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O perito e a missão pericial em Direito Civil

Autor(es): Vieira, Duarte Nuno


Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/32122
persistente:
DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0400-8_2

Accessed : 5-Mar-2018 17:34:10

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Aspectos práticos
da avaliação do dano
corporal em Direito Civil

Coordenação

Duarte Nuno Vieira


José Alvarez Quintero

Biblioteca Seguros
Junho 2008 Número 2 CAIXA SEGUROS
(Página deixada propositadamente em branco)
Biblioteca Seguros 35

II - O Perito e a Missão Pericial


em Direito Civil 1

Duarte Nuno Vieira

INTRODUÇÃO
Desenvolvida essencialmente a partir dos à publicação de livros e revistas periódicas nacio-
meados do século passado (séc. XX) – sobretudo nais nesta área, à realização de encontros cien-
no rescaldo da segunda guerra mundial com tíficos abordando este tema, à criação da com-
o incremento da circulação rodoviária e dos aci- petência em avaliação dos danos corporais pela
dentes dela decorrentes – a avaliação dos danos Ordem dos Médicos e, muito recentemente, à
corporais em direito civil constitui uma área de entrada em vigor da primeira tabela portuguesa
intervenção pericial cada vez mais relevante no de incapacidades para o direito civil - apesar de
âmbito da clínica forense, verificando-se um con- todos esses progressos, dizíamos, a verdade é que
tínuo e significativo crescimento anual do volume existem ainda insuficiências e deficiências nacio-
de perícias desta natureza. nais diversas neste âmbito, nomeadamente na
Apesar dos substanciais progressos verifica- qualidade das avaliações periciais concretizadas.
dos em Portugal neste domínio desde os finais Na realidade, se pertence cada vez mais ao
dos anos 80 – período durante o qual se assistiu passado a época em que os exames periciais de
ao aparecimento de cursos de pós-graduação avaliação do dano corporal em direito civil se limi-
incidindo especificamente sobre a avaliação de tavam à resposta simples a um conjunto de
danos corporais, ao desenvolvimento de associa- questões mais ou menos numerosas (circunstân-
ções científicas dedicadas a esta problemática, cia que os levou a ficarem conhecidos na gíria

1 A presente reflexão parte de texto subordinado ao título A “missão” de avaliação do dano corporal em direito civil, previamente

publicado pelo autor em 2000, na Revista Sub Júdice (nº 17, pp 23 a 30).
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pericial por “exames de quesitos”2 ), a verdade é médicos com competência específica no domínio
que as peritagens correctamente efectuadas, isto da avaliação de danos corporais, implicará
é, seguindo uma metodologia e uma filosofia (espera-se), que estas situações sejam eliminadas
pericial consentânea com o actual estado da arte ou adquiram um carácter excepcional.
no domínio da avaliação dos danos corporais
em direito civil e dando resposta ao princípio O MÉDICO PERITO
da reparação integral dos danos nele vigente, Sempre que um perito médico é solicitado
continuam a não constituir regra absoluta. no sentido de proceder a uma avaliação de danos
Com efeito, é possível afirmar que, pelo menos corporais, o que se lhe pede é que, recorrendo
até um passado recente, se verificava ainda um aos seus conhecimentos no âmbito da medicina,
significativo número de peritagens incompletas, à preparação científica e técnica que a sua for-
abrangendo frequentemente apenas a avaliação mação médica e pericial lhe confere, defina num
de parte dos parâmetros de dano reparáveis em determinado quadro jurídico (em direito penal,
direito civil, ou utilizando metodologias periciais civil, do trabalho, administrativo, etc.), quais as
próprias de outros domínios da avaliação de lesões e/ou sequelas de que uma determinada

danos corporais, sobretudo as do direito do tra- vítima ficou portadora, susceptíveis de (con-

balho. Isto por uma multiplicidade de factores, soante a área do direito em que a perícia decorre)

entre os quais avultava a falta de formação em serem objecto de sanção penal, da atribuição de

avaliação do dano corporal de muitos dos médi- uma indemnização ou de justificarem, por exem-
plo, a concessão de determinadas regalias e
cos que actuavam como peritos e que, em boa
benefícios (fiscais, sociais ou outros). Significa
verdade, de “peritos” tinham apenas a desig-
isto que a avaliação de danos corporais se proces-
nação, desconhecendo por completo as dife-
sa (deve processar) de formas distintas consoante
rentes doutrinas, filosofias e metodologias peri-
o domínio do direito em que se concretiza.
ciais que caracterizam (devem caracterizar) esta
Os mesmos danos poderão, assim, ter uma abor-
avaliação, consoante o campo do direito em que
dagem, uma apreciação, uma valoração pericial
se processa. A recente entrada em vigor do
diversa, consoante o domínio do direito onde
Decreto-Lei 352/2007, de 23 de Outubro, verifi-
essa avaliação pericial se processa. Isto, repete-
cada no mês de Janeiro de 2008, ao preconizar
-se, porque os princípios jurídicos que definem os
que estas perícias deverão passar a ser feitas por
danos a avaliar são diferentes para cada um deles.

2 Sobre a situação pericial que se vivia em Portugal no início da década de 90, cfr. FERNANDO OLIVEIRA SÁ. Dano corporal e peritagem

médico-legal. Panorama português em 1992, in Revista Portuguesa do Dano Corporal 1992, 1(1), pp. 1-9. Nesta análise o autor tece críticas
substanciais aos “exames de quesitos”, afirmando que “os quesitos são a perfeita negação de uma correcta e verdadeira peritagem
médico-legal — são a peritagem espartilhada por chavetas do sim ou não aberta à resposta seca em jeito de atestado”. Na realidade,
neste tipo de “perícias” o perito limitava-se a responder a um conjunto variável de questões, nas quais as preocupações dos quesitantes
nem sempre abrangiam todos os parâmetros possíveis de expressão e valoração médico-legal do dano existente, sucedendo, por outro
lado, que na prática se verificava com alguma frequência a formulação de quesitos desajustados, ingénua ou intencionalmente, e que
impunham forçosamente uma resposta que, desinserida de um contexto global de avaliação, poderia ser explorada para lhe atribuir um
significado que não era o correcto.
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No âmbito do direito civil o princípio jurídico poderão situar, também a título de exemplo, as
que orienta a avaliação dos danos corporais é o dores ou o dano estético de que a vítima ficou
da reparação integral dos danos. Significa isto que afectada (excluídos os casos em que o dano esté-
em direito civil todos os danos, desde que tenham tico assume virtualidades de dano patrimonial).
uma dignidade suficiente para merecerem a tute- O papel do perito será, pois, o de ajudar a ver
la do direito, devem ser avaliados e indemniza- claro. Ajudar o magistrado, o segurador, o advo-
dos. O objectivo da avaliação e reparação do dano gado da vítima ou mesmo esta, a compreen-
corporal será, pois, o de procurar restabelecer tão derem qual a verdadeira situação em termos dos
exactamente quanto possível o equilíbrio destruí- danos de que ficou afectada, qual a alteração que
do pelo dano e recolocar a vítima, a expensas sofreu na sua integridade psico-física, e qual a
do responsável pela produção desse mesmo valoração que esta e os outros danos deverão
dano, na situação em que esta se encontraria se merecer com base nas regras jurídicas e nas
o facto produtor das lesões não tivesse ocorrido. metodologias periciais adequadas no contexto da
Trata-se, obviamente, de um objectivo utópico na leges artis da boa actuação pericial na área do
maioria das situações. Com efeito, se a vítima direito onde a avaliação se processa.
ficou, por exemplo, amputada de parte de um Deve ter-se presente que a avaliação de
membro, ela não voltará nunca a ficar exacta- danos corporais não é uma tarefa fácil. Muito pelo
mente na mesma situação em que estava anterior- contrário. Reveste-se sempre de alguma com-
mente. Mas o que se pretende é que a indemni- plexidade, por vezes de enormes dificuldades,
zação ajude a vítima a aproximar-se o mais pos- pontualmente até insuperáveis. Dificuldades que
sível da situação que tinha, representando de decorrem desde logo da circunstância da modifi-
certa forma uma compensação para o lesado e, cação que regista a relação médico/paciente
simultaneamente, uma sanção para o lesante. quando o médico surge perante a vítima como
Este princípio jurídico da reparação integral do perito e não como clínico. Na realidade, enquanto
dano implica, assim, que o perito médico deva na esfera clínica esta relação (médico/paciente)
proceder tanto à avaliação de danos patrimoniais, é habitualmente de confiança e colaboração, já
isto é, daqueles danos que têm um referencial no âmbito pericial tende a assumir contornos de
económico directo, como de danos não patrimo- alguma forma opostos, de desconfiança e de
niais, ou seja, de danos que não têm esse refe- ausência de colaboração. Curiosamente, mesmo
rencial económico directo, tendo sim a ver com quando a avaliação é efectuada a título de perícia
prejuízos vividos, sentidos pelas pessoas. Dentro, privada e tendo sido solicitada pela própria vítima.
obviamente, daqueles que caem na esfera da sua Isto pelo menos numa fase inicial, mas por vezes
competência técnico-científica, da sua específica até no decurso de toda a perícia se o médico
preparação médica, isto é, apenas os danos patri- não souber promover a alteração desse posicio-
moniais e não patrimoniais susceptíveis de cons- namento defensivo da parte do examinado.
tatação e explicação médica. Entre os danos patri- Este vai ter muitas vezes a tendência para ocultar
moniais estarão, por exemplo, a necessidade de elementos que considera poderem vir a ser-lhe
uma prótese ou os dias de incapacidade total prejudiciais na avaliação a que está a ser submetido
para o trabalho. Já nos não patrimoniais se e que sabe ser um elemento fundamental a con-
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dicionar a reparação (indemnização) que preten- âmbito do direito civil, onde a vítima sabe que
de e a que considera ter direito. E isto sucede por está em causa uma indemnização pela qual
vezes de forma quase inconsciente. A vítima ten- aguarda (e por vezes em situação de grande fragi-
de a pensar que quanto pior a sua situação for lidade emocional), há um período de tempo que
considerada pelo médico, mais provável será que considera demasiado longo e injusto.
este valore de forma mais significativa os seus Para poder concretizar uma correcta avalia-
danos e, portanto, que lhe possa vir a correspon- ção pericial o médico perito necessita de uma
der uma maior indemnização. Isto não significa sólida preparação médica, mas necessita também
de forma alguma que o sinistrado deva ser enca- de conhecimentos jurídicos que lhe permitam
rado por rotina como um simulador ou alguém captar exactamente o sentido da missão que lhe
que mente. O verdadeiro perito jamais partirá do é solicitada e o alcance das conclusões que apor-
inaceitável pressuposto de que todos os sinistra- ta no seu relatório. Na realidade, no caso de um
dos mentem, atribuindo à partida sempre credi- perito médico, ser um bom médico não basta
bilidade à vítima e usando a sua competência para ser um bom perito. É necessário adquirir
e sensibilidade pericial para detectar eventuais também preparação jurídica. É necessário conhe-
situações em que, efectivamente, exista simulação cer o alcance e limitações da perícia consoante a
ou dissimulação. área em que decorre e dominar a regras da peri-
Mas a avaliação é ainda complexa face ao tagem médico-legal. O que se pretende é que o
facto de serem muitos os problemas que a perito esteja apto a operar em qualquer quadro
envolvem. Problemas como a antiguidade dos do direito, aplicando a cada um deles a sua
factos, pois sucede com alguma frequência, feliz- metodologia específica, de forma a obter uma
mente cada vez menos, serem avaliadas situa- avaliação o mais justa possível, elemento essen-
ções verificadas vários anos antes do momento cial para uma indemnização também ela o mais
dessa avaliação. Problemas como a dificuldade na justa possível. É necessário ainda que seja deten-
obtenção de dados sobre os antecedentes da víti- tor de um conjunto de condições naturais que
ma, e que são elemento por vezes fundamental confiram à sua actuação uma inquestionável
no âmbito da ponderação de um eventual nexo solidez ética. Deve ser um perito que se paute
de causalidade. Problemas como a dificuldade na pela competência e não pela improvisação, pelo
obtenção de dados sobre a evolução das lesões, rigor, que nada tem a ver com severidade, pela
a dificuldade na sua interpretação, a impossibi- objectividade, que não pressupõe inflexibilidade.
lidade de submeter por vezes o examinado a E deve ainda ser imparcial, diligente, consciente,
determinados exames complementares suscep- prudente, pautando também a sua actuação pelo
tíveis de permitirem esclarecer melhor a realida- discernimento, pela objectividade, pela veracidade.
de sequelar, a subjectividade de alguns parâme- Sendo certo que a perícia médico-legal deve
tros de dano e da sua valoração, as variadas ter (tem) sempre presente a saudável possibi-
reacções psicológicas aos traumatismos ou até lidade do contraditório, é também fundamental,
as inevitáveis situações de simulação ou dissimu- para se ser um verdadeiro perito, o respeito abso-
lação a que já se fez referência e que sempre luto pelo posicionamento de outros colegas que,
podem verificar-se, e muito particularmente no quando não coincidente, apenas deverá ser
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rebatido pelo debate sério e frontal, cientifica- e a desonestidade (que enviltece e degrada).
mente fundamentado. Não é perito, não pode ser A primeira responsabilidade do médico que
perito, aquele que vive a criticar negativamente actua como perito é, naturalmente, ser digno
os colegas, a fazer reparos e observações depre- desse atributo que ostenta e não permitir ser
ciativas, a semear boatos ou insinuações mais ou como tal considerado quando o não for ou até
menos dissimuladas relativamente à actuação tentar passar ardilosamente essa imagem.
destes, a procurar valorizar a sua actuação pes- Dizia Oliveira Sá que devemos desconfiar sempre
soal através da desvalorização do trabalho dos por cautelosa dúvida daqueles que se auto-intitu-
outros. O verdadeiro perito, para parafrasear um lam peritos disto ou daquilo, colocando até por
lugar comum, deve ser sério e nunca se levar vezes uma série de títulos mais ou menos adap-
demasiadamente a sério. tados e impressivos nos seus relatórios, sem
A igualdade na avaliação em danos idênticos que mais ninguém se dê conta de tão excelsos
qualquer que seja o perito interveniente, é um atributos se não os próprios.
elemento indispensável para a harmonização Note-se ainda que na sua actuação no con-
pericial nacional e para a existência de equidade texto da avaliação de danos corporais, deve o
na administração da justiça. Se situações simi- perito médico estar consciente da possibilidade
lares não forem objecto de idêntica valorização de poder ser responsabilizado (responsabilização
pericial, a justiça fica desde logo fortemente civil, disciplinar e, eventualmente, criminal) por
comprometida. Tal como é elemento fundamental actuações ilícitas e culposas que tenham tido
para uma correcta aplicação da justiça que a como consequência adequada danos de diversa
avaliação pericial seja igual independentemente índole, nomeadamente e a título de exemplo,
do papel em que o perito actua na situação con- uma avaliação insuficiente ou incorrecta dos
creta, isto é, quer a sua intervenção numa avalia- danos de que a vítima era portadora 3. Esta é uma
ção de danos corporais ocorra a solicitação do possibilidade que se vem constatando de forma
sinistrado, de um advogado, de uma seguradora, crescente entre nós.
de um tribunal, ou no âmbito da actividade de
serviços médico-legais públicos nos quais trabalhe A MISSÃO PERICIAL, OS PARÂMETROS
ou com os quais mantenha um contrato de pres- DE DANO E A SUA AVALIAÇÃO
tação de serviços. O posicionamento valorativo Tecidas algumas considerações sobre a
terá de ser sempre o mesmo perante determinada função pericial e o papel do perito, analisemos
situação concreta. agora a missão pericial que lhe é especificamente
O título de perito confere pois àquele que o cometida no âmbito da avaliação de danos corpo-
possui obrigações e deveres. É incompatível, rais em direito civil, centrando a nossa atenção nos
como afirmava Simonin, com o orgulho (que parâmetros de dano a avaliar e a sua ponderação
cega), a ignorância (que faz não duvidar de nada) valorativa. Relembrando antes a relevância da de-

3 Sobre a responsabilidade profissional do perito médico veja-se João Álvaro Dias, Responsabilidade Profissional do Perito Médico, in

Revista Portuguesa do Dano Corporal VII , Nº 8 (1998) p.35-51.


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finição deste tipo de missão, que constituirá uma País, servindo de linha orientadora a todos os que
espécie de guia de orientação da intervenção viessem a estar envolvidos neste tipo de perícias.
pericial, de protocolo da actuação. É de facto im- Assim sucedeu de forma crescente, embora se
portante que na sua actuação o perito médico constate existirem ainda hoje entre os diversos
siga as metodologias e procedimentos adequa- profissionais envolvidos nesta problemática
dos à missão em causa, susceptíveis de serem (nomeadamente médicos, seguradores, advoga-
reconstituídos e sindicados por referência a uma dos e magistrados), alguns que evidenciam
norma ou padrão de actuação, como assinalou desconhecimento de tal proposta e/ou do signifi-
Álvaro Dias. cado dos parâmetros de dano nela consignados.
Em 1991, no âmbito do Seminário que pro- Nas páginas seguintes abordaremos (ainda
moveu em Coimbra no dia 29 de Junho - no qual que de forma necessariamente sucinta) os parâ-
participaram magistrados, seguradores, peritos metros do dano contemplados nesta missão peri-
médicos, advogados e docentes universitários - a cial (que no essencial se mantém em vigor) e das
Associação Portuguesa de Avaliação do Dano principais dificuldades que a sua avaliação pode
Corporal aprovou uma proposta de missão peri- envolver, mesmo para o verdadeiro perito.
cial tipo portuguesa, então enviada a diversas Deve, todavia, sublinhar-se que os parâme-
entidades, nomeadamente ao Ministro da Justiça, tros consignados na missão constituem os habi-
Secretário de Estado da Justiça, Comissão de tualmente presentes na rotina pericial, isto é, na
Revisão do Código de Processo Civil, Conselho grande maioria das situações, devendo todavia
Superior de Magistratura, Procuradoria-Geral da ter-se consciência de que outros podem even-
República, Centro de Estudos Judiciários, Ordem tualmente ter de ser avaliados em determinados
dos Advogados e Ordem dos Médicos. Nela se casos concretos (prejuízo sexual, necessidade de
estipulava o seguinte: “Proceder a exame médico- assistência de terceira pessoa, prejuízo juvenil,
-legal para avaliação dos danos corporais rele- etc.), mas sobre os quais não serão tecidos quais-
vantes na reparação civil devendo os peritos pro- quer comentários, incorporando este livro refle-
nunciarem-se, designadamente, sobre o nexo de xões específicas sobre alguns deles.
causalidade médico-legal com a ofensa corporal Antes da abordagem desses parâmetros de
de ..., a data de consolidação das lesões, as inca- dano, relembra-se que em direito civil é a vítima
pacidades temporária e permanente quer para o que tem de demonstrar a existência de nexo de
trabalho em geral quer para o trabalho profissio- causalidade entre o evento traumático e as
nal, o quantum doloris durante o período de inca- sequelas. Esta prova só o médico a pode justi-
pacidade temporária e ainda sobre o dano estéti- ficar, negar ou colocar em dúvida, fazendo-o com
co e, eventualmente, sobre o compromisso nas base em elementos estritamente técnicos, mas
actividades de lazer pré-existentes (prejuízo de não lhe competindo interpretar o princípio jurídi-
afirmação pessoal). Devem os peritos elaborar co da causalidade, o qual é competência exclusi-
relatório circunstanciado e justificativo das suas va do regulador. Quando tiver dúvidas, nomeada-
conclusões médico-legais”. mente no contexto do nexo de causalidade,
Pretendia-se que, pouco a pouco, este tipo do diagnóstico do estado sequelar ou do estado
de missão pericial se fosse disseminando pelo inicial, face a problemas que envolvem uma
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área médica que não domina, o perito pode e funcional, por exemplo). Em peritagem médico-
deve recorrer a colega, nomeadamente de outra -legal a palavra cura significa (deve significar) que
especialidade. houve naquela situação concreta uma recupe-
Mas uma vez pericialmente assegurada a ração anátomo-funcional e psico-sensorial inte-
existência de nexo de causalidade entre o evento gral, isto é, que a vítima voltou a ficar, repete-se,
traumático em causa e as sequelas de que a víti- tal como estava antes do evento traumático
ma ficou portadora, isto é, ultrapassado o proble- ter ocorrido.
ma da imputabilidade médica, a primeira missão Infelizmente a evolução no sentido da cura,
do perito envolverá a ponderação e estabeleci- da recuperação anátomo-funcional e psico-sen-
mento da data da cura ou da consolidação. sorial integral, não é a evolução de rotina.
Com efeito, na maioria das situações as lesões
CURA E CONSOLIDAÇÃO traumáticas vão evoluir ao longo de um determi-
Quando um indivíduo sofre lesões traumáti- nado período de tempo até que chegam a um
cas das quais não resulta a morte, essas lesões momento em que deixam de sofrer alterações
irão evoluir ao longo de um período de tempo apreciáveis, em que se fixam, em que estabilizam
variável de situação para situação (em função de sem que a vítima volte a ficar como estava previa-
factores múltiplos como a natureza e gravidade mente ao evento traumático, ficando sim porta-
das lesões, a idade e estado de saúde anterior da dora de uma qualquer alteração (ou alterações)
vítima, as complicações surgidas, a qualidade de na sua integridade psico-física a título definitivo.
tratamentos prestados, etc.), num de dois senti- Alterações (danos) que poderão ser meramente
dos: ou no sentido da cura ou no sentido da con- anatómicas (uma cicatriz, por exemplo), funcio-
solidação. nais (uma articulação que já não tem a mobili-
Do ponto de vista médico-legal fala-se em dade que tinha anteriormente), ou psico-senso-
cura quando a vítima recupera totalmente das riais (uma acuidade visual que não volta a ser
lesões sofridas, ou seja, quando não fica afectada a que era). Quando assim sucede, considera-se
por qualquer alteração na sua integridade psico- em termos periciais que se deu a consolidação.
-física. Por outras palavras, quando volta a ficar tal A consolidação é, pois, o momento em que na
como estava antes do evento traumático ter sequência de um período transitório que consti-
ocorrido, recuperando integralmente, tanto do tuiu a fase de cuidados, se constata que as lesões
ponto de vista anatómico, como funcional e deixaram de sofrer uma evolução regular medica-
psico-sensorial. Dá-se aquilo que em termos mente observável, seja por terem estabilizado
jurídicos se designa por restitutio ad integrum. definitivamente, seja por não serem susceptíveis
Daqui decorre que a palavra cura tem, em perita- de sofrer modificações senão após um longo
gem médico-legal, um significado muito distinto período de tempo, não sendo necessários mais
do que pode assumir na prática clínica. Com efeito, tratamentos a não ser para evitar um agravamen-
diz-se em clínica médica que um indivíduo ficou to e em que é possível observar um determinado
curado mesmo que tenha ficado portador de grau de afectação da integridade psico-física,
danos definitivos (uma cicatriz, a perda de um representando um prejuízo definitivo. A consoli-
segmento corporal ou uma qualquer limitação dação pressupõe pois, repete-se, não serem jus-
42 II - O Perito e a Missão Pericial em Direito Civil

tificáveis mais tratamentos médicos - por não ser no decurso da entrevista com a vítima, através da
expectável qualquer melhoria apreciável - a não análise da documentação clínica a que teve aces-
ser para evitar que as lesões regridam. Significa so, da análise da informação da companhia segu-
isto que podemos falar em consolidação mesmo radora e de documentos da entidade patronal,
que a vítima ainda continue a necessitar de trata- etc. Com frequência, esta data da cura ou da con-
mentos médicos (excepcionalmente até para o solidação coincidirá com a data da retoma da
resto da vida), desde que esses tratamentos não actividade profissional (se era o caso). Mas deve
se destinem a promover, nem sejam susceptíveis sublinhar-se que não tem de ser necessariamente
de proporcionar, qualquer melhoria da situação assim e que a consolidação pode não coincidir
(por tal não ser possível), mas sim a evitar um necessariamente com esta retoma, podendo o
retrocesso, um novo agravamento desta. trabalho (em função das suas especificidades e
Estabelecer a data da cura ou da consoli- exigências) ser retomado antes da consolidação
dação não é tarefa fácil. Na realidade, a cura ou total das lesões ou apenas tempo depois desta já
consolidação das lesões não ocorre num dia e se ter verificado. Quando não dispõe de infor-
hora precisos. Ela corresponde ao momento em mação em que possa fundamentar a sua propos-
que, na sequência do acompanhamento médico ta de data de cura ou consolidação, o perito terá
regular a que a vítima vinha sendo submetida, então de ponderar qual é o período de tempo
se pode medicamente considerar que as lesões que, em média e face aos conhecimentos téc-
não são susceptíveis de sofrer qualquer alteração nico-científicos disponíveis, o tipo de lesão (ou
significativa, a não ser eventualmente após longos lesões) sofrida pela vítima demorará a curar ou
períodos de tempo (anos ou décadas), pois ver- consolidar, atendendo, consoante a situação,
dadeiramente, e como dizia Vaugelas, nada do à multiplicidade de elementos que poderão
que é humano é permanente. Sem prejuízo de tal condicionar este período, como sejam, nomeada-
poder ter sido afirmado um dia ou dias antes. mente, as especificidades da vítima, as caracterís-
É por isso que se considera dever o perito no seu ticas das lesões e seus tratamentos, o tipo de
relatório pericial usar o condicional quando sequelas que dela resultaram, etc. Aliás, esta pon-
propõe a data de consolidação, dizendo que esta deração do tempo fisiologicamente aceitável para
(ou a da cura, se for o caso) é fixável no dia … a consolidação deverá ser sempre concretizada
Transmite-se mais claramente desta forma a per- pelo perito médico, até para se averiguar de
cepção de que esta data não é um elemento eventuais arrastamentos indevidos do período de
dotado de rigor absoluto, de que o perito faz uma “baixa” (da fase de danos temporários, como vere-
proposta tecnicamente fundamentada, que o tri- mos) ou de uma eventual alta precoce.
bunal ou a seguradora depois considerarão, acei-
tando-a ou ajustando-a, em função do seu DANOS TEMPORÁRIOS
entendimento. E DANOS PERMANENTES
Na ponderação de uma proposta de data de Estabelecida a data da cura ou da conso-
cura ou consolidação o perito irá, obviamente, lidação tem assim o médico pericialmente defi-
tomar em consideração diversos factores. Desde nidos os dois grandes períodos de dano: o período
logo toda a informação que lhe foi possível obter de danos temporários e o período de danos per-
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manentes. Chamam-se danos temporários aque- sofre lesões traumáticas sucede habitualmente
les que se situam entre a data da produção das causarem-lhe estas limitações na sua capacidade
lesões e a data da cura ou consolidação dessas durante o período de tempo em que evoluem no
mesmas lesões. Temporários porque têm uma sentido da cura ou da consolidação, limitações
expressão temporal, limitada no tempo, vari- que terão implicações no desempenho das suas
ando o seu aspecto e as suas implicações de actividades diárias e/ou profissionais. Se o indiví-
uma forma apreciável em curtos intervalos de duo experimenta limitações na sua capacidade,
tempo, enquanto as lesões vão evoluindo no sen- isso significa que estará afectado por um certo
tido da cura ou consolidação. Quando alguém grau de incapacidade. Ora no campo da peri-
sofre uma fractura, por exemplo, desencadeia-se tagem em direito civil deve avaliar-se separada-
de imediato uma resposta inflamatória a nível mente a chamada incapacidade temporária geral
dos tecidos lesionados que vai condicionando (também designada por alguns como incapacida-
aspectos necessariamente diferentes dessa frac- de genérica ou funcional) e a incapacidade tem-
tura de dia para dia até esta estar definitiva- porária profissional, nos casos em que o indivíduo
mente curada ou consolidar (quando deixa uma desempenha uma qualquer actividade profissional.
qualquer sequela). Na realidade, as dificuldades decorrentes das
A partir do momento em que ocorreu a con- lesões poderão afectar desde logo a vida quoti-
solidação, as lesões adquirem um carácter perma- diana do indivíduo, independentemente de
nente (em princípio e dentro dos condicionalismos exercer ou não uma actividade profissional. Sendo
anteriormente assinalados), entrando-se então na o princÍpio jurídico vigente em direito civil o da
fase de danos permanentes, de danos que não reparação integral dos danos, irá assim o perito
serão susceptíveis de alterações significativas, a começar por avaliar qual o reflexo, qual o rebate
não ser, eventualmente, no decurso de um perío- das lesões em termos dos actos e gestos cor-
do muito extenso (de anos ou décadas) não pers- rentes do dia-a-dia. A incapacidade temporária
pectivável no momento, danos este que, em prin- geral refere-se, pois, às limitações que as lesões
cípio, irão pois permanecer até à morte. comportam do ponto de vista dos actos e gestos
Passará agora o perito médico à ponderação correntes do dia, daqueles actos e gestos que são
dos parâmetros de dano temporários. Sublinhe-se comuns a todo e qualquer indivíduo (levantar-se,
novamente que analisaremos apenas nesta abor- tratar da sua higiene pessoal, vestir-se, alimentar-
dagem (tanto nos danos temporários como nos -se, deslocar-se, etc.) independentemente da sua
permanentes), os parâmetros de dano que fazem idade, do seu estatuto social, de ser profissional-
parte da rotina pericial, isto é, aqueles que estão mente activo ou não. Existe efectivamente uma
mais frequentemente presentes e não os de veri- multiplicidade de actos e gestos que todos reali-
ficação mais excepcional. zamos diariamente, independentemente de ser-
mos jovens ou idosos, profissionalmente activos,
INCAPACIDADE TEMPORÁRIA desempregados ou reformados. Actos e gestos
Um dos parâmetros de dano temporário ligados à vida corrente e às condições de existên-
praticamente sempre presente é o da incapaci- cia dos quais quase não temos consciência (talvez
dade temporária. Com efeito, quando um indivíduo por serem tão banais e rotineiros) e de cuja
44 II - O Perito e a Missão Pericial em Direito Civil

importância só temos verdadeira noção quando apenas resulta fractura do dedo mínimo da mão
por qualquer vicissitude deixamos de os poder direita. Enquanto permanecer com o dedo imobi-
realizar e constatamos a verdadeira dimensão lizado por tala, não terá certamente nenhum tipo
que têm na nossa vida diária. de limitação apreciável para os actos e gestos
É esta a incapacidade que em direito civil correntes do dia a dia. Levanta-se, lava-se, veste-
deve começar por ser avaliada dentro do princípio -se, alimenta-se, desloca-se, etc., sem qualquer
da reparação integral do dano, pois só assim se dificuldade significativa. Todavia, e do ponto de
garante que todos os indivíduos estão em pé de vista da sua actividade profissional, estará certa-
igualdade e que tal princípio é respeitado. Na reali- mente numa situação de incapacidade tem-
dade, se apenas fosse perspectivada a incapaci- porária profissional total enquanto o dedo per-
dade profissional, então o desempregado, o refor- manecer nessa situação de imobilização. A mesma
mado, o estudante, etc., ficariam fora desta ava- lesão tem, pois, implicações absolutamente distin-
liação, ainda que eventualmente afectados por tas em função do tipo de incapacidade considerada.
substanciais limitações nas suas actividades Mas poderá existir situação lesional com
gerais. Pelo contrário, ao avaliar-se a incapacidade reflexos opostos. Por exemplo, uma dactilógrafa
geral, atende-se a uma situação base comum a que trabalhe em casa a processar textos em com-
todos os indivíduos, a actos e gestos que todos putador e que sofre um atropelamento do qual
temos de realizar diariamente, procedendo-se a resulta fractura dos dois membros inferiores,
uma avaliação suplementar da incapacidade enquanto permanecer com os dois membros
profissional sempre que o indivíduo exerça uma engessados terá, seguramente, substanciais limi-
profissão cujo desempenho seja afectado tempo- tações em termos de quase todas as suas activi-
rariamente pelas lesões, uma vez que neste caso dades correntes do dia-a-dia e das suas condi-
ele tem um prejuízo suplementar relativamente ções de existência, isto é, uma incapacidade tem-
ao cidadão em situação absolutamente similar porária geral muito significativa. No entanto e do
mas sem ocupação profissional. ponto de vista da actividade profissional que
Se a vítima desempenha também uma qual- exerce, poderá provavelmente continuar a exe-
quer actividade profissional e as lesões causam cutá-la (dactilografar texto em computador sen-
dificuldades no desempenho dessa actividade tada), sem qualquer perda de rendimento eco-
durante o tempo em que se vão modificando à nómico efectivo.
medida que caminham para a cura ou consoli- Estes são dois exemplos clássicos de situa-
dação, deve então avaliar-se também a existência ções extremas que mostram como a mesma
de incapacidade profissional. lesão ou lesões podem ter consequências total-
Note-se que as mesmas lesões podem mente distintas consoante o tipo de incapacidade
implicar (e implicam frequentemente) conse- em causa. Mas entre estes dois exemplos
quências muito diferentes consoante o tipo de extremos existe obviamente uma multiplicidade
incapacidade temporária (geral ou profissional) de situações em que o reflexo se mantém distin-
em causa. Consideremos o exemplo clássico do pia- to consoante o tipo de actividade considerado.
nista profissional que é vítima de atropelamento O princípio da reparação integral dos danos obriga
por veículo motorizado de duas rodas, do qual a que assim seja.
Biblioteca Seguros 45

No passado, a incapacidade temporária geral temporária profissional total, de eventual período


era avaliada em termos percentuais, procurando de incapacidade temporária profissional parcial
o perito distinguir diferentes períodos de inca- (este apenas existindo muito raramente).
pacidade temporária em função das distintas A avaliação destes dois tipos de incapaci-
fases de autonomia pelas quais a vítima ia pas- dades temporárias, geral e profissional, envolve,
sando e procurando não os subdividir em mais do pois, actualmente apenas a determinação do
que três, para facilitar a tarefa do julgador. Mais à número de dias em que a vítima esteve afectada
frente, a propósito da incapacidade permanente por cada uma delas (total ou parcialmente).
geral, abordaremos as dificuldades de que se Sendo impossível determinar com um mínimo de
reveste o cálculo de incapacidades, dificuldades rigor estas taxas, a forma mais aceitável será
estas particularmente intensas no caso da efectivamente a de determinar qual a duração de
incapacidade temporária e conferindo-lhe um uma e de outra, sendo os dias de incapacidade
carácter ainda mais marcadamente aleatório. temporária geral e de incapacidade temporária
Na realidade, se a determinação de uma taxa de profissional depois indemnizados de acordo com
incapacidade tem já em si dificuldades e fragili- o critério que a justiça considere mais adequado,
dades diversas, essas dificuldades tornam-se nomeadamente através de um determinado mon-
praticamente insuperáveis no âmbito de incapaci- tante diário fixo.
dades temporárias. Como chegar a valores funda- Sublinhe-se que um e outro tipo de incapaci-
mentados se sabemos que nesta fase a capaci- dade temporária pode ser total (absoluta) ou par-
dade de um indivíduo (o mesmo é dizer a sua cial. Será total durante os períodos de interna-
incapacidade) vai habitualmente variando (alte- mento hospitalar (em que a vítima está sujeita a
rando-se) a curtos períodos temporais (daí a desig- uma tutela externa) e durante o tempo em que,
nação de temporárias)? Mesmo estabelecendo mesmo estando já no domicílio, tem de per-
valores médios para determinados períodos de manecer em repouso absoluto, isto é, durante a
tempo - o tal posicionamento pericial que já se fase em que a situação do sinistrado não deixou
assumiu e praticou no passado entre nós - margem para qualquer autonomia significativa.
mostrou a experiência que resultarão sempre A partir do momento em que a evolução das
substanciais erros. lesões já consente algum grau de autonomia,
Por isso se verificou uma alteração na práti- ainda que numa fase inicial muito limitada, entra
ca pericial nacional, no sentido de deixarem de a vítima numa fase de incapacidade temporária
ser avaliadas taxas de incapacidade temporária parcial, geral ou profissional, consoante as circuns-
geral (ou seja, abolindo-se qualquer quantificação tâncias. Uma vez mais não tem necessariamente
numérica em termos de taxa de incapacidade que haver coincidência entre os períodos de cada
temporária geral parcial), para passar a ser ape- uma delas. Uma determinada vítima pode estar
nas avaliado o período da sua duração, à seme- já numa fase de incapacidade temporária parcial
lhança do já se verificava noutros países da União geral e a situação psico-física decorrente da evolu-
Europeia, e do que já se fazia relativamente ção das lesões traumáticas sofridas ainda implicar
à incapacidade temporária profissional, onde o uma incapacidade temporária profissional total.
perito apenas separa o período de incapacidade Para permitir uma indemnização correcta
46 II - O Perito e a Missão Pericial em Direito Civil

destes défices funcionais, o médico perito deverá às suas ocupações habituais assim como para as
descrever as hospitalizações, tratamentos médi- pessoas no domicílio, relativamente às quais con-
cos, consultas, tratamentos paramédicos, preci- vém precisar a natureza das ajudas que se tor-
sar as dificuldades de deslocação consecutivas às naram necessárias para fazer as tarefas domésti-
lesões e à sua evolução, as dificuldades na reali- cas correntes.
zação de tarefas domésticas e as ajudas que te-
rão sido eventualmente necessárias, face à natu- QUANTUM DOLORIS
reza, gravidade e evolução daquelas, etc.. Os meios Um outro parâmetro de dano temporário é o
eventualmente colocados à disposição da vítima quantum doloris. Refere-se, como o próprio nome
para remediar a situação deverão também ser indica, à avaliação da dor. Da dor física, resultante
precisados, e estes poderão ter envolvido uma dos ferimentos sofridos e dos tratamentos que
ajuda doméstica, uma ajuda pelo cônjuge, por um estes implicaram (dependente pois da sua
membro da família, por um vizinho. O essencial é natureza, intensidade, localização, etc.), mas tam-
que o regulador saiba que uma ajuda foi neces- bém da dor vivenciada do ponto de vista psi-
sária durante um período preciso. Não compete cológico (as dores psicógenas, individuais, depen-
ao médico pronunciar-se sobre a duração da aju- dentes das características da vítima em termos
da doméstica que poderia ter sido necessária no da sua constituição física e psíquica, do seu esta-
quotidiano nesta fase de danos temporários, nem do anterior, da sua idade, das suas taras, etc.).
tal lhe seria possível face à variabilidade evolutiva Uma vivência psíquica frequentemente intensifi-
da situação. São obviamente as declarações da cada pela angústia e ansiedade criadas pelas cir-
vítima completadas pela apreciação médica dos cunstâncias inerentes ao acidente, pelas inter-
actos e gestos que as lesões tornavam efectiva- venções cirúrgicas a que a vítima teve de ser sub-
mente difíceis ou impossíveis, que ajudarão a metida, pela consciência do risco de vida, pelo
perceber a realidade verificada. O médico terá de afastamento das responsabilidades familiares e
descrever as dificuldades, mas igualmente de pre- profissionais, etc.
cisar os períodos durante os quais já não haveria A avaliação do quantum doloris reveste-se
perturbação, se estes não coincidem com a sempre de compreensíveis dificuldades, de uma
consolidação. particular complexidade. Trata-se, com efeito, de
No caso particular de estudantes, o médico um dano com uma componente fortemente sub-
perito deverá descrever quais foram as conse- jectiva. O mesmo estímulo doloroso não só pode
quências do acidente, das lesões e da sua ser vivenciado de forma distinta por duas pessoas
evolução, sobre a interrupção dos estudos, que diferentes como a mesma pessoa pode vivenciar
impossibilidade ou dificuldade envolveram em a mesma dor de forma diversa consoante o
termos da frequência do local habitual de ensino momento em que a experimenta. A avaliação da
e, durante as férias, a interrupção total ou parcial dor terá pois sempre este condicionalismo da
das actividades de lazer que implicaram. subjectividade individual, diríamos mesmo de
Quanto aos reformados, cujas actividades uma dupla subjectividade. Por um lado, a subjec-
são cada vez mais variadas e múltiplas, justifica-se tividade da vítima que só conhece as dores pelas
igualmente uma descrição bem específica quanto quais passou e, por outro, a subjectividade do
Biblioteca Seguros 47

próprio perito médico que também não conhece dade está, por exemplo, o de Tierry e Nicourt, dois
senão as dores que ele próprio já experimentou. prestigiados autores franceses, consistindo essen-
Mas se a dor tem muito de subjectivo, a ver- cialmente numa tabela que contém um significa-
dade é que ela tem também uma importante com- tivo conjunto de quadros lesionais indicando para
ponente objectiva, que o médico perito, melhor cada um deles valorizações de referência da dor
que ninguém, pode apreciar e valorizar. Factores que foi habitualmente vivenciada por vítimas em
como as características das lesões traumáticas tais situações. O perito médico tem, pois, nesta
(a sua natureza, localização, extensão, intensi- tabela um elemento de orientação, susceptível de
dade, profundidade, etc.), o tipo e número de facultar uma maior equidade na avaliação e aju-
tratamentos que estas lesões implicaram (inter- dando-o na ponderação do caso que está avaliar,
venções cirúrgicas, permanência em extensão competindo-lhe proceder ao seu ajustamento em
contínua, imobilizações, etc.), ou as complicações função das especificidades concretas da situação.
surgidas durante a sua evolução, são, entre muitos Como vai o perito traduzir a sua avaliação
outros, exemplos de alguns destes elementos pericial da dor? Tem sido prática corrente entre
objectivos da dor que o médico, face à sua nós o recurso a uma escala de 7 graus, utilizada
preparação técnico-científica, face aos conheci- também na avaliação pericial concretizada
mentos técnicos de que é detentor, pode valorar noutros países. Tendo sido inicialmente de índole
para obter uma apreciação da componente objec- qualitativa (Muito ligeiro; Ligeiro; Moderado;
tiva do quantum doloris. Elementos que ele está Médio; Considerável; Importante; Muito Impor-
melhor do que ninguém posicionado para avaliar. tante) deu com o tempo lugar a uma escala ape-
Acrescendo que existem hoje métodos desen- nas quantitativa (indo do grau 1/7 a 7/7). Visou-se
volvidos ao longo de décadas de prática pericial com esta evolução do posicionamento valorativo
que permitem ao verdadeiro perito, em função pericial evitar os compreensíveis melindres de
das especificidades de cada quadro lesional, fazer pessoas que, muitas vezes, estão emocional-
uma aproximação a este quantum de dor e garan- mente fragilizadas pela situação em que se
tir alguma harmonia na avaliação pericial quando encontram e por verem arrastar-se o processo de
concretizada por peritos distintos em situações reparação a que consideram ter (e têm) direito,
similares. Métodos susceptíveis, pois, de consti- as quais muitas vezes aceitam e vivem mal o
tuírem um precioso auxiliar para uma avaliação serem as dores porque passaram (e que são para
mais fundamentada deste parâmetro de dano. eles as piores que existem pois não conhecem
Têm, todavia, alguns deles as suas limitações, outras) avaliadas como ligeiras ou muito ligeiras…
nomeadamente em termos da cooperação do Os qualificativos tendem, pois, a ser mal aceites
examinado, da sua idade, do seu contexto clínico pelos sinistrados que, compreensivelmente, po-
(ansiedade, compromisso do nível de consciência, dem ter uma percepção amplificada do seu trau-
patologia psiquiátrica, etc.), do seu nível intelec- matismo relativamente à realidade. Sendo tam-
tual, sendo necessário que o perito domine cor- bém certo que alguns sofrimentos não podem
rectamente as suas potencialidades e o seu manu- ser avaliados por um simples adjectivo. Por isso é
seamento para que deles retire alguma utilidade. desejável a utilização apenas da escala quantitativa
Entre os métodos mais simples e de maior utili- (assinalando-se por exemplo quantum doloris de
48 II - O Perito e a Missão Pericial em Direito Civil

grau 4 em 7, em vez de médio). enquadrável dentro do dano estético ou do pre-


Note-se que nada existe no nosso ordena- juízo de afirmação pessoal (o caso de dor articu-
mento jurídico (tal como em muitos outros) que lar sem limitação funcional por exemplo, a situa-
obrigue a utilizar esta escala valorativa de sete ção de um membro fantasma, as perturbações do
graus. Trata-se apenas de uma convenção pericial sono sem influência na vida corrente, etc.) poderá
que, por razões de harmonização, é conveniente a dor ser avaliada a título de dano permanente
ser seguida por todos quantos peritam em direito autónomo. Trata-se, todavia, de situações seque-
civil. Mas nada impede o perito de recorrer a outras lares cujo controlo da realidade e natureza (cuja
escalas, por exemplo, de 14 ou mais graus. O fun- comprovação pericial), pode ser particularmente
damental é que consigne no seu relatório pericial difícil. Uma vez mais se vislumbra ser fundamen-
qual a escala que utilizou, pois o peso da avalia- tal uma sólida preparação pericial por parte de
ção que concretiza dependerá do seu posiciona- quem avalia.
mento relativo dentro da escala a que recorreu.
Esta classificação (como aliás qualquer outra) tem INCAPACIDADE PERMANENTE
(deve ter) apenas um valor indicativo, devendo o Avaliados os danos temporários terá depois
perito realizar em cada caso descrição exaustiva o perito, caso tenha havido consolidação e não
que traduza a realidade concreta e personalizada cura, de ponderar os danos permanentes.
do prejuízo, no sentido de fornecer todas as indi- Sempre que a vítima, apesar de lhe terem
cações que possam esclarecer o julgador sobre a sido prestados os melhores cuidados e tratamen-
natureza, intensidade e duração dos sofrimentos tos médicos e de reabilitação, fica portadora de
vividos pela vítima. um qualquer prejuízo a título definitivo, de uma
Poderá perguntar-se o porquê do quantum afectação da integridade psico-física que lhe
doloris ser avaliado apenas durante o período de cause limitações na capacidade que tinha, ela
danos temporários, quando é certo que existem ficará então afectada por uma determinada inca-
vítimas que ficam com dores para toda a vida? pacidade. Estará então em causa a avaliação da
Decorre esta circunstância de, em princípio e na incapacidade permanente. Tal como referido rela-
quase totalidade das situações, as dores que per- tivamente à incapacidade temporária, também
manecem para lá da data de consolidação, ou aqui o perito deverá avaliar, por um lado, a inca-
seja, a título de dano permanente, estarem conti- pacidade permanente geral e, por outro, se as
das nos parâmetros de dano permanente de que sequelas também interferirem com o exercício da
já iremos falar. Ora o mesmo dano não pode ser actividade profissional, a incapacidade permanen-
avaliado e indemnizado duas vezes e, por isso, a te profissional.
avaliação da dor enquanto parâmetro de dano Convirá todavia retomar algumas conside-
independente se limita na maioria das situações à rações iniciadas aquando da abordagem da inca-
fase de danos temporários. Apenas nos casos em pacidade temporária. Para dizer que determinar
que existe dor a título permanente sem que a uma taxa de incapacidade é algo sempre com-
mesma esteja contemplada nos parâmetros de plexo e com alguma fluidez. Todos os peritos
dano avaliados nesta fase, isto é, quando não (pelo menos os conscientes!) sentem sempre
cause qualquer limitação funcional, nem seja alguma apreensão quando têm de traduzir em
Biblioteca Seguros 49

números o que em princípio e por definição não incapacidades para o direito civil é contemplada
tem tradução matemática. Na realidade a medici- com 60%, só deveria ter 40% de capacidade
na não é uma ciência exacta. E como tal não tem, restante. Ora isto, todos o sabemos, não é mani-
não pode ter, uma tradução matemática. Como festamente verdadeiro. Acrescendo ainda outros
dizer que um determinado segmento corporal, factores, como por exemplo o facto das capaci-
uma determinada função ou um determinado dades fisiológicas restantes poderem ser muito
órgão vale 30 ou 40%, sendo certo que os 100% diferentes para taxas de incapacidade idênticas.
de um determinado indivíduo (correspondentes E se as taxas de incapacidade podem carecer
às suas capacidade totais), são seguramente já de algum sentido quando em valores não muito
diferentes dos 100% de um outro? As taxas de elevados, essa sua desadequação à realidade
incapacidade não são mais do que convenções, sequelar torna-se ainda mais evidente para os
do que valores resultantes de consensos, habi- grandes incapacitados. O pouco significado de
tualmente reflexo de factores sócio-culturais. uma taxa de incapacidade vai sendo cada vez
Só isso explica que tabelas de incapacidades de menor quanto mais elevado é o seu valor. Por
diferentes países para o mesmo âmbito do direito exemplo, muitas tabelas de incapacidades
perspectivem valores por vezes bastantes distin- propõem para a cegueira bilateral (ou propunham
tos para a mesma função, órgão ou segmento no passado) taxas de incapacidade próximas dos
corporal. Como se as pessoas não fossem todas 100%. E todavia muitos indivíduos atingidos por
iguais… São efectivamente valores que têm cegueira total vivem com razoável autonomia,
muito de aleatório. Há que ter a consciência de alguns exercendo mesmo actividades profissio-
que quando um perito fixa uma determinada nais com assinalável êxito. Isto significa que para
incapacidade permanente em 20%, por exemplo, situações fortemente incapacitantes os números
que esse valor é meramente indicativo, desprovi- (as taxas ou pontos de incapacidade) fazem efecti-
do de qualquer rigor absoluto, podendo ser 15% vamente ainda menos sentido. Mais do que avaliar
ou 25%... pela negativa (avaliar incapacidades), importaria
Acrescendo que as taxas de incapacidade talvez nestes casos avaliar pela positiva, isto é,
partem de um pressuposto errado, o clássico avaliar capacidades restantes (o que é que o indiví-
postulado de Mélennec, segundo o qual 100% de duo ainda pode fazer), avaliação que proporcio-
incapacidade corresponderia à morte, à perda de naria certamente ao julgador um melhor conhe-
todas as funções. Ora a ser assim, então um esta- cimento da verdadeira situação do sinistrado.
do vegetativo persistente já não poderia ser con- Em boa verdade não existe nada do ponto de
templado com 100% mas no máximo com 99%, vista jurídico que entre nós obrigue à atribuição
uma tetraplegia teria de corresponder a 95%, de taxas de incapacidade em direito civil. Trata-se
etc., o que é manifestamente absurdo. Este pos- tão somente de um hábito copiado do direito do
tulado envolve ainda uma falsa equação, segundo trabalho, onde, aí sim, é obrigatória a atribuição
a qual a capacidade restante será igual à capaci- de uma taxa de incapacidade que vai inclusiva-
dade total (100%) menos a taxa de incapacidade mente condicionar o montante da indemnização
arbitrada. A ser assim, um indivíduo com surdez ou pensão a atribuir, ao entrar por imposição legal
bilateral, que na actual tabela portuguesa de em fórmula matemática que conduz ao respecti-
50 II - O Perito e a Missão Pericial em Direito Civil

vo cálculo. Mas a indemnização a arbitrar em direi- significado, se o perito explicar claramente as


to civil não é calculada (não deve ser) em função suas componentes, indicando qual o seu rebate,
exclusiva do valor numérico da incapacidade. as suas implicações em termos das actividades
E é talvez pela fluidez que caracteriza as assinaladas. Se efectivamente tal descrição
taxas de incapacidade que alguns países jamais constar do relatório pericial, ficará certamente o
utilizaram o sistema de taxas de incapacidade. decisor melhor habilitado a conhecer a realidade
Como se processa a avaliação pericial neles? do sinistrado do que com um simples valor
Descrevendo; descrevendo o mais exaustiva- numérico de 20 ou 30% que pouco (ou nada) sig-
mente possível qual a situação do sinistrado. nifica. Esta mesma compreensão é transmitida
O que é que ele consegue fazer e o que não con- através da utilização do inventário de avaliação de
segue fazer. Que gestos e actos tem afectados e danos corporais (abordado num outro texto deste
quais consegue concretizar e em que condições. livro), cujo impulso inicial de divulgação entre nós
E diga-se em abono da verdade que uma tal se deveu à Prof.ª Teresa Magalhães, o qual nas
descrição deixará provavelmente quem vai ter de mãos de peritos habilitados representará um útil
indemnizar numa posição de melhor conheci- recurso pericial.
mento da verdadeira realidade sequelar do exami- Uma vez avaliada, em termos de taxa per-
nado do que com um simples e frio valor numé- centual de incapacidade, a incapacidade perma-
rico de 20, 30 ou 40% que tem verdadeiramente nente geral, indicar-se-á, caso exista, o rebate
um significado muito limitado. É precisamente sob o ponto de vista profissional, através de uma
pelo pouco significado que terá para um julgador das seguintes hipóteses:
(do ponto de vista deste verdadeiro conhecimen- a) A incapacidade permanente geral parcial
to da realidade sequelar da vítima) o simples valor consignada na conclusão anterior é compatível
numérico, que desde há anos se vem concre- com o exercício da profissão de...
tizando na prática pericial, a associação à atri- b) A incapacidade permanente geral parcial
buição do valor numérico da taxa de incapaci- consignada na conclusão anterior exige esforços
dade, de uma descrição (o mais completa possí- suplementares no exercício profissão de...
vel) de qual o reflexo, de qual o rebate, de qual o c) A incapacidade permanente geral parcial
real impacto dessa taxa em termos das activi- consignada na conclusão anterior é impeditiva
dades escolares e de formação (se as houver), das do exercício da profissão de... sendo todavia com-
actividades essenciais da vida quotidiana, das patível com outras profissões na área da sua
actividades de lazer, das actividades afectivas e preparação técnico-profissional;
familiares e das actividades profissionais (se exis- d) A incapacidade permanente geral parcial
tirem). Não basta, pois, quantificar os pontos de consignada na conclusão anterior é impeditiva do
incapacidade permanente geral em causa e as exercício da profissão de... e bem assim das ou-
suas implicações em termos da actividade profis- tras profissões na área da sua preparação técni-
sional específica da vítima. É necessário explicar co-profissional.
o que essa taxa significa. A verdadeira dimensão Em quem não domina as filosofias e especi-
do dano psico-físico de que uma vítima é porta- ficidades da avaliação do dano corporal em
dora só é transmitida, só adquire o seu verdadeiro função do domínio do direito em que se processa,
Biblioteca Seguros 51

poderá suscitar alguma perplexidade o facto da mento do dano actualmente existente e que
avaliação da incapacidade permanente profissio- pode prever-se, por ser facto comum e habitual,
nal não seguir as regras do direito do trabalho, e ou seja, o agravamento previsível, inexorável, que
não ser nomeadamente atribuída com base na inevitável e seguramente vai ocorrer e do qual
habitualmente designada por TNI (Tabela Nacional tem o perito conhecimento da dimensão (expres-
de Incapacidades por acidentes de trabalho e são) que vai adquirir. Aquele que corresponde
doenças profissionais). Esquecem (ignoram) que seguramente à evolução de rotina do tipo de
em direito civil o responsável pela produção do sequela existente. É assim que aos 10% de inca-
dano apenas terá que indemnizar o dano que pacidade geral permanente parcial se poderá adi-
provocou e nada mais do que esse dano. Em direito cionar desde logo mais 5%, por exemplo, a título
civil a vítima terá, pois, de provar a perda de rendi- de dano futuro. Mas note-se que uma coisa é
mento profissional que deixou de auferir em vir- dano futuro, outra é dano potencial. Este - o dano
tude do dano de que ficou portadora, servindo a potencial - correspondendo à hipótese admissível
peritagem médica para avaliar, através das quatro mas não provável (à excepção, ao caso esporádi-
possibilidades anteriormente expostas, em que co), que por não ser certo que venha a ocorrer
medida a situação sequelar implicará ou não per- não pode ser contemplado na avaliação pericial.
turbações no exercício dessa actividade profis- Se eventualmente vier a verificar-se, restará sem-
sional que justifiquem efectivamente os prejuízos pre a hipótese da reabertura do processo por
profissionais comprovados. Em direito civil não é agravamento.
aplicada a fórmula matemática envolvendo a taxa É certo que se o dano futuro não for pers-
de incapacidade que no direito do trabalho deter- pectivado pelo perito, haverá sempre a possibili-
mina o montante indemnizatório a atribuir à víti- dade também de reabrir o processo em caso de
ma; em direito civil não seria minimamente agravamento para uma reapreciação e reparação
aceitável a aplicação dos factores de bonificação da medida desse agravamento. Mas para quê obri-
legalmente estipulados para as incapacidades em gar a todas as implicações que envolve a reaber-
direito do trabalho em função de determinadas tura de um processo judicial se a certeza e dimen-
circunstâncias e da idade da vítima, e assim são de um agravamento futuro das sequelas
sucessivamente. Cometeria, pois, erro significati- puder desde já ser pericialmente estabelecida?
vo quem aplicasse em direito civil regras de outro É (também) para isto que o perito (o verdadeiro
domínio do direito. perito) participa na perícia.
Será ainda de assinalar que dentro do posi- Sublinhe-se que há danos, que embora sen-
cionamento pericial que tem vindo a ser con- do certo que venham a ocorrer no futuro, não
cretizado entre nós, se encontra o da integração podem constituir dano futuro percialmente avaliá-
na taxa de incapacidade arbitrada num determi- vel, por não ser possível qualquer perspectiva
nado momento, da que resultará de um dano quanto à dimensão que venham a adquirir.
futuro, assinalando-se, obviamente, dentro de Ainda a propósito do cálculo de incapaci-
quanto tempo se perspectiva o desenvolvimento dade, temos em Portugal desde há pouco tempo
de tal dano. uma nova realidade no âmbito da determinação
Ora, por dano futuro entende-se o agrava- de incapacidades permanentes gerais. Na reali-
52 II - O Perito e a Missão Pericial em Direito Civil

dade, o Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de Outu- Aliás, a TNI proporciona incapacidades profissio-


bro, veio concretizar uma aspiração sentida desde nais e não incapacidades gerais (que podem nada
há décadas por todos quantos verdadeiramente ter a ver com aquelas), constituindo estas, um
dominam as especificidades e a problemática da dos principais parâmetros de dano em avaliação,
avaliação dos danos corporais em direito civil, no contexto do princípio da reparação integral
e que nela estão directa ou indirectamente dos danos vigente em direito divil.
envolvidos. Com a entrada em vigor deste A nova tabela de avaliação de incapacidades
Decreto-Lei, verificada em Janeiro de 2008 permanentes em direito civil (TIC), inspirou-se
(pouco tempo antes da redacção deste texto), profundamente no guide-barème européen
Portugal passou a dispor de uma tabela de avalia- d´évaluation médicale des atteintes à l´intégrité
ção de incapacidades permanentes para apli- physique et psychique 4 , vulgarmente conhecido
cação no âmbito do direito civil. Pôs-se, assim, na gíria pericial por tabela médica europeia,
finalmente fim à lamentável situação que se desenvolvido sob os auspícios do Parlamento
arrastava desde há décadas sucessivas, do recur- Europeu e da Comissão Europeia e que, desde
so, por parte de muitos “peritos” médicos e até Janeiro de 2006, é a tabela oficial no âmbito da
de seguradores, advogados e magistrados, à Tabe- avaliação pericial de funcionários das instituições
la Nacional de Incapacidades por acidentes de tra- comunitárias. Uma tabela europeia elaborada na
balho e doenças profissionais (TNI), no âmbito de sequência da Recomendação de Trier, datada de
avaliações do dano corporal que decorriam em Junho de 2000, a qual, entre outros aspectos,
direito civil. Utilização esta absolutamente repro- preconizava precisamente a criação de uma única
vável, geradora de profundos equívocos e incor- tabela médica para todos os países comunitários,
recções periciais, como já sublinhado, que afec- a usar como instrumento comum de referência
taram certamente muitas decisões judiciais. na avaliação de danos corporais em direito civil.
É que a TNI, repete-se uma vez mais, foi perspec- Numa fase inicial, esta tabela médica europeia
tivada para ser utilizada única e exclusivamente está a ser aplicada no universo restrito dos fun-
no âmbito do direito do trabalho. Os decretos-lei cionários comunitários. Pretende-se que tal cons-
que consignaram as suas sucessivas versões titua, de alguma forma, um ensaio prático prévio
foram sempre claros ao afirmar que a TNI visa a à generalização do seu uso, susceptível de con-
avaliação do dano corporal ou prejuízo funcional tribuir para a correcção e melhoria progressiva
sofrido em consequência de acidente de trabalho das insuficiências e deficiências que lhe forem
ou de doença profissional, com redução da sendo detectadas. Acrescendo que ao serem estes
capacidade de ganho. A Lei não abre, pois, a por- funcionários provenientes dos diferentes paí-
ta à sua utilização em direito civil, sendo assim o ses da União Europeia, será igualmente possível
seu uso neste âmbito manifestamente abusivo. uma avaliação das percepções distintas que

4 O guide-barème européen d´évaluation médicale des atteintes à l´intégrité physique et psychique foi elaborado por um grupo de

trabalho constituído por Pierre Lucas (coordenador), Hélène Béjui-Hughes, César Borobia, Giovanni Cannavó, Juan Guiscafré, Carlos Sauca,
Michel Stehman, Walter Streck e Duarte Nuno Vieira.
Biblioteca Seguros 53

a mesma pode implicar em função de factores nos finais de 2004, o grupo encarregue de elabo-
e realidades diversas que caracterizam cada um rar a tabela portuguesa 5 retomou a sua tarefa,
deles, nomeadamente dos de índole sociocultural. que desenvolveu ao longo do segundo semestre
Não há obras perfeitas neste âmbito e só de facto de 2005 e concluiu em Março de 2006, proceden-
a aplicação prática deste tipo de instrumentos de do às alterações que a própria tabela europeia
apoio pericial permite constatar os elementos consentia que cada país introduzisse numa fase
que necessitem de serem corrigidos. Só depois inicial de transição, para evitar sobressaltos
disso se procederá à sua eventual generalização decorrentes de diferentes filosofias e realidades
como instrumento pericial comum na avaliação socioculturais. O projecto da tabela de avaliação
do dano corporal em direito civil na União Euro- de incapacidades permanentes em direito civil foi
peia. Deve aliás sublinhar-se que esta aplicação entregue no Ministério da Justiça em Abril de
prática inicial da tabela europeia, que conta já 2006. Viria a ser publicado em Diário da República
com dois anos de experiência, tem conduzido a 18 meses depois, em Outubro de 2007. Demorou,
sucessivas alterações da versão inicial no âmbito pois, praticamente dois anos a adquirir carácter
das reuniões de trabalho periódicas que o Obser- oficial, sucedendo que neste período de tempo,
vatório Europeu designado para proceder ao seu e tal como referido, a versão inicial da tabela
acompanhamento tem vindo a concretizar, com médica europeia (versão de 2004) na qual se
periodicidade praticamente semestral. havia inspirado, sofreu apreciáveis alterações.
A tabela de avaliação de incapacidades per- Significa isto que a nova TIC necessita já de algu-
manentes em direito civil (que para facilitar ma revisão, acrescendo que, como quase inevi-
poderíamos passar a designar simplesmente por tavelmente sucede aquando da publicação em
TIC) começou a ser perspectivada logo quando Diário da República de documentos extensos,
da criação do INML, IP, em 2000, na sequência de contém algumas gralhas susceptíveis de com-
proposta que apresentámos ao então Secretário portarem erros interpretativos. É exemplo para-
de Estado da Justiça, Dr. Diogo Lacerda Machado, digmático disto a instrução número 4, cuja leitu-
e que mereceu o melhor acolhimento. Mas tendo- ra é complexa e dificilmente interpretável, pre-
-se iniciado pouco depois a elaboração da tabela cisamente porque saiu com alterações relativa-
médica europeia, entendeu-se suspender o labor mente ao que havia sido estabelecido pelo grupo
que estava a ser desenvolvido a nível nacional, de trabalho. Mas espera-se que a TIC siga o exem-
dado não fazer qualquer sentido perspectivar plo da tabela médica europeia e passe a ser
uma tabela portuguesa para o direito civil que objecto de actualizações periódicas, no mínimo
não estivesse já em consonância com a futura anuais, como plenamente se justifica em maté-
tabela europeia. rias de índole médica. Neste sentido, espera-se
Logo que esta ficou concluída e aprovada, também que não tarde a concretização pelo

5 A composição do grupo final que elaborou a tabela de avaliação de incapacidades permanentes em direito civil, adaptada a partir da

tabela europeia, integrou os seguintes elementos: Duarte Nuno Vieira (coordenador), Jorge Costa Santos, Teresa Magalhães, Amorim
Monteiro, César Borobia, Javier Alonso Santos, Eugénio Laborda Calvo e Alvarez Quintero.
54 II - O Perito e a Missão Pericial em Direito Civil

Governo de Comissão de Acompanhamento da vista físico e bio-funcional, bem como o sexo e a


Tabela e que esta promova uma efectiva idade da vítima (salvo se estes aspectos estive-
actualização regular deste instrumento pericial rem contemplados em tabela indemnizatória);
de apoio. - Cada sequela deve ser valorizada apenas
Não iremos abordar detalhadamente as uma vez, mesmo que a sua sintomatologia se
regras de utilização da nova TIC, pois um outro encontre descrita em vários capítulos, excepcio-
texto deste livro debruçar-se-á precisamente nando-se o caso do dano estético. Não se valori-
sobre elas a propósito do cálculo de incapa- zarão as sequelas que estejam incluídas ou
cidades sinérgicas e não sinérgicas. Ainda assim, derivem de outra, ainda que descritas de forma
não deixaremos, todavia, de formular algumas independente;
considerações a este propósito. - As situações sequelares não descritas na
Começando por sublinhar que a incapa- tabela serão avaliadas por analogia, isto é, por
cidade permanente geral é, obviamente, avaliada comparação com as situações contempladas e
relativamente à capacidade integral do indivíduo quantificadas.
(100 pontos), podendo, eventualmente, traduzir-se - Deve assinalar-se no relatório pericial o(s)
num compromisso total dessa capacidade (situa- número(s) de código e respectiva valorização a
ção de um estado vegetativo persistente, por que se recorreu para a determinação do valor de
exemplo) e envolvendo a sua quantificação a pon- cada sequela, bem como a metodologia usada
deração de eventual incapacidade decorrente de para a determinação da incapacidade perma-
estado anterior, nos termos abordados também nente geral final - Regra da Capacidade Restante
num outro texto desta obra. Assinalando ainda ou pontuação equivalente à afectação global do(s)
que a TIC tem um carácter meramente indicativo órgão(s) ou função(ões) - sendo sempre também
(como deve suceder com todas as tabelas), o que obrigatória a fundamentação do afastamento dos
não isenta o perito de fundamentar a avaliação valores propostos na TIC.
pericial concretizada, sobretudo quando se afasta - Nas sequelas múltiplas sinérgicas, isto é,
significativamente dos valores nela previstos. envolvendo a mesma função, deve proceder-se
Na utilização da TIC devem ter-se em conside- ao somatório directo da pontuação de cada uma
ração as seguintes indicações: delas, ajustando-se o valor final por comparação
- Valorizar não só o dano no corpo como a com a pontuação mais elevada correspondente à
sua repercussão funcional e para as actividades perda total da função ou órgão, que não poderá
da vida diária; ser superada;
- Nas situações em que a TIC apenas con- - Nas sequelas não sinérgicas, isto é, naque-
templa o défice completo, a avaliação de seque- las que envolvam órgão(s) e/ou funções distintas,
las que impliquem apenas um défice parcial deve a determinação da incapacidade permanente
ser feita tendo em consideração os pontos corres- geral deverá atender ao valor da afectação global
pondentes à perda total; do(s) órgão(s) ou função(ões), sendo que os pon-
- Na pontuação a atribuir a cada sequela, tos obtidos terão, necessariamente, de ser infe-
segundo o critério clínico, deve o perito ter em riores à soma das pontuações isoladas. Se, no caso
conta a sua intensidade e gravidade, do ponto de das sequelas múltiplas, não for possível proceder
Biblioteca Seguros 55

desta forma, deve o perito recorrer à utilização da incapacidades, como seja a regra da capacidade
Regra da Capacidade Restante (Regra de Balthazar); restante. Exigirá, certamente, uma nova mentali-
- Em casos devidamente fundamentados, dade da parte dos peritos médicos e dos diversos
pode o perito ajustar os valores obtidos através outros intervenientes no processo de avaliação
do cálculo da capacidade restante, por compara- e reparação dos danos.
ção com as pontuações correspondentes à perda Nos primeiros tempos de utilização da nova
dos órgãos ou funções em causa; TIC surgirão as dúvidas e evidenciar-se-ão os seus
O perito estima um valor de incapacidade aspectos menos claros ou até errados, as suas
geral permanente, o qual, se resultar da aplicação lacunas, insuficiências e deficiências. Serão, pois,
da Regra da Capacidade Restante, deve ser ajus- fundamentais as iniciativas que promovam o me-
tado à realidade do caso, atenta a avaliação efec- lhor conhecimento e discussão da nova tabela, os
tuada e a experiência médico-legal do perito, debates esclarecidos e esclarecedores, concretiza-
tratando-se no entanto de um procedimento que dos num espírito construtivo, dos quais decorram
visa ajustar, para cima ou para baixo, os pontos propostas concretas que indiquem caminhos e
calculados. Estes deverão ser apresentados num soluções a serem percorridos e adoptados pela
número inteiro e não em valores aproximados às futura Comissão de Acompanhamento relativa-
décimas ou centésimas, reforçando-se assim a mente aos aspectos que necessitarem de alteração.
ideia que se trata de um valor estimado e não
aritmeticamente calculado, dado a falta de rigor DANO ESTÉTICO
absoluto deste tipo de cálculo quando aplicado Um outro parâmetro de dano cuja avaliação o
à avaliação de danos na pessoa. perito médico vai ter de ponderar é o dano estéti-
Sublinha-se uma vez mais que, para além da co. Este existirá sempre que a vítima sofreu uma
utilização da TIC, é obrigatória a fundamentação alteração do seu estatuto estético com dignidade
do dano através da descrição correcta e por- suficiente para merecer a tutela do direito.
menorizada das queixas e sequelas, nos respec- Trata-se de dano que frequentemente cai
tivos capítulos, bem como das implicações deste na órbita dos danos não-patrimoniais mas que,
dano na autonomia e independência da pessoa. pontualmente, nomeadamente nos casos em que
Como fica exposto, a nova TIC, reflectindo a a vítima exerça profissão que exija um bom
filosofia que impregna a tabela médica europeia, estatuto estético, pode ter virtualidades de dano
implica alterações, por vezes significativas, relati- patrimonial.
vamente aos posicionamentos que muitos “peritos” Suscita ainda hoje alguma discussão doutri-
vinham seguindo neste âmbito, nomeadamente e nária. Por exemplo deve a sua avaliação ser per-
a título de exemplo, num aspecto tão relevante sonalizada ou não? Por outras palavras, devem
quanto o das modalidades de determinação das duas cicatrizes iguais mas localizadas na face de
taxas de incapacidades gerais no âmbito de duas pessoas distintas serem valorizadas da mes-
sequelas sinérgicas e não sinérgicas. Ela procura, ma forma, isto é, independentemente da pessoa
por exemplo, dar os primeiros passos no sentido que é portadora do dano, ou serem valorizadas
de se ir progressivamente eliminando o recurso a em função dessa pessoa? Sendo o princípio o da
fórmulas pseudo-matemáticas para o cálculo de reparação integral do dano, afigura-se óbvio que
56 II - O Perito e a Missão Pericial em Direito Civil

só uma avaliação personalizada, permitirá dar uma coisa é a dimensão que um determinado
resposta a este objectivo. É lícito admitir que uma dano estético pode ter com a pessoa imóvel.
determinada cicatriz na face possa, do ponto de Outra é a dimensão desse mesmo dano nas múlti-
vista do impacto e vivência psicológica, ser mais plas utilizações e expressões do corpo que po-
significativa para uma jovem de 18 anos, do que dem ser concretizadas ao longo do dia.
para uma pessoa idosa de 80 anos, ainda que Diversos autores têm proposto métodos de
nem sempre tenha necessariamente de ser assim. avaliação do dano estético baseados nas dimen-
Nos casos em que o dano não é patrimonial, sões das sequelas estéticas, sua visibilidade a
importará essencialmente penetrar no impacto, determinadas distâncias, etc. Uma das reflexões
na vivência que a vítima faz desse mesmo dano. deste livro aborda precisamente essas possibili-
Um outro âmbito de discussão é o de se o dades. Sem questionar que podem ter eventual-
perito não deverá apenas descrever o dano mente alguma utilidade em situações concretas,
estético, procedendo depois o juiz à sua valori- nomeadamente pelo valor indicativo que as mes-
zação. Assim sucede nalguns países europeus. mas podem representar em termos de alguma
Uma vez mais não se nos afigura a opção correc- harmonização de procedimentos, sempre diría-
ta pois não é o juiz que tem (nem tem que ter) mos que não se nos afiguram de assinalável
a preparação técnica necessária para penetrar no relevância e que uma boa entrevista e exame
impacto psicológico que o dano estético tem na pericial, concretizados com disponibilidade e
vítima, nem é no decurso de uma audiência de conhecimento, permitirão ao perito apreender
julgamento que teria possibilidades e condições o impacto desse dano e proceder à sua avaliação.
para o fazer. Podendo até o dano estético (que Para traduzir essa sua avaliação pericial do
terá de ser sempre observado directamente para dano estético o perito recorrerá à mesma escala
uma correcta valorização e não basear-se apenas utilizada para o quantum doloris. Uma vez mais
na apreciação de fotografias) localizar-se em utilizando a escala quantitativa (1/7, 2/7, 3/7, 4/7,
zonas mais íntimas da superfície corporal, que 5/7, 6/7 e 7/7).
obviamente não irão ser expostas em audiência Note-se que alguns autores avançaram pro-
de tribunal. postas doutrinárias no sentido de que o dano
Na ponderação deste parâmetro de dano o estético passasse a envolver também aspectos
perito deverá tomar em consideração múltiplos relativos a notoriedade não apenas visual, ou seja
aspectos, nomeadamente a localização, forma, que aspectos percepcionados através de outros
dimensões, orientação, coloração e morfologia sentidos, como a audição (uma voz bitonal, por
do dano, bem como a idade, sexo, estado anterior, exemplo) ou o olfacto (em situações resultantes
etc., da pessoa que é portadora desse dano de uma incontinência urinária ou de uma fístula
(ou danos). entero-vaginal, por exemplo). Não tem sido este
Note-se que o dano estético é por si mesmo o entendimento seguido habitualmente na ava-
dinâmico e não estático (circunstância que terá liação deste parâmetro de dano e, em nossa
de ser perspectivada pelo perito) e que deve ser opinião, são poucas as situações em que tal
perspectivado também numa vertente estática e poderá será defensável, pois habitualmente tais
numa vertente dinâmica. Por outras palavras, aspectos já estão envolvidos na ponderação, em
Biblioteca Seguros 57

pontos, das próprias sequelas (no âmbito da inca- nos fins-de-semana, indivÍduo para quem esta
pacidade permanente geral que lhes corres- actividade representava um significativo espaço
ponde), cujos valores têm precisamente em con- de realização e satisfação pessoal, deixa de a
sideração estes inconvenientes que implicam. poder concretizar face ao dano verificado,
sofre um prejuízo acrescido relativamente a um
PREJUÍZO DE AFIRMAÇÃO PESSOAL cidadão com sequelas absolutamente similares,
Dentro dos parâmetros que integram a roti- mas que não a praticava. Relativamente a esse
na pericial, embora já de frequência muito menor, outro indivíduo com a mesma idade e a mesma
poderá o médico perito ter de proceder à avalia- profissão, mas sem essa actividade, ele tem todos
ção de mais dois parâmetros de dano. os danos deste mas também esse dano acrescido
Um deles é designado em Portugal por cuja intensidade se justifica avaliar. Este parâ-
Prejuízo de Afirmação Pessoal. Trata-se do reflexo, metro de dano tem sido designado entre nós por
do rebate das sequelas nas capacidades de acção Prejuízo de Afirmação Pessoal. Note-se que este
ligadas a actividades lúdicas e de lazer (incluindo é dos parâmetros de dano mais controversos,
actividades de relacionamento social ou de para o qual designações diversas foram ou são
expressão artística) que a vítima praticava previa- adoptadas por alguns países (préjudice d´agre-
mente ao traumatismo que determinou o dano ment para os franceses, gióia de vivere para os
em apreço e que para ela representavam um italianos, loss of amenity para os anglo-saxónicos
amplo espaço de realização pessoal. Actividades ou perjuicio de ócio para os espanhóis). Muitos
cuja prática ficou dificultada, ou até mesmo acabaram por eliminar a sua avaliação como
impossibilitada, em consequência das sequelas parâmetro de dano autónomo, passando a incluí-lo,
sofridas. Trata-se de um prejuízo acrescido e a por exemplo, na avaliação dos reflexos das sequelas
avaliação deste dano justifica-se pela necessidade em termos dos actos e gestos correntes do dia.
de se cumprir o princípio da reparação integral Por razões óbvias, este não é um dano fre-
dos danos, sendo avaliados (e indemnizados) quentemente individualizável e caracterizável
todos aqueles que tenham uma dignidade pericialmente, sendo apenas de considerar quan-
suficiente para merecerem a tutela do direito. do as sequelas têm um relevante e notório im-
Na realidade, se imaginarmos por exemplo uma pacto na vida de relação e de lazer existente
pessoa para quem a pintura representa quase antes do traumatismo responsável por esse dano.
uma razão de existência, que embora tendo de É precisamente por este facto, por só ser de
ter uma determinada profissão para ganhar a vida considerar quando o impacto é notório e rele-
passa a maioria do seu tempo disponível a pintar, vante, que no âmbito da sua valoração já houve
e que, de repente, em virtude de um evento quem utilizasse a escala de sete graus usada
traumático deixa de poder exercer tal actividade, no âmbito do quantum doloris e do dano estéti-
é facilmente compreensível que esta circunstân- co, e quem sugerisse que se recorresse a uma
cia lhe causará um sofrimento intenso (um dano) escala de apenas cinco graus, onde não existem
merecedor da tutela do direito. Se um indivíduo os correspondentes a muito ligeiro e ligeiro
que praticava ténis regularmente nos seus tempos (1/7 e 2/7). Não é lógico ser assim, e por isso se
livres, de forma quase diária e mais intensamente deve manter a escala quantitativa de sete graus.
58 II - O Perito e a Missão Pericial em Direito Civil

Note-se, ainda, que não compete ao perito iniciais, as complicações resultantes e os estudos
médico proceder à confirmação de que a vítima complementares efectuados. Caso não seja medi-
praticava ou não com tal intensidade a actividade camente constatável dano de etiologia orgânica,
em apreço. O que o perito deve essencialmente deve o perito pronunciar-se sobre a plausibilidade
assinalar é o reflexo que as sequelas terão face às das queixas, tendo como base os elementos ante-
exigências da actividade em causa e tentar aferir riormente referidos e a vivência do trauma.
do impacto psicológico que implicaram. Não Sublinha-se uma vez mais que este dano é
podemos todavia deixar de sublinhar que é de distinto do dano na capacidade reprodutora que,
perspectivar que no âmbito da avaliação deste a existir, deverá ser valorado em termos de inca-
parâmetro de dano se possam verificar alterações pacidade permanente geral.
significativas a curto prazo entre nós. A sua valoração será consignada através da
mesma escala quantitativa de sete graus de
PREJUÍZO SEXUAL gravidade crescente (1/7 a 7/7), já referida para
O prejuízo sexual é um parâmetro de dano outros parâmetros de dano, envolvendo, obvia-
que envolve a limitação total ou parcial do nível mente, uma fundamentação obrigatória da pro-
de desempenho/gratificação de natureza sexual, posta pericial no respectivo relatório (no capítulo
decorrente das sequelas físicas e/ou psíquicas. da Discussão) e uma descrição correcta e porme-
Não se incluem aqui os aspectos relacionados norizada das queixas (funcionais e situacionais)
com a capacidade de procriação, contemplados e sequelas, nos respectivos capítulos.
em termos de incapacidade permanente geral.
Deve sublinhar-se que este dano é frequen- COMENTÁRIOS FINAIS
temente subavaliado ou não avaliado, dada a rele- Analisámos numa sucinta visão geral aquela
vância de outras sequelas graves mas, sobretudo, que é, no momento actual e entre nós, a missão
devido a algum preconceito e reserva que ainda pericial do médico a quem é solicitada uma
subsiste na abordagem deste aspecto específico, avaliação de danos corporais em direito civil.
por parte de peritos e vítimas. A concretização de uma tal missão, para além das
Na sua ponderação, o perito deve atender exigências em termos das características de que
particularmente às condições da entrevista, teor o perito se deve revestir (inicialmente assina-
do relato e ressonância afectiva, idade e estado ladas), pressupõe ainda uma perícia bem con-
anterior da vítima (ponderar, por exemplo, a cretizada, envolvendo necessariamente uma
existência de diabetes, insuficiência hepática ou anamnese precisa e aprofundada, em particular
renal, vasculopatias, etc.) e ao dano físico ou psi- das circunstâncias do acidente e do seu meca-
cológico (epifenómeno do trauma). nismo, a recolha dos elementos probatórios no
Este dano pode manifestar-se através de per- plano médico, a obtenção das queixas atribuídas
turbação da líbido, desconforto, disfunção eréctil, pela vítima às sequelas traumáticas, separando as
da ejaculação ou do orgasmo, sendo aconselhável, queixas referidas espontaneamente das resul-
sempre que possível, objectivar estas queixas tantes de um interrogatório dirigido, um exame
através de exames complementares. clínico geral, um exame local exaustivo da região
Na sua avaliação ter-se-á em conta as lesões corporal traumatizada e um exame loco regional
Biblioteca Seguros 59

com estudo analítico dos movimentos simples como o elemento integrador das diversas opi-
e depois estudo global dos gestos complexos. niões e responsável pelas conclusões finais.
Para uma avaliação correcta e completa, o perito A missão será concluída com a elaboração
deverá ainda socorrer-se dos exames técnicos do respectivo relatório pericial. Relatório que,
complementares de objectivação e quantificação relembramos, nunca poderá dispensar um capí-
técnica cientificamente mais adequados, ponde- tulo de discussão destinado a explicar ao desti-
rando obviamente a não realização daqueles que natário do processo (juiz, segurador, advogado ou
possam envolver riscos para a vítima. E tendo até vítima) a opinião do médico em termos des-
também em atenção que toda a perícia deve providos de qualquer esoterismo ou jargão profis-
envolver uma cuidada e imparcial reflexão crítica sional, de forma a fundamentar claramente a sín-
quanto à imputabilidade médica das sequelas tese final representada pelas conclusões.
observadas ao evento em causa. Mas estas são reflexões que ultrapassam já
Tudo isto tendo sempre presente que o perito os limites do horizonte do tema que nos propuse-
pode e deve socorrer-se da opinião de especialistas mos abordar. Sobre estes e alguns dos aspectos
de outras áreas médicas envolvidas na peritagem anteriormente assinalados, se debruçam as
e para as quais não se sinta habilitado a avaliar, reflexões de diversos outros colegas contidas
permanecendo todavia como o “mestre de obra”, neste livro.

BIBLIOGRAFIA
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VIEIRA, Duarte Nuno - A Avaliação do Dano Corporal. Sub Judice. Justiça e Sociedade. Vol.17 n.º 1 (2000), p.23-30.
Biblioteca Seguros
Publicação da Caixa Seguros
Co-edição Caixa Seguros e Imprensa da Universidade de Coimbra

Título
Aspectos práticos da avaliação do dano corporal em Direito Civil
Coordenação
Duarte Nuno Vieira e José Alvarez Quintero
Tradução
Sónia Almeida
Design
Liquid Design
Impressão
SerSilito - Empresa Gráfica, Lda.

ISBN 978-989-8074-31-7

Depósito Legal 279157/08

Julho 2008
CAIXA SEGUROS, SGPS, S.A.

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