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Partindo do marco das relações inter-humanas, se recorre a este significado “profano”
para exprimir as experiências relativas a Deus. Neste sentido religioso, hanan assume em todo
o AT um significado típico, que exercerá uma clara influência no NT. Nas mais de 60 vezes
que esse termo aparece no AT, em 40 delas o sujeito é Deus: 26 vezes correspondem aos
salmos, que são, portanto, o testemunho mais importante da benevolência vétero-
testamentária de Deus. A petição de graça tem um duplo fundamento no AT: 1. a própria
deficiência (situação de necessidade: Sl 4,2; 6,3; 9,14; 25,16; 52,2), que deve especificar-se
segundo os distintos casos: debilidade (Sl 6,3), solidão (Sl 25,16), calamidades de diversos
tipos (Sl 31, 10; 123,3), grande miséria (Sl 86,3); 2. a fé na misericórdia de Deus e em sua
solicitude misericordiosa (hanan). A graça pedia ou obtida tem relação com a vida humana.
Em todos esses textos a graça se experimenta como graça numa situação de diálogo,
que é aquele estabelecido pela oração. Em todos eles aparece expressamente a convicção de
que YHWH tem uma solicitude especial pelos débeis, pelos pobres, pelos prejudicados, pelos
perdidos e oprimidos. Isso aparece no uso religioso de hanan, mas, mais ainda, na súplica
honneni, “tem piedade de mim”, com a qual se conclui a petição concreta de um favor (Sl 4,2;
63; 9,14; 27,7; 30,11; 41,5.11; 51, 3-4; 86,16). O mesmo acontece com a fórmula de bênção:
“Deus tenha piedade de ti” (Nm 6,25; Sl 67,2). A graça olha os homens simples e
humilhados: Deus os “levanta”. Nisso consiste a graça. Em si não é algo exclusivo do AT.
Orações de súplicas similares formam parte do patrimônio religioso de outros povos do
entorno. O específico desta confiança na solicitude misericordiosa de Deus em Israel (hanan)
é que o israelita orante funda tudo isso na graça da aliança, na hesed de YHWH e na promessa
de sua solicitude (Sl 51,3 ; 119,58 ; 2 Rs 13,23). Considerando a pecaminosidade do homem,
toda situação de necessidade se resume em “pequei contra ti” (Sl 41,5), de forma que a
hanan, ou a solicitude/compaixão de Deus pelo homem, implica ainda o perdão dos pecados.
É a partir desse significado que adquire pleno sentido a bênção “sacerdotal” em que se
suplica a solicitude graciosa de Deus. “Deus te dê seu favor (hanan) filho meu” (Gn 43,29),
diz o patriarca José a seu filho Benjamim. Na benção de Aarão (Nm 6,25), o nome de YHWH
e seu favor se invocam sobre o povo. Isto indica uma vontade original de graça da parte de
Deus, prometida ao povo em virtude de uma aliança particular. Mas a graça de Deus é um
dom livre, como o diz YHWH a Moisés, o mediador da aliança: “eu me compadeço de quem
quero e favoreço (hanan) a quem quero” (Ex 33,19). Em seu significado teológico, hanan não
pode vincular-se demasiadamente à aliança (à diferença de hesed), já que hanan implica a
liberdade soberana de Deus em sua misericórdia. Apesar da diferença que existe entre o
interlocutor divino e o humano, uma situação de hanan supõe certa reciprocidade. “Graça é
pôr-se em marcha juntos”, como diz delicadamente Ex 33,12-23. Nesse texto paira toda a
temática do AT sobre a graça: eleição, proteção, caminhar juntos, mútuo conhecimento do
nome do outro, o rosto de Deus dirigido ao homem (a Israel), enquanto, por outro lado, este
Deus de graça segue sendo um Deus oculto que, manifestando-se no ocultamento, mantém
desperto o desejo de Israel. O nome de Deus manifestado em Ex 3,14 aparece como o de um
Deus solícito pelos homens, como rei (hanan) e como pai e mãe ao mesmo tempo (raham).
É curioso que os grandes profetas escritores não aludam ao hanan de Deus (com
exceção de Am 5,15, o qual, depois de ter ameaçado com a desgraça como possibilidade
extrema, fala também da misericórdia de Deus com o resto de YHWH). Isso indica que para
esses profetas, o mais importante é a ameaça de desgraças devidas às infidelidades cometidas
contra YHWH, e não o tanto favor divino. O inverso do único favor (hanan) de Deus é o juízo.
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louvar a Deus em forma de rima: rahum we hannun, “Deus compassivo e piedoso” (Ex 34,6 e,
na ordem inversa Ex 20,5-6; Dt 5,9-10). Em outros textos também encontramos esta dupla
fórmula: Ex 34,6; Jl 2,13; Jon 4,2; Sl 86,15; 103,8; 111,4; 112,4; 145,8; Ne 9,17. 31; 2Cr
30,9: em alguns casos, só hannun, noutros com elementos adicionais: “tu és um Deus
compassivo e clemente, paciente, misericordioso e fiel” ( Ex 34,6). Esta ampliação da fórmula
significa que o favor divino se manterá apesar das negativas reiteradas do povo. O louvor
litúrgico aparece também na proclamação festiva do nome de YHWH dentro do marco da
aliança selada no Sinai (Ex 34,6, que influiu Nm 14,18; Jl 2,13; Jon 4,2. Sl 86,15; 103,8;
145,8; Ne 9,17. Provavelmente Ex 34,6 deve considerar-se como uma espécie de etiologia ou
“origem” desta oração litúrgica no templo. A experiência da benevolência de Deus, que em si
já é um fato dialogal, culmina numa espécie de antífona: na ação de graças e no louvor
litúrgicos. Este aspecto será também característico da experiência neo-testamentária da graça.
Na maioria dos casos, hen é acompanhado de “aos olhos de”: se é agradável ao juízo
do outro. Originalmente, este derivado de hanan significa “fixar-se em”, “levar em conta”.
Mas, à diferença de hanan, o olhar não vai do benfeitor ao favorecido, mas no sentido
contrário. Por conseguinte, hen não é sempre o resultado, mas o objeto ou o motivo de que
alguém encontre complacência em outra pessoa (2Sm 15,25). Cada vez mais, ter hen é o
motivo pelo qual uma pessoa goza do favor da outra. Em outras palavras, o desenvolvimento
semântico de hen (à diferença de hanan) tende a excluir o sujeito de hen e a refletir
unicamente o motivo ou a qualidade de alguém por quem um terceiro se mostra benevolente
em relação a ele. Na literatura sapiencial, chega a tal ponto esta evolução que hen termina por
designar as qualidades de uma pessoa ou inclusive de um animal ou de um objeto. Podemos
dizer que o termo hen tende a prescindir totalmente do significado fundamental de hanan
enquanto iniciativa de solicitude por alguém. Isto é tanto mais notável que a Septuaginta
traduz o termo hebraico hen sempre por charis (graça, enquanto algo que se recebe de outro).
No termo hen não desaparece, porém, a ideia de mostrar-se complacente, mas essa
ideia se desloca. O hen não é o dom de graça outorgado com uma atitude de hanan. O ter hen
é, ao contrário, a razão pela qual uma pessoa olha favoravelmente a outra, que, por sua vez,
obtém o favor da primeira. Daí o significado de “achar graça aos olhos de outro”, de um
terceiro, que na maioria dos casos é um superior, e finalmente, Deus. “Noé achou graça aos
olhos de Deus” (Gn 6,8; Ex 33,12; 33,13. 16. 17). Devido a esse deslocamento, hen pode ser
só uma fórmula geral, inclusive uma simples fórmula de cortesia, no sentido de “por favor!”.
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Na linguagem profana ou no trato normal entre as pessoas é muito frequente este
emprego de hen, graça: (Putifar) tomou afeto (favor, achou graça, alcançou benevolência
de…) por José (Gn 39,4); Jacó envia um presente a Esaú, para obter sua graça, alcançar seu
favor (Gn 32,6). O que suscita o apreço do outro, ou seja, o hen, pode ser um dom de Deus,
mas a palavra já não o diz. Um exemplo típico disso é que YHWH outorga hen aos israelitas
aos olhos dos egípcios, de forma que estes deem àqueles, em sua partida, presentes e objetos
preciosos (Ex 3,21; 11,3; 12,26). No Sl 84,12, Deus dá aos seus, hen e kabod, “favor e
glória”, ou seja, o apreço dos demais. Trata-se sempre de um terceiro: “ser bem visto por
outro”. A diferença entre hanan e hen está no fato de que, se bem que Deus seja a causa do
hen que alguém tem diante um terceiro, a palavra não se refere ao doador, mas ao apreço e à
reação favorável de um terceiro. Não é que hen (charis, graça) tenha perdido toda relação com
o significado original de hanan enquanto solicitude benévola por alguém, mas que tal
solicitude benévola se deslocou, referindo-se ao reconhecimento de alguém que possui hen.
Esse deslocamento semântico, no emprego do termo hen, nos permite ver uma
interessante evolução. Dado que no campo semântico de hanan não existe um substantivo
correspondente, o lugar é ocupado por outro substantivo: o termo hesed. Ainda que
procedente de uma raiz diferente de hanan, hesed serve, de fato, como forma substantivo (a
graça) do verbo hanan (ser benévolo). Na Septuaginta, com exceção de alguns casos tardios,
hesed nunca é traduzido por charis, mas por eleos (compaixão), enquanto que, por outro lado,
o verbo grego elein (compadecer-se) corresponde a hanan. Em outras palavras: os tradutores
viram claramente o nexo entre hanan e hesed, apesar das diferentes raízes destes dois termos.
c. Hesed e ’emet
A etimologia de hesed é muito incerta. O termo tem, porém, sua base nas relações
inter-humanas, procedendo, sobretudo, das relações recíprocas que existem num grupo
humano sociologicamente estável. Nesse sentido, hesed é a postura e a conduta dos membros
de um grupo, graças às quais ele encontra coesão. Estudos recentes afirmam que hesed não
significa uma bondade e benevolência espontânea e sem motivo, mas uma forma de conduta
resultante de uma relação vital, determinada e regulada por direitos e obrigações, como a
relação entre marido e mulher, pais e filhos, reis e súditos. Aplicado a Deus, hesed significaria
o amor baseado na aliança. O sentido de hesed, como bondade e benevolência generosa, seria
secundário, sobretudo devido à união de hesed e rahamin (bondade) e outros termos muito
precisos, como ‟emet. Por sua própria natureza, hesed é uma fidelidade recíproca: pressupõe
uma relação vital entre as partes interessadas e dentro de um contexto comum (por exemplo,
mediante a ratificação de uma aliança). O hesed funciona neste âmbito de comunhão. Outros
estudos consideram esta posição extrema, dizendo que o hesed está relacionado, sem dúvida,
com a comunhão, mas com isso não se diz nada sobre sua natureza própria. Em hanan, trata-
se primariamente da solicitude de uma pessoa por outra, não de algo que demonstre uma
relação comum. Também no hesed é capital a direção que parte da pessoa que demonstra
hesed, mas a relação não é nunca unilateral: evoca sempre uma reciprocidade. O mesmo
sucede com hanan, mas este termo, à diferença de hesed, não implica tal reciprocidade. Existe
hesed entre o anfitrião e o convidado (Gn 19,19), entre parentes (Gn 49,29), entre aliados
(1Sm 10,8) e também entre quem recebeu um favor e quem o fez (1Re 20,31; Jz 1,24; Jos
2,12. 14). Pode-se pedir hesed em virtude de uma aliança, mas pode-se também solicitar uma
aliança em virtude do hesed demonstrado. O hesed requer uma resposta no hesed mesmo.
No uso do hesed se alternam o singular e o plural, sobretudo nos textos tardios (Sl 106,
1.7.45; Is 55,3; 63,7; Sl 17,7; 25,6 etc.). Hesed é, portanto, uma atitude básica que se traduz
em atos de bondade e amizade. Neste sentido, hesed diz algo peculiar sobre a atitude
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recíproca, e esse elemento peculiar é o que determina propriamente o hesed, que supera a
esfera do obrigatório e evidente numa relação interpessoal. Nos textos antigos, hesed indica
uma bondade e benevolência inesperadas e surpreendentes, algo com o qual não se contava
(1 Re 20,31; Gn 39,21; 40,14; 47,29; 20,13; 21,23; Jos 2,12; 1 Sm 15,6; 2 Sm 3,8; 16,17). O
hesed assim entendido torna possível uma aliança, mas não é nunca seu pressuposto:
transcende o esquema de prestação e da contraprestação de um favor, do dom e do contra-dom.
O uso religioso e teológico de hesed tem suas raízes nesta perspectiva das relações
inter-humanas. Trata-se, pois, de um uso muito antropomórfico, mas também da linguagem
mais adequada para poder dizer algo sobre a atitude de Deus para com o homem e para
exprimir a possível profundidade da resposta pessoal do homem. A importância decisiva de
hesed para estabelecer a relação entre Deus e seu povo radica no fato de que esse termo foi
incluído entre os predicados divinos dos hinos e da liturgia nos quais o AT proclama a
essência de Deus como “Deus dos homens” (Ex 34,6-7). O Senhor é “um Deus compassivo e
clemente, paciente e rico em hesed e ‟emet” (Nm 14,18; Jl 2,13; Jon 4,2; Sl 86,15; 103,8;
145,8; Ne 9,17). Contrapõe-se uma misericórdia que chega até “à milésima geração” (daí o
nexo entre hesed e ‟emet: fidelidade) e o castigo que alcança no máximo até a quarta geração.
No segundo mandamento do decálogo (Ex 20, 5b-6) o hesed de Deus é mencionado junto
com seu “zelo”: é um Deus zeloso, que defende seus direitos e castiga os que o “aborrecem”
até a quinta geração, “mas atua com lealdade (hesed) por mil gerações quando o amam e
guardam seus preceitos”. Hesed indica, portanto, superabundância de graça, que é muito
maior que o castigo merecido pela maldade. É nos salmos (das 237 passagens em que aparece
hesed, 127 correspondem aos salmos) onde mais aparece este caráter surpreendente e
admirável do hesed de Deus. Hesed está relacionado também com o milagre (Sl 107,
8.15.21.31). O hesed de Deus é o fundo grandioso sobre o qual brilha cada uma das
demonstrações divinas de graça. Em sua oração, o judeu invoca este hesed, pedindo para ser
escutado em suas súplicas (Sl 119,149), ser salvo (Sl 109,26), redimido (Sl 44,27; 130,7),
seguir com vida (Sl 119,88.159) e ser perdoado (Sl 25,7). Como termo paralelo de hesed
encontramos às vezes yesu„ah, que significa ajuda ou qualquer tipo de salvação (Sl 36,11;
103,17). Dado que o homem é pecador, o hesed de Deus significa também compaixão e
perdão dos pecados (Sl 86,5; Ex 34,7a; Ne 9,17). A graça é igualmente perdão dos pecados.
Esse hesed superabundante, mantido fielmente por YHWH, se exprime numa espécie
de binômio, com uma fórmula conhecida também na linguagem profana, mas utilizada em
relação com Deus: hesed weemet, “graça e fidelidade ou lealdade de Deus” (sobretudo nos
salmos: 25,10; 40,12; 57,4.11; 85,11; 89,15; 138,2; também no Sl 61,8; 86,15; 115,1; Gn
24,27.49; 32,11; 47,29; Ex 34,6; 2 Sm 2,6; 15,20; Pr 3,3; 14,32; 16,6; 20,28). Hesed está
sempre em primeiro lugar (com exceção de Os 4,1; Mq 7,20; Sl 89,25). Referido ao homem e
a Deus, ‟emet significa alguém em cujas palavras, atos ou amor se pode confiar, alguém em
quem é possível apoiar-se. Com o matiz de veracidade (da raiz aman: que dá estabilidade,
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segurança, portanto, também durabilidade). Como os homens são infiéis e mentirosos, ‟emet
refere-se, sobretudo, a Deus. Deus é o ‟el ‟emet, um Deus fiel e leal, um Deus em quem se
pode confiar (Sl 31,6), inclusive eternamente (Sl 146,6). Deus é, nesse sentido, rico em hesed
e em ‟emet (Ex 34,6; Sl 86,15). Podemos por isso confiar em suas palavras (2 Sm 7,28).
A Septuaginta traduz geralmente ’emet por verdade (aletheia) e algumas vezes por pistis
(confiança, motivo de confiança ou segurança). Os filólogos de hoje não estão de acordo com
esta tradução. De toda maneira, “verdade” (motivo de confiança) é um dos significados
fundamentais de ‟aman e ‟emet. Referido ao homem, em muitos casos pode-se traduzir
por “verdade”. Referido a Deus, ‟emet significa sempre fidelidade, validez eterna e lealdade.
No começo, quase não se pensava explicitamente na resposta que o homem devia dar
ao hesed de Deus, ainda que tal resposta estivesse implicitamente na frase “aqueles que me
amam” (Ex 20,6; Dt 5,10), que se refere precisamente ao hesed de Deus. Unido a rahamim, o
hesed de Deus adquire o significado de amor materno delicado, quase vulnerável. Assim
aparece especialmente em Oseias. O hesed de Deus é o pressuposto e ao mesmo tempo o
modelo do hesed recíproco de Israel (Os 10,12). É porque o acento recai sobre as relações
inter-humanas, entendidas precisamente como hesed recíproco para com Deus. Seguindo
Oseias, Jeremias toma o exemplo do antigo noivado (Jr 2,2), recordando o tempo em que
Israel amava a Deus. Nele se vê que hesed não é por si sinônimo de fidelidade, pois Israel
havia esquecido seu antigo amor de juventude, mas que se refere formalmente à cordialidade
e à generosidade espontânea que implica a entrega de si. Jr 31,2 sublinha que o hesed de Deus
precede sempre a resposta do ser humano. A fidelidade mútua é uma visão escatológica.
Chegará um dia em que Jerusalém será chamada cidade de ‟emet (Zc 8,3), uma cidade em que
também Deus poderá confiar. Para Is 10,20, isto se refere a um pequenos resto de Israel.
O tema da reciprocidade nos conduz à relação existente entre hesed e berit, amor
misericordioso e aliança, ou amor de aliança. A teologia deuteronomista faz a relação estreita
entre graça (hesed) e aliança (Dt 5,10; 7,9.12). A conexão entre hesed e aliança aparece
na literatura deuteronomista. A aliança é uma manifestação exterior, ainda que fundamental,
do hesed divino. A aliança, no entanto, encontra sua realização plena apenas na reciprocidade.
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perspectives de vida eterna, também o hesed de YHWH parece chocar-se com uma barreira.
Não obstante, o salmista crente não o considera como tal: “tua fidelidade (hesed) vale mais
que a vida” (Sl 63,4). Esta espiritualidade depara-se com o problema da morte, onde o amor
de Deus tem seu final como objeto histórico. Mas enquanto há vida, pode-se dizer: “não lhes
porei rosto mal humorado, porque sou hasid” (Jr 3,12). É hasid quem atua com hesed.
Assim, na vida como na morte, “tua destra me sustenta” (Sl 63,9). A última e suprema
possibilidade do hesed divino aparece numa perspectiva insuspeitada que vai além da morte.
Dado que o homem é pecador, a solicitude benévola de Deus tem também sempre o
significado de compaixão, de misericórdia e de perdão dos pecados. Mas a graça vai mais
longe ainda do que tudo isso. Deus está sempre disposto a ajudar e a conceder todo tipo de
salvação (Sl 36,11; 103,17). Ainda que o homem agraciado se encontre um tanto confundido
pela perspectiva da morte e da desgraça última, segue, apesar de tudo, sendo capaz de crer no
amor e na lealdade definitiva de Deus para com o homem: “tua destra me sustenta” (Sl 63,9).
A diáspora judaica foi obrigada a traduzir para o grego os diferentes termos teológicos
do AT. Porém, ela não traduziu o hesed hebraico por charis, mas por eleos (compaixão,
misericórdia), utilizando charis para traduzir hen. Teologicamente, a charis do NT pouco ou
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nada tem que ver com hen, a charis da Septuaginta, pois equivale ao hesed hebraico. O que
aconteceu para que charis não correspondesse, na Septuaginta, ao conceito de graça? Para dar
uma resposta a tal questão, estudaremos em primeiro lugar o significado grego do termo charis.
a. A charis helenista
Charis e chairo (alegrar-se) têm em grego uma mesma raiz: char = algo que brilha ou
lança faíscas e assim alegra o homem ou o agrada, algo que lhe proporciona alegria e prazer.
No sentido objetivo, char é algo ou alguém que é agradável, e no sentido subjetivo, é
encontrar prazer em, saborear algo (palavras, ações, pessoas ou coisas), achá-lo agradável ou
alegrar-se com ele, ter gosto, recriar-se em algo. Em todo o campo semântico grego de charis
encontramos o mesmo significado básico. Daí nasceram três grandes linhas semânticas:
a. charis é algo que proporciona alegria, enquanto que chara (alegria) é a relação conseguinte.
Em concreto, charis é o atrativo amoroso, o encanto, algo que produz agrado. O essencial não
é que uma coisa, uma ação, uma palavra ou uma pessoa sejam belas ou atraentes, mas que
deslumbrem e produzam alegria. Trata-se do aprazível e do agradável que procede da
elegância e da beleza. Nesse sentido, charis reflete um modo de ver a vida tipicamente grego.
Em relação com esse significado, charis recebe ainda o sentido de favor do destino
(simbolizado pelas três Carites ou Graças, as três deusas do destino: Talia, Aglaia e
Eufrosina; b. em estreita relação com o sentido anterior, charis significa também simpatia,
apreço, favor, benevolência, cuidado solícito de alguém, tanto no sentido ativo, sobretudo por
parte do imperador ou do dignitário para com seus súditos (nisso consiste a verdadeira relação
com hanan), como no sentido passivo: charis é o favor, o dom ou a esmola, assim como a
benevolência ou a simpatia que uma pessoa experimenta por outra, sempre como favor que
proporciona alegria; c. a consequência disso é que, de acordo com a concepção grega, a charis
exige uma resposta. A charis (demonstração do amor) produz charis, ou seja, uma atitude que
se traduz no reconhecimento do favor. A expressão “dar graças” significa precisamente
reconhecer a “graça” ou o favor recebido. Tal é o terceiro significado de charis. Daí vem a
expressão tois theois charis “graças a Deus (aos deuses)”. À diferença do hesed hebraico, a
charis helenística põe especialmente em relevo a ideia de uma contraprestação obrigatória,
ainda que tal obrigação não pareça ter primazia. O agradecimento é a graça redita. É como se,
com o agradecimento, se devolvesse a charis recebida. Os autores gregos jogam às vezes com
estas duas acepções de charis: agraciar e agradecer (como em Sófocles e em Aristóteles).
Na língua grega, os três significados que acabamos de ver têm também aplicação no
âmbito religioso: a benevolência dos deuses. No grego extra-bíblico, porém, charis não é um
conceito religioso central nem tampouco um conceito explicitamente filosófico. À areté,
virtude grega do homem forte e bom, a charis acrescenta o aspecto gozoso e atrativo da
virtude. Charis é o encanto da verdadeira vida virtuosa. A escola estoica vai mesmo falar da
graça de Deus, mas não de sua ira. No grego da antiguidade tardia (época imperial), charis
evoluirá em duas direções distintas (que terá uma repercussão no NT grego): a. o favor que
alguém obtém do imperador (por exemplo, uma concessão ou subvenção legal) ou de um alto
funcionário. Neste sentido fala-se da filantropia do imperador (Tt 3,4). Charites são então os
dons concedidos, enquanto que charis (no singular) indica um sentimento favorável ou
benévolo. Um caso típico de favor ou de charis no sentido jurídico é o do indulto: a concessão
da graça, a remissão de um castigo (o Evangelho de Lucas diz que Barrabás foi “agraciado”);
b. sinônimo de poder, no sentido de “poder do alto”, procedente de esferas supra-terrenas,
sobrenaturais. Charis designa uma energia procedente de um mundo superior que invade
determinados homens. Charis se converte assim num conceito especificamente religioso. A
dynamis da graça é uma força supra-terrena que se manifesta, sobretudo, nos taumaturgos. E a
charis se revela como força sobrenatural em milagres e em obras de magia.
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Se comparamos o conceito grego de charis com o campo semântico dos termos hesed,
hanan e hen, percebemos grandes afinidades, mas também muitas diferenças. Em primeiro
lugar, charis não é, como hesed, um conceito especificamente religioso no grego clássico. É
surpreendente, porém, a afinidade existente entre hen e charis. Isso explica porque a
Septuaginta tenha preferido traduzir hen por charis e não por eleos. O fato que traduza hanan
e hesed por eleos (compaixão) indica que charis não era considerado o termo adequado. No
hesed divino e na sua solicitude (hanan) pelos homens, Deus não se move pelas qualidades
resplandecentes que vê no homem. É sua solicitude amorosa que faz o homem agradável. Por
outro lado, a charis grega nunca tem o significado de perdão dos pecados (só no grego da
época imperial charis adquire o significado de absolvição, que influirá na literatura
intertestamentária e também no NT). O grego da época imperial se presta especialmente para
traduzir hesed por charis, fato que uma vez concluída a tradução da Septuaginta, influirá nos
judeus de fala grega. Mas, à margem de tudo isso, a charis grega parece demasiado
“humanista” para poder ser a tradução de um termo tão marcadamente religioso como hesed.
Poucos textos da Septuaginta traduzem hesed por charis (Est 2,9. 17; Eclo 7,33;
40,17). Trata-se de textos tardios, o que explica que as traduções posteriores, à diferença da
Septuaginta, traduzam normalmente hesed por charis, como em Filo. Essa tendência se
confirmará no NT, que traduz hesed por charis e não mais por eleos. Isso se explica pelo fato
de que depois da tradução grega da Bíblia, a charis grega se fez popular em seu sentido
religioso. Esta mudança no conceito grego de charis está relacionada com o nascimento do
culto ao imperador, quando se começou a dar-lhe o título de kyrios. Hen, na Septuaginta
charis, não aparece nos salmos, enquanto que os mesmos salmos são o testemunho principal
da espiritualidade vétero-testamentária do hesed ou da graça. Por isso o emprego de hen é
surpreendente na literatura sapiencial, onde este termo designa uma qualidade ou conduta em
virtude da qual uma pessoa resulta agradável aos olhos de outra, “agrada” aos demais e os
dispõem favoravelmente (significado típico tanto do hen como da charis). Na literatura
judaica posterior à Septuaginta o “ser agradável a Deus” sofre uma nova evolução, passando a
designar a recompensa futura dos que temem a Deus, dos justos. Esta tendência é ainda mais
clara na literatura apocalíptica. Por um lado, charis é a recompensa escatológica dos justos,
por outra, é o termo que designa globalmente tudo o que significa “salvação futura”. A
Didaqué será um eloquente testemunho a este respeito, aludindo claramente ao “venha a nós o
vosso reino”, do Pai Nosso, diz: “venha vossa charis, acabe este mundo” (Did 10,8). Há
também um intercâmbio de termos (charis, eleos e eirene), como também a combinação de
charis e de gnosis, como de charis e cumprimento da lei, ou de charis e “não pecar mais”.
Trata-se de uma formalização da linguagem, que passa por um processo de intelectualização.
Esse processo vai fazer os termos sabedoria, revelação, inteligência, conhecimento, vida,
cumprimento dos mandatos ou da lei de Deus se equivalerem na charis de Deus com Israel.
Charis se torna a grande graça da conversão de um pagão à fé de Israel, à sabedoria do povo
eleito e à revelação de Deus. Antes de Paulo, então, o judaísmo grego estabelece uma relação
entre charis e justificação pela fé no Deus de Israel, ou mais concretamente, pela fé no dom
(charis) divino da lei. Charis e conversão, ou justificação pela graça, pela graça da lei, se
resumem nesta literatura judaica mediante a fórmula “achar graça diante de Deus”. Charis se
emprega preferentemente para indicar o grande momento em que um pagão, devido à livre
eleição por parte de Deus, recebe, pela fé, a revelação ou a doutrina salvífica da religião de
Israel. Com isso se põem as bases da ideia neo-testamentária, sobretudo paulina, da relação
existente entre eleição, conversão, justificação e batismo cristão, mas o ponto determinante já
não será a lei, mas o Cristo. Charis, graça, equivale assim à conversão do pecador a YHWH,
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único Deus verdadeiro de Israel e, através de Israel, de todos os povos. Neste marco, charis
supõe especialmente um conhecimento da verdadeira revelação (no sentido de gnosis/epgnosis).
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Na sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-21), Jesus reitera a índole salvífica de seu programa,
fixado na oferta única da salvação. A tal fim, trunca a citação de Is 61,1-2, suprimindo dela o
anúncio do “dia da vingança de nosso Deus”. Em sua mensagem, não ha lugar para a ideia do
castigo, mas apenas palavras de graça, o que provoca no auditório uma violenta reação (Lc
4,22). Sobre a base da novidade de um anúncio exclusivo de salvação, as parábolas do reino
destacam: a. a absoluta gratuidade do mesmo, que não depende em nada do homem, mas da
livre vontade de Deus (cf. Parábolas do lavrador paciente Mc 4,26-29, do grão de mostarda e
do fermento Mt 13,31-33); b. a urgência de uma decisão por parte dos ouvintes, que não
podem adiar a interpelação que tais parábolas trazem (cf. a parábola da figueira estéril de Lc
13,6-9, a parábola das dez virgens de Mt 25,1-12, como a do mordomo esperto (Lc 16,1-8).
No AT, só muito raramente se atribui a Deus o título de Pai. Jesus chama, porém,
Deus de “Pai”, utilizando para isso o termo familiar abba. Tal uso aparece não só nos textos
comuns à tradição sinótica (fonte Q), mas também nos textos próprios a Mc, Mt e Lc. Esse
modo de nomear Deus, inusitado, ao denotar uma familiaridade escandalosa, é inculcado por
Jesus a seus discípulos e também ao povo (Mt 6,9; 7,7-11; 23,9; Mc 11,25; Lc 12,32). Para
Jesus, Deus é pai e é como tal que deve ser invocado. Correlativamente, a atitude do homem
diante de Deus tem que ser a de uma criança diante de seu pai. A criança é o protótipo da
fragilidade, da necessidade absoluta do pai para sobreviver. O começo da salvação repousa no
aprender a chamar Deus de pai. A paternidade de Deus se põe à prova e se verifica em sua
impressionante autenticidade, sobretudo frente ao pecado do homem. As parábolas do perdão
de Lc 15 são, na realidade, outras tantas parábolas da predileção divina pelos pecadores. Seu
comum denominador é: Deus ama mais os menos dignos de ser amados porque são os mais
necessitados de seu amor. Os mais amados são os menos amáveis porque Deus ama, como
cria, desde o nada. O anúncio do reino se revela assim como Evangelho, boa nova de salvação
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para os que são aparentemente irredimíveis. O judaísmo, inclusive o Batista, aceita os
pecadores depois que se converteram e fizeram penitência, enquanto Jesus oferece a salvação
antes de fazerem penitência. Emerge deste modo, e de forma absolutamente nova, a
incondicionalidade e a ilimitação do que é a graça pura. Explica-se então porque Jesus exija o
seguimento incondicional como resposta adequada ao amor igualmente incondicional de Deus.
“Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho único, para que todo o que crê nele não
pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Nesse texto, formula-se concisamente o esquema
fundamental da teologia joanina. A origem da atual economia salvífica é o amor de Deus Pai
que nos dá seu Filho na encarnação para que este, por sua vez, dê a vida a quem nele crê.
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verdade” (Jo 1,17), isto é, a vida. No Filho encarnado “estava a vida” (Jo 1,4). Cristo é o “pão
da vida” (6,35648), a “luz da vida” (8,12) ou, simplesmente, “a vida” (11,25; 14,6). Nele se
encontram a luz, a verdade e a vida, os grandes universais abstratos nos quais o homem pensa
sua salvação, não porque seja seu complemento circunstancial de lugar, mas porque é sua
substância. Ele “é“ luz, verdade vida. O abstrato é um concreto, o universal um singular: a
própria pessoa do Logos encarnado. João estabelece a equação Cristo = vida. A vida se
outorga a quem se abre a ela pela fé. “O que crê, tem vida” (3,3-7. 15. 16. 36; 5,24; 6,40-47).
A fé joanina, como a dos Sinópticos, ostenta um caráter cristocêntrico. A fórmula pisteuein
eix tem sempre como destinatário Jesus Cristo (1,12; 2,11. 23; 3,16. 18. 36). Crer significa: a.
assentir à auto-revelação de Jesus; b. aderir à sua pessoa. Assim, crer é: “aceitar nosso
testemunho” (3,11-12), “guardar/receber minhas palavras” (12,47-48; 17,8); b. “vir a
mim” (6,34; 7,37-38), um “permanecer em minha palavra” (8,31), que supõe sempre a opção
livre do crente. A fé é, de fato, um ato pessoal, responsável. O Jesus joanino instaura com sua
aparição no mundo a crise escatológica (1,10-12; 3,18-19; 12,47-48), ante a qual o homem
deve decidir-se, sem poder negligenciar a eleição. O que não crê é porque “não quer”: “vós
não quereis vir a mim” (5,40). Com isso, o incrédulo fecha-se à vida (“não quereis vir a mim
para ter vida”). Ao contrário, crer em Jesus é estar salvo.
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“todo o que ama nasceu de Deus” porque o amor procede de
Deus (1 Jo 4,7). “Sabemos que passamos da morte à vida porque amamos os irmãos” (1 Jo 14).
O termo charis aparece só três vezes no corpus joanino (1, 14.16.17), que é, porém,
marcado pela teologia contida neste termo, como o mostra o retorno constante ao mistério do
amor que Deus é e que se difunde nas três manifestações que fizeram a história do processo
salvífico: a. o amor eterno do Pai ao Filho e ao mundo; b. o amor do Filho (encarnado) ao
mundo e aos homens; c. o amor dos homens ao Pai, ao Filho e, consequentemente, aos irmãos.
Paulo é o autor neo-testamentário que mais utiliza o termo charis. No começo, ele usa
esse termo com o significado que ele possuía no vocabulário grego, convertendo-o, porém,
num determinado momento, na palavra chave com a qual se refere ao acontecimento salvífico
em Jesus Cristo. Sua própria experiência de um ato muito específico de amor da parte de
Deus, sua vocação ao apostolado entre os pagãos, constitui para Paulo o ponto a partir do qual
da uma denominação técnica ao acontecimento salvífico enquanto graça procedente de Deus.
Em toda a 1Tes nada se diz sobre a charis e a justificação, que depois seriam conceitos
chaves em Paulo. A ideia central desta carta é a iminente parusia de Jesus (2,19; 3,13; 4,15;
5,23), ideia que, fora desse contexto, reaparece em 1Cor 15,23. A 1Tes permite, no entanto,
14
adivinhar quantas dificuldades Paulo havia encontrado na sua pregação aos pagãos (2,16). O
motivo imediato da carta parece ser o de dar uma resposta ao problema surgido na
comunidade: haviam morrido cristãos (4,13-18). Paulo anuncia a expectação do cristianismo
primitivo sobre a vinda de Jesus. Seu aporte pessoal consiste em dar uma resposta à
comunidade, inquieta por causa do destino dos cristãos mortos, pois se temia que estes não
estivessem presentes na parusia de Jesus. Paulo responde dentro de um marco judeu-
apocalíptico (4,15-17): os cristãos que morreram (“os defuntos em Cristo” 4,16b)
ressuscitarão e irão ao céu ou serão “arrebatados” ou “conduzidos” ao céu junto com os que
ficam vivos, indo ao encontro do Cristo (4,16-17). Portanto, uns ressuscitarão e outros “serão
arrebatados”. Evidentemente esperava-se a parusia como algo iminente. Isso mostra que
certas circunstâncias históricas haviam determinado a interpretação do dogma da ressurreição.
Posteriormente, sobretudo na 1Cor, Paulo falará sobre esse tema de modo diferente.
Nas duas cartas de Paulo aos Coríntios a palavra charis aparece com muita frequência
(10 vezes em 1Cor e 18 em 2Cor). Emprega-se essa palavra em suas diferentes acepções
gregas: como ação de graças (1Cor 10,30; 15,57; 2Cor 2,14; 9,15) e, sobretudo, como
demonstração de favor ou obra de amor, aludindo concretamente à obra de caridade (esmola)
dos cristãos de Corinto em favor dos pobres da comunidade de Jerusalém (1Cor 16,3; 2Cor 8,
1. 4. 6. 7. 9. 16. 19). Esta generosa dádiva de amor (charis) é ao mesmo tempo demonstração
do favor de Deus aos Coríntios, que já têm o suficiente (2Cor 8,9) e podem dar aos pobres o
que lhes sobra (9,8). Aparece aqui o termo charis, no sentido de algo que se entrega como
dívida de honra, e Paulo dá um fundamento cristológico a tal dívida: “porque já conheceis a
generosidade (charis) de nosso Senhor Jesus Cristo: sendo rico, se fez pobre por vós para
enriquecer-vos com sua pobreza” (2Cor 8,9). Nestas cartas, charis tem também o sentido de
auxílio, assistência ou demonstração de favor da parte de Deus (2Cor 9,8 e 12,9).
Chama a atenção nessas duas cartas a combinação entre graça e ministério apostólico
(1Cor 3,10; 15,10; 2Cor 1,12; 12,9), de forma que também aqui “graça” tem o sentido técnico
de revelação salvífica de Deus em Cristo, designando a eleição ao cristianismo: “o favor que
vos concedeu mediante Jesus Cristo” (1Cor 1,4), o chamamento à vida cristã. A graça tem,
pois, um sentido absoluto: “exortamos-vos também a não desperdiçar esta graça de Deus”
(2Cor 6,1). Aqui se põe mais em evidência a eleição geral ao cristianismo que a eleição ao
ministério apostólico, pelo qual se dá a conhecer a revelação da salvação. Em todos esses
casos, “graça” tem o significado grego de ser “feito rico de todos os dons” (1Cor 1,5-6),
como Paulo define em 1,4 a “graça” ao afirmar que os ricos Coríntios “em nenhum aspecto
ficam curtos”. “Graça” não tem, pois, ainda o significado técnico paulino, como tampouco
2Cor 9,8: “poder tem Deus para cumular-nos de toda classe de favores”. Entre estes
abundantes dons da graça, o ponto central é ocupado pela parusia: “enquanto aguardais a
manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo” (1Cor 1,7b). No entanto, a “comunhão com seu
Filho”, outorgada através da ressurreição de Jesus (1Cor 1,9), adquire maior ênfase:
“pregamos um messias crucificado” (1Cor 1,23). Em contraposição com a 1Tes, sublinha-se
antes de tudo o fundamento da parusia: a morte e a ressurreição de Jesus, sobre a base de uma
tradição pré-paulina (e não coincidente com a parusia do Filho do homem): segundo o núcleo
de 1Cor 15,3b-5a ou 15,3b-7. A morte e a ressurreição são para Paulo o núcleo de seu
Evangelho (1Cor 1,23; 2Cor 2,12; 5,18-21). As duas cartas aos coríntios tratam, além do
mais, do ministério apostólico de Paulo enquanto “serviço de reconciliação” (2Cor 5,18-21).
É interessante o que diz 1Cor 1,9: “fiel é Deus, que nos chamou a ser solidários de seu
Filho, Jesus Cristo, Senhor nosso”. A partir da carta aos gálatas, isso se exprime mediante o
conceito de charis Theou, a graça de Deus (Gl 2,19-21). Em Paulo, charis passa a ser um
conceito teológico técnico. O “Evangelho” se identifica agora com o que Paulo chama na
15
carta aos gálatas “Evangelho da justificação”. O conteúdo do Evangelho de Paulo é aqui a
cimentação da vida cristã na charis de Deus, e, portanto, uma rejeição do “caminho da
salvação” da justiça humana baseada nas obras da lei. A “verdade do Evangelho”, seu
conteúdo, é agora a justificação do pecador em virtude do mistério de Cristo (Gl 2,14). O
Evangelho de Paulo é to euangelion tes akrobystias (2,7), como o de Pedro é to euvangelion
tes peritomes, ou seja, Paulo prega o Evangelho aos incircuncisos, e Pedro aos judeus
(circuncisos), mas ambos o fazem por mandato divino. Este mandado tem uma grande
importância no uso que a carta aos gálatas faz de charis. Paulo se considera mediador de algo
que recebeu de Deus em Jesus Cristo. Em toda a carta, o Apóstolo transmite o que recebeu de
Deus. Assim, o emprego de charis não se inspira diretamente no hesed do AT, mas no sentido
que este termo recebeu nos ambientes sapienciais e apocalípticos: charis é o conhecimento e a
doutrina (o que se refere à salvação e à conduta moral) recebidos através da revelação (para
Paulo, em Cristo e através dele). Isso explica o primeiro emprego técnico desta palavra por
parte do Apóstolo. Paulo fala de um favor de Deus muito concreto: “a graça que me foi
concedida” é desde o princípio uma alusão ao chamado divino de Paulo como apóstolo dos
pagãos (Gl 1,15-16; 2,9; 1Cor 3,10; Rm 1,5; 12,3; 15,5). Daí que sua visita apostólica à
comunidade seja uma charis, um fato gozoso. Frente ao uso geral de charis nas fórmulas de
saudação, a revelação graciosa da salvação da parte de Deus (charis) é personalizada em
Paulo, o que o orienta a um serviço muito determinado em favor dos demais: a pregação
apostólica do Evangelho aos pagãos. A graça foi concedida a Paulo “para anunciar Cristo
entre os pagãos” (Gl 1,15; Rm 1,5; 12,3; 15,5). Como em toda a apocalíptica, aqui charis
significa a comunicação de um conhecimento sobrenatural. Neste primeiro emprego técnico
do conceito de charis por Paulo, a graça é a doutrina da salvação transmitida aos apóstolos
pelo Pai através de Jesus, ou seja, a doutrina da eleição de todos os homens em Jesus Cristo.
Na análise que fizemos até aqui não apareceu ainda a oposição entre “graça” e “lei”.
Para os judeus, a lei era uma charis ou revelação graciosa de Deus reservada a Israel. Neste
caso, eleição e graça eram vistas como revelação de uma sabedoria superior. Por isso, sem
entrar numa crítica polêmica com a lei, Paulo formula sua doutrina da justificação em 2Cor
5,18-21: “Deus, mediante Cristo, estava reconciliando o mundo consigo, cancelando a dívida
dos delitos humanos” (5,19) e “ao que não tinha que ver com o pecado, por nós o carregou
com o pecado, para que, por meio dele, obtivéssemos a justiça de Deus” (5, 21). A morte de
Jesus é uma morte expiatória pela qual os pecados são apagados, e a própria justiça de Deus
ou sedaqah passa a ser nossa justiça. Esta ideia, central na carta aos romanos, está ausente da
carta aos gálatas, mas sua formulação básica pressupõe a doutrina paulina sobre a justificação,
exposta na carta aos gálatas. Na 2Cor 5,18-21 a reconciliação e a justificação não aparecem
num contexto de polêmica contra os obras da lei, mas em relação com o serviço de
reconciliação, o apostolado peculiar de Paulo. Este apostolado é dirigido aos pagãos e não aos
judeus. Por isso, pode-se perguntar se a charis da revelação de Deus na reconciliação por
meio de Jesus Cristo ultrapassa a charis da Torá. De fato, se Deus reconciliou o mundo
consigo em Cristo, de modo que essa reconciliação é realmente perdão dos pecados, via de
salvação para Deus, então afirma-se o princípio de solus Christus. A charis da lei fica
superada pela graça manifestada em Cristo, e nenhum pagão convertido ao paganismo pode
então ser obrigado à circuncisão e à lei. Com Jesus, manifestou-se uma nova revelação e
uma nova autoridade. “Se a justificação fosse conseguida com a lei, então em vão morreu o
Cristo” (Gl 2,21; 5,4). O dilema será então: a salvação pela lei ou a salvação em Cristo?
Na carta aos gálatas, Paulo debate com os que querem obrigar os cristãos vindos do
paganismo a circuncidarem-se. Ele pensa em termos apocalípticos. Cristo se entregou por
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nossos pecados, para tirar-nos deste eon, segundo os desígnios de nosso Deus e Pai (Gl 3,4).
Em Cristo ressuscitado já esta presente o eon vindouro, e nós com ele. A Jerusalém do alto já
está presente na comunidade cristã terrena (4,26). Trata-se de uma “nova humanidade” (6,15).
Paulo exprime isso dizendo que Deus chama os homens em chariti, ou seja, graciosamente.
Aqui charis indica que o chamado de Deus acontece por graça. O termo “graça” é utilizado no
sentido absoluto (1,6; 5,4): trata-se do sistema da graça contraposto com o sistema da lei.
Nunca aparece a expressão charis Christou (e menos ainda charis Jesou), mas “charis de
nosso Senhor Jesus Cristo” (6,18). Em outras palavras, o Cristo ressuscitado é para Paulo a
charis de Deus. Em nenhum caso Paulo chama o Jesus histórico “uma graça”. Na carta aos
gálatas, charis é uma forma de designar o chamado de Deus (1,6. 15) ou uma espécie de
hipostasiação da graça da ação salvífica de Deus (2,20c-21; 5,18). É também uma graça que
recebemos (5,4) ou seja, a existência cristã enquanto dom de Deus, e, sobretudo, o ministério
apostólico de Paulo. A ideia de graça tem então na carta aos gálatas o significado de “regime
da graça”, sistema de graça, frente ao “sistema da lei” (5,4). Essa contraposição se exprime na
verdade do Evangelho (2,5. 14), caracterizado como Evangelho livre da lei (2,15-21). Nesse
contexto polêmico, o chamado misericordioso da parte de Deus adquire o significado de
“independentemente das obras da lei”, sem mérito algum de nossa parte (2,15-21). Este favor
é direcionado tanto aos judeus quanto aos pagãos (ambos pecadores, os pagãos por natureza,
os judeus por cometerem pecados, uma vez que por nascimento são eleitos). Esta distinção
dará nascimento a diferentes maneiras de relacionar graça e obras: a. para uma dessas
maneiras, Deus concede a graça não pelas obras do indivíduo, mas pela eleição de Israel e a
aliança com os antepassados; b. para a outra, Deus pensa segundo as obras. Segundo a
primeira concepção, todos os israelitas são eleitos. Neles repousam as promessas, apesar de
seus pecados. Unicamente os pagãos são autênticos pecadores (2,15), pois falta-lhes a grande
graça da lei. A nova questão que se coloca com o cristianismo é se a eleição depende da
possessão da lei ou do dom de Cristo ressuscitado. No que se refere à relação essencial entre
graça e eleição, estão de acordo Paulo e seus adversários. A divergência radica em saber se a
eleição tem como centro a Lei ou o Cristo.
O chamado gracioso de Deus significa que “o homem não se justifica pelas obras da
lei, mas pela fé em Jesus Cristo”. Por isso, “cremos em Jesus Cristo, para ser justificados
pela fé nele e não por observar a lei, pois por observar a lei nenhum mortal será reabilitado”
(2,16; 3,2. 5. 10). Paulo argumenta agora apoiando-se na concepção rabínico-farisaica da
justificação. Todos estavam de acordo em que só Deus justifica e salva o homem. Trata-se
aqui unicamente da via de tal justificação pela graça de Deus. Para os judeus, isto ocorre
mediante a fé na graça da Tora; para Paulo, mediante a fé na graça de Cristo. Paulo contrapõe
estas duas vias de salvação. Para a via rabínico-farisaica, fé e obras constituem um conjunto
unitário. A fé em Deus é uma obra da lei. A doutrina da justificação pela fé é vétero-
testamentária (3,6-9). Foi Abraão que introduziu este primeiro mandamento da confiança da
fé em Deus. Para Paulo, a fé em Cristo não é uma obra da lei, ainda que seja uma atividade do
homem (5,6). Fé e obras se contrapõem mutuamente (2,16; 3,2. 5. 10). Paulo rechaça a
observância da lei enquanto princípio salvífico. Cristo é o novo princípio salvífico. Enquanto
tal, ele exige também uma vida ética consequente e demonstrada como um sistema ou regime
legal, uma “lei à qual estamos submetidos” (4,4). O poder da lei e sua tutela foram destruídos
por Jesus na cruz (3,13 ; 4,5). Crer que Cristo destruiu o poder da lei equivale a crer na graça
de Deus (2,21). A morte de Jesus na cruz é então a única fonte de salvação (3,1b).
É surpreendente que na carta aos gálatas não esteja presente o conceito central da carta
aos romanos: o da “justiça de Deus”. Paulo argumenta a partir do judaísmo: ser justificado
quer dizer não ser considerado culpado. Trata-se do juízo escatológico de Deus (5,5). Só Deus
justifica e absolve. A fé em Cristo nos faz partícipes das promessas do AT. A bênção de Deus
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a Abraão, que dá ao judeu o orgulho de chamar-se “filho de Abraão”, é também privilégio dos
prosélitos. Um bênção dada a Abraão em seus filhos é previsão da herança que lhe foi
prometida (3,6-14). Para Paulo, judeu e pagão são conceitos religiosos, o que significa que
tanto uma religião quanto a outra estão superadas em Cristo: “já não há judeu nem grego…,
pois em Cristo, todos sois somente um” (3,28). Paulo fala da lei como de minoridade sob a
tutela dos cosmocrators, mas não a rejeita enquanto submissão a Cristo (nomos tou Christou,
Gl 6,2). A alternativa não é entre obras da lei ou graça, mas entre eleição (graça) em virtude
do dom ou possessão da lei (a qual exige obras) ou em virtude do dom de Jesus Cristo e da fé
nele (uma fé que tem que fazer-se efetiva, sobretudo no amor fraterno e nas outras
obras. Assim se deduz a conclusão final que Paulo tira de sua concepção da graça (Gl 3,28).
Na carta aos romanos Paulo desenvolve uma teoria cristã da graça cuja estrutura pode
ser assim apresentada: 1. nem o paganismo nem o judaísmo procuram a salvação no sentido
de justiça de Deus (1,18-3,20); 2. a revelação da justiça de Deus (3,21-5,21); 3. a justiça de
Deus realiza a conversão à fé em Cristo: o batismo cristão (6,1-11); 4. parênese cristã:
comportamento cristão como consequência da justiça de Deus (6,1.12-13), com uma
exposição sobre a lei da carne e do espírito (7,1-25 ; 8,1-27), outra sobre o combate cristão
(7 ; 8,1-27) e um cântico de louvor à graça de Deus em Cristo; 5. partindo da manifestação da
justiça de Deus em Cristo, Paulo se pergunta como considerar a eleição divina de Israel (9,1-
11,35). A análise que faremos aqui se concentrara, sobretudo, nos primeiros elementos: 1,2,3.
18
em duas correntes dentro do judaísmo: a. a que afirmava uma justificação baseada
exclusivamente na graça de Deus; b. a que afirmava uma justificação humana frente a Deus
em virtude da observância da lei. No tempo de Jesus e do nascimento do NT, havia também
duas correntes na concepção judaica da sedaqah: 1. a ideia de uma justificação por graça, não
em virtude das obras, ainda que a graça se manifeste também na observância da lei; 2. a ideia
de que Deus justifica ou faz justiça ao saddiq, não ao pecador. Esta última concepção era a
tese das classes dirigentes de Israel. Numa perspectiva cristológica, essas duas correntes
encontram-se no NT. Por um lado, o paulinismo e a justificação pela exclusiva misericórdia
da graça divina, embora fora da escola paulina e do âmbito de influência de Paulo, o
cristianismo pré-neo-testamentário primitivo tenha conhecido esta linguagem. Por outro lado,
conceito de “justiça” próprio do judaísmo ortodoxo e oficial. Mateus enumera as categorias
de “boas obras” segundo o judaísmo: esmola, jejum e oração (Mt 6,1-4. 5-14. 16-18) como
sinônimo da perfeição cristã. “Justo” é o homem virtuoso que cumpre o mandamento de Deus
(1,19; 13,17; 23,29); “Justiça” aqui é uma vida moralmente virtuosa (5,20; 6,1-33) como
consequência da fé na redenção de Jesus. Mateus não critica o conceito judaico de justiça, por
mais que diga aos dirigentes judeus que eles tinham esquecido o mandamento principal: a
misericórdia (23,23-24), além de lhes lembrar como são “hipócritas”: carregam fardos para
os débeis e pobres e não os portam (23,3-4). Lucas também utiliza uma ideia similar: “pois
Deus não fará justiça a seus eleitos se eles lhe gritam dia e noite? Digo-vos que lhes fará
justiça sem tardar” (Lc 18,7-8a). Trata-se da mesma ideia de um Deus que faz justiça ao
saddiq. Daí que se relacione esta ideia com a do “justo sofredor” (Mt 5,6. 10). Nesse sentido,
certa tradição apresenta a Jesus como o saddiq, “o justo”. O conceito autenticamente paulino
de “justiça divina”, procedente do primeiro hassidismo, da apocalíptica e de Qumram, não
aparece em nenhum outro lugar do NT, exceto na frase: “buscai primeiro o reino de Deus e
sua justiça” (Mt 6,33). Aqui encontramos o conceito salvífico escatológico da sedaqah de
Deus, que, fora do paulinismo, não aparece no NT, ao menos com o termo “justiça”. O NT
oferece uma visão unitária da graça de Cristo e de seu perdão dos pecados, mas, no que diz
respeito ao uso de sedaqah, é influenciado por diferentes correntes e temas judeus.
Para explicar a graça e a salvação em Jesus Cristo, Paulo recorre ao antigo conceito de
“justiça de Deus” para entrar em polêmica com os círculos oficiais judeus, para os quais a
“justiça” é a qualificação de um agir humano e ético (fiel à Tora), ao qual Deus fará justiça. A
seu modo, Paulo passou pela experiência de Jó. Aprendeu com a própria experiência que não
é possível confiar na valorização das próprias obras boas, pois ele havia considerado e vivido
existencialmente sua atividade perseguidora dos cristãos como algo agradável a Deus. Sua
ideia de justiça, interpretada com esquemas humanos, caiu por terra graças à sua experiência
da misericórdia de Deus em Cristo. Para Paulo, o erro de sua atividade anterior não consistia
propriamente em seu zelo ético pelo que, em consciência, ele considerava bom, mas em ter-se
equivocado de objeto: atacava o que era precisamente a fonte da santificação e da graça. Esse
foi seu erro fundamental. Recorrendo à antiga ideia religiosa de justiça de Deus, trata, por um
lado, de estabelecer um nexo entre Israel e a Igreja, enquanto que, por outro lado, acentua a
novidade que supõe Cristo. O dom salvífico escatológico de Deus não está na Tora, mas em
Jesus Cristo. É ele quem dará a cada um segundo seus méritos. Também para Paulo o dom
livre da justiça da parte de Deus se manifesta numa conduta cristã ética.
Quando Paulo, frente à pecaminosidade geral do mundo, apresenta a charis que Deus
mostra em Jesus Cristo, a acusação de que “todos estão sob a ira de Deus” é contraposta a
Jesus como Cristo. Trata-se de um dado apostólico: “agora, no entanto, independentemente
de toda lei, manifestou-se a justiça de Deus” (3,21b). Mas Paulo acrescenta: “testemunhada
pela lei e pelos profetas” (3,21b). Por um lado, a novidade em Jesus, manifestado como
Cristo; por outro, o que diz o AT. Quem é que salva? “A justiça de Deus opera pela fé em
19
Jesus Cristo, em favor de todos os que creem” (3,21b-22), ou seja, tanto judeus como pagãos.
O ponto de partida da nova argumentação é a conclusão a que chega nos capítulos anteriores :
“porque todos pecaram e estão privados da presença de Deus” (3,23). Mas, ao mesmo tempo,
diz, como contraste: “graciosamente todos são justificados pela generosidade de Deus,
mediante a redenção presente em Jesus Cristo” (3,24). A “redenção” se concentra aqui na
morte de Jesus na cruz: “expiação por seu próprio sangue” (3,25). Aí é onde se manifesta a
justiça de Deus (3,21), e de tal forma que “assim demonstra Deus que ele é justo e que
justifica a quem alega a fé em Jesus” (3,26). Nesses versículos (3,21-26) aparece o núcleo do
que Paulo quer demonstrar em Rm 4-5, mediante uma argumentação de tipo judaico. Paulo
quer agora demonstrar que Deus justifica pela fé. Em sua argumentação há que distinguir a
contraposição judaica entre graça e obras (Rm 4) e a contraposição entre graça e pecado, mas
tendo em mente que esta segunda questão está implicada na primeira e que esta influi na segunda.
Em Rm 4,1-25, Paulo fala da justificação pela fé: “por graça” aqui se contrapõe a
“como dívida” (4,4). A análise de Rm 1-3 mostrou que devido a pecaminosidade universal, a
“redenção”, a vitória sobre o pecado ou a remissão dos pecados, é uma graça de Deus, tanto
para os judeus como para os pagãos. A verdadeira justiça consiste em pertencer a Jesus,
confessá-lo como Cristo, ressuscitado da morte. Em Cristo, a contraposição religiosa entre
povo de Deus e pagãos pertence totalmente ao passado. Para demonstrar isso, Paulo vai
relacionar o hesed ou a charis de Deus com o evento Jesus Cristo. Para isso, ele recorre a um
antigo midrash judaico sobre Abraão (Rm 4,1-25). O centro desta exposição é que a justiça
está unida essencialmente à fé, da mesma forma que, segundo a tradição judaica, estão unidos
hesed (o favor de Deus) e justiça. Graça e justiça formam, desde o ponto de vista judaico, um
único conjunto unitário. No desenvolvimento da argumentação de Paulo, combinam-se dois
dados: por um lado, o trinômio pré-existente em alguns círculos judaicos de graça, justiça e
fé; por outro, o dado cristão apostólico da fé em Jesus Cristo como salvação procedente de
Deus. Desta fusão de determinados conceitos do primeiro judaísmo com o credo fundamental
da fé apostólica não se segue diretamente a contraposição entre lei e charis ou entre lei e
Cristo, que é o que interessa a Paulo. Por isso ele vai modificar o midrash judaico sobre
Abraão a fim de que apareça claramente tal antítese. O essencial da mudança é que Paulo
identifica a contraposição judaica entre charis (graça) e ergon (obra) com uma contraposição
entre graça e obras da lei, e, quase sem dar-se conta, termina contrapondo graça e pecado. Tal
modificação dá lugar à contraposição entre a charis de Cristo e a Tora. Assim Rm 4,6-8
refere-se à versão que Paulo oferece do midrash sobre Abraão. A graça se contrapõe aqui não
só à falta de obras, mas à presença do pecado. Rm 13-15 é também reelaboração paulina do
midrash: as promessas feitas a este patriarca não se baseiam na lei, mas na justiça da fé. O
período da soberania da lei não só impedia o cumprimento da promessa, mas, ao invés da
charis, produzia a ira de Deus (4,14-16). Rm 4,24-25 indica que a justiça da fé implica
essencialmente o perdão dos pecados. Charis equivale então a perdão dos pecados. Sem dar-
se conta, Paulo muda a contraposição judaica entre graça e obras pela contraposição entre
graça (perdão dos pecados) e pecados. O fundamento da misericórdia de Deus, bem como o da
eleição, já não diz relação ao dom da lei, mas à nova situação exclusiva inaugurada em Cristo.
Para Paulo, a eleição se dá exclusivamente pela fé em Cristo. Devido a isso, ele deixa
sem efeito a eleição passada no dom e na possessão da lei. Faz seu o midrash de Abraão, mas
o modifica com vistas a esse propósito. Da versão paulina do midrash de Abraão segue-se esse
díptico: charis, justiça e fé frente a ira, lei e obras. Aparece assim uma oposição não judaica
entre fé e obras. Obras e fé têm na exposição paulina um significado particular: as obras são
relacionadas com a Tora da mesma forma que a fé é identificada com a fé em Jesus Cristo.
Para um cristão, a salvação tem que vincular-se a Jesus Cristo. Este é o núcleo da tradição.
Desta forma, Paulo devia mostrar que a lei não podia ser um dom escatológico de salvação.
20
Ele não nega que a fé tenha que fazer-se efetiva em obras. Ele se refere a outra coisa. Assim
como o judeu declara sua fé na Tora, mediante o cumprimento da lei, assim também o cristão
confessa a Jesus como Cristo mediante a fé. A opção está entre a exclusividade salvífica da lei
ou a de Cristo. O que Paulo acentua é a fé exclusiva em Cristo. Não se põe o acento na graça,
mas nesta graça, a graça da fé em Cristo, pois também os judeus criam que a salvação vem
por hesed ou misericórdia de Deus. O objetivo da argumentação de Paulo é que a lei, por ser
causa de ira, constitui um obstáculo para a charis de Deus. Invocando a figura de Abraão,
anterior à Tora, o Apóstolo rompe o caráter restritivo de uma eleição divina em favor dos
circuncisos (4,10). Trata-se de um novo conceito de eleição, sem condições prévias (isso é
judaico), mas não limitado a um povo, ainda que passe por Abraão como pai de todos os
povos: salvação, primeiro do judeu, mas também do grego. A condição de filho de Abraão
fica assim desligada da Tora. O único caminho de salvação, o que existiu deste há muito
tempo, é o caminho da fé: a fé de Abraão no Cristo futuro, o qual constituiria sua descendência.
Em Rm 5,1-11 Paulo faz um resumo do que já disse: justificados pela fé, vivemos
em paz com Deus por meio de Cristo. Esta vida é uma “situação de graça” (5,2) que, por um
lado, não é a consumação escatológica, ainda que seja uma esperança razoável da mesma
(5,2), e, por outro, se vê confirmada e consolidada. Porque se Deus nos amou “quando ainda
éramos pecadores” (5,8b), a fé nos permite afrontar o juízo com maior confiança, uma vez
que Deus nos justificou pelo sangue de Cristo (5,9). A reconciliação já se realizou (5,11), mas
a redenção (ou seja, a salvação corporal e espiritual) ainda tem que chegar (8,24).
Após esse breve resumo, Paulo continua sua argumentação. O tema agora é o da
contraposição entre graça e pecado, como se se tratasse de dois campos de força
independentes: o da charis (graça) e o da hamartia (pecado), o velho eon frente ao novo, um
período de desgraça e outro de salvação, inaugurado pela morte propiciatória de Jesus. Em
Rm 5-6 desaparece a contraposição entre judeus e pagãos, que é substituída pela
contraposição entre o primeiro eon, o reino do pecado (para judeus e pagãos) e o segundo
eon, o reino da graça, “primeiro para o judeu, mas também para o grego” (1,16). Trata-se
agora de precisar que efetividade tem a potência que domina o primeiro eon e que efetividade
tem a charis, enquanto potência do segundo. Se em Rm 4, Paulo passa quase que
inadvertidamente das obras da lei aos pecados, em Rm 5-6 esquece as obras da lei ao
contrapor graça e pecado. A tipologia de Adão, outro midrash tomado do judaísmo, domina
esta nova exposição. Paulo utiliza este midrash para destacar a singular posição escatológica
de Cristo como único mediador da graça de Deus. Só quem está vinculado a Jesus Cristo pela
fé participa da eleição de Deus e se acha no âmbito da charis de Deus, o que implica uma
série de consequências éticas: viver sem pecado. Para explicar esse caráter exclusivo de
Cristo, Paulo relaciona agora o midrash tradicional sobre Adão com a lei (Rm 5,12-21). A lei
proporcionava a potência do pecado uma boa ocasião de domínio, pois o pecado é
formalmente uma transgressão da lei. A lei manifesta o pecado enquanto pecado e também
sua proliferação. Rm 5,13-14 interrompe a argumentação para pôr em destaque a
universalidade do pecado. Entre Adão e a legislação mosaica, mesmo que seja um período
sem lei, dominava a morte (como castigo do pecado). Também aqueles homens eram
pecadores, ainda que não tivessem transgredido a lei. Morreram pelo pecado de Adão, que foi
a transgressão de uma lei. Aqui temos o tipo e o anti-tipo do díptico. Universalidade da
desgraça imputada a um primeiro Adão frente à universalidade da salvação presente no
segundo Adão, Cristo. A tipologia alcança seu ponto culminante na superabundância da graça
frente à proliferação do pecado. Assim como na fé de Israel, Deus castiga até a quarta ou a
quinta geração, mas mostra hesed até mil gerações. Na universalidade do pecado e da graça,
Paulo sublinha a superabundância da graça que supera qualquer medida. Paulo oferece aqui
uma concepção cristã do antigo hesed judeu de YHWH: o muito mais do hesed de Deus em
21
Cristo. Só aqui se acha a charis de Deus em Cristo. O antigo vínculo entre “conduta reta” e
“vida” se converte assim em um vínculo essencial entre graça e vida (5,10. 17. 18. 21; 6,4),
em contraste com o vínculo igualmente essencial entre pecado e morte: enquanto o pecado
reinava dando morte (5,21a), “a graça reina concedendo uma justiça que acaba em vida
eterna” (5,21b). Rm 5,18-19 volta a retomar a tipologia Adão-Cristo, agora sob o aspecto do
que está na origem das duas forças ou eons: por um lado, um único delito de um só homem,
multiplicado pelos próprios pecados de cada indivíduo (5,20), supôs a condenação de todos os
homens; por outro, o ato de fidelidade de um só, Jesus Cristo, se converteu em justificação ou
em anistia para todos os homens. Este ato de fidelidade de um só homem, que nos trouxe a
charis e a salvação, é para Paulo o sacrifício obediente de Jesus na Cruz (4,25; 5,6. 8. 9-11).
22
Consequências ético-religiosas da vida na graça
23
4. Análise teológico-sistemática da experiência da graça no NT
A graça é uma nova vida, gratuita (Paulo) e gozosa (Lucas) que Deus nos preparou em
Jesus Cristo e que nos oferece no plano de nossa história terrena (Hb 10,20; 2Pd 1,15; Jo
14,6); um caminho de salvação (At 16,17; 9,2; 19,23; 24,14; 1Cor 12,31). Trata-se de uma
nova possibilidade de vida, um modo de existência, no qual o homem experimenta realmente
salvação e redenção, libertação e renovação, felicidade e plenitude. Para o NT, trata-se de
seguir o caminho da vida de Jesus com Deus, plasmado em sua solicitude pelos homens, em
solidariedade com o Deus que se preocupa com todos. É uma atitude existencial, mediante a
qual o impulso de Deus, seu amor e fidelidade misericordiosos (hesed e ‟emet), nos quais se
pode realmente confiar, são continuados pelos homens e mulheres em nossa história terrena.
O homem conta para isso com a ajuda de Deus. Sua nova possibilidade de vida,
proclamada na pregação e nas parábolas de Jesus, demonstrada e vivida em sua práxis e
morte, recebe no NT nomes distintos, mas trata-se de uma única realidade. O paulinismo fala
de ser adotados como filhos, o joanismo de nascer de Deus. Ambas concepções querem dizer
que o cristão participa da singular relação vital que une o homem Jesus, o Filho, com o Pai
através do Espírito. O conceito de graça designa antes de mais nada o chamado a participar
dessa peculiar comunhão de vida com Deus: a vocação cristã, consequência do desígnio livre
e gratuito de Deus, que chama os homens ao caminho do Evangelho (Gl 1,6 ; 2Tm 1,9). Em
segundo lugar, em virtude desse chamado, enquanto obediência da fé (Gl 3,5; 1Cor 1,12; Rm
6,16; 5,15), graça designa a vida cristã: uma existência concedida, no ser e no operar, por
graça, na qual a conduta responsável se vive como uma realidade apoiada, guiada e orientada
pela força de Jesus, que enquanto dynamis divina (Lc 4,22; 6,8; 20,32; 14,26; 15,40;18,27;
1Cor 1,18; 6,14; 2Cor 4,7; 12,9-10; 2Tm 2,1; Rm 1,16; Ef 2,12-13) “dá fruto crescente em
nós” (Cl 1,6-7) “mediante a fé que se traduz no amor ao próximo” (Gl 5,6).
24
(Rm 5,15.17); “a graça de Deus se fez visível, trazendo salvação para todos os homens” (Tt
2,11); “fez-se visível a bondade de Deus e seu amor pelos homens” (Tt 3,4); “Deus, a
plenitude total, quis habitar nele” (Cl 1,19); “é neste em quem habita realmente a plenitude
da divindade e por ele… haveis obtido vossa plenitude” (Cl 2,9); “um mediador entre Deus e
os homens, um homem, Cristo Jesus” (1Tm 2,5); “por ele temos acesso ao Pai” (Rm 5,2);
“salvou-nos…com o Espírito Santo que Deus derramou copiosamente sobre nós por meio de
nosso Salvador, Jesus Cristo” (Tt 3,6); “nisso se fez visível entre nós o amor de Deus: em que
enviou ao mundo seu Filho único” (1Jo 4,9); “olhai que magnífico presente nos deu o Pai:
que nos chamemos filhos de Deus, e nós o somos” (1Jo 3,1); “Deus…que nos chamou… a
participar da natureza de Deus” (2Pd 1,4c).
Nos quatro Evangelhos canônicos e no resto do NT, o sumo dom da graça é o amor de
Jesus até à morte: sua paixão e morte como fracasso de sua vida, uma vida que, com dor, mas
também com todas as suas forças, é posta nas mãos de Deus (Rm 5,9-11; 1Cor 15,2-3; 2Cor
3,17-18; Hb 10,29; 1Pd 2,21; 2Tm 1,10b). “Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas o
entregou por todos nós, como não nos dará tudo?” (Rm 8,32). “Deus amou tanto o mundo que
deu seu Filho único, para que tenha a vida eterna e não pereça nenhum dos que nele creem”
(Jo 3,16). Sobretudo em Paulo e nas tradições neo-testamentárias influenciadas por ele, a
graça de Deus se condensa particularmente na morte e na ressurreição de Cristo, reduzindo e
limitando assim a charis ao evento pascal (Gl 2,19; 1Cor 1,30; 2Cor 5,21). Só o Senhor Jesus
é graça. Sem a ressurreição, a atividade terrena de Jesus fica inacabada. Os quatro Evangelhos
evitam esta concepção exclusivamente querigmática. Eles reconhecem o caráter de graça
inerente à mensagem e à práxis de Jesus. Podemos, porém, dizer de todo o NT que Jesus só é
confirmado por Deus depois da morte. “Pela graça de Deus, a morte que ele experimentou,
redunda em favor de nós” (Hb 2,9). A carta aos hebreus sublinha especialmente que é um ato
exclusivamente divino do Pai o que confere a eficácia do sacrifício de Jesus seu “pleno”
25
sentido. Isso não elimina o elemento do amor de Jesus até a morte, mas é seu pressuposto. Por
conseguinte, a ressurreição de Jesus é um ato livre e soberano de Deus, ainda que sua
manifestação inicial tenha sido a comunhão de vida de Jesus com Deus, em virtude da qual
aceitou sua paixão e morte. Da parte de Deus, esta comunhão é precisamente uma
demonstração de graça para com Jesus, uma graça que na exaltação ou ressurreição mostra
sua dinâmica interna e alcança sua plenitude. Só depois de ter alcançado esta plenitude, pode
afirmar-se que Jesus “se converte em causa (fonte) de salvação eterna” (Hb 5,9). Falando do
Jesus histórico, o Evangelho de João também diz: “ainda não havia Espírito, porque Jesus
não havia sido glorificado” (Jo 7,39), texto que exclui radicalmente a possibilidade de que
Jesus, depois de sua morte, volte a ser Logos a-sarkos pós-existente, não encarnado, como em
sua pré-existência. O NT ensina, pois, que só Jesus ressuscitado dá escatologicamente a
salvação: no Pneuma, seu Espírito e o de Deus (Rm 8,14-18. 29; Gl 4,4-7; Ef 1,3-5; Tt 3,6),
ou seja o Espírito mediante o qual o cristão, em virtude da graça da fé e do batismo (Rm 6; Gl
3,26-27; Tt 3,5), se faz semelhante a Jesus, ou seja, participa de sua relação com Deus e de
seu serviço radical aos irmãos (Rm 8,29) na sua entrega ao próximo.
A salvação de Deus, que nos foi outorgada pela vida de Jesus e que culmina na
sua morte e ressurreição, se apresenta tematicamente como: a. filiação divina; b. dom do
Espírito Santo. Antes de resumir o que o Novo Testamento entende por “riqueza da graça
de Deus” (Ef 1,7b; 2,4-7; 3,8), devemos analisar com mais detalhes estes dons fundamentais.
Filiação divina
Já os Sinóticos falam de filiação: “felizes os que trabalham pela paz, porque serão
chamados filhos de Deus” (Mt 5,9); “para serdes filhos de vosso Pai do céu” (Mt 5,45). Em
si, este conceito se encontra na consciência religiosa do homem em geral. O específico do NT
consiste em que esta peculiar comunhão de vida com Deus se realiza pela mediação de Jesus
de Nazaré, Cristo, Filho de Deus, “de cuja plenitude todos recebemos” (Jo 1,16; Cl 2, 9. 10).
Que modelo utiliza o NT para explicar esta nova relação de graça do homem com Deus?
Além dos textos que falam de “ser filhos de Deus” sem nenhum outro elemento
adicional (Mt 5,9. 45; Ef 1,5s), encontramos três modelos que tematizam esta experiência
cristã: 1. o modelo jurídico da adoção; 2. o modelo ontológico do “nascer de Deus”; 3. E o
modelo da criação, que concretiza o conteúdo do modelo da adoção. O primeiro é de
procedência vétero-testamentária e judaica: “eles descendem de Israel, foram adotados como
filhos” (Rm 9,4). Até a época helenística, Israel não falou de Deus como Pai dos justos como
indivíduos (Sb 2,13-16; 12,21; 14,5; Eclo 23,1-4; 51,10). Já antes falava do povo de Deus
como filho de Deus (Ex 4,22-23; Os 11,1-11; Is 43,1-7; 63,8-9; Ml 1,2-3), mas não sobre a
base de uma origem ou nascimento natural de Deus, como acontecia com os povos vizinhos,
mas como eleição gratuita (Dt 14,1-2; Is 1,2-9; Ml 1,2-3): mediante a aliança, que em si é um
conceito jurídico, por mais profunda e real que seja a vida vivida nesta aliança com Deus. O
Pai fez o povo eleito filho de Deus (Dt 32,6-43; Is 43,6-7; Ml 2,10). Nunca se fala de “ter
nascido de Deus”. No primeiro judaísmo, a filiação divina, como o Espírito, constitui um bem
salvífico escatológico dos tempos messiânicos (Ml 3,17-18). Quando Mt 5,9 vincula a bem-
aventurança escatológica com o “ser chamados filhos de Deus”, remete a este tipo de filiação.
O paulinismo fará sua esta tradição e falará de adoção ou huiothesia (Rm 8,14-17. 23;
9,26; Gl 3,26-28; 4,5-7). O joanismo vai noutra direção. Nunca fala de huioi tou Theou (filhos
de Deus), mas de tekna tou Theou (Jo 1,12-13). Tekna são os “nascidos”. As obras joaninas
26
não conhecem, pois, a ideia de adoção, mas só a do nascimento de Deus (Jo 3,3-8; 1Jo 2,29;
3,1. 9. 10; 5,1. 2; 4,7 ; 5,4. 18). Como se desprende da terminologia empregada, sperma tou
Theou, “semente de Deus” (1Jo 3,9), o autor não se refere a uma adoção, mas a um “nascer de
Deus”, servindo-se do modelo da procriação humana (1Jo 5,1). Mas não se trata de um
nascimento humano ou terreno, mas pneumático: “ a todos os que o receberam, os fez capazes
de ser filhos (tekna) de Deus. Aos que lhe dão sua adesão, estes não nascem de linhagem
humana, nem pelo impulso da carne nem pelo desejo de varão, mas nascem filhos de Deus”
(Jo 1,12-13). Em outras palavras, seu nascimento é pneumático. Foram concebidos do
Espírito Santo. O nascimento define melhor que a adoção as características e a natureza do
“nascido”, ou seja, do cristão. “Da carne nasce carne, do Espírito nasce espírito” (Jo 3,6).
Portanto, “nascer de Deus” significa “proceder de Deus” (1Jo 3,9.10). Na expressão, “nascer
do Espírito”, o Pneuma adquire antes de mais nada o significado vétero-testamentário e
intertestamentário de força efetiva de Deus ou “força do alto”, ou seja, força própria das
esferas celestes, e em sentido eminente e transcendente, própria de Deus. O Espírito é uma
espécie de chrisma, de unção, pela qual nossa natureza humana se faz pneumática (1Jo 2,20.
27). A terminologia joanina é marcada pelo ambiente sincrético do judeu-helenismo, mas o
sperma pneumatikon do quarto Evangelho se opõe radicalmente às acepções que esta
expressão tem no estoicismo e na antiguidade tardia. O homem possui um ser pneumático não
naturalmente, em virtude de seu espírito, mas porque nasceu de novo, em virtude da graça, de
maneira pneumática, “celeste”, deiforme. Por esta razão, a nova natureza implica a vida
eterna, a vida própria de Deus (Jo 3,16-18. 36; 5,24; 1Jo 3,14; 5,11-13). O Espírito é “um
Espírito que dá vida” (Jo 6,63), pois a verdadeira vida vem do Pneuma, ou seja, “do alto”.
27
ambos se exprime uma mesma realidade: “ser semelhantes a Deus”. Em ambas as
interpretações ou modelos (adoção e nascimento), a adoção divina é obra do Pneuma divino.
Como fundamento de todos os demais dons, o dom do Espírito Santo, que acompanha
a filiação divina, é o grande dom salvífico outorgado por Deus em e por Jesus ressuscitado
(Gl 3,5; 5,18. 25; 1Cor 2,4. 10-12; 6,11; 7,40; 2Cor 1,22; 4,13; 5,5; 13,13; Rm 5,5; 8,9-11.
14-15. 23; 12,11; 15,13.19; Fl 1,27; 2,1; 1Tes 4,8; 1Tes 4,8; At 1,5; 2,4. 17. 38; 4,31; 5,22;
6,3; 8,15. 17-19; 10, 44. 47; 15,19; 19,2; Jo 3,6; 6,63; 14,17; Ef 1,14; 2,18. 22; 3,16; 4,30;
5,18; Cl 1,8; 2Tes 2,13; 1Tm 3,16; Tt 3,5; Hb 6,4; 10,15.29; 1Pd 1,2; 4,6; 1Jo 3,24; 4,13). O
nexo que estabelece o joanismo entre nascimento de Deus e possessão do Pneuma, e o
paulinismo entre adoção e Pneuma, conduz neste último caso à fórmula Pneuma huithesias,
“Espírito de adoção” (Rm 8,14-17. 23; 9,26; Gl 3,26-28; 4,5-7) presente também em outros
textos do NT (Mt 5,9. 45; Jo 12,36; Ef 1,3-5). À diferença do joanismo, Paulo diz que
recebemos o Espírito como antecipação ou garantia (arrha) (2Cor 1,22; 5,5; Ef 1,14).
A comunhão de vida com Deus (1Pd 1,4) por adoção ou nascimento é chamada no
NT: a. “comunhão (koinonia) com o Pai” (1Jo 1,3. 6); b. “comunhão com o Filho” (1Cor 1,9;
Cl 2,6; 1Jo 1,3; 2,24); c. “comunhão com o Espírito Santo” (2Cor 13,13; Fl 2,1; Hb 6,4); d.
comunhão recíproca entre os homens, fraternidade humana arraigada no Espírito (Jo
17,11.21-22; 1Jo 1,3.7; 2Cor 9,13). Nesta comunhão de vida com Deus, somos
“companheiros do Cristo” (Hb 3,14) e “partícipes do Espírito Santo” (Hb 6,4), que, o autor
de 2Pd 1,4, utilizando conceitos do estoicismo, denomina consortium divinae naturae, mas
não no sentido grego, mas no da “adoção” paulina e no “nascer de novo de Deus” joanino.
Esta comunhão com o Pai pelo Filho, no Espírito, é uma comunhão experimentável. O
Espírito é adoção ou nosso modo de ser pneumático, obtido ao haver nascido de Deus. Ele nos
concede a experiência da filiação divina, pois é ele que nos permite de chamar a Deus “Pai”,
Abba (Rm 8,15; Gl 4,6). Ao mesmo tempo, a experiência do Pai só é possível no homem
Jesus (Jo 1,18; 6,57 ; 8,19 ; 14,6-9. 19-20 ; 16,26-27; 1Jo 2,23; 5,11-12), a quem podemos
conhecer como Cristo ou enviado somente por meio do Espírito (1Jo 4,2-3; 1Cor 12,3). O
Espírito garante às gerações cristãs posteriores a união entre o testemunho apostólico e a atual
sobre Jesus Cristo e o acontecimento histórico de Jesus, atuando na recordação cristã do Jesus
histórico (Jo 14,26; 15,26; 16,13-14; 1Jo 1,1-3). A comunhão com Deus está sujeita à
28
mediação de Jesus Cristo. A comunhão de vida com Deus se faz assim experimentável na fé
graças ao dom do modo de ser pneumático que recebe o fiel batizado, dom inerente à
inabitação do Espírito (Rm 8). No começo, sublinhou-se a possessão do Pneuma, que se
manifestava em experiências carismáticas extraordinárias (At 2,38; 8,15-16; 10,45; 19,6),
experiências mais exteriores, ainda que não carentes de um intenso impulso interior. Com o
tempo, a experiência do Espírito assume cada vez mais o caráter de uma comoção sóbria, mas
intensamente ética: “o amor que Deus nos tem inunda nossos corações pelo Espírito Santo
que nos foi dado” (Rm 5,5); “quem cumpre seus mandamentos está com Deus e Deus com
ele, e assim, graças ao Espírito que nos deu, conhecemos que Deus está conosco” (1Jo 3,24);
“esta prova temos de que estamos com ele e ele conosco, que nos fez participar de seu
Espírito” (1Jo 4,13). Os frutos do Espírito são: amor, alegria, paz, paciência, agrado,
generosidade, lealdade, simplicidade, domínio de si (Gl 5,22); “um Espírito de valentia, de
amor e de domínio próprio” (2Tm 1,7), “um Espírito de sabedoria e de revelação” (Ef 1,17).
A comunhão de vida com Deus pela mediação de Cristo faz os crentes “semelhantes
ao Cristo” (Rm 8,29; Gl 3,27; 4,19; Cl 3,9). Esta ideia é expressa com diversas imagens:
despojar-se das vestes velhas e revestir-se das novas (Ef 4,17-32; Rm 13,12; Cl 3,8-11; Hb
12,1). Cl 3,10 fala de uma renovação “à imagem do Criador” (Ef 4,24), de um homem novo
criado à imagem de Deus. Se Paulo diz que os cristãos “se revestem de Cristo”, as cartas
deutero-paulinas falam de um “revestir-se do homem novo”, que não se identifica
propriamente com Cristo, mas se ajusta à sua medida. Trata-se de uma atualização do homem
do paraíso, e este novo homem do Gênesis é possível graças ao Cristo (Cl 3,10; 1,15;
2Cor 4,4; Ef 4,21c). A semelhança com Cristo é, ao mesmo tempo, semelhança com Deus (Fl
2,7; Jo 5,18). Por ela os crentes são participes do hesed e da ‟emet de Deus: “sede
misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36); “tende entre vós a mesma
atitude de Cristo Jesus” (Fl 2,5; 1Cor 2,16), pois “os que se deixam dirigir pelo Espírito
tendem ao próprio do Espírito” (Gl 5,25). E como o Pneuma diz relação ao que é próprio do
âmbito divino, tudo isso se exprime em fórmulas como “buscai o de cima, onde Cristo es´‟a
sentado à direita de Deus”; “estai centrados acima, não na terra” (Cl 3,1-2). Isso se traduz
concretamente no amor fraterno e numa conduta ética consequente do (cf. parêneses do NT).
A comunhão de destino com Cristo, caminho que conduz à comunhão com Deus, faz
do crente partícipe da “herança de Cristo” (Gl 3,29; 4,6; Rm 8,17; Tt 3,7; Ef 1,14-18; Hb 1,2;
9,15; 1Pd 1,4), que é consequência da filiação pela adoção ou pelo nascimento. O Espírito
Santo é uma primeira antecipação desta herança, que consiste em “entrar no reino de Deus”
29
(Gl 5,1; 1Cor 6,9 Cl 1,13-14 Ef 5,5; Tg 2,5; 1Pd 1,4. 5b; 1Tes 2,12; 2Tes 1,5; 2Tm 4,1. 18;
2Pd 1,10b-11; Hb 12,28; Ap 12,10; Jo 3,3.5; 18,36). Mediante esta antecipação, a entrada no
reino de Deus é atual e ao mesmo tempo escatológica, sendo portanto orientada já no presente
para a consumação futura. A graça do NT se acha em tensão entre o “já” e o “ainda não”,
tensão presente também no joanismo, onde a vida eterna ja é uma realidade, mas que se volta
também para a consumação da ressurreição. Os cristãos estão salvos ou santificados (Hb
10,10; Ef 2,5.8), e a caminho da santificação (Hb 10,15-18; Ef 4,30); “entraram no descanso”
(Hb 4,3) e “esforçam-se para entrar nele” (Hb 4,11).
Muitos textos apresentam a união atual com Deus como um “acesso ao Pai”. Esta
expressão é utilizada na carta aos Hebreus para designar a graça que nos é concedida em
Cristo (Hb 4,16; 7,25; 10,22; 12,22; 13,15), mas ela aparece também noutros textos (Gl 4,6;
Rm 8,15-16; Ef 1,3; 2,18; 1Pd 1,5-7). À diferença do AT, onde só o sumo sacerdote podia
entrar no santo dos santos, o lugar que Deus morava entre seu povo, o cristão tem livre acesso
a Deus, sem outra mediação que a de Cristo (Hb 4,16; 10,19; Ef 3,12; 1Jo 3,21). A
comunidade cristã é, portanto, um povo de Deus sacerdotal (1Pd 2,9-10; 1Pd 20,6). Este livre
acesso é característico da parrhesia, a confiança dos filhos e filhas que se sentem junto a Deus
como em sua própria casa. Este acesso é o fundamento da súplica neo-testamentária: “o que
pedis ao Pai em meu nome, ele vos concederá” (Jo 15,16b; 16,23b); “até agora nada haveis
pedido em meu nome.Pedi e recebereis, assim vossa alegria será completa” (Jo 16,24).
Salvação e redenção
30
pecados ocupa nelas o posto central. Nos escritos neo-testamentários posteriores aparece
também o substantivo helenista soter, salvador ou benfeitor. Este termo se aplica primeiro a
Deus e logo também ao Cristo (Lc 2,11; At 5,31; 12,23; 1Jo 4,14; Tt 1,4; 2,13; 3,6; 2Tm 1,10;
2Pd 1, 1. 11; 2,20; 3,2.18). Com ele se quer dizer que o verdadeiro salvador e benfeitor da
humanidade não é o imperador, mas Deus por meio de Jesus Cristo. Soter confere assim ao
conceito de soteria ou salvação o significado de “salvação para o mundo inteiro”.
Sozein, em suas distintas formas verbais, está mais próximo do significado hebreu que
do helenista. Na Septuaginta, sozein é a tradução de yasa„ e de palat. O primeiro verbo
significa geralmente “auxiliar”, muitas vezes num sentido “jurídico”: acudir em ajuda de
alguém que pede auxílio e livrá-lo do perigo. Nos textos posteriores ao exílio, o auxílio de
Deus passa a ser escatológico e apocalíptico. O NT traduz esse conceito também por soteria.
O segundo verbo significa pôr a salvo, salvar. No NT, este significado é ligado aos termos
redenção e libertação, no sentido de escapar dos perigos e das tribulações: redenção é salvação.
Libertação da escravidão
Encontramos a ideia de redenção como libertação no texto mais antigo do NT: “Jesus
nos livra do castigo que vem” (1Tes 1,10); no pai-nosso: “livra-nos do mal” (Mt 6,13). O
salvador ou redentor é ho rhyomenos (Rm 11,26), o “libertador”: “Deus me salvara de tão
grandes perigos de morte” (2Cor 1,10), “Cristo nos resgatou (exagorazein) da maldição da
lei” (Gl 3,11), “tirou-nos do domínio das trevas para transladar-nos ao reino de seu Filho
querido” (Cl 1,13), “entregou-se por nossos pecados para livrar-nos deste perverso mundo
presente” (Gl 1,4). A redenção de Cristo tem aqui o significado de preservar do juízo final, ser
liberados das ataduras do diabo, da morte, do peso dos preceitos da lei e ser transladados deste
eon ao eon do futuro, um novo êxodo, libertação das distintas formas de escravidão.
31
da libertação), podendo ainda ser dita com o termo go‟el. Este termo procede do direito
familiar e está relacionado com o ano sabático ou jubilar, no qual todas as relações de
propriedade voltavam ao estado primitivo. O go‟el ou salvador dos parentes que estão em
dificuldades deve pagar então o preço da compra, para que a terra volte a seu antigo
proprietário. O go‟el é um parente próximo que tem que intervir para recomprar a propriedade
familiar. No sentido teológico, g‟l significa libertar e salvar. Go‟el como substantivo é
aplicado também a Deus como protetor dos débeis, advogado ou intercessor. Dado que g‟l
significava recobrar a propriedade perdida, o termo foi também utilizado para falar da
libertação do Egito. O Êxodo se converte assim na restituição do Israel escravizado a seu
legitimo proprietário, YHWH, e, por conseguinte, na devolução da liberdade a Israel. O termo
será empregado igualmente no período do Exílio para falar do retorno à terra prometida.
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através de Cristo” (2Cor 5,17-18), “cancelando a dívida dos delitos humanos” (2Cor 5,19),
pois “o amor de Deus inunda nossos corações” (Rm 5,5) e “temos acesso ao Pai” (Ef 2,18).
A reconciliação é mais que a justificação: de inimigos nos converte em amigos de Deus, em
homens novos. “Estar reconciliado” significa estar livre de pecado ante o tribunal de Deus
(Cl 1,22), viver em paz (Cl 1,20; Ef 2,15), ser homens novos (Ef 2,15), uma humanidade nova
(2Cor 5,17). Cl 1,20 vai mesmo falar de uma reconciliação dos seres celestiais com Deus. Há
reconciliação quando os homens estão reconciliados com Deus por meio de Jesus. Para os
demais, esta reconciliação é ainda pendente. Daí o “serviço da reconciliação” e a “mensagem
da reconciliação” que a Igreja é chamada a levar a cabo no mundo (2Cor 5,19).
Salom não tem o significado formal de ação ou efeito de salvar ou de paz, mas de
“satisfação” e “pago”. Em primeiro lugar, salom significa cumprir ou manter obrigações,
exigências e promessas, “satisfaze”, tanto no sentido positivo (reparar ou adquirir um
compromisso) como negativo (multar), ou seja, dar o que é devido. Fora do campo do castigo,
salom significa simplesmente chegar a um acordo, entender-se. Portanto, o substantivo salom
não significa primariamente paz, salvação, mas retribuição, sobretudo em sentido positivo:
estar numa posição em que se tem o bastante tanto externa como internamente. Como
saudação, salom significa: “que tudo vá bem para você”. Quando se quer ressaltar a posição
obtida com o “ato de compensação”, salom significa paz, ou seja, a situação resultante de
umas prestações mútuas ou de um acordo, sobretudo depois de uma guerra. No termo paz,
ressoa a ideia de pacto ou acordo. A ideia hebraica de salom está relacionada com a concepção
judaica de que Deus garante a conexão das ações boas ou más com suas consequências:
prosperidade ou desgraça e adversidade. Deus recompensa a bondade e castiga a maldade e,
por isso, é um Deus da paz. A obra da sedaqah será o salom. Salom tem enfim o significado de
ser suficiente, não no sentido de uma vivência subjetiva, mas no sentido de uma ordem objetiva.
Ao traduzir salom por eirene, a Septuaginta perdeu os diferentes matizes judaicos do termo.
O NT, além de tomar o termo paz da Septuaginta, buscou outros termos para exprimir
a ideia de satisfação e reconciliação baseada numa retribuição. O conceito se diferencia não só
de reconciliação, mas também de libertação. Significa “estar de acordo” com Deus e com os
homens, ainda que isso implique também “pagar” algo. As palavras de Paulo: “basta-te a
minha graça” (2Cor 12,9), reproduzem esta ideia de salom como “retribuição”, de estar
satisfeito ou ter o suficiente. Segundo esta ideia, a reconciliação significa também submissão
a Deus depois de ter vivido numa situação de pecado, o que quer dizer que é preciso reparar-se.
O perdão dos pecados e sua expiação correspondem, tanto no judaísmo como no NT, a
dois campos semânticos distintos. A morte de Jesus, por solidariedade com os homens e
fidelidade a Deus, se presta a ser interpretada à luz do conceito de kippurim ou sacrifício
expiatório. Aqui reside a diferença com a reconciliação no sentido de katallage, em que o
único sujeito agente é Deus. Kippurim, que no AT aparece exclusivamente nas tradições
sacerdotais, significa “reconciliação” por meio de um sacrifício expiatório. Através desse
33
sacrifício obtém-se a expiação dos pecados “em favor de alguém”, um indivíduo ou todo o
povo. A expiação se realiza através do sacerdote. Todos os judeus pensavam que unicamente
Deus podia perdoar os pecados. A fórmula técnica é: “o sacerdote expia assim por ele”. Esse
é o tema básico de Lv 4,1-5,12, onde se fala dos sacrifícios expiatórios pelos pecados. Segue-
se também outra fórmula de caráter cultual: “e ele (individuo ou povo) fica perdoado”. Trata-se
de uma fórmula forense ou jurídica pela qual declara o interessado “purificado”. A ideia
fundamental é que a expiação exige uma compensação ou uma contraprestação (pelos
pecados cometidos), mediante a qual se restabelece a relação com Deus, rompida pelos
pecados. Expiar um pecado implica então a purificação (do pecado) e a santificação ou a
consagração a Deus. Além do mais, para que o sacrifício seja realmente eficaz, tem que ser
agradável a Deus, ou seja, Deus tem que considerá-lo bom, estar contente com o pecador e
aceitá-lo. O sacrifício expiatório pelos pecados não é, pois, perdão dos pecados. É oferecido
para conseguir o perdão dos pecados, perdão que depende exclusivamente da liberdade divina.
O NT segue a tendência intertestamentária, dando mais valor à vida dos cristãos como
um “sacrifício espiritual” (1Pd 2,5; Fl 2,17; Rm 12,1; Mc 12,33). Não obstante, em todas as
tradições neo-testamentárias, a morte redentora de Jesus aparece como sacrifício segundo os
esquemas da teologia vétero-testamentária do sacrifício. Sua morte é um sacrifício expiatório,
somos redimidos com seu sangue. A diferença fundamental com a teologia sacrificial do AT
radica em que este sacrifício expiatório é, ao mesmo tempo, perdão dos pecados, já que,
evidentemente, Deus aceita o sacrifício de Jesus e o acha agradável ressuscitando seu Filho.
Só a carta aos hebreus manterá a rígida e formal distinção entre o sacrifício expiatório como
purificação e santificação e a aceitação da parte de Deus ou “consumação” desse sacrifício:
“pela graça de Deus, a morte que ele experimentou redunda em favor de todos” (Hb 2,9c).
34
chamado “perdão forense dos pecados”: o jurídico se refere à declaração de pureza que os
sacerdotes pronunciam depois de terem oferecido o sacrifício. No que diz respeito ao homem,
tudo está juridicamente em ordem para poder obter de Deus o perdão dos pecados. O pecador
já não é culpável “conforme a lei”. Mas Deus é livre para outorgar um perdão não forense.
Jurídica e formalmente, o processo forense não é perdão dos pecados, mas expiação.
O NT utiliza também a expressão “carregar o pecado ou tirá-lo” (Jo 1,29; 1Jo 3,5).
Isso remete ao termo hebraico nasa„ (tirar, suprimir algo ou levá-lo consigo). Daí “portar os
pecados”, tanto no sentido de encher-se de pecados (pecar) como de “assumir as
consequências” de tais pecados (expiá-los). O termo aparece, no entanto, no mesmo contexto
jurídico ou canônico da penitência prescrita pela lei em relação com o pecado. Daí que neste
caso seja possível uma substituição vicária. O sacerdote pode levar o pecado de outros e
tomar sobre si a penitência. As profecias e o Servo de YHWH o fazem. Somente neste
sentido, carregar os pecados ou tirá-los significa no AT o perdão dos mesmos. O NT recolhe
este semitismo e lhe dá o sentido de perdão dos pecados em virtude do sacrifício expiatório da
cruz: “o Cordeiro de Deus, que tira (leva com) o pecado do mundo” (Jo 1,29), dizendo com
isso que a redenção é também perdão dos pecados e que este perdão está unido à morte de
Jesus na cruz. O significado salvífico de Jesus é incompleto sem sua morte e ressurreição.
Dado que se fala raramente de perdão dos pecados no AT e que seu interesse está
centrado na expiação (embora em ordem ao perdão dos pecados), nele não se destaca o tema
da justificação do ímpio ou a aceitação do pecador da parte de Deus, e não só a do justo (que é
declarado inocente conforme a lei por ser saddiq ou por ter cumprido a penitência imposta). O
tema aparece somente em textos extra-bíblicos do judaísmo primitivo, como é o caso de
Qumram. Esta acolhida do pecador da parte de Deus constitui o núcleo da redenção neo-
testamentária como perdão dos pecados, especialmente na experiência paulina e joanina da
salvação cristã: Jesus Cristo é o perdão de Deus, a “vida”. Nele se torna possível a vida, nele
temos direito de existir. O fato de que em alguns textos do NT ressoe um eco “forense” se
deve aos termos judeus utilizados, tomados da absolutização jurídica do pecado por parte do
sacerdote judeu, e não da experiência neo-testamentária da salvação de Deus em Jesus Cristo.
Justificação e santificação
Na carta aos hebreus a atividade salvífica do Jesus celeste se entende como uma
intercessão permanente diante do Pai. Jesus é o advogado e o defensor da causa humana
diante de Deus (Hb 7,2-25; 9,24; 4,13-16; 2,17). Esta ideia está, porém, também presente em
35
outros escritos do NT. Nos escritos joaninos, Jesus é identificado como “paráclito” (1Jo 2,1;
Jo 14,16). A ideia de intercessão ou do paráclito apresenta alguns traços forenses, ou seja, o
juízo de Deus é apresentado como um processo jurídico em que o pecador ocupa o lugar de
acusado. O Jesus celeste é o advogado defensor (Ap 12,10 apresenta o diabo como o
acusador). Também Paulo e o Evangelho de João conhecem a intercessão de Jesus (Rm 8,34;
Jo 16,26; 1 Jo 2,1). A base disso se encontra no Jesus Sinóptico (Mt 10,32-33; Mc 8,38//).
A peculiaridade do Evangelho de João está em que ele considera o Jesus terreno como
defensor e paráclito (Jo 14,16). O que em 1Jo 2,1 é o papel do Cristo exaltado, para o
Evangelho é o papel do Espírito como paráclito (Jo 14,16. 26; 15,26; 16,7). A noção de
paráclito fica clara no Evangelho de João: o Pneuma, enviado por Deus e pelo Cristo aos
discípulos de Jesus, não ao mundo (Jo 14,17), é acusador do mundo diante de Deus para dar
testemunho do direito de Jesus (15,26) e provar ao mundo sua culpa (16,8-11). Também
noutros lugares do NT encontramos a ideia de que o Espírito é intercessor e presta assistência
jurídica (Rm 8,26-27; Mc 13,11; Lc 22,32 e par.), ainda que não seja chamado de paráclito.
Só depois da morte de Jesus, seus discípulos, que veem em sua ressurreição o início do
acontecimento escatológico universal, começam a considerar-se, em consequência, como a
comunidade escatológica. Evocam textos como Is 61 e Jr 31. A ecclesia cristã se converte
assim no sujeito da nova aliança com Deus (em especial e quase exclusivamente no
paulinismo e na carta aos hebreus). A mesma escola paulina falara, empregando expressões
típicas do estoicismo, da “assembleia” ou comunidade cristã como soma Christou, corpo de
Cristo (Cl 1,18; 2,19; 3,15; Ef 1,23-24; 4,4. 12. 16; 5,23). Não obstante, encontramos também
no NT tendências de tipo místico individualista, especialmente na primeira carta de João
36
aparecem indícios desta orientação, mas que mais tarde se chamará “mística do ser”.
Contudo, em todo o NT isso vai unido à edificação da comunidade e à renovação do mundo.
37
firmes e não vos deixeis atar de novo ao jugo da escravidão” (Gl 5,1). Graças a Cristo,
estamos libertados do medo existencial dos demônios e de certas potências que nos
escravizam, dos determinismos devidos a seres astrológicos e espíritos celestes que
determinam o destino do homem. Graças a esta libertação ética e cósmica, os cristãos podem
dispor e desfrutar com plena liberdade das coisas do mundo, já que estão liberados dos tabus
(Cl 2,16-23). Os crentes redimidos por Cristo “são chamados à liberdade” (Gl 5,13). Os
filhos de Deus são livres (Mt 17,26; Jo 8,36). A Jerusalém do alto é livre e esta é nossa mãe
(Gl 4,26. 31). A liberdade cristã é essencialmente diferente das relações vigentes nas situações
sociais do mundo. No cristianismo não existe diferença entre judeu e não judeu, entre homem
e mulher, entre escravo e livre (1Cor 12,13; 7,22; Gl 3,28; 4,7; 6,5; Cl 3,11; Ap 13,16).
Mas esta carta magna da liberdade cristã, consequência e implicação da graça, está
sujeita no NT a uma exortação: “comportai-vos como homens livres, ou seja, não usando a
liberdade como máscara da vilania, mas como servidores de Deus! (1Pd 2,16; Gl 5,13-15;
1Cor 6,12-14; 10,23-25). A liberdade da graça não é arbitrariedade incontrolada, mas
“submissão a Deus e a Cristo” (Rm 6,22; 7,3). A “lei dos homens livres” (Tg 1,25) está
submetida a uma “lei nova”: a liberdade se rege pela norma de Jesus Cristo, uma lei de amor.
Em especial, a carta de Judas e a segunda de Pedro criticam os abusos cometidos em nome de
uma presumida liberdade paulina (Jd 4; 2Pd 2,19; 3,15b-16), atacam um entusiasmo
carismático que pensa erroneamente estar por cima do medo dos demônios, como se estivesse
já superada qualquer classe de alienação. Daí a exortação a não abusar do querigma cristão da
liberdade (Jd 8-10. 16; 2Pd 2,10-11), ou seja, a não interpretá-lo falsamente.
Plenitude de vida
O conceito de vida tem no NT um campo muito amplo: zoe, vida: zoopoein, dar vida
(Mt 7,14; 19,16-17; 25,46; Mc 9,43. 45; 10,17; Lc 10,25; 12,15; 18,8; Jo 3,15. 16. 36; 4,14.
36; 5,21. 24. 26. 29; 5,39. 40; 6,27. 33. 35. 40. 47-50. 53. 63. 68; 8,12; 10,10b. 28; 11,25;
12,25.50; 14,6; 17,2-3; At 3,15; 11,18; 13,46. 48; 17,25; Rm 2,7; 4,17; 5,4. 10. 17-18. 21; 6,4.
8. 10 . 11. 13. 22-23; 7,10; 8,2. 6. 10. 11; 11,15; 1Cor 15,19. 22. 36. 45; 2Cor 2,16; 3,6; 4,10;
6,14; Gl 3,21; 6,28; Ef 2,5; 4,18; Cl 3,4; 1Tm 1,16; 6,12. 19; 2Tm 1,10b; Tg 1,12; 1Pd 3,7.
38
18; 2Pd 1,3; 1Jo 1,2; 2,25; 3,14; 5,11-13. 16. 20; Jd 21; Ap 2,10; 7,17; 11,11; 21,6; 22,1.17. a
cruz de Jesus como árvore da vida: Ap 2,7; 22,2.14.19).
A sedaqah vétero-testamentária está unida a uma vida próspera e feliz. Este princípio
levou a uma crise cuja expressão máxima é o livro de Jó. Jó seguiu crendo, apesar de tudo, no
mistério de Deus e na correlação entre uma vida segundo a vontade de Deus e a vontade
humana de felicidade e plenitude. Também o NT conhece uma correlação análoga, mas entre
a vida de graça e a vida humana, de modo que o sofrimento e a miséria não contradizem
necessariamente essa conexão, mas que, dentro do âmbito da graça, podem ter um sentido
novo. A comunhão com Deus pela graça implica, porém, que nada pode nos separar, em
definitivo, de Deus: nem os homens (Hb 13,5-6), nem a morte, nem poder algum (Rm 8,38-
39). Essa comunhão implica além do mais uma série de consequências escatológicas na
própria natureza humana: vida eterna, ressurreição corporal, “um novo céu e uma nova terra”
nos quais reina a justiça, uma vida sem alienações, sem mais sofrimentos nem lágrimas.
Assim, “quem tem o Filho, tem a vida” (1 Jo 5,12). Daí que no NT uma charis (graça)
é uma chara (alegria). Para Lucas, esta união, típica do conceito grego de charis, é a nota
característica da charis de Jesus e de sua mensagem. O Evangelho de Jesus é, para ele, uma
gozosa novidade, sobretudo para os mais pobres, para os pecadores, para os doentes, para os
excluídos. O mesmo aparece noutros textos do NT. A simples presença de Jesus é alegria e
graça (Jo 3,29), de modo que não tem lugar a tristeza e o jejum (Mc 2,18-22). A graça é
também uma renovação ética de vida. Por isso, o cumprimento dos mandamentos é uma
participação na alegria de Jesus (Jo 15,11; 17,13). O encontro com Jesus é uma experiência
gozosa. O reino de Deus proclamado por ele e inaugurado com sua ressurreição traz a “paz e
a alegria que da o Espírito Santo” (Rm 14,17). O Deus da esperança, que é o Deus de Jesus, é
alegria e paz (Rm 15,13). O fruto do Espírito Santo é amor e alegria (1Tes 1,16). Tudo isso
move a exclamar em forma doxológica: “sentis um gozo indizível, radiantes de alegria,
porque obtendes o resultado de vossa fé, a salvação pessoal” (1Pd 1,8-9).
O NT fala também da redenção como nike, vitória ou triunfo, sobre Satanás e certas
potências demoníacas. Antes do exílio, Israel não tinha nenhuma dificuldade em atribuir tudo
a Deus. É ele quem realiza o bem e o mal, endurece o coração do homem, ainda que este
sempre seja responsável pelo pecado. Mas pouco a pouco certas ideias sobre espíritos
malignos, procedentes de povos vizinhos, introduziram-se na fé popular, entrando assim na
periferia da fé yahvista. Em nome do monoteísmo yahvista, tais crenças foram, porém,
duramente atacadas ou neutralizadas mediante um processo de integração. Durante o exílio e
depois dele modificou-se a imagem de YHWH, que adquiriu um caráter absolutamente
transcendente. Isso conduziu a uma personificação da Palavra, da Sabedoria e do Espírito de
39
Deus, que se separam do Deus transcendente, ainda que sigam sendo uma só realidade com
ele. Tal tendência se acentua depois do exílio. A passagem a uma concepção transcendente de
Deus se dá também em outras religiões e povos, sobretudo a partir do séc. V a. C. (China,
Índia, Pérsia, Grécia). Esta concepção de Deus como totalmente distinto faz surgir uma série
de seres intermediários entre Deus e o mundo, primeiro, com a teoria das distintas emanações
de Deus (sua Palavra, seu Espírito), depois, com a ideia do demiurgo no platonismo médio,
enfim, com a explosão de todo um mundo de anjos e demônios. Em Israel, este mundo
demoníaco, antes atacado em nome do monoteísmo, é aceito sem dificuldades depois do
exílio devido ao monoteísmo transcendente. De fato, necessita-se de seres intermediários para
que o Deus transcendente possa estar em contato com nosso mundo terreno e insignificante.
No AT não existe, porém, um Satã propriamente dito, ainda que se utilizem os termos
satã e belial. Satã significa em hebraico “inimigo” ou “acusador”. A etimologia de belial é,
porém, distinta, pois está relacionada com o mundo dos mortos. “Filhos de belial” significa,
no AT, os “homens a-sociais”. Três textos do AT falam de Satã em relação com situações
celestes (Zc 3,1-7; Jó 1,6; 2,1; 1Cr 21,1-27). No texto de Zacarias não se trata ainda de um
antagonista de Deus, mas do acusador. No livro das crônicas, Satã já é nome próprio e
aparece como o inimigo de Israel. Já não induz ao pecado, mas impede Israel de alcançar seus
objetivos. Este é o único texto do AT em que Satã tem alguma analogia com a ideia neo-
testamentária de Satanás. Até 180 a.C. não se recorre a nenhum Satã para explicar o problema
do pecado. O Eclesiástico e o livro de Jó sustentam que o mal não pode vir de Deus, mas
exclusivamente do homem. Depois de 180 sucedeu algo em Israel que já não lhe permitia
aceitar sem mais as soluções que deram ao problema da teodiceia o Eclesiastes e o
Eclesiástico. Havia muitos sofrimentos sem sentido. O mal devia ter causas mais profundas.
Uma nova concepção se desenvolve nos escritos extra-bíblicos, sobretudo apocalípticos,
baseada nas diversas lendas populares. Assim, no 1 Henoc, a lenda da queda dos anjos de
Gn 6,1-4 é lida para explicar o mal. Esta queda está relacionada com o fenômeno astronômico
da queda dos astros, considerados em toda a antiguidade como seres vivos, possuidores de
anjos protetores. O fenômeno da queda dos astros serve assim de base à lenda de um pecado
cometido pelos seres celestes. No sincretismo helenístico do judaísmo e do helenismo se
relacionou Gn 6,1-4 com o mito da queda dos Titans. A existência dos anjos chegou a ser um
elemento essencial da velha imagem do mundo, em Israel com resíduos do politeísmo cananeu.
Assim, os demônios que vivem na terra não são mais que espíritos dos Titans mortos.
O príncipe ou chefe dos espíritos malignos recebe às vezes o nome de Semyasa. Também o
pecado dos anjos, causa de sua queda, foi apreendido como tendo sido originado de sua união
com as mulheres da terra. Como isso é difícil de ser concebido teologicamente, seu pecado se
atribui finalmente em trair os segredos celestes, astrais, em haver comunicado aos homens
certos conhecimentos (astrologia, técnicas de guerra, métodos abortivos etc.). Finalmente, há
também demônios, inclusive antes da queda dos anjos. O pecado dos anjos consiste agora em
que obedecem a Satã e induzem o homem a pecar. A existência de Satanás é, pois, anterior à
queda dos anjos. Esquece-se a origem etiológica dos espíritos malignos, mas a conclusão
é a mesma: os demônios existem, não mais como anjos caídos, mas como cúmplices de Satã.
No Livro dos Jubileus o príncipe dos demônios recebe o nome de Mastema, príncipe da
discórdia, e Beliar, forma grega do belial hebraico. Seu nome significa “o inimigo” (também
no NT). Este livro narra o pecado de Adão, sem consequências, porém, para a humanidade. O
chamado pecado original é imputado somente aos anjos, que desceram à terra com boas
intenções, mas perderam sua força por influência de mulheres bonitas. Esses anjos são
castigados a permanecerem até o fim dos tempos em profundas cavernas subterrâneas, mas
Mastema consegue que Deus deixe em liberdade a décima parte deles para afligir os homens.
40
Deus concorda, mas estabelece um prazo. Estes espíritos malignos induzem o homem ao
pecado e são a causa de diversas enfermidades entre os homens, bem como da guerra.
Com isso se dá uma explicação para o problema do mal: Deus não o causa, mas o permite.
A Vida de Adão e Eva relata também uma série de fatos que influenciaram, mais do
que a Bíblia, a cultura cristã ocidental. O pecado de Adão não se deve ao diabo. Expulso do
jardim do Éden e castigado, Adão quer fazer penitência. Propõe a Eva que durante trinta e
sete dias permaneça com água até o colo no Tigre, enquanto ele faz penitência no Jordão
durante quarenta dias. Satanás, disfarçado de anjo de luz, tira Eva do rio depois de dezoito
dias e a leva junto a Adão no Jordão, mas este o reconhece imediatamente e o desmascara. O
homem fica então sabendo que ele é a causa do castigo de Satã. O homem é a imagem de
Deus, sendo mais formoso do que os anjos. Estes devem honrá-lo, pois ele é o cume da
criação, como imagem de Deus. Miguel e os seus obedecem, enquanto Satã e seus
sequazes negam, sendo por isso castigados e lançados do céu à terra. Satã tem inveja da
felicidade dos homens no paraíso e tenta induzi-los ao pecado para que sejam expulsos do
Éden. Como castigo, Satã é lançado fora da terra. O tema da inveja aparece também como um
bloco errático em Sb 2,24. Isso se deve provavelmente ao tema grego da inveja dos deuses.
O 2 Henoc oferece uma explicação diferente da queda dos anjos. Um dos anjos coloca
seu trono acima das nuvens para ser igual a Deus, sendo então derrubado e lançado à terra,
onde vaga pelos ares. Esta obra fala da inveja de Satã contra o homem por ser senhor da criação.
41
Com este esboço da história, os essênios tentam dar uma resposta apocalíptica ao
problema do mal. A solução que propõem vai além do fatalismo de Qohélet ou do otimismo
de Ben Sira. Ela é também diferente da de Jó, para quem o mal é um mistério insondável,
oculto no desígnio de Deus. Este esboço falha, porém, seu objetivo por culpa de um dualismo
excessivo. Qunran buscava uma explicação racional. O problema do mal se converte assim no
problema do sentido de toda a história humana e da libertação escatológica frente ao poder do
príncipe deste mundo. Trata-se da resposta teológica ao doloroso desafio das calamidades
inauguradas por Antíoco IV: a experiência judia do poder avassalador do mal e, ao mesmo
tempo, de um profundo esforço de metanóia e de salvação. Em definitivo, a justiça é o sentido
último do universo: da terra, das esferas celestes e da história humana, coletiva e individual.
Satã, príncipe deste mundo, é uma figura judia extra-bíblica que penetrou a Palestina
em 150 a. C. Não podemos esquecer, porém, que a crença em Satã não aparece em numerosos
escritos judaicos extra-canônicos, como, por exemplo, em 3 e 4 Macabeus, Testamento de
Abraão, assim como nos livros deutero-canônicos do AT, escritos na mesma época:
Eclesiástico, Sabedoria (com exceção de Sb 2,24 s), 1 e 2 Macabeus, Baruc, Judite. O AT e
grande parte da literatura extra-bíblica não conhecem então uma satanologia. Esta não
pertence ao patrimônio da fé judaica. Na literatura sincrética, intertestamentária e pré-cristã é
um elemento baseado em certas lendas, da fé popular palestinense e, em menor medida, do
judaísmo da diáspora. Desde o ponto de vista da psicologia humana, Satã tem uma grande
força simbólica enquanto expressão do excesso de mal. Aí reside também sua força religiosa.
O NT não fala, exceto no Apocalipse, do espírito bom e do espírito mal com seus
aliados respectivos, mas de Jesus Cristo e de Satanás. O NT descreve a atividade salvífica de
Jesus como uma luta contra os poderes diabólicos do mal (Mc 1,23-25. 39; 4,39; Lc 13,16). O
próprio Jesus é tentado três vezes por Satanás, ainda que este sofra uma derrota total (Mt 4,1-
11; Lc 22,3; 1Cor 2,8-9; 15,55; Ap 12,13-14). Para o NT, é evidente que Cristo derrotou
Satanás e todas as potências demoníacas. O domínio destas potências acaba-se com a vinda do
reino de Deus em Jesus (Lc 10,18, 11,20). Em particular, a ressurreição e a elevação de Jesus
aparecem como exaltação e triunfo total sobre todos os seres celestes (1Cor 15,24; Rm 8,38;
Ef 1,21; 3,10; 6,10; Cl 2,10. 15; 1Pd 3,22; Hb 1,5-14; 2,8-9, Ap). Para Paulo, trata-se de um
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acontecimento futuro, plenamente escatológico (1Cor 15,24). Nas cartas deutero-paulinas,
esta derrota total dos demônios é um acontecimento já realizado e, ao mesmo tempo, uma
tarefa pendente. A vitória de Jesus (Ef 1,21; 4,8-10) não elimina a necessidade de que lutemos
contra as potências malignas do céu (Ef 6,11-17). O joanismo exprime este dado de uma
forma mais dualista: “sabemos que somos de Deus, enquanto que o mundo inteiro esta em
poder do mal” (1Jo 5,19); “já haveis vencido o mal” (1Jo 2,13). Em outras palavras, Satanás
atua ainda no mundo, mas a comunidade crente, a Igreja, é o lugar onde ele já foi vencido no
mundo. Para os cristãos, o poder satânico já esta desfeito, foi julgado e lançado fora, e não se
atreve a atacar os cristãos (1Jo 3,8; 4,18; Jo 12,31; 16,11).
Jesus viveu nesse contexto onde a crença nos anjos e nos demônios estava presente.
Mais do que pronunciar-se sobre a realidade e a existência de Satã, ele faz de sua atuação uma
prova de que a salvação de Deus estava próxima. A Jesus não interessa Satanás, mas o
homem com todas as suas debilidades e enfermidades, com sua pouca fé e sua inclinação
ao pecado, que Deus quer reparar. Tal é o ensinamento que se desprende da atividade de Jesus.
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