Sei sulla pagina 1di 356

debate 197

38
em 6
de

-2
saú

014
anos
cebes
revista do centro brasileiro de estudos de saúde
volume 38, número 103
rio de janeiro, out-DEZ 2014

Saúde, reformas, resistência


CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES) SAÚDE EM DEBATE
A revista Saúde em Debate é uma publicação
do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2013–2015)
NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEARS 2013–2015)
EDITOR CIENTÍFICO | SCIENTIFIC EDITOR
Presidente: Ana Maria Costa
Vice–Presidente: Isabela Soares Santos Paulo Duarte de Carvalho Amarante (RJ)
Diretora Administrativa: Ana Tereza da Silva Pereira Camargo Maria Lucia Frizon Rizzoto (PR)
Diretor de Política Editorial: Paulo Duarte de Carvalho Amarante
Diretora Adjunta CONSELHO EDITORIAL | PUBLISHING COUNCIL
de Política Editorial: Maria Lucia Frizon Rizzotto
Diretores Executivos: Liz Duque Magno Alicia Stolkiner – Universidade de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina
Maria Gabriela Monteiro Angel Martinez Hernaez – Universidad Rovira i Virgili, Tarragona, Espanha
Maria Lucia Frizon Rizzotto Breno Augusto Souto Maior Fonte – Universidade Federal de Pernambuco,
Paulo Henrique de Almeida Rodrigues Recife (PE), Brasil
Tiago Lopes Coelho Carlos Botazzo – Universidade de São Paulo, São Paulo (SP), Brasil
Diretores Ad–hoc: Grazielle Custódio David Catalina Eibenschutz – Universidade Autónoma Metropolitana,
Heleno Rodrigues Corrêa Filho Xochimilco, México
Lucia Regina Fiorentino Souto Cornelis Johannes van Stralen – Unversidade Federal de Minas Gerais,
Pedro Paulo Freire Piani Belo Horizonte (MG), Brasil
Diana Mauri – Universidade de Milão, Milão, Itália
Eduardo Luis Menéndez Spina – Centro de Investigaciones y Estudios Superiores
CONSELHO FISCAL | FISCAL COUNCIL
en Antropologia Social, Mexico (DF), México
Aparecida Isabel Bressan Eduardo Maia Freese de Carvalho – Fundação Oswaldo Cruz, Recife (PE), Brasil
David Soeiro Barbosa Giovanni Berlinguer – Università La Sapienza, Roma, Itália
Yuri Zago Sousa Santana de Paula Hugo Spinelli – Universidad Nacional de Lanús, Lanús, Argentina
José Carlos Braga – Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP), Brasil
José da Rocha Carvalheiro – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
CONSELHO CONSULTIVO | ADVISORY COUNCIL
Luiz Augusto Facchini – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas (RS), Brasil
Albinear Plaza Pinto Luiz Odorico Monteiro de Andrade – Universidade Federal do Ceará,
Ary Carvalho de Miranda Fortaleza (CE), Brasil
Carlos Octávio Ocké Reis Maria Salete Bessa Jorge – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza (CE), Brasil
Cornelis Johannes van Stralen Miguel Márquez – Asociación Latinoamericana de Medicina Social, Havana, Cuba
Eleonor Minho Conill Paulo Marchiori Buss – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Gastão Wagner de Souza Campos Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira – Universidade Federal do Pará, Belém (PA),
Iris da Conceição Brasil
Jairnilson Silva Paim Rubens de Camargo Ferreira Adorno – Universidade de São Paulo,
José Carvalho de Noronha São Paulo (SP), Brasil
José Ruben de Alcântara Bonfim Sonia Maria Fleury Teixeira – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato Sulamis Dain – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Ligia Giovanella Walter Ferreira de Oliveira – Universidade Federal de Santa Catarina,
Maria Edna Bezerra da Silva Florianópolis (SC), Brasil
Nelson Rodrigues dos Santos
Pedro Silveira Carneiro EDITORA EXECUTIVA | EXECUTIVE EDITOR
Mariana Chastinet
SECRETARIA executiva | executive SECRETARy
Cristina Santos SECRETARIA EDITORIAL | EDITORIAL SECRETARY
Frederico Azevedo

INDEXAÇÃO | INDEXATION
Literatura Latino–americana e do Caribe em Ciências da Saúde – LILACS
História da Saúde Pública na América Latina e Caribe – HISA
Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América
Latina, el Caribe, España y Portugal – LATINDEX
Scientific Electronic Library - SciELO
Sumários de Revistas Brasileiras – SUMÁRIOS
Capa:
Cover:
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Instituto de Saúde Coletiva - Universidade
Federal da Bahia, Salvador Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos
21040–361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Collective Health Institute - Federal University
Tel.: (21) 3882–9140 | 3882–9141 Fax.: (21) 2260-3782
of Bahia, Salvador

A revista Saúde em Debate é Apoio


associada à Associação Brasileira
de Editores Científicos
Ministério
da Saúde
revista do centro brasileiro de estudos de saúde
volume 38, número 103
rio de janeiro, OUT-DEZ 2014

Órgão oficial do CEBES


Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
ISSN 0103-1104
revista do centro brasileiro de estudos de saúde
volume 38, número 103
rio de janeiro, OUT-DEZ 2014

675 editorial | editorial Resolubilidade do cuidado na atenção


733
primária: articulação multiprofissional e
artigo original | rede de serviços
original article Solvability of the caretaking in primary care:
multiprofessional articulation and services
679 Avaliação de serviços de Atenção Básica network
em municípios de pequeno e médio Juliana Pessoa Costa, Maria Salete Bessa Jorge,
porte no estado de São Paulo: resultados Mardenia Gomes Ferreira Vasconcelos, Milena
da primeira aplicação do instrumento Lima de Paula, Indara Cavalcante Bezerra
QualiAB
First application of the QualiAB Política, atenção primária e acesso a
744
questionnaire in the assessment of Primary serviços de Média e Alta Complexidade
Care services in small and medium-sized em pequenos municípios
cities in the state of São Paulo Policy, primary care and access to Medium
Elen Rose Lodeiro Castanheira, Maria Ines and High Complexity services in small
Battistella Nemes, Thais Fernanda Tortorelli municipalities
Zarili, Patricia Rodrigues Sanine, José Eduardo Daniela Lacerda Santos, Paulo Henrique de
Corrente Almeida Rodrigues

692 Avaliação da Estratégia Saúde da Produção e registro de informações em


756
Família: perspectiva dos usuários em saúde no Brasil: panorama descritivo
Minas Gerais, Brasil através do PMAQ-AB
The Family Health Strategy assessment: Production and record of information in
perspective of users in Minas Gerais, Brazil health in Brazil: a descriptive landscape
Simone Albino da Silva, Lislaine Aparecida through PMAQ-AB
Fracolli Teresa Cristina de Carvalho Lima Neves, Luiz
Albérico Araújo Montenegro, Sonia Duarte de
Análise do Programa de Melhoria do
706 Azevedo Bittencourt
Acesso e da Qualidade da Atenção
Básica em Recife – PE 771 
A dinâmica familiar sob a ótica do
Analysis of the Program for Access and profissional da Estratégia Saúde da
Quality Improvement in Primary Care in Família
Recife – PE Family dynamics under the view of the
Fabiana Maria de Aguiar Bello, Eduardo Freese Family Health Strategy professional
de Carvalho, Sidney Feitoza Farias Ananda Beerenwinkel, Alexandre Lins Keusen

Atenção Básica em Alagoas: expansão


720 Práticas discursivas na participação
783
da Estratégia Saúde da Família, do Nasf social em saúde mental
e do componente alimentação/nutrição Discursive practices in mental health social
Primary Care in Alagoas: the expansion of participation
the Family Health Strategy, of the Nasf and Aparecida Rosângela Silveira, Anne Raissa
of the nourishment and nutrition component Souza Dias Brante, Cornelis Johannes van
Maria Anielly Pedrosa da Silva, Risia Cristina Stralen
Egito de Menezes, Maria Alice Araújo Oliveira,
Giovana Longo-Silva, Leiko Asakura
sumário | contents

Subnotificação de maus-tratos em
794 ensaio | essay
crianças e adolescentes na Atenção
Básica e análise de fatores associados 853 Contradicciones en salud: sobre
Underreporting of children and adolescents acumulación y legitimidad en los
abuse in Primary Care and analysis of factors gobiernos neoliberales y sociales de
associated derecho en América Latina
Ana Carine Arruda Rolim, Gracyelle Alves Contradictions in health: on acumulation and
Remigio Moreira, Carlos Roberto Silveira Corrêa, legitimation in Latin American neoliberal
Luiza Jane Eyre de Souza Vieira and social states
Asa Cristina Laurell
Acesso e acolhimento no cuidado pré-
805
natal à luz de experiências de gestantes 872 Reflexiones sobre el proceso de reforma
na Atenção Básica sanitaria (1993-2013) y participación
Access and user embracement in prenatal social en Perú
care through the experiences of pregnant Considerations on health reform process
women in Primary Care (1993-2013) and social participation in Peru
Maria Zeneide Nunes da Silva, Andréa Batista Catalina Eibenschutz, Alexandro Saco Valdivia,
de Andrade, Maria Lúcia Magalhães Bosi Silvia Tamez González, Xareni Zafra Gatica,
Raquel Maria Ramírez Villegas
817 Hanseníase e vulnerabilidade social:
uma análise do perfil socioeconômico de Movilizaciones sociales y profesionales
886
usuários em tratamento irregular en España frente a la contrarreforma
Leprosy and social vulnerability: an analysis of sanitaria
the socioeconomic profile of users in irregular Social and professional mobilizations in
treatment Spain against health counter-reform
Viviane Aparecida Siqueira Lopes, Etuany Marciano Sánchez Bayle, Sergio Fernández Ruiz
Martins Rangel
900 O financiamento da Atenção Básica e da
Políticas públicas en materia de
830 Estratégia Saúde da Família no Sistema
drogas en Argentina: políticas de Único de Saúde
estigmatización y sufrimiento The financing of the Primary Health Care
Drug policies in Argentina: politics of and Family Health Strategy in the Unified
exclusion and suffering Health System
Andrea Vázquez Áquilas Mendes, Rosa Maria Marques

840 La ideología en la planificación Contribuição sociopolítica para a gestão


917
normativa y la modernización das tecnologias em saúde no contexto
neoliberal: contextos y dispositivos de dos princípios e diretrizes do Sistema
poder Único de Saúde real e possível
Ideology in normative planning and Sociopolitical contribution to the health
neoliberal modernization: contexts and technologies management in the context
power devices of the principles and guidelines of real and
Alejandro Perdomo Rubio, Gilberto Hernandez possible Unified Health System
Zinzún Antonio Luis Vicente Arreaza
674
sumário | contents
editorial | editorial

Eugenia connection with issues bioethical: an


Redes de Atenção à Saúde do SUS: 25
938 integrative review
anos de uma contradição fundamental Vanessa Cruz Santos, Jamile Guerra Fonseca,
entre a Organização Necessária e a Rita Narriman Silva de Oliveira Boery, Edite
Organização Atual Lago da Silva Sena, Sérgio Donha Yarid, Eduardo
Health Care Networks of Brazilian Unified Nagib Boery
Health System: 25 years of a fundamental
contradiction between the Required Sobrecarga do cuidador familiar de
996
Organization and the Current Organization pessoas com transtorno mental: uma
Ronaldo Marques Gomes revisão integrativa
Overload of family caregivers of persons with
Sobre a saúde, os determinantes da
953 mental disorder: an integrative review
saúde e a determinação social da saúde Sara Cordeiro Eloia, Eliany Nazaré Oliveira,
On health, determinants of health and the Suzana Mara Cordeiro Eloia, Roselane da
social determination of health Conceição Lomeo, José Reginaldo Feijão Parente
Guilherme Souza Cavalcanti de Albuquerque,
Marcelo José de Souza e Silva  rEsenha | critical review

 rEvisão | review Vozes do Bolsa Família: autonomia,


1008
dinheiro e cidadania
966 Intersetorialidade na saúde no Brasil 
Luciana da Silva Alcantara
no início do século XXI: um retrato das
experiências Novos andarilhos do bem: caminhos do
1010
Intersectorality in health in Brazil at the Acompanhamento Terapêutico
beginning of the XXI century: a portrait of Andrés Eduardo Aguirre Antúnez
experiences
Leandro Martin Totaro Garcia, Iadya Gama  Agradecimentos |
Maio, Taynã Ishii dos Santos, Catarina Acknowledgement
Bourlinova de Jesus Cunha Folha, Helena Akemi
Wada Watanabe 1014 Parceristas que atuaram em 2014

981 Eugenia vinculada a aspectos bioéticos:


uma revisão integrativa

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 675-678, Out-Dez 2014


editorial | editorial 675

Editorial

Em outubro de 2014, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) promoveu seminário


preparatório para o XIII Congreso Latinoamericano de Medicina Social y Salud Colectiva da
Associación Latinoamericana de Medicina Social (Alames). Ao final, foi aprovada a ‘Carta do
Brasil’ com 12 itens, os quais transcrevemos neste espaço de diálogo com o leitor, reafirman-
do o compromisso do Cebes com o conteúdo da referida carta: 1. A América Latina vive um
momento político crítico, com possibilidades concretas de retrocessos nos avanços consegui-
dos por governos de caráter mais popular, no campo dos direitos sociais e da própria estratégia
de articulação latinoamericana, na medida em que a direita conservadora, apoiada pelo impe-
rialismo e conspirando diuturnamente contra esses governos, busca recuperar de diferentes
formas a hegemonia de poder na região; 2. É preciso reconhecer que os governos de caráter
popular e os processos revolucionários em curso na América Latina ainda se encontram dis-
tantes de superar as pautas políticas e os programas neoliberais, não conseguiram promover as
transformações profundas que a sociedade requer e não superaram a primazia dos interesses
do capital. Também se deve reconhecer que a via do jogo político, que caracteriza a democra-
cia burguesa, tem se revelado insuficiente para garantir as conquistas e assegurar avanços mais
significativos nas políticas econômicas e sociais favoráveis à classe que vive do trabalho; 3. As
estratégias políticas dos governos de esquerda na América Latina enfrentam dificuldades. A
participação popular, em que pesem os grandes avanços observados nos governos progressis-
tas do subcontinente, não conseguiu ainda lograr plenamente sua independência e autonomia
em relação ao Estado. Promoveram-se políticas de inclusão e de distribuição de renda, mas
com frequência se constituíram em políticas individualizadas e despolitizadas, e problemas
políticos foram tratados como problemas técnicos; 4. A esquerda latinoamericana tem en-
contrado muita dificuldade em ganhar a batalha da comunicação. Parte dela acreditou que
quando assumisse o poder poderia transformar o Estado, mas não considerou que, ao revés, a
estrutura burocrática do Estado poderia transformá-la; 5. Os partidos políticos comprometi-
dos com as causas populares precisam reencontrar sua legitimidade. Os programas partidários
têm-se diferenciado pouco do ponto de vista ideológico, observando-se uma incoerência entre
o programa do partido e o seu exercício, em grande medida pelas coalizões que realizam para
governar, resultando em uma crise política e de representação. Apesar desse desencanto, os
partidos continuam sendo importantes para articular ideologias, campos políticos e a partici-
pação popular autônoma com participação no Estado, que continua sendo o principal agente
indutor de transformações; 6. Há dificuldades reais em identificar o ator revolucionário que
pode impulsionar um processo de transformação social. Por isso, deve-se realizar uma leitura
atenta dos movimentos sociais da cidade e do campo, dos sujeitos periféricos, que emergem
das contradições do próprio sistema capitalista. Reconhecer como esses sujeitos têm atuado
e realizado transformações lentas mas profundas nos modos de viver, concretizando a crítica
ao modelo econômico e apontando para outros projetos de sociedade; 7. Este momento é de
reconstrução da agenda e da construção de um projeto socialista, articulado regionalmente,
uma vez que um país isolado não tem como levar adiante projetos que rompam com a lógica
capitalista mundializada, baseada no individualismo e no consumo, que não respeita a natu-
reza e coloca em risco o planeta; 8. Um projeto que vise construir um novo modelo de Estado

DOI: 10.5935/0103-1104.20140062 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 675-678, OUT-DEZ 2014
676 editorial | editorial

e de sociedade deve ter como pressupostos a soberania dos países, a articulação regional, a
solidariedade entre e intrapaíses, a sustentabilidade visando o futuro das novas gerações, a
construção de novos consensos a partir da democracia irrestrita e da participação popular;
9. A discussão sobre os caminhos possíveis para um processo de transição para o socialismo
deve levar em consideração experiências latinoamericanas, que, como forças reformistas e/ou
revolucionárias, procuraram construir um Estado popular como mediação para a construção
de um mundo igualitário, socialista; 10. Os governos progressistas da América Latina neces-
sitam promover reformas estruturantes, impulsionados pelos movimentos sociais. Algumas
reformas precisam ser realizadas urgentemente para garantir a própria democracia, como a
reforma dos meios de comunicação, a reforma tributária, a reforma agrária, a reforma judiciá-
ria e a reforma política; 11. A luta pela saúde não pode ser uma luta setorial. A política de saúde
precisa ganhar um conteúdo anticapitalista. Os avanços conseguidos nesse setor, como o caso
do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, foram decorrentes de lutas mais amplas que ga-
nharam a adesão de toda a sociedade. As políticas sociais focalizadas que custam 0,5% do
Produto Interno Bruto (PIB) não bastam, pois continuam atendendo aos interesses do capital.
A luta deve ser por políticas sociais universais; 12. Entidades como o Cebes e a Alames devem
assumir a articulação em nível regional, recuperando o momento da emergência da Medicina
Social, da Saúde Coletiva e da luta pelo direito à saúde na América Latina. Nesse processo,
contribuir para a interpretação da realidade, identificando as contradições e construindo um
discurso que faça sentido para todos. Esta articulação deve transformar a luta pela saúde em
uma luta que vise à construção de um novo projeto societário.
Entendemos que o conteúdo da ‘Carta do Brasil’ é um alerta e um chamado aos militantes
do Movimento de Reforma Sanitária brasileira para a ação política, que deve ultrapassar os
limites nacionais e integrar-se à luta dos movimentos sociais da América Latina.

Diretoria Nacional do Cebes

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 675-678, Out-Dez 2014


editorial | editorial 677

Editorial

In October 2014, the Brazilian Center for Health Studies (Centro Brasileiro de Estudos
de Saúde — Cebes) held a preparatory seminar for the XIII Congreso Latinoamericano de
Medicina Social y Salud Colectiva of the Associación Latinoamericana de Medicina Social
(known as Alames). By the end of it, the ‘Carta do Brasil’ was approved, consisting of 12 items,
which were transcribed in this space of dialogue with the reader, reaffirming the commitment
of Cebes with the content of this document: 1. Latin America currently lives a critical political
period, facing concrete possibilities of setbacks to the progresses achieved by more leftist/
popular governments concerning social rights and even the strategy for articulating Latin
America itself, as the conservative right, supported by imperialism and incessantly conspiring
against those governments, seeks to regain in various ways the hegemony of power in the
region; 2. It must be recognized that the leftist/popular governments and the revolutionary
processes in course in Latin America are still far from overcoming the political guidelines
and the neoliberal programs, were unable to provide the deep transformations that society
requires and could not overcome the primacy of the interests of the capital. It must also be
recognized that the way of the political game, which characterizes the bourgeois democracy,
has been proving itself to be insufficient to guarantee the achievements and ensure more
significant advances in the economic and social policies favorable to the class that lives off
work; 3. The political strategies of the leftist governments in Latin America face difficulties.
Popular participation, in spite of the great advances observed in the progressive governments
of the subcontinent, has yet to fully achieve its independence and autonomy from the State.
There have been promoted policies of inclusion and income distribution, but they were often
built on individualized and depoliticized policies, and political problems were treated like
technical problems; 4. The Latin American left has been facing a lot of problems to win the
battle of communication. Part of it believed that, when they took power the State could be
transformed, but did not consider that, rather than that, the bureaucratic structure of the
State could end up transforming them; 5. The political parties engaged in popular causes need
to find their legitimacy. The party programs are not too different from one another from the
ideological point of view, and we can see an inconsistency between the party program and
its exercise, largely because of the coalitions that they conduct to govern, resulting in a poli-
tical and a representation crisis. Despite this disenchantment, the parties remain important
to articulate ideologies, political fields and an autonomous popular participation with real
participation in the State, which is still the main inducing agent of change; 6. There are real
difficulties in identifying the revolutionary actor that can boost a process of social transfor-
mation. Whence, there must be a careful reading of the urban and rural social movements,
of the peripheral subjects, that emerge from the contradictions of the capitalist system itself.
Recognizing how these subjects have been acting and performing slow deeper transforma-
tions in ways of living, making the criticism of the economic model and pointing to other
social projects; 7. This is a time for reconstructing the agenda and building a socialist project,
regionally articulated, since one isolated country alone has no way to carry out projects that
break with the globalized capitalist logic, based on individualism and consumption, that does
not respect the nature and endangers the planet; 8. A project that seeks to build a new model

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 675-678, OUT-DEZ 2014


678 editorial | editorial

of State and society must have as presuppositions the sovereignty of countries, regional co-
ordination, solidarity between and within countries, sustainability aiming at the future of the
new generations, building new consensus from unrestricted democracy and popular partici-
pation; 9. The discussion about new possible ways to a process of transition to socialism must
consider Latin American experiences, which, as reformer and/or revolutionary forces, sought
to build a popular State as a means to building an egalitarian, socialist world; 10. The pro-
gressive governments of Latin America need to promote structural reforms, driven by social
movements. Some reforms need to be made urgently in order to ensure democracy itself, like
the reform of the media, tax reform, land reform, judicial reform and political reform; 11. The
fight for health cannot be a sectorial fight. The health policy needs to gain an anti-capitalist
content. The progresses achieved in this sector, as for example the Unified Health System
(Sistema Único de Saúde, known as SUS) in Brazil, were a result of broader struggles that
won the accession of the whole society. The targeted social policies that cost 0.5% of Gross
Domestic Product (GDP) are not enough, for they continue to attend to the interests of the
capital. We must fight for universal social policies; 12. Entities like Cebes and Alames must
take over the articulation in regional level, recovering the moment of emergence of Social
Medicine, of Public Health and of the fight for the right to health in Latin America. In this
process, contributing for the interpretation of reality, identifying the contradictions and buil-
ding a discourse that makes sense for everybody. This articulation must transform the fight
for health in a fight for the construction of a new project of society.
We understand that the content of ‘Carta do Brasil’ is a warning and a call for militants of
the Brazilian Sanitary Reform Movement to the political action, which must surpass national
limits and integrate to the struggle of the social movements of Latin America.

Cebes National Board

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 675-678, Out-Dez 2014


artigo original | original article 679

Avaliação de serviços de Atenção Básica em


municípios de pequeno e médio porte no
* Os resultados
apresentados referem- estado de São Paulo: resultados da primeira
se ao trabalho da
equipe de pesquisa
QualiAB, incluindo como
aplicação do instrumento QualiAB*
coautores os seguintes
pesquisadores: Josiane First application of the QualiAB questionnaire in the assessment of
Fernandes Lozigia
Carrapato, Luceime
Primary Care services in small and medium-sized cities in the state of
Olívia Nunes, Margareth
Aparecida Santini de
São Paulo
Almeida, Karina Pavão
Patrício, Dinair Ferreira
Machado, Stella B. G. Brasil Elen Rose Lodeiro Castanheira1, Maria Ines Battistella Nemes2, Thais Fernanda Tortorelli Zarili3,
Pissatto, Ivete Dalben Patrícia Rodrigues Sanine4, José Eduardo Corrente5
Soares (in memoriam).

1 Doutora em Medicina
Preventiva pela
Universidade de São Paulo
(USP) – São Paulo (SP),
Brasil. Professora Assistente
do Departamento de Saúde
Pública da Universidade RESUMO Apresentam-se os resultados da primeira aplicação do questionário QualiAB em
Estadual Paulista (Unesp) –
Botucatu (SP), Brasil. 2007. Composto por 65 indicadores de organização da assistência e gerência, o QualiAB foi
elen@fmb.unesp.br respondido por 598 serviços de Atenção Primária à Saúde de 115 municípios do estado de
2 Doutora em Medicina São Paulo. A média de desempenho foi de 64% do padrão esperado. Agrupamento segundo
Preventiva pela Faculdade de K-médias produziu três grupos de qualidade. Serviços de saúde da família e serviços loca-
Medicina da Universidade
de São Paulo (USP) – São lizados em municípios com menos de 50 mil habitantes tiveram maior chance de pertencer
Paulo (SP), Brasil. Professora ao grupo de melhor qualidade. Focado no ‘como’ organizar o processo local do cuidado, o
Associada do Departamento
de Medicina Preventiva da QualiAB subsidia diretamente os profissionais, e pode compor iniciativas de melhoria da qua-
Faculdade de Medicina da lidade que envolvem todos os níveis da gestão.
Universidade de São Paulo
(USP) São Paulo, Brasil.
mibnemes@usp.br PALAVRAS-CHAVE Avaliação em saúde; Gestão em saúde; Organização e administração;
3 Mestranda em Saúde Atenção Primária à Saúde.
Coletiva pela Faculdade de
Medicina da Universidade
Estadual Paulista (Unesp) ABSTRACT The QualiAB questionnaire involves 65 indicators of health care organization and
– Botucatu (SP), Brasil. management. In its first application in 2007, QualiAB was answered by 598 Primary Health
thaiszarili@gmail.com
Care services from 115 municipalities in the state of São Paulo. The mean performance was 64%
4 Doutoranda em Saúde of desirable standards. Clustering according to K-means produced three quality groups. Family
Coletiva pela Faculdade de
Medicina da Universidade Health Units and facilities located in municipalities under 50,000 inhabitants were more likely
Estadual Paulista (Unesp) to belong to the best quality group. Focusing on how to organize local health care procedures,
– Botucatu (SP), Brasil.
patsanine@yahoo.com.br QualiAB readily supports professionals and can be included in quality improvement initiatives
addressing all levels of management.
5 Doutor em Estatística e
Experimentação Agronômica
pela Escola Superior de KEYWORDS Health evaluation; Health management; Organization and administration; Primary
Agricultura Luiz de Queiroz,
Brasil. Professor Adjunto Health Care.
do Departamento de
Bioestatística do Instituto de
Biociências da Universidade
Estadual Paulista (Unesp) –
Botucatu (SP), Brasil.
jecorren@ibb.unesp.br

DOI: 10.5935/0103-1104.20140063 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, OUT-DEZ 2014
680 CASTANHEIRA, E. R. L.; NEMES, M. I. B.; ZARILI, T. F. T.; SANINE, P. R.; CORRENTE, J. E.

Introdução esses permitem avaliar e monitorar como o


cuidado está sendo prestado e o grau de cor-
A Atenção Primária à Saúde (APS) represen- respondência com os padrões preconizados,
ta, atualmente, prioridade no campo das po- permitindo inferir a qualidade dos resulta-
líticas públicas de saúde no Brasil. Diversos dos esperados (BROUSSELLE; CONTRADRIOPOULOS;
estudos têm demonstrado que sistemas na- HARTZ, 2011; Donabedian, 1997, 2005).
cionais de saúde com ações primárias como O instrumento questionário de Avaliação
eixos organizadores alcançam melhores in- da Qualidade de Serviços de Atenção Básica
dicadores de saúde, menores custos e maior (QualiAB) soma-se às iniciativas de melho-
satisfação dos usuários (STARFIELD, 2002; WHO, ria da qualidade da APS centradas em ava-
2008; PAIM et al., 2011). liações de processo. A metodologia utilizada
Com a descentralização do Sistema Único apoia-se em pesquisas previamente desen-
de Saúde (SUS), a APS foi municipalizada, volvidas na avaliação de serviços ambulato-
ampliando o acesso e avançando no processo riais a pessoas que vivem com Aids, por meio
de universalização dos serviços, a partir de do questionário QualiAids (NEMES et al., 2013,
um cenário com grande heterogeneidade e 2009, 2004; CASTANHEIRA et al., 2011).
diferentes acúmulos organizacionais da rede Em linhas gerais, o QualiAB parte dos se-
pública entre as várias regiões e municípios guintes pressupostos: todos os serviços de
brasileiros. Nesse contexto, a qualidade dos saúde na APS devem possuir um nível acei-
serviços tornou-se um dos principais desa- tável de qualidade; o processo de construção
fios a serem enfrentados, assim como vem de um novo modelo assistencial passa, ne-
ocorrendo em outros países desde os anos cessariamente, pelo envolvimento ativo das
90 do século passado (BRASIL, 2011a; PAIM et al., equipes locais e por mudanças nos processos
2011; VERAS; VIANNA, 2009; BRASIL, 2006). de trabalho; instrumentos que avaliam a qua-
No Brasil, a partir dos anos 2000, obser- lidade de serviços devem valorizar indicado-
vam-se várias pesquisas avaliativas com foco res de processo que reflitam a dinâmica do
na APS, apresentando diferentes escopos trabalho; e os padrões de qualidade devem
avaliativos e distintos graus de instituciona- ser atualizados e redefinidos na medida em
lização pelos órgãos públicos de gestão da que sejam conquistados novos patamares.
saúde (BROUSSELLE; CONTRADRIOPOULOS; HARTZ, 2011; O presente trabalho apresenta os resulta-
ALMEIDA; MELO, 2010; BRASIL, 2010b; VERAS; VIANNA, 2009; dos da pesquisa avaliativa que desenvolveu e
FACCHINI et al., 2008; TANAKA; ESPIRITO SANTO, 2008; validou o questionário QualiAB em sua pri-
ALMEIDA; MACINKO, 2006; Ibañez et al., 2006; CAMPOS, meira aplicação em 2007, em serviços públi-
2005).No campo das políticas de saúde, a cos de APS localizados em 115 municípios do
principal iniciativa é atualmente represen- estado de São Paulo. Os resultados permitem
tada pelo Programa Nacional de Melhoria delimitar o perfil de qualidade dos serviços
do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica de Atenção Básica no interior paulista no
(PMAQ), do Ministério da Saúde, com abran- período estudado, assim como, explicitam as
gência nacional (BRASIL, 2011, 2013). potencialidades do instrumento utilizado.
As avaliações em saúde, enquanto campo Esse trabalho, em todas suas etapas, de
de conhecimento e de práticas, encontram-se formulação e aplicação da avaliação, foi
em permanente construção conceitual e me- aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
todológica. Uma alternativa muito utilizada, da Faculdade de Medicina de Botucatu/
por sua facilidade operacional e capacidade Unesp, e todos os participantes assinaram
de instrumentalização de mudanças, são as o Termo de Consentimento Livre e
avaliações que valorizam os processos para Esclarecido.
definição de indicadores de qualidade, pois

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, OUT-DEZ 2014


Avaliação de serviços de Atenção Básica em municípios de pequeno e médio porte no estado de São Paulo: 681
resultados da primeira aplicação do instrumento QualiAB

Método equipe; 6 - Gerenciamento técnico do traba-


lho; 7 - Mecanismos de articulação com a co-
QualiAB é um questionário estruturado, munidade; e 8 - Disponibilidade de insumos
autoaplicável, composto por 85 questões de críticos para atenção primária.
múltipla escolha, para serem respondidas Das 85 questões, 20 descrevem caracterís-
pelo profissional responsável (gerente) e ticas gerais do serviço não diretamente indi-
equipe técnica de serviços de APS. Foi cons- cativas de qualidade, tais como: localização e
truído por pesquisa avaliativa realizada por porte. São indicadores de qualidade 65 ques-
processo de consenso iterativo, que incluiu: tões cujas respostas são pontuadas em escala
metodologias qualitativas, teste-piloto, vali- de três níveis, de acordo com o padrão: 0
dação de construto e confiabilidade. A defi- - insuficiente, 1 - aceitável e 2 - esperado,
nição dos padrões utilizados se deu a partir conforme exemplificado nas duas questões
do reconhecimento da qualidade como cons- a seguir:
truto definido pelos princípios e diretrizes da Os resultados dos exames são avaliados:
Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), Assinale apenas uma alternativa
da literatura científica dessa área e da rea- 1) Quando o paciente comparece para
lidade dos serviços de atenção primária em atendimento - 0
diferentes contextos políticos e sociais, 2) No dia agendado para atendimento,
contemplando, especialmente, aqueles loca- mesmo que o paciente falte - 1
lizados em municípios de pequeno e médio 3) Quando os resultados chegam na
porte do estado de São Paulo. Foi dirigido a Unidade - 2
todos o serviço de APS das regiões incluídas, 4) Não são avaliados - 0
independentemente do arranjo organizacio-
nal, se pertencente ou não à Estratégia Saúde Na Unidade, as reuniões de equipe no
da Família (CASTANHEIRA et al., 2011; CASTANHEIRA; último ano ocorreram com periodicidade:
DALBEN, 2009). Assinale apenas uma alternativa
Tem como foco avaliativo a organização 1) Semanal - 2
do trabalho como forma de aproximar- 2) Quinzenal - 2
-se do modo como as ações assistenciais 3) Mensal - 1
são gerenciadas e diretamente operadas 4) Intervalos maiores - 0
na atenção aos usuários, dentro dos limites 5) Não há periodicidade, ocorrem confor-
permitidos por um instrumento estruturado. me necessidade do serviço - 0
Toma como unidade de análise a qualidade 6) Não ocorreram reuniões - 0
do serviço considerado como um todo, ou A média aritmética da pontuação de todas
seja, pela organização do conjunto de ações as respostas atribui, ao serviço respondente,
que oferece e por sua dinâmica gerencial, um grau de qualidade expresso pela distân-
diferenciando-se dos instrumentos que cia do melhor padrão possível correspon-
avaliam o desempenho de cada equipe. dente à média dois.
Os principais componentes do trabalho Em 2007, em parceria com a Secretaria de
que orientam a definição dos critérios de Saúde do Estado de São Paulo (SES-SP) e a
qualidade utilizados podem ser sintetiza- partir da adesão voluntária dos gestores mu-
dos como: 1 - Atenção integral à saúde; 2 nicipais, os responsáveis pelos serviços de APS
- Organização do trabalho com viabilização de três Departamentos Regionais de Saúde
do acesso; 3 - Oferta de ações de prevenção (DRS) foram convidados a responder o ques-
primária e secundária; 4 - Cumprimento tionário (em versão impressa ou eletrônica).
de protocolos assistenciais preconizados; Os DRS participantes foram: Bauru, Registro
5 - Mecanismos de indução ao trabalho em e Sorocaba, onde se localizam 131 municípios

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, OUT-DEZ 2014


682 CASTANHEIRA, E. R. L.; NEMES, M. I. B.; ZARILI, T. F. T.; SANINE, P. R.; CORRENTE, J. E.

com um total de 650 serviços de APS. em reuniões dos Colegiados de Gestão


Para caracterização do contexto foram Regional, nas quais foram apresentados os
descritas as condições demográficas e sociais dados consolidados por Região de Saúde,
dos municípios participantes com base em mantendo-se sigilo sobre a identifica-
dados secundários. As características ins- ção de cada um. Para os Departamentos
titucionais dos serviços foram definidas a Regionais de Saúde e para a equipe da
partir das questões descritivas do questioná- Atenção Básica do nível central da SES-SP,
rio QualiAB. foi entregue o banco de dados.
Para a análise das respostas ao questio-
nário, foram excluídos os serviços com mais
de 10% de questões não respondidas. Foram Resultados
calculados: as frequências de respostas de
todas as questões, a média, o desvio padrão e Nas regiões que integraram o estudo, aderi-
a mediana das pontuações totais dos serviços ram à avaliação 115 municípios (88%), com
respondentes e de cada uma das questões a participação de 598 unidades de atenção
pontuadas. primária (92%). Para análise, foram conside-
A fim de se obterem os grupos de quali- rados válidos 524 serviços, excluindo-se 44
dade utilizando as questões de acordo com questionários com 10% ou mais de questões
a pontuação recebida, foi utilizada a análise não respondidas.
de agrupamentos por meio da aplicação
do método de partição das K-médias. Em Contexto da avaliação - característi-
seguida, utilizou-se uma análise discrimi- cas dos municípios
nante para a obtenção da probabilidade de
erro de classificação dos serviços em cada Entre os municípios participantes 98 (85%)
um dos três grupos (Hair, 1998; TIMM, 2002). possuía menos de 50.000 habitantes, e a
A capacidade de discriminação dos indi- maioria apresentava graus desfavoráveis do
cadores pode ser avaliada pela manutenção Índice Paulista de Responsabilidade Social
de uma diferença >- 0,25 entre as médias dos (IPRS). De acordo com esse índice, dividi-
65 indicadores, segundo os grupos de quali- do em cinco grupos de desenvolvimento em
dade. Por esse critério, apenas três indicado- escala decrescente, os municípios distribuí-
res não tiveram capacidade discriminatória ram-se do seguinte modo: Grupo 1: 8,39 %,
entre os grupos. Grupo 2: 7,63%, Grupo 3: 13,74%, Grupo 4:
Foram ajustados modelos de regressão 44,28% e Grupo 5: 25,95%, concentrando-se
logística considerando-se, como variáveis assim nos grupos de pior índice de desenvol-
respostas, as unidades pertencerem ou não vimento (Seade, 2007).
a cada um dos três grupos de qualidade, e, Nesse contexto de elevada concentra-
como variáveis explanatórias, o modelo or- ção de municípios pequenos e de baixo
ganizacional autorreferido, e a população do desenvolvimento socioeconômico em
município. relação ao estado, a cobertura média
A análise dos dados foi realizada por meio da saúde suplementar era de 27%, bem
dos softwares SAS for Windows, v.9.3. (SAS. abaixo dos 44% observado no estado de
Inst., Cary, EUA), e a produção dos quadros São Paulo naquele período. Embora com
e figuras apresentada por meio do software uma grande variação entre os municí-
SPSS 10,0 for Windows, (SPSS. Inc, Chicago, pios, a saúde suplementar mostrou-se
EUA). inexpressiva nos municípios menores, em
Os resultados da avaliação foram torno de 0,3% a 0,5%, caracterizando a
entregues para cada gestor municipal população da maior parte dos municípios

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, OUT-DEZ 2014


Avaliação de serviços de Atenção Básica em municípios de pequeno e médio porte no estado de São Paulo: 683
resultados da primeira aplicação do instrumento QualiAB

que integraram a pesquisa como usuária de 50 atendimentos diários; 28% entre 50 e


quase exclusiva do SUS (BRASIL, 2006). 100, e 20,8% entre 100 e 200, e as demais
acima de 200.
Caracterização geral dos serviços
avaliados Qualidade da organização da
Atenção Básica
A distribuição das unidades, segundo au-
toclassificação, foi: 234 (39,1%) Unidades Considerando a média por indicador para
de Saúde da Família (USF); 219 (36,6%) cada uma das dimensões avaliadas, obser-
Unidades Básicas tradicionais (UBS); 67 vou-se, entre os 19 indicadores de Gerência,
(11,2%) UBS, sendo 23 com equipe de saúde uma variação entre 0,73 (principais temas
da família e 44 com agentes comunitários; abordados nas reuniões do conselho local de
17 (2,8%) unidades mistas (UBS com ur- saúde no último ano) e 1,80 (disponibilida-
gência/emergência) e 20 (3,3%) outras. De de de medicamentos); enquanto, para os 46
um modo geral, as unidades concentram-se indicadores de Assistência, a variação obtida
em áreas urbanas periféricas (44%), com foi entre 0,31 (diversidade de profissionais
menor proporção em áreas urbanas centrais que realizam coleta de papanicolau) e 1,82
(29%) e rurais (26%). (trimestre de início do pré-natal).
Das 234 USF que integram o universo A tabela 1 mostra os indicadores selecio-
avaliado, 144 (61,5%) localizam-se em muni- nados, por dimensão avaliativa, segundo a
cípios com menos de 50.000 habitantes, en- média obtida por indicador, apontando os
quanto, das 219 UBS, 86 (39,2%) localizam-se que alcançaram valores mais próximos e os
em municípios desse mesmo porte. que mais se distanciaram do padrão espe-
O volume diário de atendimentos apre- rado, representado pela pontuação máxima
sentou grande variação: 33,4% com menos atribuída (2).

Tabela 1. Indicadores de qualidade organizacional dos serviços de APS por dimensão avaliativa, selecionados segundo
valores médios de 80% ou mais e 50% ou menos do padrão esperado (2), QualiAB 2007

Número da questão – Indicador correspondente Média

GERÊNCIA
80% ou mais do padrão esperado

Q59 Disponibilidade de medicamentos 1,80

Q16 Utilização dos dados de produção assistencial 1,62

Q17 Utilização dos dados epidemiológicos da região 1,62

Q74 Carga horária do gerente 1,60

50% ou menos do padrão esperado

Q18 Estudos sobre o perfil da demanda dos usuários nos três últimos anos 0,96

Q78 Diversidade de profissionais com oportunidade de formação continuada no último ano 0,96

Q09 Exames realizados na Unidade 0,80

Q80 Principais temas abordados nas reuniões do conselho local de saúde da unidade no último ano 0,70

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, OUT-DEZ 2014


684 CASTANHEIRA, E. R. L.; NEMES, M. I. B.; ZARILI, T. F. T.; SANINE, P. R.; CORRENTE, J. E.

Tabela 1. (cont.)

ASSISTÊNCIA
80% ou mais do padrão esperado

Q39 Trimestre de início do pré-natal pela maioria das gestantes 1,82

Q55 Tempo médio de espera entre agendamento e a realização da consulta médica para adultos 1,76

Q22 Diversidade da oferta assistencial para demanda espontânea 1,69

Q71 Atividades desenvolvidas na consulta de enfermagem 1,68

Q38 Inscrição no pré-natal diante do diagnóstico de gravidez 1,68

Q58 Diversidade de atendimentos oferecidos a diabéticos e/ou hipertensos 1,68

Q70 Atividades de rotina realizadas pelo enfermeiro 1,65

50% ou menos do padrão esperado

Q61 Diagnóstico e orientação para os casos de alcoolismo 0,96

Q67 Atividades desenvolvidas pela equipe de saúde bucal 0,96

Q52 Atuação da unidade em instituições para crianças 0,93

Q62 Atendimento e orientação para mulheres em situação de violência 0,93

Q53 Ações programadas para atenção aos adolescentes 0,92

Q60 Ações programadas para atenção ao idoso 0,81

Q26 Atividades na sala de espera 0,77

Q40 Exames de rotina solicitados a todas as gestantes 0,73

Q25 Agendamento de consultas médicas 0,66

Q33 Diversidade de profissionais que realizam coleta de papanicolaou 0,31


Fonte: Resultados da pesquisa Avaliação da gestão da atenção básica nos municípios de quatro regionais de saúde do Estado de São Paulo,
Departamento de Saúde Pública. FMB/Unesp (2007)

Os indicadores que apresentaram melhor reflitam a política municipal de saúde.


desempenho na Gerência apontam ações mais Na organização da assistência, mostram
diretamente relacionadas à gestão municipal do um bom desempenho os indicadores de ações
que ao gerenciamento local, pois dizem respei- vinculadas a programas tradicionais, como o
to à aquisição de insumos (medicamentos) e a pré-natal, à grande demanda de hipertensos
ações de planejamento que dependem do acesso e diabéticos, além da oferta diversificada de
aos dados de produção e de perfil epidemioló- ações para o atendimento à demanda espontâ-
gico das áreas de cada unidade. Por outro lado, nea. A importância do papel dos enfermeiros
os indicadores de pior desempenho estão mais nas unidades de atenção primária reflete-se
diretamente vinculados ao gerenciamento local, nos indicadores de atividades em geral e na
pois levantamentos sobre o perfil da demanda, consulta de enfermagem em particular. Já
liberação de diferentes profissionais para ativida- os indicadores de pior desempenho apontam
des de formação, ou a instituição de ações de edu- menor incorporação de ações programadas
cação continuada no próprio serviço, dependem, voltadas a idosos e adolescentes, assim como
também, de iniciativas locais, ainda que sempre a temas menos tradicionais do trabalho da

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, OUT-DEZ 2014


Avaliação de serviços de Atenção Básica em municípios de pequeno e médio porte no estado de São Paulo: 685
resultados da primeira aplicação do instrumento QualiAB

APS, como a atenção ao alcoolismo e às situ- A pontuação geral dos serviços permitiu
ações de violência contra a mulher. O indica- a construção de um ranking de qualidade,
dor de menor desempenho, diversidade de com média de 1,29, desvio padrão de 0,28,
profissionais que coletam o exame de papa- mediana de 1,28 (mínimo: 0,42 e máximo:
nicolau, tinha como padrão esperado a inclu- 1,89). A partir da aplicação do método de
são dos técnicos e auxiliares de enfermagem K-médias, os serviços foram divididos em
como um desses profissionais, o que explica três grupos de qualidade, sendo o Grupo 1 o
seu mau desempenho. Esse padrão não mais que melhor se aproxima do padrão esperado,
se aplica em função de resolução do Coren, o Grupo 2 o de qualidade aceitável, e o Grupo
que não permite que esse procedimento seja 3, aquele com qualidade insuficiente para os
realizado por técnicos e auxiliares (COFEN, 2011). padrões adotados (tabela 2).

Tabela 2. Classificação dos serviços em três grupos de qualidade, segundo as K-médias, QualiAB, 2007

Grupo Serviços (nº) Pontuação Média Dp

1 231 1,52 0,13


2 204 1,21 0,13
3 89 0,84 0,15
Fonte: Resultados da pesquisa Avaliação da gestão da atenção básica nos municípios de quatro regionais de saúde do Estado de São Paulo,
Departamento de Saúde Pública. FMB/Unesp (2007)

De acordo com o modelo de regressão vezes maior de pertencer ao mesmo grupo.


logística, observou-se que o serviço ser USF Já os serviços situados em municípios
tem chance 4,6 vezes maior de pertencer ao com um número menor de habitantes têm
grupo de melhor qualidade (Grupo 1) que as duas vezes mais chance de pertencerem ao
demais, e ser UBS/Pacs/ESF tem chance 2 melhor grupo de qualidade (tabela 3).

Tabela 3. Modelo de regressão logística para cada grupo de qualidade considerando tipo de unidade e tamanho da
população. QualiAB, 2007

Grupo 1 (melhor) Grupo 2 Grupo 3 (pior)


Características
IC
OR IC OR IC OR

Tipo Unidade
1. USF 4,609 (2,39 - 8,89) 0,28 (0,11- 0,68) 0,37 (0,19 - 0,69)
2. UBS 0,766 (0,38 - 0,53) 31,02 (0,74- 3,59) 9,76 (0,47 - 1,67)
3. UBS/Pacs/ESF 2,166 (0,90 - 5,21) 29,93 (0,28 - 2,63) 21,04 (0,20 - 1,23)
4. UBS/ESP/URG 1 1 1
População
<50000 2,205 (1,25 - 3,93) 2,53 (1,10 - 5,78) 0,29 (0,16 - 0,51)
50000 - 100000 1,009 (0,60 - 1,71) 2,95 (1,41 - 6,18) 0,59 (0,36 - 0,95)
>100000 1 1 1
Fonte: Resultados da pesquisa Avaliação da gestão da atenção básica nos municípios de quatro regionais de saúde do Estado de São Paulo,
Departamento de Saúde Pública. FMB/Unesp (2007)

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, OUT-DEZ 2014


686 CASTANHEIRA, E. R. L.; NEMES, M. I. B.; ZARILI, T. F. T.; SANINE, P. R.; CORRENTE, J. E.

Discussão A avaliação pelo QualiAB também dife-


renciou-se de outras avaliações da APS em
A diversidade de arranjos organizacionais curso naquele período, por não tomar como
observada retrata a realidade da APS em objeto somente os serviços organizados
regiões do interior do estado de São Paulo segundo a ESF. Até esse período, e de certo
em 2007, com uma extensa rede de serviços modo ainda hoje, as avaliações de serviços de
de APS organizados segundo diferentes ar- APS no Brasil, com maior frequência, tomam
ranjos. O predomínio de USF em municípios como objeto aqueles que se organizam de
pequenos e em áreas periféricas poderia acordo com a ESF, considerando-se outros
ser interpretado como resultado de uma arranjos organizacionais como unidades
Atenção Básica seletiva, do SUS ‘para os tradicionais, tomadas mais como referência
pobres’. Entretanto, a baixa cobertura da para comparação do que como propriamen-
saúde suplementar em grande parte deles te objeto de análise, como nos estudos de
parece mais ser reflexo de uma política de Facchini et al. (2006), Ibanez (2006), Elias et al.
equidade que favoreceu o acesso das popula- (2006) e Caldeira, Oliveira e Rodrigues (2010).
ções antes desassistidas. A construção de um instrumento aplicável
O fato de ser Unidade de Saúde da Família, a serviços com diferentes arranjos organiza-
estar localizado em municípios com menos cionais, baseou-se na experiência paulista
de 50 mil habitantes e mostrarem-se associa- que mantém, ainda hoje, muitos serviços or-
dos ao grupo de melhor qualidade, traz para ganizados segundo diferentes perspectivas
a discussão o quanto a Estratégia Saúde da técnico-assistenciais, embora componham
Família mostra-se adequada a esses contex- a rede de APS, o que fica evidenciado pela
tos. Por outro lado, a presença de unidades relativa baixa cobertura da ESF no estado
organizadas segundo variados arranjos no (34,79%) (BRASIL, 2014), apesar da extensa rede
grupo de melhor qualidade aponta para a de serviços de Atenção Básica previamente
possibilidade de outras estratégias alinha- existente (MENDES; BITTAR, 2010, IBANEZ et al., 2006).
rem-se aos padrões de qualidade organiza- O bom desempenho de indicadores de as-
cional baseados na PNAB e no SUS. sistência – por exemplo, o início do pré-natal
A avaliação de serviços de APS em regiões no primeiro trimestre – relativos a progra-
com municípios de pequeno e médio porte mas tradicionais, contrasta com o mau de-
contempla realidades de saúde e de orga- sempenho de outros indicadores relativos
nização de serviços que se diferenciam das ao mesmo programa – como os exames de
existentes nas metrópoles e grandes centros pré-natal solicitados de rotina (tabela 1).
urbanos. Permite, assim, uma aproximação Esses resultados reafirmam o encontrado
com as especificidades dos serviços locali- em outras avaliações da qualidade do pré-
zados em municípios com menor densidade -natal realizadas no mesmo período, que
populacional, em geral, com menos recur- indicavam que o início precoce do acompa-
sos, e que representam a realidade de muitos nhamento das gestantes se dava em condi-
municípios brasileiros. Apresentando uma ções de baixa qualidade técnica do cuidado
perspectiva complementar às avaliações da (CALDEIRA; OLIVEIRA; RODRIGUES, 2010; GONÇALVES;
Estratégia Saúde da Família (ESF) em mu- CEZAR; MENDOZA-SASSI, 2009; SUCCI et al., 2008).
nicípios de médio e grande porte, ocorridas Trabalhos recentes apontam que problemas
entre 2001 e 2007 como desdobramento dessa mesma ordem ainda persistem como
da Fase I do Proesf (Projeto de Expansão e desafios para a melhoria da qualidade dos
Consolidação da Saúde da Família), e dirigi- serviços de APS, em seus diferentes modelos
da aos municípios com mais de 100 mil habi- organizacionais (OLIVEIRA et al., 2013; GOMES; CÉSAR,
tantes (BRASIL, 2003). 2013; ZANCHI et al., 2013).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, OUT-DEZ 2014


Avaliação de serviços de Atenção Básica em municípios de pequeno e médio porte no estado de São Paulo: 687
resultados da primeira aplicação do instrumento QualiAB

Os resultados apresentados, assim como mudanças, permitem avaliar e monitorar


no caso da atenção à gestante, caracterizam como o cuidado está sendo prestado e o grau
o cenário da Atenção Básica em municípios de correspondência com os padrões preconi-
do estado de São Paulo no período estudado, zados (BROUSSELLE; CONTRADRIOPOULOS; HARTZ, 2011;
fornecendo parâmetros para avaliações pos- Donabedian, 1997; 2005).
teriores relativas ao próprio estado, assim O QualiAB toma o processo de traba-
como contribuindo com o debate sobre a lho como mote central para a avaliação,
qualidade em outros contextos brasileiros. considerando-o a partir do modo como se
A preocupação em contemplar a hete- expressa na organização das ações desenvol-
rogeneidade dos serviços nos processos vidas. O padrão de qualidade, aferido pelo
institucionalizados de avaliação da APS foi QualiAB, aponta um ‘dever ser’ cujas normas
incorporada mais recentemente no segundo se baseiam, centralmente, nas diretrizes do
ciclo do PMAQ, ocorrido entre 2013 e 2014, SUS e em sua expressão na PNAB, como re-
que passou a incluir equipes de unidades presentativo de uma determinada raciona-
básicas não organizadas segundo a ESF, de lidade técnico-política que orienta o modo
modo parametrizado, como forma de equiva- de operacionalizar a atenção à saúde, nesse
lência para fins de avaliação (BRASIL, 2012). Essa sentido, o modelo assistencial que se quer
mudança possibilitará visualizar o conjunto efetivar (CASTANHEIRA; NEMES, 2011; VASCONCELOS,
dos serviços que integram a rede de servi- 2011; BRASIL-PISSATO, 2011).
ços de APS e desenvolver medidas de apoio Os indicadores sinalizam as ações que ne-
técnico e financeiro, respondendo a uma cessitam de maiores investimentos técnicos,
necessidade já contemplada pelo QualiAB administrativos e financeiros. O QualiAB
desde sua primeira aplicação em 2007. pode ser utilizado para avaliação da Atenção
A discussão dos resultados obtidos na ava- Básica tanto pelas equipes locais quanto
liação, pela própria equipe e/ou com o apoio pelos gestores municipais e estaduais de
de equipe externa, pode instruir processos de saúde. Mostrou-se viável e com boa acurá-
monitoramento e educação continuada. Ao cia enquanto instrumento de avaliação para
final de cada processo avaliativo, espera-se gestão, já que pode orientar decisões de in-
que os resultados coloquem questões e de- cremento da qualidade dos serviços.
safios tanto para a equipe quanto para as Ao abranger um grande número de ações
gestões municipal e regional. A apropriação procurando contemplar o complexo con-
dos resultados por todos esses segmentos é junto de atividades previstas como de com-
parte essencial do ciclo avaliativo, sem o que petência da APS num único instrumento, o
o mesmo não se completa. QualiAB apresenta-se como um instrumento
com capacidade de realizar uma avaliação
sintética e global do desempenho dos ser-
Conclusões viços, procurando abarcar a diversidade
e complexidade de suas ações. Por outro
A extensão e heterogeneidade de serviços lado, apresenta os limites de um instru-
de APS no território nacional, num contex- mento estruturado, de autoaplicação, e que
to de investimento na institucionalização de não explora em profundidade a avaliação
uma cultura avaliativa, colocam a organiza- de cada uma das diferentes dimensões e
ção das ações desenvolvidas no cotidiano objetos de ações da atenção primária, como,
dos serviços como um foco prioritário para por exemplo, a atenção aos crônicos ou às
avaliação. Neste contexto, as avaliações gestantes, embora permita avaliações mais
de processo, por sua facilidade operacio- gerais desses diferentes recortes.
nal e capacidade de instrumentalização de Como desdobramento desse trabalho,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, OUT-DEZ 2014


688 CASTANHEIRA, E. R. L.; NEMES, M. I. B.; ZARILI, T. F. T.; SANINE, P. R.; CORRENTE, J. E.

o QualiAB foi adotado, em 2010, como mostrou: factibilidade, aceitabilidade, bom


parte de um programa de apoio à Atenção poder de discriminação, e utilidade para
Básica da SES São Paulo, sendo respon- auxiliar a gestão da rede de Atenção Básica
dido por 95% (2.735) dos serviços de 586 do SUS em São Paulo. A aplicabilidade
municípios (90,8% do estado). Os resul- em serviços de Atenção Básica de outras
tados foram encaminhados a todos os regiões brasileiras está sendo avaliada por
municípios que aderiram, com um guia projeto em andamento (CNPq Processo nº
contendo os critérios e padrões utiliza- 485848/2012-0).
dos. A discussão e incorporação dos resul- Focado no ‘como’ organizar o processo
tados pelos municípios com menos de 100 local do cuidado, o QualiAB fornece elemen-
mil habitantes foi em muito ampliada pela tos que subsidiam diretamente os profissio-
atuação dos Articuladores da Atenção nais, e pode compor iniciativas de melhoria
Básica (ANDRADE; CASTANHEIRA, 2011). da qualidade que envolvam todos os níveis
Em suas duas aplicações, o QualiAB da gestão. s

Referências

ALMEIDA, C.; MACINKO, J. Validação de uma BRASIL. Agência Nacional de Saúde Suplementar
metodologia de avaliação rápida das características (ANS). Relatórios para gestores. Nacional. Cadastro de
organizacionais e do desempenho dos serviços de atenção Beneficiários. DIDES, 2006. Disponível em: <http://
básica do Sistema Único de Saúde - SUS em nível local. www.ans.gov.br/portal/upload/aans/ouvidoria/
Brasília, DF: Organização Pan- Americana da Saúde. relatorios/relatorio_ouvidoria_2006.pdf>. Acesso em:
Brasília, 2006. (Série Técnica Desenvolvimento de 14 abr. 2014.
Sistemas e Serviços de Saúde).
______. Ministério da Saúde. PortariaGM nº 1.654 de
ALMEIDA, D. B.; MELO, C. M. M. Avaliação na 19 de julho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema
atenção básica em saúde: uma revisão de literatura. Único de Saúde, o Programa Nacional de Melhoria do
Revista Baiana de Enfermagem, Salvador, v. 24, n. 1, 2, 3, Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB)
p. 75-80, jan./dez. 2010. e o Incentivo Financeiro do PMAQ-AB, denominado
Componente de Qualidade do Piso de Atenção
ANDRADE, M. C.; CASTANHEIRA, E.R. L. Básica Variável – PAB Variável. Diário Oficial [da]
Cooperação e apoio técnico entre estado e municípios: República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 19 jul.
a experiência do programa articuladores da atenção 2011a. Disponível em: <http://www.brasilsus.com.br/
básica em São Paulo. Revista Saúde e Sociedade, São legislacoes/gm/108814-1654.html>. Acesso em: 14 abr.
Paulo, v. 20, n. 4, p. 980-990, 2011. 2014.  

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, OUT-DEZ 2014


Avaliação de serviços de Atenção Básica em municípios de pequeno e médio porte no estado de São Paulo: 689
resultados da primeira aplicação do instrumento QualiAB

______. Ministério da Saúde. Portaria GM nº 535, de BRASIL-PISSATO, S. B. G. 2011. Avaliação da qualidade


03 de abril de 2013. Altera a Portaria nº 1.654/GM/ da atenção básica nos municípios do Departamento
MS, de 19 de julho de 2011, que institui, no âmbito Regional de Sorocaba. 2011. Tese (Doutorado em Saúde
do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de Coletiva) - Faculdade de Medicina, Universidade
Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica Estadual Paulista, Botucatu, 2011.         
(PMAQ-AB). Diário Oficial [da] República Federativa
do Brasil. Brasília, DF, 03 abr. 2013. Disponível em: BROUSSELLE, A.; CONTRADRIOPOULOS, A-P.;
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/ HARTZ, Z. (Org.). Avaliação: conceitos e métodos. Rio
prt0535_03_04_2013.html>. Acesso em: 14 abr. 2014.  de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011.

______. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção CALDEIRA, A. P.; OLIVEIRA, R. M.; RODRIGUES, O. A.
Básica. Secretaria de Atenção à Saúde. Melhoria Qualidade da assistência materno-infantil em diferentes
contínua da Qualidade na Atenção Primária à Saúde: modelos de Atenção Primária. Ciência & Saúde Coletiva,
conceitos, métodos e diretrizes. Secretaria de Atenção Rio de Janeiro, v. 15, supl. 2, p. 3139-3147, 2010.
à Saúde. Série B. Normas e Manuais Técnicos. Brasília,
DF, 2010b. CAMPOS, G. W. S. El filo de la navaja de la función
filtro: reflexiones sobre la función clínica en el Sistema
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Único de Salud. Revista Brasileira de Epidemiologia, São
Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: Paulo, v. 8, n. 4, p. 477-483, 2005.
Ministério da Saúde, v. 4, 2006. (Série Pactos pela
Saúde). CASTANHEIRA, E. R. L. et al. Avaliação da qualidade
da atenção básica em 37 municípios do centro-oeste
______. Ministério da Saúde. Projeto de Expansão e paulista: características da organização da assistência.
Consolidação do Saúde da Família -PROESF. Ministério Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 84-
da Saúde, Brasília, DF, jun. 2003. Disponível em: 88, 2009.
<http://www.saude.gov.br/proesf>. Acesso em: 14 abr.
2014. ______. QualiAB: desenvolvimento e validação de uma
metodologia de avaliação de serviços de atenção básica.
______. Ministério da Saúde. Programa Nacional de Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 935-
Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica 947, 2011.
(PMAQ): Manual Instrutivo. Brasília: Ministério da
Saúde, Brasília, DF, 2011a. CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM
(COFEN). Resolução nº 385, de outubro de 2011.
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Disponível em: <ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftpsessp/
à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Teto, bibliote/informe_eletronico/2011/iels.out.11/
credenciamento e implantação das estratégias de agentes Iels190/U_RS-COFEN-385_031011.pdf>. Acesso em: 14
Comunitários de Saúde, Saúde da Família e Saúde Bucal abr. 2014.
– estado de São Paulo. Ministério da Saúde, Brasília,
DF. Disponível em: <http://dab.saude.gov.br/portaldab/ DONABEDIAN, A. The quality of care: How can it be
historico_cobertura_sf.php>. Acesso em: 31 jul. 2014. assessed? Archives of Pathology & Laboratory Medicine,
Northfield, p. 1145-1150, nov. 1997.
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à
Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde Mais ______. Evaluating the quality of medical care. The
Perto de Você - Acesso e Qualidade Programa Nacional Millbank Quarterly, New York, v. 83, n. 4, p. 691-729,
de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção 2005.
Básica (PMAQ). Manual Instrutivo. Normas e Manuais
Técnicos. Brasília, DF, 2012. ELIAS, P. E. et al. Atenção Básica em Saúde:

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, OUT-DEZ 2014


690 CASTANHEIRA, E. R. L.; NEMES, M. I. B.; ZARILI, T. F. T.; SANINE, P. R.; CORRENTE, J. E.

comparação entre PSF e UBS por estrato de exclusão ______. Avaliação da qualidade da assistência no
social no município de São Paulo. Ciência & Saúde programa de Aids: questões para a investigação em
Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3. p. 633-641, 2006. serviços de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública,
Rio de Janeiro, v. 20, n. supl. 2, p. S310-S321, 2004.
FACCHINI, L. A. et al. Desempenho do PSF no Sul
e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e ______. The variability and predictors of quality of Aids
epidemiológica da Atenção Básica à Saúde. Ciência & care services in Brazil. BMC Health Services Research,
Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 669-681, London, v. 9, p. 51, 2009.
2006.
NOVAES H. M. D. Avaliação de programas, serviços
______. Avaliação de efetividade da atenção básica à e tecnologias em saúde. Revista de Saúde Pública, São
saúde em municípios das regiões sul e nordeste do Paulo, v. 34, n. 5, p. 547-59, 2000.
Brasil: contribuições metodológicas. Cadernos de Saúde
Pública, Rio de Janeiro, v. 24, supl., 2008, p. S159-S172, OLIVEIRA, R. L. A. et al. Avaliação da atenção pré-
2008. natal na perspectiva dos diferentes modelos na atenção
primária. Rev. Latino-Am. Enfermagem [internet], v. 21,
GOMES, R. M. T.; CÉSAR, J. A. Perfil epidemiológico n. 2, mar./abr. 2013. Disponível em:<www.eerp.usp.br/
de gestantes e qualidade do pré-natal em unidade rlae>. Acesso em: 31 jul. 2014.
básica de saúde em Porto Alegre, Rio Grande do Sul,
Brasil. Revista Brasileira de Medicina de Família e PAIM, J.; TRAVASSOS, C.; ALMEIDA, C.; BAHIA, L.;
Comunidade, Rio de janeiro, v. 8, n. 27, 2013, p. 80-89. MACINKO, J. O sistema de saúde brasileiro: história,
Disponível em:<http://www.rbmfc.org.br/rbmfc/ avanços e desafios. The Lancet.com[internet], Londres,
article/view/241>. Acesso em: 14 abr. 2014. p. 11-31, 2011. Acesso em: 14 abr. 2014.

GONÇALVES, C. V.; CESAR, J. A.; MENDOZA-SASSI, SEADE. Fundação Sistema Estadual de Análise de
R. A. Qualidade e eqüidade na assistência à gestante: dados. Índice Paulista de Responsabilidade Social e
um estudo de base populacional no Sul do Brasil. índice de Desenvolvimento Humano. 2007.
Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 11, p.
2507-2516, nov. 2009. SILVA, L. A.; CASOTTI, C. A.; CHAVES, S. C. L. A
produção científica brasileira sobre a Estratégia Saúde
HAIR, J. F. et al. Análise multivariada de dados. Porto da Família e a mudança no modelo de atenção. Ciência
Alegre: Editora eletrônica: Artmed pratice-Hall, 1998. & Saúde Coletiva, Rio de janeiro, v. 18, n. 1. p. 221-232,
2013.
IBANEZ, N. et al. Avaliação do desempenho da
atenção básica no estado de São Paulo. Ciência & Saúde STARFIELD, B. Atenção Primária: equilíbrio entre
Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 683-703, 2006. necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília,
DF: UNESCO, Ministério da Saúde, 2002.
MENDES, J. D. V.; BITTAR, O. J. N. V. Saúde Pública
no Estado de São Paulo – informações com implicações STARFIELD, B.; SHI, L. Policy relevant determinants
no planejamento de programas e serviços. Revista de of health: an international perspective. Health Policy,
Administração em Saúde, São Paulo, n. especial, supl., Amsterdam, v. 60, n. 3, p. 201-218, 2002.
jan. 2010.
SUCCI, R. C. M. et al. Avaliação da assistência Pré-
NEMES M. I. B. et al. Avaliação de serviços de Natal em unidades básicas do município de São Paulo.
assistência ambulatorial em Aids, Brasil: estudo Rev Latino-Am.Enfermagem [internet], v. 16, n. 6, nov./
comparativo 2001/2007. Revista de Saúde Pública, Rio dez. 2008. Disponível em:< www.eerp.usp.br/rlae >.
de Janeiro, v. 47, n. 1, p. 137-146, 2013. Acesso em: 31 jul. 2014.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, OUT-DEZ 2014


Avaliação de serviços de Atenção Básica em municípios de pequeno e médio porte no estado de São Paulo: 691
resultados da primeira aplicação do instrumento QualiAB

TANAKA, O. Y.; ESPÍRITO SANTO, A. C. G. Avaliação World Health Organization (WHO). The World Health
da qualidade da atenção básica utilizando a doença Report 2008: primary health care, now more than ever.
respiratória da infância como traçador, em um distrito Geneva: WHO, 2008.
sanitário do município de São Paulo. Revista Brasileira
de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 8, n. 3, p. 325-332, ZANCHI, M. et al. Concordância entre informações
jul./set. 2008. do Cartão da Gestante e do recordatório materno
entre puérperas de uma cidade brasileira de médio
TIMM, H. H. Applied multivariate analysis. Springer. porte. Cadernos Saúde Pública [internet], v. 29, n. 5, p.
2002, p. 695. 1019-1028, 2013. Disponível em: <http://www.scielosp.
org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X20
VASCONCELOS, R. D. Avaliação da qualidade da 13000900019&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 31 jul.
atenção básica no município de Bauru: desafios para 2014.
um processo de mudança. 2011. Dissertação (Mestrado
em Saúde Coletiva) - Faculdade de Medicina,
Recebido para publicação em abril de 2014
Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2011.          Versão final em setembro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: resultados de pesquisa financiada pela Fapesp,
VERAS, C. L. S. M.; VIANNA, R. P. T. Desempenho linha de fomento PPSUS, Processo nº 05/58652-7
de municípios paraibanos segundo avaliação de
características da organização da atenção básica –
2005. Revista de Epidemiologia e Serviços de Saúde,
Brasília, v. 18, n. 2, p. 133-140, abr./jun. 2009.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, OUT-DEZ 2014


692 artigo original | original article

Avaliação da Estratégia Saúde da Família:


perspectiva dos usuários em Minas Gerais,
Brasil
The Family Health Strategy assessment: perspective of users in Minas
Gerais, Brazil

Simone Albino da Silva1, Lislaine Aparecida Fracolli2

RESUMO A Estratégia Saúde da Família (ESF) tem papel fundamental na Atenção Primária
à Saúde no Brasil. Avaliou-se a ESF na visão do usuário, numa região de saúde de Minas
Gerais, por meio de pesquisa avaliativa, quantitativa e transversal, utilizando o Primary Care
Assessment Tool (PCATool). Os usuários têm na ESF o principal recurso de atenção à saúde e a
valorizam como coordenadora do cuidado nos demais níveis assistenciais. Contudo, conside-
ram que existem barreiras organizacionais no acesso; as necessidades da comunidade não são
a base para a oferta dos serviços; na organização das ações não há espaço para a participação
do usuário; e nem sempre a família é a unidade central do cuidado.

PALAVRAS-CHAVE Atenção Primária à Saúde; Avaliação de serviços de saúde; Estratégia Saúde


da Família.

ABSTRACT The Family Health Strategy (ESF) has key role in Primary Health Care in Brazil. It
has assessed the ESF in the user perspective, in a health region of Minas Gerais, by means of an
evaluative, quantitative and cross-sectional survey, using the Primary Care Assessment Tool
(PCATool). Users have the ESF as the main resource of health care and have valued it as the co-
ordinator of care in other healthcare levels. However, they consider that there are organizational
barriers in access; community needs are not the basis to the range of services; in the organization
of the actions there is no place for the user participation, and the family is not always the central
unit of care.

1 Doutora em Enfermagem KEYWORDS Primary Health Care; Health service evaluation; Family Health Strategy.
pela Universidade de São
Paulo (USP) – São Paulo
(SP). Professora adjunta
da Universidade Federal de
Alfenas (Unifal) – Alfenas
(MG), Brasil.
simonealbino76@hotmail.com

2 Livre docente pela


Universidade de São Paulo
(USP) – São Paulo (SP).
Professora da Universidade
de São Paulo (USP) – São
Paulo (SP).
lislaine@usp.br

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140064
Avaliação da Estratégia Saúde da Família: perspectiva dos usuários em Minas Gerais, Brasil 693

Introdução não estejam relacionadas a uma doença


ou um agravo específico, é incipiente. Em
A Estratégia Saúde da Família (ESF) e o sua maioria, são avaliações do impacto
Programa de Agentes Comunitários de da implantação da ESF sobre a saúde e o
Saúde (Pacs) foram os arranjos estruturais bem-estar da população por meio de in-
adotados pelo governo brasileiro, a partir dicadores fortemente determinados por
de meados dos anos 1990, para reorientar fatores como renda, saneamento, educação,
o modelo de atenção à saúde por meio de entre outros (MACINKO; ALMEIDA; OLIVEIRA, 2003).
práticas de saúde multiprofissionais. Dessa Considerou-se, também, que grande parte
forma, foi possível organizar e expandir a dos estudos de avaliação da APS, publica-
rede de serviços e de ações básicas de saúde dos nos últimos 14 anos, foi fomentada pelo
no nível municipal (GIL, 2006). governo federal brasileiro. A maioria desses
A mudança do modelo de atenção à saúde estudos foi realizada em grandes municí-
apoiou-se nos resultados das discussões da pios, na busca de subsídios científicos que
Conferência Mundial de Cuidados Primários ratificassem a continuidade e a expansão da
de Saúde de Alma Ata e nos princípios de ESF (BODSTEIN, et al., 2006).
conquista do direito à saúde, de justiça social Diante da magnitude da ESF no sistema
e de cidadania, constantes do ideário da de saúde brasileiro e do contexto científico
reforma sanitária brasileira, consolidados exposto, justifica-se a realização de novos
na VIII Conferência Nacional de Saúde e na estudos avaliativos, em diferentes regiões
criação do Sistema Único de Saúde (SUS). do País, em municípios de portes variados,
Logo, a implementação da ESF aconteceu com o uso de diversas propostas avaliativas
claramente como uma maneira de viabilizar e metodológicas.
e fortalecer os princípios do SUS (ANDRADE; A concepção adotada para este estudo é
BUENO; BEZERRA, 2006). a da avaliação da assistência ao usuário no
No início dos anos 2000, com respaldo primeiro nível de atenção, abarcando as di-
legal, administrativo e financeiro, iniciou-se mensões da APS como a conquista do direito
uma nova fase de ampliação da cobertura à saúde integral, como o ponto central da or-
com a ESF. Esse movimento sofreu influ- ganização de uma política e de um sistema
ências políticas nacionais e internacionais, de saúde e como dimensão tecnológica de
filosóficas, empíricas e científicas, como re- implementação dos atributos essenciais e
sultados de estudos da temática da Atenção derivados propostos por Starfield (2002).
Primária à Saúde (APS), alavancados, prin- O objetivo deste trabalho foi avaliar a ESF
cipalmente, por Starfield (2002), que, além de na perspectiva dos usuários, buscando-se
reunir publicações que comprovam a efici- identificar se os atributos de acesso de pri-
ência de sistemas de saúde baseados na APS, meiro contato, de integralidade, de coorde-
também organizou o conjunto de atributos nação da atenção, de longitudinalidade, de
próprios desse nível assistencial: acesso de orientação familiar e de orientação comu-
primeiro contato, longitudinalidade, integra- nitária estão incorporados às práticas das
lidade e coordenação (atributos essenciais) e equipes de saúde.
os chamados atributos derivados: orientação
familiar, orientação comunitária e compe-
tência cultural. Metodologia
Na busca bibliográfica realizada para a
composição deste trabalho, verificou-se Trata-se de uma pesquisa avaliativa (NOVAES,
que, no Brasil, a publicação de pesquisas 2000),de abordagem quantitativa, com de-
de avaliação sobre a atuação da APS, que lineamento transversal (POLIT; BECK; HUNGLER,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014


694 SILVA, S. A.; FRACOLLI, L. A.

2004), derivada da pesquisa Avaliação dos Contato – Utilização; Acesso de Primeiro


Atributos da Atenção Primária à Saúde na Contato – Acessibilidade; Longitudinalidade;
Estratégia Saúde da Família em Municípios Coordenação – Integração de Cuidados;
do Sul de Minas Gerais, aprovada pelo Coordenação – Sistema de Informações;
comitê de ética da Escola de Enfermagem da Integralidade – Serviços Disponíveis;
Universidade de São Paulo – EEUSP, parecer Integralidade – Serviços Prestados; e
30699, de 01/06/2012. entre os atributos derivados de Orientação
A amostragem dos participantes foi reali- Familiar e Orientação Comunitária. As res-
zada pelo método de cotas (GIL, 1999), com es- postas possíveis para cada item são: ‘com
timativa da média com desvio padrão de 1,2, certeza sim’ (valor=4); ‘provavelmente sim’
erro de 0,1 e intervalo de confiança de 95%. (valor=3); ‘provavelmente não’ (valor=2);
O número total de participantes foi dividi- ‘com certeza não’ (valor=1); e ‘não sei/não
do proporcionalmente entre as cidades e o lembro’ (valor=9). Os escores para cada
tamanho da população coberta pela ESF. um dos atributos ou seus componentes são
Os participantes foram pessoas maiores calculados pela média aritmética simples
de 18 anos, residentes e cadastradas há mais dos valores das respostas dos itens que os
de um ano em área de abrangência de unida- compõem.
des da ESF de zona urbana, que funcionas- Como resultado geral da avaliação pelo
sem ininterruptamente há pelo menos cinco PCATool, tem-se duas medidas: o Escore
anos, em municípios da região de saúde de Essencial, que é a média dos escores dos
Alfenas, com cobertura populacional pela componentes que pertencem aos atributos
ESF superior a 50%. Todos os participantes essenciais, e o Escore Geral, que é a média
assinaram o Termo de Consentimento Livre dos escores dos componentes dos atributos
e Esclarecido, em conformidade com a legis- essenciais, acrescida dos escores dos atri-
lação vigente. butos derivados. Esses resultados caracteri-
Os dados foram coletados nos meses de zam o grau de orientação do serviço ou do
junho e julho de 2012, por meio de entrevis- sistema de saúde aos atributos da Atenção
tas feitas no domicílio, com duração média Primária à Saúde.
de quarenta minutos. Utilizou-se como As respostas foram organizadas em um
roteiro de entrevista o PCATool, que é um banco de dados criado no software Microsoft
instrumento elaborado com base nos pres- Excel for Windows, e a análise estatística foi
supostos de estrutura, de processo e de re- realizada no software Statistical Package for
sultado, que compõem a avaliação em saúde the Social Sciences – SPSS 14.0, com intervalo
proposta por Donabedian (DONABEDIAN, 2005). de confiança de 95%. Para a aferição de cada
Esse instrumento foi desenvolvido nos EUA atributo, foi feito um escore, utilizando-se a
por Starfield (2002) e vem sendo traduzido e média aritmética das respostas e este é com-
validado em diferentes países, inclusive no parado ao valor de referência 6,66, limite
Brasil (BRASIL, 2010). entre alto e baixo escore. Para a comparação
O PCATool, na versão dirigida ao usuário dos escores médios dos atributos da APS por
adulto, possui 88 questões. As três pergun- grupos, utilizou-se o modelo Anova, com
tas iniciais visam a identificar qual unidade post hoc, pelo método Tukey. Cada atributo
de saúde o usuário tem como referência também foi analisado considerando-se cada
de atendimento e o grau de afiliação a esse item, tendo como referência o percentual
serviço. Esse item é pontuado de 1 a 4 e não de 66,6% adotado no PCATool. Essa análise
se constitui num atributo. Na sequência, há teve a consistência interna e a confiabilida-
85 perguntas distribuídas entre os atribu- de avaliadas pelo método Alfa de Cronbach
tos essenciais da APS: Acesso de Primeiro (POLIT; BECK; HUNGLER, 2004).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014


Avaliação da Estratégia Saúde da Família: perspectiva dos usuários em Minas Gerais, Brasil 695

Resultados e discussão diferentes), em cuja área de abrangência foi


possível entrevistar 527 adultos. Os partici-
A região de saúde de Alfenas, localizada no pantes têm como características serem do
Estado de Minas Gerais, é composta por 17 sexo feminino (86,15%); casados (59,96%);
municípios, sendo: seis com menos de dez de cor branca (62,81%); com até três filhos
mil habitantes; cinco com até 20 mil habi- (50,10%); com idade média de 53,36 anos para
tantes; cinco com até 40 mil habitantes; e um as mulheres e de 58,23 para os homens. O
com mais de 50 mil habitantes. Atenderam valor do grau de afiliação e os escores médios
aos critérios de inclusão 33 unidades de dos atributos da APS, conferidos pelos parti-
saúde da ESF (localizadas em 11 municípios cipantes, estão expostos na tabela 1.

Tabela 1. Valores médios e respectivos desvios-padrão dos atributos da Atenção Primária à Saúde, Escore Essencial e
Escore Geral, conferidos pelos usuários adultos na avaliação da Estratégia Saúde da Família, microrregião de Alfenas –
MG, 2012

Atributo da APS N Mínimo Máximo Média DP

Grau de Afiliação 527 1,00 4,00 3,67 0,62


Acesso de Primeiro Contato – Utilização 527 0,00 10,00 8,59 1,97
Acesso de Primeiro Contato – Acessibilidade 524 0,00 7,50 3,21 1,49
Longitudinalidade 527 0,71 10,00 7,26 1,96
Coordenação – Integração de Cuidados 259 0,00 10,00 6,10 2,67

Coordenação – Sistema de Informação 510 0,00 10,00 6,41 2,16

Integralidade – Serviços Disponíveis 460 0,45 9,24 5,22 1,56

Integralidade – Serviços Prestados 508 0,00 10,00 4,92 2,50

Orientação Familiar 511 0,00 10,00 5,69 2,93

Orientação Comunitária 464 0,00 10,00 5,88 2,48

Escore Essencial 527 2,37 8,43 5,64 1,09

Escore Geral 527 2,21 8,75 5,67 1,20

Fonte: Elaboração própria

Nos escores médios dos atributos da ESF O valor médio do grau de afiliação confe-
não foi encontrada diferença estatística, rido pelo usuário da ESF da região de saúde
comparando-se os grupos por sexo, idade, de Alfenas foi alto, informando que o mesmo
cor e presença de filhos. A comparação prioriza utilizar e depositar a responsabili-
dos escores médios dos atributos entre os dade pelo seu atendimento na ESF.
grupos classificados segundo o estado civil A busca do serviço é medida pelo atribu-
mostrou que o Acesso de Primeiro Contato to Acesso de Primeiro Contato – Utilização,
– Acessibilidade é mais bem avaliado pelos que recebeu o mais alto escore médio, cor-
participantes solteiros, casados/amasia- roborando o resultado do grau de afiliação.
dos e viúvos do que pelos participantes Estudos em diferentes partes do Brasil
divorciados. mostraram que os usuários da ESF também

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014


696 SILVA, S. A.; FRACOLLI, L. A.

avaliaram este atributo com altos escores Por outro lado, o atributo Acesso de Primeiro
(IBAÑEZ et al., 2006; MACINKO; ALMEIDA; SÁ, 2007; Contato – Acessibilidade, que avalia quanto o
OLIVEIRA, 2007; OLIVEIRA et al., 2013; PEREIRA et al., 2011; serviço de saúde é disponível ao usuário e sua
REIS et al., 2013; SALA et al., 2011; VAN STRALEN et al., 2008; capacidade de atendimento para a rotina ou
VIANA et al., 2008; VIANA, 2012). para a demanda espontânea, recebeu a pior
Giovanella e Mendonça (2003) sugerem avaliação entre os demais. A falta dessa qualida-
que, nas localidades onde ocorreu a substi- de não é uma característica apenas dos municí-
tuição de rede básica tradicional pela ESF, pios deste estudo, pois recebeu baixos escores
há maior probabilidade de esta se constituir dos usuários em outras avaliações da ESF (ELIAS
em uma fonte habitual de atenção. Na região et al., 2006; IBAÑEZ et al., 2006; MACINKO; ALMEIDA; DE SÁ,
de saúde em estudo, a ESF foi a escolha dos 2007; OLIVEIRA, 2007; OLIVEIRA et al., 2013; PEREIRA et al.,
gestores para a ampliação da rede de servi- 2011; REIS et al., 2013; SALA et al., 2011; VAN STRALEN et al.,
ços de atenção primária, com alta cobertura 2008; VIANA et al., 2008; VIANA, 2012). No detalhamen-
populacional nos municípios pesquisados, to dos itens que compõe este atributo, expostos
tornando-a um serviço de procura regular na tabela 2, pode-se compreender melhor esse
pela população. resultado.

Tabela 2. Distribuição percentual das respostas dos usuários adultos da Estratégia Saúde da Família aos itens que compõem o atributo Acesso de
Primeiro Contato – Acessibilidade, microrregião de Alfenas – MG, 2012. Alfa de Cronbach = 0,683, N = 524

C1 C2 C3 C4 C6 C7 C8 C9 C10 C11 C12


Avaliação
% % % % % % % % % % %

Com certeza, sim 0,19 0,76 20,46 25,10 1,72 0,95 43,30 10,67 38,93 32,89 50,38
Provavelmente sim 0,19 0,76 21,99 14,69 1,53 0,38 27,20 9,54 24,43 23,71 9,73
Provavelmente não/não 5,53 7,44 22,94 25,76 6,30 6,87 11,88 21,95 17,75 19,50 14,89
sei não lembro
Com certeza, não 94,08 91,03 34,61 34,35 90,46 91,79 17,62 57,82 18,89 23,90 25,00
Total 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100

Fonte: Elaboração própria

Notas: C1 – O ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro’ fica aberto no sábado ou no domingo? C2 – O ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/
enfermeiro’ fica aberto pelo menos algumas noites de dias úteis até as 20 horas? C3 – Quando o seu ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro’ está
aberto e você adoece, alguém de lá atende você no mesmo dia? C4 – Quando o seu ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro’ está aberto, você consegue
aconselhamento rápido pelo telefone se precisar? C5 – Quando o seu ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro’ está fechado, existe um número de telefone
para o qual você possa ligar quando fica doente? C6 – Quando o seu ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro’ está fechado no sábado e domingo e você
fica doente, alguém deste serviço atende você no mesmo dia? C7 – Quando o seu ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro’ está fechado e você fica doente
durante a noite, alguém deste serviço atende você naquela noite? C8 – É fácil marcar hora para uma consulta de revisão (consulta de rotina, ‘check-up’) neste ‘nome do
serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro?’ C9 – Quando você chega ao seu ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro’, você tem que esperar mais de 30
minutos para se consultar com o médico ou enfermeiro (sem contar triagem ou acolhimento)? C10 – Você tem que esperar por muito tempo ou falar com muitas pessoas
para marcar hora no seu ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro?’ C11 – É difícil para você conseguir atendimento médico do seu ‘nome do serviço de saúde/
ou nome médico/enfermeiro’ quando pensa que é necessário? C12 – Quando você tem que ir ao ‘nome do médico/enfermeira/ local’, você tem que faltar ao trabalho ou à
escola para ir ao serviço de saúde?

O horário de atendimento e os meios apontaram como obstáculos ao acesso a


de comunicação com o serviço obtiveram indisponibilidade de atendimento nos finais
avaliações médias inferiores ao valor de semana (PEREIRA et al., 2011; REIS et al., 2013; SALA
de classificação. Outros estudos também et al., 2011; VIANA, 2012) e após as 18 horas (REIS et

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014


Avaliação da Estratégia Saúde da Família: perspectiva dos usuários em Minas Gerais, Brasil 697

al., 2013; SALA et al., 2011; VIANA, 2012),


bem como a ALMEIDA; DE SÁ, 2007; OLIVEIRA et al., 2013; PEREIRA et al.,
ausência de mecanismos de aconselhamento 2011; REIS et al., 2013; SALA et al., 2011; VAN STRALEN et al.,
ou de agendamento por telefone no horário 2008; VIANA et al., 2008; VIANA, 2012).
normal de funcionamento ou quando o Para Elias et al. (2006), o resultado positivo
serviço se encontra fechado (PEREIRA et al., 2011; da avaliação da longitudinalidade é esperado,
REIS et al., 2013; VIANA, 2012). Para transpor esses já que a ESF tem no seu ideário o estabeleci-
obstáculos, é necessário que as pessoas mento de vínculo entre a família e os profis-
faltem ao trabalho ou à escola para conseguir sionais da unidade. Contudo, segundo Cunha
realizar agendamento ou atendimento. e Giovanella (2011), a sua presença não é aqui-
Em outros estudos, o horário estendido sição simples. Para esses autores, ainda que
culminou em um resultado diferente, em que o estabelecimento do vínculo longitudinal
as pessoas não precisam mudar sua rotina esteja no âmbito da prática do profissional, o
para receber atendimento de saúde na ESF atendimento a tal atributo só é possível se for
(REIS et al., 2013; SALA et al., 2011). uma prioridade da gestão, na medida em que
Existe dificuldade em agendar uma con- envolve questões como a oferta adequada de
sulta para o mesmo dia nas unidades da ESF serviços de APS e os mecanismos de fixação
na microrregião de Alfenas, assim como em do profissional na unidade de saúde. 
diversas outras cidades do País (PEREIRA et Mesmo diante de um resultado positivo,
al., 2011; REIS et al., 2013; SALA et al., 2011; VIANA, 2012). alguns itens do atributo Longitudinalidade
Mesmo os usuários entrevistados avaliando tiveram um resultado desfavorável. O item
que é necessário falar com muitas pessoas que versa sobre a possibilidade de se tele-
ou esperar muito tempo para conseguir um fonar para o profissional de saúde em caso
atendimento, julgaram ser fácil marcar uma de dúvida apresentou avaliação negativa
consulta de rotina na ESF, (REIS et al., 2013; SALA (38,78%). A mesma barreira de comunica-
et al., 2011; VIANA, 2012). ção já foi apontada no atributo Acesso de
O tempo de espera para atendimentos Primeiro Contato – Acessibilidade e também
agendados é menor que trinta minutos, o foi encontrada em outras avaliações (IBAÑEZ et
que não foi referido pelos usuários de outros al., 2006; VAN STRALEN et al., 2008; VIANA, 2012).
trabalhos (PEREIRA et al., 2011; SALA et al., 2011; VIANA, A avaliação do conhecimento do médico/
2012). Esse resultado expressa qualidade no enfermeiro sobre as condições de vida do
planejamento do atendimento, pois é um entrevistado, no que tange aos coabitan-
importante parâmetro para medir a barrei- tes por residência (64,83%), aos problemas
ra de acessibilidade organizacional (STARFIELD, mais importantes (65,84%) e às dificuldades
2002), e exceder o limite de trinta minutos para obtenção de medicamentos (61,45%),
implica comprometimento do desempenho apresentou resultados considerados baixos,
do serviço (PEREIRA et al., 2011). apesar de próximos ao valor de referência.
Um aumento no número de barreiras ao Os mesmos itens também tiveram avaliações
acesso foi associado a menos atenção no semelhantes em outros estudos (PEREIRA et al.,
primeiro contato e continuidade mais baixa, 2011; SALA et al., 2011; VIANA, 2012).
mesmo depois do controle de várias carac- O paradoxo entre as avaliações negativas
terísticas influentes do paciente, tipos de nos itens acima e as avaliações positivas nos
centros de atenção primária e tipos de pro- questionamentos se o médico/enfermeiro
fissionais de atenção primária (STARFIELD, 2002). concede tempo suficiente para falar sobre
O atributo Longitudinalidade recebeu o as preocupações ou problemas (89%) e se as
segundo maior escore médio na avaliação perguntas dos usuários são respondidas de
dos usuários, assim como em outros traba- maneira compreensível (96,59%) é questio-
lhos (ELIAS et al., 2006; IBAÑEZ et al., 2006; MACINKO; nado por Pereira et al. (2011), que encontraram

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014


698 SILVA, S. A.; FRACOLLI, L. A.

resultados semelhantes em sua avaliação. A questão inicial de avaliação do atributo


Para esses autores, tal resultado mostra que Coordenação – Integração de Cuidados foi
o espaço destinado à escuta das necessidades ‘Você já foi consultar qualquer tipo de espe-
do usuário pode se dar no sentido de abor- cialista ou serviço especializado no período
dagens voltadas para os aspectos biológicos, em que você está em acompanhamento no
fato que pode ter contribuído para o usuário nome do serviço de saúde/ou nome médico/
considerar o tempo da consulta suficiente. enfermeiro?’. Dos entrevistados, 48,81% res-
O percentual de 62,05% dos entrevistados ponderam sim, 49,80% responderam não e
que responderam afirmativamente sobre 1,39% não souberam opinar. Somente os que
a vontade de mudança do atual serviço/ responderam afirmativamente prossegui-
médico/enfermeiro para outro serviço ram nas questões desse atributo.
deixou evidente a insatisfação da maior Nota-se o elevado percentual de usuários
parte dos usuários. a referir a utilização de serviços especiali-
Os atributos Coordenação – Sistemas de zados na microrregião de Alfenas, resultado
Informação e Coordenação – Integração de contrário aos achados de Sala et al. (2011). Esse
Cuidados obtiveram valores considerados percentual elevado é indicativo de baixa re-
baixos, porém, próximos do valor limite de solubilidade e qualidade da ESF. Almeida,
classificação de 6,66. Oliveira (2013), avalian- Fausto e Giovanella (2011) elencam que, entre
do a ESF sob a ótica do idoso, também en- os fatores que indicam o fortalecimento da
controu baixos escores médios, próximos do ESF como centro coordenador da assistência
valor limite, para ambos os atributos. Nos aos usuários, está a alta resolubilidade, de, no
estudos em que o atributo Coordenação não mínimo, 80% dos atendimentos.
foi dividido, os usuários da ESF concederam Os itens do atributo Coordenação –
altos escores médios (PEREIRA et al., 2011; SALA et Integração de Cuidados tratam da avaliação do
al., 2011; VAN STRALEN et al., 2008; VIANA et al., 2008), usuário sobre a ESF como centro coordenador
e em um apresentou resultado desfavorável da assistência no sistema de saúde e estão
(IBAÑEZ et al., 2006; OLIVEIRA, 2007). expostos na tabela 3.

Tabela 3. Distribuição percentual das respostas dos usuários adultos da Estratégia Saúde da Família aos itens que compõem o atributo Coordenação –
Integração de Cuidados, microrregião de Alfenas – MG, 2012. Alfa de Cronbach = 0,782, N= 259

E2 E3 E4 E5 E6 E7 E8 E9
Avaliação
% % % % % % % %

Com certeza, sim 73,46 86,87 28,19 58,37 44,79 55,60 40,93 35,91
Provavelmente sim 5,00 5,02 5,79 10,12 12,36 8,88 8,11 6,18
Provavelmente não/não sei/não lembro 4,23 2,70 13,90 2,72 9,27 10,04 13,13 13,90
Com certeza, não 17,31 5,41 52,12 28,79 33,59 25,48 37,84 44,02
Total 100 100 100 100 100 100 100 100

Fonte: Elaboração própria

Notas: E2 – O ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro’ sugeriu (indicou, encaminhou) que você fosse se consultar com este especialista ou serviço
especializado? E3 – O ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro’ sabe que você fez essas consultas com este especialista ou serviço especializado? E4 – O
seu ‘médico/enfermeiro’ discutiu com você diferentes serviços onde você poderia ser atendido para este problema de saúde? E5 – O seu ‘médico/enfermeiro’ ou alguém que
trabalha no/com ‘nome do serviço de saúde’ ajudou-o/a marcar esta consulta? E6 – O seu ‘médico/enfermeiro’ escreveu alguma informação para o especialista, a respeito
do motivo desta consulta? E7 – O ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro’ sabe quais foram os resultados desta consulta? E8 – Depois que você foi a este
especialista ou serviço especializado, o seu ‘médico/enfermeiro’ conversou com você sobre o que aconteceu durante esta consulta? E9 – O seu ‘médico/enfermeiro’ pareceu
interessado na qualidade do cuidado que lhe foi dado (lhe perguntou se você foi bem ou mal atendido por este especialista ou serviço especializado)?

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014


Avaliação da Estratégia Saúde da Família: perspectiva dos usuários em Minas Gerais, Brasil 699

As avaliações positivas confirmam a ESF saúde, não compondo o aprendizado que a


como porta de entrada para os serviços espe- população construiu nas suas relações com
cializados e também falam a favor da organi- os serviços, embora a coordenação seja um
zação do sistema regional de saúde. dos pilares da concepção estruturante e com-
Os itens que tratam do fluxo da informa- plexa da atenção primária em um sistema de
ção para a continuidade do cuidado e da qua- saúde. Transformar essa experiência vivida
lidade deste em outros níveis assistenciais pelo usuário requer investimento forte e du-
receberam avaliações negativas. Compondo radouro, não somente em capacitação, mas
um paralelo com outras avaliações de num esforço de mudança cultural de profis-
mesma metodologia, realizadas em cidades sionais, de gestores e de sustentabilidade das
de grande porte populacional, a maioria dos propostas implantadas.
itens tratados no início do parágrafo não O atributo Coordenação – Sistema de
obteve um resultado satisfatório (PEREIRA et al., Informação obteve baixo escore, contudo, o
2011; SALA et al., 2011; VIANA, 2012). A partir disso, é resultado ficou próximo ao valor limite de re-
possível considerar que esse resultado não é ferência. Na análise dos itens, sobressai que
prerrogativa dos pequenos municípios pela 96,86% dos usuários afirmaram a disponibi-
estrutura de saúde existente, mas pela não lidade do prontuário no momento da con-
valorização da opinião do usuário, pela in- sulta, e 33,73% responderam que poderiam
disponibilidade da referência e contrarrefe- acessá-lo se quisessem. Esses resultados da
rência e pela comunicação ineficiente entre microrregião de Alfenas (MG) foram infe-
usuário e profissional. riores aos apresentados por outros estudos
(PEREIRA et al., 2011; SALA et al., 2011; VIANA, 2012).
A essência da coordenação é a disponibilida- O discreto percentual de usuários que de-
de de informações a respeito de problemas monstraram conhecer o direito de consulta
e serviços anteriores e o reconhecimento ao prontuário revela que as equipes da ESF
daquela informação, na medida em que está dessa microrregião têm um ponto impor-
relacionada às necessidades para o presente tante a ser desenvolvido na educação em
atendimento. (STARFIELD, 2002, p.365-366). saúde: os direitos dos usuários dos serviços
de saúde.
Cabe ressaltar que a ESF tem o propósi- Os atributos Integralidade – Serviços
to de se conformar como porta de entrada e Disponíveis e Integralidade – Serviços
como filtro do fluxo para o sistema de saúde, Prestados alcançaram baixos escores
de ter no profissional a figura de coordena- médios na avaliação dos usuários da APS
dor dos cuidados ao usuário, conduzindo-o na microrregião de Alfenas. Esses atribu-
pela rede assistencial na busca da melhor tos receberam altos escores dos usuários
qualidade assistencial possível. Para isso, na maioria das investigações consultadas
necessita-se estabelecer e fortalecer o fluxo na literatura (ELIAS et al., 2006; MACINKO; ALMEIDA;
de informação na rede de serviços (GIOVANELLA; DE SÁ, 2007; PEREIRA et al., 2011; SALA et al., 2011; VAN
ESCOREL; MENDONÇA, 2003). O deta-
STRALEN et al., 2008; VIANA et al., 2008).
Para Ibanez et al. (2006), o atributo lhamento do resultado da Integralidade
Coordenação não faz parte das dimensões – Serviços Disponíveis está exposto na
historicamente valorizadas nos serviços de tabela 4.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014


700 SILVA, S. A.; FRACOLLI, L. A.

Tabela 4. Distribuição percentual das respostas dos usuários adultos da Estratégia Saúde da Família aos itens que compõem o atributo Integralidade –
Serviços Disponíveis, microrregião de Alfenas – MG, 2012. Alfa de Cronbach = 0,807, N=460

G1 G2 G3 G4 G5 G6 G7 G8 G9 G10 G11
Avaliação
% % % % % % % % % % %

Com certeza, sim 45,77 32,75 25,81 74,78 61,82 62,17 53,28 23,26 26,09 6,75 25,05
Provavelmente sim 20,17 15,40 13,23 4,13 7,38 9,13 17,69 16,09 20,65 3,92 20,26
Provavelmente não/não 13,88 27,11 31,02 9,13 9,76 9,78 21,40 41,30 35,87 24,18 35,51
sei/não lembro
Com certeza, não 20,17 24,73 29,93 11,96 21,04 18,91 7,64 19,35 17,39 65,14 19,17
Total 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100
G12 G13 G14 G15 G16 G17 G18 G19 G20 G21 G22
Avaliação
% % % % % % % % % % %
Com certeza, sim 13,02 12,58 6,74 4,12 83,70 38,70 66,45 5,68 36,18 54,45 35,29
Provavelmente sim 18,00 16,05 2,61 1,30 7,17 24,78 10,24 2,18 17,98 18,22 18,08
Provavelmente não/não 28,63 26,46 25,65 23,21 6,30 21,96 13,29 27,51 22,37 13,45 29,41
sei/não lembro
Com certeza, não 40,35 44,90 65,00 71,37 2,83 14,57 10,02 64,63 23,46 13,88 17,21
Total 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100

Fonte: Elaboração própria

Notas: A seguir, apresentamos uma lista de serviços/orientações que você e sua família ou as pessoas que utilizam esse serviço podem necessitar em algum momento.
Indique, por favor, se no ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro’ esses serviços ou orientações estão disponíveis: G1 – Respostas a perguntas sobre
nutrição ou dieta. G2 – Verificar se sua família pode participar de algum programa de assistência social ou benefícios sociais. G3 – Programa de suplementação nutricional
(ex: leite, alimentos). G4 – Vacinas (imunizações). G5 – Avaliação da saúde bucal (Exame dentário). G6 – Tratamento dentário. G7 – Planejamento familiar ou métodos
anticoncepcionais. G8 – Aconselhamento ou tratamento para o uso prejudicial de drogas (lícitas ou ilícitas, ex: álcool, cocaína, remédios para dormir). G9 – Aconselhamento
para problemas de saúde mental. G10 – Sutura de um corte que necessite de pontos. G11 – Aconselhamento e solicitação de teste anti-HIV. G12 – Identificação (Algum
tipo de avaliação) de problemas auditivos (para escutar). G13 – Identificação (Algum tipo de avaliação) de problemas visuais (para enxergar). G14 – Colocação de tala (ex:
para tornozelo torcido). G15 – Remoção de verrugas. G16 – Exame preventivo para câncer de colo de útero (Teste Papanicolau). G17 – Aconselhamento sobre como parar de
fumar. G18 – Cuidados pré-natais. G19 – Remoção de unha encravada. G20 – Aconselhamento sobre as mudanças que acontecem com o envelhecimento (ex.: diminuição
da memória, risco de cair). G21 – Orientações sobre cuidados no domicílio para alguém da sua família, como: curativos, troca de sondas, banho na cama. G22 – Orientações
sobre o que fazer caso alguém de sua família fique incapacitado e não possa tomar decisões sobre sua saúde (ex.: doação de órgãos caso alguém de sua família fique
incapacitado para decidir, por exemplo, em estado de coma).

Para essa avaliação do atributo, não é foram encontrados em outras avaliações


necessário que o usuário tenha recebido da ESF (PEREIRA et al., 2011; SALA et al., 2011; VIANA,
os serviços, podendo ser algum familiar, 2012).
mas o entrevistado deve, sim, saber ou Em contrapartida, destacam-se os baixos
não sobre sua disponibilidade (BRASIL, 2010). percentuais para os procedimentos consi-
Distinguem-se os itens que foram compu- derados cirúrgicos e invasivos, o aconse-
tados com elevados percentuais positivos lhamento para problemas de saúde mental,
pelos usuários. São eles: o exame de pa- o aconselhamento/tratamento da depen-
panicolau, a imunização, o pré-natal e as dência do uso de drogas lícitas e ilícitas e do
orientações sobre cuidados no domicílio. tabaco. Outras avaliações tiveram resultados
Resultados com altos percentuais de ava- semelhantes (PEREIRA et al., 2011; SALA et al., 2011;
liação positiva para esses itens também VIANA, 2012). O não reconhecimento da ESF

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014


Avaliação da Estratégia Saúde da Família: perspectiva dos usuários em Minas Gerais, Brasil 701

como uma porta de entrada para o atendi- portadora de uma diversidade de sofrimentos,
mento dessas demandas é uma lacuna im- entre eles, os psíquicos. A estrutura atual do
portante em sua atuação – ao se considerar SUS ainda é insuficiente na oferta de respos-
a importância epidemiológica desses temas, tas a ocorrências de violência e necessita am-
o impacto sobre as famílias e o custo para a pliar o olhar sobre a diversidade de situações
sociedade – por seus desdobramentos, tais que permeiam o processo saúde-doença. (PE-
como violência urbana, violência doméstica REIRA et al., 2011, p.52).
e incapacitação para o trabalho.
O delineamento do resultado do atributo
Os profissionais que atuam na ABS carregam Integralidade – Serviços Prestados é aborda-
a responsabilidade de lidar com uma clientela do na tabela 5.

Tabela 5. Distribuição percentual das respostas dos usuários adultos da Estratégia Saúde da Família aos itens que compõem o atributo Integralidade –
Serviços Prestados, microrregião de Alfenas – MG. Alfa de Cronbach = 0,882, H1 a H11 N= 508; H12 e H13 N = 438)

H1 H2 H3 H4 H5 H6 H7 H8 H9 H10 H11 H12 H13


Avaliação
% % % % % % % % % % %

Com certeza, sim 59,14 42,24 18,11 21,02 60,90 68,84 62,13 16,50 4,72 23,23 30,18 40,63 40,32
Provavelmente sim 12,18 13,36 5,91 12,38 12,18 8,68 16,37 8,25 2,56 14,17 14,20 11,74 14,41
Provavelmente não/ 8,64 11,59 25,79 22,20 7,86 7,10 6,11 23,18 11,81 12,01 9,27 8,58 8,33
não sei/não lembro
Com certeza, não 20,04 32,81 50,20 44,40 19,06 15,38 15,38 52,06 80,91 50,59 46,35 39,05 36,94
Total 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100

Fonte: Elaboração própria

Notas: A seguir, apresentamos uma lista de serviços/orientações que você e sua família ou as pessoas que utilizam esse serviço podem necessitar em algum momento.
Indique, por favor, se no ‘nome do serviço de saúde/ou nome médico/enfermeiro’ esses serviços ou orientações estão disponíveis: H1– Conselhos sobre alimentação saudável
ou sobre dormir suficientemente. H2 – Segurança no lar, como guardar medicamentos em segurança. H3 – Aconselhamento sobre o uso de cinto de segurança ou assentos
seguros para crianças ao andar de carro. H4 – Maneiras de lidar com conflitos de família que podem surgir de vez em quando. H5 – Conselhos a respeito de exercícios
físicos apropriados para você. H6 – Testes de sangue para verificar os níveis de colesterol. H7 – Verificar e discutir os medicamentos que você está tomando. H8 – Possíveis
exposições a substâncias perigosas (ex: veneno para formiga/para rato, água sanitária), no seu lar, no trabalho ou na sua vizinhança. H9 – Perguntar se você tem uma
arma de fogo e orientar sobre como guardá-la com segurança. H10 – Como prevenir queimaduras (ex: causadas por água quente, óleo quente, outras substâncias). H11 –
Como prevenir quedas. H12 – Só para mulheres: como prevenir osteoporose ou ossos frágeis. H13 – Só para mulheres: o cuidado de problemas comuns da menstruação ou
menopausa.

Nesse ponto, a avaliação é voltada para em casa ou no trabalho; ao aconselhamen-


as ações e para os serviços utilizados pelo to sobre conflitos familiares; e à prevenção
usuário ou por alguém de sua família, na de queimaduras. Nessa microrregião, a
unidade da ESF. A maioria dos itens desse quarta maior causa de mortalidade hospi-
atributo recebeu avaliações negativas, com talar acontece por causas externas, que en-
destaque para os menores índices relacio- globam morte por acidentes no transporte,
nados à segurança no acondicionamento de homicídios e suicídios (BRASIL, 2013). O resul-
arma de fogo; ao uso do cinto de segurança tado negativo desses itens que demonstram
e de dispositivo de retenção para crianças; fragilidades para se atingir a integralidade
ao risco de exposição a substâncias tóxicas coincide com os achados de Viana (2012), Sala

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014


702 SILVA, S. A.; FRACOLLI, L. A.

et al. (2011) e Pereira et al. (2011). Referindo-se 2011; SALA et al., 2011; VAN STRALEN et al., 2008; VIANA et
às ações educativas e de aconselhamento, al., 2008; VIANA, 2012). As piores avaliações foram
Pereira et al. (2011) dizem que as ações relati- sobre a participação do usuário no tratamen-
vas à prevenção de doença e à promoção da to (40,12%), assim como em outros estudos
saúde ainda são incipientes, revelando a ma- (PEREIRA et al., 2011; SALA et al., 2011; VIANA, 2012).
nutenção do modelo assistencial centrado Considera-se, assim, que o usuário
em práticas curativas. não experimenta/percebe a qualidade de
Os baixos escores dos dois atributos que Orientação Familiar nas ações dos serviços
aferiram a efetivação da Integralidade con- de saúde. Mais importante do que verificar o
trariam a afirmação de Sala et al. (2011), de que não alcance de um índice numérico que meça
o modelo de organização da APS nos moldes a qualidade assistencial é refletir sobre a per-
da ESF apresenta, em tese, melhores carac- sistência da prática centrada no profissional,
terísticas para a efetivação dos princípios da oposto do que foi proposto na mudança de
integralidade, uma vez que as ações são re- modelo assistencial a ser efetivada pelo SUS,
alizadas em um território estruturado, per- a partir da reorganização da APS com a ESF,
mitindo o planejamento das ações a partir para a qual a unidade de cuidado mais im-
das condições de vida e de saúde da popula- portante é a família, expressa na própria de-
ção adscrita, e não a partir da demanda por nominação da mesma.
assistência. O atributo Orientação Comunitária
Essa avaliação ruim pode ser interpretada recebeu avaliação considerada de baixo
de duas formas: a primeira é que, embora o escore, assim como em outros trabalhos rea-
instrumento tenha sido validado no Brasil, o lizados com usuários sobre a assistência com
rol de serviços elencados não está adequado adultos (ELIAS et al., 2006; IBAÑEZ et al., 2006; OLIVEIRA,
à realidade das ESF participantes do estudo. 2007; PEREIRA et al., 2011; SALA et al., 2011; VIANA et al.,
A segunda é que as ações e os serviços pro- 2008), com mulheres (VIANA, 2012) e com idosos
postos estão aquém das necessidades dos (OLIVEIRA et al., 2013). O estudo de Macinko,
usuários e não contemplam todo o espec- Almeida e Sá (2007) obteve avaliação positiva
tro da atuação da APS, ficando as práticas dos usuários para esse atributo da APS.
de prevenção e de promoção subjugadas às Elias et al. (2006) chamam a atenção para
práticas tradicionais de tratamento e de re- o fato de um estudo de avaliação encontrar
abilitação. Outrossim, para a população que um valor baixo para o atributo Orientação
reside na microrregião de Alfenas, o modelo Comunitária, pois é um dos componentes
de organização da APS, nos moldes da ESF, essenciais da ESF. Para esses autores, o re-
não se mostrou comprometido com a inte- sultado esperado seria uma boa avaliação.
gralidade e com a clínica ampliada. Nesse atributo, os itens que tratam das
A avaliação da Orientação Familiar visitas domiciliares (87,37%) e do reconheci-
recebeu um baixo escore médio por parte mento dos problemas de saúde da comuni-
dos entrevistados, distinguindo-se a ava- dade pelos profissionais do serviço de saúde
liação positiva para o item que se refere ao (74,37%) receberam avaliações positivas. A
questionamento do profissional de saúde visita domiciliar talvez seja uma das ações
sobre doenças que já ocorreram na família. que têm maior visibilidade e impacto junto
Os resultados negativos para esse atributo à população, já que faz parte da rotina das
foram uma unanimidade nos estudos reali- atividades dos membros da ESF, sobretudo
zados no Brasil, que utilizaram o PCATool, dos ACS.
independentemente da versão proposta (ELIAS Os próximos itens não atingiram um per-
et al., 2006; IBAÑEZ et al., 2006; MACINKO; ALMEIDA; DE SÁ, centual alto de avaliações positivas. Tiveram
2007; OLIVEIRA, 2007; OLIVEIRA et al., 2013; PEREIRA et al., como objetivo analisar se o serviço de saúde

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014


Avaliação da Estratégia Saúde da Família: perspectiva dos usuários em Minas Gerais, Brasil 703

ouve opiniões e ideias da comunidade à saúde; e quando o desafio da Coordenação


sobre como melhorar os serviços de saúde da Atenção se defronta com recursos fami-
(53,39%); se afere a satisfação da popula- liares limitados (STARFIELD, 2002).
ção sobre os serviços ofertados (42,14%); se
pesquisa sobre os problemas de saúde da
comunidade (41,94%); e de que forma esti- Considerações finais
mula a participação da mesma no controle
social (27,48%). Os estudos de Viana (2012), Os usuários da ESF na microrregião de
Pereira et al. (2011) e Sala et al. (2011) também Alfenas têm-na como fonte regular de
encontraram baixos percentuais para esses atenção às suas necessidades de saúde ao
itens do atributo Orientação Comunitária. longo da vida, mas encontram dificuldades
A população reconhece que os profissionais no acesso devido às várias barreiras organi-
identificam quais são os problemas das co- zacionais, sobretudo nas formas de comuni-
munidades, mas também enxergam que cação e nos horários de funcionamento das
o serviço não a envolve no planejamen- mesmas. A estrutura e o processo de tra-
to, no acompanhamento e na avaliação do balho favorecem os atendimentos de rotina
cuidado desenvolvido. Sobre esse atributo, durante a semana, nos quais é imprescindí-
concorda-se com Pereira et al. (2011) na refle- vel a presença da pessoa para informação,
xão de que esse resultado negativo indica a para agendamento e para atendimento.
necessidade de uma revisão do processo de Esses resultados levam a inferir que, a des-
trabalho, no qual aquele que utiliza o serviço peito da alta cobertura dos serviços da ESF
tenha efetivamente participação na formula- na microrregião de Alfenas, a mesma não se
ção de propostas e intervenções. constitui numa porta de entrada abrangente
O Escore Essencial e o Escore Geral obti- para o SUS. A posição da ESF como centro
veram valores médios baixos, revelando que coordenador do cuidado nos demais níveis
a prática da ESF na microrregião de Alfenas assistenciais é reconhecida. No entanto, a
não está orientada pelos atributos da APS. avaliação indica que esse atributo ainda ne-
Alguns estudos não realizaram essa aferi- cessita de aperfeiçoamentos, sobretudo na
ção (IBAÑEZ et al., 2006; PEREIRA et al., 2011; SALA et contrarreferência.
al., 2011). Os que realizaram atingiram valores Parte dos usuários percebe a verticali-
baixos para o Escore Geral e para o Essencial zação das práticas de saúde e vivência um
(OLIVEIRA, 2007; OLIVEIRA et al., 2013; VIANA, 2012). Nos vínculo fraco com os serviços, fruto de prá-
estudos que realizaram o chamado Índice ticas em saúde que não atingiram o (re)co-
da Atenção Básica, que consiste em realizar nhecimento do usuário como pessoa, como
média única dos escores, correspondente ao parte de uma família e como membro de uma
Escore Geral, os resultados foram altos (ELIAS comunidade, que tem uma opinião a ser con-
et al., 2006; MACINKO; ALMEIDA; DE SÁ, 2007; VAN STRALEN siderada na organização das ações e dos ser-
et al., 2008; VIANA et al., 2008). viços para que as necessidades da localidade
Neste estudo, os atributos que tiveram na qual a ESF está inserida sejam atendidas.
um desempenho ruim guardam relação Os serviços reconhecidos como disponí-
entre si. Os atributos Orientação Familiar e veis expõem uma prática bastante tradicio-
Comunitária acontecem quando o alcance da nal nas unidades da ESF da microrregião de
Integralidade fornece uma base para a con- Alfenas, com ações preventivas consolidadas,
sideração dos pacientes dentro de seus am- centradas na saúde da mulher e da criança, e
bientes; quando a avaliação das necessidades que não revelam espaço para a promoção da
para a atenção integral considera o contexto saúde e para a diversidade das necessidades
social e familiar e sua exposição a ameaças da população atendida.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014


704 SILVA, S. A.; FRACOLLI, L. A.

Denota-se a necessidade de se orientar as da sensibilização de todos, a fim de suprir a


práticas de acordo com os perfis social, eco- lacuna da participação popular e do controle
nômico e epidemiológico da comunidade na social evidenciado.
qual a ESF está inserida, por meio da realiza- Obviamente, não é possível que a APS
ção do diagnóstico local, elaborado com con- responda a todas as demandas de saúde da
sulta à comunidade e aos bancos de dados população de uma região característica de
oficiais, na tentativa de superar a verticali- um país em desenvolvimento, mas o caráter
zação das ações e dos serviços de saúde. No técnico da APS necessita constantemente de
avanço dessa prática, também é possível ofe- aperfeiçoamento. Esta pesquisa contribui
recer subsídios para a organização e para o no sentido de que, ao se avaliar, indica-se,
aprimoramento da rede de serviços de saúde pontualmente, onde é preciso avançar para
nos demais níveis assistenciais. Demanda-se o alcance de uma assistência integral e de
o emprego de ferramentas de abordagem fa- qualidade. A partir dessas constatações, é
miliar e comunitária, o aperfeiçoamento da também preciso militar para que as políticas
forma de comunicação e o relacionamento se instaurem, concretizem-se. s
entre profissional, serviço e usuários, além

Referências

ANDRADE, L. O. M. DE; BUENO, I. C. DE H. C.; cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obt10uf.def>. Acesso em: 22


BEZERRA, R. C. Atenção Primária à Saúde e Estratégia jul. 2013.
Saúde da Família. In: CAMPOS GWS, MINAYO MCS,
AKERMAN M, DRUMOND JUNIOR M, C. Y. (Ed.). ______. Ministério da saúde. Secretaria de Atenção
Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec/Fiocruz, em Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual
2006, p. 783-837. do instrumento de avaliação da atenção primária à
saúde: Primary Care Assessment Tool PCATool – Brasil.
BODSTEIN, R. et al. Estudos de Linha de Base do Brasília: Ministério da Saúde, 2010, p. 82
Projeto de Expansão e Consolidação do Saúde da
Família (ELB/Proesf ): considerações sobre seu DONABEDIAN, A. Evaluating the quality of medical
acompanhamento. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de care. 1966. The Milbank quarterly, v. 83, n. 4, p. 691-729,
Janeiro, v. 11, n. 3, p. 725-731, set. 2006. jan. 2005.

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Mortalidade – ELIAS, P. E. et al. Atenção Básica em Saúde:


Brasil. Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/ comparação entre PSF e UBS por estrato de exclusão

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014


Avaliação da Estratégia Saúde da Família: perspectiva dos usuários em Minas Gerais, Brasil 705

social no município de São Paulo. Ciência & Saúde PEREIRA, M. J. B. et al. Avaliação das características
Coletiva, Rio de Jeniro, v. 11, n. 3, p. 633-641, set. 2006. organizacionais e de desempenho de uma unidade
de Atenção Básica à Saúde. Revista Gaúcha de
GIL, A. C. Métodos e Técnicas de pesquisa social. São Enfermagem, Porto Alegre, v. 32, n. 1, p. 48-55, mar.
Paulo: Atlas, 1999, p. 206 2011.

GIL, C. R. R. Atenção primária, atenção básica e saúde POLIT, D.; BECK, C.; HUNGLER, B. Fundamentos de
da família: sinergias e singularidades do contexto pesquisa em enfermagem. 5. ed. Porto Alegre: Artmed,
brasileiro. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 22, 2004, p. 487
n. 6, p. 1171-1181, jun. 2006.
REIS, R. S. et al. Acesso e utilização dos serviços
GIOVANELLA, L.; ESCOREL, S.; MENDONÇA, M. H. na Estratégia Saúde da Família na perspectiva dos
M. Porta de entrada pela atenção básica? Integração do gestores, profissionais e usuários. Ciência & Saúde
PSF à rede de serviços de saúde. Saúde em Debate, Rio Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 11, p. 3321-3331, nov.
de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 278-89, 2003. 2013.

IBAÑEZ, N. et al. Avaliação do desempenho da SALA, A. et al. Integralidade e Atenção Primária


atenção básica no Estado de São Paulo. Ciência & Saúde à Saúde: avaliação na perspectiva dos usuários de
Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 683-703, set. 2006. unidades de saúde do município de São Paulo. Saúde e
Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 948-960, dez. 2011.
MACINKO, J.; ALMEIDA, C.; DE SÁ, P. K. A rapid
assessment methodology for the evaluation of primary STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre
care organization and performance in Brazil. Health necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília:
policy and planning, London, v. 22, n. 3, p. 167-77, maio Unesco, 2002, p. 726
2007.
VAN STRALEN, C. J. et al. Percepção dos usuários
MACINKO, J.; ALMEIDA, C.; OLIVEIRA, E. e profissionais de saúde sobre atenção básica:
Avaliação das características organizacionais dos comparação entre unidades com e sem saúde da família
serviços de atenção básica em Petrópolis: teste de uma na Região Centro-Oeste do Brasil. Cadernos de Saúde
metodologia. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 27, n. Pública, São Paulo, v. 24, n. supl. 1, p. 148-158, 2008.
65, p. 243-256, 2003.
VIANA, A. L. D’ÁVILA et al. Atenção básica e dinâ-
NOVAES, H. M. D. Avaliação de programas, serviços e mica urbana nos grandes municípios paulistas, Brasil.
tecnologias em saúde. Revista Saúde Pública, São Paulo, Cadernos de Saúde Pública, São Paulo, v. 24, n. supl. 1,
v. 34, n. 5, p. 547-549, out. 2000. p. s79-s90, 2008.

OLIVEIRA, M. M. C. DE. Presença e Extensão dos VIANA, L. M. M. Avaliação da atenção primária à


Atributos da Atenção Primária entre os Serviços saúde de Teresina na perspectiva das usuárias. [s.l.]
da Atenção Primária em Porto Alegre: uma análise Universidade Federal do Piauí, 2012.
agregada. [s.l.] Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, 2007.
Recebido para publicação em março de 2014
Versão final em setembro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
OLIVEIRA, E. B. et al. Avaliação da qualidade do
Suporte financeiro: CNPq, processo número 473768/2011-9
cuidado a idosos nos serviços da rede pública de
atenção primária à saúde de Porto Alegre, Brasil. Rev.
Bras. Med. Fam. Comunidade, Rio de Janeiro, v. 8, n. 29,
p. 264-273, 2013.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 692-705, Out-Dez 2014


706 artigo original | original article

Análise do Programa de Melhoria do Acesso e


da Qualidade da Atenção Básica em Recife-PE
Analysis of the Program for Access and Quality Improvement in
Primary Care in Recife-PE

Fabiana Maria de Aguiar Bello1, Eduardo Freese de Carvalho2, Sidney Feitoza Farias3

RESUMO Neste artigo, analisa-se o Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção


Básica no município do Recife-PE, compreendendo e explicitando o contexto, o conteúdo, o
processo e os atores envolvidos. Os resultados do contexto apontam para um alinhamento po-
lítico existente entre os governos federal e municipal, dificuldades no período eleitoral muni-
cipal e subfinanciamento no setor saúde. O conteúdo fundamenta-se na garantia da ampliação
do acesso e da melhoria da qualidade da Atenção Básica. Os atores cooperaram para imple-
mentação e viabilidade do Programa. Observaram-se mudanças significativas no trabalho das
equipes. Os elementos avaliados indicam um potencial transformador do programa.

1 Mestranda em Saúde PALAVRAS-CHAVE Políticas públicas de saúde; Atenção Primária à Saúde; Avaliação de pro-
Pública do Centro gramas e projetos de saúde.
de Pesquisas Aggeu
Magalhães (CPqAM).
Fundação Oswaldo Cruz ABSTRACT It is analyzed in this article the Improvement Program for Access and Quality
(Fiocruz/PE) – Recife (PE),
Brasil. Improvement in Primary Care in the municipality of Recife-PE, understanding and stating the
fabiana_bello@hotmail.com context, the content, the process and the actors involved. The results of the context point to an
2 Doutor em Ciências existing political alignment between the federal and municipal governments, difficulties in the
Sociossanitárias pela municipal election period and the underfinancing of the health sector. The content is based on the
Universidad Complutense
Madrid (UCM) – Madrid, guarantee of expanding access and improving the quality of primary care. The actors cooperated
Espanha. Professor to the implementation and feasibility of the program. Significant changes have been observed in
e Pesquisador do
Departamento de Saúde the work of the teams. The elements assessed indicate a transforming potential of the program.
Coletiva do Centro
de Pesquisas Aggeu
Magalhães (CPqAM), da KEYWORDS Health public policy; Primary Health Care; Program evaluation.
Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz/PE) – Recife (PE),
Brasil.
freese@cpqam.fiocruz.br

3 Doutor em Saúde

Pública pelo Instituto


de Pesquisas Aggeu
Magalhães – IAM/Fiocruz.
Professor e Pesquisador
do Departamento de
Saúde Coletiva do Centro
de Pesquisas Aggeu
Magalhães (CPqAM), da
Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz/PE) – Recife (PE),
Brasil.
sidney@cpqam.fiocruz.br

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140065
Análise do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica em Recife-PE 707

Introdução da Saúde (MS) e os demais gestores traça-


ram um desenho de programa que pudesse
Nos últimos anos, tem-se verificado um cres- permitir a ampliação do acesso e a melho-
cente interesse por estudos da área de polí- ria da qualidade da AB em todo o Brasil e,
ticas públicas no Brasil, visto que o intenso ainda, garantir um padrão de qualidade
processo de inovação e experimentação em comparável nacional, regional e localmen-
programas governamentais, assim como as te, de maneira a dar maior transparência e
oportunidades abertas à participação nas efetividade às ações governamentais dire-
mais diversas políticas setoriais despertaram cionadas a esse nível de atenção.
não apenas uma enorme curiosidade sobre o Para tanto, o PMAQ-AB está organizado
funcionamento do Estado brasileiro, como em quatro fases que se complementam e
também revelaram o grande desconheci- conformam um ciclo contínuo. São elas:
mento sobre sua operação e seu impacto Primeira fase – etapa de contratualização
efetivo (ARRETCHE, 2003; SOUZA, 2006). de compromissos e indicadores; Segunda
As políticas públicas são um conjunto de fase – desenvolvimento do conjunto de
ações e decisões de governo voltadas para ações (autoavaliação, monitoramento,
a solução (ou não) de problemas da socie- educação permanente e apoio institucio-
dade (LOPES et al., 2008). Para Viana e Baptista nal); Terceira fase –correspondente à ava-
(2008), abordar uma política pública é falar liação externa; e, finalmente, a Quarta fase
do Estado em ação, do interesse público e, – denominada recontratualização (BRASIL,
ainda, do processo de construção de uma 2011d; BRASIL, 2011e).
ação governamental para um setor, o que, O PMAQ-AB faz parte de movimentos
para tal, envolve atores, recursos, disputas e mais amplos da saúde, que são: a valo-
negociações. rização da AB como porta de entrada do
A escolha do que fazer ou não fazer, por sistema de saúde; o redesenho do finan-
parte de um governo, está vinculada a fatores ciamento do SUS; e, ainda, um modelo de
como o regime de governo ou o sistema polí- avaliação por desempenho dos sistemas de
tico, além de outros, como: situações específi- saúde (PINTO et al., 2012).
cas, estruturais, culturais ou mesmo externos Trata-se de um programa implantado
à localidade/país (WALT, 2006). em 2011, por isso existem, até o momento,
Considerando a significativa expansão poucos estudos sobre a temática (LOPES,
da Atenção Básica (AB) no Brasil, os desa- 2013; MACHADO, 2013; PINTO; SOUSA; FLORÊNCIO, 2012).
fios enfrentados para a institucionalização Nestes, não estão enfatizados os aspectos
da cultura de avaliação e de ações voltadas do contexto e do processo político, que
para a melhoria do acesso e da qualidade permitiram a formulação e a implementa-
na AB, além do caráter inovador e, conse- ção do programa.
quentemente, das expectativas relaciona- O PMAQ-AB foi implantado na
das ao Programa de Melhoria do Acesso e Secretaria de Saúde do Recife-PE, no
da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ- segundo semestre de 2011, período esse
AB), buscou-se analisar o desenvolvimen- em que a AB estava inserida no Modelo de
to do programa na cidade do Recife-PE. Atenção à Saúde Recife em Defesa da Vida,
O PMAQ-AB foi instituído pela portaria definida como a ordenadora do cuidado à
de nº 1.654 GM/MS, de 19 de julho de 2011, saúde.
e é produto de um processo de negociação Diante do exposto, o presente estudo
e pactuação das três esferas de gestão do tem como objetivo analisar o PMAQ-AB
Sistema Único de Saúde (SUS), que contou no município do Recife-PE, compreen-
com vários momentos em que o Ministério dendo e buscando explicitar o contexto, o

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014


708 BELLO, F. M. A.; CARVALHO, E. F.; FARIAS, S. F.

conteúdo, os atores e processos envolvidos de Políticas de Saúde, de Walt e Gilson, opera-


na sua implantação/implementação. cionalizado por Araújo Jr. (2000).
Foram entrevistados oito informan-
tes‑chave, entre eles: secretário munici-
Procedimentos pal de saúde, Gerente de Atenção Básica
metodológicos (GAB), apoiadores institucionais do MS
e da cidade do Recife ligados à GAB, re-
Foi utilizada a abordagem qualitativa, ex- presentante do Conselho dos Secretários
ploratória e descritiva, buscando realizar Municipais de Saúde de Pernambuco
uma análise abrangente do PMAQ-AB, no (Cosems/PE); profissional integrante da
período de 2011 a 2012, a partir do estudo Estratégia Saúde da Família (ESF), re-
de caso. presentante do Conselho Municipal de
A análise documental foi utilizada como Saúde (CMS) e da Instituição de Ensino
técnica aliada às entrevistas na coleta de e Pesquisa. Esses atores responderam a
dados. Tais fontes de informação foram ana- questões relativas aos objetivos da pesqui-
lisadas através da técnica de condensação de sa (roteiro semiestruturado), resumidos
significados (KVALE, 1996) e a partir do referen- no quadro 1, com as respectivas categorias
cial teórico denominado Triângulo de Análise de análise.

Quadro 1. Resumo dos objetivos da pesquisa e respectivas categorias de análise do Programa de Melhoria do Acesso e
da Qualidade da Atenção Básica, no período de 2011 a 2012, Recife-Pernambuco

Fonte de dados
Objetivos
Categorias de análise Documentos oficiais / Artigos científicos

1. Compreender o CONTEXTO do 1.1 Macrocontexto 1. BRASIL, 1988: Constituição de 1988


programa no âmbito das políticas 1.2 Microcontexto 2. BRASIL, 2003: PROESF
públicas de saúde 3. BRASIL, 2005a: AMQ
4. BRASIL, 2011a: PNAB
2. Analisar o CONTEÚDO do 2.1 Corpo da política 5. BRASIL, 2011b: Manual Instrutivo do PMAQ
programa e os fundamentos 2.2 Fundamentos 6. BRASIL, 2011c: Manual Instrutivo da Avalia-
previstos programáticos ção Externa
2.3 Marco normativo (base 7. BRASIL, 2012: Manual Instrutivo da AMAQ
legal) 8. FELISBERTO, 2004
9. FELISBERTO, 2006
3. Caracterizar os ATORES 3.1 Atores envolvidos 10. FELISBERTO, 2010
envolvidos no programa e identificar 3.2 Formuladores, opositores 11. Legislações:
as estratégias adotadas e aliados - Portarias nº 1.089/12; nº 866/12; nº 644/12;
3.3 Estratégias (cooperação, nº 255/12; nº 2.838/11; 2.812/11; 2.488/11;
cooptação e conflito) 2.396/11; 576/11; 2.087/11; 1.654/11.
12. RECIFE, Plano Municipal de Saúde, 2010 a
4. Analisar o PROCESSO do 4.1 Formulação 2013
programa, as relações existentes 4.2 Tomada de decisão 13. Atas e relatórios da Secretaria de Saúde do
entre os diferentes níveis de 4.3 Implementação Recife/Gerência de Atenção Básica
governo, estratégias políticas para 4.4 Avaliação
implementação e os recursos
envolvidos

Fonte: Elaboração própria

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014


Análise do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica em Recife-PE 709

O Triângulo de Análise de Políticas de Resultados e discussão


Saúde é um modelo multicausal de análise
de políticas e programas de saúde que ob-
jetiva estudar todo o processo, conteúdo Contexto
e contexto em que está inserida a políti-
ca, além dos atores e das correlações de A análise do contexto do PMAQ-AB está
forças relevantes para a sua implementa- apresentada a partir das duas dimensões:
ção (ARAÚJO JR; MACIEL FILHO, 2001). macrocontexto – compreendendo as três
O estudo foi aprovado pelo Comitê esferas: política, econômica e social; e mi-
de Ética em Pesquisa do Centro de crocontexto – que diz respeito às políticas
Pesquisa Aggeu Magalhães/Fundação setoriais, finanças setoriais e aos problemas
Oswaldo Cruz (CPqAM/Fiocruz), cujo e serviços de saúde (quadro 2). Neste, estão
número do parecer é 341.572, e CAAE nº também sintetizados os principais elemen-
17042013.6.0000.5190. tos encontrados no contexto do programa.

Quadro 2. Síntese do contexto do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica, no período de 2011 a 2012, Recife-Pernambuco

Contexto
Macrocontexto Microcontexto

Os problemas de saúde
Esfera Política Esfera Econômica Esfera Social Políticas Setoriais Finanças Setoriais
e serviços de saúde

Articulação entre PT Aumento do Crescimento popu- Descentralização Financiamento da AB Transição demográ-


nacional e municipal crescimento lacional político-adminis- insuficiente fica, epidemiológica
Eleição para Prefeito econômico/ PIB Existência de 66 Zeis, trativa Emenda Constitucio- e nutricional: super-
Crise político- Incremento dos disseminadas pelo Elementos norma- nal 29/ Lei comple- posição de doenças
partidária gastos públicos na espaço urbano tivos: NOB/Noas/ mentar 141/12 (DIP e DCNT)
Mudanças de saúde Aumento da expecta- Pacto pela Saúde/ Aumento crescente Rede de Atenção à
Gestores da Saúde tiva de vida Decreto dos recursos muni- Saúde
Regime democrático Baixo IDH / Índice Expansão da AB cipais Precariedade da
Modelo administrativo de Gini estrutura física das
gerencialista UBS
Ideologia social
democrática
Políticas públicas
sociais
Fonte: Elaboração própria

Na categoria de análise macrocontexto foi ano de 2011; regime democrático/gerencia-


possível observar, na esfera política: o ali- lista e políticas públicas de relevância social.
nhamento político existente em Recife entre De acordo com as falas dos informan-
os governos federal e municipal, ambos lide- tes‑chave, foi possível identificar tais fatores
rados pelo Partido dos Trabalhadores (PT); do contexto, que facilitaram e limitaram o
período eleitoral com expressiva disputa desenvolvimento do programa na cidade do
entre os partidos políticos, anteriormente Recife, tais como:
aliados (PT e Partido Socialista Brasileiro –
PSB); mudança do secretário de saúde e da [...] macropoliticamente, é uma gestão nacional
equipe gestora do nível central no final do (que é do PT) para uma gestão municipal, que

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014


710 BELLO, F. M. A.; CARVALHO, E. F.; FARIAS, S. F.

também é do PT, onde os ideais do partido são elevada concentração de renda do Brasil (índice
voltados para o trabalhador. E assim, tinha-se de Gini) (FREESE; CESSE, 2013).
essa política de se fazer mais para o trabalhador Com relação à dimensão microcontexto,
do município [...]. foi possível identificar na categoria Política
Setorial o processo de descentralização da
gestão, atuando na ampliação da autonomia
[...] Houve um rompimento do PSB com o PT. O dos municípios e na tentativa de expandir a
PSB acena com candidatura própria... O secretá- AB à saúde. Constam os seguintes elementos
rio de saúde e gestores do nível central saem da normativos: Normas Operacionais Básicas
secretaria, ficando, de certa forma, acéfala... Por- (dos anos 91, 92, 93 e 96) e de Assistência à
tanto, há um rompimento do modelo que vinha Saúde (2001 e 2002); Pacto pela Saúde (2006);
de 11 anos. Antes disso, teve a briga enfraquecida Decreto nº 7.508/2011; e respectivo Contrato
dentro do PT para definição de quem seria o can- Organizativo da Ação Pública da saúde (Coap).
didato [...]. Na análise da esfera das Finanças
Setoriais, tem-se a Emenda Constitucional
Analisando a esfera econômica do macro- 29 e, posteriormente, a Lei Complementar
contexto, foi observado aumento do crescimen- 141/12, que estabelecem o patamar mínimo
to econômico/Produto Interno Bruto (PIB) e de recursos a serem aplicados pelas três
incremento dos gastos públicos na saúde. esferas de governo (BRASIL, 2000; BRASIL, 2012a).
Segundo Serrano e Summa (2011), estudos Apesar do aumento crescente dos recursos,
apontam que a economia brasileira experi- especialmente do município, o subfinan-
mentou, na segunda metade dos anos 2000, ciamento é um dos grandes questionamen-
um período de crescimento mais rápido, in- tos apontados pelos entrevistados para
flação controlada, uma melhora da distribui- o avanço do SUS. Para eles, o PMAQ-AB
ção de renda e redução da pobreza, devido constitui uma das estratégias federais in-
a uma grande mudança nas condições ex- dutoras da institucionalização da avaliação
ternas, aliada a uma mudança pequena, mas por desempenho na AB.
muito importante na orientação da política
macroeconômica interna. A média de cresci- [...] a reclamação dos municípios, que é, geral-
mento do PIB, no período 2004-2010, foi de mente, quem operacionaliza a Atenção Básica no
4,5%, pouco mais que o dobro do índice ob- País, era em relação ao financiamento. Os muni-
servado no período 1995-2003. cípios ficavam com uma carga muito grande do
Observa-se, ainda, que o investimento do financiamento dessas equipes, e precisava se dis-
setor público ampliou nos últimos anos, passan- cutir mais investimento na Atenção Básica [...].
do de 2,6% do PIB, em 2003, para 4,4% em 2012.
Contudo, segundo dados do Instituto Brasileiro E, por fim, analisando a categoria
de Geografia e Estatística (IBGE), os gastos pú- Problemas de Saúde e Serviços de Saúde,
blicos em saúde representaram 3,6% do PIB, observam‑se os processos de transição de-
enquanto os gastos privados alcançaram 4,9%. mográfica, epidemiológica e nutricional,
Analisando, ainda, a esfera social do macro- resultando na superposição de Doenças
contexto, identificamos crescimento populacio- Infectocontagiosas e Parasitárias (DIP)
nal aliado ao aumento da expectativa de vida para e Doenças Crônicas não Transmissíveis
66 Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), dis- (DCNT) (FREESE; CESSE, 2013). Ainda que avanços
seminadas na área urbana. Ao se comparar com na expansão da AB tenham sido percebidos, a
outras grandes capitais do Brasil, Recife possui persistência de problemas, como integração,
precários Índices de Desenvolvimento Humano organização dos serviços e infraestrutura das
(IDH), ficando na 13ª posição, associados à Unidades Básicas de Saúde (UBS), é relatada

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014


Análise do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica em Recife-PE 711

pela maioria dos entrevistados. associado à mudança do secretário de saúde


Sendo assim, pode-se considerar que, e da equipe gestora no final do ano de 2011.
com relação ao contexto que favoreceu a Para os autores supracitados, num estudo
implantação/implementação do PMAQ-AB realizado em vários outros municípios do
em Recife, o principal ponto a destacar foi o estado de Pernambuco, a instabilidade da
alinhamento político existente entre os go- equipe gestora pode constituir uma dificul-
vernos federal e municipal. Esse é um dado dade para a formulação, implementação e
que corrobora o estudo de Freese; Cesse; sustentabilidade de projetos de mudança
Machado (2004), uma vez que revela a articu- (FREESE; CESSE; MACHADO, 2004).
lação ou dependência verificada em vários
municípios com relação à instância federal Conteúdo
do sistema, já que induz o município à im-
plantação de programas definidos em outra Esta categoria de análise utilizou como re-
instância de governo. ferência portarias, manuais e documentos
E quanto aos fatores que limitaram, que se relacionam com o objetivo principal
ressaltamos a expressiva disputa no período do programa, que é garantir a ampliação do
eleitoral entre os partidos políticos, ante- acesso e da melhoria da qualidade da AB
riormente aliados. Além disso, tal fato está (quadro 3).

Quadro 3. Síntese do marco normativo/base legal do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da
Atenção Básica, no período de 2000 a 2012, Recife-Pernambuco

Descrição Objeto

Portarias

Nº 1.654, de 19 de julho de 2011 Institui, no âmbito do SUS, o Programa Nacional de Melhoria do


Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) e o Incentivo
Financeiro do PMAQ-AB, denominado Componente de Qualidade do
PAB Variável

Nº 2.087, de 01 de setembro de 2011 Institui o Programa de Valorização do Profissional da AB

Nº 2.396, de 13 de outubro de 2011 Estabelece novas regras para carga horária de médicos, enfermeiros e
cirurgião-dentista

Nº 1.089, de 28 de maio de 2012 Define o valor mensal integral do incentivo financeiro do PMAQ-AB,
denominado como Componente de Qualidade do PAB Variável

Nº 2.488, de 21 de outubro de 2011 Aprova a PNAB, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a
organização da AB, para a Estratégia Saúde da Família e o Programa de
Agentes Comunitários de Saúde

Nº 2.812, de 29 de novembro de 2011 Homologa a adesão dos municípios e das respectivas equipes de AB
Nº 225, de fevereiro de 2012 ao PMAQ-AB
Nº 644, de 10 de abril de 2012

Nº 2.838, de 01 de dezembro de 2011 Institui a programação visual padronizada das unidades de saúde do
Sistema Único de Saúde

Nº 866, de 3 de maio de 2012 Altera o prazo para solicitação da avaliação externa no PMAQ-AB e
as regras de classificação da certificação das equipes participantes do
programa

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014


712 BELLO, F. M. A.; CARVALHO, E. F.; FARIAS, S. F.

Quadro 3. (cont.)

Manuais instrutivos
Instrutivo para as equipes de Atenção Instruções gerais para equipes de Atenção Básica e gestores do PMAQ
Básica
Anexo - Ficha de qualificação dos Instruções dos indicadores de desempenho e monitoramento
indicadores
Autoavaliação para melhoria do acesso e Instruções e ferramenta de autoavaliação
da qualidade da Atenção Básica
Documento síntese para avaliação Instruções da avaliação externa
externa
Instrumento de avaliação externa do Instrumento de coleta de dados utilizado na avaliação externa
Saúde Mais Perto de Você/Acesso e
Qualidade

Outros documentos relacionados


Proesf – Projeto Expansão e Projeto de expansão da cobertura, qualificação e consolidação da
Consolidação da Saúde da Família Estratégia Saúde da Família
(2002-2013)
AMQ – Avaliação para Melhoria da Instrumento de gestão interna (autogestão) dos processos de melhoria
Qualidade da Estratégia Saúde da Família contínua da qualidade desenvolvida especificamente para a Estratégia
(2002) Saúde da Família
Política Nacional de Humanização: a Apresenta os princípios e modos de operar no conjunto das relações
humanização como eixo norteador das entre profissionais e usuários, entre os diferentes profissionais, entre
práticas de atenção e gestão em todas as as diversas unidades e serviços de saúde e entre as instâncias que
instâncias do SUS (2004) constituem o SUS
Fonte: Elaboração própria

No que se refere ao conteúdo propriamen- dos indicadores; Apoio Institucional (AI); e


te dito do programa, o PMAQ-AB compreen- Educação Permanente.
de quatro fases: a primeira fase é a etapa de A terceira fase corresponde à Avaliação
Adesão e Contratualização, considerada um Externa, que tem a pretensão de viabilizar
dispositivo que convoca ao envolvimento e a certificação de todas as equipes de AB
ao protagonismo os diversos atores e amplia do PMAQ-AB; realizar o censo de todas as
as possibilidades de construção de ambientes Unidades Básicas de Saúde do Brasil, aderi-
participativos dialógicos, nos quais gestores, das ou não;
trabalhadores e usuários se mobilizam para
se comprometerem com objetivos comuns conhecer em escala e profundidade, inédita,
(PINTO; SOUSA; FLORÊNCIO, 2012). as realidades e singularidades da AB no Brasil
A segunda fase, Desenvolvimento, con- [...] contribuindo para o planejamento e ela-
siste no conjunto de ações realizadas pelas boração de estratégias adequadas às diferen-
equipes de AB e pelos gestores dos três ças dos territórios, promovendo maior equi-
entes federativos com o intuito de promover dade nos investimentos dos governos federal,
os movimentos de mudança da gestão, do estadual e municipal. (BRASIL, 2012b).
cuidado e da gestão do cuidado, que produ-
zirão a melhoria do acesso e da qualidade Finalmente, a quarta fase, constituída
da AB (BRASIL, 2011c). Fazem parte desta fase as por um processo de pactuação singular das
estratégias: Autoavaliação; Monitoramento equipes e dos municípios com o incremento

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014


Análise do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica em Recife-PE 713

de novos padrões e indicadores de qualida- coordenações. É como se ele transversalizasse


de, estimulando a institucionalização de um todas as ações da atenção básica. Temos várias
processo cíclico e sistemático a partir dos coordenações e todas elas têm um pedacinho
resultados alcançados pelos participantes do dentro do PMAQ [...].
PMAQ-AB (BRASIL, 2011c; BRASIL, 2011d).
Deste modo, tais informações corroboram De acordo com o manual instrutivo do
o estudo de Pinto, Sousa e Florêncio (2012), PMAQ-AB, a participação é pontual e o poder
que aponta o PMAQ-AB inserido e relaciona- da CIR é relativo, pois não impedirá a homo-
do com o conjunto de estratégias prioritárias logação da adesão do município ao PMAQ-
definidas pela Política Nacional de Atenção AB, sendo apenas condição para a Avaliação
Básica (PNAB) e com outras tentativas de reo- Externa.
rientação do modo como se organiza o SUS, tais Segundo relato de um dos informantes- chave,
como o Decreto 7.508, de 29 de junho de 2011, não houve uma grande mobilização nos espaços
a instituição de Redes de Atenção e o Programa colegiados, e o fluxo previsto no PMAQ-AB não
de Avaliação para a Qualificação do SUS. foge à regra. É o mesmo estabelecido para outros
programas de âmbito nacional.
Atores Outro ator identificado pelos documentos e
entrevistas foi a Secretaria Estadual de Saúde
No que diz respeito à análise dos atores, (SES). Porém, seu papel na gestão da AB, sua
foram consideradas todas as pessoas, ins- posição e mobilização no programa são aspec-
tituições e organizações sociais que se re- tos questionados pelos entrevistados:
lacionaram direta ou indiretamente com o
programa, em todas as fases de seu processo. [...] Os estados vão caminhar com suas próprias
Portanto, foram identificados os seguintes pernas, suas próprias pautas. Percebe-se que hou-
atores publicamente envolvidos no PMAQ-AB: ve uma resistência inicial e, depois, uma abertura,
o MS, as Comissões Intergestoras Regionais que permitiu que o governo federal atuasse mais
(CIR), o AI, a Secretaria Estadual de Saúde próximo dos municípios. Então, o estado aceitou o
de Pernambuco (SES/PE), a Secretaria PMAQ. Porém, ele só não tomou como pauta prin-
Municipal de Saúde do Recife (SMS/Recife), os cipal porque ele tem uma própria. Não posso dizer
Profissionais da ESF, os usuários e a Instituição que o estado negou, ele aceitou. Agora, também
de Ensino e Pesquisa da Fiocruz/PE. não é o ator que mais nos ajuda no PMAQ [...].
Para a maioria dos entrevistados, o MS foi
o ator mais envolvido no programa, afinal, Segundo dados das entrevistas, a SMS/
trata-se de um programa de âmbito nacional, Recife participou ativamente desde o
formulado e idealizado por essa esfera de momento de implantação e implementação
governo. São os atores que possuem maior do programa, expressamente interessa-
poder, pois ‘ditam as regras’ do programa. da pelo recurso financeiro proveniente do
Destacamos o trecho abaixo, onde um dos mesmo, como demonstrado na fala a seguir:
entrevistados menciona o envolvimento do
MS no programa: [...] A secretaria municipal do Recife aceitou o
PMAQ desde o começo. Senti, na realidade, que
[...] do Ministério da Saúde, em geral, mas, teve bem mais autonomia. O município teve uma
principalmente, a atenção básica... a presidente autonomia construída de tal forma que ele foi to-
acompanha diretamente alguns programas. O cando o PMAQ com as próprias pernas. O municí-
PMAQ é um deles... o ministro da saúde, o de- pio foi favorável ao programa, foi um ator que se es-
partamento de atenção básica e lá dentro do forçou bastante e procurou implantar o programa.
departamento da atenção básica, nas várias O município topou o PMAQ [...].

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014


714 BELLO, F. M. A.; CARVALHO, E. F.; FARIAS, S. F.

Em Recife, o AI estava diretamente ligado sobre as políticas de saúde, os usuários dos ser-
à GAB e desempenhou importante papel no viços de saúde da AB participaram de forma
desenvolvimento do PMAQ-AB. Percebe-se representativa (quatro usuários por equipe de
que seu envolvimento, participação e inte- saúde) do módulo III da avaliação externa do
resse no programa são elevados. E, ainda, sua PMAQ-AB, sendo verificadas sua percepção e
posição é de cooperação na operacionaliza- satisfação quanto ao acesso e à utilização dos
ção do mesmo. serviços de saúde. Para a maioria dos entrevis-
As equipes de AB tiveram papel fundamental tados, os usuários participaram de forma inci-
no programa. Para os informantes-chave, a maioria piente e pontual, apesar de serem identificados
das equipes de saúde da família do Recife estava como o principal ator.
mobilizada ativamente no programa. Apenas uma A participação da Fiocruz/PE se deu,
pequena parte não quis aderir no primeiro ciclo. efetivamente, na terceira fase do programa,
Porém, o relato de um dos entrevistados acredita que é a de Avaliação Externa, sendo a insti-
que a categoria médica não era favorável e que se tuição responsável pela organização e pelo
opôs desde o momento de implantação. desenvolvimento dos trabalhos de campo,
incluindo seleção e capacitação das equipes
[...] Entre os atores, do ponto de vista opositor, de avaliadores da qualidade que aplicaram os
eu identifico a categoria médica. Os médicos não instrumentos avaliativos.
foram a favor do PMAQ e não são ainda. Não são Diante do exposto, acredita-se que o pro-
todos, mas a grande maioria. Porque na hora que grama possui um conteúdo interessante e
você adere ao PMAQ, você tem que discutir indi- viável de ser aplicado. De uma forma geral,
cador, carga horária [...]. todos os atores cooperaram para a imple-
mentação do programa na cidade, uns mais
Além da participação dos Conselhos de ativamente, outros indiretamente, conforme
Saúde na formulação, fiscalização e deliberação detalhado no quadro 4.

Quadro 4. Síntese dos principais atores envolvidos e suas características relacionadas ao Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da
Atenção Básica, no período de 2011 a 2012, Recife-Pernambuco
Características
Atores
Envolvimento Participação Interesse Influência/Poder Posição
1. MS Elevado Direta Elevado Elevado Apoio político e técnico na elaboração

2. Comissões Significativo Direta/pontual Significativo Relativo Apoio político e técnico


Intergestoras Regionais

3. SES Não houve Indireta Indireto Relativo Não demonstrou interesse. Não se opôs.

4. SMS Elevado Direta Elevado Elevado Apoio político e técnico

5. Apoio Institucional Elevado Direta Elevado Significativo Apoio político e discussões técnicas com
as equipes

6. Profissional de Significativo ou Direta Significativo Significativo Aliado ou opositor


saúde da ESF não houve ou não houve

7. Usuários Limitado Direta/pontual Indireto Relativo Indiferente


(representativo)

8. Instituição de Ensino Específico Direta/pontual Significativo Relativo Apoio técnico (avaliação)


e Pesquisa (Avaliação Externa)
Fonte: Lyra (2009)

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014


Análise do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica em Recife-PE 715

Processo do programa, o processo de implementação


e, ainda, o monitoramento e a avaliação do
Por fim, a análise do processo buscou iden- PMAQ-AB.
tificar aspectos relativos às fases do ciclo da O quadro 5 apresenta a síntese do processo
política: formação da agenda e formulação do PMAQ-AB.

Quadro 5. Síntese da análise do processo do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica, no
período de 2011 a 2012, Recife-Pernambuco

Análise o processo do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica


Formação da agenda e formulação Implementação Monitoramento e avaliação

Discussão nacional sobre a Forma de implementação: A partir das entrevistas, foi possível identificar
resolutividade da Atenção Básica Top-down. aspectos positivos e negativos no programa, tais
no Brasil, principalmente quanto ao como:
acesso e à qualidade dos serviços Relação entre os níveis de
prestados. governo: mecanismos de Avaliação positiva: mudanças significativas na
controle normativo. estrutura física das UBS e no processo de traba-
A formulação do programa se deu, lho das equipes;
principalmente, pelo Departamento Concepção de políticas
de Atenção Básica do MS. Outros públicas: mista ou Avaliação negativa: acesso restrito à informa-
atores participaram dos ajustes estratégica. ção; incompatibilidade do programa; capacidade
finais ao programa. de revelar a realidade e transparência no uso do
recurso.
Perspectiva pluralista.

Extensão da política: micropolítica/


setorial.

Tipo da política autorregulatória.

Fonte: Elaboração própria

Os dados sinalizam o desafio da qualida- caracterizando como um processo pluralis-


de da gestão e das práticas das equipes de ta, tendo afetado diretamente as estruturas
AB. Assim, passam a assumir relevância na setoriais/micropolíticas. E, ainda, foram
agenda dos gestores, estratégias que obje- estabelecidas regras definidas apenas sobre
tivassem a qualificação da AB. Entre elas: o interesses públicos (autorregulatórias).
PMAQ-AB. Analisando o processo de implementação
A elaboração do programa ocorreu em do PMAQ-AB, observamos que os gestores
âmbito federal, no Departamento de Atenção de primeiro escalão tiveram o poder decisó-
Básica do Ministério da Saúde (DAB/MS). rio, e os demais são vistos como meros im-
Outros atores, como os colegiados gestores plementadores (Top-Down ou tradicional). O
e as instituições de ensino e pesquisa parti- programa alterou a relação entre os níveis de
ciparam dos ajustes ao programa. De acordo governo, a partir de mecanismos de controle
com os relatos dos gestores municipais e pro- via normas e regulamentos. A concepção de
fissionais da ESF do Recife, os mesmos não políticas públicas seguiu um modelo misto
fizeram parte dessa formulação. ou estratégico, que buscou a viabilização da
O processo de tomada de decisão foi política através de propostas racionais, con-
compartilhado com outros atores, se siderando as limitações que condicionam

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014


716 BELLO, F. M. A.; CARVALHO, E. F.; FARIAS, S. F.

o processo da política e as mudanças incre- Fatores dificultadores como esses também


mentais, quando necessárias. foram citados no estudo de Lopes (2013), ao
No que diz respeito à fase de monitora- identificar precárias condições de infraes-
mento e avaliação do programa, foram obser- trutura das UBS e pouca interação com os
vadas mudanças significativas no processo âmbitos diretivos da SES. Segundo o autor,
de trabalho das equipes de saúde da família, esses fatores limitam a capacidade da ESF de
conforme relato dos entrevistados: desenvolver com eficácia as estratégias indu-
toras de mudanças prescritas pelo PMAQ-
[...] Mexeu muito com o processo de trabalho. AB. O mesmo também reconhece que as
Unidade em que a médica corria atrás para cons- normas instituídas no programa não aconte-
truir o mapa da unidade. Unidades em que foram cem da forma como são prescritas, em função
resgatar o diagnóstico de saúde do seu território. das limitações impostas.
Eu não sei dizer se mudou qualitativamente em
relação a atenção, mas o processo de trabalho...
os trabalhadores se mobilizaram muito [...]. Considerações finais
Esses dados corroboraram os resultados Por se tratar de um programa recente,
da pesquisa de Machado (2013), onde foram existem poucos estudos avaliativos sobre o
observadas mudanças na organização do PMAQ-AB e, especialmente, sobre os aspec-
sistema de apoio da AB municipal e o traba- tos do contexto e do processo político que
lho conjunto às equipes. Entre as ações rea- facilitaram o desenvolvimento do programa.
lizadas, destacam-se: o estabelecimento de Neste artigo, além disso, estão identificados
instrumentos de organização do processo de o conjunto de atores envolvidos e o conteúdo
trabalho, como fichários rotativos, agendas previsto no mesmo.
programadas, atualização do Sistema de Foi possível observar fatores que facilita-
Informação da Atenção Básica (Siab), além ram a implantação do programa, como o ali-
do acompanhamento e da avaliação das nhamento político existente em Recife entre
metas e dos indicadores. os governos federal e municipal. E fatores
Por fim, foram relatados como aspectos que a limitaram, como o período eleitoral e
que dificultaram o processo do programa, a expressiva disputa entre os partidos políti-
principalmente, o questionamento da sua cos, anteriormente aliados, além da mudança
capacidade de refletir a realidade e a transpa- do secretário de saúde e da equipe gestora, no
rência do uso dos recursos. final do ano de 2011.
No tocante ao conteúdo do programa, a
[...] A gente tem equipes que são muito boas, e análise foi realizada tendo como referências
a avaliação não foi tão boa assim. E equipes que as portarias que o regulamentaram, bem
têm o seu processo de trabalho truncado, com- como os manuais que instruíram equipes e
plicado, e a nota foi boa. Então, a gente fica se gestores sobre o programa e seus fundamen-
perguntando se realmente essa avaliação conse- tos programáticos. E, por fim, os documentos
guirá refletir a realidade. que se relacionaram com o objetivo principal
do programa, que é garantir a ampliação do
acesso e da melhoria da qualidade da AB.
[...] se tivesse normas claras do Ministério da Saú- De uma forma geral, todos os atores pu-
de para os municípios sobre a destinação dos re- blicamente envolvidos cooperaram para a
cursos... quais seriam as destinações dos recursos implementação do programa em Recife. Foi
do PMAQ? Entra como sugestão, né? identificada a efetiva participação e o inte-
resse dos gestores federal e municipal. Em

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014


Análise do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica em Recife-PE 717

contrapartida, foi observado pouco envolvi- desenvolveu, predominantemente, de forma


mento e mobilização da SES/PE e uma resis- top-down. A razão da concepção do progra-
tência inicial de alguns profissionais de saúde ma foi considerada estratégica e promoveu
em aderir voluntariamente ao programa, em alterações na relação entre as diferentes
especial, a categoria médica. Apesar disso, esferas de governo através de mecanismos de
acredita-se que o programa possui um conte- controle, via normas e regulamentos. Quanto
údo interessante e viável de ser aplicado. ao monitoramento e à avaliação do programa,
E, por fim, a análise do processo identifi- foram observadas mudanças significativas no
cou baixa qualidade e financiamento da AB processo de trabalho das equipes.
em Recife como elementos influenciadores Neste sentido, os elementos analisados
na formação da agenda. O DAB/MS foi o ator no estudo indicam um potencial gerador de
responsável pela formulação do programa. mudanças do programa. Porém, por se tratar
O processo de tomada de decisão é compar- de uma análise abrangente, recomenda-se a
tilhado com outros atores (pluralista); a ex- realização de estudos avaliativos mais espe-
tensão da política tem implicações setoriais cíficos que possam aprofundar discussões no
e o tipo da política estabelece regras defini- tocante às temáticas do acesso e da qualidade
das apenas sobre interesses públicos (autor- da AB, da institucionalização da avaliação
regulatória), tendo como extensão da política nos serviços de saúde e, ainda, sobre aspec-
setorial e tipo de política autorregulatória. O tos relacionados às estratégias de indução de
processo de implementação do PMAQ-AB se financiamento do SUS. s

Referências

ARAÚJO Jr., J. L. C.; MACIEL FILHO, R. Developing BRASIL. Emenda Constitucional nº 29, de 13 de
an operational framework for health policy analysis. setembro de 2000. Altera os arts. 34, 35, 156, 160, 167
Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 1, e 198 da Constituição Federal e acrescenta artigo ao
n. 3, p. 203-221, 2001. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para
assegurar os recursos mínimos para o financiamento
ARAÚJO Jr., J. L. C. Health Sector Reform in Brazil, das ações e serviços públicos de saúde. Diário Oficial
1995-1998. An Health Policy Analysis of a Developing [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 13 set.
Health System. 2000. Tese (PhD – Public Health) – 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
Nuffield Institute for Health, Leeds, Reino Unido, ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc29.htm>.
2000. Acesso em: 20 jul. 2013.

ARRETCHE, M. Dossiê Agenda de Pesquisa em ______. Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de


Políticas Públicas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2012. Regulamenta o § 3o do art. 198 da Constituição
São Paulo, v. 18, n. 51, p. 7-9, 2003. Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem
aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014


718 BELLO, F. M. A.; CARVALHO, E. F.; FARIAS, S. F.

Federal e Municípios em ações e serviços públicos de ______. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento
saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de de Atenção Básica. Autoavaliação para Melhoria
transferências para a saúde e as normas de fiscaliza- do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica:
ção, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 manual instrutivo. Brasília, 2012. Disponível em:
(três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis <http://189.28.128.100/dab/docs/sistemas/pmaq/amaq.
nos 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de pdf> Acesso em: 20 jul. 2013.
julho de 1993; e dá outras providências. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 13 jan. FREESE, E.; CESSE, E. Análise da situação de saúde
2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci- na região nordeste com foco nos determinantes sociais
vil_03/leis/LCP/Lcp141.htm>. Acesso em: 20 jul. 2013. de saúde. Documento de discussão para I Conferência
Regional sobre Determinantes Sociais da Saúde, 2013.
______. Ministério da Saúde. Decreto nº 7.508 de 28 de Disponível em: <http://dssbr.org/site/wp-content/
junho de 2011. Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de uploads/2013/07/Documento-de-Refer%C3%AAncia1.
setembro de 1990. Diário Oficial [da] União, Brasília, pdf>. Acesso em: 20 out. 2014.
DF, 28 jun. 2011e. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto / FREESE, E.; MACHADO, E.; CESSE, E. Fatores
D7508.htm>. Acesso em: 20 jul. 2013. limitantes e facilitadores de mudança nas organizações
de saúde do SUS: dialogando com novos e velhos
______. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 problemas. In: FREESE, E. organizador. Municípios:
de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de a gestão da mudança em saúde. Recife: Ed. da UFPE;
Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes 2004. p. 233-260.
e normas para a organização da Atenção Básica, para
a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de KVALE, S. InterViews. An introduction to qualitative
Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial research interviewing. Thousand Oaks: SAGE, 1996.
[da] União, Brasília, DF, 21 out. 2011b. Disponível em:
<http://brasilsus.com.br/legislacoes/gm/110154-2488. LOPES, B.; AMARAL, J. N. Políticas Públicas: conceitos
html>. Acesso em: 20 jul. 2013. e práticas. Belo Horizonte: Sebrae (MG), 2008.

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.654, de 19 de LOPES, E. A. A. O Programa Nacional de Melhoria do


julho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Acesso e da Qualidade na Atenção Básica e seu potencial
Saúde, o Programa Nacional de Melhoria do Acesso de gerar mudanças no trabalho dos profissionais.
e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) e o 2013. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) –
Incentivo Financeiro do PMAQ-AB, denominado Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2013.
Componente de Qualidade do Piso de Atenção Básica
Variável – PAB Variável. Diário Oficial [da] União, LYRA, T. M. A política de saúde ambiental do Recife em
Brasília, DF, 19 jul. 2011f. Disponível em: <http:// 2001 e 2002: uma análise a partir do Programa de Saúde
bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/ Ambiental. 2009. Tese (Doutorado em Saúde Pública)
prt1654_19_07_2011.html>. Acesso em: 20 jul. 2013. – Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação
Oswaldo Cruz, Recife, 2009.
______. Secretaria de Atenção em Saúde. Departamento
de Atenção Básica. Saúde mais perto de você: Acesso MACHADO, G. A. B. Organização do processo de
e Qualidade do Programa Nacional do Acesso e da trabalho vivenciada pelas Equipes de Saúde da Família
Melhoria (documento síntese para avaliação externa): do município de São Sebastião do Paraíso/MG, a partir
manual instrutivo. Brasília, 2011d. Disponível em: da adesão ao Programa de Melhoria do Acesso e da
<http://189.28.128.100/dab/docs/sistemas/pmaq/ Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB). 2013. TCC
Documento_Sintese_Avaliacao_Externa_2012_04_25. (Especialização) – Universidade Federal de Minas
pdf>. Acesso em: 20 jul. 2013. Gerais, Belo Horizonte, 2013.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014


Análise do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica em Recife-PE 719

PINTO, H. A.; SOUSA, A.; FLORÊNCIO, A. M. VIANA, A. L; BAPTISTA, T. W de F. Análise de


O programa nacional de melhoria do acesso e da Políticas de Saúde. In: GIOVANELLA et al. (Org).
qualidade da atenção básica: reflexões sobre o seu Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro:
desenho processo de implantação. RECIIS: Revista Ed. Fiocruz, 2008, p. 65-105.
Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em
Saúde. Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, supl., ago. 2012. WALT, G. Health Policy. An introduction to process and
power. 8. ed. Londres: Zed Books, 2006..
SERRANO, F.; SUMMA, R. A desaceleração rudimentar
da economia brasileira desde 2011. OIKOS. Rio de
Recebido para publicação em abril de 2014
Janeiro, v. 11, n .2 2012. Disponível em: < http:// Versão final em outubro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
revistaoikos.org/seer/index.php/oikos/article/
Suporte financeiro: não houve
viewFile/311/174 >. Acesso em: 10 jan. 2014.

SOUZA, C. Políticas Públicas: uma revisão de


literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, p. 20-
45, jul./dez. 2006.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 706-719, Out-Dez 2014


720 artigo original | original article

Atenção Básica em Alagoas: expansão da


Estratégia Saúde da Família, do Nasf e do
componente alimentação/nutrição
Primary Care in Alagoas: the expansion of the Family Health
Strategy, of the Nasf and of the nourishment and nutrition component

Maria Anielly Pedrosa da Silva1, Risia Cristina Egito de Menezes2, Maria Alice Araújo Oliveira3,
Giovana Longo-Silva4, Leiko Asakura5

1Graduada em Nutrição
pela Faculdade de Nutrição
da Universidade Federal de
Alagoas (Ufal) – Maceió
(AL), Brasil.
mariaanielly@hotmail.com

2 Doutora em Nutrição RESUMO O artigo descreve a evolução da Atenção Básica à Saúde de Alagoas, com ênfase na
pela Universidade Federal ampliação da Estratégia Saúde da Família, do Núcleo de Apoio à Saúde da Família e do compo-
de Pernambuco (UFPE)
– Recife (PE), Brasil. nente alimentação e nutrição. Estudo descritivo utilizando dados de sistemas de informação
Professora adjunta da do Ministério da Saúde. A Estratégia Saúde da Família se ampliou em Alagoas, com simultânea
Faculdade de Nutrição da
Universidade Federal de adesão ao Núcleo de Apoio à Saúde da Família e aumento na cobertura da suplementação de
Alagoas (Ufal) – Maceió ferro e vitamina A, e do Sistema de Vigilância Alimentar Nutricional. Houve evolução positiva
(AL), Brasil.
risiamenezes@yahoo.com.br na Atenção Básica no Estado, em relação à cobertura populacional da Estratégia Saúde da
3 Doutora em Nutrição
Família, do Núcleo de Apoio à Saúde da Família e do componente da nutrição, ressaltando-se
pela Universidade Federal a necessidade de estudos que avaliem a qualidade dessas políticas.
de Pernambuco (UFPE)
– Recife (PE), Brasil.
Professora associada da PALAVRAS-CHAVE Saúde da família; Atenção Primária à Saúde; Nutrição em saúde pública.
Faculdade de Nutrição da
Universidade Federal de
Alagoas (Ufal) – Maceió ABSTRACT The article describes the evolution of Primary Health Care in Alagoas, with emphasis
(AL), Brasil. on the enlargement of the Family Health Strategy, of the Support Center for Family Health, and
alicemcz@ig.com.br
of the nourishment and nutrition component. Descriptive study using information systems datas
4 Doutora em Ciências of the Ministry of Health. The Family Health Strategy has been extended in Alagoas, with simul-
Aplicadas à Pediatria pela
Universidade Federal de taneous adherence to the Support Center for Family Health, and increase in the coverage of iron
São Paulo (Unifesp) – São and vitamin A supplementation, and of the Nutritional Alimentary Surveillance System. There
Paulo (SP), Brasil. Doutora
em Ciências aplicadas à was favorable evolution in Primary Care in the state, with regard to the population coverage of
Pediatria pela Universidade the Family Health Strategy, to the Support Center for Family Health, and to the nutrition’s com-
do Porto (FCNAUP) –
Porto, Portugal. Professora ponent, highlighting the need for studies that evaluate the quality of these policies.
adjunta da Faculdade de
Nutrição da Universidade
Federal de Alagoas (Ufal) – KEYWORDS Family health; Primary Health Care; Nutrition in public health.
Maceió (AL), Brasil.
giovana_longo@yahoo.com.br

5Doutora em Saúde
Pública pela Universidade
de São Paulo (USP) –
São Paulo (SP), Brasil.
Professora adjunta da
Universidade Federal de
Alagoas (Ufal) – Maceió
(AL), Brasil.
asakura_leiko@yahoo.com.br

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 720-732, OUT-DEZ 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140066
Atenção Básica em Alagoas: expansão da Estratégia Saúde da Família, do Nasf e do componente alimentação/nutrição 721

Introdução direito à saúde como um direto constitucional de


cidadania (BRASIL, 2006b; BRASIL, 2011).
Estabelecida como porta de entrada preferencial Tendo os princípios do SUS como pressu-
do Sistema Único de Saúde (SUS), a Atenção postos, a ESF tem, no alcance da cobertura uni-
Básica à Saúde (ABS) tem assumido como priori- versal, na equidade, na melhoria da qualidade
dade a consolidação e a qualificação da Estratégia e na humanização do cuidado, os maiores de-
Saúde da Família (ESF), como ponto de partida, safios a serem enfrentados (BRASIL, 2005). Nesse
modelo e centro ordenador das Redes de Atenção contexto, e considerando a necessidade de
à Saúde no Brasil (BRASIL, 2011). apoiar e ampliar o escopo das ações de Atenção
Inicialmente voltada para estender a cober- Básica e da ESF, foram criados os Núcleos de
tura assistencial às áreas de maior vulnerabili- Apoio à Saúde da Família (Nasf ) (BRASIL, 2008a),
dade social, gradativamente, a implantação da cujas propostas são contribuir com a ESF, por
ESF estabeleceu um processo de organização meio do trabalho interdisciplinar e matricial,
das práticas desenvolvidas na Atenção Básica, de forma a garantir o respeito às peculiarida-
propondo uma atenção integral em saúde, sob des locorregionais, incluindo profissionais de
o enfoque e a perspectiva da prevenção pri- áreas até então não devidamente contempla-
mária de doenças e promoção da saúde, tendo das, a exemplo do nutricionista (BRASIL, 2008a).
os princípios do SUS como pressuposto de A definição dos profissionais que compo-
desenvolvimento (BRASIL, 2011). rão cada Nasf segue critérios de disponibili-
A dimensão organizativa da ABS tem sido dade e de necessidade estabelecida em cada
pouco registrada na literatura. No entanto, nos região. Cumpre referir que estudos alertam
estados do Nordeste – entre eles, Alagoas –, ela para a importância de o nutricionista inte-
tem sido marcada, de forma geral, por proble- grar os recursos humanos para a ABS sob
mas tais como: inadequada estrutura física dos a justificativa de que sua ausência pode re-
serviços; insuficiência e perfil dos profissionais sultar em execução superficial das ações de
de saúde; e irregular monitoramento e avalia- alimentação e nutrição, área fundamental
ção das ações, de forma que ainda é uma políti- para a promoção da saúde e a prevenção de
ca em construção (FACCHINI et al., 2006). agravos decorrentes da inconclusa transição
Implantada desde 1994, a evolução e a nutricional brasileira, como carências nutri-
qualificação da ABS no Estado de Alagoas – cionais, sobrepeso, obesidade e doenças crô-
em especial, a ESF – compõem parte do con- nicas não transmissíveis, entre outros (PÁDUA;
junto de prioridades político-organizativas, BOOG, 2006; JAIME et al., 2011; BARROS; FARIAS JUNIOR,
que tem como principal desafio ampliar sua 2012; SILVA et al., 2012).
atuação, visando a uma maior resolubilidade Desta forma, o atual perfil epidemiológico
da atenção, de forma a produzir resultados da população brasileira justifica a inserção
positivos na saúde e na qualidade de vida da do componente alimentação e nutrição na
população (FACCHINI et al., 2006; BRASIL, 2011). Atenção Básica, conforme previsto nos docu-
De acordo com a Política Nacional da Atenção mentos normativos que organizam e orientam
Básica (PNAB), dispositivo legal que define e or- o processo de trabalho neste nível de atenção
ganiza o processo de trabalho na Atenção Básica, e segundo determinam a Política Nacional de
devem fazer parte da composição mínima das Alimentação e Nutrição, a Política Nacional
Equipes de Saúde da Família (EqSF): um médico, da Atenção Básica e a Política Nacional de
um enfermeiro, um técnico de enfermagem e Promoção da Saúde, entre outros dispositivos
de quatro a seis agentes comunitários de saúde, legais (BRASIL, 2006, 2006b, 2012).
que devem estar comprometidos com o cuidado A ABS, em Alagoas e no Brasil como um
da saúde, de forma humanizada, fortalecendo os todo, tem se consolidado nos últimos anos, ga-
processos de descentralização e fomentando o nhando destaque na agenda governamental

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 720-732, OUT-DEZ 2014


722 SILVA, M. A. P.; MENEZES, R. C. E.; OLIVEIRA, M. A. A.; LONGO-SILVA, G.; ASAKURA, L.

pela incorporação da Política Nacional da (Datasus, CNES Net, Sisvan Web e Sistema
Atenção Básica e pela Política Nacional de de Gerenciamento dos Programas Nacionais
Alimentação e Nutrição e suas diretrizes. O de Suplementação de Ferro e de Vitamina A).
tema alimentação e nutrição, neste nível de Foi realizada a análise da descrição tempo-
atenção, se insere de forma singular, como ral referente à evolução da ABS no Estado
estratégia para fortalecimento da Política de Alagoas, no período de 1991 a 2013. Os
Nacional de Saúde, e consequente melhoria arquivos foram extraídos no formato DBC e
da saúde da população (BRASIL, 2006b, 2012). expandidos no programa TabWin.
No âmbito da Atenção Básica, destacam‑se Foram consultados os dados do Cadastro
os programas nacionais de suplementação Nacional de Estabelecimentos em Saúde
de ferro e de vitamina A, principais estraté- (CNES) disponíveis no site do Datasus, sendo
gias do Ministério da Saúde para o enfren- acessados os relatórios anuais de serviços
tamento de dois importantes problemas de especializados do Estado de Alagoas, com
saúde pública no País: a anemia ferropriva abrangência em todos os municípios, segundo
e a hipovitaminose A. O Programa Nacional tipos de serviço e ESF implantada, apoio à
de Suplementação de Vitamina A consis- saúde da família implantado, tipos de serviço
te na suplementação de crianças de 6 a 59 e existência do Nasf. Também foi investigada a
meses de idade com suplementos de vita- presença do nutricionista no referido núcleo.
mina A, incluindo todos os municípios das A partir desses dados foi descrita a evolução
regiões Norte e Nordeste. Esses suplemen- histórica da implantação da ESF, segundo mu-
tos deverão ser distribuídos às crianças, na nicípio e número de equipes, durante os anos
rotina da Atenção Básica, nas ações de acom- de 1994 a 2013. Ressalta-se que os dados refe-
panhamento do crescimento e do desenvol- rentes ao ano de 1995 não foram disponibiliza-
vimento infantil ou junto às campanhas de dos pelo sistema de informação consultado.
multivacinação, cabendo ao município definir A análise referente à estimativa da população
a melhor estratégia de distribuição. Quanto coberta e da proporção da cobertura populacional
ao Programa Nacional de Suplementação de assistida pela ESF compreendeu os anos de 1998 a
Ferro, o mesmo consiste na suplementação 2013. Para a evolução histórica da implantação do
profilática de crianças de 6 a 18 meses com Nasf no Estado, avaliaram-se os anos de 2008, 2009
ferro; gestantes a partir da vigésima semana e 2011 a 2013. Os dados referentes ao ano de 2010
gestacional com ferro e ácido fólico; e mulhe- também não estavam disponíveis no momento da
res até o terceiro mês pós-parto e pós-aborto, análise, interrompendo a série estudada.
com ferro (BRASIL, 2007, 2013a). A descrição da série histórica sobre a po-
Diante do exposto, o presente trabalho pulação assistida pelo Programa Nacional de
busca descrever a expansão da ABS no Estado Suplementação de Ferro (PNSF) foi elabo-
de Alagoas, com ênfase na ampliação da ESF, rada mediante a disponibilização dos dados
do Nasf e do componente alimentação e dos relatórios quantitativos, no período de
nutrição. 2005 a 2012, no sistema de informação do
referido programa. Para tal, foi selecionado o
estado de Alagoas com abrangência em todos
Metodologia os municípios, e realizado o levantamento
por ciclo da vida e produto utilizado.
Trata-se de um estudo de caráter descriti- No que concerne ao quantitativo de cáp-
vo, que utiliza dados referentes ao Estado sulas de vitamina A distribuídas no Estado,
de Alagoas, provenientes dos sistemas de foram obtidos relatórios disponíveis no site
informação oficiais do Ministério da Saúde, do Programa Nacional de Suplementação de
disponíveis nas bases de dados do SUS Vitamina A (PNVITA), agrupados segundo

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 720-732, OUT-DEZ 2014


Atenção Básica em Alagoas: expansão da Estratégia Saúde da Família, do Nasf e do componente alimentação/nutrição 723

faixa etária das crianças e estágio do ciclo de participantes, considerou-se que o mesmo
vida referente à gestação e aos grupos popu- não necessita de aprovação em comitês de
lacionais que são alvos do referido programa, ética reconhecidos pela Comissão Nacional
com abrangência em todos os municípios. de Ética em Pesquisa (Conep), conforme
Para coleta dessas informações, foi conside- preveem os princípios éticos para a realização
rado o período de 2011 a 2013, anos em que de pesquisas que envolvem seres humanos.
os referentes dados se encontravam dispo- Ressalta-se que todas as informações estão
níveis no sistema de informação consultado. disponíveis para o público geral como forma
O quantitativo de indivíduos cadastrados no de democratizar as informações em saúde no
Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional Brasil e fortalecer o controle social.
(Sisvan) foi obtido a partir dos relatórios refe-
rentes ao estado nutricional desses indivíduos,
disponíveis no sistema oficial de informação Resultados
do Ministério da Saúde, o Sisvan Web. Para
tal, foi selecionada a abrangência por estado, Mediante análise da evolução histórica da
o período anual (de 1991 a 2013) e as fases do implantação da ESF, segundo número de
ciclo de vida. Posteriormente, em cada uma equipes de saúde em Alagoas, observa-se
dessas fases, foi analisado o total anual de in- que, no início do período analisado, 14 mu-
divíduos acompanhados pelo referido sistema. nicípios apresentavam o programa implan-
Devido às características do estudo, que tado, com um total de 78 equipes, sendo a
analisa dados de acesso público referentes a abrangência estendida para 100% dos seus
sistemas oficiais de informação do Ministério 102 municípios em 2013, com um incremen-
da Saúde, sem a identificação dos sujeitos to de 744 equipes (gráfico 1).

Gráfico 1. Evolução histórica da implantação da Estratégia Saúde da Família, segundo número de municípios e equipes.
Alagoas, 1994-2013*
900
800
700
600
500
400
300
200
100
0
1994 1995 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Município 14 21 36 67 75 89 95 97 97 97 97 98 98 99 99 99 100 100 102

Equipes 78 102 152 258 316 463 514 551 568 604 621 633 651 674 693 716 753 803 822

Fonte: Ministério da Saúde/Secretaria de Atenção à Saúde/Cadastro Nacional de Estabelecimentos em Saúde, 2013


*Os dados referentes ao ano de 1995 não foram disponibilizados pelo sistema de informação consultado
Número total de municípios do Estado de Alagoas: 102

Em relação à evolução histórica da co- pela estratégia, no período analisado, evo-


bertura populacional da ESF em Alagoas, luindo de uma estimativa de cobertura de
pode-se constatar um aumento superior a cerca de 23% (1998) para pouco mais de 74%
380% no número total da população assistida (2013) (gráfico 2).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 720-732, OUT-DEZ 2014


724 SILVA, M. A. P.; MENEZES, R. C. E.; OLIVEIRA, M. A. A.; LONGO-SILVA, G.; ASAKURA, L.

Gráfico 2. Evolução histórica da implantação da Estratégia Saúde da Família, segundo estimativa da população coberta e
da proporção da cobertura populacional. Alagoas, 1998-2013

2.500.000

2.000.000

1.500.000

1.000.000

500.000

0
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Estimativa de cobertura populacional (N)

Ano 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
% 22,99 30,61 55,71 59,52 64,70 64,22 66,12 69,74 68,51 69,53 70,33 71,39 71,51 72,30 72,39 74,13
cobertura
Fonte: Ministério da Saúde/Secretaria de Assistência à Saúde/Departamento de Atenção Básica, 2013

Para a evolução histórica da implantação programa, bem como o número de equipes,


do Nasf, segundo o número de equipes, foi foi triplicada em sua totalidade, atingindo 86
observado que, no início do período ana- municípios (gráfico 3). Em relação à inserção
lisado, ele foi implantado em 27 municí- do nutricionista nas equipes do Nasf, 79%
pios, perfazendo um total de 21 equipes de desses municípios apresentavam esse profis-
saúde. Após 5 anos (2013), a cobertura do sional em sua composição mínima.

Gráfico 3. Evolução do Núcleo de Apoio à Saúde da Família no Estado de Alagoas, segundo número de equipes e
municípios.

100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
2008 2009 2011 2012 2013

Município 27 33 39 55 86

Equipes 21 27 31 47 75

Fonte: Ministério da Saúde/Secretaria de Atenção à Saúde/Cadastro Nacional de Estabelecimentos em Saúde, 2013


*Os dados referentes ao ano de 2010 não foram disponibilizados pelo sistema de informação consultado

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 720-732, OUT-DEZ 2014


Atenção Básica em Alagoas: expansão da Estratégia Saúde da Família, do Nasf e do componente alimentação/nutrição 725

Ao analisar a distribuição de vitamina meses de idade, sendo o maior quantitativo


A no Estado de Alagoas, observou-se que a de suplementos distribuído no ano de 2012
suplementação foi realizada principalmen- (tabela 1).
te com as crianças, na faixa etária de 12 a 55

Tabela 1. Evolução temporal da cobertura do Programa Nacional de Suplementação de Ferro e de Vitamina A, segundo público-alvo. Alagoas, 2005-2012

PROGRAMA NACIONAL DE SUPLEMENTAÇÃO DE FERRO

Ano Criança 0-18m Gestante a partir da 26ª Semana Mulher até 3º mês pós-parto
Sulfato Ferroso (frasco) Ácido Fólico Sulfato Ferroso Sulfato Ferroso Sulfato Ferroso
(comprimido) (comprimido) (frasco)
n % n % n % n % n %
2005 605 0,95 10.010 46,25 1.010 46,25 32 0,15 12 0,06

2006 27.214 42,75 53.153 245,59 59.46 272,82 21.857 100,99 103 0,48

2007 2.51 32,21 15.813 73,06 23.434 18,28 7.454 34,44 525 2,38

2008 19.671 29,77 12.615 46,07 23.207 84,75 5.154 18,52 122 0,45

2009 26.71 39,45 15.691 57,3 16.563 6,48 5.932 21,66 78 0,28

2010 17.817 32,07 15.695 75,52 16.718 80,44 7.68 34,1 86 0,41

2011 10.039 12,82 11.284 34,98 12.446 35,48 3.798 11,77 130 0,4

2012 11.825 15,10 16.244 50,36 18.870 58,5 5.824 18,06 398 1,23

PROGRAMA NACIONAL DE SUPLEMENTAÇÃO DE FERRO


Criança 6-11 meses Criança 12-55 meses Puérpera

1ª dose 2ª dose
n % n % n n %

2011 24.192 45,34 75.653 34,59 21.496 14.800 43,31

2012 49.979 76,80 113.701 51,98 48.658 23.998 72,11

2013 25.579 47,27 98.684 63,56 9.538 10.519 32,36

Fonte: Ministério da Saúde/Secretaria de Atenção à Saúde/Departamento de Atenção Básica/Coordenação Geral de Alimentação e Nutrição, 2013

O PNSF, por sua vez, apresentou cober- cobertura populacional desse programa
tura instável e inconstante, sendo obser- (tabela 1).
vados períodos de aumento do número de Quanto ao Sisvan, observou-se que, nos
indivíduos assistidos (42% de cobertura 10 primeiros anos de sua implantação (1991
entre as crianças, em 2006) e de redução a 2001), 21 indivíduos foram cadastrados e
(15% de cobertura entre as crianças, em avaliados. A partir de 2006, contudo, a ali-
2012). No que se refere ao público, as mentação do sistema passou a ocorrer de
gestantes compreendem o grupo mais forma mais consistente, sendo os registros
contemplado com a suplementação, en- concentrados entre os menores de 7 anos de
quanto as puérperas apresentaram a menor idade (tabela 2).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 720-732, OUT-DEZ 2014


726 SILVA, M. A. P.; MENEZES, R. C. E.; OLIVEIRA, M. A. A.; LONGO-SILVA, G.; ASAKURA, L.

Tabela 2. Evolução histórica do número de indivíduos cadastrados no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional, segundo fases do ciclo de vida.
Alagoas, 1991-2012

Criança Adulto Idoso Gestante


Ano Adolescente
0-2 a 2-5 a 5-7 a 7-10 a total (20-60 a) (>60 a) (10-60 a)

1991-2001 7 - 1 1 9 3 8 1 -

2002 8 - - - 8 - 3 - -

2003 7 - - - 7 - - - -

2004 12 5 - - 17 1 - - -

2005 19 11 - - 30 - - - -

2006 34 71 45 1 151 59 154 1 13

2007 229 328 286 28 871 84 372 2 70

2008 11.759 62.215 76.049 17.984 168.007 93.446 193.596 229 2.070

2009 14.947 61.577 57.914 2.562 137.000 60.929 163.206 1.102 3.273

2010 19.341 69.846 59.963 1.551 150.701 63.122 170.085 280 8.515

2011 20.451 69.068 60.378 2.560 152.457 67.066 177.355 1.148 11.170

2012 23.644 104.829 85.623 13.466 227.562 133.618 322.522 1.815 15.517
Fonte: Ministério da Saúde/Coordenação Geral de Alimentação e Nutrição/Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional, 2013

Discussão implantação da ESF se iniciou em 1994 e


atingiu 100% dos municípios apenas 19 anos
O esforço para a reorganização do modelo após a adesão formal do poder municipal à
de atenção à saúde no Brasil apresentou referida estratégia.
novas perspectivas desde a proposta da ESF Apesar das tendências de crescimento na
como eixo estruturante da Atenção Básica. implantação da ESF em Alagoas, bem como
Experiências pioneiras como o Programa em todo o território nacional, vale ressaltar
de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs), que a adesão dos municípios à ESF variou de
adotado em 1991, inspiraram seu surgimen- acordo com o porte dos mesmos, tendo os de
to, sob a denominação de Programa Saúde da menores tamanhos conseguido operaciona-
Família (PSF), que desde então vem sendo lizar sua implantação com maior celeridade,
aprimorado e ampliado em todo o País (BRASIL, em relação àqueles de grande porte. Esse
2011). Sob uma perspectiva histórica, apro- evento, em especial, ocorreu nos primei-
ximadamente 80% dos municípios brasi- ros anos da inserção, sobretudo na região
leiros ainda não haviam aderido à ESF nos Nordeste do Brasil, onde a escassez de ser-
primórdios de 1998. Entretanto, do total de viços de assistência à saúde é notadamente
municípios, cerca de 8%, apenas, não haviam mais marcante (BRASIL, 2006; FACCHINI et al., 2006).
implantado a estratégia em 2008, de forma É importante destacar que a dimensão
que mais de 90% dos municípios brasileiros estadual destes dados dificulta o estabe-
já participavam da estratégia no referido ano lecimento de grupos de comparação, não
(BRASIL, 2008b, 2010a). sendo plausível generalizar os achados para
Acompanhando tendência nacional, o contexto municipal. No entanto, deve-se
este estudo mostra que, em Alagoas, a ponderar que, de forma geral, a ampliação

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 720-732, OUT-DEZ 2014


Atenção Básica em Alagoas: expansão da Estratégia Saúde da Família, do Nasf e do componente alimentação/nutrição 727

da ESF nas cidades de médio e grande porte o mesmo número de equipes em um territó-
de Alagoas também tem se apresentado de- rio com 80 mil habitantes cobre apenas 26%
sigual. De acordo com os sistemas oficiais de (BRASIL, 2008b; CONIL, 2002). Tal afirmação é com-
informação do Ministério da Saúde, Maceió, provada nos achados de Facchini et al. (2006),
a capital do Estado, apresenta uma cobertu- que constataram que, embora o crescimen-
ra da ESF menor que 30% de sua população, to do número EqSF tenha sido duas vezes
mantendo este índice desde o ano de 20061. maior no Sul (44%) do que no Nordeste
Tal fato pode ser atribuído a diversos fatores: (22%), a cobertura populacional atingia, res-
a complexidade sociossanitária, o perfil e a pectivamente, proporções equivalentes a: 1
formação dos profissionais, a organização equipe – 15.149 habitantes; e 1 equipe – 6.060
urbana e a cultura da medicina especializa- habitantes.
da, entre outros (BRASIL, 2006; FACCHINI et al., 2006). De forma similar, foi constatado que o
A exemplo do número de municípios que número de equipes multiprofissionais e a
implantaram a ESF em seus territórios, a cobertura do Nasf em Alagoas foram tripli-
evolução das EqSF e a cobertura populacio- cados em 4 anos, o que pode sinalizar um
nal (representada pelo número de pessoas esforço em gerar mudanças visando à me-
cadastradas) também apresentaram ten- lhoria dos níveis de saúde da população.
dência crescente em Alagoas, no período A implantação de Nasfs, por si só, não é
analisado. Essa expansão progressiva pôde garantia de resultados efetivos e positivos na
ser evidenciada mediante a implantação do saúde, cujos fatores determinantes perpas-
Sistema de Informação da Atenção Básica sam por questões de acesso aos bens e ser-
(Siab), em 1998, considerando que, a partir viços, trabalho, renda, educação e segurança,
de então, o quantitativo dessas equipes entre de outros. A exemplo da ESF, o Nasf,
passou a ser oficialmente registrado no dispositivo que pode contribuir para aumen-
Brasil (BRASIL, 2008b). Vale salientar que garan- tar a resolutividade das equipes da Atenção
tir a ampliação em termos numéricos não Básica, por meio do aprimoramento das in-
significa assegurar atenção integral à saúde, tervenções da equipe de apoio, vem ganhan-
ou que a mesma ocorra de forma satisfatória, do espaço no cenário da saúde no Estado de
conforme preconizado, no sentido de melho- Alagoas. No entanto, após cinco anos de sua
rar a qualidade de vida da população. É ne- criação, 16% dos seus municípios ainda não
cessário que se faça uma reflexão sobre sua efetivaram a implantação deste importante
operacionalização e sustentabilidade, bem recurso, destinado a concretizar e poten-
como sobre a qualidade da atenção presta- cializar o compartilhamento de práticas e
da, elemento considerado fator limitante saberes na Atenção Básica (CUNHA, 2011).
deste estudo. Apesar disto, os indicadores Especificamente quanto à inserção do nu-
aqui apresentados evidenciam que a evolu- tricionista, observou-se que esse profissional
ção do número de municípios, equipes e co- está presente nas equipes de apoio em apro-
bertura populacional da estratégia (número ximadamente 80% dos municípios que ade-
de pessoas acompanhadas) tem se mantido riram ao Nasf no Estado aqui avaliado. Dados
em forte crescimento desde sua inserção no apresentados pelo Ministério da Saúde
Estado, entretanto, com certa predisposição apontaram que 72% das 814 equipes do Nasf
a uma menor velocidade nesse aumento. distribuídas em território nacional, até no-
É importante destacar, ainda, que a co- vembro de 2009, contavam com a presença
bertura populacional pela ESF sofre influ- do nutricionista. Pesquisa nacional conduzi-
1 Disponível em: <http://
ência do número de habitantes/município. da pelo Conselho Federal de Nutricionistas tabnet.datasus.gov.br/
Enquanto em um território com 20 mil habi- (CFN, 2006) mostra que, no ano de 2006, dos cgi/tabcgi.exe/siab/cnv/
SIABSAL.def>. Acesso em:
tantes, seis EqSF cobrem 100% da população, 2.492 nutricionistas brasileiros, apenas 8,8% 2013.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 720-732, OUT-DEZ 2014


728 SILVA, M. A. P.; MENEZES, R. C. E.; OLIVEIRA, M. A. A.; LONGO-SILVA, G.; ASAKURA, L.

atuavam no âmbito da saúde pública, re- os grupos populacionais assistidos, havendo


forçando o entendimento da lenta inserção maior distribuição dos suplementos entre
deste profissional neste nível de atenção. os menores de 18 meses de idade e gestan-
A primeira portaria que regulamenta o tes, assemelhando-se à tendência observada
Nasf aponta as ações prioritárias de atuação em território nacional onde, no ano de 2009,
das equipes. Dentre elas, destaca-se a área foram suplementadas 1.552.900 gestantes e
de alimentação e nutrição, cujos conhe- 609.354 crianças com a mesma idade.
cimentos específicos permitem a melhor É importante destacar que a tendência
condução das equipes em problemas relacio- aqui encontrada apresenta importantes va-
nados a esta área de conhecimento, de forma riações em relação aos anos avaliados, que
a ampliar o universo da atuação clínica em podem ser explicadas pelo fluxo de atendi-
direção à prática de uma clínica ampliada. A mento nas Unidades Básica de Saúde (UBS)
interdisciplinaridade nas práticas de saúde da rede de saúde. Em especial, destaca-se o
visa superar a lógica profissional de diferen- ano de 2006, que apresenta um maior quan-
ciação para o modelo de colaboração entre titativo desses medicamentos distribuídos
áreas, disciplinas e profissões, mediante o no Estado de Alagoas, para todos os grupos
apoio matricial, importante facilitador de populacionais atendidos pelo programa, em
canais de comunicação entre os profissionais relação aos outros anos analisados. Observa-
do Nasf (BRASIL, 2011; CUNHA, 2011). se, para o referido ano, que a distribuição
Quando presente no Nasf, o nutricionista do ácido fólico ultrapassou os 100% de co-
deve apoiar as equipes na implementação bertura populacional estabelecida, mais que
das ações de alimentação e nutrição, forta- dobrando a meta pactuada pelo Estado e ul-
lecendo o papel do setor saúde no sistema trapassando, também, a distribuição de com-
de segurança alimentar e nutricional. Neste primidos de sulfato ferroso para gestantes e
sentido, a promoção de práticas alimentares para as mulheres no pós-parto. No entanto,
saudáveis torna-se um importante compo- excetuando-se o ano de 2006, observam-se
nente da promoção da saúde em todas as fases percentuais de cobertura populacional que
do ciclo da vida, em especial, em resposta às raramente alcançam um patamar de 50% da
principais demandas assistenciais relaciona- população.
das aos distúrbios nutricionais, incluindo a A meta preconizada pelo Ministério da
desnutrição, carências específicas, obesida- Saúde para essa população é de que 100% do
de e demais distúrbios alimentares associa- público-alvo, ou seja, todas as crianças dessas
dos às doenças e agravos não transmissíveis. faixas etárias deveriam receber a suplemen-
Para isto, torna-se necessário que as equipes tação medicamentosa como forma de pre-
se apropriem de instrumentos operacionais venir a anemia ferropriva. Assim, os dados
estabelecidos, dentre os quais podem ser aqui apresentados revelam que, durante o
citados: o Sistema de Gerenciamento do período analisado (2006), excetuando-se
Programa Ncaional de Suplementação de as gestantes, grande parte da população de
Vitamina A (PNSVITA), do PNSF, e o Sisvan Alagoas esteve fora do alcance da importante
(BRASIL, 2010a, 2012; BARROS; FARIAS JUNIOR, 2012; SILVA et estratégia de controle e prevenção deste que
al., 2012; JAIME et al., 2011; BRASIL, 2010b). é um dos principais agravos nutricionais que
O PNSF, que prevê o uso de ferro medi- acometem a população do local na atualida-
camentoso, entre outras ações, é uma das de (BRASIL, 2010c).
estratégias nacionais para o enfrentamento Percebe-se, portanto, a necessidade de
da anemia por carência de ferro no País. No maiores esforços no sentido de atender às
que se refere à cobertura populacional aqui metas estabelecidas, uma vez que a perio-
encontrada, observa-se uma variação entre dicidade de suplementação não vem sendo

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 720-732, OUT-DEZ 2014


Atenção Básica em Alagoas: expansão da Estratégia Saúde da Família, do Nasf e do componente alimentação/nutrição 729

seguida, o que pode estar contribuindo para à distribuição emergencial de suplementos,


elevadas prevalências de anemia ferropriva mas também preveem ações de promoção da
entre crianças e gestantes no Estado. alimentação adequada e saudável, incentivo
Referentes ao PNSVITA, os resultados ao aleitamento materno e ao consumo de ali-
aqui obtidos apontam oscilação no quanti- mentos fortificados, e educação alimentar e
tativo da aplicação periódica e emergencial nutricional, entre outros aspectos aqui não
de megadoses de retinol sérico no território considerados (BRASIL, 2013a, 2013b).
alagoano como um todo, área considerada de As evidentes variações dos percentuais de
risco para o problema. cobertura populacionais aqui encontradas
Observa-se melhor cobertura entre as podem ser explicadas conforme resultados
crianças, especialmente as menores de 1 ano de estudo para avaliar o PNSVITA em um
de idade e puérperas, para o ano de 2012. dos estados brasileiros. No referido estudo,
Dados semelhantes foram encontrados por os autores apontaram falhas no processo de
Martins et al. (2007), que identificaram que a aquisição do medicamento, mencionando a
cobertura do PNSVITA no território nacio- morosidade no recebimento, o fornecimento
nal mostra-se, usualmente, mais elevada em insuficiente das cápsulas, a ausência de trei-
crianças de 6 a 11 meses. namento da equipe, a existência de número
Segundo protocolo de condutas gerais do reduzido de Agentes Comunitários de Saúde
programa, as metas de cobertura populacio- e o descompromisso dos responsáveis pelas
nais estabelecidas pelo Ministério da Saúde crianças (PAIVA; GAGLIARI; QUEIROZ, 2011).
são de 100%, 70% e 50% para menores de 1 Os indicadores aqui analisados para o
ano e puérperas, crianças entre 12-55 meses PNSF e o PNSVITA são considerados indi-
(primeira dose) e crianças entre 12-55 meses cadores de gerenciamento, não permitin-
(segunda dose), respectivamente (BRASIL, do uma avaliação mais ampla da ação, que
2013a). No entanto, a exemplo das conside- contemple a qualidade ou a satisfação do
rações supracitadas a respeito do PNSF em usuário. No entanto, a análise desses dados
Alagoas, este programa também alcança nos fornecem importantes informações,
menos da metade da população que é alvo, que permitem aos gestores reorganizar a
sendo esta, privada do acesso a um serviço assistência, melhorar a qualidade da ação e
de atenção nutricional, previsto pela Política elaborar estratégias de intervenção que per-
Nacional de Alimentação e Nutrição, dentre mitam a solução dos problemas de saúde dos
outros dispositivos legais que organizam o usuários desses serviços.
processo de trabalho na ABS, em especial, do A baixa oferta de ações de alimentação
componente alimentação e nutrição (BRASIL, e nutrição na Atenção Básica implica em
2012). limitar o cumprimento dos princípios da in-
Diante do exposto, pode-se observar que, tegralidade, universalidade e resolubilidade
apesar de apresentarem evolução positiva, da atenção. Para superar esse desafio, faz-se
no que se refere à cobertura populacional no necessário, além de fomentar a inserção das
Estado, para o período analisado, estes pro- ações de alimentação e nutrição, no âmbito
gramas de suplementação não estão sendo das estratégias de atenção à saúde, de forma
operacionalizados de forma universal, ao multidisciplinar, promover o apoio e a incor-
apresentarem cobertura abaixo do pactuado poração qualificada do nutricionista neste
pelo Estado com as instâncias competentes. nível de atenção.
Ainda em relação aos programas de su- O Sisvan, por sua vez, foi implantado em
plementação medicamentosa, outra questão Alagoas em 1991, e apresenta, desde então,
importante é a integralidade dessas ações, tendência crescente na cobertura populacio-
uma vez que os mesmos não visam apenas nal em todas as fases do ciclo da vida, com

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 720-732, OUT-DEZ 2014


730 SILVA, M. A. P.; MENEZES, R. C. E.; OLIVEIRA, M. A. A.; LONGO-SILVA, G.; ASAKURA, L.

destaque para crianças e gestantes. Este fato, que, apesar do avanço da cobertura popula-
também observado em todo o Brasil, decorre cional, em todo o território alagoano, com
da exigência do acompanhamento das con- progressos certamente positivos para a saúde
dicionalidades da saúde para participação no desta população, ainda se faz necessário des-
Programa Bolsa Família (PBF) (BRASIL, 2010d). pender esforços, no sentido de aumentar
Cumpre citar que, segundo Marchaukoski o número de equipes da ESF e do Nasf nos
(2011), em 2010, mais de 4.200 crianças bra- municípios, melhorando não só a cober-
sileiras menores de 5 anos estavam sendo tura populacional, mas e, principalmente,
acompanhadas pelo sistema de informação. o enfoque na adequada operacionalização
Em 2011, cerca de 70% das 10 milhões de das ações de alimentação e nutrição, funda-
famílias com perfil de saúde possuíam seus mentais para a vigilância e a prevenção de
dados antropométricos registrados no Sisvan. enfermidades que englobam hoje a agenda
O diagnóstico populacional da situação ali- prioritária de problemas de saúde pública a
mentar e nutricional, com o reconhecimento serem combatidos.
das áreas geográficas, segmentos e grupos Por fim, sugere-se a realização de estudos
mais vulneráveis, propiciado pelo Sisvan, que objetivem avaliar a efetividade e a qua-
imprime racionalidade como base de decisões lidade da atenção à saúde prestada pelas
para as ações de nutrição e de promoção de estratégias aqui analisadas, bem como a
práticas alimentares saudáveis. Neste sentido, atuação das equipes de saúde, em especial,
este sistema de informação torna-se de fun- no componente de alimentação e nutrição, e
damental importância, tanto para o aperfei- na Atenção Básica como um todo, de forma
çoamento das ações de vigilância alimentar e a garantir uma assistência de melhor qua-
nutricional, e sua incorporação nas rotinas de lidade e aprimorar as condições de vida da
atendimento aos usuários da rede, em todas população.
as fases do curso de vida, quanto para o ge-
renciamento do programa de transferência de
renda, o PBF (JAIME et al., 2011; BRASIL, 2012). Colaboradores:
Diante do exposto, constata-se que houve
expansão da ABS no Estado de Alagoas, Emília Chagas Costa - CAV/UFPE, Vanessa
com ênfase na ampliação da ESF, do Nasf e Sá Leal - CAV/UFPE, Juliana Souza Oliveira
do componente alimentação e nutrição, no - CAV/UFPE. s
período avaliado. No entanto, ressalta‑se

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 720-732, OUT-DEZ 2014


Atenção Básica em Alagoas: expansão da Estratégia Saúde da Família, do Nasf e do componente alimentação/nutrição 731

Referências

BARROS, C. M. L.; FARIAS JUNIOR, G. Avaliação da ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência
atuação do nutricionista nos Núcleos de Apoio à Saúde à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Atenção
da Família (NASF) do município de Picos/PI. Revista Básica e Saúde da Família: os números. Ministério da
Saúde e Desenvolvimento, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 140-154, Saúde, Brasília, DF. 2010b. Disponível em: <http//dab.
2012. saude.gov.br>. Acesso em: 22 fev. 2014.

BRASIL. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção
à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Vitamina à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde
A Mais: Programa Nacional de Suplementação de da Família no Brasil: uma análise de indicadores
Vitamina A: Condutas Gerais. Brasília, DF: Ministério selecionados: 1998/2006. Ministério da Saúde, Brasília,
da Saúde, 2013a. DF, 2008b.

______. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à
Saúde. Departamento de Atenção Básica. Programa Saúde. Departamento de Atenção Básica. Cadernos de
Nacional de Suplementação de Ferro: manual de Atenção Básica: Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio a
condutas gerais. Brasília: Ministério da Saúde, 2013b. Saúde da Família. Brasília, DF, 2010a.

______. Ministério da Saúde. Política Nacional de ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção
Atenção Básica. Brasília, DF, 2006b. (Série Pactos pela à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual
Saúde 4). de orientações sobre o Bolsa Família na saúde. 3. ed.
Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2010d.
______. Ministério da Saúde. Portaria nº 687, de 30
de março de 2006. Aprova a Política Nacional de ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção
Promoção da Saúde. Diário Oficial [da] República à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política
Federativa do Brasil. Brasília, DF, 31 mar. 2006a. Seção Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília, DF:
1, p. 63. Ministério da Saúde, 2012.

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 154 de 24 de ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção
janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde Básica. Departamento de Atenção Básica. Avaliação
da Família. Diário Oficial [da] República Federativa para melhoria da qualidade da estratégia saúde da
do Brasil. Brasília, DF, 24 jan. 2008a. Disponível família. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2005.
em: <http://dab.saude.gov.br/docs/legislacao/
portaria154_24_01_08.pdf>. Acesso em: 22 fev. 2014. ______. Ministério da Saúde. Unicef. Cadernos de
Atenção Básica: Carências de Micronutrientes. Brasília,
______. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 DF, n. 20, p. 60, 2007. (Série A. Normas e Manuais
de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional da Técnicos).
Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes
e normas para a organização da Atenção Básica, para ______. Secretaria de Atenção À Saúde. Departamento
a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de de Atenção Básica. Coordenação Geral da Política de
Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial Alimentação e Nutrição. Relatório de gestão - 2009.
[da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 21 out. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2010c.
2011. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/
saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html>. Acesso CONIL, E. M. Políticas de atenção primária e reformas
em: 24 fev. 2014. sanitárias: discutindo a avaliação a partir de análise do

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 720-732, OUT-DEZ 2014


732 SILVA, M. A. P.; MENEZES, R. C. E.; OLIVEIRA, M. A. A.; LONGO-SILVA, G.; ASAKURA, L.

Programa Saúde da Família em Florianópolis, Santa MARTINS, M. C. et al. Panorama das ações de controle
Catarina, Brasil, 1994-2000. Cadernos de Saúde Pública, da deficiência de vitamina “A” no Brasil. Revista de
Rio de Janeiro, v. 18, p. 191-202, 2002. Nutrição, Campinas, v. 20, n. 1, p. 5-18, 2007.

CONSELHO FEDERAL DE NUTRICIONISTAS PAIVA, A. A.; GAGLIARI, M. P. P.; QUEIROZ, D.


(CFN). Inserção profissional dos Nutricionistas no Brazilian Vitamin A Supplementation Program in
Brasil. Brasília, DF: CFN, 2006. Paraiba State: an analisys from the narrative of the
Family Health Program Team. Epidemiol. Serv. Saúde,
CUNHA, G. T.; CAMPOS, G. W. Apoio matricial e Brasília, v. 20, n. 3, p. 373-383, 2011.
atenção primária em saúde. Saúde e Sociedade, São
Paulo, v. 4, p. 961-970, 2011. PÁDUA, J. G.; BOOG, M. C. F. Avaliação da inserção do
nutricionista na Rede Básica de Saúde dos municípios
FACCHINI, L. A. et al. Desempenho do PSF no Sul da Região Metropolitana de Campinas. Revista de
e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e Nutrição, Campinas, v. 19, n. 4, p. 413-24, 2006.
epidemiológica da Atenção Básica à Saúde. Ciência e
Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 669-681, SILVA, A. T. C. et al. Núcleos de Apoio à Saúde da
2006. Família: desafios e potencialidades na visão dos
profissionais da Atenção Primária do município de
JAIME, P. C. et al. Ações de alimentação e nutrição São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de
na atenção básica: a experiência de organização no Janeiro, v. 28, n. 11, p. 2076-2984, 2012.
Governo Brasileiro. Revista de Nutrição, Campinas, v.
24, n. 6, p. 809-824, 2011.
Recebido para publicação em março de 2014
Versão final em setembro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
MARCHAUKOSKI, J. N. Metodologia de implantação
Suporte financeiro: não houve
do NASF em Pinhais –PR. Curitiba: Universidade
Federal do Paraná, 2011. (Projeto Técnico).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 720-732, OUT-DEZ 2014


artigo original | original article 733

Resolubilidade do cuidado na atenção primária:


articulação multiprofissional e rede de serviços
Solvability of the caretaking in primary care: multiprofessional
articulation and services network

Juliana Pessoa Costa1, Maria Salete Bessa Jorge2, Mardenia Gomes Ferreira Vasconcelos3, Milena
Lima de Paula4, Indara Cavalcante Bezerra5

RESUMO Objetivou-se discutir a resolubilidade do cuidado em saúde na atenção primária a


partir dos discursos de profissionais que atuam nas equipes da Estratégia Saúde da Família
(ESF) e nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf ), nos municípios de Maracanaú e
Fortaleza, ambos no estado do Ceará. Os resultados indicam que os profissionais relacionam
resolubilidade à ação realizada por uma equipe multiprofissional, com produção de vínculo e
autonomia no processo de trabalho. No entanto, a rotatividade dos profissionais, a centralida-
1 Mestranda em Saúde
Pública pela Universidade de no trabalho médico e a insuficiente utilização da contrarreferência no fluxo de serviços são
Estadual do Ceará (Uece) – entraves no cotidiano da atenção primária.
Fortaleza (CE), Brasil.
julianapessoato@hotmail.com
PALAVRAS-CHAVE Atenção Primária à Saúde; Resolução de problemas; Assistência à saúde.
2Doutora em Enfermagem
pela Universidade de São
Paulo (USP) – São Paulo ABSTRACT It was aimed to discuss the solvability of the caretaking in health in the primary care
(SP), Brasil. Professora
Titular da Universidade from the speech of professionals who work in the. Family Health Strategy (ESF) teams and in the
Estadual do Ceará (Uece) – Nuclei of Support for Family Health (Nasf ), in the municipalities of Maracanaú and Fortaleza,
Fortaleza (CE), Brasil.
maria.salete.jorge@gmail.com both in the state of Ceará. The results indicate that the professionals have associated solvability
3 Doutoranda
to the action carried out by a multiprofessional team, with production of bonds and autonomy
em Saúde
Coletiva pela Universidade in the work process. However, professionals turnover, the centrality in medical work and the
Estadual do Ceará (Uece) deficient use of the counter reference in the flow of services are obstacles in the day-to-day of
– Fortaleza (CE), Brasil e
Universidade Federal do primary care.
Ceará (UFC) – Fortaleza
(CE), Brasil.
mardeniagomes@yahoo.com.br KEYWORDS Primary Health Care; Problem solving; Health assistance.
4 Doutoranda em Saúde
Coletiva pela Universidade
Estadual do Ceará (Uece)
– Fortaleza (CE), Brasil e
Universidade Federal do
Ceará (UFC) – Fortaleza
(CE), Brasil.
psicoim@hotmail.com

5 Doutoranda em Saúde

Coletiva pela Universidade


Estadual do Ceará (Uece)
– Fortaleza (CE), Brasil e
Universidade Federal do
Ceará (UFC) – Fortaleza
(CE), Brasil.
indaracavalcante@yahoo.com.br

DOI: 10.5935/0103-1104.20140067 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 733-743, OUT-DEZ 2014
734 COSTA, J. P.; JORGE, M. S. B.; VASCONCELOS, M. G. F.; PAULA, M. L.; BEZERRA, I. C.

Introdução intervenções técnicas e interação de sujei-


tos com diferentes profissões, permitindo
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS), um ‘fazer’ de forma integrada, por meio da
consolidado a partir da Constituição Federal articulação das ações multiprofissionais e da
de 1988, ao agregar os serviços da União, cooperação (FERREIRA et al. 2009).
dos estados, dos municípios e da assis- Além de uma equipe multiprofissional,
tência médica previdenciária do antigo também é necessário valorar as relações
Instituto Nacional de Assistência Médica interpessoais dos integrantes dessa equipe.
da Previdência Social (Inamps), promoveu a Desse modo, é imprescindível que haja a
formação de redes assistenciais descentrali- formação de vínculos profissionais, o que
zadas, regionalizadas e integradas, com o ob- possibilita aos trabalhadores compreender a
jetivo de garantir o acesso à saúde (SILVA, 2011). realidade a ser vivenciada no sentido de pro-
Nesse contexto, em que se busca a univer- mover o crescimento de cada um e de todo
salização da saúde, as redes de assistência o grupo de trabalho. Esse processo facilita a
podem ser consideradas organizações poli- resolução de conflitos existentes na prática
árquicas de conjuntos de serviços de saúde, cotidiana. Porém, para que haja essa forma-
vinculados entre si por uma missão única, ção de vínculos, o grupo de trabalho deve
com objetivos comuns e ações cooperativas ser maleável, receptivo e adaptável às con-
e interdependentes, que permitem ofertar tínuas modificações que ocorrem no serviço
uma atenção contínua (MENDES, 2010). (MARTINS et al., 2012).
No entanto, a garantia do acesso a servi- Diante do exposto, percebe-se que ques-
ços assistenciais não implica a efetivação do tões relacionadas à forma como a rede
cuidado em saúde. Nesse sentido, a integra- assistencial está organizada e como se cons-
lidade preconiza que, além de atividades de titui a qualidade do atendimento ofertado ao
promoção, prevenção e tratamentos, a forma usuário estão associadas a um cuidado inte-
como as práticas de cuidado são realizadas gral e também à resolutividade do serviço
nos serviços de saúde também é funda- (QUINDERÉ, 2013). O conceito de resolutividade
mental para o alcance da resolubilidade do está associado à resolução final dos proble-
atendimento. Portanto, as ações devem ser mas trazidos pelos usuários ao serviço e à
realizadas de forma humanizada, ou seja, satisfação desses e dos profissionais (TURRINI
os profissionais devem perceber o usuário et al., 2008).
como um sujeito com subjetividades (LIMA et Considera-se resolutividade a resposta
al., 2012). satisfatória que o serviço fornece ao usuário
Dessa forma, para assegurar a qualidade quando busca atendimento a alguma neces-
da assistência nos três níveis de atenção à sidade de saúde. Essa resposta não compre-
saúde, devem-se considerar as relações in- ende, exclusivamente, a cura de doenças,
terpessoais no processo de cuidado. O aco- mas, também, o alívio ou a minimização do
lhimento deve ser uma prática valorizada sofrimento, a promoção e a manutenção da
pelos profissionais, pois possibilita atender saúde. Por sua vez, a resolutividade pode
às reais demandas dos usuários. Quanto à or- ser avaliada em dois aspectos: no próprio
ganização da equipe, preza-se pelo formato serviço, quanto à capacidade de atender à
multiprofissional, ao possibilitar uma visão sua demanda e no encaminhamento dos
mais ampla do sujeito e a superação do casos que necessitam de atendimentos mais
modelo biomédico (RODRIGUES et al., 2013). especializados dentro do sistema de saúde,
Nesse prisma, o trabalho em equipe mul- que se estendem desde a consulta inicial, os
tiprofissional possibilita a construção de um exames e o tratamento do usuário no serviço
trabalho cooperativo a partir de múltiplas de Atenção Primária à Saúde (APS) até a

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 733-743, OUT-DEZ 2014


Resolubilidade do cuidado na atenção primária: articulação multiprofissional e rede de serviços 735

solução de seu problema em outros níveis de e fonoaudiólogos. Como critérios de inclu-


atenção (TURRINI et al., 2008). são dos participantes, definiu-se: estar vin-
Em face dessas questões referentes à reso- culado a uma equipe multiprofissional dos
lubilidade dos serviços, o objeto deste estudo serviços na atenção primária, seja ao Nasf ou
mostra-se relevante para contribuir para a à ESF, com, no mínimo, um ano de atuação.
formulação de práticas mais condizentes Esses profissionais foram abordados na
com as demandas dos usuários referentes a unidade de saúde à qual estavam vinculados,
trabalhos em saúde, acesso e satisfação, reso- respondendo a entrevista semiestruturada,
lutividade e qualidade do serviço. Nesse con- com temas relacionados à resolubilidade
texto, objetivou-se avaliar a resolubilidade do cuidado e à articulação do trabalho na
do cuidado em saúde na atenção primária, a atenção primária com os demais níveis de
partir dos discursos de profissionais do Nasf complexidade do SUS. As entrevistas foram
e da ESF. gravadas com permissão dos participantes e
tiveram duração média de 30 minutos.
Antes da realização do trabalho de campo,
Metodologia o estudo foi submetido à análise do Comitê
de Ética em Pesquisa com Seres Humanos
Optou-se pela abordagem qualitativa, que (CEP) da Universidade Estadual do Ceará
busca entender o universo de significados, (Uece), recebendo indicação favorável com
valores e crenças, os quais não podem ser parecer nº 10245206-7. Os sujeitos tiveram
quantificados e onde as relações entre os acesso ao Termo de Consentimento Livre e
indivíduos não podem ser reduzidas à ope- Esclarecido, o qual assinaram, autorizando
racionalização de variáveis (MINAYO, 2008). O sua participação na pesquisa, conforme as
estudo integra uma pesquisa mais ampla, recomendações do Conselho Nacional de
denominada Produção do cuidado na Saúde.
Estratégia Saúde da Família e sua interface Para organização das informações, segui-
com a saúde mental: os desafios da resolubi- ram-se três etapas estabelecidas por Minayo
lidade, financiada pelo Conselho Nacional de (1999) e retraduzidas por Assis e Jorge (2010):
Desenvolvimento Científico e Tecnológico ordenação, classificação e análise final dos
(CNPq). dados, que incluem classificação das falas
Utilizaram-se quatro unidades da ESF dos entrevistados, componentes das ca-
como cenário, localizadas no município de tegorias empíricas, sínteses horizontal e
Fortaleza, Ceará, onde atuam equipes de vertical, e confronto entre as informações,
saúde da família e Nasf. Essa cidade foi in- agrupando as ideias convergentes, divergen-
tencionalmente selecionada para o estudo tes e complementares.
em virtude de estar pactuada pelo Sistema A leitura exaustiva do material proporcionou
Municipal de Saúde Escola e de integrar a o estabelecimento das categorias emergentes
referida pesquisa, como instituição copar- das falas com relação aos assuntos tratados na
ticipante. Esses cenários fazem parte da entrevista. A análise final foi orientada pela
área de corresponsabilidade sanitária com a análise de conteúdo, com base em Minayo (2008).
saúde da população da instituição de ensino A autora enfatiza que, entre as possibilidades
responsável pela investigação. de categorização no campo da saúde, a mais
Os participantes da pesquisa foram cons- utilizada é a análise de conteúdo temática, con-
tituídos por 20 profissionais de saúde que sistindo em isolar temas de um texto e extrair
compunham equipes de ESF e Nasf. Para a as partes utilizáveis, de acordo com o tema pes-
análise, foram utilizados os discursos de en- quisado, para permitir comparação com outros
fermeiros, dentistas, médicos, fisioterapeutas textos escolhidos da mesma maneira.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 733-743, OUT-DEZ 2014


736 COSTA, J. P.; JORGE, M. S. B.; VASCONCELOS, M. G. F.; PAULA, M. L.; BEZERRA, I. C.

Resultados e discussão referem que a equipe multiprofissional


conecta diferentes saberes, estabelece vín-
Os resultados apresentados na presente pes- culos com base no conhecimento do traba-
quisa foram discutidos em duas temáticas: lho do outro. Isso promove o entrosamento
(1) O trabalho na equipe multiprofissional: entre os profissionais e a valorização da sua
autonomia para resolubilidade da assistên- participação na produção de cuidados, tor-
cia; (2) Encaminhamentos e dificuldades nando o trabalho mais resolutivo:
na contrarreferência: (des)articulação dos
níveis de complexidade do SUS. O vínculo entre as equipes multiprofissionais e
dos serviços o torna mais resolutivo. [...] Os fisio-
O trabalho na equipe multiprofissio- terapeutas, assistentes sociais, psicólogos sem-
nal: autonomia para resolubilidade pre tentam se unir, também, aos médicos e en-
da assistência fermeiros para realizar atividades em grupo [...]
então, a gente tem diferentes saberes reunidos.
A investigação possibilitou apreender que a (Dentista, ESF).
resolubilidade das ações de saúde está impli-
cada no trabalho efetivo da equipe multipro- Com efeito, para que o cuidado em saúde
fissional, que busca solucionar os problemas seja resolutivo, a equipe multiprofissional
individuais e coletivos demandados pela po- deve estar completa para atuar na ESF e no
pulação. No entanto, os profissionais enfren- Nasf. No território, observou-se que a equipe
tam dificuldades quanto à formação de uma de saúde da família, em especial, quando
equipe completa, às condições de trabalho e incompleta, dificulta o serviço e o cuidado
à regência do modelo biomédico, ainda im- em saúde, como observado na fala dos
perativo na rede de serviços ofertada. profissionais:
O discurso do profissional da equipe de
saúde da família, a seguir, evidencia a impor- [...] temos algumas dificuldades por não ter um
tância do trabalho compartilhado: quadro completo de profissionais [...] em virtude
da demanda e do reduzido número de profissio-
O trabalho em equipe multiprofissional é mais nais nas unidades mais complexas, faz com que
resolutivo. [...] o enfermeiro, sozinho, não vai re- haja uma grande fila de espera. (Enfermeira
solver o problema da comunidade. [...] Atender ESF).
em parceria com o Nasf, com o médico, com toda
uma equipe multidisciplinar que vai atender pra
conseguir uma melhor assistência da qualidade [...] o SUS é uma política muito bonita, mas ain-
prestada. (Enfermeira, ESF). da precisa de algumas soluções. Falta médico em
duas equipes. Enfermeiro está completo, mas fal-
No campo empírico, está evidente que o tam também insumos. (Enfermeiro ESF).
trabalho em equipe, para o profissional, é
uma prática colaborativa de troca de saberes Uma equipe multiprofissional incomple-
e experiências, que possibilita maior reso- ta revela a crise da situação de trabalho dos
lutividade para os problemas apresentados profissionais de saúde que atuam no SUS,
pela comunidade. Essa concepção de equipe ocasionando aumento de filas e demora no
otimiza as habilidades entre seus membros, atendimento aos usuários.
compartilha a gestão de casos e proporciona Nesse contexto, observa-se que os dis-
melhores serviços de saúde aos pacientes e à cursos dos participantes convergem na
comunidade (NUNES et al., 2012). ideia, de que a falta de um profissional em
De modo complementar, os profissionais uma equipe dificulta o cuidado integral na

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 733-743, OUT-DEZ 2014


Resolubilidade do cuidado na atenção primária: articulação multiprofissional e rede de serviços 737

atenção primária, comprometendo a reso- Como empoderar e conduzir a equipe à par-


lubilidade da assistência prestada. Outro ticipação em projetos de cuidado ampliados
aspecto percebido, a partir das narrativas e articulados com os níveis de complexidade
dos profissionais, tanto da equipe do Nasf, do SUS?
como da ESF, foi a ênfase no trabalho do Para contextualizar tal problemática, é
médico em detrimento da articulação em importante entender como está disposta a
equipe. Nesse contexto, os outros profis- rede de serviços e sua articulação na atenção
sionais ficam com suas ações restritas, em primária. A ESF baseia-se na organização
virtude da prescrição e dos encaminhamen- multiprofissional para a produção da saúde,
tos do médico. Isso representa a inversão da a partir de uma abordagem que estimula à
proposta da ESF de mudança do modelo de ação os diversos saberes e práticas dos pro-
cuidado, reafirmando a prática da clínica fissionais. Portanto, o trabalho em equipe
biologicista e centralizada no fazer médico. significa a interação entre os diversos pro-
fissionais, (um dos pilares deste modelo de
[...] Nós ficamos um pouco restritos. Quem pode atenção) e, a busca da integralidade nos cui-
prescrever e dar a indicação é o médico, quando a dados de saúde e na relação entre a comple-
gente precisa de um exame na atenção secundá- mentaridade de trabalhos (PIRES; CAMPOS, 2010).
ria [...] então, a gente tem que estar falando com O trabalho em equipes multiprofissionais
o médico pra ele prescrever o exame ou outro tra- na ESF tornou-se fundamental no cuidado
tamento. (Fisioterapeuta Nasf). em saúde, pois, com o processo de mudança
do modelo assistencial no contexto do SUS,
ocorreu a ampliação do objeto de trabalho,
[...] a carga horária do médico não está sendo ou seja, da doença para o indivíduo e sua
cumprida. A partir do momento em que o médico família. Essa ampliação no objeto de inter-
não está na mesma carga horária que eu, dificul- venção, para além dos âmbitos individu-
ta a continuidade do meu atendimento. (Enfer- al e clínico, exigiu mudanças na forma de
meira ESF). atuação e na organização do trabalho, bem
como demanda alta complexidade de ações
Deste modo, o trabalho em saúde vai se mediante a interação de diversos saberes e
constituindo a partir de relações de poder práticas (COSTA et al., 2012).
reveladas pelo saber médico enquanto corpo O trabalho em equipe, nesse contexto, é
de conhecimento estruturado e da sua re- considerado importante, porém difícil em
presentação social diante da sociedade. sua gestão. Deve ser visto como uma maneira
Assim, o trabalho não é desenvolvido em de dividir as responsabilidades e alcançar in-
conjunto, mas, sim, isoladamente, fato que tervenções efetivas e singulares no processo
prejudica uma prática que deveria ser alicer- saúde-doença do usuário. A eficiência e a efi-
çada na interdisciplinaridade. No cotidiano, cácia dos serviços, nessa perspectiva, reque-
reproduz-se uma atuação compartimentada rem modalidade de trabalho em equipe que
com forte tendência a reproduzir o modelo traduza a forma de conectar as diferentes
médico-centrado (MEDEIROS et al., 2010). ações e os distintos profissionais de saúde
Questiona-se, assim, a autonomia no (SCHRAIBER et al., 2010).
processo de trabalho dos profissionais que Desse modo, a noção de equipe multi-
fazem parte das equipes de ESF e Nasf. profissional é tomada como uma realidade
Como esses profissionais podem transpor o exigida, uma vez que existem profissionais
modelo de cuidado em saúde, se estão ope- de diferentes áreas atuando conjuntamente
rando numa lógica de fragmentação e divisão com um único objetivo, que é a integralidade
técnica do trabalho na atenção primária? da atenção em saúde. A proposta do trabalho

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 733-743, OUT-DEZ 2014


738 COSTA, J. P.; JORGE, M. S. B.; VASCONCELOS, M. G. F.; PAULA, M. L.; BEZERRA, I. C.

em equipe, nesse contexto, consistirá numa resolubilidade dos problemas.


modalidade de trabalho coletivo baseada em Pode-se relacionar a dificuldade em
relações recíprocas entre as intervenções manter completa a equipe de saúde da família
técnicas e as diversas áreas de conhecimento ou do Nasf com as insuficientes condições
de cada núcleo profissional (LIMA et al., 2012). de trabalho dos profissionais do serviço
Num sentido mais amplo, a organização público, além da falta de recursos técnicos,
multiprofissional na atenção primária inclui da precariedade dos equipamentos existen-
as equipes dos núcleos de atenção à saúde tes, da inadequação do espaço físico e dos
da família. Estes, por sua vez, foram criados materiais (SHIMIZU; CARVALHO JUNIOR, 2012). Além
e implantados com o intuito de apoiar a desses fatores, os baixos salários, a ausência
melhor articulação da ESF na rede de ser- de apoio dos gestores, o insuficiente reco-
viços em saúde. Além disso, os Nasfs são nhecimento social, o débil desenvolvimento
responsáveis por realizar ações conjuntas da carreira, as diversas formas de contratos,
às equipes da ESF, intervenções coletivas de sobretudo os informais, contribuem para a
promoção, prevenção e acompanhamento de fragilidade de vínculos com o serviço e a alta
grupos sociais em vulnerabilidade no con- rotatividade de profissionais (POZ, 2013).
texto do território (ANDRADE et al., 2012). A essa condição, soma-se a realidade de
Assim, a ESF e o Nasf constituem a rede que os profissionais de saúde enfrentam
básica de atenção à saúde, que deve fun- precários ambientes de trabalho. Nesse
cionar como uma das portas de entrada do sentido, Pinto et al. (2010) afirmam que a re-
conjunto de serviços que compõem o SUS. muneração insuficiente para o atendimento
Nesse nível de atenção, ações simples e de das suas necessidades dificulta a manuten-
baixa incorporação tecnológica correspon- ção do vínculo trabalhista. Os profissionais
deriam a graus elevados de resolubilidade da da saúde enfrentam o desafio de ter ou não
maioria dos problemas de saúde, que, com seu contrato de trabalho anual renovado. A
retaguardas de maior complexidade, com- instabilidade do vínculo trabalhista e a inse-
plementariam a resolução dos problemas gurança são os principais responsáveis pela
mais complexos (MERHY; ONOCKO, 1997). alta rotatividade dos profissionais que atuam
Dessa forma, os profissionais das equipes nas equipes da ESF (PINTO et al., 2010).
da ESF e do Nasf são corresponsáveis por Diante disso, observa-se que algumas das
uma população adscrita, que tem como ob- maiores dificuldades do trabalho em equipe
jetivo o enfrentamento dos diferentes fatores são a relação interpessoal, a relação de poder
que interferem no processo saúde-doença. A e, até mesmo, as distintas concepções do que
ação da equipe multiprofissional deverá pos- seja trabalhar em equipe, o que demonstra
sibilitar que um profissional se reconstrua a a importância da dimensão do trabalho en-
partir da prática do outro, ambos sendo trans- quanto interação social no campo da saúde
formados para uma intervenção na realidade (CARVALHO, 2012).
em que estão inseridos (MARTINS et al., 2012). Trabalho em equipe significa construir
Para tamanha mobilidade e dinamis- consensos, saberes e práticas em cada profis-
mo, é patente que a interação (integração sional. Nele, são criados os vínculos entre os
e compartilhamento de saberes) entre os profissionais, sendo a maneira mais adequada
profissionais, e entre estes e os usuários, de resolver os problemas. Significa, também, a
aconteça durante todo o processo de cuidado. utilização das interações entre os agentes envol-
Na prática, entretanto, a realidade encontra- vidos, o reconhecimento recíproco de saberes e
da depara-se com uma equipe de especiali- da autonomia técnica (MARTINS et al., 2012).
dades variadas, porém, compartimentadas, No contexto da APS, especificamen-
com pouca comunicação, dificultando a te nas unidades de saúde da família, cada

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 733-743, OUT-DEZ 2014


Resolubilidade do cuidado na atenção primária: articulação multiprofissional e rede de serviços 739

profissional deve desempenhar a profissão uso de medicamentos, exames e equipamentos


em um processo de trabalho coletivo, de biomédicos (CAMPOS; DOMITTI, 2007).
prática compartilhada, divisão de responsa- A integralidade, nesse sentido, inicia-se
bilidades e de cuidado entre os membros da pela organização dos processos de trabalho
equipe, pautada nas contribuições específicas na atenção primária, onde se preconiza a
das diversas áreas de conhecimento (COSTA et assistência multiprofissional, operando por
al., 2012). meio de dispositivos, como o acolhimento e
Nesse sentido, pensar os determinantes o vínculo, em que a equipe se responsabili-
como: a autonomia, o vínculo entre a equipe za pelo cuidado ao usuário em seu contexto
multiprofissional na busca da resolubilidade, mais amplo (FRANCO; FRANCO, 2010).
no contexto do cuidado, exige construção de No entanto, apesar da valorização da
novas práticas, reordenamento do modelo de atuação em todos os níveis de complexidade
atenção e acolhimento no fazer cotidiano da do sistema, um aspecto identificado pelos
rede de serviços de saúde, das necessidades profissionais, que dificulta a efetivação desse
dos usuários (CAMPOS; DOMITI, 2007). fluxo, é a realização de referência e contrar-
referência nos atendimentos na atenção
Encaminhamentos e dificuldades na primária. Esta, quando realizada de forma
contrarreferência: (des)articulação efetiva e coerente, com acompanhamento
dos níveis de complexidade do SUS. do caso, é vista como algo relevante na arti-
culação da rede. Contudo, vale ressaltar que,
A partir da análise dos discursos dos parti- no cotidiano dos serviços, essa lógica de or-
cipantes da pesquisa, foi possível observar ganização ainda é pouco utilizada, como se
que o fluxo singular no sistema de saúde tem percebe no discurso:
início com a entrada na atenção primária,
a partir de uma assistência qualificada. Da [...] o paciente que precisa de uma atenção maior,
mesma forma, nas atenções secundária e ter- de um atendimento secundário ou terciário, ele é
ciária, faz-se necessário que a equipe sempre referenciado [...] o paciente é encaminhado, de-
atrele ações que favoreçam todos os níveis pois atendido e depois ele retorna. A dificuldade
de atenção, nos quais o profissional deve agir maior seria essa contrarreferência. Muitas vezes,
com autonomia durante todo o seu percurso. na maioria das vezes, os profissionais especialis-
tas do atendimento secundário e terciário não fa-
[...] a gente tenta dar suporte a todos os níveis zem essa contrarreferência [...]. (Médica ESF).
[...] tenta atuar em todos os níveis de complexi-
dade [...] na parte secundária, quando a doença
está no início ainda, pra gente não deixar desen- [...] nós temos um grande problema na contrar-
volver, e na parte terciária, quando a complexida- referência, porque, muitas vezes, o profissional
de já esta alta demais. (Terapeuta Ocupacional não nos retorna com os resultados [...] essa con-
Nasf). trarreferência nunca é feita pelo médico. (Enfer-
meira ESF).
Portanto, percebe-se que a resolubilidade
do cuidado está vinculada à atuação profis- Também há problemas para a efetivação da
sional em todos os níveis de complexidade. referência, pois sabe-se que cada serviço de
Desse modo, observa-se a diminuição da dicoto- atenção tem responsabilidades sobre o cuidado
mia entre os serviços de ações de saúde pública e prestado, e deve haver um acompanhamento,
aqueles responsáveis pelas ações de assistência garantindo o acesso aos outros níveis de assis-
médica, estabelecida ao longo da constituição tência, caso não haja a especialidade desejada
da rede de serviços, que teve início a partir do pelo usuário. No entanto, observa-se, a partir

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 733-743, OUT-DEZ 2014


740 COSTA, J. P.; JORGE, M. S. B.; VASCONCELOS, M. G. F.; PAULA, M. L.; BEZERRA, I. C.

dos discursos dos profissionais, a fragilidade ser a unidade de saúde mais próxima de seu
do acesso e a grande fila de espera para os aten- domicílio (FRATINI; SAUPE, 2008).
dimentos de especialidades, além dos encami- Desse modo, o sistema de referência e
nhamentos sem resolutividade. contrarreferência é entendido como um
mecanismo de encaminhamento mútuo de
[...] gente chega aqui é de partir o coração. Pre- usuários entre os diferentes níveis de com-
cisa de fisioterapia e a gente diz: vou passar você plexidade dos serviços. O Ministério da
para o médico e o médico lhe encaminha. E eles Saúde define esse sistema, inclusive, como
respondem: não, minha filha. Não adianta en- um dos elementos-chave de reorganização
caminhar, não, porque é em outro bairro. (Enfer- das práticas de trabalho, e pode ser visto
meira PSF). como o elemento para a integração das redes
de saúde (SERRA; RODRIGUES, 2010).
Entretanto, Franco e Franco (2010) defen-
[...] entra governante, sai governante e a gente dem o conceito de Unidades de Produção de
pensa: tomara que um dia apareça alguém pra Cuidado, que podem estar integradas e ope-
resolver essa questão da fila de espera de enca- rando em um mesmo processo produtivo ou
minhamentos. (Enfermeira PSF). atuar de forma compartimentada, autonomi-
zadas umas em relação às outras, baseados
Nesse contexto, em vez de processos de no Projeto Terapêutico como fio condutor do
referência e contrarreferência, na prática, processo de cuidado. Essa forma de se rela-
ocorrem encaminhamentos para serviços cionar em prol da constituição desse projeto
mais especializados, onde não se observa o fundamentado na demanda do usuário, a
acompanhamento do paciente pala equipe partir de olhares múltiplos, sustentados por
da Unidade Básica de Saúde e nem a longi- diversos saberes, pode dar a liga entre os di-
tudinalidade da assistência prestada, dificul- versos produtos das Unidades, funcionando
tando a integralidade do cuidado. como uma cadeia produtiva dos Projetos
O sistema de referência e contrarreferên- Terapêuticos, levando aos resultados espera-
cia é uma forma de organização dos serviços dos no tocante à resolução do problema de
de saúde, que possibilita o acompanhamen- saúde do usuário.
to profissional do usuário e favorece o seu Com efeito, o Projeto Terapêutico pode
acesso a todos os níveis assistenciais existen- constituir o fio condutor para os fluxos da
tes no SUS. Para sua efetivação, é necessário linha do cuidado, os quais devem ser capazes
que as unidades do sistema estejam organi- de garantir o acesso seguro às tecnologias
zadas hierarquicamente, isto é, classificadas necessárias à assistência. Assim, o fluxo
pelo tipo de serviços, equipamentos e profis- parte da rede básica, ou de qualquer outro
sionais especialistas e a capacidade de reso- lugar de entrada no sistema, para os diversos
lutividade (ORTIGA, 2006). níveis assistenciais (FRANCO; FRANCO, 2010). Esse
A referência representa a necessidade do percurso dinâmico e autônomo dentro da
usuário de um maior grau de complexidade, rede pode funcionar de forma mais efetiva
de onde é encaminhado a um atendimen- do que aquele operado na lógica de referên-
to de especialização mais complexo, como cia e contrarreferência, que parece obstruir a
hospitais e clínicas especializadas. Já a con- integralidade do cuidado.
trarreferência diz respeito ao menor grau Nesse sentido, as redes de saúde funcio-
de complexidade, quando a necessidade do nam como uma comunicação de ações e
usuário, com relação aos serviços de saúde, serviços passíveis de transformação e rein-
é mais simples, ou seja, ele é conduzido para venção de papéis e territorialidades, fun-
um atendimento em nível primário, devendo damentais para a constituição e a operação

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 733-743, OUT-DEZ 2014


Resolubilidade do cuidado na atenção primária: articulação multiprofissional e rede de serviços 741

de diferentes formas de cuidado. Essa arti- Desse modo, a utilização do arranjo em


culação em rede rompe com o conceito de rede representa uma alternativa aos entra-
centralidade de cuidados, ou seja, oferece ves do sistema de saúde. Por sua vez, a rede
dinamismo e flexibilidade aos serviços, a fim de cuidado visa a assegurar retaguarda espe-
de gerar melhores resultados da atenção. cializada, tanto em nível assistencial como
Outro aspecto importante percebido é o técnico-pedagógico. Pressupõe, assim, uma
de que os trabalhadores da atenção primá- construção compartilhada entre a equipe de
ria conhecem as redes de saúde, no entanto, referência (profissionais da atenção primária)
ainda há dificuldades para o desenvolvimen- e os apoiadores, equipe de especialistas, com
to de um trabalho articulado em todos os a missão de agregar conhecimentos, contri-
níveis de atenção, como se observa na fala buindo para intervenções que aumentem sua
dos profissionais da ESF: capacidade de resolver problemas no nível da
atenção primária (MARTINS et al., 2012).
[...] nós temos conhecimento de todas as redes Portanto, evidencia-se a importância de,
[...] sabemos que precisa apenas melhorar ainda não apenas conhecer a rede de saúde, mas,
mais [...] Eu digo para o meu paciente: – Para- também, de buscar pautar suas ações de
béns! Você está com o melhor plano de saúde que forma a garantir a articulação entre os ser-
você já teve na sua vida. (Médica ESF). viços. Também se faz necessário procurar
superar os obstáculos existentes no cotidiano
dos serviços, que dificultam a resolubilidade.
[...] a gente só encaminha especialidades, porque Nesse cenário, fica evidente a importância
aqui só tem o básico. [...] nunca encaminha e volta. da resolutividade para a satisfação dos usu-
Só quando lá está cheio e surge alguma urgência ários e para a qualidade dos serviços, pois
eles mandam. (Dentista ESF). é possível inferir que ter resolutividade, na
maioria das vezes, está associado à satisfa-
O profissional que tem o conhecimento da ção. Assim, pode-se dizer que a promoção de
rede apresenta um posicionamento compro- resolutividade gera satisfação na clientela e
metido e implicado no cuidado dos sujeitos. na qualidade do atendimento em saúde.
Todo profissional de saúde, independen-
temente do papel que desempenhe como
produtor de atos de saúde, é sempre um ope- Considerações finais
rador de cuidado, isto é, sempre atua clini-
camente, e, como tal, deveria ser capacitado, A resolutividade pode ser alcançada por
pelo menos, para operar no campo específico meio de um atendimento acolhedor, me-
das tecnologias leves, dos modos de produzir diante responsabilização das equipes, com
acolhimento, responsabilizações e vínculo. atitudes criativas e flexíveis. Nesse sentido,
Pensá-los na direção de atos comprometidos o trabalho resolutivo em saúde baseia-se no
com as necessidades do usuário (MERHY, 2002). cuidado corresponsável, em que prevaleça o
O conhecimento das redes de saúde protagonismo da equipe multiprofissional,
envolve diversos aspectos inter-relacionados, no sentido de aprofundar os saberes e as
tais como: regulação dos serviços; processos práticas no campo da saúde. Essa ação pres-
de gestão clínica; condições de acesso aos ser- supõe produção de vínculos interpessoais e
viços; recursos humanos; sistemas de infor- contratuais, além de autonomia no processo
mação e comunicação. Pode-se considerá-los de trabalho na atenção primária.
como condições necessárias também para o Outro aspecto que deve ser destacado é o
bom funcionamento do sistema de referência modelo de redes de cuidado na articulação
e contrarreferência (SERRA; RODRIGUES, 2010). dos níveis assistenciais do SUS. A partir de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 733-743, OUT-DEZ 2014


742 COSTA, J. P.; JORGE, M. S. B.; VASCONCELOS, M. G. F.; PAULA, M. L.; BEZERRA, I. C.

uma atuação das equipes de base territo- da assistência é fundamental para a re-
rial, essa organização em rede promove o organização da qualidade dos serviços
estabelecimento de vínculos e acolhimento. de saúde, utilizando-se a análise de sa-
No entanto, na prática, observam-se dificul- tisfação do usuário. Assim, profissionais
dades no processo de trabalho no primeiro de saúde e gestores podem realizar au-
nível de atendimento, especificamente, na toanálise de seus processos de trabalho e
incompletude das equipes, nos encaminha- propor intervenções mais adequadas, em
mentos e na contrarreferência. função das necessidades e expectativas
O entendimento sobre resolutividade sobre o serviço. s

Referências

ANDRADE, L. M. et al. Análise da implantação dos Janeiro, v.14, suppl.1, p. 1421-1428, 2009.
Núcleos de Apoio à Saúde da Família no interior
de Santa Catarina. Rev. Saúde e Transformação, FRANCO, C. M.; FRANCO, T. B. Linhas do cuidado
Florianópolis, v. 3, n. 1, p. 18-31, 2012. integral: uma proposta de organização da rede de
saúde. 2010. Disponível em: <http://www.saude.rs.gov.
ASSIS, M. A. A.; JORGE, M. S. B. Métodos de análise br/dados/1312992014173Linha-cuidado-integral-
em pesquisa qualitativa. In: SANTANA, J. S. S. S.; conceito-como-fazer.pdf>. Acesso em: 20 julho 2014.
NASCIMENTO, M. A. A. Pesquisa: métodos e técnicas
de conhecimento da realidade social. Feira de Santana: FRATINI, J. R. G; SAUPE, G. Referência e
UEFS, 2010, p. 139-159. contrarreferência: contribuição para a integralidade
em saúde. Cienc. Cuid. Saude, Maringá, v. 7, n.1, p. 65-72,
CAMPOS, G. W. S.; DOMITTI, A. C. Apoio matricial e 2008.
equipe de referência: uma metodologia para gestão do
trabalho interdisciplinar em saúde. Cad. Saúde Pública, GONCALVES, R. J. et al. Ser médico no PSF: formação
Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 399-407, 2007. acadêmica, perspectivas e trabalho cotidiano. Rev. Bras.
Educ. Med, Rio de Janeiro, v. 33, n. 3, p. 382-392, 2009.
CARVALHO, G. Coordenação de unidade de atenção básica
no SUS: trabalho, interação e conflitos. 2012. 300 f. Tese JULIANI, C. M. C. M.; CIAMPONE, M. H. T.
(Doutorado em Enfermagem). – Escola de Enfermagem Organização do sistema de referência e contra-
da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. referência no contexto do sistema único de saúde: a
percepção de enfermeiro. Rev. Esc. Enferm. USP, São
COSTA, M. R. et al. O trabalho em equipe desenvolvido Paulo, v. 33, n. 4, p. 323-333, 1999.
pelo cirurgião dentista na Estratégia Saúde da Família:
expectativas, desafios e precariedades. Revista LIMA, I. F. S. et al. Integralidade na percepção dos
Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de trabalhadores de uma unidade básica de saúde da
Janeiro, v. 7, n. 24, p.147-163, 2012. família. Rev. Esc. Enferm. USP, São Paulo, v. 46, n. 4, p.
944-952, 2012.
FERREIRA, R. C. et al. Trabalho em equipe
multiprofissional: a perspectiva dos residentes médicos MARTINS, A. R. et al. Relações interpessoais, equipe
em saúde da família. Ciênc. Saúde Coletiva, Rio de de trabalho e seus reflexos na atenção básica. Rev. Bras.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 733-743, OUT-DEZ 2014


Resolubilidade do cuidado na atenção primária: articulação multiprofissional e rede de serviços 743

Educ. Med,  Rio de Janeiro, v. 36, n. 1, p. 6-12, 2012. experiência do apoio matricial. Ciênc. Saúde Coletiva,
Rio de Janeiro, v. 18, n. 7, p. 2157-2166, 2013.
MEDEIROS, C. R. G. et al. A rotatividade de
enfermeiros e médicos: um impasse na implementação RODRIGUES, J. S. M. et al. O atendimento por
da Estratégia de Saúde da Família. Ciênc. Saúde instituição pública de saúde: percepção de famílias de
Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, supl. 1, p. 1521-1531, 2010. doentes com câncer. Saúde em Debate, Rio de Janeiro,
v. 37, n. 97, p. 270-280, 2013.
MENDES, E. V. As redes de atenção à saúde. Ciênc. Saúde
Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, p. 2297-2305, 2010. SCHRAIBER, L. B. et al. Planejamento, gestão e
avaliação em saúde: identificando problemas.  Ciênc.
MERHY, E. E.; ONOCKO, R. (Org.). Agir em saúde: um Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 221-42, 1999.
desafio para o público. São Paulo: Hucitec, 1997.
SERRA, C. G; RODRIGUES, P. H. A. Avaliação da
MERHY, E. E. A cartografia do trabalho vivo. 3. ed. São referência e contrarreferência no Programa Saúde da
Paulo: Hucitec, 2002.  Família na região metropolitana do Rio de Janeiro.
Ciênc. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.15, supl. 3, p.
MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, 3579-86, 2010.
método e criatividade. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
SHIMIZU, H. E.; CARVALHO JUNIOR, D. A. C. O
_____. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa processo de trabalho na Estratégia Saúde da Família e
em saúde. 5. ed. Rio de Janeiro: Hucitec, 2008. suas repercussões no processo saúde-doença. Ciênc.
Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 9, p. 2405-2414,
NUNES, A. A. et al. Resolubilidade da Estratégia Saúde 2012.
da Família e Unidades Básicas de Saúde Tradicionais:
Contribuições do PET-Saúde. Rev. Bras. Educ. Med, Rio SILVA, S. F. Organização de Redes regionalizadas e
de Janeiro, v. 36, n. 1, supl. 1, p. 27-32; 2012. Integradas de Atenção à Saúde: Desafios do Sistema
Único de Saúde (Brasil). Ciênc Saúde Coletiva, Rio de
ORTIGA, A M. B. Estrutura e dinâmica das unidades de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2753-2762, 2011.
saúde. 2006. Mimeo.
SILVA, A. T. C. et al. Núcleos de Apoio à Saúde da
PINTO, E. S. G. et al. Situação de trabalho dos Família: desafios e potencialidades na visão dos
profissionais da Estratégia Saúde da Família em Ceará- profissionais da Atenção Primária do Município de São
Mirim. Rev. Esc. Enferm. USP, São Paulo, v. 44, n. 3, p. Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 28,
657-664, 2010. n. 11, p. 2076-2084, 2012.

PIRES, R. O. M; CAMPOS, D. A. C. Equipe TURRINI, R. N. T. et al. Resolutividade dos serviços de


Multiprofissional em Saúde da Família: do Documental saúde por inquérito domiciliar: percepção do usuário. Cad.
ao Empírico no Interior da Amazônia. Rev. Bras. Educ. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 663-674, 2008.
Med, Rio de Janeiro, v. 34, n. 3, p. 379–389, 2010.

Recebido para publicação em abril de 2013


POZ, M. R. D. A crise da força de trabalho em Versão final em agosto de 2014
Conflito de interesses: inexistente
saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 10, p.
Suporte financeiro: Produção do cuidado na Estratégia Saúde da
1924-1926, 2013. Família e sua interface com a saúde mental: os desafios em busca
da resolubilidade (Projeto CNPq) – nº 500827/2010-9

QUINDERE, P. H. D. et al. Acessibilidade e


resolubilidade da assistência em saúde mental: a

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 733-743, OUT-DEZ 2014


744 artigo original | original article

Política, atenção primária e acesso a serviços


de Média e Alta Complexidade em pequenos
municípios
Policy, primary care and access to Medium and High Complexity
services in small municipalities

Daniela Lacerda Santos1, Paulo Henrique de Almeida Rodrigues2

RESUMO O artigo analisa o encaminhamento de pacientes de pequenos municípios para servi-


ços de saúde de Média ou Alta Complexidade. Nos pequenos municípios, as instituições polí-
ticas do clientelismo e do mandonismo interferem no encaminhamento dos pacientes, sendo
importante inquirir como estas instituições condicionam o acesso dos pacientes da saúde da
família de pequeno município àqueles serviços. Foi realizado um estudo de caso qualitativo,
usando o referencial do neoinstitucionalismo histórico, entrevistas, observação assistemática,
análise documental e de dados quantitativos sobre a rede de serviços e a população. Os resul-
tados mostraram que a oferta insuficiente de serviços facilita a intermediação clientelista dos
mesmos.

PALAVRAS-CHAVE Política; Atenção Primária à Saúde; Acesso aos serviços de saúde.

ABSTRACT The article analyzes the referral of patients from small municipalities to medium
or high complexity health services. In the small municipalities, political institutions related to
patronage and bossism interfere in the forwarding of patients, being considered important to
question how these institutions condition the access of family health’s patients from small muni-
cipalities to those services. A qualitative case study was conducted, using the reference of the his-
torical neo-institutionalism, interviews, non-systematically observation, documentary analysis
and quantitative data about the service network and the population. The results have shown that
the insufficient supply of services facilitates their clientelistic intermediation.

1Doutoranda em Saúde KEYWORDS Politics; Primary Health Care; Health services accessibility.
Coletiva pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil.
dannylacer@ig.com.br

2Doutor em Saúde
Coletiva pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj) – Rio de Janeiro (RJ),
Brasil. Professor adjunto da
Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
pharodrigues@gmail.com

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 744-755, OUT-DEZ 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140068
Política, atenção primária e acesso a serviços de Média e Alta Complexidade em pequenos municípios 745

Introdução suporte ao domínio local dos coronéis, que


influenciavam na escolha dos ocupantes dos
Este artigo discute os resultados de pesquisa cargos públicos e controlavam, na prática,
realizada no Estado de Minas Gerais sobre o processo eleitoral (LEAL, 1997; CARVALHO, 1997).
as condições de acesso a serviços de Média e As características secundárias do sistema
Alta Complexidade (MAC) por parte de usu- coronelista são: mandonismo; clientelismo;
ários do Sistema Único de Saúde (SUS), mo- filhotismo ou apadrinhamento; e manipula-
radores de pequenos municípios. A grande ção eleitoral. Tais elementos contribuíram
maioria dos municípios brasileiros é de para prejudicar os serviços públicos locais,
pequeno porte: mais de 2/3 deles têm menos muitas vezes desorganizados e inoperantes
de 20 mil habitantes; quase 90% têm menos (LEAL, 1997; CARVALHO, 1997).
de 50 mil habitantes e, em ambos os casos, O mandonismo local sempre fez parte
as populações dos mesmos são insuficien- de um sistema de poder oligárquico mais
tes para justificar a existência, por exemplo, amplo, organizado no nível dos estados. Na
de um hospital geral, com capacidade para Primeira República, a Constituição de 1891
atender casos de emergência e realizar ci- dava liberdade aos estados para “organi-
rurgias, ou mesmo um ambulatório de espe- zarem os municípios na feição que melhor
cialidades, só podendo oferecer serviços de lhes parecesse” (FAORO, 2001, p. 704). Isso fazia
Atenção Básica ou primária (RODRIGUES; SANTOS, parte da essência da “política dos governa-
2011). Por não disporem destes serviços, os pe- dores”, que constituiu a base do sistema de
quenos municípios necessitam encaminhar dominação até 1930 (ZIMMERMAN, 1999, p. 309).
seus usuários para centros maiores – muitas Esse sistema de dominação oligárquico
vezes, distantes –, o que dificulta e encarece nunca foi totalmente desmontado, apesar
o encaminhamento de pacientes para servi- das diversas transformações históricas pas-
ços de MAC do SUS. Em Minas Gerais, onde sadas pelo País, inclusive os dois longos
foi realizado o estudo, havia, em 2010, 676 períodos de dominação autoritária e centra-
municípios com menos de 20 mil habitantes, lizadora (1930-1945 e 1964-1985). O sistema
ou 79,2% do total (BRASIL, 2011). político-eleitoral resultante, por não contar
Desde sua origem remota – os Conselhos com distritos eleitorais, obriga os candidatos
Locais de Portugal, que serviram de modelo a cargos eletivos estaduais e federais a bus-
no período colonial –, os municípios brasi- carem votos em todo o território dos estados,
leiros constituem a base do sistema de poder dependendo de sua capacidade de estabele-
político no Brasil. As câmaras locais daquela cer alianças locais em diversos municípios
época eram formadas pelos chamados ‘ho- para obterem sucesso nas eleições, que, nos
mens-bons’ – em geral, os proprietários de menores municípios, têm de ser feitas, em
terra mais poderosos. Desde então, o sistema geral, com forças políticas tradicionais de
político-eleitoral se assenta sobre os municí- caráter conservador (LEAL, 1997; RODRIGUES, 2011).
pios, o que assegurou imensa influência po- Segundo Nunes (2010), a dominação clien-
lítica para os grandes proprietários de terra. telista de base local permanece no Brasil e
Durante a Primeira República (1889-1930), continua se articulando com as outras formas
o poder local no Brasil foi muito marcado de dominação política, ou ‘gramáticas’, como
pelo coronelismo, que se desenvolveu sobre ele denomina. Além da gramática do cliente-
as bases da antiga Guarda Nacional criada lismo, as outras seriam as do corporativismo
no Império (IZECKSOHN, 2009). Os coronéis – – surgido da revolução de 1930 –, do insula-
em geral, grandes fazendeiros e líderes do mento burocrático – influência de burocracias
poder local – apoiavam os governadores especializadas e poderosas em organizações
na garantia dos votos locais e estes davam estatais influentes – e do universalismo de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 744-755, OUT-DEZ 2014


746 SANTOS, D. L.; RODRIGUES, P. H. A.

procedimentos – tentativa de implantar um através das emendas parlamentares ao or-


sistema de dominação baseado nas leis, na çamento (SODRÉ; ALVES, 2010). Os parlamentares
democracia e fundado no reconhecimen- podem apresentar emendas individuais e co-
to dos direitos de cidadania. Segundo ele, letivas ao orçamento, principalmente para a
a dominação política no Brasil atual é uma realização de investimentos, ou despesas de
conjugação dessas quatro instituições ou capital (ROCHA, 2008; SANTANA, 2011). As emendas
gramáticas políticas, que interagem entre si, individuais seriam as de característica mais
prevalecendo uma ou outra em momentos clientelista, sendo conhecidas na ciência po-
e regiões diferentes. O atual ‘presidencia- lítica como pork barrel (SANTANA, 2011).
lismo de coalizão’, conceito cunhado por O peso das emendas legislativas no total
Abranches (1988 apud LIMONGI, 2006) para expli- dos investimentos do governo federal foi es-
car a necessidade de formação de amplas timado por Limongi e Figueiredo (2009) em
coalizões políticas, para viabilizar os gover- mais de 30%, em média, no período situado
nos após a redemocratização de 1985, pode entre 1996 e 2001. Os setores mais beneficia-
ser interpretado como um resultado dessa dos pelas emendas individuais costumam ser
mescla das gramáticas políticas. Pode-se os de saúde, educação, infraestrutura e assis-
dizer que as políticas sociais instituídas pela tência social (SANTANA, 2011). No caso da saúde,
Constituição de 1988, inclusive o SUS, estão o valor dos investimentos feitos com base nas
no campo do universalismo de procedi- emendas legislativas foi superior aos investi-
mentos. Sua implantação e funcionamento, mentos originados da proposta do Executivo
entretanto, são influenciadas pelas outras no mesmo período (LIMONGI; FIGUEIREDO, 2009), o
gramáticas. A partir da redemocratização que permite supor uma elevada politização
do País, iniciada em 1985, houve grande for- do investimento no SUS.
talecimento dos municípios, que passaram Nem todos os municípios conseguem se
a dispor de maior autonomia e assumiram beneficiar dos recursos de emendas par-
papel mais definido do que os estados na dis- lamentares, pois sua liberação depende
tribuição das atribuições governamentais – da capacidade de elaboração de proje-
particularmente, na área social –, como foi o tos e da celebração de convênios com o
caso da saúde (ZIMMERMANN, 1999; RODRIGUES, 2011). governo federal, o que requer a disponi-
O federalismo brasileiro seria marcado bilidade de quadros técnicos capacitados.
por uma complexa trama de coalizões, onde Principalmente os municípios de pequeno
os interesses de elites regionais cumprem porte têm maiores dificuldades neste sentido
um papel muito importante. Os interesses (SANTANA, 2011). E a esta dificuldade deve-se
regionais e as características e forças que somar a sua baixa capacidade de influenciar
dominam essas coalizões políticas condicio- diretamente na eleição de deputados, por
nam o gasto público (ARRETCHE; RODDEN, 2004). A terem baixo número de eleitores e, conse-
necessidade dessas coalizões torna o partido quentemente, por sua baixa capacidade de
governante refém das mesmas e gera um formar alianças eleitorais com deputados
complexo método de negociação em torno e senadores, capazes de gerarem emendas
do processo decisório, marcado por meca- parlamentares no futuro. Este estudo teve
nismos políticos voltados para a formação como objetivo analisar como as instituições
de maioria no Congresso Nacional. Tais me- políticas condicionam o acesso dos usuários
canismos são, essencialmente, a distribuição de pequenos municípios a serviços de MAC,
dos cargos no Executivo e a barganha legis- uma vez que também condicionam a estrutu-
lativa em torno da utilização do orçamento ração e a ampliação da oferta destes serviços.
como moeda de troca de favores políticos

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 744-755, OUT-DEZ 2014


Política, atenção primária e acesso a serviços de Média e Alta Complexidade em pequenos municípios 747

Métodos quase 800 km de distância.


Os procedimentos de pesquisa incluíram
Foi realizado um estudo de caso sobre a gestão coleta e análise de dados secundários sobre
do processo de encaminhamento de usuários a rede de serviços de saúde do SUS, entrevis-
do SUS de municípios de pequeno porte para tas semiestruturadas que foram elaboradas
serviços de MAC. Tratou-se, portanto, de um seguindo um roteiro adaptado a cada tipo de
estudo de caráter exploratório e descritivo (GIL, informante, por conta das diferentes expe-
2009). Por ser estudo de gestão de uma política riências, posições e interesses dos mesmos,
pública, julgou-se adequado utilizar, no estudo com lideranças locais (seis) e regionais
do caso, o ferramental analítico desenvolvido (quatro). Observação assistemática (SELLTIZ et
pelo neoinstitucionalismo histórico, que vem al., 1974) das reuniões da PPI na microrregião,
sendo usado de forma crescente para a análise na macrorregião e no Estado, além de análise
de políticas públicas na área social (SKOCPOL, 1995; documental da PPI, do Plano Municipal de
1996; PIERSON, 2007), inclusive no Brasil (ARRETCHE, Gestão do SUS e do Relatório Anual de Gestão
2005; GERSCHMAN; SANTOS, 2006). Este marco teórico de Rio do Prado. Além das autoridades sanitá-
favorece a abordagem analítica das políticas rias locais, foram entrevistadas autoridades e
públicas em um contexto histórico concreto, lideranças do sistema de saúde em Felizburgo
procurando identificar as agendas políticas de (MG), primeira referência para encaminha-
cada conjuntura, as arenas políticas em que as mento; Almenara (MG), sede da microrregião
decisões são tomadas e os atores envolvidos no de saúde); Pedra Azul (MG), sede da Gerência
processo decisório, que podem se situar dentro Regional de Saúde; e Teófilo Otoni (MG), res-
ou fora do aparelho do Estado. Um conceito ponsável pela regulação da Rede de Atenção à
central desta abordagem é o de instituição, Saúde da macrorregião.
definida como regras formais e informais que Foram coletados e analisados, em primei-
compõem as opções dos atores sociais (HALL; ro lugar, dados relativos à regionalização
TAYLOR, 2003; NORTH apud MARQUES, 1997). do SUS em Minas Gerais, com base em do-
O estudo foi realizado na macrorregião de cumentos da Secretaria de Estado de Saúde
saúde de Teófilo Otoni (MG), com foco na mi- (SES/MG), principalmente o Plano Diretor
crorregião de saúde de Almenara (MG) e em de Regionalização de Minas Gerais (PDR-
um dos seus municípios, Rio do Prado, situado MG). Também foram coletados e analisa-
no Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas dos dados obtidos junto à base do Datasus
Gerais. O município tinha 4.506 habitantes (população residente estimada por macro e
em 2010, dos quais 22,9% tinham renda fami- microrregiões de saúde). Quanto à oferta de
liar de até ¼ de salário mínimo. Apenas seis serviços, foram levantados e analisados dados
famílias do mesmo tinham renda superior do Cadastro Nacional de Estabelecimentos
a mais de cinco salários mínimos (IBGE, 2010), de Saúde (CNES) a respeito da oferta de
o que sugere uma grande dependência da serviços hospitalares (unidades e leitos) e de
população local dos serviços do SUS. Nem a equipamentos por macrorregiões. Para ana-
macrorregião, nem a microrregião oferecem lisar a oferta de consultas e procedimentos
todos os serviços de MAC necessários às suas especializados de saúde para os moradores
populações. De acordo com a Programação de Rio do Prado (MG), foram coletados e
Pactuada Integrada (PPI) de Minas Gerais, analisados dados da base do CNES, dispo-
as demandas para alguns daqueles serviços nibilizados pelo Datasus. Todos os dados
têm de ser encaminhadas para Teófilo Otoni coletados foram agrupados em categorias
(MG), sede da macrorregião, e a grande e subcategorias de análise, resumidas no
maioria delas, para Belo Horizonte (MG), a quadro 1:

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 744-755, OUT-DEZ 2014


748 SANTOS, D. L.; RODRIGUES, P. H. A.

Quadro 1. Categorias e subcategorias de análise, e suas definições

Categorias Subcategorias Definição

Estrutura da rede Oferta de serviços Serviços de MAC existentes regionalmente


serviços
Demanda de serviços Serviços de MAC mais demandados regionalmente

Critérios ou parâmetros do Utilização ou não de critérios de planejamento da oferta


planejamento da rede regional dos serviços

Ampliação de capacidade Iniciativas ou não de investimentos na ampliação da oferta


regional dos serviços

PPI e encaminhamento Bases para a programação Critérios formais utilizados para a programação pactuada e
de pacientes integrada

Processo de pactuação Processo efetivo de pactuação e encaminhamento de pacien-


tes para os serviços de MAC

Corporativismo Influência de interesses corporativos na oferta de serviços

Clientelismo local Influência de interesses clientelísticos no encaminhamento

Fonte: Elaboração própria

Resultados sede da microrregião. O trajeto entre as duas


cidades pode ser feito em rodovia asfaltada
ou de terra. No primeiro caso, a distância é
Estruturação da rede de serviços de 116 km e exige 2h30m para ser percor-
rida; já o segundo trajeto dista 67 km, mas
Como o Município de Rio do Prado (MG) exige tempo semelhante e implica em maior
só oferece serviços de atenção primária ou desconforto para os pacientes. Como o en-
básica, toda a sua demanda de procedimen- caminhamento dos pacientes é de respon-
tos de MAC tem de ser encaminhada para sabilidade do município de origem, quando
outros municípios. A primeira referência é um caso grave chega à Almenara (MG) e os
o Hospital de Felizburgo, distante 27,4 km, serviços lá existentes não têm capacidade de
com deslocamento de apenas 40 minutos. atendê-lo, ele necessita retornar ao municí-
De acordo com os gestores da rede entrevis- pio de origem para novo encaminhamento,
tados, o hospital só oferece clínica médica e aumentando o seu sofrimento, além dos
alguns exames de imagem (ultrassonografia custos com tratamento fora do domicílio. A
e raios x), e de análises clínicas. As gesta- Lei Orgânica da Saúde (BRASIL, 1990) estabele-
ções de alto risco são acompanhadas em ceu a descentralização dos serviços para os
Jequitinhonha (MG), a 117 km de distância, municípios, e a regionalização e hierarquiza-
percurso que toma duas horas de viagem. Os ção da rede de serviços de saúde, porém não
partos são realizados em Felizburgo (MG) ou definiu de quem é a responsabilidade sobre o
Almenara (MG), conforme o risco, porém o sistema, o que ocasiona esta ruptura no aten-
hospital de referência para gestação de alto dimento dos usuários.
risco, que fica em Almenara (MG) não possui Segundo os entrevistados, Almenara
Unidades de Terapia Intensiva Neonatal ou (MG) oferece apenas as seguintes consultas
de Adulto. especializadas: oftalmologia, cardiologia,
Dependendo da necessidade, os usuários dermatologia, endocrinologia, nefrologia,
de Rio do Prado (MG) são encaminhados neurologia, ortopedia, pediatria, psiquiatria
para Almenara (MG), segunda referência e e urologia. Nos casos de cirurgias, somente

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 744-755, OUT-DEZ 2014


Política, atenção primária e acesso a serviços de Média e Alta Complexidade em pequenos municípios 749

realiza as gerais. E oferece os seguintes ser- que regula a concessão de financiamento


viços de apoio diagnóstico: raios x, tomo- para passagens de ida e volta, ajuda de custo
grafia e ultrassonografia. Todos os demais para alimentação e hospedagem, inclusive
casos devem ser encaminhados para outras para o acompanhante, para tratamento am-
referências mais distantes. Jequitinhonha bulatorial ou hospitalar previamente agen-
(MG) é a referência seguinte para gestação dado. Como há um grande movimento de
de alto risco e para tratamento de hiperten- encaminhamento de pacientes para outros
sos, diabéticos e obesos, com complicações – municípios e a demanda excede a oferta,
Programa Hiperdia da Secretaria de Estado tais dificuldades facilitam a intermediação
de Saúde (MINAS GERAIS, 2008-2011). clientelista dos mesmos, através da interfe-
Tanto a macrorregião Teófilo Otoni (MG) rência na ordem dos encaminhamentos e na
quanto a microrregião Almenara (MG) ofe- distribuição dos recursos do TFD.
recem poucas cirurgias especializadas. Desta O levantamento da rede SUS em Minas
forma, a maior parte da demanda é encami- Gerais revelou que a oferta de serviços de
nhada para Belo Horizonte (MG). Outros MAC é dominada pelo setor privado, que
serviços de MAC também têm de ser enca- detém dos recursos disponíveis para o SUS,
minhados para a mesma cidade, que dista por exemplo: 72,3% dos leitos de internação
mais de 700 km de Rio do Prado (MG), em do Estado e 78,6% da macrorregião estuda-
uma viagem de 10h30m, de alto custo tanto da; 89,1% dos equipamentos de ressonância
para a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) magnética do Estado e 100% da macrorre-
quanto para o usuário. A pactuação dos ser- gião; assim como 87,9% dos equipamentos
viços de MAC não está em conformidade de tomografia computadorizada do Estado e
com o Plano Diretor de Regionalização de 100% da macrorregião (BRASIL, 2012). A obser-
Minas Gerias (PDR/MG), que define que a vação e as entrevistas permitiram constatar
microrregião de saúde deve ofertar todos os que os recursos da PPI são insuficientes para
serviços de Média Complexidade e a macror- atender a demanda de serviços de MAC de
região, todos os serviços de Alta. Procurando Rio do Prado (MG). A demanda por serviços
fortalecer a regionalização da rede SUS e de cardiologia, por exemplo, que está rela-
garantir a integralidade da assistência, a cionada à principal causa de mortalidade
Norma Operacional de Assistência à Saúde no País, é de 30 consultas/mês, enquanto a
nº 01/2001 (Noas), publicada pela Portaria PPI só oferece 2 consultas. Como os serviços
GM/MS nº 95/2001 (BRASIL, 2001), enfatizou o existentes na microrregião são privados e
planejamento regional da rede, buscando a contratados apenas para atender o progra-
organização integrada do sistema em todos mado na PPI, o Município tem de comprar, a
os níveis de atenção. Porém, de acordo com preço de mercado, as 28 consultas que faltam
todos os gestores da rede entrevistados, isto para atender a demanda, ou 93,3% do total. A
não acontece porque a capacidade instalada contratação desses serviços abre espaço para
na região é insuficiente. novas intermediações de cunho clientelista.
Não é difícil depreender que o encami- A rede de serviços do SUS tem se expan-
nhamento para um município tão distante e dido lentamente, tanto na macrorregião
tão sobrecarregado dificulta o atendimento quanto na microrregião. Essa expansão
e o deslocamento dos pacientes de Rio do lenta da rede está relacionada à escassez de
Prado (MG). recursos humanos, principalmente especia-
O financiamento para tais encaminha- listas médicos. Quanto à escassez de recur-
mentos é feito através da rubrica Tratamento sos tecnológicos, esta não constitui fator de
Fora do Domicílio (TFD), instituído pela atração e fixação de especialistas médicos na
Portaria SAS/MS nº 55/1999 (BRASIL, 1999), área. Já a escassez de profissionais médicos

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 744-755, OUT-DEZ 2014


750 SANTOS, D. L.; RODRIGUES, P. H. A.

aumenta o poder de barganha dos mesmos popularmente, por ‘Pé de Boi’ e ‘Pé de Cana’.
nas negociações com os municípios em torno O ‘Pé de Boi’ é tido como representante dos
dos preços dos seus serviços. Este problema grandes fazendeiros, quase sempre pecuaris-
também abre espaço para o clientelismo nas tas, e de seus clientes políticos. Já a alcunha
contratações. Da mesma forma, ocorre uma ‘Pé de Cana’ deve-se a uma história local,
alta rotatividade dos médicos de família no sobre um ex-prefeito daquele partido, que
município em questão. De acordo com as au- gostava muito de beber socialmente com
toridades locais entrevistadas, muitos desses seus eleitores. A cidade é muito dividida
profissionais apresentaram dificuldades entre os dois grupos: nas eleições de 2008, o
para aderir ao mandonismo local no atendi- ‘Pé de Boi’ ganhou por apenas quatro votos,
mento e no encaminhamento dos usuários o que motivou o ‘Pé de Cana’ a entrar com
aos serviços de MAC. uma ação na justiça, denunciando a compra
Um problema sério, que dificulta a am- de votos, para tentar reverter os resultados.
pliação da capacidade de atendimento, é o A composição da Câmara de Vereadores
fato de não haver representação regional expressa essa divisão: até o final do seu pri-
nos legislativos estadual e federal. Sem re- meiro mandato (dezembro/2012), o prefeito
presentantes, há dificuldade para a obtenção atual – que pertence ao ‘Pé de Boi’ – contava
de recursos de investimentos, oriundos de com uma minoria de aliados na Câmara de
emendas parlamentares, que, como foi visto, Vereadores (quatro do PMDB contra cinco
têm uma importância cada vez maior nos do PSDB), situação que foi revertida na
investimentos do SUS e são instrumentos eleição passada. Nesta última eleição, o pre-
de troca de favores no cenário político bra- feito não só se reelegeu, como conseguiu
sileiro. A ausência de representantes resulta fazer maioria absoluta na Câmara.
do fato de que, nas eleições para cargos es- A sociedade local possui poucas organi-
taduais e federais, costuma haver disputa zações representativas, apenas dois sindi-
política entre as lideranças dos diferentes catos: o dos Trabalhadores Rurais e o dos
municípios, o que dispersa os votos, já relati- Trabalhadores Municipais, este existente
vamente escassos, em função da pequena di- desde 2008. Segundo os entrevistados, sua
mensão do eleitorado local. Isto mostra que, criação decorreu da necessidade dos fun-
se na região o clientelismo local desempenha cionários municipais se defenderem do
um papel importante nos encaminhamentos favoritismo, ou clientelismo, existente na
e nas contratações de serviços de saúde, o prefeitura, que é o maior órgão empregador
mesmo não acontece em relação à capaci- local. A criação do sindicato representou
dade da região de se inserir nas negociações uma tentativa de organização independente
clientelistas maiores, nas esferas estadual e da sociedade, porém houve relatos de per-
nacional, a fim de obter emendas parlamen- seguições políticas às suas lideranças, que
tares para investimentos na saúde. levaram ao afastamento das mesmas e ao
consequente esvaziamento da organização.
O contexto político local O Sindicato dos Trabalhadores Rurais não
goza de boa imagem na sociedade, nem de
De acordo com os entrevistados, o ambiente muita legitimidade. Há diversas denúncias
político de Rio do Prado (MG) é dominado de práticas irregulares do mesmo em relação
por dois partidos, que vêm se alternando no à previdência social, tais como a cobrança in-
poder há pelo menos 16 anos: o Partido do devida de taxa para a averbação da contagem
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) do tempo para a aposentadoria de trabalha-
e o Partido da Social Democracia Brasileira dores efetivos.
(PSDB), conhecidos, respectivamente e Outra organização que vem servindo de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 744-755, OUT-DEZ 2014


Política, atenção primária e acesso a serviços de Média e Alta Complexidade em pequenos municípios 751

canal de expressão para setores da popula- Discussão e conclusões


ção, especialmente os mais pobres, é a Igreja
Católica. Segundo os entrevistados, o pároco A motivação para desenvolver este traba-
costuma falar sobre os direitos de cidadania lho partiu da constatação das dificuldades
da população nas missas e procura sensi- dos usuários do SUS, dos municípios de
bilizar os católicos a não venderem os seus pequeno porte, em ter acesso a serviços de
votos nas eleições, o que seria comum no MAC. O município de Rio do Prado (MG) é
município. A Igreja também realiza campa- de pequeno porte, como 70% dos municípios
nhas para arrecadar fundos a fim de ajudar brasileiros; faz parte de uma das regiões mais
no TFD, buscando reduzir a intermediação carentes do País, o Vale do Jequitinhonha;
clientelista deste tipo de encaminhamen- sua macrorregião (Nordeste) tem a menor
to para serviços de MAC. No período de renda domiciliar per capita do Estado (58%
desenvolvimento da pesquisa, circulavam da média estadual); e quase a totalidade de
diversas cartas anônimas com denúncias seus habitantes (97%) depende unicamente
de clientelismo nos encaminhamentos para do SUS para o acesso a serviços de saúde
serviços de saúde. Segundo um entrevistado, (BRASIL, 2013).
essa prática constituiria a única forma de A microrregião de Almenara (MG) oferece
denúncia disponível para a sociedade, pois poucos serviços de Média Complexidade,
a imprensa da região não costuma divulgar assim como a macrorregião Nordeste, em
problemas relativos à administração pública Teófilo Otoni (MG), não oferece todos os
local. serviços de Alta complexidade. Pela PPI do
As entrevistas realizadas indicaram a Estado de Minas Gerais, a maioria destes
existência de longas filas de espera para serviços é encaminhada para a capital (ma-
a realização de procedimentos de MAC, crorregião Centro), que já responde pelos
porém não foi relatado o tempo médio dessa serviços de MAC dos seus 102 municípios.
espera nem o percentual de usuários que não A PPI não consegue suprir toda a demanda
tiveram acesso a esses serviços; assim como dos serviços de Média Complexidade – prin-
esquemas de favorecimentos de aliados de cipalmente, as consultas especializadas – de
políticos da situação, típicos do esquema Rio do Prado (MG), necessitando o municí-
clientelista. Os critérios para a definição da pio contratar, com recurso próprio, médicos
ordem de encaminhamento dos pacientes para atenderem mensalmente seus habitan-
para os serviços de MAC seriam políticos, tes. Como existe uma carência muito grande
de favorecimento aos clientes. Segundo in- de especialistas médicos, a falta de oferta
formações da Secretaria Municipal de Saúde com recursos negociados na PPI fortalece o
(SMS) de Rio do Prado (MG), é realizada poder de barganha desses profissionais, que
uma triagem para oferecer o benefício TFD conseguem impor preços por seus serviços
para quem realmente necessita dessa ajuda. acima do valor da tabela SUS, mostrando que
Entretanto, para um ator local entrevista- as regras formais do SUS são suplantadas
do, este benefício é distribuído seguindo pelas regras informais. A análise das entre-
critérios políticos. Até mesmo a ajuda para vistas e documentos procurou identificar as
o transporte e a hospedagem de pacientes principais instituições, arenas decisórias e os
e acompanhantes em municípios distantes atores que participam do processo, levando
seriam alvo de barganhas políticas de tipo em consideração a história recente do muni-
clientelista, intermediadas por integrantes cípio no período escolhido para o estudo. A
tanto do Executivo, quanto do Legislativo. figura 1 ilustra de forma significativa o que
foi encontrado.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 744-755, OUT-DEZ 2014


752 SANTOS, D. L.; RODRIGUES, P. H. A.

Figura 1. Esquema representativo das instituições e atores sociais envolvidos na gestão do encaminhamento de
pacientes para média e alta complexidade no Município de Rio do Prado (MG)

Coordenador da Coordenador
microrregional da regional Secretária Autoridades Parentes de
de saúde da Prefeitura Vereadores autoridades
de saúde de saúde

Rede SUS Instituições do


como instituição poder local

Regras e organizações formais: Favoritismo nas


Regional de saúde Regras e organizações formais:
referências SMS (portarias)
Microrregional de saúde Nomeação dos
PPI CMS (resoluções)
responsáveis pelas Câmara do Vereadores
Consórcio de transportes. referências
Regras informais: (leis e pleitos)
Controle político Regras informais:
Contratação de médicos do TFD
especialistas com Mandonismo
pagamento fora das Patrimonialismo
tabelas do SUS Clientelismo

Médicos Médicos Igreja Cabos Grandes


especialistas de família Sindicatos Católica eleitorais fazendeiros

Fonte: Elaboração própria

Ao analisar as relações entre as institui- não atendimento é utilizado para perseguir


ções do poder municipal local e o processo adversários políticos, mostrando novamente
de encaminhamento dos pacientes para ser- que existe um predomínio das regras infor-
viços de MAC do SUS em Rio do Prado (MG), mais sobre as formais e que, no município de
foi possível observar que existe uma grande Rio do Prado (MG), a gramática do univer-
influência do poder local na fila de encami- salismo de procedimentos é esmagada pela
nhamento do SUS em benefício de pessoas gramática do clientelismo.
próximas aos poderosos. Tal situação indica A municipalização da saúde no Brasil foi
não só uma sobrevivência do mandonismo e feita sob o pressuposto da democratização;
do clientelismo local, mas sua interferência associava-se a ideia da descentralização à
sobre o SUS. Onde a oferta dos serviços de expectativa de maior controle da sociedade
saúde e o apoio do TFD são selecionados de sobre a política e os serviços de saúde (PERES,
acordo a gramática do clientelismo, geral- 2002). As características dos municípios bra-
mente quem recebe são eleitores, servidores sileiros e a forma como o poder é exercido
ou parentes do gestor municipal, que não nos mesmos, além das relações interfedera-
necessitam desse apoio. Também a garantia tivas que mantêm com os estados e a União,
do atendimento pelo SUS é usada como bar- fazem com que os resultados da municipa-
ganha na compra de votos, ou o contrário: o lização tenham ficado distantes, entretanto,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 744-755, OUT-DEZ 2014


Política, atenção primária e acesso a serviços de Média e Alta Complexidade em pequenos municípios 753

dos propósitos originais dos objetivos pre- capacidade instalada, tanto da macrorregião
tendidos com a descentralização do SUS, e quanto da microrregião de saúde estudadas,
dificultam a gestão da rede de ações e servi- foi a inexistência de uma representação da
ços de saúde. mesma nos legislativos, estadual ou federal,
Para a população dos pequenos municí- o que dificulta a obtenção de investimentos
pios, como no caso estudado, carentes sob o na forma das emendas orçamentárias parla-
ponto de vista socioeconômico, as situações mentares para a região. Como o sistema polí-
acima resumidas dificultam a garantia da tico brasileiro comporta um grande número
continuidade dos cuidados à saúde. Como de partidos e o presidente da república não
esta acaba sendo feita em locais distantes, consegue contar com uma maioria clara no
envolve outras questões, como o apoio lo- Legislativo, ele necessita constantemente
gístico – transporte, alimentação e hospeda- construir coalizões para conseguir aprovar
gem para usuários e acompanhantes –, que suas propostas de governo, em um sistema
também são passíveis de exploração política. chamado de presidencialismo de coaliza-
Já que a população da área estudada depende ção. As emendas orçamentárias parlamen-
praticamente de forma exclusiva do SUS, ela tares – principalmente, as individuais – são
é mais vulnerável aos interesses oligárquicos algumas das ferramentas usadas na busca
e privados. A predominância da gramática desse apoio político através das relações
clientelista no interior do País, entretanto, clientelistas que estão cada vez mais inves-
favorece o controle privado dos bens pú- tindo na saúde. No entanto, os parlamenta-
blicos e a nomeação de amigos e parentes res investem nas suas regiões de origem, ou
para cargos públicos, além do favoritismo nas regiões que apresentam maior número
no acesso a serviços públicos, em função de de eleitores, o que não é o caso da região es-
interesses político-eleitorais, em detrimento tudada, que não consegue eleger candidatos
dos direitos de cidadania. Desta forma, as da região, ficando sem acesso aos recursos
oportunidades são oferecidas muitas vezes das emendas. Um tema importante para
de forma prioritária para os eleitores ou futuras pesquisas é a análise dessa relação
financiadores das eleições. Uma das difi- entre o sistema político e a rede de serviços
culdades apresentadas para a ampliação da do SUS. s

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 744-755, OUT-DEZ 2014


754 SANTOS, D. L.; RODRIGUES, P. H. A.

Referências

ARRETCHE, M. A política da política de saúde no aprofundando a descentralização com eqüidade no


Brasil. In: LIMA, N. T. et al. Saúde e democracia: acesso: Norma Operacional da Assistência à Saúde:
história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro, Fiocruz, NOAS-SUS 01/01 e Portaria MS/GM nº 95, de 26 de
2005. p. 285-306. janeiro de 2001 e regulamentação complementar.
Brasília: Ministério da Saúde, 2001. (Normas e Manuais
ARRETCHE, M.; RODDEN, J. Política distributiva na Técnicos, Série A).
federação: estratégias eleitorais, barganhas legislativas
e coalizões de governo. Dados, Rio de Janeiro, v. 47, n. 3, ______. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de
p. 549-576, 2004. Saúde (CNES). Recursos Físicos – Hospitalar – Leitos
de internação – Minas Gerais. Disponível em: <http://
BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?cnes/cnv/
Informática do SUS (DATASUS). População Residente leiintmg.def>. Acesso em: 19 dez. 2012a.
– Brasil. População residente segundo Município. 2010.
Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/ ______. Recursos Físicos – Equipamentos – Minas
deftohtm.exe?ibge/cnv/popbr.def>. Acesso em: 01 nov. Gerais. Disponível em: <http://tabnet.datasus.gov.br/
2011. cgi/deftohtm.exe?cnes/cnv/equipomg.def>. Acesso em:
19 dez. 2012b.
______. Ministério da Saúde. Departamento de
Informática do SUS (DATASUS) Agência Nacional CARVALHO, J. M. Mandonismo, coronelismo,
de Saúde Suplementar. Beneficiários por Município, clientelismo: uma discussão conceitual. Dados,
Assistência Médica por Município. 2012. Disponível Rio de Janeiro, v. 40, n. 2, p. 1-4, 1997. Disponível
em: <http://www.ans.gov.br/anstabnet/anstabnet/ em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
deftohtm.exe?anstabnet/dados/TABNET_02.DEF>. arttext&pid=S0011-52581997000200003&lng=en&nrm
Acesso em: 19 jan. 13. =iso>. Acesso em: 31 mar. 2012.

______. Ministério da Saúde. Lei nº 8.080, de 19 de FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato
setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para político brasileiro. São Paulo: Editora Globo, 2001.
a promoção, proteção e recuperação da saúde,
a organização e o funcionamento dos serviços GERSCHMAN, S.; SANTOS, M. A. B. O Sistema Único
correspondentes e dá outras providências. Diário de Saúde como desdobramento das políticas de saúde
Oficial [da] União, Brasília, DF, p. 18055, 20 set. 1990. do século XX. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São
Paulo, v. 21, n. 61, p. 177-190, jun. 2006.
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência
à Saúde. Portaria SAS/MS, Nº 55, de 24 de fevereiro GIL, A. C. Estudo de caso. São Paulo: Atlas, 2009.
de 1999. Dispõe sobre a rotina do Tratamento Fora
de Domicílio no Sistema Único de Saúde – SUS, HALL, P. A.; TAYLOR, R. C. R. As três versões do neo
com inclusão dos procedimentos específicos na Institucionalismo. Lua Nova, São Paulo, n. 58, p. 194-
tabela de procedimentos do Sistema de Informações 223, 2003.
Ambulatoriais do SIA/SUS e dá outras providências.
1999. Disponível em: <http://dtr2001.saude.gov.br/sas/ INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
PORTARIAS/Port99/PT-055.html>. Acesso em: 14 nov. ESTATÍSTICA (IBGE). Resultados preliminares do
2014. Censo Demográfico de 2010. Disponível em: <http://
www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1>. Acesso
______. Regionalização da assistência à saúde: em 13 out. 2011.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 744-755, OUT-DEZ 2014


Política, atenção primária e acesso a serviços de Média e Alta Complexidade em pequenos municípios 755

IZECKSOHN, V. A guerra do Paraguai. In: GRINBERG, ROCHA, A. S. C. As partes e o todo: Congresso


K.; SALLES, R. O Brasil imperial. Rio de Janeiro: Nacional, executivo e o problema do orçamento no
Civilização Brasileira, 2009. v. 2. p. 385-424. Brasil. Perspectivas, São Paulo, v. 34, p. 55-78, 2008.

LEAL, V. N. Coronelismo enxada e voto: o município e o RODRIGUES, P. H. A.; SANTOS, I. S. Saúde e cidadania:
regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro: Nova uma visão histórica e comparada do SUS. São Paulo:
Fronteira, 1997. Editora Atheneu, 2011.

LIMONGI, F. Presidencialismo, coalizão partidária e ______. Gestão Municipal. Rio de Janeiro: Fundação
processo decisório. Novos estud. - CEBRAP, n. 76, p. Getúlio Vargas/FGV Management, 2011, 84 p. (Apostila
17-41, nov. 2006. do curso de MBA em Planejamento, Orçamento e
Gestão Pública).
LIMONGI, F.; FIGUEIREDO, A. Poder de agenda e
políticas substantivas. São Paulo: USP, 2009. Disponível SANTANA, V. L. Atraindo o Pork: que fatores explicam
em: <http://svr-web.fflch.usp.br/dcp/assets/docs/ a execução das emendas orçamentárias no Brasil? 2011.
Limongi/Poder_de_Agenda_e_Politicas_Substantivas. 85 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). –
pdf>. Acesso em 28 ago. 2012. Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília,
2011.
MARQUES, E. C. Notas críticas à literatura sobre
Estado, políticas estatais e atores políticos. Revista SELLTIZ, C. et al. Métodos de pesquisa nas relações
Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências sociais. São Paulo: Editora Herder, 1974.
Sociais, Rio de Janeiro, v. 43, p. 67-102, 1997.
SKOCPOL, T. Social policy in the United States, future
MINAS GERAIS. Secretaria de Estado de Saúde. Plano possibilities in historical perspective. Princeton:
Estadual de Saúde. Belo Horizonte: Secretaria de Princeton University Press, 1995.
Estado de Saúde, 2008-2011.
SODRÉ, A. C. A.; ALVES, M. F. C. Relação entre
NUNES, E. O. A gramática política do Brasil, emendas parlamentares e corrupção municipal
clientelismo, corporativismo e insulamento burocrático. no Brasil: estudo dos relatórios do Programa de
Rio de Janeiro: Garamond, 2010. Fiscalização da Controladoria-Geral da União. Revista
de Administração Contemporânea, Curitiba, v. 14, n. 3, p.
PERES, A. M. A. M. A municipalização é o caminho? 414-433, 2010.
2001. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva). –
Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado ZIMMERMANN, A. Teoria geral do federalismo
do Rio de Janeiro, 2001. democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.

PIERSON, C. Beyond the Welfare State? The new


Recebido para publicação em abril de 2014
political economy of welfare. Pennsylvania: The Versão final em outubro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
Pennsylvania State University Press, 2007.
Suporte financeiro: não houve

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 744-755, OUT-DEZ 2014


756 artigo original | original article

Produção e registro de informações em


saúde no Brasil: panorama descritivo através
do PMAQ-AB
Production and record of information in health in Brazil: a descriptive
landscape through PMAQ-AB

Teresa Cristina de Carvalho Lima Neves1, Luiz Albérico Araújo Montenegro2, Sonia Duarte de
Azevedo Bittencourt3

RESUMO Este estudo tem o objetivo de descrever condições de produção e registro das in-
formações geradas nas Unidades Básicas de Saúde, por regiões agregadas e por porte popu-
lacional no Brasil. Fez-se uma análise de indicadores do banco de dados gerado pelo ciclo I
do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), enfati-
zando as seguintes dimensões: condições de infraestrutura e informática, educação perma-
nente e processo de trabalho. Encontraram-se diferenças nas variáveis analisadas. Aponta-se
um sistema carente de recursos tecnológicos para elaboração de políticas de saúde mais
equânimes.

PALAVRAS-CHAVE Sistema de informação em saúde; Saúde da família; Atenção Primária à


Saúde
1 Mestre em Comunicação
e Cultura pela
Universidade Federal do ABSTRACT The aim of this study is to describe conditions for production and record informa-
Rio de Janeiro (UFRJ) tion engendered on basic unit health in Brazil, by aggregated region and by population size. An
- Rio de Janeiro, Brasil.
Pesquisadora da Fundação analysis of indicators of the database generated by cycle I of the Program for Access and Quality
Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Improvement in Primary Care (PMAQ-AB) has been made, stressing the following dimensions:
Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
tecrineves@gmail.com infrastructure and informatics conditions, permanent education, and labor process. Differences
on the analyzed variables were found. The analysis suggests that the system that needs technolo-
2 Mestre em Saúde Pública
pela Escola Nacional de gical resources for the development of more equitable health policies.
Saúde Pública Sérgio
Arouca - Fundação
Oswaldo Cruz (Ensp/ KEYWORDS Health information systems; Family health; Primary Health Care
Fiocruz) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. Professor
Substituto da Universidade
Federal Fluminense – (UFF)
- Niterói (RJ), Brasil.
luiz.montenegro@gmail.com

3 Doutora em Ciências

da Saúde pela Fundação


Oswaldo Cruz (Fiocruz) –
Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Pesquisadora da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) –
Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
bittencourtsonia@gmail.com

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140069
Produção e registro de informações em saúde no Brasil: panorama descritivo através do PMAQ-AB 757

Introdução recolhidos pelas equipes multiprofissionais,


armazenando-os eletronicamente e desdo-
A atual configuração do Sistema Único de brando-os em relatórios. Possui um elenco
Saúde (SUS) responsabiliza e reconhece os de indicadores que caracterizam a situação
entes municipais no planejamento, gestão, sócio-sanitária, o perfil epidemiológico, a
avaliação e controle dos serviços e ações de atenção aos grupos de risco e o acompanha-
saúde por eles ofertada. Para tanto, faz-se mento das ações de saúde desenvolvidas
necessário um sistema de informação em localmente. Pode-se considerar que o Siab
saúde capaz de gerar dados precisos e con- se transformou numa importante fonte de
fiáveis que orientem ações resolutivas volta- informações para a realização de diagnósti-
das às necessidades locais. co, planejamento e avaliação das ações locais
O Ministério da Saúde estrutura essa base de saúde. Assim, para Barros (2006), com esse
pelos Sistemas de Informação em Saúde instrumento é possível às equipes e gesto-
(SIS), definida pela Organização Mundial de res realizar o monitoramento das condições
Saúde (OMS) como mecanismo de coleta, e ações objetivas de saúde, em bases mais
processamento, análise de dados e transmis- sólidas para nortear políticas públicas e mo-
são da informação. O objetivo é diagnosticar nitorar a eficiência e eficácia das mesmas.
as situações de saúde individuais e coletivas O Siab produz informações a partir da
de uma população norteando as ações dos emissão de relatórios compostos por dados
profissionais e dos sistemas locais na perspec- recolhidos pelos diversos instrumentos de
tiva de se tornarem mais efetivos, minimizan- coleta das unidades de saúde, advindos de
do desigualdades. Além disto, a apropriação visitas domiciliares realizadas diariamente
adequada dessas informações é de extrema pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACS),
importância para que o gerenciamento, aloca- bem como, do atendimento do médico, do
ção e gasto dos recursos públicos em todos os enfermeiro e de outros profissionais de saúde
níveis de atenção do sistema de saúde no País efetuados tanto na unidade como, também, nos
sejam feitos com parâmetros confiáveis. domicílios. O suporte de registro desses dados
Com o trabalho desenvolvido pelas se dá através do preenchimento das fichas de
equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) cadastramento - ficha A- e de acompanhamen-
e sua acentuada expansão, a discussão em to - ficha B, C e D - nas quais eles são lançados e
torno do montante de dados por elas coleta- agrupados nos relatórios de consolidação para
das impulsionaram a necessidade da criação análise e utilização por todos os profissionais
de um sistema que abrigasse e transformasse da AB (RODRIGUES et al., 2008).
esses dados em fonte de informação e assim Desta forma, o Siab não só se apresenta
direcionar de forma mais factual as ações de como recurso tecnológico e gerencial, mas
saúde. Foi criado, então, em 1998 o Sistema também gera reflexão sobre o corpo de suas
de Informação da Atenção Básica (Siab), informações. A análise de seus dados deve ser
cujo propósito foi de se tornar o instrumen- capaz de fomentar e consolidar uma cultura
to gerencial dos SIS Locais. Para isso teve avaliativa nas três instâncias do SUS. Para que
que incorporar conceitos como: território, isso ocorra, é necessário, permanentemente,
problema e responsabilidade sanitária que identificar e acompanhar como os dados são
estão afinados com a proposta de reorgani- coletados, produzidos, transformados em in-
zação dos serviços de saúde do SUS a partir formações e utilizados por aqueles que estão
da Atenção Básica (AB), distinguindo-se, atuando nos serviços de saúde (FELISBERTO, 2001;
nesses aspectos, dos demais SIS existentes BRASIL, 2002; BRASIL, 2004; SILVA, 2004).
até então no País. Publicações na base de dados da
Sua função é processar os dados Biblioteca Virtual em Saúde tratam o Siab

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


758 NEVES, T. C. C. L.; MONTENEGRO, L. A. A.; BITTENCOURT, S. D. A.

como importante instrumento de planeja- no preenchimento dos formulários.


mento local, porém apontam algumas defi- Para além das questões apontadas acima,
ciências com relação ao uso desse sistema Bittar et al. (2009), sinalizam a necessidade
(FRANÇA, 2001). São apontadas as seguintes li- de uma ampliação de dados sociodemo-
mitações: ele apresenta pouca flexibilidade gráficos disponíveis no sistema, uma vez
e número limitado de doenças referidas não que o trabalho da ESF dentro de uma área
comportando dados de diferentes regiões geograficamente delimitada, preestabelece
epidemiológicas; falta de treinamento dos ações que visem combater os determinantes
profissionais de saúde para a utilização do sociais do processo saúde-doença, controle
sistema acarretando na inadequação do pre- social e a construção de hábitos saudáveis.
enchimento e falhas na interpretação dos A extensão desse conhecimento poderia ser
dados; há atraso nas atualizações dos cadas- incorporada ao planejamento e ao diagnósti-
tros e dificuldades no entendimento da fina- co situacional identificando maior exposição
lidade desse sistema pelas equipes de saúde; às iniquidades socioculturais e econômicas.
carência de infraestrutura de informática Para isso o autor vê a necessidade de estabe-
nos municípios, o que dificulta a alimenta- lecer espaços nos formulários para incluir
ção e o processamento adequado dos dados dados subjetivos tais como: estilo de vida;
(FRANÇA, 2001; SILVA; LAPREGA, 2005). modo de pensar, atitudes comportamentais e
Marcolino (2008) afirma que de acordo com afins, de cada grupo familiar.
o manual do Siab todos os dados coletados Outras pesquisas apontam ainda lacunas no
devem ser periodicamente revisados pelos Siab com relação à coleta de dados, ao preen-
supervisores das equipes, pois a qualidade chimento/manuseio das fichas, à capacidade
dos registros é parte essencial na conforma- de tomada de decisão por parte dos profissio-
ção dos sistemas de informação em saúde. nais e, sobretudo, ao modo de notificação do
O autor aponta ainda que um processo de registro de atividades e procedimentos. Este
capacitação eficaz e dinâmico adequado às último pode gerar inúmeras implicações no
necessidades dos profissionais possibilita o campo da gestão local do SUS como a má apli-
aperfeiçoamento profissional e desempenho cação de recursos, e um planejamento aquém
do trabalho em equipe. É destacada a im- do desejado no campo da prevenção e promo-
portância da periodicidade das reuniões de ção da saúde (BARBOSA; FOSTER, 2010).
equipe em prazos curtos e a valorização da Davenport (1998) concebe sistema de in-
informação para o planejamento das ações. formação como processo de produção de
Ademais, Radigonda et al. (2010) sugerem informação e sua comunicação a atores, pos-
que as informações contidas no sistema muitas sibilitando sua análise com vistas à geração
vezes não são utilizadas nem para a avaliação de conhecimento. Trata-se de um sistema de
e nem para o planejamento das ações no ter- pessoas, equipamentos, procedimentos, do-
ritório por motivos como: ausência de discus- cumentos e comunicações que coleta, valida,
são dos dados nas rotinas diárias das equipes transforma, recupera e apresentam dados,
de saúde; os profissionais de saúde apresen- gerando informações para usos diversos.
tam dificuldades em entender o significado Aponta que independente da grande dispo-
de preencher os formulários que manejam; nibilidade de informações e dos aparatos
o sistema tem um padrão nacional e muitas tecnológicos envolvidos nesse processo são
vezes não atende às especificidades locais as pessoas que os utilizam e, por intermé-
dificultando a coleta e uso dos dados; as in- dio e responsabilidade delas que o sentido
formações muitas vezes não condizem com a das informações geradas é apresentado. Ou,
realidade local gerando uma subutilização do dentro de uma visão mais pragmática, como
sistema de informação da AB; há incorreções afirmado por Viacava (2002), o SIS pode ser

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


Produção e registro de informações em saúde no Brasil: panorama descritivo através do PMAQ-AB 759

entendido como um instrumento utilizado de nível superior, integrante de equipe de AB,


para adquirir, organizar e analisar dados ne- que aderiu de forma voluntária a avaliação
cessários à definição de problemas e riscos externa. Além disso, realizou-se verificação
para a saúde. de documentos na UBS que comprovassem
Diante do exposto, esse trabalho tem informações sobre processo de trabalho da
por objetivo descrever algumas condições equipe e sobre a organização do cuidado
de produção e registro das informações em com o usuário.
saúde por regiões agregadas e por porte po- Módulo III - Entrevista com o usuário
pulacional no Brasil com base em indicado- na UBS sobre satisfação e percepção destes
res do banco de dados da avaliação externa quanto aos serviços de saúde no que se refere
do Programa de Melhoria do Acesso e da ao seu acesso e utilização.
Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), O banco de dados é componente da
ciclo I. A partir dessa descrição, disponibilizar Avaliação Externa, composto pelos três
um panorama nacional de alguns parâmetros módulos de coleta. As informações deriva-
relativos a processos de registro e gestão da das do módulo II são representativas apenas
informação e poder repensar investimentos para as equipes de AB que aderiram volun-
necessários para essa área no País. tariamente ao programa, não retratando o
total das equipes de AB existentes no País, o
que representou 51% das equipes cadastra-
PMAQ-AB e o banco de das pelo MS no ano de 2012. As do módulo
dados III são o resultado das entrevistas de quatro
usuários por equipe de AB/saúde da família,
O PMAQ-AB foi lançado pelo Ministério da que por razões metodológicas não serão uti-
Saúde (MS) por meio da Portaria N° 1654 de lizadas no presente estudo.
19 julho de 2011 no contexto da estratégia O projeto foi submetido e aprova-
Saúde Mais Perto de Você, de âmbito nacio- do pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
nal, tendo como objetivo promover a melhoria Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
do acesso e da qualidade da atenção à saúde. Arouca/Fiocruz, com parecer n° 32.012 em
O programa foi organizado em quatro fases 06/06/2012.
complementares que funcionam como um
ciclo contínuo: Adesão e Contratualização;
Desenvolvimento; Avaliação Externa; Metodologia
Recontratualização (BRASIL, 2011).
Foram incluídas no processo de avaliação Trata-se de um estudo descritivo, com abor-
externa, equipes de AB que tiveram o pedido dagem quantitativa a partir da análise das va-
de adesão ao PMAQ-AB homologado e pu- riáveis dos módulos I e II do banco de dados
blicado na Portaria 2.812 de 29 de novembro resultante da fase avaliação externa do pri-
de 2011 do MS. O instrumento utilizado para meiro ciclo PMAQ-AB como descrito acima.
a realização da avaliação externa foi organi- Segundo Samaja (1993), as teorias descritivas
zado em três módulos: I, II e III (BRASIL, 2011). apresentam como valores conceitos classifi-
Cada módulo trazia uma especificidade: catórios, comparativos, métricos e outros.
Módulo I - Observação na Unidade Básica Segundo Fausto e Souza Junior (2013), o
de Saúde (UBS): infra-estrutura, materiais, banco de dados contabilizou ao final da avalia-
insumos e medicamentos da UBS. Esta ção externa 17.202 equipes de saúde da família,
parte representa o censo de todas as UBS no que atuam em 14.111 UBS, presentes em 3.944
território nacional. municípios brasileiros. Salienta-se que as
Módulo II - Entrevista com o profissional equipes avaliadas corresponderam a 51% das

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


760 NEVES, T. C. C. L.; MONTENEGRO, L. A. A.; BITTENCOURT, S. D. A.

equipes implantadas no território nacional. dos indicadores produzidos na unidade, sendo


Para alcançar os propósitos desse artigo essas: há realização de reunião de equipe? Que
utilizou-se algumas variáveis dos módulos I e periodicidade, semanal, quinzenal, mensal e
II, relacionadas às condições estruturais de in- sem definição? A equipe de AB realiza moni-
formática das UBS e da cultura informacional toramento e análise dos indicadores e informa-
contextualizada à equipe de saúde da família ções de saúde? A equipe recebe apoio da gestão
dessas unidades, e com elas constituir o pano- para discussão dos dados e monitoramento
rama temporal da produção e registro das in- do Siab? A escolha dessas variáveis se deu por
formações em saúde no cenário brasileiro. reconhecer que uma das atribuições da equipe
No módulo I, em que constam variáveis é realizar reuniões a fim de discutir em con-
referentes à estrutura de informática e de junto o planejamento e avaliação das ações da
insumos para coleta de dados pelas equipes, equipe, a partir da utilização dos dados dispo-
elaboramos as categorias: Estrutura níveis no sistema, nas fichas e nos relatórios de
Informacional e Material de Suporte forma que as demandas sejam atendidas o mais
de Registros. Para a categoria Estrutura rápido possível. As opções de respostas para
Informacional selecionamos as variáveis: todas as questões foram: sim, não, não sei, não
tem computador na unidade? Há pelo respondeu. Para fins do estudo agregaram-se as
menos um em funcionamento? Tem acesso três últimas opções de resposta.
a internet? Essas perguntas só poderiam Para composição e análise das tabelas
ser respondidas com sim ou não ou não sei. oriundas do banco de dados do PMAQ-AB
Neste trabalho agregamos as opções não e utilizou-se o software IBM SPSS versão 21.
não sei. A análise compreendeu a distribuição de fre-
Quanto à categoria Material de Suporte quência relativa das variáveis estudadas de
de Registro selecionamos as variáveis que acordo com as respostas dadas pelos entre-
correspondiam à disponibilidade das fichas: vistados tanto no censo como as das equipes
A – Cadastramento das Famílias; B – Grupos de saúde da família certificadas.
prioritários de acompanhamento domiciliar A pesquisa se deu no âmbito do territó-
que são: BGES de gestantes, BHA de hiperten- rio nacional, sendo a amostra estratificada
sos, BDIA de diabéticos, BTB de tuberculose, segundo três grandes regiões do País: Norte/
BHANS de hanseníase; C – Acompanhamento Nordeste; Sul/Sudeste; Centro-Oeste e por
de crianças (cartão da criança); D – Registro porte populacional: Pequeno (até 20.000
de atividades, procedimentos e notificação de hab.); Médio (de 20.001 a 200.000 hab.);
agravos do Sinan; requisição de exames citopa- Grande (mais de 200.001 hab.).
tológicos como, também, os relatórios da situa-
ção de saúde e acompanhamento das famílias
Situação de Saúde e Acompanhamento (SSA2) Resultados e discussão
e relatório de marcadores para avaliação, isto
é, eventos mórbidos que devem ser notifica-
dos Produção de Marcadores para Avaliação Estrutura informacional da UBS
(PMA2). No instrumento de avaliação externa
foram verificadas se elas estão sempre disponí-
veis, parcialmente disponíveis, ou nunca dispo- Estrutura de Informática e acesso à
níveis. Para análise neste estudo os dois últimos Internet na UBS
valores foram agregados.
No módulo II, foram incluídas variáveis refe- Na tabela 1, do total das unidades básicas
ridas a reunião de equipe e a troca de informa- visitadas, 64% dispunham de computador,
ções contínua sobre monitoramento e análise destas 98,3% declararam ter pelo menos um

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


Produção e registro de informações em saúde no Brasil: panorama descritivo através do PMAQ-AB 761

computador em uso, porém apenas 45,1% os melhores resultados foram observa-


possuem acesso à internet. Quanto à dis- dos nos municípios de grande porte do
ponibilidade de computador, os melhores Centro-Oeste 87,5%, seguidos pelos do
resultados foram observados nos muni- Sul/Sudeste 84,7%. Para essa região é im-
cípios de grande porte do Centro-Oeste portante destacar que este porcentual é
87,5%, seguidos pelos do Sul/Sudeste 84%. menor para as equipes dos municípios de
Quanto à disponibilidade de computador, menor porte.

Tabela 1. Frequência relativa da disponibilidade de computador e acesso à internet das Unidades Básica de Saúde
segundo grandes regiões e porte populacional. Brasil, 2012

Região Porte populacio- Disponibilidade de Pelo menos um Acesso à internet


nal* computador computador em uso

% % %
Pequeno (n=2114) 35,1 96,0 18,4
Norte e Nordeste Médio (n=2585) 30,2 96,2 12,6
Grande (n=1192) 62,0 96,2 37,3
Pequeno (n=1643) 81,3 98,5 66,6

Sul e Sudeste Médio (n=2473) 83,4 99,0 62,4

Grande (n=390) 84,7 99,3 67,0

Pequeno (n=390) 77,2 99,0 59,2

Centro - Oeste Médio (n=340) 75,9 98,8 53,5

Grande (n=208) 87,5 98,9 45,2

Brasil (n=13.843) 64,0 98,3 45,1

Fonte: Banco de dados PMAQ-AB, primeiro ciclo 2012


*Porte populacional P (pequeno) - (até 20.000 hab.)
Porte populacional M (médio) - (de 20.001 a 200.000 hab.)
Porte populacional G (grande) - (mais de 200.001 hab.)

No que diz respeito a ter pelo menos um apresentar as coberturas mais baixas do País,
computador em uso, essa variável apareceu estas variaram bastante segundo o porte
de maneira homogênea inter e intra regiões. populacional.
Nota-se, ainda na tabela 1, unidades básicas De forma geral, os dados apontam a ne-
com acesso à internet foram mais frequen- cessidade de maiores investimentos na es-
tes no Sul/Sudeste com pouca variação por trutura de informática nas UBS. É inegável
porte populacional. Situação diferente à o potencial das ferramentas computacionais
observada no Norte/Nordeste, que além de na estrutura, organização e funcionamento

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


762 NEVES, T. C. C. L.; MONTENEGRO, L. A. A.; BITTENCOURT, S. D. A.

dos sistemas e serviços de saúde. Sua utili- foram declaradas nas unidades dos municí-
zação além de agilizar o armazenamento das pios de pequeno porte, pertencentes à região
informações em nível local, possibilita aos Norte/Nordeste.
profissionais das unidades consultarem de Novamente observa-se o mesmo padrão,
maneira dinâmica assuntos relevantes para as melhores disponibilidades das fichas
suas práticas, auxiliando-os na reorganiza- elencadas no estudo, estão nas unidades de
ção do processo de trabalho, nas tomadas de saúde dos municípios de grande porte popu-
decisões, na assistência aos usuários, bem lacional em comparação com os de pequeno
como nos processos de referência e con- e médio porte. Com exceção apenas para o
tra‑referência. Quanto ao acesso a internet, relatório PMA2, em que a disponibilidade
deve-se considerar que o estudo não possi- entre as unidades de municípios de médio
bilitou averiguar qual o tipo existente, banda porte das regiões Sul/Sudeste, foi acima dos
larga ou discada. de grande porte. O panorama apresentado
acima demonstra preocupação no tocante
à disponibilização de algumas fichas que
Disponibilidade das constituem o instrumento de coleta. A ficha
fichas do Siab por regiões C presta-se ao acompanhamento das con-
dições de saúde e seguimento médico de
agregadas no Brasil crianças menores de dois anos. Sua baixa
disponibilidade pode indicar subnotifica-
A tabela 2 mostra a disponibilidade das fichas ções. Ou como apontam Marcolino e Schochi
do Siab por regiões agregadas no Brasil. A (2010), os dados podem estar registrados fora
ficha C (acompanhamento de crianças), foi das fichas padrão. De acordo com o Instituto
a menos disponível 58,5% entre as fichas Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
analisadas no território nacional, variando a taxa de mortalidade infantil vem caindo
de 48,8% a 56,2% entre as unidades dos mu- nos últimos anos. Apesar da melhora, o re-
nicípios de pequeno porte da região Norte/ sultado apontado no Brasil ainda está aquém
Nordeste. Nos municípios de grande porte do verificado em países desenvolvidos, onde
na região Sul/Sudeste a faixa de disponibili- esta taxa situa-se em torno de cinco óbitos
dade variou de 61 % a 66,1%. de menores de um ano para cada mil nasci-
Em seguida, a ficha com menor disponi- dos vivos em 2012. A falta ou a falha no regis-
bilidade em território nacional, foi a B-Hans tro de dados específicos dessa natureza pode
(73,1%), variando de 56,1% das equipes dos suscitar subnotificações, erros na detecção
municípios de pequeno porte a 87,8% dos de de fatores de risco para morbimortalidade
grande porte do Norte/Nordeste, seguida infantil, comprometendo a interpretação
pela B-TB que apresenta taxas de 75% va- causal do seu surgimento e, nas estratégias
riando também de 59,0% dos municípios de de assistência e prevenção realizadas pelas
pequeno porte no Norte/Nordeste a 82,2% equipes no acompanhamento do crescimen-
nos municípios de grande porte. Nos dois to dessas crianças. Torna-se importante,
casos as menores taxas ocorreram em muni- então, o desenvolvimento de estudos que
cípios de pequeno porte dos valores agrega- analisem a sugestão dessas hipóteses.
dos das três grandes regiões do Brasil. As fichas do grupo B são utilizadas para
Os relatórios SSA2 e as requisições e re- o acompanhamento domiciliar de grupos
sultados de exames citopatológicos foram as prioritários como gestantes, portadores de
mais disponíveis, com 91,1%, seguidos pela hipertensão, diabetes, tuberculose e hanse-
PMA2 com 89,9%. Ressalta-se que, para essas níase. No caso das gestantes estas recebem
três fichas, as menores disponibilidades uma carteira com as informações atualizadas

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


Produção e registro de informações em saúde no Brasil: panorama descritivo através do PMAQ-AB 763

sobre sua gestação, assim a ficha B e a car- percentuais em todos os estratos populacio-
teira podem garantir o vínculo com o profis- nais e os piores percentuais são verificados
sional de saúde na UBS, e também servirá de nos municípios de pequeno porte da região
elo entre o serviço que prestou assistência Norte/Nordeste.
pré-natal e o hospital (FESCINA, 2007; BRASIL, 2006). No momento da pesquisa a situação das
Pelos resultados encontrados, verifica-se fichas D em termos nacionais foi de 85,8%
que as menores porcentagens (73,7%) estão não havendo grandes variações entre as
nos municípios de pequeno porte da região regiões, ficando a região Norte/Nordeste
Norte/Nordeste, estando os de grande porte nos municípios de pequeno porte com os
da mesma região com melhores resultados menores índices e os de grande porte com
(92,9%). os melhores índices. Essa ficha é utilizada
As fichas relativas ao atendimento de para o registro diário das atividades e proce-
pré-natal contêm informações do acompa- dimentos realizados por todos os profissio-
nhamento da gestante, assim essas fichas, nais da equipe de saúde, além da notificação
também chamadas de prontuário da AB, de algumas doenças ou condições que são
aliadas ao cartão da gestante são utilizadas objeto de acompanhamento sistemático. Sua
rotineiramente no Sistema Único de Saúde utilização permite um consolidado das ativi-
(SUS) como instrumentos de registro do se- dades executadas diariamente pela equipe.
guimento da gestante. Para essas fichas os Os percentuais apresentadas na tabela 2
índices para todas as regiões aumentam de com relação às fichas B-Hans (hanseníase)
acordo com o porte populacional, ficando mostram que em 73,1% das UBS estão dis-
os menores índices nacionais na região Sul/ poníveis, chama atenção os municípios de
Sudeste sendo 79,1% nos de pequeno porte; pequeno porte da região Norte/Nordeste
82,7% nos de médio porte e 90,2% nos de em que foram encontradas em 56,1%. De
grande porte. O maior índice encontra-se acordo com o MS, áreas do Brasil que con-
nos municípios de grande porte da região centram mais casos de hanseníase são as
Centro-Oeste 94,2%. cidades com mais de 100 mil habitantes
No tocante as fichas B-HAS e B-DIA, estas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-
dizem respeito ao acompanhamento de por- Oeste, além da baixada fluminense, das
tadores de hipertensão arterial e o diabetes regiões metropolitanas de São Paulo e
mellitus. São de fundamental importância na Belo Horizonte e o norte de Minas Gerais.
UBS, pois são doenças crônicas, que quando A indisponibilidade dessas fichas, princi-
não acompanhadas por profissional de saúde palmente na região Norte/Nordeste, causa
podem se agravar e ter como desfecho ampu- preocupação por se tratar de uma doença
tações de membros e infartos, repercutindo infecciosa de grande importância para a
negativamente na qualidade de vida (ROCHA, saúde pública devido à sua magnitude e
2010). Nacionalmente, constatou‑se que seu alto poder incapacitante físico, assim
85,2% das UBS dispunham das fichas B-DIA é muito importante que as áreas apontadas
e 83,7% das fichas B-HAS, estando os muni- pelo MS sejam sempre monitoradas pelas
cípios da região Sul/Sudeste com melhores autoridades sanitárias.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


764 NEVES, T. C. C. L.; MONTENEGRO, L. A. A.; BITTENCOURT, S. D. A.

Tabela 2. Frequência relativa da disponibilidade de fichas do Sistema de Informação da Atenção Básica segundo grandes regiões e porte populacional. Brasil, 2012

Região

Norte e Nordeste Sul e Sudeste Centro-Oeste Brasil

Porte populacional
Fichas do Siab
P M G P M G P M G
(n=2114) (n=2585) (n=1192) (n=1643) (n=2473) (n=2897) (n=390) (n=340) (n=208) (n=13.843)
% % % % % % % % % %
A 75,6 85,2 89,6 89,8 94,2 91,1 87,2 89,7 90,9 87,8
B-GES 73,7 85,3 92,2 84,5 90,4 90,9 79,0 83,5 85,6 85,9
B-HA 70,9 82,6 88,3 82,5 88,6 89,1 79,5 82,4 86,1 83,7
B-DIA 72,6 84,8 89,8 83,4 90,4 90,3 80,3 84,1 85,6 85,2
B-TB 59,0 73,8 89,5 74,6 78,4 83,3 66,9 74,1 82,2 75,7
B-Hans 56,1 71,2 87,8 71,3 75,9 79,5 68,5 74,4 83,2 73,1
C 48,8 57,9 62,1 55,2 59,2 66,1 56,2 58,5 61,5 58,5
D 80,9 86,9 92,4 81,8 87,4 87,0 82,1 85,9 88,9 85,8
SSA2 86,8 92,3 95,1 89,8 93,2 91,1 87,4 90,9 91,3 91,1
PMA2 86,0 91,5 94,5 87,0 91,8 90,0 86,9 89,7 90,9 89,9
Notificação e investi- 81,6 88,9 92,9 83,2 97,8 91,8 86,2 89,4 93,8 87,9
gação de agravos do
Sinan
Requisição e resulta- 84,1 90,3 82,6 91,4 93,9 93,9 87,9 89,7 95,2 91,1
do de exame citopa-
tológico (Siscolo)
Atendimento pré- 87,9 92,9 93,8 79,1 82,7 90,2 87,7 91,5 94,2 88,0
natal

Fonte: Banco de dados PMAQ-AB, primeiro ciclo 2012


*Porte populacional P (pequeno) - (até 20.000 hab.); Porte populacional M (médio) - (de 20.001 a 200.000 hab.); Porte populacional G (grande) - (mais de 200.001 hab.)

Em relação à ficha B-TB (tuberculose), sobre a situação de saúde das famílias acompa-
encontramos 24,30% dessas fichas indispo- nhadas em cada área. Os dados para o seu pre-
níveis no território nacional. Quando anali- enchimento são provenientes das fichas A, B, C
sados por região os municípios de pequeno e D e referem-se às microáreas de um território.
porte em todas as regiões apresentam os Trata-se do consolidado de acompanhamentos
menores percentuais, sendo a região Norte/ e assistências executadas mensalmente. É um
Nordeste com o menor valor 59%. Segundo instrumento em que os profissionais da equipe
o MS, o Brasil reduziu em 3,54% os casos podem discutir e avaliar suas ações na mi-
de tuberculose no País. Apesar dos avanços, croárea de atenção. A região Norte/Nordeste
a doença ainda preocupa as autoridades de apresenta os menores e maiores percentuais
saúde por representar a quarta causa de nacionais, ficando os municípios de menor
óbitos por doenças infecciosas e a primeira porte com 86,8% e de maior porte com 95,1%.
entre pacientes com Aids no País. O Relatório PMA2 consolida mensalmen-
O Relatório SSA2 consolida informações te a produção de serviços e a ocorrência de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


Produção e registro de informações em saúde no Brasil: panorama descritivo através do PMAQ-AB 765

doenças e/ou de situações consideradas como (93,9%). Já os municípios de pequeno porte


marcadoras, sendo estes eventos mórbidos da região Norte/Nordeste apresentam os
ou situações indesejáveis que devem ser no- menores índices (84,1%).
tificadas com o objetivo de, em médio prazo,
avaliar as mudanças no quadro de saúde da
população adscrita. Os dados necessários ao Monitoramento, análise e
seu preenchimento são constantes das fichas apoio da gestão sobre os
D e dos relatórios SSA2. Seus percentuais
apontam semelhança aos resultados encon-
indicadores do Siab
trados em relação a dos relatórios SSA2, em
que os maiores e menores percentuais nacio- Ao questionar se há monitoramento e análise
nais se encontram na região Norte/Nordeste, dos indicadores e informações de saúde os
ficando os municípios de pequeno porte com municípios da região Norte/Nordeste apre-
86% e de grande porte com 94,5%. sentam os maiores valores e também tendên-
O Sinan constitui a principal base para cia de homogeneidade para todos os portes,
o cálculo de indicadores epidemiológicos e com percentuais obedecendo a um pequeno
operacionais do País, que podem ser admi- padrão de crescimento segundo o porte,
nistrados diretamente pelas UBS, quando sendo os valores relativos a 80,9%, 81,6% e
estas dispõem de computadores e acesso à 84,1%, ficando mais próximos do valor na-
internet, ou encaminhados para secretaria cional de 80,9%. Destaca-se nesta variável
municipal/estadual de saúde e em seguida que apenas os municípios de grande porte
para a Secretaria de Vigilância em Saúde/ da região Sul/Sudeste apresentam percentu-
MS. A disponibilidade dessas fichas ficou ais superiores ao da região Norte/Nordeste
bem evidenciada na região Centro-Oeste, nos com 86,5%. Já os municípios de grande porte
três portes populacionais verificados, quando da região Centro-Oeste apresentaram os
comparada as demais regiões. Os municípios menores percentuais com 61,9%.
de pequeno porte da região Norte/Nordeste Os achados da tabela 3 sugerem preocupa-
apresentam os percentuais mais baixos 81,6%. ção por grande parte das equipes no monitora-
De acordo com Girianelli, Thuler e Silva mento dos dados coletados. É fundamental que
(2009) o Sistema de Informação do Câncer as informações geradas pelas equipes sejam
do Colo do Útero (Siscolo), destina-se ao analisadas de maneira compartilhada na tenta-
armazenamento de dados sobre identifica- tiva de solucionar, minimizar ou evitar eventu-
ção da mulher, informações demográficas, ais problemas, auxiliando as equipes em seus
epidemiológicas e dos exames citopatoló- processos de trabalho, pois como afirmam
gicos e histopatológicos realizados no SUS. Colomé e Lima (2006) é necessário um esforço
O Siscolo possibilita que as coordenações conjunto das equipes no planejamento e im-
dos programas municipais e estaduais de plementação das ações de saúde.
saúde acompanhem as mulheres com re- Além disso, intui-se uma conexão com o
sultados dos exames alterados. De acordo campo da educação permanente vislumbra-
com os achados, 91,1% das UBS em termos do por Ceccim (2005) como forma de excelên-
nacionais dispõem da ficha referente ao cia para qualificação profissional através da
exame. Embora os melhores índices sejam análise cotidiana do trabalho em saúde, pois
verificados nos municípios de grande porte é permeabilizada pelas relações concretas
da região Centro-Oeste (95,2%), verifica-se que operam realidades e que possibilitam
uma menor variação intra-regional na região construir espaços coletivos para a reflexão
Sul/Sudeste ficando os municípios de médio e a avaliação de sentido dos atos produzidos
e grande porte com os mesmos percentuais no cotidiano.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


766 NEVES, T. C. C. L.; MONTENEGRO, L. A. A.; BITTENCOURT, S. D. A.

Tabela 3. Frequência absoluta e relativa das atividades desenvolvidas por equipes de saúde segundo grandes regiões e
porte populacional. Brasil, 2012

Região Porte Monitoramento e análise dos A poio da gestão para a discussão dos
populacional* indicadores e informações de saúde dados de monitoramento do Siab

% (n) % (n)
Pequeno 80,9 (1825) 78,5 (1770)
Norte e Nordeste Médio 81,6 (2637) 77,9 (2517)
Grande 84,1 (938) 71,7 (800)
Pequeno 76,2 (2124) 74,7 (2082)

Sul e Sudeste Médio 79,4 (2524) 74,9 (2380)

Grande 86,5 (3049) 80,9 (2850)

Pequeno 77,6 (325) 75,4 (316)

Centro - Oeste Médio 77,2 (328) 75,8 (322)

Grande 61,9 (164) 50,2 (133)

Brasil 80,9 (13914) 76,6 (13170)

Fonte: Banco de dados PMAQ-AB, primeiro ciclo 2012


*Porte populacional P (pequeno) - (até 20.000 hab.); Porte populacional M (médio) - (de 20.001 a 200.000 hab.); Porte populacional G
(grande) - (mais de 200.001 hab.)

Para os que responderam não realizar O apoio da gestão para a discussão dos
monitoramento e análise dos indicadores dados de monitoramento do Siab é de fun-
e informações de saúde (19,1% em termos damental importância, pois, segundo o
nacionais), estes podem estar em sintonia Ministério da Saúde (BRASIL, 2004), este sistema
com os achados de pesquisa de Marcolino e disponibiliza indicadores sociais, permitindo
Scochi (2010) sobre o uso do Siab em uma UBS aos gestores municipais a obtenção de dados
de Maringá, em que sugerem que os profis- sociodemográficos das áreas de cobertura da
sionais não valorizam os registros das ativi- ESF, que só estão disponíveis neste nível de
dades de sua competência, visto que grande desagregação. Isso pode conduzir a um pro-
parte deles não faz o registro diário. cesso de gestão municipal com maior articu-
Quanto ao apoio da gestão para a discus- lação intersetorial, promovendo um cuidado
são dos dados de monitoramento do Siab, integral em saúde e maior agilidade no proces-
percebem-se maiores índices de forma geral so de trabalho. Embora os números apontem
e homogênea nos municípios de pequeno para um maior ou menor apoio da gestão, não
e médio porte em todas as regiões com é possível averiguar como se dá esse apoio. O
padrões semelhantes ao nacional (76,6%). que podemos inferir é que investimentos na
A exceção ficou por conta dos municípios capacitação dos profissionais das equipes tor-
de grande porte da região Sul/Sudeste que nam-se fundamentais para que estes possam
tiveram maior percentual 80,9%. Já os não apenas coletar os dados, mas que possam
de grande porte da região Centro/Oeste ser capazes de interpretar, avaliar e atuarem
ficaram com menor percentual entre todos de forma mais resolutiva.
os extratos 50,2%. O funcionamento adequado dos sistemas

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


Produção e registro de informações em saúde no Brasil: panorama descritivo através do PMAQ-AB 767

de informação requer um aparato tecnoló- Há necessidade de maiores investimentos na


gico, além de insumos disponíveis para seu capacitação das equipes no tocante a redimir
efetivo manuseio. As ferramentas tecnoló- possíveis equívocos na coleta, interpretação e
gicas são fundamentais no armazenamento utilização de forma coerente das informações
dos dados e na busca otimizada por infor- coletadas pelas próprias equipes.
mações capazes de auxiliar os profissionais É importante que os gestores locais co-
de saúde em todas as etapas da assistência. munguem da mesma ideia e que subsidiem
Nesse sentido, dotar as UBS de computado- as equipes sob sua responsabilidade através
res e acesso à internet pode trazer raciona- de programas de capacitação permanente
lidade nos serviços e de recursos humanos. quanto ao uso da informática e da importân-
É papel do ente municipal disponibilizar cia dos dados coletados.
esses instrumentos de maneira permanen-
te para que o processo de trabalho não seja
prejudicado em qualquer de suas etapas. A Realização de reunião de
ausência de qualquer insumo analisado pode equipe e sua periodicidade
prejudicar a dinâmica na assistência e pode
levar a equívocos epidemiológicos que re- Mediante a tabela 4, quase que a totalidade das
verberam no planejamento das ações e ava- equipes 98,2% afirmou que realiza reuniões.
liação das necessidades locais de saúde. Esta variável apresentou-se de maneira ho-
O possível desconhecimento de profissio- mogênea para todos os portes populacionais
nais acerca da importância da coleta adequada e em todas as regiões brasileiras. Entretanto,
dos dados da população sob sua responsabi- ao analisar-se a periodicidade dessas, evi-
lidade pode gerar dúvidas quanto à sua real denciou-se heterogeneidade. De um modo
utilidade, encarando-a como instrumento geral, apresenta-se maior frequência de
burocrático de trabalho. O adequado monito- realização de reuniões semanais no territó-
ramento e análise dos indicadores requerem rio nacional (42,6%), seguidas da quinzenal
uma cultura epidemiológica permanente. (18,8%) e mensal (28,2%).

Tabela 4. Frequência absoluta e relativa da realização de reunião de equipe e sua periodicidade segundo grandes regiões e porte populacional. Brasil, 2012

Região Porte Realiza reunião de Periodicidade


populacional* equipe Semanal Quinzenal Mensal Sem definição

% (n) % (n) % (n) % (n) % (n)


Pequeno 97,5 (2200) 15,0 (331) 22,8 (502) 50,5 (1111) 11,5 (252)
Norte e Nordeste Médio 98,8 (3193) 22,1 (706) 23,6 (754) 42,8 (1368) 11,3 (362)
Grande 98,4 (1097) 52,4 (575) 19,8 (217) 20,6 (226) 7,1 (78)
Pequeno 96,7 (2697) 27,0 (729) 20,2 (545) 35,7 (962) 16,9 (457)
Sul e Sudeste Médio 98,7 (3136) 51,8 (1624) 19,3 (604) 19,2 (601) 9,8 (306)
Grande 99,3 (3500) 80,8 (2828) 10,8 (378) 4,5 (157) 3,9 (135)
Pequeno 94,7 (397) 25,7 (102) 13,1(52) 41,8 (166) 19,1 (76)
Centro - Oeste Médio 96,9 (412) 28,6 (118) 25,0 (103) 34,7 (143) 11,4 (47)
Grande 98,9 (262) 71,0 (186) 10,3 (27) 14,5 (38) 4,2 (11)
Brasil 98,2 (16894) 42,6 (7199) 18,8 (3182) 28,2 (4772) 10,2 (1724)

Fonte: Banco de dados PMAQ-AB, primeiro ciclo 2012


*Porte populacional P (pequeno) - (até 20.000 hab.); Porte populacional M (médio) - (de 20.001 a 200.000 hab.); Porte populacional G (grande) - (mais de 200.001 hab.)

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


768 NEVES, T. C. C. L.; MONTENEGRO, L. A. A.; BITTENCOURT, S. D. A.

Quando estudados por porte populacio- dá pelo quantitativo de procedimentos re-


nal, os municípios de grande porte demons- alizados e pela produtividade, não havendo
traram ter maior frequência semanal, ficando espaço dialógico para refletir sobre suas prá-
a região Sul/Sudeste com melhores percen- ticas nem sobre o processo de trabalho sujeito
tuais (80,8%), seguida da região Centro- ao modelo por produtividade, causando,
Oeste (71,0%) e Norte/Nordeste (54,4%). Há muitas vezes, problemas nas relações entre os
uma tendência crescente de realização de gestores e os profissionais de saúde.
reuniões semanais seguindo o porte popula- Há também que se levar em considera-
cional para todas as regiões analisadas. Estes ção as diversas configurações geográficas,
municípios também demonstram menores sociais, culturais e étnicas das regiões onde
percentuais na variável sem definição da as UBS estão instaladas, pois estes fatores
frequência de realização, crescendo este implicam na definição da periodicidade
percentual quando se diminui o porte popu- das reuniões. Oliveira, Gonçalves e Pires
lacional em todo o País. (2011) apontam UBS e comunidades que para
Os municípios de médio porte apresen- serem acessadas pelos profissionais levam‑se
tam maior frequência quinzenal, destacan- muitos dias impossibilitando reuniões com
do-se a região Centro-Oeste (25,0%) como mais frequência.
a mais frequente para este variável, seguida
da região da região Norte/Nordeste (23,6%),
e Sul/Sudeste (19,3%). Analisando os muni- Conclusões
cípios de pequeno porte, verifica-se que na
região Centro-Oeste apresenta o pior per- As descrições realizadas nesse artigo
centual (13,1%). apontam para necessidade de maiores in-
Nos municípios de pequeno porte popu- vestimentos na estrutura informacional das
lacional a frequência de reuniões mensais UBS, pois o panorama nacional demonstra
em todas as regiões estudadas apresen- que apenas 64,0% das UBS com disponibi-
taram os melhores percentuais, ficando a lidade de computador. Destas, 45% dispõem
região Norte/Nordeste com 50,5%, a região de acesso à internet. Esses instrumentos são
Centro-Oeste com 41,8% e a região Sul/ fundamentais para o funcionamento ade-
Sudeste com 35,7%. Já para municípios de quado do sistema de informação que requer
médio porte houve uma queda na frequên- aparato tecnológico e de insumos disponí-
cia indo de 42,8% no Norte/Nordeste, 19,2% veis para seu efetivo manuseio. Também
Sul/Sudeste e 14,5% Centro-Oeste. Nos de é imprescindível que todos os suportes de
grande porte populacional, os números rela- registros sobre as doenças, cadastros de fa-
tivos aos municípios do Sul/Sudeste somam mílias, condições de moradia e saneamento,
41,8%, no Norte/Nordeste, 20,6% e na região situação de saúde, produção e composição
Centro-Oeste 14,5%. das equipes de saúde, sejam sempre super-
A reunião de equipe é o momento de en- visionados. Devem ser checados e analisa-
contro dos seus membros para o planejamen- dos pelos profissionais de saúde, no sentido
to, organização, análise e avaliação crítica dos de aprimorar a construção de indicadores e
processos de trabalho. A periodicidade da rea- nortear com mais eficácia e eficiência a alo-
lização dessa reunião está atrelada ao modelo cação de recursos para as ações de prevenção
de gestão instituído na unidade de saúde, e controle dos agravos no País. O processo
responsável por direcionar a forma de conce- de capacitação das equipes no manuseio
ber o processo de trabalho. Alguns modelos desses instrumentos pode trazer racionali-
de gestão estão focados no cumprimento de dade e reflexão crítica no processo de tra-
metas. Neles, a avaliação dos profissionais se balho em todas as etapas da assistência, bem

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


Produção e registro de informações em saúde no Brasil: panorama descritivo através do PMAQ-AB 769

como facilitar o planejamento, a avaliação expansão no Brasil, tornam-se imprescindí-


e o gerenciamento do processo de trabalho veis investimentos nesta área, assim como
comprometido com as realidades locais. As estudos que analisem de maneira mais deta-
reuniões de equipe devem ser incentivadas lhada os diversos cenários aqui contextuali-
pela gestão local, pois através destas pode-se zados de forma agrupada.
checar os dados epidemiológicos e agilizar
as soluções, evitando-se agravamento dos Agradecemos a Katherine Knurt, bolsis-
quadros de saúde da população adscrita. ta Pibic pelo apoio no processamento dos
Com a Estratégia Saúde da Família em dados e elaboração das tabelas. s

Referências

BARBOSA, D.C.M.; FOSTER, A.C. Sistemas de PMAQ e o financiamento. Brasília, DF: Ministério da
informação em saúde: a perspectiva e a avaliação dos Saúde, 2011. Disponível em: <http://www.brasilsus.
profissionais envolvidos na Atenção Primária à Saúde com.br/legislacoes/gm/108814-1654.html>. Acesso em:
de Ribeirão Preto. Cadernos de Saúde Coletiva, São 10 abr. 2014.
Paulo, v. 18, n. 3, 2010, p. 424-33.
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à
BARROS, A. J. D. São grandes os desafios para o Saúde, Departamento de Atenção Básica. SIAB: manual
Sistema Nacional de Informações em Saúde. Ciência do sistema de Informação de Atenção Básica. Brasília,
& Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 4, out. /dez. DF: Ministério da Saúde, 2003.
2006, p. 872-874.
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de
BENITO, G.A.V.; LICHESKI, A.P. Sistemas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Avaliação
Informação apoiando a gestão do trabalho em saúde. da implementação do Programa Saúde da Família em
Revista Brasileira de Enfermgem, Brasília; v. 62, n. 3, p. dez grandes centros urbanos: síntese dos principais
447-50, maio/jun. 2009. resultados. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2002.

BITTAR, T.O. et al. Sistema de Informação da Atenção ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de
Básica como ferramenta da gestão em saúde. Revista Saúde. Departamento de Atenção Básica. Avaliação
da Faculdade de Odontologia. Fortaleza, v. 14, n. 1, 2009, normativa do Programa Saúde da Família no Brasil:
p. 77-81. monitoramento da implantação e funcionamento das
Equipes de Saúde da Família - 2001/2002. Brasília, DF:
BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Ministério da Saúde, 2004.
Atenção Básica. Manual de Implantação do Sistema
e-sus. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014. CECCIM, R. B. Educação permanente em saúde: desafio
ambicioso e necessário. Interface: Comunicação, Saúde,
______. Ministério da Saúde. Documento que institui o Educação. Botucatu, v. 9, n. 16, p. 161-167, set. 2004/fev. 2005.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


770 NEVES, T. C. C. L.; MONTENEGRO, L. A. A.; BITTENCOURT, S. D. A.

DAVENPORT, T. Ecologia da informação: porque OLIVEIRA, H. M.; GONÇALVES, M. J. F.; PIRES, R. O.


só a tecnologia não basta para o sucesso na era da M. Caracterização da Estratégia Saúde da Família no
informação. São Paulo: Futura, 1998. Estado do Amazonas. Cadernos de Saúde Pública, Rio
de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 35-45, jan. 2011.
FAUSTO, M.C.R.; SOUZA JÚNIOR, P.R.B. Nota
metodológica sobre a avaliação das equipes de Atenção RADIGONDA, B. et al. Sistema de Informação da
Básica e censo das Unidades Básicas de Saúde no Atenção Básica e sua Utilização pela Equipe de Saúde
âmbito do Programa Nacional para Melhoria do Acesso da Família: uma revisão integrativa. Revista Espaço
e Qualidade da Atenção Básica. Mimeo, 2013. para a Saúde, Londrina, v. 12, n. 1, p. 38-47, dez. 2010.

FELISBERTO, E. Avaliação do processo de implantação ROCHA, A. A Importância do Hiperdia na Redução


da estratégia da atenção integrada às doenças dos Agravos em Pacientes Cadastrados no PSF IV,
prevalentes da infância (AIDPI) no Programa Saúde do Município de Barreiras-BA, e a significância do
da Família (PSF) no estado de Pernambuco no período Profissional de Enfermagem neste Programa [internet]
de 1998 a 1999. 2001. Dissertação (Mestrado em Saúde . PROBEX, 2010. Disponível em: <http://www.
Coletiva) - Centro de Pesquisas Ageu Magalhães da webartigos.com/articles>. Acesso em: 15 ago. 2014.
Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2001.
RODRIGUES, C. G. et al. Os sistemas de informação
FESCINA, R. Saude sexual y reproductiva: guías para em saúde: do processo de trabalho à geração dos dados
el continuo de atencion de la mujer y el recién nascido em Minas Gerais. CEDEPLAR. 2008. Disponível em:
focalizadas en APS. Montevideo: CLAP/SMR, 2007. <http://web.cedeplar.ufmg.br/cedeplar/site/index.
php?option=com_content&view=article&id=570&Itemi
FRANÇA, T. Sistema de Informação em Atenção Básica: d=428&limitstart=1>. Acesso em: 12 abr. 2014.
um estudo exploratório. 2001. Dissertação (Mestrado
em Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública, SAMAJA, J. Epistemología y metodología: elementos
Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2001. para una teoria de la investigación científica. Buenos
Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1993.
GIRIANELLI, V.R.; THULER, L.C.S.; SILVA,
G.A. Qualidade do sistema de informação do SILVA, A. S.; LAPREGA, M. R. Avaliação crítica do
câncer do colo do útero no estado do Rio de Sistema de Informação em Atenção Básica (SIAB) e
Janeiro. Revista Saúde Pública [internet]. v. 43, n. de sua implementação na região de Ribeirão Preto,
4, p. 580-588, 2009. Disponível em: <http://www. Cadernos de Saúde Pública, São Paulo. v. 21, n. 6, p. 1821-
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034- 1828, 2005.
89102009000400003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em:
13 abr. 2014. SILVA, C. A. B. Os dez anos do Programa de Saúde da
Família – PSF. Revista Brasileira de Promoção.da Saúde.
MARCOLINO, J. S. Informação e saúde: o uso do SIAB Fortaleza, v. 17, n. 3, p. 97-98, 2004.
pelos profissionais das equipes de saúde da família.
2008. Dissertação (Mestrado em Enfermagem). VIACAVA, F. Informação em saúde: importância dos
Universidade Estadual de Maringá, Paraná, 2008. inquéritos populacionais. Ciência & Saúde Coletiva, Rio
de Janeiro, v. 7, n. 4, p. 607-621, 2002.
MARCOLINO, J. S.; SCOCHI, M. J. Informações em
saúde: o uso do SIAB pelos profissionais das Equipes
Recebido para publicação em abril de 2014
de Saúde da Família. Revista Gaúcha de Enfermagem, Versão final em setembro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
Porto Alegre, v. 31, n. 2, p. 314-320, 2010.
Suporte financeiro: não houve

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 756-770, Out-Dez 2014


artigo original | original article 771

A dinâmica familiar sob a ótica do


profissional da Estratégia Saúde da Família
Family dynamics under the view of the Family Health Strategy
professional

Ananda Beerenwinkel1, Alexandre Lins Keusen2

RESUMO A efetivação da Atenção Básica exige a superação das práticas exclusivamente


voltadas para a doença e para o cuidado individual, com vistas ao incremento de ações
interdisciplinares e integrais destinadas ao cuidado familiar e coletivo. Este estudo objetivou
investigar o grau de atenção que, em suas práticas, os profissionais de uma equipe da Estratégia
Saúde da Família, na cidade do Rio de Janeiro, dedicam às dinâmicas relacionais das famílias.
A realização de entrevistas semiestruturadas e de imersões nos seus ambientes de trabalho
permitiu a coleta de informações, que foram tratadas por meio da técnica de análise do
discurso. Os resultados apontam para uma compreensão limitada desses profissionais no
tocante às dinâmicas familiares.

PALAVRAS-CHAVE Estratégia Saúde da Família; Dinâmicas familiares; Agentes Comunitários


de Saúde.

ABSTRACT The effectiveness of primary care requires a replacement of practices exclusively


focused on disease and individual care by interdisciplinary and comprehensive activities aiming
at the family and collective care. This study intended to investigate the degree of concern shown,
in their practices, by a professional staff of the Family Health Program in the city of Rio de
Janeiro as to the relational dynamics of families. The use of semi-structured interviews and
immersion in their work environments allowed the collection of information, which were treated
with the technique of discourse analysis. The results indicate a limited understanding of these
professionals as regards family dynamics.
1Especialista em
Terapia de Família pela KEYWORDS Family Health Strategy; Family dynamics; Community health worker.
Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
ananda.psi@hotmail.com

2 Doutor em Psiquiatria
pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) –
Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Coordenador do Curso de
Especialização em Terapia
de Família do Instintito de
Psiquiatria da Universidade
Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil.
keusen@globo.com

DOI: 10.5935/0103-1104.20140070 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 771-782, OUT-DEZ 2014
772 BEERENWINKEL, A.; KEUSEN, A. L.

Introdução curativas, pela oferta de uma atuação centra-


da nos princípios da vigilância à saúde (BRASIL,
A configuração da Atenção Básica como 2007).
a política do Ministério da Saúde para re- De acordo com Campos (2003), a vigilância
organização do sistema de saúde elege o da saúde consiste em um esforço (metodo-
Programa Saúde da Família (PSF) como es- lógico e prático) para integrar a atuação do
tratégia prioritária para efetivá-la, a partir de setor da saúde às várias dimensões do pro-
meados da década de 1990 (BRASIL, 2006a). cesso saúde-doença, especialmente sob o
O PSF surgiu como resultado de pres- ponto de vista da sua determinação social.
sões internas e externas ao governo. Ao buscar desenvolver uma visão que se pre-
Internamente, decorreu do reconhecimento tende mais totalizadora, assim como novas
consensual de dificuldades da transformação propostas de operacionalização dos sistemas
da atenção primária, figurando como uma de saúde, a vigilância da saúde torna-se um
resposta às necessidades de uma atenção eixo reestruturante do modo de atuação em
integral que abrangesse o indivíduo, a comu- saúde (CAMPOS, 2003). Propondo um modelo
nidade e a participação popular. Em âmbito integrado de análise e enfrentamento dos
externo, resultou de pressões de organismos problemas de saúde – considerando os de-
internacionais, como, por exemplo, o Banco terminantes sociais, os riscos ambientais,
Mundial, de acordo com Cunha (2005). epidemiológicos e sanitários correlatos e os
Apesar da consolidação do PSF como desdobramentos, em termos de doença –,
estratégia estruturante da Atenção Básica esse novo olhar sobre a saúde leva em conta
no Brasil, de início, ele ainda colocava-se os múltiplos fatores envolvidos no surgimen-
no polo claramente preventivo e progra- to, no desenvolvimento e na perpetuação
mático. Contudo, ao perceber a expansão dos problemas. Para tanto, considera o en-
do Programa, o governo emitiu a Portaria volvimento de todos os setores inseridos na
Nº 648, de 28 de Março de 2006, erigindo realidade abordada, enxergando o indivíduo
o PSF a estratégia prioritária do Ministério e a comunidade como sujeitos do processo.
da Saúde para a reorganização da Atenção A vigilância da saúde tem no princípio de
Básica, que seria primordialmente ancorada territorialidade sua principal premissa, ou
na viabilização do acesso universal e contí- seja, o trabalho em saúde deve estar imerso
nuo a serviços de saúde de qualidade, me- no contexto territorial. Assim, problemas e
diante o cadastramento e a vinculação dos prioridades podem ser definidos a partir de
usuários (BRASIL, 2006b). cada situação específica e dos recursos dis-
Assim, a unidade de saúde da família poníveis para o atendimento às necessidades
caracteriza-se como porta de entrada do de saúde da comunidade.
sistema local de saúde, ou seja, como o pri- O território, segundo Campos (2003), é en-
meiro contato da população com o serviço de tendido como o espaço onde vivem grupos
saúde do município, assegurando a referên- sociais, e abrange ainda as relações e condi-
cia e a contrarreferência para os diferentes ções de subsistência, de trabalho, de renda,
níveis do sistema. É uma unidade pública de de habitação, de acesso à educação e o saber
saúde destinada à realização de uma atenção preexistente de tais populações. Como parte
contínua nas especialidades básicas, com integrante do meio ambiente, esses núcleos
uma equipe multiprofissional habilitada para sociais dispõem de culturas próprias, e de
desenvolver as atividades de promoção, pro- concepções sobre saúde e doença, família,
teção e recuperação, características do nível sociedade, etc.
primário de atenção, substituindo, assim, as Assim, as atuações no território permitem
práticas convencionais, predominantemente o reconhecimento das particularidades e

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 771-782, OUT-DEZ 2014


A dinâmica familiar sob a ótica do profissional da Estratégia Saúde da Família 773

potencialidades que este tem a oferecer. Os de saúde e a população” (BRASIL, 2006b, p. 43).
dados epidemiológicos possibilitam a adoção De fato, o trabalho da equipe da saúde da
de estratégias voltadas especificamente à po- família se funda na permanente comunica-
pulação estudada. Por meio da constatação ção e intercâmbio de experiências e conhe-
da vulnerabilidade local, a equipe de saúde cimentos entre os integrantes da equipe e o
pode criar ações de promoção e prevenção saber popular dos ACS, na medida em que
de saúde, a fim de aprimorar a qualidade estes agem na comunidade com saberes da
de vida dos indivíduos e grupos, o que pode equipe e na equipe com informações da co-
ser feito com o auxílio de um diagnóstico munidade. Sendo, aqueles que promovem
situacional. um elo cultural do SUS com a população, seu
A Estratégia Saúde da Família (ESF) apre- contato permanente com as famílias facilita-
senta um potencial de atuação não apenas na ria, assim, o trabalho de vigilância e promo-
unidade, mas também no espaço social onde ção da saúde em todo o País.
a comunidade vive e circula, estabelecendo Neste quesito, vale lembrar que a vigilân-
vínculos de compromisso e corresponsabi- cia da saúde propõe que os agentes sociais
lidade com a população. Para viabilizar tal sejam os responsáveis pelo processo de defi-
objetivo, o trabalho da equipe da ESF deve nição de problemas e pelo encaminhamento
ser norteado por uma perspectiva ampliada das soluções. Campos (2003) aponta que, para
sobre os modos de vida, de saúde e doença, melhorar a qualidade de vida e promover a
e articulada ao contexto familiar e cultural. saúde de um indivíduo, faz-se necessário
Só assim, de acordo com Dimenstein (2009), definir as possibilidades de cada ator social
ela poderá intervir em fatores de risco aos e de todos para a superação das dificuldades,
quais a comunidade esteja exposta, por meio estabelecer compromissos e pactuá-los po-
de parcerias estabelecidas com diferentes liticamente. Como, segundo Campos (2003),
segmentos sociais e institucionais, visando pacto pressupõe um diálogo entre atores
também agir em situações que transcendam que se disponham a reconhecer a força uns
a especificidade do setor saúde, e que gerem dos outros, uma relação em que se busca o
efeitos sobre as condições de vida e saúde dos domínio e a imposição de um ator sobre o
indivíduos, das famílias e da comunidade. outro não pode encontrar espaço nessa nova
Nesta nova proposta de constituição de configuração.
uma rede de caráter substitutivo e abrangen- Isso é muito importante porque, na con-
te de cuidados, os Agentes Comunitários de solidação da Atenção Básica por meio da
Saúde (ACS) são peças fundamentais, espe- ESF, o modelo domiciliar ressurge como
cialmente porque são eles que fazem o ca- estratégia do desenvolvimento de mudanças
dastramento e acompanhamento, por meio capazes de viabilizar um cuidado singular no
de visitas domiciliares, de todas as famílias e espaço social em que esta se insere, exigindo,
indivíduos do território sob sua responsabi- contudo, que a abordagem das pessoas, famí-
lidade. Eles são os profissionais que residem lias e comunidades em seus domicílios e ter-
na área onde atuam, e que devem estar em ritório seja calcada em um posicionamento
contato permanente com as famílias, orien- profissional ético e respeitoso.
tando-as acerca da utilização dos serviços de Passando a considerar o contexto onde
saúde disponíveis. vivem as pessoas e famílias, a atenção domi-
O Ministério da Saúde se refere ao ACS ciliar constitui, como apontam Giacomozzi
como aquele que liga a equipe à comuni- e Lacerda (2006), uma nova ação profissio-
dade, já que este tem, dentre as suas atri- nal com base na inserção dos profissionais
buições específicas, de “desenvolver ações de saúde não só no local onde vivem as
que busquem a integração entre a equipe pessoas, mas também no espaço onde elas se

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 771-782, OUT-DEZ 2014


774 BEERENWINKEL, A.; KEUSEN, A. L.

relacionam e interagem, o que exige o reco- afastamentos etc.


nhecimento e a preservação dos seus valores Assim, esse estudo teve por objetivo in-
socioculturais. vestigar se os profissionais de uma determi-
As equipes da ESF, em sua composição nada equipe da ESF, implantada há 3 anos
mínima (um médico, um enfermeiro, um au- em um Centro Municipal de Saúde (CMS),
xiliar de enfermagem e cinco ou seis Agentes da cidade do Rio de Janeiro – caracterizado
Comunitários de Saúde), apresentam um como unidade B, por oferecer serviços de
potencial de resolução de 80% dos casos Atenção Básica ainda de acordo com a rede
de saúde das pessoas sob sua responsabili- de Atenção Básica tradicional, em conjunto
dade (BRASIL, 2007). Cada equipe, encarregada com a atual proposta da ESF –, olham e pro-
de atender, no mínimo, 2.400 e, no máximo, curam abranger, em sua rotina profissional,
4.500 pessoas, tem a incumbência de conhe- as dinâmicas relacionais das famílias pelas
cer a família ao longo do tempo, assim como quais são responsáveis.
a situação afetiva, as consequências e o sig- Para isso, buscamos apreender o conceito
nificado do adoecimento de seus membros de dinâmicas familiares para os profissio-
(BRASIL, 2008). Isto coloca a ESF em um lugar nais, assim como o seu sentido de responsa-
privilegiado de cuidado, embora exija um bilidade quando da sua intervenção em tais
complexo nível de produção deste cuidado. dinâmicas, na realização de seus trabalhos.
Os profissionais de saúde que podem Em outras palavras, perquirimos quais as
encorajar os familiares a entenderem o de- respostas interventivas que os profissionais
senvolvimento e percurso trilhado por sua direcionam às famílias sob suas responsabili-
família e redes, dentro da comunidade e ao dades. Buscamos ainda visualizar as relações
longo do tempo, são os mesmos que irão estabelecidas pelos profissionais nos seus
convocá-los a perceberem sua participação trabalhos, assim como o grau de repercussão
no processo saúde-doença. Assim, as ações dessas relações na sua percepção sobre as di-
no território devem ser empreendidas a nâmicas relacionais e familiares.
partir do diálogo e do intercâmbio de conhe- Vale ressaltar, por fim que, partindo de
cimentos, o que possibilita a construção de uma visão construtivista, a investigação ora
vínculos mais fortes, como apontam Merhy e empreendida não buscou a compreensão
Feuerwerker (2007), onde a dimensão cuida- de uma determinada realidade como um
dora do trabalho em saúde respeite e interaja objeto a ser empiricamente analisado para,
com os projetos de cuidado implementados então, chegar-se ao desenvolvimento de ge-
pelas próprias famílias, corresponsáveis nas neralizações sobre o todo. Entendendo que
ações em saúde. o conhecimento adquirido em pesquisas,
De acordo com essa inovadora proposta, em vez de gerar verdades definitivas ou ex-
e dadas as atribuições dos profissionais na plicações causais, pode produzir compreen-
ESF e suas especificidades, torna-se relevan- sões de movimentos, que engendram novas
te saber a forma como os atores envolvidos reflexões, interferindo e produzindo novas
na promoção da saúde da família olham para realidades, ressaltamos que esse artigo cons-
suas dinâmicas, e quais os significados que titui um recorte, a saber, apenas uma parte
constroem sobre elas, levando em conside- das experiências vividas em uma situação
ração que dinâmicas familiares comportam de pesquisa e que, embora o discurso jamais
uma série de configurações de funcionamen- possa abranger toda a riqueza dessas experi-
to, formas de relacionamento e estruturas ências, como apontam White e Epston (apud
familiares, que estão em constantes trans- RASERA; JAPUR, 2004), optamos, ainda assim, por
formações, tais como, por exemplo, uniões, reproduzir algumas frases proferidas pelos
rupturas, desagregações, reaproximações, participantes, com vistas a exemplificar o

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 771-782, OUT-DEZ 2014


A dinâmica familiar sob a ótica do profissional da Estratégia Saúde da Família 775

caminho metodológico utilizado na análise de matriciamento. Apenas o técnico de en-


realizada. fermagem e três ACS foram acompanhados
em Visitas Domiciliares (VDs). Estes profis-
sionais, um médico e um profissional de en-
Métodos fermagem, faziam parte da mesma equipe, de
forma que foi possível abranger 75% dos pro-
Para alcançar tal objetivo, foram realizadas, fissionais desta equipe, tendo sido excluídos
entre os meses de novembro de 2013 e janeiro apenas dois ACS, em férias naquela ocasião.
de 2014, imersões no ambiente de trabalho Todos os participantes assinaram Termos
destes profissionais, para a confecção de um de Consentimento Livre e Esclarecido (um
diário de campo, a partir da técnica de obser- deles referente à autorização para a observa-
vação participante e, em seguida, entrevistas ção de seus trabalhos, e outro relativo à sua
semiestruturadas. Observamos, assim, desde participação nas entrevistas). Os profissio-
o trabalho e as interações dos profissionais nais da mesma equipe que participaram das
entre si, e com as famílias e indivíduos; entrevistas foram assim identificados: ENF
reuniões de equipes; rodas comunitárias e (Enfermeira) e MED (médico), e AC1; AC2;
consultas de matriciamento, até visitas do- AC3 (para os três ACS) e TE (Técnico de
miciliares, ou seja, a rotina de trabalho em Enfermagem), que participaram das entrevis-
uma equipe da ESF. tas e também foram acompanhados nas VDs.
Os demais participantes são apenas citados
de acordo com suas ocupações na ESF.
Participantes
A proposta de pesquisa foi apresentada Tratamento e análise dos
durante a reunião mensal da ESF estudada, dados
em setembro de 2013, quando alguns dos
profissionais (mais especificamente três ACS Os dados foram tratados à luz da metodolo-
de uma mesma equipe) se inscreveram como gia de análise do discurso, por tratar-se de
voluntários no estudo. Devido às questões uma técnica que transcende a mera análise
relacionadas aos trâmites para a realização textual, possibilitando uma análise contex-
da pesquisa segundo os ditames do Comitê tual. De acordo com Gondim e Fischer (2009),
de Ética, o tempo se esvaia, tornando im- ela torna possível visualizar as construções
provável alcançar o objetivo de acompanhar ideológicas presentes na narrativa, pois o
e entrevistar profissionais de três equipes discurso é uma construção linguística atrela-
diferentes. Optou-se, então, por focar em da ao contexto social no qual o texto é desen-
uma única equipe e em alguns outros pro- volvido. Vale dizer que esta técnica permite
fissionais que com ela se relacionavam, na visualizar a forma como as ideologias pre-
qualidade de matriciadores e gestores, e que sentes em um discurso são diretamente de-
foram aleatoriamente observados e convi- terminadas pelo contexto sociopolítico em
dados a participarem da pesquisa. Assim, que vive o seu autor, podendo, assim, ser
compõem a amostra desse estudo doze reveladora das contradições dialógicas das
profissionais: sete ACS, dois médicos, dois múltiplas vozes sociais que se encontram en-
enfermeiros e um técnico de enfermagem. trecortadas nas falas daquele que se expressa
Dentre eles, apenas um profissional da área (GONDIM; FISCHER, 2009).
de medicina não fazia parte da ESF. Este Ainda de acordo com Fischer (apud GONDIM;
era funcionário do CMS e contribuía para FISCHER, 2009), a análise do discurso reconhe-
o trabalho da ESF sob a forma de consultas ce a dubiedade de sentido de uma mesma

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 771-782, OUT-DEZ 2014


776 BEERENWINKEL, A.; KEUSEN, A. L.

palavra ou construção linguística, e faz apa- separadamente e com ações voltadas predo-
recer e desaparecer as contradições dialéti- minantemente à recuperação da saúde; e a
cas, dando acesso aos sentidos produzidos da ESF, onde o trabalho pretende-se multi-
pela inscrição tridimensional do discurso disciplinar, desprovido de hierarquia e cuja
(linguagem, história e ideologia) e pela im- ênfase recaia na promoção da saúde. Como a
plicação dos sujeitos envolvidos. ESF tem, no trabalho em equipe, seu grande
Sendo assim, face aos objetivos da pesqui- trunfo, já que, de acordo com o Ministério
sa e buscando um mapeamento das regula- da Saúde (BRASIL, 2007), deve tratar-se de uma
ridades do processo de produção discursiva, equipe multiprofissional habilitada para
foram construídas montagens discursivas desenvolver atividades que substituam as
que, longe de expressarem uma exaustão práticas puramente curativas, é por ela que
temática do discurso dos participantes, ser- vamos começar.
viram apenas para problematizar as con- Dentro da sua equipe, os profissionais têm
cepções dos profissionais no contexto da que lidar com as diferenças e pactuar uma
ESF, relacionadas às dinâmicas familiares. forma de trabalho que funcione para todos:
Tais montagens discursivas foram criadas a “Na equipe é nosso momento de lavar roupa
partir das respostas dos profissionais entre- suja. E também de fazer todo mundo cami-
vistados e da observação de seus trabalhos nhar no mesmo sentido” (MED). Ao profis-
por parte dos pesquisadores. Em conjunto, sional cabe, assim, o desafio de lidar com os
elas serviram como um dispositivo analítico, diversos vínculos e relações que estabelece,
que conecta as concepções dos profissionais sem perder de vista o cuidado em saúde.
e as práticas que aplicam às famílias, seja no Obviamente que a inadequação de uma es-
contexto social, político, histórico e ideoló- trutura física, e a falta de salas de atendimen-
gico apresentado pelo centro de saúde, seja to e de materiais (citados pela enfermeira da
na comunidade onde eles atuam, na casa e no equipe), aliadas a uma grande demanda por
trabalho das pessoas envolvidas na produção serviços, a uma rede de saúde pouco eficien-
de sentidos e cuidados em saúde. te, assim como às cobranças e às exigências
dificultam as práticas dos profissionais e das
equipes na ESF, podendo também auxiliar
Resultados e discussão na disseminação da insatisfação dos traba-
lhadores. Mas parece que são as relações no
Já por ocasião da apresentação da propos- ambiente de trabalho que podem torná-los
ta de pesquisa, os profissionais voluntários tanto mais simples quanto mais complexos.
(os ACS) que, curiosamente, se encontra- Em um lugar cujo objetivo consiste na pro-
vam nos fundos da sala, demonstraram ex- dução do cuidado e da saúde, é interessante
pectativas quanto ao acompanhamento de observar a não produção destes por seus pró-
seus trabalhos, tecendo comentários sobre prios agentes, como aponta a AC1, quando
quais as famílias seria interessante visitar, já disse que ali (no seu trabalho) ninguém se
que, de acordo com um deles, “famílias sem importava (com os problemas dos cuida-
problemas não compensam a visita de um dores): “Não existe cuidado com o cuidador.
especialista”. Várias vezes já vim trabalhar doente” (AC1).
A equipe da ESF estudada se insere em O grau de satisfação no trabalho parece estar,
um Centro Municipal de Saúde (CMS). assim, diretamente ligado às relações estabe-
Assim sendo, este CMS, categorizado como lecidas: “Precisa melhorar a relação do am-
unidade mista, dispõe de duas modalidades biente de trabalho, diminuir a pressão, levar
de atenção: uma ainda centrada na figura do mais em consideração os nossos problemas,
médico, com cada especialidade trabalhando escutar mais a gente” (AC3).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 771-782, OUT-DEZ 2014


A dinâmica familiar sob a ótica do profissional da Estratégia Saúde da Família 777

Apesar disso, quando questionados sobre difícil, e ela se incube de solicitar ou não uma
as medidas por eles tomadas para a solução consulta de matriciamento. Desta forma, o
de questões que consideram difíceis, todos ACS acaba sendo excluído do processo que
os profissionais responderam: “levando o poderia fornecer-lhe subsídios para lidar
caso para a equipe”. Assim, é possível supor com as dificuldades em relação às quais ele
que o trabalho em equipe para esses profis- mesmo pede auxílio.
sionais seja uma referência com relação às Para o profissional da categoria médica
demandas e dificuldades que surgem em sua do CMS que participou da pesquisa, os
rotina profissional, mas que eles talvez não ACS não participavam por não se sentirem
considerem viáveis, para a mesma equipe, a à vontade devido ao fato de conhecerem as
promoção de um espaço de diálogo e a co- pessoas atendidas. Já o médico residente da
construção de sentidos para suas próprias ESF, embora entenda a importância dessas
dificuldades. consultas, apontando-as até mesmo como
Sobre a interação dos profissionais na ESF, insuficientes (porque os profissionais do
que também pode repercutir no trabalho que CMS disponibilizam poucas horas por mês),
prestam às famílias, a visão dos profissionais teme pela questão do sigilo, tanto durante
desta equipe é que as próprias equipes da os matriciamentos, quanto durante as VDs
ESF não dialogam entre si e nem com os pro- e reuniões de equipe, porque “os ACS são
fissionais do CMS, tendo sido constatada a da comunidade, mas a gente não sabe quem
existência de uma forma de corporativismo; é quem, nunca. Então, tem que saber o limite
em outras palavras, acreditam que haja uma do que você pode falar sem que você esteja
competitividade entre equipes e pouco espí- expondo os pacientes”. No entanto, quando
rito colaborativo. indagados sobre o funcionamento dos matri-
Como CMS e ESF integram a rede pública ciamentos (havia um informativo na parede
de saúde, são estabelecidos parcerias e ar- sobre o dia, a hora e o profissional responsá-
ranjos entre eles para uma melhor opera- vel, embora as datas estivessem defasadas),
cionalização das ações em saúde. Um desses muitos ACS, assim como outros funcionários
arranjos é o matriciamento, uma forma do CMS não sabiam descrever tais eventos. A
de disseminação e compartilhamento do AC1, que afirmou já ter participado de alguns
conhecimento em que as equipes da ESF com a psiquiatra, destacou que, para ela, os
recebem orientação e ajuda dos especialistas melhores haviam sido aqueles que haviam
do CMS, ou de algum outro serviço da rede contado com o acompanhamento nas VDs,
de saúde, para a resolução de situações para ou seja, os realizados pelos residentes.
as quais estas não disponham de repertório. Contudo, a participação da enfermeira re-
Assim, três situações podem ser problemati- sidente também não pareceu tão crucial, pois
zadas: a forma como o matriciamento é rea- ela se limitou a verificar os casos no sistema
lizado; quem participa e as implicações deste (lançados anteriormente por ACS ou pela
formato para a ESF desse CMS. Sob a forma enfermeira da equipe) e a anotar os encami-
de consulta conjunta, o matriciamento nesta nhamentos da médica durante a consulta.
unidade é realizado por um especialista do Faz parte das atribuições dos profissionais
CMS e por outro profissional da equipe da de saúde alimentar o sistema com os dados
ESF, que pode ser o médico, a enfermeira ou das suas ações. Eles usam uma base de dados
residentes multiprofissionais (que acompa- que limita as informações acessadas pelas
nham as equipes durante dois anos). categorias profissionais. Assim, o acesso dos
A participação dos ACS neste processo gestores é maior que o dos técnicos, e que,
consiste apenas em levar ao conhecimento por sua vez, supera o dos ACS.
da equipe os casos cuja solução considerem Ainda assim, os demais profissionais

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 771-782, OUT-DEZ 2014


778 BEERENWINKEL, A.; KEUSEN, A. L.

apontam os ACS como fundamentais para adolescência, adicção em drogas, alcoolismo,


o conhecimento da realidade social e para doença mental, doenças crônicas, violência
o alcance dos objetivos na promoção da sexual e doméstica (também com criança);
saúde da população: “Os ACS ajudam muito, DSTs transmitidas entre parceiros, situações
é possível identificar o ‘panorama social’ de baixa renda, desemprego, insalubridade
através deles” (MED). Assim, a visualização das moradias, falta de higiene, falta de sane-
do espaço físico onde as pessoas moram e amento básico, tráfico de drogas.
o contato com a sua casa durante as visitas Como a família é unanimemente aponta-
domiciliares possibilitam, nas palavras do da, por esses profissionais, como a base ou
médico da equipe, estrutura do ser humano e das suas relações
sociais (como o médico da ESF pontuou),
encontrar subterfúgios para lidar com a agenda responsável por educar o indivíduo, apoiá-lo
de saúde da família já que uma casa de 1 cômo- e proporcionar-lhe bem-estar e qualidade
do vai ser palco de muito mais conflitos e doença de vida, resta inequívoco que, na visão de
mental que uma casa de 3 ou 5 cômodos. (MED). tais profissionais, a família influencia sobre-
maneira na saúde, pois, considerada como
Segundo este profissional, na consulta “célula mãe da estrutura do ser humano” (T.
em família também é possível acompanhar E.), sua falta pressupõe que “se você não tem
a dinâmica familiar: “saber quem é o líder, a base de uma família, você não tem uma boa
quem é submisso. É bom saber quem é quem estrutura” (T. E.). A influência da família
para saber em quem focar o cuidado, dar mais sobre a saúde foi associada, assim, à ideia
atenção a quem mais precisa” (MED). de que, na ausência desta, falta ao indiví-
Focar o cuidado em quem mais precisa duo uma estrutura, uma base sólida para se
dele não é uma inovação nas ações em saúde. apoiar, o que, consequentemente, causa uma
Mas a equipe parece estar empenhada em interferência negativa na sua formação e
criar soluções que atendam às necessida- bem-estar.
des da população adscrita: “A gente trabalha Os profissionais relataram o grau de
com medicina integral, com ação centrada nitidez dessa falta de estrutura na comuni-
na pessoa, não no problema. Implantamos o dade onde atuam e, ainda, o comprometi-
Acesso Avançado de Saúde. A gente atende mento daí resultante para os seus trabalhos.
como se fosse a UPA” (referindo-se à Unidade Como pode ser observado na fala do médico:
de Pronto Atendimento). “Tem horários mar-
cados sim, mas se chegar paciente na hora que Isso é o meu dia a dia de trabalho! A cada dia que
chegar, a gente atende. A diferença pra UPA passa, quanto mais eu me insiro na comunidade,
é que a gente atende os nossos pacientes” eu vejo que a família tem total influência na saú-
(MED). Já a ação centrada na pessoa, não de da pessoa. A pessoa quando tá com problema
no problema, pode sim ser considerada um na família, o trabalho vai tá prejudicado. (MED).
avanço nas ações em saúde, vez que rompe
com o paradigma da doença como entidade Assim, quanto às dinâmicas familiares
e busca privilegiar a pessoa doente, embora relacionadas à saúde, é possível visualizar
ainda esteja aquém da marca distintiva da dois distintos posicionamentos. O primeiro é
ESF: o deslocamento do foco da atenção do baseado na concepção de que “Uma família
indivíduo para a família. desestruturada abala a saúde da pessoa”
A partir das entrevistas realizadas, foi pos- (ENF). E o outro na ideia de que “Quando
sível elencar uma lista de situações que estes acontece alguma coisa com um membro da
profissionais atribuem às dinâmicas familia- família, afeta a todos” (AC3).
res: brigas de casais e de famílias, gravidez na Essas duas ideias, uma de que um

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 771-782, OUT-DEZ 2014


A dinâmica familiar sob a ótica do profissional da Estratégia Saúde da Família 779

problema individual desestrutura a família âmbito público e aquelas ao âmbito privado.


e a outra de que uma família desestruturada Segundo Sarti (2010), a não problematização
abala o indivíduo, se revelam nos discursos de significados socialmente produzidos faz
como representantes das concepções destes com que as pessoas envolvidas no processo
profissionais, onde dinâmicas familiares de cuidado atuem a partir de um modelo
se confundem com problemas familiares, que caracteriza seu próprio mundo cultural.
gerando repercussões sobre as intervenções Assim, a pouca ou nenhuma problematiza-
realizadas. ção das concepções sobre saúde/doença,
Dentro dessa perspectiva, as dinâmicas problema, público/privado e família, por
familiares são reconhecidas primordialmen- exemplo, pode fazer com que cada profis-
te como agentes facilitadores ou compli- sional proceda da forma com a qual pactua
cadores do trabalho dos profissionais. Eles consigo mesmo ou com um grupo afim, par-
esperam que as famílias colaborem nos tra- tindo, muitas vezes, de concepções morais e
balhos que realizam, ou que, pelo menos, não idealizadas, o que, no caso da conceituação
atrapalhem: sobre família, pode estar associado à noção
única e exclusiva do bem, como transparece
Acho que a família pode, ao mesmo tempo, nos na fala da enfermeira da equipe: “um objetivo
ajudar e nos atrapalhar. Varia, é relativo. Acho que todo mundo visa durante a vida, que é o de
que é um ponto importante, é sempre bom en- construir e ter uma família” (ENF).
globar toda a família para resolver a situação. Tais concepções, de acordo com Sarti
(AC3). (2010), dificultam pensar o conflito como
inerente às relações familiares, e impedem
Assim, a família é convocada a ajudar na a construção de outros saberes prove-
resolução de problemas sim, mas dos proble- nientes da diversidade e das negociações,
mas individuais, o que ficou bem evidente na pois tendem à patologização de tudo o que
fala do técnico de enfermagem, sobre como implica em situação de conflito e ruptura nas
busca solucionar as demandas das famílias: relações (SARTI, 2010). Além disso, a imprecisão
no uso de tal conceito, fruto da ausência de
Realizando tratamento especializado sobre de- uma reflexão sobre as implicações de se fo-
terminado tema específico. Uma ação especiali- calizar a família como unidade de atenção
zada a uma pessoa que afeta toda a família. Aju- leva a uma constante tendência a enxergar a
dando a família a criar melhores condições para família a partir de um olhar tradicional, sob a
o paciente. (T. E.). formatação pai, mãe e filhos biológicos que,
se não for sagrada, ao menos consiste em um
Isso versa sobre uma perpetuação das espaço avesso a grandes interferências, pois,
ações ainda focadas no indivíduo, no porta- afinal, “tem coisas que só a família pode resol-
dor de uma doença, sobre o qual a família ver” (AC3). Os profissionais acreditam que
funciona, se colaborativa, como meio para haja um limite entre o que podem fazer e o
alcançar um objetivo, e como facilitadora, desejo da família em ser ajudada, e relatam
ao permitir a realização dos procedimentos vários casos de “pessoas que não são ajudadas
profissionais necessários à cura do indivíduo. porque a família não permite interferirem em
Se as visitas domiciliares são aponta- seus conflitos” e que, por isso, ficam com os
das pelos profissionais como oportunida- “pés atrás, pois, às vezes, a própria família não
des para o conhecimento do espaço onde quer ser ajudada, aí não se pode fazer nada”
vivem as famílias e suas dinâmicas, os con- (AC2).
flitos de família aparecem como o cadinho Essa ideia de até onde ir parece circular
que delimita as matérias pertinentes ao nesta equipe como um forte determinante

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 771-782, OUT-DEZ 2014


780 BEERENWINKEL, A.; KEUSEN, A. L.

das ações, a partir de uma difícil delimitação e tem casos que precisa mesmo de terapia de
entre o que é da ordem do público e o que é família” (MED). Em outra ocasião, durante
da ordem do privado. Assim, tudo deve ser uma consulta conjunta (matriciamento), foi
feito para tentar ajudar, “respeitando a priva- sugerido por outro médico que a paciente
cidade, claro”, pois “não dá para cuidar/tratar fosse encaminhada à Roda Comunitária. No
de quem não quer ser tratado” (MED). entanto, a paciente, que muito falou sobre
Assim, partindo de concepções tradicio- seus problemas e angústias, não compareceu
nalmente aceitas no campo da saúde, onde às Rodas das semanas seguintes e, embora
se privilegia a dimensão biológica do corpo, não seja possível entender o motivo, é possí-
de acordo com Scott (2004), a abordagem fa- vel supor que a participação do ACS poderia
miliar acaba acontecendo por ciclo de vida, ter evitado a descontinuidade no cuidado,
onde os indivíduos são divididos de acordo vez que este, por residir na mesma área,
com sua idade e gênero (crianças até os dois poderia incentivar a paciente à ida à ativida-
anos; gestantes; idosos; hipertensos; dia- de. No entanto, nenhum trabalhador da ESF
béticos...) ou, então, por domicílio, como se ou do CMS sequer compareceu às três Rodas
família estivesse adstrita apenas à unidade acompanhadas durante a pesquisa.
doméstica. Como os registros dos usuários
são feitos por residências, é comum que a
casa se confunda com o alvo da atenção à Conclusão
saúde, como aponta Sarti (2010), e os profis-
sionais acabam não atentando para o fato de Vimos que a ESF parte de uma proposta de
que família pode incluir uma pluralidade de redução na fragmentação e na parcialização
formatos e configurações que transcendem do cuidado, a partir do desenvolvimento de
o núcleo doméstico, tais como redes de vizi- ações inovadoras na busca da promoção da
nhança e parentesco, que lhes permitiriam saúde. Essas novas ferramentas se apoiam
pensar em tais unidades como um mundo de no vínculo, no respeito e na ética, ao eleger
relações. as famílias e a comunidade como focos das
Então, parece que chegamos ao grande ações, além de levar em consideração todos
desafio para os profissionais na Atenção os atores envolvidos.
Básica, o que inclui os profissionais e a equipe Adentrando as concepções dos profis-
aqui estudada: ver a família como um mundo sionais que participaram desta pesquisa,
de relações dinâmicas em cujo âmbito as verificamos que eles manifestam uma ideia
suas ações sejam calcadas no cuidado, não negativa sobre dinâmicas familiares, associa-
como uma intervenção pontual, mas como da apenas aos problemas enfrentados pelas
um processo contínuo. famílias, tais como, por exemplo, as condi-
Quando lhes perguntamos sobre a Roda ções de renda e moradia, ou seja, fatores so-
Comunitária, por exemplo – atividade ofe- cioeconômicos atinentes ao meio onde elas
recida nesse CMS, e que poderia ser con- vivem.
siderada como específica para as famílias A variabilidade nas respostas interven-
e as questões da comunidade, auxiliando a tivas, no entanto, parece estar de acordo,
ESF na diminuição da procura por consultas dentre outros fatores, com o nível de en-
médicas e idas dos usuários ao CMS apenas tendimento desses profissionais sobre suas
com o intuito de serem ouvidos e acolhidos –, ações e sua vinculação, que podem interferir
o médico disse gostar do trabalho e encami- no grau de satisfação que atribuem aos seus
nhar alguns pacientes; porém, segundo ele, a trabalhos.
roda acaba “ficando na superficialidade, pois O trabalho em equipe é o espaço onde
as pessoas não gostam de se abrir em grupo, se aglutinam os desafios da inovação e da

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 771-782, OUT-DEZ 2014


A dinâmica familiar sob a ótica do profissional da Estratégia Saúde da Família 781

negociação. É na equipe onde várias formas A título de conclusão, embora o desloca-


de pensar sobre uma mesma questão coexis- mento do foco da atenção do indivíduo para
tem, o que a torna mais rica em potenciali- a família e comunidade seja a meta da ESF,
dades e também mais complexa. É comum a maioria dos profissionais acompanhados e
existirem situações de implicância, inveja, entrevistados nesta pesquisa revelam pouco
ciúmes (palavras do médico), nas equipes. entendimento sobre o modo como atingi-la,
Assim, torna-se fundamental não somente por acreditarem que, ainda que lidando com
ampliar o debate e a discussão sobre as con- famílias, seus trabalhos devam ser direciona-
cepções, como também promover um espaço dos para cada indivíduo.
de compartilhamento que possibilite a co- Demonstrando ainda pouco entendimen-
construção de sentidos por toda a equipe. to sobre as dinâmicas familiares, suas pre-
No entanto, vimos que a circulação dos ocupações não passam por um olhar capaz
saberes não parece acontecer nos dois sen- de abranger o desenvolvimento e as trans-
tidos. O vínculo entre ACS e comunida- formações das famílias, razão pela qual eles
de/família/usuário, que deveria ser uma acabam por tornarem-se vigilantes e atuan-
ferramenta para a ampliação do entendimen- tes em situações que exponham a riscos a
to dos profissionais sobre os processos pelos saúde dos indivíduos dentro de uma família.
quais passam as famílias, bem como para o Torna-se imprescindível uma supervisão
enfrentamento das dificuldades com que se que contribua para libertá-los apenas das
deparem nos seus trabalhos, vistos com des- ações pontuais de cuidado, por meio do de-
confiança, torna-se um empecilho ao com- senvolvimento de uma visão que transcenda
partilhamento desses saberes, em nome de os sintomas, as patologias ou os conflitos, e
um cuidado com a exposição dos pacientes. que inaugure uma atuação direcionada real-
Assim, tanto ACS quanto famílias podem ser mente ao bem-estar das famílias, a partir do
colocados num patamar de instrumentalida- conhecimento das suas dinâmicas, do modo
de para que os agentes curadores alcancem de funcionamento das famílias e da comuni-
as metas e os objetivos pretendidos. dade onde vivem. s

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 771-782, OUT-DEZ 2014


782 BEERENWINKEL, A.; KEUSEN, A. L.

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de GIACOMOZZI, C. M.; LACERDA, M. R. A prática da


Saúde. Projeto Promoção da Saúde: as cartas da promoção assistência domiciliar dos profissionais da estratégica de
da saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2002. saúde da família. Texto contexto - enferm, Florianópolis, v.
15, n. 4, p. 645-653, 2006.
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas em
Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da família GONDIM, S. M. G.; FISCHER, T. O discurso, a análise do
no Brasil: uma análise de indicadores selecionados 1998- discurso e a metodologia do discurso do sujeito coletivo
2004. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006a. na gestão intercultural. Caderno Gestão Social, Salvador, v.
2, n. 1, 2009.
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Básica.
Departamento de Atenção Básica. Política Nacional MERHY, E. E.; FEUERWERKER, L. C. M. Atenção
de Atenção Básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde, domiciliar: medicalização e substitutividade. 2007.
2006b. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ Disponível em: <http://www.hucff.ufrj.br/micropolitica/
publicacoes/politica_nacional_atencao_basica_2006.pdf>. pesquisas/atencaodomiciliar/textos/ad-medicalizacao_e_
Acesso em: 27 set. 2013. substitutividade.pdf>. Acesso em: 27 set. 2013.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção RASERA, E. F.; JAPUR, M. Grupo como construção social:
à Saúde. Departamento de Ações Programáticas aproximações entre construcionismo social e terapia de
Estratégicas. Saúde Mental no SUS: acesso ao tratamento e grupo. São Paulo: Vetor, 2007.
mudança do modelo de atenção: relatório de gestão 2003-
2006. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2007. SARTI, C. O lugar da família no Programa de Saúde da
Família. In: TRAD, L. A. B. (Org) Família contemporânea
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção e saúde: significados, práticas e políticas públicas. Rio de
à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Janeiro: Editora Fiocruz, 2010.
Humanização. Clínica ampliada, equipe de referência e
projeto terapêutico singular. 2. ed. Brasília, DF: Ministério SCOTT, P. R. Gerações, comunidades e o Programa
da Saúde, 2008. Saúde da Família: reprodução, disciplina e simplificação
administrativa. In: LINS, M. (Org.). Família e gerações. Rio
CAMPOS, C. E. A. O desafio da integralidade segundo as de Janeiro: FGV, 2004.
perspectivas da vigilância da saúde e da saúde da família.
Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 569-584, TRAD, L. A. B. (Org) Família contemporânea e saúde:
2003. significados, práticas e políticas públicas. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2010.
CUNHA, G. T. A construção da Clínica Ampliada na
Atenção Básica. São Paulo: Hucitec, 2005.
Recebido para publicação em março de 2014
Versão final em novembro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
DIMENSTEIN, M. O Apoio Matricial em unidades de
Suporte financeiro: não houve
saúde da família: experimentando inovações em saúde
Mental. Saúde soc. São Paulo, v. 18, n. 1, p. 63-74, 2009.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 771-782, OUT-DEZ 2014


artigo original | original article 783

Práticas discursivas na participação social


em saúde mental
Discursive practices in mental health social participation

Aparecida Rosângela Silveira1, Anne Raissa Souza Dias Brante2, Cornelis Johannes van Stralen3

RESUMO Este artigo analisa as práticas sociais de usuários, gestores e trabalhadores no


tocante à participação social na política de saúde mental entre participantes da II Conferência
Municipal de Saúde Mental – Intersetorial de Montes Claros, Minas Gerais. Trata-se de pes-
quisa qualitativa, com realização de entrevistas semiestruturadas. As falas foram interpre-
tadas por meio da análise de discurso textualmente orientada. Os resultados apontam para
a heterogeneidade de concepções sobre a participação social. O estudo revela que apenas a
realização de conferências de saúde mental não garante a incorporação dos diversos segmen-
tos sociais no controle social em políticas de saúde mental no município.

PALAVRAS-CHAVE Participação social; Saúde mental; Pesquisa qualitativa.

ABSTRACT This article analyzes the social practices of users, managers and employees regar-
ding the social participation in mental health policy between participants of the II Municipal
Conference of Mental Health – Intersectoral of Montes Claros, Minas Gerais. This is a quali-
1 Doutora em Psicologia tative research, with the realization of semi-structured interviews. The lines were interpreted
pela Universidade Federal by means of the textually oriented discourse analysis. The results point out to heterogeneity of
de Minas Gerais (UFMG)
– Belo Horizonte (MG), conceptions about social participation. This study reveals that only the mere accomplishment of
Brasil. Professora da conferences about mental health does not guarantee the incorporation of several social segments
Universidade Estadual
de Montes Claros in the social control in mental health policies in the municipality.
(Unimontes) – Montes
Claros (MG), Brasil.
silveira.rosangela@uol.com.br KEYWORDS Social participation; Mental health; Qualitative research.
2 Graduada em Psicologia
pela Faculdade de Saúde
Ibituruna (Fasi) – Montes
Claros (MG), Brasil.
Psicóloga da Secretaria
Municipal de Saúde de
Montes Claros – Montes
Claros (MG), Brasil.
anneraissasouzadias@
gmail.com

3 Doutor em Ciências

Sociais pela Utrecht


University – Utrecht,
Holanda. Pesquisador da
Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG)
– Belo Horizonte (MG),
Brasil.
stralen@superig.com.br

DOI: 10.5935/0103-1104.20140071 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 783-793, OUT-DEZ 2014
784 SILVEIRA, A. R.; BRANTE, A. R. S. D.; STRALEN, C. J.

Introdução dos pilares para a reformulação da política


nacional de saúde. Foram introduzidos os
A participação da população é reconhecida mecanismos participatórios em processos
como um dos pilares do Sistema Único de de tomada de decisão em políticas de saúde.
Saúde (SUS), tendo nos conselhos e confe- As propostas da 8ª Conferência Nacional
rências de saúde suas principais formas de de Saúde foram consideradas no texto da
legitimação. Constituição Brasileira de 1988, na Lei 8080,
Alguns autores apresentam uma conver- de 1990, que instituiu o Sistema Único de
gência quanto à definição de participação Saúde (SUS), e na Lei 8.142, de 1990, que trata
como “a capacidade que têm os indivíduos da participação da comunidade na gestão do
de intervir na tomada de decisões em todos SUS. Esses arranjos representam avanços
aqueles aspectos de sua vida cotidiana que os porque incluíram vários atores sociais nas
afetam e envolvem” (VIANNA; CAVALCANTI; CABRAL, esferas políticas (STRALEN et al., 2006).
2009, p. 222). A participação social em saúde, no Brasil,
Nesse sentido, Escorel e Moreira (2008) é regulamentada através dos conselhos e
abordam a amplitude de significados para o das conferências de saúde. Essas instâncias
termo participação, seus múltiplos sentidos, colegiadas são obrigatórias em todo o País.
e concluem que se trata de algo intrínseco à As conferências têm a função de formular e
vida social. Esses autores afirmam que: propor diretrizes para a política de saúde. Os
conselhos são órgãos colegiados compostos
no processo de formalização da participação por representantes do governo, prestadores
social no setor de saúde no Brasil ‘o contro- de serviços, profissionais de saúde e usuá-
le social’ passou a expressar a possibilidade rios. Têm um caráter consultivo, de auscul-
de a sociedade controlar o Estado por meio tação da sociedade.
de instâncias participativas. (ESCOREL; MOREIRA, Os conselhos de saúde são arranjos parti-
2008, P. 1001). cipativos que pretendem ser mecanismos de
divisão de poder. Eles são órgãos de repre-
A partir da Constituição Brasileira de sentação mista de atores da sociedade civil
1988, abriram-se as perspectivas para uma e de atores estatais. Para Vianna et al. (2009),
prática democrática de controle social na as conferências e os conselhos de saúde
área da saúde, através de fóruns participati- consolidaram-se na condição de espaços de
vos. Começaram a surgir possibilidades de a mediação, participação e intervenção de in-
sociedade civil interferir na gestão pública, teresses e valores plurais.
seja no que se refere à orientação de ações Por sua vez, Stotz (2006) aponta que essas
do Estado ou no que diz respeito aos gastos instâncias colegiadas não têm sido popula-
estatais para atendimento dos interesses res, nem ambientes de debates e discussões
coletivos. que remetam às situações de saúde locais.
Escorel e Moreira (2008) sinalizam, ainda, Ao contrário: esses fóruns têm se comporta-
que a Conferência de Atenção Primária em do como processo de credenciamento para
Saúde de Alma-Ata constituiu marco his- indicação de delegados para as etapas esta-
tórico de reconhecimento da importância dual e nacional. Contudo, há um consenso
da participação na reorganização dos siste- entre vários autores de que experiências de
mas de saúde. No Brasil, após dez anos da mobilização popular são imprescindíveis
Declaração de Alma-Ata, intensa mobiliza- para garantir a participação democrática nas
ção social criou as condições para que a 8ª conferências de saúde; e de que, quando os
Conferência Nacional de Saúde (1986) con- segmentos sociais, sobretudo aqueles que
solidasse a participação popular como um estão à margem da sociedade civil, passam a

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 783-793, OUT-DEZ 2014


Práticas discursivas na participação social em saúde mental 785

refletir sobre a sua realidade e perceber os Considera-se que as formas pelas quais esses
problemas de sua comunidade, começam-se segmentos vivenciam e expressam discursi-
a desvendar possibilidades de enfrentamen- vamente esses fóruns participativos refletem
to desses problemas. Nesse sentido, as con- seu envolvimento social na construção das
ferências são um caminho para aprofundar políticas públicas de saúde locais.
processos democráticos no SUS.
Embora a literatura apresente posições
divergentes com relação ao poder decisó- Saúde mental e participação
rio dessas instâncias colegiadas, elas vêm social
sendo aperfeiçoadas. Conferências gerais e
temáticas na saúde são realizadas periodi- Na década de setenta, num contexto de
camente. Por sua vez, os conselhos de saúde denúncias sobre maus tratos e violação de
receberam importantes reforçadores com a direitos humanos em instituições psiquiátri-
Resolução 453, de 10 de maio de 2012, que cas, surgem as primeiras experiências de re-
estabelece diretrizes para sua instituição, re- modelação dos serviços em saúde mental no
formulação, reestruturação e funcionamen- Brasil, envolvendo a mobilização de traba-
to, aprofundando seu papel na formulação e lhadores, familiares e da imprensa. Na cons-
proposição de estratégias e no controle das tatação de ausência de dignidade humana
políticas de saúde (CNS, 2012). nas instituições de ‘tratamento’ marcadas
Especificamente no campo da política pelo regime do isolamento, foram gestadas
de saúde mental, a participação social no novas modalidades assistenciais de base co-
Brasil é efetivada através da realização de munitária e territorial.
conferências de saúde mental e da partici- Em 1978, tais denúncias – aliadas a uma
pação dos diversos segmentos em comissões postura crítica sobre as políticas de saúde
de saúde mental. Nessa direção, já foram mental e a assistência psiquiátrica – levaram
realizadas quatro Conferências Nacionais ao Movimento dos Trabalhadores em Saúde
de Saúde Mental, precedidas por conferên- Mental, que suscitou importantes mobiliza-
cias estaduais e municipais. Entre elas, este ções sociais em direção ao Movimento de
estudo destaca a Conferência Municipal de Reforma Psiquiátrica Brasileira, em busca de
Saúde Mental – Intersetorial, em 2010, no uma nova maneira de cuidar da pessoa com
município de Montes Claros, Minas Gerais, sofrimento mental, baseada na desinstitu-
Brasil, como objeto de investigação, com o cionalização da loucura e sob o paradigma
objetivo de elucidar as práticas sociais rela- da atenção psicossocial.
tivas aos processos participativos na política No final dessa década, foi fundada a pri-
de saúde mental, na perspectiva de Norman meira associação de familiares de pessoas
Fairclough (2001), para quem o discurso é re- com sofrimento mental registrada no
conhecido como prática social que apresenta Brasil: a Sociedade de Serviços Gerais para
duas dimensões subjacentes: ideologia e re- a Integração pelo Trabalho (Sosintra).
lações de poder. Posteriormente, nas décadas de oitenta e
Considerando a importância desse fórum noventa, ocorreu uma multiplicação de
participativo para tecer um diagnóstico da organizações e associações formadas por
situação da saúde mental nos municípios, usuários, familiares e profissionais dos
bem como para propor melhorias nesse tipo recém-inaugurados serviços de atenção psi-
de cuidado, a pesquisa aqui relatada traz cossocial (ALMEIDA; DIMENSTEIN; SEVERO, 2010).
uma análise das práticas sociais de usuá- Em um contexto de ampliação dos
rios, gestores e trabalhadores de saúde com processos democráticos na saúde, a 8ª
relação à participação em saúde mental. Conferência Nacional de Saúde, realizada

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 783-793, OUT-DEZ 2014


786 SILVEIRA, A. R.; BRANTE, A. R. S. D.; STRALEN, C. J.

em 1986, delibera pela realização de confe- Ampliada da Comissão Intersetorial de


rências temáticas no País, entre elas, as da Saúde Mental, de outubro de 2009, pela sua
área de saúde mental. Assim, foi realizada realização (BRASIL; CNS, 2010).
a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental, Tendo como principal objetivo fortalecer
em 1987. Na conferência, foi destacada a ne- o debate da saúde mental no Sistema Único
cessidade de uma nova legislação e inversão de Saúde, em articulação com outros setores,
do modelo assistencial centrado no hospital. a 4ª Conferência Nacional de Saúde Mental
Em direção à ampliação da participa- – Intersetorial foi realizada em 2010, prece-
ção em saúde mental, no mesmo período, dida das etapas estaduais e municipais.
realizou-se o II Congresso Nacional dos Em cumprimento à etapa municipal,
Trabalhadores em Saúde Mental, cujo lema Montes Claros (MG) realizou a Conferência
foi: Por uma sociedade sem manicômios. Municipal de Saúde Mental – Intersetorial. Foi
Instituiu-se nesse congresso o dia 18 de maio a sua segunda conferência de saúde mental, e
como o Dia Nacional de Luta Antimanicomial teve como objetivos analisar a política de saúde
(AMARANTE, 2008). mental no município, promover o debate,
Com experiências de implantação de propor estratégias intersetoriais e indicar de-
serviços de base comunitária no País, no legados para a etapa estadual (CMS, 2010).
ano de 1992, realizou-se a 2ª Conferência
Nacional de Saúde Mental, com o tema
central Atenção Integral e Cidadania. Essa Método
Conferência foi, também, inspirada na
Conferência de Caracas, realizada em 1990, Considerando os objetivos deste estudo, op-
que instituiu princípios para a reorganização tou-se por uma pesquisa qualitativa, do tipo
da assistência à saúde mental na região das descritiva. A opção por essa metodologia se
Américas (BRASIL, 2004). deu na perspectiva de que, segundo Minayo
O ano de 2001 distinguiu-se pela reali- (2004), ela é capaz de abranger a questão do
zação da 3ª Conferência Nacional de Saúde significado e da intencionalidade ligada aos
Mental, sob o temário: Cuidar, sim. Excluir, atos, às relações e às estruturas sociais.
não – Efetivando a Reforma Psiquiátrica, Montes Claros foi escolhido como estudo de
com Acesso, Qualidade, Humanização e caso por se tratar de município que, na década
Controle Social, ano em que foi aprovada a de 1970, representou um marco em termos de
Lei 10.216, que trata dos direitos das pessoas experiência inovadora de aplicação do prin-
com transtornos mentais e reorienta a as- cípio da participação popular em política de
sistência à saúde mental em direção a um saúde, através do Projeto Montes Claros, que
modelo comunitário de atenção integral no inspirou o movimento sanitário brasileiro para
País (BRASIL; CNS, 2002). estabelecimento de diretrizes norteadoras da
Convocada através da Resolução nº. reformulação do sistema de saúde e de reorga-
433, de janeiro de 2010, a 4ª Conferência nização de serviços (ESCOREL, 2008).
Nacional de Saúde Mental – Intersetorial Constituíram como sujeitos da pesqui-
ocorreu nesse mesmo ano. Um conjunto de sa os representantes de usuários de saúde
ações foi determinante para sua realização: mental, trabalhadores e gestores de saúde
esforços do movimento de usuários, familia- que participaram da Conferência Municipal
res e trabalhadores em saúde, com a Moção de Saúde Mental – Intersetorial de Montes
nº. 12, da 13ª Conferência Nacional de Saúde, Claros (MG), em 2010. Os sujeitos foram se-
realizada em novembro de 2007; a Marcha lecionados aleatoriamente a partir da lista
dos Usuários da Saúde Mental, de setem- de presença. Inicialmente, foram seleciona-
bro de 2009; e a recomendação da Reunião dos doze sujeitos, quatro de cada segmento.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 783-793, OUT-DEZ 2014


Práticas discursivas na participação social em saúde mental 787

No entanto, foram realizadas dez entrevis- funcionamento, os princípios de organização


tas. O número de entrevistados foi definido e as formas de produção social dos sentidos”
ao adotar-se o processo de amostragem por (MINAYO, 2004, p. 211).
saturação teórica, que permite suspender a Em seguida, os dados foram interpretados
inclusão de novos participantes quando os à luz da Análise de Discurso Textualmente
dados coletados tornam-se redundantes ou Orientada (ADTO), proposta por Norman
reincidentes (FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008). Fairclough (2001). Trata-se de uma concepção
Sobre o perfil dos dez entrevistados, tridimensional do discurso. A primeira di-
quatro são representantes de usuários de mensão, chamada textual, considera a tradi-
saúde mental, três na condição de represen- ção de análise textual e linguística, também
tantes de trabalhadores de saúde e três como denominada descrição. A segunda dimen-
representantes de gestores de saúde. Entre os são, conceituada de interpretação, trata-se
representantes de usuários de saúde mental, da prática discursiva, que se relaciona com
dois são do gênero feminino e dois do gênero os processos de produção, distribuição e
masculino. A idade média dos entrevistados consumo textual, cuja natureza (dos proces-
é 53 anos. Quanto à escolaridade, um dos sos) varia entre diferentes tipos de discurso.
entrevistados é pós-graduado, dois possuem A terceira dimensão, também interpretativa,
curso superior incompleto e um tem ensino é denominada prática social, e envolve o dis-
fundamental incompleto. Nenhum deles curso como prática política e ideológica.
havia participado, anteriormente, de con- Este estudo foi aprovado pelo Comitê de
ferências de saúde. Dos representantes de Ética em Pesquisa da Soebras, CEP/Soebras,
trabalhadores de saúde, todos são do gênero protocolo número 01424/10, e o Termo
feminino. A idade média desse segmento é de Consentimento Livre e Esclarecido foi
32 anos. No que se refere à escolaridade, um assinado pelos participantes.
é pós-graduado e dois têm ensino superior
completo. Dois deles relataram já ter par-
ticipado de outras conferências de saúde. Resultados e discussão
Acerca dos representantes de gestores de
saúde, os três entrevistados são do gênero
feminino e funcionários do município. A As diferentes posições dos atores
idade média desse segmento é 43 anos. Uma sociais na participação em saúde
das participantes tem ensino médio, um tem
curso superior incompleto e um possui curso Adotando o termo ‘discurso’ para considerar
superior completo. Apenas um deles não o uso da linguagem como prática social enrai-
havia participado anteriormente de confe- zada em estruturas sociais, verifica-se que a
rências de saúde. formação discursiva dos sujeitos entrevistados
Para a coleta de dados, adotou-se a entre- sobre a participação social na saúde é marcada
vista semiestruturada, com questões nor- pela heterogeneidade, refletindo as marcas ide-
teadoras que permitiram aos entrevistados ológicas presentes nos textos. Entre os repre-
discorrer livremente sobre o tema proposto. sentantes de usuários, a ideia de participação
A primeira fase da interpretação dos social na saúde transita entre movimento social,
dados foi sistematizada a partir da leitura do militância, cultura, atuação nas instâncias de
material, buscando identificar as correlações controle social e participação na conferência de
entre as falas e o objeto de investigação do saúde. Para além da análise textual, verifica-se
estudo e tendo como referência a análise do uma prática discursiva de distanciamento das
discurso, que é uma metodologia de análise instâncias de controle social e a compreensão
que “[...] visa a compreender o modo de da participação social limitada à participação

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 783-793, OUT-DEZ 2014


788 SILVEIRA, A. R.; BRANTE, A. R. S. D.; STRALEN, C. J.

na conferência, levando os sujeitos a se afastar Na fala dos representantes de gestores de


das instâncias de controle social e até mesmo saúde, a participação social na saúde é reco-
ao desconhecimento da existência desses nhecida como participação na conferência e
fóruns participativos na política de saúde local, uma atividade de inserção social relacionada
em que as questões locais da política de saúde ao tratamento médico. Embora haja uma va-
mental possam ser debatidas e encaminhadas. lorização da participação social nos discur-
A seguinte fala ilustra essa questão: sos dos sujeitos participantes, há também
uma prática social discursiva de desconhe-
Eu acho a sociedade muito omissa com relação cimento de suas instâncias de participação
à saúde, principalmente a saúde mental. [...] A e a atribuição da participação aos usuários.
não ser as associações e o Dia 18 de maio, que é A conferência de saúde é reconhecida como
considerado o dia da Luta Antimanicomial, você espaço para participação social dos usuários:
não vê ninguém preocupado com a situação [...].
(U3). Eu acho que, hoje, participação social está sendo
muito importante. Antigamente não tinha isso. A
No discurso dos trabalhadores de saúde gente trabalha mais no tratamento da cura, e nem
entrevistados permeia a concepção de par- sempre a gente resolve tudo [...] nós trabalhamos
ticipação social na saúde ligada à ativida- com os usuários [...], e, infelizmente, se não tiver o
de interna do serviço, postura altruísta e social participando mais ativo de que o tratamen-
participação exclusiva nas conferências de to, tem horas que o social é mais importante do
saúde. Nesse caso, a participação social é que o tratamento médico mesmo. (G1).
reconhecida, prioritariamente, como ativi-
dade assistencial. Os sujeitos entrevistados Como reconhece Côrtes (2009), há uma
relatam: “Tudo que eu sei está relacionado polissemia de significados para o termo par-
ao meu trabalho aqui no Caps” (T1), comple- ticipação social nas falas dos três segmentos.
mentado por “Eu contribuo para que possa Nota-se que, entre os sujeitos entrevista-
salvar vidas. Então, é um trabalho gratifican- dos, os representantes de usuários de saúde
te, porque trabalhar com a saúde é você poder mental têm mais elaborado o conceito de
ajudar alguém [...]” (T2). Tal perspectiva, participação social como movimento social
para além de uma análise textual, aponta as e atuação nas instâncias de controle social.
marcas da ideologia que imputam o caráter Há uma prática distanciada dos proces-
assistencial de serviços de saúde, em detri- sos participatórios na saúde: “Eu acho que
mento da busca de autonomia dos sujeitos. não tem muita participação social na saúde.
O entendimento da participação social O usuário cobra muito, mas não busca par-
limitada à participação na conferência de ticipar” (G3). Também há uma tendência a
saúde destaca-se na fala de um dos sujeitos considerar somente a conferência de saúde
entrevistados desse segmento social: como mecanismo de participação social, ca-
racterizando um afastamento do exercício
É momento de se discutir as políticas para ajudar da cidadania por parte desse segmento.
no manejo, na organização dos serviços de saúde Segundo Fairclough (2001), as ideologias
do município, ajudar a decidir o que vai ser feito representam construções da realidade por
do dinheiro. Poder levantar as dificuldades e limi- meio da incorporação de significações que
tações que existem no município para a gente es- desembocam em relações de poder e repro-
tar melhorando. O primeiro objetivo mesmo seria duzem dilemas e contradições dentro e fora
levantar as dificuldades, as limitações do serviço dos grupos. Nesse sentido, o estudo aponta
de saúde em geral. (T3). para a limitação da compreensão da parti-
cipação social na política de saúde mental

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 783-793, OUT-DEZ 2014


Práticas discursivas na participação social em saúde mental 789

por parte dos segmentos envolvidos. descrédito com relação à sua capacidade de
influenciar a melhoria dos serviços de saúde
prestados à comunidade:
Discursos dos entrevistados
sobre conselho de saúde Eu acho que os conselhos de saúde são bons. Eles
reúnem as propostas que buscam melhorias para
O segmento de usuários de saúde tem o a saúde. Eles estão presentes em cada município
entendimento do conselho de saúde como e são compostos de usuários de saúde, trabalha-
órgão de representação e poder deliberativo. dores, gestores/prestadores de serviço. [...] Eu sei
As falas indicam uma valorização da atuação que o conselho municipal leva as propostas para
do conselho de saúde em direção ao discurso o conselho estadual, que leva para o federal. Eu
hegemônico na política de saúde, no sentido vejo que tem os conselhos, mas não tem melho-
de fortalecimento das instâncias de controle rias. (G3).
social. Contudo, a prática social predomi-
nante é de distanciamento dessa instância O discurso predominante nos três grupos
de participação e de pouca valorização do é de não reconhecimento do conselho de
controle social na saúde. O seguinte trecho saúde como importante instância participa-
ilustra tal achado: tiva e espaço de deliberação sobre a política
de saúde mental. Isso se confirma no distan-
Eu nunca fui em nenhuma reunião do conselho, ciamento que os três segmentos têm desse
mas a política que existe hoje é a de privilegiar a fórum participativo.
participação dos usuários e dos trabalhadores no Tal concepção dos sujeitos entrevistados
sistema. Conselhos, inclusive, vetam, votam e de- reproduz a visão de Martins et al. (2008), de
cidem sobre o repasse de recursos pra cada setor. que, no Brasil, ainda não se experimentou
Mas eu acho a reunião pouco divulgada. Inclu- um progresso sequencial dos direitos civis,
sive, a maioria da população, usuária da saúde, políticos e sociais, uma vez que o conceito
não sabe da existência do Conselho de Saúde, de cidadania ainda se encontra em lento pro-
que ele tem uma função deliberativa, que pode cesso de atribuição de valor e apresenta he-
contribuir na gestão da saúde. (U2). terogeneidade de formas de manifestação. E,
segundo Fairclough (2001), uma mudança es-
Os trabalhadores de saúde adotam uma trutural desse quadro encontrado só poderia
prática de distanciamento do conselho como advir da problematização das práticas dis-
espaço de debate das questões de saúde. A cursivas tradicionais e sua transformação.
seguinte fala aponta para essa direção: “Não
tenho contato nenhum, nunca tive. Na época
da faculdade, tive uma participação como As formações discursivas
ouvinte pra saber o que estava acontecendo sobre conferência de saúde
em saúde no município” (T3). Tal achado
corrobora a incipiente problematização da
no controle social
assistência e da gestão, bem como os indícios
de desvalorização desse fórum em processos Entre os usuários de saúde entrevistados,
de tomada de decisão no campo da saúde a análise indica que esse segmento tem a
mental. conferência como fórum de discussão de
Por sua vez, os gestores de saúde reco- política pública, de capacitação e resolução
nhecem o conselho de saúde como fórum de problemas. Contudo, os seus discursos
de discussão. Entretanto, o discurso desse estão marcados pela descrença com relação
segmento salienta uma prática social de ao potencial de a conferência influenciar os

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 783-793, OUT-DEZ 2014


790 SILVEIRA, A. R.; BRANTE, A. R. S. D.; STRALEN, C. J.

processos de tomada de decisão, refletin- entrando muita política partidária, que ainda atra-
do uma prática social de desvalorização da palha. Há muito tempo é assim [...] E a política da
participação do usuário: “É igual biscoito de saúde é outra, é participação, é atender melhor a
polvilho, faz muito barulho e não enche nada” população. (G1).
(U3).
Tal achado vai em direção à visão de O discurso da conferência como espaço de
Oliveira e Conciani (2009), para os quais a interesses divergentes e plurais, encontrado
cultura de não participar está relacionada a nesse segmento pesquisado, vem sendo dis-
uma herança histórica advinda do período cutido na literatura atual sobre processos
colonial e da ditadura no Brasil. Os discursos participativos em políticas públicas. Tal
sobre conferências se expressam na seguinte perspectiva tem no horizonte o desafio da
fala: mudança cultural com o consequente alar-
gamento dos processos participativos.
A de saúde mesmo eu não participei, mas parece Os representantes de usuários de saúde
que ela não tem acontecido com uma certa fre- mental entrevistados têm a conferência de
quência. Há um vazio, há uma questão cultural saúde mental como ambiente que possibilita
mesmo que precisa ser trabalhada. Ela preci- avanços no processo democrático, embora
sa ser trabalhada para ver se a gente consegue destaquem o uso da saúde mental para tratar
avançar nesse sentido de estar construindo uma de questões políticas locais. Eles consideram
política pública e criar meios de viabilizar essa esse fórum um processo pouco democrático,
política pública criada pelos conselhos, e não desigual nos critérios de inclusão, com desva-
essa criada nos gabinetes. (U1). lorização da participação dos usuários, o que
culmina numa prática social de descrença nos
Entre os trabalhadores entrevistados, a processos democráticos de mudança: “Eles
conferência de saúde é identificada como usam a saúde mental, fazem aquele reboli-
aperfeiçoamento técnico e reconhecida ço todo, fazem aquele esparramo, e depois as
como valorização do trabalho. Tais achados coisas continuam na mesmice” (U3).
culminam numa prática social de vivenciá- Nesse sentido, Côrtes (2002) afirma que a
-la, exclusivamente, como fórum técnico, mediação entre projetos conflitantes para o
seja para aprendizado, seja para troca de setor de saúde tem sido tratada em outras
experiências, bem como para a melhoria do instâncias, principalmente nos gabinetes
serviço de saúde: dos gestores públicos de saúde, esvaziando o
poder decisório do controle social.
[...] para discutir vários assuntos, discutir os ca- Contudo, é nesse segmento que este
sos atendidos e as vitórias nos atendimentos [...] estudo identifica um potencial crítico com
para passar alguns conhecimentos para pessoas relação à verticalização do processo de
que não conhecem o percurso que foi feito pra se construção da conferência no município e o
chegar ali. (T1). reconhecimento das possibilidades de em-
poderamento de usuários nesse contexto:
Para os representantes dos gestores, essa
instância de controle social é reconhecida Eu continuo achando que a discussão está vindo
como arena da política partidária e de interes- sempre de cima pra baixo. Sempre se discute po-
ses divergentes. Outras concepções, como po- lítica no gabinete. [...] Mas o fundamental disso é
lemização de ideias e resolução de problemas que é preciso que aconteçam as conferências, por-
comunitários, aparecem na análise textual. que é um espaço onde vai estar realmente criando
a possibilidade dessa discussão, da criação das po-
A conferência de saúde, hoje, infelizmente, está líticas públicas, de qual a participação efetiva dos

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 783-793, OUT-DEZ 2014


Práticas discursivas na participação social em saúde mental 791

usuários, servidores, de todo mundo. (U1). de conferências de saúde mental não garante
a participação ativa dos diversos segmentos
Por sua vez, nas formações discursivas sociais no controle social na saúde. A con-
dos representantes dos trabalhadores de cepção de participação social dos três seg-
saúde, destaca-se a valorização da conferên- mentos restringe-se à conferência de saúde,
cia como fórum técnico, confirmando uma ficando evidente o desconhecimento de
prática social distanciada dos processos par- outras formas de participação e de controle
ticipativos na saúde. O seguinte recorte de social. A participação no conselho de saúde
fala ilustra o caráter técnico da conferência é distante da realidade social dos sujeitos
de saúde mental: “Acredito que a conferência entrevistados.
é uma divulgação e é a qualificação dos profis- Há um reconhecimento da importância
sionais” (T2). da conferência de saúde mental entre os
Já os representantes de gestores reconhe- sujeitos entrevistados. Entretanto, atribuem
cem a conferência como espaço de discus- limites à capacidade de as conferências
sões e busca de soluções. Contudo, ressaltam de saúde mental produzirem mudanças e
a sua pouca capacidade de influenciar pro- avanços na realidade de saúde do município.
cessos decisórios: “A partir da conferência, Os trabalhadores de saúde tendem a per-
surgem as soluções. Mas que não fique só no ceber as conferências como um espaço de
papel, que tenha prática” (G3). aprimoramento técnico, reduzindo a função
A realização da etapa municipal como dessa instância na avaliação da situação de
cumprimento de uma agenda nacional fica saúde e na proposição de diretrizes nortea-
evidenciada neste estudo e vai em direção ao doras de políticas de saúde.
que tem sido relatado na literatura (STRALEN, Fica evidente neste estudo que apenas a
2006). É possível afirmar que trabalhadores incorporação desses segmentos na conferên-
e gestores participaram da conferência mu- cia não garante a sua integração no processo
nicipal de saúde mental apenas pela forma- de participação social em políticas de saúde
lidade que suas funções exigem no cenário mental no município.
municipal. A partir da análise dos sujeitos entrevis-
tados, este estudo demonstra que algumas
barreiras precisam ser vencidas para que a
Considerações finais presença desses segmentos signifique uma
participação ativa nos processos decisó-
Na concepção da ADTO, os eventos discur- rios. Faz-se necessária a formação política
sivos tomados neste estudo são reveladores de usuários e trabalhadores em direção ao
da relação dos sujeitos entrevistados com a empoderamento na participação social e
prática de participação social. Há posições qualificação da participação em instâncias
divergentes dos sujeitos entrevistados sobre de controle social. Tal perspectiva encontra
a participação social e dos objetivos das con- ressonância em Fairclough (2001), para quem
ferências de saúde enquanto instâncias de a transformação da prática social passa pela
controle social, apresentando lógicas contra- problematização de seus discursos.
ditórias no tocante ao alargamento dos pro- Algumas ações – como a construção de
cessos democráticos na saúde. O segmento cartilhas informativas sobre a atuação do
dos usuários consegue definir com maior conselho de saúde, com data e local das reu-
clareza a importância da participação social niões, criação de fóruns de debate e comissão
no controle social de políticas públicas e local de saúde mental – poderão estimular
suas formas de inserção. a inclusão desses segmentos em instâncias
Este estudo revela que apenas a realização participativas na saúde.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 783-793, OUT-DEZ 2014


792 SILVEIRA, A. R.; BRANTE, A. R. S. D.; STRALEN, C. J.

No que se refere a uma participação já tenham as propostas que se aproximem da


mais efetiva e qualificada em conferências realidade e das necessidades locais.
de saúde mental, sugere-se a realização de Nesse cenário, as instituições de ensino
eventos preparatórios nos territórios, em poderão contribuir para o aprofundamen-
que tanto usuários quanto trabalhadores to dos processos democráticos através do
de saúde e gestores possam ser informados fomento de novos estudos e proposições de
sobre seus objetivos, e os temas poderiam estratégias de incremento e acompanha-
ser trabalhados antecipadamente, para que, mento dos fóruns de participação social. s
nas conferências futuras, os representantes

Referências

ALMEIDA, K. S.; DIMENSTEIN, M.; SEVERO, ______. Relatório final da IV Conferência Nacional de Saúde
A. K. Empoderamento e atenção psicossocial: Mental. Brasília: Conselho Nacional de Saúde: Ministério
notas sobre uma associação de saúde mental. da Saúde, 2010.
Interface (Botucatu), Botucatu, v. 14, n. 34, set. 2010.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE (CMS).
php?script=sci_arttext&pid=S1414-3283201000030 Regimento Interno da II Conferência Municipal de Saúde
0009&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 01 set. 2010.  Mental – Intersetorial. Montes Claros: CMS, 2010.

AMARANTE, P. D. C. Saúde mental, CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE (CNS). Resolução


desinstitucionalização e novas estratégias de cuidado. nº. 433, de 14 de janeiro de 2010b. Solicita a Convocação
In: GIOVANELA, L. et al. (Org.) Políticas e sistema de da IV Conferência Nacional de Saúde Mental –
saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008. p. Intersetorial. Diário Oficial da República Federativa
735-759. do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 08 fev. 2010.
Disponível em: <http://www.in.gov.br>. Acesso em: 28 de
BRASIL. Declaração de Caracas. In: BRASIL. Ministério mar. 2010.
da Saúde. Secretaria-Executiva. Secretaria de Atenção à
Saúde. Legislação em saúde mental: 1990-2004. 5 ed. ampl. ______. Resolução nº. 453, de 10 de maio de 2012. Aprova as
Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2004. p. 11-13. diretrizes para instituição, reformulação, reestruturação
e funcionamento dos Conselhos de Saúde. Disponível em:
BRASIL. Sistema Único de Saúde; CONSELHO <http://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/
NACIONAL DE SAÚDE (CNS). Comissão Organizadora linhas-guia/linhas-guia>. Acesso em: 22 dez. 2012.
da III CNSM. Relatório final da III Conferência Nacional
de Saúde Mental. Brasília: Conselho Nacional de Saúde: CÔRTES, S. M. V. Construindo a possibilidade da
Ministério da Saúde, 2002. participação dos usuários: conselhos e conferências no

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 783-793, OUT-DEZ 2014


Práticas discursivas na participação social em saúde mental 793

Sistema Único de Saúde. Sociologias, Porto Alegre, n. OLIVEIRA, A. G. B.; CONCIANI, M. E. Participação
7, jun.  2002. Disponível em: <http://www.scielo. social e reforma psiquiátrica: um estudo de caso.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-4522 Ciênc. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n.
2002000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 1, fev. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.
30 mar. 2010. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S1413-
81232009000100038&lng=en&nrm=iso>. Acesso em:
ESCOREL, S. História das políticas de saúde no Brasil 06 out. 2010.
de 1964 a 1990: do golpe militar à reforma sanitária.
In: GIOVANELA, L. et al. (Org.) Políticas e sistema de STOTZ, E. N. Trajetória, limites e desafios do controle
saúde no Brasil, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008. p. social do SUS. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 30, n.
333-384. 73/74, p. 149-160, mai/dez. 2006.

ESCOREL, S.; MOREIRA, M. R. Participação Social. STRALEN, C. J. et al. Conselhos de Saúde: efetividade
In: GIOVANELA, L. et al. (Org.) Políticas e sistema de do controle social em municípios de Goiás e Mato
saúde no Brasil, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008. p. Grosso do Sul. Ciênc. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.
979-1010. 11, n. 3, set. 2006. Disponível em: <http://www.
scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S1413-
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: 81232006000300011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 28
UNB, 2001. mar. 2010.

FONTANELLA, B. J. B.; RICAS, J.; TURATO, E. R. VIANNA, M. L. T. W; CAVALCANTI, M. L; CABRAL,


Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em M. P. Participação em saúde: do que estamos falando?
saúde: contribuições teóricas. Cad. Saúde Pública,  Rio Sociologias, Porto Alegre, n. 21, jun. 2009. Disponível em:
de Janeiro, v. 24, n. 1, jan. 2008. Disponível em: <http:// <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- S1 517-45222009000100010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso
311X2008000100003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 05 em:  28  mar.  2010.
jun. 2010.

Recebido para publicação em setembro de 2013


MARTINS, P. C. et al. Conselhos de saúde e a participação Versão final em outubro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
social no Brasil: matizes da utopia. Physis, Rio de
Suporte financeiro: Fapemig, processo  APQ 4429-5.06/07,
Janeiro, v. 18, n. 1, 2008. Disponível em: <http://www. pesquisa:  Gestão Participativa  no Sistema Único de Saúde:
demandas, interesses e instituições e do Fundo Nacional de
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
Saúde, processo 25000.219581/2007-67 Convênio  3568/2007,
73312008000100007&lng =en&nrm=iso>. Acesso em: pesquisa: Estudos Qualitativos de Conferências de Saúde: o caso
de Minas Gerais
06 out. 2010.

MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa


qualitativa em saúde. 8 ed. São Paulo: Hucitec, 2004.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 783-793, OUT-DEZ 2014


794 artigo original | original article

Subnotificação de maus-tratos em crianças e


adolescentes na Atenção Básica e análise de
fatores associados
Underreporting of children and adolescents abuse in Primary Care
and analysis of factors associated

Ana Carine Arruda Rolim1, Gracyelle Alves Remigio Moreira2, Carlos Roberto Silveira Corrêa3,
Luiza Jane Eyre de Souza Vieira4

RESUMO Estudo transversal que analisou os fatores associados à subnotificação de maus-tra-


tos em crianças e adolescentes. Participaram do estudo 1.055 profissionais que trabalhavam
na Atenção Básica em 85 municípios cearenses. Os dados foram obtidos por meio de ques-
tionário e submetidos à análise bivariada e multivariada por regressão logística. O modelo
final mostrou que ter menos de cinco anos de trabalho, não conhecer a ficha de notificação,
não ter a ficha na unidade de saúde, não confiar nos órgãos de proteção, não saber para onde
1Doutoranda em Saúde
Coletiva pela Universidade encaminhar os casos e ter medo de envolvimento legal aumentou a chance dos profissionais
Estadual de Campinas não notificarem situações de maus-tratos nesse grupo.
(Unicamp) – Campinas,
SP, Brasil.
anacarine.rolim@hotmail.com PALAVRAS-CHAVE Violência; Criança; Adolescente; Notificação; Atenção Primária à Saúde.
2Doutoranda em Saúde
Coletiva pela Universidade ABSTRACT A cross-sectional study that aimed to analyze the factors associated with the under-
de Fortaleza (Unifor) –
Fortaleza, CE, Brasil. reporting of maltreatment towards children and adolescents. The study included 1.055 professio-
gracyremigio@gmail.com nals working in Primary Care in 85 municipalities of Ceará. The data was obtained through a
3 Doutor em Saúde questionnaire and submitted to bivariate and multivariate logistic regression analysis. The final
Coletiva pela Universidade model showed that having less than five years of work, not knowing the notification form, not
Estadual de Campinas
(Unicamp) – Campinas, SP, having the record at the health unit, not trusting the protection agencies, not knowing where to
Brasil. Professor Assistente refer the cases and fearing legal involvement have increased the chances of professionals not in-
do Departamento de
Medicina Preventiva e forming situations of abuse in this group.
Social da Faculdade de
Ciências Médicas da
Universidade Estadual de KEYWORDS Violence; Child; Adolescent; Notice; Primary Health Care.
Campinas (Unicamp) –
Campinas, SP, Brasil.
ccorrea@fcm.unicamp.br

4 Doutora em Enfermagem
pela Universidade
Federal do Ceará (UFC)
– Fortaleza, CE, Brasil.
Professora Titular do
Programa de Pós-
Graduação em Saúde
Coletiva da Universidade
de Fortaleza (Unifor) -
Fortaleza, CE, Brasil.
janeeyre@unifor.br

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 794-804, Out-Dez 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140072
Subnotificação de maus-tratos em crianças e adolescentes na Atenção Básica e análise de fatores associados 795

Introdução e a efetiva prática dos profissionais de saúde


da AB.
O reconhecimento de crianças e ado- Tal panorama contribui para um quadro
lescentes como sujeitos de diretos pela de subnotificação de maus-tratos que aco-
Constituição Brasileira (BRASIL, 1988) e pelo metem crianças e adolescentes. A subnoti-
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ficação desses casos é um grave problema,
(BRASIL, 1990) representou um marco no en- pois a ausência de dados sobre o fenômeno
frentamento dos maus-tratos que atingem implica em sua invisibilidade e no não de-
o grupo e impulsionou a entrada do tema na sencadeamento de estratégias adequadas
agenda dos debates políticos e sociais. No pelo poder público, projetando suas ações
âmbito programático da saúde, a partir dos basicamente sobre os registros realizados.
anos 2000, políticas e portarias foram desen- Na concepção de Arpini et al. (2008, p. 98).
volvidas como instrumentos direcionadores
da atuação do setor nesse contexto (BRASIL, ao se revelar como uma realidade pouco ou
2001a, 2001b). mal conhecida, essa situação acaba por confi-
Entre as estratégias de garantia dos di- gurar-se invisível, operando, em nível estrutural,
reitos da população infantojuvenil, a notifi- como mais uma forma de violência.
cação de maus-tratos destaca-se como uma
oportunidade de intervenção precoce que Apesar da crescente publicação sobre o
visa romper com situações de violência, tema, ainda são escassas investigações que
minimizando as repercussões negativas do abordem os fatores que aumentam a chance
ato. As informações produzidas pela notifi- do profissional de saúde não proceder a no-
cação também favorecem a visibilidade do tificação de maus-tratos. Nessa perspectiva,
fenômeno, fato que é imprescindível para o o estudo constata sua relevância ao conhe-
planejamento de ações de prevenção e para cer e discutir os mecanismos que facilitam
a avaliação das medidas implementadas. Os o contexto da subnotificação na AB. Este co-
serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) nhecimento poderá suscitar o delineamen-
são responsáveis pela notificação de casos de to de estratégias para reverter esse quadro,
maus-tratos em crianças e adolescentes em visando que a notificação seja efetivada e a
resposta às Portarias nº 1.968/2001 (BRASIL, extensão do problema seja revelada, tendo
2001a) e nº 104/2011 (BRASIL, 2011). em vista que as políticas públicas e estraté-
No contexto da Atenção Básica (AB), a gias de enfrentamento da questão baseiam‑se
Estratégia Saúde Família (ESF) configura-se no dimensionamento epidemiológico.
em um lugar privilegiado para a atenção às Ensejando a elucidação dessas lacunas,
pessoas em situações de violência, devendo este estudo tem como objetivo analisar
considerar a família como unidade de os fatores associados à subnotificação de
cuidado (LIMA et al., 2011; ROCHA; MORAES, 2011). maus‑tratos em crianças e adolescentes no
Contudo, estudos apontam debilidades es- âmbito da Atenção Básica à saúde.
truturais e dificuldades dos profissionais
de saúde em identificar e notificar os casos,
sendo essas práticas ainda incipientes ao Métodos
nível da rede de atendimento, ocorrendo de
forma casual e não sistemática (LUNA; FERREIRA; Este trabalho é resultado da consolidação
VIEIRA, 2010; MOREIRA et al., 2013). Essas constata- de dados da pesquisa intitulada Violência
ções evidenciam o descompasso entre o que envolvendo crianças e adolescentes: fatores
é proposto pelos dispositivos legais e políti- condicionantes, processo de notificação e
cas públicas de enfrentamento do problema mecanismos de enfrentamento, que teve

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 794-804, Out-Dez 2014


796 ROLIM, A. C. A.; MOREIRA, G. A. R.; CORRÊA, C. R. S.; VIEIRA, L. J. E. S.

como meta obter o diagnóstico situacional de dados no programa SPSS (SPSS Inc.,
da notificação de maus-tratos no contexto Chicago, Estados Unidos), versão 17.0, com
da Atenção Básica em municípios cearenses. dupla entrada para organização e verificação
Os resultados dessa investigação evidencia- da consistência do material.
ram índices significativos de não notifica- Considerou-se como desfecho a não noti-
ção, o que impulsionou a realização deste ficação de maus-tratos em crianças e adoles-
recorte, tomando como objeto de análise a centes pelos profissionais e como variáveis
subnotificação. preditoras: sexo (masculino/feminino); pro-
Trata-se de um estudo do tipo transversal, fissão (enfermeiro/médico-dentista); idade
realizado em 85 cidades do estado do Ceará, (21 a 34 anos/> 34 anos); estado civil (casado/
correspondendo a 46,2% do total (184). As loca- não casado); tempo de formado (< 5 anos/>=
lidades investigadas se distribuem e represen- 5 anos); pós-graduação (sim/não); tempo de
tam as diferentes regiões do estado. trabalho na ESF (< 5 anos/>= 5 anos); e as
Participaram da pesquisa médicos, enfer- variáveis com respostas dicotômicas (sim/
meiros e cirurgiões-dentistas que trabalhavam não): participou de treinamento sobre a te-
na ESF. A coleta de dados aconteceu, entre os mática; conhece o ECA; conhece a ficha de
anos de 2010 e 2012, por meio do envio de um notificação; ficha de notificação na Unidade
conjunto de cartas-convite, termos de consen- Básica de Saúde; confia nos órgãos de prote-
timento livre e esclarecido e questionários, ção à infância e adolescência; sabe para onde
antecipadamente organizados em envelopes encaminhar os casos; tem medo de envolvi-
lacrados e identificados por município. Esses mento legal; lê sobre a temática; assunto é
formulários foram destinados aos gestores discutido no trabalho; conhece instituição
das Coordenadorias Regionais de Saúde e/ou de assistência à vítima; considera vantagem
às Secretarias Municipais de Saúde, que inter- instituir a notificação na AB.
mediaram a entrega aos profissionais de cada Para análise, o teste qui-quadrado (x2)
cidade. O retorno dos instrumentos preenchi- foi utilizado para verificar a associação
dos seguiu o fluxo inverso. entre o desfecho e as variáveis preditoras.
O número de profissionais do estudo foi Estabeleceu-se p<0,05 para significância es-
obtido a partir dos dados fornecidos pelo tatística. Seguiram-se a essas análises os pro-
Departamento da Atenção Básica, que, na cedimentos de modelagem múltipla por meio
época da pesquisa, contava com 2.640 tra- de regressão logística, incluindo no modelo
balhadores: 963 médicos, 963 enfermeiros e as variáveis preditoras que mostraram asso-
714 cirurgiões-dentistas. Destes, um total de ciação ao desfecho com significância p<0,25.
1.055 — 40,0%: 227 médicos, 616 enfermeiros Permaneceram no modelo múltiplo as variá-
e 212 cirurgiões-dentistas — responderam a veis ao nível de significância p<0,05. A força
este estudo. de associação entre o desfecho e as variáveis
Os dados foram obtidos por meio de um preditoras foi expressa em valores estima-
questionário composto por 32 questões adap- dos de Odds Ratio (OR) bruto e ajustado,
tadas e revisadas em trabalho anterior (LUNA; com Intervalo de Confiança (IC) de 95%. A
FERREIRA; VIEIRA, 2010), contendo como domínios análise estatística foi realizada utilizando-se
analíticos: sociodemográfico, formação pro- do programa Stata (Stata Corp LP, College
fissional, instrumentação e conhecimento Station, TX 77845, USA), versão 11.0.
sobre o tema, identificação e notificação de A pesquisa foi aprovada pelo Comitê
casos de maus-tratos em crianças e adoles- de Ética em Pesquisa da Universidade
centes. A partir das informações obtidas de Fortaleza – Unifor, sob o parecer nº
nos questionários, foi construído um banco 072/2007.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 794-804, Out-Dez 2014


Subnotificação de maus-tratos em crianças e adolescentes na Atenção Básica e análise de fatores associados 797

Resultados predominaram os profissionais que não se


depararam com essa situação (57,7%). Entre
Os participantes do estudo apresentaram os que afirmaram já ter identificado casos
média de idade de 33,8 anos (DP +-9,53) e os (42,3%), 59,2% não efetuaram a notificação
seguintes perfis: enfermeiros (58,4%), sexo das ocorrências.
feminino (67,1%), não casados (50,8%), com Na tabela 1, a análise bivariada apontou
cinco ou mais anos de formado (57,7%), com que as variáveis tempo de formado (p=0,040)
pós-graduação (73,9%) e com cinco ou mais e tempo de trabalho na ESF (p=0,035) apre-
anos de trabalho na ESF (50,9%). sentaram associação significativa com a não
Em relação à identificação e notificação notificação de maus-tratos, enquanto as
de maus-tratos em crianças e adolescentes, demais apresentaram p>0,05.

Tabela 1. Análise bivariada entre notificação de maus-tratos, dados sociodemográficos e formação profissional de
enfermeiros, médicos e cirurgiões-dentistas da Atenção Básica à saúde. Municípios cearenses, 2010-2012

Variável Notificou maus-tratos


Sim Não Não ajustada
n % n % OR (IC95%) p
Sexo (n=527)

Feminino 142 66,1 207 66,4

Masculino 73 33,9 105 33,6 0,98 (0,67–1,45) 0,943

Profissão (n=527)

Enfermeiros 132 61,4 185 59,3

Médicos / Cirurgiões-dentistas 83 38,6 127 40,7 1,09 (0,75–1,58) 0,628

Idade (em anos) (n=473)

21 a 34 anos 108 56,5 175 62,1

> 34 anos 83 43,5 107 37,9 1,25 (0,84–1,85) 0,230

Estado civil (n=525)

Casado 121 56,5 167 53,7

Não casado 93 43,5 144 46,3 1,12 (0,77–1,61) 0,520

Tempo de formado (n=526)

< 5 anos 61 28,4 115 37,0

≥ 5 anos 154 71,6 196 63 1,48 (1,00–2,19) 0,040

Pós-Graduação (n=521)

Sim 168 78,5 240 78,2

Não 46 21,5 67 21,8 1,01 (0,65–1,59) 0,929

Tempo de trabalho na APS* (n=526)

< 5 anos 75 35 138 44,2

≥ 5 anos 139 65,0 174 55,8 1,47 (1,01–2,14) 0,035

Fonte: Elaboração própria


*APS – Atenção Primária à Saúde

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 794-804, Out-Dez 2014


798 ROLIM, A. C. A.; MOREIRA, G. A. R.; CORRÊA, C. R. S.; VIEIRA, L. J. E. S.

Participou de treinamento sobre o tema, de envolvimento legal, lê sobre a temática,


conhece o ECA, conhece a ficha de notifica- assunto é discutido no ambiente de trabalho
ção, ficha de notificação na Unidade Básica e acha vantagem a instituição da notificação
de Saúde, confia nos órgãos de proteção, na AB apresentaram diferença estatística
sabe para onde encaminhar os casos, medo com o desfecho (p<0,05) (tabela 2).

Tabela 2. Análise bivariada entre notificação de maus-tratos, instrumentação e conhecimento de enfermeiros, médicos
e cirurgiões-dentistas da Atenção Básica à saúde. Ceará, 2010-2012
Variável Notificou maus-tratos
Sim Não Não ajustada
n % n % OR (IC95%) p
Participou de treinamento (n=523)
Sim 95 44,2 71 23,1
Não 120 55,8 237 76,9 2,64 (1,77–3,92) <0,001
Conhece o ECA* (n=525)
Sim 177 83,1 232 74,4
Não 36 16,9 80 25,6 1,69 (1,07–2,71) 0,018
Conhece a ficha de notificação (n=520)
Sim 150 70,7 129 41,9
Não 62 29,3 179 58,1 3,35 (2,27–4,96) <0,001
Ficha de notificação na UAPS** (n=514)
Sim 108 51,9 79 25,8
Não 100 48,1 227 74,2 3,10 (2,09–4,58) <0,001
Confia nos órgãos de proteção (n=513)
Sim 144 69,2 176 57,7
Não 64 33,8 129 42,3 1,64 (1,11–2,43) 0,008
Sabe para onde encaminhar (n=507)
Sim 179 85,6 187 60,7
Não 30 14,4 121 39,3 3,86 (2,42–6,26) <0,001
Medo de envolvimento legal (n=512)
Sim 78 37,1 146 48,3
Não 132 62,9 156 51,7 1,58 (1,08–2,30) 0,012
Lê sobre a temática (n=526)
Sim 88 40,9 93 29,9
Não 127 59,1 218 70,1 1,62 (1,10–2,37) 0,009
Assunto é discutido no trabalho (n=527)
Sim 112 52,1 57 18,5
Não 103 47,9 187 59,9 1,62 (1,12–2,34) 0,006
Conhece instituição de apoio à vítima (n=519)
Sim 53 25,1 57 18,5
Não 158 74,9 251 81,5 1,47 (0,94–2,31) 0,070
Acha vantagem instituir a notificação na AP*** (n=523)
Sim 197 91,6 261 84,7
Não 18 8,4 47 15,3 1,97 (1,08–3,71) 0,019
Fonte: Elaboração própria
* ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. ** UAPS – Unidade de Atenção Primária à Saúde. *** AP – Atenção Primária

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 794-804, Out-Dez 2014


Subnotificação de maus-tratos em crianças e adolescentes na Atenção Básica e análise de fatores associados 799

Foram eleitas para a análise múltipla de apoio à vítima e acha vantagem a institui-
(p<0,25) as variáveis: idade, tempo de ção da notificação na AB.
formado, tempo de trabalho na ESF, par- No modelo logístico final, tempo de tra-
ticipou de treinamento, conhece o ECA, balho na ESF, conhece a ficha de notificação,
conhece a ficha de notificação, ficha de noti- ficha de notificação na unidade de saúde,
ficação na unidade, confia nos órgãos de pro- confia nos órgãos de proteção, sabe para
teção, sabe para onde encaminhar, medo de onde encaminhar e medo de envolvimento
envolvimento legal, lê sobre o tema, assunto legal permaneceu associado ao desfecho
é discutido no trabalho, conhece instituição (tabela 3).

Tabela 3. Análise multivariada entre a notificação de maus-tratos e os fatores associados. Atenção Básica à saúde,
Ceará, 2010-2012
Variável Notificou maus-tratos
Sim Não Não ajustada
n % n % OR (IC95%) p
Tempo de trabalho na APS* (n=526)
< 5 anos 75 35,0 138 44,2
≥ 5 anos 139 65,0 174 55,8 1,62 (1,06–2,47) 0,025
Conhece a ficha de notificação (n=520)
Sim 150 70,7 129 41,9
Não 62 29,3 179 58,1 2,19 (1,36–3,51) 0,001
Ficha de notificação na UAPS** (n=514)
Sim 108 51,9 79 25,8
Não 100 48,1 227 74,2 2,14 (1,33–3,43) 0,002
Confia nos órgãos de proteção (n=513)
Sim 144 69,2 176 57,7
Não 64 33,8 129 42,3 1,57 (1,03–2,41) 0,036
Sabe para onde encaminhar (n=507)
Sim 179 85,6 187 60,7
Não 30 14,4 121 39,3 2,71 (1,64–4,48) <0,001
Medo de envolvimento legal (n=512)
Sim 78 37,1 146 48,3
Não 132 62,9 156 51,7 2,15 (1,40–3,28) <0,001
Fonte: Elaboração própria
* ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. ** UAPS – Unidade de Atenção Primária à Saúde

Dessa forma, o fato de ter menos de cinco órgãos de proteção aumentou 1,57 vezes a
anos de trabalho na ESF aumentou 1,62 possibilidade de não ser efetivado o ato no-
vezes a chance de o profissional não notifi- tificatório. Não saber para onde encaminhar
car as situações de maus-tratos. Não conhe- os casos elevou quase o triplo a chance da
cer a ficha de notificação e não ter a ficha na não notificação. Ter medo de envolvimen-
unidade de saúde elevou mais que o dobro a to legal aumentou 2,15 vezes a chance da
chance da subnotificação. Não confiar nos subnotificação.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 794-804, Out-Dez 2014


800 ROLIM, A. C. A.; MOREIRA, G. A. R.; CORRÊA, C. R. S.; VIEIRA, L. J. E. S.

Discussão ética, entre outros (BAZON, 2008; ASSIS et al., 2012).


O presente estudo confirma essas asserti-
O estudo aponta para a subnotificação de vas, evidenciando a existência de variáveis
maus-tratos em crianças e adolescentes na de múltiplas dimensões que interferem na
AB. Essa constatação condiz com a realidade decisão do profissional de exercer, também,
brasileira, conforme apontam estudos sobre o seu papel social diante da notificação de
o tema (BAZON, 2008; ASSIS et al., 2012). Também violência.
há relatos internacionais sobre essa lacuna, Vale ressaltar que, além da obrigatorie-
inclusive em países que dispõem de um dade legal estabelecida pelo ECA, a noti-
sistema de apoio e proteção consolidado (BEN ficação de casos suspeitos ou confirmados
NATAN et al., 2012; WEKERLE, 2013). de maus-tratos em crianças e adolescentes
O potencial dos serviços de saúde da também se constitui em um dever previsto
AB, no que diz respeito ao enfrentamen- nos códigos de ética médica, de enfermagem
to da questão, é apontado na literatura em e odontológica. Dessa forma, esse ato não se
virtude dos princípios que direcionam suas configura em quebra do sigilo profissional.
ações: intervenções de saúde vinculadas ao Ao contrário, a omissão do profissional de
território; proximidade das equipes com as saúde tem implicações éticas e legais que
famílias; possibilidade de vínculo e diálogo reverberam em penalidades (SALIBA et al., 2007).
com a comunidade; criação de protocolos O modelo logístico final mostrou que o
de vigilância e de monitoramento dos riscos fato de o profissional ter menos de cinco
para a violência (LUNA; FERREIRA; VIEIRA, 2010; ROCHA; anos de trabalho na ESF contribuiu para
MORAES, 2011). Em contrapartida, o que trans- a não notificação de casos de maus-tratos.
parece nos resultados deste trabalho é que Essa associação sugere que os trabalhado-
a identificação/notificação de maus-tratos res com menos experiência podem ter tido
ainda não se apresenta como uma prática menos oportunidade de qualificação/capaci-
incorporada na rotina da ESF, e lidar com tação no assunto, assim como podem ainda
essa questão envolve dificuldades que refle- não ter vivenciado situações de violência
tem a complexidade e multicausalidade do na sua prática, fato que não lhes atribui se-
fenômeno. gurança para o ato de notificar. A esse res-
Uma das propostas da notificação de peito, Moreira et al. (2013, p. 229) argumentam
violência, assim como outro evento de no- que “o amadurecimento pessoal e profissio-
tificação compulsória, é originar dados que nal propicia mais experiência, formação de
subsumam o planejamento de intervenções vínculos, habilidade de comunicação, maior
para a prevenção do agravo ou de seus danos. sensibilização à questão e confiança”, fa-
A adesão insatisfatória do profissional de vorecendo a notificação de maus-tratos em
saúde para cumprir os dispositivos que le- crianças e adolescentes.
gislam sobre o ato contribui para manter a Outro aspecto associado à subnotificação
invisibilidade do problema. Nessa perspec- foi o desconhecimento da ficha de notifi-
tiva, o modo como os serviços e os recursos cação, que se configura no instrumento de
humanos da saúde são trabalhados deve registro da situação de violência. Essa cons-
considerar os obstáculos que circunscrevem tatação pode refletir que, apesar da institui-
a efetivação dessa prática. ção e padronização da ficha no âmbito do
A subnotificação de maus-tratos é abor- SUS ter acontecido a mais de uma década
dada em outras investigações como um (BRASIL, 2001b), ainda verifica-se profissionais
desafio ao setor saúde devido a fragilidades que não manusearam e não reconhecem
operacionais relacionadas com fatores de essa ferramenta de garantia de direitos e
ordem institucional, política, legal, cultural, de vigilância epidemiológica. De fato, a

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 794-804, Out-Dez 2014


Subnotificação de maus-tratos em crianças e adolescentes na Atenção Básica e análise de fatores associados 801

aproximação do profissional com o tema da 2008). Galvão e Dimenstein (2009) chamam a


violência contra os grupos vulneráveis é rea- atenção para a relação dos serviços de saúde
lizada de maneira incipiente na maioria das com os órgãos de proteção, particularmente
matrizes curriculares da graduação e pós- os Conselhos Tutelares, que tem se confi-
-graduação em saúde (JOHNSON, 2002; MOREIRA et gurado em um entrave para a efetivação do
al., 2013). Sabe-se, por exemplo, que, no Brasil, ato de notificar. O Conselho Tutelar, apesar
o profissional de saúde tende a lidar com o de importante papel, muitas vezes trabalha
problema da violência como se este fosse de em condições adversas quanto à deficiên-
responsabilidade da esfera da segurança e da cia na infraestrutura física e nos recursos
justiça (SALIBA et al., 2007). humanos; além disso, ainda existem municí-
Essa lacuna se perpetua na trajetória pios onde essas instâncias não estão implan-
profissional devido à escassez de recursos tadas (DESLANDES et al., 2011; LIMA et al., 2011).
e a carência de programas de capacitação e A incredibilidade nos sistemas de proteção
educação permanente, o que requer maiores pode refletir a precariedade na infraestrutu-
investimentos da gestão dos serviços de ra de alguns órgãos e a descrença na capa-
saúde na qualificação dos profissionais para cidade desses serviços em oferecer solução
atuarem de forma efetiva frente às deman- para os casos (BAZON, 2008). Esses fatores têm
das de violência e atenderem às orientações sido obstáculos na condução dos casos e na
legais. tomada de decisão de ações futuras.
A ausência da ficha de notificação na Evidenciou-se que não saber para onde
Unidade Básica de Saúde também esteve encaminhar os casos de maus-tratos contri-
relacionada a não notificação de maus- buiu com o quadro de subnotificação. Esse
-tratos. É sabido que a falta ou desconhe- resultado corrobora o estudo que revelou
cimento de protocolos e/ou instrumentos que um dos principais fatores que interfe-
que apoiem condutas por parte dos pro- rem na identificação/notificação das situa-
fissionais constituem-se em dificuldades ções de violência é o conhecimento escasso
para o enfrentamento da questão em nível sobre a rede de apoio e proteção (LIMA et al.,
local. A notificação obrigatória de maus- 2011). Nessa perspectiva, o conhecimento e
-tratos em crianças e adolescentes é men- a articulação do profissional com os dispo-
cionada pela Agenda de Compromisso para sitivos de enfrentamento do problema são
a Saúde Integral da Criança e Redução da imperiosos tanto na sua prevenção como na
Mortalidade Infantil como ferramenta es- condução dos casos identificados, especial-
sencial para o cuidado às vítimas, devendo mente na AB.
ser implementada por todos os gestores da Rocha e Moraes (2011) descrevem a Atenção
saúde (BRASIL, 2005). Dessa forma, dispor desse Básica à saúde como elo entre os dispositi-
instrumento nos locais de trabalho e orientar vos intersetoriais de enfrentamento da vio-
o seu uso deve ser prioridade e ação mínima lência infantojuvenil. A intersetorialidade
para o cumprimento do ato notificatório. é uma estratégia amplamente reconhecida
A importância do apoio gestor e da articu- na condução dos casos, como mostrado em
lação da rede de enfrentamento é reforçada, uma pesquisa realizada em Minas Gerais que
nesta pesquisa, ao verificar que o fato de o reconheceu a relevância das parcerias entre
profissional não confiar nos órgãos de pro- os serviços da AB e entidades associativas,
teção à infância e à adolescência aumenta como a Pastoral da Criança (MARQUES; RIBEIRO;
as chances da notificação não acontecer. O SANTOS, 2012). Diante disso, faz-se imprescindí-
baixo grau de confiança nos órgãos de pro- vel articular os setores e políticas sociais e in-
teção é frequentemente mencionado pelos tegrar os profissionais que compõem a rede
trabalhadores da saúde (ARPINI et al., 2008; BAZON, de proteção ao grupo, a fim de potencializar

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 794-804, Out-Dez 2014


802 ROLIM, A. C. A.; MOREIRA, G. A. R.; CORRÊA, C. R. S.; VIEIRA, L. J. E. S.

o papel da AB na efetivação do arcabouço integral da criança reconhece as expres-


que legisla sobre o SUS. sões de violência como relevante problema
A análise múltipla ainda mostrou a as- de saúde pública e reafirma o compromisso
sociação positiva entre ter medo de en- das equipes de saúde na identificação e no-
volvimento legal e o não cumprimento da tificação dos casos suspeitos ou confirmados
notificação. Portanto, neste estudo, o medo de maus-tratos, além de proceder ao aco-
do envolvimento legal se apresenta como um lhimento, assistência, tratamento e encami-
contraponto importante aos aspectos legais nhamentos necessários utilizando a rede de
que norteiam a prática notificatória. No apoio existente (BRASIL, 2005). Nesse sentido,
contexto de trabalho das equipes de saúde apropriar-se das recomendações das políti-
da família, o medo de retaliação por parte cas é uma das formas de qualificar a atenção
do agressor é retratado em outros estudos à saúde. 
(GALVÃO; DIMENSTEIN, 2009; OLIVEIRA et al., 2012). Os Os obstáculos encontrados pelos profis-
profissionais, ao sentirem-se ameaçados na sionais na execução da notificação sugerem
detecção de maus-tratos, acabam, muitas que o problema da violência contra crianças e
vezes, se omitindo no processo. adolescentes não é de fácil manejo. A decisão
Os temores dos trabalhadores prove- de notificar não se prende à orientação da
nientes do ato de notificar e a sensação de legislação, mas sim a aspectos de ordem da
vulnerabilidade por estarem próximos à co- experiência e formação profissional e de es-
munidade podem ser reduzidos com ações trutura e articulação da rede de proteção.
e políticas dirigidas também à proteção dos
profissionais de saúde (GALVÃO; DIMENSTEIN,
2009), fortalecendo a relação dos serviços de Conclusão
saúde com os órgãos de proteção e amplian-
do as ações de apoio para além das vítimas. Esta investigação evidenciou como fatores
A análise dos fatores associados à subno- associados à subnotificação de maus-tratos
tificação de maus-tratos evidencia a com- em crianças e adolescentes: tempo de tra-
plexidade que circunda o ato de notificar balho na ESF menor que cinco anos, não
e suscita questões e reflexões inerentes à conhecer a ficha de notificação, não dispor
qualidade da atenção à saúde integral de da ficha na unidade de saúde, ausência de
crianças e adolescentes na AB. Supõe-se confiança nos órgãos de proteção, desconhe-
que o esvaziamento de dados nos sistemas cimento acerca dos encaminhamentos e ter
de informações de eventos que demandam medo de envolvimento legal.
notificação compulsória pode-se configurar Estima-se que estes resultados contribu-
como uma ferramenta de gestão, colaboran- am para a reorientação da prática profissio-
do para reorientar esse eixo, imperioso no nal e incentivem a efetivação de políticas
alcance da qualidade da atenção à população públicas que preconizem o enfrentamento
infantojuvenil. de situações de violências que alcançam
O documento oficial que trata da saúde crianças e adolescentes. s

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 794-804, Out-Dez 2014


Subnotificação de maus-tratos em crianças e adolescentes na Atenção Básica e análise de fatores associados 803

Referências

ARPINI, D. M. et al. A revelação e a notificação adolescentes atendidos nas entidades do Sistema Único
das situações de violência contra a infância e a de Saúde. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 25 out.
adolescência. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 200b, p. 86. (n. 206, Seção 1).
14, n. 2, p. 95-112, dez. 2008.
_____. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção
ASSIS, S.G. et al. Notificações de violência doméstica, à Saúde. Departamento de Ações Programáticas
sexual e outras violências contra crianças no Brasil. Estratégicas. Agenda de compromissos para a saúde
Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 9, p. integral da criança e redução da mortalidade infantil.
2305-2317, 2012. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2005.

BAZON, M. R. Violências contra crianças e _____. Presidência da República. Lei 8.069, de 13 de


adolescentes: análise de quatro anos de notificações julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
feitas ao Conselho Tutelar na cidade de Ribeirão Preto, Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial
São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 13 jul.
24, n. 2, p. 323-332, fev. 2008. 1990. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 06 de novembro
BEN NATAN, M. et al. Factors affecting medical and de 2014.
nursing staff reporting of child abuse. Internacional
Nursing Review, Geneva, v. 59, n. 3, p. 331-337, set. 2012. DESLANDES, S. et al. Indicadores das ações
municipais para a notificação e o registro de casos de
BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição. violência intrafamiliar e exploração sexual de crianças
Brasília, DF: Presidência da República, 1988. e adolescentes. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27,
n. 8, p. 1633-1645, 2011.
______. Ministério da Justiça. Secretaria Estadual de
Direitos Humanos. Plano nacional de enfrentamento da GALVÃO, V. A. B. M.; DIMENSTEIN, M. O protocolo
violência sexual infanto-juvenil. Brasília, DF: Ministério de notificação da violência: entre o risco e a
da Justiça, 2001a. vulnerabilidade. Mental, Barbacena, v. 7, n. 13, 2009.

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 104, de 25 JOHNSON, C. F. Chid maltreatment 2002: recognition,
de janeiro de 2011. Define as terminologias adotadas reporting and risk. Pediatr. Int., New York, n. 44, p. 554-
em legislação nacional, a relação de doenças, 560, 2002.
agravos e eventos em saúde pública de notificação
compulsória em todo território nacional e estabelece LIMA, M. C. S. et al. Atuação profissional da atenção
fluxos, critérios, responsabilidades e atribuições de saúde face à identificação e notificação da violência
aos profissionais de saúde. Diário Oficial [da] União, infanto-juvenil. Revista Baiana de Saúde Pública,
Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2011. Disponível em: Salvador, v. 35, supl. 1, p. 118-137, jan./jun. 2011.
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/
prt0104_25_01_2011.html>. Acesso em: 06 nov. 2014. LUNA, G. L. M.; FERREIRA, R.C.; VIEIRA, L.J.E.S.
Notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes
_____. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM nº 1.968, por profissionais da Equipe Saúde da Família. Ciência
de 25 de outubro de 2001. Dispõe sobre a notificação, & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 481-491,
às autoridades competentes, de casos de suspeita 2010.
ou de confirmação de maus-tratos contra crianças e

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 794-804, Out-Dez 2014


804 ROLIM, A. C. A.; MOREIRA, G. A. R.; CORRÊA, C. R. S.; VIEIRA, L. J. E. S.

MARQUES, F. C.; RIBEIRO, K.S.M.A.; SANTOS, Programa Saúde da Família: a experiência do PMF/


W.Q. Intersetorialidade: possibilidade de parcerias Niterói (RJ, Brasil). Ciência & Saúde Coletiva, Rio de
entre a Estratégia Saúde da Família e a Pastoral da Janeiro, v. 16, n. 7, p. 3285-3296, 2011.
Criança. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p.
544-553, out./dez. 2012. SALIBA, O. et al. Responsabilidade do profissional
de saúde sobre a notificação de casos de violência
MOREIRA, G. A. R. et al. Instrumentação e doméstica. Revista Saúde Pública, São Paulo, v. 41, n. 3,
conhecimento dos profissionais da equipe saúde da p. 472-477, 2007.
família sobre a notificação de maus-tratos em crianças
e adolescentes. Revista Paulista de Pediatria, São Paulo, WEKERLE, C. Resilience in the context of child
v. 31, n. 2, p. 223-230, 2013. maltreatment: connections to the practice of
mandatory reporting. Child Abuse Negl., New York, v.
OLIVEIRA, M.T. et al. Violência intrafamiliar: a 37, n. 2-3, fev./mar. 2013, p. 93-101.
experiência dos profissionais de saúde nas Unidades
de Saúde da Família de São Joaquim do Monte,
Recebido para publicação em outubro de 2014
Pernambuco. Rev. Bras. Epidemiol., São Paulo, v. 15, n. 1, Versão final em março de 2014
Conflito de interesses: inexistente
p. 166-178, 2012.
Suporte financeiro: Fundação Cearense de Apoio ao
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), Edital de
Segurança Pública nº 05/2008
ROCHA, P. C. X.; MORAES, C. L. Violência familiar
contra a criança e perspectivas de intervenção do

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 794-804, Out-Dez 2014


artigo original | original article 805

Acesso e acolhimento no cuidado pré-natal à


luz de experiências de gestantes na Atenção
Básica
Access and user embracement in prenatal care through the
experiences of pregnant women in Primary Care

Maria Zeneide Nunes da Silva1, Andréa Batista de Andrade2, Maria Lúcia Magalhães Bosi3

RESUMO O artigo objetiva analisar o acesso e o acolhimento no cuidado pré-natal à luz das
experiências de 13 gestantes. O material empírico foi obtido por meio de entrevistas e ana-
lisado sob a óptica da análise do discurso. Os resultados evidenciam dois eixos temáticos: o
primeiro aborda o acesso aos serviços de assistência pré-natal; e o segundo focaliza questões
relacionadas à interação e à comunicação da gestante com o profissional. Conclui-se que o
acolhimento no pré-natal não se limita à recepção da gestante à porta de entrada dos serviços
de saúde, pois inclui a noção de acesso. Evidencia-se a importância do uso de tecnologias
leves nas relações intersubjetivas processadas no cuidado, assumindo papel de destaque na
reorientação do modelo de atenção à saúde.

PALAVRAS-CHAVE Acesso aos serviços de saúde; Acolhimento; Cuidado pré-natal; Atenção


1Especialista em Saúde Primária à Saúde.
Pública pela Universidade
Estadual Vale do Acaraú
(UVA) – Sobral (CE), Brasil. ABSTRACT This study aims to analyze the access and user embracement in prenatal care throu-
Psicóloga do Centro de gh the experiences of 13 pregnant women. The material was obtained through interviews and
Referência Especializado
em Assistência Social analyzed from the perspective of discourse analysis. Results indicate two themes: the first one
(Creas) – Fortaleza (CE), approaches the access of assistance services in prenatal care; the second one focuses on ques-
Brasil.
zene.nune@hotmail.com tions related to the interaction and communication between the pregnant woman and the health
professional who conducts prenatal care. We concluded that prenatal care is not limited to the
2Doutoranda em
Psicologia pela Pontifícia reception of pregnant women at the doorway of health services, because it includes the notion of
Universidade Católica de access. This study highlights the importance of using ‘lightweight technologies’ in interpersonal
Minas Gerais (PUC-
Minas) – Belo Horizonte relations processed in care, assuming a prominent role in reorienting the health care model.
(MG), Brasil. Professora
da Universidade Federal da
Bahia (UFBA) – Salvador KEYWORDS Health services accessibility; User embracement; Prenatal care; Primary Health
(BA), Brasil. Care.
andrea_andrade@hotmail.com

3 Doutora em Saúde

Pública pela Fundação


Oswaldo Cruz (Fiocruz)
– Rio de Janeiro (RJ),
Brasil. Professora titular da
Universidade Federal do
Ceará (UFC) – Fortaleza
(CE), Brasil.
malubosi@ufc.br

DOI: 10.5935/0103-1104.20140073 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 805-816, Out-Dez 2014
806 SILVA, M. Z. N.; ANDRADE, A. B.; BOSI, M. L. M.

Introdução articuladas entre serviços de todos os níveis


de atenção e ampliando a participação social
A assistência pré-natal constitui-se como das mulheres (COSTA, 2012).
espaço fundamental para fomentar mu- O PNAISM incorporou o conceito de
danças no núcleo do cuidado, com vistas a gênero para analisar as condições de vida e
acolher a gestante, garantindo seu direito a saúde das mulheres, identificando as deman-
uma atenção de qualidade, como componen- das de mulheres negras, indígenas, lésbicas,
te da cidadania (BRASIL, 2000). Tal entendimento transexuais e moradoras do campo e de flo-
só se tornou possível mediante modificações restas, de modo a garantir o direito à saúde,
nas políticas de saúde e rupturas paradigmá- a ampliação do acesso e a redução de morbi-
ticas no modelo assistencial. mortalidade e de desigualdades (COSTA, 2012).
A noção de acolhimento assume lugar de Uma das principais prioridades dessa política
destaque na reorientação do Sistema Único é promover atenção obstétrica e neo‑natal
de Saúde (SUS), visto que busca superar a qualificada e humanizada que amplie a adesão
hegemonia do modelo biomédico centrado ao Programa de Humanização no Pré-natal e
na doença, no tecnicismo e na verticalidade Nascimento (PHPN) (RIOS; VIEIRA, 2007).
das ações entre profissionais de saúde e usu- Percebe-se, com efeito, que muitos são os
ários (BOSI; MERCADO, 2006). A alteração desse desafios quando se assume a responsabili-
modelo assistencial vigente só é possível dade de acolher a gestante, ficando evidente
com suporte em uma mudança no núcleo que tão importante quanto os resultados al-
tecnológico do cuidado fundamentada no cançados é todo o processo do cuidado que
acolhimento como modo de se produzir envolve o pré-natal, cujos resultados são o
saúde (MERHY, 2002). desfecho objetivo, muitos deles, mensurá-
A primeira política de saúde voltada para veis. Não obstante, é preciso reconhecer que
as mulheres foi o Programa de Saúde Materno todo resultado subentende processos, ou
Infantil (PSMI), criado em 1973, cujo foco se seja, práticas cotidianas que se estabelecem
restringia à oferta de serviços que visavam no microespaço, cenário da atenção (BOSI;
garantir a saúde do binômio mãe-filho e o GASTALDO, 2011).
desfecho gestacional da mulher pobre não No que tange à prática cotidiana da
previdenciária, colocando a maternidade no Estratégia Saúde à Família (ESF), o acesso
cerne do papel social da mulher. Até o início tem como um dos alicerces o acolhimento,
da década de 1980, as políticas de saúde sendo materializado por meio de atitudes
voltadas às mulheres brasileiras eram dire- evidenciadas, no caso em tela, nas relações in-
cionadas a apenas um ciclo de suas vidas, o tersubjetivas diariamente estabelecidas entre
gravídico‑puerperal (COSTA, 2012). profissionais e usuárias dos serviços. Longe de
Após algumas mudanças estratégicas representar uma abstração ou utopia de ma-
e conceituais nas políticas de saúde da terialização difícil, o acolhimento traduz‑se
mulher, foi formulado em 1983 o Programa por gestos simples com forma cordial de aten-
de Assistência Integral à Saúde da mulher dimento, na qual os profissionais chamam as
(PAISM), o qual foi reformulado e consagra- gestantes pelo nome, informam sobre con-
do no ano de 2004 como Política Nacional dutas e procedimentos a serem realizados
de Atenção Integral à Saúde da Mulher por intermédio de uma linguagem adequada,
(PNAISM). Nesse período, os objetivos das escutam e valorizam as narrativas das usuá-
políticas públicas abrangeram a melhoria rias, garantem sua privacidade, dentre outras
da saúde da população feminina em todas as atitudes humanizadoras passíveis de serem
fases e ciclos da vida, mediante um modelo operadas, se respeitada a ética da alteridade
de atenção integral, valorizando ações (CARVALHO; FREIRE; BOSI, 2009).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 805-816, Out-Dez 2014


Acesso e acolhimento no cuidado pré-natal à luz de experiências de gestantes na Atenção Básica 807

A ESF idealiza o estabelecimento de diversos contextos de atuação.


uma nova maneira de operar em saúde, ou Percebe-se, então, que o aperfeiçoamen-
seja, aponta para a produção de um cuidado to das políticas de saúde e a implementa-
baseado na humanização da assistência, ção de programas na ESF voltados para a
centrado no uso das tecnologias leves (COSTA saúde materno infantil buscam mudanças
et al., 2009). Consoante Merhy (2002), tais tec- no modelo de atenção à saúde da gestante,
nologias são aquelas produzidas no traba- incluindo a ampliação da cobertura do pré-
lho vivo em ato, compreendendo relações -natal e a melhoria do acesso, porquanto,
de interação e intersubjetividade, possi- o acesso ao serviço de saúde é a primeira
bilitando produzir acolhimento, vínculo e condição apontada pelos usuários. É com
responsabilização. Portanto, o acolhimento o acesso aos recursos e atendimentos ofe-
compreende noções como acesso, referên- recidos que a população poderá participar,
cia, capacidade de escuta e percepção das avaliar e retornar ao local de atenção para
demandas em seus contextos psicossociais dar continuidade ao cuidado (COHN, 1999).
(SILVA JUNIOR; MASCARENHAS, 2004). Dados epidemiológicos apontam aumento
De acordo com o Ministério da Saúde gradativo do número de consultas de pré‑na-
(BRASIL, 2002), o acolhimento no pré-natal tal por mulher que realiza parto no SUS. Em
implica a recepção da mulher na unidade de 1981, 41% das gestantes realizaram cinco ou
saúde, responsabilizando-se por ela, ouvindo mais consultas, enquanto em 2006/2007
suas queixas, permitindo que expresse suas essa cobertura aumentou para 81%. Apesar
preocupações, angústias, garantindo atenção da ampliação da cobertura, estudos avalia-
resolutiva e articulação com os outros ser- tivos apontam comprometimento da quali-
viços de saúde, promovendo a continuidade dade dessa assistência (aumento de partos
da assistência, quando necessário. O diálogo por cesariana; desigualdades de acesso entre
franco e a sensibilidade dos profissionais as mulheres negras e de baixa escolarida-
que acompanham o pré-natal são condições de; medicalização abusiva, etc.), mostrando
básicas para que o saber em saúde seja dis- ainda um distanciamento expressivo entre
posto à mulher, protagonista no processo de as práticas de cuidado e o discurso oficial do
gestação e parto (BRASIL, 2005). SUS (COSTA, 2012).
O Manual técnico do pré-natal e puer- Ante essa conjunção de questões, nos
pério do Ministério da Saúde traz o aco- interessa compreender o modo como as
lhimento como fator determinante para o gestantes percebem a produção do cuidado
acompanhamento adequado à gestação, tal durante o período de pré-natal, conferin-
como a qualidade técnica, e refere que cabe do destaque ao acesso e acolhimento, e di-
à equipe de saúde buscar compreender os mensões a eles associadas, relatando suas
múltiplos significados da vivência da gesta- experiências na unidade básica de saúde e
ção para a mulher e sua família (BRASIL, 2005). apontando sugestões para um atendimento
Santos e Assis (2006, p. 57) asseveram que de melhor qualidade.
“o acolhimento acontece nos micro-espaços
das relações individuais e coletivas”, seja na
recepção, nas palestras, reuniões de grupo ou Métodos
em consultas com os profissionais de saúde.
Isso significa que a ESF é o eixo estruturante Trata-se de um estudo orientado pelo
da Atenção Básica, que visa a fortalecer as enfoque qualitativo, no qual confere ênfase
estratégias relacionais e comunicacionais aos significados que as pessoas atribuem às
dos profissionais de saúde com a comunida- suas experiências e o modo como compre-
de, especificamente com a família em seus endem o mundo (POPE; MAYS, 2009). Destarte,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 805-816, Out-Dez 2014


808 SILVA, M. Z. N.; ANDRADE, A. B.; BOSI, M. L. M.

demos relevo às experiências das gestantes observando a localização geográfica


de modo a investigar o acesso e o acolhi- (zona urbana) e a permissão do(a) seu(a)
mento na Atenção Básica, analisando em coordenador(a). As participantes da pes-
que medida os aspectos problematizados e quisa foram constituídas pelo universo de
as dimensões demarcadas se expressam no 13 gestantes, uma vez que, no momento do
aparato tecnológico do cuidado desenvol- estudo, compunham o grupo atendido em
vido por uma equipe de ESF do interior do uma das UBS da referida região, onde foram
Nordeste do Brasil. adotados os seguintes critérios de inclusão
Reiteramos, portanto, as afirmações de amostral: gestantes acima de 18 anos que
Pinheiro e Martins (2009) que, sem descon- estivessem no segundo ou terceiro trimestre
siderar a perspectiva do gestor (baseada em da gravidez, independentemente do número
metas, prazos e prioridades estratégicas) de gestações precedentes e do seu nível só-
e do profissional de saúde, é importante, ciocultural. O critério do trimestre escolhi-
porém, compreender as representações dos do decorreu do fato de que as gestantes já
usuários e seu modo de perceber as ações deveriam ter vivenciado experiência de, no
em saúde que lhes são ofertadas. Embora a mínimo, três consultas, com acúmulo subje-
triangulação de fonte de evidências (usuário, tivo para relatar atividades e procedimentos
profissional e gestor) possibilite um univer- do pré-natal.
so linguístico mais amplo e complexo, não Ressalta-se que o município onde esse
foi possível, no espaço deste estudo, ampliar estudo foi realizado apresenta população es-
a compreensão mediante a escuta de outros timada de 45 mil habitantes e contava com
atores, notadamente gestores e profissionais, 13 Programas Saúde da família (PSF) no
que certamente desvelariam dimensões e período da coleta de dados, sendo cinco loca-
relações importantes. Desse modo, a pes- lizadas na zona rural e oito na zona urbana.
quisa se atém exclusivamente às usuárias A UBS pesquisada funciona desde 2001 e era
gestantes. composta por um médico, uma enfermeira,
Não obstante essa delimitação, cabe reco- um dentista e uma equipe do Nasf (Núcleo
nhecer que a participação do usuário, quando de Apoio à Saúde da Família), que realizava
acontece, ocorre de maneira representativa, o apoio matricial na unidade. A rotatividade
grosso modo em conselhos de saúde. Apesar entre os profissionais era bastante comum,
da relevância e da legitimidade dessa moda- uma vez que não havia contratação por con-
lidade de representação, há uma assimetria curso público.
de informações e uma predominância da Após o desenvolvimento da pesquisa, o re-
lógica técnico-profissional dos debates em ferido município passou por mudanças sig-
saúde, ensejando um discurso distanciado nificativas na área da saúde, principalmente
da realidade dos usuários e da comunidade na Atenção Básica. Houve a ampliação do
(PINHEIRO; MARTINS, 2009). Portanto, a possibilida- número de PSFs, totalizando 16 programas
de de conferirmos centralidade neste estudo na atualidade, além da reforma de várias uni-
para gestantes usuárias da unidade de saúde dades básicas e seleção de profissionais por
selecionada as torna, neste espaço, avaliado- concurso público. Vale destacar que foi im-
ras legítimas da oferta de cuidados, ilustran- plantada uma Residência Multiprofissional
do, com mais um exemplo, as questões em Integrada em Saúde com ênfase em saúde da
jogo na busca de incrementar a qualidade família e comunidade, cujo objetivo é qua-
e a resolubilidade nos serviços na Atenção lificar os profissionais da saúde pública, de
Básica. modo a contribuir para o fortalecimento das
A Unidade Básica de Saúde (UBS) foi redes do SUS.
selecionada por critérios de conveniência, Inicialmente, aplicou-se uma entrevista-

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 805-816, Out-Dez 2014


Acesso e acolhimento no cuidado pré-natal à luz de experiências de gestantes na Atenção Básica 809

piloto, visando testar o instrumento de pes- sociais, ou seja, vincula a produção subjetiva
quisa quanto à sua viabilidade para, então, à materialidade da existência. Nessa pers-
prosseguir com as reformulações neces- pectiva, a AD abrange o contexto de quem
sárias e proceder com o início da obtenção fala, em um dado tempo e lugar. Em pesqui-
do material empírico, nos meses de agosto a sas concretas, como a aqui relatada, importa
outubro de 2011. desvelar processos comunicativos na inter-
Para obtenção das informações, foi utili- face com a base material, observando de que
zada uma entrevista em profundidade com modo tais planos se expressam e se articulam
cada gestante, explorando percepções e ex- no discurso dos participantes do estudo, no
periências das informantes para analisá-las e contexto da intervenção (seja uma política,
apresentá-las de forma sistemática. Entre as programa ou serviço) a que se relaciona.
principais qualidades dessa abordagem está Nesse sentido, a AD é um método especia-
a flexibilidade de permitir ao informante lizado em analisar construções linguísticas e
definir os termos da resposta e ao entrevis- comunicacionais presentes em um contexto,
tador ajustar livremente as perguntas com como um todo organizado de sentidos em um
base nos objetivos propostos pelo estudo. determinado universo de significação. O dis-
Esse tipo de entrevista procura intensidade curso é, portanto, uma produção social cujas
nas respostas e não uma quantificação ou elaborações ideológicas são materializadas
mera representação estatística (BREAKWELL et na linguagem, sendo revelada, mediante
al., 2010). uma análise, a visão de mundo dos sujeitos
Após a gravação das entrevistas, para enunciadores. Isso significa que todo dis-
registro das informações, realizamos a curso é uma construção social, não apenas
transcrição das falas, de modo a garantir a individual, mas expressão de um contexto
fidedignidade das informações em seus as- histórico-social (FIORIN, 2005).
pectos sintáticos e semânticos. Nesta pes- Analisamos, efetivamente, os motes
quisa, o material empírico foi categorizado e acesso e acolhimento, considerando os dis-
analisado à luz da Análise do Discurso (AD), cursos das gestantes e os discursos presentes
sendo um campo de investigação cujas raízes na literatura sobre assistência no pré-natal,
remontam a diversos domínios. para problematizar e confrontar as posições
Existem catalogadas mais de 57 variedades sociais reveladas na pesquisa, ultrapassando
de AD, a exemplo da AD de Mangineau (ins- a mera descrição.
piração foucaultiana) ou da AD de Pecheaux No que tange aos aspectos éticos
(inspiração psicanalítica). Recorta-se aqui desta investigação, o projeto foi aprova-
o que se considera uma vertente de AD do pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
fundada em uma postura crítico-interpre- Universidade Regional do Cariri (CE), sob
tativa, conjugando algumas características: o Parecer nº 46/2011, buscando-se atender
1) postura crítica ao conhecimento dado; 2) às normas contidas na Resolução 196/96 do
toda compreensão de mundo é atravessada Conselho Nacional de Saúde sobre pesquisa
por fatores sociais e não pela natureza do envolvendo seres humanos. Desse modo, foi
mundo; 3) a realidade se constrói com base necessário esclarecer às participantes acerca
em ações e práticas sociais, linguísticas e po- dos objetivos propostos, de forma a torná-las
líticas (GILL, 2002). cientes do sigilo conferido às suas informa-
Na perspectiva de uma análise crítica, ou ções e identidades. A anuência de todas foi
crítico-interpretativa, o discurso — reco- documentada pela assinatura dos Termos
nhecido como prática social (nas dimensões de Consentimento Livre e Esclarecido e
reprodutiva e construtiva) — deriva da in- Pós-Esclarecido.
terface dialética entre estruturas e relações

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 805-816, Out-Dez 2014


810 SILVA, M. Z. N.; ANDRADE, A. B.; BOSI, M. L. M.

Resultados e discussão princípio da universalidade, segundo o qual


todos os cidadãos podem ter acesso a um
Distribuímos as informações concedidas atendimento humanizado pautado no aco-
pelos relatos das gestantes em duas catego- lhimento (BRASIL, 2009).
rias: a primeira aborda o acesso aos servi- Na conjuntura desta pesquisa, as ges-
ços de assistência pré-natal, considerando, tantes não citaram problemas de acesso
conforme já assinalado, que o acesso pode geográfico ou econômico, visto que há duas
favorecer a reorganização dos serviços de unidades básicas na área, tornando o des-
saúde e a qualificação da assistência presta- locamento mais acessível às gestantes. Elas
da; a segunda é a interação e comunicação trouxeram à tona dificuldades de acesso
da gestante com o profissional que realiza o provocadas pela limitação de senhas, pois as
pré-natal, ressaltando que o acolhimento e entrevistadas chegavam à unidade de saúde
as relações intersubjetivas processadas entre às 5h da manhã para tentar garantir o atendi-
usuárias e profissionais de saúde são perce- mento. Problemas relacionados ao tempo de
bidos como estratégias que favorecem a par- espera prolongado para atendimento foram
ticipação e a satisfação das gestantes quanto referidos pelas gestantes como os principais
à assistência prestada. fatores dificultadores da assistência pré‑na-
Ressaltamos que as 13 gestantes optaram tal, correspondendo ao acesso funcional.
por conceder a entrevista em sua residência, O fato de ter que chegar à UBS muito cedo,
o que permitiu maior interação entrevista- bem antes do horário de abertura do serviço
dor-entrevistado. Para garantir o anonimato para garantir consulta, foi referido por quase
na exposição dos depoimentos, denomina- todas as gestantes. Em alguns casos, esses
mos a gestante de Participante, utilizando obstáculos constituíram uma ameaça à con-
como identificação apenas a letra P seguida tinuidade da assistência, sob o ponto de vista
pelos números de 1 a 13, sendo respectiva- das usuárias. Algumas se mostraram insatis-
mente nesta ordem: P1, P2, P3, P4, P5, P6, P7, feitas em decorrência dessa realidade, con-
P8, P9, P10, P11, P12 e P13. forme evidenciado a seguir:
Quanto ao perfil das entrevistadas, cons-
tatamos que a maioria das gestantes era A gente chega lá no PSF pra pegar a fila e já tá
casada, do lar, ou seja, elas não exerciam cheio de pessoas. Aí você tem que chegar 5h da
ocupação remunerada; a faixa etária variou manhã. Tem gente que sai sem tomar café. Quer
entre 19 e 32 anos, com exceção de uma dizer, é difícil, né? (P3). Aí, a gente fica lá muito
entrevistada, cuja idade era 40 anos no tempo, tem as coisas pra fazer em casa. A gente
momento do estudo; a maioria cursava o trabalha. [...] A sensação é ruim (P9). Aí às ve-
ensino médio completo e encontrava-se no zes nós chegamos às 5h da manhã, nós gestan-
segundo trimestre de gestação. tes. Aí, fica sentada no frio, esperando ali. O certo
era abrir cedo, né? Pelo menos pro pessoal entrar
e ficar sentado lá dentro, né? (P12).
O acesso aos serviços de
assistência pré-natal Com suporte nesses depoimentos, per-
cebemos que a assistência ao pré-natal
Apesar dos avanços e das conquistas do pode apresentar entraves relacionados à
SUS, ainda existem lacunas nos modelos de busca pelo atendimento, representados pela
atenção e gestão no que se refere ao modo demora na marcação de consultas diferen-
como a gestante é atendida nos serviços temente do discurso oficial do Programa
de saúde pública, especialmente nas UBS. de Humanização e Pré-Natal e Nascimento
Portanto, é preciso restituir, na prática, o (PHPN) referido nesta pesquisa, que afirma

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 805-816, Out-Dez 2014


Acesso e acolhimento no cuidado pré-natal à luz de experiências de gestantes na Atenção Básica 811

a necessidade de assegurar às gestantes o de porta de entrada, pois se configura como


direito à atenção de fácil acesso (BRASIL, 2000). um dispositivo transformador da realidade.
O Ministério da Saúde (BRASIL, 2005) exprime A concepção adequada é a de que a garantia
que um serviço de saúde de qualidade deve do ingresso universal da usuária ao sistema
criar opções para evitar longas esperas e de saúde só é possível através da consciência
priorizar as gestantes nas filas, constituin- de cidadania (JESUS; ASSIS, 2012) e de um proces-
do-se um direito de cidadania. Além de so de trabalho baseado na micropolítica do
produzir incômodo, a longa espera pode trabalho vivo na saúde (MERHY, 2002). Nesse
estabelecer-se como empecilho para a fre- contexto, o trabalho vivo na assistência
quência da gestante nas consultas pré-natais. pré‑natal refere-se à capacidade do profis-
Portanto, a melhoria do acesso funcional sional de saúde questionar-se, no próprio
no contexto dessa pesquisa significa uma processo de trabalho, sobre a intencionali-
mudança quanto às dificuldades enfrentadas dade e a finalidade do trabalho em saúde, de
pelas gestantes para chegar ao local de aten- modo a operar os modelos tecnoassistenciais
dimento, devendo estas receber informação através do acolhimento, incluindo a recepti-
adequada por parte do serviço de saúde, vidade à gestante no momento de espera ao
assegurar o direito à consulta e garantir o atendimento.
retorno mediante agendamento. Acreditamos que o local de atendimento
A seguir, o depoimento de uma gestan- deva ter fácil acesso no que concerne à rea-
te descreve a sensação de ter seu direito à lização e marcação de consultas, para que a
saúde negado, sobretudo pelos limites de atenção não seja postergada a ponto de afetar
acesso aos serviços de assistência pré-natal. adversamente a identificação e manejo de
A gestante expressa sua indignação ante suas possíveis problemas (FIGUEIREDO; ROSSONI, 2008).
vivências, de certa forma acentuada pela A facilitação do acesso ao uso dos serviços
condição de vulnerabilidade que a necessi- de saúde, juntamente com o acolhimento,
dade lhe confere. favorece o estabelecimento da relação de
confiança e de vínculo entre profissionais e a
Nunca ouvi dizer que gestante tem que chegar comunidade, contribuindo inexoravelmente
por ordem de chegada [...] que eu saiba, é Lei para melhor adesão ao projeto terapêutico
você chegar e ser atendido, né? Igual tem nos proposto (RAMOS; LIMA, 2003).
Bancos, em todos os lugares, no hospital. É pre- O descumprimento dos horários de fun-
ferencial. Idoso, gestante, criança de colo. Aí não. cionamento e a falta do profissional de saúde
Aí é por ordem de chegada. Quer dizer então que foram questões também relatadas pelas ges-
eu tenho que sair de casa com a barriga desse ta- tantes, ensejando bastante descontentamen-
manho, ficar no sol quente esperando pra poder to entre elas:
ser atendida primeiro? [...] Não gostei de jeito
nenhum. Sinceramente! (P2). A secretária que pega os nossos nomes, ela che-
ga um pouco atrasada, né? Demora um pouqui-
Essa situação expressa a negligência no nho. Porque a gente chega 6h, né? A chegada
que concerne ao direito à saúde, apresen- dela tinha que ser 7h. E ela mora aqui perto e
tando desconformidade em relação a valores chega tarde, ela chega quase na hora em que a
éticos e também legais do SUS. Nesse caso, médica chega. (P10).
há uma violação dos direitos humanos e de
cidadania, visto que é negado à gestante o
acesso a um serviço garantido pela proteção As pessoas de lá chegam muito tarde pro aten-
do Estado. dimento [...] quem trabalha em PSF tem que tá
Assim sendo, o acesso vai além do conceito às 7h, né? 7:15h. Eles chega 7:30h, quase 8h, é

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 805-816, Out-Dez 2014


812 SILVA, M. Z. N.; ANDRADE, A. B.; BOSI, M. L. M.

capaz até da doutora (médica da UBS) chegar mim, como pra ela” (P5).
e a atendente das fichas num tá [...] E a doutora
também ela falta demais. Ela passa oito dias sem Ela atende bem por que ela pergunta, porque ouve
vir. [...] Aí, quando ela vem, de manhã se tiver a gente com atenção. Porque tem médico que num
16 pessoas por conta dos dias que faltou, ela só olha nem na cara da gente. Faz a obrigação deles,
atende 10. [...] E as pessoas que precisam, que assina e pronto. E num é assim. E ela é muito pa-
ficam de fora, não são atendidas. (P3). ciente. Muito boa a Dra. G. A gente sente quem é
carinhoso com a gente e quem num é, né? (P6).
Conforme se observa, o acesso funcional
designa a primeira etapa a ser alcançada
pela gestante, quando parte em busca da sa- O atendimento dela (médica da UBS) é muito di-
tisfação de suas necessidades na assistência ferente dos outros porque ela tem muita atenção.
pré-natal. Sabe-se o quão relevante é o início Totalmente. Pergunta tudo que ela precisa saber.
da assistência pré-natal, bem como sua con- Pergunta se tá sentindo bem, o que é que precisa.
tinuidade, para que o desfecho da gestação Elas (profissionais da UBS) dão mais atenção do
seja favorável, tanto para a mãe quanto para que os outros PSF que eu participei. (P11).
o bebê. Portanto, o acesso é fundamental
para capilarizar a efetivação do SUS como A interação pautada na humanização e no
política pública em defesa da vida nos pro- acolhimento contribui para que a gestante
cessos de produção de saúde (BRASIL, 2006). mantenha vínculo com os serviços de saúde
durante todo o período gestacional, reduzin-
do consideravelmente os riscos de intercor-
Interação e comunicação da rências obstétricas. Além disso, a assistência
gestante com o profissional gestacional, quando mediada por diálogo e
respeito entre profissionais de saúde e ges-
que realiza o pré-natal tantes, representa o primeiro passo para o
parto humanizado (LANDERDAHL et al., 2007).
A consulta de pré-natal envolve poucas tec- Na concepção de Ayres (2004, p. 84), é in-
nologias duras (MERHY, 2002) no manejo do dispensável que o profissional articule a
cuidado, podendo o profissional de saúde intervenção técnica com outros fatores não
dedicar-se à escuta mais atenciosa às de- tecnológicos, visto que
mandas da gestante, transmitindo o apoio e a
confiança necessária para que ela se fortale- nunca, quando assistimos à saúde de outras
ça e possa conduzir a gestação e o parto com pessoas, mesmo estando na condição de pro-
maior segurança (BRASIL, 2000). fissionais, nossa presença na frente do outro
Nas UBS, em decorrência do trabalho se resume ao papel de simples aplicador de
prioritariamente comunitário, os laços tor- conhecimentos (p. 84).
nam-se ainda mais estreitos entre profissio-
nais e usuárias, favorecendo a constituição O autor reitera a ideia de que a prática de
de vínculos e a participação da família. O es- cuidado em saúde deve ultrapassar uma in-
tabelecimento de relações pautadas na con- tervenção meramente técnica, para alcançar
fiança e na escuta faz com que as usuárias se um lugar de dialogicidade, autocompreensão
achem respeitadas e valorizadas, colaboran- e reconstituição contínua dos projetos de
do mais ativamente na assistência pré-natal, vida dos usuários (AYRES, 2004).
conforme o enunciado a seguir: “A médica Os profissionais de saúde devem acolher
recebe bem, recebe alegre, satisfeita e tudo. Aí, a gestante, de modo a conhecê-la pelo nome,
isso aí é pra mim, eu acho bonito. Tanto pra procurando saber os motivos de sua vinda à

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 805-816, Out-Dez 2014


Acesso e acolhimento no cuidado pré-natal à luz de experiências de gestantes na Atenção Básica 813

unidade. Atitudes simples como sorrir e dar assim não, porque é pra prestar mais atenção no
boas-vindas suscitam mais abertura para a que a gente fala. (P1).
usuária relatar com a devida confiança suas
necessidades de saúde. Uma boa comunica- Sendo assim, a assistência pré-natal torna-
ção e a interação de profissionais e gestantes -se um momento privilegiado para dialogar e
evidenciam satisfação da assistência presta- esclarecer questões pertinentes, singulares
da sob a óptica das entrevistadas, conforme é para cada gestante, mesmo que estas tenham
perceptível no discurso a seguir: tido a experiência em gestações. Ressaltamos
que o diálogo e o vínculo são de importância
Ela já conhece a gente, pelo nome, já conversa. A ímpar, pois minimizam a ansiedade da ges-
gente se tornou amiga. É bom fazer o pré-natal tante e favorecerem um parto mais tranquilo
com uma pessoa assim, que num se torne só um e saudável para a mãe e para o bebê.
médico chato. A gente fica assim, é com vontade Durante este estudo, o vínculo entre pro-
de ir pra consulta, não tem medo. [...] Eu gosto fissional e gestante no pré-natal foi bastan-
assim. Até porque se eu não gostasse eu tenho a te mencionado como algo que deveria ser
minha escolha. (P6). mantido até o momento do parto, conforme
o relato a seguir:

Em todas as minhas consultas ela tem se mostra- Eu acho que pro médico ter qualidade tem que
do muito atenciosa e com isso eu considero ela acompanhar a gestação da gestante até o fim,
uma profissional no qual sei que posso contar, como assim foi com os meus dois cesáreos que o
pois tenho ela não só como médica, mas como Dr. A. me acompanhou. E no dia ele tava lá, quem
amiga. (P13). fez a cirurgia foi ele. Ele me apoiou em tudo. [...]
Se você tá fazendo o pré-natal com aquele mé-
No estabelecimento do diálogo entre o dico é porque você quer tá com aquele médico
profissional de saúde e a gestante, é possível no dia, porque ele quem lhe acompanhou, quem
encontrar soluções conjuntas para os proble- sabe a sua situação. [...] Aí eu só confio nele. Eu
mas de saúde, já que muitas vezes a comu- num vou nem fazer o pré-natal aqui não por que
nicação interativa e reflexiva produz insights a médica não vai fazer o parto, vou pagar parti-
e traz possíveis respostas para determinado cular com o Dr. A. (P3).
problema. Concomitantemente, é factível
integrar o saber popular e o conhecimento
científico, de modo que os aspectos sociocul- Só tô preocupada assim, porque dizem que a
turais possam ser incorporados na produção gente é acompanhada aqui pela médica, mas no
do cuidado. dia do parto, quando a gente chega lá no Hospi-
O diálogo é tão importante e necessário tal, o primeiro que recebe a gente lá no Hospital
que, quando não acontece, se corre o risco é quem faz o parto, não é a médica (da UBS)
de comprometer a avaliação diagnóstica do mesmo, né? Mas aí, ela mim garantiu no caso do
profissional, como se observa na fala de P1: meu, ela vai me acompanhar. Assim eu tô mais
segura. Graças a Deus, mas eu tava preocupada.
Eu falo pra ela (médica da UBS) assim que eu (P10).
tava sentindo umas dores, digo que tô sentindo
uma coisa, ela diz que é normal. Num presta Percebe-se, então, que a produção do
muita atenção, aí pronto, venho pra casa, mas cuidado baseada no acolhimento não deve
eu tenho certeza que num é normal. Eles querem ser de responsabilidade apenas da equipe de
saber de consultar ligeiro, né? Dispensa a gen- um serviço de saúde, no caso, a UBS. Precisa,
te logo, aí fala que é normal. Eu num acho bem no entanto, ser compreendida integralmente,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 805-816, Out-Dez 2014


814 SILVA, M. Z. N.; ANDRADE, A. B.; BOSI, M. L. M.

perpassando os diversos serviços de saúde e das gestantes no pré-natal, com vistas a


níveis de atenção que compõem a rede. garantir a oferta de serviços baseada nas
O simples encaminhamento de uma necessidades da gestante e, principalmen-
pessoa de um serviço para outro, sem co- te, que promovam melhorias na qualidade
municação ou continuidade, não quer dizer da assistência prestada à mulher no ciclo
a garantia de uma assistência resolutiva. gravídico-puerperal.
Assim, a demanda da gestante por integra- Com vistas à materialização das políticas
lidade passa frequentemente por todo o de saúde do SUS, as equipes de saúde da
sistema, pois “não há integralidade radical família necessitam desenvolver processos de
sem a possibilidade de transversalidade. A trabalho que estabeleçam um acompanha-
integralidade do cuidado só pode ser obtida mento de pré-natal pautado no acolhimen-
em rede” (CECÍLIO; MERHY, 2003, p. 199). to e, nessa perspectiva, o profissional deve
buscar compreender os muitos significados
da gestação para a mulher e sua família. Com
Conclusão efeito, a avaliação qualitativa do pré-natal,
na perspectiva das gestantes, pode oferecer
Tomando por base os estudos analisados e as subsídios para impulsionar e implementar
falas das gestantes entrevistadas, constata- estratégias de saúde que contribuam para a
mos que o acesso ao pré-natal não se limita à melhor qualidade nos serviços do SUS, so-
recepção da gestante à porta de entrada dos bretudo, na atenção obstétrica.
serviços de saúde, pois inclui a noção de aco-
lhimento, capacidade de escuta e comunica-
ção, destacando a atuação dos profissionais de Colaboradores
saúde baseada na humanização do cuidado.
O estudo evidenciou que a dificuldade Silva MZN e Andrade AB trabalharam
de acesso funcional, o descumprimento conjuntamente na concepção, delinea-
dos horários de funcionamento e a falta de mento do estudo, análise do material empí-
profissionais de saúde afetam a assistência rico e redação do artigo. Bosi MLM atuou
pré-natal e ameaçam o direito à saúde das na redação do artigo e na revisão crítica das
gestantes. Não obstante isso, o acolhimento, versões preliminar e final do artigo.
o trabalho de educação em saúde e o cuidado
humanizado na UBS pesquisada garantiram
uma relação dialógica entre os profissionais Agradecimentos
e usuárias, apresentando-se como disposi-
tivos fundamentais para uma assistência de Agradecemos à Maria do Socorro de Oliveira
qualidade e para consolidar a integralidade Santana, mestre pelo curso de Saúde Coletiva
da atenção à saúde da mulher no SUS. da Universidade de Fortaleza (Unifor), pelos
De tal maneira, é necessário que os ser- subsídios compartilhados em conversas
viços de saúde estabeleçam estratégias concernentes a diversos aspectos discutidos
que viabilizem acesso e o ingresso precoce nesse artigo. s

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 805-816, Out-Dez 2014


Acesso e acolhimento no cuidado pré-natal à luz de experiências de gestantes na Atenção Básica 815

Referências

AYRES, J. R. Cuidado e reconstrução das práticas de BREAKWELL, G. et al. Métodos de pesquisa em psicologia.
saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 8, n. 14, p. 73-92, Porto Alegre: Artmed, 2010.
2004.
CARVALHO, B. L.; FREIRE J. C.; BOSI, M. L. Alteridade
BOSI, M. L. M.; MERCADO, F. J. (Org.). Avaliação radical: implicações para o cuidado em Saúde. Physis, Rio
qualitativa de programas de saúde: enfoques emergentes. de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 849-865, 2009.
Petrópolis: Vozes, 2006.
CECÍLIO, L. C. O.; MERHY, E. E. A integralidade do
BOSI, M. L.; GASTALDO, D. Construindo pontes entre cuidado como eixo da gestão hospitalar. In: PINHEIRO,
ciência, política e práticas em saúde coletiva. Rev Saude R; MATTOS, R. A. (Org). Construção da integralidade:
Publica, São Paulo, v. 6, n. 45, 2011, p. 1197-1200. cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro:
UERJ: IMS: ABRASCO, 2003. p.197-210.
BRASIL. Ministério da Saúde. Assistência pré-natal:
manual técnico. 3. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde, COHN, A. A saúde como direito e como serviço. 2 ed. São
2000. Paulo: Cortez, 1999.

__________. Portaria nº 648 de 28 de março de 2006. Aprova COSTA, A. M. Política de saúde integral da mulher e
a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo direitos sexuais e reprodutivos. In: GIOVANELLA, L. et
a revisão de diretrizes e normas para a organização da al. (Org.) Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2. ed. Rio
Atenção Básica para o Programa Saúde da Família e o de Janeiro: Fiocruz, 2012. p. 979-1010.
Programa Agentes Comunitários de Saúde. Brasília,
2006. Disponível em: <http://dtr2001.saude.gov.br/sas/ COSTA, G. D. et al. Saúde da família: desafios no processo
PORTARIAS/Port2006/GM/GM-648.htm>. Acesso em: de reorientação do modelo assistencial. Rev. bras.
06 nov. 2014. enferm., Brasília, v. 62, n. 1, p. 113-118, fev. 2009.

__________. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção FIGUEIREDO, P. P.; ROSSONI, E. O acesso à assistência
à Saúde. Departamento de Ações Programáticas pré-natal na Atenção Básica à Saúde sob a ótica das
Estratégicas. Pré-natal e puerpério - atenção qualificada e gestantes. Rev Gaúcha Enferm., Porto Alegre, v. 29, n. 2, p.
humanizada: manual técnico. Brasília, DF: Ministério da 292-298, jun., 2008.
Saúde, 2005.
FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. São Paulo:
__________. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Ática, 2005.
à Saúde. Departamento de Ações Programáticas
Estratégicas. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde GILL, R. Análise de discurso. In: BAUER, M.; GASKELL,
da Mulher: princípios e diretrizes. Brasília, DF: Ministério G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um
da Saúde, 2009. manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002.

__________. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. JESUS, W. L. A.; ASSIS, M. M. A. Revisão sistemática
Programa de Humanização do Parto: humanização no sobre o conceito de acesso nos serviços de saúde:
pré-natal e nascimento. Brasília, DF: Ministério da Saúde, contribuições do planejamento. Ciênc. saúde coletiva, Rio
2002. de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 161-170, jan. 2010.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 805-816, Out-Dez 2014


816 SILVA, M. Z. N.; ANDRADE, A. B.; BOSI, M. L. M.

LANDERDAHL, M. C. et al. A percepção de mulheres pré-natal: reflexão sobre a consulta de enfermagem


sobre atenção pré-natal em uma unidade básica de saúde. como um espaço para educação em saúde. Ciênc. saúde
Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, coletiva, Rio de Janeiro,  v. 12,  n. 2, p. 477-486, abr.  2007.
v. 11, n. 1, p. 105-111, mar. 2007.
SANTOS, A. M.; ASSIS, M. M. A. Da fragmentação à
MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São integralidade: construindo e (des)construindo a prática
Paulo: Hucitec, 2002. de saúde bucal no Programa de Saúde da Família (PSF)
de Alagoinhas, BA. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v.
PINHEIRO, R.; MARTINS, P. H. (Org.) Avaliação em 11, n. 1,  p. 5-61, mar. 2006.
saúde na perspectiva do usuário: abordagem multicêntrica.
Rio de Janeiro: ABRASCO, 2009. SILVA JUNIOR, A. G.; MASCARENHAS, M. T. M.
Avaliação da Atenção Básica em Saúde sob a ótica da
POPE, C.; MAYS, N. Pesquisa qualitativa na atenção à integralidade: aspectos conceituais e metodológicos.
saúde. Porto Alegre: Artmed, 2009. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org). Cuidado: as
fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: UERJ, 2004.
RAMOS, D. D.; LIMA, M. A. D. S. Acesso e acolhimento p. 241-257.
aos usuários em uma unidade de saúde de Porto Alegre,
Rio Grande do Sul, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de
Recebido para publicação em março de 2014
Janeiro, v. 19, n. 1, p. 27-34, fev. 2003. Versão final em setembro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
RIOS, C. T. F.; VIEIRA, N. F. C. Ações educativas no

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 805-816, Out-Dez 2014


artigo original | original article 817

Hanseníase e vulnerabilidade social: uma


análise do perfil socioeconômico de usuários
em tratamento irregular
Leprosy and social vulnerability: an analysis of the socioeconomic
profile of users in irregular treatment

Viviane Aparecida Siqueira Lopes1, Etuany Martins Rangel2

RESUMO Este artigo analisa a determinação social da hanseníase, a partir do reconhecimento


da vulnerabilidade social dos usuários em tratamento irregular, no Programa de Controle da
Hanseníase do município de Campos dos Goytacazes (RJ). Para isso, apresenta uma pesquisa
documental, com base nas Fichas de Cadastro Social dos usuários mencionados, destacando
aspectos como trabalho, renda, formação familiar e acesso a políticas públicas. Seus resultados
registram significativa presença de trabalho precarizado associado a baixos níveis de renda e
de escolaridade, sendo a maioria considerada pobre ou indigente (51,5%) e não usuária de
benefícios assistenciais (66,7%).

PALAVRAS-CHAVE Hanseníase; Determinantes sociais da saúde; Vulnerabilidade social.

ABSTRACT This article analyzes the social determination of leprosy, from the recognition of the
social vulnerability of users in irregular treatment, in the Leprosy Control Program of the county
of Campos dos Goytacazes – RJ. In order to do that, it presents a documental research, based on
the social registration forms of the mentioned users, highlighting some aspects such as work, in-
come, family background and access to public policies. Its results register significant presence of
precarious work related to low schooling and income levels, being most of them considered poor
or indigent (51,5%) and non-users of welfare benefits (66,7%).

KEYWORDS Leprosy; Social determinants of health; Social vulnerability.


1 Mestre em Saúde Pública
pela Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
Professora da Universidade
Federal Fluminense (UFF)
– Campos dos Goytacazes
(RJ), Brasil.
vivianeviviane@uol.com.br

2 Assistente Social,
formada pela Universidade
Federal Fluminense (UFF)
– Campos dos Goytacazes
(RJ), Brasil.
etuanymartins@hotmail.com

DOI: 10.5935/0103-1104.20140074 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, OUT-DEZ 2014
818 LOPES, V. A. S.; RANGEL, E. M.

Introdução modo, a maioria das pessoas em contato com


o bacilo resiste ao mesmo e não adoece; mas,
A hanseníase é endêmica no Brasil, onde quando esse contato ocorre entre indivídu-
foram registrados 33.303 casos novos, em os mal nutridos, em ambiente fechado, com
2012, sendo 2.246 casos novos em menores pouca ventilação e ausência de luz solar, ou
de 15 anos, correspondendo a um coeficiente seja, em ambiente insalubre, há maior pos-
de detecção geral de 17,2/100 mil habitantes sibilidade de contaminação.
(BRASIL, 2013). A hanseníase, portanto, pode atingir in-
É uma doença contagiosa, de evolução divíduo inserido em qualquer classe social;
prolongada e de grande potencial incapaci- mas, sua incidência é maior nos segmentos
tante. É causada por um bacilo, denominado mais empobrecidos da população, devido
Mycobacterium leprae ou bacilo de Hansen, à presença de condições socioeconômicas
transmitido por via respiratória, ou seja, desfavoráveis, e, portanto, condições precá-
por meio de gotículas eliminadas no ar pela rias de vida e saúde, o que facilita a conta-
tosse, fala ou espirro. O bacilo percorre o or- minação e a propagação do bacilo causador
ganismo e se instala preferencialmente nos dessa enfermidade.
nervos periféricos e na pele. Contudo, com o É uma enfermidade intimamente as-
início do tratamento, a transmissão da han- sociada à precariedade socioeconômica das
seníase é encerrada (VIEIRA, 2008). populações afetadas, o que se expressa na
Seus sinais e sintomas são manchas es- distribuição espacial da doença, em países
branquiçadas, avermelhadas ou acastanha- mais pobres e subdesenvolvidos (PINHEIRO,
das – que podem ser lisas ou elevadas – em 2007).
qualquer parte do corpo; caroços avermelha- Essa relação, entre vulnerabilidade social
dos ou acastanhados; áreas da pele, mesmo e presença de hanseníase, é objeto deste
sem manchas que não coçam, mas formigam artigo, que tem como objetivo analisar a de-
ou beliscam e vão ficando dormentes, com terminação social da hanseníase, a partir do
diminuição ou ausência de dor, de sensibili- reconhecimento da vulnerabilidade social
dade ao calor, ao frio e ao toque. Estes podem dos usuários em tratamento irregular, no
se localizar em qualquer parte do corpo, Programa de Controle da Hanseníase do
porém, ocorrem com maior frequência na município de Campos dos Goytacazes (RJ),
face, nas orelhas, nas costas, nos braços, nas identificando os limites de ordem socioeco-
nádegas e nas pernas. nômica que porventura dificultam a efetiva-
Quando não tratada, a hanseníase pode ção do controle e da cura da hanseníase.
deixar graves sequelas no organismo do por- Nesse sentido, as questões que norteiam
tador, comprometendo tato, olfato, visão e este artigo são: Quais as relações entre han-
locomoção. Ou seja, os nervos da pele, das seníase e vulnerabilidade social? O perfil do
pernas e dos braços, quando alterados, difi- usuário condiz com a possibilidade de con-
cultam a movimentação dos portadores; os taminação pelo bacilo de Hansen e com a
olhos passam a não fechar, com a concomi- presença de limites no processo de controle
tante queda dos cílios; as extremidades do e cura da enfermidade?
corpo – como dedos, orelhas e nariz – podem
ser lesados a ponto de o indivíduo perdê-los.
A infecção pelo bacilo de Hansen envolve Hanseníase, determinação e
a existência de predisposição individual e de vulnerabilidade social
contato íntimo e prolongado com algum por-
tador sem tratamento, mostrando‑se sensível A hanseníase, enquanto enfermidade forte-
à presença de vulnerabilidade social. Desse mente condicionada pelo contexto social,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, OUT-DEZ 2014


Hanseníase e vulnerabilidade social: uma análise do perfil socioeconômico de usuários em tratamento irregular 819

remete à reflexão sobre a determinação causador, como o caso do bacilo de Hansen,


social em saúde, que ultrapassa os senti- causador da hanseníase. No entanto, não
dos expressos no documento da Comissão ocorre em uma relação linear de causa-efeito
sobre Determinantes Sociais da Organização e sim, condicionado por uma série de aspec-
Mundial de Saúde. tos de ordem física (pré-disposição genética,
grau de imunidade), socioeconômica (pre-
Os Determinantes Sociais em Saúde ‘são as sença ou não de pobreza e vulnerabilidade
circunstâncias em que as pessoas nascem, social), cultural (valores, hábitos e costumes)
crescem, vivem, trabalham e envelhecem, e psíquica (presença ou não de saúde mental,
bem como os sistemas estabelecidos para incluindo depressão e stress). O processo
combater as doenças’. Estas circunstâncias de tratamento, por sua vez, é também per-
‘estão configuradas por um conjunto mais passado por estes mesmos condicionantes,
amplo de forças: econômicas, sociais, norma- acrescidos da presença ou não de políticas
tivas e políticas’. Nesse sentido, as condições públicas, envolvendo o modo de implemen-
de vida […] estão ‘determinadas’ pelo ‘lugar tação e resultados.
que cada um ocupa na hierarquia social’; isto Desse modo, os estudos sobre determi-
inclui o grau de vulnerabilidade individual a nação social promovem a reflexão acerca
agravos na saúde e suas conseqüências. (OMS, da equidade e da integralidade na saúde,
2008 apud TAMBELLINI; SCHÜTZ, 2009, p. 374-375). enfatizando a importância da articulação
de saúde/doença à iniquidade social e a
Na crítica ao referido documento possíveis respostas públicas à questão.
(TAMBELLINI; SCHÜTZ, 2009; FLEURY-TEIXEIRA, 2009; O sentido que adotamos na presente
NOGUEIRA, 2009),
é enfatizada a perspectiva de- análise para o termo determinação social
terminista apontada ao contexto no qual os em saúde envolve o seu reconhecimento
indivíduos se inserem, obscurecendo as ar- enquanto um fenômeno complexo e dialé-
ticulações dialéticas envolvidas no processo tico, como expressão de um contexto mais
saúde-doença, cujos elementos ultrapassam ou menos favorável ao surgimento de enfer-
a dimensão biológica, interagindo, de modo midades, e mais ou menos constrangedor ao
dinâmico, com as dimensões socioeconômi- tratamento de tais enfermidades. Portanto,
ca, política e cultural. Segundo Tambellini; ele assume uma perspectiva de condiciona-
Schütz (2009, p. 376), quando não considera- mento ao processo saúde-doença.
do de modo dialético, enquanto um todo Esse favorecimento, quando negativo, é
complexo, o “determinismo é visto como retratado na presença da vulnerabilidade
reducionista”. social, que pode se vincular ou não à pobreza.
A determinação social da saúde indica Segundo Rocha (2006), a pobreza remete à
a presença de circunstâncias ou condições ausência do atendimento de necessidades
que ultrapassam a possibilidade de escolhas básicas, que são compreendidas desde ques-
individuais livres, sendo de natureza física tões vinculadas à sobrevivência e, portanto,
ou ambiental, vivenciadas pelos indivíduos ao não atendimento do mínimo vital, tradu-
segundo sua posição social (FLEURY-TEIXEIRA, zido pela alimentação (pobreza absoluta),
2009). No entanto, não implica na certeza, até o não atendimento de necessidades não
para todos os indivíduos, mesmo em situa- satisfeitas em função do modo de vida pre-
ção de vulnerabilidade, de adoecimento. dominante na sociedade em análise (pobreza
O fenômeno do adoecimento, na maioria relativa). Portanto,
das enfermidades, possui determinação bio-
lógica referente à presença de um agente pobres são aqueles com renda se situando

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, OUT-DEZ 2014


820 LOPES, V. A. S.; RANGEL, E. M.

abaixo do valor estabelecido como linha de devem ser analisadas a partir da existência ou
pobreza, incapazes, portanto, de atender ao não, por parte dos indivíduos ou das famílias,
conjunto de necessidades consideradas míni- de ativos disponíveis e capazes de enfren-
mas naquela sociedade. Indigentes, um sub- tar determinadas situações de risco. Logo, a
conjunto dos pobres, são aqueles cuja renda vulnerabilidade de um indivíduo, família ou
é inferior à necessária para atender apenas as grupos sociais refere-se à maior ou menor
necessidades nutricionais. (ROCHA, 2006, p. 13). capacidade de controlar as forças que afetam
seu bem-estar, ou seja, a posse ou controle de
O governo brasileiro assume, como pa- ativos que constituem os recursos requeridos
râmetro para classificação de níveis de para o aproveitamento das oportunidades
pobreza, o salário mínimo, definindo como propiciadas pelo Estado, mercado ou socie-
indigente o grupo populacional com renda dade. Estes ativos estariam assim ordenados:
de até ¼ do salário mínimo domiciliar per (i) ‘físicos’, que envolveriam todos os meios
capita; e como pobres, o grupo com renda de essenciais para a busca de bem-estar. Estes
até ½ salário mínimo domiciliar per capita poderiam ainda ser divididos em [...] (terra,
(IPEA, 2005). animais, máquinas, moradia, bens duráveis
Ao enfoque na renda pode ser acoplado relevantes para a reprodução social); ou [...]
o das necessidades básicas, envolvendo ne- envolvendo poupança e crédito, além de for-
cessidades de educação, assistência social e mas de seguro e proteção; (ii) ‘humanos’, que
saúde, entre outras. Esta visão de pobreza, incluiriam o trabalho como ativo principal e o
que associa renda baixa ao limite de acesso a valor agregado ao mesmo pelos investimen-
políticas públicas, é adotada neste artigo. tos em saúde e educação, os quais implica-
A vulnerabilidade social articula-se com a riam em maior ou menor capacidade física
ideia de risco, que associado a contextos de para o trabalho, qualificação etc.; (iii) ‘sociais’,
pobreza, nos permite refletir sobre o proces- que incluiriam as redes de reciprocidade, con-
so vivenciado pelos segmentos nesta situação fiança, contatos e acesso à informação. As-
social. Por risco, entende-se uma variedade sim, a condição de vulnerabilidade deveria
de situações que englobam os riscos natu- considerar a situação das pessoas a partir dos
rais, os de saúde, os ligados ao ciclo de vida, seguintes elementos: a inserção e estabilida-
os sociais, os econômicos, os ambientais e os de no mercado de trabalho; [...] o grau de re-
políticos (BRONZO, 2009). gularidade e de qualidade de acesso aos ser-
Quanto mais riscos, maior a vulnerabi- viços públicos ou outras formas de proteção
lidade social, promovendo o surgimento social. (KATZAM apud BRASIL, 2007, p. 14-15).
de enfermidades e constituindo possíveis
limites ao processo de tratamento. No caso No debate acerca da hanseníase e sua de-
da hanseníase, tais riscos são ampliados pela terminação social, à presença das desigual-
presença de valores e hábitos que incremen- dades sociais se agrega o acesso aos serviços
tam a possibilidade de infecção e propaga- públicos, pois este poderá reproduzir tais de-
ção, ligados à higiene corporal e ambiental sigualdades ou minimizá-las, diante de sua
e à procura pelos serviços de saúde somente efetivação ou não. Por isso, o acesso público
quando os sintomas estão agravados. a uma escola de qualidade, aos serviços de
No que diz respeito aos aspectos que saúde e de assistência social e a inserção no
devem ser considerados para a configura- mercado de trabalho são essenciais para o
ção de um quadro de vulnerabilidade social, desenvolvimento do combate a doença.
tem-se que: Nesse sentido, um dos principais desafios
dos estudos sobre as relações entre determi-
[...] as situações de vulnerabilidade social nantes sociais e saúde consiste:

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, OUT-DEZ 2014


Hanseníase e vulnerabilidade social: uma análise do perfil socioeconômico de usuários em tratamento irregular 821

[...] em estabelecer uma hierarquia de deter- setor no qual estávamos diretamente rela-
minações entre os fatores mais gerais de na- cionadas, enquanto professora-supervisora
tureza social, econômica, política e as media- e estagiária de serviço social em fase final de
ções através das quais esses fatores incidem curso, tendo sido realizadas visitas domici-
sobre a situação de saúde de grupos e pes- liares a todos os usuários do grupo, momen-
soas, já que a relação de determinação não é tos nos quais os aspectos retratados no perfil
uma simples relação direta de causa-efeito. puderam ser observados diretamente.
[...] O estudo dessa cadeia de mediações per- Por tratamento irregular é entendido o
mite também identificar onde e como devem não comparecimento do usuário, já inseri-
ser feitas as intervenções, com o objetivo de do no processo de tratamento, às consultas
reduzir as iniqüidades de saúde, ou seja, os médicas e/ou aos atendimentos dos demais
pontos mais sensíveis onde tais interven- profissionais e/ou o não comparecimento
ções podem provocar maior impacto. Outro das respectivas famílias para realização do
desafio importante em termos conceituais e exame de contato. Em 2011, nessa situação
metodológicos se refere à distinção entre os encontravam-se 33 usuários.
determinantes de saúde dos indivíduos e os Para elaboração do perfil socioeconômico,
de grupos e populações, pois alguns fatores foi realizada pesquisa documental incidindo
que são importantes para explicar as diferen- especificamente sobre o Cadastro Social
ças no estado de saúde dos indivíduos não Único dos usuários em tratamento irregular,
explicam as diferenças entre grupos de uma que compreende uma ficha-base para entre-
sociedade ou entre sociedades diversas. (BUSS; vista de entrada dos usuários no tratamen-
PELLEGRINI FILHO, 2007, p. 81). to desenvolvido pelo referido programa. É
composto por dados referentes à identifica-
Desse modo, embora a hanseníase tenha ção, ao nível socioeconômico, à composição
um bacilo causador, sua análise remete à familiar e a informações sobre habitação e
reflexão sobre condições coletivas de vida, acesso a programas assistenciais.
ultrapassando a perspectiva dos hábitos e A partir das informações obtidas por essa
atitudes individuais. É um complexo pro- pesquisa, puderam ser estabelecidas rela-
blema de saúde pública, que tem afetado ções e realizadas análises, que apontam para
um significativo contingente populacional, a presença de nível socioeconômico baixo e
ressaltando a importância do debate e inter- vulnerabilidade social alta, como pode ser
venções – profissionais e públicas – sobre as reconhecido a partir dos dados a seguir.
iniquidades em saúde.

Resultados e discussão
Métodos
Para analisar a relação entre determina- Identificação
ção social e hanseníase junto aos usuários
em tratamento irregular no Programa de A maioria dos usuários em tratamento irre-
Controle da Hanseníase, em 2011, partiu‑se gular é do sexo masculino (69,7%); e, a maior
da elaboração do perfil socioeconômico parte (33,3%) encontra-se na faixa etária entre
desses usuários. 26 e 36 anos. Estes são seguidos, em ordem
A escolha por esse grupo de usuários decrescente, pelas seguintes faixas etárias: 13
ocorreu em virtude de terem sido eles os a 18 anos (18,2%); 37 a 49 anos e de 50 a 59
que mais demandas apresentaram à equipe anos (ambas com 15,1%); de 60 anos ou mais
profissional, em especial ao serviço social, (12,1%); e, por fim, de 19 a 25 anos (6,1%).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, OUT-DEZ 2014


822 LOPES, V. A. S.; RANGEL, E. M.

Desse modo, embora prepondere a faixa tratamento regular, pois quando o usuário
etária de 26 a 36 anos, a hanseníase está não comparece às consultas agendadas men-
presente em todas as idades. Também não salmente, para a dose supervisionada da me-
houve presença de crianças, pois estas não dicação, é considerado pelo serviço de saúde
se encontravam em tratamento irregular. um paciente faltoso. Esta falta significa a
Ainda referindo-nos às crianças, a incidên- continuidade da transmissão da doença, a
cia da hanseníase entre elas apresenta-se em resistência do bacilo à medicação e o atraso
menores índices, o que pode ser atribuído na cura da hanseníase.
à proteção que a vacina BCG realiza. Nesse
sentido, Trabalho, renda e composição
familiar
O Programa Nacional de Eliminação da Han-
seníase preconiza duas doses da vacina BCG Em relação ao aspecto trabalho, as ocupa-
para que o paciente obtenha um nível ade- ções dos usuários são diversificadas, com
quado de proteção contra a doença. [...] A uma maior concentração na categoria estu-
importância da vacinação BCG para proteção dante (18,2%), sendo composta por usuários
contra a hanseníase está bem documentada que se encontravam com idades entre 13 e 18
em diversos estudos que demonstram que a anos. Para além dos estudantes, são registra-
detecção da doença é menor na clientela que dos: pedreiros e aposentados (12,1% cada);
recebe as duas doses de BCG. (FERREIRA; ALVA- serventes (9,1%); vigilantes, pintores, do lar,
REZ, 2005, p. 47). vendedores e lavradores (6,1% cada); e, por
fim, ajudantes de bufê, decoradores, autô-
Em relação ao estado civil, a maioria é nomos, administradores e professores (3%
solteira (51,5%), seguida de casados (30,3%), cada). Ressalta-se que os usuários que não
dos que mantêm relação estável (15,2%) e de informaram seus trabalhos (3%) apresenta-
viúvos (3%). vam transtornos mentais, não trabalhando
Desse modo, baseado nos dados que ex- em virtude disso.
pressam as maiores proporções, pode-se Em relação ao grau de escolarida-
afirmar que os usuários são adultos (63,5%), de dos usuários, este, em sua maioria,
preponderando a faixa etária entre 26 e 36 apresentou-se referente ao ensino funda-
anos (33,3%). São em maioria homens (69,7%) mental completo (54,5%), sendo seguido
e solteiros (51,5%), embora os casados ou em pelo ensino médio completo (36,4%), pelos
união estável constituam proporção signi- analfabetos (6,1%); e pelos que possuem
ficativa (45,5%). Compreende-se, também, curso superior completo (3%).
que pela faixa etária, são indivíduos que Diante dos dados apresentados, nota-se
estão no ápice do seu período produtivo, que os usuários sem ou com baixa esco-
ou seja, trabalhando ou em condições de laridade ou baixa capacitação profissio-
trabalho. nal ficam com uma participação restrita
Referindo-se a estes últimos, pode-se as- no mercado de trabalho, e a forma que
sociar a possível dependência de sua família encontram de manter-se e sustentar sua
sobre sua renda, o que ressalta a importância família advém do labor em atividades que
da descoberta da hanseníase no início e, prin- não exigem conhecimentos técnicos e/
cipalmente, do tratamento precoce, pois este ou específicos adquiridos com a escola-
reduz o comprometimento da capacidade ridade. Os trabalhos informais tornam-
física dos usuários, ou seja, possibilita a ação -se a alternativa para os desfavorecidos
do trabalho para o sustento da família. Ainda educacionalmente, já que a seleção de
nesta perspectiva, tem-se a importância do trabalhadores para o mercado privilegia

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, OUT-DEZ 2014


Hanseníase e vulnerabilidade social: uma análise do perfil socioeconômico de usuários em tratamento irregular 823

os mais jovens e mais escolarizados. É o recebem menos de um salário (9,1%) e, por


processo da “subproletarização”, citada fim, dos que recebem dois salários mínimos
por Antunes (2006, p. 41). (6,1%).
A renda individual dos usuários que a A renda familiar dos usuários (gráfico
declararam apresenta variação, porém, sem 1) é composta, em sua maioria, por uma
ultrapassar o valor de dois salários mínimos renda mensal no valor de um a dois salários
mensais. Preponderam os usuários com um mínimos (51,5%), seguida por renda menor
salário mínimo (36,4%), seguidos dos que do que um salário mínimo (15,2%), da renda
não possuem renda – como os estudantes, de três a quatro salários mínimos (12,1%), da
os do lar e os que apresentam problemas renda familiar não declarada (12,1%) e, por
mentais e, por isso, não trabalham (27,2%) –, fim, da renda na faixa de dois a três salários
dos que não declaram renda (21,2%), dos que mínimos (9,1%).

Gráfico 1. Renda familiar mensal dos usuários em tratamento no Programa de Hanseníase, em 2011

Menos de um salário mínimo: 5


12,10% 15,20%
De 1 a 2 salários: 17
12,10%
Mais de 2 a 3 salários: 3
9,10%
Mais de 3 a 4 salários: 4
51,50%
Não declarou: 4

Fonte: Elaboração própria

Em relação à composição das famílias Em referência à renda per capita familiar


(gráfico 2), verifica-se que a maior propor- dos usuários, pode-se identificar – segundo
ção recaiu sobre as compostas por quatro classificação do Ipea (2005), anteriormente
pessoas (24,2%), seguidas pelas compostas mencionada – 21,2% deles como pobres; e
por seis pessoas (21,1%), por duas pessoas 30,3% como indigentes. Estas duas categorias,
(18,1%), por cinco pessoas (12,1%), por três e somadas, constituem a maioria dos usuários
por sete pessoas (9%), e por família formada em tratamento irregular atendidos no progra-
por uma pessoa e por nove pessoas (3%). ma (51,5%). Isso exacerba a necessidade de
Famílias de oito pessoas não foram identifi- atenção da equipe profissional, com destaque
cadas. Conclui-se, assim, que a maioria dos para o serviço social, com o intuito de viabi-
usuários (57,4%) possui famílias composta lizar assistência em busca de uma melhor
pelo intervalo de 4 a 6 pessoas. adesão ao tratamento.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, OUT-DEZ 2014


824 LOPES, V. A. S.; RANGEL, E. M.

Gráfico 2. Composição familiar dos usuários em tratamento no Programa de Hanseníase, em 2011

24,24%
25,00%
21,21%

20,00% 18,18%

15,00%
12,12%

9,09% 9,09%
10,00%

5,00% 3,03% 3,03%

0,00%
0,00%
oa

s
s

s
oa
oa

oa

oa

oa

oa

oa

oa
ess

ess
ess

ess

ess

ess

ess

ess

ess
1p

7p
2p

3p

4p

5p

6p

8p

9p
Fonte: Elaboração própria

Tipos de famílias (27,3%), de famílias chefiadas por mulheres


– ou seja, monoparentais femininas – (18,2%),
Analisando o tipo de formação familiar dos de casais e de famílias constituidas após di-
usuários (gráfico 3), observa-se que a maior vórcio (9,1% cada), de famílias monoparentais
proporção deles pertence a famílias exten- chefiadas por homens (3%) e, ainda, de famí-
sas (30,3%), seguida de famílias nucleares lias constituídas por um único membro (3%).

Gráfico 3. Formação familiar dos usuários em tratamento no Programa de Hanseníase, em 2011

Família constituída após divórcio: 3 9,10%

Monoparental chefiada por homem: 1 3,00%

Sozinho: 1 3,00%

Casal: 3 9,10%

Monoparental chefiada por mulher: 6 18,20%

Nuclear: 9 27,30%

Extensa, incluindo 3 ou 4 gerações: 10 30,30%


0%

0%

%
00

00

,00

,00

,00

,00
0,0

5,0

10,

15,

20

25

30

35

Fonte: Elaboração própria

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, OUT-DEZ 2014


Hanseníase e vulnerabilidade social: uma análise do perfil socioeconômico de usuários em tratamento irregular 825

Vale ressaltar que por família extensa en- Nesse sentido,


tende-se a formação composta por “pai, mãe,
filhos, avós e netos ou outros parentes, isto [...] as famílias chefiadas por mulheres estão
é, família formada por três ou quatro gera- em situação estruturalmente mais precárias,
ções”. A família nuclear é composta apenas mais dependentes de variações conjunturais,
pelo núcleo principal representado por “pai, quando comparadas com situações das fa-
mãe e filhos biológicos, ou seja, por apenas mílias pobres, equivalentes no ciclo de vida
duas gerações”. Famílias monoparentais são familiar, que têm chefe masculino presente,
as “chefiadas só pelo pai ou só pela mãe” dadas as diferenças nas formas de inserção
(SZUMANSKI apud TEIXEIRA, 2008, p. 64). da mulher no mercado de trabalho [...]. (LOPES;
Para a presente análise tornam-se interes- GOTTSCHALK apud BRITO, 2008, p. 2-3).
santes, principalmente, as formações extensa
e monoparental, por suas especiais influên- A importância dos dados referentes à com-
cias na transmissão da hanseníase e no seu posição familiar e à quantidade de filhos não
tratamento. Na formação extensa, a tendência se constitui apenas como mais um dado sobre
à aglomeração de pessoas frente ao espaço o nível socioeconômico das famílias, mas
disponível nas residências é um fator bastan- também se dá pelo fato de o tratamento para
te presente, em especial, ao ser associado à a cura da hanseníase não destinar-se somente
vivência de situação de pobreza. Essa aglo- ao usuário, mas a toda a sua família. Nos casos
meração, como já anteriormente comentado, em que se detecta a necessidade, esta é solici-
aumenta a chance de contaminação devido ao tada a participar do Programa de Hanseníase
contato íntimo e diário, sendo agravada pelo para realização do exame de contato, visando
fato de metade dessas famílias viver com renda descobrir precocemente se há outros casos
mensal de até dois salários mínimos, expres- da doença no âmbito familiar, o que costuma
sando situação de pobreza e vulnerabilidade ser uma dificuldade para a atual realidade do
social. As residências muitas vezes apresentam Programa de Controle da Hanseníase.
pouca ventilação e ausência de luz solar, inten-
sificando as possibilidades de contaminação. Habitação
Em relação à monoparentalidade, os dados
(gráfico 3) afirmam que a feminina e a mascu- A maioria dos usuários possui casa própria
lina, em conjunto, constituem 21,2% das famí- (57,5%). Em contrapartida, outros residem
lias, sendo preponderante a feminina. Assim, em casa doada pela prefeitura ou em casa
podemos relacionar a vulnerabilidade social cedida por familiares ou amigos (15,2%); e,
com a monoparentalidade feminina, pois, dos ainda, em casa alugada (12,1%). Tal situação
seis usuários que estão inseridos nesta forma- ameniza o quadro socioeconômico para a
ção, quatro possuem renda mensal familiar de maioria dessas famílias, pois apenas (12,1%)
até um salário mínimo; e os outros dois, com dos usuários pagam mensalmente pela
variação entre um e dois salários mínimos. moradia. Outro aspecto é a importância dos
Outro aspecto relevante é a quantidade de programas públicos voltados para a habita-
filhos das famílias monoparentais, pois tais ção, retirando este tipo de comprometimen-
famílias possuíam: 1 e 2 filhos (50%); 3 e 4 to do orçamento familiar.
filhos (33,3%); 5 e 6 (16,7%), isto evidencian-
do maior dificuldade de criar e educar esses Benefícios assistenciais
filhos sem apoio emocional e financeiro do
parceiro(a) e intensificando o grau de em- Quanto ao usufruto de benefícios assisten-
pobrecimento e de vulnerabilidade social ciais, pode-se identificar (gráfico 4) que a
dessas famílias. maioria dos usuários em tratamento irregular

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, OUT-DEZ 2014


826 LOPES, V. A. S.; RANGEL, E. M.

não está inserida em nenhum programa de Família (PBF) e 27,3% encontram‑se inse-
assistência/benefício (66,7%). Porém, dos ridos em programas municipais de trans-
usuários que obtiveram acesso a tais pro- ferência de renda, como os de vale-card e
gramas, 72,7% usufruem do Programa Bolsa vale-alimentação.

Gráfico 4. Acesso assistencial dos usuários em tratamento irregular no Programa de Hanseníase, em 2011

70,00% 66,70%
60,00%
50,00%
40,00%
30,00% 24,20%
20,00%
9,10%
10,00%
0,00%
Nenhum: 22 Bolsa Família: 8 Programa Municipal de
Transferência de Renda: 3

Fonte: Elaboração própria

Para análise, vale retomar informações já Família tem dois objetivos básicos: combater a
apresentadas, como o fato de a maioria das fa- miséria e a exclusão social, e promover a eman-
mílias possuir renda mensal per capita condi- cipação das famílias mais pobres. [...] Quais são
zente com a vivência de situação de pobreza as condicionalidades? As famílias devem parti-
e indigência (21,2% e 30,3%, respectivamen- cipar de ações no acompanhamento de saúde
te). Sendo assim, os usuários recorrem aos e do estado nutricional dos filhos, matricular e
Programas de Transferência de Renda (PTR), acompanhar a frequência escolar das crianças
como o PBF, para auxiliar na renda, garantin- no ensino fundamental e participar de ações de
do, muitas das vezes, a satisfação das neces- educação alimentar. Com base nas informações
sidades básicas, embora somente 33,3% dos do Cadastro Único elaborado pelas prefeituras,
usuários usufruam de algum tipo de PTR. o MDS1 seleciona as famílias a serem beneficia-
das. (WEISSHEIRMER, 2006, p. 25-26).
O Bolsa Família é um programa federal de trans-
ferência direta de renda destinado às famílias Em consonância a isso, para Duarte e
em situação de pobreza (renda mensal por Alencar,
pessoa de R$ 60,00 a R$ 120,00) e de extre-
ma pobreza (com renda mensal por pessoa de Quando se trata de famílias pertencentes aos
até R$ 60,00). Uma das características cen- setores sociais pobres, a literatura é unânime em
trais do programa é que ele procura associar a apontar que o núcleo familiar por si só não dispõe
transferência do benefício financeiro ao acesso do básico para promover a inserção social e o de-
1 Ministério do

Desenvolvimento Social e a direitos sociais básicos, como saúde, alimen- senvolvimento pessoal de seus membros, o que
Combate à Fome. tação, educação e assistência social. O Bolsa torna essencial a ação do estado para permitir o

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, OUT-DEZ 2014


Hanseníase e vulnerabilidade social: uma análise do perfil socioeconômico de usuários em tratamento irregular 827

acesso a patamares básicos da cidadania. (CARVA- relacionados à transmissão da hanseníase já


LHO apud DUARTE; ALENCAR 2010, p. 156). mencionados. Isto também pode ser relaciona-
do à presença de famílias extensas, incluindo
Por fim, ressalta-se que o PBF e demais três ou quatro gerações (30,3%), envolvendo a
PTR, embora importantes estratégias para possibilidade de aglomeração de indivíduos por
minimização, em especial, da pobreza abso- residência.
luta (indigência), necessitam ultrapassar a Vale ainda ressaltar que, mesmos os
perspectiva de mecanismo de transferência usuários que não conhecem pessoas com
monetária desvinculado da noção de direito hanseníase, podem estar convivendo com o
e de universalização do acesso às políticas portador desta enfermidade, pois pelo desco-
fundamentais. A ampliação da intervenção nhecimento e preconceito, muitas vezes, tais
pública, adotando o combate à pobreza relati- portadores não se declaram nesta condição.
va e/ou revendo o enquadramento dos bene- Em se tratando do grau de incapacidade
ficiários em critérios econômicos inflexíveis e física ocasionada pela hanseníase (gráfico
excludentes é necessária. 5), a maioria dos usuários não apresenta in-
capacidade física (66,7%). Porém, uma parte
Contatos, transmissão e (18,2%) apresenta incapacidade no grau II e
incapacitação outra (15,1%), incapacidade no grau I.

No que se refere à transmissão da hanseníase, [...] a classificação do grau de incapacidade


outro aspecto pertinente à pesquisa realizada física foi executada de acordo com as normas
é o de que a maioria dos usuários não conhe- do Ministério da Saúde, que utiliza os se-
cem nenhuma pessoa com hanseníase (63,6%), guintes critérios: ‘grau 0’ (zero), quando não
enquanto outros afirmam conhecer pessoas há comprometimento neural nos olhos, nas
com a doença, como vizinhos e familiares mãos ou pés; ‘grau I’ (um), que corresponde
(36,4%). à diminuição ou perda de sensibilidade e ‘grau
Com isto, pode-se analisar que parte dos II’ (dois), que indica a presença de incapa-
usuários tem ou já teve contato com pessoas cidades e deformidades do tipo lagoftalmo,
portadoras da doença – dentre essas, vizinhos garras, reabsorção óssea, mãos e pés caídos,
e familiares –, vindo a confirmar aspectos entre outros. (SILVA SOBRINHO et al., 2007, p. 3).

Gráfico 5. Grau de incapacidade física dos usuários em tratamento no Programa de Hanseníase, em 2011

70,00% 66,70%
60,00%
50,00%
40,00%
30,00%
18,20%
20,00% 15,10%
10,00%
0,00%
Incapacidade 0: Incapacidade 1: Incapacidade 2:
22 usuários 5 usuários 6 usuários

Fonte: Elaboração própria

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, OUT-DEZ 2014


828 LOPES, V. A. S.; RANGEL, E. M.

Nesse contexto, é necessário relembrar vulnerabilidade social.


que a hanseníase é uma doença que pode O perfil socioeconômico dos usuários
causar incapacidades/deformidades, quando em tratamento irregular no Programa de
não tratada ou tratada tardiamente, o que Controle da Hanseníase confirma ten-
enfatiza a importância da detecção precoce dência, pois registra a presença de traba-
da enfermidade e, por conseguinte, o trata- lho precarizado associado a baixos níveis
mento em fase inicial, evitando assim os seus de renda e de escolaridade; significativa
agravos. A incapacidade física, para além dos presença de famílias extensas e mono-
limites e implicações socioafetivas, também parentais; e baixo acesso a programas
acaba por comprometer a renda familiar, assistenciais.
devido à impossibilidade do trabalho. Fica, portanto, evidenciada a necessidade
da realização de ações socioeducativas em
vistas à ampliação do conhecimento dos in-
Conclusão divíduos e das famílias acerca do contágio, da
transmissão e do tratamento; mas, também,
A hanseníase não atinge somente os pobres e o desafio de incrementos na articulação
indigentes, embora possua maiores possibi- de políticas públicas, visando o combate à
lidades de contágio e transmissão em meio à pobreza. s

Referências

ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as br/015/15brito.htm>. Acesso em: 20 jan. 2013.
metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho.
11. ed. São Paulo: Cortez, 2006. BRONZO, C. Vulnerabilidade, empoderamento
e metodologias centradas na família: conexões e
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância uma experiência para reflexão. In: CONCEPÇÃO E
em Saúde. Boletim Epidemiológico, Brasília, v. 44, n. 11, GESTÃO DA PROTEÇÃO social não contributiva no
2013. Brasil. Brasília: UNESCO; MDS, 2009.

______. Ministério do Trabalho e Emprego. Aspectos BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus
Conceituais da Vulnerabilidade Social. Brasília: MTE; determinantes sociais. Physis, Rio de Janeiro, v. 1, n. 17,
DIEESE, 2007. p. 77-93, 2007.

BRITO, F. S. Mulher chefe de família: um estudo DUARTE, M. J. O.; ALENCAR, M. M. T. Família


de gênero sobre a família monoparental feminina. e Famílias: práticas sociais e conversações
Revista Urutágua, Maringá, n. 15, abr./mai./jun./jul. contemporâneas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010.
2008 Disponível em: <http://www.urutagua.uem.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, OUT-DEZ 2014


Hanseníase e vulnerabilidade social: uma análise do perfil socioeconômico de usuários em tratamento irregular 829

FERREIRA, I. N.; ALVAREZ, R. R. A. Hanseníase em TAMBELLINI, A. T.; SCHÜTZ, G. E. Contribuições


menores de quinze anos no município de Paracatu/ para o debate do CEBES sobre a ‘Determinação
MG. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v.1, Social da Saúde’: repensando processos sociais,
n. 8, p. 41-49, 2005. determinações e determinantes da saúde. Saúde em
Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 83, p. 371-379, 2009.
FLEURY-TEIXEIRA, P. Uma introdução conceitual à
determinação social da saúde. Saúde em Debate, Rio de TEIXEIRA, S. M. Família e as formas de proteção
Janeiro, v. 33, n. 83, p. 380-387, 2009. social primária aos idosos. Kairós, São Paulo, v. 11, n. 2,
p. 59-80, 2008.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA
APLICADA (Ipea). Radar social. Brasília: IPEA, 2005. VIEIRA, C. S. C. A. et al. Avaliação e controle de
contatos faltosos de doentes com Hanseníase. Revista
NOGUEIRA, R. P. Determinantes, determinação Brasileira de Enfermagem, Brasília, n. 61, n. especial, p.
e determinismos sociais. Saúde em Debate, Rio de 682-628, 2008.
Janeiro, v. 33, n. 83, p. 397-406, 2009.
WEISSHEIMER, M. A. Bolsa família: avanços, limites
PINHEIRO, M. M. O. Hanseníase em registro ativo e possibilidades do programa que está transformando a
no município de Passos, MG – Brasil. 2006. 60f. vida de milhões de famílias no Brasil. São Paulo: Perseu
Dissertação (Mestrado em Promoção da Saúde) – Abramo, 2006.
Universidade de Franca, Franca, São Paulo, 2007.

Recebido para publicação em junho de 2013


ROCHA, S. Pobreza no Brasil: afinal do que se trata? Rio Versão final em junho de 2014
Conflito de interesses: inexistente
de Janeiro: FGV, 2006.
Suporte financeiro: não houve

SILVA SOBRINHO. R. A. et al. Avaliação do grau de


incapacidade em hanseníase: uma estratégia para
sensibilização e capacitação da equipe de enfermagem.
Revista Latino Americana de Enfermagem, Ribeirão
Preto, v. 15, n. 6, p. 1125-1130, 2007.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 817-829, OUT-DEZ 2014


830 artigo original | original article

Políticas públicas en materia de drogas en


Argentina: políticas de estigmatización y
sufrimiento*
Drug policies in Argentina: politics of exclusion and suffering

Andrea Vázquez1

RESUMEN El objetivo del trabajo es describir las principales políticas en materia de drogas
en Argentina y establecer articulaciones entre las mismas, los procesos de estigma social y la
accesibilidad de drogadependientes a los servicios de salud. Para ello, se realizó una revisión
bibliográfica y documental. Una determinada política, produce operaciones que se entretejen
en las particularidades que adquiere la vida cotidiana de las personas. Por ello, la orienta-
ción que adquieren las políticas, configura un determinante fundamental en la trayectoria
de un sujeto por el sistema de salud. Se plantea que el tema central sobre el cual avanzar se
relaciona con la exclusión en salud y el sufrimiento producido por los procesos de estigmati-
zación y una decena de derechos que suelen ser vulnerados a las personas con problemas de
drogadependencia.

PALABRAS CLAVE Políticas; Drogas; Estigmatización; Sufrimiento.

ABSTRACT The aim of this paper is to describe the main drug policies in Argentina, establishing
connections between them, the processes of social stigma and drug dependent patients’ accessi-
* El presente artículo, bility to health services. For this purpose, a bibliographical and documentary review was con-
constituye un avance en ducted. Certain policies produce operations that are interwoven in the particularities of people’s
la construcción de las
categorías teóricas de everyday life. Thus, policies orientations configure a fundamental determinant in patients’ tra-
la tesis doctoral de la jectory in the health system. A central topic on which to advance relates to the exclusion in heal-
autora. Dicho proyecto se
enmarca en un Proyecto th and the suffering produced by the processes of stereotyping, along with the systematic rights
UBACyT. Facultad de violation of drug dependent patients.
Psicología. Directora: Lic.
Alicia Stolkiner. Secretaría
de Ciencia y Técnica. KEYWORDS Policy; Drugs; Stereotyping; Suffering.
Universidad de Buenos
Aires.

1Mestre em Saúde
Mental Comunitária pela
Universidad Nacional de
Lanús – Lanús, Argentina.
Professora adjunta da
Universidad de Buenos
Aires – Buenos Aires,
Argentina. Professora
associada da Universidad
Nacional de Lanús – Lanús,
Argentina.
avazquez@psi.uba.ar

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 830-839, Out-Dez 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140075
Políticas públicas en materia de drogas en Argentina: políticas de estigmatización y sufrimiento 831

Introducción con problemas de drogadependencia como


producto de la profunda relación que existe
El objetivo del trabajo es describir las prin- entre los procesos de estigma social, el pade-
cipales políticas en materia de drogas en cimiento subjetivo y la vulneración de dere-
Argentina y establecer articulaciones entre chos ciudadanos.
las mismas, los procesos de estigma social y
la accesibilidad de drogadependientes a los
servicios de salud. Metodología
Los estudio sobre el marco regulatorio
de la problemática de la drogadependencia, Para el relevamiento de las políticas en
sostienen que éste suele presentarse como materia de drogas se realizó una revisión bi-
encuadres externos que produce diversos bliográfica y documental. La revisión se llevó
efectos y/o influencias. Aquí consideramos a cabo organizada en tres etapas: definición
que esos marcos son productores de subjeti- de objetivos de la revisión, realización de la
vidad y padecimientos. Una determinada po- búsqueda bibliográfica y organización de la
lítica produce operaciones que no se ciñen a documentación y redacción del artículo.
aspectos macro contextuales, sino que se en- Para la localización de los documentos bi-
tretejen en las particularidades que adquiere bliográficos se relevaron fuentes primarias:
la vida cotidiana de las personas (STOLKINER, normativas, reglamentaciones, documentos
1994). Por ello, la orientación particular que internacionales y nacionales y fallos judi-
adquieren las políticas en la materia configu- ciales de la Corte Suprema de Justicia de la
ra un determinante fundamental (aunque no Nación Argentina y secundarias: bases de
unívoco) en la trayectoria de un sujeto por el datos, mapas conceptuales, catálogos sobre
sistema de salud y, por tanto, de su proceso legislación, etc.
salud-enfermedad-cuidado.
En nuestro análisis, no solo se trata de la Políticas en materia de drogas
presencia de un contexto de penalización
de la tenencia para consumo, sino de la pro-
fundización de los discursos de estigma que Itinerarios punitivos y exclusión social
supone la existencia de regulaciones que na-
turalizan la discusión del problema entorno El régimen internacional de control de
a la figura de la peligrosidad. drogas vigente, se sustenta en tres con-
El trabajo se organiza en dos partes. En venciones de la Organización de Naciones
la primera, se presentan los lineamientos Unidas (ONU). La primera es la Convención
políticos que sentaron las condiciones de Única sobre Estupefacientes (1961) que crea
posibilidad para la instauración del prohibi- la estructura del Régimen Internacional de
cionismo en Argentina. Luego se presentan Control de Drogas. Allí se establecen cri-
una serie de modificaciones en las políticas terios orientadores que los países deben
de salud que podrían producir un nuevo pa- seguir para ajustarse a un marco general de
radigma de pensamiento cuyo centro sea la políticas de drogas. Diez años más tarde, la
importancia de favorecer el cumplimiento Convención sobre Sustancias Psicotrópicas
de derechos en general (y el de atención en (1971) nace vinculada con la necesidad de
salud en particular) en el contexto del ejer- someter a control una serie de drogas surgi-
cicio de ciudadanía. Por último, se plantea das entre los años 60 y 70, fundamentalmen-
como discusión la importancia de visuali- te anfetaminas, barbitúricos y sustancias
zar una dimensión central como es la ex- alucinógenas. Por último, con la Convención
clusión en salud que sufren las personas contra el Tráfico Ilícito de Estupefacientes y

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 830-839, Out-Dez 2014


832 VÁZQUEZ, A.

Sustancias Psicotrópicas (1988), que conso- resultados del mismo (Art.17 y 18). El artícu-
lida el ideario de lo que se conoce como ‘la lo 17 plantea que la persona puede quedar
ilusión represiva’: una combinación entre eximida de la pena en aquellos casos en los
castigo y tratamiento con eje en los consumi- que pueda acreditarse el resultado satisfac-
dores de drogas (GONZÁLEZ, 2000, p.195) basada en torio del tratamiento realizado. Sin embargo,
el convencimiento de que la represión per- considera que:
mitirá alcanzar un mundo sin drogas. Una
de las novedades que introduce este último Si transcurridos dos años de tratamiento, no
documento, es la ampliación del territorio se ha obtenido un grado aceptable de recu-
de las acciones punibles. Esta Convención, peración por su falta de colaboración, deberá
más conocida como la Convención de Viena, aplicársele la pena y continuar con la medida
fue decisiva para consolidar el modelo de seguridad por el tiempo necesario o sola-
prohibicionista. mente esta última. (ARGENTINA, 1989, Art. 17).
El mismo año de la denominada
Convención de Viena, se realizó la Sesión Constituye una paradoja, el hecho de
Especial de la Asamblea General de las que una persona sea judicializada por la
Naciones Unidas (UNGASS, 1998). Es relevante Ley Penal en posesión de sustancias para
el primer párrafo de la Declaración Política uso propio, y que una alternativa al cumpli-
que se aprobó en ese marco, ya que sinteti- miento de la pena, sea la realización de un
za la lógica que orientará la mayor parte de tratamiento compulsivo para su recupera-
los discursos sobre las drogas durante los ción. Lo cierto es que, quien no colabora,
siguientes veinte años: debe cumplir la pena y puede ser obligado
(además) a continuar con el tratamiento.
Las drogas destruyen vidas y comunidades, Desde nuestra perspectiva, éstas medidas
socavan el desarrollo humano sostenible y ge- configuran un instrumento de control estatal
neran delincuencia Las drogas afectan a todos que limita derechos.
los sectores de la sociedad en todos los países; Al reprimir la tenencia de pequeñas
sobre todo, el uso indebido de drogas afecta a cantidades para consumo personal, carac-
la libertad y al desarrollo de los jóvenes, que teriza como delito la misma conducta que
son el patrimonio más preciado de la humani- será objeto de abordaje terapéutico. Esto
dad. Las drogas constituyen una grave amena- ha tenido como correlato, la habitual de-
za para la salud y el bienestar de todo el género signación de este problema asociado a la
humano, para la independencia de los Estados, delincuencia o a la enfermedad. La oscila-
la democracia, la estabilidad de las naciones, la ción transcurre entre la medicalización y
estructura de todas las sociedades y la digni- la criminalización. Uno de los proyectos de
dad y la esperanza de millones de personas y ley para la transformación de la ley penal,
sus familias […]. (UNGASS, 1988, p. 1). exponía que:

En Argentina, La Ley 23.737 (ARGENTINA, Esta ley, cuyo fin es supuestamente preservar
1989)del Código Penal Argentino (CPA), la salud pública, transforma en delincuentes
sanciona con prisión de un mes a dos años a cientos de miles de personas que no son
y multa, la tenencia de drogas para uso per- delincuentes. En los 15 años de vigencia de la
sonal (Art. 14). Contempla la realización norma hubo 320.000 procesados o deteni-
de un tratamiento - Medida de Seguridad dos por este tema: el 98,5% de ellos no tenía
Curativa - para quienes dependan física o antecedentes penales cuando fue detenido y
psíquicamente de sustancias, dejando en tenía menos de 5 gramos en su poder. (GARCÍA,
suspenso la pena, hasta la evaluación de los 2005, p. 4).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 830-839, Out-Dez 2014


Políticas públicas en materia de drogas en Argentina: políticas de estigmatización y sufrimiento 833

Desde el año 1989, año en que se sancio- volvió a expresarse1 en el sentido de que la
na la Ley Penal vigente, la Corte Suprema incriminación de la tenencia crea una pre-
de Justicia de la Nación (CSJN) ha fallado sunción genérica y absoluta de peligro abs-
reprimiendo la tenencia de pequeñas canti- tracto (ARGENTINA, 2009, p. 1). El Fallo introduce
dades de sustancias (aunque estuvieran des- la jurisprudencia internacional en cuanto
tinadas al consumo personal) a partir de la que la misma se manifiesta en contra del
interpretación de existencia de afectación de ejercicio del poder punitivo del Estado
la salud pública como el bien jurídico prote- basado en la consideración de peligrosidad
gido. Los argumentos de estos fallos se han de las personas. Expone que las razones
basado en la idea de que no existe la intimi- en que se sustentaba la incriminación del
dad ni privacidad si existe la exteriorización. tenedor han fracasado, “y ello a costa de una
Esa exteriorización, fundamentan, puede interpretación restrictiva de los derechos
afectar de alguna manera el orden o la moral individuales”. La propuesta de un cambio
pública o los derechos de un tercero. Por lo jurisprudencial, sigue el Fallo, se justifica en
tanto, al tratarse de una figura de peligro que la doctrina utilizada hasta el momento
abstracto está contenida la trascendencia a se ha elaborado previamente a la reforma
tercero ya que detrás del consumidor, está el constitucional (1994) a partir de la cual el
traficante hormiga y el verdadero traficante. derecho a la salud es reconocido con rango
Por eso se afirma que la conducta reprimida constitucional por los tratados incorporados
queda por fuera del ámbito de privacidad. y el Estado Nacional se ha comprometido
Las políticas represivas actuales, tienen para lograr su efectividad plena. El Fallo fi-
una importante raigambre ideológica en la naliza expresando que,
que prevalecen juicios y temores. La catego-
rización de tema tabú opera como un inhibi- […] se declara la inconstitucionalidad2 de esa
dor del debate público al ser identificado con disposición legal en cuanto incrimina la te-
el crimen. Esta asociación, somete a los con- nencia de estupefacientes para uso personal
sumidores de drogas a espacios cada vez más que se realice en condiciones tales que no
cerrados donde, a su vez, se vuelven cada vez traigan aparejado un peligro concreto o un
más vulnerables (CLDD, 2009). El prohibi- daño a derechos o bienes de terceros. (ARGEN-
cionismo, se sostiene en una división entre TINA, 2009, p. 38).
drogas legales e ilegales – y por ende –, entre
usuarios legales e ilegales, ocultando que el Este Fallo, marca un hito en cuanto a que
mayor riesgo que pueden suponer estos con- es el primero que con posterioridad a la
sumos, se asocia más a las condiciones socia- reforma de 1994 se expresa en contra de la
les en que se encuentran estas personas, que represión de la tenencia de drogas para uso
al consumo mismo. personal que no suponga peligro concreto o
El discurso del crimen relacionado con las daños a terceros.
drogas ilegales, posee un fuerte componente
ideológico Políticas en salud

[…] y produce un efecto explicativo basado en Desde fines de los años 80 el discurso de la 1 ARGENTINA ya se había
expresado en ese sentido
la suposición de peligrosidad de las personas peligrosidad de personas droagadependien- en el año 1986, en el Fallo
drogadependientes pobres, marginales, en tes, en situación de vulnerabilidad social y/o Bazterrica, sin página
una situación de clara subalternidad social y pobreza, ha sido la base para consolidar el 2 La inconstitucionalidad,

cultural. (VÁZQUEZ; ROMANÍ, 2012, p. 161). modelo represivo y prohibicionista. Si bien se refiere al artículo 14,
segundo párrafo de la ley
este paradigma ha delineado las políticas 23.737 (ARGENTINA,
Es recién en el año 2009 que la CSJN en drogas de la Argentina de los últimos 20 2010).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 830-839, Out-Dez 2014


834 VÁZQUEZ, A.

años, desde el año 2008 se introdujeron un humanos, con jerarquía constitucional, sin
conjunto de modificaciones discursivas sig- perjuicio de las regulaciones más beneficio-
nificativas en el escenario de las políticas a sas que para la protección de estos derechos
nivel nacional, que podrían transformar el puedan establecer las provincias y la Ciudad
ideario criminalizador y patologizante vin- Autónoma de Buenos Aires. (ARGENTINA, 2010,
culado a los drogadependientes. Art.1).
Entre los acontecimientos ocurridos
durante el bienio 2008-2010, que podrían En su Artículo 4 establece lineamientos
abonar la hipótesis del potencial surgimien- específicos para las adicciones. Expresa que:
to de un nuevo paradigma de pensamiento,
podemos enumerar los siguientes: cambio Las adicciones deben ser abordadas como
de discurso del Gobierno Nacional en cuanto parte integrante de las políticas de salud
a descriminalizar la tenencia de drogas mental. Las personas con uso problemático
para consumo personal3, Fallo de la Corte de drogas, legales e ilegales, tienen todos los
Suprema de Justicia de la Nación en que se derechos y garantías que se establecen en la
despenaliza la posesión de estupefacientes presente ley en su relación con los servicios
para uso personal si ello no produjera daños a de salud. (ARGENTINA, 2010, Art. 4).
terceros4, creación de la Dirección Nacional
de Salud Mental y Adicciones5, sanción de la Obliga a los servicios y efectores de salud
Ley Nacional de Salud Mental6, adecuación públicos y privados a adecuarse a los princi-
de las provincias a los nuevos lineamien- pios establecidos. Plantea como un derecho
tos nacionales (en algunas jurisdicciones, de las personas el no ser identificado ni
esto supuso comenzar a ampliar la red de discriminado por un padecimiento mental
servicios para la atención de personas dro- actual o pasado (ARGENTINA, 2010, Art. 4 y 7).
gadependientes), adopción del enfoque de No obstante este conjunto de propuestas y
derechos humanos en algunos de los nuevos normativas, es innegable que este potencial
efectores de la red de atención asistencial, ‘nuevo paradigma’, convive aún con el del
surgimiento de nuevos actores (usuarios y estigma, la punición y la exclusión de droga-
familiares de los Servicios de Salud Mental dependientes en situación de pobreza.
en general y de drogadependientes en parti-
4 ARGENTINA
cular, tal como las Madres del PACO7 y las Ciudadanía y padecimiento
, 2009.
agrupaciones de usuarios de marihuana).
5 Mediante el decreto
La Ley Nacional de Salud Mental plantea La cuestión de las drogas y la drogadepen-
457/2010 (ARGENTINA,
2010, sin página), en el que lineamientos específicos en cuanto a las dencia, adquirió relevancia en los últimos
se alude a “la necesidad políticas, los servicios de atención, como al decenios. Las políticas neoliberales articu-
de fortalecer las políticas
públicas de salud mental, enfoque de derechos humanos con eje en la ladas al contexto punitivo que enmarca el
especialmente el cumpli- disminución del estigma y la discriminación consumo de drogas ilegales en Argentina,
miento de los derechos
de las personas con que sufren las personas drogadependien- produjo un discurso hegemónico caracteri-
padecimientos mentales o tes cuando se vinculan con los efectores de zado por la criminalización y estigmatiza-
adicciones”.
salud. Plantea como objeto: ción de drogadependientes en situación de
6 ARGENTINA, 1999. pobreza
7 La abreviatura corres- […] asegurar el derecho a la protección de la El problema de la drogadependencia,
ponde a la sustancia Pasta salud mental de todas las personas, y el ple- ofrece un ejemplo especialmente ilustrativo
base de Cocaína. Esta
agrupación de madres, no goce de los derechos humanos de aquellas para el análisis de los procesos de estigma-
reclama protección social con padecimiento mental que se encuentran tización. Desde la perspectiva teórica con la
y suelen denunciar proble-
mas para la atención en en el territorio nacional, reconocidos en los que trabajamos, el foco de la cuestión no está
salud de sus hijos. instrumentos internacionales de derechos puesto en la definición de la droga, sino en las

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 830-839, Out-Dez 2014


Políticas públicas en materia de drogas en Argentina: políticas de estigmatización y sufrimiento 835

definiciones sociales que se producen acerca adicciones a las drogas, alcoholismo, homo-
del vínculo entre los sujetos y las drogas. sexualidad, desempleo, intentos de suicidio
La dimensión del poder, es clave para y conductas políticas extremistas”.
estudiar la estigmatización, ya no desde la El sufrimiento que producen estas cons-
consideración de las categorías de personas trucciones discursivas en la vida cotidiana
estigmatizadas, sino desde el análisis de las de los sujetos, se vincula a formas de vio-
diferentes categorías de personas, según lencias que operan en todas las sociedades:
sea su inserción en las estructuras de poder. “[…] procesos de discriminación, estigmati-
Por ello, algunos autores conceptualizan al zación, falta de expectativas y desesperan-
sufrimiento producido por estos procesos za, marginalización e ilegalidad […]” (EPELE,
como maltrato social, vivencia que ha sido 2002, p. 124). La violencia cotidiana se trata de
denominada como “oppression illness” (EPELE, las prácticas y manifestaciones de agresión
2002, p.127). entre personas, que son útiles para norma-
En este punto cabe introducir una pre- lizar la “violencia en el nivel microsocial tal
cisión con respecto al concepto de enfer- como la pelea doméstica, la delincuencia y la
medad. La sociología médica parsoniana drogadicción” (BOURGOIS, 2002, p. 76).
distingue la enfermedad (disease) entendida Al igual que la drogadependencia, el tema
como conjunto de eventos físicos, biológicos de la violencia suele ser resistido para su in-
y psíquicos con existencia objetiva de mal clusión en la agenda sanitaria de los países,
de dolencia (illness) que refiere al estado ya que tradicionalmente ha sido tratado
subjetivo experimentado por el individuo como un problema del ámbito legal y/o de la
en el papel de enfermo. Posteriormente se seguridad pública. Esta escisión en el trata-
propuso el concepto de sickness, para hacer miento del tema, comienza a desdibujarse en
referencia al encuadre social de la enferme- la medida que va teniendo lugar una transi-
dad y la determinación social del papel de ción por la cual es cada vez más difícil la con-
enfermo (ALMEIDA FILHO, 2000, p. 87). ceptualización de enfermedades solamente
La experiencia de enfermedad es la forma enmarcadas en el modelo médico positi-
en que las personas se sitúan con respecto a vista. La visión de la complejidad en salud,
la dolencia, esto es, los significados confe- ha surgido ante la necesidad de ampliar
ridos y las formas de lidiar con la situación. los modelos explicativos tradicionales. Los
Las respuestas a los problemas producidos cuadros de muertes y lesiones producidos,
por la dolencia, se construyen socialmente y fundamentalmente, por problemáticas so-
remiten a un mundo compartido de prácti- ciales ha dado relevancia al rol de la violen-
cas, creencias y valores (ALVES; RABELO, 1999). cia en los procesos de enfermar (MINAYO, 2005).
La conceptualización de la estigmatiza- Los discursos estigmatizantes sobre la
ción y la discriminación como procesos so- drogadependencia, cumplen una función de
ciales está ligada, indefectiblemente, a los distorsión, magnificación e invisibilidad de
estudios sobre desigualdad social. (PARKER; algunas dimensiones del problema. El dis-
AGGLETON, 2003). Para el abordaje de este punto, curso del crimen asociado a las drogas ilega-
es de particular interés tomar uno de los tipos les, tiene un fuerte componente ideológico y
de estigma descriptos por Goffman (2006, produce un efecto explicativo basado en la
p.14), aquel que se refiere a “[…] los defectos suposición de peligrosidad de estas perso-
del carácter del individuo que se perciben nas. La situación de quienes han sido alcan-
como falta de voluntad, pasiones tiránicas o zados por la legislación penal, muestra que
antinaturales, creencias rígidas y falsas, des- aún quienes cumplieron su pena, no logran
honestidad”. Que surgen de informes sobre deshacerse de la marca de la judicialización.
“[…] perturbaciones mentales, reclusiones, El problema de la drogadependencia, en

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 830-839, Out-Dez 2014


836 VÁZQUEZ, A.

sus diferentes nominaciones (uso, abuso, en salud es “[…] el vínculo que se construye
adicción, alcoholismo, toxicomanía, etc.), se entre los sujetos y los servicios […] y se mani-
encuentra presente en la mayor parte de las fiesta en la modalidad particular que adquie-
caracterizaciones de los autores que estu- re la utilización de los servicios” (BARCALA;
dian las designaciones de anormalidad, des- STOLKINER, 2000, p. 283).
viación y/o estigma (FREIDSON, 1978; CONRAD, 1982; El énfasis del consumo de drogas puesto
CONRAD; SCHNEIDER, 1985; MENÉNDEZ, 1990; GALENDE, en el vínculo con las sustancias ilegales (y
1997; GOFFMAN, 2006). su prohibición), ha relegado a un modesto
Para Conrad (1982), la anormalidad in- segundo plano las cuestiones relativas a la
tencionada, suele definirse como delito. Se salud. La importancia atribuida a las sus-
reserva la definición de no intencionada tancias, ha impedido visualizar que solo
para designar la enfermedad. Por eso a la un “pleno goce de derechos, incluidos los
delincuencia se le responde con castigo - económicos sociales y culturales” (OCAÑA, Sin
respuesta punitiva -, y a la enfermedad con fecha), podría comenzar a operar transforma-
la imposición del tratamiento - respuesta ciones en el escenario del problema.
terapéutica8. Varios juristas, señalan que el acceso de
Entre las anormalidades que integran la drogadependientes a la atención en salud
jurisdicción de la medicina, se encuentran puede obstaculizarse como efecto del con-
el alcoholismo y la dependencia de drogas texto punitivo (CATTANI, 2005, VÁZQUEZ-ACUÑA,
junto a hiperactividad infantil, suicidio, obe- 1997). Otros señalan que se produce por la
sidad, delincuencia, violencia, corrupción de discriminación en las instituciones de salud
menores y problemas de aprendizaje, entre (INCHAURRAGA, 2000; PARKER; AGGLETON, 2003) y los
otros (CONRAD, 1982). procesos de estigmatización en los servicios
Uno de los efectos principales de la es- de salud (PECHENY et al., 2007).
tigmatización, es su capacidad de producir En un trabajo sobre las consecuencias de
grupos específicos de ciudadanos que ven la criminalización del consumo de drogas
limitado su cumplimento de derechos tales en los vínculos entre instituciones de salud
como el derecho a la atención en salud. y usuarios/as de drogas que viven en con-
Estos grupos, ponen en juego una operación diciones de marginación social, se analiza
de encubrimiento en diferentes momentos la sospecha como una lógica que estructura
de la vida cotidiana, tal como puede ser el una barrera entre los usuarios y el sistema
contacto con una institución pública. La de salud. La lógica de la sospecha, se define
particularidad que profundiza la situación como
desigual en la que quedan las personas que
usan drogas ilegales, es que sobre ellos cae, […] aquel conjunto heteróclito de prácticas
no solo la condena social del estigma (sim- simbólicas que definen las propiedades de los
8 Conrad (1982) toma
bólico), sino la posibilidad cierta de ser en- vínculos y las posiciones entre los usuarios/
en ese artículo la
conceptualización de carcelados. Puede conjeturarse entonces, el as de drogas y las Instituciones del Estado,
Parsons sobre el rol del largo camino que deben recorrer aquellos particularmente las de salud. (EPELE, 2007, p. 155).
enfermo que se compone
de 4 instancias: eximición para los cuales el uso de drogas se ha vuelto
de responsabilidades problemático y necesitan tratamiento para Reconocer esta lógica como barrera,
propias de la normalidad,
eximición de la su problema de salud. supone ampliar las nociones tradicionales
responsabilidad por la La salud es un derecho humano funda- sobre problemas económicos, geográficos y
enfermedad, obligación
de reconocer el estado de mental que implica el acceso universal a culturales.
enfermo y cooperación los servicios: oportunos, humanizados y Un estudio en el que se indagaba repre-
a través de la búsqueda
y sometimiento a adecuados culturalmente (BRASIL, 2007). Desde sentaciones y prácticas sobre la drogade-
tratamiento. este enfoque, la accesibilidad a la atención pendencia en profesionales de la salud y su

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 830-839, Out-Dez 2014


Políticas públicas en materia de drogas en Argentina: políticas de estigmatización y sufrimiento 837

relación con la accesibilidad a los servicios, de comprender sus efectos, con miras a ser
concluía que: “la reproducción de la estig- parte de intervenciones que tiendan a cues-
matización podría colaborar con la produc- tionarlos y eliminarlos (PARKER; AGGLETON, 2003).
ción de barreras de accesibilidad específicas Un primer camino, es poner en discusión
para estas personas” (VÁZQUEZ, 2006, p. 121). las categorías que habitualmente se relacio-
Cada época define alguna enfermedad nan con el consumo de drogas: enfermedad y
emblemática, la drogadependencia podría delito. En cuanto a la nominación de enfer-
ocupar ese lugar de trípode emblemático: medad, es tiempo de separar a quienes hacen
enfermedad-delito-pobreza, en que ha sido usos recreativos de drogas (principalmente
ubicada en la época actual. Estos procesos ilegales), de aquellos que manifiestan con-
pueden conceptualizarse como formas de sumos problemáticos. Aquellos que sufren
violencia menos visibles que otras tales como sobre sí la carga de la estigmatización, la han
las formas sexuales y/o físicas: “[…] otras sufrido muchas veces antes de relacionarse
formas más silenciosas e invisibles como son con las drogas y ya habían sido categoriza-
las violencias políticas, estructurales y sim- dos con anterioridad como pobres y/o mar-
bólicas […]” (EPELE, 2002, p. 117). ginales. Un planteo de tal magnitud, podría
Desarrollos acerca de la estigmatización, suponer una descategorización de todos los
señalan que la lucha contra el estigma, cons- usos de drogas como enfermedad.
tituye uno de los asuntos más urgentes a En cuanto a la vinculación con el delito,
nivel mundial,9 y que las reacciones sociales el debate muestra mejores perspectivas en
de estigma y discriminación, pueden cons- comparación con lo que ocurre con la cate-
tituir una epidemia más explosiva, que la gorización de enfermedad. A nivel mundial,
producida por la propia enfermedad10: una el régimen de la prohibición produjo un
“epidemia de significados”11 (PARKER; AGGLETON, mercado ilegal que da respuesta a aquellas
2003, p. 14). personas que no han logrado sobrevivir en
la economía legal socialmente establecida
(METAAL, 2008). La evaluación de los efectos de
Conclusión 20 años de políticas de represión y persecu-
ción de los usuarios, ha demostrado en buena
En los últimos años se ha venido propo- parte del mundo, un estrepitoso fracaso en
niendo la inclusión, en la agenda política y cuando a la disminución de la demanda.
sanitaria de los países, de la cuestión de la Un fracaso mucho mayor ha mostrado en
accesibilidad a la atención en salud de per- favorecer la atención en salud de aquellos
sonas con diversas problemáticas de salud que requieren tratamiento por su consumo
mental. problemático.
La ampliación y transformación de la La reducción de la estigmatización y la 9 El comentario

conceptualización sobre la estigmatización, discriminación, es fundamental para la ela- corresponde a las


declaraciones del director
entendida como un conjunto poderoso de boración de políticas de inclusión desde una ejecutivo de la Unaids en
procesos sociales relacionados con la re- lógica de respeto por los derechos humanos el año 2000 (PARKER;
AGGLETON, 2002, p. 2)
producción de la desigualdad y la exclusión, que sustituyan las actuales políticas de ex-
ofrece un complemento y una nueva forma clusión y padecimiento. s 10 Los autores citan el

análisis de Mann, quien


conceptualiza estas
reacciones sociales como
“la tercera epidemia”
(PARKER; AGGLETON,
2002, p. 1).

11 La
definición pertenece
a Paula Treichler.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 830-839, Out-Dez 2014


838 VÁZQUEZ, A.

Referências

ALMEIDA FILHO, N. La ciencia Tímida. Ensayo de de Investigaciones. Facultad de Psicología. UBA, VIII,
deconstrucción de la epidemiología. Buenos Aires: 2000, 282-295.
Lugar Editorial, 2000.
BOURGOIS, P. El poder de la violencia en la guerra y la
ALVES, P. C.; RABELO, M. C. Significação e metáforas paz. Apuntes de Investigación del CECyP, año VI, v. 88,
na experiência da enfermidade. En: ______. (Org.). p. 73-98, 2002.
Experiência de doença e Narrativa. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 1999. p. 171-185. BRASIL. CARTA DE BRASILIA. In: Reunión
regional de consulta con la sociedad civil sobre los
ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación. determinantes sociales de la salud, 2007.
Fallo Bazterrica: Bazterrica, Gustavo M. Buenos Aires,
29 ago. 1986. CATTANI, H. Consumo de drogas: ¿la hora de
despenalizar? Diario La nación, Buenos Aires, 6 nov.
______. Corte Suprema de Justicia de la Nación. Fallo 2005. Enfoques.
A. 891. XLIV: Arriola, Sebastián y otros, Sin causa, nº
9080. Buenos Aires, 25 ago. 2009. COMISIÓN LATINOAMERICANA SOBRE DROGAS
Y DEMOCRACIA (CLDD) Drogas y Democracia: Hacia
______. Decreto n°.457. Modificase el Anexo II al un cambio de paradigma. Informe de la Comisión
artículo 2° del Decreto Nº 357/02 el Apartado XX Latinoamericana sobre Drogas y Democracia. Rio de
correspondiente al Ministerio de Salud. Boletín Janeiro: CLDD, 2009.
Oficial de La República Argentina. Buenos Aires, 5 abr.
2010. Disponible: < http://www.boletinoficial.gov.ar/ CONRAD, P. Sobre la medicalización de la anormalidad
DisplayPdf.aspx?s=BPBCF&f=20100407> Acceso: 30 y el control social. In: INGLEBY, D. (Ed.) Psiquiatría
abr. 2013. Crítica: La política de la salud mental. Barcelona:
Crítica-Grijalbo, 1982. p. 129-159.
______. Ley n°. 26.657. Derecho a la Protección de
la Salud Mental. Disposiciones complementarias. CONRAD, P.; Y SCHNEIDER, J. Deviance and
Derogase la Ley Nº 22.914. Boletín Oficial de medicalization: from badness to sickness. Columbus-
La República Argentina. Buenos Aires, 21 set. Ohio: Merrill Publishing Company, 1985. p. 1-37.
1989. Disponible: <http://www.infoleg.gov.ar/
infolegInternet/anexos/0-4999/138/texact.htm > EPELE, M. La lógica de la sospecha. Sobre la
Acceso: 30 abr. 2013. criminalización del uso de drogas, complots y
barreras de acceso al sistema de salud. Cuadernos de
______. Ley n°.23.737. Su modificación. Incorporase el Antropología Social de la Facultad de Filosofía y Letras,
artículo 18 bis a la Ley N° 10.903. Reemplazando los Buenos Aires, n. 25, p. 153-170, 2007.
artículos 25 y 26 de la Ley N° 20.655 e incorporase a
la misma el artículo 26 bis. Derogase los artículos 1° EPELE, M. Violencias y traumas: Políticas del
al 11 de la Ley N° 20.771 y sus modificatorias. Boletín Sufrimiento Social entre Usuarias de Drogas.
Oficial de La República Argentina. Buenos Aires, 25 Cuadernos de Antropología Social de la Facultad de
nov. 2010. Disponible: <http://infoleg.mecon.gov.ar/ Filosofía y Letras, Buenos Aires, n. 14, p. 117-137, 2002.
infolegInternet/anexos/175000-179999/175977/norma.
htm> Acceso: 30 abr. 2013. FREIDSON, E. La construcción profesional de
conceptos de enfermedad. In: ______. La profesión
AUREANO, G. Uso recreativo de drogas ilícitas: una médica: un estudio de sociología del conocimiento
visión política. En: CACERES, C. et al. (Ed.) La salud aplicado. Barcelona: Península, 1978. p. 247-300.
como derecho ciudadano. Lima: UPCH. 2003. p. 45-48.
GALENDE, E. Subjetividad y cultura: el malestar de
BARCALA, A.; STOLKINER, A. Accesibilidad a la individuación. In: ______. De un horizonte incierto.
servicios de salud de familias con sus necesidades Psicoanálisis y Salud Mental en la sociedad actual.
básicas insatisfechas (NBI): estudio de caso. Anuario Buenos Aires: Paidós, 1997. p. 63-132.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 830-839, Out-Dez 2014


Políticas públicas en materia de drogas en Argentina: políticas de estigmatización y sufrimiento 839

GARCÍA, E. Consumo de drogas: ¿la hora de paliativos. In: LÓPEZ, E.; PANTELIDES, E. (Comp.)
despenalizar? Cuál sería el beneficio de un cambio. Aportes a la investigación social en salud sexual y
Diario La nación, Buenos Aires, 6 nov. 2005. Enfoques. reproductiva. Buenos Aires: CENEP; CEDES; AEPA;
UNFPA, 2007. p. 195-230.
GOFFMAN, E. Estigma. La identidad deteriorada.
Buenos Aires: Amorrortu, 2006. STOLKINER, A. Tiempos posmodernos: ajuste y salud
mental. In SAIDÓN O; TROIANOVSKY, P. (Comp.)
GONZÁLEZ, C. Aspectos Legislativos. In GRUP IGIA Políticas en salud mental. Buenos Aires: Lugar, 1994. p.
y colaboradores. Contextos, sujetos y drogas: un manual 22-53.
sobre drogodependencias. Barcelona: Ajuntament de
Barcelona, 2000. p. 189-240. THE UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY
SPECIAL SESSION (UNGASS). Declaración Política
INCHAURRAGA, S. Sida sobre la transitoriedad del aprobada: Sesión Especial de la Asamblea General de
sujeto y la cultura. In: BARRIONUEVO, J. (Comp.) Naciones Unidas. ONU: Nueva York, 1998.
Clínica psicoanalítica al límite. Buenos Aires: Gabas,
2000. p. 5-72. VÁZQUEZ, A. La Construcción Social del “problema
de las drogas”: Representaciones y Prácticas sobre la
MENÉNDEZ, E. L. El modelo médico hegemónico. In: drogadependencia en profesionales de la Salud. Su
______. Morir de alcohol: saber y Hegemonía Médica. relación con la Accesibilidad y Dignidad en la Atención
México: Ediciones de la Casa Chata, 1990. p. 83-117 de personas que usan drogas en Servicios de Salud
del GCBA. 2006. Tesis (Maestría en Psicología). –
METAAL, P. La dimensión ética de las políticas de Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, 2006.
drogas: La moralidad frente a un enfoque basado en los
derechos. Amsterdan: Trasnational Institute, 2008, p. VÁZQUEZ, A; ROMANÍ, O. Drogadependencia,
18-25. (Programa Drogas y Democracia). estigma y exclusión en salud. Barreras de accesibilidad
de drogadependientes a Servicios de Salud en las
MINAYO, M. C. S. Relaciones entre Procesos Sociales, ciudades de Barcelona y Buenos Aires. Anuario
Violencia y Calidad de Vida. Salud Colectiva, v. 1, n. 1, p. de Investigaciones, 19. Buenos Aires: Facultad de
69-78, 2005. Psicología, 2012. p. 159-166.

OCAÑA, V. Jornadas: Dirección de Promoción del VÁZQUEZ-ACUÑA, M. Coerción: un factor


Liberado. [internet] Disponible en: <http://www.plb. importante que restringe el acceso de usadores
gba.gov.ar/gba/plb/ejecpenal/ fotos_mendoza/Lic.%20 de drogas y trabajadoras sexuales al sistema de
Viviana%20Oca%F1a.pdf>. Acceso en: 23 ene. 2008. salud. In: INCHAURRAGA, S. (Comp.). Drogas y
Drogodependencias: Teoría, clínica e instituciones.
PARKER, R.; AGGLETON, P. HIV and AIDS-related Rosario: UNR, 1997. p. 49-56.
stigma and discrimination: a conceptual framework
and implications for action. Social Science & Medicine,
Recebido para publicação em abril de 2013
New York, n. 57, p. 13-24, 2003. Versão final em maio de 2014
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
PECHENY, M., et al. La ciudadanización de la
salud: derechos y responsabilidades en salud sexual-
reproductiva, enfermedades crónicas y cuidados

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 830-839, Out-Dez 2014


840 artigo original | original article

La ideología en la planificación normativa


y la modernización neoliberal: contextos y
dispositivos de poder *
Ideology in normative planning and neoliberal modernization:
contexts and power devices

Alejandro Perdomo Rubio1, Gilberto Hernandez Zinzún2

RESUMEN Las reestructuraciones productivas de los hospitales públicos en América Latina


pretenden realizar cambios en las formas como se produce la atención y el cuidado. La actual
reestructuración productiva se asegura ideológicamente mediante el desplazamiento de los
discursos hegemónicos en el sector, de la planificación normativa hacia los discursos de la
modernización neoliberal. En el presente artículo, la metodología utilizada fue cualitativa, a
través del análisis crítico del discurso. Se analizaron las principales características de ambos
paradigmas hegemónicos, la relación entre sus principales tecnologías con los contextos
económicos, sociales y culturales en que emergieron y su articulación con los dispositivos de
poder.

PALABRAS CLAVE Reforma de la atención de salud; Cambio social; Capitalismo, Controles


informales de la sociedad.

ABSTRACT The productive restructuration of public hospitals in Latin America pretends to make
* El presente artículo
forma parte de la tesis changes in the ways in which attention and care occurs. Current productive restructuration
para obtener el título is ideologically ensured by the displacement of the hegemonic discourses in the sector,
de doctor en Ciencias
en Salud Colectiva de from Normative Planning to the discourses of neoliberal modernization. In this article, the
la UAM-Xochimilco methodology was qualitative, through Critical Discourse Analysis. The analysis approached to
de Alejandro Perdomo
Rubio: ‘La ideología en the main features of both hegemonic paradigms, the relationship between its core technologies
la Reestructuración with economic, social and cultural contexts in which they emerged and how it relates to power
productiva de los
Hospitales Públicos en devices.
Colombia y México’.

KEYWORDS Health care reform; Social change; Capitalism; Social control, Informal.
1 Doctor en Ciencias en
Salud Colectiva. Profesor
Investigador. Instituto de
Salud Pública, Universidad
Veracruzana.
alperdo77@yahoo.com

2 Doctor en Antropología.
Profesor Titular, Facultad
de Estudio Superiores
Iztacala, Universidad
Nacional Autónoma de
México.
zinzun@unam.mx

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 840-852, OUT-DEZ 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140076
La ideología en la planificación normativa y la modernización neoliberal: contextos y dispositivos de poder 841

Introducción cualitativa, la cual estudia los fenómenos


mediante la interpretación del significado
Las reestructuraciones productivas de los que los productores de discursos ideológicos
hospitales públicos en América Latina pre- le dan a estos (DENZIN; LINCOLN, 2000). En la in-
tenden asegurar los cambios en las formas vestigación cualitativa se reconoce el carác-
como se produce la atención y el cuidado ter reflexivo de la investigación social, por
mediante el establecimiento del paradigma lo tanto el investigador es el instrumento de
ideológico de la modernización neoliberal investigación por excelencia. El método cua-
suprimiendo el anterior, de la planificación litativo busca un concepto que pueda cubrir
normativa. En la vida cotidiana, a pesar que parte de la realidad y entiende que cada fe-
los trabajadores hospitalarios y los pacientes nómeno es cualitativamente único.
perciben que su participación en la defini- En el análisis ideológico realizado preten-
ción de los temas centrales de la atención dimos develar cómo un cierto orden social
y el cuidado es cada vez menor, aceptan las se asegura mediante la hegemonía de para-
propuestas como una necesidad, como único digmas, que se invisten de neutralidad, de
camino, no obstante entender el carácter di- técnica o cientificidad, pero que sólo pueden
ferencialmente excluyente de cada uno de explicarse a partir de sus relaciones con su
estos paradigmas. Consideramos que esta in- contexto histórico social; y cómo se confi-
movilidad o incoherencia entre pensamiento guran mediante mecanismos para controlar
y acción se presenta en gran medida por los los cuerpos y mentes de los participantes de
efectos de la ideología. El presente estudio la atención y el cuidado. Reconocimos cómo
busca aproximarse a las principales carac- apelar a la naturalidad o neutralidad de los
terísticas de ambos paradigmas ideológicos, discursos sobre las reformas sanitarias o las
la relación entre sus principales tecnologías reestructuraciones de los hospitales es una
con los contextos en que emergieron y su ar- estrategia ideológica. Para entender este ca-
ticulación con los dispositivos disciplinarios rácter ideológico abordamos, por un lado, la
y de seguridad-control. relación entre los discursos con los contextos
Partiendo de la propuesta de Zizek (2003), sociales de emergencia (FAIRCLOUGH, 2001). Por
entendemos la ideología como una configura- otro lado, identificamos las formas como sus
ción de paradigmas, disposiciones y prácticas, propuestas técnicas se articularon a ciertos
que aseguran la producción, reproducción y dispositivos de poder (FOUCAULT, 2002; 2006), que
transformación del orden social, constitui- permitieron asegurar el orden social hospi-
da de manera tal que oculta esta pretensión talario hegemónico.
pragmática. La ideología entendida como Del paradigma de la planificación nor-
paradigma trata sobre doctrinas, teorías, mativa analizamos los textos Problemas
creencias y procedimientos argumentativos conceptuales y metodológicos de la pro-
que, como significaciones/construcciones de gramación de la Salud (AHUMADA et al., 1965) y
la realidad, están destinadas a convencernos el libro Métodos de Planificación Sanitaria
de su verdad, no obstante estar al servicio de Nacional (HILLEBOE; BARKHUUS; THOMAS, 1973). Del
algún interés inconfeso de mantener o repro- paradigma de la modernización neoliberal
ducir ciertas relaciones de poder. analizamos los textos: Informe Mundial
Invertir en Salud (BANCO MUNDIAL, 1993), el
Pluralismo Estructurado (LONDOÑO; FRENK,
Metodología 1997), y Transformaciones de la gestión de
hospitales en América Latina y el Caribe
La metodología de la investigación fue (OPS, 2001).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 840-852, OUT-DEZ 2014


842 PERDOMO RUBIO, A.; HERNANDEZ ZINZÚN, G.

Contexto de emergencia de los dis- capitalista (SENNET, 2008). Este compromiso del
cursos de la planificación normativa capital, del Estado y de los trabajadores, ex-
presado en la seguridad social y la atención
Las condiciones de posibilidad de los dis- de salud estatal, es la principal característica
cursos sobre la Planificación en Salud para del capitalismo pesado.
América Latina se encuentran en el contexto Para hacer personas dóciles y útiles el
del capitalismo pesado y la guerra fría. Uno Estado requería ser efectivo en todos los
de los textos fundantes de la planificación campos. La ampliación de las coberturas
sanitaria en la región se publica en 1965, sólo implicaba que si algún trabajador o miembro
unos años después de la Revolución Cubana, del ejército industrial de reserva se enferma-
de la Conferencia de Punta del Este y de la ba, el Estado asegurara que su intervención
Alianza para el Progreso. Movimientos so- lo devolviera sano y pronto a su fábrica o a
ciales, partidos comunistas y socialistas y seguir buscando trabajo. Mediante la ins-
agrupaciones guerrilleras, buscaban cambios titucionalización de la salud como función
revolucionarios de la sociedad. social el Estado lograba legitimar su existen-
Mientras, los Estados buscaban asegurar cia (AHUMADA et al., 1965). Estado y eficacia iban
la reproducción del sistema capitalista me- de la mano.
diante la promoción de instituciones que Otra superficie de emergencia de la
contenían dispositivos orientados a hacer Planificación en Salud fue el taylorismo-
dóciles a los individuos. Un ejemplo era la fordismo. Este fue la manera como se orga-
ampliación de coberturas de la atención nizó la fábrica desde inicios del siglo XX,
hospitalaria: le restaba credibilidad a los pero también se constituyó en el modelo de
grupos revolucionarios, para quienes las otras instituciones del capitalismo pesado.
pésimas condiciones de salud de los traba- El taylorismo se caracterizaba por una ra-
jadores era una de las razones para comen- cionalización y una mecanización constante
zar o impulsar su gesta y seguir el ejemplo (BAUMAN, 2002). La interpretación racionalista
cubano. Al mismo tiempo, se buscaba hacer de las organizaciones se basaba en la rigu-
útiles a las personas, especialmente a los rosa separación de la planeación y la ejecu-
trabajadores urbanos, como también al ejér- ción, los aspectos intelectuales y manuales
cito industrial de reserva. Se impulsaba el del trabajo, libertad y obediencia, y con su
modelo de desarrollo de Industrialización apretado entrelazamiento de los opuestos
por Sustitución de Importaciones (ISI), en en cada una de esas oposiciones binarias.
donde la industria se pensó como el nuevo Mientras, la mecanización tayloriana se ex-
motor económico de la región. El capital del presaba en la especialización y el control de
ISI requería fuerza de trabajo urbana y sana la cadena productiva, con una estructura je-
que se empleara en las fábricas y el Estado rárquica que permitía una fluida transmisión
debía asegurárselos. Los trabajadores, por su de órdenes.
parte, pedían en sus reivindicaciones aten- Sin embargo, en los hospitales este
ción hospitalaria. De esta forma se crearon taylorismo debía apoyarse en los dispositi-
y fortalecieron instituciones de seguridad vos disciplinarios de la medicina. El control
social y la conformación de Ministerios y tayloriano sobre el trabajo de los profesio-
Secretarías de Salud. Las primeras atendían nales y la atención y cuidado a los pacien-
a los trabajadores y los segundos al ejército tes se apoyaba en la mirada médica, en esa
industrial de reserva. disposición médica disciplinaria de percibir,
La relación entre capital y trabajo era de explorar, valorar, conocer cada detalle del
dependencia, uno necesitaba al otro y asegu- cuerpo del enfermo a través de la mirada y
raba la reproducción del sistema económico con ello describir, dar sentido y controlar a

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 840-852, OUT-DEZ 2014


La ideología en la planificación normativa y la modernización neoliberal: contextos y dispositivos de poder 843

las patologías y a los enfermos (FOUCAULT, 1966). donde gobiernos y organismos privados
Esa disposición a la vigilancia detallada y de la región entraron en cesación de pagos
continua a través de la mirada sobre los en- de su deuda externa, para posteriormente
fermos era también empleada en el control encaminarse por estrictas reformas estruc-
de los mismos médicos y enfermeras en turales impuestas por los organismos finan-
su trabajo. La mirada médica en el hospi- cieros internacionales – Banco Mundial,
tal no sólo explora y controla el cuerpo del Banco Interamericano de Desarrollo y
enfermo sino el de sus pares. La disciplina Fondo Monetario Internacional – como
médica parte de una vigilancia estricta e condición para el otorgamiento de nuevos
ininterrumpida de cada movimiento, cada financiamientos.
uso del cuerpo, tanto del paciente como de Además, recordemos que durante los 80
los mismos profesionales. Nada en ellos y 90 finalizaron las dictaduras en el conti-
debía ser inútil, todo debía ser dócil. La dis- nente. Las dictaduras doblegaron y exter-
ciplina tayloriana, la planeación en salud y el minaron a muchos de los grupos sociales y
Estado usaron esta mirada médica sobre pa- políticos quienes podían hacer oposición
cientes y trabajadores de la salud, y con ello a las condiciones de la banca multilateral.
su eficacia, su reproducción. Asimismo, en los procesos de transición de-
Los dispositivos de poder de los hospita- mocrática se establecieron pactos para neu-
les taylorianos eran el apoyo de los disposi- tralizar políticamente esos grupos sociales.
tivos médicos para ejercer su hegemonía en A su vez, muchos políticos y empresarias se
el orden social hospitalario. Mintzberg (1991) plegaron a las reformas propuestas por la
habla entonces de organizaciones del tipo banca internacional.
burocracias profesionales, donde las relacio- El contexto de los años 80 se debe enten-
nes entre directivas y trabajadores estaban der a partir de la finalización, a comienzos
boca abajo, donde a diferencia de las fábricas de los años 70, del sistema construido en
la posición de los médicos era superior al de base a la Conferencia de Bretton Woods.
las directivas. El orden social hospitalario En 1944, año de su creación, la conferencia
hizo de directivos, médicos, enfermeras y buscaba la recuperación económica mundial
pacientes sujetos disciplinados. Con todo, y después de la Segunda Guerra Mundial. Allí
precisamente por esta relación de dispositi- se designó al dólar de EEUU como moneda
vos disciplinarios, los hospitales eran efica- de reserva internacional, y se definió que
ces: garantizaron la institucionalización de todas las demás monedas tuvieran tasas
la salud, la reproducción de los trabajadores fijas de cambio con respecto al mismo. Pero
y de los desempleados y con ello la repro- ninguna de sus cláusulas impedía que la
ducción económica y política del capitalismo Reserva Federal de EEUU incrementara su
pesado. provisión de billetes, lo que eventualmente
hizo. Así, el respaldo en oro de cada dólar
El contexto de emergencia de la disminuyó sin cesar, no habiendo al final
modernización neoliberal suficiente para respaldar todos los dólares
emitidos. Con la guerra en Vietnam, EEUU
Por su parte, el contexto donde emergieron acumuló déficit presupuestario e inundó al
los discursos neoliberales de políticas de mundo con dólares sin respaldo. Nixon en
salud se enmarca en la década de los años 1971 eliminó la convertibilidad del oro, lo que
80 y 90, caracterizada por la presencia de conllevó a que, sin su respaldo, desaparecie-
los gobiernos conservadores de Reagan y ran los límites que impedían la proliferación
Thatcher, y en América Latina con Pinochet. de billetes de dólar.
Tiene como antecedentes la década perdida, Esto tuvo dos efectos de nuestro interés.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 840-852, OUT-DEZ 2014


844 PERDOMO RUBIO, A.; HERNANDEZ ZINZÚN, G.

El primero es que la banca internacional, al productivas de las empresas, en las cuales la


verse con una inmensa cantidad de dinero, flexibilización de todo el proceso de trabajo
se lo prestó durante los años 70 con tasas de era la constante, transformación que los
interés bajas y muy flexibles a los gobiernos teóricos han denominado toyotismo, just
y los privados de América Latina. Pero con el in time, entre otras conceptualizaciones
trascurrir de la década fueron aumentando (GARZA-TOLEDO, 2001). La flexibilización se ex-
las tasas de interés hasta hacer impagable la tendió desde las tecnologías duras como
deuda adquirida. Esto desembocó en la crisis la infraestructura – la empresa puede ubi-
de la deuda y las reestructuraciones econó- carse en cualquier parte del planeta – a las
micas de los años 80 y 90 a que se aludió. de la información – como la telemedicina,
Otro efecto, mucho más amplio, y en el que donde un médico puede realizar cirugías
aún vivimos, fue el cambio que produjo en desde el otro lado del mundo –, de las tec-
todo el capitalismo: el paso del capitalismo nologías organizacionales – donde partes
pesado al liviano (BAUMAN, 2002; SENNET, 2008). La de la empresa se pueden tercerizar o subro-
enorme cantidad de dinero circulante hizo gar – como también del trabajo – donde la
que el capital financiero se robusteciera y ex- flexibilización laboral lleva al rompimiento
tendiera sus intereses y apetitos en sectores de la dependencia que guardaba el capital
insospechados unas décadas atrás, como la con el trabajo –. Estas tecnologías basadas
salud, poniendo fin a sistemas protegidos del en la eficiencia empresarial se transfirieron
mercado. De esta forma, algunos estudiosos al sector salud reformado, a los hospitales.
hablan del tránsito que los sistemas de salud Su contraparte fue la necesidad de aumen-
han sufrido al pasar de la hegemonía del tar el consumo. La rotación de capital aceleró
Complejo Médico Industrial (CMI) – donde la producción y por ende hubo más mercan-
los intereses del capital de las industrias cías en los estantes. Se necesitaba cerrar el
farmacéuticas, de equipamientos e insumos ciclo con mayor consumo de lo producido y
eran gravitantes sobre los demás agentes, esto por medio de distintas tecnologías: ha-
incluidos hospitales, Ministerios de Salud, ciendo que más personas consumieran – por
Universidades, gremios médicos, etc. – a la ejemplo mediante la eliminación de barreras
hegemonía del Capital Médico-Financiero arancelarias para el comercio exterior – o la
(CMF), donde el interés de las aseguradoras conformación de pobres en nuevos consumi-
por aumentar la velocidad de la rotación de dores – subsidios a la demanda o transferen-
capital – de su forma monetaria a la produc- cias directas de dinero por parte del Estado
tiva y de nuevo a la monetaria – ha redefinido – o la inculcación del consumismo como
la configuración y desarrollo de los sistemas disposición y como práctica centralísima en
de salud y particularmente de los hospitales la mente de los individuos y como cultura de
(VIANNA, 2002). No se menoscabó de manera las instituciones y sociedades modernas. Las
absoluta el poder del CMI, las industrias far- relaciones de dependencia entre el capital y
macéuticas son un ejemplo de ello, sino más el trabajo rotas se transfiguran en relaciones
bien se estableció una reconfiguración de de dependencia entre el capital y los con-
las relaciones entre capitales y, tal vez, una sumidores, configurándose el capitalismo
disputa interclase entre ellos. liviano, flexible, consumista.
De esta forma, la rotación de capital se En este contexto emergen los paradigmas
hizo más frenética en toda la economía: modernizadores neoliberales y sus discursos
para obtener ganancias se requería tanto sobre la reforma sanitaria y las reestructu-
mayor eficiencia financiera como una pro- raciones productivas de los hospitales pú-
ducción más acelerada, en menor tiempo, blicos. Según el nuevo paradigma ya no se
llevando a profundas reestructuraciones requiere un Sistema de Salud constituido

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 840-852, OUT-DEZ 2014


La ideología en la planificación normativa y la modernización neoliberal: contextos y dispositivos de poder 845

alrededor de un Estado que mediante la pla- los disciplinarios (FOUCAULT, 2006).


neación racionalista y disciplinaria, desde
los Ministerios de Salud y con apoyo de la Los dispositivos de poder en la plani-
mirada médica, haga hospitales públicos ficación normativa
eficaces y, con ello, útiles y dóciles a los tra-
bajadores y al ejército industrial de reserva. El problema que querían resolver los pla-
Sino de Sistemas Sanitarios con dispositivos nificadores del Cendes-OPS (Centro de
eficientes, que propician la circulación, lo Estudios del Desarrollo - Organización
centrífugo, la libertad, para llegar al auto- Panamericana de la Salud) era la escasez
equilibrio: sistemas basados en la competen- de recursos en un marco de eficacia, viendo
cia, con Estados que no interpongan trabas dos alternativas: utilizar de mejor forma los
sino que se limiten a modular las reglas de disponibles o aumentando el fondo de recur-
juego por donde fluya el capital de manera sos. Ambas opciones requerían racionalidad,
sostenible – técnica y legítimamente –; ar- racionalización del proceso de trabajo, del
ticuladores que aceleren la rotación del conocimiento y administración del objeto de
capital, haciéndose intermediarios en el trabajo, de los medios, de los actos y de las
proceso financiamiento-producción de ser- relaciones sociales en el hospital.
vicios de salud; objetos, tecnologías y actos Para los autores, los gobiernos deberían
de trabajo hospitalario estandarizados que aplicar conocimientos recomendados por
eviten la variabilidad médica, por tanto, la ciencia y técnicas modernas para utilizar
más predecibles, controlables y expeditos de mejor forma los recursos disponibles. De
y, a su vez, flexibles, que puedan adaptarse esta forma “[…] los costos pueden reducirse
rápidamente a la demanda de los mercados a lo largo del tiempo, como consecuencia del
de atención; y, finalmente, órdenes sociales esfuerzo de racionalización en el uso instru-
hospitalarios donde el gerente se apropie del mental de los recursos […]” (AHUMADA et al.,
trabajo médico e intente sujetar a los traba- 1965, p. 18). En este sentido, las proposiciones
jadores hospitalarios y a los pacientes como de un programa o plan debían cumplir con
consumidores, a quienes en su circulación tres condiciones básicas: ser viables – facti-
les gestiona su subjetividad, intereses, nece- bles en la realidad –, internamente compati-
sidades y satisfacciones. bles y eficaces.
Esta racionalización se apoyaba en la
norma, tanto que comúnmente se le llamaba
Los dispositivos de poder planificación normativa. El dispositivo dis-
en los discursos de las ciplinario de la planificación normativa
funcionaba de la siguiente forma: mediante
agencias internacionales un ejercicio racional de diagnóstico – des-
cripción de la situación del sujeto y de los
Estos discursos están arropados de técnica factores determinantes, las perspectivas y la
pero articulados a dispositivos de poder evaluación – el planificador hacía un análisis,
que aseguran la reproducción o transfor- clasificación y descomposición de tiempos y
mación del orden social. Los dispositivos actos del proceso de trabajo hospitalario –
de poder de tipo disciplinarios presentan del objeto, como daños de morbilidad y mor-
una supremacía por sobre los de control- talidad, recurso y metas –, de lugares – áreas
-seguridad en lo que respecta al paradigma programáticas, hospitales, servicios clínicos
de la planificación, mientras que en la mo- –, y con ello de individuos y sus disposicio-
dernización neoliberal se evidencia una su- nes – pacientes, médicos, enfermeras –, en
premacía de los de control-seguridad sobre función de la eficacia del Estado y del mismo

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 840-852, OUT-DEZ 2014


846 PERDOMO RUBIO, A.; HERNANDEZ ZINZÚN, G.

hospital. Con ello se definían cuáles eran los estructurándolos a partir de celdas disci-
más adecuados y cuál era el encadenamiento plinarias. Es decir, una división jerarquiza-
óptimo entre ellos para lograr sus objetivos. da de los ámbitos político-administrativos
El modelo óptimo se establecía como norma, en niveles nacionales, regionales y locales,
y ésta en meta. La planificación fijaba los y, del trabajo hospitalario en dirección y
procedimientos de control permanente para atención clínica en los hospitales; una di-
cumplir la meta y distinguía así entre quienes visión del espacio territorial en unidades
serían clasificados como ineptos o capaces, de planificación, y, del interior del hospital
entre lo normal o lo anormal, dependiendo en departamentos y unidades de servicio;
de lo que era capaz o no de ajustarse a la una fragmentación del proceso de la aten-
norma o meta. Lo fundamental era la norma. ción clínica especializando, verticalizando
La Planificación de Cendes-OPS proponía e instrumentalizando los saberes, prácticas
definir metas del proceso de trabajo hospita- y tecnologías; y un fraccionamiento de los
lario. Se fijaban metas en la distribución de la cuerpos de los pacientes siguiendo las ti-
mortalidad o morbilidad de las comunidades pologías patológicas. Esta división permitía
– o sea, del objeto de trabajo: lo que se trans- individualizar la administración mediante la
formaría mediante las tecnologías y acciones vigilancia minuciosa de unidades cada vez
durante el trabajo colectivo en el hospital –; más pequeñas:
metas sobre las tecnologías e infraestructura
hospitalarias, mediante la instrumentaliza- […] se debe procurar que el esfuerzo progra-
ción de recursos, su combinación por factores mático se extienda a todos los aspectos que
técnicos médicos y económicos, y su posterior componen una actividad. En primer lugar, por
cuantificación ‘real y monetaria’, como por la razón muy obvia de que en todos ellos se
ejemplo proporción de ocupación de camas; usan recursos escasos, y en segundo lugar,
y metas sobre los actos de atención, median- porque cada actividad posee una estructura
te su definición precisa y cuantificación en interna que, si bien es flexible, es conveniente
‘tareas y técnicas de prevención o reparación’: mantener. (AHUMADA et al., 1965, p. 8).
por ejemplo, número de cirugías.
Ahora, el control de las normas y metas Como señalan Spinelli y Testa (2005), estas
dependería del nivel de cada una de ellas. A normas de la planificación normativa no
nivel de la planificación nacional o local, para eran confrontadas con ninguna opinión – de
los planificadores y autoridades de salud el peso – en su contra; el plan no tenía oponen-
problema era de información y análisis. Se tes. Eran definidas en un solo sentido, desde
controlaban datos, si indicadores como la las oficinas de la dirección hospitalaria o del
ocupación hospitalaria o la mortalidad se Ministerio, usando la coerción disciplinaria
acercaban o no a la meta y se preguntaban el para desarrollarlas.
por qué y cómo resolverlos desde sus ofici-
nas. Pero a nivel de la administración de los Los dispositivos de poder de la mo-
hospitales, aunque no se dijera en los docu- dernización neoliberal
mentos, se requería de la disciplina médica.
No había instrumentos específicos de la di- En cambio en las reformas de los 90, los
rección, con personal y saberes no médicos sistemas sanitarios al propender la eficien-
para controlar el trabajo médico. El control cia del capital, se disponen a la circulación,
era médico y reposaba en sus dispositivos. la competencia, lo centrífugo, a abrirse a
Esta racionalización requería contro- nuevos campos, la libertad, al auto-equili-
lar la norma en la implementación de los brio y a la normalización. El problema que
planes y en las instituciones hospitalarias, querían resolver las agencias multilaterales

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 840-852, OUT-DEZ 2014


La ideología en la planificación normativa y la modernización neoliberal: contextos y dispositivos de poder 847

era cómo usar los recursos limitados del de la institución y de la práctica médica: era
sector salud para hacer más, para más pobla- paciente. Pero al convertirse el paciente en
ción, de la manera más veloz. Se requería dar cliente y la sociedad en un mercado, y al vol-
un paso del hospital eficaz al eficiente; a la verlos el centro del sistema, en los discursos
Productividad: se pretende su satisfacción inmediata, sin
dilaciones, sin postergaciones. No se planea
La existencia del hospital se justifica en la me- a largo plazo y satisfacen los deseos inmedia-
dida en que produce los servicios que la socie- tamente; es la nueva cultura del capitalismo
dad necesita y demanda y, para ello, la socie- (SENNET, 2008).
dad entrega recursos y de ellos espera recibir En este sentido la OPS (2001) se pregunta
utilidad. Si el paciente es ciudadano‑cliente, y sobre las preferencias temporales de la so-
la sociedad es el mercado en que se sitúa al ciedad: esto es, la tasa que la sociedad está
hospital, la productividad es el factor crítico dispuesta a pagar por postergar el consumo
de legitimidad social de los hospitales. (OPS, de un bien o servicio. Lo que lleva implíci-
2001, p. 103). to esta pregunta es primero que el tiempo
es costoso, la lentitud es ineficiente, y que
En la planificación normativa uno de sus por tanto, la producción y el consumo debe
problemas centrales era la dimensión tem- acelerarse. Con la modernización neoliberal
poral, donde se buscaba planear el futuro, y su corto plazo, se busca aumentar la velo-
es decir, asignar recursos para un consumo cidad de la producción: productividad; y con
en el presente o una inversión productiva su satisfacción inmediata, incrementar el
posterior, decidir entre objetivos inmediatos consumo: la consumatividad, en términos de
y objetivos futuros establecidos en quinque- Baudrillard (1974).
nios o decenios. Se hacían pronósticos con Los dispositivos de poder para acelerar la
racionalidad, para tomar decisiones sobre productividad se pueden resumir en cuatro
acciones de efecto prolongado. Se plantea- puntos. En el primero, en vez de pretender
ba en términos de que si ‘a’ ocurre, proba- controlar los recursos y los cuerpos me-
blemente resultará ‘b’ como consecuencia diante la norma, desde las direcciones o los
de hipótesis razonables. En cambio, en los Ministerios de Salud, pero especialmente
discursos de la modernización hospitalaria, desde la mirada médica, se deben dejar cir-
no se planea a largo plazo, sólo se estable- cular. Circulación de recursos, especialmen-
cen reglas de juego. Esto en buena medida te el capital en muchas manos, el Pluralismo
debido a lo que llaman deficiencias en la in- (LONDOÑO; FRENK, 1997). Pero también de los
tervención estatal o fallas de estado: recursos de infraestructura, por medio de
privatizaciones, mezclas público-privadas o
Los gobiernos pueden errar en su estimación subrogaciones de áreas o servicios comple-
de los resultados que una intervención ten- tos del hospital; de equipamientos, medica-
drá en la práctica, pues sólo tienen un control mentos e insumos, permitiendo la compra
parcial sobre la forma en que reaccionan los descentralizada y directa de los hospitales
participantes privados, y esa reacción puede o la dosificación exacta por consumidor;
socavar el objetivo que se persigue. (BANCO de los recursos humanos o talento humano,
MUNDIAL, 1993, p. 13). mediante la flexibilización laboral o la ter-
cerización; circulación de los consumidores
Por otra parte, con la planificación nor- entre prestadores, mediante la entrega de
mativa se requería que el consumidor diera subsidios a la demanda.
espera a la satisfacción de sus deseos, su También se requería la circulación de la
gratificación y con esto asegurara la eficacia información. La información inmediata se

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 840-852, OUT-DEZ 2014


848 PERDOMO RUBIO, A.; HERNANDEZ ZINZÚN, G.

convierte en un recurso indispensable para del servicio o incentivando la demanda de


la gestión hospitalaria y de todo el sistema. servicios preventivos o generando miedo
Sistemas de información sobre la circulación mediante la judicialización de la práctica
de los beneficiarios, la morbilidad y mortali- clínica. No se reprime, sino que se orienta a
dad, de la calidad, de los estados financieros, ajustarse a las demandas del mercado.
de los recursos humanos, guías médicas, pro- En relación al segundo punto que carac-
tocolos de atención, normas de acreditación, teriza los dispositivos de poder para acelerar
entre las más importantes. Pero además, la in- la productividad, una vez se dejan circular
formación debía estar disponible en el menor recursos, información y subjetividades, el
tiempo posible, lo que requiere un trabajo de siguiente paso es su libre encuentro en la
recolección, procesamiento y análisis veloz. competencia. Los dispositivos hacen que los
Nuevos sistemas, nuevos formatos, que se re- hospitales tiendan hacia la competencia por
nuevan constantemente, más tiempo médico los recursos financieros circulantes en forma
dedicado a recolectar información dirigida de subsidios a la demanda o al establecer
a la gestión quitándole tiempo clínico, crea- contratos y compromisos de gestión con los
ción de oficinas para su diseño, clasificación y articuladores. Los hospitales públicos deben
puesta en circulación, al interior y el exterior competir por la población a atender y por los
del hospital, formación y conformación de articuladores, deben seducirlos, atraerlos,
mandos medios en gestión de la información, inducir su demanda, para que consuman los
uso de computadoras e internet, para el regis- servicios que producen. Deben desplegar una
tro de las historias clínicas, de procedimien- serie de informaciones, datos, símbolos, que
tos, de costos, de calidad, para su circulación. generen una necesidad de consumo. Entre
En el hospital modernizado la información es ellos la libre circulación de precios, premios
una obsesión: es la parte gravitante del dis- de calidad, títulos de certificaciones o acredi-
positivo de la seguridad-control y porque se taciones, infraestructura, compra de equipa-
inviste de neutralidad, dándole toda su efica- mientos de última tecnología, introducción de
cia ideológica. nuevos mecanismos de gestión o de modelos
Por último, en los sistemas de salud y en de atención, recursos públicos, entre otros.
los hospitales modernizados se deben dejar Entran en competencia también los equi-
circular las subjetividades de los trabaja- pamientos, medicamentos e insumos. El
dores y los consumidores. Especialmente hospital debe ser autónomo para gestionar
permitir la circulación de intereses, con- estos recursos, comprarlos, almacenarlos,
fianza, motivaciones, estímulos, que unos y dispensarlos, unirse con otros hospitales en
otros tienen sobre la atención, con la justi- redes para su adquisición. También requie-
ficación de brindar más calidad a la misma. ren la competencia entre el talento humano.
Esto para gestionarlos y orientarlos desde Ya no se requiere que todos los trabajadores
el management. No es la coerción de la di- sean de planta o de base, sino que circulen y
rección, quien señala qué debe hacerse, sin compitan entre si para conseguir un empleo.
considerar la subjetividades de médicos o La competencia entre los trabajadores
pacientes, sino conocer, clasificar, analizar implica libertad para emplearse y para ne-
y modificar los intereses de los trabajadores gociar su salario o sus condiciones laborales
para volverlos más eficientes. Se usa toda una individualmente. Para ello los trabajadores
serie de tecnologías para gestionar las subje- deben entrar en una carrera por obtener
tividades: incentivos económicos o de status títulos de educación continua o de especia-
a médicos o enfermeras para producir más o lizaciones y maestrías. Como señala Sennet
para formarse más, o a los pacientes, gene- (2008), el trabajador debe reinventarse varias
rándoles confianza al señalar la certificación veces en su vida laboral para mantenerse en

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 840-852, OUT-DEZ 2014


La ideología en la planificación normativa y la modernización neoliberal: contextos y dispositivos de poder 849

competencia. Al hospital le interesa tener tienden al centro. Mediante la competencia


esa información y procesarla, gestionarla, los hospitales públicos y los trabajadores
incentivarla. Además, los hospitales públicos que gasten mucho o demasiado poco, que
pueden producir esos servicios de formación utilicen tecnologías muy viejas o demasia-
y otorgar esos títulos, y la comunidad científi- do sofisticadas, que tengan baja o excesiva
ca se encuentra en una aceleración en la pro- calidad, estén poco actualizados o sobre es-
ducción de conocimientos legítimos, a través pecializados, demasiado comprometidos o
de la explosión de artículos de revistas cien- totalmente desinteresados tenderán a salir
tíficas, la Medicina Basada en la Evidencia, de circulación o se deberán autoajustar a lo
conferencias internacionales, etcétera. Lo normal, al centro. La libre circulación más la
importante aquí es que entre mayor sea la competencia llevarán al sistema de salud, a
competencia entre trabajadores, mayor el los hospitales y a los trabajadores a la distri-
número de títulos, mayor la formación, y se bución óptima de recursos y con ello a la efi-
asume que mayor calidad técnica se tendrá y, ciencia. Los sistemas de salud, los hospitales,
sobretodo, a mayor velocidad. los trabajadores buscarán con persistencia
Finalmente, los dispositivos del hospital el centro. La armonía, el mejoramiento de
modernizado, requieren la competencia de los servicios tras la competencia se plantea
disposiciones de trabajadores y consumido- como una verdad inobjetable.
res. Los intereses, motivaciones individuales Uno de los requerimientos de dejar cir-
circulan y entran en competencia en el hospi- cular, la competencia, la eficiencia y el
tal. Se requieren trabajadores con más com- equilibrio es la autorresponsabilidad. Para
promiso, con sentido de pertenencia, más que la competencia lleve al equilibrio se
motivados, con más capacidad de decidir, de requiere que las tareas y responsabilidades,
influir, con un mayor manejo del stress, más que en la planificación correspondían a la
habilidades, más interesados en su trabajo y organización hospitalaria, al planificador, a
en las necesidades del cliente. La selección la autoridad sanitaria o al Estado, ahora se
y promoción del personal identifica y opta individualicen, en palabras de Bauman, se
por quienes han acumulado o aumentado cedan “al coraje y la energía individuales
más estas disposiciones. Los trabajadores y dejado en manos de la administración de
entran en competencia por adquirir estas los individuos y de sus recursos individual-
disposiciones: participan en cursos de mo- mente administrados” (BAUMAN, 2002, p. 34-35).
tivación o autosuperación, en campañas de En los discursos de las agencias multilate-
clima organizacional, en eventos sociales de rales, el management hospitalario se debe
integración del personal, etcétera. Según los hacer responsable de los equilibrios en los
discursos, en la competencia por estas dis- recursos financieros, humanos y tecnológi-
posiciones el hospital tendrá mejores recur- cos del hospital, gestionando su circulación,
sos humanos y será más eficiente. estableciendo estrategias en la competencia,
Tercero punto de los dispositivos de poder resolviendo las carencias en el mercado.
para acelerar la productividad: una vez entran Según esta ideología los trabajadores se
en competencia, el mismo sistema de salud, deben hacer responsables de la superviven-
solo, se dirige hacia el equilibrio, a la asigna- cia del hospital, de hacer bien su trabajo, con
ción óptima de recursos. En los discursos de calidad, y de hacerlo con los menores costos
la modernización hospitalaria la competen- posibles, y responsables de su propia super-
cia entre hospitales, recursos financieros, vivencia, entrando en la competencia por los
tecnológicos y humanos y entre disposicio- títulos académicos y por la adquisición de
nes lleva al sistema a la armonía. ¿Cómo se nuevos conocimientos, cada vez más altos
logra esto? Los extremos espontáneamente y de manera más rápida, pues quien no los

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 840-852, OUT-DEZ 2014


850 PERDOMO RUBIO, A.; HERNANDEZ ZINZÚN, G.

obtiene, sale de circulación. Los clientes se cuantificar las tecnologías y su uso, como el
hacen responsables de cuidar su salud, de número, ocupación y el giro de camas, o el
hacer buen uso de los servicios que contra- número de quirófanos y procedimientos reali-
tan, pues cuando se comportan mal, y no zados; el número de trabajadores, de médicos,
tienen unos hábitos de vida saludable o con- especialistas, enfermeras; cuantificar sus inte-
sumen servicios que no necesitan, salen del reses, motivaciones, etcétera. Estos fenómenos
sistema o enferman y mueren. Todos deben al ser clasificados en normales y anormales, in-
rendir cuentas de sus responsabilidades. sertándolos en probabilidades, pueden ser ges-
Además de salir de circulación, la auto- tionados por el management a nivel del sistema
rresponsabilidad requiere subordinar los in- y a nivel hospitalario.
tereses individuales a los de la colectividad, Finalmente, el cuarto elemento de estos
pues los actos irresponsables de los indivi- dispositivos de poder refiere a la eficiencia
duos pueden afectarla. No solo los indivi- de estos dispositivos de control, que radica
duos deben responder por los propios actos tanto en la autorresponsabilidad como en
que los afectan directamente sino también identificar y atacar sólo a los anormales. Esa
por los desequilibrios del sistema pues estos gestión de los fenómenos considera que en
se originan en los actos y disposiciones de los lo anormal se presentan horrendos peligros.
individuos. De esta forma, ya no se requiere Personas, cosas o situaciones que no se com-
un gran aparato burocrático para controlar portan normalmente, son intervenidos. Ya
a todos haciendo hospitales eficaces, pues no es una vigilancia continua de todos en
quienes quieren continuar circulando deben todo momento. Se intervienen los fenóme-
autocontrolarse y así mantienen el equilibrio nos anormales, como por ejemplo, los hospi-
de los hospitales. tales o servicios con una productividad por
Para que el management, o los trabajadores, debajo de lo normal, los gastos anormales
o los pacientes, o los recursos, o las disposicio- prenden las alarmas del gestor del servicio,
nes lleguen al equilibrio deben normalizarse. un número fuera de lo normal de atenciones,
En estos documentos observamos una estrecha el no cumplimiento de metas que normal-
relación entre equilibrio y la media, la normal. mente se lograba. La información sobre lo
La circulación, la libertad y el azar que lleva normal y lo anormal es indispensable en la
a cuestas son domables mediante la normali- gestión del hospital modernizado.
zación. La normalización pasa por establecer Pero además de la normalización esta-
lo que se espera de un fenómeno bajo el lente dística, los discursos de la modernización
de la probabilidad. La distribución normal es hospitalaria proponen la comparación como
una distribución de probabilidades, que al lle- tecnología de gestión. La comparación
varla al plano cartesiano asume la imagen de con otros sirve de patrón sobre lo normal.
una campana, la campana de Gauss. Lo im- Tecnologías de gestión como el benchmarking
portante de la normalidad como dispositivo entre hospitales o rankings de mejores hos-
es que permite señalar lo que es normal y lo pitales en América Latina, entre otras, se
que es anormal. Lo normal sería aquello que basan en dispositivos sinópticos. Es decir, ya
se encuentra en el medio de una distribución no es el Estado o el planificador como gran
de probabilidad y lo anormal aquello que se hermano vigilando desde un panóptico a
encuentra en los extremos. todos, sino donde los controlados, hospitales
Para identificar lo normal y lo anormal estos públicos y trabajadores, se dedican a obser-
discursos hacen un uso extensivo de la pro- var a unos pocos, como señala Bauman (2002),
babilidad estadística: cuantificar los recursos a los que están en la cima de los rankings, a
financieros, cómo se comporta el flujo finan- los hospitales o trabajadores exitosos. La
ciero de un hospital, sus gastos, sus ingresos; obediencia al estándar se da no por coerción

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 840-852, OUT-DEZ 2014


La ideología en la planificación normativa y la modernización neoliberal: contextos y dispositivos de poder 851

del Estado, sino por seducción, apareciendo normativa y de la modernización neoliberal


bajo el disfraz de la libre voluntad. Así, los corresponden a un momento específico del
rankings, el benchmarking, las certificacio- capitalismo, el pesado y el liviano, y a la pre-
nes, las acreditaciones, se comportan como ponderancia de un tipo de capital, el CMI y
verdaderos espectáculos donde los controla- el CMF. Ambos paradigmas no son naturales
dos observan cómo se deben hacer las cosas. sino que responden a contextos particula-
Seducen y promueven cambios. Una obser- res de la sociedad y del campo social de la
vación permanente para detectar o anticipar salud. Por otra parte, ambos paradigmas no
cambios. El observador queda atrapado en están aislados del poder, sino que mostramos
una incesante observación. cómo el paradigma de la planificación nor-
mativa se articuló alrededor de los disposi-
tivos de poder disciplinarios, mientras el de
Conclusión la modernización neoliberal lo hizo a los de
seguridad-control. Apelar a la naturalidad o
Los contextos de emergencia de los discur- neutralidad de ambos es por lo tanto una es-
sos de los paradigmas de la planificación trategia ideológica. s

Referências

AHUMADA, J. et al. Programación de la salud: FOUCAULT, M. El Nacimiento de la clínica, una


problemas conceptuales y metodológicos. Washington, arqueología de la mirada médica. México, D. F.: Siglo
D.C.: Organización Panamericana de la Salud, 1965. XXI editores, 1966.

BAUDRILLARD, J. Crítica de la economía política del ______. Vigilar y castigar: nacimiento de la prisión.
signo. México, D. F.: Siglo XXI, 1974. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2002.

BAUMAN, Z. Modernidad líquida. Buenos Aires: FCE, ______. Seguridad, territorio, población: curso en el
2002. College de France: 1977-1978. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2006.
BANCO MUNDIAL. Informe sobre el desarrollo
mundial, invertir en salud. Washington, D.C.: Banco GARZA-TOLEDO, E. La formación socioeconómica
Mundial, 1993. neoliberal: debates teóricos acerca de la
reestructuración de la producción y evidencia empírica
DENZIN, L.; LINCOLN, Y. Handbook of qualitative para América Latina. México, D. F.: Plaza y Valdés,
research. London: Sage, 2000. 2001.

FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasilia: HILLEBOE, H.; BARKHUUS, A.; THOMAS, W.
Universidade de Brasilia, 2001. Métodos de planificación sanitaria nacional. Ginebra:
Organización Mundial de la Salud, 1973.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 840-852, OUT-DEZ 2014


852 PERDOMO RUBIO, A.; HERNANDEZ ZINZÚN, G.

LONDOÑO, J. L.; FRENK, J. Pluralismo estructurado: América Latina. Salud Colectiva, Lanús, v. 1, n. 3, p.
hacia un modelo innovador para la reforma a los 323-335, 2005.
sistemas de salud en América Latina. Washington, D.
C.: BID, 1997. (Documento de Trabajo, 335). VIANNA, C. M. M. Estruturas do sistema de saúde:
do complexo médico-industrial ao médico-financeiro.
MINTZBERG, H. Diseño de organizaciones eficientes. Physis, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 375-390, 2002.
Buenos Aires: El Ateneo, 1991.
ZIZEK, S. Introducción: el espectro de la ideología. In:
ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD ______. (Ed.). Ideología un mapa de la cuestión. Buenos
(OPS). La transformación de la gestión de hospitales en Aires: Fondo de Cultura Económica, 2003.
América Latina y el Caribe. Washington, D. C.: OPS,
2001.
Recebido para publicação em setembro de 2014
Versão final em outubro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
SENNET, R. La nueva cultura del capitalismo.
Suporte financeiro: Se obtuvo financiamiento a través de la Beca
Barcelona: Anagrama, 2008. del Concejo Nacional de Ciencia y Tecnología (Conacyt) para
el desarrollo del doctorado en Ciencias en Salud Colectiva en la
UAM Xochimilco 2010-2013
SPINELLI, H.; TESTA, M. Del diagrama de Venn
al nudo Borromeo recorrido de la planificación en

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 840-852, OUT-DEZ 2014


ensaio | essay 853

Contradicciones en salud: sobre acumulación


y legitimidad en los gobiernos neoliberales y
sociales de derecho en América Latina
Contradictions in health: on acumulation and legitimation in Latin
American neoliberal and social states

Asa Cristina Laurell1

RESUMEN El texto utiliza el enfoque de la contradicción entre la acumulación capitalista y la


legitimación del orden social para examinar los sistemas de salud de América Latina. Analiza,
por un lado, los nuevos campos y estrategias de acumulación en salud en la globalización
neoliberal y, por el otro, la recuperación del campo de salud por los gobiernos progresistas
como ámbito público y garantía universal del derecho de la salud. Observa cómo la garantía
de este derecho lo ha convertido en un campo de lucha política donde se enfrentan los agentes
económicos privados y los gobiernos progresista y cómo la ofensiva ideológica neoliberal ha
apropiado el discurso progresista pero cambiando en su contenido.

PALABRAS CLAVE Derecho a la salud; Política de salud; Sistemas de salud; América Latina.

ABSTRACT This text uses the perspective of the contradiction between capital accumulation and
legitimation of the social order to examine Latin American health systems. Analyzes, on one
hand, the new areas and strategies of accumulation in health under neoliberal globalization and,
on the other, the recovery of health as a public domain to assure the universal right to health by
progressive governments. It observes how the guarantee of this right has turned it into a field of
political struggle where private economic agents and progressive governments clash and how
the neoliberal offensive has appropriated ideologically the progressive discourse but changing its
content.

KEYWORDS Right to health; Health policy; Health systems; Latin America.

1 Doctora en Sociología.
laurell9998@gmail.com

DOI: 10.5935/0103-1104.20140088 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014
854 LAURELL, A. C.

Un enfoques clásico de la Medicina Social/ Ningún país, incluyendo a los europeos a


Salud Colectiva Latinoamericana para ana- raíz de la última crisis, ha escapado el ajuste
lizar las prácticas y políticas de salud es su estructural y la adopción de los postulados
papel contradictorio en la acumulación de neoclásicos-neoliberales durante algún o
capital y en la legitimación del orden social. todo el período de las últimos tres décadas.
Sus relaciones con la acumulación involucran En varios países latinoamericanos estas
varias vertientes: la prestación de servicios políticas han provocado levantamientos
como actividad lucrativa; el aseguramiento populares masivos que han llevado al es-
como ámbito de ganancias del capital finan- tablecimiento de gobiernos de izquierda o
ciero; la realización del plusvalor de pro- centro izquierda o progresistas1 de los cuáles
ductos de consumo final o tecnológicos; los algunos se han declarado socialistas. Estos
contratos de Asociación Público-Privada y la países han tenido, esquemáticamente, dos
reproducción de la fuerza de trabajo. trayectorias históricas: aquellos donde se
En cuanto a la salud en la legitimación derrotaron a las dictaduras, se aprobaron
del orden social ningún Estado la puede nuevas constituciones y, posteriormente,
ignorar hoy por el valor social del derecho a se eligieron gobiernos progresistas como
la salud. Aún los Estados liberales mínimos en Brasil, Uruguay, Argentina, Paraguay y
lo reconocen y establecen mecanismos para El Salvador y aquellos donde las rebeliones
no desamparar a los muy pobres. En los contra el neoliberalismo desembocaron en
Estados de bienestar o sociales la realización una nueva constitucionalidad y donde elec-
del derecho a la salud se da principalmente ciones democráticas llevaron al gobierno
a través de instituciones públicas o seguros a las fuerzas sociales emergentes como en
universales y públicos en respuesta a las Venezuela, Bolivia y Ecuador. Estos últimos
luchas del pueblo y/o los trabajadores orga- son, propiamente hablando, “Estados en
nizados como una responsabilidad estatal. transición” (GARCÍA LINERA, 2013, p. 81).
Las necesidades de acumulación y de legi- En el ámbito de la acumulación el proyecto
timidad tienden a entrar en contradicción, neoliberal aspira a abrir plenamente la salud
particularmente con el aseguramiento y la como un terreno de ganancias privadas. Se
prestación de servicios con fines de lucro. aplican así políticas tendientes a impulsar la
Este ensayo tiene como propósito analizar competencia de mercado y la privatización
la realidad latinoamericana actual a la luz de de la prestación de los servicios y a expandir
las exigencias de la acumulación y de la legi- la administración privada de los fondos de
timación para desentrañar cómo los Estados salud, directamente por medio de los seguros
neoliberales y los Estados progresistas han privados o con la intermediación privada en
actuado para regular o resolver la contradic- el manejo de los fondos público. Para ello
ción entre ambas. los gobiernos han usado el poder estatal
para destruir las instituciones públicas en
1 Entendemos por su propósito de mercantilizar los servicios
‘gobiernos progresistas’ Los servicios de salud en la de salud y trasladar la administración de su
a aquellos que al
llegar al gobierno han acumulación global financiamiento a entes autónomos, públicos
roto con el modelo y/o privados. Esta vertiente de acumulación
neoclásico-neoliberal e
instrumentado políticas La globalización significa que la organiza- es la más novedosa en el proyecto neoliberal
de recuperación de ción de las sociedades sobre el principio en cuanto introduce como un actor central al
los recursos naturales
nacionales; de del mercado y bajo el dominio del capital capital financiero e impulsa la gran empresa
redistribución progresiva transnacional es hoy dominante a pesar de médica.
de la riqueza nacional
y; políticas sociales que haya activado nuevas alianzas políticas El proceso de transformación neoliberal
universalistas y solidarias. y una intensa lucha de las clases subalternas. se instrumenta en dos etapas parcialmente

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


Contradicciones en salud: sobre acumulación y legitimidad en los gobiernos neoliberales y sociales de derecho en América Latina 855

sobrepuestas. Primero se restringen los re- explícitos y costeados, y los servicios exclui-
cursos de las instituciones públicas como dos son pagados por el ‘consumidor’ o pa-
parte del ajuste fiscal lo que lleva a su des- ciente. En este esquema el prestador recibe
financiamiento y deterioro. Este recorte su pago por los servicios prestados y/o por
suele acompañarse de la reducción de los el número de personas bajo su atención. Eso
servicios prestados y de la introducción es, se trasfieren los recursos financieros con
de pagos. Al mismo tiempo se establecen base en la demanda y se retira el ‘subsidio
programas verticales focalizados para los a la oferta’, entendido como el presupuesto
comprobadamente pobres y se redefine la público histórico. Por su parte el adminis-
atención médica como un ‘bien privado’ de trador/comprador de servicios, privado o
mercado cuyo costo debe ser pagado por el público, requiere saber qué padecimientos/
usuario-consumidor (BANCO MUNDIAL, 1994). intervenciones está obligado a pagar y bajo
Con esta política se desgasta el tejido qué protocolo de atención para poder calcu-
público en varios dimensiones. Lo más lar sus costos y ganancias. De allí la impor-
visible es su deterioro físico por falta de tancia de los paquetes de servicios, explícitos
mantenimiento de todo tipo y de sustitución y costeados.
de equipo junto con el desabasto de insumos Este método establece intereses contra-
médicos y medicamentos. Sobreviene dictorios entre el administrador de fondos
además la desmoralización institucional y el prestador de servicios ya que disputan
causado por la desvalorización del trabajo el excedente. El tercero en discordia es el
– disminución salarial, su creciente regla- ‘paciente-consumidor-cliente’ dado que una
mentación con medición cuantitativa del manera de generar el excedente es propor-
desempeño, creciente imposibilidad de una cionarle menos servicios que los necesarios
práctica profesional estimulante, etcétera – y acordados en el contrato de compra-venta
y la creciente brecha entre los prósperos ge- (paquete explícito de servicios) o realizar in-
rentes y el empobrecido personal de salud. tervenciones innecesarias para cobrar más.
A ello se añade, en no pocos casos, prácticas Los intereses contradictorios entre estas tres
corruptas en la cúspide que se filtran en todo partes es el fondo de la dificultad estatal de
el espacio institucional. regular los servicios así como la judicializa-
La segunda etapa, propiamente de cambio ción de la atención (TORRES, 2008).
estructural, se justifica ideológicamente Estas estrategias no se dan sólo cuando
por el deterioro de lo público. Su premisa, los actores tienen un interés directo de lucro.
nunca comprobada, es que la competencia El ‘pago a la demanda’ introducido con la
de mercado en salud mejoraría la calidad Nueva Gerencia Pública2 ha demostrado 2 La Nueva Gerencia

de los servicios y la eficiencia (FUNSALUD, 1994). tener los mismos efectos nocivos para los pa- Pública (GUERRERO,
2009), inspirada en la
La maniobra clave es separar las funciones cientes como muestra por ejemplo el caso de teoría de la elección
de regulación y seguridad sanitaria de la Suecia (DAHLGREN, 2014). Es así porque en este racional, pretende
hacer más eficiente la
administración de fondos/compra de servi- esquema el financiamiento público para los administración pública. Se
cios y de la prestación de los mismos. Es la establecimientos públicos se da únicamente distinguen dos vertientes:
la franca privatización
condición necesaria para la mercantilización en función de la demanda atendida hecho de los bienes y servicios
ya que abre los espacios de mercado donde que los obliga a actuar como empresas pri- públicos o la implantación
en las instituciones
compiten los agentes económicos, privados vadas so pena de quedar sin financiamiento públicas de mecanismos
y públicos. (ZAREMBAS, 2013). Particularmente el sistema de de manejo y control
de la administración
La transferencia de los fondos de salud a los Grupos Relacionados por el Diagnóstico privada, o sea, su
una instancia administradora se ha perpetra- (GRD) ha provocado la manipulación de ‘empresarialización’. No
hay evidencias unívocas
do de distintas maneras y está acompañada diagnósticos (HIMMELSTEIN; ARIELY; WOOLHANDLER, de que haya cumplido su
por la definición de paquetes de servicios, 2014). cometido.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


856 LAURELL, A. C.

La experiencia latinoamericana de la el modelo de Pluralismo Estructurado


Cobertura Universal en Salud (LONDOÑO, FRENK, 1997) – elaborado por Londoño,
responsable de la reforma colombiana, y
La ofensiva actual por la Cobertura Frenk, creador del Seguro Popular mexi-
Universal en Salud (CUS) – emprendida por cano – durante su estancia en el Banco
la Fundación Rockefeller, Lancet, el Banco Interamericano de Desarrollo (BID). A
Mundial, entre otros – debe ser analizada en pesar de su promoción como ‘caso de éxito’
este contexto porque impulsa directa o in- el sistema de salud colombiano ha mostrado
directamente el aseguramiento y la separa- graves defectos que lo llevó literalmente a la
ción de funciones. Por ello interesa conocer quiebra en 2009 (ARDÓN et al., 2010).
cómo la CUS se ha instrumentado en dis- La trayectoria del caso colombiano debe
tintos países de América Latina. Algunos, estar muy presente en el debate sobre la
por ejemplo Chile y Colombia, la instru- CUS. Esta reforma sólo ha sido exitosa en el
mentaron con cambios en la legislación de establecimiento del mercado de salud y ha
seguridad social haciéndola obligatoria pero producido un poderoso y lucrativo sector ad-
con dos regímenes distintos con paquetes ministrador de los fondos. Sin embargo es un
diferenciados. En otros casos, por ejemplo fracaso para garantizar el derecho a la salud
México, se añadió un seguro público volun- y el acceso oportuno a los servicios requeri-
tario con pago según el ingreso al seguro dos, solucionar los problemas estructurales
laboral obligatorio. del sistema de salud y mejorar las condi-
El caso chileno permite sacar algunas ciones de salud de la población (HERNÁNDEZ,
conclusiones. A pesar de treinta años de TORRES, 2010).
aseguramiento obligatorio, el 9% de los chi- Los graves problemas del modelo colom-
lenos carece de él (ISAGS, 2013, p. 51). La aten- biano ha lanzado a la reforma mexicana con
ción médica oportuna se ha incrementado el Seguro Popular (SP) como el nuevo ‘caso
con el Plan Acceso Universal de Garantías exitoso’ a pesar de que reproduce problemas
Explícitas (Auge) de 2004 (LAURELL; HERRERA, semejantes a los de Chile y Colombia (LAURELL,
2010) pero el obstáculo económico al acceso 2013). La reforma tiene una fuerte orientación
persiste por los copagos. La permanencia mercantil y perpetúa el sistema fragmentado
de las Instituciones de Salud Previsional y segmentado. Existe la amenaza de reducir
(Isapre), que sólo atienden al 18% de la po- los beneficios de los derechohabientes de
blación, y el modelo de libre elección impone la seguridad social pública – el 50% de la
una lógica mercantil al sistema de salud en población – si se implementa el Sistema de
su conjunto. La razón es que el arreglo ins- Salud Universal (MÉXICO, 2013). Éste sólo cubri-
titucional dual generó fuertes intereses eco- ría el paquete de servicios del SP o un 16% de
nómicos con agentes privados políticamente los servicios proporcionados gratuitamente
poderosos (TETELBOIN, 2003), particularmente por la seguridad social (MUÑOZ et al., 2012) con
las Isapre con una acelerada concentración exclusión de casi todos los padecimientos de
y una rentabilidad que duplica la de la banca alto costo.
(ORTIZ, PÉREZ, 2014). La fragilidad del modelo El aseguramiento universal está lejo de
chileno se mostró cuando el gobierno de lograrse y en 2012 el 25% de la población
derecha intentó revertir los avances del carecía de un seguro (INSTITUTO NACIONAL DE
sistema público y profundizar la participa- SALUD PÚBLICA, 2014, p. 35) y no se ha mejorado
ción privada subrrogando la administración sustancialmente el acceso a los servicios
de algunos hospitales públicos. requeridos de los afiliados al SP. El gasto
La reforma colombiana pretendió corregir público de salud se incrementó en un 0.36%
las peores aberraciones de la chilena con del Producto Interno Bruto (PIB) pero sin

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


Contradicciones en salud: sobre acumulación y legitimidad en los gobiernos neoliberales y sociales de derecho en América Latina 857

un cambio sustancial entre el gasto público y Los servicios de salud como


privado. Por último es de señalar tres hechos ámbito de redistribución y
relevantes: los incentivos al desempeño se
basan en la atención a la persona y se ha de-
garantía de derechos
bilitado la salud pública; se ha fortalecido
poco la oferta de servicios y; no hay un claro Los gobiernos progresistas se distinguen
impacto en las condiciones de salud. por ser Estados sociales de derecho que en
Esta revisión demuestra algunos hechos varios casos incorporan el concepto Buen
importantes. Ninguno de los países ha alcan- Vivir. Con excepción de Brasil y Venezuela,
zado el aseguramiento universal. La cobertura que legislaron el Sistema Único de Salud en
es de un seguro y no de acceso a los servicios 1988 y 1999 respectivamente, los otros países
necesarios que están restringidos a paquetes llevan a penas algunos años en esta tarea.
limitados y diferenciados. Se confunde así Argentina es una excepción porque la salud
cobertura y acceso a los servicios requeridos; no ha sido un tema político importante. Debe
temas que se entretejen con los paquetes de estar presente en el análisis que los gobiernos
servicios diferenciales, las barreras territoria- progresistas están bajo una presión política
les y económicas derivados de las restriccio- muy fuerte, interna y externa, que incluso
nes de servicios y diversos copagos. ha llevado a golpes de Estado en Venezuela,
El tema financiero, priorizado en esta Paraguay y Honduras.
visión, exhibe varias facetas. Aunque en Caracterizan a los gobiernos progresistas
todos los países el gasto de salud haya incre- sus políticas de redistribución a través del
mentado, hay inequidad en el financiamiento erario público y el (re)establecimiento de la
según la modalidad del seguro que depende responsabilidad social del Estado en la pres-
de la condición socio-económica del afiliado. tación de bienes y servicios sociales como ga-
El aumento de recursos financieros se ha ca- rantía de derechos o ciudadanía social. Estas
nalizado principalmente al sector privado y políticas son además solidarias y universalis-
se ve mermado por los altos costos de tran- tas y resaltan la centralidad de lo público. La
sacción y la corrupción. Esto ha impedido participación popular y el control social en
fortalecer al sector público que se ha debi- su ejecución es parte de sus marcos legales.
litado o destruido. El caso colombiano alerta La política de salud debe ser analizada en el
sobre una posible crisis presupuestal misma contexto de la política social integrada que
que está escondido por la ilegal reducción implica la actuación sobre la determinación
del presupuesto en México. Así se vislum- social de la salud-enfermedad.
bran ‘reformas a la reforma’ con una nueva Su política sanitaria es contraria a la neo-
reducción de servicios y derechos. liberal de separación de funciones y mer-
Además no hay evidencias robustas de cantilización. Extrae normativamente la
que la CUS haya mejorado las condiciones de prestación de servicios y la administración
salud de la población; cuestión que se rela- de fondos de la acumulación capitalista
ciona con la fragmentación de los servicios y aunque siga vigente el mercado de insumos
el abandono de la salud poblacional. En una y tecnología e incluso de planes privados de
revisión sistemática del Banco Mundial se salud. Incorpora los postulados de la política
alega al respecto que la CUS es una reforma social y el paradigma en salud es el Sistema
financiera cuyo propósito no es mejorar las Único de Salud (SUS), solidario, público,
condiciones de salud (GIEDION; ALFONSO; DÍAZ, universal y gratuito, inscrito en sus constitu-
2013). En síntesis, la principal conquista de la ciones políticas o en las leyes reglamentarias.
CUS es haber abierto la salud como terreno Busca ampliar a toda la población el acceso
directo de acumulación. a los servicios necesarios (re)construyendo

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


858 LAURELL, A. C.

el sistema público desde abajo hacia arriba con 600 Centros Integrales de Diagnóstico,
con alguna modalidad de Atención Primaria 21 Centros de Alta Tecnología y 545 Salas
en Salud Renovada o Medicina Familiar, in- de Rehabilitación Integral (Venezuela, 2010).
tegrando redes de servicios para el acceso Ecuador está haciendo un esfuerzo grande
a servicios de la complejidad requerida de fortalecimiento de la infraestructura
(ALVARADO et al., 2008) e incorporando enfoques pública con la creación de 132 unidades de
de interculturalidad y género. salud y la remodelación y/o equipamiento de
La ampliación del acceso ha sido notable. más de 500 sólo en 2010 (ISAGS, 2012).
En Brasil la cobertura pasó de 30 a 190 mi- Para que la nueva infraestructura y el
llones de personas con el SUS y un 98% de nuevo modelo de atención puedan operar se
la población accedió a los servicios al bus- requiere de personal suficiente y competente
carlos (BRASIL, 2006). En Venezuela la Misión y se han desarrollado varias estrategias para
Barrio Adentro (MBA), operado bajo un lograrlo. La velocidad de construcción de la
convenio con Cuba (OPS, 2006), amplió la MBA hubiera sido imposible sin los interna-
cobertura y acceso a 17 millones de perso- cionalistas cubanos con disposición de tra-
nas (57% de la población) que carecían de bajar en las zonas urbanas y rurales pobres.
ellos (ARMADA et al., 2009). Esto significa que Igualmente, Bolivia recibió unos 1,900 tra-
toda la población tiene acceso gratuito a bajadores de la salud cubanos (TEJERINA, 2014)
los servicios de salud sean estos del MBA, para apoyar el sistema público. Brasil optó
del sistema convencional o de la seguridad por una estrategia semejante en 2013 con el
social. Ecuador ha eliminado la barrera eco- Programa Mais Médicos para garantizar la
nómica al acceso con la gratuidad de ser- atención en zonas alejadas.
vicios y medicamentos (ISAGS, 2012, p. 462). En Para sustentar nacionalmente su sistema
Uruguay los principales favorecidos son la público, Venezuela han graduado 17,000
población rural que anteriormente carecía médicos integrales comunitarios y de ellos
de servicios (BORGIA et al., 2012). miles están haciendo residencias médicas
El éxito de ampliación del acceso des- para cubrir áreas deficitarias de especia-
cansa sobre varios pilares. La primera es listas o posgrados para conducir la salud
la adopción de modelos de atención inte- poblacional (VENEZUELA, 2014a). Bolivia ha
grales basadas en la educación, promoción, mandando a 5,000 jóvenes a la Escuela
prevención, detección oportuna, atención Latinoamericana de Medicina en Cuba
continuada y rehabilitación. La organización (TEJERINA, 2014) y establecido la residencia
institucional que lo permite es la territoria- médica en salud familiar, comunitaria e in-
lización, el seguimiento en el hogar y la cer- tercultural (ISAGS, 2012).
canía al centro de primer contacto. Con este Adicionalmente se han tomado medidas
arreglo institucional se logra una acción co- para abastecer de productos farmacéuticos
herente de salud pública que es incompatible a los servicios de salud. Muchos de estos
con un sistema de competencia de mercado. países tienen legislación sobre el uso de ge-
Un segundo aspecto es la veloz amplia- néricos y la gratuidad de los medicamentos.
ción y fortalecimiento de la infraestructura Se ha incrementado la producción nacional
de salud. El SUS brasileño, con una escasa de medicamentos y vacunas creando meca-
infraestructura pública inicial, tiene ahora nismos de intercambio comercial favorable
64 mil unidades de atención primaria y y de apoyo científico-técnico. Brasil ha des-
5,900 hospitales acreditados (BRASIL, 2012). El empeñado un papel central pero también se
MBA contaba en 2009 con 6,708 consulto- han desarrollado actividades en la Alianza
rios populares y ha incrementado la com- Bolivariana para los Pueblos de Nuestra
plejidad de la atención (ARMADA et al., 2009) América (Alba) (ISAGS, 2012). Al respecto es

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


Contradicciones en salud: sobre acumulación y legitimidad en los gobiernos neoliberales y sociales de derecho en América Latina 859

notable la acción internacional de Brasil y además la base del nuevo proyecto de desa-
de Universidad Autónoma del Sur (Unasur) rrollo, el Plan de la Patria.
en la lucha contra las patentes en el marco Los movimientos sociales, sustento de
del Agreement on Trade-Related Aspects Evo Morales, participan activamente en la
of Intellectual Property Rights (Trips) y la formulación de la política de salud y en su
Declaración de Doha. Este tipo de posiciona- defensa a nivel nacional, departamental y
miento será muy importante si se concrete el municipal. En Ecuador el gobierno se apoya,
Trade in Services Agreement entre la Unión de la misma manera, en la movilización y
Europea, los EUA y la Alianza del Pacífico participación social para llevar adelante sus
que incluiría a los servicios y seguros de compromisos.
salud. También hay signos que habrá una La participación y control social en estos
contestación fuerte a la extensión de la CUS países no son casuales. Sus gobiernos han
en su forma de aseguramiento (CEBES, 2014). surgido de las movilizaciones de las clases
En el terreno de la participación popular subalternas que les exigen nuevas formas
y el control social en salud los gobiernos de hacer política donde la participación
progresistas tienen políticas muy activas e popular, el control social y la democracia
institucionalizadas. Brasil destaca por su directa son inherentes a los procesos de
estructura institucional de consejos de salud cambio.
en los tres niveles de gobierno, de composi- Un indicador de la decisión política de
ción bipartita entre organizaciones de usua- impulsar la política de salud son los recur-
rios, por un lado, y autoridades, prestadores sos fiscales que la respaldan. Este indicador
de servicios y trabajadores del sector por el es problemático de medir comparativamen-
otro, lo que ha resultado en unos 6,000 con- te entre países y a lo largo del tiempo. La
sejos (LABRA; GIOVANELA, 2007). Aunque el grado medida más utilizada es el gasto público en
de participación sea variable y la propia salud como porcentaje del PIB pero a veces
institucionalización pueda tener inconve- no incluye todo el gasto (CURCIO, 2010). En la
nientes, los consejos tienen una injerencia tabla 1 se observa que los únicos países en
directa e importante en el control social América Latina que reportan un incremento
sobre los servicios. por encima de 30% del gasto público como
En Venezuela, los cerca de 9,000 Comités porcentaje del PIB en el período 2000-2011
de Salud han jugado un papel decisivo en son Brasil con 40%, Costa Rica con 37% y
la planeación, contenido e instrumentación Ecuador con 122%. Otra medida indicativa
de la MBA (LEÓN, 2012) y tuvieron un nuevo es el incremento per cápita del gasto público
impulso en 2014. Han promovido la inclu- en salud expresado en US$ al tipo de cambio
sión de elementos poco comunes como las promedio. Con esta medida los gobiernos
Salas de Rehabilitación Integral que facilitan progresistas tienden a tener incrementos
la integración social y devuelve la dignidad más altos que los gobiernos neoliberales.
a los discapacitados. El Poder Popular es

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


860 LAURELL, A. C.

Tabla 1. Gasto público de salud - países de América Latina, porcentaje del PIB, 2002 y 2011, y per cápita, 2002 y 2013

País Gasto público % PIB Gasto público per cápita1


2002 2011 2002 2013 Incremento % en el periodo
Argentina 5.0 5.3 120 688 473
Bolivia 3.7 3.5 36.7 106.7 191
Brasil 2.9 4.1 90.6 490.4 441
Chile 3.3 3.4 140.7 536.1 281
Colombia 4.7 4.9 108 401.5 272

Costa Rica 5.6 7.6 602.5 1,310.6 118

Ecuador 1.1 2.5 35.5 162 356

El Salvador 3.7 4.3 86.6 159.2 84

Guatemala 2.3 2.4 39.1 95 143

Honduras 3.6 4.1 47.3 98.1 107

México 2.4 3.0 173.8 320 84

Paraguay 3.2 3.4 27.1 164.8 508

Perú 2.8 2.7 58.9 198.7 237

Uruguay 6.1 6.0 238.7 895.1 275

Venezuela 2.4 1.62 81.7 199.9 145

Fuentes: Cálculos propios con datos de World Health Statistics (2014a) y World Health Statistics (2014b)
1 En US dólares a tasa promedia de cambio
2 Incluyendo todas las fuentes de financiamiento público fue 6.0 (CURCIO, 2010)

Cabe preguntarse cómo se generan los Venezuela, Ecuador y Bolivia.


recursos que los gobiernos redistribuyen y Por ejemplo en Venezuela (ALPONTE, 2010) la
cuáles son sus límites. Este interrogante es inversión social del periodo chavista (1999-
esencial porque los economistas neoliberales 2012) se incrementó en 770% respecto al
argumentan que la escasez de recursos eco- periodo 1984-1998 y el gasto social como
nómicos obligaría a definir paquetes de ser- proporción del PIB aumentó a alrededor del
vicios, costeados y costo-efectivos. Se pueden 8% en 1998 a alrededor del 20% en 2007. Esta
‘groso modo’ discernir dos estrategias. Una es movilización de recursos se hizo a raíz de la
la recuperación para la nación de las rentas nueva ley de hidrocarburos y es canalizada
de los recursos naturales y la otra es el incre- por la empresa estatal petrolera o vía un fondo
mento de impuestos. La recuperación de la especial para el desarrollo. La reapropiación
renta, anteriormente extraída por empresas de la renta permitió también a Ecuador y
transnacionales, y su redistribución vía el Bolivia incrementar su gasto social.
Estado en la forma de transferencias moneta- Sin embargo, esta estrategia no está libre
rias, subsidios generalizados a bienes básicos de tensiones. Provoca, por un lado, discusio-
y servicios públicos gratuitos, es la clave de la nes sobre cómo priorizar la satisfacción de
rápida ampliación del presupuesto social en las amplias y diversas necesidades sociales

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


Contradicciones en salud: sobre acumulación y legitimidad en los gobiernos neoliberales y sociales de derecho en América Latina 861

o pugnas distributivas entre ministerios vía regular o histórica de financiar la amplia-


del ámbito social y económico. La salud ción de los proyectos sociales y recolectar una
en muchas ocasiones ha recibido un lugar proporción mayor de la riqueza social para
secundario frente a la educación o la trans- ello. Por ejemplo, los países europeos incre-
ferencia de renta, por ejemplo en Bolivia. mentaron los impuestos a entre 40 y 55% del
Por otro lado, cuando el gobierno propone ingreso nacional para construir sus Estados
ampliar la explotación estatal de los re- sociales (PIKETTY, 2013). Esto significa revisar la
cursos naturales ha enfrentado la crítica al política fiscal regresiva heredada del neoli-
‘extractivismo’, no siempre acompañada de beralismo y adoptar un sistema impositivo
propuestas de otras formas de desarrollo progresivo para que el erario nacional dis-
que permitan aumentar la riqueza nacional ponga de mayores recursos para invertir
(GARCÍA LINERA, 2010). Sobra señalar que las cor- productivamente y redistribuir por distintas
poraciones transnacionales siguen actuando vías. El incremento de impuestos, empero,
para recuperar el control sobre estas rentas, tiene dificultades en países donde la élite po-
financiando o creando organizaciones oposi- lítica tradicionalmente ha apropiado para sí
toras o a través de operaciones encubiertas. una proporción inadmisible de ellos y donde
Una estrategia alterna es cambiar las prio- la corrupción pública y privada es omnipre-
ridades en el uso de los impuestos y recana- sente. Se requiere de legitimidad política para
lizar una parte importante al financiamiento emprender esta tarea; cuestión que general-
de las políticas sociales. Un ejemplo de ello es mente pasa por la demostración real de que
la política de disminución de la alta burocra- hay un combate firme a estas prácticas y la
cia, reducción de sus sueldos y cancelación de construcción de una nueva ética política.
sus privilegios, instrumentada por el gobierno
del DF en México, que permitió financiar una Los problemas de la construcción del
pensión ciudadana universal y la gratuidad de Sistema Único de Salud
los servicios médicos y medicamentos sin in-
crementar los impuestos (LAURELL, 2008). A pesar de los logros, la construcción del
Otra estrategia que puede proporcionar SUS tiene que confrontar distintos proble-
importantes recursos para la política de salud mas de financiamiento, de organización
es el combate sostenido a la corrupción ya institucional y la persistencia del sector
que los ministerios de salud manejan grandes privado en salud, ligados a las herencias
montos en licitaciones y en obra, particular- neoliberales o derivados del contexto de su
mente susceptibles a prácticas corruptas. No establecimiento.
se conoce cuánto se extrae por la vía de la Varios países, por ejemplo Venezuela,
corrupción pero los frecuentes escándalos y Bolivia y Ecuador, afrontan dificultades para la
juicios legales sobre sobornos señalan que se integración del seguro social público al sistema
trata de miles de millones de dólares. Los in- único de salud que entraña una compleja pro-
tentos de castigar la corrupción y el tráfico de blemática de alta conflictividad política. Esta
influencias previos tienen la dificultad de ser cuestión fue resuelto por Brasil con la nueva
susceptibles a la manipulación política. La vía constitución pero sigue habiendo problemas
alterna es construir mecanismos político‑ad- de organización institucional con las formas
ministrativos que los imposibilitan como por de subcontratación de servicios con fundacio-
ejemplo licitaciones transparentes, la subasta nes de interés público pero de índole privada,
en reversa3 o la supervisión del gasto con con- semejantes a aquellas propuestas en la Nueva 3 LaSecretaría del DF
tralores ciudadanos independientes. Gerencia Pública (COHN, 2011). logró bajar los costos en
medicamentos y equipo
Estas estrategias de financiamiento tienen Otro tema institucional complejo es la des- del 20 al 25% con estos
límites. Finalmente es inevitable acudir a la centralización-desconcentración, heredada procedimientos.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


862 LAURELL, A. C.

o nueva, que pone la responsabilidad de la prestación laboral (OCKÉ-REIS, 2012). En este


operación de los servicios en manos de los contexto hay una engañosa discusión sobre
poderes locales. Puede dificultar la instaura- la ‘inclinación’ de la ‘nueva clase media’ por
ción de una política nacional única aún cuan- los seguros de salud (SALM; BAHIA, 2013). Por la
do el gobierno nacional tenga la potestad de exención del costo de la atención privada en
fijarla; complejiza la construcción de redes el pago de impuestos y el gasto en seguros de
de atención; requiere de mecanismos finan- los funcionarios públicos, el sector privado
cieros compensatorios tanto para operar los goza de un subsidio cruzado regresivo igual a
servicios como para ampliar la infraestruc- por lo menos el 27% del presupuesto público
tura; entre otras. Brasil ha tomado una serie de salud. Los aseguradores deberían además
de medidas para resolver esta problemática pagar el costo de la atención en el SUS de sus
(NOGEIRA, 2010). Venezuela está reconcentrando asegurados pero no lo hacen (CEBES, 2014).
el manejo de los niveles de mayor compleji- Venezuela enfrenta una situación similar.
dad a la vez que está emprendiendo la tarea Un 28% de la población se atiende en los servi-
de integrar la MBA, el sistema convencional cios de salud privados bajo el amparo de algún
y el seguro social en un sistema único y pú- tipo de seguro, particularmente el llamado
blico con base en las Áreas de Salud Integral Hemoglobina Corpuscular Media (HCM),
Comunitarias (VENEZUELA, 2014b). Con todo, pagado con fondos públicos. Los prestadores
estos problemas son más acentuados en los privados son los grandes ganadores de este
sistemas mercantilizados que transitan por sistema y el 75% de sus ingresos provienen del
el camino de descentralización vía el merca- erario público. Hay así un subsidio cruzado
do y los contratos. regresivo que drena recursos que pudie-
Al analizar los sistemas únicos y públi- ran haberse sumado al presupuesto público
cos de salud debe considerarse los defectos directo de salud. Se calcula (MELO, 2014, p. 220) que
neoliberales previas, por ejemplo en Bolivia, la regulación de los precios de los prestadores
Ecuador y Venezuela y el antecedente de un privados permitiría ahorros para incrementar
sector privado importante, por ejemplo en en un 25% el presupuesto del Ministerio de
Brasil. La permanencia o crecimiento del Salud pero todavía no se ha hecho.
sector privado en salud significa que perma- El 70% de los hospitales ecuatorianos
nece como espacio de acumulación donde son privados y un 8% de la población tiene
los seguros médicos y los prestadores de un seguro privado (ISAGS, 2012). Donde las
servicios privados son agentes poderosos. cajas de seguro social dominan el manejo
Ocasiona dos lógicas simultaneas, la pública de los recursos de salud como en Argentina
y la privada, que conlleva el riesgo de que la y Uruguay hay una situación más comple-
privada prevalezca sobre la pública. ja, particularmente a partir de las reformas
En Brasil el poder político del sector neoliberales anteriores.
privado – aseguradoras y prestadores – le
permitió negociar la protección de sus in-
tereses en la Asamblea Constituyente de Nuevas estrategias
1988. Así la constitución establece que ‘la de acumulación y la
asistencia a la salud es libre para la iniciati-
va privada’ y que pueda participar de forma
incorporación plena de la
complementaria en el SUS lo que le permite ciencia al capital
operar con muchos privilegios. El asegu-
ramiento privado cubre hoy un 25-27% de La segunda vertiente de acumulación en
la población (CEBES, 2014), incluyendo a los salud es la producción de bienes consumi-
grandes sindicatos que lo negocian como dos por este sector. No es novedosa y está

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


Contradicciones en salud: sobre acumulación y legitimidad en los gobiernos neoliberales y sociales de derecho en América Latina 863

presente en todos los sistemas de salud. El media de los países grandes de desarrollo
nuevo ciclo de acumulación, resultado de medio alto como Brasil y México donde las
la crisis de productividad, requiere de la enfermedades crónicas les representa un
innovación tecnológica que también se da mercado emergente con una regulación de-
en salud. Esta innovación cumple un doble ficiente (PRICEWATERHOUSECOOPER, 2007, p. 4).
papel porque la nueva tecnología médica es a Otra estrategia productiva es lanzar masi-
la vez un producto para el mercado y la justi- vamente medicamentos con efectos incier-
ficación para incrementar innecesariamente tos en situaciones de emergencia. Tal es el
el costo de los servicios. caso del inhibidor de neuraminidasa en la
La industria farmacéutica-biotecnológica epidemia de Influenza A/H1N1 cuyo costo
crece y representa por encima del 11% del fue miles de millones de dólares para los go-
producto bruto global. Impulsa un agresi- biernos. Una revisión sistemática (JEFFERSON,
vo desarrollo de sus productos aunque no 2009) posterior demostró que tiene efectos
añadan ventajas médicas (WAITSKIN, 2011, p. 25-26). dudosos. Descubrió además una escanda-
Por ello muchos países han establecido ins- losa manipulación de la información que
tituciones de evaluación tecnológica con el llevó el British Medical Journal a lanzar una
fin de excluir del pago con recursos públicos campaña para tener acceso a las bases de
a nuevos productos sin ventajas comproba- datos completos en poder de Roche (PAYNE,
dos, cuestión retomada por la OMS en su 2012). La aplicación de la vacuna contra el
resolución WHA60.29. Hay una tendencia mismo padecimiento, liberando a las far-
semejante en América Latina pero requiere macéuticas de toda responsabilidad de las
de una institucionalidad compleja y abso- reacciones adversas, ha resultado en casos
luta transparencia en los procedimientos. de narcolepsia en niños en 12 países.
La Gran Pharma4 reconoce esta tendencia Más inescrupulosa aún es la vacunación
como un problema estructural que le obliga masiva en el mundo contra 4 a 6 cepas del
a encontrar nuevas estrategias comerciales y Virus de Papiloma Humano (VPH) que
productivas (PRICEWATERHOUSECOOPER, 2007). también ha redituado miles de millones de
La estrategia más conocida es el manejo dólares en ganancias. Ejemplifica todas las
de las patentes con respaldo en los Trips tácticas antiéticas de las empresas farmacéu-
de la OMC. La lucha contra los precios mo- ticas que van desde la mentira sobre su pro-
nopólicos de los medicamentos y las mani- tección contra el cáncer cérvicouterino, la
pulaciones para prolongar las patentes son colusión con el regulador (el Food and Drug
un terreno donde varios países de América Administration), la información sesgada para
Latina, destacadamente Brasil, han enfrenta- el consentimiento informado, hasta un cabil-
do a la industria con cierto éxito, por ejemplo deo dudoso con parlamentarios y gobiernos
en la Declaración de Doha sobre la salud (HPV INDUSTRY TIMELINE, 2011).
pública (WTO, 2001). El sobreprecio monopóli- Una tercera estrategia de la industria
co se aprecia en que el precio del tratamiento (PRICEWATERHOUSECOOPER, 2007) es apostar a la
con el antiretroviral combinado para el VIH/ llamada ‘medicina personalizada’ que se
Sida cayó de 11,000 a 295 dólares al año al basa en el análisis del perfil genético del in-
romper Brasil y la India la patente. dividuo. Es un área en rápida expansión con
El uso off-label de medicamentos es un es- posibilidades de nuevas patentes y ganan-
trategia comercial fraudulenta que promue- cias. Las principales críticas son que tiene
ve aplicaciones no autorizado de éstos y que una visión monocausal genética e involucra 4Big Pharma es la
ha redituado miles de millones de dólares problemas éticos como la confidencialidad, denominación de las 10-12
empresas farmacéuticas
(KESSELHEIM et al., 2011). Otra estrategia es buscar la privacidad y los derechos de los pacientes más importantes del
nuevos ‘nichos de oportunidad’ en la clase (PERSONALIZED MEDICINE COALITION, 2014). mundo.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


864 LAURELL, A. C.

La definición de tecnología médica es im- investigación financiada por la industria


precisa pero en general se refiere al equipo farmacéutica tiene más sesgos en su diseño,
médico y a métodos diagnóstico. Entre las resultados favorables al fármaco investiga-
empresa grandes del ramo están Johnson do y ocultamiento de reacciones adversas
& Johnson, Siemens y General Electric. graves. Las grandes corporaciones contratan
Waitskin (2011, p. 26-35) hace un análisis amplio además a epidemiólogos para descalificar
sobre la innovación de esta tecnología estudios que comprueban efectos nulos o
médica y cómo una de sus estrategias es adversos de sus productos (PEARCE, 2008).
crear la percepción de obsolescencia me- Otra área novedosa de acumulación son los
diante cambios insustanciales. Expone la contratos APP (Asociación Público-Privada)
rápida proliferación de las costo-intensivas o PFI en inglés. El término se ha aplicado de
unidades coronarias sin evidencias de su distintas maneras pero su acepción original se
efectividad. Estudios posteriores han incluso refiere a la asociación entre el capital finan-
llegado a la conclusión de que no incremen- ciero y de construcción para financiar, cons-
tan la sobrevida del paciente y todavía en truir y administrar una obra pública (PRICE;
2001 no estaban incluidas entre la tecnología POLLOCK, 2010). Su forma más común en salud
basada en evidencias (JULIAN, 2001). Waitskin es la construcción de hospitales. La APP es
demuestra que su expansión fue inducida una nueva forma de privatización, en rápida
por la actuación interesada de las empresas, expansión en América Latina, justificada con
los centros médicos académicos, las funda- el argumento de que permite mayor inversión
ciones privadas y el Estado. en infraestructura; que transfiere los riesgos
La explosión de tecnología médica sin a la contratista APP; y que los privados son
evidencias de su superioridad sobre los más eficientes. Ninguno de estos argumen-
métodos diagnósticos y terapéuticos existen- tos se sostienen pero los APP son un negocio
tes y criterios claros sobre su uso progresivo redondo para las empresas y muy onerosos
y escalonado han llevado a la OMS (2012) y para el erario público.
algunos gobiernos a establecer organismos Veamos. El costo de un contrato APP tiene
de evaluación, por ejemplo, National Institute tres componentes: el pago de intereses sobre
for Health and Care Excellence (Nice) en el capital prestado por el financiero privado;
Gran Bretaña y Patient-Centered Outcomes el ‘cargo de disponibilidad’ o la renta que
Reaserch Institute (PCORI) en EUA. el gobierno paga por el uso del inmueble u
Un problema de fondo con la expansión obra APP y; la administración del inmueble
tecnológica es que el criterio clínico ha sido y a veces la prestación de servicios. El pago
sustituido por mediciones e interpretaciones de interés es más alto que de un préstamo
procesadas por computadoras. Ocurre así a gubernamental porque se considera un
pesar de las dificultades de descifrar esta préstamo de alto riesgo. Por ejemplo, Colin
información. y Player (2011) estiman que los intereses
La etapa actual se caracteriza además por pagados por los hospitales ingleses APP se
la creciente incorporación de la ciencia al triplicó o cuadruplicó. El ‘cargo de dispo-
capital. Este rasgo se ha profundizado con nibilidad’ es inexistente cuando la obra es
el avance del proyecto neoliberal en las uni- construida y equipada por el gobierno y se
versidades públicas que han reducido su in- estima en un 50% del costo total del contra-
vestigación propia y dependen cada día más to APP (HELLOWELL; POLLOCK, 2009). El costo de
de contratos con la iniciativa privada o fun- administración es variable dependiendo del
daciones privadas sobre temas decididos por tipo de contrato.
ellas. Varias revisiones sistemáticas (LEXCHIN El involucramiento del sector privado
et al., 2003; SISMONDO, 2008) demuestran que la no resulta más eficiente y generalmente se

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


Contradicciones en salud: sobre acumulación y legitimidad en los gobiernos neoliberales y sociales de derecho en América Latina 865

renegocian los contratos por incremento de LINERA, 2013),


está cuestionada y se está abrien-
costos y retrasos de la obra. El costo total de do como campo de intensa lucha política.
los contratos APP es muy alto. Por ejemplo En salud hay una tensión constante entre
los nuevos hospitales PFI ingleses con un la idea de la ‘buena medicina’, como aquella
valor de construcción y equipamiento de £ con una alta densidad tecnológica y bio-
12.2 mil millones se pagarán con £ 82.7 mil tecnológica, de medicamentos de patente
millones (LIEBE; POLLOCK, 2009). En el caso mexi- novedosos y de hotelería excedida, y la pro-
cano cuatro contratos APP de hospitales han puesta de una práctica médica de la Atención
tenido un sobrecosto enorme cuyo monto Primaria de Salud Renovada basada en la
hubiera permitido construir y equipar doce educación, la promoción, la prevención y el
hospitales adicionales (HERRERA; LAURELL, 2010). buen ejercicio clínico con acceso universal
La importancia de salud para la reproduc- a los servicios requeridos. Esta tensión es
ción de la fuerza de trabajo ha disminuido en clave para entender la dialéctica entre legiti-
el capitalismo global. Es así porque una de mación/deslegitimación en la lucha política.
las estrategias del capital es su movilidad que Por un lado, los gobiernos progresistas
le permite migrar a territorios con mano de han ganado la aprobación popular incre-
obra barata para la producción de bienes con mentando el acceso a los servicios de salud
alto contenido de trabajo humano. Otra es- y promoviendo una amplia participación
trategia son las reformas laborales que, entre popular. Por el otro, los servicios de salud
otras cuestiones, permiten la tercerización también han servido a sus opositores para
del trabajo para evadir los derechos labora- deslegitimarlos, particularmente cuando no
les de los trabajadores; estrategia también se ha ampliado el acceso a los servicios com-
usado en la prestación privada de servicios plejos para toda la población con suficiente
médicos. rapidez. El problema se agrava cuando los
grandes sindicatos negocian seguros priva-
dos (Brasil) y/o atención privada (Venezuela)
La salud en la lucha como prestación laboral que oculta que el
política. Legitimación y derecho social a la salud debería construir la
ciudadanía social y no ser un simple hecho
deslegitimación de consumo (COHN, 2013).
Los gobiernos progresistas son así vul-
No es extraño que la salud es un campo de nerables al imaginario social dominante de
lucha política al tocar temas esenciales como la ‘buena medicina’ que se desenvuelve en
la vida y la muerte; el bienestar y la dignidad; el marco del espejismo de la modernidad
la posibilidad de insertarse y participar en del gran capital y donde el seguro médico
la vida social. La preocupación actual de los privado se ha convertido en un símbolo de
organismos supranacionales por la ‘cohe- prestigio social. Aunque los avances en el
sión social’ es una ilustración de este hecho. acceso a la atención sean innegables, los opo-
Aunque el capitalismo global haya avanzado sitores intentan deslegitimar a los SUS como
en su proyecto económico su falta de resul- la ‘medicina pobre para los pobres’ y los
tados en el terreno social tiende a subvertir- actores privados, aseguradores y prestado-
lo y tiene un talón de Aquiles en sus efectos res, sostienen que sus servicios son de mejor
sociales de empobrecimiento masivo y cre- calidad y más accesibles que los servicios
ciente desigualdad; es donde empieza a des- públicos. Aprovechan que el acceso oportu-
moronarse ética, económica y socialmente. no a los servicios de salud se ha convertido
Su hegemonía, entendida como el monopo- en una exigencia social a raíz de que los go-
lio de las ideas fuerza de la sociedad (GARCÍA biernos progresistas lo han asumido como

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


866 LAURELL, A. C.

responsabilidad social del Estado. luego irlo calificando y/o condicionando.


Rothstein (1994) ha planteado que la cons- Estrictamente hablando el ‘derecho a la
trucción de nuevas instituciones públicas o salud’ se basa en la idea del valor intrínseco
una nueva organización institucional pública e igual de todos los seres humanos. En tanto
materializan valores y concepciones sociales tal es un valor ético y es indivisible. Para que
de manera tal que crean y consolidan nuevos se realice debe haber un sujeto obligado a
valores y normas sociales. O sea, son parte de garantizarlo que no puede ser los privados
la construcción de hegemonía. Parece haber dado que la relación entre ellos es contrac-
ocurrido al revés con el neoliberalismo sani- tual, voluntaria y limitado en el tiempo. Así
tarista. O sea, la transformación neoliberal el sujeto obligado solo puede ser la socie-
del sector salud ha contribuido a la hege- dad que le encarga al Estado garantizar este
monía de su concepción como expresión del derecho. Para resolver ideológicamente este
‘triunfo cultural de la derecha’. dilema y promover los agentes privados,
La propuesta dominante de la Cobertura los proponentes de la CUS conceptualizan
Universal de Salud (CUS) debe ubicarse en las salud como un derecho humano y no un
este contexto. Es un intento de fortalecer la derecho social. El derecho humano pertene-
hegemonía del pensamiento neoliberal en ce al individuo en su relación con el Estado
salud aparte de ampliar la acumulación ca- y tiende a asumir formas subsidiarias. O sea,
pitalista en el sector. El análisis del discurso se obliga al Estado a garantizarlo cuando el
de la CUS revela que retoma engañosamen- individuo no tiene los recursos suficientes.
te uno por uno los valores y proyectos de la Esto significa en rigor que es la persona
izquierda sanitaria pero los dan un conte- y no la colectividad que debe exigir para
nido distinto y los pervierten. Es así un dis- sí su cumplimiento. En cambio, la noción
curso ideológico-político con pretensiones ‘derecho social’ es fundamento del Estado
hegemónicas. social y constitutivo de la ciudadanía social.
Veamos. El argumento sobre la escasez La individualización del derecho a la
de recursos de donde parte el razonamien- salud frente al Estado permite condicionar-
to de la CUS es un postulado de los econo- lo de distintas maneras. Por ejemplo, que
mistas convencionales. Con esta premisa quien tenga recursos que lo realice a través
se evita problematizar el hecho de que no del mercado; que la obligación estatal solo es
hay una relación directa entre el gasto en de un paquete para los pobres; que los bene-
salud y la riqueza nacional. Por ejemplo ficiarios de la acción estatal adopten ciertas
según Organización para la Cooperación y conductas prescritas; etcétera.
el Desarrollo Económicos (OCDE) los EUA La ‘libertad de elección’ está ideológica-
gastan aproximadamente el 18% del PIB, mente articulada a esta noción. Postula que
Alemania el 11% e Inglaterra el 9% a pesar de el individuo tiene el derecho de elegir dónde,
que los EUA tiene los peores resultados de cómo y con quien atenderse. Se invocan las li-
su enorme gasto en el acceso a servicios y en bertades individuales para incluir a los pres-
condiciones de salud. Esto demuestra que el tadores privados y garantizar que el erario
gasto de salud tiene que verse en el contexto público les retribuya el servicio prestado. Se
de las políticas social y económica y las ca- añade a este argumento que permitirá mayor
racterísticas concretas del sistema nacional eficiencia porque obliga a la competencia de
de salud. Es un problema que concierne la mercado sin evidencias que lo pruebe.
distribución de la riqueza, su repartición a Otra noción que tiene una acepción dis-
través del Estado y los valores sociales. tinta en el discurso CUS es ‘universal’ o ‘uni-
Los promotores de la CUS parecie- versalidad’. Aunque su contenido original
ran reivindicar el derecho a la salud para es que abarque a todos e incluya a todo, en

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


Contradicciones en salud: sobre acumulación y legitimidad en los gobiernos neoliberales y sociales de derecho en América Latina 867

este discurso se entiende implícitamente formas liberadoras. En algunos textos se


que es ‘básica’ o ‘modificada’. De nuevo la vincula la participación popular a la ciuda-
justificación de esta restricción es que no danía social plagiando el discurso sanitaris-
hay recursos para dar todos los servicios re- ta brasileño. La falacia es que la ciudadanía
queridos a todos los necesitados sino solo un invoca el ejercicio pleno de un derecho y no
paquete determinado. El discurso también cabe en la CUS.
es confuso cuando alude a la ‘cobertura’. La lista de ambigüedades en el discurso
Por un lado tiende a referirse a la cobertu- de la CUS se puede prolongar con muchos
ra poblacional de un seguro lo que tiende a ejemplos de cómo se han filtrado nociones
excluir otras formas de acceso a los servicios neoliberales en el pensamiento de salud y
de salud como en los sistemas públicos y también en el pensamiento progresistas. El
gratuitos. Por el otro, la palabra ‘cobertura´ resultado es la pérdida de rigor y precisión
no se refiere, en primera instancia, a cual es que genera mucha confusión. Una función
la cobertura de servicios de salud. Es decir, de la ideologización es que no permite ver
cobertura de aseguramiento, cobertura de los hechos y reconstruirlos teóricamente
servicios y acceso están disociados. para construir caminos para ir resolviendo
Otra palabra clave del discurso CUS es problemas. La vigilancia epistemológica es
‘equidad’ mientras que ‘igualdad’ aparece por ello una práctica que debe ser cotidiana
poco. Aunque ‘equidad’ tenga varias acep- en momentos que se caracterizan por una
ciones y algunas apuntan a exclusiones e intensa lucha por la hegemonía.
inclusiones complejas y estructurales nece-
sarias de abordar, universalidad e igualdad
son conceptualmente ligadas al referirse a Conclusiones
‘para todos y de igual manera’. En un texto
de la OMS europea Dahlgren y Whitehead Los Estados neoliberales y sociales de
(2006) define igualdad en salud como igual derecho en América Latina se insertan de
acceso a los servicios requeridos ante la manera distinta en la globalización. Los
misma necesidad. ‘Equidad’ en el discur- primeros están ampliando los campos de
so CUS puede significar desde un mínimo acumulación en salud en el aseguramiento,
para todos (paquete básico), pasando por el la prestación de servicios y la incorporación
pago por los servicios en función del ingreso, rápida de nuevos medicamentos y tecnología
hasta la reducción de los servicios pagados sin una evaluación adecuada de sus venta-
por el Estado. jas. Por el contrario, los Estados sociales de
La CUS recomienda la participación de la derecho resguardan la salud como un ámbito
sociedad civil o popular pero no especifica público de realización del derecho a la salud
su contenido. Una razón de promover a la y un mecanismo redistributivo de la riqueza
sociedad civil o las ONG es para desestatizar nacional. Sin embargo enfrentan distintos
el sistema de salud en el camino de la priva- tipos de problemas, particularmente la per-
tización. La participación popular tiene múl- manencia y/o ampliación del aseguramiento
tiples interpretaciones. Cuando no contenga y la prestación de servicios; hecho que tiende
la modificación en las relaciones de poder a canalizar recursos financieros públicos en
y un proceso de construcción real, tiende a detrimento del presupuesto para los servi-
carecer de importancia. Esta afirmación se cios públicos, universales y gratuitos.
valida por el hecho de que la ‘participación Aunque el derecho universal y gratuito
comunitaria’ va desde formas de utiliza- a la salud les han conferido legitimidad a
ción de la comunidad para tareas simples, los Estados sociales también ha sido utili-
pasa por formas de control clientelar, hasta zado por sus adversarios en un intento de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


868 LAURELL, A. C.

deslegitimarlos con el argumento de que ‘universal’ y la propuesta de la construcción


estos son ‘pobres servicios para los pobres’. del SUS. En esta confrontación han sido
Esto ha convertido el campo de la salud en apropiados y pervertidos muchos conceptos
un terreno de lucha política. Por otro lado, de la reforma sanitaria progresista.
existe actualmente en América Latina una El enfoque de las contradicciones entre
intensa lucha ideológica entre la propuesta acumulación y legitimidad en salud genera
dominante del aseguramiento en salud como un conocimiento relevante pero se requiere
la vía para alcanzar una ambigua cobertura de más estudios sobre estos temas. s

Referências

ALVARADO, C. et al. Cambio social y política de salud BRASIL. Ministerio da Saúde. Painel de Indicadores do
en Venezuela. Medicina Social, Montevideo, v. 3, n. 2, p. SUS. 2006. Disponible en: <http://portal.saude.gov.br/
95-109, 2008. portal/arquivos/pdf/painel_%20indicadores_do_SUS.
pdf>. Acceso en: 7 feb. 2013.
ALPONTE, C. El gasto público social: 1999-2009.
Cuadernos del CENDES, New York, v. 27, n. 73, p. 31-70, ______. Ministerio da Saúde. 2012. Disponible en:
2010. <http://www.brasil.gov.br/sobre/salud/atendimento/
que-es-sus-1/br_model1?set_language=es>. Acceso en:
ARDÓN, N. et al. Voces críticas desde la academia sobre 7 feb. 2013.
la emergencia social en salud. Bogotá: Universidad
Nacional de Colombia, 2010. CENTRO BRASILEIRO DE SISTEMA DE SAÚDE
(CEBES). Por que defender o Sistema Único de Saúde?
ARMADA, F. et al. Barrio Adentro and reduction of Rio de Janeiro: CEBES, 2014.
health inequalities in Venezuela: an appraisal of the
first three years. Int J Health Services, Amityville, v. 39, COHN, A. Questionando conceitos: o público e o
n. 1, p. 161–187, 2009. privado na saúde no século 21. In: SANTOS, N. R.;
AMARANTE, P. D. C. (Org.). Gestão pública e relação
BANCO MUNDIAL. Invertir en Salud. Washington, D. público-privado na saúde. Rio de Janeiro: CEBES, 2010.
C.: Banco Mundial, 1993. p. 244-251.

BORGIA, F. et al. De la invisibilidad de la situación de ______. Entre sair da pobreza e ingressar na cidadania.
las policlínicas comunitarias-rurales en Uruguay, a la Nova Classe Média, Utopia de um futuro fugaz? In:
priorización de la salud rural como política pública. Saúde BARTELT, D.D. (Org.). A “Nova Classe Média” no
em Debate, Rio de Janeiro, v. 36, n. 94, p. 421-435, 2012. Brasil como Conceito e Projeto Político. Rio de Janeiro:
Fundação Heinrich Böll, 2013, p. 106-114.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


Contradicciones en salud: sobre acumulación y legitimidad en los gobiernos neoliberales y sociales de derecho en América Latina 869

COLIN, L.; PLAYER, S. The plot against the NHS. (Coord.). La medicina social en México II. Ed. Eón.,
London: Merlin Press, 2011. México DF, 2010, p. 163 -175.

CURCIO, P. El gasto en salud durante la revolución HIMMELSTEIN, D.; ARIELY, D; WOOLHANDLER,


bolivariana en Venezuela. Salud Problema, Xochimilco, S. Pay-For-Performance: Toxic to Quality? Int J Health
n. 5/6/7, p. 31-48, 2010. Services, New York, v. 44, n. 2, p. 203-214, 2014.

DAHLGREN, G. Why public health services? Int J HPV INDUSTRY TIMELINE. 2011. Disponible en:
Health Services, Amityville, v. 44, n. 3, p. 507-524, 2014. <http://sanevax.org/>. Acceso en: 15 sep. 2014.

DAHLGREN, G; WHITEHEAD, M. Levelling-up 2: a INSTITUTO NACIONAL DE SALUD PÚBLICA.


discussion paper on European strategies for tackling Encuesta Nacional de Salud y Nutrición 2012: resultados
social inequities in health. Copenhagen: WHO nacionales. Cuernavaca: Instituto Nacional de Salud
European Office, 2006. Pública, 2014.

FUNDACIÓN MEXICANA PARA LA SALUD INSTITUTO SURAMERICANO DE GOBIERNO EM


(FUNSALUD). Economía y salud. México DF: SALUD (ISAGS). Sistemas de salud en Suramerica. Rio
Fundación Mexicana para la Salud, 1994. de Janeiro: ISAGS, 2012.

GARCÍA LINERA, A. Democracia, Estado y Nación. La JEFFERSON, T. Neuraminidase inhibitors for


Paz: Asamblea Legislativa Plurinacional, 2013. preventing and treating influenza in healthy adults:
systematic review and meta-analysis. BMJ, London, n.
______. El presupuesto general de la nación. La Paz: 339, p. b5106, 2009.
Vicepresidencia de la Republica de Bolivia, 2010.
(Revista de análisis: reflexiones sobre la coyuntura, 4). JULIAN, D. G. The evolution of the coronary care unit.
Cardiovascular Research, Oxford, v. 51, n. 4, p. 621-624,
GIEDION, U.; ALFONSO, E. A.; DÍAZ, Y. The impact of 2001.
universal coverage schemes in the developing world: a
review of the existing evidence. Washington, DC.: The KESSELHEIM, A. S.; MELLO, M. M.; STUDDERT,
World Bank, 2013. D. M. Strategies and practices in off-label marketing.
PLoS Med [internet], v. 8, n. 4, 2011. Disponible
GUERRERO OROZCO, O. El fin de la Nueva Gerencia en: <http://www.plosmedicine.org/article/
Pública. Revista Chilena de Administración Pública, info%3Adoi%2F10.1371%2Fjournal.pmed.1000431>.
Santiago, n. 13, p. 5-22, 2009. Acceso en: 28 ago. 2014.

HELLOWELL, M; POLLOCK, A. The Private LABRA, M.; GIOVANELLA, L. Construcción del


Financing of NHS Hospitals: Politics, Policy and Sistema Único de Salud y participación de la sociedad
Practice. Economic Affairs, London, v. 29, n. 1, p. 17-19, civil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007.
2009.
LAURELL, A. C. Impacto del Seguro Popular en el
HERNÁNDEZ ÁLVAREZ, M.; TORRES-TOVAR, M. sistema de salud mexicano. Buenos Aires: CLACSO,
Colombia’s New Health Reform: Helping Keep the 2013.
Financial Sector Healthy. Social Medicine, New York, v.
5, n. 4, p. 177-181, 2010. LAURELL, A. C.; HERRERA, J. La Segunda Reforma
de Salud. Aseguramiento y compra-venta de servicios.
HERRERA, J.; LAURELL, A. C. Proyectos de Salud Colectiva, Lanús, v. 6, n. 2, p. 137-148, 2010.
prestación de servicios. In: PEÑA, F; LEÓN, B.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


870 LAURELL, A. C.

LEXCHIN, J. et al. Pharmaceutical industry Disponible en: <www.municipalservicesproject.org/


sponsorship and research outcome and quality: publication/chile-and-costa-rica-different-roads-
systematic review. BMJ, London, v. 326, p. 1167, 2003. universal-health-latin-america>. Acceso en: 19 jul.
2014.
LEÓN, J. La participación ciudadana en salud en
Venezuela. Carabobo: CONSALUD, 2012. PAYNE, D. Tamiflu: the battle for secret drug data.
BMJ, London, v. 345, p. e7303, 2012.
LIEBE, M.; POLLOCK, A. The experience of the private
finance initiative in the UK’s National Health Service. PEARCE, N. Corporate influences on epidemiology. Int
Edinburgh: University of Edinburgh, 2009. Jour Epidemiology v. 37, n.1, 2008, p. 46–53.

LONDOÑO, J. L.; FRENK, J. Structured pluralism: PERSONALIZED MEDICINE COALITION


towards an innovative model for health system reform Personalized Medicine 101: the challenges. 2014.
in Latin America. Health Policy, Amsterdan, v. 41, n. 1, Disponible en: < http://personalizedmedicinecoalition.
p 1-36, 1997. org/Resources/Personalized_Medicine_101>. Acceso
en: 19 jul. 2014.
MELO, L. El Sistema Público Nacional de Salud.
Carácas: La Rosa Roja, 2014. PIKETTY, T. Capital in the XXI century. New York:
Oxford University Press, 2014.
MÉXICO. Programa Sectorial de Salud 2013-2018.
México, DF: SSA, 2013. PRICE, D.; POLLOCK, A. M. 2010. The private finance
initiative: the gift that goes on taking. BMJ, London, v.
MUÑOZ HERNÁNDEZ, O. et al. Propuesta de un 341, p. c7175, 2010.
Sistema Nacional de Servicios de Salud. México DF:
Consejo Nacional de Evaluación, 2012. PRICEWATERHOUSECOOPER. Pharma 2020: the
visión. 2007. Disponible en <www.pwc.com/gx/en/
NOGUEIRA, R. P. O desenvolvimento federativo do pharma-life-sciences/pharma-2020/pharma-2020-
SUS e as novas modalidades institucionais de gerência vision-path.jhtml>. Acceso en: 8 ago. 2014.
das unidades assistenciais. In: RODRIGUES, N.;
AMARANTE, P. D. C. (Org.). Gestão pública e relação ROTHSTEIN, B. Vad bör staten göra. Estocolmo: SNS
público-privado na saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2010. Förlag, 1994.

OCKÉ-REIS, C. O. SUS: o desafio de ser único. Río de SALM, C.; BAHIA, L. Tênis, bermuda, fone no ouvido...
Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2012. Vai saúde e educação também? In: BARTELT, D. D.
(Org). A “Nova Classe Média” no Brasil como Conceito
ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD (OMS). e Projeto Político. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich
Evaluación de tecnologías sanitarias aplicada a los Böll, 2013. p. 115-123.
dispositivos médicos. Ginebra: WHO, 2012.
SISMONDO, S. Pharmaceutical company funding
ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD and its consequences: a qualitative systematic review.
(OPS). Barrio Adentro: derecho a la salud e inclusión Contemporary Clinical Trials, New York, v. 29, n. 2,
social en Venezuela. Carácas: OPS, 2006. p.109-113, 2008.

ORTIZ, L.; PÉREZ, D. Chile and Costa Rica: different TEJERINA, H. Mapeo de APS en Bolivia. Rio de
roads to universal health in Latin America, 2014. Janeiro: ISAGS, 2014.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


Contradicciones en salud: sobre acumulación y legitimidad en los gobiernos neoliberales y sociales de derecho en América Latina 871

TETELBOIN, C. La transformación Neoliberal del WAITSKIN, H. Medicine and public health at the end of
Sistema de Salud: Chile, 1973-1990. México, DF: UAM, empire. London: Paradigm Publishers, 2011.
2003.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). World
TORRES, M. Modelo de salud colombiano: exportable, Health Statistics. Ginebra: WHO, 2014.
en función de los intereses de mercado. Saúde em
Debate, Rio de Janeiro, v. 32, n. 78/79/80, p. 207-219, ______. WHO Global Health Observatory Data
2008. Repository. Disponible en: <http://apps.who.int/gho/
data/node.country.regionAMR?lang=en>. Acceso en: 15
VENEZUELA. Ministerio del Poder Popular para la ago. 2014.
Salud. Anuario Estadístico 2009. Carácas: Ministerio
del Poder Popular para la Salud, 2010. WORLD TRADE ORGANIZATION (WTO).
Declaración relativa al acuerdo sobre los ADPIC y la
______. Ministerio del Poder Popular para la Salud. salud pública. Ginebra: WTO, 2001.
Plan Nacional de Salud 2014-2019. Documento para el
debate público Carácas: Ministerio del Poder Popular ZAREMBAS, M. Patientens pris: ett reportage om
para la Salud. 2014a. Disponible en <www.mpps.gob. den svenska sjukvården och marknaden. Estocolmo:
ve/images/stories/pdf/salud2014.pdf>. Acceso en: 16 Wylers förlag, 2013.
sept. 2014.

Recebido para publicação em novembro de 2014


______. Ministerio del Poder Popular para la Salud. Versão final em dezembro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
Medicina Integral Comunitaria. Médicos y médicas para
Suporte financeiro: não houve
el pueblo. Carácas: Ministerio del Poder Popular para la
Salud, 2014b.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 853-871, OUT-DEZ 2014


872 ensaio | essay

Reflexiones sobre el proceso de reforma


sanitaria (1993-2013) y participación social
en Perú
Considerations on health reform process (1993-2013) and social
participation in Peru

Catalina Eibenschutz1, Alexandro Saco Valdivia2, Silvia Tamez González3, Xareni Zafra Gatica4,
Raquel Maria Ramírez Villegas5

RESUMEN El proceso de reforma sanitaria que el Estado peruano emprendió entre 1993
y 2013 ha privilegiado el aspecto financiero respecto a los temas de salud y se ha enfocado
fundamentalmente a contener costos, restringir la calidad y el acceso a los servicios. La respuesta
del movimiento sanitario que encabeza el Foro de la Sociedad Civil en Salud (Forosalud)
frente a estas políticas y lo que esta experiencia puede significar para los movimientos sociales
emprendidos en América Latina es motivo de nuestro análisis. El propósito del estudio es
analizar los alcances de la participación social en oposición a las reformas contemporáneas de
1 M. en C. Profesora
titular del Departamento los sistemas de salud en Perú.
de Atención a la Salud,
CBS, UAM-Xochimilco.
Profesora distinguida de PALABRAS CLAVE Reforma de la atención de salud; Movimiento social; Derecho a la salud;
la UAM.
Perú.
ceibenschutz@yahoo.com.mx

2 Representante de la
ABSTRACT The sanitary reform process undertaken by the Peruvian government (1993-2013)
sociedad civil (2012
- 2013) en el proceso has favored the financial aspect over the health issues and has focused primarily on constraining
de elaboración de
the costs. This has lead to a restriction in the quality and access to the services. It is important
lineamientos de reforma
sanitaria en Perú. to analyze the Peruvian case especially the health movement led by Foro de la Sociedad Civil en
Coordinador Nacional de
Salud (Forosalud) and what this experience can mean for social movements undertaken in our
Forosalud.
alexandro09538@gmail.com Latin American continent. In this study the purpose is to analyze the extent of social participation
3 M. en C. Profesora titular
as opposed to contemporary reforms of health systems in Peru.
del Departamento de
Atención a la Salud, CBS,
KEYWORDS Health care reform; Social movement; Right to health; Peru.
UAM-Xochimilco.
stamez2@yahoo.com

4 Lic. Ayudante de
Investigación del
Departamento de Atención
a la Salud, CBS, UAM-X.
xarenizafra@gmail.com

5 Dra. en C. Profesora
titular del Departamento
de Atención a la Salud,
CBS, UAM-Xochimilco.
raqueluamxoc@gmail.com

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140077
Reflexiones sobre el proceso de reforma sanitaria (1993-2013) y participación social en Perú 873

Introducción reflexionar en torno al proceso de reforma


sanitaria del Perú y sobre los alcances de la
Al final de los años ochenta y principios de participación social en oposición a las re-
los noventa la mayoría de los países latinoa- formas contemporáneas de los sistemas de
mericanos adoptaron la política en salud que salud. Nos interesa estudiar las estrategias,
dictaron el Fondo Monetario Internacional mecanismos y formas de articulación polí-
(FMI) y el Banco Mundial (BM). Por tanto, tica que desarrolla la sociedad civil en Perú
las reformas sanitarias de los últimos de- (Forosalud) para negociar y oponerse a la
cenios constituyen un tema importante en política de reforma del Estado Peruano.
la agenda política de los Estados naciona- La metodología utilizada fue el análisis de
les. Además, estas reformas son parte de información secundaria.
un amplio programa de transformaciones
estructurales. Tales reformas obedecen al
modelo neoliberal, que pretende reducir el Vinculación del caso Perú
derecho a la salud a esquemas regidos por con la política internacional
las Leyes del Mercado y transformarlo en
mercancía.
en el sector salud
Ante los diversos cambios internacio-
nales en el sector salud algunos autores se A partir de la década de los noventa en
han dado a la tarea de extender el análisis Perú se canceló el modelo de intervención
sobre las reformas sanitarias en distin- estatal en la economía. Fue sustituido por
tos contextos y con enfoques particulares los lineamientos del BM y FMI para con-
(LAURELL; HERRERA, 2009; TAMEZ; EIBENSCHUTZ, 2008; figurar una economía de libre mercado
TETELBOIN; GRANADOS, 2000; EIBENSCHUTZ, 2007; (neoliberal). Caracterizan al nuevo modelo
HERNÁNDEZ, 2000; LÓPEZ ARELLANO; BLANCO, 2007; por la pérdida de proyectos nacionales y la
FRANCO, 2012; TORRES, 2006; entre otros). Todos implementación de políticas bajo las leyes
ellos han puesto sobre la mesa de discu- del mercado.
sión temas como: el papel del Estado y del
mercado en el sector sanitario, la cobertu-
ra universal, la descentralización, la priva- Reforma del Banco Mundial
tización, la articulación público-privada y
la seguridad social. Desde fines del siglo XX y lo que va del
Seleccionamos como objeto de estudio el XXI, el BM desplazó a organismos como la
proceso de reforma sanitaria que el Estado Organización Mundial de la Salud (OMS) y
peruano emprendió en el periodo de 1993 la Oficina Sanitaria Panamericana (OPS) del
a 2013. Nuestros objetivos son describirlo y papel principal a la hora de definir la polí-
analizarlo, poner en evidencia su relación tica sanitaria, dejando claro que al hablar
con las políticas internacionales en salud y y actuar en materia de salud, se tomarían
destacar la respuesta organizativa de la so- como criterios primordiales los de orden fi-
ciedad encabezada por el Foro de la Sociedad nanciero (EIBENSCHUTZ, 2007).
Civil en Salud (Forosalud), instancias que El BM en los años noventa identificó
han manifestado su rechazo a la reorienta- que uno de los principales obstáculos para
ción de la política sanitaria que los organis- acceder a niveles satisfactorios de salud en
mos internacionales y el Estado peruano han la población, era la pobreza. Por lo tanto,
impuesto. para contrarrestar sus efectos más agudos,
En síntesis, este trabajo propone elaboró estrategias de combate a la pobreza

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014


874 EIBENSCHUTZ, C.; SACO VALDIVIA, A.; TAMEZ GONZÁLEZ, S.; ZAFRA GATICA, X.; RAMÍREZ VILLEGAS, R. M.

y a la protección social1: en Invertir en Salud, social para todos. Así, el principal objeti-
texto publicado en 1993, reconoció que el vo consiste en legitimar el ‘nuevo orden
Estado debía tener un papel importante en social’, o sea, “la profunda reorganización
la implementación de reformas administra- de la sociedad sobre la base del proyecto
tivas para conducir al “buen gobierno” y la neoliberal” (LAURELL, 2010, p. 80).
gobernabilidad2, de modo que la brecha de la Con los lineamientos del BM la discu-
pobreza se estrechara (LAURELL; HERRERA, 2009, p. 2). sión de la política en salud se desplazó
Al inicio del siglo XXI se manifestaron estratégicamente a los temas de finan-
“los efectos negativos de la reforma social ciamiento y particularmente al llamado
conducente al Estado Mínimo, con una ‘aseguramiento universal’, pues con la
rápida redistribución regresiva del ingreso justificación de extender la afiliación a
y un alarmante crecimiento de la pobreza” toda la población, el BM recomendó a los
(LAURELL, 2010, p. 79). gobiernos aceptar dentro de su esquema
En una segunda reforma a la política de salud la protección privada a través
de salud el BM y el Banco Interamericano del mercado de seguros que se articula
(HOLZMANN; JORGENSEN, 1999; HOLZMANN; SHERBURNE con mecanismos públicos, con lo cual
BENZ; TESLIUC, 2003),modificaron la estrategia la atención a la salud se comercializa y
de protección social mediante el concepto abre como mercado para los intereses
de Manejo Social del Riesgo (MSR). De esta privados (LÓPEZ ARELLANO et al., 2013). Por
manera cambiaron la noción de ‘pobreza’ otro lado, esta nueva política sanitaria
por la de ‘vulnerabilidad’. La premisa para desaparece el derecho a la salud como
adoptar estos términos es que todas las garantía de los ciudadanos y responsa-
1 Elconcepto tradicional de personas, hogares y comunidades son vul- bilidad estatal, pues el papel del Estado
protección social refiere
a las medidas del sector nerables a distintas modalidades de riesgo, sólo se limita a las
público para proveer tanto naturales (terremotos, inundaciones
seguridad de ingresos a
las personas. (LAURELL; y enfermedades) como sociales (desempleo, funciones de regulación, a la constitución de
HERRERA, 2009, p. 2). guerras, deterioro ambiental). Para evitar un fondo público que posibilite la compra de
2 La gobernabilidad tiene el riesgo y la vulnerabilidad propusieron servicios al sector privado y la prestación pro-
una relación estrecha brindar instrumentos que contribuyan a pia para la población más pobre a través de
con el ‘buen gobierno’,
y se entiende como el evitar que la población caiga debajo de cierto paquetes limitados. (LÓPEZ ARELLANO et al., 2013,
gobierno que es capaz de umbral de pobreza o se vuelva incapaz de p. 265).
buscar soluciones políticas,
consensuadas y efectivas salir de ella (LAURELL, 2010).
entre la población. Con esta segunda reforma, el con- En la formulación del BM, el asegura-
3 “Losgastos catastróficos cepto de protección social, originado en miento universal se entiende como algo
por motivos de salud el contexto de los derechos humanos, mixto, privado y público, y se ubica gene-
ocurren cuando los gastos
de bolsillo en salud de un quedó anulado. Así fue posible cambiar ralmente dentro de la noción de ‘protección
hogar representan 40% el modelo de protección social y abando- social’ (LAURELL, 2010, p. 80). Según el BM, al
o más de su capacidad
de pago. El nivel de 40% nar la lucha contra la pobreza. Además, incluir múltiples prestadores, el asegura-
puede ser modificado esta nueva estrategia menoscaba el valor miento promueve la calidad y la reducción
según la situación.
específica de cada país.” de la salud como derecho y sólo se ocupa de costos mediante la competencia entre
(XU, 2005, p. 5). del aspecto financiero, donde cuentan ellos, supuesto que hasta el momento no se
4 La cobertura universal los gastos catastróficos 3, concepción que ha visto confirmado.
significa que todas las merma cualquier preocupación por la El BM recomienda a las compañías de
personas tienen acceso a
la atención adecuada de capacidad real de los sistemas de salud seguros que presenten su oferta de servicios
promoción, prevención, y deja de lado los planteamientos que de salud con paquetes de intervenciones de-
rehabilitación y cura.
(LAURELL; HERRERA, abogaban por la cobertura universal 4, el terminadas, estableciendo copagos, coasegu-
2009, p. 4). servicio público y gratuito, y la seguridad ros y cuotas proporcionales a la prestación

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014


Reflexiones sobre el proceso de reforma sanitaria (1993-2013) y participación social en Perú 875

que brinden. De tal forma se genera una ten- Perú con especial atención en las caracterís-
dencia a la privatización y se promueve la ticas del proceso de la Reforma (1993-2013) y
mercantilización de la atención a la salud. Lo la participación del Forosalud.
que da como resultado un modelo fundado
en la injusticia social, al condicionar la aten-
ción a la cobertura particularizada de los Proceso de reforma
costos económicos. sanitaria en Perú
La política que el BM definió en el
sector salud impulsó a varios países de A partir del siglo XXI el desarrollo econó-
Latinoamérica, entre ellos Perú, a hacer mico de Perú experimentó un gran avance.
reformas sanitarias que se caracterizan (BUSTAMANTE; YGLESIAS, 2013), como lo demuestra
por ‘crear’ un Sistema Nacional de Salud la siguiente gráfica (gráfico 1). Sin embargo,
que implica varios tipos de financiamien- el gasto en salud aún sigue siendo menor que
to y la atención diferenciada a varios el avance del PIB y bajo, en comparación con
sectores de la población, con una fuerte otros países del mundo. En 2011 Perú destina-
intervención de las empresas de asegu- ba sólo 4.5% de su PBI al sector salud, mientras
radoras privadas, que definen rangos de que el promedio mundial era de 10.1% del PIB.
cobertura y subrogan el servicio público En cuanto al gasto per capita, Perú destinó 286
al privado. dólares mientras que el promedio en el mundo
A continuación se describe el proceso de era de 951.6 dólares (BANCO MUNDIAL, 2013).

Gráfico 1. Dinamismo de la economia peruana (2004-2013)

2.500.000 7.000

6.000
2.000.000
5.000

1.500.000
4.000
US$

US$

3.000
1.000.000

2.000
500.000
1.000

0 0
2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

PIB (US$)

PIB per cápita (US$)

Fuente: Bustamante, 2013

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014


876 EIBENSCHUTZ, C.; SACO VALDIVIA, A.; TAMEZ GONZÁLEZ, S.; ZAFRA GATICA, X.; RAMÍREZ VILLEGAS, R. M.

Estas mejoras económicas han generado (BUSTAMANTE; YGLESIAS, 2013). Sin embargo, hasta 2013,
expectativas en los peruanos sobre la atención la descentralización no había concluido ya que
a la salud. Han aumentado demandas y exigen- Lima Metropolitana, el ámbito de decisiones
cias, pero al no haber incremento de la infraes- más importante del País, no había entrado en este
tructura de la oferta, se produjo malestar y proceso de cambio, no asumió la conducción de
desconfianza en la población. En ese contexto la salud, no cuenta con una autoridad sanitaria
organizaciones y personas se organizaron alre- metropolitana y, por ende, los hospitales en la
dedor del Forosalud para incidir políticamente capital del País continúan a cargo del Ministerio,
por la garantía del derecho a la salud. mientras que paralelamente la Municipalidad,
con mecanismos de alianza público-privado, ha
creado una Red de Centros de Diagnósticos y
Sistema Nacional de Salud Atención Especializada (que además ahora brin-
Peruano dará servicios de ambulancias), cuyo nombre es
Sistema Metropolitano de Solidaridad (Sisol).
De acuerdo con la normatividad nacional del Este sistema tiene convenio con la Seguridad
Ministerio de Salud (Minsa), una ley creó Social (Essalud) y con el Seguro Integral de Salud
en Perú el Sistema Nacional Coordinado y (SIS) (BUSTAMANTE; YGLESIAS, 2013).
Descentralizado de Salud. La descentralización El Sistema Nacional de Salud del Perú
del sector salud ocurrió en 2004 y mediante (imagen 1) es un sistema segmentado y frag-
ésta se otorgó amplia autonomía a los gobier- mentado (similar a la mayoría de países de
nos regionales para tomar decisiones locales al América Latina), que se divide en dos secto-
margen de una dirección y estrategia nacional res, el público y el privado.

Imagen 1. Sistema de Salud de Perú

Sistema de
salud de Perú

Público Privado

Régimen subsidiado o Régimen contributivo


contributivo indirecto directo Régimen privado

Contribución Cooperación
Gobierno Hogares gubernamenta Gobierno Hogares Empleadores no gubernamental

Ministerio de Salud (Minsa) Seguro Social Seguros


Gobiernos regionales Ministerio de Defensa Ministerio del Interior (Essalud) Privados

Seguro Integral de Salud PNP EPS

Institutos especializados,
hospitales y establecimientos de Hospitales,
Hospitales, centros médicos institutos especializados, Hospitales, clínicas,
primer nivel de atención del de las Fuerzas Armadas consultorios y farmacias Prestadores sin fines de lucro
Minsa y las Direcciones policlínicos y puestos de salud
y Policiales de Essalud con fines de lucro
Regionales de Salud

Trabajadores del
Población pobre Militares y polícias sector formal Población con Población sin
y/o no asegurada y sus dependientes y sus dependientes capacidad de pago capacidad de pago

Fuente: Alcalde-Rabanal, 2011


PNP: Policía Nacional del Perú
EPS: Entidades Prestadoras de Salud

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014


Reflexiones sobre el proceso de reforma sanitaria (1993-2013) y participación social en Perú 877

El sector público se divide en régimen y azucareras; así como el Sisol, que recibe
subsidiado o contributivo indirecto y 70% de sus ingresos de los usuarios en una
régimen contributivo directo. Este último es Asociación Pública Privada5 (APP). Como
el que corresponde a la seguridad social. El prestadores informales están los proveedores
gobierno ofrece servicios de salud a la pobla- de medicina tradicional. El sector privado no
ción no asegurada a cambio del pago de una lucrativo, que es muy pequeño, está clásica-
cuota de recuperación de montos variables, mente representado por un conjunto variado
sujetos a la discrecionalidad de las organi- de asociaciones civiles sin fines de lucro. La
zaciones o a través del SIS. La prestación de mayor parte presta servicios de primer nivel
servicios tanto para el régimen subsidiado y frecuentemente recibe recursos financie-
de población abierta como para la población ros de cooperantes externos, donantes inter-
afiliada al SIS se realiza a través de la red nos, gobierno y hogares (ALCALDE RABANAL; LAZO
de establecimientos del Minsa, hospitales e GONZÁLEZ; NIGENDA, 2011).
institutos especializados que están ubicados El Minsa, cuenta con el SIS como asegu-
en las regiones y en la capital de la república rador público focalizado, mientras que la
(ALCALDE RABANAL; LAZO GONZÁLEZ; NIGENDA, 2011). sanidad de cada instituto armado (Marina de
El sistema de seguridad social en salud Guerra, Ejército y Fuerza Aérea) pertenecen
tiene dos subsistemas: el seguro social con al Ministerio de Defensa, y la sanidad de la
provisión tradicional (Essalud) y la provi- PNP depende del Ministerio del Interior.
sión privada (EPS). Essalud ofrece servicios El Seguro Social de Salud, Essalud, se en-
de salud a la población asalariada y sus fami- cuentra adscrito al Ministerio de Trabajo y
lias en sus propias instalaciones, pero desde Promoción del Empleo (BUSTAMANTE; YGLESIAS,
la promulgación de la Ley de Modernización 2013).
de la Seguridad Social en 1997, el sector
privado le ha vendido servicios personales a Reformas sanitarias (1993-2013)
Essalud a través de las Entidades Prestadoras
de Salud (EPS). Los militares, policías y sus La organización del Sistema Nacional de
familias tienen sus propios subsistemas de Salud de Perú y su política sanitaria res-
salud, las Sanidades de las Fuerzas Armadas ponden a un largo proceso de ajuste estruc-
(FFAA) y la de la Policía Nacional del Perú tural que se viene gestando desde el año de
(PNP). Hasta antes de la reforma, las FFAA y 1993, ya que luego de la guerra interna en
las PNP tenían cobertura integral; reciente- el Perú, el fujimorismo logró aprobar, en
mente incorporarán planes de seguro. Tanto un proceso hasta la fecha cuestionado por
los planes de Essalud y las EPS demuestran posible fraude, una constitución neoliberal,
la intervención del sector privado en el que es actualmente la base del ordenamiento
llamado sistema público del Perú, de forma jurídico del país. Sobre este ordenamiento
similar a otros países latinoamericanos. reposan los pilares que controlan, regulan y
En el sector privado se distinguen el definen los derechos y libertades de los pe-
privado lucrativo y el privado no lucrati- ruanos. En esa constitución, el derecho a la
vo. Forman parte del privado lucrativo las salud no se reconoce como tal; se expresa de
EPS, las aseguradoras privadas, las clínicas la siguiente manera:
5 La forma jurídica de
privadas especializadas y no especializa- asociación público-privada
das, los centros médicos y policlínicos, los Artículo 7. Todos tienen derecho a la protec- aparece en varios países
latinoamericanos como
consultorios médicos y odontológicos, los ción de su salud, la del medio familiar y la de
México, Chile, Colombia
laboratorios, los servicios de diagnóstico por la comunidad así como el deber de contribuir y otros, ha permitido la
entrada de capital privado
imágenes y los establecimientos de salud a su promoción y defensa. La persona inca-
en la producción de
de algunas empresas mineras, petroleras pacitada para velar por sí misma a causa de servicios.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014


878 EIBENSCHUTZ, C.; SACO VALDIVIA, A.; TAMEZ GONZÁLEZ, S.; ZAFRA GATICA, X.; RAMÍREZ VILLEGAS, R. M.

una deficiencia física o mental tiene derecho protección social en salud.


al respeto de su dignidad y a un régimen legal El objetivo político del AUS es ampliar la
de protección, atención, readaptación y segu- cobertura poblacional, así como incrementar
ridad. (PERÚ, 1993, p. 6). de forma progresiva la cantidad de presta-
ciones e intervenciones sanitarias que cubre
En este enunciado se puede observar que el Plan Esencial de Aseguramiento en Salud
en ningún momento el Estado aparece como (Peas), sin embargo hasta el momento no se
garante de la protección social en salud. ha cumplido (BUSTAMANTE; YGLESIAS, 2013).
Al amparo a esta constitución, en 1997 se Con la implementación del AUS se
elaboró la ley General de Salud, ley comple- transformó la Superintendencia de
tamente pro-libre mercado (SACO, 2014). En los Entidades Prestadoras de Salud (Seps)
años noventa, siguiendo lo establecido en la en la Superintendencia Nacional del
ley, el Minsa comenzó a introducir los seguros Aseguramiento en Salud (Sunasa) y se
focalizados. En 1994 implementó el Programa crearon las Instituciones Administradoras
Salud Básica para Todos. Posteriormente, en de Fondos de Aseguramiento en salud (Iafas)
inició 1997 con el Seguro Escolar de Salud y como operadoras de los seguros de salud,
un año después, en 1998, se efectuó el Seguro así como las Instituciones Prestadoras de
Materno Infantil (BUSTAMANTE; YGLESIAS, 2013). Servicios de Salud (Ipress) como operadoras
Ese mismo año se produjo otro hecho sig- de los servicios de salud.
nificativo en la historia de los servicios del Si bien, en los últimos 10 años la cober-
Perú: fue desintegrado el Instituto Peruano tura de aseguramiento aumentó de 40% a
de Seguridad Social (IPSS), que agrupaba 60%, el Sistema de Salud de Perú se encuen-
riesgos laborales, pensiones y salud de los tra fragmentado y segmentado, con muchos
trabajadores, para formar el Seguro Social de organismos públicos y privados que com-
Salud, también conocido como Essalud. Este piten entre sí de forma desregulada para
nuevo esquema de seguridad social incluye ofrecer distintos esquemas de aseguramien-
a las administradoras de fondos privados de to. Por otro lado, el aumento del número de
pensiones y las EPS (SACO, 2014). asegurados ha dado lugar a un desborde de
En el 2002 se lanzó el SIS, que incorpo- la demanda que supera largamente la oferta
ró a los anteriores seguros pro-pobres con (BUSTAMANTE; YGLESIAS, 2013).
paquetes de prestaciones; asimismo brinda
atención no integral de salud a la población La reforma de salud en la gestión del
excluida y dispersa. Este esquema de ase- presidente Ollanta Humala
guramiento es semejante al Seguro Popular
en el caso de México (SACO, 2014; BUSTAMANTE; En 2013 el presidente Ollanta Humala, con el
YGLESIAS, 2013). apoyo de Midori de Habich, ministra de Salud,
Como anteriormente se había mencionado, comenzó a elaborar una propuesta de reforma
en 2004 se inició el proceso de descentraliza- que busca fortalecer el aseguramiento median-
ción del Sistema Nacional de Salud. El Minsa te lo que denominaron la reorganización del
desactivó sus programas de salud pública ver- Seguro Social de Salud y el Fortalecimiento del
ticales y dio lugar a una horizontalidad con su Sistema Nacional de Salud.
Modelo de Atención Integral (Mais). La reforma llamada El Perú Saluda a la
En 2009 se consolida el esquema pro-li- vida: lineamientos y medidas de reforma
bre mercado en el sector salud con la Ley de del sector salud (PERÚ, 2013) tiene como linea-
Aseguramiento Universal en Salud (AUS), la mientos explícitos: la eficacia, la gestión de
cual ha requerido de mayor financiamiento recursos humanos, el subsidio de acuerdo a
y un nuevo marco normativo que extienda la criterios de vulnerabilidad, el aseguramiento

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014


Reflexiones sobre el proceso de reforma sanitaria (1993-2013) y participación social en Perú 879

como medio de formalización y operador responsabilidad individual.


financiero, el fortalecimiento del Fondo El documento de reforma plantea como
Intangible Solidario de Salud (Fissal) como principal meta extender la actual cobertura
financiador de segundo piso, así como el de aseguramiento hasta alcanzar la universa-
incentivo a la producción y la calidad de los lidad, de tal forma que toda la población esté
servicios de salud. comprendida en alguno de los regímenes
En el discurso, la reforma del gobierno se de aseguramiento, ya sea público o privado.
orienta hacia la mejora del estado de salud Esta iniciativa promueve el mercado del ase-
de los residentes en el País guramiento y a la vez, transforma la salud de
la población en un negocio redituable.
reconociendo que la salud es un derecho fun- Para lograr el acceso universal según los
damental y que el Estado garantiza la protec- lineamientos internacionales, la reforma
ción de la salud para todas las personas sin del Perú señala que el Estado debe aliviar
ninguna discriminación en todas las etapas de la carga financiera que representa la aten-
la vida. (PERÚ, 2013, p. 3). ción a la salud de los más pobres, de forma
que todos estén dentro de algún régimen de
Lo cierto, es que la propuesta está pensada aseguramiento. El plan del gobierno es im-
para abrir el mercado de la salud y transfe- plementar una estrategia que movilice 80%
rir la responsabilidad financiera del Estado del gasto público destinado a salud hacia
hacia la corresponsabilidad o responsa- los sistemas de bajo subsidio del Estado, de
bilidad individual, es decir, en realidad el modo que no más del 20% sea mediante fi-
Estado deja de ser el responsable de proveer nanciamiento directo, a través del gasto de
y garantizar el derecho a la salud de todo la bolsillo (PERÚ, 2013). Así, el sector más pobre
población. Ahora cada individuo es respon- queda incorporado al régimen de asegura-
sable de su estado y condición de salud. Esta miento incompleto no integral, mediante
última idea se manifiesta cuando el docu- financiamiento por parte del Estado, mien-
mento de reforma propone profundizar las tras que el resto de la población se sujeta a
acciones de: “promoción de la salud, fomen- las leyes del mercado que hasta el momento
tando estilos de vida y entornos saludables” sigue desregulado.
(PERÚ, 2013, p. 4) además de no considerar a la En definitiva, aún cuando la presente en
integralidad como principio. el discurso relativo a la ‘seguridad social’, la
Según el documento de reforma, la salud reforma de Ollanta Humala refuerza la seg-
está determinada por un conjunto de fac- mentación del Sistema Nacional de Salud
tores que interactúan en diferentes niveles. al promover un sistema de salud para tra-
Estos factores son individuales, biológicos, bajadores y otro para pobres; abandona el
genéticos y de “preferencia de estilos de enfoque integral de la seguridad social, con
vida”. Estos últimos responden cabalmente a todo el complejo de derechos y prestaciones
los lineamientos neoliberales de las organi- como jubilación, maternidad, accidentes de
zaciones internacionales y adquiere gran im- trabajo e incapacidad total o parcial, entre
portancia en la argumentación de la reforma, otros.
ya que la “preferencia de estilos de vida” se Todo el proceso para efectuar la reforma
piensa como elección individual; asuntos fue hecho al vapor. El documento final
tales como el sedentarismo, el patrón ali- de reforma fue presentado con urgencia
menticio, el consumo de alcohol y tabaco. a mediados del 2013 y el 4 de julio ocurrió
Es decir, minimizan los factores sociales al la votación definitiva para aprobarlo y sólo
confundirlos con elecciones del libre albe- siete organismos votaron a favor: el Minsa,
drío y de esta manera, refuerzan la idea de Essalud, FFAA, SIS, Sunasa, Asociación

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014


880 EIBENSCHUTZ, C.; SACO VALDIVIA, A.; TAMEZ GONZÁLEZ, S.; ZAFRA GATICA, X.; RAMÍREZ VILLEGAS, R. M.

de Municipalidades y la Asamblea [de] organizaciones e instituciones comprometidas


Gobiernos Regionales. con la promoción y el ejercicio pleno de la ciu-
Por otra parte, el Colegio Médico, dadanía para garantizar el derecho a la salud
Acuerdo Nacional, Asamblea de Rectores, en el marco de los derechos humanos y contri-
y Trabajadores del sector se abstuvieron, y buir, de esta manera, al desarrollo de Perú con
el único voto singular fue el de la sociedad justicia social y solidaridad (FOROSALUD, 2005).
civil/Forosalud, que votó en contra. Después de diez años de existencia el
En el proceso de votación se ausentaron Forosalud creció en número y aumentó su
tres organismos: el Vice Ministerio Vivienda, influencia conforme se transformó en repre-
el FFPP y el sector privado. Hay que hacer sentante válido y legal para el diálogo con el
la aclaración que si bien el CNS tiene por gobierno. Agrupa a distintas organizaciones so-
ley once componentes, para este proceso se ciales de base en la mayoría de regiones del país;
invitó a cuatro más: SIS, Sunasa, Asamblea organizaciones territoriales, de personas con
Nacional de Gobiernos Regionales (ANGR) y discapacidad, adultos mayores, pacientes, de la
el Foro del Acuerdo Nacional (AN). Tres de diversidad sexual, ambientalistas, de jóvenes y
ellos forman parte del bloque del Estado. mujeres, y mantiene una cada vez más fuerte
Según la relatoría de Alexandro Saco, re- articulación con los colegios profesionales y con
presentante de la sociedad civil (2012-2013) la gran mayoría de gremios como la Federación
en el proceso de elaboración de lineamientos Médica Peruana y sus bases nacionales.
de reforma y actual Coordinador Nacional El Foro de la Sociedad Civil en Salud,
de Forosalud, en el documento final de Forosalud, es un movimiento social que
reforma aparecieron temas que nunca impulsa el ejercicio pleno del derecho a la
fueron presentados en el CNS, como la crea- salud desde la construcción de sistemas
ción de un Vice Ministerio de Salud Pública, universales de salud y el adecuado abordaje
o bien, como la creación de tres instancias: de los determinantes sociales. Promueve la
un programa de organización de la gestión articulación con todos los actores de la so-
hospitalaria; un Organismo Público Ejecutor ciedad que asumen a la salud como derecho
para Lima, y una unidad funcional orgánica humano. Desarrolla la vigilancia ciudadana y
de aseguramiento. el control social de la marcha de los actores
Desde luego, los medios masivos de comu- de la salud y de su gobierno (FOROSALUD, 2014).
nicación del País impulsaron y apoyaron la Forosalud se inscribe en los propósitos de
reforma mediante una campaña de desacre- justicia social, equidad e igualdad de opor-
ditación del sistema de salud, que incitaba tunidades, logro de libertades y capacidades
al espectador a inscribirse en los esquemas para todos y todas las ciudadanas. Ratifica la
privados de aseguramiento. salud como elemento fundamental de la vida
y del desarrollo humano y como un derecho
Participación y respuesta social de la ciudadanía para vivir en sociedad.
(Forosalud) Forosalud analiza y actúa desde enfoques
transversales en los problemas de salud,
El Foro de la Sociedad Civil en Salud se orga- como son los de derechos humanos, desarro-
niza desde el año 2002 como un movimiento llo social, pobreza, género e interculturali-
social de fuerte presencia en Perú que se en- dad (FOROSALUD, 2014).
frenta a la política de salud del Estado y se Como producto de su VI Conferencia
presenta como un movimiento que impulsa Nacional de Salud desarrollada a fines de
el ejercicio pleno del derecho a la salud. 2013, formuló una nueva Declaración de
Forosalud es parte de la corriente universa- Política, la cual aboga por el ejercicio del
lista global. Está conformado por personas, derecho a la salud en el marco de la seguridad

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014


Reflexiones sobre el proceso de reforma sanitaria (1993-2013) y participación social en Perú 881

social como responsabilidad pública estatal; 1. Universalidad. Los alcances del sistema
una nueva estrategia de desarrollo que pro- público son para todos por condición de
mueva la salud y el abordaje de los determi- ciudadanía; no de adscripción a un seguro.
nantes sociales; una nueva agenda sanitaria,
reforma participativa, democrática y des- 2. Integralidad. Todas las personas deben
centralizada con el concurso de la sociedad recibir toda la gama de atenciones necesa-
civil; un sistema universal de salud desde el rias para recuperar su salud
sistema público integrado, descentralizado
y participativo, basado en la igualdad en el 3. Solidaridad. Cada persona aporta en la
acceso y la calidad de los servicios. medida de sus posibilidades y recibe en la
La declaración de política y los diversos medida de sus necesidades.
documentos que Forosalud ha elaborado en
la actual disputa, constituyen un modelo to- Para Forosalud estos principios son la
talmente diferente a la propuesta de reforma única garantía para conducir al derecho a
del Estado peruano. Sus concepciones con la salud y son la base para emprender una
relación a la salud y el servicio médico son nueva reforma estructural del sistema de
distintas e incluso contrapuestas. salud del Perú.
Por principio, Forosalud defiende y sostiene En su discurso el Estado ha utilizado
que la salud es un derecho, es decir, que todos esos mismo principios, sin embargo ha
los ciudadanos deben de tener acceso a una reinterpretado la cobertura como afilia-
atención a la salud de calidad; derecho que no ción, la integralidad como ‘paquetes razo-
debe verse afectado por falta de recursos eco- nables’ de atención y la solidaridad como
nómicos. A partir de este argumento, plantea riesgo financiero. La diferencia entre las
que para el desarrollo de los sistemas de salud propuestas se muestra en la siguiente tabla
son imprescindibles tres premisas básicas: (imagen 2).

Imagen 2. Diferencia entre la propuesta de Forosalud y la reforma del Estado peruano

Forosalud Minsa/MEF Esquema legai y operativo del aus

Se confunde seguro con acceso real, la


Universalidad: los alcances del sistema reforma enfatiza, privilegia y prioriza la
deben ser para todos por condición de Cobertura poblacional: Se basa en la cobertura poblacional equiparándola a
ciudadanía, independientemente de adscripción a algún tipo de seguro; se aseguramiento. La protección se basa en
cualquier consideración. El seguro no es confunde el fin con el medio. la 'titularidad' de un seguro de salud, no en
condición de acceso. la condición de ciudadano o ciudadana del
país.

Se tergiversa la integralidad. La
Integralidad: Se debe acceder a todas las integralidad en la atención de salud es
atenciones necesarias que se requieran Cobertura prestacional: Que población única y total, pero el AUS la define como
para restablecer o mantener la salud. No cuente con acceso a un conjunto razonable paquetes básicos de atención no
planes diferenciados de seguros, paquetes de prestaciones de salud; no hay integrales. Los sistemas públicos SIS y
o similares. Plan único de salud en el SIS y integralidad. Essalud diferencian y discriminan entre
Essalud. peruanos, ya que uno exige demostración
de pobreza y otro planilla laboral.

Solidaridad: Cada quien aporta en la No busca proteger la totalidad del gasto. La


medida de su capacidad y recibe en la cobertura financiera se basa en las
Cobertura prestacional: Que población diferencias de aporte al no reconocer el
medidas de su necesidad, sea en la cuente con acceso a un conjunto razonable
seguridad social vía aporte desde la derecho para todos por igual; se cuenta con
de prestaciones de salud; no hay diferencias sustanciales en los percápitas de
planilla laboral, o en el Seguro Integral de integralidad.
Salud vía los impuestos. los afiliados a Essalud y los del SIS, lo que
deriva en una diferenciación en relación al
derecho.

Fuente: Forosalud, 2013

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014


882 EIBENSCHUTZ, C.; SACO VALDIVIA, A.; TAMEZ GONZÁLEZ, S.; ZAFRA GATICA, X.; RAMÍREZ VILLEGAS, R. M.

Todos son planteamientos en oposición con los representantes de los Comités de


a los que contiene la propuesta de reforma Trabajo (CT) del CNS para afinar la pro-
del Estado, pues señalan que no consideran puesta de reforma desde la sociedad civil
la participación de las regiones ni de los (febrero 2013); el Foro Nacional por la
actores sociales y sanitarios para propiciar Reforma de la Salud (mayo 2013); la reunión
un proceso de cambio. Por otro lado, no con la Mesa de Vigilancia de los Derechos
abordan explícitamente las relaciones de Sexuales y Reproductivos (MVDSSRR),
compromiso que se establecen entre socie- donde participaron diversas organizaciones
dad, Estado y mercado. Por lo tanto el mo- feministas (abril 2013); las Reuniones del
vimiento social sanitario encabezado por Consejo Nacional de Salud ( junio 2013) y la
Forosalud presentó una moción al proceso movilización nacional en las calles, donde
de reforma dónde critica los lineamientos y han participado más de cinco mil personas
metodología del proceso. (febrero 2013).
El movimiento sostiene que para ser legí- También ha realizado foros, mesas y reu-
tima, una reforma debe contar con la apro- niones con actores de la sociedad civil entre
bación en un Congreso Nacional de Salud los que destacan: los pacientes, personas con
donde estén presentes lo diversos actores discapacidad y promotores de salud. El pro-
de la salud, así como los aportantes regio- pósito de estos encuentros ha sido informar
nales. Sólo de esa manera podrán construir sobre el proceso de reforma.
un sistema universal en salud que aborde Simultáneamente el movimiento ha rea-
los determinantes sociales, reconozca las lizado evaluaciones y análisis del contexto
tensiones entre lo público y lo privado en sanitario del País, así como la evaluación
el ejercicio del derecho a la salud; y forta- y balance de cuatro años de vigencia de la
lezca la participación social en todas las ley de AUS, para determinar sus alcances
instancias. respecto al derecho a la salud. Un punto
El objetivo del movimiento es que el tema importante de las acciones que ha em-
de la salud, en su sentido amplio, sea deba- prendido es la socialización de documen-
tido (sin dejar de lado los temas actuales tos e información, ya sea en los diversos
que la coyuntura presenta ni los aportes en foros de discusión, o bien en los medios de
el proceso de gobierno), pues afirman que comunicación.
reducir la reforma de la salud a la oferta de Forosalud ha formulado documentos
productos y servicios desde una conducción tales como Orientaciones para la incidencia
altamente centralizada y poco participativa, política desde la sociedad civil y Reforma
derivaría en una propuesta insuficiente. por una salud universal, integral y digna:
Las acciones que ha emprendido el mo- un asunto de derechos humanos, donde
vimiento van desde foros, talleres, paneles, plantea su postura y los aspectos básicos
mesas de trabajo, debates y movilizaciones de las orientaciones y acciones. Estos docu-
en las calles, hasta reuniones con instancias mentos convocan a todas las personas, ins-
regionales, nacionales e internacionales, tituciones y organizaciones a incorporarse a
así como acuerdos de articulación con los sus demandas. Además ha difundido diver-
gremios de la salud. Dentro de los encuen- sos documentos frente al actual proceso de
tros que ha promovido destacan: el foro La reforma, y una propuesta alternativa, que
sociedad civil ante el proceso de reforma entregó al Minsa.
del sector salud y de fortalecimiento del El movimiento que incluye al Forosalud
sistema de salud (enero 2013); la mesa de y otras organizaciones sociales, busca abrir
trabajo con el Acuerdo de Partidos Políticos la discusión y lucha más allá del CNS, sin
en Salud (APPS) (febrero 2013); el taller descartar la presión sobre las instancias

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014


Reflexiones sobre el proceso de reforma sanitaria (1993-2013) y participación social en Perú 883

formales. Los participantes en el movimien- La movilización de Forosalud es una


to reconocen que el espacio de ‘reforma’ de las más grandes de América Latina, sin
instalado al interior del CNS resulta alta- contar el movimiento sanitario de Brasil de
mente limitado y es muy poco probable que 1988 que desembocó en la reforma sanitaria
de allí emane una propuesta que trate los brasileña, y la creación del Sistema Único
temas clave necesarios en una reforma por el de Salud, que desgraciadamente desde hace
derecho a la salud; entiende, por tanto, que unos años sufre el embate de los planes de
los campos de lucha deben ser ampliados salud privados. México no ha conseguido
con diversas estrategias convocantes. organizar un movimiento social unitario
En ese sentido Forosalud se propone in- que reivindique un sistema único de salud
tensificar coordinaciones, asistir a todos los y seguridad social financiado con dinero
foros que sea necesario, fortalecer sus alian- público, que garantice el derecho a la salud
zas internacionales con los movimientos que sin mediar la capacidad económica de la
defienden la salud (especialmente Colombia población. Han existido múltiples intentos
donde el modelo de aseguramiento llegó en estas últimas décadas y todavía no con-
a su máxima expresión y la hegemonía de tamos con una explicación satisfactoria que
las EPS ha devastado el sistema de salud), vaya más allá de la incompleta organización
y buscan construir un tejido social en salud ciudadana que caracteriza a la población
que sea capaz de revertir lo que, con ciertos mexicana.
vaivenes, se viene fortaleciendo desde los Sobre el caso de Perú, además, pesa el
años noventa: la irresponsabilidad estatal lastre de un sistema de seguridad social
en salud, el seguro para pobres y el ataque (Essalud) que nunca fue tripartita porque se
constante a la seguridad social. Para ello re- trata de un modelo que financian únicamen-
cientemente ha incorporado una política de te trabajadores y empresarios, sin incluir al
comunicación a través de redes sociales que Estado. Además presenta un mosaico de ins-
informa y resalta la gran cantidad de activi- tituciones no integradas que se ocupan de la
dades que realiza el Forosalud a lo largo y salud de diversas poblaciones con diversos
ancho del País. esquemas, lo cual dificulta la creación de un
sistema único, debido a los diversos intere-
ses creados que entran en juego.
Conclusiones El Forosalud en Perú ha tenido éxito en dos
campos importantes. Primero, se ha trans-
La reforma sanitaria en Perú se inscribe formado en un interlocutor válido frente a
dentro de las reformas sanitarias ‘sugeridas’ las autoridades de salud del País, incluyendo
o impuestas por el BM para toda América la iniciativa privada en el CNS, y ha avanzado
Latina. Se caracteriza fundamentalmente significativamente en el afán de conseguir el
por garantizar la introducción de las leyes apoyo de los colegios médicos y profesionales
del libre mercado en la atención médica, del País. En segundo término, mediante muchas
tendencia común en nuestros países, que campañas que incluyen información, investiga-
transforma el derecho a la salud en mercan- ción, sugerencias, denuncias y propuestas, ha
cía. Para ello, se ha desarrollado una serie puesto en evidencia el carácter privatizador y
de cambios en el lenguaje que ocultan el mercantilista de la reforma peruana, y han pre-
proceso de privatización. Ejemplos: ‘asegu- sentado a discusión la propuesta de una verda-
ramiento universal’, ‘mezcla público‑priva- dera reforma sanitaria.
da’, ‘necesidad de que la población invierta Sin embargo, a lo largo de este estudio
en su propia salud’, ‘estilos de vida’ y ‘accio- destaca el hecho de que no se han consegui-
nes focales’. do cambios fundamentales en la política de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014


884 EIBENSCHUTZ, C.; SACO VALDIVIA, A.; TAMEZ GONZÁLEZ, S.; ZAFRA GATICA, X.; RAMÍREZ VILLEGAS, R. M.

salud del Estado peruano. Frente a lo cual las reformas neoliberales en la mayoría de
nos permitimos avanzar la hipótesis de que los gobiernos latinoamericanos.
son necesarios organismos de coordinación ¿Un reto para la Asociación
de todos los países de la región para conse- Latinoamericana de Medicina Social y Salud
guir que retrocedan algunos elementos de Colectiva (Alames)? s

Referências

ALCALDE RABANAL, J. E.; LAZO GONZÁLEZ O.; ______. Acerca de nosotros. Disponible en: <http://www.
NIGENDA, G. Sistema de salud de Perú. Salud Publica forosalud.org.pe/nosotros.html>. Acceso en: 1 ene.
de México, Morelos, v. 53, supl. 2, México, 2011. 2014.

BANCO MUNDIAL (BM). Datos: PIB per cápita (US$ HERNÁNDEZ, M. El derecho a la salud en Colombia:
a precios actuales). Disponible en: <http://datos. obstáculos estructurales para su realización. Rev. Salud
bancomundial.org/indicador/NY.GDP.PCAP.CD>. Pública, Bogotá, v. 2, n. 2, p. 121-141, 2000.
Acceso en: 10 dic. 2013.
HOLZMANN, R.; JORGENSEN, S. Social protection as
BUSTAMANTE, M.; YGLESIAS, A. Perú: social risk management: conceptual underpinnings for
Aseguramiento universal en salud. In: the social protection sector strategy. Washington, D.
ORGANIZACIÓN PANAMERICA DE SALUD (OPS). C.: Banco Mundial, 1999. (Documento de trabajo del SP
Cobertura Universal en Salud: lecciones internacionales 9904).
aprendidas y elementos para su consolidación en
México. OPS/OMS, México, 2013. p. 70-78. HOLZMANN, R.; SHERBURNE-BENZ, L.; TESLIUC,
E. Social risk management: the World Bank’s approach
EIBENSCHUTZ, C. Atención médica, neoliberalismo y to social protection in a globalizing world. Washington,
reforma sanitaria en México. In: MOLINA, R. (Coord.). D. C.: Banco Mundial, 2003.
La seguridad social: retos de hoy. Iztapalapa: UAM-I,
México, 2007. LAURELL, A. C.; HERRERA, J. Aseguramiento
universal en los sistemas de salud de América latina.
FRANCO, S. Entre los negocios y los derechos: lecciones Washington, D. C.: Organización Panamericana de
ético-políticas de 20 años de confrontación por la salud Salud, 2009.
en Colombia. Montevideo: ALAMES, 2012.
LAURELL, A. C. Revisando las políticas y discursos
FOROSALUD. Hacia una reforma sanitaria por el en salud en América Latina. Revista Medicina Social
derecho a la salud. Lima: Forosalud, 2005. [internet], Montevideo, v. 5, n. 1, 2010. Disponible

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014


Reflexiones sobre el proceso de reforma sanitaria (1993-2013) y participación social en Perú 885

en: <http://www.medicinasocial.info/index.php/ watch?v=81D-dwz3qdo&list=UU84rHH-s0F_


medicinasocial/article/view/403/816>. Acceso en: 5 CbjuCq9lFh1A>. Acceso en: 21 ene. 2014.
ene. 2014.
TAMEZ, S.; EIBENSCHUTZ, C. El seguro popular en
LÓPEZ ARELLANO, O.; BLANCO, J. Políticas de México: pieza clave de la inequidad en salud. Rev. Salud
salud en México: la reestructuración neoliberal. In: Pública, Colombia, v. 10, supl. 1, 2008, p.133-145.
JARILLO, E.; GINSBERG, E. (Coord.). Salud Colectiva
en México: temas y desafíos. Buenos Aires: Lugar TETELBOIN, C.; GRANADOS, A. Aspectos de los
Editorial, 2007. sistemas de salud de Chile, Colombia y México.
Xochimilco: UAM-X, 2000.
LÓPEZ-ARELLANO, O. et al. Médica y a la salud desde
la salud colectiva y los derechos. In: ORGANIZACIÓN TORRES, M. El impacto de los acuerdos de libre
PANAMERICA DE SALUD (OPS). Cobertura Universal comercio sobre el derecho a la salud. Rev. Cubana de
en Salud: lecciones internacionales aprendidas y Salud Pública, Ciudad de La Habana, v. 32, n. 3, 2006.
elementos para su consolidación en México. OPS/OMS,
México, 2013. p. 265-275. XU, K. Distribución del gasto en salud y gastos
catastróficos: metodología. Geneva: WHO, 2005.
PERÚ. Consejo Nacional de Salud (CNS). El Perú (Discussion Paper no. 2).
saluda a la vida: lineamientos y medidas de reforma del
sector salud. Lima: CNS, 2013. No prelo.
Recebido para publicação em junho de 2014
Versão final em setembro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
______. Constitución (1993). Constitución Política del
Suporte financeiro: não houve
Perú. 1993. Disponible en:<http://www.tc.gob.pe/
constitucion.pdf>. Acceso en: 1 feb. 2014.

SACO, A. Alames Cebes congreso Abrasco


Alexandro Saco reforma salud en Perú.
Disponible en: <http://www.youtube.com/

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 872-885, OUT-DEZ 2014


886 ensaio | essay

Movilizaciones sociales y profesionales en


España frente a la contrarreforma sanitaria
Social and professional mobilizations in Spain against health
counter–reform

Marciano Sánchez Bayle1, Sergio Fernández Ruiz2

RESUMEN La crisis económica y los gobiernos conservadores en España han producido una
contrarreforma sanitaria con cambios del modelo sanitario, vinculando el derecho a la atención
sanitaria al aseguramiento privado, en la cartera de servicios, copagos generalizados, recortes
presupuestarios y privatizaciones, produciendo un deterioro del sistema sanitario y un
empeoramiento de la valoración de la población. Ha habido un aumento de las movilizaciones
sociales y profesionales, siendo la más conocida la ‘marea blanca’ de Madrid, pero también
en el resto del País. Han demostrado que cuando las movilizaciones son unitarias, masivas y
mantenidas, se puede conseguir paralizar los procesos privatizadores.

PALABRAS CLAVE Reforma de la atención de salud; Defensa de la salud; Derecho a la salud.

ABSTRACT The economic crisis and the conservative governments in Spain have led to a sanitary
counter reform, resulting in major changes in the health system, linking the right to healthcare
with private insurance, changes in the services portfolio, establishment of copayments, budget
cuts and privatizations, resulting in a deterioration in health system and a worsening in
people’s assessment. Social and professional mobilizations have taken place, being the ‘white
tide’ of Madrid the most well-known, although there have been mobilizations throughout the
country. The characteristics of these mobilizations are analyzed; they have shown that when
the mobilization is unitary, massive and persistent, it is possible to paralyze the privatization
process.

KEYWORDS Health care reform; Health advocacy; Right to health.

1 Portavoz de la Federación
de Asociaciones para la
Defensa de la Sanidad
Pública.
fadspu@gmail.com

2Vicepresidente de la
Asociación para la Defensa
de la Sanidad Pública de
Madrid.
nenevk@gmail.com

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140078
Movilizaciones sociales y profesionales en España frente a la contrarreforma sanitaria 887

Introducción colectivos: las personas con ingresos supe-


riores a 100.000 ¤ anuales; los inmigrantes
En España en los tres últimos años se ha no regularizados; los extranjeros con estan-
vivido una conjunción de recortes económi- cias temporales en España; los mayores de
cos, deterioro e intento de desmantelamien- 26 años que no han cotizado a la Seguridad
to del sistema sanitario público y profundos Social; posteriormente, mediante orden mi-
cambios legislativos que cuestionan el nisterial, se les asegura cobertura como ‘sin
modelo de universalización sanitaria en que recursos’ si tienen rentas inferiores a 100.000
se basaba el Sistema Nacional de Salud. Estas ¤ anuales; más recientemente se ha añadido
políticas han generado un gran rechazo la exclusión de quienes vivan durante más de
social y profesional que, en parte, han conse- 90 días fuera de España.
guido paralizar algunas de las iniciativas más En teoría, para cubrir a las personas ex-
lesivas para la sanidad pública. Intentamos cluidas de la cobertura, se establecieron con-
analizar tanto las medidas que propician el venios especiales - con precios prohibitivos
desmantelamiento de la sanidad pública es- para el colectivo más necesitado, es decir los
pañola como la respuesta social y profesional inmigrantes irregulares - que, como era de
que han tenido las mismas. esperar, han tenido escasísimo éxito (ESPAÑA,
2012b).
Los resultados han sido especialmen-
La contrarreforma te graves en el colectivo de inmigrantes no
sanitaria: los efectos de dos regularizados, hay al menos tres muertes
documentadas, y se desconoce el número
años de aplicación del Real real de personas que han visto agravada se-
Decreto Ley 16/2012 riamente su salud. El número de personas
con problemas por estancias prolongadas en
El 24 de abril de 2012 el Boletín Oficial del el exterior, básicamente en busca de trabajo,
Estado (BOE) publicaba el Real Decreto Ley no se conoce. La normativa referente a los
16/2012 (RDL) que irónicamente se denomi- extranjeros con obligación de pago existía
naba “de medidas urgentes para garantizar la previamente al RDL y los ingresos por este
sostenibilidad del Sistema Nacional de Salud concepto no parece que hayan sido rele-
y mejorar la calidad y seguridad de sus pres- vantes en comparación con los que existían
taciones” (ESPAÑA, 2012a). previamente; en todo caso, se deben más a
Entendemos por eso que, dos años después una mayor diligencia de las Comunidades
de su aprobación, es un buen momento para Autónomas (CCAA) en el cobro que a los
hacer un balance de los resultados del mismo. efectos de esta normativa.
En el RDL se planteaban seis aspectos fun- Es importante resaltar que, aunque se ha
damentales, con importantes repercusiones paralizado en sus aplicaciones más lesivas,
sobre la sanidad pública, y que vamos a ana- es evidente que la intencionalidad de este
lizar brevemente a continuación: cambio es avanzar progresivamente hacia
un modelo de seguros, lo que supondría un
Cambio del modelo sanitario aumento del gasto sanitario y de las des-
igualdades en el acceso, tal y como demues-
El RDL plantea un cambio del modelo sani- tra la experiencia internacional (el caso más
tario que, de estar basado en la ciudadanía reciente es el de Holanda) (OKMA; MARMOR;
y tener carácter universal (ESPAÑA, 1986), pasa OBERLANDER, 2011). En este mismo sentido, el
a centrarse en la condición de asegurado. Tribunal Constitucional ya ha avalado en dos
De ello se deriva la exclusión de ciertos casos - recursos a la normativa del País Vasco

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014


888 SÁNCHEZ BAYLE, M.; FERNÁNDEZ RUIZ, S.

y Navarra - la paralización de su aplicación Nuevo medicamentazo


en estos territorios y varias CCAA más han
realizado normativas propias para garanti- Se excluyeron más de 400 medicamentos de
zar, en todo o en parte, la atención sanitaria. la financiación pública, medicamentos cuyo
En conclusión, se ha generado más desigual- coste (precio de venta al público) se incre-
dad, ningún ahorro y problemas muy graves mentó notablemente, en muchos casos más
para ciertos grupos de personas. del 100%, diferencia que pasó a ser sufraga-
da en su totalidad por los pacientes (ESPAÑA,
Revisión de la cartera de servicios 2012c).
El recorte en farmacia es, según el
Se fraccionó la cartera de servicios en tres: Ministerio de Sanidad, el principal éxito del
básica, complementaria y suplementaria, RDL. Claro está que si vamos a los datos con-
quedando solo la primera como gratuita y cretos el panorama es diferente: mientras el
estableciéndose copagos para las otras dos. gasto farmacéutico de recetas ha disminuido
Hasta ahora el proceso de revisión de la en 3.305 millones ¤ desde la entrada en vigor
cartera básica ha avanzado poco pero, como del RDL hasta diciembre de 2013, el gasto
era de esperar se han producido recortes, farmacéutico de los hospitales aumento en
sumado al hecho que, debido al peso de 2.087 millones ¤ en el mismo periodo, y se ha
la ideología ultra católica, se han dejando constatado un aumento del gasto en recetas
fuera de la fecundación in vitro en el Sistema mantenido en los 12 últimos meses respecto
Nacional de Salud (SNS) a las parejas gays y al mismo periodo del año anterior. Por otro
a las mujeres solteras. De nuevo, nulos re- lado, el ahorro del gasto farmacéutico es
sultados económicos y discriminación con en un 60% debido a los medicamentos no
motivaciones ideológicas (FERNÁNDEZ RUIZ, 2012). financiados y en un 40% son aportaciones
de los ciudadanos, es decir, se ha trasladado
Copagos generalizados: farmacia, parte del gasto farmacéutico público al gasto
transporte, dietas, prótesis y órtesis privado.
Finalmente, existen encuestas que señalan
Este constituye uno de los aspectos que más que un porcentaje elevado de los pensionis-
ha avanzado. El nuevo copago en farma- tas (entre un 16 y un 20%) no retiran los me-
cia se instauró rápidamente (aumento del dicamentos que se les han prescrito. Como
porcentaje a pagar por los activos y esta- es habitual, el Ministerio de Sanidad mira
blecimiento del 10% a los pensionistas, con para otro lado y no ha hecho ningún tipo de
topes según tramos de ingresos). Los otros seguimiento, ni de estos casos, ni de los posi-
se desarrollaron con menor rapidez: el de bles problemas sanitarios resultantes de este
órtesis, prótesis y dietas tardó más mien- no consumo de medicamentos prescritos. Si
tras que el copago del transporte sanitario tenemos en cuenta la literatura científica pu-
se paralizó en su aplicación (sigue estando blicada al respecto, es probable que se haya
vigente según el BOE, después de que el producido un empeoramiento de las enfer-
Informe del Consejo de Estado lo desacon- medades de este grupo de personas y una
sejara. Una situación aún más curiosa es sobreutilización de otros recursos sanitarios
la del copago de los medicamentos que se (ingresos, etc.).
dispensaban en las farmacias hospitala-
rias, existiendo una normativa de octubre Recortes presupuestarios
de 2013 que obliga a cobrarlo a todas las
CCAA. Sin embargo, hasta la fecha ninguna Los recortes presupuestarios no estaban
lo ha aplicado (FERNÁNDEZ RUIZ, 2012). directamente incluidos en el RDL a pesar

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014


Movilizaciones sociales y profesionales en España frente a la contrarreforma sanitaria 889

de que la justificación del mismo fue un su- vez más que el Ministerio de Sanidad recorta
puesto exceso de gasto sanitario ‘insosteni- a los indefensos, pero no a los más poderosos.
ble’. No obstante, se han producido drásticos
recortes presupuestarios coincidiendo con Privatizaciones
su aplicación. El gasto sanitario público pasó
de 70.464 millones ¤ en 2009 (liquidación) a Paralelamente han continuado las privatiza-
67.626 millones en 2011 (liquidado) y en 2014 ciones de los servicios sanitarios públicos.
los presupuesto sanitarios públicos de las Privatizaciones que han sido distintas en
diferentes administraciones suman 57.632 intensidad según las CCAA: más intensas
millones ¤, es decir 12.832 millones ¤ menos en Cataluña, Madrid, Valencia, Baleares,
que el año 2009. Galicia, La Rioja y Castilla y León, pero que
Los resultados de estos recortes han sido han existido en menor medida en todas las
cierre de camas hospitalarias, reducciones autonomías.
de personal (55.000 trabajadores menos en Cinco hechos relevantes caracterizan este
la sanidad pública en España en 2014 res- proceso. El primero refiere a la utilización de
pecto a 2009), aumento de las demoras en una multitud de formulas concretas, como
atención primaria, incremento de las listas las concesiones administrativas, Iniciativas
de espera quirúrgicas y de consultas de es- de Financiación Privada (PFI), Entidades
pecialistas y pruebas diagnósticas, satura- de Base Asociativas (EBAs), conciertos, sub-
ciones en las urgencias con incremento de contrataciones, etc., sin que se haya produ-
las personas que esperan varios días para su cido ninguna evaluación de las mismas; el
ingreso, cierres de puntos de atención con- segundo es el sobrecoste que significa este
tinuada, de horarios de tarde en centros de proceso privatizador, (en torno a 6-8 veces
salud, de actividad de tarde en los hospitales, más de coste, y con sistemas de actualiza-
y un larguísimo etcétera. ciones automáticas de los mismos, lo que
los hace cada vez más gravosos); el tercero
Agencia de compras es la opacidad de todos los procesos y de los
datos de la actividad de los centros priva-
La puesta en funcionamiento de un sistema tizados; el cuarto es la inexistencia de evi-
centralizado de compras fue uno de los ‘ar- dencia que demuestre que la privatización
gumentos’ utilizados para el marketing del mejora la eficiencia del sistema sanitario
RDL, pero al final quedó recogido en el texto (ver el último Informe del grupo de exper-
oficial bajo la forma ‘Se fomentará la compra tos de la Comisión Europea, EXPH, 2014);
conjunta y centralizada’ (Adicional cuarta) finalmente, el quinto hecho refiere al gran
lo cual, como ya señalamos en su momento, rechazo social y profesional que se ha pro-
no garantizaba su aplicación. Por supuesto, ducido contra las privatizaciones, ralenti-
la compra centralizada del SNS permitiría zando el proceso privatizador y provocando
gozar de los beneficios de las economías la búsqueda de fórmulas menos visibles ante
de escala y ha sido una reivindicación de la la opinión pública (derivaciones de activida-
Federación de Asociaciones para la Defensa des concretas, implantación de ‘unidades de
de la Sanidad Pública (FADSP) desde hace gestión clínica’, etc.) (SÁNCHEZ BAYLE, 2013).
tiempo. Hasta ahora, tanto ruido se ha
quedado limitado a la compra conjunta de
vacunas por parte de algunas CCAA (lo que Algunos resultados
ya se había hecho antes del RDL) y poco más,
de manera que los supuestos ahorros se han Aunque, como ya se ha señalado, la opacidad
quedado en casi nada, demostrándose una es la norma y no se ha realizado ninguna

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014


890 SÁNCHEZ BAYLE, M.; FERNÁNDEZ RUIZ, S.

evaluación seria por parte del Ministerio de diagnósticas y en citas en atención primaria;
Sanidad, tenemos algunos datos que son re-
levantes y que merece la pena resaltar: La opinión de la ciudadanía sobre el SNS
ha empeorado de manera que ha bajado
El cambio de modelo sanitario ha tenido la puntuación que le dan los ciudadanos,
una repercusión muy negativa sobre la incrementándose el número de personas
salud del colectivo de inmigrantes no re- que piensa que ha empeorado la aten-
gularizados, produciendo algunas muertes ción primaria, la atención especializada y
y muchos casos de desatención y empeo- las listas de espera (datos del Barómetro
ramiento de la salud de miembros de este Sanitario de 2013). La sanidad ha pasado
colectivo. Aparte de las consideraciones a ser el 5º problema del País y el 4º que
humanitarias y de la posible vulneración más afecta personalmente a los ciudada-
de derechos humanos básicos, no se ha nos (11,7%) según la última encuesta del
logrado un ahorro significativo y sí se han Centro de Investigaciones Sciológicas
producido serios riesgos para la salud (CIS) de junio de 2014 (España 2014; CIS 2014).
de este colectivo en concreto y de toda la La última encuesta conocida (TOHARIA, 2014)
población; señala que el porcentaje de ciudadanos
que evalúan de forma positiva la contri-
Todavía están por verse las repercusiones bución que el funcionamiento del sistema
que tendrá alguna otra exclusión, como por sanitario (organización) hace al bienestar
ejemplo la de las personas con estancias público bajó del 73 al 49% desde julio de
superiores a 90 días en el extranjero. Sin 2013 a julio de 2014, mientras que en el
embargo, tampoco existe ningún mecanis- mismo periodo las evaluaciones positivas
mo en marcha para evaluar este fenómeno; sobre los médicos de la sanidad pública
pasaron del 92 al 85% (los segundos más
Las modificaciones en la cartera de servi- valorados en la encuesta), evidenciando
cios tiene un impacto económico irrelevan- que el suspenso se da a las administracio-
te y, en cambio, plantea serios problemas de nes sanitarias y sus políticas de recortes, y
discriminación por motivos ideológicos; no a los profesionales;

Las medidas sobre la prestación farma- La mortalidad se incrementó en 2012 (ya lo


céutica han trasladado gasto sanitario había hecho en 2011), y la tasa de suicidios
público a gasto privado (de los bolsillos de aumentó más de un 11% en 2012 (no existen
los pacientes) generando desigualdades datos más recientes) (CIS, 2014);
y creando entre los pensionistas grupos
significativos que no retiran los medica- Incluso a nivel internacional existen varios
mentos prescritos, con los resultados que informes que nos alertan de los graves pro-
tendrá sobre su salud. Se ha señalado que blemas que estas medidas pueden producir
hasta un 14,76% no retiran medicamentos sobre el sistema sanitario y la salud (OECD,
prescritos por motivos económicos, por- 2013).
centaje que aumentaría en el caso de los
pensionistas (20,39%) y en el de los parados
(25,92%) (FADSP, 2014); Las movilizaciones sociales
y profesionales
Se ha producido un aumento muy impor-
tante de las listas de espera, tanto quirúr- Casi en forma simultánea a que se produje-
gicas como en consultas externas, pruebas ron las primeras iniciativas privatizadoras

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014


Movilizaciones sociales y profesionales en España frente a la contrarreforma sanitaria 891

comenzó a plantearse una importante res- Galicia


puesta social y profesional de rechazo de
las mismas, aunque es cierto que éstas han SOS Sanidade Pública ha sido la denomina-
ido creciendo en importancia en los últimos ción que acabó adoptando el movimiento en
tiempos, también porque es ahora cuando Galicia. Existen plataformas en multitud de
se han producido las agresiones más puntos, en algunos casos localidades concre-
importantes. tas y en otros en áreas sanitarias (A Coruña,
La primera oposición contra la privatiza- Ferrol, Vigo, Ourense, Lugo, Monforte, etc.)
ción surge con la aparición del Informe de En algunos casos las plataformas de área
la llamada Comisión Abril. De hecho, la res- agrupan a su vez varias plataformas locales:
puesta generalizada en contra de sus conclu- la Plataforma de Vigo coordina plataformas
siones paralizó su aplicación, que luego se (además de Vigo) de Cangas, Bueu, Valmiñor,
fue planteando de forma paulatina y silente Nigran, Redondela y Pazos de Borbén.
a lo largo de los años. Las plataformas tienen composición va-
El siguiente momento de desarrollo de riable según cada sitio concreto. De manera
movilizaciones organizadas contra la pri- general incluyen grupos ciudadanos (asocia-
vatización se produjo en Galicia contra la ciones vecinales, de pacientes, organizacio-
implantación de las fundaciones sanitarias nes de consumidores, etc.); organizaciones
y la empresa MEDTEC (Instituto Gallego de no gubernamentales que trabajan con grupos
Medicina Técnica). En esa lucha nacieron marginados y excluidos sociales; sindicatos,
las Plataformas en Defensa de la Sanidad muchas veces de clase, como Unión General
Pública, entidades de carácter unitario que de Trabajadores (UGT), Comisiones Obreras
agrupaban a fuerzas políticas, sociales, ve- (CCOO), Confederación Intersindical
cinales y profesionales alrededor de un Galega, pero también sindicatos sanitarios
problema concreto, y que luego pasarían a como el de enfermería (SATSE), o el de
constituir SOS Sanidade Pública (SÁNCHEZ auxiliares (SAE); organizaciones profesio-
BAYLE, 2001). nales (Asociación Galega para a Defensa
Posteriormente y con la llegada del da Sanidade Pública, Sociedad Gallega de
Partido Popular (PP) al gobierno central, Medicina de Familia, estudiantes de medi-
el movimiento de las plataformas se ex- cina, etc.); organizaciones políticas (los par-
tendió por todo el País llegando a existir tidos de izquierda y nacionalistas) e incluso
una Plataforma Estatal que tuvo una corta algunos ayuntamientos. Aunque esta es la
vida. Estas plataformas intervinieron ac- composición más habitual, existen casos
tivamente en temas como el ‘medicamen- en que la plataforma está formada por ciu-
tazo’ (exclusión de medicamentos de la dadanos a título personal (aunque, como es
financiación pública), contra los intentos lógico, mayoritariamente se trata de perso-
de convertir los hospitales públicos en nas que ya pertenecen a algunas de las orga-
fundaciones (de hecho, no se ha producido nizaciones mencionadas).
todavía ningún caso a pesar de que las leyes En Galicia la actividad de las plataformas
que lo permiten se aprobaron en 1996-1997 ha sido muy importante, realizando nume-
y 1998) y en multitud de problemas concre- rosas manifestaciones, concentraciones y
tos. El movimiento contra las privatizacio- todo tipo de movilizaciones y fomentando
nes y las plataformas han tenido una vida dos iniciativas legislativas populares en el
muy irregular y distinta según las CCAA. parlamente regional. Entre sus conquistas se
En el presente trabajo nos centraremos en destaca el haber conseguido ser la primera
tres casos concretos: Galicia, Cataluña y comunidad autónoma en la que se produjo
Madrid. una reversión del proceso privatizador con

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014


892 SÁNCHEZ BAYLE, M.; FERNÁNDEZ RUIZ, S.

la integración de las fundaciones sanitarias cristalizado en una masiva manifestación en


en la red pública (recientemente también se Barcelona convocada por los sindicatos.
ha producido en Asturias con la única funda- Asimismo, en junio y julio de 2014 se
ción existente en esta comunidad). llevó a cabo un encierro de los pacientes del
hospital de Bellvitge para evitar los cierres
Cataluña de camas previstos por la Generalitat, de-
nunciando los recortes que sufre la sanidad
La victoria de Convergencia i Unió (CIU) pública en Cataluña desde 2009 y que no
en las últimas elecciones catalanas supuso paran de ampliarse (PÉREZ-OLIVA, 2014).
la puesta en práctica de un recorte del 10% Una característica de las movilizaciones
en los presupuestos sanitarios. Como conse- en Cataluña es la importante atomización
cuencia, se abandonó la construcción de los organizativa, ubicándose por un lado los
hospitales que estaban previstos, se inició sindicatos y por el otro numerosas entidades
una política de no sustituir bajas y ausencias, de ámbito ciudadano y profesional, lo que
y se cerraron centros de salud, lo que derivó les ha restado cierta fuerza y operatividad.
en un incremento importante de las listas Otro elemento característico de estas mo-
de espera. Así, los profesionales catalanes vilizaciones son las ocupaciones de centros
llevan 18 meses con conflictos de baja inten- sanitarios amenazados de cierres, además de
sidad pero constantes. la campaña de desobediencia civil sobre la
Los cierres anunciados se concentra- tasa del euro por receta, y la iniciativa penal
ron mayoritariamente en la provincia de popular que pretende el enjuiciamiento de
Barcelona, pero afectaron a todas las provin- los responsables sanitarios catalanes.
cias catalanas. Se clausuraron 33 centros en
horario nocturno (generalmente de las diez Madrid
de la noche a las ocho de la mañana), otros
13 durante el mediodía (de las doce a las tres La Asamblea de Madrid aprobó el día 20
de la tarde) y cerraron 11 durante el fin de los presupuestos para 2013 y el 27 la Ley de
semana. La respuesta fue mayoritariamente Acompañamiento de los mismos. En ambos
ciudadana, produciéndose protestas y ma- se diseña el modelo de privatización presen-
nifestaciones y, en varios casos, encierros de tado por el Gobierno del PP madrileño. Y lo
los vecinos en los centros sanitarios. hizo a pesar de la masiva y continuada opo-
También en las principales ciudades ca- sición de profesionales y ciudadanos, y sin
talanas se han producido manifestaciones variar en nada el proyecto inicial que fue el
de batas blancas para protestar contra los que generó la contestación social y profesio-
recortes. No solo porque los profesionales nal (OBSERVATORIO MADRILEÑO SALUD, 2012).
del sector consideren que los recortes son El conflicto sanitario ha sido conocido
insostenibles, sino porque la reducción de como ‘Marea Blanca’ (el nombre de marea
los conciertos sanitarios está llevando a las está tomado de las movilizaciones contra la
entidades que gestionan hospitales y ambu- privatización de la educación ‘marea verde’
latorios a reducir plantillas e incluso plan- por el color de las camisetas que llevaban
tear Expedientes de Regulación de Empleo quienes participaron en ellas, y el blanco se
(ERE) a los trabajadores. debe al color de las batas de los profesionales
Las movilizaciones perdieron actividad sanitarios) y ha tenido una repercusión muy
durante 2012, sin llegar a desaparecer, pero por encima de las más optimistas esperanzas
en 2013 el anuncio de una nueva tanda de de quienes lo iniciaron. A una huelga sanita-
recortes ha reactivado el conflicto, parti- ria de amplitud variable que se ha producido
cularmente del personal sanitario, que ha en dos fases, antes y después de 2013, se unió

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014


Movilizaciones sociales y profesionales en España frente a la contrarreforma sanitaria 893

una movilización de los profesionales sani- sectorial, en su extensión al conjunto de la


tarios expresada en acciones de muy diversa sanidad madrileña han surgido muchos pro-
intensidad (encierros, manifestaciones, con- tagonistas con intereses muy variados, en
centraciones, vigilias, etc.), un apoyo muy ocasiones antagónicos, siendo el más conoci-
sustancial de la ciudadanía (se han recogido do, por su amplio protagonismo mediático, la
ya más de dos millones de firmas contra la Asociación de Facultativos Especialistas de
privatización durante tres meses) y una con- Madrid (Afem), un sindicato de facultativos,
sulta popular con amplio respaldo (930.000 de reciente creación (año 2006) que carece
votos en cinco días) sin el cual el conflicto de representación en las últimas elecciones
no habría podido mantenerse tanto tiempo sindicales. Sus planteamientos, bastante cor-
en cantidad y en calidad. Lo más importan- porativos, han conseguido conectar con un
te es que se ha ganado la hegemonía ante la amplio sector de los médicos madrileños de
opinión pública, por lo que hoy día práctica- hospitales, y ha tenido dos méritos indiscu-
mente nadie se atreve a discutir, salvo algún tibles: movilizar a los médicos, incluso a los
que otro escritor a sueldo, los efectos nega- de ideología conservadora y a los desencan-
tivos de las propuestas privatizadoras del tados, y realizar acciones muy imaginativas
gobierno del PP madrileño. de gran impacto mediático. A su vez ha incu-
La privatización sanitaria no ha comenza- rrido también en dos errores importantes: su
do ahora en Madrid, sino que es una política afán de protagonismo, que ha dificultado las
que viene avanzando desde que el gobierno actuaciones comunes, y su empecinamiento
de la Comunidad asumió las transferencias en mantener una huelga que llamaron inde-
sanitarias, mediante una multitud de formu- finida - en realidad paros de cuatro días a
las diversas (planes para las listas de espera la semana - que ha producido agotamiento
quirúrgicas, hospitales PFI, concesiones económico, descuelgue del sector menos
administrativas, etc.) ¿Qué ha cambiado? convencido, menos militante, o simplemen-
Básicamente tres cuestiones: un proceso que te con más problemas de dinero y que ha
se había llevado de manera paulatina con abierto algunas brechas y enfrentamientos
pasos pequeños, sufrió una fuerte acelera- entre quienes abandonaban la huelga y los
ción y se plantea un órdago que cambia sus- que la continuaban.
tancialmente la situación; la segunda es que Aunque no han salido en los medios, o
afecta por primera vez de manera directa al lo han hecho menos, la realidad es que ha
personal sanitario de los centros, quienes habido también un sinfín de organizaciones y
van a sufrir despidos y recortes de plantilla organismos que han tenido un protagonismo
muy importantes e incluso, como en el caso importante en las movilizaciones y las han
del hospital de La Princesa, va a ver cercena- hecho posibles. La primera de estas organi-
do de manera definitiva su futuro desarrollo zaciones es por supuesto la mesa sectorial
profesional; por último, ataca a la Atención formada por los sindicatos CCOO, SATSE,
Primaria, hasta ahora dejada de lado en los CSIT (Confederación Independiente de
planes privatizadores del PP madrileño. Por Trabajadores), AMYTS (Asociación de
supuesto, a ello hay que sumar los recortes Médicos y Titulados Superiores), y UGT,
económicos, los recortes de plantillas, los que ha sido la iniciadora del conflicto. Luego
recortes presupuestarios, etc. El Plan de figuran las plataformas de los hospitales, de
Lasquetty ha sido la gota que colmaba un composición y fuerza variable dependien-
vaso ya de por si a punto de rebosar. do de los centros, la mesa por la sanidad, la
Aunque el detonante del conflicto fue el coordinadora de directores de los centros
encierro del Hospital de La Princesa, decidi- de salud, plataformas ciudadanas, y un largo
do y liderado por los sindicatos de la mesa etcétera de organizaciones y organismos que

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014


894 SÁNCHEZ BAYLE, M.; FERNÁNDEZ RUIZ, S.

han intentado vertebrar, con éxito variable, La diversidad de Centros de Salud (CS),
la respuesta social y profesional. su dispersión y tamaño, son factores que in-
Una de las novedades de este conflicto ha fluyen y dificultan a la hora de que sus ac-
sido, con mucho, la amplia movilización de ciones y propuestas alcancen la repercusión
los profesionales sanitarios, especialmente mediática y el impacto en la población en la
de los médicos, inédita en la sanidad españo- medida que lo hicieron las acciones hospita-
la de los últimos 30 años. ¿Por qué ha sido larias. Sin embargo, la repercusión en la zona
posible? En primer lugar, ya se ha señalado básica en la que cada centro está ubicado ha
que la Afem ha conseguido movilizar a los sido muy importante, emotiva, solidaria y
sectores más conservadores, pero además, ha ido creciendo junto con la extensión del
tal y como estaba planteado el conflicto, los conflicto. Es un hito sin precedentes ver a
sectores progresistas han evitado el enfren- los pacientes conocidos de años por los pro-
tamiento ideológico en aras al mantenimien- fesionales, firmar, manifestarse, encerrarse
to de la movilización. De ahí su éxito, ya que junto con sus médicos, sus enfermeras y los
en el sector profesional no ha habido ninguna administrativos, aquellas personas que los
voz discordante y todo el mundo ha entendi- atienden todos los días desde hace años. La
do, con razón o sin ella - y esto solo lo sabre- fidelidad al CS y a la sanidad pública se ha
mos cuando pase un tiempo suficiente -, que puesto de manifiesto en este contexto.
era más importante la fuerza de las movili- El tratamiento que los diversos medios
zaciones que su claridad ideológica, que en han dado al conflicto ha sido y es importan-
todo caso se solventaría una vez finalizado el te. Dependiendo de los medios, sean estos la
mismo. Luego, hay un rechazo profesional al prensa escrita, radio o televisión, la informa-
modelo empresarial de sanidad que preten- ción ha sido muy distinta. A medida que el
de imponer el PP, debido a que este supone, conflicto se extendía y la Marea Blanca se
también, el fin definitivo del ejercicio pro- acercaba a la capital, la presencia en y de los
fesional autónomo e independiente, uno de medios ha ido en aumento.
los mitos más arraigados en el imaginario Nunca la sanidad pública había concitado
colectivo de los médicos españoles, a lo que tanto interés social, y tal hecho ha permitido
se une la conciencia de que la privatización, escuchar entrevistas, debates, opiniones, no
especialmente en un momento de crisis eco- sólo de expertos sanitarios, sino también de
nómica profunda, significaba una pérdida de escritores, científicos, profesores, que han
empleo y de autonomía profesional. Por su- ahondado en el problema, poniendo de ma-
puesto, contaba también el rechazo a la pri- nifiesto las consecuencias negativas que para
vatización y la defensa de la sanidad pública todos puede tener el desmantelamiento del
y del modelo sanitario actual, aunque con Estado de Bienestar, conseguido con tanto
muchas contradicciones. esfuerzo.
La desaparición de las áreas sanitarias, Por todo ello, es llamativo, incomprensi-
en octubre del 2010, y la creación del Área ble y demuestra una gran ignorancia, limitar
Única, fueron elementos claves, decisivos, de forma exclusiva y excluyente, la atención
en el proceso privatizador de los centros de sanitaria y el buen nombre de la sanidad
salud que ahora se anuncia. Los intentos de pública de este País en los médicos.
denuncia, de advertencia, de lucha, no con- No deberíamos olvidar que la calidad
siguieron desvelar los objetivos ocultos de de sanidad pública, tan ensalzada en estos
esa decisión y que hoy conocemos. En este meses, está sustentada por una mayoría
sentido, podría afirmarse que el debate y el silenciosa de trabajadores sanitarios y
conflicto tuvieron poca repercusión social, no sanitarios, que hacen posible que el
profesional y mediática (SÁNCHEZ BAYLE, 2006). sistema funcione, aceptablemente, aunque

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014


Movilizaciones sociales y profesionales en España frente a la contrarreforma sanitaria 895

mejorable. Detrás de médicos de renombre, salud, los ciudadanos y los responsables de


de prestigio, hay equipos humanos multipro- la Administración Sanitaria, los encargados
fesionales que trabajan silenciosamente y de de gestionar conjuntamente el sistema sa-
forma eficaz, garantizando la calidad de la nitario público, y que es esta conjunción de
atención sanitaria. planteamientos la única capaz de garantizar
Cabe señalar, aunque brevemente, que el el carácter de servicio público de calidad de
uso de las redes sociales le ha dado al con- la sanidad pública.
flicto una inmediatez en la noticia, una crea- El conflicto se ha desarrollado con
tividad y viveza nunca vista. Y no cabe duda una multiplicidad de agentes que han ido
que parte del espíritu del 15M (movimiento tomando iniciativas de índole diverso, y a
de protesta ciudadana que lleva el nombre veces contradictorias. Hasta ahora las cosas
del día en que se inició: 15 de mayo) se ha han ido funcionando de una manera más
filtrado en las mareas, tiñendo de color el o menos razonable, porque este espíritu
blanco serio, grave del sector. guerrillero ha sabido encontrar huecos de
El mantenimiento del conflicto durante colaboración en la práctica. En este caso,
15 meses consiguió que el 27 de enero de tampoco se ha logrado una unidad organiza-
2014 se anunciara la dimisión del consejero tiva, aunque existe una Mesa por la Sanidad
de sanidad madrileño y la paralización de Pública que aglutina a los sindicatos con re-
las privatizaciones más visibles, los 6 hospi- presentación en la mesa sectorial, a las aso-
tales y 27 centros de salud, lo que significó ciaciones y plataformas ciudadanas, al 15M
una gran victoria. Por otro lado, el cambio de y a la ADSPM. Siguen existiendo también
consejero no ha supuesto la paralización de otras entidades con ánimo de coordinación,
las maniobras privatizadoras, que ahora se en Atención Primaria, sindicatos (Afem,
centran en un aumento de las derivaciones etc.), plataformas fundamentalmente de
de actividades sanitarias hacia los centros profesionales con alguna presencia ciudada-
privados y en continuar el deterioro de los na y el Observatorio Madrileño de Salud, con
centros públicos. presencia ciudadana, sindical, profesional y
La sanidad pública es propiedad del con- con la participación de un numeroso grupo
junto de la ciudadanía, no de los profesio- de ayuntamientos, que intentan dinamizar el
nales sanitarios, ni de los médicos, ni de los conflicto, como es lógico con problemas pero
políticos de turno. Pertenece a la población que de momento no han sido sustanciales.
que es quien la ha hecho posible y la man- Estos as así debido al hecho de que todo el
tiene con sus impuestos. Los profesionales mundo, o casi todo, ha procurado evitar rup-
de la salud deben de ser consultados para turas y/o colisiones públicas que inevitable-
encontrar soluciones ante los problemas, y mente debilitarían las movilizaciones.
también el conjunto de la población y las en- Es obvio que la política privatizadora no
tidades sociales que les representan. La po- va a desaparecer y tomará otras vías, quizás
blación madrileña con su masiva y generosa más lentas y menos evidentes, pero no
participación en el conflicto parece haberlo menos lesivas, porque no debe olvidarse que
entendido, por lo que su posición debería ser la política del PP está en el desmantelamien-
tenida en cuenta a la hora de buscar solucio- to y privatización de la sanidad pública y no
nes y alternativas. van a cejar en el empeño. Por estos motivos
Por supuesto los profesionales de la se vuelve necesario no bajar la guardia y
salud deben tener un papel de asesoramien- continuar las movilizaciones, por supuesto
to técnico de los proyectos y propuestas. adaptándolas a la realidad de cada momento
Desde la FADSP venimos reclamando hace concreto.
años que deben ser los profesionales de la Aunque hemos detallado más la situación

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014


896 SÁNCHEZ BAYLE, M.; FERNÁNDEZ RUIZ, S.

en estas tres CCAA, la realidad es que existen y deteriorándose la calidad.


movilizaciones contra las privatizaciones La retirada o no aplicación de algunas
y/o los recortes en la mayoría de las CCAA medidas, por ejemplo, los copagos sobre
adoptando fórmulas y estructuras muy transporte o los medicamentos dispensados
diversas y con muchas diferencias en su en la farmacia hospitalaria, son el efecto del
coordinación, extensión y actividad. Basta amplio rechazo social que han producido las
con mencionar brevemente la situación de mismas y una evidencia más de que las mo-
Castilla la Mancha con extensas movilizacio- vilizaciones, si son unitarias, masivas y sos-
nes de ámbito local y/o comarcal (Cuenca, tenidas en el tiempo, consiguen resultados.
Villarrobledo, Almansa, Tembleque, Malpica, Si el Ministerio de Sanidad y el Gobierno
etc.) donde se ha conseguido por ejemplo el fueran autoridades responsables derogarían
éxito de obligar a la Junta a reabrir Puntos de este RD Ley que solo ha producido proble-
Atención Continuada previamente cerrados, mas sin aportar soluciones, porque es evi-
y las recientes declaraciones de Cospedal dente que no ha mejorado la calidad ni la
diciendo que no se van a privatizar los hospi- seguridad de las prestaciones del Sistema
tales tal y como prometió; o de Aragón (pla- Nacional de Salud. Como también es una
taformas de Zaragoza, Huesca y Alcañiz), evidencia que carecen de responsabilidad y
Asturias (plataformas de Asturias y Navia), de interés por la salud de la población, solo
La Rioja, Navarra, Cantabria, Castilla y León queda la opción de que se vean obligados
(plataformas en Salamanca, Valladolid, a hacerlo ante la presión política, social y
Segovia, área rural, etc.), Valencia, Baleares, profesional.
y Canarias (Foro Social Canario por la Salud Las movilizaciones sanitarias han tenido
y la Sanidad Pública) que ha presentado una los siguientes resultados:
iniciativa legislativa popular; y un largo etcé-
tera de plataformas y movimientos sociales Se ha logrado crear un estadio en la opinión
de composición y actuación muy variable, pública y profesional en contra de la pri-
a los que hay que unir Foros y Cumbres vatización del sistema y del cambio del
Sociales, 15M, etc. (FERNÁNDEZ RUIZ, 2013; SÁNCHEZ modelo;
BAYLE, 2013)
Se ha colocado la privatización y desmante-
lamiento del sistema sanitario en la agenda
Conclusiones de las organizaciones políticas y en las ins-
tituciones representativas como las Cortes
El balance de los dos años transcurridos Españolas, Parlamentos Autonómicos,
desde la aprobación del RD Ley 16/2012 es Ayuntamientos;
profundamente negativo (ESPANÃ, 2012c). Ha
empeorado el funcionamiento del sistema Han permitido generar movilizaciones en
sanitario público, se han incrementado las torno a problemas sanitarios como las listas
desigualdades, se ha privatizado no solo de espera, deterioro de servicios, recortes
la financiación (los copagos) sino también de recursos y servicios, deficiencias orga-
la provisión de una parte importante de nizativas y funcionales en centros de salud;
nuestro sistema sanitario.
La eficiencia del sistema sanitario no ha Han servido para unificar y racionalizar el
mejorado, ha disminuido el gasto pero a discurso y las alternativas de las organiza-
costa de trasladar gasto público a los bolsi- ciones progresistas (partidos, sindicatos,
llos de los pacientes, generando desigualdad, organizaciones vecinales y de usuarios,
disminuyendo las prestaciones en cantidad, etc.), en temas complejos y controvertidos

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014


Movilizaciones sociales y profesionales en España frente a la contrarreforma sanitaria 897

como los problemas de la privatización, frente a la crisis y las políticas de desman-


la necesidad de financiación pública, la telamiento del Estado del Bienestar pro-
mejora de la gestión, la racionalidad en la movidas por la Troika (UE, Banco Europeo
asignación y el uso de los recursos, la po- y Fondo Monetario Internacional), Foro
tenciación de la Atención Primaria, etc.; Social y Cumbre Social.

Se ha promovido la implicación de agentes Cabría destacar, por último, el papel im-


sociales en debates y elaboración de alter- pulsor y nuclear de las Asociaciones para la
nativas sanitarias; Defensa de la Sanidad Pública en la teoriza-
ción, diseño, creación, impulso y manteni-
Se han puesto en evidencia los riesgos y las miento de las Plataformas en toda España.
deficiencias del modelo de gestión empre- Es importante continuar con las movi-
sarial-privada de centros sanitarios (funda- lizaciones de profesionales y ciudadanos
ciones sanitarias) e incluso han conseguido contra esta política suicida de privatización
su reversión a la gestión pública, como en y desmantelamiento de la sanidad pública, y
los casos de Galicia y en Asturias; que eso solo podrá lograrse con la actuación
unitaria, coordinada e integradora de todos
Han contribuido a frenar durante años la los sectores y organizaciones presentes en el
estrategia de privatización y parcelación de conflicto, junto con su generalización en el
la sanidad pública. Hay que ser conscientes marco de los países. Sin embargo, también
de que las movilizaciones han conseguido hay que entender que las políticas de cada
retrasar e incluso detener esta estrategia. gobierno no son sino el reflejo de directi-
Se ha demostrado que cuando las moviliza- vas más globales, en el caso de España de
ciones son unitarias, masivas y mantenidas, la Unión Europea, y que si no se producen
se puede conseguir paralizar los procesos transformaciones en estas políticas no se
privatizadores; podrán garantizar los servicios públicos de
calidad, uno de los pilares de los Estado de
Han promovido las alianzas para hacer Bienestar (SÁNCHEZ BAYLE, 2013). s

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014


898 SÁNCHEZ BAYLE, M.; FERNÁNDEZ RUIZ, S.

Referências

CENTRO DE INVESTIGACIONES SOCIOLÓGICAS boe/dias/2012/08/17/pdfs/BOE-A-2012-10952.pdf>.


(CIS). Barómetro de junio de 2014. Disponible en: Acceso en: 02 dic. 2014.
<www.cis.es>. Acceso en: 02 dic. 2014.
EXPERT PANEL ON EFFECTIVE WAYS OF
ESPANÃ. Ley 33/2011 de 4 de octubre de 2011, General INVESTING IN HEALTH (EXPH). Health and
de Sanidad. [sin descripción]. Boletín Oficial del Estado, economics análisis for an evaluarion of the public-
Madrid, 2011. Disponible en: <https://translate.google. private partnerships in health care delivery across
com/?hl=pt-BR#pt/es/dispon%C3%ADvel%20em>. Europe [internet]. European Comisión 2014. Disponible
Acceso en: 02 dic. 2014. en: <http://ec.europa.eu/health/expert_panel/
opinions/docs/003_assessmentstudyppp_en.pdf>.
______. Corrección de errores del Real Decreto-ley Acceso en: 02 dic. 2014.
16/2012, de 20 de abril de 2012, de medidas urgentes
para garantizar la sostenibilidad del Sistema Nacional FEDERACIÓN DE ASOCIACIONES PARA LA
de Salud y mejorar la calidad y seguridad de sus DEFENSA DE LA SANIDAD PÚBLICA (FADSP).
prestaciones. Boletín Oficial del Estado, Madrid, Informe: la asistencia sanitaria tras los recortes y los
2012a. Disponible en: <http://www.boe.es/boe/ planes de sostenibilidad. Julio 2014. Disponible en: <
dias/2012/05/15/pdfs/BOE-A-2012-6364.pdf>. Acceso http://www.fadsp.org/index.php/sample-sites/notas-
en: 02 dic. 2014. de-prensa/834-informe-la-asistencia-sanitaria-tras-
los-recortes-y-los-planes-de-sostenibilidad>. Acceso
______. Ley 14/1986 de 25 de abril de 1986, General de en: 02 dic. 2014.
Sanidad. [sin descripción]. Boletín Oficial del Estado,
Madrid, 1986. Disponible en: <http://ascane.org/ FERNÁNDEZ-RUIZ, S. Recortes en la cartera
leyes/l_014_1986.pdf>. Acceso en: 02 dic. 2014. de servicios sanitarios. Nueva Tribuna, 7/5/2012.
Disponible en: <http://www.nuevatribuna.es/opinion/
______. Ministério de Sanidad, Serviços Sociales e sergio-fernandez-ruiz/recortes-en-la-cartera-de-
Igualdad. Barómetro Sanitario 2013. Disponible en: servicios sanitarios/20120507124443074827.html>.
<https://www.msssi.gob.es/>. Acceso en: 02 dic. 2014. Acceso en: 02 dic. 2014.

______. Real Decreto 1192/2012, de 3 de agosto de ______. El copago en el transporte sanitario, un serio
2012, por el que se regula la condición de asegurado problema para la accesibilidad. Nueva Tribuna
y de beneficiario a efectos de la asistencia sanitaria 16/5/2012 Disponible en: <http://www.nuevatribuna.
en España, con cargo a fondos públicos, a través del es/opinion/sergio-fernandez-ruiz/el-copago-en-el-
Sistema Nacional de Salud. Boletín Oficial del Estado, transporte-sanitario-un-serio-problema-para-la-acces
Madrid, 2012b. Disponible en: <http://www.boe.es/ ibilidad/20120516094614075327.html>. Acceso en: 02
boe/dias/2012/08/04/pdfs/BOE-A-2012-10477.pdf>. dic. 2014.
Acceso en: 02 dic. 2014.
______. Un año de movilizaciones en la sanidad
______. Resolución de 2 de agosto de 2012, de la madrileña. Nueva Tribuna, 2013. Disponible en:
Dirección General de Cartera Básica de Servicios del <http://www.nuevatribuna.es/opinion/sergio-
Sistema Nacional de Salud y Farmacia, por la que se fernandez-ruiz/ano-movilizaciones-sanidad-
procede a la actualización de la lista de medicamentos madrilena/20131030133400097866.html>. Acceso en:
que quedan excluidos de la prestación farmacéutica en 02 dic. 2014.
el Sistema Nacional de Salud. Boletín Oficial del Estado,
Madrid, 2012c. Disponible en: <https://www.boe.es/ OBSERVATORIO MADRILEÑO DE SALUD. Informe

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014


Movilizaciones sociales y profesionales en España frente a la contrarreforma sanitaria 899

la situación sanitaria en la Comunidad de Madrid. ______. La contrarreforma sanitaria: Análisis y


Diciembre 2012. Disponible en: <http://www.fadsp. alternativas a la privatización de la Sanidad pública.
org/index.php/sample-sites/manifiestos/396- Madrid: Los libros de la catarata, 2013.
presentado-el-informe-sobre-la-situacion-sanitaria-
en-madrid>. Acceso en: 02 dic. 2014. ______. La crisis, el neoliberalismo y los servicios
públicos. Divulgaçao em Saude para a Debate, Rio de
OKMA, K. G. H.; MARMOR T. R; OBERLANDER, J. Janeiro, n. 49 p. 40-44, oct. 2013.
Managed competition for Medicare? Sobering lessons
from the Netherlands. N Engl J Med, Waltham , v. 365, SÁNCHEZ BAYLE, M; BEIRAS CAL, H. The people’s
n. 4, p. 287-289, 2011. campaign against healthcare counter-reforms in Spain.
J Public Health Policy, Londres, v. 22, n. 2, p.139-52,
ORGANISATION FOR ECONOMIC COOPERATION 2001.
AND DEVELOPMENT (OECD). Health at a glance:
OECD Indicators [internet]. Disponible en: <http:// SÁNCHEZ BAYLE, M; SÁNCHEZ LLOPIS, E;
dx.doi.org/10.1787/health_glance-2013-en>. Acceso en: PALOMO- COBOS, L. Copago sanitario: ¿eficacia,
02 dic. 2014 eficiencia o negocio? Fundación 1 de Mayo, n. 44, p.
05- 60, oct. 2011. Disponible en: <http://www.1mayo.
PÉREZ-OLIVA, M. Curiosa defensa de lo público. ccoo.es/nova/files/1018/Informe44.pdf>. Acceso en: 02
El País 19/7/2014. Disponible en: <http://ccaa.elpais. dic. 2014.
com/ccaa/2014/07/19/catalunya/1405791544_366966.
html?rel=rosEP>. Acceso en: 02 dic. 2014.
Recebido para publicação em outubro de 2014
Versão final em dezembro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
SÁNCHEZ BAYLE, M. La Sanidad en la Comunidad de
Suporte financeiro: não houve
Madrid. Edcns GPS 2006.

______. La sanidad en la encrucijada. Mientras Tanto,


febrero 2012 Diponible en: <http://mientrastanto.
org/search/node/marciano%20sanchez%20bayle#>.
Acceso en: 02 dic. 2014.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 886-899, OUT-DEZ 2014


900 ensaio | essay

O financiamento da Atenção Básica e da


Estratégia Saúde da Família no Sistema
Único de Saúde
The financing of the Primary Health Care and Family Health
Strategy in the Unified Health System

Áquilas Mendes1, Rosa Maria Marques2

RESUMO Analisa-se o financiamento do nível da Atenção Básica à saúde, com ênfase na ex-
pansão dos recursos alocados para a Estratégia Saúde da Família. A primeira parte detalha o
crescimento dos recursos do Ministério da Saúde para a Atenção Básica, particularmente os
transferidos mediante o Piso de Atenção Básica Variável, que incorpora os diferentes incen-
tivos financeiros destinados aos municípios que desenvolvem os programas neste nível de
atenção. A segunda parte analisa as dificuldades do financiamento tendo em vista a instabili-
dade dos recursos próprios municipais e também discute algumas sugestões de modificações
nos critérios de repasse dos recursos federais transferidos aos municípios.

PALAVRAS-CHAVE Financiamento da assistência à saúde; Atenção Primária à Saúde; Estratégia


Saúde da Família.

ABSTRACT It analyzes the financing of the Primary Health Care level, with emphasis on the ex-
pansion of the allocated resources to the Family Health Strategy. The first part details the growth
of the Ministry of Health resources to the primary care, particularly the ones transferred through
1Doutor em Ciências
Econômicas pela the Variable Primary Care Wage, which incorporates the different financial incentives headed
Universidade Estadual for municipalities that develop programs in this level of care. The second part analyzes the diffi-
de Campinas (Unicamp)
– Campinas (SP), Brasil. culties of financing bearing in mind the instability of the municipal own resources and it is also
Professor da Universidade discusses some suggestions of changes in the criteria of federal transfer of funds transferred to
de São Paulo (USP) – São
Paulo (SP), Brasil. Professor municipalities.
da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo
(PUC-SP) – São Paulo (SP), KEYWORDS Healthcare financing; Primary Health Care; Family Health Strategy.
Brasil.
aquilasn@uol.com.br

2 Doutora em Economia de
Empresas pela Fundação
Getúlio Vargas (FGV)
– São Paulo (SP), Brasil.
Professora da Pontifícia
Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP)
– São Paulo (SP), Brasil.
Presidente da Associação
Brasileira de Economia da
Saúde (2013-2014).
rosamkmarques@gmail.com

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140079
O financiamento da Atenção Básica e da Estratégia Saúde da Família no Sistema Único de Saúde 901

Introdução necessidades em saúde, com prioridade para


as ações preventivas (CONASEMS, 2011). Nos 25
No momento em que a saúde foi instituí- anos de existência do SUS, vários modelos
da como um direito de todos e um dever do assistenciais foram implantados em diversas
Estado, os gestores em nível federal, estadu- localidades, tais como a Vigilância em Saúde,
al e municipal do Sistema Único de Saúde Ações Programáticas de Saúde e a Estratégia
(SUS) passaram, cada vez mais, a priorizar a Saúde da Família, entre outros. Há muito
Atenção Básica sob a perspectiva de implan- tempo, a partir da iniciativa e do incentivo
tar um novo modelo de atenção à saúde no do Ministério da Saúde (MS), assiste-se a
País. Essa política foi especialmente desen- expansão da Estratégia Saúde da Família,
volvida nos anos 1990, quando se começou a criada como Programa, em 1994, e deno-
fazer grandes esforços no sentido da univer- minada Estratégia Saúde da Família (ESF),
salização da Atenção Básica, e tal processo se em 2003, de modo que as ações da Atenção
desenvolveu ao longo dos anos 2000. Já em Básica têm sido estrategicamente para ela
2011, os gestores do SUS – particularmente, o orientadas (SOUSA, 2014).
Conselho Nacional de Secretarias Municipais A ESF visa à reorganização da Atenção
de Saúde (Conasems) – passaram a defender a Básica no País, de acordo com os preceitos
qualificação da Atenção Básica nesse sistema, do SUS, e é entendida pelo MS e pelos ges-
de forma que ela assuma o papel de coorde- tores estaduais e municipais, representados
nadora do cuidado integral em saúde e orde- respectivamente pelo Conselho Nacional
nadora das redes de atenção (CONASEMS, 2011). de Secretários de Saúde (Conass) e pelo
Paralelamente a essa reorientação do modelo Conasems, como estratégia de expansão,
assistencial, a operacionalização da política qualificação e consolidação da Atenção
de saúde foi alterada, isto é, houve avanços no Básica (BRASIL, 2012).
processo de municipalização, na coordenação Inicialmente, o Programa Saúde da Família
dos municípios em nível das regiões de saúde (PSF), como anteriormente intitulado, foi im-
e no estabelecimento de novas sistemáticas plantado nas localidades com os indicadores
para o financiamento de ações e serviços de de saúde mais críticos e em municípios peque-
saúde, especialmente, em nível da Atenção nos e de médio porte com oferta insuficiente
Básica. O resultado da expansão da Atenção de serviços de saúde, e distantes dos grandes
Básica é explicitado por traços marcantes na centros urbanos. Num segundo momento,
realidade brasileira recente. No final de 2013, tendo em vista a intenção de fazer do PSF o
constatou-se a presença de 36 mil equipes da veículo do reordenamento dos sistemas muni-
Estratégia Saúde da Família (ESF), de 300 mil cipais de saúde, a proposta foi ampliada para
Agentes Comunitários de Saúde e de 23 mil as localidades com mais de 100 mil habitantes.
equipes de Saúde Bucal (EqSB), que juntos Naquela oportunidade, a implantação do PSF
vieram provocando efeitos importantes ao tornou-se mais lenta, em parte devido ao fato
participarem das medidas adotadas pelos mu- de os municípios de maior porte contarem
nicípios em direção à integralidade das ações e com grande oferta de serviços de saúde, o que
dos serviços de saúde, e ao contribuírem para pressupunha uma reorganização para que o
a implantação das redes de atenção à saúde PSF pudesse atuar a contento. Apenas como
(dados do Ministério da Saúde, Sala de Apoio à Gestão ilustração, observa-se que, em estudos mais
apud SOUSA; MENDONÇA, 2014; RODRIGUES et al., 2014). recentes de Giovanella et al. (2010) e de Santos
Seguindo a tradição do movimento sani- et al. (2012), a respeito da consolidação da ESF
tarista, os gestores do SUS defendem que o em grandes centros urbanos, um desafio im-
modelo centrado no atendimento de doentes portante precisa ser enfrentado: trata-se de in-
compromete a atenção orientada para as verter o completo afastamento da classe média

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


902 MENDES, A.; MARQUES, R. M.

da utilização dessa estratégia, particularmente áreas programáticas do MS, relacionadas


no tocante à aceitação da visita domiciliar e do à expansão da ESF, passaram a ser de res-
reduzido uso dos serviços, com exceção dos me- ponsabilidade desse departamento, a saber:
dicamentos obtidos para o controle de doenças coordenações nacionais de prevenção e con-
crônicas. trole da tuberculose e outras pneumopatias,
Apesar da expansão da ‘saúde da família’ de controle de hanseníase e outras dermato-
no território brasileiro nos últimos 19 anos, ses, de controle das doenças reumáticas, de
não houve e nem há uma distribuição unifor- controle do diabetes mellitus, de controle das
me de suas equipes. A implantação ocorre de doenças cardiovasculares/hipertensão, de
forma heterogênea, em especial nos muni- saúde bucal, de vigilância alimentar e nutri-
cípios cujo número de habitantes não esteja cional, e de assistência farmacêutica (Sousa et
em faixas extremas – muito pequenos ou al., 2000; 2014). A ampliação do campo de ação
muito grandes. desse departamento indica o crescimento de
Para enfrentar essas dificuldades, o MS, no importância da ESF no conjunto da Atenção
ano de 2003, iniciou a execução do Programa Básica, e desta última na política de saúde
de Expansão e Consolidação da Estratégia de implantada pelo MS.
Saúde da Família (Proesp), cujo objetivo era De acordo com alguns estudos, cabe men-
viabilizar, a partir de um acordo de emprés- cionar a importância da implantação da ESF
timo celebrado com o Banco Interamericano no sentido de orientar a organização do SUS
de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), no País (GIOVANELLA et al., 2009, 2010). Conforme
a transferência de recursos financeiros, estes autores, os resultados da análise da ESF,
fundo a fundo, isto é, do governo federal para em algumas capitais brasileiras, apontam para
estados e municípios, para expansão da co- as potencialidades dessa estratégia, à medida
bertura, qualificação e consolidação da ESF que forem adotados os seguintes aspectos: a)
nos municípios com população superior a promoção da ESF a uma política de governo;
100 mil habitantes. b) esforço para assegurar sua integração à rede
No ano de 2004, o PSF abrangia 80,2% dos assistencial; c) garantia da formação de re-
municípios brasileiros, 4.600 municípios, cursos humanos adequados; d) construção de
proporcionando uma cobertura de 39% da interfaces para promover a cooperação entre a
população, o que correspondia a 69,1 milhões ESF e outros setores, de forma a enfrentar os
de pessoas (BRASIl, 2006c). Quando publicada determinantes sociais mais amplos da saúde.
a nova Política Nacional de Atenção Básica Por sua vez, no tocante ao impacto na
(PNAB), no ano de 2006 (BRASIL, 2006c), foram saúde das famílias, cabe mencionar alguns
implantadas 26.729 Equipes de Saúde da resultados: é possível constatar que quanto
Família (EqSF), em 5.106 municípios, cobrin- mais elevada a faixa de cobertura do PSF
do 46,2% da população brasileira, o que cor- do grupo de municípios, maior é a queda
respondia a cerca de 85,7 milhões de pessoas. na taxa de mortalidade infantil pós-neona-
Em síntese, ao longo de todo o período, o tal, associada à diminuição do número de
número de EqSF, 328, em 1994, ultrapassou mortes por doença diarreica e por infecções
33 mil, em 2012, atingindo uma cobertura da do aparelho respiratório (AQUINO et al., 2009;
população brasileira (193.946.886) de 54,8% RASELLA et al., 2010a). Em relação à notificação de
(Vasconcellos, 2013). estatísticas vitais e diminuições de interna-
A importância estratégica da Atenção ções hospitalares evitáveis, destaca-se uma
Básica e da ESF na política de saúde desen- redução de 15%, a partir de 1999 (RASELLA et al.,
volvida pelo MS pode também ser apreendi- 2010b; GUANAIS; MACINKO, 2009).
da a partir da existência do Departamento de O objetivo deste artigo é mais específico, à
Atenção Básica (DAB). Para tanto, algumas medida que busca analisar o financiamento

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


O financiamento da Atenção Básica e da Estratégia Saúde da Família no Sistema Único de Saúde 903

do nível da Atenção Básica à saúde a partir a participação do governo federal chegou


de 1997, com ênfase na expansão dos recursos a representar 77,7% do gasto público reali-
alocados na ESF. Na primeira parte, detalha- zado no País, nessa área (estimativas IPEA apud
mos o crescimento dos recursos do MS para MENDES, 2005). Nos anos seguintes, em função
a Atenção Básica, particularmente os trans- da implementação do SUS e do crescente
feridos mediante o Piso de Atenção Básica comprometimento da instância municipal,
(PAB) Variável, que incorpora os diferentes a presença relativa do governo federal foi
incentivos financeiros que ‘premiam’ os mu- menor, embora ainda hoje seja a mais impor-
nicípios desenvolvedores de programas neste tante fonte de recursos da saúde. Nos anos
nível de atenção, tal como a ESF. Isto significa 1994, 1995, 1996 e 2000, os recursos federais
dizer que, embora as ações e serviços de saúde financiaram 60,7%, 63,8%, 53,7% e 58,3%,
sejam de responsabilidade do município, o respectivamente, do gasto público em saúde
governo federal vem reforçando, mediante o (MENDES, 2005; SERVO et al., 2011). Em 2011, esses
financiamento, seu papel na determinação da recursos corresponderam a apenas 45,5%,
política a ser adotada. Na segunda parte, anali- inferiores ao financiamento de estados e mu-
samos as dificuldades do financiamento tendo nicípios juntos (Brasil, 2013a).
em vista a instabilidade dos recursos próprios Devido à queda da participação dos re-
municipais. Também nessa parte, discutimos cursos federais no financiamento da saúde
algumas ‘possibilidades’ de alteração nos cri- pública, há quem considere que hoje é
térios de repasse dos recursos transferidos menor o papel exercido pelo governo federal
aos municípios. As informações específicas na determinação da política de saúde, e que
financeiras foram coletadas da Sala de Apoio esse estaria sendo preenchido pelos muni-
à Gestão Estratégica do Ministério da Saúde, cípios. Contudo, essa leitura ligeira deixa
da Secretaria de Planejamento e Orçamento de considerar não só que o governo federal
desse mesmo órgão, da Lei Orçamentária continua sendo o principal detentor dos re-
Anual (LOA) do Ministério da Saúde e do cursos, como também que a participação dos
Sistema de Informações sobre Orçamentos municípios no financiamento – 28,8% do
Públicos em Saúde (SIOPS), além de terem total do gasto público em saúde (2011) – está
sido utilizadas fontes secundárias extraídas pulverizado em todo o território nacional
de bibliografia especializada no campo da (Brasil, 2013a).
economia da saúde. Como a maior parte dos Então, ao contrário, o Governo Federal
dados orçamentários compreende uma série continua sendo o agente definidor da política
histórica, eles foram deflacionados pelo Índice de saúde no território nacional. Nos últimos
Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), anos, todos os seus esforços têm se dirigido
em alguns casos, e em outros, pelo Índice Geral no sentido de alterar o modelo da assistência
de Preços-Disponibilidade Interna (IGP-DI), em saúde, priorizando a Atenção Básica. Para
da Fundação Getúlio Vargas (FGV). se entender a abrangência desta mudança, é
preciso analisar com cuidado a evolução do fi-
nanciamento do Governo Federal no SUS, por
O governo federal e o meio da destinação de seus recursos.
financiamento da Atenção Lembremos, em primeiro lugar, que a
despesa do MS é realizada através de duas
Básica e da ESF formas: pagamento direto aos prestadores
de serviços (relativos a internações hospita-
O gasto público em saúde no Brasil sempre foi lares e atendimento ambulatorial); e transfe-
largamente financiado por recursos federais. rências para estados e municípios, por meio
Para se ter uma ideia, no período 1980-1990, do Fundo Nacional de Saúde, aos fundos de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


904 MENDES, A.; MARQUES, R. M.

saúde dessas instâncias governamentais. De do PAB Variável. Na medida em que eram


forma geral, pode-se dizer que as transfe- recursos vinculados a programas específi-
rências são destinadas para a alta e a média cos, o município somente teria acesso a tais
complexidade, e para a Atenção Básica. Esta recursos se implantasse esses programas,
última é promovida e financiada através do que muitas vezes poderiam não correspon-
PAB Fixo e do PAB Variável. Os incentivos fi- der às necessidades locais e, assim, inexo-
nanceiros para o Programa Saúde da Família ravelmente comprometeriam parte de seus
integram o PAB Variável (MENDES, 2005). recursos disponíveis (Marques; Mendes, 2003).
Numa análise mais abrangente sobre a Nesse sentido, Almeida, Cunha e Souza (2011)
execução do gasto do MS por programas/ argumentam que o município se responsabi-
ações, entre 1995 e 2011, verifica-se que a liza pelo financiamento de políticas defini-
Média e Alta Complexidade (MAC) perdeu das pelo governo federal, que muitas vezes
importância relativa em relação aos demais, não levam em consideração a grande hetero-
ainda que corresponda a cerca de 50% dos geneidade dos municípios brasileiros e não
recursos totais. Em 1995, o gasto destinado são flexíveis o suficiente para se adequarem
a esse nível de atenção à saúde representa- às condições locais.
va 54% da despesa total do MS, passando, A superação dessa prática, que atrelava os
em 2011, para 50% (SERVO et al., 2011; IPEA, 2013). repasses de recursos federais a determina-
A maior parte desse valor, no entanto, cor- dos programas ou ações, somente foi alcan-
respondeu às transferências para estados, çada em fevereiro de 2006, com a publicação
Distrito Federal e municípios, intituladas do Pacto pela Saúde, regulamentado pela
transferências ‘fundo a fundo’. Por sua vez, Portaria GM/MS nº 399, de 22 de fevereiro
foram praticamente beneficiados os recur- de 2006 e pela Portaria GM/MS nº 699, de 30
sos destinados à Atenção Básica, que passa- de março de 2006 (BRASIL, 2006a).
ram de 9,7% para 17,7%, no mesmo período A portaria do Pacto de Gestão determinou
(SERVO et al., 2011; IPEA, 2013). Isso é decorrente da alguns princípios para o financiamento do
política prioritária do MS, de fortalecimento SUS e definiu ‘blocos’ gerais de alocação dos
das ações ou programas da Atenção Básica, recursos federais, sendo eles: Atenção Básica;
especialmente os incentivos financeiros para atenção da Média e Alta Complexidade; vi-
o Programa Saúde da Família e o Programa gilância em saúde; assistência farmacêutica;
de Agentes Comunitários de Saúde, que evo- e gestão do SUS. Posteriormente, foi acres-
luíram de 0,6% do total, em 1995, para 8,9%, centado outro bloco denominado de ‘investi-
em 2009 (SERVO et al., 2011; IPEA, 2013). Sem dúvida, mentos na rede de serviços de saúde’ (Brasil,
essa situação é explicada pela permanente 2007; BRASIL, 2009).
utilização de transferências automáticas fe- A análise das transferências federais
derais para municípios, por meio de incen- permite constatar que os pagamentos por
tivos financeiros como forma de indução de meio de remuneração por serviços produ-
políticas de saúde definidas pelo MS. Por sua zidos efetuados pelo MS aos prestadores de
vez, no período, é significativo o decréscimo serviços, que absorviam 71,3% dos recur-
da participação relativa do PAB Fixo. sos federais em saúde, em 1997, caíram para
A trajetória desses incentivos federais 33,4%, em 2001, reduzindo-se quase por com-
vai ganhando força a cada ano da década pleto em 2010 (Mendes; Marques, 2002; SERVO et al.,
de 1990, aumentando o número de itens 2011). Essa diminuição resultou no aumento
chamados, naquele momento, de ‘carimba- da participação relativa das transferências
dos’ pelo Governo Federal na Média e Alta federais fundo a fundo: de 28,6% para cerca
Complexidade (campanhas), particularmen- de 98%, respectivamente, indicando que o
te nas ações estratégicas e nos componentes governo federal dá preferência a essa forma

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


O financiamento da Atenção Básica e da Estratégia Saúde da Família no Sistema Único de Saúde 905

de financiamento. Entre 1997 e 2001, como Saúde, como mencionado, as formas de


reflexo da expansão das transferências, au- transferências dos recursos federais se
mentou a participação da despesa com Média deram por meio dos blocos de financiamen-
e Alta Complexidade (de 28,6% para 61% to. As informações disponibilizadas pelo
nesse período), e da despesa com Atenção MS permitem visualizar as transferências
Básica. Esta última passou a absorver, em por blocos de financiamento desde 2000.
2001, 28% dos recursos federais transferidos O gráfico 1 ilustra a participação dos blocos
para estados e municípios, seguindo as de- em relação ao financiamento total destina-
terminações da Norma Operacional Básica do pelo Fundo Nacional da Saúde (FNS), de
(NOB) 96 (Mendes; Marques, 2002). 2000 até 2011, extraídos da Sala de Apoio à
A partir da introdução do Pacto pela Gestão Estratégica do Ministério da Saúde.

Gráfico 1. Participação relativa dos blocos de financiamento dos recursos federais do Ministério da Saúde - Fundo a
fundo, 2000 a 2011

120%

100%
10% 12% 11% 10% 10% 10% 11% 11% 12% 12% 13% 10%

80%

60% 57% 61% 63% 64% 67% 69% 68% 68% 67% 66% 66% 67%

40%

20%
32% 28% 26% 25% 23% 31% 22% 21% 21% 22% 22% 23%

0%
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
Atenção Básica Média e Alta Complexidade Outros

Fonte: Sala de Apoio à Gestão Estratégica, Ministério da Saúde. Disponível em: <http://189.28.128.178/sage/>. Acesso em: 03 dez. 2013

Observa-se que o bloco de financiamen- perceber, de forma significativa, a dimi-


to da Atenção Básica apresentou uma par- nuição da participação relativa da Atenção
ticipação relativa de 32%, em 2000, e de Básica em favor da prioridade de alocação
23%, em 2011 (gráfico 1). O bloco de finan- da MAC.
ciamento da alta e média complexidade A respeito dessa prioridade da MAC,
correspondeu a um percentual relativo de Carvalho (2012), quando analisa os gastos fe-
57%, em 2000, e de 67%, em 2011. E o item derais em saúde por níveis de atenção, indica
outros (vigilância em saúde, assistência a prevalência de alocação de recursos na
farmacêutica, gestão do SUS e investimen- MAC em comparação ao PAB Fixo, instituí-
tos) teve uma participação relativa de 10%, do para a Atenção Básica a partir da NOB 96,
tanto em 2000 como em 2011. É possível conforme indicado na tabela 1.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


906 MENDES, A.; MARQUES, R. M.

Tabela 1. Gasto do Ministério da Saúde com MAC e com o PAB fixo, 1995 a 2012, em R$ bilhões

Média Alta Complexidade MAC


Ano Atenção Básica - PAB Fixo
R$ Per capita 1995 = 100

1995 19,0 121,6 100,0 3,5 22,4 100,0

1996 17,9 111,1 91,4 3,1 19,2 85,7

1997 20,4 127,6 104,9 3,6 22,5 100,2

1998 18,1 111,7 91,9 4,2 25,9 115,5

1999 20,7 126,4 104,0 4,2 25,6 114,1

2000 21,8 131,5 108,1 3,9 23,2 103,6

2001 22,5 130,7 107,5 3,7 21,5 95,8

2002 22,3 127,5 104,8 3,5 20,2 90,3

2003 21,0 118,7 97,6 3,0 16,9 75,6

2004 22,5 123,8 101,8 3,1 17,3 77,1

2005 22,5 122,3 100,6 3,3 17,9 79,8

2006 24,5 131,2 107,9 3,5 18,7 83,4

2007 26,8 145,7 119,8 3,8 20,5 91,6

2008 27,8 146,6 120,5 4,0 21,1 94,4

2009 29,8 155,5 127,8 4,0 20,7 92,5

2010 33,7 176,8 145,4 4,1 21,5 95,9

2011 32,6 169,6 139,5 4,7 24,3 108,5

2012* 33,9 174,5 143,5 4,4 22,6 101,1


Fonte: BRASIL. Ministério da Saúde. Subsecretaria de Planejamento e Orçamento (SPO); LOA 2012; (*) Estimativa da LOA apud Carvalho (2012)
Obs: deflator utilizado INPC, junho 2012

Segundo os dados da tabela 1, é possível valor devia corresponder a R$ 12 habitante/


verificar que os gastos per capita corrigidos ano, em setembro de 1996, quando da edição
com MAC, entre 1995 e 2012, não só cres- da NOB 96 (CARVALHO, 2011). Posteriormente,
ceram, passando de R$ 121,6 para R$ 174,5, em 2006, esse piso foi fixado, em média, nos
respectivamente, como também foram supe- municípios brasileiros, a R$ 18 habitante/
riores aos realizados com o PAB Fixo (de R$ ano. Foi nesse ano que ocorreu a publicação
22,4 para R$ 22,6 – deflator utilizado: INPC, da PNAB, não modificando os componentes
junho de 2012), no mesmo período. de seu financiamento, sendo que o repasse
Os dados mostram, nesses 18 anos (1995- financeiro continuava sendo composto pelo
2012), o crescimento significativo dos recur- piso de Atenção Básica, constituído por uma
sos per capita destinados à MAC, o que não fração fixa e outra variável. Entretanto, tanto
ocorreu com os recursos destinados para o PAB Fixo quanto o PAB Variável, a partir a
pagamento do PAB Fixo, que praticamente publicação do Pacto pela Saúde, comporiam o
se mantém. Esse piso, ao ser introduzido denominado Bloco de Atenção Básica (Brasil,
oficialmente em fevereiro de 1998, foi fixado 2007), e estes deveriam ser utilizados para
em R$ 10 habitante/ano, mesmo sabendo‑se financiar as ações de Atenção Básica descri-
que os estudos à época indicavam que tal tas nos Planos de Saúde dos municípios e do

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


O financiamento da Atenção Básica e da Estratégia Saúde da Família no Sistema Único de Saúde 907

Distrito Federal (BRASIL, 2006b). Ao se analisar especificamente o PAB


Já em 2011, de acordo com a Portaria do Fixo, verifica-se que seu valor se refere a
MS/GM nº 1602, de 09 de julho deste mesmo R$ 5,3 bilhões, sendo 5,3% do total dos re-
ano, a depender da categoria populacional cursos do orçamento do MS, com decrésci-
dos municípios, o PAB Fixo passou a variar mo de 1,5% em relação à LOA 2013 (Conass,
entre R$ 18 e R$ 23 (sendo este último valor 2013). Vale lembrar, ainda, que esse patamar
para municípios com até 50 mil habitantes). nem atinge o que era exigido pela Emenda
Além disso, para a definição do valor mínimo Constitucional (EC) 29, cujo conteúdo diz
do PAB Fixo adotou-se uma distribuição que um mínimo de 15% dos recursos do
dos municípios em quatro faixas, median- MS deveriam ser aplicados nos municí-
te uma pontuação entre zero e dez, com pios, segundo o critério populacional para
base em indicadores selecionados segundo Atenção Básica, o que corresponderia a R$
cinco critérios socioeconômicos: PIB per 15 bilhões, sendo R$ 74,84 habitante/ano. Na
capita; percentual da população com plano realidade, tal exigência constitucional foi re-
de saúde; percentual da população com vogada pela Lei Complementar nº 141/2012
Bolsa Família; percentual da população em – lei de regulamentação da EC 29 –, ficando
extrema pobreza; e densidade demográfica. a Atenção Básica nos municípios sem uma
De toda forma, sabe-se que essa base média destinação de recursos da esfera federal le-
per capita é ainda insuficiente para que a galmente estabelecida (BRASIL, 2012b).
Atenção Básica no SUS assuma a sua res- O PAB Variável corresponde a R$ 11,17
ponsabilidade de coordenadora do cuidado bilhões, na LOA de 2014, sendo 11,1% do total
integral em saúde e ordenadora das redes de de recursos do orçamento do MS, e teve um
atenção (Conasems, 2011). Isso porque, se o valor incremento de 23,1% em relação à LOA 2013
da época de sua instituição – R$ 12 habitan- (CONASS, 2013). Sabe-se que, desde o início da
te/ano, em fevereiro de 1998 – fosse atuali- década de 2000, o PAB Variável já superava
zado monetariamente pelo Índice Geral de o PAB Fixo, dado que corresponde a incenti-
Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI/ vos financeiros transferidos aos municípios
FGV), corresponderia a R$ 34, em valores de conforme a implantação de projetos/políti-
dezembro de 2012. A partir de 10 de julho de cas específicos de saúde, definidos pelo MS.
2013, conforme Portaria do MS/GM nº 1409, O valor per capita do PAB Variável, entre
o valor superior do PAB Fixo passou a variar 2002 e 2012, passou de R$ 20 para R$ 48, en-
apenas entre R$ 23 e R$ 28, não alcançando, quanto o valor per capita do PAB Fixo prati-
ainda, o valor correspondente ao que deveria camente se manteve o mesmo, passando de
ser corrigido monetariamente em dezembro R$ 24 para R$ 25 (CARVALHO, 2014b). Dentre os
de 2012 (BRASIL, 2013b). recursos destinados ao PAB Variável desta-
Para se ter uma ideia, no projeto da cam-se os seguintes itens: Saúde da Família;
LOA 2014, aprovado no Congresso em 17 Agentes Comunitários de Saúde; Saúde
de dezembro de 2013, se repete a reduzi- Bucal, implantação de Núcleos de Apoio
da destinação dos recursos para a Atenção à Saúde da Família (Nasf ); Consultórios
Básica. A dotação para o MS, para este ano, na Rua; Programa Saúde na Escola (PSE);
corresponde a R$ 100,3 bilhões, sendo que Programa Nacional de Melhoria do Acesso
apenas R$ 90,1 bilhões deverão ser despen- e da Qualidade (PMAQ); Saúde da Família –
didos com ações e serviços de saúde (base Fluviais e Ribeirinhas; Atenção Domiciliar;
Lei nº 141/2012) (CARVALHO, 2013). Os pisos de Microscopistas; Academia da Saúde;
Atenção Básica – fixo e variável – perfazem Fator de Incentivo de Atenção Básica aos
um total de R$ 16,5 bilhões, que correspon- Povos Indígenas; Incentivo para Atenção
dem a 16,4% do total dos recursos do MS. à Saúde Penitenciária; e Compensação das

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


908 MENDES, A.; MARQUES, R. M.

Especificidades Regionais (CER). Este global para a saúde de forma integral – a NOB
último item foi incorporado ao PAB Fixo em 93 –, criou as condições para o surgimento
julho de 2013 (CARVALHO, 2014b). Todos esses das políticas de incentivos financeiros que
itens são incentivos financeiros, conhecidos se seguiram posteriormente. E, na prática, o
como recursos condicionados à implan- que se observou nesses últimos anos foi que a
tação de estratégias e programas prioritá- política de incentivos teve pleno sucesso, de
rios. Além disso, ressalte-se o Programa de modo que os municípios concentraram suas
Requalificação das Unidades Básicas de ações no nível de Atenção Básica (MENDES,
Saúde e recursos de estruturação na implan- 2005).
tação. Estes últimos recursos, para projetos Vale notar que, já em 1997, Bueno e Merhy
específicos, estão contemplados no bloco afirmavam, de forma contundente, que a
de investimento, ainda que digam respeito à NOB 96 iria inibir a autonomia do município,
Atenção Básica (BRASIL, 2012a). induzindo-o a adotar programas não defini-
Entre os componentes do PAB Variável, dos localmente (Bueno; Merhy, 1997).
a ESF, incluindo o componente referente
às EqSB, foi um dos grandes destaques em
termos de transferência federal, ao longo O financiamento da ESF e
dos anos 1990 e 2000. Seus recursos cor- suas contradições
respondem à maior parte dos recursos do
PAB Variável, quando se analisam as transfe- Sob o ponto de vista dos recursos próprios
rências federais do SUS para os municípios municipais, pode-se dizer que o financia-
(Fundo Nacional de Saúde, 2014). mento da ESF é problemático e instável,
A introdução de incentivos, a partir de principalmente, sob dois aspectos: em pri-
1998, estimulando os municípios a incor- meiro lugar, sabe-se que os anos, principal-
porarem programas que lhes acrescentam mente, a partir da segunda metade da década
receita financeira, significou, sem sombra de 1990, foram marcados pela contenção das
de dúvida, aumento de poder do governo finanças públicas atingindo todos os níveis
federal na indução da política nacional de de governo, inclusive os municípios. Ainda
saúde, especialmente no campo da Atenção neste contexto, e nem sempre lembrado, está
Básica. Esse aumento de poder da instância o fato de que os anos de implantação da ESF
federal na determinação da política de saúde, correspondem justamente àqueles onde a
embora tenha como foco as ações e serviços restrição do gasto público foi buscada como
de Atenção Básica e, por isso, seja veículo da principal diretriz política na determinação
transformação do modelo assistencial, não é e/ou diminuição do déficit público, uma das
isento de problemas e contradições (Marques; metas prioritárias da política do governo
Mendes, 2003; ALMEIDA; CUNHA; SOUZA, 2011). federal, por ele monitorada nos níveis das
Em primeiro lugar, é preciso observar que demais instâncias de governo. Não é de se
a NOB 96, em que pese ser um importante estranhar, portanto, que o volume relativo
instrumento na operacionalização da des- de recursos de origem municipal, passível
centralização do sistema, ao incrementar de ser destinado a ESF, tenha ficado mais
as transferências diretas, fundo a fundo, no escasso. Para se ter uma ideia dessa situação,
campo da Atenção Básica, pode impedir ou entre 1996 e 2011, a participação dos municí-
obstaculizar a construção de uma política pios no gasto público total com saúde prati-
de saúde fundada nas necessidades do nível camente se manteve, passando de 27,8% para
local. Isto porque, ao introduzir o mecanis- 28,8% (Brasil, 2013a).
mo de transferência para a Atenção Básica – Uma análise da evolução da receita dispo-
o PAB –, rompendo com a lógica de repasse nível dos municípios, quando comparada às

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


O financiamento da Atenção Básica e da Estratégia Saúde da Família no Sistema Único de Saúde 909

demais esferas de governo, reforça os resulta- Enquanto, no mesmo período, a participação


dos anteriores. O comportamento da receita da receita disponível da União teve um incre-
disponível municipal, que inclui a arrecadação mento de 1,5%, passando de 61,7% para 63,2%
própria – principalmente o Imposto Predial e (tabela 2).
Territorial Urbano (IPTU), o Imposto Sobre O crescimento significativo da receita dis-
Serviços (ISS) e o Imposto Sobre Transmissão ponível dos municípios, em relação ao total
de Bens Imóveis (ITBI) – mais as transfe- das três esferas de governo, somente ocorre
rências constitucionais – principalmente entre 1999 e 2000, quando passa de 12,8%,
o Fundo de Participação dos Municípios em 1999, para 17,9%, em 2000. Contudo, ao
(FPM), o Imposto sobre a Circulação de longo dos anos 2000, as finanças municipais
Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto continuaram estáveis, à medida que a receita
sobre Propriedade de Veículos Automotores disponível manteve-se, sendo que em 2012
(IPVA) revelam que, entre 1995 e 1999, sua ficam registrados apenas 18% (tabela 2).
participação cresceu apenas 0,5% em relação Nesse período, a receita disponível para o
ao total da receita disponível das três esferas governo federal cresce levemente, de 55,8%
de governo (12,3% e 12,8%, respectivamente). para 57,6%.

Tabela 2. Evolução da receita disponível das três esferas de governo (1995 a 1999/2000/2012) - em porcentagem

Ano União Estados Municípios Total

1995 61,7 26,0 12,3 100,0

1996 61,5 26,2 12,3 100,0

1997 62,5 25,4 12,1 100,0

1998 62,9 24,5 12,6 100,0

1999 63,2 24,0 12,8 100,0

2000 55,8 26,3 17,9 100,0

2012 57,6 24,4 18,0 100,0


Fonte: Afonso, 2013; Afonso; Araújo, 2000

A realidade da receita disponível dos mu- 14 anos em vigor, procura privilegiar situa-
nicípios brasileiros, na segunda metade dos ções onde os municípios não gastem mais do
anos 1990, e a sua estabilidade, nos anos 2000, que arrecadam. Segundo a lei, vários limites
acaba por constranger sua capacidade de são determinados ao poder Executivo, es-
gasto. Quando é levado em consideração que, pecificamente, às despesas de pessoal, que
a partir de 1995, em virtude da implantação não podem ultrapassar 54% da receita cor-
do processo de descentralização das políticas rente líquida do município. Caso isto venha
sociais – em particular, a da saúde –, os mu- a ocorrer, as penalidades são significativas.
nicípios passaram a efetuar gastos crescen- Tal exigência legal vem afetando o compro-
tes nessas áreas, a baixa capacidade de suas metimento da instância municipal com a
finanças torna-se ainda mais problemática. ESF. Isso porque os tribunais de contas têm
Com relação ao segundo aspecto, da ins- considerado a despesa com este programa
tabilidade do financiamento municipal, vale como gasto com pessoal. Nos últimos anos,
lembrar que a Lei de Responsabilidade Fiscal é possível verificar a tramitação de diver-
(LRF), aprovada em maio de 2000 e há quase sos projetos de lei no Congresso Nacional

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


910 MENDES, A.; MARQUES, R. M.

que excluem esse limite para as despesas a diferente situação socioeconômica das
da saúde, porém não há sucesso nas suas diversas regiões do País. Tudo isso, é claro,
aprovações (Carvalho, 2014a). Parece que essa mediante ampla discussão entre os gestores
temática ainda não é priorizada pelos parla- do SUS, e tendo como premissa o aumento
mentares e pelo próprio setor saúde, que não do financiamento deste, principalmente por
vem demonstrando mobilização contrária parte da aplicação dos recursos do Governo
intensa frente a este descaso. Federal (Mendes, 2012).
Para a contratação do pessoal da ESF, os Não é demais lembrar que, atualmente,
municípios contam com os recursos trans- os valores dos incentivos financeiros para
feridos pelo governo federal. Devido a isso, as EqSF implantadas são transferidos a cada
há quem entenda que as despesas com esse mês, com base no número de ESF registra-
‘pessoal’, por serem pagas com recursos de do no sistema de cadastro nacional do MS.
transferência, não devem ser incluídas no São estabelecidas duas modalidades de fi-
limite da LRF. O limite deveria ser respei- nanciamento para as EqSF: Modalidade 1: I
tado somente no caso de o pagamento da – implantadas em municípios com popula-
cobertura dos profissionais ser proveniente ção de até 50 mil habitantes nos estados da
de seus recursos próprios, sendo contabili- Amazônia Legal, e até 30 mil habitantes nos
zado, então, como despesa de pessoal (Mendes; demais estados do País; e II – implantadas em
Moreira, 2001). municípios não incluídos no estabelecido na
Outra posição considera essa formulação alínea I, e que atendam a população remanes-
inadequada. Segundo seu entendimento, o cente de quilombos ou residentes em assenta-
problema estaria no fato de as transferên- mentos de, no mínimo, 70 pessoas, respeitado
cias integrarem a receita corrente e o gasto o número máximo de equipes por município.
delas derivado não compor a despesa com Modalidade 2: implantadas em todo o territó-
pessoal, o que resultaria na ampliação inde- rio nacional, que não se enquadram nos crité-
vida do limite de gastos com pessoal definida rios da Modalidade 1 (BRASIL, 2012).
pela LRF. Considerando o pessoal da ESF De acordo com a PNAB de 2011, quando
nos limites da LRF, o ajuste deveria ser feito as EqSF forem compostas também por
em outras áreas da gestão pública (Carvalho, profissionais de saúde bucal, o incentivo fi-
2014a). nanceiro será transferido a cada mês, tendo
Em que pese essa questão estar sendo alvo como base: I – a modalidade específica dos
de intensa polêmica entre os municípios e os profissionais de saúde bucal que compõem
tribunais de contas, há 14 anos, e não estando a ESF e estão registrados no cadastro do
ainda resolvido, em várias municipalidades, MS no mês anterior ao da respectiva com-
o Executivo tem colocado resistências à con- petência financeira; e II – a modalidade de
tinuidade da ESF, pensando duas vezes antes toda a EqSF, conforme indicado acima e re-
de habilitar novas equipes e/ou cancelando lacionado às características dos municípios
o programa, mesmo que temporariamente e da população atendida. Dessa forma, se
(Carvalho, 2014a). Por essa razão é que o finan- ela faz parte de uma ESF Modalidade 1, tem
ciamento da ESF, através dos recursos muni- 50% de acréscimo no incentivo financeiro
cipais, torna-se problemático e até instável. específico.
Para atenuar essa situação, um dos ca- Como a ESF incorpora os agentes comu-
minhos poderia ser o de elevar a escala de nitários de saúde (ACS), o repasse do MS a
valores dos incentivos financeiros do MS esse programa conta com valores adicionais
que ‘premiam’ os municípios que implantam de R$ 950 por agente/mês (quadro 1). Além
a ESF, bem como o de alterar os critérios disso, outras formas de repasses foram inse-
de sua distribuição, em consonância com ridas no financiamento da Atenção Básica,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


O financiamento da Atenção Básica e da Estratégia Saúde da Família no Sistema Único de Saúde 911

tais como o Programa Saúde na Escola, a transferências federais (PAB Fixo e Variável),
Unidade Odontológica Móvel e o Núcleo de no âmbito do custeio e da implantação da
Apoio à Saúde da Família (BRASIL, 2012). ESF, com respectivos valores destinados aos
Para uma visualização sintética das municípios, apresenta-se a seguir o quadro 1.

Quadro 1. Financiamento federal para a Atenção Básica

Custeio
Per capita/ano
PAB Fixo*
entre R$23,00 a R$ 28,00
ESF Modalidade I** ESF Modalidade II**
R$ 10.670,00/mês R$ 7.130,00/mês
ESB Modalidade I vinculada à ESF I ESB Modalidade II vinculada à ESF I
R$ 3.000,00/mês R$ 2.000,00/mês
ESB Modalidade II vinculada à ESF I ESB Modalidade II vinculada à ESF II
R$ 3.900,00/mês R$ 2.600,00/mês
UOM – unidades odontológicas móveis***
PAB VARIÁVEL R$ 4.680,00/mês
Agente Comunitário de Saúde****
R$ 950,00/mês
Nasf I***** Nasf II*****
R$ 20.000,00 R$ 6.000,00
Programa Saúde na Escola – PSE
Uma parcela extra do incentivo mensal às equipes de Saúde da Família que atuam nesse
programa
Implantação
ESF R$ 20.000,00/ESF implantada
ESB R$ 7.000,00/ESB implantada
UOM R$ 3.500,00/UOM implantada
NasfI R$ 20.000,00/implantada
NasfII R$ 6.000,00/implantada
Fonte: Vasconcellos (2013) e elaboração própria, a partir das Portarias relacionadas

* Valor reajustado pela Portaria MS/GM nº 1409, de 10 de julho de 2013


** Valor reajustado pela Portaria MS nº 978, de 16 de julho de 2011
*** Portaria MS nº 2371, de 07 de outubro de 2009
**** Portaria MS nº 978, de 16 de maio de 2012
***** Portaria MS nº 154, de 24 de janeiro de 2008

Segundo estudo realizado por de 70% do financiamento da Atenção Básica


Vasconcellos (2013) junto a gestores muni- em nível local. Por sua vez, os gestores
cipais, os valores repassados pelo governo também admitem que os repasses federais
federal são insuficientes para sustentar a constituem fração importante para o finan-
ESF. Isso fica perceptível quando eles são ciamento desse nível de atenção à saúde.
comparados à contrapartida dos recursos Até o ano de 2000, antes da vigência da
municipais, que, na prática, arcam com cerca LRF, as regras de repartição dos incentivos

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


912 MENDES, A.; MARQUES, R. M.

induziram à proliferação de centenas de encargos sociais – Instituto Nacional do


novas equipes municipais, muitas vezes Seguro Social (INSS), 13º salário e adicional
sem a menor possibilidade de sustentação de férias –, a remuneração passaria a R$ 24,5
sem os repasses do MS. Sem dúvida, em um mil/mês. Já o custo médio da remuneração
país onde os municípios são caracterizados estimada de uma EqSB, da modalidade I,
por enorme heterogeneidade de tamanho padronizado para 40 horas, ficaria em torno
e renda, os repasses federais cumprem – e de R$ 6 mil/mês; tendo encargos, R$ 7,9 mil/
deverão continuar cumprindo – papel fun- mês. E da modalidade II ficaria em cerca de
damental na busca da equidade no gasto da R$ 6,9 mil/mês; com encargos atingiria R$
ESF. Isso não significa que a instância muni- 9,2 mil/mês (Vieira; Servo, 2013).
cipal não tenha responsabilidade em garan- Ao se levar em consideração esse custo
tir recursos tributários próprios. de uma EqSF e as transferências do bloco de
Qualquer mudança com relação ao in- financiamento da Atenção Básica para a ESF
centivo financeiro federal da ESF deve levar nos municípios, confirma-se que os recursos
em conta, entre outras, duas dimensões federais repassados são insuficientes. Para se
importantes: a despesa com a equipe do ter uma ideia, é possível supor que os recur-
programa, ou melhor, o custo da equipe; e sos por equipe (PAB Variável) e os recursos
o porte populacional dos municípios. Para do PAB Fixo (R$ 18 per capita) somem, para
uma apuração do custo total da ESF deve-se uma ESF que atenda a três mil habitantes, o
considerar, além da despesa com pessoal e correspondente a R$ 4,5 mil por mês, com
encargos (as referentes), outros gastos, tais dados do ano de 2010 (Vieira; Servo, 2013). Além
como: material de consumo; remuneração disso, se forem acrescidos os repasses para
de serviços pessoais; outros serviços; valor a EqSB e os recursos para implantação das
de depreciação dos bens; cálculo médio dos EqSF e EqSB, conforme apresentados no
gastos com exames e diagnóstico; custos quadro 1, não se conseguiria cobrir os custos
indiretos (energia elétrica, água, telefone, indicados pela pesquisa do MS. Isso porque
veículos locados, obras e instalações, aquisi- o custo de recursos humanos (salários mais
ção de equipamentos e material permanen- encargos sociais), em média, representa 60%
te); e despesas administrativas. No entanto, do custo total dos serviços de uma EqSF, e o
a maior parte dos municípios não dispõe custo de uma EqSF total, com 40 horas, seria
sequer de registros organizados para que se de aproximadamente R$ 40.755,25, para
apurem os gastos mencionados. valores de 2010 (Vieira; Servo, 2013). Por sua vez,
De acordo com a pesquisa intitulada os repasses do MS, em 2010, para a ESF mo-
Necessidade de financiamento da Atenção dalidade II, com quatro ACS, e considerando
Básica, que foi realizada pelo MS em 2013 e o PAB Fixo de R$ 4,5 mil por mês, somam R$
envolveu o Departamento de Atenção Básica 13.756. Desse modo, o repasse do MS para
(DAB), o Departamento de Economia da uma ESF representa 33,8% do custo total.
Saúde, Investimentos e Desenvolvimento Ao ser agregado às ESB modalidades I e II, e
(Desid) e o Instituto de Pesquisa Econômica ainda considerando que as despesas de salá-
Aplicada (Ipea), em seu componente rios e encargos sociais representam 60% do
Estimativas de custos dos recursos humanos custo, os custos totais de uma ESB modalida-
em Atenção Básica (Vieira; Servo, 2013), uma ESF de I e uma modalidade II seriam, respectiva-
custaria, para o padrão nacional, em termos mente, R$ 13.240,68 e R$ 15.329,23. O repasse
de remuneração, em 2010, R$ 17,7 mil/mês, federal para custeio de uma eSB modalida-
ou, padronizando para 40 horas semanais, des I e II teriam participações respectivas de
R$ 18,5 mil/mês. Se fossem somados os 15,1% e 17% (Vieira; Servo, 2013).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


O financiamento da Atenção Básica e da Estratégia Saúde da Família no Sistema Único de Saúde 913

Considerações finais importância do PAB Variável, ao longo da


implantação da ESF, foi decorrente, princi-
Tendo em vista os baixos valores dos repas- palmente, da expansão dos incentivos finan-
ses para a ESF e do per capita do PAB Fixo, ceiros repassados para a implantação das
os municípios têm se utilizado de um volume EqSF nos municípios. A introdução desses
adicional de recursos próprios. Essa situação incentivos significou aumento de poder do
tem limites, pois, como mencionado ante- MS na determinação da política de saúde, o
riormente, o ritmo de crescimento da receita qual não é isento de conflitos. Dessa forma,
disponível dos municípios tem diminuído e com a introdução de novos critérios de
a LRF constitui um fator inibidor do gasto. rateio dos recursos do governo federal aos
Além disso, os municípios menores não estados e municípios estabelecidos pela Lei
contam com recursos próprios suficientes nº 141/2012, observando as necessidades de
para financiar a despesa não coberta pelo saúde da população; as dimensões epide-
governo federal. miológica, demográfica, socioeconômica,
Isso nos leva a considerar a possibilidade espacial e de capacidade de oferta de ações
de alteração dos critérios de distribuição dos e de serviços de saúde; e, ainda, o desem-
incentivos federais. Uma alternativa poderia penho técnico, entende-se que a política de
ser a de adotar a sistemática utilizada para manutenção dos incentivos financeiros do
distribuição dos recursos aos municípios governo federal deva ser revista.
correspondentes ao Fundo de Participação Por fim, considera-se importante rever
dos Municípios (FPM), que privilegia os o conceito de Atenção Básica no tocante à
pequenos municípios ao transferir maior dimensão do financiamento. Isso porque
valor quanto menor forem suas populações. seria fundamental rediscutir a inclusão de
Subjacente a esse critério ‘robinhoodiano’ outros itens que já constam do orçamento
está a baixa capacidade tributária dos peque- do MS, mas não fazem parte do Bloco de
nos municípios. Contudo, como os municí- Atenção Básica. Sabe-se que tal conceito
pios grandes dispõem de realidades bastante tem sido utilizado de forma restrita às ações
complexas, podendo apresentar carências e serviços financiados pelo PAB, excluin-
de todos os tipos, seria importante associar do, por exemplo, aquelas não hospitalares
a esse critério outros, que considerassem as de controle de doenças. Isto significa não
necessidades de saúde das regiões mais ca- restringir as ações e serviços ao nível de
rentes, muitas vezes situadas nos chamados complexidade da atenção à saúde, mas colo-
bolsões de pobreza. Para isso, no entanto, os cá-las no campo amplo da saúde pública. Por
municípios precisariam dispor de levanta- sua vez, é importante considerar, também,
mentos como o do Mapa da Pobreza. O re- que o fato de serem acrescidos outros itens
sultado dessa associação de critérios seria a a serem financiados para efeito de compo-
elevação ou a diminuição do valor repassado sição do conceito de Atenção Básica ‘am-
e, ao mesmo tempo, uma melhor distribui- pliado’, isto somente pode acontecer com a
ção interna ao município, de acordo com as inclusão de mais recursos financeiros para
necessidades de cada distrito ou região. Essa os atuais alocados na Atenção Básica, e que,
distribuição, no entanto, seria de respon- necessariamente, deve passar pelo fortale-
sabilidade do município, prevista no Plano cimento do financiamento do SUS, pleito
Municipal de Saúde. histórico das entidades que defendem a
Ainda cabe mencionar que o aumento da saúde universal. s

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


914 MENDES, A.; MARQUES, R. M.

Referências

AFONSO, J. R. R. Federalismo e Finanças Públicas no gov.br/sas/PORTARIAS/Port2006/GM/GM-648.htm>.


Brasil: uma Caixa Preta? Apresentação à 24ª Jornada de Acesso em: 09 fev. 2012.
Eventos da Unisantos. Santos, 11/10 de 2013. Disponível
em: <http://www.joserobertoafonso.ecn.br/>. Acesso ______. Ministério da Saúde. Saúde da família no Brasil:
em: 04 abr. 2014. uma análise de indicadores selecionados – 1998 – 2004.
Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006d.
AFONSO, J. R. R.; ARAUJO, E. A. A capacidade de
gastos dos municípios brasileiros: arrecadação própria ______. Ministério da Saúde. Portaria nº 204/GM de
e receita disponível. Cadernos Adenauer, São Paulo, v. 4, 29 de janeiro de 2007. Regulamenta o financiamento
junho 2000. e a transferência dos recursos federais para as
ações e serviços de saúde na forma de Blocos de
ALMEIDA, H. P.; CUNHA, F. S.; SOUZA, F. B. A. Financiamento e seu respectivo monitoramento e
Relações intergovernamentais e interinstitucionais controle. Disponível em: <http://dtr2001.saude.gov.br/
na implantação da Estratégia Saúde da Família no Rio sas/PORTARIAS/Port2007/GM/GM-204.htm>. Acesso
de Janeiro: estudo do Complexo do Alemão. Saúde em em: 07 set. 2014.
Debate, Rio de Janeiro, v. 35, n. 88, p. 39-47, jan/mar.
2011. ______. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº. 837,
de 24 de abril de 2009. Altera e acrescenta dispositivos
AQUINO, R.; OLIVEIRA, N. F.; BARRETO, M. L. à Portaria n° 204/GM, de 29 de janeiro de 2007, para
Impact of the Family Health Program on infant inserir o Bloco de Investimentos na Rede de Serviços
mortality in Brasilian municipalities. Am J Public de Saúde na composição dos blocos de financiamento
Health, Washington, D. C. v. 99, n. 1, p. 87-93, 2009. relativos à transferência de recursos federais para as
ações e os serviços de saúde no âmbito do Sistema
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº. 699, Único de Saúde – SUS. 2009. Disponível em: <http://
de 30 de março de 2006a. Regulamenta as Diretrizes bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/
Operacionais dos Pactos Pela Vida e de Gestão. prt0837_23_04_2009.html>. Acesso em: 07 nov. 2014.
Disponível em: <http://dtr2001.saude.gov.br/sas/
PORTARIAS/Port2006/GM/GM-699.htm>. Acesso em: ______. Ministério da Saúde. Sala de Apoio à Gestão
07 set. 2014. Estratégica. Disponível em: <http://189.28.128.178/
sage/>. Acesso em 03 dez. de 2013.
______. Ministério da Saúde. Portaria nº 399/GM de
22 de fevereiro de 2006b. Divulga o Pacto pela Saúde ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção
2006 – Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes à Saúde. Departamento de Atenção Básica. PNAB:
Operacionais do Referido Pacto. Disponível em: Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF:
<http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/ Ministério da Saúde, 2012. (Série E, Legislação em
Port2006/GM/GM-399.htm>. Acesso em: 07 set. 2014. Saúde).

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 648/2006, de ______. Ministério da Saúde. Financiamento público de
28 de março de 2006c. Aprova a Política Nacional de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2013a.
Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes
e normas para a organização da Atenção Básica para o ______. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM, nº 1409,
Programa Saúde da Família e o Programa de Agentes de 10 de julho de 2013. Define o valor mínimo da parte
Comunitários de Saúde. Brasília, DF: Ministério da fixa do Piso de Atenção Básica (PAB) para efeito do
Saúde, 2006c. Disponível em: <http://dtr2001.saude. cálculo do montante de recursos a ser transferido

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


O financiamento da Atenção Básica e da Estratégia Saúde da Família no Sistema Único de Saúde 915

do Fundo Nacional de Saúde aos Fundos de Saúde ______. Força trabalho e LRF. Campinas: IDISA,
dos Municípios e do Distrito Federal, e divulga os 2014a. Disponível em: <http://www.idisa.org.br/site/
valores anuais e mensais da parte fixa do PAB. 2013b. documento_10724_0__2014---35---707---domingueira--
Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ -forCa-trabalho-e-lrf---12-1-2014.html>. Acesso: 22 jan.
saudelegis/gm/2013/prt1409_10_07_2013.html>. 2014. (Domingueira, 707).
Acesso em: 07 set. 2014.
______. Financiamento da Saúde no Brasil. In:
______. Presidência da República. Lei Complementar CONGRESSO DE SECRETÁRIOS MUNICIPAIS DE
nº 141, de 13 de janeiro de 2012. Regulamenta o § 3o do SAÚDE DO ESTADO DE SÃO PAULO, 28., 2014b,
art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os Ubatuba.
valores mínimos a serem aplicados anualmente pela
União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações CONSELHO NACIONAL DAS SECRETARIAS
e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios MUNICIPAIS DE SAÚDE (CONASEMS). A Atenção
de rateio dos recursos de transferências para a saúde Básica que queremos. Brasília: Conasems, 2011.
e as normas de fiscalização, avaliação e controle das
despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo. CONSELHO NACIONAL DOS SECRETÁRIOS
2012b. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ DE SAÚDE (CONASS). Análise do Projeto de Lei
ccivil_03/leis/lcp/Lcp141.htm>. Acesso em: 07 dez. Orçamentária Anual PLOA 2014 e os Recursos
2013. destinados ao Ministério da Saúde. Brasília: Conass,
2013.
BUENO, W. S.; MERHY, E. E. Os equívocos da
NOB 96: uma proposta em sintonia com os projetos FUNDO NACIONAL DE SAÚDE. Consulta para
neoliberalizantes? 1997. Mimeo. Disponível em: <http:// pagamentos. Disponível em: <http://www.fns.saude.
www.eeaac.uff.br/professores/merhy/artigos-14.pdf>. gov.br/indexExterno.jsf>. Acesso em: 14 fev. 2014.
Acesso em: 18 nov. 2014.
GIOVANELLA, L. et al. Potencialidades e obstáculos
CARVALHO, G. Apontamentos sobre o PLOA 2011 para a consolidação da Estratégia Saúde da Família
do Ministério da Saúde. Campinas: IDISA, 2011. em grandes centros urbanos. Saúde em Debate, Rio de
Disponível em: <http://www.idisa.org.br/site/ Janeiro, v. 34, n. 85, p. 248-264, 2010.
documento_3726_0__2010---27---538---domingueira-
--mais-financiamento-da-saUde.html>. Acesso em: GIOVANELLA, L. et al. Saúde da família: limites e
07 nov. 2013. (Domingueira – Mais Financiamento da possibilidades para uma abordagem integral de atenção
Saúde, 538). primária à saúde no Brasil. Cienc. saúde coletiva, Rio de
Janeiro, v. 14, n. 3, p. 783-794, 2009.
______. LOA FEDERAL – 2012: apontamentos sobre os
recursos federais destinados à saúde. Campinas: IDISA, GUANAIS, F.; MACINKO, J. Primary care and
2012. Disponível em: <http://www.idisa.org.br/site/ avoidable hospitalizations: evidence from Brazil. J
documento_7791_0__2012---27---633---domingueira- Ambul Care Manage, Germanatown, v. 32, n. 2, p. 114-
--financiamento-213.html>. Acesso em: 07 nov. 2013. 121, 2009.
(Domingueira – Financiamento 213, 633).
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA
______. Orçamento do Ministério da Saúde para 2014. APLICADA (IPEA). Boletim de Políticas Sociais –
Campinas: IDISA, 2013. Disponível em: <http:// acompanhamento e análise, Brasília, DF, n. 21, 2013.
darcisioperondi.com.br/financiamento-da-saude-
gilson-carvalho-2/>. Acesso em: 18 nov. 2014. MARQUES, R. M.; MENDES, A. Atenção Básica e
(Domingueira, 704). Programa de Saúde da Família (PSF): novos rumos
para a política de saúde e seu financiamento? Ciência

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


916 MENDES, A.; MARQUES, R. M.

& Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 403-415, SERVO, L. et al. Financiamento e gasto público de
2003. saúde: histórico e tendências. In: MELAMED, C.;
PIOLA, S. F. (Org.). Políticas públicas e financiamento
MENDES, A. Tempos turbulentos na saúde pública federal do Sistema Único de Saúde. Brasília: Ipea, 2011.
brasileira: os impasses do financiamento no capitalismo p. 85-108.
financeirizado. São Paulo: Hucitec, 2012.
SOUSA, M. F. et al. Gestão da Atenção Básica:
MENDES, A. Financiamento, gasto e gestão do Sistema redefinindo contexto e possilidades. Divulgação em
Único de Saúde (SUS): a gestão descentralizada Saúde para Debate, Rio de Janeiro, n. 21, dez. 2000. p.
semiplena e plena do sistema municipal no Estado de 7-14.
São Paulo (1995–2001). 2005. 422 f. Tese [Doutorado
em Ciências Econômicas]. – Instituto de Economia, ______. A Reconstrução da Saúde da Família no
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. Brasil: diversidade e incompletude In: SOUSA, M.
F.; FRANCO, M. S.; MENDONÇA, A. V. (Org.) Saúde
MENDES, A; MARQUES, R. M. A dimensão do da Famíla nos municípios brasileiros: os reflexos dos
financiamento da Atenção Básica e do PSF no contexto 20 Anos no Espelho do Futuro. Campinas: Saberes
da saúde. In: SOUSA, M. F. (Org.). Sinais Vermelhos do Editora, 2014.
PSF. São Paulo: Hucitec, 2002, p. 71-101.
SOUSA, M. F.; MENDONÇA, A. V. M. Atenção Básica
MENDES, A; MOREIRA, M. (Org.). Comentários à à saúde no SUS: uma herança com testamento. Ciênc.
Lei de Responsabilidade na Gestão Fiscal. São Paulo: saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, p. 330-331,
Cepam, 2001. 2014.

RASELLA, D.; AQUINO, R.; BARRETO, M. L. VASCONCELLOS, S. C. A problemática do


Reducing childhood mortality from diarrhea and lower financiamento da Atenção Básica nos municípios no
respiratory tract infections in Brazil. Pediatrics, Elk período do Pacto pela Saúde (2006-2010): o caso do
Grove Village, v. 126, n. 3, p. 534-540, 2010a. Estado da Bahia. 2013. 158 p. Dissertação (Mestrado em
Ciências). – Faculdade de Saúde Pública, Universidade
RASELLA, D.; AQUINO, R.; BARRETO, M. L. Impact de São Paulo. São Paulo, 2013.
of the Family Health Program in the quality of vital
information and reduction of child unattended deaths VIEIRA, R. S.; SERVO, L. M. S. Estimativas de custos
in Brazil: an ecological longitudinal study. BMC Public dos recursos humanos em atenção básica: equipes de
Health, Washington, D. C., v. 10, p. 380, 2010b. saúde da Família (ESF) e Equipes de Saúde Bucal
(ESB). Pesquisa Necessidade de Financiamento da
RODRIGUES, L. B. B. et al. A atenção primária à saúde Atenção Básica. Brasília: Ipea: Disoc, 2013. Mimeo.
na coordenação das redes de atenção: uma revisão (Nota Técnica Brasília, 16).
integrativa. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 19,
n. 2, p. 343-352, 2014.
Recebido para publicação em abril de 2014
Versão final em julho de 2014
Conflito de interesses: inexistente
SANTOS, A. M. et al. Práticas assistenciais das Equipes
Suporte financeiro: não houve
de Saúde da Família em quatro grandes centros
urbanos. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n.
10, p. 2687-2702, 2012.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 900-916, OUT-DEZ 2014


ensaio | essay 917

Contribuição sociopolítica para a gestão


das tecnologias em saúde no contexto dos
princípios e diretrizes do Sistema Único de
Saúde real e possível
Sociopolitical contribution to the health technologies management
in the context of the principles and guidelines of real and possible
Unified Health System

Antonio Luis Vicente Arreaza1

RESUMO Este ensaio tem por objetivo maior revisitar alguns dos fundamentos sociopolíticos
das tecnologias em saúde como uma construção sociohistórica e como um bem público virtu-
oso potencializado, contribuindo assim reflexivamente para uma gestão sociopolítica e demo-
crática das inovações em saúde em termos éticos, regulatórios e jurídicos sob uma perspectiva
normativa dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde real e possível.

PALAVRAS-CHAVE Ciência, tecnologia e sociedade; Desenvolvimento tecnológico; Gestão em


saúde.

ABSTRACT This essay has as main aim to revisit some of the sociopolitical fundamentals of the
technologies in health as a socio-historical construction and as strengthened virtuous public
good, thus reflexively contributing to a sociopolitical and democratic management of innova-
tions in health in juridical, regulatory and ethical terms, from a normative perspective of the
principles and guidelines of real and possible Unified Health System.

KEYWORDS Science, technology and society; Technological development; Management in health.

1 Mestre em Saúde
Coletiva pela
Coordenadoria de Controle
de Doenças da Secretaria
de Estado da Saúde de
São Paulo (CCD/SES/
SP) – São Paulo (SP), Brasil.
Pesquisador Científico
do Centro de Laboratório
Regional de Santos do
Instituto Adolfo Lutz (CLR-
Santos/IAL/CCD/SES/SP)
- Santos (SP), Brasil.
arreaza@ial.sp.gov.br

DOI: 10.5935/0103-1104.20140080 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 1103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014
918 ARREAZA, A. L. V.

Introdução entre os sujeitos da vida coletiva, democráti-


ca e equitativa; bem como de reconhecimen-
A Constituição Federal de 1988 (CF-1988) to sociocultural dos direitos de titularidade
inaugurou um novo momento político-ins- coletiva que vem de encontro ao pleno de-
titucional no Brasil ao reafirmar o Estado senvolvimento do Estado Democrático de
Democrático de Direitos e ao definir uma Direitos, efetivando as intervenções sanitá-
política de proteção social abrangente, re- rias legitimadas pelos cidadãos para o des-
conhecendo a saúde como direito social frute do bem-comum e de uma saúde com
de cidadania e inscrevendo-a no rol de um qualidade de vida (Arreaza, 2014).
conjunto integrado de ações de iniciativa No âmbito da CF-1988 têm-se como prin-
dos poderes públicos e da sociedade civil cípios, além da cidadania e da dignidade da
voltados para assegurar a nova ordem social, vida humana, o pluralismo político-ideológi-
cujos objetivos precípuos são a justiça social co, os valores sociais do trabalho e da livre
distributiva e o bem-estar comum entre os iniciativa para, a partir daí, construir uma
sujeitos de direitos em suas coletividades sociedade justa e solidária, assegurando o
(Brasil, 2008). A partir daí, o Estado encon- desenvolvimento da erradicação da pobreza
tra‑se juridicamente responsabilizado a e reduzindo as iniquidades sociais, promo-
exercer atividades objetivando a construção vendo o bem comum sem excluir gêneros,
dessa nova ordem social, logo um conjunto etnias, religiões, culturas e pessoas com
de leis, portarias ministeriais e práticas ges- necessidades especiais. Em que todos são
toras buscaram viabilizar o projeto demo- iguais perante a lei, sem distinção de qual-
crático da Constituição Cidadã. Desde então, quer natureza, garantindo aos brasileiros e
com a CF-1988 instituída, tornou-se cada aos estrangeiros residentes no País a invio-
vez mais frequente a interferência do Poder labilidade do direito à vida, igualdade, se-
Judiciário em questões que são a priori de gurança e propriedade privada, cabendo ao
competência dos poderes executivos e le- Estado assegurar esses direitos para que os
gislativos. A este novo papel exercido pelo cidadãos tenham condições dignas de vida
Judiciário na garantia do direito à saúde dos (Brasil, 2008).
sujeitos atribui‑se a concepção de judiciali- Em decorrência do direito à vida, tem-se
zação da saúde (BAPTISTA; MACHADO; LIMA, 2009). o direito à integridade física, moral e psíqui-
No contexto democrático brasileiro con- ca dos cidadãos, e, ao enaltecer a dignidade
temporâneo, o fenômeno de judicialização humana no tocante ao valor ético-social das
da saúde expressa reivindicações e modos de pessoas e famílias, a proteção de sua integri-
atuação legítimos de cidadãos e instituições, dade assume a feição de direito intersubje-
para a garantia dos direitos de cidadania am- tivo fundamental, repercutindo nos direitos
plamente afirmados nos tratados nacionais de educação, saúde, trabalho, moradia, segu-
e internacionais. Esse fenômeno como uma ridade social, de proteção à maternidade e à
expressão da efetivação do direito social à infância, à saúde mental e aos desamparados
saúde, envolve aspectos políticos, econômi- em particular. Pois, a proteção da vida e da
cos, culturais, éticos, científicos e sanitários saúde dada por meio de políticas públicas
que vão muito além do seu componente permite o desenvolvimento de condições
jurídico e da gestão dos serviços de saúde dignas e saudáveis de existência, visando
(Ventura et al., 2010). Isto é, de reconhecimento minimizar as situações sociais desiguais,
ético-moral dos sujeitos frente às violações priorizando os mais frágeis, como os direitos
e injustiças sociais de forças neoliberais do emancipatórios do bom viver que buscam
capitalismo tardio, que obstruem o alcance recriar condições mais propícias de vida po-
de patamares de emancipação sociopolítica sitiva e equitativa (Barruffini, 2008).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


Contribuição sociopolítica para a gestão das tecnologias em saúde no contexto dos princípios e diretrizes do 919
Sistema Único de Saúde real e possível

Já a dignidade da vida humana, por si só, A inclusão da saúde como uma dimensão
já exigiria a garantia do direito à saúde ao da qualidade de vida e do bem-estar social
lado do direito à vida, a saúde é corolário do aponta para uma visão abrangente dos deter-
direito à vida e da dignidade humana, cons- minantes sociais da saúde-doença, como para
tituindo uma tríade que garante o exercício uma orientação sistêmica das prioridades em
dos demais direitos e liberdades positivas, e pesquisas e do desenvolvimento tecnológico
por gozarem de uma dimensão ética e moral, e de suas inovações em saúde, destacando a
espraiam-se por todos os setores da socieda- necessidade de critérios políticos, econômi-
de sob a forma de deveres sociais e comuni- cos, epidemiológicos e estratégicos da gestão
tários. Em que a saúde é uma das condições em saúde. O setor da saúde é conformado
essenciais da liberdade e da igualdade de por sistemas que incluem as atividades de
todos perante a lei, e o devir do seu direito, saúde pública no seu plano coletivo, e os ser-
sendo inerente ao viver humano, constitui-se viços de atenção médico-hospitalar no plano
em um direito subjetivo e coletivo ao mesmo individual, em que os aspectos técnicos e
tempo. Diz-se que a saúde tem uma dimen- de gestão do setor são condicionados pelas
são que transcende a sua própria positiva- políticas sociais, econômicas e sanitárias de
ção no ordenamento jurídico, por ser uma Estado, como pelo desenvolvimento cientí-
das condições relevantes para o exercício fico e tecnológico existente e incorporado
emancipatório dos sujeitos, além de nossa ao setor; onde o acesso ao sistema como um
Constituição ter positivado amplamente o todo e aos serviços específicos em particular,
direito à saúde (Santos, 2010). como aos processos e produtos tecnológicos
Logo, a saúde é um direito fundamental da disponíveis, derivam de interações comple-
vida garantida mediante políticas públicas xas e dinâmicas entre todas essas dimensões
que visam à redução de riscos e danos, como nucleares do campo da saúde pública (Novaes;
o acesso universal e igualitário aos serviços Goldbaum; Carvalheiro, 2001).
para a sua promoção, proteção e recupera- O campo da ciência e tecnologia em saúde
ção, onde o dever do Estado não exclui o das pode ser apreendido articulando-se o núcleo
famílias, das empresas e sociedade em geral; central do setor saúde com as inúmeras redes
onde os níveis de saúde de uma população que se estabeleceram entre este e as instân-
expressam a organização política, social e cias do saber científico-tecnológico, e destes
econômica do seu país. A saúde é um estado com os segmentos produtivos das indústrias
dinâmico com seus determinantes sociais, de saúde. As pesquisas científico-tecnoló-
políticos, econômicos, históricos e culturais, gicas se constituem em atividades altamen-
desdobrando-se em corporeidade biopsíqui- te competitivas, estruturadas e reguladas
ca e subjetiva, tendo moderada quantidade por parâmetros e normas próprias, além de
de limitações com vivências de bem-estar, e estarem inseridas em contextos políticos e so-
sendo tanto objeto de desejo como uma con- cioeconômicos, isso é singular para a área de
cretude da vida social. Frente ao bem-estar inovações em saúde, de grande importância
social é pensada em termos de aquisições político-econômica em países desenvolvidos.
positivas de meios para o enfrentamento de Porém, essa área vem enfrentando questiona-
infortúnios e privações pelos sujeitos da vida mentos que se caracterizam, de modo geral,
coletiva, em que a ampliação de bens desti- pela busca de uma melhor articulação entre
nados a promover uma boa qualidade de vida os processos de produção do conhecimento e
sob o ponto de vista biopsicossocial, é uma das suas condições de utilização, como do seu
tarefa ao mesmo tempo individual e coletiva, impacto sobre a saúde dos sujeitos e de coleti-
tanto de promoção quanto de prevenção e vos em geral. A insuficiência das políticas tec-
assistência (Arreaza, 2014). nológicas para dar conta das necessidades da

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


920 ARREAZA, A. L. V.

saúde pública permitiu o desenvolvimento participação do setor privado na oferta de


de uma série de propostas políticas, incorpo- produtos inovadores; e cujas repercussões
rando ao seu discurso a ideia de não ser uma contraditórias têm sido status ou alienações,
política apenas estatal e centralizada (Novaes; benefícios ou riscos, custos ou danos, como
Goldbaum; Carvalheiro, 2001). valores de troca ou de uso entre sujeitos e
Marques (1999) já argumentava, no final do coletividades, podendo até gerar iniquidades
século passado, que as tendências observa- sociais em saúde (Gadelha, 2003).
das no cenário internacional evidenciavam Ayres (2007) defende que o ocultamento
que a fronteira da ciência, todavia, estava dos modos de vida e saúde historicamente
muito mais voltada para as necessidades específicos decorre da colonização de práti-
dos mercados e empresas de alta tecnologia cas e experiências vivenciadas pelos sujeitos
do que para os desafios sociais, ambientais em suas coletividades, essa colonização dar-
e da própria saúde pública. Nelas encon- -se-ia por meio da hegemonia das estrutu-
travam-se as razões para o predomínio, nos ras conceituais e instrumentais das ciências
países desenvolvidos, de uma interpretação biomédicas que induz a incorporação tec-
hegemônica frente ao seu domínio sobre a nológica, como pela cultura dos limites da
Ciência e Tecnologia (C&T). Tendo a ciência gestão tecnocrata que seleciona e direciona
se transformado no elemento essencial das as tecnologias de saúde, suscitando debates
potências de primeiro mundo, razão de sua éticos e políticos sobre as escolhas a serem
bem sucedida capacidade de competir e de feitas frente às prioridades de saúde pública
acumular riquezas, passou a constituir o seu das coletividades em geral. Apontando-se
principal patrimônio e o seu maior negócio. para uma recomposição humanizadora das
Ainda nos dias de hoje, a afirmação de que práticas de saúde, tornando profissionais,
os produtos da ciência são patrimônio da serviços, programas e políticas de saúde
humanidade torna-se uma interpretação comprometidos com os sucessos práticos
idealizada, que, na maioria das vezes, não potencializados por meio e para além de
encontra correspondência prática tampouco qualquer êxito técnico no cuidado em saúde
politicidade orgânica; vem daí os conflitos dos sujeitos de direitos, compreende‑se
de interesses que cercam a apropriação dos como um modo de promover à saúde a busca
resultados da C&T, como nos processos de socialmente compartilhada para evitar,
transferência de tecnologias e nas transações manejar ou superar de modo mais apropria-
comerciais internacionais, as quais ressaltam do os processos de adoecimento, indicando
as divergentes visões de diferentes nações a os obstáculos encontrados por sujeitos e co-
respeito da propriedade intelectual. letividades à realização dos seus projetos de
Há mais de 50 anos, nos países desenvol- bem-estar comum no Estado Democrático
vidos, a geração de bens e serviços para a de Direitos.
saúde vem representando um dos segmen- Diante do cenário exposto, o presente
tos mais presentes na economia política das ensaio tem por objetivo revisitar alguns dos
inovações tecnológicas. A transição demo- fundamentos sociopolíticos das tecnologias
gráfica como a epidemiológica, a implan- em saúde como uma construção sociohistóri-
tação de políticas públicas de inovação e o ca e cultural e como um bem público virtuoso
fortalecimento das indústrias da saúde são potencializado, contribuindo reflexivamente
alguns dos fatores desse devir tecnológico para uma gestão sociopolítica e democrática
globalizado, cujos impactos têm sido a cres- das inovações em saúde em termos éticos, re-
cente demanda por bens de alta densidade gulatórios e jurídicos, numa perspectiva nor-
tecnológica, a incorporação acelerada de mativa dos princípios e diretrizes do Sistema
novas tecnologias médicas e a expressiva Único de Saúde (SUS) real e possível.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


Contribuição sociopolítica para a gestão das tecnologias em saúde no contexto dos princípios e diretrizes do 921
Sistema Único de Saúde real e possível

Por uma política das condições com os países ricos e avançados,


tecnologias em saúde associaram um complexo industrial sólido
a uma base endógena de conhecimento, de
como uma construção aprendizado e de inovação. Porém, no setor
sociohistórica e como da saúde esta visão, todavia, é problemática,
um bem público virtuoso uma vez que os interesses empresariais se
potencializado movem pela lógica do lucro incondicional e
não para o atendimento das necessidades de
A importância estratégica das inovações saúde, onde a noção de Complexo Industrial
indica tanto as interações entre a pesqui- da Saúde (CIS) constitui uma tentativa de
sa científica e as inovações tecnológicas no fornecer um referencial teórico-operacional
setor saúde, como as múltiplas influências que permita articular duas lógicas distintas,
entre a construção de um sistema efetivo de a sanitária e a do crescimento econômico,
inovação e a economia nacional e o desenvol- pois o setor saúde constitui uma frente de
vimento tecnológico. No Brasil, onde o atraso inovação estratégica e de desenvolvimento
tecnológico coexiste com o do social, a supe- na sociedade capitalista do conhecimento
ração de ambos passa pelo fortalecimento (Gadelha, 2006).
dos sistemas de inovação, para impulsionar Em princípio, a concepção de CIS envolve
o desenvolvimento industrial e tecnológico um conjunto articulado de segmentos e ati-
que sustenta em parte o crescimento econô- vidades produtivas que mantêm relações
mico do País; logo, o setor saúde se constitui intersetoriais de valores de trocas e de usos
num vínculo estrutural e operacional entre de produtos e insumos, como na transferên-
esses dois arranjos institucionais, implican- cia de novos conhecimentos e tecnologias
do além dos impactos econômicos gerados inovadoras entre as instituições de pesqui-
por qualquer atividade inovadora, tais ini- sas científicas, os segmentos produtivos de
ciativas nesse setor tem um impacto direto inovações e o setor da saúde na prestação de
sobre a capacidade produtiva e tecnológica serviços para os usuários do sistema, como
do País (ALBUQUERQUE; SOUZA; BAESSA, 2004). um espaço político e econômico para onde
Nesse sentido, o reconhecimento da re- flui toda a produção em saúde, tanto por se
levância das práticas de inovação na econo- organizar sob as bases da lógica industrial
mia já atingiu um amplo consenso entre os quanto por configurar o mercado da saúde
empresários, governantes, gestores, formu- como uma construção sociopolítica e insti-
ladores de políticas, como a comunidade tucional. Isso confere uma dada organicida-
científica. Essa constatação se deve, então, de ao complexo, permitindo articular num
aos impactos positivos que os processos de mesmo contexto a pesquisa, a produção,
inovação e seus produtos introduziram na a difusão e a utilização de tecnologias em
economia dos países desenvolvidos, e que os saúde, tão diversificadas como os fárma-
emergentes também buscam, sendo respon- cos, as vacinas, os equipamentos e insumos
sáveis por conferir saltos de competitividade biomédicos, e também produtos para diag-
e transformações nos seus sistemas produti- nóstico, tratamento e reabilitação, como os
vos nacionais (VIANA; NUNES; SILVA, 2011). materiais médicos em geral.
A política industrial e as inovações tecno- O conceito de CIS privilegia, como ele-
lógicas constituem os elementos determinan- mento crítico desse sistema, a atividade
tes do dinamismo das economias capitalistas produtiva inovadora, considerando que o
e de sua posição relativa nos mercados glo- núcleo de maior vulnerabilidade econômica
balizados. Todos os países que se desenvol- do Brasil no setor da saúde, todavia, é a fragi-
veram e passaram a competir em melhores lidade do segmento industrial e empresarial

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


922 ARREAZA, A. L. V.

na geração de inovações na saúde. A capaci- organização institucional e de regulação das


dade inovadora do País é determinada pelo atividades mercantis e produtivas, de forma a
potencial de transformação dos conheci- viabilizar um padrão de incentivos e sanções
mentos científicos em bens e serviços novos que permitam a orientação de setores em-
ou aperfeiçoados quanto à sua qualidade nos presariais para objetivos de caráter social e
processos produtivos tecnológicos. Essa ca- o atendimento das necessidades nacionais e
pacidade no País ainda é desarticulada das da população.
bases científico-tecnológicas como das ne- Reconhecer a natureza capitalista do
cessidades do setor da saúde, principalmen- setor da saúde, como a produção em massa,
te pela incipiente capacidade empresarial de a lógica empresarial e financeira e, sobretudo,
investir e realizar pesquisas, e desenvolver a dinâmica das inovações e o valor agregado
tecnologias inovadoras, como de sua depen- é essencial para a concepção de políticas que
dência externa no contexto da revolução in- almejem atenuar o viés inerente do capitalis-
dustrial e tecnológica da globalização tardia, mo tardio entre a busca do lucro e de mercados
ainda em curso nos dias de hoje (Gadelha, 2006). e o atendimento das necessidades sociais e in-
O CIS tem passado por profundas trans- dividuais. Não é desconsiderando ou negando
formações em sua estrutura operacional a dinâmica capitalista que se poderá conceber
produtiva, nas estratégias com as organi- políticas adequadas, pelo contrário, somente
zações públicas e privadas, nas formas de pela compreensão de sua lógica tecnoopera-
atuação entre Estado, sociedade e ciência cional é possível buscar meios efetivos para
e tecnologia, e na reestruturação do setor que as finalidades sociais sejam atingidas nos
saúde do País, resultando em oportunidades marcos deste sistema globalizado.
e desafios numa perspectiva de economia Logo, a política industrial e tecnológica é
política da inovação em saúde. A lógica ca- um problema da política de saúde, situando
pitalista penetra em todos os seus segmentos o CIS como setor crítico de desenvolvimento
produtivos, envolvendo tanto as indústrias e intervenção, para tanto, torna-se premen-
que já operavam tradicionalmente nessas te a integração dos grandes segmentos do
bases, como a farmacêutica e a de equi- complexo, como da produção de produtos
pamentos médicos, quanto os segmentos industriais e dos bens e serviços de saúde,
onde era possível verificar a coexistência de sob uma perspectiva de que são, simultane-
lógicas empresariais com outras que delas se amente, espaços capitalistas de acumulação,
afastavam, como o de produção de vacinas e inovação, crescimento econômico, como de
o de outros produtos biomédicos, e também geração de bem-estar comum, incorporando
na prestação de serviços em saúde pública. interesses sociais não subordinados à lógica
Gadelha (2003) coloca que a área da saúde dos mercados (Gadelha, 2003).
e o CIS com os seus setores de atividade O CIS envolve então um conjunto de in-
produtiva, aliam alto dinamismo econômico, dústrias que produz bens de consumo e equi-
elevado grau de inovação e importante in- pamentos especializados, como uma rede
teresse social, sendo um lócus intersetorial de serviços prestadores que demandam e
para a concepção de políticas industriais utilizam os produtos gerados por setores in-
articuladas com as políticas de saúde. Isto dustriais, expressando uma clara relação de
significa que o setor da saúde é, ao mesmo intersetorialidade no âmbito do setor saúde. A
tempo, um espaço de inovação e de acumula- princípio, destacamos os três grupos de ativi-
ção de capital, constituindo um segmento de dades tecnológicas no contexto do CIS: o pri-
geração de renda, emprego, desenvolvimen- meiro congrega as indústrias de base química
to e oportunidades de investimento, como e biotecnológica que produzem medicamen-
um setor que expressa as suas formas de tos, vacinas, hemoderivados, kits diagnósticos

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


Contribuição sociopolítica para a gestão das tecnologias em saúde no contexto dos princípios e diretrizes do 923
Sistema Único de Saúde real e possível

etc. Como o setor de medicamentos é lidera- e produtos das indústrias farmacêuticas e de


do por um bloco de empresas farmacêuticas equipamentos e materiais médicos, articulan-
altamente intensivas em tecnologias, e que do a oferta e o consumo dessas tecnologias de
dominam o mercado mundial, há uma ten- saúde nos espaços públicos e privados como
dência de as mesmas ampliarem as suas fron- todo (GADELHA, 2003).
teiras para englobar os demais setores, como Por um lado, sob o ponto de vista da dinâ-
já vem ocorrendo a partir dos anos 1990 na mica industrial e das suas inovações tecno-
área das vacinas biotecnológicas. Desde então, lógicas, os setores prestadores de serviços se
essas multinacionais incorporam esse setor caracterizam, em parte, como uma atividade
em busca de liderança, investindo em inova- submetida à produção e ao fornecimento de
ção de vacinas de alto valor agregado, além de produtos de alta densidade tecnológica e
realizarem fusões e parcerias tecnológicas no valor agregado, tais como as novas vacinas,
contexto do CIS; logo, seria relevante que o os medicamentos e os equipamentos. Por
governo brasileiro reforçasse os investimen- outro lado, sob o ponto de vista da interseto-
tos com a incorporação dessa tecnologia pelas rialidade, é o segmento dos serviços de saúde
empresas nacionais, possibilitando a produ- que confere organicidade ao complexo, re-
ção desses insumos estratégicos para a saúde presentando o local para onde conflui toda a
pública nacional (GADELHA, 2003; HOMMA et al., 2011). produção dos demais grupos industriais.
Aliás, o Ministério da Saúde coordena as O CIS se insere em um contexto político
atividades que visam o fortalecimento da e institucional mais amplo, conformando um
capacitação tecnológica nacional em imu- sistema intersetorial de inovação e proteção
nobiológicos, pois, além de aumentar o or- social, onde se desenvolve uma dinâmica de
çamento para vários projetos de inovação influência recíproca entre Estado, sociedade
em vacinas e dos seus processos produtivos, e inovações em saúde, que estabelece, em
vem trabalhando para a modernização da última instância, um vínculo sólido entre o
infraestrutura produtiva biotecnológica, setor empresarial, universidades, institutos
bem como para integrar os marcos regulató- de pesquisa e a área da saúde. De um lado,
rios de Estado na obtenção de isenção fiscal pela intensidade de saberes e tecnologias de
pelas empresas, no uso do poder de compra todas as atividades produtivas de saúde, em
do Estado e na regulação desses produtos que as instituições de pesquisas são a fonte
tecnológicos do CIS (HOMMA et al., 2011). essencial das inovações e representam o
Já o segundo grupo é constituído pelas fator crítico de competitividade do CIS. De
indústrias que produzem equipamentos, pró- outro lado, pelo caráter social da destinação
teses, órteses e materiais e insumos em geral, tecnológica em saúde, onde a atuação da
neste grupo cabe destacar o papel da indústria sociedade organizada se destaca como uma
de equipamentos, tanto pelo seu potencial de prática de pactuação da gestão em saúde,
inovação em microeletrônica quanto pelo seu para que a política de inovação incida de
impacto nos serviços de saúde, ocasionando modo mais acentuado.
mudanças importantes nas práticas assisten- Nesse contexto, cabe destacar o papel que
ciais e explicitando a tensão entre a lógica o Estado cumpre na dinâmica dos setores
da indústria e a sanitária de saúde pública. produtivos mediante as suas ações de pro-
Por fim, o último grupo congrega os setores moção e regulação, que na área da saúde
prestadores de serviços de saúde constituídos adquirem uma extensão raramente vista
por unidades hospitalares, ambulatoriais, de em outro grupo ou cadeia produtiva do CIS,
atenção básica e serviços de apoio diagnós- como da aquisição e uso de bens e serviços,
tico e terapêutico, esse grupo é responsável da alocação de recursos para a saúde, dos
por organizar toda a cadeia de suprimentos investimentos realizados na indústria e na

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


924 ARREAZA, A. L. V.

rede assistencial, e de um amplo espectro de e inovações, e a legitimar sua competitividade


práticas regulatórias que delimitam as es- perante a sociedade como um todo, onde as
tratégias dos agentes econômicos e gestores tensões inerentes aos objetivos de ambas en-
das tecnologias em saúde. O Estado constitui contram um terreno comum para promover a
assim uma instância determinante da dinâ- ação social do Estado, revertendo-se mutua-
mica industrial do CIS, graças ao seu elevado mente numa alavanca de bem-estar social e
poder de compra e indução de inovações, e às de competitividade. Já a construção de uma
suas atividades de regulação, que desempe- cadeia produtiva autossuficiente, balizada
nha através de uma forte interação com a so- nas políticas de inovação em saúde, contribui
ciedade civil organizada (GADELHA, 2003). Pois, o tanto para a produção de novas vacinas bio-
mesmo tem um papel relevante na compati- tecnológicas quanto para a consolidação da
bilização das políticas de inovação com as de política dos medicamentos genéricos destina-
saúde, estabelecendo uma ampla regulação dos às pessoas com menor poder aquisitivo,
sobre os agentes econômicos, além das suas e/ou fragilizadas diante das contingências da
políticas públicas para o bem-estar social das sociedade capitalista (GADELHA, 2004).
pessoas, ao mesmo tempo em que induz o O relevante é que a política tecnológica se
setor empresarial a adotar estratégias inova- efetue com evidências concretas do mercado
doras com base nos investimentos feitos em das inovações em saúde, dos potenciais tec-
pesquisa e desenvolvimento, em que inicia- nológicos das empresas e de instituições pú-
tivas promissoras de inovação compartilham blicas e privadas, e das prioridades de saúde
uma interface existente entre as políticas de da sociedade como um todo. Para tanto, é es-
saúde e o crescimento econômico (GADELHA; sencial a realização de pesquisas estratégicas
QUENTAL; FIALHO, 2003). para definir os alvos prioritários em situações
Já a Política Nacional de Ciência e específicas, e para avaliar a adequação dos
Tecnologia (PNCT) é considerada uma das arranjos institucionais frente aos objetivos
políticas públicas que o Estado fomenta e de autossuficiência tecnológica e compro-
coordena com os produtores, prestadores, metimento ético-social. Já para articular a
pesquisadores e usuários, em toda a cadeia política tecnológica com as diretrizes do SUS,
produtiva, pois para ampliar a sua capacida- é mister fortalecer a política de inovação em
de regulatória necessita de informações con- saúde, conferindo um novo estatuto à dimen-
cretas dirigidas à gestão dos problemas de são social da tomada de decisão na produção
saúde, onde o seu papel é o de formular, em de insumos e produtos, pactuando os seus
sintonia com as diretrizes do SUS, uma polí- objetivos de inserção competitiva com os de
tica tecnológica transparente, que integre de distribuição equitativa das inovações para os
forma equânime os seus eixos condutores, problemas prioritários de saúde da sociedade
fornecendo subsídios para o planejamento e em geral (CONDE; ARAÚJO-JORGE, 2003).
a avaliação das tecnologias a serem utiliza- Faz-se necessário, então, uma efetiva re-
das no setor saúde para a prestação de bens estruturação das instituições de ciência e
seguros e eficientes no atendimento dos inte- tecnologia, visando a uma maior autonomia
resses e das necessidades das coletividades. gerencial no alcance de políticas seguras e
Assim, a PNCT deve dirigir toda a sua transparentes de gestão, e na transferên-
cadeia produtiva de insumos estratégicos cia democrática de saberes e tecnologias
às demandas potenciais de saúde da popu- na perspectiva das diretrizes do SUS, com
lação em geral, pois, a política industrial e a participação da sociedade e com o envol-
tecnológica pensada de forma integral tende vimento de todos os atores no processo de
a estabelecer vínculos com as políticas de inovação em saúde, direcionando a geração
saúde, ampliando o acesso aos seus produtos dos saberes bem como a utilização de seus

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


Contribuição sociopolítica para a gestão das tecnologias em saúde no contexto dos princípios e diretrizes do 925
Sistema Único de Saúde real e possível

resultados na implementação de políticas de políticas indutoras de desenvolvimento


públicas frente as reais necessidades das co- nacional e iniciativas dirigidas para a área
letividades locais. Ademais, compactuo com da saúde, como a implantação da PNCT em
a tese de que inovações são bens públicos meados dos anos de 1990, sugere-se que
essenciais, e as iniquidades ao seu acesso são rumos importantes vêm sendo tomados
relevantes fatores das desigualdades sociais com o objetivo de reverter essa situação de
em saúde, sendo necessário para a sua supe- dependência e de rupturas entre a saúde e o
ração a integração das políticas de saúde e as desenvolvimento no contexto nacional.
tecnológicas com o fortalecimento de prio- Sob uma perspectiva global, os anos 1990
ridades de ambas, multiplicando os sujeitos se caracterizaram por crises econômicas re-
envolvidos e os espaços de interação entre correntes, e apesar dos indiscutíveis avanços
eles. Isto deve viabilizar o acesso equitativo científico-tecnológicos da época, as condições
a saberes e tecnologias pertinentes, que per- de vida e saúde, para muitos, parecia estar
mitam a realização dos seus interesses e da pior do que nas décadas anteriores, onde o
prestação efetiva de bens e serviços para a campo da saúde pública se deparava com pro-
saúde pública (PELLEGRINI-FILHO, 2004). blemas relativos à persistência da pobreza,
Cabe mencionar que as condições de ao recrudescimento das iniquidades e à ex-
saúde da população não dependem, por si clusão social, ao desemprego e ao aumento
só, do êxito das políticas de saúde, mas da da economia informal, ao crescimento e en-
combinação virtuosa entre o crescimento velhecimento populacional, à urbanização
econômico e o desenvolvimento social; isto explosiva, à instabilidade econômica e po-
é, da compatibilização entre políticas volta- lítica, ao enfraquecimento das governanças
das para promover a prosperidade econômi- em geral e dos sistemas de saúde nacionais,
ca, gerando renda, emprego e oportunidades aos baixos desempenho e resolutividade dos
de investimento, e políticas públicas que serviços de saúde, ao desenvolvimento cien-
protegem a saúde e o bem-estar das pessoas. tífico-tecnológico acentuado, gerando novas
Quando existe uma clara dicotomia entre demandas e custos, como ao perfil epide-
saúde e desenvolvimento, seja porque a po- miológico das coletividades com persistência
lítica econômica não busca a promoção da dos velhos problemas e emergência de novas
equidade e da inclusão social ou porque o doenças. Ao mesmo tempo, acreditava-se que,
setor de saúde não incorpora o modelo de se o setor de saúde dos países passasse por
proteção social, o resultado pode ser a exis- transformações importantes em suas caracte-
tência de um par não virtuoso em que as ati- rísticas estruturais e formas de atuação, eles
vidades produtivas do setor de saúde podem poderiam contribuir em parte para a reversão
não estar direcionadas para as necessidades ou diminuição desses problemas, como em
reais da população (VIANA; NUNES; SILVA, 2011). relação ao redirecionamento das tecnologias
Esses autores lembram ainda que o Brasil frente às prioridades de saúde pública e ao
foi marcado pela ausência de políticas públi- impacto positivo na prevenção e controle das
cas voltadas para formar um sistema nacio- doenças emergentes e reemergentes (NOVAES;
nal de inovação no setor saúde, fortalecer a Carvalheiro, 2007).
indústria nacional e ampliar a sua capacidade Essas mudanças poderiam, então, ser
instalada em segmentos estratégicos do CIS, efetivamente alcançadas por meio de ações
cuja problemática se evidencia na grande políticas e econômicas contextuais e pelo
dependência do País em novas tecnologias, desenvolvimento de políticas setoriais no
fazendo com que se constitua num modelo âmbito da saúde pública, capazes de articular
não virtuoso de interação entre a saúde e o objetivos políticos, sociopolíticos e econômi-
desenvolvimento. No entanto, com a adoção cos com os processos de produção, difusão,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


926 ARREAZA, A. L. V.

incorporação, utilização e avaliação das tec- independentes e/ou fragmentadas. O trata-


nologias de saúde. Ao longo dos anos de 1990, mento reducionista, apenas sob uma lógica
políticas nessa direção foram propostas com defensiva voltada para os interesses das
uma maior intensidade nos países desenvol- indústrias na absorção de processos e pro-
vidos, mas também pelos emergentes, como dutos pelos serviços de saúde, faz com que
no caso do Brasil, e também por diferentes as forças sociais que vinham lutando histo-
organizações nacionais e internacionais ricamente por um sistema universal e equi-
comprometidas com as políticas públicas de tativo no Brasil, acabem atuando em parte,
Estado. Outra questão relevante no final do na mesma direção do modelo neoliberal do
século passado foi o reconhecimento da bio- capitalismo tardio. Por sua vez, esse modelo
ética de proteção como uma questão social e, tem procurado vetar os processos de desen-
particularmente, enquanto ética biomédica e volvimento, de industrialização, e de supe-
em pesquisas científicas com seres humanos, ração da dependência externa dos países
dados os seus impactos sobre os processos de emergentes, mediante o negligenciamento
pesquisa experimental, e sobre os efeitos da de políticas inovadoras para os segmentos de
utilização dos seus serviços e produtos, como maior dinamismo sociopolítico e econômico,
da efetiva incorporação da ética enquanto como é o caso da saúde pública brasileira.
dimensão transformadora das práticas cien- Propõe-se, pois, uma ruptura sociopolíti-
tíficas e tecnológicas (Novaes; Carvalheiro, 2007). ca com as visões reducionistas que colocam
Considera-se ainda que se deva estimular os interesses empresariais das indústrias
o desenvolvimento tecnológico e suas inova- de saúde de um lado, e as necessidades das
ções nos setores produtores de tecnologias políticas públicas de Estado, de outro; isto
diagnósticas, terapêuticas, de controle e é, ruptura de ordem político-institucional
preventivas, para que sejam disponibilizados e com o modelo de crescimento econômico
produtos prioritários para a saúde pública capitalista desarticulado da lógica sanitária
nacional de forma sustentável, socioeconô- das políticas sociais de saúde. Um país que
mica e politicamente democrata. Para que pretende alcançar uma condição de desen-
essa política possa ser bem sucedida é essen- volvimento socioeconômico e independên-
cial a participação das coletividades brasi- cia tecnológica em saúde requer, ao mesmo
leiras nos processos de sua implementação, tempo, indústrias inovadoras e competitivas,
por meio das instâncias representativas hoje como um sistema de saúde inclusivo, equita-
existentes ou das que venham a se instituir tivo e desenvolvido socioeconomicamente.
no contexto do SUS. A implementação da po-
lítica de inovação em saúde deve ser acom-
panhada de uma expansão e melhoria do Por uma gestão democrática
acesso organizado, da avaliação tecnológica das inovações de saúde em
periódica e da qualidade da atenção nos sis-
temas de saúde locais, para que os impactos
termos éticos, regulatórios
desejados sobre a saúde e a qualidade de vida e jurídicos no contexto do
dos sujeitos e dos grupos sociais possam ser SUS real e possível
concretamente efetivados.
Em síntese, parafraseando Gadelha (2006), Sob a luz do texto de Vázquez (2006), enten-
não se pode tratar o desenvolvimento tec- demos que há tanto uma ética reflexiva que
nológico e suas inovações na sociedade do tenta compreender e explicar a moral real-
conhecimento de um lado, e as políticas e mente existente, como uma ética normativa
práticas públicas do setor nacional da saúde que postula e justifica uma nova moral pos-
de outro, como se fossem duas instâncias sível e necessária, fundamentada em fins

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


Contribuição sociopolítica para a gestão das tecnologias em saúde no contexto dos princípios e diretrizes do 927
Sistema Único de Saúde real e possível

e valores de equidade, dignidade humana, fundamentais das pessoas e de grupos par-


justiça social e práxis emancipadora. Nesse ticulares, a não ser que entrem em conflito
sentido, a bioética da proteção é uma ética com o bem-estar comum das coletividades
normativa e aplicada, pois pretende amparar (SCHRAMM, 2007).
os sujeitos e as populações vulneráveis em A bioética valoriza o contexto do pro-
um contexto caracterizado, por um lado, blema e o avalia segundo características de
pelos conflitos morais em saúde pública e, grupos sociais distintos, que, por vezes, estão
por outro, pelos problemas de saúde que em conflitos quanto à autonomia e aos direi-
poderiam ser superados com a incorpora- tos dos seus cidadãos. Este é o seu diferen-
ção tecnológica, mas podem não sê-lo, seja cial singular em relação à ética tradicional, a
porque tal incorporação não se dá de forma qual supunha que regras universais, abstra-
equitativa e democrática, ou porque é reali- tas e descontextualizadas poderiam resolver
zada incorretamente implicando em novos todos os problemas morais relativos à utili-
problemas não previstos sem a prudência zação de tecnologias da saúde pelos sujeitos
necessária (SCHRAMM, 2007). de uma coletividade. É necessário conside-
Logo, a bioética da proteção se aproxima rar a diversidade moral existente nas discus-
do componente moral da prática política, sões éticas, pois distintas coletividades com
frente à qual ela se situa como uma media- as suas culturas situam-se diferentemente
dora lúcida e atuante a despeito daquilo que frente a um determinado conflito moral; a
se deva saber-fazer a fim de que se torne bioética ao propor analisar, refletir, justificar
benéfico para os sujeitos e suas coletivida- e reorientar uma dada conduta moral, parte
des, preocupando-se também com os bons sempre de um diálogo pluricultural, pois há
argumentos para justificar a práxis da moral diferentes visões sobre vida e morte, saúde e
inovadora e suas finalidades. Já na gestão doença, natureza humana e culturas sociais,
da saúde, o aspecto da proteção também se direcionalidade e intencionalidade, dentre
constitui em um compromisso ético-moral outras (BRAZ, 2005).
inadiável, se apreendemos a saúde pública Já as tecnobiociências e seu biopoder he-
como um campo de saberes e práticas que gemônico propõem a consolidação de pro-
tem por objeto maior a promoção da saúde gressos na faculdade genética e de potenciais
dos sujeitos no seu meio sociocultural e fisiológicos dos sistemas e processos vivos,
biopsíquico. como da natureza genofenótipa humana,
Em suma, a bioética da proteção pode ser para poderem, de modo determinista, inter-
considerada um paradigma tanto para tentar virem sobre eles a fim de transformá-los e
entender os conflitos na saúde e na pesquisa aperfeiçoá-los quando considerarem neces-
com seres humanos, quanto para tentar so- sário e ou desejável, bem como legitimá-los
lucioná-los adotando-se meios normativos, de acordo com alguma estrutura de poder
efetivos e legitimados no seio de um Estado e seus ditames sobre o mundo dos viventes
Democrático de Direitos. Logo, por bioéti- e da vida biopsicossocial humana. A bioéti-
ca entendemos uma ferramenta pública e ca por sua vez propõe normatizar as inter-
concreta capaz de proteger contra riscos e venções biotecnológicas, de tal modo que
ameaças os possíveis vulneráveis, como em possam ser consideradas moralmente cor-
prol do desenvolvimento das potencialida- retas pelas coletividades socioculturais, no
des de cada sujeito para assumir a sua vida sentido dos sujeitos e seus modos de vida
pessoal e cidadã, para então emancipar-se historicamente específicos sentirem-se su-
respeitando a pluralidade dos valores que ficientemente protegidos, inclusive, em seu
perpassam toda a coletividade, não impondo cotidiano particular confrontado com seus
condutas que poderiam infringir os direitos meios sociais, que são, ao mesmo tempo,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


928 ARREAZA, A. L. V.

ecossociais, tecnológicos e socioeconômicos os seus devires contraditórios de reprodução


(SCHRAMM, 2005). biopsicossocial.
Com base nesses pressupostos, podemos No âmbito das práticas biotecnológicas,
dizer que, no caso das biotecnologias inova- essas barreiras encontram-se dialeticamen-
doras em saúde, se, por um lado, resultam da te rompidas e moldadas simbioticamente, e,
expansão dos saberes científicos, originando por isso, os princípios de autonomia, univer-
novos processos e produtos tecnológicos, salidade e equidade perdem e ganham novos
por outro, abrem-se cenários desconhecidos, significados e contornos. Se autonomia, em
gerando temores, incertezas, inseguranças sentido estrito, é a faculdade de governar-se,
e incompreensões, fazendo emergir múlti- como isso deve ocorrer em um mundo cada
plas questões, tanto de cunho privado como vez mais virtualizado? Como governar-se
aquelas de caráter público: Deve-se ou não sob terapêuticas, riscos e estilos de vida? Já
utilizar células-tronco ou tecidos embrioná- a despeito dos princípios de universalidade e
rios? Deve-se produzir e consumir alimentos equidade entram nesse contexto em colapso,
transgênicos? Em que medida a biotecnolo- merecendo uma atenção sistêmica e integra-
gia pode servir a projetos eugênicos? Como lizada, pois essas práticas constituem e se
ou quem regula a fertilização assistida pro- realizam em um mundo tecnológico e vir-
duzida na esfera das vidas privadas, mas tualizado, promovendo consigo, para além
que ganha hoje contornos de massificação? de sua eficácia, a universalização dos seus
É lícita a utilização de células-tronco como efeitos deteriorantes ou benéficos nos sujei-
uma promessa de cura no próprio corpo para tos e em suas coletividades, já que as mesmas
as diversas doenças crônicas e degenerati- só se concretizam e se atualizam na esfera do
vas, sem garantias de que a reprogramação coletivo, impactando o social (IANNI, 2007).
das células embrionárias trará mais benefí- O caráter universal dessas práticas põe
cios do que danos para os pacientes atuais também em questão os pilares da equidade,
e os das gerações futuras? A biotecnologia pois, se esta é a disponibilização justa e ra-
e sua vasta utilização constituem-se assim zoável de recursos conforme as necessidades
numa questão não apenas da esfera individu- de cada coletividade, como implementá-la
al humana, mas também como uma questão face aos vulneráveis e às fragilidades da vida.
pública e de saúde coletiva. O que é equidade quando o corpo biosso-
No âmbito da sociedade tecnológica atual, cial só se atualiza e reemerge mediante sua
a virtualização não pode ser reduzida a um existência na vida coletiva e social, sujeito
processo de desmaterialização, sendo que é a uma rede de intervenções tecnológicas
a passagem de uma solução pontual a uma em um mundo virtualizado. Discutir o que
problemática coletiva, no qual seus limites produzir quem deve e pode fazê-lo, quem
jamais estarão definitivamente traçados (LÉVY, deve e pode consumir, e quando introduzir
2009). Logo, a virtualização é um processo do ou erradicar novos processos e produtos, é
devir social no qual o corpo contemporâneo mais do que um direito subjetivo em nossa
sai de si mesmo e adquire novas velocidades, sociedade é uma necessidade potencializada
espaços e tempos, isto é, um corpo desterrito- na vida social de todos os sujeitos coletivos
rializado e projetado ao longo do tempo, em (IANNI, 2007).
que a corporeidade individual pretende‑se Outra questão concerne à avaliação
ao corpo público e coletivo, para retornar daquilo que se pretende fornecer aos sujei-
em seguida a si mesmo, transformado bios- tos-usuários, no campo sanitário, significa
socialmente; nesse sentido, pode-se abordar verificar a efetividade das tecnologias in-
a virtualização como um processo dialético e corporadas pelo setor saúde, avaliando as
recursivo da natureza da vida humana, com mudanças ocorridas no estado de saúde dos

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


Contribuição sociopolítica para a gestão das tecnologias em saúde no contexto dos princípios e diretrizes do 929
Sistema Único de Saúde real e possível

sujeitos e da qualidade da atenção prestada num grande desafio aos sistemas sanitários
aos mesmos, que depende em boa parte da atuais, suscitando debates éticos e políticos
eficiência de alocação de recursos frente à sobre as escolhas a serem feitas, em face das
demanda em potencial da saúde pública. prioridades de saúde pública das coletivi-
Essa questão diz respeito, num primeiro dades em geral. Já a avaliação tecnológica,
momento, à diretriz pragmática da melhor que diz respeito à análise das consequências
relação entre os custos, meios e fins, mas dos cuidados em saúde e de suas políticas
refere-se também aos princípios morais de públicas, vem apresentando interfaces com
não maleficência e de beneficência, visto a bioética da proteção que possibilita uma
que uma relação não eficaz entre os custos, abordagem mais compreensiva da efetivi-
meios, fins e benefícios acaba impactan- dade das tecnologias inovadoras no âmbito
do de modo negativo a saúde dos sujeitos da saúde pública, inclusive, porque visa
e das suas coletividades como um todo. De integrar o problema, moral e politicamen-
maneira geral, boa parte das tecnologias te relevante, da equidade na alocação e na
médicas tem sido útil para a saúde pública, distribuição dos recursos disponíveis, que,
estando os imunobiológicos e as vacinas sem dúvida, constitui um dos dilemas mais
entre os melhores exemplos de efetividade complexos enfrentados tanto pela bioética
e de alcance das metas traçadas, porém, os pública quanto pela saúde das coletividades
interesses das indústrias de fármacos e equi- nos meios biotecnocientíficos e da cultura
pamentos direcionam, todavia, os rumos da de gestão tecnocrata com seu poder hegemô-
inovação tecnológica, como a prática médica nico reducionista.
especializada (ESCOSTEGUY; SCHRAMM, 2000). As implicações éticas da avaliação tecno-
Outro aspecto moralmente relevante diz lógica são reconhecidas e legitimadas pelos
respeito à avaliação da prática de introdu- atores sociais da saúde coletiva, incluindo
zir inovações tecnológicas antes de serem aquelas relativas aos ensaios clínicos para
efetivamente avaliadas, pois a incorpora- aferir a sua eficácia, à avaliação da boa ou da
ção de novas tecnologias sem a prudência duvidosa prática médica, à forma de incorpo-
necessária, além de não relevar os riscos rar as novas tecnologias e à sua efetividade,
em potencial para a saúde individual e co- como ao acesso e à alocação equitativa dos
letiva, ao sobrecarregar o setor saúde de recursos disponíveis; logo a incorporação da
custos moralmente contestáveis, torna mais bioética da proteção na avaliação tecnológi-
difícil a retirada a posteriori daquelas que ca possibilita uma melhor compreensão das
não se mostrarem efetivas ou sem a relação práticas de saúde e um progresso em direção
meios‑custos-fins de forma otimizada; isto é, ao seu aprimoramento frente às prioridades
incorporação inapropriada das tecnologias e às necessidades reais dos sujeitos e de suas
inovadoras, sem a devida precaução com os coletividades (ESCOSTEGUY; SCHRAMM, 2000).
critérios de eficácia, eficiência, segurança Hoje em dia no contexto da gestão do
sanitária e alocação equitativa de recursos, SUS, vem se tornando cada vez mais neces-
como com os impactos indesejáveis gerados sário regular a incorporação tecnológica nos
na saúde dos sujeitos e em suas coletividades serviços de saúde, tanto no que diz respeito
ao longo do tempo (ESCOSTEGUY; SCHRAMM, 2000). aos produtos e tecnologias médicas em geral,
Esses mesmos autores ressaltam ainda como em relação aos protocolos, processos
que a hegemonia do paradigma tecnobio- de trabalho e às esferas de gestão; seja para
científico que induz à incorporação tec- reduzir os efeitos negativos do mercado
nológica e da cultura dos limites da gestão quanto à oferta para atenção à saúde dos su-
tecnocrata, que seleciona e direciona as jeitos, ou seja, para orientar as prioridades
tecnologias em saúde, vem se constituindo tecnológicas de inovação e seus impactos

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


930 ARREAZA, A. L. V.

sobre a economia da saúde, ou ainda para possível desvincular a incorporação tecno-


gerenciar as implicações éticas e sociais lógica em saúde dos processos sociopolíticos
engendradas pelo consumo das inovações mais amplos, onde a complexidade da gestão
tecnológicas, e que tais competências regu- em saúde refere-se, de um lado, aos aspectos
latórias exigem, por sua vez, uma tomada de operacionais da pesquisa científica e do de-
decisão colegiada. senvolvimento tecnológico, e de outro lado,
O papel do Ministério da Saúde é central aos aspectos estruturais e fomentadores das
no processo de incorporação tecnológica no políticas socioeconômicas vigentes no País,
SUS, na medida em que é a instância maior sendo relevante considerar os aspectos ter-
que possui a atribuição de fortalecer a PNCT, ritoriais, epidemiológicos e culturais da área
e inserido nela o estabelecimento de metas, onde se atua, e, principalmente, as condi-
não se atendo somente com prioridades do ções de vida e saúde da população em geral
desenvolvimento tecnológico, mas também (MONTEIRO et al., 2007).
aos modos como se dá a sua incorporação. Já no âmbito da judicialização da saúde
Essa atuação deve abranger, para além do verificou-se a partir de 1990, um aumento
SUS, os setores privados que prestam servi- progressivo dos mandatos judiciais relativos
ços no sistema supletivo de saúde, sendo que ao direito social à saúde, onde o Judiciário
esses prestadores exercem papel de destaque e o Ministério Público revelaram contra-
na incorporação acrítica das inovações de alta dições no âmbito normativo do SUS, como
densidade tecnológica, como o CIS influencia problemas de gestão em saúde pública, não
intensamente toda essa incorporação nas re- equacionados pelas políticas vigentes, ques-
lações que se dão entre as empresas, os pres- tionando a atuação do Executivo e criando
tadores e os profissionais da saúde. novas demandas, visando assegurar o acesso
Faz-se necessário lembrar que nosso País às tecnologias inovadoras em saúde para
possui ainda pouco controle sobre este pro- a recuperação e a reabilitação dos sujeitos
cesso de destinação e utilização de novas acometidos por uma doença ou agravo em
tecnologias, mesmo considerando as recentes particular; recolocando a questão do direito
iniciativas do Ministério da Saúde é relativa- à saúde na pauta dos debates para a sua efeti-
mente improvável que elas possam exercer, vação na perspectiva dos princípios e diretri-
todavia, uma influência decisiva na regulação zes do SUS (Baptista; MACHADO; LIMA, 2009).
dessas atividades que se dão no CIS, dado que A judicialização da saúde expõe desafios
a lógica da incorporação de muitos produtos e possibilidades institucionais para o Estado
de alta complexidade não adentra pelo SUS, e a sociedade civil organizada, induzindo a
como se vê no caso das terapêuticas biotecno- geração de respostas efetivas pelos agentes
lógicas. Para os gestores, o desenvolvimento do setor saúde e do sistema judiciário nacio-
tecnológico e a incorporação de inovações se nal, onde a intervenção judicial no âmbito da
conformam cada vez mais em uma preocupa- gestão em saúde tem sido alvo de intensos
ção permanente, pois cresce a demanda por debates, ganhando destaque no Supremo
políticas de inovações e de transferência das Tribunal Federal por meio da realização de
mesmas em sintonia com as diretrizes do SUS audiências, possibilitando o debate interse-
(VIANA; SILVA; ELIAS, 2007). torial entre os atores envolvidos. Entre os
A incorporação de C&T regulada contri- argumentos destacam-se os que defendem a
bui tanto para a resolução dos problemas de necessidade de um equilíbrio entre a salva-
saúde e melhoria da qualidade da assistên- guarda dos indivíduos e a dos interesses co-
cia como para a implementação de políticas letivos, de superar burocracias que atrasam
públicas intersetoriais, agregando capacida- registros de medicamentos e mantêm de-
de resolutiva ao setor da saúde. Não sendo satualizadas diretrizes clínicas e consensos

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


Contribuição sociopolítica para a gestão das tecnologias em saúde no contexto dos princípios e diretrizes do 931
Sistema Único de Saúde real e possível

terapêuticos, ou ainda, a necessidade de se registro sanitário ou fora das indicações para


pactuar a competência jurídico-regulatória as quais foram registrados, pode significar
entre os entes federativos, acolhendo a par- também riscos e danos à saúde (PEPE et al., 2010).
ticipação e o controle social em todo o pro- Quanto aos contornos jurídicos da inte-
cesso de debate de questões tão complexas, gralidade da atenção à saúde deve se pautar
devendo este ser retomado sempre em arena por normas técnico-científicas, pela adoção
pública sob o olhar atento da sociedade de condutas terapêuticas e de protocolos far-
(SCHEFFER, 2009). macológicos, como por critérios epidemioló-
Há também ponderações sobre os efeitos gicos na definição de políticas da saúde, e em
negativos desse fenômeno sob três princi- limites para a incorporação de novas tecno-
pais pontos de vista: o primeiro aponta para logias crescentes e onerosas, voltadas muito
o deferimento absoluto das petições judiciais mais para o capital do que para o bem-estar
que, ao seu tempo, podem aprofundar as do cidadão, isto por si só poderá esgotar com
iniquidades de acesso ao SUS, uma vez que o decorrer do tempo os recursos da saúde
favorece aos que têm maiores possibilida- pública do País; é necessário então ter cri-
des de veicular sua demanda judicialmente térios técnico-científicos e epidemiológicos
em detrimento dos que não possuem acesso atualizados para embasar a incorporação
viável e ágil à justiça, colocando em risco o dessas ou daquela tecnologia, desses ou
princípio da igualdade, em que os mesmos daquele medicamento ou tratamento.
recorrentes ao Judiciário podem ser mais Por sua vez, compete ao Judiciário coibir
beneficiados ainda do que os que adentram as omissões das autoridades públicas no
no SUS espontaneamente, além de estar setor saúde, não deixando nunca de averi-
atendendo a possíveis demandas das indús- guar se estão sendo aplicados os recursos
trias de medicamentos (PEPE et al., 2010). financeiros de acordo com os percentuais
Já o segundo efeito negativo da judiciali- mínimos constitucionais, se a execução dos
zação da saúde refere-se às dificuldades pre- serviços se alicerça em critérios técnicos,
sentes na gestão da assistência farmacêutica, científicos e epidemiológicos, e se mantêm
uma vez que a ágil resposta às demandas as unidades de saúde abastecidas de todos
judiciais não previstas no planejamento dos os fármacos da relação nacional de medica-
serviços faz com que os mesmos criem uma mentos essenciais. Esses fatos qualificam o
estrutura adicional para o seu controle, utili- SUS, inibindo as omissões das autoridades
zando-se de procedimentos de compra não públicas e interesses corporativos passíveis
usuais na gestão pública, tendo mais custos de implodir o sistema de saúde nacional que
na aquisição de fármacos, equipamentos e deve ser solidário e cooperativo por excelên-
materiais médicos diversos; já o terceiro diz cia (Santos, 2009).
respeito à segurança do paciente em razão de As políticas de saúde destinam-se a ra-
possíveis prescrições inadequadas de novos cionalizar as prestações coletivas do Estado
medicamentos ou de indicações terapêuti- com base nas reais necessidades da popu-
cas, onde as evidências científicas não foram lação, de forma a promover a tão aclamada
ainda bem estabelecidas no âmbito do SUS. justiça distributiva equitativa inerente à
Tais fatos favorecem a introdução de novas realidade epistêmica dos direitos sociais.
tecnologias de forma acrítica e, por vezes, Nesse sentido, Marques e Dallari (2007) sus-
sob forte influência das indústrias farmacêu- tentam que as políticas públicas devem ser
ticas, onde parte dessas inovações não repre- conhecidas pelo Poder Judiciário ao garan-
senta real ganho de eficiência terapêutica, tir efetivamente o direito à saúde nos casos
mas podem, inclusive, causar eventos adver- concretos submetidos à sua apreciação,
sos à saúde, logo o uso de medicamentos sem pois desse modo seria possível conjugar os

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


932 ARREAZA, A. L. V.

interesses dos sujeitos com os das coletivi- social da gestão de saúde, sem um meio co-
dades, formalizados mediante políticas pú- municativo capaz de escutar e processar as
blicas de Estado. Como o Poder Judiciário diferentes demandas dos sujeitos e das suas
atua sob a perspectiva da justiça comutativa coletividades, e também sem as informações
e sob o âmbito da microjustiça do caso con- claras a todos que necessitam de um medi-
creto, julgando direitos e deveres mútuos camento ou tratamento; este é um cenário
entre ambas as partes, o desafio de incor- que frequentemente não confere ao cidadão
porar a política pública de saúde em suas alternativas senão buscar a tutela jurisdicio-
decisões, revela-se proeminente compati- nal para ver garantido o seu direito à saúde
bilizar a justiça comutativa com a justiça (Marques, 2008).
distributiva equitativa, representada pela Por sua vez, Machado (2008) contribui
decisão colegiada, formalizada por meio de para o debate a partir de uma reflexão sobre
atos normativos compondo as políticas de a atuação da sociedade, buscando na justiça
assistência integral à saúde, emanados dos a concretização do seu direito à saúde até
poderes Legislativo e Executivo do Estado. então não garantido na prática, e o que se
Revela-se assim premente, como res- entende exatamente por judicialização da
salta Marques (2008), que os juízes, promo- saúde; o autor parte da constatação de que o
tores, gestores, sanitaristas, acadêmicos e direito à saúde, embora garantido de forma
a sociedade civil organizada, entre outros universal e integral pela CF-1988 em seu
envolvidos nessa problemática, continuem Artigo 196, não é assegurado plenamente no
debatendo de forma abrangente o problema cotidiano dos serviços de saúde pública do
em questão e proponham soluções pactuadas País, apontando que o SUS, apesar de ser uma
para minimizar o conflito sociopolítico evi- política consistente, com inegáveis avanços,
denciado. Porém, é dentro de cada instrução não consegue ofertar a todos os cidadãos
processual que devem ser traçados os rumos que necessitam de assistência à saúde, o
da atuação judicial por parte dos atores que a acesso igualitário e os cuidados integrais e
compõe, como é no âmbito de cada processo equitativos preconizados na Constituição.
que devem ser postos os meios à disposição Após discorrer sobre as várias concepções
dos juízes, capazes de balizar a sua decisão, de judicialização da saúde, o autor destaca
e também, é em cada lócus do processo judi- duas tendências conceituais: uma que vê
cial que o direito subjetivo à saúde deve ser no ativismo político do Judiciário um viés
confrontado com o direto coletivo e com as emancipatório para o exercício pleno da ci-
políticas de saúde, por meio dos autos pro- dadania, e outra que atribui a este fenômeno
cessuais e dos saberes técnico-sanitários uma forma de ampliação e aprimoramento
necessários para discutir cada caso concreto. da própria cidadania.
Sendo necessário, pois, que o Poder O que se observa no campo da saúde
Judiciário avance em relação à incorpora- pública brasileira é a coexistência dessas
ção da dimensão sociopolítica que compõe duas tendências para subsidiar ambos os ar-
o direito à saúde, é necessário também que gumentos. O que está em jogo é justamente o
os gestores públicos avancem em direção efeito dual da diversidade epistêmica do fe-
à implementação de políticas da saúde no nômeno de judicialização da saúde, como um
contexto do País como um todo, e em relação modo de emancipação dos sujeitos e de suas
à organização gerencial e tecnológica na coletividades tanto no âmbito institucional
prestação de serviços da saúde, que em boa do Estado Democrático de Direitos, quanto
parte das vezes deixam os cidadãos sem a no contexto do cotidiano sociopolítico dos
devida assistência integral à saúde, como sujeitos por meio do devir de sua cidadania
sem os espaços adequados para o controle plena e coletiva, de tal modo que, nas relações

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


Contribuição sociopolítica para a gestão das tecnologias em saúde no contexto dos princípios e diretrizes do 933
Sistema Único de Saúde real e possível

democráticas de poder como uma práxis do para pesquisa e assistência, de uso das ino-
saber agir intersubjetivo, todos tenham o vações de saúde, e aos problemas relativos
mesmo direito de ver as suas necessidades à propriedade intelectual e às patentes em
representadas, como de emanciparem-se no C&T, além da necessidade de um padrão de
contexto do Estado Democrático de Direitos assistência para a incorporação tecnológica
(machado, 2008; Arreaza, 2014). na atenção à saúde, que conduzam à equida-
Todavia, como salienta Machado (2008), de e à integralidade das ações e dos serviços,
o aporte teórico tem o mérito de lançar luz tornando a assistência farmacêutica mais
sobre essas duas tendências reais e possíveis efetiva e articulada (Ventura et al., 2010).
do fenômeno de judicialização da saúde, Tem-se assinalado que o objeto da ação
nesse sentido, as teorias sobre a expansão judicial por vezes inclui medicamentos de
do Poder Judiciário se mostram bastantes competência obrigatória do Estado e regis-
frutíferas na geração de questões relevan- trados pelo Ministério da Saúde, como os
tes ao debate sobre a necessidade de uma de assistência farmacêutica básica, os es-
cidadania plena e coletiva no contexto do tratégicos no controle de doenças e agravos,
Estado Democrático de Direitos. Lembra- os de uso raro e de indicação terapêutica
se ainda que somente estudos empíricos em excepcional. Mostrando que a ampliação da
saúde coletiva seriam capazes de descortinar atuação judiciária em demandas de saúde,
os rumos concretos que a judicialização da ao menos em parte, decorre das insuficiên-
saúde tem tomado, uma vez que ela é con- cias da própria gestão pública, podendo até
dicionada por fatores extrajudiciais, como o ter um desfecho benéfico na responsabili-
grau de desigualdades sociais e de iniquida- zação do Estado em desenvolver práticas
des em saúde, o nível de escolaridade e de re- mais adequadas de incorporação, aquisição
cursos econômicos, e de mobilização política e alocação de tecnologias terapêuticas pela
dos sujeitos demandantes de ações judiciais; rede pública. Porém, corre-se o risco de a
e do seu patamar de emancipação sociopo- via judicial tornar-se o principal meio para
lítica em contextos de violações e injustiças garantir o acesso ao medicamento deman-
sociais de forças neoliberais do capitalismo dado, e assim causar prejuízos à efetividade
tardio, que obstruem o alcance de novos do direito à saúde, com a violação dos prin-
patamares de reconhecimento ético-moral cípios ético-morais já legitimados, como o
entre os sujeitos da vida coletiva, democrá- acesso igualitário e cuidados equitativos, e
tica e equitativa (Arreaza, 2014). também a integridade biopsicossocial dos
Uma temática importante refere-se ao sujeitos, o que é contraditório já que a saúde
marketing comercial e/ou lobby exercido é um direito social de cidadania (Baptista;
pelas indústrias farmacêuticas junto a setores MACHADO; LIMA, 2009).
sociais e de governo na incorporação dos A intervenção judicial sem a devida e
seus produtos tecnológicos, podendo induzir cuidadosa compreensão crítica das deman-
a demanda judicial para a incorporação de das de saúde tem-se limitado a determinar
novas tecnologias, como pela intensiva de- o cumprimento à prestação requerida por
pendência externa das indústrias farmacêu- parte dos sujeitos de direito, respaldados
ticas nacionais, tanto no desenvolvimento de por prescrição médica e conduta terapêutica
pesquisas científico-tecnológicas, quanto em descrita conforme os saberes médicos para
relação aos custos da incorporação de tecno- os casos em particular; porém, o insumo
logias inovadoras no setor da saúde do País. ou procedimento requerido nem sempre é
Logo, o acesso equitativo à saúde e os efeitos preconizado nos protocolos clínicos e dire-
de judicialização da saúde se relacionam às trizes terapêuticas estabelecidas pelo SUS,
questões de alocação de recursos públicos ou tampouco está incluído nas listas de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


934 ARREAZA, A. L. V.

medicamentos financiados pelos sistemas os governos estaduais e municipais. Uma


de saúde. Tal posicionamento do Judiciário das principais polêmicas refere-se ao modo
tem resultado numa forte tensão e intensiva como uma sociedade democrática deve solu-
discussão sobre a legitimidade sociopolítica cionar esse déficit entre a demanda e a oferta
e a competência técnico-sanitária do poder de novas tecnologias, relevando a escassez
judicial para decidir sobre o conteúdo e o dos recursos públicos no setor saúde, as deci-
modo como a prestação deve ser cumprida sões contextualizadas e a sua justa alocação
e exercida pelos gestores e profissionais do distributiva das tecnologias de saúde pública
SUS. Em princípio, esta deliberação é de para os sujeitos mais vulneráveis frente às
competência das secretarias de saúde em fragilidades da vida social (Ventura et al., 2010).
conjunto com as instâncias deliberativas Em relação à incorporação das inovações
regionalizadas do SUS, considerando impli- tecnológicas no SUS, constata-se não só o
cações orçamentárias e sanitárias que envol- frequente atraso, mas o fato de que se pro-
vem a incorporação de novas tecnologias na cessa, por vezes, de forma acrítica, podendo
assistência à saúde dos sujeitos e coletivida- comprometer não apenas a qualidade da
des, no âmbito dos princípios e diretrizes do prestação de serviços, como também a equi-
SUS (Ventura et al., 2010). dade na alocação dos recursos públicos.
Defende-se, pois, que a eficácia do direito Destaca-se, ainda, que a incorporação de
à saúde necessita ser a mais ampla possível, novas tecnologias na prática médica e nos
devendo o Judiciário ponderar direitos e sistemas de saúde deve levar em conta não
deveres, bens e serviços, ações e políticas, só os objetivos pragmáticos dos gestores na
necessidades e interesses, para deliberar avaliação da eficácia e da eficiência das tec-
sobre o conteúdo e o modo como as pres- nologias inovadoras em saúde, mas também
tações de saúde devem ser cumpridas pelo os saberes ético-morais da proteção e dos
Estado na garantia do direito social à saúde cuidados em saúde, otimizando direitos e be-
dos sujeitos. Os juízes deveriam levar em nefícios como reduzindo iniquidades e male-
conta, por exemplo, se as alternativas tera- fícios, e preservando também autonomias e
pêuticas fornecidas pelo SUS podem atender culturas distintas, como o acesso universal e
as necessidades dos sujeitos sem prejuízos igualitário aos bens e aos serviços públicos
para o seu bem-estar, ou se a prescrição e a em potencial (ESCOSTEGUY; SCHRAMM, 2000); que
conduta terapêutica requerida, em face do os poderes públicos reestruturem instâncias
que há disponível no SUS, é o único meio institucionais no atendimento às exigências
efetivo para garantir a saúde desses deman- políticas, éticas, legais, sanitárias e tecno-
dantes de direitos. Essa postura deve ser científicas, como requerendo o processo
um meio facilitador à própria redução da regulatório das inovações tecnológicas em
demanda judicial, uma vez que pode ser re- saúde, com ampla participação dos diversos
duzida quando protocolos clínicos e diretri- atores sociais nesse processo, legitimando as
zes terapêuticas são atualizadas com maior restrições inequívocas e invariavelmente ne-
agilidade, e quando há uma alocação progra- cessárias (Ventura et al., 2010).
mada de dado medicamento ou procedimen- O direito social à saúde dos cidadãos
to terapêutico tecnológico. possui dimensões éticas, políticas, jurídi-
Há um descompasso entre oferta e cas, sócio-sanitárias, econômicas, culturais
demanda do cidadão no SUS, como um e biotecnocientíficos indissociáveis, onde
atraso na incorporação de inovações em a sua efetividade se inscreve a partir de um
saúde no sistema público brasileiro, que se diálogo orientado por um enfoque herme-
expressa no contexto nacional sob uma cres- nêutico crítico no plano da intersubjetivi-
cente e onerosa demanda judicial para com dade, aliado ao enfrentamento de desafios

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


Contribuição sociopolítica para a gestão das tecnologias em saúde no contexto dos princípios e diretrizes do 935
Sistema Único de Saúde real e possível

tanto teóricos como práticos, no devir de parcela mais vulnerável da população brasi-
novas instrumentalidades, para a sua con- leira frente ao sistema de reprodução social
cretização no cotidiano dos sujeitos da vida capitalista (CHIEFFI; BARATA, 2009).
coletiva (Ayres, 2007). Compreender como vêm Por fim, para efetivar progressivamente
se dando os debates dentre essas interfaces o direito social à saúde, nosso Estado deve
na geração da base normativa que orienta aumentar os subsídios para medicamentos
leis, demandas, políticas e práticas de saúde essenciais e intensificar a transparência e a
é um passo relevante em prol da efetivida- eficiência do processo de adesão de novas
de do direito social à saúde ou, pelo menos, condutas terapêuticas, já as secretarias de
para a ampliação do acesso à justiça e à saúde saúde devem procurar compreender as
(Ventura et al., 2010); ou de toda sorte, para al- causas e os efeitos das demandas judiciais
cançar novos patamares de reconhecimento para remediar eventuais falhas técnico-ge-
ético-moral entre esses cidadãos, e então renciais. Ao invés de meramente responder a
emanciparem‑se no âmbito do nosso Estado casos particulares, o Judiciário e o Executivo
Democrático de Direitos (Arreaza, 2014). devem promover a saúde como um direito
Já a despeito das intenções de arbitra- coletivo e assegurar o acesso universal a me-
gem de problemas coletivos e da defesa dos dicamentos que o Estado tem a competência
interesses de sujeitos de direitos em face do legal de registrar, incorporar e fornecer com
poder de Estado, a intervenção do Judiciário base nas melhores evidências disponíveis
no âmbito do direito subjetivo acaba por sobre a sua segurança e efetividade. Além
atender aos sujeitos que têm em média as disso, deve continuar inovando no acesso
melhores condições socioeconômicas de à atenção integral da saúde como direito
vida, residindo em áreas urbanas com baixa de cidadania, consolidando um direito à
ou sem nenhuma vulnerabilidade social; saúde mais abrangente, que transcenda a
e que por sua inclusão social, já se encon- medicamentos e demandas interpostas pelo
tram em posição privilegiada, reforçando Judiciário (Biehl et al., 2009).
ainda mais as iniquidades e as desigualda- Enfim, o aporte sociopolítico das tecnolo-
des no campo da saúde pública nacional. A gias em saúde, como uma construção socio-
interpretação do direito à saúde apenas na histórica e cultural e como um bem público
esfera individual, não se atendo à dimensão virtuoso potencializado, contribui reflexiva-
coletiva, não permite reconsiderar o proble- mente para uma gestão democrática e socio-
ma em toda a sua complexidade, resultando política das inovações tecnológicas de saúde
em medidas que, em vez de promoverem a em termos éticos, regulatórios e jurídicos,
justiça social e o bem-estar comum, acabam sob uma perspectiva normativa dos princí-
por prolongar a enorme dívida social com a pios e diretrizes do SUS real e possível. s

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


936 ARREAZA, A. L. V.

Referências

Albuquerque, E. M.; Souza, S. G. A.; Baessa, A. Conde, M. V. F.; Araújo-Jorge, T. C. Modelos e


R. Pesquisa e inovação em saúde: uma discussão a par- concepções de inovação: a transição de paradigmas, a
tir da literatura sobre economia da tecnologia. Ciência reforma da C&T brasileira e as concepções de gesto-
e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 277-294, res de uma instituição pública de pesquisa em saúde.
abr./jun. 2004. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p.
727-741, 2003.
Arreaza, A. L. V. Reconhecimento ético-moral dos
direitos emancipatórios para os cidadãos sociais da Escosteguy C. C; Schramm, F. R. Bioética e ava-
saúde coletiva. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, liação tecnológica em saúde. Cadernos de Saúde Pública,
n. 101, p. 347-358, abr./jun. 2014. Rio de Janeiro, v. 16, n. 4, p. 951-961, out./dez. 2000.

Ayres, J. R. C. M. Uma concepção hermenêutica de Gadelha, C. A. G. O complexo industrial da saúde:


saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, desafios para uma política de inovação e desenvolvi-
v. 17, n. 1, p. 43-62, jan./abr. 2007. mento. In: Guimarães, R.; Tuesta, A.A. (Org.).
Saúde no Brasil: contribuições para a agenda de priorida-
Baptista, T. W. F.; Machado, C. V.; Lima, L. D. des de pesquisa. Brasília: Ministério da Saúde do Brasil,
Responsabilidade do Estado e direito à saúde no Brasil: um Brasília-DF, 2004, p. 275-296.
balanço da atuação dos Poderes. Ciência e Saúde Coletiva,
Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 829-839, maio/jun. 2009. ______. O complexo industrial da saúde e a necessida-
de de um enfoque dinâmico na economia da saúde.
Barruffini, J. C. T. Direito Constitucional I. São Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p.
Paulo: Saraiva, 2008, p. 109-176. 521-535, jan. 2003.

Biehl, J. et al. Judicialização do direito à saúde no ______. Desenvolvimento, complexo industrial da saú-
Brasil. In: Keinert, M. M. M.; Paula, S. H. B.; de e política industrial. Revista de Saúde Pública, São
Bonfim, J. R. A. (Org.). As ações judiciais no SUS e Paulo, v. 40, n. esp., p. 11-23, ago. 2006.
a promoção do direito à saúde. São Paulo: Instituto de
Saúde, 2009, p. 157-160. Gadelha, C. A. G.; Quental, C.; Fialho, B.C.
Saúde e inovação: uma abordagem sistêmica das in-
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. dústrias da saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de
São Paulo: Saraiva, 2008, 41ª ed. Janeiro, v. 19, n. 1, p. 47-59, jan./fev. 2003.

Braz, M. Bioética, proteção e diversidade moral: quem Homma, A. et al. Atualização em vacinas, imuniza-
protege quem e contra o quê na ausência de um refe- ções e inovação tecnológica. Ciência e Saúde Coletiva,
rencial moral comum? In: Schramm, F. R.; Rego, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 445-458, jan./fev. 2011.
S.; Braz, M.; Palácios, M. (Org.). Bioética, riscos e
proteção. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Editora Fiocruz, Ianni, A. M. Z. Biotecnologia e saúde pública: univer-
2005, p. 45-61. salidade, eqüidade e autonomia. Boletim do Instituto de
Saúde, São Paulo, n. 42, p. 22-24, ago. 2007.
Chieffi, A. L.; Barata, R. B. Judicialização da po-
lítica pública de assistência farmacêutica e equidade. Lévy, P. O que é virtual? São Paulo: Editora 34, 2009.
Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 8, p.
1839-1849, ago. 2009. Machado, F. R. S. Contribuições ao debate da ju-
dicialização da saúde no Brasil. Revista de Direito

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


Contribuição sociopolítica para a gestão das tecnologias em saúde no contexto dos princípios e diretrizes do 937
Sistema Único de Saúde real e possível

Sanitário, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 73-91, jul./out. 2008. L, (Org.). Direito da Saúde no Brasil. Campinas: Saberes
Editora, 2010, p. 15-62.
Marques, M. B. Gestão, planejamento e avaliação de polí-
ticas de ciência e tecnologia: hora de rever? Ciência e Saúde Scheffer, M. Judicialização e incorporação de tec-
Coletiva, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 383-392, jan. 1999. nologias: o caso dos medicamentos para tratamento da
AIDS no sistema único de saúde. In: Keinert, M. M.
Marques, S. B.; Dallari, S. G. Garantia do direito M.; Paula, S. H. B.; Bonfim, J. R. A. (Org.). As ações
social à assistência farmacêutica no Estado de São judiciais no SUS e a promoção do direito à saúde. São
Paulo. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 41, n. 1, p. Paulo: Instituto de Saúde, 2009, p. 129-38.
101-107, fev. 2007.
Schramm, F. R. A moralidade da biotecnociência: a
Marques, S. B. Judicialização do direito à saúde. bioética da proteção pode dar conta do impacto real e
Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 65- potencial das biotecnologias sobre a vida e/ou a quali-
72, jul./out. 2008. dade de vida das pessoas humanas? In: Schramm, F.
R.; REGO, S.; BRAZ, M.; PALÁCIOS, M. (Org.). Bioética,
Monteiro, P. H. N. et al. A gestão da incorporação riscos e proteção. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Editora
tecnológica no SUS: desafios para a formação de ges- Fiocruz, 2005, p. 15-28.
tores. Boletim do Instituto de Saúde, São Paulo, n. 42, p.
29-31, ago. 2007. Schramm, F. R. Bioética da proteção e incorporação
de C&T em saúde. Boletim do Instituto de Saúde, São
Novaes, H. M. D.; Goldbaum, M.; Carvalheiro, Paulo, n. 42, p. 8-10, ago. 2007.
J. R. Políticas científicas e tecnológicas e saúde. Revista
USP, São Paulo, n. 51, p. 28-37, set./nov. 2001. Vázquez, A. S. Ética e marxismo. In: Bordon, A. A.;
Amadeo, J.; González, S. (Org.). A teoria marxista
Novaes, H. M. D.; Carvalheiro, J.R. Ciência, tecno- hoje: problemas e perspectivas. Buenos Aires: Clacso
logia e inovação em saúde e desenvolvimento social e qua- Livros, 2006, p. 287-296.
lidade de vida: teses para debate. Ciência e Saúde Coletiva,
Rio de Janeiro, v. 12, supl. 1, p. 1841-1849, nov. 2007. Ventura, M. et al. Judicialização da saúde, acesso à
justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis: Revista de
Pellegrini-Filho, A. Pesquisa em saúde, política Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 77-100. 2010.
de saúde e eqüidade na América Latina. Ciência e Saúde
Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 339-350, abr./jun. 2004. Viana, A. L. A.; Silva, H. P.; Elias, P. E. M.
Incorporação tecnológica de alta complexidade no
Pepe, V. L. E. et al. A judicialização da saúde e os SUS: a necessidade de regulação. Boletim do Instituto
novos desafios da gestão da assistência farmacêutica. de Saúde, São Paulo, n. 42, p. 18-21, ago. 2007.
Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, p.
2405-2414, ago. 2010. Viana, A. L. A.; Nunes, A.A.; Silva, H.P. Complexo
produtivo da saúde, desenvolvimento e incorpora-
Santos, L. SUS: contornos jurídicos da integralidade ção de tecnologias. In: Ibañes, N.; Elias, P. E. M.;
da atenção à saúde. In: Keinert, M. M. M.; Paula, Seixas, P. H. A. (Org.) Política e gestão pública em
S. H. B.; Bonfim, J. R. A. (Org.). As ações judiciais saúde. São Paulo: Editora Hucitec, 2011, p. 75-101.
no SUS e a promoção do direito à saúde. São Paulo:
Instituto de Saúde, 2009, p. 63-72. Recebido para publicação em janeiro de 2014
Versão final em outubro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
Santos, L. Direito à saúde e qualidade de vida: um Suporte financeiro: não houve
mundo de corresponsabilidades e fazeres. In: Santos,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 917-937, OUT-DEZ 2014


938 Ensaio | Essay

Redes de Atenção à Saúde do SUS: 25 anos


de uma contradição fundamental entre a
Organização Necessária e a Organização
Atual
Health Care Networks of Brazilian Unified Health System: 25 years of
a fundamental contradiction between the Required Organization and
the Current Organization

Ronaldo Marques Gomes1

RESUMO Este texto examina o que se entende ser a principal contradição das Redes de Atenção
à Saúde do SUS: a contradição entre sua Organização Necessária, integral e integrada em todo
o território nacional, e a essência federativa e municipalista de sua Organização Atual, estru-
turalmente fragmentada e desintegrada. Indica porque as redes do SUS devem ser planeja-
das e construídas como uma organização, integral e integrada em todo o território nacional.
Descreve a Estrutura Societária, a Organização Necessária e a Organização Atual dessas redes,
e o porquê da contradição apontada. Delineia alguns dos graves prejuízos para essas redes
decorrentes desta contradição e sugere, para o debate, uma alternativa a esta realidade.

PALAVRAS-CHAVE Políticas públicas de saúde; Sistema Único de Saúde; Assistência à saúde;


Organização e administração.

ABSTRACT This paper examines what is considered to be the principal contradiction of Health
Care Networks of Brazilian Unified Health System: the contradiction between its Required
Organization integral and integrated throughout the national territory, and the federative and
municipal essence of its Current Organization, structurally fragmented and disintegrated. It in-
dicates why these Networks must be designed and built as an organization, integral and inte-
grated throughout the national territory. It describes the Structure of Institutional Partners, the
Required Organization and the Current Organization of these networks, and why the referred
contradiction. It outlines some of the serious damage to these networks arising from this contra-
diction and suggests, to the debate, an alternative to this reality.
1 Mestre em Políticas
Públicas, Estratégias e
Desenvolvimento pela KEYWORDS Health public policy; Unified Health System; Delivery of health Care; Organization
Universidade Federal do and administration.
Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio
de Janeiro (RJ), Brasil.
Especialista em Gestão
de Saúde da Secretaria de
Estado de Saúde do Rio
de Janeiro – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil.
ronaldomgomes@hotmail.com

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140081
Redes de Atenção à Saúde do SUS: 25 anos de uma contradição fundamental entre a Organização Necessária 939
e a Organização Atual

Introdução direta para a gestão de hospitais e serviços es-


pecializados [...]. (CAMPOS 2007, p. 305).
Aqui se busca, sem negar os sucessos do
Sistema Único de Saúde (SUS), delinear o
que parece ser a principal contradição estru- [...] Enfrentar o desafio de construir uma
tural que se encontra na origem da contínua ‘nova institucionalidade’ para o SUS significa,
fragilização do mais importante instrumen- portanto, debruçar-se sobre os problemas e
to da política pública de saúde: as Redes de desafios que emanam da atual configuração
Atenção à Saúde (RAS) do SUS. macro-organizacional do sistema e do pro-
Sua grave situação atual, que confirma cesso de gestão nos vários níveis do sistema,
preocupações já antigas com seu destino, de modo a subsidiar a identificação de pro-
exige que sejam propostas alternativas para postas alternativas que contribuam para o
o futuro do SUS e de suas redes que permi- fortalecimento e a consolidação de práticas
tam recuperar a formulação original desta coerentes com os princípios e valores da Re-
política pública de saúde, mesmo que a im- forma Sanitária [...]. (PAIM; TEIXEIRA 2007, p. 1821).
plementação dessas alternativas equivalha a
enfrentarmos uma nova Reforma Sanitária.
Nesse sentido, há vários anos muitos [...] Hoje, a concretização da saúde como direito
autores alertam sobre a fragilidade do SUS, de cidadania exige o enfrentamento das distor-
sobre as dúvidas quanto ao seu destino e a ções estruturais do sistema de saúde brasileiro
necessidade de que sejam enfrentados e su- [...] É nessa perspectiva que se recoloca o de-
perados os principais obstáculos para seu bate sobre o papel do Estado na saúde na fede-
pleno desenvolvimento: ração brasileira [...]. (VIANA; MACHADO 2009, p. 816).

[...] o devir do SUS nem sempre aponta para Este texto se alinha com os que defendem a
seu fortalecimento; há evidências da existência funcionalidade originalmente proposta para as
de impasses na sua implantação [...]. Mais gra- RAS do SUS — oferecer uma atenção à saúde
ve do que tudo isso, contudo, é a impressão de efetivamente universal, equânime, integral,
que há um desencantamento com o SUS [...] integrada, tempestiva e de qualidade, em todo
a baixa capacidade de gestão, a politicagem, o território nacional —, seu caráter público e a
tudo depõe contra o SUS, independente do importância do papel do Estado em sua cons-
potencial sanitário contido em suas promessas trução e operação, tal como preconizados pelo
[...]. As forças interessadas no avanço do SUS Movimento da Reforma Sanitária e definidos
estão, pois, obrigadas a enfrentar estes obstá- na Constituição Federal de 1988 (CF/88), na
culos políticos, de gestão e de reorganização Lei 8.080 de 1990 e em toda a sua normatiza-
do modelo de atenção [...]. (CAMPOS 2007, p. 302). ção posterior.
Em defesa da abordagem e da proposição
aqui oferecidas, é importante lembrar que o
Outro ponto essencial na reforma da reforma é melhor regulador do setor privado de saúde
a revisão do modelo de gestão ainda empregado pode ser, ou não, o setor público de saúde.
no SUS [...] é importante complementar-se a Lei Isso significa que um SUS sem qualidade, efi-
Orgânica da Saúde, criando novas modalidades ciência e eficácia, um SUS ‘para os pobres’, do
de organização para os serviços próprios do Es- qual fogem as classes média e média-alta, faz
tado e nova forma de relação entre entes fede- com que o setor privado de saúde ganhe, polí-
rados e prestadores privados ou filantrópicos. tica e economicamente, um imenso incentivo
Acumulam-se evidências sobre a inadequação para seu desenvolvimento. Ao contrário, um
do modelo atualmente vigente na administração SUS efetivamente universal, com qualidade,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


940 GOMES, R. M.

eficiência e eficácia, um SUS ‘para todos’, pelo permite sugerir que tais redes devem ser en-
qual se sintam atraídas as classes média e mé- tendidas como uma organização, integral e
dia-alta, fará com que, por seu efeito-demons- integrada em todo o território nacional, e que
tração, e pela migração daquelas classes para o existem quatro ‘ambientes’ principais que,
SUS, este se torne naturalmente um forte com- em um alto nível de abstração, compõem o
petidor do setor privado no mercado de saúde. quadro sociopolítico no qual se desenvolvem
Nessa perspectiva, os diferentes aspec- essas redes, ambientes esses a partir de cujas
tos abordados no presente texto parecem dinâmicas e relacionamentos se pode avaliar
evidenciar que, em defesa desses ideais, é o projeto, a implantação e a evolução dessas1.
necessário que se avalie em profundidade a São eles:
contradição e a alternativa aqui apontadas.
(I) Estrutura Societária;
A contradição principal das Redes de
Atenção à Saúde do SUS (II) Organização Necessária;

Inicialmente, cabe registrar que, neste texto, (III) Processos de Modelagem,


a expressão Redes de Atenção à Saúde (RAS) Normatização e Implantação;
refere-se àquelas redes típicas dos Sistemas
Nacionais de Saúde públicos, universais e (IV) Organização Atual.
equânimes, como pretende ser o SUS, confor-
me Dawson (1964), France (2002a; 2002b); Banting Uma vez que o Sistema Único de Saúde
e Corbett (2003); OMS (2003); Lega (2007); OPAS (SUS) por definição é um sistema nacional
(2010); Kuschnir e Chorny (2010); Kuschnir, de saúde público, universal e equânime, esta
Chorny e Lira (2010); Brasil (2010) e Mendes (2011), mesma abordagem é também válida para sua
entre outros. O paradigma histórico do tipo Rede Nacional de Atenção à Saúde, ou, para
de sistema de saúde aqui referido é o National usar a terminologia dominante, suas Redes
Health System (NHS) inglês, também inspira- de Atenção à Saúde.
dor do SUS (COSTA; BAHIA; SHEFFER, 2013). A figura 1 esboça as relações entre esses
O desenho dessas RAS, que resulta da quatro ambientes do contexto dessas RAS.
análise integrada dos textos mencionados, Quanto à Estrutura Societária das redes

1O termo ‘ambiente’ Figura 1. Ambientes do contexto de implantação das Redes do SUS


aqui utilizado tem o
objetivo exclusivo de
designar e distinguir Estrutura Societária Organização Necessária
minimamente, em um (sócios institucionais) (imagem-objetivo)
alto nível de abstração,
os diferentes e principais
conjuntos de atores,
assuntos, atividades,
métodos e recursos, Modelagem
em cuja confluência se Normatização
movem as redes em tela. Implantação
Esses ambientes podem
(processos sociopolíticos)
ser exclusivamente
conceituais, como aquele
denominado ‘Organização
Necessária’ (uma imagem-
objetivo), ou concretos em
sua realidade específica, Organização Atual
como os outros três. Os (construção sociopolítica)
atores que atuam em um
ambiente podem também
atuar em outros. Fonte: Elaboração própria

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


Redes de Atenção à Saúde do SUS: 25 anos de uma contradição fundamental entre a Organização Necessária 941
e a Organização Atual

do SUS, nos termos da Constituição Federal sociedade sobre esta.


de 1988 (artigos 196 e 198, Caput e I), Ainda com base nos autores menciona-
podemos afirmar que a União, juntamente dos, é possível dizer, de modo bastante sin-
com o Distrito Federal e todos os estados e tético e em um alto nível de abstração, que a
municípios são sócios solidários igualmente Organização Necessária das RAS deve englo-
responsáveis em todo o território nacional bar os seguintes ‘componentes’ e requisitos
e em todos os níveis pela Rede Nacional de globais2: (I) Estrutura de Atenção à Saúde
Atenção à Saúde do SUS, por suas sub-redes = Territórios e necessidades em saúde das
e pelos serviços de atenção à saúde ofere- populações + Modelos de Atenção à Saúde
cidos. Nesse sentido, são igualmente, soli- + Gestão da Clínica + Estrutura de Serviços
dariamente e integralmente responsáveis, de Saúde; (II) Estrutura de Organização
em todo o território nacional e em todos os = Distribuição das Unidades e Serviços
níveis, pelos processos de modelagem, nor- de Saúde para os Territórios-Populações
matização, implantação, integralização e in- + Regiões de Saúde + Redes de Unidades e
tegração dessas redes e serviços. Ou seja, são Serviços de Saúde + etc.; (III) Estrutura de
igualmente, solidariamente e integralmente Gestão (operacional, tática e estratégica); e
responsáveis por sua Organização Atual, (IV) Requisitos Globais = estrutura nacional
em todo o território nacional e em todos os integral e integrada de Unidades e Serviços
níveis. Nessa perspectiva, a União, estados, de Saúde distribuídos por territórios de saúde
Distrito Federal e municípios compõem um e regiões + integralidade e integração de uni-
colégio de gestores federativos das redes dades operacionais, recursos (humanos, tec-
do SUS. A sociedade atua sobre este colégio nológicos e financeiros), métodos e serviços,
por meio das Conferências e Conselhos de em todo o território nacional e em todos os
Saúde, conforme a Lei 8.142 de 28.12.1990 níveis de densidade tecnológica + unidade,
(BRASIL, 1990). Entretanto, vale registrar que a coesão e estabilidade organizacionais.
atuação dos conselhos de saúde, por várias Esse é, muito resumidamente e em um
razões, é sabidamente pouco eficaz, e, além alto nível de abstração, o conjunto de com-
disso, o setor privado da saúde tem inúme- ponentes típicos da Organização Necessária
ros meios de interferir sobre os destinos do das RAS. Esses componentes, na perspectiva
SUS e a formatação de suas redes (COSTA; BAHIA; das RAS, possuem características específi-
SHEFFER, 2013). cas e detalhadas que, por sua densidade, não
A Organização Necessária dessas redes é cabe abordar no presente texto.
aquela requerida para que se viabilize uma A Organização Necessária das RAS é uma 2 O termo ‘componente’,

atenção à saúde que seja pública, univer- condição sine qua non de sistemas públicos relativo aos itens (I), (II) e
(III), é aqui utilizado com o
sal, equânime, integral e de qualidade em nacionais que se pretendam universais e objetivo exclusivo de, num
todo o território nacional. Essa Organização equânimes como o SUS e, por isso, é funda- alto nível de abstração,
designar e distinguir
Necessária é uma imagem-objetivo a ser per- mental para que o SUS possa oferecer uma minimamente os diferentes
seguida na implantação das RAS. atenção à saúde efetivamente universal, e principais conjuntos
de atores, assuntos,
Como imagem-objetivo, essa Organização equânime, integral, integrada, tempestiva e atividades, métodos e
Necessária não é um conjunto estático. Ao de qualidade, em todo o território nacional. recursos, que integram a
Organização Necessária
contrário, sua especificação, em cada país, Por sua vez, a Organização Atual3 das RAS das RAS.
evolui com o passar do tempo devido à e é uma construção sociopolítica que resulta,
3A opção pelo termo
própria evolução dos diferentes aspectos em cada ‘momento’ do tempo, dos processos ‘Atual’, ao invés de, por
técnicos, sociais, econômicos e políticos sociopolíticos específicos de modelagem, exemplo, ‘Real’, deveu-se
ao fato de que ‘Atual’
que definem os contornos e o conteúdo das normatização e implantação dessas redes traduz melhor a noção de
ciências biomédicas, da saúde coletiva, da em cada país. Assim, a Organização Atual sua reversibilidade, como
construção sociopolítica
política pública de saúde e as demandas da expressa, em cada ‘momento’ do tempo, as que é esta organização.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


942 GOMES, R. M.

características reais das RAS, e, por isso, forçosamente fragmentadora e desintegra-


depende das especificidades de cada socie- dora, relativamente a todos aqueles compo-
dade e de seu Estado Nacional, como, entre nentes da Organização Necessária dessas
outras: se o Estado é unitário ou federativo; redes e à exigência de seus requisitos de
se federativo, quantos níveis da federação integralidade, integração, unidade, coesão e
possuem autonomia político‑administrativa; estabilidade organizacional.
relações entre as instâncias federativas; ca- Nessa perspectiva, podemos sugerir que a
racterísticas da estrutura partidária e da principal contradição das RAS do SUS está
legislação eleitoral; relações entre a socie- no permanente conflito entre a Organização
dade civil e o Estado; importância e atuação Necessária dessas redes e a essência fede-
do setor privado da saúde etc. Assim, em rativa e municipalista de sua Organização
cada sociedade a Organização Atual das Atual, resultando nos graves problemas de
RAS é uma construção sociopolítica que, em carências, fragmentação, desintegração e
síntese, resulta das tensões entre: (I) as per- instabilidade organizacional das redes do
manentes tentativas de modelar, normatizar SUS e de sua prestação de serviços de saúde.
e implantar a Organização Necessária dessas Esse conflito, historicamente, tornou
redes; e (II) as características e dinâmicas impossível que a Organização Atual das
específicas desses processos de modelagem, redes do SUS pudesse convergir para a
normatização e implantação, uma vez que Organização Necessária dessas redes. Na
estes são essencialmente de natureza socio- verdade, a primeira cada vez mais diverge da
política. Assim, em função das característi- segunda em todos os componentes e requisi-
cas específicas de cada sociedade e de seu tos desta anteriormente mencionados.
respectivo Estado Nacional, a organização Para que se perceba com clareza a con-
das RAS irá se concretizar no que aqui se tradição aqui apontada, e suas danosas con-
denomina como Organização Atual dessas sequências responsáveis pela fragilização
redes, possuindo esta organização caracte- contínua das redes do SUS, basta lembrar-
rísticas mais, ou menos, convergentes com mos que, devido à essência federativa e mu-
aquelas da Organização Necessária. nicipalista de sua Organização Atual, as RAS
Essa é a dinâmica que historicamente se do SUS são governadas, projetadas, cons-
observa na implantação da Rede Nacional truídas, providas de recursos, gerenciadas
de Atenção à Saúde do SUS. Assim, a e operacionalizadas por milhares de entes
Organização Atual das redes do SUS é aquela federativos: 5.564 municípios, 26 estados, o
que tem resultado de seu processo de im- DF e a União, todos com autonomia político-
plantação e que executa as funcionalidades -administrativa no interior da organização
reais dessas redes e de sua prestação de ser- dessas redes.
viços de saúde, com os graves problemas de Esse federalismo sanitário, em três níveis
fragmentação, carências e desintegração que e nessas dimensões, é único no mundo
todos conhecemos. (ARRETCHE, 1999; ABRÚCIO, 2003; MENDES, 2011).
A Organização Atual das redes do SUS Já são 25 anos de evidências desta con-
foi adotada, a partir da Constituição Federal tradição fundamental. Não se trata, aqui, de
de 1988 (BRASIL, 1988), como ‘consequência jogar pedras sobre o passado. A Estrutura
natural’ de sua Estrutura Societária federati- Societária federativa e municipalista das
va e municipalista, também definida naquela RAS do SUS e sua Organização Atual resul-
Constituição. Por essa razão, a Organização taram de uma luta, de muitos anos, contra
Atual das redes do SUS é também fede- um Estado Nacional ditatorial, profunda-
ralista e municipalista, e, em consequên- mente autoritário e centralizador, e uma
cia, necessariamente múltipla, instável e saúde pública centralizadora, hierárquica e

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


Redes de Atenção à Saúde do SUS: 25 anos de uma contradição fundamental entre a Organização Necessária 943
e a Organização Atual

excludente. A nova Estrutura Societária fe- autonomia continua internalizada neste


derativa e municipalista foi uma vitória, pois, modo de organização, apesar dos reforços e
juntamente com a institucionalização da esforços da regionalização.
participação social nos destinos do SUS, por Trata-se, então, de reconhecer e superar
meio dos Conselhos e Conferências de Saúde, a razão principal dos graves problemas de
viabilizou em larga escala, embora com as li- carências, fragmentação, desintegração e
mitações que conhecemos, a atuação efetiva instabilidade organizacional das redes do
da sociedade e dos diferentes entes federati- SUS, que é o conflito entre a Organização
vos na governança do SUS. E essas conquis- Necessária dessas redes e a essência fede-
tas devem não apenas ser preservadas, mas rativa e municipalista de sua Organização
aperfeiçoadas. Além disso, a Organização Atual.
Atual das redes do SUS, federativa e muni- Ou seja, como se percebe na proposi-
cipalista, foi, por muito tempo, benéfica para ção oferecida para o debate mais à frente,
a rápida expansão dessas redes e da atenção trata-se de enfrentar a necessidade de
primária e secundária à saúde da população manter a Estrutura Societária federativa
(mesmo que precárias em grande parte), e e municipalista das RAS do SUS e, em um
dos programas verticais do Ministério da aparente paradoxo, superar a Organização
Saúde, com os êxitos conhecidos. Atual dessas redes e sua essência federativa
Do mesmo modo, não se pretende aqui e municipalista.
negar os esforços e benefícios eventuais dos Devido à essência federativa e munici-
processos de regionalização das redes do palista de sua Organização Atual, única no
SUS, mas tem-se por objetivo, sim, ressaltar mundo, das eleições que se sucedem a cada
que os graves problemas de carências, frag- dois anos e do fisiologismo, clientelismo,
mentação e desintegração que essas redes personalismo, patrimonialismo e outros
enfrentam nunca serão extintos caso não ‘ismos’ que caracterizam nossa prática po-
se supere, definitivamente, a essência fede- lítica e eleitoral, a política pública de saúde
rativa e municipalista de sua Organização e as RAS do SUS estão subsumidas a essa
Atual. Isso continua sendo verdade também prática e, por isso, são fortemente impacta-
na etapa atual da regionalização dessas das, a cada dois anos, em todos os entes dos
redes, iniciada com a edição da Lei 12.401, de três níveis da federação, com graves conse-
28.04.2011, e do Decreto 7.508 de 28.06.20114. quências para seu desempenho e a prestação
Apesar dos esforços e reforços da regio- dos serviços de saúde, como destacaram
nalização, permanece a contradição aqui Paim e Teixeira (2007, p. 1820):
apontada entre a Organização Necessária
das redes do SUS e a essência federativa e [...] A falta de profissionalização de gestores,
municipalista de sua Organização Atual, a descontinuidade administrativa, o cliente-
com as graves consequências percebidas no lismo político e a interferência político‑par-
dia a dia dessas redes e de sua prestação de tidária no funcionamento dos serviços com-
serviços de saúde. Isso ocorre porque a au- prometem a reputação do SUS perante os
tonomia político-administrativa da União, cidadãos e a expectativa dos servidores pú-
estados e municípios, bem como suas pro- blicos enquanto trabalhadores e partícipes de
fundas diferenças de interesses, recursos e um projeto civilizatório do escopo da Reforma
capacidades, continuam a ter papel deter- Sanitária Brasileira [...].
minante na construção, provisão de recur- 4 Sobreesta nova etapa da
sos e manutenção das RAS e do SUS, pois, Por isso, em consequência de sua regionalização ver Brasil
(2010; 2011a; 2011b;
devido ao caráter federativo e municipalis- Organização Atual, 25 anos após sua 2011c; 2011d; 2012a;
ta da Organização Atual dessas redes, essa criação na CF/88 as RAS do SUS são ainda 2012b; 2012c; e 2012d).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


944 GOMES, R. M.

organizações em lento, instável, complexo e do SUS se transformaram em um complexo


frágil processo de construção. quebra-cabeças, não apenas devido às conse-
Uma forte evidência disso pode ser per- quências negativas das eleições e da política
cebida, por contraste, na publicação pelo partidária, mas também devido às milhares
Ministério da Saúde em 30.12.2010, 22 anos de iniciativas autônomas da União, estados
após a criação do SUS, da Portaria GM nº e municípios para a implementação de al-
4.279, que “Estabelece diretrizes para a or- ternativas, as mais diversas, de substituição
ganização da Rede de Atenção à Saúde no da administração direta do Estado na pro-
âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)” visão de recursos humanos e na gestão dos
(BRASIL, 2010). recursos, equipamentos e instalações das
Vinte e dois anos após a criação do SUS redes do SUS (COSTA; BAHIA; SHEFFER, 2013). Essas
essa Portaria estabelece que: iniciativas se valem de empresas e fundações
públicas e privadas, Organizações Sociais
O presente documento trata das diretrizes (OSs), Organizações da Sociedade Civil de
para a estruturação da Rede de Atenção à Interesse Público (Oscips), cooperativas etc
Saúde (RAS) como estratégia para superar a (PARANÁ, 2013).
fragmentação da atenção e da gestão nas Re- A mais recente e notória dessas iniciativas
giões de Saúde e aperfeiçoar o funcionamen- autônomas é o Programa Mais Médicos, que,
to político-institucional do Sistema Único de independentemente de seus resultados e das
Saúde (SUS) com vistas a assegurar ao usuá- intenções do governo federal, passou por
rio o conjunto de ações e serviços que neces- cima de estados, municípios e dos processos
sita com efetividade e eficiência. de regionalização e provisão adequada das
redes do SUS (BRASIL, 2013).
Além disso, diz a Portaria: Mais precisamente, ao longo de seus 25
anos as RAS do SUS tornaram-se uma orga-
Esse documento estabelece os fundamentos nização ‘teratológica’, porque composta por
conceituais e operativos essenciais ao pro- milhares de partes que, na essência, obede-
cesso de organização da RAS, entendendo cem cada uma a um ‘cérebro’ diferente. Esta
que o seu aprofundamento constituirá uma ‘conta’ inclui, além dos milhares de seus
série de  temas técnicos e organizacionais a gestores federativos, os milhares de gesto-
serem desenvolvidos, em função da agenda res ‘técnicos’ de suas unidades operacionais
de prioridades e da sua modelagem. próprias, conveniadas e contratadas.
Por essas razões, devido à sua Organização
Ou seja, a leitura desavisada do texto Atual, as redes do SUS são instáveis, incom-
dessa norma levaria a pensar que ela havia pletas, desintegradas e congenitamente
sido publicada não em 30.12.2010, e sim em frágeis, sujeitas a todo o tipo de carências e
algum dia do ano 1989, de modo a reger a ataques, e, por isso, se constituíram em um
construção das redes do SUS criadas um ano sistema de saúde pobre para os pobres, pois
antes, na CF/88. Esta percepção mais ainda os que podem tentam se livrar do SUS com
se aplicaria se considerarmos a segunda planos e seguros de saúde privados, inclusive
parte do trecho citado, que promete “uma os servidores públicos por meio de suas enti-
série de temas técnicos e organizacionais a dades representativas:
serem desenvolvidos, em função da agenda
de prioridades e da sua modelagem” (mais As proposições de inclusão nos acordos com
25 anos?!). as entidades de representação de servidores
Por força da essência federativa e muni- públicos de cobertura de planos e seguros
cipalista de sua Organização Atual, as RAS privados confirmam o afastamento da própria

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


Redes de Atenção à Saúde do SUS: 25 anos de uma contradição fundamental entre a Organização Necessária 945
e a Organização Atual

burocracia pública da trincheira da luta pela Aparentemente, foi a percepção dessa


universalização do direito à saúde e a apro- contradição, por outros caminhos, que levou
ximação das entidades de representação de Campos (2007, p. 306) a apontar, como questão
trabalhadores e servidores públicos ao em- essencial a ser enfrentada:
presariamento privado [...]. (BAHIA, 2009, p. 759).
[...] os entraves já identificados decorrentes
Até os segmentos mais desfavorecidos da atual legislação, ‘que simplesmente esten-
das camadas trabalhadoras tentam se livrar deu para o SUS o modelo de gestão do Estado
do SUS, neste caso com planos de saúde ‘ca- brasileiro’ [a essência federativa e munici-
ça‑níqueis’ (BAHIA; PORTELA; SHEFFER, 2013). palista da Organização Atual de suas redes,
Hoje, a fuga para os planos e seguros pri- fragmentadora e desintegradora], ‘sem consi-
vados de saúde inclui todos os acadêmicos derar as especificidades do campo da saúde
que analisam e debatem o SUS e suas redes, e do SUS em particular’ [especificidades que
todos os gestores dessas redes em todos os definem sua Organização Necessária]. (grifos
níveis e todos os seus funcionários, bem e acréscimos meus).5
como o conjunto dos gestores e funcionários
públicos em todos os níveis da federação. Também Paim e Teixeira (2007, p. 1821) insis-
Além desses, temos também os funcionários tem em tese semelhante:
de grandes e médias empresas, estatais e
privadas, beneficiados com planos de saúde [...] Por outro lado, a ‘blindagem’ do SUS me-
empresariais. diante nova ‘institucionalidade’ assegurando
Ou seja, os formadores de opinião, os que a profissionalização da gestão e carreiras es-
têm maior acesso aos meios de comunicação pecíficas (gestor, saúde da família, adminis-
e debate, e os decisores, em todas as instân- tração hospitalar, etc.) ‘requer um novo ente
cias federativas e poderes da República, ‘não jurídico da organização do Estado exclusiva-
necessitam’ do SUS, não apenas no sentido mente voltado para o SUS’, com lógicas flexí-
de que não o têm como sua primeira opção veis, descentralizadas e ágeis de gestão [...].
de plano de saúde, mas também, e muito
mais simbólico, no sentido de que dele, como O mesmo entendimento da contradição
usuários em potencial, querem se livrar a em destaque é confirmado por Kuschnir
todo custo. e Chorny (2010, p. 79), que, ao tratar das con-
Tudo isso resulta em uma profunda e dições essenciais para o planejamento, o
crescente fragilidade política do SUS e de projeto e a construção das RAS do SUS
suas RAS, o que, por sua vez, realimenta todo regionalizadas, integrais e integradas,
seu processo de esvaziamento. afirmam que:
Não por acaso, convivemos, na provisão
de serviços do SUS, com uma crescente par- [...] ‘a única forma de construirmos redes’ é
ticipação do setor privado, lucrativo ou não, considerarmos o território da região como
e com o avanço dos planos e seguros privados efetivamente comum e a responsabilidade 5 Este artigo já estava

de saúde no mercado nacional, o que reforça pela saúde dessa população como coletiva. redigido quando tomou-se
conhecimento da proposta
a fragilidade congênita do sistema. Ou seja, para o planejamento e a implemen- formulada por Campos,
Já são 25 anos de evidências e tação de redes regionais ‘é fundamental que como consequência desta
sua análise, na importante
consequências da contradição fundamen- inicialmente apaguemos as fronteiras inter- entrevista de 17.06.2014
tal aqui apontada, entre a essência federa- municipais e que elaboremos o plano de for- em Campos (2014). Vale
notar que a proposta ali
tiva e municipalista da Organização Atual ma conjunta’, com a participação de todos os esboçada é convergente
das redes do SUS e os requisitos de sua gestores dos diversos distritos e municípios com a sugestão de Paim
e Teixeira (2007) aqui
Organização Necessária. da região [...]. (grifos meus). mencionada em seguida.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


946 GOMES, R. M.

Mendes (2011, p. 168) aponta na mesma amplo e contínuo processo de desintegração,


direção: fragilização e privatização dessas redes, da
profunda deformação de suas características
O traço forte de um sistema centralizado de organizacionais, técnicas e funcionais neces-
atenção à saúde, rompido pela reforma sani- sárias, bem como dos diversos aspectos aqui
tária brasileira, deu origem a um movimento apontados e das razões apontadas em vários
de municipalização autárquica, levando o estudos, é necessário que enfrentemos a con-
pêndulo para uma contraposição polar. É hora tradição exposta no presente texto por meio
de voltar ao ponto de equilíbrio, [...] Isso signi- da proposição de uma nova organização na-
ficará, na prática social, superar o paradigma cional para as redes do SUS que seja o mais
da municipalização autárquica e consolidar, convergente possível com a Organização
em seu lugar, o paradigma da regionalização Necessária dessas redes.
cooperativa [...]. Tudo isso, num quadro mais Também pelas razões já expostas, é es-
geral de ‘um novo pacto federativo da saúde’. sencial que essa nova organização nacional
(grifos meus). supere definitivamente a autonomia polí-
tico-administrativa e as fronteiras hoje in-
Vale acrescentar às observações de ternalizadas na modelagem, normatização,
Mendes que, como vimos, a autarquização construção, provisão de recursos, gestão e
mobiliza, além dos municípios, os estados e o operação das RAS do SUS pelos milhares
Governo Federal em ações autônomas, o que de entes da federação brasileira que hoje
é ainda mais grave. se incumbem dessas tarefas, inclusive a
Por tudo isso, o exame da contradição União.
entre a essência federativa e municipalista Diante de tal desafio, surgem, de imedia-
da Organização Atual das redes do SUS e sua to, duas importantes questões: (I) é possível
Organização Necessária, e a compreensão implementar mudança de tal ordem sem en-
daí decorrente, cumprem papel fundamental frentarmos uma batalha constitucional?; (II)
na luta pelo SUS tal como definido original- se possível, quais, então, os requisitos neces-
mente em sua funcionalidade, uma vez que sários desta nova organização nacional para
evidenciam a necessidade de que sejam for- as redes do SUS?
muladas e implementadas alterações subs- É certo que não cabem aqui respostas
tanciais nas características da Organização acabadas para tais perguntas, mas é possível
Atual dessas redes, de modo que sejam de- esboçar algumas hipóteses.
finitivamente eliminadas as consequências Para a primeira questão, é possível sugerir
negativas desse modo de organização. que não parece haver na CF/88 nenhum obs-
Entretanto, é importante ter claro que o táculo para que, valendo-se exatamente da
enfrentamento da contradição aqui aponta- Estrutura Societária federativa e municipa-
da é uma questão eminentemente política, lista das RAS do SUS lá definida, o Colégio de
porque questiona diretamente a Organização Gestores Federativos das redes do SUS, com-
Atual dessas redes em sua essência federati- posto por União, estados, Distrito Federal e
va e municipalista. municípios, juntamente com os respectivos
Conselhos de Saúde, diante da grave crise es-
trutural e funcional por que passam a saúde
Alternativas: algumas pública e essas redes há longos anos, decidam
hipóteses para o debate consensualmente buscar respostas para a
segunda pergunta, o que, aparentemente,
Após 25 anos de história do SUS e das Redes seria uma ação legítima de governança, da
de Atenção à Saúde deste sistema, diante do qual estão constitucionalmente incumbidos.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


Redes de Atenção à Saúde do SUS: 25 anos de uma contradição fundamental entre a Organização Necessária 947
e a Organização Atual

Além disso, a Estrutura Societária fede- integração e qualidade dessas redes e seus
rativa e municipalista das redes do SUS não serviços em todos esses níveis.
parece obrigar que uma Nova Organização Desse modo, a nova governança integral-
Nacional dessas redes tenha que ter, necessa- mente colegiada atuaria, por meio do novo
riamente, as mesmas feições da Organização ente jurídico, nos níveis nacional, estadual,
Atual — desde que, tal como definido por sua regional e local sobre os rumos, caracterís-
atual Estrutura Societária, aquele Colégio ticas principais (incluindo sua modelagem,
de Gestores Federativos, juntamente com os normatização, bem como a definição e a ga-
Conselhos de Saúde, assim o decida, o que, rantia de padrões nacionais para a atenção à
aparentemente, também seria uma ação legí- saúde) e garantia de recursos globais (polí-
tima de governança, da qual estão constitu- ticos, financeiros, humanos, tecnológicos e
cionalmente incumbidos. organizacionais) das redes do SUS. Nesses
Para a segunda questão, é possível dizer diversos temas, o novo colégio de gestores
que, diante da falência da base federativa federativos seria assessorado pelo novo ente
e municipalista da Organização Atual das jurídico.
redes do SUS, frente aos requisitos de inte- Para viabilizar nos níveis nacional, estadu-
gralidade e integração de sua Organização al e regional essa nova governança integral-
Necessária, caberia àquele Colégio de mente colegiada desse novo ente jurídico,
Gestores Federativos dessas redes, sempre não apenas a representação de estados e
em conjunto com os respectivos Conselhos municípios na Comissão Intergestores
de Saúde, enfrentar a necessidade de avaliar Tripartite (CIT), deveria ser aperfeiçoada,
a hipótese de proposição e criação, em nível mas também a União deveria se fazer repre-
federal e com atuação nacional, de “um Novo sentar em todas as Comissões Intergestores
Ente Jurídico da organização do Estado Estaduais e Regionais, passando a atuar
[Nacional] exclusivamente voltado para [a ombro a ombro com estados e municípios,
construção, provisão de recursos, gestão, e o que significaria criar um novo colégio de
operação das redes de] o SUS” (PAIM; TEIXEIRA, gestores federativos.
2007, p. 1821), ente jurídico este que incorpora- Os conselhos e conferências de saúde
ria os atuais recursos financeiros, humanos continuariam a ter, frente ao novo colégio
e tecnológicos (sistemas, redes, métodos, de gestores federativos, o papel que hoje
equipamentos, instalações etc.) próprios do possuem.
SUS, hoje totalmente fragmentados porque O novo ente jurídico, o novo colégio de
subordinados aos milhares de entes dos três gestores federativos e sua nova governan-
níveis da federação. Esse Novo Ente Jurídico ça integralmente colegiada deveriam, no
seria estruturado com base na Organização mínimo, ser objeto de normatização no nível
Necessária das redes do SUS. legal, com todas as regras necessárias para
Nessa hipótese, aquele colégio de gestores que sejam definitivamente banidos dois dos
federativos (União, estados, Distrito Federal mais graves problemas hoje enfrentados
e municípios), juntamente com os conselhos pelos que lutam pela integralidade e inte-
de saúde, passaria, de modo inteiramente gração das RAS do SUS: (I) a possibilidade
novo, a se responsabilizar diretamente, con- de ações autônomas da União, estados e
juntamente, igualmente e solidariamente municípios na governança, modelagem, nor-
por esse novo ente jurídico, exercendo assim matização, projeto, construção, provisão de
uma nova governança integralmente colegia- recursos, operação e prestação de serviços
da desse ente e, por meio deste, das RAS do de saúde dessas redes; (II) a autopropaganda
SUS, em nível nacional, estadual, regional e massiva, de caráter notoriamente político-
local, bem como zelando pela integralidade, -eleitoral, desses entes federativos em torno

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


948 GOMES, R. M.

de suas iniciativas. lembrarmos que nesses 25 anos decorridos


Ao contrário, na nova organização na- desde a criação do SUS na CF/88 as tecno-
cional das redes do SUS as ações dos entes logias de informação, comunicação e gestão
federativos, decididas agora de modo in- evoluíram de modo acelerado, provocan-
tegrado no novo colégio de gestores fede- do mudanças revolucionárias, aperfeiço-
rativos, teriam sua divulgação realizada amentos e simplificações nos métodos de
exclusivamente em nome do SUS como po- governança, projeto, construção, provisão
lítica pública de Estado, e não, como atual- de recursos, integração, gestão, operação e
mente, políticas de governos. prestação de serviços das organizações, in-
Com o novo ente jurídico (baseado na clusive aquelas de nível nacional como as
Organização Necessária das redes do SUS), RAS do SUS.
a estrutura nacional das RAS do SUS man- Ainda no plano das hipóteses de respos-
teria as diretrizes de distribuição para os tas à segunda questão, vale destacar alguns
estados e municípios, sempre na ótica da aspectos, entre muitos outros, que aparen-
regionalização. temente se farão necessários nesta ou em
Este poderia ser o “novo pacto federativo alternativa semelhante, sempre lembrando
da saúde” de que nos fala Mendes (2011, p.168), que, na nova organização nacional das redes
capaz de apagar as fronteiras federativas do SUS, o novo ente jurídico, responsável
no interior das redes do SUS como propõe executivo nacionalmente e integralmente
Kuschnir e Chorny (2010, p.79), por meio da por essas redes, seria governado, em todos os
criação de um novo colégio de gestores sentidos e em todos os níveis das RAS, pelo
federativos, de uma nova governança in- novo colégio de gestores federativos, cons-
tegralmente colegiada e de “um novo ente tituído por União, estados, Distrito Federal
jurídico da organização do Estado [nacional] e municípios, sempre em conjunto com os
exclusivamente voltado para [a construção, respectivos conselhos de saúde.
provisão de recursos, gestão, e operação Nesse quadro, é possível alinhar, especu-
das redes de] o SUS” como sugerem Paim e lativamente, as seguintes hipóteses para as
Teixeira (2007, p. 1821), viabilizando, assim, uma principais características e ações desejáveis
nova organização nacional para as RAS desse para esse novo ente jurídico:
sistema, capaz de superar os graves obstácu-
los “já identificados decorrentes da atual le- (I) ser efetivamente único em nível nacio-
gislação, que simplesmente estendeu para o nal, com uma sede administrativa central,
SUS o modelo de gestão do Estado brasileiro, responsável pela gestão e integração nacio-
sem considerar as especificidades do campo nal das redes dos SUS, e estrutura opera-
da saúde e do SUS em particular”, como cional e administrativa distribuída em cada
indicou Campos (2007, p. 306). estado da federação e cada região de saúde
Não se trataria, obviamente, de um responsável pela gestão e integração local,
retorno ao passado pré-CF/88. Ao contrário, regional, estadual e nacional das redes;
seria um efetivo salto à frente, político e de
qualidade, e uma verdadeira modernização (II) incorporação dos atuais recursos
das redes do SUS. E, do ponto de vista de sua humanos e tecnológicos (sistemas, redes,
governança, a efetiva assunção pela União e métodos, equipamentos, instalações etc.)
pelos estados de responsabilidades idênticas próprios do SUS, hoje subordinados aos mi-
às dos municípios, tanto no nível nacional lhares de entes dos três níveis da federação;
como estadual, regional e local.
Em defesa dessa alternativa, além dos (III) incorporação dos atuais contratos e
argumentos já oferecidos, é importante convênios, hoje existentes nos três níveis

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


Redes de Atenção à Saúde do SUS: 25 anos de uma contradição fundamental entre a Organização Necessária 949
e a Organização Atual

da federação, entre o SUS e a rede privada considerar as necessidades de plantões e


(lucrativa ou não) na área da prestação de sua compensação.
serviços de saúde;
Esta última medida viabilizaria a criação
(IV) incorporação dos recursos financeiros de carreiras nacionais que privilegiassem
próprios do SUS, destinados às suas RAS, inicialmente, com a remuneração e con-
que incluem os da União, estados e muni- dições adequadas, a provisão de recursos
cípios, sem perdas para esses dois últimos humanos em locais e regiões de saúde mais
entes federativos frente às necessidades em carentes.
saúde pública de suas populações; Correspondentemente às hipóteses ali-
nhadas para o novo ente jurídico, o novo
(V) assunção integral, dos pontos de vista colégio de gestores federativos se respon-
técnico e executivo, da modelagem, plane- sabilizaria por viabilizá-las, politicamente e
jamento, projeto, construção, provisão de legalmente.
recursos, gestão e operação das RAS do SUS
e suas unidades operacionais, em todos os
níveis dessas redes, de modo a garantir sua Conclusões
integralidade e integração nos níveis local,
regional, estadual e nacional e entre esses A adoção da alternativa esboçada, ou de
níveis; outra semelhante, impõe-se como abso-
lutamente necessária se quisermos evitar
(VI) unificação, em nível nacional, do pla- que se consume a derrocada do SUS como
nejamento de necessidades e da aquisição sistema público, único, universal, equânime
de insumos médicos, insumos tecnológicos e de qualidade em todo o território nacional.
(sistemas, redes, métodos, equipamentos, Esta, entretanto, não é tarefa trivial sob qual-
instalações e outros), serviços etc., bem quer aspecto.
como de recursos humanos, para as redes Por outro lado, um requisito essencial
do SUS e suas unidades, em todos os seus para a vitória, em qualquer batalha, é ter
níveis. Esta medida permitiria ao SUS os clara noção de suas dimensões e escopo, pois
ganhos de escala e o exercício de um poder isto é um indicador valioso sobre o esforço
e capacidade de negociação com seus for- a ser empreendido, os adversários a serem
necedores que hoje não tem; enfrentados e os aliados que se deve buscar.
Nesta perspectiva, é certo que a imple-
(VII) implementação de concursos públi- mentação da alternativa aqui sugerida, ou de
cos nacionais e planos nacionais federais outra similar, equivale a uma Nova Reforma
de carreiras, cargos e salários, efetivamente Sanitária.
adequados para todas as categorias do SUS, Entretanto, vale lembrar que, em sua
inclusive as administrativas, com os quan- época, o Movimento da Reforma Sanitária
titativos necessários de recursos humanos, enfrentou dificuldades e obstáculos muito
dedicação exclusiva a este sistema e qua- maiores e, apesar de tudo, foi vitorioso com a
renta horas semanais de trabalho, superan- inscrição do SUS na CF/88.
do definitivamente o imenso mosaico atual Por isso, navegar ainda é preciso na luta
de regimes de contratação e a possibilida- por uma saúde pública efetivamente uni-
de de múltiplos vínculos empregatícios e versal, equânime, integral, integrada, tem-
horários de trabalho. Certamente que o pestiva e de qualidade em todo o território
regime de trabalho e remuneração deverá nacional. s

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


950 GOMES, R. M.

Referências

ABRÚCIO, F. L. Reforma política e federalismo. In: providências. Diário Oficial [da] República Federativa
BENEVIDES, M. V.; KERCHE, F.; VANNUCHI, P. do Brasil. Brasília, DF, 28 dez. 1990. Disponível em:
(Org) Reforma Política e Cidadania. São Paulo: Editora <https://www.sjc.sp.gov.br/media/116799/microsoft_
Fundação Perseu Abramo, 2003. word_-_lei_n_8142.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2013.

ARRETCHE, M. Políticas Sociais no Brasil: _____. Lei nº 12.401 de 28 de abril de 2011. Altera a Lei
Descentralização em um Estado federativo. In: Revista 8.080, de 19 de setembro de 1990 para dispor sobre a
Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 14, n. 40, assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia
1999. em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.
2011a. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil.
BAHIA, L. O sistema de saúde brasileiro entre normas Brasília, DF, 28 abr. 2011. Disponível em: <http://www.
e fatos: universalização mitigada e estratificação subsi- planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/
diada. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.14, n. L12401.htm>. Acesso em: 20 dez. 2013.
3, p. 753-762, 2009.
_____. Lei nº 12.466 de 24 de agosto de 2011. Acrescenta
______. PORTELA, L. E. E SCHEFFER, M. Dilma vai arts. 14-A e 14-B à Lei no 8.080, de 19 de setembro de
acabar com o SUS? Folha de São Paulo, 05 mar. 2013. 1990, que “dispõe sobre as condições para a promo-
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ ção, proteção e recuperação da saúde, a organização
opiniao/96924-dilma-vai-acabar-com-o-sus.shtml>. e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá
Acesso em: 12 abr. 2013. outras providências”, para dispor sobre as comissões
intergestores do Sistema Único de Saúde (SUS), o
BANTING, K.; CORBETT, S. Capítulo uno: Federalismo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass),
y política de atención a la salud: Introducción. [in- o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de
ternet]. In: Forum of Federations / Forum Saúde (Conasems) e suas respectivas composições, e
des fédérations. Disponível em: <http://www. dar outras providências. Diário Oficial [da] República
forumfed.org/libdocs/Health01/120-HPFE0110-int- Federativa do Brasil. Brasília, DF, 24 ago. 2011c.
banting-corbett-s.pdf> Acesso em: 17 nov. 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12466.htm>. Acesso
BRASIL. Constituição da República Federativa do em: 20 dez. 2013.
Brasil, 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso ______. Lei Complementar nº 141, de 13 de Janeiro de
em: 21 dez. 2013. 2012. Regulamenta o § 3o do art. 198 da Constituição
Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem
_____. Decreto nº 7.508 de 28 de junho de 2011. aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito
Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, Federal e Municípios em ações e serviços públicos de
para dispor sobre a organização do Sistema Único de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de
Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência transferências para a saúde e as normas de fiscaliza-
à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras ção, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3
providências. Diário Oficial [da] República Federativa (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis
do Brasil. Brasília, DF, 28 jun. 2011b. Disponível em: nos 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de
<http://portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/connect/ julho de 1993; e dá outras providências. Diário Oficial
ef034f00489ab23ba9bebbe2d0c98834/Decreto_7.50_ [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 13 jan.
de_28_de_junho_de_2011.pdf?MOD=AJPERES>. 2012a.
Acesso em: 21 dez. 2013.
_____. Ministério da Saúde. Portaria GM nº 4.279, de
_____. Ministério da Saúde. Lei nº 8.142 de 28 de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a
dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do
comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde Sistema Único de Saúde (SUS). 2010. Diário Oficial
(SUS) e sobre as transferências intergovernamentais [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 30
de recursos financeiros na área da saúde e dá outras dez. 2010. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


Redes de Atenção à Saúde do SUS: 25 anos de uma contradição fundamental entre a Organização Necessária 951
e a Organização Atual

bvs/saudelegis/gm/2010/prt4279_30_12_2010.html>. br/regionalizacao-e-o-futuro-do-sus/>. Acesso em: 23


Acesso em: 20 dez. 2013. jul. 2014.

_____. Ministério da Saúde. Resolução CIT/MS 01 de COSTA, A. M.; BAHIA, L.; SCHEFFER, M. Onde foi
29. set. de 2011. Estabelece diretrizes gerais para a parar o sonho do SUS? [internet]. Plataforma Política
instituição de Regiões de Saúde no âmbito do Sistema Social. Disponível em: <http://www.politicasocial.net.
Único de Saúde (SUS), nos termos do Decreto Nº br/index.php/105-caderno/caderno-saude/207-cad-
7.508, de 28 de junho de 2011. 2011d. Disponível em: -saude-analigiamario.html>. Acesso em: 30 maio 2013.
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cit/2011/
res0001_29_09_2011.html>. Acesso em: 20 dez. 2013. DAWSON, B. Informe Dawson sobre el futuro de los ser-
vicios médicos y afines, 1920: informe provisional pre-
_____. Ministério da Saúde. Resolução CIT/MS 02 sentado al Ministerio de Salud de la Gran Bretaña en
de 17 de janeiro de 2012. Dispõe sobre as diretrizes 1920 por el consejo consultivo de Sservicios Médicos y
nacionais para a elaboração da Relação Nacional de Afines. Washington, Organización Panamericana de la
Ações e Serviços de Saúde (RENASES) no âmbito do Salud. (Publicacion Científica nº 93, 1964.)
Sistema Único de Saúde (SUS). 2012b. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cit/2012/ FRANCE, G. Federalismo fiscal: experiências interna-
res0002_17_01_2012.html>. Acesso em 20 dez. 2013. cionais e modelo para a Itália. In: NEGRI, B.; VIANA,
A. L. D. (Org). O SUS em dez anos de desafio. São Paulo,
_____. Ministério da Saúde. Resolução CIT/MS 01 de 17 Sobravime/Cealag, 2002a, p. 65-83.
de janeiro de 2012. Estabelece as diretrizes nacionais
da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais ______. Estilo nacional e saúde regional. In: ______. O
(RENAME) no âmbito do Sistema Único de Saúde SUS em dez anos de desafio. São Paulo, Sobravime/
(SUS). 2012c. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov. Cealag, 2002b, p. 65-83.
br/bvs/saudelegis/cit/2012/res0001_17_01_2012.html>.
Acesso em: 20 dez. 2013. IDEC; USP. Ato Público “Os planos de saúde vão acabar
com o SUS?” [internet]. Disponível em: <https://www.
_____. Ministério da Saúde. Resolução CIT/MS 03 de 30 idec.org.br/mobilize-se/evento/ato-publico-os-planos-
de janeiro de 2012. Dispõe sobre normas gerais e fluxos -de-saude-vo-acabar-com-o-sus>. Acesso em: 12 abr.
do Contrato Organizativo da Ação Pública de Saúde 2013.
(COAP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
2012d. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/ KUSCHNIR, R. C.; CHORNY, A. H. Redes de atenção
bvs/saudelegis/cit/2012/res0003_30_01_2012.html>. à saúde: contextualizando o debate. Ciência & Saúde
Acesso em: 20 dez. 2013. Coletiva, Rio de Janeiro, v.15, n.5, p. 2307-2316, 2010.

_____. Programa Mais Médicos para o Brasil. Ministério KUSCHNIR, R. C.; CHORNY, A. H.; LIRA, A. M.
da Saúde. 2013. Disponível em: <http://portalsaude. L. Gestão dos sistemas e serviços de saúde. [inter-
saude.gov.br/index.php/cidadao/acoes-e-programas/ net]. Departamento de Ciências da Administração,
mais-medicos>. Acesso em: 21 maio 2014. UFSC, Florianópolis, SC; CAPES/UAB, Brasília,
2010. Disponível em: <www.uft.edu.br/dte/index.
CAMPOS, G.W.S. Reforma política e sanitária: a sus- php?option=com_docman&amp;task=doc_download&a
tentabilidade do SUS em questão? Ciência & Saúde mp;gid=338&amp;Itemid=51>. Acesso em: 27 set. 2013.
Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 301-306, 2007.
LEGA, F. Organisational design for health integrated
______. Regionalização é o futuro do SUS [internet]. delivery systems: theory and practice. Health policy,
Região e redes. Disponível em <http://www.resbr.net. Nova York, v. 81, n.2, p. 258-279, 2007. Disponível em:

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


952 GOMES, R. M.

<http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/ PAIM, J. S.; TEIXEIRA, C. F. Configuração


S0168851006001394>. Acesso em: 17 set. 2012. Institucional e Gestão do Sistema Único de Saúde:
Problemas e Desafios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de
MENDES, E. V. As Redes de Atenção à Saúde. Janeiro, v. 12, n. 2, mar./abr. 2007.
Organização Pan-Americana da Saúde. Representação
Brasil, Brasília, DF, 2011. PARANÁ. Ministério público. SUS e prestadores de
serviços. [internet]. Disponível em: <http://www.sau-
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). de.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.
Cuidados inovadores para condições crônicas: com- php?conteudo=21>. Acesso em: 22 maio 2013.
ponentes estruturais de ação [internet]. Organização
Mundial da Saúde, Brasília, 2003. Disponível em: VIANA, A. L., A.; MACHADO, C. V. Descentralização
<http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/42500/2/ e coordenação federativa: a experiência brasileira na
WHO_NMC_CCH_02.01_por.pdf>. Acesso em: 06 set. saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n.
2013. 3. p. 807-817, 2009.

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE


Recebido para publicação em junho de 2014
(OPAS). Redes Integradas de Servicios de Salud - Versão final em agosto de 2014
Conflito de interesses: inexistente
Conceptos, Opciones de Política y Hoja de Ruta para
Suporte financeiro: não houve
su Implementación en las Américas. Washington, D.C.,
2010. (Serie: La Renovación de la Atención Primaria
de Salud en las Américas, 4 ). Disponível em: <http://
www2.paho.org/hq/dmdocuments/2010/APS-Redes_
Integradas_Servicios_Salud-Conceptos.pdf>. Acesso
em: 21 abr. 2011.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 938-952, OUT-DEZ 2014


Ensaio | Essay 953

Sobre a saúde, os determinantes da saúde e a


determinação social da saúde
On health, determinants of health and the social determination of
health

Guilherme Souza Cavalcanti de Albuquerque1, Marcelo José de Souza e Silva2

RESUMO Seres vivos são considerados saudáveis quando em condições de realizar suas pos-
sibilidades, e, para os seres humanos, essas possibilidades são produzidas historicamente. O
objetivo deste trabalho é superar a lógica dos fatores determinantes, compreendendo a saúde
a partir da produção social do humano nas pessoas e das condições de sua máxima realização.
Para a humanidade, as possibilidades são produzidas historicamente pela transformação da
natureza, de forma social, afastando os limites que esta impõe ao humano. A compreensão da
determinação da saúde humana se faz pela análise do modo de produção, do grau de desen-
volvimento das forças produtivas e das relações sociais estabelecidas.

PALAVRAS-CHAVE Saúde; Fatores epidemiológicos; Determinação.

ABSTRACT Living beings are considered healthy when able to accomplish their possibilities, and,
for human beings, such possibilities are produced historically. This paper aims to overcome the
logic of the determining factors, understanding health by the social production of the human on
people and the conditions of its full realization. For mankind, the possibilities are historically
produced by the transformation of nature, performed socially, pushing the limits it imposes on
their existence. The understanding of the determination of human health is reached through the
analysis of the mode of production, the degree of development of productive forces and of social
relations.

KEYWORDS Health; Epidemiologic factors; Determination.

1Doutor em Educação pela


Universidade Federal do
Paraná (UFPR) – Curitiba
(PR), Brasil. Pesquisador
da Universidade Federal do
Paraná (UFPR) – Curitiba
(PR), Brasil.
guilherme.albuquerque.ufpr@
gmail.com

2Mestre em Educação pela


Universidade Federal do
Paraná (UFPR) – Curitiba
(PR), Brasil. Pesquisador
da Universidade Federal do
Paraná (UFPR) – Curitiba
(PR), Brasil.
marcelojss@gmail.com

DOI: 10.5935/0103-1104.20140082 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 953-965, Out-Dez 2014
954 ALBUQUERQUE, G. S. C.; SILVA, M. J. S.

Introdução corpo orgânico. A partir dessa concepção,


buscou‑se demonstrar sua determinação
A reflexão sobre a saúde, seus determinantes social e a necessidade da análise do modo de
e sua determinação, requer, em primeiro lugar, produção para sua correta compreensão.
que se esclareça com que concepção de saúde
se estará trabalhando. Muitas das reflexões na
área da saúde ou não explicitam a concepção Sobre a saúde
de saúde sobre a qual se fundam, ou partem do
pressuposto de que tal concepção está dada, Em uma primeira análise, podemos con-
fruto de um consenso universal que não deixa siderar que os seres vivos, em geral, estão
qualquer margem de dúvida ou divergência saudáveis quando em condições de realizar
entre os interlocutores (ALMEIDA FILHO, 2011; FLEURY- aquilo que a natureza lhes apresenta como
TEIXEIRA, 2009). Não é assim. Ao longo da história, potencial de realização. Nessa perspectiva,
a humanidade foi elaborando diversas concep- as plantas estão saudáveis quando em con-
ções de saúde (FOLADORI, 2011; ALMEIDA FILHO, 2011): dições de extrair do solo seus nutrientes,
por um lado, de acordo com o grau de domínio desenvolver sua estrutura, produzir carboi-
sobre a natureza, sobre a realidade objetiva, drato e oxigênio através da fotossíntese, pro-
com o modo hegemônico de interpretar a re- duzir flores, frutos, sementes, ou quaisquer
alidade em cada momento histórico; por outro outras formas de reprodução.
lado, de acordo com as necessidades apresen- Para os animais em geral, significa estar
tadas a partir dos interesses dominantes em em condições de obter seu alimento, pro-
cada momento, em relação ao funcionamento teger-se, reproduzir-se e ter como expec-
do corpo para seu uso. tativa de vida aquela que caracteriza sua
Desde as concepções primitivas, fundadas espécie. Para cada espécie em particular,
em uma explicação mágica — passando pelas significa poder realizar aquilo que lhes dá
explicações que correlacionavam o organismo especificidade. Para a abelha Apis mellifera,
humano com os elementos da natureza, pelas por exemplo, significa, em primeiro lugar,
explicações religiosas, entre outras —, até as ter uma expectativa de vida em torno de
concepções mais atuais da ausência de doença 60 dias (no caso das operárias), poder voar,
e estado de completo bem-estar biopsicosso- colher pólen e néctar, produzir o mel, a cera,
cial, a humanidade produziu e acumulou di- o própolis, defender a colmeia dos predado-
versas formas de conceituação da saúde. Cada res etc. Em síntese, realizar aquilo tudo que
uma delas constitui uma concepção particular, está dado geneticamente como possibilidade
orgânica aos interesses, necessidades e grau de e que caracteriza a espécie. A realização do
explicação da realidade que alcançou o pensa- potencial, no entanto, depende da disponi-
mento hegemônico em cada formação social bilidade dos recursos naturais necessários
nos diferentes momentos históricos. para a sobrevivência e a reprodução.
No presente texto, procurou-se expor Para os seres humanos, a questão é a mesma,
uma concepção de saúde fundada no mate- mas não é igual. É a mesma no que diz respei-
rialismo histórico-dialético como condição to ao fato de estar em condições de realizar
de realização das conquistas do gênero em aquilo tudo que o gênero humano apresenta
cada sujeito, entendendo o ser humano como como possibilidade de realização. Não é igual
um ser que se produz em sociedade e que, porque, para os seres humanos, essa questão
diferentemente dos outros animais, impõe não está dada e determinada apenas pelas pos-
sua vontade sobre a natureza de forma te- sibilidades e limites impostos pela natureza.
leológica, tornando-a seu corpo inorgânico, Os animais não humanos realizam
que se relaciona dialeticamente com seu sua existência nos limites impostos pela

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 953-965, Out-Dez 2014


Sobre a saúde, os determinantes da saúde e a determinação social da saúde 955

natureza, obedecendo aos seus instintos. existência. Assim, cria novas necessidades e
As diversas espécies animais retiram da na- torna mais complexas essas condições.
tureza sua sobrevivência adaptando-se às Para prover sua sobrevivência, os seres
circunstâncias impostas. Se a natureza não humanos, em conjunto, produzem coisas,
oferece as condições necessárias, os indi- como roupas, alimentos, moradias, meios de
víduos fenecem. Se a espécie não se adapta transporte, meios de comunicação, conhe-
ao meio natural, extingue-se. Ao longo de cimentos, ferramentas, máquinas, fábricas,
muitas gerações (em geral, em milênios), as entre outras. A produção disso tudo só é pos-
diferentes espécies vão-se adaptando às di- sível pela divisão social do trabalho — alguns
versas circunstâncias que a natureza oferece, produzem alimentos, outros produzem cui-
vivendo dentro de certos limites de tempe- dados médicos, automóveis, computadores,
ratura, pressão, luminosidade, entre outros. máquinas, moradias e assim por diante —,
Porém, é importante destacar que em uma e, com isso, criam-se as condições para que
mesma geração não ocorre adaptação evolu- todos tenham à sua disposição tudo o que
tiva da vida animal. Embora, por outro lado, uma pessoa isoladamente não conseguiria.
os seres vivos em geral apresentem, como Cria-se, portanto, com essa divisão, uma
mecanismos evolutivos, não somente a trans- relação de interdependência entre os di-
missão de “melhores genes para um ambien- versos setores da produção, relação na qual
te futuro” (FOLADORI, 2011, p. 50), mas também a é dada a condição humana. Portanto, uma
transmissão de um ambiente modificado pessoa, isoladamente, não conseguiria viver
(pela sua existência e relação com o meio na condição alcançada pela humanidade,
biótico e abiótico) para os genes vindouros. pois não conseguiria produzir tudo o que em
No caso dos humanos, porém, essa modi- sociedade torna-se possível e desenvolver
ficação ocorre de modo especial. Estes, para em si todas as potencialidades humanas.
realizar seu potencial, necessitam dispor A sobrevivência humana, como dis-
dos recursos naturais, mas, se todo ser vivo semos, diferentemente da dos outros
atua modificando o meio, os seres humanos animais, não se dá através de uma relação
têm por característica particular atuar sobre instintiva de subordinação à natureza. É
a natureza de forma teleológica, buscando desta, também, que o humano retira sua
transformá-la intencionalmente. Através do sobrevivência, mas, através de sua ação
trabalho, ação previamente pensada, dirigi- intencional modifica a mesma, subordi-
da a um determinado fim (MARX, 1965), os seres nando-a a seus desígnios e, assim, pro-
humanos afastam aqueles limites que a natu- duzindo seus meios de sobrevivência.
reza impõe à plena realização de suas poten- Não apenas extraindo diretamente da
cialidades, ampliando, permanentemente, natureza o que necessita, mas produzindo
essas próprias potencialidades. objetos que nela não existiam através da
sua modificação.
Se a humanidade só retirasse o que a na-
A produção social do tureza oferece, como no caso dos outros
humano e a determinação animais, em tempos de frio extremo, de seca,
de ‘entressafras’, morreríamos de hipoter-
da saúde e da doença mia, sede ou fome e não conseguiríamos
jamais voar, explorar o espaço, ou armazenar
Ao atuar sobre a natureza para a produção da informações em um computador. Ao modifi-
sua existência, o gênero humano não só cria car a natureza, a humanidade acaba por con-
novas condições de existência como também trolar seus processos de forma a adequá-la a
novos meios de produzir novas condições de suas necessidades.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 953-965, Out-Dez 2014


956 ALBUQUERQUE, G. S. C.; SILVA, M. J. S.

Os demais animais (formigas, abelhas, com isto, infinitamente sua memória.


castor, joão-de-barro, entre outros) Com tudo isso, com a utilização dos meios
também realizam uma atividade que se de vida que elabora, a humanidade conse-
assemelha ao trabalho humano. Trata-se, gue produzir cada vez mais recursos com
porém, de uma ação realizada sempre da menor esforço, garantindo a sobrevivência
mesma forma, ‘obedecendo’ ao instinto de mais gente por mais tempo, com maiores
da espécie. Subordinados à natureza, os possibilidades de realização. Reduz-se a
demais animais realizam uma ação que mortalidade precoce, aumenta-se a longevi-
difere radicalmente do trabalho humano. O dade, aumentam-se as possibilidades de de-
ser humano, a partir de uma ideia, realiza senvolvimento, inclusive do saber, uma vez
processos no sentido de torná-la realidade. que cada um vive mais tempo.
Idealiza um produto e depois atua sobre É fundamental percebermos, no entanto,
a natureza no sentido de produzi-lo. Nas que cada coisa que existe na natureza,
palavras de Marx (1965, p. 140, tradução nossa), uma vez tomada pela humanidade para
um determinado fim, tornada objeto da
[…] antes de executar a construção, a projeta ação humana, torna-se objeto humano.
em seu cérebro. Ao final do processo de tra- São novos objetos, mesmo que não tenham
balho, brota um resultado que antes de come- sido modificados em sua forma e conteúdo,
çar o processo já existia na mente do traba- pois se modificaram em seu significado, ou
lhador; quer dizer, um resultado que já tinha seja, ganharam um novo significado pela
existência ideal. ação humana (LUKÁCS, 1979). Um galho de
árvore, com a ação humana, vira alavanca,
A humanidade cultiva plantas ou cria arco, flecha, bengala, espeto; o movimento
animais, modifica-os para sua alimenta- das águas, devido à gravidade, ‘torna-se’
ção (do leite faz a manteiga, iogurte etc.), energia hidráulica, que será transformada
para vestir-se (do couro, da lã de carnei- em energia elétrica.
ro, da seda, faz roupas, sapatos, sacolas Ou seja, ao produzir objetos e utilizá-los
etc.); utiliza plantas, como o algodão, para viver o ser humano produz uma nova
para produzir suas roupas; utiliza fungos, realidade e se produz com ela. Isso quer
por exemplo, para a produção de medi- dizer que ele é produto da civilização, é um
camentos; constrói moradias utilizando produto social e não mais somente da na-
areia, fazendo tijolos de barro, cimento e tureza. O ser humano, portanto, não nasce
cal, queimando as rochas, fundindo ligas pronto, vai adquirindo a condição humana
metálicas, fazendo vidro a partir da sílica; com aquilo que a sociedade produz (MARX,
produz meios de transporte que o levam 2004). É isso que lhe permite objetivar em
muito longe e rápido sem exaurir suas si aquilo que caracteriza a condição de hu-
energias, que lhe permitem navegar e voar; manidade. O gênero humano, na atualidade,
produz meios de comunicação que lhe per- tem como possibilidade viver próximo de
mitem ver e conversar, em tempo real, com 100 anos, enxergar o que ocorre no outro
alguém que esteja do outro lado do globo lado do mundo, voar, corrigir seu déficit
terrestre; constrói aparelhos que lhe per- visual com o uso de óculos, entre outras,
mitem enxergar microscopicamente ou mas esta condição não está dada pela natu-
enxergar a distâncias muitíssimo longas; reza ao nascer, como está dada aos pássaros
produz um código de comunicação, expres- a condição de voar.
sando ideias através de signos (abstrações) O humano continua sendo um ser bioló-
orais, as palavras; registra essas ideias gico, sobre o qual, porém, depositam-se inú-
através da palavra escrita, estendendo, meras produções sociais que o caracterizam,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 953-965, Out-Dez 2014


Sobre a saúde, os determinantes da saúde e a determinação social da saúde 957

que o objetivam, diferentemente dos demais vida humana depende, portanto, do grau de
animais. desenvolvimento e da forma como a própria
sociedade se organiza.
As formas de objetividade do ser social se de-
senvolvem, à medida que surge e se explicita
a práxis social, a partir do ser natural, tornan- Saúde e seus determinantes
do-se cada vez mais claramente sociais. Esse
desenvolvimento, porém, é um processo dia- Tomemos a definição de Juan César García,
lético, que começa com um salto, com o pôr segundo a qual saúde constitui condição de
teleológico do trabalho, não podendo ter ne- “máximo desenvolvimento das potenciali-
nhuma analogia na natureza. (LUKÁCS, 1979, p. 17). dades do homem, de acordo com o grau de
avanço obtido pela sociedade em um período
É um ser, agora, que precisa utilizar os histórico determinado” (GARCIA, 1989, p. 103).
objetos humanos produzidos para adquirir Se entendermos, assim, que saúde signi-
o grau de humanidade que a humanidade fica ‘estar vivo e em condição de nos objeti-
atingiu. Precisa ser educado, precisa apren- varmos como humanos, de realizarmos em
der a utilizar o garfo, a faca, a leitura, o cada um de nós o máximo dentro do que a
computador, os automóveis, os antibióticos, humanidade já estabeleceu como possibili-
enfim, tudo aquilo que a sociedade produ- dade’, torna-se muito claro que essa objeti-
ziu e que é necessário para poder viver o vação depende não somente da regularidade
quanto tornou possível e realizar aquilo que anatomofuncional do corpo, mas também
o gênero humano realiza. da possibilidade de apropriação daquilo
que a humanidade produziu. Os produtos
Desde o momento em que nasce, a criança for- humanos aos quais estamos nos referindo
ma o seu comportamento sob a influência das e dos quais necessitamos para nos objeti-
coisas que se formaram na história: senta-se à varmos incluem: alimentos, moradia, edu-
mesa, come com colher, bebe em xícara e mais cação, meio ambiente, transporte, serviços
tarde corta o pão com a faca. Ele assimila aque- de saúde, hábitos ou estilos de vida, entre
las habilidades que foram criadas pela história outros, denominados de ‘determinantes
social ao longo de milênios. Por meio da fala sociais de saúde’.
transmitem-lhe os conhecimentos mais ele- Segundo a Comissão Nacional sobre os
mentares e posteriormente, por meio da lingua- Determinantes Sociais da Saúde (2008), tais
gem, ele assimila na escola as mais importantes determinantes estariam vinculados aos com-
aquisições da humanidade. A grande maioria de portamentos individuais e às condições de
conhecimentos, habilidades e procedimentos vida e trabalho, bem como à macroestrutu-
do comportamento de que dispõe o homem ra econômica, social e cultural. Seriam os
não são o resultado de sua experiência própria “fatores sociais, econômicos, culturais, étni-
mas adquiridos pela assimilação da experiência co-raciais, psicológicos e comportamentais
histórico-social de gerações. (LURIA, 1979, p. 73). que influenciam a ocorrência de problemas
de saúde e seus fatores de risco na popula-
Assim, a vida humana se produz confor- ção” (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007, p. 78).
me se organiza, em sociedade, a produção Questões como o grau de autonomia,
e distribuição dos meios de sobrevivência, segurança, reconhecimento, recompensa
dos produtos humanos. Realiza-se, portanto, ou frustração diante do esforço, frequente-
dentro dos limites e possibilidades que o de- mente denominadas de determinantes psi-
senvolvimento das forças produtivas e as re- cossociais da saúde (FLEURY-TEIXEIRA, 2009), são
lações de produção estabelecem (MARX, 1965). A também produtos das diversas formações

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 953-965, Out-Dez 2014


958 ALBUQUERQUE, G. S. C.; SILVA, M. J. S.

sociais e desempenham papel importante comportamentais. Sob essa óptica, uma ação
como determinantes da saúde. consistente de saúde deveria atacar a má
Apesar do vínculo reconhecido pela distribuição de renda. Os processos sociais
Comissão Nacional de Determinantes que determinam essa má distribuição, no
Sociais, exposto acima, há um forte risco de entanto, não são colocados em questão,
‘culpabilização’ dos sujeitos na adoção dos expondo uma fragilidade fundamental neste
fatores determinantes como categoria expli- tipo de explicação.
cativa da saúde, diante do que alguns estudos Mesmo os modelos como os de Dahlgren
advertem para o fato de que e Whitehead e o de Diderichsen, que buscam
ampliar o olhar sobre os determinantes, no
A determinação social da saúde está muito sentido de superar tal fragilidade explica-
além de determinantes isolados e fragmen- tiva e produzir indicações para a ação po-
tados que, sob uma perspectiva reducionis- lítica voltada a minimizar os diferenciais
ta, são associados com fatores clássicos de dos diversos grupos sociais, indicam que a
riscos e estilos de vida individuais. Não de- condição de saúde e doença dos indivíduos
vemos permitir que o conceito de determi- é influenciada pelo contexto social, pelas
nantes sociais seja banalizado, ou reduzido, condições de vida e trabalho, ambos rela-
simplificando-o ao tabagismo, ao sedentaris- cionados às condições macrodeterminantes
mo, ou a uma inadequada alimentação. O que (econômicas, culturais e ambientais), mas
precisamos reconhecer é que por trás dessas não demonstram as relações dialéticas exis-
práticas, existe uma construção social basea- tentes entre as diversas instâncias, ocultan-
da na lógica de uma cultura hegemônica [...]. do seus nexos de determinação (SOUZA; SILVA;
(CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE, 2011, p. 1). SILVA, 2013).
Todas as questões apresentadas como
Alguns estudos buscam solucionar tal determinantes das condições de saúde e
questão ressaltando a importância da distin- doença dos indivíduos e dos grupos popula-
ção entre os determinantes de saúde dos in- cionais são analisadas em uma perspectiva
divíduos e os de coletivos de indivíduos, uma positivista, fragmentadas, não conexas, sem
vez que fatores que explicariam as diferen- uma base unificadora que as organize racio-
ças individuais não explicariam as diferen- nalmente e explique sua ocorrência.
ças entre grupos sociais ou entre sociedades No exemplo citado, a iniquidade na distri-
(BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007). buição de renda é tomada como característi-
ca inerente às formações sociais estudadas,
As importantes diferenças de mortalidade cuja origem ou determinação não se explica.
constatadas entre classes sociais ou grupos As produções mais recentes têm supe-
ocupacionais não podem ser explicadas pe- rado a instância de análise singular, de-
los mesmos fatores aos quais se atribuem as monstrando que os comportamentos (de
diferenças entre indivíduos, pois se contro- risco) ocorrem subordinados às condições
lamos esses fatores (hábito de fumar, dieta, particulares de existência, nos limites que
sedentarismo etc.), as diferenças entre estes o modo de vida dos diversos grupos sociais
estratos sociais permanecem quase inaltera- impõe. Em decorrência disso, as propostas
das. (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007, p. 81). de intervenção voltadas à melhoria da saúde
incluem: a preocupação com mudanças em
Segundo os autores citados, as diferen- normas culturais, ações educativas de massa,
ças seriam marcadas muito mais pelo grau melhoria de acesso a alimentos saudáveis,
de ‘equidade’ na distribuição de renda que melhor acesso à água limpa, esgoto, habita-
pelos fatores individuais biológicos ou ção adequada, emprego seguro e realizador,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 953-965, Out-Dez 2014


Sobre a saúde, os determinantes da saúde e a determinação social da saúde 959

ambientes de trabalho saudáveis, serviços de a desigualdade. Ou seja, o que o capitalis-


saúde e de educação de qualidade, criação mo precisa para sobreviver e progredir é
de espaços públicos para a prática de espor- exatamente o oposto do que é preconiza-
tes, proibição de propagandas de alimentos do, reduzindo o discurso da saúde a uma
e outras substâncias deletérias à saúde, bem pregação de responsabilização das vítimas
como o apelo à coesão social e ao fortaleci- que deverão encontrar meios de melhor
mento dos laços de solidariedade entre as viver, nas condições dadas pela sociedade
pessoas e grupos populacionais, buscando do capital, com uma (improvável) colabo-
que os grupos mais fragilizados se fortale- ração das classes sociais a cujos interesses
çam no sentido da participação das decisões se opõem.
da vida social (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007). Os limites rigidamente impostos pela pre-
Tais ideias, se por um lado contemplam servação do capitalismo ficam evidentes nas
questões fundamentais na determinação da pífias pretensões ilustradas pelas proposi-
saúde, por outro desconsideram que estas ções de ‘diminuir’ diferenciais de exposição
próprias questões são sobredeterminadas, a riscos dos grupos que vivem em condições
desconsideram que no capitalismo as coisas insalubres ou trabalham em ambientes in-
são produzidas pelo seu valor de troca e não seguros. São ações voltadas a ‘mitigar os
pelo seu valor de uso e que, frequentemen- efeitos’ de um modo de vida patogênico que
te, a produção de valores de troca prejudica permanecerá intocado, como evidencia o
ou mesmo impede a produção de valores enunciado abaixo:
de uso. Dessa forma, deixando intocados os
fundamentos do capitalismo, tais assertivas Quanto ao enfrentamento dos diferenciais de
acabam por assumir um aspecto de pregação vulnerabilidade, são mais efetivas as interven-
moralista. Ao se responsabilizar as próprias ções que buscam fortalecer a resistência a di-
pessoas e grupos por suas condições de versas exposições, como por exemplo, a edu-
existência, dilaceradas pelas necessidades cação das mulheres para diminuir sua própria
do capital, dissemina-se a falácia de que a vulnerabilidade e a de seus filhos. (BUSS; PELLE-
mudança dependeria da boa vontade e do GRINI FILHO, 2007, p. 87).
despertar do humanismo que repousa nas
boas almas humanas. Perceber, portanto, que a frustração, a
Afirmações eivadas de boa intenção, pobreza, a privação e o trabalho desgastante,
apelando à colaboração dos diversos fazem mal à saúde e que a boa saúde depende
setores da sociedade, como as que propõem de acesso a boas condições de moradia, ali-
intervenções através de políticas macro- mentação, trabalho, renda e saneamento é
econômicas e de mercado de trabalho, de importante, mas insuficiente. Identificar
proteção ambiental e de promoção de uma que tais deficiências são determinantes das
cultura de paz e solidariedade no sentido condições de saúde é fundamental para bus-
de promover um desenvolvimento susten- carmos saná-las com vistas à conquista da
tável, reduzindo as desigualdades sociais e saúde, mas insuficiente para compreender-
econômicas, a violência, a degradação am- mos a determinação da mesma. O desafio a
biental, que atuem sobre os mecanismos ser enfrentado é compreender porque essas
de estratificação social e sobre os diferen- condições se impõem (SANTOS; TEJADA; EWERLING,
ciais de exposição, de vulnerabilidade e 2012). É imperativo entendermos as relações
de suas consequências (BUSS; PELLEGRINI FILHO, sociais historicamente dadas que estão a
2007), desconsideram que, para a sociedade determinar as condições de existência, sob
capitalista, é vital promover a exploração determinado modo de produção.
de imensas parcelas da população, gerando Estabelecer, simplesmente, uma relação

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 953-965, Out-Dez 2014


960 ALBUQUERQUE, G. S. C.; SILVA, M. J. S.

de correspondência entre fatores determi- constituiria uma raça à parte, que se repro-
nantes, tomados como elementos que geram duz em excesso e morre em excesso e que
desiguais condições de saúde e doença, pres- a solução para tal situação seria civilizá-los
supõe a possibilidade de intervir sobre eles, com a ajuda da religião, por meio do rigor
desconsiderando os limites e possibilidades moral e da cidadania responsável.
impostos pelo modo de produção dominante.

A postura de reunir evidência sobre os fatores Determinação social da


sociais que geram desigualdades em saúde saúde
reproduz as limitações do paradigma domi-
nante na epidemiologia e na saúde pública Que tipo de vida, o quanto se poderá viver,
[…], pois fragmenta a realidade em fatores, que tipo e grau de desgaste, de possibilidades
supondo que isolados mantêm sua capaci- de desfrute dos bens produzidos, que bens
dade explicativa e são suscetíveis de serem estarão disponíveis, dependem do grau de
modificados. (ARELLANO; ESCUDERO; MORENO, 2008, desenvolvimento adquirido pelas forças pro-
p. 327, tradução nossa). dutivas da sociedade em que se vive. Como
demonstramos, tudo na vida em sociedade,
Granda e Breilh (1989, p. 39) nos alertam tudo na vida humana, é determinado, em
para o fato de que a colocação científica última instância, pelo grau de desenvolvi-
da análise da determinação da saúde e da mento alcançado pela sociedade, é determi-
doença requer um rigoroso processo de de- nado socialmente.
limitação que não a desarticule, como objeto Mas o fato de ser determinado socialmen-
de estudo, “do processo geral da sociedade e, te não inclui apenas a questão do grau de de-
ao mesmo tempo, permita reconhecer seus senvolvimento das forças produtivas — não
aspectos específicos e situar suas expressões há, por exemplo, uma correlação direta entre
individuais”. os indicadores de riqueza de uma sociedade
Desconsiderar tais relações faz ocultar e os indicadores de saúde (BUSS; PELLEGRINI FILHO,
a determinação social dos processos 2007) —, também depende das relações de
sobre os quais se produz a vida humana produção, ou seja, de como estão organiza-
em sociedade, prejudicando a identifi- das na sociedade não somente as relações
cação das intervenções necessárias para das pessoas com a natureza, mas também das
as mudanças realmente significativas pessoas entre si.
para a construção de uma sociedade mais Em sociedades de classes, as relações que
saudável. se estabelecem entre as classes determinam
A análise dos ‘fatores determinantes’, sem diferentes possibilidades e restrições ao de-
a compreensão da totalidade que os produz, senvolvimento da vida e, consequentemente,
frequentemente leva a localizar nos indiví- diferentes formas ou possibilidades de viver,
duos a origem e a solução das questões da adoecer e morrer.
saúde e da doença, dando suporte a propo- A possibilidade da apropriação de tais pro-
sições vinculadas à esfera da educação, da dutos (determinantes da saúde) está dada ou
religião, da cidadania responsável, buscando sobredeterminada pela formação social que
tornar civilizadas as vítimas dos processos os produz. O acesso aos objetos humanos,
sociais desumanos. produtos do trabalho social, se dá, para cada
Esse tipo de atitude pode induzir a equí- grupo, de diferentes formas, na dependência
vocos, como a afirmação de Villermé de que de como se organiza a vida em cada socie-
a origem social da doença e da morte estaria dade. Ou seja, a forma como se organiza a
na própria população que, pouco civilizada, produção na sociedade determina diferentes

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 953-965, Out-Dez 2014


Sobre a saúde, os determinantes da saúde e a determinação social da saúde 961

limites e possibilidades de realização da vida Como demonstra Laurell (1983), em um


para os diferentes grupos sociais. mesmo momento histórico, diferentes
Na sociedade capitalista, uma classe formas de organizar as sociedades também
detém a propriedade dos meios de produção repercutem de forma diversa sobre a saúde,
e outra classe detém apenas sua força de tra- seja pela diferença no grau de desenvolvi-
balho. A classe que não possui meios de pro- mento das forças produtivas, seja pela dife-
dução próprios precisa vender sua força de rença na forma de se estabelecer as relações
trabalho para sobreviver e, assim, terá maior sociais.
ou menor desgaste no trabalho e maior ou Os Estados Unidos da América (EUA)
menor possibilidade de acesso aos produ- possuem melhores condições de saúde do que
tos da produção social, a depender da forma os países africanos em geral devido, princi-
como se insere na produção e no consumo. palmente, ao maior grau de desenvolvimento
Quando as forças produtivas se desenvol- de suas forças produtivas, que faz com que
vem, criam-se as condições para que a pro- os estadunidenses tenham menor desgaste
dução ocorra com menor desgaste de energia na produção e maior acesso ao consumo de
por parte do trabalhador e com menor dis- produtos necessários para manter a saúde,
pêndio de tempo. Melhoram as possibilida- como alimentos, medicamentos, entre
des de realização da vida dos indivíduos, de outros. Por outro lado, dados de morbidade
aumentar a expectativa de vida, de alterar as e mortalidade, comumente utilizados como
causas de adoecimento e morte. indicadores de saúde, como a Mortalidade
Se, por exemplo, olharmos para o Brasil Infantil (MI), demonstram que nos EUA
colonial e compararmos com a atuali- a MI é superior à de 55 países cujo grau de
dade, veremos que a expectativa de vida desenvolvimento das forças produtivas é, no
aumentou significativamente e que, se máximo, similar ao seu, entre os quais Japão,
naquela época as causas de morte estavam Suécia, França, Alemanha, Holanda, Canadá
muito ligadas às doenças infecciosas, hoje e superior, também, à de países como Cuba,
estão ligadas mais à violência e às doenças Grécia, Portugal, Sérvia, Croácia, Bósnia
crônico-degenerativas. Herzegovina (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY OF THE
Nas relações capitalistas de produção, no UNITED STATES OF AMERICA, 2014) que, evidentemen-
entanto, o avanço das forças produtivas nem te, possuem um grau de desenvolvimento
sempre resulta em melhorias para a classe dos meios de produção extremamente infe-
trabalhadora. Muitas vezes o avanço da pro- rior. Em última instância, o que determina
dução se dá a partir de maior exploração do tal diferença, nesse caso, são as relações de
trabalhador. Marx, ao descrever as condi- produção, que nos EUA são marcadas pela
ções de trabalho que se instauravam com a extrema exploração do homem pelo homem,
maquinaria no século XIX, já nos apontava pela prioridade absoluta da produção de
que valores de troca sobre valores de uso e pela
desigualdade gerada pelo fundamentalismo
[…] a máquina se converte, nas mãos do capi- liberal; o que no Canadá procura-se atenuar
tal, em um meio objetivo e sistematicamente e em Cuba procura-se eliminar.
aplicado para extrair mais trabalho dentro do Finalmente, em uma sociedade de classes,
mesmo tempo. Isto se consegue de um duplo em um mesmo momento histórico, o modo
modo: aumentando a velocidade das máqui- de viver, adoecer e morrer das diferentes
nas e estendendo o raio de ação da maquina- classes e estratos de classe é bastante diverso.
ria que tem que vigiar o mesmo trabalhador, Em uma sociedade como a brasileira, por
ou seja, o raio de trabalho deste. (MARX, 1965, p. exemplo, já se sabe do que mais adoecem
363-364, tradução nossa). e morrem os médicos, os bancários, os

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 953-965, Out-Dez 2014


962 ALBUQUERQUE, G. S. C.; SILVA, M. J. S.

banqueiros, os pedreiros, os engenheiros, os a doença ocorre de modo diferente nas dife-


estivadores, os trabalhadores de telemarke- rentes sociedades, nas diferentes classes e
ting, os desempregados, entre outros. Têm estratos de classes sociais, apesar das seme-
uma expectativa de vida bastante diversa e lhanças biológicas entre os corpos dos seres
adoecem e morrem por causas bastante dis- humanos que as compõem.
tintas devido ao modo como se inserem no Concluímos, também, que a saúde, enten-
mundo da produção e no consumo. dida como a possibilidade de objetivação em
Médicos adoecem e morrem mais por cada indivíduo do grau de humanidade que
problemas cardiovasculares e suicidam-se a humanidade produziu, apresenta-se de
mais que a população em geral (MELEIRO, 1998); modo diferente nas diferentes sociedades,
trabalhadores da construção civil morrem nas diferentes classes e estratos de classes
precocemente por queda dos prédios em sociais, apesar das semelhanças biológicas
construção (LUCCA; MENDES, 1993). Comparando entre os corpos dos seres humanos que as
os indicadores de morbidade e mortalidade compõem.
por tuberculose de São José do Rio Preto, do A vida humana é determinada socialmen-
estado de São Paulo e do Brasil, verifica‑se te em todas as suas dimensões, inclusive a da
que o risco de adoecer é três vezes maior saúde. Compreender a determinação social
na área com piores níveis socioeconômicos da saúde, portanto, não consiste em compre-
(VENDRAMINI et al., 2005). Segundo Noronha, ender apenas que a saúde depende do acesso
Figueiredo e Andrade (2010), no Brasil existe aos objetos humanos, mas que as possibilida-
uma relação significativa entre indicado- des de realização do humano, e o acesso aos
res de saúde e maiores níveis de pobreza, produtos necessários para tal, dependem do
com um pior acesso aos cuidados de saúde grau de desenvolvimento das forças produti-
e também mortes por causas evitáveis. Os vas e das relações de produção estabelecidas
autores também verificaram uma relação em cada formação social. A ideia dominante,
significativa entre o crescimento econômi- de identificação dos determinantes, é, por-
co e a proporção de mortes por diabetes e tanto, insuficiente para direcionar ações de
câncer. saúde que contribuam efetivamente para
Indivíduos pertencentes à parcela da a máxima realização do humano. Para tal,
população que detém a posse dos meios de seria necessário alterar o modo de produção.
produção têm possibilidades imensamente A possibilidade de criação de um novo
maiores de se colocar em condições de de- modo de produção, voltado prioritária e
senvolver ao máximo suas potencialidades, fundamentalmente para a satisfação das
pela maior possibilidade de apropriar-se dos necessidades da vida, da saúde, da máxima
objetos humanos produzidos. Porém, esses realização do humano em cada um, não é
mesmos indivíduos, estando, também, sub- uma questão de fé. Trata-se de uma con-
metidos a relações sociais alienadas, como clusão racional a partir da compreensão da
ocorre no capitalismo, encontram-se em ontologia do ser humano. O que caracteriza
condições de subdesenvolvimento das po- o humano é a ação transformadora da rea-
tencialidades obtidas pelo gênero humano lidade, no sentido de satisfazer suas neces-
(MÉSZÁROS, 2009). sidades, ou seja, é produzir o que ainda não
existe. A condição de humanidade é produ-
zida permanentemente pelos humanos. Não
Conclusão estamos condenados a viver neste modo de
produção, assim como os animais irracionais
A partir de nossas análises, expostas breve- estão presos aos limites de seus instintos. O
mente no presente trabalho, concluímos que que nos difere é a possibilidade de afastar os

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 953-965, Out-Dez 2014


Sobre a saúde, os determinantes da saúde e a determinação social da saúde 963

limites que a natureza nos impõe, ampliando em meio a uma crise de dimensões globais.
as possibilidades de realização da vida. Vivemos o agravamento da contradição
A condição de máxima realização de cada entre a abundância de condições de produ-
indivíduo exige a superação do modo de ção da base material da vida e a restrição do
produção capitalista que aliena dos sujeitos acesso a parcelas crescentes da população
singulares as conquistas do gênero humano. mundial a essa mesma base, acompanhada
Tal alienação ocorre apesar dos avanços pro- da rarefação de respostas satisfatórias das
porcionados pelo capitalismo, pelos limites forças políticas dominantes. Configura-se,
impostos pela propriedade privada dos ao mesmo tempo, uma situação de insol-
meios de produção, que promovem o distan- vência do modo de produção capitalista, ao
ciamento entre as possibilidades de realiza- lado da possibilidade de sua superação por
ção do indivíduo diante das possibilidades uma ordem social mais favorável à vida. O
alcançadas pelo gênero humano. Isso se evi- excedente socialmente produzido é cada
dencia, por exemplo, nas recorrentes crises vez maior e não dirigido à satisfação das ne-
de superprodução ao lado da manutenção cessidades da vida, mas às necessidades de
de imensos contingentes populacionais em expansão do capital.
condições de carestia, no desemprego estru- Parcela cada vez maior da força de tra-
tural produzido pela redução da necessidade balho passa a ser desnecessária para a pro-
de trabalho vivo, ao lado do aumento da ex- dução do capital, tendo sua sobrevivência
ploração dos trabalhadores em atividade. ameaçada justamente quando poderia ter
Segundo Mészáros (2006), a atualidade sua vida potencializada. A humanidade já
é marcada por uma condição inédita de tem condições de produzir o necessário para
possibilidade de superação do modo de todos viverem uma vida que proporcione
produção capitalista, mesmo diante da ca- o desenvolvimento das potencialidades de
pacidade de criação de medidas de sobrevi- todos os humanos, com muito menos traba-
vência e de expansão do capitalismo, com as lho vivo. (POCHMANN, 2013; MÉSZÁROS, 2006). Resta,
manobras manipulatórias de muitos de seus como tarefa, produzir uma teoria da transi-
problemas. Não há como negar que estamos ção para a nova ordem social. s

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 953-965, Out-Dez 2014


964 ALBUQUERQUE, G. S. C.; SILVA, M. J. S.

Referências

ALMEIDA FILHO, N. O que é saúde? Rio de Janeiro: GRANDA, E.; BREILH, J. Investigação da saúde na
Editora Fiocruz, 2011. sociedade: guia pedagógico sobre um novo enfoque
epidemiológico. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro:
ARELLANO, O. L.; ESCUDERO, J. C.; MORENO, ABRASCO, 1989.
L. D. C. Los determinantes sociales de la salud: una
perspectiva desde el Taller Latinoamericano de LAURELL, A. C. A saúde-doença como processo social.
Determinantes Sociales sobre la Salud, ALAMES. In: NUNES, E.D. (Org.). Medicina social: aspectos
Medicina Social, São Paulo, v. 3, n. 3, p. 323-335, 2008. históricos e teóricos. São Paulo: Global, 1983. p.
1333-1358.
BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus
determinantes sociais. Physis, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, LUCCA, S. R.; MENDES, R. Epidemiologia dos
p. 77-93, 2007. acidentes do trabalho fatais em área metropolitana da
região sudeste do Brasil, 1979-1989. Rev. Saúde Pública,
CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY OF THE São Paulo, v. 27, n. 3, 1993, p. 168-176.
UNITED STATES OF AMERICA. Country comparison
of infant mortality rate. 2014. Disponível em: <https:// LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios
www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/ ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria
rankorder/2091rank.html>. Acesso em: 11 abr. 2014. Editora Ciências Humanas, 1979.

CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. O LURIA, A. R. Introdução evolucionista à psicologia.


debate e a ação sobre os determinantes sociais da saúde: In: ______. Curso de psicologia geral. Rio de Janeiro:
posição dos movimentos sociais. 2011. Disponível em: Civilização Brasileira, 1979. v. 1.
<http://www.cebes.org.br/internaEditoria.asp?idCon
teudo=1619&idSubCategoria=29>. Acesso em: 30 abr. MARX, K. El proceso de producción del capital. In:
2012. ______. El capital: critica de la economía política. La
Habana: Ediciones Venceremos, 1965. Tomo I.
COMISSÃO NACIONAL SOBRE OS
DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE. As causas ______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:
sociais das iniqüidades em saúde no Brasil. 2008. Martin Claret, 2004.
Disponível em: <www.determinantes.fiocruz.br>.
Acesso em: 29 ago. 2013. MELEIRO, A. M. A. S. Suicídio entre médicos e
estudantes de medicina. Rev. Assoc. Med. Bras, São
FLEURY-TEIXEIRA, P. Uma introdução conceitual à Paulo, v. 44, n. 2, p. 135-140, 1998.
determinação social da saúde. Saúde em Debate, Rio de
Janeiro, v. 33, n. 83, p. 380-387, 2009. MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São
Paulo: Boitempo, 2009.
FOLADORI, G. Limites do desenvolvimento sustentável.
Campinas: Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2001. ______. Para além do capital: rumo a uma teoria da
transição. São Paulo: Boitempo, 2006.
GARCIA, J. C. História das idéias em saúde. In:
NUNES, E. D. (Org.). Juan César García: pensamento NORONHA, K.; FIGUEIREDO, L.; ANDRADE, M.
social em saúde na América Latina. São Paulo: Cortez; V. Health and economic growth among the states of
Rio de Janeiro: ABRASCO, 1989. Brazil from 1991 to 2000. R. Bras. Est. Pop., Rio de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 953-965, Out-Dez 2014


Sobre a saúde, os determinantes da saúde e a determinação social da saúde 965

Janeiro, v. 27, n. 2, p. 269-283, 2010. VENDRAMINI, S. H. F. et al. Tuberculose em


município de porte médio do sudeste do Brasil:
POCHMANN, M. Desafios do desenvolvimento indicadores de morbidade e mortalidade, de 1985 a
brasileiro. Educ. Soc., Campinas, v. 34, n. 124, p. 705- 2003. J Bras Pneumol, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 237-243,
722, 2013. 2005.

SANTOS, A.M.A.; TEJADA, C.A.O.; EWERLING, F. Os


Recebido para publicação em maio de 2014
determinantes socioeconômicos do estado de saúde Versão final em outubro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
das crianças do Brasil rural. Rev. Econ. Sociol. Rural,
Suporte financeiro: não houve
Brasília, v. 50, n. 3, p. 473-492, 2012.

SOUZA, D. O.; SILVA, S. E. V.; SILVA, N. O.


Determinantes sociais da saúde: reflexões a partir das
raízes da “questão social”. Saúde Soc, São Paulo, v. 22, n.
1, p. 44-56, 2013.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 953-965, Out-Dez 2014


966 Revisão | Review

Intersetorialidade na saúde no Brasil


no início do século XXI: um retrato das
experiências
Intersectorality in health in Brazil at the beginning of the XXI
century: a portrait of experiences

Leandro Martin Totaro Garcia1, Iadya Gama Maio2, Taynã Ishii dos Santos3, Catarina Bourlinova
de Jesus Cunha Folha4, Helena Akemi Wada Watanabe5

RESUMO O objetivo foi investigar experiências de intersetorialidade voltadas aos problemas


de saúde pública, iniciadas a partir de 2001, no Brasil. Para tanto, fez-se uma revisão utilizan-
do a base de referências Lilacs, por meio de seleção de relatos de ações intersetoriais que abor-
dassem problemas de saúde pública no País e que envolvessem o setor saúde. Onze artigos
foram incluídos, em que se observaram falta de definição de intersetorialidade, parceria com
o setor educação em dez projetos e raras avaliações de impacto e sustentabilidade. Mais infor-
mações sobre ações intersetoriais são urgentes para avaliar seu impacto, entender barreiras e
1 Doutorando em Nutrição
em Saúde Pública pela limitações comuns e caminhos que as tornem mais efetivas.
Universidade de São Paulo
(USP) – São Paulo (SP),
Brasil. PALAVRAS-CHAVE Ação intersetorial; Administração de serviços de saúde; Políticas, planeja-
leandromtg@gmail.com
mento e administração em saúde.
2 Doutoranda em Saúde
Púbica pela Universidade
ABSTRACT The aim was to investigate intersectorality experiences directed to public health pro-
de São Paulo (USP) – São
Paulo (SP), Brasil. blems, initiated from 2001 in Brazil. Therefore, a review was conducted using the Lilacs reference
iadya@yahoo.com.br
basis, selecting intersectoral action descriptions that had approached public health problems in
3 Mestranda em Nutrição the country and that had involved the Health sector. Eleven articles were included, in which were
em Saúde Pública pela
observed lack of intersectorality definition, partnership with the Education sector in ten projects
Universidade de São Paulo
(USP) – São Paulo (SP), and rare impact and sustainability assessments. More information about intersectoral actions
Brasil.
are urgent in order to evaluate their impact, to understand common barriers and limitations, and
tayna.ishii@gmail.com
ways to make them more effective.
4 Graduação em
Fisioterapia pela Escola
Superior de Tecnologias KEYWORDS Intersectoral action; Health services administration; Health policy, planning and
de Saúde do Porto – Porto,
management.
Portugal.
bourlinova@gmail.com

5Doutora em Saúde
Pública pela Universidade
de São Paulo (USP) –
São Paulo (SP), Brasil.
Professora da Universidade
de São Paulo (USP) – São
Paulo (SP), Brasil.
hwatanab@usp.br

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140083
Intersetorialidade na saúde no Brasil no início do século XXI: um retrato das experiências 967

Introdução da prática e buscar a unidade e a diversida-


de para melhor compreensão da realidade
Para muitas pessoas, ter saúde costuma ser (MENDES; ACKERMAN, 2007).
a ausência de uma enfermidade ou doença. A construção da intersetorialidade se dá
Esse enfoque evoca um conceito reducio- a partir da articulação de vários setores e
nista, ou seja, a reprodução do modelo bio- envolve distintos atores sociais, tais como:
logicista, monopolizado pela medicina. Em governo, sociedade civil organizada, mo-
contrapartida, diversos esforços vêm sendo vimentos sociais, universidades, autorida-
realizados no sentido de posicionar a saúde des locais, setor econômico e mídia, tendo
a partir de outro olhar, mais ampliado e mais como preceito a reunião de vários saberes
articulado com a complexidade da realida- e possiblidades de atuação, no sentido de
de. Embora existam discussões sobre a via- viabilizar um olhar mais amplo sobre a com-
bilidade da aplicação dessas definições de plexidade do objeto, a fim de possibilitar a
saúde, um conceito amplo de saúde evoca análise dos problemas e das necessidades,
muito mais do que simplesmente garantir no âmbito de um dado território e contexto
a disponibilidade e o acesso aos serviços (JUNQUEIRA, 1997), bem como a busca de soluções
de saúde. Enquanto fenômeno ampliado, a compartilhadas. A intersetorialidade é ope-
saúde depende da articulação que é produ- racionalizada por meio da criação de uma
zida entre os seus diversos determinantes, rede de compromisso social, estruturada por
tais como as condições de vida, de trabalho, vínculos e uma ‘presença viva’, na qual ins-
do meio ambiente e da cultura, entre outros tituições, organizações e pessoas se articu-
(NARVAI; FRAZÃO, 2008; DALMOLIN et al., 2011), sendo lam em torno de uma questão da sociedade
imprescindível, assim, considerar a promo- em um determinado território, programam
ção da saúde como o processo resultante de e realizam ações integradas e articuladas,
um conjunto de ações intersetoriais (BUSS, avaliam juntos os resultados e reorientam
2000). a ação. Trata-se de um processo dialético e
A intersetorialidade pode ser definida dinâmico, tendo a necessidade de se pôr em
como a integração de diversos saberes e prática diferentes tipos de habilidades de
experiências de diferentes sujeitos e servi- negociação e de mediação de conflitos (PORTO;
ços sociais que contribuem nas decisões de LACAZ; MACHADO, 2003), que implicam a abertura
processos administrativos para o enfrenta- de cada setor envolvido para dialogar, formar
mento de problemas complexos, com ações vínculos, estabelecer corresponsabilidades e
voltadas aos interesses coletivos que me- cogestão pela melhora da qualidade de vida
lhoram a eficiência da gestão política e dos da população (CAMPOS; BARROS; CASTRO, 2004).
serviços prestados (JUNQUEIRA, 2000; INOJOSA, 2001; Para tanto, faz-se necessária a mudança
NASCIMENTO, 2010). Logo, desenvolver estraté- de paradigmas, de concepções, de práticas
gias e ações intersetoriais envolve atuar com e de valores, para que o processo fragmen-
diferentes sujeitos e serviços sociais, que, tado seja alterado para a forma interseto-
por meio de saberes, poderes e vantagens rial, envolvendo, também, a população que
para resolver problemas complexos (INOJOSA, vivencia o problema na busca de soluções
2001), constroem uma nova concepção de compartilhadas. É preciso estar ciente de
planejamento, execução e controle dos ser- que nada acontecerá de potente pela simples
viços prestados, que objetiva garantir trata- junção de diferentes setores convocados por
mento equânime às pessoas (JUNQUEIRA, 2000). conta de uma situação problemática ou com
Trabalhar de modo intersetorial significa a simples delegação de responsabilidade de
superar a fragmentação do conhecimento e um setor para o outro. Deve haver não só a

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


968 GARCIA, L. M. T.; MAIO, I. G.; SANTOS, T. I.; FOLHA, C. B. J. C.; WATANABE, H. A. W.

partilha de conhecimentos e de experiên- propor seu próprio projeto, baseado em sua


cias, mas, sobretudo, um compromisso de visão de realidade, e estabelecerá seus pró-
fato, pois uma rede não pode ser meramente prios objetivos e métodos. Desta forma, os
protocolar (COUTO; DELGADO, 2010). resultados de uma ação apenas setorial são o
A vida atual demonstra como cada indi- agravamento de distorções, desigualdades e
víduo e coletividade têm necessidades rela- exclusão social (INOJOSA, 2001; MENDES; ACKERMAN,
tivas a várias áreas: segurança, saneamento, 2007).
moradia, alimentação, saúde, educação etc. No entanto, não obstante a reconhecida
Mais ainda, demonstra como essas áreas se importância da intersetorialidade para o
influenciam. Como Inojosa (2001) e Mendes e enfretamento dos problemas e das desigual-
Akerman (2007) mencionam, os determinan- dades em saúde, ainda pouco se sabe sobre
tes da saúde são diversos e interdependen- a real operacionalização e os resultados de
tes. Se essas necessidades/determinantes experiências mais recentes desse tipo no
formassem um simples somatório para a Brasil. Tal informação é necessária para que
saúde e a qualidade de vida, uma mudança ou seja possível avaliar o impacto dessas ações
a falta em uma delas não alteraria a influên- no País, assim como entender barreiras e li-
cia das restantes. No entanto, o ser humano mitações comuns a serem superadas e iden-
é um todo, com os seus sistemas, segmentos, tificar caminhos que tornem tais ações mais
emoções, expetativas e memórias, e o seu efetivas. Sendo assim, o objetivo deste traba-
bem-estar, desenvolvimento e qualidade lho foi investigar as experiências de interse-
de vida estão relacionados com todos esses torialidade dedicadas a problemas de saúde
componentes. pública que tenham sido realizadas desde
Desta forma, não é apenas a complexi- 2001, no Brasil, assim como suas caracterís-
dade dos problemas que impõe a necessi- ticas e seus resultados.
dade de ações intersetoriais. Pretende-se
a complementariedade da ação humana,
pois “a intersetorialidade [...] reconhece os Método
domínios temáticos, comunicando-os para
a construção de uma síntese” (MENDES, 1996, p. Trata-se de um trabalho de revisão, que
253). Setores isolados não dão conta do que seguiu procedimentos sugeridos pela
está tecido em conjunto, da complexidade Cochrane Collaboration (HIGGINS; GREEN, 2011).
ou da diversidade articulada (INOJOSA, 2001). Os critérios de inclusão dos documentos
Sem dúvida, as necessidades e expectativas analisados foram: abordar um problema de
das pessoas e dos grupos sociais, referentes saúde pública; envolver o setor saúde; ter
à saúde e à qualidade de vida, são integradas. como objetivo relatar uma experiência de in-
Com a intersetorialidade, busca-se a su- tersetorialidade; ocorrer no Brasil, em qual-
peração de uma visão restrita de mundo e a quer esfera da federação, podendo envolver
compreensão da complexidade da realidade. mais de uma delas; referir-se a uma ação com
O reconhecimento dos domínios temáticos início a partir de 2001; ter seu resumo dis-
propicia a sua comunicação para a constru- ponível na base de referências Lilacs; estar
ção de uma síntese. Esse seria o caminho publicado na forma de artigo completo, num
para a sinergia nas políticas públicas (MENDES; periódico acadêmico; estar escrito no idioma
ACKERMAN, 2007), para que haja unidade na di- português, espanhol ou inglês.
versidade, para que se procure um objetivo Decidiu-se, unicamente, pela utilização
comum. Sem uma lógica de articulação e da base de referências Lilacs por ser “[...]
de coordenação entre setores, cada um irá o mais importante e abrangente índice da

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


Intersetorialidade na saúde no Brasil no início do século XXI: um retrato das experiências 969

literatura científica e técnica da América principais objetivos da ação; setores/atores


Latina e Caribe” (LILACS, 2014). Na época em que envolvidos; como a intersetorialidade
a revisão ocorreu, mais de 850 periódicos e ocorreu; resultados obtidos.
de 650 mil registros estavam disponíveis na
base. Seu índice inclui periódicos indexados
em outras bases importantes para a literatu- Resultados e discussão
ra acadêmica nacional, como a SciELO, mas
sua abrangência vai além delas. A busca dos A busca retornou 94 artigos. Desses, 31 (33%)
documentos foi realizada em 27 de março foram considerados elegíveis após a leitura
de 2013, utilizando o seguinte comando de de títulos e resumos. Após a leitura integral
busca, sem delimitação de índices: (intersec- dos textos, verificou-se que 11 (12%) preen-
tiona$ OR intersetoria$ OR intersectoria$ OR chiam os critérios de elegibilidade, sendo
transectoria$ OR transetoria$) AND (health incluídos na revisão. As poucas experiências
OR saúde OR salud). Como filtros, foram es- descritas indicam que a construção de traba-
colhidos o ano de publicação (2001 a 2013), lhos compartilhados ainda é uma realidade
o tipo de documento (artigos) e o assunto pouco verificada. A tendência ainda é a da
principal (ação intersetorial). fragmentação e da descontinuidade políti-
Na primeira etapa após a busca, foram ca, com pouca participação popular, o que
lidos os títulos e resumos da totalidade dos denota que a construção de redes e de ações
textos. Os artigos que preencheram os crité- interinstitucionais implica, também, a cons-
rios de inclusão ou que suscitaram dúvidas trução de uma nova linguagem integradora
nos revisores quanto à sua exclusão imediata entre os campos profissionais e institucio-
foram triados. Na etapa seguinte, os artigos nais envolvidos.
triados foram obtidos na íntegra e examina- O quadro 1 apresenta as informações
dos de acordo com os critérios de inclusão obtidas de cada artigo. Pode-se observar
estabelecidos. Por fim, foram selecionados que as publicações se referem a projetos
para a revisão os artigos que atingiram os de temas e objetivos variados, sendo três
critérios após a leitura integral dos manus- relacionados mais diretamente com o meio
critos. Todo o processo ocorreu com cada ambiente (PADULA et al., 2006; PARREIRA; SOUSA;
artigo sendo avaliado por um par de revi- NEVES, 2007; PALÁCIOS et al., 2012), três cujo proble-
sores. Em qualquer etapa, nos casos em que ma principal foi a violência (CARNEIRO; GOMES,
estes tiveram opiniões discordantes sobre a 2004; LOPES; MALFITANO, 2006; MAGALHÃES JUNIOR;
manutenção de um determinado artigo para OLIVEIRA, 2006) e três mais direcionados ao
a etapa seguinte, uma reunião entre ambos empowerment pessoal e comunitário (BECKER
foi realizada, e um consenso alcançado. et al., 2004; SPERANDIO et al., 2006; MORI; OGATA, 2010).
Dos artigos selecionados para a revisão, Os outros dois trabalhos tiveram foco no
as seguintes informações foram obtidas: controle da dengue (FREITAS; RODRIGUES; ALMEIDA,
autores e ano de publicação do artigo; ação 2011) e na redução das desigualdades sociais
relatada; local e ano (ou período) da ação; de forma mais ampla (DOBASHI et al., 2005).

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


970 GARCIA, L. M. T.; MAIO, I. G.; SANTOS, T. I.; FOLHA, C. B. J. C.; WATANABE, H. A. W.

Quadro 1. Características das ações intersetoriais com foco em problemas de saúde pública no Brasil, realizadas e publicadas de 2001 a 2013

Becker et al., 2004. Iniciativa de Vila Paciência, Rio de Janeiro (RJ), de 2001 a 2003.

Principais objetivos Setores/atores envolvidos Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


Empowerment pessoal - Secretaria Municipal de Saúde; - Oficinas participativas para construção - Agenda de Desenvolvimento Comunitário;
e comunitário por meio - Centro de Promoção da Saúde; de uma visão de futuro compartilhada; - Conjunto de 41 projetos de intervenção
da estratégia de De- - Grupo Gestor da Iniciativa de - Diagnóstico Comunitário Participativo; implementados em rede pelos participantes
senvolvimento Santa Cruz; - Pesquisas sobre a comunidade em (a maioria é de moradores);
Local Integrado Sus- - Moradores do bairro. fontes oficiais; - Agrupamento de projetos que tinham
tentável, com foco na - Formatação de um instrumento de convergência em seus objetivos;
Promoção da Saúde. pesquisa domiciliar; - Capacitação dos autores de projetos como
- Seminário Construção da Iniciativa de multiplicadores;
Vila Paciência; - Contato com órgãos públicos para projetos
- Acompanhamento, apoio e avaliação que necessitam de ações externas;
da rede de intervenções. - Materiais para palestras e campanhas
educativas produzidos com moradores da
comunidade;
- Projetos selecionados para receber apoios
financeiros.

Carneiro e Gomes, 2004. Fórum de Combate à violência, Juazeiro (BA), de 2002 a 2004.

Principais objetivos Setores/atores envolvidos Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


Promover estratégias de - Prefeitura Municipal de Juazeiro; - Apoio de recursos humanos, materiais, - Sistematização das estratégias que resul-
redução dos índices de - Governo Estadual da Bahia; tecnológicos e financeiros da Secretaria taram na identificação dos problemas do
mortalidade por causas - Escolas municipais; Municipal de Saúde de Juazeiro e de município;
externas; - Secretaria Municipal de Saúde; entidades parceiras; - Aprovação do projeto Paz nas Escolas;
- Elaborar e implantar - Secretaria Municipal de Educa- - Reuniões mensais; - Construção do subprojeto Violência e
um plano estratégico ção; - Realização de pesquisas bibliográficas e Acidentes de Trânsito;
de fomento à cultura - Órgãos da Justiça; de visitas nas comunidades, instituições - Elaboração do Plano de Combate à Vio-
de paz; - Associação de moradores; de saúde e outras. lência.
- Levantar as condições - Comerciantes.
demográficas e socio-
econômicas da comu-
nidade;
- Levantar o grau de
participação da comu-
nidade em movimentos
sociais;
- Levantar os índices de
situação de violência.

Dobashi et al., 2005. Projeto Viva Seu Bairro!, Campo Grande (MS), de 2001 a 2005.

Principais objetivos Setores/atores envolvidos Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


Diminuir as desigual- - Secretaria Municipal de Saúde; - Coleta de dados durante as visitas - Atendimento de 37 mil famílias, quase
dades sociais. - Secretaria Municipal de Educa- familiares realizadas pelas equipes do 20% da população total;
ção; Pacs/PSF; - Assentamento de populações ribeirinhas
- Secretaria Municipal de - Análise dos dados pelos técnicos de em novas casas;
Assistência Social; diversos setores da administração mu- - Reconstrução de áreas degradadas, in-
- Secretaria Municipal de Habi- nicipal; cluindo educação ambiental nas escolas da
tação; - Discussão nos sete conselhos regionais região e mobilização para a prática de ativi-
- Secretaria Municipal de Trânsito; urbanos, além dos setoriais; dades físicas e lazer;
- Secretaria Municipal de Obras; - Mapeamento de 32 áreas, em todo o - Construção e reforma de cinco Centros de
- Secretaria Municipal de Planeja- perímetro urbano, por meio da seleção Múltiplo Uso;
mento Urbano, de indicadores; - Geração de 519 empregos, capacitação
- Secretaria Municipal de Esporte, - Escolha de seis áreas de risco, para o profissional de 7 mil pessoas e acesso a
Lazer e Cultura; desenvolvimento da primeira etapa do crédito para 120 empresários;
projeto; - Regularização fundiária e titulação de
propriedade para 880 moradias;

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


Intersetorialidade na saúde no Brasil no início do século XXI: um retrato das experiências 971

Quadro 1. (cont.)

Principais objetivos Setores/atores envolvidos Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


- Diminuir as desigual- - Agentes comunitários e profis- - Utilização de financiamento do BNDES e - Ampliação de 7 mil novas matrículas na
dades sociais. sionais das equipes do Programa recursos próprios do Município; alfabetização de jovens e adultos, além de
Saúde da Família; - Criação de um Conselho Consultivo 7.500 novas vagas nos ensinos pré-escolar e
- Conselhos Regionais; formado por todos os secretários munici- fundamental;
- Empresa Municipal de Habitação; pais envolvidos; - Reassentamento de 750 famílias em situ-
- Empresa Águas Guariroba; - Realização de oficinas de trabalho e ação de risco ambiental e recuperação de
- Agência Municipal de Emprego; seminários de integração; áreas degradadas;
- Secretaria de Desenvolvimento - Realização das Feiras de Amostras, - Pavimentação de 88 quilômetros e dre-
Econômico; geralmente no espaço de uma Escola nagem pluvial de mais 43 ruas, incluindo
- Sebrae. Municipal, nas sete regiões urbanas, a fim sinalização viária, identificação de ruas e
de informar à população local o que esta- instalação de abrigos em pontos de ônibus;
va programado para aquela região e como - Construção de seis ginásios de esporte,
aconteceria, bem como seus custos. sete quadras poliesportivas e 28 campos de
- Linha de trabalho denominada Melho- futebol;
rias Sanitárias Domiciliares (novas redes - Redução do número de casos de hepatite
de água e esgoto, tanques de lavar roupa A, meningite e diarreia;
e lixeiras e a construção de 1.630 novas - Aumento do cadastramento de diabéticos
casas); e hipertensos, com modificação do perfil
- Programa de controle da dengue que para as formas leve e moderada;
recolhia pneus para serem utilizado na - Redução do número de gestantes menores
construção de fossas; de 19 anos de idade, de 23% para 18%;
- Fábrica da Gente: confecção de manilhas - Aumento da adesão de idosos às ativida-
e blocos para a construção de paredes; des de atenção integral à saúde.
- Duas Oficinais de Saneamento que con-
feccionaram as instalações sanitárias.

Lopes e Malfitano, 2006. Projeto Rotas, Campinas (SP), 2004.

Principais objetivos Setores/atores envolvidos Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


- Oferecer oficina de - Ministério da Educação e Cultura, - Identificação de oito distritos de saúde - Aproximação do território, equipamento
fotografia para ado- por intermédio da Secretaria de da cidade com históricos de prostituição social, vínculo entre os participantes e a
lescentes e crianças Ensino Superior e do Programa local e exploração sexual, com inserção equipe técnica;
contra a violência de Apoio à Extensão Universitária de técnicos em saúde mental; - Uso da máquina fotográfica de forma livre
sexual; voltado às políticas públicas; - Criação de uma equipe, com o apoio da pelos participantes que descobriam seus
- Discutir, com base no - Pró-Reitoria de Extensão da Uni- população e 16 estudantes de graduação territórios e histórias;
território, as questões versidade Federal de São Carlos; da UFSCar, para trabalhar com a temáti- - Criação de rede de proteção contra ex-
de exploração/violên- - Prefeitura Municipal de Cam- ca de imagem (autoimagem); ploração/violência sexual de crianças e
cia sexual de crianças pinas; - Implantação de diferentes centros de adolescentes;
e jovens; - ONGs pertencentes ao Conselho convivência para atividades culturais, de - Exposição dos resultados na Secretaria de
- Realizar ações de Municipal de Direitos da Criança e criação de renda e esportivas. Cultura do Município.
prevenção por meio do Adolescente;
de ações educativas, - Petrobras.
culturais, saudáveis e
em perspectiva social.

Sperandio et al., 2006. Saúde ocular de crianças de 0 a 7 anos, Campinas (SP), 2003.

Principais objetivos Setores/atores envolvidos Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


- Construir, coletiva- - Docentes da Unicamp; - Reconhecimento do território e levanta- - Diagnóstico da saúde ocular dos morado-
mente, um projeto - Discentes de 1° ano do curso de mento das necessidades de saúde ocular res do bairro, com aplicação de 96 testes
intersetorial na pers- Medicina da Unicamp; por questionários, entrevista com mora- visuais e identificação de 13 casos de defici-
pectiva da promoção - Agentes comunitários de saúde dores e ACS; ência visual, sendo oito encaminhados para
da saúde, especifi- (ACS); - Elaboração de projeto de ação e comu- tratamento;
camente na área de - Moradores; nicação com diretoria de creche;
saúde ocular. - Empresa Tecnol. - Oficina de capacitação para aplicação
de teste de visão em estudantes, profes-
sores da creche e ACS;

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


972 GARCIA, L. M. T.; MAIO, I. G.; SANTOS, T. I.; FOLHA, C. B. J. C.; WATANABE, H. A. W.

Quadro 1. (cont.)

Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


- Banco de óculos, com armações doa- - Verificou-se a falta de informação sobre
das pela comunidade, por estudantes e cuidados, desconhecimento das formas de
pela empresa Tecnol, sendo a confecção prevenção das doenças, principalmente em
de lentes realizada pela ótica da Uni- crianças, e desconhecimento dos direitos
camp. dos usuários do SUS, em especial, no que diz
respeito à saúde ocular;
- Aprendizado dos estudantes de medicina
sobre como promover um projeto de pro-
moção da saúde de acordo com princípios
do SUS;
- Criação de banco de óculos no Centro de
Saúde.

Magalhães Junior e Oliveira, 2006. Ações de combate à violência, Belo Horizonte (MG), de 2002 a 2006.

Principais objetivos Setores/atores envolvidos Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


- Formular, acompa- - Prefeitura Municipal de Belo - Reuniões regulares, oficinas de trabalho - Elaboração do projeto Saúde na Paz;
nhar e avaliar a Política Horizonte; e fóruns de discussão; - Implantação do protocolo de atendimento,
Municipal de enfren- - Secretaria Municipal de Saúde; - Criação do Grupo de Trabalho da Vio- com as atribuições dos profissionais de saú-
tamento à violência - Secretaria Municipal de Trabalho e lência Doméstica e Intradomiciliar e da de e agentes comunitários para identificação
doméstica e sexual; Direitos de Cidadania; Comissão de Prevenção ao Acidente de de vítimas de violência;
- Desenvolver ações de - Secretaria Municipal de Políticas Trânsito (articulação permanente entre - Publicação de um guia do usuário;
prevenção às violências Sociais; Guarda Municipal e unidades de saúde); - Divulgação dos fluxos de encaminhamen-
doméstica, sexual, no - Sociedade civil com atuação na - Criação da Comissão de Abordagem tos e protocolos de atendimentos;
trânsito e institucional; área dos direitos humanos; à Violência e do Grupo de Trabalho da - Construção e reforma de unidades de
- Construir uma rede - Guarda Municipal; Humanização; saúde, com cuidado para a acessibilidade de
de atendimento e de - Empresa Municipal de Transporte - Pesquisa qualitativa para conhecer o pessoas com deficiência e idosos;
proteção social; e Trânsito; comportamento dos grupos mais vulne- - Aquisição de equipamentos e mobiliários
- Identificar os grupos - Hospital Sara Kubitschek; ráveis e do infrator contumaz, para orien- para conforto de usuários e de trabalhadores
mais vulneráveis e - Fundação Hospitalar do Estado tar abordagens direcionadas por parte da das unidades de saúde;
coletar informações de MG; prefeitura; - Veiculação de mensagens educativas;
sobre pontos críticos de - PUC-Minas; - Utilização das rádios comunitárias; - Capacitação e sensibilização dos profis-
acidentes no trânsito. - Faculdade Newton de Paiva; - Política de educação permanente; sionais da rede para identificar e atender às
- Companhia Brasileira de Trens - Mesa Permanente de Negociação do vítimas de violência, principalmente da área
Urbanos; SUS; de saúde;
- Secretaria de Estado de Saúde de - Implantação dos colegiados em todos - Notificação das ocorrências e apoio aos
Minas Gerais; os níveis de gestão da Secretaria Munici- trabalhadores e gerentes vítimas de agres-
- Liga Mineira do Trauma; pal de Saúde. sões e ameaças.
- ONG Rua Viva;
- Câmara Municipal de Belo Hori-
zonte;
- Mídia;
- Agentes comunitários de saúde;
- Hospitais conveniados;
- Servidores e profissionais da área
da saúde;
- Conselhos Tutelares;
- Associação Municipal de
Assistência Social;
- Unidades de Pronto Atendimento;
- Centros de Convivência da Saúde
Mental.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


Intersetorialidade na saúde no Brasil no início do século XXI: um retrato das experiências 973

Quadro 1. (cont.)

Padula et al., 2006. Intoxicação por chumbo em crianças, Bauru (SP), 2002 e 2003.

Principais objetivos Setores/atores envolvidos Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


- Verificar as fontes de - Secretaria de Estado da Saúde de - Criação do Grupo de Estudo e Pesquisa - Interdição da empresa por tempo indeter-
exposição ao chumbo; São Paulo; da Intoxicação por Chumbo em Crianças minado;
- Verificar a exposição - Secretaria Municipal de Saúde; de Bauru; - 314 crianças contaminadas detectadas e
humana (foco em - Secretaria Municipal de Obras; - Pesquisa de campo sobre a contamina- avaliadas;
crianças de 0 a 12 - Secretaria Municipal de Meio ção por chumbo em crianças num raio - 23 casos graves tratados;
anos); Ambiente de 1 km ao redor da empresa contami- - Em três residências com piso de terra,
- Identificar as neces- - Secretaria Municipal das Adminis- nante; cimentação do piso;
sidades de intervenção trações Regionais; - Avaliação clínica, laboratorial e radio- - Raspagem de 5 cm de solo superficial em
com relação à saúde - Ministério da Saúde; gráfica das crianças contaminadas; 80 ruas de terra;
humana e ao meio - Companhia de Tecnologia de - Avaliação de amostras de água, horti- - Raspagem de 5 cm de solo superficial dos
ambiente; Saneamento Ambiental; frutigranjeiros e leite da região; quintais de 270 residências;
- Efetuar as ações de - Departamento de Água e Esgoto; - Ações de saneamento. - Aspirações de interiores de 164 residên-
saneamento. - Fundacentro; cias;
- Centro de Intoxicações (Unicamp); - Limpeza e vedação de caixas d’água (117
- Faculdades de Medicina e de visitas e 82 limpezas);
Ciências (Unesp); - Monitoramento de contaminações no
- Faculdade de Odontologia (USP); lençol freático.
- Hospital de Reabilitação de
Anomalias Craniofaciais (USP).

Parreira et al., 2007. Projeto Ambientes Verdes e Saudáveis (PAVS), São Paulo (SP), de 2005 a 2007.

Principais objetivos Setores/atores envolvidos Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


- Fortalecer a gestão - Secretaria Municipal do Verde e - Discussões coletivas, por meio de - Definição de Termos de Referência para
integrada no nível local do Meio Ambiente; reuniões e encontros, e construção con- orientar a seleção e a contratação dos mem-
para o desenvolvi- - Secretaria Municipal de Saúde; junta das próprias estratégias a serem bros da equipe;
mento de uma agenda - Secretaria Municipal do Desen- implementadas; - Realização do processo seletivo dos cinco
de proteção e de pro- volvimento Social; - Formação da equipe gestora do PAVS. coordenadores pedagógicos;
moção de ambientes - Ministério da Saúde; - Elaboração do Plano de Formação dos
verdes e saudáveis; - Opas; Educadores e dos Agentes, dirigido à qualifi-
- Desenvolver compe- - Programa das Nações Unidas cação dos 83 educadores contratados e dos
tências e habilidades para o Meio Ambiente; 7.200 agentes envolvidos;
dos agentes comunitá- - Faculdade Latino-Americana de - Formatação do Plano de Formação dos
rios de saúde; Ciências Sociais; Educadores e dos Agentes e discussão do
- Intervir em questões - Centro de Estudos, Pesquisa e mesmo por meio de cinco oficinas temáticas
ambientais de forte Documentação em Cidades Sau- e reuniões técnicas.
impacto sobre a saúde dáveis (USP);
da população; - Fiocruz;
- Formar agentes e - Núcleo de Estudos da Saúde
lideranças comunitá- Pública (UnB);
rias para abordagem - Iclei Brasil;
e elaboração de pro- - Fundação Oswaldo Cruz;
postas de intervenção - Escola Técnica do SUS;
local; - Agentes Comunitários de Saú-
- Adotar ações preven- de, de controle de zoonoses e de
tivas e novas práticas proteção social;
efetivas de promoção - Associação Congregação Santa
da saúde. Catarina;
- Associação Saúde da Família;
- Associação Comunitária Monte
Azul;
- Casa de Saúde Santa Marcelina;
- Instituto Adventista de Ensino;
- Irmandade da Santa Casa de
Misericórdia de São Paulo;

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


974 GARCIA, L. M. T.; MAIO, I. G.; SANTOS, T. I.; FOLHA, C. B. J. C.; WATANABE, H. A. W.

Quadro 1. (cont.)

Principais objetivos Setores/atores envolvidos Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


- Organização Santamarense de
Educação e Cultura;
- Sociedade Beneficente Israelita
Brasileira;
- Hospital Albert Einstein;
- Centro de Estudos e pesquisas
Dr. João Amorim;
- Fundação Zerbini;
- Centro Social Nossa Senhora do
Bom Parto.

Mori e Ogata, 2010. Projeto Produção de Cuidado Intersetorial, São Carlos (SP), 2008.

Principais objetivos Setores/atores envolvidos Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


- Articular os serviços - Programa de Residência Multi- - Visitas da equipe de saúde à creche - Controle de surto de diarreia por meio de
de saúde com outros profissional da UFSCar; para responder dúvidas e orientar as encaminhamento das crianças para a UBS
equipamentos sociais; - Direção de Educação Infantil; educadoras sobre doenças e problemas e orientações sobre diarreia, desidratação,
- Aumentar a adesão - Ministério da Educação e Cultura; de saúde; soro caseiro e medidas preventivas para as
de famílias aos pro- - Creche envolvida na ação; - Visitas da equipe de saúde para co- educadoras;
gramas da UBS que só - Unidade Básica de Saúde envolvi- nhecer e acompanhar o trabalho das - Melhor encaminhamento em casos de
encaminham as crian- da na ação. educadoras, que, posteriormente, foi doenças ou agravos e uso de guias de enca-
ças em situação de transformado em oficinas; minhamento específicas para a creche, com
agravo (normalmente, - Reunião para ensinar as educadoras e a espaço para a educadora descrever suas
a creche encaminha); diretora sobre o funcionamento da UBS e percepções, que são consideradas no mo-
- Desenvolver e poten- da Estratégia Saúde da Família; mento das consultas;
cializar ações de edu- - Discussão sobre a situação de saúde - Manutenção da parceria e do planejamen-
cação em saúde entre e as condições de vida das crianças e to de novas oficinas em conjunto (equipe de
uma equipe da Estraté- mães. saúde e educadoras).
gia Saúde da Família e
uma creche.

Freitas et al., 2011. Grupo Executivo para o controle de dengue, Belo Horizonte (MG), 2007 e 2008.

Principais objetivos Setores/atores envolvidos Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


- Obter resultados - Secretaria Municipal de Saúde; - Coordenação do grupo pelo Secretário - Organização de mutirões de limpeza para
mais efetivos no con- - Secretaria Municipal de Planeja- Municipal de Saúde; o ‘lixo da dengue’ (objetos que acumulam
trole de dengue. mento; - Regulação e limpeza urbanas pela Se- água): em 2007, houve recolhimento de 489
- Secretaria Municipal de Educação; cretaria Municipal de Políticas Urbanas toneladas de lixo; em 2008, foram retiradas
- Secretaria Municipal de Políticas e respetiva secretaria de administração 2.379 toneladas;
Urbanas; regional; - Limpeza e capinamento de áreas públicas
-Secretaria Municipal de Políticas - Projetos especiais, na rede municipal e privadas: em 2007, foram limpos e capina-
Sociais; de ensino, sobre o controle da dengue e dos 360.000 m2; em 2008, 674.383 m2.
- Superintendência de Limpeza discussão entre a escola e as famílias dos - Geração de emprego para 124 agentes
Urbana; educandos pela Secretaria de Educação; comunitários de limpeza urbana;
- Gabinete do Prefeito; - Articulação junto aos setores externos - Fiscalização em imóveis fechados;
- Assessoria de Comunicação à Prefeitura Municipal (governo estadual, - Realização de ações específicas do setor
Social; setor privado, organizações da sociedade saúde, como modificações de alguns pro-
- Secretarias municipais de admi- civil) pela Secretaria de Planejamento; tocolos;
nistração regional; - Realização de reuniões de grupo com - Realização de ações de educação;
- Gerências regionais de saúde; os vários setores intervenientes, de 15 - Realização de ações de mobilização e de
- Gerência de Vigilância em Saúde em 15 dias, para analisar a situação da comunicação.
e Informação; dengue no município, para a definição de
- Gerência de Vigilância Sanitária; intervenções e responsabilidades, para
- Gerência de Controle de Zoono- a definição das ações conjuntas entre os
ses; diversos setores, nos casos necessários,
- Gerência de Epidemiologia; e para a avaliação das ações realizadas.
- Gerência de Assistência.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


Intersetorialidade na saúde no Brasil no início do século XXI: um retrato das experiências 975

Quadro 1. (cont.)

Palácios et al., 2012. Projeto Hortas Comunitárias, Maringá (PR), de 2005 a 2011.

Principais objetivos Setores/atores envolvidos Como a intersetorialidade ocorreu Resultados


- Possibilitar a geração - Secretaria Municipal de Serviços - Coordenação pela Secretaria Municipal - 21 hortas comunitárias;
de renda; Públicos; de Serviços Públicos; - Relatos de melhorias nas saúdes física e
- Incentivos à alimen- - Secretaria Municipal de Saúde; - Reuniões com moradores dos bairros mental, diminuição do consumo de medica-
tação saudável; - Presidente do bairro; atendidos; mentos e aumento da sociabilidade;
- Ocupar de forma - Centro de Referência em Assis- - Obras de infraestrutura e implantação - Participação de 600 famílias, beneficiando
benéfica terrenos bal- tência Social; tecnológica pela Secretaria Municipal de cerca de 2.400 pessoas;
dios ociosos em áreas - Unidades Básicas de Saúde; Serviços Públicos, Secretaria de Saúde e - Produção anual estimada em 200 tone-
urbanas; - Eletrosul Centrais Elétricas; Companhia de Saneamento do Paraná; ladas de verduras e legumes, isentos de
- Reduzir a criminalida- - Rotary Club Maringá Sul; - Assistência técnica por equipe técnica agrotóxicos;
de entre os jovens; - Companhia de Saneamento do da Prefeitura e Centro de Referência em - Contribuição financeira da comercialização
- Combater a depres- Paraná; Agricultura Urbana e Periurbana, orien- da produção excedente ao consumo, po-
são e baixa autoestima - Centro de Referência em Agricul- tando e monitorando todos os trabalhos; dendo ter uma significativa participação na
de idosos; tura Urbana e Periurbana (Univer- - Demais parceiros: cessão dos espaços renda familiar.
- Melhorar a qualidade sidade Estadual de Maringá); e financiamento da infraestrutura;
de vida e saúde de - Agência Adventista de Desenvol- - Comunidade executa as atividades de
comunidades pobres. vimento e Recursos Assistenciais; produção e manutenção dos canteiros.
- Profissionais liberais e comer-
ciantes.

Fonte: Elaboração própria

Os estudos incluídos nesta revisão apre- como território. No entanto, é interessante


sentam importantes contribuições da in- notar que em duas experiências (MAGALHÃES
tersetorialidade para a população e para o JUNIOR; OLIVEIRA, 2006; PADULA et al., 2006) houve
enfrentamento dos problemas que preten- parceria com a Secretaria de Estado da
diam resolver, pois trazem estratégias que Saúde, e em cinco (CARNEIRO; GOMES, 2004; LOPES;
são planejadas de forma compartilhada e de MALFITANO, 2006; PADULA et al., 2006; PARREIRA; SOUSA;
acordo com a necessidade sentida. Podem os Ministérios da
NEVES, 2007; MORI; OGATA, 2010)
contribuir para a melhoria da qualidade de Saúde ou da Educação e Cultura foram apon-
vida da população à qual são destinadas, tados como atores envolvidos na ação. Em
respondendo às necessidades de saúde de um dos casos (PARREIRA; SOUSA; NEVES, 2007), re-
uma coletividade, mobilizando os setores ferente à implantação do Projeto Ambientes
necessários para realizar essas ações (CAMPOS; Verdes e Saudáveis, no município de São
BARROS; CASTRO, 2004). Uma parte da importân- Paulo, houve também a participação de en-
cia de se trabalhar de forma intersetorial tidades supranacionais, como a Organização
está relacionada com a amplitude e a mag- Panamericana de Saúde e as Nações Unidas.
nitude das ações. Os projetos alcançaram Excetuando o setor saúde (por conta da
um grande número de pessoas, abrangeram natureza dos projetos levantados), o setor
diversos temas, diferentes territórios, reali- educação é o que mais aparece vinculado às
zaram processos educativos e informativos, ações intersetoriais levantadas, dez (CARNEIRO;
com mudanças muitas vezes ambientais, GOMES, 2004; DOBASHI et al., 2005; LOPES; MALFITANO,
mobilização comunitária, e ampliaram a dis- 2006; MAGALHÃES JUNIOR; OLIVEIRA, 2006; PADULA et al.,
cussão sobre cidadania e direitos constitu- 2006; SPERANDIO et al., 2006; PARREIRA; SOUSA; NEVES,
cionais, também havendo uma preocupação 2007; MORI; OGATA, 2010; FREITAS; RODRIGUES; ALMEIDA,
do poder público em buscar alternativas de 2011; PALÁCIOS et al., 2012),
o que reforça a sua im-
articulação e parcerias com outros setores. portância no âmbito da promoção da saúde.
Todas as experiências relatadas tiveram o Ao se considerar, especificamente, as escolas,
município ou uma localidade intramunicipal é possível ver que são espaços potenciais de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


976 GARCIA, L. M. T.; MAIO, I. G.; SANTOS, T. I.; FOLHA, C. B. J. C.; WATANABE, H. A. W.

transformações sociais e de construção de casos, envolvendo a participação dos pró-


conhecimentos e valores, facilitando toda e prios moradores do território na coleta dos
qualquer atividade de promoção da saúde e dados (BECKER et al., 2004; CARNEIRO; GOMES, 2004), o
de redução de vulnerabilidades, sejam estas desenvolvimento conjunto das estratégias a
de ordem individual, social ou institucional, serem implantadas e a criação de grupos de
como, por exemplo, a intervenção em situa- trabalho.
ções de violência que coloquem em risco o Percebe-se que algumas das dificulda-
crescimento e o desenvolvimento pleno de des encontradas para a operacionalização
crianças e adolescentes. da intersetorialidade são, ao menos em
No mais, organizações do terceiro setor parte, consequências do modelo de inter-
apareceram em seis projetos (BECKER et al., setorialidade que se adota: ascendente ou
2004; DOBASHI et al., 2005; LOPES; MALFITANO, 2006; descendente. Segundo Nascimento (2010), a
MAGALHÃES JUNIOR; OLIVEIRA, 2006; PARREIRA; SOUSA; intersetorialidade ascendente ocorre quando
NEVES, 2007; PALÁCIOS et al., 2012). Por outro lado, os os representantes da gestão, que são a cúpula
moradores do território apareceram expli- administrativa, articulam-se e se integram
citamente como atores envolvidos somente para atingir ações de metas únicas, que serão
em quatro (BECKER et al., 2004; CARNEIRO; GOMES, aplicadas em âmbito local. Já a intersetoria-
2004; SPERANDIO et al., 2006; PALÁCIOS et al., 2012) das lidade descendente é caracterizada como
onze ações revisadas. uma atuação que surge da base da gestão, dos
Percebe-se que os artigos consideraram a sujeitos/técnicos de organismos públicos
intersetorialidade uma estratégia essencial e da sociedade civil, que formula propostas
para se promover saúde; no entanto, nenhum para conduzir as ações. A intersetorialidade
deles explicita em qual definição de interse- ascendente, mais comum entre os documen-
torialidade o projeto se embasa, o que revela tos analisados, além de reduzir a participa-
importante lacuna. Por outro lado, algumas ção popular, dá maior margem às disputas
características dos projetos são mais comu- de poder nos diferentes níveis de governo,
mente citadas, desvelando as crenças dos que, em função de mudanças na sua condu-
autores sobre o que seriam projetos inter- ção, tornam vulneráveis as instituições pela
setoriais. Costuma-se caracterizar o projeto descontinuidade de políticas em curso e pela
como um conjunto de ações com diferentes tendência de traçar ações identificadas com
participações, enfatizando as redes de com- a nova equipe gestora (MACHADO; PORTO, 2003).
promisso, a corresponsabilidade e a coopera- É interessante notar que os artigos sele-
ção de distintos setores. Também é comum a cionados somente descrevem as ações dos
citação de espaços coletivos para discussão, projetos, faltando comparação com outras
o compartilhamento de saberes com hori- estratégias ou projetos similares. Ademais,
zontalidade e a integração de diferentes pro- não são todos os manuscritos que apresen-
fissionais para o planejamento de ação em taram resultados finalísticos das ações, ou
conjunto, articulado e contínuo durante os seja, que avaliaram o impacto da ação sobre
programas. o problema-alvo, o alcance dos objetivos e
As formas de se operacionalizar a inter- suas implicações em médio ou longo prazo.
setorialidade variaram de acordo com o Por vezes, os autores consideraram como
objetivo, a amplitude e a complexidade das resultados as propostas futuras, e houve
ações pretendidas. De modo geral, perce- dificuldade em se avaliar o impacto do tra-
bem-se a utilização de reuniões regulares balho intersetorial. A avaliação vai além
entre os atores envolvidos, a realização de da descrição da ação, e as razões para a in-
uma ou mais etapas diagnósticas para en- completude desse item, tão importante para
tender o problema em questão, em dois analisar o impacto das ações, residem no

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


Intersetorialidade na saúde no Brasil no início do século XXI: um retrato das experiências 977

fato de a intersetorialidade ocorrer em di- ações de promoção de saúde equaciona


ferentes níveis, de os objetivos dos projetos fatores diversos, sendo central a questão eco-
se transformarem durante o processo, de nômica. Como referem Sícoli e Nascimento
haver dificuldades em negociar e decidir (2003, p. 118):
quais questões são prioritárias - por incom-
patibilidade e diferenças das agendas entre [...] o desenvolvimento sustentável pressupõe
os diferentes agentes - e de os resultados so- considerar a viabilidade econômica e ambien-
frerem interferência em função de disputas tal das ações e iniciativas. Está ligado à busca
políticas e interesses eleitorais (MAGALHÃES; de alteração do modelo predatório de desen-
BODSTEIN, 2009). volvimento, à ampliação de práticas educa-
Por outro lado, resultados intermediários tivas e ao fortalecimento do sentimento de
e decorrentes de avaliações do processo de co-responsabilização e instituição de valores
implantação da ação são mais comuns. Vale éticos.
destacar que nenhum dos trabalhos encon-
trados apresentou os resultados planejados, Nesse sentido, promover a saúde de
mas não alcançados, ou mesmo se referiu a forma integrada com a população e com os
experiências sem êxito. Dados sobre capaci- setores das esferas federal, estadual e muni-
dade de sustentabilidade econômica, políti- cipal é mais vantajoso economicamente do
ca etc., importantes para a avaliação de uma que investir unicamente na resolução dos
ação de longo prazo, não foram apresentados. problemas. Então, por que deixar os proje-
Observou-se que em seis artigos (BECKER et tos de lado depois de terem sido iniciados,
al., 2004; CARNEIRO; GOMES, 2004; MAGALHÃES JUNIOR; depois de ter havido a junção de objetivos e
OLIVEIRA, 2006; PARREIRA; SOUSA; NEVES, 2007; MORI; de parcerias e de terem sido demonstrados
houve uma pro-
OGATA, 2010; PALÁCIOS et al., 2012) resultados iniciais? Em seis artigos revisa-
posta de continuidade do projeto desenvol- dos (CARNEIRO; GOMES, 2004; LOPES; MALFITANO, 2006;
vido, frequentemente, para a sua ampliação. MAGALHÃES JUNIOR; OLIVEIRA, 2006; PADULA et al., 2006;
Este é um dado relevante, uma vez que a con- PARREIRA; SOUSA; NEVES, 2007; MORI; OGATA, 2010), veri-
tinuidade de políticas de promoção de saúde ficou-se a participação de entidades estadu-
é importante por estas envolverem processos ais e/ou federais, e em apenas um (CARNEIRO;
coletivos de transformação, com impactos GOMES, 2004) foi encontrada referência à evolu-
em médio e longo prazos (SÍCOLI; NASCIMENTO, ção do projeto. Os projetos restantes apenas
2003). No entanto, não ficou claro nos artigos mencionaram o seu tempo de atuação ou ser
analisados como a sustentabilidade do parte de uma primeira fase de implantação.
projeto será operacionalizada. Existe uma Parece, então, haver um conjunto de projetos
ideia do que se pretende e propõe realizar, com apoios pontuais de instituições públi-
porém, sem apresentar, concretamente, por cas e, portanto, com alcance muito limitado
exemplo, os próximos passos, a consolidação no tempo. Mas qual a possibilidade de real
de parcerias e suas funções, compromissos impacto se a maioria das propostas em an-
de reuniões periódicas e de financiamento. damento no País se restringe a projetos ou
Ademais, nenhum dos artigos lidos reporta- parcerias transitórias? Muitos projetos se
va ser sobre a continuação de uma iniciativa tornam pontuais porque não lhes é garan-
ou a segunda fase de um projeto de promo- tida a continuidade, em virtude, sobretudo,
ção de saúde. Parecem ser mais iniciativas do financiamento. Isso acaba por ocasionar
pontuais ou iniciais, sem informações sobre experiências que não chegam a se consoli-
‘frutos’ que se prolonguem no tempo. dar, produzindo impactos bastante restritos
Vale destacar que a sustentabilidade de no tocante às problemáticas para as quais

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


978 GARCIA, L. M. T.; MAIO, I. G.; SANTOS, T. I.; FOLHA, C. B. J. C.; WATANABE, H. A. W.

direcionaram sua atenção. Essa é uma reali- é necessário lembrar que somente uma base
dade para a maioria dos projetos sociais no de referências foi utilizada para a busca.
Brasil, atualmente (LOPES; MALFITANO, 2006). Apesar da atual abrangência da base Lilacs -
Por fim, vale apontar duas característi- mais de 850 periódicos e de 650 mil registros,
cas das publicações em si. Dos onze artigos, em março de 2013 - é possível que alguns
oito se referem a ações ocorridas na região artigos disponíveis somente em outras bases
Sudeste (BECKER et al., 2004; LOPES; MALFITANO, 2006; não tenham sido avaliados quanto à sua ele-
MAGALHÃES JUNIOR; OLIVEIRA, 2006; PADULA et al., gibilidade para esta revisão. Por outro lado,
2006; SPERANDIO et al., 2006; PARREIRA; SOUSA; NEVES, não é do conhecimento dos autores trabalho
2007; MORI; OGATA, 2010; FREITAS; RODRIGUES, ALMEIDA, similar sobre o tema, e acredita-se que os
2011)e um nas regiões Sul (PALÁCIOS et al., 2012), resultados aqui apresentados oferecem um
Nordeste (CARNEIRO; GOMES, 2004) e Centro- bom panorama sobre as ações intersetoriais
Oeste (DOBASHI et al., 2005). Isso pode indicar recentes.
que a intersetorialidade ainda é uma prática
ou pouco desenvolvida nas demais regiões ou
pouco compartilhada no meio acadêmico. A Considerações finais
segunda hipótese parece mais plausível aos
autores deste manuscrito, uma vez que tais O escopo deste estudo foi a identificação de
práticas normalmente nascem e se desenvol- artigos nacionais sobre programas interseto-
vem nos serviços à população, setor em que a riais que envolvessem o setor saúde. Todos
publicação acadêmica das experiências e dos consideraram a intersetorialidade como
resultados não é um produto tão importante. fundamental para a promoção da saúde, mas
Talvez tal escassez indique que a academia nenhum deles explicitou a definição de inter-
precise ir mais a campo conhecer as experi- setorialidade em que se embasaram. Assim, a
ências e que os operadores de políticas pú- partir desta revisão se pode concluir que as
blicas sejam incentivados a publicizar suas ações intersetoriais realizadas nos primeiros
experiências intersetoriais. anos do século atual ainda parecem incipien-
A segunda característica das publicações tes no Brasil, se considerarmos os trabalhos
que merece destaque é o fato de que cinco publicados em periódicos científicos, no
manuscritos (CARNEIRO; GOMES, 2004; DOBASHI et que diz respeito à sua descrição, execução e
al., 2005; MAGALHÃES JUNIOR; OLIVEIRA, 2006; PARREIRA; avaliação. As experiências relatadas indicam
foram
SOUSA; NEVES, 2007; PALÁCIOS et al., 2012) a grande potencialidade desse tipo de ação
publicados no periódico Divulgação em para o enfrentamento de problemas em
Saúde para Debate, editado e distribuído saúde pública, tendo como partida a visão
pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde ampliada do processo saúde‑doença, bem
(Cebes). Talvez isso tenha ocorrido por como para a promoção da saúde em nosso
conta de sua política editorial e seu escopo, País. Em todas as iniciativas, pelo menos
uma vez que pretende difundir o conheci- quatro serviços ou setores foram envolvi-
mento produzido na experiência cotidiana dos. O setor educação foi um grande parcei-
dos sistemas municipais de saúde, divul- ro nessas ações, e as Instituições de Ensino
gando documentos resultantes de eventos Superior participaram de sete delas.
promovidos por instituições ou entidades Todos os estudos apresentam o potencial
do setor saúde (CEBES, 2014). Isso pode indicar das ações intersetoriais para a transforma-
a necessidade de mais espaço nos periódi- ção da realidade local e dos serviços, mas as
cos científicos da área para o relato de tais experiências analisadas carecem de infor-
experiências. mações sobre sua continuidade e, portanto,
Ao considerar os resultados desta revisão, da sustentabilidade dos programas.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


Intersetorialidade na saúde no Brasil no início do século XXI: um retrato das experiências 979

Ações intersetoriais deveriam ser resul- estratégias de avaliação e de busca de susten-


tantes ou, ainda, ter grande potencial para tabilidade, utilizadas visando à efetiva con-
o desenvolvimento de políticas públicas. O cretização das mudanças de médio e longo
acompanhamento dessas experiências pos- prazos.
sibilitariam verificar a transformação desse É imprescindível o desenvolvimento de
potencial em resultados duradouros do um olhar e de um fazer intersetoriais, em
ponto de vista dos serviços e de seus parti- que os vários atores e setores dialoguem,
cipantes. Ressaltamos, ainda, a importância tendo como norte as necessidades da popu-
de uma contínua avaliação dessas iniciativas, lação e a perspectiva de desenvolvimento de
do compartilhamento das experiências, das políticas públicas duradouras. s

Referências

BECKER, D. et al. Empowerment e avaliação crianças na atenção psicossocial: considerações


participativa em um programa de desenvolvimento preliminares. In: LAURIDSEN-RIBEIRO, E.; TANAKA,
local e promoção da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, O. Y. (Ed.). Atenção em saúde mental para crianças e
Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 655-667, 2004. adolescentes no SUS. São Paulo: Hucitec, 2010.

BUSS, P. M. Promoção da saúde e qualidade de vida. DALMOLIN, B. B. et al. Significados do conceito de


Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. saúde na perspectiva de docentes da área da saúde.
163-177, 2000. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de
Janeiro, v. 15, n. 2, p. 389-394, 2011.
CAMPOS, G. W.; BARROS, R. B.; CASTRO, A. M.
Avaliação de política nacional de promoção da saúde. DOBASHI, B. F. et al. Viva Seu Bairro: em Campo
Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. Grande/MS a promoção da saúde percorre os
745-749, 2004. caminhos da intersetorialidade. Divulgação em Saúde
para Debate, Rio de Janeiro, n. 32, p. 28-35, 2005.
CARNEIRO, A. O.; GOMES, N. P. Ações intersetoriais
para a promoção da saúde. Divulgação em Saúde para FREITAS, R. M.; RODRIGUES, C. S.; ALMEIDA, M. C.
Debate, Rio de Janeiro, n. 30, p. 88-90, 2004. M. Estratégia intersetorial para o controle da dengue
em Belo Horizonte (Minas Gerais), Brasil. Saúde e
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 3, p. 773-785, 2011.
Divulgação em Saúde para Debate. Disponível em: <http://
cebes.com.br/publicacao-tipo/revista-divulgacao/>. Acesso HIGGINS, J. P. T.; GREEN, S. Cochrane handbook for
em: 05 nov. 2014. systematic reviews of interventions - version 5.1.0.,
2011. Disponível em: <http://handbook.cochrane.org>.
COUTO, M. C. V.; DELGADO, P. G. G. Acesso em: 05 nov. 2014.
Intersetorialidade: uma exigência da clínica com

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


980 GARCIA, L. M. T.; MAIO, I. G.; SANTOS, T. I.; FOLHA, C. B. J. C.; WATANABE, H. A. W.

INOJOSA, R. M. Sinergia em políticas e serviços pú- Família e uma creche. Revista de APS: Atenção Primária
blicos: desenvolvimento social com intersetorialidade. à Saúde, Juiz de Fora, v. 13, n. 4, p. 518-522, 2010.
Cadernos Fundap, São Paulo, n. 22, p. 102-110, 2001.
NARVAI, P. C.; FRAZÃO, P. Práticas de saúde pública.
JUNQUEIRA, L. A. P. Intersetorialidade, In: ROCHA, A. A.; CESAR, C. L. G. (Ed.). Saúde pública:
transetorialidade e redes sociais na saúde. Revista de bases conceituais. São Paulo: Atheneu, 2008. p. 269-295.
Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 6, p.
35-45, 2000. NASCIMENTO, S. Reflexões sobre a intersetorialidade
entre as políticas públicas. Serviço Social & Sociedade,
______. Novas formas de gestão na saúde: São Paulo, n. 101, p. 95-120, 2010.
descentralização e intersetorialidade. Saúde e
Sociedade, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 31-46, 1997. PADULA, N. A. M. et al. Intoxicação por chumbo
e saúde infantil: ações intersetoriais para o
LILACS. Disponível em: <http://lilacs.bvsalud.org>. enfrentamento da questão. Cadernos de Saúde Pública,
Acesso em: 05 nov. 2014. Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 163-171, 2006.

LOPES, R. E.; MALFITANO, A. P. S. Ação social PALÁCIOS, A. R. O. et al. O projeto Hortas


e intersetorialidade: relato de uma experiência na Comunitárias no município de Maringá. Divulgação em
interface entre saúde, educação e cultura. Interface – Saúde para Debate, Rio de Janeiro, n. 48, p. 33-41, 2012.
Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 10, n. 20, p.
505-515, 2006. PARREIRA, C.; SOUSA, M. F.; NEVES, H. Projeto
Ambientes Verdes e Saudáveis: integrando políticas
MACHADO, J. M. H.; PORTO, M. F. S. Promoção da saúde públicas na cidade de São Paulo. Divulgação em Saúde
e intersetorialidade: a experiência da vigilância em saúde para Debate, Rio de Janeiro, n. 39, p. 59-67, 2007.
do trabalhador na construção de redes. Epidemiologia e
Serviços de Saúde, Brasília, v. 12, n. 3, p. 121-130, 2003. PORTO, M. F. S.; LACAZ, F. A. C.; MACHADO, J. M. H.
Promoção da saúde e intersetorialidade: contribuições
MAGALHÃES JUNIOR, H. M.; OLIVEIRA, R. C. A vio- e limites da vigilância em saúde do trabalhador no
lência urbana em Belo Horizonte: o olhar da saúde e as Sistema Único de Saúde (SUS). Saúde em Debate, Rio
possibilidades de intervenção intersetorial. Divulgação em de Janeiro, v. 27, n. 65, p. 192-206, 2003.
Saúde para Debate, Rio de Janeiro, n. 35, p. 92-99, 2006.
SÍCOLI, J. L.; NASCIMENTO, P. R. Promoção de
MAGALHÃES, R.; BODSTEIN, R. Avaliação de saúde: concepções, princípios e operacionalização.
iniciativas e programas intersetoriais em saúde: Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v.
desafios e aprendizados. Ciência & Saúde Coletiva, Rio 7, n. 12, p. 101-22, 2003.
de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 861-868, 2009.
SPERANDIO, A. M. G. et al. A universidade
MENDES, E. Uma agenda para a saúde. São Paulo: colaborando na construção de um projeto de promoção
Hucitec, 1996. da saúde: relato de experiência de um grupo de alunos
de medicina da Unicamp, Campinas, SP, Brasil. Revista
MENDES, R.; ACKERMAN, M. Intersetorialidade: Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 30, n.
reflexões e práticas. In: FERNANDES, J.; MENDES, 6, p. 200-208, 2006.
R. (Ed.). Promoção da saúde e gestão local. São Paulo:
CEPEDOC, 2007.
Recebido para publicação em dezembro de 2013
Versão final em outubro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
MORI, A. Y.; OGATA, M. N. Cuidado intersetorial:
Suporte financeiro: não houve
promovendo a articulação entre a Equipe de Saúde da

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 966-980, OUT-DEZ 2014


Revisão | Review 981

Eugenia vinculada a aspectos bioéticos: uma


revisão integrativa
Eugenia connection with issues bioethical: an integrative review

Vanessa Cruz Santos1, Jamile Guerra Fonseca2, Rita Narriman Silva de Oliveira Boery3, Edite Lago
da Silva Sena4, Sérgio Donha Yarid5, Eduardo Nagib Boery6

1Mestranda em Saúde
Pública pela Universidade
Estadual do Sudoeste da
Bahia (Uesb)– Jequié (BA), RESUMO O objetivo do estudo é analisar o que versam as produções científicas sobre eugenia,
Brasil.
vanessacrus@hotmail.com vinculando-as com aspectos bioéticos. Trata-se de uma revisão integrativa de literatura. Os
dados foram coletados nas bases de dados Lilacs e SciELO, por meio dos descritores: eugenia,
2 Mestranda em Saúde
Pública pela Universidade etnia e saúde, ética e bioética. Para a análise e posterior síntese dos artigos foi utilizada figura
Estadual do Sudoeste da sinóptica. Verificou-se que a eugenia viola os direitos humanos, contradiz com o princípio da
Bahia (Uesb) – Jequié
(BA), Brasil. solidariedade e coloca em risco a diversidade humana. Conclui-se que houve déficit de artigos
jam_fonseca@hotmail.com que abordem aspectos bioéticos vinculados à eugenia, assim, este estudo poderá contribuir
3 Doutora em Enfermagem para a reflexão sobre essa articulação.
pela Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp)
– São Paulo (SP), Brasil. PALAVRAS-CHAVE Eugenia (Ciência); Etnia e saúde; Ética; Bioética.
Professora da Universidade
Estadual do Sudoeste da
Bahia (Uesb) – Jequié ABSTRACT The objective of the study is analyzing the scientific productions that deal about bin-
(BA), Brasil. ding-the eugenics with the bioethical issues. This is an integrative literature review. The data
rboery@gmail.com
were collected in Lilacs and SciELO, through descriptors: eugenics, ethnicity and health, ethics
4 Doutora em Enfermagem and bioethics. For later analysis and synthesis of the synoptic articles a figure was used. It was
pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC) found that eugenics violates human rights, contradicts with the principle of solidarity and en-
– Florianópolis (SC), Brasil. dangers human diversity. It was concluded that there were articles addressing bioethical issues
Professora da Universidade
Estadual do Sudoeste da related to eugenics, thus, this study may contribute to the reflection on this articulation deficit.
Bahia (Uesb) – Jequié
(BA), Brasil.
editelago@gmail.com KEYWORDS Eugenics; Ethnicity and health; Ethics; Bioethics.
5 Doutor em Odontologia
Preventiva e Social pela
Universidade Estadual
Paulista (Unesp) –
Araçatuba (SP), Brasil.
Professor da Universidade
Estadual do Sudoeste da
Bahia (Uesb) – Jequié
(BA), Brasil.
syarid@hotmail.com

6 Doutor em Enfermagem

pela Universidade Federal


de São Paulo (Unifesp)
– São Paulo (SP), Brasil.
Professor da Universidade
Estadual do Sudoeste da
Bahia (Uesb) – Jequié
(BA), Brasil.
eboery@ig.com.br

DOI: 10.5935/0103-1104.20140084 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995, OUT-DEZ 2014
982 SANTOS, V. C.; FONSECA, J. G.; BOERY, R. N. S. O.; SENA, E. L. S.; YARID, S. D.; BOERY, E. N.

Introdução genético, é dever do Estado e de toda a


sociedade, nos termos do artigo 225, do
A eugenia foi proposta por Galton, pioneiro capítulo II da Constituição Federal. Com
no assunto, como uma formulação de dire- relação às pesquisas e à manipulação
trizes propostas ao estudo e manipulação genética, é preciso respeitar o princípio
de traços da hereditariedade humana, no da solidariedade considerado pelo orde-
intuito de melhorá-las, caracterizando-as namento jurídico pátrio, como um dos
como raças, sobretudo em suas capacidades objetivos fundamentais do País, confor-
mentais. Este aprimoramento racial faria me expresso no art. 3º capítulo I dessa
com que os sujeitos portadores de quais- Constituição (BRASIL, 1988).
quer deficiências estivessem impedidos pelo Em março de 2005 foi promulgada a
Estado de se reproduzirem na sociedade nova lei de Biossegurança, Lei nº 11.105
(MASIERO, 2005). com o objetivo de estabelecer normas e
Em uma perspectiva histórica de concei- mecanismos de fiscalização sobre organis-
tos e classificações relacionados à eugenia, mos geneticamente modificados, a fim de
no início do século XX, a eugenia positiva proteger a vida e a saúde humana, animal e
implicava em ações para estimular a boa vegetal, conforme explícito em seu art. 1º.
reprodução em humanos ao passo que, a Permite a pesquisa em células-tronco em-
eugenia negativa, em ações para limitar a má brionárias, como visto no art. 6º, capítulo
reprodução. A partir do século XXI, surge III, porém não permite que sejam realiza-
o termo eugenética negativa, como sinôni- dos procedimentos de engenharia genéti-
mo de prevenção das doenças genéticas e ca em célula germinal, zigoto ou embrião
eugenética positiva, que consiste na espe- humano (BRASIL, 2005).
culação sobre criar ou melhorar caracterís- Aprovado pelo Conselho Federal de
ticas físicas e mentais de um futuro ser (MAI; Medicina através da Resolução nº 1.931 de
ANGERAMI, 2006). 17 de setembro de 2009, o Código de Ética
De modo conjunto, nação e modernida- Médica estabelece os limites da atividade
de se encontram entrelaçadas em questões médica, enumerando os princípios, direi-
que envolveram a percepção e o domínio tos e deveres do médico, no exercício da
do ‘outro’ com base numa pretensa supe- profissão. Esse documento aborda as ques-
rioridade europeia, bem como, na crença do tões que envolvem a genética de forma
poder da ciência e da técnica para a solução mais específica, vedando expressamente
dos problemas sociais. Questões essas, que no inciso 2º do art. 15 a realização de pro-
se encontram associadas aos movimentos cedimentos de reprodução assistida como
promovidos em proveito de uma higiene da a fertilização in vitro, com o objetivo de
raça. Pensamento que possibilitou a existên- criar seres humanos geneticamente mo-
cia de genocídios em massa e que, serviu de dificados, criar embriões para fins de pes-
modelo a nações, como o Brasil, que dese- quisa, escolha de sexo ou eugenia (CONSELHO
javam atingir um grau de desenvolvimento NACIONAL DE MEDICINA, 2009).
dentro de parâmetros das sociedades vistas A problemática referente à eugenia é que
como modernas e civilizadas (WERNECK; BATISTA; conforme a teoria pioneira que subsidia essa
LOPES, 2012). prática existe um grupo de indivíduos con-
A preservação da diversidade e integri- siderado superior a outros. Os indivíduos
dade do patrimônio genético, bem como, superiores têm suas características gené-
a fiscalização das entidades dedicadas ticas perpetuadas, já os inferiores, devem
à pesquisa e manipulação de material ser de alguma forma, impossibilitados de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995, OUT-DEZ 2014


Eugenia vinculada a aspectos bioéticos: uma revisão integrativa 983

transcender a sua herança genética para as estudos incluídos na revisão integrativa,


gerações futuras. interpretação dos resultados, apresenta-
Diante desta contextualização, justifica-se ção da revisão/síntese do conhecimento
a realização deste estudo sob a ótica bioética, (MENDES; SILVEIRA; GALVÃO, 2008).
uma vez que, a prática eugênica como instru- O levantamento bibliográfico ocorreu
mento de melhoramento genético provoca na Biblioteca Virtual em Saúde, a partir das
violação dos Direitos Humanos e do princí- bases de dados Lilacs (Literatura Latino-
pio da solidariedade partindo do pressupos- Americana e do Caribe em Ciências da
to de que a proteção da vida e da dignidade Saúde), SciELO (Scientific Eletronic Library
da pessoa humana é direito fundamental Online), no período de março a abril de 2013,
inerente à humanidade e, essa prática, por utilizando os descritores: Eugenia, Raça,
sua vez, pode comprometer a diversidade Etnia, Ética e Bioética, com interrelação dos
humana, colocando em risco a existência da operadores booleanos and e or.
humanidade. Os critérios de inclusão considerados
A relevância deste estudo está, pois, na foram: artigos nacionais completos publi-
possibilidade de que, a partir de seus resul- cados em português, com resumos dispo-
tados, seja possível maximizar as reflexões níveis nas bases escolhidas; disponíveis
acerca das implicações bioéticas advindas gratuitamente; que abordassem como tema
das práticas eugênicas e, que estas possam principal Eugenia. Além desses critérios,
fortalecer os mecanismos de controle do foi estabelecido o recorte temporal de abril
Estado, por meio da legislação e regulamen- de 2005 a abril de 2013 com o objetivo de
tos vigentes que proíbem essas práticas no incluir nesta revisão apenas pesquisas
cenário brasileiro. realizadas após a promulgação da Lei nº
Para tanto, este estudo tem como ques- 11.105 de março de 2005. Esta Lei estabe-
tões norteadoras: o que versam as produções lece normas de segurança e mecanismos
científicas sobre eugenia e qual sua vincula- de fiscalização de atividades que envolvam
ção com aspectos bioéticos? Na tentativa de organismos geneticamente modificados e
responder a esse questionamento, a pesquisa seus derivados proibindo a manipulação
objetiva, analisar o que versam as produções genética, considerando como crime a uti-
científicas sobre eugenia vinculando-as com lização de embrião humano em desacordo
aspectos bioéticos. com seus dispositivos, ou seja, proibindo
assim, as práticas da eugenia.
Anteriormente ao estabelecimento dos
Material e métodos critérios de inclusão, encontrou-se 157
publicações, sendo 53 na Lilacs, 33 na
Trata-se de uma pesquisa descritiva, SciELO e 71 em ambas, simultaneamente.
sob a forma de revisão integrativa de li- Destas publicações, excluíram-se aquelas
teratura, operacionalizada pelas etapas que após a leitura de títulos e resumos,
de identificação do tema e seleção da não atendiam aos critérios de pertinên-
hipótese ou questão de pesquisa para a cia e consistência do conteúdo e que não
elaboração da revisão, estabelecimento apresentavam referência nominal ao termo
de critérios para inclusão e exclusão de eugenia ou correlatos, sendo assim, exclu-
estudos/amostragem ou busca na litera- ídos 146 estudos. Portanto, a amostra do
tura, definição das informações a serem estudo compôs-se de 11 artigos. A seleção
extraídas dos estudos selecionados/ca- dos artigos foi realizada inicialmente a
tegorização dos estudos, avaliação dos partir da procura das palavras-chave no

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995 OUT-DEZ 2014


984 SANTOS, V. C.; FONSECA, J. G.; BOERY, R. N. S. O.; SENA, E. L. S.; YARID, S. D.; BOERY, E. N.

título ou no resumo e, quando necessário, publicaram sobre a temática como, advoga-


consultou-se o texto. do, médico, jornalista, historiador, psicólogo,
De posse do material para análise, segui- sociólogo, físico, biólogo e pedagogo com um
ram-se as seguintes etapas: leitura do ma- (9,1%) cada, não sendo possível identificar a
terial e seleção daqueles que preenchiam categoria profissional dos autores em dois
os critérios de inclusão, com o cuidado de artigos (18,2%). O tipo de estudo adotado nos
compará-los nas duas bases de dados, Lilacs artigos analisados evidenciou que de revisão
e SciELO, para verificar quais publicações foram nove (81,2%), documental, um (9,1%) e
estavam repetidas; elaboração de um roteiro de fenomenografia, um (9,1%).
com as características do estudo e outras va- Análise relativa ao vínculo dos autores
riáveis de interesse; posteriormente, foi rea- registra predominância para as instituições
lizada a leitura analítica, crítica e detalhada de ensino e pesquisa, como a Casa de Oswal-
dos textos, extraindo-se deles os resultados do Cruz (COC/Fiocruz), Universidade Esta-
que se julgaram com maior pertinência para dual de Campinas (Unicamp), Fundação de
caracterizar a produção científica relaciona- Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
da à temática. (Fapesp), Projeto Nacionalismo e Interna-
Para a análise dos dados e posterior cionalismo em Saúde (IMS/Uerj), Escola
síntese dos artigos que foram utilizados Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
nessa revisão foi utilizada uma figura sinóp- (Ensp/Fiocruz), Universidade Estadual de
tica elaborada para esse fim, que contemplou Maringá (UEM), Universidade Federal da
os seguintes aspectos: nome dos autores; Bahia (UFBA), Escola Bahiana de Medicina
Ano de publicação; Título do artigo; Base e Saúde Pública, Instituto de Filosofia e
de dados; Periódico; Intervenção estudada; Ciências Humanas da Unicamp, Escola de
Resultados; e Conclusão. Posteriormente, a Enfermagem do Ribeirão Preto, Sociedade
discussão foi subsidiada a partir da integra- Brasileira de Bioética, Universidade Federal
ção de outros estudos e sites governamentais de Sergipe (UFS), Universidade Estadual
que abordassem a temática eugenia sobre a Paulista (Unesp), Centro de Pesquisas
perspectiva da bioética e que alicerçasse as Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz
cinco categorias emergidas dos resultados (CpqAM/Fiocruz).
deste estudo. O quadro 1 apresenta a síntese dos artigos
incluídos nesta revisão integrativa, dispostos
em quadro sinóptico. Os principais resulta-
Resultados dos são apresentados, também, em forma
discursiva e, posteriormente, discutidos com
Foram analisados para esta revisão integrati- a integração de outros artigos, ferramentas
va 11 artigos que atenderam aos critérios de bioéticas, declarações, documentos legisla-
inclusão previamente estabelecidos. Dentre tivos, Constituição Federal e regulamentos
os artigos, a maior parte foi encontrada nas brasileiros que proíbem as práticas eugê-
bases de dados Lilacs e SciELO, simultane- nicas no Brasil. Essa integração ocorrerá a
amente, 5 (45,5%), seguidos do SciELO, 4 partir de núcleos de sentido evidenciados
(36,3%) e Lilacs, 2 (18,2%), sendo o ano de nos artigos, que deram origem às catego-
2006 com o maior quantitativo de publica- rias, violação contra a diversidade humana;
ções, 3 (27,3%). Violação dos Direitos humanos; Princípio da
Em relação à autoria dos artigos, a maior solidariedade; Bioética do risco e da prote-
parte foi de enfermeiro, 3 (27,3%), ocorren- ção e se relacionaram a cada fundamento e
do ampla abrangência de profissionais que atributo analisado nessas categorias.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995, OUT-DEZ 2014


Eugenia vinculada a aspectos bioéticos: uma revisão integrativa 985

Quadro 1. Apresentação da síntese dos artigos selecionados e utilizados na revisão, segundo autor, ano, título, base de dados, periódico, intervenções
estudadas, resultados e conclusões. Jequié, Bahia, Brasil, 2013

Autor Título Intervenções estudadas Resultados Conclusão


Ano Base de dados
Periódico

Valdeir Del Cont Francis Galton: Abordar a proposta galto- Ao selecionar, por intermédio de Possibilidade de controle da heredi-
2008 eugenia e niana, procurando apresen- um controle social dos cruzamentos tariedade daquelas características
hereditariedade tá-la como a tentativa de e determinados traços compor- que pudessem contribuir para o
elaboração de uma teoria tamentais, o eugenista estaria desenvolvimento de um tipo idea-
SciELO preocupada não somente contribuindo para que os elementos lizado, destituído de traços consi-
Sci. stud em oferecer os fundamen- degenerativos fossem eliminados derados degenerativos, viciosos e
tos para a compreensão da e os elementos benéficos fossem doentios
hereditariedade, bemcomo conservados
indicar os procedimentos
selecionadores das melho-
res características popula-
cionais
Lilian Denise A inserção do Analisar a inserção do termo A enfermagem tem acompanhado o A enfermagem vem sendo pautada
Mai; Emília termo eugenia na ‘eugenia’ e correlatos na movimento mais amplo em torno da nos conhecimentos científicos já
Luigia Saporiti revista brasileira REBEn no período de 1932 eugenia nos dois primeiros momen- construídos, os quais vêm sendo
Angerami de enfermagem a 2002 tos, ou seja, de defesa e estímulo a gradativamente superados, e em um
2006 – REBEn, 1932 a sua prática e seu posterior declínio, conceito de eugenia essencialmente
2002 quando predominam conflitos voltado ao controle reprodutivo,
éticos, legais e morais não sinalizando para as mudanças
Lilacs de conceitos e as novas formas de
Ciência, cuidado e intervenção da atualidade
saúde

Lilian Denise Eugenia negativa Analisar os significados A eugenia positiva implicava em Implementando ações, produziram-
Mai; Emília e positiva: e contradições das ações ações para estimular a boa reprodu- se contradições, como a
Luigia Saporiti significados e eugenistas negativas e ção, e a eugenia negativa em ações discriminação e eliminação de
Angerami contradições positivas construídos conco- para limitar a má reprodução. Por muitas pessoas frente a um ideal de
2006 mitantemente aos avanços outro lado, no início do século XXI, homem, à biologização de fatores
SciELO técnico-científicos do século eugenética negativa implica em eminentemente sociais à defesa da
Rev Latino-am XX ações para prevenir doenças gené- pretensa neutralidade científica e
Enfermagem ticas; eugenética positiva especula ao uso indiscriminado do direito de
sobre criar ou melhorar característi- escolha reprodutiva
cas físicas e mentais do futuro ser

Ivana de Oliveira Neoeugenia: o Estabelecer paralelo entre as Neoeugenia designa as práticas se- Aponta a necessidade de fixar
Fraga; Mônica limite entre a técnicas biomédicas adota- letivas da espécie humana mediante critérios para determinar o início
Neves Aguiar manipulação das nas terapias gênicas e manipulação gênica. Discute as da existência dos direitos individu-
2010 gênica terapêutica nas práticas de reprodução repercussões da medicina preditiva, ais, garantindo sua observância e
ou reprodutiva assistida a discriminação genética, as conse- viabilizando o respeito à liberdade,
e as práticas quências dos possíveis erros ocasio- identidade e intimidadesgenéticas,
biotecnólogicas nados pela adoção dessas práticas, de forma que o genótipo humano
seletivas da espécie bem como o reflexo das práticas não venha a ser fator impeditivo ao
humana biotecnológicas na esfera dos direi- gozo dos direitos fundamentais já
tos fundamentais dos indivíduos assegurados
Lilacs
Revista Bioética

Márcio Andrei Raciocínio moral Entender como estudantes Houve divisão de opiniões em As variações nas opiniões em rela-
Guimarães; na tomada de do ensino médio percebem relação à eugenia negativa, que ção ao assunto tratado podem ser,
Washington decisões em e interpretam questões se destina a remover caracterís- em grande medida, devidas às re-
Luiz Pacheco relação a questões relacionadas à manipulação ticas desfavoráveis das pessoas; presentações sociais dos estudantes
sociocientíficas: genética em seres humanos mas a eugenia positiva, que busca
de Carvalho;
o exemplo do melhoramento de características
Mônica Santos
melhoramento estéticas, foi rejeitada por todos os
Oliveira genético humano estudantes
2010
SciELO
Ciênc. educ. (Bauru)

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995 OUT-DEZ 2014


986 SANTOS, V. C.; FONSECA, J. G.; BOERY, R. N. S. O.; SENA, E. L. S.; YARID, S. D.; BOERY, E. N.

Quadro 1. (cont.)

Josué Laguardia Raça, genética & Apontar os pressupostos Existência de doenças étnicas com Quando a genética e a doença ge-
2005 hipertensão: nova etiológicos que embasam os base na análise de agregados e des- nética estão entrelaçadas com raça
genética ou velha argumentos racializadores crição de diferenças físicas repre- e os estereótipos a ela associados,
eugenia? da hipertensão, as hipóte- senta uma intervenção no domínio as minorias étnicas e raciais são
ses alternativas presentes da saúde pública que não se justifi- os alvos preferenciais de práticas
Lilacs e SciELO na literatura científica e os ca diante dos achados genômicos e estigmatizantes, coercitivas e discri-
Hist. cienc. saude- aspectos éticos implicados das limitações metodológicas dos minatórias
Manguinhos nesses estudos estudos epidemiológicos

André Luís A psicologia racial Demonstrar como teorias Foram analisados os anais da Socie- Esta aproximação gerou uma ‘psico-
Masiero no Brasil (1918- raciais chegaram ao Brasil. dade Eugênica de São Paulo (1919) logia racial’ no Brasil, a qual preten-
2005 1929) Por volta de 1869, entraram e os trabalhos apresentados no 1º dia reduzir os saberes psicológicos a
no âmbito das ciências Congresso Brasileiro de Eugenia uma suposta problemática racial
Lilacs e SciELO psicológicas e direcionaram (1929), que tiveram como meta
Estud. psicol. (Natal) conceitos e práticas ‘melhorar a raça nacional’. Participa-
ram psicólogos, psiquiatras e an-
tropólogos que se aproximaram do
racismo científico, muito difundido
pelo mundo no início do século XX

Robert Wegner; Eugenia ‘negativa’, Analisa o diálogo do eu- Entusiasmados com as pesquisas e De acordo com o que tem sido
Vanderlei psiquiatria e genista Renato Kehl com a aplicação de medidas eugênicas apontado pela historiografia, a euge-
Sebastião de catolicismo: um grupo de psiquiatras em países como os EUA e a Ale- nia mais radical teve poucos adep-
Souza embates em torno brasileiros que, no início da manha, autores elegeram a religião tos no Brasil ou, ao menos, perdeu
da esterilização década de 1930, aproxima- católica como empecilho para que sua força exatamente no momento
2013
eugênica no Brasil ram-se da chamada eugenia o Brasil pudesse seguir caminho em que se discutia a lei de esteriliza-
negativa semelhante, especialmente quanto ção alemã
Lilacs e SciELO à resistência à implantação da es-
Hist. cienc. saude- terilização dos ditos ‘degenerados’
Manguinhos que passara a vigorar na Alemanha
em 1934

Elisabete Eugenia e Construir como foi o cenário A eugenia brasileira, nas duas As ações da Fundação Rockefeller,
Kobayashi; Lina Fundação no qual a eugenia, de manei- primeiras décadas do século XX, naquilo que se refere à eugenia,
Faria; Maria Rockefeller no ra geral, e a brasileira, espe- possuía características particulares. na Alemanha, ou ao sanitarismo/
Conceição da Brasil: a saúde cificamente, se desenrolou Em primeiro lugar: a crença de que eugenia no Brasil, não eram ações
como proposta trazendo à tona as posturas as condições do meio ambiente isoladas, mas parte de uma política
Costa
de regeneração de alguns eugenistas bra- incidiriam diretamente na constitui- de cooperação internacional. Nova-
2009
nacional sileiros ção do povo brasileiro. Segundo: a mente, ao contrário do que alguns
busca por soluções que tendessem autores querem nos levar a crer, não
SciELO às peculiaridades do país e não foi um ato isolado, mas sim uma
Sociologias simplesmente reproduzissem o que política de incentivo à ciência em
os eugenistas estrangeiros acre- escala mundial
ditavam. Terceiro: a defesa de um
ideal de regeneração de uma raça,
ao contrário da tese de degeneração
defendida em outros países

Cristiane Eugenizar a alma: Analisa a constituição da Análise de saberes médicos e psico- Com efeito, aspirava-se interferir na
Oliveira a constituição ‘euphrenia’ como um novo lógicos acerca do psiquismo infantil antropologia vindoura: fabricar um
2011 da euphrenia no domínio para a psiquiatria no Brasil, das décadas de 1920 e indivíduo que, se não podia ser sele-
projeto de higiene brasileira na sua abordagem 1930, descortina a intensa circula- cionado rigorosamente pela eugenia,
mental voltado eugênica e higiênica da ção afetiva intrafamiliar como ponto deveria receber da medicina uma
à infância da infância de ancoragem para um projeto de profilaxia mental (leia-se sexual)
Liga Brasileira de normalização social, ainda centrado para ser hiperajustado à norma
Hygiene Mental na eugenia, mas já atravessado por
uma psicologia da adaptação
Lilacs e SciELO
Rev. Latinoam.
Psicopat. Fund.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995, OUT-DEZ 2014


Eugenia vinculada a aspectos bioéticos: uma revisão integrativa 987

Quadro 1. (cont.)

Flavia Miranda Saúde pública Contextualizar o campo da O Projeto Genoma Humano gerou Uma discussão de todos esses
Gomes de e ética na era saúde pública diante dos várias expectativas, dentre elas: a pos- tópicos é essencial para que a saú-
Constantino da medicina grandes avanços da biotec- sibilidade de rastrear genes associados de pública seja beneficiada com
Bandeira; Yara genômica: nologia e genética aplicada, a doenças e comportamentos, e mais as informações obtidas através da
rastreamentos destacando elementos para ainda, de intervir geneticamente no ser análise genômica das populações
de Miranda
genéticos. a problematização do tema, humano, levantando preocupações re-
Gomes;
tais como: benefícios e lativas ao renascimento da eugenia, ao
Frederico Lilacs e SciELO questões éticas relacionados aconselhamento genético, e ao uso da
Guilherme Rev. Bras. Saúde aos rastreamentos genéticos informação genética como critério de
Coutinho Abath Matern. Infant acesso aos planos de saúde e postos
2006 de trabalho

Fonte: Elaboração própria

Discussão eugenistas e racistas pregadas pelo líder e chefe


do governo alemão Adolf Hitler, que criou ar-
A partir da análise dos resultados, verificou-se tifícios a fim de eliminar qualquer ameaça de
que apesar de não serem encontrados estudos ‘sujar’ a raça considerada perfeita, utilizando
que abordassem diretamente a eugenia e a os seres humanos como cobaias, principalmen-
sua relação com a bioética, foi possível notar te na II Guerra Mundial. Após esses atos, foi
que vários destes, suscitaram considerações criado o primeiro código de ética, o Código de
de que a eugenia é uma prática maléfica à Nuremberg, que em seu art. 2º consagra o prin-
humanidade e que contradiz os princípios cípio da beneficência:
bioéticos. Destarte, a partir de tais resultados
emergiram quatro categorias que se vinculam O experimento deve ser tal que produza resul-
com aspectos bioéticos e, como a eugenia tados vantajosos para a sociedade, os quais não
também é considerada como uma prática possam ser buscados por outros métodos de
benéfica, devido a possibilidade de prevenir estudo, e não devem ser feitos casuística e des-
o nascimento de indivíduos com doenças he- necessariamente. (TRIBUNAL INTERNACIONAL DE NU-
reditárias, emergiu outra categoria com argu- REMBERG, 1947, p. 2).
mentos favoráveis, como descrita.
Conforme Cont (2008), um dos primeiros ca-
Violação contra diversidade humana minhos para o estabelecimento de uma ciência
eugênica se estabeleceu enquanto conjunto de
Na Alemanha, a eugenia norte-americana ins- práticas envolvendo os trabalhos de Francis
pirou nacionalistas defensores da supremacia Galton e a influência que exerceu sobre um
racial, entre os quais Hitler, considerado como grupo de indivíduos, conhecidos como biome-
nazista, que nunca se afastou das doutrinas tristas e que tinha a preocupação em encon-
eugenistas de identificação, segregação, es- trar regularidades estatísticas que pudessem
terilização, eutanásia e extermínio em massa indicar a prevalência de certas características
dos indesejáveis, e legitimou seu ódio fanáti- em um dado conjunto populacional. Neste
co pelos judeus envolvendo-o numa fachada sentido, Guimarães, Carvalho e Oliveira (2010)
médica e pseudocientífica (GUERRA, 2006). relembram que no início do filme Gattaca, cla-
Uma das mais expressivas características ma-se justamente por uma reflexão a respeito
do nazismo foi a superioridade racial do povo dos avanços genéticos, sobretudo no que se
ariano, que se enquadrava nas políticas públicas refere à eugenia, seja ela positiva ou negativa.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995 OUT-DEZ 2014


988 SANTOS, V. C.; FONSECA, J. G.; BOERY, R. N. S. O.; SENA, E. L. S.; YARID, S. D.; BOERY, E. N.

Fazendo um comparativo simplista entre entre outros (MASIERO, 2005).


eugenia positiva e negativa entende-se que a Em se tratando do Brasil, no contexto da
primeira preza por estimular a seleção eugê- eugenia, era visto como um País doente e pobre,
nica na promoção de casamento entre pessoas carente de ações em saneamento. As doenças
aptas à procriação saudável e a última cuida desse período eram atribuídas aos pobres,
do oposto, reduzindo o número de seres de- negros e mestiços, rotulados como povo igno-
nominados disgênicos ou degenerados, por rante, imoral e vicioso. Assim, a eugenia era
assim não atender ao padrão de perfeição dos racista em seus preceitos já que designava as
seus conceitos. Para tanto, impunha medidas raças sugerindo sempre a raça negra na culpa-
de extermínio, limitação da procriação e es- bilização destas situações (KOBAYASHI; FARIA, 2009).
terilização de classes de negros, mulatos e Isto deixou de ser permitido e aceitável
mestiços, pois estes eram considerados como a partir da promulgação de leis, a exemplo,
elementos inferiores (MAI; ANGERAMI, 2006). a Lei nº 12.288, que em seu Art. 1º institui
Os princípios defendidos pela eugenia ne- o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a
gativa, prevalente na Alemanha, conduziam garantir à população negra a efetivação da
a um racismo cientifico e a um determinis- igualdade de oportunidades, a defesa dos di-
mo biológico de cunho radical. Esta teoria reitos étnicos individuais, coletivos e difusos
proibia uniões afetivas entre raças distintas, e o combate à discriminação e às demais
principalmente no que se refere a casamen- formas de intolerância étnica (BRASIL, 2013).
tos entre pessoas brancas, pretas e indíge- De acordo com os objetivos da República
nas já que considera a miscigenação como Federativa do Brasil, art. 3º, descrito no
motora do desenvolvimento de degeneração parágrafo IV – deve haver a promoção do
nacional (WEGNER; SOUZA, 2013). bem de todos os povos, totalmente livres de
Dentre outros princípios para aplicar téc- preconceitos de origem, da raça, do sexo, da
nicas eugênicas no homem, encontra-se a de cor, da idade ou outras maneiras de suscitar
‘corrigir’ a causa de algumas doenças (por atos discriminatórios (BRASIL, 1988). Para tentar
exemplo, doença fibrocística, algumas imu- combater o racismo à população negra,
nodeficiências, talassemia). Esta portanto, criou-se, também, a Política Nacional de
seria uma maneira de eugenia moralmente Saúde Integral da População Negra, que é
aceitável por alguns indivíduos da sociedade resultado da luta histórica pela democratiza-
que consideram estas técnicas como solu- ção da saúde encampada pelos movimentos
ções aceitáveis para se obter seres humanos sociais, em especial pelo movimento negro.
perfeitos vivendo em um conjunto social É, igualmente, fruto da pactuação de com-
(LONCARICA; OUTOMURO; SÁNCHEZ, 2004). promissos entre o Ministério da Saúde e a
A partir desta perspectiva, os seres Secretaria Especial de Políticas de Promoção
humanos seriam classificados em indivíduos da Igualdade Racial, a fim de superar si-
segregadores da perfeição ou degeneração da tuações de vulnerabilidade em saúde, que
raça humana e, assim, o objetivo da eugenia atingem parte significativa da população
seria colaborar evitando a proliferação dos brasileira (BRASIL, 2007).
piores e a reprodução dos melhores. Nesta Na Declaração Universal sobre Bioética e
ideologia, de racismo predominante, esta se- Direitos Humanos de 2005, está exposto em
gregação seguia critérios, do tipo habilidades seu art. 12º que a importância da diversida-
intelectuais, onde o branco era tido como mais de cultural e do pluralismo deve receber a
inteligente do que o negro, além de outros devida consideração. Contudo, tais conside-
aspectos a serem observados, a exemplo da rações não devem ser invocadas para violar a
loucura, feiúra, idiotice, deficientes auditivos dignidade humana, os direitos humanos e as
e vocais, pessoas com epilepsia, paraplégicos, liberdades fundamentais nem os princípios

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995, OUT-DEZ 2014


Eugenia vinculada a aspectos bioéticos: uma revisão integrativa 989

dispostos na Declaração, ou para limitar seu os conflitos passavam a ser explicitados, uma
escopo (UNESCO, 2005). vez que para alcançá-lo discutia-se pela limi-
Neste contexto, fica perceptível, a partir tação ou eliminação daqueles que viessem a
da abordagem desta categoria, que a criação diferir do mesmo (MAI; ANGERAMI,2006).
de práticas eugenistas provocou diversos De acordo com a Declaração Universal dos
malefícios, principalmente para aqueles Direitos Humanos, de 1948, todos os cidadãos
indivíduos da sociedade que foram aco- são livres e iguais perante e lei e deve ser assegu-
metidos de forma direta ou indiretamente. rado o direito da não discriminação em qualquer
Estes indivíduos foram vítimas de precon- situação de sua vida. Todo e qualquer indivíduo
ceito por apresentar diferenças, que para o possui dignidade e direitos perante aos outros
governo alemão daquela época, comandado e ao Estado (ONU, 1948). Logo, espera-se que a so-
por Hitler inferiorizavam uma camada da ciedade haja entre si com espírito fraterno, com
população em detrimento de outra, conside- pessoas dotadas de razão e livre consciência.
rada sem imperfeições. Entretanto, após su- Em se referindo ao tema da eugenia na le-
cessivas mudanças ocorridas com a maneira gislação nacional, o Código de Ética Médica
de fazer pesquisa com seres humanos, prin- foi o primeiro instrumento normativo, que
cipalmente a partir da inserção da bioética, além da vedação expressa de práticas eugê-
notou-se que a segregação, extinção e/ou nicas relacionadas a técnicas de reprodução
extermínio de determinada raça, como as assistida, também é interdito ao médico
advindas das práticas eugênicas, prejudicava participar em qualquer tipo de pesquisa
o desenvolvimento da diversidade humana. com fins eugênicos, considerados como vio-
ladores da dignidade humana (art. 99), bem
Violação dos direitos humanos como, proíbe qualquer intervenção que vise
à modificação do genoma humano, salvo
Além de proporcionar incentivo e impulso se realizada com fins terapêuticos (art. 16)
aos cuidados reprodutivos, a configuração do (CONSELHO NACIONAL DE MEDICINA, 2009).
movimento eugenista baseou-se em um con- Para Bandeira, Gomes e Abath (2006) o
ceito biológico de raça superior ou inferior, Projeto Genoma Humano provocou diversas
discriminou determinados indivíduos a partir expectativas, dentre elas, a possibilidade de ras-
da configuração de um ideal de homem, utili- trear genes associados a doenças e comporta-
zando-se de argumentos tidos como científi- mentos, e mais ainda, de intervir geneticamente
cos para tal, e interpretou condições de vida, no ser humano, propiciando benefícios sociais.
resultantes da forma de organização social, Entretanto, haja vista a novidade, complexidade
como sendo consequência da hereditariedade e amplitude do assunto, é natural que existam
dos indivíduos (MAI; ANGERAMI, 2006). opiniões controversas e questões ainda abertas,
A partir de estudo sobre a inserção do termo com relação a como isto deve ocorrer. Logo,
eugenia na Revista Brasileira de Enfermagem deve-se evitar o radicalismo intransigente, além
(REBEn), verificou-se que no período de 1954 das inaceitáveis flexibilizações motivadas por
a 1976, de modo geral, ocorreu declínio do interesses pessoais ou grupais.
entusiasmo visto nos anos de 1930 em torno Com o objetivo de proteger a integri-
das ideias eugenistas. Os textos da REBEn dade genética do ser humano a Unesco
denotam tal declínio, revelando um conteú- adotou as Diretrizes para a Implementação
do demarcado por conflitos éticos, legais e da Declaração Universal sobre o Genoma
morais, referentes à prática da eugenia. Tais Humano e os Direitos Humanos, elabora-
conflitos não escondem a configuração de um das pelo Comitê Internacional de Bioética e
ideal eugênico de perfeição do ser humano, aprovadas pelo Comitê Intergovernamental
pelo contrário, tendo em vista esse ideal é que de Bioética. Este diploma internacional

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995 OUT-DEZ 2014


990 SANTOS, V. C.; FONSECA, J. G.; BOERY, R. N. S. O.; SENA, E. L. S.; YARID, S. D.; BOERY, E. N.

confere ao genoma o caráter de unidade fun- de sua exteriorização na história, tendo por
damental da espécie humana e reconhece finalidade a seleção de características ditas
sua dignidade intrínseca e sua diversidade favoráveis da espécie humana (mesmo que
e, ainda, acrescenta sua condição de “patri- à custa do sacrifício de outros bens muito
mônio da humanidade” (art. 1º). Reconhece, valiosos, como os direitos fundamentais),
também, que independentemente de suas chega ao cotidiano com uma ‘roupagem’
características genéticas, todos os indivídu- preocupante e poderosa: a da manipulação
os têm direito à proteção da sua dignidade, gênica (FRAGA; AGUIAR, 2010).
respeitando desse modo, suas peculiaridades As práticas eugênicas, geralmente, camu-
humanas, bem como as sociais estabelecidas fladas pela promessa de cura ou resolução de
por meio do interacionismo com outros seres problemas orgânicos da espécie, mas, muitas
humanos (art. 2º) (UNESCO, 1999). vezes, atendendo a interesses econômicos e
Na Declaração Universal dos Direitos políticos, possuem uma face deletéria, prin-
Humanos, em seu artigo VI, está expresso cipalmente, no que diz respeito à afronta aos
que “todo homem tem direito a ser, em todos direitos da personalidade. Sabe-se ainda, que
os lugares, reconhecido como pessoa perante alterações genéticas frequentes podem oca-
a lei”, garantindo a todo e qualquer indivíduo sionar a modificação no genoma humano,
o respeito a sua condição de integrante da o que reflexamente propiciará desvios no
humanidade, sendo incompatível qualquer desenvolvimento natural da espécie e dese-
dispositivo que importe em discriminação de quilíbrio nos diversos sistemas biológicos
pessoas ou grupos de pessoas (ONU, 1948). terrestres (FRAGA; AGUIAR, 2010).
O art. 11º da Declaração Universal sobre Seguindo esta perspectiva, pode-se reco-
Bioética e Direitos Humanos de 2005, des- nhecer a respeito do princípio da solidarie-
creve que nenhum indivíduo ou grupo deve dade que enfatiza a aceitação da diversidade
ser discriminado ou estigmatizado por social, bem como, de sua pluralidade e, que
qualquer razão, o que constitui violação à deste modo, a democracia pode ser realmen-
dignidade humana, aos direitos humanos e te estabelecida entre os povos (CASALI, 2006).
liberdades fundamentais (UNESCO, 2005). O princípio da solidariedade, portan-
Concernente a esta categoria, os indiví- to, vem desconstruir a face da segregação
duos que mais tiveram seus direitos violados baseada em características raciais dentre
foram os negros e aqueles que se encontravam outros com o intuito de melhoramento da
com um ou mais tipo de necessidades espe- espécie, já que propõe em suas linhas que a
ciais, haja vista que estes eram culpabilizados base da sociedade é seu sentido plural para
devido a um conceito meramente biogeneti- que haja a fraternidade entre seus membros
cista de raça superior ou inferior. Porém, essa independente de quaisquer aspectos obser-
realidade foi modificada no decorrer dos anos váveis ou não observáveis.
e, isto se deve também aos avanços legislativos Com a Constituição Federal ficou estabe-
que proíbe as práticas eugenistas, por consi- lecido, a segurança da prática dos direitos
derar que qualquer ser humano, independen- sociais e individuais, liberdade, segurança,
te de suas características biológicas, sociais, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e
econômicas, entre outras, tem o direito de ser a justiça, como bases para uma sociedade
respeitado e de fazer parte de uma sociedade solidária, plural e livre de qualquer tipo de
que é diversificada. preconceitos. O fundamento incontestável
do Estado Democrático de Direito é a digni-
Princípio da solidariedade dade da pessoa humana, como expresso no
art. 1º, capítulo III da Constituição Federal
A eugenia, a despeito das diversas maneiras e, o direito à vida e a integridade física do ser

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995, OUT-DEZ 2014


Eugenia vinculada a aspectos bioéticos: uma revisão integrativa 991

humano encontram-se resguardados neste independente de condições estruturais do


fundamento. Para isso, será necessária a com- Estado ou vulnerabilidade do ser humano,
plementação de pesquisas abordando além protegendo todos, contra ações de violência,
das questões envolvendo eugenia, em con- pobreza ou quaisquer atos que tentem violar
fronto com a proteção aos direitos humanos os direitos humanos (KOTTOW, 2003).
no âmbito internacional, a abrangência e a Sendo assim, o Estado que se responsabi-
eficácia da legislação nacional, com vistas à lizava por deter crianças ‘anormais’ baseados
garantia do princípio da solidariedade, con- na teoria da eugenia, de acordo com a bioéti-
sagrado na Constituição Federal, frente ao ca do risco e da proteção, deve se responsa-
risco da realização de pesquisas com mani- bilizar em proteger todas as pessoas contra
pulação genética (BRASIL, 1988). ações intervencionistas, inclusive as que
Reforçando esta ideia supracitada, o art. dizem respeito a sua predisposição a vulne-
13º da Declaração Universal sobre Bioética e rabilidades variadas, concebendo que atos
Direitos Humanos, de 2005, evidencia que a deste caráter violam os direitos humanos.
solidariedade entre os seres humanos e co- Com a emergência, cada vez mais patente,
operação internacional para este fim devem de amplos grupos de humanos indigentes,
ser estimuladas (UNESCO, 2005). vulnerados e excluídos da globalização, e das
Sendo assim, o princípio da solidariedade questões ambientais percebidas e sentidos em
enfatizado nesta categoria, vem desconstruir termos catastróficos, a bioética parece instada
a face da segregação baseada em caracte- a assumir tais questões como uma de suas pre-
rísticas raciais dentre outros, com o intuito ocupações específicas, e a dar soluções nor-
de melhoramento da espécie, já que propõe mativas e pragmáticas, para tentar resolvê-las
em suas linhas que a base da sociedade é seu da maneira mais razoável e justa possível.
sentido plural, para que haja a fraternida- Essa função permite aproximar os conceitos
de entre seus membros, independentes de de bioética, risco e proteção, tanto do ponto
quaisquer aspectos observáveis ou não ob- de vista etimológico – visto que o sentido de
serváveis, uma forma também de proteção, ‘proteger’ está contido no próprio significado
sobretudo para os indivíduos vulnerados. da palavra ethos – quanto do ponto de vista
teórico-prático que reúne, desde sua origem,
Bioética do risco e da proteção as funções de proteger e estabelecer normas
de convivência, ou seja, o que se propõem a
Em tempos remotos, a prática e conceitos da bioética da proteção (SCHRAMM; KOTTOW, 2001).
eugenia considerava a família como uma ins- De acordo com Schramm (2008) ocorreu
tituição que não se mostrava competente em uma mudança e adaptação do conceito da
casos de ter algum ente familiar, em idade bioética tradicional, para que a mesma fosse
infantil, acometido por alguma anomalia aplicada aos conflitos em saúde pública na
patológica ou pertencer a raças que eram América Latina, região do mundo com com-
consideradas como degeneradas e assim, plexos problemas sociais, que são extensivos
incumbia ao Estado o papel de recolher à humanidade. Sendo assim, Schramm (2011)
estas crianças e submetê-las a hospícios ou a descreve que a bioética da proteção priori-
tutela de pessoas do Estado (OLIVEIRA, 2011). za as especificidades dos assim intitulados
Neste pensamento, cita-se a bioética países em desenvolvimento, podendo ser
do risco e da proteção, podendo-se dizer aplicada aos conflitos e dilemas morais no
que a mesma é pautada por concepções âmbito da saúde pública em nível mundial.
que definem o governo como responsá- As práticas eugenistas se contradizem
vel pelos cidadãos sociais que se deparem com os princípios da bioética do risco e da
com qualquer situação intervencionista, proteção, visto que se tratando da eugenia,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995 OUT-DEZ 2014


992 SANTOS, V. C.; FONSECA, J. G.; BOERY, R. N. S. O.; SENA, E. L. S.; YARID, S. D.; BOERY, E. N.

consideram-se estas como expressões racia- preocupação para as maiorias que sofrem
lizadas da biologia que consistem em men- limitações em sua própria liberdade, sem
surações que comprovariam doenças inatas a contar com o déficit de empoderamento e
determinadas raças e as expressões biológicas predisposição a um estado de maior vulnera-
do racismo, as quais se formam por disparida- bilidade social (SCHRAMM; KOTTOW, 2001). Quando
des em saúde, explicadas por diferenças gené- se associa questões étnicas ou raciais a uma
ticas expostas ao racismo, de forma ideológica suposta susceptibilidade genética, acontece
e proposital, a fim de tratar os negros como a racialização dos agravos a saúde e, neste
grupo geneticamente desigual, mutilado, pri- contexto, renega as demais alternativas de
mitivo e inferior aos demais (LAGUARDIA, 2005). causalidade dos mesmos, por excluir outros
A exclusão social é um problema que aspectos responsáveis por tais, como os de
demanda como resposta seu equacionamen- caráter social, cultural e econômico.
to por parte do governo e da sociedade. Pois, Impor sobre as raças a causalidade de
nestes casos é a exclusão, e não a pobreza, doenças fortifica a estigmatização sobre de-
que ameaça a organização social, a autorida- terminadas raças, que passam a ser inseridas
de política e o projeto econômico. A exclusão erroneamente em grupos de riscos. Não se
se refere à não incorporação de uma parte quer com esta afirmação o desmerecimento
significativa da população à comunidade de questões epidemiológicas ou raciais na
social e política, negando sistematicamente ciência, contudo pretende-se a não gene-
seus direitos de cidadania (FLEURY, 2007). E, isto ralização da situação (LAGUARDIA, 2005). Com
é o que ocorre a partir de práticas eugênicas, referência à teoria da existência de uma
uma vez que essas, por meio de mensurações raça predominantemente superior à outra,
de superioridade-inferioridade, excluem esta foi vencida por meio de experiências
aqueles que são vulnerados socialmente. que comprovam a não existência de genes
Em estudo sobre o raciocínio moral na exclusivos de uma determinada população,
tomada de decisões em relação a questões so- havendo possibilidade comprobatória de
ciocientíficas, o exemplo do melhoramento ge- que o gene de um cidadão nascido na África,
nético humano, realizado com dois grupos de por exemplo, possa se assemelhar mais ao de
estudantes, foi verificado que todos discordam um cidadão nascido na Noruega do que de
da eugenia positiva, indagando que a mesma outro africano (MAI; ANGERAMI, 2006).
não deveria ser realizada em seres humanos, O desvelar desta categoria mostra a vulne-
pois o uso de técnicas de melhoramento ge- rabilidade social como um dos argumentos
nético em seres humanos pode desencadear utilizados para aqueles que realizam práti-
discriminação (GUIMARÃES; CARVALHO; OLIVEIRA, 2010). cas eugênicas, o que acontece também com
Por isso, em prol de proteger o ser humano crianças. Por esta e outras razões, pode-se
de inferências negativas provindas de pesqui- mencionar que a bioética do risco e da pro-
sas que envolvam melhoramento genético foi teção se transformou em uma ferramenta es-
criada a Lei de Biossegurança, nº 11.105, que sencial contra a eugenia, isto porque ela tem
proíbe a manipulação genética, e também o intuito de proteger qualquer ser humano
considera como crime a utilização de embrião contra os que tentem violar seus direitos.
humano em desacordo com seus dispositivos
(art. 24), assim como a prática de engenha-
ria genética em células, germinal, zigoto ou Argumentos favoráveis às
embrião humano (art. 25) (BRASIL, 2005). práticas eugênicas
A bioética do risco e da proteção ainda
reconhece as desigualdades que violam a Mesmo diante da existência de fatos que
integridade da estrutura social, voltando sua denotem como as práticas eugênicas são

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995, OUT-DEZ 2014


Eugenia vinculada a aspectos bioéticos: uma revisão integrativa 993

prejudiciais à humanidade e, que fere os Para Danner (2012) as doenças genetica-


princípios bioéticos, existem argumentos mente causadas apenas podem ser estudadas
que defendem um outro ponto de vista, o e, provavelmente, tratadas por intermédio de
qual descreve a eugenia como uma possibi- uma prática científica calcada na biotecno-
lidade de melhoria para as gerações futuras, logia. E como poderia ser diferente? Não há
contribuindo, assim, para melhores condi- como chegar-se à estrutura genética humana
ções de saúde da sociedade. a não ser a partir da biotecnologia, assim
Avanços da ciência moderna motivaram como não é possível corrigir-se déficits ge-
novo cenário para a expressão da preocupação néticos a não ser pela reformulação do DNA.
com a saúde e constituição das futuras gera- Esta nova fase da ciência e, em particular, da
ções. Uma das maneiras de intervenção desse biologia molecular e da medicina, abre, com
saber-fazer biotecnocientífico, resultante tal possibilidade de uma intervenção direta
da junção entre o conhecimento racional da na estrutura genética, a auspiciosa expecta-
biologia molecular e o saber operacional da tiva de alcançar-se a cura de doenças causa-
engenharia genética é a eugenética positiva, das exatamente por deformações em nível do
socialmente mais polêmica, a qual buscaria a DNA, em nível do gene. Com isso, reforça-se
melhoria ou a criação de competências huma- a relevante contribuição da biotecnologia no
nas como inteligência, memória, criatividade que diz respeito a possibilitar a cura de vários
artística, traços do caráter e várias outras ca- problemas de saúde que têm sua causa exa-
racterísticas psicofísicas, com o objetivo de tamente neste continente, que somente pode
potencializá-las nos diversos contextos do ser atingido pela pesquisa genética.
convívio social (MAI; ANGERAMI, 2006).
Nas obras de Francis Galton ele se esfor-
çou para apresentar, por meio de uma lista Considerações finais
extensa de informações sobre genealogia de
indivíduos eminentes, que tanto as melho- A partir dos resultados encontrados, verifi-
res qualidades humanas quanto as piores cou-se que o objetivo proposto neste estudo
seriam o resultado de um processo natural. foi contemplado, uma vez que, ocorreu a
Deste modo, da mesma maneira que os cria- análise da produção científica sobre eugenia
dores de animais selecionavam os melhores vinculando-a a aspectos bioéticos, refletindo
de um rebanho, favorecendo-lhes as condi- sobre as principais variáveis envolvidas no
ções reprodutivas e, com isso, melhorando o estudo. Ao analisar a teoria eugenista per-
plantel, os seres humanos também poderiam cebe-se que ela afronta um dos princípios
ser selecionados por intermédio de um con- básicos dos Direitos Humanos que é o reco-
trole reprodutivo eugenicamente orientado; nhecimento de que todos os seres humanos
o que significava possibilitar casamentos são iguais, independente de gênero, raça,
entre pessoas de uma linhagem considerada nacionalidade ou situação econômica. Desta
eugenicamente qualificada e criar restrições forma a eugenia por apontar a superiorida-
para que os indivíduos considerados euge- de de uma parcela da sociedade, acaba por
nicamente inaptos não se reproduzissem. inferir em princípios éticos, pois além de
Desta maneira, o controle reprodutivo seria violar os direitos humanos, contradiz o prin-
um método capaz de garantir a melhora geral cipio da solidariedade, da bioética do risco e
da raça humana e, consequentemente, ao da proteção e coloca em risco a diversidade
minimizar os comportamentos considerados humana.
viciosos ou degenerescentes, as condições A utilização da revisão integrativa como
sociais também se reverteriam na direção de metodologia para esse estudo mostrou-se
uma melhora generalizada (CONT, 2008). pertinente para o alcance do objetivo e a

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995 OUT-DEZ 2014


994 SANTOS, V. C.; FONSECA, J. G.; BOERY, R. N. S. O.; SENA, E. L. S.; YARID, S. D.; BOERY, E. N.

identificação de lacunas que apontam a ne- tratar da temática eugenia, que possam con-
cessidade de investigações com delineamen- tribuir para a produção de pesquisas e conhe-
tos que desenvolvam evidências referentes cimentos, capazes de proporcionar subsídios
à inserção de ferramentas bioéticas, ao se para a reflexão acerca desse tema. s

Referências

BANDEIRA, F. M. G. C.; GOMES, Y. M.; ABATH, F. G. 3° da Constituição da República Federativa do Brasil.


C. Saúde pública e ética na era da medicina genômica: Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 1, n. 1.
rastreamentos genéticos. Rev Bras Saude Matern Infant, 2006. Disponível em: <http://siaibib01.univali.br/pdf/
Boa Vista, v. 6, n. 1, p. 141-146, 2006. guilherme%20%20machado%20casalli%20revista%20
de%20direiro.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2014.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição. Brasília,
DF, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ CONT, V. D. Francis Galton: eugenia e hereditariedade.
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: Sci. stud., São Paulo, v. 6, n. 2, 2008.
28 abr. 2013.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Especial de CFM nº1931. Aprova o Código de Ética Médica. Diário
Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Política Oficial da União, Brasília. 24 set. 2009. Disponível
Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília. em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/
2007. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ CFM/2009/1931_2009.htm>. Acesso em: 01 mar. 2013.
publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_negra.
pdf>. Acesso em: 01 abr. 2013. DANNER, L. F. Argumentos filosóficos a favor da
pesquisa biotecnológica. Revista Opinião Filosófica,
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Porto Alegre, v. 3, n. 1. p. 25-37, 2012.
Subchefia para Assuntos Jurídicos.Lei nº. 11.105.
Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. FLEURY, S. Pobreza, desigualdades ou exclusão?
225 da Constituição Federal, estabelece normas de Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 6, p.
segurança e mecanismos de fiscalização de atividades 1422-1428, 2007.
que envolvam organismos geneticamente modificados
– OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional FRAGA, I. O.; AGUIAR, M. N. Neoeugenia: o limite entre
de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão a manipulação gênica terapêutica ou reprodutiva e as
Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe práticas biotecnólogicas seletivas da espécie humana.
sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, Revista Bioética, Brasília, DF, v. 18, n. 1, p. 121-130, 2010.
revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a
Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, GUERRA, A. Do holocausto nazista à nova eugenia no
e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 século XXI. Cienc. Cult, Campinas, v. 58, n. 1, 2006.
de dezembro de 2003, e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 28 mar. 2005. Disponível GUIMARÃES, M. A.; CARVALHO, W.L.P.; OLIVEIRA,
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- M.S. Raciocínio moral na tomada de decisões em
2006/2005/lei/l11105.htm>. Acesso em: 03 abr. 2013. relação a questões sociocientíficas: o exemplo do
melhoramento genético humano. Ciên educ, Bauru, v.
CASALI, G. M. O Princípio da Solidariedade e o Artigo 16, n. 2, p. 465-477, 2010.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995, OUT-DEZ 2014


Eugenia vinculada a aspectos bioéticos: uma revisão integrativa 995

KOBAYASHI, E.; FARIA, L.;COSTA M. C. Eugenia e ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 15 abr. 2013.
Fundação Rockefeller no Brasil: a saúde como proposta
de regeneração nacional. Sociologias, Porto Alegre, v.11, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A
n. 22, p. 314-351, 2009. EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA (UNESCO). A
Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos
KOTTOW, M. Vulnerabilidad, susceptibilidades y Humanos: da teoria à prática.1999. Disponível em: <http://
bioética. Lexix Nesis-Jurisprudência, Argentina, v. 4, p. unesdoc.unesco.org/images/0012/001229/122990por.
23-29, 2003. pdf>. Acesso em: 15 abr. 2013.

LAGUARDIA, J. Raça, genética & hipertensão: nova ______. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
genética ou velha eugenia? História, Ciências, Saúde – Humanos. 2005. Disponível em: <http://unesdoc.
Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 371-93, 2005. unesco.org/images/0014/001461/146180por.pdf>.
Acesso em: 11 mar. 2013.
LONCARICA, A. G. K.; OUTOMURO, D.; SÁNCHEZ, J.
B. N. I. Terapia génica: ¿tratamiento médico, eugenesia ______. A bioética de proteção é pertinente e
o higiene de la herencia? Acta bioeth, Santiago, v. 10, n. legítima? Revista Bioética, Brasília, DF, v. 19, 3, p. 713-
2. p. 143-153, 2004. 724, 2011.

MAI, L. D.; ANGERAMI, E. L. S. A inserção do termo SCHRAMM, F. R. Bioética de proteção: ferramenta


eugenia na revista brasileira de enfermagem – REBEN, válida para enfrentar problemas morais na era de
1932 a 2002. Ciência, Cuidado e Saúde, Maringa, v. 5, n. globalização. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 16, n. 1, p.
1, p. 85-91, 2006. 11-13, 2008.

______. Eugenia negativa e positiva: significados e SCHRAMM, F. R.; KOTTOW, M. Principios bioéticos
contradições. Rev Latinoam Enfermagem, Rio de en salud pública: limitaciones y propuestas. Cad. Saúde
Janeiro,v. 14, n. 2, p. 251-8, 2006. Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 949-956, 2001.

MASIERO, A. L. A Psicologia racial no Brasil (1918- TRIBUNAL INTERNACIONAL DE NUREMBERG.


1929) Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Código de Nuremberg. 1947. Disponível em: <http://
– Poços de Caldas. Estudos de Psicologia, Natal, v. 10, n. www.gtp.org.br/new/documentos/nuremberg.pdf>.
2, p. 199-206, 2005. Acesso em: 08 mar. 2013.

MENDES, K. D.; SILVEIRA, R. C. C. P.; GALVÃO, C. M. WEGNER, R.; SOUZA, V. S. Eugenia ‘negativa’, psiquiatria
Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação e catolicismo: embates em torno da esterilização eugênica
de evidências na saúde e na enfermagem. Texto Contexto- no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de
enferm, Florianópolis, v. 17, n. 4, p. 758-764, 2008. Janeiro, v. 20, n. 1, p. 263-288, 2013.

OLIVEIRA, C. Eugenizar a alma: a constituição da WERNECK, J.; BATISTA, L. E.; LOPES, F. (Org.).
euphrenia no projeto de higiene mental voltado à infância Saúde da população negra. Petrópolis, RJ: DP et Alii;
da Liga Brasileira de Hygiene Mental. Rev. latinoam. Brasília, DF: ABPN. 2012. Disponível em: <http://
psicopatol. fundam, São Paulo, v. 14, n. 4, p. 627-641, 2011. ennufba.files.wordpress.com/2012/11/saude-
populacao-negra.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2013.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU).
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e
Recebido para publicação em dezembro de 2013
proclamada pela resolução 217 A (III) da  Assembléia Geral Versão final em julho de 2014
Conflito de interesses: inexistente
das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível
Suporte financeiro: não houve
em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 981-995 OUT-DEZ 2014


996 Revisão | Review

Sobrecarga do cuidador familiar de pessoas


com transtorno mental: uma revisão
integrativa
Overload of family caregivers of persons with mental disorder: an
integrative review

Sara Cordeiro Eloia1, Eliany Nazaré Oliveira2, Suzana Mara Cordeiro Eloia3, Roselane da
Conceição Lomeo4, José Reginaldo Feijão Parente5

RESUMO Objetivou-se identificar as evidências científicas na literatura acerca da sobrecarga


do familiar de pessoas com transtorno mental. Optou-se pelo método de revisão integrati-
va, através de busca nas bases de dados científicas Literatura Latino-Americana e do Caribe
em Ciências da Saúde (Lilacs), Medical Literature Analysis and Retrieval System On-Line
(Medline) e Bases de Dados de Enfermagem (BDENF). Foram identificados 23 artigos que
atenderam aos critérios de inclusão. Realizaram-se análise e interpretação dos artigos, base-
1Mestranda em Saúde da
Família pela Universidade ando-se nas seguintes temáticas: do processo de cuidar ao impacto do cuidado e importância
Federal do Ceará (UFC) – da abordagem familiar quando há presença do transtorno mental. Portanto, discute-se a ne-
Fortaleza (CE) Brasil.
saeloia@hotmail.com cessidade de os serviços de saúde mental assistirem às famílias, quanto ao papel do cuidado e
de apoio ao tratamento do ente com transtorno mental.
2 Doutora em Enfermagem
pela Universidade Federal
do Ceará (UFC) – Fortaleza PALAVRAS-CHAVE Serviços de Saúde Mental; Transtornos mentais; Cuidadores.
(CE) Brasil. Professora da
Universidade Estadual Vale
do Acaraú (UVA) – Sobral ABSTRACT The objective of this article is to identify scientific evidence in the literature on the
(CE), Brasil.
elianyy@hotmail.com overload of families with persons showing mental disorders. The integrative review method
3 Graduanda em
was chosen and search was conducted in the following scientific databases: Literatura Latino-
Enfermagem pela Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), Medical Literature Analysis and
Universidade Estadual Vale Retrieval System On-Line (Medline) and Bases de Dados de Enfermagem (BDENF). We iden-
do Acaraú (UVA) – Sobral
(CE), Brasil. tified 23 articles that met the inclusion criteria. Analyses and interpretations were carried out
suzana__mara@hotmail.com in articles focusing themes that address the process of caring and its impact on families, and the
4 Mestra em Atividade importance of a family approach when there is a family member with mental disorder. Therefore,
Física Adaptada pela this paper discusses the need for mental health services to assist families, the role of the care and
Universidade do Porto
(UP) – Porto, Portugal. the support for treating the family member with a mental disorder.
Professora da Universidade
Estadual Vale do Acaraú
(UVA) – Sobral (CE), Brasil. KEYWORDS Mental health services; Mental disorders; Caregivers.
lomeoroselane@yahoo.com.br

5 Doutor em Educação pela


pela Universidad del Mar,
Uldemar, Chile. Professor
da Universidade Estadual
Vale do Acaraú (UVA) –
Sobral (CE), Brasil.
reginaldo.fp@hotmail.com

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 996-1007, OUT-DEZ 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140085
Sobrecarga do cuidador familiar de pessoas com transtorno mental: uma revisão integrativa 997

Introdução referência para estudos, a fim de direcionar a


tomada de decisões, pelo sistema público de
Muitos são os debates na área da saúde saúde, para melhor uma assistência prestada
mental acerca da reforma psiquiátrica nos aos cuidadores.
últimos 30 anos, definindo-a como movi- Neste novo contexto de atenção à saúde
mento histórico, político e social (BRASIL, 2005) mental, a família passa a ter importante
que oportuniza a socialização de pessoas com papel na assistência psiquiátrica, como parte
transtornos mentais. A partir desse fenôme- ou estratégia do tratamento (GONÇALVES; SENA,
no, surgiram discursos sobre a fragilidade do 2001). Mudanças no cotidiano familiar podem
sistema de saúde que oferece atendimento a ocorrer quando há presença de familiar com
essa clientela, diferente daquele centrado no transtorno mental, no que diz respeito à
leito hospitalar e que visa à desconstrução vida social, ao lazer, à relação afetiva entre
dos manicômios e paradigmas que o susten- os membros da família, à rotina doméstica
tam (GONÇALVES; SENA, 2001). e às finanças (MELLO, 1997; SILVA; SADIGURSKY, 2008).
Esse processo de desinstitucionalização Outros aspectos, como os sentimentos de
psiquiátrica evoca o novo contexto brasileiro aflição, medo, receio e desconfiança que a
da saúde mental, cujos hospitais psiquiátri- família sente ao se deparar com inúmeras
cos deixam de constituir a base do sistema barreiras para o enfrentamento dos proble-
assistencial, cedendo a uma rede de serviços mas interferem na assistência adequada ao
extra-hospitalares de crescente complexida- ente familiar (MACHADO, 2011).
de. Quando necessária, a internação psiquiá- À medida que se compreende a importân-
trica acontece com períodos mais curtos de cia dos familiares na tarefa de ressocializa-
hospitalização, favorecendo a consolidação ção, verificam-se as limitações reconhecidas
de um modelo de atenção à saúde mental pelos familiares no processo do cuidar no do-
mais integrado, dinâmico, aberto e de base micílio e a dificuldade de entender as altera-
comunitária (CARDOSO; GALERA, 2011). ções comportamentais causadas pela doença
Para tanto, é necessária a reorganização (SOARES; MUNARI, 2007).
da atenção em saúde mental no País, desta- Concomitantemente à necessidade de
cando a Rede de Atenção Psicossocial como apoio aos familiares cuidadores, quanto à
ferramenta fundamental para consolida- educação em saúde para o entendimento
ção da reforma psiquiátrica implantada no da doença e da situação vivida, discute-se
Sistema Único de Saúde (SUS), pois seus a relação do cuidador com o familiar com
dispositivos vêm favorecendo a desinstitu- transtorno mental, trazendo à tona a sobre-
cionalização, a acessibilidade e equidade, a carga familiar.
articulação com a atenção primária, secun- A sobrecarga familiar é definida como o
dária e terciária, e a intersetorialidade, me- impacto causado no meio familiar pela convi-
diante articulações com setores da Justiça, vência com a pessoa com transtorno mental,
Previdência Social, Ação Social, Educação e envolvendo aspectos econômicos, práticos e
instituições profissionalizantes (BARROS; JORGE; emocionais aos quais os cuidadores são sub-
PINTO, 2010). metidos (MELMAN, 2002), motivos pelos quais
Ao compreender que as pessoas com merecem a atenção dos profissionais de
transtorno mental precisam de cuidados saúde.
devido ao comprometimento das condições A sobrecarga (ou family burden, termo de
orgânicas de ordem psicológica, psíquica origem inglesa) pode se apresentar em suas
ou cognitiva, reconhece-se a família como a dimensões objetiva e subjetiva. A objetiva
principal provedora de cuidados. Portanto, está relacionada às consequências negativas
torna-se necessário que a família seja da presença de uma pessoa com transtorno

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 996-1007, OUT-DEZ 2014


998 ELOIA, S. C.; OLIVEIRA, E. N.; ELOIA, S. M. C.; LOMEO, R. C.; PARENTE, J. R. F.

mental na família, como acúmulo de tarefas, cuidadores, para que se compreenda a dinâ-
aumento de custos financeiros, limitação das mica da convivência entre cuidador e fami-
atividades cotidianas e fragilização dos rela- liar com transtorno mental?
cionamentos entre os familiares, entre outros.
A sobrecarga subjetiva diz respeito à percep-
ção pessoal do familiar sobre a experiência Método
de conviver com o doente, seus sentimentos
quanto à responsabilidade e às preocupações Para o alcance do objetivo proposto, selecio-
que envolvem o cuidado à saúde (CARDOSO; nou-se como método de pesquisa a revisão
GALERA; VIEIRA, 2012). integrativa, considerada estratégia relevante
Acredita-se que são necessárias reflexões para investigação ampla e crítica da produção
para que se compreenda a importância da científica sobre qualquer fenômeno, de modo
aproximação do cuidador em relação ao fa- a evidenciar abordagens e evidências a serem
miliar com transtorno mental no contexto exploradas (GALVÃO; SAWADA; TREVISAN, 2004).
em que se inserem, e as necessidades de Para execução deste método, é necessário
intervenções de serviços de apoio, como os seguir padrões de rigor metodológico (POMPEO;
Centros de Atenção Psicossocial (Caps). ROSSI; GALVÃO, 2009). Com base em estudos inter-
Essa discussão fomenta o desafio de de- nacionais, Mendes, Silveira e Galvão (2008) di-
senvolver ações educativas em saúde, partin- recionam este tipo de revisão em seis etapas:
do das instituições e diversificados espaços identificação do tema e seleção da hipótese,
sociais, para que se tenha articulação dos para posteriormente estabelecer critérios
serviços e respostas positivas ao tratamento para inclusão e exclusão de estudos; amos-
sociável dos envolvidos. tragem ou busca na literatura; definição das
Para profissionais e pesquisadores em informações a serem extraídas dos estudos
saúde, é relevante a problematização da so- selecionados; avaliação dos estudos incluídos
brecarga familiar para avanços na promoção na revisão; interpretação dos resultados; e
da saúde, a fim de que ela possa, adequada- apresentação da revisão.
mente, ser identificada e trabalhada pela Realizou-se busca de estudos junto à
equipe de saúde nos diferentes momentos em Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), aces-
que se apresenta (CARDOSO; GALERA; VIEIRA, 2012). sando as bases de dados Literatura Latino-
Com o objetivo de identificar as evidên- Americana e do Caribe em Ciências da Saúde
cias científicas da literatura acerca da sobre- (Lilacs), Medical Literature Analysis and
carga do cuidador familiar de pessoas com Retrieval System On-Line (Medline) e Bases
transtorno mental, optou-se pelo método de de Dados de Enfermagem (BDENF). A seleção
revisão integrativa, compreendendo a rele- dos artigos ocorreu a partir dos descritores
vância da temática, e também por considerar família, transtornos mentais e saúde mental,
que, nas últimas décadas, tem sido pesqui- associados pelo operador booleano and.
sada a reforma psiquiátrica e os avanços na Os critérios de inclusão estabelecidos
política de saúde mental, entretanto, poucos foram: artigos que abordassem a temática
artigos foram publicados em nível nacional proposta, apresentados na íntegra na língua
referentes à sobrecarga familiar. portuguesa e publicados entre os anos de
A partir dessas considerações, construiu-se 2002 e 2012. A delimitação do período de
pesquisa que respondesse às indagações: tempo foi considerada pelos autores como
como a literatura apresenta a sobrecarga do adequada para conhecimento e reflexão da
cuidador familiar de pessoas com transtorno temática proposta.
mental? Há discussões, na literatura, sobre Uma primeira seleção dos artigos foi reali-
atividades de educação em saúde com esses zada a partir da leitura dos títulos e resumos.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 996-1007, OUT-DEZ 2014


Sobrecarga do cuidador familiar de pessoas com transtorno mental: uma revisão integrativa 999

Aqueles que indicavam relação com o objetivo e resultados. Na segunda etapa, ocorreram a
da pesquisa eram selecionados e procedia-se análise e a interpretação dos resultados destes
à leitura completa do texto, a fim de se confir- artigos, dos quais emergiram duas categorias
mar a presença da temática determinada. temáticas: do processo de cuidar ao impacto do
Nesta seleção, foram identificados 37 cuidado e importância da abordagem familiar
artigos. Porém, verificou-se que 14 se encon- quando há presença do transtorno mental.
travam publicados repetidamente em mais de Houve o cuidado de buscar os aspectos im-
uma base de dados e, desta forma, a amostra portantes dos artigos para enriquecimento deste
final consistiu em 23 artigos. Decidiu-se estudo e transmissão à comunidade científica.
pela inclusão de estudos que relacionaram o
impacto do cuidado e não somente aqueles
que traziam o termo sobrecarga. Incluíram- Apresentação e discussão
se, também, os estudos que apresentaram os dos resultados
cuidadores somados ao familiar com trans-
torno mental como sujeitos da pesquisa.
Excluíram-se aqueles em forma de editorial, Caracterização da amostra
atualização, relato de caso, revisão de litera-
tura e trabalhos na forma de tese. Tendo em vista o percurso metodológico
Na sequência, realizou-se análise dos artigos adotado neste estudo, e compreendendo que
em duas etapas. Na primeira, para coleta de a sobrecarga do cuidador familiar deve ser
dados, foi elaborado um instrumento, subme- discutida em espaços de cultura e centros de
tendo-o, primeiramente, a um pré-teste para saúde e psicossociais como resposta ao ama-
verificar o alcance do objetivo proposto. Esse durecimento das políticas de saúde mental,
instrumento permitiu a obtenção de informa- pôde-se identificar que 23 publicações en-
ções sobre a identificação do estudo: título, contradas nesta revisão integrativa eram
nome do periódico, autor(es), ano de publica- artigos científicos, os quais estão apresenta-
ção, objetivos, características metodológicas dos no quadro 1.

Quadro 1. Descrição dos estudos incluídos na revisão integrativa, segundo periódicos, títulos, autor(es) e ano de publicação

Periódico Título Autoria Ano

Revista da Escola de Transtorno mental: dificuldades PEREIRA, M. A. O.; PEREIRA 2003


Enfermagem da USP enfrentadas pela família JÚNIOR., A.

Interface – Comunicação, Representação da doença mental pela PEREIRA, M. A. O. 2003


Saúde, Educação família do paciente

Revista da Escola de Família e doença mental: a difícil COLVERO, L. A.; IDE, C. A. C.; 2004
Enfermagem da USP convivência com a diferença ROLIM, M. A.

Revista Brasileira de Qualidade de vida de familiares TEIXEIRA, M. B. 2005


Enfermagem cuidadores do doente esquizofrênico

Estudos de Psicologia O cuidado de pessoas com transtornos VECCHIA, M. D.; MARTINS, S. 2006
mentais no cotidiano de seus familiares: T. F.
investigando o papel da internação
psiquiátrica

Acta Paulista de A sobrecarga da família que convive BORBA, L. O.; SCHWARTZ, E.; 2008
Enfermagem com a realidade do transtorno mental KANTORSKI, L. P.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 996-1007, OUT-DEZ 2014


1000 ELOIA, S. C.; OLIVEIRA, E. N.; ELOIA, S. M. C.; LOMEO, R. C.; PARENTE, J. R. F.

Quadro 1. (cont.)

Revista Brasileira de Representações sociais sobre o cuidar SILVA, M. B. C.; SADIGURSKY, D. 2008
Enfermagem do doente mental no domicílio

Jornal Brasileiro de Estudo de validade da escala de BANDEIRA, M.; CALZAVARA, 2008


Psiquiatria sobrecarga de familiares cuidadores de M. G. P.; CASTRO, I.
pacientes psiquiátricos

Estudos de Psicologia Familiares de usuários vivenciando a RIBEIRO, M. B. S.; MARTINS, S. T. 2009


transformação do modelo assistencial F.; OLIVEIRA, L. R.
psiquiátrico

Escola Anna Nery Revista Percepções de familiares sobre o AZEVEDO, D. M.; MIRANDA, F. 2009
de Enfermagem portador de sofrimento psíquico A. N.; GAUDÊNCIO, M. M. P.
institucionalizado

Revista da Escola de Familiares de portadores de transtorno MORENO, V. 2009


Enfermagem da USP mental: vivenciando o cuidado em um
centro de atenção psicossocial

Cadernos de Saúde Fatores preditores da sobrecarga BARROSO, S. M.; BANDEIRA, M.; 2009
Pública subjetiva de familiares de pacientes NASCIMENTO, E.
psiquiátricos atendidos na rede pública
de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Revista Eletrônica de Vivências dos familiares ao cuidar de SALES, C. A. et al. 2010


Enfermagem um ente esquizofrênico: um enfoque
fenomenológico

Revista Enfermagem UFRJ Dificuldades enfrentadas pela OLIVEIRA, E. B.; MENDONÇA, 2011
família no acolhimento do paciente J. L. S.
com transtorno mental após a alta
hospitalar

Revista da Escola de O cuidado em saúde mental na CARDOSO, L.; GALERA, S. A. F. 2011


Enfermagem da USP atualidade

Ciência, Cuidado e Saúde Convivência e rotina da família GRANDI, A. L.; WAIDMAN, M. 2011
atendida em CAPS A. P.

Revista da Escola de Usuários de um centro de atenção NAGAOKA, A. P.; FUREGATO, A. 2011


Enfermagem da USP psicossocial e sua vivência com a R. F.; SANTOS, J. L. F.
doença mental

Revista da Escola de A família e o portador de transtorno BORBA, L. O. et al. 2011


Enfermagem da USP mental: dinâmica e sua relação familiar

Texto e Contexto de O significado de ser familiar cuidador SANT’ANA, M. M. et al. 2011


Enfermagem do portador de transtorno mental

Revista da Escola de Convivendo com transtorno mental: ESTEVAM, M. C. et al. 2011


Enfermagem da USP perspectiva de familiares sobre
Atenção Básica

Revista Brasileira de Frequência e repercussão da SILVA, C. F.; PASSOS, V. M. A.; 2012


Geriatria e Gerontologia sobrecarga de cuidadoras familiares de BARRETO, S. M.
idosos com demência

Escola Anna Nery Revista O portador de transtorno mental e a BRISCHILIARI, A.; WAIDMAN, 2012
de Enfermagem vida em família M. A. P.

Cadernos de Saúde Transtornos psiquiátricos menores em QUADROS, L. C. M. et al. 2012


Pública cuidadores familiares de usuários de Centros
de Atenção Psicossocial do Sul do Brasil
Fonte: Elaboração própria

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 996-1007, OUT-DEZ 2014


Sobrecarga do cuidador familiar de pessoas com transtorno mental: uma revisão integrativa 1001

Quanto ao ano de publicação dos estudos e atenção às pessoas com transtorno mental;
selecionados, destacam-se as publicações a os principais cuidadores e suas característi-
partir de 2008, o que revela a maturidade e cas sociodemográficas; e a ideia de sobrecar-
a consolidação da política de saúde mental ga e impacto do cuidado.
no contexto de melhoria da assistência psi- A reforma psiquiátrica permite a modifi-
cossocial e maior investimento nesta política. cação do modelo de assistência psiquiátrica,
Outros fatores que se acredita diretamente motivando a inclusão da família no cuidado
relacionados ao avanço de estudos referem-se aos familiares com transtorno mental
ao fato de estarem as redes de atenção mais (CARDOSO; GALERA, 2011; CARDOSO; GALERA; VIEIRA, 2012).
estruturadas, os centros de apoio com infra- Deste modo, a família passa a ser núcleo es-
estrutura mais organizados, bem como às tratégico e privilegiado das intervenções
melhorias nos serviços, retratando profissio- de reabilitação e reinserção psicossocial de
nais que buscam a capacitação e que sejam pessoas com transtorno mental (JORGE et al.,
sensíveis à realidade das pessoas com trans- 2008), e tem sido vista como aliada no tra-
torno mental em tratamento e seus cuidado- tamento realizado, dando continuidade ao
res. Vale considerar que é necessária maior trabalho de profissionais de saúde (CARDOSO;
divulgação para que se compreenda melhor GALERA, 2011).
este fenômeno. Nesse sentido, conhecer as características
Entre os artigos apresentados, 16 são de sociodemográficas dos cuidadores familiares
autoria de enfermeiros e os demais foram foi recurso importante para o planejamento
identificados pelas instituições de ensino mais humanizado, compartilhado e coleti-
pertencentes. Ao analisar o tipo de estudo vo da assistência oferecida ao cuidado em
mais frequente nesta amostra, identificou-se saúde mental (CARDOSO; GALERA, 2011). Percebeu-
que 16 artigos se caracterizaram como qua- se contexto social de maior predominância
litativos, os quais foram realizados por meio de mulher cuidadora (CARDOSO; GALERA; VIEIRA,
de entrevistas, história oral e pela técnica de 2012; QUADROS et al., 2012; MARCON et al., 2012; TEIXEIRA,
discussão em grupo. Seis artigos adotaram a 2005; SILVA; PASSOS; BARRETO, 2012; ESTEVAM et al., 2011;
abordagem quantitativa e utilizaram ques- CARDOSO; GALERA, 2011; BANDEIRA; CALZAVARA; CASTRO,
tionários e escalas, como instrumentos de 2008), destacando-a como presença impor-
coleta de dados, a fim de identificar os domí- tante e indispensável na consolidação da
nios de vida mais afetados e os fatores asso- reforma psiquiátrica no País.
ciados à sobrecarga, dentre elas a Escala de Dentre os artigos que caracterizavam o
Sobrecarga dos Familiares (FBIS-BR), adap- grau de parentesco entre o principal cuida-
tada para o Brasil por Bandeira, Calzavara e dor e o familiar com transtorno mental, a mãe
Varella (2005) e a Escala Burden Interview (BI), (CARDOSO; GALERA, 2011; TEIXEIRA, 2005) se destacou.
validada para o Brasil por Taub, Andreoli e No entanto, o estudo de Bandeira, Calzavara
Bertolucci (2004). Em apenas um artigo foi e Castro (2008) citou o pai e a mãe como
utilizada a abordagem quantiqualitativa. membros da família nuclear de importante
A seguir, apresentam-se as categorias te- contribuição no cuidado.
máticas resultantes da análise e interpreta- Ainda no contexto de perfil socioeconômi-
ção dos resultados desses artigos. co, a variante atividade profissional do cui-
dador foi destacada. Verificou-se relevante
Do processo de cuidar ao impacto porcentagem de cuidadores sem atividade
desse cuidado profissional ou que desempenhavam ativi-
dades eventuais (QUADROS et al., 2012; CARDOSO;
Pretendeu-se, nesta temática, discutir os GALERA, 2011; CARDOSO; GALERA; VIEIRA, 2012; TEIXEIRA,
artigos que abordaram a família no cuidado 2005), porém sem salário fixo, trazendo a

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 996-1007, OUT-DEZ 2014


1002 ELOIA, S. C.; OLIVEIRA, E. N.; ELOIA, S. M. C.; LOMEO, R. C.; PARENTE, J. R. F.

reflexão da presença de impactos em relação resulta na vida profissional (BARROSO; BANDEIRA;


às despesas. Neste contexto, publicações dia- NASCIMENTO, 2009); dos encargos financeiros e
logam que é expressivo o risco de adoecimen- da falta de suporte social que também contri-
to por sobrecarga na situação de desemprego, buíram para este sentimento de sobrecarga
principalmente quando estes cuidadores são (ESTEVAM et al., 2011; SILVA; SADIGURSKY, 2008; BARROSO;
mulheres, que acumulam à atividade de cui- BANDEIRA; NASCIMENTO, 2009; BORBA; SCHWARTZ;
dadora outras funções, como ser mãe, esposa KANTORSKI, 2008). Enfim, nos relatos dos cui-
e dona de casa, comprometendo o autocui- dadores, houve inúmeras barreiras a serem
dado e o lazer, podendo resultar em adoe- enfrentadas para que se pudesse oferecer as-
cimento físico e transtorno mental (CARDOSO; sistência adequada ao familiar com transtor-
GALERA, 2011; BANDEIRA; CALZAVARA; CASTRO, 2008). Nos no mental. No estudo de Quadros et al. (2012)
estudos de Marcon et al. (2012) e Silva, Passos e foi encontrada prevalência de transtornos
Barreto (2012), a maioria dos cuidadores tinha psiquiátricos menores, cerca de 50% a mais
renda própria. nos familiares que referiram sobrecarga,
Na discussão acerca do impacto do cuidado comparando-se àqueles que não relataram.
na vida diária dos cuidadores, percebeu-se Nesse contexto, vale ressaltar que, mesmo
que os aspectos relacionados aos comporta- sobrecarregados, os cuidadores também sen-
mentos problemáticos do familiar com trans- tiram satisfação em cuidar de seus familia-
torno mental, ocupação e suas dificuldades res (SILVA; SADIGURSKY, 2008; TEIXEIRA, 2005; BARROSO;
em desempenhar as atividades de vida diária BANDEIRA; NASCIMENTO, 2009).
foram discutidos como importantes fatores De acordo com a análise, a sobrecarga
da sobrecarga sentida por esses cuidadores muitas vezes se apresentou ao acumular
(CARDOSO; GALERA; VIEIRA, 2012), justificados, pos- papéis e em ter pouca ou nenhuma pessoa no
sivelmente, pela dependência e atenção em auxílio do cuidado, na supervisão dos com-
tempo integral que o familiar com transtorno portamentos problemáticos e nas atividades
mental necessita diariamente. de vida diária, no impacto financeiro e nos
As implicações relacionadas ao cuidar no custos. O desgaste psicológico e a presença
domicílio também foram representadas como de sintomas depressivos no cuidador tiveram
principal causa de doenças físicas, de deses- relação com a sobrecarga do cuidar de fa-
truturação da família e solidão dos cuidado- miliares com transtorno mental (SILVA; PASSOS;
res (SILVA; PASSOS; BARRETO, 2012; CARDOSO; GALERA, 2011; BARRETO, 2012; SILVA; SADIGURSKY, 2008; SOARES; MUNARI,
SILVA; SADIGURSKY, 2008; BORBA; SCHWARTZ; KANTORSKI, 2007; MARCON et al., 2012; BANDEIRA; CALZAVARA; CASTRO,
2008). Discorreu-se acerca das limitações em Muitas vezes, esses fenômenos resulta-
2008).
termos de oportunidade de emprego, lazer e ram da ausência de instrumentos que orien-
descanso dos cuidadores (SILVA; SADIGURSKY, 2008; tassem e proporcionassem o necessário para
TEIXEIRA, 2005); do desgaste emocional como re- o melhor desempenho da atividade do cuidar.
sultado de sobrecarrega por não terem com
quem dividir a responsabilidade de cuidar Importância da abordagem do cuida-
(ESTEVAM et al., 2011; SANT’ANA et al., 2011; BORBA; dor quando há presença do transtor-
SCHWARTZ; KANTORSKI, 2008); da dificuldade em no mental
reconhecer a doença frente à apresentação
dos sintomas e a culpabilização pelo estado Foi objetivo da temática discutir a visão dos
clínico (PEREIRA; PEREIRA JUNIOR, 2003); por não cuidadores quanto ao tratamento dos fami-
saberem como agir (GRANDI; WAIDMAN, 2011); do liares nos serviços de saúde mental e abordar
sentimento de insegurança e medo (SANT’ANA a educação em saúde como desafio desses
et al., 2011; COLVERO; IDE; ROLIM, 2004); do número de serviços. Gonçalves e Sena (2001) retrataram
tarefas a cargo do cuidador, perturbação que que as relações do processo de cuidar de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 996-1007, OUT-DEZ 2014


Sobrecarga do cuidador familiar de pessoas com transtorno mental: uma revisão integrativa 1003

pessoas com transtorno mental na família mental (BARROSO; BANDEIRA; NASCIMENTO, 2009);
ocorrem entre o cuidador, a família, os ser- como também a realização de trabalhos em
viços de saúde mental e a comunidade, e por grupos com cuidadores, visando à troca de
esse motivo o destaque nesta pesquisa. experiências, à discussão das dificuldades e
Caps, Serviço de Atendimento possibilidades da convivência com o proble-
Ambulatorial, Centros de Referência em ma, bem como às atividades comunitárias
Saúde Mental, Serviços de Psicologia de que busquem a integração entre os cuida-
Hospital Escola, Hospital Dia e Atenção dores e familiares com transtorno mental
Básica foram cenários de saúde mental en- (MARCON et al., 2012).
volvidos nas publicações estudadas. Estes A terapia familiar em ambiente hospitalar
serviços oportunizam o acompanhamento com cuidadores e pessoas com transtorno
do tratamento de pessoas com transtorno mental foi abordada como estratégia de in-
mental e se refletem como apoio ao acompa- tervenção individual e grupal de importante
nhamento dos cuidadores. papel no bem-estar familiar, pois reduziu
Dentre as publicações que relacionaram o isolamento e a ansiedade pelas desinfor-
os cuidadores aos serviços de saúde mental, mações do cuidador, e diminuiu as chances
o estudo de Barroso, Bandeira e Nascimento de recaída do quadro clínico e melhorou a
(2009) discutiu a necessidade de obter in- adesão à terapêutica da pessoa em acompa-
formações sobre a definição de transtorno nhamento. A abordagem às famílias no am-
mental, pois havia cuidadores que indica- biente hospitalar foi considerada importante,
ram que o mais difícil, ao cuidar do familiar pois determina o momento e o planejamento
com transtorno mental, era não saber como da alta hospitalar, já que a discussão proposta
agir durante as crises nem como lidar com está baseada na continuidade do tratamento
os comportamentos problemáticos. Esses no domicílio (FELÍCIO; ALMEIDA, 2008).
resultados apontam para a necessidade de Segundo Cardoso e Galera (2011), os ser-
os profissionais de saúde mental fornecerem viços de saúde mental precisam oferecer
informações e orientações mais específicas e assistência à saúde que contemple cuidados
adequadas aos familiares. para identificar e aliviar a sobrecarga dos
Diante desse contexto, para que se tenha cuidadores, além de promover treinamento
convívio harmonioso entre as pessoas com de habilidades que estimulem a autonomia
transtorno mental e seus cuidadores, é e a reabilitação psicossocial de pessoas com
preciso reflexão sobre a seguinte questão: transtorno mental. É importante acolher o
como o cuidador, no ambiente domiciliar, sofrimento do cuidador e minimizar sua so-
entende o transtorno mental e o seu familiar brecarga emocional por meio da oferta de
com transtorno mental ligado aos fatores espaços acolhedores e facilitadores de ações
sociais, econômicos, políticos e culturais, e trocas de experiências entre os cuidadores,
para que não se dê um convívio de exclusão? para compartilharem dúvidas, angústias e
Na leitura realizada, muitas publicações alegrias, em movimento de proximidade com
partiram dessa questão para demonstrar que o tratamento e em direção à autonomia das
a família precisa de orientação e suporte dos pessoas com transtorno mental e à diminui-
serviços de saúde, porém pouco foi publicado ção do sofrimento das famílias (SOARES; MUNARI,
sobre os mecanismos para estas estratégias. 2007).
Foram discutidas e necessárias intervenções Os próprios cuidadores percebem a neces-
educativas junto aos familiares, visando in- sidade dessas intervenções em suas relações
tensificar o conhecimento sobre os trans- de vida para minimizar a sobrecarga. No
tornos mentais, seu tratamento e as formas estudo de Barroso, Bandeira e Nascimento
de lidar com o familiar com transtorno (2009), os cuidadores foram à busca de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 996-1007, OUT-DEZ 2014


1004 ELOIA, S. C.; OLIVEIRA, E. N.; ELOIA, S. M. C.; LOMEO, R. C.; PARENTE, J. R. F.

estratégias de enfrentamento, como a reali- Mais uma vez, se destaca o quanto se


zação de atividades de lazer dentro de casa precisa explorar essa área. Assim, sugere-se
e atividades religiosas, entre outras. A reli- a implantação de serviços de saúde mental
gião e a espiritualidade têm sido considera- cada vez mais próximos da realidade social
das fatores importante de apoio à família do na qual estão inseridos, compreendendo o
portador de transtorno mental na atualidade contexto socioeconômico e cultural das fa-
(SILVA; PASSOS; BARRETO, 2012; ESTEVAM et al., 2011). mílias que precisam de sua atuação; e de pro-
Tendo ciência das dificuldades dos fami- fissionais de saúde provedores de cuidado de
liares junto às novas propostas de cuidado forma dinâmica, que proporcionem medidas
em saúde mental, pode-se inferir que é ne- que interfiram em melhorias de qualidade de
cessário o amadurecimento deste modelo vida.
assistencial e de ações de suporte às famílias, Apesar de, para muitos autores, a de-
pois se reconhece que, quanto mais apoiada a sinstitucionalização e a reforma psiquiátri-
família se sente, mais satisfeito com a atenção ca serem movimentos recentes, já se sabe
recebida o paciente fica (NAGAOKA; FUREGATO; que os familiares precisam de suporte para
SANTOS, 2011). que melhor se conviva na sociedade com
Esses resultados remetem à relevância de os demais familiares e o próprio serviço de
os serviços de saúde mental desenvolverem saúde, podendo-se inferir que a reinserção
ações com intuito de incluir os cuidadores no social depende da qualidade dos serviços e
foco do cuidado da equipe interdisciplinar. do entendimento da família como agente de
No contexto, a revisão integrativa possibili- cuidado. A sobrecarga familiar esteve pre-
tou verificar desafios ligados à prática pro- sente nas relações cotidianas de cuidadores
fissional em saúde mental na Atenção Básica. que, muitas vezes, pela preocupação, pela
Os profissionais devem ser capazes de suprir obrigação social, pelo carinho, cuidam dos
as necessidades das famílias e incluí-las no familiares com transtorno mental e se sobre-
processo de cuidado. Também se identificou carregam, esquecendo-se de cuidar de si ou
a necessidade de formação e preparação dos não tendo expectativas futuras de mudança.
profissionais para esta área (ESTEVAM et al., 2011). A identificação do impacto do cuidado foi
o passo inicial desta pesquisa. Novos estudos,
portanto, serão necessários para melhor
Conclusões compreender a atenção que este fenômeno
necessita para a consolidação da reforma
Esta produção de conhecimento teve o pro- psiquiátrica e a determinação do melhor
pósito de discutir a sobrecarga do cuidador suporte a essas pessoas.
de pessoas com transtorno mental. Foi apre- Este estudo possui limitações no que se
sentado o conhecimento atual das publica- refere à possibilidade de generalização dos
ções nas principais bases de dados acerca seus resultados, tendo em vista que a amostra
deste fenômeno e se percebeu o quanto é foi selecionada por três bases de dados e
preciso avançar. Avançar no conhecimen- publicações somente da língua portugue-
to, na participação, no desenvolvimento sa. Necessita melhor aprofundamento na
de atividades e práticas que capacitem os temática por se delimitar como estudo de
profissionais de saúde para serviços mais revisão, sendo relevantes demais pesquisas
qualificados. Precisa-se de profissionais sen- no contexto de saúde mental. Experiências
síveis a esse contexto e do amadurecimento quanto às estratégias de convivência e inter-
de políticas públicas que focalizem a tarefa venção devem ser temáticas futuras de novos
do cuidador no domicílio, como também em estudos, traduzindo resultados específicos e
instituições que acompanham os familiares. terapias de abordagem às famílias. s

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 996-1007, OUT-DEZ 2014


Sobrecarga do cuidador familiar de pessoas com transtorno mental: uma revisão integrativa 1005

Referências

BANDEIRA, M.; CALZAVARA, M. G. P.; CASTRO, da USP, São Paulo, v. 45, n. 3, p. 687-691, jun. 2011.
I. Estudo de validade da escala de sobrecarga de Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/reeusp/
familiares cuidadores de pacientes psiquiátricos. Jornal v45n3/v45n3a20.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2013.
Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 57, n. 2, p. 98-
104, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ CARDOSO, L.; GALERA, S. A. F.; VIEIRA, M. V.
jbpsiq/v57n2/a03v57n2.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2013. O cuidador e a sobrecarga do cuidado à saúde de
pacientes egressos de internação psiquiátrica. Acta
BANDEIRA, M.; CALZAVARA, M. G. P.; VARELLA, A. Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 25, n. 4, p. 517-
A. B. Escala de sobrecarga dos familiares de pacientes 523, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/
psiquiátricos: adaptação transcultural para o Brasil ape/v25n4/06.pdf>. Acesso em: 05 fev. 2013.
(FBIS-BR). Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de
Janeiro, v. 54, n. 3, p. 206-214, jul./set. 2005. COLVERO, L. A.; IDE, C. A. C.; ROLIM, M. A. Família
e doença mental: a difícil convivência com a diferença.
BARROS, M. M. M.; JORGE, M. S. B.; PINTO, A. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v.
G. A. Prática de saúde mental na Rede de Atenção 38, n. 2, p. 197-205. Disponível em: <http://www.scielo.
Psicossocial: a produção do cuidado e as tecnologias br/pdf/reeusp/v38n2/11.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2014.
das relações no discurso do sujeito coletivo. Revista de
APS, Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 72-83, jan./mar. 2010. ESTEVAM, M. M. et al. Convivendo com transtorno
mental: perspectiva de familiares sobre atenção básica.
BARROSO, S. M.; BANDEIRA, M.; NASCIMENTO, Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v.
E. Fatores preditores da sobrecarga subjetiva de 45, n. 3, p. 679-686, 2011. Disponível em: <http://www.
familiares de pacientes psiquiátricos atendidos na scielo.br/pdf/reeusp/v45n3/v45n3a19.pdf>. Acesso em:
rede pública de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. 18 fev. 2014.
Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 9,
p. 1957-1968, set. 2009. Disponível em: <http://www. FELÍCIO, J. L.; ALMEIDA, D. V. Abordagem
scielosp.org/pdf/csp/v25n9/10.pdf>. Acesso em: 20 fev. terapêutica às famílias na reabilitação de pacientes
2013. internados em hospitais psiquiátricos: relato de
experiência. Mundo da Saúde, São Paulo, v. 32, n. 2, p.
BORBA, L. O.; SCHWARTZ, E.; KANTORSKI, L. P. 248-253, abr./jun. 2008. Disponível em: <http://www.
A sobrecarga da família que convive com a realidade saocamilo-sp.br/pdf/mundo_saude/59/248a253.pdf>.
do transtorno mental. Acta Paulista de Enfermagem, Acesso em: 02 mar. 2013.
São Paulo, v. 21, n. 4, p. 588-594, 2008. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ape/v21n4/a09v21n4.pdf>. GALVÃO, C. M.; SAWADA, N. O.; TREVISAN, M.
Acesso em: 19 fev. 2014. A. Revisão sistemática: recurso que proporciona a
incorporação das evidências na prática da enfermagem.
BRASIL. Ministério da Saúde Brasil. Secretaria de Revista Latino-Americana de Enfermagem, São Paulo,
Atenção à Saúde, Coordenação Geral de Saúde Mental. v. 12, n. 3, p. 549-556, maio/jun. 2004. Disponível em:
Reforma Psiquiátrica e política de saúde mental no <http://www.scielo.br/pdf/rlae/v12n3/v12n3a14.pdf>.
Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional Acesso em: 05 fev. 2013.
de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos
depois de Caracas. Brasília, DF: Ministério da Saúde; GONÇALVES, A. M.; SENA, R. R. A reforma
2005. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ psiquiátrica no Brasil: contextualização e reflexos
publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf>. Acesso sobre o cuidado com o doente mental na família.
em: 18 jan. 2013. Revista Latino-Americano de Enfermagem, São Paulo,
v. 9, n. 2, p. 48-55, mar. 2001. Disponível em: <http://
CARDOSO, L.; GALERA, S. A. F. O cuidado em saúde www.scielo.br/pdf/rlae/v9n2/11514.pdf>. Acesso em:
mental na atualidade. Revista da Escola de Enfermagem 20 jan. 2013.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 996-1007, OUT-DEZ 2014


1006 ELOIA, S. C.; OLIVEIRA, E. N.; ELOIA, S. M. C.; LOMEO, R. C.; PARENTE, J. R. F.

GRANDI, A. L.; WAIDMAN, M. A. P. Convivência e reeusp/v45n4/v45n4a17.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2014.


rotina da família atendida em CAPS. Ciência, Cuidado,
Saúde, Maringá, v. 10, n. 4, p. 763-772, 2011. PEREIRA, M. A. O.; PEREIRA JUNIOR, A. Transtorno
mental: dificuldades enfrentadas pela família. Revista
JORGE, M. S. B. et al. Representações sociais da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 37, n. 4,
das famílias e dos usuários sobre participação de p. 92-100, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/
pessoas com transtorno mental. Revista da Escola de pdf/reeusp/v37n4/11.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2014.
Enfermagem da USP, São Paulo, v. 42, n. 1, p. 135-142,
mar. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ POMPEO, D. A.; ROSSI, L. A.; GALVÃO, C. M. Revisão
reeusp/v42n1/18.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2013. integrativa: etapa inicial do processo de validação
de diagnóstico de enfermagem. Acta Paulista de
MACHADO, J. C. Rede de atenção à saúde mental: Enfermagem, São Paulo, v. 22, n. 4, p. 434-438, 2009.
representações dos profissionais da Estratégia de Saúde Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ape/v22n4/
da Família no contexto da Reforma Psiquiátrica. 2011. a14v22n4.pdf>. Acesso em: 05 fev. 2013.
152 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem e Saúde)
– Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Jequié, QUADROS, L. C. M. et al. Transtornos psiquiátricos
2011. menores em cuidadores familiares de usuários de
Centros de Atenção Psicossocial do Sul do Brasil.
MARCON, S. R. et al. Qualidade de vida e sintomas Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 28, n. 1,
depressivos entre cuidadores e dependentes de drogas. p. 95-103, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/
Revista Latino-Americana de Enfermagem, São Paulo, pdf/csp/v28n1/10.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2014.
v. 20, n. 1, p. 167-174, jan./fev. 2012. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rlae/v20n1/pt_22.pdf>. SANT’ANA, M. M. et al. O significado de ser familiar
Acesso em: 15 fev. 2013. cuidador do portador de transtorno mental. Texto e
Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 50-
MELLO, J. H. R. O que é ser familiar de doente mental? 58. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tce/
Informação Psiquiátrica, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, 1997. v20n1/06.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2014.

MELMAN, J. Família e doença mental: repensando a SILVA, C. F.; PASSOS, V. M. A.; BARRETO, S. M.
relação entre profissionais de saúde e familiares. São Frequência e repercussão da sobrecarga de cuidadoras
Paulo: Escrituras, 2002. familiares de idosos com demência. Revista Brasileira
de Geriatria e Gerontologia, Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p.
MENDES, K. D. S.; SILVEIRA, R. C. C. P.; GALVÃO, 707-731, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/
C. M. Revisão integrativa: método de pesquisa para a pdf/rbgg/v15n4/11.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2014.
incorporação de evidências na saúde e na enfermagem.
Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 17, n. SILVA, M. B. C.; SADIGURSKY, D. Representações
4, p. 758-764, out./dez. 2008. Disponível em: <http:// sociais sobre o cuidar do doente mental no domicílio.
www.scielo.br/pdf/tce/v17n4/18.pdf>. Acesso em: 05 Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 61, n.
fev. 2013. 4, p. 428-434, jul./ago. 2008. Disponível em: <http://
www.scielo.br/pdf/reben/v61n4/05.pdf>. Acesso em:
NAGAOKA, A. P.; FUREGATO, A. R. F.; SANTOS, J. 20 jan. 2013.
L. F. Usuários de um centro de atenção psicossocial e
sua vivência com a doença mental. Revista da Escola SOARES, C. B.; MUNARI, D. B. Considerações
de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 45, n. 4, p. 912- acerca da sobrecarga em familiares de pessoas com
917, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ transtornos mentais. Ciência, Cuidado e Saúde,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 996-1007, OUT-DEZ 2014


Sobrecarga do cuidador familiar de pessoas com transtorno mental: uma revisão integrativa 1007

Maringá, v. 6, n. 3, p. 357-362, jul./set. 2007. Disponível TEIXEIRA, M. B. Qualidade de vida de familiares


em: <http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/ cuidadores do doente esquizofrênico. Revista Brasileira
CiencCuidSaude/article/view/4024/2717>. Acesso em: de Enfermagem, Brasília, DF, v. 58, n. 2, p. 171-175, mar./
21 jan. 2013. abr. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/
reben/v58n2/a08.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2013.
TAUB, A.; ANDREOLI, S. B.; BERTOLUCCI, P. H.
Dementia caregiver burden: reliability of the Brazilian
Recebido para publicação em julho de 2013
version of the Zarit caregivers burden interview. Versão final em abril de 2014
Conflito de interesses: inexistente
Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p.
Suporte financeiro: não houve
372-376, mar./abr. 2004.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 996-1007, OUT-DEZ 2014


1008 Resenha | Critical review

REGO, W. L.; PINZANI, A. Vozes do Bolsa


Família: autonomia, dinheiro e cidadania. São
Paulo: Unesp, 2013.
Luciana da Silva Alcantara1

Ao romper com a lacuna de estudos voltados ações que reduzem os efeitos da pobreza
ao conhecimento do cotidiano, da subjetivi- por meio da caridade, em ‘favor’ daqueles
dade e dos hábitos das mães beneficiárias do que, desprovidos dos bens essenciais, encon-
Programa Bolsa Família (PBF) — programa tram-se alijados dos meios de provimento
de transferência direta de renda que bene- da própria subsistência. Por fim, silenciou
ficia famílias em situação de pobreza e de os pobres, que internalizaram uma imagem
extrema pobreza no Brasil — o livro Vozes depreciativa, impossibilitando a percepção
do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e destes enquanto sujeitos de direitos, o que se
cidadania, de Walquiria Domingues Leão reflete na internalização da humilhação e na
Rego, da Unicamp, e Alessandro Pinzani, da retroalimentação da reprodução da pobreza.
Universidade Federal de Santa Catarina, traz O PBF, como sinalizam os autores, trans-
como contribuição inicial a consideração de fere a responsabilidade de atenuação da
que as recorrentes análises macroeconômi- pobreza à esfera governamental, saindo do
cas referentes ao PBF não foram acompa- campo da caridade pessoal para a esfera
nhadas pela desmitificação dos estereótipos da responsabilidade institucional. Conduz
atribuídos aos seus usuários. à cidadania substantiva ao reconhecer a
A hipótese norteadora do estudo analisa dívida social para com os beneficiários do
o predomínio da visão liberal na sociedade Programa. Difere do assistencialismo tradi-
brasileira, que conduziu à histórica culpa- cional ao assegurar regularmente o atendi-
bilização dos pobres pelo seu insucesso em mento de necessidades básicas, sem as quais
adquirir os bens produzidos socialmente, qualquer direito à cidadania não pode ser
atribuindo-lhes estereótipos pejorativos, consolidado. Exige, ainda, condicionalidades
desaguando em um contexto de resignação a serem cumpridas, a exemplo da contrapar-
ou violência. Tal estigmatização produziu tida da frequência escolar, incentivando a
várias consequências políticas, como o veto redução do trabalho infantil, a repetência e
1 Doutoranda em Serviço ou limitação das políticas voltadas à reforma a baixa escolaridade nas famílias beneficia-
Social pela Universidade dos arranjos estruturais que ratificam a das, fatores que repercutem na pobreza ge-
do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj) – Rio de Janeiro pobreza, arranjos esses que resultam da pri- racional. Os autores sinalizam, ainda, que a
(RJ), Brasil. Assistente vação histórica do acesso à terra, à moradia, transferência de dinheiro aumenta a respon-
social no Instituto Nacional
de Câncer José Alencar às possibilidades de capacitação educacional sabilidade individual e confere uma autono-
Gomes da Silva (Inca) – Rio e de participação política da grande maioria mia mínima, antes desconhecida pelas mães
de Janeiro (RJ), Brasil.
lalcantara@inca.gov.br da população brasileira. Legitimou, ainda, beneficiárias.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 1008-1009, Out-Dez 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140086
Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania 1009

Rego e Pinzani utilizam como referência autores destacam no estudo que a preocupa-
a teoria de Georg Simmel ao referirem-se ção das entrevistadas com o planejamento
ao poder liberatório do controle do dinhei- do gasto está voltada à garantia da alimenta-
ro, no que tange às relações de dependência ção dos filhos, roupas e material escolar, cujo
pessoal, por natureza opressora. Estimulam, valor é muitas vezes complementado por
assim, a construção de subjetividades autô- outras fontes de renda, que com o decorrer
nomas. Os autores rejeitam, sobremaneira, a do tempo, permitem a compra de móveis e
concepção liberal, que defende a transferên- eletrodomésticos básicos.
cia de renda monetária sem a contrapartida Rego e Pinzani afirmam ainda que a am-
da complementaridade de outras políticas pliação dos direitos de cidadania seria re-
sociais voltadas ao desenvolvimento regio- forçada se as prefeituras não limitassem sua
nal, sem as quais o processo de reversão das atuação ao cadastro das beneficiárias: ao
situações reprodutoras da pobreza não avan- contrário, deveriam criar canais de interlo-
çará. De forma coerente, os autores debru- cução e controle social do Programa. Afinal,
çam-se sobre a reflexão de que, sem escolas a proposta do PBF não assegura a solução do
de qualidade, sem estratégias públicas que problema da pobreza, nem tem por enfoque
aumentem o acesso a serviços públicos e direto a formação de uma cultura de cida-
o apoio a atividades econômicas locais, as dania ativa, embora atue como pressuposto
condicionalidades impostas pelo Programa indispensável para ambas. Nesse sentido,
não lograrão efeitos inclusivos, ao contrário, cabe salientar que uma grande contribui-
verificar-se-á a reprodução em larga escala ção da obra em análise é a reflexão sobre
da manutenção da situação de extrema o efeito possibilitado, ainda que indireta-
precariedade monetária e social. Como res- mente, pelo PBF: não ocorre a superação
saltam os autores, qualquer solução diferen- do círculo vicioso da pobreza, mas inicia‑se
te da distribuição de uma renda monetária um círculo virtuoso de direitos, em que a ra-
poderia ser classificada como assistencialis- tificação de um direito dá margem a outras
ta e até paternalista. reivindicações de direitos. Aborda-se, com
As entrevistas realizadas com 150 benefi- propriedade, que existe um caminho para
ciárias, cuja vida foi acompanhada no inter- o reconhecimento da legitimidade das
valo de cinco anos em algumas das regiões reivindicações.
mais pobres do Brasil e, tradicionalmente, A renda monetária, recebida através do
mais desassistidas pelo Estado brasilei- PBF, pode criar e ampliar espaços pessoais
ro, revelaram que a renda proveniente do de liberdade dos sujeitos, trazendo-lhes,
Programa é a primeira experiência de renda consequentemente, mais possibilidades de
regular para muitas delas. Tais relatos per- autonomia da vida em geral. O fato de ser
mitem inferir que a experiência altera a sub- insuficiente para intervir na totalidade dos
jetividade e inicia a superação da resignação dilemas enfrentados pelos beneficiários não
para com as dificuldades historicamente vi- nos permite ignorar, como enfatizam Rego
venciadas e reproduzidas, em cuja esperan- e Pinzani, suas possibilidades de se tornar
ça de reversão concentra-se a ampliação da uma consistente política de formação de ci-
escolaridade dos filhos e que estes tenham, dadãos, se complementada por um conjunto
consequentemente, uma vida mais estrutu- mais amplo de políticas públicas que tenham
rada. Isso significa que, para muitas dessas por escopo a formação da cidadania demo-
famílias, há a possibilidade de planejamento crática no Brasil. Esperança dos usuários,
do uso do dinheiro e de formação de econo- expressa na contribuição valiosa dos autores
mias para gastos maiores a partir do PBF. Os da obra. s

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 1008-1009, Out-Dez 2014


1010 Resenha | Critical review

CHAUI-BERLINCK, L. Novos andarilhos


do bem: caminhos do Acompanhamento
Terapêutico. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012.
Andrés Eduardo Aguirre Antúnez1

A tese de Luciana Chaui-Berlinck, da qual no espaço e no tempo, na história da contem-


nasce o livro Novos Andarilhos do Bem: cami- poraneidade, não muito longínqua, do amigo
nhos do Acompanhamento Terapêutico, me qualificado ao acompanhante terapêutico. O
lembra a letra da música Nos bailes da vida de capítulo 2 se refere a uma breve revisão de
Milton Nascimento: “Com a roupa encharca- literatura sobre o AT, no qual a autora dá
da e a alma repleta de chão, todo artista tem de voz aos autores escolhidos para facilitar ao
ir aonde o povo está”. Parafraseando a mesma, leitor o caminho investigativo que, naquele
o livro publicado mostra que ela mesma vai ao momento, realizou: uma prática em cons-
encontro dos Acompanhantes Terapêuticos tituição, acompanhamento a pessoas com
(ATs) – e esses vão aonde os pacientes estão! diagnósticos variados, proximidade com
– para nos apresentar facetas sui generis dessa a orientação psicanalítica, inserção do AT
modalidade de encontro terapêutico na práti- como clínica-social, discussões sobre o uso
ca-teórica do Acompanhamento Terapêutico de técnicas e da ética, circulação do AT e seu
(AT). paciente, e caráter interdisciplinar.
Como trabalho científico, utilizou proce- O AT vai ao encontro do sofrimento do
dimentos para analisar os discursos dos ATs, outro, que, ao ser encontrado, se transforma
revelando como é a subjetivação do AT e o em seu sofrimento, já não é apenas do outro,
que é o AT na fala dos próprios ATs. Assim, está entre o acompanhado e o acompanhante,
é um trabalho que contribui para uma refle- nessa terceira área – campo do bem. Luciana
xão crítica dessa modalidade clínica e social afirma que o AT busca despertar anseios,
de atendimento, ou melhor, modalidade de pois não é só falta o que vive o acompanha-
acompanhamento – acompanhar conversan- do, ele tem história, tem desejos e é capaz de
do, acompanhar no silêncio, acompanhar na exercer atividade criativa no mundo. O AT
espera, atento ao gesto e ao discurso. nos coloca face a face com a precariedade
O livro Novos andarilhos do bem traz em humana, com a solidão, de modo que uns
si novidade ao campo do AT, em seu peculiar ATs trabalham mais na perspectiva do fazer,
1Doutor em Psiquiatria caminhar que desvela o bem. No capítulo 1, outros do pensar e ainda há aqueles que têm
e Psicologia Médica pela
Universidade Federal de Luciana mostra as vicissitudes do movimen- como estilo o tocar.
São Paulo (Unifesp) – São to antipsiquiátrico e a batalha antimanico- A análise institucional do discurso pro-
Paulo (SP), Brasil. Professor
Associado da Universidade mial como tendo sido o campo privilegiado posta no capítulo 3 vai além de um estudo
de São Paulo (USP) – São no qual nasce o acompanhamento terapêuti- do discurso verbal e da estratégia de pen-
Paulo (SP), Brasil.
antunez@usp.br co. Esse capítulo auxilia o leitor a se localizar samento que organizou a princípio sua

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 1010-1013, Out-Dez 2014 DOI: 10.5935/0103-1104.20140087
Novos andarilhos do bem: caminhos do Acompanhamento Terapêutico 1011

investigação; prepara terreno para contem- positivo diante de possíveis invasões a que
plar o modo de dizer dos ATs, o discurso estava submetido, de modo que sua ação de
do corpo e do silêncio que esse capítulo não isolamento era, no fundo, um sinal de prote-
revela. Luciana elabora um trabalho baseado ção. O perigo é o AT reproduzir tais invasões.
em roteiro de entrevista que indica seus inte- Assim, esse livro mostra que o trabalho do
resses e sua intencionalidade. Para compre- AT é de uma complexidade impressionante,
ender o que faz um AT em um dia, e como muito além de um simples trabalho de apoio,
o faz, bem como as marcas deixadas pelos suporte ou retaguarda em saúde mental. Tal
encontros, o percurso profissional, as teorias trabalho tem que estar no trânsito entre o
que fundamentam o AT, com quem dialoga acompanhado e a sua família, entre os acom-
e como entende sua profissão, a autora ela- panhados e a equipe de saúde mental.
borou questões que mostram a abertura e a Uma terapeuta ocupacional acompanhou
curiosidade diante daqueles que agem nesse um paciente que queria cortar o cabelo, mas
campo social, questões muito próximas tinha medo que lhe cortassem a cabeça. Ao
àqueles que necessitam partilhar o pão (cum ser acompanhado, não entrou mais em de-
Panis). sespero. Há formas de estar só, uma é aquela
Após esse caminho inicial entramos no da solidão essencial e absoluta a que todos
“quarto do AT” no capítulo 4: o objetivo, o estamos sujeitos, mas, no campo do AT, estar
subjetivo e o AT. Aqui encontramos a essên- só e bem acompanhado transforma a relação
cia do livro, o aposento mais belo do AT. O consigo e com o mundo.
leitor visitará como o paciente é objetivado A vulnerabilidade do AT não está apenas
no discurso de alguns ATs, as influências das na indeterminação de técnicas que orientam
ideologias psiquiátricas e, para além delas, a o fazer e a tomada de decisão, mas na própria
demanda familiar, a resistência do paciente, vulnerabilidade humana, da qual muitos não
como ele é subjetivado no discurso dos ATs: querem sequer se aproximar – face precária
os lugares, os fazeres, os riscos, as potên- da vida em si, que o AT põe em cena para
cias, as dificuldades, as facilidades, o corpo, olharmos para nós mesmos revisitando o
as diversas formações de origem dos ATs, nosso modo de cuidar de alguém. Alguns se
o campo do AT nas falas dos próprios ATs, apoiarão excessivamente em teorias, outros
os encontros, as dificuldades, as vivências, o em condutas irrefletidas, mas, mesmo nesses
caráter terapêutico, o AT e a reforma psiqui- sustentos, a precariedade e vulnerabilida-
átrica, as propostas e as metas. de humanas palpitam nas profundezas do
Verificamos nesse livro que o AT precisa sentido da existência da pessoa humana e
ter flexibilidade para transitar ao lado do são assim companhias da vida comunitária.
outro – nem à frente, nem atrás, mas ao lado. É comum o relato de que o AT está fora
Aonde o outro o levar, não só nas andanças do campo das certezas absolutas, mas não é
pelas concretas ruas de nossa cidade, ou pela isso o que ocorre na vida mesma, tal como
natureza de um parque, mas também nas an- ela é? O AT facilita aproximações, passagens
danças pelas ruas de nossa vida, de nossa na- da solidão do desamparo e desespero para a
tureza humana, no campo entre o si mesmo solidão acompanhada e amparada. O AT nos
e o não-eu. convida a refletir o encontro com o inespera-
No livro, uma enfermeira conta uma expe- do, com as dificuldades, com a abertura para
riência interessante. Trata-se do ato que um o inédito, com os dados de realidade e os
paciente tinha de se trancar em seu quarto. fantasiosos, com a hesitação que paralisa por
Para sua família isso era entendido como instantes ou de modo passageiro o seu fazer,
isolamento, mas para o paciente era um sinal pensar e sentir. Na pessoa acompanhada

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 1010-1013, Out-Dez 2014


1012 Antúnez, a. e. A.

não raras vezes encontramos um tempo sem reconhecer e acompanhar o outro em sua
devir, um espaço sem contorno. dor, sentimos que ali está também a nossa
Não podemos negar que muitos ATs são dor; não sinto a dor que o paciente sente,
jovens que se lançam na experiência, com ou mas sei o que é dor em seu aspecto univer-
sem medo de se confundir com o outro. Há sal. Assim posso como AT me aproximar do
aí uma diferenciação, podem não saber o que aspecto humano de alguém, talvez perdido,
o outro sente, mas não podemos duvidar do poucas vezes ou nunca encontrado.
que nós sentimos como AT no encontro com A importância desse livro para o campo
alguém. Sentimos com o paciente, pensamos do AT é imensa, é difícil precisar ou mensu-
com o paciente, porque acompanhamos um rar o quão frutífero é àquele que tem humil-
não-eu. O AT apreende a semelhança do dade e sabedoria para se abrir ao diferente,
outro, ao mesmo tempo em que percebe que ao outro, ao estranho. Luciana afirma que
são dois. O AT sabe dos riscos que existem o AT não é apenas uma intervenção, mas é
em qualquer relação de acompanhamento, uma vivência cuja particularidade é viver
já que viver é correr riscos e, se há AT para com o outro, o que é do outro em si. Assim,
viver os riscos da vida juntos, há uma pos- é nosso esse vivenciar, o AT é uma forma de
sibilidade que se vislumbra na vida alheia e intervenção e hospitalidade.
na do próprio AT. Seu projeto de realizar uma tese de dou-
Luciana afirma que os discursos nos toramento dando vozes aos atores principais
apresentam o corpo como mediador contra desse campo, teatro da vida real, discursos
o sofrimento psíquico. Por outro lado, se baseados em histórias reais, ampliou as
pensarmos que a vida é sofrimento, que possibilidades da produção de conheci-
sofrimento é vida, os seres humanos são a mento em Ciências Humanas para além da
revelação da vida que nenhuma linguagem Universidade – o livro alça voos imprevistos.
chegará a exprimir como de fato se vive o A tese cresceu, se desenvolveu, se transfor-
sentimento. Os ATs deflagram isso. A cada mou em livro para ser lido, usado, grifado e
acompanhar o que nos transcende (a visita citado. Que seja nossa companhia, que seja
do inédito, do mistério, do inesperado e do rabiscado, criticado, comentado e dialogado.
incompreensível da vida), ocorre um auxílio Luciana dá voz aos ATs, sejam eles terapeu-
e alimenta-se a tolerância necessária para tas ocupacionais, enfermeiros, psicólogos ou
encontros significativos. É inevitável que – profissionais da saúde. Ela investiu muito, ao
mais cedo ou mais tarde – o potencial ador- iluminar a riqueza da interdisciplinaridade,
mecido em cada pessoa comece a despertar, a riqueza e a complexidade do acompanhar
à espera de um segundo nascimento. humano.
O trabalho de Luciana nos possibilita ir Mas o que Luciana propõe não são apenas
ao encontro dos ATs, acompanhá-los no que reflexões críticas e clínicas, mas reflexões
eles têm a nos dizer e a nos ensinar. Uma políticas no campo da saúde mental. Bem
acompanhante terapêutica afirma que o AT amparada teoricamente na Psicanálise e
consegue abrir um espaço dentro de nós, na Filosofia, no campo psicopatológico e
para proporcionar um encontro, encontro no campo psiquiátrico, na realidade do AT
com a dor do paciente. Eu diria, encontro em nosso País, Luciana fomenta e estimu-
com a nossa própria dor. Só acompanha la discussões que muitos não querem ter,
quem pode se encontrar consigo mesmo; não querem ver, talvez não queiram ouvir,
quem não pode, ou ainda não se encontrou, mas quem sabe possam ler e reconhecer o
poderá atender alguém, mas não o encon- valor humano e rigoroso que tais discussões
trará, seja em seu consultório seja na rua. Ao trazem em sua essência. Seu trabalho resiste

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 1010-1013, Out-Dez 2014


Novos andarilhos do bem: caminhos do Acompanhamento Terapêutico 1013

aos domínios ideológicos que procuram sair da biblioteca universitária para chegar,
aviltar a dignidade humana, a criatividade e a de forma mais palpável e numa linguagem
reflexão crítica. Está mais próximo da comu- viva, à sociedade e à comunidade. É um dos
nidade humana do que de grupos movidos cuidados que Luciana Chaui-Berlinck tem
por narcisismos inseguros. com os cuidadores e com aqueles que são
O capítulo 5 indica uma reflexão do cuidados, para além das fronteiras das regras
caminho trilhado até este momento e toca e das normas institucionalizadas. Ela se pre-
nas transformações que o campo teve nas ocupa com uma possível perda de liberdade
últimas décadas. Em seguida, mostra em suas neste campo, desde o privado ao público.
conclusões a necessidade de uma rede social Só quem foi e é muito bem acompanhada
na dimensão subjetiva do AT e os contornos pela família e pela vida em si, como Luciana
possíveis ou não da profissão ou da área. Chauí-Berlinck, pode nos oferecer um livro
Este livro é a prova de que as teses têm que andarilho do bem na trilha do cuidado. s

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 1010-1013, Out-Dez 2014


1014 Agradecimentos | Acknowledgement

Pareceristas que atuaram em 2014

Agradecemos a todos, em especial a nossos Consultores Ad Hoc listados abaixo, que colabora-
ram no processo editorial do volume 38 da revista Saúde em Debate

Abílio da Costa-Rosa Danielle da Costa Leite Borges


Adriana Aguiar Divanise Suruagy
Adriano Maia do Santos Dolores Maria Franco Abreu
Alexandre Keusen Dora de Oliveira e Silva Porto
Alzira Oliveira Jorge Dulce Maria Senna
Ana Cleide Guedes Moreira Eduardo Maia Freese de Carvalho
Ana Luisa d’Ávila Viana Eduardo Mourão Vasconcelos
Ana Luiza Stiebler Vieira Eli Iola Gurgel Andrade
Ana Maria Costa Eliane dos Santos de Oliveira
Ana Maria Fernandes Pitta Eliane Gonçalves
Ana Maria Malik Eliete Maria Silva
Ana Reis Elisete Casotti
Ana Tereza da Silva Pereira Camargo Elizabete Ferreira Mângia
Angel Martinez Hernaez Fátima Correa Oliver
Angela Aparecida Capozzolo Fermin Roland Schramm
Angela Casanova Fernando Ferreira Pinto de Freitas
Anna Luiza Castro Fernando Sfair Kinker
Antônio José Costa Cardoso Gabriela Bittencourt Gonzalez Mosegui
Aparecida Mari Igluti Geraldo Biasoto Júnior
Áquilas Mendes Greice Maria de Souza Menezes
Ariane Patrícia Ewald Guilherme Castelo Branco
Aylene Emilia Moraes Bousquat Gustavo Matta
Beatriz Rosana Gonçalves de Oliveira Toso Helena Seidl
Benedito Carlos Cordeiro Heleno Rodrigues Correa Filho
Benilton Carlos Bezerra Junior Hugo Spinelli
Breno Augusto Souto Maior Fontes Isabel Cristina S. A. Lamarca
Carlos Botazzo Jeferson Rodrigues
Carlos Dimas Martins Ribeiro Jorge Alberto Cordón Portillo
Carlos Minayo Gomez Jorge Lyra
Carmela Morena Zigoni Pereira Jorge Umberto Béria
Catalina Eibenchutz José Augusto Cabral de Barros
Catia Oliveira José Carvalho de Noronha
Claudia Garcia Serpa Osório de Castro José Jackson Coelho Sampaio
Cláudia Maria Bógus José Luiz Telles de Almeida
Claudia Maria Filgueiras Penido José Sterza Justo
Claudia Maria Valete-Rosalino Joyce Mendes de Andrade Schramm
Cornelis Johannes van Stralen Juan Stuardo Yazlle Rocha
Cristiani Vieira Machado Kathie Njaine

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 1014-1015, Out-Dez 2014


Pareceristas que atuaram em 2014 1015

Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato Patrícia Serpa de Souza Batista


Ligia Giovanella Patty Fidelis de Almeida
Lilian Miranda Paulo Capel Narvai
Lucia Cristina dos Santos Rosa Paulo Frazão
Luciana Dias de Lima Pedro Gabriel Godinho Delgado
Luciane Ouriques Ferreira Pedro Paulo Freire Piani
Luis Eugênio Portela Fernandes de Souza Pierre de Paepe
Luisa Gonçalves Dutra de Oliveira Priscilla Caran Contarato
Luisa Regina Pessoa Raquel Abrantes Pego
Luiz Carlos de Oliveira Cecílio Regina Fernandes Flauzino
Luiz Carlos Hubner Moreira Regina Maria Giffoni Marsiglia
Lusiele Guaraldo Renato Peixoto Veras
Lygia Maria de França Pereira Ricardo Ventura Santos
Magda Vaissman Rita Duarte de Lima
Manoela de Carvalho Roberto Gondim
Marcelo Demarzo Roberto Passos Nogueira
Márcia Cristina Rodrigues Fausto Rogério Renato Silva
Márcia Guimarães de Mello Alves Ronaldo Bordin
Marcia Helena Baldani Pinto Rosa Maria Marques
Marcia Regina Car Rosana Magalhães
Marco Akermann Rosana Tereza Onocko Campos
Marcos Paulo Fonseca Corvino Rosilda Mendes
Maria Alice Pessanha de Carvalho Rubens Kon
Maria Ceci Misoczky Selma Lancman
Maria Cecília de Souza Minayo Sidnei Martins Dantas
Maria Ercília de Araújo Silvia Helena Tedesco
Maria Gabriela Monteiro Silvia Matumoto
Maria Goretti Queiroz Silvio Yasui
Maria Helena Machado Socorro Veloso
Maria Helena Magalhães de Mendonça Sonia Duarte Bittencourt
Maria Inês Carsalade Martins Sueli Gandolfi Dallan
Maria Inez Padula Anderson Suely Ferreira Deslandes
Maria Jacirema Gonçalves Suzanne Serruya
Maria Lucia Frizon Rizzotto Tatiana Wargas de Faria Baptista
Maria Salete Bessa Jorge Tereza Lyra
Marina Ferreira de Medeiros Mendes Tereza Neves
Mário Scheffer Thiago Prado
Marly Cruz Túlio Batista Franco
Miriam Thais Guterres Dias Valeria Ferreira Romano
Monica de Castro Maia Senna Vera Lúcia Edais Pepe
Monica Villela Gouvea Virgínia Alonso Hortale
Neide Tiemi Murofuse Volnei Garrafa
Nina Isabel Soalheiro Wilza Viera Villela

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 1014-1015, Out-Dez 2014


Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos

Revista Saúde em Debate Editor Científico, com tamanho entre 10 e 15 laudas. Neste for-
mato não são exigidos resumo e abstract.
Instruções aos autores para preparação
e submissão de artigos
5. Relato de experiência: descrição de experiências acadêmi-
Atualizada em dezembro de 2013 cas, assistenciais ou de extensão, com tamanho entre 10 e 12
laudas.

A Revista Saúde em Debate (RSD), criada em 1976, é uma publica- 6. Resenha: resenhas de livros de interesse para a área de políti-
ção do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), que tem como cas públicas de saúde, a critério do Conselho Editorial. Os textos
objetivo divulgar estudos, pesquisas e reflexões que contribuam para deverão apresentar uma visão geral do conteúdo da obra, de seus
o debate no campo das políticas de saúde nacionais e internacionais. pressupostos teóricos e do público a que se dirige em até três
laudas.
Política editorial
7. Documento e depoimento: trabalhos referentes a temas de
Publicada trimestralmente desde 2010, nos meses de março, junho, interesse histórico ou conjuntural, a critério do Conselho Editorial.
setembro e dezembro, é distribuída a todos os associados em situa-
ção regular com o Cebes. Além dos números regulares, a RSD publica O número máximo de laudas não inclui a folha de apresentação e
números especiais que seguem o mesmo processo de avaliação e pu- referências.
blicação dos números regulares.
Direitos autorais
A RSD aceita trabalhos inéditos sob a forma de artigos originais, en-
saios, revisão sistemática, relato de experiência, artigos de opinião, Os direitos autorais são de propriedade exclusiva da Revista, transfe-
resenhas de livros de interesse acadêmico, político e social, além de ridos por meio de Declaração de Transferência de Direitos Autorais
depoimentos e documentos. Os trabalhos devem contribuir com o assinada por todos os autores, conforme modelo disponível na página
conhecimento científico já acumulado na área. da Revista. É permitida a reprodução total ou parcial dos trabalhos
desde que identificada a fonte e a autoria.
Os trabalhos submetidos à Revista não podem ser apresentados si-
multaneamente a outro periódico, na íntegra ou parcialmente. Submissão e processo de julgamento

O Cebes não cobra taxas dos autores que submetem trabalhos à RSD. Os trabalhos devem ser submetidos exclusivamente pelo site: www.
A produção editorial da entidade é resultado de trabalho coletivo e saudeemdebate.org.br.
de apoios institucionais e individuais. A sua colaboração para que
a Revista continue sendo um espaço democrático de divulgação de Após seu cadastramento, o autor responsável pela submissão rece-
conhecimentos críticos no campo da saúde pode se dar por meio da berá login e senha. Ao submeter o texto, todos os campos obrigató-
associação ao Centro no site http://www.cebes.org.br. rios da página devem ser preenchidos com conteúdo idêntico ao do
arquivo a ser anexado.
Modalidades de trabalhos aceitos para avaliação
Fluxo dos originais submetidos à publicação
1. Artigo original: resultado final de pesquisa científica que pos-
sa ser generalizado ou replicado. O texto deve conter entre 10 e Todo original recebido pela secretaria do Cebes é submetido à análise
15 laudas. prévia. Os trabalhos não selecionados nessa etapa são recusados, e
os autores, informados por mensagem do sistema. Os trabalhos não
2. Ensaio: análise crítica sobre tema específico de relevância e conformes às normas de publicação da Revista são devolvidos aos
interesse para a conjuntura das políticas de saúde brasileira e in- autores para adequação. Antes de se enviar aos pareceristas, enca-
ternacional. O texto deve conter entre 10 e 15 laudas. minha-se o trabalho ao Conselho Editorial para avaliação de sua per-
tinência temática aos objetivos e linha editorial da Revista.
3. Revisão sistemática: revisão crítica da literatura sobre tema
atual, utilizando método de pesquisa. Objetiva responder a uma Uma vez aceitos para apreciação, os originais são encaminhados a
pergunta de relevância para a saúde, detalhando a metodologia dois membros do quadro de pareceristas da Revista, que são escolhi-
adotada. O texto deve conter entre 12 e 17 laudas. dos de acordo com o tema do trabalho e sua expertise, priorizando-se
os de estados da federação diferentes daquele dos autores. A avalia-
4. Artigo de opinião: exclusivo para autores convidados pelo ção dos trabalhos é feita pelo método duplo-cego, isto é, os nomes

Saúde Debate
Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos

dos autores permanecem em sigilo até a aprovação final do trabalho. –P


 adrão A4 (210X297mm), margem de 2,5 cm em cada um dos
Caso haja divergência de pareceres, o texto será encaminhado a um quatro lados, fonte Times New Roman tamanho 12, espaçamento
terceiro parecerista para desempate. Da mesma forma, o Conselho entre linhas de 1,5.
Editorial pode, a seu critério, emitir um terceiro parecer.
O formulário para o parecer está disponível para consulta no site da – O corpo de texto não deve conter qualquer informação que possi-
Revista. Os pareceres sempre apresentarão uma das seguintes con- bilite identificar os autores ou instituições.
clusões: (1) aceito para publicação; (2) aceito para publicação com
‘sugestões não impeditivas’; (3) reapresentar para nova avaliação – O texto pode ser escrito em português, espanhol ou inglês
depois de efetuadas as modificações sugeridas; (4) recusado para
publicação. – Respeita-se o estilo e a criatividade dos autores para a composi-
ção do texto, no entanto, deve contemplar elementos convencio-
Quando a avaliação do parecerista indicar ‘sugestões não impediti- nais como:
vas’, o parecer será enviado aos autores para correção do trabalho,
com prazo para retorno em até vinte dias. Ao retornar, o trabalho vol- • Introdução com definição clara do problema investigado e
ta a ser avaliado pelo mesmo parecerista, que terá prazo de 15 dias, justificativa.
prorrogável por mais 15 dias, para emissão do parecer final. O Editor • Métodos descritos de forma objetiva.
Científico possui plena autoridade para decidir sobre a aceitação final • Resultados e discussão podem ser apresentados juntos ou
do trabalho, bem como das alterações efetuadas. em itens separados.
• Conclusão.
No caso de solicitação para ‘reapresentar para nova avaliação de- • Evitar repetições de dados ou informações nas diferentes
pois de efetuadas as modificações sugeridas’, o trabalho deverá ser partes do texto.
reencaminhado pelo autor em no máximo dois meses. Ao fim desse
prazo, e não havendo qualquer manifestação dos autores, o trabalho – O texto completo deve conter:
será excluído do sistema.
• Folha de apresentação com o título, que deve expressar clara
Eventuais sugestões de modificações de estrutura ou de conteúdo e sucintamente o conteúdo do texto, contendo no máximo
por parte da Editoria serão previamente acordadas com os autores 15 palavras.
por meio de comunicação via site ou e-mail. Não serão admitidos • Os textos em português e espanhol devem ter título na
acréscimos ou modificações depois da aprovação final do trabalho. língua original e em inglês. Os textos em inglês devem ter
título em inglês e português.
O modelo de parecer utilizado pelo Conselho Científico está disponí- • Nome completo do(s) autor(es). Em nota de rodapé colocar
vel em: www.saudeemdebate.org.br. as informações sobre filiação institucional e titulação, ende-
reço, telefone e e-mail para contato.
Os trabalhos enviados para publicação são de total e exclusiva res- • No caso de resultado de pesquisa com financiamento, citar
ponsabilidade dos autores, não podendo exceder a cinco autores por a agência financiadora e o número do processo.
trabalho. • Resumo em português e inglês ou em espanhol e inglês,
com no máximo 700 caracteres, incluídos os espaços, no
Registro de ensaios clínicos qual fiquem claros os objetivos, o método empregado e as
principais conclusões do trabalho.
A RSD apoia as políticas para registro de ensaios clínicos da • Não são permitidas citações ou siglas no resumo, à exceção
Organização Mundial da Saúde (OMS) e do International Committee de abreviaturas reconhecidas internacionalmente.
of Medical Journal Editors (ICMJE), reconhecendo, assim, sua im- • Ao final do resumo, de três a cinco palavras-chave, utili-
portância para o registro e divulgação internacional de informações zando os termos apresentados no vocabulário estruturado
sobre ensaios clínicos. Nesse sentido, as pesquisas clínicas devem (DeCS), disponíveis em: www.decs.bvs.br. Em seguida
conter o número de identificação em um dos registros de Ensaios apresenta-se o texto.
Clínicos validados pela OMS e ICMJE, cujos endereços estão dispo-
níveis em: http://www.icmje.org. O número de identificação deverá –N
 ão utilizar notas de rodapé no texto. As marcações de notas de
constar ao final do resumo. rodapé, quando absolutamente indispensáveis, deverão ser sobres-
critas e sequenciais. Exemplo: Reforma Sanitária1.
Formatação do trabalho
– Depoimentos de sujeitos deverão ser apresentados em itálico.
– O texto deve ser digitado no programa Microsoft® Word ou com-
patível, gravado em formato doc ou docx.

Saúde Debate
Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos

– Para as palavras ou trechos do texto destacados, a critério do autor, social da saúde (nota breve sobre desigualdades em saúde como
utilizar aspas simples. Exemplo: ‘porta de entrada’. objeto de conhecimento). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33,
n. 83, p. 349-370, set./dez. 2010.
– Utilizar revisor de texto para identificar erros de ortografia e de
digitação antes de submeter à Revista. Material da internet:
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. Normas para pu-
– F iguras, gráficos e quadros devem ser enviados em arquivo de alta blicação da Revista Saúde em Debate. Disponível em: <http://www.
resolução, em preto e branco ou escala de cinza, em folhas separa- saudeemdebate.org.br/artigos/normas_publicacoes.pdf>. Aces-
das do texto, numerados e titulados corretamente, com indicações so em: 9 jun. 2010.
das unidades em que se expressam os valores e as fontes corres-
pondentes. O número de figuras, gráficos e quadros deverá ser, no Documentação obrigatória
máximo, de cinco por texto. Os arquivos devem ser submetidos
um a um, ou seja, um arquivo para cada imagem, sem identificação Os documentos relacionados a seguir deverão ser assinados e posta-
dos autores, citando apenas o titulo e a fonte do gráfico, quadro dos nos correios ou digitalizados e anexados como arquivo:
ou figura. Devem ser numerados sequencialmente, respeitando
a ordem em que aparecem no texto. Em caso de uso de fotos, os 1. Declaração de autoria e responsabilidade.
sujeitos não podem ser identificados, a menos que autorizem, por Segundo o critério de autoria do International Committee of Me-
escrito, para fins de divulgação científica. dical Journal Editors, os autores devem contemplar as seguintes
condições: a) contribuir substancialmente para a concepção e o
Exemplos de citações planejamento do trabalho ou para a análise e a interpretação dos
dados; b) contribuir significativamente na elaboração do manus-
Para as citações utilizar as normas da ABNT (NBR 10520) crito ou revisão crítica do conteúdo; c) participar da aprovação
da versão final do manuscrito. Para tal, é necessário que todos os
Citação direta autores e coautores assinem a Declaração de Autoria e de Res-
Já o grupo focal é uma “técnica de pesquisa que utiliza as sessões ponsabilidade, conforme modelo disponível em: <http://www.
grupais como um dos foros facilitadores de expressão de carac- saudeemdebate.org.br/artigos/index.php.>
terísticas psicossociológicas e culturais”. (WESTPHAL; BÓGUS;
FARIA, 1996, p. 473). 2. Conflitos de interesse
Os trabalhos encaminhados para publicação deverão conter in-
Citação indireta formação sobre a existência ou não de conflitos de interesse. Os
Segundo Foucault (2008), o neoliberalismo surge como modelo conflitos de interesse financeiros, por exemplo, não estão relacio-
de governo na Alemanha pós-nazismo, numa radicalização do nados apenas ao financiamento direto da pesquisa, mas também
liberalismo que pretende recuperar o Estado alemão a partir de ao próprio vínculo empregatício. Caso não haja conflito, inserir
nova relação Estado-mercado. a informação “Declaro que não houve conflito de interesses na
concepção deste trabalho” na folha de apresentação do artigo
Exemplos de referências será suficiente.

As referências deverão ser apresentadas no final do artigo, seguin- 3. Ética em pesquisa


do as normas da ABNT (NBR 6023). Devem ser de no máximo 20, No caso de pesquisa que envolva seres humanos nos termos do
podendo exceder quando se tratar de revisão sistemática. Abreviar inciso II da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde
sempre o nome e os sobrenomes do meio dos autores. – pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o ser hu-
mano de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes
Livro: dele, incluindo o manejo de informações ou materiais–, deverá
FLEURY, S.; LOBATO, L.V.C. (Org.). Seguridade social, cidadania e ser encaminhado documento de aprovação do Comitê de Ética
saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009. em Pesquisa (CEP) que a aprovou.

Capítulo de livro: Endereço para correspondência


FLEURY, S. Socialismo e democracia: o lugar do sujeito. In: FLEU-
RY, S.; LOBATO, L.V.C. (Org). Participação, democracia e saúde. Rio Avenida Brasil, 4.036, sala 802
de Janeiro: Cebes, 2009. CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
Tel.: (21) 3882-9140/9140
Artigo de periódico: Fax: (21) 2260-3782
ALMEIDA-FILHO, N.A. Problemática teórica da determinação E-mail: revista@saudeemdebate.org.br

Saúde Debate
Instructions to authors for preparation and submission of articles

Revista Saúde em Debate Editor. The text must contain between 10 and 15 pages. This for-
mat does not require Abstract.
Instructions to authors for preparation
and submission of articles
5. Case study: description of academic, care or extension experi-
updated on december 2013 ments. The text must contain between 10 and 12 pages.

6. Book review: review of books of interest to the field of public


The Health in Debate Review (Revista Saúde em Debate - RSD), first health policies, selected at the discretion of the Editorial Board.
printed in 1976, is a publication of the Brazilian Center for Health Stu- Texts must contain an overview of the work, its theoretical as-
dies (Centro Centro Brasileiro de Estudos de Saúde - Cebes) that aims sumptions and the public to whom it is addressed. The text must
to disseminate studies, researches and thoughts that contribute to contain up to three pages.
the debate in the field of national and international health policies.
7. Document and testimonial: work on topic of historical or
Editorial policy cyclical interest, selected at the discretion of the Editorial Board.

Published quarterly since 2010, in March, June, September and De- The maximum number of pages does not include the coversheet and
cember, a hard copy of RSD is delivered to all members up to date references.
with their fees. In addition to regular issues, RSD also publishes spe-
cial issues following the same process of assessment and publication. Copyright

RSD accepts unpublished works in the form of original articles, es- Copyrights are of exclusive property of the Review and must be trans-
says, systematized review, case studies, opinion articles, reviews of ferred through the ‘Copyright Transfer Statement’ signed by all the au-
books of academic, political and social interest, as well as testimonies thors, as model available at the Review page. The total or partial repro-
and documents. The works must contribute to the scientific knowled- duction of works is allowed since source and authorship be identified.
ge of the field.
Submission and assessment process
Works submitted to the RSD cannot be simultaneously submitted to
other journals, partially or in full. Works must be submitted exclusively through the website www.sau-
deemdebate.org.br.
Cebes does not charge fees for the submission of works to RSD. The
Center publishing output is the result of collective work and institutio- After its registration, the author responsible for submission will recei-
nal and individual supports. Contributions for allowing the Review to ve a login and password. By submitting the text, all mandatory fields
remain as a democratic forum for the dissemination of critical know- of the page must be filled in with identical content to the file to be
ledge in the health field can be made by means of joining the Center, attached.
at http://cebes.org.br.
Flow of originals submitted for publication
Modalities of work accepted for evaluation
Every original received by Cebes is subjected to prior analysis. The
work not selected in this step is refused, being the authors infor-
1. Original paper: final results of scientific research that can be med by the system message. The work that does not conform to
generalized or replicated. The text must contain between 10 and the Review publication norms are returned to the authors for ade-
15 pages. quateness. Before forwarding to reviewers, the work is sent to the
Editorial Board for assessment of its relevance to the Review goals
2. Essay: critical analysis on a particular topic of relevance and and editorial policy.
interest to the Brazilian and international health policies. The text
must contain between 10 and 15 pages. Once accepted for appraisal, the originals are forwarded to two re-
viewers, who are chosen according to their expertise on the work to-
3. Systematized review: critical review of literature on current pic, prioritizing those reviewers outside the authors’ federation states.
topic by applying a research method. It aims to answer a question The work assessment applies the blind review method, i.e., the au-
of relevance to health. The work must detail the adopted metho- thors’ names remain confidential until the work final approval.
dology. The text must contain between 12 and 17 pages. In case of divergence between reviewers, the work will be forwarded
to a third reviewer for decision. Similarly, the Editorial Board may, at
4. Opinion piece: exclusively upon invitation of the Scientific its discretion, issue a third opinion.

Saúde Debate
Instructions to authors for preparation and submission of articles

The assessment form is available at the Review website. The asses- – The style and creativity of authors as for the text composition are
sment output necessarily presents one of the following conclusions: respected, however, it must include elements such as:
(1) accepted for publication; (2) accepted for publication with ‘non-
-restrictive suggestions’; (3) resubmit for further assessment after • I ntroduction with clear definition of the problem investigated
modifications suggested; (4) rejected for publication. and its groundings.
• Objective description of the methods.
When the reviewer’s assessment concludes for ‘non-restrictive sug- •R  esults and comments can be approached in a same item or
gestions’, the opinion must be forwarded to the authors for correction separately.
of the work, which must be returned within twenty days. Upon return, • Conclusion.
the work is reassessed by the same reviewer within a period of fifteen •T  he repetition of data or information in different parts of the
days, extendable for a further fifteen days, to issuance of the final as- text must be avoided.
sessment. The Scientific Editor has full authority to decide also on the
final acceptance of the work as on the changes. – The full text must contain:

In the case of request to ‘resubmit for further assessment after modi- •C  oversheet with the title, which must express clearly and
fications suggested’, the work must be forwarded by the author within briefly the content of the text, within no more than fifteen
two months. At the end of this term, and in the absence of any mani- words.
festation by the authors, the work shall be deleted from the system. •T  exts in Portuguese and Spanish must be titled in the original
language and in English. Texts in English must be titled in En-
Any suggestions for modifications of structure or content by the Edi- glish and Portuguese.
torship will be previously agreed with the authors by means of com- •A  uthor(s) full name. The information about institutional affi-
munication via website or email. No additions or modifications will be liation and title, address, telephone number and e-mail must
received after the work final approval. be added in a footnote.
• I n the case of funding research, inform the funder.
The opinion form used by the Scientific Council is available at http:// •A  bstract in Portuguese and English, or in Spanish and English,
www.saudeemdebate.org.br. containing a maximum of 700 characters, spaces included;
the goals, method employed and main conclusions must be
The works submitted for publication are the authors’ exclusive res- clearly stated.
ponsibility and must not exceed five authors per work. •Q  uotes or acronyms are not allowed in the Abstract, with the
exception of worldwide recognized abbreviations.
Clinical trial registry •A  t the end of the Abstract, three to five keywords must be in-
serted using the terms contained in the structured vocabulary
RSD supports the policies for registration of clinical trials of the World (DeCS), available at http://decs.bvs.br. Then follows the text.
Health Organization (WHO) and the International Committee of
Medical Journal Editors (ICMJE), so recognizing their importance to – Footnotes are not allowed in the text. Footnote markings, if absolu-
the registry and international dissemination of knowledge on clinical tely necessary, must be overwritten and sequential. Example: Sani-
trials. Accordingly, clinical researches must bear the identification tary Reform1.
number in one of the Clinical Trial registries validated by WHO and
ICMJE, whose addresses are available at http://www.icmje.org. The – Testimonials must be italicized and follow the body of the text, wi-
identification number must appear at the end of the Abstract. thout indentation.

Format of work – Highlighted words or text excerpts, at the discretion of the author,
must use single quotation mark. Example: ‘gateway’.
– The text must be forwarded in Microsoft® Word or compatible sof-
tware, saved in doc or docx formats. – Spellchecking is strongly suggested so to identify misspellings and
typing mistakes before submitting the work to the Review.
– Standard A4 (210X297mm), 2.5cm margin on each side, font Times
New Roman size 12, 1.5 line spacing. – Pictures and tables must be sent in a high resolution file, black and
white or grayscale, apart from the text, numbered and titled proper-
– The text must not contain any information that identifies the au- ly, with indication of the units in which values are expressed, adding
thors or institutions. the respective sources.

– The text can be written in Portuguese, Spanish or English. – A maximum of five pictures and tables are allowed, in total, per article.

Saúde Debate
Instructions to authors for preparation and submission of articles

– Files must be submitted one by one, i.e., a file for each image, wi- Internet source
thout the identification of authors, containing just the title and the CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. Norms for submis-
source of the picture or table. sion of papers to Health in Debate Review. Available at: <http://www.
– They must be numbered sequentially in the same order they appear saudeemdebate.org.br/artigos/normas_publicacoes.pdf>. Access
in the text. on: 9 jun. 2010.

– In the case of photos, persons cannot be identified unless they autho- Mandatory documents
rize, in writing, for the purposes of scientific dissemination.
The documents listed below must be signed and posted or digitalized
Examples of quotation and attached as a file:

For guidelines on quotations, please address to the norm NBR 10520 1. Statement of authorship and responsibility
of ‘Brazilian Association of Technical Norms’ (Associação Brasileira According to the International Committee of Medical Journal Edi-
de Normas Técnicas – ABNT). tors’ authorship criteria, authors must fulfil the following condi-
tions: a) make a substantial contribution to the work design and
Direct quotation planning or to the analysis and interpretation of data; b) make a
The ‘Healthcare Operational Norm’ (Norma Operacional da Assistên- substantial contribution to the manuscripts or to the critical re-
cia à Saúde - NOAS) asserts that the ‘Regionalization Plan’ (Plano view; c) participate in the approval of the manuscript final version.
Diretor de Regionalização – PDR) “is based on the form of functio- To this end, it is necessary that the author and co-authors sign the
nal and resolving healthcare systems by means of the organization ‘Statement of Authorship and Responsibility’, as the model avai-
of state territories in regions/micro-regions and assistance modules” lable at http://www.saudeemdebate.org.br/artigos/index.php.
(BRAZIL, 2002, p.9).
2. Conflict of interests
Indirect quotation The work submitted for publication must contain information on
Breihl and Grenda (1986) noted that the health-disease process re- conflict of interests. Financial conflicts of interests, for example,
sults from a set of ascertainments that operate in a particular society, are not only strictly related to the research financing but also to
propitiating in different social groups the occurrence of perils that ari- the very nature of the employment. If there is no conflict, the in-
se in the form of profiles or patterns of illness. formation “I declare that there was no conflict of interests in the
fulfilment of this work” suffices and must appear on the cover-
Examples of references sheet.

References must be inserted at the end of the article and follow ABNT 3. Ethics in research
(NBR 6023) norms. The number of references must not exceed 20, In the case of research involving humans under the subsection II
except for the case of systematized review. Only the last name of the of Resolution 196/96 of the National Health Council – research
author is written in full, being the name and middle names abbrevia- that involves the human being, individually or collectively, directly
ted by the first letter. or indirectly, in its entirety or in part, including the handling of
information or materials –, a research approval document must
Book be forwarded by the ‘Committee of Ethics in Research’ (CEP) res-
CALFEE, R.C.; VALENCIA, R.R. APA guide to preparing manuscripts ponsible for the approval.
for journal publication. Washington: American Psychological Asso-
ciation, 1991. Mailing address

Book chapter Avenida Brasil, 4.036, sala 802


O’NEIL, J.M.; EGAN, J. Men’s and women’s gender role journeys: A CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
metaphor for healing, transition, and transformation. In: WAINRIB, Tel.: (21) 3882-9140
B.R. (ed.). Gender issues across the life cycle. New York: Springer, Fax: (21) 2260-3782
1992. p. 107-123. E-mail: revista@saudeemdebate.org.br

Journal
PETITTI D.B. et al. Blood pressure levels before dementia. American
Neurological Association, Chicago, v. 62, n. 1, p. 112-116, jan 2005.

Saúde Debate
Diagramação e editoração eletrônica
Layout and desktop publishing

Rita Loureiro
ALM Apoio à Cultura - www.apoioacultura.com.br

Capa
Cover

Mariana Ochs - www.modesign.com

Imagem de capa
Cover image

Priscila Manzini

Normalização e revisão de texto


Normalization and proofreading

Agnes Sabino (português)


Ana Karina Furginelli (inglês)
Ana Luisa Moreira Nicolino (inglês)
Angela Guimarães Castello Branco (português e inglês)
Carla de Paula (português)
Evangelina Martich (espanhol)
Frederico Azevedo (normatização)
Katia Braga de Magalhães (português e inglês)
Kauê Luiz dos Santos Gomes de Moura (português e inglês)
Luiza Nunes (normatização)
Simone Basílio (português)
Vanessa Cruz Santos (espanhol)
Wanderson Ferreira da Silva (português e inglês)

Impressão
Printing

Formato 3 Gráfica & Editora

Tiragem
Number of Copies

800 exemplares/copies

Esta revista foi impressa no Rio de Janeiro em dezembro de 2014


Capa em papel cartão supremo 250 g/m²
Miolo em papel kromma silk 80 g/m²

This publication was printed in Rio de Janeiro in December, 2014


Cover in premium card 250 g/m²
Core in kromma silk 80 g/m²

Site: www.cebes.org.br • www.saudeemdebate.org.br


E–mail: cebes@cebes.org.br • revista@saudeemdebate.org.br
Saúde em Debate: Revista do Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Cebes –
n.1 (1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde, Cebes, 2014.

v. 38. n. 103; 27,5 cm




ISSN 0103–1104

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de


Saúde, Cebes


CDD 362.1
www.cebes.org.br | www.saudeemdebate.org.br

Potrebbero piacerti anche