando para dentro, para o
próprio umbigo, sem se relacionar com os vizinhos. Investir nessa direção
tem sido importante, é preciso criar redes, é preciso criar um mercado co-
mum cultural na América Latina. É a cultura e a política que podem ser o
diferencial da liderança brasileira. O fato do Brasil ser a grande democracia
do BRIC, uma democracia vibrante, com uma forte diversidade cultural in-
terna, diferencia o país da China, por exemplo. O Brasil tem uma mensagem
a dar, uma contribuição a dar no plano cultural, que tem que ser pensada de
maneira estratégica, não pode ser imperialista, no sentido de impor a cultura
brasileira. O Brasil tem que entender seu papel novo no mundo e atuar com
uma responsabilidade de ser parceiro, trabalhar com solidariedade, e não
reproduzir modelos hegemônicos do passado.

Fazendo um balanço, e pensando no futuro, o que é a mudança da Lei Rou-


anet, e o que ainda precisa mudar no financiamento cultural brasileiro?

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A Lei Rouanet completa agora vinte anos e está em processo de mudança.
No momento em que foi criada, a vida cultural brasileira tinha duas opções: ou
a Lei Rouanet ou nada. A Lei Rouanet foi o que se ofereceu para a vida cultural
do país. Uma instituição entrar em crise é normal. Só que na hora em que
se entra em crise, o que você tem que fazer é modernizá-la, não suprimi-la,
porque aquela necessidade, para a qual aquela instituição foi criada, conti-
nua existindo e vai se transformando. A posição política daquele momento,
quando as ideias neoliberais eram muito fortes, no Brasil, na América Latina
e no mundo de modo geral, era a de que o Estado não tinha papel na cultura,
não cabia ter orçamentos públicos para a cultura. Pensava-se que cultura não
é parte das tarefas essenciais do Estado brasileiro.
Vinte anos depois, nós fizemos um diagnóstico, e os números falam me-
lhor por si do que qualquer outro comentário mais ideológico ou político que
possa ser feito. Três por cento dos proponentes captaram mais da metade de
todo dinheiro. É uma concentração acintosa. Dos dez mil projetos/ano que
são apresentados ao ministério, só 20% conseguem um patrocinador. O que
eu mais vejo, quando circulo pelo Brasil, são bons projetos debaixo do braço
do artista e do produtor. É o amadorismo, a informalidade, a dependência.
A Lei Rouanet prometia uma relação madura com o setor privado, mas essa
relação não se deu. O que existe hoje, no Brasil, é um modelo excêntrico. Nós
não criamos uma economia da cultura, nem o chamado capitalismo cultural,
que, em tese, a Lei Rouanet prometia. A Lei Rouanet aumentou a dependên-
cia do Estado, travestida de promoção privada. As marcas das empresas que
usaram a Rouanet hoje desfrutam de uma imagem, na sociedade brasileira,
que eu diria muito positiva. E eu não tenho dúvida que a Lei Rouanet fez isso.
O problema é que as pessoas não sabem que esse dinheiro é público, que não
há dinheiro dessas empresas na cultura. E é aí que a Lei Rouanet fracassou.
Ela é 95% de dinheiro público e só 5% de dinheiro dessas marcas privadas. E
se é o contribuinte quem está bancando, o dinheiro não pode ser distribuído
dessa maneira, com essa concentração tão absurda.

Isso significa então, no plano da análise, que, de todos os modelos de


privatização, a renúncia fiscal foi a mais radical.
Sem dúvida. Dentro de todos os modelos de privatização, ou de eliminação,
supressão institucional do Estado brasileiro, a cultura foi submetida a um teste
de laboratório. E isso trouxe consequências que desorganizaram o campo cul-

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tural brasileiro de maneira profunda. Quando eu digo desorganizaram, é que
o empresário cultural que existia nos anos 1970, criativo, que assumia o risco
e construía processos culturais, deixou de existir e foi substituído pela figura
do captador, que é uma nova forma edulcorada de chamar o dependente do
Estado brasileiro. Eliminamos a figura do empresário, eliminamos a figura do
risco. O risco é um conceito tão importante para o empreendimento quanto
para a arte. Então, por consequência, também eliminamos o risco no campo
simbólico, porque eliminamos a relação com o público, que é uma relação
tensa e saudável. A Lei Rouanet absolve a arte da relação com o seu público
e elimina a circulação social. Ela realmente diminuiu a esfera pública na qual
a arte circula, é pensada e é interpretada. Ela engana, ao colocar marca pri-
vada com dinheiro público; ela concentra, na medida em que é muito difícil
de captar; e ela constrange, na medida em que artistas precisam adequar
seus trabalhos aos interesses do marketing das empresas. A arte não pode
ser higienizada.

O que mudou então?


O Procultura, que é o nome do projeto de reforma da Lei Rouanet que o
Ministério do Governo Lula mandou para o Congresso, depois de uma consulta
pública, diversifica os mecanismos de apoio ao artista. O projeto entra no
Ministério da Cultura, recebe um parecer técnico e, sendo aprovado, recebe
o dinheiro. É simplesmente isso que muda.

Uma questão central é a necessidade de desburocratização da arte.


Quais são os instrumentos possíveis para manter um controle da res-
ponsabilidade com o recurso público, mas permitir que ela, inclusive,
corra os seus riscos e reinvente os seus processos? Como não engessar
o processo de criação?
O Estado tem que saber diferenciar o papel da subvenção pública nesse
processo. Existem projetos que têm que ter empréstimo, financiamento ou
coprodução. A coprodução permite participar da receita de um projeto e
retroalimentar um fundo público que estaria por trás desses apoios diretos
aos artistas. É preciso reinventar a figura do empreendedor cultural no Brasil.
Ao olhar para a história do tropicalismo e do Cinema Novo, percebe-se que
tinha empreendedores inventivos por trás. O produtor é uma figura decisiva
nesse processo, ele percebe o talento e é capaz de gerar o processo cultural.

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Então, o Estado tem que entender que o seu papel é criar as condições para
que esse produtor possa trabalhar de forma inventiva. E, para desburocratizar,
acho que é preciso aumentar o mercado cultural brasileiro. Nesse sentido,
o ministério defende, em primeira instância, o acesso à cultura como uma
política de cidadania, de qualificação da cidadania. No Brasil, os números são
muito ruins. Em torno de 90% da população, segundo o IBGE, não acessam
cinema, teatro, livro, livraria etc. Então, um projeto como o Vale-Cultura visa
incorporar em torno de 14 milhões de pessoas na economia da cultura no
país. É a primeira política cultural que tira o seu foco da subvenção ao artista,
para ampliar plateias e criar uma economia. No momento atual, se você qui-
ser entrar no mercado e trabalhar para os 8% da população que consomem
cultura, vai ter que bater na porta do Estado em algum momento, porque
não terá como se bancar. O espaço é muito restrito. Então, é decisivo quando
o Ministério da Cultura chama para si a responsabilidade de universalizar o
acesso, em projetos concretos como o Vale-Cultura. E também desburocra-
tizar os processos. Na reforma da Lei Rouanet, uma das metas é modernizar
a gestão pública, justamente para esvaziar a figura dos intermediários. Para
isso, propomos transparência, acesso e um processo mais dinâmico.

Como o ministério está trabalhando a relação da cultura com a edu-


cação?
O Ministério da Educação criou um catálogo de cursos do ensino técnico,
superior e mestrado profissionalizantes. Esse documento é uma base importan-
te de informações para descobrirmos os gargalos e trabalharmos para induzir
as instituições de ensino a sanar esses espaços. Se precisamos, em cinco anos,
ter cenografistas, técnicos de som, produtores culturais, gestores públicos,
especialistas em linguagem crítica, todos os elos têm que ser contemplados.
Isso é uma política para capacitação cultural. E o Ministério da Educação tem
clareza que ele precisa fazer esse trabalho em parceria com o Ministério da
Cultura, porque tem certas expertises importantes de serem contempladas.

Como estimular a reflexão crítica sobre a produção cultural?


A crítica cultural tem um papel decisivo na cadeia criativa da cultura. Tem
um papel de qualificar os processos, de gerar espaços de reflexão e o ama-
durecimento estético dos processos culturais. Minha relação com a política
pública se deve ao fato de que eu comecei a trabalhar com cinema no final

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dos anos 1990, que era um momento muito difícil para o cinema brasileiro.
Era difícil pensar em fazer cinema sem esbarrar em questões estruturais muito
profundas do campo. Isso me atraiu muito para a política pública, porque eu
vi que daquele jeito a gente ia ficar muito isolado num gueto de produção.
Isolado da sociedade e da reflexão também. E, naquele momento, também
percebi que a reflexão cultural tem um papel muito importante para evitar
o corporativismo, que é um mal da forma política como a cultura brasileira
se organiza para demandar, seja diante do Estado ou diante da sociedade. O
costume é passar a mão na cabeça em nome da afirmação. É claro que eu
entendo que, depois de um vazio que foi o período do Fernando Collor de
Mello, o período do Fernando Henrique Cardoso, o setor tenha cerrado filei-
ras para defender a necessidade da cultura brasileira, mas não houve uma
visão estratégica de incorporar uma visão independente do que estava sendo
feito. O Brasil tem que desenvolver instituições independentes que consigam
produzir a esfera pública, porque é ela que qualifica o artista nesse processo
de debate. Todos os grandes momentos da arte brasileira estavam misturados
a um processo de debates de ideias e de arejamento extraordinário. O papel
do Estado nesse processo, e a gente defende isso no Ministério da Cultura, é
fomentar essa crítica, criar espaços de autonomia desse pensamento crítico,
com encontros, com periódicos, com publicações. Agora, no novo Fundo
Nacional de Cultura, que é parte do Procultura, existirá um mecanismo de
apoio para a crítica. A cultura e a arte brasileira são de imensa qualidade. A
gente não pode arriscar perder força e dinamismo por um espírito de prote-
cionismo, que não combina com a inovação.

Quais são as prioridades para a política cultural na próxima década?


Muita coisa. A língua portuguesa, por exemplo, é estratégica. A língua
portuguesa é o terreno no qual a gente vai navegar, é preciso zelar por isso. A
França tem política para o francês, a Espanha tem uma política para o espa-
nhol. Muito agressiva, aliás. O Brasil tem que ter uma política para a língua
portuguesa, feita em conjunto com os países da África, feita com Portugal,
e feita com muita clareza de propósitos, para se fortalecer. Perceber que a
música, a televisão e a literatura são grandes difusores da língua portuguesa
no mundo inteiro. O Brasil tem que propor isso, e tem que ser algo feito pela
cultura, pela educação e pelo Itamaraty, juntos. Isso é um tema que eu acho
decisivo para esse processo.

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Na área de internet, da banda larga, a gente precisa ter uma política para
os conteúdos digitais, no sentido de criar polos de inovação, polos criativos
de uploads de conteúdos culturais, para enriquecer a rede e ser o contrapeso
da universalização da banda larga. Porque não adianta universalizar o serviço
de conexão se a sociedade não está com todas as condições de trabalho, de
ferramentas, de debate e de fluxos culturais para fazer o uso pleno dessas
novas ferramentas. E tem a economia da cultura também. O Ministério da
Cultura, nesses últimos oito anos, afirmou essa agenda no Brasil.
O ministério abriu uma relação inovadora com o BNDES, que criou um
departamento para a economia da cultura com a PECS, fez os estudos com
o IBGE, ensaiou movimentos com a moda, com os jogos eletrônicos. Tudo
isso é positivo. Agora, está na hora de ter uma política para a economia da
cultura, percebendo que a universalização do acesso, combinada com uma
política para pequenas e médias empresas culturais, contribuirá com um
sistema de inovação, onde cultura, ciência e tecnologia estarão juntos. Essa é
a grande tarefa, é uma onda que o Brasil não pode perder, porque a gente tem
um grande potencial. Para o Brasil não ser somente um país agroexportador
daqui a 50 anos, e depender desse modelo de economia, temos que pegar
carona nesse momento, ter lucidez de afirmar esse terreno da economia da
cultura como algo estratégico. É preciso, para isso, enfrentar alguns donos de
terrenos, donos da bola, que tem aí na cultura brasileira e que não querem se
modernizar. É um debate tem que ser feito. Tem que abrir essas caixas pretas
e ter um arejamento, o Estado precisa ter políticas de capacitação, formação,
apoio a esses núcleos, potencializar essa economia da cultura, assim como os
americanos fizeram no início do século XX, quando o Estado entrou e criou
Hollywood, botou bases para que aquelas nascentes companhias pudessem
se desenvolver. Aquilo foi o modelo americano, eu acho que o modelo brasi-
leiro não vai ser esse, de um cartel de empresas dominando o mercado. Pelo
menos, não é isso que a gente quer. Acredito numa economia descentralizada,
horizontal, valorizando os artistas e produtores, o direito autoral, o direito
de acesso à cultura, e tudo isso bem harmonizado. Não precisamos imitar
nenhum outro modelo.

55
56
José
Luiz
Herencia
Secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura.

Na perspectiva desse segundo mandato do governo Lula, como se dá a


estruturação das políticas culturais?
A estruturação se dá, em primeiro lugar, através da criação de um campo
de atuação política, com consequências dentro do universo das artes e da
cultura. O ministério que foi encontrado pelos meus colegas, que começaram
a trabalhar quando o presidente Lula assumiu, era um Ministério da Cultura à
míngua, que praticamente não existia. Então, quem quisesse achar o Ministé-
rio da Cultura até 2003 não encontrava nada, a não ser um balcão clientelista
que dava acesso a alguns poucos artistas, apesar de muito conhecidos, e com
trabalhos muitas vezes fabulosos. Alguns desses artistas, inclusive, tinham
sala dentro do próprio ministério. Essa é uma informação de bastidores, que
é muito grave, mas também muito reveladora no nosso entendimento. Hoje, o
ministério é uma coisa totalmente diversa. É uma instituição que desenvolveu
instrumentos essenciais de planejamento e que, por isso, conseguiu ter, em
2010, um orçamento que garante que tudo que foi formulado ao longo desses
anos possa ser traduzido em ações concretas para os artistas e produtores
culturais, sob forma de investimentos no desenvolvimento cultural do país.
E não como gastos clientelistas, ou que não se traduziriam em ações com
sequência e consequência para esse desenvolvimento. Então, o que a gente

57
entende por política cultural, na verdade, é um conjunto de políticas, de
programas e de ações, que tem sequência e consequência na vida do país. A
visibilidade que o Ministério da Cultura tem hoje é, na verdade, um sintoma
de uma recomposição, de uma reconfiguração de todo o campo das artes, da
cultura e da relação do Estado com a sociedade. Não é mais uma relação de
sociedade contra Estado, num velho mote do nosso querido Pierre Clastres.
Não é nem Estado mínimo, característico dos anos 90, nem o Estado máximo,
que interferia no conteúdo das políticas culturais, característico do período
militar. É um estado democrático, consciente das suas responsabilidades, e
disposto a construir ações, programas e políticas para todos os setores, da
moda ao design, da poesia à arquitetura, em parceria, em colaboração com
os artistas e com os produtores culturais.

Qual é a concepção de cultura desse ministério?


Em primeiro lugar, se o ministério e o setor cultural conseguiram avançar
ao longo desses anos, foi numa ampliação, num aprofundamento do que se
entende por cultura. A partir de 2003, se passou a adotar como conceito de
cultura o que normalmente a gente classifica como conceito antropológico.
Cultura é tudo aquilo que tenha digital humano, em qualquer atividade. E, nesse
sentido, a moda, apesar de ser uma indústria, constituída como tal, e até muito
recentemente, do ponto de vista das políticas públicas, restrita ao Ministério
do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, passou a ser entendida como um
território de atuação humana muito marcante. E, portanto, com consequên-
cias muito claras para a vida cultural do país. A gastronomia, a arquitetura e
o design, que também sempre orbitaram em torno da questão industrial, da
reprodutibilidade técnica de obras, e que tinha muito conceito e muita cultura
por detrás, foram se aproximando, o ministério foi trazendo essas áreas para
o seu campo gravitacional. Atraiu também as chamadas culturas populares,
que é um conceito em debate, algo que a gente agora está precisando apro-
fundar cada vez mais. Isso sem esquecer o atendimento daquelas categorias
mais tradicionais, ou que se relacionavam de forma mais tradicional com o
governo, que são as chamadas belas artes: música, artes cênicas, literatura, artes
visuais, áudiovisual. Esse é o território tradicional de atuação do Ministério da
Cultura. O Ministério, do ponto de vista da organização do seu pensamento,
da organização do seu discurso, fala muito das três dimensões: a dimensão
simbólica, a da cultura como cidadania e a da cultura como economia.

58
Agora, no meu ponto de vista – e aqui eu vou radicalizar um pouco alguns
fundamentos do nosso próprio discurso, porque eu acho que a gente está
num momento de debater as nossas próprias premissas –, é preciso entender
que cultura não é necessariamente algo bom. Eu acho que todos lembram de
uma frase do Stockhausen, quando os companheiros de Bin Laden invadiram
as torres gêmeas, e ele disse que a aquela era talvez a maior obra de arte da
história. Radicalizando o entendimento antropológico da cultura, é preciso
pensar que isso tudo faz parte da cultura, todas as belezas e todas as tragédias
da experiência, da saga humana sobre o mundo, da digital humana sobre o
mundo. Então, o que me preocupa, quando a gente acentua, talvez de forma
um pouco irrefletida, a importância e a abrangência do conceito de cultura, é
que a gente comece adotar uma ideia de cultura como o reino das belas posi-
tividades. É preciso pensar e incorporar outras questões, como, por exemplo,
a violência, a própria saúde, ou outros âmbitos de preocupação, para dentro
do horizonte do pensamento cultural. Nós viemos de um ciclo de afirmação
da cultura como algo maior do que uma relação estreita entre classe política
e artistas de territórios muito específicos, mas é preciso também ampliar esse
debate, e começar a trazer questões mais complexas e mais duras, que as
pessoas têm muito pudor de debater. A cultura não é apenas o território das
positividades. É também o lugar onde se dão debates muito difíceis, e onde
existe violência simbólica. Isso é importante.

Uma questão bastante discutida é a da burocratização da cultura por


meio dos processos de produção que estão sendo criados, e que vem muito
de uma política de desconfiança, de ter que mostrar o que se produziu,
e como se produziu. Como lidar com isso?
O Estado brasileiro é burocrático, e não é de uma burocracia weberiana, va-
mos dizer assim. É um Estado em que a construção de processos intermediários
de apresentação e justificação do que precisa ser feito se prestam muito para
o pensamento conservador. Não é preciso ter lido Sérgio Buarque de Holanda
ou Raymundo Faoro para perceber que o Estado brasileiro se constitui como
uma dificuldade para o desenvolvimento do país, e dificuldade nesse sentido.
Debate-se muito a chamada Lei 8.666, e talvez seja o caso de discutir isso aqui
também. Ao longo dos anos 90, se permitiu supostamente para o território do
mercado, ou da iniciativa privada, das empresas, e dos artistas, todas as faci-
lidades no uso do dinheiro público, e o Estado, ao se desrresponsabilizar de

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qualquer competência em relação à cultura, ficou com todas as dificuldades.
Então, hoje, quando se fala em Lei Rouanet, é preciso pensar que todo custo
econômico da operação de incentivo fiscal fica por conta do Estado, mas quando
ele mesmo precisa investir e fazer o dinheiro público chegar a um grupo cultu-
ral, não encontra nenhuma das facilidades. Quando eu debato com produtores
culturais, eles falam que a lei de incentivo fiscal é extremamente burocrática,
que é muito difícil usar a Lei Rouanet. É triste dizer isso, mas é muito mais fácil
para o produtor cultural do que para o próprio Estado. Se quisermos apoiar um
grupo de cultura, como um teatro de rua ou uma ópera, dentro de uma política
de apoio e estímulo à produção cultural no país, temos que exigir que esse
grupo tenha a capacidade de se estruturar como uma grande empreiteira, e
isso é brutal. Essa é, na verdade, a melhor forma da gente não conseguir fazer
nada. Ou seja, nós estamos hoje tocando na ferida da lei de incentivo, do sis-
tema federal de financiamento à cultura, mas é preciso perceber que existem
questões que vão muito além de uma lei específica e que precisam ser discuti-
das e modificadas. O Estado brasileiro precisa ser reformado, essa é a questão.
Se o Brasil quiser, de fato, se reposicionar numa configuração geopolítica
mundial, como um player, e não como um display numa suposta sociedade
de conhecimento, é preciso que o Estado brasileiro deixe de ser o impeditivo
do desenvolvimento do país. E deixar de ser um entrave não significa não ter
responsabilidade. Pelo contrário, ele precisa assumir a responsabilidade que
tem sobre vários campos, como a cultura, a saúde, o meio ambiente, a educação.
Precisa assumir a regulação e a indução das políticas nesses campos. E precisa
também ter condições de financiar, atuar, fazer o recurso chegar e conseguir
acompanhar a execução daqueles projetos. Hoje, na Secretaria de Fomento
do Ministério de Cultura, tem milhares de projetos cuja prestação de contas
ainda está pendente. Alguns projetos de dois, três anos atrás. O volume é
muito grande. Em 1992, quando a Lei Rouanet foi criada, foram aprovados 10
projetos. Em 2009, foram aprovados 12 mil projetos, e o ministério não cresceu
1.200 vezes. Eu olho aquela sala gigantesca, cheia de projetos e processos acu-
mulados, e me pergunto qual é a importância fiscal daqueles documentos. Em
algum momento o Estado percebeu, ou está percebendo, que é isso que precisa
mudar. A preocupação sobre o acompanhamento desses projetos não deveria
estar na prestação de contas fiscal, porque isso, na verdade, não revela nada, ou
revela muito pouco. É claro que precisa ter uma segurança fiscal, de que aquele
investimento foi feito, mas num grau muito diferenciado do que existe hoje.

60
Quando tivemos uma política cultural confundida, praticamente, com
a renúncia fiscal, nós tivemos o modelo mais radical de privatização de
todo o processo de privatização?
A renúncia fiscal se travestiu de política cultural durante esses 18 anos,
isso é algo que precisa ser enxergado com total clareza. Não existia, até
recentemente, uma política cultural contemporânea no país, existia um
mecanismo de lei de incentivo, que brincou, se fantasiou, de política cultu-
ral. O Estado brasileiro, na sua configuração neoliberal, ao contrário do que
ele preconizava, gerou mais dependência do que qualquer coisa. O risco,
que é tão importante para o negócio quanto para a criação, saiu da atividade
artística. A lei de incentivo não estimula as duas pontas do sistema cultural,
que são, por um lado, o risco, a inovação, e, por outro, as instituições. Elas
também vivem à míngua, e hoje disputam com o produtor cultural um
recurso que é escasso no país inteiro. Hoje, a Pinacoteca do estado de São
Paulo disputa um recurso, dentro da lei de incentivo, com qualquer produtor
cultural do país. Não só a Pinacoteca, mas as nossas principais instituições.
Essas instituições, para existirem, custam muito caro, porque precisam ter
um planejamento e uma perspectiva de longo prazo, que é outra coisa que
a lei de incentivo atual não patrocina sobre nenhuma hipótese. O horizonte
da lei de incentivo é sempre um horizonte humano. O projeto hoje é algo
que tem data de fabricação e prazo validade. Não pode durar mais do que
aquilo. Se durar mais, o cara tem problema de prestação de contas, e a re-
lação com o patrocinador azeda, porque o patrocinador tem que perceber
e aferir as suas conquistas, do ponto de vista de mídia espontânea, de uma
comunicação de marca mais imediata. Então, é um sistema que é medíocre
nesse sentido. Só estimula o médio. No limite, quando o Estado brasileiro
aponta a necessidade de se tratar com clareza esse problema, o que ele está
fazendo é um deslocamento de dinheiro, por um lado, e um deslocamento
de poder político, por outro.

Theodor Adorno dizia não acreditar na sociedade em que as oportuni-


dades não pudessem ser desperdiçadas. Como lidar com o risco, o erro,
o fracasso?
É difícil falar. A gente fica criando categorias discursivas que, às vezes, não
correspondem, não são espelhos da vida, de como as coisas acontecem. Mas
o campo cultural vive hoje numa zona de conforto. Tem um companheiro

61
nosso de debate, por exemplo, que fala que o teatro brasileiro nunca vai dar
dinheiro, que é necessariamente deficitário, e que ninguém vive de bilheteria.
Essa é talvez a frase mais desoladora de se ouvir. O teatro, o cinema, e muitos
outros campos artísticos do Brasil, não conseguiram se definir entre arte e
entretenimento. Portanto não conseguem se definir entre risco, inovação, e
negócio. Não percebem que essas são moedas cambiantes, que é possível gerar
negócio gerando inovação. E que é possível gerar risco onde, normalmente, só
se enxerga a preservação de uma zona de conforto. E esse é, também, o papel
do produtor cultural. Uma coisa que precisa ser debatida é o que aconteceu
com o produtor cultural brasileiro, que sempre foi um instrumento, ou um
elemento, de indução do risco. E que fazia, muitas vezes, com que os artistas
embarcassem no risco e produzissem resultados fantásticos para o cinema,
para a música, para as artes cênicas. Hoje, o produtor funciona quase como
um controle, como um tribunal de contas permanente na cabeça do artista,
sempre zelando para que ele tome muito cuidado, não exagere. O motivo
disso é que eles têm, por detrás deles, um sistema legal de avaliação de pro-
jetos que só aceita a parte fiscal. Não existe comprometimento da produção
cultural com algo diferente da logística do projeto e da prestação de contas.
Isso precisa mudar.

É preciso recuperar esse produtor criativo?


Não sei se é possível recuperar, gostaria que fosse. Acredito que, quando o
Aloysio de Oliveira criava um elenco, ou quando o Hermínio Bello de Carvalho
inventava um programa para a TVE, eles mesmos arcavam com as consequ-
ências felizes ou infelizes, com os resultados. Não estavam ali dependendo de
uma estrutura de preservação e, portando, de conservação. E isso se traduzia
em avanços mais claros para a arte brasileira. Hoje, eu não sinto isso. Vejo o
artista como uma espécie de Verônica vendendo sua cara nas revistas, e o
produtor como uma espécie de superego do artista, repressor, controlador.
O território hoje é de preservação, de conservação da zona de conforto, de
impossibilidade total de risco. E as leis de incentivo financiam tudo, menos o
ócio, a loucura, o delírio, que é fundamental para qualquer sistema. Imagina
o Roberto Piva tendo que prestar contas do Paranoia?

Mas com toda a mudança de paradigma tecnológico, com os processos


colaborativos aparecendo novamente, isso não vai despertar?

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Eu estou aqui hoje fazendo um pouco o papel de crítico de nós mesmos.
Parece que no Brasil, subjacente à formação cultural, existe uma disposição
para formas associativas. Vejo isso muito claramente hoje. Isso está tomando
conta, em alguma medida, da produção cultural. Mas é preciso tomar muito
cuidado com isso também. E esse é um debate que a gente deveria fazer, por
exemplo, em relação aos Pontos de Cultura, que são uma grande rede de
iniciativas da comunidade. Sem querer fazer o exercício de cânone, é preciso
tomar cuidado em relação ao grau de apuro, ou de intensidade de voltagem
estética, do que é produzido nesse universo. E eu sinto certa despreocupação
com o acabamento, com a arte-finalização dos projetos culturais que são
desenvolvidos nessas relações de rede. Como se a rede fosse, por si só, um
produto estético. E a gente sabe que não é. O Gil fala em uma música do disco
Banda Larga Cordel que é preciso tomar muito cuidado, porque você pode
fazer seu samba, mas tem sempre o samba bom e o samba ruim. Isso é uma
coisa que deve estar no foco de atenção de todos nós.

Como fomentar a crítica da produção cultural? Quem são esses agentes


da crítica, e quais são esses espaços?
É um espaço difícil. A internet, talvez, tenha um papel importante nessa
medida. Mesmo porque a gente assiste a uma derrocada supostamente
heroica da crítica nos grandes jornais brasileiros. A crítica se ajustou às nor-
mas que o sistema de financiamento à cultura criaram, virou uma crítica de
evento, de circunstâncias. Uma espécie de grande coluna social, ou de grande
radiografia de aplicação de recursos. Com algumas boas exceções, claro. A
própria reforma editorial que o Estadão fez recentemente é um sinal disso.
Ele criou cadernos de música, de literatura, que não têm exatamente espaço
para a crítica. O sistema de financiamento que não incentiva a inovação,
e que não incentiva as instituições que, de alguma forma, são padrões de
referência, inclusive para o estabelecimento de paradigmas, de parâmetros
para o pensamento crítico, não vai estimular a crítica. Imagina chegar numa
empresa pedindo apoio para editar uma publicação de crítica literária. Você
não vai conseguir, ou vai conseguir de forma totalmente descontinuada. Agora,
por exemplo, está sendo lançado o Fundo Nacional de Cultura, e é preciso
debater em que medida ele deve atender à chamada demanda reprimida do
incentivo fiscal. Aquelas áreas que o incentivo fiscal tradicionalmente não
atinge, porque não se interessa, não faz sentido atingir. E a crítica cultural

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aparece num desses horizontes. Isso cria até uma situação engraçada, que é
ter o Estado estimulando a crítica.

Depois de oito anos de governo, quais são os próximos passos? O que


precisa ser feito?
A questão é anterior, é pensar o que é reversível e o que é irreversível, in-
dependentemente da configuração política que vai ser resultado do processo
eleitoral. Existem algumas coisas que podem ser alteradas, mas tem muitas
coisas irreversíveis. É preciso prestar atenção, porque podem ser tristemente
reversíveis. Irreversível, em primeiro lugar, é a ampliação do entendimento
do campo de atuação do Ministério da Cultura. Não estou falando isso só
por uma questão política, ou político-institucional, é porque isso reflete a
importância que a cultura tem neste momento, em que o grande debate se
dá sobre o desenvolvimento. É interessante pensar que uma boa parte da in-
teligência brasileira se afirmou pela crítica do conceito de desenvolvimento,
ou pela reiteração de determinados conceitos de desenvolvimento. E, hoje,
esse debate está aqui de volta: planejamento, desenvolvimento. Existe uma
falsa polarização entre desenvolvimento e meio ambiente, e a cultura tem
uma contribuição decisiva para dar nesse aspecto. Até porque a própria
capacidade de perceber o meio ambiente é um fator de natureza cultural. O
grande debate tem que se dar em relação ao desenvolvimento com cultura. E
com cultura significa com meio ambiente, com algo que vá além do imediata-
mente tangível, do conceito tradicional de infraestrutura, do que se entende
habitualmente por desenvolvimento econômico.
O reposicionamento do Brasil no mundo depende da afirmação de um
modelo de desenvolvimento que seja novo e não seja retórico. Depende da
percepção de que o desenvolvimento não se dá apenas pelo Pré-Sal, pela
ampliação dos portos, dos aeroportos. Mas que tudo isso, na verdade, são
condições para que a experiência humana de uma sociedade possa se estabe-
lecer num novo patamar, que pode ser exemplar, no melhor dos sentidos, no
mais livre dos sentidos, para a humanidade. A política internacional brasileira,
de certa forma, encarna essa preocupação. Mas não acho que isso se reflete
dentro do país. Se a política interna brasileira se aproximasse mais dessa
perspectiva, daríamos um passo muito largo. Digo, sem medo de errar, que o
que trouxe a Copa do Mundo e as Olimpíadas para o Brasil foi a diversidade
cultural brasileira. E diversidade cultural não é uma coleção de borboletas.

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Não é dizer que aqui tem índios, negros, ciganos. É muito mais sofisticado
do que isso. Tem relação com a predisposição fundamental da sociedade
brasileira em se realizar através de formas associativas, ou em rede. O Brasil
pode ser um elo muito importante numa grande rede de re-humanização,
ou de humanização da política, que passa pela qualificação de modelos de
desenvolvimento, geração de riqueza sob um novo patamar, muito diferente
do que ainda se dá no debate político interno. As conquistas que o Ministé-
rio da Cultura e o Ministério do Meio Ambiente, por exemplo, realizaram ao
longo desses anos, não são conquistas apenas desses órgãos. São sintomas,
reflexos, de um conjunto muito amplo de conquistas da sociedade brasileira,
que está tendo coragem de debater. Tudo está sendo debatido no país. Muitos
têm medo e manifestam esse medo. O que é uma coisa assustadora no nosso
campo: os artistas se tornaram conservadores. Eles, que sempre estiveram à
frente de grandes processos de mudança de ordem comportamental, cultural,
hoje, muitas vezes, são conservadores. Mas, de qualquer forma, estamos num
momento em que tudo está sendo debatido.

Existe um apagamento ou uma diminuição de fronteiras entre as áreas,as


governanças, os ministérios? Existe um exercício de refazer encontros?
É um exercício de desfazer divórcios históricos. Alguns colegas meus
dizem que é preciso criar um Ministério da Arte e acabar com o Ministério
da Cultura. Eu digo que é preciso criar o Ministério da Cultura da Fazenda, o
Ministério da Cultura do Planejamento, o Ministério da Cultura do Desenvol-
vimento, Indústria e Comércio. Vivemos um momento de desfazer algumas
fronteiras históricas, que foram artificialmente construídas por necessidades
institucionais, políticas, de afirmação de diversos campos, mas que não são
mais sustentáveis. Não geraram muitas consequências boas. Geraram, por
exemplo, uma educação totalmente desaculturada, uma cultura desvinculada
de processos educacionais, uma tecnologia que não pensa em conteúdo, uma
organização do setor econômico que não pensa no desenvolvimento social.
Geraram segregações de toda natureza. Acredito que os grandes governan-
tes serão aqueles com capacidade de síntese, e não aqueles que reiteram o
discurso da especialização.

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Márcio
Meirelles
Secretário de Cultura do Governo da Bahia.

Como você vê a cultura baiana?


A Bahia é rica em invenções. O trio elétrico talvez seja o primeiro software
livre. Todo mundo replica, usa, e não tem direito autoral. A invenção não foi
registrada, não tem patente. Na verdade, o carnaval é uma grande invenção
que vai se renovando ano a ano. A história do carnaval é uma história de
invenções, de gestão, de indústria cultural, de como é essa negociação entre
a produção artística, a invenção, a transgressão e a utilização das invenções
para um fim comercial. A grande indústria cultural da Bahia é o carnaval: ele
movimenta, em Salvador, R$ 500 milhões por ano, e somente 10% disso são
do estado ou da prefeitura. O resto é investimento privado. E são números
que a gente não sabe muito bem, pois é claro que os grandes blocos, trios e
camarotes não abrem a questão de patrocínio, por exemplo. 

A Bahia, na sua história recente, viu uma relação muito próxima da cul-
tura com a política. Conte um pouco sobre isso.
A Bahia, de 1945 a 1964, viveu um período incrível de desenvolvimento
econômico, cultural e intelectual. A descoberta do petróleo foi acompanhada
por um grande desenvolvimento cultural. Aquela época foi a última vez em
que se pensou, de fato, a cidade de Salvador, que se fez um plano diretor. A

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Lina Bo Bardi foi para lá, o Edgard Santos criou as escolas de arte e o Seminário
de Música, o Martim Gonçalves criou a escola de teatro. Foi um momento
de referência para o Brasil e o mundo, que possibilitou depois o surgimento
do Cinema Novo e da tropicália. Tudo isso vem desse caldo de pensamento
que estava ali borbulhando. Em 1964, houve o golpe, e esse cenário foi, de
certa forma, desarrumado. A ditadura começou a tomar para si o mérito do
desenvolvimento, mas o que houve, na verdade, foi uma interrupção. E essa
política, esse grupo político e econômico que foi se consolidando a partir
de 1964, continuou no poder até há pouco tempo. Houve alguns momentos
de oxigenação, como o governo do Roberto Santos, que, apesar de ser um
governador colocado pela ditadura, tinha outro pensamento. Ele era filho de
Edgard Santos, então trazia todo um pensamento cultural. E também o go-
verno do Waldir Pires, que infelizmente foi um caos, uma loucura, porque ele
estava cercado por todos os lados. Não era possível um governo de esquerda
naquele momento e naquele lugar. Foi uma votação expressiva, uma vitória
incrível, mas depois Waldir Pires não conseguiu governar. E ele se cercou de
bons nomes, que traziam uma proposta interessante para a cultura.

Isso só mudou com a entrada do Jacques Wagner no governo?


Sim, porque é um governo de esquerda aliado com o governo federal. E aí se
fez possível essa transição, essa mudança na cultura. Então, a cultura forjada
e manipulada pela ditadura continuou até 2007. Foram 43 anos de um mesmo
sistema, um mesmo pensamento, um mesmo direcionamento político. O que
houve foi a eleição de alguns ícones, alguns nomes, alguns gêneros, um recorte
na vasta cultura baiana, e esse recorte foi incentivado e divulgado à exaustão.
A indústria do axé, por exemplo, se beneficiou muito com isso e virou quase
uma monocultura. Não houve o fomento à diversidade, o fortalecimento da
produção independente, da sociedade civil, das organizações. Então, você
tem uma produção cultural completamente frágil, quase infantil na forma
informal de tratar com gestão, com produção, com o mercado.

A Bahia é um dos estados que passa por uma junção entre uma arte de
vanguarda e a questão da arte popular. Como criar uma política que
permita que essas duas áreas se desenvolvam?
O Estado tem que lidar com a cultura de duas formas. De um lado é
pensar a cultura como direito básico, como serviço. Disponibilizar o acesso

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à cultura de uma maneira geral. Por outro lado tem que fomentar essa pro-
dução. Evidentemente que cada setor merece um olhar especial e tem que
ter ferramentas especiais. Se você faz um edital, é possível que o produtor
cultural que faz, por exemplo, o Terno de Reis, no interior da Bahia, tenha
dificuldade em concorrer e em dialogar com o Estado. Então, é preciso pensar
programas como o Agricultura Familiar, por exemplo, para pegar toda essa
produção cultural popular.
É muito complexo lidar com os mestres populares, é preciso tratar esse
tema de maneira muito delicada. É preciso ser muito delicada a intervenção
do Estado nesse tipo de produção. A produção cultural da Bahia, hoje, é muito
conduzida pelo turismo, porque durante os 12 últimos anos, antes de 2007,
tivemos uma secretaria única para a Cultura e o Turismo. Essas lógicas estavam
muito próximas, muito uma a serviço da outra, o que é muito complicado.

Você declarou o seguinte:“Minha tese era a de que os ritos de candomblé


eram como óperas:tinham música, dança, narrativas de sagas de heróis. Se
tanto as tragédias gregas quanto o teatro nô japonês têm origem nesses
mitos heroicos, por que os rituais afro-brasileiros ainda não tinham
se tornado teatro?” Fale um pouco sobre isso e também sobre o que é o
Bando de Teatro Olodum.
Essa tese foi comprovada ou afirmada em 2003, quando um Ogan, que era
um Ogan da música, trabalhou com a gente em uma peça que eu dirigi no Rio
de Janeiro, chamada Candaces. Ele disse que, quando o Orixá é incorporado
pelo filho de santo e aparece na festa pública, ele tem diferentes características.
Não existe um único Xangô. Existem várias faces, vários momentos desse
herói. E, quando ele chega, começa-se a contar a história daquele herói. Isso
é cantado por um coro, por uma orquestra, e dançado por outras pessoas.
Então, se a gente transfere isso, esquece o sagrado e passa para a dramatur-
gia, temos a mesma estrutura de uma ópera oriental. Do teatro Nô, enfim. Eu
pensava muito por que motivo isso nunca virou teatro, e comecei a entrar em
crise com a dramaturgia ocidental. Apesar de meu grupo de teatro sempre ter
conquistado público, eu sentia que havia uma distância entre o palco e a vida
real. Via que tinha muito negro, mas os negros não estavam no palco. Não
tinha atores suficientes para a quantidade de negros que tem na Bahia. Então
resolvi fazer um projeto de teatro para a prefeitura e acabei me aproximando de
grupos como o Ilê Aiê e o Olodum. Quando acabou o projeto-teatro, eu e João

69
Jorge conversamos. Ele queria trabalhar com outras linguagens no Olodum e
eu queria me associar a alguma instituição ou a alguma casa de candomblé,
ou de afoxé. Enfim, alguma instituição com matriz nessa cultura afro-brasileira.
Comecei a trabalhar com eles, e criamos o Bando de Teatro do Olodum.

E qual foi o método de trabalho?


Começamos, a partir de oficinas, a chamar atores, que na verdade não
precisavam ser negros – na época, agora precisam –, mas precisavam ter um
compromisso com essas questões, com essa cultura. Não precisava nem ser
ator, nem ter currículo. E vieram vários atores de uma rede de teatro periférica,
subterrânea, incrível, de teatro amador, de teatro de bairro, do movimento
negro, de teatro de igreja. Eu comecei a ver esse universo inteiro, que é nor-
malmente invisível, que é o universo do teatro da periferia. Eles traziam uma
forma de representar o mundo muito interessante. Então eu preferi abrir mão
do que eu sabia e do que fazia e começar a construir uma metodologia com
eles, a partir do que eles traziam. Aí foi um processo de troca muito grande.
No princípio, as pessoas estranhavam aquele jeito de interpretar e começaram
a achar que eles eram os personagens. A imprensa, por muito tempo, tratou
o Bando como um projeto social, mas nunca foi um projeto social, sempre
foi um projeto estético, artístico e político. E cada vez mais a gente foi enten-
dendo que fazer teatro é isso, é uma assembleia política, um debate político
o tempo inteiro. Eu venho disso, comecei a fazer teatro na universidade, em
1972, durante a ditadura, e fazia teatro como uma arma de luta. A gente foi
insistindo, insistindo, insistindo, até que Caetano Veloso reconheceu o Bando
e aí a imprensa mudou de opinião.

Fale um pouco das peças e das pessoas.


A gente começou a fazer a oficina de teatro e a construir um método, que
partia da célula do teatro, que é como construir o personagem. A gente ia para
a rua observar as pessoas para fazer o personagem. Conversávamos com elas
para pegar o jeito de falar, de se mover. Não era uma pesquisa acadêmica, era
mais um corpo a corpo, um imitar, e de repente esses personagens ganhavam
um caráter coletivo. Eles não eram personagens psicológicos, não tinham
dramas pessoais, eram dramas e tragédias de uma comunidade inteira. A
partir disso, construímos nossa primeira peça, que foi Essa é a nossa praia.
Os personagens tinham essa característica de máscara social, e a tradição

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do teatro popular nos ensinava isso: esses arlequins, esses joãos-grilos, são
personagens que aparecem em várias histórias e têm uma função. No teatro
popular, o personagem tem aquela função, mas aparece em várias situações
diferentes e reage de formas diferentes. Ele representa a classe operária, a
elite, o intelectual ou seja lá o que for, mas ele se move de forma diferente
dependendo da situação e tem uma linha de conduta que é reconhecida pela
audiência. Essa é a nossa praia era para ser uma peça de final de oficina, mas
foi um sucesso. Ficamos quatro anos em cartaz e a partir dela fizemos mais
duas peças com esses mesmos personagens, Ó Paí Ó e Bye, Bye Pelô. Assim
se formou a Trilogia do Pelô.
Quando fizemos a primeira peça, a reforma no Pelourinho ainda não tinha
começado; na segunda, ela já estava em andamento, e as pessoas já estavam
sendo botadas para fora. A terceira peça já é sobre a reforma, sobre as pesso-
as que saíram, as que ficaram, sobre como a cultura se transformou e como
as relações se transformaram a partir da interferência da reforma naquele
espaço urbano. Ao mesmo tempo, a gente ia pesquisando essas questões de
candomblé no novo mundo, trabalhando também com dramaturgia clássica,
e aí, finalmente, fizemos A Medeia Material, que foi o primeiro grande salto
do grupo. Trabalhamos com Vera Holtz, Guilherme Leme e o Heiner Goeb-
bels, em uma peça de Heiner Müller. O Heiner Goebbels era um músico que
trabalhava muito com Heiner Müller, e juntamos ele com o Neguinho do
Samba. Ele compunha a trilha de Jazão, que era o colonizador. O Neguinho
do Samba era o ritmo do povo.

Essa peça mudou a visão do público sobre o Bando?


Sim. Finalmente se reconheceu que o Bando era um grupo de teatro. Foi a
inauguração do teatro Castro Alves, era uma grande ópera, com um orçamento
de grande produção para a época. A gente viajou, ficamos um mês em São
Paulo, houve muito debate sobre a peça. Em 1997, teve uma outra virada do
grupo, que foi O Cabaré da Raça, que está em cartaz até hoje. Tinha saído a
revista Raça, que mostrou que temos uma classe média negra consumidora
forte, e a gente começou a trabalhar sobre isso, sobre o negro como consu-
midor e como objeto de consumo. E foi um salto, porque na época a gente
tinha tido a notícia que somente 1% da plateia de teatro na Bahia era de ne-
gros. Isso é uma aberração em uma cidade onde 80% da população é negra.
A gente sabia, através da revista Raça, que não era por falta de recursos: tem

71
uma classe média consumidora, então por que que essa classe média não
vai ao teatro? Fizemos, num golpe de marketing, uma política afirmativa.
Quando se estava começando a discutir sistema de cotas, anunciamos que
íamos cobrar meia-entrada para negros, e isso foi um escândalo nacional. O
Boris Casoy disse que era uma vergonha, que era racismo ao contrário e por
aí vai. O Ministério Público pressionou a gente a mudar de ideia, porque o
promotor não queria que o primeiro processo contra racismo fosse contra
nós. A gente fez um grande debate sobre essa questão das cotas, de política
afirmativa, e todos na Bahia assumiram que eram negros, então todos podiam
pagar meia-entrada. Aí foi bom, porque foi um grande debate, e percebemos
que a plateia negra não era toda de amigos, convidados, parentes, pessoal
da comunidade. A partir de Cabaret da Raça, 60% da plateia do Bando, pelo
menos, eram negros e pagantes. E isso para a gente é um grande mérito.

Além do Bando, outros grupos de Salvador se abriram para a temática


do negro no Brasil?
Percebemos o ar do tempo e saímos junto. Já havia um movimento grande
de orgulho negro, do movimento negro, desde os anos 1960, que vem com o
Ilê, com o Olodum, com a música, principalmente com o carnaval na Bahia
se afirmando com uma nova estética. O Bando Teatro Olodum vem junto com
isso, ele não seria possível se toda essa luta do negro não estivesse em marcha.
E o Bando se tornou uma referência para os jovens negros da periferia, para
os jovens negros do centro. Então, agora você tem vários grupos de atores
negros, tem um núcleo de atores negros dentro da universidade.

Passando para o seu trabalho como gestor cultural, como manter esse
acervo vivo, em eterna mutação, da arte popular,tradicional, sem enges-
sar o processo desse trabalho?
Isso também é um desafio. No carnaval, a gente tem um programa cha-
mado Ouro Negro, porque um setor enorme do carnaval é de matriz africana,
são os blocos afros, afoxés, de percussão, com uma herança africana forte.
Eles são a base do carnaval, são a matéria-prima do carnaval industrial, mas
não recebem royalties dos ritmos. Não existe a legislação dos direitos autorais
comunitários, que permitiriam isso. Então fomos apoiar o segmento de matriz
africana e paralelamente ao apoio financeiro começamos a trabalhar a qua-
lificação de gestão, a fazer oficinas de média e de longa duração, e agora eles

72
já estão criando uma espécie de associação. O carnaval ficou fortalecido, vivo
e vibrante, e a gestão se reflete também no desfile. Agora queremos trabalhar
a questão estética também, porque foi se misturando e se perdendo. É um
processo que você não tem como controlar, e nem deve ser controlado, mas
a gente precisa dizer aos afoxés que eles têm história, que eles podem fazer
o que quiserem, mas podem se retroalimentar.

Essa hibridização pode ser por motivos econômicos, ou os afoxés mudam,


se adequam, ou não sobrevivem? Como libertar a pessoa dessa dependên-
cia de mudança?
Eles precisam ter uma certa independência do Estado, não podem existir
somente porque o Estado dá a manutenção. O trabalho todo é neste sentido:
que existam outras fontes de financiamento, de recurso. O Terno de Reis é
outra tradição complexa. É uma tradição familiar, de grupo, que está sendo
esmagada nas cidades grandes e nas cidades pequenas, que vai se deterio-
rando por outros motivos, por uma questão cultural mesmo, dos jovens que
não se interessam mais por aquilo. A melhor forma de lidar com isso é chamar
todas essas pessoas, ouvir as suas necessidades e então criar um programa
para atendê-las.

Então a sua gestão cultural é ouvir?


Primeiro, ouvir, e depois falar, formular o discurso a partir da escuta. O
problema do Brasil é este: temos poucos dados sobre a cultura. Não só dados
econômicos, mas dados numéricos mesmo. Não sabemos quantos Ternos de
Reis tem na Bahia, quantos teatros tem na Bahia. Quer dizer, agora sabemos.
Não sabíamos quanto o carnaval da Bahia consumia ou quanto circulava pelo
carnaval da Bahia. Fizemos a primeira pesquisa em 2007 e agora sabemos
que só 16% da população de Salvador brincam o carnaval. Tem muita coisa
por se fazer, mas a primeira delas talvez seja essa questão do entendimento
da cultura, do que é a cultura e qual é a diferença entre cultura, arte, produto
cultural, indústria cultural. Entender como é que se dá o serviço, como é que o
Estado trabalha a cultura como um serviço. E como fomentar a cultura, como
injetar e fazer o mercado apoiar a raiz, regar a raiz, não só consumir, mas como
fazer esse diálogo entre mercado e tradição. Este é o papel do Estado, fazer
essa articulação e manter o equilíbrio entre indústria cultural e produção de
cultura. Pensar a cultura como uma produtora de identidade, como fator de

73
identidade, de inclusão. E, para isso, temos muito a fazer. Partimos de um
orçamento que ficava 90% na capital e na região metropolitana. Temos 417
municípios, uma área de 570 km². A Bahia é muito grande, maior que a Fran-
ça. A pergunta era como chegar até lá. A partir daí, começamos a trabalhar
com um sistema. O governo da Bahia assumiu como divisão de unidade de
planejamento os territórios de identidade definidos pelo Ministério de De-
senvolvimento Agrário. Isso, para a gente, foi genial, porque é uma estrutura
entre o município e o estado, que são os territórios de identidade, que têm
tudo a ver com cultura. Criamos um fórum de dirigentes municipais, que
tem um representante de cada um dos 26 territórios. Temos representantes
da Secretaria de Cultura em cada território. Então começamos a trabalhar
em sistemas e em redes. Demos visibilidade para essas redes e trabalhamos a
questão de cadastramento, e isso vai gerando um entendimento do fomento e
da economia, do que se gera, do que se produz dentro da economia, e como
isso é importante como identidade e como fator de inclusão. Por exemplo, no
caso dos blocos afro, eles sabem da importância que têm para a comunidade,
mas percebem agora a questão econômica ligada a isso, como eles geram
a economia e como precisam discutir e estar inseridos nisso. Então há um
amadurecimento, mas também é muito complicado criar ferramentas para
tudo isso. Temos o fundo de cultura, que é basicamente o orçamento para o
fomento, para a produção da sociedade. E isso é muito pouco, porque são R$
20 milhões ou R$ 25 milhões por ano, que a gente divide em editais. Criamos
esse programa das instituições e achamos que é preciso transmigrar, parar de
apoiar a produção direta e passar a apoiar as entidades, as estruturas. Sejam
elas os grupos de teatro, as atividades de matriz africana, as bandas de música,
sejam os teatros, os museus, bibliotecas. E então, através delas, se construir
políticas de produção, circulação.

Pensando na área de cultura, o que é o baiano?


São muitos baianos. Não tem um baiano, não tem o baiano. A Bahia é muito
grande. Nós temos, pelo menos, três ecossistemas bem claros. O baiano às
vezes é muito mineiro, ou pernambucano, goiano, matogrossense. E aí sobra
o baiano litorâneo, onde sempre foi fixada a imagem do baiano do recôncavo.
Aparentemente, o baiano é aquele cara do recôncavo, com as características
do recôncavo, mas não é verdade. Temos muitas identidades na Bahia, mui-
tas histórias e muitas culturas. Quando damos visibilidade a tudo isso, é que

74
temos uma imagem do que é a Bahia. Durante muito tempo, o baiano ficou
sendo esse personagem de Jorge Amado, Dorival Caymmi, Pierre Verger e
Carybé, que são os quatro cavalheiros que construíram a identidade da Bahia.
Ela é reconhecida por essas quatro obras. Isso, como tudo na vida, tem um
lado bom e um lado ruim. O lado bom é que isso é internacional, a Bahia é
referência, é desejável, todo mundo quer conhecer. É uma imagem “super”
positiva que foi construída, mas, por outro lado, é também uma coisa atávica,
porque é uma identidade antiga. É uma identidade que admite o coronel,
que admite o racismo, a discriminação, a desigualdade social. É difícil lidar
com isso. A literatura baiana, sob a sombra de Jorge Amado, é complicada.
É preciso, então, gerar produtos culturais em vários territórios diferentes,
exatamente para a gente ter uma visão mais plural da Bahia. Esse é o grande
desafio, irrigar a cultura, a produção cultural da Bahia inteira.  

75
76
Carlos
Augusto
Calil
Secretário Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo.

Qual a importância do cinema brasileiro para a formação do Brasil?


Olha, já foi muito mais importante do que hoje, infelizmente é preciso
reconhecer. O Paulo Emílio Salles Gomes tem uma visão muito interessante
do que o cinema pode representar, e ele teve uma importância muito grande
para nós, porque a tendência dos intelectuais era separar o que de melhor o
Brasil tinha produzido e centrar fogo nisso. Mas a precariedade do cinema
brasileiro tinha que ser analisada de perto. E o Paulo Emílio foi estudar o
melhor e o pior, o que não era bem visto. Ele se debruçou sobre Humberto
Mauro, mas para nos dizer que a precariedade do cinema, e da vida, de Hum-
berto Mauro, era quase que modelar. E que era uma situação da qual nós não
iríamos nos afastar tanto.

Fale um pouco do Humberto Mauro.


Humberto Mauro é muito interessante, sobretudo pela frustração da car-
reira dele. Ele é um pouco a encarnação da nossa sina, que é a inviabilidade.
A coisa mais chocante no cinema brasileiro é que todos, invariavelmente, os
bem sucedidos e os mau sucedidos, envelhecem e morrem ressentidos. Isso é
horrível. Eu não conheço nenhum cineasta brasileiro feliz, de bem com a sua
carreira, com a sua vida. Todos têm projetos frustrados, todos foram sacane-

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ados por alguém, pelo governo, pelo público que frustrou. Tem essa vitimi-
zação que é terrível. Tanto que o Lima Barreto e o Anselmo Duarte morreram
amargurados. Glauber Rocha morreu frustrado, e o Humberto, certamente,
morreu frustrado também. Isso provocou um choque, na ocasião, e ele passou
a advogar e a nos exigir que fôssemos ver os filmes da pornochanchada. A
gente torcia o nariz, porque era de mau gosto, mas ele mostrava que aquele
mau gosto tinha muito a ver com o nosso mau gosto brasileiro, com a pre-
cariedade da nação, da cultura brasileira. Então, naquele momento, a gente
percebeu o contraste entre o que a geração do Cinema Novo desenhou para
o Brasil, que é um país em que o cinema faria a diferença política, e, digamos,
o enfrentamento com a mediocridade, com a precariedade, a que o Paulo
Emílio, disciplinarmente, nos obrigava. O que sobrou hoje, curiosamente, é
essa ideia do Cinema Novo, de contribuir para o avanço político do país. Mas
isso levou também a uma crise, porque o cinema é apenas o cinema, não é
a política. Esse projeto do Cinema Novo, de repensar o Brasil a partir de ma-
trizes populares, de uma certa ambição de fazer política através da arte, se
transformou hoje numa caricatura terrível.

Isso é diferente nas outras áreas da cultura ou é uma crise de expressão geral?
Outras áreas, como as artes plásticas, por exemplo, estão botando em xeque
a cultura brasileira, a inserção brasileira no mundo, a nossa capacidade de
improvisar e de criar a partir do quase nada. O cinema brasileiro é que ficou
acadêmico. O cinema brasileiro de hoje é bem feito, mas eu não posso dizer
que ele é bom. E a perspectiva de transformar o país ficou completamente
distante. Ficou, inclusive, fora de quadro. Um filme como Cidade de Deus,
por exemplo, transforma muito mais o país pelo efeito que a linguagem tem
do que pelo projeto político dele. Esse filme virou cult. Se você fala de Cidade
de Deus nos Estados Unidos, os jovens sabem, eles falam diálogos de cor. Na
Tailândia, Filipinas, as pessoas conhecem, e imitam. Enquanto aqui, nossos
críticos ficam esnobando.

Fale um pouco sobre a crise na Embrafilme e o que deu origem a ela.


A crise da Embrafilme teve diversas origens, uma delas de nível político. Ela
era uma empresa que incomodava muita gente, o que era suficiente para se
tornar inviável. Primeiro, o governo olhava com muita desconfiança, porque,
apesar de ser uma empresa estatal, ela era, no fundo, gerida pelos cineastas.

78
Depois, os próprios cineastas ficavam muito incomodados de receber dinhei-
ro de um órgão da ditadura, então acontecia uma coisa esquizofrênica, eles
recebiam dinheiro e falavam mal da Embrafilme. O Glauber Rocha foi o único
que teve a coragem de dizer que ela era muito importante para os cineastas,
porque ele tinha esse desassombro, assumia as contradições, enquanto todos
os outros desprezavam e não compreendiam que o papel da Embrafilme
era crucial naquele momento. Ela era ponta de lança e, de fato, obrigou o
cinema americano a recuar, ocupando 35% do mercado. No entanto, o fato
de não agradar nenhum dos dois lados, somado à crise financeira dos anos
80, fez com que o órgão se tornasse frágil. Os custos de produção subiram,
mas a renda diminuiu, e isso levou a Embrafilme a uma crise de produção.
Ela fazia 18 longas-metragens por ano e distribuía 22, incluindo alguns filmes
que não eram feitos por ela. Além de fazer muita coisa de curta metragem,
de preservação de filmes. Mas essa fragilidade era muito impressionante,
e ela acabou fechando, foi liquidada pelos cineastas. O Collor só assinou
o atestado de óbito, porque ela já não tinha mais nenhuma capacidade de
manter-se. As pessoas podem achar que eu sou um saudosista da Embrafil-
me, mas eu não sou. Ela foi um fenômeno histórico, era uma contradição da
ditadura militar. Montar a Embrafilme hoje seria sem sentido, porque ela era,
na verdade, uma distribuidora exclusiva de filmes brasileiros, e essa situação
não é mais possível. O cinema brasileiro já disputa mercado com os filmes
norte-americanos, o que era impensável na época, com os territórios muito
bem definidos. É uma pena que a Embrafilme não tenha sido compreendida
nas suas contradições, na época, e que tenha sido objeto de disputa política
entre os cineastas. Uma disputa feroz, uma bobajada entre cultura e mercado.
Porque havia os pró-mercado e os pró-cultura, como se a cultura tivesse que
rejeitar o mercado, e o mercado tivesse que ser anticultural. Era um território
muito de disputa política. Claro que essa disputa significava dinheiro, porque
era dinheiro que, no fundo, saía da Embrafilme. E se saía para um, deixava
de sair para outro. A principal fragilidade da Embrafilme era que ela era um
guichê único, e, portanto, muito visada.

Você foi o diretor da Embrafilme por bastante tempo. Conte experiências


que você viveu lá.
Ah, tem muitos momentos de felicidade. Um, por exemplo, foi ter pro-
duzido o Cabra marcado pra morrer. Ninguém sabe que fomos nós, mas o

79
Coutinho confirma. Na época já havia um controle muito próximo do SNI, e,
portanto, nós não pudemos assumir. Compramos os direitos não comerciais
da obra do Vladimir Carvalho e, com isso, demos um dinheiro a ele, que re-
passava para a produção do Cabra Marcado pra Morrer. Então, indiretamente,
financiamos o filme até a sua realização em 16 mm. Depois eles conseguiram
o dinheiro necessário para ampliar para 35 mm. Poder fazer isso foi uma
enorme satisfação. Teve ainda muitos outros momentos interessantes, mas
era uma tensão permanente, um tiroteio permanente, e uma batalha pelo
dinheiro que às vezes era suja, feia, e que não é nem bom lembrar.

Um tempo depois do fim da Embrafilme, chegou a Lei do Audiovisual. Fale


um pouco desse período da criação.
É um desastre! O que se esperava depois da Embrafilme era que a pro-
dução de filmes fosse menos dependente do governo, e que, portanto, o
cinema brasileiro tivesse mais sustentabilidade. Mas aconteceu o contrário.
Na época da Embrafilme, a dependência era de 70%, e era preciso trazer
30% do orçamento de fora, não importava como. Hoje, tem-se 100% subsi-
diado. É um absurdo. Não há em nenhum lugar do mundo uma política tão
equivocada. Outro problema é que a Lei do Audiovisual só investe em filme,
não investe em produtora, em distribuidora. Isso não faz sentido na nossa
atividade, que é de acumulação de expertise. É preciso investir no produtor,
na produtora, na distribuidora, e não num filme isolado. Quando se investe
num filme isoladamente, arrisca-se tudo, e se der certo, quem ganha é o ci-
neasta; se der errado, quem perde é o governo. Aquela experiência não serve
para nada, se fecha em si. Quando se trabalha com carteira de produção, ou
carteira de distribuição, está se trabalhando com conjuntos, com médias,
com estratégias de mercado. Além de tudo isso, quando se tem uma situação
de 100% de dependência do governo, mesmo que o dinheiro venha através
de uma pessoa jurídica, privada ou pública, o que se tem, na verdade, é uma
situação muito confortável, sem risco nenhum. A consequência é que o nosso
cinema é domesticado, não é um cinema de ruptura. Porque é preciso ter
risco artístico e econômico, senão, não se rompe nada. O cinema brasileiro,
hoje, não é bom nem artisticamente nem comercialmente. Se ele estivesse
ganhando todos os festivais Sundance, mas não estivesse entrando no cine-
ma, teria lá o seu mérito. Mas não está ganhando o Sundance, também não
está ganhando Cannes, e o público fica esperando que os filmes falem com

80
eles. O ano de 2003, para mim, é paradigmático, porque o público do cinema
brasileiro se multiplicou muito, e atingiu 22% do mercado. Isso quer dizer que
existe público, mas que é preciso apresentar produções que lhe sejam inte-
ressantes e cativantes. O que fez a diferença em 2003 foi a carteira de filmes
exibidos. Hoje, não é mais preciso tirar o sujeito da sala de filme estrangeiro,
nós podemos apresentar ao público filmes brasileiros assistíveis, e isso não
impede que certas experiências radicais, extraordinárias, como Jogo de cena,
sejam feitas. Até porque são muito baratas. Mas não podemos ficar fazendo
filme para cineclube, ou para os parentes dos cineastas, e excluir o público
dessa equação. As pessoas dizem que o público é burro, que só gosta de
vulgaridade, mas seja como for, é melhor negociar com eles do que ignorar.
O cinema brasileiro é completamente desfocado da realidade. O grosso da
produção brasileira é completamente equivocada, não tem destinatário. Nem
o comercial é comercial, nem o cultural é cultural.

Conte um pouco da sua gestão como Secretário de Cultura da cidade


de São Paulo.
Eu encontrei uma situação muito complicada quando cheguei, porque todos
os equipamentos estavam caindo aos pedaços, do Teatro Municipal à Biblioteca
Mário de Andrade. Então, a primeira preocupação foi devolver ao contribuinte
equipamentos públicos em melhores condições e um serviço público de me-
lhor qualidade. Isso foi muito difícil porque, se a Biblioteca Mário de Andrade
estava esperando para ser reformada desde 1956, pode-se imaginar o acúmulo
de problemas que tinha. Então, começamos pelas reformas complicadíssimas,
com patrimônio histórico, e passamos para a valorização dos equipamentos
culturais. A criação do Centro Cultural da Juventude, por exemplo, foi muito
importante, porque está numa área de fronteira, e oferece uma formação
diferenciada, sem querer se transformar numa escola. Na verdade, o Centro
Cultural é o contrário da escola, que é o lugar da norma, da obrigação, do bom
comportamento. Na cultura, o mau comportamento costuma ser melhor pre-
miado. Os bons artistas costumam ser pouco adequados, pouco convenientes,
porque ser desabusado, arriscar, ser contestador faz parte da boa arte. Então,
existe esse trabalho de reforma e valorização. E outro ponto que pode melhorar
muito é a programação cultural dentro da cidade. A Virada Cultural nos ensi-
nou uma coisa fantástica: que existe uma demanda da população por ocupar
o espaço público na cidade de São Paulo. No Recife não é a mesma coisa, ou

81
em Olinda, ou mesmo na Bahia, porque nesses lugares, e talvez no nordeste,
o espaço público sempre tenha sido do público, da população. Em São Paulo
não. Então, a Virada Cultural, que era apenas um festival de 24 horas, hoje é
um festival de 24 horas que reocupa um território estratégico da cidade, que é
o centro. Foi por isso que deu certo. A graça da Virada é encontrar as pessoas
mais disparatadas, em termos de classe social, de idade, de gosto, num território
definido, que é o território simbólico da cidade de São Paulo. Vou tentar fazer
esse tipo de política agora com artes plásticas. Nós acabamos de lançar um
edital para que os artistas proponham a ocupação dos espaços públicos com
obras de arte. Se der certo, eu pretendo ampliar o projeto, para que a cidade
seja, enfim, embelezada, ou problematizada, pela arte contemporânea. Quer
dizer, o espaço público pode ser reocupado pela população com estímulo do
poder público. A Virada não tem patrocinador, ela não tem mediador, e nunca
terá. É a prefeitura devolvendo o imposto recolhido à população para que
ela participe da festa da cidade. Outra coisa que falta, e que eu acho que não
vou conseguir fazer, é uma ação mais presente na periferia. Eu consigo fazer
algumas coisas na periferia, mas ela é imensa. Talvez eu consiga, até o final da
gestão, iluminar pontos na periferia que são irradiadores da boa cultura e da
boa disciplina artística, que possam, enfim, sinalizar. A periferia de São Paulo
é completamente desprovida de equipamento urbano, de espaço público.

Fale um pouco dos desafios da produção da Virada. Como é produzir um


evento desse tamanho?
A Virada é uma trabalheira, mas que dá um prazer enorme. A equipe que
concebe tem, no máximo, meia dúzia de pessoas, e a equipe que realiza tem,
no máximo, 40 pessoas. E é um evento que tem um público de milhões de
pessoas. É uma coisa inédita na cidade de São Paulo, essa quantidade de
gente nunca saiu à rua para celebrar a cidade. Portanto, eu acho que a Virada
virou uma conquista da população da cidade de São Paulo, e não vai acabar.
Quando houve a eleição para prefeito, eu fiquei muito atento às propostas
dos candidatos, temia que dissessem que o evento era de um partido. Mas o
evento pertence à população de São Paulo.

Como você vê o digital chegando ao cinema? Barateou, facilitou?


Não facilitou na medida que as pessoas imaginavam, porque elas esque-
ceram que a inteligência do cinema continua tão complexa quanto antes, e

82
inteligência significa dramaturgia, ator, diálogo, roteiro. Mas alterou e sim-
plificou a realização de tal maneira que, quando eu penso como eu filmava e
montava, a impressão que tenho é que era uma coisa pré-histórica. A gente
pegava a película com a mão, cortava com uma guilhotina, colava com durex.
Hoje não se tem mais contato com a película, a imagem está na sua frente,
o montador está operando nela, mas sem nenhum contato físico. Mas isso
não significa que os cineastas farão filmes melhores agora. Os roteiristas con-
tinuam tão valorizados quanto antes, e uma boa história, um bom diálogo,
bons atores, são coisas que têm valor em qualquer época. Agora, a ideia de
produzir para qualquer plataforma é genial. A imagem não fica prisioneira
de um suporte, restrita ao vídeo, ou ao cinema. Percorre todas as plataformas
e suportes, sem fronteiras. E, entre as consequências negativas, está o fato
das pessoas filmarem muito hoje, e na hora da montagem dá um grande nó,
um grande problema. A filmagem tem que ser feita com clareza, sabendo
quais os objetivos. Filmar demais não necessariamente ajudará o projeto ou
melhorará o produto. Isso é ilusório.

Qual caminho poderia seguir um jovem que está começando a fazer ci-
nema hoje?
Tem que aprender técnica, que é o que pode fazer diferença. O talento
acaba aparecendo em algum momento, se for o caso. O pessoal do Cinema
Novo, por exemplo, negou a técnica, eles não sabiam decupar. Por isso a
câmera na mão, do Glauber Rocha: porque ele não decupava. Ele inventou
uma maneira de filmar para ele, para geração dele, mas negou a técnica. Hoje
é impossível negar a técnica. Impossível e inútil. Então, a primeira coisa é
aprender os instrumentos, e em seguida treinar a sua dicção

E esse jovem que estuda técnica, como ele pode viabilizar a produção
dele? O que ele deve procurar?
Quem tem força, e quem tem talento, viabiliza-se. Pode não se viabilizar
no nível que se deseja, pode até ter algum nível de frustração, mas acaba fa-
zendo. Existe demanda por projetos bons, existe dinheiro oferecido a projetos
bons, a questão é que nem sempre temos projetos bons, projetos maduros.
E, sobretudo, é preciso inverter um pouco, pensar no público. Nós estamos
muito viciados na coisa romântica de querer fazer o seu longa-metragem.
Mas para quem é o seu longa, além de para você mesmo?

83
84
Daniel
Zen
Presidente da Fundação Elias Mansour e
do Conselho Estadual de Cultura do Acre.

O que é a cultura no Acre hoje?


O norte do Brasil é uma região ainda não descoberta do ponto de vista da
produção cultural, do que é que se faz lá. Ainda existe uma visão um tanto
quanto bucólica, ou pitoresca, da população amazônica em geral. O senso
comum que povoa a cabeça das pessoas está muito ligado às manifestações
que se diziam folclóricas, manifestações de cunho mais tradicional da cul-
tura popular. Essa região tem tudo isso, mas tem muito mais. O Acre está
vivenciando agora um momento de efervescência e ebulição cultural muito
interessante. O estado passou por um período semelhante na década de 1970,
e início dos anos 80, nos resquícios dos últimos anos da ditadura militar, em
virtude de uma mobilização e de uma militância cultural muito forte, por parte
de pessoas que, inclusive, ocupam cargos estratégicos hoje, no poder execu-
tivo, legislativo. Essas pessoas se afastaram um pouco da militância cultural
e artística e ingressaram na militância política mesmo. Aquele contexto era o
de articulação e mobilização em torno da construção de políticas públicas de
cultura. Inclusive, o órgão gestor da cultura no Acre, a Fundação Cultural, tem
mais de 30 anos. Se pensarmos que, na maioria dos outros estados, a área de
cultura ainda está ligada às secretarias de educação, ou a órgãos que agregam
cultura, turismo, esporte e lazer, isso é interessante. Então, se hoje vivemos

85
um momento interessante cultural, isso se deve em muito à militância das
décadas anteriores, que batalhou pela consolidação de políticas públicas,
de investimento em formação cultural, nas diversas formas de produção, de
circulação, e que surtiram respostas a longuíssimo prazo.

Como é a relação com a cultura indígena?


O Acre tem hoje 14 etnias indígenas, de praticamente todos os troncos,
que trazem consigo, depois de um período de aculturação, um processo de
revitalização e resgate dos seus elementos tradicionais. Os cânticos tradicio-
nais, as celebrações, as danças, as práticas ancestrais têm também revelado
elementos culturais e artísticos muito peculiares, que cada vez mais dialo-
gam com a produção contemporânea. Essa fusão do tradicional, do secular,
com o moderno, com o contemporâneo, vem se fazendo de forma bastante
lenta e, às vezes, até imperceptível. Uma coisa interessante, nesse processo
de revitalização e resgate da cultura indígena, foi a promoção de encontros,
festivais de culturas indígenas envolvendo todas as etnias. Isso fez com que
as etnias se motivassem a buscar com os velhos das aldeias os elementos da
língua, que já vinham se perdendo. Quer dizer, algumas tradições, e algumas
práticas e rituais que estavam ficando esquecidas, mas que ainda estavam
guardadas na memória dos velhos sábios, vêm sendo revitalizadas, resgatadas
e praticadas pelos jovens, a ponto de hoje, praticamente, todas as etnias, nas
diferentes terras indígenas – e são mais de 35 terras indígenas demarcadas
no estado do Acre – promoverem seus próprios festivais, seus encontros. Até
pela internet, chamando, convidando e promovendo um intercâmbio entre
as etnias, a despeito mesmo de um envolvimento oficial do estado. As seis
edições dos encontros de cultura indígena foram promovidas pelo estado,
como forma de propiciar uma alternativa de resgate e de articulação dessas
tradições. Mas hoje em dia, eles promovem sem necessariamente ter um
aporte governamental. Existe uma articulação pela busca das suas próprias
fontes de recurso, e fazem isso de uma maneira muito espontânea. E nos
convidam, como representantes do estado, a participar e a interagir com eles.
Começa a ter uma quebra de alguns paradigmas, de alguns preconceitos. O
fato de na Amazônia, e em especial, no estado do Acre, ainda ter um contin-
gente de população indígena muito significativo não quer dizer que não haja
os mesmos preconceitos, entre as pessoas que habitam os núcleos urbanos
dos municípios, mesmo os menores municípios, com essas populações. Em

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algum dos municípios, como por exemplo o do Jordão, que é um dos menores
municípios acreanos, e em que a maioria absoluta da população é de índios,
existe praticamente um apartheid entre os índios e os não índios, entre aqueles
que habitam um quase minúsculo núcleo urbano do município do Jordão e
a maioria avassaladora de índios, que estão espalhados nas diferentes terras
indígenas, nas dezenas de aldeias de cada uma dessas terras indígenas. Quem
não é do norte, e não conhece a realidade dos estados da Amazônia de uma
forma mais próxima, não tem a ideia da dimensão desse apartheid cultural
ainda existente.

Você falou que a cultura brasileira pouco olhou a cultura indígena,


e alguns dos exemplos foram próximos à Semana de Arte Moderna, seja
do lado nacionalista, com o grupo Anta, seja do lado mais cosmopolita,
com a antropofagia. A cultura brasileira nunca conseguiu olhar com
constância a cultura indígena, sempre foram exceções no processo.
O que começa a acontecer agora é a cultura indígena se mostrar sem
intermediários, sem passar pela absorção da cultura oficial. Fale um
pouco sobre isso.
Esse é o caminho. É o diferencial deste momento, em que você percebe
uma aproximação, ainda que incipiente, ou embrionária, entre elementos
de cultura indígena, ancestral, tradicional, e elementos da cultura contem-
porânea mundial. Eles estão tomando as rédeas dos seus próprios destinos,
resgatando os seus processos sociopolíticos, tendo a cultura como um cata-
lisador, como um vetor. Esse processo se inicia com a luta pela demarcação
das terras indígenas, inserido naquele contexto da expansão das fronteiras
agropecuárias no norte e noroeste do Brasil. No Acre houve o fenômeno do
êxodo florestal, a expansão das fazendas para pasto, para criação de gado,
e a expulsão de um contingente absurdo de pessoas que as habitavam.
Falo em povos da floresta porque são literalmente povos da floresta, não
só índios, mas seringueiros, ribeirinhos, caboclos, coletores de castanha.
No auge dos dois ciclos da borracha – o primeiro, de 1870 em diante, e o
segundo, no período da II Guerra Mundial –, chegou-se a ter contingentes
migratórios de mais de 200 mil pessoas, num período curtíssimo de tempo.
Essas pessoas habitavam as matas e as florestas, nas suas colocações, nos
seus seringais, e construíram ali um marco civilizatório diferenciado do
que se vinha construindo no Brasil, em termos de fluxos migratórios. No

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Brasil tínhamos fluxos de japoneses, italianos, alemães, para trabalhar na
lavoura do café, em outras atividades agrícolas e em atividades de cunho
econômico e industrial. Na Amazônia, houve um tipo de migração inter-
na, regional, muito propiciada, também, pela seca do nordeste, em que as
pessoas não foram trabalhar com atividades convencionais, mas com algo
que se descobria como uma grande alternativa para a indústria em geral,
que era a borracha, as aplicações da goma elástica vulcanizada. E ali elas
estabeleceram realmente um tipo de colonização diferenciada, sui generis.
Há esse choque de civilizações entre o migrante nordestino famélico, saindo
do sertão, fugindo de uma situação de seca, e o índio, o nativo. Depois, na
década de 1970, com o desenvolvimento dos seringais de cultivo na Malásia,
esse sistema de coleta extrativista do látex para produção de borracha entra
em colapso, e o governo militar implementa políticas para a expansão dessa
fronteira agrícola. Quando os estímulos federais e oficiais para desenvolver
outro tipo de atividade, que se julgava mais pertinente naquele período,
chegam ao Acre, encontram uma resistência que não se encontrou em
outros lugares, como, por exemplo, em Rondônia e no Mato Grosso, onde
houve uma expansão quase que completa e a consolidação do modelo das
monoculturas, do plantio da soja, ou da criação de pastagem. No Acre se deu
a aliança dos povos da floresta, uma junção dos esforços de seringueiros,
índios, ribeirinhos, extrativistas, no sentido de preservar seu modo de vida,
seu status de habitante da floresta, tirando dali seu sustento, seu modo de
ser e de viver. Essa é uma característica cultural fundamental, que norteia
os rumos da produção cultural do Acre e da Amazônia em geral.

Como esse contexto todo tem se manifestado nas produções artísticas?


O movimento de resistência contra essa expansão agropecuária já esteve
mais presente na produção artística em si, com peças teatrais, festivais e
músicas que giravam em torno dessa temática. A produção cultural como
um elemento da resistência e como parte desse processo mais amplo. Isso
eu acredito que ainda acontece com os povos indígenas, há o resgate da pro-
dução cultural, dos elementos hereditários, mas como parte de um contexto
maior, de um processo de reafirmação do ser indígena. Hoje acredito que a
cultura em geral vive outro contexto, a produção não está necessariamente
vinculada a uma realidade opressora.

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Fale um pouco sobre a cena do rock no Acre, que é fortíssima, e também
sobre como a produção acreana dialoga e se comunica com o resto do
Brasil e do mundo.
Nos anos 70 e 80, a produção musical acreana vivenciava, com algum
delay, o contexto daqueles grandes festivais de música. Havia uma estética
fortemente vinculada à MPB, que misturava isso com a temática bucólico-
florestal. Num determinado período, na produção de alguns artistas de música
autoral acreana, houve uma temática florestal muito consistente, como em
Keilah Diniz, Damião Hamilton, Heloy de Castro, Felipe Jardim, Pia Vila e uma
série de artistas que, naquele contexto, produziam para um público acreano.
Eram artistas muito presentes nos festivais acreanos de música popular, os
conhecidos FAMPs, que eram uma espécie de versão acreana dos grandes
festivais das televisões, com alguns anos de diferença. Passado esse período
de efervescência, houve um lapso, com o processo de assunção de algumas
dessas figuras a outros postos, inclusive a cargos políticos, o que deixou a
produção cultural um pouco órfã. Tem muita gente que produzia, que era
músico, artista plástico, e que foi ser funcionário público, ou empreendedor
da iniciativa privada, em outras áreas que não as culturais. A realidade do
cotidiano engoliu boa parte das pessoas que militavam nesse movimento, e
aí você tem um período, na música, em específico, de uma desarticulação,
uma desmobilização, inclusive com a extinção do Festival Acreano de Música
Popular. No final da década de 1990 e início dos anos 2000, uma nova geração
de músicos surge, tentando fazer a ligação com aqueles músicos antigos, que
tinham uma certa produção e até uma discografia posta, e se desvencilhar do
contexto que viviam, que era de uma grande quantidade de bandas cover de
rock and roll, passando pelo último suspiro do movimento do Rock Brasil. A
tentativa era de encontrar um caminho de resgate da música autoral, da au-
toralidade acreana, e aí começam a aparecer novos compositores e músicos.
Algumas iniciativas foram fundamentais para esse tipo de articulação. Na
ausência do Festival Acreano de Música Popular, surgiu, em 1999, o Festival
Universitário da Canção, na Universidade Federal do Acre, que teve três ou
quatro edições. Outro projeto importante foi o Projeto Fábrica, que nada mais
era do que um ajuntamento de bandas. Eles faziam eventos em quadras de es-
colas, de colégios secundaristas, e reuniam as bandas de garagem que estavam
na obscuridade. Eu não posso nem dizer bandas de garagem, num tema mais
acreano seriam bandas de quintal. Então as bandas dos quintais acreanos, de

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Rio Branco, da capital, tinham nesse Projeto Fábrica uma alternativa para se
encontrar e tocar. E, entre essas bandas, as que tinham uma preocupação com
autoralidade acabaram, através desses projetos, se encontrando e tentando
articular algo mais sistêmico, mais consistente. Disso nasce uma iniciativa
interessante, que foi o selo Catraia Records, da qual eu participei também. Era
uma tentativa de fundar um selo fonográfico voltado para a música autoral.

Você tem uma banda também.


Tenho. Tive várias bandas, na verdade. O meu apelido, Daniel Zen, vem
de uma banda de cover que a gente tinha na época da faculdade, que se
chamava Estação Zen. Tocávamos covers dos sucessos do rock dos anos 80,
e éramos residentes de um pub que foi bem frequentado no finalzinho dos
anos 90. Meu envolvimento como músico começou com essa banda, ainda
na faculdade. Depois, fui ajudar as bandas dos amigos na produção, nos bas-
tidores, e aí teve a fundação do Catraia Records, na tentativa de estabelecer
uma empresa que fosse uma produtora de cultura, que almejava ser um selo
fonográfico, mas que, na verdade, o que menos fez foi lançar disco mesmo.
Então, a gente articulava festas, sempre com esse viés da autoralidade, para
que as pessoas prestigiassem a música autoral. Nessa época tínhamos já meia
dúzia de bandas autorais interessantes, e esse movimento foi ganhando força
a partir da qualidade dessa produção autoral. O que propiciou essa integração
da movimentação acreana com um movimento maior, de cunho nacional, foi
justamente esse contexto da internet. A gente já conhecia iniciativas de festi-
vais e de outras coisas relacionadas à música autoral pós-década de 80, como
o Abril Pro Rock, o Bananada. Mas para a gente era uma realidade distante,
nós não nos víamos como atores daquele processo. A gente estava ainda se
conhecendo e se entendendo como músicos autorais de um circuito maior,
que não era só acreano, nortista. E as tentativas, a partir dessa ebulição, desse
apanhado, dessa meia dúzia de bandas autorais, no primeiro momento, eram
de intercambiar com o estado vizinho, Rondônia, que tinha uma tradição
de intercâmbio com músicos já bastante antiga, mas que também estava
arrefecida naquele período. Daí nasceu um festival chamado Guerrilha Rock
Festival, com esse intuito de intercambiar de forma mais consistente com as
bandas autorais de Rondônia, que estavam passando por um processo muito
semelhante ao nosso. E, a partir da retomada desse intercâmbio entre Acre
e Rondônia, começamos a nos entender como sujeitos de um processo de

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integração maior, que era essa interação com outros estados também con-
siderados periféricos do ponto de vista da produção cultural e que viviam a
mesma situação, como Mato Grosso, Goiás.

Foi a internet que propiciou isso?


Sim. Aquilo que a gente já conhecia de ler em revistas e jornais começou
a se intensificar através de contatos de e-mails e tentativas espontâneas de
relação. E aí, a partir do contato com Rondônia, começaram a surgir outros
contatos bilaterais. A gente conheceu uma turma de Cuiabá, que produzia o
Festival Kalango, e aí foi um liga para cá, liga para lá, manda um e-mail, fala
com fulano, chama uma banda para tocar no festival. Depois dos primeiros
dois, três contatos, a coisa foi se integrando. A turma de Cuiabá tinha uma ideia
muito forte já, e que vinha sendo gestada há algum tempo, de construção de
uma grande rede de articulação nacional. O Circuito Fora do Eixo ainda era
uma ideia embrionária, mas que foi se consolidando de forma muito veloz,
justamente pelas possibilidades que as ferramentas da internet possibilitam.
Então, hoje são mais de 50 coletivos de músicos, de produtores culturais, jor-
nalistas, enfim, ativistas da cultura, trabalhando com um modelo de produção
que tenta incorporar alguns preceitos de economia solidária e de autogestão.
Há uma tentativa de estabelecimento de um mercado médio, de um circuito
que permita a circulação constante, cotidiana, que articule diferentes elos da
cadeia produtiva da música.

Vamos falar sobre seu salto para gestor cultural. Qual foi a vontade e
quais foram os desafios desse salto?
Foi algo natural também. Eu nunca pensei, projetei ou sonhei ser Secretário
de Cultura do Estado. No caso, diretor presidente da Fundação de Cultura e
Comunicação Elias Mansour, que é a autarquia responsável pela gestão da
política cultural do estado. A minha formação é em Direito, pela Universidade
Federal do Acre. Depois, ingressei no mestrado de Relações Internacionais, na
Universidade Federal de Santa Catarina, mas através de um programa da CAPS,
que se chama Mestrados Interinstitucionais, pude cursar sem ter que sair do
Acre. Depois, prestei concurso para o estado, na carreira de Gestor de políticas
públicas, que é uma carreira recente, inspirada no cargo de Especialista em
políticas públicas e gestão governamental, do Ministério do Planejamento
do governo federal, que por sua vez é um cargo inspirado numa carreira do

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estado francês. E que é aquele perfil do profissional generalista, de várias
áreas, que atua de forma sistêmica em diferentes campos da gestão pública.
Então, acho que começou ali o distanciamento daquilo que era a minha área
de formação mesmo. E, em paralelo a tudo isso, eu participava desse proces-
so da música autoral. Participei da organização do Guerrilha Festival, que,
depois da sua primeira edição, passou a se chamar Varadouro. A intenção
era render uma justa homenagem a outras iniciativas anteriores, como a do
Jornal Varadouro, que foi um dos principais jornais de resistência do norte, no
período da ditadura, e que pós-ditadura também era o veículo de denúncia
dos acontecimentos, dos grandes conflitos agrários no Acre. E também por-
que varadouro é o nome dos caminhos que se trilham na floresta, que ligam
seringais e colocações, é a estrada, é o highway florestal, o caminho pelo qual
você escoa a produção, porque no varadouro as tropas de burro carregam a
produção de um seringal ao outro, do centro do seringal para a margem do
rio. E foram esses festivais que abriram o horizonte para um contexto mais
nacional, de integração, e possibilitaram dialogar de forma mais próxima
com os representantes do poder público. Eu já era recém-concursado, e isso
despertou uma certa atenção do vice-governador e secretário de Educação
da época, e também do presidente da Fundação Cultural, com quem a gente
mantinha esse diálogo para estabelecimento de parcerias, através do fomento,
do financiamento, dos projetos de lei de incentivo. Então, a partir disso, fui
chamado para assumir a presidência da Fundação Cultural.

Qual é a missão e os desafios da Secretaria de Cultura? E que projetos


você pensou em levar para a Secretaria?
Olha, na verdade, quando fui convidado, fiquei bastante assustado. Como
falei, não passava pela minha cabeça. E, apesar do envolvimento com a área
de música, não era tanto a minha praia, eu não tinha um estudo mais pro-
fundo, ou um conhecimento mais sistemático sobre políticas públicas de
cultura. E eu acabei me aprofundando e me interessando muito pela área de
planejamento e gestão de políticas públicas de cultura. Procurei devorar tudo
que aparecia pela frente, da literatura produzida sobre o assunto, tentando
mesclar a gestão pública com a minha outra paixão, que era a produção cul-
tural. A dificuldade, no primeiro momento, era de projetar o que viriam a ser
depois os programas, os projetos, as ações concretas. Mas isso também é algo
que não se faz sozinho, e ali eu pude trabalhar com uma série de pessoas, de

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profissionais, que já atuavam em diferentes linguagens artísticas culturais, e
pessoas também que eram da área de gestão.

Qual é o orçamento de cultura do Acre?


Rio Branco, a capital do Acre, tem uma população de aproximadamente 350
mil habitantes, e o estado do Acre tem uma população em torno de 700 mil
habitantes. Então, é um estado, populacionalmente falando, pequeno. E tem
um orçamento na área de cultura que transita entre os R$ 20 milhões e R$ 22
milhões por ano, contando tanto os recursos de investimentos, quanto os re-
cursos de despesas com custeio nos gastos corporativos, da máquina pública.
Então, é, a meu ver, um orçamento considerável, considerando o contingente
populacional. Mas precisa melhorar, e é algo que vem melhorando ano após
ano, justamente pelo nosso esforço em intensificar os investimentos, com o
objetivo realmente de democratizar o acesso aos bens e serviços culturais.
Acho que são três dos grandes objetivos a perseguir, na área de cultura.
O primeiro é fazer com que a cultura seja entendida como políticas que
devem ser universais, assim como a saúde, como a educação, como a segu-
rança. Hoje, o debate na educação é diferenciado, não se debate mais tanto
o acesso de crianças e jovens à matrícula, à rede pública, porque estamos
quase conseguindo chegar à universalização do acesso ao ensino. A discussão
hoje é a respeito da qualidade e das condições de oferta, que tipo de ensino
as crianças estão acessando através das redes pública e privada de ensino.
Na cultura ainda se discute as políticas de universalização. Ou seja, como as
pessoas terão acesso a museus, bibliotecas, ao cinema. De uns tempos para
cá, o foco sai do produtor e vai para o fruidor, o consumidor, o público, atra-
vés de mecanismos diversos. Se você tem um foco no acesso, em realmente
permitir, através de programas e projetos diversos, que a população tenha
acesso à produção cultural, necessariamente você demanda um estímulo a
essa produção. Quando se investe ou tem o foco exclusivamente na produção,
não se está necessariamente preocupado com a circulação dessa produção,
e, consequentemente, com a fruição dela.
Outro ponto é a democratização do acesso, o estímulo às cadeias produ-
tivas da economia da cultura. Ou seja, consolidar uma economia cultural
forte, ter um trabalho também focado no mercado. Não qualquer mercado,
não um megamercado, mas um mercado fundado nos preceitos da economia
solidária, inclusivo, sustentável, que possa estimular o consumo de massas,

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que dialoga com um outro grande objetivo, que é o estimular as cadeias pro-
dutivas da economia da cultura, para realmente permitir a democratização
e a universalização do acesso aos bens e serviços culturais.
E o terceiro objetivo é a gestão das políticas culturais de forma com-
partilhada com a sociedade. Ou seja, pautar realmente a gestão pública de
cultura com os preceitos da cidadania, da democracia participativa. Não só
a participação social por meio dos canais institucionais, nos conselhos, nos
fóruns, nas conferências, mas também de forma mais horizontal. Fazer com
que realmente esses espaços públicos de debate, de discussão, deliberação,
existam numa quantidade cada vez maior, se multipliquem, e se consolidem.
Quer dizer, permitam realmente, através da cultura, que você tenha uma ra-
dicalização dos processos democráticos no nosso país, que ainda tem uma
resistência muito grande a esse tipo de debate, a esse tipo de diálogo.

O que é que diferencia o desafio de um produtor cultural do Acre do


de um que está em São Paulo?
Olha, em princípio as distâncias geográficas de outros centros. Agora, isso
também é muito relativo, porque o Acre começa a se situar na geopolítica na-
cional e da América Latina sob uma outra perspectiva, que é a integração com
o Pacífico, através da abertura da Rodovia Transoceânica, que está pronta até
a fronteira com o Peru. E o Estado peruano também já está prestes a concluir
sua pavimentação integral, que chega até os portos do Pacífico. Mas, tendo
como lógica geopolítica o centro do Brasil no sudeste, no centro-oeste e no sul,
o que dificulta essa inserção da produção cultural, não só do ponto de vista do
artista, mas do produtor também, é justamente essa distância, o que a gente
chama de custo amazônico. O custo amazônico, que foi muito debatido na
Conferência Nacional de Cultura, é o custo real que onera produções na Ama-
zônia. Circular com um espetáculo teatral, com uma turnê de shows, ou com
uma caravana de exposições de artes visuais pela Amazônia é infinitas vezes
mais caro do que fazer a mesma coisa no sudeste, onde você tem uma ligação
rodoviária e uma densidade populacional maiores, e onde você pode, numa
semana, circular por uma quantidade alta de municípios de carro, um a cada
dia, ou até mais de um por dia. É diferente você fazer isso num estado como o
Amazonas, ou num estado como o Acre, em que boa parte dos municípios só
tem ligação por avião, ou uma ligação fluvial. Então, imagina o custo de, por
exemplo, levar de barco toda uma comitiva, uma turnê, com equipamentos,

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com pessoas, cenários, quadros, filmes, equipamentos de projeção, para um
município isolado. Agora, quando você parte para olhar sob esse outro pris-
ma, ou seja, do Acre numa situação geopolítica privilegiada em relação aos
demais países da América Latina, em especial Peru e Bolívia, e os países que
fazem fronteira com o território acreano, a coisa muda de figura. Mas é algo
que ainda está em processo de construção. A abertura da rodovia em si não
resolve a questão, até porque é uma questão histórica de séculos. O Brasil,
talvez por ser o único país da América do Sul que fala a língua portuguesa,
está virado de costas para os seus vizinhos. Esforços como o Mercosul, ou
como o Merconorte, que é uma discussão muito presente no Acre, e outros
esforços integracionistas, passarão também pela necessidade de quebra dessa
resistência cultural, linguística e de costumes, e isso é algo que vai demandar
bastante tempo. Então, outras relações comerciais, de fluxos migratórios, que
serão permitidos, e que já estão sendo permitidos pela integração da estrada,
não vão transformar o cenário num prazo muito curto. Mas vão lançar outra
perspectiva de circulação de produção, de relações até de mercado, e talvez de
costumes, de hábitos, de identidade cultural. E do ponto de vista da inserção
comercial e da produção, acho que novos horizontes vão se abrir para o Acre,
e para a produção cultural do norte.

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Claudia
Leitão
Ex-Secretária de Cultura do Governo do Ceará.

Cláudia, como começa sua relação com a cultura?


Eu fiz duas graduações bem díspares: música e direito. Nunca imaginei que,
um dia, essas duas formações sofreriam uma espécie de síntese hegeliana.
Da infância à adolescência, tive uma educação bastante erudita. Participei
de um grupo de música medieval, fiz conservatório, estudei contraponto,
harmonia. Frequentava os festivais de música de Campos do Jordão com
nosso grande maestro cearense Eleazar de Carvalho. Depois fiz mestrado na
USP em Sociologia do Direito e doutorado na Sorbonne de Sociologia Pura.
Fui derivando para o mundo acadêmico, mas sempre mantendo uma relação
muito estreita com as artes, tanto por influência familiar quanto por gosto
próprio. Antes de ser secretária de Cultura, tive uma experiência interessante
dirigindo o Senac no Ceará, onde iniciei um trabalho voltado a algumas pro-
fissões artísticas – as chamadas indústrias criativas, como a gastronomia e
o design – já entendendo a cultura por uma perspectiva mais antropológica.
Também sou professora na Universidade Estadual do Ceará, e a questão da
gestão sempre me interessou. Venho das Ciências Sociais Básicas, mas acabei
nas Aplicadas. Então, minha relação com a cultura advém mesmo da minha
própria trajetória profissional-acadêmica.

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Como foi o convite para se tornar secretária de Cultura do Ceará?
Foi um choque! Quando o governador Lúcio Alcântara me fez o convite,
eu estava no Senac, montando vários projetos apaixonantes voltados à edu-
cação profissional e tecnológica. Aceitei o posto, mesmo não sendo filiada a
nenhum partido político. Na verdade, não tenho apetência nem competência
para política partidária; sou professora. Mas, como ia dizendo, foi um choque.
Quando da solenidade em que os antigos secretários passariam seus cargos
para os novos, meu colega que havia deixado o mandato não compareceu!
Foi quando percebi o quão especial era a área da cultura. É muito mais difícil
e específica do que as outras: poucos recursos e muita vitrine. Quando as
pessoas citam determinadas secretarias, geralmente fazem menção ao tempo
do mandato – já no caso da cultura, cita-se o nome. É um trabalho muito per-
sonalista. A pasta da Cultura é muito representativa da formação da sociedade
brasileira: personalismo, voluntarismo. No princípio, tive alguma dificuldade
com isso. Mesmo assim, resolvi propor ao governador a realização de um
seminário chamado “Cultura XXI”, onde se tentaria fazer um diagnóstico
da situação da cultura. Eu era tão ingênua, tão neófita, que chamei o então
ministro Gilberto Gil. E ele compareceu. Chamei o Brasil inteiro. E o Brasil
compareceu. Eu não estava preparada para tanto. O ministro disse que esse
foi o primeiro convite que havia recebido desde assumir o cargo. Ele também
estava chegando a Brasília, e recebeu um ofício meu que dizia: “Ministro,
estou organizando um seminário, no longo do qual pretendo discutir cinco
pilares que me parecem importantes para podermos começar um trabalho
de gestão cultural e formulação de política pública”.

Quais eram os cinco pilares?


Políticas e gestão; leis de incentivo e legislação em geral; patrimônio; mu-
nicipalização; economia. Eram esses os cinco pilares, um para cada dia do
seminário. O governador me disse: “Mas é muito tempo! Tem conversa para
todos esses dias?”. Respondi que sim. Convidei o ministro para vir no dia em
que se discutiu cultura de município. Tenho a impressão de que o discurso
que fez na ocasião foi seu primeiro no governo Lula. Era uma quinta-feira,
março de 2003, o teatro do Centro Cultural Dragão do Mar lotado. No longo
do pronunciamento, o ministro colocou, de certa maneira, a plataforma do
que seria o governo Lula em termos de cultura. Havia muitas afinidades entre
nossas maneiras de pensar. Como ele, eu também via a cultura por três vieses

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muito distintos. Primeiro, a necessidade de ampliar o conceito de cultura, de
modo que abarcasse não só as linguagens ditas artísticas. A vida inteira ouvi
que o povo do Ceará não tinha cultura, o que é um absurdo, já que o nordeste é
uma espécie de epicentro da cultura latino-americana, tão importante quanto
o Vale Inca do Peru. Poucos dão acordo do potencial cultural dessa região
magnífica, porque o próprio termo cultura é geralmente associado, tanto no
discurso do senso comum quanto no da elite, ao academicismo, à erudição. O
segundo viés era a inclusão, a questão da cidadania cultural, um dos primeiros
pontos que discuti com minha equipe quando cheguei à Secretaria. O terceiro
era a profissionalização, a necessidade de dotar os profissionais do campo
da cultura e torná-los menos amadores, porque cultura também é emprego
e renda. Quando percebi que esses pontos também eram prioritários para o
ministro, entendi que a Secretaria de Estado do Ceará não teria dificuldades
de trabalhar com o governo federal, muito embora eu representasse um par-
tido de oposição. Mas essa oposição, felizmente, nunca se colocou. Inclusive,
quando o governador deu as boas-vindas ao ministro, falou uma frase muito
simpática: “Ministro, seja bem-vindo ao Ceará, aqui somos todos do partido
das culturas”. Daí a cumplicidade e amizade que vieram a caracterizar nossas
relações dali em diante.

Cláudia, lemos uma entrevista sua na qual você afirmava que “não existe
gestor cultural triste”. Você ainda acha isso?
Sim, acho. Há tanta criatividade na gestão cultural que não posso deixar
de pensar que temos algo a ensinar a todos os outros ramos de gestão pública
do país. Evidentemente, essa gestão enfrenta diversos impeditivos, porque a
cultura é um produto inteiramente diferente dos demais produtos. Quando
pegamos, por exemplo, uma Lei 8666 para trabalhar uma licitação, começamos
a perceber que nossa área é muito difícil. Outro dia eu estava discutindo com
uma aluna a respeito do papel desempenhado pelas OSCIP e OS nessa questão.
Há quem diga que as OSCIP e as OS não são constitucionais e vão acabar. Não
acredito nisso. Creio que são instrumentos interessantes, merecedores de uma
análise menos partidária. OSCIP ou OS, independentemente do partido a que
se associam, são formatos válidos de gestão não estatal, porque nosso direito
administrativo tem tudo para entristecer o gestor. Um dos entraves à gestão
pública no Brasil hoje em dia é esse direito que encara o gestor com extrema
desconfiança. O que significa ser gestor hoje no Brasil? Um gestor que inova,

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um gestor que não se deixa desencorajar pela burocracia dos processos, vai ter
de pagar por suas obsessões depois. Penso que, no caso do Ceará, nós inova-
mos. Inovamos no sentido da gestão, criamos um plano estadual de cultura.
Queríamos fazer um trabalho de interiorização, formular políticas de cultura
capazes de dar voz e vez às diversas regiões do estado. Criamos o programa
Valorização das Culturas Regionais, carro-chefe da nossa gestão. Mas como
alcançar um município como Salitre, por exemplo, que tem o menor IDH do
estado? O Ceará é muito pobre. A questão que se apresentava era: como sair
da capital? O direito administrativo, o direito constitucional brasileiros não
nos permitem chegar lá na ponta! Ou seja, as formas que encontramos de
chegar lá foram jurisprudências. Não são legais. Por mais que minha gestão
tenha sido honesta, tenho mais de 20 processos contra minha pessoa! Em
nome da alegria e da criatividade do gestor brasileiro, é preciso transformar
o aparato jurídico onde ele trabalha. Trabalhar com cultura não é como licitar
carteira escolar, leito de hospital ou vacina.

Quanto às OSCIP e OS: por que a necessidade de realizar a gestão privada


de cultura a partir de Fundações Não Lucrativas?
Bom, eu chamo de não estatal, não chamo de privada. É um pouco dife-
rente. Quanto às organizações, penso que sua importância reside justamente
no quanto podem ser úteis às estruturas governamentais. Por sua própria
natureza, essas estruturas não podem nada. Temos pouquíssimas secreta-
rias de cultura no país, e suas possibilidades de realização prática são muito
pequenas. Elas basicamente se limitam à elaboração de programas. Nossa
secretaria era voltada para o regional, mas realizar algo nesse sentido através
da secretaria era praticamente impossível. No meu caso, o Dragão do Mar –
primeira OS de cultura do Brasil – foi fundamental para minha gestão, porque
a flexibilizou. Eu repassava recursos para lá, e o Dragão contratava. Em suma,
as OSCIP, as OS, as entidades de amigos, são muito importantes para que as
secretarias realizem ações efetivas.

Você poderia nos dar uma narrativa desses lugares afastados do centro
que sua gestão alcançou?
Pouca gente sabe disso, mas a Secretaria de Cultura do Ceará é a mais antiga
do Brasil. Foi criada em 1968, é mais antiga que a de São Paulo. Muito embora
tenha toda essa tradição, ela sempre se limitou a uma ação de capital, como,

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aliás, todas as secretarias de cultura. Em alguma medida, nosso (no dizer de
Sergio Miceli) “clientelismo” sempre fez refém todas as políticas culturais – você
só consegue servir aos artistas de plantão, aqueles que estão mais próximos
das secretarias. É quase inimaginável uma política pública que sirva a toda a
população e não exclusivamente ao artista. É preciso trabalhar contra essa lógica
canhestra de que uma Secretaria de Cultura só existe em função de um grupo
de 10 cineastas, 20 artistas plásticos, 50 literários, todos com acesso à mídia,
aos jornais. É uma situação dramática. Os gestores de cultura pública vivem
acossados por esses lobbies poderosos que dominam as leis de incentivo. São
eles que têm os contatos e chantageiam os departamentos de marketing dos
bancos. Sei o preço que paguei por elaborar uma política que leva em consi-
deração 8 milhões de cearenses. Ao final desse seminário que realizamos em
março de 2003, fizemos um planejamento estratégico e saímos com um plano
de cultura, que logo depois foi publicado em livro e distribuído pelo Brasil todo.
Mandei o livro para o ministério, dizendo que precisava criar um chão insti-
tucional para dizer aonde estávamos indo – e estávamos indo para o interior
do Ceará, doesse a quem doesse. Por uma questão estratégica, resolvemos nos
aproximar do turismo. O prefeito não vai entender que cultura pode ser um
instrumento econômico até que se fale em turismo cultural. Só então a cultura
começa a assumir, para ele, um vulto que ultrapassa as festas de padroeiro, de
município ou as datas patrióticas. Nesse painel, a cultura serve ou à educação,
ou à assistência social, que é o mais perigoso dos problemas da cultura. Quan-
do a cultura vai para as mãos dos secretários de ação social, é quando vemos
o produto de pior qualidade – é o coral desafinado, a peça de teatro que não
presta, é a cultura feita de forma “filantrópica”. Mas, como ia dizendo, cami-
nhamos para essa parceria com o turismo. O secretário raramente participava
das ações, mas cedia sua equipe. Foi essa junção de pessoal que viabilizou a
criação dos fóruns regionais que implementamos em todas as regiões do esta-
do. Isso foi uma grande mudança. Como os fóruns eram itinerantes e serviam
a todos os municípios de sua região, isso dava oportunidades de diálogo que
não existiam antes. Por exemplo, era um momento em que os administradores
do hotel-resort de Camocim podiam conversar com a Associação de Jangadei-
ros. No geral, promovemos interlocuções muito interessantes. O encontro de
Cearás totalmente diferentes que conviviam numa mesma região. Para tanto,
contamos com a presença do SEBRAE, do SESC, do SENAC, do Banco do Nor-
deste, das associações, dos artistas. Quando os fóruns começaram a, por assim

101
dizer, “pegar no embalo”, começamos a levantar as vocações culturais de cada
região. Dentro do Programa de Valorização de Culturas Regionais, um de nossos
maiores projetos era a criação de uma Secretaria Itinerante. Passamos dois anos
elaborando as condições logísticas para tal e mantendo diálogos estreitos com o
interior do estado. Essa iniciativa era tão inusitada que, quando eu chegava aos
municípios, as pessoas me perguntavam se eu era Secretária da Agricultura. E eu
brincava, citando a Marilena Chauí em seu Cultura e Democracia, dizendo que
cultura vem de “cultivo”. Então realmente são coisas parecidas. Durante esses
dois anos iniciais, fizemos um mapeamento territorial minucioso. Entendi o que
era o maciço de Baturité, a serra da Ibiapaba, o Sertão Central, os Inhamuns,
o Cariri, o vale do Acaraú, o vale do Jaguaribe. A partir daí, já com uma noção
bem mais ampla do que nos aguardava fora de Fortaleza, fizemos um projeto
chamado “Cultura em Movimento – SECULT Itinerante”. Durante esse período,
contei muito com a ajuda do governador quanto à captação.

Você acha que o gestor público pode captar?


Creio que sim. O ministro Gilberto Gil captou, o ministro Juca Ferreira cap-
tou. Não dá para abrir mão disso. Como disse, não temos recursos próprios, na
verdade. Não somos capazes de mover satisfatoriamente uma máquina pública.
Então, eu fazia bons projetos e ia para as antessalas de marketing das empresas.
Em um ano, tripliquei o que o Ceará captava. Até da Avon conseguimos apoio.
Em Brasília, conseguimos parcerias importantes com o Bradesco, a Eletrobras,
a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica. Com a Lei Rouanet, consegui
captar recursos para projetos estruturantes no interior do Ceará.

E é papel do Estado produzir eventos?


Se não há produção de eventos no local, então é papel do Estado. Estamos
falando de regiões que nunca tiveram acesso a coisa nenhuma. Como esperar
que elas façam seus próprios projetos? Não, era preciso ir até elas e, uma vez
lá, ensinar o processo a quem estivesse interessado. No fundo, tenho para mim
que a gestão cultural é uma ação absolutamente pedagógica, de caráter civili-
zatório. Criamos o Festival de Música da Ibiapaba, o Festival de Trovadores e
Repentistas do Sertão Central, a Mostra Cariri das Artes, o Festival de Música
de Câmara do Centro-Sul, o Festival de Circo de Bonecos dos Inhamuns, o
Festival dos Mestres do Mundo do Vale do Jaguaribe, o Festival de Dança do
Litoral Leste, a Festa do Livro e da Leitura do Litoral Oeste. Ou seja, em dois

102
anos, conseguimos ter ações estruturantes em todas as regiões, em função de
suas vocações culturais. Por detrás de todos esses festivais, havia uma lógica de
financiamento tripartida. Um terço do dinheiro vinha do Fundo Estadual de
Cultura, outro terço vinha do dinheiro que eu captava nas estatais brasileiras,
e o outro terço era escambo. Eu chamava os prefeitos e dizia, em linhas gerais:
“O senhor sozinho não pode nada, mas regionalmente podemos muito. Não
quero seu dinheiro, mas quero parceria. Preciso de hospedagem, transporte,
restaurante”. Com esse escambo, fechávamos o orçamento. O Ceará, portanto,
começou a ter uma agenda cultural em todas as regiões. Uma vez isso tudo
montado, saímos de Fortaleza.

Como foi essa saída?


Muito bacana. Era uma comitiva grande, como a Expedição das Borboletas
do Dom Pedro II. Fiquei praticamente um ano e oito meses sem voltar para
casa. Já tínhamos um primeiro diagnóstico da situação do estado por conta
dos dois anos anteriores. Então criamos todos os subsistemas de cultura: o
sistema estadual de teatros, de museus, de ciências culturais, de bibliotecas,
de bandas de música. Além disso, oferecemos uma “cesta básica” de cursos, a
maioria elaborada a partir da vocação específica de cada região. Por exemplo,
no centro do Ceará há uma região de pedra semipreciosa, então oferecemos
um curso de Design de Joias, para atender à vocação joalheira do local. Cria-
mos cursos-padrão também, comuns a todas as regiões. Entre eles, havia o
de Educação Patrimonial, onde tentamos ensinar o significado de patrimônio
imaterial e material, além de medidas de proteção. Havia também o curso
de Gestão e Produção Cultural, que tratava da elaboração e da redação de
projetos. Além desse braço de formação, nosso programa também tinha um
braço de difusão, para formação de público. Levamos isso a efeito montando
lonas de circo em cada lugar que visitamos. Chegávamos como uma espécie
de Caravana Rolidei, do filme Bye Bye Brasil. Uma vez montado o circo, cuja
programação era toda voltada à descoberta de novos talentos da região, em-
preendíamos um censo artístico do local. Esse censo levantou 40 mil artistas
no estado inteiro. Outro braço do programa era o de institucionalização, o
que me fazia visitar as câmaras de vereadores para explicar-lhes o que era
uma Secretaria de Cultura, o que era o Sistema Nacional de Cultura, o que
eram as Fundações. Isso era feito com aulas-espetáculo, apresentações de
PowerPoint, exibição de filmes. Ainda nesse âmbito, distribuímos cartilhas

103
sobre Federalismo Cultural e Investimos Culturais, mostrando o caminho
para prefeitos, vereadores e as populações como um todo. Minha meta nas
câmaras era construir secretarias. Quando assumi o cargo, havia algo entre
20 e 25 secretarias no estado. Quando saí, havia 100.

O que mais nos chama a atenção no que diz respeito à sua gestão é essa
iniciativa de criar a produção para depois geri-la. Isso dá uma eventidade
ao gestor que o gabinete não daria, não é?
Praticamente não estive no gabinete. O ministro Gilberto Gil esteve muito
aqui durante os primeiros anos de gestão, e nunca encontrei com ele numa
situação de ar-condicionado. Era sempre no chão do sertão, andando. Ainda
acho a itinerância o melhor formato. Não fosse por isso, não teria conseguido
alcançar os municípios que alcancei com minha equipe. Mas, na minha opi-
nião, a coisa mais importante que ficou da gestão foi o livro bem extenso de
leis que publicamos. Afinal, os programas se acabam, as políticas são sempre
muito vulneráveis, mas as leis ficam. Segundo o sistema jurídico brasileiro,
lei é melhor que programa. Torne-se a política lei, e ela sobreviverá.

Você pode falar um pouco mais sobre essas leis?


Foram muitas! Nós criamos um Sistema Estadual de Cultura que estabe-
lece uma política afirmativa que nenhum outro estado brasileiro tem. Temos
o FEC (Fundo Estadual de Cultura), que estabelece que pelo menos 50% de
seus recursos precisam ir para o interior do estado. A mim me parece apenas
justo, em se tratando de uma política pública de Estado, mas foi um escândalo.
De todo modo, a lei continua em vigor. É uma coisa muito estranha: somos o
país do patrimônio imaterial, nossa maior riqueza cultural são nossas festas,
saberes e fazeres tradicionais, mas quando fui procurar uma legislação esta-
dual ou municipal que apoiasse essa expressão cultural, não havia nenhuma!
Nenhuma! A primeira lei dos Mestres da Cultura do Brasil é nossa, do Ceará
(havia uma de Pernambuco que não havia sido regulamentada). Depois que
nossa lei foi criada, houve uma avalanche de leis similares. Hoje existem várias
leis municipais e estaduais protegendo esse patrimônio imaterial.

Como proteger os Mestres da Cultura?


Começamos por uma questão de emergência. Estou falando de pessoas
com em média 80 anos de idade e que estavam morrendo de fome. Conse-

104
guimos garantir-lhes uma sobrevivência financeira e assegurar uma primeira
ação de transmissão. É apenas lógico. Se o mestre tem condições, ele vai tra-
balhar no processo de transmissão com o Estado. De resto, não ignoramos o
fato de que eles já eram mestres em suas próprias vizinhanças, apenas criamos
situações específicas de encontro, como o Festival Mestres do Mundo, para
o qual trouxemos mestres do Japão, da Índia, do México, e juntamos com os
mestres do Cariri, de Minas Gerais e do resto do Brasil.

Como transformar essas iniciativas em políticas de Estado?


A única forma de se fazer isso é fortalecer a sociedade. Falo de uma so-
ciedade fortalecida pelo Sistema Nacional, por Conselhos Municipais. O que
nós construímos durante minha gestão foi em parceria com as populações, e
essas parcerias são frágeis. Ou seja, como o novo secretário – o novo governo
– não continuou esse trabalho, ele se desconstruiu num minuto. Em 2007,
uma pesquisa do IBGE apontou que o Ceará tinha os melhores números do
Brasil inteiro. Era o estado com o maior número de Secretarias, Conselhos,
Leis Municipais. Em apenas dois anos, 2/3 do que conseguimos fazer já se
perdeu. É lógico que alguma coisa fica, mas em termos gerais, é um traba-
lho sisífico. A gestão cultural no Brasil ainda está nessa fase proto-histórica,
ainda não encontrou um terreno sólido onde possa se firmar. Sou otimista,
não creio que todo nosso trabalho tenha sido em vão. No entanto, compara-
do com o que já foi, esse 1/3 que ficou é muito pouco. Acabei de saber, por
exemplo, que Juazeiro do Norte extinguiu sua Secretaria de Cultura, fruto
de um trabalho importantíssimo. Imagine, a terra de Padre Cícero sem uma
Secretaria de Cultura? Mas o prefeito decidiu. Os vereadores não podem fa-
zer muito, são muito frágeis politicamente. Tentei conduzir um trabalho de
autoestima junto aos vereadores, tentando fazer com que entendessem que
o Brasil só é democrático porque conta com eles. Mas... não é assim que as
coisas se dão, na verdade. Toda nossa estrutura republicana, para o sertão do
Brasil, é apenas uma estrutura formal. Quando se vai ao interior, de vez em
quando, os prefeitos moram em outros estados! As câmaras de vereadores
quase nunca abrem. Precisamos reavivar essa estrutura republicana e, para
tanto, precisamos de uma sociedade minimamente instituída. O problema é
que a tradição brasileira é de um Estado que antecede a sociedade. Pudera,
chegou de caravela!

105
106
Joãozinho
Ribeiro
Ex-Secretário de Estado da Cultura do Maranhão.

Fale um pouco das inúmeras manifestações culturais no Maranhão.


O Maranhão se transformou num diálogo generoso de várias matrizes
culturais. Durante o período colonial, os portugueses custaram muito a se
integrar dessa imensa costa brasileira. Uma pesquisa coloca que os franceses
já estariam, de certa forma, viajando e tendo contato com as populações in-
dígenas na costa do Maranhão. Tanto isso é verdade que a capital foi ocupada
por franceses e posteriormente foi chamada de São Luís. Depois vieram os
holandeses. Só então os portugueses fincaram, de uma forma mais sistemá-
tica, as suas bandeiras no Maranhão e organizaram administrativamente
essa capitania. Com isso, deu-se a migração do litoral para o sertão e o fluxo
de escravos da África para as lavouras. Essa ocupação depois seria reforçada
pelo ciclo do gado e os vários ciclos de migração que tivemos no país. Então,
a construção da matriz cultural do Maranhão vem de toda essa conjugação de
povos que habitaram a região e que foram construindo coletivamente essa he-
rança cultural, esse legado. O tambor de crioula, que é uma das manifestações
mais fortes do Maranhão e existe em praticamente todo o estado, tem uma
matriz africana muito forte nos rituais religiosos. O bumba-meu-boi aparece
inicialmente nas fazendas, principalmente nas fazendas que foram abando-
nadas pelos senhores de escravos, e, em cada região, tem uma característica

107
diferente, um sotaque. Essa manifestação foi incluindo outros elementos,
como os instrumentos que eram utilizados de maneira bem rústica. Os sota-
ques variados acabam tendo influências também das populações indígenas,
da população africana e até da população europeia, quando alguns grupos
começam a utilizar instrumentos de sopro. Várias outras manifestações,
que derivam dessa matriz, hoje compõem o imenso mosaico que é a cultura
maranhense. Isso tem influência nas danças, nas músicas e nas várias ma-
nifestações artísticas que hoje são objeto de pesquisa e de trabalho artístico
em todo o mundo. Essa herança cultural tem uma matriz bastante singular
em relação às outras regiões do país.

E a cena contemporânea do Maranhão, como se encontra?


O Maranhão é um estado que, segundo dizem, está todo o tempo com o
dedo no gatilho. Antigamente, o dedo no gatilho era mais visto como a questão
da ocupação dos espaços, principalmente do sertão e dos conflitos agrários.
Mas esse dedo no gatilho da produção cultural eu diria que ainda encontra
alguns gargalos, que precisam ser extirpados para que ela possa ser desen-
volvida. Em alguns momentos, nós tivemos uma pujança muito forte, que
colocou o Maranhão na cena do mundo, como é o caso de um período muito
fértil na literatura. São Luís foi chamada pela elite de a Atenas brasileira, que
é um culto a um momento que tem no poeta Gonçalves Dias a personalidade
mais emblemática. Essa veia literária do Maranhão é conhecida no mundo
inteiro, com, inclusive, escritores contemporâneos como Mauro Machado e
Ferreira Gullar. Outras manifestações artísticas também tiveram períodos de
bastante reconhecimento mundial, como o próprio teatro maranhense, que
teve uma cena importante.
O Maranhão já foi o terceiro polo industrial do país, a Atenas brasileira, já
ganhou vários prêmios na área do teatro, tem um grande festival de cinema
chamado Guarnicê, mas há um sentimento de que essa efervescência pertence
ao passado, o que não é positivo. Na verdade, toda essa herança cultural re-
siste ao tempo, e a cultura emergente vai absorvendo, deglutindo essa matriz
riquíssima e diversa, se apropriando de maneira a dar novo formato, novas
linguagens. O movimento hip-hop é um exemplo disso: é um dos maiores
do Brasil. O pessoal do hip-hop do Maranhão fez uma grande ponte com a
Europa, com São Paulo, e hoje é um movimento bastante respeitado. Evoca
o sincretismo religioso, consegue dialogar com elementos das culturas de

108
matrizes africanas tradicionais, como o bumba-boi de zabumba, o tambor
de crioula, a dança do lelê. Esse é um fenômeno novo, que talvez ainda não
esteja nessa cena oficial, traduzida para outras plagas, mas é um aspecto que
deve ser considerado atualmente, quando a gente fala numa cena maranhense
de cultura.

E o reggae?
O reggae começou na zona do baixo meretrício, do lado da ilha de São Luís.
Como aconteceu em quase todo o país, depois do grande boom do comércio,
no final de todo esse apogeu, a área portuária ficou degradada, se transformou
no que a gente chamava de ZBM, zona do baixo meretrício. Eu nasci e me criei
no centro histórico de São Luís. Quando eu era garoto, me deparei com várias
paisagens assim, um território povoado por levas e levas de marinheiros, que
vinham de muitos mares navegados, de muitas noites, e ansiavam por terra e
por mulheres. Eles traziam muitos souvenirs de outros países. A primeira vez
que eu ouvi a palavra “reggae”, e esse ritmo, foi lá. Os discos provavelmente eram
trazidos das Guianas Francesa e Holandesa, que, em geral, era a procedência
desses navios. E o reggae se espalhou como um fenômeno pelos bairros de
periferia de São Luís, a princípio, e teve um diálogo muito fecundo com essas
populações. Naquele tempo, o Caribe já tinha uma influência muito grande
em São Luís, pelas músicas que eram tocadas lá, o merengue, a salsa, o calipso.
Então o reggae foi se espraiando. No primeiro momento, criou um fenômeno
chamado radiola de reggae, que são imensas caixas de som, operadas por DJs.
Caiu na graça do povo e virou grandes bailes populares.
Hoje o reggae já é um fenômeno concentrador de renda, se transformou em
um tipo de exploração, o que a gente chama de um novo tipo de escravidão
oficializado. A maioria dos negros, que incorporaram, dançam e praticam o
reggae, sustenta um grupo de, no máximo, dez empresários, que são donos
das radiolas e que entraram também no mundo político. Vários deles são
deputados, têm mandato. Essa população toda que chega a pagar às vezes
até R$ 50,00 por show é quem sustenta toda essa indústria, que é apropriada
por um grupo bem pequeno de pessoas.
Então, essa ideia que passa para fora, de que São Luís é a Jamaica brasilei-
ra, e que o reggae é a grande manifestação, é preciso ser vista com bastante
cautela. O Maranhão possui diversas manifestações culturais, e não é positivo
que esteja apenas associado a um estereótipo do reggae.

109
Há semelhanças entre as radiolas do reggae e as aparelhagens do tecno-
brega do Pará?
Eu estive recentemente em Belém e estava conversando sobre isso com
os gestores de cultura de lá. Esse fenômeno do tecnobrega, que mereceu um
estudo da Fundação Getúlio Vargas, é um tipo de economia de cultura que
fugiu aos padrões de modelos de negócios que se conhece. No Pará, a coisa
é bastante democratizada. Percebo que é um fenômeno apropriado de uma
forma mais descentralizada e que até agora é alvo de estudo. Já no Maranhão,
para vocês terem uma ideia, os parlamentares que são empresários do reggae
buscam eleger vereadores em cada cidade para defender, em cada câmara,
o Dia do Reggae. Querem que no calendário de cada município exista o Dia
do Reggae. Por trás disso está uma grande rede de apropriação também de
recursos públicos, para que os 217 municípios maranhenses tenham, de uma
forma mecânica, de uma forma de cima para baixo, criado um circuito de
radiolas contratadas. É uma estratégia bastante definida e bem planejada.
Existem outros problemas, inclusive no diálogo das radiolas com as festas
tradicionais. Estive há algum tempo na Festa do Divino, em Alcântara, e lá
o pessoal só podia fazer os ritos e as missas depois que a radiola parasse de
tocar na praça, num som bem alto, quebrando toda uma tradição secular, sem
conseguir construir um diálogo. Isso é perigoso. Segundo a Marilena Chauí,
que estudou esse fenômeno de culturas diferentes, quando elas se colocam
face a face, se não se consegue construir um diálogo generoso, fazer o que
a gente chama de interculturalidade, há o perigo imanente de uma querer
absorver a outra, ou destruir.

Tiradentes, em Minas Gerais, proibiu o axé no carnaval para manter as


tradições das folias de reis. Esse é um caminho possível?
Se a gente conseguir construir um diálogo entre as duas manifestações,
sem xenofobismo, sem bairrismo, acho que isso se dá até de maneira natural.
No Maranhão, os bois têm um costume de fazer ensaios, que eles chamam
ensaios redondos, nas suas próprias comunidades. Eles têm todo um rito.
Enquanto não acaba o ensaio, a radiola de reggae não pode tocar. Depois
que termina o ensaio, o reggae fica tocando até de manhã. Então, o pessoal
consegue dançar o boi e depois dançar ao som da radiola do reggae até o
amanhecer. Isso é um tipo de relacionamento cultural, de diálogo cons-
truído, sem interferência de autoridade, sem nada. A própria comunidade

110
absorveu e conseguiu colocar em prática, mas na maioria dos lugares isso
não acontece.
Há algum tempo eu estive em alguns povoados remanescentes de quilom-
bos e fiquei preocupado com o fenômeno das radiolas, que não respeitam os
ritos e nem as manifestações de matrizes africanas. Um fenômeno também
complicado é que as novas gerações que vão se achegando à cena cultural
ficam a mercê de um fenômeno que traz consigo uma carga de extermínio
dessas raízes. Essa nova geração, encantada pelo fenômeno do reggae, fica
um pouco envergonhada das suas raízes. É preocupante porque, sem esse rito
de passagem, sem essa ponte entre as duas manifestações, prevalece aquela
que está mais ligada à indústria cultural. Além da questão do Dia do Reggae
em todo município, há também uma compra de programas em tudo quanto
é rádio, seja comunitária, seja oficial, para tocar reggae durante uma grande
parte do dia. Então, há um modelo de negócio bastante agressivo em torno
da indústria do reggae.

Talvez um dos temas mais difíceis seja a preservação desses rituais de


uma forma verticalizada, quer dizer, de uma política cultural, porque
eles são dinâmicos, não são rituais fechados.
A melhor forma de preservação é por meio do diálogo, da interculturalida-
de. Às vezes, por intermédio desse processo, surgem até culturas emergentes,
que vão dando vida e dinamicidade. Por exemplo, da junção do reggae, ou
mesmo em alguns momentos do hip-hop, com o sotaque de zabumba do boi,
que tem uma característica bem marcante, têm surgido várias manifestações
na dança. Isso é interessante, porque foi algo que surgiu da construção desse
diálogo. E se existe no Maranhão, deve existir também em outros estados.

Fale um pouco da produção cultural no sul do Maranhão.


O sul do Maranhão talvez seja um exemplo cruel de negação de raízes cul-
turais, principalmente pelo fenômeno da terra. No Brasil inteiro, guardadas
as devidas proporções, a terra sempre foi o fator de grandes transformações,
para o mal e para o bem. No Maranhão, o processo do latifúndio foi muito
duro e teve toda uma consequência da desagregação cultural, da desagregação
econômica, da desagregação das matrizes produtivas. O agronegócio, como
forma de desenvolvimento econômico, que pautou aquela região, teve como
consequência a extirpação de várias culturas locais. Quando ele se instala

111
como um modelo de desenvolvimento, traz consigo também a possibilidade
daquele espaço cultural ser preenchido por fenômenos que eu chamaria da
cultura do espetáculo. Aí começam os grandes shows de sertanejos, de sam-
banejo, das micaretas. É um fenômeno que, do ponto de vista da economia da
cultura, tem causado um processo de evasão de renda cruel em todas aquelas
regiões do sul do Maranhão.
Quando eu era secretário de Cultura, os prefeitos sempre nos procuravam
para apoiar projetos desse tipo. Um deles até me disse que, se não fizesse
essas grandes festas, não se elegia na próxima eleição. Uma vez eu perguntei
para eles como ficava a economia dos municípios depois desses eventos de
grande porte. Eles disseram que passam três ou quatro meses com quase
toda atividade de serviços e comércio bem em baixa. Esse modelo de negócio,
que vem das micaretas e esses outros tipos de produção cultural, tem esta
particularidade: os direitos autorais, desde do artista que está no palco, além
dos equipamentos, dos royalties e das licenças, são pagos pela compra de
abadás e pelo município e são recolhidos em escritórios de outros estados.
Isso causa uma evasão imensa de recursos em municípios pobres. E também,
na maioria desses municípios, principalmente os de características rurais, a
renda é das pessoas mais velhas, que vem das aposentadorias rurais, do INSS,
e agora dos programas sociais do governo, Bolsa Família. Os avós ou os pais,
movidos pelos desejos dos netos e filhos, ficam com prestações a pagar dos
abadás e dos outros produtos gerados por essas micaretas. Isso causa uma
queda em todo o comércio da cidade.

Quais são os caminhos para lidar com os direitos autorais sob a perspec-
tiva das culturas tradicionais, em que a autoria é coletiva?
Talvez quem nos dê a melhor lição sobre essa questão sejam as popula-
ções indígenas. Nós temos aqui, no Brasil, a questão do direito autoral de
domínio público, que é uma faca de dois gumes. Ele coloca a possibilidade
de democratizar a informação, a cultura, mas, por outro lado, também coloca
o fenômeno da invisibilidade cultural, que talvez seja a forma mais cruel de
exclusão, do ponto de vista humano. Então, a gente tem que ter um equilíbrio
entre esse processo da criação e a apropriação dos seus resultados. Vou pegar
uma manifestação tradicional do Maranhão para caracterizar essa questão
do direito autoral coletivo. As comunidades que já têm mais de cem anos,
onde o bumba-meu-boi é tido como a maior manifestação, com as toadas e

112
as canções que vêm dele, quem tentava se apropriar dessas toadas e colocar
como suas era expurgado da comunidade à base da paulada de matraca, que
é um instrumento de percussão feito de madeira. Essa era uma forma que eles
tinham de dizer para o mundo que aquela criação era coletiva. E isso valeu
até pouco tempo atrás. Se alguém perguntasse de quem eram as toadas, as
mais antigas, as pessoas respondiam que eram do boi, não identificavam os
autores, mas, depois, com a comercialização da produção musical, e com o
bumba-meu-boi vendendo cerca de 15 mil CDs na época da festa de São João,
no Maranhão, os autores passaram a querer ser identificados. Então essas
comunidades passaram por esse fenômeno e individualizam a autoria, mas
vários grupos indígenas, para proteger a sua produção e a autoria, construí-
ram associações e defendem que esse reconhecimento da autoria seja dado a
essa associação, do ponto de vista econômico e do ponto de vista simbólico.
É a maneira que eles encontraram para tentar proteger suas criações. Por
incrível que pareça, o direito brasileiro ainda não abriga isso. É uma questão
que, de fato, já acontece, mas o direito brasileiro identifica o autor somente
por pessoa física.
Quando a Lei 9.610 foi aprovada, em 1998, ela resolvia um conflito que
existia anteriormente, das pessoas jurídicas, esse fenômeno abstrato, sem
alma, incorpóreo, que o direito ocidental abrigou, e hoje se expandiu pelo
mundo inteiro. Antes, a pessoa jurídica poderia ser considerada criadora de
uma obra intelectual. Então, o direito brasileiro, a partir de 1998, consagrou
que o autor só pode ser pessoa física. Esse direito moral só pode ser atribuído
à pessoa física. Isso resolveu um conflito entre autores e essas grandes corpo-
rações, mas, por outro lado, não teve um olhar para o Brasil inteiro. Resolveu
apenas o conflito individual. Lembro do Gilberto Gil, numa briga terrível
com a Warner em torno dos seus direitos autorais. Hoje é a sua produtora, a
GG, que a sua mulher dirige, quem negocia caso a caso cada produção, cada
autorização de exploração da sua obra musical.
A legislação autoral brasileira tem de ser revista o mais urgente possível,
porque ela não comporta casos como esse que nós estamos discutindo, da
criação coletiva, e muitas populações ainda trabalham assim, não só as po-
pulações indígenas, mas populações ribeirinhas, populações tradicionais,
remanescentes de quilombolas. Isso faz parte da nossa realidade, desses
“brasis”, que nós temos. Costumo brincar, mas falando sério também, que o
Brasil, embora não seja um verbo, não pode ser conjugado no singular: ele

113
tem que ser conjugado sempre no plural. Porque nós temos vários “brasis”
dentro desta nação continental.

As culturas tradicionais são dinâmicas e absorvem o que está lá fora.


Elas também têm o direito de absorver o que está lá fora, não pode ha-
ver restrições para isso. Então quais as mudanças de direitos autorais
necessárias para preservar as singularidades e ao mesmo tempo manter
o dinamismo cultural, a possibilidade de diálogo e de transformação?
Eu sou um defensor contundente da abertura no campo da cultura. De as
culturas se abrirem umas para as outras, abraçarem, conviverem. Eu defendo
de uma forma bastante profunda essa possibilidade. Os empecilhos ou as
dificuldades que tem nesse campo se dão mais do ponto de vista da descons-
trução de um modelo de negócio que as grandes corporações da indústria
cultural criaram. Hoje esse modelo de negócio está bastante abalado pelas
novas tecnologias de informação e comunicação. Eu diria que é um cadáver
insepulto essa forma de tentar fazer uma “proteção” de alguns fenômenos
culturais. Os próprios criadores e produtores, desde que você crie espaço e
consiga fazer com que convivam de uma forma mais saudável, não advogam
tanto essa proteção. A professora Alessandra Tridente escreveu um livro mui-
to interessante sobre direito autoral chamado Direito autoral – paradoxos e
contribuições para a revisão da tecnologia jurídica no século XXI, e ela ataca
ou critica três aspectos que fundamentam o arcabouço jurídico que o direito
autoral tem hoje, não só o do Brasil, mas quase o do mundo inteiro. Talvez
o principal desses aspectos seja a questão do prazo para uma obra cair em
domínio público, para ela ser compartilhada. Esses setenta anos constituí-
dos hoje são uma coisa horrível, não só do ponto de vista de impedir a livre
circulação da produção cultural, como para a criação de novas produções.
Cada obra intelectual colocada no mundo é insumo para outra criação, ou
seja, nada surge do zero, do nada.

Qual é a melhor citronela para os maribondos de fogo que atacam a


cultura maranhense?
Não há como mudar a política cultural de uma cidade, de um país, sem
mudar a cultura política. O Maranhão é um estado oligárquico, de origens
latifundiárias, um estado coronelista. Os políticos que seguem essa prática
possuem o monopólio dos meios de comunicação, que estão ligados a prati-

114
camente duas famílias, a do senador José Sarney e a do ministro Edison Lobão.
Isso faz com que tenhamos como resultado uma prática perversa, que inibe o
acionamento daquele gatilho, de que eu falei no início aqui da entrevista. O
gatilho que não pode disparar um tiro mortal, mas pode disparar uma aber-
tura para essa produção cultural tão grande que o Maranhão tem. Eu tenho
a convicção, desde os meus tempos de fórum intermunicipal de cultura, que
não há como se construir uma política pública de cultura no Brasil, desde os
rincões mais recônditos até as zonas urbanas mais aquinhoadas, se o tripé
cultura, comunicação e educação não estiver bastante azeitado. Se você não
tiver na base da produção educacional uma valorização da cultura local, você
já perdeu 90% de possibilidade de desenvolvimento dessa matriz. E mesmo se
você conseguir essa formação na educação e, posteriormente, não conseguir
a difusão da produção cultural local, essa possibilidade é também perdida.
Por último, se mesmo tendo esses meios, você não conseguir democratizar e
descentralizar essa diversidade, essa formação e essa difusão, não se completa.
Hoje, esses maribondos de fogo queimam toda essa possibilidade que o Ma-
ranhão tem, porque os próprios artistas e produtores maranhenses precisam
pedir licença ao coronelato para que a sua produção possa vingar como uma
planta, como algo da natureza. Esse é um fenômeno que conseguiu atravessar
os séculos e, em pleno século XXI, ainda é uma realidade.

115
116
Heitor Martins
Luiz Camillo Osório
Fábio Coutinho
Gérald Perret
Lárcio Benedetti
José Martins
Maria Arlete Gonçalves
Eduardo Saron

INSTITUIÇÕES
CULTURAIS
Eliane Sarmento Costa
Luciane Gorgulho
Roberto Smith
Danilo Santos de Miranda
Décio Coutinho
Ana Toni
Gilberto Freyre Neto
Carlos Dowling

117
118
Heitor
Martins
Presidente da Fundação Bienal de São Paulo.

O que motivou a escolha do tema Arte e Política para a Bienal de São


Paulo de 2010?
É impossível dissociar arte da política. As duas estão intimamente ligadas,
desde o Egito antigo. Na verdade, é uma escolha dos curadores, não é minha,
mas eu acho o tema muito pertinente. As bienais não ocorrem dentro de um
vazio. Existe uma sequência de discussões em que vão se construindo umas
sobre as outras. Se você pensa na trajetória dos últimos anos, tivemos duas
bienais muito plásticas, com o Alfons Hug. Isso leva a uma certa reflexão para
a bienal seguinte, da Lisette Lagnado, sobre qual é o papel da bienal e sobre a
adequação desse formato. Depois essa discussão se acentua na bienal do Ivo
Mesquita, com toda a questão do vazio, se a sociedade quer ou não um evento
como esse. Então, de uma certa forma, a nossa bienal, a 29ª, está fechando
esse ciclo de debate, na medida em que a sociedade reafirmou o seu desejo
de ter uma bienal forte, representativa, que se alinhe com Kassel e com Vene-
za como uma das grandes mostras de arte contemporânea no mundo. E ao
afirmar isso, está se reafirmando também essa conexão entre arte e política.
Porque a bienal se propõe a tirar um retrato da produção contemporânea
mundial, ainda que vista por parte do Brasil, e esse retrato é, por definição,
um binômio arte e política.

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O que é a Fundação Bienal e como que ela surgiu?
Ela começou em 1950, com o projeto de Ciccillo Matarazzo. Acredito que a
base desse projeto é justamente o que a gente está reafirmando agora, que é o
desejo de conexão do Brasil com o resto do mundo no plano das artes plásticas,
mas também num plano político. Tem um interesse de afirmação nacional,
de inserção do Brasil dentro de um contexto de produção cultural global,
de fazer com que o Brasil seja, de fato, um expoente dentro desse processo.
A bienal cumpriu esse papel. O Brasil saía de um período de pós-guerra, de
um período de afluência, como é o período de hoje, de desenvolvimento, e se
projetava internacionalmente em várias dimensões. A bienal era uma forma
de projeção da nossa cultura e de inserção do Brasil no debate cultural, no
debate plástico.

Outro tema importante sobre isso é a construção do prédio da bienal.


Como ela ocorreu?
Isso escapa um pouco do meu conhecimento da bienal, mas o que sei é que
ela começou dentro do MAM, no tempo em que o prédio era relativamente
acanhado para as necessidades dela. Em paralelo aos eventos da comemora-
ção do aniversário de São Paulo, estava sendo construído o parque do Ibira-
puera, e estava previsto um pavilhão que, originalmente, não era para ser da
bienal. Era para as indústrias ou algo assim. Ao longo daquele processo, ele
acabou sendo desviado e passou a acomodar a fundação. O pavilhão é muito
simbólico. Se você vai a Kassel, vai a Veneza, vai às outras mostras, você vê
que nenhuma tem um pavilhão com essas características, o que torna a nossa
bienal bastante única. Em Veneza, a arquitetura influencia muito na mostra;
tem uma coluna de pavilhões pequenos, e a mostra fica muito fragmentada.
O fato de nós termos um pavilhão único, com pisos bastante amplos e um
pé-direito bastante avantajado, dá muita flexibilidade ao desenho da mos-
tra. Você consegue criar mostras que são muito diferentes umas das outras,
porque você tem muita liberdade arquitetônica para dar suporte. Se a gente
conseguisse refrigerar o espaço, poderíamos fazer uma coisa incrível, que é
ter um espaço amplo, onde você pudesse mesclar arte moderna e contem-
porânea. Isso seria uma coisa única no mundo. Você teria uma condição de
fazer mostras de uma riqueza incrível, mas não é possível hoje, porque você
não consegue mais trazer arte moderna para dentro do pavilhão, por questões
de conservação.

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A Fundação Bienal fará sessenta anos. Isso traz tradições, que podem
fortalecer, mas também dificultar o processo de criação. Como você vê
isso?
Claramente fortalece. Porque a tradição lhe traz uma reputação, um pres-
tígio e uma capacidade de alavancar recursos e mobilização. Não existe outra
instituição no Brasil que tenha essa condição. Temos uma lista de 150 artistas,
e nenhum deles recusou o convite. Você consegue ligar para qualquer artista,
em qualquer lugar do mundo, e convidar para participar da nossa bienal, e
muitos deles, além de aceitar participar, se dispõem a produzir trabalhos
novos. Se você não tivesse essa tradição, esse olhar, não conseguiria fazer isso,
haja vista as dificuldades que outras bienais têm de mobilização. Esse é um
enorme patrimônio brasileiro. Países como a Espanha, a França adorariam
ter uma bienal como a nossa, mas não têm.

O Brasil se lançou definitivamente como um país forte nas artes visuais


na última década. Isso influencia a bienal?
Sem dúvida. As duas coisas estão intimamente ligadas. A própria produção
artística brasileira, até o surgimento da bienal, não ocorria pari passu com
o que estava acontecendo ao redor do mundo. A bienal tem um impacto
enorme no desenvolvimento da nossa produção artística. Você não consegue
pensar num movimento concreto ou neoconcreto no Brasil sem pensar no
papel das bienais. E todos os artistas que secedem aos movimentos concreto
e neoconcreto bebem da fonte da bienal, passam por ela, usam a bienal como
uma plataforma de projeção, como um laboratório de intercâmbio. Então, é
impossível a gente dissociar a força que a arte brasileira tem, nos últimos dez
anos, com o sucesso que a bienal teve nos anos 1990. E há o retorno desse
impacto das artes visuais brasileiras também para a bienal, que se fortalece
internacionalmente.

Algumas pessoas questionam a periodicidade de dois em dois anos do


evento...
Dois anos é muito e é pouco ao mesmo tempo. O calendário é anual, então
coisas que ocorrem num ano e não ocorrem no ano seguinte têm dificuldade
de criar um ritmo. Isso dificulta o diálogo com patrocinadores e com o governo,
e também fazer um programa educativo permanente. Você tem um esforço de
mobilização enorme para fazer o evento nos anos pares e, nos anos ímpares,

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fica um vale. Cria-se uma estrutura e essa estrutura fica completamente sem
utilização por todo um ano ou é desmontada.
Sob o ponto de vista de produção, seria muito melhor você ter eventos
anuais. Você teria um ritmo de relação mais constante com a sociedade. Mas,
sob o ponto de vista das artes, há artistas e críticos que acham que um ciclo
mais longo, como o de Kassel, é mais apropriado. É uma questão que precisa
ser tratada, há limitações e forças dentro dessa estrutura.

Como lidar com arte e educação, fazer essa ponte, e ter uma continui-
dade, não ser um projeto intermitente?
Nós delimitamos que uma das grandes vocações da bienal é a educação,
no seu sentido mais amplo. Nosso país é bastante carente. Menos de 10% da
população foi alguma vez na sua vida a um museu. Quando se faz uma mos-
tra de trinta mil metros quadrados, é uma oportunidade única de aproximar
a população das artes. E para fazer isso com a arte contemporânea é muito
importante que essa aproximação seja mediada, porque a produção con-
temporânea é muito hermética. Então, para fazer com que essa experiência
seja enriquecedora, é importante ter um programa educativo que facilite
esse diálogo entre o espectador, que está indo a uma mostra pela primeira
vez, e a obra. Daí toda uma ênfase no programa educativo, o que no Brasil é
realmente pioneiro, porque não existe em nenhum outro lugar do mundo um
programa educativo com esse alcance, com essa complexidade. A fundação
realizou convênios com a Secretaria de Educação de São Paulo, do estado, do
município, das cidades ao redor; com um grupo de mais de 25 Ongs e insti-
tuições privadas, e desenvolveu um projeto que trabalha a bienal a partir do
educador. O processo começa bem antes da bienal, trazendo os professores
para um treinamento, um laboratório de dois dias sobre arte contemporânea,
onde eles têm um contato com a bienal, com a programação, com a proposta
da curadoria. Eles recebem um material didático e recebem uma formação
de como trabalhar esses temas na sala de aula. A partir daí, eles voltam para
as escolas, ou no caso das Ongs, para as comunidades de base, e trabalham
o tema da bienal em sala de aula com os alunos. Isso deve ocorrer ao longo
de todo o semestre, com um material didático superinteressante, lúdico. Em
setembro, haverá uma pré-abertura antes da bienal, e, durante os dois pri-
meiros dias, a mostra estará aberta só para os professores que participaram
desse processo, de modo que eles possam vir tendo já participado do programa

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de formação e tendo trabalhado o tema em sala de aula. Nossa meta é trazer
algo como quatrocentos mil estudantes ou participantes do programa para
a mostra, em visitas guiadas. É um programa absolutamente único, seja pela
extensão e magnitude, seja pela complexidade. Para se ter uma ideia, a bienal
de Veneza inteira recebe trezentos mil visitantes.

Como se deu a escolha dos curadores para a bienal de 2010?


Nós fizemos um processo de seleção. Levantamos uma longa lista de nomes
possíveis e fomos analisando vários deles, segundo critérios temáticos e curri-
culares. Colocamos algumas diretrizes sobre o perfil curatorial e a capacidade
de trabalho em equipe. O projeto visava não ter um curador único, mas uma
equipe curatorial jovem, com pessoas que não tivessem liderado ainda uma
bienal, para trazer uma certa renovação dentro do processo. E nós formamos
a lista, olhando quem está trabalhando no campo das artes aqui no Brasil e
quem é que está nessa interface entre arte brasileira e arte internacional. O
processo de avaliação trouxe o Moacir dos Anjos e o Agnaldo Farias como
líderes dessa equipe curatorial.

A inserção do Brasil na agenda internacional das artes visuais e o fluxo


cada vez maior de pessoas que vêm para cá para ver nossa produção du-
rante o ano todo são importantes para a bienal?
São muito importantes. Você não pode pensar a bienal em detrimento
das outras instituições, mas como uma soma e até parceria. Inhotim é muito
importante para a bienal, assim como a bienal é muito importante para o
Inhotim. E o mesmo ocorre com as outras instituições, com os museus, com
os institutos. Quanto mais atividade cultural ocorrer, melhor.

Há uma preocupação em pensar agendas comuns?


Há uma preocupação grande nesse sentido, tanto que nós estamos ten-
tando articular o que chamamos de São Paulo Polo de Arte, com o propósito
de começar uma ação coordenada de todas as instituições paulistas ligadas
às artes plásticas, para potencializar os programas educativos, ampliar o
acesso ao público e criar de fato, ou consolidar, essa posição de São Paulo
como centro de produção e divulgação de arte.

Como funciona o Programa Brasil Arte Contemporânea?

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O Programa Brasil Arte Contemporânea é um projeto de apoio à divul-
gação da arte brasileira no exterior. Na Inglaterra, por exemplo, existe o
British Council. Então, quando um artista britânico é convidado para vir
participar da nossa bienal, o British Council apoia e provê recursos, crian-
do instrumentos para que artistas britânicos possam viajar e trabalhar no
exterior, divulgando a sua produção. Eles apoiam centenas de artistas todos
os anos, para fazer os mais diversos tipos de mostra ao redor do mundo. É
um instrumento de divulgação da cultura britânica e da arte britânica. A
França, a Espanha e os Estados Unidos têm a mesma coisa. E o Brasil não.
Cada vez que um artista nosso é convidado para participar de algum evento
fora do Brasil, tem uma dificuldade tremenda na busca de recursos. Mesmo
em mostras importantes, como as de Kassel ou de Veneza, os artistas têm
muita dificuldade de se organizar e de conseguir recursos, conseguir apoio
para poder participar. O Programa Brasil Arte Contemporânea visa justa-
mente suprir essa carência, apoiando viagens, publicações, textos técnicos,
residências. É um programa central. Se queremos desenvolver a nossa arte
e projetar a arte brasileira no exterior, é muito importante ter esse tipo de
apoio de base.

E a questão contrária, da residência de artistas internacionais, do Brasil


como um polo criativo, tem se fortalecido?
O Brasil tem se fortalecido. Inclusive, começa a aparecer um fator interes-
sante, que são as nossas galerias de arte começando a trabalhar com muitos
artistas da América do Sul. Isso é um sintoma de que o Brasil está se consoli-
dando como um polo regional de produção de arte. A maioria dos artistas hoje,
na Argentina, Peru, Colômbia, quer ter uma galeria no Brasil que represente
o seu trabalho. E muitas vezes a galeria brasileira é a principal galeria desses
artistas. Nós temos programa de residências, temos artistas que estão aqui
trabalhando nesse contexto, mas esse não é o objeto do Programa Brasil Arte
Contemporânea, não é a nossa prioridade. Nós, como instituição, já fazemos
um grande evento com artistas internacionais, que é a própria bienal. Então,
com o Programa Brasil Arte Contemporânea, pensamos num projeto que fosse
do Brasil para fora. Até pra contrabalançar um pouco esse peso.

Nesse processo, como é a relação com o Itamaraty, com consulados e


embaixadas?

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A nossa relação principal é com o Ministério da Cultura. Ele é o nosso inter-
locutor, o nosso grande parceiro. Nosso contato com o Itamaraty é muito mais
limitado, até porque o Itamaraty atua muito mais fora do Brasil do que dentro.
Temos uma certa cooperação com mostras oficiais, em Veneza, e com algumas
outras bienais ou eventos que demandem uma representação nacional.

Existem gargalos na legislação que atrapalham a feitura da bienal? A


aquisição de obras estrangeiras por institituições brasileiras é um
ponto estratégico?
É importante separar o que é bienal do que é o Brasil. Sob o ponto de vista
regulatório, não existe nada que especificamente seja um empecilho para
a bienal. A bienal funciona, ela não tem nenhuma trava específica. A gente
convive é com as amarras gerais que existem dentro do Brasil. O processo
alfandegário é complexo, mas ele é complexo para a arte, para o produto
têxtil, para tudo. É a natureza da nossa burocracia. Temos que conviver com
um conjunto de regras de gestão de recursos, de convênios, que são pesadas,
antigas, e fazem com que a gestão financeira de tudo isso se torne muito
complexa, muito cheia de nuances. Isso dificulta bastante.

Como se pensa a formação de novos artistas na próxima bienal?


Essa não é uma missão primária nossa. O nosso papel é trazer esse retrato
da arte mundial para dentro do Brasil e ajudar a disseminá-la aqui. E agora
estamos tentando adicionar essa nova missão, que é ajudar a levar a produção
brasileira para fora do país, através do Programa Brasil Arte Contemporânea.
Mas a formação básica de artista, esse é um trabalho das escolas, das galerias,
de instituições que são especializadas nisso. Sem dúvida que o papel da nossa
bienal na formação do artista é muito grande, na medida em que cria acesso.
Existem workshops em que os artistas podem participar e debater, interagir
com outros artistas. É um processo enriquecedor, mas nós não somos uma
escola de formação de artistas.

A crítica das artes plásticas no Brasil, ao contrário de outras áreas


culturais, tem se renovado e se fortalecido. Existem nomes novos de
primeiro time e uma interlocução muito consistente. A bienal tem uma
preocupação também em lidar com essa crítica, em criar um debate crí-
tico em torno dela?

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Claro. Tanto que existem programas de seminário muito significativos. E
isso não é uma característica dessa bienal apenas, vem marcando as bienais
ao longo do tempo. Inclusive a última bienal, a do Ivo Mesquita, se dava muito
mais nesse plano acadêmico, intelectual, do que no plano plástico.

Qual a sua opinião sobre a Bienal do Vazio?


A Bienal do Vazio tem que ser vista dentro daquele contexto de sequência
de bienais, e cumpriu um papel muito importante dentro desse processo.
Existia um debate dentro da sociedade, de uma forma geral, sobre a bienal
ser um formato obsoleto, se ela devia existir, se ela deveria ser diferente, o que
deveria acontecer com ela. Era um debate que acontecia no nível intelectual e
no nível plástico também, porque a bienal estava sendo minguada de recur-
sos. Então a Bienal do Vazio desempenha um papel importante, na medida
em que traz e escancara essa discussão com o público. Quando se pega um
pavilhão que está disponível para fazer um evento que existe há mais de anos
e se deixa ele vazio, consequentemente se cria uma contradição no olhar do
público e provoca uma reação. O público poderia ter ido lá e falado que era
isso mesmo, que a bienal não interessa e que o espaço deveria continuar
vazio, mas ele se indignou. E isso é uma afirmação de que a sociedade não
quer uma bienal vazia, que aquilo é algo que interessa a ela. Se há sucesso
em reconstruir a bienal, em trazer recursos e poder fazer uma bienal com
um alcance grande, é, em grande parte, uma consequência, uma reação à
situação criada pela Bienal do Vazio.

E sobre o caso da pichação na bienal?


Eu acho que isso é mais uma forma de reação ao vazio. À medida que você
deixa um andar vazio, deixa um prédio vazio, as pessoas podem querer encher
aquilo com alguma coisa, porque o que era para estar cheio estava vazio.

Como fazer para que o fomento da cultura deixe de ser uma questão do
governo e passe a ser uma questão de Estado? O que fazer para que os
recursos públicos para a cultura não sofram tanto com a inconstância?
Tem que ser um passo depois do outro. Na medida em que se tenham
projetos mais claros, mais consistentes, vão-se criando mecanismos de apoio
que também sejam mais consistentes e mais estáveis. Não dá para culpar o
governo por essa inconstância, pelo menos ao que se refere à bienal. Nossa

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instituição também precisaria ser mais estável, esse processo de trocar tudo
a cada dois anos, mudar o presidente, a filosofia, a abordagem, também não
é muito saudável. Agora, dito isso, seria interessante ter mecanismos de co-
operação que pudessem ser de mais longo prazo, ter endowments, convênios
e programas de patrocínio plurianuais. Esse processo é muito transacional
hoje. Cada mostra, cada ação tem que ser estruturada por si mesma.

Você disse em uma entrevista que 70% dos recursos da bienal vêm de pa-
trocínio, e a maioria deles com renúncia fiscal. Como é essa dependência
da renúncia fiscal para criar um evento?
É preciso desmistificar um pouco a questão da renúncia fiscal. No mundo
inteiro, essa atividade de fundo da cultura se dá com recurso público. Na Eu-
ropa, através de recursos diretos, e, nos Estados Unidos, através de recursos
de incentivo fiscal, por exemplo. Os Estados Unidos têm incentivos enormes,
há doação de obras de artes, doação de bens, e há criação de endowments,
que são baseados nos incentivos fiscais. Então, ter dinheiro privado sendo
canalizado por esse tipo de atividade de fundos é uma coisa que não acontece
em lugar nenhum, porque esse tipo de atividade é de interesse da sociedade
como um todo, não é uma atividade de interesse de A ou B. É típica de pro-
grama de Estado, de programa de governo e de recursos públicos. O que falta
aqui, no Brasil, são mecanismos que permitam que esses recursos fluam de
uma maneira mais estável, mais constante e mais bem planejada. O nosso
sistema é um pouco amarrado.

Como o mundo vê o Brasil?


O Brasil é visto hoje como uma potência emergente, um país que está se
afirmando dentro de um cenário internacional, o que, por conseguinte, gera
um interesse enorme no país. Nós vivemos um momento muito bom, não só
no campo das artes, mas na economia como um todo.

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128
Luiz
Camillo
Osório
Curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Como foi o processo de recuperação do MAM do Rio de Janeiro depois


do incêndio que destruiu parte do acervo, em 1978?
Foi um processo duro, difícil. Em 1978, eu tinha 15 anos, portanto não
acompanhei aquilo como alguém já envolvido nesse meio. Só depois eu passei
a me envolver mais com esse universo da arte. O MAM foi um lugar que eu
frequentei em minhas pesquisas, no centro de documentação, então eu fui
aos poucos tomando carinho por aquele lugar e aprendendo um pouco da
história dele. E o incêndio é uma parte traumática dessa história. Demorou
praticamente cinco anos para o MAM ser reaberto, o que só foi acontecer no
governo Brizola, em 1983. Esse período todo foi muito difícil no sentido de
retomar o espaço, ver o que podia ser salvo, o que tinha sofrido perda total.
Houve muita solidariedade por parte de museus, do corpo diplomático in-
ternacional. Depois, quando o Paulo Herkenhoff assumiu a direção, houve
um trabalho de resgate da coleção, da documentação, da biblioteca. Isso foi
muito importante nessa primeira etapa. Outro momento importante para o
museu foi em 1993, quando foi feito o comodato com Gilberto Chateaubriand,
juntando o acervo que ainda restava do museu com o acervo dele. Isso foi fun-
damental para o museu contar a história moderna e contemporânea brasileira.
Hoje os dois juntos dão mais ou menos umas dez mil, quase 11 mil peças.

129
Foram anos difíceis desde o incêndio, até porque é um museu privado. É
uma situação muito particular no cenário brasileiro: os seus dois palcos da
arte moderna são museus privados, que quando foram criados tiveram como
modelo o Museu de Arte de Nova York, que também é um museu privado.
Foi feito no pós-guerra, a partir da política de boa vizinhança do governo
americano e brasileiro. A relação MOMA-MAM, tanto no Rio de Janeiro
quanto em São Paulo, é direta. Rockefeller fez uma primeira doação, em
1946, de dez obras, divididas entre os dois museus. Todo o modelo, toda a
logística, a direção, foi dada pelo MOMA. Então, reerguer e manter um museu
privado, dada as dificuldades de uma presença ativa e efetiva da iniciativa
privada na sociedade, foi muito difícil. Principalmente no Rio, que é mais
complicado do que São Paulo, não só pela diferença de vigor econômico
entre as duas cidades, mas também pela relação entre a sociedade civil e
os equipamentos culturais.

Mas mesmo antes do incêndio o MAM já tinha perdido muito em relação


aos anos 1960, que foi o seu auge como formador de público, formador
de uma cultura. Já tinha perdido o impacto que tinha na cidade, não é?
Isso é uma questão. Os anos 1960 são, de fato, um momento simbólico.
Esse período do Frederico Morais, do Apocalipopótese, dos Domingos da
Criação, foi muito importante. Eu até diria que vai de 1965 até 1972, até a
Ex-posição que o Carlos Vergara faz. É um recorte desse momento histórico
e simbólico do MAM. Mas os anos 1970 têm a presença do teatro e da dança
no MAM, que é pouco discutida. A sala Corpo e Som, que durou seis anos,
até o incêndio, foi um laboratório para a dança e o teatro. De certa maneira,
o Amir Haddad começa o Tá na rua lá no MAM.
Os anos 1970 foram difíceis. Muita gente exilada, uma ditadura bastante
pesada, então era um espaço de resistência grande, com esse perfil mais
performático. E a sala Corpo e Som representa justamente essas dificuldades
institucionais, transformou-se em um palco muito relevante para aquilo que
podia acontecer de uma forma mais dinâmica, que era o teatro, a música, a
dança. É claro que diminuiu um pouco a efervescência da discussão, até por
conta da permanência da ditadura, mas a importância do MAM continua
nesses projetos. Os primeiros eventos de poesia marginal, as primeiras Ar-
timanhas da Nuvem Cigana aconteceram também no MAM, em 1975, 1976.
Realmente, o MAM abraçava outras artes naquele período.

130
Pelo que pude acompanhar, na sua gestão há uma tentativa de fixar nova-
mente o MAM como um espaço de referência para o debate cultural do
Rio de Janeiro. Uma tentativa de reativar o MAM como espaço de reflexão,
de troca, de cursos. Como está se desenvolvendo essa gestão?
Na primeira edição da SPArte, uma feira de arte de São Paulo, pediram-me
para fazer uma entrevista com o Gilberto Chateaubriand. Na época, eu não
tinha nada a ver com o MAM, estou lá há seis meses. Então eu fiz a entrevista
com o Gilberto e, evidentemente, o assunto MAM apareceu. Eu perguntei
sobre a história do MAM, o passado do MAM e essa nostalgia em relação ao
que teria sido e como recuperar essa mística dos anos 1960. E ele me deu uma
resposta que eu achei muito boa. Ele falou: “Olha, tem uma coisa meio sebas-
tianista em relação ao MAM. Não vai voltar. Não adianta. Vamos pensar numa
reinvenção, numa outra coisa, num outro momento da história, da cultura,
da política brasileira e das artes brasileiras. Tem que criar um outro modelo.”
E essa imagem do Gilberto vem quebrar um pouco com essa mística do que
foi, do que teria sido, do como recuperar o passado. Essa coisa sebastianista é
uma imagem forte para a cultura luso-brasileira. Quando eu assumi o MAM,
tomei isso meio como uma bandeira. Quando chamei o Frederico Coelho
para ser meu assistente, a ideia era realmente trabalhar com uma pessoa que
tem uma convivência tangencial com as artes plásticas. Porque ele fez uma
tese de literatura sobre o Hélio Oiticica, fez uma dissertação de mestrado
sobre música brasileira e trabalha com esse universo da cultura brasileira. Eu
queria justamente apostar no MAM como um espaço para pensar cultura de
uma maneira horizontal, no sentido de abraçar a discussão cultural fora do
nicho “artes plásticas”. E evidentemente é um museu de arte, tem um acervo
a ser cuidado, a ser tratado, a ser exposto. A pesquisa sobre arte brasileira
é da maior importância para qualificar o museu, mas a discussão que essa
pesquisa, que essas exposições travam têm de abrir para um outro universo,
que beira a discussão específica das artes plásticas mas que vê a partir de um
outro lugar, de uma outra perspectiva, e que tem pontos em comum. Então,
essa é a discussão. E o Rio tem um pouco essa coisa de ser um espaço que
foi muito permeável a essas hibridações, a essas trocas. O museu tem de ser
um lugar de troca.

O Rio sempre foi um lugar que teve um ponto de encontro. O MAM nos
anos 1960, o parque Lage nos anos 1970, o Circo Voador nos anos 1980. Ele

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está carente disso neste momento, não é? Como você vê a cultura em volta
do MAM neste momento?
Eu acho que é uma tarefa difícil. A cidade do Rio de Janeiro se deslocou
daquele eixo em torno do MAM, do Centro da cidade, para a zona Sul. Isto é
uma coisa que eu insisto em relação ao incêndio: não foi só ele que trouxe uma
certa crise para o museu. Existe um processo, já vem de algum tempo, de esva-
ziamento político e econômico do Rio de Janeiro. Não só pela saída da capital,
mas pela cidade ter sido sempre um foco opositor e de resistência à ditadura.
A ditadura foi muito impiedosa com o Rio. Então houve um esvaziamento
político e econômico e, ao mesmo tempo, a cidade mudou o eixo cultural,
que saiu do Centro da cidade e foi para a zona Sul. As pessoas que iam para o
MAM para se encontrar no final da tarde, tomar uma cerveja e conversar, ver
uma exposição, uma performance, um filme, discutir, passaram a fazer isso
em outros lugares. No parque Lage, no Baixo Leblon, no Baixo Gávea. Hoje,
de um modo geral, as pessoas acham que o MAM fica longe. Mas não é longe.
E é um lugar magnífico, de frente para a baía de Guanabara, com o parque do
Burle Marx ali ao lado, o prédio do Afonso Eduardo Reidy, que é um marco da
arquitetura. Venta, é menos quente. É muito mais agradável do ponto de vista
do horizonte, melhor do que ficar enfurnado em um bar. Ali você pode ficar
em um bar e ter uma relação muito mais agradável com o entorno. Mas as
pessoas têm dificuldade, acham perigoso atravessar ali da Cinelândia para o
museu, cruzar aquela passagem. E de fato o aterro do Flamengo também está
muito abandonado e precisa de um investimento da prefeitura para qualificar
aquela área. Então é muito difícil pensar aquele lugar como sendo outra vez
atrativo para as pessoas irem e ficarem, se sentirem ambientadas. Esse é um
trabalho que tem de ser feito com muito vagar, criando atrativos. E eu acho
que, para criar atrativos, você tem de ter um conjunto de atividades, como tem
o CCBB, que é ali perto e consegue isso, até porque atrai outros públicos, da
zona Norte ou de Niterói, que chega de barca. É gratis, tem ar-condicionado,
tem um conjunto de atividades interessante de teatro, biblioteca, cinema,
exposições, o bar. Isso é o que eu acho que precisa ser feito, ter tudo isso, ter
conexão sem fio de internet. As pessoas irem, ficarem, namorarem e verem
as exposições.

O MAM é uma gestão privada com conselho e presidente eleito. Como


funciona a instituição?

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É uma sociedade civil sem fins lucrativos e que tem um conselho. Esse
conselho elege o presidente. Tem alguns mantenedores, a Petrobras, a Light,
e alguns parceiros. Estamos empenhados em aumentar o número de man-
tenedores, o que é fundamental, e de parceiros também.

Como pensar essa vida social em volta do MAM? Como viabilizar? Existe
uma resistência a isso ou a instituição está aberta?
Está absolutamente aberta em relação a isso. Os últimos cinco anos foram
muito importantes na tentativa de resgatar este ambiente. Eu digo isso porque,
nestes últimos anos, foi construído o teatro, o que é importante. Se hoje você
entrar em um táxi e pedir “Por favor, me leva ao MAM”, eu acho que um em
cada vinte não conhece. E boa parte dos 19 conhece porque tem o teatro ali
agora. Música é o que de fato atravessa e dissemina. Então tem o teatro, um
bom restaurante, sofisticado, que é importante para executivos que ainda
frequentam o Centro, o aeroporto, a loja de design. São ambientes que foram
criados nestes últimos anos e que têm, como objetivo, essa qualificação do
espaço. E eu acho que agora é levar isso mais adiante. Explorar mais o bar, fazer
atividades para o público mais jovem, mais diversificado, tentar mobilizar.

O Brasil está vivendo não só na produção, mas na crítica, uma grande


vitalidade em relação às artes plásticas. Ao mesmo tempo, a arte con-
temporânea brasileira tem sido atacada na grande mídia por grandes
nomes, como Ferreira Gullar, Luciano Trigo, Affonso Romano Sant’Anna.
Então, como formar o leitor, o público jovem, como conseguir difundir
a força das artes plásticas contemporâneas nesse diálogo entre uma
crítica excelente, muito sofisticada, e uma divulgação extremamente
contrária na grande mídia?
Eu não generalizaria a crítica da produção contemporânea e sua pene-
tração na mídia como o único canal que leva as artes plásticas ao público
mais amplo. Eu acho que falta um canal de circulação mais direto, de sair
um pouco da discussão, do gueto, do nicho universitário especializado, para
uma discussão mais franca, direta, por mais difícil que isso seja. Eu fiz crítica
de arte durante oito anos no jornal e sei o quão difícil é dar a esse espaço
reverberação, mantendo uma serenidade reflexiva, sem querer ficar fazendo
pirotecnia com polêmicas mais vazias do ponto de vista reflexivo. Eu acho
que o esforço é de tentar retomar minimamente o espaço mais opinativo

133
do jornal e das novas mídias eletrônicas e tentar fazer a partir daí um outro
canal, um outro processo de avaliação reflexiva. Eu acho que a gente está
passando por um momento muito interessante de redefinição do próprio
papel do jornal impresso, e eu tendo a achar que o futuro do jornal impresso
é quase que algo perto de revistas mais analíticas de situação e de conjuntura
do que de informação e serviço. Eu acho que a informação e o serviço vão ser
totalmente mobilizados pelas novas tecnologias, que são muito mais ágeis e
abrangentes, e vai caber ao jornal uma análise mais reflexiva.

A Cinemateca do MAM tem mais de trinta mil rolos de filme. Como fun-
ciona isso? Como está esse acervo? 
A cinemateca tem um outro curador, que é o Gilberto Santeiro. Ela funciona
de quinta até domingo, tem cursos e discussões em torno do cinema. É tam-
bém uma batalha difícil hoje manter uma cinemateca, seja pela quantidade
de cinemas no shopping, seja pela dificuldade de se deslocar até lá, os DVDs...
É uma coisa mais complicada. Mas as escolas de cinema no Rio, por exemplo,
usam muito a cinemateca. Tanto a UFF quanto a PUC têm uma relação estreita
com a Cinemateca do MAM; utilizam-na para cursos, audições, pequenos
grupos de filme, e também para o acervo de filme produzidos internamente
nas escolas de cinema. Então esse é um pouco o papel dela.

Como fazer para inserir a arte contemporânea na educação? Nós sabe-


mos que não houve uma renovação desses currículos. Quais políticas
culturais podem ajudar esse processo?
Eu acho que essa é uma questão crucial para o museu. Crucial do ponto
de vista da formação de público, da responsabilidade pedagógica e social do
museu. É preciso ter um trabalho educativo bem feito. Desde que eu entrei no
MAM, há seis meses, chamei o Guilherme Vergara para pensar isso, e criamos,
junto com a coordenadoria, o Núcleo Experimental de Educação e Arte. A ideia
é, justamente, ir constituindo políticas de acolhimento das escolas, das orga-
nizações não governamentais, dos polos culturais nas comunidades do Rio de
Janeiro e, ao mesmo tempo, ir criando vínculo com essas escolas de modo a
fazer um trabalho educativo, com o professor, nas comunidades, com as ativi-
dades culturais que acontecem lá – que já são inúmeras e muito interessantes.
Na exposição da Sophie Calle, por exemplo, trabalhamos com as comuni-
dades, e teve uma atividade com a Casa de Arte da Mangueira que foi muito

134
interessante. São atividades lúdicas que complementam o trabalho educativo
e, principalmente, aquecem o museu. O trabalho educativo tem o papel
de aquecer o espaço. A atividade, a discussão, acontecendo no museu faz
com que ele se torne mais acolhedor, dinâmico e está, evidentemente,
construindo o público. E se for um trabalho legal, se a criança for cativada,
sem ser uma sedução demagógica, se ela percebe que aquele espaço pode
abrir uma perspectiva diferente e ao mesmo tempo ser um espaço diver-
tido, lúdico, então ela pode voltar com a família e começar a frequentar
realmente esse espaço.

É possível o trabalho não só de levar os alunos para o museu, mas de o


museu funcionar como um fomentador de conteúdos que possam ser
levados para a sala de aulal?
Não só é um trabalho possível, fundamental, como é um diferencial dos
museus em relação aos centros culturais. Uma coisa que eu tenho insistido
nas reuniões que tive nestes seis meses, tanto com o Ministério da Cultura,
como também no Instituto Brasileiro de Museus, é de prestar atenção nas
necessidades dos museus, na preservação de acervos, na constituição de
acervos e no quanto o acervo é um diferencial do museu para a discussão
nos projetos educativos. É pelo acervo e não pelas exposições temporárias
que o trabalho educativo pode ganhar solidez, porque pode atrair professo-
res de história, de ciências sociais do ensino médio, sociologia, filosofia, de
língua portuguesa, de literatura. O acervo pode ser um diferencial porque
é um instrumento que pode ser usado na educação. Pode ser usado para
mobilizar as escolas a pensarem em conjunto. Por exemplo, é possível levar
ao museu, a uma exposição do acervo que conta a história da arte dos anos
1920 aos anos 1960, o professor de história, o professor de arte, de geografia,
de sociologia, e criar um conjunto de atividades que podem ser feitas, ativi-
dades interligadas. Isso só é possível através de um acervo permanente, que
vai estar lá, e a que os alunos e professores podem voltar daqui a um ano,
que as obras vão continuar lá. Eles poderão retrabalhar esse acervo. Sem
contar que a produção contemporânea toda já dialoga com novas mídias,
e é importante para o garoto que vai lá perceber relações criativas no uso
das novas mídias.
É preciso prestar atenção no acervo do ponto de vista das políticas cultu-
rais. As obras são coisas difíceis de manter, de guardar, de conservar. Tem que

135
existir uma reserva técnica, climatizada, com técnicos especializados. É um
conjunto de problemas muito difícil. Os museus que têm acervos importantes
precisam ter uma linha verde para aprovação de Lei Rouanet. Esses museus
não podem entrar no mesmo processo de um produtor cultural que está fa-
zendo uma exposição de dois meses de duração. É preciso pensar justamente
nessa complexidade, no volume de verba necessária para manter o acervo
e no potencial educativo deste acervo. São poucos os museus que podem
contar a história da arte moderna e contemporânea a partir do seu acervo.
Esse é um diferencial a ser estimulado.

E a aquisição? Como fomentar a atualização do acervo?


Essa é uma discussão importante, perceber as potencialidades de cada
museu e como fortalecer essas potencialidades a partir dos níveis de aquisição.
No MAM, a política de aquisição está muito focada em comodato. Então não
é do museu, é da coleção Gilberto Chateaubriand. Felizmente, o Gilberto tem
um olho excepcional. Fazer uma exposição das novas aquisições de Gilberto
Chateaubriand é sempre bom e mobiliza até o imaginário carioca. O ideal é
que seja possível o museu ter uma dotação para fazer uma política de aqui-
sição, uma política curatorial com autonomia propositiva.

As leis no Brasil são bastante complicadas em termos de exportação


e importação de obras de arte. O que você acha que devia ser mudado?
Eu acho que há detalhes jurídicos aí em que cabem uma análise mais
criteriosa. Eu tenho certeza de que simplificar a legislação é fundamental.
A simplificação seria um passo determinante para a cultura como um todo.
Simplificação, desburocratização, regulação e diretrizes. Traçar algumas dire-
trizes, um plano com um conjunto de objetivos, e viabilizar um caminho mais
simplificado possível, como uma regulação para evitar distorções com cons-
tantes reavaliações, é fundamental. A gente fica sempre criando legislações a
partir de problemas circunstanciais. Por exemplo, a venda da coleção do Adolfo
Leirner foi uma pena, do ponto de vista de que deveria estar em um museu
brasileiro. E ele tentou bastante vender para um museu brasileiro. Eu não vejo
grande problema em obras brasileiras serem compradas por museus lá fora;
isso é ótimo para a arte nacional. O que eu acho uma pena é que os museus
brasileiros não possam comprar também. Então vendem a coleção e, a partir
disso, mudam a legislação para dificultar a saída de obras brasileiras anteriores

136
aos anos 1970. Aí você faz uma curadoria de uma exposição de arte concreta
ou neoconcreta fora do Brasil e a dificuldade para exportação temporária é
um problema, atrapalha muito. Essa legislação não adianta mais, a coleção
já foi vendida. Ao invés de criar uma legislação que dificulte a saída, é preciso
criar uma que facilite a compra dessas obras aqui. É um pensamento errado,
de bloquear, e não de alimentar o fluxo e fortalecer um mercado interno para
que ele se torne competitivo. O mercado de arte é um mercado globalizado, e
quão melhor representada a arte brasileira estiver lá fora, melhor.

Como o Brasil poderia se utilizar dessa valorização da arte brasileira


para, por exemplo, promover o turismo cultural? Para virar uma refe-
rência? Você considera isso um caminho interessante?
Considero. Tivemos duas situações interessantes recentemente. Primeiro,
a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, e depois o Instituto Inhotim.
Do ponto de vista do turismo cultural, são dois projetos muito significativos.
Isso tem de ser melhor explorado. O Rio tem que aproveitar esse momento
de Copa do Mundo, de Olimpíadas, e fortalecer as suas instituições. Mas o
que acontece é sempre uma necessidade de criar uma coisa nova, criar um
outro museu, um outro marco referencial, para fazer uma nova inauguração.
Eles esquecem a manutenção, o trabalho de sustentabilidade de determina-
dos equipamentos e instituições que tem de acontecer. Acho importante as
obras-acontecimento, o que cria uma outra perspectiva, irradia e fortalece
a cultura de um modo geral, mas não pode ser uma prática de estar sempre
pensando numa outra coisa, num outro museu, num outro equipamento e
esquecendo a sustentação dos que já existem, dos que têm uma importância
histórica e que ficam sempre à mercê de um fato novo para se reerguerem.

Como é o projeto Anexo?


O projeto Anexo é uma longa batalha que o museu vem enfrentando para
aumentar sua reserva técnica, para criar um espaço de exposições contem-
porâneas, uma outra cafeteria, um outro auditório. Aqueles terrenos em
torno do Museu são complicados; não se sabe se pertencem ou não ao MAM.
Agora conseguimos a obtenção de um terreno importante, entre o MAM e o
aeroporto, atrás do teatro. Conseguimos que o IPHAN liberasse a construção,
o que era uma outra batalha: discutiam se aquilo era para ser construído, se
estava no plano original ou se não estava. Mas conseguimos um projeto que

137
respeita a arquitetura, o paisagismo do Glauco Campello e que revitaliza
aquele espaço em volta. Que era o que eu estava falando antes, aquele espaço
estava muito degradado. Ter um anexo será importante para qualificar aquela
área também, para criar um fato novo naquele espaço que ajude a circulação
de pessoas, que qualifique o equipamento.
O Anexo vai ser importante também para abrigar a coleção Marcantônio
Vilaça, uma importante coleção contemporânea, brasileira e internacional.
Isso abre a possibilidade de outras coleções irem também para lá. Haverá
um estacionamento no subsolo. Sendo do lado do aeroporto, isso é fonte de
arrecadação para o museu e viabiliza a construção. Há um conjunto de fatores
que se potencializam e que tendem a dar uma outra envergadura para esse
complexo humano. Tem o bloco-escola, que vai ser reformado agora, toda
a parte de documentação, biblioteca, a cinemateca, o bloco de exposição, o
teatro. E vai ter esse anexo. Haverá um empenho grande. Vamos aumentar a
reserva técnica do museu porque, enfim, a coleção cresce. É um dado extre-
mamente positivo e eu estou muito otimista com esse Anexo.

E sobre essa relação com o espaço em volta, do MAM com a cidade, com a
prefeitura? Seria interessante criar uma rede de instituições culturais
que pudessem ser interligadas de alguma forma, por condução? Esse
tipo de pensamento poderia ser um caminho para a cidade reabsorver
seus aparelhos culturais?
Sem dúvida. Isso poderia acontecer do ponto de vista da conexão dos
equipamentos culturais, e para potencializar o trabalho educativo no museu.
Porque um dos problemas do trabalho educativo é o transporte da escola para
o museu, então se você cria três ou quatro pontos, já facilita. Eu estava no
avião com o Márcio Doctors, da fundação Eva Klabin, que tem uma coleção
clássica, e estava pensando na possibilidade de articular o MAM, a Eva Klabin,
o Museu do Pontal e o Museu de Belas Artes. Você teria a arte popular, o século
XIX, o começo do século XX, a arte moderna e contemporânea e a arte clássica
interligados, e poderia fazer um trabalho educativo combinado entre essas
quatro instituições. Criar um transporte para circular desde Vargem Grande
até o centro da cidade seria uma possibilidade muito interessante, fortalecida
por aquela orla belíssima. Além de ser uma coisa para as escolas, poderia ser
um circuito de ônibus conectando estes quatro pontos: Lagoa Rodrigo de
Freitas, Vargem Grande, o aterro do Flamengo e a Cinelândia.

138
Como você vê a questão da profissionalização e qualificação dos gestores
culturais no Brasil?
A gente tem percebido, com o próprio fortalecimento da cena artístico-
cultural brasileira, uma profissionalização e um esforço de institucionalização.
O resultado disso será a criação de gestores com uma formação especializada.
Esse é o caminho, não tem outro. Não tem como pensar um equipamento
cultural e a complexidade que é a administração disso sem uma preparação
focada. Isso é crucial. Eu sou curador do MAM e sou professor da PUC. A pos-
sibilidade de criar convênios entre museu e universidade é interessante até
para pensar gestão. Pensar junto com o departamento de artes e arquitetura,
a museografia, a montagem de exposição, a iluminação, a curadoria. Enfim,
pensar o museu nas suas várias entradas e facetas. Então, tem que haver uma
profissionalização e uma preparação mais focada. Não tem outra alternativa. 

139
140
Fábio
Coutinho
Superintendente cultural da Fundação Iberê Camargo.

Fábio, o que é a Fundação Iberê Camargo?


A Fundação Iberê Camargo é uma instituição dedicada, quase que exclusi-
vamente, à preservação, divulgação e conservação da obra de Iberê Camargo,
um importante pintor, desenhista e gravurista brasileiro. Ele nasceu no Rio
Grande do Sul, em Restinga Seca. A Fundação começa nos anos 90, próximo ao
final da vida do Iberê, quando ele demonstrou a vontade de dar continuidade
à sua obra preservando-a. A obra de Iberê é um trabalho muito importante,
que abrange todo o público, artistas, colecionadores, galeristas, imprensa,
museus, instituições diversas. E através de um grupo de empresários, no
Rio Grande do Sul, capitaneados pelo Dr. Jorge Gerdau Johannpeter, e pela
viúva do Iberê, a Maria Coussirat Camargo, surge, então, a ideia de criação
da Fundação Iberê Camargo.

Como surgiu a ideia da sede?


Depois da criação da Fundação, pensamos em ter uma sede. Pensamos
em como seria essa sede, qual dimensão ela teria, não só dimensão física,
mas do alcance que a obra do Iberê atingiria. Então, de novo, sempre com
muita consulta, com muita pesquisa e sempre trabalhando em grupo – uma
das características da Fundação é o trabalho em equipe – partimos para

141
definir como seria essa sede. Aí entra o governo do estado do Rio Grande do
Sul, entra a prefeitura de Porto Alegre, que cedeu o espaço. A Fundação não
tinha espaço físico. Havia, sim, a casa do Iberê e o ateliê. O Iberê tinha dois
ateliês em Porto Alegre: o primeiro, que ficava na zona central da cidade;
e o segundo ateliê, que ele abre quando volta do Rio de Janeiro – onde ele
também tinha um ateliê. Esse ateliê ainda existe – ele construiu uma grande
área, residência e ateliê, e a Fundação iniciou lá. Era muito grande, mas muito
pequeno para tudo que se desejava para a Fundação Iberê Camargo. Então,
o governo do estado cedeu um terreno em frente ao lago Guaíba, um local
muito privilegiado geograficamente, com uma vista muito bonita, em uma
antiga saibreira, na encosta de um morro. E depois foi definido quem iria
projetar a Fundação Iberê Camargo.

Como foi a decisão de que arquiteto escolher?


Fizemos novamente um colegiado, e o nome do Álvaro Siza despontou. O
Álvaro Siza já vinha de experiências como o Museu de Serralves, na cidade do
Porto, em Portugal, e também o museu Centro Galego de Arte Contemporânea,
em Santiago de Compostela. E foi assim que chegamos a ele. O projeto foi
lançado em 2000, em Porto Alegre, e a escolha foi extremamente feliz, em todos
os aspectos. O projeto da Fundação Iberê Camargo recebeu o Leão de Ouro
da Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2002. Era o único prédio da América
Latina com esse prêmio, o que por si só já é muito importante.

Conte um pouco da sua história, como você começou a trabalhar com


artes plásticas?
Eu fazia arquitetura, e tinha dois caminhos a seguir: o paisagismo, ou algu-
ma coisa ligada à museografia ou cenografia. Ao longo do curso, fui convidado
para trabalhar no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, para fazer um estágio.
O Museu de Arte do Rio Grande do Sul, na época – era 1977 – funcionava
numa sede de um antigo clube, em Porto Alegre, e estava de mudança para o
prédio da antiga Receita Federal do Rio Grande do Sul. Um belíssimo prédio
do início do século passado, imponente, bem no centro da cidade. Tínhamos
que trabalhar na concepção dessa mudança. E eu fui então para lá, mas não
só como estagiário. Eu era também, na época, professor de história da arte. E
aí uma coisa se uniu à outra. E, claro, quando eu cheguei ao Museu, eu senti
que aquilo era tudo que eu gostaria de fazer: trabalhar com artes visuais.

142
Conte um pouco dos projetos da Fundação Iberê.
O centro do projeto é a preservação e a divulgação da obra do Iberê Ca-
margo. Nós temos, dentro da Fundação, inúmeros projetos. A base de tudo é
o acervo. A Maria Camargo doou, para a Fundação, todas as as obras que ela
possuía. São mais de duas mil obras. Depois houve uma aquisição também
das obras da filha do Iberê, a senhora Gerci. Compramos o acervo dela. A
Fundação tem hoje mais de quatro mil obras, entre gravuras, desenhos,
aquarelas e pinturas. Então, o núcleo central de tudo isso é o acervo. Nós
temos também outro setor muito importante, que é a catalogação. Estamos
em processo da catalogação da obra do Iberê. Já catalogamos todas as gra-
vuras e agora estamos trabalhando com as peças únicas: pintura, desenho,
guache, aquarela etc. Temos uma exposição permanente do Iberê Camargo,
que ocupa um dos três andares da Fundação. Nós fazemos duas exposições
por ano da obra do Iberê. Temos um projeto pedagógico, que é um desdo-
bramento do projeto do acervo. Esse projeto é desenvolvido para atender
um grande número de escolas, de alunos de todos os níveis educacionais,
mas não só estudantes, outros grupos também: os turistas, a terceira idade,
pessoas da comunidade. O objetivo é que a ida ao museu não aconteça de
forma tradicional, como na maioria dos museus em que a visita se encerra
ali. Além do projeto pedagógico, para ver a obra do Iberê, nós temos meia
dúzia de visitas diferenciadas, inclusive, com tempos diferenciados, e que
podem resultar em oficinas práticas. Saímos da visita teórica e entramos
na parte prática da visita no nosso ateliê educativo. Temos, ainda, ligado a
Iberê Camargo, o projeto Artista Convidado. Convidamos, mensalmente, um
artista plástico, gravurista ou não, para realizar gravuras no nosso ateliê, na
mesma prensa que foi do Iberê. Esse ateliê está montado hoje na sede da
Fundação. O artista faz uma tiragem de gravuras. Já estamos com 70 artistas
e aproximadamente 200 gravuras diferentes. Esse projeto resultou numa
exposição belíssima, que foi feita no ano passado,e que se chamou Dentro
do Traço, Mesmo. Também temos um projeto para bolsistas. Todo ano, a
Fundação Iberê contempla dois artistas brasileiros, em uma temporada de
aperfeiçoamento em um centro internacional. Estamos na 10ª edição do
projeto, e já enviamos artistas para diversos países, sempre em projetos de
residência, específicos para as artes visuais. Temos projetos de exposições
permanentes, de exposições temporárias, sempre relacionados à arte mo-
derna e contemporânea.

143
Pela localização geográfica, como que é a relação com o Mercosul
Cultural?
Em 2009 foi realizada a 7ª edição da Bienal do Mercosul. A nossa bienal
acontece nos anos ímpares. A relação com a Bienal do Mercosul sempre foi
muito próxima. Mesmo antes de a Fundação Iberê Camargo ter esta nova
sede, ou melhor, esta sede pronta, sempre houve integração de atividades
pedagógicas, culturais, congressos, seminários, junto com a Fundação Bienal.
Mas a Fundação Iberê Camargo não participa da Bienal do Mercosul como
um espaço expositivo. A Bienal do Mercosul acontece na área central de
Porto Alegre. Normalmente, utilizamos prédios históricos, museus do centro
da cidade, e, principalmente, o Cais do Porto, os armazéns do Cais do Porto.

Como é a relação com os patrocinadores?


Usamos todos os mecanismos possíveis que temos para captar recursos
para Fundação Iberê Camargo. Para a manutenção anual da Fundação, nós
usamos a Lei Rouanet e também a Lei de Incentivo à Cultura do Estado Rio
Grande do Sul, que é feita através da renúncia fiscal, via ICMS. Mas também
temos alguns patrocinadores, especialmente, o Grupo Gerdau, que é um pa-
trocinador direto, sem uso de incentivo. Isso também ocorreu na construção
da sede da Fundação Iberê Camargo: o Grupo Gerdau doou uma quantia
altíssima para a efetivação da sede.

Como é a relação com a educação, como vocês formam os monitores e os


arte-educadores?
Nós temos um curador pedagógico, Luis Camnitzer, um grande artista
plástico e curador, professor da Universidade de Nova York. Ele desenvolveu
o nosso projeto educativo. É um projeto com vários recortes, uma grande
teia que abrange toda a obra do Iberê Camargo. Temos projetos específicos
e material educativo para todas as exposições temporárias da Fundação. O
nosso material educativo é voltado para a escola, para o professor e para o
aluno. Nós temos formação permanente de professores, especialmente para
a obra de Iberê Camargo, mas também para as exposições temporárias. Há
uma formação especifica de professores para cada mostra, sempre com a
presença do curador ou do artista, quando o artista ainda é vivo. A partir daí,
o professor está credenciado a levar os alunos à Fundação para conhecer as
exposições que estão sendo apresentadas. Agora, não quer dizer que aquele

144
professor que não fez formação não possa levar alunos. Claro que pode, e
é sempre bem-vindo à Fundação. Naturalmente que aquele professor que
teve uma formação especifica chega com seus alunos com um grau maior de
intimidade e de conhecimento do que vai ser mostrado a eles. Até porque ele
recebeu o material sobre a exposição antes. Então, quando os alunos chegam
à Fundação, já vêm com informações a respeito dela.

Nos últimos anos, houve uma extrema valorização das obras de arte
brasileiras, no mercado internacional. Como isso influi na Fundação
Iberê Camargo?
Eu não tenho mais participação em mercado. Embora eu já tenha tido
uma galeria de artes, afastei-me completamente do sistema de artes no
mercado e não olho para uma obra pensando o quanto ela custa, quanto
ela custou ou quanto ela poderá custar. Essa análise não faz parte do meu
cotidiano. Mas a arte brasileira, realmente, está tendo uma valorização muito
grande. Isso a gente percebe já há algum tempo, desde que começamos a en-
trar em um sistema internacional de leilões, de galerias e de feiras. Estamos
em um momento muito especial. É obvio que o mercado também é muito
importante para que as instituições tenham um trabalho de divulgação e
de afirmação desses nomes. E isso acontece com o Iberê, naturalmente.
Iberê é um artista que tem uma excelente valorização no mercado de arte
brasileiro e no internacional.

Conte um pouco sobre a relação com os galeristas – no caso da obra do


Iberê, com galeristas – e com curadores.
É uma relação muito tranquila, porque são dois caminhos importantes que
vão na mesma direção: a valorização da obra. Um cuida da área cultural, e o
outro, do mercado. A nossa relação com os curadores é a melhor possível. Nós
já tivemos grandes curadores e ainda teremos grandes curadores trabalhando
a obra do Iberê. Nós temos um curador pedagógico e também um conselho
de curadores. O conselho de curadores da Fundação Iberê Camargo é com-
posto hoje pelo Gabriel Pérez-Barreiro, que é diretor da Coleção Cisneros,
essa importante coleção de arte que tem sede hoje em Nova York (não está
mais em Caracas), o Moacir dos Anjos, atual curador da Bienal de São Paulo,
e Maria Helena Bernardes, que é professora e curadora também em Porto
Alegre. A partir das nossas reuniões de conselho curatorial – eu também faço

145
parte desse conselho – é que se desenvolve toda a programação da Fundação
Iberê Camargo. Esse colegiado é que decide.

Como pensar o ensino de arte nas escolas?


O ensino de arte na escola já existiu, mas sofreu mudanças, saiu um pouco
do caminho. E hoje ele volta com muita força, e assim como as instituições,
as fundações e os museus dão ênfase à área educativa, as escolas também
estão tendo seus projetos culturais em parceria com essas instituições. Essa
parceria é muito importante. As escolas aprenderam a usar as instituições
muito bem. Não precisa ter um museu dentro da escola, ela tem vários mu-
seus e várias exposições no seu entorno. Essa simbiose resulta num projeto
muito importante.

A escolha do modelo institucional para a Fundação Iberê Camargo tem


a ver com a influência do Grupo Gerdau, de poder fazer investimentos
diretos na instituição?
Não, penso que não. Engraçado, porque não somos um museu, somos uma
fundação. Dentro da fundação, temos uma área, um departamento museo-
lógico, que preserva, divulga, conserva e expõe. Temos tudo que um museu
tem, mas nós não somos um museu. A Fundação pode abranger algo maior
que um museu que é dedicado a um único artista, como é o nosso caso. O
nosso acervo é composto exclusivamente de obras de Iberê Camargo. Então,
eu acho que a fundação vem nesse sentido, de não nos fixarmos museologi-
camente na obra do Iberê Camargo.

A cidade de Porto Alegre, pela própria sequência de fóruns sociais


mundiais, e de eventos de visibilidade mundial, passou por uma grande
mudança. Como você vê isso?
Bem, o Fórum Social Mundial trouxe, inegavelmente, uma visibilidade
internacional enorme para Porto Alegre. Percebemos isso através de coisas
muito simples. Há 15, 20 anos, se você viajava para o exterior e falava em Brasil,
naturalmente, só se conhecia o Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador. Hoje, todo
mundo conhece Porto Alegre e, imediatamente, liga ao Fórum Social Mundial.
O Fórum foi, indubitavelmente, o maior divulgador de Porto Alegre em todo
o mundo. Eu lembro dos primeiros fóruns. Era uma coisa impressionante. A
multidão, a diversidade de pessoas de todos os tipos, raças, cores, origens,

146
classes sociais, culturais, financeiras, todas em Porto Alegre. Um dos Fóruns
– acho que o segundo – foi próximo das eleições na França, no ano seguinte,
e nada mais, nada menos do que seis ou sete candidatos à presidência da
França passaram por Porto Alegre. Naquele fórum tinha ministros e chefes
de estado do mundo todo. Foi uma coisa gigantesca.

E quais são os próximos passos e planos da Fundação Iberê?


Continuamos com a nossa agenda de exposição. Estamos com a programa-
ção pronta para 2011 e 2012, e estamos já fechando a de 2013, sempre nesses
mesmos rumos. O projeto vai ganhando abrangência com o tempo. Estamos
já iniciando parcerias com universidades do Rio Grande do Sul, com os cursos
de museologia. Estamos tratando de curso de formação de jovens curadores,
curso de longa duração para formação de mediadores, e assim por diante.
Estamos sempre atuando junto às escolas e as universidades, para entrarmos
cada vez mais nessa área teórica, crítica, e prática das artes visuais.

Para fechar. O que faz um gestor cultural na área de artes plásticas?


Tudo, desde a simples montagem de uma exposição, passando pela con-
cepção, até a contratação. O gestor cultural precisa ter a visão de tudo: da linha
editorial, dos pensamentos, seminários, tem que ver o que está acontecendo
no cenário contemporâneo, que lacunas ainda existem na história da arte
nessa área. Temos que saber o que é que ainda é muito importante para Porto
Alegre e que ainda não chegou lá. Estamos sempre tratando de preencher essas
lacunas, e ver o que pode ser feito, pensando muito à frente. Nós temos um
projeto, na Fundação Iberê Camargo, para daqui a 20 anos. Sabemos perfei-
tamente onde estamos, e como vamos chegar, e onde queremos estar daqui
a 20 anos. A visão de um gestor cultural não é só se mover, trabalhar no dia a
dia, mas tem que saber tudo, para poder pensar 20 anos à frente.

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148
Gérald
Perret
Presidente da Sociedade de Cultura Artística.

Como surgiu a Sociedade de Cultura Artística?


A Cultura Artística foi fundada em março de 1912, por um grupo de in-
telectuais que se reunia sistematicamente na redação do jornal Estado de
São Paulo. Havia uma demanda por acontecimentos culturais – o Teatro
Municipal fora inaugurado em 1911 –, donde a iniciativa de formar uma
associação que incentivasse manifestações desse tipo. O primeiro encontro,
chamado de Sarau Lítero-Musical, deu-se em setembro. Houve declamação
de poesia, e algumas moças da boa sociedade tocaram algumas peças. Vê-se
pelos programas que, no princípio, a coisa era bastante improvisada e ama-
dora. Eram saraus de duas, três horas, com dois intervalos. Como, naquela
época, havia convergência entre elite cultural e elite econômica, participaram
muitos membros de famílias abastadas e quatrocentões. Mário de Andrade,
por exemplo, participou em adolescente ainda, com 18 anos de idade. A
Sociedade foi crescendo de maneira bastante rápida. Dentre os intelectuais
importantes, estava lá Afonso Arinos, que deu conferências. Em 1917, eles
apresentam o Les Ballet Russes, que era de Diaghilev, Nijinsky e companhia.
No fim da década de 1920, eles já se preocupam muito em construir uma casa
para apresentar o que eles faziam e compram terrenos no velódromo. Depois
vendem, para construir o teatro, mas não conseguem de primeira. O teatro

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só vai ser construído no fim da década de 1940 e inaugurado em 1950, com
Villa-Lobos e Guarnieri.

Quem faz parte da Cultura Artística?


Está aberto a todo mundo, é absolutamente democrático. Paga-se uma
anuidade de R$ 250,00 para tornar-se membro. Hoje em dia, são pouquís-
simos. Um membro pode votar nas assembleias gerais, para eventualmente
eleger alguém ou ser eleito. E, no caso dos membros assinantes – categoria
que existe desde a fundação –, pode-se assistir às apresentações que a Cultura
Artística realiza em São Paulo.

Os membros assinantes têm alguma parte na curadoria?


Não. Quando comecei a trabalhar com a Sociedade – há 30 anos – havia
uma comissão de cinco membros responsáveis pela curadoria. Todos mor-
reram. Eu, que era o mais jovem, acabei assumindo esse papel sozinho. Não
é tão bom quanto parece, porque implica numa responsabilidade muito
grande. É preciso muito equilíbrio para não se deixar levar pelos próprios
gostos, ter critérios mais abrangentes. Fazer um pouco de música contem-
porânea, de música barroca etc. Esse rejuvenescimento de repertório é
um pré-requisito para o trabalho. Eu fui o único, em São Paulo, que tentou
mostrar o que estava sendo feito na Europa, por isso que eu fiz muita mú-
sica barroca, e fui muito criticado. Estou tentando refazer essa comissão. A
morte do nosso presidente, o Dr. Ming, há dois meses, acabou ocasionando
uma série de mudanças centradas no rejuvenescimento da governança.
Introdução de mais elementos femininos, também. Tentamos olhar para
frente. São quase 100 anos de Cultura Artística, há sempre o peso inerente
a uma velha instituição. Mas não nos pensamos dessa maneira, portanto,
olhamos sempre para frente, atentos ao que está acontecendo, pensando
nos próximos 100 anos.

Qual é o papel de uma instituição como a Sociedade de Cultura Artística


para a cultura brasileira?
Creio que é um papel fundamental. De forma geral, o setor privado é
sempre muito mais competente que o setor público, no qual se gasta muito
mais para fazer bem menos. Uma instituição sem fins lucrativos é o melhor
modelo para produzir cultura. Tem-se uma isenção, um corpo de voluntários

150
dedicados. Além disso, trabalha-se um pouco com o ego de pessoas influentes,
cujos serviços prestados a nós abrem uma série de portas.

Como o senhor analisa essas mudanças na produção cultural brasileira


ao longo da história?
Quando comecei, buscávamos patrocinadores de forma bem pouco pro-
fissional. No fundo, creio que isso não tenha mudado tanto assim. A questão
da captação segue mais ou menos a mesma. Com a Lei Sarney era um pouco
fácil demais. Mas não acho que tenha sido ruim. Usamos, e funcionava. Depois
entrou a Lei Rouanet, que também funcionava muito bem no início, a meu
ver. Como todo mundo, tenho muitos problemas com o Ministério da Cultura,
dada a obrigatoriedade de trabalhar com incentivos fiscais, apesar dos patro-
cinadores. Porém, criou-se esse hábito para o patrocinador de descontar do
imposto de renda. Agora será muito difícil voltar atrás. De uns anos para cá,
no entanto, a máquina ficou extremamente pesada. Desconfia-se muito da
seriedade do proponente, e o processo vai se estrangulando. Põe-se sempre
mais uma lei, mais uma dificuldade, mais uma complicação. Mas o que não
funciona, na realidade, é o setor público. Hoje em dia, um departamento que
trate disso exclusivamente tornou-se necessário para as fundações, porque
a burocracia ficou infernal.

Qual é o orçamento anual da Sociedade?


É caro. Tínhamos um teatro, que era uma fonte de receita. Todo o aparato
do dia a dia era sustentado pelo teatro. Nosso orçamento, então, andava pelos
15 milhões. Hoje em dia, evidentemente, não é mais assim. Não temos mais
essa renda. Conseguimos uma outra salinha, o Espaço Promon (antiga Sala
São Luiz), o que foi muito bom. Lutei muito por espaço e visibilidade, para
que pudéssemos prosseguir com nossas atividades teatrais. Sempre traba-
lhamos com artes cênicas e, em nosso estatuto, o critério prioritário sempre
foi a qualidade.

Para se fazer cultura hoje no país é necessário circular pelos meios


certos para conseguir financiamento?
Há muitos agentes culturais diferentes, e cada um tem seu approach. O
SESC, por exemplo, é uma instituição fantástica que não tem essa preocupa-
ção, pois obtém recursos por meios diversos. Não posso dizer que é o modelo,

151
mas, no caso de uma instituição – não temos subsídio nenhum, nunca rece-
bemos um centavo sequer do poder público –, creio que uma mescla seja o
mais aconselhável. À medida que a empresa vai se “profissionalizando”, passa
a entender os editais. Mas, quando se analisa mais de perto, vê-se que essas
grandes empresas que fazem os editais destinam um percentual bem peque-
no aos mesmos. A grande parte do dinheiro disponível para fazer cultura, ou
para descontar do imposto de renda, não vai pelo caminho do edital. Então,
creio que o relacionamento pessoal seja muito importante.

Como você tem analisado a proposta da reforma da Lei Rouanet?


Não gosto. Trata-se de um modelo para estatizar cada vez mais a cultu-
ra. É aí que reside o grande erro, a meu ver. Os agentes culturais são muito
mais competentes do que uma decisão de Brasília. Fala-se muito da queda
do 100%. Sempre fui contra o 100%, creio que uma empresa precisa desem-
bolsar alguma coisa pela divulgação e a série de vantagens que recebe. A
divulgação de uma empresa não deve ser feita a partir de um imposto pago
pelo contribuinte. O retorno deveria ser mais gradativo, para não assustar.
Passar, imediatamente, de 100% a 40%, ou 60%, levará provavelmente a uma
queda de empenho desse dinheiro. Mas, por exemplo, na reconstrução do
teatro Cultura Artística, depois do incêndio que ele sofreu, não conseguimos
o artigo 18, que dá total isenção do incentivo, já que pela lei a princípio não
se aplica. Depois, descobri que tem teatro que consegue. Ou seja, os critérios
nunca são observados à risca. Temos que fazer um teatro moderno. Já que
aconteceu a desgraça, vamos refazê-lo com todos os equipamentos que um
teatro merece hoje em dia. Mas muitas empresas alegam só trabalhar com
o 18. Para esses, precisamos enfatizar a questão da cidadania. Eles têm que
desembolsar alguma coisa, não apenas descontar do imposto.

A Sociedade de Cultura Artística,apesar de ser uma instituição privada,


não busca lucros. Como o senhor vê a situação da Sociedade a partir
disso?
Quando falamos em estatização, vê-se quem está dirigindo a cultura. Ge-
ralmente, os gestores culturais não são pessoas ligadas à cultura, são políticos.
Cultura é sempre um prêmio de consolação para algum partido de aliança,
o que é um grande problema. Por isso, concentra-se o dinheiro em mãos
que nunca mexeram com a cultura. E a cultura vira uma banca de negócios,

152
que apoia projetos que não são tão interessantes, nem necessários, mas que
interessam por alguma outra razão.

Como trazer orquestras de excelência e garantir um lugar nesse cir-


cuito mundial de primeiríssima qualidade?
O processo se inicia com anos de antecedência. No momento, estou fa-
zendo a temporada de 2012, e começando 2013, porque são atrações muito
importantes e mundialmente requisitadas. Levei muito tempo para conseguir
o Yo-Yo Ma, que vem tocar este final de semana. Da primeira vez que conse-
gui articular sua vinda, ele adorou – mas levou 12 anos para voltar. É preciso
conhecer um bocado, viajar bastante, assistir ao que se passa e informar-se o
tempo inteiro. É importante manter-se a par do que a imprensa especializada
está discutindo, ter amigos que acompanham o cenário de perto e podem dar
dicas de novos talentos que estão surgindo. Havia um caráter de constante
improvisação e amadorismo na América Latina, que só agora começa a mudar.
Muitos, no entanto, ainda acham que estão vindo para a selva. Porém, no longo
dos últimos anos, conseguimos mudar a visão de vários artistas. Hoje em dia,
vários deles comentam que é o continente onde melhor se trabalha. Isso se dá
justamente porque estamos preparados para qualquer eventualidade. Preve-
mos tudo e já delineamos uma solução antes do problema se apresentar. Além
do mais, nosso país é maravilhoso. Há solidariedade e calor humano, ainda se
pode contar com os outros. Foi algo que senti quando ocorreu o incêndio, por
exemplo. Por intermédio de amigos, consegui salvar o concerto que haveria
no teatro aquela noite e realocar a orquestra belga convidada. Por esse tipo
de expediente é que passamos uma imagem de extrema competência hoje
em dia, o que reforça nossa credibilidade lá fora.

Os músicos brasileiros estão excursionando hoje em dia? Estamos ex-


portando música de concerto?
Sim, claro. Há grandes talentos aqui, como em qualquer lugar no mundo.
Nelson Freire, Meneses, Jean-Louis, Feghalli. Todos eles têm uma carreira
internacional. Depois de um início difícil, a OSESP conseguiu, a duras penas,
atingir o nível de excelência que tem hoje. Conquistaram o respeito do público
e da crítica lá fora. Não temos o manancial de talento que a Alemanha, com
sua tradição de séculos, tem. Mas surgem talentos novos toda hora.

153
Como a Cultura Artística seleciona as pessoas com quem trabalha?
Confesso que sou um pouco centralizador. Aprendi que os erros dos outros
são muito mais difíceis de corrigir que os nossos. Então, faço tudo. Tanto que,
na minha idade, ainda vou ao aeroporto buscar os artistas. Mas é um prazer,
e minha equipe funciona muito bem. Não tem escola, aprenderam fazendo.
Tampouco eu tenho formação de produtor. No interior de São Paulo, tenho
uma parceria com a Regina Vieira, da RVA Cultural. Conseguimos adminis-
trar perfeitamente esses concertos, que são numerosos. Já para os eventos
internacionais, os prazos são de outra natureza, como disse. Precisamos co-
meçar o processo com dois ou três anos de antecedência. Existem gargalos,
afinal, a burocracia é muito grande neste país. É o único país do mundo que
pede nome de pai e mãe de cada artista. Eles não estão habituados a isso e
estranham um pouco.

Como é sua equipe?


Não tenho muita gente. São três moças encarregadas de público, vendas
etc. A assessoria de imprensa é terceirizada. O mesmo se aplica a toda essa
parte que trata de vistos, em Brasília. Por fim, quando os artistas vêm, contrato
alguém que domine outras línguas. Pelo menos inglês e francês.

O teatro tem estes dois marcos temporais: a reforma da década de 1960


e a de agora. Gostaria que você nos relatasse o que aconteceu naquele
período, e o que vai mudar agora.
Conheci a todos os envolvidos na reforma pós-Excelsior, muito embora
não estivesse trabalhando com a Sociedade na época, e eles contam que
a ideia inicial era terminar com a Cultura Artística e vender o imóvel. Por
que isso não aconteceu? Por iniciativa das pessoas que o haviam herdado,
e não falo no sentido tradicional do termo “herdar”. Na época, Mesquita era
o presidente, e ele não era muito interessado em cultura, a princípio. Foi no
longo de sua administração que o interesse foi crescendo. Ele era sobrinho de
Esther Mesquita, a mulher que construiu o teatro e dirigiu-o durante 30 anos.
Quando ela faleceu, Mesquita prometeu que cuidaria da Cultura Artística.
Mas quando viu o “abacaxi”, mudou de ideia e quis acabar com aquilo tudo.
Felizmente, repensou também essa decisão junto a sua equipe, e o consenso
foi de que tinham uma dívida perante a cidade e o estado de São Paulo. Era
preciso tentar levar aquilo adiante, de alguma forma. Conseguiram um pouco

154
de dinheiro do que sobrou da Excelsior, fizeram alguns acordos. A Secretaria
de Estado pagou um aluguel adiantado, para que o teatro pudesse se reerguer.
Quanto ao incêndio, creio que nada acontece à toa. Sou uma pessoa muito
positiva. Aprendi com Ming a sorrir e olhar para frente. Em algum sentido,
a tragédia foi até salutar. Pelo menos, obrigou-nos a repensar uma série de
coisas. Bem ou mal, o teatro configurava uma garantia de receita. Através dos
espetáculos, conseguíamos cobrir o aluguel da sala. Subitamente, isso desapa-
receu. Isso nos levou, evidentemente, a uma redução das estruturas. Além do
mais, havia nossa responsabilidade para com as pessoas que trabalhavam no
teatro, lanterninhas, faxineiras e outros. Mantivemos o seguro-saúde desses
funcionários por muito tempo, até todos estarem recolocados.

Eram quantos funcionários?


Na época, 50. Hoje são 22.

Mas com a reforma iniciada em março deste ano (2010) o teatro deve
dobrar de tamanho, não é?
Sim, mas por outro lado, teremos só uma sala ao invés de duas. Dobra
não em termos de capacidade da sala, mas em termos de volume. Havia uma
série de defeitos no teatro. O palco era muito difícil de trabalhar, não havia
espaço suficiente para os artistas. Para o público, então, era muito desconfor-
tável. A capacidade da sala não era a mesma dos saguões, e não havia como
aumentar. Até fizemos um projeto de um prédio ao lado, mas mesmo assim
era insuficiente. Quando chegou o momento da reconstrução, decidimos
levar em consideração todas essas insuficiências anteriores. Então, o teatro
crescerá muito em termos de espaço para o público. Os camarins também vão
melhorar muito. Por acaso, a prefeitura tinha um projeto no início dos anos
1990, chamado Operação Interligada, em que se podia comprar o direito de
construir mais do que a função da sua lei de zoneamento. Esse investimento
de então foi providencial, porque nos permite crescer três vezes em termos
de volume agora. Isso tudo será muito positivo para nossos funcionários e
para a instituição em si.

Haverá alterações na programação?


Prevemos um reposicionamento da Sociedade, mas no sentido geográfi-
co. Como pegamos a Sala São Luiz, queremos estar igualmente abertos para

155
outros espaços que possam surgir. Já nos ofereceram muitos. A cidade está
cheia de teatros fechados.

O fato de a Sociedade Cultura Artística estar localizada no Centro, que


virou um polo de teatro alternativo, estimulou alguma conversa com
relação à revitalização?
Não. Desde o incêndio os laços se estreitaram muito, porque a questão
de nossa permanência naquele local se apresentou internamente. Devíamos
ficar ou ir para outro espaço? Todas as pessoas interessadas em participar
financeiramente na reconstrução do teatro forçavam nossa ida para outro
lugar. Para a maioria, o Centro é um espaço velho, abandonado, triste. Acho
exatamente o contrário. Há sempre um momento na história de uma grande
cidade em que o centro se deteriora. O Marré, em Paris, costumava ser um
pardieiro horroroso, e hoje é o que há de mais chique na cidade. Então, é só
dar tempo ao tempo, e contar com a vontade política daqueles que realmente
querem revitalizar aquele espaço. Acho interessante, o trabalho que está em
andamento lá. Sempre deixei muito claro que queria ficar lá. Mas tive que
convencer os outros. Hoje em dia, creio que seja opinião unânime.

Como você vê o processo do Cine Belas Artes, que está quase fechando
as portas porque perdeu o patrocínio do HSBC?
É bem Brasil isso. E muito São Paulo. Acho essa falta de apreço pela me-
mória muito triste. Adoro aquele cinema. Há tantos lugares em São Paulo
que mereciam ser preservados. O prédio onde ficava o Teatro Brasileiro de
Comédia, por exemplo, devia ser um marco cultural de São Paulo. O que
aconteceu lá dentro foi uma verdadeira revolução na vida teatral da cidade.
Mas, felizmente, outras coisas surgem para equilibrar. A Sala São Paulo, por
exemplo, não era nada. De repente, transformou-se num polo fundamental
da cidade. Mas acho que esforços poderiam ser feitos no sentir de manter
aquilo que já existe. No nosso caso, tentamos comprar a Boate Kilt, na praça
Roosevelt, porque foi desapropriada e será demolida em breve. O governo
também comprou um prédio na praça.

Você se refere à Escola de Teatro?


Isso. Exatamente. Nossa ideia é fazer uma espécie de complexo.

156
Investir em formação?
Educação não é bem nosso papel, e sim facilitar o acesso. Sinto que o
público quer saber mais, não quer ser apenas passivo. Ele quer participar
e entender um pouco mais o processo. Estou trabalhando atualmente na
elaboração de um projeto para tentar desmistificar um pouquinho a peça de
teatro. Queria que o público acompanhasse a montagem da peça: a escolha
do texto, as leituras, o figurino. Queria que o público acompanhasse essas
decisões todas, porque o público precisa saber. No mais dos casos, eles não
fazem ideia de como aquele produto final surgiu.

Como é ser um produtor cultural no Brasil?


Estou aqui há quase quarenta anos. Só fui produtor cultural aqui. Então,
não posso fazer comparação. Em termos gerais, considero-me um felizardo,
porque faço algo que nunca pensei possível. Não há coisa melhor que traba-
lhar naquilo que você mais gosta. Adoro ter contato com o artista, participar.
Participo de muitas escolhas de texto, discuto programas com músicos. Quan-
do era estudante, na Europa, já mexia com essas coisas um pouco – cheguei a
fundar um cineclube. Mas, depois da minha formação, quando cheguei aqui,
fui trabalhar numa grande empresa, como executivo. Não é muito gratificante.
Prefiro levantar às quatro da manhã e buscar um artista no aeroporto. Ter o
prazer da convivência, de ter um relacionamento com pessoas que têm algo
a dar, não chegaram ao patamar onde se encontram sem razão. Sempre são
encontros fascinantes.

O que é cultura brasileira para você, enquanto estrangeiro?


Tenho uma história muito engraçada. Estou no Brasil por causa de um
filme chamado Orfeu Negro. Vi quando tinha em torno de 12 anos e fiquei
absolutamente fascinado. Desde então, era só Brasil e cultura brasileira. Isso
enquanto eu morava lá. Depois, acabei encontrando uma brasileira e vim
para cá. Era o meu destino, não sei explicar. Meus pais achavam tudo muito
esquisito.

157
158
Lárcio
Benedetti
Gerente de desenvolvimento sociocultural do Instituto Votorantim.

Lárcio, fale um pouco sobre a sua formação.


Eu me formei em 1992 pela USP, em administração de empresas, com
especialização em marketing. Logo no começo da minha carreira, achava
que ia trabalhar no marketing, numa grande empresa, multinacional, por-
que na faculdade de administração você é formatado para pensar assim. E
fiz isso, alternando com alguns trabalhos de consultoria de negócios, até
2000, quando me deu um nó na cabeça. Parecia que minha vida se resumia
a vender mais e mais produtos. Me deu um vazio. Eu queria algo um pouco
maior para a minha vida, mas queria continuar trabalhando com empresa,
que era minha formação e era o que eu gostava, mas não com esse viés do
consumismo desenfreado. Foi aí que descobri uma agência que trabalhava
na área de arte, a Articultura, do Yacoff Sarcovas. Candidatei-me a uma vaga
e comecei a trabalhar em 2000. Aí, sim, foi um marco na minha carreira.

Como foi essa experiência?


Foi maravilhosa. Fiquei seis anos lá, de 2000 a 2006. Foi interessante
porque eu pude juntar um pouco da minha experiência, da minha forma-
ção enquanto administrador de empresas, com esse viés para o marketing,
com a experiência de trabalhar com temas ligados à cultura. Fizemos alguns

159
trabalhos bem relevantes nessa área de políticas privadas de patrocínio cul-
tural. O maior de todos foi para a Petrobras, entre 2000 e 2002, quando foram
instaurados os primeiros editais de seleção pública no país, fruto do nosso
trabalho. A Petrobras foi nosso principal cliente durante vários anos. Por ser
a maior patrocinadora de cultura do país, e apesar de ser uma empresa de
capital misto, ser conhecida como uma empresa brasileira, a Petrobras queria
dar um caráter um pouco mais democrático para os seus patrocínios da área
de cultura, de esportes e da área ambiental e social. Os editais surgiram para
atender a esse desejo, de ter um caráter mais democrático na distribuição
dos seus recursos, em que todo e qualquer produtor ou agente cultural do
país tivesse as mesmas chances de participar, de ter acesso a recursos de uma
empresa privada.

Ela foi a primeira a realizar editais?


Exatamente. A partir de então, começamos a atender outras empresas
nessa área de cultura, a Philips, Nestlé, entre outras. Em 2004, nós fizemos
um trabalho para a Natura, que virou o Natura Musical, que é também um
programa de patrocínio, focado na área de música brasileira e realizado por
meio de editais. A Petrobras foi pioneira e acabou servindo de exemplo para
outras empresas, o que trouxe uma série de vantagens tanto para as empresas
como para o próprio meio cultural. É uma forma mais democrática de acesso,
que minimiza a questão do balcão, que é ruim para o meio cultural, em que
nem todo mundo tem as mesmas chances. Quando uma empresa não tem
uma política de patrocínio, um foco determinado, ou mesmo algum sistema,
edital ou outro sistema de selecionar projetos, ela acaba não tendo muita jus-
tificativa para falar sim ou não. Os editais determinam até o período no qual
as pessoas podem inscrever os seus projetos, o formato que ele deve ter. Isso
é uma grande vantagem para o meio cultural, saber que você está mandando
um projeto para uma empresa no formato correto para a avaliação, porque
senão fica um tiro no escuro. O edital ajuda a colocar ordem na casa, tanto
para a empresa quanto para o próprio meio cultural.

Queria que você comentasse três questões a partir da perspectiva da


empresa. A primeira é que lançar um edital e estimular a participação do
proponente já é uma forma de marketing. A segunda é sobre a direção de
políticas, conseguir focar em um tema, como a música, no caso da Natura.

160
A terceira é a formação de curadorias, bancas e grupos de seleção, que
também é uma outra inteligência que se forma a partir disso.
A primeira ação meritória ou esperada de uma empresa que queira atuar
de uma forma profissional, de uma forma séria na área de cultura, é defi-
nir a sua linha de atuação. Se isso vai desaguar num edital ou não, é outra
coisa, mas, primeiro, a empresa tem que olhar para dentro e para fora, para
ver as demandas do meio cultural, para ver no que ela vai focar. Então, a
Natura, por exemplo, através de vários estudos, chegou à música brasileira
como foco de atuação. Assim como a Votorantim, em que o recorte não
foi por área cultural, não foi por música, literatura, patrimônio, mas sim
por aquilo que a gente chama de uma causa na cultura, um tema, que é a
democratização cultural. A Votorantim trabalha sempre com projetos que
promovam o acesso da população, e não projetos de produção. Em vez de
patrocinar a produção de um filme, a Votorantim patrocina projetos que
façam com que a população brasileira tenha acesso aos filmes produzidos,
como festivais de cinema, por exemplo. O primeiro passo é a empresa definir
o seu foco, definir a sua linha de atuação, e essa definição se dá por alguns
fatores. Primeiramente, são os objetivos, o que a empresa espera. Se quer
ter um programa de patrocínio para se relacionar com seus públicos, para
demonstrar participação social, mostrar uma preocupação com a sociedade,
com o desenvolvimento do país. A empresa pode ter várias intenções com
relação ao patrocínio, pode ter motivações de marketing, mercadológicas, de
comunicação, ou pode patrocinar simplesmente para aproveitar mecanis-
mos de benefícios fiscais. Não importa se o motivo é mais ou menos nobre:
importa que a empresa olhe para dentro e questione os motivos de entrar
nessa seara. É uma decisão estratégica da empresa, não é algo para começar
hoje e parar daqui a alguns meses. A partir da definição dos objetivos, a em-
presa tem que pensar do ponto de vista da comunicação, pensar o que ela
quer comunicar pelos patrocínios, que atributos de marca. A Petrobras, por
exemplo, há dez anos, quando pensou na sua política de patrocínio, falava
que queria ser reconhecida como uma empresa brasileira, uma empresa de
ponta, um Brasil que dá certo lá fora, que é reconhecido lá fora. Então nos
patrocínios de cultura, assim como na área de esporte, na área social, os
projetos que ela deveria apoiar deveriam estar alinhados com essa questão,
com essa preocupação brasileira, com esses atributos de brasilidade, de
desenvolvimento, de crescimento. O segundo item é isso, o que a empresa

161
quer transmitir por meio da sua atuação em cultura. O terceiro é qual o
público alvo que ela quer atingir com isso. No caso da Votorantim, quando
ela fala de projetos de acesso à cultura, tem que saber para quem vai dar
acesso, para população brasileira como um todo, para população de baixa
renda, jovem, criança, adulto. Quem ela quer beneficiar com isso. E o quarto
acho que é a própria localização geográfica, saber se vai apoiar projetos no
país inteiro, num estado, numa região, numa cidade. Esses são pontos que
funcionam como filtros para a empresa definir o seu foco de atuação e, a
partir daí, formalizar em um edital ou alguma outra forma de apoio.

E sobre bancas de seleção, curadoria e mérito?


Isso é decorrência da própria característica da seleção pública por edital.
Quando a empresa escolhe realizar edital, ela tem que fazer com que todo esse
processo seja o mais legítimo, transparente e responsável possível. Quando ela
recebe os projetos, eles devem ser analisados por profissionais que conheçam
aquela área cultural, aquele assunto, e justifiquem frente à sociedade a escolha
dos projetos contemplados. Por isso que, pelo volume, pela qualidade, pelas
características dos projetos e do próprio funcionamento do edital, nada mais
coerente do que se formar comissões técnicas com especialistas da área, que se
renovam ano a ano. Até para dar uma oxigenada, para envolver outras pessoas.
A formação de comissões técnicas é uma prerrogativa importante para isso.

Tem se construído um saber em torno disso? Você percebeu, nesse perío-


do, se as comissões técnicas vêm aprendendo a julgar melhor os projetos?
Ah, sem dúvida. Sempre vejo os membros das comissões falando sobre
seu aprendizado, ficando surpresos quando um estado manda um grande
número de projetos importantes, ou criticando o fato de receber projetos
muito parecidos, sem muita criatividade. Então gera um aprendizado, uma
discussão para os próprios avaliadores da comissão.

O edital tem todos os seus méritos, mas o balcão, às vezes, tem as suas
funções também, por abarcar áreas que ainda não desenvolveram esse
saber em trabalhar o edital. Você acha que existe a possibilidade de ter
um núcleo de balcão dentro das empresas, ou isso é complicado?
Chegamos a um momento em que parece que o edital é a única solução,
a mais elogiável, e o balcão é o oposto. É a mais criticada, digamos assim. Eu

162
acho que não podemos ser oito ou oitenta. Se a empresa utiliza-se de um edi-
tal, do balcão ou vai desenvolver um projeto próprio, dependerá daquilo que
ela espera ao atuar na área de patrocínio. Por exemplo, a Votorantim queria
sair do eixo Rio–São Paulo e apoiar projetos do Brasil inteiro, que tivessem
a característica da marca, quer dizer, que tivessem uma preocupação com
o desenvolvimento do país. Achamos que criar um edital já seria uma solu-
ção. Achamos que íamos receber milhares de projetos de todas as regiões e
conseguir pegar bons projetos em todos os estados, mas alguns estados nem
mandaram projeto. Então a Votorantim, ano a ano, passou a escolher alguns
municípios onde ela queria desenvolver a economia, a cultura local, mas
não recebia projetos nos editais, e convidar proponentes locais para elaborar
projetos. Fazia uma mínima consultoria para ajudar essas pessoas a tirarem a
ideia da cabeça e transformarem num projeto e, em seguida, submetia esses
projetos a alguns critérios de seleção. Isso é uma ação mais focada, para de
fato desenvolver localmente alguns projetos que ainda não tinham condições
de competir de igual para igual num edital grande.
A empresa não deve ser elogiada porque faz um edital ou criticada porque
não faz. O edital é apenas uma forma de a empresa selecionar projetos. Só que
na área de cultura, mais de 90% do recurso empresarial são provenientes de
lei de incentivo, e ninguém pode esquecer que é um recurso público. O edital
acaba sendo muito elogiado por conta disso, é uma forma mais democrática
de se investir. Mas, se a empresa entender que tem uma outra forma e, prin-
cipalmente, se a empresa colocar recursos próprios, que é algo elogiável de
ser feito, ela pode escolher sua forma de incentivar a cultura.

Por que temos tão pouco investimento direto?


Essa é também uma crítica minha. Nós vivemos um momento de apagão
cultural muito forte na era Collor, e o incentivo fiscal entrou como se fosse
o único remédio para se fomentar a produção no país. Passamos de uma
situação na qual as empresas não investiam para uma de 100% de benefício
fiscal, sem nenhuma contrapartida privada. Então acabamos acostumando
mal as empresas. E é uma lei de incentivo, o próprio nome diz. Ela surgiu para
incentivar as empresas a investirem em cultura, mas o que era para ser um
remédio, acabou se transformando em um veneno. Já vi muitos gestores de
cultura de empresas falando que não investem em cultura porque não têm
Lei Rouanet, como se uma coisa fosse sinônimo da outra. A empresa só pode

163
investir em cultura se ela tiver o benefício fiscal? Não deveria ser assim. Na
área ambiental, por exemplo, as empresas investem em projetos com recursos
próprios. Na área esportiva, também sempre foi assim, até ser promulgada
agora a Lei de Incentivo ao Esporte. Marketing esportivo é uma coisa que vem
crescendo muito no país, e até existe o receio de acontecer com o esporte o
que acontece hoje com cultura, que daqui a dez, 15 anos as empresas só vão
investir no esporte se tiver os 100% de isenção. Então existem alguns desafios
a serem vencidos. O principal é fazer com que as empresas patrocinem a
cultura não mais de forma reativa, através de demanda de balcão, mas ativa,
que as empresas planejem sua atuação em cultura.

Para isso precisa formar gestores culturais dentro das empresas. Como
fazer isso?
Hoje existem cursos de formação para pessoas que querem trabalhar na
cultura como agentes culturais, produtores culturais. São cursos focados na
captação de recursos, mas a formação para profissionais de empresas que
trabalham com patrocínio cultural, de fato, não existe no país. O que existe
hoje são cursos de curtíssima duração e sempre focados em leis de incentivo.
Quer dizer, mais uma vez educando mal o meio empresarial, com o discurso
de que investir em cultura é usar a lei de incentivo. Do ponto de vista estra-
tégico, o profissional que trabalha nas empresas precisa ter uma formação
que possibilite conhecer as áreas culturais, ter um mínimo de conhecimento
do que é o meio cultural hoje. Com essa base, ele pode partir ainda para um
patamar mais complexo, ligar cultura com educação, com políticas culturais,
com desenvolvimento, com reflexão crítica. Além de desenvolver conheci-
mentos sobre como gerir projetos, como pensar a comunicação, como se
relacionar com o projeto patrocinado, com o prestador de contas do projeto,
como gerir o dia a dia dessa relação.

Prestar contas deveria ser mostrar em que foi gasto o recurso ou quais
foram os resultados conquistados? As duas coisas são importantes?
O mundo empresarial e o mundo cultural têm alguns mecanismos, algu-
mas formas de operar o dia a dia, que são particulares. Cada um tem as suas.
E esse relacionamento tem muito a contribuir para os dois lados, principal-
mente em relação ao respeito a algumas características, algumas peculiari-
dades do outro lado. Acredito em prestar contas mais do ponto de vista de

164
resultado mesmo. A partir do momento em que o patrocínio cultural ganha
um caráter mais estratégico, ele acaba adquirindo certa importância dentro
da empresa. Então, de tempos em tempos, os gestores precisam prestar contas
a seus conselhos, a suas diretorias. É natural que elas queiram saber como
andam os projetos. Já nas empresas que ainda estão no estágio reativo, isso
não acontece, não importa se vai dar certo ou não: eles não acompanham o
projeto, a empresa não tem uma estratégia. Já vi muitos gestores e produtores
culturais elogiando a postura da empresa que acompanha, porque é muito
bacana mesmo quando a empresa tem esse interesse. E, para a empresa que
apoia projetos pelo país inteiro, fica difícil acompanhar de perto. São dezenas
de projetos todo ano. Elas recebem telefonemas dos produtores perguntando
quando irão visitar os projetos.
Quando você cria uma situação de parceria, deixa claro para seu propo-
nente que ele é um parceiro, a relação é totalmente harmônica. Os dois lados
entendem que prestar contas, mostrar resultado e, às vezes, até mostrar como
está gastando o recurso, é uma relação transparente e muito produtiva. Agora,
quando vira um sinônimo de cobrança, do ponto de vista da contrapartida,
da comunicação, aí o relacionamento fica, de fato, desgastado.

O que é o GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas)?


O GIFE é um grupo de institutos, fundações e empresas, no qual exis-
tem hoje mais de 120 associados. Fazem parte do GIFE grandes empresas
e instituições, fundações ligadas às empresas que têm uma atuação social
relevante, ou seja, utilizam recurso para o bem social. São empresas que
atuam na área de educação, de esporte, na área ambiental e também na área
de cultura. Foi muito importante se criar um grupo desses. Quanto mais a
gente consegue sistematizar o que já é feito, ouvir diversos fatores, formar
profissionais, pessoas que queiram trabalhar com essas áreas, por si só já é
uma ideia muito meritória. Então o GIFE promove este trabalho: de pensar o
investimento social privado no país e o que pode ser melhorado. Dentro da
área de patrocínio cultural, existe um comitê formado por dez ou vinte empre-
sas, em que acontece essa troca de experiências de empresas patrocinadoras.
É uma experiência muito rica até para alinhar, tentar ouvir experiências bem
e mal sucedidas dentro do mundo empresarial, das empresas que atuam em
cultura, e tentar aprender.

165
A Votorantim investiu em torno de R$ 54 milhões em cultura nos úl-
timos 12 anos. Uma política cultural dentro da empresa faz com que o
investimento aumente?
Acredito que sim. Eu não digo com toda certeza, porque podem ter dois
cenários. Depois que a empresa pensa na sua atuação e define um programa,
ela precisa pensar em várias outras coisas, como, por exemplo, a sua estrutura
de gestão cultural. Ela precisa ter pessoas qualificadas, às vezes precisa de uma
consultoria, quer dizer, tem toda uma situação de retaguarda, uma inteligência
por trás. Então, quando a empresa começa a atuar e a perceber que está alcan-
çando os objetivos, que está tendo resultado e repercussão, ela pode aumentar
o recurso investido ou qualificar mais esse investimento. A Petrobras, depois
que definiu sua política cultural e a implementou por meio dos editais, con-
seguiu uma visibilidade enorme se comparada a 15 ou vinte anos atrás. Ela já
era a principal patrocinadora do país, mas ganhou ainda mais visibilidade e
reconhecimento. É um crescimento quantitativo em termos de recurso, mas
qualitativo também. Ela poderia continuar com a política de balcão, colocando
mais e mais recursos, mas ela continuaria sem esse reconhecimento.

A cultura é uma boa arma de marketing?


Sem dúvida. Eu não gosto de usar o termo “arma”, principalmente quando a
gente fala em marketing, mas, quando a cultura é pensada de uma forma mais
estratégica pelas empresas, elas só têm a ganhar. Esses apoios se desdobram
e se transformam em ações de marketing e de comunicação mais coerentes,
mais sólidas. A empresa está contribuindo para o desenvolvimento do país,
o que já é um grande mérito. O meio cultural se desenvolve, a sociedade
ganha com isso, a população passa a ter mais acesso à cultura. A Votorantim
sempre investiu de uma forma significativa na área de cultura. Tem alguns
projetos que são, inclusive, anteriores às próprias leis de incentivo. Quando
entrei na Votorantim, fiz uma pesquisa para saber desde quando a empresa
investia na área de cultura e peguei documentos que remetem à década de
1920, quando ela montava suas primeiras fábricas. Pela própria característica
do negócio, que lida com cimento, alumínio, metais, as fábricas precisavam
ser montadas em municípios e regiões remotas do país, e a empresa teve que
montar pequenas cidades ali, com açougue, igreja, escola. E sempre tinha o
seu cinema, tinha o seu teatro, sua banda de música. Então é uma coisa que
a Votorantim já carregava desde o começo.

166
E a educação da cultura? Quando essas empresas tinham suas bandas de
música, elas ensinavam às crianças a tocar instrumentos, havia dentro
das empresas uma educação cultural. Você acha que as empresas cria-
rem escolas de teatro, escolas de música, para seus funcionários, é um
caminho interessante para a cultura também?
Sim. Do ponto de vista de empresa, o mais importante é fazer algo que,
de fato, vá desenvolver a cultura, a sociedade, o público, a comunidade, mas
atuando em alguma situação que também tenha a ver com os valores e as
crenças da própria empresa, porque se fizer isso por mero assistencialismo,
sem acreditar, vira uma ação pontual, e não será perceptível o resultado. Então
aquilo está fadado a qualquer corte de orçamento. Agora, se é uma empresa
que está num município muito pequeno e tem que se relacionar com ele,
fazer algo por aquela sociedade, aquilo vira um investimento estratégico para
ela. Acredito que o ponto de partida sempre é esse trabalho preliminar de
planejamento, de olhar a atuação da cultura como uma atuação estratégica,
e não como uma ação filantrópica.

167
168
José
Martins
Diretor do Instituto Gerdau.

José, como a Gerdau vincula responsabilidade social à cultura?


O tema da “responsabilidade social” já foi internalizado pela maior parte
das organizações. É uma tendência natural na nossa sociedade, principalmen-
te num ambiente tão aberto, onde todos estão, de alguma forma, inteirados
do que se passa e percebem nitidamente a importância do envolvimento das
empresas com essas questões. Em nossa organização isso é um tema bastante
antigo. Desde 1901, quando as primeiras atividades da organização tiveram
início, a Gerdau convive estreitamente com comunidades. João Gerdau, o
primeiro dono da empresa, chegou ao Brasil em 1869, instalando-se em
Colônia de Santo Ângelo, uma pequena cidade no interior do Rio Grande do
Sul, hoje chamada Agudo. Um pouco por conta da tradição germânica, um
pouco por causa de seus laços com a Igreja Luterana, suas primeiras iniciativas
foram no sentido de apoiar a comunidade e dar-lhe uma boa organização, o
que incluí a promoção de atividades culturais: a formação de um coral, uma
pequena orquestra de músicas típicas alemãs (era uma colônia alemã). Essa
preocupação com a comunidade – que já prenuncia o tema da responsabili-
dade social – acompanha toda a trajetória da empresa. Na década de 1960, a
organização se envolveu em várias ações, tanto solidárias quanto culturais:
o apoio ao Teatro São Pedro, em Porto Alegre, a constituição da Orquestra

169
Sinfônica de Porto Alegre, bem como a Orquestra de Câmara do Teatro São
Pedro. Na década de 1970 começa a gestão de Jorge Gerdau Johannpeter,
grande apreciador das artes e cofundador de uma das primeiras galerias de
arte do Rio Grande do Sul. A arte sempre esteve tão presente na família que
acabou se tornando parte da organização também. À medida que a gestão da
empresa foi amadurecendo, a questão da cultura começou a ser trabalhada
de maneira um pouco mais estratégica.
Um marco para essa visão deu-se em 1992, quando começamos a preparar
as comemorações dos 100 anos da Gerdau (que se dariam em 2001). Lembro
que, em uma das reuniões, Jorge Gerdau disse: “Talvez a maior contribuição
que possamos dar a Porto Alegre – cidade que deu origem a nossa organiza-
ção – seja transformá-la numa Barcelona da América Latina. Para tanto, nosso
primeiro desafio é criar um polo de investimentos na região Sul”. O segundo
desafio seria encontrar uma figura emblemática que incorporasse o ideal
de “herói gaúcho das artes”, pois, no dizer do próprio Jorge Gerdau, “a gente
não faz nada sem um herói”. Foi assim que chegamos ao trabalho do artista
plástico Iberê Camargo, que ainda era vivo na época. Quando Iberê chegou
ao estágio terminal de sua doença, convidou-nos para organizar a Fundação
Iberê Camargo. Realizou-se, por conta disso, todo um trabalho de organização
da fundação: construção da sede, organização do acervo, e o desenvolvimento
de uma programação cultural intensa. Ou seja, à guisa de recapitulação, dois
movimentos importantes tiveram início em 1992 – a tentativa de tornar o Sul
um polo de investimentos tão interessante quanto o Sudeste, e a criação de
um herói local. Esses movimentos eventualmente redundaram na criação da
Bienal de Artes Visuais do Mercosul, atividade bastante complexa que conse-
guimos estruturar satisfatoriamente, garantindo-lhe continuidade.

Como essa participação da Gerdau nas artes se dá hoje em dia?


Bom, no tocante à cultura e às artes, temos uma visão muito clara de que
nosso papel é auxiliar na organização do processo. Falarei apenas sobre o
Brasil, porque nossa política com relação ao tema é diferente no exterior.
Procuramos favorecer projetos de todo o Brasil, trazidos para a nossa aten-
ção pela comunidade. Alguns projetos são encarados como estratégicos em
termos nacionais (como a Fundação Iberê Camargo e a Bienal), outros são
focados em questões de inclusão social através das artes, como a Orquestra
Bachiana. Nossa grande preocupação – em todos os casos – é a criança e

170
o adolescente. Por isso a ênfase em programas de educação pela cultura –
mesmo que estejamos envolvidos na gestão de uma operação enorme como
a Bienal Mercosul, participando do conselho e da diretoria desse organismo,
nosso principal objetivo é trabalhar o tema da educação, encorajando o maior
número possível de jovens a passar por esses espaços de exposição. Para nós,
isso é fundamental: a arte e a cultura como alicerces para a juventude.

Como é o posicionamento da empresa com relação à Lei Rouanet?


Temos um entendimento de que nossa obrigação, do ponto de vista social,
não para na renúncia fiscal. Alocamos também verbas de capital próprio, e
defendemos esse tipo de atitude. Estamos um pouco fora da curva no que con-
cerne o debate sobre a Lei Rouanet. Acreditamos que as empresas não podem se
basear apenas na renúncia fiscal de 100%, elas precisam investir capital próprio.

Percebi que todos os projetos mencionados são pensados a longo prazo.


Isso é uma postura da Gerdau?
Sim. Em todas as ações promovidas pela Gerdau há essa visão de longo pra-
zo. É um pouco a tradição do negócio – siderurgia não é coisa que se preste a um
planejamento de curto prazo. Tentamos empregar esse tipo de pensamento em
todas as nossas iniciativas. Temos um programa de formação de jovens empre-
endedores – o Movimento Júnior Achievement –, que pega alunos de escolas e
tenta mostrar-lhes a importância de uma educação empreendedora, a impor-
tância de uma mentalidade de liderança, para que não se tornem massa de ma-
nobra. Esse programa já tem 20 anos, e esperamos que dure muito mais tempo.

Como o senhor vê toda essa malha de fornecedores e pequenos empre-


sários que trabalham para a Gerdau? Quais são as relações que podemos
estabelecer entre esses empresários e as políticas culturais?
Bom, essa questão dá ensejo para discutirmos dois temas importantes.
Primeiro, nossos esforços no sentido da responsabilidade social não se limitam
a ajudar os menos favorecidos. Para nós, a responsabilidade social é um com-
plexo de relações éticas. Por isso, prezamos a construção conjunta, visando
a ganhos mútuos. Usarei o exemplo do setor de fornecimento. A siderurgia
possui duas cadeias muito críticas nessa área – a cadeia da sucata metálica,
que vai desde o lixão até os pequenos empresários que estocam ferro para
vender às siderúrgicas, e a cadeia da mineração, que vai desde o problema da

171
mata nativa e do carvão até os fornos das siderúrgicas, que trabalham de forma
integrada. Essas são cadeias muito impactantes em termos sociais. Nossa or-
ganização tem realizado alguns programas no sentido de fazer inclusão social
nessas cadeias. Por exemplo, na cadeia do carvão, temos programas básicos
de formação de cidadania, no intuito de evitar práticas agressivas do ponto
de vista ambiental. Ultimamente, temos debatido muito com o Ministério da
Cultura e com a Câmara dos Deputados uma possível reformulação das leis de
renúncia fiscal e incentivo, e uma de nossas propostas envolve justamente o
aumento de vantagens para pequenas empresas e pessoas físicas que quiserem
investir na cultura. Bom, esse é um tema. O outro tema é a possibilidade de
realizar isso através de cooperativas de pequenas empresas, o que significaria
um valor maior de investimento. Eu diria que a legislação, hoje, não favorece
esse tipo de iniciativa. Por isso estamos atacando primeiro o tema da legislação,
para que, com ela e com o programa de educação, possamos dar continuidade
aos programas de inclusão. Isso não é um problema só da Gerdau, é algo que
abrange todas as grandes empresas e suas cadeias de fornecimento.

Como o senhor analisa o binômio cultura-tecnologia? Refiro-me às


novas mídias, a Internet...
A tecnologia mudará muito a sociedade nos próximos anos e, por conse-
quência, tanto a cultura em si quanto o consumo de cultura sofrerão trans-
formações dramáticas. Essas questões já se apresentavam quando estávamos
discutindo a estruturação de uma sede para a Fundação Iberê Camargo. Afinal,
daqui a 50 anos, qual será o papel de um museu físico? Serão necessários
ainda, ou será que nesse tempo a visita ao espaço físico do museu se tornará
obsoleta, fora da cultura, tamanha a nossa capacidade de conexão? Não tenho
essas respostas. Pressinto apenas que nossas vidas mudarão completamente,
o que pode significar tanto um ganho quanto uma perda enorme. Depende
de como a sociedade conduzirá essas mudanças, que são arriscadas por de-
finição. Quem se debruça um pouco mais sobre essa questão vê claramente o
problema da privacidade, da censura. Ou seja, há uma série de ramificações
que precisam ser abordadas. Mas não há dúvida de que será uma revolução.

Quanto a todas essas políticas de longo prazo – a organização tem acom-


panhado o resultado desse processo de formação de público? Como o
senhor avalia o resultado desses empreendimentos?

172
Veja bem, na década de 1970, eu me considerava hippie. Até levava jeito,
era magrinho, tinha cabelo comprido, andava de macacão para lá e para cá e
acreditava que minha geração seria capaz de promover grandes mudanças na
sociedade, o que não foi o caso. Isso para dizer que não temos ilusões quanto
ao alcance de nosso trabalho. Resta saber se é possível fazer com que essas
iniciativas correspondam às necessidades de uma sociedade como a nossa.
Ainda temos uma trajetória enorme pela frente. Até lá, fazemos nossa parte e
contamos todo ganho como positivo. Temos uma experiência importante com
milhares de jovens que passaram por nossos programas educativos no Rio
Grande do Sul, em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Recife. Mas essa medição
que você me pede é difícil. Muitos desses jovens acabam largando tudo para
poder sobreviver ao dia a dia, manter uma família. É cruel.

O que o senhor pensa sobre a política de editais?


Quando o recurso é público, o edital é fundamental, até por uma questão
democrática. Mas quando o recurso é privado – como é o nosso caso – o
edital pode não servir aos interesses do gestor interno da organização. No
caso da Gerdau, por termos uma essa visão de trabalho sempre a médio ou
longo prazo, não ampliamos muito o nosso leque de entradas. Temos uma
linha bem estabelecida. Privilegiamos a música clássica, as artes plásticas, e
temos alguns parceiros com os quais trabalhamos continuamente. Um edital,
no nosso caso, serviria de impedimento a essa continuidade, que é essencial
para nós. Adoraria dizer que a Fundação Iberê Camargo, ou a Bienal, já são
empreendimentos que andam sozinhos e não precisam de apoio. Mas ainda
não é o caso.

Como pensar a divulgação de conteúdo?


Vou usar novamente o exemplo da Fundação Iberê Camargo. Avançamos
muito nesse campo. Temos uma revista eletrônica, um site aberto a debates,
discussões. Estamos pensando em maneiras de intensificar a troca entre a
Bienal Mercosul e a Bienal de São Paulo. Mas – falando de maneira bem sim-
ples – creio que aí já é um pouco a decoração do bolo, sendo que nosso bolo
não está nem formado ainda.

O senhor diria que a questão da política cultural, no Brasil, ainda não


está estruturada o suficiente?

173
Bom, tomemos dois cenários distintos. No cenário A, a empresa reconhece
que precisa fortalecer sua imagem junto a uma determinada comunidade
próxima, e vê na música um bom instrumento para tal. Portanto, essa decisão
estratégica já está tomada, independente da possibilidade de usar renúncia
fiscal. No cenário B, temos uma empresa que pensa assim: “É provável que eu
tenha uma renúncia fiscal de tanto, então, para não dar para o imposto, vou
dar para qualquer um”. Acho que a tendência das empresas é caminhar para
o cenário A, o que não quer dizer que o cenário B não exista. Mas acho que
a tendência é a prevalência do cenário A, mesmo que não seja de imediato.

Para que esse cenário prevaleça, profissionais capazes são essenciais.


Qual é a sua opinião quanto à questão da formação de produtores e
gestores culturais?
Na realidade, existe um déficit no Brasil não só na formação de gestores
culturais, mas na formação de gestores em geral. Para que essa empresa “cená-
rio A” formule suas estratégias, ela pressupõe profissionais com outro nível de
amadurecimento no que tange às questões da cultura, e não só oportunistas
e marqueteiros de curto prazo. Mas o país como um todo tem dificuldade em
formar lideranças, até porque nenhum país cresce tanto como o Brasil sem
nenhum tipo de ônus. Segundo os dados que o Ministério da Cultura tem
nos passado, a produção cultural aumentou tremendamente com relação
à produção de dez anos atrás. Esse processo de crescimento foi muito mais
rápido que a capacidade de formar gestores na área. Outra solução está na
competência das empresas. Elas devem se abrir um pouco mais, trazer para
dentro de seus quadros esse profissional. De alguma forma, o marketing ainda
domina a maior parte das organizações. Não que isso seja errado. Inclusive, é
o que se espera de uma empresa. Mas, num sistema mais evoluído, a empresa
certamente favorece muito mais uma visão estruturada do que pontual.

Porto Alegre teve uma experiência internacional fortíssima, com eventos


como o Fórum Social Mundial e a própria Bienal do Mercosul. Em que
estágio estamos nesse processo de integração cultural no Mercosul?
Muito no início. Se presumimos 10 etapas hipotéticas, creio que estamos na
segunda. Até um ano atrás não tínhamos nem uma associação de produtores
culturais, tamanha a falta de organização e consenso. Tem muito caminho pela
frente, mas estou otimista – tanto em relação à Gerdau como a outras empresas.

174
Como o senhor se posiciona quanto ao vale-cultura e demais questões
de acesso?
Em princípio, nossa política é de que todo programa apoiado por nossa
organização via renúncia fiscal não cobre ingresso. Isso gera uma discussão
terrível, porque muitas vezes não é possível garantir gratuidade. Na Fundação
Iberê Camargo e na Bienal Mercosul – programas em que temos um papel
duplo, de investidor e gestor interno – conseguimos gratuidade absoluta para
tudo. Na Feira do Livro também. Já com o teatro, é um pouco mais compli-
cado. Quanto ao vale-cultura, creio que desempenhe um papel importante,
mas provisório, de inclusão. É preciso tomar cuidado para que não se crie o
ônus de uma dependência absoluta.

O senhor considera a economia criativa uma possibilidade?


A organização já refletiu muito a respeito disso. Não apenas em relação à
cultura; em relação à própria siderurgia. Nossa empresa se define da seguin-
te maneira: “Ganhamos dinheiro com siderurgia, ponto. Em outros temas,
apoiaremos a sociedade no que for possível”. Não estamos interessados no
retorno. Tanto que não investimos em cinema, onde teríamos participação
de ganhos.

Se o país continuar crescendo de maneira sustentável, em uma década,


nossos problemas serão completamente diferentes. Poderemos ter uma
nova onda de imigração, e novas políticas de integração serão necessá-
rias. Como o senhor vê o futuro?
Não sei como a humanidade será daqui a 50 anos. Creio que tendemos
a uma crise de insumos global. Nesse contexto, o Brasil está em posição
privilegiada. Tenho certeza de que o país continuará crescendo, mas terá de
enfrentar novas questões, novas parcerias, novas bases de integração. Para
a Gerdau, esse crescimento é maravilhoso. Quanto mais crescer a popula-
ção, mais aço vamos vender. Do ponto de vista da cultura, creio que seja
uma excelente oportunidade para novas integrações, também. Crescer não
é ruim, basta saber como conduzir esse processo. Falta, naturalmente, um
planejamento estratégico de longo prazo que dê conta de algumas questões
que se apresentam, principalmente as de cunho ambiental. Abriremos mão
de áreas hoje sagradas? Usaremos os recursos que o Brasil, em princípio, tem
em excesso, como água ou minerais?

175
176
Maria
Arlete
Gonçalves
Diretora de Cultura do Oi Futuro.

Maria Arlete, como surgiu o Oi Futuro?


O Oi Futuro nasce no final de 2001, após a privatização do setor de Tele-
comunicações. A Telemar – hoje Oi – adquiriu a maior área geográfica das
empresas de Telecom, abarcando sudeste, norte e nordeste. Como se sabe,
é exatamente nessa região que se encontra a mancha vermelha da exclusão
social no Brasil. Então, desde o início, a empresa percebeu que teria de pro-
mover o desenvolvimento dessas áreas do Brasil profundo. Percebeu também,
até por uma questão de mercado a longo prazo, que ela teria que devolver
recursos à sociedade. Portanto resolveu criar uma estrutura, um instituto
que pensasse a questão da responsabilidade social através da educação e da
cultura. Foi assim que surgiu o Oi Futuro, cujos focos principais de atuação
são justamente a cultura e a educação como maneiras de colocar no mapa
da inclusão esses brasileiros à margem, com ênfase na tecnologia enquanto
instrumento de aceleração do desenvolvimento.

O que é o Oi Futuro, exatamente? Como funciona?


Oi Futuro é uma OSCIP, ou seja, uma organização social de interesse
público. Atuamos nos campos da cultura e da educação através de projetos
próprios, pensados e desenvolvidos pela Oi a partir desse DNA teórico da

177
tecnologia. Ela também apoia projetos de outras organizações no campo
social e faz a gestão dos patrocínios culturais incentivados da Oi. Ou seja,
houve aí um entendimento por parte da empresa de que os patrocínios
culturais incentivados, valendo-se das leis de incentivo, estão na realidade
utilizando recursos públicos, dinheiro do contribuinte. Portanto, seria preciso
ter um olhar responsável sobre a administração desse capital e da produção
que surge dele. Temos hoje três centros culturais próprios, voltados à arte e
à tecnologia: dois no Rio de Janeiro e um Belo Horizonte. Além disso, temos
projetos sociais que trabalham a partir desse mesmo viés, como a Oi Kabum,
que é uma escola de arte e tecnologia para jovens de comunidades. No campo
exclusivo da educação temos outros tantos projetos, entre os quais se destaca o
Nave, que é uma escola de jogos eletrônicos. Todos os projetos são fortemente
marcados pela presença da cultura digital.

E como se iniciou o seu envolvimento pessoal com a cultura?


Meu processo pessoal de envolvimento com a cultura começa na infância.
Frequentava bibliotecas públicas, e foi isso que fez minha cabeça no campo
da cultura. O primeiro filme que vi na vida foi uma fita sobre pigmeus, exibida
em praça pública, lá em Salvador. Nunca esqueci isso: aquele povo no meio
da rua, vendo um filme em preto e branco e praticamente mudo. Aquela
sensação de compartilhamento, de comunhão com o cinema, ficou para
sempre. Creio que isso se reflete um pouco no meu trabalho de formação de
plateia – quando nós do Oi Futuro pensamos a cultura, pensamos primeiro
em acesso. Mas, voltando, fui rata de cinematecas, especialmente a do MAM
do Rio de Janeiro, durante os anos 70, quando estava cursando a Escola de
Comunicação da UFRJ. Nessa época, a efervescência cultural era muito gran-
de, já que outros campos – nominalmente o político – não podiam desfrutar
da mesma vitalidade. Com a minha geração, a rotina era essa. Íamos para a
faculdade, depois para o MAM, depois para algum bar onde conversávamos
sobre o que havíamos visto, depois para o teatro, e à meia-noite íamos ver
os shows piratas. Afora essa imersão, havia também o próprio jornalismo.
Sempre me interessei muito por jornalismo cultural. Anteriormente ao Oi
Futuro, dirigi o Museu do Telefone no Rio de Janeiro.

É possível promover a inclusão social através, por exemplo, dos jogos


eletrônicos?

178
Acreditamos totalmente que sim. A cultura digital já é cultura, e o game,
os jogos eletrônicos, é um instrumento muito poderoso. Já é uma das lingua-
gens mais atuantes deste século. Não só isso, mas uma linguagem particu-
larmente dominada pela juventude, grupo com o qual trabalhamos sempre.
O Brasil precisa formar mais profissionais nessa área, e é essa a proposta do
Nave, que significa Núcleo Avançado de Ensino. São duas escolas – uma no
Rio de Janeiro e outra no Recife. Pela manhã, os alunos estudam disciplinas
normais de 2º Grau. À tarde, têm aulas de desenvolvimento de games, roteiro,
criação de softwares. São três anos de formação. Sabemos que é um mercado
promissor, no qual o Brasil apenas começa a engatinhar. Nossa intenção é
– dentro de um esquema de economia criativa, economia de cultura – gerar
novos profissionais que atuarão em novos campos.

Hermano Vianna fala muito sobre o game como uma nova forma de nar-
rativa, explicitamente interativa, na qual o jogador atua também como
interlocutor. Qual é o seu posicionamento quanto a isso? Como você
avalia o impacto dessa nova narratividade na cultura, como um todo?
Creio que seja um processo natural. Talvez seja exagero da minha parte,
mas o game me parece praticamente uma extensão física de alguns jovens.
Hoje em dia existem jogos totalmente interativos, games que se jogam com
o corpo inteiro. Isso nos remete ao McLuhan, à sua visão do telefone como
extensão do ouvido humano. Além de uma quase-extensão do corpo do
jovem, o game é também uma maneira nova de pensar, uma nova lógica de
raciocínio, e, por extensão, um instrumento poderosíssimo de educação. Além
desses cursos que temos promovido no Nave, fizemos um festival de games
ano passado, em tudo estruturado como um festival de cinema. Premiou-se o
melhor roteiro, o melhor desenho etc. É preciso entender que ainda estamos
engatinhando nessas novas formas, mas é preciso dar passos adiante, ajudar
a quem quer dar passos adiante. É por isso que nos chamamos Oi Futuro.

A China é um caso interessante de investimento em games e desenhos


animados como forma de afirmação cultural. Você acha que esse é um
bom exemplo para o Brasil?
Sim. Por exemplo, ontem fiquei sabendo que a China elegeu a economia
criativa sua prioridade número 1. Ou seja, quando um país do porte da China
toma uma atitude dessas, o mundo precisa olhar e pensar nisso. Nada mais

179
lógico, em tempos de debate acerca de energias renováveis, do que focar na
criatividade. A criatividade é altamente renovável. Não é à toa que a China
mandou buscar designers e criadores no Brasil e em vários outros países. É
por isso que, dentro dos editais do Oi Futuro, a tecnologia exerce um papel
tão crucial. É por isso que nossos projetos próprios, como o Nave, o Oi Kabum
e os Centros Culturais, são tão calcados na convergência das linguagens. Os
Centros Culturais são modelares nesse sentido, pois você vê a tecnologia
dialogando com as artes cênicas, a música, as artes visuais. Mas, embora as
novas tecnologias tenham um papel vultoso nos patrocínios culturais da Oi,
há também o patrocínio a manifestações culturais de raiz, patrimônio cultural
e tudo o mais. Nosso compromisso é com a diversidade cultural brasileira,
não se pode esquecer isso.

Uma pergunta sobre sua experiência pessoal com o Oi Futuro. O Rio de


Janeiro é uma cidade muito marcada por espaços de encontro cultural
– nos anos 60, tivemos o MAM – nos anos 70, o Parque Lage – nos anos 80,
o Circo Voador. Eram lugares onde o consumo de cultura se aliava ao
encontro existencial, a conversa, o espaço da informalidade. Hoje em
dia, por uma série de entraves, está cada vez mais difícil promover esse
tipo de encontro. Você acha que o digital substitui esse espaço? Como
o Oi Futuro pensa esses espaços de convivência e debate?
Bom, a vontade de criar espaços de discussão e reflexão sobre arte – e sobre
o futuro da arte – é um pouco a gênese do Oi Futuro. Sempre buscamos não
só abrigar esse debate em nossos Centros, como colocá-lo nas ruas também.
Por exemplo, no Oi Futuro Ipanema, nossa fachada é toda branca para que
possamos realizar projeções. Temos o Oi Tempo, um festival de teatro no Rio
de Janeiro. Temos a ocupação da praça General Osório, lugar que já foi palco
de muita efervescência. Estamos contribuindo para que isso volte, de alguma
maneira. O Rio de Janeiro tem essa característica – é uma cidade “para fora”,
por sua própria riqueza geográfica. O carioca prefere o bar à casa como ponto
de encontro. Mas essas iniciativas não são exclusivamente nossas, várias ou-
tras instituições estão tentando criar novos pontos de encontro. Além disso,
há as redes sociais, que são espaços sem território, pontos de partida para
os encontros de grupos afins. A mídia convencional não dá conta da cultura,
não é um espelho fiel da efervescência de uma cidade. É aí que entram as
redes sociais.

180
Recentemente,alguns periódicos de grande circulação começaram a dar
espaço para uma reflexão critica da cultura digital. Hoje em dia vemos,
em jornais como o Correio da Bahia, resenhas críticas de blogs, discussões
voltadas às novas tecnologias, às novas linguagens. Como você encara
essa questão?
Acho que ainda é pouco. Mas estamos num processo de amadurecimento.
Além do mais, o próprio ritmo das coisas faz com que você esteja correndo
atrás o tempo inteiro. É uma loucura. Estamos aqui conversando, e as coisas
estão lá fora, acontecendo. Lidamos com objetos em mutação permanente.
Por exemplo, temos um museu de telecomunicações no Oi Futuro. Como
nosso objeto é a própria tecnologia, como fazer um museu que não seja,
em si, datado? Temos a obrigação de pensar o próprio museu da maneira
mais atual possível. Por exemplo, estruturamos o espaço físico do museu
de maneira a torná-lo um hipermuseu. Há várias camadas de informação
superpostas, ou seja, customiza-se a visita. Você pode se demorar cinco
minutos ou cinco horas e meia, dependendo do quanto quer interagir com
as informações. Mesmo assim, estamos sempre correndo atrás. Para tentar
dar conta dessa velocidade, pusemos um lettering na saída do museu, que
dá as últimas notícias que saíram nos jornais sobre informação e tecnologia
de comunicação.

Você acha que o digital de “cultura digital” está com os dias contados?
Não, acho que não. Acho que se tornará uma categoria em si. Assim como
se tem cultura, patrimônio, cinema, teatro, breve se terá o digital.

Essa questão da memória do digital é muito interessante. Face à tamanha


mobilidade, como a Oi tem pensado essa memória?
Como disse, correndo atrás. É preciso correr atrás e registrar o tempo
inteiro. Naturalmente, muita coisa se perde – mas a própria perda já é um
pressuposto do que se chama hoje em dia de cultura digital. Lidamos com a
perda o tempo todo, porque não há como dar conta de tudo. O importante
aí é qualificar. Entender o que deve ser guardado como memória, já que é
impossível guardar tudo.

Em outras palavras, trata-se de uma memória crítica.


Sim, exatamente.

181
Um grande festival dessa área de arte e tecnologia é o Campus Party,
evento criado na Espanha em 1997. Como pensar eventos desse porte?
Vocês preferem ações mais descentralizadas?
Bom, nós temos alguns festivais. Temos o festival de games que mencionei
há pouco. Temos o CELUCINE, um festival de filmes feitos com celular. São
festivais idealizados pelo nosso pessoal, que não se resumem à exibição do
produto, geralmente envolvem outras atividades. No caso do CELUCINE,
que é um festival móvel, sem data fixa (afora a premiação, que geralmente se
dá durante o Festival de Cinema do Rio), realizamos workshops em todos os
estados, para que as pessoas entendam a novidade do formato, suas possi-
bilidades em termos estéticos, enquadramento. São atividades de fomento e
desenvolvimento. Daqui a pouco, teremos um Festival de Música Digital, do
Marco Mazzola. Creio que seja o primeiro festival desse tipo na América Latina.

Você estava falando desses novos enquadramentos. Como pensar esse novo
olhar suscitado pelas mudanças tecnológicas?
No caso específico do cinema feito com celulares, há um mundo de novas
possibilidades a considerar. Aconteceu uma coisa interessantíssima no últi-
mo CELUCINE; num dos workshops, um diretor criou uma grua para celular,
uma varetinha assim, tipo um bambu. (risos) Mas, voltando, os ângulos que
o celular permite são incríveis, e o diretor não precisa de um aparato técnico
muito grande. Você é obrigado a trabalhar menos elementos, já que a tela é
tão pequena. E a própria questão do tempo do cinema precisa ser repensada,
nesse caso. O olhar de quem vê é diferente; você tem que levar em conside-
ração que o espectador não vai assistir àquilo numa sala escura.

A concentração é outra.
Exatamente. Acho que foi o Godard quem disse que, numa tela de cinema,
todos os artistas viram deuses – eles enormes na tela, nós apequenados na sala.
Pois isso mudou. Agora, eles podem ser até menores que nós. São mudanças
que estão acontecendo, leva um tempo até absorver.

Como lidar com a questão da qualidade? Quais são os critérios que devem
ser levados em consideração?
Ótima pergunta. Acho que ainda estamos aprendendo a lidar com isso.
Hoje em dia praticamente todos têm acesso aos meios de captação – mas nem

182
tudo que se produz é arte. Então, o que é arte? O que distingue arte do mero
registro? Há que se pensar sobre isso. Nesse tempo de multimeios, onde po-
demos situar a arte? O pensamento e velocidade são duas coisas que não vão
muito bem juntas, infelizmente. Minha preocupação, falando pessoalmente,
é esse ritmo que te impede de exercer um pensamento crítico.

O produtor cultural hoje em dia precisa estar aberto para o novo? Não
há manuais possíveis?
No mundo em que vivemos, em que as coisas não param de acontecer, é
preciso pensar fora da caixa o tempo inteiro. A arte é isso, não é? Um olhar
enviesado que se lança sobre as coisas. E isso é maravilhoso, você se sente
desafiado o tempo inteiro! E as propostas são incríveis. Por exemplo, estamos
com uma peça no Oi Futuro chamada Hotel Medea. São seis horas de espe-
táculo, o público vai e dorme no espaço. É muito bom dar lugar a propostas
desse tipo.

183
184
Eduardo
Saron
Diretor superintendente do Itaú Cultural.

Como começou seu trabalho com cultura?


Meu interesse por cultura começou no movimento estudantil, quando
passei a participar de um grupo de teatro, a ver shows, ir ao Centro Cultural de
São Paulo, mesmo que fosse para ver as pessoas, para paquerar. Você percebe,
até pela história do movimento estudantil, que a cultura é um ponto forte de
amadurecimento, de reflexão, de aproximação das pessoas. Foi nesse momen-
to que eu percebi que esse universo tinha um espaço de reflexão importante
sobre a própria vida. Confesso que o meu primeiro interesse foi muito mais
pelo pensamento crítico, pela reflexão sobre o homem contemporâneo, do
que por um apelo estético. O mais importante para mim, naquele momento,
era debater. E a cultura era uma forma belíssima de uma provocação, que me
deixava atento, me fazia perceber o que estava acontecendo.

Onde você estudou?


Eu fiz a PUC de São Paulo, mas tem um momento interessante, quando
fiz magistério na escola pública. Foi nesse momento que eu comecei a fazer
movimento estudantil, cheguei a ser vice-presidente da União Municipal dos
Estudantes Secundaristas, em São Paulo, depois fui para a União Nacional
dos Estudantes, a UNE. Minha família é de classe média, e eu percebi que

185
havia um abismo entre o universo da escola privada e o da pública, e que
era importante se mobilizar para, ao menos, tentar diminuir essa diferença.

E a ida para a produção cultural, especificamente, como foi?


Foi há dez anos, através da Milu Villela, que dirigia o Museu de Arte
Moderna de São Paulo. Eu trabalhava na área de comunicação do governo
federal e a conheci, porque ela tinha uma série de projetos para o MAM-SP
dialogando com instituições públicas. Na época, ela já tinha assumido o Itaú
Cultural, e a gente logo descobriu uma afinidade de interesses. Comecei a
acompanhar mais de perto o trabalho dela e recebi um convite para trabalhar
lá, participando de um profundo processo de transformação da instituição.
Naquele momento, o Itaú Cultural estava num movimento de abertura, de
nacionalização, de aprofundamento dos instrumentos que já tinha, mas que
ainda eram frágeis, de edital público para seleção de novos talentos. A inten-
ção era transformar o Itaú Cultural num espaço de reflexão e difusão da arte
contemporânea brasileira. Eu comecei a minha atuação de gestor cultural
exatamente nesse momento de efervescência do Itaú Cultural, e já estou lá
há mais de oito anos.

Fale um pouco sobre a trajetória do Itaú Cultural.


O Itaú Cultural é muito inovador na sua forma de trabalho, imaginando
uma participação mais orgânica do setor privado dentro do mundo da cultura.
O Ministério da Cultura tem 25 anos, enquanto o Itaú Cultural tem 23. Ele
surge dentro do escopo de uma lei de incentivo à cultura, com a Lei Sarney,
e de uma maneira muito interessante. Quando a Lei Sarney foi criada, o dou-
tor Olavo Setúbal, então presidente do Itaú, chamou um grupo de pessoas e
pediu um estudo de como usar o incentivo fiscal da melhor forma possível.
Duas propostas foram feitas: uma era criar um núcleo dentro da unidade de
comunicação do Grupo Itaú, onde os recursos pudessem ser usados alinhados
com o pensamento de marketing, e a outra era criar uma organização com
missão e identidade próprias. Reunir um grupo de profissionais do mundo da
cultura, que tivesse uma gestão muito clara, e construir uma política cultural
construída a partir dos inputs do Grupo Itaú, mas, fundamentalmente, a partir
do diálogo com o mundo da cultura.
Dizem que todo mundo imaginou que ele fosse optar pelo primeiro, por-
que agregar valor à marca e impactar a imagem é muito mais fácil, imediato

186
e pragmático, se você coloca essa organização, ou esse núcleo, dentro do
marketing. Mas ele optou pela segunda. Ele percebeu que, se colocasse uma
unidade dentro do marketing, não é que não pudessem acontecer bons pro-
jetos, mas, necessariamente, seriam feitos projetos sempre de curto prazo,
de impacto pragmático, de retorno imediato. Se ele fizesse uma organização
à parte, ela teria certa independência, certa qualidade de tempo para poder
pensar, porque o tempo da cultura, o tempo da arte, é diferente do tempo do
marketing, que precisa ter um retorno o mais rápido possível para a marca.
Então, ao escolher a instituição, ele criou as condições para que se criassem
produtos como, por exemplo, as enciclopédias. Hoje nossa página na internet
é um dos sites mais acessados de uma instituição cultural com o nosso perfil.
Desses acessos, a metade é para as enciclopédias. É claro que, quando o doutor
Olavo pensou em criar uma organização que tivesse uma identidade própria,
uma missão e uma política, ele pensou também que, se essa organização desse
certo, iria agregar valor à marca. Isso seria um desdobramento natural. É o
que ocorre hoje. O Itaú Cultural tem praticamente 25% de mídia espontânea
de toda a empresa Itaú.

Como funciona o Itaú Cultural?


Temos uma equipe de mais de cem profissionais, todos praticamente
oriundos do mundo da cultura. Os outros são meninos e meninas em estágio,
que estão se formando e, com toda a certeza, se não ficarem no Itaú Cultu-
ral, vão continuar no mercado da cultura. Esta é uma questão importante:
afinal, quem é esse profissional da cultura? Quem é o gestor cultural? Quem
é esse organizador cultural? Quem está formando, qual a universidade, qual
a instituição que forma essas pessoas? Trabalham conosco pessoas de arqui-
tetura, ciências sociais, filosofia. São os cursos que, geralmente, o mercado
tem mais dificuldade em contratar, mas que têm a formação do pensamen-
to humanístico, o que é fundamental para se trabalhar com cultura. Mas a
universidade, ou o mundo da educação, ainda não percebeu que é preciso
criar um curso interdisciplinar, que passe pelas humanidades, pelo mundo
da administração, pelas questões práticas da produção cultural, do planeja-
mento, da comunicação, para se criar bons gestores culturais. A universidade
não percebeu que precisa formar esse profissional. Então, muitas das vezes,
o Itaú Cultural acaba, na prática, formando esse profissional que o mercado
demanda cada vez mais.

187
Temos também um conjunto de comitês, um conjunto de núcleos inter-
nos, que compõem uma governança que não é exclusiva do Itaú Unibanco.
É um grupo composto também por pessoas da sociedade. E decidimos,
estrategicamente, não fazermos espaços culturais nos estados. A partir de
São Paulo, a gente dialoga com o país inteiro. A nossa compreensão é que os
espaços culturais existem, o que não existe, em condições suficientemente
bem colocadas para atender o consumo cultural no país, é uma programa-
ção, um produto de qualidade. A ideia é construir programações locais com
os espaços que já são legitimados nas suas cidades. E nós já temos vários
programas. O primeiro, e um dos mais importantes, são as enciclopédias.
Hoje temos enciclopédias de artes visuais, de teatro, literatura e arte e tec-
nologia. Em breve, teremos também de cinema, música, dança e política
cultural. Além disso, temos o programa Rumos, que já tem 11 anos e é um
edital público que trabalha em 11 áreas. Não só áreas artísticas, mas áreas
do pensamento. Eu diria que o programa Rumos e as enciclopédias são as
principais ações do Itaú Cultural.

Com a mudança do projeto de lei da Lei Rouanet, os institutos e funda-


ções, que estão enquadrados na faixa de 40%, terão que colocar 20% do
próprio bolso. Como o Itaú lida com isso?
Historicamente, o Itaú Cultural nunca utilizou o artigo 18 da Lei Rouanet,
que possibilita a isenção de 100% de impostos. A gente sempre utilizou o
artigo 26, o que significa que sempre realizamos contrapartida. Além disso,
nossa operação não é só com a Lei Rouanet. Em 2009, a gente operou quase
R$ 40 milhões; desses, somente R$ 30 milhões foram por meio da Lei Roua-
net. Então a mudança do projeto de lei não afeta diretamente o Itaú Cultural,
mas, como gestor, me preocupam outras questões envolvidas na mudança
da Lei Rouanet. Considero que algumas áreas estratégicas, principalmente
educacionais e de formação de gestores, precisam de 100% de isenção para
serem estimuladas, senão não serão efetivas.

As leis de incentivo não correm o risco de institucionalizar a produção


cultural?
O debate da institucionalização é histórico. Se pegarmos a história do
incentivo no mundo, pode-se questionar a produção do Michelangelo, por
exemplo. Afinal, Michelangelo foi apoiado pela Igreja, e não quer dizer que

188
ele teve a sua criatividade, a sua importância minimizada. Esse é o primeiro
ponto. Quando o artista se associa a um patrocinador, independente se é
renúncia ou não, ele se vincula de tal forma que a sua criatividade fica em
segundo plano, em relação ao interesse do patrocinador? A história prova que
existem coisas maravilhosas que foram patrocinadas. Há uma outra questão
que se coloca: se o incentivo atual é público ou privado. Quanto a isso, o
que está distorcido nesse modelo é o desequilíbrio entre os outros espaços
de capacidade de investimento na cultura. Se pegarmos historicamente, o
mecenato, e a Lei Rouanet é mecenato, foi o que conseguiu avançar mais
rapidamente, se descolou de maneira muito dramática do Fundo Nacional
de Cultura e do próprio orçamento público. E é esse desequilíbrio que gerou
esse desconforto todo. Agora, esse desequilíbrio não é culpa do mecenato, é
culpa da diminuição do investimento para o fundo e do orçamento público,
federal, estadual e municipal. Em 2008, o mecenato era quatro vezes maior
que o Fundo Nacional de Cultura, e o orçamento do Ministério da Cultura
era o penúltimo orçamento da União. Só ganhava do Ministério da Pesca,
que tinha acabado de ser criado. Esse desequilíbrio é o grande problema, em
relação ao patrocínio, ao incentivo público brasileiro, ou à operação de injeção
de recursos no mundo da cultura. Foi esse desequilíbrio que fez com que o
mecenato virasse a ovelha negra, mas, na verdade, o mecenato não é ovelha
negra. A ovelha negra é a distância desses outros dois espaços de recursos. É
preciso mexer na Lei Rouanet, porque, afinal, ela tem 18 anos. Sempre falo
que a Lei Rouanet surge antes da internet, e só por isso já merece ser revista,
porque o mundo da internet, para a cultura e para a arte, fez uma revolução.
Além de mexer na lei, é preciso crescer o Fundo Nacional de Cultura e o or-
çamento ministerial. Senão, não terá efeito.

O Itaú Unibanco acabou de passar por uma das maiores fusões de bancos.
As duas instituições culturais dos bancos, o Itaú Cultural e o Instituto
Moreira Salles,têm características bastante particulares, sendo que os
próprios donos do Unibanco fazem parte da presidência, do conselho,
do Instituto Moreira Salles. Como você vê essa fusão?
Para mim, é fundamental, para se conseguir um projeto cultural, que
existam instituições e organizações com o sentido de perenidade, de
construção de legado, de pensamento estratégico e visão de longo prazo.
Se existem instituições assim no Brasil, são as ligadas aos bancos: o Itaú

189
Cultural, o Instituto Moreira Salles, o Centro Cultural Banco do Brasil. Essas
instituições conseguem transformar a sua capacidade de ação num projeto
de médio e longo prazo, o que é fundamental na perspectiva de construção
de política pública. Não se constrói política pública num curto prazo, num
evento pontual. O Itaú Cultural tem um programa de edital público há 11
anos, então há uma dinâmica junto aos artistas, ao mundo cultural, e, faça
chuva ou faça sol, todo ano, em março, os editais são abertos. O sentido de
perenidade do legado está muito presente nessas organizações, e isso é um
grande diferencial para quem quer fazer cultura benfeita. Eu sempre faço
duas perguntas quando me apresentam projetos: se ele tem condição de ser
perene, e qual o legado, qual o rastro que ele vai deixar para a cultura e para
a arte brasileira. Se pelo menos uma dessas perguntas tiver uma resposta
negativa, esse projeto não merece estar próximo do que a gente pensa de
apoio, de fomento, de construção, de difusão de arte e cultura no Brasil.
Aí, voltando para o nosso universo, o Instituto Moreira Salles tem essas
duas características muito presentes. Eles constituem acervo, digitalizam
e difundem esse acervo, estão presentes no país, têm uma série de publi-
cações fundamentais para essa reflexão a respeito do mundo da cultura,
que se aproxima muito das características do Itaú Cultural. É interessante
que o Itaú e o Unibanco se juntaram agora, mas são duas organizações que
tinham espíritos muito parecidos. Os dois bancos vieram de uma série de
fusões entre bancos e também são frutos dessa diversidade de pensamentos
sobre banco e sistema financeiro. Quando a gente olha para as instituições
culturais dessas duas organizações, vê que são muito parecidas na sua ori-
gem, com dois importantes patrocinadores, Walter Moreira Salles e Olavo
Setubal, e são muito parecidas no seu objeto de trabalho, na sua forma de
trabalho. Agora, do ponto de vista prático, o Instituto Unibanco não entrou
na fusão, ele é hoje um instituto da família Moreira Salles, e o Itaú Cultural
também não entrou na fusão, porque o Itaú Cultural é do grupo da Itaú SA,
que é parte da família Villela e Setúbal. O que a gente tem feito, neste mo-
mento, é conversado muito mais do que nós conversávamos antes. Talvez
esse seja também um dos gaps da cultura: a falta de articulação entre as
organizações, a falta de diálogo entre o mundo cultural faz com que alguns
projetos sejam sobrepostos e outros nem aconteçam. Então, a gente tem
conversado mais, numa perspectiva dos princípios que nos aproximam
muito, que é essa questão do legado e da perenidade.

190
A questão da formação de público foi um ponto que pesou bastante na
Lei Rouanet, nesses oito anos. Como realizá-la?
A formação de público está intimamente ligada a uma outra questão
estrutural do Brasil, que é a educação. Não se faz um grande projeto e um
grande programa, um grande processo de formação de público, sem dialogar
firmemente com a educação. Não se faz um programa de formação de público
imediatista. Faz-se um programa de formação de público para vinte anos. Por
outro lado, é comum a cultura se aproximar da educação como uma simples
e medíocre ferramenta, um instrumento de melhoria das condições metodo-
lógicas, pedagógicas do mundo da educação, mas não como um espaço de
efetiva transformação e de construção de pensamento crítico. Então, enquanto
a educação e a cultura não se juntarem, não para serem instrumentos uma
da outra, mas para terem um pensamento estratégico unificado, em que a
educação perceba que a cultura e a arte são fundamentais para a construção
do pensamento crítico de uma nação, não se consegue fazer um programa
de formação de público que tenha, de fato, impacto.

O Itaú Cultural está agindo nesse sentido?


O Itaú Cultural tem um público de trezentas mil pessoas por ano, com
todas as atividades gratuitas. Temos uma série de projetos de formação de
professores e um curso gratuito de pós-graduação para gestores culturais.
As limitações econômicas não existem, portanto. As apresentações que nós
fazemos são de várias matizes, então é possível um impacto sobre um público
de x a y. Existem programas para atrair os professores, para que os professores
depois tragam os seus alunos. Inclusive, ano passado trouxemos trinta mil
crianças de escolas públicas, em nossos ônibus, para realizar atividades do
Itaú Cultural. Então, essa aliança entre a educação e cultura é fundamental
para se pensar de fato um programa estruturante, para que tenhamos um pro-
cesso de formação de público mais qualificado. Sem contar o mundo digital,
que aí é uma outra história, outra conversa, que passa desde as questões de
direitos autorais até a sensibilidade para o mundo digital. Então, esse é uma
das preocupações que têm nos ocupado no Itaú Cultural.

191
192
Eliane
Sarmento
Costa
Gerente de patrocínios da Petrobrás.

Você fez física e trabalhou na área de tecnologia de informação da


Petrobras. Como você foi parar na cultura?
Eu sempre fiz várias coisas ao mesmo tempo. Antes da física, eu já tinha
feito o curso normal e o científico. Agora ninguém sabe mais o que é isso, mas
normal formava o aluno para ser professor primário e o científico era para
quem gostava de matemática. Eu gostava muito dos dois, adorava escrever e
também adorava matemática. Os testes vocacionais piravam. Então fiz nor-
mal e o científico, um de manhã e outro de tarde, uma maluquice. Quando
cheguei ao final do científico, tive que fazer o vestibular e optei pela área de
exatas, mas ao mesmo tempo eu fazia pesquisa em música popular brasileira,
estudava samba e choro. Cursei física, mas nunca trabalhei na área. Assim
que me formei, fiz o concurso para a Petrobras. Naquele momento, em 1974,
assim como hoje, trabalhar na Petrobras tinha todo um simbolismo, uma mili-
tância. Em pleno movimento contra a ditadura, com o movimento estudantil,
trabalhar lá era a afirmação de uma busca por um Brasil que eu queria. Até
hoje tenho orgulho da Petrobras. Quando fiz o concurso, o único curso de
ingresso na área de ciências exatas que eu podia entrar era o de informática,
como analista de sistemas. Era uma coisa que nunca tinha passado pela mi-
nha cabeça. Trabalhei nessa área durante 17 anos, se não me engano, sendo

193
que, ao longo desse período, fui migrando mais para a área de comunicação.
Paralelo a isso, fui pesquisadora freelancer da FUNARTE (Fundação Nacional
de Artes) sobre a história do choro. Sou fundadora de um bloco chamado
Escravos da Mauá, onde toco cavaquinho todo mês, na região portuária do
Rio de Janeiro. Participei de algumas monografias como pesquisadora. Nesse
período, em 1982, pedi demissão da Petrobras e fiz formação em psicanálise.
É uma carreira de muitas pontas.
Meu pai dizia que eu tinha muita iniciativa e pouca “acabativa”. Só que
hoje isso meio que juntou, fez sentido. Fiquei um ano e meio fora da Petro-
bras e acabei voltando para a área de sistemas mesmo, de informática, mas
percebendo que a minha relação não era com o suporte. Trabalhava com o
relacionamento com o cliente. Fui gerente de apoio ao usuário, estruturei uma
pequena área de comunicação na área internacional. Depois fui para o Órgão
de Comunicação Corporativa, institucional, onde tem a área de cultura. Foi
uma casualidade baseada no meu gosto: eu sempre trabalhei com cultura fora
da Petrobras. Além de fazer pesquisa para a FUNARTE, fui produtora cultural,
desenvolvi dois trabalhos em CD-Rom sobre histórias de dois bairros do Rio
de Janeiro e acabei ganhando o prêmio América Latina de Multimídia. Fiz
um elogio tão entusiasmado de um projeto patrocinado pela empresa que a
gerente de patrocínio quis me conhecer e me chamou para trabalhar como
fiscal de contrato de música, na área de patrocínios. No final de 2003, ela saiu
e eu assumi essa gerência de patrocínios culturais. Para mim, isso foi muito
significativo porque juntei as duas vidas paralelas. Ainda mais hoje, que es-
tou fazendo mestrado sobre a questão da cultura digital. Senti que consegui
juntar efetivamente meus 17 ou vinte anos de tecnologia, com dez ou 15 de
comunicação e cultura.

Você tem a preocupação de que os funcionários da Petrobras acompanhem


os projetos que a empresa patrocina.Como é essa relação dos funcionários,
como eles veem e participam do trabalho de cultura da empresa?
Isso é uma coisa que hoje eu venho trabalhando muito na área de comuni-
cação da Petrobras. A ação da Petrobras na cultura é muito mais compreendida
e valorizada externamente. Hoje eu dou palestras em diversos lugares, de
todos os tipos, e às vezes eu vejo que os públicos para quem eu falo têm mais
entendimento da ação da Petrobras na cultura, da expressão que isso tem, do
que muitos empregados da Petrobras. Essa questão me intrigava porque eu

194
recebia algumas perguntas e ouvia muito nas assembleias de sindicato que,
em vez de a empresa patrocinar, deveria aumentar os salários. É uma falta
de compreensão, de não perceber até que são dinheiros diferentes. Quando
se fala de apoio à cultura, e principalmente do apoio à cultura com as leis de
incentivo, está se falando de uma oportunidade numa questão tributária, e
o salário tem uma outra localização dentro das contas da companhia. Então,
no ano passado, começamos a fazer uns programas de televisão corporativa,
junto com a área de comunicação interna, explicando a questão do patrocínio,
que não é absolutamente uma coisa voluntarista, personalista, de alguém
que está ali e resolveu patrocinar cultura. Queremos trabalhar o entendi-
mento das pessoas, fazer com que elas compreendam que o patrocínio é uma
ferramenta de comunicação da empresa, é também uma ação da empresa
junto à imprensa, à publicidade. É uma ferramenta de relacionamento, de
comunicação com o seu público de interesse, com os seus investidores, com
os seus consumidores, com o público em geral. Num patrocínio, você pode
estabelecer oportunidades de relacionamento, não só de comunicação. O pa-
trocínio é uma ferramenta, por isso os projetos têm que ser bem escolhidos. É
através dessa ferramenta que você busca comunicar a identidade da empresa.
O correto é se pensar uma política de patrocínio que esteja em sintonia com
o planejamento estratégico daquela empresa, aonde ela quer chegar, qual a
sua visão, a sua missão e quais são os valores associados a ela. Tem empresas
que trabalham patrocínio muito na base da veiculação da marca a qualquer
custo, disputando mais selvagemente o mercado. A Petrobras trabalha num
viés de agregar mais reputação à marca através das suas escolhas, à medida
que a marca de qualquer empresa hoje é um ativo da companhia, não só de
um ponto de vista conceitual e subjetivo, mas também de valor. A marca da
companhia tem crescido barbaramente nos últimos anos, e eu acredito que
o patrocínio cultural contribua para isso.

O Yacoff Sarkovas falou que, quando começou a montar as políticas de


editais, a Petrobras era conhecida por ser uma caixa-preta, o que gerou
um problema. Eles precisavam da transparência dos processos de patrocí-
nio. Ele também disse que no estudo de marca a Petrobras queria deixar
de ser uma empresa de petróleo para ser uma empresa de energia e que
isso era fundamental para o conceito de uma empresa contemporânea.
Como você vê essas questões hoje?

195
A Petrobras já patrocinava desde a década de 1980, inclusive o Flamengo
e a Orquestra Petrobras Sinfônica, mas não existia uma política de patrocínio
estruturada. O Yacoff foi nosso consultor em 2001 e estruturou a política de
patrocínios, as prioridades e, principalmente, a estratégia de seleções públicas.
Inicialmente, isso foi feito de forma segmentada para música, artes cênicas,
curtas-metragens e audiovisuais. Em 2003, quando entrei, juntamos todas
essas áreas em um programa só, o Programa Petrobras Cultural. Passava por
isso uma indicação de política pública, de fortalecer a questão dos editais,
democratizar o acesso às verbas de patrocínio. Nos últimos anos, um dos
grandes ganhos da Petrobras na cultura foi ter começado a trabalhar numa
sintonia muito grande e muito permanente com as políticas públicas, porque
é inadmissível que uma empresa que chegou a colocar em um só ano R$ 205
milhões na cultura andasse para um lado e a política pública, para o outro. A
convergência era fundamental.
O Conselho Petrobras Cultural conta com a presença de um representante
do Ministério da Cultura e o diretor de patrocínios da SECOM, que preside
o comitê de patrocínios  estatais. É importante que nossas diretrizes este-
jam caminhando em sintonia com o Ministério da Cultura, sem perda de
autonomia para a empresa. É preciso manter um equilíbrio, coisa que nós
conseguimos nesses anos.
Mais especificamente sobre a pergunta, a opção por políticas públicas é
fundamental, e esses processos sempre podem ser melhorados. A concepção
de comissões de seleção pública compostas por pessoas externas à companhia
foi muito importante porque agregou um olhar muito mais amplo. A Petrobras
também participa do processo, é a mediadora, mas não tem direito a voto, que
fica a cargo da comissão externa. Essas bases que foram lançadas em 2001,
com a consultoria do Sarkovas, ainda permanecem, e foram potencializadas
pelo ministro Gilberto Gil, a partir de 2003. E tivemos a felicidade de já estar
no meio do caminho. Quando o Gil começou a trabalhar a questão dos edi-
tais, da democratização do acesso, com uma profunda preocupação com a
questão da diversidade cultural, que foram as marcas de sua gestão, a gente
ja estava nesse processo. Então muitos desses valores e práticas da Petrobras
já existiam, e foram reforçados. Claro que alguns outros nós incorporamos,
como essa questão do patrimônio imaterial, por exemplo, que ganhou muita
força na gestão Gil, e que nós incorporamos no edital de 2003. Ou como a
questão da cultura digital, que incorporamos em 2007, se não me engano. O

196
edital procura ser dinâmico, não se colocar como uma coisa que já chegou
ao seu apogeu. Pelo contrário.

Como é a relação com os proponentes contemplados?


A Petrobras não é uma empresa de cultura, é uma empresa de energia e
tem uma área de cultura, mas não temos uma estrutura que nos permita,
por exemplo, comunicar mais e melhor os nossos patrocínios. Tem vários
contratos de patrocínio que, quando eu vou ver, já acabaram. É claro, a
equipe trabalha, os fiscais de contrato estão lá fiscalizando o patrocínio, o
desenvolvimento do projeto, as parcelas desembolsadas, as contrapartidas, os
relatórios, mas eu mesma, quando vejo alguns projetos selecionados, tenho
vontade de acompanhá-los o tempo inteiro e quando me dou conta já estou
assinando o término de desenvolvimento do projeto. A gente não tem tempo.
Em 2007, tínhamos mil projetos ao mesmo tempo. É claro que tem coisa para
avançar nos editais e na ação de patrocínio. Uma das principais é estimular a
articulação entre os patrocinados, o trabalho em rede, mas é mais difícil do
que parece. Na prática, ficamos muito envolvidos com a fiscalização, fazer
relatório, a burocracia toda.

Essa é uma questão importante: como diminuir as amarras burocráticas


do incentivo à cultura?
Essa estrutura baseada nas leis de incentivo, que a gente tem desde a déca-
da de 1990, faz com que as empresas desempenhem um papel preponderante
na cultura, na injeção de recursos. Isso trouxe pontos positivos na injeção de
recursos, mas também muitas fragilidades, como a concentração em proje-
tos que trazem muita mídia e a centralização regional. Como a maioria das
empresas não escolhe via edital de seleção pública, elas acabam apoiando
projetos que já possuem visibilidade na mídia, com grandes produtores,
principalmente se a empresa estiver focada exclusivamente na divulgação
da marca. Sendo um mecanismo de financiamento por empresas, no caso
das empresas estatais, somos muito amarrados pela legislação. Temos a Lei
8666, e existe uma série de processos que têm que ser seguidos. No patrocínio,
existe a questão da inexigibilidade da licitação, e, por conta disso, temos uma
facilitação de processo de seleção. Por exemplo, podemos escolher por edital
e também por convite.

197
No caso de projetos que a Petrobras considera estratégicos, por exem-
plo.
A Petrobras tem patrocínios por seleção pública e tem projetos que são
convidados. O Grupo Corpo e a orquestra, por exemplo, são patrocinados
em caráter de continuidade, assim como grandes festivais de cinema. Temos
seleção pública para a área de cinema, mas apenas para festivais de médio
e pequeno porte. Os grandes festivais são projetos de continuidade da Pe-
trobras, no sentido realmente de uma associação de valores e de marcas, de
uma forma mais permanente. Então, tanto ocorre a seleção pública quanto
a escolha direta, permitida por essa inexigibilidade da licitação, pela legisla-
ção e pelo próprio manual de contratação da companhia. Ano passado, nós
tivemos uma CPI. Em vez de fazer o que tínhamos que fazer, que era trabalhar
em articulação com a cultura, passei praticamente o ano inteiro falando o
que eu faço, escrevendo sobre o que eu faço. Atendi a demandas de como é
que faz, como fiscaliza. De uma certa forma, é razoável, na medida em que
a gente trabalha com dinheiro que é público, mas encontrar o meio termo
entre a burocracia e o zelo pelo dinheiro público é difícil.

A Petrobras é uma empresa brasileira, mas também é uma empresa global,


que acaba representando a cultura brasileira no mundo, patrocinando
iniciativas em outros países e,ao mesmo tempo, construindo uma relação
de fora para dentro também, de trazer coisas dos outros países. Como
você vê o caminho da Petrobras diante dessa discussão global?
A cultura neste mundo contemporâneo desempenha outros papéis, que
seriam impensáveis alguns anos atrás. Se a cultura era uma coisa relacionada
com erudição, com refinamento, experiências contemplativas, transcen-
dentais, hoje, cada vez mais, a cultura é usada num plano da interseção das
agendas econômicas e da justiça social, e sofre impacto da globalização, das
migrações. A gente fala da globalização, do fluxo de capitais, do fluxo de mer-
cadorias, mas tem todo um fluxo de gente pelo mundo, migrações voluntárias
e involuntárias. Hoje os jovens estudam na Europa, nos Estados Unidos, como,
há uns anos, se estudaria na Unicamp. O mundo ficou pequeno, como diz o
Gil. Ao mesmo tempo, você tem as migrações involuntárias, os acidentes, as
questões ecológicas. Isso faz com que o caráter globalizado do mundo não
seja só na circulação das mercadorias, na circulação do capital, que é o que
caracterizaria mais esse conceito econômico da globalização, mas também

198
por um fluxo de pessoas e consequentemente de culturas. Aí você tem uma
série de questões. A cultura passa a representar, nesse momento, uma forma
de mediação de conflito, é um recurso de promoção de sustentabilidade.
Então, antes do papel da Petrobras nesse mundo, eu vejo o papel da cultura.
A Petrobras está em 26 países hoje, é uma empresa multinacional brasi-
leira. E não só o Lula é “o cara” para o mundo, como alguns personagens já
colocaram o Brasil como “o país”. Eu recebo várias pessoas querendo entender
como é a política de patrocínio da Petrobras, como uma empresa de energia
se relaciona com a cultura, como são os programas socioculturais brasileiros,
como é isso de AfroReggae, de fazer cultura em área de conflito. Isso tudo é
muito novo. A Petrobras, na medida em que vai para 26 países, é meio con-
fundida com o Brasil. Fora do país, como as pessoas veem sempre o nome da
empresa nos filmes brasileiros, acham que a Petrobras é uma produtora de
cinema. A empresa é muito confundida com a cultura brasileira. E a cultura
brasileira está num momento especial no mundo.

Outra questão são as legislações brasileiras, que em várias áreas atra-


palham a difusão, tanto nacional quanto internacional da cultura. A
Petrobras, ou a produtora cultural Eliane, toma posição em relação
a essas leis?
Eu participo, me interesso pelo assunto, obviamente, pelo meu trabalho.
A Petrobras, em si, só trabalha com a Lei Rouanet. Ela não trabalha com leis
no formato de investimento. Por uma opção tributária oficial da empresa, a
Petrobras só trabalha com lei de patrocínio, de incentivo, não de investimento.
Hoje, com a proposta dos novos fundos, eu não sei como a Petrobras vai se
posicionar, porque isso é uma decisão que não é da minha área, é uma decisão
da área tributária da empresa, mas temos participado juntos. Quando houve
a consulta pública, a minha área estudou essa legislação e as novas propostas,
junto com o tributário. Eles colocaram o ponto de vista deles, a preocupação
com a perda dos 100% de incentivo fiscal. Eu, pessoalmente, não falando
em nome da questão tributárias da Petrobras, penso que as empresas têm
realmente que botar um dinheiro não incentivado nos projetos. A própria
Petrobras, no meu ponto de vista, poderia ter, pelo papel que ela assumiu na
cultura e pelo papel que ela tem na sociedade brasileira, uma ação na cultura
menos embricada com a Lei Rouanet. Eu acho que a Petrobras hoje já pode-
ria dar um salto à frente e trabalhar sim com a lei de incentivo, mas dentro

199
da ótica da política cultural sem incentivo, porque a Petrobras trabalha sem
incentivo no social, no ambiental e até mesmo em projetos culturais, mas
com um viés mais de evento, de relacionamento com praças prioritárias,
uma questão mais institucional, mais negocial. Mas isso não é uma posição
da empresa. Então há estudos conjuntos dentro da Petrobras, mas os pontos
de vista realmente são diferentes.

Qual a sua visão sobre a formação de produtores culturais, a formação


de mão de obra, a formação de gestores no país?
Eu dou aula numa pós-graduação de gestão cultural e de produção cultural.
Acho que não há muitos espaços. Andei olhando recentemente os poucos
cursos que existem para montar um programa de formação, de capacitação,
de atualização para a minha própria equipe de fiscais de contrato de patrocí-
nio, que, na sua maioria, são formados em comunicação, mas não têm uma
formação em cultura. Eu acho “super” importante que os fiscais de contrato,
até pela interlocução que precisam ter, conheçam mais de cultura. Então
eu andei montando um curso customizado para isso, porque eu vejo que
em todos esses cursos faltam algumas coisas. Uns são mais voltados para
a gestão de empreendimentos culturais, outros são mais voltados para
produção de eventos, para área de entretenimento. Eu sinto que falta uma
profissionalização maior dos produtores culturais, mas acho que isso está
melhorando no mercado. Inclusive, dá para perceber isso no primeiro edital
que fizemos do Programa Petrobras Cultural. Se compararmos os projetos
daquela época com os de hoje, já se sente que são muito mais consistentes,
muito mais articulados. São projetos que já não propõem uma ação isolada,
são ações que buscam articulações com outras, com a cadeia produtiva
daquele segmento, com aquela região, com a possibilidade de troca com
aquela comunidade onde ele se realiza. Isso vem melhorando, mas falta
ainda uma ação. A gente tenta fazer alguma coisa assim quando vai divulgar
o Programa Petrobras Cultural pelo Brasil. Costumamos fazer uma caravana
pelas capitais, quando eu faço uma palestra e depois abro para um debate.
Inclusive várias das melhorias do programa nós captamos nesses fóruns. É
incrível, você chega em um lugar e tem setecentas pessoas. Eu já tive que
repetir a palestra em seguida porque tinha não sei quantas centenas de pes-
soas na porta. A Petrobras representa uma oportunidade real e, em alguns
estados do Brasil, quase que a única. Algumas vezes as empresas locais não

200
estão interessadas em cultura, e não há também o fomento público. Há uma
carência, uma demanda muito grande de uma ação mais estruturada, não
só focada nas leis de incentivo.

Como se libertar das leis de incentivo?


Para mim, só tem uma maneira de se libertar das leis de incentivo. Quando
falo “se libertar das leis de incentivo’’, não estou falando em “acabar com as
leis de incentivo’’, mas criar outras alternativas. A única maneira que vejo de
ter mais alternativas é aumentando o orçamento do Ministério da Cultura,
que é um caminho que vem sendo trilhado desde a posse do Gilberto Gil.
Haver um Fundo Nacional de Cultura forte, os fundos setoriais fortes, porque
há uma série de projetos que não cabem nas leis de incentivo. Por mais que
o edital da Petrobras não seja focado somente no mercado, tem ações que
não cabem nele.

Mas, indo além disso, como fazer para que o incentivo não seja a única
forma de realizar cultura? Como fazer com que a cultura se torne, em
algumas áreas, autossustentável?
Acho que esse é o mundo ideal, mas eu não sei até que ponto podemos
ter essa expectativa de uma forma mais geral. Quando você vê que as grandes
companhias de dança não são sustentáveis, que o cinema não é sustentável,
como você vai exigir sustentabilidade de um projeto como o Nós do Morro,
que é um projeto sensacional? Como você vai exigir sustentabilidade desses
projetos, se você não consegue ter sustentabilidade no âmbito da maior
companhia de dança do Brasil? A questão é muito complexa. A autossusten-
tabilidade na cultura seria o melhor dos mundos, mas eu não sei se é possível.

Existem caminhos para essa direção?


Deve ter caminhos sim. Talvez a gente tenha abandonado alguns caminhos
possíveis no bojo do processo que foi priorizado nos últimos vinte anos na
cultura. Talvez pudéssemos ter trilhado outros caminhos, e estaríamos em
outro lugar hoje, mas também não sei se teria outros caminhos a serem des-
cobertos se não tivéssemos ido pela linha das leis de incentivo, do Estado.
Enfim, foi o caminho que aconteceu.

201
202
Luciane
Gorgulho
Chefe do Departamento de Cultura, Entretenimento e Turismo do BNDES.

Como o BNDES pensa a cultura atualmente?


O BNDES, como principal financiador do desenvolvimento brasileiro,
passou a considerar a cultura como um de seus eixos de atuação. Isso se tor-
nou mais forte de quatro anos para cá. Anteriormente, o banco já apoiava a
cultura, mas utilizando as leis de incentivo para ações de patrocínio, de retorno
de imagem. Só mais recentemente é que colocou a cultura dentro das suas
políticas de financiamento. Então, hoje, a cultura é um departamento dentro
do BNDES. Isso significa que tem uma equipe dedicada a entender melhor os
setores ligados à cultura, estudar quais são seus gargalos, suas necessidades
de financiamento, e desenvolver produtos financeiros que sejam adequados
ao perfil dessas indústrias.

Como funciona esse departamento?


Como todo departamento dentro do BNDES, ele tem um foco setorial. E
os departamentos setoriais se ligam a áreas. A Cultura está dentro da área de
indústrias. Existem áreas de infraestrutura, social, e cada um desses departa-
mentos tem uma dupla missão: de entender os setores que pretende apoiar e
de executar as ações de financiamento. Então, o departamento é responsável
por receber os players de financiamento, analisá-los, e propor à diretoria.

203
O que é o BNDES Procult?
O Procult foi um programa piloto, que nós desenvolvemos em 2006, quando
começamos a olhar para a cultura com esse novo olhar. Nós entendemos que o
BNDES, como um banco de desenvolvimento, tinha que ter um papel diferen-
ciado dentre as outras estatais, como a Petrobras, a Eletrobras, ou das grandes
empresas privadas, porque elas não têm o desenvolvimento como parte da sua
missão institucional. Dentro desse conceito, nós desenvolvemos um estudo
pioneiro, preliminar, sobre o setor audiovisual, baseado na experiência que o
banco já tinha, por ter apoiado durante muitos anos a produção cinematográ-
fica, com editais de cinemas anuais. Esse foi o setor eleito para um olhar mais
aprofundado, no primeiro momento, para entender a sua dinâmica, os seus elos.
A escolha foi realizada principalmente por ser um setor que já conhecíamos
melhor, e que tinha um custo de aprendizado menor nesse processo.
Nós analisamos o setor em toda a sua cadeia produtiva, desde a produção
até a distribuição, exibição, e também o que nós chamamos de infraestrutura,
que são empresas que permeiam todos esses três elos. Analisamos a agrega-
ção de valor em cada um desses elos da cadeia, e existe hoje, por exemplo,
uma dificuldade muito grande de geração de valor no elo da produção. Isso
foi muito fruto da estrutura que se criou ao longo dos anos, pelas leis de
incentivo, pelo desmantelamento da produção cinematográfica. Já no elo
da distribuição, você tem talvez a maior agregação de valor da cadeia, mas é
dominado pelas empresas estrangeiras. E se isso, por um lado, através do artigo
terceiro, ajuda a financiar a produção nacional, por outro, tem elementos que
prejudicam o florescimento da distribuição nacional e da produção de filmes
brasileiros. Quer dizer, no Brasil, durante muitos anos, se desenvolveram
leis de incentivo muito focadas na produção. Outros elos, especialmente a
exibição, ficaram de fora. Não houve praticamente nenhum tipo de incentivo
para isso. O resultado é que o parque exibidor brasileiro caiu de quatro mil
salas, na década de 1970, para cerca de duas mil salas. Agora, está voltando
a se recuperar lentamente, e um dos fatores que está contribuindo para isso
são as prioridades de linhas de financiamento do BNDES.
O Procult entrou com uma linha de financiamento reembolsável, que é o
principal instrumento do banco. Ou seja, é um empréstimo, mas tem carac-
terísticas adequadas aos setores culturais. Na política convencional de crédito
do BNDES, por força de regras de risco, existem limitações do máximo de risco
que o banco pode tomar diante de determinados clientes, e existe também

204
uma classificação de risco que a nossa área de crédito faz, e que estabelece um
patamar abaixo do qual nós não podemos emprestar. Além disso, a política
do banco é de trabalhar em termos de garantia real, e garantia real significa
imóveis e ativos fixos. Isso era uma barreira muito grande para setores que
não são baseados em ativos fixos, que não têm fábrica, trabalham com valores
intangíveis. Hoje em dia, em geral, o exibidor não é dono do imóvel, da sala
de cinema. Ele aluga, é um prestador de serviço, não tem aquela garantia
para oferecer. Por conta disso, nós flexibilizamos essas regras internas, tanto
de exposição ao risco, quanto das garantias, para poder viabilizar essa linha
de financiamento chamada Procult. Por exemplo, em salas de cinema, nós
passamos a aceitar como garantia o fluxo de recebíveis da bilheteria. E, em
termos de limite de exposição ao risco, flexibilizamos, no âmbito do Procult,
até R$ 10 milhões por grupo econômico. Nós podemos emprestar para cada
grupo econômico, grupo de empresas, até R$ 10 milhões, abrindo mão das
regras de risco genéricas que o BNDES segue.

Há uma preocupação de fomentar e desenvolver microcrédito cultural


para empresas mais ágeis, para pequenas empresas?
Além das linhas de crédito diretas, o BNDES tem outros instrumentos, e
também uma preocupação muito grande de reforçar o microcrédito, de desen-
volver formas de financiar os setores formados por empresas de menor porte,
como as microempresas e médias. Isso em qualquer setor, não só cultural.
Então, para isso, o BNDES tem dois instrumentos principais: uma linha de
crédito automática, chamada BNDES Automático, e o Cartão BNDES. O Cartão
BNDES talvez seja o mais interessante para a área cultural. Ele funciona como
um cartão de crédito empresarial, com o qual a empresa recebe um limite
de crédito rotativo e tem prazo de quatro anos para pagar, com uma taxa de
juros bem mais competitiva do que a dos cartões de crédito tradicionais. Isso
tem viabilizado muitas micro, pequenas e médias empresas a terem acesso
a financiamento. E o esforço que nós estamos fazendo é de incluir cada vez
mais bens culturais no rol de produtos acessíveis a esse cartão BNDES.

O que são esses produtos culturais?


Desde equipamentos, instalações, montagens, computadores nacionais,
instrumentos musicais. Praticamente qualquer bem produzido no Brasil pode
ser adquirido, basta o fornecedor daquele produtor se credenciar para isso.

205
Não trabalhamos ainda com serviços. O BNDES começou a inserir, no Car-
tão BNDES, os serviços ligados à questão da inovação, à pesquisa científica,
universitária. Isso já é um primeiro passo para começar a tentar abranger os
setores de serviços, que são um pouco mais difíceis de controlar, de apropriar.

Fale sobre a articulação que o BNDES fez com o BNB, que é sempre citado
como exemplo de sucesso.
Essa articulação com o BNB foi realizada com recurso não reembolsável,
que é chamado “a fundo perdido”. Esse recurso, no BNDES, é bastante escasso.
Enquanto o BNDES fez o desembolso de R$ 120 ou R$ 130 milhões, no ano
passado, para todos os setores industriais, apenas 1% disso é recurso não
reembolsável. A parceria com o BNB é um edital de apoio a pequenos proje-
tos culturais com recursos não reembolsáveis. Apoio ao desenvolvimento de
projetos, em vários setores, de linguagem das artes, sempre na região nordeste.
A forma com que eles trabalham é interessante, com oficinas de capacitação
dos proponentes. É um trabalho muito bonito, que vem a cada ano mostrando
mais resultados concretos. O que nós fizemos foi aumentar os recursos que o
BNB tinha disponível, que de R$ 3 milhões por ano passou para R$ 6 milhões,
e eles puderam apoiar mais projetos e com valores maiores. Essa foi uma
ação de atender ao segmento dos pequenos. Lógico que não conseguimos
atender diretamente, nós somos um banco sem agências, temos uma sede
única. O BNDES é um banco voltado para grandes projetos, então a gente
tem que ter criatividade para conseguir atender pequenos projetos, e essa
é uma das formas, através de parcerias com outras instituições financeiras.
Estamos pensando outras ações não reembolsáveis, que estão ainda sendo
estruturadas, dentro do escopo de ações estruturantes da cadeia produtiva
da cultura.

Como o BNDES vê a importância da economia criativa no mundo hoje?


Cada vez mais os setores criativos e culturais vão ganhar espaço no mun-
do, e o Brasil está começando a despertar quanto a isso. O fato do BNDES ter
colocado esse assunto dentro da sua missão, de uma forma mais organizada,
é um sintoma disso. Pensando em um horizonte mais longe, essa civilização
que a gente tem hoje, baseada no consumo de combustíveis fósseis, com
desrespeito ao meio ambiente e muitas desigualdades sociais, certamente
acabará. Isso não pode se sustentar por mais tempo. E o que vai substituir

206
isso são os setores intensivos em tecnologia, para minimizar o consumo de
recursos naturais e sofisticar o uso dos recursos escassos do país. E, certa-
mente, os setores culturais e criativos. O crescimento de setores de serviços,
de conteúdo, lazer e entretenimento, é estratégico para se pensar a geração
de renda, de empregos de qualidade, mais bem remunerados. São setores
que podem contribuir, inclusive, com a formação cultural e educacional da
população. Isso é uma tendência mundial, e o Brasil tem que atuar nela.

Como gestora, você acredita que um edital público é um instrumento,


ou é uma política de desenvolvimento?
Pode ser as duas coisas. No BNDES, nós utilizamos os dois instrumentos:
em alguns casos, edital, em outros casos, a política de apresentação de pro-
jetos. Lembrando que no BNDES toda a estrutura decisória tem uma gover-
nança muito forte, até porque a cultura não é tratada como um patrocínio de
gabinete e de presidência, ela está dentro da estrutura do banco. Qualquer
projeto que está pleiteando recurso entra, preenche um caderno chamado
Consulta Prévia, com todas as informações necessárias, que é então analisado
pelo Departamento de Prioridades, para avaliar se aquele tema está aderen-
te às políticas operacionais do banco. A partir daí se faz uma instrução de
enquadramento, que vai para o comitê de todos os superintendentes, para
ser avaliado o mérito daquela proposta. Só depois disso tudo é que vai para
o que a gente chama área operacional, onde eu trabalho, para que seja feita
uma análise mais aprofundada da parte jurídica, financeira, econômica, de
mérito. Então, é um processo mais profundo, que depois passa pela superin-
tendência, assessoria jurídica, e vai para reunião do colegiado de diretoria.
Tem muitos mecanismos de governança e, mesmo em casos em que não se
utilizam editais, você garante um processo com lisura, com transparência. O
edital é um instrumento muito útil quando se pretende atingir um universo
que não se conhece bem, e em que existe uma dificuldade de aproximação.
É uma convocatória, abre-se o edital, divulga-se, e fecha-se essa janela. É um
instrumento propício quando o cliente está muito espalhado, não conhece a
empresa e a empresa não o conhece. Serve também como um instrumento
de marketing, de certa forma, porque você está dizendo que existem recursos
disponíveis. É uma forma, inclusive, de mapear o mercado. E ele pode até ser
um processo temporário. Depois de alguns anos com edital, é possível iden-
tificar aquele segmento, de uma forma tão íntima e profunda, que se podem

207
desenvolver ações permanentes, que não dependam de uma abertura de
edital, de uma convocatória. Enfim, eu acho que é um instrumento excelente.

Essa é uma questão interessante, porque uma coisa é fomentar ações,


outra coisa é fomentar processos a longo prazo. O BNDES pensa nesse
fomento a longo prazo para os seus parceiros?
Pensamos, com certeza. Obviamente que no setor de audiovisual, que nós
conhecemos melhor, já temos mais instrumentos desenvolvidos para isso, e
temos mais resultados. Nos outros setores estamos começando a conhecer
e a atender. Nós temos um edital de cinema desde 1995. Ao longo desses
anos houve um conhecimento desse mercado, de quem são esses produto-
res, como se dá a dinâmica desses agentes, e com isso nós desenvolvemos
as linhas de financiamento. O BNDES tem este estilo: para qualquer setor
de atuação, ele faz um diagnóstico prévio, para saber onde está o gargalo,
onde pode haver um desenvolvimento mais agregado ao recurso, que é o
que a gente tem a oferecer.

O banco é um forte financiador hoje dos mecanismos de integração na


América do Sul, por exemplo, das estradas que ligam o Brasil ao Pací-
fico de uma forma muito mais estruturante. Chega ao Departamento
de Cultura todo o aspecto de integração cultural, com essas próprias
estradas e canais, que o país abre para o Pacífico?
Sinceramente, não. O que existe no banco é uma tentativa, e isso vem
crescendo nos últimos tempos, de não tratar a questão do impacto cultural,
do impacto social, como uma esfera, um conhecimento do Departamento de
Cultura, ou da área social. Isso é tratado em todo o banco. O BNDES, hoje,
financia qualquer grande projeto, como uma hidrelétrica, um polo industrial,
estrada, ferrovia, o que seja, e tem uma preocupação de minimizar o impacto
no entorno. Para isso existe um subcrédito, uma parte do recurso que pode
ser emprestado ao cliente com custo zero, para que ele faça investimentos
sociais. E o próprio BNDES tem os seus recursos próprios não reembolsáveis
para fazer ações que minimizem os impactos negativos e potencializem os
impactos positivos de qualquer novo empreendimento que esteja sendo finan-
ciado. Essa é uma estratégia forte, que está sendo colocada dentro do banco
nos últimos quatro anos, principalmente. E, aos poucos, está acontecendo
uma troca de experiências.

208
O que é economia criativa?
Existem vários conceitos. No BNDES nós adotamos mais economia da cul-
tura do que a economia criativa. Existe a criatividade técnica, que é o que deriva
para inovação, para o software, para o desenvolvimento usando a tecnologia, e
existe a criatividade mais autoral, de conteúdo. Esse lado da economia criativa
mais técnica o banco, de alguma forma, já apoia. São as empresas de softwares,
de telecomunicações, fármacos. Toda a parte de inovação mais afeita à pesquisa
científica já é uma área de atuação do banco. Então, a novidade é a economia da
cultura, que são esses outros setores que, anteriormente, eram apoiados, mas
com uma ótica de patrocínio, e que agora passaram a ser vistos como setores
meritórios de receberem créditos, se desenvolverem e terem políticas públicas.

Quando se tem o conceito de economia de cultura, quer dizer que o


BNDES reconheceu a cultura nesse sentido?
Ele reconheceu principalmente por ter um departamento para isso, ele
botou na sua estrutura operacional uma equipe que tem essa missão. Hoje,
na verdade, o departamento é cultura, entretenimento e turismo. Porque,
em alguns aspectos, existe essa sinergia, e também porque não dá para ter
um departamento para cada coisa. Então, existem hoje, dentro da estrutura
operacional, profissionais dedicados a esse tema, e uma política com uma
dotação orçamentária bastante grande nas suas diversas linhas: reembolsá-
veis, não reembolsáveis e renda variável. No banco, chamamos de variável
quando o banco participa como investidor, como sócio, seja através de uma
participação acionária minoritária, na empresa, seja através de um fundo de
investimento. Existem vários fundos de investimentos e, particularmente no
setor cultural, tem os Funcines e os Ficartes. O banco já atua com Funcines e
pretende atuar também com o Ficarte. Em ambos instrumentos, o investidor
é ou sócio do projeto, ou sócio da empresa, e participa dos resultados. Se tiver
resultado, recebe uma parte; se não tiver, não recebe. Ou seja, é recurso inves-
tido. Então, temos esse mix de instrumentos, o empréstimo, o investimento e
o não reembolsável, que, utilizados de forma organizada e planejada, podem
dar bons resultados.

209
210
Roberto
Smith
Presidente do Banco do Nordeste.

O que é o Banco do Nordeste e qual é sua posição com relação à cultura?


O Banco do Nordeste tem uma faceta diferenciada, pois não se trata ape-
nas de um banco. Ele se insere numa região deprimida, que se ressente de
indicadores muito rebaixados com relação à média brasileira. A impressão
que tenho é de que o Banco do Nordeste precisa se provar muito mais do que
outras instituições para conseguir um lugar de respeitabilidade a nível nacio-
nal. Contribui para isso a visão escarninha que geralmente se tem sobre os
atrasos da região, como se os elementos responsáveis pelo atraso fossem um
estigma popular insuperável, algo que joga em descrédito todas as áreas da
vida de um povo. O Banco do Nordeste faz esforços imensos para estar inse-
rido em tudo que acontece no país e nos centros de decisão. Ele tenta operar
uma ampla faixa de ações, nem sempre voltadas para objetivos comumente
tidos como centrais. Isso muitas vezes passava uma ideia de que éramos um
banco que não foi feito para dar lucro. Essencialmente, somos um banco de
desenvolvimento regional, possivelmente o maior da América Latina na área
de microcrédito rural e urbano. Aos poucos, temos conseguido provar que
somos uma instituição modelar, em função de nosso rigoroso trânsito por vá-
rios setores que não necessariamente caracterizariam a atuação de um banco.
Quanto à cultura especificamente, nós a entendemos como vetor da questão da

211
valorização e do desenvolvimento regional. Não vemos a cultura apenas como
aproveitamento das leis de incentivo fiscais, como fazem outras instituições,
para promoção de marca e de pontos estratégicos de marketing. Isso deu ensejo
ao desenvolvimento de uma concepção de cultura muito mais ampla do que
aquelas que estão normalmente atreladas a fatores de ordem mercadológica.

Como o senhor analisa o desenvolvimento econômico do nordeste neste


momento da história do Brasil?
Somos um banco de desenvolvimento. Portanto, trabalhamos sobretudo
com crédito, financiamento de longo prazo. Atendemos a investimentos e
atuamos como elemento desencadeador do desenvolvimento regional, que
é questão prioritária para nós. Nossos estudos mostram que existe uma boa
integração da economia nordestina com a economia nacional. Se a economia
nacional cresce, a economia nordestina também cresce. O mesmo valendo
para movimentos contrários. Existem fatores de diferenciação, no que tange à
presença e à participação no mercado interno. Como os padrões de emprego
e de consumo são tradicionalmente rebaixados no Nordeste, uma política
voltada para melhor distribuição de renda no país (algo que vem ocorrendo
pela primeira vez na história do Brasil) tem um efeito muito marcante na-
quela região, porque é uma área muito deprimida. A resposta em termos de
aumento no consumo é particularmente forte. Há toda uma reanimação do
que seria um mercado interno, conceito lacunoso no que tange ao Nordeste.
Celso Furtado colocava que o mercado interno não se desenvolvia em função
de um padrão de economia escravocrata. Mas a questão de não haver um
desenvolvimento no mercado interno está vinculada a uma série de outros
fatores, que estão sendo rompidos agora mediante políticas sociais. Políticas
que começam a integrar um contingente populacional há muito marginaliza-
do. Os indicadores evidenciam uma lenta diminuição da distância que separa
a economia nordestina da média da economia brasileira.

Como o senhor se posiciona quanto à questão de infraestrutura, tanto


de modo geral como no caso específico da cultura?
O banco é um grande financiador da infraestrutura em geral. Entendemos
esse elemento como algo capital, no sentido de manter a economia nordes-
tina dentro dos padrões que vêm permeando a economia brasileira. Como
afirmei, não o bastante para que haja uma recuperação realmente decisiva e

212
rápida do diferencial, em relação à economia brasileira. Porém, o Banco do
Nordeste desempenha um papel muito importante nesse processo; somos
hoje responsáveis por mais ou menos 60% da carteira de investimentos na
região, e somos responsáveis por 35% de todo o crédito da região. Isso nos
coloca entre as maiores instituições regionais ou nacionais. Atualmente, es-
tamos em oitavo lugar no ranking bancário brasileiro. Dentro das linhas de
financiamento do banco, tentou-se um apelo mercadológico via financiamen-
to cultural. Gostaria de salientar que os resultados ainda são bastante pífios.
Portanto, ainda que haja alguma movimentação nesse sentido, a infraestru-
tura da área cultural segue muito precária. Nossa percepção é de que esse é
um fator importantíssimo na estruturação do desenvolvimento regional. É
verdade que os centros mais dinâmicos da economia têm o condão de reunir
todo aparato de produção e geração cultural, e que atraem fortemente todas
as expressões culturais para essas áreas mais desenvolvidas, que muitas vezes
se encontram fora do próprio Brasil.

Durante cinco eleições, o edital do BNB de Cultura patrocinou 1.131 pro-


jetos, beneficiando diretamente 474 municípios. Por que vocês optaram
por essa descentralização?
Isso é uma opção nossa que se estende também aos padrões de atendimen-
to de crédito dos investimentos. Não queremos que essas aplicações sofram
uma excessiva centralização e, no caso específico de um edital, parece-nos
apenas justo que o maior número de estados e municípios seja atingido.
Creio também que nossos editais sejam bem recebidos justamente porque
são concebidos de uma maneira democrática. Queremos ampliar o acesso ao
debate e promover uma interlocução com toda a classe cultural.

O banco atua nos editais no norte de Minas e norte do Espírito Santo.


Por que essa configuração?
O que caracteriza nossa participação nessas áreas é a questão do semi-
árido. Em torno de 60% da área do nordeste se enquadra no semiárido, cujo
padrão de identificação é o baixo nível de pluviosidade, até 500 milímetros/
ano. Essa região do norte de Minas e norte do Espírito Santo se enquadra
também nesse padrão regional, que foi abarcado pela SUDENE. Portanto, o
banco – sendo Banco do Nordeste – abarca também essas duas áreas, dentro
do contorno estabelecido pelo quadro operacional da SUDENE.

213
Como o senhor encara projetos em pequenos municípios e a questão do
microcrédito cultural?
Lembro de ter lido em algum lugar – assim que assumi o banco – a res-
peito de um professor carioca que doara uma enorme biblioteca para sua
cidade natal, nos confins de Alagoas. Entrei em contato com esse professor
e fiquei sabendo que, a partir dessa doação, o município organizara um cen-
tro cultural que realmente estava fazendo a diferença. Portanto, decidi fazer
uma doação, para esse mesmo município, de 10 computadores que o banco
iria vender. O efeito disso foi enorme. Os jovens do município começaram
a trabalhar com teatro, música. Em suma, alguma efervescência começou
a se estabelecer. Sabe-se que, no interior do país, essas oportunidades são
praticamente inexistentes. Perpassam inevitavelmente a construção de pe-
quenos cinemas, bibliotecas, centros de cultura. Pois, fiquei remoendo isso e
comecei a conversar com o pessoal do INEC – nosso Instituto de Cidadania do
Nordeste, uma OSCIP. Dessas conversas, acabou brotando a ideia de montar
algo como um foco de cultura autossustentável em pequenas cidades onde
não havia nada e onde pudéssemos jogar um pedaço de nosso microcrédito,
do Agromigo, do PRONAF. Depois de mais algumas discussões, optamos por
realizar a experiência-piloto em Pedro II.

Onde fica Pedro II?


É um município interessante do Piauí, a uns cem quilômetros da fronteira
com o Ceará. Por conta da incidência da opala, surgiu lá todo um processo
de confecção de joias. É uma região que possui uma cena cultural, um fes-
tival de inverno. Nosso pessoal foi para lá e começou a mapear a cidade.
Começou o contato com a ONG que cuidava da questão ambiental, e com a
Maçonaria local. Juntamente com o banco e o Instituto Cidadania, formou-se
um mutirão baseado no Centro Cultural e de Negócio. O custo disso, diga-se
de passagem, foi bastante baixo: em torno de 30 mil reais. Doamos alguns
computadores, e a ONG usou recursos próprios no redirecionamento. A coisa
começou a deslanchar. Seguimos então para Guaribas, outra cidade do Piauí.
Lá, ganhamos da prefeitura uma pequena casa em frente à praça. Foi um
trabalho muito caracterizado pela mobilização espontânea. As pessoas da
cidade tinham sede disso. A partir desse movimento, recuperaram a praça,
pintaram, ladrilharam. Organizamos uma sessão de cinema para a inaugura-
ção. Já estruturamos um mercado de venda de animais, com financiamento

214
do banco. O prefeito ficou entusiasmadíssimo. Ele não acreditava que aquela
revitalização fosse possível a custos tão baixos. Estamos avançando nisso,
hoje. O projeto – chama-se “Cresce Nordeste Cultura” – já conta com mais
30 unidades dessas pelo nordeste. O Ministério da Cultura entrou no projeto
também, porque eles têm os Pontos de Cultura. Mas os pontos não têm essa
virtude da autossustentabilidade. Eles dão recursos por três anos, e depois
a coisa pode morrer.

Como se estrutura a formatação financeira?


Existe uma área que empresta, faz os contratos de microcrédito do PRO-
NAF, e isso gera uma movimentação de aplicação no banco, cujos resultados
são o bastante para manter um centro desses. Porém, o que acho importante
salientar é que esses centros de cultura e negócio não partiram propriamente
do banco. Foram muito mais uma iniciativa da comunidade. O centro se es-
trutura e se organiza em função do desenho que a própria comunidade – em
parceria com o banco, o INEC, e suas próprias forças vitais – coloca. Sou grande
entusiasta desse tipo de projeto, que tende a brotar de iniciativas próprias, e
não de uma instituição forte, ou de um governo arbitrário. Dessa maneira, a
comunidade é o sujeito da gestão.

Por que isso não é visto como demanda real pelo setor bancário como
um todo?
Bom, creio que seja importante dizer aqui que o grande demandante do
microcrédito, atualmente, é o setor comercial, strictu sensu. A demanda do
setor cultural ainda é relativamente baixa, por conta de questões estruturais.
O que me traz a outro ponto: os setores culturais, no Brasil, se acostumaram
a uma grande dependência de um Estado supostamente benemérito. Essa
dependência faz com que os projetos percam sua capacidade de autogestão
e autoestruturação. Mas creio que exista um campo muito grande para alcan-
çarmos. O Nordeste tem fatores relevantes que ainda não foram explorados
devidamente, pois sua formação socioeconômica é muito distinta com relação
ao resto do país. Por exemplo, o Nordeste não foi tão amplamente abordado
pelas correntes migratórias quanto o Sul e o Sudeste do país. Por quê? Não foi
apenas o clima proibitivo, como querem alguns historiadores. O que acon-
teceu foi um fechamento precoce das terras nordestinas, sobretudo para a
agricultura canavieira e, na esteira disso, para a pecuária. O imigrante não

215
se sentia atraído pelo nordeste porque não havia terras lá, e a migração toda
se baseia no sonho de se tornar proprietário. Em verdade, quase ninguém se
tornava proprietário. A maioria era obrigada a trabalhar dentro dos regimes, e
hoje em dia vemos como prosperam a cana-de-açúcar e o café no sul do país.
Porém, no nordeste, as correntes migratórias não vieram em função dessa
impossibilidade de se tornar proprietário de terra. Com isso, tivemos uma
formação social em que certos valores mais tradicionais ficaram preserva-
dos da influência indígena, negra, portuguesa. É isso que caracterizou nossa
formação, o sotaque, a música, a arte. Tudo isso em meio a um programa de
real crise econômica que pega o nordeste logo nos primórdios, em função
da crise da cana-de-açúcar. Isso gera fatores interessantes, mas que muitas
vezes entram naquele quadro de desprezo e desvalorização ao qual aludi há
pouco. Aos poucos, esses traços começam a se mostrar mais em nossa geleia
cultural, em conjunto com influências mais modernas. Mas são aspectos de
nossa formação histórica que permanecem no cerne de nossa sociedade.

Como o senhor vê a questão da indústria do carnaval no nordeste? Como


o senhor se posiciona quanto aos dilemas e contradições engendrados
pelo turismo cultural?
Não gosto da indústria do carnaval. Esse carnaval que brota na Bahia é algo
interessante em sua origem, mas que acaba se perdendo numa exploração
econômica. É uma forma de lazer que alija muito as pessoas. Toda a estrutu-
ração da venda de abadás, por exemplo. O carnaval levado dessa maneira é, a
meu ver, uma negação de toda alegria, toda a excitação inerente ao carnaval.
Estão fazendo algo parecido com as festas juninas do Nordeste, instaurando
concursos de quadrilha e coisas parecidas. Enfim, acaba caindo no estereótipo.

O senhor poderia falar um pouco sobre os centros culturais do Banco


do Nordeste?
Quando assumi, já tínhamos o Centro Cultural de Fortaleza, que ainda não
havia visitado. Quando fui lá pela primeira vez, fiquei entusiasmadíssimo –
inclusive por descobrir que meus filhos já o frequentavam há tempos. Nosso
centro cultural tem uma fluência média de 1.500 pessoas por dia. 1.000 só para
a biblioteca. Em todos os nossos centros culturais, as áreas mais procuradas
são justamente as bibliotecas, o que me dá certeza quanto à importância do
trabalho que estamos desenvolvendo. Quando assumi o banco, comecei a

216
viajar por todos os lugares onde tínhamos agências. Na agência de Juazeiro
havia quatro andares desocupados, guardando lixo. Fizemos o Centro Cultural
lá, e deu certo. Essa política de aproveitamento para espaços desocupados
levou-nos a realizar a mesma coisa em Souza, na Paraíba, onde a agência local
tinha um andar inteiro fazendo as vezes de lixeira. Em Souza escreve-se muito.
É um povo com valores literários, que resolvemos cultivar. Nunca me esqueço
de quando inauguramos o centro de Souza. A rádio local criticava-nos o tempo
inteiro, dizendo que o Centro não passava de fogo de palha, uma atitude que
o Banco do Nordeste tomava só para se mostrar, mas que em seis meses já
teria acabado. Porém, o Centro cresce cada vez mais. Tivemos de ampliar a
disponibilidade de horário e da equipe, porque a demanda é tão grande. Isso
só vem nos mostrar o quão corretos estamos em nosso trabalho com a cultura.
É um trabalho que joga fortemente com fatores como a formação de público, a
valorização da leitura, do teatro, de todos os eventos culturais. Só gostaria que
pudéssemos avançar um pouco mais com o cinema, porque acho essencial.
Em suma, somos um banco de desenvolvimento, e desenvolvimento se faz
com alma. Qual é a alma do desenvolvimento? A cultura. Desenvolvimento
sem cultura é um desenvolvimento capenga.

O que será o Nordeste daqui a 10 anos? Pensando o planejamento estra-


tégico do banco, quais as suas previsões?
Sou otimista. Acredito nas pessoas, acredito que as coisas vão melhorar.
Outro dia encontrei um agricultor, que é cliente do banco, e perguntei para
ele como iam as coisas. Sua resposta: “Ó, doutor, se melhorar, vai ficar muito
melhor”. Ouvir essas coisas é muito alentador para mim, especialmente quan-
do vêm de pessoas do povo, que têm carências reais e urgentes. Geralmente,
quando se pergunta como estão as coisas, as respostas vêm com uma carga
de negatividade imensa. Esse senhor sabe que estamos construindo uma
história, um futuro. Sempre fui vidrado nesse tipo de pensamento. Sou um
militante pela vida.

217
218
Danilo
Santos
de
Miranda
Diretor do SESC de São Paulo.

Danilo, como você começou a trabalhar com cultura?


Eu entrei no SESC em 1968, como orientador social, que era um trabalho que
abrangia a área da cultura, entre outras. Sou uma pessoa com uma formação
aberta, muito genérica, ligada às humanidades, e sempre fui ligado ao mundo
da cultura. As artes plásticas, o cinema, os espetáculos em geral, leitura, música,
sempre fizeram parte do meu universo pessoal e familiar. Sempre foi matéria
fundamental de consumo diário. Fui aluno de padres jesuítas, que são reconhe-
cidos pela formação intensa e rigorosa que propõem. Então fui educado com
muita leitura, muita reflexão, com variedade de informação e, sobretudo, co-
nhecimento dos clássicos. Os clássicos da literatura universal, os grandes nomes
da literatura grega, latina, que para a civilização ocidental são fundamentais.
E depois, mais tarde, os clássicos da música e da literatura moderna. Eu só fui
mergulhar na cultura brasileira na mesma época em que comecei a trabalhar
no SESC. Eu entro no SESC para poder realizar de uma forma profunda e con-
tundente aquilo que eu imaginava como algo absolutamente adequado para
o meu futuro profissional, que era trabalhar com os meus interesses sociais e
culturais. Eu comecei a trabalhar nas unidades móveis de orientação social, que
mobilizavam as comunidades, especialmente no interior, debatendo e propon-
do ideias para a sua transformação. Isso em plena época da ditadura brasileira.

219
Você também trabalhou no Senac, o Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial, não foi?
Sim, um pouco mais tarde eu me transferi para o Senac, porque é uma
instituição ligada ao SESC, voltada à questão da formação profissional. A
nossa função no Senac era a de discutir a amplitude desse conceito, traba-
lhando a formação profissional não apenas do ponto de vista da transmissão
da técnica, ou de tecnologia, mas também com arte e cultura. Eu fiquei no
Senac por bastante tempo. Nesse período, houve um esforço das entidades,
tanto do Senac quanto do SESC, para aprimorar os seus profissionais, os seus
executivos, e eu tive a oportunidade de viajar para a Suíça e fazer um curso
no Management Development Institute, o IMEDE, que é uma importante
instituição suíça. Foi um curso bastante expressivo e forte, sobretudo no
campo da administração. O curso era mais ligado à questão da informação
e do preparo de especialistas para a alta administração: finanças, marketing,
administração de pessoal no sentido mais amplo. Fiz esse curso em 1977, e
ele foi muito importante profissionalmente para mim. Em 1984, eu entrei no
SESC já como diretor regional, convidado pelo presidente.

Como foi essa virada institucional do SESC, na década de 1970?


O SESC é, desde sua origem, uma instituição ligada à questão do bem-
estar social. Entende o bem-estar social de uma maneira muito abrangente,
muito completa. É uma instituição criada no decorrer dos anos 1940, visando,
sobretudo, atender à categoria dos profissionais da área de comércio e ser-
viços. Esse foi o objetivo do SESC, assim como o do SESI, o Serviço Social da
Indústria, era atender os objetivos dos trabalhadores do seu setor.
Num programa de bem-estar social, existe uma vastidão de questões
ligadas à saúde, educação básica, à questão do próprio lazer, do esporte, da
cultura. Um governo, quando pensa no bem-estar da sua população, está
pensando em transporte, vestuário, habitação, educação, saúde. O SESC,
portanto, tinha como objetivo trabalhar essas questões. Aí, numa visão es-
tratégica bastante interessante, o SESC optou por atacar aquilo que era mais
abrangente, por meio da educação e da cultura. Se você atacar de fato, de
uma maneira completa e inteligente, um plano de educação e cultura para a
população em geral, de alguma forma essa população será capacitada e vai
não apenas evoluir, do ponto de vista da sua educação e da sua cultura, como
também atender a outras perspectivas importantes. Explicando melhor: se

220
você atende a alimentação, habitação, transporte, vestuário, saúde, e acha
que está resolvido, você, de alguma forma, mantém a população num quadro
de dependência permanente do atendimento dessas necessidades. Se você
não ampliar esse quadro, atuando no campo da educação e da cultura – e
aqui a cultura no sentido bem amplo, não apenas da arte e do espetáculo –,
você não resolve a questão. O Programa Bolsa Família, por exemplo, é im-
portantíssimo, mas não terá a menor condição de atender a necessidade da
população a médio e longo prazo, se não vier acompanhado de um processo
de educação e cultura.

O Mário de Andrade, quando secretário de Cultura, monta os PIs, os


parques infantis, onde ele juntou teatro e piscina. Teatro e piscina
combinam?
Tem tudo a ver. O Mário de Andrade foi um propositor fundamental. Eu o
considero o grande patrono da cultura brasileira. Mário de Andrade tem uma
grande importância. Não apenas na Semana de 1922, que, para mim, é basilar,
é a inauguração da cultura autóctone, da cultura verdadeiramente brasileira,
um grito de independência da cultura. Mário de Andrade, além de ter sido um
artista, um escritor, um pensador, foi um propositor. Ele foi um gestor, o pri-
meiro grande gestor cultural deste país. E, como gestor do Departamento de
Cultura da Prefeitura de São Paulo, ele criou esses parques infantis que aliam
a questão da atividade cultural propriamente dita com a questão da atividade
física: piscina, quadra poliesportiva. É essa ideia que fundamenta a proposta do
SESC até hoje. Considero isso muito importante. E é curioso, porque às vezes
recebemos visitantes estrangeiros em nossas unidades, e eles se espantam um
pouco, dizendo assim: “Puxa! Mas vocês, além de teatro, de atividade cultural,
têm esporte aqui?” Como se fosse um escândalo fazer isso, mas essas duas ati-
vidades são necessárias para o bem-estar. Nós não somos uma instituição de
cultura, de esporte, de atividade social, de alimentação pública ou de qualquer
outra ação isolada. Nós somos uma instituição voltada para o bem-estar social.
O que chamamos de qualidade de vida e educação permanente.

O que é o agitador cultural?


O agitador cultural é o indivíduo que estimula a população a desenvolver
o seu interesse no campo cultural. Não necessariamente é um professor de
literatura ou de cinema, não é um cara que vai lá dar aula. É uma pessoa que

221
vai estimular o pensamento, a reflexão, o debate. É um animador. Isso tem a
ver com uma proposta francesa dos anos 1950, que revolucionou a ação cul-
tural na França. Então, muito mais importante do que produzir eventos, ou
até mesmo uma programação cultural, é oferecer uma proposta permanente
de reflexão em torno daquilo em que as pessoas têm interesse, sobretudo no
interior do país. Aí eu abro um parêntese importante: ultimamente, no Bra-
sil, temos um desempenho econômico extraordinário. Estamos crescendo,
desenvolvendo, melhorando a vida das pessoas das classes C e D e também
de outras categorias, mas o desenvolvimento econômico esvaziado do desen-
volvimento cultural – essa frase não é minha, mas eu a acho fundamental – é
escola de fascismo. Em uma sociedade em que as pessoas têm acesso aos bens
materiais em grande escala, também tem que existir uma proposta de reflexão
social, dos problemas das diferenças de classe, dos problemas dos excluídos.
Tem que haver uma discussão sobre as questões culturais e comportamentais,
sobre as diferenças. Se eu não tenho isso embutido nesse processo, eu formo
uma sociedade absolutamente reativa do diferente. A cultura é fundamental
para a transformação e evolução da sociedade brasileira, não apenas do ponto
de vista econômico, mas também do ponto de vista educacional e cultural.
Isso é absolutamente indispensável.

A China anunciou há pouco um investimento maciço em indústria de ani-


mação e economia da cultura. A Índia tem um forte desenvolvimento em
audiovisual, no planejamento estratégico e econômico de desenvolvimen-
to. É preciso um pensamento estratégico de cultura também para o Brasil?
Essa é uma questão bastante ampla. Você está trazendo questões, elemen-
tos e considerações de ordem mundial. É um fato. Eu estive agora na cidade
de Hong Kong e percebi lá dois movimentos muito interessantes. De um lado,
a presença exacerbada de uma sociedade do consumo. Não quero fazer consi-
derações tiradas apenas de observações de alguns dias, mas Hong Kong me dá
a impressão de ser um imenso shopping center, uma cidade onde o consumo
rege, estabelece, cria condições de maneira bastante intensa. Isso reflete uma
China um pouco diferente. Hong Kong é uma China ainda ocidentalizada,
é uma China que está saindo do controle europeu, inglês, e passando para
o controle chinês. Não é uma cidade típica chinesa, mas ela é muito repre-
sentativa. Na China nova, nos deparamos com prédios altíssimos, de cento e
tantos andares, vidro e aço para todos os lados. Uma coisa impressionante.

222
Isso realmente é uma pujança fantástica. Do outro lado, percebo claramente
um esforço descomunal para se ter uma presença forte da cultura: novos
museus, modernos, avançados, com tecnologia de primeira linha. Um centro
de convenções com uma série de possibilidades de discussões e debates. Há
esta tendência lá: a valorização cultural de um lado e a pujança econômica
do outro. O Brasil precisa projetar seu crescimento também.
Nós, no SESC, estamos planejando o futuro da instituição, então temos
que pensar no crescimento da cidade, do estado e do país permanentemente.
Planejamos uma expansão do ponto de vista físico: construir novas unidades,
colocar mais equipamentos à disposição da população, como está acontecendo
na cidade de São Paulo. São cinco novas unidades sendo planejadas para os
próximos quatro anos. Uma delas, o SESC Belenzinho, está em fase final para
ser inaugurada até o final do ano de 2010. É maior que o SESC Pompeia. É uma
unidade com três teatros, com um equipamento fantástico, com uma piscina
muito grande etc. Do ponto de vista conceitual, percebemos que a ampliação
do conhecimento, a educação permanente, é um assunto cada vez mais pre-
sente no interesse da população. Por isso estamos ampliando nossas mídias, a
nossa presença na rede, a nossa presença via televisão. Enfim, desenvolvendo
o nosso trabalho de tal forma que possamos atingir um número cada vez maior
de pessoas, porque sabemos que essa questão tem um caráter essencial para
a população. Nós não lidamos com o supérfluo. Nós não lidamos com a cereja
do bolo, como antes a cultura era tratada. A cultura hoje precisa ser vista como
uma questão importante política, econômica e socialmente.

Como é a formação de profissionais de cultura dentro do SESC?


Há uma questão educacional geral, no Brasil, relacionada à desvinculação
entre o que é oferecido e o que é exigido no mercado. Isso vale para a área cultu-
ral e vale para muitas outras áreas. Existe uma necessidade premente de análise
profunda, em todo campo educacional brasileiro, voltado para as necessidades
reais do país, mas tenho visto e tenho ouvido muita experiência interessante
nesse campo, que pode dar frutos no futuro. Com relação ao SESC, há muito
tempo existe um permanente processo de preparação e desenvolvimento dos
nossos quadros, em todas as áreas, para que a gestão, a coordenação e a criação
sejam sempre contempladas e desenvolvidas. Mais do que isso, já se iniciaram
alguns contatos com o Ministério da Cultura para o SESC colaborar na formação
de gestores culturais com cursos dentro das suas instituições.

223
Qual é a concepção de cultura do SESC?
Existe um entendimento ainda muito presente, não apenas na sociedade,
mas em administradores públicos, de que a cultura é vinculada somente ao
mundo das artes, do espetáculo e das manifestações artísticas. Quando muito,
se agrega a memória imaterial e a preservação do patrimônio histórico. Tudo
isso é importantíssimo, é fundamental para a nossa realidade, mas é pouco.
Cultura é muito mais do que isso. Para mim, a grande questão a ser vencida, a
ser colocada na mesa, é discutir de fato a centralidade da cultura. É claro que
saúde, educação, justiça e tudo mais também pode ser central, mas a cultura
tem uma centralidade mais própria, que diz respeito ao seguinte: tudo que é
desenvolvido pelo ser humano, pela mente humana, pelo engenho humano,
seja na criação artística, seja na criação material pura e simples, é cultura. Isso
é o conceito antropológico fundamental. A cultura é mais do que a questão
artística, é mais do que a questão do patrimônio e a memória. Ela diz respeito
a toda a capacidade humana de se relacionar consigo, com o outro e com o
seu meio ambiente.

O que é importante para se tornar um gestor de cultura?


Em primeiro lugar, obter o maior nível de informação possível sobre o que
está acontecendo à volta. Isso é muito difícil no cotidiano atribulado de um
gestor e também nesse momento de excesso de informações. Hoje eu não
consigo ter uma visão panorâmica. Quando eu entrei, acho que tinha essa
visão ampla, mas hoje não me considero mais uma pessoa tão atualizada,
sobretudo porque de lá para cá o nível de exigência se tornou praticamente in-
controlável. Hoje em dia, para se ter um conhecimento efetivo do que acontece
à sua volta, é preciso ter mil antenas à disposição. Principalmente no campo
das artes, porque as opções e as formas de fazer cresceram demais. É preciso
estar atento a tudo. Então, é preciso sobretudo ter a mente aberta e considerar
a cultura e a questão cultural como algo a problematizar, e não a resolver.
Isso é interessante. Aliás, o Edgar Morin fala isso com muita clareza: a cultura
que não problematiza não é cultura. Não é cultura, ela não está propondo. E
problematizar, que eu digo, é refletir, é provocar reflexão muito mais do que
trazer o assunto resolvido, achar que as soluções e as respostas definitivas estão
aí à disposição. Não existe mais resposta definitiva praticamente para nada.

Existe salvação para a cultura?

224
Claro. Aliás, só existe salvação pela cultura. Essa para mim é a questão.
Sem nenhuma conotação religiosa ou política, mas somente a cultura salva,
de fato. Por que é que eu digo isso? Porque eu estou falando de informação, de
conhecimento, de valorização do ser humano, da inteligência humana, como
a capacidade fundamental do ser humano. O que nos diferencia dos demais
seres vivos? É a nossa capacidade de refletir, de aprofundar, de ter cultura,
no sentido mais amplo possível do termo. Ter cultura não só no sentido de
informação, mas com informação elaborar, criar, desenvolver, refletir, avan-
çar, entender melhor, conhecer melhor o que está à sua volta, refletir sobre
o que está acontecendo. O que falta no mundo de hoje, no mundo político,
econômico, social, religioso, e muitas vezes até em outros campos também,
é cultura. Todos deveriam ter uma visão mais completa: os nossos dirigen-
tes, políticos, líderes e todo mundo que tem poder deveria ter uma cultura,
no sentido mais amplo. Porque cultura não é informação, é articulação da
informação de um modo inteligente.

Como evitar o uso puramente instrumental da cultura, como forma de


inclusão social?
Realmente, busca-se muito essa coisa do instrumental da cultura, até
mesmo para desenvolver o social. Tem muita instrumentalização inadequada.
A cultura é indispensável, independente da condição social. É indispensável
para pobre, para rico, para todo mundo. Aliás, tem gente que acha que cultura
é bom só para pobre, e vão fazer projeto social. A cultura é importante para
rico também, porque tem que abrir a cabeça desse povo para que eles en-
tendam melhor a realidade à sua volta. Todo reducionismo é muito perigoso.
Alguém que diz, por exemplo: “Olha, nós temos um projeto cultural significa-
tivo, importante, porque na favela nós estamos lidando com teatro, não sei o
quê.” Bárbaro! Bárbaro! Mas isso não é resolver o problema do Brasil. Isso aí
é trazer a possibilidade de ampliar uma informação, que é importante, mas
não é tudo. A discussão tem que ser colocada na mesa de maneira intensa,
a política cultural tem que ser assumida como uma política, realmente, de
Estado. Ela não tem que ser do Ministério da Cultura; ela tem que ser de todos
os ministros e, sobretudo, assumida pela presidência da República.

225
226
Décio
Coutinho
Gestor Cultural do Sebrae de Goiás.

O que é o Sebrae, e o que ele faz?


O Sebrae apoia as pequenas empresas, empreendimentos de autônomos
e pequenas iniciativas, que são 98% do que acontece no país. Na cultura
isso não é diferente. Não tem como não atuar em cultura dentro dessa
abordagem da economia, uma vez que 98% das pessoas que produzem
cultura são autônomos, independentes. São artistas e grupos, na sua grande
maioria, informais, e esse é o trabalho que a gente faz. Os setores em que
o Sebrae tradicionalmente atua de forma mais intensa, e tem uma abor-
dagem mais forte, são os de turismo, artesanato e moda. A cultura, em si,
entrou bem depois. O Sistema Sebrae atende a cultura há uns cinco ou seis
anos, já o artesanato e o turismo são atendidos há muito mais tempo. Em
relação ao artesanato, existem diversas formas de atuação, com a criação de
saberes, através das oficinas com mestres griôs, onde se transmite esse saber,
para que ele seja percebido, entendido, preservado e replicado. E também na
forma de acessar o mercado para esses produtos de artesanato, sejam eles de
artesanato tradicional ou artesanato contemporâneo. O Sebrae trabalha com
esse viés da informação e da formação desses artesãos e o acesso ao mercado.

O que é acessar mercado?

227
É permitir que o seu produto chegue às pessoas interessadas em comprar,
ou mesmo, na falta de interesse, provocar um estímulo ao consumo desses
produtos. É uma forma de se levar um grupo de artesãos para uma feira, para
uma rodada de negócios, para um diálogo com outros grupos de artesãos, e
fazer trocas. Existem diversas formas de acesso, seja através de um modelo
de economia solidária, comércio justo ou da economia tradicional mesmo.

O Sebrae pensa então na cadeia produtiva, não é? Colocar o artesão em


contato com o ponto de venda. Isso, inclusive, envolve uma plataforma
internacional, já que o artesanato está profundamente ligado ao turis-
mo cultural. Como vocês pensam isso com os artesãos?
Existem formas de você prospectar mercado, seja ele nacional ou
internacional. Prospectar mercado significa entender que tipo de artesanato
teria acesso àquele mercado, e levá-lo até lá. Por exemplo, é inviável vender
artesanato de fibras naturais no mercado oriental, porque lá isso é muito
forte. Mas outros tipos de artesanato brasileiro já têm entrada lá. Então é ne-
cessário entender que tipo de material seria bem recebido em determinado
destino, e que produtos nossos seria interessante levar, ou seja, é preciso fazer
uma pesquisa prévia para entender esse mercado exterior, e uma pesquisa
interna para fazer com que isso se encontre. E o Sebrae faz essa ponte entre
a demanda e a oferta.

Na hora em que você chama um artesão para uma oficina, você acaba
criando também um modo de ensinar empreendedorismo e negócio. Como
fazer para que o artesanato não se padronize?
Isso aí é um desafio imenso, porque no momento em que se fala em mercado,
se fala em produção em escala. E aí se propicia um encontro de um artesão, ou
de um grupo de artesãos, com um comprador que pede, por exemplo, mil
produtos, enquanto o artesão só faz 20. Então se gera esse tipo de conflito.
O que a gente vem fazendo é criar sistemas de associações, cooperativas e
coletivos, para que essa pessoa que faz 20 produtos consiga agregar pessoas
da comunidade e possa trabalhar com uma quantidade um pouco maior.
Mas sempre trazendo o seu toque pessoal, porque o artesanato subentende
isso, que cada um tenha um toque pessoal. A ideia é que o mestre artesão
crie um modelo de produção coletiva, transmita o conhecimento, e consiga
entregar os produtos.

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Isso nem sempre dá certo. É bem complexo, então procuramos deixar claro
que ele não precisa disso. Ele tem a opção de aderir ou não, pode continuar
buscando seu mercado dos 20 produtos e tratar o artesanato de forma que
possa contar a história dele, narrar o processo da colheita do barro, mostrar a
tradição que está imbuída naquela produção. As pessoas, muitas vezes, veem
um prato, mas não entendem que aquilo é uma tradição secular, familiar, que
existe um momento certo de fazer, que tem toda uma história por trás daquilo.
Trabalhar o artesanato, e isso vale para a música, para o cinema e tudo mais,
é saber contar a história daquilo que está sendo apresentado. E no momento
em que se trabalha com commodity, isso fica praticamente inviável, até por-
que não tem muita história para contar. O ideal é a gente conseguir trabalhar
essa história valorizando aquele produto, com a singularidade que ele tem.

Continuando em artesanato, como trabalhar hoje com as certificações


ambientais e de patrimônio imaterial?
É bastante complexo. O artesanato depende de muita matéria natural,
sementes, barro, argila, tudo isso tem um processo de manejo para ser pro-
duzido. No momento em que a pessoa derruba todo tipo de árvore para fazer
uma viola de cocho, por exemplo, ela acaba com a árvore, acaba com a viola
de cocho, acaba com tudo. Então é um processo de entender que aquele ma-
terial que subsidia, que alimenta o artesanato, tem que ser também tratado
de uma forma consciente, e para isso existem formas de manejo e de coleta
apropriados de preservação. Chega num ponto em que as pessoas não têm
onde pegar o barro, onde achar aquela semente, porque não houve esse
processo de informação e de preparação. É uma questão de informação, de
conscientização, de processo educativo.

Quando você começa a vender cocar de índio em larga escala, você passa
a matar muito mais araras. Como fazer para ter uma produção em escala
que seja sustentável?
Em alguns casos, como o do cocar, por exemplo, o pessoal tem usado
muito a criação de animais em cativeiro, legalizado pelo Ibama. E outros
estão substituindo, até por pena de galinha mesmo. Hoje há uma produção
tradicional indígena feita com miçanga, que é comprada nas cidades. É mi-
çanga, é plástico, é industrializado, mas é artesanato indígena. A semente
pode ser substituída pela miçanga, mas a tradição do saber, aquela forma,

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aquela cultura, aqueles traços, a geometria, é preservada. É um processo
que não se pode impedir, é dinâmico. Existem várias formas de preservação,
uma é o manejo, outra a substituição de materiais, mas preservando o fazer.

E como começou o trabalho cultural?


Na área cultural, em Goiás temos uma atuação mais estruturada desde
2001. Antes eram atendimentos pontuais, um artista que chegava querendo
saber se tinha algum tipo de apoio, de patrocínio, com alguma dúvida em
relação à produção. A partir de 2001 passamos a ter um sistema mais or-
ganizado, que começou com um projeto chamado Cara Brasileira, onde se
discutiu, de uma forma sistêmica no país inteiro, a brasilidade nos negócios,
a culturalização da economia, a agregação de valores brasileiros a uma cadeia
padrão. A discussão começou nesse sentido e depois partiu para um segundo
momento, de trabalhar a economia da cultura. Esses são eixos estratégicos
onde a cultura pode trabalhar junto com a economia, agregando valor cultural
ao produto, através do design, da identificação de origem, da arte, da música,
do cinema, do teatro.

O que é empreendedorismo cultural?


O empreendendorismo cultural está muito ligado à atitude da pessoa
em transformar algo de uma forma positiva, não necessariamente pen-
sando na questão do resultado econômico, financeiro. Pode-se trabalhar
o empreendedorismo como uma questão de comportamento, de atitude,
de ação social. Empreendedor é aquela pessoa que tem atitude, que inova,
e que transforma o ambiente numa coisa diferente e positiva. Ou seja, um
professor empreendedor é aquele que inova, que faz dinâmica, que estuda e
traz materiais novos para a sala de aula. O aluno é aquele que se dedica além
daquilo que é encomendado, que busca novos elementos, que traz perguntas.
Então o empreendedorismo não está ligado só ao lado empresarial, ao lucro
financeiro, mas pode ser empreendedorismo social. Existe ainda certo mal
estar quando se trata a questão da cultura e do empreendedorismo. Algumas
pessoas ainda acham que trabalhar a cultura de uma forma empreendedora é
uma coisa que pode ser negativa de alguma forma. Mas um compositor, por
exemplo, é um empreendedor, ele está criando, transformando e materiali-
zando coisas que antes não existiam. Uma banda de rock que sai da garagem
e consegue acessar um festival, um público, é uma banda empreendedora,

230
porque ela achou um canal, um caminho para virar o negócio dela. A questão
do empreendedorismo é interessante que seja entendida como uma atitude
de transformação positiva, de comportamento, de ousadia, de criatividade e
inovação. O empreendedorismo cultural já é trazer para a cultura esse tipo de
atitude. No momento em que você tem um grupo de teatro, de circo, artesãos
que tratam a cultura de uma forma inovadora, que buscam mostrar o que eles
fazem com uma atitude, que buscam inovar e trabalhar algum elemento novo,
agregando e misturando outras coisas, já tem uma atitude empreendedora.

Como fazer um planejamento estratégico na área de cultura?


O planejamento estratégico na área da cultura não é muito diferente
do planejamento estratégico tradicional. O que difere, na verdade, são os
elementos que alimentam esse planejamento. Geralmente fazemos esses
planejamentos de forma coletiva, em grupo, com os coletivos de cultura de
uma determinada região. Fazemos um mapeamento inicial, levantamos as
questões referentes a esse território, o que ele tem de bom, quais são as difi-
culdades, e a partir disso desenvolvemos um plano de ação. As dificuldades
e os gargalos são comuns na maioria das regiões. As estatísticas no estado de
Goiás são muito parecidas com as estatísticas do Brasil inteiro, de números
de espaços, tipos de equipamentos, de políticas públicas, falta de secretarias,
conselhos etc. Geralmente se trabalha dessa forma, fazendo só uma condução,
uma facilitação no processo onde o próprio coletivo escreve o que ele já sabe.
Todo mundo já sabe qual é o problema, já tem ideias para as soluções, mas
às vezes não materializa isso num documento. O Sebrae ajuda a fazer esse
documento: chama os participantes para levantar os problemas, as soluções
possíveis, os pontos fortes, os pontos fracos, escrever tudo, ordenar, e junto
com esse documento ajuda esse coletivo a pôr em prática as soluções.

O que você pensa sobre as moedas culturais?


Eu acho fantástico. Já existem várias, como o Cubo Card, em Cuiabá, e
o Patativa Card, no Ceará. São moedas que existem no Brasil inteiro e que,
além de que propiciar a troca, possibilita o acesso aos números de determi-
nados eventos. Por exemplo, se num evento como o Festival Calango, ou o
de Cuiabá, ou no Goiânia Noise, ou na Feira da Música de Fortaleza, houve
uma circulação de 10 mil cubo cards, ou 10 mil patativas, podemos saber que
rolou ali 10 mil reais em trocas. É possível medir o “PIB” daquele evento. An-

231
tes, isso era praticamente impossível. Então, se o movimento gerado naquele
evento for feito através de uma moeda, pode-se ter acesso aos números e ver
quanto de troca o evento gerou. É óbvio que tem um desdobramento, com
essa informação, pode dialogar com qualquer instância. Pode chegar numa
prefeitura, no estado, e apresentar essa estatística. Além do valor da troca,
do valor da cooperação, do valor do trabalhar coletivo, se cria uma forma de
medir, de mensurar. Isso é muito legal e muito inédito.

Com funciona uma moeda cultural?


Talvez eu não saiba responder a sua pergunta. Existe uma série de pré-
requisitos junto ao Banco Central, mas que não são muito complexos.
Cumprindo isso, tem que criar um lastro. Por exemplo, se eu gerar 10 mil
moedas culturais, eu tenho que gerar uma lastro de 10 mil reais. Esses 10
mil reais não precisam necessariamente estar numa poupança, podem estar
alienados em instrumentos, equipamentos de estúdio, em palco, em som.
Essa é a batalha do pessoal, criar esse lastro para que a moeda possa ser
lacerada, e não só como recurso financeiro. Isso já está sendo conquistado
hoje. Existem as moedas sociais, como Palmas Card e outras, que já fazem
isso há muitos anos, que já têm isso funcionando bem, na troca de produtos
em bairros, e as moedas culturais, que estão trabalhando na música, em
outra dimensão.

E o câmbio?
O câmbio é 1 por 1. O que facilita é que você agrega. Por exemplo, no
momento em que o cara da padaria, que fornece o lanche para os mú-
sicos do festival, aceita a sua moeda em troca de pães, você começa a
gerar um comprometimento e envolvimento daquela padaria, daquele
açougue, daquele hotel, daquele restaurante, com o seu evento, com o
seu movimento, e até com os seus valores. Então passa a ser uma coisa não
só comercial, de troca e de lucro, mas também de envolvimento e de engaja-
mento numa causa, que geralmente todos esses festivais, ações e feiras têm.
É possível envolver a localidade, a comunidade, não só na questão comercial,
mas também na questão dos valores. A moeda é muito interesse nesse sentido.

Como é para o Sebrae trabalhar com inovação nessa interface entre


cultura e tecnologia?

232
Estamos aprendendo. Não é fácil, porque ensinar a vender uma calça jeans
ou um tomate é diferente de ensinar a trabalhar com arte. Na verdade, o que
existe hoje é uma série de mecanismos, ferramentas, suporte, associações,
sindicados, voltados para essa economia tradicional. E em relação a essa
economia da inovação, do conhecimento, da atenção, não importa o nome,
ainda estamos numa fase de aprendizado, de entender como trabalhar com
esse tipo de inovação. E isso vem sendo construído meio que na experiência.

Durante muito tempo, no Brasil, os grandes talentos mudavam de suas


cidades para as grandes capitais, os grandes centros de cultura, e isso,
hoje, está sendo revertido. É importante pensar o território cultural
como uma tentativa de fazer permanecer esses talentos no espaço?
É. O que a gente tenta provocar é a diversidade. Quanto mais opção e
mais diversidade se tiver dentro de um espaço territorial, mais rico ele será
e mais possibilidades de desenvolvimento ele terá. No momento em que se
tem numa cidade, num bairro, ou num território, uma diversidade maior
de escolhas, de opções de consumo, de cultura, entretenimento, o cidadão
pode não querer sair. A grande dificuldade é primeiro mapear e entender
o que existe no local. Porque isso, no interior do Brasil, é muito no quintal,
dentro da casa. São tesouros que estão guardados dentro de arcas, e que
você tem que ir lá abrir e mostrar. Outro ponto, que talvez seja um segundo
momento, é trazer de fora experiências, e fazer com que essas experiências
locais visitem outros de fora. Porque é circulando que as pessoas começam
a conhecer e abrir as possibilidades. Mantendo o máximo de diversidade
possível em um território, as pessoas que moram lá terão condições de optar
pelo que elas se identificam mais, e de se desenvolver mais. Se um jovem
não sabe que é possível fazer cinema com o celular, ele nunca vai fazer ou
se interessar. Mas no momento em que se leva uma oficina de arte móvel,
ou leva alguém para falar disso, ou mesmo leva ele para conhecer isso em
algum lugar, ele volta e às vezes em menos de um mês vira um talento.
Então com muito pouco se gera essa mudança no local. Com muito pouco
dinheiro, mas com engajamento.

E a questão da reflexão crítica? Uma coisa é fomentar a produção, outra


coisa é fomentar também a reflexão sobre essa produção, e os possíveis
diálogos e qualificações disso. Como pensar isso?

233
Isso ainda está muito longe da nossa realidade. Estou falando do meu esta-
do de Goiás. Ainda estamos num momento de tentar garantir o que já existe,
assegurar que o que existe não se perca, sem refletir muito sobre a questão
estética ou crítica. E, em paralelo, gerar esses encontros, essas trocas e essa
sabedoria no território. Talvez a gente parta para outra fase talvez daqui uns
quatro ou cinco anos, e comece a refletir em cima disso que aconteceu. Mas
hoje o que está acontecendo é um movimento muito forte de produção. Agora
tudo que está sendo feito está sendo absorvido.

Fale um pouco sobre incubação e capacitação para moda e comporta-


mento.
Bom, eu acho que a essência de tudo isso é o que eu já falei, a questão do
encontro, da troca e do acesso à informação. A gente trabalhou uma coisa
em Goiás muito interessante, que foi mapear uma iconografia do estado. No
momento em que se mapeia 120 ícones gráficos, de uma flor a um animal, a
um personagem como Cora Coralina, pode-se pegar esses elementos gráficos
e transformar, trazer esse conteúdo para dentro da moda, passar a agregar
valor a uma coisa que já é uma criação bastante interessante. E, quando se
traz esse valor, está trazendo um valor local, está agregando a uma produção
de uma indústria têxtil, uma cor do Antônio Poteiro, uma imagem de uma
cidade de Goiás. Agrega-se naquela produção um valor local, mas com uma
estética mundial, e a partir daí não se tem concorrente, porque aquele valor
só é produzido ali. Não se tem um concorrente, porque falta para ele uma das
coisas mais difíceis de ter hoje, que é a autenticidade, é o genuíno. O chinês
nunca terá Cora Coralina. Por mais que ele copie a imagem de Cora e coloque
estampado num vestido, não tem a autenticidade que tem o vestido goiano.
Trabalhar esse valor local com um elemento de autenticidade é um fator es-
tratégico que faz com que a sua produção de moda praticamente elimine os
seus concorrentes, desde que ela tenha uma estética global. É com isso que
a gente tem trabalhado a questão da moda em Goiás.

Para você existe diferença entre economia criativa e economia da cul-


tura?
Existe. A economia criativa é um conceito mais amplo do que a da cultura. A
da cultura é muito ligada à produção, à parte artística, identidade, patrimônio.
A criativa já entra mais com um viés de tecnologia, em que se pode trabalhar

234
a questão do talento, da tolerância, da tecnologia, e ampliar um pouco esse
conceito, envolvendo moda, software, TI. Uma série de outros elementos
que tradicionalmente não são de uma essência cultural, que não dependem
de elementos de identidade e cultura para serem produzidos. Eu entendo a
economia da cultura como toda essa produção em que o insumo principal
é a questão da identidade, do patrimônio, do talento. E a economia criativa
seria mais ampla, tendo dentro dela a economia da cultura.

235
236
Ana
Toni
Representante do Escritório Brasil da Fundação Ford.

Como nasceu a Fundação Ford?


A Fundação Ford nasce com o Henry Ford, que deu algumas ações da
Companhia Ford para um grupo de pessoas independentes, com uma missão
muito simples: trabalhar a paz e o bem social nacional e internacional. Na
década de 1950, esse grupo vende todas as ações da Companhia Ford e cria
um endowment, que é um fundo patrimonial com ações de outras compa-
nhias. E esse fundo vai crescendo. No final dos anos 1990, começo dos anos
2000, havia mais de US$ 15 bilhões nesse fundo. Com uma parte desse lucro,
vivemos como companhia, como organização.
Para ser uma fundação nos Estados Unidos, é preciso investir, no mínimo,
5% do patrimônio da instituição para a missão proposta. Esse montante, hoje,
é em torno de US$ 500 milhões por ano, que são divididos em 13 escritórios
em todo o mundo. São três escritórios na América Latina, quatro na África,
quatro na Ásia e dois nos Estados Unidos.

E como ela chegou ao Brasil?


A Fundação Ford está no Brasil há praticamente cinquenta anos. O pri-
meiro escritório brasileiro foi aberto em 1964. Logo que a fundação chegou,
começou a ditadura militar. Muitas pessoas estavam sendo torturadas, e a

237
fundação teve um papel importantíssimo para a história do país, mandando
pessoas – principalmente acadêmicos – para fora do Brasil. Desde o come-
ço, a Fundação Ford teve uma posição bastante progressista com relação ao
país. Ela ajudou essas pessoas a conseguirem asilo político em outros países,
muitas tiveram que migrar para os Estados Unidos, o Chile ou a França. Entre
elas, estava Fernando Henrique Cardoso e o pessoal do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento, o CEBRAP. A fundação também teve a possibilidade
de apoiar, com bolsas individuais, pessoas aqui no Brasil, porque muitos deles
foram expulsos das universidades. Elas conseguiram, com as bolsas, manter
um grupo qualificado de pessoas atuando durante aquele período. Esse foi o
papel principal da fundação até o final dos anos 1970.
No processo de democratização, a fundação mudou um pouco o seu papel
e começou a atuar junto à sociedade civil. A partir daí, o apoio da fundação
é mais institucional, para que esses grupos ligados à sociedade civil se cons-
tituam como organizações não governamentais. Começa a financiar novas
vozes do processo democrático, organizações ligadas às mulheres, aos grupos
indígenas, aos afro-brasileiros. Na época, todos estavam com o mesmo objeti-
vo, que era conquistar uma nova Constituição. Então, não havia muita dúvida
de que forma a Fundação Ford se inseria naquele momento histórico. Depois
da Constituição, da democracia ter sido estabelecida, a fundação começou a
expandir os seus horizontes, como o Brasil todo, para novos desafios.

Esses desafios se multiplicam com o desenvolvimento dos BRICs.1 Como


a Fundação Ford pensa isso?
Há cinco anos, nós propomos para a Fundação Ford, a partir do escritório
Brasil, da África do Sul e da Índia, criar um pool de dinheiro, como chamamos
dentro da fundação, para financiar a troca entre esses países. Então, a gente
financiou por quatro anos diversos projetos que tinham como objetivo exata-
mente essa troca. E foram projetos maravilhosos. A minha total crença é que
a relação sul/sul tem que ser fortalecida, tem que ser explorada, tem que ser
enriquecida. É mais fácil sabermos o que acontece na Europa, nos Estados
Unidos, do que acontece com nossos vizinhos, ou na África, ou na Ásia. Um
desses projetos foi com o Conectas de São Paulo, que é um grupo de direi-
tos humanos. Eles tentaram fazer uma análise do Supremo Tribunal desses

1 Sigla que se refere a Brasil, Rússia, Índia e China, cujas economias estão em significativa ex-
pansão.

238
países. A Índia vinha de um império, a África do Sul, do apartheid, e o Brasil,
de uma ditadura militar. E foi um estudo muito interessante acompanhar os
direitos humanos desses diversos países, dessas diversas perspectivas, e ver o
quanto é possível aprender um com o outro. Infelizmente, é uma área pouco
valorizada, mesmo dentro de uma Fundação Ford, e tivemos que acabar com
o programa. Mas não tenho a menor dúvida que explorar os BRICs é o futuro.

Embora o surgimento das novas tecnologias permita uma relação de


rede, ainda mantemos as trocas entre esses países por intermédio do
hemisfério norte. Os autores asiáticos conhecidos na América do Sul,
por exemplo, são sempre os mesmos, porque passam pelos autores que
conquistaram o mercado europeu. Não necessariamente são os mais
interessantes para nós. Como reverter isso?
É mais fácil financiar projetos que tenham um intermediário do norte do
que financiar um projeto horizontal entre o sul. Por exemplo, quando financia-
mos um projeto no Brasil para fazer pontes com a África do Sul e com a Índia,
o sistema bancário brasileiro não ajuda. É muito difícil fazer transferência de
recursos. A barreira linguística é outro desafio, mas só é um desafio porque
a gente não tem a tradição. Se houvesse já um diálogo sul-sul consolidado,
isso já teria sido superado. Então, é mais fácil para uma fundação, que está
nos Estados Unidos, dar dinheiro para Harvard e pedir para ela contratar um
brasileiro, um indiano e um sul-africano, do que fazer isso por uma univer-
sidade brasileira. Você terceiriza a intermediação. Eu sou totalmente contra
isso. Temos que investir nessas trocas horizontais. Capacidade é o que não
falta, nem material para trabalhar. O que falta é a experiência.

Como estimular, no Brasil, a criação de fundações como a Ford?


Eu sou do conselho do GIFE, a rede de Institutos, Fundações e Empre-
sas. Foi feito um levantamento e mais de 80% dos membros do GIFE são de
fundações ligadas a empresas. As empresas normalmente dão 0,5% ou 1%
do seu lucro para os seus institutos, que têm atividades relacionadas com os
objetivos da empresa. Isso é muito diferente de uma Fundação Ford, que é
hoje totalmente independente. O que acontece é que no Brasil não há nenhum
incentivo fiscal para que os nossos ricos, como era o Henry Ford nos Estados
Unidos, abram a sua própria instituição. E isso passa pela Lei de Herança. É
melhor, aqui no Brasil, pagar as taxas devidas e deixar para os seus filhos o

239
dinheiro do que deixar a eles uma instituição filantrópica ou deixar para o
país uma instituição. Até mudar a legislação brasileira para que estimule uma
filantropia mais independente, mais familiar, menos empresarial, eu duvido
que isso mude. Agora, há esforços muito importantes nessa direção. Ainda
não se teve nenhuma resposta, mas imagine o quão difícil é mudar a Lei de
Herança no Brasil.

Há um debate sobre a Lei de Direitos Autorais, que no fundo passa também


por mudanças de herança. É um começo de debate também?
Tomara que sim, mas esses debates ainda estão divorciados, porque não
são tantas famílias ricas que vivem de direitos autorais, então não houve ainda
o impacto disso na sociedade. É importante estimularmos esse debate sobre
a Lei de Herança, até porque as fundações norte-americanas ou europeias
que financiavam esse tipo de trabalho no Brasil estão diminuindo sua parti-
cipação. A Kellog e a MacCarthur já saíram do país. Isso acontece porque o
Brasil não é mais um país pobre. Então, quando se vai trabalhar no Terceiro
Mundo, uma fundação busca onde tem pobreza extrema. Esse sempre foi o
pensamento. Não é mais o caso brasileiro. Ao contrário, o Brasil está jorrando
poder lá fora. É o mesmo problema que o Japão está vivendo hoje. O Japão
também tem uma atrofia de fundações japonesas.

Qual a importância de uma fundação?


Na minha perspectiva, a importância dessas instituições é que elas têm
mais capacidade de disputar novos conhecimentos, porque tanto o governo
quanto as empresas têm tendência a reproduzir desigualdade. Quando en-
tra uma organização independente, ela tem a capacidade de com pequenos
investimentos financiar novos conhecimentos, novas áreas de trabalho. Ela
pode arriscar mais. Por exemplo, a Fundação Ford trabalha com a questão
racial no Brasil há mais de trinta anos. Só agora, nos últimos cinco, dez anos,
a questão racial é um grande tema brasileiro.

Vamos passar para outro ponto. Conte um pouco dos projetos que a Ford
desenvolve hoje.
Na Ford, hoje, trabalhamos com cinco áreas de atuação. Uma é a do fortale-
cimento da justiça, do monitoramento da justiça, dos direitos humanos, que é
uma área forte, tem toda uma infraestrutura de organizações de direitos huma-

240
nos. A segunda é a dos povos tradicionais e da questão da terra, na Amazônia, e
aí tem novos conhecimentos de grupos indígenas, ribeirinhos – e posso contar
um pouco de um trabalho muito bonito nessa área. A terceira é a da democrati-
zação da comunicação, do acesso à comunicação, do direito à comunicação. A
quarta é voltada para a questão da discriminação e das relações étnicas e raciais.
E a quinta área, na qual começamos a trabalhar um pouco mais, é a de ensino
superior. Sempre trabalhamos, sempre financiamos universidades. Cinquenta
por cento do nosso recurso ainda vai para a academia, para as novas pesquisas,
mas agora estamos com o trabalho de olhar o sistema acadêmico brasileiro e
saber o que precisa ser mudado para que novos conhecimentos possam florir
dentro de um sistema acadêmico tão elitizado, na nossa sociedade. Então, essas
são as cinco áreas com as quais trabalhamos.

Conte um pouco do projeto com os povos tradicionais da Amazônia, de


que você falou aqui.
É um projeto muito legal, que consiste no mapeamento social de novos
povos, chamados Novos Povos Tradicionais. Há bilhões de povos tradicionais
na Amazônia, que nunca tiveram voz. Eles sempre existiram, mas nunca fo-
ram ouvidos. Através de um projeto com a Universidade da Amazônia, é feito
um mapeamento social dessas novas vozes. Estão tentando mapear quais as
comunidades que se veem e que se identificam como um grupo étnico, ou
um grupo tradicional. Sejam os quilombolas, sejam os ribeirinhos, sejam as
mulheres das castanhas, dando voz a esses grupos e tentando entender um
pouco as suas demandas, não só culturais e sociais, mas principalmente em
relação à demanda de terra e acesso a recursos naturais. O Alfredo Wagner,
que leva esse projeto com o Aurélio Vianna, que é da Fundação Ford, ma-
peou milhões de novos grupos tradicionais, que têm suas culturas, que têm
as suas identidades e que são ignorados pelo poder público. Absolutamente
ignorados. A ideia desse projeto – é um projeto muito grande – é dar voz à
diversidade e entender que as demandas são muito diferenciadas. Por isso,
a política pública que se relacione com elas tem que ter um olhar focado na
diversidade, principalmente em uma região como a Amazônia. É um projeto
pelo qual temos muito carinho.

Estamos falando sobre cultura e Fundação Ford, e, nesse momento,você


está falando de comunicação. A questão da cultura indígena, ou dos

241
povos da floresta, não só está se fortalecendo como uma voz própria,
como começou novamente a ser absorvida de uma forma original e viva
pelas manifestações culturais; pelo teatro paulista, pelo cinema mineiro,
pela literatura carioca. Quer dizer, você tem um diálogo efervescente,
que nasce disso aí. Aí entra o ponto de cultura também: como fazer
para fomentar esse diálogo com a Fundação? Como fomentar o diálogo
cultural?
Não financiamos cultura indígena, especificamente. Estamos tentando
financiar o conhecimento indígena e a sua aplicação nas diversas áreas de
conhecimento. Quando pensamos no indígena, pensamos no indígena que
vai proteger a floresta, ou naquele ser. Temos um trabalho com o indígena.
Tem o índio que quer ser físico, o que quer ser advogado, e, ao conseguir
formar-se, ele leva a sua cultura para dentro da física e da advocacia. Ele não
é de maneira alguma aculturado à nossa cultura; não é essa proposta, mas
nem é aquela outra proposta, a de que o indígena só pode morar na aldeia. É
preciso saber, dos indígenas, exatamente o que eles querem.
Hoje em dia, há uma demanda muito grande da comunidade indígena
de se capacitar para outras áreas. Estamos trabalhando nessa outra área, de
que eu estava falando, na área de ensino superior, pensando nos indígenas
que querem ir para a faculdade, ter acessos a outros conhecimentos, misturar
com os seus próprios conhecimentos. Isso está trazendo uma legitimidade
para pensar o indígena, não só como aquele que observamos e pelo qual temos
curiosidade, mas como aquele com quem podemos aprender. É um processo
longo, e eles são muito poucos no Brasil. São 0,4% da população brasileira, mas
o conhecimento que eles têm é imenso. Como trazer isso para a nossa cultura do
dia a dia, e não só para o apêndice do que vemos? Acho que ainda é um desafio.

Como trazê-los sem precisar de intermediários? Como trazê-los para


que eles próprios sejam os fomentadores das pesquisas?
Esse tem sido nosso maior esforço, especificamente com os grupos in-
dígenas. Tentamos de todos os jeitos não financiar o intermediário, e não
financiamos. Financiamos, por exemplo, o Instituto Sócio-ambiental, mas
para trabalhar com cartografia, não só para trabalhar com o indígena. Esta-
mos financiando, por exemplo, o Centro Indígena de Estudos e Pesquisas,
o CINEP, que é uma nova organização de ensino superior dos acadêmicos
indígenas. Eu tenho um grupo de advogados indígenas, que se reúnem e

242
se capacitam em conjunto. Nós financiamos diretamente essa associação
dos advogados indígenas com o propósito de fortalecer as instituições in-
dígenas. Eu não tenho nada contra o intermediário, acho que todos ali têm
boa vontade, mas chegou o momento de termos a voz indígena. Ela sempre
teve importância, mas agora mais do que nunca ela precisa ser ouvida com
mais clareza e diretamente; ela não precisa de intermediários. Ela já é forte
o suficiente para ser ouvida por todos nós. E é a voz de pessoas extrema-
mente qualificadas.
Acabei de vir do Mato Grosso. Um menino de lá, que está fazendo direito,
mora na aldeia, e sua mãe resolveu ser empregada doméstica em Campo
Grande para que ele pudesse continuar seus estudos; essa história está inse-
rida em um projeto que nós financiamos da universidade e que consiste em
dar apoio acadêmico aos indígenas, que, logicamente, têm mais dificuldades.
Para eles, é como uma segunda língua; e eles têm algumas outras dificuldades,
pois não tiveram acesso a muita literatura ou à língua inglesa. Então, a gente
oferece, para esses indígenas, um tipo de reforço dentro da universidade.
Aquele menino do Mato Grosso de que eu falava é muito capaz. Ele tem um
professor de direito, que é filho do governador, e, na primeira aula, o professor
falou: “Eu não vou dar esse capítulo sobre direito indígena, porque eu acho
irrelevante, a gente não vai trabalhar esse capítulo em classe.” Aí o menino
respondeu: “Por favor, eu sou indígena, eu gostaria muito de ter essa aula.”
O professor insistiu: “Isso é uma bobagem. Eu me recuso a dar esta aula.” O
professor sempre tratou o menino muito mal dentro de sala de aula, mas o
menino é muito capacitado e conseguiu um estágio dentro do Tribunal de
Contas do Estado. Por acaso, ele pegou uma causa na qual o professor era o
advogado. O professor foi conversar com o juiz da vara, do qual o indígena era
o assessor. O advogado tinha perdido algum prazo, tentou insistir para o juiz
deixar passar, mas o menino respondeu assim: “Infelizmente, não.” Então ele
vai ganhando uma autoestima. O problema de terra em Mato Grosso é imenso.
Como aquele professor e advogado é de uma família de donos de terra, ele
se recusa a ensinar direito indígena em sala de aula, mas essas coisas estão
mudando mesmo que não no passo em que a gente queria que mudassem.
Eu acho que a gente não pode colocar os indígenas só naquele espaço da
aldeia; eles querem ser físicos, eles querem ser economistas, eles querem ser
advogados, e podem, pois são muito competentes. E isso tem que entrar no
nosso dia a dia, sem estranhamento.

243
Vocês financiam pensamento e inovação; pensamento e inovação dão re-
sultados, e vocês têm que lidar com isso. Como vocês pensam a construção
de agendas políticas sociais futuras dentro da Ford?
É fundamental que a gente não tenha uma agenda política. A gente tem,
por assim dizer, o pensamento de que dar qualificação para um determinado
grupo social, sejam os afro-brasileiros, sejam os ribeirinhos, sejam os indí-
genas, é permitir que ele possua suas próprias vozes qualificadas. Isso vale
não só para esses grupos – vale também para as mulheres, logicamente. A
partir do momento em que esses grupos sociais têm uma nova capacitação,
eles têm uma nova voz.

Os projetos chegam para vocês e vocês os avaliam, é isso?


A fundação já está aqui há cinquenta anos, então as pessoas entendem um
pouco o que a gente já faz e o que a gente não faz. Então, há uma tendência
para a concretização de parcerias. Muitos projetos chegam até nós, enquanto
a gente também busca muitos atores. Normalmente, quando começamos
uma parceria, a gente financia por dez anos; alguns grupos a gente financia
por vinte anos; e tem muita gente que nos recrimina: “Puxa! Vinte anos vo-
cês estão lá subsidiando a fundação x, y ou z?” Sim, vinte anos. O governo
financia alguns setores econômicos há cinquenta anos. A gente financia
alguns projetos por muitos anos e com o maior prazer. Outros não precisam
de um financiamento de longa duração, pois criam as suas autonomias. De
todo modo, os projetos chegam e, normalmente, sofrem um direcionamen-
to. Por exemplo, na área da comunicação: quando a gente começou, eu não
tinha a menor ideia de que ia ter um COFECOM e não teria nenhum COFE-
COM em 2009, mas a gente tinha certeza, desde o início, de que era preciso
ter uma articulação, uma discussão mais qualificada com outras vozes na
área de políticas públicas e de comunicação. Essa era a única certeza que a
gente tinha. Então, a gente precisava diversificar os atores nessa discussão
e ajudá-los a se qualificar para uma discussão mais qualificada. Foi o que a
gente fez, apoiando diversos centros acadêmicos que já estudavam o tema,
mas não tinham tamanho suficiente para ser ouvidos. Algumas organizações
não governamentais, como a INTERVOZES, a RITS ou a FNDC, já tinham voz
própria, mas não tinham a estatura e a qualificação que talvez quisessem. Aí
nossa intenção era ajudar essas organizações a participar do debate público
de uma outra maneira, em um outro nível. Não existe uma fórmula mágica.

244
Eu acho que o fundamental é acreditar nos atores com os quais você faz as
parcerias e aprender com eles, porque a gente aprende o tempo inteiro. São
parcerias de visão.

Uma coisa é a pesquisa e a construção do saber, isto é, a inovação a partir


dessa pesquisa. Outra é a divulgação da pesquisa e o diálogo do saber
com a sociedade, o que ainda é muito falho no Brasil. Como fomentar
isso? Quais são as políticas que você encontra como caminhos para al-
cançar isso?
Como eu falei, a gente financia mais ou menos 50% na academia e 50% na
sociedade civil. Então, a gente valoriza ambos, tanto a formação de conhe-
cimento quanto a ação social. Agora, nem sempre o diálogo entre esses dois
atores é fácil, mas a gente percebe que a academia brasileira está se abrindo
mais e mais para um trabalho de pesquisa aplicada, como alguns chamam,
numa relação mais intrínseca com a sociedade civil – principalmente nos
campos em que a gente trabalha. Por exemplo, no âmbito das relações raciais:
antes, os grandes acadêmicos eram antropólogos que estavam lá em cima
enquanto o movimento negro estava aqui embaixo. Hoje em dia, a gente
financia os acadêmicos afro-brasileiros, que são ativistas também. Eles pró-
prios fazem essa ligação da academia com a ação social. Temos, por exemplo,
a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) – nós a financiamos.
O mesmo se aplica aos indígenas. Eu acho que é necessário cada vez mais
financiar determinados grupos, fortalecendo suas vozes também no âmbito
acadêmico, até porque eles são muito excluídos dentro da academia.

Quanto à questão de fazer esse saber ser “publicizado” para além da


academia, isto é, fazer com que ele não se torne apenas um relatório, mas
algo, como uma página na internet, uma revista ou um livro, que permita
à sociedade poder dar alguma resposta?
Com certeza, qualquer projeto que a gente financie enfrenta essa questão,
principalmente os acadêmicos. Normalmente, os projetos pretendem realizar
uma pesquisa. Então, a gente estimula que o banco de dados que eles estão
coletando deverá ser aberto para outros pesquisadores. Como geralmente o
banco é muito rico, o acadêmico quer segurá-lo para si próprio. Isso a gente
conversa. Nós não falamos assim: “Não vou financiar se não for um banco
de dados aberto.” Mas a gente assegura, de alguma maneira, que o banco de

245
dados seja aberto. Ao mesmo tempo, sempre estimulamos a organização de
seminários ou a publicação da pesquisa. Muita gente agora está fazendo pu-
blicação de livros on-line, e muitos dos nossos projetos envolvem publicações
desse tipo. Outros envolvem a produção de vídeos.
A academia brasileira estava muito baseada em discutir ideologias, em
discutir o certo e o errado, e, assim, possuía poucos números que a mídia
pudesse utilizar para que ficasse um pouco mais clara essa comunicação. Isso
também está mudando. A maioria das pesquisas que a gente financia hoje tem
como componente trazer dados reais e números mais palpáveis. Isso também
tem facilitado muito. O surgimento dessas pesquisas mais quantitativas tem
facilitado a habilidade de outros grupos trabalharem com esses dados.

Na questão da informação, a cultura digital é uma revolução?


Uma revolução, sim, porque proporciona a possibilidade não apenas
de uma disseminação muito maior do conhecimento de um determinado
material, mas também a ampliação da utilização de dados. Por exemplo, a
gente financia diversos projetos, alguns relacionados a orçamento público,
outros à corrupção, isto é, projetos que precisam dos dados que o governo
possui para que estes sejam recolhidos e ligados a outros, e isso se dá a partir
da internet. Por exemplo, no Transparência Brasil, pega-se os dados do Su-
premo Tribunal Eleitoral, onde há tudo sobre as eleições. Aqueles dados são
relidos e reorganizados de modo a facilitar a leitura na internet. É um projeto
absolutamente digital: ele pega dados pelo sistema, reproduz esses dados,
relendo-os e facilitando a leitura, reunindo-os com aquilo que sai todo dia
no jornal. Eles têm, por exemplo, um boletim em que reproduzem todas as
denúncias de corrupção que são publicadas no Brasil, sobre qualquer político.
Nossos jornalistas amam.

E quanto às universidades: que lugar elas ocupam hoje? Elas estão pró-
ximas ou não do debate contemporâneo?
Eu acho que as universidades realmente devem se repensar. A universi-
dade brasileira é uma contradição imensa. Se a gente olha a porcentagem de
pessoas de 17 a 25 anos que estão na universidade no Brasil, são só 15% dessa
faixa. Num país como a Índia, já há 32%. Um país como a África do Sul, 24%.
Não somente quem vai para as universidades brasileiras ainda é a minoria
da minoria, mas, dentro dessa minoria da minoria, é uma classe específica,

246
um grupo específico de pessoas. Enquanto isso, há no Brasil universidades
excelentes, de qualidade internacional, no mesmo nível de universidades
europeias e americanas. Eu acho que a universidade brasileira – e, de novo, eu
acho que esse governo deu alguns passos para isso – tem que ser repensada.
Primeiro, ela tem que se abrir a novos grupos e a novos conhecimentos. E
acho que o PROUNI, e a discussão das cotas nas universidades, com a deci-
são destas de se abrirem à entrada de indígenas, deu um novo ar dentro dos
campos universitários, mas esse ar ainda não é o suficiente para fazer com
que as universidades – principalmente as universidades de elite – se repen-
sem, porque elas têm uma qualidade muito boa, realmente muito boa, dentro
de um projeto elitista muito forte. Então, é como se, ao deixar novos atores
entrarem, a qualidade fosse cair. Eu acredito no oposto: eu acho que se você
deixa novos atores entrarem, essa qualidade torna-se ainda mais rica; dife-
renciada, certamente, mas ainda mais rica. A maneira de financiamento das
universidades é um grande tema; o quanto é sustentável ou não é, o acesso
a ela, a questão do vestibular, onde elas estão localizadas etc. Universidades
rurais, são pouquíssimas as que a gente ainda tem, apesar de previstas por
um projeto do governo. Então, a gente está caminhando, mas acredito que a
universidade brasileira está em xeque-mate: deve se repensar para se colocar
em um novo patamar no mundo. Se quiser ter esse lugar, terá que trabalhar
muito. E algumas estão trabalhando. O que se salva, no Brasil, é a autonomia
das universidades, o que dá espaço para algumas delas se repensarem e se
refazerem, mesmo que outras ainda se mantenham fechadas e não queiram
se abrir.

247
248
Gilberto
Freyre
Neto
Coordenador geral de projetos da Fundação Gilberto Freyre.

O que é a Fundação Gilberto Freyre?


A Fundação é uma instituição criada pela família de Gilberto Freyre para
gerenciar seu patrimônio material e imaterial e promover estudos e interpre-
tações da vida brasileira, com o intuito de fazer com que as novas gerações
pensem o Brasil e criem, também, novas interpretações, novas análises, do
patrimônio do autor ou do seu universo de pesquisa. A fundação tem trabalha-
do, não sem muita dificuldade, dentro de uma perspectiva muito positiva de
continuidade dos trabalhos de Gilberto. Muitos pesquisadores que analisam
cenários globais atuais vão à instituição em busca de documentos que foram
gerados por Gilberto ou que fizeram parte da sua base de pesquisa dos anos
1930, 1940, 1950 do século passado, e que hoje, centrados no Brasil, servem
de referência para o mundo.

Como lidar, de forma responsável, com a disponibilização dos documen-


tos, a abertura da obra e, ao mesmo tempo, com a preservação e curadoria
dessa obra?
A chave para fazer com que a obra seja lida, interpretada e analisada é dar
liberdade a quem pesquisa, quem gera ou quem analisa esse material que foi
gerado. Essa é uma âncora-chave da Fundação: nós não endeusamos o Gilber-

249
to Freyre, não tentamos protegê-lo. Nosso principal objetivo é fazer com que
seus acervos pessoal e intelectual – e entendemos por pessoal todo o acervo de
pesquisa que foi utilizado por ele para gerar suas obras, ou seja, os documentos
que são primários para sua pesquisa, como fotografias, correspondências,
artigos e periódicos científicos dos mais diversos lugares do mundo – sejam
difundidos e analisados. Então, a casa se mantém numa neutralidade enorme
em relação às críticas, sejam positivas ou não, à obra de Gilberto, e tenta, ao
máximo, ofertar seu acervo aos pesquisadores. É com muita dificuldade que
mantemos nosso acervo, porque fizemos questão que ele permanecesse em
Pernambuco. É um acervo que podia estar melhor acondicionado e sendo
melhor utilizado, se estivesse em universidades estrangeiras ou em centros de
pesquisa que dessem a ele uma melhor condição de divulgação. Mas optamos
por seguir alguns princípios que são bem gilbertianos. Gilberto fixou-se em
Pernambuco, era filho de Pernambuco, e jamais saiu do estado. Então, para
a gente, também era uma questão de honra permanecer em Pernambuco e
fazer de lá a base desse acervo.
É muito curioso receber estrangeiros que estudam a obra de Gilberto
Freyre, ou se utilizam das suas fontes de pesquisa, como ferramenta para
interpretar e analisar a Europa, sob a perspectiva da miscigenação cultural.
Esses estudos estão sendo feitos a partir de uma visão gilbertiana. As pessoas
estão vindo ao Brasil e à Fundação, analisando alguns cenários e tentando
identificar as origens do pensamento de Gilberto Freyre lá fora. Tivemos, nos
últimos cinco anos, por exemplo, dois grandes livros publicados pelo casal
Burke, da Universidade de Cambridge, a Maria Lucia Pallares-Burke, de São
Paulo, e o Peter Burke, que é um historiador inglês dos mais renomados. Os
dois livros tentam interpretar o método de Gilberto Freyre, e boa parte da
pesquisa foi realizada na Fundação Gilberto Freyre. Inclusive o Peter Burke
chegou a dizer que teve acesso, na Fundação, a um acervo que não consegue,
de forma centralizada, em nenhuma universidade europeia. E ele tem boa
parte da rede das universidades europeias à sua disposição. Então, nós temos
essa virtude.

Vocês estão trabalhando agora com a disponibilização digital de alguns


textos. Como é esse trabalho?
A Fundação Gilberto Freyre entrou na internet em 1996, somos uma das
primeiras instituições brasileiras a acreditar na internet como ferramenta de

250
divulgação. Mas para disponibilizar o acervo, eu preciso de recursos, porque
não tenho como digitalizar toda a biblioteca, com seus 42 mil volumes. En-
tão, o pesquisador que está distante, vai uma vez à Fundação, analisa todos
os aspectos inerentes à sua pesquisa, identifica o que quer, a Fundação faz
a digitalização e disponibiliza esse material na internet, para que ele possa,
à distância, ter relação com nossa base de indexação. Trabalhamos com
demandas específicas e passamos a alimentar essas bases de dados a partir
dessas demandas.

Como é possível preservar esse patrimônio?


A Fundação nasce dentro da casa de Gilberto Freyre, que é tombada pelo
Patrimônio Histórico, a nível federal. Ela está localizada dentro de uma área
fechada por Mata Atlântica, na região noroeste na cidade de Recife, com
umidade muitas vezes perto de 100% e que tem, dentro da sua área de pre-
servação, um acervo gigantesco. Então usamos parte da expertise na gestão
do patrimônio, não só do nosso, mas na gestão de patrimônio de terceiros,
e o equilíbrio financeiro, para fazer com que essa casa funcione. Usamos
essa discussão para trabalharmos com as parcerias adequadas, dentro, por
exemplo, das estruturas de patrimônio histórico do estado de Pernambuco.
As cidades de Recife, Olinda e Jaboatão, são das mais antigas do Brasil, com
mais de 450 anos de vida e, portanto, têm estruturas de patrimônio histórico
muito antigas. Então, o Instituto do Patrimônio Histórico estadual, ou federal,
muitas vezes injeta grandes recursos para proteger, preservar e restaurar esse
acervo, mas não consegue ver o ciclo econômico desse artefato, desse bem
cultural tombado. Não consegue fazer girar economicamente e promover a
sua manutenção, ou diminuir o custo da preservação, a partir do uso do es-
paço. Nesse sentido, a Fundação Gilberto Freyre tenta usar como ferramenta
a visitação pública e turística, para criar um círculo econômico virtuoso e
diminuir o impacto da ingestão de recurso público ou privado usados para
restaurar esse bem tombado. Do ponto de vista material, tentamos diminuir
o custo de restauração do patrimônio e do ponto de vista imaterial, atrelamos
a visitação turística a toda uma gama de produtos e serviços relacionados ao
entretenimento, à cultura, alimentação, moda, música, aos costumes e que
podem ser utilizados dentro dessa área de patrimônio histórico. Ao tornar
essas duas coisas atraentes, fazemos com que o turista não se interesse apenas
pelo sol e pela praia para visitar o Recife, que tem mais de 450 anos de idade.

251
Como vocês analisam e trabalham toda a polêmica em torno da obra de
Gilberto Freyre?
A casa se mantém muito neutra em relação a isso, não entramos muito na
polêmica. Na verdade, a polêmica faz parte da vida de Gilberto, que escrevia
o que achava que tinha que escrever. E se ele não está mais aqui pra se defen-
der, a Fundação também não está aqui pra defendê-lo. As perspectivas que
Gilberto Freyre tinha em relação à sua obra, ele ou escreveu, ou se posicionou
nas entrevistas que deu. Acho que não existe, desde que a Fundação Gilberto
Freyre foi criada, nenhum tipo de manifestação da casa em relação a nenhum
tipo de crítica, nem positiva, nem negativa, da obra. O que nós fazemos é
estimular os pesquisadores a analisar, se posicionar e ter uma opinião sobre
a obra de Gilberto Freyre. Trabalhar a obra do Gilberto é sempre trabalhar
o homem, e talvez esse seja o grande problema, ou a grande deficiência de
alguns críticos, que fazem a crítica à obra sem conhecer o homem, ou sem
conhecer a profundidade que levou o homem a escrever determinado texto.
O Gilberto viveu muito, teve muitos críticos, ele tem obras com mais de 70
anos de publicação. Mas muitas críticas são escritas sem que se analise críticas
anteriores. Então, nós estimulamos a releitura, a reutilização, as pesquisas que
estejam ligadas à modernização dos conceitos. O Casa Grande e Senzala não
é o livro que mais reflete a civilização brasileira hoje, mas ele tem o seu valor
do ponto de vista histórico e sócioantropológico e queremos que esse valor
seja transferido para os dias de hoje. Esse é o papel que a Fundação Gilberto
Freyre desempenha. Ela faz com que as pessoas não tenham essa miopia, não
interpretem o livro apenas a partir do próprio livro. Nesse sentido, fazemos
junto com a Editora Global, que é responsável pela linha editorial da Fundação
Gilberto Freyre, ou por uma das linhas editoriais da Fundação Gilberto Freyre,
um trabalho de atualização, colocando novos índices, novas ferramentas de
pesquisa e cadernos de imagens, que não necessariamente faziam parte do
livro original, mas que tentam pontuar o momento histórico em que aquele
livro foi publicado. Tentamos colocar o leitor na perspectiva do autor e isso
é uma coisa muito interessante de ser feita.

A Fundação faz alguma restrição ao uso da obra de Gilberto Freyre?


Não, nunca houve, por parte da Fundação, um pronunciamento sobre
limitar algum trabalho sobre o Gilberto. Nossa posição é de que a obra deve
ser interpretada de uma forma livre, desde que você assine embaixo e deixe

252
claro que a interpretação é sua. Além do respeito aos direitos autorais, que
algumas vezes são nossos e outras são de terceiros. Nossa relação com a obra
se dá muito mais do ponto de vista do acervo em si, do que nas análises e opi-
niões que podem surgir a partir do acervo. A família de Gilberto Freyre criou
a Fundação na perspectiva de gerenciar seu patrimônio pessoal e intelectual,
mas, muitas vezes, existem questões que passam pela relação familiar. Por
exemplo, nós temos correspondências de amor entre Gilberto e Madalena
Freyre e o filho deles resolveu não publicar. A Fundação é, certamente, pro-
prietária desse acervo do ponto de vista legal, mas nesse caso, respeitou-se
a condição de filho.

Fale um pouco sobre o fim da vida de Gilberto Freyre e o começo da


Fundação.
Quando ele faleceu, no dia 18 de julho, aniversário de Madalena, sua
esposa, eu tinha quase 14 anos. A Fundação Gilberto Freyre foi formalizada
um pouco antes, em abril, quando ele já tinha sofrido um AVC e não falava
mais. A formalização, na verdade, foi uma surpresa da família e amigos para
ele, que não sabia o que estava acontecendo até ter a casa invadida por uma
série de pessoas, com documentos para ele assinar. Foi uma surpresa muito
positiva, porque ele viu a consolidação do seu acervo. No final da sua vida, ele
tinha a consciência de que tinha um acervo de conteúdos importantíssimos,
então ele demonstrava uma preocupação em relação a esse acervo, como isso
seria preservado quando ele se fosse. A família abriu mão de qualquer tipo
de herança e tudo virou acervo da Fundação Gilberto Freyre. Na casa que ele
morou, nada foi alterado para se transformar em museu. Lá você tem a noção
exata de como era o espaço do Gilberto.

Quais são os recursos financeiros que geram a Fundação?


Direitos autorais das obras de Gilberto Freyre. Essa ainda é a grande fonte
de recursos, a principal. Mas temos conseguido diminuir a representatividade
dela pelo aumento da base de capitação de recurso. No início, era quase 80%
dos recursos que a casa tinha, hoje, acho que representa uns 30%, 40% do
recurso usado para gerenciar o acervo. Utilizamos a lei de incentivo à cultura,
e todas as estruturas de política de financiamento cultural que existem, tanto
no estado, quanto no governo federal. A casa, hoje, entra num circuito de cap-
tação de recursos que está relacionada a atividades que são gilbertianas, em

253
conceito, mas que não estão relacionadas ao intramuros. Ou seja, não estão
relacionadas ao gerenciamento do seu próprio acervo, mas à transferência
da base de conhecimento que existe, para estruturas que estão fora da casa
e na gastronomia, isso é muito claro pra gente. Hoje, no Recife, nós temos
uma relação muito forte com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes
(ABRASEL), porque começamos a pontuar o alimento não apenas como o que
é produzido e entregue para você saciar uma necessidade, mas como uma
ferramenta de congraçamento, o que é um conceito muito gilbertiano. Então,
vamos atrás das origens daquele hábito de consumo, da produção daquele
alimento, de como ele foi forjado, a partir de que influências, de onde veio
o tempero. Começamos a fortalecer essa base de conhecimento a partir da
perspectiva gilbertiana. Essa é a forma que a gente tem para tirar a obra de
dentro do nosso acervo e transferir para as gerações, fazendo com que as
pessoas absorvam esses valores a partir da nossa base de conhecimento. Ou
seja, não precisa ler Gilberto Freyre, basta viver Gilberto Freyre.

Para terminar, fale um pouco sobre o Seminário de Tropicologia.


A formação de Gilberto Freyre é americana, ele foi alfabetizado em inglês,
estudou no Colégio Americano Batista e, com 15 anos, foi estudar na Univer-
sidade do Texas. Na época, o Texas ainda vivia o preconceito racial, com a Klu
Klux Klan e grupos que fortaleciam as discussões em cima da pureza racial,
e isso mexeu muito com Gilberto. Por influência do colégio, ele desenvolveu
algumas ações dentro da doutrina batista e colocou na cabeça que queria
ser pastor. Inclusive, foi para o Texas na condição de desenvolver isso. Mas
quando se deparou com aquela situação, rompeu com essa ideia e passou a ter
um posicionamento mais neutro em relação à religião. Depois do Texas, por
orientação dos próprios professores, o Gilberto foi para Nova York continuar
suas pesquisas e tentar o mestrado na Universidade de Columbia. Talvez Nova
York tenha sido o grande espaço de pensamento, de formação do caráter de
Gilberto Freyre. Naquela época, no fim da Primeira Guerra Mundial, muitos
bons pensadores europeus foram se refugiar na cidade e ela virou o grande
espaço de pensamento e de criação desses pesquisadores, além de já ser
uma cidade cosmopolita há muito tempo. Ele pegou a nata dos professores
europeus e americanos da época, grandes economistas, cientistas sociais.
A ideia do Seminário de Tropicologia vem da Universidade de Columbia,
do Frank Tannenbaum, que é um dos grandes pensadores da Universidade.

254
O Tannenbaum criou um centro de estudos dentro de uma perspectiva de
análise multicultural, com grandes pesquisadores estudando características
de determinados povos que não estavam dentro da base de estudos originária
daquela universidade. Gilberto participou muito dessas discussões, sentado
na mesa com atrizes, diretores de cinema, políticos, engenheiros, físicos,
pessoas das mais diversas áreas de conhecimento, que entrevistavam e dis-
cutiam com pessoas que tinham uma base de conhecimento que precisava
ser sociabilizada. Havia um físico falando sobre a fissão nuclear e um teatró-
logo que não entendia absolutamente nada disso, mas queria saber como o
assunto poderia se relacionar com o teatro. A discussão se dava num nível em
que todos podiam compartilhar e o Gilberto se interessou pela forma como
elas eram criadas, fez alguns ajustes no modelo de Tannenbaum e aplicou no
Brasil. Esse modelo funcionou, em Recife, durante mais de 40 anos. Não era
um seminário aberto à discussão pública, era uma ferramenta extremamente
controlada. Havia um palestrante, um debatedor, e o Gilberto mediava esse
processo. E tinham 12 seminaristas, que faziam, provocados pelo debatedor,
discussões cruzadas em relação ao tema, dentro da base de conhecimento
de cada um. Isso gerou um acervo riquíssimo de conteúdo sobre o Brasil. E
hoje todo mundo quer saber o que é o Brasil, o país está na crista da onda,
no foco da mídia internacional, e temos um acervo de 40 anos que pode ser
colocado à disposição das grandes universidades para se trabalhar, para se
discutir. O Seminário de Tropicologia durante muito tempo funcionou na
Fundação Joaquim Nabuco, então existem as revistas do Seminário, mas que
circulam num ambiente muito pequeno de consumo, porque a tiragem é mui-
to curta. É um material de belíssima coletânea de conhecimento, que marca
períodos do Brasil muito interessantes, com discussões fantásticas mediadas
por Gilberto Freyre, como a do General do 4° Exército com o presidente das
ligas camponesas, por exemplo. As pessoas não conseguiam imaginar como
é que o caçador e o caçado estariam juntos numa mesma mesa, mediada por
alguém com livre trânsito, em uma discussão, que, na época, era inconcebível.
E Gilberto conseguia se posicionar no meio, controlar e ordenar esse processo
de uma forma muito mágica.

255
256
Carlos
Dowling
Diretor da Associação Brasileira de Documentaristas - seção Paraíba.

O que é o Ponto de Cultura Urbe Audiovisual?


O Urbe Audiovisual surgiu no primeiro edital do programa Cultura Viva,
do Ministério da Cultura. Foi um momento muito importante para poder
estruturar uma sustentação das ações associativas, que, no caso, a seção
da Paraíba da Associação Brasileira de Documentário já vinha realizando
há mais de duas décadas. A ABD é uma das organizações associativas do
audiovisual de maior representatividade no Brasil, porque tem uma capi-
laridade nos 26 estados, além do Distrito Federal, e está há mais de trinta
anos fazendo esse trabalho de articulação do audiovisual e das políticas
culturais. O Ponto de Cultura Urbe Audiovisual foi um mecanismo muito
importante para conseguir estruturar essas ações, que já vinham sendo
realizadas de forma mais dispersa, sem uma estrutura de organização. A
partir de 2005, tínhamos então uma perspectiva de planejamento, que no
caso era bienal, e estaríamos investindo recursos nas três linhas principais
de atuação da associação – e que viria a ser do Ponto de Cultura –, que eram
a formação do audiovisual, a difusão do audiovisual e o auxílio à produção
independente. Isso é importante porque a associação é formada de produ-
tores independentes de audiovisual. Então, fazer esse diálogo e essa relação
com a sociedade civil, e fazer planos e modelos de políticas públicas cultu-

257
rais, especificamente para o audiovisual, foram iniciativas governamentais
muito importantes.
Começamos o trabalho em 2005 e 2006, mas tivemos problemas, e até
agora, em 2010, estamos esperando a última parcela do que seria os dois
anos de trabalho, que deviam ter acabado em 2007. Formamos uma parte
do grupo que fez o primeiro convênio dos Pontos de Cultura, que têm uma
serie de problemas de gestão. É interessante ter essa consciência. A figura do
boi de piranha não é muito benevolente, mas é fundamental ter a clareza de
que são modelos novos, que abrem perspectivas importantes de inovações na
área da gestão. Por outro lado, os procedimentos e as soluções de uma série
de problemas não estão muito claros, não estão estabelecidos. É um processo
em construção. Quer dizer, o programa Cultura Viva tem um ótimo conceito,
mas, na prática, tem problemas de aplicação.

Conte um pouco da experiência de vocês. O que essa experiência trouxe


para perceber os problemas na prática?
No nosso caso específico, na Paraíba, já tínhamos alguma experiência
com o poder público, com o financiamento de projetos através das leis de
incentivo, através da própria lei municipal ou dos prêmios federais, ou seja,
tínhamos uma realização de projetos com prestação de contas. Ainda assim,
tivemos sérias dificuldades em estabelecer um canal de comunicação efetivo
com o Ministério da Cultura e com os gestores do projeto. Era uma equipe
notavelmente pequena, diminuta em relação à demanda de trabalho. Não
tenho os dados precisos, mas eram centenas de pontos de cultura, atualmente
são milhares, e o grupo de gestão desses projetos era em torno de 15 pessoas.
Vários deles eram funcionários terceirizados, que acabavam tendo uma série
de problemas no encaminhamento desses recursos.
Como eu falei, no caso do projeto do Ponto de Cultura Urbe Audiovisual,
estamos esperando a terceira parcela, porque estão analisando as presta-
ções de contas, que nós atrasamos para mandar. Mas eles também não têm
uma equipe que responde em tempo hábil, nessa estrutura centralizada em
Brasília. O conceito dos Pontos de Cultura é formidável, mas imagina uma
comunidade quilombola, em Alagoas, que não tem experiência e que está
situada em um lugar que não tem agência bancária: como você vai estabelecer
esses contatos e esses modelos de gestão? Talvez fosse importante um tempo
de capacitação antes de lançar o projeto, no caso específico do Cultura Viva.

258
Na verdade, foi uma aposta lançar o projeto com essa série de problemas e
de impedimentos, na esperança de bons resultados e, ainda que com todas
essas dificuldades, os resultados são muito interessantes. As comunidades,
antes do programa Cultura Viva, não costumavam ter uma perspectiva muito
clara, muito organizada, de como iam ser essas ações de formação e difusão
cultural. A partir do momento em que você promete e não dá, cria-se uma
sensação e uma situação de desconforto, que têm que ser corrigidas.

E qual é a solução?
Eu acho que o próprio governo federal está pensando mecanismos para
resolver os problemas através da municipalização e estadualização dos no-
vos pontos de cultura. Mas não é muito simples também, porque, se por um
lado, o fato de se descentralizar pode aproximar os gestores dos produtores
culturais, por outro, existe uma série de problemas políticos locais, que aca-
bam influenciando na condução desses processos. Então, eu acho que é um
modelo que não está muito claro, a solução não está clara. Acho importante
comentar que uma possível solução a esse problema é o modelo de pontão de
cultura, processo que conseguimos estabelecer entre 2007 e 2008. Pensava-se
que, ao descentralizar o programa Cultura Viva, você teria células culturais
que, naturalmente, iriam se organizar em rede. Mas, na prática, era notável
que essa articulação em rede acontecia muito pontualmente, e de maneira
descontínua. Então, surgiu o conceito dos pontões de cultura, que, basica-
mente, fariam essa articulação entre os pontos de cultura. E aí, em 2007, o
governo federal abriu um edital. Preparamos o projeto Pontão Cultural Rede
Nordestina Audiovisual, que pretendia articular os pontos de cultura da região
Nordeste. Num primeiro momento, tínhamos centrado nos pontos de cultu-
ra, mas logo vimos que era interessante agregar outras iniciativas, inclusive
porque o conceito do Cultura Viva é de cada vez mais ampliar o número de
pontos de cultura. Então, trabalhamos pontos de cultura, associações de au-
diovisual, núcleos de produção digital e coletivos de produção audiovisual,
de maneira geral. Acredito que o governo federal deve ter aprendido com a
série de problemas na gestão dos primeiros convênios do programa Cultura
Viva, e propôs um modelo diferente para os pontões de cultura. Em vez de
parcelas de financiamentos, o dinheiro, quando aprovado, entrava de uma
única vez, o que facilitou muito, e resolveu os problemas de atraso no repasse.

259
O que vocês fazem no Pontão?
A meta principal do Pontão é construir um espaço de articulação, inter-
locução e intercâmbio de processos, procedimentos e, inclusive, de modelos
de gestão, que é uma coisa que precisamos refinar um pouco. São três linhas
principais de ação. A primeira é catalogar e fazer um levantamento histórico
das filmografias. Começamos pela Paraíba. Fizemos um levantamento, ca-
talogamos e estamos verificando a qualidade dos curtas-metragens, desde a
década de 1960, que é quando tivemos o primeiro acesso, até as produções
atuais. Feita essa catalogação e esse levantamento, vamos estar disponibili-
zando isso em boxes de DVDs, que serão distribuídos entre pontos de cultura e
cineclubes. A princípio não são para fins comerciais: só para uma distribuição,
para difusão. Além dessa distribuição física, também estamos preparando um
portal, o www.rna.org.br.

A Rede Nordestina Audiovisual é uma plataforma, então?


É uma plataforma feita em parceria com o LAVID, Laboratório de Apli-
cações em Meio Digital, do Departamento de Informática da Universidade
Federal da Paraíba, que é um laboratório importante. Ele está na vanguarda
dos estudos do vídeo digital e tem sido um grande parceiro.
A plataforma está sendo desenvolvida para compartilhamento de con-
teúdo audiovisual, de curtas-metragens, num primeiro momento. Há uma
diferença: como é uma comunidade de produtores de conteúdo, que traba-
lham também com a parte de difusão, através de cineclubes ou eventos de
exibição, disponibilizamos downloads e uploads com, pelo menos, qualidade
de DVD. Estamos experimentando agora os novos formatos de alta definição
e alguns codex, porque a ideia é não só poder assistir no computador, como
poder fazer cópias e exibir com qualidade nos cineclubes. Temos outras linhas
também, porque existem uma quantidade de canais de TV digital, televisões
comunitárias, redes públicas de televisão, que têm uma demanda enorme
de conteúdo. E, por outro lado, há uma série de produtores de conteúdo que
precisam estar escoando essa produção.
O portal não está preparado para isso, mas é uma coisa a médio prazo.
Estamos pensando como fazer essa comunicação, como mostrar esse catálogo
de produções do Nordeste para essas redes de televisão, que podem se tornar
um canal de acesso às obras.

260
Como trabalhar com os direitos autorais se o download é gratuito?
Essa foi uma discussão que levantamos em vários momentos, sobre qual
modelo de licenciamento trabalharíamos, e pensamos que o mais interessante
seria delegar, ou deixar que os produtores de conteúdo resolvessem como iam
disponibilizar as suas obras. Então, quando você se cadastra no portal para
disponibilizar um vídeo, surgem as opções de modelos de licenciamento.
Temos quatro modelos de Creative Commons, com algumas variações para
usos não-comerciais, para obras derivadas. Temos a opção Arte Livre, que é
uma licença que surgiu a partir da discussão do Creative Commons, que é um
pouco mais aberta. Uma opção em que o usuário aponta que licença ele está
usando, além da opção em que o usuário opta por nenhuma licença específica,
o que significa que ele está usando a atual lei dos direitos autorais, com uma
série de restrições. E eu acho que isso tem uma função até didática, estamos
levantando a questão. É um momento interessante, porque é a primeira vez
que se delega ao artista, ao detentor dos direitos, a opção de licenciamento.

Em relação ao conhecimento no meio digital, na ciência ou no meio aca-


dêmico, existe a noção de open source, da fonte aberta, dos dados aber-
tos. Você acha que é possível utilizar essa mesma noção de open source
para documentários, em que as pessoas coletam um grau gigantesco de
informação e editam apenas um pequeno pedaço? Em que as pessoas dis-
ponibilizem, além do produto final, as imagens coletadas?
Acredito que sim. Essa é uma linha que tem que ser instigada e tem que
ser promovida. Ela é ainda mais importante quando se fala em recursos pú-
blicos, especificamente para financiamentos de cultura. Existe uma linha de
ativismo que achamos importante. O portal que nós estamos preparando é
todo feito em open source, em código aberto, porque acreditamos que essa
experiência tem que ser compartilhada, para poder ser replicada em outras
redes semelhantes. No caso específico do documentário, acho que, por um
lado, é muito rico, mas também é muito enigmático como vai se resolver essa
questão, ainda mais com a presença das televisões comerciais. Temos esse
repositório de conteúdo documental em código livre, mas, se isso está sendo
usado com fins comerciais, como vai ser essa relação entre os produtores de
conteúdo e os canais de exibição? Estamos num momento de várias dúvidas.
Ainda não se tem um modelo muito claro, mas, ao mesmo tempo, é uma
fase muito instigante de estar pensando e experimentando alguns modelos

261
e formatos novos, que podem até não dar uma resposta, mas que levantam
hipóteses.

Como são a Kaltura e o software livre de vocês?


Na verdade, nós não estamos aplicando ainda o Kaltura, mas é um código
que está sendo utilizado para vídeo, que dá a possibilidade de reedição de
forma muito ágil, e que está sendo recomendado pelo Ministério da Cultura.
Nós ainda estamos utilizando outro formato, o VideoFlow, em Flash, que é um
formato proprietário, não é em código aberto. O Kaltura, sim, é um software
open source, e estamos estudando como fazer essa migração. O interessante
é que o Kaltura aposta nessa possibilidade de reedição de material, mas é um
software que estamos precisando estudar mais, para ver como incorporar e
como lidar com essas relações de reedição e sampler.

Como é a relação dos realizadores que estão na Associação Brasileira


de Documentário com a questão do licenciamento da produção pública?
Dois tópicos a falar sobre isso. Primeiro, é reconhecer a importância de
estar levantando e catalogando essa filmografia. Isso, de antemão, tem a sim-
patia dos realizadores. Essa caixa, com nove DVDs, contém uma importante
produção paraibana, começando com Aruanda, um filme seminal, de 1959,
que vai influenciar todo o cinema novo, até produções feitas no ano passado,
com câmeras fotográficas subaquáticas. Então, de antemão, a catalogação e
a disponibilização desse conteúdo são recebidas de maneira muito simpá-
tica. Os realizadores mais antigos, como Linduarte de Noronha e Vladimir
Carvalho, e os da novíssima geração, ficaram felizes em disponibilizar seus
curtas-metragens para exibições não comerciais. Mas eu acho que depois
dessa simpatia inicial, virá a questão de como remunerar esses realizadores.
Além disso, grande parte dos vídeos será disponibilizada no portal, e temos
obras antigas, de realizadores, detentores dos direitos, com os quais não temos
acesso. Quer dizer, não temos como simplesmente disponibilizar e escolher
o tipo de licenciamento. É uma discussão que ainda está em processo, e por
isso eu acho que é importante estarmos comentando sobre os modelos de
licenciamento.
Temos um projeto parceiro, que se chama Rede de Intercâmbio de
Produção Educativa, o RIPE, e é desenvolvido pelo mesmo Laboratório de
Aplicações de Vídeo Digital. O RIPE é uma comunidade para professores e

262
alunos do ensino público da Bahia, e qualquer conteúdo do portal tem que
estar necessariamente em licença livre, para que cada professor e cada alu-
no possa baixar o vídeo, fazer reedições, utilizá-lo. É uma linha diferente da
que usamos no nosso portal, porque temos uma comunidade específica de
utilizadores, onde não era interessante obrigar um modelo de licenciamento
ou outro, mas estar divulgando. Nosso portal ainda está em teste, estamos
resolvendo questões de cadastro. Até agora só tem dois vídeos disponibili-
zados, e um deles é um vídeo meu. Disponibilizei no Creative Commons, no
licenciamento mais geral, porque me interessa, até para servir como exemplo,
colocar minhas obras nesses modelos de licenciamento livre.

Como está a produção atual, com as novas tecnologias e equipamentos?


Foi ampliada e intensificada?
Sim. Inclusive, nós fizemos uma catalogação por décadas, então tem um
DVD para cada década, de 1960 a 1990. Quando chegamos na década de 2000
até 2010, tivemos que fazer três DVDs. Aí tem uma série de explicações, tem
o problema do acesso às matrizes mais antigas e o problema da conservação
dessas matrizes. Temos telecines com qualidade mínima. Isso porque estamos
fazendo ainda os da Paraíba, onde temos o trabalho sediado, e temos mais
acesso. Imagina quando formos fazer de outros estados do Nordeste. Cada
estado terá um DVD com duas horas de curtas, escolhidos pela relevância
histórica, digamos assim, e produzido em parceria com as ABDs estaduais
e outras organizações. Então, temos essa dificuldade em ter acesso a esse
conteúdo, especialmente os da década de 1960. Na década de 1990 isso já
melhora, até por uma questão de proximidade cronológica e, naturalmente,
pelo contato com os realizadores. O acesso às masters é muito mais fácil. Mas,
por outro lado, isso reforça a importância de estar fazendo um trabalho de
restauro, de levantamento, de conhecer essas produções feitas nas décadas
passadas.

Nesse portal, existe a intenção de criar, ou disponibilizar, uma reflexão


crítica sobre a produção audiovisual?
Sim, um dos pontos principais, nesse primeiro ano de concepção e desen-
volvimento, é como vincular tópicos e fóruns de discussão sobre o conteúdo
compartilhado, bem como catalogar e indexar os vídeos. A ideia é que, ao
cadastrar um vídeo, o usuário preencha uma ficha que, automaticamente,

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será direcionada para um fórum de discussão com alguns tópicos centrais. A
primeira catalogação é estadual, através dos nove estados do Nordeste, que
teriam fóruns para discussão da produção local. Eu acho que o interessante é
refinar essas tags de indexação e pensar como podemos juntar essa troca de
conteúdo com a discussão crítica. Além da discussão crítica sobre política e
gestão, tem toda parte da discussão sobre a estética, e é interessante pensar
em pontos de convergência entre essas discussões. O portal vai nessa linha.
Tenho a impressão que está faltando ainda pensar em alguma ferramenta,
algum dispositivo que torne esse diálogo mais fluido. Ainda estamos acostu-
mados com o modelo do YouTube, que é um repositório, em que no máximo
você pode baixar e fazer algum comentário. Mas como indexar discussões
com outros conteúdos é uma grande pergunta, estamos experimentando e
tentando ver se é possível apresentar alguns modelos através do portal.

É possível fazer do portal um espaço de reflexão?


Eu acredito que sim. Aí entra um ponto importante, que é essa relação com
a rede pública de televisão, até para chamar atenção para o próprio portal.
Uma revista eletrônica é uma ideia bacana, fazer uma revista sobre o audio-
visual do Nordeste, onde cada estado produz, digamos, quatro minutos ou
três minutos sobre a realidade local. Esse conteúdo pode ser editado de forma
colaborativa e compartilhada, e pode ser disponibilizado depois na rede pú-
blica de televisões. Estou insistindo na rede pública porque fui convidado para
assumir a direção de programação da TV UFPB, que é uma emissora associada
à TV Brasil, e acho que é um momento muito interessante de juntar a fome
com a vontade de ver. É basicamente isso, juntar os produtores de conteúdo,
que estão com esse conteúdo meio que parado, e essa rede pública, que precisa
de conteúdo. Então, acho que é um ponto de convergência quase natural, e,
se não é natural, vamos fazer com que seja naturalizado. Estou trabalhando
nos dois lados, com os produtores de conteúdos independentes e agora com
a rede púbica de televisão. Quer dizer, na verdade, não se deve pensar em
dois lados distintos: estão no mesmo campo de trabalho e batalha, digamos.

A TV digital é uma questão em aberto, que, se não for pensada logo, será
dominada, e será um espaço fechado de novo.
Tem dois pontos importantes quando se fala na TV digital, que são duas
linhas. Uma é a alta resolução de vídeo, ou seja, a quantidade de linhas e pixels

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vai aumentar. Mas tem outra linha, que é a interatividade, que eu acho que
ainda é uma incógnita: não se sabe como isso vai ser processado. No meu
entendimento, fica muito claro que o papel da rede pública de televisão é de
estabelecer esses novos padrões de uso da interatividade na TV digital. Por-
que, pensando na lógica das TVs comerciais – e aí até estou falando baseado
em algumas falas de Guido Lemos –, se você está trabalhando interatividade
com quatro finais diferentes, vai ter que quadruplicar o investimento. Mas o
retorno, nesse modelo de comercialização, é o mesmo. Então, como justificar
que eu vou aumentar o meu investimento e diminuir o meu lucro? Dentro da
lógica das televisões comerciais, a forma de lidar com a interatividade não é
um ponto pacífico. Acho que a rede pública, por ter outras especificidades e
outros interesses, é o espaço para se pensar a interatividade e potencializar
a televisão como um instrumento de utilidade pública, de serviços. E, na
parte estética, da narrativa audiovisual, abre-se também uma série de possi-
bilidades, até de uma dramaturgia estendida, com roteiro interativo, que eu
acho muito bacana. A ideia da interação já está no conceito básico do drama,
desde Aristóteles, mas tecnicamente temos como fazer com que o leitor, ou
no caso, o espectador, deixe de ter uma atitude espectral passiva e passe a
ter uma relação ativa. Nessa linha, dentro da interatividade, o que mais me
encanta é a abertura do canal de retorno, que, para além de botar sim ou não,
o espectador ou a espectadora pode mandar o conteúdo que faz em casa
de maneira amadora. Essa é uma perspectiva muito rica, mas, no ponto em
que estamos, isso ainda não é possível de ser testado na TV digital. Então é
importante estimular e criar canais de experimentação para que, com sorte,
a TV digital se transforme em algo mais do que apenas uma TV no mesmo
modelo analógico que conhecemos, com os mesmos vícios, só que com uma
tela maior, com mais brilho e mais linhas.

O público do portal que vocês estão desenvolvendo é prioritariamente


de realizadores?
O primeiro perfil da comunidade de usuários é esse mesmo, de realizado-
res, mas logo teremos uma ampliação, com a rede de cineclubes. Existe um
programa chamado Cine Mais Cultura, que está criando uma rede de cineclu-
bes em todo o país e que potencialmente estará interessado nesse espaço, ou
seja, você terá acesso a curtas produzidos em cada um desses estados, poderá
fazer downloads e passar nas sessões do cineclube. Como ampliar o perfil do

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público também é uma das discussões, e também pensar na rede pública de
ensino, no audiovisual como instrumento pedagógico. Aí volta a questão da
indexação dos tags, dos metadados e de como os professores podem utilizar
esse repositório audiovisual como instrumento pedagógico. Nesse sentido, o
público se amplia, entram os professores e, concomitantemente, os alunos e
alunas da rede pública de ensino. Mas tem que existir um freio também. Não
dá para querer ampliar demais, porque pode perder o foco. A ideia não é fazer
um YouTube público, em software livre; é trabalhar no conceito de comunida-
de, ou seja, reunir um grupo de usuários interagentes, que tenham o mínimo
de afinidades, o mínimo de proximidades no perfil. Isso é interessante porque
dá força ao projeto. Outra perspectiva para a ampliação do portal é a relação
com a rede pública de televisões, que pode ser muito rica para os dois lados.
Mas ainda não ficou claro como seria a relação dos produtores com as TVs. É
uma perspectiva muito plausível e interessante, e vale um investimento para
ampliação da ferramenta.

Nos anos 1970, houve uma grande onda de super-8, que unia João Pessoa,
Recife e Natal. Essas redes naturais continuam existindo nessas cidades
ou estão sendo reconstruídas?
Nós fizemos esse levantamento do conteúdo do super-8, principalmente
do final da década de 1970 e dos anos 1980. Existem algumas obras muito
interessantes, que trazem essa relação entre Pernambuco, Paraíba, especial-
mente com a obra de Jomard Muniz de Britto, que foi professor na UFPB, e
depois foi morar em Recife. O fato de Recife ter seu centro de produção mais
bem consolidado faz com que sejam mais detectáveis essas redes de criação
natural. Fizemos um encontro em João Pessoa com uma média de cinco a
seis representantes de cada estado, para discutir as caixas de DVDs, o portal e
o Pontão de Cultura, para, efetivamente, levantar essa rede que estava sendo
proposta. Não está muito claro como vamos articular essas redes de produção
de conteúdo colaborativo, compartilhado, mas uma experiência que está em
processo agora é o projeto do XPTA.LAB, que é um edital de inovações tecno-
lógicas, proposto pela Secretaria do Audiovisual e pelo Ministério da Cultura,
em parceria com a Sociedade Amigos da Cinemateca. Entramos com um
projeto junto com o LAVID e conseguimos articular nove estados da região,
quer dizer, dois estados da região Norte e sete estados da região Nordeste.
Basicamente, cada estado parceiro vai produzir um programa-piloto, que

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trabalha com interatividade na televisão. E a relação de programadores de
informática com os roteiristas, essa junção da expertise das Ciências Exatas
com as Ciências Humanas, com a expressão artística, está sendo muito rica.
Então, respondendo a sua pergunta sobre essa possibilidade de articulação,
não está muito claro como vamos fazer isso na prática, mas existem alguns
experimentos e processos nessa linha, que provocam e estimulam essa criação
regional compartilhada.

Por que até hoje existe essa timidez da produção audiovisual brasilei-
ra mais independente em criar diálogos com outras formas, como, por
exemplo, o jogo eletrônico, a toy art?
Não acho que o problema seja a falta de recurso. Acho que faltam esses
espaços híbridos, olhar com mais tenacidade, digamos assim, essas novas
formas de expressão. Essa é uma postura um pouco equivocada: não pensar
o fluxo dos processos expressivos como uma coisa dinâmica. Tenho um in-
teresse muito grande em trabalhar com os videojogos. Esse projeto que eu
estava comentando, do XPTA.LAB, trabalha interatividade e teledramaturgia, e
tem uma estrutura de composição narrativa muito inspirada nos videogames,
nessa composição das múltiplas possibilidades dos jogos eletrônicos. Noto
uma tendência de abertura a esses espaços híbridos, de experimentação de
linguagens, e temos que ver como estimular e ajudar para que isso se forta-
leça e se amplie. De maneira geral, o cinema comercial, o cinema de autor, a
priori torce a cara para essas novas experimentações, mas acho que estamos
num processo de aproximação com as novas linguagens e com as inovações
tecnológicas.

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PRODUÇÃO CULTURAL NO BRASIL

Coordenação do projeto | Beijo Técnico Produção Artística

Fabio Maleronka Ferron


Coordenação geral

Ana Rosa Cruz, Caroline Rodrigues, Dalva Santos e Monnik Poubell


Produção geral

Georgia Nicolau, Fernanda Versolatto e Laura Godoy


Pesquisa

Coordenação editorial | Azougue Editorial

Sergio Cohn
Coordenação editorial

Carolina Noury
Projeto gráfico e capa

Heyk Pimenta, Ismar Tirelli Neto e Larissa Pinho


Preparação de texto

Eduardo Coelho, Letícia Ferres e Vitor Ehring


Revisão de texto

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Giselle Coelho, Marta Lozano e Evelyn Rocha | Azougue Editorial
Equipe editorial

Elisa Ramone, Filipe Gonçalves e Lilian Diehl | Azougue Editorial


Produção editorial

Coordenação da plataforma digital | Fli Multimidia

André Deak, Lia Rangel e Rodrigo Savazoni


Coordenação da plataforma digital

Felipe Lavignatti, Gabriela Agustini, Leonardo Feltrin Foletto e Lucas Pretti


Editores de conteúdo

Rafael Mantarro
Design gráfico

Coordenação áudio-visual | Garapa Coletivo Multimídia

Gabriela Barreto, Leo Caobelli, Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes


Fotografias

Entrevistas

Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn


Entrevistas

Sergio Cohn
Edição final das entrevistas

Aline Rabelo, Aloísio Milani, Lia Rangel, Lucas Pretti e Rodrigo Savazoni
Participação especial

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Colaboradores

Alícia Peres, Aline Rabelo, Aloísio Milani, Daniel Barosa, Daniel Yuhasz,
Fabio Koji Tashiro, Gideoni Junior, Luís Pini Nader, Quadradão,
Roberta Carteiro, Roberto Taddei, Simone Andrade,
Sylvio do Amaral Rocha e Valterlei Borges

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