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DOI: 10.1590/1807-57622016.

0845

Quando a cidade “escuta vozes”:

dossiê
o que a democracia tem a aprender com a loucura

Simone Mainieri Paulon(a)

Paulon SM. When the city “hears voices”: what democracy has to learn from madness.
Interface (Botucatu). 2017; 21(63):775-86.

This essay proposes a reflection on Trata-se de um ensaio que propõe


the processes of homogenization that a reflexão acerca dos processos de
biopower imposes on the many ways of homogeneização que o biopoder
inhabiting cities, with a resultant silencing impõe às muitas formas de habitar as
of insurgent subjectivities. The article cidades, com decorrente silenciamento
draws on poststructuralist readings about de subjetividades insurgentes. Articula
madness, which is understood as a radical leituras pós-estruturalistas sobre a loucura,
experience of alterity, set against the crisis compreendida como experiência radical de
of the representative model of present alteridade, à crise do modelo representativo
politics. But contemporary cities are made na atualidade política. Mas as cidades
up of many voices. And on this point, contemporâneas são feitas de muitas
some alternatives can emerge. Seeking to vozes. E, nesse ponto, algumas alternativas
listen to what all have to say is part of the podem emergir. Buscar o que todas têm
duty of civilizing, and it can redefine and a dizer é parte da tarefa civilizatória e
expand what we have come to understand pode redefinir e ampliar o que vimos
as democracy in the current world. As modernamente entendido por democracia.
such, creating spaces in the city’s meshes Criar espaços nas malhas da cidade à
to allow for the circulation of difference circulação da diferença constitui, por isso,
represents a concrete possibility for uma possibilidade concreta de repolitização
repoliticization at a global scale of social global da prática social e pode ecoar em
practice, and it may echo in new forms of novas formas de cidadania e produção de
citizenship and the emergence of a world um mundo mais plural e acolhedor a todas
that is, at once, more plural and more singularidades.
welcoming of singularities.
Palavras-chave: Democracia. Cidades.
Keywords: Democracy. Cities. Mental Saúde Mental. Reforma Psiquiátrica.
Instituto de Psicologia,
(a)
Health. Psychiatric Reform. Citizenship. Cidadania. Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.
Rua Ramiro Barcellos,
2600, Sala 212,
Santana. Porto Alegre,
RS, Brasil. 90035-003.
simone.paulon@ufrgs.br

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QUANDO A CIDADE “ESCUTA VOZES”: O QUE A DEMOCRACIA TEM ...

Introdução

Há ou não motivo para se revoltar? Deixemos aberta a questão.


Insurge-se, é um fato: é por isso que a “subjetividade (não a dos
grandes homens, mas a de qualquer um) se introduz na história e lhe dá
seu alento”. Um delinquente arrisca sua vida contra castigos abusivos;
um louco não suporta mais estar preso e decaído; um povo recusa o
regime que o oprime. Isso não torna o primeiro inocente, não cura o
outro, e não garante ao terceiro os dias prometidos. Ninguém, aliás, é
obrigado a ser solidário a eles. Ninguém é obrigado a achar que aquelas
vozes confusas cantam melhor do que as outras e falam da essência
do verdadeiro. “Basta que elas existam e que tenham contra elas tudo
o que se obstina em fazê-las calar, para que faça sentido escutá-las e
buscar o que elas querem dizer”.1 (p. 80, destaques da autora)

As cidades contemporâneas são feitas de muitas vozes. Buscar o que todas


têm a dizer e compreender o que Foucault denunciava como “a indignidade de
se falar pelos outros” é parte da tarefa civilizatória e pode redefinir e ampliar
o que vimos modernamente como democracia. Escutar as vozes desviantes,
dar espaço às “experiências à deriva”2, investigar demandas de segmentos
historicamente amordaçados pelo poder hegemônico constitui, por isso, uma
possibilidade concreta de contribuição das Ciências Sociais ao que Santos3 propõe
como “repolitização global da prática social” (p. 271). Este ensaio inscreve-se
como proposta reflexiva entre as contribuições possíveis às urgências sociais que
as cidades contemporâneas nos apresentam. Para tanto, parte da compreensão
de que, no silenciamento das pessoas que padecem de sofrimento psíquico, e
dos movimentos a elas associados, há toda uma história de opressões e tentativas
de controlar a loucura que extrapola a violação dos direitos à cidadania de uma
parcela específica da população(b). Por decorrência, dar ouvidos a suas “viagens”, O segmento aqui
(b)

sensibilizar os espaços públicos a suas excentricidades pode fazer ecoar “novas genericamente
oportunidades para o exercício de novas formas de democracia e de cidadania”3 designado por “loucos”,
ou, neste parágrafo,
(p. 271). Trata-se, portanto, como indicou Guattari, de explorar a potência “pessoas que padecem
inventiva de novos modos de ser e com-viver que paradoxalmente os espaços de sofrimento psíquico”,
faz referência à parcela
urbanos complexos comportam; afinal, “Uma ordem objetiva ‘mutante’ pode da população que, por
nascer do caos atual de nossas cidades e também uma nova poesia, uma nova decorrência de um
diagnóstico psiquiátrico,
arte de viver”4 (p. 175). em tempos anteriores
Remontar esse percurso de silenciamento dos loucos pode nos ajudar na tarefa às legislações da
aqui proposta de atualização das formas de exclusão que limitam a democracia Reforma Psiquiátrica,
teriam como único
e excluem o dissonante da composição de um tecido social mais plástico e destino o asilamento.
enriquecido do diverso. Quando as portas dos já esvaziados leprosários no século A equivalência dessas
subjetividades desviantes
XVII abriram-se para recolher desviantes de todas as ordens que infestavam a “doentes mentais” é
as crescentes cidades com sua mundanidade insuportável à ordem burguesa, tema de ampla análise
nas obras de Foucault 5-9
um longo processo de higienização dos espaços públicos estava apenas se e será debatida a seguir.
anunciando. A violência social contra o radical diferente, que tomaria a forma Para as finalidades deste
institucional de enclausuramento da loucura, afirmar-se-ia soberana por mais artigo, importa ressaltar
que, na atualidade,
de três longos séculos. Ao analisar os efeitos dessa “grande internação”5 (p. 9), há uma tendência a
Foucault5 alerta que os valores e as imagens associados à personagem do leproso considerar os usuários
de drogas ilícitas,
permaneceriam, de algum modo, vinculados ao louco; pois “[...] é o sentido principalmente crack,
dessa exclusão, a importância no grupo social dessa figura insistente e temida que como os novos monstros
sociais, ou os outsiders,
não se põe de lado sem se traçar à sua volta um círculo sagrado” (p. 9). a serem prioritariamente
Mas a expulsão e silenciamento dessas vozes desarrazoadas das cidades não normatizados10-11.
evitaria que a humanidade tivesse que se enfrentar, de algum modo, com sua

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própria complexidade subjetiva. “Pois se existe razão, é justamente na aceitação

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desse círculo contínuo da sabedoria e da loucura, é na clara consciência de sua
reciprocidade e de sua impossível partilha”5 (p. 39). O que se perderia com esse
processo de enclausuramento da loucura? Que destino teriam tais pluralidades
humanas quando cerceadas do convívio sob a égide da razão? O que as cidades
fariam para “con(?)-viver” com esse “vertiginoso desatino do mundo e medíocre
ridículo dos homens”5 (p. 18) que o louco apresenta?
Em recente investigação acerca dos desafios da desinstitucionalização em
Portugal, o grupo de pesquisadores introduz a apresentação dos resultados
encontrados afirmando que “a doença mental é um dos temas que mais
interpela as sociedades quanto à sua capacidade de lidar com a diferença e com
o incomum”6 (p. 9), o que faz deste um importante analisador social, mais do
que um assunto para especialistas. Assim entendê-lo, entretanto, implica outros
enfrentamentos que também extrapolam, em muito, os limites disciplinares que
ainda tentam circunscrever toda lógica de segregação atrelada ao poder
psiquiátrico hegemônico no campo da Saúde Mental a um mero problema de Saúde.
Apostando em outra direção e alinhado ao enunciado foucaultiano com o qual
abrimos este texto em sua afirmação de que a história é feita na composição de
subjetividades insurgentes, quer-se aqui afirmar que as vozes loucas, sentenciadas
ao confinamento, têm algo a dizer à democracia contemporânea. Trata-se, nessa
medida, de uma luta por direitos mais ampla do que aquela que os movimentos
de reforma psiquiátrica e mesmo de Saúde Coletiva têm empreendido em âmbito
internacional. Trata-se, também, de uma questão de cidadania que não se reduz
aos direitos de um segmento restrito que padece de certo tipo de adoecimento.
Como diz Boaventura dos Santos3 ao referir a necessidade de um pensamento
heterotópico, quer-se aqui reforçar a urgência de repor para a atualidade uma
“luta civilizacional por padrões alternativos de sociabilidade e de transformação
social” (p. 342).
A um modo guiado “pela mão de Alice”(c), este artigo aponta a possibilidade
do diálogo com a desrazão que o acolhimento à loucura oferece ao constituir-
(c)
Título de projeto de se em um dispositivo para transformação de saberes em direção a uma
investigação “Alice: sociedade mais plural e justa, afinado aos princípios ético-políticos das reformas
espelhos estranhos,
lições imprevistas”, psiquiátricas dos países a que se destinam. Para fazê-lo, situar-se-á brevemente a
coordenado pelo lógica de segregação da loucura entre as constelações sociopolíticas sintomáticas
professor Boaventura
Santos na Universidade do capitalismo financeiro para, em seguida, localizar os desafios que se colocam
de Coimbra. No Brasil, às práticas emancipadoras. O intuito será apontar em que medida a loucura,
publicado sob o título
“Pela mão de Alice: o
quando não enclausurada, pode ajudar a pensar a vida urbana e a crise mundial
social e o político na pós- da democracia representativa, especialmente evidenciada no atual momento da
modernidade”3 política brasileira.

Da lógica do capital à loucura segregada

No asilo, desenvolvem-se dispositivos pelos quais a palavra é desarticulada até


não poder transformar-se em grito. A forma “grito” é-lhes tornada inacessível.
O indizível enraíza-se no corpo. E um silêncio sem sombra faz-se matéria com o
corpo7. (p. 230)

Um dos legados do projeto genealógico foucaultiano demostra como


a Medicina social, calcada em princípios higienistas, serviu ao capitalismo,
desenvolvendo dispositivos de poder sobre o corpo. Tomado como objeto de
normatização e normalização para controle e melhoria da saúde da população,
o corpo é progressivamente investido nas relações de poder, tornando-se uma

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realidade biopolítica. Ao atuar não mais como o poder soberano no sentido de “fazer morrer ou deixar
viver”, o biopoder prolonga os efeitos do poder disciplinar segundo a nova fórmula do “fazer viver e
deixar morrer”. De alcance mais vasto, portanto, que o poder soberano, suas tecnologias têm como
alvo o ser humano como ser vivo: “A vida em seu conjunto passa a ser objeto de preocupação do
Estado, por meio da intervenção médica”8 (p. 158).
Ao analisar o surgimento, a partir do século XVIII, de uma Medicina de Estado, Foucault a
identifica como fundamental ao funcionamento do mercantilismo crescente e garantia da majoração
da população produtiva. É assim que a vida individual e coletiva torna-se objeto de práticas de
normalização, definindo uma “polícia médica”8, cujo poder político exercia-se “colocando os indivíduos
uns ao lado dos outros, isolando-os, individualizando-os, vigiando-os, analisando o estado de saúde de
cada um, [...] fixando assim a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado9 (p. 89).
Atualizando tais modelos de Atenção à Saúde, estabelecem-se muitos paralelos: formas de cuidado
hierarquizadas, prescrições tutelares, supermedicalização, processos de trabalho centrados no médico,
tratamentos morais. A operação biopolítica de transformar profissionais de saúde em vigilantes
guardiães de corpos dóceis data de mais de três séculos e tem suas raízes nas configurações de
saber-poder exigidas em cada período do capitalismo. Como assinala Desviat12 ao iniciar avaliação do
“Panorama Internacional da Reforma Psiquiátrica” com dados que apontam a desigualdade de renda
no planeta, “[...] la salud no solo es esencial para el bienestar individual, sino que también lo es para el
crecimiento económico y la reducción de la pobreza en los países” (p. 4616).
Nesse sentido, a operação meticulosamente demostrada por Foucault5,9 de transformação da
desrazão em doença mental foi apenas um dos desdobramentos a que o desenvolvimento do poder
disciplinar levou a sociedade moderna. Ao fazer da loucura um problema de saúde e do poder
psiquiátrico uma de suas ferramentas, o tratamento moral dispensado aos desarrazoados evidencia-se
como poder normalizador sobre os modos de vida nas cidades. Inscreve-se, pois, entre as configurações
de poder forjadas no seio da modernidade, cujas estruturas de controle extrapolam, em muito, o
restrito campo da saúde.
Seguindo semelhante análise, Torre e Amarante13 demonstram que a forma de produção de saberes
e do exercício do poder sobre os sujeitos na modernidade opera o surgimento do sujeito da razão,
enquanto afirmação da lógica cartesiana de um sujeito sadio igualado a “dono de si” e do universo. A
loucura é o seu contraponto, seu negativo; por isso, “[...] é capturada como sujeito da desrazão” (p.
74). Pelbart14 faz equivalente leitura ao compreender que o sujeito alienado e, mais tarde, definido por
doente mental, no imaginário do século das luzes, representa “o avesso do sujeito moderno” (p. 47),
já que, segundo o autor, “Sanidade significa ordem, hierarquia, totalização, supremacia organizativa da
consciência individual, do gênio. A loucura sobrevém quando esta hierarquia é subvertida” (p. 47).
Essa percepção é ainda enfatizada pelo pesquisador da Reforma Psiquiátrica brasileira, Paulo
Amarante15, que remonta às condições de possibilidade para exclusão do louco nas cidades e identifica
que “A doença não é a condição única, nem a condição objetiva do ser humano que está doente,
ao mesmo tempo em que o aspecto em que se encontra o doente é produzido pela sociedade que o
rejeita e pela psiquiatria que o rege”15 (p. 75).
Na injunção dos saberes modernos que se conjugam em torno de esconjurar tudo que escape
à narcísica fantasia iluminista de um indivíduo dono de si e de seu universo, a Psiquiatria cumpre
apenas um útil papel. Representando o que Foucault5 considerou tão somente um capítulo da história
da loucura, o saber psiquiátrico se instaura soberano no século de proliferação dos manicômios e
afirma seu poder científico-policialesco a favor de uma espécie de limpeza das cidades, livrando-as de
qualquer heterogeneidade.
Daí o desafio de pensarmos um contraponto à lógica segregacionista que invade o século XXI
assumindo formas menos concretas do que os muros manicomiais, mas não menos invasivas e
docilizantes dos corpos como demonstram as estratégias moralizantes e normatizadoras, amplamente
utilizadas em serviços abertos. Enfrentá-la requer novas ferramentas não apenas metodológicas, mas
fundamentalmente ético-políticas e, portanto, conceituais. Para tanto, repensar as cidades está entre
as urgências de quem quer pensar a loucura de forma alinhada com nosso tempo, como sugerido por
Pelbart16, para quem seria necessário:

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[...] voltar a pensar a cidade como um universo dissonante e pluralista, mundo do

dossiê
perspectivismo nietzschiano onde já não se trata de múltiplos pontos de vista sobre a mesma
coexistência de cidadãos, mas múltiplas cidades em cada ponto de vista, unidos por sua
distância e ressoando por suas divergências. Em vez do homem unidimensional e cosmopolita,
detectar a cada esquina os forjadores de pluriversos, de multimundos16. (p. 48)

Tomar a cidade para reinventar a polis

Situada a segregação da loucura como estratégia de normatização subjetiva no âmbito das formas
de controle que o capitalismo vem utilizando, pode-se compreender os movimentos de reforma
sanitária e psiquiátrica para além de um problema afeito a um setor ou relacionado a uma ou outra
nação. Tal entendimento comparece em grande parte das produções científicas dessa área6,12,17 e indica
a pertinência de que os movimentos de reforma psiquiátrica que se pretendam efetivos se engajem
em lutas sociais mais amplas e reformem-se enquanto movimentos reformistas. Dito de outro modo,
para cumprir a máxima basagliana de afirmação da “liberdade terapêutica”, há de se politizar os
movimentos sociais que embalam e sustentam muitas das reformas em curso. A politização aqui diz
respeito à concepção defendida por Santos3, que “significa identificar relações de poder e imaginar
formas práticas de as transformar em relações de autoridade partilhada” (p. 271).
Um movimento emancipador no campo da Saúde Mental sustentado nesta diretriz ético-
política teria uma importante contribuição a dar naquilo que o sociólogo português tem defendido
como necessária passagem de um paradigma dominante para o paradigma emergente. Na mesma
obra supracitada, ao afirmar a necessidade dessa nova ecologia de saberes para a invenção de
uma democracia ecossocialista, ele explica que “As coligações a favor do paradigma emergente
são possíveis na exacta medida em que a eles aderem, uma a uma, às diferentes dimensões da
subjectividade dos indivíduos e grupos sociais”3 (p. 345-346).
É nessa dimensão de uma nova ecologia de saberes que a loucura vista em sua peculiar
dimensão de “avesso da razão” pode trazer aos espaços públicos algo que sistemática, ideológica
e progressivamente veio deles sendo extirpado: as vozes da diferença. Não é simplesmente uma
questão terapêutica para aqueles que padecem de sofrimento mental (ainda que também o seja!).
O direito à loucura circular na cidade é também o direito às cidades conviverem com muitas forças
que compõem as subjetividades e o dever de todo estado democrático de criar espaços possíveis
para que essas diferenças circulem livremente. Porque, entre os desafios que precisamos enfrentar na
construção de uma nova política, alerta Santos18, é necessária uma ecologia de saberes suficientemente
ampla para acolher “aspirações improferíveis” (p. 52). O autor assinala, entretanto, que elas assim se
tornaram não porque não tivessem o que dizer, mas porque, depois de séculos de opressão, já não há
linguagem, ousadia, palavras que deem conta daquilo que foi por tanto tempo emudecido. Mas ele
também lembra: o silêncio é o resultado do silenciamento: “[...] esse é um dos desafios mais fortes
que temos: como fazer o silêncio falar de uma maneira que produza autonomia e não a reprodução de
silenciamento?” (p. 55).
Trata-se, é claro, de um profundo e persistente processo de desinstitucionalização da loucura que,
como defendemos em outro trabalho19, não pode ser confundido com desospitalização, afinal: “[...]
se as instituições inscrevem-se nos jogos de saber-poder determinantes dos processos do desejo de
um tempo datado historicamente, não cabe entendê-las como alheias ou estranhas aos projetos que
traçamos para nossas vidas” (p. 185).
Desinstitucionalizar, nessa perspectiva, implica um denso trabalho de crítica e revisão daquilo que
das instituições nos constitui subjetivamente, integra nossos modos de viver e desejar e demanda
transformações.
Nesse ponto, a potência de desterritorialização que a loucura apresenta articula-se à urgência de
uma epistemologia contra-hegemônica que ajude a pensar e a organizar novas formas e exercícios de
cidadania coletiva3. Ao caracterizar uma “Sociologia das ausências” que predomina na racionalidade
ocidental das Ciências Sociais, Santos18 apresenta várias “monoculturas” que desqualificam os
conhecimentos diversos para afirmar o hegemônico como única verdade admissível. Entre elas está

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a “monocultura do saber e do rigor” (p. 29), que só crê no saber científico, e a “monocultura da
naturalização das diferenças” (p. 30), por meio da qual todo diferente é inferiorizado na hierarquia
social “por natureza”. Explorar, portanto, a potência crítica e perturbadora que a loucura traz em si
como um dispositivo para a transição do paradigma moderno ao emergente fornece algumas pistas
aos esforços teóricos que se fazem necessários no sentido de intensificar a democracia. Ainda segundo
o sociólogo, tais esforços devem incluir, reunidas no sentido da transformação da prática social: “[...]
uma ‘nova teoria da democracia’ que permita reconstruir o conceito de cidadania, uma ‘nova teoria
da subjetividade” que permita reconstruir o conceito de sujeito, e uma “nova teoria da emancipação’
[...]”18. (p. 270)

Des-lo(u)car a cidade, reinventar a política

As cidades de nossos dias, assim como as do passado, são territórios de fecundos conflitos,
experimentações, lugar onde se produz a face do diverso, do estranho, do familiar, do
estrangeiro. Local ao mesmo tempo de fabricação de práticas para acolhê-los, dar corpo às suas
faces ou dissipá-los20. (p. 23)

Nesta via de mão dupla, em que a cidade se abre à diferença radical da loucura e o louco tem a
possibilidade de inventar modos de viver e circular na cidade, já que não mais enclausurado, novos
desafios se apresentam. Afinal, como alerta Baptista20, as cidades não são espaços de convivência
harmônica, apenas, de modos hegemônicos de subjetivação. São territórios prenhes de conflitos, tão
múltiplos e contraditórios quanto são os modos de viver que as habitam.
Por isso, o conceito de território vem recebendo atenção no campo da saúde coletiva, entendido
como território vivo, repleto de existências e de histórias de vida, no qual se dá a produção de saúde e
a emergência de novas subjetividades. Nessa perspectiva, a contribuição do geógrafo brasileiro Milton
Santos21 é indispensável, pois, para ele:

O território é o chão e mais a população [...], o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da
vida, sobre os quais ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo, entender que
se está falando em território usado, utilizado por uma dada população. (p. 96)

A inserção territorial dos serviços de saúde, em contraponto à lógica hospitalocêntrica, focada nos
especialismos, tem-se orientado nesse conceito que, em seu sentido ampliado, comparece em vários
documentos e legislações internacionais da saúde mental e no planejamento das políticas públicas22-25.
Ao dialogar com outras áreas do conhecimento, Milton Santos26 traz a ideia de que o território
geográfico é uma instância social, assim como a economia, a cultura e a política, indispensável para o
entendimento do mundo presente, que se organiza na relação entre o global e o local.

É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto de análise social [...] a
interdependência universal dos lugares é a nova realidade do território26. (p. 255)

O conceito de território, assim, torna-se diferencial a um modelo de atenção em saúde


que compreenda a importância de compor um paradigma emergente e inventar junto com as
subjetividades insurgentes seus modos singulares possíveis de viver no contexto comunitário. É
essa a perspectiva do cuidado territorializado tão fundamental à tessitura de uma rede de atenção
psicossocial, como hoje inscrita na política nacional brasileira para essa área, cujas diretrizes incluem,
por exemplo, o: “[...] desenvolvimento de atividades no território, que favoreça a inclusão social com
vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania”25.
A fim de se considerar os modos de organização e articulação próprios das populações, a
territorialização do cuidado, na concepção que vem sendo incorporada às políticas públicas de saúde
no Brasil: “[...] implica a recusa de atribuir legitimidade apenas ao saber técnico e de anular os
repertórios de saberes dos usuários, dos familiares e das pessoas do território”27 (p. 199).

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Depreende-se daí que a invenção de novos modos de habitar e viver as cidades não está

dossiê
dissociada da criação de estratégias e dispositivos que permitam maior porosidade ao tecido urbano,
tornando-o suficientemente sensível às forças instituintes, aos desvarios incabíveis às homogeneidades
massificadas. É esse o sentido que nos parece enriquecedor à cultura democrática, se pensarmos que
a ampliação de potenciais pontos de acolhimento à loucura possam transpor as barreiras sanitárias,
constituindo redes afetivas de conversações28 nas quais o diálogo e o convívio com o diverso ganhem
espaços na cidade. A compreensão da relação entre plasticidade cultural e ganhos civilizatórios,
entre os muitos modos possíveis de se viver a vida e a grandeza de uma sociedade que é capaz de
acolhê-los sem discriminações, torna-se neste ponto fundamental. É esse o sentido pedagógico que a
singularidade do louco pode apresentar às subjetividades massificadas de nossas modernas cidades;
um sentido que transborda as barreiras sanitárias, porque extrapola as demandas das pessoas que
sofrem ou estão próximas àqueles que sofrem diretamente com algum transtorno psíquico. Tal como
expresso pelo sanitarista Sérgio Arouca em sua clássica afirmação de que a Reforma Sanitária29, mais
do que um novo Sistema de Saúde propunha ao país um “processo civilizatório”, a perspectiva do
cuidado em liberdade promulgada pela Reforma Psiquiátrica anuncia a possibilidade da constituição de
culturas mais afeitas à realidade dos humanos. Tem-se, assim, uma realidade que não é homogênea,
mas mutante e inventiva4, como os indivíduos e as cidades.
Dito de outro modo, o que as legislações de Saúde e Direitos Humanos induzem nossas cidades a
fazerem, quando propõem transformar o modo de atenção asilar em Saúde Mental para um cuidado
em rede psicossocial, é alinharem-se a um tempo em que se tornou incontornável, se não “com-
viver”, no mínimo confrontar-se com a existência desses radicais diferentes que já não podem ficar
confinados em espaços a eles antes destinados. Lembrando a expressão que refere a loucura como
“ausência de obra”5 (p. 529), no sentido de “obra” como conjunto de prescrições capturantes e
alienantes instituídas socialmente, abre-se, aí, como acena o filósofo da História da Loucura, um
interessante vazio: “[...] um tempo de silêncio, uma questão sem resposta, provoca um dilaceramento
sem reconciliação onde o mundo é obrigado a interrogar-se” (p. 530).
Confrontar a cidade moderna, planejada (ou pretensamente planejável) com o caos que ela
produz é um modo de jogá-la ao “vazio de obra”, instigá-la a defrontar-se com os restos humanos
que também a constituem. Apesar de a constituírem, desde o século XVIII, com as crescentes práticas
higienistas até os mais refinados dispositivos de controle de que o biopoder se vale no contemporâneo
– como a hipermedicalização e os padrões tirânicos de estética ou de padronização da saúde “perfeita”
–, a cidade insiste em virar as costas a tudo que quebre sua patética fantasia de homogeneidade.
Como romper tal silenciamento? Como borrar as paisagens esquadrinhadas por linhas horizontais
e verticais, entre avenidas e prédios, para traçar outros planos de subjetivação? O que fazer para
transversalizar os espaços estriados das duras arquiteturas montadas para grandes e silenciosas
maiorias? No questionamento das formas enrijecidas que vão tomando conta de nossos espaços
urbanos, encontro uma proposição transgressora na filosofia da diferença a subsidiar nossas reflexões:

Mesmo a cidade mais estriada secreta espaços lisos: habitar a cidade como nômade, ou
troglodita. Às vezes não bastam movimentos, de velocidade ou de lentidão, para recriar um
espaço liso. Evidentemente os espaços lisos, por si só não são libertadores. Mas é neles que a
luta muda, se desloca, e que a vida reconstitui seus desafios, afronta novos obstáculos, inventa
novos andamentos, modifica os adversários. Jamais acreditar que um espaço liso basta para nos
salvar30. (p. 214)

Nessa perspectiva de mudar a luta para inventar novos andamentos que fluidifiquem os
movimentos nas cidades, Deleuze e Guattari apontam a pista metodológica de criação de espaços lisos
como linhas de fuga aos estriamentos, verticalizações endurecedoras dos modos de vida urbana. Para
os autores, espaços estriados correspondem àqueles demarcados pelas linhas duras do Estado, que são
segmentados por formas fixas – verticalidades e horizontalidades ordenadas que limitam movimentos
estranhos – e que constrangem experimentações existenciais incabíveis às sedentárias formas de
vida instituídas. Já os espaços lisos, livres das segmentações institucionais, definem-se como uma
“zona de indiscernibilidade própria ao ‘devir’”30 (p. 197). Nos espaços lisos, os pontos são definidos

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QUANDO A CIDADE “ESCUTA VOZES”: O QUE A DEMOCRACIA TEM ...

pelos trajetos, enquanto o estriamento é que determina quais os pontos a serem


percorridos por um trajeto desenhado a priori.
Seguindo a linha da reflexão que emerge da necessidade de afrontar os
obstáculos impostos pelo espaço estriado, os esquizoanalistas evocam a figura
das máquinas de guerra para compor estratégias de resistência aos segmentos
estatizados e afirmam ser possível “colocar a máquina de guerra a serviço da paz.
Mas esta operação não passa pelo aparelho de Estado, ao contrário, ela exprime
uma última metamorfose da máquina de guerra, e se realiza em espaço liso”30 (p.
199).
Em um momento da história em que regimes democráticos arduamente
conquistados se veem ameaçados sob o predomínio de tecnologias biopolíticas
que constrangem os povos às segmentações do capital, pensar dispositivos de
resistência que possam perfurar as aparentes homogeneidades monolíticas das
formas de organização política dadas parece ser uma urgência que a nós se
apresenta. A urgência da invenção de máquinas de guerra desterritorializantes do
Estado, macro e micropoliticamente concebido, incluindo o Estado em nós, impõe-
se com ainda maior clareza quando nos debruçamos sobre os acontecimentos
políticos atuais da jovem democracia brasileira.
O arrastado e juridicamente criticado processo de impeachment(d), que retirou (d)
Em nota oficial
emitida no dia 1º de
a segunda de quatro presidentes da república eleitos por voto direto desde que setembro de 2016, logo
o Brasil conquistou o direito de eleger desse modo seu chefe maior, após os 21 após o afastamento
da presidente Dilma
anos de ditadura militar, indica, no mínimo, a fragilidade de nossas estruturas Rousseff pelo Senado, a
democráticas. Importa lembrar, ainda, que, em tese, tais estruturas democráticas Comissão Interamericana
de Direitos Humanos
foram constituídas para garantir a estabilidade da representação política da (CIDH), que faz parte
diversidade que compõe a maioria da população do país. da Organização dos
O estudo das democracias contemporâneas, elucidado pelo pensamento de Estados Americanos
(OEA), “expressa
Hart e Negri32, ajuda-nos a perceber quão distantes nos encontramos de uma sua preocupação
experiência constituída de democracia. Apesar de isso ser válido não apenas para frente às denúncias
sobre irregularidades,
a realidade no Brasil, mas da grande maioria de regimes ditos democráticos do arbitrariedade e
mundo, a conjuntura política brasileira vive uma excepcionalidade que torna ainda ausência de garantias
do devido processo
mais evidente a análise dos filósofos. de impedimento”. As
A representação, como solução inventada para tornar o governo de muitos em suspeitas levantadas
governo de todos e para ampliar ao âmbito do Estado-Nação o que se praticava em relação à garantia
de defesa nas etapas
na polis, tem progressivamente evidenciado sua insuficiência frente aos problemas do procedimento do
políticos atuais, colocados em uma sociedade globalizada, caracterizada pelo processo, segundo o
comunicado, assumem
poder volatizado e em rede, a que os autores citados chamaram de “Império especial relevância
global”. Para os teóricos críticos do capitalismo avançado de nossa era, vivemos para esta comissão
internacional, na medida
em um estado de guerra generalizada, que gera, por sua vez, um estado de em que dizem respeito
exceção permanente, cuja consequência é a suspensão da democracia32 (p. 39). não só aos direitos
Na mesma linha crítica e fazendo uma análise dos movimentos insurgentes humanos de uma
pessoa, mas também
que têm eclodido no mundo desde a primavera árabe, o grupo de pensadores às democracias latino-
contemporâneos que assina seus textos sob o sugestivo codinome de “Comitê americanas, por se tratar
de uma chefe de Estado
Invisível”33 alerta que vivemos uma época em que “Os dirigentes caminham entre eleita por voto popular31.
abismos” (p. 12). Para os analistas de inspiração anárquica, o desafio de governar
na era das redes é fundamentalmente o “desafio de assegurar a interconexão
dos homens, dos objetos e das máquinas” (p. 126) de forma a produzir “uma
democracia conectada, participativa e transparente” (p. 123). Tomando o advento
da internet como “maior experimento envolvendo anarquia da história” (p. 123),
afirmam uma utopia da cidade conectada e sustentam, na análise dos movimentos
insurgentes pipocando em todo planeta por motivações iniciais bem diversas, que
as pessoas estão protestando contra modelos devassados de governar:

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Paulon SM

Elas perderam a fé no governo e nas outras instituições centralizadas

dossiê
do poder... Não há nenhuma justificativa viável para que um sistema
democrático limite a participação dos cidadãos ao simples ato de votar.
[...] As mesmas tecnologias que nos permitem trabalhar a distância
juntos criam a esperança de que nós poderemos nos governar melhor33.
(p. 124)

O desafio é justamente porque a cidade da elite global, como denominada


por Guattari em “Mil Platôs”30, é desmembrada e satelizada pelo capitalismo
por todos os cantos. Já não se trata de uma grande e localizável metrópole
primeiro mundista em que se visualiza o poder financeiro nos grandes símbolos
a se fazerem alvos diletos e fáceis ao terrorismo também globalizado. A cidade
do neocapitalismo também capilarizou-se em fluxos de poder velozes e voláteis.
Exige, por isso, novas tecnologias de gestão, que podem tanto reproduzir e se
render à homogeneização planetária dos equipamentos urbanos contemporâneos
quanto fazer frente a ela, explorando a potência heterogênea e a pluralidade de
movimentos de circulação que, paradoxalmente, também constituem a cidade.
Afinal, como esclarece Pelbart16: “A forma-cidade é escape, exterioridade,
dispersão, a forma-Estado é totalização, interioridade, estratificação. Isso significa
que a cidade luta contra o Estado. Mas também contra o capitalismo, com o qual
pretendem identificá-la, num jogo complexo” (p. 46).
Ao lançar o desafio de se pensar uma cidade símbolo do possível, convocando
arquitetos à criação de uma espécie de “Gaia Ciência no Urbanismo”, o filósofo
propõe a pergunta: “Como defender uma cidade subjetiva que aponte para
uma subjetividade ressingularizada, porém não segregativa?” (p. 47). Como não
se armar, defendendo-se até os dentes, a partir do território existencial que se
acredita ser e que não admite outros tantos territórios em agenciamento? Rir do
fascista em nós, esvaziá-lo e fazê-lo suportar o susto que a experiência radical da
alteridade nos coloca parece fundamental em tempos de políticas que insistem
em afirmar a impossibilidade do encontro.
Nesse sentido, o mal-estar trazido pela loucura, sempre em um plano que nos
força a esgarçar os territórios instituídos, retorna aqui com sua virtual potência
(e)
Personagem
de criação! “Tudo que é imaginário tem, existe, é!” dispara Estamira(e), em sua
retratada em desvairada lucidez retirada dos escombros humanos despejados no lixão em que
documentário se ergueu soberana e de onde aprendeu a filosofar sobre os destinos do lixo e da
cinematográfico que
leva seu nome, do humanidade que o produz. “Eu sou a beira do mundo”, ela exclama convincente.
diretor Marcos Prado, “Esta – Mira”! Revirando lixos urbanos e encontrando vidas nos restos de todos
que recebeu 33
prêmios nacionais e
nós (que somos nós?!). Estamira revira, junto, nossos “gostos de moralidade” e
internacionais, acerca da provoca indagações sobre o que nos tornamos.
história real de uma louca A potência heterogênea que a cidade subjetiva nos apresenta não é somente
que foge dos hospícios
do Rio de Janeiro para se dos loucos ou dos artistas. Há cidades invisíveis que se escondem em cada
tornar catadora de lixo encontro. Há universos que se abrem à medida que acreditamos ser mais além
no aterro sanitário de
Gramacho34. de nós mesmos, revirando-nos do avesso, em uma experiência que flerta com a
loucura em sua dimensão criativa e produtora de mais mundos.
Para além de criar mundos, é necessário ter a coragem do cego para se
equilibrar na escuridão, arriscar caminhar pelo desconhecido que nos compõe
e interroga, não com o intuito de criar respostas e logo fechar as feridas que se
abrem, mas para ir além do que se via até o momento que antecedeu à criação.
As dissonâncias e pluralidades subjetivas imanentes, ao enlouquecer, não estão
aí para serem formatadas por um bloco homogêneo que as institui em uma nova
tecnologia a ser comercializada e saqueada no que tem de potência desviante.
O enlouquecer um pouco mais a cidade, o deixar o louco contaminar os espaços

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QUANDO A CIDADE “ESCUTA VOZES”: O QUE A DEMOCRACIA TEM ...

estriados, apostando em encontros fora da órbita, servem-nos para produzir descontinuidades


nas cidades tão pré-fabricas e fadadas a girarem em um caminho ensimesmado. São suspiros que
fazem com que nosso corpo não exploda com a pressão advinda dos mecanismos de controle e de
apagamento das singularidades.
É reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço, como
escrevera Calvino35 ao enaltecer as cidades invisíveis em sua potência de diferir das cidades cada dia
mais cinzentas a que tanto nos acostumamos a viver. Enlouquecer a cidade para forjar “pluriversos”.
Eis o desafio da criação de “multimundos” em que todas as cores e vozes tenham cabimento, mundo
do diverso em que pichações como a que leio em um tapume da cidade já não cause espanto a quem
passa:
Eu tenho sérios “Poemas” Mentais...

Referências
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QUANDO A CIDADE “ESCUTA VOZES”: O QUE A DEMOCRACIA TEM ...

Paulon SM. Cuando la ciudad “escucha voces”: lo que la democracia puede aprender con
la locura. Interface (Botucatu). 2017; 21(63):775-86.
Se trata de un ensayo que propone la reflexión sobre los procesos de homogenización
que el bio-poder impone a las diversas formas de habitar las ciudades con el consecuente
silenciamiento de subjetividades insurgentes. Articula lecturas post-estructuralistas sobre
la locura, entendida como experiencia radical de alteridad, para la crisis de modelo
representativo en la actualidad política. Pero las ciudades contemporáneas son hechas
de muchas voces. En ese punto, pueden surgir algunas alternativas. Buscar lo que
todas tienen a decir forma parte de la tarea civilizatoria y puede redefinir y ampliar lo
que vimos modernamente entendido por democracia. Crear espacios en las mallas de
la ciudad para la circulación de la diferencia constituye, por lo tanto, una posibilidad
concreta de repolitización global de la práctica social y puede hacer eco en nuevas
formas de ciudadanía y producción de un mundo más plural y acogedor para todas las
singularidades.
Palabras clave: Democracia. Ciudades. Salud Mental. Reforma Psiquiátrica. Ciudadanía.

Submetido em 19/10/16. Aprovado em 15/05/17.

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