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INSCREVER-SE EM FALSO1

Jacinto Lageira

A partir da noção de obra como proposição de sentido estético, avalia as relações entre Arte e política

arte e política, argumentando contra o equívoco do realismo literalista. Do mesmo realismo e

modo, afirma que a obra de arte, enquanto metáfora, constitui-se e refere-se à realidade literalidade

sem ser essa realidade. Assim, defende o fato de que a arte se deva inscrever em falso na forma e conteúdo

realidade, isto é, assumir-se enquanto ficção. realidade e ficção

Uma ideia fortemente enraizada na arte do século 20, e igualmen- MIS-INSCRIBING | Relations between art
te muito impregnante, faz da arte o derradeiro bastião resistente and politics are assessed on the basis of
the notion that a work is an aesthetic
aos horrores sociais, guerras, conflitos políticos, a todos os even-
proposal, arguing against the ambiguity
tos condenáveis que engendram a humanidade. Novo Atlas da of literalist realism. Similarly, the author
modernidade, a arte suportaria sozinha o peso do mundo sobre states that a work of art, as a metaphor, is
seus ombros, porque só ela poderia ter esse papel em razão de al- and refers to reality without being that
reality. He therefore defends the fact
gum misterioso espírito de revolta e de revolução permanente
that art must be mis-inscribed in reality;
que supostamente a anima. Testemunha privilegiada, acusadora, in other words, be accepted as fiction. |
crítica, responsável, denunciadora, desmascarando os traidores, Art and politics, realism and literality,
atacando violentamente as ideologias funestas, qual a estátua do form and content, reality and fiction.
Comendador,2 a arte sempre retorna dos mortos para acusar os
vivos de injustiças e violências cometidas contra seus semelhantes, contra a natureza, contra as civiliza-
ções. Sem dúvida, a história das artes e a história abundam em produções artísticas que estão em conso-
nância com essa análise. Resta saber que obras. Esquece-se de que quando se resiste a um grupo, a uma
política, moral, tecno-ciência, economia ou estética, nada se faz além de resistir a outros, que também re-
sistem a nós. Donde a questão imediata: de qual direito tal arte particular, em que época e lugar, decreta-
ria ao que seria preciso resistir? E se existem ideias e ações absolutamente ilegítimas às quais a arte deve
resistir, pouco importa a forma dessa resistência; é preciso então definir em que sentido essa seria sua ta-
refa, talvez sua obrigação, espécie de imperativo categórico ao qual ela não saberia subtrair-se. Uma obra
artística nunca é neutra, ela só pode aparecer e evoluir na sociedade. Que esta última seja ou não seu as- Thomas Hirschorn
Hotel democracy, 2003
sunto, uma obra fala sempre de algo que necessariamente tem lugar na sociedade. Assim como escreve- Instalação
ram em conjunto Adolph Gottlieb, Barnett Newman e Mark Rothko: “É largamente admitido entre os pin- Art Unlimited, Art Basel
Fonte: Thomas Hirschorn.
tores o fato de que pouco importa o assunto, desde que seja bem pintado. É o academismo puro. Não há Londres: Phaidon Press,
boa pintura do nada.”3 2004

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Sem dúvida, considerar que toda criação e todo Precisamente, pode-se duvidar de que existam
material artístico nunca seja politicamente neutro hoje valores distintos em arte. Mais do que nunca,
já é uma tomada de posição política. Um primeiro por um estranho retorno devido a algum contex-
perigo, entretanto, seria crer que os embates rele- to viciado, a globalização tornou quase efetivas as
vantes da política, do político ou dos políticos se potencialidades federativas da arte evocadas a
adicionam a posteriori, quando eles já estão pre- partir da época das Luzes, transmutando as obras
sentes nas escolhas aparentemente intuitivas que em uma espécie de esperanto plástico adotado
presidem às atitudes, induzem a ações e procedi- de um lado a outro do planeta. Aprecia-se, com-
mentos plásticos. Um segundo perigo consistiria preende-se, apreende-se e interpreta-se com ra-
em tudo politizar e, assim, conceber a arte como zoável facilidade e em termos similares as obras
simples instrumento de propaganda e ideologia atuais, sejam elas australianas ou francesas, africa-
(boas ou más), servindo então exclusivamente nas ou americanas, libanesas ou mexicanas, chine-
para ilustrar. Um terceiro perigo, afinal, seria esteti- sas ou holandesas, e quaisquer que sejam os ‘mé-
zar o político, o que ocultaria as realidades sociais, diuns’ e os vocabulários artísticos. Se o impacto
morais, religiosas, individuais, éticas, os conflitos, das obras de arte atuais nunca foi tão forte em ra-
as violências ou as felicidades das realidades hu- zão de uma capacidade de difusão quantitativa-
manas. Uma fórmula de Thomas Hirschorn expri- mente rápida, não é certo termos ganhado em
me claramente a consciência desses perigos e a qualidade de reflexão. O excesso sem discerni-
dificuldade de inscrever a arte na dimensão políti- mento acaba por anular, neutralizar ou destruir o
ca: “Eu não faço arte política, faço arte politica- sentido e a forma dessas obras. O estatuto das
mente.” É verdade que se a partir de certas concep- imagens no domínio das artes – modernas ou
ções estéticas os artistas tratam essencialmente contemporâneas – parece poder responder a cer-
de formas, da imitação, da representação, do jogo tas questões concernentes à função ou ao regime
ou ainda da expressão, do belo, do sublime, do espi- genérico das obras. Posto que o imaginário, a fic-
ritual, do realismo ou do puro prazer, entre muitas ção, a invenção própria ao cinema, à fotografia, ao
outras características definidoras, e muitas vezes vídeo ou à pintura não existe verdadeiramente
antagonistas, esse de existir politicamente é ao me- numa relação frontal e imediata ao campo socio-
nos um traço que todos partilham em níveis diver- político; a distância assim tomada mostra os limi-
sos. Mesmo quando os artistas desejam criar a dis- tes. Que a arte queira ou não “transformar o mun-
tância da sociedade e se situar fora do mundo, eles do”, que ela disso seja capaz ou não, essa lacuna
não se podem subtrair nem subtrair suas obras do reivindicada poderia ser uma das modalidades de
fato de que uma démarche artística é por natureza acesso a realidades sociais e políticas mais perti-
inscrita no politikos, que a partir de sua aparição nentes, uma maneira de ver mais justa e crítica do
pública ela releva imediatamente da polis, da cida- que o simples estabelecimento de fatos ao fim de
de. Vê-se que tais questões comportam elemen- uma denúncia focalizada sobre os conteúdos
tos simultaneamente estéticos, artísticos, morais e ideológicos. Seria preciso ainda que os valores es-
sociopolíticos. O quadro, descrito com brevidade, téticos da arte correspondam aos valores não ar-
de uma arte militante para o bem e o justo contra o tísticos sobre os quais podem repousar seus olha-
mal e a injustiça pressupõe que certos valores esté- res. Comparativamente ao número considerável
ticos e morais sejam compartilhados para que se de conflitos armados, à falta de água potável, ao
possam opor a outros, que os rejeitam em nome tráfico de órgãos, à miséria, à fome e às doenças
de valores diferentes. mortais em todo o mundo, a “arte contemporâ-

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nea” está em contínuo desenvolvimento de seus em obras acadêmicas, passadistas, repetitivas.
valores nesse mesmo mundo. A arte avança, a vida Reencontraremos ao longo de todo o século 20
regride. Tanto se pode alegrar-se com esse estado essa mesma divisão, seja entre tantos outros, o fa-
de fatos como mostrar-se cético sobre certos as- moso “retorno à ordem”, a partir de 1918, a Nova
pectos da propagação do sopro vivificante da Objetividade alemã, o realismo cinematográfico
arte, isto, pelo menos, por duas razões: a resistên- defendido por André Bazin, o Novo Realismo ita-
cia da arte – censo crítico, radical – pode ser um liano, o realismo do Novo Romance ou ainda o
“realismo acadêmico” disfarçado; a concepção da “realismo capitalista” de Gerhard Richter. Consta-
arte definida essencialmente como política não ta-se nesses exemplos que se pode ser “realista”
depende dela mesma. sem ser necessariamente engajado em alguma
luta ou em militantismo sociopolítico. O que im-
O “realismo” nas artes plásticas surgiu justamen-
porta aqui é que, paralelamente a obras originais,
te após a revolução de 1848 na França com as pin-
numerosas obras de arte naufragaram no acade-
turas de Gustave Courbet, especialmente Les
micismo em razão de sua literalidade. Esse tipo de
casseurs de pierre (1849), tida como primeiro do-
realismo, um “realismo literal”, é nefasto e não tem
cumento do “realismo social”, e com sua exposi-
nenhum escopo artístico ou sociopolítico.
ção individual de 1855, intitulada pelo pintor Pavi-
lhão do Realismo. Mas se Courbet representa a Confundem-se atualmente resistências, denún-
tendência vanguardista do realismo, é preciso não cias, críticas sociais, políticas ou morais veiculadas
esquecer que outros pintores, como [Jean-Léon] por certas obras de arte (todas as mídias confun-
Gérome, defendiam também uma forma de realis- didas) com sua qualidade plástica, seu sucesso
mo pictórico, representando o “realismo acadê- formal, sua importância estética. Reencontramos
mico”. Desde sua nascença, o realismo se divide, assim o “realismo acadêmico” oitocentista: não é
portanto, em obras originais, novas, modernas, e porque se representam sob determinadas formas

Gustave Courbet
Les casseurs de pierre,
1849
Óleo sobre tela,
159x259cm
Gemäldegalerie, Dresden
(destruída durante a
Segunda Guerra Mundial)
Fonte: http://www.just
seeds.org/blog/2008/01/
gustave_courbet_
retrospective_1.html

TEMÁTICAS | JACINTO LAGEIRA 151


as guerras, os massacres, as lutas sociais ou éticas tuto, o processo e a noção tradicional de “obra” –
que se resiste ao que se pretende denunciar. O re- apenas pela quantidade de mobilização social e
sultado é, aliás, bastante inverso: mais se é literal e política, pela quantidade de reações positivas ou
mais a representação é pobre, mais a resistência é negativas dos cidadãos-espectadores. Segundo
visível e mais a obra é plasticamente sem interesse. esse critério, seria necessário então considerar
Em termos contemporâneos o “realismo acadê- esteticamente importante uma massa considerá-
mico” nomeia-se o “politicamente correto”, eti- vel de objetos cuja qualidade estética e artística é
queta que é antagônica à própria ideia de resistên- de fato anódina, quase nula, próxima de zero. Con-
cia. Ser plasticamente literal equivale a fazer o jogo sequência mordaz, ainda segundo esse critério de
desse outro tipo de realismo que é o pragmatismo impacto sobre a realidade, deveriam fazer parte
sociopolítico, posto que aquele é igualmente lite- todas as obras (?) de diversos realismos socialistas
ral. Reagir ao literal pelo literal não é resposta plás- (soviético, chinês, ex-RDA, albanês, norte-corea-
tica satisfatória e não é eficaz no campo que se no...), o que equivale evidentemente a aceitar no
pretende criticar, porque, nesse jogo, o literal do plano plástico o que se condena no plano socio-
campo socioeconômico-político será sempre político quando se resiste aos totalitarismos. Puro
mais forte, porque sempre mais literal. academicismo e pura ideologia não podem assim
Uma arte realista literal é, em última instância, uma ser distinguidos das instâncias artísticas que a eles
ilustração pura e simples do discurso inimigo, da- resistem e que desenvolvem uma crítica pertinen-
quele a que se quer resistir. Fazendo isso, entretan- te. Replicarão que se arrisca a cair nessa nova ver-
to, a ele não se resiste; submete-se, porque o su- são de “arte pela arte” que é o formalismo. Ora fo-
posto discurso de resistência não pode exceder, calizar mais o material do que os enunciados, a
transbordar, desviar-se ou desmontar aquilo a que forma mais do que a mensagem é também tão es-
acaba por se identificar. O mais perverso desse téril quanto sustentar unicamente a eficácia do
percurso evidentemente é o fato de que se identi- conteúdo. A maior parte das obras do realismo
fica a uma realidade transformada – que se procu- acadêmico é tão banal, plana e sem consistência
ra, no entanto, denunciar –, não se operando, por do ponto de vista plástico, que toda proposta per-
literalismo, a transformação da realidade. Assim, tinente ou grave por elas veiculada é logo marca-
mais do que uma forma de resistência, de crítica, da por incoerência. A falta ou ausência de formali-
de engajamento, o realismo literal é uma forma de zação e de significação não pode fazer com que a
constatação vazia, uma cópia desse paradoxo obra resista ao que quer que seja. Ela é transparen-
que, embora tenha uma causa, é sem consequên- te, vazia, uma expressão literária facilmente recu-
cias e sem efeitos. Portanto, sem futuro. perável, porque não opõe nenhuma resistência.

Procurar definir em termos de conteúdos e de sig- Se o realismo literal a princípio apresenta sob o
nificações sociopolíticas o avanço propriamente manto denunciador alguma crítica, sua natureza
estético de uma arte resistente, substituindo o faz com que logo se perceba que esse é apenas
contexto, o real, isso que [nos] chega, o aqui e o um momento de sua falsidade e de sua não perti-
agora, pela tradicional busca de formas originais, nência. Uma vez enumerados alguns elementos
não altera absolutamente a problemática do rea- aparentemente virulentos e supostos a resistir a
lismo literal. Não se pode avaliar a qualidade de tais discursos, estado ou condição, percorre-se
uma obra ou de uma proposição artística – núme- brevemente a obra e se constata por fim que
ro de intervenções ou de ações recusando o esta- nada mais pode ser dito – nem sobre o plano plás-

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tico, nem sobre o plano do sentido. Uma obra in- posta de algum grau de realidade humana. Em últi-
capaz de resistir à interpretação poderá resistir ma instância, isso não existe. Se a realidade exte-
ainda menos ao que propõe denunciar. As obras rior não é a obra, ela nem por isso deixa de ser me-
de Fred Wilson ou de Michal Rovner apresenta- nos constitutiva da obra. A obra é assim moldada
das na Bienal de Veneza de 2003, por exemplo, de uma forma de realidade no estatuto particular
são tão evidentes e unívocas, que a suposta força que o termo “representação” parece obliterar por
crítica de sua proposta recai sobre si mesma. Em não definir o estatuto de reenvio à realidade, no
outro gênero, dessa vez o do “realismo acadêmi- entanto, aparentemente integrado na definição.
co”, as obras de Bill Viola cenografando quadros
Se se fala da obra de arte contemporânea, o ter-
dos mestres nos afundam numa arte pompier ul-
mo representação convém ainda menos a esse
trapassada, uma imaginária sulpiciana cuja banali-
estatuto de reenvio à realidade. Isso porque nu-
dade é exacerbada pela tecnologia. Se não existe
merosas obras contemporâneas se situam volun-
interpretação infinita das obras, quando elas são
tariamente entre a arte e a vida (quase todas as
reduzidas ao mínimo, reduzidas a lugares-co-
obras do Fluxus), entre o documento e a ficção, a
muns imediatamente detectáveis, a vida da obra
ponto de não se saber mais discernir entre a reali-
também é reduzida. Mais exatamente, a obra é na-
dade que se encontra representada e a represen-
timorta.
tação da realidade – especialmente as obras com
O nó da problemática é que as obras de arte re- caráter sociopolítico que utilizam documentos
presentam a realidade. Que se trate ou não de re- ou documentários por desvio (certos romances
presentações mais ou menos inventadas, mais ou de John Dos Passos, os cut-up de Bryon Gysin e
menos imaginadas, é, contudo, suficientemente William Burroughs, os filmes de Guy Debord ou
claro que o objetivo da representação numa obra de Jean-Luc Godard), que fazem colagens ou
de qualidade é não se assimilar ao representado, samplings sonoros (John Cage, Pierre Schaffer),
seja um ser, uma coisa ou ação. Permanece o fato ou ainda as obras que fazem certas pessoas de-
de que a representação é representação de algo, sempenharem seu próprio papel (os filmes de
mesmo nas obras abstratas, que não são “pinturas Bruno Dumont, certas obras fotográficas de An-
do nada”. A representação não existe em si, pura e dres Serrano). A dança contemporânea ou o
simplesmente, porque ela se refere à realidade ex- campo da performance é igualmente exemplar a
terior ou a evoca, e não se poderia ignorar essa re- esse respeito: o que concerne ao corpo é em am-
ferência, de tanto que ela faz parte da noção de bos representado – é uma ficção, uma metáfora –
obra. É porque se refere à realidade sem ser essa e acontece verdadeiramente ao corpo (Gina
realidade que a obra é uma metáfora ou uma fic- Pane, Pina Bausch, Marina Abramovic). O texto
ção. Mas ela permanece metáfora ou ficção de al- do poeta objetivista americano Charles Rezni-
guma coisa. E essa coisa não é mais do que a reali- koff, intitulado Holocaust (1975),4 é um longo
dade, sob todas as suas formas e em todas as suas poema realizado a partir de material constituído
dimensões. De que mais poderia falar uma obra ou pelos testemunhos de sobreviventes dos cam-
o que mais poderia representar senão a realidade? pos nazistas. Poema, porque a única intervenção
É extremamente difícil, de fato impossível, deter- de Reznikoff é um corte dessas letras em verso.
minar em que consistiria uma obra – sejam quais Temos assim uma obra voluntariamente com-
forem seus material e suporte – que não se refira à posta entre documento e ficção, entre represen-
realidade, que não a represente, que não seja com- tação e realidade que tira precisamente sua força

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estética e moral, entre outras, dessa interpene- preciso remover essa ambiguidade para não se ex-
tração. As obras desse gênero têm em comum a por a uma posição de banalização ideológica e, ao
amostragem ou o uso – permanente ou tempo- mesmo tempo, para não eliminar a questão da
rário – de partes da realidade na realidade e com existência da realidade como espaço do qual se
certo grau de realidade. extraem e no qual se projetam significações. Se se
considera que a obra não é mais do que ficção, é
Basta mudar “obra de arte” por “fotografia de im-
preciso ir então ao início dessa lógica e aceitar que
prensa” ou “documentário” (por exemplo, Shoah,
apologias e resistências possam aparecer nas
de Claude Lanzmann, ou Bowling for Columbine,
obras, sob a condição de definir seu estatuto. Não
de Michael Moore) para se dar conta da validade
se pode negar que existem de fato apologias en-
da definição: as fotografias de imprensa ou os do-
quanto ficções – da sociedade, do político, de um
cumentários possuem também qualidades plásti-
ser, de uma situação, etc. – e, nesse sentido, não é
cas, eles também são construídos formalmente,
retórica, discurso corrente, mas proposição de
representam o real, mas também não são, no en-
sentido estético. Não seria apenas por sua situa-
tanto, a própria realidade. Toda construção, aliás,
ção histórica que toda obra é necessariamente
ou composição de imagens, bem como todo ma-
contaminada de ideologia. O que são as diversas
terial ou técnica a partir da realidade, não é objeti-
ideologias de Emile Zola, Louis-Ferdinand Céline,
va, mas, ao contrário, inevitavelmente ideológica
Paul Claudel, Elia Kazan, Steven Spielberg, Abbas
(para o bem ou para o mal); de fato plasticamente
Kiarostami, Daniel Buren, Damien Hirst, Maurizio
ideológicas (cf., por exemplo, os estudos de Pierre
Cattelan senão posições apologéticas de uma
Bourdieu e de Philippe Dubois sobre a fotografia
classe, de uma situação, de uma ação, de uma re-
“não artística”5). A distinção reside no fato de que
sistência, etc.? Mas é preciso afirmar que essas
o documento não é ficcional enquanto uma obra
apologias ou ideologias só são tais no interior da
de arte revela-se ficcional por natureza, mesmo
obra, na obra e pela obra. Seria fazer-se de inocen-
após ter retomado elementos de uma realidade
tes negar a presença da ideologia nas obras, tanto
que absolutamente não o fosse. Se o termo repre-
mais que estas últimas estão também em situação
sentação pode parecer obsoleto para dar conta
e tomadas numa realidade histórica. A obra não
da diversidade das práticas artísticas modernas e
está fora do tempo e do espaço. É preciso sobre-
contemporâneas, deveria, em consequência, afir-
tudo mudar o estatuto da noção de engajamento,
mar que a obra de arte é da ordem de uma repre-
de crítica ou de resistência: o que é verdadeiro
sentação com estatuto ficcional. O que permitiria
como crítica, apologia ou resistência na obra não
compreender que quando as obras se referem ou
é verdadeiro, horrível, absurdo, inaceitável, incom-
reenviam à realidade, esta última muda de estatu-
preensível, extraordinário, etc., senão na obra.
to, de natureza e, aspecto fundamental, adquire
Tudo isso só pode ser dito a propósito da obra e
um sentido que não é mais aquele conferido ao
em referência à obra e só vale na relação inaliável
simples traço documental.
da obra. Saímos assim da retórica para reingressar
Uma obra de arte é seguramente ideológica – na obra como “proposição de sentido estético” e
como se sabe segundo Marx e os estetas marxis- não, stricto sensu, proposição de sentido político,
tas –, mas quando se a coloca no mesmo plano social ou moral. Contudo, aparece outro proble-
ideológico de uma ficção e ideologia da realidade ma: uma proposição de quê? e a propósito de
não se pode senão chegar ao sentido da sociopo- quê? Da realidade. Ora se a obra só pode falar a
litização da obra de arte e da estetização do real. É respeito da realidade, ela não poderia escapar dos

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resíduos de tomada de posição, e não se pode tra-
çar uma linha intransponível entre a arte pela arte,
a arte pura e virgem de toda referência e a realida-
de vilmente material.

A ideia de distância, na verdade de “distanciamen-


to” numa perspectiva brechtiniana, é essencial
para a noção de ficção da obra. É fato que, se nos
falta distância, não compreendemos mais o que
temos a ver com uma ficção; se temos distância
demais, não podemos tomar a obra por ficção. É
outra maneira de sublinhar a construção formal,
mas a ideia do conteúdo deve aparecer simulta-
neamente. Se uma obra se apresenta sob sua úni-
ca construção formal, o que o crítico Clive Bell no-
meava “forma significante”, como fazer com que
os receptores não percebam então unicamente a
“construção formal”, e mesmo que, a eles faltando
de todo a distância, não se anexem mais frequen-
temente senão ao próprio conteúdo? A relação
com a obra assim posta não dá conta da experiên-
Seria preciso desenvolver a noção de responsabi- Mona Hatoum
cia estética, porque não é a obra que efetua a fixa- Light Sentence, 1992
lidade, no sentido forte do tema, quer dizer, aqui, Instalação
ção à distância, mas o receptor que se encontra
no sentido que Sartre propôs em Qu’est-ce que Fonte:
ou não colocado numa relação estética com o ob- Elles@centrepompidou.
la littérature? e em L’existentialisme est un huma-
jeto, que pode, segundo o caso, apreender ou não Paris: Centre Pompidou,
nisme: “Quando escolho, eu escolho em nome de 2009
como “obra de arte”. A obra, uma vez concluída,
todos os homens.”6 Escolhendo defender esta
nada efetua. É apenas um objeto inerte, cujas sig-
obra ou aquela, eventualmente condenável ou
nificações e formas atualizo na relação estética
não, repreensível ou não, não faço mais do que
que instauro e que a faz, assim, viva.
subscrever aos jogos artístico e estético. Afirmo
A questão do conteúdo é, no entanto fundamen- mesmo que elas exprimem uma visão do mundo,
tal. Uma obra só existe porque uma comunidade uma visão da realidade, uma visão do humano, da
de receptores, mais ou menos importante, com- qual eu sou inteiramente responsável. A ficção da
partilha o sentido que ela veicula. A obra é uma obra é, portanto também uma proposição de
partilha de sentido. Sendo demasiadamente for- sentido no seio da visão e da realidade humana.
mal, pensando demais no invólucro sem o con- Não tomar consciência disso seria retornar à
teúdo, o sentido que toda obra engaja – que ela concepção burguesa de arte, segundo a qual a
declara ou não, que ela reivindica ou não – perma- arte deve ser separada da vida real com o objetivo
nece letra morta. Uma obra de arte é também de relaxar e de imergir o receptor nos prazeres
uma visão da realidade, uma visão do mundo. sensíveis e intelectuais que lhe são refutados no
Mesmo que se trate de ficção, é preciso repensar cotidiano, posições que se encontram reatualiza-
as ligações entre essa realidade e a ficção, porque das em certas correntes estéticas, sobretudo o
a ficção não surge ex nihilo e não se refere a nada. hedonismo. Não é preciso tirar a responsabilida-

TEMÁTICAS | JACINTO LAGEIRA 155


de do receptor, porque é ele quem faz existir a dendo reivindicar a neutralidade ou a pura auto-
obra enquanto objeto de arte, mas também en- nomia, a arte deve, portanto, necessariamente
quanto partilha de sentido. politizar-se ou se encontra necessariamente poli-
tizada. De fato, concebe-se a coisa como se esta
A obra de arte é um vetor, um cristalizador ou um
fosse sua natureza última e profunda, por assim
catalisador pelo qual transitam problemáticas
dizer seu estatuto originário, enquanto ela não é
sociais, políticas ou morais que, caso possam ser
nada menos que historicamente datada. Assim
transformadas – para o melhor ou para o pior,
como o mostrou, entre outros autores, Karl-
aliás – o são enquanto transformações essencial-
Heinz Bohrer, em Le Présent Absolu, foi a moder-
mente estéticas e não enquanto transformações
nidade romântica que nomeou esse lugar entre
sociais, políticas ou morais imanentes, diretas,
arte e política, estética e revolução, obra e histó-
inscritas na realidade dessas esferas. Acreditar
ria,8 lugar aparentemente indefectível que hipo-
que a arte é antes de tudo e a princípio política,
tecará numerosas produções artísticas do sécu-
que seu papel e sua função consistem fundamen-
lo 20, continuando ainda a pesar na balança da
talmente em resistir a toda forma de repressão,
arte contemporânea. Não seriam assim verdadei-
de poder, de censura, é só um erro de apreciação,
ramente importantes senão as obras que resis-
assim como assinala repetidamente Jean-Paul
tem, que são engajadas, denunciam e criticam.
Sartre no último capítulo de L’Imaginaire, A obra
Bem poucas vozes se elevam para contrabalan-
de arte:7 isso significa confundir o real e o imagi-
cear tanto do ponto de vista político quanto do
nário – posição que manterá até seus últimos tex-
ponto de vista estético essa espécie de diretriz
tos sobre arte. Que a arte possa ter influências ou
sem apelo. Foi o que tentou Rainer Rochlitz em
incidentes sobre o real, isso é suficiente e regular-
seus numerosos textos, particularmente num
mente demonstrado, mas que ela seja identifica-
dos últimos, Arte contemporânea e política,9 em
da por essência ou por natureza a esse real ao
que tenta ‘dialetizar’, com pertinência, a arte e o
qual porta suas acusações ou suas críticas, esse
político: “Na sociedade contemporânea, menos
real sobre o qual ela resiste mais ou menos valen-
sem dúvida do que em outras épocas, criar uma
temente, não é fazer jus ao verdadeiro conteúdo
obra de arte não é um ato político no pleno senti-
daquilo a que se resiste nem fazer jus às outras
do do termo. Esse não é nem o discurso de um ci-
potencialidades da arte e da estética.
dadão tomando posição, nem o ato ou o ponto
De Krzyzstof Wodiczko a Jochen Gerz, de Allan de vista de um responsável político. É uma ex-
Sekula a Sophie Ristelhueber, de Willie Doherty a pressão simbólica que, por ter efeitos políticos,
Sylvie Blocher, de Melvin Charney a Adrian Piper, deve ser traduzida – pelos receptores que a veem
entre tantos outros artistas contemporâneos como signo político – em outra linguagem, susce-
que realizam um verdadeiro trabalho de resistên- tível de alimentar o debate político.”10 Se a arte
cia social, moral ou política, as questões, os dispo- nunca é neutra e nunca está fora do campo so-
sitivos, os procedimentos são evidentemente ciopolítico, fazer de seu único conteúdo o mo-
inumeráveis, e não se pode aplicar uma mesma mento de sua qualidade estética e artística é erro
grade de leitura a suas produções. Mas, sem dúvi- grosseiro. O mundo da arte está cheio de obras
da porque suas obras são fortes e de qualidade, com intenções legítimas e de boa fé que mesmo
têm-se por certo que elas são exemplares de uma assim permanecem sendo obras medíocres. Fal-
linha definitória que deveria objetivar toda arte: ta-lhes tanto a transcrição da realidade numa for-
ser engajada politicamente, ser política. Não po- ma quanto os elementos de tradução numa “ex-

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pressão simbólica” que, se a ela vir a faltar, não po- Gottlieb, Adolph; Rothko, Mark; Newman, Barneth. In
dem ter nenhum efeito em nenhum nível. Harrison, Charles; Wood, Paul (eds). Art en théorie,
1900-1990: une anthology. Paris: Hazan, 1997: 623.
A arte deve inscrever-se na realidade, mas se ins- 4 Charles Reznikoff, Holocauste (1975), trad. J.-P. Auxe-
crever em falso. Não ser literal, submissa a precei- méry. Paris: Prétexte, 2007.
tos que lhe são estranhos, que só a encobrem, a 5 Duas abordagens diferentes, mas complementares:
impedem de ser viva e de dar vida àquilo a que se Pierre Bourdieu (dir.). Un art moyen. Essai sur les usages
refere. As obras que não estão à altura da gravida- sociaux de la photographie (1965). Paris: Minuit, 1989;
Philippe Dubois. L’Acte photographique. Paris: Nathan,
de de problemáticas sociais, políticas ou morais 1990 [O Ato fotográfico e outros ensaios. São Paulo: Pa-
das quais elas tratam constituem, na melhor das pirus, 1994].
hipóteses, indiferença programada, na pior, humi- 6 Cf.: Jean-Paul Sartre. L’Existentialisme est un huma-
lhação e desprezo para aqueles que sofrem e mor- nisme (1945). Paris: Gallimard, Folio Essais, 1996: 31. [O
rem daquilo que as obras procuram condenar. A existencialismo é um humanismo. In J-P Sartre. São Pau-
lo, Abril Cultural, 1973. Os Pensadores.]
arte deve, portanto, resistir ao canto de sereia do
heroísmo, e a crítica, resistir às facilidades de uma 7 Jean-Paul Sartre. L’Imaginaire (1940). Paris: Folio Es-
sais, 2005: 361-373 (Conclusion – II, L’oeuvre d’art). [O
arte que sob o pretexto de ser engajada e militan-
imaginário: psicologia, fenomenologia da imaginação.
te seria ipso facto interessante. No entanto, não São Paulo: Ática, 1996.]
faltam provas cotidianas do contrário. É preciso 8 Karl-Heinz Bohrer. Le Présent absolu (1988-2000).
abandonar o maniqueísmo ou a esquizofrenia que Trad. Olivier Mannoni. Paris: Éd. de la Maison des
dessubstancializa a arte – tanto política quanto ar- Sciences de l’Homme, Paris, 2000. Cf. sobretudo o capí-
tística – e optar pela ‘dialetização’ desses dois mo- tulo I, Romantisme allemand et Révolution française.
Une possibilité de donner une image esthétique de
mentos, desses dois regimes que fazem, precisa-
l’événement historique, e o capítulo 5, Philosophie de
mente, as obras de qualidade. “Inscrever-se em l’art ou théorie esthétique. Le problème de la référance
falso” não consiste de modo algum em se retirar universaliste.
do mundo ou o dispensar, mantendo-se na esfera 9 Rainer Rochlitz. Art contemporain et politique. In
pura da arte, nem cair no ativismo ou no militantis- Feu la critique (1997-2002). Bruxelles: La Lettre volée,
mo purificadores. A dificuldade está justamente 2002: 143-155.
em se inscrever na realidade do mundo de forma 10 Id. ibid.: 149.
que a arte não o torne mais falso do que ele é.

Tradução: Ivair Reinaldim


(com a perspicaz colaboração de Inês de Araújo)

Revisão técnica: Jacinto Lageira


NOTAS Jacinto Lageira é crítico de arte e professor de estética
1 S’inscrire en faux. Ensaio originalmente destinado à na Université Paris 1 – Panthéon-Sorbonne, tendo publi-
revista Parachutes, n. 115, 2004, mas só publicado em: Ja- cado diversos livros e participado em numerosas obras
cinto Lageira. La déréalisation du monde: réalité et fic- coletivas, bem como em dicionários, enciclopédias,
tion en conflit. Paris: Éditions Jacqueline Chambon/ catálogos de coleções e monografias de artistas. Entre
Actes Sud, 2010: 67-81. suas obras publicadas recentemente destacam-se L’im-
age du monde dans le corps du texte (dois volumes, La
2 Em referência à estátua de pedra da ópera Don Gio- Lettre volée, 2003), L'esthétique traversée: psych-
vanni, de Mozart. (NT) analyse, sémiotique et phénoménologie à l’oeuvre (La
3 Declaração de Adolph Gottlieb, Mark Rothko, Barne- Lettre volée, 2007) e La déréalisation du monde: réalité
th Newman publicada em 1943 no The New York Times. et fiction en conflit (Éditions Jacqueline Chambon).

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