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EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
POR PARCEIROS ÍNTIMOS
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA
RELACIONAL DE GÊNERO
KATHIE NJAINE
ANNE CAROLINE LUZ GRÜDTNER DA SILVA
ANA MARIA MÚJICA RODRIGUES
ROMEU GOMES
CARMEM REGINA DELZIOVO
FLORIANÓPOLIS | SC
UFSC
2014
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA Ficha técnica/Créditos 2
RELACIONAL DE GÊNERO
GOVERNO FEDERAL
Presidente da República
Ministro da Saúde
Secretário de Gestão do Trabalho e da Educação
na Saúde (SGTES)
Diretora do Departamento de Gestão da Educa-
ção na Saúde (DEGES)
Coordenador Geral de Ações Estratégicas em
Educação na Saúde
Responsável Técnico pelo Projeto UNA-SUS
EQUIPE DE PRODUÇÃO
Coordenação Geral de Equipe de Produção
Eleonora Vieira Falcão
Coordenação de Produção Giovana Schuelter
Diagramação Fabrício Sawczen e Thiago Vieira
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA - UFSC
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA
RELACIONAL DE GÊNERO
FLORIANÓPOLIS | SC
UFSC
2014
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA ficha catalográfica 6
RELACIONAL DE GÊNERO
U588v
Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Ciências
da Saúde. Curso Atenção a Homens e Mulheres em Situação
de Violência por Parceiros Íntimos - Modalidade a Distância.
ISBN: 978-85-8267-037-8
CDU: 362.88
Bons estudos!
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA OBJETIVO DO MÓDULO 10
RELACIONAL DE GÊNERO
CARGA HORÁRIA
sido as mais vitimizadas, particularmente nas so- mundo. O uso da categoria gênero vem oferecen-
ciedades em que as desigualdades entre homens do a esses estudos uma importante base para se
e mulheres são mais marcantes. Ou seja, a vio- discutir esse fenômeno social.
lência contra as mulheres é grave, a ponto de Algumas correntes teóricas, embora partindo de
muitas precisarem procurar os serviços de saú- diferentes enfoques, têm sido utilizadas para
de por conta das agressões, apesar de os homens abordar a questão de gênero. Dentre elas encon-
também sofrerem violências de todos os tipos. tram-se as denominadas: dominação masculina;
Nem sempre a violência de gênero é visível no dominação patriarcal; relacional.
âmbito das pessoas que se encontram em risco De acordo Santos e Izumino (2005), a primeira
de sofrê-la. Muitas vezes ocorre a dominação ou corrente, identificada como dominação mascu-
exclusão social por vias simbólicas nas relações lina, define violência contra as mulheres como
homens-mulheres, entre homens e entre mulhe- expressão de dominação da mulher pelo homem,
res. Assim, as pessoas muitas vezes não reconhe- levando à anulação da autonomia da mulher, con-
cem a violência em determinados atos, pelo fato cebida tanto como “vítima” quanto como “cúm-
de estes não serem compreendidos como violen- plice” dessa dominação. Tal cumplicidade não es-
tos, mas que em níveis mais sutis estão acompa- taria relacionada a uma escolha ou vontade, mas à
nhados dela. própria destituição da autonomia da mulher. Essa
teoria entende que as diferenças entre o feminino
e o masculino são transformadas em desigualda-
Nas relações de gênero, além da violência física ocorre a des hierárquicas por meio de discursos machistas
violência simbólica. sobre a mulher, os quais são proferidos tanto por
homens quanto por mulheres. Tais discursos de-
finem a feminilidade tomando por base a capa-
Os estudos sobre violência de gênero tradicio- cidade da mulher de reproduzir. Assim, elas são
nalmente se voltam mais à violência contra a definidas como seres “para os outros”, em vez de
mulher, pela magnitude desse evento em todo o “com os outros”; ou seja, são seres dependentes.
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA Unidade 1 14
RELACIONAL DE GÊNERO VIOLÊNCIA E GÊNERO
A segunda teoria refere-se à dominação patriar- ralmente como masculino só faz sentido a partir
cal e compreende a violência como expressão do feminino e vice-versa. Os padrões de masculi-
do patriarcado, em que a mulher é vista como nidade e feminilidade fazem com que as identi-
sujeito social autônomo, embora seja historica- dades de homem e mulher se afirmem na medida
mente vítima do controle social masculino. Nessa em que ocorrem aproximações e afastamentos
perspectiva as mulheres não são “cúmplices” da em relação ao padrão que concentra maior po-
violência, são apenas “vítimas”. der na cultura.
A terceira corrente teórica identificada nos es- Cada um dos dois gêneros é construído como cor-
tudos sobre violência contra a mulher é a rela- po socialmente diferenciado do sexo oposto, o
cional, que relativiza as noções de dominação que faz a divisão entre os sexos parecer natural e
masculina e vitimização feminina, entendendo configurar os esquemas de percepção, de pensa-
violência como uma forma de comunicação e um mento e de ação (BOURDIEU, 2010).
jogo no qual a mulher protagoniza cenas de vio- Assim, para ampliar a compreensão desses pa-
lência conjugal e se representa como “vítima” drões é importante pensar que não basta que as
e “não sujeito” quando denuncia, porque assim mulheres concordem de modo geral com os ho-
obtém proteção e prazer. mens, mas que considerem a representação de
um conjunto de homens e de mulheres, ou seja,
1.1.1 Construção social de Sexo e Gênero de esquemas de percepção e avaliação univer-
salmente partilhados com o grupo em questão.
Dessa forma, a lógica paradoxal da dominação
O gênero se constrói culturalmente e influencia na for- masculina e da submissão feminina só pode exis-
ma de ser homem ou de ser mulher em cada sociedade. tir pelos efeitos duradouros que a ordem social
exerce sobre as mulheres e os homens; a domina-
ção masculina não depende das representações
Com base na compreensão de que a violência se individuais, mas das representações sociais ente-
dá no âmbito das relações, o que é visto cultu- didas por cada indivíduo.
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA Unidade 1 15
RELACIONAL DE GÊNERO VIOLÊNCIA E GÊNERO
Assista ao vídeo “Minha vida de João”, produzido por Neste sentido, constata-se que os homens represen-
Promundo, PAPAI, ECOS e Salud y Género. Trata-se de tam um papel relevante na violência brasileira, como
uma animação na qual é contada a história de João, um pessoas em situação de risco de sofrer violência e
garoto que, como tantos outros, vive em uma sociedade como os principais autores de agressões. No entanto,
machista, pautada por padrões rígidos de gênero. O ví- a despeito dessa relevante associação entre mascu-
deo está dividido em três partes. Acesse os links abaixo linidade e violência, não se conclui que ser homem
na sequência para assisti-lo. é ser violento, pois outros modelos de masculinida-
de coexistem com os mais tradicionais. Além disso, é
Parte 1 - http://youtu.be/QIelPL7Yedw fundamental considerar as singularidades de cada um,
Parte 2 - http://youtu.be/UesRpJScHCs bem como os contextos etários, socioeconômicos, de
Parte 3 - http://youtu.be/mv-2u93Duls raça e etnia.
Minayo (2005) comenta que a noção do mascu- Na construção dos padrões de masculinidade da
lino como sujeito da sexualidade e o feminino sociedade brasileira, predominam nos discursos
como seu objeto é um valor de longa duração da dos homens as referências tradicionais do que é
cultura ocidental. Quando olhamos as formas de ser um homem - sinônimo de agressividade e de
expressão da violência no Brasil, podemos pensar descontrole sexual -, o que acaba por produzir
a relação próxima entre masculinidade e violên- esquemas de comportamentos.
cia como consequência de uma sociedade cujo Ao verificar formas hegemônicas de masculinida-
patriarcalismo está profundamente enraizado e de, como a dominação, a força e a subordinação,
na qual a concepção de masculinidade equipa- que se estabelecem nas relações homens-ho-
ra-se ao lugar da ação, da decisão e da posição mens, mulheres-mulheres e homens-mulheres,
naturalizada de agente do poder da violência, do deve-se considerar que há formas explícitas,
comando das guerras e das conquistas. como a violência física, e outras mais invisíveis,
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA Unidade 1 17
RELACIONAL DE GÊNERO VIOLÊNCIA E GÊNERO
como a violência simbólica, entre outras vio- A integralidade na atenção à saúde do homem
lações de direitos nas relações entre gêneros. implica uma visão sistêmica sobre o processo da
Neste cenário também se considera a violência violência, indo além de seu papel de agressor,
contra os homens, praticada por mulheres e por considerando os fatores que facilitam que o ho-
outros homens, além daquela que aprisiona os mem cometa violência, a fim de intervir preven-
homens na própria concepção de masculinidade tivamente sobre as suas causas, e não apenas em
e virilidade. Como ensina Bourdieu (1999, p.67), sua reparação (BRASIL, 2008).
“a virilidade, como se vê, é uma noção eminen-
temente relacional, construída diante dos outros
homens, para os outros homens e contra a femi-
nilidade, por uma espécie de medo do feminino,
e construída, primeiramente, dentro si mesmo”.
Gomes (2008) e Schraiber et al (2005) têm cha-
mado a atenção para a necessidade de ampliar os
conhecimentos e as práticas da saúde coletiva no
que diz respeito às perspectivas de gênero, em
que o homem deve ser incluído. Essa necessida-
de também é apontada pela Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde do Homem, que consi-
dera a violência como tema importante no aten-
dimento integral ao homem. A violência, como
uma forma social de poder, é uma estratégia de
empoderamento masculino, mas com ônus para
os homens autores de violência, os quais adotam
práticas que geram graves danos à saúde física,
psíquica e social para eles e para os outros.
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA RESUMO DA UNIDADE 18
RELACIONAL DE GÊNERO
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mu- das pela opressão e por pouca autonomia das mu-
lher (CONVENÇÃO, 1995). lheres. Mas os agressores também podem ser pais,
irmãos e outras pessoas do gênero masculino, con-
figurando uma forma mais comumente conhecida
O Brasil reconhece que a violência contra a mulher é uma de violência de gênero, comumente denominada
violação grave, a qual compromete a saúde e a qualidade violência doméstica e (ou) violência intrafamiliar.
de vida de adolescentes e mulheres adultas, e assume o Estima-se que 12 milhões de mulheres são vítimas
problema como uma questão de saúde pública. de violação, violência física ou perseguição por
seu parceiro íntimo a cada ano, e têm de duas a
três vezes mais probabilidade que os homens de
Compreender a perpetuação do complexo fenôme- experimentar lesões por essas violências sofridas.
no social que é a violência contra a mulher implica Igualmente, têm maior possibilidade de sentir
reconhecer que ele está profundamente arraigado medo de sofrer novamente violência física e (ou)
à cultura de determinadas sociedades, nas estru- sexual, e o duplo risco de ser assassinadas por seu
turas institucionais sociais e políticas, nas quais as parceiro. No Brasil, uma dentre cada cinco mulhe-
relações de poder existentes entre os gêneros são res declara já ter sofrido algum tipo de violência
historicamente desiguais. Outro aspecto que po- de gênero perpetrada por algum homem em sua
deria explicar a perpetuação da violência contra a vida (REICHENHEIM, 2006).
mulher seria da ordem da estrutura sexo/gênero, O que se percebe, em geral, nos atendimentos a
do aprendizado dos papeis sexuais do homem e da meninas e mulheres em situação de violência na
mulher, que são usados como justificativas para área da saúde, nas delegacias de polícia e na área
determinados comportamentos violentos contra da assistência social, é que a agressão ocorre prin-
as mulheres. cipalmente por fazerem parte do gênero feminino.
Os principais agressores das mulheres têm sido Essa violência, que é comum em nossa sociedade,
maridos, ex-maridos, namorados e ex-namorados. assim como em outras, aponta para o fato de que
Nestes casos, as relações interpessoais são marca- o sexo feminino ainda é visto como inferior, ou
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA Unidade 2 23
RELACIONAL DE GÊNERO GÊNERO E SAÚDE NO CONTEXTO DA
ATENÇÃO AO HOMEM E MULHER
aquele que deve se subordinar às ações do sexo 2.2 Violência de gênero e o homem
masculino, considerado superior.
Em estudo conduzido com homens, a fim de anali- A masculinidade, situada no âmbito do gênero,
sar a violência entre parceiros íntimos, Alves e Di- representa um conjunto de atributos, valores,
niz (2005) concluíram que os participantes apoia- funções e condutas que se espera de um homem
ram-se no processo de socialização do homem e numa determinada cultura. Em várias sociedades,
da mulher para definir a função de marido e de es- a socialização dos homens e a incorporação dos
posa. Basearam-se ainda em uma perspectiva as- atributos masculinos se caracterizam por proces-
simétrica e hierarquizada, em que os referenciais sos violentos, o que nos leva a considerar que a
de masculinidade e a inadequação da mulher ao violência assume um papel de construção da pró-
seu papel social foram utilizados como explicação pria masculinidade. Culturalmente, porém, a per-
para o uso da violência na relação conjugal. cepção do uso da violência física pelos homens
As formas de violência contra a mulher podem pode ser diferente, pois em alguns contextos cul-
conjugar violência física, sexual, psicológica, vio- turais pode ser simbolicamente valorizado e, em
lência institucional e patrimonial. A violência per- outros, pode ser repudiado, denotando fraqueza e
petrada pelo homem contra a mulher é um dos inferioridade (CECCHETTO, 2004).
tipos de violência de gênero, que muitas vezes Essas são as primeiras pistas para responder à se-
está ligada à baixa escolaridade da mulher, à de- guinte pergunta: por que os homens são os prin-
pendência econômica de seu parceiro e às outras cipais atores envolvidos em situações de violên-
responsabilidades impostas, dentre elas o cuidado cia, tanto como autores da agressão quanto como
familiar. quem as sofre?
A atitude de desafiar algumas das responsabilida- Se considerarmos essa questão com um olhar so-
des que lhe são delegadas ou de “descumprir” as ciocultural, poderemos concluir que isso ocorre
normas sociais baseadas nas relações de gênero porque eles são influenciados por características
pode ser usada como “justificativa” para esse tipo de “ser homem” presentes em modelos culturais
de violência. de masculinidades.
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA Unidade 2 24
RELACIONAL DE GÊNERO GÊNERO E SAÚDE NO CONTEXTO DA
ATENÇÃO AO HOMEM E MULHER
a ideia de que, para ser um (verdadeiro) homem, Uma das queixas mais frequentes dos homens so-
eles devem combater os aspectos que poderiam bre suas parceiras íntimas diz respeito à violên-
fazê-los ser associados às mulheres. cia psicológica, principalmente quanto a ofensas
e humilhações que atingem a autoestima deles,
desqualificando-os como homens e como seres hu-
Características da masculinidade hegemônica, como a manos, causando mágoas e frustrações. A maioria
força e o domínio, ajudam-nos a compreender a violên- dessas desqualificações cobra dos homens um de-
cia tão presente nas relações homens-homens e homens sempenho de acordo com os rígidos esquemas de
-mulheres. É possível observar que a violência masculi- gênero em que toda a sociedade está imersa – por
na não se reduz aos atos físicos; tampouco se revela de exemplo, dizer que ele não está sendo homem o
maneira explícita. Então, é importante considerar que bastante quando não traz dinheiro para casa, que
há níveis de violência psicológica nas relações entre os é um pai fracassado, que é pouco corajoso, com-
gêneros, bem como ocorrem atos nessas relações que – parando-o a outros homens etc.
embora não sejam reconhecidos como violência – violam Bourdieu (1999) chama atenção para o fato de que,
o ser humano. no cenário da dominação masculina, as vítimas não
são apenas as mulheres. Paradoxalmente, os ho-
mens, mesmo sem perceberem, também são víti-
Embora esse aspecto seja menos estudado, os ho- mas da própria dominação masculina. Assim, por
mens também são vítimas nas relações heterosse- constantemente terem de atestar sua virilidade,
xuais, desmistificando a ideia de que somente as juntamente com a violência, os homens vivem a
mulheres são agredidas. Além disso, a violência não tensão e a contensão. E, nesse processo de testa-
ocorre somente nas relações entre homens e mulhe- gem, aquilo que é tido como “coragem” pode ser
res, mas nas relações homoafetivas, entre travestis, enraizado numa covardia – ou seja, pode se basear
transgêneros, transexuais, apesar de o conceito de no medo “viril” de ser excluído do mundo dos “ho-
violência de gênero no sentido do sexo biológico não mens”. A virilidade, então, é uma noção eminen-
abarcar propriamente esses comportamentos. temente relacional, construída diante dos outros
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA Unidade 2 26
RELACIONAL DE GÊNERO GÊNERO E SAÚDE NO CONTEXTO DA
ATENÇÃO AO HOMEM E MULHER
homens, para os outros homens e contra a femi- 2.3 Gênero e saúde - papel do profissio-
nilidade, por uma espécie de medo do feminino, nal na Atenção Básica
e construída, primeiramente, dentro de si mesmo.
De acordo com Schraiber, Gomes e Couto (2005),
há pelo menos três razões para trazer a temáti-
Descrever a relação entre violência e masculinidade sob ca de homens e masculinidade para os estudos de
uma perspectiva sociocultural e, portanto, desnaturali- saúde e gênero.
zá-la, torna-nos potentes para transformar o modelo he- A primeira é por estimular cientistas e formulado-
gemônico de masculinidade, dando voz e vez a outras res de políticas a enfrentar questões das inter-re-
masculinidades possíveis. Considerar fatores culturais lações entre os gêneros.
promove a incorporação de práticas que levam à refle- Em segundo lugar, por trazer novas temáticas para
xão sobre valores e ao que eles geram em termos de os estudos e as políticas em saúde da mulher,
condutas. além de proporcionar novos olhares (de gênero)
para antigos objetos da saúde das mulheres e dos
homens; a terceira razão seria por ressaltar o en-
Voltar-se para uma aproximação de gênero implica trelaçamento entre saúde, cidadania e direitos
requalificar o agrupamento “homens”, construindo humanos.
um leque novo de questões para pensar homens e Contudo, é importante refletirmos sobre as difi-
mulheres como sujeitos com necessidades a serem culdades de incorporação dos homens nos serviços
consideradas em todas as formas de interação. Se de saúde, principalmente porque no imaginário
a tomada dos homens como objeto, para entendê social de gênero, incluindo aí o dos profissionais
-los e também às mulheres, representa o esforço de saúde, esses espaços não condizem com as
de realizar a categoria gênero, o produto de tal es- noções construídas de masculinidade. Assim, os
forço constituirá uma contribuição da perspectiva serviços reproduzem na atenção os padrões tra-
de gênero para renovar o conhecimento e as prá- dicionais de cuidado, não integrando as questões
ticas da Saúde Coletiva (SCHRAIBER et al, 2005). de gênero ao atendimento.
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RELACIONAL DE GÊNERO GÊNERO E SAÚDE NO CONTEXTO DA
ATENÇÃO AO HOMEM E MULHER
dade e adotam papéis de um “terceiro gênero”, tem outros exemplos de como se costuma desti-
e (ou) se submetem a um tratamento hormonal e nar o status de “menos humano” a pessoas que
(ou) a um tratamento cirúrgico para ajustar seu não são consideradas exclusivamente heterosse-
corpo à forma do sexo desejado, incluindo-se aí xuais ou não se comportam de acordo com o es-
os transexuais e os travestis (UNDP & UNAIDS, perado socialmente como “mulher ou homem”.
2010). O fato de o grupo LGBT não fazer parte da hete-
Dependendo da organização proponente, existem ronormatividade padronizada em nossa socieda-
outras definições, as quais marcam algumas dife- de já lhe atribui um estigma de desvio à norma,
renças entre essas identidades, mas sua impor- além de um processo de rotulação bem descrito
tância está em questionar a existência de uma por Goffman (1963). Esse “desvio” traz consigo
sexualidade única, inflexível e normatizada, e as uma expressão particular da violência de “gêne-
consequências que esse paradigma traz às pesso- ro”, que se manifesta por meio das discrimina-
as que estão fora da norma. ções e agressões nos diferentes âmbitos da vida
cotidiana da comunidade LGBT. Ainda que essas
discriminações e agressões na maioria das vezes
A sexualidade não heterossexual ainda sofre inúmeros não sejam tipificadas, não é raro que a impren-
preconceitos e discriminações, constituindo-se em vio- sa divulgue notícias de violência contra pessoas
lência de gênero. em razão de sua orientação sexual ou identidade
de gênero, nos diferentes contextos sociais, in-
clusive na escola, instituição da qual se espera
Por exemplo, uma pesquisa que foi realizada com a construção de uma educação para valores. Os
2.363 pessoas, em 102 municípios brasileiros, casos mais evidenciados são situações extremas
constatou que 89% dos entrevistados foram con- que levam à violência física e à morte, muitas
tra a homossexualidade masculina e 88% foram vezes expostas de modo sensacionalista pela mí-
contra a lesbiandade e a bissexualidade de mu- dia, a qual também deveria reforçar os valores
lheres (ALMEIDA, 2007). E assim por diante, exis- de respeito à dignidade humana.
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA Unidade 3 33
RELACIONAL DE GÊNERO violência conTra lgbt
Esse estudo revelou ainda que travestis e tran- E importante ressaltar que as pessoas que se
sexuais são alvos preferenciais das práticas dis- identificam dentro dessas diversidades não ape-
criminatórias e das violências verbais, somando nas sofrem discriminação e (ou) violência por
65,4% de ocorrências em relação a 41,5% das esses aspectos, mas pelas outras categorias que
mesmas sobre gays, lésbicas e bissexuais. Quan- representam. Assim, as lésbicas, por exemplo,
do se trata de agressões físicas, a proporção de estão mais sujeitas à violência simbólica do que
agressões contra travestis e transexuais aumenta os gays, uma vez que na constituição de seu sta-
para 42,3%, ao passo que para lésbicas diminui tus contabilizam-se a superposição de diferentes
para 9,8%, 16,6% para gays e 7,3% para bissexuais dominações simbólicas – num caso de maior su-
(CARRARA; RAMOS; CAETANO, 2003). A pesquisa perposição de dominações simbólicas estariam
realizada na 9ª Parada do Rio reitera a alta in- as lésbicas negras e pobres ou as trans-mulheres
cidência de discriminação, representando 64,8% negras e pobres.
de uma amostra de 629 participantes (CARRARA Existem outros fatores culturais e históricos que
& RAMOS, 2005). permeiam essas populações, como a epidemia
Para alguns estudiosos, a discriminação e o pre- da Aids, que ainda afeta gravemente as comu-
conceito são sempre atitudes negativas e con- nidades compostas por travestis, transexuais e
textualizadas, locais e situadas, porém gozam gays, perpetuando o estereótipo/preconceito,
de certa cumplicidade social e de certo eco em bem como as desigualdades e a exclusão so-
determinados grupos sociais (GÓMEZ, 2008). cial dessas pessoas. É como no caso da violên-
No entanto, a violência homofóbica pode ser cia de gênero em que os homens homossexuais
“cordial” e estar velada nos diferentes meios e bissexuais sofrem mais violência em espaços
laborais, familiares ou sociais. No caso da públicos, ao passo que as mulheres homosse-
orientação sexual, pode variar da invisibilida- xuais e bissexuais vivem com maior frequência
de à visibilidade quando homossexuais se veem situações de violência em ambientes privados,
forçados a permanecer ocultos para não serem sobretudo no ambiente familiar e de vizinhan-
demitidos ou estigmatizados. ça (CARRARA, et al. 2006), em função de rom-
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA Unidade 3 35
RELACIONAL DE GÊNERO violência conTra lgbt
perem com as atitudes e os comportamentos ma haver apoio por parte de profissionais de saú-
esperados deles dentro desses espaços. de para lésbicas e mulheres bissexuais verbaliza-
Os autores da agressão – compreendidos por meio rem suas orientações sexuais quando conseguem
das teorias feministas e de gênero – são homens, atendimento. Isso faz com que haja exclusão e
jovens, heterossexuais, e parecem professar uma violência simbólica, apesar de os programas go-
ideologia machista e patriarcal. Entretanto, fal- vernamentais preconizarem o contrário. Segundo
tam dados epidemiológicos suficientes que per- os autores mencionados, para que esse quadro
mitam tipificar ou construir o perfil do agressor, mude não basta uma capacitação técnica desses
nas determinadas variações e expressões para profissionais. É preciso que eles se engajem na
cada segmento da comunidade LGBT (MARTINS; transformação de hábitos sexistas e discriminató-
FERNANDEZ; NASCIMENTO, 2010). rios em boas práticas de saúde, as quais contem-
plem as diversidades sexuais.
3.2 O atendimento à população LGBT na Tendo em conta que alguns agravos à saúde da
Atenção Básica população LGBT são determinados socialmente
– em função das frequentes violências e vio-
lações de direitos a que estão expostas essas
A população LGBT tem o atendimento a seus direitos com- populações e em consequência das diferentes
prometido, inclusive o de conseguir acessar os serviços representações e significações construídas so-
públicos de saúde. Observa-se também que há necessida- cialmente acerca das orientações e identida-
de de incluir o tema LGBT na formação dos profissionais des sexuais (LIONÇO, 2009), no campo da ação
de saúde, a fim de que possam ser desenvolvidas ações social –, é evidente que esta precisa ter aten-
voltadas às especificidades dessa população. ção no sistema de saúde abrangente. A atenção
à saúde desse grupo deve considerar tanto os
aspectos físicos quanto os psicológicos e so-
Em estudo sobre a homossexualidade feminina, ciais, incluindo políticas públicas de saúde que
Valadão e Gomes (2011) concluem que não costu- tenham por objetivo fundamental dar resposta
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA Unidade 3 36
RELACIONAL DE GÊNERO violência conTra lgbt
às necessidades de bem-estar da população, vi- Saúde em 2008 (BRASIL, 2004). Também foi cria-
sando a ações de promoção, proteção e recupe- do o Protocolo Clínico de Saúde Integral para Tra-
ração da saúde em nível individual e coletivo. vestis (PCSIT), instituído no Estado de São Paulo
(SÃO PAULO, 2010), e a Portaria GM n. 1.707 de
18 de agosto de 2008 para implementar o proces-
A saúde, vista como um direito, tem como função pri- so transexualizador no SUS (BRASIL, 2008). Trata-
mordial abarcar a garantia dos direitos humanos da po- se de um marco importante no reconhecimento
pulação LGBT, os quais já fazem parte do marco legal das necessidades de saúde desses segmentos para
internacional. além das questões referentes à epidemia de Aids,
reconhecendo-se a complexidade e a diversidade
dos problemas de saúde que os afetam.
O SUS (Sistema Único de Saúde) estabelece a Mesmo assim, persistem certos fatores que di-
saúde como um direito universal, sendo dever do ficultam a atenção adequada à população LGBT
Estado prover o acesso à saúde a todos os cida- e, mais especificamente, à comunidade transe-
dãos e cidadãs, reconhecendo as desigualdades xual. Tendo em vista que estes ainda são consi-
existentes no interior da sociedade e criando res- derados pelo DSM-IV (Diagnostic and Statistical
postas para minimizá-las. Está entre as pautas Manual of Mental Disorders) como portadores
reivindicatórias do movimento LGBT a criação de de um transtorno da identidade de gênero, há
atendimento especializado às vítimas de discri- várias dificuldades para os que querem realizar
minação por identidade de gênero e orientação uma cirurgia de mudança sexual. Quando uma
sexual. Inserida no contexto da vigência do Pro- pessoa opta por realizar esse tipo de cirurgia,
grama Brasil sem Homofobia, lançado em 2004 tem de passar por uma série de testes psicológi-
pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da cos e psiquiátricos para fazer a confirmação do
Presidência da República, a Política Nacional de diagnóstico. A finalidade desses testes é apro-
Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Tra- var a cobertura dessas petições pelas diferen-
vestis e Transexuais foi lançada pelo Ministério da tes entidades prestadoras de serviços de saúde.
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA Unidade 3 37
RELACIONAL DE GÊNERO violência conTra lgbt
Além da negociação dessas alterações das polí- Os princípios do SUS têm de ser postos em prática
ticas de saúde baseadas na ação do feminismo, para detectar e responder às suas necessidades
dos movimentos gays e lésbicos, há os movi- de maneira holística e abrangente. Isso implica-
mentos de defesa de crianças e adolescentes, ria fortes relações de rede entre as diferentes
que também requerem uma intervenção na profissões, instituições, sistemas de saúde e ou-
busca de maior liberdade para a expressão e o tras agências responsáveis por responder às ne-
exercício da sexualidade, ou numa direção in- cessidades das pessoas em situação de violência
teiramente distinta das manifestações das no- de gênero.
vas ansiedades relacionadas ao que se configura
como limites aceitáveis.
Para ampliar seus conhecimentos sobre a questão da
saúde da população LGBT, leia o artigo de CARDOSO, M.
No âmbito da Atenção Básica o desafio está em mudar o R.; FERRO, L. F. “Saúde e população LGBT: demandas e
paradigma de heteronormatividade vigente não só nesse especificidades em questão”. Psicol. cienc. prof., Brasí-
nível de atenção dos serviços de saúde, mas nos demais, lia, v. 32, n. 3, p. 552-563, 2011.
na forma como os serviços se organizam e no modo como
seus profissionais atuam.
Veja a seguir a Tabela 1, que apresenta as reco-
mendações gerais para a realização de um aten-
Compreender o quão é rígido o olhar sobre as dimento inclusivo.
questões de gênero pode contribuir para não per-
petuar a violência e a discriminação contra essa
população, garantindo os cuidados de saúde ao
respeitar, proteger e garantir seus direitos, inde-
pendentemente da visão de gênero.
VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA Unidade 3 39
RELACIONAL DE GÊNERO violência conTra lgbt
Recomendações Gerais
Profissional
Interação Profissional–Paciente.
Oficial do Estado de São Paulo. São Paulo, 28 GÓMEZ, M. M. Violencia por Prejuicio la Mirada
jan. 2010. BRaSIl de los Jueces: Sexualidades diversas en la ju-
risprudencia latinoamericana. Bogotá: Siglo del
BRASIL. Portaria nº 1.707, de 18 ago. 2008. Insti- Hombre Editores, 2008. p. 91
tui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS),
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VIOLÊNCIA E PERSPECTIVA reFerÊncias 43
RELACIONAL DE GÊNERO
Kathie Njaine
Romeu Gomes