Sei sulla pagina 1di 20

“Eu só aprecio e vou na jornada fantástica ao centro da minha mente pra

causar mudanças drásticas. Com meus problemas faço rimas problemáticas


com a cara de cada um deles estampada em minha temática.” - Shawlin
“Nostalgia”
“Uma filosofia da vida; ela consiste precisamente em denunciar tudo o que nos
separa da vida, todos esses valores transcendentes que se orientam contra a
vida, vinculados às condições e às ilusões da nossa consciência. A vida está
envenenada pelas categorias do Bem e do Mal, da falta e do mérito, do pecado
e da remissão. O que perverte a vida é o ódio, inclusive o ódio contra si mesmo,
a culpabilidade.” - Gilles Deleuze, Espinosa. Filosofia prática

“Suponho que um tipo de esperança fantástica permeia um manifesto. Há uma


insistência, sem garantias, de que a fantasia de um “outro mundo” não é
escapismo mas uma ferramenta poderosa. Crítica não é futurismo nem
futurologia. É sobre aqui e agora, se pudermos aprender que somos mais
poderosos do que pensamos e que a máquina de guerra não é o que somos.
Não há nenhuma base firme para isso, é uma espécie de ato de fé. Mas é
também um ato de compreensão do que é a vida, não apenas sua própria vida,
mas um tipo de sensibilidade etnográfica também. Por onde quer que você ande
e observe profundamente, você percebe que as pessoas, mesmo vivendo nas
piores condições, não estão acabadas, não estão destruídas. Deve-se correr o
risco de perceber como a vida das pessoas não está acabada, mesmo sob as
piores condições, pisoteadas e oprimidas.” Donna Haraway, entrevista Se não
somos humanos, o que somos?

O fim do mundo e a desconstrução do contemporâneo


As histórias sobre o fim do mundo não param de ser narradas. Boa parte dessas
histórias passam pelo crivo do homem. Existirá mundo-terra sem humanos? O
fim do mundo é apenas o começo de uma nova humanidade? Ou ainda, o mundo
a partir de agora só se fará possível sem a presença dos humanos? Todas essas
perniciosas perguntas, contidas em Viveiros e Danowski (2014), não param de
pipocar em minha cabeça. Essas perguntas não param de se fazerem
eminentemente presentes. O calor insuportável da manhã, o barulho
ensurdecedor dos automotivos, o tempo que não para de passar e não para de
oprimir os sentidos e a percepção. Tudo na mais perfeita ordem humana. O
ordenamento humano, entretanto, não parece ser mais (supondo que já foi) a
ordem adequada para a situação. É preciso, enquanto ainda é tempo (o mais
adequado a dizer seria: “é preciso, enquanto ainda existe tempo”) deslocar as
percepções para a desconstrução humana do seu próprio ser. Ou melhor, para
a desconstrução do homem enquanto ser “atravessado pela transcendência
como se por uma flecha sobrenatural” (DANOWSKI e VIVEIROS DE
CASTRO,2014, p.97). A flecha sobrenatural agora não passa de um imenso
desconforto diante de todos os âmbitos da vida que se confundem e perturbam
a já dilacerada mente moderna.
Sem perceber, vivemos entregues à Era da Manutenção. Nada de reconstrução,
menos ainda desconstrução. Neste cenário, o desmantelamento de panoramas
estáticos, purificados ontologicamente, é visto como mero ilusionismo ideológico.
Assim, ideologias continuam modulando nossas práticas vitais cotidianas,
determinando os meios e os fins da vida coletiva ocidentalizada, para bem além
das condutas situadas localmente ao longo das institucionalizações estruturais
de longo alcance - implacáveis em suas formas e também na disseminação de
seu conteúdo uniforme. Enquadramentos bem moldados definem toda e
qualquer possibilidade interacional possível, apontando ferozmente os caminhos
a serem almejados, traçados e ignorados. Arquétipos sociocognitivos se
introjetam nas interioridades presentes, e a gramática industrial determina as
virtualidades cogitáveis através de suas inúmeras plataformas de assujeitamento
e técnicas de submissão anímica. Somos meros operários da uniformidade,
artistas da disciplinação.
O mundo está a acabar. O homem, entretanto, se julga eterno. Quando digo
homem, quero traçar antes um tipo ideal que classificar uma espécie – ainda que
essas duas atividades taxonômicas (enquanto lógicas das classificações)
tenham semelhanças. O tipo ideal do homem que trago ao escrever a palavra
homem, remete a ideias centrais de megalomania, obsessão pelo poder,
autodestruição incomplacente, desespero, insuportabilidade para com o tempo,
forças reativas, vontades negativas e uma série de outras classificações ligadas
ao Antropocentrismo e ao Logocentrismo. Estou tratando temas violentíssimos,
estou falando de certo tipo de estupro cognitivo, que tende a configurar e
programar boa parte das condutas modernas, humanas e inumanas. A divisão
dualista entre objeto e sujeito, corpo e alma, homem e mulher, ciência e religião,
em suma as categorias do pensamento dadas por Descartes e tantos outros
pensadores corresponsáveis pela propagação do pensamento cientificamente
moral, ou seja, a concepção de que as faculdades do pensamento são as
mesmas faculdades das avaliações e julgamentos. O estupro cognitivo é o
processo que coloca os valores humanos – ou a condição ontológica – como
base para o surgimento do pensamento.
Condenar o conhecimento ou o pensamento às condições humanas de sujeito
nos parece ser uma das grandes questões desse processo. Para pensarmos,
devemos nos situar como sujeitos de fala – é o que propaga toda boa
propaganda em torno do desenvolvimento do cidadão de bem. Para prova de
que o pensamento ou os processos do conhecimento em nada se aproximam
com as condições pessoais de cada sujeito, ou melhor, que a subjetividade
psicológica é aquilo que nos impede de criar uma vida superior, passa
exatamente pela questão do pensamento. É que um animal, qualquer animal, é
capaz de pensar e pensa efetivamente. É que a matéria do pensamento é o caos
e o caos é aquilo que abriga o todo no agora. É que todo fenômeno não é se não
uma nebulosa decomponível em ações emanadas de uma infinidade de agentes
que são outros tantos pequenos deuses invisíveis e inumeráveis. É que todas
essas questões passam por um processo cartográfico – exatamente pelas
dificuldades que traz o pensamento, que são inerentes à vida, é que o
pensamento é o mais alto atributo e só ele pode nos conduzir ao seu mais alto
risco superior.
Ao que parece, e como diria Foucault, “o homem é uma invenção recente,
prestes a acabar”. Pois o homem que aqui estamos falando, começou a surgir
no ocidente, pelo ocidente. E foi na modernidade que essa expressão homem
ganhou outro valor. As grandes revoluções, da luz, da razão, da indústria, da
entropia, do açúcar, da cachaça, do café concederam ao planeta novas fontes
de energia; essas energias, provindas dessas fontes, são esgotáveis– esgotam
as mais ricas e simples biodiversidades do planeta. Falamos em biodiversidade.
Estamos falando de tudo ou de nada, de qualquer forma, estamos falando de
qualquer coisa. Uma cozinha apagada e esquecida, é um conjunto de
biodiversidades. Uma sala confraternizada por churrasco e amigos, é outra série
de tipos diversos de vida. Um jardim. Um vasto pasto seco. Um prédio
abandonado. Uma cidade destruída por um tsunami de lama e dejeto. Qualquer
coisa que exista, transpõe almas.
Durante os séculos da Segunda Natureza nada mais se produziu além de
resíduos. O biopoder, de Foucault, é uma precisão teórica diante do óbvio que é
ao mesmo tempo inaceitável para o homem da consciência: a demografia, a
larga escala de seres humanos na terra, é uma produção contínua de dejetos
que devem propiciar e possibilitar a existência de mais e mais gente, desde que
essa gente (isso é fundamental à antropologia) produza, ganhe, gaste, consuma.
A vida se torna uma eterna repetição de performances, e somente ao fim do dia
é que a dádiva da individualidade se faz presente em nossos fluxos operativos.
Deixamos de nos entregar às obrigações para supostamente nos dedicarmos ao
ócio, ignorando todas as frustrações causadas pelas funções cívicas e seus
deveres existenciais. A catarse vem acompanhada de uma cegueira castrante,
entorpecedora. Vivemos entorpecidos, na verdade, mas somos incapazes de
admitir tal condição. Nos divertimos frustrados, e nos frustramos divertindo. A
própria ideia de ócio carrega consigo uma série de pressupostos – pressupostos
que substanciam expectativas e amplificam seus efeitos paranoicos. Nos
culpamos pelo ócio, pela falta do ócio em nossas vidas e das proporções que tal
noção pode adquirir em nossas práticas diárias. Criar expectativas em torno do
ócio é suprimir por completo quaisquer potencialidades, deixar de trabalhar na
estetização de nossas condutas em prol de um modelo existencial já cristalizado
no imaginário coletivo contemporâneo. Se faz necessário viver o ócio
despretensiosamente, mas explorando cada parcela de detalhes que nos
afetam, com rigor: detalhes da vida, da morte, e da perpetuação de ambas.
Melhor: esqueça o ócio, esqueça o trabalho, coloque o lazer em seu mísero
lugar, e ria da seriedade transcendental que nos desorienta cronicamente.
Levando em consideração toda essa condição dramática do homem, de um lado
forte como o bronze, que maquina e micro computa, de outro lado, tão
dispensável como o lixo, escravizado no corpo e na alma, subjugado pelos
podres poderes, devemos pensar, ou melhor, devemos exercitar a capacidade
de deixar o pensamento passar. Devemos nos besuntar de conceitos diversos,
difusos porém pouco difundidos, diante do maremoto de símbolos que conduzem
nossas vontades à alienação interobjetiva. Se nos prendemos em nossa
subjetividade biográfica, individual, nos prendemos a uma certa linearidade
individualista e psiquiátrica; nos sufocamos diante de um limbo de contatos:
profissionais, pseudofamiliares, impessoais. Números e mais números, num
sentido estritamente quantitativo. Assumimos nossa condição numérica, de
indivíduo cidadão, e constipados, tentamos nos manter otimistas.
Já soltos e relaxados com esse exercício que liberta e libera o pensamento,
temos a coragem de perguntar: como entender e afirmar a vida para proliferar e
esparramar as mais altas potências criativas?

A condição não-ontológica do pensamento


Temos um problema em questão: afirmar a imanência e liberar a expressão.
Esse problema, seria quase o mesmo dizer, se trata da investigação ao longo
dos séculos daquilo que, poderíamos dizer, passou diante dos homens, mas não
ficou. A arte, a filosofia, o pensamento, as práticas científicas do terceiro gênero
do conhecimento. É que mesmo diante da vida, o homem recorrentemente
apelou para o religioso, para a superstição, para as forças reativas, para as
vontades negativas. Há entretanto no meio das normatizações dos sentidos e da
percepção, a possibilidade de operar com categorias vindas do Fora, levar a
vida como um território existencial onde sejam fecundas as possibilidades de
estranhamentos.
O fim do mundo está intrinsecamente ligado ao processo do homem moderno de
tentar (e por vezes, conseguir?) sintetizar, domesticar e reduzir as forças da vida
– biodiversidades, naturezaculturas, unwelts. Dessa forma o homem moderno
promove o seu mundo, exclusivamente antrópico, destruindo os demais mundos
possíveis.
Mas o problema do homem moderno começou bem antes da modernidade. Foi
a pedra filosófica da qual falava Nietzsche, pedra nomeada, personificada, de
nome Sócrates, pedra que travou a grande engrenagem filosófica que era a
Grécia antiga, com seus pensadores e gênios atemporais. O que fez Sócrates?
Sócrates deslocou o nosso centro de saber para a consciência, como se a
consciência fosse responsável por conduzir nossas vidas, capaz de retratar e
codificar todos fenômenos vitais. A consciência, que é órgão das marcas, tem
por tarefa recolher resíduos e a partir desses recolhimentos projetar
significações tolas e fantasmáticas. Em um processo de enganação voluntária
ou involuntária, troca-se as causas pelos efeitos, e a suposta razão logocêntrica
apresenta a sua face supersticiosa. É que a crença na consciência é aquilo que
torna os instrumentos da moral forças ativas no campo social. Forças ativas e
efetivas, que enganam, camuflam, figuram, em uma palavra, representam as
inquietudes e perturbações dos processos existenciais.
Tomar a consciência como centro de saber é quase-oposto aquilo que Viveiros,
pelos índios e terranos, chama atenção para “cada espécie ter um centro de
consciência”. Estamos falando do já exaurido perspectivismo ameríndio, que
coloca termos em problemas filosóficos há muito negligenciados. O primeiro
desses termos, podemos dizer, diz respeito às questões próprias do
pensamento, e a primeira dessas questões, para falarmos com Tim Ingold, é de
que a pessoa humana, a condição moral da humanidade, não trata de um
exclusivismo intelectual e nem necessariamente de um avanço de uma espécie
em relação às outras – os homens, e os animais. Pelo contrário, o que vem se
mostrando evidente, e o que Nietzsche já denunciava, é que o homem está com
o tempo cada vez mais próximo do macaco. É que, na verdade, apesar da mente
humana conseguir estabelecer novas e inusitadas compreensões e percepções
acerca do mundo, o pensamento não se constitui pela mente humana, ou seja,
a mente humana é um meio, um mecanismo de transmissão de alguma coisa
externa, forças externas que constituem o pensamento no mundo. A mente surge
com outras condições objetivas. A mente surge com a linguagem. A mente surge
com as ferramentas. A mente surge com o que está fora dela. Cabe investigar
as condições de possibilidade que proporcionam o aparecimento da mente e dos
objetos, tendo essas condições de possibilidade estado formativo igual em
mentes e objetos. Para nós, isso é muito raro: dissociar o pensamento da
condição humana de existência, associar o pensamento apenas a condição de
existência:
“Por exemplo, quando uma semente se mistura com os elementos
materiais, a terra, a água, a luz, o ar, gerando uma rosa, um lírio, é um
produto do pensamento. O pensamento é uma força inconsciente: que
está no homem, como as estrelas estão no céu; autônoma, e condição
de todos os processos criativos que existem.” (Uma nova imagem do
pensamento, Claudio Ulpiano).

Daí, para além da consciência, devemos saber que nosso centro de saber está
em tantos e tantos lugares, nos fluxos de vida que perpassam os corpos, na
perca e reencontro dos sentidos, no delírio, em suma, naquilo que Claudio
Ulpiano chamou de inconsciente absoluto. Estamos falando que o pensamento
é o órgão da diferença. Pois o pensamento é o que:
“(…) faz a graça e a beleza da vida, é a certeza de que o crepúsculo que
vimos ontem será diferente do crepúsculo que veremos amanhã. É a
certeza de que nunca daremos o mesmo beijo, de que nunca sentiremos
a mesma emoção. E o pensamento, assim pode ser dito, é o órgão das
diferenças, como os olhos são os órgãos da luz. Então cabe colocar o
pensamento como aquilo que possibilita, a cada homem, a conquista da
liberdade.” (Uma nova imagem do pensamento, Claudio Ulpiano).

Ciência, homogeneização e modos de vida


Diante de situações extremas, de acontecimentos que transpassam qualquer
razoabilidade lógica, tendemos a reforçar certos traços de nossa subjetividade
psicológica em prol da preservação de uma certa nanototalidade – pequenina
síntese do que nos representa em meio ao maremoto sígnico que nos arrasta
aos vazios do “todo”; a personalização criou a ilusão da originalidade, do
exercício da preferência pessoal. Se encarar como usina, com a mesma potência
de um organismo implacável, constituído por uma série de outros e distante das
delimitações topológicas que mantém cada parte do agora restrita ao
cumprimento isolado de funções mecânicas, pode ser um movimento prudente.
O reconhecimento da fragilidade humana, e acima de tudo, do indivíduo humano,
frente aos limites impostos por sua própria “condição” de animal pensante, serve
como plataforma para o deslocamento radical de perspectivas diante dos
acontecimentos mundanos. Muitas vezes, ser humano não é suficiente para que
sua condição seja preservada. Precisamos diluir entre o caos, fragmentar diante
das camadas de vida que nos invadem, admitir a ilusão proposta pela
racionalidade pura.
Essa ilusão proposta pela racionalidade, através da fetichização de narrativas
científicas pautadas em uma espécie de pureza messiânica e reproduzidas
através de metodologias desassumidamente surrealistas, condiciona os sentidos
do corpo e da alma. Domesticando violentamente parcelas do espaço-tempo –
que por si só, trata-se de uma imagem conceitual condicionada pela mitologia
imperial moderna – acredita-se na consolidação de uma visão existencial
holística, ainda que limitada a recortes dedutivos aplicados intuitivamente. Em
meio a fluidez do concreto, tentativas de classificação da vida alheia sobrepõem
pulsões ocasionadas por todo e qualquer tipo de estímulo, cerceando possíveis
sínteses em detrimento de um suposto bem estar cósmico, encarnado
sistematicamente, dia após dia, pelos paladinos da boa ciência e suas vítimas.
A taxonomia das epistemes reinantes mascara a fuligem gerada pelas
inevitáveis abjeções do mundo, esterilizando boa parte dos processos
existenciais que resistentemente, cosubexistem. Tudo se simplifica, torna-se
funcional, em função do homem, do mercado, e dos mercados humanos -
implacáveis e autocentrados. A ciência pura, considerada legítima e por isso,
legitimada rizomaticamente, vindo a atingir níveis moleculares da existência,
baseia-se na purificação, na distinção substancial entre tipos de animais e de
coisas. Porções de matérias, substâncias e formas colidem-se, se associam e
se dissolvem, sendo apropriadas, apreendidas e digeridas por outras porções de
matérias, substâncias e formas, a partir das mais improváveis conexões.
Nosso “mundo real” surge a partir da concretude dessas narrativas da ciência, e
qualquer esforço que busque transpassar a rigidez imposta por elas é visto como
falácia, mera abstração. A ciência, exclusivamente, seria capaz de produzir
mecanismos de interação e observação tão complexos quanto os encontros
pitorescos consumados a todo momento em nossa intocada atmosfera terrestre?
Certos acontecimentos, para serem evidenciados, exigem uma sensibilidade que
necessariamente deve desconsiderar qualquer modelo universal de
funcionamento.
Se nos apegarmos a intelectualidades acadêmicas (e por consequência,
academicistas), deixaremos de lado todas as possibilidades perceptivas
oferecidas pelo cotidiano de um modo geral. A própria ideia de intelectualidade
se torna obsoleta quando nos propomos a absorver conhecimentos viscerais,
singulares; narrativas que buscam ir além da simplicidade do racional; narrativas
que, acima de tudo, ousam desafiar a concretude das repetições anêmicas de
cada dia. Como sensibilizar o "olhar científico" visando a produção de narrativas
que nos aproximem de outras possíveis objetividades? O ilusionismo científico
não se vê como uma modalidade artística. Na realidade, faz parte de sua
figuração retórica a distinção estrita entre o trabalho artístico e o científico. Mais
uma vez, a pureza contamina os olhares em campo, e toda a grandeza da vida
se coloca abaixo de estruturas conceituais limitadas e limitantes. E assim, a
ignorância se eleva a uma dimensão apoteótica – digna de uma sociedade
pautada pelo chulo espetáculo, quase artística, pode se dizer..

Assim, a reafirmação mecânica de pressupostos elementares dissemina


exposições distorcidas, substancializando formas que necessariamente
remetem a uma espécie de conteúdo matriz, fundante. Cria-se um
distanciamento sistemático em relação a outras linguagens e conceitos visando
a legitimação de mecanismos classificatórios específicos, dotados de alto valor
epistemológico no mercado. A ideia de evolução ainda se desenvolve no
imaginário científico independentemente da propagação de movimentos
involutivos, fortes o suficiente para provocarem dissonâncias em qualquer
diagrama cognitivo considerado razoável e consequentemente, necessário ao
atendimento de certas demandas - transcedentais por natureza, colocadas em
primeira ordem pelas Empresas-Nação e seus vassalos. Criam-se relações e
meta-relações de dependência, nas quais a "dureza' do pensamento - matéria
abstrata, e portanto imaterial - determina sua consistência real, "empírica", e por
encadeamento cognitivo, prática, no universo difuso e ainda obscuro da sublime
intersubjetividade - reino das diretrizes globais e palco da ontologia regional
animalesca típica do Ocidente.

Guattari e Deleuze definem como "involução", "essa forma de


evolução que se faz entre heterogêneos, sobretudo com a condição
de que não se confunda uma involução com uma regressão. (...) a
involução é criadora. Regredir é ir em direção ao menos diferenciado.
Mas involuir é formar um bloco que corre seguindo sua própria linha,
'entre' os termos postos em jogo e sob as relações assinaláveis". (Mil
Platôs, Vol. IV, pág. 15)

Pensamento que se diz duro não passa de consciência. Consciência de que


realmente existe alguma maneira ideal de condução da vida - no sentido mais
genérico e abrangente possível. Consciência de que as vidas se resumem a
consumir traços deixados por forças lógicas sui generis, alocadas num
lugarzinho especial acima de nossas cabeças e entre nossas mãos. "Nossas"
quem? Eu e você? Nós e eles? Ou nenhuma das alternativas? Difícil saber, uma
vez que os esforços para tal entendimento insistem em atender percepções
catedráticas, cientificamente adestradas.

A sacralização de certas instâncias existenciais mascara universos pulsantes


que por si só, adquirem forças. Como devemos nos aproximar das fronteiras que
determinam a espacialidade do racional e do "simbólico", do estrutural e do
residual, sem esvaziar de sentido a riqueza de tais pulsões? Entre o positivismo
messiânico e o relativismo fetichista (ou vice versa), muitos recursos foram
gastos com cofee breaks e recepções, e muita energia, dispendida em prol de
soluções plausíveis para tais questões. Outros mundos, Mundos
cosmológicamente intocados por nossa globalização cognitiva passam a ser
ouvidos atentamente, e mais uma vez, as portas da percepção acadêmica
rangem diante de ventos distantes e selvagens.

Academia, antropologia e vanguarda.


Sem precisar levantar argumentações históricas sobre o nascimento dessa
disciplina – através do imperialismo do saber científico – recorremos ao fazer
atual do antropólogo diante de um mundo que já acaba, e em muitos lugares, já
acabou. Para além do compromisso ético que se deve ter diante da vida, “o
antropólogo” – essa espécie não tão humana assim – coloca sua
responsabilidade profissional como uma bandeira indestrutível diante do tempo
e do vento, sem perceber que todo e qualquer compromisso profissional não
passa e nem deve passar de um compromisso com o mercado, ou com o Estado
– de preferência com os dois. A ética científica, no frigir dos ovos, é uma
figuração gratuita que o sujeito deve ter diante da vida – para evocar Espinosa,
a ética é uma só e ela só vem, só virá, com a força e a violência do pensamento.
A ética é a composição de modos de vida, é uma relação entre os corpos, e o
corpo do antropólogo não precede nenhuma presença sublime ou nenhum
voluntarismo benigno com a ciência, com o saber ou com o mundo. O
antropólogo, ao contrário, pode produzir bons e maus encontros. Dessa forma,
deve nos soar bastante estranho quando um antropólogo, para argumentar com
seus alunos, evoca “a defesa da sua profissão”. Ora, que profissão? A
imperialista? A que colonizou e coloniza povos e mais povos? O braço do
estado? Pode se argumentar, em contrapartida, que a antropologia está
preocupada com o ambiente, com os povos indígenas, que os antropólogos
incomodam a bancada ruralista e etc. No fim, quer se fazer da antropologia uma
vanguarda – que é bem verdade, ela sempre foi. Mas essa ideia de vanguarda,
diante do fim do mundo e dos homens, nos parece um tanto quanto ultrapassada.
Vanguarda de um mundo prestes a acabar, e que, novamente, já acabou.

Retomando a inquietação mencionada a princípio: a ciência (em especial as


ciências humanas), além de produzir cargos e identidades, é capaz de produzir
singularidades? Novas percepções existenciais sobre o outro e sobretudo, sobre
si mesma? Até que ponto, de fato, seremos capazes de romper com a rigidez
abstrata das inúmeras razões seriais que ainda nos mantém dentro de sua
estrutura? Enquanto alunos de graduação, somos produzidos em série.
Rigorosamente adestrados a não pensar. Produzimos consciência, e não
pensamento - sobretudo, má-consciência de nosso devido lugar (ou falta de
lugar) no mercado de trabalho, estrutura cosmológica ordenadora de nossos
tempos e espaços.

As fronteiras que delimitam os campos de atuação científica se abalam, e as


identidades doutorais, engrenagens desta usina taxonômica, resistem
bravamente. Novos nichos de consumo acadêmico emergem, convergindo à
construção de panoramas paradisíacos aparentemente mais dinâmicos e menos
majoritários, moldando novas formas para velhas substâncias - como por
exemplo, a crença numa democracia radical, supostamente inclusiva, capaz de
valorizar a riqueza de epistemes sistematicamente massacradas pela própria
ideia de democracia; ou numa espécie de vanguardismo ascético, respeitoso,
condicionado às ontologias que direcionam as carreiras das ilustres personas
em jogo. Potências molares ainda tentam ditar a tonalidade da dimensão
molecular, que fervilha a todo instante nos corpos e nas coisas, especialmente
o corpo científico e seus fatos sociais – meras coisas.

Diante da vida qualquer integrante universitário é um escandaloso calouro:

"A nossa universidade não é uma universidade para produzir


pensamento. A única coisa que se produz na universidade é
obediência. Se ensina o estudante a obedecer. (...) A loucura e a
literatura, a loucura e a arte, a loucura e a filosofia não param de ser
perseguidas pelas forças repressivas do campo social, psiquiatria e
etc... Porque é exatamente isso. Para produzir esse mundo novo é
preciso correr um risco muito grande. Correr um risco de
pensamento.(...) Ir além de todos os limites que nos foram dados por
Kant, para o pensamento. Transgredir é muito mais do que
transgredir, é produzir exatamente um novo. Produzir
impossibilidades!" - Claudio Ulpiano

Devir-fungos, devir-Brisa, devir-Anna Tsing


Escrevo e sou obrigado a recordar um pouco da minha história pessoal. Li o texto
da Anna Tsing e me encantei. Dias depois, começo uma carta para uma amiga
do café, digo, da cafeteria onde estou prestes a me despedir. (Vira o Viveiros de
Castro em pessoa, no Campus da UFMG, e finalmente percebi a importância de
um grande pensador). Começo a carta e já no quarto parágrafo lanço, fulminante:
“no Brasil café é escravidão”. Não demora muito e num desses momentos de
relapsos definitivos volto a Anna Tsing, à revolução dos fungos, as espécies
domesticadas e escravizadas.
Penso por um momento e chega na ideia a liberdade. Me despeço. Decido
escrever. O café e o sistema mundial – algo assim, identificando os pontos fortes
do café, ou melhor, a percepção do café diante da sua escravidão e da
escravidão do ocidente. Não sei se é necessário dizer, e se digo quero dizer por
todos malditos da terra, mas o mundo-ocidente é o pai-provedor da escravidão
e o conceito de homem é uma prisão ontológica.
Recordo os fungos. Aquela aula que passou, sobre a Anna Tsing, ministrada por
aquela menina, aquela professora Brisa. Na aula, no texto e na alma, alguma
coisa ficou, fora produzida alguma modificação. Devir-cogumelo. As drogas, não
tão drogas assim, e a percepção. É a revolução dos fungos que por contágio me
contaminara.
Já não me sinto mais. Entro em uma daquelas viagens sem volta, rumo ao
inesperado, rumo ao percurso, sem teleologia, sem destino final. Duas mulheres,
Anna e Brisa, uma revolução já feita, sendo feita, a natureza é aquilo que sempre
se faz. A revolução dos fungos no fundo de cada caminhada, de cada momento
de sutil contemplação.
Uma aula é para produzir modificação. Não há razões epistémicas sem preceitos
éticos. E o pensamento, como os fungos, promovem ações em cadeia,
rizomáticas, uma rede vivente e móvel, ações mais clandestinas e mais alegres.
E diante das palavras que já não sei vinda de onde, da Anna, da Brisa ou dos
fungos, crio e percebo, percebo e crio novas relações significativas – novas
relações de amor.
É pelos fungos que percebo que a ciência pode ser uma grande via de
transposição estética. Eu permaneço calado. O silêncio é a expressão mais
verdadeira e efetiva das coisas inomináveis. Guardo tudo para a escrita. Não
opino. Na hora certa me veem as palavras. Abandono toda carcaça do homem
ocidental. Esqueço minha subjetividade psicológica. Estou sempre pronto para
novas e inusitadas experimentações estéticas. Estou apto a ser participado pelas
coisas. Já começo o trabalho.
Antes uma garrafa de vinho e dois baseados. Podia ser pelo contrário: duas
cartelas de LSD e 15g de cogumelos. A faculdade, os estudos, as drogas,a
música, não param de se encontrar. E em cada encontro um suspense. Não há
zona ontológica segura e é preciso dizer, contra o que escrevemos,não há
segurança ontológica. É preciso mudar de ideia. É preciso rir com os conceitos.
É preciso transitar entre sistemas conceituais. Não existem ideias que não sejam
imortais. E as ideias, os conceitos, as memórias devem ser irrestritamente
usados, abusados, torcidos. Sem que o uso, o abuso e a torção se tornem formas
tirânicas de distinção e prestígio.
Pelo contrário. As palavras em seus usos descompromissados, usos
desvairados, pervertidos. É preciso liberar o delírio de direito para chegar à
expressão de fato.

A rua, o rap e outros encontros


O mano cavernoso catador eficaz. A besteira nunca é muda nem cega. É preciso
despertar devires-feras. Penso em Racionais Mc’s, Sabotage, Ponto de
equilíbrio. Não chego a nenhum lugar. Em lugar nenhum posso desenvolver meu
raciocínio sem ser atingido por técnicas de controle. As palavras são ainda os
principais instrumentos de controle. Contudo, as ideias nunca morrem.
E o que tem o velho Badu a ver com devires-leopardos na África Negra? A
criminalização de práticas de resistência, a prática de ideias ancestrais. De
qualquer modo é preciso criar novos devires. E devemos mudar as palavras.
Devenir-malandro, princípios das máquinas de guerra que são necessariamente
ex-an-teriores ao estado.
Como respirar os ambientes tóxicos, tão fétidos quanto Édipo, quanto a paranoia
dos complexos de registro e classificação? Olho debaixo da cama, o olhar
percorre o horizonte de uma cidade grande. A percepção quer imobilizar. Não a
percepção – mas os modos operativos do perceber. Escuto um rap, e a música
aqui escrita não tem valor referencial. Eu escuto um gênero musical e é a música
que passa. Escutar já-é agir. Há processos de resistência, há encontros de
forças entre os corpos. E o ato de resistência é o que possibilita a obra de arte.
Mas os corpos são composições e decomposições moleculares. O que importa
as formas?
A malandragem exige postura. E a ética do malandro passa por intermináveis
agenciamentos. Está aí o segredo da ética que sempre-exige uma episteme.
Existem modos de vida que perpassam por inusitados campos de conhecimento.
Esses campos de conhecimento específicos, inesperados, partem rumo à
loucura, em direção ao Fora. A rua deve ser encarada mais como um campo de
conhecimento que um campo de reconhecimento, pois a rua, o devenir-malandro
e todos os outros devenires envolvidos – devenir-travesti, devenir-futebol,
devenir-pobreza – pressupõem uma série de encontros improváveis, choques
perigosos entre corpos e valores, que em cada encontro devêm ainda outras
relações.
A rua não diferencia natureza de cultura. E nisso, Donna Haraway conosco
devêm. Pois a naturezacultura vivida em todas as ruas passadas e presentes,
ruas que seguem caminhos próprios como as trilhas de um perdido andarilho
sobrepõem os modelos fechados dos palacetes que as compõe. Nenhuma rua
é endereço. A rua é por princípio, ainda que princípio aqui não tenha valor
cronológico, aquilo onde nada está e onde tudo se passa.
Escrita e etnografia
As palavras tem poder. Esse poder das palavras, não está em um campo de
significação ou em um campo de reconhecimento específico. Pelo contrário, o
poder das palavras está em transpassar campos de reconhecimento. É como se
as palavras tivessem o destino de expressar o inexprimível e é como se o
inexprimível tivesse, por acaso, encontro com as palavras. As palavras só
servem enquanto instrumentos cognitivos daquilo que escapa a própria
cognição. O inusitado, o esquizo, o novo, a diferença.
Mas não são as palavras ou as coisas que devem, por princípio, expressar o
novo. A novidade, os processos de criação passam por qualquer campo da vida.
O que expressa, o que confunde, não são os sentidos explícitos. Devemos ter a
coragem do passo adiante: nada é explícito, pois tudo vem a ser. A vida é um
campo abstrato de forças.
Rachar coisas, rachar palavras. Destituir formas molares para compreender e
acompanhar fenômenos micromoleculares. Desacelerar partículas. Cambalear a
percepção. Todos esses processos que aqui escrevo, que aqui expresso, não
possuem níveis hierárquicos de ordenamento, nem via certa de compreensão.
Tudo aqui se passa por intensos processos. Processos do pensamento e suas
vertigens. Vertigens do pensamento, pensamento sem imagem: a nova imagem
do pensamento.
Sento em frente essa máquina. Suficientemente chapado, vou escrevendo. O
surgimento da escrita, recorrentemente relacionada ao aparecimento do Estado,
exige outras práticas e outras crenças. Escrever não é marcar território. Escrever
é desterritorializar. Escrever não determina funções. Escrever processa e
transforma funcionamentos. Escrever não delimita conceitos. Escrever é criar
conceito, é operar sem limites, sem programas fechados. Acontece que
escrever, se tido como ação intencionalmente humana (processo logocêntrico?)
será sempre fantasma, castração e édipo.
Entretanto sonhamos com outra escrita. A escrita dos bruxos, dos poetas
malditos, dos malandros do samba e de todas as músicas. A escrita sem registro
e sem identificação. A escrita para todos e para ninguém. A escrita que se faz
processo e produção. A escrita inumana, fruto do pensamento constante,
rigoroso, tão natural quanto o impossível. Pois a possibilidade do sobrenatural,
ou melhor, a possibilidade de escrever fora dos sentidos, escrever pelo Fora,
parece ser o único caminho possível. A experiência da escrita enquanto aquilo
que testemunha a favor da vida, tratar a escrita como um fluxo, não como um
código. Escrita-viagem.
Escrever é um contágio de fluxos. Fluxos de esperma, fluxos de merda, fluxos
de álcool, droga e música. Sem necessidade de que merda, álcool e música
sejam os temas da escrita. Por uma escrita sem tema e sem assunto. Pelo
deslocamento dos conceitos. Pela dessignificação das palavras. A escrita
atravessa prédios, transpassa coisas, ultrapassa os grandes e pequenos
sistemas mundiais. A escrita é aquilo que se pode chamar de etnografia da
imanência. Expressar com urgência todo e qualquer tipo de acontecimento, de
encontro de corpos.
É que há duas maneiras de ler um texto. Podemos considerá-lo como uma caixa
que remete a um dentro, e então vamos buscar seu significado, e aí, se formos
ainda mais perversos ou corrompidos, partimos em busca do significante. E
trataremos o texto seguinte como uma caixa contida na precedente, ou
contendo-a por sua vez. E comentaremos, interpretaremos, pediremos
explicações, escreveremos o texto do texto, ao infinito. Ou a outra maneira:
consideramos um texto como uma pequena máquina a-significante; o único
problema é: “isso funciona, e como é que funciona?” Como isso funciona para
você? Se não funciona, se nada se passa, pegue outro texto
É aí nossa crítica a antropologia enquanto prática científica. É que a antropologia
ou os antropólogos – no masculino mesmo; os dois (antropólogos e antropologia)
não param de se confundir – reivindica para si um mérito que é propriamente da
escrita. As pesquisas, os registros etnográficos e, enfim e ao cabo, o texto
antropológico no que tem de belo e expressivo não é, não deve ser, seu sistema
fechado de conceitos ou de linhas conceituas, nem suas temáticas acerca da
cosmologia, do parentesco ou dos mitos. Essa coisa do leitor antropólogo
(sociólogo, psicólogo, e assim por diante), da necessidade de uma certa
fidelização legitimadora a partir da linearidade e da “coesão”, é tão irritante... O
que a antropologia, ao nosso ver, tem de maior, está exatamente na sua
capacidade de expressar e exprimir ideias novas aos não iniciados da disciplina,
através da sua literatura antropológica – e em todo caso, literatura etnográfica.
A aventura antropológica, que não é nem colonialista e nem imperialista, deve
ser necessariamente a aventura do pensamento. Pois o risco maior da
antropologia é o risco que temos em todos âmbitos da existência – o risco do
pensamento, o mais alto atributo da vida.
Por isso, se escrevo sobre o rap, sobre drogas, sobre aulas passadas, é porque
entendo que devo entender a importância - não do registro enquanto prática
conceitual – da percepção imanente, como aquilo que deve ser afirmado para
que a expressão possa passar. É como se escrever ligasse, entrasse em
processo, com aquilo que percebo, que vejo, que sinto. Pois aquilo que vejo, que
percebo, que sinto, não tem nenhum valor subjetivo, pelo menos não de uma
subjetividade psicológica. O que há de valor nesses perceptos está naquilo que
não está contido em nada. Parece ser esse o funcionamento da imanência:
aquilo que não se prende e nem se contêm. Se estamos falando em
processamentos, fluxos, devires, é porque nos parece que uma prática científica,
artística e filosófica presentemente potente deve levar por princípio as condições
efetivas da existência - caso contrário, estaremos caindo em preceitos
moralmente valorativos, que negam a vida, que propagam o ódio contra-si e
contra o mundo.

A cidade e as coisas
Recolocar-se no mundo de outras maneiras, recolocar-se diante das coisas, é
liberar a multiplicidade das carapuças ontológicas. Recolocar-se diante das
coisas é recolocar-se diante da cidade, é uma forma de deixá-las mais humanas.
Deixá-las quem? A cidade, as coisas ou os homens?
Mas deixar as coisas mais humanas, de que modo podemos compreender este
fenômeno? Entre o calor insuportável da manhã, o barulho ensurdecedor dos
automotivos, o tempo que não para de passar e não para de oprimir os sentidos
e a percepção, devemos propor outras técnicas de neutralização da tolice. O
silêncio, para compormos com Le Breton, é uma das vias técnicas que agora se
fazem iminentes. A caminhada contemplativa, “flanear”, cada caminhada é
literalmente seguir e multiplicar os interlocutores e sensibilidades.
A alegria para se fazer presente, nas cidades, nos espaços massacrados pela
força econômica – a invisível mão que bate, a mão invisível do mercado –
procura e alcança o impossível, pensa o impensável. Outra palavra sobre o
pensamento. O pensamento, aquilo onde nada está e onde tudo se passa, não
é feito por preceitos da riqueza capital, seja ela econômica ou cultural. Escuto
Sabotage e em suas palavras percebo um grande pensador. Um pensador está
entre todas as coisas. E podemos dizer que existe um perspectivismo urbano,
onde os diferentes pontos de vista produzem verdadeiros campos de batalha,
sangrentos e viscerais.
O Estado é pensado como um campo neutro de forças. Na verdade o Estado é
aquilo que compõe as forças políticas vigentes. Olho para a Serra, a favela ao
lado de onde escrevo esse texto. Vejo uma indústria do tráfico. Por um segundo,
enxergo a presença do Estado, compondo os campos de possibilidade para a
proliferação da selvageria moralista que alimenta e injeta a hipocrisia do tráfico.
O estado não intervém, pois é o estado que permite e propaga a escravidão dos
povos pelos meios de consumo na sociedade de mercado. É o estado junto ao
mercado – para Viveiros e Danowski, é o planeta Mercadoria – que induz a
produção sem sentido (hobby) e traça os caminhos do consumo sem
necessidade (turismo).

Diluir sujeitos humanos, queimar registros em série


Suicídio identitário. Predação do self. Integração molecular aos acontecimentos.
Dopamina, canabinóides, gasolina, carbono, água, globo ocular, braços, pernas,
pedais, sinais de trânsito. Tudo isso integrado em torno de um agenciamento
que me distancia por completo da condição de cidadão, tendo em vista o fato de
eu estar transgredindo uma série de diretrizes instituídas pelo Estado, por
homens do Estado, e no fim, simplesmente por homens, visando um movimento
de transformação em algo mais. Transformação em máquina, integrada a uma
série de elementos difusos que juntos, me fazem flutuar pelo asfalto gorduroso
e quebradiço. Máquinas associando-se a máquinas e mais máquinas.
Em meio a um oceano de mutantes amorfos e inquietos, me torno outras coisas.
Minha identidade social se funde a novas formas de vida, dissolvendo pouco a
pouco as malhas biográficas que me mantém fiel a certa idealização vital. Pobre
“eu”, completamente à mercê dos outros... Outros quem? São tantos, mas
tantos, que variam completamente dependendo da perspectiva adotada. Posso
estar à mercê da polícia e de seus mecanismos de vigilância e arrecadação de
impostos, do governo, dos Estados Unidos, do Brasil, mas também à mercê de
infindáveis microorganismos, bactérias de todos os tipos, insetos, roedores,
plantas, circuitos, parafusos, logaritmos frios e engrenagens que sutilmente,
sobrepõem minhas percepções causando distinções elementares.
Se existem forças transcendentais como a mão do mercado ou a mão de algum
outro deus, elas certamente se encontram entre esses “outros”, manifestando-
se a partir das materialidades e dos corpos celulares que se emaranham
desordenadamente nos tempos e nos espaços. A partir dos corpos, da
observação atenta dos corpos e seus movimentos, somos capazes até de
enxergar espíritos. Espíritos mundanos, mundos espirituais.
Os sujeitos, entre sete bilhões, são numerados em série, sou um número entre
tantos outros. Eu não me enxergo como a, ou como b. A letra poderia ter a
possibilidade das singularidades. Mas sou dotado número, em série, no meio de
tantos outros infinitesimais. Meu modelo individualizador, a verdade que posso
ser, vem de um regime, regime das verdades. Sou, portanto, duplo. Específico-
já-produto-mercadoria e múltiplo: ponto entre bilhões. Deixo me enxergar como
um ser de expressões plurais e subjetivas e passo a me ver como parte de
produção em massa de valores e estilos de vida, sentimentos e interações-
sócias já planejadas, previstas e vividas por tantos outros, vivências já pré-
moldadas. Assim abandono minha própria singularidade e me enquadro numa
fórmula de sentimentos; me perco no limbo de generalizações onde ter meu
próprio eu seria como voar perto demais do sol. Esse voo próximo ao sol poderia
me destruir, assim como fodeu Ícaro, e infelizmente, ainda estamos muito
apegados a moral desta fábula.. Jamais contemplamos o breve momento de
liberdade que nosso amigo teve voando rumo ao sol (sendo um indivíduo longe
de si mesmo, na loucura e no fracasso).

Imanência, estilo e expressão


Continuemos. Nosso desejo de expressão não pode parar. Sem um intuito dos
perfumes acadêmicos, sem vontade de criar um texto que propague e explore a
insistente masturbação acadêmica, em contraponto, exercitamos o pensamento
como se fosse uma punheta. O texto precisa criar seu platô. Mas o platô se faz
imanência. Se disserem que nós estamos desviando, “fazendo filosofia no curso
errado”, podemos dizer que entendemos, que aprendemos que a antropologia é
filosofia com gente dentro. Podemos dizer, somos essa gente. Qualquer um é. A
gata do meu amigo Charles, também é essa gente. O crackudo do meu bairro, o
cachorro da rua, qualquer coisa que se faz presente se faz gente.
Falamos de imanência como palavra central, pois a imanência não é um conceito
fechado, da qual devemos atribuir um referencial bibliográfico para nos
inteirarmos do debate acadêmico ou a qualquer outro círculo (circo) de debates.
Não nos interessa “o debate acadêmico”. É preciso erguer um novo conceito: o
conceito da diferença ao invés de diferença conceitual. Nunca estaremos
fechados, adestrados em uma carteira, disciplinados dentro de uma disciplina.
Não é esse nosso propósito.
Corremos o risco da repetição e do texto – essa maravilhosa experimentação
que fomenta as mais criativas linhas de encantamento – se tornar chato,
repetitivo. A verdade é que quando se escreve tenta-se modificar tudo o que se
pensa e se encontrar novamente, ao final, diferente do que era ao começo. Então
se percebe que se tem mudado relativamente pouco. Talvez se tenha mudado
de perspectiva, se tenha girado em torno do problema, que é sempre o mesmo,
digamos, as relações entre o sujeito, a verdade e a constituição da experiência.
Mas é que o rigor do pensamento exige um movimento de despersonalização,
uma prática inumana que vá ao caos, que difira muito pouco do caos, implicando
uma espécie de experimentação tateante, recorrendo a meios pouco
confessáveis, pouco racionais e razoáveis. E quando vamos ao caos – não
queremos referenciar conceitos, idolatrar pensadores. Falamos de Guattarri e
Deleuze com muita naturalidade. Pensamos com eles. E o fato deles serem
filósofos, franceses, homens brancos e assim por diante em nada influencia a
composição, a associação de forças que traçamos com seus pensamentos. Os
pensadores só existem enquanto plataforma para o pensamento, para fazer o
pensamento passar.
Trata-se de uma diferença estética entre modos de pensar.
Nos parece muito estranho ter que escrever como alguém que deve no seu texto,
escalar furgões burocráticos. Como se dissessem: “não vá por aqui, não seja
pedante, nós não buscamos singularidades múltiplas, buscamos
reconhecimento social nos campos acadêmicos, vocês também devem continuar
essa trilha”; ou: “você não vai se atrever a falar em seu nome enquanto não tiver
lido isto e aquilo, e aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo.” Acontece que não
queremos utilizar de nenhum tribunal da Razão, nem usarmos comedidamente
as faculdades. Essas práticas, assim como a enxergamos, estimulam uma
submissão tanto mais hipócrita quanto mais nos confere título de legisladores.

Pensamento e possibilidades de vida


Bem, seria um pouco estranho mudarmos o tom e em um novo movimento de
escrita, propormos outras ideias. Lemos e escrevemos, eu e o Estevão, o João
e eu, já de algum tempo com o intuito de estranhar. Na verdade, a literatura, o
ordenamento das palavras em formas textuais, exprimem uma necessidade
grande de causar estranhamentos, que seria o mesmo dizer, causar
modificações nos sujeitos, tirando o sujeito do lugar consciente em que os seus
hábitos são tomados enquanto sua própria natureza.
Nesse intuito, viemos levando de dois ou três anos para cá, todas as
experiências com literatura, seja ela filosófica, sociológica, antropológica,
jornalística, literária e assim por diante, como experiências de extremo risco e de
contínua transformação. É quando nos demos conta de que a vida é uma coisa
muito bonita, mesmo sobrecarregada de paixões, ilusões, formalismos,
opressões. É que, em verdade, a beleza da vida está em sua capacidade de
estranhar, em um dos seus princípios fundantes, a diferença.
Decidimos então tomar por princípio, valores dos mais inusitados. Nossas
relações com as drogas, por exemplo, é algo de inusitado e é parte constituinte
desse texto. Não por usarmos droga e isso causar algum sentimento de
pertencimento e identidade. Menos ainda por ser parte constituinte dos nossos
hábitos. Pelo contrário: é aquilo que não conhecemos nas drogas, ou seja, a
capacidade de modificar percepções, que mais nos parece raro. É porque com
as drogas entramos em processo análogos com uma multiversidade de guetos,
gentes malditas, coisas esquecidas-dilaceradas, crenças místicas
inconscientes-produtivas... É que tentam separar o indiscernível ou fixar o que
pertence a cada um de nós. Mas visto que cada um, como todo mundo, já é
muitos, isso dá muita gente. E as drogas nos faz, cada um a seu modo, proliferar.
Percebemos que é na literatura que nosso campo de visão se espalha. Se a
literatura é de cunho antropológico, científico, filosófico, literário, novamente, isso
não tem nenhuma importância. Chamamos atenção para o 3º gênero do
conhecimento, aquilo que considera a possibilidade das forças da vida provirem
e provocarem campos de possibilidades outros, novas composições,
associações com a natureza. Estamos chamando atenção para o terceiro gênero
do conhecimento, o que daria na mesma dizer, estamos convocando a presença
do pensamento.
Quando falamos em terceiro gênero do conhecimento, estamos nos associando
explicitamente a Espinosa. É que Espinosa teve a força e a coragem de avaliar
a constituição dos afetos para compreender o funcionamento das forças que
constituem o campo abstrato da vida. E avaliando esses fenômenos, foi o
primeiro entre os pensadores a perceber a importância das singularidades das
coisas, dos encontros, dos acontecimentos. Nessas singularidades estão
contidas as capacidades de transformação que são inerentes aos fluxos da vida.
Para existir o 3º gênero do conhecimento, é preciso que exista o primeiro e o
segundo. O primeiro gênero do conhecimento é quando o sujeito humano
adquire a capacidade de se conscientizar. Esse termo, nada amável, indica o
surgimento da organização consciente da memória, em que a memória guarda
e significa marcas, passa a constituir a compreensão do sujeito humano diante
dos acontecimentos da vida. A consciência, portanto, produz fantasmas
passados para interpretar acontecimento presentes, drenando a possibilidade
latente de outros futuros, outros presentes e outros passados – que, pela mente,
podem tornar-se passados presentes.
No 2º gênero do conhecimento, já não é mais a consciência que analisa e
interpreta os fenômenos da vida. Está nascendo uma possibilidade de prática
científica. O sujeito humano passa agora a enxergar relações entre sua mente e
aquilo que está fora. Há a organização da linguagem que constitui o estado
social. Há um raciocínio estrutural que formata, engendra, faz funcionar e
organiza o campo social. Há, em suma, a composição de relações entre
cognição e mundo-fora.
Entretanto, como Espinosa vai nos mostrar, esses dois gêneros tendem a forças
reativas e as vontades negativas. Essas associações humanas, essas
composições do homem entre sua mente e imanência existencial tenderão a cair
em um campo de tolice e superstição. Espinosa é de extrema violência. As
relações humanas, inclusive as relações humanas com sua capacidade de
perceber e criar relações, são insuficientes para uma compreensão completa
com a Natureza.
É porque, Espinosa vem denunciar, que o homem ao imaginar, projetar, sonhar
ou refletir, esquece que sonhar, imaginar, projetar e refletir são efeitos de
processos da Natureza. Que as coisas do espírito são fenômenos naturais. No
sonho, por exemplo, o homem descansa sua mente, repousa naquilo que irá
esquecer, e enquanto repousa uma série de substâncias vivas compõe seu sono
e seu sonho – e o que chega na mente humana são processos efetuantes dessas
composições. Sendo efeito das composições, o pensamento perde sua
capacidade transcendente, ou seja, ele não se faz e não é algo a priori, exterior
a natureza, deslocado dos anatomos vivos.
Coube então à Espinosa investigar quais seriam as possibilidades para o
homem. Tendo a qualidade de corpo, àquilo que tem ação (capacidade de agir
e causar acontecimentos) e paixão (propriedade de receber e sofrer ações), o
sujeito humano estaria, como todos os outros corpos, constrangido por forças
que vêm de fora. Ou seja, o sujeito humano teria uma causa passiva.
Entretanto o que se passa no sujeito humano não é a expressão latente da
natureza. Ou seja, a Natureza ou Deus, é causa ativa, ela afirma constituindo
forças, fazendo associações, causando modificações constantes. Há uma
grande questão aí, que está presente em todo nosso trabalho; há alguma coisa
na Natureza que tem por funcionamento afirmar à vida, testemunhar o belo,
enaltecer a grandeza das multiplicidades e das possibilidades intensivas nos
campos existenciais.
O que Espinosa está dizendo é que, apesar da constituição humana diante dos
séculos ter por fundamento o enaltecimento de efeitos como causas, é possível
para o homem abandonar esse campo da tolice e passar a compreender os
processos da vida. O que ele está dizendo é que o homem tem a possibilidade
do pensamento, e que o pensamento é aquilo que se passa no homem e não é
um atributo humano. O que ele está elucidando é que o pensamento se constitui
no homem como as forças ativas se constituem na natureza; há uma similaridade
nesses agenciamentos e essa similaridade é o que permite ao homem produzir
uma vida nova.
Para que o pensamento possa passar, Espinosa vem nos dizer, há de ter um
desligamento dos processos cognitivos regidos pela consciência. Ou, para falar
com Bateson, é preciso conhecer os processos comunicativos que formam
duplos vínculos, capazes de gerar vínculos esquizofrênicos entre os humanos e
outros animais e entre os humanos e as coisas. Existiria, segundo Bateson,
planos múltiplos de aprendizagem e determinação de tipos lógicos de sinais. E
para que esses sinais não se tornem palco da comunicação esquizofrênica e em
todo caso, paranoica, é preciso entender – ainda que entender aqui não passe
por tipos lógicos determinantes de expressão – os processamentos que
constituem esses tipos lógicos de sinais e os planos múltiplos de aprendizagem.
Bateson é um pensador do terceiro gênero do conhecimento, ele investiga os
processos constituintes da vida para afirmá-los, para potencializar a
compreensão e para usar da compreensão como máquina-latente para a
construção de novos mundos possíveis.
Nesses novos mundos possíveis, a consciência passa por um processo de
desqualificação. A consciência, àquilo que coleta e guarda marcas, deixará de
ser o centro dos nossos saberes. O que está acontecendo aqui é o abandono de
uma segurança do ser em si próprio, ou seja, o sujeito humano pensante é
aquele que presta seu corpo há um campo difuso de batalha; ele não tem órgãos,
é constituído de forças; seu corpo é um campo de experimentação. Sua história
pessoal, suas marcas infantis, seus campos fantasmáticos de significações, tudo
isso se rompe enquanto zona fundante do ser e é isso que será inevitavelmente
seu grande desafio: se dissociar dos imperativos categóricos que fundam a
condição ontológica humana.
Então, para Espinosa, os acontecimentos humanos tem o mesmo tipo de
particularidade na Natureza. Os humanos são regidos, movimentados por afetos
que ele não conhece e pela prática da consciência jamais irá conhece-los. O que
caberia, como redenção e libertação às prisões ontológicas, seria a composição
do homem com forças inconscientes, forças da natureza, forças do pensamento.
Então, o pensamento deixa de ser ação referenciada no ser para ser aquilo que
está fora do ser e que só se faz no ser enquanto passagem, fluxo, devir. Há uma
grande violência aqui. A violência do destronamento. A corrosão da condição
ontológica.
Essa violência, essa explosão, ainda não é tudo. Vêm a possibilidade das
associações com o Fora, com as forças inumanas do pensamento, com o caos.
O pensamento passa por uma enorme zona de risco, surge a cartografia do
perigo e o risco superior da vida começa a ser traçado. Deslocado de si e tomado
pelas forças dos ventos contrários, o sujeito passa a ser orientado por estímulos
a-significantes. Seus agenciamentos só se fazem para potencializar as forças da
vida. Não há niilismo. Não há vontades negativas. Ou melhor, há, elas estão
sempre presentes.
Mas essas forças reativas sempre presentes, por serem reativas, tem por
princípio obedecer e sucumbir diante da rigorosidade, da dificuldade e do
encantamento das forças produtivas da Natureza. Os efeitos são analisados já
nas causas, por já estarem presente nas causas. As causas são ativas e
constituem possibilidades múltiplas de ação. O corpo é àquilo que afirma e
manifesta a grandeza da vida – não àquilo que enlaça o homem à morte, campo
minado de ideias, preceitos negativos, moralmente valorativos.
O que o 3º gênero vai nos trazer é um vínculo secreto constituído pela crítica do
negativo, pela cultura da alegria, o ódio à interioridade, a exterioridade das forças
e das relações, a denúncia do poder. O 3º gênero é aquilo que vai fazer passar
alguma coisa de muito bonito, que é a própria possibilidade da diferença como
princípio imanente da vida. O 3º gênero é aquilo que constitui o pensamento
como força associativa entre homem e natureza e que por isso mesmo é capaz
de fazer do homem outra coisa.
É que, quando Espinosa vem denunciar o homem no século XVII, ele já
percebera que a relação utilitária do homem com o meio iria nos levar a um limiar
bastante excludente. A impossibilidade da conservação térmica do planeta, entre
outras coisas, indica que as composições orgânicas da vida na terra estão a um
fio do desaparecimento. Mas a vida para Espinosa, pelo terceiro gênero do
conhecimento, não é corpo, nem função, nem matéria. Com algum risco,
podemos dizer que a vida é funcionamento, gerúndio, imanência, acontecimento.
De qualquer forma, a vida não é aquilo que é, mas aquilo que passa e faz passar.
E já que a vida é aquilo que passa e faz passar, podemos dizer que a vida ainda
não se faz presente, ou seja, que talvez a vida ainda não tenha começado
nesse planeta. Em tempos de fim do mundo, Espinosa nos parece uma
belíssima linha de fuga que faz surgir e proliferar novos tipos de vida.

Conjugações e possibilidades de leitura


Não somos simpáticos à construção de uma ciência que se contente em ser
meramente prescritiva - valorizamos a descrição dos acontecimentos.
Acreditamos em uma descrição densa, que busque contemplar o máximo de
elementos possíveis, imagináveis, impossíveis e inimagináveis. Obviamente,
nos desapegando de visões existenciais-analíticas que se consolidaram
elegendo um certo tipo de “ser” humano enquanto centro gravitacional de suas
análises, realocando tal substância ferozmente em meio a uma amalgama de
significações, significados, símbolos, matérias e ouras substâncias. Acreditamos
numa narrativa que seja complexa, mas que simplifique ou expresse a densidade
dos acontecimentos; é o caminho mais viável para a produção de uma ciência
que se proponha a considerar a necessidade da imanência. A transcendência
metodológica afasta as narrativas da fluidez dos acontecimentos, das
associações que corriqueiramente são consumadas e se destroem. Nosso texto
é uma substância reticular, vívida, móvel, pulsante, porosa, na qual se pode
entrar e sair por qualquer lado, e o que for absorvido dessa substância já é válido
para que o pensamento continue a passar. Não há ordem no texto para sua
apreciação. Em qualquer momento, frase, parágrafo, é possível é extrair algo.
Se todas essas ambições são e serão alcançadas, não podemos dizer. O que
dizemos é o que fizemos, e escrevemos a todo momento com esses intuitos em
mente.
Existem modos de leitura que não se compatibilizam com bons comportamentos.
Existem leitores que se recusam a participar de clubes de literatura subversiva.
Acreditamos, por conveniência ou inconveniência da nossa parte, que esses
modos são os mais adequados e criativos. É claro, cada um deve criar suas
maneiras de se comportar diante de um texto, de uma pessoa, de um conceito,
de um animal. Nós acreditamos que o texto é um organismo vivo, cheio de
átomos, mônadas, partículas que transmitem ideias, palavras, conceitos, que
geram incessantes modificações. O texto, em suma, é uma prática: ele nunca se
faz pronto.
*
Sobre as questões do pensamento colocadas no trabalho, indicamos esse
belíssimo texto de Claúdio Ulpiano, profundo estudioso de Guatarri e Deleuze:
http://claudioulpiano.org.br/ulpiano-filosofo/intimos/uma-nova-imagem-
dopensamento-claudio-ulpiano/

Para um estudo mais delicado dos seus pensamentos através das suas aulas:
https://acervoclaudioulpiano.com/

Para o detalhamento do terceiro gênero do conhecimento e das coisas do


espírito:
https://www.youtube.com/watch?v=oBDEZSx6xVs

Para curtir um som, enquanto se lê:


https://www.youtube.com/watch?v=2tn28G0sU9E
https://www.youtube.com/watch?v=b-K2Ik-eLwM

Para uma breve compreensão do que é o rap, indicamos Helião:


https://www.youtube.com/watch?v=Icbb6Hg0G0I

Para a história a importância do Rap no século XXI, e suas conseqüências


econômicas, culturais e artistícas:
https://www.youtube.com/watch?v=M3-yW6G_6AY

Para a confecção de utensílio que pode assessorar toda leitura do texto:


https://www.youtube.com/watch?v=4oJ9MHgW8DQ

Potrebbero piacerti anche