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ISBN 978-85-334-2119-6

MINISTÉRIO DA SAÚDE

9 788533 421196

A democracia é, como o saber, uma conquista de todos.


Toda a separação entre os que sabem e os que não II Caderno de educação

MINISTÉRIO DA SAÚDE
sabem, do mesmo modo que a separação entre as elites
e o povo, é apenas fruto de circunstâncias históricas
que podem e devem ser transformadas.
- Paulo Freuire -
em saúde
1ª edição
1ª reimpressão

II Caderno de Educação
Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde
www.saude.gov.br/bvs

em saúde

Brasília – DF
2014
Ministério da Saúde
Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa
Departamento de Apoio à Gestão Estratégica e Participativa

II Caderno de Educação

em saúde

Brasília – DF
2014
© 2014 Ministério da Saúde.
Todos os direitos reservados. A coleção institucional do Ministério da Saúde pode ser acessada, na íntegra, na
Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde: <www.saude.gov.br/bvs>. O conteúdo desta e de outras
obras da Editora do Ministério da Saúde pode ser acessado na página: <http://editora.saude.gov.br>.

Esta obra é disponibilizada nos termos da Licença Creative Commons – Atribuição – Não
Comercial – Sem Derivações 4.0 Internacional. É permitida a reprodução parcial ou total desta
obra, desde que citada a fonte.

Tiragem: 1ª edição – 2014 – 10.000 exemplares

Elaboração, distribuição e informações:


MINISTÉRIO DA SAÚDE
Esplanada dos Ministérios - Ministério da Saúde Projeto gráfico e editoração: Bernardo Vaz
Bloco G Edifício Sede - 2º andar - Sala 207 Pinturas: Gildásio Jardim
CEP: 70058-900 – Brasília/DF Revisão de textos: Luis Eduardo Souza
Tel.: (61) 3315-3616/3326 Ficha catalográfica: Gustavo Saldanha
Fax: (61) 3322-8377
E-mail: gestaoparticipativa@saude.gov.br Colaboração:
Twitter: @sgep_ms Bernardo Amaral Vaz
Carla Moura Pereira Lima
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA Eymard Mourão Vasconcelos
GT de Educação Popular em Saúde Helena Maria S. Leal David
José Ivo dos Santos Pedrosa
Coordenação editorial: Maria Waldenez Oliveira
Julio Alberto Wong Um Pedro José Carneiro Cruz
Maria Rocineide Ferreira da Silva Simone Leite Batista
Osvaldo Peralta Bonetti Vanderleia Laodete Pulga
Renata Pekelman Vera Joana Bornstein
Theresa Cristina de Albuquerque Siqueira Vera Lúcia de Azevedo Dantas

Produção editorial: Normalização:


Aicó culturas Amanda Soares – CGDI/EditoraMS

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Ficha Catalográfica
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa.
II Caderno de educação popular em saúde / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Parti-
cipativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. – Brasília : Ministério da Saúde, 2014.
224 p. : il.

ISBN 978-85-334-2119-6

1. Educação popular em saúde. 2. Promoção da Saúde. I. Título.

CDU 614
Catalogação na fonte – Coordenação-Geral de Documentação e Informação – Editora MS – OS 2014/0109

Títulos para indexação:


Em inglês: Texts in popular health education
Em espanhol: Cuaderno de educación popular en salud
A democracia é, como o saber, uma conquista de
todos. Toda a separação entre os que sabem e os que
não sabem, do mesmo modo que a separação entre
as elites e o povo, é apenas fruto de circunstâncias
históricas que podem e devem ser transformadas.
Paulo Freuire
5
II Caderno de Educação
Sumário
Apresentação
2013. Ano de desafio. De construção.
De materialização da Política Nacional de Educação Popular em Saúde no SUS ................................ 9

Construindo caminhos
A Educação Popular em Saúde na Gestão Participativa do SUS:
construindo uma política........................................................................................................................ 16
Osvaldo Peralta Bonetti, Reginaldo Alves das Chagas, Theresa C. A. Siqueira
ANEPS: caminhos na construção do inédito viável na gestão participativa do SUS.......................... 25
José Ivo dos Santos Pedrosa, Maria Cecília Tavares Leite, Simone Maria Leite Batista, Vera Lúcia de A. Dantas

Nossas fontes
Ao Victor, depois de dois setembros .................................................................................................... 32
Julio Alberto Wang Un
Introdução ............................................................................................................................................ 34
Eymard Mourão Vasconcelos
A crise da interpretação é nossa: procurando entender a fala das classes subalternas.......................... 35
Victor Vincent Valla
Leituras de artigo de Fiori, com a intenção de despertar outras leituras ............................................ 49
Maria Waldenez de Oliveira e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva
Conscientização e educação.................................................................................................................. 55
Ernani Maria Fiori
Círculos de Cultura: problematização da realidade e protagonismo popular ..................................... 73
Vera Lúcia Dantas e Angela Maria Bessa Linhare
em saúde

Diálogo com a experiência


Dialogismo e arte na gestão em saúde: a perspectiva popular nas cirandas da vida em fortaleza........ 81
Vera Lúcia de A.. Dantas e Angela Maria Bessa Linhares
Dialogando com a experiência das Cirandas da Vida em Fortaleza-CE: novas reflexões................ 103
José Ivo dos Santos Pedrosa
Construindo zonas de indeterminação............................................................................................... 109
Dênis Roberto da Silva Petuco

Pequena enciclopédia de fazeres


Construção coletiva em educação popular: oficinas de culinária terapêutica..................................... 119
Nara Vera Guimarães
A Educação Popular em Saúde como referencial para as nossas práticas na saúde........................... 123
Vanderléia Daron

Reflexões e vivências
Educação popular na formação do agente comunitário de saúde...................................................... 151
Vera Joana Bornstein, Márcia Raposo Lopes, Helena Maria S. Leal David
Diálogo com práticas populares de saúde na formação profissional.................................................. 157
Maria Waldenez de Oliveira, Aida Victoria Garcia Montrone, Aline Guerra Aquilante, Fábio Gonçalves Pinto
Formação profissional e educação popular a partir de uma experiência
curricular em graduação em enfermagem........................................................................................... 165
Helena Maria S. Leal David, Sonia Acioli

»
Outras palavras
Aprendendo - e ajudando - a olhar o mar:
das muitas saúdes, culturas e artes na educação popular.................................................................... 179
Julio Alberto Wong-Un
De cenopoesia e dialogicidade: da reinvenção da linguagem ao reinvento do humano.................... 191
Ray Lima
“O cotidiano de Dona Chica na luta contra a tuberculose”
e a possibilidade de aprender com ludicidade.................................................................................... 194
Josenildo F. Nascimento, Mayana A.. Dantas, Ana Paula Brilhante, Ma. Rocineide F. da Silva, Ma. Vilma N. de Lima
Cha(mamé)lé cultural: poesia gauchesca............................................................................................ 196
Maria Helena Zanella

Entre sementes e raízes


Extensão popular de fitoterapia: realidade em Sergipe....................................................................... 199
Simone Ma. Leite, Karen E. F. Bezerra, Maria Cecília T.Leite, Tulani C. S. Santos, Vitor Araújo Neto.
Diálogo com os cuidadores sobre práticas de cuidados populares...................................................... 205
Suely Corrêa
Receitas de sucos ................................................................................................................................ 208
Glaudy Celma Sousa Santana, Josefa de Lourdes S. Pacheco, Marta Maria Fontes Pacheco

Prêmio Victor Valla


≠ Uma ação de reconhecimento e fortalecimento da EPS no SUS ..................................................... 216
Esdras Daniel dos Santos Pereira, Osvaldo Peralta Bonetti, Julio Alberto Wong Un

Sugestões de leitura........................................................................................................ 219

∏ Eymard Mourão Vasconcellos


Apresentação
2013. Ano de desafio. De construção. De materialização da
Política Nacional de Educação Popular em Saúde no SUS
“... Afagar a terra Secretaria de Gestão Estratégica
e Participativa do Ministério da
Conhecer os desejos da terra Saúde
Cio da terra, a propícia estação
E fecundar o chão”
[Milton Nascimento e Chico Buarque]

Nas palavras em poesia de Milton Nascimento e Chico


Buarque momento de “fecundar o chão”, de fazer o movimento na
terra, misturando sabores e cores, saberes e práticas, culturas e vi-
vências. Como diz Clarice Lispector “... meu enleio vem de que um
tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um
fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas
histórias’’ (NOLASCO, 2001). Complementaria com o óbvio, uma
história escrita por muita gente, demasiadamente humana!
Assim é o caminhar da Educação Popular em Saúde, constitu-
ído por um conjunto de práticas e saberes populares e tradicionais
que, segundo a Política Nacional de Educação Popular em Saúde
(PNEP-SUS), apresentam-se como um caminho capaz de contri-
buir com metodologias, tecnologias e saberes para a constituição de
novos sentidos e práticas no âmbito do SUS (BRASIL, 2013).
A institucionalização da Educação Popular em Saúde, na ges-
tão federal do SUS, começa a ser gestada ainda no primeiro ano do
Governo Lula, em 2003. Naquela época, foi vinculada à Secretaria
da Gestão da Educação e do Trabalho em Saúde, e, em 2005, foi
incorporada à Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa
(SGEP), fortalecendo sua dimensão estratégica para a promoção
da democracia e da participação social na construção do SUS. Na
SGEP, desde 2009, foi instituído um espaço de diálogo, articu-
lação e formulação compartilhada entre o Ministério da Saúde e
coletivos e movimentos populares. Trata-se do Comitê Nacional
de Educação Popular em Saúde que se dedicou a formulação da
PNEP-SUS e atualmente está comprometido com as estratégias
para sua implementação.
Falar sobre democracia e participação social pressupõe o ato de
compartilhamento do poder, troca e construção compartilhada de sa-
beres, estabelecimento de relações solidárias entre gestores, trabalha-
dores e usuários do SUS tendo como objetivo sua efetivação. Fazer do
SUS uma realidade vivida e não só assegurada em lei, requer o prota-
gonismo de sujeitos dotados da capacidade de compreender o mundo
e a si mesmos e de atuarem sobre ele, com autonomia e consciência.
Paulo Freire, em atos de compartilhamento, afirma que a
10 “conscientização é um compromisso histórico”, implicando o enga-
jamento de homens que “assumam o papel de sujeitos que fazem e
refazem o mundo” (FREIRE, 1980).
É com essa perspectiva que a Educação Popular em Saúde vem
sendo construída. De 2003 até os dias atuais, ganhou espaços dos mais
diversos, instalando-se no dia a dia dos serviços, nos processos de for-
mação, na gestão cotidiana do SUS, fortalecendo-se em muitos movi-
mentos sociais populares, nas ruas e nas praças, no campo e na cidade,
constituindo-se como uma práxis em construção.
2013, ano da institucionalização da Política Nacional de Educação
Popular em Saúde no SUS, fato que, além de representar mais uma
conquista, espelha o desafio de ampliação do seu exercício junto aos
gestores e trabalhadores da saúde e a sociedade como um todo.
O exercício da PNEP-SUS não está descolado do cotidiano da
organização da gestão e da atenção. Muito pelo contrário, é ideia-
-força potente para a promoção de atos que contribuam para a ga-
rantia da integralidade, ampliando e diversificando as práticas em
saúde por incorporar os modos populares e tradicionais do cuidado,
além de fortalecer a atenção básica como ordenadora das redes re-
gionalizadas de atenção à saúde.
É ferramenta estratégica por apoiar os processos de redução
das desigualdades regionais e das iniqüidades sociais, além de for-
talecer as construções em prol das diversidades culturais e das pos-
sibilidades de estar e ser no mundo. Potencializa a ampliação da
participação social e da gestão compartilhada, extremamente ne-
cessária nas relações entre os gestores e destes com os trabalhadores

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


e usuários do SUS. É orientadora no processo de qualificação da
formação e fixação dos profissionais de saúde.
A PNEP-SUS em tempos de regionalização, segundo Decreto
N . 7508, qualifica e confere maior potencialidade aos processos
o

construtivos de enfrentamento dos desafios hoje colocados para o


SUS (BRASIL, 2011).
Nada mais oportuno é o fato do Ministério da Saúde, por meio
de sua Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, que conta com
a Coordenação Geral de Apoio à Educação Popular e à Mobilização
Social, estar publicando o II Caderno de Educação Popular em Saú-
de como expressão viva do seu compromisso em dialogar sobre novas
formas e caminhos de fazer, pensar e sentir a saúde. 11
O II Caderno de Educação Popular em Saúde está constituí-
do por nove seções, denominadas trilhas: Construindo Caminhos;
Nossas Fontes; Pequena Enciclopédia de Fazeres; Outras Palavras;
Diálogo com a Experiência; Reflexões e Vivências; Entre Sementes
e Raízes e Indicações de Leituras. São trilhas instigantes que pro-
porcionarão ao leitor e aos fazedores e pensadores do SUS novos
aprendizados.
Ao se debruçar sobre o II Caderno de Educação Popular em
Saúde, você certamente se sentirá inspirado por palavras que se fa-
zem ou se fizeram em atos e, somente por terem sido vividas são
palavras demasiadamente humanas! Por isso, nosso sentimento
ao publicar o II Caderno de Educação Popular em Saúde é o de
Antônio Cícero em seu poema Guardar:

“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.


Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la,
isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é,
velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela
ou ser por ela ...” (CÍCERO, 2013)

A todos uma ótima leitura. Melhor dizendo, uma boa vivência!

Apresentação
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.761,
de 19 de novembro de 2013. Institui a Política Nacional de Educação
Popular em Saúde no Âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-
SUS). Disponível em: <bvms.saúde.gov.br/bvs/saudelegis>. Acesso em:
16 out 2013.
______. Presidência da República. Decreto n. 7.508, de 28 de Junho
de 2011. Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990,
para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS,
o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação
interfederativa, e dá outras providências. 2011. Disponível em: <http://
12
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/D7508.
htm>. Acesso em: 1 out. 2013.
CÍCERO, Antônio. Guardar. Disponível em: <http://www.tanto.com.
br/antonio-cicero.htm>. Acesso em: 16 out. 2013.
FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma
introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Moraes,
1980. 102 p.
NASCIMENTO, M.; HOLLANDA, C. B. Cio da Terra. 1976.
Disponível em: <http://letras.terra.com.br/chico-buarque/86011/>.
Acesso em: 3 jul. 2008.
NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lespector:
nas entrelinhas da escritura. São Paulo: Annablume, 2001. 270p.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Construindo caminhos
A Educação Popular em Saúde na Gestão
Participativa do SUS: construindo uma política

A publicação do II Caderno de Educação Popular em Saúde


(...) devo usar toda acontece em um momento especial da caminhada da EPS. Neste
possibilidade que tenha para ano de 2013, o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de
não apenas falar de minha Gestão Estratégica e Participativa (SGEP), concentra esforços para
utopia, mas participar de a implementação da Política Nacional de Educação Popular em
práticas com ela coerentes. Saúde no SUS (PNEP-SUS) pactuada em maio na Comissão In-
(Paulo Freire) tergestores Tripartite.
A Educação Popular em Saúde (EPS), enquanto campo teó-
Osvaldo Peralta Bonetti rico-metodológico e prática social, tem apresentado desafios à po-
Técnico Especializado da Sec. de lítica pública de saúde para o avanço da democracia participativa,
Gestão Estratégia e Participativa afirmando o Sistema Único de Saúde (SUS) como garantidor do
/ Ministério da Saúde.
acesso às ações de saúde e essencialmente constituído por valores
Reginaldo Alves das Chagas promotores de relações mais humanizadas.
Coordenador de Educação Po-
Ao analisar o percurso histórico da EPS é impossível não me-
pular em Saúde e Mobilização morarmos que muitos caminhos foram percorridos por intelectuais
Social da SGEP/MS (2011/12). orgânicos na área da saúde, como Paulo Freire e Victor Valla, bem
como pelos movimentos sociais populares que fazem parte da tra-
Theresa C. A. Siqueira
jetória de conquista que nos proporciona a vivência deste momento
Consultora Técnica da Coord.
Geral de Apoio à Educação Po-
atual de formulação de uma Política de EPS no âmbito do SUS.
pular em Saúde e à Mobilização Refletirmos sobre a PNEP-SUS nos provoca a importância de
Social da SGEP/MS (2011/12). resgatarmos o processo de institucionalização da EPS na gestão fe-
deral. O ano de 2003 destaca-se como aquele em que inaugurou essa
aproximação, quando ocorre a conquista do Governo Lula e a Rede
de Educação Popular em Saúde apresenta uma carta de intenções ao
chamado grupo de transição do governo que estava estruturando a
nova proposta política do MS. Acolhida a proposta, a EPS esteve ar-
ticulada inicialmente à Política de Educação Permanente para o SUS,
coordenada pela Secretaria de Gestão da Educação e do Trabalho em
Saúde (SGETS), tendo papel de contribuir com a qualificação da par-
ticipação popular e com a formação para o trabalho em saúde. Nesse
período constitui-se a ANEPS como um Como referido anteriormente, na atu-
inovador espaço de interlocução e construção alidade o MS encontra-se comprometi-
compartilhada entre a gestão e os atores que do com a formulação e implementação da
se movimentam, historicamente, no campo PNEP-SUS, que tem sido construída de
da EPS. forma participativa e apresenta como um de
A inserção da EPS na Secretaria de seus canais de diálogo o Comitê Nacional
Gestão Estratégica e Participativa, ocorrida de Educação Popular em Saúde (CNEPS)2.
em 2005, promove mudanças significativas Desde 2009, sensibilizada pela demanda de
no campo institucional, fortalecendo sua qualificar a interlocução com os coletivos
identidade com a democratização do Siste- e movimentos de EPS, bem como pela de
ma de Saúde por meio da participação e do fortalecer o apoio e a visibilidade das prá-
controle social. Concomitante a este fato, a ticas e movimentos de EPS no contexto do
SGEP encontrava-se em reformulação es- SUS para o desenvolvimento de uma ges- 17
trutural e iniciava-se o processo de formu- tão participativa de fato, a SGEP instituiu
lação da ParticipaSUS (Política de Gestão o CNEPS. Este Comitê reúne um coletivo
Participativa do SUS). de 28 membros titulares e seus respectivos
A vivência nos mostra hoje, que a in- suplentes, sendo essas representações da so-
serção da EPS neste contexto, comparti- ciedade civil, 13 movimentos populares e 2
lhando seu referencial teórico-metodológi- movimentos representativos dos gestores,
co e aproximando suas práticas, contribuiu como também, 9 representações de área de
em muito para a construção e formulação governo, ligadas às áreas técnicas do MS e
da ParticipaSUS, adensando este campo instituições ligadas ao SUS. Reuniões peri-
e promovendo um certo “alargamento” do ódicas com o conjunto das representações
conceito de participação e controle social, que o compõem têm sido realizadas a fim
trazendo à cena saberes e práticas ainda in- de discutir e construir estratégias de forta-
visíveis nos espaços oficialmente instituídos lecimento da EPS, as quais estão articuladas
de participação popular no SUS.
Na SGEP, foi instituída a Coordenação 2
Representações da Sociedade Civil no CNEPS:
Geral de Apoio à Educação Popular Articulação Nacional de Educação Popular e
e à Mobilização Social, integrando o Saúde (ANEPS); Rede de Educação Popular e
Departamento de Gestão Participativa, Saúde (REDEPOP); Articulação Nacional de
Extensão Popular (ANEPOP); Grupo de Trabalho
responsável também por fomentar políticas de Educação Popular em Saúde da ABRASCO;
de promoção da equidade em saúde1 e apoio Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST);
ao controle social por meio dos Conselhos e Confederação Nacional dos Trabalhadores na
das Conferências de Saúde. Agricultura (CONTAG); Movimento Popular de
Saúde (MOPS); Movimento de Reintegração das
Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN);
1
Política Nacional de Saúde Integral da População Movimento de Mulheres Camponesas (MMC);
Negra, Política Nacional de Saúde Integral da Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e
População LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Saúde; Central de Movimentos Populares (CMP);
Travestis e Transexuais), Política Nacional de Saúde Confederação Nacional dos Agentes Comunitários
Integral das Populações do Campo e da Floresta. de Saúde; Rede Nacional de Parteiras Tradicionais.

Construindo caminhos
ao seu objetivo primeiro que é o de apoiar Ao observarmos sua capilaridade nos
e sistematizar o processo de formulação e últimos anos, não podemos deixar de men-
implantação da PNEP-SUS. cionar as inúmeras experiências que vem
Para cumprir com este objetivo, em 2010 sendo desenvolvidas nos serviços de saúde
foram realizados seis Encontros Regionais de pelos trabalhadores do SUS que, por vezes
EPS promovidos pelo MS em parceria com de forma silenciosa em relação à institucio-
os movimentos sociais populares integrantes nalidade, sem apoio das instituições, tem
do CNEPS. Nestes Encontros ficou explíci- buscado uma nova forma de fazer saúde,
ta a necessidade de reinventar a participação mais participativa, promovendo a autonomia
no SUS, considerar o “jeito de ser brasileiro”, e a transformação da cultura vigente, assim
de promover um Sistema de Saúde cada vez como as experiências realizadas pelos movi-
mais humanizado e identificado cultural- mentos sociais populares em suas atividades
18
mente com a população que o constrói e o educativas ou de mobilização. Um dado que
acessa cotidianamente. entendemos ter relação a este processo histó-
Entende-se que a EPS apresenta-se rico da EPS e valide a afirmativa anterior, é
com potencialidade, não apenas como o número expressivo de trabalhos apresenta-
referencial teórico/metodológico para a dos em congressos da área da saúde referen-
construção de políticas, haja vista as ex- ciados na EPS nos últimos anos, trazendo a
periências reais em governos do campo da dimensão da contribuição que este campo
esquerda, como também, campo de práti- tem possibilitado para a transformação das
ca social com amplo poder de agregação, práticas de saúde. Para citar um exemplo,
alicerçado em princípios éticos e culturais destacamos o ABRASCO de 2010 que con-
compromissados com o popular. tou como eixo temático Educação Popular
Dentre os princípios da EPS, podemos de- e Movimentos Sociais, que teve o segundo
stacar a defesa intransigente da democracia em maior numero de inscrições do congresso.
contraposição ao autoritarismo ainda comum O número de iniciativas inovadoras re-
em nossa jovem democracia; a articulação ferenciadas na EPS, fomentadas ou sendo
entre os saberes populares e os científicos pro- reconhecidas em muitas gestões estaduais
movendo o resgate de saberes invisibilizados e municipais tem aumentado significativa-
no caminho de um projeto popular de saúde mente. Como exemplos de experiências que
onde haja o sentido do pertencimento pop- merecem ser divulgadas, citamos as experi-
ular ao SUS; a aposta na solidariedade e na ências relacionadas ao Departamento de En-
amorosidade entre os indivíduos como for- demias da ENSP/FIOCRUZ, a exemplo da
ma de conquista de uma nova ordem social; Ouvidoria Coletiva promovida em parceria
a valorização da cultura popular como fonte com a Secretaria Municipal de Saúde de Ita-
de identidade; a concepção de que a leitura boraí; do projeto MobilizaSUS, coordenado
da realidade é o primeiro passo para qualquer pelo Departamento de Educação Permanen-
processo educativo emancipatório que vise te da Secretaria Estadual de Saúde da Bahia,
contribuir para a conquista da cidadania. que tem promovido uma grande mobilização

MinistériodadaSaúde
Ministério Saúde IIIICaderno
Cadernode deEducação
Educação Popular
Popular em Saúde
em Saúde
por meio de processos educativos envolven- cional de Reorientação da Formação Pro-
do atores do SUS de forma descentralizada fissional em Saúde (Pró-Saúde) articulado
no Estado. O Espaço Ekobé ligado ao proje- ao Programa de Educação pelo Trabalho
to Cirandas da Vida da Secretaria de Saúde para a Saúde (PET-Saúde) que em seu edi-
de Fortaleza tem trazido a contribuição das tal de nº 24, publicado em 15 de dezembro
práticas populares de cuidado para o interior de 2011, que aponta a educação popular em
do sistema, valorizando o saber popular nos saúde como uma das ações a serem traba-
serviços de saúde. lhadas buscando incorporar o conceito do
Na região Norte, ressalta-se a mobiliza- trabalho em rede na saúde – integralidade
ção e articulação do Movimento pela Revi- da atenção e continuidade dos cuidados.
talização dos Saberes e Práticas Populares/ Um espaço que tem contribuído em
Tradicionais de Saúde em Parintins/AM. muito neste processo, já identificado como 19
A implementação de Comitês de uma marca do campo são as Ten-
Enfrentamento da Dengue das de EPS, costumeiramen-
em alguns estados de- te chamadas de Tendas
monstra a importância Paulo Freire. A partir de
do referencial das prá- seu precursor e fonte
ticas de cuidado e da inspiradora, o “Espa-
arte e cultura na pro- ço Che” no Fórum
moção da saúde; pro- Social Mundial de
jetos de promotores 2005, dezenas de ten-
da fitoterapia popular das já foram realizadas
articulados com uni- em eventos significa-
versidades, secretarias tivos do setor saúde3.
estaduais e municipais e Dentre suas caracterís-
movimentos sociais popula- ticas, a dialogicidade entre
res como os que acontecem em práticas e saberes acadêmicos e
Aracaju/SE, Vacaria/RS, Marília/SP, populares e a superação de situações-
entre outros. -limite na saúde empregando metodologias
Iniciativas desenvolvidas nas universi- participativas e problematizadoras, a arte e
dades têm sido fortalecidas, como Especia- cultura e a construção compartilhada entre
lizações em Educação Popular em Saúde, os atores dos coletivos de EPS, desde sua
as ações relacionadas à Extensão Popular, formulação. Tais ações promovem assim a
como as experiências de Alagoas, Sergipe, visibilidade das ações e práticas de EPS e sua
Paraíba com seus diversos projetos de ex- articulação, criando um espaço acolhedor e
tensão. Espera-se que as iniciativas de arti- colorido identificado à cultura popular. Por
culação entre ensino, serviço e comunidade 3
Congresso da ABRASCO, Rede Unida,
relacionadas à educação popular em saúde
CONASEMS, o Brasileiro de Enfermagem, de
sejam potencializadas pelo Programa Na- Medicina de Saúde e Comunidade entre outros.

Construindo caminhos
arquivo ANEPS
20

meio da articulação com parceiros locais tem Destaca-se no relatório final da 14ª CNS,
inaugurado um novo jeito na realização dos na diretriz relacionada à gestão participativa e
eventos da área da saúde, promovendo o en- controle social sobre o estado: ampliar e con-
trelaçamento entre a teoria e a prática, tra- solidar o modelo democrático de governo do
zendo para a cena atores historicamente in-
SUS, a deliberação da necessidade de imple-
visibilizados neste contexto de produção do
mentação da Política Nacional de Educação
conhecimento e articulação política, como
militantes e cuidadores populares. Popular, com a criação de comissões estaduais
Na 14ª Conferência Nacional de Saúde (BRASIL, CONSELHO NACIONAL DE
(CNS) o Espaço Paulo Freire destacou-se SAÚDE, 2012).
como um dos ambientes da Conferência De modo geral, podemos afirmar que
mais propício à liberdade de expressão e à o desafio atual é a institucionalização das
construção de conhecimentos em saúde a práticas e dos princípios da EPS no SUS,
partir da integração dos diversos saberes, da ou seja, publicizar a EPS a fim de contribuir
promoção da cultura popular e principal-
com melhoraria da qualidade de vida das
mente um lugar onde delegadas, delegados
pessoas, seja pela agregação de valores cul-
e a comunidade em geral puderam partilhar
experiências e discutir temas relevantes para turais, pela incorporação de práticas e sa-
a garantia do direito à saúde e o desenvolvi- beres que estão na sociedade e nos movi-
mento participativo do SUS. A realização mentos populares. Institucionalidade assim
desta Tenda durante a 14ª CNS, no mo- entendida como o Estado reconhecer e le-
mento em que forças do controle social e dos gitimar valores da sociedade que historica-
movimentos populares estão engajadas pela mente foram marginalizados.
instituição da Política Nacional de Educação Com o intuito de estimular este pro-
Popular em Saúde, foi de significativa im-
cesso, a SGEP-MS publicou a Portaria Nº
portância para a popularização do debate e
2.979 de dezembro de 2011 que repassa
visibilidade das práticas de EPS no SUS.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


arquivo ANEPS
21

recursos federais às gestões estaduais para aspectos, como contribuir com os segmentos
implementação da ParticipaSUS, esta- que atuam na perspectiva da defesa da equi-
belecendo como uma das metas a imple- dade, fomentando o sentido de pertenci-
mentação de Comitês de Educação Pop- mento entre seus atores, intensificando
ular em Saúde e Promoção da Equidade identidades não só entre aqueles de cada
em Saúde (BRASIL, 2011a). Aliada a um um destes (LGBT, negros, campo e floresta,
conjunto de estratégias de sensibilização em situação de rua, ciganos), como no seu
e mobilização, como seminários, proces- conjunto, sendo que há similitudes entre os
sos formativos, disponibilização de ma- condicionantes de suas situações de iniqui-
teriais pedagógicos; espera-se que seja dade, processo esse fundamental também, na
desencadeada junto às gestões estaduais a articulação da defesa do projeto coletivo de
necessária descentralização e capilarização saúde, elementar ao SUS.
da Educação Popular em Saúde no SUS. O estímulo à descentralização de
O fato de esta Portaria fomentar a ar- Comitês de Educação Popular em Saúde
ticulação entre a EPS e a promoção da equi- apresenta-se como a estratégia para
dade nos provoca a refletir sobre a identidade capilarizar as ações de EPS junto às gestões
existente entre suas intencionalidades. Se estaduais, na medida em que promove a
compreendermos que a EPS nasce do com- institucionalização de espaço de interlocução
prometimento com as classes populares e da entre atores dos movimentos sociais popu-
contrariedade com as desigualdades exis- lares e as áreas de gestão do SUS. Assim, a
tentes em relação aos direitos sociais no País, PNEP-SUS se apresenta como referencial
perceberemos que esta relação é intrínseca político pedagógico para a formulação e im-
e, portanto, possui potencialidade de articu- plementação de ações de EPS nas demais
lação entre as ações das políticas que as pro- esferas de gestão, mas fundamentalmente,
movem. O referencial da EPS no contexto por meio destes espaços espera-se promover
da promoção da equidade tem significativos a construção compartilhada e identificada a

Construindo caminhos
cada realidade estadual, que perpassa tanto sistente no campo teórico, mas que somente
a própria política de saúde, as características é apreendida e realizada de fato, quando
locais do SUS, como também a conjuntu- vinculada ao compromisso com o SUS en-
ra e organização política da sociedade civil. quanto projeto de sociedade e vivenciada na
Neste contexto, a configuração dos Comitês prática.
de EPS não possuem uma estrutura ou com- Ações de EPS poderão vir a contribuir
posição padrão e sim, devem ser recriadas em com a promoção da saúde e a qualificação da
cada localidade conforme a articulação e mo- educação em saúde tradicionalmente realiza-
bilização de atores que se movem no campo da, fortalecendo vínculos emancipatórios para
da educação popular em saúde. O desenho que o cidadão tenha cada vez mais autono-
implementado no nível nacional poderá sim, mia de decisão em como se cuidar e mais am-
servir de subsidio na formulação destes es- plamente no seu jeito de andar a vida. Vale
22
paços no momento em que aponta áreas de destacar que na perspectiva de fortalecer a
governo com identidade técnica e política mudança no modelo de atenção centrado na
com as ações de EPS e destaca movimentos doença, é muito significativa a aproximação
sociais populares que tem acumulado uma dos serviços de APS às práticas populares
qualificada compreensão no caminho com- de cuidado, pois estas carregam uma visão
plexo da institucionalização da EPS. de mundo e de saúde que se aproxima dos
Na análise das potencialidades da princípios que cotidianamente temos nos es-
PNEP-SUS, uma dimensão significativa é a forçado para implementar, como a integrali-
articulação das práticas populares de cuida- dade, a humanização e o acolhimento.
do aos serviços de saúde, pois estas atuam Dentre estes processos, destaca-se o
muito próximas dos princípios que temos desenvolvimento de espaços de encontro
buscado efetivar no SUS, como a human- mediados pelo diálogo, abertos para uma
ização, solidariedade e a integralidade, com- nova cultura participativa que acolhe e
preendendo estas não só como forma de legitima a contribuição do saber popular
cura, mas, fundamentalmente, como con- ao lado do saber técnico científico, os quais
tribuidoras para a conquista de um projeto poderão contribuir também para o desejado
de sociedade engajado com esses valores. reencantamento popular pelo SUS.
A incorporação da EPS pelo SUS nos No conjunto das estratégias desen-
traz a dimensão do potencial apresentado cadeadas pela Coordenação de Apoio à
pelo trabalho em rede, o qual poderá ser Mobilização Social e à Educação Popular em
fortalecido enquanto referencial nas políti- Saúde para fortalecer o processo de imple-
cas de saúde, visando maior capilaridade, mentação da Política Nacional de Educação
efetividade e democratização das mes- Popular em Saúde, destaca-se a visibilidade às
mas. Para tanto, será fundamental a com- práticas populares de cuidado, destacando-se
preensão de que a EPS não é apenas mais a importância dos terreiros, das parteiras, ben-
um conteúdo acadêmico e sim é uma práti- zedeiras, das plantas medicinais, entre outras;
ca social que apresenta uma produção con- a busca da intersetorialidade, compartilhando

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


o referencial da EPS com as demais políticas de regulamentação da Lei 8.080, que legitima
públicas; a inserção da EPS como referencial a Atenção Primária como porta de entrada do
do processo político metodológico da for- Sistema entre outros avanços organizativos
mação dos Agentes Comunitários de Saúde (BRASIL, 2011b). Compreende-se que os
e Agentes de Controle de Endemias; e a po- avanços no modelo organizativo do SUS so-
tencialização dos demais processos formativos mente gerarão o impacto desejado se houver
articulados ao SUS. A articulação entre arte e o fortalecimento concomitante dos dispositi-
cultura e a saúde é um referencial significativo vos democratizadores da participação popular
na EPS, dentre as múltiplas iniciativas nas na política de saúde, dentre os quais a EPS
quais é envolvida, destaca-se o movimento de merece evidência.
reconhecimento e articulação que a SGEP/ Democratização é a palavra chave tan-
MS está inaugurando com a população do to para garantirmos o acesso a todos como
23
Circo a fim de buscar a correção das iniqui- para a conquista de um sistema acolhedor,
dades a que as populações circenses estão ex- este último talvez mais complexo de ser con-
postas e potencializar o Circo como espaço de quistado, pois, para garantir acolhimento é
promoção da saúde. necessário algo mais - o sentido de perten-
O Prêmio Victor Valla de Educação cimento apontado por Paulo Freire. Nesse
Popular em Saúde congrega muitas das in- sentido, a EPS tem apontado princípios que
tencionalidades elencadas e proporcionou podem contribuir às práticas de saúde nes-
o acesso a uma grande diversidade de ex- sa busca, como a problematização da reali-
periências, grande parte destas autônomas, dade vivenciada pelas populações enquanto
sendo desenvolvidas no interior dos serviços elemento básico dos processos educativos e
e por coletivos e movimentos populares. O de planejamento no enfrentamento dos de-
acesso às mais de 160 experiências partic- terminantes sociais da saúde; a valorização
ipantes do Prêmio evidenciou a necessi- do saber popular como forma de construir-
dade de investirmos enquanto política de mos relações e vínculos mais efetivos, além
saúde no apoio pedagógico aos atores que do desafio de resgatarmos e articularmos as
desenvolvem estas práticas de promoção e práticas populares de cuidado aos serviços
educação em saúde. Neste sentido a SGEP/ de saúde; a construção compartilhada do
MS encontra-se em fase de planejamento conhecimento; e a amorosidade, elemento
de um processo formativo envolvendo os intrínseco da humanização do sistema, que
protagonistas destas experiências e possibil- implica o reconhecimento do outro em sua
itando a troca de experiências e o acesso ao totalidade e diversidade.
referencial da educação popular em saúde. Para que a EPS seja transformada em
Essas iniciativas congregam-se ao marco uma política do SUS temos de compreender
político do atual governo de desenvolvimen- que esta deverá contemplar a todos aqueles
to de um Projeto de Erradicação da Pobreza que estão implicados com a política de saúde,
no País. No setor saúde, um avanço significa- ou seja, trabalhadores, gestores, docentes,
tivo é a publicação do Decreto nº 7.508/2011 educadores, estudantes e usuários. Ainda é

Construindo caminhos
comum a visão de que a educação popular Referências
somente é realizada a uma parcela da popu-
lação mais desfavorecida e este deve ser um BRASIL. Ministério da Saúde;
ponto a ser trabalhado na política, ampliar CONSELHO NACIONAL DE
a visão sobre o que realmente é a EPS, a SAÚDE. Relatório Final da 14ª
quem serve e em quais espaços é propícia Conferência Nacional de Saúde: todos
sua contribuição. usam o SUS: SUS na seguridade social:
Quando entendemos que a busca da política pública, patrimônio do povo
transformação social perpassa as relações brasileiro. Brasília: Ministério da Saúde,
humanas, as formas de apropriação do 2012. Disponível em: <http://conselho.
conhecimento e de outros bens, torna-se saude.gov.br/14cns/docs/Relatorio_final.
mais compreensível que a EPS pode acon- pdf>. Acesso em: 16 out. 2013.
24 tecer tanto no espaço da gestão, dos serviços ______. Ministério da Saúde. Portaria
de saúde, de formação em saúde e dos movi- n. 2.979, de 15 de dezembro de 2011.
mentos populares onde foi concebida e vem Dispõe sobre a transferência de recursos
sendo realizada. aos Estados e ao Distrito Federal para
Com a PNEP-SUS, espera-se articular a qualificação da gestão no Sistema
o referencial da educação popular em saúde Único de Saúde (SUS), especialmente
aos processos de gestão, formação, controle para implementação e fortalecimento da
social e cuidado em saúde, buscando for- Política Nacional de Gestão Estratégica
talecer a gestão participativa, contribuir com e Participativa do Sistema Único de
a formação em saúde em seus vários espaços Saúde (ParticipaSUS), com foco na
de ação - profissional, técnica, bem como for- promoção da equidade em saúde, e
talecer os processos já existentes no campo para a implementação e fortalecimento
dos movimentos populares, intenção esta, que das Comissões Intergestores Regionais
se traduz não apenas em apoio financeiro, mas (CIR) e do Sistema de Planejamento
em relações mais próximas entre governos e do SUS. 2011a. Disponível em: <http://
estes movimentos na construção de projetos portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/
coletivos para a qualificação do SUS. PORTARIA_2979_MS.pdf>. Acesso
O momento atual demonstra grande em: 16 out. 2013.
fertilidade nas formulações e realizações do
______. Presidência da República. Decreto
campo da EPS na política pública de saúde,
n. 7.508, de 28 de junho de 2011.
porém, a conquista da Política Nacional de
Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de
Educação Popular em Saúde perpassa um
setembro de 1990, para dispor sobre
movimento que vai além de sua pactuação e
a organização do Sistema Único de
instituição no marco regulatório do SUS. A
Saúde - SUS, o planejamento da saúde,
PNEP-SUS somente alcançará os impactos e
a assistência à saúde e a articulação
transformações desejadas, se cada ator do SUS
interfederativa, e dá outras providências.
sentir-se parte e protagonizar este processo de
2011b. Disponível em: <http://www.
implementação. O convite está posto. Espera-
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
mos que, cada vez mais, esta política construa
2014/2011/decreto/D7508.htm>. Acesso
sentidos coletivos em sua materialidade.
em: 16 out. 2013.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


ANEPS: caminhos na construção do
inédito viável na gestão participativa do SUS

A saúde coletiva no contexto das democracias contemporâneas


e particularmente no Brasil tem como um de seus desafios a
constituição de diálogos entre o espaço governamental (instituído) e “Essa ciranda não é minha só
os movimentos sociais na formulação e implementação das políticas Ela é de todos nós
públicas. Várias estratégias e dispositivos vem sendo pensados e Ela é de todos nós”
incluídos nesse percurso na perspectiva de que o controle social (Lia de Itamaracá )
dessas políticas se efetive e, neste sentido, algumas dessas iniciativas
apontam para o fortalecimento da democracia participativa.
José Ivo dos Santos Pedrosa
Uma dessas estratégias foi à criação de um espaço de diálogo
entre os movimentos e práticas de educação popular em saúde, es- Médico, Doutor em Saúde Coletiva.
Professor Associado da Universidade
paços formativos e gestões do SUS, que surge a partir de 2003, como Federal do Piauí.
uma Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação
Popular em Saúde – ANEPS. Trata-se de uma experiência nova Maria Cecília Tavares Leite
que tem por objetivo uma relação diferenciada com o Estado capaz Assistente Social, Doutora em Ser-
de fortalecer a sociedade civil do ponto de vista popular e, ao longo viço Social. Professora do DSS/UFS
e ANEPS - Sergipe.
de um processo histórico e social mais amplo, fazer com que os
interesses do Estado sejam coincidentes com os da sociedade. A Simone Maria Leite Batista
ANEPS tem buscado, em seu percurso, construir caminhos e tri- Enfermeira, especilaização em Saú-
lhas que desencadeiem processos de reconhecimento e constituição de Púbiica. Movimento Popular
de Saúde do Estado de Sergipe e
de sujeitos, mobilizando entidades, movimentos e práticas de edu-
ANEPS.
cação popular. Desse modo, vem se construindo uma dinâmica que
possa romper com formatos verticais e hierarquizados de organiza- Vera Lúcia de A. Dantas
ção, que historicamente tem caracterizado as estratégias hegemôni- Médica, mestre em Saúde Públi-
cas de participação instituídas no âmbito das políticas públicas em ca- UECE, doutora em educação –
UFC e coordenadora pedagógica do
nosso país, que, de maneira geral, ainda se encontram pautadas nos Sistema Municipal de Saúde Escola
princípios e formas de organização da democracia representativa. da SMS Fortaleza. ANEPS.

Neste sentido a ANEPS, como um espaço de articulação, bus-


ca constituir uma ação em rede na qual vários movimentos que
dialogam, se articulam como possibilidade animadores dos primeiros encontros que
de fortalecimento da organização popular, foram se delineando por vários estados
aproximação de bandeiras de luta de cada do Brasil. Configurou-se uma cartografia
segmento, formação política e de interlocu- múltipla e diversa, na qual foram se incluin-
ção propositiva com os espaços instituídos, do atores da esfera institucional (estudantes
mantendo suas identidades. Resgata assim, e professores universitários, trabalhadores e
o sentido de projeto coletivo de saúde como gestores da Saúde), dos movimentos sociais
idealizado na reforma sanitária. populares e atores não necessariamente li-
Um dos propósitos originais da gados a movimentos, mas sujeitos de prá-
ANEPS tem sido o de articular e apoiar os ticas populares de cuidado como parteiras,
movimentos e práticas de educação popu- benzedeiras, educadores, entre outros.
26 lar e saúde a fim de qualificar suas práticas, Os desenhos dos encontros foram di-
desenvolver processos formativos e reflexi- versos e algumas tecnologias foram inven-
vos a partir da práxis e construir referências tadas e nomeadas como, por exemplo, as
para a formulação de políticas públicas. Farinhadas do Ceará, encontros onde um
Diante dos desafios que se apresentavam, movimento recebia os atores de outros es-
os passos iniciais revelaram a complexidade paços para que pudesse “saborear” sua expe-
desse caminhar considerando as distâncias e riência, seu jeito de acolher, suas formas de
diversidades na compreensão do que efeti- fazer e dela extrair aprendizados.
vamente se constituem práticas de educação Nesse processo outros arranjos surgi-
popular em saúde e quem são seus atores. ram e se constituíram em momentos de
Como encontrá-los, promover encon- aprendizagem e se tornaram espaços re-
tros dialógicos? Como compartilhar saberes e veladores da possibilidade de uma forma
construir caminhos de organização rompen- de produzir encontros diversos, plurais e
do com instituído eram questionamentos multiculturais. Assim, um exemplo disso,
tem sido as experiências das Tendas Paulo
Freire, que construídas nos principais En-
contros e Congressos de Saúde onde a
integração de experiências diversas de di-
versos estados, promove a discussão, têm
problematizado temas que apesar de inte-
grarem o cotidiano das pessoas não fazem
parte da agenda política da saúde como a

“É fundamental diminuir a distância entre o


que se diz e o que se faz, de tal maneira
que num dado momento a tua fala seja a tua
prática.”. Paulo Freire
importância das práticas populares de cui- em um movimento que vai aprendendo a
dado como um jeito singular e amoroso de produzir “nós” para o fortalecimento dessa
produzir saúde possibilita o compartilha- rede de articulações.
mento de vivência distinto e a construção Nesses caminhos, a produção de sen-
de propostas de ação. tidos tem ocorrido também através da ar-
Foram também nessa perspectiva que, ticulação e constituição de fóruns perma-
desde 2003, foram construídos os diversos nentes de educação popular nos estados,
encontros estaduais e os 03 encontros nacio- como espaço de escuta das necessidades, de
nais (Brasília, em 2003; Aracaju, em 2006 e formação de atores sociais para a gestão das
Goiânia, em 2010). Nessa caminhada se foi políticas públicas, de organização, de comu-
chegando aos espaços instituídos: na gestão, nicação entre os movimentos e de mobiliza-
especialmente alguns setores do Ministério ção popular. Um processo – por vezes tenso 27
da Saúde; nos serviços incluindo práticas; – de diálogo desses movimentos e sujeitos
nas universidades, apresentando jeitos dife- que buscam encontrar efetivos espaços de
rentes de organizar e produzir conhecimen- interlocução com o jeito institucionalizado
tos. Nesse jeito diferente de fazer foram de fazer e produzir saúde (Ministério da
sendo realizadas formações em diálogo com Saúde, Secretarias Estaduais e Municipais
a academia (Ekobé, - UECE, Fitoterapia - de Saúde, Universidades) sem perder suas
UFS, Café Com Idéias - UFG, Saúde no identidades e autonomia.
Mercado – UFS) e ao mesmo tempo crian- Nesse percurso, a ANEPS ao mesmo
do teias entre estados e regiões, tais como a tempo em que referencia as práticas popu-
articulação, diálogos e ações compartilhadas lares de cuidado, de organização e culturais,
existentes entre os educadores populares do não perde de vista as lutas por um proje-
Ceará, Alagoas, Sergipe, Rio Grande do Sul to popular de sociedade, articulando-se a
e do Piauí. outras redes e organizações que caminham
Em todas essas iniciativas tem-se bus- nessa perspectiva como a Rede de Educação
cado contribuir com a formação dos atores Popular em Saúde, a ANEPOP e o GT de
que a constituem, incorporando os sujeitos educação popular em saúde da ABRASCO,
em suas potências, estimulando e apostando a Rede de Educação Cidadã - RECID, en-
na capacidade de produzir reflexões acerca tre outros coletivos de educação popular em
das próprias experiências. Assim é que os saúde que caminham no sentido do fortale-
movimentos do Ceará, Sergipe e Alagoas cimento das lutas políticas.
tem se juntado de forma solidária e muitas A criação do Comitê Nacional de
vezes sem recursos institucionais, para pro- Educação Popular e Saúde - CNEPS - repre-
ver a formação em práticas de cuidado; que senta uma conquista dessa caminhada e aponta
atores do Sul passaram a contribuir com a para possibilidades de fazer política participa-
sistematização de experiências do Nordeste, tiva para além da democracia representativa.

Construindo caminhos
Todo este processo desencadeou a formula- que a vivenciam será um marco fundamen-
ção da proposta do CNEPS, como mais uma tal. Colocando em cena uma dimensão im-
estratégia que tem como objetivo a ampliação portante da educação popular: a autorali-
e o fortalecimento da luta pelo direito à saú- dade dos sujeitos na escrita da sua própria
de, da luta em defesa do SUS, por meio da história de luta e resistência. Olhar para sua
participação popular, através dos já instituí- realidade e contextualizá-la criticamente,
dos espaços de participação popular nas polí- percebendo-se sujeito da construção de um
ticas públicas e apostando em novas e criati- projeto popular de sociedade são uma das
vas formas de participação da população. perspectivas desse percurso formativo em
Apesar dos avanços na caminhada tri- gestação.
lhada pelos atores dos movimentos e práti- Frente a um contexto histórico no qual
28 cas que fazem a ANEPS, muitas situações- o processo de aproximação dos movimentos
-limite precisam ser superadas. Uma delas sociais e populares com o instituído, tem, via
diz respeito à própria for- de regra, resultado na total
ma de organização de um ou parcial descaracteriza-
espaço como esse. Vários Olhar para sua realidade e ção das suas propostas e na
foram os formatos já ex- contextualizá-la crit icamente, perda das identidades des-
perimentados e parece- percebendo-se sujeito da ses sujeitos e movimentos,
-nos que essa ainda é uma construção de um projeto o momento atual propi-
situação-limite que conti- popular de sociedade são uma cia uma discussão sobre a
nua a desafiar a capacidade das perspectivas desse percurso importância da participa-
inventivo-criativa dos su- formativo em gestação. ção popular na saúde e na
jeitos dessa articulação que implementação do SUS,
seguem maturando suas suscitando a necessidade
reflexões, seja na compreensão do sentido de refletir sobre a caminhada da ANEPS
político pedagógico da Educação Popular e no Brasil como uma estratégia de fortaleci-
de como ele se materializa na experiência, mento da educação popular em saúde, mo-
na percepção dos sujeitos sobre o que expe- vimento político e campo em constituição,
riência e como essa reflexão pode transfor- olhando para três dimensões: a ampliação
mar sua realidade. dos espaços de interlocução entre a gestão
A importância de produzir essas refle- do SUS e os movimentos sociais populares;
xões com base na experiência desses sujei- a capacidade de mobilizar a população pelo
tos levou à construção de uma proposta de direito à saúde e pela equidade; e como es-
formação envolvendo os outros coletivos tratégia pedagógica constituinte de sujeitos
nacionais de educação popular a que nos críticos e propositivos com potencialidade
referimos anteriormente, na qual a sistema- para formulação e deliberação de projetos
tização das experiências constituídas pelos políticos.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Nossas fontes
Ao Victor, depois de dois Setembros.
1. você semeou tanta e tanta coisa...
Depois do tempo dos torrentes e das que a gente pega semente
cachoeiras se faz difícil empreender a Até sem perceber
feitura artesã dos poemas. E se faz homem da terra, camponês de
A vida pega outros riachos e ficamos presos ideias novas,
ao automático cotidiano. e vira Ser Fecundo de sonhos possíveis.
Quem dera
Percorrer pelas tardes as ruas do Catete e 2.
parar nos bares e bancas, lhe procurando Passaram-se já dois setembros e meses
com esperança. mais. O mundo mudou pouco. Pouco
também fizemos nós
Mas você, Victor, já anda em outras Os seus amigos e aprendizes. Porque,
caminhadas, outras conversas de pastor de vamos conveniar, essa sua lista que ficou
ovelhas, risadas pendente é enorme.
Boas em outras companhias, em outros Mas enormes também são as esperanças,
planos, em outras lutas transcendentes. as impaciências, as viabilidades inéditas, as
Não tem tempo para nostalgias. nossas criações
Em todo o país e em todos os espaços.
Talvez, por necessidade ou por novas Em especial, veja bem o novo que surge
alegrias, você esteja começando a esquecer no olhar dos meninos, das faculdades, dos
essa sua estrada conosco. serviços, dos encontros...
Tanta coisa extraordinária
Nós, os que lembramos, E nós tão poucos para olhar, cuidar,
Não podemos nos dar esse luxo. Porque fortalecer, e etcéteras.
3. 5.
Complicando a conversa: Vou indo que o tempo apressa. Levo
Sempre Caos, a ninfa arredia e rápido o seu olhar por trás das lentes
brincalhona, vai nos impondo seu jogo de grossas, a barba mal feita, a cadeira
esconde-esconde, e nós Malvada que o apressava. E você
Simples seres alados rastejantes, vamos abraçando minha filha e rindo com ela,
costurando palavras, argumentos, estudos, perguntando: quer colo?
Evidências talvez, para lhe seguir Eu de coração rachado e você rindo
intuitivos nesse seu ritmo e jeito e rindo desde sua distância. Eu me
singulares de budista irônico. despedindo e você gozando da minha
Sementes difíceis e desafiadoras as suas, cara
heim Valla? Qual adeus? Vai virar jardineiro e nem
sabe. E na mão deixou um monte dessas
4. sementes raras
A memória é flor delicada. Cobra beijos Para cultivar, ampliar, torcer, retorcer,
e adubos. Cobra afagos para não morrer. reinventar e se refazer mais e mais.
Porque sabemos que boas linhagens são Julio Wong.
perseguidas, apagadas ou transformadas
em pacote industrial sem fruta original. Rio de Janeiro, 01 de Maio de 2012. O
Assim luar por cima da chuva. O branco de
Com seu trabalho, sua fala pausada, e os galáxia me abraçando.
óculos grossos para ver melhor o mundo
Suas maldades e suas belezas, seus visíveis Julio Alberto Wong Un
gritantes, os ocultos nas falas simples, os
invisíveis nos espíritos.
Introdução
O fortalecimento do SUS e principalmente a ampliação da Estratégia
Saúde da Família têm possibilitado que um grande número de profissionais
de saúde passe a atuar muito próximo da realidade das classes populares.
Assim, um crescente número de profissionais vem sendo despertado para
repensar suas práticas assistenciais para torná-`las mais integradas aos in-
teresses e à cultura da população. Mas isto não é fácil. Não basta querer se
integrar. É preciso saber fazê-lo. O mundo popular é marcado por valores,
interesses e modos de organizar o pensamento e a rotina de vida muito
diferente daqueles que orientam a classe média, ambiente cultural de ori-
gem de grande parte dos profissionais de saúde. O poder do doutor e das
instituições inibe a fala autêntica das pessoas mais fragilizadas, dificultando
o diálogo. Por isto, tem sido usual encontrar profissionais frustrados e até
rancorosos com as possibilidades desta integração. Alguns chegam a dizer:
“esta população não merece meu empenho de tornar as práticas assisten-
ciais mais humanizadas, criativas e participativas.”
Educação popular em saúde não é apenas a valorização da construção
de soluções para os problemas de saúde de forma dialogada e compartilha-
Eymard Mourão Vasconcelos
da. É uma arte e um saber complexo, acumulados por mais de 50 anos, para
Médico envolvido com saúde co-
munitária desde 1974. Professor
esta difícil tarefa. Victor Valla (1937-2009) foi um dos grandes intelectuais
do Departamento de Promoção que nos ajudou a avançar neste sentido.
da Saúde da Universidade Federal Norte-americano, Victor chegou ao Brasil em 1964 e logo ficou cho-
da Paraíba e membro da Rede de
Educação Popular e Saúde. cado com a intensa pobreza de grande parte da população. Este choque
mudou sua vida, que passou a ser dedicada à busca de caminhos de supe-
ração. Apesar de ser um pesquisador de grande prestígio acadêmico, nunca
deixou de buscar formas de convívio próximo com a vida e as lutas das clas-
ses populares. Com um pé no ambiente de discussão acadêmica dos intelec-
tuais da saúde pública e outro pé bem fincado no mundo popular, percebia
como que a maioria das lideranças e dos profissionais mais progressistas do
setor saúde não compreendia bem os comportamentos e o modo de pensar
da maioria da população.
Grande parte de seu esforço de pesquisa foi no sentido de destrinchar
as incompreensões mais importantes, buscando encontrar explicações que
pudessem ajudar os profissionais, que atuam na assistência, a superarem os
entraves para um trabalho compartilhado. Para ele, nós, profissionais da
saúde, é que não estamos compreendendo bem o que chamamos de resis-
tência ou falta de interesse e motivação da população.
A crise da interpretação é nossa:
procurando entender a fala das classes subalternas

As grandes mudanças que têm ocorridas nos últimos anos - a


queda do Muro de Berlin e subsequente fim do socialismo real, a
vitoriosa onda neoliberal e o processo de globalização que se ins-
taura hoje no mundo - exerceram um papel profundo no nosso
modo de pensar a educação popular e o trabalho comunitário. Pos-
Texto originalmente publicado em
sivelmente, um dos temas que mais sofreu questionamento como 19 96 na Revista de Educação e
resultado destas mudanças diz respeito às formas através das quais Realidade, 2:177/90.
as sociedades transformam-se. Enquanto a revolução ou a rebelião
em grande escala, na realidade, sempre foi uma exceção e não a
regra, as mudanças ocasionadas pelas forças progressistas têm mais
a ver com resistências sutis e pequenos levantes. Embora menos
Victor Vincent Valla
dramáticas, servem para minar a legitimidade política de siste- Graduou-se em Educação, doutor
mas diferentes de exploração, e ao mesmo tempo, tendem a indi- em História pela USP e pós gradu-
ação em Saúde Coletiva. Foi um dos
car melhor o sistema de crenças das classes subalternas do que os
criadores do Centro de Estudos da
confrontos diretos (SERULNIKOV, 1994). E neste sentido, talvez População da Leopoldina (Cepel),
a grande guinada, a principal mudança de ótica com relação aos criado entre 1987 e 1988, conside-
rado, segundo ele, um brilhante mo-
trabalhos que são desenvolvidos com as classes subalternas se refere mento de fusão da vida acadêmica
a compreensão que se tem de como pessoas dessas classes pensam com as aspirações populares, e onde
passou a ter contato mais próximo
e percebem o mundo. com as comunidades. Participou
Depois de vários esforços para melhor compreender este cam- ativamente do Grupo de Trabalho
Educação Popular da Associação
po de ideias (VALLA, 1992; VALLA, 1993), duas questões têm Nacional de Pós-Graduação e Pes-
ficado mais claras para mim. A primeira é que nossa dificuldade de quisa em Educação (ANPEd), du-
rante duas décadas, marcando forte-
compreender o que os membros das chamadas classes subalternas mente o seu modo de funcionamen-
estão nos dizendo está relacionado mais com nossa postura to e a sua identidade.

do que com questões técnicas como, por exemplo, linguísticas1.


1
“A categoria de subalterno é certamente mais intensa e mais expressiva que a
simples categoria de trabalhador. O legado da tradição gramsciana, que nos vem
por meio dessa noção, prefigura a diversidade das situações de subalternidade, e
sua riqueza histórica, cultural e política. Induz-nos a entender a diversificação
de concepções, motivos, pontos-de vista, esperanças, no interior das diferentes
classes e grupos subalternos” (MARTINS, 1989, p. 98).
Falo de postura, referindo-me à nossa difi- e que a “crise de interpretação” é nossa
culdade em aceitar que as pessoas “humildes, (MARTINS, 1989), assim como também
pobres, moradoras da periferia” são capazes é o nosso enfoque da idéia de “iniciativa”.
de produzir conhecimento, são capazes de Falo de iniciativa porque penso que na re-
organizar e sistematizar pensamentos sobre lação profissional/população, muitos de nós
a sociedade, e dessa forma, fazer uma inter- trabalhamos com a perspectiva de que a
pretação que contribui para a avaliação que “iniciativa” é parte da nossa tradição, e que a
nós fazemos da mesma sociedade. população falha neste aspecto, fazendo com
A segunda é que parte da nossa com- que seja vista como passiva e apática3.
preensão do que está sendo dito decorre da
nossa capacidade de entender quem está fa- Se sou referência, como chegar
36 lando. Com isso, quero dizer que dentro das ao saber do outro?
classes subalternas há uma diversidade de
Ao relatar as relações de profissionais/
grupos (MARTINS, 1989), e a compreen-
mediadores com a população, uma contri-
são deste fato passa pela compreensão das
buição importante parece ser a de citar o
suas raízes culturais, seu local de moradia e
máximo possível a fala dela, pois tal proce-
a relação que se mantém com os grupos que
dimento permite que outros tenham a pos-
acumulam capital2.
sibilidade de interpretar o que está sendo
Na realidade, essa discussão - que
dito. A própria forma de relatar uma ex-
certamente não é nova no campo de edu-
periência indica a concepção de mundo de
cação popular - trata das nossas dificulda-
quem faz o relato. Neste sentido, é possível
des em interpretar as classes subalternas,
afirmar que os profissionais e a população
2
O Departamento de Endemias Samuel Pessoa,
não vivem a mesma experiência da mesma
Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo maneira. A forma de trabalho dos profissio-
Cruz, desenvolve uma discussão semelhante, embora nais (no partido político, na associação de
de origem diferente. Professores Paulo Chagastelles moradores, na igreja) pode não estar levan-
Sabroza, Luciano M. de Toledo e Carlos H. Osanai
propõe a utilização do termo “grupos sociais” em vez de do isso em conta, principalmente porque o
“classes sociais” ou “classes trabalhadoras”, por exemplo.
A argumentação que vêm utilizando é de que uma 3
“Ao colocar em discussão a questão da visão dos
epidemia de dengue, por exemplo, numa cidade como ‘dominantes’ sobre as favelas, procuramos demonstrar
a do Rio de janeiro, pode atingir uma favela, enquanto que embutido no interior desse ponto há um outro
outra não, embora as duas favelas sejam compostas de aspecto metodológico: quem coloca o problema
classes trabalhadoras. A diferença seria na maneira da favela, seja acadêmico ou administrativo, são os
em que seus moradores ocupam o espaço e a maneira próprios construtores das favelas. Neste sentido,
em que a água seja distribuída. Assim, embora todos os muitos programas propostos pelas autoridades
os moradores sejam de favelas, representam grupos não são, na realidade, propostas, mas respostas
sociais diferentes. Para evitar a repetição do termo às ações dos populares. Com isso, pretendemos
“classes subalternas”, estarei utilizando o termo ressaltar a ‘atividade’ onde tradicionalmente são vistas
“população”como palavra substitutiva. a ‘passividade’ e a ‘ociosidade’” (VALLA, 1986, p. 27).

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


projeto que se desenvolve é provavelmente É provável que dentro da concepção de
anterior ao contato com a população. que os saberes dos profissionais e da popu-
O exemplo que ilustra este ponto é o lação são iguais, esteja implícita a ideia de
trabalho que o profissional de saúde pública que o saber popular mimetiza o dos profis-
desenvolve com a população moradora das sionais. Se a referência para o saber é o
favelas e bairros periféricos. Toda proposta profissional, tal postura dificulta a che-
dos sanitaristas pressupõe a “previsão” como gada ao saber do outro. Os saberes da po-
categoria principal, pois a própria ideia de pulação são elaborados sobre a experiência
prevenção implica num olhar para o futuro. concreta, a partir das suas vivências, que são
Mas, poderia ser levantada como hipótese vividas de uma forma distinta daquela vivi-
de que estes setores da população condu- da pelo profissional. Nós oferecemos nosso
zem suas vidas com a categoria principal saber por que pensamos que o da popula- 37
de “provisão”. Com isso se quer dizer que ção é insuficiente, e por esta razão, inferior,
a lembrança da fome e das dificuldades de quando, na realidade, é apenas diferente.
sobrevivência enfrentadas no passado, faz
com que o olhar principal seja voltado para O que é que percebo
o passado e preocupado em prover o dia de na fala do outro?
hoje. Uma ideia de “acumulação”, portanto.
Num debate sobre o fracasso escolar na
Neste sentido a proposta da “previsão” esta-
escola pública do primeiro grau, uma das
ria em conflito direto com a da “provisão”4.
participantes desenvolveu um raciocínio
É comum a população delegar-nos
extraordinariamente simples, mas esclarece-
autoridade para tomar a iniciativa em tra-
dor. Trabalhou com o seguinte pressuposto:
balhos desenvolvidos em conjunto (Con-
embora o professor tenha um livro didático
selhos Municipais e Distritais de Saúde,
ou notas como referência, faz, na realidade,
zonais de partidos políticos, por exemplo),
uma seleção da matéria que oferecerá aos
pois tal atitude coincide com a nossa per-
alunos. A seleção que faz provavelmente de-
cepção de que essa mesma população tem
ve-se a um domínio maior sobre a matéria,
pouca autonomia para tomar a iniciativa.
ou, quem sabe, a uma afinidade com algu-
mas ideias a ser oferecidas. Mas o importan-
4
As primeiras idéias são da Professora Marlene te é o reconhecimento de que o professor faz
Schiroma Goldenstein, palestrante, III Encontro
Estadual de Educação e Saúde, Universidade uma seleção da matéria, oferecendo alguns
Estadual do Rio de Janeiro, dezembro, 1992. O pontos e deixando outros de lado.
exemplo onde são utilizadas as categorias “provisão” Os alunos, por sua vez, também fazem
e “provisão” é da antropóloga Lygia Segala, que
uma seleção. A atenção exigida pelo profes-
empregou os termos no seminário “A construção
desigual do conhecimento”, realizado no Dep. de sor não é suficiente para fazer com que tudo
Endemias Samuel Pessoa, junho, 1992. seja assimilado pelos alunos. Justamente de-
vido a sua história de vida, alguns pontos são

Nossas fontes
Fora do Eixo
38

E neste sentido, talvez a grande guinada, a principal mudança de ótica com relação aos trabalhos que são desenvolvidos com
as classes subalternas se refere a compreensão que se tem de como pessoas dessas classes pensam e percebem o mundo.
vistos com mais atenção do que outros, fa- versa. De acordo com a formação de cada
zendo com que sejam retidos e os outros não. um, a sua história de vida e as suas vivên-
É na hora da avaliação – disse a cias de cada dia, uma leitura do outro é feita,
expositora – que começam os problemas, não necessariamente de tudo que o outro
pois é uma prática comum não pedir que fala, mas daquilo que chama mais atenção,
seja relatado pelos alunos nem o que o pro- daquilo que mais interessa5.
fessor expôs, nem o que o aluno percebeu,
mas sim, qualquer aspecto do conteúdo que
estava no livro5. 5
Essas ideias sobre avaliação foram desenvolvidas pela
Na realidade, a avaliação teria que ser Professora Marisa Ramos Barbieri (Departamento
sobre aquilo que o aluno percebeu na fala de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, USP, Ribeirão Preto) durante a
do professor, pois é isso que foi retido pelo
mesa redonda “A escola: Seus agentes e interlocutores”.
aluno. É também assim que se processa a Seminário sobre Cultura e saúde na escola, promovido
fala do profissional com a população e vice pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação,
1992 (ALVES, 1994).

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


O que, frequentemente, para o desprezo não detectaria o “desdito” na fala
profissional é conformismo pode das mães. Três falas de moradoras de favelas
ser para a população uma avaliação podem ser esclarecedoras dessa mesma di-
rigorosa dos limites de melhoria ficuldade dos profissionais em compreender
o discurso popular.
No seu livro Produção do Fracasso
A primeira trata de descrever a tuber-
Escolar, Maria Helena de Souza Patto inclui
culose como uma doença hereditária, onde
um capítulo sobre a fala das mães dos alu-
seu tratamento é garantido pelo ar puro,
nos “fracassados” (PATTO, 1991, p. 269).
descanso e boa alimentação. Apesar de o
Não foi pretensão da autora fazer uma aná-
médico insistir com os moradores de uma
lise dos discursos das mães. Mas quem se
favela carioca de que a tuberculose é causa-
propõe a isso perceberá alguns eixos de
da por uma bactéria e que há medicamen- 39
contradições. A fala das mães tende a
to hoje para seu tratamento, os moradores
reproduzir a fala dos professores, direto-
continuavam a manter sua opinião.
res de escolas e administradores escolares,
A hipótese popular não desarticula cau-
onde um discurso aparentemente técnico e
sa e efeito. Associa a má qualidade de vida à
científico explica porque os alunos “fracas-
repetição frequente desta doença em seu
sam” e não aprendem. Mas é no fim do seu
extrato social. Não separa a doença da
próprio discurso que as mães acabam ne-
dinâmica social em que ela ocorre. Encara-a
gando a medicalização e individualização
como fenômeno social. Entende que está na
do fracasso dos seus filhos. Ou seja, a con-
melhoria da sua qualidade de vida, a “cura”
tradição é apenas aparente, pois justamente
social para este mal (PEREGRINO, 1995).
na repetição da fala dos professores, há um
Uma outra moradora de favela ca-
momento em que elas negam o que tinham
rioca declara: “Quem visse o que eu já
dito, “comparando o desempenho destes em
tive em Minas...minha vida tá boa sim”
tarefas domésticas, no trabalho precoce ou
(CUNHA, 1994). Numa outra favela do
em brincadeiras com os amigos... apontam
Rio de Janeiro, um líder comunitário co-
individualmente, ainda que de forma frag-
menta: “Não tem mais problema, pois nossa
mentária, para muitas das determinações
favela já recebe água duas a três vezes por
institucionais do fracasso dos seus filhos...
semana” 6. A tendência dos profissionais
pressões relativas à compra do material es-
que ouvem estas falas, é de entendê-las
colar... agressões físicas e verbais contra as
como sendo conformistas, principalmente
crianças...” (PEREGRINO, 1995, p. 69).
para quem tem conhecimento de causa do
Certamente a atenção dada à fala das
mães permitiu a percepção sobre outro 6
Reunião da Comissão de Água do Complexo
discurso dentro do discurso aparentemen- das Favelas da Penha, Rio de Janeiro, promovida
te repetido. Inversamente, uma postura de pelo Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina
(CEPEL), abril 1994.

Nossas fontes
que significa receber água em sua casa duas água). Meus argumentos foram além: não
a três vezes por semana (VALLA, 1994). cabe a Associação de Moradores preencher
O que cabe destacar aqui é a necessida- o papel de prefeitura ou governo, mas sim
de de entender melhor as “falas como a da os moradores organizados reivindicando os
moradora e as alternativas de condução de seus direitos. Novamente o sorriso condes-
vida”, que têm como seu ponto de partida cendente e o comentário: “Professor, se nós
a “leitura e representação de uma história, moradores entregássemos a responsabilida-
referenciada em sua experiência de vida e de de distribuir água à CEDAE, iria ser o
que...oriente sua forma de estar no mundo” fim da nossa água. Se as favelas têm água,
(CUNHA, 1995). é por causa das Associações de Moradores,
O que frequentemente para o profis- mesmo com todos os seus problemas”. Ou
40 sional é conformismo, falta de iniciativa e/ seja, o raciocínio que eu utilizei, era aca-
ou apatia, é para a população uma avaliação dêmico, e, diga-se de passagem, correto.
(conjuntural e material) rigorosa dos limites Em troca dos impostos pagos, quem tem de
da sua melhoria. O autor oferecer serviços de qua-
deste trabalho teve muito O que frequentemente para lidade é o governo, e não
dificuldade em compreen-
o profissional é conformismo, a população numa espécie
der o sorriso condescen- de mutirão. A resposta da
dente da liderança da fave-
falta de iniciativa e/ou apatia, é liderança inverteu a lógica:
la quando insistiu com ele para a população uma avaliação se não fosse pelo esforço
que “duas ou três vezes por (conjuntural e material) rigorosa dos moradores, organiza-
semana” era insuficiente e dos limi tes da sua melhoria. dos nas suas associações,
que o certo era 24 horas não haveria água nas fa-
por dia. velas. O que ele queria
Na mesma conversa com esta lideran- dizer era que a CEDAE, na realidade, não
ça, foi colocado por mim que os moradores tem política de distribuição de água para
de favela teriam de reivindicar a presença as favelas, mas que as Associações de Mo-
mais sistemática da Companhia de Água radores conseguiram “puxar” a água atra-
e Esgoto (CEDAE) com a devida urgên- vés da sua organização, e não insistir nesta
cia, e que as Associações de Moradores não política significava abrir mão da água. Ou
deveriam estar administrando a água no seja, atrás da fala desta liderança, havia uma
lugar da CEDAE. Neste momento, uti- resposta teórica para minha proposta teóri-
lizei uma discussão teórica desenvolvida ca: os governos no Brasil não estão muito
no interior da academia sobre os impos- preocupados com os moradores de favelas
tos que os moradores de favelas pagam e a na elaboração das suas políticas, e somente
obrigação que o Estado tem de devolvê-los o esforço dos moradores é que garante sua
na forma de serviços (neste caso, através da sobrevivência.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Nesse mesmo sentido, há estudiosos É necessário que o esforço de com-
da questão de participação popular que preender as condições e experiências de vida
entendem que embora haja profissionais como também a ação política da população
preocupados com a necessidade da popula- seja acompanhado por uma maior clareza
ção organizar-se e reivindicar seus direitos das suas representações e visões de mundo.
e serviços básicos de qualidade, na realida- Se não, corremos o risco de procurar (e não
de a tradição dominante no Brasil é o da achar) uma suposta identidade, consciência
participação popular, isto é, convite das au- de classe e organização que, na realidade, é
toridades para que a população tenha uma uma fantasia nossa (MARTINS, 1989).
participação mais frequente. Além disso, Quantas vezes se pede para a população
frequentemente as autoridades querem a se manifestar numa reunião, como prova do
participação da população para poder so- nosso compromisso com a “democracia de 41
lucionar problemas para os quais não dão classe média”. Mas uma vez passada a fala
conta. Nesta concepção está incluída a ideia popular, procuramos voltar “ao assunto em
de que o aceite do convite de participar se- pauta”, entendendo que a fala popular foi
ria uma forma dos governos se legitimarem. uma interrupção necessária, mas com certe-
Justamente a descrença da população, tal za, sem conteúdo e sem valor.
como manifestada acima pela liderança da Nas escolas públicas, há professores
favela, no interesse dos governos de resolver que detectam que a percepção de tempo
os seus problemas, faz com que sua forma dos alunos não corresponde a mesma lógica
de participar seja diferente do que a suposta temporal inscrita na perspectiva histórica
pelo convite. E embora muitos profissionais com que trabalham na sala de aula. Assim,
sejam sinceros na sua intenção de colabo- há um significado que os alunos “atribuem
rar com uma participação mais efetiva e de aos acontecimentos inaugurais (o primeiro
acordo com os interesses populares, mesmo aniversário, o primeiro ano na escola...e aos
assim a população vê estes profissionais fatos coditianos)” (CUNHA, 1995). No-
como sendo atrelados às propostas das au- vamente, aparece uma contradição aguda,
toridades em que não crê. Daí sua aparente desta vez entre a maneira de “dar ao peque-
falta de interesse em “participar” 7. no fato o acontecimento” e a historiografia
marxista, que valoriza “através do conceito
7
Arguição desenvolvida pelo Professor José de processo as mudanças macro-estrutu-
Carlos Rodrigues, da Universidade Federal
rais e as conjunturas político-econômicos”
Fluminense, durante a defesa da dissertação A
vigilância epidemiológica e o controle público em (CUNHA, 1995).
tempos de SUS: A fala dos profissionais e dos
usuários organizados da região da Leopoldina. Mary
Jane de Oliveira Teixeira. Escola Nacional de Saúde
Pública, Fundação Oswaldo Cruz, 1994.

Nossas fontes
Não é nosso desejo que garante a subalternas, mas, sim, a avaliação correta da
suposta unidade das classes subalternas maneira com que compreendem o mundo.
José de Souza Martins avalia que as “...a prática de cada classe subalterna e de
muitas dificuldades que os pesquisadores, cada grupo subalterno, desvenda apenas um
políticos militantes e profissionais encon- aspecto essencial do processo do capital....
tram na compreensão da fala da população Há coisas que um camponês, que esta sen-
têm como uma das explicações a per- do expropriado, pode ver, e que um operário
cepção do tempo. E é o reconhecimen- não vê. E vice-versa” (MARTINS, 1989).
to desta percepção temporal das classes A atribuição de identidade, consciência
subalternas que permite explicar em parte e organização, bem como das relações so-
sua diversidade. O desconhecimento desta ciais, baseadas na classe operária, às demais
42 diversidade é que faz com que a compreen- classes subalternas produz uma forte distor-
são das suas lutas e seu limites não sejam ção. Quando se utiliza este tipo de avaliação
apreciados (MARTINS, 1989). Não é o para outros grupos sociais, como por exem-
nosso desejo, nem nosso incentivo verbal, plo, para os camponeses, a impressão que
que garante a suposta unidade das classes se tem é de que o processo histórico anda

É necessário que o esforço de compreender as condições e experiências de vida como também a ação política
da população seja acompanhado por uma maior clareza das suas representações e visões de mundo.

Arquivo UPAC

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


mais rápido para os demais do que para o exploradas, meio e instrumento (ao invés de
camponês. Tal visão foi o que levou Lenin instrumentalizá-las), para desvendar o lado
a declarar durante a primeira fase da Re- oculto das relações sociais com os olhos
volução Russa que “ o real (...) não é o que deles, revelando-lhe aquilo que ele enxerga
os camponeses pensem (...) e sim o que de- mas não vê, completando, com ele, a produ-
preendem das relações econômicas da atual ção do conhecimento crítico que nasce da
sociedade” (LENIN, 1974). Nesta perspec- revelação do subalterno como sujeito”.
tiva, o agente ativo da História acaba sendo O grande poder de síntese do Antó-
o capital e não o trabalhador. Em outros nio Gramsci apontou para esta questão
termos, a “História esta necessariamente quando chamou atenção para o fato de que
em conflito com a consciência que dele têm “...o elemento intelectual ‘sabe’, mas nem
os seus participantes” (MARTINS, 1989). sempre compreende, e muito menos ‘sente! 43
Quero levantar a hipótese de que tal (GRAMSCI, 1966).
como Martins nos alerta para perceber
como a relação do camponês com o capi-
Invertendo o significado, sem
tal é diferente desta relação com o operário,
deformar as palavras
também é diferente a relação do capital com
o morador de favela ou bairro periférico da Carlo Ginzburg, na sua belíssima obra,
grande metrópole (biscateiro, subemprega- O Queijo e os Vermes, levanta uma questão
do, empregado de serviços). que se aproxima àquelas levantadas por José
O que está implícita nessa discussão é de Souza Martins. Ginsburg questiona o
a percepção de que a forma do trabalhador argumento de que as ideias de uma época
exprimir sua visão de mundo e sua con- têm sua origem nas ideias das elites, as clas-
cepção de história e da sociedade em que ses superiores, e que sua difusão chega às
vive está estritamente relacionada com a classes subalternas de uma forma mecânica,
maneira em que se relaciona com o capital: sofrendo uma deterioração e sendo defor-
de uma forma dinâmica, ou de uma forma madas na medida em que são assimiladas
indireta e oscilante. pelas classes subalternas. Martins, falando
Esta maneira de colocar a questão do conhecimento produzido pelas classes
temporal parece fundamental, pois nos- subalternas, propõe que o saber das classes
sa percepção de tempo se for baseada na populares é mais do que ideologia, “é mais
relação do operário com o grande capital, do que interpretação necessariamente de-
pode nos levar a ver o camponês, ou o mo- formada e incompleta da realidade do su-
rador da periferia, como sendo “incapaz” balterno. É neste sentido, também, que
e necessitando nossa “ajuda” para torná-lo a cultura popular deve ser pensada como
capaz. É necessário tomar como premissa cultura, como conhecimento acumulado,
“o pensamento radical e simples das classes sistematizado, interpretativo e explicativo, e

Nossas fontes
não como cultura barbarizada, forma decaí- anjos isolava Maria das companheiras, con-
da da cultura hegemônica, mera e pobre ex- ferindo-lhe uma aura sobrenatural. Para
pressão do particular” (MARTINS, 1989). Menocchio o elemento decisivo era, ao
Ginsburg discute o que ele chama de contrário, a presença das ‘outras virgens’,
“circulariedade”, isto é, de que as influências que lhe servia para explicar da forma mais
vão de baixo para cima e de cima para bai- simples o epíteto atribuído tanto a Maria
xo. Com isso quer dizer que tanto as classes quanto às outras companheiras. Desse
subalternas influenciam as ideias das elites modo, um detalhe acabava se tornando o
como estas mesmas classes superiores exer- centro do discurso, alterando, assim, todo o
cem influencia sobre as ideias das classes seu sentido”.
subalternas (GINSBURG, 1987). Ginsburg aponta para a questão de
44 Trabalhando com a concepção de cul- que é mais importante discutir como
tura oral, Ginsburg cha- Menocchio leu e não
ma a atenção para o fato tanto o que leu: “é de-
de que a leitura feita por
(...) a cultura popular cifrar sua estranha ma-
quem recebe muito a in- deve ser pensada como neira de adulterar e al-
fluência de uma cultura cul tura, como conhecimento terar o que lê, de recriar”
oral (e neste caso não é acumulado, sistematizado, (GINSBURG, 1987).
somente uma discussão de interpretativo e explicativo, e Uma antropóloga
um moleiro italiano do sé- não como cultura barbarizada, com grande experiência
culo XVI, mas das classes forma decaída da cultura de trabalho com traba-
subalternas no Brasil de hegemônica, mera e pobre lhadores rurais assistiu à
hoje) lê como se fosse com seguinte cena: dois tra-
um filtro que “faz enfatizar
expressão do particular. balhadores analfabetos
certas passagens, enquan- olhando para uma cartilha
to ocultava outras, exagerava o significado sobre exploração dos trabalhadores no cam-
de uma palavra, isolando-a do contexto” po. Quando viram o patrão, gordo e forte
(GINSBURG, 1987). de um lado, e o trabalhador rural magro e
Como exemplo, o autor destaca o mo- fraco do outro, um comentou para o outro:
leiro Menocchio falando em público que “Quem somos nós? “O outro respondeu:”
era um absurdo acreditar que Maria, mãe de É claro que nós somos a pessoa mais forte,
Deus, era virgem. Mas quando foi chamado pois unidos nós somos fortes, e o patrão é
pela Inquisição a depor, citou um texto que fraco sozinho, diante da nossa união” 8. Isto
continha cenas de um afresco onde Maria
aparecia com outras virgens, no templo. As-
8
A cena relatada foi assistida pela Maria Emília L.
Pacheco, da Coordenação Nacional da Federação de
sim, “sem deformar as palavras, inverteu o
Órgãos de Assistência Social e Educação (FASE),
significado”, pois, no texto, a aparição dos Rio de Janeiro, 1994.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


lembra o comentário do Professor Renato “A gente não quer só comer. A gente quer
Janine Ribeiro, no Posfácio do livro do prazer para aliviar a dor”. Neste sentido, a
Ginsburg: “O que Menocchio compreende construção de aparências, que pode ser en-
mal é, na verdade, o que ele compreende de tendido como a construção de sonhos, não
outro modo” (GINSBURG, 1987). deve ser visto como uma forma apenas de
“escapar da realidade”, mas pode estar indi-
Rompendo a ordem predeterminada do cando uma concepção mais ampla de vida.
mundo por um esforço da imaginação “Prazer para aliviar a dor”, então, pode
tomar vários sentidos para a população, dis-
É possível que um dos grandes pro-
tintos dos sentidos que têm para a classe
blemas para os profissionais, pesquisadores
média. Certamente, um dos sentidos é o de
e militantes seja a forma com que as classes
subalternas encaram uma vida, existência
que a vida vale a pena viver, mesmo den- 45
tro de uma perspectiva de que não se pode
marcada, cercada de pobreza e sofrimento.
vislumbrar uma saída no futuro para o so-
É bem provável que estes setores da
frimento e a pobreza que se atura diaria-
população tenham uma enorme lucidez
mente. Se, de um lado, este enfoque pode
sobre sua situação social, como no caso da
ajudar a compreender por que seja possível
liderança da favela acima. Mas clareza da
“passar fome para comprar uma TV... o êx-
sua situação social pode significar também
tase com o futebol... com o alcoolismo...os
clareza de que uma melhoria significativa
jogos de azar” , de outro lado, também ajuda
seja uma ilusão. Neste sentido, a crença em
a entender porque “ as religiões se oferecem
melhorias e numa solução mais efetiva pode
muitas vezes como perspectivas substituti-
apenas ser um desejo, embora importante,
vas (compensação no além... os eleitos do
da classe média comprometida. Isso signi-
Senhor=consciência substitutiva de eli-
ficaria que a percepção da população seria
te...acesso a um mundo de protetores,
mais lúcida e realista, a não ser que se con-
transferência estática a um outro cosmo)”
figure uma conjuntura com indicações de
(EVERS, 1985).
possibilidades reais de mudança que favo-
A cultura das classes subalternas é uma
reça as classes subalternas.
tentativa de explicar esse mundo em que se
Se a argumentação acima procede,
vive. Se, no entanto, não dá conta de expli-
então é possível que a relação que os pro-
car tudo, (e daí a razão de se recorrer à má-
fissionais estabelecem frequentemente com
gica), tampouco a ciência explica tudo
a população, acaba sendo de uma cobrança
(MARTINS, 1989). Como expressão
de busca permanente de uma sobrevivência
dos vencidos até agora, a cultura popular é
mais racional e eficiente (EVERS, 1985).
também a “memória da alternativa....uma
A frase tão conhecida dos Titãs pode estar
exigência, sempre postergada e longínqua,
indicando, no entanto, um outro enfoque:
da realização de justiça” (CHAUÍ, 1990).

Nossas fontes
Arquivo UPAC
46

A cultura das classes subalternas é uma tentativa de explicar esse mundo em que se vive. Se, no entanto,
não dá conta de explicar tudo, (e daí a razão de se recorrer à mágica), tampouco a ciência explica tudo.

Satriani oferece a idéia de que a cultura po- é palavra do sujeito emudecido” (MAR-
pular, para poder se afirmar neste mundo TINS, 1989).
do vencedor, utiliza a duplicidade, o duplo Martins (1989) sugere que a cultura po-
código, “...o afirmar e o negar, o obedecer pular “deve ser pensada como... conhecimen-
e o desobedecer” (MARTINS, 1989), “o to acumulado, sistematizado, interpretativo e
ajustamento aos valores dominantes e a sua explicativo...teoria imediata” . Neste sentido,
rejeição; interpretações lúcidas combi- o aparente absurdo para o profissional tem
nam-se com ilusões aparentemente alie- uma lógica clara para a população. Numa
nadas” (EVERS, 1985); “...um inconfor- sociedade onde a concepção dominante é
mismo profundo...sob a capa do fatalismo” de que cada um é exclusivamente respon-
(CHAUÍ, 1990). Um estilo de vida que “se sável por sua saúde e dos seus filhos, mas
manifesta na linguagem metafórica, na te- onde também se aprende ainda que Deus é
atralização que põe na boca do outro o que quem decide sobre a morte das crianças, o

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


suposto conformismo da mãe pode estar re- Conclusão
presentando uma elaboração de um conhe-
Talvez uma das coisas mais difíceis para
cimento mais complexo. Se, por exemplo, o
os profissionais/mediadores admitirem nos
nascimento de um filho representa um dos
contatos que desenvolvem com as classes
bens mais preciosos, aceitar a culpa por sua subalternas é a cultura popular como uma
morte pode ser uma experiência insuportá- teoria imediata, isto é, um conhecimento
vel. Mas, já que Deus quer assim, a culpa que acumulado e sistematizado que interpreta
é então compartilhada com alguém, não é da e explica a realidade (MARTINS, 1989).
exclusiva responsabilidade da mãe. A formação escolarizada da classe média,
Marilena Chauí (1990) observa, no e mesmo daqueles profissionais que agem
mesmo espírito, o desespero do arquiteto do como mediadores entre os grupos populares
bairro operário, face ao “ caos espacial” onde e a sociedade (através de partidos políti- 47
ficou “ a horta no lugar do jardim, pelas co- cos, ONGs, igrejas, sindicatos) frequen-
res espevitadas das fachadas, pela confusão temente leva-os a ter dificuldade em aceitar
entre calçada e quintal”. Como observou o fato de que o conhecimento é produzido
José Carlos Rodriguez, não há interesse em também pelas classes subalternas. Neste
aceitar o convite de participar dessa forma. sentido, mesmo que alguns mediadores se-
“Assim...a destruição do planejado...seria jam mais atenciosos e mais respeitosos com
uma forma de recusá-lo” . as pessoas pobres da periferia, os muitos
Finalmente, a ideia da cultura popular anos de uma educação classista e precon-
como memória da alternativa (MARTINS, ceituosa faz com que o papel de “tutor” pre-
1989), deveria ser pensada no contexto da domine nas suas relações com estes grupos.
dificuldade que uma grande parcela das Se, como diz Martins, a “crise da com-
classes subalternas tem de poder agir so- preensão é nossa”, a saída dessa crise não
mente dentro de um quadro previamente passa mais apenas por um contato sistemá-
delimitado, tem sentido então “que a mu- tico do mediador com as classes subalter-
dança só possa ser pensada em termos de nas. Embora tal prática seja louvável, exige
milagre [ou seja, de que contém]...a possi- também na parte do mediador uma atenção
bilidade de uma outra realidade no interior e constante estudo das novas leituras e revi-
do existente” (CHAUÍ, 1990). Isto porque sões que estão sendo feitas sobre o papel de
“...o milagre, pedra de toque das religiões quem se considerou “vanguarda” no passado.
populares e de estonteante simplicidade A atenção prestada ao que a população
para a alma religiosa é ...inaceitável pelas pobre está falando não pode ser mais ape-
teologias e apenas de fato por elas tolera- nas feita com “educação”, mas, sim, porque é
do, pois rompe a ordem predeterminada necessário completar uma equação capenga
do mundo por um esforço da imaginação” que freqüentemente inclui uma das partes
(CHAUÍ, 1990). do conhecimento - o do mediador.

Nossas fontes
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PATTO, Maria Helena S. A produção do
fracasso escolar. São Paulo: T.A. Queiroz,
1991.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Leituras de artigo de Fiori,
com a intenção de despertar outras leituras
Autoras das considerações que seguem, somos leitoras assíduas
do artigo do Professor Ernani Maria Fiori Conscientização e Educa-
ção, o qual constitui uma referência de base para nossas aulas, pes- Maria Waldenez de Oliveira
Enfermeira. Doutora em Educação
quisas, trabalhos de extensão universitária, atividades com grupos (UFSCar). Docente do Departa-
mento de Metodologia de Ensino
socialmente discriminados e postos a margem pela sociedade. Não da Universidade Federal de São
Carlos-SP. Coordenação do Projeto
pretendemos, nem temos competência para traçar explicação de tão Mapeamento e Catalogação de Prá-
ticas de Educação Popular e Saúde
rico e importante trabalho. Nossa intenção é de apontar posturas e de São Carlos- MAPEPS. Mem-
bro da Rede de Educação Popular e
compreensões que, enquanto educadoras, temos alcançado com o Saúde (EPS), do Grupo de Traba-
lho EPS da Associação Brasileira de
estudo sistemático e repetido do artigo em pauta. Pós-Graduação em Saúde Coletiva
- ABRASCO e do Grupo de Pes-
O Prof. Fiori, filósofo e professor de Filosofia, construiu seu quisa “Práticas Sociais e Processos
Educativos”.
pensamento e proposições a partir de experiências compartilhadas
com grupos populares, de trocas com colegas, entre eles notada- Petronilha B. Gonçalves e Silva
Professora Titular Ensino-Aprendi-
mente Paulo Freire. No convívio e trabalho conjunto, cada um a zagem – Relações Étnico-Raciais e
professora emérita da Universidade
seu modo, elaborou importantes reflexões que inspiram, dão su- Federal de São Carlos.
porte para quem busca princípios e orientações com vistas a ações

»
educativas em escolas, universidades, no das estruturas opressivas que vinham per-
meio popular. O texto Conscientização e sistentemente se construindo desde que
Educação a primeira vista parece muito di- os europeus, no século XVI, invadiram as
fícil de ser compreendido. De fato fácil, ele terras onde viviam, no seio de suas culturas
não é. Trata-se da expressão de um filósofo, e sociedades, povos originários do conti-
de um jeito próprio de refletir em Filosofia nente. Usando a opressão, a desqualificação
que parte de autores com os quais, muitas como instrumentos para se impor aos povos
vezes, nós, educadores, não somos familiari- originários, aos africanos que escravizavam,
zados. Por isso, se quisermos aprender com buscaram, os invasores, e ainda hoje segui-
as reflexões do Prof. Fiori temos de estudar dores de seus pensamentos e propósitos
seu texto seriamente. Quanto ao estudar, buscam, converter a tudo e a todos num
50 Paulo Freire (1979, p. 10) nos orienta: constructo europeu. Em outras palavras, a
ideia de que o mundo europeu conteria o
A atitude crítica no estudo é a mesma que que de mais perfeitamente humano existe,
deve ser tomada diante do mundo, da re- imperava e impera. Por isso, todos que es-
alidade, da existência. Uma atitude de tivessem fora dele, deveriam se converter o
adentramento com a qual se vá alcançan- mais próximo possível a seus ideais e ideias,
do a razão de ser dos fatos cada vez mais para serem admitidos e reconhecidos entre
lucidamente.[. . .] Um texto estará melhor as elites, hoje, constituídas, pelos descen-
estudado quanto, na medida em que dele se dentes ou representantes daqueles invasores
tenha visão global, a ele se volte, delimitan- e colonizadores de territórios e mentes.
do suas dimensões parciais. O retorno ao É assim que as autodenominadas elites,
livro (no presente caso, ao artigo) aclara a desde o século XVI, vêm criando mecanis-
significação de sua globalidade. mos de exclusão, de desigualdades sociais
no continente que decidiram denominar
De fato, a cada estudo do artigo em
América Latina. Os oprimidos, nesse qua-
tela, sempre pautado por experiências de
dro de organização social, têm manifesta-
aprender e de ensinar, próprias de nossas
do descontentamento, por meio de atos de
tarefas de professoras, vamos descobrindo
resistência que nunca deixaram de ocorrer
novos significados, diferentes orientações.
desde a invasão e a consolidação de projetos
O referido texto é um manancial para quem
de colonização. Aos grupos populares, ao
é persistente e dele se acerca com curiosida-
longo dos séculos, têm se juntado intelec-
de, paciência, vontade de aprender, de iden-
tuais que buscam um pensar e um agir vin-
tificar sempre novos significados. Antes de
culados às origens e experiências próprias
mais nada, é importante lembrar que o arti-
dos povos e sociedades que hoje constituem
go do Prof. Fiori foi gerado no âmago dos
a América Latina. É nesse quadro, que, a
movimentos populares que buscavam, nos
partir do ponto de vista dos oprimidos, se
anos 1960, 1970 libertar a América Latina
inicia notadamente nos anos 1960 reflexão

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


geradora do fecundo pensamento origina- mulheres, homens - crianças, adolescentes,
do pela Teologia da Libertação, Filosofia da jovens, velhos, heterossexuais, homossexuais,
Libertação, Educação Libertadora. O Prof. escolarizados, sem escolaridade, em busca
Fiori se encontra entre os pensadores desse de trabalho, em luta por terra, por moradia,
importante e original movimento. Original deficientes, entre outras condições de ser e
porque buscou as raízes da experiência de viver, além, é claro, da nossa comunidade de
ser latinoamericano e de construir as socie- pertencimento étnico–racial - povos indíge-
dades latinoamericanas. nas, negros afrodescendentes, eurodescen-
Elaborado, nesse contexto, o artigo do dentes, descendentes de asiáticos.
Prof. Fiori é fundamental para quem bus- Tal postura permite compreender as
ca pensar, promover, participar da educação afirmações do Prof. Fiori em que pondera,
em nosso continente, com os olhos volta- por exemplo, que a comunicação das consci- 51
dos para nossas histórias e culturas. Então, ências (a intersubjetividade) supõe um mundo
um passo para captar o que a primeira vista comum (p. 59). Bem como quando destaca
parece ser um intrincado que nossos caminhos pessoais
texto, é voltar atenção e são os mais diversos, num ho-
curiosidade para as nossas Elaborado, nesse contexto, o artigo rizonte necessário de comuni-
experiências de povos e de do Prof. Fiori é fundamental para cação (p. 59). Assim, apren-
nações latino-americanas, quem busca pensar, promover, demos, com o pensamento
sem depreciá-las, sem von- participar da educação em nosso que vem sendo desdobra-
tade de nos tornar uma
imitação das sociedades
continente, com os olhos voltados do ao longo do artigo, que
nossa origem de pessoas
que se autodenominaram para nossas histórias e culturas. está no encontro de umas
primeiro mundo. com as outras, com a natu-
Dar esse passo, exige que pouco a pou- reza, com a sociedade. Encontro esse que se
co se vá libertando dos valores e perspec- dá na perspectiva da comunidade. Em ou-
tivas centrados no mundo europeu e, com tras palavras, valendo-nos da sabedoria dos
empenho, se passe a reconhecer valores e povos africanos, presente entre seus descen-
projetos enraizados nas experiências diver- dentes que fazem parte da América Latina,
sas de sermos latino-americanos. a fortaleza de cada um está na comunida-
Para reconhecer as raízes e valores la- de, por isso tudo que aprende, adquire não
tino-americanos, é preciso fazê-lo como al- pode ser apenas para benefício próprio, mas
guém que faz parte da América Latina e não de toda a comunidade.
como um curioso que olha de fora. Tem-se, A comunidade, nessa perspectiva assim
pois, que abrir mão de uma postura indivi- como na dos povos originários da América
dualista de ver o mundo, para se colocar na Latina, é constituída pelo encontro das pes-
perspectiva das comunidades a que se per- soas umas com as outras e também pelo seu
tence e que fecundam nossas identidades de encontro com o ambiente que as circunda,

Nossas fontes
ou seja, a natureza, as sociedades com as assumir ética e politicamente posição dian-
diferentes culturas e histórias daqueles que te das relações sociais, entre elas as étnico-
as compõem. Por isso, não são somente os -raciais, de que participamos. Para tanto, do
pensamentos e perspectivas de vida ori- ponto de vista do Prof. Fiori, é preciso rom-
ginados a partir das raízes européias, que per com preconceitos e engajar-se em “luta
nos permitem compreender as realidades contra a dominação” que somente “alcança-
em que vivemos, nos diferentes países da rá seus fins se romper as estruturas para dar
América Latina. Para tanto, também são surgimento ao homem novo” (p. 62). Difícil
fundamentais a sabedoria ancestral dos po- é medir o desafio para os estabelecimentos
vos originários, dos descendentes de africa- de ensino, notadamente as universidades,
nos, de asiáticos. cuja meta maior têm sido a produção de co-
52 Reconhecer, respeitar e valorizar as nhecimentos e a formação superior, pauta-
diferentes raízes históricas e culturais da das em critérios da meritocracia que cultiva
nossa região é atitude política fundamen- valores e defende interesses dos grupos que
tal para libertar a América detêm o poder de governar
Latina das opressões que Para penetrar no pensamento do a sociedade. Em outras pa-
a arrasam. O Equador e a lavras, escolas e faculdades
Bolívia, o reconhecem nas
Prof. Fiori, temos de apreender embora não possam impe-
suas constituições nacio- essa visão de mundo e com ela dir o acesso de estudantes,
nais, ao acolher a sabedoria aprender, além, é claro, de assumir professores e funcionários
de seus primeiros habitan- ética e politicamente posição dos grupos populares, ten-
tes e incluir entre os direi- diante das relações sociais, entre tam exigir que esses se con-
tos que asseguram os direi- vertam a valores, objetivos
tos da natureza, dando-lhes
elas as étnico-raciais, de que e projetos daqueles que
igual valor ao atribuído aos particip amos. o ensino superior sempre
direitos humanos. Reco- acolheu e formou para ocu-
nhecem, dessa maneira, a sabedoria ances- par os postos que decidem os destinos da
tral dos indígenas da América Latina que sociedade, do país.
ensina serem os homens e as mulheres parte Lutar contra a dominação exige que
da natureza e não seus senhores, diferente se tenha disposição, vontade e energia para
do que a cosmovisão de raiz européia difun- conhecer e decifrar as realidades em que
de. No entender dos povos originários o que vivemos e nos constituem. “As lutas pela
vale não é o benefício individual, mas o bem libertação”, sublinha, o Prof. Fiori, “ desde
viver, a vida boa para todos os seres vivos, seus primórdios, devem restituir ao homem
inclusive os não humanos. sua responsabilidade de re-produzir-se, isto
Para penetrar no pensamento do Prof. é, de educar-se e não de ser educado” (p. 56).
Fiori, temos de apreender essa visão de Esse movimento exige “adentramento em
mundo e com ela aprender, além, é claro, de nós mesmos”, o que “supõe uma volta pelo

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


mundo” (p. 57). “O mundo se descobre ao divergentes visões de mundo se expõem,
mesmo tempo em que a consciência, ao cruzam, identificam, divergem, contrapõem,
expressá-lo, se expressa nele”(p. 57). dialogam, se fazem e refazem. Quando,
Para refazer o mundo, a fim de superar nesse processo, são considerados superiores,
as relações sociais opressivas em que vive- uma visão de mundo e decorrentes signi-
mos na América Latina, é preciso que cada ficados atribuídos a pessoas, à natureza, a
um se refaça a si próprio (p. 58). É nesse suas histórias, se estabelecem relações de
movimento de conscientização, que “o ho- opressão. Para delas se libertar, os sujeitados
mem se constitui, se assume, ao produzir-se tem de superar as condições de alienação a
e reproduzir-se” (p. 55). Movimento vivido que foram constrangidos, passando a deci-
por cada um e que exige “lucidez e cora- dir o seu próprio destino. A respeito disso,
gem (p. 56).” Em outras palavras ninguém assim se refere o Prof. Fiori (p. 64): 53
conscientiza ninguém, ninguém educa nin- O processo de cultura, portanto, im-
guém. Embora seja na companhia e nas tro- plica, dialeticamente, aperfeiçoamento
cas com as outras pessoas, “sujeitos de um pessoal e domínio do mundo: ao sepa-
mundo comum”que cada um se conscienti- rar cultura e civilização, formação do
za e se educa (p.59). homem e transformação do mundo,
Educar-se implica abrir-se para o mun- o homem se divide internamente e o
do, para experiências de conhecer e buscar mundo deixa de ser mediação huma-
compreender o que se expõem diante dos nizadora. O sujeito não se reencontra
olhos, tudo que se abre aos sentidos, à in- no mundo que ajuda a construir; nele,
teligência, aos sentimentos e que por meio nesse mundo desumanizado, fica reti-
de reflexão se constitui em processo “que do como objeto de outro sujeito: alie-
não se conclui jamais”(p. 56). O educar-se na-se. Para libertar esse homem, isto é,
permite tomar consciência dos significados para devolvê-lo a sua condição de su-
jeito é necessário romper as estruturas
e rumos das experiências que vivemos. Per-
sócio-econôminas que o coisificam.
mite identificar nos intercâmbios com as
outras pessoas, isto é, nas trocas entre subje- É necessário também que se descons-
tividades, reconhecimento a jeitos próprios truam preconceitos e racismos que ferem, e
de ser, viver, ou discriminação, opressão. muitas vezes alienam todos que fogem do
As pessoas se educam no seio da cul- modelo do que, alguns pretendem, seja o ser
tura que “é o mesmo processo histórico em humano perfeito. Entre os desrespeitados,
que o homem se constitui e reconstiui, em desconsiderados estão povos indígenas, ne-
intersubjetividade, através da mediação hu- gros, ciganos, empobrecidos, os homossexu-
manizadora do mundo”(p. 64). Entenda-se ais, pessoas em luta por moradia, por terra,
que cultura no singular não se refere a uma desempregados, deficientes. Ora, pondera, o
cultura universal, tampouco superior, mas Prof. Fiori, “a forma humana se recria em
ao ambiente em que diferentes e até mesmo diferentes formas de vida, na concretização

Nossas fontes
histórica; a cultura se refaz e se reassume na diversidade das
culturas”(p. 64). E mais adiante (p. 67) acrescenta que no saber
da cultura se fortalece a participação de cada um na sociedade.
Entretanto, chama, ele, a atenção para o fato de que valores
e formas de vida ancestrais, se impostos, podem também alienar
(p. 67). Entende-se, então, a firmeza com que sublinha que para
se educar é exigido de cada um reflexão e crítica, fazer-se e
refazer-se constantes. E também a firmeza com que diz: “toda
cultura é medularmente aprendizado. Em sua dinâmica, o ho-
mem se faz, aprendendo a refazer-se, aprendendo a humanizar-
-se, a libertar-se. Cultura autêntica é aprendizado e aprendizado
54 autêntico é conscientização” (p. 67).
Com as considerações que acima formulamos, pontuamos
algumas das passagens do artigo do Prof. Fiori que têm fecunda-
do, orientado e ajudado a avaliar nossa atuação enquanto mulhe-
res, professoras, investigadoras, militantes junto a movimentos
sociais que congregam negros, moradores de favelas, prostitutas.
Esperamos que sejam úteis no sentido de incentivar leitores que
costumam desistir diante de textos longos e aparentemente difí-
ceis. Para concluir, citamos mais uma vez o mestre, em afirmação
que desencadeia inquietações e questionamento a nossas atua-
ções: “A conscientização é esse esforço do povo para retomar seu des-
tino histórico, sua cultura, em suas próprias mãos. Cultura do povo,
pois, e não cultura para o povo: cultura popular.” (p. 70).

Referência
FREIRE, Paulo. Considerações em torno do ato de estudar. In:
_____. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e terra,
1979. p. 9-12.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Conscientização e educação
1

Falar de educação concientizadora é verbal. Educação e cons-


cientização se implicam mutuamente. A conscientização é o “reto-
mar reflexiciencia como existência”. Nesse movimento, o homem se
constitui e se assume, ao produzir-se e reproduzir-se. Nesse refazer-
-se consiste seu fazer-se e seu fazer. A verdadeira educação é par-
ticipação ativa neste fazer o homem se faz continuamente. Educar,
pois é conscientizar e conscientizar equivale a buscar essa plenitude
da condição humana.
Se a consciência é existência e histórias, ficam descartadas des-
de logo as duas falsas concepções de conscientização: aquela que
reduz exclusivamente o efeito inevitável de mudanças naturais ou
aquela que a eleva à causa única, a unidade da práxis é negada sua Ernani Maria Fiori
dialeticidade. Bacharel em Direito, formado pela
Faculdade de Direito de Porto
As estruturas podem aprisionar o homem ou propiciar sua Alegre em 1935 e, ao ser aposentado
liberação, porém, quem se liberta é o próprio homem. A conscien- na Faculdade de Filosofia da URGS,
em 1964, era catedrático interino
tização, como processo interno às contradições estruturais, pode no Departamento de Filosofia
ser fator relevante de transformação sociocultural; de qualquer (não chegou a defender a tese para
efeitivação no cargo devido ao
maneira, deverá ser sempre seu acabamento. O homem não pode expurgo) e Diretor do Instituto
liberar-se caso ele mesmo não protagoniza sua história ou se não de Filosofia, além de Inspetor de
Ensino de Filosofia do MEC.
toma sua existência em suas mãos. A isso conduz a dinâmica Cargos dos quais foi também
da conscientização. afastado em 1964.
De dentro de um sistema articulado de dominação externa
ou interna que subjuga, confunde e mistifica os povos da Amé-
rica Latina, começando a emergir uma consciência iluminadora
da situação e do momento. É um princípio de conscientização
que poderá ser fator decisivo em sua liberação e que, em todo
1
Exposição feita em fevereiro de 1970 em Washington, em reunião promovida pelo
Secretariado para a América Latina da Conferência Nacional do Bispos Americanos,
e repetida, na mesma época, na Universidade de Columbia, em Nova Iorque.
caso, deverá finalmente marcar o significado humano de seus
projetos históricos.
As lutas pela liberação, desde seus primórdios, devem re-
sistir ao homem sua responsabilidade de reproduzir-se, isto é,
de educar-se e não de ser educado. Nessa emergência de uma
autoconsciência crítica de nossos povos, é de vital importância
uma reflexão comprometida com a práxis da libertação que nos
permita captar com lucidez e coragem o sentido último deste
processo de conscientização. Só assim será possível repor os ter-
mos dos problemas de uma educação autenticamente libertado-
ra; força capaz de ajudar a desmontar o sistema de dominação e
56 promessa de um homem novo, dominador do mundo e liberta-
dor do homem.
Essa reflexão é também existência. Seus resultados não se
antecipam. Talvez só possam ser insinuados alguns de seus pres-
supostos teóricos - estes mesmos não anteriores à práxis e su-

jeitos à sua revisão e elaboração. É ao que nos


propomos nesta breve apresentação: esboçar
alguns pressupostos que nos pareçam válidos
para prosseguir numa reflexão que não se
conclui jamais, pois seu término e seu princípio
se dinamizam juntos, numa dialética existencial.
Distribuímos alguns destes pressupostos
em duas partes:

I. Sentido do movimento de constituição da


consciência como existência, e seu retomar
reflexivo: a conscientização.
II. A função conscientização da educação.
Conscientização exige o esforço de torná-lo mais presente,
na transparência da presença. Assim que,
A imaginação especializante faz da aprofunda-se no mundo, não é sair da cons-
consciência o receptáculo de um mundo ciência.
que a preenche e a excede. É a imagem A consciência é “para si” sendo “para o
oculta em todos os dualismos, que separam outro”: simultaneamente, implicamente e
consciência e mundo e os estabilizam em dialeticamente. Uma consciência que fosse
duas entidades, de cujo encontro surgiria à presença presente algum não seria, ”para si”
consciência do mundo. mas o “si mesmo” absoluto.Por isso o “para
O encontro referido, entretanto, não é si” da consciência é abertura, que seria nada,
o resultado de dois entes que se encontram, se o outro não fosse na relação para o qual
mas, antes, a origem de ambos: ”encontro ela, a consciência, se constitui. 57
originário”. Não dizemos que o encontro Uma não preexiste ao outro-consciên-
seja a causa, mas a origem da consciência e cia e mundo. E, portanto, fica excluído todo
do mundo. dualismo que os separa para reuni-los. Jun-
Antes do mundo consciente, a consci- tos, aparecem e desaparecem. Desde este
ência é vazio total: fora da consciência do primeiro ponto, pois, a conscientização já se
mundo, este é ausência sem nome. Juntos, anuncia como movimento em que a consci-
consciência e mundo ganham realidade. Um ência se reconquista, ao conquistar o mundo.
não se perde no outro, perdendo sua iden-
tidade: identificam-se um através do outro. Na consciência do mundo, o mundo,
Que eu consciência é presença que se através dela, vai aparecendo como um hori-
presentifica a si mesmo, ao presentificar zonte repleto de significados. Estes signifi-
o outro. E o outro, uma estrela, uma flor cados não são postos somente pelo mundo
ou um pássaro, só é presente nesta luz da ou dados pela consciência. O mundo se des-
presença. A uma chamamos interioridade cobre, ao mesmo tempo em que a consciên-
e à outra exterioridade, metáforas devi- cia, ao expressá-lo, se expressa nela.
das, uma vez mais, às ilusões da imagina- Portanto, nem a consciência é refle-
ção especializante. xo do mundo, nem esse é simples projeção
O caminho da nossa interioridade pas- daquela. O mundo é significado no perma-
sa, pois, pela exterioridade e vice-versa. O nente significar ativo, que não é atividade
adentramento em nós mesmos supõe uma de uma consciência pura, mas desenvolvi-
volta pelo mundo. A consciência não se dei- mento dialético da consciência do mundo
xa aprisionar em nenhuma situação vivida, ou do mundo consciência. Este significar
sobrepassando a todas, e por isto pode vol- ativo não termina num significado que seria
tar-se sobre tudo si mesma: é capaz de re- como seu produto estático acabado. O signi-
flexão. Por sua vez, a penetração no mundo ficar é o dinamismo interior do significado,

Nossas fontes
como um fazer que não termina em produ- Como eu corpóreo, situa-se fisica-
to feito, mas em que o efeito é uma contí- mente; como corpo consciente, pode trans-
nua manifestação de um fazer que se refaz, cender sua situação espaço-temporal, para
continuamente. É o mundo mesmo que visualizá-la, aprendê-la, determiná-la.
se constitui e reconstitui neste refazer-se. Não é corpo do eu que se entrega no
Assim, na expressão do mundo pela cons- mundo: não é o corpo que possui, mas o
ciência o próprio mundo se expressa como corpo que ele é. Seu corpo que se objeti-
consciência do mundo. O mundo não pode va no mundo. E assim experimentamos a
objetividade de uma experiência que nunca
refletir-se na consciência antes de ser mun-
pode chegar ao seu termo, pois neste reapa-
do consciente. E a consciência não pode ser
rece a presença que presentifica e objetiva: o
determinada pelo mundo antes de um se re-
58 sujeito. Ao contrario, se experimentamos o
cuperar através do outro: não está dada, ela
objeto como presença presente a si mesmo,
se conquista e se faz: é, ao mesmo tempo,
esta experiência tão pouco se esgota na pura
descobrimento e invenção.
subjetividade, pois, na transparência desta, o
Nesse sentido, a expressão do mundo
corpóreo se reencontra, também, como ob-
não acontece nem sucede à sua transfor- jetividade. Eu e mundo não se erguem em
mação, uma ultrapassa a outra e coincidem. frente ao outro: convocam-se, mutuamen-
Assim, a consciência do mundo retoma, re- te, para a existência, que é o movimento no
flexivamente, o movimento de seu significar qual se situa e se projeta, isto é, no qual se
ativo em que os significados mundanos se dialetiza como efeito que se transcende e
constituirão. Na medida em que o homem transcendência que se efetiva.
dá significados ao mundo, neste se reencon- O significar ativo em que o mundo é
tra, reencontrando sempre e cada vez mais a significado não se efetua como atividade de
verdade de ambos. uma consciência pura subjetividade. Este
Neste momento, a conscientização já se significar, ao contrário, é um comportamento
prefigura como ação transformadora e não corpóreo-mundano e existencial no qual se
como visão especular do mundo: refazer- constitui e reconstitui o mundo significado.
-se com autenticidade implica reconstruir O sujeito deste significar é logos e práxis.
o mundo. Não é um logos que ilumina o mundo como
espetáculos; ilumina-se na interioridade de
O eu consciente também se situa entre
uma práxis que transforma. Diz o mundo
as coisas no mundo; porém, estranhamente,
num discurso que é existência.
ele mesmo é a luz que revela o lugar e o
O homem não é, pois, um sujeito dentro
momento da sua situação. Chega a ser ob-
de um mundo de objetos: é uma subjetividade
jeto entre objetos, sem deixar de ser sujeito,
encarnada numa objetividade. Isso quer dizer
embora nunca em plenitude. que, neste sentido, o mundo vai diminuindo

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


sua opacidade e resistência, ganhando maior transformadora. Significar existencialmen-
transparência humana, enquanto o homem te o mundo, num comportamento corpóreo,
vai dominando e assumindo, como fator in- equivale a construí-lo. Sua elaboração, em
trínseco de sua própria renovação. intersubjetividade, é coloração.
É, então, quando a conscientização es- A encarnação no mundo coincide
boça o traçado essencial de seu movimento: com a promoção mútua das consciências;
o da encarnação histórica. uma é condição da outra, em reciprocida-
A subjetividade não se comensura com de dialética. Nossa encarnação é comunhão.
a ipseidade de um eu fechado em seu pró- E assim se esclarece um pouco mais o sen-
prio mundo. Se cada consciência de seu tido da conscientização: tarefa mundana e
mundo, separado dos demais mundos, a compromisso pessoal de amor.
subjetividade morreria sufocada dentro de
mônadas incomunicáveis. Na medida em que o homem dá significados ao mundo,
A comunicação da consciência (a inter-
neste se reencontra, reencontrando sempre e cada vez
subjetividade) supõe um mundo comum. Se
cada um constituísse seu mundo, esse não
mais a verdade de ambos.
poderia ser a mediação para o encontro das
consciências, e estas se comunicariam sem
o mundo - o que não é o caso, pois somos
seres encarnados – ou não se comunicariam.
Uma vez mais: as constituem em intersub-
jetividade originaria.
Nossos caminhos pessoais são os mais
diversos. Dentro deste encontro radical, po-
demos desencontrar-nos, quando nossas in-
tencionalidades não têm o mesmo sentido.
Porém, qualquer objetivação nossa se inser-
ta nesse horizonte de comunidade. Não há
objetividade exclusiva de uma consciência:
esta é, sempre, abertura com a amplitude da
universalidade. Em nossa encarnação his-
tórica, não constituímos uma objetividade
própria, somente nossa, mas participamos
de uma objetividade comum.
O dinamismo significante deste mun-
do comum, como dissemos, não é inten-
cionalidade da consciência pura: é práxis

Nossas fontes
Aicó Culturas
A subjetividade encarnada não sub- Este encontro não é um começo no
merge o eu na imanência de uma objetivi- tempo, é a origem permanente de onde, per-
dade que o absorve e dissolve. Ao contrá- manentemente, brota este processo tempo-
rio, o mundo se incorpora ao eu corpóreo, ralizador em que o homem busca refazer-
quanto mais este presentifica aquele, numa -se. O dinamismo deste encontro originário,
presença que ultrapassa todas as estreitezas ainda que oculto a si mesmo mítico, pois é
situacionais. Como uma luz interior que, ele quem gera a historicidade essencial, in-
quanto mais interior, mais translúcida o clusive dos chamados “povos sem história”.
faz, mais apaga seus limites exteriores, di- Esta unidade originária está na raiz de
fundindo-se em todos os sentidos. Quanto todos os momentos do processo, através do
mais profundamente se encarna a subjeti- antagonismo da subjetividade e objetividade,
60 vidade, tanto menos limitante se a objeti- isto é, de um mundo inteiramente iluminado
vidade de seu mundo. e assumido pela plenitu-
Não há um eu puro: é Enquanto as consciências não se de da intersubjetividade.
impossível uma proje- Como idéia limite da
ção de um eu no vazio,
intersubjetivarem plenamente, história, só poderá ser
numa total ausência através de um mundo sem mais meta-história, não a ne-
de mundo. O caminho obscuridades e resistências; enquanto gação, mas a glorificação
de acesse que leva para a humanização for um esforço da história - “o novo Céu
além do momento vivi- de incorporação do mundo ou de e a nova Terra”.
do passa pela indo inte- Enquanto as cons-
rioridade do mundo e é
encarnação do eu, o homem não ciências não se intersub-
este mesmo mundo, em poderá eximir-se de uma dialética jetivarem plenamente,
suas dimensões de pas- histórica que o aliene e desaliene. através de um mundo
sado e futuro. sem mais obscuridades
O eu não se distende, e resistências; enquanto
pois, nestas dimensões, dentro de um mun- a humanização for um esforço de incorpo-
do que seria como o leito imóvel do rio que ração do mundo ou de encarnação do eu, o
flui. O eu expressa, incorpora e transcende homem não poderá eximir-se de uma dialé-
e o reconstitui-transcender que não nega o tica histórica que o aliene e desaliene.
mundo e sim o assume e transforma. Nes- Em seu incessante existenciar-se, o
te movimento, o eu se projeta e se recupera, homem objetiva um mundo em que ele
continuamente. Isto é a história: tempo- mesmo se objetiva. Nesta objetivação a
ralização do eu e do mundo num mesmo subjetividade se constitui, se encarna e se
processo em que juntos se constituem e plenifica. Nela, na objetivação, o mundo se
reconstituem, respondendo ao destino de incorpora ao eu, mas também resiste a ele.
seu encontro originário. Dentro deste coeficiente maior ou menor

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


de resistência, a objetivação esconde, sem- a intersubjetividade não é mais reconheci-
pre, certa forma de alienação. mento, mas sim dominação de consciência,
Na necessária objetivação do sujeito- seja por grupos pequenos, classes ou povos
-para existenciar-se, esse se refaz constan- inteiros.
temente, sem chegar, jamais, a acabar-se. Entretanto, inclusive a mais feroz do-
Sempre sobra uma certa espessura de obje- minação não é capaz de coisificar totalmente
tividade, que o sujeito não chega a assumir, homem: sempre há de lhe sobrar suficiente
dominar e reconstituir, isto é, sempre fica subjetividade para integrar, funcionalmente,
uma porção de mundo que não se historiciza. o sistema da dominação. Desde ai esta pe-
Dentro dela, o sujeito não se reencon- quena faixa de luz, de subjetividade, poderá
tra inteiramente. O encontro originário da passar pelas brechas estruturais do sistema,
consciência e do mundo é um processo que crescer, fazer-se consciência critica e práxis 61
não se totaliza, enquanto a subjetividade libertadora. Esta é a condição de possibili-
não se comensura consigo mesma, ao co- dade de desalienação.
mensurar-se com sua objetividade. A consciência retoma este processo:
Para evitar confusões com o idealismo, temporalização e historicizaçao. Dialética
talvez fosse preferível não dizer que o sujeito que nos aproxima da ideia limite da história.
se aliena ao objetivar-se, senão que, na objeti- Não necessita, pois, de direção definida: não
vação, ele não chega a reconstituir-se uma for- pode buscar qualquer meta. Sua dinâmica
ma acabada - a plenitude humana do sujeito. é práxis e, num sistema de dominação, esta
De qualquer modo, na interioridade práxis só pode ter o sentido da libertação.
desta dialética de objetivação, o sujeito cor-
re o risco de opacificar sua subjetividade, Esta historicização não é desenvolvi-
quando o funcionamento das estruturas so- mento das virtualidades dum ante cuja for-
cioeconômicas o reduzem a simples objeto ma ideal se situa antes ou depois da história.
de outros sujeitos. A subjetividade de tal su- Nela, nesta historicização, o homem plasma
jeito de não é reconhecida pelos outros: para sua forma completa e histórica, produz a
esses, ela se reduz a mundo, e mundo domi- forma de seu mundo e, por sua mediação, a
nando. Aqui podemos falar, com proprieda- sua própria. Não reduz sua forma como algo
de, de alienação. Nela, o homem perde sua feito, mas a produz em sue fazer: educação e
condição humana, de sujeito de sua própria produção se implicam. O homem não é uma
historicização trágica, situação de quem se essência criadora de essência: sua essência é
objetiva sem poder, na objetivação, encarnar incessante conquista existencial: é pesso-
sua subjetividade. A consciência do mundo al: mesmo dentro de todos os condiciona-
cinde-se num dualismo que deforma e nega mentos e determinismos, pode dispor da
o homem. A consciência passa a ser prisio- suficiente energia de ser, para existenciar-se,
neira de um mundo de outras consciências: isto é, para re-trançar sua figura histórica,

Nossas fontes
nas linhas do próprio movimento de consti- para revalorizar o homem é a substancia da
tuição da consciência como existência. revolução cultural: a cultura, aqui, entendida
Este movimento, portanto, não é di- como humanização, isto é, como valoriza-
namismo cego, nem aventura sem rumo: ção do homem. Todas as atividades huma-
tem um sentido-assinalado na dialética da nas, enquanto carregadas de uma significa-
encarnação histórica da intersubjetividade, ção valorativa (seja econômica, religiosa ou
sentido fora do qual a face do homem se outra) representam dimensões de cultura. A
deforma e se desvanece. globalização destas atividades vistas, numa
O comportamento existencial em que o perspectiva axiológica, dilata o território da
homem se autoconfigura, desenha-se num cultura a tudo que é humano. E todo di-
contorno axiológico, mercado pelo sistema namismo humano tem direção axiológica.
62 de valores, implicado nas estruturas de um Sendo assim, num sistema estático de valo-
determinado mundo histórico. Se o homem res, não há renovação do homem.
é a busca permanente de sua forma, o ho- Os interesses da dominação das cons-
mem autêntico coincide com o homem novo. ciências se mistificam em valores supostos,
O que permanece prisioneiro de formas es- capazes de uniformizar e adaptar os com-
táticas resiste ao movimento de sua histori- portamentos à funcionalidade do sistema.
cização: hominizado, não se humaniza. Esta Tão forte é seu poder de mistificação, que
renovação do homem supõe uma constante o próprio dominado busca valorizar-se, se-
revalorização da existência, no mesmo sen- gundo seus padrões e as escalas do sistema
tido do movimento de constituição existen- dominantes. É, inclusive, escudo-revolu-
cial da consciência do mundo ou do mundo ções, através de certas mudanças estruturais,
consciente, o que quer dizer que os novos va- perseguem, no fundo de suas intenções, os
lores não são criação arbitraria de uma cons- mesmos valores que justificavam as estru-
ciência pura, mas o paciente e valioso desco- turas antigas. A luta contra a dominação
brimento de um comportamento disposto a só alcança seus fins se romper as estrutu-
assumir os riscos da história. Se essa não é ras para dar surgimento ao homem novo.
de todo absurda, há de ser, em seu caminho, Um homem novo, para realizar-se, exige a
que o homem se reencontrará como homem mediação de um mundo novo: e o mundo
novo ao descobrir seu sentido em cada si- novo requer a luz de uma nova constelação
tuação histórica, desvendará os valores que de valores, uma nova cultura.
configurarão sua encarnação renovadora de Por isso, a revolução verdadeira, verda-
mundo e recriadora de si mesmo. deiramente libertadora, é a que propicia o
Não há transformação do homem sem aparecimento do homem novo, a revolução
mudança estrutural, porém o homem não cultural.
refaz sua forma se o sistema de valores
continua o mesmo. Buscar novos valores

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A ação cultural conscientizadora, que dadas, assumi-la será sempre uma aventura
reivindica para o homem, em intersubje- existencial da consciência como existência, e
tividade, a posição de sujeito do processo o sentido da existência será aquele que essa
histórico, parece chegar demasiado tarde. consciência refaz em seu comportamento
Poderosas correntes do pensamento da sub- de encarnação e comunhão, de recriação e
jetividade e a morte do homem, ao menos, libertação do homem.
no atual campo epistemológico das “ciên- Podemos chegar a explicar tudo o que
cias humanas”. Coincide com a morte de a consciência significa. Somente que há
Deus, na “teologia radical” de nossos dias. explicação exaustiva para o significado da
O homem não é mais que um sujeito, é própria consciência, pois, dadas as respostas
uma estrutura inconsciente. Porém o desco- das ultimas perguntas, sempre permanece
brimento de tal estrutura é uma historia cons- o sujeito que formula as últimas perguntas, 63
ciente. Se nessa não houvesse nenhuma verda- sempre permanece o sujeito que formula
de, também se desvaneceria a verdade daquela. as últimas respostas, que nunca são as úl-
Ou, no melhor dos casos, não se manifestaria. timas. Esta última realidade subjetiva não
É com essa maior é só feito dado e recebido:
ou menor verdade da O homem não é mais é um sujeito que se faz e
existência que nos com- que um sujeito, é uma se refaz. Por isso, a expli-
prometemos, quando a estrutura inconsciente. Porém o cação do feito não recobre
assumimos como projeto o sentido deste fazer-se.
novo. E, na proporção em
descobrimento de tal estrutura é Seu sentido radical não é
que a assumimos, nos fa- uma historia consciente. resultado de um descobri-
zemos sujeitos da história. mento, é o objeto de uma
Dentro de todas as determinações estrutu- conquista.
rais, o que distingue o homem dos demais O homem é expulso da história, não
seres é a sua responsabilidade de superar o tanto pelas “ciências” que pretendem dissol-
dado da natureza pelo fazer da cultura: de vê-lo, senão pelo sistema imperante, que o
transformar-se a si pelo poder de libertação. aliena como objeto no mundo da dominação.
A conscientização não pretende refazer A conscientização busca restaurá-lo em seu
o homem desde seus recônditos mais ocul- devido lugar, como um sujeito da domina-
tos, pretende, sim, retomar o movimento da ção do mundo. A conscientização não é, pois,
constituição da consciência como existência, uma ciência da consciência: ainda que inte-
isto é, retomar-se naquele instante em que grando a pratica teórica das ciências em sua
o homem se reconstitui conscientemente, práxis total, é, sobretudo, opção e luta. Opção
num sentido histórico que é visão e com- pelo homem e luta por sua desalienação.
promisso. Aceitando que nossa historiciza-
ção seja demarcada por linhas estruturais

Nossas fontes
Educação não renova o mundo em novas formas de
vida. O sistema de valores de uma socieda-
Detrás de cada conceito de cultura - e de se delineia na sua textura estrutural; em
são tantos -, está presente uma teoria diversa estruturas antigas não é possível configurar-
do homem. Já expressamos, anteriormente, -se uma imagem nova do homem. Não são,
nosso conceito de cultura, quando a defi- pois, verdadeiramente, novas estruturas que
nimos num sentido amplo, pela valorização retêm o processo recriador da existência.
do homem. A humanização, insistimos, se Por isso, o homem novo não é produto de
realiza pela encarnação e comunhão: sub- uma renovação cultural, e o mundo novo, de
jetividade em que se reconhece, ativamente, uma transformação estrutural: a revolução
na objetividade em que se constitui e atra- cultural. Uma esta contida na outra, uma
64 vés da qual, em permanente reconstituição promove a outra, num processo em que não
da unidade originaria, também se constitui há primeira nem segunda.
como intersubjetividade.Em outros termos, O dinamismo da cultura tem uma dire-
cultura é o mesmo processo histórico em ção axiológica, ainda que, de fato, participe
que o homem se constitui e reconstituição da ambigüidade da história: nela o homem
e reconstitui em intersubjetividade, através pode conformar-se. A forma humana não
da mediação humanizadora do mundo. O pré-existe à história como uma idéia eterna
processo de cultura, portanto, implica dia- que esta reflete e deforma. A forma humana
leticamente aperfeiçoamento pessoal e do- vai se definindo, historicamente, no movi-
mínio do mundo: ao separar cultura e civi- mento de constituição da consciência como
lização, formação do mundo, o homem se existência, tal como procuramos esboçar nos
divide internamente e o mundo deixa de ser pontos relativos á conscientização. O sentido
mediação humanizadora. de movimento é uno, ainda que o movimen-
O sujeito não se reencontra mais no to mesmo não seja uniforme. A forma hu-
mundo que ajuda a reconstruir: nele, nes- mana se recria em diferentes formas de vida
se mundo desumanizado, fica retido como na concretização histórica, a cultura se refaz
objeto de outro sujeito: aliena-se. Para li- e se reassume na diversidade das culturas.
bertar este homem, isto é, para devolvê- A cultura se diversifica e se determina
-lo à sua condição de sujeito, é necessária pela forma particular de vida de um grupo
romper as estruturas socioeconômicas que humano, no qual: se reconstitui a forma do
o coisificam. Só assim o mundo poderá re- homem-sua forma histórica. Se o respecti-
cuperar, também, sua virtude mediadora, de vo grupo humano deve ser o sujeito de seu
socializaçazaçao personalizante.Por meio próprio processo histórico-cultural, então a
da interioridade deste processo de mudan- ele cabe o risco e a responsabilidade de au-
ça estrutural, passa a via de renovação do to-configurar sua forma particular de vida.
homem: o homem não se pode recriar, se Isto quer dizer que o homem desta cultura

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tem o direito de autovalorizar-
-se, segundo seus próprios va- A conscientização não pretende refazer o homem desde seus recônditos
lores. O sentido do processo mais ocultos, pretende, sim, retomar o movimento da constituição da
de constituição do homem pela
cultura contém, pois, uma exi-
consciência como existência, isto é, retomar-se naquele instante em que o
gência de autonomia. Cultura homem se reconstitui conscientemente, num sentido histórico que é visão
sem autonomia é anti-cultura, e compromisso.
porque, como vimos, em tal hi-
pótese, a objetivação da subje-
tividade, ao invés de liberar o
sujeito, o coisifica como objeto
de dominação.
Cultura autônoma não
se identifica com cultura au-
tônoma. Os valores ances-
trais podem ser tão alienantes
quanto os valores impostos,
extrinsecamente, a uma cul-
tura particular. Tão pouca
cultura autônoma supõe re-
púdio á universalidade da cul-
tura. O homem se existência,
sempre, em formas particu-
lares de vida. Os valores que
as significam, se não valores e
são humanizadores, têm, for-
çosamente, a universidade do
homem, não do homem abs-
trato, mas do que se reproduz
na singularidade da práxis-
-universal concreto.
O que a cultura autentica
repudia, em seu dinamismo, é
a imposição de valores estra-
nhos. Istoé de valores que não
foram descobertos, conquista-
dos, reelaborados e assumidos,
foto: Aicó Culturas

Nossas fontes
livremente, pelo sujeito do respectivo pro- permanente transcender-se a si mesmo. O
cesso histórico. Como estes valores estão homem se defini por esta liberação de limi-
presentes em todos os planos estruturais, tes. Pode localizar-se em seu mundo, porque
econômicos ou outros, o deslocamento do o transcende o ilumina. E, ao transcendê-lo,
sujeito de sua função essencial, em qual- pode voltar-se reflexivamente sobre si e ilu-
quer deles, afeta o processo global da cul- minar seu mundo. Não são dois momentos:
tura.Reduzir o sujeito a objeto, em qual- o da construção do mundo e o da apreensão
quer dos referidos planos, já o desvaloriza refletiva. O meio vital se transforma em um
radicalmente, desumanizando. A perda de mundo, quando o homem o transcende num
sua condição humana, em tal plano, já ex- retomar reflexivo. O mundo humano não é
pressa algum modo de dominação cultural. espetáculo de inteligência pura, nem mode-
66 A cultura não é um plano ao lado dos de- lagem de ação cega: é obra de mãos inteli-
mais, é o conjunto de todos, enquanto eles gentes. O “logos” não precede á práxis, nem
estão carregados do sentido de valorização é seu produto: é sua luminosidade interior.
do homem. A alienação cul- Interioridade que é, dialetica-
tural não se situa, portanto mente, transcendência. Nesta
somente em superestruturas Para reconstruir seu mundo, transcendência se desenvolve
artísticas, cientificais, ideo- o homem tem que excedê- a facilidade do acontecer hu-
lógicas ou religiosas, senão lo. O homem, porque pode mano. No próprio ato desde
na raiz e na substancia axio- acontecer, acende a luz em
lógica de todas as atividades
lançar-se mais além de sua que ele se desvenda como fa-
humanas. A desalienação natureza, cult iva-se. cilidade histórica.
cultural é libertação total, li- A cultura se faz, pois,
berdade do homem novo. num fazer que, reflexivamente, se percebe
Pouco significa o combate a certos fazendo: é o saber da cultura. Mas o fazer
epifenômenos de dependência cultural, no humano. Este saber é, enquanto se sabe fa-
setor das letras, das ciências, dos costumes zendo. Este saber é o intimo reverso do fa-
ou das técnicas, sem a radicalidade da luta zer, o que o torna transparente a si mesmo
pela total desalienação do homem, para que e permite, ao respectivo sujeito, assumi-lo
se reencontre, em qualquer plano, como, su- subjetivamente. Saber que, estranhamente,
jeito de sua própria história. A recuperação transcende o fazer, porem, neste fazer se re-
que, pode ser total, é essencialmente cultural. faz. E reflexão e crítica. Porque transcende e
se transcende, pode saltar fora das situações
Para reconstruir seu mundo, o homem limitantes, retomar-se conscientemente e
tem que excedê-lo. O homem, porque pode reconstituir-se criticamente: um movimen-
lançar-se mais além de sua natureza, cultiva- to que também é existência e cujo sentido
-se. E a, mesma cultura se desenvolver num aponta para a libertação.

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O saber da cultura é a cultura que se originaria, isto é, solidário com todo o pro-
sabe. Por destinação originaria, pois, o sa- cesso que o gerou e de que ele deve ser a
ber não deveria nunca desligar-se da função mais lúcida expressão de consciência his-
humanizadora da cultura. Só o saber liber- tórica – o processo de encarnação objeti-
ta o homem, porem, seu correto exercício vamente e comunhão intersubjetivante, os
não poderia perseguir outro fim. Não é uma dois aspectos da cultura autêntica, que cres-
pratica teórica junto a outras práticas. Se cem juntos, um em razão direta do outro.
assim fosse, sua integração na práxis ficaria
ininteligível. Quando rompe seu compro- A cultura é um processo vivo de perma-
misso com a vida, aliena-se: e não se aliena nente criação: perpetua-se refazendo-se em
só, separadamente, para, depois, alienar e novas formas de vida.Só se cultiva, realmen-
cultura toda. Sua separação já é reflexo mis- te, quem participa deste processo, ao refazê- 67
tificado e mistificador da alienação cultural, -lo e refazer-se nele. A transmissão do já fei-
como processo total de desumanização do to, é cultura morta. O feito é só mediador de
mundo. E o reflexo é o contrario da refle- cultura, enquanto manifesta, interiormente,
xividade, o contrario da criticidade, não o um fazer interno de que participamos. A
comprometimento. elaboração do mundo só é cultura e huma-
Uma cultura alienada e alienante não nização, se intersubjetiva as consciências.
se desaliena, pois, tão só pelo esforço exclu- Elaboração que postula, necessariação de um
sivo de um saber critico. Enquanto o saber mundo comum. Participação que radica na
se compromete, existencialmente, e assume comunicação do saber da cultura: partici-
sua função de reflexividade concreta no pro- pação no saber, no saber fazer, no fazer que
cesso global da práxis, responde à sua vo- se sabe. E nisso consiste, essencialmente, o
cação essencial: a de ser consciência critica aprendizado. Ninguém aprende o que se lhe
do referido processo. Esta consciência não ensina: cada um aprende o que aprende.
se constitui fora, mas dentro do processo: Agora, se o saber, como vimos, é o re-
é histórica também. Consciência critica é verso translúcido da cultura (é a mesma cul-
consciência histórica. Não é sobre-determi- tura que se vai dizendo a si mesma, como
naçao que empurra o processo desde fora, consciência critica, e, neste dizer-se, vai se
nem força que o impulsiona desde dentro. do é participação ativa, comprometida no
O mundo humano é histórico: consciência processo histórico cultural).
histórica é, também, consciência do mundo. Toda cultura é, assim, medularmente
E esta, como temos repetido tantas vezes, aprendizado. Em sua dinâmica, o homem
não é um dualismo, mas unidade originaria, se faz, aprendendo a refazer-se. Cultu-
isto. O saber não desaliena nem se desalie- ra autêntica é conscientização. Na cultura
na, se não implicado nas tensões dialéticas alienada, o saber deixa de ser cultura que
que dinamizam internamente essa unidade se sabe, num saber que critica e promove:

Nossas fontes
foto: Aicó Culturas
A cultura é um processo vivo de permanente criação: perpetua-se refazendo-se em novas formas de
vida. Só se cultiva, realmente, quem participa deste processo, ao refazê-lo e refazer-se nele. A trans-
missão do já feito, é cultura morta.
passa a ser um reflexo ideológico, mistifi- assim, toda cultura alienada é um sistema
cante, da dominação que impede ao sujeito de dominação de consciência: neste sentido,
recuperar-se na objetividade, o coisifica no um sistema de ensino. O sistema educacio-
mundo e o domínio do mundo se confunde nal dominante não é mais que o sistema de
com a dominação da consciência. O saber dominação cultural.Dentro dele, separado
se transforma em instrumento de mistifi- do processo em que os homens se histori-
cação das consciências: não liberta, justifica cizam, o saber se institucionaliza à margem
a servidão. Na cultura alienada, o apren- da vida do povo, encastela-se dentro dos
dizado se transforma em domesticação. muros das escolas e academias, assume as
O ensino não propicia a participação co- falsas aparências democráticas dos meios
mum: transmite o efeito e impõe os valores massificadores de comunicação: aí, e desde
dominantes, que não dominam por sua vali- aí, defende, mantém e propaga os ensinos e
dez, mas, isto, pelo poder dos interesses que, valores de uma civilização de escravos.
simultaneamente, ocultam e manifestam. E,

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


A educação se define, dentro da fun- Os referidos agentes são partidários
cionalidade desde sistema, como adaptação. da chamada “democratização do ensino”,
Se aceitamos os pressupostos anteriores, se enquanto esta é fator de maior integração
a cultura deve ser criadora do homem novo, dos dominados no sistema de dominação.
se o homem se renova pela superação de to- Portanto, são implacáveis adversários da
dos os seus limites, num retomar reflexivo conscientização, já que esta é aprendizado.
que o refaz, sempre, mais além de si mesmo, Aprendizado em que aprender não é rece-
então educação é exatamente o contrario: ber, repetir e ajustar-se, se não participar,
é esforço de permanente desadaptação. O desadaptar-se e recriar. Nessa perspectiva
homem que se conforma, renuncia á histo- do sistema estabelecido, a alfabetização em
ricização: desumaniza-se. massa, a educação de adultos, a extensão
universitária, etc., são outros tantos meios de 69
Os povos do Terceiro Mundo, objeto “socialização”, isto é, de funcionalizar, mais
de dominação interna e externa (conjuga- perfeitamente, as atividades humanas nas
dos num sistema de gratificação mútua) estruturas de uma sociedade desumana. Em
não podem pensar, pois, em desenvolver sua
tal sistema, a instituição escolar, durante lar-
consciência critica e comprometida, através
go tempo, segrega o educando da elaboração
da rede educacional em que o sistema impe-
viva da cultura. Neste mundo da dominação,
rante domestica e aprisiona as consciências.
ele é um objeto amais a ser plasmado, segun-
Não se pode esperar que os dominadores
do cânones estabelecidos: não participa da
concedam as condições de libertação, ainda
direção do processo histórico cultural, num
que possamos tornar seus instrumentos de
inclusive, de sua história escolar.
dominação pra voltar-nos contra eles. É o
A rebelião de grande parte da juventu-
que, por exemplo, ainda pode dar um sen-
tido revolucionário a certos movimentos de de atual, contra a escola, talvez radique numa
reforma universitária. consciência, cada vez mais clara, de que o
Concretamente, pois, os agentes da do- sistema só lhe permite participar da cons-
minação externa, apóiam e promovem, com trução do mundo quando considerar prepa-
aparência de grande generosidade, todas as rada para fazê-lo nas exatas medidas de seus
medidas que fortalecem e estendem o sis- interesses, isto é, dos interesses dos grupos
tema de dominação e comportamento dos e classes dominantes. O ensino é, assim,
dominados. técnica hábil para conformar e uniformizar,
As aspirações que despertam, determi- ao contrario do aprendizado como método
nam-se pelas pautas e valores propostos e de liberação e auto-configuração, descobri-
impostos pelo sistema – aspirações que o mento histórico de valores de humanização,
sistema, com satisfação, absorve – e capi- de invenção do homem novo. É o que ressalta,
talizam, ganham sentido dentro do sistema nitidamente, da atividade dos representantes,
de valores vigentes. conscientes ou inconscientes, do sistema,

Nossas fontes
nas lutas pela reforma universitária: não histórico-cultural, eles e os que nem sequer
receiam modernização institucional, antes a têm oportunidade de trabalhar, marginaliza-
propiciam para ajustar melhor a universidade dos pelo sistema. E são Povo de Deus, por-
ao pleno funcionamento, à sua politização, que ajudam a edificar o Reino. Os que traem
como esforço por comprometê-la numa di- a colaboração humanizadora, deixando-se
nâmica de desalienação cultural. vencer pela sedução luciferina da dominação
E, quando o sistema abre suas compor- não são povo, são opressores do povo.
tas para alargar os “benefícios” da cultura até Esta é a missão da luta libertadora do
os últimos grupos marginalizados, uma vez povo oprimido; devolver-lhe a situação de
mais não o faz para libertar. O “beneficia- sujeito de seu próprio processo histórico-
do” só muda de posição: Este fiel servidor -cultural. Na alienação cultural, é objeto.
70 poderá, quem sabe, avançar muito dentro Ao desalienar-se, retoma, reflexivamente,
do sistema, mas os condutos abertos devem livremente, o movimento de constituição de
fechar-se, sempre, antes das fronteiras poli- sua consciência como existência: conscien-
ciadas da ordem estabelecida. tiza-se. A conscientização não é exigência
Entre este ensino “funcional” (escolar, previa para a luta de libertação, é a própria
extra-escolar) e a educação conscientizado- luta. O retomar da consciência se identifica
ra, há inimizade irreconciliável. com a reconquista do mundo: em práxis li-
bertadora.
A educação é, pois, processo histórico A conscientização é este esforço do
no qual o homem se re-produz, produzin- povo por retomar seu destino histórico,
do seu mundo. Todos que colaboram na sua cultura, em suas mãos. Cultura do
produção deste, deveriam reencontrar-se, povo, pois, e não cultura para o povo: cul-
no processo, como sujeitos própria desti- tura popular.
nação de sujeito só pode ser preenchida De tudo que antecede, se depreende,
pelos que trabalham o mundo. Esses são inevitavelmente, que cultura popular não
verdadeiramente o povo - a comunhão é extensão das sobras do sistema de ensino
pessoal só tem um nome: colaboração no estabelecido para a multidão dos ignoran-
mundo comum. tes e miseráveis, que não tiveram valor su-
No sistema estabelecido, os que do- ficiente para incorporar-se a ele.Seria, pois,
minam pelo trabalho. O trabalho, por sua algo necessário ao sistema educacional, que
vocação original, deveria intersubjetivar as serviria aos objetivos de adaptar, uniformi-
consciências, ao contrário da dominação zar e mistificar, transformando o dominado
que as objetiva e escraviza. em mais funcional à dominação.
Os que têm este título, o do trabalho, o Para nós, cultura popular é cultura do
único que legitima a dominação do mundo, povo – do homem que trabalha e humani-
são excluídos da direção ativa do processo za o mundo, e ao fazê-lo, reproduz-se a si

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


mesmo, livremente em comunhão com os No sistema atual, entretanto, a verda-
demais. Em vez de ser extensão secundaria deira cultura popular está forçada a refu-
do sistema educacional estabelecido, nela, giar-se nas organizações populares de base.
na cultura popular, a institucionalização di- Daí deve enfrentar-se com sistema, não
nâmica do ensino deveria, pois, enraizar-se como simples educação popular, organizada
e nutrir-se. O mais alto saber não seria o pelo próprio povo, senão como luta contra
mais distante, senão, isto sim o mais pro- tudo o que seja obstáculo para o povo assu-
fundamente comprometido com uma refle- mir sua história: tornar-se sujeito, libertar-
xão critica, em que a cultura deve, continua- -se; luta, portanto, também para tomar a
mente, rever-se, promover-se, renovar-se. E direção do respectivo processo histórico:
de uma cultura como processo global, his- conscientização equivale, pois, à politização.
tórico, do qual o povo deveria ser o sujeito e Não se identifica, contudo, com tomada 71
o beneficiário. de poder. É uma ação permanente, valida,
Isso, entretanto, não ocorre. O sistema antes, durante e depois deste momento
denuncia o caráter subver- eminentemente político.
sivo da cultura popular. E, O homem luta para
com razão. Entre ela e o A conscientização não é obter condições de renova-
sistema, a incompatibilida- exigência prévia para a luta ção: obtidas, deve renová-
de é radical e total. Poderia -las para renovar-se. Cons-
parecer estranha a acusação
de libertação, cientização é um processo
para quem considera a cul- é a própria luta. consciente e inacabado-co-
tura popular como simples mo o homem.
“método” de educação. Sem Em nossos povos la-
dúvida é método, por mais variadas que se- tino-americanos, grupos cada vez mais
jam suas técnicas, mas, afinal, método: re- numerosos despertam para as atividades
toma os caminhos que se dirigem ao rumo, conscientizadoras. Quais são os caminhos
que rapidamente indicamos: o da conscien- a seguir para apressar nossa libertação?A
tização do povo. teoria da ação cultural se justifica por sua
A contradição entre a consciência his- fecundidade histórica. Na práxis, ela encon-
tórica emergente e a dominação das cons- tra seu principio, sua inspiração e sua prova.
ciências pelo sistema estabelecido, produz a Nesses pontos, apenas enunciados, te-
eclosão da consciência de classe dos domi- mos buscado, tão somente, o sentido ori-
nados e explorados. As contradições estru- ginal da conscientização. E achamos que
turais se desmistificam, se manifestam e se coincide com a “revolução cultural”.
agudizam na clara consciência com que os
dominados se levantam contra a dominação.
Então começa a despertar o homem novo.

Nossas fontes
Círculos de Cultura: problematização
da realidade e protagonismo popular
Sistematizados por Paulo Freire (1991) os Círculos de Cultura
estão fundamentados em uma proposta pedagógica, cujo caráter
radicalmente democrático e libertador propõe uma aprendizagem Nada continua como está
integral, que rompe com a fragmentação e requer uma tomada de Tudo está sempre mudando
posição perante os problemas vivenciados em determinado con- O mundo é uma bola de ideias
texto. Para Freire, essa concepção promove a horizontalidade na Se transformando se transformando
relação educador-educando e a valorização das culturas locais, da
oralidade, contrapondo-se em seu caráter humanístico, à visão eli- (Junio Santos)
tista de educação.
Concebidos na década de 1960, como grupos compostos por
trabalhadores populares, que se reuniam sob a coordenação de um
educador, com o objetivo de debater assuntos temáticos, do inte- Vera Lúcia Dantas
resse dos próprios trabalhadores, cabendo ao educador-coordena- Médica, educadora popular, mestre
dor tratar a temática trazida pelo grupo. Surgem no âmbito das em Saúde Pública - UECE, doutora
em educação – UFC e atualmente
experiências de alfabetização de adultos no Rio Grande do Norte coordenadora pedagógica do Siste-
e Pernambuco e do Movimento de Cultura Popular. Não tinham ma Municipal de Saúde Escola da
SMS Fortaleza.
a alfabetização como objetivo central, mas a perspectiva de contri-
buir para que as pessoas assumissem sua dignidade como seres hu-
Angela Maria Bessa Linhares
manos e se percebessem detentores de sua história e de sua cultura,
Professora doutora do Programa de
promovendo a ampliação do olhar sobre a realidade. Nesse con- doutorado em Educação e do Mes-
texto, propõem uma práxis pedagógica que se compromete com a trado em Saúde Coletiva da Univer-
sidade Federal do Ceará.
emancipação de homens e mulheres ressaltando a importância do
aspecto metodológico no fazer pedagógico, sem desvalorizar, no
entanto, o conteúdo específico que mediatiza esta ação, possibili-
tando a tomada de consciência do educando, mediante o diálogo
e o desvelamento da realidade com suas interligações, culturais,
sociais e político-econômicas.
Destarte, caracteriza-se como locus privilegiado de comunica-
ção-discussão embasadas no diálogo, nas experiências dos atores-
74

Fonte:<http://acervo.paulofreire.org/xmlui/handle/7891/3016” \l “page/1/mode/1up>

-sujeito, na produção teórica da educação e traduzirá no tema gerador geral, vinculado


na escuta, a qual se orienta pelo desejo de a ideia de interdisciplinaridade e subjacente
cada um e cada uma aprenderem as falas à noção holística de promover a integração
do outro e da outra problematizando-a e do conhecimento e a transformação social.
problematizando-se. A Tematização3, ou seja, processo no
Tendo como princípios metodológicos qual os temas e palavras geradoras são co-
o respeito pelo educando, a conquista da dificados e decodificados buscando a cons-
autonomia e a dialogicidade, os círculos de ciência do vivido, o seu significado social,
cultura, tais como foram sistematizados por possibilitando a ampliação do conhecimen-
Freire, podem ser didaticamente estrutura- to e a compreensão dos educandos sobre a
dos em momentos tais como: a investigação própria realidade, na perspectiva de intervir
do universo vocabular1, do qual são extraídas criticamente sobre ela. O importante não é
palavras geradoras2. Esse mergulho permite transmitir conteúdos específicos, mas des-
ao educador interagir no processo, ajudan- pertar uma nova forma de relação com a ex-
do-o a definir seu ponto de partida que se periência vivida.

1
Relação das palavras de uso corrente, entendida como
representativa dos modos de vida dos grupos ou do
3
A codificação pode se dar por imagens expressas de
território onde se trabalhará (estudo da realidade). Este várias formas — desenho, fotografia, imagem viva, — que
momento permite o contato mais aproximado com por sua vez deverão suscitar novos debates. Parte-se da
a linguagem, as singularidades nas formas de falar do compreensão de que cada pessoa, cada grupo envolvido na
povo, e suas experiências de vida no local. ação pedagógica, dispõe em si próprio, ainda que de forma
2
Unidade básica de orientação dos debates. rudimentar, dos conteúdos necessários dos quais se parte.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Fig. pag 74: A experiência
de Angicos (RN) é referên-
cia na vida e obra de Paulo
Freire. Nessa cidade, 300
trabalhadores rurais foram
alfabetizados em 45 dias.

fig. pág 75 e 76: Guache


do artista plástico pernam-
bucano Francisco Bren-
nand, ilustrando a discus- 75
são do conceito de cultura
nos Círculos de Cultura.

Fonte: <https://www.google.com.br/search?q=francisco+brennand&espv=210&es_sm=93&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=ximvUqCIH8SIkQek_YDYBQ&ved=0CAkQ_
AUoAQ” \l “es_sm=93&espv=210&q=francisco+brennand+guache&tbm=isch&facrc=_&imgdii=_&imgrc=QaFmJbvhOOClhM%3A%3Bt6BlKIAnQIwTIM%3Bhttp%253A
%252F%252Fwww.projetomemoria.art.br%252FPauloFreire%252Fpaulo_freire_hoje%252Freinventandopaulofreire%252Fpaulofreireeomundosustent>

A Problematização representa um mo- jeitos atuantes. Para Freire (2003), o diálogo


mento decisivo da proposta e busca superar possibilita a ampliação da consciência críti-
a visão ingênua por uma perspectiva críti- ca sobre a realidade ao trabalhar a horizon-
ca, capaz de transformar o contexto vivido. talidade, a igualdade em que todos procu-
A ação de problematizar em Paulo Freire ram pensar e agir criticamente com suporte
impõe ênfase no sujeito práxico que discu- na linguagem comum, captada no próprio
te os problemas surgidos da observação da meio onde vai ser executada a ação peda-
realidade com todas as suas contradições, gógica e que exprime um pensamento ba-
buscando explicações que o ajudem a trans- seado em uma realidade concreta. Diálogo,
formá-la. O sujeito, por sua vez, também se nessa perspectiva, tem a amorosidade como
transforma na ação de problematizar e passa dimensão fundante, contrapondo-se a ideia
a detectar novos problemas na sua realida- de opressão e dominação. Situa a humilda-
de e assim sucessivamente. Nesse sentido, de como princípio no qual o educador e o
a problematização emerge como momento educando se percebem sujeitos aprendentes,
pedagógico, como práxis social, como mani- inacabados, porém jamais ignorantes.
festação de um mundo refletido com o con- A ampliação do olhar sobre a realida-
junto dos atores, possibilitando a formula- de com amparo na ação-reflexão-ação, e, o
ção de conhecimentos com base na vivência desenvolvimento de uma consciência críti-
de experiências significativas. Assim, o ca que surge da problematização, permitem
diálogo se constitui como elemento-chave que homens e mulheres se percebam su-
no qual educadores e educandos sejam su- jeitos históricos, o que implica a esperança

Nossas fontes
A ampliação do olhar sobre a realidade
com amparo na ação-reflexão-ação, e,
o desenvolvimento de uma consciência
crítica que surge da problematização,
permitem que homens e mulheres
se percebam sujeitos históricos,
o que implica a esperança de que,
nesse encontro pedagógico, sejam
vislumbradas formas de pensar um
76 mundo melhor para todos.
Fonte: <https://www.google.com.br/search?q=francisco+brennand&espv=210&es_sm=93&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=ximvUqCIH8SIkQek_YDYBQ&ved=0CAkQ_
AUoAQ” \l “es_sm=93&espv=210&q=francisco+brennand+guache&tbm=isch&facrc=_&imgdii=_&imgrc=QaFmJbvhOOClhM%3A%3Bt6BlKIAnQIwTIM%3Bhttp%253A
%252F%252Fwww.projetomemoria.art.br%252FPauloFreire%252Fpaulo_freire_hoje%252Freinventandopaulofreire%252Fpaulofreireeomundosustent>

de que, nesse encontro pedagógico, sejam Nesse contexto, segundo Dantas (2010),
vislumbradas formas de pensar um mundo o Círculo de Cultura constitui-se locus da vi-
melhor para todos. Esse processo supõe a vência democrática, de formas de pensamen-
paciência histórica de amadurecer com o tos, experiências, linguagens e de vida, que
grupo, de modo que a reflexão e a ação se- possibilita o estabelecimento de condições
jam realmente sínteses elaboradas com ele. efetivas para a democracia de expressões, de
A democracia (...) é forma de vida, se pensamentos e de lógicas com base no res-
caracteriza, sobretudo por forte dose de peito às diferenças e no incentivo à partici-
transitividade de consciência no comporta- pação em uma dinâmica que lança o sujeito
mento do homem. Transitividade que não ao debate, focando os problemas comuns.
nasce e nem se desenvolve a não ser dentro
de certas condições em que o homem seja Referências
lançado ao debate, ao exame de seus proble-
DANTAS, V. L. A. Dialogismo e arte na
mas comuns (FREIRE, 1991, p. 80).
gestão em saúde: a perspectiva popular nas
Dessa forma, Paulo Freire fala de edu-
Cirandas da Vida em Fortaleza. 2010. (Tese
cação como conscientização, reflexão rigo-
de Doutorado) – Universidade Federal do
rosa sobre a realidade em que se vive, com
Ceará, Fortaleza, CE, 2010.
o entrelaçamento das linguagens e suas res-
FREIRE, P. Educação como prática de liberdade.
pectivas lógicas epistêmicas, evidenciando
20. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
os focos a serem problematizados pelo gru-
po, instigando o debate e constituindo uma FREIRE, P. O caminho se faz caminhando:
rede de significados. conversas sobre educação e mudança social.
2. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Diálogo com a experiência
Dialogismo e arte na gestão em saúde: a perspectiva
popular nas cirandas da vida em fortaleza

Este estudo é fruto da caminhada de homens, mulheres, jo-


vens e crianças que compõem as rodas das Cirandas da Vida1 e da
nossa inquietude que, ante uma proposta que parte da iniciativa de
atores e atrizes populares, insere-se no contexto de uma gestão pú-
blica municipal, buscando fazer o movimento dialético de desvelar
o mundo, com base na ação-reflexão-ação.
Neste sentido, formulamos a questão geradora deste projeto de
pesquisa – que realiza um estudo sobre a experiência das Cirandas
da Vida em Fortaleza-CE: como poderíamos ler o dialogismo e a arte
na gestão em saúde, buscando a perspectiva popular
Com o protagonismo dos atores dos movimentos e práticas Vera Lúcia de A. Dantas
que a fazem a ANEPS em Fortaleza e o apoio da gestão municipal Médica, educadora popular, mestre em
Saúde Pública- UECE, doutora em edu-
de saúde, as Cirandas foram lançadas em 2005 com a intenção de cação – UFC e atualmente coordenado-
se constituírem um espaço de interação e interlocução dos diver- ra pedagógica do Sistema Municipal de
Saúde Escola da SMS Fortaleza.
sos atores institucionais e comunitários na formulação de políti-
cas sociais que interferem e atuam na produção de saúde visando Angela Maria Bessa Linhares
a direcionar as políticas públicas municipais para uma democracia Professora doutora do Programa de dou-
participativa, na perspectiva de estimular o protagonismo popular. torado em Educação e do Mestrado em
Saúde Coletiva da Universidade Federal
As Cirandas da Vida afirmam buscar trazer à cena o desafio do Ceará.
de desenhar coletivamente uma proposta de educação popular que
constitua um olhar multirreferencial na interface dos atores popu-
lares e institucionais, de modo a dialogar sobre ações coletivas de
enfrentamento às situações-limite apontadas pela população, espe-
cialmente nas áreas de maior vulnerabilidade social de Fortaleza. As
situações-limites no contexto das Cirandas da Vida são vistas como
o lugar de se problematizar as transformações; aquelas que exigem

1
Ação de educação permanente do Sistema Municipal de Saúde Escola de
Fortaleza, que busca articular o princípio de comunidade junto à esfera institucional.
transformação no contexto local, por difi- onde se promove a reflexão das ações em
cultarem a concretização dos sonhos, dese- saúde. Assim é que buscamos as situações
jos e necessidades coletivas das populações.” vividas onde se favorece a escuta em rede
Ao situarem-se no campo da educação da experiência coletiva tentando capturar o
popular, apóiam uma formação política que dialogismo trazido pela arte na gestão em
constitui o concerto dialógico envolvendo o saúde.
princípio de comunidade e a esfera institu- Esta tese nos desafiou a delinear um
cional e, dessa forma, propõem que o poder percurso, de ação-reflexão-ação sobre as
analítico dos grupos e movimentos popula- Cirandas da Vida – onde atuamos, re-
res possa dialogar sobre ações compartilha- fletimos e intervimos coletivamente, na
das o que inclui discussão, reflexão crítica e perspectiva de pensar gestão popular no
82 possibilidade de diálogo concreto. contexto do Estado, com suas linguagens
A perspectiva popular a que nos re- e caminhos singulares em saúde popular e,
ferimos diz respeito ao olhar dos atores e recortamos as esferas dialógicas da gestão
atrizes dos movimentos populares como popular em saúde nas quais nos movemos
protagonistas de ações de transformação às trazendo a arte também como linguagem,
situações-limite da sua realidade, na pers- no contexto da gestão atual em saúde.
pectiva da emancipação; de um popular que Para traçar esses caminhos, ousamos
se tece na busca de superação da consciên- construir uma pesquisa-ação que cunhamos
cia ingênua rumo ao inédito viável: como de Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa em
inacabamento, formação permanente que cuja abordagem multirreferencial envolve-
se constitui em determinados  princípios e mos atores populares – os cirandeiros – que
se orienta por uma ética que busca a justiça, constituíram o grupo sujeito deste estudo,
a solidariedade nas relações e nas políticas coautores e protagonistas da produção do co-
trazendo a tensão permanente entre ação nhecimento nessa vivência de práxis grupal
política e o fortalecimento dos espaços or- fundamentada na Comunidade Ampliada
ganizativos que animam a luta popular em de Pesquisa, Comunidade Ampliada de Pa-
sua mediação com a esfera institucional. res, nos círculos de cultura e na arte.
Buscamos o popular que, ao produzir atos- O percurso também inclui os teste-
-limite transformadores da realidade atuali- munhos e narrativas de vida como ex-
za sua potência criativa. pressões de um saber coletivo carregado
Neste estudo, apresentamos a arte de historicidade, subjetividade e sentidos,
como espaço de criação – transcendência, incorporando a oralidade e potencializan-
capaz de produzir sentidos e sentimentos, do a atualização temporal e espacial desses
e optamos por tomá-la como dimensão dos atores – sujeitos em seus discursos. Dessa
sujeitos que potencializa a dialogicidade ca- forma a Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa
paz de realizar a suspensão crítica e criativa traz esse referencial buscando aprendizados

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


que se fundamentam na possibilidade de passagem nas diversas regiões da cidade,
nos percebermos sujeitos que aprendem junto aos seus atores protagonistas ge-
”desde o princípio mesmo de sua experiên- rando atos-limite, potentes em seu poder
cia formadora, assumindo-se como sujeito de transformação, que se entrelaçam e se
também da produção do saber” (FREIRE, intercambiam em um movimento circu-
2000, p. 24). lar como as cirandas e, ao mesmo tempo,
A proposta metodológica da Ciranda complexo como a própria vida.
de Aprendizagem e Pesquisa está organizada As sinfonias trazem, harmonias e con-
em momentos não estanques e que podem trapontos, como espaço polifônico do dizer
acontecer simultaneamente ou em tempos das culturas humanas e também revelam
diversos partindo da constituição do grupo desafios. Um deles é o de se constituir na
sujeito. Os cirandeiros trouxeram em seus gestão em saúde um caminho de interseto- 83
relatos, as experiências vividas que os refe- rialidade, capaz de comportar a perspectiva
rendaram a ocupar esse lugar, ensejando popular onde a arte se apresenta como po-
leituras sobre o território e os questiona- tência e devir social.
mentos sobre as trilhas que empreenderam Este artigo se constitui a partir de uma
nas Cirandas. Esses relatos e as questões dessas sinfonias que teve os jovens em situ-
geradoras levantadas por parte de cada um ação de conflito com a lei como protagonis-
são relidos pelo grupo, que problematiza e tas, buscando desvelar caminhos de inclu-
produz reflexões e, por sua vez, suscitam a são na vivência com a juventude vida loka.
escrita coletiva constituída não apenas dos
textos formais, mas também da produção O rap como narrativa da realidade de
de desenhos, músicas, textos teatrais, poe- jovens em conflito com a lei
mas e outros.
As Cirandas, em suas trilhas musicais,
As situações-limite apontadas pela
constituem novos percursos e outros arran-
população, bem como os atos-limite (as
jos sinfônicos expressos na batida marcan-
superações propostas e vividas para trans-
te do rap, trazendo para o centro da roda a
formar o que se detecta como situação-
problemática da juventude envolvida com o
-limite) foram base para os enfrentamen-
crime, com a exploração sexual, introduzi-
tos do princípio de comunidade e a esfera
da na Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa
institucional. Com estes movimentos,
com a fala do cirandeiro Thyago, o mais jo-
cria-se uma perspectiva de engendrar o
vem dos cirandeiros pesquisadores. Advin-
inédito-viável.
do do Movimento Nacional de Meninos e
As narrativas dos cirandeiros e ciran-
Meninas de Rua do Ceará (MNMMRCE)
deiras desencadearam movimentos que,
e da região do Grande Lagamar, ele inicia
por sua vez, configuraram sinfonias por
seu relato:
onde as Cirandas da Vida marcaram sua

Diálogo com a experiência


Olha a Fortaleza Bela Nesse território, a questão da violên-
Nesse imenso arquipélago cia, para os jovens, surge de forma bastante
De bairros e favelas contundente. Nos aprofundamentos que se
Área de contradições seguiram às primeiras rodas das Cirandas,
É a regional II apontou-se a necessidade coletiva de cons-
Onde porções de riquezas tituir atos-limite para um grupo de jovens
São cercadas por bolsões de pobreza em grave situação de vulnerabilidade social,
Vocês tirem a prova, como é o caso dos jovens em situação de
Mas eu tenho certeza. conflito com a lei e dos adolescentes e jo-
vens em situação de exploração sexual.
A fala musical do cirandeiro contextu- Para o cirandeiro Thyago,
84 aliza o cenário onde se delineia a sinfonia As Cirandas da Vida na SER II se re-
que nos propomos agora analisar. O Gran- alizam em um cenário marcado pelos lutas
de Lagamar é um território, que, perante sociais, pela moradia e resistência e no pas-
um contexto de dificuldades sociais, ousa sado pela luta da sobrevivência. Por parte
se reconhecer como “uma comunidade de da juventude, nesses tempos atuais, par-
luta” elaborando suas estratégias de luta e ticularmente para mim, palco melhor não
resistência, no sentido do fortalecimento da existiria em tal regional. Tal palco é chama-
organização popular, protagonizada inicial- do de Grande Lagamar, comunidade esta
mente pelas mulheres. que se aglomera nos bairros do Pio XII,
Aerolândia, Alto da Balança, São João do
Tauape e Lagamar, que surge já oriundo
da luta de resistência e sobrevivência das
famílias vítimas da seca, que foram morar
às margens do riacho Tauape.
Os grupos de juventude apontam,
mais fortemente, a violência do acesso
aos direitos básicos de cidadania, que
se expressam no tráfico de drogas e de-
saguam na discriminação e no cerco de
negações conhecido como “mundo dos
jovens em conflito com a lei”.

Neste contexto as Cirandas encontram,


por intermédio do cirandeiro Thyago, o
MNMMRCE que constitui o grande
foto: Arquivo MNMMRCE

parceiro para os movimentos que


Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular compõem
em Saúde essa sinfonia.
Ao trazermos à cena a questão da juven- desassistida. Por outro lado, revela a potên-
tude e seu envolvimento com a violência, refe- cia dos movimentos locais na proposição
rendamos o relatório final do projeto Centro de ações que incorporam outras dimensões
de Defesa Técnico-Jurídico de Adolescentes como o compromisso vivido e assumido
em Conflito com a Lei (INSTITUTO..., pelos jovens e o sentido de pertença à co-
2003), que aponta o nível alarmante de vio- munidade onde os jovens se inserem e que
lência institucional contra crianças e adoles- é elaborado no correr do percurso educativo:
centes, o que exige uma política pública bem
Todos nós, jovens, somos da comunidade.
mais eficaz para eliminar ou, ao menos, no
Ali nascemos e crescemos e, portanto, te-
primeiro momento, atenuar as práticas auto-
mos o compromisso com a transformação
ritárias contra essa parcela da população.
da realidade em que vive a nossa juventude
Neste contexto as Cirandas encontram, 85
e em conseqüência, da nossa comunidade.
por intermédio do cirandeiro Thyago, o
Isso tem facilitado a nossa aproximação e
MNMMRCE que constitui o grande par-
o diálogo com esses jovens, pois, quando
ceiro para os movimentos que compõem
estão em dificuldades recorrem a nós para
essa sinfonia.
ajudá-los. Muitas vezes somos nós que
O MNMMRCE trabalha com esses jo- buscamos apoio jurídico. Aqueles que estão
vens através de alguns projetos e ações. Um em medida sócio-educativa ou na justiça,
deles é o “Minha História, Minha Vida” vamos acompanhando o andamento dos
que é na verdade um acompanhamento a processos, das audiências, às vezes temos
esses jovens através de visitas domiciliares, de acompanhá-los à delegacia. Somos, na
diálogos com cada jovem que a gente faz prática, seus advogados.
semanalmente e às vezes até diariamente.
O relato que acabamos de transcrever
Aqueles em que a situação está mais grave,
nos faz refletir sobre a exclusão social no
que estão no assalto direto e que não estão
campo da educação e a necessidade de re-
sendo acompanhados por nenhum projeto,
pensar os critérios de inclusão. Aqueles que
a gente vai quase que diariamente. Vamos
pensam a formação acadêmica como cami-
discutindo com esses jovens a situação em
nho de transformação social, que pensam a
que se encontram e buscando encaminha-
formação articulada à solução dos problemas
mentos para escolas, cursos profissionali-
cotidianos do território em que vivem, não
zantes, documentos, acesso à saúde para o
conseguem acessar a educação pública e, por
jovem e para a família.
outro lado, os que a acessam não conseguem,
Desse relato é possível apreender o via de regra, realizar esse percurso de inser-
quanto (apesar dos diversos projetos insti- ção nos contextos da vida no território.
tucionais apregoados pelo Estado brasileiro) Ao mesmo tempo, podemos dizer que
essa parcela da juventude ainda se encontra há certa ausência das políticas públicas no

Diálogo com a experiência


âmbito dos territórios e os movimentos po- A participação dos jovens que possuem
pulares realizam uma ação que, em grande envolvimento direto com a violência trou-
medida, deveria ser do Estado. Ouçamos a xe um olhar diferenciado, sobre a questão.
fala do cirandeiro: Na fala do cirandeiro se explicita a potência
desses jovens que hoje protagonizam ações
Os projetos até hoje não têm apoio insti-
que se voltam para o mundo da crimina-
tucional direto. Quem milita nesse campo,
lidade. Compondo esse cenário discursivo,
vai trabalhar em outro lugar para sobrevi-
estão, por um lado, a óptica da segurança
ver e bancar a estrutura mínima das ações:
pública trazida para as rodas das Cirandas
passagens, aluguel de espaço, entre outros.
pelas lideranças comunitárias mais tradicio-
Assim é que, apoiados por um movi- nais e, por outro, a visão de um grupo de jo-
86 mento de juventude, os primeiros movi- vens em estado de exclusão social. Vejamos:
mentos das Cirandas trouxeram para a roda
Naquele exercício das rodas, tive a certeza
esses jovens, em uma configuração primeira
de que não só no Lagamar, mas em qualquer
das trilhas das Cirandas no território. Veja-
periferia existe uma parcela de sujeitos que
mos os relatos:
discutem a sua realidade social de outra for-
Foi com base nessa experiência do movi- ma e externam também de forma diferente.
mento e na sua inserção com esses jovens Temos ainda as lideranças de associações,
que as Cirandas, trouxeram esses jovens que em sua maioria vivem de representação,
para serem escutados pelos adultos, lide- de atos externos também, reuniões... Temos
ranças da nossa comunidade e os bacanas as lideranças tidas como negativas, que os
(pessoas do poder público). Naquele en- próprios moradores e a sociedade preferem
contro, pela primeira vez nós tínhamos ignorar tanto que os cursos, projetos e até
mais adolescentes, crianças e jovens do a escola são formatados para os meninos
que adultos e, mais ainda, uma parcela da bonzinhos e não para os vida loka, para os
juventude que durante todo o processo de sujeitos e os jovens questionadores, que irão
construção e luta da comunidade sempre nos colocar à prova em sua vivência.
foi deixada de lado, a juventude vida loka.
A falta do trabalho, ainda uma vez,
A partir dessa participação eles reconfi-
foi a principal dificuldade (situação-limite)
guraram o conceito de violência até então
apontada pelos jovens: para eles, a ausên-
entendido pela comunidade e pelos baca-
cia de oportunidades de profissionalização,
nas apenas como o da violência do senso
o ‘falseado’ acesso à escola, como dizem, a
comum que é o do jovem que assalta e que
inexistência de áreas de lazer e a violência
a solução é o aumento da muralha policial
policial ensejam uma reação em cadeia e
que nos rodeia (grifo nosso).
ocasionam a organização dos jovens em ní-
veis correspondentes de violência.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


A briga de gangues também aparece usam a muralha da PM para nos lembrar
como imagem significativa, influenciada que não podemos subir para Aldeota. Que
por vivências que se iniciam com rivalida- o nosso lugar deve ser sempre o Lagamar
des e, por percorrerem as “margens”, como e a violência que aqui se produz tem que
eles dizem, resultam por tocar o “mundo do ficar aqui.
crime”, das “paradas”. Como vemos, os jovens destacam as
Nesse percurso, a arte oferta motes, re- múltiplas dimensões da violência sob a
vela olhares diversos, descortina trilhas, ma- óptica da exclusão social: o não-acesso às
peando e desvelando a violência vivida no políticas públicas de saúde, educação, traba-
território. Dessa forma, se apresenta como lho, moradia etc. Relacionando também as
potência de expressão e narrativa juvenil, questões do “sentimento”, tais como desa-
especialmente por meio do teatro e do rap. 87
mor dos adultos, ganância e exploração dos
A linguagem teatral trouxe imagens “barões”, junto às suas análises mais amplas,
e histórias revelando, de modo crescente- como a ausência de políticas de trabalho e
mente grave, cenas de assaltos, violência po- renda.
licial, doméstica e sexual. O rap, por sua vez, Os enfrentamentos propostos quase
mostrou sua potência como crônica social. sempre buscam as formas culturais de se
Despertando o interesse e o respeito dos expressar, compreender e se relacionar com
participantes, expõe em “musicalidade, rit- o mundo do bairro e a sociedade maior. As
mo e letra um conteúdo social verdadeiro; experiências com arte aparecem, sob o olhar
com uma imagética rica, aborda a comuni- do jovem, como grandes oportunidades: o
dade de modo criativo e situa o político em hip-hop, os grupos de teatro e dança, o es-
todos os espaços da vida da juventude da porte, entre outras.
periferia.” (DANTAS et al., 2007). A partir do diálogo das Cirandas da
Outras questões surgem e valores éticos Vida com o MNMMRCE, foi feito um
são trabalhados e contextualizados nas lutas processo de escuta com os atores que dele
do território – um deles é a dimensão do fazem parte. Uma das coisas fortes é que
preconceito que se mescla à exclusão social: o grafite e o rap são duas linguagens que
aglutinam esses jovens e que a oportunida-
As pessoas têm medo de vir ao Lagamar. de de acesso à profissionalização é uma das
Na visão da classe média, na periferia só estratégias de superação ao envolvimento
tem bandido e marginal. Na realidade so- com o crime, que atualmente é o único es-
mos sobreviventes de uma selva que cada paço onde eles têm oportunidade, porque
dia que passa, busca nos manter em nossas não se necessita ter 2º grau e nem ter boa
favelas como faziam no apartheid. A dife- aparência e sim ser malandro, articulado e
rença é que na África usavam cercas e aqui acima de tudo não ser viciado em crack.

Diálogo com a experiência


Como observa o cirandeiro Thyago, o propositivo, com aproveitamento de es-
grafite e o rap, bem como a profissionaliza- paços-tempos nas comunidades. Com re-
ção, aglutinam os jovens e funcionam como lação à dificuldade de acesso ao lazer, por
estratégias educativas para a superação do exemplo, foi articulada – com a Assessoria
crime e do que se inscreve como práticas de de Esporte e Lazer da SER II – a estrutu-
juventude vida loka. ração de um projeto em que as quadras das
Na realidade, a violência ou a paz são escolas públicas municipais do Grande La-
formulações que acontecem em um universo gamar serão cenário de práticas esportivas,
relacional, mas têm sua base. Assim como cuja forma e modo de agir serão definidos
se trabalham políticas afirmativas, se parece pelo conjunto dos adolescentes e jovens que
dever trabalhar-se com o aspecto propositi- protagonizaram o processo.
88 vo da cultura de paz, ganhando espaços no- Em relato e estudo grupal sobre violên-
vos de reflexão-ação e não apenas descons- cia e juventudes, pudemos pensar:
truindo práticas, parece oportuno trabalhar
[...] os enfrentamentos tentam
com a ideia de cultura de paz
fazer reviver a esfera sistêmica,
– assim, se admitem aspectos
estruturais, e não se deixa de
Contudo, como manter vivo alargando o dialogismo vivi-
lidar com uma dimensão rela- o princípio de comunidade,
do nos grupos intergeracionais,

cional (a que é constituída na em meio à hierarquização e


agora junto à esfera institucio-
nal. Contudo, como manter vivo
relação com o Outro). Há que fragmentação dos trabalhos
o princípio de comunidade, em
se reconceituar a palavra paz, dos serviços públicos? meio à hierarquização e frag-
muitas vezes deteriorada ao
mentação dos trabalhos dos ser-
longo da história, como algo
viços públicos? como deixar cla-
conveniente ao poder e aos que estão acu-
ro que não se trata de “fazer pelo estado”,
mulando as riquezas sociais.
mas fazer com que a esfera sistêmica possa
No atual estádio de globalização, além
dispor do poder analítico dos movimentos
dos fatores econômicos, é preciso dar visibi-
sociais, da riqueza de sua experiência e in-
lidade aos processos de exclusão, lutar con-
tervenções, de sua construção de saberes
tra eles e aperceber-se de que há aspectos
múltiplos e do conhecimento da cultura na
mais amplos da necessidade social de jus-
qual se inserem? (DANTAS et al., 2007).
tiça, como a afirmação da cultura de paz, a
afrodescendência, a questão de gênero, da Thiago continua refletindo e questio-
agroecologia, espiritualidade, das juventu- nando os entrelaçamentos da esfera sistê-
des, entre outros, que envolvem dimensões mica com a atuação das Cirandas:
subjetivas junto às da economia.
A juventude local (do Lagamar) pa- [...] Outra situação que nós percebemos foi
recia partir da idéia de se atuar de modo a relação que se estabelecia entre os sujeitos

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


institucionais e comunitários na constru- os orientem (aos jovens) e acima de tudo
ção das parcerias. Uma das estratégias que que os vejam não pela droga que fumam ou
estamos tentando consolidar coletivamen- pelo artigo que respondem perante a justiça
te é a criação de uma rede articulando os e sim por que os enxergamos como jovens
diversos projetos, ações e serviços públicos, humanos como eu fui e sou.
tanto comunitários quanto institucionais, A roda da Ciranda desafiava: como re-
para garantir o atendimento integrado aos alizar atos-limite que alcançassem a escola,
adolescentes e jovens em situação de dro- espaço privilegiado de promoção da vida,
gadição, em conflito com a lei... Bem como na instauração do diálogo entre estudantes
as suas famílias. Isso, porém, está sendo e comunidade?
muito difícil, pois as pessoas preferem fa-
[...] na SER II estamos trabalhando o foco
zer de conta que o problema não existe ou 89
dessa juventude vida loka na perspectiva
buscar resolvê-lo sob a ótica da segurança
de que eles participem da construção das
pública, melhor dizendo, policial. Os po-
políticas. O projeto “craques só de bola”
deres públicos preferem excluir o problema
foi organizado numa parceria das cirandas
do que enfrentá-lo chamando os jovens
com a CUFA e está trazendo para dentro
para construir juntos.
da escola os jovens que foram expulsos dela
A exploração sexual de meninos e me- – porque a grande maioria dos jovens que
ninas surge, nas rodas das Cirandas – pelo estão fora da escola foram expulsos por ela.
que pudemos ver nesta pesquisa –, intima-
O UNICEF, por exemplo, afirma tra-
mente vinculada à drogadição, especial-
tar a violência nas escolas sob a perspectiva
mente o crack. Em seu relato, o cirandeiro
da garantia de direitos e de qualidade da
Thyago problematiza a questão com a expe-
educação. Podemos perguntar: o que sig-
riência do MNMMRCE.
nifica ver as escolas, serviços de saúde, as-
Outro projeto é o Flor de Lis que é o
sistência social, conselhos tutelares e outros
acompanhamento e encaminhamento das
mecanismos e instituições como “agentes
meninas que estão sendo exploradas se-
protetores”, ou seja, que desempenham um
xualmente. A gente faz inicialmente uma
papel estratégico na defesa dos direitos das
abordagem noturna identificando quem são
crianças e adolescentes?
estas meninas e em que áreas da comuni-
Da narrativa do cirandeiro, é possível
dade vivem. Então, buscamos encaminhá-
apreender a imensa dificuldade de reconhe-
-las para as políticas e setores que podem
cimento, nas instituições públicas, da atuação
ajudar como CAPS, Conselho Tutelar...
da juventude. A visão de participação popu-
Esses projetos surgem das necessidades da
lar e do princípio da comunidade como mas-
comunidade, que não possuem nenhuma
sa de mobilização (instrumentalizadora e re-
instituição ou projeto que os acompanhe ou
dutora) ainda prepondera, como se pode ver:

Diálogo com a experiência


[...] Outra ação que estamos tentando re- como a dos Racionais e MC’s são muito
alizar que é a oficina de Acolhimento ao presentes no seu dia a dia. Essa identifi-
Adolescente e que foi construído com as cação não apenas com o estilo do rap en-
entidades que trabalham com esses jovens quanto musicalidade, mas com esses gru-
dos quais estamos falando, ainda não ini- pos, está no fato de que eles vivenciam a
ciou porque as unidades de saúde que fi- mesma realidade que os nossos jovens vi-
caram de enviar cada uma um profissional venciam: a violência policial, o preconceito,
nunca encontrou tempo para isso. Só nos as drogas, a falta de oportunidades e falam
reconhecem quando se trata de mobilizar disso em sua música. Assim eles se vêem na
a comunidade. Mas, não nos reconhecem música, principalmente quando estas falam
como porta voz de uma política pública, no da família. Daí a gente viu a riqueza do rap
90 caso as Cirandas. pela possibilidade de discutir a história, a
realidade das juventudes.
Assim, o cirandeiro-pesquisador for-
mula as suas perguntas de pesquisa que Pode-se ver como em sua narrativa o
mais aprofundam o que se alevanta como cirandeiro revela o potencial crítico da pro-
reflexão sobre o que temos vivido: blematização vivida por meio das Cirandas,
e como a vivência da arte amplia a visão so-
como construir ações concretas com a ju-
bre a realidade:
ventude do Grande Lagamar a partir da
interação entre as políticas existentes sobre Antes eles enxergavam as músicas como
juventudes? Como reconhecer (identificar) apologias às coisas que estavam fazendo: ao
a ação de lideranças juvenis envolvidas com crime, às drogas. Quando passamos a dis-
a criminalidade, potencializando a cons- cutir com eles as letras e a própria forma de
trução de projetos de vida cidadã? Como viver desses grupos (Racionais, MC’s) que
viabilizar a construção de políticas de pro- também estão na correria para mudar as
moção da vida com jovens do Lagamar, a suas comunidades, eles passaram a refletir
partir das linguagens presentes no cotidia- sobre a sua própria realidade e aí começa-
no juvenil? ram a se aproximar da realidade do hip hop,
que é um movimento que contribui para a
As inquietações do cirandeiro são apro-
organização dessa parcela da juventude a
fundadas na Ciranda de Aprendizagem e
partir de quatro elementos: o rap, o grafite, o
Pesquisa, onde a problematização iniciada
break e o DJ, muito embora os três primei-
no território delineia possibilidades de ela-
ros estejam mais presentes na nossa realida-
boração de atos-limites que trazem a arte
de, porque o quarto já exige mais recursos.
como dimensão nucleadora:
Dessa fala podemos apreender como os
Como convivemos cotidianamente com
jovens partem da dimensão da arte presente
essa rapaziada, percebemos que as músicas

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Como reconhecer (identificar) a ação
de lideranças juvenis envolvidas com

foto: Fora do Eixo


a criminalidade, potencializando a
construção de projetos de vida cidadã?
Como viabilizar a construção de políticas
de promoção da vida com jovens do
Lagamar, a partir das linguagens presentes
no cotidiano juvenil?

no cotidiano e, com base nela, buscam am- coleções de bens materiais e simbólicos. 91
pliar visões, construir novos sentidos, além A relação de propriedade com os territó-
de apontar possibilidades de organização. rios relativiza-se em práticas recentes, que
Nesse percurso, o grafite representa um parecem expressar a desarticulação entre o
marco e o cirandeiro nos revela o porquê: percebido nas cidades e na cultura política.
Na fala do cirandeiro Thyago, é pos-
quanto ao grafitti eles se identificam ini-
sível apreender esses significados para as
cialmente porque, em sua maioria, eram
ações de pixação. Segundo ele, o grafite re-
pixadores. Pixar pra eles significava deixar
presenta um momento fundamental para a
sua marca nos espaços públicos; dizer algo
juventude da periferia; como chega para ela
que estava á margem dos outros lugares de
vinculado ao movimento hip hop, representa
dizer e demarcar territórios.
a possibilidade de expressar criticamente a
Canclini (1997), fala do grafite como realidade.
“uma escritura territorial da cidade, desti- Na pixação que se fazia na cidade a gen-
nada a afirmar a presença e até a posse sobre te queria marcar território entre as gangues,
um bairro”. Segundo Canclini, as marcas do entre as facções. Era um movimento de nós
grafite expressam as lutas pelo controle do pra nós. Não tinha esse cunho marcadamen-
espaço, as referências estéticas, políticas, ou te político. Já o grafite é um movimento dos
mesmo sexuais mediante as marcas próprias jovens para a sociedade. Enquanto os traços
e modificações dos grafites de outros, ma- da pixação só são entendidos entre os pa-
nifestando, assim, um estilo, um modo de res, sejam eles aliados ou rivais, no grafite as
viver e de pensar, que se contrapõe aos cir- mensagens são claras. O código não é mais
cuitos publicitários comerciais, políticos ou restrito só a quem é grafiteiro e representa a
dos mass media. possibilidade desses jovens se comunicarem
Ainda segundo o autor, o grafite acen- com a sociedade e expressarem suas leituras
tua o território, e parece desestruturar as críticas da realidade.

Diálogo com a experiência


Thiago, por sua vez, observa como a que passam os adolescentes em situação de
releitura dos signos do grafite (a “proble- conflito com a lei.
matização” do que foi exposto como grafite)
Mais uma vez, tendo como ponto de
realiza uma espécie de aproximação entre os
partida a experiência do MNMMRCE, os
que atuam junto às juventudes e, também,
atos-limite consistiram de oficinas de gra-
ensejam que estes jovens sejam escutados
fite e aerografia (um aprofundamento do
de outra forma. O próprio estranhamento
grafite como técnica). Thyago explicita as
do grafite não utilizar signos verbais fun-
razões das escolhas feitas e mostra as inter-
ciona de modo a dizer o que a fala escon-
faces e parcerias constituídas:
deria? E as paredes seriam o Outro a quem
interessa dizer algo: A partir daí foram se estruturando ofici-
92 nas de grafite e uma de aerografia, como
Percebemos como essa linguagem podia
uma estratégia para organizar esses jovens
nos aproximar desses jovens e ao mesmo
e, partindo deste processo, problematizar
tempo ajudá-los a refletir com eles as realidades viven-
sobre a realidade, trazendo ciadas. A escolha de se ter uma
outra forma de expressão O próprio estranhamento oficina de aerografia foi por
que não a linguagem fa- do grafite não utilizar signos conta da questão do profissio-
lada. Sabemos que muitas verbais funciona de modo a nal. No Lagamar, como tem
vezes não há espaço na so-
ciedade para ouvir as falas,
dizer o que a fala esconderia? rivalidades, dividimos a oficina
em dois lados. Em um dos la-
narrativas dos jovens, en- E as paredes seriam o Outro dos, nós trazíamos a técnica da
quanto que o grafite é uma a quem interessa dizer algo: aerografia, que é na realidade a
linguagem que não precisa profissionalização do grafite, na
de autorizações ou platéias perspectiva de montar um ate-
e sim de apenas uma parede onde as pes- lier onde as camisas produzidas na oficina
soas ao passarem olham e refletem sobre as seriam colocadas à venda para comercia-
mensagens deixadas ali pelo o artista. Por lização na própria comunidade, trazendo
isso o movimento resolveu trabalhar com os assim as referências da economia solidária.
jovens em forma de oficina a linguagem do
grafite, onde buscamos problematizar com Aqui podemos apreender um aspecto
eles. “Medidas sócio-educativas: que nóia é que diferencia fundamentalmente as pro-
essa?” foi o nome que demos e que resultou postas que nascem na perspectiva comu-
na construção de uma cartilha em parceria nitária. Enquanto as iniciativas do Estado
com o Centro de Defesa da Criança e do
trazem em si a fragmentação, as redes co-
Adolescente - CEDECA-CE retratando,
munitárias edificam pontes entre as várias
potencialidades locais que se complemen-
a partir da vivência deles, os procedimentos
tam, se ajudam e se fortalecem.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


O relato do cirandeiro deixa clara a Da narrativa do cirandeiro, podemos
perspectiva da inclusão, no processo, tam- perceber as diferenças entre a propos-
bém daqueles que não estão prontos para ta pedagógica trazida pelas Cirandas e o
esse momento mais aprofundado da técnica MNMMRCE, e aquela outra propositura
do grafite, que se está a chamar de aerografia: pautada pelas políticas públicas para esses
jovens. Ouçamos o cirandeiro:
Já a oficina de grafite veio para trabalhar-
mos com os jovens que eram mais envol- Naquele momento decidimos procurar as
vidos com o consumo das drogas e muitos políticas que trabalham com esses jovens
possuíam um nível de escolaridade mais no território tais como a saúde, educa-
baixa e sentíamos a necessidade de se ter ção e a coordenadoria das medidas sócio-
uma linguagem não para a geração de -educativas da FUNCI, por entender que
93
renda e sim para problematizar com eles precisávamos de apoio institucional para
a realidade que eles vivenciavam naquele as questões que iriam surgir no processo.
momento e principalmente para expor nos Ao iniciarmos esse diálogo percebemos
muros das avenidas que perpassam e cru- que as falas sempre giravam em torno de
zam a comunidade. uma formação técnica separada da forma-
ção humana e que mesmo quando esta era
A proposta pedagógica se revela na
sugerida, sempre trazia na sua proposta um
fala do cirandeiro, em consonância com
processo de receber informações e não de
os princípios educativos defendidos por
se construir com eles.
Freire (2003, p. 203), como processo edu-
cativo que “aumente e amplifique o hori- O círculo de cultura brincante como
zonte de entendimento crítico das pesso- cena dramática da exploração sexual de
as”, que esteja dedicado à liberdade e não à crianças e adolescentes
doutrinação e que lhes pudesse fazer reto- Na Ciranda de Aprendizagem e Pes-
mar a esperança de conhecer e transformar quisa, o cirandeiro relata como buscaram a
a sua realidade. superação de situações-limite e como pro-
A fala do cirandeiro é reveladora dessa curaram articular experiências de várias na-
perspectiva: turezas. Dessa forma é que trazem para a
roda a cirandeira Lúcia, advinda das CEBs
a nossa preocupação é que a técnica não
e que há mais de dez anos ajudava a ar-
fosse trabalhada desvinculada das situações
quitetar o trabalho do espaço cultural Frei
presentes no cotidiano da vida. Que a for-
Tito de Alencar- ESCUTA, na região do
mação humana dialogasse constantemente
Pici – SER III. Em seu relato, a cirandeira
com a técnica e os contextos vivenciados
reconstitui o processo vivido naquela região,
pelos jovens.
cuja referência maior foi a experiência vivi-
da pelo ESCUTA.

Diálogo com a experiência


A região do Pici representa um con- Na perspectiva de constituir atos-
glomerado de bairros na III Região -limite, foram estruturados círculos de cul-
Administrativa de Fortaleza, que envolvem tura. Estes foram inspirados nos Círculos
o Planalto Pici, Antônio Bezerra, Quintino de Cultura Brincante, experiência que o
Cunha, Bela Vista, João XXIII, Rodolfo ESCUTA já desenvolvia há cinco anos e
Teófilo, Henrique Jorge, entre outros. Sur- que era protagonizado por jovens do grupo.
gem durante a Segunda Guerra Mundial, Sobre esses círculos de cultura, o cirandeiro
quando a área foi ocupada pelos ianques Paulo (que também era do ESCUTA e que
para a construção de uma base aérea, que veio posteriormente substituir a cirandeira
depois foi abandonada e passou a ser ocu- Lúcia na condução das Cirandas) relata:
pada com pequenos sítios.
Partindo de alguns problemas percebidos
94 Ao reportar-se à questão da violência
na comunidade, juntávamos o ESCUTA e
apontada como situação-limite, relata Lúcia:
a comunidade para que, em um primeiro
A partir das oficinas temáticas foram pensa- momento, as pessoas falassem livremente
dos atos limite e o Escuta, enquanto grupo sobre o tema em questão e as relações com
protagonista desses atos, envolveu-se com a realidade vivenciada pelas pessoas que ali
o Fórum de Enfrentamento à Exploração estavam. Com base nos relatos o grupo de
Sexual de Crianças e Adolescentes. Só que atores do ESCUTA, que realizava o Cír-
do Fórum não foi tirada nenhuma proposta culo de Cultura Brincante5, preparava uma
concreta e aí nos perguntávamos: Para que o esquete teatral, agora incluindo esses rela-
Fórum? Que ações concretas poderiam mu- tos e falas das pessoas e passavam a circular
dar a violência com crianças e adolescentes? nas escolas e nas ruas da comunidade, em
Há na comunidade do Pici o Gargalo da uma ação que chamávamos de rodas de rua.
Garganta: um gueto de exploração sexual, Ali se problematizava a questão e se parava
droga e roubo. Ali se falam das Pedreiras2, o espetáculo para ouvir da platéia sua opi-
Pedritas3 e Pedrinas4, meninas de 12 a 14 nião sobre como a questão se apresentava
anos que preparam fumo, pedra, vendem e na comunidade e também suas sugestões
são exploradas sexualmente. Chegaram nas para o enfrentamento do problema. O
Pedreiras umas doze famílias com caixas e grupo sistematizava as questões surgidas a
tábuas e ali virou boca de fumo, foco que partir das rodas de rua e de acordo com as
movimenta a ação do tráfico. Começamos a propostas apontadas como caminhos para
nos articular, organizar encontros para ver o enfrentar o problema, convidava pessoas ou
que poderíamos fazer. setores que deveriam se responsabilizar por
2
Pedreiras é um lugar onde vivem famílias que moravam esses enfrentamentos.
embaixo do viaduto do bairro Antônio Bezerra.
3
Meninas que vendem crack.
4
Meninas que usam crack. 5
Círculo de cultura brincante.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Retomando a fala da cirandeira Lúcia, à experiência do MNMMRCE para a am-
reconstituímos os círculos de cultura, agora pliação da perspectiva dos jovens envolvidos
problematizando a violência, como situação nas oficinas de grafite e aerografia.
que necessitava ser enfrentada no contexto Outro aspecto fundamental da pro-
do território pela ação protagonista de seus dução dessa sinfonia diz respeito à forma
atores locais e das redes sociais. como foram definidos os facilitadores do
Na Ciranda de Aprendizagem e processo. Os cirandeiros buscaram a poten-
Pesquisa, a cirandeira detalha as singulari- cialização de atores locais, mais especifica-
dades do processo de problematização vivi- mente aqueles que já tinham alguma atua-
do e que articulou o ESCUTA à reflexão- ção junto a esses jovens.
-ação em saúde no Pici. Observemos como Uma das dificuldades que precisáva-
a unidade de saúde era vista como distante mos enfrentar era a escolha dos facilitado- 95
(e lugar de morte) pela população. Vemos res. Assim, a escolha partiu da história de
aqui como a voz da população era silencia- vida que cada um trazia e que era a mesma
da no espaço da Unidade de Saúde e como das gangues, da violência policial, da ausên-
a perspectiva popular passa a intervir nessa cia de oportunidades... E de como eles su-
relação: peraram esse universo que conspirava para
que eles hoje estivessem em estatísticas de
Inicialmente tivemos esses grupos como
jovem mortos pela violência ou hóspede do
informantes. Depois fomos a campo ver
sistema penitenciário.
onde estão os sinais de vida e os sinais de
As parcerias para a superação dos par-
morte, como as chamas do palito de fósfo-
cos recursos financeiros de que as Cirandas
ro acesa e apagada, que era uma dinâmica
dispunham (apenas horas aula para os fa-
que usávamos nas CEB’s. Nesse processo, a
cilitadores e o material para a parte técnica
escola foi apontada ao mesmo tempo como
da oficina) foram estabelecidas de forma
um espaço de vida e de morte. O Centro
diferenciada em cada território, mas com
de Cidadania César Calls com escola,
o protagonismo dos próprios facilitadores
Centro de Referência de Assistência Social
com base em sua inserção no território.
- CRAS e unidade de saúde também foi
O relato do cirandeiro sobre o proces-
apontado como espaço de morte. As crian-
so realça alguns questionamentos iniciais
ças e adolescentes foram partícipes desse
sobre a omissão do Estado na constituição
processo e as últimas fizeram o mapa com
das propostas e de como o princípio de co-
o próprio grupo dos guetos.
munidade termina por suprir, à sua forma,
A experiência do ESCUTA, mediada as lacunas deixadas pela esfera institucional.
pela arte, como estamos a ver (os Círculos A questão da infra-estrutura no tocante
de Cultura Brincantes tinham o teatro como à alimentação não conseguimos construir; eu
linguagem fundamental), portanto, soma-se acredito que não conseguimos sensibilizar

Diálogo com a experiência


as outras políticas para a importância des- propiciaria aos cirandeiros ampliar seu co-
te processo e que o envolvimento não era nhecimento acerca do universo dos jovens,
apenas ceder alguns lanches e sim o envol- criando condições de interagir no processo.
vimento direto das pessoas da gestão no pro- Sigamos com o cirandeiro Paulo em seu de-
cesso, e como pra gente do Movimento não talhamento do processo metodológico:
tem tempo ruim, então nós mesmos fomos
Com os jovens partimos da apresenta-
bancando a estrutura do lanche.
ção do documentário, Falcão Meninos do
O processo envolveu cerca de setenta
Tráfico, seguido da problematização do
jovens dos quatro territórios e foi acompa-
que aquilo tinha a ver com a sua realida-
nhado ao mesmo tempo pelos cirandeiros
de. Um momento marcante dos círculos
Thyago e Paulo. Este último relata no en-
foi quando pedimos que mapeassem os si-
96 contro temático da Ciranda de Aprendiza-
nais de vida e de morte no território e eles
gem e Pesquisa:
fizeram isso a partir de desenhos. Depois
Nas comunidades do Pio XII e Alto da colocamos os desenhos no mapa. Alguns
Balança fizemos caminhadas pelo terri- construíram dobraduras que aprenderam
tório. Andar pelas ruas, ouvir o linguajar, na FEBEM. Com base nos desenhos e nas
os sons de músicas que saem das casas, os falas dos meninos e meninas, na verdade,
pontos chaves do território onde se dá o adolescente e jovens, percebemos que a pa-
tráfico, onde está o forró, os conflitos entre lavra geradora para o grupo era “vida loka”.
os grupos, sentar nas calçadas com alguns Alguns até a tinham tatuado no corpo. En-
dos meninos. Conhecer os micro-territó- tão reapresentamos os desenhos e as falas
rios do Lagamar e suas especificidades, as deles em tarjetas e começamos a produzir
barreiras. Entender como funciona o dia a com eles um desenho único que simboli-
dia desse território, seus rituais, seus perso- zasse o que era para eles a vida loka. Os
nagens para poder dialogar com eles. moradores e a igreja local ofertaram muros
para que expusessem esse desenho como
À sua maneira, esses jovens cirandeiros
painel de grafite.
parecem realizar um momento importante
trabalhado por Freire nos círculos de cultura Este relato desvela a forma singular
que ele denominava de investigação do uni- como o círculo de cultura se conforma na
verso vocabular, onde se buscava identificar experiência e os universos que descortina
palavras de uso corrente na vida dos grupos sobre a realidade vivida desses jovens. Na
ou do território, que se constitui um mo- verdade, a expressão geradora vida loka re-
mento fundamental para o estudo da reali- vela um tema gerador geral que para Freire
dade. Essa aproximação com a linguagem, deveria promover a integração do conhe-
com as singularidades nas formas de falar cimento e a transformação social, possibi-
dos jovens e sua comunidade, de sua família, litando a ampliação do conhecimento e a

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


compreensão dos jovens sobre sua realida- por uma opção e sim por ser o único espaço
de, na perspectiva de que possam intervir que lhe oferta ter visibilidade, respeito e a
criticamente sobre ela. Assim, compreen- grana para viver.
der o que para aqueles jovens significa vida
A problematização da forma como foi
loka, como a vivem, como se expressam, que
arquitetada com as linguagens da arte pa-
sentidos dão a ela, parecia fundamental para
recia produzir uma escrita singular mar-
problematizar a violência como situação-li-
cada por imagens refletindo o cotidiano e
mite em cujo processo esses jovens ocupa-
que elaboram novos símbolos e sentidos na
vam um lugar de centralidade.
constituição grupal. Vejamos como o ciran-
Ao tematizar a vida loka, os cirandeiros
deiro Thyago segue seu relato do processo.
também constituem uma forma particular
O mapeamento dos espaços de vida e
de problematização que parte da realidade 97
de morte nos revelou que alguns espaços
que cerca esses jovens em situação de con-
que para quem é de fora é morte como o
flito com a lei, buscando com eles a expli-
caso do Forró para eles é a única alternativa
cação para as situações-limite que estão a
de acesso ao lazer e algum tipo de cultura
vivenciar e os possíveis atos-limites para
mesmo que não seja o conceito de cultura
transformar aquela realidade, pela ação des-
que temos. Revelou ainda que a escola para
ses jovens como sujeitos práxicos no dizer
eles é um espaço de morte tanto por conta
de Freire que, ao se transformarem na ação
da violência que ocorre dentro delas quan-
de problematizar, passam a detectar novos
to por conta da violência que elas praticam
problemas na sua realidade e assim suces-
com ele.
sivamente sempre partindo da vivência, de
A narrativa do cirandeiro desvela mais
experiências significativas.
uma vez as contradições dos espaços públi-
O cirandeiro Thyago relata como se
cos que deveriam contribuir com a inclusão
constituiu esse processo:
desses jovens para que pudessem preparar
A partir dessa problematização trabalha- sua inclusão na sociedade e que fortalecem a
mos com os jovens o que faltou em suas exclusão. Poder ler a realidade com base no
vidas que os levaram a ser “vida loka” e olhar desses jovens, parecia aos cirandeiros
ao mesmo tempo apontavam a criação de uma oportunidade ímpar de pensar também
espaços de lazer, oportunidades de profis- a humanização; de rever os preconceitos que
sionalização e de emprego como possibi- a sociedade nos ajuda a engendrar. E Thyago
lidades para que, aqueles que estão na vida prossegue, revelando aspectos importantes
loka, saíssem superando a tentação de so- que a problematização trouxe à tona:
breviver com o dinheiro fácil que vem do
Dessas vivências questões importantes
tráfico. O que me marcou foi a consciência
surgiam: a família além da mãe muitas
que eles tem de que estão nessa vida não
vezes eram os parceiros, onde as relações

Diálogo com a experiência


de amizades são bastante fortes entre eles, A fala do cirandeiro nos remete a Arroyo
algo interessante é que todos vêm com esses (2004), em sua reflexão sobre educandos de
laços desde a infância pois todos se conhe- escolas públicas e o papel da mídia. Os di-
ciam, algo marcante é você ver esses jovens álogos do autor com esses adolescentes e
que são rotulados pela mídia e pela socieda- jovens parecem revelar certa rebeldia con-
de da Aldeota como bandidos e monstros tra as formas como são apresentados pelos
sem emoção e coração, ver um deles que é meios de comunicação, e acrescentamos,
cadeirante por conta de alguns tiros que le- também, profissionais da saúde e da educa-
vou na vida do crime, ser carregado por ou- ção. Parecem assim esperar que os vejamos
tros jovens que aparentemente não teriam de uma forma menos preconcebida.
nenhuma obrigação de carregá-lo. No dizer de Arroyo (2004, p. 306),

Nem idealizados, nem satanizados. Seres


Nem idealizados, nem satanizados. Seres humanos que humanos que esperam ser compreendidos
esperam ser compreendidos e acompanhados no duro e acompanhados no duro aprendizado do
jogo da vida. Demasiado transparentes, tal-
aprendizado do jogo da vida. Demasiado transparentes, vez não aprenderam, ainda, o jogo das más-
talvez não aprenderam, ainda, o jogo das máscaras. caras. Não aprenderam a ocultar-se. Serão
Não aprenderam a ocultar-se. Serão condenados por condenados por condutas que os adultos
condutas que os adultos aprenderam a ocultar? aprenderam a ocultar?

Os cirandeiros também trazem em seus


relatos os desafios enfrentados no trabalho
com esses jovens:

Algumas vezes os encontros deixaram de


acontecer por mortes de alguns dos me-
ninos, acenos do pessoal do movimento
de que o clima estava tenso, de que havia
conflito na área. Durante os encontros os
meninos entravam e saindo. Sabíamos que
nessas saídas havia o consumo de drogas,
mas não estávamos ali para trabalhar de
forma repressiva. Os horários era outro
problema, assim como a fome. Muitos che-
gavam mareados da noite virada, no forró,
foto: Fora do Eixo

no barraco de uns e outros, virando bru-


xo, lombrado. Mantê-los até o fim exigia
atenção constante. Flexibilidade no que tí- dos desafios cotidianos ao incorporar a di-
nhamos programado. Falar pouco, trazer a mensão do cuidado na perspectiva da in-
música e não fazer muito movimento físico. tegralidade. Do cuidado que parte de um
Tínhamos que compreender até o silêncio. olhar respeitoso sobre as marcas que nos
revelam silenciamentos, marcas de sua con-
A complexidade dos desafios a serem
dição social, no dizer de Arroyo (2004), de
enfrentados nesse lidar com os jovens exi-
seu gênero, raça, etnia, classe, condição so-
gia dos cirandeiros um esforço além do que
cial, da exclusão, da fome. E nos pergun-
as Cirandas conseguiram arquitetar em seu
távamos: o que essa experiência nos ensina
processo formativo com os cirandeiros. O
para a escuta às falas desses corpos?
compromisso como educadores popula-
Ao mesmo tempo, o cirandeiro apon-
res e militantes sociais, no entanto, parecia
ta os aprendizados advindos desse processo 99
mantê-los firmes nesse exercício e o coti-
que, no seu dizer, referendam a potência da
diano forjava-lhes as táticas para manter
arte nas linguagens do grafite e do rap como
vivo o processo na perspectiva de que se
narrativas e problematização do cotidiano
percebam, não como seres
dos jovens em situação de
carentes, sobreviventes na
selva do mundo globaliza- Falar pouco, trazer a música conflito com a lei.
A valorização e inclu-
do, mas, como nos lembra- e não fazer muito movimento
são das potencialidades da
va Arroyo (2004), sujeitos físico. Tínhamos que comunidade nos processos
em seus direitos humanos. compreender até o silêncio. de organização e formação
Uma das questões que
da juventude vida loka; A
vimos seria importante foi
afirmação das linguagens
a de que eles precisavam receber algum tipo
do grafite e do rap como narrativas desses
de cuidado. Fizemos uma vivência de argila
jovens pois nelas eles se identificam e fazem
com o cirandeiro Edvan, onde eles passa-
parte do seu cotidiano; Apropriação da me-
ram pelo banho com argila, com a respira-
todologia dos círculos de cultura por parte
ção, com o sol e o mar. Percebemos que eles
do MNMMRCE com metodologia pro-
foram se permitindo serem tocados tanto
blematizadora da realidade, a ser utilizada
pelo facilitador quanto uns com os outros.
com esses jovens em nossas ações e projetos;
Outra coisa foi que eles depois comenta-
Para o cirandeiro algumas mudanças
ram como tiveram dificuldade de caminhar
são perceptíveis. Trabalhando com tamanha
e respirar e associaram a questão das drogas
complexidade e considerando os desafios ex-
e do fumo. Alguns até explicitaram que pre-
postos, alguns movimentos revelam potên-
cisavam reduzir a quantidade.
cias; luzes que se anunciam de que vale a pena
Dessa forma, mais uma vez, a experiên-
a lutar e investir na formação desses jovens.
cia popular aponta caminhos de superação

Diálogo com a experiência


O caminho de emancipação trilhado de profissionalização que se encaixem no
por alguns jovens que participaram das vi- universo deles.
vências das Cirandas da Vida, como aqui
O cirandeiro Thyago aponta uma con-
podemos citar o jovem R., morador do
tradição importante no que diz respeito à
Barroso II, que catava latinha na beira mar
arte. É que a oferta de vivências com arte
para sobreviver e hoje é instrutor de breack
pela esfera institucional substitui a possibi-
em uma escola particular para vinte me-
lidade de acesso às políticas de geração de
ninos e meninas, N. e A. ambas de quinze
renda e qualificação profissional. Parece
anos que estão produzindo camisas pinta-
nos dizer que há um certo descaso desta es-
das a própria mão e estão tentando buscar
fera em relação a esse público no que diz
um curso de aerografia para se aperfeiçoa-
respeito à profissionalização. Por que então
rem na técnica. Tem ainda o P. que além de
100 as ofertas de oficinas de arte? O que estaria
jovem, negro, morador de uma comunidade
a nos dizer nas entrelinhas?
pobre e violenta optou em organizar esses
Outro fato é que na Fortaleza Bela os
jovens e fazer revolução através do hip hop
discursos sobre a juventude é que ela é di-
possibilitando aos jovens dessa comunidade
versa, mais infelizmente na prática das po-
sonharem com um futuro melhor.
líticas públicas se cuida mais de uma juven-
Com as potências também se desvelam
tude e da nossa que vive nas periferias os
os desafios, as contradições de uma socieda-
“vida lokas” essa só é lembrada para justifi-
de desigual que também cerceia os sonhos
car os projetos e as captações de recursos. Aí
de ser mais. As oportunidades de ingressar
quando os jovens deixam de freqüentar os
no trabalho formal esbarram por um lado no
cursos vem aquele discurso: “Eles não que-
preconceito e por outro nas escassas ofertas
rem nada tai, demos o curso para eles cadê
de qualificação profissional destinadas a esse
que eles vêm? não tão interessados” quando
público. Ouçamos o que nos diz o cirandeiro:
na verdade o discurso era pra ser outro, “será
Percebemos que, ao mesmo tempo em que, que a nossa metodologia, mobilização não é
através do grafite, problematizamos com arcaica para esses jovens? Será que estamos
esses jovens a existência de outras possibi- falando a língua deles? Será que conhece-
lidades que não sejam o crime, o tráfico, a mos a realidade vivenciada por eles?”
pista ou o sinal como forma de conseguirem
ser vistos, vejo que estamos plantando com A narrativa contundente do cirandeiro
eles uma semente do sonho, embora mui- leva-nos pelos caminhos tortuosos da ex-
tas vezes a concretude desse sonho esbarre clusão social e da necessidade premente de
na ausência de estrutura. A visão deturpa- desenvolver diálogos com o princípio de
da que algumas políticas têm no tocante a comunidade representado por essa juven-
profissionalização como uma estratégia de tude que parece ser ocultada também nos
reinserção social desses jovens, é mascarada espaços da esfera institucional. O cirandei-
em um discurso que termina por trazer ofi- ro clarifica a idéia de que não se pode falar
cinas de arte e de esporte em vez de opções de uma juventude. São juventudes diversas

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


e várias são as identidades e as culturas.
Como então considerar essa diversidade
intercultural na constituição das políticas
de juventude? Como incluir esses olhares
e saberes marginalizados, valorizar a plu-
ralidade e buscar os pontos de contato,
como propõe Santos (2004), promovendo
o diálogo intercultural (Freire) de forma a
romper com a fragmentação?
Sigamos com as reflexões do cirandeiro
sobre os desafios que a sinfonia revela:
Na prática o que está acontecendo é que

foto: Fora do Eixo


sob o manto da vulnerabilidade social pro-
jetos como o PRONASCI ampliaram para
jovens que não se envolveram ainda com o
crime. Os que já estão envolvidos, vão ser
a minoria e vão estar nas oficinas de cul-
E nos perguntávamos: o que essa experiência nos ensina
tura, que terminam por referendar o que para a escuta às falas desses corpos?
os técnicos consideram importante cultu-
ralmente, mas por que não o graffiti, Rap,
DJ, Breack? Por que não começar com essas O mais importante aprendizado é que não
que falam de perto a esses jovens e depois existe fórmula mágica da paz e sim cami-
ampliar para as outras? As Cirandas foram nhos a serem percorridos e que a violên-
convidadas a entrar na roda, mas não con- cia não pode ser dialogada somente com
seguiram fazer esses jovens protagonistas estudiosos, bacanas, doutores e homens e
de histórias de inclusão, não tiveram vez mulheres que se julgam sábios de algo que
como educadores, porque o seu currículo nunca vivenciaram. A paz que buscamos na
não conta paras as universidades que vão periferia não é da camisa branca e da pas-
assumir os processos. seata mais sim a do respeito aos princípios
constitucionais e dos direitos humanos, do
As reflexões do cirandeiro referendam direito à moradia digna, alimentação sau-
o que já anunciamos sobre os descompassos dável, educação de qualidade que nos pre-
da esfera institucional em relação ao mundo pare para enfrentar as dificuldades da vida
dos jovens em conflito com a lei. Ao mes- e nos dê condição de resolver os conflitos
mo tempo, ao trazer os acordes finais dessa a partir do dialogo, de uma segurança pú-
sinfonia, o cirandeiro Thyago ilustra como blica com menos armas e com mais dialogo
a juventude em situação em conflito com a e acima de tudo da igualdade de oportuni-
lei narra com a arte do rap o seu cotidiano e dades para todos nós, não só para os filhos
expõe os conflitos dessa relação: de bacanas mais para todos os seres huma-
nos que somos. “A nossa liberdade não será

Diálogo com a experiência


dada pelos opressores ela  está sendo con- ______. Pedagogia da autonomia: saberes
quistado pelos oprimidos dia-a-dia.” necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e
Terra, 2000. (Coleção Leitura).
Assim, o cirandeiro parece querer ex-
______. Extensão em comunicação? 10. ed. Rio
por e conceder visão pública a uma dimen-
de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
são silenciada, ocultada, da história desses
jovens que não chega aos profissionais de FUGANTI, L. Biopolítica e produção de saúde.
saúde, aos técnicos das diversas políticas Interface – Comunic., Saúde, Educ., v. 13, p.
sociais. Lembrar-nos de que, em meio às 667-679, 2009. Supl. 1.
vulnerabilidades, é possível enxergar o que INSTITUTO LATINO AMERICANO DAS
Fuganti (2008) denomina “zonas de indeter- NAÇÕES UNIDAS PARA A PREVENÇÃO
minação”, espaços onde é possível despertar DO DELITO E TRATAMENTO DO
102 paixões alegres capazes de ativar o conatus, DELINQUENTE - ILANUD. Relatório
no dizer de Spinoza, e Final do Projeto Dentrod e
promover as potências Defessa Técnico-Juríduca de
desses jovens. A arte em O mais importante aprendizado é que Adolescentes em Conflito
suas linguagens signi- não existe fórmula mágica da paz e com a Lei Ilanud. 2003.
ficativas a esses jovens
seria esse espaço?
sim caminhos a serem percorridos LINHARES, Â. M.
e que a violência não pode ser B.; FERNANDEZ, G.
Recortes para um retrato
Referências
dialogada somente com estudiosos, do ser aprisionado – um

ARROYO, M. Imagens
bacanas, doutores e homens e estudo sobre educação

quebradas: trajetórias e mulheres que se julgam sábios de algo prisional. Fortaleza, 2007.
370 p. Mimeo.
tempos de alunos e mestres. que nunca vivenciaram. SANTOS, B. S. A
Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
universidade no século
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed.
XXI: para uma reforma democrática e
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
emancipatória da universidade. Educação,
CANCLINI, N. G. Culturas híbridas – Sociedade & Culturas, n. 23, p. 137-202, 2005.
estratégias para entrar e sair da modernidade. Disponível em: <http://www.fpce.up.pt/ciie/
Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa revistaesc/ESC23/23>. Acesso em: 2 out. 2013.
Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1997. p.
______. O futuro do Fórum Social Mundial:
283-350.
o trabalho da tradução. Compilação do
DANTAS,V. L. A. et al. Violência como situação Observatório Social de América Latina. [S.l.]:
limite nas rodas de Cirandas da Vida em OSAL, Sept./Dic. 2004. (En Publicación:
Fortaleza, Ceará. Divulgação em Saúde para Observatorio Social de América Latina, n. 15).
Debate, v. 39, p. 68-81, 2007.
FREIRE, P. Política e educação. 7. ed. São Paulo:
Cortez, 2003.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Dialogando com a experiência das Cirandas
da Vida em Fortaleza-CE: novas reflexões

Eu me sinto implicado na experiência das Cirandas da Vida


desde seu início em vários aspectos: como gestor, nos tempos em
que coordenava a área de Educação Popular no Ministério da Saú-
de, como animador, participante e militante das rodas de conversa
e farinhadas na ANEPS do Ceará. Bem como professor, pesquisa-
dor da academia, que foi convidado para a banca de defesa da tese
da Verinha, quando a experiência das cirandas virou “conversa de
doutor” e, principalmente, como pessoa, ser humano que afirma a
humanescência nas relações de respeito, carinho e aprendizagem.
Essas implicações, que em um plano infra-psíquico sempre re-
sultam em modificações nas nossas percepções, sensações, desejos José Ivo dos Santos Pedrosa
e afetos, em um plano mais relacional, sempre significam desafios Médico. Doutor em Saúde Co-
letiva. Professor da Universidade
a enfrentar. Federal do Piauí.
A pergunta problematizadora - “como poderíamos ler o dialogis-
mo e a arte na gestão em saúde, buscando a perspectiva popular?” nos leva
a pensar em alguns pressupostos fundamentais para que a experiên-
cia se tornasse viável e daí pudesse emergir tal questão.
O primeiro deles é pensar a gestão em saúde como resultado do
processo de aprofundamento da democracia participativa em nosso
país que possibilite a presença ativa e protagonista no espaço público
dos movimentos sociais populares como legítimos sujeitos portado-
res de projetos construídos coletivamente na ação comunicativa. De
modo que a relação entre governo e sociedade civil não ocorra como
relação de disputa, mas de complementaridade e consensos para pro-
jetos políticos emancipatórios.
O segundo é a afirmação do diálogo como força motriz dessa
relação, que guarda a possibilidade de expressar a perspectiva po-
pular com a força de um saber construído e legitimado pela vida,
com a leveza e a sabedoria da arte, consi- de ator institucional, e, do outro lado, os mo-
derada força constituinte de sujeitos que se vimentos, que pelo histórico de dominação
preparam para questionar criticamente os se vêem mais como portadores de necessida-
porquês do mundo e descobrir qual sua par- des e demandas do que como sujeitos propo-
ticipação. E isso é trabalhar com a educação sitivos, capazes de vocalizar e lutar por aquilo
popular freiriana, isto é: que aqui é chamado de perspectiva popular.
É diante da necessidade de romper com
[...] uma prática educativa fundada na
visão de mundo que naturaliza a opressão
abertura ao outro como objeto de reflexão
e institui a cultura do silêncio (FREIRE,
crítica, como experiência fundante daque-
1976) que as Cirandas da Vida
les e daquelas que se abrem ao mundo e aos
outros em busca de explicação e de respos- [...] mostram a intenção de se constituírem
104
tas (FREIRE, 1976). um espaço de interação e interlocução dos
diversos atores institucionais e comunitá-
Frente a esses pressupostos, um dos
rios na formulação de políticas sociais que
grandes desafios das Cirandas da Vida é
interferem e atuam na produção de saúde,
colocar-se como dispositivo promotor do
representa uma das estratégias visando a
diálogo entre a gestão e os movimentos po-
direcionar as políticas públicas munici-
pulares. Diálogo que tem por base a von-
pais para uma democracia participativa, na
tade de entrar na roda, de participar desse
perspectiva de estimular o protagonismo
espaço comunicativo, no qual os saberes e
popular (FREIRE, 1976).
os fazeres do outro são expressos e aceitos
em várias linguagens. Observamos na nossa De maneira geral, em sociedades de-
história que a vontade de participar da de- mocráticas, o ciclo da formulação à efeti-
terminação das coisas por parte da popula- vidade das políticas públicas compreende: a
ção foi alimentada pela luta pelo direito de construção da vontade coletiva em relação
participar, de ser cidadão. Vontade que foi à superação das situações-limite, isto é, o
muito mais desconhecida, reprimida e ex- processo de compreensão, aceitação e mo-
cluída que incentivada; e, no meio disso, foi bilização da sociedade; a institucionalização
também muitas vezes permitida e regulada, dessa vontade no plano jurídico legal; o de-
mascarando e minimizando os resultados e senvolvimento de organizações e arranjos
as conquistas, mesmo as parciais. organizacionais com capacidade de produ-
Dessa situação decorre, no imaginário zir as ações consensuadas e garantidas na
social instituído, uma falsa polaridade em lei; e, finalmente, a avaliação dessa política
que num lado se encontram os gestores que pela sociedade (EIBENSCHULTZ, 1991).
tradicionalmente não se reconhecem como E, nesse sentido, a gestão participativa,
participantes do diálogo, mas arautos do dis- na perspectiva de diminuir a separação entre
curso competente que lhes confere o papel sociedade civil e Estado, implica o aprofun-

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


damento de processos que ampliam a parti- seja, ao pensarmos no outro, imediatamente
cipação social nas políticas públicas e a cons- enquadramos esse outro naquilo que pensa-
tituição de espaços nos quais são construídas mos que ele seja capaz de fazer, de acordo
proposições coletivas, incluindo as demandas com o que nós selecionamos como sendo o
da sociedade e os arranjos institucionais ne- melhor a ser feito, segundo a nossa visão de
cessários para operacionalizar as respostas. mundo decorrentes e todos os significados
Esses arranjos exigem processos com- (BOURDIEU, 2005).
partilhados de formulação de políticas que Com a nossa formação técnica e cien-
minimizem a captura e a tradução dos de- tífica, que coloca o pensar como base da
sejos e necessidades da sociedade civil pelos existência humana (penso, logo existo!), é di-
recursos de poder técnicos e burocráticos fícil reconhecer outro saber que não decorra
apresentados pelo governo, além de dina- exclusivamente do pensamento racional e
mismo organizacional que reduza as dis- científico, mas da ação, da experiência.
tâncias hierárquicas e possibilite momentos O saber que autoriza esses meninos e
de construção da vontade coletiva. meninas a se constituírem sujeitos de sua
Ora, como jovens que vivem em confli- história e autônomos para reconstruí-la e
to com a lei em uma capital como Fortaleza recontá-la sob suas perspectivas é um saber
podem se constituir sujeitos e construir um que vem da vivência e militância nos movi-
saber que possibilite sua participação como mentos sociais. A práxis que vem das lutas
ator político portador de projetos de eman- de rua, da sobrevivência, do MNMNR e da
cipação? Como é possível o diálogo entre ANEPS é a fonte desse processo que Paulo
esses jovens que desafiam cotidianamente Freire chama “saber de experiência feito”, que
as normas e regras estabelecidas e a parti- supera o saber resultante de procedimentos
cipação institucionalizada em espaços, tem- metodicamente rigorosos.
pos, atores e argumentos específicos? foto: Fora do Eixo
Às vezes, perguntas como essas são for-
muladas por muitos de nós, em face de nos-
sa própria história, na qual temos vivencia-
do muito mais o pensar do que o fazer. Ou

Como é possível o diálogo entre esses jovens


que desafiam cotidianamente as normas
e regras estabelecidas e a participação
institucionalizada em espaços, tempos,
atores e argumentos específicos?

Diálogo com a experiência


A superação e não a ruptura se dá na me- (LAPASSADE, 1998) que possibilita a re-
dida em que a curiosidade ingênua, sem criação e a reconstituição desses jovens de
deixar de ser curiosidade, pelo contrário, vida loka em sujeitos que se identificam e
continuando a ser curiosidade, se criticiza dialogam nos espaços coletivos, produzin-
(FREIRE, 2004, p. 31). do pensamentos e ações que tensionam o
Esse saber se diferencia do que nor- instituído.
malmente se conhece como empírico, por- Esse saber feito de experiência é expres-
que essa prática é também pensamento so e comunicado por meio do rap, hip hop
e reflexão, ou seja, é práxis. E, na fala dos e do grafite. Expressões artísticas que, ao se
cirandeiros, é reconstruído todo o processo manifestarem, produzem elementos que ali-
no qual a descoberta da identidade com o mentam a potência existente nos sujeitos so-
106 lugar e o compromisso com a comunidade ciais e a transformam em força individual e
foram os elementos reveladores da potência coletiva, social e política.
imanente a esses jovens. Entretanto, é preciso tomar cuidado
Ao se descobrirem potentes, dinâmicos, com a tendência de instrumentalização da
críticos e criativos, os jovens do Lagamar arte e da educação no campo da saúde, que
realmente transformam o movimento das realiza uma verdadeira captura da essência
Cirandas em momentos de aprendizagem da arte e da educação e as utiliza como me-
e construção coletiva nos quais são ressig- ros instrumentos para aumentar a efetivida-
nificados, na perspectiva popular, o conceito de da mensagem que o transmissor deseja
de violência e de exclusão social, bem como passar. Na experiência relatada, “o grafite, o
são identificados espaços antes invisíveis nos rap, assim como a profissionalização, aglu-
territórios, evidenciando contradições entre tinam os jovens e funcionam como estraté-
movimentos e suas lideranças e discutidas gias educativas para a superação do crime e
novas perspectivas diante de novas temáticas do modo de vida loka, ou seja, as expressões
e, principalmente, diante de outro modo de artísticas por meio das quais os jovens se
viver, no qual o tempo, o lazer, a alegria foram identificam e se comunicam produzem re-
sendo significados de maneira muito dura. flexões sobre questões ainda não tematiza-
No encontro entre o modo de viver na das na agenda das políticas públicas, como
realidade de um território em “extrema vul- preconceito, discriminação, violência totali-
nerabilidade social” e o idealizado pelas ins- tária do Estado em determinados aspectos
tituições sociais sobre o “vir a ser” do outro, da vida social e sua ausência em outras.
é que as Cirandas da Vida, em sua relação A arte aqui não significa tão somente
institucionalizada com a gestão municipal, momentos lúdicos compartilhados, quan-
promovem o diálogo e a ação comunicativa do se “congela” o cotidiano e nos deixamos
entre dimensões distintas da mesma reali- enlevar pelo som de alguma música, na
dade, atuando como dispositivo pedagógico maioria das vezes relaxante, utilizada como

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


foto: Aicó Culturas

preâmbulo em vários encontros e eventos (...) é preciso tomar cuidado com a tendência de
dos quais participamos. Ao contrário, a arte instrumentalização da arte e da educação no campo da
como força que torna consciente a potência saúde, que realiza uma verdadeira captura da essência da
existente nesses sujeitos gerou perguntas
que, por sua vez, demandaram movimen-
arte e da educação e as utiliza como meros instrumentos
tos em busca de respostas que se tornaram para aumentar a efetividade da mensagem que o
evidentes na necessidade de parcerias, na transmissor deseja passar.
construção de uma intersetorialidade que
tem por base o território e como amálgama
do a compreensão, apreendida por meio da
as necessidades e os desejos desses jovens
escuta às significações próprias expressas
que as linguagens comumente utilizadas
pelos sujeitos; a interpretação, que inclui a
não conseguem expressar.
comunicação; e a multirreferencialidade ex-
Nesse intenso processo de aprendiza-
plicativa voltada para
gem, encontra-se a ousadia de instituir ou-
tro espaço de produção de conhecimentos (...) objetos que ainda se quer interrogar no
e saberes, articulado com a produção das sentido de aumentar sua inteligibilidade, qua-
ações, afirmando a indissociabilidade entre lificada a partir de vários pontos de vista [...]
o pensar e o fazer, as Cirandas de Aprendi- diferentes linguagens das disciplinas que se
zagem e Pesquisa. Espaço possibilitado pela trata de operacionalizar, de distinguir e com-
multirreferencialidade com que os autores binar entre elas (ARDOINO, 1998, p. 30).
trabalham saúde, educação e arte, envolven-

Diálogo com a experiência


Nesse lugar, ocorre a autorização dos Referências
sujeitos como autores de sua história e de
suas narrativas, de forma que os cirandeiros
ARDOINO, J. Abordagem multirreferencial
e os jovens não são somente os conhecidos
(plural) das situações educativas e
sujeitos objetivados nas pesquisas acadê-
formativas. In: BARBOSA, J. A. (Org.).
micas tradicionais. São sujeitos que falam,
Multirreferencialidade nas ciências e na
exigem autoria de suas falas e interlocução
educação. São Carlos: Editora da UFSCar,
quando elaboram proposições explicativas
1998. p. 24-41.
sobre sua realidade.
BOURDIEU P. Método científico e hierarquia
Nas Cirandas de Aprendizagem e Pes-
social dos objetos. In: NOGUEIRA, M. A.;
quisa, esses sujeitos autores produzem um
CATANI, A. (Org.). Escritos de educação.
108 conhecimento que difere do conhecimento
7. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 35-64.
objetivo acadêmico e racional e se caracte-
riza como objetividade sem parênteses, que, EIBENSCHULTZ, C. Poder, salud y
conforme Maturama (2005, p. 48), é um ca- democracia. In: TALLER de medicina social.
minho explicativo em que “não há verdade Caracas: Universidad Central de Venezuela,
absoluta nem verdade relativa, mas muitas Ediciones del Rectorado, 1991. p. 121-135, v. 2.
verdades diferentes em muitos domínios FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e
distintos. Nesse caminho explicativo exis- outros escritos. São Paulo: Paz e Terra, 1976.
tem muitos domínios distintos de realidade, ______. Pedagogia da autonomia: saberes
como distintos domínios explicativos da ex- necessários à prática educativa. São Paulo: Paz
periência, fundados em distintas coerências e Terra, 1996.
operacionais e, como tais, são todos legíti- LAPASSADE, G. Da multirreferencialidade
mos em sua origem, ainda que não sejam como bricolagem. In: BARBOSA, J. A. (Org.).
iguais em seu conteúdo e que não sejam Multirreferencialidade nas ciências e na
igualmente desejáveis para serem vividos”. educação. São Carlos: Editora UFSCar, 1998.
Finalmente, ao dialogar com a experi- p. 122-148.
ência das Cirandas da Vida, ficam as lições
MATURAMA, H. Emoções e linguagem
sobre a existência de possibilidades de su-
na educação e na política. Belo Horizonte:
peração das situações-limites e a construção
Editora da UFMG, 2005
de inéditos viáveis como forma de enfren-
tamento dos determinantes das condições
de vida dessa população. Entretanto, ficam
também interrogações a respeito de que li-
ções a gestão em saúde tem apreendido nes-
sa interlocução.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Construindo zonas de indeterminação
Vera,
faz um tempo que a gente não se encontra. Teu texto trouxe
uma saudade de conversar contigo sobre arte e saúde, sobre boniteza.
E mais: trouxe uma vontade de conversar não apenas contigo, mas
também com o cirandeiro Thyago e com a galera vida loka. Não
satisfeito, ainda fiquei imaginando um diálogo em que esta galera
pudesse trocar experiências com alguns jovens que conheci no meu
trabalho como educador e redutor de danos: jovens que de muitas
maneiras são semelhantes aos descritos pelo cirandeiro no seu texto.
Enfim: neste espírito de prosa barulhenta, de muitas vozes, gostaria
que minha voz fosse apenas mais uma, compartilhando ideias, algu-
Dênis Roberto da Silva Petuco
mas lembranças e, principalmente, suspeitas. Nenhuma certeza.
Redutor de danos e educador popu-
A primeira coisa que me interpelou no seu texto foi a discussão lar; Cientista Social com mestrado em
sobre o RAP. Fez-me pensar, antes mesmo do RAP, nesta necessária Educação - Militante antimanicomial
com foco na defesa de direitos de pes-
abertura no estabelecimento das linguagens que constituem nossos soas que usam álcool e outras drogas.
encontros com os outros, em especial com os educandos. Aliás, Vera,
o final do teu texto traz as reflexões do Thyago sobre o desconten-
tamento dos jovens vida loka com o repertório de oficinas que eram
oferecidas a eles. Que sintoma! E é o próprio Thyago quem aponta
uma saída possível para este problema, quando articula as oficinas à
questão da profissionalização: por que não valorizar o potencial des-
tes jovens, seus saberes e práticas, oferecendo-lhes qualificação pro-
fissional justamente em suas áreas de atuação? Por que não oferecer
a estes jovens conhecimentos sobre técnicas de oficinagem, sobre
Educação Popular? Por que não lhes oferecer conhecimentos im-
portantes a uma atuação como educadores sociais, como oficineiros,
e, ao mesmo tempo, ampliar seus conhecimentos na arte específica
à qual estão ligados (RAP, grafite, dança...)? Por que não constituir
espaços – e a Educação Popular é fantástica para isto! – em que eles
possam ampliar sua compreensão sobre fe- no atendimento a usuários de álcool e ou-
nômenos sociais, sobre política, arte, vida... tras drogas no qual eu trabalho, na cidade
Lembro de uma situação vivida no de Cabedelo, Paraíba. Desde novembro de
Instituto Leonardo Murialdo, instituição 2009, eu tenho coordenado oficinas de mú-
religiosa que realiza trabalhos de educação sica no serviço, que por algum tempo não
social no Morro da Cruz, em Porto Alegre, tiveram muito sucesso. No início, tentei tra-
lugar onde se deu o forte de minha formação zer para as rodas de música algumas can-
como educador popular: eu estava na sala ções que pudessem operar como dispositi-
dos educadores, trabalhando na escrita de vos disparadores de reflexões, fosse por seus
um projeto, e tinha como companhia o CD conteúdos em termos de letras, fosse pelo
“Livro”, de Caetano Veloso. Em um dado tipo de memória afetiva a que tais canções
110 momento, um dos jovens que frequentavam pudessem estar ligadas. Mas, de um modo
a instituição postou-se à porta e ali ficou, geral, a coisa não funcionava, e muito rara-
silencioso. Olhei para o ra- mente tínhamos algo além
paz, perguntei-lhe se que- Por que não constituir de uma simples rodinha na
ria algo e ele apontou para espaços – e a Educação qual se sucediam pedidos
o aparelho de som com o de canções. Por vezes, nem
queixo, dizendo com voz
Popular é fantástica para mesmo isto.
baixa e grave: “hip hop”. isto! – em que eles possam A coisa seguiu neste
Convidei o rapaz para ampliar sua compreensão compasso morno, até que
dentro da sala. No apa- sobre fenômenos sociais, sobre dois eventos mudaram os
relho de som, Caetano política, arte, vida ? caminhos da oficina. O
Veloso cantava os versos primeiro foi a chegada do
de “Navio Negreiro”, de Isnaldo, contratado para
Castro Alves, a partir de uma base rítmica ser educador físico e instrutor de capoeira
e melódica própria do RAP. Enquanto meu no CAPSad, e que trouxe seu berimbau para
jovem camarada tecia comentários sobre o as rodas de música, ampliando a qualidade
maravilhoso arranjo de percussão constru- musical dos nossos encontros, abrindo no-
ído pelo mestre Carlinhos Brown, eu fala- vas possibilidades em termos de experimen-
va um pouco sobre Castro Alves e sua luta tação, de invenção, de alegria. As ladainhas
contra o racismo, tendo a arte como arma. de capoeira passaram a fazer parte do nosso
Não sei se outra linguagem que não o cotidiano e as rodas de música, antes des-
RAP poderia proporcionar uma conversa potencializadas, começaram a atrair mais
deste tipo! pessoas, inclusive de outros serviços da rede.
Há outra história, bem mais recente, O segundo evento ocorreu no dia em
vivida há poucos meses no CAPSad Prima- que um dos usuários pediu que tocássemos
vera, serviço de Saúde Mental especializado alguma canção de Bezerra da Silva. Num

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


primeiro momento, fiquei em dúvida: será Pernambuco, cujo objetivo era promover a
que é correto tocar este tipo de música, em reflexão sobre os atravessamentos entre uso
um serviço que congrega pessoas que têm problemático de álcool e outras drogas, e as
problemas com o uso de drogas? Talvez formas hegemônicas de exercício da mas-
seja o mesmo tipo de dúvida que interpele culinidade na sociedade brasileira contem-
um educador que trabalha com jovens em porânea.
conflito com a lei, quando pedem para ou- Tais reflexões foram de extrema im-
vir ou cantar canções dos Racionais MC’s. portância para que conseguíssemos ampliar,
Não seria uma espécie de “reforço positi- não apenas nosso instrumental interpreta-
vo” à violência, à criminalidade, ao uso de tivo, mas principalmente para que pudésse-
drogas? No entanto, quando se supera o mos qualificar nossa intervenção cotidiana
medo e o preconceito iniciais, o universo do no serviço. Passamos a perceber o quanto o 111
hip hop – bem como seu território-irmão, machismo implica ampliação da vulnerabili-
constituído por sambas malditos, marginais dade, não apenas para as mulheres, mas tam-
– apresenta-se como território de reflexão, bém para os homens. Os modos hegemôni-
de emergência de subjetividades indignadas cos de constituição do masculino implicam
com a desigualdade social, com a carência glamorização da violência e dos excessos
de espaços de lazer e cultura, com uma edu- com as drogas (especialmente o álcool). É
cação que não se expressa em práticas de muito difícil para um homem parar de be-
liberdade, com a violência policial. ber, visto que para o exercício de tal opção, é
Em que pese a referência à sua expres- preciso não apenas superar os momentos ini-
são policial, a violência não está presente ciais sem álcool (o que pode ser bastante pe-
apenas nas relações das forças de segurança rigoso, justificando em alguns casos interna-
e repressão com a juventude vida loka. Elas ção hospitalar), mas principalmente suportar
também estão presentes nas relações consti- a pressão dos amigos homens, que muitas
tuídas entre estes próprios jovens, na forma vezes associam abstinência à diminuição da
como disputam territórios, no modo como virilidade. De maneira similar, o uso da vio-
cobram eventuais dívidas. A respeito disto, lência física como estratégia de solução de
há no seu texto, Verinha, toda uma reflexão conflitos, inclusive com a utilização de armas
sobre cultura de paz. No CAPSad em que brancas ou de fogo, está igualmente associa-
eu trabalho, este assunto já foi tema de pro- do aos modos hegemônicos de exercício da
fundas reflexões, quando percebemos que masculinidade. Assim, parece-me que um
nos esforçávamos para cuidar dos garotos, dos grandes nós críticos a serem desatados
mas eles acabavam vitimados por eles mes- para a efetiva construção de uma cultura de
mos! E foi mais ou menos neste momento paz entre usuários de álcool e outras drogas
que fomos convidados a participar de um diz respeito a esta necessária superação do
projeto organizado pelo Instituto Papai, de machismo, compreendido não apenas como

Diálogo com a experiência


fonte de sofrimento para as mulheres, mas na negligência estatal para com determina-
também como prisão ideológica que diminui das demandas, mas também pela presença
em muito a liberdade dos homens para se do Estado através de seu braço forte, cujo
constituírem de outras maneiras, para exer- peso se faz sentir no lombo daqueles que são
citarem outras masculinidades. posicionados como “perigosos”, como “inde-
Mas, que outras masculinidades seriam sejáveis”. Nas palavras de Claude Olievens-
estas? Não sei. E talvez seja justamente nes- tein: “Para se matar um cachorro, é preciso
te ponto que o título escolhido por mim ex- dizer que ele tem raiva”. É como se a mídia e
plique uma citação de Luiz Fuganti feita no o Estado estivessem jogando vôlei: a mídia,
último parágrafo de seu texto, Verinha, a nos ao posicionar os jovens vida loka como peri-
falar de “zonas de indeterminação”. Afinal, gosos, levanta a bola na rede; ao Estado, com
112 os círculos de cultura associados às tradições braço forte, cabe cortar. Se o levantador não
da Educação Popular não são espaços cate- alçar a bola na rede, não há possibilidade da
quéticos, mas lugares de troca horizontal, de cortada. Para que se possa exercer o poder de
invenção, de emergência. Lugares de rein- eliminação social (seja pela morte, seja pela
venção da política (esta palavra tão desgas- reclusão), é preciso antes constituir uma es-
tada), de estabelecimento de novas pautas, pécie de mandato social. Em uma palavra:
novas bandeiras. Não apenas novas formas autorização.
de luta, mas de novas lutas. Penso na mar- O território da política, da arte, das
cha das vagabundas, na marcha da maconha, trocas, pode se constituir como território de
na marcha da liberdade. Penso no repeador vida, de solidariedade. Seu texto, Verinha,
paraibano Sacal, que em meio à onda avas- traz uma linda reflexão sobre os territórios,
saladora que preconiza internação compul- que me fez lembrar Guattari, quando ele
sória como forma de lidar com o sofrimento nos falava sobre desterritorialização. Há que
relacionado ao uso de drogas, grita a plenos se ultrapassar certezas, que se abrir ao novo,
pulmões: “Eles vão querer me internar / ao inédito viável (e mais uma vez voltamos
Mas eu não vou!”. Penso em coletivos como à ideia do Fuganti). Produzir territórios da
o Princípio Ativo (Porto Alegre), o Desen- dúvida, da suspensão das certezas, de aber-
torpecendo a Razão (São Paulo) e a Rede tura e invenção, talvez seja o grande desafio,
Antiproibicionista Potiguar (Natal), que não apenas no trabalho direto com os jovens
trazem para o debate a utilização das leis vida loka, mas também com as pessoas que
de drogas como dispositivo de legitimação atuam nas redes de cuidado e proteção (tan-
da violência policial que acomete de modo to gestores quanto trabalhadores da ponta!).
privilegiado homens negros e jovens, mora- Creio ser fundamental que abandonemos os
dores das periferias das grandes cidades bra- territórios nos quais nos sentimos seguros, e
sileiras. Porque é sempre preciso lembrar: a que ousemos experimentar, desapegando-
violência estrutural não se manifesta apenas -nos de pré-conceitos, de receitas de bolo,

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


de caminhos já gastos de tanto trilhar. E, ao “vida” pudesse ser associada apenas a lugares
mesmo tempo, que possamos lançar novos limpinhos, arrumadinhos, frequentados por
olhares para os territórios aparentemente “pessoas de bem” (seja lá o que isto quer di-
conhecidos, mas que muitas vezes apresen- zer). Outra reflexão: o que faz com que os
tam faces inesperadas, vertiginosas. Adorei territórios constituídos por determinadas
ler em seu texto que os mesmos espaços que práticas sociais (como o uso e o comércio de
eram em determinados momentos posicio- drogas tornadas ilícitas, por exemplo), tor-
nados como “territórios de morte”, podiam nem-se mais vulneráveis à violência? Não,
ser reposicionados – em outros momentos não há nada de natural nisto. Será que se
e pelas mesmas pessoas – como “territórios trata de um efeito das drogas ou do modo
de vida”. Sobre isto, uma primeira reflexão como constituímos o tema das drogas em
que me assalta diz respeito à noção de ter- nossa sociedade? Tomemos o exemplo do 113
ritório com que se busca operar nas expe- crack: há lugares do mundo em que o uso
riências brasileiras com desta droga, ainda que te-
Redução de Danos: para nha efeitos severos sobre a
os redutores de danos, o Para os redutores de danos, saúde, não está associado
território não se constitui o territ ório não se constit ui à violência e assassinatos.
apenas em sua materiali- apenas em sua materialidade Ou seja: que dinâmicas
dade espacial, mas também espacial, mas também em sua políticas, culturais, estru-
em sua temporalidade, e turais, participam da pro-
mais: nas relações simbóli-
temporalidade, e mais: nas dução destes “territórios
cas que ali se estabelecem. relações simbólicas que ali se de morte”? Neste ponto,
Neste sentido, uma mesma estabelecem. lembro de Pedro Abramo-
região pode constituir-se vay, indicado para coorde-
como “território de vida” nar a Secretaria Especial
em determinados momentos, e em “territó- de Políticas Sobre Drogas (SENAD) no
rio de morte” em outros. governo de Dilma Roussef. Após declarar
Mas, o que significa “morte” e “vida” à imprensa que julgava inadequado o trata-
neste caso? Na famigerada ideia de “revitali- mento de jovens vendedores drogas como
zação”, tão empregada para designar políti- traficantes, Pedro foi demitido de seu cargo,
cas de remoção de populações sobre as quais logo nos primeiros dias de governo. Ou seja:
recaem efeitos de estigma e preconceito de ao que parece, o Estado brasileiro já fez sua
determinadas regiões urbanas, é como de- opção pelo enfrentamento bélico do proble-
terminadas regiões, por serem freqüentadas ma das drogas e em definir os jovens vida
por prostitutas, usuários de crack, travestis, loka como os maiores inimigos da nação.
moradores de rua, fossem “regiões mortas”, Pensei em terminar esta prosa com
desprovidas de vida. É como se a palavra mais algumas palavras sobre a fertilidade

Diálogo com a experiência


dos diálogos entre Redução de Danos e avaliar que pessoas deveriam ser internadas
Educação Popular, seja nas práticas cotidia- contra a vontade. As críticas a este tipo de
nas, seja na superação de uma “ingenuidade política têm sido bastante volumosas, espe-
epistemológica” com relação ao complexo cialmente da parte de setores comprometi-
tema das drogas, tão presente em aborda- dos com a construção da Reforma Psiquiá-
gens teórico-metodológicas que privilegiam trica brasileira.
o poder das substâncias em detrimento da Talvez aquilo de que mais precisemos
aposta nos sujeitos. Penso em palavras que neste momento seja justamente esta articu-
são extremamente caras, tanto para reduto- lação política, afetiva, ética e estética entre
res de danos, quanto para educadores popu- as pessoas que fazem e pensam a Educação
lares: transgressão, diálogo, horizontalidade, Popular e a Redução de Danos no Brasil.
114 acolhimento, escuta... Penso também em Como construir, ao mesmo tempo, pro-
uma frase de Thyago, referindo-se ao en- cessos de resistência no nível micro, lá no
tra e sai dos jovens durante as atividades, e miúdo do cotidiano da vida vivida, e na
sobre a dificuldade de “segurá-los” por mui- articulação política para reverter políticas
to tempo dentro da sala de aula. Diz o ci- que apontam, cada vez mais, para a cons-
randeiro: “sabíamos que nestas saídas havia trução de estigma e preconceito. Políticas
consumo de drogas, mas não estávamos ali que – desculpe-me se peso na comparação,
para trabalhar de forma repressiva”. Verinha – flertam com o fascismo.
Assim como redutores de danos, é co-
mum que educadores sociais tenham con-
tato direto com usuários de drogas, em seus
territórios (os textos governamentais sobre a
equipe básica dos Consultórios de Rua fala
na presença de “educadores sociais”). Não
obstante, o campo político-reflexivo que se
organiza em torno do tema das drogas, no
Brasil, tem sido chamado a se posicionar
com relação a um plano de enfrentamento
ao crack que aponta na direção do endure-
cimento das diretrizes federais para o cui-
dado de pessoas que usam drogas. Na co-
letiva de imprensa posterior ao lançamento
do referido plano, o ministro da saúde che-
gou a dizer que o papel dos Consultórios de
Rua (nos quais trabalham muitos redutores
de danos e educadores sociais), seria o de

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Pequena enciclopédia dos fazeres
Construção coletiva em educação popular:
oficinas de culinária terapêutica

A alimentação saudável tornou-se objeto de discussão e estraté-


gia nas principais políticas de saúde. A educação nutricional, realiza-
da através da educação popular, possibilitou a criação de ações como
as Oficinas de Culinária Terapêutica, às quais priorizaram a reflexão “Ensinar exige a convicção
e o diálogo sobre as práticas de saúde, estimularam uma interação de que a mudança é possível”.
dinâmica com os idosos e possibilitaram formas mais participativas (Paulo Freire)
de buscar melhores condições de saúde e qualidade de vida.
Nos relatos apresentamos o processo de escuta, problematização
e reflexão com a participação de idosos e de pessoas com doença
crônica não transmissível (DCNT) interessadas nas atividades edu-
cativas, a partir de duas experiências profissionais. A primeira, na Nara Vera Guimarães
Unidade Básica de Saúde (UBS) Rubem Berta, de 2001 a 2005 e, em Especialista em Educação Popular
em Sáude pela Escola de Saúde
seguida, a experiência com as oficinas na UBS IAPI de 2006 a 2011. Pública do Rio Grande do
A escuta respeitosa dos usuários nos grupos provocou reflexão so- Sul; nutricionista da Secretaria
Municipal de Saúde de Porto
bre o conhecimento prévio dessas pessoas diante dos processos saúde/ Alegre–RS.
doenças e de sua relação com as informações alimentares. Para conhe-
cer melhor o cotidiano dessas pessoas, utilizamos atividades de dra-
matização, colagem, pintura que possibilitaram avaliar e compreender
como as informações recebidas no serviço de saúde e nos debates que
se davam nos grupos impactavam em seu cuidado com a alimentação.
Quando se referem à alimentação, as informações vinham impregna-
das de significados emocionais, sociais e culturais que precisaram ser
conhecidos e respeitados. Nos debates em grupo essas informações
foram aproximando o saber científico do saber prático, considerando
que o início de todo trabalho educativo é conhecer onde o outro está.
O processo de reflexão acontecia nos grupos e também na equi-
pe interdisciplinar, num movimento dinâmico de escuta, planeja-
mento, reflexão e avaliação dos momentos de síntese das atividades.
Cabe ressaltar as principais dificulda- em CTG – Centro de Tradições Gaúchas,
des referidas que se repetem nos grupos, em escola, em igreja e em espaço dentro do
como: a falta de apoio no ambiente familiar serviço de saúde. O grupo que antes relata-
para implementar as mudanças; a falta de va suas dificuldades no entendimento sobre
companhia de pessoas que viviam sós e com alimentação saudável passou à condição de
dificuldade de organizar uma rotina ali- formador junto a outros grupos, multiplica-
mentar; as desigualdades de renda quanto dor e protagonista. Freire (1997) referiu que
ao acesso a uma alimentação diversificada; a autonomia vai se constituindo da experi-
as influências da mídia sobre as escolhas ência de várias e inúmeras decisões.
alimentares; as promessas de alimentos ou Neste espaço coletivo, oportunizamos
dietas “mágicas” e a dificuldade de sustentar novas experiências culinárias através da ex-
120 a recusa do prazer no consumo dos alimen- perimentação de receitas, consideradas sau-
tos de baixa qualidade nutricional, que esta- dáveis, valorizando os aspectos salutares da
vam incorporados nos hábitos alimentares. alimentação dos participantes, comparti-
Na tentativa de conhecer o que coti- lhando-as em grupo. Foi chamada de Ofi-
dianamente eles reconheciam como pre- cina de Culinária Terapêutica pelos usuários,
parações saudáveis, solicitamos que cada que associavam o potencial dos alimentos e
participante trouxesse uma receita que con- das preparações para a produção de benefí-
siderasse saudável. Estas receitas movimen- cios à saúde. Também acreditamos que tenha
taram o trabalho que se desenvolve sistema- relação com a convivência social possibilitada
ticamente há 10 anos. nesse espaço de continência e cuidado com a
Ao apresentarem suas receitas justifica- saúde, pois, respeitando a cultura alimentar
vam suas escolhas, expunham suas dúvidas, local, expandimos hábitos alimentares atra-
e mostravam seus conhecimentos. Da ex- vés da incorporação de novas experiências.
ploração das receitas à curiosidade de expe-
(...) vi melhoras em mim própria, no meu
rimentá-las foi um pequeno passo. O pro-
corpo, inclusive no meu físico e também na
cesso de motivação que se desencadeou no
minha família porque participando daqui
grupo e nos profissionais só se descreve pela
a gente leva pra casa, a gente faz em casa
riqueza das novas descobertas. Paulo Frei-
para os familiares, achei muito importante.
re nos relata que: “o processo de aprender
(Dona B).
pode desencadear uma curiosidade crescen-
te, que pode torná-lo mais e mais criador.”
(FREIRE, 1997, p. 27). Ativamente os ido-
sos passaram a buscar locais na comunidade
onde pudessem colocar em prática as recei-
tas. Cozinhamos, desde então, em espaços
cedidos pela própria comunidade, em bar,

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Bibliografia
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.
Coordenação-Geral da Política de Alimentação e Nutrição. Guia alimentar
para a população brasileira: promovendo a alimentação saudável. Brasília:
Ministério da Saúde, 2006.
______. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de
Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular e saúde. Brasília:
Ministério da Saúde, 2007.
______. Secretaria de Vigilância. Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria n.
687/GM, de 30 de março de 2006. Aprova a Política Nacional de Promoção
da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. Disponível em: <http://portal. 121
saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/portaria%20687.pdf>. Acesso em: 24 set.
2013.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.
14. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997. (Coleção Leitura).
FREIRE, P. Pacientes impacientes. Apresentação Ceccim, R. In: BRASIL.
Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa.
Departamento de Apoio à Gestão Participativa Caderno de educação popular
e saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2007. p. 32-45.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAUDE. Envelhecimento ativo: uma
política de saúde 2002. Brasília: Organização Panamericana de Saúde, 2005.
PEDROSA, J. I. S. Identificando espaços e referências. In: BRASIL. Ministério
da Saúde. Secretaria Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de
Apoio a Gestão Participativa. Caderno de educação popular e saúde. Brasília:
Ministério da Saúde, 2007. p.13-17.
PEKELMAN, Renata. Caminhos para uma ação educativa emancipadora, a
prática educativa no cotidiano dos serviços de saúde. In: ENCONTRO DE
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE, 1. Salvador, 2013. [Anais...]. Escola
Estadual de Saúde Pública da Bahia. Salvador, 2003.

Pequena enciclopédia dos fazeres


A Educação Popular em Saúde como referencial
para as nossas práticas na saúde

“Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras.


Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras gran-
des e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Exis-
te gente de fogo sereno, que nem percebe o vento e gente de
“Escuta, escuta
fogo louco que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos
O outro, a outra já vem
bobos, não alumiam nem queimam: mas outros incendeiam
Escuta, acolhe
a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para
Cuidar do outro faz bem”.
eles sem pestanejar e quem chegar perto pega fogo”. (Ray Lima )
(GALEANO, 1991).

Galeano nos desafia a compreensão integral do ser humano e o


Vanderléia Laodete Pulga
respeito e valorização da singularidade de cada ser. Lidar com seres
Educadora popular, atuante na área
humanos segundo a perspectiva popular nos remete a pensar que da saúde, gênero, movimentos so-
toda ação tem uma dimensão educativa e pedagógica. Neste sentido, ciais populares, educação popular.
Professora de Saúde Coletiva na
é importante a reflexão sobre os fundamentos que norteiam estas re- Universidade Federal da Fronteira
lações que se estabelecem no universo das nossas práticas cotidianas. Sul, campus Passo Fundo, filósofa,
mestre em educação pela UPF e
Para construir práticas de trabalho considerando a perspectiva doutoranda em educação em saúde
popular, torna-se necessária a reflexão trazida por Paulo Freire de na UFRGS.
que “só há sujeitos em relação” e, neste sentido, que os atores e atri-
zes com quem trabalhamos necessitam se constituir protagonistas
de ações de transformação às situações-limite da sua realidade, com
vistas à emancipação, buscando a superação da consciência ingênua
rumo ao inédito viável.
A educação popular, portanto, traz um referencial caracterizado
pelo diálogo entre os sujeitos, pela educação vista como humaniza-
ção, pela compreensão integral de ser humano como sujeito consti-
tuído por várias dimensões, bem como a busca de matrizes pedagó-
gicas apropriadas à formação destes sujeitos.
Nessa perspectiva busca promover a
participação dos sujeitos sociais, incenti- Alguns princípios pedagógicos da E
vando a reflexão, o diálogo e a expressão da
afetividade, potencializando sua criatividade
e sua autonomia. Incorpora a perspectiva » A construção da dignidade humana, do ser
do protagonismo dos diversos sujeitos, a humano integral, histórico, livre, portador de
direitos, de deveres e do potencial protagonista
valorização das culturas locais nas suas or-
transformador da realidade e das relações que
ganizações, suas expressões artísticas e as
nela ocorrem;
possibilidades de envolvimento de outros
setores para o enfrentamento dos problemas » A educação como processo de produção e
cotidianos. construção de conhecimento individual e co-
124 Assim, o agir educativo se constitui letivo, mediatizada pelo mundo;
como ação que se alimenta no processo de » O desenvolvimento de atividades construtivas
construção de um fundamento teórico me- onde o sujeito possa desenvolver sua criativi-
todológico de sustentação, de projetos que dade através de pesquisas, diálogos, indaga-
promovam a participação ativa da sociedade ções, investigações e estudos;
e de ações capazes de produzir novos senti-
dos nas relações entre necessidades da po-
pulação e organização da vida e da sociedade
para uma vida com qualidade e dignidade.
Outro aspecto importante é do aco-
lhimento que os movimentos sociais e po-
pulares realizam em sua ação cotidiana nos
territórios onde atuam aos que necessitam
de ajuda, com suas especificidades e singu-
laridades.
Reconhecer a legitimidade destas ações
pressupõe o incentivo permanente à parti-
cipação popular na formulação e gestão das
políticas públicas, na perspectiva de que a
ação social pela satisfação das necessidades
sociais implica num caminho que se traduz
concretamente nas formas de gestão par-
ticipativa e na atuação do controle social,
foto: Aicó Culturas

constitui-se como outro relevante elemento


de busca do trabalho de educação popular
em seus diálogos com as políticas públicas.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


ógicos da Educação Popular em Saúde:
»» O diálogo como base da relação entre sujeitos, »» A importância da sistematização das experiências
onde cada um cresce no respeito, na valorização e como forma de construção e reconstrução de co-
na construção de valores solidários e éticos; nhecimento onde os sujeitos partem das próprias
»» A construção da autonomia dos sujeitos envolvi- experiências, e estas são registradas, problemati-
dos no processo de formação que se desenvolve zadas, refletidas e, a partir delas, construídos no-
como ser atuante, ético, criativo, amável e prota- vos saberes e aprendizados;
gonista de si e da sua ação na sociedade;
»» A construção de reflexões críticas sobre a prática Pressupõe a busca, por parte dos atores que fazem
educativa, implicando no movimento dinâmico, as políticas públicas e dos educadores, da realização
dialético, entre a prática e a construção teórica; da formação humana que contemple a formação de
»» O combate a qualquer forma de discriminação e sujeitos:
o fortalecimento da equidade, da integralidade da
»» com forte consciência de que são sujeitos de di-
atenção e do cuidado à vida;
reitos;
»» Visão social de mundo
»» com capacidade de leitura critica da realidade, o
a partir da solidariedade e da
que implica discernimento e tomada de posição;
justiça, comprometidos com a
»» capazes de se organizar para a busca ou institui-
construção de um projeto de
ção de direitos;
sociedade democrático e parti-
cipativo. »» que respeitem o bem público, que tenham sen-
tido de responsabilidade no exercício do poder e
»» Valorização das formas
respeitem os regramentos, quando formulados e
e expressões culturais, artís-
decididos em processos participativos;
ticas, de cuidados com a vida
e de vivências libertadoras de »» que desenvolvam a indignação frente ao desres-
espiritualidade; peito aos direitos humanos;
»» A compreensão da pes- »» que estejam com um pé firme na realidade, mas
quisa como um processo social com os olhos na direção do futuro, do projeto
capaz de gerar mudanças coleti- para suas vidas e de país, que vão se dispondo a
vas, optando por metodologias construir.
participativas que busquem es- »» Que reconheçam, respeitem e valorizem a diver-
truturar uma ação por parte das sidade humana.
pessoas ou grupos implicados
no problema sob observação;

Pequena enciclopédia dos fazeres


Alguns fundamentos dos processos educativos
a vida carrega os sentidos huma- atitudes, ações e posturas condi-
Diálogo: nos da dignidade, da emancipa- zentes com a ética.
É preciso recuperar a educação ção e da justiça”. Para isto é preciso partir de
como diálogo, síntese do processo Para Freire (2000) educar é tor- uma pedagogia que reconheça
educativo e dimensão fundamen- nar os sujeitos mais humanos e os valores do povo, que o reco-
tal de reconhecimento de sujeitos, humanizar seria situar os pro- nheça como sujeito de sua pró-
que são agentes de uma história, cessos e práticas educativas no pria cultura, enquanto conjunto
trajetória, cultura e valores. âmago, nos anseios e nas lutas de sujeitos culturais, estéticos.
126 dos setores populares, incorpo- Uma das heranças populares é a
Humanização: rando os princípios da dignidade, estética onde estes setores ritu-
da emancipação e da justiça. Se a alizam tudo o que fazem e, por
É preciso reconhecer a dimen-
busca pela humanização perten- meio dessa ritualização, buscam
são pedagógica das relações hu-
ce ao processo, a desumanização a beleza.
manas como parte constitutiva
faz parte dele. Educação é o pro-
do trabalho em saúde. Educar
é antes de tudo um processo de
cesso de resgate da humanidade Matrizes Pedagógicas
roubada por fatores como a fome
humanização. Humanizar é situ- Para criar eixos geradores da
e o desemprego, as condições de-
ar os processos e práticas educa- construção do sujeito é preciso
sumanas e injustas que os setores
tivas no cerne, nos anseios, e nas trabalhar a partir de matrizes
populares enfrentam.
lutas dos setores populares. A pedagógicas, como o corpo. A
educação problematiza a própria educação e a saúde se encon-
vida humana e busca a constru-
Sujeito total, tram em algum lugar, este lugar
ção de sentidos para qualificá-la
ser humano integral: é o corpo. Outras matrizes são
e fortalece-la em todas as suas Educar é trabalhar com a totali- bastante familiares, como a pa-
dimensões. dade das dimensões do sujeito e lavra, que é capaz de mudar va-
Os setores populares procuram não apenas com aspectos especí- lores, consciência e hábitos. Ou
as políticas públicas e, em es- ficos como comportamento, ha- como o trabalho, cujas condições
pecial, a saúde por uma ques- bilitação para o trabalho, qualifi- materiais devem ser humaniza-
tão básica de sobrevivência. A cação para o mercado, ou ainda doras. Há também as condições
minoria da sociedade supera a conscientização política. O ser de convívio, de interação, onde,
fronteira da vivência, pode pro- humano precisa ter autonomia e a partir do relacionamento e da
longar a vida e usa o setor saúde maturidade para tomar decisões, troca de experiências, as pessoas
para isso. Já nos setores popula- enquanto sujeitos conscientes e se educam.
res, até para viver se tem que lu- éticos, cuja expressão se dá pela
tar, emancipar-se. “Na fronteira, vivência cotidiana de valores,

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Como compreendemos a Educação Popular em Saúde

Compreendemos a educação popular Segundo Linhares (2004) a educação


como parte do modo de vida dos grupos so- popular tem a ver com a cultura e a vin-
ciais que criam e recriam uma cultura, dife- culação às fontes da vida e da morte das
re de treinamento ou da simples transmis- comunidades: criação de laços solidários e
são de informações. Significa a construção comprometidos com a libertação; elo que
de um senso crítico que colabore para que articula saberes diferenciados; sensibiliza os
os sujeitos entendam, comprometam-se, diferentes atores envolvidos e exprime as
tenham capacidade em elaborar propostas, representações que o ser humano constrói a
reivindiquem e transformem (-se). partir da sua leitura do mundo na perspec-
  Não é um discurso acadêmico sobre tiva de conhecer e intervir sobre a realidade. 12 7
um método, nem um produto acabado ou Para Vasconcelos, a educação popular
uma receita simples e mágica. É diferente oferece um instrumental para o desenvolvi-
de técnicas de grupo que são utilizadas para mento de novas relações, “através da ênfase
estimular a participação e a cooperação. ao diálogo, a valorização do saber popular e
 Não é um método fácil que populari- a busca de inserção na dinâmica local” tendo
za a complexidade, embora faça o esforço a identidade cultural como base do processo
criativo de traduzir conceitos abstratos em educativo, e compreendendo que o respeito
linguagem cotidiana, metáforas e símbolos. ao saber popular implica necessariamente o
É um processo coletivo de produção e so- respeito ao contexto cultural.
cialização do conhecimento que capacita os As experiências de arte, humanização e
sujeitos a ler criticamente a realidade sócio- a educação popular nos fazem pensar nos
-econômico-político-cultural com a finali- modos de acalentar, sentir a dor, o parto, o
dade de transformá-la. gozo, a traição, o choro, o crescimento dos
  A educação popular fala de um ca- filhos, a seca, a invernada, a partida para
minho político-pedagógico que requer o o longe de outras terras, o acarinhado de
envolvimento e a co-responsabilização de quem se aguneia por um agrado, o modo
todos participantes, na construção, apro- de despejar na natureza seus sentimentos
priação e multiplicação do conhecimento. de homem ou de mulher, a fome, esse sin-
Estes foram aspectos fundamentais para a educação popular
gular que é o modo próprio de ser do povo
em saúde destacados pelo educador Miguel Gonzalez Arroyo (LINHARES, 2003).
durante conferência no II Seminário sobre Educação Social e Neste sentido, as linguagens da arte
Saúde no Contexto da Promoção da Saúde, realizado em agosto nos permitem tocar dimensões mais tota-
de 2001 na Universidade de Brasília. A conferência de Arroyo,
denominada ‘A prática educativa como processo de construção lizadoras do sujeito e, em geral esquecidas;
dos sujeitos’, foi  sintetizada em edição da revista ‘Tema’, publi- nos processos de conhecer - como a do cor-
cada pelo Programa Radis (Reunião, Análise e Difusão de In- po, da estética, da ética, da religiosidade, da
formação sobre Saúde) da Escola Nacional de Saúde da Fiocruz
em dezembro de 2001.
Pequena enciclopédia dos fazeres
afetividade - em um construto que vincula Freire (1995) quando afirma que, en-
desejo e cognição, intuição e sensibilidade. quanto as pessoas não se dão conta de que
A arte de reconstituir movimentos de su- estão, coletivamente, produzindo temas ge-
peração das marcas produzidas pela vio- radores, que envolvem situações-limite, os
lência, por exemplo. De tornar mais belos e atos não podem acontecer de modo crítico e
acolhedores os espaços de trabalho, mesmo com intencionalidade social e política clara.
quando a infraestrutura é precária e os re- Os temas geradores são entendidos
cursos didáticos e audiovisuais são poucos. como o universo temático explicativo e de
Da escuta sensível, do toque carinhoso, do enfrentamento das questões relacionadas a
olhar que acolhe, da palavra que apoia, mas vida nas comunidades. Estes temas gerado-
que também explicita e aclara os conflitos. res remetem às situações concretas vividas
128 Partindo da busca da memória das lu- permeadas pela contradição entre reprodu-
tas populares, percursos de experiências de ção e transformação (situações-limites), em
educação popular tem sido possibilidade relação às quais buscam-se alternativas con-
coletiva de intervenção e produção da vida cretas (atos-limites) – e isto ocorre o tempo
coletiva; conexão entre cotidiano e histó- todo no cotidiano da atividade humana.
ria, vinculando a experiência local sentida   A educação popular tem o compro-
no singular dos grupos com a inserção na misso com os oprimidos e seu ponto de
história, vivida no exercício sócio - político partida é a convicção de que o povo já tem
em rede. A reflexão, partilha e leitura cole- um saber, parcial e fragmentado e que car-
tiva das possibilidades sendo feita também rega em si o dom de ser capaz. Mas precisa
mediante o exercício das linguagens diver- refletir sobre o que sabe (não sabe que sabe)
sas, espaços comunicativos dos movimen- e incorporar o acúmulo teórico da prática
tos, através dos quais é possível estimular o social. Torna-se um instrumento que des-
protagonismo popular a partir do reconhe- perta, qualifica e reforça o potencial de or-
cimento da história de vida das pessoas em ganização popular em uma perspectiva so-
seus anseios, necessidades e potencialidades. lidária. Um compromisso de amorosidade
Linguagens que emergem na capilari- para com o ser humano.
dade das experiências locais que, em uma Sua tarefa específica é relacionar o fazer
vivência de protagonismo ousada, impri- (saber empírico) das pessoas com uma re-
mem sua feição particular, buscando, aos flexão teórica (saber científico) e integrar a
pouco, incluir-se nos espaços das políticas e dimensão imediata (micro) com a dimensão
instituições formadoras e ensaiar uma ação estratégica (macro). É um processo educa-
que interfira nessas políticas, mas que, ao tivo permanente que tenta concretizar suas
mesmo tempo, possa alimentar-se continu- convicções, princípios e valores, responden-
amente de suas práticas concretas. do adequadamente em cada conjuntura.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Metodologias participativas
Muitas vezes, as pessoas falam em me- enfoque radical tem como premissa a con-
todologia pensando nas dicas de como fazer cepção das condições materiais e a estrutura
as coisas, nos procedimentos e técnicas de social como causas básicas dos problemas
grupo ou ainda na sequência de como deve de saúde, direcionando o processo educati-
seguir uma atividade. vo para a transformação das condições ge-
Eduardo Stotz (1993) pontua sobre a radoras de doenças. Este enfoque trabalha
existência de diferentes enfoques utiliza- com a perspectiva de que educadores e ci-
dos nas práticas educativas em saúde, tendo dadãos possam ser sujeitos do processo e in-
como referência a proposta de Tones (1987): tervir politicamente na luta pela saúde, bem
enfoque educativo, preventivo, radical e de como articula o processo educativo à busca 129
desenvolvimento pessoal. Segundo o au- de autonomia e poder, voltando-se para a
tor, todos eles têm em comum a crítica ao possibilidade de potencializar a “construção
chamado modelo médico. O enfoque pre- de processos de participação popular como
ventivo, ainda hoje o mais utilizado na prá- uma prática social de organização da vida
tica educativa que se realiza nos serviços de cotidiana” (SOPHIA, 2001).
saúde, está centrado na mudança de com- A metodologia participativa é aquela
portamento individual, no sentido de afas- que permite a atuação efetiva dos partici-
tar fatores de risco, tem a persuasão como pantes no processo educativo, valorizan-
princípio orientador e o educador como su- do os conhecimentos e experiências dos
jeito da ação. O enfoque educativo também participantes, envolvendo-os na discussão,
está centrado na figura do educador como identificação e busca de soluções para pro-
sujeito da ação educativa e tem como ob- blemas que emergem de suas vidas. É uma
jetivo a compreensão da situação por parte forma de trabalho pedagógico baseado no
do usuário, partindo do princípio que, a par- prazer, na vivência e na participação ativa
tir da eleição informada dos riscos à saúde, em situações reais ou imaginárias provoca
é possível promover o acesso igualitário às a reflexão faz os participantes construírem
informações. O enfoque do desenvolvimen- sentidos às situações concretas da vida.
to pessoal teria como objetivo o desenvol- Existem diversas formas de garantir
vimento da personalidade dos indivíduos processos participativos como o sociodra-
levando-os a desenvolver destrezas, que au- ma, psicodrama, teatro do oprimido, teatro-
mentariam sua capacidade de controle sobre -fórum, círculos de cultura, a oficina e ou-
a vida. Ainda neste enfoque, o educador é tras técnicas de grupo, Que são oriundas de
o sujeito do processo. Enquanto os enfo- saberes multidisciplinares.
ques anteriores apresentam como ponto de Existem muitas formas de realizar pra-
partida a intervenção no plano individual o ticas pedagógicas que visam à domesticação

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das pessoas para que elas se prestem a obe- popular, gestão democrática e participativa,
decer e a reproduzir um padrão de com- afirmação da cidadania ativa, ampliação dos
portamento que serve a uma ordem e aos direitos e processos de controle social e de
interesses de uma classe dominante. Outras democratização do Estado apontando para
ainda se utilizam do discurso da metodolo- a emancipação e a construção de um projeto
gia popular, mas constroem uma prática au- popular de transformação social.
toritária na qual as pessoas são dominadas Referendamos aqui um olhar sobre
pela manipulação, pela sensação de que são metodologia, como percurso, que não se re-
parte onde os educadores tomando a inicia- duz ao modo de fazer, mas compreendendo
tiva pelos educandos, perpetuam neles a de- que este modo está sempre ligado a uma
pendência e o sentimento de inferioridade. visão de mundo e a um objetivo histórico
130 Reportamo-nos aqui a um olhar sobre concreto sendo, portanto, também marcada
o caminho metodológico que se ancora nos por um projeto de pessoa e de sociedade. A
princípios da educação popular a que nos pedagogia também é marcada por um pro-
temos referido neste texto. Um caminho jeto de pessoa e de sociedade, pode-se di-
onde o trabalho que realizamos se faz com zer, de forma esquemática, que existem três
os atores e atrizes com os quais trabalha- concepções básicas de metodologia:
mos. Onde o modo de fazer já é, de certa
forma, o que se quer fazer e o para que se Autoritária - Visa a domesticação das
faz. Esse jeito de fazer visa despertar o senso pessoas para que elas se prestem a obe-
crítico e promover o diálogo entre as partes decer e a reproduzir um padrão de com-
para juntá-las num processo de construção portamento que serve a uma ordem e
coletiva, numa perspectiva solidária. aos interesses de uma classe dominante.
Dessa forma é possível ao mesmo tem-
po, fortalecer aspectos da identidade e au- Populista - Utiliza o discurso popular,
toestima dos sujeitos, mobilizá-los para a mas sua prática visa manter as pesso-
ação transformadora desenvolvendo o com- as dominadas pela manipulação, com a
promisso com processos legítimos de luta sensação de que são parte. Perpetua as
pela vida para a emancipação das pessoas e relações de dependência e sentimento
sua afirmação como sujeitos sociais. de inferioridade.
Nessa perspectiva o processo por si ca-
Dialética-dialogal-libertadora: Afirma
pacita e qualifica política e tecnicamente, os
que o modo de fazer já é, de certa forma,
sujeitos através da experimentação e apro-
o que se quer fazer e o para que se faz.
priação do conteúdo e do modo de fazer; for-
Visa despertar o senso crítico e promo-
talece ações coletivas no enfrentamento dos
ver o diálogo entre as partes para juntá-
seus problemas e na construção de soluções
que expressem o poder da população e incen- -las num processo de construção coleti-
tiva a construção de espaços de participação va, com perspectiva solidária.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Partindo da convicção de que quem faz
sabe, mas que quem pensa sobre o que faz,
faz melhor e que quem faz, faz também o
sentido do que faz, a metodologia popular
significa, ao mesmo tempo um caminho: Alguns sinais
»» em que os sujeitos tomem uma postura »» Anima e apaixona seus participantes porque
respeitosa e sugerem formas de partici- resgata neles o elemento da identidade e da
pação e de colaboração. dignidade (autoestima).

»» cujo ponto de partida é a convicção de »» Mobiliza porque rompe com a situação de dor-
que todos são capazes, que os oprimidas mência e a sensação de impotência, geradas
pela dominação e expressas no individualismo
têm interesse em superar a atrofia física,
consumismo e fatalismo.
mental e cultural a que foram submetidas
e que a emancipação começa por quem se »» Compromete as pessoas, numa dimensão in-
dispõe a um processo de transformação tegral da vida, em processos legítimos de luta
individual e social. pela vida para a emancipação das pessoas e na
sua afirmação como sujeitos sociais.
»» de valorização dos sujeitos, sua neces-
sidade de unir esforços, de organizar-se »» Capacita e qualifica política e tecnicamente, os
sujeitos através da experimentação e apropria-
para a conquista de direitos e para a ta-
ção do conteúdo e do método.
refa de assumir-se como sujeito do seu
destino coletivo. »» Produz a multiplicação criativa, com base numa
parte que tem como meta a envolver o conjun-
O processo educativo se realiza no tra- to da sociedade e a realidade mais geral.
balho que se faz a partir das necessidades
»» Produz fermentação social e mobilização po-
sentidas e num compromisso permanente
lítica ao fortalecer ações coletivas no enfrenta-
dos envolvidos. Acreditar que as respostas
mento dos seus problemas e na construção de
espontâneas do povo sejam transforma-
soluções que expressem o poder da população.
doras pode apenas significar uma posição
»» Incentiva a construção de espaços de participa-
tão autoritária quanto à própria imposição.
ção popular, gestão democrática e participativa,
Aliado ao reconhecimento e o respeito às
afirmação da cidadania ativa, ampliação dos
iniciativas populares, será necessário pro-
direitos e processos de controle social e de de-
blematizar e potencializar essas ações e es-
mocratização do Estado.
timular a construção de alternativas mais
»» Incentiva e contribui para a construção de pro-
próximas da integralidade. Quando inspira-
cessos legítimos de luta pela emancipação e
dos em processos da educação popular, apli-
pela vida.
cada a um processo político-pedagógico,
podemos perceber alguns sinais:

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Com base na intencionalidade de for- » Articulação das forças sociais com a estru-
talecer a participação popular, o controle turação de redes de educadores populares,
social e a gestão participativa na saúde, é educares em saúde, entidades e movimen-
fundamental observar os seguintes pro- tos sensíveis à necessidade de uma ampla
cedimentos metodológicos nos processos mobilização social em defesa do direito à
educativos: saúde, retomando os fundamentos da Re-
forma Sanitária.
» Aproximação e conhecimento da realidade » Planejamento das diferentes ações que po-
social em que se vai desenvolver o trabalho, tencializem a dimensão educativa da ação,
na perspectiva da educação popular, com fazendo da articulação e da formação um fa-
a metodologia da observação participante, tor efetivo da mobilização social.
132 numa atitude de abertura e de escuta para a
construção de diagnósticos das realidades lo-
cais, fomentando a solidariedade e o espírito Orientações pedagógicas
de compromisso dos grupos em contato. Existem diversas formas de garantir
» Mobilização social que junte os esforços de processos participativos como o sociodra-
articulação e formação (encontros, seminá- ma, psicodrama, teatro do oprimido, teatro-
rios, oficinas, reuniões formativas, grupos de -fórum, círculos de cultura, oficinas e outras
estudos, círculos interativos, intercâmbios de técnicas de grupo, que são oriundas de sa-
experiências, mutirões de formação popular e beres multidisciplinares.
caravanas) em torno de programas concretos, Independente da linguagem escolhida
ligado à defesa da vida e da saúde. podemos apresentar algumas posturas ou
» Desenvolvimento de processos educati- orientações que consideramos imprescindí-
vos que articulem a teoria com as práticas veis para que se possa concretizar um prá-
sociais, entidades e agentes envolvidos com tica problematizadora, reflexiva, dialógica e
diferentes modalidades formativas, instru- produtora de autonomia.
mentos didático-pedagógicos e comunica- Inicialmente referendamos a necessi-
ção de massa, cultura popular de resistência e dade de conhecer a realidade social em que
reinvenção das relações econômicas, sociais, se vai desenvolver o trabalho. A observação
culturais, ambientais etc. participante, a atitude de abertura e de es-
» Construção coletiva do conhecimento fun- cuta são pontos de partida fundamentais
damentada no processo dialético prática- para a construção de vínculos entre traba-
-teoria-prática, associando o conhecimento lhadores e comunidade.
da realidade com sistematização das expe- Ao mesmo tempo, a mobilização dos
riências e conhecimentos dos processos de atores institucionais e comunitários pre-
articulação, formação e mobilização, concre- sentes no território pode contribuir sobre-
tizando o “aprender com a prática”. maneira para o trabalho na articulação e

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


transformação da realidade de saúde. Esta locais, fomentando a solidariedade e o espí-
pode acontecer também de formas diversas rito de compromisso dos grupos em contato.
a depender dos contextos já anteriormente Mobilização social que junte os esfor-
abordados, tais como, encontros, seminários, ços de articulação e formação (encontros,
oficinas, reuniões, grupos de estudos, círcu- seminários, oficinas, reuniões formativas,
los interativos, intercâmbios de experiências, grupos de estudos, círculos interativos, in-
mutirões de formação popular e caravanas tercâmbios de experiências, mutirões de
em torno de programas concretos, ligados à formação popular e caravanas) em torno
defesa da vida e da saúde (DARON, 2008). de programas concretos, ligado à defesa da
Desenvolvimento de processos edu- vida e da saúde.
cativos que ampliem o olhar dos diversos Desenvolvimento de processos educa-
atores sobre a realidade e articulem a teo- tivos que articulem a teoria com as práticas 133
ria com as práticas sociais. Nesse sentido sociais, entidades e agentes envolvidos com
podem ser organizados cursos, oficinas e diferentes modalidades formativas, instru-
outras modalidades de formação, das quais, mentos didático-pedagógicos e comunica-
podem resultar a produção de instrumentos ção de massa, cultura popular de resistência
pedagógicos e comunicacionais com base e reinvenção das relações econômicas, so-
nos elementos da cultura local e nas po- ciais, culturais, ambientais etc.
tencialidades do território. Desse processo Construção coletiva do conhecimento
também pode resultar a sistematização das fundamentada no processo dialético prá-
experiências locais e a construção coletiva tica-teoria-prática, associando o conheci-
do conhecimento, fundamentada na ação- mento da realidade com sistematização das
-reflexão-ação, concretizando o “aprender experiências e conhecimentos dos proces-
com a prática” e referenciando a experiência sos de articulação, formação e mobilização,
como categoria chave na produção do co- concretizando o “aprender com a prática”.
nhecimento. Articulação das forças sociais com a
Com base na intencionalidade de forta- estruturação de redes de educadores popu-
lecer a participação popular, o controle social lares, educares em saúde, entidades e mo-
e a gestão participativa na saúde, é funda- vimentos sensíveis à necessidade de uma
mental observar os seguintes procedimentos ampla mobilização social em defesa do di-
metodológicos nos processos educativos: reito à saúde, retomando os fundamentos
Aproximação e conhecimento da reali- da Reforma Sanitária.
dade social em que se vai desenvolver o traba- Planejamento das diferentes ações que
lho, na perspectiva da educação popular, com potencializem a dimensão educativa da
a metodologia da observação participante, ação, fazendo da articulação e da formação
numa atitude de abertura e de escuta para um fator efetivo da mobilização social.
a construção de diagnósticos das realidades

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Técnicas pedagógicas participativas

a) técnicas vivenciais sentidos produzidos. Estas técnicas se


adéquam, especialmente, nos processos de
Privilegiam a dimensão vivencial e têm aproximação entre trabalhadores e comu-
como objetivo unir, criar um ambiente fra- nidades, no início de atividades, tais como
terno e participativo, promovendo a alegria, oficinas, cursos entre outros, sempre na
o humor, a integração e a descontração dos perspectiva de fomentar a integração e a
participantes, além de análises que buscam produção de vínculos entre estes atores.
oferecer elementos simbólicos para a refle- Podem ser utilizadas no início de ativi-
xão sobre uma determinada questão. dades formativas para permitir a integração
Nestas, alguns aspectos são funda- dos participantes ou depois de momentos in-
134 mentais: a flexibilidade no tempo, o pro- tensos de trabalho para possibilitar o descan-
cesso de reflexão sobre a vivência e os so e a descontração. As mais utilizadas são:

Para quebrar o gelo subterfúgios, mas com autenticidade e sem vio-


» Ajuda a tirar as tensões do grupo, desini- lentar a vontade das pessoas.
bindo as pessoas para o encontro. » Exige diálogo verdadeiro, a partilho do que
» Pode ser uma brincadeira onde as pessoas posso e quero ao novo grupo.
se movimentam e se descontraem. » São as primeiras informações da minha
» Resgata e trabalha as experiências de criança. pessoa.
» São recursos que quebram a seriedade do » Precisa ser desenvolvida num clima de con-
grupo e aproximam as pessoas. fiança e descontração.
Técnicas de apresentação » O momento para a apresentação, motivação
» Ajuda a apresentar os participantes uns aos e integração. É aconselhável que sejam utili-
outros. Possibilita descobrir: quem sou, de onde zadas dinâmicas rápidas, de curta duração.
venho, o que faço, como e onde vivo, o que
gosto, sonho, sinto e penso... Sem máscaras e

Para integração: grupal e como nos vemos a nós mesmos. O diá-


logo profundo no lugar da indiferença, discrimi-
» Permite analisar o comportamento pessoal e
nação, desprezo, vividos pelos participantes em
grupal. A partir de exercícios bem específicos,
suas relações.
que possibilitam partilhar aspectos mais pro-
» Os exercícios interpelam as pessoas a pensar
fundos das relações interpessoais do grupo.
suas atitudes e seu ser em relação ao outro ou o
» Trabalha a interação, comunicação, encon-
grupo.
tros e desencontros do grupo.
» Ajuda a sermos vistos pelos outros na interação

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Para animação e relaxamento: Para atividades de formação:
» Tem como objetivo eliminar as tensões, sol- » Deve ser usada para trabalhar com pessoas
tar o corpo, voltar-se para si e dar-se conta da que já possuem alguma prática de animação
situação em que se encontra, focalizando can- grupal.
saço, ansiedade, fadigas etc. Elaborando tudo » Possibilita a revisão, a comunicação e a per-
isso para um encontro mais ativo e produtivo. cepção do que fazem os destinatários, a reali-
» Estas técnicas facilitam um encontro entre dade que os rodeia.
pessoas que se conhecem pouco e quando o » Amplia a capacidade de escutar e observar.
clima grupal é muito frio e impessoal. » Facilita e clareia as atitudes dos educador
» Devem ser usadas quando necessitam rom- (a)es para que orientem melhor seu trabalho 135
per o ambiente frio e impessoal ou quando se grupal, de forma mais clara e livre com os
está cansado e necessita retomar uma ativida- grupos.
de. Não para preencher algum vazio no encon- » Quando é proposto o tema/conteúdo princi-
tro ou tempo que sobra. pal da atividade, devem ser utilizadas dinâmicas
que facilitem a reflexão e o aprofundamento;
são, geralmente, mais demoradas.

b) técnicas com atuação Para que tenham o efeito desejado é


preciso observar:
Estas técnicas tem a expressão corpo-
ral como aspecto central, e nestas se poderá
» Apresentação ordenada e coerente;
representar situações, comportamentos e
» Dar tempo limitado para que os elementos
formas de pensar. Para que ocorra o efeito
centrais sejam resumidos;
desejado é importante observar alguns as-
» Que seja utilizado a expressão corporal, o
pectos: ordenação e coerência na apresenta-
movimento, os gestos e a expressão facial;
ção; limite de tempo para que os elementos
» Que a fala seja com voz forte;
centrais sejam sintetizados, clareza na ex-
» Que não tenha atuação e fala de dois par-
pressão corporal e facial, movimento, gestu-
ticipantes ao mesmo tempo.
alidade, dicção e presença cênica, ressaltan-
do ainda a importância da criatividade e da
espontaneidade.

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c) Técnicas Audiovisuais
Outras técnicas utilizadas nas produção de materiais visuais ração prévia, que geralmente é
práticas educativas são as au- escritos ou gráficos tais como: fruto da reflexão ou análise que
diovisuais, como exposição produção de painéis, mandalas, o grupo realizou. Trazem sem-
de filmes, vídeos e exposições fanzines, jornais, revistas entre pre elementos de informação
dialogadas. A característica outros. A escrita e as imagens adicional para que o grupo en-
principal dessas técnicas é a se constituem como elemento riqueça sua discussão e análise
utilização de som ou de sua central. sobre algum tema. Trazem um
combinação com imagens. Podem ser elaboradas pelo ponto de vista particular para o
Nestas é necessário uma elabo- grupo no processo de formação debate coletivo. É um material
ração prévia, fruto da reflexão e colaboram com a concentra- que traz elementos novos ou
136 ou análise do grupo, trazendo ção e concretização das ideias e interpretações que permitam
um ponto de vista particular reflexões do grupo. um aprofundamento do tema
para o debate coletivo, para que Orientações a serem seguidas: tratado.
se constituam como práticas Para a utilização de uma téc- Ao utilizar este tipo de técnica
participativas. nica auditiva ou audiovisual é é necessário que a pessoa que a
Pode-se trabalhar ainda com a preciso um trabalho de elabo- irá utilizar tenha conhecimento

d) Técnicas Visuais:
As Técnicas escritas são aque- dinâmicas é fundamental que novos para o aprofundamento
las em que se utiliza a escrita a letra seja legível por todos e do grupo. É importante ver se
como elemento central. Podem que a redação seja concreta dei- a redação, o conteúdo e a lin-
ser: papelógrafo, leitura de tex- xando claro e resumido ideias guagem correspondem ao nível
tos... centrais de um debate coleti- dos participantes. A utilização
Podem ser elaboradas por um vo. Este tipo de técnica ajuda sempre será acompanhada de
grupo no processo de forma- a concentrar e concretizar as passos metodológicos que per-
ção, se caracterizam por ser o ideias e reflexões do grupo. mitam a participação e o deba-
resultado direto daquilo que o Os materiais elaborados com te coletivo sobre o conteúdo.
grupo sabe, conhece ou pensa antecedência como a leitura As Técnicas gráficas são aque-
sobre determinado tema e é de textos, que são resultado las em que o conteúdo se ex-
produto do trabalho coletivo de uma reflexão ou interpre- pressa através de desenhos e
no mesmo momento de sua tação de pessoas externas ao símbolos para interpretação.
aplicação. grupo ou de elaboração indi- Sempre que usamos este tipo
Na utilização deste tipo de vidual deve trazer elementos de técnica é recomendável

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Técnicas aprofundadas na Edução Popular

a) círculos de cultura
prévio do conteúdo a ser de-
senvolvido, para que a técnica Sistematizados por Paulo Freire (1991) os Círculos de Cul-
sirva como ferramenta de re- tura estão fundamentados em uma proposta pedagógica de-
flexão. Por isto, é importan- mocrática e libertadora e propõe uma aprendizagem integral,
te fazer uma discussão prévia que rompe com a fragmentação e requer uma tomada de
para analisar o conteúdo a ser posição perante os problemas vivenciados em determinado
trabalhado ou da mensagem contexto. Para Freire, essa concepção promove a horizontali-
apresentada na técnica auditi- dade na relação educador-educando e a valorização das cul-
va ou audiovisual. Para isto, é turas locais, da oralidade. Nesse contexto, propõe uma práxis
fundamental preparar algumas pedagógica que se compromete com a emancipação de ho- 137
perguntas que permitam rela- mens e mulheres ressaltando a importância do aspecto me-
cionar o conteúdo com a reali- todológico, no fazer pedagógico, sem desvalorizar, no entan-
dade do grupo. to, o conteúdo específico que mediatiza esta ação. Destarte,
caracteriza-se como locus privilegiado de comunicação-dis-
cussão embasadas no diálogo, nas experiências dos atores-
-sujeito, na produção teórica da educação e na escuta, a qual
se orienta pelo desejo de cada um e cada uma aprenderem
as falas do outro e da outra problematizando-a e problema-
tizando-se. Tem como princípios metodológicos o respeito
pelo educando, a conquista da autonomia e a dialogicidade
começar descrevendo elemen- e podem ser didaticamente estruturados em momentos tais
tos que estão presentes no grá- como: a investigação do universo vocabular1, do qual são extra-
fico. Logo que os participantes ídas palavras geradoras2. Esse mergulho permite ao educador
que não elaboraram o trabalho interagir no processo, ajudando-o a definir seu ponto de par-
fazem uma interpretação e que tida que se traduzirá no tema gerador geral, vinculado a ideia
finalmente sejam as pessoas de interdisciplinaridade e subjacente à noção holística de
que o elaboraram as que vão promover a integração do conhecimento e a transformação
expor quais foram as ideias que
quiseram expressar. Isto possi-
bilita a participação de todos
1
Relação das palavras de uso corrente, entendida como representativa dos
modos de vida dos grupos ou do território onde se trabalhará (estudo
na medida em que exige um da realidade). Este momento permite o contato mais aproximado com a
esforço de interpretação por linguagem, as singularidades nas formas de falar do povo, e suas experiências
parte de uns e de comunicação de vida no local.
por parte de outros. 2
Unidade básica de orientação dos debates.

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social. A Tematização3, ou seja, processo no A ampliação do olhar sobre a realida-
qual os temas e palavras geradoras são co- de com amparo na ação-reflexão-ação e o
dificados e decodificados buscando a cons- desenvolvimento de uma consciência crítica
ciência do vivido, o seu significado social, que surge da problematização permite que
possibilitando a ampliação do conhecimen- homens e mulheres se percebam sujeitos
to e a compreensão dos educandos sobre a históricos, o que implica a esperança de que
própria realidade, na perspectiva de intervir nesse encontro pedagógico sejam vislum-
criticamente sobre ela. O importante não é bradas formas de pensar um mundo melhor
transmitir conteúdos específicos, mas des- para todos. Esse processo supõe a paciência
pertar uma nova forma de relação com a histórica de amadurecer com o grupo, de
experiência vivida. modo que a reflexão e a ação sejam real-
138 A Problematização representa um mo- mente sínteses elaboradas com ele.
mento decisivo da proposta e busca superar Nesse contexto o Círculo de Cultura
a visão ingênua por uma perspectiva críti- constitui-se locus da vivência democrática,
ca, capaz de transformar o contexto vivido. de formas de pensamentos, experiências,
A ação de problematizar em Paulo Freire linguagens e de vida, que possibilita o es-
(ano) impõe ênfase no sujeito práxico que tabelecimento de condições efetivas para a
discute os problemas surgidos da observa- democracia de expressões, de pensamentos
ção da realidade com todas as suas contra- e de lógicas com base no respeito às dife-
dições, buscando explicações que o ajudem renças e no incentivo à participação em
a transformá-la. O sujeito, por sua vez, tam- uma dinâmica que lança o sujeito ao debate,
bém se transforma na ação de problemati- focando os problemas comuns.
zar e passa a detectar novos problemas na
sua realidade e assim sucessivamente. Nesse b) Técnica de Oficinas
sentido, a problematização emerge como
A oficina se constitui num espaço pri-
momento pedagógico, como práxis social,
vilegiado de criação e descobertas, onde,
como manifestação de um mundo refletido
processo e produto compõem uma unidade
com o conjunto dos atores, possibilitando a
dialética, cujos objetivos e passos são pactu-
formulação de conhecimentos com base na
ados com os participantes, portanto, é plu-
vivência de experiências significativas.
ridimensional, criativo, coletivo, planejado e
coordenado coletivamente. Nesse sentido,
3
A codificação pode se dar por imagens expressas de
várias formas – desenho, fotografia, imagem viva, – que todos são essenciais e cada um é correspon-
por sua vez deverão suscitar novos debates. Parte-se da sável na produção do que se quer obter, ten-
compreensão de que cada pessoa, cada grupo envolvido do como referência as potencialidades do
na ação pedagógica, dispõe em si próprio, ainda que de
próprio grupo, a partir da prática de cada
forma rudimentar, dos conteúdos necessários dos quais
se parte. um em seu cotidiano. Por isso o compromis-
so e a responsabilidade dos participantes do

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


grupo são essenciais: cada um assume uma Para isso torna-se necessário um traba-
posição importante na produção do que se lho prévio de sistematização. As pessoas do
quer obter. grupo irão identificar no produto construí-
Oficina é um lugar de consertos, repa- do aspectos da contribuição de cada um.
ros, criatividade, descobertas, lugar de vida, Para o planejamento de uma oficina
trabalho, transformação, processo de cons- é necessário que o facilitador (a) planeje e
trução. A oficina se constitui num espaço busque, anteriormente, fontes que contri-
privilegiado de criação e descobertas. buam para uma apropriação do saber histo-
Numa oficina, processo e produto com- ricamente acumulado e a problematização
põem uma unidade dialética, que não preten- da temática em questão, assumindo sempre
dem alcançar um objetivo “a qualquer custo”; a postura de coparticipante.
preocupa-se, pelo contrário, com a adequação O facilitador (a), além de planejar e bus- 139
e a sequencia dos passos a serem dados para car as fontes anteriormente assume, durante
que se chegue àquele mesmo objetivo. a oficina, a postura de coparticipante, que
A aprendizagem trabalha as diversas acredita na originalidade da contribuição
dimensões do ser humano como o sentir, o
de cada participante e que, por isso mesmo,
pensar, o agir, a intuição, a cognição, o gesto e
não pode prever qual será o resultado final
a palavra encontram de forma complementar
do processo que é chamado a facilitar.
produzindo uma nova síntese.
Caso sejam várias pessoas a facilitar
Prioriza o aprendizado usando o corpo
ou assessorar a oficina, será necessário que
todo e não só a razão. É por isso que, numa
haja sintonia entre elas. Como cada ex-
oficina, são trabalhadas distintas dimensões
periência tem sua particularidade, requer
do ser humano: o sentir, o pensar, o agir,
ingredientes adequados e combinados de
intuição e razão, gesto e palavra intervêm
e encontram uma nova síntese. Trabalhar forma a corresponder a cada especificidade
com oficinas, portanto, implica em desen- local e conjuntural, a cada público e objeti-
volver a criatividade. Por isso é comum, vo. O prazer de fazer oficina se fundamen-
numa oficina, a introdução de expressões ta exatamente no desejo de experimentar e
culturais e artísticas, como: a dança, a po- aprender algo singular.
esia, a pintura, a modelagem, brincadeiras. Sua utilização deve responder a obje-
O produto que daí nasce terá essa mes- tivos específicos de uma determinada es-
ma marca criativa e pluridimensional, será tratégia educativa, no sentido de estimular
sempre algo concreto, visível: um desenho, a produção do conhecimento e a recriação
uma expressão musical ou plástica, uma co- deste conhecimento tanto no grupo/coletivo
lagem, uma expressão corporal, um cartaz, quanto no indivíduo/singular, uma vez que a
um texto, no qual os diversos sujeitos do técnica da dinâmica não é um fim, mas um
grupo poderão perceber a contribuição de meio - é uma ferramenta a ser usada.
cada um (DARON, 2008).

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Exemplos de técnicas participativas

quanto tempo eu tenho 4. Outra variante é fazer com que os partici-


pantes conversem em dupla e depois utilizem
Objetivo: Provocar desinibição e conheci-
o fósforo para falar o que conhece do compa-
mento do outro.
nheiro.
Material: Som com música alegre, caixa de
5. Usar a dinâmica para perguntar: que signi-
fósforos, um cartaz ou fichas - nomes, de
fica amizade ou ainda, para revisar qualquer
onde é, de que mais gosta, uma alegria, uma
disciplina.
tristeza etc. (Podem-se criar outras conforme
Discussão: Conseguimos expressar os pon-
o objetivo proposto).
tos mais importantes na nossa apresentação?
Como me senti? É fácil falar de nós mesmos?
140 1. Todos, em círculo, o educador (a) distribui
O que significa um fósforo aceso? (marcando
um palito de fósforo, não usado. As fichas de-
tempo) O que significa o fogo? (iluminando).
vem estar em lugar visível.
Resultado esperado: Ter feito uma reflexão
2. Pedir a um participante que risque o fós-
sobre o tempo que estamos na terra e o que
foro. Enquanto o fósforo estiver aceso, vai se
podemos ser para os outros. A maneira como
apresentando, falando de si.
eu utilizo o fósforo é a nossa própria vida.
3. Cuidar para que ele fale só o tempo em que
Analisar todas as situações que aparecem du-
o fósforo estiver aceso. Caso alguém não con-
rante a ação.
siga, o educador (a) poderá usá-lo para que
os outros façam perguntas (pessoais) como Ronildo Rocha, Catolé do Rocha, PB.
numa entrevista. ronildorocha@yahoo.com.br

a construção coletiva do rosto - desenhar o outro olho; - passar a direita e...


completar todo o rosto com cada pessoa colo-
Objetivos: Fazer com que os membros do
cando uma parte (boca, nariz, queixo, orelhas,
grupo sintam-se à vontade uns com os outros.
cabelos).
Aplicação:
d) Quando terminar o rosto pedir à pessoa
a) Orientar os participantes para sentarem em
para contemplar o desenho;
círculo;
e) Orientar para dar personalidade ao dese-
b) O assessor distribui para cada participante
nho final colocando nele seus traços pessoais;
uma folha de papel sulfite e um giz de cera;
f ) Pedir ao grupo para dizer que sentimentos
c) Em seguida orienta para desenhar o se-
vieram em mente.
guinte: - uma sobrancelha somente; - passar
a folha de papel para as pessoas da direita e Fonte: TOGNETTA, Luciene R. P. A construção
pegar a folha da esquerda; - passar novamen- da solidariedade e a educação do sentimento na
te; - desenhar um olho; - passar novamente; escola. Campinas: Mercado das letras, 2009.

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dois circulos tocar a música, cada círculo gira para um lado.
Objetivo: motivar um conhecimento inicial, Quando a música pára de tocar, as pessoas
para que as pessoas aprendam ao menos o devem se apresentar para quem parar à sua
nome umas das outras antes de se iniciar uma frente, dizendo o nome e alguma outra infor-
atividade em comum. mação que o educador (a) achar interessante
Para quantas pessoas: é importante que seja para o momento.
um número par de pessoas. Se não for o caso, Repete-se até que todos tenham se apresen-
o educador (a) da dinâmica pode requisitar tado. A certa altura pode-se, também, mistu-
um “auxiliar”. rar as pessoas dos dois círculos para que mais
Material necessário: uma música animada, pessoas possam se conhecer. 141
tocada ao violão ou com gravador. Fonte: SERRÃO, Margarida; BALEEIRO,
Descrição da dinâmica: formam-se dois cír- Maria Clarisse. Aprendendo a ser e a convi-
culos, um dentro do outro, ambos com o mes- ver. São Paulo: FDT, 1999.
mo número de pessoas. Quando começar a

poesia, música, crônica 8. No seu grupo, responda o que você faria


Finalidade: Consiste em ouvir uma poesia e/ com esse sentimento-palavra trocada.
ou música para ajudar na introdução de um 9. O grupo deve montar uma história com os
assunto ou de uma vivência subjetiva. sentimentos trocados e com a poesia recebida.
Material: Letra (cópia xerográfica ou mi- 10. Cada grupo apresenta no grupão sua his-
meografada) de uma poesia ou canção. tória de maneira bem criativa.
11. Buscar o que há de comum em todas as
Descrição: histórias.
1. Escolher uma poesia ou canção sobre o Comentários:
tema a ser trabalhado 1. Este trabalho leva à reflexão de um tema/
2. Dividir os participantes em grupos. assunto, abrindo um espaço para que as pes-
3. Cada um lê em voz baixa, murmurando. soas falem de um assunto sob diferentes olha-
4. Escolher a palavra que mais marcou, em res.
cada estrofe. 2. Contribui para o desenvolvimento da ex-
5. Gritar essas palavras juntas, bem alto. De- pressão verbal e do trabalho coletivo.
pois bem baixo, até se calar. Fonte: GONÇALVES, Ana Maria. PERPÉ-
6. Andando, procurar sua “palavra-sentimen- TUO, Susan Chiodi. Dinâmica de grupos na
to” com outra pessoa do grupo. formação de lideranças. [S.l.]: Ed. DP et all,
7. Explique, sinta, expresse, toque. 1998.

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colcha de retalhos disso, peça para escolherem pedaços de tecidos
para pintar símbolos, cores ou imagens relacio-
Quantas vezes sentamos ao lado de nossos avós
nadas às suas lembranças. Esse é um momento
ou mesmo de nossos pais para escutar aquelas
individual, que deve levar o tempo necessário
longas histórias que compuseram a vida e a tra-
para que cada um se sinta à vontade ao expres-
jetória da nossa família e, portanto, a trajetória da
sar o máximo de sua história de vida. Quan-
nossa vida? Quantas vezes paramos para pensar
do todos terminarem, proponha a composição
na importância do nosso passado, nas origens
da primeira parte da Colcha de Retalhos, que
de nossa família, e mais, de nossa comunidade?
pode ser feita costurando ou colando os traba-
Indo um pouco mais longe, quantas vezes pa-
lhos de cada um, sem ordem definida.
ramos para pensar de que forma a cultura da
142 nossa cidade e de nosso país influencia o nosso
2ª Etapa - História da Comunidade
modo de ver as coisas? Pois é. Nós somos aquilo
que vivemos. Somos um pouquinho da via de Esta etapa exige muito diálogo entre os par-
nossos pais e avós, somos também um pouqui- ticipantes, que devem construir a história da
nho da vida de nossos pais e avós, da nossa, do comunidade onde vivem. Uma boa dica é pes-
nosso bairro, das pessoas que estão à nossa volta, quisar junto aos mais velhos. O grupo escolhe
seja na cidade ou no país onde vivemos. Isso é o alguns fatos, acontecimentos e características
que se chama identidade cultural. E esta é uma da comunidade para representá-los também
atividade que ajuda a buscar essa identidade - em pedaços de tecido pintados. Pode-se reunir
o que significa buscar a nossa própria história, as pessoas em pequenos grupos para a criação
conhecemos a nós mesmos e a tudo que nos coletiva do trabalho. Todas as pinturas, depois
rodeia. Buscar a identidade cultural é “entender de terminadas, deverão ser costuradas ou co-
para respeitar” nossos sentimentos e os daqueles ladas compondo um barrado lateral na colcha.
com quem compartilhamos a vida.
3ª etapa - História da cidade, país e da Terra
» Tecido - lona, algodão, morim cortados em A partir daqui, a idéia é dar continuidade à
tamanho e formatos variados colcha de retalhos, criando novos barrados,
» Tinta de tecido ou tinta guache (é bom lem- de forma a complementá-la com a história de
brar que o chache se dissolve em água) vida da cidade, do país, do mundo e até a do
» Linha e agulha ou cola de tecido. universo. Não há limites nem restrições. O ob-
jetivo principal é estimular nos participantes a
1ª Etapa - História de Vida
vontade de conhecer e registrar a vida, em suas
Peça a todos os participantes para relembrarem diferentes formas e momentos. Desse modo,
um pouco de suas histórias pessoais e das his- poderão se sentir parte da grande teia da vida.
tórias de suas famílias, pensando em suas ori-
Fonte: DISKIN, Lia; ROIZAMAN, Laura G. Paz,
gens, sentimentos e momentos marcantes, em
como se faz?: semeando a cultura de paz nas escolas.
sonhos, enfim, em tudo aquilo que cada pessoa
Rio de Janeiro: Governo do Estado do Rio de Ja-
considera representativo de sua vida. Depois
neiro; UNESCO; Associação Palas Athenas, 2002.

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descobrindo a quem pertence
Obs.: Esta atividade objetiva, também, es-
1. O educador (a) divide o grupo em duas
tabelecer as relações no grupo. É divertida e
metades.
usa a curiosidade do grupo como detonadora
2. Uma metade do grupo dá ao educador (a)
de uma busca. Pode ser feita no início de um
um objeto de uso pessoal. O educador (a)
grupo e repetida sempre que se deseja um cli-
mistura os objetos e os distribui pela outra
ma mais descontraído.
metade, que sai à procura de seus donos. Não
é permitido falar. Fonte: SERRÃO, Margarida; BALEEIRO,
3. Ao encontrar o dono do objeto recebido, Maria Clarisse. Aprendendo a ser e a conviver.
forma-se par com ele. São Paulo: FDT, 1999. 143

teia da vida apresentam, quem ficou com o novelo deve


Material: um novelo de linha ou de lã devolvê-lo a quem lhe entregou, repartindo
Desenvolvimento: Os participantes se colo- as informações dadas por seu companheiro.
cam em pé formando um círculo. A um deles Este faz o mesmo de tal forma que vai en-
é entregue o novelo. Ele tem que dizer seu rolando a linha em forma de bola e vai refa-
nome, de onde é, tipo de trabalho que faz in- zendo a trajetória anterior, porém no sentido
teresse de sua participação, etc. Depois pega inverso, até que volta ao companheiro que a
a ponta do fio e joga a bola a outro compa- iniciou. É preciso avisar os participantes da
nheiro, que por sua vez deve apresentar-se da importância de estarem atentos durante a
mesma maneira. A ação se repete até todos apresentação de cada um, pois não se sabe a
os participantes fiquem entrelaçados numa quem vai ser lançado o novelo, depois deverá
espécie de teia ou rede. Depois que todos se repetir os dados de quem lançou.

fotografia cena onde todos permanecem congelados.


O educador (a) divide a turma em grupos de O instrutor orienta o grupo para que fiquem
no máximo dez pessoas, e dá um tema para postos no lugar, bate palma e o grupo congela.
cada grupo, desde que os outros não saibam Os demais grupos tentam descobrir a mensa-
(ex.: prostituição, saúde, violência, fome, ale- gem - ou tema. Fazer um debate sobre o que
gria, namoro etc.). O grupo irá montar uma se aprendeu com esta dinâmica.

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rótulos -me / ria de mim/ zombe de mim
O educador (a) cola uma etiqueta em cada Exercício pessoal de revisão de vida e de prá-
participante, sem que o participante veja o tica:
que está escrito nela. Movimentam-se pela a) Recolha-se num lugar tranqüilo, onde você
sala, os participantes devem se tratar uns aos possa ficar em silêncio e confortável.
outros conforme o rótulo que virem na testa b) Retome a sua vida e procure refletir sobre
dos companheiros. Cada um deve tentar adi- ela a partir das seguintes questões:
vinhar que rótulo recebeu. Como vai a sua relação? - consigo mesmo;
Depois de vinte minutos, o educador (a) pede - com o grupo de jovens; - no namoro; - na
para cada um diga o rótulo que recebeu e por- família; - com os(as) amigos(as); - com os co-
144 que sentiu isso. Deve-se conversar também legas de trabalho; - com Deus.
sobre os efeitos que os rótulos provocaram c) Partilhar com seu grupo com os amigos
nas pessoas, se gostam ou não de serem trata- como foi a experiência.
das a partir de rótulos e comparar com o que Fonte:EQUIPE DA CASA DA
acontece na vida real no cotidiano do grupo. JUVENTUDE PE. BURNIER. Dinâmicas:
Sugestões de rótulos: aprecie-me/ ensine- ilhas em alto mar. Disponível em: <www.
-me/ tenha piedade de mim/ aconselhe-me/ mundojovem.com.br/dinamicas/ilhas-em-
respeite-me/ ajude-me/ rejeite-me/ ignore- alto-mar>. Acesso em: 24 jan. 2014.

invertendo os papéis Tempo para discussão, pedindo que anotem


os pontos principais levantados pela equipe.
Objetivo: Refletir sobre os papéis sexuais e os
3. Solicitar que cada subgrupo crie uma
estereótipos vigentes em nossa cultura; possi-
cena que expresse a conclusão a que che-
bilitar o questionamento dos privilégios entre
gou. Pedir que, na cena, os rapazes façam
os sexos, percebendo as diferenças culturais
o papel feminino e as moças, o masculino.
existentes.
4. Apresentação de cada subgrupo.
Material: Papel ofício e lápis.
5. Plenário - compartilhar os sentimentos e
1. Dividir o grupo em cinco subgrupos.
as observações: Como se sentiu incorporan-
2. Dar um tema para cada subgrupo, pedin-
do o papel do sexo oposto? Qual a diferença
do que discutam os papéis, as diferenças e os
existente entre o que você representou e o que
privilégios relativos aos sexos, de acordo com
você faria nessa situação na realidade? Quais
o tema recebido:
as diferenças que são inerentes ao gênero e
* relação marido-mulher;
quais as que decorrem da cultura?
* educação de filhos (as);
* trabalho; Fonte: PROJETO Crescer e Ser. In: SERRÃO,
* namoro; Margarida; BALEEIRO, Maria Clarisse, Apren-
* relacionamento sexual. dendo a ser e a conviver. São Paulo: FDT, 1999.

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aprendendo com as cirandas da vida
Reconstituindo a memória da comunidade: a transformado na realidade) envolvendo basi-
história de luta e resistência camente duas perguntas: O que necessita ser
Reunir a comunidade articulando profissio- transformado (situações-limite e potenciais
nais, gestores, crianças, jovens e adultos do da comunidade) e em que direção se deve
território. Momento de escuta às narrativas seguir(que imagens de futuro ou de sonho ),
da população, sobre suas histórias das lutas o que podemos e percebemos que devemos
localizando imagens de transformação, em transformar e que grupos trazemos para essa
suas potencialidades e desafios. Com as crian- construção. A seguir planejar que linguagem
ças pode ser trabalhada a partir de desenhos, utilizar e o quê se irá socializar no Escambo 145
brincadeiras circenses. Com os jovens a partir de Arte e Saúde, onde os grupos popula-
do teatro, da música, hip hop, poesia, e com res locais apresentam suas expressões sobre o
os adultos em uma roda de contação de his- vivido de forma criativa. Ao final ocorre a
tórias onde se tentará localizar as imagens de construção de pactos e agendas para os atos-
transformação ( direções do que necessita ser -limite.

Cirandas:
Mandei fazer uma Casa de Farinha
Gira essa roda Ciranda
Bem maneirinha pro vento poder levar
Agita essa roda cirandar
Oi passa sol, passa chuva , oi passa vento
Gira sem medo ciranda
Só não passa o movimento do cirandeiro a rodar
Cirandas da Vida estão sem a girar
Ah! foi bom bonito, meu amor brincar, Ciranda
Vida que é vida não pode parar
maneira, vem cá cirandeira, Vem cá balançar

Essa ciranda não é minha só Vou fazer uma farinhada, muita gente eu vou chamar
Ela é de todos nós Quem entende de farinha vem comigo peneirar
Ela é de todos nós... Vou chamar a (o nome) pra comigo peneirar( a pes-
A melodia principal quem diz soa convidada, vai ao centro, peneira junto, a outra sai
É a primeira voz e uma outra é convidada ao centro).
É a primeira voz Quem entende de farinha vem comigo peneirar

Roda de acolhimento:
Na roda a pessoa dá um passo á frente, diz o e dão um passo para esquerda dizendo: e se-
nome, de onde vem, suas expectativas e os ou- guimos em frente. A roda prossegue até todos
tros dão um passo à frente, repetem seu nome, se apresentarem.
dão um passo atrás dizendo: te damos espaço

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reflexões da rede educação popular e saúde. São Paulo: Hucitec, 2001.

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Reflexões e vivências
Educação popular na formação
do agente comunitário de saúde

Hoje em dia, existem aproximadamente 250.000 Agentes


Comunitários de Saúde (ACS) atuando no Sistema Único de Saú-
de no Brasil. (BRASIL, 2011). Importante componente da equipe
de Saúde da Família e responsável pelo contato inicial com a po-
pulação, este trabalhador não necessita ter nem mesmo o Ensino
Médio completo e é contratado sem qualquer formação profissio-
nal. Entre suas atribuições específicas mencionadas no Anexo I da
portaria nº 648 (BRASIL, 2006) consta: “estar em contato perma-
nente com as famílias desenvolvendo ações educativas, visando à
promoção da saúde e a prevenção das doenças...”
A Saúde da Família é apresentada pelo Ministério da Saúde
como a principal estratégia de reorientação do modelo de atenção
à saúde no Brasil. Um dos sentidos da reorientação proposta busca Vera Joana Bornstein
passar de um modelo de atenção centrado na doença e na sua cura Escola Politécnica de Saúde Joaquim
para um modelo onde a centralidade se dê na prevenção de doenças Venâncio (EPSJV)/Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz).
e na promoção da saúde. Fica evidente, portanto, a necessidade da
ênfase das ações e serviços de saúde nos determinantes e condicio- Márcia Raposo Lopes
nantes dos problemas de saúde assim como nas situações de risco Faculdade de Enfermagem da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
encontradas no território. Carmem Teixeira (2006, p. 29) chama a
atenção à complexidade de um processo de mudança do modelo de Helena Maria S. Leal David
atenção à saúde que exige um conjunto heterogêneo de iniciativas Faculdade de Enfermagem da Universidade
“macro” sistêmicas, tais como, a formulação e implementação de do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.

políticas que criem condições para as mudanças ao nível “micro” – o


nível do processo de trabalho em saúde.
Ainda que conscientes desta complexidade, buscaremos aqui
problematizar apenas uma das mudanças que consideramos ne-
cessárias no processo de trabalho em saúde, mais especificamente
na transformação do enfoque predominante das ações educativas
realizadas pelas equipes de saúde da família: no trabalhado em saúde, considerada eixo
de um enfoque de educação em saúde tradi- fundamental para a promoção e a prevenção.
cional, com ênfase em orientações forneci- De uma forma geral, a formação pro-
das pelo serviço para a mudança de hábitos fissional deste trabalhador, tem sido rea-
e comportamentos da população, dirigidas lizada em serviço, sob a denominação de
sobretudo ao indivíduo para um enfoque de curso introdutório ou ambientação, visando
educação em saúde que estimule a análise principalmente a instrumentalização para a
crítica das condições de vida e trabalho da prática. Morosini et al. (2007) se referem a
população, o fortalecimento de sua autono- estes processos formativos como aligeirados
mia e a participação na sociedade. e ressaltam a redução de seu conteúdo às ne-
Abordaremos, neste sentido, duas das cessidades mais imediatas do serviço. Outras
152 questões colocadas acima: a formação profis- de suas características são: o fato desta não
sional do agente comunitário de saúde e como ser regulamentada, não ter pré-requisitos e
parte desta formação, a abordagem educativa não conferir habilitação profissional.
Em 2004, os Ministérios da Educação
e da Saúde aprovaram o Referencial
Curricular para Curso Técnico de Agente
Comunitário de Saúde, com um itinerário
formativo de 1200 horas distribuídas em
três etapas, que se constitui numa proposta
de habilitação técnica destes profissionais.
Esta proposta parte do reconhecimento
da importância desse trabalhador no con-
texto de mudança do modelo de atenção e
do papel social do ACS junto à população
(BRASIL, 2004).
Até o momento, tem sido difícil ga-
rantir a formação técnica completa em
nível nacional. Uma das argumentações
contrárias à realização do curso técni-
co em suas três etapas se fundamenta na
Lei de Responsabilidade Fiscal1, já que
1
Ficou conhecida como Lei de Responsabilidade
foto: Ministério da Saúde

Fiscal a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio


de 2000. Dentre outras coisas, determina que a
despesa total com pessoal não poderá ser maior
do que 50% da receita corrente líquida da União e
60% dos estados e municípios, a cada ano.
estes trabalhadores, ao se tornarem técni- dução cujo aspecto primordial era o de con-
cos, poderiam reivindicar um aumento dos vencimento da população por parte do pro-
salários. Na maioria dos Estados, parte dos fissional de saúde que se julga detentor de
ACS realizou apenas a primeira etapa des- um saber e outra forma fundamentada no
te curso técnico. Algumas das exceções são diálogo, no reconhecimento do saber do ou-
os Estados do Tocantins e do Acre, onde tro, na reflexão crítica sobre a realidade, no
o curso foi finalizado em suas três etapas fortalecimento da autonomia e do trabalho
e uma turma que concluiu as três etapas coletivo. Acreditamos que esta última forma
na Escola Politécnica de Saúde Joaquim de condução do trabalho educativo favore-
Venâncio (EPSJV/Fiocruz), em julho/2011. ce a reorganização do modelo de atenção
Este foi um projeto-piloto da EPSJV, que em saúde, na medida em que amplia o foco
pretendeu contribuir do trabalho em saúde e 153
para o debate em torno Foi categorizada uma primeira estimula a participação
da necessidade de quali- da população na análise
ficação técnica dos ACS
forma de condução cujo aspecto e busca de solução para
e subsidiar sua luta por primordial era o de convencimento seus problemas. Em ar-
melhores condições de da população por parte do tigo de Bornstein, Matta
formação e trabalho. profissional de saúde que se julga e David (2009), é men-
De acordo com a detentor de um saber e outra cionado que as equipes
Portaria nº 648 citada de saúde pesquisadas no
anteriormente (BRA-
forma fundamentada no diálogo, município do Rio de Ja-
SIL, 2006), as atividades
no reconhecimento do saber do neiro desenvolviam pou-
educativas individuais e outro, na reflexão crítica sobre a cas atividades educativas
coletivas nos domicílios realidade, no fortalecimento da na comunidade e que o
e na comunidade estão autonomia e do trabalho coletivo. principal foco do traba-
entre as atribuições es- lho educativo era de con-
pecíficas do ACS. A dimensão educativa teúdos vinculados à prevenção de doenças
assume uma centralidade no trabalho do abordadas pelos programas do Ministério
agente comunitário, sobretudo ao conside- da Saúde. A principal conotação deste tra-
rar o foco na promoção da saúde e também balho estava permeada pelo convencimento
na prevenção de agravos. da população em relação às orientações for-
No entanto, em artigo publicado por necidas pelo serviço.
Bornstein e Stotz (2008/2009), os autores Foi também mencionado o trabalho
procuram diferenciar as formas de condu- educativo não programado, feito pelo agen-
ção do trabalho educativo presentes no pro- te de saúde na comunidade como um espa-
cesso de trabalho de agentes de saúde. Foi ço potencial de trabalho educativo, menos
categorizada uma primeira forma de con- sujeito às normas do trabalho prescrito.

Reflexões e vivências
Buscando justamente favorecer a trans- “Quando o processo educativo é verti-
formação deste quadro, a formação técnica cal, o profissional despeja todo o conteúdo no
dos ACS realizada na EPSJV, coloca a dis- educando que recebe todas aquelas informa-
cussão da educação em saúde como ponto ções sem, no entanto assimilar nenhuma”2. As
central de seu currículo, estando presente nas alunas abordam outra forma de conduzir o
três etapas de formação em que este é dividi- processo educativo quando os profissionais
do. O enfoque privilegiado é o da educação reconhecem o saber dos educandos e tor-
popular e saúde e o trabalho de conclusão de nam a aprendizagem um espaço de troca
curso dos alunos é a construção de um plano de experiência, um processo de busca, for-
de trabalho de educação em saúde. mando pessoas ativas, críticas, que não se
Assim, durante todo o curso, os alunos conformam com qualquer condição impos-
154 foram levados a problematizar as práticas de ta, que refletem sobre o mundo e buscam
educação em saúde realizadas pela equipe modifica-lo.
de saúde da família. Discutiram-se a forma No trabalho de conclusão de curso de
de condução do trabalho, o material edu- um dos grupos, o tema “lixo” foi escolhido
cativo utilizado e os temas abordados nas como conteúdo disparador de um trabalho
atividades educativas realizadas na sala de educativo na comunidade, após um proces-
espera, nos grupos e nas visitas domiciliares, so de priorização dos problemas levantados.
além da construção de outras possibilidades Foram realizadas várias atividades que pos-
de atuação. sibilitaram o aprofundamento sobre a ques-
Os diferentes debates propiciaram aná- tão do lixo, incluindo pesquisa bibliográfica,
lises sobre os efeitos das práticas educativas entrevista a moradores e visitas a instituições
dos agentes, favorecendo a construção de uma que pudessem enriquecer a análise do pro-
visão crítica sobre estas e a compreensão da blema. Na preparação da atividade educati-
proposta da educação popular. Ainda que a va com a população da “comunidade” onde
percepção de cada aluno seja diferenciada, os ACS trabalhavam, optou-se por preparar
podemos mencionar a fala de algumas alunas cartazes com perguntas problematizadoras,
do curso técnico, que sintetizam seus entendi- como forma de buscar encaminhamentos
mentos em relação à educação popular.
que possibilitassem o enfrentamento dos
Fazendo um paralelo do trabalho de
problemas encontrados. As perguntas for-
educação em saúde com o trabalho educa-
muladas pelo grupo de alunas: Aldalice G.
tivo numa escola “professores autoritários, que
Franca, Luciana R. G. Eugênio, Margarette
têm o domínio do conhecimento, não levando
Francisco e Maria José L. S. Custódio. Fo-
em consideração o saber alheio, formam alunos
ram ilustradas com fotos das suas áreas de
passivos preparados apenas para o mundo em
trabalho e moradia, procurando inicialmen-
que vivemos sem questionamento”. 2
te aproximar-se ao problema, perceber se a
2
Escola Politécnica de Saúde. situação era reconhecida como incômoda

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


pelos moradores e posteriormente provocar consideramos necessário ser melhor desen-
um debate sobre causas, consequências e volvido num próximo curso.
possíveis soluções. Algumas das perguntas Acreditamos que a formação técnica
que acompanhavam as fotos foram: “você dos ACS pode ser um importante elemen-
conhece estes lugares? Esta situação te incomo- to para o fortalecimento de um processo
da? O que chama a sua atenção? Como poderí- de trabalho inovador. Neste processo de
amos resolver este problema?” trabalho se inclui o trabalho educativo, que
A forma crítica como o processo peda- por sua vez pode ser de grande importância
gógico foi conduzido na EPSJV possibili- para a mudança do modelo de atenção, na
tou que os alunos se formassem “não apenas medida em que possibilite a expressão das
técnicos agente de saúde, mas cidadãos melhores necessidades e demandas da população, for-
com perspectiva de fazer um mundo melhor”.2 taleça sua autonomia, sua organização e sua
Entendemos que a percepção dos alu- participação na sociedade e, especificamen-
nos em relação às possibilidades de traba- te, na consolidação do sistema de saúde.
lho dentro da perspectiva da educação po-
pular não foi unânime. No entanto, houve,
a nosso ver, um crescimento da perspectiva
crítica de grande parte dos alunos. Ainda
que estivesse prevista a realização de uma
prática educativa com os alunos em suas
áreas de trabalho, este é um elemento que

Reflexões e vivências
Bibliografia

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família. Salvador: EDUFA, 2006. p. 19-58.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Diálogo com práticas populares
de saúde na formação profissional

Conhecimentos construídos nas diversas práticas sociais de


pessoas e grupos, como nas tradições familiares e nas experiências
de vida solidariamente compartilhadas, assim como conhecimentos
técnicos e/ou científicos disponibilizados pelos profissionais de saú-
de, da educação e mesmo pela mídia, vão dando corpo a processos de
enfrentamento de situações adversas, entre elas, a doença. Na cons-
trução do enfrentamento dessas situações, as pessoas buscam apoio
não apenas nos profissionais do sistema de saúde, mas também, entre
outros, dos agentes de práticas populares de saúde, complementando
os sistemas terapêuticos. As pessoas que buscam soluções também
na cultura popular não vêem uma oposição entre esses sistemas (o
Maria Waldenez de Oliveira
médico e a erveira, por exemplo), vêem complementaridade. Na sua
Enfermeira. Doutora em Educação
avaliação, as práticas populares têm algo que as práticas do serviço
e Docente na UFSCar. Coordenação
não oferecem e vice-versa. Suas escolhas advêm de suas visões acerca do MAPEPS. Membro da Rede de
Educação Popular e Saúde (EPS), do
do ser humano e dos significados que suas experiências de vida vão
GT de EPS da ABRASCO e do Grupo
dando aos processos de adoecimento, de cura, ao que é saúde, e doen- de Pesquisa “Práticas Sociais e Processos
ça. Assim, esses significados estão em constante construção, não são Educativos”.

definitivos, assim como as escolhas também não o são. São escolhas Aida Victoria Garcia Montrone
pautadas em avaliações rigorosas da realidade em que estão imersas. Enfermeira Obstetra. Doutora em
Os motivos para a procura por práticas populares são inúmeros. Um Educação e docente na UFSCar.
Coordenação MAPEPS e membro do
primeiro que podemos citar é a centralidade da pessoa (e não da Grupo de Pesquisa “Práticas Sociais e
doença) no processo de cura, o que acarreta maior responsabilização, Processos Educativos”.

empoderamento, autonomia, participação das pessoas nas decisões Aline Guerra Aquilante
e ações. Um outro, decorrente do primeiro, é que, para que a pessoa Cirurgiã-dentista. Doutoranda em
volte ao centro da terapêutica, é vital a relação direta, com vínculos Saúde Coletiva (UNIFESP). Docente
da UFSCar. Coordenação do MAPEPS.
de confiança com o terapeuta ou com o agente da prática popular.
Há também a influência da família no que diz respeito à tradição Fábio Gonçalves Pinto
familiar de procura por práticas populares. Além dessas motivações, Médico Veterinário, Doutor em
Patologia pela UNESP. Docente da
UFSCar. Coordenação do MAPEPS.
Como incluir as
as pessoas percebem maiores benefícios em de saúde, a necessida- práticas populares de
relação aos medicamentos convencionais e de de sensibilizar os saúde na formação
menores reações adversas, assim como refe- profissionais de saúde dos profissionais de
rem o bem-estar geral e a promoção de uma à realidade em que saúde promovidas pelas
boa saúde. Todos esses motivos levam a um estão inseridas as pes-
escolas, universidades,
outro bastante evidente para essas pessoas, soas que atendem. Ou
se bem que pouco considerado: as práticas seja, há uma ética que
cursos técnicos?
populares promovem saúde. Se assim não essas políticas pregam,
fosse, teríamos que rever uma das bases do mas não seguem (ou
conceito ampliado de saúde 1, enquanto ca- seguem de maneira ainda incipiente) uma
pacidade dos indivíduos e da comunidade prática que permita alcançá-la. São poucas
158 de lidar com as adversidades e na melhoria pesquisas que analisam o conhecimento dos
de sua qualidade de vida. Vale ainda dizer profissionais de saúde sobre práticas popu-
que complementar práticas biomédicas com lares, ou mesmo a inserção dessas práticas
práticas populares não é um costume ape- nos currículos dos cursos na área de saúde.
nas das classes populares; além do que, é um Mas aquelas a que temos acesso já são su-
costume bastante tradicional, no sentido de ficientes para nos apontarem um cenário
que isso acontece há muito tempo. preocupante: o conhecimento dessas tera-
Diante desse quadro, descrito no pri- pias se dá pelo senso comum, há pouca ou
meiro parágrafo, podemos concluir que nenhuma discussão sobre elas na sala de
abrir-se para o entendimento desse modo aula, avalia-se as práticas populares tendo-
de enfrentar a doença pode significar uma -se a medicina biomédica como referência,
escuta mais acolhedora pelo (a) profissional algumas “incorporações” de práticas popula-
de saúde e uma atenção à saúde mais inte- res por profissionais de saúde ocorrem após
gral, dialogada com os modos que cada um distorção das referências tradicionais. Por
encontra para construir sua saúde. Mas, pelo outro lado, vemos em alguns contextos que
menos no que se refere à formação profis- estudantes querem e procuram saber mais,
sional em saúde, não é bem assim que acon- que docentes e profissionais aproximam-se
tece, mesmo que constatemos nos vários de práticas populares de saude, como, por
documentos oficiais e políticas brasileiras exemplo, o uso de plantas medicinais.
O início deste projeto de deu em 2005,
1
A saúde é a resultante das condições de alimentação,
quando participantes de uma reunião da
habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho,
transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse ANEPS-SP debatêramos a seguinte ques-
da terra e acesso aos serviços de saúde. Sendo assim, é tão: como incluir as práticas populares de
principalmente resultado das formas de organização saúde na formação dos profissionais de saú-
social, de produção, as quais podem gerar grandes
de promovidas pelas escolas, universidades,
desigualdades nos níveis de vida. (CONFERÊNCIA
NACIONAL DE SAÚDE, 1986). cursos técnicos? Por razões diversas, essas

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


fotos: Arquivo da pesquisa
práticas são invisíveis nos currículos oficiais percebem a cultura popular e suas práticas de
nos cursos de formação profissional em saú- saúde como algo exótico, folclórico, advindas
de. Podemos levantar alguns motivos para de uma tradição oral e, portanto, sem con-
isso: a cultura erudita2, preponderante nes- seqüências comprovadas na cura. Às vezes,
159
sas escolas, aliada ao cientificismo3 e à bio- avaliam que são inócuas (funcionando como
medicina4, preponderantes, por sua vez, na um “placebo” para pessoas susceptíveis), ou-
formação e atuação profissional em saúde, tras vezes avaliam que têm consequências
perniciosas, especialmente afastando os in-
2
Vivemos mergulhados em várias e diversas culturas: divíduos do sistema de saúde e, portanto, do
popular, de massa (especialmente produzida e conhecimento biomédico, prejudicando, as-
divulgada nos meios de comunicação), erudita
sim, o processo “correto” de cura. Além dessa
ou letrada (especialmente produzida, presente e
divulgada nas escolas), entre outras. Essas culturas questão cultural, há também uma questão
circulam entre os grupos. Assim, um estudante de classe, pois como nos alertava Valla, para
de medicina (escola), por exemplo, tomará um muitas pessoas da classe média, os saberes
chá de hortelã (popular) para uma indigestão,
acumulados historicamente entre os pobres
sem ter estudado na universidade sobre ele. Uma
comunidade popular aprenderá sobre ervas num das periferias, dos campos, dos quilombos,
programa de rádio (de massa). Para o propósito neste das florestas, dos rios, etc., advêm de cren-
artigo, estamos enfatizando as relações entre cultura ças e da sua ignorância dos saberes escolares,
letrada presente nas escolas de formação profissional
em saúde e a cultura popular presente nas práticas
baseados nos saberes científicos, biomédicos.
populares de saúde. Mas é importante dizer que há Todos esses fatores juntos, presentes na for-
outras relações em outros espaços, culturas, grupos mação profissional em saúde, têm uma gran-
etc. Esta é apenas uma. de força para construir um muro que coloca
3
Apenas o que é verificável experimentalmente, de um lado os saberes populares e do outro
cientificamente, seja em laboratórios, seja num
os aprendidos na escola, muitas vezes estes
bairro, é válido. Citologia, Anatomia, Fisiologia,
Microbiologia, entre outras áreas de conhecimento, lançando fogo contra aqueles.
são fortes bases para os argumentos cientificistas. Nosso desafio era trazer nossa con-
4
Alguns pilares da biomedicina são, entre outros: o tribuição ao enfraquecimento desse
cientificismo, a supremacia do ser humano sobre a muro, fragilizar argumentos e raciocínios
natureza, e portanto, sua separação dela.

Reflexões e vivências
cientificistas e biomédicos, gradativamen- tempo em que tínhamos clareza da dimen-
te abrindo brechas por onde essas culturas são do desafio, também sabíamos da histo-
conversassem. E, mais do que isso, construir ricidade em que ele estava embebido. Não
propostas concretas e possíveis de serem im- estávamos sozinhos: os povos originários da
plementadas a curto, médio e longo prazo, América Latina e os povos africanos na Di-
para que essa conversa chegasse ao serviço áspora nos antecederam e nos acompanha-
de saúde. A análise feita no parágrafo acima, vam; as demais ações e lutas contra a into-
propiciada por autores acadêmicos, críticos lerância estavam conectadas a este trabalho.
ao cientificismo e à biomedicina, bem como Essa historicidade ao mesmo tempo am-
autores propositivos da educação popular, pliava nossa consciência de mundo, forta-
aliada ao conhecimento popular que nos lecia nossos propósitos e aumentava nossas
era propiciado através de nossos trabalhos responsabilidades e críticas à metodologia e
160 com movimentos e práticas populares, nos a todo o processo que estava por acontecer.
ajudavam a ter uma visão clara da dimensão Estabelecemos, na coerência com o que até
desse desafio. Um desafio que estava posto aqui foi dito, um pressuposto político, teóri-
há 500 anos, pelo menos, para as culturas co e metodológico vital para o projeto: esta
originárias da América Latina, onde a co- ação seria pautada pelo respeito às dinâmi-
lonialidade5 ainda se mantinha fortemente cas próprias dessas práticas populares, de
presente. Tínhamos claro que o projeto fazia quem as exerce e de quem a elas recorre.
parte de um trabalho permanentemente em Foi nesse contexto e com essa visão
construção, contra a discriminação, a into- e desafio que iniciamos um projeto piloto
lerância, o racismo, etc. Assim, ao mesmo junto à Universidade Federal de São Carlos
- UFSCar em 2006, pensado no formato de
5
A colonialidade advém da colonização de paises oficinas para profissionais de saúde em for-
(América Latina, África) pela Europa propiciada por mação. Nessas oficinas, as diversas expressões
uma necessidade econômica e uma visão de mundo das práticas populares de saúde seriam de-
que legitimaram a coisificação de nações inteiras.
batidas e os seus praticantes atuariam como
Esse olhar, essa visão e postura de colonizador se
mantém ainda hoje. Mas se amplia, não sendo apenas facilitadores juntamente com a equipe da
um olhar de um país sobre o outro, mas também, de UFSCar. Montamos a equipe da UFSCar,
uma nação sobre a outra, de uma cultura sobre a com professores(as)/pesquisadores(as) que
outra, de um grupo sobre o outro. A colonialidade compartilham um projeto de atenção à saú-
se expressa, entre outros, na postura de que o mundo de que dialoga com a cultura popular, e nos
se divide em seres mais humanos e seres menos
deparamos com a seguinte lacuna em nosso
humanos. Tal postura justificaria, por exemplo,
as tutelas opressoras de um grupo sobre o outro, o conhecimento: “quem eram e onde estavam
desrespeito dos profissionais às práticas populares de os praticantes dessas práticas populares de
cura, a não inclusão das classes populares no processo saúde em São Carlos?”. Certamente conhecí-
de planejamento das políticas públicas – a não ser amos várias, mas de uma forma assistemática,
apenas como seu “público –alvo”, a verticalização das de nosso cotidiano, de nossas experiências
prescrições. Tudo em nome da qualidade de vida que
de vida. Diante da falta de informação siste-
o grupo de seres mais humanos avalia ser a necessária
para o grupo de seres menos humanos. matizada em São Carlos sobre tais práticas,

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


elaboramos em 2006 o projeto de pesquisa e rias práticas foram mencionadas, algumas
extensão “Mapeamento e Catalogação Inicial mais freqüentes em uma região que em ou-
de Experiências de Educação Popular e Saú- tras. De modo geral, as práticas e praticantes
de de São Carlos”, com o objetivo de identi- mencionados foram: benzimento, erveiros
ficar e localizar as práticas populares e seus e raizeiros, farmácia, centros espíritas, mas-
praticantes. Junto com estudantes da área da sagista, Igreja Católica, Igrejas Pentecostais
Saúde da UFSCar foram realizados estudos e Neo-pentecostais, outras igrejas, Centro
sobre tais práticas, que subsidiaram os proce- Espírita, homeopatia, terreiros, massagista,
dimentos desse levantamento. acupuntura, terapia comunitária, catolicismo
Com base no levantamento, o grupo popular, parteiras.
vem produzindo duas ações: 1) edição de ca- Na 2a etapa, de levantamento de infor-
tálogos com as práticas populares de saúde mações e produção do catálogo, os pratican-
identificadas em cada região geográfica do tes são localizados a partir das indicações 161
município, 2) Curso para obtidas junto aos entrevis-
profissionais de saúde for-
mados ou em formação, que Estabelecemos, na coerência tados na primeira etapa.
Quando a indicação pelo
se configura como um tra- com o que até aqui foi dito, entrevistado não é suficien-
balho coletivo com os (as) um pressuposto político, te, recorre-se a moradores
praticantes. O projeto, além próximos da localidade
de trazer à luz informações
teórico e metodológico vital apontada. Mesmo assim,
detalhadas sobre as práticas para o projeto: esta ação alguns praticantes não são
populares de saúde de São seria pautada pelo respeito às localizados. Houve tam-
Carlos, vem ampliar-se em dinâmicas próprias dessas bém casos em que o local
ações para a formação pro- da prática foi encontrado,
fissional em saúde. práticas populares, de quem as no entanto, havia “fechado”
Até o momento, foram exerce e de quem a elas recorre. ou o (a) praticante havia se
feitos levantamentos em 3 mudado. O roteiro para en-
regiões da cidade. Delimi- trevista foi construído com
tamos as regiões de São Carlos de acordo base nas dimensões das racionalidades mé-
com a divisão feita para o Orçamento Parti- dicas, descritas na literatura especialmente
cipativo, que divide a cidade em 13 regiões. pela pesquisadora Madel Luz. Os (as) pra-
Na 1a etapa, de identificação das prá- ticantes que são localizados e assim permi-
ticas, realizamos entrevistas com agentes tem, são entrevistados(as). Até o momento,
comunitários de saúde (ACS) da Estratégia entrevistamos 33 praticantes.
de Saúde da Família na unidade do bairro O catálogo objetiva mostrar a diversi-
e com freqüentadores (em sua maioria, mu- dade de expressões de práticas populares de
lheres) do Centro Comunitário. Entrevista- saúde em que os moradores da região buscam
mos mais de 150 moradores e cerca de 20 apoio para o enfrentamento das situações de
pessoas de 4 equipes de Saúde da Família adoecimento. São elaborados a partir da sín-
dessas regiões. Nestes 3 levantamentos, vá- tese das informações obtidas nas entrevistas

Reflexões e vivências
com os (as) praticantes. Após essa elabora- práticas dentro das dimensões das raciona-
ção da síntese, ocorre a validação do catálogo lidades médicas. Nossa intenção é mostrar a
junto aos (as) praticantes entrevistados(as). diversidade de práticas populares de saúde
Logo após a validação, é feita a impressão presentes usando um referencial de análise
definitiva e a entrega qualificada. que permite uma melhor compreensão pe-
Os catálogos também são produzidos los (as) profissionais de saúde, geralmente
dentro das dimensões das racionalidades formados dentro de uma visão biomédica de
médicas (morfologia, dinâmica vital, diag- corpo humano e do processo saúde-doença-
nose, sistema de intervenções terapêuticas e -cura. O catálogo é material didático para o
doutrina médica), sendo os conteúdos sub- curso de formação profissional.
metidos à validação pelos (as) praticantes Até o presente momento, foram produ-
entrevistados (as). O texto referente a cada zidos três volumes do catálogo, referentes às
162 prática apresentada no catálogo é extraído regiões mapeadas. No total, foram descritas
de entrevista com o (a) praticante, como já 53 práticas populares de saúde. Os catálogos
apontado acima. Nem sempre, nessas en- estão disponíveis para consulta e download
trevistas, é possível obter informações pre- no site www.processoseducativos.ufscar.br
cisas e completas de cada uma das dimen- (clicar em “projetos”). O catálogo também é
sões das racionalidades médicas. Neste caso, oferecido para cada praticante que participou
apresenta-se no catálogo o trecho ou infor- de sua composição e para o Centro Comu-
mações obtidas da entrevista que mais se nitário que participou da primeira etapa do
aproximam da dimensão que se estava bus- levantamento, em número que avaliarem ser
cando. Assim sendo, não se deve entender necessário. Também é feita divulgação de for-
as dimensões apresentadas em cada prática ma qualificada (entrega pessoal por alguém
no Catálogo como categorizações dos dados da equipe da UFSCar acompanhada por uma
obtidos nas entrevistas dentro da dimensão conversa sobre os objetivos do catálogo, a ex-
das racionalidades, mas como elementos da pectativa de seu uso, contatos futuros e outros
prática que se aproximam de tais dimensões. temas), a escolas de formação (técnica e ou-
Lembrando que o objetivo do catálogo não tras) em saúde, serviços de saúde, nos locais
é de categorização das práticas, mas de sua onde o levantamento foi realizado, Secretaria
apresentação aos profissionais de saúde num Municipal de Saúde, eventos acadêmicos in-
formato que favoreça sua compreensão. ternos e externos à UFSCar.
O catálogo é construído num período
de tempo específico. Possivelmente, outras O curso
práticas/praticantes serão encontradas/os na
região ou mesmo algumas (ns) das (os) que O Curso “Práticas Populares de Saú-
constam do catálogo podem não mais existir de” visa a permitir o conhecimento dessas
naquela região. Não é nossa pretensão que práticas, para que estudantes e profissionais
o catálogo seja completo ou um guia para a ampliem suas visões e suas compreensões de
localização das práticas populares de saúde. ser humano e de mundo, complexificando
Tampouco é nossa pretensão “enquadrar” as e aprimorando suas práticas de cuidado às

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


pessoas e comunidades, e movimentem-se cólogos, nutricionistas, médica veterinária e
em direção ao diálogo com as práticas po- também por estudantes (de graduação e pós-
pulares de saúde na sua atuação profissional. -graduação) de Enfermagem, Fisioterapia,
A primeira oferta, em 2007, caracterizou-se Terapia Ocupacional, Medicina, Psicologia,
como oferta-piloto, sua formatação foi feita Gerontologia, Ciências Sociais, Ciências
de modo participativo com a ANEPS-SP, Biológicas e Educação Física.
profissionais da Rede de Saúde e de Ação O curso tem 28 horas de duração, di-
Social do Município, estudantes dos cursos vididas em 14 encontros de 2 horas. Nos
de Saúde da UFSCar e praticantes da co- dois primeiros encontros, apresenta-se o
munidade. Teve 23 concluintes. Em 2008, contexto do curso e as referências teóricas e
2009, 2010 e 2011 foram 17, 32, 29 e 46 políticas de seu oferecimento. Apresenta-se
concluintes, respectivamente. a Educação Popular e Saúde, os resultados
Os cursos têm sido frequentados por do levantamento das práticas populares de
docentes da UFSCar, residentes, professores saúde e o referencial teórico das racionali-
de Educação Física, enfermeiros, auxiliares dades médicas. Nos encontros seguintes, são
de enfermagem, assistentes sociais, psicólo- apresentadas as práticas populares pelos (as)
gos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, praticantes das regiões onde foi realizado
agentes comunitários, biólogos, dentistas, psi- o levantamento, dedicando-se um encon-

Nossa intenção é mostrar a diversidade de práticas populares de saúde presentes usando um referencial
de análise que permite uma melhor compreensão pelos (as) profissionais de saúde, geralmente formados
dentro de uma visão biomédica de corpo humano e do processo saúde-doença-cura.
fotos: Arquivo da pesquisa

Reflexões e vivências
tro para cada praticante, totalizando-se a levantamento sistematizado de práticas po-
apresentação de 6 práticas. Não é objetivo pulares –referenciadas pela população usuá-
do curso ensinar a prática, mas apresentar os ria de tais práticas – com formação profissio-
aspectos que o (a) praticante considera que nal, esta realizada com os praticantes e com
devam ser apresentados e entendidos pelos auxílio de material (catálogo) com dados
estudantes. Essas apresentações são inter- organizados a partir da realidade da cidade.
caladas com encontros de estudo de textos Assim como as demais ações de Educação
oferecidos pelos (as) praticantes para apro- Popular e Saúde, estas ações almejam cons-
fundamento do estudo e análise das práticas truir uma relação com o Estado capaz de
por grupos de alunos. O produto final do fortalecer a sociedade civil do ponto de vista
curso constitui uma reflexão crítica sobre a popular. Além dessa relevância social, des-
164 inserção, ou não, dessas práticas nos serviços taque deve ser dado à relevância acadêmica,
onde os participantes atuam. Os grupos de uma vez que permite a profissionais e alunos
estudantes debatem e sugerem como cons- dos cursos de Saúde o acesso a informações
truir o diálogo com as práticas populares de sobre práticas populares de saúde em São
saúde nas Unidades de Saúde e nos demais Carlos, podendo ampliar suas formações e
espaços de atuação. Destaque-se que são visões sobre os processos de adoecimento e
propostas “para si mesmos”, ou seja, ações cura, bem como a construção, pelos próprios
que o estudante avalia serem possíveis de re- profissionais de saúde, de alternativas para
alizar dentro de seu espaços de atuação. o diálogo com essas práticas nos serviços de
saúde e outros espaços onde atuam.
Finalizando
O catálogo, juntamente com o curso e Referência
outras ações de divulgação do grupo, auxilia CONFERÊNCIA NACIONAL DE
na divulgação e fortalecimento dessas práticas, SAÚDE, 8., 1986, Brasília. Relatório final.
mostrando que essas pessoas buscam apoio Brasília: Ministério da Saúde, 1986
não apenas nos profissionais de saúde das uni-
dades dessa região, mas também nos agentes
das práticas populares, complementando os
sistemas terapêuticos. As pessoas avaliam que
as práticas populares têm algo que as práticas
do serviço não oferecem e vice-versa.
Trata-se de uma experiência nova, até
onde tivemos oportunidade de perceber em
nossas revisões bibliográficas, bem como nos
eventos que temos participado, pois articula

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Formação profissional e educação popular a partir de
uma experiência curricular em graduação em enfermagem

Este texto retoma alguns aspectos teórico-metodológicos


que vêm orientando as práticas de Educação Popular e sua re-
lação com a formação profissional em saúde, a partir de uma
experiência de desenvolvimento curricular na formação de en-
fermeiros. Entende-se que a incorporação desses aspectos à for-
mação profissional do enfermeiro potencializa a construção de
experiências inovadoras na formação e contribui para o fortale-
cimento da dimensão pedagógica do trabalho de enfermagem.
Para tal, discutimos aspectos fundamentais do trabalho
de enfermagem, a partir da vivência docente na Faculdade de
Helena Maria S. Leal David
Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro -
Faculdade de Enfermagem da
ENF/UERJ, cujo projeto pedagógico tem como eixo norteador Universidade do Estado do Rio de
a proposta pedagógica de Paulo Freire, e de nossas trajetórias Janeiro - UERJ. Membro da Rede
de Educação Popular e Saúde e do
na Rede de Educação Popular e Saúde, espaço de articulação GT Educação Popular e Saúde da
de profissionais de serviços, da academia e representantes dos ABRASCO.
movimentos sociais para a troca de saberes e experiências edu- Sonia Acioli
cativas crítico-reflexivas.
Faculdade de Enfermagem da
Assim, refletimos a interlocução entre os campos da Edu- Universidade do Estado do Rio de
cação Popular, da formação e do trabalho de enfermagem, apon- Janeiro - UERJ. Membro da Rede
de Educação Popular e Saúde e do
tando para a potencialidade da inserção de aspetos teórico-me- GT Educação Popular e Saúde da
todológicos da Educação Popular nos processos de formação em ABRASCO.

Enfermagem, e para a importância de se reconhecer a dimensão


pedagógica do trabalho de enfermagem no seu cotidiano, para
além das tradicionais palestras, grupos e salas de espera.
Educação popular e saúde: trajetória de Fato relevante neste contexto de re-
um campo de reflexões e práticas organização das práticas educativas, a
Conferência Internacional sobre Cuidados
A Educação Popular possui raízes his- Primários de Saúde, em Alma-Ata, 1978,
tóricas no Brasil ligadas aos movimentos apontou para a necessidade do desenvolvi-
sociais de caráter popular. Floresce, a partir mento de estratégias capazes de dar conta da
da década de 1960, com as organizações de diversidade na oferta de recursos, buscando,
suporte a lutas populares, sobretudo a luta ao mesmo tempo, certa uniformidade con-
camponesa, experiências que coincidiram ceitual e metodológica no desenvolvimento
com as propostas baseadas nos princípios das ações de Saúde Pública, incluindo-se as
da Medicina Comunitária, desenvolvida ações educativas.
166 pelas instituições acadêmicas de formação Algumas análises históricas sobre as
médica. Também a Enfermagem de Saú- práticas educativas em saúde têm sido bas-
de Pública começou a incorporar os novos tante críticas quanto ao processo de “domes-
conceitos e metodologias educativas nesta ticação” das classes subalternas decorrentes
época. da visão higienista e das políticas sanitárias

Círcu
Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde Freire
base n
desenvolvimentistas da primeira metade na problematização e na ação comum entre
do século passado (COSTA, 1985, p. 65; profissionais e população” (STOTZ; DA-
MEHRY, 1984, p. 17), justificando a perma- VID; WONG UN, 2005, p. 51).
nência, entre os profissionais de saúde, de um Especificamente em relação à enferma-
certo “ranço higienista” na sua prática educa- gem, um marco foi a experiência de capaci-
tiva junto às camadas populares. tação de Auxiliares de Enfermagem realiza-
O conceito de participação comuni- da em parceria entre o Ministério da Saúde
tária, exposto no documento do Encontro e a Organização Pan Americana da Saúde
Nacional de Experiências de Educação em (OPAS), que ficou conhecida como Pro-
Saúde, de 1981 (BRASIL, p. 9), pretendia jeto Larga Escala. Baseando-se na Teórica
agregar a visão popular sobre os problemas Crítica, o Projeto Larga Escala influenciou,
de saúde, a fim de atender às suas necessi- nos anos seguintes, muitos projetos de ca- 167
dades, quase como uma forma de “corrigir” pacitação, treinamento e reforma curricular
uma visão unilateral dos serviços, que te- da enfermagem (CASTRO; SANTANA;
riam deixado de lado o olhar da população NOGUEIRA, 2002).
ao longo dos anos. Sente-se aqui a influên- A concepção de mundo e do papel so-
cia do pensamento de Paulo Freire, expli- cial da educação na EPS determina que as
citado na necessidade de incluir um olhar ações se baseiem em princípios tais como a
diferente sobre o processo educativo junto busca do diálogo e da escuta do outro; tomar
às classes populares (DAVID, 2002, p. 10). como ponto de partida do processo pedagó-
A relação entre a Educação Popular e gico o saber anterior das pessoas, acreditan-
a Saúde passa a se constituir, de modo mais do que todos têm um conhecimento a par-
claro, a partir das lutas sociais pela saúde tir de suas experiências e vivências, de suas
como direito no movimento de Reforma condições concretas de existência; atenção
Sanitária, que trouxe para o debate a neces- e viabilização de momentos de troca de ex-
sidade de superação das distâncias culturais periências e construção de conhecimento
entre população e profissionais de saúde. entre o saber técnico e o saber popular, o
Vale lembrar que as influências históri- que pressupõe que os diversos saberes são
cas que conformaram a Educação Popular apenas diferentes, e não hierarquizados e
e Saúde (EPS) remontam a contextos an- que a experiência vale tanto quanto a teoria.
teriores à experiência de alfabetização des- A construção compartilhada do conhe-
crita e sistematizada por Paulo Freire, e cimento é pensada como uma estratégia
incluem influências de ideologias como o metodológica
cristianismo, o humanismo e o socialismo,
(...) que considera a experiência cotidiana
que convergem, tendo como eixo o pensa-
dos atores envolvidos e tem por finalida-
mento de Paulo Freire, “numa pedagogia e
de a conquista, pelos indivíduos e grupos
concepção de mundo centrada no diálogo,

Círculo de Cultura, em Angicos, em 1963, onde Paulo


Freire coordenou o processo de alfabetização com Reflexões e vivências
base na realidade de trabalhadores e trabalhadoras.
populares, de maior poder e intervenção e desejos da população demandam o de-
nas relações sociais que interferem na senvolvimento de uma sensibilidade espe-
qualidade de suas vidas (CARVALHO; cial para com as formas de construção dos
ACIOLI; STOTZ, 2000, p. 101). saberes sobre saúde, aí se incluindo as ex-
periências com a arte popular, os projetos
Mais que propor uma metodologia
voltados para lutas na perspectiva de gêne-
educativa, este conceito remete a um ques-
ro e sexualidade, e inclusão de temas como
tionamento sobre o papel da ciência e do
espiritualidade e religiosidade popular, que
conhecimento científico frente às neces-
são eixos importantes no desenvolvimento
sidades e condições desiguais de vida dos
das práticas educativas atuais.
grupos populares, cuja lógica de conheci-
O profissional enfermeiro pode ser
mento do mundo parte do que se conven-
168 considerado um dos sustentáculos do
cionou denominar senso comum. O con-
projeto do SUS, com destaque para sua
ceito dialoga ainda com o pensamento de
atuação no campo das práticas, da docên-
Santos (2004), que pressupõe uma ecologia
cia e da pesquisa em Saúde Pública e Saú-
de saberes e de práticas onde a pluralidade
de Coletiva.
de conhecimentos e as interações entre es-
A profissionalização é analisada na
tes são fundamentais para a construção de
perspectiva da constituição de sujeitos pro-
conhecimentos.
fissionais, como coletivo que domina um
Os processos de comunicação e produ-
saber técnico-científico específico, norma-
ção de ideias na Educação Popular e Saúde
lizado, legitimado do ponto de vista social e
se aproximam da composição de “socie-
juridicamente sancionado, definido a priori,
dades em rede”, cujas características são a
com delimitações mais ou menos claras a
fluidez, a mobilidade, a mutabilidade e a
respeito do que o enfermeiro deve e pode
instauração de laços incertos, em renovação
fazer, numa concepção carregada de abs-
permanente (STOTZ; DAVID; WONG
tração e generalização (ALMEIDA; RO-
UN, 2005). No entanto, se, por um lado, o
CHA, 1997, p. 17).
estabelecimento de relações em rede amplia
Desde um olhar baseado na concep-
sua capilaridade de ação nos diversos espa-
ção dialética da historia, não se pode des-
ços sociais, por outro, a fragilidade destas
vincular o trabalho das reais e concretas
relações e sua intensa mutabilidade criam
condições de produção e reprodução da
possibilidades de construção de conheci-
existência. Num sentido teleológico, o que
mentos híbridos e de difícil diálogo com os
o trabalhador busca como objetivo já se ex-
saberes hegemônicos já instituídos nas ins-
pressa idealmente em sua imaginação, des-
tituições de saúde ou de ensino.
de o início; mas o resultado final dependerá
Os desdobramentos de se trabalhar
também das condições concretas de produ-
educativamente a partir das necessidades
ção do trabalho (LESSA, 2002, p. 97).

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


A dimensão educativa foi sempre enfati- algo a dizer sobre a saúde do outro, discurso
zada no trabalho de enfermagem, a nosso ver, socialmente legitimado pela profissão.
mais que em outras profissões. Mesmo reco- Esta assimetria é internalizada e na-
nhecendo-se o enfermeiro como educador, a turalizada no cotidiano do trabalho de
ação educativa tende a se desenvolver como enfermagem. O enfermeiro nem sempre
uma ação técnica componente ou adicional ao reconhece a responsabilidade e potenciali-
conjunto de práticas profissionais, em lugar de dade pedagógica do seu trabalho. Pode-se
uma dimensão inerente à prática profissional. afirmar que este distanciamento, além de
Com frequência, esta dimensão é referida comprometer a autonomia do trabalhador,
como mais uma responsabilidade ou tarefa do é um elemento capaz de aprofundar ainda
enfermeiro a ser incorporada ao processo de mais a assimetria na relação com os usu-
trabalho e tende a reproduzir a racionalidade ários. Além disso, é marcante a influen- 169
biomédica hegemônica (ALMEIDA; RO- cia da lógica taylorista na organização do
CHA, 1997, p. 21). trabalho de enfermagem, sendo que esta
A marca do trabalho de saúde é a relação lógica se estende às ações educativas, di-
entre sujeitos - profissionais ficultando a superação
e usuários - dos serviços.
Mehry (2005, p. 45) situa-
Uma concepção ampliada de da alienação no traba-
lho (RIBEIRO; PIRES;
-o como produção em ato, educação como mediação social BLANK, 2007, p. 439).
retomando a categoria mar- devolve às práticas educativas seu Uma concepção am-
xista de trabalho vivo. No sentido histórico. pliada de educação como
trabalho de enfermagem, a mediação social devolve às
ação que o produz e o produto final não se se- práticas educativas seu sentido histórico.
param (RIBEIRO; PIRES; BLANK, 2007, Esta ressignificação é o que, por sua vez,
p. 438). O espaço do cuidado é este espaço de permite aos sujeitos reconhecerem o coti-
intersecção, de produção de intersubjetivida- diano como espaço de mediação possível
de, onde o trabalho vivo se dá, e a dimensão entre o individual-particular e o genérico-
educativa permeia este espaço, não se cons- -histórico (HELLER, 1991, p. 37). Neste
tituindo em dimensão adicional ou externa a sentido, é ferramenta que amplia a autono-
ele. A assimetria na relação entre profissionais mia dos profissionais de saúde como, em
e usuários é uma das preocupações ressaltadas cada relação com o usuário.
pela EPS (VASCONCELOS, 1998, p. 40; Acioli (2001, 2003) debate o conceito
DAVID, 2001, p. 102). Questiona-se o fato de prática relacionando-o ao de práxis, de
de que, nesta relação, é o profissional de saú- modo a facilitar o seu uso como ferramenta
de quem pauta, coordena e controla a relação para a reflexão. De especial interesse para
pedagógica. Na relação com o paciente ou a a presente discussão, o conceito de práxis
coletividade, o enfermeiro é aquele que tem é entendido como dimensão que engloba

Reflexões e vivências
tanto a ação objetiva do homem quanto desenvolvimento de ações educativas como
suas produções subjetivas, articulando ações atividade ou procedimento específico, e sim
e intenções, como superação da alienação. de reconhecer o potencial pedagógico do
No sentido proposto por Bourdieu trabalho de enfermagem como um todo.
(1983), as práticas e suas representações são Nesta perspectiva, retoma-se uma con-
estruturadas a partir do habitus. As práticas cepção integradora a respeito do trabalho
são, ainda, fruto de uma série de condições como prática social.
relacionadas ao contexto social, político,
econômico, e a aspectos da ordem do dese- Aprendizado a partir de uma
jo e da conveniência dos grupos envolvidos. experiencia curricular que busca
Enquanto produto de uma relação dialéti- incorporar a educação popular e saúde
170 ca, a prática é expressão da relação entre as
Ressaltada a dimensão pedagógica no
condições sociais de produção do habitus
trabalho da enfermagem, apresentamos as
e as condições do exercício desse habitus
linhas orientadoras de uma experiência pe-
(BOURDIEU, 1983, p. 65).
dagógica de formação profissional, desen-
Consideramos a EPS como campo de
volvida na Faculdade de Enfermagem da
idéias relevantes para o fazer da Enferma-
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
gem, uma vez que a ação pedagógica crítica
(ENF/ UERJ), para destacar algumas ques-
permite ao trabalhador, ao mesmo tempo
tões sobre a relação entre EPS e a forma-
em que se torna mais sensível ao sofrimento
ção do enfermeiro. O processo de mudança
do outro, avançar numa análise mais apro-
curricular na ENF/UERJ iniciou-se a partir
fundada sobre as relações entre condições e
da percepção do corpo docente e discente
modos de viver e a produção da saúde, para
acerca da necessidade de preparar profissio-
além dos processos biológicos imediatos. Ao
nais cuja atuação pudesse estar mais voltada
buscar uma prática educadora transforma-
para os fatores que conformam a realidade
dora, o enfermeiro transforma-se, ao mesmo
do nosso país, ou seja, um enfermeiro que
tempo, como trabalhador, pela ampliação de
pudesse articular dinamicamente ensino,
sua consciência crítica sobre seu próprio
trabalho, comunidade, teoria e prática (Fa-
processo de trabalho e como educador. Esta
culdade de Enfermagem – UERJ, 2005).
subjetivação do trabalho permite-lhe ressig-
Essa percepção traduziu-se em vontade
nificar sua prática, para além das normas e
política de mudança a qual se articulou ao
rotinas impostas pelo trabalho prescrito.
movimento nacional de reforma curricular
Defendemos, aqui, que a dimensão
que culminou com a elaboração do novo
educativa possa ser reconhecida como prá-
Currículo Mínimo para Formação do En-
xis e como atitude educativa, uma respon-
fermeiro, publicado na Portaria MEC/1721
sabilidade inerente ao processo de trabalho
de 16/12/94.
de enfermagem. Não se trata de propor o

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


No âmbito da Fa-

foto: Ministério da Saúde


culdade de Enfermagem,
acordou-se como prin-
cípio que as propostas
deveriam estar pautadas
nas diretrizes da organi-
zação do Sistema Único
de Saúde, e na defesa da
cidadania da população
brasileira. Em dezem-
bro de 1994 a Faculdade
optou por uma refor- 171
ma curricular que rom-
peu radicalmente com o
modelo anterior, dando Não se trata de propor o desenvolvimento de ações educativas
então origem ao currícu- como atividade ou procedimento específico, e sim de reconhecer o
lo integrado. Mudou-se potencial pedagógico do trabalho de enfermagem como um todo.
o paradigma pedagógi-
co, adotando-se a Teoria suas bases teórico-metodológicas. O desen-
Crítica da Educação como referencial, e in- volvimento de ações extensionistas junto a
cluindo metodologias pedagógicas na linha grupos sociais populares em determinadas
da problematização. Ainda que no Projeto localidades no município do Rio de Janeiro
Político Pedagógico não esteja explicitada a tem sido uma experiência importante para
aproximação com a Educação Popular, este aproximar docentes/estudantes/profissio-
se aproxima, em termos conceituais e práti- nais de saúde dos vários contextos sociais,
cos, desta perspectiva. culturais e econômicos existentes, facilitan-
Transforma-se a reflexão acerca do eixo do a possibilidade de diálogo e a troca de
condutor da compreensão sobre o processo saberes na perspectiva da educação popular.
saúde-doença, partindo agora da compre- Os projetos rompem com o antigo pa-
ensão do próprio adoecimento enquanto radigma assistencialista associado à prática
um processo de complexas determinações extensionista, desenvolvendo-se de modo
sociais, econômicas, políticas e biológicas, articulado ao ensino, como mediação entre
estreitamente relacionadas com a qualidade instancias produtoras de saberes sobre saú-
de vida das populações. de, ressaltando a dimensão pedagógica crí-
Entendemos, ainda, que o currículo tica da prática profissional e alertando para
também é composto por vivências e pro- o fato de que a produção de conhecimentos
jetos que direta e indiretamente reforçam

Reflexões e vivências
pode se dar de modo compartilhado e inte- balho, objetiva-se em um dos cenários de
grado à dinâmica de vida das comunidades. prática, consolidar algumas competências
Busca-se desenvolver a proposta de in- básicas para a atuação em enfermagem de
tegrar as áreas de conhecimento em todos saúde pública, por meio da atuação super-
os períodos acadêmicos que compõem a visionada em comunidades, na perspectiva
formação do enfermeiro, buscando privile- de integração dos saberes e habilidades,
giar a experiência do aluno para a sistema- progressivamente construídos nos períodos
tização do conhecimento. anteriores.
Nas aulas teórico-práticas, por meio da Assim, ao mesmo tempo em que é ca-
problematização, privilegia-se a experiência paz de prestar cuidados e orientações bá-
do aluno para a sistematização do conhe- sicas a uma gestante por ocasião da visita
172 cimento e teorização. Como um exemplo, domiciliar, o estudante é também capaz
podemos citar o desenvolvimento das aulas de identificar o perfil epidemiológico da
sobre políticas de saúde, comunidade onde esta
nas quais se incorpora Acreditamos que a partir desses reside, estabelecendo a
a vivência do estudante “pequenos movimentos” que relação entre os níveis
sobre o que significa ser ocorrem no ambiente pedagógico dos determinantes e con-
atendido no serviço pú- dicionantes das situações
blico de saúde, criando
podemos alimentar “grandes de saúde e os modos de
uma atividade que impli- movimentos” que resultem na viver das pessoas da co-
ca em buscar algum aten- ampliação da competência técnica, munidade.
dimento na rede, recupe- da consciência crítica e, da Acreditamos que a
rando, posteriormente, autonomia do futuro profissional. partir desses “pequenos
por meio da sistematiza- movimentos” que ocor-
ção, uma vivencia concre- rem no ambiente peda-
ta de sentidos, observações e reflexões críti- gógico podemos alimentar “grandes mo-
cas sobre o Sistema Único de Saúde, seus vimentos” que resultem na ampliação da
princípios e problemas a serem superados. competência técnica, da consciência crítica
A utilização da problematização como e, da autonomia do futuro profissional. Es-
método pedagógico é também um recurso pera-se formar um profissional que, partin-
para o ensino de epidemiologia e de con- do das diversas situações de realidade en-
teúdos da saúde pública, já que várias ati- contradas, esteja apto a identificar e intervir
vidades de ensino são realizadas através de sobre determinantes, riscos e danos a saúde,
aulas teórico-práticas, desde o ingresso na de acordo com as competências definidas
graduação. Nos últimos períodos do cur- para o profissional enfermeiro.
so de graduação – denominado internato
- onde se dá a vivencia do mundo do tra-

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Considerações finais elementos impulsionadores de novas vivências,
tendo algumas delas, ocorrido em parceira com
Como enfermeiras envolvidas na forma-
a ENF/UERJ, contando com a participação de
ção profissional em saúde parece-nos funda-
alunos de graduação, especialização, mestrado
mental dar vida ao ensino, fazer com que os
e bolsistas de extensão. Também nos encon-
momentos de aprender e de ensinar tenham
tros e seminários da ANEPS-RJ procuramos
alegria e sentido, que incluam todos os su-
estimular a participação discente, entendendo
jeitos envolvidos nos processos de ensino-
estes espaços de interlocução como elementos
-aprendizagem na perspectiva de construção
potencializadores não apenas das lutas pela
de formas de um conhecimento sensível.
conquista da saúde, mas também da atuação de
Uma construção coletiva não é uma
enfermeiros comprometidos com um projeto
tarefa fácil. Há que se exercitar tolerância,
profissionalismo, capacidade para tomar
coletivo de saúde. 173
Nós, enfermeiros envolvidos com a
decisões, objetividade, e principalmente co-
EPS, estamos mudando, e fazer esta mu-
ragem para mudar - mudar como professor-
dança dentro dos espaços acadêmicos tem
-enfermeiro, mudar como pessoa.
sido uma experiência ao mesmo tempo di-
Nossas atividades no campo da EPS têm
fícil e gratificante. Este tem sido um pro-
trazido importantes lições para nossa atuação
cesso repleto de contradições e um campo
docente. Torna-se muito claro que os proces-
de embates políticos, mas também de es-
sos de aprendizagem acontecem na vida e não
treitamento de laços entre a academia, co-
apenas dentro dos currículos e das instituições
munidades e movimentos sociais. Espera-
formais. Neste sentido, a EPS, por meio dos
mos com esta discussão contribuir para os
princípios do diálogo, do respeito à diversida-
debates sobre a formação e o trabalho de
de e da valorização de sujeitos coletivos nos
enfermagem, na perspectiva de uma prática
permite avançar numa formação profissional
profissional comprometida com um projeto
voltada para a construção cotidiana do projeto
social mais amplo de mudança.
de saúde do SUS.
Há que se reconhecer os limites que qual-
quer estrutura curricular impõe ao aprendiza-
Referências
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58, 1998. Suplemento 2.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Outras palavras
Aprendendo - e ajudando - a olhar o mar:
das muitas saúdes, culturas e artes na educação popular

“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o


para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do
outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enf im
alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar
estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu
fulgor, que o menino f icou mudo de beleza. E quando f inalmente con-
seguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!”
Eduardo Galeano, em “O livro dos abraços”

A sensação mais salutar de mundo, posso afirmar, é a vivência


espantada do infinito. A percepção profunda de que ele é algo que
não acaba, e que estamos mergulhados nele - como esse mar visto Julio Alberto Wong-Un
pela primeira vez que deixou o menino mudo de beleza. Mas o co- Universidade Federal Fluminense -
Instituto de Saúde da Comunidade
tidiano contemporâneo, bombardeado de imagens, textos e sinais, a - Departamento de Saúde e Socie-
cada segundo das nossas vidas, tende a nos anestesiar - ao banalizar dade - Grupo Temático de Educação
Popular da ABRASCO.
e simplificar tudo; ao transformar o singular e precioso em produto
de consumo e de produção em série. Tudo igual. Tudo rápido, dige-
rido e descartável.
Está ali uma luta valiosa e fundamental para a pessoa humana:
resistir, recuperar e fazer florescer essa qualidade delicada e sensível
que é a busca fundamental pelo “Ser Mais”, de que falava Paulo
Freire; de ir Além de Nós Mesmos - a transcendência, mencionada
por Leonardo Boff e outros; ou, ainda, de tentar manter o olhar de
principiante de que nos falavam os budistas Zen. E para isso neces-
sitamos urgentemente ficar mais vezes “mudos de beleza”; sozinhos,
e com Outros que nos “ajudem a olhar”. E aqui vai uma afirmação
inicial: assim como na educação, e assim como na saúde, na arte e
no trabalho cultural os processos fundamentais são feitos de manei-
ra compartilhada, em diálogo profundo, em contraponto criativo.
Somos com os Outros. O artista, por mais temente único e monolítico, tem produzi-
que teime, nunca é um solitário isolado; ele do cismas entre as diversas dimensões da
foi feito de Outros e com Outros. experiência humana. E, como consequên-
O poema, a peça de teatro, o conto, a cia, um ordenamento social e simbólico:
canção, o boneco de argila, a renda, a dança aquilo que é mais próximo ao exato, das
leve, a pintura intensa, a acrobacia de cir- equações e cálculos, e da produção tecno-
co, a massagem, a carícia que cuida... tudo lógica é mais valorizado e beneficia-se de
absolutamente, na Arte, se faz em dança mais recursos e bens materiais. No senso
socializada. Seja o “popular”; seja o “eru- comum, a Ciência representa hoje a Ver-
dito” - assim, com grandes aspas. Na alma dade. E as outras dimensões - como a arte,
criativa do artista faz-se a alquimia de todas a espiritualidade, a intuição, o desejo, os
180 as culturas. Sem planejar diretamente, sem indícios, ou as conversas de improvisação -
calcular, sem saber ao certo no que vai dar. foram ficando às margens dessa hierarquia
Mas sempre enraizado na voz de Todos. Há de saberes “legítimos”.
um canal misterioso, que ciência e reflexão É minha proposta contrária, e a
teórica explicam muito pouco, entre a obra de muitos outros autores, críticos desse
singular dos artistas e as ricas dinâmicas vi- Projeto de Modernidade e de Mundo, que
vas de uma cultura - feita de muitas e mui- essas dimensões nunca deveriam ter sido
tas vontades, desejos, matérias, percursos, separadas. E que elas acontecem sempre de
caminhos, construções, etc. forma articulada e interpenetrada, como o
Porém, voltando à questão inicial sobre sugerem inúmeras metáforas de sabedoria e
o Infinito: já faz quatro séculos que a Ci- filosofia antigas. O que Ciência ou Religião
ência - pelo menos a parte mais poderosa pretendem separar, rasgar ou escindir o co-
dela - vai nos dizendo que tudo pode ser tidiano e a produção da vida das pessoas
compreendido, tudo pode, potencialmente, tende a juntar e misturar.
ser delimitado, analisado e entendido pelas Antes da Ciência Moderna, e ao longo
suas partes. O mundo seria um imenso e de muitos séculos, foi a religião institucio-
complicado quebra-cabeças que poderá um nalizada, sob a forma das grandes Igrejas -
dia ser completamente catalogado, negando em especial a do Vaticano - que se colocava
o infinito. O Mistério só existirá enquanto como a única verdade, de maneira talvez
houver resquícios de ignorância. Existiriam mais direta e violenta, mas igualmente to-
Leis Naturais Universais, mensuráveis. A talitária. O sonho universal da ciência de
História teria um “motor” que levaria, ne- certa maneira é herdeiro da religião, embora
cessariamente, a um único Destino Social, tenha sido a resistência a essa um dos seus
a uma ordem inevitável. Esse sonho, bonito, principais motores. Tanto na Igreja como na
mas tolo, que até hoje faz parte de um pro- Ciência, os saberes e culturas “comuns” ou
jeto ideológico de Ordem Mundial, aparen- “populares”, são ignorados ou desprezados

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


como coisas de ignorantes que devem ser excluídos, os oprimidos, os mais pobres. Es-
superadas. Assim, os dois são projetos his- ses autores, como E.P. Thompson, Josué de
tóricos para englobar toda a experiência Castro, Milton Santos, Peter Burke, José de
humana - mas excluindo o “povo ignoran- Souza Martins, Mikhail Bakhtin, Antônio
te”, o estranho, aquilo que foge às frontei- Gramsci, Rosa Luxemburgo, Edward Said,
ras “abissais” na definição de Boaventura de Carlo Ginzburg, Noam Chomsky, Boaven-
Sousa Santos. Aquele saber feito de expe- tura Santos, dentre outros, permitem hoje
riência, e feito da tradição e da cultura de uma aproximação mais cuidadosa e respei-
um grupo: “saber de experiência feito”, dizia tadora às chamadas culturas populares, com
Paulo Freire. suas criações, formas culturais próprias,
Mas todo projeto Total (que ambiciona dinâmicas de relação com outras culturas
abarcar e explicar o Mundo) vai gerar his- e lógicas de pensamento e ação, de prática 181
toricamente dissidências e rupturas. E, me- e reflexão, diferenciadas das produções dos
lhor ainda, irá produzir novas criatividades, outros grupos.
e percepções do que é e do que pode ser. É a partir da leitura desses e outros
Uma ordem férrea sempre autores; mas, principalmente
é correspondida com de- O que Ciência ou Religião a partir da experiência
sordens criativas. E duran- pretendem separar, rasgar de espanto, aprendizado,
te muitos anos, séculos até, ou escindir o cotidiano e a compartilhamento, e criação
a Ciência definiu o que era junto aos artistas, esses
permitido como Verdade.
produção da vida das pessoas seres extraordinários e
Isso foi mudando, especial- tende a juntar e misturar. comuns, que dialogaremos
mente ao longo do século nestas páginas.
XX. Surgiram propostas novas, alternativas, Privilégio aqui a experiência porque o
algumas solidárias e situadas, que aos pou- viver cotidiano das pessoas, organizadas em
cos foram se fortalecendo - sem chegar a grupos sociais e culturais, é um viver imbu-
ser hegemônicas ou predominantes. Bons ído das lógicas da prática. Uma das caracte-
exemplos são a Física Quântica, as Ciências rísticas dessas lógicas é a pluralidade, além
da Religião, a Micro História, a Biologia do de certas formas de pragmatismo. As pessoas
Conhecimento, os estudos sobre outras Ra- vão, contextualmente, aceitando ou rejeitan-
cionalidades Médicas e Terapêuticas, o es- do propostas e ofertas de “verdade”, “bom”
tudo dos Mitos de Joseph Campbell, e tam- e “melhor”. Permanentemente, mesmo que
bém a Pedagogia Crítica de Paulo Freire. muitos não percebam, pessoas comuns e
Vale lembrar que, fato fundamental para grupos estão sempre criando, questionando e
nossa reflexão, Paulo Freire, e outros, cons- inventando. Tudo o que é ofertado é filtrado,
truíram o pensamento crítico ao longo do digerido, refeito, e re-interpretado como nos
século XX, posicionado e solidário com os ensinam autores como Victor Valla, Carlo

Outras palavras
Ginzburg e José de Souza Martins. Acontece a Educação Popular; e esses diálogos de-
assim também com as Dimensões Invisíveis veriam ser aprofundados. Ainda, limitar a
da experiência social - como a espiritualida- Educação Popular em Saúde a um “popu-
de, a religião, a arte, as emoções, e a intuição, lar” rígido, e “oficializado”, contraria a ideia,
dentre outras formas tênues ou invisíveis de uma das bases dessa proposta, que os gru-
produção social. pos populares têm as habilidades e conhe-
Neste texto abordarei alguns aspectos cimentos necessários para a incorporação
da complexa dinâmica pessoal e social que crítica - na lógica própria e particular des-
acontece entre: as muitas formas de arte; as sas culturas - de saberes diferentes. Muitos
culturas onde essas são criadas e que deter- estudos mostram como, no mundo atual,
minam suas formas e significados; e o am- as culturas dialogam, entram em embate e
182 plíssimo mundo da saúde - rico em facetas, acordo, e se misturam em mestiçagens e hi-
nuanças e singularidades, mas também cul- bridações.
turalmente definido e ligado fortemente às Estas reflexões iniciais são importantes
estruturas sociais. para entrarmos agora nas relações entre cul-
O fato desta reflexão fazer parte do turas, artes e saúdes - todas elas em plural,
mundo da Educação Popular em Saúde não porque assim, de fato é o mundo: diverso,
nega essa complexidade. Considero redu- multiforme, cheio de detalhes sutis, e - qua-
cionismo pensar que a Educação Popular se sempre - novos, inesperados. A criação
esteja limitada ao que se considera “Popular” - parte central da arte - é assim.
- sendo que essa consideração ou definição, É verdade que não iremos cobrir todas
ela própria, está marcada pelas condições de as possibilidades. A visão e a discussão
sua produção conceitual e simbólica e de- iniciadas aqui sobre o Infinito, o Diverso,
pende de “quem” define, e como é “usada” o Singular e o Próprio servem de boa
essa definição. Pelo contrário, assim como justificativa para a parcialidade. Mas na
a Educação Popular é uma forma rica de parte também podemos intuir o Todo.
Ação Cultural para valorizar e impulsionar
as criatividades periféricas - artes, práticas, A arte como as mil faces de Brahma
saberes e sabedorias - ela também é um
Brahma, uma das principais deidades
projeto de compreensão e leitura profundas
da religião védica - na Índia e em países
do Mundo, onde diversos saberes e formas
próximos, é representado quase sempre
culturais podem ser apreendidos, pensados
como tendo quatro cabeças. Em cada cabe-
e misturados. Muitas propostas reflexivas e
ça vários rostos. O que a pedra tenta sugerir
de ação, vindas dos mais diversos campos
é o que os mitos contam: Brahma, criador
(como ciências humanas, sociais, literatura,
do universo, teria mais de mil faces. Elas se
etc.), incluindo muitos dos autores acima
manifestariam dependendo da natureza do
mencionados, dialogam muito bem com

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


observador. Para cada observador Brahma amorosas da cultura. Duas formas expulsas
mostrava uma variante das mil faces - ou do jardim dos Saberes Autorizados: a arte
das suas combinações. Nunca, ninguém, foi relegada à forma de divertimento e de
conseguia definir com certeza como era o desviar a atenção das massas; e a Saúde fi-
rosto dele. Assim as Artes. São infinitas. cou invisível porque somente se elaboraram
As Artes nos acompanham desde o saberes e discursos sobre a Doença.
começo da Humanidade. Talvez antes, des- Qualquer arte tem origem social e tem
de nosso ser Animal, membros da imensa efeitos sociais e culturais que os próprios ar-
comunidade dos bichos, das árvores, das tistas ou artesãos - e colocamos aqui os dois
águas. Mas elas sempre surgiram: intensas, no mesmo nível - não imaginam. Efeitos,
coloridas, sonoras; ou silenciosas e contem- alguns, de muito fôlego e longo prazo.
plativas. Luxuosas, dionisíacas; ou simples, Muitos grupos, organizações e movi- 183
cotidianas, humildes. To- mentos criam formas de
das as formas de arte, to- arte que fazem parte da
dos os rostos de Brahma. Duas formas expulsas do jardim própria identidade coleti-
Diante de um mundo va, dos símbolos de uni-
cada vez maior - somente
dos Saberes Autorizados: a
dade ou de uma tradição
nos últimos 150 anos que
arte foi relegada à forma de de comunidade. Formas
o mundo começou a se divertimento e de desviar a próprias, mas que bebem
apequenar - as pessoas, atenção das massas; e a Saúde das culturas - locais e glo-
em diálogo, e em criação ficou invisível porque somente se bais. Criações pessoais de
singular, fomos criando e elaboraram saberes e discursos artistas - todo e qualquer
criando. Arte como saber tipo de artista, criador de
do mundo, arte como in-
sobre a Doença. qualquer forma de ex-
terpretação do muito que pressão - são abraçadas e
vivemos, como tradução das emoções e pai- modificadas amorosamente pelos coletivos.
xões. Arte como representação do Divino, Muitas vezes o artista custa a reconhecer
ou como presente e prece para esse Divino. aquilo que semeou, sob a forma de obra de
Arte como transgressão e celebração do arte.
proibido. Arte como forma de amar - aliás, Mas aqui, nesta parte da reflexão vale a
arte amorosa dos corpos belos; belos porque pena abordar duas questões centrais à Arte
se amando. E Arte como forma de cuidado, e às suas construções: a criação e a experi-
cura, saúde. A Arte como Saúde. ência poética.
As Artes proliferam, florescem, povoam A pessoa humana é criadora. Mesmo
o mundo com sabedorias intuitivas, com presa em redes de exploração e alienação,
formas diferentes de amar e dançar com este incitada a ser um autômato consumista,
e outros mundos. Artes e saúdes são formas cria. E criar é transformar, questionar, rever,

Outras palavras
pensar de outra forma, quebrar a forma co- Freire, que todos podemos criar, é afirmação
mum de ver as coisas. Criar também é uma perigosa, que questiona uma das bases da or-
forma de ser mais, de ir além de nós mes- dem excludente: que alguns pensam, alguns
mos, de mergulhar em realidades delicadas criam e outros só obedecem, produzem ma-
e pouco conhecidas - o mar do desconhe- nualmente, e consumem.
cido. A criação é a invenção de mundos, a Descobrir-se criador. Potencializar
criação de planetas e galáxias. essa dimensão do Humano, e descobrir
Todas as formas de criação são possí- que a criação é ato político que também
veis e válidas - da arte humilde da dona de pode transformar o mundo é tarefa fun-
casa que se distrai, do artesão que luta pelo damental da Educação. Segundo os pen-
sustento diário, do poeta emocionado nas sadores da linha crítica - que a educação
184 horas vagas; até os que vão incorporando popular em saúde abraça - ler o mundo,
essa atividade criadora como algo que toma problematizando-o, indo do saber ingê-
quase todo o seu dia: artistas profissionais. nuo ao crítico, é um objetivo estratégico da
Mas a essência humana da criação é com- Educação Transformadora.
partilhada por todos eles. Mas isso não resolve nem contempla
As expressões de arte - que não dei- totalmente a questão da criação na arte.
xam de nos surpreender - são, talvez, mais Para tentar uma compreensão dela se faz
diversas ainda do que os processos de cria- necessária uma procura de várias dimen-
ção. Elas respondem ao momento histórico, sões. E mesmo assim, escorregamos. A Ra-
à personalidade do artista, às suas relações zão tem seus limites nesse mundo. Muito
sociais, etc. Cada produto é único no tempo além dessa razão, chamada instrumental, a
e no espaço. E, mais ainda, por exemplo, um arte é feita de forças e fluxos como a intui-
bonequinho delicado do Alto do Moura em ção, a sensibilidade, as emoções, a contem-
Caruaru, feito anos atrás, pelo mesmo artista, plação extasiada da Beleza do mundo e das
será diferente de outro feito hoje. Artistas e pessoas, a experiência direta do Mundo e da
suas obras são seres vivos. Mudam, crescem, matéria. Ela convive, necessariamente, com
avançam e voltam, aperfeiçoam ou partem a experiência poética.
para outros caminhos de beleza e estética. Experimentar poeticamente qualquer
A criação, ato sagrado dentro da carne e coisa a transforma. Uma forma de olhar,
do espírito humanos, tem uma dimensão po- sentir, viver... a experiência poética do mun-
lítica profunda - recuperar o inútil, os trastes do é fundamental a qualquer arte. De novo,
de Manoel de Barros, aquilo que os sistemas há formas muito diversas de viver poetica-
de valores e hierarquias predominantes des- mente. Existem muitos e muitos caminhos.
cartaram e exilaram rapidamente do desejá- Na Educação Popular, aparentemente,
vel e que traz “sucesso”; por fora das linhas privilegiamos os caminhos “populares” -
do reconhecido como saber. Dizer, como aqueles que se fazem em diálogo amoroso

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


e crítico com e desde os grupos populares, como Guimarães Rosa. Criar linguagens
com as culturas chamadas “do povo”. Só na ousadas é também inventar mundos.
aparência. Em nosso mundo global os gru- Grandes poetas e artistas são inspirações,
pos e pessoas que consideramos atrasados, guias, exemplos de produção de emoção e
limitados a produzir culturas também “li- beleza. Nos espelhamos neles, são nossos
mitadas” sempre nos surpreendem. Campo- horizontes. Vivemos praticando para che-
neses escutando Mozart. Índios procuran- gar a um certo patamar desejado. A experi-
do sobre arte barroca na internet. Crianças ência poética deles ressoa em todos.
ensinando seus pais. Tribos “isoladas” que Todavia, vale colocar aqui uma forma
estão mais “antenadas” do que muitos mo- especial de experiência poética do mundo.
radores de classe média das áreas urbanas. É aquela que se vive desde os mundos da
Então, essa experiência do poético saúde. E, radicalizando, é a experiência de 185
contido no mundo, nos vários mundos que quem faz da sua vida na saúde uma obra
conhecemos, tem, ao mesmo tempo: coisas ou processo de Arte. Eu com o Mundo,
singulares para cada lugar, cultura ou artis- em dança criativa, criando arte no meu co-
ta; e coisas comuns. Para nossa conversa é tidiano, na minha vivência em serviços de
valioso falar dessas coisas em comum. saúde e ou comunidades. Nós, os seres da
O poeta e prêmio Nobel de Literatura saúde, como seres poéticos. Uma possibili-
Octavio Paz nos mostra que essa experiência dade; uma escolha; um trabalho paciente de
é a vivência da Outredade. Esse outro mun- transformação do ordinário em beleza. A
do, diz, contido no nosso, mas que também alquimia do cuidado.
vai muito além, abrindo novas passagens. A Até aqui falamos da arte. Desse rosto
experiência intensa da Beleza, do Terrível, infinito do Brahma, o criador dos universos,
do Imenso, do Infinito. De novo o infinito. fonte de todas as sabedorias. E afirmamos
E é na poesia, na criação poética que, diz que existem muitos trabalhando na saúde
Paz, se condensa como grande exemplo do que fazem do próprio viver uma arte, uma
encontro do Ser do Artista com o mun- Beleza, uma Ternura Emocionada.
do diferente contido no mundo cotidiano. A educação crítica sempre acolheu a
Toda a beleza está contida no corriqueiro. A dimensão da arte. Mesmo quando a colo-
arte é uma forma de olhar. De certa maneira cava por baixo, como diversão, como distra-
é uma clarividência. Mas, acima de tudo, é ção, esperando que elas - as formas de arte
uma prática regular de treinar os sentidos - acabassem para falar das coisas “sérias”, a
- não somente os cinco usuais, mas outros, educação popular sempre respeitou o mun-
mais sutis. do nebuloso e difuso das Artes. Talvez fosse
É verdade que os grandes poetas uma intuição a contramão que sussurrava o
tiveram a alegria de ir além de todos nós. valor desse mundo menos racional, mais in-
Beber do povo e criar universos pessoais, tuitivo, difícil de esmiuçar e controlar.

Outras palavras
Aqui, seguindo nossa linha de reflexão,
Dos rios e cachoeiras de Oxum na e pensando na deusa das águas doces, vou
educação popular em saúde salientar a sensibilidade e a alegria na edu-
cação em saúde.
Na mitologia Yoruba, Oxum é a deu-
A partir do saber e do olhar do Outro
sa graciosa da sensibilidade. Fecunda, ama
- sem excluir nem desprezar nosso próprio
acima de tudo seus filhos, enxergando so-
saber e olhar de profissionais e cidadãos - a
mente o brilho deles. Orixá das cachoeiras Educação Popular se envolve em processos
e mananciais, ela flui, é transparente e espu- de delicadeza sensível, favorecendo a troca
mosa, alimenta a vida; fecunda e é fecun- e as emoções “boas” - quer dizer, que fazem
dada. Vaidosa e de sorriso farto, Oxum nos bem à saúde - como a alegria, a solidarieda-
186 mostra o caminho brincalhão do mundo. de, e o sentimento de pertencer a um todo
Sensível, nos ensina a praticar essa e outras maior.
dimensões delicadas e sutis. Mas essas emoções e sentimentos não
A Educação Popular em Saúde, criação são neutros, piegas, nem formas de aneste-
coletiva - com alguns heróis, pensadores siar as consciências. O diferencial da Edu-
e artistas especiais que se misturaram aos cação Popular não é o sentimento, a con-
processos sociais de busca pela saúde - é o versa, a dinâmica brincalhona e os métodos
esforço histórico que se expressou em mo- criativos. O diferencial se encontra na visão
vimentos sociais, grupos organizados, lide- crítica - política - tanto do processo educa-
ranças, profissionais e professores das uni- tivo como de toda a saúde.
versidades, estudantes e moradores de áreas Uma sensibilidade intensa sem abrir
mão da criticidade, da lucidez que significa
rurais e periféricas urbanas. Uma das suas
indicar as desigualdades, denunciar o injus-
características é se inspirar na obra de Paulo
to, propor mudanças profundas à ordem.
Freire na educação; e de autores como Vic-
Esse é o desafio da amorosidade da educa-
tor Vincent Valla, Eduardo Navarro Stotz e
ção popular que indica um caminho ético e
Eymard Mourão Vasconcelos na saúde.
político para todo o trabalho em saúde, para
As reflexões desses autores partem de todo o Sistema de Saúde.
experiências práticas de acompanhamento, Partir, na construção de saberes, do di-
apoio e luta junto a movimentos sociais or- álogo com o Outro é, de fato, uma radica-
ganizados, grupos de moradores, campone- lidade. Perigosa para qualquer governo ou
ses, dentre outros; e não somente a partir partido. Uma ampliação revolucionária da
de leituras e saberes teóricos. Isso faz toda experiência da democracia.
a diferença. O livro todo que você, leitora Nessa sensibilidade, nessa alegria, nessa
ou leitor, tem nas mãos aborda muitas das amorosidade, nessa valorização dos sabe-
facetas da Educação Popular em Saúde. res práticos e feitos de experiência, está a

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Educação Popular. E nisso ela se aproxima das reflexões sobre arte
sugeridas acima. Uma sensibilidade de mil faces: Brahma e Oxum
em seduções míticas.
Por isso, o encontro entre a força das Artes e a Sensibilidade
Crítica da Educação Popular rende tão bons frutos. Complementa-
res - embora não isentas de conflitos e mal-entendidos - elas quase
sempre se potencializam.

Artes, culturas e educações populares nos mundos da saúde:


as boas misturas
Hoje é tanta mistura de Arte e Educação Popular na Saúde
que não é preciso ir catando exemplos. Ao longo do país todo - e
187
mesmo no mundo - milhares de experiências aproximam a educa-
ção em saúde, na perspectiva freireana, às diferentes formas da Arte.
Basta olhar ao redor ou acompanhar qualquer evento público que
muitas experiências ficarão evidentes.
Para encerrar esta reflexão curta e inicial que espero estimule
o seu interesse por conhecer mais - uma boa lista de textos para
começar vai no final - deixo a impressão, em poema, de uma via-
gem pelo Cariri, paraíso no interior do Ceará, catando com a amiga
Renata Pekelman expressões de cultura, arte e saúde. Que os deuses
amorosos e brincalhões acompanhem nossa caminhada pela saúde.

Outras palavras
O tesouro do Cariri. Uma viagem de
descoberta com a gêmea loira.
saber-se amante e amado, no meio desse coisa de misturas, paraíso dos antropólogos.
tempo ido, ao levantar o chinês - eu - fotografando tudo
e ao pôr do Sol. E a gente, dois dos reis deixando sem nada a loucura da festa. carros
magos, de luxo, velhos burros, ônibus surrados
a loira e o chinês, na cidade singela do finalmente, antes daquele avião pequenino
Crato procuramos, à noite, a grande praça. que pulava de nuvem em nuvem
no meio dela, sons de banda; e os colegas, e onde conseguimos essas figuras de
artistas populares, já sem vestes de dança madeira maravilhosas
bebericavam e conversavam.- o Crato é um fomos a Juazeiro do Norte, lugar sagrado,
188 lugar fresco no Ceará, disse a Iracema. Temos cidade agitada de comércio
umas montanhas e no santuário do padim eu consegui
que valem a pena demais. Do outro lado está imagens geniais
Exú, terra do Gonzagão. E fomos tal era a luz e a atmosfera de fumaça e
até o topo da Serra - forro pé de Serra - vendedores. e uma moça linda entrou no
para ver-imaginar-abraçar Exú quadro
mas nada de seu Luiz - minha vida é andar e ficou congelada em digital. e as missas não
sem me perder, sem desafinar, sem parar de paravam.
sanfonar
e comemos truta na Serra, como se fosse digo de mim que fazer-mo-nos era tão
qualquer serra, mas mais concentrada nobre como fazer milagres
e ainda tão simples e tão distante. nessa viagem de
o museu do cordel, a figurinha do Patativa, Fortaleza a Olinda nos fizemos amigos, nos
as fotos, os guardiões da memória reconhecemos irmãos,
que querendo nos explicavam, que semeamos a cultura que bebemos a cada
sonhando nos diziam segundo, apostando em novas flores, novos
vocês que vêm de tão longe, senhores espaços
vamos lhes apresentar o Mestre Cirilo que para misturar poesia, canto e educação
vai dançar e dar entrevista na saúde - que era nossa missão de
nucleamos todo tipo de dança, canto, exploradores.
desenho, poema,
e um sorvete de fruta no alto das 22 horas assim. verso final sem rima as coisas se
era fundamental encaixaram. o mosaico das visões formou
para depois dar um pulo em Barbalha onde, um grande desenho
grande sorte, era a festa de Santo Antônio que nunca cansamos de ver, e refazer.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Leituras utilizadas

ALVES, R. Lições de feitiçaria: meditações sobre a poesia. São Paulo:


Loyola, 2003.
ALVES, R.; BRANDÃO, C. R. Encantar o mundo pela palavra.
Campinas: Papirus, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no
renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora
Hucitec, 2010.
BRANDÃO, C. R Diário de campo a antropologia como alegoria. São
Paulo: Editora Brasiliense,1982. 189
CIRINO, D. C. S. Tecendo sonhos e fiando destinos: a vivência
do bordado em um grupo de gestantes e puérperas. In:
VASCONCELOS, Eymard; CRUZ, Pedro JSC (Orgs.). Educação
popular na formação universitária. São Paulo: Hucitc; João Pessoa:
Editora Universitária UFPB, 2011.
COSTA, R. R. Ô cirandeiro, cirandeiro ô. In: VASCONCELOS,
Eymard; CRUZ, Pedro J. S. C. (Orgs.). Educação popular na
formação universitária. São Paulo: Hucitec; João Pessoa: Editora
Universitária UFPB, 2011.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2011.
______. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do
Oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2011.
______. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2011.
FREITAS, A. L. S. Saber de experiência feito. In: STRECK, Danilo;
RODIN Euclides; ZITKOSKI, José Jaime (Orgs.). Dicionário Paulo
Freire. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L e PM,
2002. 270p.
GINZBURG, C. O queijo e os vermes: o cotidiano de um moleiro
perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.
MANO, M. A. Ensaio sobre a gratidão. IN: MANO, Maria Amélia
Medeiros; ERNANDE, Valentin do Prado (Orgs.). Vivências de

Outras palavras
educação popular na atenção primária à saúde. São Carlos: EdUfSCar,
2010.
MAY, Rollo. Minha busca da beleza. Petrópolis: Editora Vozes, 1992.
PAZ, O. El arco y la lira: el poema, la revelación poética, poesía e
historia. México: Fondo de cultura económica, 1986.
REDIN, Euclides. Boniteza. In: STRECK, Danilo; RODIN Euclides;
ZITKOSKI, José Jaime (Orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
VALLA, V. V. Procurando compreender a fala dos setores populares.
In: VALLA, Victor; ALGEBAILE, Eveline; GUIMARÃES
190 Maria Beatriz (Orgs.). Classes populares no Brasil: exercícios de
compreensão. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, 2011.
VASCONCELOS, E. M.; FROTA, L. H.; SIMON, E. Perplexidade
na universidade: vivências nos cursos de saúde. São Paulo: Editora
Hucitec, 2006.
WONG-UN, J. A. O sopro da poesia: revelar, criar, experimentar e
fazer saúde comunitária. In: VASCONCELOS, Eymard (Org.). A
espiritualidade no trabalho em saúde. São Paulo: Editora Hucitec,
2006.

Agradecimentos:
Desejo agradecer às seguintes parceiras pela amizade; pelos
diálogos inspiradores; por terem trazido esses e outros temas à
minha reflexão cotidiana; por trabalhar com utopia e amor pela
saúde pública. Pela leitura do texto. E pelo afeto grande que eu,
obviamente, não mereço: Lenita Lorena Claro, pela limpeza ética e
o olhar de criança; Célia Sequeiros da Silva, pela beleza sobrenatural
da sua alma; e Aline Rodrigues Corrêa Sudo pela alegria, pela
energia boa, e pelo sonho de um mundo com menos malvadeza e
mais boniteza, como escreveu Paulo Freire.

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De cenopoesia e dialogicidade: da reinvenção
da linguagem ao reinvento do humano

A cenopoesia traduz-se como espaço dialógico que rompe


com as amarras da própria língua (escrita e formal) em suas limi-
tações como forma de expressão e comunicação humanas. Mesmo
considerando suas inúmeras possibilidades e contribuições para
a construção cenopoética, a língua (falada e escrita) esbarra em
certas limitações que pedem o complemento ou a interação com
outras maneiras de falar, dizer, pensar, expressar o sentimento e as
experiências de mundo. Caracteriza-se como uma linguagem que,
articulada com outras, ganha diversidade e dá força ao próprio dis-
curso em sua capacidade de expressão. Atua como espaço conver-
gente de articulação em que se dão as interfaces entre linguagens, Ray Lima
tanto em seus aspectos formais, quanto em suas singularidades a Cenopoeta, ator e diretor teatral,
construir algo como que um campo dialógico, sinérgico e gerador fundador do Movimento Escambo
Popular Livre de Rua. Formado em
de novos sentidos multifacetados, ressignificados e reconstruídos Letras na UERJ com especialidade
como linguagem única, aberta e viva. em Gestão de Sistemas e Serviços
de Saúde pela UNICAMP. Assessor
Percebendo que por mais que, a partir da língua, busquemos a artístico-pedagógico das Cirandas da
liberdade criativo-expressiva, acabamos por ficar presos à glote do Vida - SMSE-SMS, Fortaleza, CE.
Autor de vários livros publicados.
decano, ao corpo diplomático da gramática, à camisa de força de
um corpo pré-configurado e inscrito na história, na trajetória do
significado, no corpo sensível da raiz de cada palavra-expressão.
Daí que não encontramos muitas vezes sua libertação na lín-
gua, dentro ou em seu dorso literal, mas em infinitas possibilidades
de interação entre linguagens, discursos ou sentidos semiotizados:
“língualinguagem sem corpo nem sentido
língua de corporações
língualinguagem oceano ou insulação do falante
língua da vida inteira ou do instante
língualinguagem corpo qualquer morrente ou vivente fonte mu-
tante nascente
língualinguagem de corpo e alma ambulantes
liberta e prisioneira de si
libertária ou opressora de seus praticantes?”
(LIMA, 2012, p. 22)

192 Em mais de duas décadas de existência, se contarmos da


data de 1987, quando o termo “cenopoesia” foi usado pela pri-
meira vez, por Ray Lima, para nomear um recital poético na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, o ato ceno-
poético utilizou-se dos mais variados espaços, interagindo so-
bre diferentes contextos e situações. Desde bares, salões, teatros,
ruas, praças, teatros naturais de pedra, igrejas, auditórios, hotéis,
palácios, restaurantes, universidades, cinemas, árvores, tendas,
terreiros, etc., onde a problematização da vida em sociedade e a
expressão do humano se faz sempre recarregada de sua impres-
cindível liberdade de criação e recriação do mundo.
Tendo início no Rio de Janeiro a experiência cenopoética
se efetivou no Ceará e Rio Grande do Norte, através principal-
mente do Movimento Escambo Popular Livre de Rua. Nasce do
rompimento com modos tradicionais de recitais poéticos e com
o império da fala e da escrita como únicas formas de validar a
produção e produção do pensamento humano.
Neste sentido, a cenopoesia é por nascimento uma arte soli-
dária que se ocupa, por isso mesmo, com a construção de víncu-
los. Prefere não abortar as possibilidades de diálogo com outras
linguagens em função de uma escritura ou de uma suposta (pu-
reza) estética ou cultura literária, indo em direção a uma relação
respeitosa até o limite de suas distinções que unem e não sepa-
ram ou fragmentam. Tem se mostrado inovadora ferramenta pe-
dagógica em processos educativos de educação popular, formal e
não-formal. Destravando as relações de poder entre linguagens
como teatro, música, poesia, dança, artes plásticas, dentre outras
formas de expressão. A cenopoesia trilha por caminhos próprios

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


sem perder a força dialógica em sua interação com outras formas
de expressão e comunicação.
O exercício da linguagem cenopoética revela-se, além de
expressão artística genuína, como potente estratégia de proble-
matização em processos formativos e pedagógico-vivenciais, em
ações de educação, promoção e humanização em saúde no âmbi-
to do Sistema Municipal de Saúde Escola – SMSE de Fortaleza.
A partir das Cirandas da Vida e da educação popular, em
níveis regional e nacional, a linguagem cenopoética vem contri-
buindo com reflexões e problematizações marcando uma pre-
sença pedagógica que consiste em desenvolver outras raciona-
lidades, para além do discurso científico de tradição ocidental,
trazendo a ideia de pensar e agir com o corpo inteiro e de forma 193
graciosa sem, por isso, perder a consistência e a criticidade.
Na prática isso se tem dado nos mais variados contextos e
fotos: arquivo Cirandas da Vida

lugares de aprendizagens, dentre os quais destacamos ou pode-


mos mencionar alguns de inegável importância política e edu-
cacional da saúde no Brasil: 8º Congresso Brasileiro de Saúde
da Família (Fortaleza-CE); III Mostra Nacional de Produção
em Saúde da Família(2008); Cavarana SUS e Mostra Interativa,
o SUS que dá certo (Fortaleza-CE); II Seminário Nacional de
Humanização (Brasília); e o Congresso Brasileiro de Enferma-
gem (Fortaleza-2009). Em 2010, a I FENAGEP (Brasília), o
III Encontro Nacional de Educação Popular e Saúde e I En-
contro Nacional de Práticas Integrativas e Populares de Cui-
dado (Goiânia); a Conferência Nacional de Saúde Mental e a
9ª Conferência da Rede Unida (Porto Alegre – RS); I Mostra
das Cirandas da Vida; e 14ª Conferência Nacional de Saúde, na
abertura da programação da Tenda Paulo Freire.
Tais espaços vêm marcando definitivamente a cenopoesia
como forma de expressão e nova racionalidade que serve à reflexão
e ao debate sobre temas relacionados à saúde, à educação, à política,
a situações da vida cotidiana e a produção do comum, reafirmando
a multifuncionalidade do discurso cenopoético e sua capacidade de
adaptação aos múltiplos contextos, tempos e lugares.

Referência
LIMA, Ray. Pelas ordens do rei que pede socorro: um roteiro-
manifesto da cenopoesia. Fortaleza: Expressão gráfica
Editora, 2012. p.22.

Outras palavras
“O cotidiano de Dona Chica na luta contra a tuberculose”
e a possibilidade de aprender com ludicidade

Francisco Josenildo Nascimento A produção da história em quadrinhos “O cotidiano de Dona


Movimento de Saúde Mental e Co- Chica na luta contra a tuberculose” surgiu pela interface das Ci-
munitária do Bom Jardim/Cirandas da
Vida/Secretaria Municipal de Saúde de
randas da Vida com o projeto AGAP (Aperfeiçoamento em Ges-
Fortaleza. tão da Atenção Primária). Este teve como objetivo o envolvimento
de atores da atenção, formação e controle social para a redução da
Mayana de Azevedo Dantas
taxa de abandono do tratamento à tuberculose. Descrevemos aqui,
Secretaria Municipal de Saúde de
Fortaleza/Sistema Municipal Saúde o processo de criação desta história em diálogo com os atores en-
Escola/Cirandas da Vida. volvidos. Trabalhamos com a Ciranda de Aprendizagem e Pesquisa
Ana Paula Ramalho Brilhante que inclui os Círculos de Cultura e a arte.
Secretaria Municipal de Saúde de
O projeto atuou na SER (Secretaria Executiva Regional) I - e
Fortaleza/Sistema Municipal Saúde Es- uma das ações refere-se à formação dos trabalhadores de saúde para
cola.
o enfrentamento desta “situação-limite”. Nesse sentido, propôs-se
Maria Rocineide Ferreira da Silva construir um material pedagógico que pudesse desencadear essa
Universidade Estadual do Ceará/ discussão com os trabalhadores. A pesquisa para produção da his-
ANEPS-CE. tória se fez a partir de uma vivência de teatro-fórum, durante o
Maria Vilma Neves de Lima processo formativo dos trabalhadores e das discussões geradas, na
Universidade Estadual do Ceará/ qual foram retratadas histórias reais vividas pelos usuários e traba-
ANEPS-CE.
lhadores.
A história em quadrinhos como uma linguagem plural pro-
põe-se dialogar com os envolvidos de forma lúdica e socializar essa
discussão em escolas, unidades de saúde, igrejas e outros espaços
comunitários. A construção da história em quadrinhos se concreti-
zou pela ação de atores das Cirandas e representou, para estes atores
advindos do movimento popular, a possibilidade de ampliar o seu
conhecimento sobre a temática, ajudando a quebrar preconceitos
relacionados à mesma. Ao mesmo tempo, tem-se revelado potência
no sentido de produzir reflexão e entretenimento, proporcionando
aos leitores e aos que a produziram o aprender com ludicidade.
195

Fonte: Elaborado por: Francisco Josenildo do Nascimento, Mayana


de Azevedo Dantas, Ana Paula Ramalho Brilhante, Maria Rocineide
Ferreira da Silva, Maria Vilma Neves de Lima.
Outras palavras
Cha(mamé)lé cultural: poesia gauchesca
Ipiranga – Poesia gauchesca
Maria Helena Zanela - Ponto de Cultura Jardim

A saúde e a cultura
deram as mãos lá em Brasília
e repercute aqui no Sul
bem na ponta, um coração
que é o formato do Estado
onde fica o Conceição E nesta história mui linda
entra a tal Comunitária
Hospital que é para todos que é um serviço excelente
que sara, ensina, pesquisa trabalha com atenção primária
e que espraiando horizontes e com um Núcleo tecendo
sabe que a arte mantém cultura em rede solidária
a energia vital
e a felicidade também Com muitas parcerias
mantemos as mãos unidas
e com ações que construímos
lembram? Juntamos saúde e cultura
vamos abrindo caminhos
para outras formas de cura

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Entre sementes e raízes
Extensão popular de fitoterapia:
realidade em Sergipe

A Fitoterapia é uma das formas mais antigas de cuidado da


vida. Constitui, na sociedade contemporânea, importante recurso
terapêutico, acessível a todos os segmentos populacionais, na pre-
venção e tratamento de doenças de forma integral, haja vista que
estimula as defesas naturais do organismo e resgata o ser humano
às suas relações mais profundas com a mãe terra.
Em maio de 1978, por meio de uma resolução da Organização
Mundial de Saúde (OMS), ficou determinado o início de progra-
ma mundial visando ao uso e avaliação dos métodos da chamada
“medicina tradicional”. A OMS tem estimulado os países a iden-
Simone Maria Leite Batista
tificar e explorar os aspectos da medicina tradicional que fornecem
remédios ou práticas seguras e eficazes para a obtenção de saúde, os Karen Emanuella Fernandes Bezerra

quais devem ser recomendados nos programas voltados para cuida- Maria Cecília Tavares Leite
dos primários de saúde (PLANTAS..., 1983). Tulani Conceição da Silva Santos
O Brasil, seguindo a tendência mundial, mas preservando suas Vitor Araújo Neto
raízes culturais, principalmente no uso de plantas medicinais como
prática popular, começa por ações que resgatam a medicina popular,
estimula o dialogo entre os diversos saberes e objetiva o uso seguro
e racional das plantas medicinais e fitoterápicos, especialmente com
a edição da portaria n° 971/GM/MS de 03 de maio 2006, que cria
a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no
SUS; do decreto interministerial n° 5.813 de 22 de junho de 2006
que cria a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos,
além da edição da portaria interministerial n° 2.960 que concretiza
o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e cria
o Comitê Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos como
forma de viabilizar tal política. Estabelece, com esse marco legal,
as diretrizes e linhas prioritárias para o desenvolvimento de ações
pelos diversos sujeitos em torno de objeti- de Sergipe, em novembro de 2007, pro-
vos comuns voltados à garantia do acesso movida pelo Movimento Popular de Saúde
seguro e uso racional de plantas medicinais (MOPS), foi proposta a organização de um
e fitoterápicos e preconiza diretrizes, ações curso aos diversos sujeitos (trabalhadores
e responsabilidades dos poderes munici- e atores dos movimentos populares) com
pais, estaduais e federal na sua implantação aprofundamento teórico-prático sobre as
e implementação, as quais irão orientar os plantas medicinais. Assim, surgiu à ideia
gestores no seu estabelecimento ou em sua da construção do Curso de Extensão Popu-
adequação aos programas já implantados. lar em Fitoterapia, que logo foi aceito pela
Em Sergipe, tem sido recorrente a afir- Pró-Reitoria de Extensão e pela vice-reito-
mação dos pesquisadores e historiadores ria dessa instituição de ensino.
200 sobre a grande tradição do uso de plan- A organização foi iniciada através ro-
tas medicinais, talvez também decorrente das de conversas com professores, represen-
da característica agrária desse estado e da tantes dos movimentos sociais e práticas
hegemônica composição de arranjos fami- populares de saúde ligados a ANEPS, com
liares na produção. Essa característica tam- o objetivo de construir a proposta do cur-
bém marca a capital do estado – Aracaju so, que deveria ter metodologia dialógica
– no que pese a predominante caracteriza- e constituída de aulas presencias teórico-
ção urbana. Aracaju, com uma população -práticas, com módulos mensais aos finais
em torno de 600 mil habitantes, também de semana, totalizando uma carga horária
se caracteriza pela existência de arranjos de 200 horas/ano.
produtivos familiares em atividades marca- O que se percebe nesse caminho é que
damente agrícolas compondo diversos dos as trilhas iniciadas por Dona Josefa, a partir
seus cenários. da década de 1990, de valorização da Fito-
Essas características, aliadas à crescen- terapia através da troca e multiplicação de
te produção do saber sobre o uso de plan- saberes, nos diversos espaços e cenários-
tas medicinais e fitoterápicas enquanto -comunidade, assistência à saúde, gestão e
projetos terapêuticos e a edição da Política academia chegam a 2012 com muitos avan-
Nacional de Plantas Medicinais e Fitote- ços. Também símbolo dos passos dados foi
rápicos, têm impactado a forma de cons- quando a Secretaria Municipal de Saúde
trução do modelo assistencial de saúde e de Aracaju, para coordenar as demandas e
a produção de projetos terapêuticos e de articular a frente de trabalho, criou a refe-
cuidado em Aracaju. rencia técnica das PIC’s, que tem estrutura-
Como resultado da ampliação dessa do sua ação em estreita articulação com as
discussão e como resultado de oficina so- instituições formadoras dos trabalhadores
bre plantas medicinais realizada na Sema- da saúde, especialmente com a Universidade
na de Extensão na Universidade Federal Federal de Sergipe, fruto também da qual

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Em Sergipe, tem sido
recorrente a afirmação dos
pesquisadores e historiadores
sobre a grande tradição do
uso de plantas medicinais,
talvez também decorrente da
característica agrária desse estado
e da hegemônica composição de
arranjos familiares na produção.

se estruturou a proposta do Pró-


-Saúde e pesquisa a ser realizada
pelos discentes do curso de Servi-
ço Social através do PIBIC 2012
(em análise). Além da articulação
com as IFES, também tem sido
cada vez mais estreita a aproxima-
ção com os atores dos movimen-
tos populares, especialmente com
a Articulação dos Movimentos e
Práticas de Educação Popular –
ANEPS\SE e com o Movimento
Popular de Saúde – MOPS\SE.
O Movimento Popular de
Saúde (MOPS), atualmente um
dos principais articuladores da
Fitoterapia em Sergipe, através
de muitas parcerias, promove
anualmente o Curso de Exten-
são em Fitoterapia (projeto con-
junto com a Universidade Fede-
ral de Sergipe - UFS), que está
em sua IV edição e conta com a Foto: Aicó Culturas

Entre sementes e raízes


participação dos mais diversos atores sociais promovendo a articulação entre os envolvi-
de todo o estado. dos para efetivação de uma política munici-
Como objetivos foram priorizados: ca- pal. Na avaliação final, observou-se a necessi-
pacitar profissionais, estudantes da área de dade de valorização dos terapeutas populares
saúde e representantes da sociedade civil e a capacitação dos profissionais de saúde
no cultivo, preparo e utilização das plantas para que conheçam, respeitem e consigam
medicinais no tratamento de enfermidades, trabalhar em parceria com os praticantes de
contribuindo assim para a conservação das práticas populares (ALVES, et al., 2012).
espécies e práticas tradicionais a elas asso- Além disso, o curso de Enfermagem
ciadas. Os principais indicadores corres- da UFS, contará em seu novo currículo
ponderam ao aproveitamento máximo do com a  disciplina de Práticas Integrativas e
202 conhecimento teórico-prático abordado, Complementares de Saúde, tendo como um
assim como a capacidade de multiplicação dos eixos a Fitoterapia, Isso, fruto de uma
de cada participante. A metodologia obje- pesquisa realizada durante o Seminário em
tivava promover motivação e reflexão sobre defesa do SUS em 2011, no hospital uni-
as principais questões inerentes à Fitote- versitário, edição do curso de Extenção em
rapia e aos modos, tradicionais ou não, de Fitoterapia: “Fitoterapia na formação dos
cuidado efetivo vivenciado. acadêmicos de enfermagem: uma tentativa
Muitos cursos e seminários são re- de atrelar o saber popular e o conhecimento
alizados anualmente, com destaque para científico” (BEZERRA, et al., 2010). (Este
o Seminário de Práticas Integrativas e trabalho sugeriu uma disciplina que tratasse
Populares de saúde da região centro-sul de da fitoterapia no currículo do curso de en-
Sergipe, realizado pelas secretarias de saú- fermagem, havendo aceitação por parte dos
de da região, Campus de Lagarto da UFS, estudantes).
Secretaria de Saúde do Estado, Mops e Houve também a crítica ao modelo de
Aneps Sergipe, em setembro passado, que formação a que o estudante está sujeito:
contou com a participação de 400 profissio-
De fato, uma disciplina que contenha aulas
nais de saúde, estudantes e gestores.
práticas encontra respaldo na opinião dos
O evento contou com a participação dos
estudantes e a vivência com a comunidade
diversos atores envolvidos na construção do
é destacado, apontando para a ideia da tro-
SUS dos municípios da região de Lagarto,
ca de experiências propiciada pelo contato
e teve como objetivo sensibilização dos par-
extramuros (BEZERRA, et al., 2010).
ticipantes para a implantação da Política
Nacional de Práticas Integrativas e Com- Nota-se, por um lado, que faltam es-
plementares (PNPICS) e a futura Política forços governamentais na implementação
de Educação Popular em Saúde (PNEP- e execução de aspectos práticos da portaria
-SUS) no Sistema Único de Saúde (SUS), citada. Assim como, faz-se necessária maior

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


participação da sociedade nas reivindicações de políticas de saúde
pública permanentes, duradouras e direcionadas aos reais interesses
da população.
Como esforços governamentais, entende-se além de vontade
política, com priorização da política, a disponibilização de recursos
necessários para a efetivação da mesma. Há necessidade também de
formação e capacitação dos profissionais da rede do SUS, como eles
mesmos reconheceram no seminário realizado em Lagarto, pois há
necessidade de se promover o uso racional do fitoterápico e a in-
tegração do saber popular entre a população e os profissionais de
saúde necessitam ser sensibilizados.
É importante, no processo de implantação da Política de Plan- 203
tas Medicinais e Fitoterápicos, que se façam parcerias intersetoriais
em virtude da abrangência da cadeia produtiva existente, não dei-
xando de lado as parcerias com a comunidade que é a detentora do
saber popular. Esse envolvimento coletivo contribuirá para a sua
efetiva implantação, de forma complementar, mas, abrangente e
eficiente.
Ressalta-se que os resultados destes cursos e seminários já rea-
lizados demonstram a necessidade e a importância da implantação
na Rede Básica de uma Política Municipal de Plantas Medicinais e
Fitoterápicos, como recurso importante no processo de prevenção
e cura do indivíduo.

Referências
ALVES, E. M. S. et al. Construção da Política Estadual das Práticas
Integrativas, Populares e Complementares de Sergipe: início da
caminhada. I Fórum Nacional de Racionalidades Médicas e Práticas
Integrativas e Complementares em Saúde. Rio de Janeiro, 2012.
BEZERRA, K. E. F. et al. Fitoterapia na formação dos acadêmicos de
enfermagem: uma tentativa de atrelar o saber popular e o conheci-
mento científico. [S.l.: s.n.], 2010.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insu-
mos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica. Política
Nacional de Plantas Medicinal e Fitoterápico. Brasília, 2007.

Entre sementes e raízes


_____. Secretaria de atenção a Saúde. Departamento de Atenção
Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementa-
res no SUS: PNPIC. Brasília, 2008.
MATOS, F. J. A. Prescrição médica de fitoterapia. [S.l.: s.n.], 1983.
PLANTAS que curam. A natureza a serviço da sua saúde, v. 1. São
Paulo, 1983.
STRAND, R. D. Que seu médico não sabe sobre medicina nutricio-
nal pode estar matando Você. [S.l.]: Ed Books, 2004.
YU; GHANDOUR; HUANG; ASTIN. Revista Farmacognosia V1
Final.
204 YUNES R. A.; PEDROSA R. C.; CECHINEL FILHO. Fármacos
e fitoterápicos: a necessidade do desenvolvimento da indústria de
fitoterápicos e fito fármacos. São Paulo: [s.n.], 2005.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Diálogo com os cuidadores
sobre práticas de cuidados populares

A pergunta que fiz a mim mesma ao ser desafiada a escrever


sobre a importância das práticas de cuidados populares nas rodas
de conversas, encontros, seminários, como também em nossas vidas
particulares foi: como abordar de uma forma mais adequada esse
assunto do cuidado num diálogo sobre educação popular e saúde,
as práticas de cuidados populares, como massagens, benzementos,
etc., e o SUS? Além disso, o que estamos fazendo para facilitar esta
troca de experiências entre estas instâncias?
Sim, porque todos nós sabemos e temos a prática do cuidado
em nossas casas como, por exemplo, na alimentação cotidiana, no
contato com nossos filhos, enfim, cuidados estes que nos mantêm Suely Corrêa
vivos. Movimento Popular de Saúde–MOPS
Articulação Nacional de Movimentos e
Por esse motivo, gostaria de começar dizendo que nós, seres Práticas de Educação Popular em Saúde–
humanos, não somos apenas matéria, mas sim a manifestação de ANEPS/MT
uma soma de processos internos e externos, como respiração, fun-
cionamento orgânico, alimentação, pensamentos e a influência do
meio ambiente em que vivemos. Por esta razão, a presença de do-
enças e sintomas do nosso corpo são expressões naturais da nossa
energia interna. São como mensagens, avisos desta força interna de
que algo não está bem.
Há muitas razões que alteram o nosso corpo físico, causando
uma distorção em nossa postura natural e equilibrada, como o mau
funcionamento orgânico, vida sedentária, pouco movimento corpo-
ral, movimentos repetitivos, pensamentos negativos, emoções com
apegos, má alimentação, muito trabalho e pouco lazer.
Enfim, os nossos hábitos alteram a postura física natural e, por
isso, necessitamos de exercícios corretivos para, através deles, forta-
lecemos a nossa parte “sadia” ou “boa”, corrigindo a parte “afetada”.
Nesse sentido, a questão do cuidado etc., ajuda a perceber a necessidade de uma
quer ajudar a despertar a linguagem cor- consciência ecológica, ou seja, da urgência
poral do tocar e do sentir, atitudes que há de um sentimento de coletividade e conhe-
muito estão esquecidos no nosso dia-a-dia, cimento mútuo.
sintomas claros da aceleração do tempo Para finalizar, proponho algumas dicas e
na vida moderna. Assim, a participação na cuidados, após um dia de trabalho ou reunião.
vida da família, da comunidade, de grupos,

206

Para corrigir partes assimétricas


1. Em pé, flexionar a coluna para frente, com os bra.ços(Dealon ga-
vido a
ar os joelhos
dos tentando tocar o chão, sem flexion
a das pessoas não consegue
uma rigidez na área lombar a maiori
tocar o chão).

2. Voltando a posição em pé, com os olhos fechadoa s,todimaosginnose


e seu corpo par
que você é uma gelatina, moviment
gelatina, sem nenhuma ri-
lados suavemente como se fosse uma
do lentamente. Va movi-
gidez, sem ossos, inspirando e expiran
a e se libertando de todas
mentando o corpo de forma espontâne
as tensões.

3. Abra os olhos e flexione novamente o corpo parapod


frente, ten-
endo até
flexibilidade
tando tocar o solo. Você sentirá mais
você relaxa a musculatura,
tocar o chão. Fazendo esse exercício
melhora a circulação.
ativa sua flexibilidade física, mental e
Outra dica de uma boa alimentação
Frutas não combinam com hortaliças, exceto as frutas oleaginosas. Tomate não combina
com limão, devido ás reações entre os ácidos que compõem estes alimentos. O limão, apesar
de ser classificado como fruta acida, pode ser agregado às saladas, devido ao seu baixo teor
de carboidrato (açucares), exceto quando houver tomate. Uma sugestão de cardápio:

Molho de beringela 207


Ingredientes
• 800 Gramas de tomate, sem pele, picados;
• 4 dentes de alho picados ou amassados;
• 4 colheres de azeite;
• 8 nozes ou castanhas picadas;
• 1 colher ( sopa) de molho de soja;
• 1 berinjela media cortada em cubinhos;
• Sal a gosto.
• Cheiro verde

Modo de preparar:
• Ferventar os tomates em duas xicaras de agua por 10 minutos.
• Escorrer e reservar o caldo.
• Á parte, fritar o alho no azeite até dourar.
• Acrescentar o tomate, o caldo reservado e os ingredientes
restantes.
• Cozinhar em fogo baixo com panela tampada por 20 minutos.
Mexendo de vez em quando.
Receitas de sucos
heco
lves Josefa de Lourdes S. Pac
Glaudy Celma Sousa Santana Marta Ma. Fontes Gonça
Sergipe
Pastoral Criança e Aneps
Mops e Aneps Sergipe
Pastoral da Criança e Aneps Sergipe

Erva cidreira ou capim santo


Com limão Com morango Com laranja e abacaxi
• 1 xícara (chá) de folhas • 1 xícara (chá) de capim • 1 xícara (chá) de capim
de capim santo picadas santo picado santo picado
• 200 ml de água • 200 ml de água • 200 ml de suco de laranja
• 3 colheres (sopa) de mel • 2 colheres (sopa) de mel • 3 colheres (sopa) de mel
• Suco de 2 limões • 2 xícaras (chá) de moran- • 2 rodelas de abacaxi
• Gelo gos congelados congelado

! Bata no liquidifi- ! Bata no liquidifi- ! Bata no liquidifi-


cador o capim santo com cador o capim santo com cador o capim santo com
a água. Coe e leve para a água, coe e leve para o suco de laranja. Coe e
bater novamente com o bater novamente com o leve para bater novamente
mel, o suco de limão e o mel e os morangos. com o mel e o abacaxi.
gelo.

Caderno de Educação Popular em Saúde


209

Suco Verde
Conta com a ajuda da maçã e da couve para repor nutrientes perdidos. “A pectina, que
está na casca da maçã, é uma fibra muito importante para reduzir a gordura e a glicose do
sangue, além de ser uma fruta muito rica em vitaminas B1, B2, niacina, ferro e fósforo.
A couve tem alto teor de clorofila, que ajuda a limpar o intestino e ainda protege o fígado
dos efeitos nocivos das bebidas alcoólicas”.

H
• 1 copo de 200 ml de água de coco ! Colocar no liquidificador a água de
• 1 maçã com casca picada coco, a maçã picada, a couve, o mel e o
• 1 folha de couve gelo. Bate tudo depois de pronto o suco,
• 1 colher de sopa de mel salpique a linhaça por cima do suco, para
• 1 colher de sobremesa de linhaça dar um a brilho e vai estar pronto para ser
• 1 cubo de gelo servido.

Entre sementes e raízes


Abacaxi e cavalinha
O poder do abacaxi de digestão das proteínas e o efeito de desinchaço e de reposição
dos minerais da cavalinha. O kiwi também é rico em fibras que estimulam o intestino.

H • 1 xícara (chá) de água ! Prepare o chá: coloque a água no


• 1 colher (sobremesa) de cavalinha seca fogo e, assim que ferver, desligue e acres-
• 1 rodela de abacaxi cente a cavalinha. Tampe a panela. Deixe
210
• 4 folhas de hortelã em infusão por cinco minutos e coe. Bata
• 1 kiwi sem a casca no liquidificador com os outros ingre-
• 1 folha de alface dientes e coe novamente.
• 1 colher (sopa) de mel (orgânico)

Suco de aipo com melancia


O sabor da melancia com o poder de “faxina” da  linhaça. Além de proteger contra a formação
de tumores, é excelente para quem deseja perder peso, pois ajuda a diminuir o colesterol e
a controlar a sensação desnecessária de apetite. A linhaça tem grandes quantidades de fibra
dietética, cinco vezes mais que a aveia.

H • 2 fatias de melancia picada ! Coloque a melancia, o aipo, as


• 1 talo de aipo com as folhas sementes e o mel e bata tudo no liquidifi-
• 1 colher de sopa de linhaça cador, depois se quiser coe e sirva.
• 1 colher de sopa de mel (orgânico)

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


211

Suco desintoxicante
H • 1 copo de 300 ml de abacaxi em cubos ! Bata todos os ingredien-
• 1 colher de sopa de raspas de casca de limão tes no liquidificador e sirva
• ½ colher de sobremesa de gengibre fresco ralado.

Benefícios para a saúde


Os componentes do abacaxi, como vitaminas do complexo B, ácido pantotênico e vitamina
A, fazem a fruta ser energética. Além disso, o abacaxi tem efeito anti-inflamatório, diuré-
tico e digestivo, graças a uma substância encontrada em seu miolo, a bromelina. Já a casca
do limão e o gengibre contêm substâncias antioxidantes, tendo funções anti-inflamatórias.
Quanto maior for à expulsão de toxinas do organismo, mais disposição física você vai notar.
Outros benefícios percebidos são pele mais firme e intestino funcionando em ordem.

Entre sementes e raízes


212

Suco de cenoura com limão (que emagrece)


H • 1 litro de água ! Bata todos os ingredientes no liqui-
• 1 cenoura dificador e beba um copo de 200 ml nos
• 1 limão intervalos das refeições.

Suco para metabolismo acelerado


H • 1 colher de sopa de mate solúvel ! Bata todos os ingredientes no liqui-
• 1 copo de 200 ml de água dificador e sirva gelado. Por ser um suco
• ½ maçã sem semente proteico, a bebida é energética e estimu-
• ½ mamão papaia lante, garantindo que o metabolismo fun-
• 1 banana prata cione a todo vapor.
• ½ copo de 100 ml de leite de soja

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Suco para pele dourada e hidratada
H • ¼ de uma cenoura média crua ! Bata todos os ingredientes e sirva.
• ¼ de um mamão médio
• ½ limão médio para suco
• 1 colher de sobremesa de semente de linhaça dourada
• 1 colher de sobremesa de gérmen de trigo
213
• 1 colher de sobremesa de farelo de semente de linhaça dourada
• Água

Benefícios para a saúde


O mamão e a cenoura se destacam por serem ricos em vitamina A, nutriente capaz de
recuperar e regenerar o tecido celular. Fundamental também para a saúde dos cabelos e
unhas. Além disso, a receita contém grandes quantidades de vitamina C e flavonoides,
que entram em ação contra os radicais livres, protegendo a pele dos efeitos nocivos do sol
e prevenindo contra o envelhecimento precoce. Já o gérmen de trigo contém quantidade
suficiente de vitamina E. Juntamente com o ômega-3 fornecido pela linhaça dourada, o
ingrediente garante a hidratação da pele e também preveni o envelhecimento das células.

Suco cítrico com limão


H • 1/2 mamão
! Coloque no liquidificador o mamão picado
• 2 laranjas sem sementes, o suco das laranjas e o suco do limão
• 1 limão sem sementes. Bata e tome em seguida.

Entre sementes e raízes


Suco de caju e cenoura
H • 1 cenoura ! Bata no liquidificador todos os ingredientes.
• 1 caju Beba este suco 2 vezes ao dia.
• 1 xícara de (chá) de água

Benefícios para a saúde


214 Ajuda a manter todo o corpo com saúde. Poderosa antioxidante previne os danos ce-
lulares. Alimentação especial para os olhos e pele. Suco de cenoura funciona como um
anti-inflamatório e revitalizes e tons de toque da pele e ajuda a prevenir o cancro. Dimi-
nuição da pressão arterial pode ser ajudada por consumir salsa e alho.

Suco anticelulite
H • 1 colher de sobremesa de salsa
! No dia anterior ao preparo do suco,
• 1 pires de chá de couve manteiga crua coloque a água de coco em forminhas para
• 1 fatia média de abacaxi gelo e leve ao congelador. Para preparar o
• 350 ml de água de coco suco, bata bem no liquidificador a água de
• 3 folhas de hortelã coco, a couve e a salsinha. Acrescente o
• ½ limão para suco abacaxi, gotas de suco de limão e horte-
lã. Bata até ficar bem homogêneo. Adoce,
caso seja necessário. Se preferir, substitua
o abacaxi por melão.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


I Prêmio Victor Valla
Prêmio Victor Valla
Uma ação de reconhecimento e fortalecimento da EPS no SUS

Chegamos ao final da Primeira Edição do Prêmio Victor Valla


de Educação Popular em Saúde coordenado pela Secretaria de
Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (SGEP/
MS) em parceria com o GT de Educação Popular e Saúde da Asso-
Esdras Daniel dos Santos Pereira
ciação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. O Prêmio
Graduado em Ciências Farmacêuticas Victor Valla é produto do diálogo que a SGEP/MS tem desenvol-
pela Universidade de Brasília (2004), vido com os diversos coletivos e movimentos sociais populares que
especialista em Gestão de Serviços e
Sistemas de Saúde pela UnB (2007), atuam na educação popular organizados no Comitê Nacional de
mestre em Política Social pela UnB. Educação Popular em Saúde (CNEPS) instituído em 2009 no MS.
Servidor do Ministério da Saúde -
Secretaria de Gestão Pasticipativa.
Esta iniciativa tem por finalidade apoiar e contribuir com o
fortalecimento dos grupos, coletivos, movimentos populares e aca-
Osvaldo Peralta Bonetti dêmicos, assim como dos serviços de saúde que, democrática e dia-
Técnico Especializado da Sec. de Gestão logicamente, desenvolvem ações de Educação Popular em Saúde,
Estratégia e Participativa / Ministério da
Saúde. sendo uma justa homenagem ao saudoso Professor Victor Vincent
Valla (1937-2009) que em sua trajetória de militância e produção
Julio Alberto Wong-Un
acadêmica construiu um grande legado que nos inspira a refletir
Universidade Federal Fluminense
-Instituto de Saúde da Comunidade -
sobre os modos de viver e produzir saberes das classes populares e
Departamento de Saúde e Sociedade - suas relações diretas com a saúde.
Grupo Temático de Educação Popular da
ABRASCO.
Os números desta primeira edição do Prêmio impressionam.
Foram 161 experiências inscritas sendo 23 Textos Artísticos; 37
Produções Audiovisuais e Musicais; 53 Narrativas e Relatos e 48
Pesquisas e Sistematizações.
Surpreende-nos a quantidade e a diversidade de experiências
inscritas, muitas destas desenvolvidas junto aos serviços de saúde,
em destaque as iniciativas relacionadas aos cotidianos da Atenção
Básica, fruto do comprometimento de pro- Na categoria Produção Áudio Visual,
fissionais de saúde, como Agentes Comu- destaca-se o levantamento e sistematização
nitários de Saúde, que buscam promover a de práticas populares e a valorização dos sa-
saúde de forma democrática e participativa, beres populares pela universidade apresenta-
muitas vezes sem apoio institucional. do em vídeo pela Universidade Federal de São
Outro fato evidenciado é a existência Carlos e a inovadora, como também, na cate-
de diversas experiências que buscam mape- goria Pesquisas e Sistematizações a instigante
ar, conhecer e compartilhar saberes com as Produção Acadêmica do Grupo Cirandas da
Práticas Populares de Cuidado presentes nas Vida-CE entitulada “Dialogismo e arte na
comunidades de todo o país. Tais práticas res- gestão em saúde: a perspectiva popular nas
gatam o conhecimento popular e promovem Cirandas da Vida em Fortaleza-CE”.
a autonomia dos sujeitos no enfrentamento É importante ressaltar que as pesquisas 217
de suas situações limites em saúde, reforçan- e sistematizações inscritas no Prêmio de-
do a necessidade de aproximação dos saberes monstram que hoje a Educação Popular em
técnico-científicos aos saberes ancestrais /tra- Saúde constitui-se enquanto campo produtor
dicionais de nossa população. de conhecimentos e propositor de estratégias
Fica evidente a articulação entre arte, cul- potentes para o enfrentamento das iniqui-
tura e saúde demonstradas nas experiências dades em saúde. O comprometimento das
deste Prêmio. São peças teatrais, músicas, po- instituições de ensino e sua articulação com
esias e filmes construídos no dia a dia dos mo- os movimentos sociais e com os serviços de
vimentos populares e dos serviços de saúde, saúde demonstram que a Educação Popular
demonstrando o potencial educativo destas é também um referencial capaz de promover
ações. Porém, são muitos os relatos das difi- mudanças na formação dos profissionais de
culdades estruturais e teórico-metodológicas saúde, fortalecendo processos de ensino, pes-
para o desenvolvimento destas ações. quisa e extensão aliados à implementação do
Dentre as experiências premiadas Sistema Único de Saúde e ao fortalecimento
destaca-se, na categoria Textos Artísticos, da participação social.
o texto do grupo Quintal das Artes que Parabenizamos os premiados nesta
problematiza na forma de teatro infantil as primeira edição do Prêmio Victor Valla de
questões ambientais na região de mangues Educação Popular em Saúde, estende suas
em Alagoas. A Narrativa da Experiência congratulações a cada educador (a), es-
“Promovendo Educação e Saúde através tudante, trabalhador (a), a todos que par-
das Plantas Medicinais” da Escola de En- ticiparam deste Prêmio reafirmando seu
sino Fundamental Benjamin Felisberto da compromisso no fortalecimento das ações
Silva do Povoado Gruta D’água-Arapiraca- de Educação Popular em Saúde no Sistema
-AL expressa a capilaridade de cenários que Único de Saúde.
a EPS tem se configurado.

Prêmio Victor Valla


3 primeiros lugares de cada categoria:
40 premiado s podem ser con feridos no www.porta l.saude.gov.br
Os
Textos artísticos Produção audiovisual
A Revolta do Mangue Projeto de Mapeamento de Práticas de
Rogério Dias Quintal - Cultural Alagoas-AL Educação Popular e Saúde
Maria Waldenez de Oliveira - Universidade Federal de
RoteiroCenopoético São Carlos - São Carlos - SP
218 para a Caravana SUS em Fortaleza
Ray Lima - Grupo Pintou Melodia na Poesia Projeto de extensão popular “práticas integrais
- Movimento Escambo - Popular Livre de Rua - da nutrição na atenção básica em saúde
Fortaleza-CE Pedro José Santos Carneiro Cruz - / UFPB - João
Pessoa - PB
Fotossíntese poética como síntese criativa
dos processos e encontros da saúde Um passo e cada vez: o despertar da
coletiva cidadania
Elias José da Silva - Programa cirandas da vida - Gislaine Cavalcante Raposo - Museu da Imagem e do
Fortaleza-CE Som e de Campinas e UNICAMP - SP

Pesquisas e Sistematizações Narrativas e relatos


Dialogismo e arte na gestão em saúde: a Promovendo Educação e Saúde através das
perspectiva popular nas Cirandas da Vida. Plantas Medicinais
Vera Lúcia de Azevedo Dantas - Secretaria Municipal Edinalva Pinheiro dos Santos Oliveira Escola de Ensino
de Saúde de Fortaleza - Fortaleza-CE Fundamental Benjamin Felisberto da Silva Povoado Gruta
D’água - Arapiraca-AL
Quem sabe faz a hora não espera acontecer:
a formação técnica Em saúde no MST Saúde de guerreira
Etel Matielo - Grupo de Pesquisa Educação em Saúde, Daraína Pregnolatto Flor de Pequi - brincadeiras e ritos
Universidade Federal de Santa Catarina populares Pirenópolis - GO
Saberes, Danças e Imaginários frente ao Chalé da Cultura GHC Espaço de criação
sofrimento difuso: quando o “aquecimento” de novas relações e práticas de cuidado a
da comunidade já é própria ação de cuidar partir do convívio com as diferenças
Shirley Monteiro de Melo Universidade Federal da Melissa Acauan Sander - Equipe Chalé da Cultura
Paraíba João Pessoa - PB GHC - Porto Alegre -RS

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Sugestão de leitura
Os profissionais de saúde que querem aperfeiçoar sua relação edu-
cativa com a população na perspectiva de Educação Popular têm Eymard Mourão Vasconcelos
hoje muitos livros e artigos de revista disponíveis para estudar e Médico envolvido com saúde comu-
discutir. A Educação Popular em Saúde tem aglutinado muitos nitária desde 1974. Professor do de-
partamento de Promoção da Saúde
pesquisadores, organizado eventos e produzido várias publicações da Universidade Federal da Paraíba
sobre seus desafios e caminhos de atuação. Vamos apresentar algu- e membro da Rede de Educação Po-
pular e Saúde.
mas destas publicações que estão hoje disponíveis.

Comunicação e cultura:
as ideias de Paulo Freire
Venício A. de Lima
Editora UNB / Co-edição Perseu Abramo

Foram poucas as ocasiões, depois de Extensão


ou Comunicação? [1969] e Pedagogia do
Oprimido [1970], nas quais Freire tratou
especificamente o tema da comunicação.
Neste livro, o professor Venício Lima reedita
o volume revisto e com novo prefácio, que
provoca um olhar instigante sobre as relações
entre educação, comunicação e cultura na
obra de Freire. O que a prática e a reflexão
posteriores de Freire acrescentaram sobre
comunicação e cultura? O que pensam os
pesquisadores, sobretudo os brasileiros, a
respeito da contribuição de Freire para os
estudos de comunicação?
Educação Popular na Formação Universitária:
Reflexões com Base em uma Experiência.
Eymard Mourão Vasconcelos;
Pedro José Cruz (Orgs.).
Editora Hucitec, São Paulo.
Organizado por Eymard Mourão Vasconcelos e
Pedro José Cruz. A grande maioria da reflexão
da Educação Popular em Saúde está dedicada à
220 relação pedagógica entre os profissionais de saúde
e a população. Mas muitas universidades e projetos
de educação permanente vêm também aprendendo
a utilizar a metodologia da Educação Popular na
relação entre docentes e estudantes. O livro busca
relatar e analisar os caminhos desta formação
profissional, orientada pela Educação Popular, a
partir de uma importante experiência, com mais de
14 anos, na Universidade Federal da Paraíba.

Educação Popular e a Atenção à Classes Populares no Brasil:


Saúde da Família - 5ª edição Exercícios de Compreensão.
Eymard Mourão Vasconcelos.
Eveline Algebaile; Maria Beatriz Guimarães;
Hucitec, São Paulo. Victor Vicente Valla.
Abrasco Livros, Rio de Janeiro.
O autor se inseriu em um serviço
de atenção primária à saúde de Falecido em 2009, Victor Valla foi um pesquisador
Belo Horizonte para analisar as fundamental para a consolidação da Educação
dificuldades e as possibilidades de Popular em Saúde no Brasil. Porém, sua vasta obra
aperfeiçoamento das ações educativas estava dispersa e foi preciso um grande trabalho
na perspectiva da Educação Popular. de Eveline e Beatriz para organizá-la e atualizá-la,
São mapeados muitos dos mais resultando neste lindo livro. A força das reflexões
importantes bloqueios para uma de Valla, voltadas principalmente para compreender
relação educativa mais participativa melhor a cultura e as condições de vida das classes
e pensadas estratégias de superação populares, são fundamentais para a superação das
destes entraves. dificuldades da atuação educativa nas periferias dos
grandes centros urbanos.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Da Nicarágua à Maré:
Intensidades. Suburbana

Vera Joana Bornstein.


Co. Editora. Disponível
Histórias, reflexões e aprendizados de uma
importante educadora popular da saúde brasileira
que iniciou sua vida de militância social no início da
década de 1970, foi presa pela Ditadura e migrou
para a Nicarágua para ajudar na implantação de
221
um governo popular. Na década de 1990, voltou
ao Brasil e foi trabalhar no Complexo da Maré,
conjunto de favelas do Rio de Janeiro. A partir de
sua história, podemos conhecer melhor o passado
do trabalho social orientado pela Educação Popular
na América Latina e sentir o seu significado na
vida de quem a ele se dedica.

Vivências de Educação Popular na Atenção


Primária à Saúde: a Realidade e a Utopia.
Maria Amélia Mano e Ernane V. do Prado (Org.).

Editora da Universidade Federal


de São Carlos-SP (EdUFSCar).

Vinte e uma experiências de utilização da Educação


Popular na Atenção Primária à Saúde, dos mais
diversos recantos do Brasil, foram selecionadas
para mostrar as diversas possibilidades concretas
de atuação neste importante espaço de atuação em
saúde. Amélia e Ernande organizaram esta coletânea
com apoio de toda a Rede de Educação Popular e
Saúde. Há ainda dois capítulos mais teóricos que
contextualizam a importância destas análises de
experiências. É um livro muito gostoso de ler.

Sugestão de leitura
De sonhação a vida é feita, com crença e
luta o ser se faz. 1a. edição. Ray Lima. Revistas
Ministério da Saúde, Brasília.
Roteiros para refletir brincando: outras razões Revista Saberes e Práticas: experiências
possíveis na produção de conhecimento e em Educação Popular em Saúde.
saúde sob a ótica da educação popular. vol.1 no.1, out./2011.

Livro de roteiros cenopoéticos organizado Publicação da Articulação Nacional de


por Ray Lima com capa de Alivre Lima e Educação Popular em Saúde (ANEPS) com
desenhos de Josenildo Nascimento, Mayana apoio do Ministério da Saúde. A revista
Santas e Alivre Lima. Trata-se de um livro reúne experiências de todo o Brasil. Organiza
com roteiros cenopoéticos que problematizam em três eixos: (1) formação - experências
222
várias temáticas sempre à luz da educação que brotam, germinam e florescem no
popular e da cenopoesia Contribui para a cotidiano da saúde; (2) práticas de cuidado
vivência de diversas linguagens nos serviços - saber e poder popular no cuidado à saúde;
de saúde, movimentos e comunidades. e (3) comunicação - inter-relações entre
comunicação, educação popular e cultura. É
distribuida pela ANEPS e está disponível em
seu site para leitura.

Ministério da Saúde II Caderno de Educação Popular em Saúde


Caderno CEDES, vol.29 no.79, set./ Revista APS vol. 11, nº 3 (2008) e vol. 12,
dez. 2009. nº 4 (2009).
Esta importante publicação acadêmica do Esta revista científica dedicada ao tema
campo da Pedagogia dedicou um número da atenção primária à saúde dedicou estes
especial para o tema da educação popular dois números especiais para artigos sobre
em saúde. Vários autores da América educação popular em saúde. A totalidade dos
Latina colaboraram, sob a coordenação textos está disponível pela internet nos sites
da Rede de Educação Popular em Saúde. <http://www.aps.ufjf.br/index.php/aps/issue/
view/20> e <http://www.aps.ufjf.br/index.
223
Todos os textos estão disponíveis na
Internet no site <http://www.scielo.br/ php/aps/issue/view/29>.
scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0101-
26220090003&lng=pt&nrm=iso>.

La Piragua
Conselho de Educação de Adultos
da América Latina.
Esta revista, escrita em espanhol
e produzida pelo Conselho de
Educação de Adultos da América
Latina a (CEAAL), é a principal
publicação acadêmica sobre
Educação Popular. Cada número se
concentra em um tema específico.
Todos os seus textos podem ser
acessados pela internet no seguinte
site <http://www.ceaal.org>.

Sugestão de leitura
Telas do pintor Gildásio Jardim
O artista plástico iniciou seus trabalhos aos 13 anos. Co-
meçou rabiscando a terra vermelha como forma lúdica de
se expressar. Mais tarde desenvolveu uma técnica única
que está diretamente ligada ao seu dia-a-dia. Gildásio,
pinta sobre estampas de Chitas e reproduz o cotidiano da
sua região, o Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais.
Sua pintura é feita com tinta acrílica, tinta para tecido,
tinta látex e com corante líquido. Suas telas retratam a
afetividade humana, a beleza estética e os personagens da
cultura popular do sertão, sempre com um olhar crítico,
político e poético.
Para este trabalho, em parceria com a Aicó Culturas, o
núcleo argumental foi a interseção entre cultura popular
e saúde. E todas as educadoras e cuidadoras retratadas,
têm nome, endereço e muita história para contar.
Mais inforações sobre o artista pode ser encontrada no
site www.gildasiojardim.com.br e nos documentários
produzidos pela Aicó Culturas: www.aicoculturas.com

Índice das telas:


pag. 04 - A Parteira (Dona Zefa da Guia)
pag. 14 - O multirão
pag. 30 - O cortejo (Grupo Xicas da Silva)
pag. 78 - Espaço de Saúde e Cultura Che Guevara
pag. 124 - A biscoitera
pag. 157 - A agente de saúde
pag. 184 - Aprendiz
pag. 206 - A raizeira
pag. 223 - Victor Valla
ISBN 978-85-334-2119-6
MINISTÉRIO DA SAÚDE

9 788533 421196

A democracia é, como o saber, uma conquista de todos.


Toda a separação entre os que sabem e os que não II Caderno de educação

MINISTÉRIO DA SAÚDE
sabem, do mesmo modo que a separação entre as elites
e o povo, é apenas fruto de circunstâncias históricas
que podem e devem ser transformadas.
- Paulo Freuire -
em saúde
1ª edição
1ª reimpressão

II Caderno de Educação
Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde
www.saude.gov.br/bvs

em saúde

Brasília – DF
2014

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