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PPG DE TEOLOGIA – 2017/1 – Geraldo De Mori

TP. 117105 – Estudos de Antropologia Teológica – A doutrina da graça: história e


teologia
I. Experiência e linguagem da graça no Antigo e no Novo Testamento

A experiência fundadora de Israel é a da aliança (berît) com YHWH. Esta experiência


é a base de toda a teologia vétero-testamentária da salvação. Ela é intimamente ligada aos
conceitos de eleição, lei e promessa, e supõe uma relação especial entre Deus e seu povo.
Alguns termos foram sendo elaborados ao longo da história para exprimir esta relação e o que
ela implica como experiência salvífica, dos quais os mais importantes são hanan, hen, hesed e
‟emet. É a esses termos que dedicaremos a análise que se segue, que servirá de pressuposto da
leitura que proporemos da experiência e da linguagem da graça nos textos neo-testamentários.

1. Experiência e linguagem da graça no Antigo Testamento

Como assinalamos, os principais termos que exprimem a experiência da salvação e da


graça no Antigo Testamento são hanan, hen, hesed e ‟emet. Vejamos o significado desses
termos na linguagem profana de Israel, bem como sua evolução e utilização religiosa e teológica.

a. Hanan : entregar-se com amor

O significado do verbo hanan é “ser benigno, compadecer-se de alguém”, ou seja,


dedicar-se e aproximar-se de uma pessoa, de modo que esta dedicação e aproximação não
tenham somente o significado de um sentimento interior, mas de uma ação determinada, na
qual se concretiza a aproximação benevolente. O que conta em hanan é a dedicação ao próximo.
Hanan é a benevolência que se exprime num dom. Não há dualismo entre a atitude interior e a
atitude exterior. O mesmo dom é a entrega de uma pessoa a seu próximo. A palavra hanan
não tem primariamente um sentido religioso. O campo semântico do termo reflete, antes de
mais nada, o trato normal entre os homens. É aí que esse termo tem seu contexto existencial.

Esta compreensão da benevolência pressupõe na pessoa que dela é objeto uma


privação, que pode traduzir-se em uma petição suplicante, o que faz com que, às vezes, o
termo hanan seja substituído por outra palavra hebraica que significa “responder” („anah). A
pessoa em privação é agraciada pela benevolência de outra pessoa, o que implicitamente quer
dizer que o benfeitor, ao dar, se entrega a ela de coração, com uma solicitude, que é ao mesmo
tempo resposta à privação suplicante de quem está na indigência. Graça, no sentido do verbo
hanan, significa então uma solicitude cordial de uma pessoa com relação à outra, ao menos
como resposta implícita a uma enorme privação, formulada ou não pela pessoa que recebe o
dom. Disso resulta que a posição do benfeitor, com relação ao necessitado, é parecida à do
superior com respeito ao inferior. Por esta razão, hanan, junto com seus derivados, tem a ver
com a atitude do rei em relação a seus súditos, pelos quais tem que se preocupar. Na literatura
sapiencial, hanan adquire o significado concreto de compadecer-se (Pr 14,31) dos indigentes
(Pr 28,8), dando-lhes algo (Sl 37,21; 37,26; 112,5). O verbo se aplica igualmente à atitude do
vencedor, que “respeita” ou “perdoa” aos que derrotou numa guerra ou num combate. Hanan
adquire assim o significado de conceder perdão, indultar ou outorgar graça. A graça que se
concede depois de uma guerra supõe o estabelecimento de uma aliança e certa reciprocidade.

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Partindo do marco das relações inter-humanas, se recorre a este significado “profano”
para exprimir as experiências relativas a Deus. Neste sentido religioso, hanan assume em todo
o AT um significado típico, que exercerá uma clara influência no NT. Nas mais de 60 vezes
que esse termo aparece no AT, em 40 delas o sujeito é Deus: 26 vezes correspondem aos
salmos, que são, portanto, o testemunho mais importante da benevolência vétero-
testamentária de Deus. A petição de graça tem um duplo fundamento no AT: 1. a própria
deficiência (situação de necessidade: Sl 4,2; 6,3; 9,14; 25,16; 52,2), que deve especificar-se
segundo os distintos casos: debilidade (Sl 6,3), solidão (Sl 25,16), calamidades de diversos
tipos (Sl 31, 10; 123,3), grande miséria (Sl 86,3); 2. a fé na misericórdia de Deus e em sua
solicitude misericordiosa (hanan). A graça pedia ou obtida tem relação com a vida humana.

Em todos esses textos a graça se experimenta como graça numa situação de diálogo,
que é aquele estabelecido pela oração. Em todos eles aparece expressamente a convicção de
que YHWH tem uma solicitude especial pelos débeis, pelos pobres, pelos prejudicados, pelos
perdidos e oprimidos. Isso aparece no uso religioso de hanan, mas, mais ainda, na súplica
honneni, “tem piedade de mim”, com a qual se conclui a petição concreta de um favor (Sl 4,2;
63; 9,14; 27,7; 30,11; 41,5.11; 51, 3-4; 86,16). O mesmo acontece com a fórmula de bênção:
“Deus tenha piedade de ti” (Nm 6,25; Sl 67,2). A graça olha os homens simples e
humilhados: Deus os “levanta”. Nisso consiste a graça. Em si não é algo exclusivo do AT.
Orações de súplicas similares formam parte do patrimônio religioso de outros povos do
entorno. O específico desta confiança na solicitude misericordiosa de Deus em Israel (hanan)
é que o israelita orante funda tudo isso na graça da aliança, na hesed de YHWH e na promessa
de sua solicitude (Sl 51,3 ; 119,58 ; 2 Rs 13,23). Considerando a pecaminosidade do homem,
toda situação de necessidade se resume em “pequei contra ti” (Sl 41,5), de forma que a
hanan, ou a solicitude/compaixão de Deus pelo homem, implica ainda o perdão dos pecados.

É a partir desse significado que adquire pleno sentido a bênção “sacerdotal” em que se
suplica a solicitude graciosa de Deus. “Deus te dê seu favor (hanan) filho meu” (Gn 43,29),
diz o patriarca José a seu filho Benjamim. Na benção de Aarão (Nm 6,25), o nome de YHWH
e seu favor se invocam sobre o povo. Isto indica uma vontade original de graça da parte de
Deus, prometida ao povo em virtude de uma aliança particular. Mas a graça de Deus é um
dom livre, como o diz YHWH a Moisés, o mediador da aliança: “eu me compadeço de quem
quero e favoreço (hanan) a quem quero” (Ex 33,19). Em seu significado teológico, hanan não
pode vincular-se demasiadamente à aliança (à diferença de hesed), já que hanan implica a
liberdade soberana de Deus em sua misericórdia. Apesar da diferença que existe entre o
interlocutor divino e o humano, uma situação de hanan supõe certa reciprocidade. “Graça é
pôr-se em marcha juntos”, como diz delicadamente Ex 33,12-23. Nesse texto paira toda a
temática do AT sobre a graça: eleição, proteção, caminhar juntos, mútuo conhecimento do
nome do outro, o rosto de Deus dirigido ao homem (a Israel), enquanto, por outro lado, este
Deus de graça segue sendo um Deus oculto que, manifestando-se no ocultamento, mantém
desperto o desejo de Israel. O nome de Deus manifestado em Ex 3,14 aparece como o de um
Deus solícito pelos homens, como rei (hanan) e como pai e mãe ao mesmo tempo (raham).

É curioso que os grandes profetas escritores não aludam ao hanan de Deus (com
exceção de Am 5,15, o qual, depois de ter ameaçado com a desgraça como possibilidade
extrema, fala também da misericórdia de Deus com o resto de YHWH). Isso indica que para
esses profetas, o mais importante é a ameaça de desgraças devidas às infidelidades cometidas
contra YHWH, e não o tanto favor divino. O inverso do único favor (hanan) de Deus é o juízo.

Finalmente, a força crítica e eficaz do favor de Deus no AT se vê corroborada pelo


culto litúrgico. “Piedoso” se converte em um atributo doxológico que emprega a liturgia para

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louvar a Deus em forma de rima: rahum we hannun, “Deus compassivo e piedoso” (Ex 34,6 e,
na ordem inversa Ex 20,5-6; Dt 5,9-10). Em outros textos também encontramos esta dupla
fórmula: Ex 34,6; Jl 2,13; Jon 4,2; Sl 86,15; 103,8; 111,4; 112,4; 145,8; Ne 9,17. 31; 2Cr
30,9: em alguns casos, só hannun, noutros com elementos adicionais: “tu és um Deus
compassivo e clemente, paciente, misericordioso e fiel” ( Ex 34,6). Esta ampliação da fórmula
significa que o favor divino se manterá apesar das negativas reiteradas do povo. O louvor
litúrgico aparece também na proclamação festiva do nome de YHWH dentro do marco da
aliança selada no Sinai (Ex 34,6, que influiu Nm 14,18; Jl 2,13; Jon 4,2. Sl 86,15; 103,8;
145,8; Ne 9,17. Provavelmente Ex 34,6 deve considerar-se como uma espécie de etiologia ou
“origem” desta oração litúrgica no templo. A experiência da benevolência de Deus, que em si
já é um fato dialogal, culmina numa espécie de antífona: na ação de graças e no louvor
litúrgicos. Este aspecto será também característico da experiência neo-testamentária da graça.

b. Hen, derivado principal de hanan

O verbo hanan carece de substantivo. O nome hen, infinitivo substantivado do verbo


hanan, teria sido o mais adequado para exprimir em forma nominal os significados de
“graça”: hanan significa mostrar a alguém hen (favor). Tal era inicialmente o significado de
hen, como aparece num texto de Zacarias: “sobre a dinastia davídica e os vizinhos de
Jerusalém derramarei um espírito de compaixão (hen) e de invocação de perdão” (Zc 12,10).
Resulta, porém, estranho que hen (só no singular) seja empregado raramente em frases que
têm a YHWH como sujeito, além do fato de que os salmos, onde principalmente achamos o
termo hanan, não utilizem hen. O distanciamento do significado etimológico de hanan deve-
se a que hen centra a atenção na qualidade de uma pessoa, devido a qual outra pessoa, sempre
um superior com respeito a um inferior (em especial o rei: 1Sm 16,22; 27,5; 2Sm 14,22; 16,4;
1Re 11,19; Est 5,2.8, etc.) professa sentimentos de benevolência. Trata-se de encontrar
benevolência aos olhos de um superior (a corte real é, sem dúvida, o contexto existencial do
emprego de hen, ainda que posteriormente se democratize a utilização desse termo: Gn 32,6).

Na maioria dos casos, hen é acompanhado de “aos olhos de”: se é agradável ao juízo
do outro. Originalmente, este derivado de hanan significa “fixar-se em”, “levar em conta”.
Mas, à diferença de hanan, o olhar não vai do benfeitor ao favorecido, mas no sentido
contrário. Por conseguinte, hen não é sempre o resultado, mas o objeto ou o motivo de que
alguém encontre complacência em outra pessoa (2Sm 15,25). Cada vez mais, ter hen é o
motivo pelo qual uma pessoa goza do favor da outra. Em outras palavras, o desenvolvimento
semântico de hen (à diferença de hanan) tende a excluir o sujeito de hen e a refletir
unicamente o motivo ou a qualidade de alguém por quem um terceiro se mostra benevolente
em relação a ele. Na literatura sapiencial, chega a tal ponto esta evolução que hen termina por
designar as qualidades de uma pessoa ou inclusive de um animal ou de um objeto. Podemos
dizer que o termo hen tende a prescindir totalmente do significado fundamental de hanan
enquanto iniciativa de solicitude por alguém. Isto é tanto mais notável que a Septuaginta
traduz o termo hebraico hen sempre por charis (graça, enquanto algo que se recebe de outro).

No termo hen não desaparece, porém, a ideia de mostrar-se complacente, mas essa
ideia se desloca. O hen não é o dom de graça outorgado com uma atitude de hanan. O ter hen
é, ao contrário, a razão pela qual uma pessoa olha favoravelmente a outra, que, por sua vez,
obtém o favor da primeira. Daí o significado de “achar graça aos olhos de outro”, de um
terceiro, que na maioria dos casos é um superior, e finalmente, Deus. “Noé achou graça aos
olhos de Deus” (Gn 6,8; Ex 33,12; 33,13. 16. 17). Devido a esse deslocamento, hen pode ser
só uma fórmula geral, inclusive uma simples fórmula de cortesia, no sentido de “por favor!”.

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Na linguagem profana ou no trato normal entre as pessoas é muito frequente este
emprego de hen, graça: (Putifar) tomou afeto (favor, achou graça, alcançou benevolência
de…) por José (Gn 39,4); Jacó envia um presente a Esaú, para obter sua graça, alcançar seu
favor (Gn 32,6). O que suscita o apreço do outro, ou seja, o hen, pode ser um dom de Deus,
mas a palavra já não o diz. Um exemplo típico disso é que YHWH outorga hen aos israelitas
aos olhos dos egípcios, de forma que estes deem àqueles, em sua partida, presentes e objetos
preciosos (Ex 3,21; 11,3; 12,26). No Sl 84,12, Deus dá aos seus, hen e kabod, “favor e
glória”, ou seja, o apreço dos demais. Trata-se sempre de um terceiro: “ser bem visto por
outro”. A diferença entre hanan e hen está no fato de que, se bem que Deus seja a causa do
hen que alguém tem diante um terceiro, a palavra não se refere ao doador, mas ao apreço e à
reação favorável de um terceiro. Não é que hen (charis, graça) tenha perdido toda relação com
o significado original de hanan enquanto solicitude benévola por alguém, mas que tal
solicitude benévola se deslocou, referindo-se ao reconhecimento de alguém que possui hen.

Esse deslocamento semântico, no emprego do termo hen, nos permite ver uma
interessante evolução. Dado que no campo semântico de hanan não existe um substantivo
correspondente, o lugar é ocupado por outro substantivo: o termo hesed. Ainda que
procedente de uma raiz diferente de hanan, hesed serve, de fato, como forma substantivo (a
graça) do verbo hanan (ser benévolo). Na Septuaginta, com exceção de alguns casos tardios,
hesed nunca é traduzido por charis, mas por eleos (compaixão), enquanto que, por outro lado,
o verbo grego elein (compadecer-se) corresponde a hanan. Em outras palavras: os tradutores
viram claramente o nexo entre hanan e hesed, apesar das diferentes raízes destes dois termos.

c. Hesed e ’emet

A etimologia de hesed é muito incerta. O termo tem, porém, sua base nas relações
inter-humanas, procedendo, sobretudo, das relações recíprocas que existem num grupo
humano sociologicamente estável. Nesse sentido, hesed é a postura e a conduta dos membros
de um grupo, graças às quais ele encontra coesão. Estudos recentes afirmam que hesed não
significa uma bondade e benevolência espontânea e sem motivo, mas uma forma de conduta
resultante de uma relação vital, determinada e regulada por direitos e obrigações, como a
relação entre marido e mulher, pais e filhos, reis e súditos. Aplicado a Deus, hesed significaria
o amor baseado na aliança. O sentido de hesed, como bondade e benevolência generosa, seria
secundário, sobretudo devido à união de hesed e rahamin (bondade) e outros termos muito
precisos, como ‟emet. Por sua própria natureza, hesed é uma fidelidade recíproca: pressupõe
uma relação vital entre as partes interessadas e dentro de um contexto comum (por exemplo,
mediante a ratificação de uma aliança). O hesed funciona neste âmbito de comunhão. Outros
estudos consideram esta posição extrema, dizendo que o hesed está relacionado, sem dúvida,
com a comunhão, mas com isso não se diz nada sobre sua natureza própria. Em hanan, trata-
se primariamente da solicitude de uma pessoa por outra, não de algo que demonstre uma
relação comum. Também no hesed é capital a direção que parte da pessoa que demonstra
hesed, mas a relação não é nunca unilateral: evoca sempre uma reciprocidade. O mesmo
sucede com hanan, mas este termo, à diferença de hesed, não implica tal reciprocidade. Existe
hesed entre o anfitrião e o convidado (Gn 19,19), entre parentes (Gn 49,29), entre aliados
(1Sm 10,8) e também entre quem recebeu um favor e quem o fez (1Re 20,31; Jz 1,24; Jos
2,12. 14). Pode-se pedir hesed em virtude de uma aliança, mas pode-se também solicitar uma
aliança em virtude do hesed demonstrado. O hesed requer uma resposta no hesed mesmo.

No uso do hesed se alternam o singular e o plural, sobretudo nos textos tardios (Sl 106,
1.7.45; Is 55,3; 63,7; Sl 17,7; 25,6 etc.). Hesed é, portanto, uma atitude básica que se traduz
em atos de bondade e amizade. Neste sentido, hesed diz algo peculiar sobre a atitude

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recíproca, e esse elemento peculiar é o que determina propriamente o hesed, que supera a
esfera do obrigatório e evidente numa relação interpessoal. Nos textos antigos, hesed indica
uma bondade e benevolência inesperadas e surpreendentes, algo com o qual não se contava
(1 Re 20,31; Gn 39,21; 40,14; 47,29; 20,13; 21,23; Jos 2,12; 1 Sm 15,6; 2 Sm 3,8; 16,17). O
hesed assim entendido torna possível uma aliança, mas não é nunca seu pressuposto:
transcende o esquema de prestação e da contraprestação de um favor, do dom e do contra-dom.

Hesed, enquanto relação inter-humana, é de tradução difícil nas línguas modernas.


Graça e benevolência são insuficientes. Hesed é algo que acontece palpavelmente numa
situação concreta. Tem, portanto, a ver com o compromisso pela vida do outro e implica
totalmente o sujeito do hesed. Ainda que se realize nas relações das estruturas sociais
existentes (pais e filhos, rei e súdito, signatários da aliança), supera a estrutura de direitos e
deveres. Hesed não é apenas boa vontade expressa realmente em obras, mas generosidade,
bondade inesperada que, esquecendo-se de si, mostra-se totalmente aberta e disponível para o
outro. De quem se recebe esse hesed ou compromisso de amor deve-se esperar um hesed
igual, ou seja, surpreendente, e que não fique no âmbito das obrigações. O hesed não se refere
só à reciprocidade, mas à sua qualidade: à superabundância no amor e na resposta do amor.

O uso religioso e teológico de hesed tem suas raízes nesta perspectiva das relações
inter-humanas. Trata-se, pois, de um uso muito antropomórfico, mas também da linguagem
mais adequada para poder dizer algo sobre a atitude de Deus para com o homem e para
exprimir a possível profundidade da resposta pessoal do homem. A importância decisiva de
hesed para estabelecer a relação entre Deus e seu povo radica no fato de que esse termo foi
incluído entre os predicados divinos dos hinos e da liturgia nos quais o AT proclama a
essência de Deus como “Deus dos homens” (Ex 34,6-7). O Senhor é “um Deus compassivo e
clemente, paciente e rico em hesed e ‟emet” (Nm 14,18; Jl 2,13; Jon 4,2; Sl 86,15; 103,8;
145,8; Ne 9,17). Contrapõe-se uma misericórdia que chega até “à milésima geração” (daí o
nexo entre hesed e ‟emet: fidelidade) e o castigo que alcança no máximo até a quarta geração.
No segundo mandamento do decálogo (Ex 20, 5b-6) o hesed de Deus é mencionado junto
com seu “zelo”: é um Deus zeloso, que defende seus direitos e castiga os que o “aborrecem”
até a quinta geração, “mas atua com lealdade (hesed) por mil gerações quando o amam e
guardam seus preceitos”. Hesed indica, portanto, superabundância de graça, que é muito
maior que o castigo merecido pela maldade. É nos salmos (das 237 passagens em que aparece
hesed, 127 correspondem aos salmos) onde mais aparece este caráter surpreendente e
admirável do hesed de Deus. Hesed está relacionado também com o milagre (Sl 107,
8.15.21.31). O hesed de Deus é o fundo grandioso sobre o qual brilha cada uma das
demonstrações divinas de graça. Em sua oração, o judeu invoca este hesed, pedindo para ser
escutado em suas súplicas (Sl 119,149), ser salvo (Sl 109,26), redimido (Sl 44,27; 130,7),
seguir com vida (Sl 119,88.159) e ser perdoado (Sl 25,7). Como termo paralelo de hesed
encontramos às vezes yesu„ah, que significa ajuda ou qualquer tipo de salvação (Sl 36,11;
103,17). Dado que o homem é pecador, o hesed de Deus significa também compaixão e
perdão dos pecados (Sl 86,5; Ex 34,7a; Ne 9,17). A graça é igualmente perdão dos pecados.

Esse hesed superabundante, mantido fielmente por YHWH, se exprime numa espécie
de binômio, com uma fórmula conhecida também na linguagem profana, mas utilizada em
relação com Deus: hesed weemet, “graça e fidelidade ou lealdade de Deus” (sobretudo nos
salmos: 25,10; 40,12; 57,4.11; 85,11; 89,15; 138,2; também no Sl 61,8; 86,15; 115,1; Gn
24,27.49; 32,11; 47,29; Ex 34,6; 2 Sm 2,6; 15,20; Pr 3,3; 14,32; 16,6; 20,28). Hesed está
sempre em primeiro lugar (com exceção de Os 4,1; Mq 7,20; Sl 89,25). Referido ao homem e
a Deus, ‟emet significa alguém em cujas palavras, atos ou amor se pode confiar, alguém em
quem é possível apoiar-se. Com o matiz de veracidade (da raiz aman: que dá estabilidade,

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segurança, portanto, também durabilidade). Como os homens são infiéis e mentirosos, ‟emet
refere-se, sobretudo, a Deus. Deus é o ‟el ‟emet, um Deus fiel e leal, um Deus em quem se
pode confiar (Sl 31,6), inclusive eternamente (Sl 146,6). Deus é, nesse sentido, rico em hesed
e em ‟emet (Ex 34,6; Sl 86,15). Podemos por isso confiar em suas palavras (2 Sm 7,28).

A Septuaginta traduz geralmente ’emet por verdade (aletheia) e algumas vezes por pistis
(confiança, motivo de confiança ou segurança). Os filólogos de hoje não estão de acordo com
esta tradução. De toda maneira, “verdade” (motivo de confiança) é um dos significados
fundamentais de ‟aman e ‟emet. Referido ao homem, em muitos casos pode-se traduzir
por “verdade”. Referido a Deus, ‟emet significa sempre fidelidade, validez eterna e lealdade.

No começo, quase não se pensava explicitamente na resposta que o homem devia dar
ao hesed de Deus, ainda que tal resposta estivesse implicitamente na frase “aqueles que me
amam” (Ex 20,6; Dt 5,10), que se refere precisamente ao hesed de Deus. Unido a rahamim, o
hesed de Deus adquire o significado de amor materno delicado, quase vulnerável. Assim
aparece especialmente em Oseias. O hesed de Deus é o pressuposto e ao mesmo tempo o
modelo do hesed recíproco de Israel (Os 10,12). É porque o acento recai sobre as relações
inter-humanas, entendidas precisamente como hesed recíproco para com Deus. Seguindo
Oseias, Jeremias toma o exemplo do antigo noivado (Jr 2,2), recordando o tempo em que
Israel amava a Deus. Nele se vê que hesed não é por si sinônimo de fidelidade, pois Israel
havia esquecido seu antigo amor de juventude, mas que se refere formalmente à cordialidade
e à generosidade espontânea que implica a entrega de si. Jr 31,2 sublinha que o hesed de Deus
precede sempre a resposta do ser humano. A fidelidade mútua é uma visão escatológica.
Chegará um dia em que Jerusalém será chamada cidade de ‟emet (Zc 8,3), uma cidade em que
também Deus poderá confiar. Para Is 10,20, isto se refere a um pequenos resto de Israel.

A autêntica resposta do homem ao amor e à fidelidade de Deus consiste não só em


recordar seu hesed (Sl 106,7), meditar nele (Sl 48,10), compreendê-lo (Sl 107,43) e em
esperar sem trégua a ajuda benévola de Deus (Sl 33,18.22; 147,11), mas também em louvá-lo.
Na doxologia, o fiel orante louva agradecido o hesed e a ‟emet de Deus. A graça culmina na
liturgia, como se observa em certas fórmulas doxológicas, sobretudo na estrofe da antífona:
“porque eterno é seu hesed” (Sl 136; 107). Segundo o Livro das Crônicas, em todas as
assembleias litúrgicas se canta: “dai graças a YHWH porque ele é bom, porque eterno é seu
hesed” (1 Cr 16,34; 2 Cr 5,13; 7,13; 7,3.6; Est 3,11). Este louvor se entoa inclusive em tempo
de guerra (2 Cr 20,21). Por esta razão, também o “dia” por antonomásia, quando os tempos de
fato mudarão, será celebrado como um dia em que se cantarão os louvores do hesed de
YHWH (Jr 33,11; Ecl 51,12). O amor misericordioso de Deus suscita o gozo (Sl 31,8; 90,14;
101,4; 138,2). Por isso se fala da graça e do favor de Deus com imagens espaciais e
temporais: o hesed enche a terra (Sl 33,5; 119,64) e chega até o céu (Sl 36,6; 57,11; 103,22;
208,5), é perpétuo (Sl 89,3; 103,17; 138,8). A ‟emet também é objeto de louvor da parte dos
fiéis do povo eleito (Is 38,19; 40,11; Sl 57,11; 71,22; 108,5; 115,1; 117,2; 138,2).

O tema da reciprocidade nos conduz à relação existente entre hesed e berit, amor
misericordioso e aliança, ou amor de aliança. A teologia deuteronomista faz a relação estreita
entre graça (hesed) e aliança (Dt 5,10; 7,9.12). A conexão entre hesed e aliança aparece
na literatura deuteronomista. A aliança é uma manifestação exterior, ainda que fundamental,
do hesed divino. A aliança, no entanto, encontra sua realização plena apenas na reciprocidade.

O conceito de graça na espiritualidade do AT encontra-se finalmente diante de uma


limitação: a morte. De fato, o homem bíblico se pergunta: “anuncia-se no sepulcro tua
lealdade (hesed) ou tua fidelidade no reino da morte?” (Sl 88,12). Enquanto não há

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perspectives de vida eterna, também o hesed de YHWH parece chocar-se com uma barreira.
Não obstante, o salmista crente não o considera como tal: “tua fidelidade (hesed) vale mais
que a vida” (Sl 63,4). Esta espiritualidade depara-se com o problema da morte, onde o amor
de Deus tem seu final como objeto histórico. Mas enquanto há vida, pode-se dizer: “não lhes
porei rosto mal humorado, porque sou hasid” (Jr 3,12). É hasid quem atua com hesed.
Assim, na vida como na morte, “tua destra me sustenta” (Sl 63,9). A última e suprema
possibilidade do hesed divino aparece numa perspectiva insuspeitada que vai além da morte.

d. Conclusão: espiritualidade da graça no AT

Uma vez analisadas as expressões técnicas de graça ou salvação em Israel, podemos


dizer que o favor e a graça de Deus não aparecem primariamente como uma qualidade interior
de Deus, mas como sua inclinação generosa em direção aos homens, e que se manifestam em
mostras de amor surpreendentes e inesperadas. O favor de Deus vai mais longe do que
qualquer prova de amor, dado que seu hesed consiste, antes de mais nada, num compromisso
em favor de toda a vida do homem. Para exprimir isso, Israel utiliza termos de sua linguagem
normal e quotidiana. Hanan designa a benévola condescendência de Deus, sublinhando sua
preocupação pelos homens, em especial sua solicitude e solidariedade com os débeis e
oprimidos, com os que padecem necessidade. Hesed se refere principalmente ao amor que
está acima de qualquer obrigação, à superabundância gratuita, coisa que, no entanto, se
considera “evidente” numa relação de comunhão, tanto da parte de Deus como da parte do
homem, enquanto resposta ao que primeiro o amou. O superabundante favor do amor que
Deus nos tem exige como resposta histórica nossa justiça e nosso amor ao próximo. Os textos
em que hesed significa especificamente amor de aliança sublinham a prioridade da iniciativa
amorosa de Deus. A superabundância da graça, a fidelidade e a lealdade de Deus têm na
espiritualidade de Israel uma posição tão central que “graça e fidelidade” chegam a ser os
predicados divinos mais importantes na liturgia ou na doxologia: Deus é fiel e leal, um Deus
que cuida dos homens, um Deus dos homens. Não obstante, é soberanamente livre, mas com
uma liberdade que é a do amor, não a da arbitrariedade. O inverso da graça é o juízo. O amor
e a lealdade de Deus, sua graça, chegam a ser uma espécie de hipóstase: YHWH os envia
como se se tratasse de um enviado aos homens (Sl 57,4). A graça sai ao encontro do homem
(Sl 59,11.19.19; 89,15; 85,11) e o segue durante toda a sua vida (Sl 23,6).

A graça se experimenta. Aparece especialmente na oração. Sua estrutura dialogal


culmina, por parte do homem agraciado, na resposta leal de uma conduta ético-religiosa
encaminhada à salvação, à prosperidade e à paz de todo o povo de Deus – justiça e amor para
com o próximo –, mas também na liturgia doxológica, ou seja, na ação de graças e no louvor
dirigidos a Deus. A graça tem no AT dois aspectos inseparáveis: a ética e a místico-litúrgica.

Dado que o homem é pecador, a solicitude benévola de Deus tem também sempre o
significado de compaixão, de misericórdia e de perdão dos pecados. Mas a graça vai mais
longe ainda do que tudo isso. Deus está sempre disposto a ajudar e a conceder todo tipo de
salvação (Sl 36,11; 103,17). Ainda que o homem agraciado se encontre um tanto confundido
pela perspectiva da morte e da desgraça última, segue, apesar de tudo, sendo capaz de crer no
amor e na lealdade definitiva de Deus para com o homem: “tua destra me sustenta” (Sl 63,9).

2. Experiência e linguagem da graça no judaísmo helenístico

A diáspora judaica foi obrigada a traduzir para o grego os diferentes termos teológicos
do AT. Porém, ela não traduziu o hesed hebraico por charis, mas por eleos (compaixão,
misericórdia), utilizando charis para traduzir hen. Teologicamente, a charis do NT pouco ou

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nada tem que ver com hen, a charis da Septuaginta, pois equivale ao hesed hebraico. O que
aconteceu para que charis não correspondesse, na Septuaginta, ao conceito de graça? Para dar
uma resposta a tal questão, estudaremos em primeiro lugar o significado grego do termo charis.

a. A charis helenista

Charis e chairo (alegrar-se) têm em grego uma mesma raiz: char = algo que brilha ou
lança faíscas e assim alegra o homem ou o agrada, algo que lhe proporciona alegria e prazer.
No sentido objetivo, char é algo ou alguém que é agradável, e no sentido subjetivo, é
encontrar prazer em, saborear algo (palavras, ações, pessoas ou coisas), achá-lo agradável ou
alegrar-se com ele, ter gosto, recriar-se em algo. Em todo o campo semântico grego de charis
encontramos o mesmo significado básico. Daí nasceram três grandes linhas semânticas:
a. charis é algo que proporciona alegria, enquanto que chara (alegria) é a relação conseguinte.
Em concreto, charis é o atrativo amoroso, o encanto, algo que produz agrado. O essencial não
é que uma coisa, uma ação, uma palavra ou uma pessoa sejam belas ou atraentes, mas que
deslumbrem e produzam alegria. Trata-se do aprazível e do agradável que procede da
elegância e da beleza. Nesse sentido, charis reflete um modo de ver a vida tipicamente grego.
Em relação com esse significado, charis recebe ainda o sentido de favor do destino
(simbolizado pelas três Carites ou Graças, as três deusas do destino: Talia, Aglaia e
Eufrosina; b. em estreita relação com o sentido anterior, charis significa também simpatia,
apreço, favor, benevolência, cuidado solícito de alguém, tanto no sentido ativo, sobretudo por
parte do imperador ou do dignitário para com seus súditos (nisso consiste a verdadeira relação
com hanan), como no sentido passivo: charis é o favor, o dom ou a esmola, assim como a
benevolência ou a simpatia que uma pessoa experimenta por outra, sempre como favor que
proporciona alegria; c. a consequência disso é que, de acordo com a concepção grega, a charis
exige uma resposta. A charis (demonstração do amor) produz charis, ou seja, uma atitude que
se traduz no reconhecimento do favor. A expressão “dar graças” significa precisamente
reconhecer a “graça” ou o favor recebido. Tal é o terceiro significado de charis. Daí vem a
expressão tois theois charis “graças a Deus (aos deuses)”. À diferença do hesed hebraico, a
charis helenística põe especialmente em relevo a ideia de uma contraprestação obrigatória,
ainda que tal obrigação não pareça ter primazia. O agradecimento é a graça redita. É como se,
com o agradecimento, se devolvesse a charis recebida. Os autores gregos jogam às vezes com
estas duas acepções de charis: agraciar e agradecer (como em Sófocles e em Aristóteles).

Na língua grega, os três significados que acabamos de ver têm também aplicação no
âmbito religioso: a benevolência dos deuses. No grego extra-bíblico, porém, charis não é um
conceito religioso central nem tampouco um conceito explicitamente filosófico. À areté,
virtude grega do homem forte e bom, a charis acrescenta o aspecto gozoso e atrativo da
virtude. Charis é o encanto da verdadeira vida virtuosa. A escola estoica vai mesmo falar da
graça de Deus, mas não de sua ira. No grego da antiguidade tardia (época imperial), charis
evoluirá em duas direções distintas (que terá uma repercussão no NT grego): a. o favor que
alguém obtém do imperador (por exemplo, uma concessão ou subvenção legal) ou de um alto
funcionário. Neste sentido fala-se da filantropia do imperador (Tt 3,4). Charites são então os
dons concedidos, enquanto que charis (no singular) indica um sentimento favorável ou
benévolo. Um caso típico de favor ou de charis no sentido jurídico é o do indulto: a concessão
da graça, a remissão de um castigo (o Evangelho de Lucas diz que Barrabás foi “agraciado”);
b. sinônimo de poder, no sentido de “poder do alto”, procedente de esferas supra-terrenas,
sobrenaturais. Charis designa uma energia procedente de um mundo superior que invade
determinados homens. Charis se converte assim num conceito especificamente religioso. A
dynamis da graça é uma força supra-terrena que se manifesta, sobretudo, nos taumaturgos. E a
charis se revela como força sobrenatural em milagres e em obras de magia.

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Se comparamos o conceito grego de charis com o campo semântico dos termos hesed,
hanan e hen, percebemos grandes afinidades, mas também muitas diferenças. Em primeiro
lugar, charis não é, como hesed, um conceito especificamente religioso no grego clássico. É
surpreendente, porém, a afinidade existente entre hen e charis. Isso explica porque a
Septuaginta tenha preferido traduzir hen por charis e não por eleos. O fato que traduza hanan
e hesed por eleos (compaixão) indica que charis não era considerado o termo adequado. No
hesed divino e na sua solicitude (hanan) pelos homens, Deus não se move pelas qualidades
resplandecentes que vê no homem. É sua solicitude amorosa que faz o homem agradável. Por
outro lado, a charis grega nunca tem o significado de perdão dos pecados (só no grego da
época imperial charis adquire o significado de absolvição, que influirá na literatura
intertestamentária e também no NT). O grego da época imperial se presta especialmente para
traduzir hesed por charis, fato que uma vez concluída a tradução da Septuaginta, influirá nos
judeus de fala grega. Mas, à margem de tudo isso, a charis grega parece demasiado
“humanista” para poder ser a tradução de um termo tão marcadamente religioso como hesed.

b. A graça na Septuaginta e na primeira literatura judaica

Poucos textos da Septuaginta traduzem hesed por charis (Est 2,9. 17; Eclo 7,33;
40,17). Trata-se de textos tardios, o que explica que as traduções posteriores, à diferença da
Septuaginta, traduzam normalmente hesed por charis, como em Filo. Essa tendência se
confirmará no NT, que traduz hesed por charis e não mais por eleos. Isso se explica pelo fato
de que depois da tradução grega da Bíblia, a charis grega se fez popular em seu sentido
religioso. Esta mudança no conceito grego de charis está relacionada com o nascimento do
culto ao imperador, quando se começou a dar-lhe o título de kyrios. Hen, na Septuaginta
charis, não aparece nos salmos, enquanto que os mesmos salmos são o testemunho principal
da espiritualidade vétero-testamentária do hesed ou da graça. Por isso o emprego de hen é
surpreendente na literatura sapiencial, onde este termo designa uma qualidade ou conduta em
virtude da qual uma pessoa resulta agradável aos olhos de outra, “agrada” aos demais e os
dispõem favoravelmente (significado típico tanto do hen como da charis). Na literatura
judaica posterior à Septuaginta o “ser agradável a Deus” sofre uma nova evolução, passando a
designar a recompensa futura dos que temem a Deus, dos justos. Esta tendência é ainda mais
clara na literatura apocalíptica. Por um lado, charis é a recompensa escatológica dos justos,
por outra, é o termo que designa globalmente tudo o que significa “salvação futura”. A
Didaqué será um eloquente testemunho a este respeito, aludindo claramente ao “venha a nós o
vosso reino”, do Pai Nosso, diz: “venha vossa charis, acabe este mundo” (Did 10,8). Há
também um intercâmbio de termos (charis, eleos e eirene), como também a combinação de
charis e de gnosis, como de charis e cumprimento da lei, ou de charis e “não pecar mais”.
Trata-se de uma formalização da linguagem, que passa por um processo de intelectualização.
Esse processo vai fazer os termos sabedoria, revelação, inteligência, conhecimento, vida,
cumprimento dos mandatos ou da lei de Deus se equivalerem na charis de Deus com Israel.
Charis se torna a grande graça da conversão de um pagão à fé de Israel, à sabedoria do povo
eleito e à revelação de Deus. Antes de Paulo, então, o judaísmo grego estabelece uma relação
entre charis e justificação pela fé no Deus de Israel, ou mais concretamente, pela fé no dom
(charis) divino da lei. Charis e conversão, ou justificação pela graça, pela graça da lei, se
resumem nesta literatura judaica mediante a fórmula “achar graça diante de Deus”. Charis se
emprega preferentemente para indicar o grande momento em que um pagão, devido à livre
eleição por parte de Deus, recebe, pela fé, a revelação ou a doutrina salvífica da religião de
Israel. Com isso se põem as bases da ideia neo-testamentária, sobretudo paulina, da relação
existente entre eleição, conversão, justificação e batismo cristão, mas o ponto determinante já
não será a lei, mas o Cristo. Charis, graça, equivale assim à conversão do pecador a YHWH,

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único Deus verdadeiro de Israel e, através de Israel, de todos os povos. Neste marco, charis
supõe especialmente um conhecimento da verdadeira revelação (no sentido de gnosis/epgnosis).

Assim, o contexto apologético, catequético e missionário o judaísmo da diáspora fez a


transposição entre os termos hebraicos e gregos para designar a experiência divina da eleição
e da salvação. A possessão da lei é a eleição. A charis divina é a versão judaica do hesed de
YHWH que repousa sobre Israel. O que antes era hesed, graça de Deus, agora é a lei. Esse
judaísmo não vê contradição entre justificação pela graça e justificação pela lei ou pelas obras
da lei. Já aparecem, porém, nos últimos escritos do AT dois temas sobre a charis, que estarão
em Paulo: a. a contraposição entre graça e obras, em relação com a teologia da criação e da
aliança. A justiça provém da graça da eleição de Deus, se bem que exista uma identidade
entre fé e obras; b. a contraposição histórico-salvífica entre charis e hamartia, entre graça e
pecado: “onde domina a charis, desaparece o pecado” (Hen, Test. Dos XII patriarcas).
Segundo o judaísmo primitivo, a salvação e o perdão dos pecados procedem unicamente da
graça de Deus em virtude do dom divino da lei. Esta é o grande dom exclusivo de Deus a
Israel. Em Qunran, o tempo escatológico de salvação é também o tempo da plenitude perfeita
do cumprimento pleno da lei. Na versão alexandrina, a justificação pela graça é formulada
com grande precisão. Assim, pois, o problema da graça e das obras, da graça e do pecado, da
graça e da justificação é um problema que está muito presente no judaísmo do tempo de
Paulo. A diferença fundamental entre judaísmo e cristianismo consiste em que para este o
ponto de referência da justificação pela graça não é a lei, mas Jesus, o Cristo. O ponto central
do debate não é a contraposição entre graça e obras, mas entre graça da lei e graça do Cristo.

3. Experiência e linguagem da graça no NT

No NT é o evento Cristo que permite compreender o significado do desígnio salvífico


de Deus. Esse desígnio modula-se com crescente nitidez nos escritos neo-testamentários. Os
Sinópticos enunciam os grandes temas de uma mensagem que é evangelho, boa notícia
proclamada por Jesus com palavras e ações, segundo a qual o reino de Deus já irrompeu em
sua pessoa. Paulo e João amplificam e aprofundam a mensagem dos Sinópticos,
enriquecendo-a com elementos decisivos, a partir dos quais o cristianismo vai erigir o
conceito de graça, o qual será a categoria chave de sua compreensão da história. O que nessa
categoria vai se denotar não é algo, mas alguém: Jesus Cristo como manifestação escatológica
do amor gratuito de Deus, amor que se comunica às suas criaturas para saná-las e plenificá-
las. Propomos aqui uma breve análise dos Sinópticos e de João, para depois apresentar com
mais detalhe a questão da graça em Paulo, autor do NT que mais influencia a teologia da graça.

a.Experiência e linguagem da salvação nos Sinópticos

“Cumpriu-se o tempo e o reino de Deus esta próximo: convertei-vos e crede na boa


nova” (Mc 1,15). Com esse anúncio inaugural, Jesus começa sua missão publica. Nele
aparece um chamado à penitência e à conversão, chamado motivado pela proximidade do
reino, e dá-se por suposta a capacidade humana de “mudar de mente”, já reconhecida no AT.
Com este anúncio, nem a exortação a converter-se nem o anúncio do reino próximo são
elementos originais. Os profetas haviam insistido incansavelmente na necessidade da
conversão, o Batista havia proclamado a vizinhança do novo eon (Mt 3,2). A originalidade de
Jesus repousa no fato de que seu anúncio tem um caráter exclusivamente salvífico,
silenciando a dimensão de castigo presente nos antecedentes bíblicos mencionados. Mc 1,15
ignora a alusão da “ira iminente”, de Mt 3,7-12, com a qual João associava a vinda do reino.

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Na sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-21), Jesus reitera a índole salvífica de seu programa,
fixado na oferta única da salvação. A tal fim, trunca a citação de Is 61,1-2, suprimindo dela o
anúncio do “dia da vingança de nosso Deus”. Em sua mensagem, não ha lugar para a ideia do
castigo, mas apenas palavras de graça, o que provoca no auditório uma violenta reação (Lc
4,22). Sobre a base da novidade de um anúncio exclusivo de salvação, as parábolas do reino
destacam: a. a absoluta gratuidade do mesmo, que não depende em nada do homem, mas da
livre vontade de Deus (cf. Parábolas do lavrador paciente Mc 4,26-29, do grão de mostarda e
do fermento Mt 13,31-33); b. a urgência de uma decisão por parte dos ouvintes, que não
podem adiar a interpelação que tais parábolas trazem (cf. a parábola da figueira estéril de Lc
13,6-9, a parábola das dez virgens de Mt 25,1-12, como a do mordomo esperto (Lc 16,1-8).

Para compreender a perspectiva inaugurada por Jesus é preciso entrar na dinâmica da


mesma e isso se faz através do discipulado (Mc 8,36-38; Mt 16,24s; Lc 9,23). O seguimento é
precedido do chamado. As três variações sobre o tema de Lc 9,57-62 são ilustrativas a esse
respeito. A incondicionalidade e a prioridade absoluta do seguimento se destacam também
com uma eficácia no episódio do jovem rico (Mt 10,17-22). A radicalidade da exigência de
seguir Jesus se acentua até o limite do texto de Lc 14,26: “se alguém vem a mim e não odeia
seu pai… e até sua própria vida, não pode se meu discípulo”. O que aqui se pede ao discípulo
é uma exclusividade no seguimento implicado na renúncia dos laços familiares mais íntimos.
A opção por Jesus pode comportar a ruptura dos vínculos de sangue, se estes se interpõem ao
seguimento exigido. Assim, a entrada no reino é precedida de um processo articulado em três
fases sucessivas: chamado, despojamento e seguimento. Ninguém acede ao reino sem seguir
Jesus. Ninguém pode seguir Jesus sem ter sido chamado. O chamado despoja o discípulo,
tornando-o inteiramente disponível e habilitando-o para tomar a cruz, fazendo assim o mesmo
itinerário do mestre. O seguimento exige também a fé. É ela que permite ao discípulo fazer o
que o mestre faz. A fé se desloca, porém, do conteúdo do que é anunciado àquele que anuncia.
Só o que crê é seguidor. Só o seguidor é crente. Crer em Jesus e seguir Jesus são duas atitudes
que se co-implicam, não podendo ser separadas uma da outra. Deste modo, instaura-se entre
mestre e discípulo um vínculo afetivo tão sólido que desafia todo obstáculo e torna “suave o
jugo e leve a carga” do seguimento (Mt 11,29-30). Jesus cria assim uma comunidade disposta
a compartilhar com ele sua vida e seu destino. Nela se manifesta a grandeza incomparável do
reino. Seus membros aderem a Jesus com uma confiança tal que os faz capazes de enfrentar
qualquer dificuldade. A opção pelo reino supõe uma ruptura com os vínculos pessoais e os
modos de existência prévios. Unicamente quem renuncia a tudo é digno de seguir Jesus. Tal
renúncia, à primeira vista custosa, se revela como o encontro do tesouro escondido e da pérola
de grande valor (Mt 13,44-46), diante dos quais nenhum outro valor pode-se comparar.

No AT, só muito raramente se atribui a Deus o título de Pai. Jesus chama, porém,
Deus de “Pai”, utilizando para isso o termo familiar abba. Tal uso aparece não só nos textos
comuns à tradição sinótica (fonte Q), mas também nos textos próprios a Mc, Mt e Lc. Esse
modo de nomear Deus, inusitado, ao denotar uma familiaridade escandalosa, é inculcado por
Jesus a seus discípulos e também ao povo (Mt 6,9; 7,7-11; 23,9; Mc 11,25; Lc 12,32). Para
Jesus, Deus é pai e é como tal que deve ser invocado. Correlativamente, a atitude do homem
diante de Deus tem que ser a de uma criança diante de seu pai. A criança é o protótipo da
fragilidade, da necessidade absoluta do pai para sobreviver. O começo da salvação repousa no
aprender a chamar Deus de pai. A paternidade de Deus se põe à prova e se verifica em sua
impressionante autenticidade, sobretudo frente ao pecado do homem. As parábolas do perdão
de Lc 15 são, na realidade, outras tantas parábolas da predileção divina pelos pecadores. Seu
comum denominador é: Deus ama mais os menos dignos de ser amados porque são os mais
necessitados de seu amor. Os mais amados são os menos amáveis porque Deus ama, como
cria, desde o nada. O anúncio do reino se revela assim como Evangelho, boa nova de salvação

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para os que são aparentemente irredimíveis. O judaísmo, inclusive o Batista, aceita os
pecadores depois que se converteram e fizeram penitência, enquanto Jesus oferece a salvação
antes de fazerem penitência. Emerge deste modo, e de forma absolutamente nova, a
incondicionalidade e a ilimitação do que é a graça pura. Explica-se então porque Jesus exija o
seguimento incondicional como resposta adequada ao amor igualmente incondicional de Deus.

Jesus não se limitou a proclamar a paternidade misericordiosa de Deus, mas ajustou


sua conduta a tal proclamação. Às palavras se somam as ações, à teoria a práxis. A predileção
pelos pecadores se ratifica no gesto de comer com eles. O alcance simbólico de tal gesto
provocou o escândalo dos bem pensantes (Mc 2,15-16; Lc 15,2). Junto com a predileção pelos
pecadores, Jesus manifestou repetidamente sua predileção pelos “pequenos”. Esta designação
compreende a vasta gama de seres humanos marginais, desdenhados, preteridos. Os pobres,
os enfermos, as mulheres, as crianças são os preferidos de Jesus. As bem-aventuranças (Mt
5,1-12; Lc 6,20-23) e a parábola do rico epulão (Lc 16,19-31) são taxativas a esse respeito,
como o são os textos de Mt 25,40-55; 11,25; 9,42. A razão desta parcialidade é a mesma da
preferência pelos pecadores. Jesus fala e atua assim porque assim pensa e atua Deus. A
gratuidade da vontade salvífica do Pai implica a primazia absoluta dos desprotegidos de
títulos e de méritos. Jesus realiza uma operação de recuperação do humano desde baixo,
começando pelos últimos e convertendo-os em primeiros (Mt 19,30). O ser humano mais
insignificante, justamente enquanto insignificante segundo a opinião comum, é o valor mais
alto da realidade segundo a maneira de ver de Jesus. Assim, o Deus que reina já agora é, ao
mesmo tempo e, sobretudo, o Pai que ama e perdoa, que prefere os pequenos, “porque é
bom”, diante de quem o homem pode sentir-se filho e não servo. O reino de Deus se desvela
então como o reino do homem, no qual os pecadores são preferidos, os menores são os
maiores (Lc 9,48) e os últimos os primeiros. Não é o reino do poder e da força, mas da graça e
da debilidade. Jesus chama ao seguimento com vistas à instauração desse reino, querendo
assim criar uma comunidade nova, distinta tanto do esoterismo elitista do modelo qunrânico
quanto do ativismo agressivo do modelo zelota. O próprio desta comunidade é a invocação de
Deus como abba, o reconhecimento da propria filiação e o estabelecimento da fraternidade
inter-humana. Na situação conflitiva na qual viveu Jesus, sua proposta consiste em radicalizar
no amor. E a justificação desta proposta reside no modo de ser e de operar divinos.
Porque Deus ama e perdoa sem medida, a única comunidade digna dele (o único reino de
Deus) é aquela na qual seus membros vivam permanentemente no amor e no perdão fraterno.

Como vemos, os Sinópticos não privilegiam os termos técnicos utilizados pelo AT


para dizer a salvação ou a graça divina, preferindo apresentar a experiência salvífica numa
linguagem mais narrativa. É também numa linguagem narrativa que João vai nos apresentar a
irrupção do amor divino no seio da história. A linguagem privilegiada por ele vai, contudo,
sofrer um processo de ontologização, o que não lhe tira, porém, sua inserção na história.

b. Experiência e linguagem da salvação em João

“Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho único, para que todo o que crê nele não
pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Nesse texto, formula-se concisamente o esquema
fundamental da teologia joanina. A origem da atual economia salvífica é o amor de Deus Pai
que nos dá seu Filho na encarnação para que este, por sua vez, dê a vida a quem nele crê.

Na elaboração de sua teologia da salvação, João remonta ao fato da encarnação. O


Logos encarnado está cheio de “charis e aletheia” (Jo 1,14), termos que traduzem o binômio
vétero-testamentário hesed-‟emet, compêndio de todos os bens salvíficos para que os homens
recebam todos de sua plenitude (Jo 1,16), de modo que, por ele, tenham também a “graça e a

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verdade” (Jo 1,17), isto é, a vida. No Filho encarnado “estava a vida” (Jo 1,4). Cristo é o “pão
da vida” (6,35648), a “luz da vida” (8,12) ou, simplesmente, “a vida” (11,25; 14,6). Nele se
encontram a luz, a verdade e a vida, os grandes universais abstratos nos quais o homem pensa
sua salvação, não porque seja seu complemento circunstancial de lugar, mas porque é sua
substância. Ele “é“ luz, verdade vida. O abstrato é um concreto, o universal um singular: a
própria pessoa do Logos encarnado. João estabelece a equação Cristo = vida. A vida se
outorga a quem se abre a ela pela fé. “O que crê, tem vida” (3,3-7. 15. 16. 36; 5,24; 6,40-47).
A fé joanina, como a dos Sinópticos, ostenta um caráter cristocêntrico. A fórmula pisteuein
eix tem sempre como destinatário Jesus Cristo (1,12; 2,11. 23; 3,16. 18. 36). Crer significa: a.
assentir à auto-revelação de Jesus; b. aderir à sua pessoa. Assim, crer é: “aceitar nosso
testemunho” (3,11-12), “guardar/receber minhas palavras” (12,47-48; 17,8); b. “vir a
mim” (6,34; 7,37-38), um “permanecer em minha palavra” (8,31), que supõe sempre a opção
livre do crente. A fé é, de fato, um ato pessoal, responsável. O Jesus joanino instaura com sua
aparição no mundo a crise escatológica (1,10-12; 3,18-19; 12,47-48), ante a qual o homem
deve decidir-se, sem poder negligenciar a eleição. O que não crê é porque “não quer”: “vós
não quereis vir a mim” (5,40). Com isso, o incrédulo fecha-se à vida (“não quereis vir a mim
para ter vida”). Ao contrário, crer em Jesus é estar salvo.

O caráter absolutamente gratuito do crer é sublinhado por João: a fé é um dom do Pai


(“ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o atrai”: 6,44. 64s). A eleição do Filho
(não é o discípulo que elege Jesus, mas o inverso: 15,16) ou sua atração (12,32), de modo que
sabe que “o Filho de Deus veio” aquele a quem “se deu inteligência para conhecer o
Verdadeiro” (1 Jo 5,20). Sem este dom o homem não pode dar fruto, “nada pode fazer” (15,4-
5). A fé é a resposta livre do homem e o dom gratuito do Pai ou do Filho ao crente.

O verbo “permanecer” desempenha um papel importante na reflexão joanina, como o


mostra a linguagem da videira e dos sarmentos (15,1-6). O crente “dá fruto” na medida em
que “permanece” em Cristo, sem o qual “não pode fazer nada”. A forma recíproca dos
cristãos permanecerem em Cristo e Cristo nos cristãos (6,56; 14,20; 15,4.5) estende a uma
escala histórica o permanecer eterno do Filho no Pai (14,20; 17,21.23). A comunhão de vida
intra-trinitária se expande nas coordenadas espaciotemporais de uma comunhão vital entre o
Cristo e o cristão, que introduz a este no mistério mais íntimo do ser de Deus: “como tu, Pai,
em mim e eu em ti, que eles também seja um em nós… eu neles e tu em mim” (17,23).

A vida, transcrição joanina do conceito sinótico de reino, é um dom divino porque é o


ser mesmo do Pai dando-se ao Filho desde toda a eternidade e, mediante o Filho, chegando a
nós para assumir-nos no circuito vital da Trindade. A missão do Filho, a encarnação, se
consuma com seu retorno ao Pai, não mais solitário, mas com o cortejo de todos os que
aderiram a ele pela fé (14,2-3). Dita missão comunicou ao crente a vida por uma espécie de
novo nascimento (3,1-8), a partir do qual o renascido é reabilitado para fazer as obras do
amor. Dado que “Deus é amor” (1 Jo 4,8), a recepção da vida de Deus não pode menos que
manifestar-se na práxis da caridade: “se alguém diz: amo a Deus e aborrece seu irmão, é um
mentiroso; […] quem ama a Deus, ame também seu irmão” (1 Jo 4,20s). A caridade fraterna é
essencialmente a autodoação do cristão, que prolonga no plano humano a entrega do Filho ao
mundo por parte do Pai (3,16) e a entrega da vida que Jesus nos fez: “o Cristo deu sua vida
por nós. Também nós devemos dar a vida pelos irmãos” (1 Jo 3,16). Assim, portanto, Deus é
amor e por isso: a. o Pai nos entregou o Filho; b. o Filho se entregou por nós; c. nós devemos
entregar-nos aos irmãos. Esta vontade de autodoação é, enfim, a única afirmação fidedigna do
humano “ter nascido de Deus”. Se realmente Deus é amor, não pode haver outra prova de que
nos apropriamos de sua vida que não seja a de atuar como ele atua, fazer as obras que ele faz:

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“todo o que ama nasceu de Deus” porque o amor procede de
Deus (1 Jo 4,7). “Sabemos que passamos da morte à vida porque amamos os irmãos” (1 Jo 14).

O termo charis aparece só três vezes no corpus joanino (1, 14.16.17), que é, porém,
marcado pela teologia contida neste termo, como o mostra o retorno constante ao mistério do
amor que Deus é e que se difunde nas três manifestações que fizeram a história do processo
salvífico: a. o amor eterno do Pai ao Filho e ao mundo; b. o amor do Filho (encarnado) ao
mundo e aos homens; c. o amor dos homens ao Pai, ao Filho e, consequentemente, aos irmãos.

c. Experiência e linguagem da graça em Paulo

Paulo é o autor neo-testamentário que mais utiliza o termo charis. No começo, ele usa
esse termo com o significado que ele possuía no vocabulário grego, convertendo-o, porém,
num determinado momento, na palavra chave com a qual se refere ao acontecimento salvífico
em Jesus Cristo. Sua própria experiência de um ato muito específico de amor da parte de
Deus, sua vocação ao apostolado entre os pagãos, constitui para Paulo o ponto a partir do qual
da uma denominação técnica ao acontecimento salvífico enquanto graça procedente de Deus.

“Charis” e “evangelho” nas primeiras cartas de Paulo

O lugar a partir do qual se desenvolve a noção de charis no NT é o desejo de graça


com que começam ou terminam as cartas cristãs. Já em sua carta mais antiga, na qual não
aparece o conceito de charis, Paulo saúda aos cristãos de Tessalônica, no princípio e no fim
de sua missiva, com a fórmula: “a graça (he charis) de nosso Senhor Jesus Cristo vos
acompanhe” (1Tes 1,1; 5,28). Esta saudação se encontra em todas as suas cartas. Os gregos e
os judeus de fala grega começavam suas cartas com a palavra chaire (salve !). Muitos
exegetas acham que foi Paulo que cristianizou tal saudação, mas essa afirmação é problemática,
pois na literatura greco-judaica anterior a Paulo era corrente o uso das palavras “graça”
(eleos) e “paz” (eirene), charis e eleos sendo utilizados como sinônimos nessa época. Fora
das fórmulas de saudação, o termo charis não aparece na 1Tes. Nesta carta, Paulo é o fiel
transmissor da tradição anterior a ele, muito antiga, e de uma linguagem judeu-helenística.
Desde o começo ele fala do “Evangelho de Deus” (2,2. 8. 9), que é ao mesmo tempo o
“Evangelho de Cristo” (3,2). Começa sua carta aludindo a “nosso Evangelho” (1,5) enquanto
que em 2,4 fala simplesmente do “Evangelho” que Deus lhe confiou. Este Evangelho abarca a
confissão da “fé em Deus” e da “fé em Jesus Cristo vindouro”. Os tessalonicenses “se
converteram a Deus, abandonando os ídolos, para servir ao Deus vivo e verdadeiro” e
“aguardam a volta, desde o céu, do Filho, ressuscitado dos mortos, Jesus, o que nos livra do
castigo que vem” (1,9-10). Este é o querigma pré-paulino, monoteísta e cristológico,
destinado aos pagãos, no qual se muda a expressão original “filho do homem”, pela expressão
“filho de Deus”. A mensagem cristológica está orientada escatologicamente para a parusia,
mas sobre a base da ressurreição de Jesus dentre os mortos. “Não cremos que Jesus morreu e
ressuscitou? Pois também aos que morreram, Deus, por meio de Jesus, os levará com ele”
(4,14). Este é o Evangelho de Deus, de Cristo, nosso Evangelho, diz Paulo. Sua pregação e
aceitação se apoiam na eleição amorosa de Deus (1,4), que “os chamou a seu reino e glória”
(2,12). Estas palavras são anteriores ao cristianismo paulino, próprias aos judeus de fala
grega. Esse Evangelho, “a palavra divina da pregação” (2,3) “não é palavra humana, mas
palavra de Deus” (2,13b), que Paulo prega “com a força do Espírito Santo” (1,5).

Em toda a 1Tes nada se diz sobre a charis e a justificação, que depois seriam conceitos
chaves em Paulo. A ideia central desta carta é a iminente parusia de Jesus (2,19; 3,13; 4,15;
5,23), ideia que, fora desse contexto, reaparece em 1Cor 15,23. A 1Tes permite, no entanto,

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adivinhar quantas dificuldades Paulo havia encontrado na sua pregação aos pagãos (2,16). O
motivo imediato da carta parece ser o de dar uma resposta ao problema surgido na
comunidade: haviam morrido cristãos (4,13-18). Paulo anuncia a expectação do cristianismo
primitivo sobre a vinda de Jesus. Seu aporte pessoal consiste em dar uma resposta à
comunidade, inquieta por causa do destino dos cristãos mortos, pois se temia que estes não
estivessem presentes na parusia de Jesus. Paulo responde dentro de um marco judeu-
apocalíptico (4,15-17): os cristãos que morreram (“os defuntos em Cristo” 4,16b)
ressuscitarão e irão ao céu ou serão “arrebatados” ou “conduzidos” ao céu junto com os que
ficam vivos, indo ao encontro do Cristo (4,16-17). Portanto, uns ressuscitarão e outros “serão
arrebatados”. Evidentemente esperava-se a parusia como algo iminente. Isso mostra que
certas circunstâncias históricas haviam determinado a interpretação do dogma da ressurreição.
Posteriormente, sobretudo na 1Cor, Paulo falará sobre esse tema de modo diferente.

Nas duas cartas de Paulo aos Coríntios a palavra charis aparece com muita frequência
(10 vezes em 1Cor e 18 em 2Cor). Emprega-se essa palavra em suas diferentes acepções
gregas: como ação de graças (1Cor 10,30; 15,57; 2Cor 2,14; 9,15) e, sobretudo, como
demonstração de favor ou obra de amor, aludindo concretamente à obra de caridade (esmola)
dos cristãos de Corinto em favor dos pobres da comunidade de Jerusalém (1Cor 16,3; 2Cor 8,
1. 4. 6. 7. 9. 16. 19). Esta generosa dádiva de amor (charis) é ao mesmo tempo demonstração
do favor de Deus aos Coríntios, que já têm o suficiente (2Cor 8,9) e podem dar aos pobres o
que lhes sobra (9,8). Aparece aqui o termo charis, no sentido de algo que se entrega como
dívida de honra, e Paulo dá um fundamento cristológico a tal dívida: “porque já conheceis a
generosidade (charis) de nosso Senhor Jesus Cristo: sendo rico, se fez pobre por vós para
enriquecer-vos com sua pobreza” (2Cor 8,9). Nestas cartas, charis tem também o sentido de
auxílio, assistência ou demonstração de favor da parte de Deus (2Cor 9,8 e 12,9).

Chama a atenção nessas duas cartas a combinação entre graça e ministério apostólico
(1Cor 3,10; 15,10; 2Cor 1,12; 12,9), de forma que também aqui “graça” tem o sentido técnico
de revelação salvífica de Deus em Cristo, designando a eleição ao cristianismo: “o favor que
vos concedeu mediante Jesus Cristo” (1Cor 1,4), o chamamento à vida cristã. A graça tem,
pois, um sentido absoluto: “exortamos-vos também a não desperdiçar esta graça de Deus”
(2Cor 6,1). Aqui se põe mais em evidência a eleição geral ao cristianismo que a eleição ao
ministério apostólico, pelo qual se dá a conhecer a revelação da salvação. Em todos esses
casos, “graça” tem o significado grego de ser “feito rico de todos os dons” (1Cor 1,5-6),
como Paulo define em 1,4 a “graça” ao afirmar que os ricos Coríntios “em nenhum aspecto
ficam curtos”. “Graça” não tem, pois, ainda o significado técnico paulino, como tampouco
2Cor 9,8: “poder tem Deus para cumular-nos de toda classe de favores”. Entre estes
abundantes dons da graça, o ponto central é ocupado pela parusia: “enquanto aguardais a
manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo” (1Cor 1,7b). No entanto, a “comunhão com seu
Filho”, outorgada através da ressurreição de Jesus (1Cor 1,9), adquire maior ênfase:
“pregamos um messias crucificado” (1Cor 1,23). Em contraposição com a 1Tes, sublinha-se
antes de tudo o fundamento da parusia: a morte e a ressurreição de Jesus, sobre a base de uma
tradição pré-paulina (e não coincidente com a parusia do Filho do homem): segundo o núcleo
de 1Cor 15,3b-5a ou 15,3b-7. A morte e a ressurreição são para Paulo o núcleo de seu
Evangelho (1Cor 1,23; 2Cor 2,12; 5,18-21). As duas cartas aos coríntios tratam, além do
mais, do ministério apostólico de Paulo enquanto “serviço de reconciliação” (2Cor 5,18-21).

É interessante o que diz 1Cor 1,9: “fiel é Deus, que nos chamou a ser solidários de seu
Filho, Jesus Cristo, Senhor nosso”. A partir da carta aos gálatas, isso se exprime mediante o
conceito de charis Theou, a graça de Deus (Gl 2,19-21). Em Paulo, charis passa a ser um
conceito teológico técnico. O “Evangelho” se identifica agora com o que Paulo chama na

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carta aos gálatas “Evangelho da justificação”. O conteúdo do Evangelho de Paulo é aqui a
cimentação da vida cristã na charis de Deus, e, portanto, uma rejeição do “caminho da
salvação” da justiça humana baseada nas obras da lei. A “verdade do Evangelho”, seu
conteúdo, é agora a justificação do pecador em virtude do mistério de Cristo (Gl 2,14). O
Evangelho de Paulo é to euangelion tes akrobystias (2,7), como o de Pedro é to euvangelion
tes peritomes, ou seja, Paulo prega o Evangelho aos incircuncisos, e Pedro aos judeus
(circuncisos), mas ambos o fazem por mandato divino. Este mandado tem uma grande
importância no uso que a carta aos gálatas faz de charis. Paulo se considera mediador de algo
que recebeu de Deus em Jesus Cristo. Em toda a carta, o Apóstolo transmite o que recebeu de
Deus. Assim, o emprego de charis não se inspira diretamente no hesed do AT, mas no sentido
que este termo recebeu nos ambientes sapienciais e apocalípticos: charis é o conhecimento e a
doutrina (o que se refere à salvação e à conduta moral) recebidos através da revelação (para
Paulo, em Cristo e através dele). Isso explica o primeiro emprego técnico desta palavra por
parte do Apóstolo. Paulo fala de um favor de Deus muito concreto: “a graça que me foi
concedida” é desde o princípio uma alusão ao chamado divino de Paulo como apóstolo dos
pagãos (Gl 1,15-16; 2,9; 1Cor 3,10; Rm 1,5; 12,3; 15,5). Daí que sua visita apostólica à
comunidade seja uma charis, um fato gozoso. Frente ao uso geral de charis nas fórmulas de
saudação, a revelação graciosa da salvação da parte de Deus (charis) é personalizada em
Paulo, o que o orienta a um serviço muito determinado em favor dos demais: a pregação
apostólica do Evangelho aos pagãos. A graça foi concedida a Paulo “para anunciar Cristo
entre os pagãos” (Gl 1,15; Rm 1,5; 12,3; 15,5). Como em toda a apocalíptica, aqui charis
significa a comunicação de um conhecimento sobrenatural. Neste primeiro emprego técnico
do conceito de charis por Paulo, a graça é a doutrina da salvação transmitida aos apóstolos
pelo Pai através de Jesus, ou seja, a doutrina da eleição de todos os homens em Jesus Cristo.

A charis em 2Cor 5,18-21 e na carta aos gálatas

Na análise que fizemos até aqui não apareceu ainda a oposição entre “graça” e “lei”.
Para os judeus, a lei era uma charis ou revelação graciosa de Deus reservada a Israel. Neste
caso, eleição e graça eram vistas como revelação de uma sabedoria superior. Por isso, sem
entrar numa crítica polêmica com a lei, Paulo formula sua doutrina da justificação em 2Cor
5,18-21: “Deus, mediante Cristo, estava reconciliando o mundo consigo, cancelando a dívida
dos delitos humanos” (5,19) e “ao que não tinha que ver com o pecado, por nós o carregou
com o pecado, para que, por meio dele, obtivéssemos a justiça de Deus” (5, 21). A morte de
Jesus é uma morte expiatória pela qual os pecados são apagados, e a própria justiça de Deus
ou sedaqah passa a ser nossa justiça. Esta ideia, central na carta aos romanos, está ausente da
carta aos gálatas, mas sua formulação básica pressupõe a doutrina paulina sobre a justificação,
exposta na carta aos gálatas. Na 2Cor 5,18-21 a reconciliação e a justificação não aparecem
num contexto de polêmica contra os obras da lei, mas em relação com o serviço de
reconciliação, o apostolado peculiar de Paulo. Este apostolado é dirigido aos pagãos e não aos
judeus. Por isso, pode-se perguntar se a charis da revelação de Deus na reconciliação por
meio de Jesus Cristo ultrapassa a charis da Torá. De fato, se Deus reconciliou o mundo
consigo em Cristo, de modo que essa reconciliação é realmente perdão dos pecados, via de
salvação para Deus, então afirma-se o princípio de solus Christus. A charis da lei fica
superada pela graça manifestada em Cristo, e nenhum pagão convertido ao paganismo pode
então ser obrigado à circuncisão e à lei. Com Jesus, manifestou-se uma nova revelação e
uma nova autoridade. “Se a justificação fosse conseguida com a lei, então em vão morreu o
Cristo” (Gl 2,21; 5,4). O dilema será então: a salvação pela lei ou a salvação em Cristo?

Na carta aos gálatas, Paulo debate com os que querem obrigar os cristãos vindos do
paganismo a circuncidarem-se. Ele pensa em termos apocalípticos. Cristo se entregou por

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nossos pecados, para tirar-nos deste eon, segundo os desígnios de nosso Deus e Pai (Gl 3,4).
Em Cristo ressuscitado já esta presente o eon vindouro, e nós com ele. A Jerusalém do alto já
está presente na comunidade cristã terrena (4,26). Trata-se de uma “nova humanidade” (6,15).
Paulo exprime isso dizendo que Deus chama os homens em chariti, ou seja, graciosamente.
Aqui charis indica que o chamado de Deus acontece por graça. O termo “graça” é utilizado no
sentido absoluto (1,6; 5,4): trata-se do sistema da graça contraposto com o sistema da lei.
Nunca aparece a expressão charis Christou (e menos ainda charis Jesou), mas “charis de
nosso Senhor Jesus Cristo” (6,18). Em outras palavras, o Cristo ressuscitado é para Paulo a
charis de Deus. Em nenhum caso Paulo chama o Jesus histórico “uma graça”. Na carta aos
gálatas, charis é uma forma de designar o chamado de Deus (1,6. 15) ou uma espécie de
hipostasiação da graça da ação salvífica de Deus (2,20c-21; 5,18). É também uma graça que
recebemos (5,4) ou seja, a existência cristã enquanto dom de Deus, e, sobretudo, o ministério
apostólico de Paulo. A ideia de graça tem então na carta aos gálatas o significado de “regime
da graça”, sistema de graça, frente ao “sistema da lei” (5,4). Essa contraposição se exprime na
verdade do Evangelho (2,5. 14), caracterizado como Evangelho livre da lei (2,15-21). Nesse
contexto polêmico, o chamado misericordioso da parte de Deus adquire o significado de
“independentemente das obras da lei”, sem mérito algum de nossa parte (2,15-21). Este favor
é direcionado tanto aos judeus quanto aos pagãos (ambos pecadores, os pagãos por natureza,
os judeus por cometerem pecados, uma vez que por nascimento são eleitos). Esta distinção
dará nascimento a diferentes maneiras de relacionar graça e obras: a. para uma dessas
maneiras, Deus concede a graça não pelas obras do indivíduo, mas pela eleição de Israel e a
aliança com os antepassados; b. para a outra, Deus pensa segundo as obras. Segundo a
primeira concepção, todos os israelitas são eleitos. Neles repousam as promessas, apesar de
seus pecados. Unicamente os pagãos são autênticos pecadores (2,15), pois falta-lhes a grande
graça da lei. A nova questão que se coloca com o cristianismo é se a eleição depende da
possessão da lei ou do dom de Cristo ressuscitado. No que se refere à relação essencial entre
graça e eleição, estão de acordo Paulo e seus adversários. A divergência radica em saber se a
eleição tem como centro a Lei ou o Cristo.

O chamado gracioso de Deus significa que “o homem não se justifica pelas obras da
lei, mas pela fé em Jesus Cristo”. Por isso, “cremos em Jesus Cristo, para ser justificados
pela fé nele e não por observar a lei, pois por observar a lei nenhum mortal será reabilitado”
(2,16; 3,2. 5. 10). Paulo argumenta agora apoiando-se na concepção rabínico-farisaica da
justificação. Todos estavam de acordo em que só Deus justifica e salva o homem. Trata-se
aqui unicamente da via de tal justificação pela graça de Deus. Para os judeus, isto ocorre
mediante a fé na graça da Tora; para Paulo, mediante a fé na graça de Cristo. Paulo contrapõe
estas duas vias de salvação. Para a via rabínico-farisaica, fé e obras constituem um conjunto
unitário. A fé em Deus é uma obra da lei. A doutrina da justificação pela fé é vétero-
testamentária (3,6-9). Foi Abraão que introduziu este primeiro mandamento da confiança da
fé em Deus. Para Paulo, a fé em Cristo não é uma obra da lei, ainda que seja uma atividade do
homem (5,6). Fé e obras se contrapõem mutuamente (2,16; 3,2. 5. 10). Paulo rechaça a
observância da lei enquanto princípio salvífico. Cristo é o novo princípio salvífico. Enquanto
tal, ele exige também uma vida ética consequente e demonstrada como um sistema ou regime
legal, uma “lei à qual estamos submetidos” (4,4). O poder da lei e sua tutela foram destruídos
por Jesus na cruz (3,13 ; 4,5). Crer que Cristo destruiu o poder da lei equivale a crer na graça
de Deus (2,21). A morte de Jesus na cruz é então a única fonte de salvação (3,1b).

É surpreendente que na carta aos gálatas não esteja presente o conceito central da carta
aos romanos: o da “justiça de Deus”. Paulo argumenta a partir do judaísmo: ser justificado
quer dizer não ser considerado culpado. Trata-se do juízo escatológico de Deus (5,5). Só Deus
justifica e absolve. A fé em Cristo nos faz partícipes das promessas do AT. A bênção de Deus

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a Abraão, que dá ao judeu o orgulho de chamar-se “filho de Abraão”, é também privilégio dos
prosélitos. Um bênção dada a Abraão em seus filhos é previsão da herança que lhe foi
prometida (3,6-14). Para Paulo, judeu e pagão são conceitos religiosos, o que significa que
tanto uma religião quanto a outra estão superadas em Cristo: “já não há judeu nem grego…,
pois em Cristo, todos sois somente um” (3,28). Paulo fala da lei como de minoridade sob a
tutela dos cosmocrators, mas não a rejeita enquanto submissão a Cristo (nomos tou Christou,
Gl 6,2). A alternativa não é entre obras da lei ou graça, mas entre eleição (graça) em virtude
do dom ou possessão da lei (a qual exige obras) ou em virtude do dom de Jesus Cristo e da fé
nele (uma fé que tem que fazer-se efetiva, sobretudo no amor fraterno e nas outras
obras. Assim se deduz a conclusão final que Paulo tira de sua concepção da graça (Gl 3,28).

A teologia paulina da graça na carta aos romanos

Na carta aos romanos Paulo desenvolve uma teoria cristã da graça cuja estrutura pode
ser assim apresentada: 1. nem o paganismo nem o judaísmo procuram a salvação no sentido
de justiça de Deus (1,18-3,20); 2. a revelação da justiça de Deus (3,21-5,21); 3. a justiça de
Deus realiza a conversão à fé em Cristo: o batismo cristão (6,1-11); 4. parênese cristã:
comportamento cristão como consequência da justiça de Deus (6,1.12-13), com uma
exposição sobre a lei da carne e do espírito (7,1-25 ; 8,1-27), outra sobre o combate cristão
(7 ; 8,1-27) e um cântico de louvor à graça de Deus em Cristo; 5. partindo da manifestação da
justiça de Deus em Cristo, Paulo se pergunta como considerar a eleição divina de Israel (9,1-
11,35). A análise que faremos aqui se concentrara, sobretudo, nos primeiros elementos: 1,2,3.

Nem o paganismo nem o judaísmo proporcionam a salvação ou a “charis”

Em Rm 1,18-3,20, Paulo mostra que, apesar das diferenças fundamentais do plano


divino da salvação, tanto pagãos quanto judeus são pecadores e necessitam reconciliar-se com
Deus. No judaísmo anterior a Paulo, os pagãos já eram considerados pecadores. Israel também
pecava como os pagãos, mas sua situação diante de Deus era a de povo eleito. Com Paulo,
apesar da prerrogativa da eleição, não existe diferença entre pagãos e judeus. Todos pecam.
Paulo afirma isso como ponto de partida (1,18), analisando em seguida a pecaminosidade
universal dos pagãos (1,19-32) como também a dos judeus (2,1-13. 17-29). A partir desta
pecaminosidade universal, ele se pergunta em que consiste o privilégio do judeu. Para ele,
todos estão sob o domínio do pecado (hamartia). Em que o judeu é superior? (3,1). Em muito,
sob qualquer aspecto (3,2). Por um lado, porque a Israel foram confiadas “as palavras de
Deus”. A infidelidade do povo eleito não anula a fidelidade de Deus: “só Deus é leal” (3,4b).
Por outro lado, o pecado de Israel faz ressaltar a misericórdia de Deus (3,5). A modo de
conclusão Paulo acrescenta: “pois a função da lei é dar consciência do pecado” (3,20b). Fora
desses dois aspectos, Israel não tem nenhuma vantagem diante dos pagãos (3,9). A história
está sob o domínio do pecado (3,9b), apesar da consciência com a qual podemos discernir o
bem do mal, apesar do dom da Tora a Israel. Trata-se da lei de Deus (7, 22.25; 8,7), que é
santa (7,12), justa, boa (7,12) e destinada a dar vida (7,10). Mas o homem enquanto sarx não
está em condições de não pecar. Nem o nomos nem a sophia lhe dão força para isso (8,3).
Paulo encontra este dado na experiência sapiencial formulada no AT, e conclui sua exposição
sobre a universalidade do pecado com uma série de citações bíblicas (3,19. 20).

Revelação da justiça de Deus em Jesus Cristo

O conceito de justiça, em forma masculina sedeq e em forma feminina sedaqah (na


Septuaginta, dikaiosyne), conheceu em Israel e no primeiro judaísmo uma evolução. A partir
do conceito profano se chegou ao conceito religioso de justiça, que se bifurcou posteriormente

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em duas correntes dentro do judaísmo: a. a que afirmava uma justificação baseada
exclusivamente na graça de Deus; b. a que afirmava uma justificação humana frente a Deus
em virtude da observância da lei. No tempo de Jesus e do nascimento do NT, havia também
duas correntes na concepção judaica da sedaqah: 1. a ideia de uma justificação por graça, não
em virtude das obras, ainda que a graça se manifeste também na observância da lei; 2. a ideia
de que Deus justifica ou faz justiça ao saddiq, não ao pecador. Esta última concepção era a
tese das classes dirigentes de Israel. Numa perspectiva cristológica, essas duas correntes
encontram-se no NT. Por um lado, o paulinismo e a justificação pela exclusiva misericórdia
da graça divina, embora fora da escola paulina e do âmbito de influência de Paulo, o
cristianismo pré-neo-testamentário primitivo tenha conhecido esta linguagem. Por outro lado,
conceito de “justiça” próprio do judaísmo ortodoxo e oficial. Mateus enumera as categorias
de “boas obras” segundo o judaísmo: esmola, jejum e oração (Mt 6,1-4. 5-14. 16-18) como
sinônimo da perfeição cristã. “Justo” é o homem virtuoso que cumpre o mandamento de Deus
(1,19; 13,17; 23,29); “Justiça” aqui é uma vida moralmente virtuosa (5,20; 6,1-33) como
consequência da fé na redenção de Jesus. Mateus não critica o conceito judaico de justiça, por
mais que diga aos dirigentes judeus que eles tinham esquecido o mandamento principal: a
misericórdia (23,23-24), além de lhes lembrar como são “hipócritas”: carregam fardos para
os débeis e pobres e não os portam (23,3-4). Lucas também utiliza uma ideia similar: “pois
Deus não fará justiça a seus eleitos se eles lhe gritam dia e noite? Digo-vos que lhes fará
justiça sem tardar” (Lc 18,7-8a). Trata-se da mesma ideia de um Deus que faz justiça ao
saddiq. Daí que se relacione esta ideia com a do “justo sofredor” (Mt 5,6. 10). Nesse sentido,
certa tradição apresenta a Jesus como o saddiq, “o justo”. O conceito autenticamente paulino
de “justiça divina”, procedente do primeiro hassidismo, da apocalíptica e de Qumram, não
aparece em nenhum outro lugar do NT, exceto na frase: “buscai primeiro o reino de Deus e
sua justiça” (Mt 6,33). Aqui encontramos o conceito salvífico escatológico da sedaqah de
Deus, que, fora do paulinismo, não aparece no NT, ao menos com o termo “justiça”. O NT
oferece uma visão unitária da graça de Cristo e de seu perdão dos pecados, mas, no que diz
respeito ao uso de sedaqah, é influenciado por diferentes correntes e temas judeus.

Para explicar a graça e a salvação em Jesus Cristo, Paulo recorre ao antigo conceito de
“justiça de Deus” para entrar em polêmica com os círculos oficiais judeus, para os quais a
“justiça” é a qualificação de um agir humano e ético (fiel à Tora), ao qual Deus fará justiça. A
seu modo, Paulo passou pela experiência de Jó. Aprendeu com a própria experiência que não
é possível confiar na valorização das próprias obras boas, pois ele havia considerado e vivido
existencialmente sua atividade perseguidora dos cristãos como algo agradável a Deus. Sua
ideia de justiça, interpretada com esquemas humanos, caiu por terra graças à sua experiência
da misericórdia de Deus em Cristo. Para Paulo, o erro de sua atividade anterior não consistia
propriamente em seu zelo ético pelo que, em consciência, ele considerava bom, mas em ter-se
equivocado de objeto: atacava o que era precisamente a fonte da santificação e da graça. Esse
foi seu erro fundamental. Recorrendo à antiga ideia religiosa de justiça de Deus, trata, por um
lado, de estabelecer um nexo entre Israel e a Igreja, enquanto que, por outro lado, acentua a
novidade que supõe Cristo. O dom salvífico escatológico de Deus não está na Tora, mas em
Jesus Cristo. É ele quem dará a cada um segundo seus méritos. Também para Paulo o dom
livre da justiça da parte de Deus se manifesta numa conduta cristã ética.

Quando Paulo, frente à pecaminosidade geral do mundo, apresenta a charis que Deus
mostra em Jesus Cristo, a acusação de que “todos estão sob a ira de Deus” é contraposta a
Jesus como Cristo. Trata-se de um dado apostólico: “agora, no entanto, independentemente
de toda lei, manifestou-se a justiça de Deus” (3,21b). Mas Paulo acrescenta: “testemunhada
pela lei e pelos profetas” (3,21b). Por um lado, a novidade em Jesus, manifestado como
Cristo; por outro, o que diz o AT. Quem é que salva? “A justiça de Deus opera pela fé em

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Jesus Cristo, em favor de todos os que creem” (3,21b-22), ou seja, tanto judeus como pagãos.
O ponto de partida da nova argumentação é a conclusão a que chega nos capítulos anteriores :
“porque todos pecaram e estão privados da presença de Deus” (3,23). Mas, ao mesmo tempo,
diz, como contraste: “graciosamente todos são justificados pela generosidade de Deus,
mediante a redenção presente em Jesus Cristo” (3,24). A “redenção” se concentra aqui na
morte de Jesus na cruz: “expiação por seu próprio sangue” (3,25). Aí é onde se manifesta a
justiça de Deus (3,21), e de tal forma que “assim demonstra Deus que ele é justo e que
justifica a quem alega a fé em Jesus” (3,26). Nesses versículos (3,21-26) aparece o núcleo do
que Paulo quer demonstrar em Rm 4-5, mediante uma argumentação de tipo judaico. Paulo
quer agora demonstrar que Deus justifica pela fé. Em sua argumentação há que distinguir a
contraposição judaica entre graça e obras (Rm 4) e a contraposição entre graça e pecado, mas
tendo em mente que esta segunda questão está implicada na primeira e que esta influi na segunda.

Em Rm 4,1-25, Paulo fala da justificação pela fé: “por graça” aqui se contrapõe a
“como dívida” (4,4). A análise de Rm 1-3 mostrou que devido a pecaminosidade universal, a
“redenção”, a vitória sobre o pecado ou a remissão dos pecados, é uma graça de Deus, tanto
para os judeus como para os pagãos. A verdadeira justiça consiste em pertencer a Jesus,
confessá-lo como Cristo, ressuscitado da morte. Em Cristo, a contraposição religiosa entre
povo de Deus e pagãos pertence totalmente ao passado. Para demonstrar isso, Paulo vai
relacionar o hesed ou a charis de Deus com o evento Jesus Cristo. Para isso, ele recorre a um
antigo midrash judaico sobre Abraão (Rm 4,1-25). O centro desta exposição é que a justiça
está unida essencialmente à fé, da mesma forma que, segundo a tradição judaica, estão unidos
hesed (o favor de Deus) e justiça. Graça e justiça formam, desde o ponto de vista judaico, um
único conjunto unitário. No desenvolvimento da argumentação de Paulo, combinam-se dois
dados: por um lado, o trinômio pré-existente em alguns círculos judaicos de graça, justiça e
fé; por outro, o dado cristão apostólico da fé em Jesus Cristo como salvação procedente de
Deus. Desta fusão de determinados conceitos do primeiro judaísmo com o credo fundamental
da fé apostólica não se segue diretamente a contraposição entre lei e charis ou entre lei e
Cristo, que é o que interessa a Paulo. Por isso ele vai modificar o midrash judaico sobre
Abraão a fim de que apareça claramente tal antítese. O essencial da mudança é que Paulo
identifica a contraposição judaica entre charis (graça) e ergon (obra) com uma contraposição
entre graça e obras da lei, e, quase sem dar-se conta, termina contrapondo graça e pecado. Tal
modificação dá lugar à contraposição entre a charis de Cristo e a Tora. Assim Rm 4,6-8
refere-se à versão que Paulo oferece do midrash sobre Abraão. A graça se contrapõe aqui não
só à falta de obras, mas à presença do pecado. Rm 13-15 é também reelaboração paulina do
midrash: as promessas feitas a este patriarca não se baseiam na lei, mas na justiça da fé. O
período da soberania da lei não só impedia o cumprimento da promessa, mas, ao invés da
charis, produzia a ira de Deus (4,14-16). Rm 4,24-25 indica que a justiça da fé implica
essencialmente o perdão dos pecados. Charis equivale então a perdão dos pecados. Sem dar-
se conta, Paulo muda a contraposição judaica entre graça e obras pela contraposição entre
graça (perdão dos pecados) e pecados. O fundamento da misericórdia de Deus, bem como o da
eleição, já não diz relação ao dom da lei, mas à nova situação exclusiva inaugurada em Cristo.

Para Paulo, a eleição se dá exclusivamente pela fé em Cristo. Devido a isso, ele deixa
sem efeito a eleição passada no dom e na possessão da lei. Faz seu o midrash de Abraão, mas
o modifica com vistas a esse propósito. Da versão paulina do midrash de Abraão segue-se esse
díptico: charis, justiça e fé frente a ira, lei e obras. Aparece assim uma oposição não judaica
entre fé e obras. Obras e fé têm na exposição paulina um significado particular: as obras são
relacionadas com a Tora da mesma forma que a fé é identificada com a fé em Jesus Cristo.
Para um cristão, a salvação tem que vincular-se a Jesus Cristo. Este é o núcleo da tradição.
Desta forma, Paulo devia mostrar que a lei não podia ser um dom escatológico de salvação.

20
Ele não nega que a fé tenha que fazer-se efetiva em obras. Ele se refere a outra coisa. Assim
como o judeu declara sua fé na Tora, mediante o cumprimento da lei, assim também o cristão
confessa a Jesus como Cristo mediante a fé. A opção está entre a exclusividade salvífica da lei
ou a de Cristo. O que Paulo acentua é a fé exclusiva em Cristo. Não se põe o acento na graça,
mas nesta graça, a graça da fé em Cristo, pois também os judeus criam que a salvação vem
por hesed ou misericórdia de Deus. O objetivo da argumentação de Paulo é que a lei, por ser
causa de ira, constitui um obstáculo para a charis de Deus. Invocando a figura de Abraão,
anterior à Tora, o Apóstolo rompe o caráter restritivo de uma eleição divina em favor dos
circuncisos (4,10). Trata-se de um novo conceito de eleição, sem condições prévias (isso é
judaico), mas não limitado a um povo, ainda que passe por Abraão como pai de todos os
povos: salvação, primeiro do judeu, mas também do grego. A condição de filho de Abraão
fica assim desligada da Tora. O único caminho de salvação, o que existiu deste há muito
tempo, é o caminho da fé: a fé de Abraão no Cristo futuro, o qual constituiria sua descendência.

Em Rm 5,1-11 Paulo faz um resumo do que já disse: justificados pela fé, vivemos
em paz com Deus por meio de Cristo. Esta vida é uma “situação de graça” (5,2) que, por um
lado, não é a consumação escatológica, ainda que seja uma esperança razoável da mesma
(5,2), e, por outro, se vê confirmada e consolidada. Porque se Deus nos amou “quando ainda
éramos pecadores” (5,8b), a fé nos permite afrontar o juízo com maior confiança, uma vez
que Deus nos justificou pelo sangue de Cristo (5,9). A reconciliação já se realizou (5,11), mas
a redenção (ou seja, a salvação corporal e espiritual) ainda tem que chegar (8,24).

Após esse breve resumo, Paulo continua sua argumentação. O tema agora é o da
contraposição entre graça e pecado, como se se tratasse de dois campos de força
independentes: o da charis (graça) e o da hamartia (pecado), o velho eon frente ao novo, um
período de desgraça e outro de salvação, inaugurado pela morte propiciatória de Jesus. Em
Rm 5-6 desaparece a contraposição entre judeus e pagãos, que é substituída pela
contraposição entre o primeiro eon, o reino do pecado (para judeus e pagãos) e o segundo
eon, o reino da graça, “primeiro para o judeu, mas também para o grego” (1,16). Trata-se
agora de precisar que efetividade tem a potência que domina o primeiro eon e que efetividade
tem a charis, enquanto potência do segundo. Se em Rm 4, Paulo passa quase que
inadvertidamente das obras da lei aos pecados, em Rm 5-6 esquece as obras da lei ao
contrapor graça e pecado. A tipologia de Adão, outro midrash tomado do judaísmo, domina
esta nova exposição. Paulo utiliza este midrash para destacar a singular posição escatológica
de Cristo como único mediador da graça de Deus. Só quem está vinculado a Jesus Cristo pela
fé participa da eleição de Deus e se acha no âmbito da charis de Deus, o que implica uma
série de consequências éticas: viver sem pecado. Para explicar esse caráter exclusivo de
Cristo, Paulo relaciona agora o midrash tradicional sobre Adão com a lei (Rm 5,12-21). A lei
proporcionava a potência do pecado uma boa ocasião de domínio, pois o pecado é
formalmente uma transgressão da lei. A lei manifesta o pecado enquanto pecado e também
sua proliferação. Rm 5,13-14 interrompe a argumentação para pôr em destaque a
universalidade do pecado. Entre Adão e a legislação mosaica, mesmo que seja um período
sem lei, dominava a morte (como castigo do pecado). Também aqueles homens eram
pecadores, ainda que não tivessem transgredido a lei. Morreram pelo pecado de Adão, que foi
a transgressão de uma lei. Aqui temos o tipo e o anti-tipo do díptico. Universalidade da
desgraça imputada a um primeiro Adão frente à universalidade da salvação presente no
segundo Adão, Cristo. A tipologia alcança seu ponto culminante na superabundância da graça
frente à proliferação do pecado. Assim como na fé de Israel, Deus castiga até a quarta ou a
quinta geração, mas mostra hesed até mil gerações. Na universalidade do pecado e da graça,
Paulo sublinha a superabundância da graça que supera qualquer medida. Paulo oferece aqui
uma concepção cristã do antigo hesed judeu de YHWH: o muito mais do hesed de Deus em

21
Cristo. Só aqui se acha a charis de Deus em Cristo. O antigo vínculo entre “conduta reta” e
“vida” se converte assim em um vínculo essencial entre graça e vida (5,10. 17. 18. 21; 6,4),
em contraste com o vínculo igualmente essencial entre pecado e morte: enquanto o pecado
reinava dando morte (5,21a), “a graça reina concedendo uma justiça que acaba em vida
eterna” (5,21b). Rm 5,18-19 volta a retomar a tipologia Adão-Cristo, agora sob o aspecto do
que está na origem das duas forças ou eons: por um lado, um único delito de um só homem,
multiplicado pelos próprios pecados de cada indivíduo (5,20), supôs a condenação de todos os
homens; por outro, o ato de fidelidade de um só, Jesus Cristo, se converteu em justificação ou
em anistia para todos os homens. Este ato de fidelidade de um só homem, que nos trouxe a
charis e a salvação, é para Paulo o sacrifício obediente de Jesus na Cruz (4,25; 5,6. 8. 9-11).

Em Rm 3-5 a charis aparece vinculada à morte de Jesus na cruz, considerada como


uma morte para expiação dos pecados, que se identifica, por sua vez, com o perdão dos
pecados. Mas não era esta a concepção judaica de expiação dos pecados. O sacrifício
expiatório era a exigência canônica para obter a absolvição forense ou jurídica dos pecados,
no sentido de “não culpável diante a lei”. Mas este plano jurídico não significa o perdão dos
pecados, reservado exclusivamente a Deus. No judaísmo “oficial”, uma pessoa era absolvida
de seus pecados se era saddiq ou, no caso de haver transgredido a lei, se havia reparado a
transgressão mediante um sacrifício expiatório. Em ambos os casos, essa pessoa é saddiq no
plano da lei. Isso era suficiente, pois o sacerdote declarava alguém saddiq reconhecendo-lhe o
direito à vida (Ez 18,9; Sl 19,56; 24,5) “em nome de Deus”. A questão do perdão dos pecados
é algo distinto. Pertence exclusivamente a Deus. Só em alguns círculos “não oficiais” do
primeiro judaísmo se opinava que Deus concede o perdão são só ao saddiq, mas também ao
pecador. O cristianismo primitivo uniu estas duas concepções judaicas. Deus concede o
perdão do pecados em Cristo, o qual realizou a expiação dos pecados mediante sua morte
cruenta (“justificados por seu sangue”, Rm 5,9). Assim se põe em destaque o caráter de graça
tanto do sacrifício expiatório como do perdão dos pecados. Em Cristo, Deus leva a cabo a
reconciliação (2Cor 5,17-19). Esta combinação de duas concepções judaicas diferentes
explica a curiosa bipartição que encontramos em Rm 4,25: “entregue por nossos delitos e
ressuscitado para nossa justificação”. Sacrifício expiatório e justificação e absolvição, mas já
não em sentido forense, mas por meio do perdão dos pecados. “Mortos ao pecado e vivos
para Deus, mediante Cristo Jesus” (6,11. 22), ou seja, graças à charis de Deus (5,15).
Batizar-se para Paulo é obter o perdão dos pecados e a justificação, o que coincide
formalmente com a conversão ao cristianismo: a vinculação a Cristo pela fé, sinal da eleição
misericordiosa de Deus. Paulo chega assim a distinguir formalmente entre a justificação e a
santificação que se segue a ela, uma distinção que perde praticamente sua importância nas
comunidades cristãs já estabelecidas. Como consequência desta estreita conexão entre a
charis de Deus e a morte de Jesus na cruz, a noção sapiencial e apocalíptica que o primeiro
judaísmo tinha da charis, no sentido de uma sabedoria comunicada sobrenaturalmente por
revelação, ainda que não desapareça por completo, passa a segundo plano na acepção técnica
que a graça tem na carta aos romanos. Isso confere à ideia paulina de charis um significado
muito específico: graça de Deus é a morte de Jesus na cruz, “porque todos pecaram e estão
privados da doxa ou glória de Deus; mas todos graciosamente vão sendo justificados pela
generosidade de Deus, mediante o resgate que obtemos em Cristo Jesus: Deus o pôs diante
de nós como sacrifício expiatório, com seu próprio sangue” (3,23-25b). Ou seja, Paulo une a
charis do perdão dos pecados puramente escatológica (judaica) a um fato histórico, o
sacrifício expiatório de Jesus. Ainda que a ressurreição dos crentes seja um acontecimento
futuro, o perdão escatológico dos pecados já é uma realidade atual. Ainda que a salvação não
se tenha realizado plenamente na nossa história, ela já é uma realidade presente nessa história
e uma parte essencial da mesma: a santificação, a libertação do pecado e a vida para Deus.

22
Consequências ético-religiosas da vida na graça

Em Rm 6,1-7,25 Paulo fundamenta o imperativo da moral cristã sobre o indicativo da


reconciliação realizada em Cristo. A soteriologia, ou a doutrina da salvação, desemboca assim
numa forma de vida cristã. Em diferentes versículos Paulo insiste sobre a passagem do eon do
pecado ao eon da graça. Essa passagem se realiza para o cristão através do batismo. Paulo
distingue dois aspectos: a. “morto ao pecado” (6,11) ou “emancipado do pecado” (6,22), e, b.
“vivo para Deus mediante Cristo Jesus” (6,11) ou “entrado no serviço de Deus” (6,22). Para
Paulo, o batismo é um morrer com Jesus e um ser sepultado com ele, um morrer ao pecado
(6,3. 4. 6. 7). A ressurreição de Jesus tem outro significado enquanto ainda não ressuscitamos
nós também. A vida de Jesus ressuscitado é um viver para Deus (6,10b). Isso quer dizer que
viver tem sempre relação com viver para Deus, em comunhão com ele. Por isso, o batismo
significa: a. não ser mais escravos do pecado (6,6), morrer ao pecado de uma vez para sempre
(6,10) e, portanto, viver para Deus (6,11); b. isso não significa ainda ter ressuscitado com
Cristo, exceto em sentido espiritual, “como mortos que voltaram à vida” (6,13), à vida para
Deus sem pecado. Quem vive deste modo, vai ganhando uma santidade que leva à vida eterna
(6,22), ou seja, à ressurreição corporal. Mas este ganhar a vida eterna é, ao mesmo tempo, um
dom de Deus: “o salário do pecado é a morte, enquanto que o dom de Deus é a vida eterna por
meio de Cristo Jesus nosso Senhor” (6,23. 22).

Como a redenção, enquanto salvação corporal, ainda não se realizou, a vida


reconciliada com Deus tem que ser vivida nas condições do velho eon, de uma sarx ainda não
curada ou de uma humanidade débil, cujo expoente é o “ser mortal” (6,12). Servir em virtude
de um espírito novo não modifica a estrutura da sarx ou do homem débil, que vê o bem e no
fundo o deseja, mas que, abandonado a si mesmo, não pode realizá-lo (7, 25b. 18b-21). Paulo
utiliza em Rm 7,7-25 o tema estoico da cisão antropológica entre logos e sarx, mas
cristianizando tal cisão em forma de um conflito entre o regime do Espírito e da vida de Cristo
(8,2) e os baixos instintos da sarx (8,6). Trata-se aqui do homem no seu conjunto, que tende
ao bem e o faz pelo Espírito divino (8,2-4), mas que, por si mesmo, contra os critérios da
razão (7,25b), faz o mal. Nesta seção, sarx é o próprio do homem em sua debilidade física e
ética. O soma ou corpo humano tem em Paulo, especialmente em Rm 7-8 um papel essencial
neste emprego de sarx. Em tudo isso subjaz a contraposição estoica entre o nous, a razão, que
está dirigida para o bem, e o soma, o corpo, que não pode ser dominado pelo espírito. Em
Rm 7-8 emprega-se sempre soma e sarx como termos equivalentes, e toda a exposição se
desenvolve sob o lamento: “quem me libertara deste soma tou thanatou?” (7,24). O corpo
físico, enquanto não ressuscitado, é para Paulo um foco de pecado. O principio estoico
subjacente à reflexão paulina se converte em contraposição entre sarx, ou seja, o conjunto do
homem que não tem pneuma, e pneuma, o homem que possui a graça do pneuma de Deus.
Mediante o dom do pneuma, fundamento da ressurreição futura (8,24), o corpo humano é
despojado de sua condição de sarx. Em princípio, o cristão que possui o pneuma não pode
mais pecar. Ele faz, porém, a experiência de que a morte ainda não foi vencida. Ela é o último
inimigo. O cristão tem que viver no corpo segundo as exigências do pneuma. A renúncia da
sarx no batismo é, ao mesmo tempo, um imperativo ético para sua vida (8,13). O contrário de
“na sarx” é “em Cristo” (8,1) ou a inabitação no Pneuma (8,3. 10; 13,4) ou “no Senhor” (Fl
4,1). Pelo batismo, o homem é uma nova criatura. Dado que o corpo é marcado pela morte e
que constitui a porta de acesso para os ataques da hamartia, o cristão geme no íntimo à espera
do resgate do corpo, não por causa do corpo, mas porque espera um corpo pneumático.

23
4. Análise teológico-sistemática da experiência da graça no NT

Todos os escritos do NT dão testemunho da experiência da salvação de Deus em


Jesus. Esta experiência está condicionada não só pelas diversas circunstâncias geográficas e
culturais, mas também pelas dificuldades que padeciam as diferentes comunidades locais.
Retomamos aqui, a título de síntese teológico-sistemática, a noção de graça nos escritos do NT.

a. A ideia de “charis’ ou de graça no NT

Como os conceitos de hesed e hanan, “graça” significa no NT o amor benevolente e


misericordioso, e ao mesmo tempo, soberanamente livre, de Deus para com os homens, um
amor que não deve entender-se no sentido exclusivamente interno, como um sentimento de
benevolência de Deus e em Deus, mas como uma benevolência divina realmente salvadora
que se manifesta ou se revela nos dons da redenção e libertação, da salvação e felicidade, que
Deus concede generosamente na história e que os homens podem experimentar por meio da fé.

A graça é uma nova vida, gratuita (Paulo) e gozosa (Lucas) que Deus nos preparou em
Jesus Cristo e que nos oferece no plano de nossa história terrena (Hb 10,20; 2Pd 1,15; Jo
14,6); um caminho de salvação (At 16,17; 9,2; 19,23; 24,14; 1Cor 12,31). Trata-se de uma
nova possibilidade de vida, um modo de existência, no qual o homem experimenta realmente
salvação e redenção, libertação e renovação, felicidade e plenitude. Para o NT, trata-se de
seguir o caminho da vida de Jesus com Deus, plasmado em sua solicitude pelos homens, em
solidariedade com o Deus que se preocupa com todos. É uma atitude existencial, mediante a
qual o impulso de Deus, seu amor e fidelidade misericordiosos (hesed e ‟emet), nos quais se
pode realmente confiar, são continuados pelos homens e mulheres em nossa história terrena.

O homem conta para isso com a ajuda de Deus. Sua nova possibilidade de vida,
proclamada na pregação e nas parábolas de Jesus, demonstrada e vivida em sua práxis e
morte, recebe no NT nomes distintos, mas trata-se de uma única realidade. O paulinismo fala
de ser adotados como filhos, o joanismo de nascer de Deus. Ambas concepções querem dizer
que o cristão participa da singular relação vital que une o homem Jesus, o Filho, com o Pai
através do Espírito. O conceito de graça designa antes de mais nada o chamado a participar
dessa peculiar comunhão de vida com Deus: a vocação cristã, consequência do desígnio livre
e gratuito de Deus, que chama os homens ao caminho do Evangelho (Gl 1,6 ; 2Tm 1,9). Em
segundo lugar, em virtude desse chamado, enquanto obediência da fé (Gl 3,5; 1Cor 1,12; Rm
6,16; 5,15), graça designa a vida cristã: uma existência concedida, no ser e no operar, por
graça, na qual a conduta responsável se vive como uma realidade apoiada, guiada e orientada
pela força de Jesus, que enquanto dynamis divina (Lc 4,22; 6,8; 20,32; 14,26; 15,40;18,27;
1Cor 1,18; 6,14; 2Cor 4,7; 12,9-10; 2Tm 2,1; Rm 1,16; Ef 2,12-13) “dá fruto crescente em
nós” (Cl 1,6-7) “mediante a fé que se traduz no amor ao próximo” (Gl 5,6).

Este chamado divino se manifestou pessoalmente em Jesus e tomou corpo em seu


chamado pessoal à conversão face à urgência do reino que está próximo (Mc 1,14-15). Para
aqueles que não ouviram este chamado histórico de Jesus, a gozosa mensagem do Evangelho
pregado pela comunidade cristã no mundo é já uma graça e uma força (At 5,20; 20,24-32; Lc
4,22; 1Cor 15,2; Tg 1,1; 2Tm 1,1; Ef 6,15). Além do mais, a graça da qual fala propriamente
o NT é, sobretudo, o acontecimento Jesus, sua aparição pessoal em nossa história. Uma série
de textos pertencentes a diferentes livros do NT tratam de formular concisamente o que
experimentaram os cristãos como salvação de Deus e como experimentam Jesus enquanto
salvação. Assim: “a graça e a verdade se fizeram realidade em Jesus Cristo” (Jo 1,17); “a
graça outorgada por Deus, o dom da graça que correspondia a um só homem, Jesus Cristo”

24
(Rm 5,15.17); “a graça de Deus se fez visível, trazendo salvação para todos os homens” (Tt
2,11); “fez-se visível a bondade de Deus e seu amor pelos homens” (Tt 3,4); “Deus, a
plenitude total, quis habitar nele” (Cl 1,19); “é neste em quem habita realmente a plenitude
da divindade e por ele… haveis obtido vossa plenitude” (Cl 2,9); “um mediador entre Deus e
os homens, um homem, Cristo Jesus” (1Tm 2,5); “por ele temos acesso ao Pai” (Rm 5,2);
“salvou-nos…com o Espírito Santo que Deus derramou copiosamente sobre nós por meio de
nosso Salvador, Jesus Cristo” (Tt 3,6); “nisso se fez visível entre nós o amor de Deus: em que
enviou ao mundo seu Filho único” (1Jo 4,9); “olhai que magnífico presente nos deu o Pai:
que nos chamemos filhos de Deus, e nós o somos” (1Jo 3,1); “Deus…que nos chamou… a
participar da natureza de Deus” (2Pd 1,4c).

Esses textos mostram que o ponto focal da consciência e da experiência religiosa de


Deus no NT está relacionado com o homem Jesus Cristo. Esta manifestação da benevolência
de Deus em Jesus Cristo tem uma pré-história. O interesse pela revelação divina da graça fora
do cristianismo não é muito presente nos escritos do NT, que estão sob o efeito do entusiasmo
pelo evento cristológico. Ao lado deste entusiasmo de fé pelo que se experimentou e se
experimenta em Jesus Cristo, os cristãos sabem, porém, que a misericórdia universal de Deus
se manifestou de modos muito diferentes antes de Jesus Cristo. Fundamentalmente, na
história comum a todos os homens, essa misericórdia se manifesta na peripécia humana com a
natureza, que suscita uma consciência ética e religiosa, e particularmente, através da história
de Israel no crisol da história dos povos vizinhos (Hb 1,1; Rm 2,1-3. 20). Sobre este fundo
histórico, universal e particular, aparece Jesus de Nazaré (Rm 3,21-4,5) como o “amém” de
Deus a todas as promessas feitas a Israel e, portanto, a todos os povos (2Cor 1,20).

Em todo o NT afirma-se que a aparição de Jesus na terra é a graça de Deus. Há,


porém, diferentes interpretações e matizes. Assim, nos quatro Evangelhos, o acontecimento
global de Jesus e em torno dele é um sinal da graça de Deus. Para Marcos, desde o batismo de
Jesus, para Mateus, Lucas e João, desde o primeiro momento de sua vinda ao mundo (Jo 1,14;
3,16; 12,46-47). Dons dessa graça não são somente sua morte e ressurreição, mas também sua
mensagem sobre o reino de Deus e toda sua práxis, seu trato com os homens, especialmente
quando comia com eles e aliviava seus problemas, e de modo particular, seu contato com os
pecadores, com os pobres e os oprimidos, gente discriminada desde o ponto de vista religioso
e que padecia as consequências sociais de tal discriminação. Já antes da páscoa, pode-se dizer
que o fato de se tomar postura a favor ou contra Jesus implica uma decisão sobre o destino da
própria vida: é uma decisão a favor ou contra o reino de Deus.

Nos quatro Evangelhos canônicos e no resto do NT, o sumo dom da graça é o amor de
Jesus até à morte: sua paixão e morte como fracasso de sua vida, uma vida que, com dor, mas
também com todas as suas forças, é posta nas mãos de Deus (Rm 5,9-11; 1Cor 15,2-3; 2Cor
3,17-18; Hb 10,29; 1Pd 2,21; 2Tm 1,10b). “Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas o
entregou por todos nós, como não nos dará tudo?” (Rm 8,32). “Deus amou tanto o mundo que
deu seu Filho único, para que tenha a vida eterna e não pereça nenhum dos que nele creem”
(Jo 3,16). Sobretudo em Paulo e nas tradições neo-testamentárias influenciadas por ele, a
graça de Deus se condensa particularmente na morte e na ressurreição de Cristo, reduzindo e
limitando assim a charis ao evento pascal (Gl 2,19; 1Cor 1,30; 2Cor 5,21). Só o Senhor Jesus
é graça. Sem a ressurreição, a atividade terrena de Jesus fica inacabada. Os quatro Evangelhos
evitam esta concepção exclusivamente querigmática. Eles reconhecem o caráter de graça
inerente à mensagem e à práxis de Jesus. Podemos, porém, dizer de todo o NT que Jesus só é
confirmado por Deus depois da morte. “Pela graça de Deus, a morte que ele experimentou,
redunda em favor de nós” (Hb 2,9). A carta aos hebreus sublinha especialmente que é um ato
exclusivamente divino do Pai o que confere a eficácia do sacrifício de Jesus seu “pleno”

25
sentido. Isso não elimina o elemento do amor de Jesus até a morte, mas é seu pressuposto. Por
conseguinte, a ressurreição de Jesus é um ato livre e soberano de Deus, ainda que sua
manifestação inicial tenha sido a comunhão de vida de Jesus com Deus, em virtude da qual
aceitou sua paixão e morte. Da parte de Deus, esta comunhão é precisamente uma
demonstração de graça para com Jesus, uma graça que na exaltação ou ressurreição mostra
sua dinâmica interna e alcança sua plenitude. Só depois de ter alcançado esta plenitude, pode
afirmar-se que Jesus “se converte em causa (fonte) de salvação eterna” (Hb 5,9). Falando do
Jesus histórico, o Evangelho de João também diz: “ainda não havia Espírito, porque Jesus
não havia sido glorificado” (Jo 7,39), texto que exclui radicalmente a possibilidade de que
Jesus, depois de sua morte, volte a ser Logos a-sarkos pós-existente, não encarnado, como em
sua pré-existência. O NT ensina, pois, que só Jesus ressuscitado dá escatologicamente a
salvação: no Pneuma, seu Espírito e o de Deus (Rm 8,14-18. 29; Gl 4,4-7; Ef 1,3-5; Tt 3,6),
ou seja o Espírito mediante o qual o cristão, em virtude da graça da fé e do batismo (Rm 6; Gl
3,26-27; Tt 3,5), se faz semelhante a Jesus, ou seja, participa de sua relação com Deus e de
seu serviço radical aos irmãos (Rm 8,29) na sua entrega ao próximo.

b. Conteúdo salvífico do termo graça

A salvação de Deus, que nos foi outorgada pela vida de Jesus e que culmina na
sua morte e ressurreição, se apresenta tematicamente como: a. filiação divina; b. dom do
Espírito Santo. Antes de resumir o que o Novo Testamento entende por “riqueza da graça
de Deus” (Ef 1,7b; 2,4-7; 3,8), devemos analisar com mais detalhes estes dons fundamentais.

Filiação divina

Já os Sinóticos falam de filiação: “felizes os que trabalham pela paz, porque serão
chamados filhos de Deus” (Mt 5,9); “para serdes filhos de vosso Pai do céu” (Mt 5,45). Em
si, este conceito se encontra na consciência religiosa do homem em geral. O específico do NT
consiste em que esta peculiar comunhão de vida com Deus se realiza pela mediação de Jesus
de Nazaré, Cristo, Filho de Deus, “de cuja plenitude todos recebemos” (Jo 1,16; Cl 2, 9. 10).
Que modelo utiliza o NT para explicar esta nova relação de graça do homem com Deus?

Além dos textos que falam de “ser filhos de Deus” sem nenhum outro elemento
adicional (Mt 5,9. 45; Ef 1,5s), encontramos três modelos que tematizam esta experiência
cristã: 1. o modelo jurídico da adoção; 2. o modelo ontológico do “nascer de Deus”; 3. E o
modelo da criação, que concretiza o conteúdo do modelo da adoção. O primeiro é de
procedência vétero-testamentária e judaica: “eles descendem de Israel, foram adotados como
filhos” (Rm 9,4). Até a época helenística, Israel não falou de Deus como Pai dos justos como
indivíduos (Sb 2,13-16; 12,21; 14,5; Eclo 23,1-4; 51,10). Já antes falava do povo de Deus
como filho de Deus (Ex 4,22-23; Os 11,1-11; Is 43,1-7; 63,8-9; Ml 1,2-3), mas não sobre a
base de uma origem ou nascimento natural de Deus, como acontecia com os povos vizinhos,
mas como eleição gratuita (Dt 14,1-2; Is 1,2-9; Ml 1,2-3): mediante a aliança, que em si é um
conceito jurídico, por mais profunda e real que seja a vida vivida nesta aliança com Deus. O
Pai fez o povo eleito filho de Deus (Dt 32,6-43; Is 43,6-7; Ml 2,10). Nunca se fala de “ter
nascido de Deus”. No primeiro judaísmo, a filiação divina, como o Espírito, constitui um bem
salvífico escatológico dos tempos messiânicos (Ml 3,17-18). Quando Mt 5,9 vincula a bem-
aventurança escatológica com o “ser chamados filhos de Deus”, remete a este tipo de filiação.

O paulinismo fará sua esta tradição e falará de adoção ou huiothesia (Rm 8,14-17. 23;
9,26; Gl 3,26-28; 4,5-7). O joanismo vai noutra direção. Nunca fala de huioi tou Theou (filhos
de Deus), mas de tekna tou Theou (Jo 1,12-13). Tekna são os “nascidos”. As obras joaninas

26
não conhecem, pois, a ideia de adoção, mas só a do nascimento de Deus (Jo 3,3-8; 1Jo 2,29;
3,1. 9. 10; 5,1. 2; 4,7 ; 5,4. 18). Como se desprende da terminologia empregada, sperma tou
Theou, “semente de Deus” (1Jo 3,9), o autor não se refere a uma adoção, mas a um “nascer de
Deus”, servindo-se do modelo da procriação humana (1Jo 5,1). Mas não se trata de um
nascimento humano ou terreno, mas pneumático: “ a todos os que o receberam, os fez capazes
de ser filhos (tekna) de Deus. Aos que lhe dão sua adesão, estes não nascem de linhagem
humana, nem pelo impulso da carne nem pelo desejo de varão, mas nascem filhos de Deus”
(Jo 1,12-13). Em outras palavras, seu nascimento é pneumático. Foram concebidos do
Espírito Santo. O nascimento define melhor que a adoção as características e a natureza do
“nascido”, ou seja, do cristão. “Da carne nasce carne, do Espírito nasce espírito” (Jo 3,6).
Portanto, “nascer de Deus” significa “proceder de Deus” (1Jo 3,9.10). Na expressão, “nascer
do Espírito”, o Pneuma adquire antes de mais nada o significado vétero-testamentário e
intertestamentário de força efetiva de Deus ou “força do alto”, ou seja, força própria das
esferas celestes, e em sentido eminente e transcendente, própria de Deus. O Espírito é uma
espécie de chrisma, de unção, pela qual nossa natureza humana se faz pneumática (1Jo 2,20.
27). A terminologia joanina é marcada pelo ambiente sincrético do judeu-helenismo, mas o
sperma pneumatikon do quarto Evangelho se opõe radicalmente às acepções que esta
expressão tem no estoicismo e na antiguidade tardia. O homem possui um ser pneumático não
naturalmente, em virtude de seu espírito, mas porque nasceu de novo, em virtude da graça, de
maneira pneumática, “celeste”, deiforme. Por esta razão, a nova natureza implica a vida
eterna, a vida própria de Deus (Jo 3,16-18. 36; 5,24; 1Jo 3,14; 5,11-13). O Espírito é “um
Espírito que dá vida” (Jo 6,63), pois a verdadeira vida vem do Pneuma, ou seja, “do alto”.

Aos nascidos de Deus, os tekna ou filhos engendrados, se lhes proporcionou o


princípio da vida divina, o Pneuma santo. Daí que tanto a adoção paulina como o “nascer de
Deus” joanino superem em muito a ideia de uma adoção puramente jurídica ou moral. Por
isso, sobretudo na primeira carta de João, observa-se que a prática cristã (1Jo 2,29; 3,9-10;
4,7; 5,1-2) tem um fundamento muito profundo, pneumático (3,9). Aparece aqui um conceito
de graça que compreende ao mesmo tempo uma elevação e uma graça sanante, no sentido de
princípio e força para a práxis ética de um cristão que vive num mundo ainda não redimido.

Encontramos ainda no paulinismo um terceiro modelo, que aprofunda o da “adoção”.


Trata-se do modelo de criação, para o qual a graça é uma nova criação do homem, aspecto
que falta no modelo joanino de “nascimento”. Paulo e as cartas deutero-paulinas utilizam tal
modelo: “criados em Jesus Cristo” (Ef 2,10); “o homem novo criado à imagem de Deus” (Ef
4,24); “o homem novo que… vai se renovando à imagem de seu Criador” (Cl 3,10). O fato de
que este modelo seja próprio do paulinismo indica que serve para precisar o modelo de
adoção. Indica também que a redenção é uma obra criadora de Deus, vinculada a Cristo até o
ponto de que nele se unificam “criação” e “salvação” (Ef 2,15; 3,9; 4,24; Cl 1,15-16; 3,10).
Esta é a ideia fundamental que servira para estruturar a teologia cristã da graça: criação, nova
criação, consumação obedecem ao plano que Deus projetou para o ser humano. A graça como
salvação do ser humano se insere, portanto, numa ordem de paz que abarca todas as coisas.

A adoção e a nova criação pela graça (paulinismo) ou o nascimento de Deus em


virtude da graça (joanismo), precisamente por ser graça e não uma forma de ser humana, se
realizam (graças à fé, Jo 1,12 e à justificação pela fé) no batismo e por meio do Espírito Santo
(Jo 3,5. 6). Ainda que no Novo Testamento o batismo cristão esteja relacionado com o
perdão dos pecados, o cristianismo primitivo também o colocou em relação com o Espírito
(Mc 1,8; At 1,5; 2,38; 11,16; 19,2-3) e sublinhou seu aspecto de “nascimento” (Tt 3,5). Ainda
que o modelo de adoção seja, enquanto tal, minimalista e o de nascimento, maximalista, em

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ambos se exprime uma mesma realidade: “ser semelhantes a Deus”. Em ambas as
interpretações ou modelos (adoção e nascimento), a adoção divina é obra do Pneuma divino.

Dom do Espírito Santo

Como fundamento de todos os demais dons, o dom do Espírito Santo, que acompanha
a filiação divina, é o grande dom salvífico outorgado por Deus em e por Jesus ressuscitado
(Gl 3,5; 5,18. 25; 1Cor 2,4. 10-12; 6,11; 7,40; 2Cor 1,22; 4,13; 5,5; 13,13; Rm 5,5; 8,9-11.
14-15. 23; 12,11; 15,13.19; Fl 1,27; 2,1; 1Tes 4,8; 1Tes 4,8; At 1,5; 2,4. 17. 38; 4,31; 5,22;
6,3; 8,15. 17-19; 10, 44. 47; 15,19; 19,2; Jo 3,6; 6,63; 14,17; Ef 1,14; 2,18. 22; 3,16; 4,30;
5,18; Cl 1,8; 2Tes 2,13; 1Tm 3,16; Tt 3,5; Hb 6,4; 10,15.29; 1Pd 1,2; 4,6; 1Jo 3,24; 4,13). O
nexo que estabelece o joanismo entre nascimento de Deus e possessão do Pneuma, e o
paulinismo entre adoção e Pneuma, conduz neste último caso à fórmula Pneuma huithesias,
“Espírito de adoção” (Rm 8,14-17. 23; 9,26; Gl 3,26-28; 4,5-7) presente também em outros
textos do NT (Mt 5,9. 45; Jo 12,36; Ef 1,3-5). À diferença do joanismo, Paulo diz que
recebemos o Espírito como antecipação ou garantia (arrha) (2Cor 1,22; 5,5; Ef 1,14).

A comunhão de vida com Deus (1Pd 1,4) por adoção ou nascimento é chamada no
NT: a. “comunhão (koinonia) com o Pai” (1Jo 1,3. 6); b. “comunhão com o Filho” (1Cor 1,9;
Cl 2,6; 1Jo 1,3; 2,24); c. “comunhão com o Espírito Santo” (2Cor 13,13; Fl 2,1; Hb 6,4); d.
comunhão recíproca entre os homens, fraternidade humana arraigada no Espírito (Jo
17,11.21-22; 1Jo 1,3.7; 2Cor 9,13). Nesta comunhão de vida com Deus, somos
“companheiros do Cristo” (Hb 3,14) e “partícipes do Espírito Santo” (Hb 6,4), que, o autor
de 2Pd 1,4, utilizando conceitos do estoicismo, denomina consortium divinae naturae, mas
não no sentido grego, mas no da “adoção” paulina e no “nascer de novo de Deus” joanino.

A comunhão de vida do cristão com Deus é uma participação gratuita na relação e na


comunhão do Pai e do Filho (Jo 14,20; 17,21.23). A comunhão com Deus não é possível sem
a união com Jesus (aqui radica a diferença entre esta comunhão e qualquer ideia grega de
“participação” na natureza divina). Entre Deus e nós e entre nós e Deus está sempre a
mediação do homem Jesus, o Cristo e Filho. Para falar desta comunhão com Deus, o joanismo
utiliza expressões como “viver em” (1Jo 1,10; 2,14; 1,8; 2,4. 6. 24. 27. 28; 3,6. 24; 4,13. 15.
16; Jo 15,4. 5. 7. 9. 10 ; 14,17), “ter” a Deus ou ao Filho (1Jo 2,23; 5,12; 2Jo 9) ou “estar com
Deus” (1Jo 3,10; 2,5; 5,20), sublinhando sempre a reciprocidade (Jo 6,56; 15, 4-11; 14,20; 17,
21. 23. 26; 1Jo 3,24; 4,13. 15. 16). Em João, “conhecimento de Deus” é sinônimo de
“comunhão com Deus”. O joanismo não fala nunca de uma salvação através do conhecimento,
opondo-se a certas heresias, segundo as quais já na terra se dá uma espécie de visão beatífica
de Deus (Jo 1,18; 5,37; 6,46; 14,8-9; 1Jo 4,12) e, sobretudo, a uma espécie de mística da
identidade na qual Jesus fica fora da cena (Jo 1,18; 14,9; 12,45).

Experiência do Espírito: conhecimento religioso e ético

Esta comunhão com o Pai pelo Filho, no Espírito, é uma comunhão experimentável. O
Espírito é adoção ou nosso modo de ser pneumático, obtido ao haver nascido de Deus. Ele nos
concede a experiência da filiação divina, pois é ele que nos permite de chamar a Deus “Pai”,
Abba (Rm 8,15; Gl 4,6). Ao mesmo tempo, a experiência do Pai só é possível no homem
Jesus (Jo 1,18; 6,57 ; 8,19 ; 14,6-9. 19-20 ; 16,26-27; 1Jo 2,23; 5,11-12), a quem podemos
conhecer como Cristo ou enviado somente por meio do Espírito (1Jo 4,2-3; 1Cor 12,3). O
Espírito garante às gerações cristãs posteriores a união entre o testemunho apostólico e a atual
sobre Jesus Cristo e o acontecimento histórico de Jesus, atuando na recordação cristã do Jesus
histórico (Jo 14,26; 15,26; 16,13-14; 1Jo 1,1-3). A comunhão com Deus está sujeita à

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mediação de Jesus Cristo. A comunhão de vida com Deus se faz assim experimentável na fé
graças ao dom do modo de ser pneumático que recebe o fiel batizado, dom inerente à
inabitação do Espírito (Rm 8). No começo, sublinhou-se a possessão do Pneuma, que se
manifestava em experiências carismáticas extraordinárias (At 2,38; 8,15-16; 10,45; 19,6),
experiências mais exteriores, ainda que não carentes de um intenso impulso interior. Com o
tempo, a experiência do Espírito assume cada vez mais o caráter de uma comoção sóbria, mas
intensamente ética: “o amor que Deus nos tem inunda nossos corações pelo Espírito Santo
que nos foi dado” (Rm 5,5); “quem cumpre seus mandamentos está com Deus e Deus com
ele, e assim, graças ao Espírito que nos deu, conhecemos que Deus está conosco” (1Jo 3,24);
“esta prova temos de que estamos com ele e ele conosco, que nos fez participar de seu
Espírito” (1Jo 4,13). Os frutos do Espírito são: amor, alegria, paz, paciência, agrado,
generosidade, lealdade, simplicidade, domínio de si (Gl 5,22); “um Espírito de valentia, de
amor e de domínio próprio” (2Tm 1,7), “um Espírito de sabedoria e de revelação” (Ef 1,17).

A comunhão de vida com Deus, experimentável na fé através do Espírito Santo,


outorga ao crente um conhecimento especial das “coisas celestes” ou pneumáticas, da
“maneira de ser de Deus” (1Cor 2,11). A graça passa pela “sabedoria e pela inteligência” (Ef
1,8) e é uma “iluminação da visão interior”. Esta inteligência pneumática é teologal (mística),
mas também ética: o Pneuma de Deus em nós, nosso modo de ser pneumático de “nascidos de
Deus”, leva a realizar “as obras do Espírito de Deus” (1Jo 4,2), já que este Pneuma permite-
nos “distinguir as inspirações” (1Cor 12,10; 1Jo 4,1-6), nos faz capazes de discernir entre o
bem e o mal (Cl 1,9; Rm 12,2). O Pneuma que mora em nós é, portanto, fundamento de um
conhecimento místico de Deus e de um conhecimento ético-pneumático. Ele nos dá um
sensus fidei, uma espécie de intuição de fé que nos permite distinguir entre os enunciados de
fé corretos desde o ponto de vista cristão e os enunciados de fé falsos (1Cor 12,3; 1Jo 4,2-3).

Conformidade com Cristo: seguir a Jesus

A comunhão de vida com Deus pela mediação de Cristo faz os crentes “semelhantes
ao Cristo” (Rm 8,29; Gl 3,27; 4,19; Cl 3,9). Esta ideia é expressa com diversas imagens:
despojar-se das vestes velhas e revestir-se das novas (Ef 4,17-32; Rm 13,12; Cl 3,8-11; Hb
12,1). Cl 3,10 fala de uma renovação “à imagem do Criador” (Ef 4,24), de um homem novo
criado à imagem de Deus. Se Paulo diz que os cristãos “se revestem de Cristo”, as cartas
deutero-paulinas falam de um “revestir-se do homem novo”, que não se identifica
propriamente com Cristo, mas se ajusta à sua medida. Trata-se de uma atualização do homem
do paraíso, e este novo homem do Gênesis é possível graças ao Cristo (Cl 3,10; 1,15;
2Cor 4,4; Ef 4,21c). A semelhança com Cristo é, ao mesmo tempo, semelhança com Deus (Fl
2,7; Jo 5,18). Por ela os crentes são participes do hesed e da ‟emet de Deus: “sede
misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36); “tende entre vós a mesma
atitude de Cristo Jesus” (Fl 2,5; 1Cor 2,16), pois “os que se deixam dirigir pelo Espírito
tendem ao próprio do Espírito” (Gl 5,25). E como o Pneuma diz relação ao que é próprio do
âmbito divino, tudo isso se exprime em fórmulas como “buscai o de cima, onde Cristo es´‟a
sentado à direita de Deus”; “estai centrados acima, não na terra” (Cl 3,1-2). Isso se traduz
concretamente no amor fraterno e numa conduta ética consequente do (cf. parêneses do NT).

“Já” e “ainda não” no reino de Deus. Acesso ao Pai

A comunhão de destino com Cristo, caminho que conduz à comunhão com Deus, faz
do crente partícipe da “herança de Cristo” (Gl 3,29; 4,6; Rm 8,17; Tt 3,7; Ef 1,14-18; Hb 1,2;
9,15; 1Pd 1,4), que é consequência da filiação pela adoção ou pelo nascimento. O Espírito
Santo é uma primeira antecipação desta herança, que consiste em “entrar no reino de Deus”

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(Gl 5,1; 1Cor 6,9 Cl 1,13-14 Ef 5,5; Tg 2,5; 1Pd 1,4. 5b; 1Tes 2,12; 2Tes 1,5; 2Tm 4,1. 18;
2Pd 1,10b-11; Hb 12,28; Ap 12,10; Jo 3,3.5; 18,36). Mediante esta antecipação, a entrada no
reino de Deus é atual e ao mesmo tempo escatológica, sendo portanto orientada já no presente
para a consumação futura. A graça do NT se acha em tensão entre o “já” e o “ainda não”,
tensão presente também no joanismo, onde a vida eterna ja é uma realidade, mas que se volta
também para a consumação da ressurreição. Os cristãos estão salvos ou santificados (Hb
10,10; Ef 2,5.8), e a caminho da santificação (Hb 10,15-18; Ef 4,30); “entraram no descanso”
(Hb 4,3) e “esforçam-se para entrar nele” (Hb 4,11).

Muitos textos apresentam a união atual com Deus como um “acesso ao Pai”. Esta
expressão é utilizada na carta aos Hebreus para designar a graça que nos é concedida em
Cristo (Hb 4,16; 7,25; 10,22; 12,22; 13,15), mas ela aparece também noutros textos (Gl 4,6;
Rm 8,15-16; Ef 1,3; 2,18; 1Pd 1,5-7). À diferença do AT, onde só o sumo sacerdote podia
entrar no santo dos santos, o lugar que Deus morava entre seu povo, o cristão tem livre acesso
a Deus, sem outra mediação que a de Cristo (Hb 4,16; 10,19; Ef 3,12; 1Jo 3,21). A
comunidade cristã é, portanto, um povo de Deus sacerdotal (1Pd 2,9-10; 1Pd 20,6). Este livre
acesso é característico da parrhesia, a confiança dos filhos e filhas que se sentem junto a Deus
como em sua própria casa. Este acesso é o fundamento da súplica neo-testamentária: “o que
pedis ao Pai em meu nome, ele vos concederá” (Jo 15,16b; 16,23b); “até agora nada haveis
pedido em meu nome.Pedi e recebereis, assim vossa alegria será completa” (Jo 16,24).

c. Conteúdo concreto da graça fundamental

O NT da à graça fundamental os nomes de “adoção” e “nascimento de Deus” e a


considera como redenção e libertação. De que e para que somos libertados? A resposta a esta
pergunta depende da experiência que então se tinha da desgraça e de como esta era percebida.
No começo, a salvação conseguida por Jesus não foi considerada como nascimento de Deus
ou adoção, mas como um novo modo de viver e uma plenitude de vida, como salvação e
perdão dos pecados. Só posteriormente, começou-se a refletir sobre a origem e o fundamento
de tudo isso, tratando de identificá-los com os modelos da adoção e do nascimento. A análise
que se segue vai considerar os conceitos que tentam dizer concretamente a graça fundamental.

Salvação e redenção

No NT, a salvação que os cristãos experimentam em Jesus é frequentemente designada


com o substantivo soteria (Lc 1,69.71.77; At 4,12; Rm 1,16. 10.1; 2Cor 7,10; Ef 1,13; Fl
2,12; 1Tes 5,8-10; 2Tes 5,8-10; 2Tes 2,13; 2Tm 2,10; 3,15 ; Hb 2,10 ; 5,9 ; 1Pd 1,9-10 ; 2,2;
2Pd 3,15; Jd 3; Ap 12,10; Tt 2,11) ou com o verbo sozein (Mt 1,21; 9,21.22; 27,42; Mc 5,23;
16,16; Lc 8,12.50; 19,10; Jo 3,17; 5,34; 10,9; 12,47; At 2,21. 47; 4,12; 11,14; 14,19; 15,11;
16,30; 17,40; Rm 5,8; 8,24; 10,9-10; 1Cor 1,21; 3,15; 5,5; 15,2; Ef 2,6-8; 1Tes 2,16; 1Tm
1,15; 2,4; Hb 5,7; 1Pd 2,24). O termo soteria é procedente do helenismo religioso e significa
remissão de uma culpa em virtude de uma iniciação ritual, proteção frente aos perigos
demoníacos e vida imortal. É Paulo que confere a este termo um sentido plenamente cristão,
convertendo a “vida eterna” em salvação pela ressurreição corporal. Como nos Sinópticos,
“redenção” assume um significado escatológico, enquanto que “perdão dos pecados” e
“vitória sobre os demônios” passam a um segundo plano. O fundamento desta salvação
escatológica radica, porém, no perdão dos pecados outorgado com o dom do Espírito Santo.
Para Paulo, salvação é vitória sobre a morte. Para o joanismo, soteria é também vida eterna e
vitória sobre a morte, mas o dom do Espírito Santo faz com que esta vida eterna seja uma
realidade atual. A salvação se relaciona com a nova vida em Cristo, e já desde agora. As
cartas deutero-paulinas insistem na dimensão atual da soteria, de modo que o perdão dos

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pecados ocupa nelas o posto central. Nos escritos neo-testamentários posteriores aparece
também o substantivo helenista soter, salvador ou benfeitor. Este termo se aplica primeiro a
Deus e logo também ao Cristo (Lc 2,11; At 5,31; 12,23; 1Jo 4,14; Tt 1,4; 2,13; 3,6; 2Tm 1,10;
2Pd 1, 1. 11; 2,20; 3,2.18). Com ele se quer dizer que o verdadeiro salvador e benfeitor da
humanidade não é o imperador, mas Deus por meio de Jesus Cristo. Soter confere assim ao
conceito de soteria ou salvação o significado de “salvação para o mundo inteiro”.

Sozein, em suas distintas formas verbais, está mais próximo do significado hebreu que
do helenista. Na Septuaginta, sozein é a tradução de yasa„ e de palat. O primeiro verbo
significa geralmente “auxiliar”, muitas vezes num sentido “jurídico”: acudir em ajuda de
alguém que pede auxílio e livrá-lo do perigo. Nos textos posteriores ao exílio, o auxílio de
Deus passa a ser escatológico e apocalíptico. O NT traduz esse conceito também por soteria.
O segundo verbo significa pôr a salvo, salvar. No NT, este significado é ligado aos termos
redenção e libertação, no sentido de escapar dos perigos e das tribulações: redenção é salvação.

Libertação da escravidão

O NT emprega vários verbos que significam “libertar“ (rhyesthai, exagein, exairein),


traduzindo assim vários verbos hebraicos que indicam uma determinada forma de libertação
divina, especialmente yasa‟ e nasal. Yasa‟ significa salvar alguém no sentido de “tirá-lo de”,
livrá-lo das mãos do inimigo ou de qualquer classe de perigo. Esta palavra é, com „lh e g‟l,
um dos três termos técnicos utilizados para exprimir a libertação do Egito, a primeira
profissão de fé de Israel, tendo o sentido de “libertação da escravidão”. A Septuaginta e o NT
empregam a este respeito os verbos exerchomai e ekporeuomai. O termo nasal significa “livrar
de algo que ata ou sujeita” e, por conseguinte, livrar de certas tribulações (rhyesthai, exairein).

Encontramos a ideia de redenção como libertação no texto mais antigo do NT: “Jesus
nos livra do castigo que vem” (1Tes 1,10); no pai-nosso: “livra-nos do mal” (Mt 6,13). O
salvador ou redentor é ho rhyomenos (Rm 11,26), o “libertador”: “Deus me salvara de tão
grandes perigos de morte” (2Cor 1,10), “Cristo nos resgatou (exagorazein) da maldição da
lei” (Gl 3,11), “tirou-nos do domínio das trevas para transladar-nos ao reino de seu Filho
querido” (Cl 1,13), “entregou-se por nossos pecados para livrar-nos deste perverso mundo
presente” (Gl 1,4). A redenção de Cristo tem aqui o significado de preservar do juízo final, ser
liberados das ataduras do diabo, da morte, do peso dos preceitos da lei e ser transladados deste
eon ao eon do futuro, um novo êxodo, libertação das distintas formas de escravidão.

A redenção como libertação por compra ou resgate

O NT fala repetidamente da libertação no sentido de apolytrosis e lytrosis (Lc 1,68;


2,38; 21,28; Rm 3,24; 8,23; 1Cor 1,18.30; Ef 1,7; 1,14; Hb 9,12.15) ou de lytrousthai (verbo)
(Lc 24,21; Tt 2,14; 1Pd 1,18). Esta formulação da redenção por Jesus Cristo se apoia em
vários termos hebraicos profanos que passam a ser utilizados no sentido teológico. Seu
significado geral é libertar de certas formas de alienação e escravidão mediante o pagamento
de um resgate. Os termos hebraicos são padah e go‟el. Padah é um conceito procedente da
legislação sobre escravos, mas tem também um significado mais amplo: resgate de um pobre
que não pode pagar sua dívida. No âmbito cultual, resgatar significa pagar resgate pelos
primogênitos, sejam homens sejam animais. Só Deus pode resgatar e libertar os indivíduos,
no presente e no futuro. De que ele resgata Israel? Da mão dos poderosos, de todo perigo, de
uma mão mais forte, mas, sobretudo, da opressão, do faraó, do Egito, da escravidão. A
libertação do Egito se exprime também com o termo padah, que implica pagar um preço
como resgate (o que não acontece com os termos yasa‟ e „lh empregados também para falar

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da libertação), podendo ainda ser dita com o termo go‟el. Este termo procede do direito
familiar e está relacionado com o ano sabático ou jubilar, no qual todas as relações de
propriedade voltavam ao estado primitivo. O go‟el ou salvador dos parentes que estão em
dificuldades deve pagar então o preço da compra, para que a terra volte a seu antigo
proprietário. O go‟el é um parente próximo que tem que intervir para recomprar a propriedade
familiar. No sentido teológico, g‟l significa libertar e salvar. Go‟el como substantivo é
aplicado também a Deus como protetor dos débeis, advogado ou intercessor. Dado que g‟l
significava recobrar a propriedade perdida, o termo foi também utilizado para falar da
libertação do Egito. O Êxodo se converte assim na restituição do Israel escravizado a seu
legitimo proprietário, YHWH, e, por conseguinte, na devolução da liberdade a Israel. O termo
será empregado igualmente no período do Exílio para falar do retorno à terra prometida.

O termo neo-testamentário apolytrosis recolhe todas essas acepções, fazendo, porém,


desaparecer quase completamente a distinção entre salvar e libertar, libertar da escravidão
pagando resgate (padah) e recuperar uma propriedade perdida (Lc 24,21; 1,68; 21,28;
Rm 3,24; 1Cor 1,30; Hb 11,35). Seguiu pesando, no entanto, o significado hebraico, que se
ajustava perfeitamente para dizer algo da morte de Jesus: “comprou-os pagando” (1Cor 6,2 ;
7,23; também Mc 10,45 e Mt 20,28 falam do lytron pago: “em resgate por todos”; “sabeis que
os resgatarão… não com ouro nem prata, mas com o sangue precioso de Cristo, cordeiro
sem defeito nem mancha” (1Pd 1,18-19); “resgatou-nos com seu sangue” (Ef 1,7). O uso de
termos como “salvação” (sozein, soteria), “livrar” (rhyomai) e outros similares, que não
implicam a ideia de “resgate”, supera, contudo, a terminologia do “resgate”.

Reconciliação depois da desavença‟

No NT, só Paulo da à redenção o nome de “reconciliação”, no sentido específico de


katallage (reconciliação), katallassein (reconciliar duas pessoas) e katallagenai (ser
reconciliado) (2Cor 5,18. 19. 20. 21; Rm 5,10. 11; 11,15), enquanto que as cartas deutero-
paulinas exprimem esta ideia mediante o neologismo apokallassein (Cl 1,20. 22; Ef 2,16).
Antes da reconciliação, os grupos vivem em inimizade: “quando éramos inimigos, a morte de
seu Filho reconciliou-nos com Deus” (Rm 5,10); “vós também estáveis antes distanciados e
éreis inimigos jurados por causa de vossas, mas ações; agora… Deus vos reconciliou
convosco mesmo” (Cl 1,21-22). Ainda que esta inimizade entre Deus e o homem seja
recíproca (a ira de Deus: Rm 1,18-32; 2,2.5; 3,26; 8,8), Deus não se reconcilia com o homem,
mas somente o homem com Deus: somos reconciliados com Deus (Rm 5,10; 2Cor 5,2), Deus
nos reconcilia consigo (2Cor 5,18-21; Cl 1,22; Ef 2,16) e aos homens entre si (Ef 2,16; 2,14).
Isto significa que a reconciliação com Deus não é um aplacamento da ira divina mediante
algum tipo de ação capaz de mitigá-la. Quando o NT fala de “reconciliação” nunca diz que
Deus esteja reconciliado. Deus toma a iniciativa e nos reconciliar consigo por meio da morte
de Jesus: “obtivemos a reconciliação” (Rm 5,11). Paulo e as cartas deutero-paulinas
coincidem plenamente neste ponto. A diferença entre ele e o paulinismo posterior radica em
que para Paulo, somente Deus reconcilia, em e por Jesus Cristo, enquanto que nas cartas aos
colossenses e aos efésios também Cristo aparece como reconciliador (Cl 1,22; Ef 2,16), ainda
que a reconciliação proceda ultimamente de Deus através de Cristo (Cl 1,20). Paulo nunca
apresenta Jesus “independente” daquele que exerce a ação redentora: Deus, o Pai. É ele que
intervém ativamente redimindo em Cristo (2Cor 5,19).

O significado da reconciliação é “mudar” ou “renovar”. Nossa reconciliação com


Deus muda a relação entre Deus e o homem e dos homens entre si: já não somos inimigos,
ímpios, não estamos desamparados (Rm 5,6. 10), não somos pecadores (Rm 5,8). “Onde há
um cristão, há humanidade nova... E tudo isso é obra de Deus, que nos reconciliou consigo

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através de Cristo” (2Cor 5,17-18), “cancelando a dívida dos delitos humanos” (2Cor 5,19),
pois “o amor de Deus inunda nossos corações” (Rm 5,5) e “temos acesso ao Pai” (Ef 2,18).
A reconciliação é mais que a justificação: de inimigos nos converte em amigos de Deus, em
homens novos. “Estar reconciliado” significa estar livre de pecado ante o tribunal de Deus
(Cl 1,22), viver em paz (Cl 1,20; Ef 2,15), ser homens novos (Ef 2,15), uma humanidade nova
(2Cor 5,17). Cl 1,20 vai mesmo falar de uma reconciliação dos seres celestiais com Deus. Há
reconciliação quando os homens estão reconciliados com Deus por meio de Jesus. Para os
demais, esta reconciliação é ainda pendente. Daí o “serviço da reconciliação” e a “mensagem
da reconciliação” que a Igreja é chamada a levar a cabo no mundo (2Cor 5,19).

A redenção como satisfação: paz

Ainda que no paulinismo exista objetivamente uma estreita relação entre


“reconciliação” e “pacificação”, esses dois conceitos, sobretudo se levamos em conta o
significado judaico de salom, têm um significado totalmente diferentes. A reconciliação, no
sentido de salom, provém de um mundo totalmente distinto do da katallage helênica. A
tradução grega de salom por eirene supõe de fato uma clara restrição do significado hebraico.

Salom não tem o significado formal de ação ou efeito de salvar ou de paz, mas de
“satisfação” e “pago”. Em primeiro lugar, salom significa cumprir ou manter obrigações,
exigências e promessas, “satisfaze”, tanto no sentido positivo (reparar ou adquirir um
compromisso) como negativo (multar), ou seja, dar o que é devido. Fora do campo do castigo,
salom significa simplesmente chegar a um acordo, entender-se. Portanto, o substantivo salom
não significa primariamente paz, salvação, mas retribuição, sobretudo em sentido positivo:
estar numa posição em que se tem o bastante tanto externa como internamente. Como
saudação, salom significa: “que tudo vá bem para você”. Quando se quer ressaltar a posição
obtida com o “ato de compensação”, salom significa paz, ou seja, a situação resultante de
umas prestações mútuas ou de um acordo, sobretudo depois de uma guerra. No termo paz,
ressoa a ideia de pacto ou acordo. A ideia hebraica de salom está relacionada com a concepção
judaica de que Deus garante a conexão das ações boas ou más com suas consequências:
prosperidade ou desgraça e adversidade. Deus recompensa a bondade e castiga a maldade e,
por isso, é um Deus da paz. A obra da sedaqah será o salom. Salom tem enfim o significado de
ser suficiente, não no sentido de uma vivência subjetiva, mas no sentido de uma ordem objetiva.
Ao traduzir salom por eirene, a Septuaginta perdeu os diferentes matizes judaicos do termo.

O NT, além de tomar o termo paz da Septuaginta, buscou outros termos para exprimir
a ideia de satisfação e reconciliação baseada numa retribuição. O conceito se diferencia não só
de reconciliação, mas também de libertação. Significa “estar de acordo” com Deus e com os
homens, ainda que isso implique também “pagar” algo. As palavras de Paulo: “basta-te a
minha graça” (2Cor 12,9), reproduzem esta ideia de salom como “retribuição”, de estar
satisfeito ou ter o suficiente. Segundo esta ideia, a reconciliação significa também submissão
a Deus depois de ter vivido numa situação de pecado, o que quer dizer que é preciso reparar-se.

A redenção como expiação dos pecados por um sacrifício

O perdão dos pecados e sua expiação correspondem, tanto no judaísmo como no NT, a
dois campos semânticos distintos. A morte de Jesus, por solidariedade com os homens e
fidelidade a Deus, se presta a ser interpretada à luz do conceito de kippurim ou sacrifício
expiatório. Aqui reside a diferença com a reconciliação no sentido de katallage, em que o
único sujeito agente é Deus. Kippurim, que no AT aparece exclusivamente nas tradições
sacerdotais, significa “reconciliação” por meio de um sacrifício expiatório. Através desse

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sacrifício obtém-se a expiação dos pecados “em favor de alguém”, um indivíduo ou todo o
povo. A expiação se realiza através do sacerdote. Todos os judeus pensavam que unicamente
Deus podia perdoar os pecados. A fórmula técnica é: “o sacerdote expia assim por ele”. Esse
é o tema básico de Lv 4,1-5,12, onde se fala dos sacrifícios expiatórios pelos pecados. Segue-
se também outra fórmula de caráter cultual: “e ele (individuo ou povo) fica perdoado”. Trata-se
de uma fórmula forense ou jurídica pela qual declara o interessado “purificado”. A ideia
fundamental é que a expiação exige uma compensação ou uma contraprestação (pelos
pecados cometidos), mediante a qual se restabelece a relação com Deus, rompida pelos
pecados. Expiar um pecado implica então a purificação (do pecado) e a santificação ou a
consagração a Deus. Além do mais, para que o sacrifício seja realmente eficaz, tem que ser
agradável a Deus, ou seja, Deus tem que considerá-lo bom, estar contente com o pecador e
aceitá-lo. O sacrifício expiatório pelos pecados não é, pois, perdão dos pecados. É oferecido
para conseguir o perdão dos pecados, perdão que depende exclusivamente da liberdade divina.

A Septuaginta e o judaísmo grego intertestamentário traduzem o termo kippur por


hilaskesthai (expiar os pecados). Nos escritos gregos do cânon judaico se põe de relevo a
eficácia do sacrifício expiatório, inclusive para os defuntos (2Mc 12,45; Eclo 45,16.23). Na
literatura intertestamentária, a ideia da expiação dos pecados mediante o sofrimento por uma
terceira pessoa passa a primeiro plano (4Mc 6,29; 17,22). No AT, um único texto pode ser
interpretado nesse sentido, o do quarto cântico do Servo Sofredor (Is 52,13-53,12), embora
nele não se utilize a formula kippur. Ha indícios de que já antes da queda de Jerusalém (ano
70 d.C) o aparato sacrificial judaico tinha perdido sua importância, permanecendo somente
nos ambientes sacerdotais). Em Qumram, já se falava do “sacrifício incruento da oração”. A
expiação dos pecados se converte agora em metanóia, oração, jejum, esmola, já que tal
espírito deve animar também os sacrifícios cruentos de animais para a expiação dos pecados.

O NT segue a tendência intertestamentária, dando mais valor à vida dos cristãos como
um “sacrifício espiritual” (1Pd 2,5; Fl 2,17; Rm 12,1; Mc 12,33). Não obstante, em todas as
tradições neo-testamentárias, a morte redentora de Jesus aparece como sacrifício segundo os
esquemas da teologia vétero-testamentária do sacrifício. Sua morte é um sacrifício expiatório,
somos redimidos com seu sangue. A diferença fundamental com a teologia sacrificial do AT
radica em que este sacrifício expiatório é, ao mesmo tempo, perdão dos pecados, já que,
evidentemente, Deus aceita o sacrifício de Jesus e o acha agradável ressuscitando seu Filho.
Só a carta aos hebreus manterá a rígida e formal distinção entre o sacrifício expiatório como
purificação e santificação e a aceitação da parte de Deus ou “consumação” desse sacrifício:
“pela graça de Deus, a morte que ele experimentou redunda em favor de todos” (Hb 2,9c).

A redenção como perdão dos pecados

O perdão dos pecados aparece com frequência no NT como fruto da morte e da


ressurreição de Jesus (Mt 18,11; 26,28; Mc 1,4; Lc 1,77; 4,18; 19,19; At 2,38; 5,31; 16,43;
13,38; Rm 4,5; 11,32; Gl 3,22; Ef 1,7; 2,5; Cl 1,14; 1Tm 1,15; Tg 5,20; 1Jo 1,9; 2,1-2). A
morte de Jesus é um morrer ao pecado (Rm 5,6; 6,2. 6-8. 10. 18). Só em duas passagens se
relacionam o perdão dos pecados com a atividade de Jesus anterior à sua morte (Mc 2,10;
2,15-17). O AT sabia por experiência que a salvação ou redenção significava também perdão
dos pecados. Sala é a única palavra que significa especificamente perdoar e cujo sujeito só
pode ser YHWH. A selihah ou perdão dos pecados significa exatamente ocultamento do
pecado, expiação do pecado, purificação ou esquecimento do pecado. Dito metaforicamente,
voltar as costas ao pecado, jogá-lo no fundo do mar. Dado que no AT o perdão dos pecados é
puramente escatológico, a expiação efetiva se entende como um ato forense, externo e
jurídico, no sentido de uma absolvição sacerdotal. No entanto, isto não corresponde ao

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chamado “perdão forense dos pecados”: o jurídico se refere à declaração de pureza que os
sacerdotes pronunciam depois de terem oferecido o sacrifício. No que diz respeito ao homem,
tudo está juridicamente em ordem para poder obter de Deus o perdão dos pecados. O pecador
já não é culpável “conforme a lei”. Mas Deus é livre para outorgar um perdão não forense.
Jurídica e formalmente, o processo forense não é perdão dos pecados, mas expiação.

O NT utiliza também a expressão “carregar o pecado ou tirá-lo” (Jo 1,29; 1Jo 3,5).
Isso remete ao termo hebraico nasa„ (tirar, suprimir algo ou levá-lo consigo). Daí “portar os
pecados”, tanto no sentido de encher-se de pecados (pecar) como de “assumir as
consequências” de tais pecados (expiá-los). O termo aparece, no entanto, no mesmo contexto
jurídico ou canônico da penitência prescrita pela lei em relação com o pecado. Daí que neste
caso seja possível uma substituição vicária. O sacerdote pode levar o pecado de outros e
tomar sobre si a penitência. As profecias e o Servo de YHWH o fazem. Somente neste
sentido, carregar os pecados ou tirá-los significa no AT o perdão dos mesmos. O NT recolhe
este semitismo e lhe dá o sentido de perdão dos pecados em virtude do sacrifício expiatório da
cruz: “o Cordeiro de Deus, que tira (leva com) o pecado do mundo” (Jo 1,29), dizendo com
isso que a redenção é também perdão dos pecados e que este perdão está unido à morte de
Jesus na cruz. O significado salvífico de Jesus é incompleto sem sua morte e ressurreição.

Dado que se fala raramente de perdão dos pecados no AT e que seu interesse está
centrado na expiação (embora em ordem ao perdão dos pecados), nele não se destaca o tema
da justificação do ímpio ou a aceitação do pecador da parte de Deus, e não só a do justo (que é
declarado inocente conforme a lei por ser saddiq ou por ter cumprido a penitência imposta). O
tema aparece somente em textos extra-bíblicos do judaísmo primitivo, como é o caso de
Qumram. Esta acolhida do pecador da parte de Deus constitui o núcleo da redenção neo-
testamentária como perdão dos pecados, especialmente na experiência paulina e joanina da
salvação cristã: Jesus Cristo é o perdão de Deus, a “vida”. Nele se torna possível a vida, nele
temos direito de existir. O fato de que em alguns textos do NT ressoe um eco “forense” se
deve aos termos judeus utilizados, tomados da absolutização jurídica do pecado por parte do
sacerdote judeu, e não da experiência neo-testamentária da salvação de Deus em Jesus Cristo.

Justificação e santificação

Somente no paulinismo a justificação do ímpio é um termo técnico (ainda que não


exclusivo) para designar a redenção como acesso à comunhão dos santificados que tem lugar
no batismo pela fé. “Estamos justificados” e “seremos salvos”, diz Paulo em Rm 8,23-24. O
Apóstolo distingue entre justificação e santificação, coisa que não acontece nas cartas
deutero-paulinas. Santificação (hagiasmos, hosiotes, como traduz a Septuaginta a palavra
sedaqah ou justiça) e eusebeia são dois conceitos que têm sua origem na piedade helenística
(Rm 6,16. 19. 22; 1Cor 1,30; 1Tes 4,3-4. 7; 5,23; 2Tes 2,13; Ef 4,24 ; 1Tm 2,15; 6,11; 1Pd
1,2; 2Tm 2,22; Hb 12,14; eusebia: 1Tm 2,2; 4,7-8; 6,3. 5. 6. 11; 2Pd 1,3. 6-7; 2Tm 3,5; Tt
1,1). Os cristãos são chamados santos, santificados ou em caminho de santificação (Rm 1,7;
8,27; 12,13; 1Cor 1,2; 6,1; 14,33; 16,1.15; 2Cor 1,1; 8,4; 9,1-12; 13,12; At 9,13; 32. 41; Ef
1,1. 15. 18; 4,12. 24; 5,3; 6,18; Flm 5; Cl 1,2.4.26; 3,12; 1Tes 3,13; 2Tes 1,10; Hb 3,1; Jd 3; Ap
11,18; 13,7.10 ; 20, 9).

A salvação em Jesus como assistência jurídica

Na carta aos hebreus a atividade salvífica do Jesus celeste se entende como uma
intercessão permanente diante do Pai. Jesus é o advogado e o defensor da causa humana
diante de Deus (Hb 7,2-25; 9,24; 4,13-16; 2,17). Esta ideia está, porém, também presente em

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outros escritos do NT. Nos escritos joaninos, Jesus é identificado como “paráclito” (1Jo 2,1;
Jo 14,16). A ideia de intercessão ou do paráclito apresenta alguns traços forenses, ou seja, o
juízo de Deus é apresentado como um processo jurídico em que o pecador ocupa o lugar de
acusado. O Jesus celeste é o advogado defensor (Ap 12,10 apresenta o diabo como o
acusador). Também Paulo e o Evangelho de João conhecem a intercessão de Jesus (Rm 8,34;
Jo 16,26; 1 Jo 2,1). A base disso se encontra no Jesus Sinóptico (Mt 10,32-33; Mc 8,38//).

A peculiaridade do Evangelho de João está em que ele considera o Jesus terreno como
defensor e paráclito (Jo 14,16). O que em 1Jo 2,1 é o papel do Cristo exaltado, para o
Evangelho é o papel do Espírito como paráclito (Jo 14,16. 26; 15,26; 16,7). A noção de
paráclito fica clara no Evangelho de João: o Pneuma, enviado por Deus e pelo Cristo aos
discípulos de Jesus, não ao mundo (Jo 14,17), é acusador do mundo diante de Deus para dar
testemunho do direito de Jesus (15,26) e provar ao mundo sua culpa (16,8-11). Também
noutros lugares do NT encontramos a ideia de que o Espírito é intercessor e presta assistência
jurídica (Rm 8,26-27; Mc 13,11; Lc 22,32 e par.), ainda que não seja chamado de paráclito.

A ideia da intercessão de Jesus a favor dos homens, entendida como assistência


jurídica, tem raízes vétero-testamentárias. Em particular, Moisés é considerado intercessor e
protetor de Israel. Cada vez é mais frequente a ideia de um intercessor celestial, que pode ser
um anjo, o “grande Moisés” ou Henoc. Esta ideia é primeiramente ligada à experiência de
intercessão de uns pelos outros diante de Deus no tempo dos Macabeus (2Mc 1,2-6; 8,14-15;
12,39-45). Esta solidariedade entre os homens se viu também em alguns seres celestes, como
Rafael (Tb 12,15). Nesta época, o judaísmo acentuou muito a inacessível transcendência
divina, fazendo assim nascer todo um mundo de seres celestes, “mediadores” entre o céu e a
terra. Esta nova ideia foi relacionada com a misericórdia e o juízo de Deus, e junto ao
acusador assiste um advogado defensor. Na carta aos hebreus, esta intercessão celeste tem um
caráter mais cultual que jurídico. Também o conceito de go‟el, o auxiliador e salvador, pôde
contribuir para qualificar o Jesus redentor como intercessor e, finalmente, como paráclito.

Redimidos para uma vida de comunhão

Segundo o NT, a humanidade redimida é a comunidade eclesial, ou seja, a porção do


mundo que pôs sua confiança e esperança em Jesus como salvação decisiva do homem.
Como no AT, a comunhão cristã une os indivíduos num conjunto coerente, numa
comunidade, ecclesia ou qahal. Jesus pedia a cada homem pessoalmente que se decidisse
diante do futuro reino de Deus. Quem cumpre a vontade de Deus é irmão, irmã e mãe de Jesus
(Mc 3,35). Para escapar ao juízo de Deus não basta mais pertencer ao povo eleito. Os
conceitos de povo de Deus e aliança têm pouca importância no discurso de Jesus. Uma graça
destinada exclusivamente a um povo é totalmente alheia ao NT. Daí a pouca presença dos
termos “povo escolhido”. Escolhido é quem crê em Jesus Cristo, venha de onde vier. Dado
que a mensagem de Jesus se dirige pessoalmente a cada homem, o reino de Deus é
independente do “povo de Deus” e a mensagem de Jesus possui então um alcance universal.

Só depois da morte de Jesus, seus discípulos, que veem em sua ressurreição o início do
acontecimento escatológico universal, começam a considerar-se, em consequência, como a
comunidade escatológica. Evocam textos como Is 61 e Jr 31. A ecclesia cristã se converte
assim no sujeito da nova aliança com Deus (em especial e quase exclusivamente no
paulinismo e na carta aos hebreus). A mesma escola paulina falara, empregando expressões
típicas do estoicismo, da “assembleia” ou comunidade cristã como soma Christou, corpo de
Cristo (Cl 1,18; 2,19; 3,15; Ef 1,23-24; 4,4. 12. 16; 5,23). Não obstante, encontramos também
no NT tendências de tipo místico individualista, especialmente na primeira carta de João

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aparecem indícios desta orientação, mas que mais tarde se chamará “mística do ser”.
Contudo, em todo o NT isso vai unido à edificação da comunidade e à renovação do mundo.

Todos os que em Cristo estão “congregados na unidade” constituem o que o NT


chama genericamente “a Igreja de Deus” (At 20,28; 1Cor 1,2; 10,32; 11,16. 22; 14,33; 15,9;
1Tes 2,14; 1Tm 3,5; 3,15) e às vezes “Igreja de Cristo” (Rm 16,16), uma igreja ou
congregação “de Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Tes 1,1; 2Tes 1,1). O sujeito da
redenção não é o indivíduo enquanto tal, mas a pessoa acolhida numa comunidade ou
fraternidade nova, a qual só nos textos é chamada “povo de Deus real e sacerdotal” (1Pd 2,9-
10; Ap 1,6; 5,9; 20,6), ecclesia ou “assembleia dos primogênitos” (Hb 12,23). Dentro de
nossa história humana, esta Igreja é a manifestação histórica, “somática”, da corporalidade
glorificada de Jesus, ou seja, da visibilidade terrena da vida real de Jesus junto ao Pai. Por
isso, a comunidade cristã, a Igreja, está constituída como unidade visível e se nutre da
“comunhão com Cristo”, mediante a participação no único pão e no único cálice da eucaristia,
que é a expressão de unidade conseguida e de amor fraterno (1Cor 10,16; 11,27).

Libertados para o amor fraterno

A naturalidade com que todas as tradições neo-testamentárias falam de Jesus como “o


Filho”, está na base do uso do termo, muito antigo, de adelphos (irmão) para designar o
próximo enquanto cristão. O ponto de partida desta designação parece ser Mt 23,8, onde Jesus
diz: “vocês, porém, não vos deixeis chamar Rabbi, pois vosso mestre é um só e vos sois todos
irmãos”. Por outro lado, havia no primeiro judaísmo muitas comunidades cujos membros
recebiam o nome de “irmãos”. O Cristianismo fez seu este costume, mas conferindo-lhe uma
base própria e específica no “Filho”, nosso irmão. Além das passagens em que “irmão” se
utiliza no sentido de “compatriota judeu” ou, mais genericamente, no sentido corrente e
profundo de “próximo”, o NT usa frequentemente “irmão” como termo que identifica dentro
de um grupo: o próximo que é cristão. No NT Jesus é “o primogênito de uma multidão de
irmãos” (Rm 8,29; Hb 2,11. 17). Os “irmãos” são, em muitas perícopes, “os que têm a mesma
fé”, os cristãos (At 1,15; 9,30; 10,23; 11,1. 29; 12,17; 14,2; 15,1. 3. 22. 32. 33. 36; 16,2; 17,6.
10; 18,27; Rm 16,14; 1Cor 5,11; 6,5-6. 8; 7,12; 8,11; 15,6; 16,11-12; 2Cor 8,18. 22. 23; 11,9;
Gl 1,2; 1Tes 4,10; 5,26-27; 2Tes 3,6.15; 1Tm 4,6; 6,22; Hb 2,11-17; Tg 1,9; 4,11; 1Jo 3,13;
3Jo 3. 5. 10; 1 Pd 2,17; 5,9).

O núcleo do NT pode resumir-se na afirmação de que estamos redimidos para amar os


irmãos: “sabemos que passamos da morte à vida porque amamos os irmãos” (1Jo 3,14); “seu
mandamento é este: que creiamos em seu Filho Jesus Cristo e nos amemos uns aos outros”
(1Jo 3,23); “quem fala de estar com Deus tem que proceder como procedeu Jesus” (1Jo 2,6).
A redenção é libertação para poder entregar-se com amor ao próximo, sendo a prova de que
estamos redimidos. “Com isso fica claro quem são os filhos de Deus e os filhos do diabo. Quem
não pratica a justiça, quem não ama a seu irmão, não é de Deus” (1Jo 3,10).

Libertados para a liberdade

O cristianismo neo-testamentário, utilizando uma terminologia própria da antiguidade


tardia e de inspiração estoica, mas que produz a impressão de ser moderna, fala da salvação
de Deus em Jesus em termos de liberdade e de libertação de qualquer alienação ou escravidão.
A graça de Deus em Jesus tem como fruto “a liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8,21; 1Cor
10,29) em todo aquele que está aberto com fé a essa graça. “Onde há Espírito do Senhor há
liberdade” (2Cor 3,17): “nossa liberdade em Cristo” (Gl 2,4). Com o espírito de liberdade
que o caracteriza, Paulo diz: “para que sejamos livres Cristo nos libertou… mantende-vos

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firmes e não vos deixeis atar de novo ao jugo da escravidão” (Gl 5,1). Graças a Cristo,
estamos libertados do medo existencial dos demônios e de certas potências que nos
escravizam, dos determinismos devidos a seres astrológicos e espíritos celestes que
determinam o destino do homem. Graças a esta libertação ética e cósmica, os cristãos podem
dispor e desfrutar com plena liberdade das coisas do mundo, já que estão liberados dos tabus
(Cl 2,16-23). Os crentes redimidos por Cristo “são chamados à liberdade” (Gl 5,13). Os
filhos de Deus são livres (Mt 17,26; Jo 8,36). A Jerusalém do alto é livre e esta é nossa mãe
(Gl 4,26. 31). A liberdade cristã é essencialmente diferente das relações vigentes nas situações
sociais do mundo. No cristianismo não existe diferença entre judeu e não judeu, entre homem
e mulher, entre escravo e livre (1Cor 12,13; 7,22; Gl 3,28; 4,7; 6,5; Cl 3,11; Ap 13,16).

Mas esta carta magna da liberdade cristã, consequência e implicação da graça, está
sujeita no NT a uma exortação: “comportai-vos como homens livres, ou seja, não usando a
liberdade como máscara da vilania, mas como servidores de Deus! (1Pd 2,16; Gl 5,13-15;
1Cor 6,12-14; 10,23-25). A liberdade da graça não é arbitrariedade incontrolada, mas
“submissão a Deus e a Cristo” (Rm 6,22; 7,3). A “lei dos homens livres” (Tg 1,25) está
submetida a uma “lei nova”: a liberdade se rege pela norma de Jesus Cristo, uma lei de amor.
Em especial, a carta de Judas e a segunda de Pedro criticam os abusos cometidos em nome de
uma presumida liberdade paulina (Jd 4; 2Pd 2,19; 3,15b-16), atacam um entusiasmo
carismático que pensa erroneamente estar por cima do medo dos demônios, como se estivesse
já superada qualquer classe de alienação. Daí a exortação a não abusar do querigma cristão da
liberdade (Jd 8-10. 16; 2Pd 2,10-11), ou seja, a não interpretá-lo falsamente.

Renovação do homem e do mundo

Outro conceito neo-testamentário é o da “novidade”. O NT se caracteriza pela


experiência de uma realidade nova. Fala-se de uma nova aliança de amor (Mt 2-,28-29; Lc
22,20; 2Cor 2,6), de uma nova doutrina (Mc 1,27; At 17,19), de uma lei nova (Jo 13,34; 1Jo
2,7-8; 2Jo 5; 1Cor 11,25; 2Cor 3,6; Hb 8,8. 13; 9,15. 18)), de uma vida nova (Rm 7,6; 12,2),
de uma mudança de atitude mental (Ef 4,23) e, enfim, de uma renovação que afeta à
totalidade do homem e o converte numa “humanidade nova” (2Cor 5,17; Gl 6,15; Ef 2,10;
Rm 6,5.6; 7,6), em um “homem novo” (Ef 4,24), que já não distingue entre judeu e não judeu
(Ef 2,14-15). Tudo é novo e distinto para o redimido em Cristo (2Cor 5,17; Ap 21,5).
“Chegarão um novo céu e uma nova terra onde habita a justiça” (2Pd 3,13; Ap 21,1), uma
sociedade nova sem alienações, um reino de graça e de vida no qual todos levarão escrito um
“nome novo” (Ap 2,17) e poderão cantar um “cântico novo” (Ap 5,9; 14,3): o cântico de
agradecimento pela nova criação. Os Evangelhos exprimem esta novidade mediante parábolas
e mediante símbolos vétero-testamentários de salvação, como o “vinho novo” do banquete
escatológico (Mc 2,12-22). Seguindo a linha escatológica judaica, esta “novidade” se traduz
na imagem da “nova Jerusalém” (Ap 21,2; Hb 12,22) ou “a cidade do Deus vivo” (Hb
12,22) onde Deus “faz tudo novo” (Ap 21,5), transformando radicalmente o homem (1Cor
15,51; 2Cor 3,18), fazendo-o “nascer de novo” (1Pd 1,3. 33).

Plenitude de vida

O conceito de vida tem no NT um campo muito amplo: zoe, vida: zoopoein, dar vida
(Mt 7,14; 19,16-17; 25,46; Mc 9,43. 45; 10,17; Lc 10,25; 12,15; 18,8; Jo 3,15. 16. 36; 4,14.
36; 5,21. 24. 26. 29; 5,39. 40; 6,27. 33. 35. 40. 47-50. 53. 63. 68; 8,12; 10,10b. 28; 11,25;
12,25.50; 14,6; 17,2-3; At 3,15; 11,18; 13,46. 48; 17,25; Rm 2,7; 4,17; 5,4. 10. 17-18. 21; 6,4.
8. 10 . 11. 13. 22-23; 7,10; 8,2. 6. 10. 11; 11,15; 1Cor 15,19. 22. 36. 45; 2Cor 2,16; 3,6; 4,10;
6,14; Gl 3,21; 6,28; Ef 2,5; 4,18; Cl 3,4; 1Tm 1,16; 6,12. 19; 2Tm 1,10b; Tg 1,12; 1Pd 3,7.

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18; 2Pd 1,3; 1Jo 1,2; 2,25; 3,14; 5,11-13. 16. 20; Jd 21; Ap 2,10; 7,17; 11,11; 21,6; 22,1.17. a
cruz de Jesus como árvore da vida: Ap 2,7; 22,2.14.19).

A sedaqah vétero-testamentária está unida a uma vida próspera e feliz. Este princípio
levou a uma crise cuja expressão máxima é o livro de Jó. Jó seguiu crendo, apesar de tudo, no
mistério de Deus e na correlação entre uma vida segundo a vontade de Deus e a vontade
humana de felicidade e plenitude. Também o NT conhece uma correlação análoga, mas entre
a vida de graça e a vida humana, de modo que o sofrimento e a miséria não contradizem
necessariamente essa conexão, mas que, dentro do âmbito da graça, podem ter um sentido
novo. A comunhão com Deus pela graça implica, porém, que nada pode nos separar, em
definitivo, de Deus: nem os homens (Hb 13,5-6), nem a morte, nem poder algum (Rm 8,38-
39). Essa comunhão implica além do mais uma série de consequências escatológicas na
própria natureza humana: vida eterna, ressurreição corporal, “um novo céu e uma nova terra”
nos quais reina a justiça, uma vida sem alienações, sem mais sofrimentos nem lágrimas.

A salvação de Deus em Jesus, através de Jesus e no Espírito Santo é uma paraklesis,


ou seja, um consolo, “um consolo pleno” (2Cor 1,5. 7; 7,4 ; 8,4), um consolo que é fonte de
uma confiança permanente e produz uma intrepidez (parrhesia) livre e decidida (2Cor 3,12;
Ef 3,12; Hb 3,6; 4,16; 10,19. 35; 1Jo 3,21; 5,14). O fundamento de tal consolação é a
esperança: “Cristo é nossa esperança” (1Tm 1,1), “Deus é nossa esperança” (At 24,15; Rm
15,13), “uma esperança contra toda esperança” (Rm 4,18), uma “esperança gozosa” (1Pd
1,3). Uma esperança que se faz realidade na fé (Hb 11,1) e um “amor que espera sempre”
(1Cor 13,7), “para que não vos aflijais como os que não têm esperança” (1Tes 4,13), que
vivem “sem esperança e sem Deus” (Ef 2,12). Fé, amor e esperança são as colunas “da vida”
de que fala o NT. Estamos redimidos pela fé, pela esperança e pelo amor.

Assim, “quem tem o Filho, tem a vida” (1 Jo 5,12). Daí que no NT uma charis (graça)
é uma chara (alegria). Para Lucas, esta união, típica do conceito grego de charis, é a nota
característica da charis de Jesus e de sua mensagem. O Evangelho de Jesus é, para ele, uma
gozosa novidade, sobretudo para os mais pobres, para os pecadores, para os doentes, para os
excluídos. O mesmo aparece noutros textos do NT. A simples presença de Jesus é alegria e
graça (Jo 3,29), de modo que não tem lugar a tristeza e o jejum (Mc 2,18-22). A graça é
também uma renovação ética de vida. Por isso, o cumprimento dos mandamentos é uma
participação na alegria de Jesus (Jo 15,11; 17,13). O encontro com Jesus é uma experiência
gozosa. O reino de Deus proclamado por ele e inaugurado com sua ressurreição traz a “paz e
a alegria que da o Espírito Santo” (Rm 14,17). O Deus da esperança, que é o Deus de Jesus, é
alegria e paz (Rm 15,13). O fruto do Espírito Santo é amor e alegria (1Tes 1,16). Tudo isso
move a exclamar em forma doxológica: “sentis um gozo indizível, radiantes de alegria,
porque obtendes o resultado de vossa fé, a salvação pessoal” (1Pd 1,8-9).

Vitória sobre as potências demoníacas

O NT fala também da redenção como nike, vitória ou triunfo, sobre Satanás e certas
potências demoníacas. Antes do exílio, Israel não tinha nenhuma dificuldade em atribuir tudo
a Deus. É ele quem realiza o bem e o mal, endurece o coração do homem, ainda que este
sempre seja responsável pelo pecado. Mas pouco a pouco certas ideias sobre espíritos
malignos, procedentes de povos vizinhos, introduziram-se na fé popular, entrando assim na
periferia da fé yahvista. Em nome do monoteísmo yahvista, tais crenças foram, porém,
duramente atacadas ou neutralizadas mediante um processo de integração. Durante o exílio e
depois dele modificou-se a imagem de YHWH, que adquiriu um caráter absolutamente
transcendente. Isso conduziu a uma personificação da Palavra, da Sabedoria e do Espírito de

39
Deus, que se separam do Deus transcendente, ainda que sigam sendo uma só realidade com
ele. Tal tendência se acentua depois do exílio. A passagem a uma concepção transcendente de
Deus se dá também em outras religiões e povos, sobretudo a partir do séc. V a. C. (China,
Índia, Pérsia, Grécia). Esta concepção de Deus como totalmente distinto faz surgir uma série
de seres intermediários entre Deus e o mundo, primeiro, com a teoria das distintas emanações
de Deus (sua Palavra, seu Espírito), depois, com a ideia do demiurgo no platonismo médio,
enfim, com a explosão de todo um mundo de anjos e demônios. Em Israel, este mundo
demoníaco, antes atacado em nome do monoteísmo, é aceito sem dificuldades depois do
exílio devido ao monoteísmo transcendente. De fato, necessita-se de seres intermediários para
que o Deus transcendente possa estar em contato com nosso mundo terreno e insignificante.

No AT não existe, porém, um Satã propriamente dito, ainda que se utilizem os termos
satã e belial. Satã significa em hebraico “inimigo” ou “acusador”. A etimologia de belial é,
porém, distinta, pois está relacionada com o mundo dos mortos. “Filhos de belial” significa,
no AT, os “homens a-sociais”. Três textos do AT falam de Satã em relação com situações
celestes (Zc 3,1-7; Jó 1,6; 2,1; 1Cr 21,1-27). No texto de Zacarias não se trata ainda de um
antagonista de Deus, mas do acusador. No livro das crônicas, Satã já é nome próprio e
aparece como o inimigo de Israel. Já não induz ao pecado, mas impede Israel de alcançar seus
objetivos. Este é o único texto do AT em que Satã tem alguma analogia com a ideia neo-
testamentária de Satanás. Até 180 a.C. não se recorre a nenhum Satã para explicar o problema
do pecado. O Eclesiástico e o livro de Jó sustentam que o mal não pode vir de Deus, mas
exclusivamente do homem. Depois de 180 sucedeu algo em Israel que já não lhe permitia
aceitar sem mais as soluções que deram ao problema da teodiceia o Eclesiastes e o
Eclesiástico. Havia muitos sofrimentos sem sentido. O mal devia ter causas mais profundas.
Uma nova concepção se desenvolve nos escritos extra-bíblicos, sobretudo apocalípticos,
baseada nas diversas lendas populares. Assim, no 1 Henoc, a lenda da queda dos anjos de
Gn 6,1-4 é lida para explicar o mal. Esta queda está relacionada com o fenômeno astronômico
da queda dos astros, considerados em toda a antiguidade como seres vivos, possuidores de
anjos protetores. O fenômeno da queda dos astros serve assim de base à lenda de um pecado
cometido pelos seres celestes. No sincretismo helenístico do judaísmo e do helenismo se
relacionou Gn 6,1-4 com o mito da queda dos Titans. A existência dos anjos chegou a ser um
elemento essencial da velha imagem do mundo, em Israel com resíduos do politeísmo cananeu.

Assim, os demônios que vivem na terra não são mais que espíritos dos Titans mortos.
O príncipe ou chefe dos espíritos malignos recebe às vezes o nome de Semyasa. Também o
pecado dos anjos, causa de sua queda, foi apreendido como tendo sido originado de sua união
com as mulheres da terra. Como isso é difícil de ser concebido teologicamente, seu pecado se
atribui finalmente em trair os segredos celestes, astrais, em haver comunicado aos homens
certos conhecimentos (astrologia, técnicas de guerra, métodos abortivos etc.). Finalmente, há
também demônios, inclusive antes da queda dos anjos. O pecado dos anjos consiste agora em
que obedecem a Satã e induzem o homem a pecar. A existência de Satanás é, pois, anterior à
queda dos anjos. Esquece-se a origem etiológica dos espíritos malignos, mas a conclusão
é a mesma: os demônios existem, não mais como anjos caídos, mas como cúmplices de Satã.

No Livro dos Jubileus o príncipe dos demônios recebe o nome de Mastema, príncipe da
discórdia, e Beliar, forma grega do belial hebraico. Seu nome significa “o inimigo” (também
no NT). Este livro narra o pecado de Adão, sem consequências, porém, para a humanidade. O
chamado pecado original é imputado somente aos anjos, que desceram à terra com boas
intenções, mas perderam sua força por influência de mulheres bonitas. Esses anjos são
castigados a permanecerem até o fim dos tempos em profundas cavernas subterrâneas, mas
Mastema consegue que Deus deixe em liberdade a décima parte deles para afligir os homens.

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Deus concorda, mas estabelece um prazo. Estes espíritos malignos induzem o homem ao
pecado e são a causa de diversas enfermidades entre os homens, bem como da guerra.
Com isso se dá uma explicação para o problema do mal: Deus não o causa, mas o permite.

O Testamento dos Doze Patriarcas contém doze discursos de despedida pronunciados


pelos doze filhos de Jacó. Nesses discursos pressupõe-se o dado da queda dos anjos, mas já
não se menciona sua união com mulheres. A existência dos demônios malignos se separa da
lenda do pecado dos anjos. Os demônios pertencem agora à imagem sociocultural do mundo.
São espíritos malignos que promovem a inveja entre os homens, espíritos impuros, falsos
mestres, origem dos oito pecados capitais, espíritos do príncipe Beliar, anjos de Satã. Frente a
eles está o anjo da paz, que ajuda os homens. Os espíritos maus importunam e atormentam os
homens. Às vezes, Satã ou Beliar é chamado “o diabo” no sentido de “espírito do engano” ou
da mentira. Mas Satã não ataca os observantes da lei. O Messias futuro o encadeará e o
lançará no fogo eterno. Ao morrer, o homem é ressuscitado por um anjo do Senhor ou por um
anjo de Satã. Deus coloca o homem ante o dever de decidir entre o bem e o mal. Esta decisão
depende do próprio homem. Já não se busca a origem dos espíritos malignos. Eles existem
simplesmente. A abundância de sofrimento e de mal no mundo se explica pelo recurso a um
principio subordinado a Deus: Satã. Trata-se de um dualismo mitigado que serve de teodiceia.

A Vida de Adão e Eva relata também uma série de fatos que influenciaram, mais do
que a Bíblia, a cultura cristã ocidental. O pecado de Adão não se deve ao diabo. Expulso do
jardim do Éden e castigado, Adão quer fazer penitência. Propõe a Eva que durante trinta e
sete dias permaneça com água até o colo no Tigre, enquanto ele faz penitência no Jordão
durante quarenta dias. Satanás, disfarçado de anjo de luz, tira Eva do rio depois de dezoito
dias e a leva junto a Adão no Jordão, mas este o reconhece imediatamente e o desmascara. O
homem fica então sabendo que ele é a causa do castigo de Satã. O homem é a imagem de
Deus, sendo mais formoso do que os anjos. Estes devem honrá-lo, pois ele é o cume da
criação, como imagem de Deus. Miguel e os seus obedecem, enquanto Satã e seus
sequazes negam, sendo por isso castigados e lançados do céu à terra. Satã tem inveja da
felicidade dos homens no paraíso e tenta induzi-los ao pecado para que sejam expulsos do
Éden. Como castigo, Satã é lançado fora da terra. O tema da inveja aparece também como um
bloco errático em Sb 2,24. Isso se deve provavelmente ao tema grego da inveja dos deuses.

O 2 Henoc oferece uma explicação diferente da queda dos anjos. Um dos anjos coloca
seu trono acima das nuvens para ser igual a Deus, sendo então derrubado e lançado à terra,
onde vaga pelos ares. Esta obra fala da inveja de Satã contra o homem por ser senhor da criação.

A apocalíptica de Qunran sistematiza teologicamente todas essas ideias dentro de um


dualismo não judeu que é superado por Deus. Esta teologia quer proporcionar um
conhecimento universal de todos os seres (criação) e de todas as palavras (história): uma
confrontação do pensamento judaico com o pensamento ontológico grego. O conhecimento de
Deus, que organiza e predestina sem mediação alguma da Sabedoria ou da Palavra,
predeterminou de maneira imutável todas as coisas, inclusive o destino individual de todos os
homens. Deus, criador de justos e ímpios, predestinou à salvação os filhos da salvação e à
condenação os filhos das trevas. Mas entre Deus e os homens há, como braços executores de
Deus, dois grandes espíritos, cada um dos quais tem sua própria esfera de ação: o anjo das
trevas, chamado também Beliar, e o espírito da verdade, que é Miguel. A predestinação de
Deus fixou, porém, um limite temporal: o fim dos tempos, o qual, a julgar pelos enormes
sofrimentos acumulados, está muito próximo. Na batalha escatológica, Miguel acertará o
golpe decisivo em Beliar e o derrotará. Esta batalha, com suas dimensões cósmicas, gira em
torno do homem: sua salvação e a salvação do resto escatológico da comunidade de Qunran.

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Com este esboço da história, os essênios tentam dar uma resposta apocalíptica ao
problema do mal. A solução que propõem vai além do fatalismo de Qohélet ou do otimismo
de Ben Sira. Ela é também diferente da de Jó, para quem o mal é um mistério insondável,
oculto no desígnio de Deus. Este esboço falha, porém, seu objetivo por culpa de um dualismo
excessivo. Qunran buscava uma explicação racional. O problema do mal se converte assim no
problema do sentido de toda a história humana e da libertação escatológica frente ao poder do
príncipe deste mundo. Trata-se da resposta teológica ao doloroso desafio das calamidades
inauguradas por Antíoco IV: a experiência judia do poder avassalador do mal e, ao mesmo
tempo, de um profundo esforço de metanóia e de salvação. Em definitivo, a justiça é o sentido
último do universo: da terra, das esferas celestes e da história humana, coletiva e individual.

Satã, príncipe deste mundo, é uma figura judia extra-bíblica que penetrou a Palestina
em 150 a. C. Não podemos esquecer, porém, que a crença em Satã não aparece em numerosos
escritos judaicos extra-canônicos, como, por exemplo, em 3 e 4 Macabeus, Testamento de
Abraão, assim como nos livros deutero-canônicos do AT, escritos na mesma época:
Eclesiástico, Sabedoria (com exceção de Sb 2,24 s), 1 e 2 Macabeus, Baruc, Judite. O AT e
grande parte da literatura extra-bíblica não conhecem então uma satanologia. Esta não
pertence ao patrimônio da fé judaica. Na literatura sincrética, intertestamentária e pré-cristã é
um elemento baseado em certas lendas, da fé popular palestinense e, em menor medida, do
judaísmo da diáspora. Desde o ponto de vista da psicologia humana, Satã tem uma grande
força simbólica enquanto expressão do excesso de mal. Aí reside também sua força religiosa.

Comparado com esta literatura extra-bíblica, o NT se mostra muito sóbrio, ao menos


no que concerne o tema da demonologia e da satanologia. O Satã, príncipe deste mundo, se
pressupõe como realidade absolutamente evidente (Jo 12,31; 14,30; 16,11; 1Jo 5,19; 2,13). O
diabo ou Satã e os demônios são parte integrante da consciência religiosa e cultural de todos
os autores neo-testamentários. Chama a atenção o número relativamente alto de ocorrências
de textos que falam do demônio: seja só o nome de Diabo ou Satanás, seja sob o nome de
Beelzebu, de Inimigo, de Príncipe, de Belial, de Tentador. Fala-se também de diabo da morte,
de causa de possessão diabólica, da queda dos anjos. O NT não mostra, porém, um interesse
particular pela hierarquia das miríades de seres celestes. Enumera, no entanto, algumas
classes: archai (principados), dynameis (virtudes), exousiai (potestades) (Ef 1,21; 3,10; 6,12;
1Cor 15,24), kyriotetes (dominações) (Ef 1,21; Cl 1,16) e thronoi (tronos) (Cl 1,16), e de novo
archai e exousiai (Cl 2,10. 15), enquanto que Cl 1,16 fala de thronoi, kyriotetes, archai,
exousiai. Não se concede muita importância a esse assunto. Os deuses de outras religiões são
chamados ídolos ou demônios (1Cor 10,19-22). Kyrioi e kyriotetes parecem ser nomes
genéricos e não hierárquicos. Em 1Cor 8,4-5 recebem o nome de theoi. Existe finalmente o
nome genérico de stoicheia tou kosmou (Gl 4,3. 9; Cl 2,8. 20), que são os kosmocratores, os
seres celestes que dominam este mundo para o bem ou para o mal (Ef 6,12) e que, sem
dúvida, se consideravam presentes nos soberanos políticos humanos. Nos últimos escritos do
NT (Jd, 1 e 2Pd, cartas pastorais, Ap e 2Tes) se fala mais do que antes de demônios.

O NT não fala, exceto no Apocalipse, do espírito bom e do espírito mal com seus
aliados respectivos, mas de Jesus Cristo e de Satanás. O NT descreve a atividade salvífica de
Jesus como uma luta contra os poderes diabólicos do mal (Mc 1,23-25. 39; 4,39; Lc 13,16). O
próprio Jesus é tentado três vezes por Satanás, ainda que este sofra uma derrota total (Mt 4,1-
11; Lc 22,3; 1Cor 2,8-9; 15,55; Ap 12,13-14). Para o NT, é evidente que Cristo derrotou
Satanás e todas as potências demoníacas. O domínio destas potências acaba-se com a vinda do
reino de Deus em Jesus (Lc 10,18, 11,20). Em particular, a ressurreição e a elevação de Jesus
aparecem como exaltação e triunfo total sobre todos os seres celestes (1Cor 15,24; Rm 8,38;
Ef 1,21; 3,10; 6,10; Cl 2,10. 15; 1Pd 3,22; Hb 1,5-14; 2,8-9, Ap). Para Paulo, trata-se de um

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acontecimento futuro, plenamente escatológico (1Cor 15,24). Nas cartas deutero-paulinas,
esta derrota total dos demônios é um acontecimento já realizado e, ao mesmo tempo, uma
tarefa pendente. A vitória de Jesus (Ef 1,21; 4,8-10) não elimina a necessidade de que lutemos
contra as potências malignas do céu (Ef 6,11-17). O joanismo exprime este dado de uma
forma mais dualista: “sabemos que somos de Deus, enquanto que o mundo inteiro esta em
poder do mal” (1Jo 5,19); “já haveis vencido o mal” (1Jo 2,13). Em outras palavras, Satanás
atua ainda no mundo, mas a comunidade crente, a Igreja, é o lugar onde ele já foi vencido no
mundo. Para os cristãos, o poder satânico já esta desfeito, foi julgado e lançado fora, e não se
atreve a atacar os cristãos (1Jo 3,8; 4,18; Jo 12,31; 16,11).

Jesus viveu nesse contexto onde a crença nos anjos e nos demônios estava presente.
Mais do que pronunciar-se sobre a realidade e a existência de Satã, ele faz de sua atuação uma
prova de que a salvação de Deus estava próxima. A Jesus não interessa Satanás, mas o
homem com todas as suas debilidades e enfermidades, com sua pouca fé e sua inclinação
ao pecado, que Deus quer reparar. Tal é o ensinamento que se desprende da atividade de Jesus.

5. A graça convida à celebração

A dinâmica definitiva desta rica variedade do dom da graça em Cristo e no seu


Espírito é a salvação do homem como glorificação da charis de Deus (Ef 1,6): “para
libertação de seu patrimônio e para hino de sua glória” (Ef 1,14); “para que fôssemos um
hino à sua glória” (Ef 1,12; Rm 5,2; 2Cor 4,15). Como o hesed e a ‟emet divinas, a charis
neo-testamentária é também objeto do louvor no culto litúrgico, de modo que o
agradecimento por haver obtido hesed e ‟emet forma parte do conceito mesmo da realidade
divina da graça. Na perspectiva da experiência neo-testamentária de Jesus como Cristo e de
seu Espírito, origem da experiência cristã do Abba (Rm 8,15; Gl 4,6; 1Jo 3,24b), a existência
humana é um hino gozoso (Cl 1,12) à graça, um reconhecimento e um hino de louvor à
imensa misericórdia de Deus (1Jo 3,1), através da conduta ético-religiosa neste mundo e
através da eucaristia propriamente dita: celebração, ação de graças e louvor de Deus. Esta é a
razão pela qual Paulo relaciona charis com chara (alegria) e com eucharistia (1Cor 1,4; 2 Cor
4,15) e de que às vezes jogue com o duplo sentido de charis (graça e agradecimento: Rm 5; 7;
1Cor 1,14; Cl 1,12). No NT, em lugar de especulações teológicas sobre a graça e a redenção,
encontramos hinos cristológicos e hinos à grandeza da graça divina. Para o NT, a vida de
graça é “um coração que transborda agradecimento” (Cl 2,7). A graça alcança no hino de
louvor sua plenitude interna: se faz experiência explícita da graça.

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