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Maria Cecilia de Souza Minayo O DESAFIO DO CONHECIMENTO PESQUISA QUALITATIVA EM SAUDE 7.a EDIGAO © Direitos autorais, 1992, de reservados pela Editora Hucitec Ltda., Rua Gil Eanes, 713 - 04601042 Sio Paulo, Brasil. Telefones: (011)240-9818, 542-0421 ¢ 543-3581. Vendas: (O11) 543-8810. Fac: simile: (011)530-598. Foi feito o Depésito Legal. ria Cecilia de Souza Minayo. Direitos de publicacio E-mail: hucitecmandizcom.br Home page: www hucitec.com br ‘Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP) (Sandra Regina Vitzel Domingues) 1M 615 Minayo, Maria Ceca de Souza © desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em. sade. /Maria Cecilia de Souza Minayo. — 7. ed. — S30 Paulo : Hueitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 2000 269 p.;21 cm. - (Saide em Debate; 46) Bibligrafia:p. 255 ISBN 85-271-0181-5, 1, Pesquisas Socais — Metodologia 2. Sade Publica — Pesquisa 1 Titulo Il Série cop -618.072 fdice para catslogo sstemstico: 1, Pesquisas Sociais: Metodologia 614.072 2. Pesquisas: Sade Pablica 614.072 Introdusio Capitulo 1 Capitulo 2 Capitulo 3 Capitulo 4 Conclusao Bibliografia SUMARIO (© DESAFIO DO CONHECIMENTO INTRODUGAO A METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL FASE EXPLORATORIA DA PESQUISA FASE DE TRABALHO DE CAMPO FASE DE ANALISE OU TRATAMENTO DO. MATERIAL, 19 89. 105 197 249 255 CAPITULO 1 INTRODUGAO A METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL PRIMEIRA PARTE CONCEITOSBASICOS Esrz capitulo tem um objetivo introdutorio, Visa a concei- tuar alguns termos que constituem o objetivo a ser perseguido durante todo o trabalho. Pretende também problematizar a aborda- ‘gem da pesquisa social. Divide-se em duas partes que se complementam e que serio tratadas progressivamente no decorrer deste estudo. Na primeira etapa tratamos da especificidade da metodologia das ciencias sociais, definimos o conceito de metodologia, de pesquisa e tambem introduzimos a polémica que se instaura no meio cientifico entre © método quantitative e o método qualitativo. esforco inicial de conceituacao, dentro da dindmica que esta- belecemos durante todo 0 proceso de estudo, 6 ao mesmo tempo ‘uma problematizacdo que reflete as varias correntes de pensamento no interior das ciéncias sociais. Refere-se as miiltiplas possibilidades de abordagem metodol6gica ¢ seus pressupostos. As correntes de pensamento tém sua historia, veiculam uma visio de mundoe téma ver com a realidade social complexa onde foram geradas e que elas tentam expressar. No campo da satide, considerada esta como um fendmeno social de alta significacéo, o positivismo, a fenomenologia e a dialética ‘marxista sdoas principais tendéncias de interpretacao. Elas represen- tam no apenas diferentes possibilidades de andlise, mas uma luta 20 METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL ideol6gica que, por sua vez, tem a ver coma luta politica mais ampla na sociedade. ‘A Esreciricipape Da MeTopoLocta Da PEsquisa Soctat. Entrar no campo da Metodologia da Pesquisa Social é penetrar num mundo polémico onde hé questdes nao resolvidas e onde debate tem sido perene e ndo conclusive. primeiro tema mais problematico é 0 da diferenca ou nao entre (08 métodos especificos das ciéncias sociais e das ciéncias fisico- naturais e biolégicas. Temos que comesar enfrentando a questo, ainda que nao tenhamos respostas definitivas. Eo fazemos salientan- do alguns pontos que distinguem as Ciéncias Sociais e as tornam especificas, ja assinalados por Demo (1981). (O primeiro deles € 0 fato inconteste de que o objeto das Ciéncias Sociais ¢ histérico. Significa que as sociedades humanas existem num determinado espaco, num determinado tempo, que os grupos sociais que as constituem séo mutaveis e que tudo, instituigdes, leis, visoes de mundo sao provisérios, passageiros, estao em constante dinamis- ‘mo ¢ potencialmente tudo esta para ser transformado, Como conseqiiéncia do primeiro principio, podemos dizer que nosso objeto de estudo possui consciéncia histérica. Goldmann (1980, 117-104) nos introduz ao conceito de consciéncia possfvel e de consciéncia real, conceitos que podem nos ajudar a entender a especificidade das ‘ciéncias sociais. Deacordo com desenvolvimento das forcas produ- tivas, com a organizagia particular da sociedade e de sua dindimi interna, desenvolvem-se visdes de mundo determinadas que nem os ‘grupos sociais e nem os fildsofos e pensadores conseguem superar. Alguns grupos sociais e alguns pensadores logram sair do nivel de “senso comum” dado pela ideologia dominante, mas, mesmo assim, set conhecimento ¢ relativo e nunca ultrapassa os limites das rela- 0es sociais de producdo concretas que existem na sua sociedade. © Pensamento eaconsciéncia sao fruto da necessidade, eles nao sio um ato ou entidade, sio um processo que tem como base © proprio processo histérico, Desta forma as ciéncias sociais, enquanto consciéncia possivel, estao submetidas as grandes questes de nossa época e tém seus METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 21 limites dados pela realidade do desenvolvimento social. Portanto, tanto 08 individuos como os grupos e também os pesquisadores so dialeticamente autores ¢ frutos de seu tempo histérico. Uma terceira caracteristica das Ciencias Sociais €a identidade entre osujeito eo objeto da investigacao. Elasinvestigam sereshumanos que, embora sejam muito diferentes por razées culturais, de classe, de faixa etéria ou por qualquer outro motivo, tém um substrato comum {que 0s tornam solidariamente imbricados e comprometidos. ‘Outro aspecto distintivo das Ciéncias Sociais ¢ 0 fato de que ela é intrinseca e extrinsecamente ideolégice. Ninguém hoje ousaria negar a evidencia de que toda ciéncia ¢comprometida. Ela veicula interesses e vis6es de mundo historicamente construidas e se submete e resiste 0s limites dados pelos esquemas de dominacéo vigentes. Mas as ‘iénciasfisicas e biol6gicas participam de forma diferente docompro- metimento social, pois existe um distanciamento de natureza entre 0 fisico eo biologico em relagio a seu objeto, embora as descobertas da chamada “nova fisica” revelem 0 imbricamento relacional entre 0 pesquisador e a natureza: “o real 6a realidade que ele conhece”. Na investigacao social, porém, essa relagao é muito mais crucial. A visio de mundo do pesquisador e dos atores sociais estado implicadas em todo 0 processo de conhecimento, desde a concepeao do objeto até o resultado do trabalho. & uma condigio da pesquisa, que uma vez conhecida e assumida pode ter como fruto a tentativa de objetivacao do conhecimento, Isto é, usando-se todo instrumental teérico e metodol6gico que ajuda uma aproximagao mais cabal da realidade, mantém-se a critica nao s6 sobre as condigdes. de compreensao do objeto como do proprio pesquisador. Conforme nos adverte Lévy Strauss: “Numa ciéncia onde o observador éda mesma natureza que © objeto, o observador é, ele mesmo, uma parte de sua observacao” (1975, 215). Por fim, ¢ isso tem uma profunda importancia para este trabalho, ‘objeto das Ciencias Sociais 6 essencialmente qualitativo. A realidade social, que s6 se apreende por aproximacdo é, conforme Lénin (1955, 215), mais rica do que qualquer teoria, qualquer pensamento que possamos ter sobre ela. Pois o pensamento tende a dividir, a separar, a fazer distingio sobre momentos e objetos que se nos apresentam. Se 108 le Saude ou Doenga essas categorias trazem uma carga M3) 22 METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL. hist6rica, cultural, politica e ideol6gica que niio pode ser contida apenas numa formula numérica ou num dado estatistico. Gurvitch (1955), nos diz. que a realidade tem camadas e a grande tarefa do ‘pesquisador ¢ de aprender além do visivel, do “morfologico, e do ecol6gico” — que podem ser entendidos quantitativamente — os ‘outros niveis que interagem e tornam o social tao complexo. Neste sentido, é questiondvel porque redundantea denominacao" Pesquisa qualitativa” usada neste trabalho. Euma terminologiaimprépria que 86 tem sentido por oposicdo a “Pesquisa quantitativa’. A rigor qualquer investigacao social deveria contemplar uma caracteristica bbasica de seu objeto: © aspecto qualitativo. Isso implica considerar sujeito de estudo: gente, em determiinada condigao social, pertencente a determinado grupo social ou classe com suas crengas, valores e significados. Implica também considerar que 0 objeto das ciéncias sociais é com- plexo, contraditorio, inacabado, e em permanente transformagao. © Conceto pz Metopotocia A compreensio da especificidade do método das ciéncias sociais nos conduz.a pergunta especifica sobre 0 conceito de Metodologia Entendemos por metodologia ocaminhoeo instrumental proprios de abordagem da realidade. Neste sentido, a metodologia ocupa lugar central no interior das teorias sociais, poisela faz parte intrinse- a da visdo social de mundo veiculada na teoria. Em face da dialética, porexemplo, ométodo ¢ 0 proprio processo de desenvolvimento das coisas. [2nin nas ensina que o métadn nia # a forma exterior, 6 a propriaalmadocontetido porqueele fazarelagaoentreo pensamento e aexisténcia e vice-versa (1955, 148). Ha autores porém que consideram a metodologia como tendo um papel secundlario dentro das ciencias. A razao de ser dessa atitude & 0 fato de quea compreendam como um conjunto de técnicas a serem ‘usadas para se abordar o social Da forma como a tratamos neste trabalho, a metodologia inclui as concepgdes tedricas de abordagem, 0 conjunto de técnicas que possi- bilitam a apreensio da realidade ¢ também o potencial criativo do pesquisador. Enquanto abrangéncia de concepgoes tedricas de abordagem, a METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 23 ciéncia ea metodologia caminham juntas, intrincavelmente engaja- das. Por sua vez, 0 conjunto de técnicas constitui um instrumental secundario em relagdo a teoria, mas importante enquanto cuidado metédico de trabalho. Elas encaminham para a pratica as questoes formuladasabstratamente. Seu endeusamentoereificacaoconduzem a0 empirismo tao freqiiente ainda nas ciéncias sociais. Mas 0 con- Lrdrio, isto é, a excessiva teorizagao e a pouca disposicao de instru- ‘mentos para abordar a realidade, provenientes de uma perspectiva pouco heuristica, conduzem a divagacoes abstratas ou pouco preci- sas em relagdo ao objeto de estudo. Sea teoria, se as técnicas sio indispensdveis para a investigagao social, a capacidade criadora e a experiéncia do pesquisador jogam também um papel importante. Elas pociem relativizar o instrumental \écnico e superé-lo pela arte. Esta qualidade pessoal do trabalho cientifico, verdadeiro artesanato intelectual que traz a marca do autor, nenhuma técnica ou teoria pode realmente suprir. & em parte ‘que Wright Mills denomina “Imaginagao Sociologica” econsistena capacidade pessoal do pesquisador de fazer, das preocupagies s0- ciais, questoes pablicas e indagacoes perscrutadoras da realidade. E em parte ¢acapacidade de perceber através das questoes especiticas levantadas, as correlagoes multilaterais e sempre mutaveis que cer- cam a realidade objetiva, dentro dos limites da “consciéncia pos- sive’, Trata-se de um imbricamento entre a habilidade do produtor, sua experiéncia e seu rigor cientifico. © Concerto pe Pesquisa Soctat Entendemos por Pesquisa a atividade basica das Ciéneias na sua indagagdo e descoberta da realidade. E uma atitude e uma pratica te6rica de constante busca que define um processo intrinsecamente inacabado e permanente. f uma atividade de aproximacao sucessiva da realidade que nunca se esgota, fazendo uma combinacao particu lar entre teoria e dados. O termo Pesquisa Social tem uma carga hist6rica e, assim como as teorias sociais, reflete posigies frente a realidade, momentos do desenvolvimento e da dinamica social, preocupagoes e interesses de classes e de grupos determinados. Enquanto pratica intelectual re- 24 METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL flete também dificuldades e problemas proprios das Ciéncias Sociais ea sua relativa juventude para delimitar métodos e leis especificas. Do ponto de vista antropologico pode-se dizer que sempre existit a preocupagao do “homo sapiens” como conhecimento da realidade. As tribos primitivas, através dos mitos, ja tentavam explicar os fendmenos que cercam a vida ¢ a morte, o lugar dos individuos na organizagao social com seus mecanismos de poder, controle, con- vivéncia e reproducdo do conjunto da existéncia social. Dentro das dimensoes de espaco e tempo, a religiao tem sido um dos relevantes fendmenos de explicagdes as indagagées cos seres humanos sobre os significados da existéncia individual e grupal. Hoje, as perguntas humanas buscam solugées ainda concomitantemente nos mitos mo- dernos, nas mais diferentes formas religiosas, em sistemas filos6ficos particularmente nas Ciéncias. As Ciéncias nas sociedades industria- lizadas constituem os esquemas de explicagoes dominantes conside- rados mais plausiveis e intelectualmente aceitos. Nao nos cabe aqui uma discussio dessa prioridade; mas apenas advertir para 0 fato de que, se a ciéncia constitui uma forma de abordagem dominante, nem por isso se torna exclusiva e conclusiva Os problemas dos seres humanos e da organizacio social atuais trazem questdes frente as quais a ciéncia continua sem respostas ¢ sem formulagoes. Do ponto de vista histérico, no que aqui nos conceme peculiar- mente, a Pesquisa Social vem carregada de énfases ¢ interesses mais amplos do que seu campo especifico. Alguns autores como Schrader nos advertem que essa atividade intelectual na muinda moderna tem origem nos grupos contestadores das desigualdades da sociedade industrial. Muitos pesquisadores renomados como Lazarsfeld, Jaho- da e Gunnar Myrdal iniciaram suas carreiras de investigadores na busca de solucao para os problemas sociais causados pela Segunda Guerra Mundial (Schrader:1978, 818). Nos Estados Unidos, Schrader comenta que a pesquisa social nasceu na Yellow Press, isto é em jornais de critica social Sabemos, ao contrario, que na Inglaterra, os antropélogos avan- saram muito na compreensdo de sociedades primitivas financiados por interesses colonialistas. Porém, as investigagoes antropologicas levantaram questoes que contrariavam os interesses da metropole ¢ METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 25 dos. ianciadores como o relativismo cultural, o pensamento logico dos primitivos e a auto-suficiencia de sua organizacio social Aconclusao inicial é de quea pesquisa enquantoatividade intelec- tual sofre as limitagdes e contradig6es mais amplas do campo cienti- fico, dos interesses especificos da sociedade e das “questoes con- sagradas” de cada época historica. A partir da Segunda Grande Guerra, com a ampliacio do poder dos Estados sob 0 signo da industrializagao, o avanco da pesquisa social tem crescido junto com o interesse para se entender, organizar, regular e controlar a populagdo. Particularmente isso se reflete em campos como a economia, a demografia e a sociologia. Hoje termo Pesquisa em Politicas Sociais, a comecar pela Inglaterra € pelos Estados Unidos, passou a significar um campo de interesse cientifico que tem implicagdes imediatas do ponto de vista de do- ‘minagdo e controle do Estado. A proliferagao de centros de pesquisas sociais tanto nos paises industrializados como nos subdesenvolvidos tem a ver com 0 interesse do poder publico de conhecer, regular e controlar a sociedade civil. E 6bvio, trata-se de um interesse contra- ditério e conflitivo frente ao qual a sociedade civil, enquanto aparato de construgao de consenso social, faz as suas mediagoes e também expressa sua autoria e resistencia Do ponto de vista te6rico e formal existe uma classificagao tradi- cional que divide a Pesquisa em “pura” e “aplicada”. O metodélogo ce pesquisador Bulmer (1978, 8-35) refuta essa denominagao.Comenta que “pura ou basica” e “aplicada” referem-se a uma divisio falsa na medida em que pesquisas tedricas podem ter importantes conse- iiencias praticas e pesquisas aplicadas certamente tém implicagoes e contribuigdes tesricas. Essa dicotomia se baseia no modelo de tecnologia em que o cliente que paga explicita 0 que quer. Tal cexigéncia se torna inadequada as ciéncias sociais que nao estao em posigio de, mecanica e simplistamente, responder aos desejos dos clientes. Bulmer propde uma classificagio alternativa de Pesquisa Social, substituindo a divisao tradicional. As cinco modalidades, referidas abaixo, constituem, segundo o autor, “tipos” dentro de um continu- tum, sem exclusdo dos diferentes termos. Como o “tipo ideal” em Weber, elas seriam uma construcao teérica para compreensiio do 26 METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL campo de anilise, sem pretenderem reproduzira realidade ou tornd- aestanque: (1) Pesquisa bisicr: preocupa-se como avango doconhet mento através da construcao de teorias, 0 teste das mesmas, ou para satisfagao da curiosidade cientifica, Ela nao tem uma finalidade Pratica, embora as descobertas da pesquisa basica possam influenciar e subsidiar tanto politicas piblicas, decisées dos homens de negécio eoavanco do movimento social; (2) Pesquisa estratégica: baseia-se nas teorias das ciéncias sociais, mas orienta-se para problemas que surgem na sociedade, ainda que nao preveja solucoes praticas para esses problemas. Ela tema finalidade de langar luz sobre determina- dos aspectos da realidade. Scus instrumentos so os da pesquisa baisica tanto em termos te6ricos como metodologicos, mas sua fina- lidade € a agao. Essa modalidade seria a mais apropriada para conhecimento e avaliacdo de Politicas, e segundo nosso ponto de vista, particularmente adequado para as investigagdes sobre Satide; (3) Pesquisa orientada para um problema especifico: 6 em geral aquela realizada dentro das instituigoes governamentais ou para elas. Os resultados da investigagao sio previstos para ajudar a lidar com problemas praticos e operacionais; (4) Pesquisa-Agio: consiste numa investigagao pari passu ao desenvolvimento de programas governa- ‘mentais para medir 0 seu impacto. Esse conceito de Bulmer difere do conceito de pesquisa-acao apresentado por Thiollent (1986). Paracsse autor: “A pesquisa-acdo € um tipo de investigacao social com base cempirica que é concebida e realizada em estreita associagio com ‘uma ago ou coma resolucdo de um problema coletivo no qual os pesquisadores eos participantes representatives da situagao.ou do problema estdo envolvidos de modo cooperative ou participa- tivo". A diferenca bisica de conceituacao reside no fato que, no primeiro caso, a investigacdio acompanha a acao dos programas, mas ¢externa alas. No segundo, o envolvimento do pesquisador na acao ¢ parte integrante da pesquisa; (5) Pesquisa de Inteligéncia: s40 os grandes Jevantamentos de dados demograficos, econémicos, estatisticos, rea- lizados por especialistas ou por instituigdes, a fim de ajudar a METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 27 formulagao de politicas. No nosso caso, os Censos ¢ as Pesquisas do IBGE seriam exemplos classicos de pesquisas de inteligéncia. De alguma forma simplificada, as Pesquisas de Opiniao Pablica preen- cheriam também essa fungao sociolégica (Bulmer: 1978, 8-9). Bulmer comenta, referindo-se ao campo das Investigagoes Es- tratégicas, que a “Pesquisa Basica” tem tido, como sua marca perma- nente, uma forte orientacao unidisciplinar, dificultando sua relevan- cia possivel para as politicas pablicas. Na ponta oposta, os estudos interdisciplinares tem desapontado muito pela sua pouca consistén- Cia tebrico-metodol6gica. Segundo ele, os “surveys” se tornaram 0 reino do senso comum. Isto é, freqiientemente esto orientados: (a) pelo“empirismo” e pelo “positivismo” onde se parte do principio de que os fatos falam por si mesmos e que nada existe além dos dados; (6) pelos interesses politicos dos cientistas e/ou politicos que en- ‘comendam seu trabalho. O pressuposto desses estudos é de que 0s governantes e politicos precisam conhecer os fatos para poderem op- tar. Neste sentido, volta-se ao “empirismo”, minimizam-se 0s pro- blemas tedricos, diminui-se o papel do pesquisador que se torna um técnico-subalterno provedor de informagSes. A interpretagdo passa a ser conduzida por outros e com vis politico dado fora do ambito das ciéncias sociais. ara finalizar, podemos dizer que a Pesquisa Social ndo pode ser definida de forma estitica ou estanque. Ela s6 pode ser conceituada historicamente e entendendo-se todas as contradicdes e conflitos que permeiam seu caminho. Além disso, ela é mais abrangente do que o Ambito especifico de uma disciplina. Pois a realidade se apresenta como uma totalidade que envolve as mais diferentes areas de co- nhecimento e também ultrapassa os limites da ciéncia E assim, a pesquisa e os pesquisadores vivem sob 0 signo das contingéncias histéricas de sua atividade. De um lado estao as dificuldades de financiamento que cerceiam ou restringem as pos- sibilidades tanto da investiga¢ao como do encaminhamento de con- clusdes. Do outro, hé as grandes questées éticas e cientificas do pesquisador sobre a realidade e sobre o produto artesanal que rea~ liza: como vai ser empregado e interpretado? Ena corda bamba tanto da auséncia de consenso sobre conceito que trabalhamos e sua cientificidade, quanto dos objetivos sociais de 28 METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL nossa produgdo, que podemos refletir sobre Pesquisa e sobre Me- todologia de Pesquisa Social como 0 faremos neste trabalho. Quanrrranivo versus QuALITATIVo, SuBJEVO VeRsus OjerIvo Freqiientemente, de acordo com nosso ponto de vista, a discussao relativa aos métodos quantitativos e qualitatives na abordagem do social tem se desenvolvido de forma inadequada. A dicotomia que se estabelece na pratica, de um lado, deixa @ margem relevancias ¢ dados que nao podem ser contidos em niimeros, e de outro lado, as vezes contempla apenas os significados subjetivos, omitindo a rea- lidade estruturada. Diversas vezes voltaremos a esse tema no presente trabalho, repetindo autores que trabalham exaustivamente com a questio. Gurvitch, por exemplo, denomina a regio mais visivel dos fendme- nos sociais de “morfol6gica, ecolégica, area concreta” (1955, 140ss). Ecomenta que esse nivel admite uma expresso adequada através de equacoes, médias, graficos e estatisticas. O mesmo autor, porém, chama atencao parao fato de que, a partir dai torna-sedificil trabalhar com nimeros, uma vez que caminhamos para o universo de signifi- cases, motivos, aspiragies, atitudes, crenca e valores. Esse conjunto de dados considerados “qualitativos” necessita de um referencial de coleta e de interpretacao de outra natureza. No entanto, © proprio Gurvitch nos adverte que essas camadas so interdependentes, interagem e ndo podem ser pensadas de forma dicot6mica, ‘Aose desenvolver uma proposta de investigacin aut alémesmano desenrolar das etapas de uma pesquisa, vamos reconhecendo a conveniéncia e a utilidade dos métodos disponiveis, face ao tipo de informagoes necessarias para se cumprirem os objetivos do trabalho. Certamente, qualquer pesquisa social que pretenda um aprofunda- ‘mento maior da realidade ndo pode ficar restrita ao referencial ape- rnas quantitativo. Segundo Parga Nina, coordenador do tltimo ENDEF (Estudo Nacional de Despesas Familiares — 1974), 6 plenamente reconhecido em sociologia que a operacionalizagao das varidveis sociais, para construcio de indicadores que permitam a anélise quantitativa, tem levacio até bons cientistas sociais a elaborarem sobre algo muito fra- METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 29 gil, a0 “medirem” varidveis cuja operacionalizagao em indicadores ‘numéricos esté além das possibilidades das iéncias sociais (1983, 63) Este autor, enquanto parte da presidéncia do IBGE e responsavel pelo Departamento de Indicadores Sociais, propés a constituigao de um grupo de estudo “qualitative” que tentasse aprofundar aspectos da realidade brasileira que os indicadores numéricos apontassem como cruciais. Seu argumento é de que a aglomeracao dos dados apenas oculta efalseia aexisténcia de fendmenos de extrema relevan- cia para a compreensio da situacao do pais. Em conseqiiéncia, isso tem influéncia nas proposigées de politicas sociais." Nos comentarios sobre 0 trabalho, Parga Nina reconhece que esquisas qualitativas podem ser de qualidade muito superior as que fazem andlises quantitativas e chama atencao para o fato de que nao existe um continuum entre qualitativo-quantitativo em que a superioridade estaria no segundo termo. Cita Cicourel, de quem retira argumentos para seu trabalho no ENDEF: “Estes comentarios (feitos por Forgensen e Coombs) indicam 0 problema do sociélogo: (1) se seus conceitos te6ricos nao sao suficientemente precisos para orienté-lo quanto as formas de sistemas de mensuragdo que sao adequadas mensuracao de seus dados, entéo ha grande possibilidade de que venha a iludir a si proprio, impondo méto- dos que forcam a introdugio, na sua teoria e nos seus dados, de relagies incongruentes e interpretagoes falsas e (2) 0s proprios instrumentos de mensuracdo disponiveis séo inapropriados, pela natureza de sua construcao, ¢ levam assim, a mensuracio por fiat” endo a mensuragio literal” (Parga Nina, 1976, parte I, 50, apud Cicourel: 1969, 131). * Aomesino tempo em que corraolevantamento de dados sobrecondigbesde vida «de 52.000 pessoas (1974) 0 coordenador do ENDEF promoveus uma espécie de estudo “qualitative” recolhendo impressdes dos pesquisadores de campo sobre a realidade ‘enconteada, Esse conjunto de informagdes esta compilado em quatro volumes, dois ppublicados em 1976 e dose outros em 1978 denominados Estudo des InormaySesn0- ‘straturadas do ENDEF e sue integraio com os dados quantfcads. Segunda opiniaa de irios estudiosas da realidade do pats, a pesquisa nfo-estruturada transmite im presides to fortes que constituem tm acervo altamente significative junto com 08 dlados quantitativos 30 METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL A grande questao em relagio a quantificagio na anélise sociol6- gica 6 a sua possibilidade de esgotar 0 fendmeno social. Corre-se 0 risco de que um estudo de alto gabarito do pontode vista matematico ‘ou estatistico, em que toda a atengao se concentre na manipulacae sofisticada dos instrumentos de andilise — portanto, competente do ponto de vista estatistico — despreze aspectos essenciais da reali- dade. E assim muitas vezes teremos uma “resposta exata” para “perguntas erradas ou imprecisas” Essa discusso do “quantitativo” versus “qualitativo” tem sua origem nas diferentes formas de perceber a realidade social. Hughes nos avisa que a principal influéncia do positivismo nas ciéncias so- ciais foi a utilizacao dos termos de tipo matemtico para a compreen- sdo da realidade ea linguagem de varidveis para especificaratributos e qualidades do objeto de investigacao (1983). Os fundamentos da pesquisa quantitativa nas ciéncias sociais séo os préprios prineipios Positivistas cléssicos segundo os quais: (a) o mundo social opera de acordo com leis causais; (b) 0 alicerce da ciéncia ¢ a observacao sensorial; (c) a realidade consiste em estruturas ¢ instituigoes identi- ficdveis enquanto dados brutos por um lado, crengas e valores por outro, Estas das ordens sao correlacionadas para fornecer genera- lizagoes © regularidades; (d) 0 que € real sdo os dados brutos considerados dados objetivos; valores e crencas sio realidades sub- jetivas que s6 podem ser compreendidas através dos dados brutos (Hughes: 1983, 42-63) A questio do quantitative traz a reboque o tema da objetividade Isto 6, 0 dados relatives 4 realidade cocial seriam objetivos sc produzidos por instrumentos padronizados, visando a eliminar fontes de propensdes de todos os tipos ea apresentar uma linguagem observacional neutra. A linguagem das varidveis forneceria a pos- sibilidade de expressar generalizagées com precisio e objetividade. A restrigao que os contestadores do quantitativismo sociolégico Ihe colocam nao esta relacionada com a técnica. Isto é, no esti em jogoadesvalorizacao da anélise multivariada,aandlisecontextual ou de correlagées. Sio poderosos e reconhecidos instrumentos, supon- do-se a necessidade de dados aglomerados ou indicadores sobre coletividades. A critica esta no fato de se restringir a realidade social ‘a0 que pode ser observado e quantificado apenas. Adorno chega a METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 31 dizer que 0 método positivista empirico ameaga fetichizar seus assuntos e tornar-se a si mesmo um fetiche, na medida em que reduz a objetividade ao método e ndo atinge 0 contetdo (Adorno: 1979, 214-215). Essas criticas vistas a partir de vérios autores e teorias podem se resumir assim: (a) As abordagens quantitativas sacrificam os signifi- cados no altar do rigor matematico (Harrison: 1947, 10-21; Dilthey: 1956; Weber:1949;Schutz: 1963). (b) Existe umacrengaingenuadeque as distorgoes podem ser evitadas pela codificacao; Harrison comenta quea preferéncia do sociélogo pelo questionério reflete seu desprezo pela vida do homem comum; ¢ a critica aos elementos subjetivos da observacio indica a inabilidade de considerar seu trabalho objetiva- mente (Harrison: 1947). (c) A evidencia de que os métodos quantita- tivos simplificam a vida social limitando-a aos fendmenos que po- dem ser enumerados (Park & Burgess: 1921, V-VIN) (d) E ao fato de que quando fazem inferéncias para além dos dados, os socislogos trabalham aprioristica e preconceituosamente, tomando como fami- liar os fenémenos que acontecem, porque eles pertencem @ mesma sociedade que estao estudando (Harrison: 1947; Schutz: 1963) ‘Uma das formas de realizacao do positivismo, o funcionalismo na antropologia de certa forma ultrapassa os limites da teoria geradora Dentro de uma l6gica prépria, Malinowski adverte-nosem todaa sua obra para a necessidade de compreender: (a) tudo 0 que pode ser documentadoestatisticamente “medianteevidéncia concreta’, istoé, © “arcabouco da sociedade” ; (b) mas complementado pela “maneira como determinado costume observado, 0 comportamento dos nativos, as regras exatamente formuladas pelo etndgrafo, ou as proprias excegdes que, quase sempre, ocorrem nos fendmenos so- ciolégicos”; “0 corpo e o sangue da vida real que compoem 0 esqueleto das construgdes abstratas”; “os imponderaveis da vida real"; (c) 0 ponto de vista, as opiniGes e as expressdes dos nativos, isto 6, as maneiras tipicas do pensar e sentir que correspondem as instituigoes e a cultura de uma comunidade (1975, 54-60). Contudo sto ainda as regularidades, as leis gerais em seu funcionamento ¢ ‘em sua estrutura, isto é, a sociedade enquanto precedendo aos individuos que o funcionalismo procura, mesmo quando atinge a subjetividade 32. METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL © positivismo sociologico classico (Durkheim: 1978) atribui a imaturidade das ciéncias sociais 0 fato de ela nao ser capaz de prever ede determinar a acdo humana. As outras teorias que incorporam no seu Ambito a intersubjetividade, afirmam que a vida humana é essencialmente diferente e que essa diferenca fundantental em re- lagdo as ciéncias fisicas e biologicas requer um tratamento te6rico diverso, Podemos dizer que hoje, a0 mesmo tempo em que acontece informatizagio de todos os setores da organizacio social, existe uma revalorizacao do qualitativo nas ciéncias sociais, H4 um movimento em torno daquele aspecto para o qual Granger chama atengio: “o vivido", isto é, “a experiencia que é captada nao como predicado de um objeto, mas como fluxo de cuja esséncia temos consciéncia em forma de relembrancas: atitudes, motivagdes, valores e significados subjetivos” (Granger: 1967, 107). Trata-se no s6 de uma revalorizagao te6rica, mas da propria antropologia enquanto questio social. Schaff nos adverte que se trata de um “sinal dos tempos”: “O dominio da problemética antropol6gica na filosofia moderna resulta da necessidade de uma respostaa pergunta sobre aexistén- cia humana, numa época em que a mesma existéncia esta ameaca- da e os sistemas de valores fixados por tradigio esto abalados” (chaff: 1967, 10) No mesmo sentido, em seu livro O Problema do Homem, Buber distingue epocas de ascensio e queda do pensamento antropolé- gico, conforme o sentimento de solidao do ser humano. O autor ressalta que essa questo 56 alcanga maturidade em nossa 6poca, por dois motivos. O primeiro é a degeneracao de formas tradicionais da convivéncia humana com a familia, a comunidade rural, a vida urbana. O segundo, ¢ o proprio sentimento de perda de dominio, pelo homem, do mundo por ele eriado: “O homem deixa-se ultrapassar por suas préprias obras” (..) “O hhomem se encontra entio inte de um fato terrivel: criou demé- nos e nao sabe dominé-los”. (..) “Qual era, no caso, o sentido do METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 33 poder transformado em impoténcia? O problema se reduziu a pergunta sobre a natureza do homem, que ganhou um novo significado, sobretudo pratico” (1962, 19-63). Hoje, a questéo do homem enquanto ator social ganha corpo e faz emergirem,comtodaa sua forca, asciéncias sociais quese preocupam com 0s significados. Trata-se de uma énfase propria de nosso tempo em que se fortifica a introspeccao do homem, a observacao de si mesmo e se ressaltam questies antes passadas despercebidas. Isso 1ndo nos leva a menosprezar o método quantitativo, mas a colocé-lo como um dos elementos da compreensio no todo, Conduz-nos também a enfatizar as correntes de pensamemto que assumem como a esséncia da sociedade o fato do homem ser 0 ator de sua propria existéncia. Essa atoria e autoria em condigaes dadas é 0 material basico como qual trabalhamos na pesquisa social, e que pode ser traduzida em niimeros, graficos e esquemas, mas no se limita e ndo se resu- me ai Mannheim, considerado o fundador da sociologia doconhecimen- to, opbe-se ao positivismo que tenta tornar mensurdveis © dis- cemiveis sem ambigiiidade todos os fatos sociais. Comenta que ha certos termos téo carregados de valores que 86 um participante do sistema social estudado pode compreendé-lo, Chama atengao paraa participagao do sociélogo como observador da realidade que pesqui- sa e dliz-nos que isso pode significar o sacrificio do que as vezes se considera como necesséria “neutralidade e objetividade cientifica” Mas, acrescenta que o intento de obter objetividade, neste sentido, é lum positivo obstaculo aos conhecimentos sociolégicos: “esta claro que uma situagao humana s6 € caracterizavel quando se tomam em consideragao as concepgSes que os participantes tm dela, a maneira como experimentam suas tensdes nesta situa «ilo e como reagem a essas tensbes assim concebidas” (1968, 70) Completa afirmando que: “Para se trabalhar com ciéncias sociais é necessério participar do processo social, Mas essa participat consciente caletivo 34 METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL, no significa, de modo algum, que se falsifiquem os fatos ou que ‘eles sejam vistos incorretamente. Pelo contrario, a participacio no contexto vivo da vida social é uma pressuposigio da compreensiio da natureza interna de seu contetido. O desprezo pelos elementos qualitativos ¢ a completa restrigao da vontade nao constitui objtividade esim negagio da qualidade essencial do objeto” (grifo nosso) (1968, 73) ‘As palavras de Mannheim expressam 0 pensamento de varias correntes te6ricas das ciéncias sociais, mas ao mesmo tempo uma uta no campo intelectual em relacio ao positivism classico ou a0 psicologismo. O funcionalismo destaca a importincia do sentido} social da conduta humana, em oposicdo as atribuigdes individuais dos motivos dascondutas. Isto substitui as explicagoes subjetivistas das condutas pelos determinantes dos sistemas sociais e busca 0 sentido da inter-relagao entre as atividades. A sociologia compreen- siva de Weber nos diz.que o cardter definidor da acao social ¢ 0 seu sentido, “Na acdoesté contida toda aconduta humana, na medidaem que oator Ihe atribui um sentido subjetivo” (1969, 110). A fenomeno- logia, defendea idéia de queas realidades sociais sao construfdas nos significados e através deles, e 56 podem ser identificadas na medida ‘em que se mergulha na linguagem significativa da interagao social. A linguagem, as praticas e as coisas sio inseparaveis na abordagem fenomenolégica. Ela enfatiza os significados gerados na interagao social. No seu quadro de referéncia, o mundo se apresenta a0 individuo na forma de um sistema objetivado de designagées com- partilhadas de formas expressivas. O marxismo interpreta a reali- dade como uma totalidade onde tanto os fatores visiveis como as representagoes sociais integram e configuram um modo de vida condicionado pelo modo de produgao especifico. Nessa abordagem sublinha-se a base material como determinante da producéo da ‘consciéncia, mas assume-se a importancia das representagbes sociais ‘como condicionantes tanto na reprodugio da consciéncia como na construcao da realidade mais ampla, Ao invés de reconhecer na subjetividade a impossibilidade de construcio cientifica, essas abordagens acima referidas (cada uma com sua peculiaridade) consideram-na como parte integrante da singularidade do fenémeno social. Na medida em que acreditam -METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 35, quearealidade vai maisalém dos fendmenos percebidos pelosnossos sentidos, trabalham com dados qualitativos que trazem para 0 interior daandlise, osubjetivoe objetivo, osatores sociaiseo proprio sistema de valores do cientista, os fatos e seus significados, a ordem € 0S conflitos. Evidentemente, cada teoria tem seu modo proprio de lidar com os dados de acordo com a visdo de mundo que as sustenta. ‘A questi da objetividade ¢ entio colocada em outro nivel. Dada a especificidade das ciéncias sociais, a objetividade nao ¢ realizavel. Masé possivel a objetivacdo que inclui o rigor no uso de instrumental teGrico e técnico adequado, num processo interminavel e necessério de atingir a realidade. O que se pode ter dos fendmenos sociais, 6 menos um retratoe mais uma pintura conforme a imagem usada por Demo (1985, 73). Isto 6, seria imposstvel se descrever com tal fidedig- nidade a realidade que ela se tornasse transparente. Um retrato fixa ‘imagem eo momento, mas nao ¢ dinémico. ‘Ametifora da pintura nos inspira a idéia de uma projegao em que a realidade ¢ captada com cores e matizes particulares, onde 0s objetos e as pessoas sio reinterpretados e criados num processo de produgio artistica. Ninguém diz que uma pintura ¢ 0 retrato da realidade. uma dentre muitas possiveis imagens onde 0, autor introduz métodos e técnicas, mas onde predomina sua visio sobre 0 real e sobre o impacto que Ihe causa. Nessa obra entra tanto o que é visivel como as emogies ¢ tudo se une para projetar a visio da realidade. Certamente ha diferencas em relacao a obra de arte e a ciéncia social. A cigncia tem ednones mais rigidos ¢ seus limites séo também maiores em relagdo & percepcdo do real. Mas nao se pode desco- nnhecer que qualquer producio cientifica na drea das ciéncias sociais 6 uma criagdo e carrega a marca de seu autor. Portanto, a objetivacdo, isto 6, 0 processo de construgao que reconhece a complexidade do objeto das ciéncias sociais, seus pardmetros e sua especificidade € 0 ctitério interno mais importante de cientificidade. E preciso aceitar que 0 sujeito das ciéncias sociais nao ¢ neutro ou entao se elimina 0 ssujeito no processo de conhecimento. Da mesma forma, 0 “objeto” dentro dessas ciéncias ¢ também sujeitoe interage permanentemente com 0 investigador. ‘A ‘objetivagao” nos levaa repudiar odiscurso ingenuoou mal 36 METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 80 da neutralidade, mas nos diz. que é necessario buscar formas de reduzir a incursdo excessiva dos juizos de valor na pesquisa. Os métodos e técnicas de preparacéo do objeto de estudo, de coleta e tratamento dos dados ajudam o pesquisador, de um lado a ter uma visio critica de seu trabalho e, de outro, de agir com instrumentos que Ihe indicam elaboracées mais objetivadas. Conforme adverte Demo, no labor de investigacdo, a pratica nao substituia teoria e vice- versa (1985, 75). Muitas so também as criticas que podem ser feitas abordagem qualitativa, Vém dos mais diferentes pontos e atacando flancos variados. As mais freqiientes seriam: a) 0 empirismo de que sio acometidos muitos pesquisadores que passam a considerar ciéncia a propria descrigao dos fatos que lhes so fornecidos pelos atores sociais. Dele estao imbuidos aqueles que consideram a versio das pessoas sobre os fatos como a propria verdade. J Durkheim cha- mavaatencdo para este problema (1978, 27ss);b)aénfase na descricao dos fenémenosem detrimento da andlise dos fatos;) oenvolvimento do pesquisador com seus valores, emogdes e visio de mundo na andlise da realidade; d) adificuldade emi de trabalhar com “estados mentais”, As criticas em relagdo a abordagem qualitativa na verdade sio constatagées das falhas e das dificuldades na construcao do conhe- cimento, Mas as “ciéncias sociais ndo podem deixar de estar perma- nentemente engajadas num discurso com seu proprio objeto de estudo: um discurso, no qual tanto o investigador quanto 0 assunto compartilham dos mesmos recursos” (Giddens: 1978, 234). ‘Cremos que a polémica quantitativo tersus qualitativo, objetivo versus subjetivo nao pode ser assumida simplistamente como uma ‘opcio pessoal do cientista ao abordar a realidade. A questo, a nosso ver, aponta para o problema fundamental que ¢ o proprio carster especifico do objeto de conhecimento: o ser humano e a sociedade. Esse objeto que ¢ sujeito se recusa peremptoriamente a se revelar apenas nosniimeros ou ase igualarcom sua propria aparéncia. Desta forma coloca ao estudioso o dilema de contentar-se com a proble- ‘matizacao do produto humano objetivado ou de ir em busca, tam- ‘bém, dos significados da ago humana que constr6i a historia. E um desafio na busca de caminhos. METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 37 SEGUNDA PARTE LINHAS DE PENSAMENTO “Bnvolver uma teoria com 0 The uma caracteristiea no realizsvel historicamente, Na mais prejudicial a0 procesea cienifica que o apego a enun ciadosevidentes, nto discutveis Somente na to dizer que a ciéncia éa interpretagso verdad dade, porque na pric, toda inlerpretagio realiza apenas ‘uma versio hstoricamente possivel” (Demo: 1961, 25). Antes de nos introduzirmos no campo especifico da Metodologia da Pesquisa social, vamos fazer algumas consideracoes prelimina- res que julgamos fundamentais para a pratica de investigacao. A primeira delas é de que nenhuma pesquisa é neutra seja ela qualitativa ou quantitativa. Pelo contrério, qualquer estudo da rea- lidade, por mais objetivo que possa parecer, por mais “ingénuo” ou “simples” nas pretens6es, tem a norted-lo um arcabouco te6rico que informa a escolha do objeto, todos os passos e resultados teéricos praticos, im conseqiiéncia, podemos classificar as elaboracdes sobre o social, grosso modo, dentro de alguma corrente de pensamento los6fica ou sociolégica, mesmo que essa filiacao, para seus autores, seja algo inconsciente. Por outro lado, podemos dizer que nenhtima das linhas de pensa- mento sobre o social tem 0 monopélio de compreensio total e completa sobre a realidade. A ela nos acedemos sempre por aproxi- magao e usando uma frase de Lenin, citada por Lukacs, afirmamos que “a marcha do real é filosoficamente mais verdadeira e mais profunda do que nossos pensamentos mais profundos” (1967, 235). Tendo em vista que nosso campo especifico ¢ o das Ciéncias So- ciais em Satide, desenvolveremos algumas idéias dominantes nessa {irea, que varios autores identificam com o positivismo sociolégico, a fenomenologia sociologica ecomo materialismo hist6rico. Tomamos ‘como referenciais as andlises sobre o tema, realizadas por Everardo Nunes (1983), 1985) Juan César Garcia (1983) e Donnangelo (1983), Em Ciencias Sociais ¢ Saiide na América Latina, Nunes toma 1663 referéncias de produgao tebrica na drea entre os anos de 1950 a 1979, Ie 0 analisa dentro de um marco referencial classifica © mate 38. METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL histérico-estrutural, em termos de: (@) Medicina Tradicional; () Servicos de Satide; (c) Processo Satide/Doenga; (i) Formagao de Recursos Humanos. Noestudo do material referido, Nunes aprofunda varias questoes ‘que nao constituem objeto de nossa preocupagao neste trabalho, mas enfatiza também um enfoque que nos toca particularmente: as cor- rentes de pensamento da producao intelectual do periodo recortado, articulando-se com as preocupagées mais amplas da sociedade nos varios momentos histéricos ecoma base material de sua emergéncia ‘Sem querer marcar etapas estanques, Nunes mostra que na dé- cada de 50 as pesquisas estiveram marcadas pelas teorias funciona- listas e culturais, servindo a implementagdo de desenvolvimento e organizacio de comunidade. Nas décadas de 60 e 70, as abordagens fenomenoldgicas estardo efetivamente presentes no campo do pensamento sobre satide. Elas questionardo a onipoténcia e onipresenca do Estado sobre os indi- vviduos e sobre os grupos de referencia imediata dos individuos ea arbitrariedade impositiva das classes dominantes através do sistema de satide. £ uma reacao de negatividade dos principios positivistas e funcionalistas, em favor de uma afirmacao dos direitos individuais, do principio da autonomia das pessoas e grupos mediadores frente a0 Estado e as grandes instituigdes médicas. uma reflexao sobre os significados subjetivos e uma condenagao teérica do anonimato, das leis gerais e das invaridncias proprias do positivismo sociolégico, ‘Segundo Nunes, a partir dos anos 70, ha um grande incremento da producao intelectual na drea da satide, dentro do enfoque marxista. ‘Chama atengao para ofato de cla terno seu bojo uma critica histérico- estrutural da fragilidade e fragmentacao das andlises e propostas priticas da fenomenologia e positivism. Essas trés correntes de pensamento continuam presentes, atuan- tes e em luta entre si, nas anilises referentes a relacdo Satide/ Sociedade. Fazem parte da propria luta ideologica da sociedade atual, onde as visoes sociais de mundo esto comprometidas com posturas concretas na pratica tebrica e politica Garcia (1983) nos adverte que nenhuma delas, hoje, desconhece a vinculagao da medicina com a estrutura social. A questo baisica de ‘cada uma reside no como se da essa vinculagéo e em que grau de METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 39 autonomia ou dependéncia situa 0 fendmeno satide-doenca enquan- to manifestacéo biolégico-social. O debate interno das diferentes correntes sociol6gicas reflete a dificuldade do pensamento de apre- ender o objeto em toda a sua complexidade e articulacoes. Neste trabalho tentaremos refletir os dilemas, as contradigoes e as perspectivas dessas linhas de pensamento, enquanto possibili- dades de construcdo tedrica do conhecimento sociologico no campo da satide e sua articulagéo com as bases sociais em que sdo en- sgendradas, © Positviso SocioLocico © positivismo constitui a corrente filosofica que ainda atualmente ‘mantém o dominio intelectual no seio das Ciéncias Sociais e também na relagao entre Ciéncias Sociais, Medicina e Satide. As teses basicas do positivismo podem ser assim resumidas: (1) A realidade se constitui essencialmente naquilo que nossos sentidos podem perce- ber; (2) As Ciéncias Sociais e as Ciéncias Naturais compartilham de um mesmo fundamento légico e metodol6gico, elas se distinguem apenas no objeto de estudo; (3) Existe uma distincdo fundamental entre fato e valor: a ciéncia se ocupa do ato e deve buscar se livrar do valor. A hip6tese central do positivismo sociol6gico é de que a socieda- dehumana é regulada por leisnaturais que atingem ofuncionamento da vida social, econdmica, politica e cultural de seus membros. Portanto, as cigneias sociais, para analisar determinado grupo ou comunidade, tém que descobrir as leis invariaveis e independentes de seu funcionamento. Daf decorre que os métodos e técnicas para se conhecer uma sociedade ou determinado segmento dela so da mesma natureza que os empregados nas ciéncias naturais. E ainda mais, da mesma forma que as ciéncias naturais propugnam um conhecimento objeti- Vo, neutro, livre de juizo de valor, de implicagoes politico-sociais (0 ‘que se pode colocar também em questo no debate aberto a respeito dessa ciéncias) também as ciéncias sociais devem buscar, para sua clentificidade, este “conhecimento objetivo”. Noutras palavras, 0 lentista social deve se comportar frente a seu objetivo de estuclo = 40. METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL a sociedade, qualquer segmento ou setor dela — livre de juizo de valor, tentando neutralizar, para conseguir objetividade, na sua propria visao de mundo. Na prtica,a postura positivistaadvoga uma ciéncia social desvin- culada da posicdo de classe, dos valores morais e das posigoes politicas dos cientistas, e acredita nisso. Denomina “pré-juizos”, “"pré-conceitos", “pré-nogdes” ao conjunto de valores e opcoes politi- co-ideologicas do pesquisador, limites a serem transpostos para que ele faca ciencia (Durkheim: 1978, 46). Lowy nos aponta alguns dados hist6ricos esclarecedores sobre 0 positivismo (1986, 33-50). Diz-nos que a ciéncia positiva tem suas raizes na filosofia das luzes no século XVII Para Lowy 0 pai do positivismo ¢ Condorcet, um enciclopedista (Lowy: 1986, 33-50). Condorcet formulou dle forma clara e precisa a idéia de que a ciéncia da sociedade deveria ser uma Matematica Social, formulada como estudo numérico e rigoroso dentro das teorias probabilisticas. Considerava que, da mesma forma que nas ciéncias fisicas e mateméticas, os interesses e as paix6es nao pertur- bavam, assim deveria acontecer com as ciéncias sociais (Condorcet, in Mora: 1984, 5801, 4. ed.) Oautoratribuia as dificuldades no progresso do conhecimento da realidade social, ao fato de que o social era, no seu tempo, objeto de interesses religiosos ¢ politicos. Dai que a meta das ciéncias sociais seria conseguir uma elaboragdo “livre de preconceitos” Ainda que possa parecer estranho, comenta Lowy, 0 pensamento de Condorcet, para sua época, era critica e, até certo panto, revolu- ‘cionério. Dirigia-se contra as classes poderosas dominantes da épo- ca: a Igreja, 0 poder feudal e 0 Estado oligérquico, que se atribuiam ‘controle de todo 0 conhecimento cientifico. Condorcet indicava a necessidade de romper com esse monopélio do saber, livrando as cidncias da sociedade, dos interesses e paixdes das classes feudais, das doutrinas teolégicas, dos argumentos de autoridade da Igreja e de todos os “dogmas fossilizados” Lowy inclui entre os discipulos de Condorcet e defensor de suas ideias, 0 socialista ut6pico Saint-Simon (Lowy: 1986, 50-60). Este autor chamavaa ciéncia da sociedade de “fisiologia social”. Conside- rava que ha dois tipos de época hist6rica: as épocas criticas, necessa- METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 41 rias para eliminar as fossilizagoes sociais, e as épocas organicas que so momentos historicos de estabilidadee de funcionamento normal Em seu tempo, segundo ele, havia algumas classes parasitas do organismo social (oclero e aaristocracia) que deviam darlugara uma nova forma de organizagao para que 0 corpo social funcionasse regularmente. Saint-Simon tinha um projeto da nova sociedade, baseado nao na igualdade, mas numa piramide de classes que elevaria a capacidade produtiva dos homens ao grau maximo de desenvolvimento. Segundo ele, a moral e as idéias tém que ser distintas para as distintas classes fundamentais, a fim de que a sociedade seja livre e dedicada a producdo. A igreja deveria ser substitufda pela fabrica (Saint Simon, in Mora: 1984, 2915s.) Da mesma forma que a “matemitica social” de Condorcet, a “fisiologia social” de Saint-Simon trazia no seu interior uma critica ‘0 sistema social de seu tempo, as classes dominantes e apelava para mudangas condizentes com a nova sociedade industrial que se instalava, Lowy comenta que 0 positivismo, até 0 inicio do século XIX, aparece como uma visdosocial-ut6pica-critica domundo. Oautor usa ‘© tempo ut6pico no mesmo sentido de Karl Mannheim em Ideologia e Utopia (1968, 31-134). Mannheim distingue os conceitos de ideologia e utopia. A primeira seria constituida por concepgdes, idéias, repre- sentagdes e teorias que se orientam para a estabilizacao, legitimagao © reprodugao da ordem vigente. [deologias seriam 0 conjunto das doutrinas e teorias de carater conservador, isto 6, servem para a manutengao do sistema social de forma geral. Pelo contririo, as Utopias seriam as representacoes, idéias e teorias que tém em vista uma realidade ainda inexistente. Trazem no seu bojo uma dimensio critica, de negagao, ruptura e possibilidade de superacao do status quo. E neste sentido que podemos falar dos elementos “ut6picos” no positivismo de Condorcet e Saint-Simon, © mesmo nao se poderia dizer das teorias de Augusto Comte, ‘embora este autor se considerasse herdeiro dos dois primeiros. Para mie o pensamento teria que ser totalmente positivo. Isto é, elimi nudo todo 0 conteddo critico de sua anilise, os cientistas descobri- ram as leis da sociologia. E como conseqiiéneia, a partir de seu método positivo, 0 cientista deveria se consagrar tebrica ¢ pratica- 42. METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL, mente @ defesa da ordem social. © positivismo em Comte e seus sucessores tem uma conotacao politica conservadora, contréria a0 ‘queconsideram"negativismo” perigoso das doutrinascriticas, destru- tivas, subversivas e revoluciondrias da Revolucdo Francesa e do Socialismo (Comte: 1978, 44-115; Durkheim: 1978, 132-161), Comte formulou uma teoria social, a que, num primeiro momen- to, denominou Fisica Social. Afirma ele: “A Fisica Social € uma ciéncia que tem por objetivo o estudo dos fendmenos sociais, considerados no mesmo espirito que os fe- némenos astronémicos, fisicos, quimicos e fisiol6gicos” (1978, 13). Explica que, da mesma forma que existe na natureza, ha uma ordem interna que rege a sociedade, que encaminha para a harmonia, 0 desenvolvimento e a prosperidade. Ao cientista social caberia desco- brir essa ordem ¢ explicité-la aos leitores para que, a partir de sua compreensio, a estabilidade social fosse mantida, ‘Comte considera importante que os sociélogos expliquem aos proletarios a lei que rege a distribuicao de riquezas, concentragio de poder econémico e seu lugar na sociedade. Esses elementos seriam resultantes da propria natureza da organizagao social, que tem suas leis invariantes. Segundo ele, gracasao positivismo, os trabalhadores reconheceriam as vantagens da submissao e de sua “irresponsabili- dade” no governo da sociedade. Desta forma, o positivismo como “citncia livre de juizo de valor e neutra” contraditoriamente se proporia a nao amaldigoar os fatos politicos mas aceité-los ¢ legitima-los (Comte: 1978, 82-87). Vejamos as proprias palavras do autor: “O positivismo tende poderosamente, pela sua prépria natureza, aconsolidar a ordem publica, pelo desenvolvimento de uma sabia resignagéo, Porque nao pode existir uma verdadeira resignacao, isto é uma disposigao permanente a suportar com constancia e sem nenhuma esperanca de mudanca, os males inevitaveis que regem todos os fendmenos naturais, sendo através do profundo sentimentodessas leis inevitaveis. A filosofia positiva que criaessa METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 43 disposicao se aplica a todos os campos, inclusive aos males politi- cos” (1978, 70). Assim, segundo Comte, 0s distintivos do espirito positivista se- riam o senso de realidade, a utilidade, a certeza, a aptidao organica €.0 bom senso pratico (1978, 625). Nao se pode admirar, a partir das idéias referidas, queo positivismo combinassee fundamentasse todo oconservadorismo politico e legitimador de situagoes vigentes. Vale Jembrar que 0 lema de nossa bandeira nacional republicana, 0 “Ordem e Progresso” tem no papa do positivismo sua inspiracao, ¢ ‘emsua filosofia social, a Repiblica tema base de concepgao da pratica politica No campo da sociologia propriamente dita, foi mile Durkheim quem primeiro fundamentou as possibilidades te6rico-metodologi- cas do positivismo para compreensio da sociedade. Reconhecendo- se como discipulo de Comte, Durkheim se aplicou a pensar a especi- ficidade do objeto da sociologia, relacioné-la com as outras ciéncias ¢ langar os fundamentos ce um método para pesquisa social, Paraele, oescopoda sociologia éestudarfatosque obedecam aleisinvariaveis, de forma objetiva e neutra. Os “pré-juizos” e as “pré-nogoes” prove- nientes da ideologia e da visdo de mundo do sociélogo tém que ser combatidos ¢ eliminados do trabalho através de regras do método cientifico: “a sociologia nao ¢ nem individualista e nem socialista", dizia ele (1978, 27) Portanto, se um cientista social tem suas preferéncias politicas, se simpatiza com os operirios ou com os patrées, se é liberal ou se é ista, tem por obrigacao, como cientista, calar as paixdes e 56 nesse siléncio iniciar seu estudo objetivo e neutro (1978, 160). Durkheim insiste, com todo rigor, que a sociedade ¢ um fendme- no moral, na medida em que os modos coletivos de pensar, perceber, sentire agirincluem elementos de coercao e obrigacao, constituindo assim uma consciéncia coletiva que se expressa na religiao, na divisdo do trabalho ¢ nas instituigées. ‘Sua preocupagio foi, considerada a sociedade como” coisa’, criar lum método que pudesse descrever os fatos sociais, classificé-los ‘com precisao e de forma independente das idéias do cientista sobre ‘ realidade social 44. METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL Dat que, para ele, a tarefa do cientista ¢: (a) descrever as caracte- risticas dos fatos sociais; (b) demonstrar como eles vém a existir; (0) relacioné-los entre si; (d) encontrar sua organicidade; (¢) tentar separar as “representacoes" dos fatos dadas pelas idéias que fazemos deles, da “coisa-real” (1978, 70-160). Durkheim distingue as categorias do “senso comum” como sendo 08 conceitos usados pelos membros da sociedade para explicar e descrever 0 mundo em que vivem; e os “conceitos cientificos” que descrevem, classifica, explicam, organizam e correlacionam os “fatos sociais” de forma “objetiva”. Insiste que as causas dos fatos sociais devem ser buscados em outros fatos sociais e nao na teologia ou nos individuos (1978, 73-161) ‘Uma das principais influéncias do positivismo nas ciéncias sociais foi marcada pelo lugar de destaque concedido a pesquisa empirica na producdo do conhecimento. Metodologicamente isso significou descobrir as caracteristicas de regularidades e invaridncias dos fatos sociais e descrevé-las. E por “fato social”, Durkheim entende "toda maneira de fazer, fixada ou nao, suscetivel de exercer sobre 0 individuo uma coagio exterior” ou ainda “o que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existéncia propria, independente das manifestagées individuais” (1978, 92s) Para descobrir as regularidades, Durkheim e os positivistas em geral invocam a imagem do organismo humano, enfatizando os termos “estrutura” e“fungao", “morfologia” e “fisiologia” que diferenciam maneiras de fazer e de ser cristalizadas, onde apenas a diferenga de grau distingue essa ordem de fatos observaveis interligados (1978, 90-93). positivismo sociolégico domina ainda hoje as Cincias Sociais. Porém é alvo de muitas criticas. © primeiro problema que surge a partir da concepsao positivista ¢ a constatacdo de que os seres humanos nao so simples forma, tamanho e movimentos: possuem ‘uma vida interior que escapa a observacio primaria. Dai a dificul- dade na pratica dle pesquisa da “neutralidade” e da “objetividade” Seria necessario desconhecer, ignorar, considerar irrelevantes os estados mentais tanto do observador como dos atores sociais. A resposta de Durkheim é de que esses fendmenos poderiam ser -METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 45 observados através de manifestagoes comportamentais exteriores, como indices dos primeiros. A histéria do positivismo tem revelado que a concepgao que se julga independente dos juizos de valor se encaminhou na pratica para a utilizagdo dos termos de tipo matematico e um deles & a linguagem das variaveis. A conseqiiéncia imediata foi o desenvol- vimento extremamente rapido de métodos de pesquisa de base estatistica, tais como amostragem, escala, métodos de andlise de dados (como a regressio, a correlagio e téenicas multivariadas) Desenvolveu-se uma tendéncia a usar instrumentos de andlise como se eles falassem por si mesmos, na ilusao de que nada ha além deles, segundo os ensinamentos de Durkheim no Prefacio a primeira edigao das Regras do Método Sociolégico: “Nao podemos cair na tentagao de ultrapassar 0s fatos, quer para explicé-los, quer para explicar 0 seu curso. (..) Se eles sa0 inteira- menteinteligiveis, entao bastam tanto aciencia, porque, nestecaso, nao ha motivo para procurar fora deles propriosa sua razao de ser; 8 pratica, porque o seu valor uitil ¢ uma das raz6es” (1978, 74). Desta forma os dados so considerados objetivos se sao produ- zidos por instrumentos padronizados, visando a eliminar fontes de propensao de todos os tipose apresentar uma linguagem observacio- nal neutra. A linguagem das variagées representaria a possibilidade de expressar generalizagSes com objetividade e prec As questéesa serem levantadas ultrapassam os limites do debate sobre técnicas de pesquisa. Certamente a anilise multivariada, a anilise contextual, a correlacao sao instrumentos poderosos para a compreensio de dados aglomerados, supondo-se a realidade de {grandes coletividades. Sao importantes para a construgao de indi lores, para as chamadas “ pesquisas de inteligéncia” como 0s censos e outras modalidades de construgées quantitativas. O problema é 0 dla autorizagao, em primeiro lugar e em termos quase absolutos, des- ta forma de interpretacao do social, em que a realidade se restringiria 0 observivel e ao quantificavel 46 METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 0 Funcionalismo ‘Uma das variantes do positivismo sociol6gico ¢ 0 FUNCIONALISMO, cujos representantes sio, na antropologia inglesa, Malinowski ¢ Radcliffe-Brown e, na sociologia americana, Merton e Parsons. C2r- tamente que o positivismo nao se constitu simplesmente como uma ciéncia normativa com um conjunto de regras uniformes. Cada autor tem peculiaridades em sua forma tedrica de concepgao e andlise da realidade. Mas hé um substrato basico, uma postura frente ao objeto de estudo que pode nos levar a colocar lado a lado Merton, Parsons, Radcliffe-Brown e Malinowski. O funcionalismo tem sido a corrente de pensamento (dentro do positivismo) mais expressa na area de satide. Os funcionalistas se diferenciam de Comte ¢ Durkheim na medida em que negam as leis gerais que regem o funcionamento da sociedade como um todo. Também nao reduzem a ciéncia do social jo de acontecimentos ou fatos observaveis. Desenvolvem um tipo de teoria especialmente aplicavel a compreensio daestrutura social eda diversidade cultural que pode ser resumida nos principios que se seguem: (a) As sociedades sao totalidades que se constituem ‘como organismos vivos. Sio compostas por elementos que intera- gem, inter-relacionam-se e so interdependentes. Sao sistemas onde cada parteseintegrano todo como subsistema, produzindoequilibrio, estabilidade, ¢ sendo passivel de ajustes e reajustes. (b) Por isso -mesmocada sociedade tem seusmecanismosdecontrole para regular as influéncias eventuais de elementos externos ou internos que ameacem seu equilibrio. “Desvios” e “disfuncoes” fazem parte da concepsio do sistema que através dos mecanismos proprios de controle tendem a ser absorvidos, produzindo a integracao. Esta 6 a tendéncia viva do sistema. (c) A integracao se consegue pelo consenso através de crencas, valores e normas compartilhados socialmente pelos subsistemas que interagem constantemente ¢ se reforcam mutuamente. (@) A conceituacao de progresso, de desenvolvimento 2 Para melhor compreensio do Funcionalismo recomensdamos a leitura de: Mali- ‘nowski, La Teoria Cientfc da Cultura, RJ, Zahar Ed. 1975; Os Argonauts do Pacifico, R), Ed. Abril, 1978; Radliffe-Brow, Estrature e Fungia na Sociedade Prinitive, RJ, Vozes, 1973; Robert Merton, Sociologia: Teoria eestra“ura; S.C. Ed. Mestre Jou, 1970; Talcott Parsons, The Social System, Glencoe lino, Te Free Press, 1951. METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 47 ede mudancas € adaptativa. O sistema social tem em sia tendéncia conservacdo e a reproducio, por isso as inovagdes, invengdes € tensdes se direcionam para a revitalizagio do sistema e sto absorvi- das no seu interior. Como num organismo vivo cuja estrutura per- -manece e se revigora no movimento funcional, as mudangas sociais no atingem as estruturas, ndo so revoluciondrias. Passam-se a0 nivel da superestrutura que tem a funcio de adaptacio e de ma- nutengdo do “status quo” (Hughes: 1983, 42-63; Timasheff: 1965, 287-298). (Qs conceitos centrais do funcionalismo (sistema, subsistema, es- trutura, funcio, adaptacio, integragao, desvio, consenso etc.) so coerentes com o positivismo sociol6gico, para quemasleis que regem 05 fendmenos sociais so intemporais, invaridveis e tendentes estabilidade e a coesao. A implicagao metodol6gica de ambos (posi- tivismo sociol6gico e o funcionalismo como uma de suas variantes) éde que as totalidades funcionais, ainda que a investigagao nao seja de orientagio empiricista, sejam repetidas dentro de condigées empiricas de produgao dos fenémenos. Sua empresa principal & reproduzir as condigées globais da existéncia social de qualquer ‘grupo, descrevendo-as em sua complexidade, diversidadee movimen- to integrativo, de tal forma que possam ser comparadas. Dentre os funcionalistas, Parsons tem para nés uma relevancia fundamental porque este cientista americano aplica a teoria funcio- nalista a explicacao da medicina e das relagées médico/ paciente em seu pafs. Em sua obra The Social System (1951), 0 tema central 6 0 funcionamento das estruturas das instituicées, cansideradas, estas, ‘como 0 nédulo da Sociologia. AS instituig6es constituem, para ele, 0 ‘mecanismo integrativo fundamental dos sistemas sociais, definidos ra como uma pluralidade de agentes individuais interagindo, ora como uma rede de relagoes entre agentes. Nesta obra 0 conceito de satide/doenga explicitado pelo autor é ccoerente com sua visio funcionalista: “f um estado de perturbacao no funcionamento normal do indi- viduo humano total, compreendendo-se o estado do organis- mo como o sistema biologico e o estado de seus ajustamentos I" (1951, 48), 48. METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL Uma andlise lingiifstica destacaria, na definigdo, ojargiofunciona- lista: estado, funcionamento, normal, organismo, sistema, ajusta- mento. No conceito, o biologico se vincula ao social através da nocao de equilibrio ou desequilibrio individual frente as presses sociais. A doenca é, para Parsons, “uma conduta desviada” e o doente ¢ um personagem social que se reconhece na forma como a sociedade institucionaliza o desvio e assim o assimila e o integra Daf que os papéis e fungdes de médico e paciente sao complemen- tares. A prética médica ¢ um mecanismo do sistema social para reconduzir 0 doente a normalidade, mas que também reconhece seu desvio eo institucionaliza. Ela tem por finalidade o controle dos desvios individuais. Juan César Garcia, em seu estudo sobre as correntes de pensamento na medicina, faz uma critica contundente ico. Ao a0 funcionalismo de Parsons quando analisa o sistema mé definir a pratica da medicina, diz ele, pela finalidade de curar e prevenir as doencas, Parsons se limita a descrever como ela funciona © aparece em forma de fendmeno observavel, desconhecendo as condigées de sua produgio e reprodugdo. Reduz a concep¢ao de doenca a nogio de “desvio” colocando-a no ambito exclusive do paciente e do médico. Enfatiza seus respectivos papéis como atores sociais no conjunto da sociedade considerada harmonica e equilibra- da, Como conclusio, coloca na maior ou menor suscetibilidade individual as tensdes sociais, a responsabilidade da doenca. Desco- rece 0s conflitos existentes na sociedade, os interesses que perpas- sama medicina como uma producao social eas determinagoes sociais da satide/doenca (Garcia: 1983, 104-108) Concluimos dizendo que o positivismo e sua forma particular denominada funcionalismo sociolégico tem sido as correntes de pensamento com maior influéncia e vigor na produgao intelectual referente a questio das Ciencias Sociais e a Satie. Tal fato nao nos pode estranhar, na medida em que sao estas teorias que melhor se prestam para conservar e justificara prética médica hegeménica e os enfoques priticos no tratamento dos doentes e das doengas. A referéncia mais atual que possuiimos para esta constatacao éa analise intensa e minuciosa realizada por Everardo Nunes (1985), onde a autor tece intimeras consideragdes e constata os caminhos seguidos pela producao intelectual em Ciéncias Sociais e Saide na Amérien Lati- METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 49 nna, Embora pretenda examinar apenas esse lado do continente, Everardo e os autores da coleténea fazem referencias permanentes aos estudos realizados em todo o mundo ocidental, trabalhando com uma abordagem hist6rico-estrutural (1985, 29-83; 87-461), Nunes coloca 0 positivismo como a corrente de pensamento dominante nos anos 50 e nas andlises da satide particularmente através das correntes funcionalistas e culturalistas. Mas hoje elas, ainda continuam vivase presentes tanto na produc cientifica como na pratica, Podem ser identificadas por alguns sintomas que indi- camos a seguir, a partir da leitura de varios autores da coletanea Citneias Sociaise Sade na América Latina (1983): (a) Pouca valorizagao conceitual do processo satide/doenca e seus determinantes; (b) En- foque pragmatico e funcionalista da medlicina como se ela fosse uma ciencia universal, atemporal e isenta de valores; (c) Valorizacéo das ciencias sociais como acessério ou complemento na priticae na teoria médicas, considerando-as como ciéncias normativas e com finalida de adaptativa e funcional; (d) Na epidemiologia, valorizacao exces- siva daconcrecao estatistica tomada como objetividadee confusiiodo fendmeno com a propria realidade. Na pratica médica e suas relacdes com a sociedade o positivismo ‘se manifesta: (1) Na concepsao da satide/doenga como fendmeno apenas biologico individual em que o social entra, compreendido como modo de vida e apenas como variavel, ou € desconhecido ¢ omitido; (2) Na valorizacao excessiva da tecnologia e da capacidade bsoluta da medicina de erradicar as doencas; (3) Na dominacio corporativa dos médicos em relagio acs outros campos do conheci mento, adotando-os de forma pragmatica (a sociologia e a antropo- logia consideradas importantes apenas para fazer questiondrios, produzir informes culturais, ensinar alguns conceitos bisicos); no tratamento subalterno dado aos outros profissionais da rea (enfer- meiros, assistentes sociais, nutricionistas, atencentes etc..); em re- laciio ao senso comum da populagao, numa tentativa nunca total- mente vitoriosa, de desqualificé-lo e absorvé-Lo. 50. METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL A Sociovocta COMPREENSIVA ‘Uma segunda visio do mundo que tem tido profunda influénicia na construcio do conhecimento da realidade, inclusive na interpre- tao das relagdes entre medicina e sociedade, ¢a chamada Sociologia (Compreensiva. Ela privilegia a compreensao e a inteligibilidade como propriedades especificas dos fendmenos sociais, mostrando que 0 SIGNIFICADO € a INTENCIONALIDADE 0s separam dos fendmenos natu- Na Introdugio as Ciéncias do Espirito, Dilthey polemiza com o positivismo, afirmando que os fatos humanos nao sdo suscetfveis de quantificagao e de objetivacio porque cada um deles tem sentido proprio e identidade peculiar, exigindo uma compreensio especifica e concreta. Dai, deduz ele, sdo falsas as teorias sociol6gicas e a filo- sofia da historia que véem na descricao do singular uma simples matéria-prima para posteriores abstracoes: “nao ha tiltima palavra da historia que contenha o verdadeiro sentido” (Dilthey: 1956, 25). Na Sociologia foi Max Weber quem estabeleceu as bases tedrico- metodolégicas da Ciéncia Compreensiva. Contra os prineipios do positivismo, ele diz que: “A sociologia exige um ponto de vista especifico ja que os fatos de {que se ocupa implicam um género de causacio desconhecido das ciéncias da natureza” (1964, 33) Sua definicao de Sociologia passou a ser um marco para essa conente, dentio das Ciencias Suciais: ““Buma ciéncia que se preocupa com a compreensio interpretativa da acdo social, para chegar a explicacao causal de seu curso e de seus efeitos, Em ‘acd’ esta incluido todo o comportamento hu- ‘mano quando e até onde a agio individual Ihe atribui um signifi- cado subjetivo. A ‘acdo’ neste sentido pode ser tanto aberta quanto subjetiva. (..) A ‘agao' é social quando, em virtude do significado subjetivo atribuidoa ela pelosindividuos, leva em contaocompor- tamentodosoutrose é orientada porele na sua realizacao” (Weber, 1964, 33). METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 51 Weber retoma aqui o tema central das Ciencias Sociais, isto 6, a relacdo entre individuo e sociedade, afirmando que os socidlogos necessariamente t&m que tratar dos significados subjetivos do ato social. Weber nao faz psicologia, ele quer dizer que a sociedade é fruto de uma inter-relagdo de atores sociais, onde as agdes de uns so reciprocamente orientadas em direcao as ages dos outros. Segundo Weber, asociologia requer uma abordagem diferente das ciéncias da natureza, e isso se consegue através de: (a) pesquisa empfrica a fim de fornecer dados que déem conta das formulagées te6ricas: () tais dados derivam de algum modo da vida dos atores sociais; (c) 0s atores sociais dao significados a seus ambientes sociais de forma extremamente variada; (d) eles podem descrever, explicar e justificar suas ages que sdo sempre motivadas por causas tradicio- nais, sentimentos afetivos ou sio racionais. A sociologia compreensiva, em Weber, nos diz. que as realidades sociais so construidas nos significados e através deles e sé podem ser identificadas na linguagem significativa da interacao social. Por isso, a linguagem, as préticas, as coisas e os acontecimentos so inseparaveis. Weber propée, para conseguir compreender a realidade social, dois principios metodologicos: (a) a neutralidade de valor e (b) a construcio do tipo-ideal Partindo do principio de que a historia humana se constitui de “ constelagées singulares”, do“ caso concreto”,o autor propdea teoria dos tipos-ideais como instrumento racional e tedrico de aproximagio da realidade Os “tipos-ideais” no existem empiricamente, 630 artificios criados pelo cientista para ordenar os fenmenos, para indicar suas articulagoes e seu sentido. Sintetizam e evidenciam os tracos tipicos, originais de determinado fendmeno tornando-o in- teligivel. Weber constr6i varios tipos-ideais sendo os mais conheci- dos, a Etica Protestante ¢ o Espirito do Capitalismo, a Burocracia e as Formas de Dominagio (1974, 15-79). Sua intenca0 ao propor esse instrumento metodolégico de compreensio da realidade ¢ tornar as Ciencias Sociais rigorosas e fidedignas, mas de uma perspectiva diferente da abordagem positivista. Ele proprio comenta: “Nao existe uma andlise da cultura absolutamente objetiva dos 52. METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL fenémenos sociais, independiente dos pontos de vista especiais e parciais, segundo os quais, de forma explicita ou titica, consciente ou subconsciente, aqueles sdo selecionados e organizados para propésitos expositivos. Todo conhecimento da realidade cultural, como pode ser visto, é sempre conhecimento a partir de pontos de vista especificos” (Weber: 1959, 72).. Na sua luta teérica contra o positivismo, Weber reconhece que os valores t8m um papel destacado na selegao do objeto de investigacao, na escolha da problemética e nas questdes que o pesquisador se coloca. Porém, através da sua tentativa de "objetividade” que se concretiza na construgao dos tipos-ideais e na crenga de isengao de valores durante o proceso de pesquisa, Weber reencontra-se com Durkheim. Cai nas malhas do idealismo que prevé a verificacao ea validadea partir dos métodose técnicase os cré isentos de ingeréncia dos valores tanto hist6ricos, provenientes de seu processo de produ- a0, quanto pessoais, referentes a ideologia do investigador. Weber é considerado um classico da sociologia e sua influéncia se estende por varias abordagens te6ricas. Com relagdo ao campo qualitativo, em duas correntes de pensamento encontramos 0 peso da sua contribuigao, embora cada uma delas conserve seu esquema conceitual peculiar: a fenomenologia sociolégicu e a etnometodologia. O reconhecimento da presenca de Weber nessas abordagens nao é explicita, mas ao analis4-las percebemos a presenga fundamental do conceito central weberiano: o Sicxtmicapo da agdo social. Relativa- mente ao campo da satide. 0 peso de influéncia maior esta na fenomenologia. £ por isso que falaremos dela com prioridade e apenas sintetizaremos os principios da etnometodologia. Etnometodologia compreende © conjunto de reflexoes que se abrigam sob seu proprionome, além do internacionalismo simbolico, da historia de vida e da historia oral. Seu bergo foi a Universidade de Chicago e seu principal arquiteto Robert Park, que nas décadas de 20 © 30 preconizava a experiéncia direta com os atores sociais para a compreensio de sua realidade, Ao mesmo tempo dava um lugar de destaque as Historias de Vida como um material de exceléncia para asociologia (1921), Asideias de Park foram teoricamente desenvolvi- das por Harold Garfinkel na dlécada de 30, que estabeleceu o quadro METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 53 conceitual e as bases metodol6gicas da etnometodologia, cujos prin- cipios resumimos a seguir (Garfinkel: 1967) Garfinkel defende sua teoria como uma forma de compreender a pratica artesanal da vida cotidiana, interpretada jé, numa primeira instancia, pelos atores sociais. Segundo ele, as caracteristicas do mundo social sio insepardveis dos processos interpretativos pelos quais 0 mundo ¢ constituido, realizado e explicado. A sociedade & entendida como uma constituigao de estruturas com regras e conhe- cimentos compartilhados ¢ técitos que tornam a interacdo social possivel e aceita. Portanto, faz. parte da constituigao do mundo, a forma pela qual os homens chegam a um sentido da realidade objetiva: o senso comum. E jé que 0 ser humano tem como caracte- ristica fundamental a reflexibilidade sobre seus atos, o papel dos etnometodélogos é, ao estudar a cotidianidade, descobrir os mode- los de racionalidade subjacentes a acao dos individuos e dos grupos (Payme etal, 1981, 108-138; Smart, 1978, 19-141). Harrison & Madge so dois representantes da etnometodologia na Inglaterra. Desde 1937 eles tém tentado aplicar os procedimentos dessa abordagem para compreender 0 dia-a-dia do homem comum na sociedade complexa. Suas idéias, desenvolvidas na teoria da "Observagio de Massa” contém criticas e propostas. Harrison questiona o fato de que as grandes leis sobre o comportamento humano tenham sido prodit- zidas sem observacao do que acontece na realidade e de que “as abordagens quantitativas sacrificam 0 SiGNICADO no altar do rigor ‘matematico” (Harrison: 1942, 10-21). Porisso, através da organizagio de ohservadores voluntities, passou a colecionar atitudes, palavras reages dos ingleses no seu dia-a-dia, visando a compreender 0 comum, 0 magico, os habitos, os rituais e tabus de uma cultura pretensamente conhecida, Harrison publicou varios livros antes © depois da Segunda Guerra Mundial. Desmascarou varios mitos do periodo de guerra ecolocou a luz acultura popular inglesa sob varios aspectos, deixando a marca de sua contribuigdo tanto para o cinema, 8 artes, como para as técnicas de pesquisa de mercado e de opiniao publica. Seu arquivo classifica titulos como Arte, Assuntos Financei- 105, Anti-Semitismo, Sonhos, Comportamento Sexual. Apesar de seu espitito inovador, Harrison é criticado dentro e fora do ambito clentifico pela sua falta de rigor metodol6gico. 54. METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL [As observacoes externas sobre 0 trabalho de Harrison de certa forma refletem um questionamento interno da sociologia em relagao 4 etnometodologia, proveniente tanto dos positivistas como dos marxistas: (a) critica a consideragao de que os significados subjetivos criama realidade do mundo; (b) critica a reducio da estrutura social a procedimentos interpretativos; (c) critica ao desconhecimento dos fatores que determinam ou condicionam a visio das pessoas sobre ‘sua situagdo social; (d) critica a separacio entre pensamento e ado (Gmart: 1978, 1335). O Interacionismo Simbélico, enquanto teoria ¢ método, pode ser ‘compreendido como uma vertente da etnometodologia. Sua origem, também da década de 20, redine estudos importantes como 05 de ‘Thomas (1927); Herbert Mead (1946) ¢ Cooley (192). Herbert Blumer 6 quem, em 1937, atribuiu a sua abordagem tebrico-metodol6gica 0 termo “interacionismo simbolico”. Diz Blumer em sua obra: “Nos podemos e eu penso que posso, olhar a vida humana, aci- ma de tudo como um vasto processo de interpretacdo, no qual 0 povo, individual e coletivamente guia a si mesmo para definir objetivos, acontecimentos e situagdes que encontram... Nenhum esquema designado para analisar a vida dos grupos humanos em seus caracteres gerais se adequa a esse processo de interpretagao” (1956, 686). Acconcepcao interacionista das relag6es sociais se fundamenta no Principio de que o comportamento humane 6 autodirigida © ob- servavel em dois sentidos: 0 simbélico e o interacional. Isso permite ‘a qualquer ser humano planejar e dirigir suas agoes em relagdo aos outros e conferir significado aos objetos que utiliza para realizar seus planos. Além disso, a concepgdo interacionista concebe a vida social ‘como um consenso estabelecido na inter-relacao, por isso, 0 sentido atribuido as ages é manipulado, redefinido e modificado através de ‘um proceso interpretativo consensual ao grupo. Do ponto de vista ‘metodol6gico, os principios interacionistas enfatizam que simbolos € interacio devem ser os principais elementos a se apreender.na investigacao. Em segundo lugar, partindo-se da idéia de que sim- bolos, significados e definigdes sao forjados pelos atores sociais, ¢ METODOLOGIA DE PESQUISA SOCIAL 55, necessério aprender a natureza reflexiva dos sujeitos pesquisados. Isto ¢, o investigador deve tentar fugir da falacia do objetivismo, substituindo sua propria perspectiva pela dos grupos que ele esta estudando (Payne: 1981, 116; Haguette: 1987, 31s; Denzin, 1973, 5-9). Os movimentos etnometodolégicos decafram nos Estados Uni- dos, e na Inglaterra sua influéncia foi pequena. Porém, a partir da década de 50, a tradicao etnometodologica tem sido retomada com vigor. Ninguém pode negar hoje a influéncia dos trabalhos de Goffman para a sociologia. Inclusive na area de satide, a andlise das “instituigdes totais” teve e tem impacto. O renascer de estudos sociolégicos de pequenos grupos dentro de abordagens etno- ‘metodol6gicas vem ocupando o espaco deixado pelo deserédito do positivism e pelo escasso desenvolvimento heuristico das correntes ‘marxistas, mais preocupadas com abordagens filos6ficas ou macros- sociais Assim como a Etnometodologia, a Fenomenologia é considerada, dentro das Ciencias Sociais, a Sociologia da Vida Cotidiana. Embora na sua elaboragdo se percebam as influéncias weberianas é na filosofia de Husserl que ela busca seu nome e fundamentacio metodol6gica. ‘Oargumento de Husserl é 0 mesmo de Dilthey e de Weber, isto é, 0s atos sociais envolvem uma propriedade que nao esté presente nos ‘outros setores do universo abarcados pelas ciéncias naturais: 0 StoNtricano (Husserl: 1980, 4-181), Nas Ciencias Sociais, Schutz é 0 representante mais significativo do pensamento fenomenolégico. Ele consegue dar consisténcia so- ciolégica aos prinefpios filoséficos de Husserl ¢ fazer doles, nio apenas uma atitude, mas teoria e métodona abordagem da realidade social, inspirando-see aomesmo tempo distinguindo-se de Weber. A fenomenologia sociolégica apresenta: (a) uma critica radical ao obje- tivismo da ciéncia, na medida em que propée a subjetividade como fundante do sentido; (b) uma demonstracao da subjetividade como sendo constitutiva do ser social e inerente ao ambito da autocom- preensiio objetiva; (o) a proposta da descricdo fenomenol6gica como principal da sociologia. Schutz traz para o campo de preocupagées da fenomenologia social 0 mundo da vida cotidiana onde o homem se situa com suas ‘angastias € preocupagdes em intersubjetividade com seus seme

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