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Silviano Santiago

Si
4*%: MOPOLITISMO DO
Viagem ao começo do mundo, filme de Manoel de Oli
dramatizar a idéia da estável e anacrônica aldeia portuguesaTacênde

a discussão sobre a instável e pós-moderna aldeia global.


carro a se afastar da rota original, impondo suas ima classe. A língua portuguesa no Brasil se apropriou das
gens particulares ao lugar e antes das imagens do filme palavras mereçoerastaqüera, de sentido pejorativo na França
do outro. moderna, que servem para caracterizar o ator francês, fi
O carro pára diante de renomado colégio jesuíta por lho de emigrante português. Leia-se esta passagem de
tuguês, ondeo diretor tinhaestudado. Acâmara abando Mocidade noRio ePrimeira viagem àEuropa (1956), me
naa posição ditada pelo espelho retrovisor e agora apanha mórias do escritor, jurista e diplomata Gilberto Amado
carro e personagens da perspectiva lateral, como a dizer (1887-1969): "[...] comecei naturalmente a deleitar-me
quepassou a narrar uma estória à margem do percurso da com as obras-primas da cozinha francesa. Subira eu já a
viagem. O carro pára tima segunda vez. Enquanto o diretor razoável nível de aptidão para opinar com conhecimento
tece mais reminiscências, o grupo vagueia pelos jardins de causa, e não aproximativamente como rastaqüera ou
abandonados de outrora luxuoso hotel de veraneio. Aten meteco, sobre molhos, condimentos". Em terras france
dendo ainda à ordem do diretor, o carro pára uma última sas, o representante daelite brasileira não quis ser confun
vez, desta feita diante de casa, onde uma estátua, a de dido com os imigrantes, de que também se distancia na
Pedro Macau, se afigura como imagem paterna para o terra natal.
diretor. Jedro Macau representa o português que, tendo se
fartado à tripa forra nas colônias, regressara rico ao país de
origem, trazendo às costas o "fardo do homem branco",
O confisco do fio narrativo pelo ator não opera um
para usar a expressão clássica mero corte dentro do filme, oportunidade de que sevale
ig. Caso se atente para ria o coadjuvante para tomar a palavra do diretor e assu
aviga que Pedro trazàscostas, imobilizando-o, a atualidade mir, como protagonista, a continuidade da narrativa. As
portuguesa é tormento e o futuro chega roído pelo re sinala um corre episcemológico. As palavras da lembrança
morso. Povo de marinheiros, o português acaba por se ditadas por Manoel, o diretor de cinema, deve suceder a
exilar na própria terra. experiência de um dia na vida do ator francês, filho de
O relato do diretor de cinema não se diferencia de outro Manoel, o imigrante português. Neste dia, queestá
' tantos outros, que se sucederam nas modernas literaturas para servivenciado, selhedescortinará o passado lusitano
nacionais. O ferrete de Mareei Protist pôs a descoberto e desses outros Manoéis, em tudo por tudo diverso do pas
marcou universalmente a carne-viva da memória indivi sado dos Manoéis que estão sendo representados pela fala
dual letrada noséculo 20. Todos os grandes artistas e inte autobiográfica do diretorde cinema. O nomede batismo
lectuais da modernidade ocidental, incluindo os marxis do diretor e do emigrante é o mesmo, Manoel, distancia-
tas, passaram pela experiência da madeleine. Há um os o nome de família e o lugar queocupam nasociedade
passado comum — na maioria dos casos cosmopolita, portuguesa. O ator diz ao companheiro de viagem:
aristocrático ou senhorial, — que pode ser desentranha "Gostei deouvi-lo, mas o quedisse não mediz respeito".
do de cada uma das sucessivas autobiografias de O interesse da viagem é outro para o ator, é outra sua
variadíssimos autores. No prefácio a Raízes do Brasil, de ansiedade, são outras suas lembranças — ditadas que fo
Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Cândido foi sensí ram pela vida desse outro Manoel, um rapazinho "mui
vel ao fenômeno do desaparecimento do indivíduo. O voluntarioso", filho de pobres camponeses. Sem docu
texto da memória transforma o que parecia diferente e mentos e sem dinheiro, escalara as montanhas de Felpera
múltiplo no igual: "[...] o nosso testemunho se torna só com a roupa do corpo. Ganhara a Espanha durante a
registro da experiência de muitos, de todos que, perten Guerra Civil. Fora preso. Aprendera na cadeia rudimen-
cendo ao que se denomina uma geração, julgam-se aprin tos de mecânica. Passara fome e frio e muitas vezes não
cípio diferentes uns dos outros evão, aos poucos, ficando tivera teto para abrigá-lo. Atravessara os Pirineus, sabe-se
tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos". lácomo,ganhara a França, instalara-se emToulouse, onde
Interessa-nos mais as imagens e os diálogos do segun fora empregado de oficina de automóveis e depois pro
do filme, deonde a atenção dos passageiros e a nossa, de prietário. Casara-se com francesa, tivera dois filhos e mui
espectador, foi por três vezes desviada. O ator francês bem tas mulheres. No passado do pai, o filho colhe a miséria e
que tentara contra-atacar o usurpador, mas na verdade é o gosto pela aventura. Dele herda a nostalgia, que se tra
só a partir de momento tardio do filme que consegue duz pelo violão que carregava e o fado que cantava. No
confiscar-lhe o fio narrativo. O diretor de cinema não tem futuro do pai, aparece como o filho que pertence à nata
o direito de imporaos dois outros portugueses e ao filho do cinema francês.
demeteco, hoje umrastaqüera (rastaquouère), as lembran Nãohásóconquista navida dos Manoéis rastaqüeras.
ças que preenchem o vazio da saudade. Suas imagens de O cosmopolitismo do porttiguês pobre trouxe perdas para
limpeza e aceitem transgredir asleis nacionais estabelecidas O ator íranco-português volta a requisitar intérprete,
pelos serviços de migração. São pré-determinados pela agora para conversar com os seus familiares. A velha tia,
necessidade e pelo lucro pós-moderno. Como chama a irmã do seu pai (admiravelmente interpretada por Isabel
atenção K. Anthony Appiah, no prefácio a livro de Saskia de Castro), nãoreconhece o sobrinho naspalavras france
Sassen, "os funcionários altamente qualificados das seções sas de queseserve. Dirige os olhos a elee ao intérprete, a
executivas, como as das finanças, vêem seus salários cres palavra: "Paraquem estou a falar? ele não entende o que
cerem escandalosamente ao mesmo tempo em que as re eu digo". E continuaa indagar entreríspida, intolerante e
munerações dos que limpam os escritórios ou tiram as raivosa: "Porque que elenão fala a nossa fala?" Os suces
fotocópias estagnam ou afundam de vez". sivos pedidos de reconhecimento por parte do ator, tra
Entre as duas pobrezas — a de antes e a de depois da duzidos à língua portuguesa pelo(s) intérprete(s), são
revolução industrial —, existe um revelador e intrigante motivo para que ela repita a mesma pergunta até à
silêncio no filme de Manoel de Oliveira. No universo de exaustão: "Porquequeelenãofala a nossa fala?" O atorse
Viagem aocomeço domundo, não háfábricas nem operários. dá conta tardiamente de que, na economia do amor fa
(Há,quando muito,a indústria nacional do entretenimen miliar, de nada vale o trabalho dos intérpretes. A boa-
to, hoje totalmente globalizada. Naverdade, é ela que está vontade deles não compensa a perda da língua materna.
sendo questionada pela visada multicultural dofilme.) Para
Perscrutando o enigma da
ignorância rústica que defronta as boas maneiras e
o savoirfaire metropolitanos, o ator levanta a
possiblidade de uma fala comum que
o camponês miserável e voluntarioso, assim como para os +»-oncppnHíl Í3Q n Í31 PI VrPIQ
operários desempregados no mundo urbano, a desigualda-
desocial na pátria vem propondo um salto para o mundo D. A tia entrano diálogo sem pala-
transnacional. Salto meio queenigmático naaparência, mas vras. Começa a reconhecer o sobrinho pelo olhar e pela
concreto na realidade. Esse salto é impulsionado pela falta figura da semelhança. O filho se parece ao pai, tem os
de opção pela melhoria econômica e social na própria al mesmos olhos. Em seguida, a fala do afeto se serve do
deia e, muitas vezes, nos pequenos centros urbanos do pró vocabulário do contato de pele com pele. O ator tira o
prio país. Osdesempregados domundo se unem em Paris, paletó, aproxima-se da tia, arregaça a manga da camisa, e
Londres, Roma, Nova Iorque e São Paulo. lhepede, através do intérprete, para que lheaperte o bra
Já vai longe o tempo de Vidas secas, de Graciliano ço. Braços e mãos se cruzam, estreitando os laços familia
Ramos, e do caminhão pau-de-arara. Longe, os retirantes res. Diz-lhe o ator: "Não é a língua que importa, o que
damonocultura do latifúndio e daseca nordestina. Hoje, importa é o sangue". A etimologia dos elementos da fala
os retirantes brasileiros, muitos deles oriundos do Estado do afeto está no dicionário do sangue. A tia o reconhece
deMinas Gerais, seguem o fluxo do capital transnacional finalmente como o filho do irmão. Abraçam-se. Ele lhe
como um girassol. Ainda jovens e fortes, querem ganhar pedeparairao cemitério, visitar o túmulo dosavós. A fala
as metrópoles do mundo pós-industrial. Deposse do pas do afeto torna-se plena no momento em que a tiasela o
saporte, fazem enormes filas à porta dos consulados. Sem encontro com a doação ao sobrinho de um pão campo
conseguir o visto, viajam para países limítrofes, como o nês. Porém, perdura a constatação amarga da tia:
México ou o Canadá, em relação aos Estados Unidos da "Olha, Afonso, se o teu pai não te ensinou nossa fala,
América, ou como Portugal e a Espanha, em relação à foi um mau pai".
União Européia, eali se juntam a companheiros de viagem Nãosepode pediraos Manoéis pobres e cosmopolitas
de todas as nacionalidades. O camponês salta hoje por queabdiquem de suas conquistas na aldeia global, longe
cima da revolução industrial e cai, a pé, a nado, de trem, da aldeia pátria, mas cada Estado nacional do Primeiro
navio ou avião, diretamente na metrópole pós-moderna. Mundo pode, isto sim, proporcionar-lhes, a despeito da
Muitas vezes sem a intermediação do visto consular. falta de responsabilidade no plano social e econômico, a
Rejeitado pelos poderosos Estados nacionais, evitado possibilidade de não perderem a comunicação com os
pela burguesia tradicional, hostilizado pelo operariado sin valores sociais que os sustentam, no isolamento cultural
dicalizado e cobiçado pelo empresariado transnacional, o em que sobrevivem nas metrópoles pós-modernas.
migrante camponês é hoje o "mui corajoso" passageiro
clandestino danave deloucos dapós-modernidade.
Felizmente, Viagem aocomeço domundo é um filme
com bappyending.
Entreeles estão tambémo nosso Gilberto Freyre, autor te e preparar auspiciosamente o futuro nacional". Eis a
de Casa-grande & senzala, os estudiosos do Conselho de razão do lobo: contar com o trabalhodoschineses na agri
pesquisa emciências sociais dos Estados Unidos, quedes cultura, sem no entanto acolhê-los definitivamente em
de os anos 30 defenderam a diversidade cultural, e a an território nacional. Felizmente, os positivistas reagiram ao
tropóloga Margaret Mead. Esta, diante do escândalo que raciocínio intolerante, subordinando o exercício da polí
representava, durantea Segunda GrandeGuerra, o recru tica à moral. Declararam quese tratava dasubstituição do
tamento de "second class citizens" (os negros) pelogover braço escravo por um braço quase escravo. Os chineses
no norte-americano, cunhou célebre frase: "Somos todos não emigraram para o Brasil.
terceira geração". Os fundamentos desse multiculturalismo Essas palavras, ditadas pela intolerância doEstado-na-
repousam emumconceito chave, o deaculturação. Robert ção face à diferença da coisa estrangeira, não estão ausen-*
Redfield, Ralph Linton e Melville Herskovits definiram tcs de muitas das declarações recentes de políticos norte-
aculturação em 1936: "Aaculturação é o conjunto de fenô americanos. Durante recente discussão no senadodaquele
menos que resultam de um contatocontínuoe diretoentre país sobre as vantagens e desvantagens de um mercado
grupos de indivíduos de culturas diferentes e que acarre comum nas Américas, proeminente senador proferiu esta
tam transformações dos modelos [patterns, no original] pérola queacentua a impossibilidade deum caldeamento
culturais iniciais de um ou dosdois grupos". O velho con equilibrado entre as nações do continente: "Se os outros
ceito de multiculturalismo repousa nesse conceito e no [países do continente americano] são demasiado lentos,
trabalho queanacronicamente chamaremos dedesconstrutor avançaremos sem eles". Sabemos o que o avanço desme-
do egocentrismo. |\|C
fortalecida pela ideologia da cordialidade.
Os exemplos em literatura latino-americana do didoe egoísta de um único Estado-nação pode acarretar.
multiculturalismo cordial são muitos e antigos. Citemos Depois dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001,
alguns provenientes da literatura brasileira. Comecemos em quese acerbam as diferenças étnicas e religiosas pelo
por Iracema (1865), deJosé de Alencar, passemos por O viés do fundamentalismo mútuo, aspossibilidades de um
cortiço (1888), deAluísio Azevedo, eparemos em Gabriela, multiculturalismo, tal comofora praticado desde asgran
cravo e canela (1958), de Jorge Amado. Por esse des descobertas no século 16 e determinado teoricamente
to
multiculturalismo fala a voz impessoal esexuada do Esta- na primeira metade do século 20, foram jogadas na lata
do-nação que, retrospectivamente, tinha sido constituído de lixo do novo milênio, ao mesmo tempo em que gru
no interior do melting-pot. Neste, sobo império das elites posde emigrantes (ou de jáimigrantes) nosEstados Uni
governamentais e empresariais e das leis do país, várias e dos sofrem as constrições e os vexames que todos os jor
diferentes etnias, várias e diferentes culturas nacionais se nais e televisões noticiam.
cruzaram patriarcal e fraternalmente (os termossãocaros O multiculturalismo que reorganiza os elementos
a Gilberto Freire). Misturaram-se para constituir uma díspares queseencontram numadeterminada região co
outra e original cultura nacional, soberana, cujas domi lonial (e pós-colonial), ou que referenda a imigração
nantes, no caso brasileiro, foram o extermínio dos índios, planejada pelo Estado nacional, sempre teve como refe
o modelo escravocrata de colonização, o silêncio das mu rência invariável a retórica do fortalecimento das "co
lheres e das minorias sexuais. munidades imaginadas", para retomar a conhecida ex
Emigrantes que escapassem aos princípios definidos pressão de BenedictAnderson. ParaAnderson, a nação
pelo Estado que os deveria acolher, não seriam aceitos em é imaginada como uma comunidade limitada esoberana.
território nacional, ou seriam terminantemente excluídos Citemos as definições que ele nos dá dos três termos
daagenda da imigração planejada. Umdos debates histó grifados. Primeira definição: "A nação é imaginada como
ricos mais ilustrativos doprocesso de rejeição demigrantes, limitada, porque até mesmo a maior delas, que abarca
queseriam possivelmente insubmissos à organização na talvez um bilhão de seres humanos, possui fronteiras
cional ditada pelo establishmentdo Segundo Reinado bra finitas, ainda que elásticas, para além das quais encon
sileiro, aparece no caso da emigração chinesa no final do tram-se outras nações. Nenhuma nação se imagina
século 19. Em 1881, pouco antes da abolição da escravi coextensiva com a humanidade". Segunda: "Éimagina
dão negra no nosso país, Salvador de Mendonça define a dacomo soberana, porque o conceito nasceu numaépo
sua posição ideológica, que acabou por ser referendada ca em que o Iluminismo e a Revolução estavam destru
pelo governo brasileiro: "Usar [o povo chinês] durante indo a legitimidade do reino dinástico hierárquico,
meio século, sem condições de permanência, sem deixá- divinamente instituído. [...] O penhor e o símbolo dessa
lo fixar-se em nosso solo, com renovação periódica de liberdade é o Estado soberano". Terceira: "[...] a nação é
pessoal e de contrato, afigura-nos o passo mais acertado imaginada como comunidade porque,sem considerar a
que podemos fazer para vencer as dificuldades dopresen- desigualdade e exploração que atualmente prevalecem
em todas elas, a nação é sempre concebida como um acionar uma lei mais alta do que a quesalvaguarda a sobe
companheirismo profundo e horizontal". rania de cada Estado-nação. Visivelmente inspirado por
Pela persuasão decunho patriótico, osmulticulturalistas uma ética cristã, escreve: "Direitos humanos, liberdades
dacomunidade imaginada desobrigaram aelite dominante humanas [...] e dignidade humana têm suas raízes mais
de exigências sociais, políticas e culturais, que transbor profundas em algum lugar fora do mundo que vemos
dam do círculo estreito da nacionalidade econômica. Se [...]. Enquanto o Estado é umacriação humana, seres hu
se quiser lavar a roupa suja, terá de ser em casa. As dife manos são uma criação de Deus". Segundo: é questiona
renças étnicas, econômicas, lingüísticas e religiosas, raízes da a soberania do Estado-nação no tocante a leis e mode
deconflitos intestinos ou de possíveis conflitos no futuro, los civilizatórios. Terceiro: deixa-se queo "companheirismo
foram escamoteadas a favor de um todonacional íntegro, profundo e horizontal" naufrague nas próprias figuras de
patriarcal e fraterno, republicano e disciplinado, aparen retórica que o constituíram.
temente coeso e às vezes democrático. Os cacos e as sobras Umanova forma de multiculturalismo pretende 1) dar
do material de construção, que ajudoua elevar o edifício contado influxo de migrantes pobres, em sua maioria ex-
da nacionalidade, são atirados no lixo da subversão, que camponeses, nas metrópoles pós-modernas, constituindo
deve ser combatida a qualquer preço pela polícia e pelo seus legítimos e clandestinos moradores, e 2) resgatar, de
exército. A construção do Estado pelas regras desse permeio, grupos étnicos e sociais, economicamente
multiculturalismo tevecomo visada prioritária o engran- desfavorecidos no processo assinalado, demulticulturalismo
decimento do Estado-nação pela perda da memória indi a serviço do Estado-nação.
vidual do marginalizado e cm favor da artificialidade da A luta política dos primeiros, os migrantes nas metró
memória coletiva. poles pós-modernas, e dos outros, os marginalizados nos
Em tempos de economia de mercado transnacional, seria
justo pregar os princípios teóricos desenvolvidos no interior
da pesquisa e da prática multicultural, tal como foram r
definidos no passado? Estados-nações, estásendo hoje fortalecida pelo suportee
À estruturação do antigo multiculturalismo — refe apoio de movimentos políticos transnacionais, cujo exem
rendado na nova ordem econômica pelos mais diversos plo mais contundente reside nas atividades desenvolvidas
governos nacionais, hegemônicos ou não —,seopõe hoje pelas organizações não-governamentais (ONGs) junto à
à necessidade duma nova teorização, que passaria asefun sociedade civil de cada Estado-nação. Cite-se, por exem
damentar na compreensão dum duplo processo em mar plo, o caso do movimento das mulheres negras no Brasil,
cha avassaladora pela economia globalizada — o de que se reúnem em www.criola.ong.org. Ali se lê: "Nosso
"denationalizing of the urban space" (desnacionalização objetivo é a instrumentalização das mulheres e jovens ne
do espaço urbano) e o de "denationalizing of politics" gras para o enfrentamento do racismo, do sexismo e da
(desnacionalização da política), para usar as expressões de homofobia vigentes na sociedade brasileira". A feição
Saskia Sassen em Globalization andits discontents. Conti supranacional que modela as ONGs torna-se passível de
nua ela, caracterizando os atores sociais seduzidos pelo ser aclimatada naperiferia econômica graças aofato deque
processo: "Emuitos dos trabalhadores desprivilegiados nas o país abandona os meios de comunicação clássicos (dos
cidades globais são mulheres, imigrantes e gente de cor, correios e telégrafos ao fax) e seadentra pelas cada vez mais
cujo sentido político de individualidade e cujas identida baratas e velozes rodovias intercontinentais da Internet. Uma
des não estão necessariamente imersos na 'nação' ou na sociedade civil na periferia é paradoxalmente impensável
comunidade nacional"'. sem os avanços tecnológicos da informática.
Os princípios constitutivos da comunidade imagina
da estão sendo minadospelafonte multirracial e pelaeco Reconfiguração cosmopolita
nomia transnacional em que beberam e ainda bebem os
Estados-nações periféricos e tambémoshegemônicos. Pri Ao perder a condição utópica de nação — imaginada
meiro: o Estado-nação passa a sercoextensivo com a hu apenas pela sua elite intelectual, política e empresarial,
manidade. Como exemplo, cite-se o polêmico artigo de repitamos — o Estado nacional passa a exigir uma
Vaclav Havei, "Kosovoe o fim do Estado-nação", em que reconfiguração cosmopolita, que contemple tanto seus
alerta para o fato dequeo bombardeio da Iugoslávia pelas novos moradores, quanto seus velhos habitantes margi
tropas da OTAN coloca os direitos humanos acima dos nalizados pelo processo histórico. Ao ser reconfigurado
direitos do Estado (responsável este, lembremos, pela "la pragmaticamente pelos atuais economistas e políticos, para
vagem étnica" de Kosovo). Havei favorece a vontade de que se adeque às determinações do fluxo do capital
transnacional, que operacionaliza as diversas economias mesmo clima criado porClara Nunese numadimensão bem
de mercado em confronto no palco do mundo, a cultura maior, Martinho da Vila organiza, a partir de 1984 e até
nacional estaria (ou deve estar) ganhando uma nova 1990, encontros internacionais de arte negra, batizados por
reconfiguração que, por suavez, levaria (ou está levando) ele de Kizomba (palavra africana que significa encontro de
os atores culturais pobres a se manifestarem por uma ati identidades, festa de confraternização).
tude cosmopolita, até então inédita em termos degrupos Martinho explica: "Decidi fazer as Kizombas porque
carentes e marginalizados em países periféricos. senti queo povo brasileiro tem muitacuriosidade e pouca
Um dos grupos étnicos com maior dificuldade de se informação sobre a mãe África. Além de não ter muita
articular local, nacional e internacionalmente é o dos in informação sobra a cultura negra na diáspora. Para se ter
dígenas brasileiros. A razão para tal podeserevidenciada, uma idéia, Angola, tão influente na formação cultural
caso se compare o peso demográfico do grupo no Brasil brasileira, só veio ao Brasil pela primeira vez quando rea
com a presença de grupos semelhantes na população na lizamos o Primeiro Canto Livre, em janeiro de 1983.Sem
cional da Bolívia (57%), ou do Peru (40%). No Brasil, falar que, até a realização da primeira Kizomba, o Brasil
como informa o 5/re do Instituto Sócio-Ambiental estava praticamente à parte das manifestações anti-
(www.socioambiental.org, "Povos indígenas do Brasil"), apartbeid. Já participaram cerca de30 países, entreosquais
"as organizações indígenas têm uma tendência volátil, estavam Angola, Moçambique, Nigéria, Congo, Guiana
ilustrativa das dificuldades dos índios constituírem for Francesa, Estados Unidos e África do Sul".
mas estáveis de representação com uma base tão diversa e Essa redefinição cosmopolita de cultura afro-brasilei
dispersa". No entanto, legitimadas que foram pela nova ratem como pólos tanto o Brasil quanto aÁfrica, tanto os
Constituição Federal em 1988,elas "representam a incor departamentos da colonização francesa quanto os Esta
poração, por alguns povos indígenas, de mecanismos que dos Unidos, e seu princípiobásico é o questionamento da
possibilitam lidar com o mundo institucional da socieda ineficiência e da injustiça cometidas por séculos pelo dis
de nacional e internacional". cursoda elite intelectual e governamental sobrea cidada
Umnotável exemplo daquela virada cosmopolita, agora nia nacional. No plano dos marginalizados, a crítica radi
pelos afro-brasileiros, está no "Site oficial de Martinho da cal aos desmandos do Estado nacional, tal como este está
Vila", compositor e cantor, filho de lavradores. Compara- sendo reconstituído em tempos de globalização, não se
. , do por muitos ao herói da resistência negra brasileira, dá mais no plano da política oficial do governo nem na
Zumbi dos Palmares, o artista faz também questão de instância da agenda econômica assumida pelo Banco Cen
trazer na sua página a lista e a biografia de cada um dos tral, em acordo com a influência coercitiva dos órgãos
seus líderes negros. Da lista fazem parte: Manoel Congo, financeiros internacionais. Elase dá no plano do diálogo
Amilcar Cabral, Samora Moisés Machel, João Cândido, entre culturas afins quesedesconheciam mutuamente no
Winnie Mandela, Martin Luther King, Agostinho Neto presente. Seu modo subversivo é brando, emboraseucal
e Malcolm X. Esse recente estreitamento cultural do Bra do político seja espesso e pouco afeito às festividades
sil comas nações africanas pouco ou nada tem a ver com induzidas pela máquina governamental.
a política oficial do governo brasileiro, quedesde a presi NaAmérica Latina, onde o cosmopolitismo sempre foi
dência de Jânio Quadros tenta trazer aÁfrica pós-coloni matéria e reflexão de ricos e ociosos, de diplomatas e inte
al para o Brasil industrializado e levar o Brasil industriali lectuais, as relações interculturais de cunho internacional se
zado para a África pós-colonial, a fim de robustecer o davam principalmente no âmbito ou das chancelarias ou
sistema de exportação de bens de consumo. das instituições de ensino superior. Há casos tristes. Há
A iniciativa desse movimento cultural afro-brãsileiro
partiu de outra cantora, agora interiorana e operária,
Clara Nunes, que dizia ser "Mineira guerreira filha
de Ogum com Yansã". Carmen Miranda deixa de
ser o modelo de sambista. No lugar do
"tutti-fruti hat", o chocalho. Em casos extraordinários, como o dos modernistas brasileiros
1979/80, a ex-operária daindústria têxtil em Belo Horizonte desde a década de 20 do século passado. Não nos cabe
se apresenta na televisão brasileira vestida à moda de preta historiá-los agora. Tornou-se também moeda corrente,
angolana. Canta a canção "Morena de Angola", de Chico desdea criação tardia da universidade no Brasil, o convite
Buarque (incluída no disco Brasil Mestiço, 1980): "Morena a professores e pesquisadores estrangeiros para ajudar na
deAngola que leva o chocalho amarrado nacanela/ Será que formação das novas gerações na universidade. Exemplo
ela mexe ochocalho ouochocalho équemexe com ela?" No disso é o extraordinário relato de Claude Lévi-Strauss,
8-

Tristes trópicos, em particularo capítuloXI, "São Paulo". o Brasil (àexceção, é claro, do trabalho feito porantropó
Ali, o antropólogo define os interlocutores nacionais do logos e missionários junto aos índios). i./
casal francês: "Nossos amigos não eram propriamente Um exemplo extraordinário desse tipo de parceria se
pessoas, eram mais funções cuja importância intrínseca, encontra no grupo de teatro "Nós do morro"
menos que sua disponibilidade, parecia haver determina (grnmorro@mtec.com.br), surgido em 1986na favela do
do a lista. Assim, havia o católico, o liberal, o legitimista, Vidigal. As atividades culturais eartísticas do grupotrans
o comunista; ou, em outro plano, o gastrônomo, o cendem hoje os limites da favela e da linguagem teatral
bibliófilo, o amador de cães (ou de cavalos) de raça, de que os gestou. Participantes do grupo ocupam um lugar
pintura antiga, de pintura moderna; e também o erudito de destaque tanto na dramaturgia quanto no cinema na
local, o poeta surrealista, o musicólogo, o pintor". cional. No minucioso histórico redigido pelos participantes
Desde osanos 1960, a fundação de órgãos de fomento do grupo, lê-se: "Também em 1998, o grupo participou
à pesquisa (CAPES e CNPq) tem possibilitado que jovens deum importante projeto desenvolvido emconjunto com
pesquisadores e professores de nível superior aperfeiçoem organizações internacionais, que reuniu jovens de cinco
seus conhecimentos em universidades estrangeiras e que países com o mesmo perfil do "Nós do Morro", para a
professores/pesquisadores estrangeiros continuem a nos realização do curta-metragem Outros olhares, outras vozes.
visitar. Mais recentemente, os principais Estados da nação Como convidado, [o grupo] participou também do
criaram suas respectivas Fundações de Amparo à Pesquisa Fórum Shakespeare e teve o privilégio de ter aulas com
(FAPEs). Concluiremos nossas palavras com algo diferente. Cicely Berry, professora da Royal Shakespeare Company".
Há alguns anos, muitos dos ilustres visitantes estran Aproduçãodo recente e premiadofilme Cidade de Deus,
geiros percorrem outras partes da Terrae constituem no dirigido por Fernando Meirelles, formou oficinas de in
vos interlocutores. Deixam o asfalto, sobem até as favelas terpretação (coordenadas por Guti Fraga, o diretordo gru
e dialogam com gruposculturais que aliestão localizados. po teatral "Nós do Morro") que resultaram em atuações
Em contrapartida, muitos dos jovens artistas moradores elogiadas pela crítica e pelo público do Festival de Cannes
em comunidades carentes têm viajado a países estrangei - 2002. Mais de 110 atores não-profissionais, recrutados
ros e apresentado seu trabalho em palcos internacionais. nascomunidades carentes do Rio de Janeiro, fazem parte
Duas ou três décadas atrás, seria impensável esse tipo de do elenco de Cidade de Deus.
contato entre profissionais duma cultura hegemônica e
representantes jovens duma cultura pobrenum paíscomo Silviano Santiago é escritor e ensaísta.

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