Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
HUMANAS NO OCIDENTE*
da ordem colonial, da democracia liberal e até reação intelectual, com implicações políticas. Em
mesmo o surgimento dos ideais socialistas. Todos muitos casos, ela virá a ser conhecida justamente
eles só vieram, porém, a se constituir em elemen- como uma reação, ou seja, como resistência ativa
tos cruciais da nova ordem na medida em que ex- às mudanças trazidas pela Revolução Francesa e
pressaram, responderam ou não colidiram com o seus corolários às sociedades européias. É no
conjunto de princípios aqui resumidos no indivi- mundo da cultura germânica que se articula mais
dualismo e no universalismo. claramente esse movimento. As filosofias de Her-
der, Hegel ou Fichte testemunham de diferentes
maneiras dessa atenção crítica ao horizonte do
III iluminismo e da disposição em oferecer alternati-
vas ao modo excessivamente linear ou materialis-
Um novo horizonte de sentido orientava as- ta de conceber a história dos filósofos anglo-fran-
sim nossos ancestrais ao longo do século XVIII. ceses (ou do Aufklärung kantiano).
Sua disposição era francamente otimista e seus Há diversos linhas de interpretação histórica
mais ardentes defensores foram chamados justa- possíveis para a concentração desse movimento
mente de iluministas, por acreditarem na derrota no cenário cultural germânico. Não há como
e no extermínio da sombra que teria obscurecido revê-los todos aqui. Remeto para a rica bibliogra-
até então a “marcha da humanidade”. fia a esse respeito (L. Dumont, 1991b; Gusdorf,
Em alguns segmentos da intelligentsia euro- 1976, 1982, 1984; Benz, 1987, entre outros). No
péia do século XVIII percebia-se, contudo, ao entanto, é necessário discutir a importância do
lado dessa generosa e ardente disposição de mu- horizonte religioso, reformado, dessa reação ger-
dança, inquietações sobre o novo rumo do pen- mânica. Lembremos que esse universo já tinha vi-
samento e da ação coletivos. As denúncias dos venciado o Renascimento – contrariamente ao
“males da civilização” começaram a ser veiculadas mundo latino – via a Reforma; que tinha encon-
quase ao mesmo tempo em que se compunham trado na Bíblia de Lutero a confirmação de sua le-
os hinos à sua vitória (cf. Duarte, 1986). Esse tom gitimidade lingüística, e que tinha seus intelec-
de denúncia não podia deixar de se nutrir imagi- tuais fortemente ligados aos estudos universitários
nariamente da representação de um passado per- de Teologia – em nenhum momento suspeitos de
dido, dada a ênfase muito radical no futuro que ilegitimidade, como no caso francês.
caracterizava a nova ordem. O progresso, o avan- O sentimento de uma certa especificidade da
ço de todas as formas e comportamentos era cultura alemã no quadro europeu já era externado
ameaçador, uma vez que implicava o desapareci- pelos próprios contemporâneos, e o De l´Allemag-
mento dos antigos mores, a perda de qualidades ne de Mme. de Staël o afirmava e descrevia com
sensíveis a que muitos se sentiam profundamente grande senso de oportunidade. Essa especificida-
apegados. Esse tom já se encontra presente em de repousava em boa parte, como resume Norbert
movimentos artísticos como a novela sentimental Elias (1975) ao tratar das vicissitudes da noção de
inglesa e o Sturm und Drang alemão do século “civilização” em língua alemã, na desastrosa estag-
XVIII, assim como em uma boa parte da obra de nação política e econômica decorrente da Guerra
J.-J. Rousseau – um notório iluminista, no entan- dos 30 Anos, na acentuada fragmentação de suas
to. É inseparável dessa reação o movimento de unidades políticas constitutivas e na distância que
revalorização da natureza e do mundo rural – as “cortes” dirigentes (e os estamentos aristocráti-
num momento em que o artifício industrial e o cos que as compunham) mantinham em relação à
modo de vida urbano envolviam cada vez mais cultura local e aos intelectuais universitários (dis-
rapidamente as populações européias (cf. Tho- tância inclusive da língua alemã, como no caso
mas, 1988). notório da corte prussiana em Potsdam).
Ao lado desse processo de reação sentimen- De um modo geral, o ponto mais evidente
tal, digamos assim, surgem logo os sinais de uma de todas essas resistências e reações é o seu cará-
8 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 55
ter reflexo, dependente da dinâmica de afirmação trapassa e determina. Ele encarna, nos termos do
do universalismo. Herder (1997) é bastante claro a modelo de Louis Dumont, a dimensão hierárqui-
esse respeito ao nomear seu grande tratado sobre ca, holista, do pensamento humano, oposta à
a história da Humanidade como uma “outra histó- ideologia do individualismo. Eis por que se pode-
ria”, em referência e oposição direta à de Voltaire. ria e deveria reconhecer como “romântica” toda
A Doutrina das cores, de Goethe (1993), foi con- contra-força fundamental em nossa dinâmica cul-
cebida termo a termo como uma refutação da óti- tural desde o final do século XVIII.
ca de Newton. A revalorização da obra de Shakes- Vamos ver, em seguida, como é complexa,
peare empreendida pelos jovens dramaturgos porém, essa “reação”, e como a combinação dos
alemães visava a esconjurar a racionalização e a muitos itens em que ela se processa recorrente-
convenção do classicismo francês. Do mesmo mente pode levar a soluções muito díspares e,
modo, a redescoberta do estilo gótico permitia freqüentemente, contraditórias.
ironizar a contínua manipulação das fontes clássi- A mais abrangente de suas dimensões cons-
cas empreendida desde o Renascimento como re- titutivas é possivelmente a que se refere à totali-
curso de racionalização das formas e dos volumes dade. A ideologia do individualismo, como men-
plásticos. cionei, caracteriza-se justamente por sua ênfase
na “parte”, nos indivíduos articulados em associa-
ções políticas graças à ação de certas “paixões” e
IV “interesses” naturais (cf. Hirschman, 1979). A
ideologia universalista não opera de modo diver-
A inspiração reativa das primeiras manifesta- so. Sua fórmula típica originária, a da cosmologia
ções do romantismo logo adquirirá um tom afir- de Newton, pressupunha também “elementos”
mativo mais pleno, com o adensamento das vozes isolados (os corpos celestes), articulados em siste-
e dos argumentos e a percepção dos contornos mas graças à ação de certas forças naturais. A de-
de um movimento coletivo abrangente. É, no en- núncia da perda implicada por essa fragmentação
tanto, fundamental ter em mente que a reação foi do mundo, por essa ênfase na segmentação dos
justamente a primeira grande característica do ro- elementos constitutivos de todos os entes, é a fór-
mantismo, como eu aqui o defino: resistência a e mula básica do romantismo. Perda sobretudo do
denúncia do universalismo e de seus corolários sentido específico que a co-presença dos elemen-
racionalista e fisicalista. Ou seja, não há como tos na totalidade acarretaria. A totalidade perdida
compreender esse movimento sem considerá-lo (e a ser recuperada) podia – e pode – ser encon-
tecnicamente englobado pelo universalismo. Jus- trada em muitos níveis. Um dos primeiros, histo-
tamente por se opor a ele termo a termo e siste- ricamente, cheio de implicações para o que se
maticamente, dele depende ontologicamente a veio a constituir mais tarde como uma antropolo-
cada passo. Mesmo em suas mais grandiosas, ex- gia, é o da totalidade cultural. Herder conferiu-lhe
pressivas ou sistemáticas manifestações, lá encon- uma forma canônica ao lidar com a cultura ger-
traremos a referência en creux à ideologia da ra- mânica como um ente específico, menor que a
zão linear ilimitada e a seus derivados. Humanidade, mas certamente maior e mais ex-
Como a força da crítica romântica jamais pressivo que os entes individuais que compu-
abateu a pujança do ideal universalista dentro de nham as populações de fala alemã. Aí estava um
nosso horizonte ideológico, embora tenha contri- dos focos mais ativos da ideologia da nação mo-
buído para tornar seus efeitos infinitamente mais derna, assim como da noção contemporânea, an-
complexos, é preciso reconhecer que as duas for- tropológica, de “culturas” específicas. Já em sua
ças passaram desde o início a operar em tensão época, a oposição explícita se fazia contra o ideal
permanente. Mas não de modo recíproco ou igua- da justaposição indistinta – indiferenciada ou
litário: o romantismo sempre será o contraponto, igualitária – dos cidadãos, membros de uma Hu-
o momento segundo, de uma dinâmica que o ul- manidade abstrata.
A PULSÃO ROMÂNTICA E AS CIÊNCIAS HUMANAS NO OCIDENTE 9
a metáfora do fluxo vital de modo paradigmático ce – mesmo que não explicitamente – “pulsante”
a partir do primeiro Wilhelm Meister de Goethe. entre nós (cf. Duarte e Venâncio, 1995). Uma de
A fórmula mais acabada e precisa da pree- suas mais conspícuas manifestações é a que, na
minência do fluxo no pensamento romântico já arte, enfatizará o caráter expressivo que tem a
se deu nas fronteiras das ciências humanas com criação autêntica em relação ao mundo interior
o conceito de “cultura subjetiva”, formulado por do artista (cf. Taylor, 1989). A pulsão criativa deve
Georg Simmel em contraposição ao de “cultura encontrar seus canais desobstruídos, de maneira
objetiva” (cf. Simmel, 1971). Tal conceito resume que possa florescer em sua plenitude a forma es-
ou exemplifica todos os pontos que estou desen- tética. E ela só deve ser cultivada ali onde for sen-
volvendo, mas ilumina particularmente o do flu- tida realmente como pulsão insopitável, literal-
xo, uma vez que as qualidades positivas da cul- mente vital (as Cartas a um jovem poeta, de R. M.
tura subjetiva são justamente as que se instituem Rilke, são um exemplo magistral deste ponto).
na temporalidade, no fluxo da mudança, na in- A quinta dimensão é a do privilégio ou ênfa-
tensidade da criação interior. A passagem ao “ob- se na experiência. Esse conceito é um dos pilares
jetivo” é a queda na estase: o pensamento vivo das polêmicas relativas ao racionalismo desde o
vira a página do livro, a intenção transforma-se século XVII, dado o pressuposto de uma relação
em instituição, as forças da vida definham-se em complexa entre razão e experiência na produção
formas petrificadas. do espírito ou do entendimento humano. Os em-
Muito se poderia dizer sobre a dimensão do piristas e sensualistas assim foram chamados por
fluxo no tocante aos fenômenos humanos coleti- alocarem preeminência à experiência advinda da
vos. A historicidade romântica está na origem da relação dos sentidos humanos com o mundo, e o
maior parte das ciências humanas (da arqueologia cientificismo transformou a idéia de produzir co-
à lingüística, da história à psicanálise) e sua carac- nhecimento por meio de experiências artificiais e
terística principal é justamente essa da atenção controladas na imagem estruturante da própria ati-
obsessiva às implicações da passagem do tempo, vidade científica. Essas imagens eram bem conhe-
e da passagem diferencial do tempo sobretudo. cidas dos românticos e não podem ser assim com-
Mas voltarei ao assunto mais adiante. pletamente dissociadas da acepção com que o
Selecionei como quarta dimensão do roman- termo passou a ser empregado entre eles. Embora
tismo a que envolve a ênfase na pulsão. Trata-se o conceito de Erfahrung contenha a dimensão de
da idéia de que os fenômenos e os entes, singu- experiência sensorial, ele aponta mais decidida-
lares como são – totais e diferenciados – e dota- mente, porém, para a experiência sentimental
dos da capacidade de se distender no fluxo vital, ou afetiva, íntima, pessoal, passional – subjetiva,
temporal, não o fazem sem uma qualidade espe- enfim.
cial, interna, toda própria, que imprime ao seu A ênfase na experiência é a base da episte-
Streben as qualidades, os ritmos, as orientações mologia romântica. Ela implica a recusa de uma
que lhe são específicas – e não outras. Chamou-se objetividade externa absoluta do processo de co-
a isso, em alemão, – pelo menos desde Fichte – nhecimento ou da prática científica, em nome de
Trieb, hoje convencionalmente traduzido como uma consideração constante dos processos subje-
pulsão. Essa disposição interior característica dos tivos em jogo na relação com o mundo exterior.
entes vitais lembra algumas propriedades da ente- Já Goethe enunciava essa proposta na sua Far-
léquia aristotélica e do conatus de Spinoza e carac- benlehre: contra uma ótica que considerasse a luz
teriza o elemento mais essencial da vida organiza- e a formação das cores como processos objetivos,
da: o seu horizonte de destino realizável. Embora universais, independentes da percepção humana,
o conceito esteja hoje em dia associado sobretudo dispunha-se ele a oferecer uma consideração sis-
à psicanálise, devido ao uso específico e sistemá- temática dos modos como a experiência humana
tico que dele fez Freud, sua presença foi muito da luz e das cores se estruturava. O grande desen-
mais ampla no pensamento romântico e permane- volvimento da fisiologia e da psicologia dos sen-
12 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 55
tidos e das sensações na academia alemã do sé- listas de modo extremamente vívido, de tal sorte
culo XIX (de que Wundt e Freud foram epígonos) que a evolução de todas as ciências – e não ape-
testemunha da crucialidade dessa conexão entre nas das humanas – ao longo do século XIX foi
o objetivo e o subjetivo. um resultado complexo dessa interação (cf. Gus-
A última dimensão a esclarecer está intima- dorf, 1985).
mente ligada à da experiência. Chamaram os ro- Também desde o começo, porém, houve
mânticos de “compreensão” (Verständnis, em ale- outros pensadores que procuraram estabelecer
mão; verbo verstehen) ao método de conhecimento uma distância mais acentuada em relação às Lu-
que levasse em conta o entranhamento de todos os zes, sublinhando inclusive a insanidade daqueles
atos na dimensão vivencial, subjetiva. Opunha-se à que transigiam no diálogo com os servos da Ra-
explicação linear, considerada típica do processo zão. Novalis encarna bem essa tendência, crítica
universalista, objetivista – insuficiente e contrapro- de Goethe, por exemplo, visto como excessiva-
ducente aos olhos românticos. O conceito teve mente olímpico e integrado. Chamo a esses dois
enorme importância para as ciências humanas, per- caminhos de Romantismo da Luz e Romantismo
passando a obra de diversos autores influentes na da Sombra, um mais próximo da reflexividade da
história e na sociologia; sobretudo Max Weber, que sua ideologia de origem, o outro, mais distancia-
descreveu as características do método do Verste- do, substituindo radicalmente a reflexão racional
hen em sua forma mais difundida até hoje (cf. We- pela intuição, essa Anschauung tantas vezes invo-
ber, 1978). cada e citada. Pode-se lembrar a esse respeito a
contraposição entre as famosas e supostas últimas
palavras de Goethe no leito de morte: “Mais luz
V !”, e o título da obra mais famosa de Novalis: “Hi-
nos à noite”. Parecem bem exemplificar essa opo-
Apresentado assim esse arcabouço do que sição a que me refiro e que marcará profunda-
me parece qualificar essencialmente o pensamen- mente o destino do pensamento romântico e da
to romântico, evoco alguns aspectos do desenvol- cultura ocidental moderna.
vimento do conjunto ao longo do século XIX sem Essa bifurcação encontrará um leito de ex-
os quais seria impossível compreender a comple- pressão fundamental na separação entre a arte e
xidade da floração das ciências humanas, ao se a política, de um lado, e a ciência, de outro. A fi-
abeberarem desse rico projeto imaginário. losofia, mais abrangente e complexa, mediará a
Desde suas primeiras manifestações expres- Sombra e a Luz, ensejando o surgimento de fór-
sou o romantismo as marcas do dilema imposto mulas particularmente singulares, como a de
pelo fato de ser englobado pelo universalismo: Nietzsche.
tratava-se de denunciar os excessos do materia- A Sombra romântica vicejou praticamente in-
lismo, as ilusões de um objetivismo ingênuo, mas conteste no domínio da expressão estética. A arte
não se tratava de restabelecer os privilégios in- ocidental do final do século XVIII até hoje é essen-
contestados da religião ou de retornar mecanica- cialmente uma manifestação do romantismo. To-
mente a um perdido passado místico. O valor da das as dimensões constitutivas antes apresentadas
constituição de uma ciência, de um saber leigo contribuíram para o estabelecimento de seus parâ-
sistemático, foi freqüentemente mantido, e toda metros e condições de legitimidade, particular-
uma tradição de diálogo com os pesquisadores, mente a totalidade (sob a forma da autonomia do
as técnicas e as problemáticas universalistas se estético), a diferença (sob a forma da intensidade
constituiu e manteve, serpenteando pelas espe- como critério da autenticidade), o fluxo e a pulsão
cialidades, universidades, laboratórios, técnicas e (sob a forma do expressivismo criador). A única
ênfases doutrinárias. Além do mais, essa “ciência característica desse domínio de nossa cultura que
romântica” (a Naturphilosophie alemã) influen- se pode associar mais linearmente ao universalis-
ciou, por sua vez, as orientações mais universa- mo, embora também seja modulada pelas infle-
A PULSÃO ROMÂNTICA E AS CIÊNCIAS HUMANAS NO OCIDENTE 13
A sociologia durkheimiana, comumente as- individualismo qualitativo. Ele resumia com gran-
sociada ao universalismo, em função do peso do de pertinência na primeira categoria a dimensão
positivismo na definição do fato social e das tare- original do individualismo universalista de preten-
fas da pesquisa sociológica nascente, é no entan- der constituir e compreender o universo social
to filha direta de muitos dos postulados básicos do pela combinação dos indivíduos livre-contratan-
romantismo. Mencionamos a exposição direta de tes, iguais entre si, do pacto político. E, na segun-
Durkheim ao pensamento de Wundt, por ele bus- da, a contribuição específica da teoria da pessoa
cada em Leipzig. Outras influências reconhecidas romântica, com sua ênfase característica na inte-
foram igualmente importantes, sobretudo a que rioridade, na autonomia, no caráter singular e au-
lhe aportou Claude Bernard em sua invenção do têntico de cada mônada. Suas magistrais interpre-
organismo como “meio interno”, tão fundamental tações de fenômenos como o amor, a cidade, o
para as ciências biológicas como para as humanas. dinheiro e a modernidade testemunham da po-
Encontra-se em Durkheim, do mesmo modo tência analítica de sua distinção entre a cultura
que em Wundt, a crítica geral ao modo utilitarista objetiva e a cultura subjetiva. Como mencionei
ou pragmático de produzir uma compreensão uni- anteriormente, essa dicotomia ao mesmo tempo
versalista dos fenômenos humanos. Durkheim re- expressa e instrumentaliza uma representação
tém a disposição universalista, cientificista mesmo, fundamental do ideário romântico: a oposição en-
mas propõe que se compreenda o caráter sui ge- tre forma e vida, entendida esta última como di-
neris da vida social, com propriedades emergentes mensão intrínseca da vida humana legítima, dis-
que a distinguem tanto da natureza geral, como da tendida em um fluxo significativo de disposições
natureza psicológica individual humana. Totalida- e determinações originárias (Streben/Trieb).
de de novo estatuto, a vida social deve ser com- Também a antropologia nascente pode ser
preendida como tendo regras especiais de funcio- considerada herdeira de dimensões essenciais do
namento, que articulam a morfologia social com romantismo. Privilegio aqui dois de seus pais fun-
sua fisiologia, representações e valores comparti- dadores, por quanto são decisivas suas contribui-
lhados. A crítica aos modelos utilitaristas recobre ções à constituição do cânon da pesquisa antro-
na verdade a crítica à redução individualista, ou pológica: Franz Boas e Bronislaw Malinowski.
seja, à suposição de que a vida coletiva seja ape- Com efeito, credita-se ao primeiro a invenção ex-
nas o resultado da justaposição dos indivíduos li- plícita da idéia da pluralidade de culturas como
vres, iguais e autônomos da ideologia liberal insti- objeto da análise comparada antropológica; ao se-
tuinte. Durkheim foi provavelmente o primeiro gundo atribui-se a invenção do trabalho de cam-
pensador ocidental a desenvolver uma argumenta- po antropológico como pedra de toque da meto-
ção explícita sobre o individualismo ao mesmo dologia dessa disciplina. O conceito boasiano de
tempo como ideologia e como valor: instauradora, culturas é claramente herdeiro da noção de tota-
intransponível, e, no entanto, impeditiva do aces- lidade/unidade cultural prevalecente no romantis-
so à percepção sociológica. mo desde Herder, aplicado ao conjunto ampliado
Seu contemporâneo Georg Simmel é outro das experiências humanas e não apenas aos fatos
expoente da sociologia nascente, cujo trabalho se de civilização. A luta de Boas contra os reducio-
caracteriza, de um lado, por uma elevada expec- nismos fisicalistas e racialistas que caracterizavam
tativa de formalização da compreensão das for- a academia ocidental de finais do século XIX
mas societárias, no mesmo sentido da morfologia pode ser também vista como afirmação da quali-
durkheimiana, e, de outro, por uma notável capa- ficação superior do espírito (lembremo-nos do
cidade de explicitar os valores estruturantes da belo poema de Goethe que ele transcreve em seu
ideologia individualista e sua condição revelado- prefácio ao Patterns of culture, de Ruth Benedict),
ra das principais dimensões da vida cultural oci- como pedra de toque dos fenômenos culturais.
dental moderna. Avulta a importância de sua dis- A posição de Malinowski em relação ao ro-
tinção entre um individualismo quantitativo e um mantismo é particularmente peculiar, dada a co-
16 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 55
Luiz Fernando Dias Duarte Luiz Fernando Dias Duarte Luiz Fernando Dias Duarte
A cultura ocidental moderna articu- Modern Western culture is based La culture occidentale moderne s’ar-
la-se em torno da tensão entre um upon the tension between a basic ticule entre la tension d’un univer-
universalismo primordial e o seu universalism and its permanent Ro- salisme originel et sa permanente
constante contraponto romântico. O mantic counterpoint. Science is one contrepartie romantique. L’esprit
espírito científico é uma das mani- of the main expressions of the uni- scientifique est l’une des manifesta-
festações fundamentais da disposi- versalistic attitude and the Romantic tions fondamentales de la disposi-
ção universalista, tendo cabido ao genius dealt actively with it, critici- tion universaliste et a été la cible de
espírito romântico criticá-lo e modu- zing and transforming it in many dif- toutes sortes de critiques et de tor-
lá-lo em sentidos e direções inicial- ferent ways. The emergence of mo- sions de la pensée romantique.
mente insuspeitados. A emergência dern “human sciences” (originally L’émergence des “sciences humai-
das “ciências humanas” (original- conceived of as the Geisteswissens- nes” (originellement conçues com-
mente concebidas sob a forma das chaften, or “moral sciences”) is due me des Geisteswissenschaften, des
Geisteswissenschaften ou “ciências to this tension, in the sense that they sciences de l’esprit) a été l’un des
do espírito”) foi um dos resultados came to provide a sense of reality résultats de cette tension, ayant
dessa tensão, impondo uma concep- and knowledge very different of that conduit à une conception de la réa-
ção de realidade e de conhecimento prevailing in the pristine universalis- lité et de la connaissance très diffé-
muito diferente da que tinha preva- tic ideology. The themes of “differen- rente de l’orientation originelle. Les
lecido na orientação universalista ce”, “totality”, “uniqueness”, “flow”, thèmes de la “différence”, de la “to-
originária. Os temas da “diferença”, “drive”, “experience”, and “unders- talité”, de la “singularité”, du “flux”,
da “totalidade”, da “singularidade”, tanding” inspired or challenged the de la “pulsion”, de “l’expérience” et
do “fluxo”, da “pulsão”, da “expe- great founding fathers of the human de la “compréhension” sont pré-
riência” e da “compreensão” instiga- sciences – eventually in contradictory sents dans la pensée de tous les pè-
ram ou desafiaram todos os grandes directions. They remain nowadays as res fondateurs des sciences humai-
pais fundadores das ciências huma- powerful as ever, either as the neces- nes – comme un défi relevé de
nas – com resultados muito diversos sary rationalization for any anthropo- différentes manières. Ils sont tou-
– e continuam a operar na dinâmica logical research or as the channel for jours aussi puissants, soit comme
do campo, seja como argumento ins- the so-called “post-modern” specula- justification de toute attitude épisté-
taurador de toda pesquisa antropo- tions. To make them explicit and un- mologique de l’anthropologie con-
lógica, seja como veículo das espe- derstandable is the task of this article. temporaine, soit comme fondement
culações ditas “pós-modernas”. O des propositions soi-disant “pos-
presente artigo trata da sua explicita- tmodernistes”. Cet article propose
ção e esclarecimento. d’expliciter leur importance et d’ex-
pliquer leur rôle conceptuel.