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INTRODUÇÃO
NTRODUÇÃO AO PROCESSO
ROCESSO PENAL
1. Noções
Noções introdutórias
logicamente.1
A partir do Século 12 iniciou-se lentamente o trabalho de construção da
disciplina. Três classes de juristas o fizeram: os Glosadores, os Comentadores (ou
Pós-Glosadores) e os Práticos (ou Praxistas).
Os primeiros tiveram em IRNÉRIO (circa 1085-1125), com duas obras
(Lucerna Juris e Summa Codicis, século 12), BÚLGARO (circa 1090-1167), com
duas obras (Ad Digestorum e De Judiciis, século 12), PORCIO AZO (circa 1150-
1230), com uma obra (Summa Codicis, século 13) e ACÚRSIO (circa 1182-1260),
com uma obra (Magna Glosa, do século 13) seus mais famosos expoentes. O
método de trabalho dos glosadores consistia em copiar trechos de escritos
romanos e explicá-los em uma coluna ao lado. Esse comentário era conhecido
como “Glosa”. O trabalho de garimpo dos glosadores nas obras romanas foi
extremamente importante. Somente a partir desse trabalho pôde-se perceber,
dentre os inúmeros escritos romanos, eminentemente casuísticos, quais eram os
trechos importantes para os tempos em que as glosas eram escritas.
BÚLGARO, por exemplo, é especialmente lembrado na Ciência Processual
por sua famosa definição, que qualquer processualista entende mesmo quando
escrita em latim: iudicium actum trium personarum est: judicis, actoris et rei.2
1
Cf. SILVA, Germano Marques da. Curso de Processo Penal, Lisboa: Ed. Verbo, 1993, v. 1, p. 15, que
relaciona quatro significados jurídicos para a palavra processo, a saber: conjunto de papéis oficiais,
dispostos segundo uma ordem e que representam a condensação de uma questão submetida ao
Judiciário; toda a atividade desenvolvida pelos órgãos judiciais ou perante eles para a consecução de
um certo fim; modelo legal dessa atividade; questão judicial ou pré-judicial.
2
Versão resumida. Conforme o pesquisador austríaco Ludwig Wahrmund (Quellen zur Geschichte des
römisch-kanonischen Processes im Mittelalter; v. 4: Excerpta legum edita a Bulgarino causidico,
Innsbruck: Ed. Wagner, 1917), o trecho completo e correto é o seguinte: “Actor est qui persequitur
aliquid principaliter dicens rem suam esse vel personam obligatam ad aliquid dandum vel faciendum.
Sed et reus si intentione adversarii fundata exceptionem opponit, ut condempnationem effugiat, actor
intelligitur. Agere enim is videtur, qui exceptione utitur. Reus est adversus quem contenditur, quia aut
possidere vel debere dicatur. Ad probationem actoris pertinet si obtinere velit, ut id quod intendit,
probet. Actore enim non probante, qui convenitur, etsi nichil praestiterit, obtineat, quia rei favorabiliores
sunt quam actores. His aequipollenter dicitur: iure promptiora sunt ad absolvendum quam ad
condempnandum. Cumque reus in exceptione actor est, ipsum quod excipit, probare debet (...)
Accusare omnibus permissum est, his exceptis. Propter sexum prohibetur mulier, propter aetatem
3
pupillus, propter sacramentum militare qui stipendium meret, idest miles, propter magistratum ut consul
et praetor, propter delictum ut infames, propter turpem quaestum, ut hi qui nummos ob accusandum
vel non accusandum acceperint, propter conditionem, ut liberti contra patronos, propter suspicionem
calumpniae, ut qui falsum testimonium subornati dixerunt. Ratione paupertatis, ut hii, qui minus habent
L. aureis. (...) Testium ratio est. Ad testimonium cogi possumus per iudicem et improbe versantes absque
praescriptione fori coherceri. Aliquando excusamur sive in omnibus causis ut senes valitudinarii sive in
aliquibus, veluti in publico crimine. Contra cognatum admittimur volentes. Et quandoque excusamur et
quandoque cogi possumus inviti. Interdum inviti excusamur et volentes repellimur, ut liberi contra
parentes et econverso. Testium quidam iudicis officio, quidam exceptione removentur. Iudicis officio
propter dicendi suspicionem, exceptione veluti qui dampnati sunt de carmine famoso, quos leges iubent
esse inprobos et intestabiles. (...) Iudicium est actus ad minus trium personarum, actoris intendentis, rei
intentionem evitantis, iudicis in medio cognoscentis”.
4
de 1856 e 1857.
Essa polêmica se iniciou um tanto por acaso, em 1856, com a publicação da
obra do catedrático de Direito Civil da Universidade de Düsseldorf, BERNHARD
WINDSCHEID, “A Actio do Direito Civil romano, do ponto de vista do Direito
atual” (“Die Actio des römischen Civilrechts, vom standpunkte des heutigen
Rechts”).
Nessa obra, de Direito Civil como o título indica, o autor procurava traçar o
conceito da actio no Direito romano, conceito esse buscado nas pandectas, com
a finalidade de aplicá-lo ao Direito vigente na metade do século 19. Afirmava que
o sistema jurídico romano não era um sistema de direitos subjetivos, mas um
sistema de ações judiciais vocacionadas à sua proteção. Daí que as ações (Kläge)
do Direito germânico de então deviam ser vistas como parte do direito material
em discussão. Tratava-se de um exercício comum na escola pandectista alemã,
esse aproveitamento das lições dos jurisconsultos romanos para o
desenvolvimento do direito de então. WINDSCHEID era um dos próceres dessa
escola. Essa visão do direito de ação, por isso mesmo denominada posteriormente
de imanentista, resultava na concepção de que a ação judicial nada mais era do
que uma faceta de um determinado direito subjetivo.
No ano seguinte, o até então desconhecido professor da Universidade de
Königsberg, THEODOR MUTHER, publicou o livro “Sobre a Teoria da Actio
romana, o atual direito de queixa, a litiscontestação e a sucessão singular nas
obrigações” (“Zum Lehre von der römischen Actio, dem heutigen Klagerecht, der
Litiskontestation und die singular Succesion in Obligationem”). Nessa obra,
francamente petulante, MUTHER acusava o prestigiado professor de Düsseldorf de
confundir conceitos, de baralhar noções, ao procurar atualizar uma ideia que
somente fora útil em uma outra época e que agora parecia inservível. Em resumo,
afirmava que a obra podia ter seu mérito como lição histórica, mas que não tinha
serventia para a análise do direito alemão de então.
No mesmo ano de 1857, o professor WINDSCHEID publicou um opúsculo,
chamado simplesmente “A Actio, defesa contra o dr. Theodor Muther” (“Die
Actio, abwehr gegen dr. Theodor Muther”). Nesse opúsculo, à giza de responder
ao seu crítico, WIDSCHEID acabou por admitir inúmeras incongruências de sua
6
primeira obra. Na principal concessão, afirmou que uma coisa é o direito material
em discussão, e outra coisa é o direito de ação. A esse assunto voltaremos
oportunamente.
Estava feita, pela primeira vez na história da doutrina jurídica, a separação
entre o direito material e o direito processual. É o início desse complexo
nascimento do Direito Processual.
Em torno de doze anos depois, outra obra veio aprofundar essa separação,
agora no terreno do processo propriamente dito. Trata-se do livro “A teoria das
exceções processuais e dos pressupostos processuais” (“Die Lehre von den
Processeinreden und den Processvoraussetzungen”), escrito pelo professor OSKAR
BÜLOW, e publicado em 1868. Esse livro trata das chamadas “exceções” – que são
procedimentos incidentais que visam a retardar ou a impedir o julgamento do
mérito de uma determinada ação judicial. Até aquele momento, a doutrina não
havia atentado para essa categoria, e considerava todas as exceções a
manifestação de um mesmo fenômeno. BÜLOW tentou demonstrar que há dois
tipos de exceções: as de direito material e as de direito processual. As primeiras
– das quais são exemplos a exceção da verdade do fato imputado (CP, art. 138,
§ 3º; CPP, art. 523) e a exceção da notoriedade do fato imputado (CPP, art. 523)
– atacam o mérito do direito material em discussão. São exceções de direito
material. As segundas – das quais são exemplos a exceção de suspeição do juiz
(CPP, art. 95, inciso I, 96, 98-103), a exceção de suspeição do membro do
Ministério Público (CPP, art. 104), a de suspeição dos jurados (CPP, art. 106), a
de suspeição de peritos, intérpretes e serventuários da Justiça (CPP, art. 105) etc.
– atacam a higidez do processo no qual a discussão de mérito é travada. Essas são
exceções de direito processual. Até então, a doutrina trata todas as exceções como
espécies de um mesmo e único gênero.
A conclusão a que chegou BÜLOW, e que se tornou crucial para determinar
a autonomia do objeto de estudo e, por conseguinte, da própria ciência
processual, é que o processo tem pressupostos diversos dos pressupostos do
direito material nele discutido. Se faltar algum desses pressupostos, de nada
adianta que a parte tenha razão quanto ao direito material: aquele processo não
7
2. Conceito
onceito
3
Cf., sobre OSKAR BÜLOW, o seguinte ensaio: RAMOS, João Gualberto Garcez. “Oskar Bülow:
recordação no centenário de seu falecimento”, em Revista de Processo, n. 154 (2007), p. 373-379.
4
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, 2ª ed., Rio de Janeiro-São Paulo:
Ed. Forense, 1965, v. 1, p. 383 e 385.
5
TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal, 2ª ed., São Paulo: Ed. Saraiva, 1977, v. 1, liv. 3,
cap. 1, p. 307-308; MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, São Paulo: Ed. Atlas, 1991, p. 28;
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal, 8ª ed., São Paulo: Ed. Saraiva, 2010, p. 363.
8
3. Conceitos complementares
como a Justiça Militar e a Justiça Eleitoral, por exemplo. É regulado por leis
especiais, como o Código de Processo Penal Militar (Decreto-lei nº 1.002, de 21
de outubro de 1969) e o Código Eleitoral (Lei nº 4.737, de quinze de julho de
1965, arts. 355-364).
Nos dois casos citados, os casos omissos serão resolvidos conforme o Código
de Processo Penal e a legislação processual penal comum (CPPM, art. 3º, letra
“a”; CE, art. 364).
Não é cabível falar-se no Processo Penal nas três categorias básicas do
Processo Civil: processo de conhecimento, processo cautelar e processo de
execução. Embora essa noção seja válida no Processo Civil, não tem o menor
cabimento no Processo Penal. Isso porque o Processo Penal não conhece nem o
processo cautelar nem o processo de execução e a noção de processo de
conhecimento, obviamente, só tem viabilidade na presença das outras duas
noções que a completam. No Processo Penal não há processo cautelar, mas
medidas cautelares. Nele também não há processo de execução, mas execução
penal judicializada.
Por fim, não é processo penal, comum nem especial, o processo de
impeachment (Constituição, arts. 51, inciso I, 52, inciso I, 85 e 86; Lei 1.079, arts.
14-38, 41-73, 75-82). Isso pela singela razão de que seu objeto – o assim chamado
crime de responsabilidade – não é na verdade um crime, com os contornos
daquilo que é tratado sistematicamente pelo Direito Penal, mas uma infração
política, a ser julgada pelo Parlamento, conforme critérios próprios do mundo
político. Não se trata de matéria objeto do Direito Processual Penal.
4. Denominação
O tema da denominação de um ramo do Direito – como de resto da
denominação de qualquer objeto ou de qualquer instituto – sempre rendeu muita
discussão.
Sempre, nesses casos, formam-se pelo menos duas correntes de pensamento.
De um lado postam-se aqueles que consideram a nomenclatura algo de somenos
relevância. Um utensílio utilizado para cozinhar alimentos é chamado em
10
rara.
Nos Estados Unidos utiliza-se com frequência a expressão Criminal
Procedure, que equivaleria, em português, a Procedimento Criminal. Essa opção
também goza de certo prestígio na Itália e na França, devido ao fato de que,
nesses dois países os códigos principais da disciplina são denominados,
respectivamente, de procedura penale e de prócedure pénale.
Na Espanha, em Portugal e no Brasil se trabalha quase que indistintamente
com as denominações Direito Processual Penal e Processo Penal.
Embora alguns autores mais antigos, como EUGENIO FLORIAN, vissem
diferenças entre essas duas denominações – o Processo Penal seria o conjuntos de
atividades e formas concebidas e utilizadas para viabilizar a aplicação da lei penal
e o Direito Processual Penal seria o conjunto de normas jurídicas que regulam o
Processo Penal6 – o fato é que, no presente, as duas denominações são
consideradas sinônimas e são usadas quase que indistintamente.
5. Autonomia
Pode-se dizer que somente há 150 anos tornou-se seguro afirmar que,
conforme a doutrina mais respeitada, o Processo Penal é um ramo autônomo
dentro da Ciência do Direito. Antes desse período o Processo Penal um mero
adjetivo do Direito Penal, considerado o substantivo.
Na doutrina jurídica dos dias atuais praticamente não se contesta o fato de
que o Processo Penal é uma disciplina autônoma em relação a todas as outras
disciplinas jurídicas. Possui autonomia porque tem objeto, finalidade e princípios
próprios, inteiramente diversos dos das outras disciplinas jurídicas.
As normas processuais penais possuem características que as diferenciam
profundamente das normas penais. Além do aspecto propriamente instrumental,
fornecem garantias ao indivíduo. Essas garantias se apresentam com caracteres
profundamente diferentes das garantias propriamente penais.
6
FLORIAN, Eugenio. Elementos de derecho procesal penal, trad. de Leonardo Prieto Castro,
Barcelona: Ed. Bosch, 1933, cap. 1, § 1, p. 14.
12
6. Trilogia estrutura
estrutural
strutural
O saber organizado proporcionado pelo Processo Penal é fruto de uma
evolução lenta, durante a qual proporcionaram-se à doutrina diversas
oportunidades de observar o seu funcionamento.
A história desse campo do pensamento, plena e avanços e recuos, permitiu
organizá-lo, parti-lo e colocá-lo em compartimentos, hierarquizar os conceitos,
inseri-lo, enfim, na Ciência do Direito.
Durante esse tempo, mas não ao mesmo tempo, foi ficando claro que os
institutos do Processo Penal se encaixavam em três grandes partes, um verdadeiro
tripé conceitual estruturante. Essas partes eram a teoria da jurisdição penal, a
teoria da ação penal e a teoria do processo penal.
7
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito, 6ª ed., trad. de L. Cabral de Moncada, Coimbra: Ed.
Arménio Amado, 1979, § 25, n. 1, p. 343.
14
7. Finalidade
Finalidade
Qual é a finalidade do Processo Penal? Essa pergunta é capciosa e ao mesmo
tempo indispensável. É capciosa porque induz quem a ouve a imaginar que exista
uma resposta única, adequada a arrefecer as angústias de quem formulou a
pergunta. Mas é ao mesmo tempo indispensável porque, para averiguar da
legitimidade de um instituto perante o meio social, é preciso indagar acerca de
sua finalidade.
A verdade quanto a essa pergunta é que não há uma resposta única, nem
imutável. A finalidade do Processo Penal, na verdade, são muitas, em um mesmo
momento histórico e no decorrer dos tempos.
Das muitas finalidades, podem-se enumerar as seguintes: realizar a
persecução penal; realizar a prevenção geral; realizar a prevenção especial;
combater a criminalidade; concretizar e atualizar direitos e garantias individuais;
fazer justiça; gerar certeza jurídica.
Nem todas essas finalidades são coerentes entre si. Em alguns momentos,
algumas dessas finalidades são negadas por outras e em outros se impõem às
demais. Nem todas são reconhecidas por uma parcela considerável dos
estudiosos. Mas cabe refletir sobre cada uma delas.
Assim, em primeiro lugar, cabe ao Processo Penal realizar a persecução
penal.
A primeira resposta para a pergunta é, decerto, de que o Processo Penal é
15
8
BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Rio de Janeiro-São Paulo: Ed. Forense, 1962, v. 1, t. 3, cap. 2, n. 5, p.
46.
16
Da mesma maneira que faz com os fins de prevenção geral, o Processo Penal
contribui para os fins de prevenção especial do sistema penal.
Se a aplicação da pena a um determinado criminoso pode produzir nele
tamanho horror, o Processo Penal tem efeito similar, talvez em modo menor. O
fato do processo ser, em si, um instrumento de coação, incômodo para o acusado,
bem como o de proporcionar a revivência dos fatos criminosos, tudo isso pode
produzir no réu o arrependimento, acionando freios inibitórios capazes de afastá-
lo da vida criminosa.
Isso talvez seja ainda mais verdadeiro naqueles processos penais referentes a
crimes patrimoniais não violentos, em que o réu os pratica às vezes por ganância,
às vezes por inexperiência, e por isso mesmo é descoberto.
É claro que se trata de um efeito eventual, imprevisível e incomprovável
cientificamente. Há quem o despreze exatamente por esse motivo.
Ainda assim, mesmo que teoricamente, a possibilidade da prevenção especial
é relevante e deve ser levada em consideração, até mesmo como um estímulo ao
respeito à dignidade da pessoa humana no Processo Penal. Não é difícil concordar
que um Processo Penal desumano desumaniza e um Processo Penal alinhado com
a dignidade humana promove-a.
Outra finalidade atribuível ao Processo Penal é a do combate às
criminalidades.
Com o passar dos anos, o Processo penal passou a ser visto como instrumento
de combate às diversas formas de criminalidade.
Essa finalidade está presente em inúmeros diplomas, como na Lei 11.340,
que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra
a mulher, a Lei 11.343, que estabelece normas para a repressão à produção não
autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, entre outras.
A Constituição confirma essa necessidade, ao conceder atribuições à Polícia
Federal para investigar aqueles crimes com repercussão interestadual ou
internacional e exijam repressão uniforme (Constituição, art. 144, § 1º, inciso I;
Lei 11.446, art. 1º).
17
9
LISZT, Franz von. “Über den Einfluss der Soziologischen und anthropologischen Forschungen auf die
Grundbegriffe des Strafrechts”, em Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge, Berlim: Ed. Walter de
Gruyter, 1905 (reimpressão em 2011), v. 2 (1892 bis 1904), p. 80.
18
nega nem sequer reduz a necessidade de tratamento digno também para a pessoa
do ofendido.
Cabe ao Processo Penal a tarefa de realizar Justiça.
Sobrepairando à necessidade técnica de aplicação integral e precisa da lei
penal, também cabe ao Processo Penal precisar e estabelecer, além dos fatos,
como a Justiça deve ser realizada no caso concreto.
Não fosse assim, o juiz poderia ser substituído por um computador que
calculasse a pena conforme os fatos provados no processo penal condenatório. O
elemento humano, representado pelo juiz, está no processo para perseguir a
realização da justiça material.
Daí que o juiz julga conforme os elementos provados no processo e tem a
possibilidade de prestigiar aqueles que considera mais aptos à realização da
Justiça.
Mesmo se o conjunto probatório indica a ocorrência de um crime e aponta
para a pessoa do acusado, sendo certo que o juiz deve forçosamente editar
sentença penal condenatória, a lei penal conta com inúmeros instrumentos, como
os limites mínimo e máximo da pena (CP, art. 53), os critérios judiciais para a
fixação da pena (CP, art. 59), as circunstâncias agravantes (CP, art. 61 e 62), as
circunstâncias atenuantes (CP, art. , 65 e 66), o arrependimento posterior (CP, art.
16), o erro evitável sobre a ilicitude do fato (CP, art. 21, última parte e parágrafo
único), a participação de menor importância em crime de outrem (CP, art. 29, §
1º), as penas restritivas de direitos, a pena pecuniária, instrumentos esse que
permitem a gradação judicial da resposta penal condenatória na direção de uma
decisão justa.
A realização da Justiça é um ideal cuja verificação, na prática, depende da
apreciação subjetiva do observador. Está claro que o que é justo para um é
sumamente injusto para outro. Mas o ideal da realização da Justiça deve estar
presente como norte do Processo Penal, especialmente para a Polícia de
investigação, para o Ministério Público e para o Juiz.
Por fim, uma das finalidades do Processo Penal é gerar certeza jurídica sobre
os fatos passados submetidos à sua consideração. Quanto maior for o grau de
19
certeza sobre esses fatos, tanto melhor será a atuação do Processo Penal.
Especialmente sobre fatos criminosos mais graves, a sociedade anseia pela
certeza acerca de onde, quando e como ocorreram, quem foram todos os seus
autores etc. A sensação de que se iniciou um processo penal condenatório por
um fato que não ocorreu ou, pior, que se perseguiu e puniu alguém inocente é
deveras insuportável. No primeiro caso, porque a máquina persecutória do Estado
funcionou à toa. No segundo caso, porque se trata de uma dupla injustiça: com
quem foi perseguido e punido injustamente e com quem, sendo autor de um
crime, safou-se sem qualquer consequência. Assim, quando é alcançada a certeza
jurídica sobre a maior parte dos fatos que sejam objeto de um processo penal
condenatório, tanto melhor.
Trata-se, porém, é preciso que se diga, de uma certeza jurídica, que se
alcança pela aplicação das melhores técnicas investigatórias, de todas as normas
jurídicas processuais penais, pelo respeito aos direitos e garantias do acusado, pela
produção da prova da maneira mais correta possível e quando a decisão é dada
por um juiz competente e imparcial.
A certeza jurídica sobre os fatos do passado permite que a sociedade siga em
frente. No caso da certeza sobre fatos criminosos, o Processo Penal –
especialmente a parte relativa à prova – tem papel central nessa tarefa.
8. Relação
Relação com outros ramos do Direito
Obviamente, o Processo Penal tem com o Direito Penal uma relação bastante
íntima. Existe exclusivamente para dar aplicação à norma penal. Embora não seja
um apêndice do Direito Penal, é inegável que seja logicamente secundário em
relação a ele. Malgrado isso, pode-se dizer, com GALDINO SIQUEIRA, que “o
Processo Penal é mais importante para a liberdade civil do que o Direito Penal”.10
De fato, só se pode falar em Processo Penal se, ao menos no campo da
conjectura, uma norma penal material se mostrou aplicável. Não se instaura um
10
SIQUEIRA, Galdino. Curso de Processo Criminal, 2ª ed., São Paulo: Ed. Liv. Magalhães, 1930, cap.
VII, n. 18, p.13.
20
data criminal (art. 5º, inciso LXXII), algumas delas gratuitas (art. 5º, inciso
LXXVII).
A Constituição também proíbe a fiança para os indiciados pela prática dos
crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os
definidos em lei como hediondos (art. 5º, inciso XLIII).
A Constituição prevê a indenização para o condenado por erro judiciário,
bem como para o condenado que ficar preso além do tempo fixado na sentença
(art. 5º, inciso LXXV).
Com o Direito Administrativo as relações são igualmente íntimas porque se
a Constituição cria e estrutura, em linhas gerais, os órgãos encarregados da
utilização do Processo Penal, são as normas de Direito Administrativo que
regulamentam o funcionamento desses mesmos órgãos. São essencialmente
normas administrativas que regulam a estrutura dos órgãos julgadores dentro dos
tribunais. O mesmo ocorre com as chamas leis de organização judiciária, que
nada mais são do que normas administrativas de organização territorial dos órgãos
judiciais.
Há inúmeras normas administrativas, por exemplo, na Lei Orgânica da
Magistratura Nacional (Lei Complementar 35), como as que estabelecem os
deveres do magistrado, as penalidades, os vencimentos e as vantagens dos
magistrados, os direitos dos magistrados, as promoções, remoções e acessos.
O mesmo ocorre com a lei orgânica do Ministério Público dos Estados (Lei
8.625) e com a lei orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar
75). O mesmo se diga das leis estaduais que organizam cada um dos Ministérios
Públicos Estaduais.
É o Direito Administrativo que regula a inscrição do advogado, as infrações
disciplinares e o processo disciplinar que podem impedi-lo de funcionar como
procurador ou mesmo como defensor de acusado em processo penal (Lei 8.906).
Também é o Direito Administrativo que regula inúmeros aspectos da Defensoria
Pública da União (Lei Complementar 80).
Da mesma maneira, são administrativas as normas que regulam a investidura
do delegado de Polícia e dos demais profissionais que atuam durante a
23
Dispõe a lei civil que o fica conferida hipoteca “ao ofendido, ou aos seus
herdeiros, sobre os imóveis do delinquente, para satisfação do dano causado pelo
delito e pagamento das despejas judiciais” (CC, art. 1.489, inciso III). É no
processo penal que essa chamada hipoteca legal se materializa, através da
chamada especialização da hipoteca legal, procedimento no qual o ofendido
indica, dentre os bens do acusado, aqueles suficientes para suportarem a
responsabilidade civil decorrente do crime (CPP, arts. 134-135).
Com o Processo Civil as relações históricas são amplas, mesmo que muitos
(des)qualifiquem o Processo Penal como o verdadeiro primo pobre daquele. De
fato, muito da doutrina do Processo Penal, atualmente e no passado, baseia-se na
doutrina do Processo Civil.
Funcionalmente as relações também são intensas, começando pela regra de
hermenêutica que permite que se interprete a lei processual penal extensivamente
e que se a aplique analogicamente (CPP, art. 3º). Como a lei processual civil
muitas vezes contem disposições procedimentais úteis ao Processo Penal, muitas
vezes será possível lançar mão delas analogicamente. Obviamente, isso é possível
se não houver regra própria da lei processual penal a respeito da mesma hipótese
fática.
O Processo Civil pode ter influência na tramitação do processo penal
condenatório, mormente nas chamadas questões prejudiciais (CPP, arts. 92-93).
Nos dois casos – nas prejudiciais de devolução obrigatória (art. 92) e nas
prejudiciais de devolução facultativa (art. 93) – é no Processo Civil que serão
resolvidas.
A sentença criminal transitada em julgado é título executivo judicial, que
pode ser executado no juízo cível (CPC, art. 475-N, inciso II). Com isso, fica claro
que a lei processual civil confere a esse título judicial a potencialidade de tornar
a dívida do criminoso para com o ofendido certa, cabendo ao processo civil
executório a tarefa de torná-la líquida.
Outro exemplo da relação entre o Processo Penal e o Processo Civil é o
mandado de segurança criminal, típica ação constitucional (Constituição, art. 5º,
inciso LXIX; Lei 12.016). A lei que institui o mandado de segurança não cria um
25
9. Refer
Referências
ferências bibliográficas
bibliográficas
BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Rio de Janeiro-São Paulo: Ed. Forense, 1962, v.
1, t. 3
FLORIAN, Eugenio. Elementos de derecho procesal penal, trad. de Leonardo
Prieto Castro, Barcelona: Ed. Bosch, 1933
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal, 8ª ed., São Paulo: Ed.
Saraiva, 2010
LISZT, Franz von. “Über den Einfluss der Soziologischen und anthropologischen
Forschungen auf die Grundbegriffe des Strafrechts”, em Strafrechtliche
Aufsätze und Vorträge, Berlim: Ed. Walter de Gruyter, 1905 (reimpressão em
2011), v. 2 (1892 bis 1904)
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, 2ª ed., Rio
de Janeiro-São Paulo: Ed. Forense, 1965, v. 1
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, São Paulo: Ed. Atlas, 1991
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito, 6ª ed., trad. de L. Cabral de Moncada,
26