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Temas de Direito III

Universidade Federal do Piauí


a
Gestão Primavera
Ana Beatriz Silva Ferreira
(Organização)

Temas de Direito III


DIREITO CONSTITUCIONAL
DIREITOS HUMANOS
CIÊNCIA POLÍTICA
DIREITO ELEITORAL
DIREITO PENAL

1ª edição

Teresina - Piauí
2017
a
1ª edição

Temas de Direito III


Ana Luísa Melo Nogueira
Ana Teresa Ribeiro da Silveira
Andreia Marreiro Barbosa
Augusto César Bezerra Chaves
Carolina Pereira Madureira
Catarina Vilna Gomes de Oliveira Santos
Iago Masciel Vanderlei
Liza Tajra Nery
Luana Elainy Rocha Magalhães
Lucineide Barros Medeiros
Luzia Eduarda Bezerra Valadares
Marcus Vinícius Carvalho da Silva Sousa
Pedro Rhuan Piauilino Lima
Samille Lima Alves
Yago Roberto Lopes Correia Lima

Teresina - Piauí
2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
Reitor: Prof. Dr. José Arimatéia Dantas Lopes
Vice-Reitora: Prof.ª Dr.ª Nadir do Nascimento Nogueira
Superintendente de Comunicação Social: Prof.ª Dr.ª Jacqueline Lima Dourado
CONSELHO EDITORIAL
Ricardo Alaggio Ribeiro (presidente)
Acácio Salvador Veras e Silva
Antonio Fonseca dos Santos Neto
Cláudia Simone de Oliveira Andrade
Solimar Oliveira Lima
Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz
Viriato Campelo

Editora da Universidade Federal do Piauí - EDUFPI


Campus Universitário Ministro Petrônio Portella
CEP: 64049-550 - Bairro Ininga - Teresina - PI - Brasil
Todos os direitos reservados

Organizador: Ana Beatriz Silva Ferreira (Gestão Primavera)


Impressão: Gráfica Universitária da UFPI
Capa: Francicleiton Cardoso
Projeto Gráfico e Diagramação: Joana D’arc Corrêa Cortez Almeida

Banca Examinadora
Profª Ms. Christianne Matos de Paiva
Profª Dra. Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Profª Ms. Natasha Karenina de Sousa Rego
Prof. Dr. Samuel Pontes do Nascimento

FICHA CATALOGRÁFICA
Serviço de Processamento Técnico da Universidade Federal do Piauí
Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco

T278 Temas de Direito III / Organizadora, Ana Beatriz Silva


Ferreira. – Teresina: EDUFPI, 2017.
181 p.

ISBN 978-85-509-0257-9

1. Direito. 2. Pesquisa. 3. Produção Acadêmica. 4.


Trabalho Científico. 5. Direitos Humanos. I. Ferreira,
Ana Beatriz Silva.
SUMÁRIO

Prefácio - Andreia Marreiro Barbosa ...................................... 10

Capítulo 1 - A EFICÁCIA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS


DE GÊNERO E SEU IMPACTO NAS CANDIDATURAS
FEMININAS PARA A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO
ESTADO DO PIAUÍ - Samille Lima Alves e Lucineide
Barros Medeiros .................................................................... 15

Capítulo 2 - DIRIGISMO CONSTITUCIONAL E DE -


SENVOLVIMENTISMO: A ATUALIDADE DO COM-
PROMISSO SOCIAL DO CONSTITUCIONALISMO LA-
TINO-AMERICANO - Ana Teresa Ribeiro da Silveira e
Yago Roberto Lopes Correia Lima .......................................... 46

Capítulo 3 - FEMINICÍDIO NO SISTEMA PENAL BRA -


SILEIRO: ANÁLISE CRÍTICA ALÉM DA TIPIFICAÇÃO -
Carolina Pereira Madureira e Andreia Marreiro Barbosa ...... 67

Capítulo 4 - A RAZÃO COMUNICATIVA E SEU


FUNCIONAMENTO – ANÁLISE DO CASO DANIELLA
PEREZ - Liza Tajra Nery e Luzia Eduarda Bezerra Valadares ......... 86

Capítulo 5 - UMA ANÁLISE DAS CON TRIBUI -


ÇÕES DE “A GAROTA DINAMARQUESA” AO ENSINO
DO DIREITO COMPROMETIDO COM OS DIREITOS
HUMANOS- Iago Masciel Vanderlei e Marcus Vinícius
Carvalho da Silva Sousa ............................................................... 101
Capítulo 6 - SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO E O
DESEMPENHO DOS PARTIDOS POLÍTICOS NAS
ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2016 - Pedro Rhuan Piauilino
Lima e Samille Lima Alves ............................................................ 118

Capítulo 7 - O DIREITO À TERRA: BREVES NOTAS


SOBRE TERRI TÓRIO - Luana Elainy Rocha Magalhães ........ 137

Capítulo 8 - FEMINICÍDIO: A LEI 13.104/2015 COMO


UM INOVADOR JURÍDICO NA TUTELA DOS DIREITOS
DAS MULHERES - Augusto César Bezerra Chaves e
Catarina Vilna Gomes de Oliveira Santos .............................. 152

Capítulo 9 - A FEDERAÇÃO É A UNIDADE: JÚLIO DE


CASTILHOS E A DEFESA DO ULTRAFEDERALISMO
TRIBUTÁRIO NA PRIMEIRA CONSTITUINTE REPU-
BLICANA - Ana Luísa Melo Nogueira ............................... 165
Préfacio

Este livro é artesanado com a ousadia e o compromisso de


estudantes que assumem as rédeas dos seus processos de educação
e se colocam como sujeitas1 capazes de criar, inventar, construir e
não apenas reproduzir conhecimento. O protagonismo estudantil
e o incentivo à pesquisa, portanto, são marcas dignas de distin-
ção desta coletânea, que vocaliza artigos científicos sobre temas
fundamentais à comunidade jurídica e à sociedade em geral. Ao
lançar o Concurso de Artigos Maria Sueli Rodrigues de Sousa, a
Gestão Primavera do Centro Acadêmico de Direito Cromwell de
Carvalho (CACC) fez mais: provocou deslocamentos e fissuras na
história da educação jurídica na Universidade Federal do Piauí
(UFPI). A sala de retratos do Departamento de Ciências Jurídicas
(DCJ) ilustra minha afirmação: em suas paredes, não identifica-
mos rostos femininos. No curso de Direito da UFPI, como no de
tantas outras universidades brasileiras, o lugar das mulheres, es-
pecialmente das negras e das filhas da classe trabalhadora, sempre
foi a ausência ou exceção.
Maria Sueli é exceção. Rara. A lógica do capital lhe
destinou o curso técnico, o emprego de operadora de caixa no
comércio e secretária, mas com indignação e coragem tor-
1 Transgrido o masculino plural e neutro e escrevo no feminino em busca de coerência e
respeito ao testemunhar a existência de Maria Sueli Rodrigues de Sousa.
nou-se professora, advogada e cientista social. Mulher, negra,
pobre, moradora da roça, desafiou o determinismo e, em um país
construído em desigualdades, chegou a ser professora do ensino
fundamental e médio de escolas particulares em Teresina e depois
professora no curso de Direito da Universidade Federal, espaço
historicamente destinado às elites piauienses. Rompeu o asfalto e
abalou as estruturas de raça, classe e gênero; entretanto, em vez
de louvar e acreditar na meritocracia, lutou para que o direito
à educação superior e a Constituição de 1988 fossem levados a
sério. Professora Sueli nos ensinou que as exceções confirmam
as regras de uma sociedade perversa, em que as pessoas negras,
sobretudo as mulheres, ainda não são reconhecidas como sujeitas
constitucionais, não têm direito à vida digna, muito menos acessos
democráticos à educação superior.
Em 2017, pela primeira vez, professora Sueli é convidada
para ser patronesse de uma turma de formandos, a turma Espe-
rança Garcia — no mesmo ano em que a Comissão da Verdade
da Escravidão Negra prepara dossiê para solicitar o reconhe-
cimento de Esperança Garcia como advogada. Professora Sueli
chama atenção para o que Antônio Bispo, doutor da vida, re-
conhecido nas Universidades de Brasília e Minas Gerais e seu
amigo de tantas lutas, denomina de confluência. A confluência
é tamanha que os artigos publicados nesta obra estão implica-
dos com os esforços para olhar o Direito a partir das lentes de
gênero, raça, etnia, classe, demonstrando um compromisso com
horizontes mais democráticos, mais igualitários, mais humanos,
mais justos – esforços e compromisso inspirados na rigorosida-
de da homenageada. Assim é professora Sueli: possui a rigorosi-
dade de quem está engajada com a coisa pública, de quem sabe
o valor do suor do povo brasileiro que mantém a estrutura de
uma universidade funcionando e, por isso, sabe também da res-
ponsabilidade em lutar por uma educação pública de qualidade.
Quem foi seu estudante está ciente da lembrança fundamental
de que a universidade é erguida e sustentada com verba pública,
uma advertência cotidiana da professora: “Leram o texto? Não?
Vocês estão jogando fora o dinheiro público”.
Presença visceral no mundo, esperança-fortaleza, pro-
fessora Sueli é uma provocadora de deslocamentos, uma crítica
incansável. É uma sonhadora, é uma fogueira, dessas que quem
chega perto, pega fogo, como versa Eduardo Galeano. Desde que
cheguei na Universidade de Brasília, em 2011, inúmeras vezes,
colegas lembravam-se dela, a quem se reportavam com muito
respeito e admiração. Ali, na universidade-sonho de Darcy Ribeiro
e Anísio Teixeira, construída com o objetivo de pensar o Brasil,
professora Sueli cursou o doutorado em Direito. Ali, pensou os
povos da Serra da Capivara, pensou o Piauí, dando seguimento
ao trabalho que já tinha iniciado no mestrado, investigando as
ruralidades e as questões socioambientais. Estudante disciplinada,
resistente, determinada, é uma sujeita singular, que sabe ler os
livros e sabe ler o mundo. A curiosidade e a crítica aguçadas
em toda a sua trajetória de vida, na universidade e também fora
dela, são evidentes em sua atuação como professora na UFPI,
nas disciplinas Teoria Geral do Direito (TGD) e Sociologia
Jurídica, em que as estudantes são estimuladas e avaliadas
pela escrita de trabalhos acadêmicos que, ao longo dos anos,
têm rompido a redoma das disciplinas e sido apresentados em
eventos científicos. Foi desse compromisso com a docência que
nasceram os Seminários de TGD, uma semente que deu vida,
posteriormente, aos Encontros Interdisciplinares de Direitos
Humanos. Em união com as disciplinas de Direitos Humanos,
ministrada por mim, e Biodireito, ministrada pela professora
Natasha Karenina, em 2016, e agregando professoras e estudantes
da UFPI e outras instituições, em edições seguintes, o evento
vem constituindo um importante momento de trocas e reflexões
sobre direitos humanos no estado.
Professora Sueli é amiga do "sim, e daí?", por isso é não
só uma professora exemplar, mas também uma pesquisadora
admirável. Na coordenação do Grupo de Pesquisa e Extensão
Direitos Humanos e Cidadania (DiHuCi) e do projeto de
extensão Cajuína, na UFPI, trabalhou com as comunidades
quilombolas e tradicionais Contente e Barro Vermelho e com
a comunidade pesqueira Pedra do Sal, ambas impactadas por
projetos de desenvolvimentismo. Suas atuações desafiam o
epistemicídio e a colonização do saber institucionalizados nas
universidades brasileiras e provocam encontros entre o saber
científico e o tradicional na luta pela garantia da dignidade
humana. Neste grupo, coordenou uma pesquisa financiada
pelo Projeto Pensando o Direito, do Ministério da Justiça, em
2012 e 2013, sobre a violação dos direitos das comunidades
quilombolas gerada pelo Estado nos processos administrativos
e judiciais de desapropriação de imóveis rurais em decorrência
do projeto Transnordestina. O trabalho, desenvolvido com uma
equipe formada majoritariamente por estudantes de graduação,
é um exemplo de pesquisa socialmente engajada, por demonstrar
as contradições do Estado brasileiro e apontar a crueldade de um
judiciário capaz de indenizar com 5 reais um agricultor que perdeu
seu pedaço de terra. Diante das limitações acadêmicas, nesta
atuação, nasceu em 2014 o Coletivo Antônia Flor (CAF), grupo
de advogadas populares que desenvolvem ações de litigância
estratégica na defesa de direitos humanos, o que demonstra
o fazer-ser da professora Sueli assentado na articulação entre
ensino, pesquisa, extensão e movimento.
Essas experiências contribuíram para a formação de
um grupo de jovens pesquisadoras e professoras. Sou uma de
suas aprendizes. Juntas, temos conjugado o verbo esperançar
construindo a Comissão da Verdade da Escravidão Negra e a
Comissão de Direitos Difusos e Coletivos da Ordem dos Advogados
do Piauí (OAB/PI), o Curso de Especialização em Direitos Humanos
Esperança Garcia e a Ciranda de Juristas Populares. Temos nos
inspirado nesta mulher extraordinária que foi Esperança Garcia,
uma negra escravizada que há 247 anos escreveu uma carta ao
governador da capitania denunciando as situações de violência
por que passava com seus filhos e suas companheiras. Nossas
energias têm sido empenhadas em comunicar a voz insurgente
por direitos humanos de Esperança Garcia, infelizmente
ainda ocultada das histórias oficiais. Compartilho o texto em
português atualizado: "Eu sou uma escrava de vossa senhoria
da administração do Capitão Antônio Vieira de Couto, casada.
Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da fazenda
dos algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira da
sua casa, onde nela passo muito mal. A primeira é que há grandes
trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que
lhe faz extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que
sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez de Sobrado
abaixo peiada; por misericórdia de deus escapei. A segunda estou
eu e minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança
minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a Vossa Senhoria
pelo amor de Deus e do seu valioso poder que ponha os olhos em
mim, como Procurador ordene que o Capitão me mande de volta
para a fazenda de onde ele me tirou para eu viver com meu marido
e batizar minha filha. De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia, 6 de
setembro de 1770". Esperança nos uniu. E sua ousadia e coragem
têm nos dado forças para pensar e enfrentar os obstáculos de um
cotidiano marcado pelo racismo, elitismo e machismo.
A intelectual negra Angela Davis disse que "as mulheres
negras tiveram que desenvolver uma visão mais ampla da nossa
sociedade, mais do que talvez qualquer outro grupo. Elas tiveram
de compreender os homens brancos, as mulheres brancas e
os homens negros. E elas tiveram de se compreender. Quando
uma mulher negra conquista uma vitória é um ganho para
praticamente cada segmento da sociedade." Não temos dúvida. Em
2016, imaginávamos que Maria Sueli Rodrigues de Sousa era uma
mulher forte. Em 2017, aprendemos que o que ela carrega tem
outro nome, que ainda não descobrimos na língua portuguesa.
Professora Sueli é artesã negra das vozes-irmãs que sentem,
sofrem com os sistemáticos silenciamentos e ocultamentos. Mas,
como Esperança Garcia e Conceição Evaristo, professora Sueli
pratica a Escrevivência. Fala de si, fala de nós, se insurge para
reivindicar direitos de todas aquelas que não são vistas como
sujeitas. É infinita fiadeira de sonhos e esperanças.

Com amor,
Andreia Marreiro Barbosa
Teresina, maio de 2017.
I

A EFICÁCIA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS DE GÊNE-


RO E SEU IMPACTO NAS CANDIDATURAS FEMINI-
NAS PARA A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTA-
DO DO PIAUÍ

Samille Lima Alves1


Dra. Lucineide Barros Medeiros2

1 Introdução
Desde a conquista ao direito de sufrágio, da capacidade
civil plena no século passado até a promulgação da Constituição
Cidadã de 1988, a mulher brasileira ocupou importantes espaços
na esfera pública e privada. Apesar dos avanços, ainda são notó-
rios os traços de uma sociedade fundada no patriarcalismo que
atribui prerrogativas às mulheres em condições inferiores aos ho-
mens, tendo vedado por muito tempo o acesso à educação, a livre
manifestação de vontade, a possiblidade de exercer um ofício ou
mesmo o direito à sucessão. É visível a desvalorização do trabalho
da mulher que ainda recebe remuneração menor que o trabalha-
dor do sexo masculino no exercício do mesmo ofício. São maioria
1 Advogada, Bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. E-mail: samilleli-
ma@outlook.com.
2 Professora da Universidade Estatual do Piauí. Doutora em Educação pela Universidade do
Rio do Sinos. E-mail: lucineidebarrosmedeiros@yahoo.com.br.

15
entre o número de analfabetos e as principais responsáveis pela
educação dos filhos e trabalhos domésticos, necessitando conci-
liar as rotinas profissionais com os cuidados com a família e pos-
suem inexpressiva representação nas instâncias formais de poder.
Muito se tem debatido sobre a função da mulher na atual
sociedade e das dificuldades enfrentadas e da importância do sexo
feminino preencher cada vez mais os espaços predominantemente
masculinos. As ações afirmativas surgiram como possiblidades de
inclusão da mulher no meio político formal. Tais medidas foram
adotadas ainda na década de 1970 por países europeus e entraram
em vigência no Brasil duas décadas depois. Trouxeram consigo
debates e posicionamentos antagônicos, dentre os que suscitam
a questão do mérito, da inconstitucionalidade, da imperiosidade
da adoção das cotas eleitorais para inserir de modo mais incisivo
a mulher nos diversos cargos eletivos, uma vez que não se pode
considerar como estado democrático aquele no qual uma parcela
significativa da população não pode influir nos rumos da sociedade.
Buscou-se analisar a problemática do distanciamento
da mulher brasileira e piauiense do campo político e a impor-
tância em assegurar tal participação como forma de se garan-
tir a concretização do princípio constitucional da isonomia,
da democracia e da cidadania. E, sob a ótica das ações de dis-
criminação positiva adotadas no Brasil com a promulgação
das leis 9.096/1995, 9.100/1995, 9.504/1997 e 12.034/2009, ve-
rificar as mudanças ocorridas ao longo de 20 (vinte) anos, se
tais medidas tem sido eficazes e tem cumprido o objetivo para
qual foram criadas, qual seja, a inserção feminina na política.
Para tanto, comparou-se os candidatos e eleitos em razão
do sexo, no período entre 1996 e 2016, para as câmaras legislativas
pátrias, com enfoque na Assembleia Legislativa do Piauí. Coleta-
ram-se informações sobre ações afirmativas e a representação fe-
minina na política em diferentes fontes bibliográficas, com desta-
que aos autores Araújo, Miguel, Pinheiro, Varikas, dentre outros.
A pesquisa quantitativa de base documental foi realizada no ban-
co de dados virtual do Tribunal Superior Eleitoral. Os resultados
obtidos foram organizados em tabelas, utilizando-se de técnica de

16
percentagem. A escolha desse intervalo temporal foi de extrema
importância na análise do impacto e da eficácia das cotas na inser-
ção da mulher na política.

2 AS AÇÕES AFIRMATIVAS DE GÊNERO NO SISTE-


MA ELEITORAL BRASILEIRO.
2.1 A problemática da sub-representação da mulher na política
brasileira.

As mulheres correspondem a 51% da população brasileira


segundo o IBGE3, proporção completamente diferente da que se
verifica no campo político. O quadro de representação política da
mulher brasileira fomentou (e ainda fomenta) debates, proposi-
ções e tensões, que culminou com a adoção das cotas de gênero na
política no Brasil. Entretanto, o problema persiste, não obstante a
vigência da legislação de cotas desde 1996.
Farah4 discriminou o número mulheres candidatas e o de
eleitas no intervalo de 1932 a 1994, observando que, das 492 mu-
lheres que disputaram cargos ao Congresso Nacional, apenas 123
foram eleitas em 15 eleições ao longo de 62 anos. O percentual
de representatividade feminina nas Assembleias Legislativas foi
ainda menor visto que, entre 1946 e 1994, das 1.387 candidatas
à deputada estadual, apenas 200 se elegeram. Segundo a Inter-
Parliamentary Union5, até 01 de janeiro de 2014, a média mun-
dial de participação das mulheres nos parlamentos era de 21,77%,
considerando 189 países. Nas Câmaras baixas a participação foi
de 22,16%, enquanto nas Câmaras altas de 19,64%. Das nações
analisadas, apenas 39 apresentaram percentual superior a 30%
de mulheres compondo as câmaras da plebe. O Brasil ocupou a
124º posição no ranking, integrando o grupo de países com o pior
3 IBGE, 2010.

4 Citada por MASCHIO, 2003.

5 INTER-PARLIAMENTARY UNION, 2014.

17
desempenho (apenas 8,6% das mulheres ocupando a Câmara dos
Deputados e 16% no Senado Federal.
As explicações suscitadas ao problema são diver-
sas. Miguel e Biroli6 distinguiram três vertentes explicativas. Na
primeira, enfatiza-se o caráter patriarcal subjacente às instituições
políticas liberais. Na segunda, os padrões culturais e de socialização
que constroem o político como espaço masculino e inibem o
surgimento da "ambição política" entre as mulheres. A última
versa sobre os constrangimentos estruturais à participação política
das mulheres que possuem, em regra, restrito acesso a recursos
econômicos e menos tempo livre que os homens. A discussão
acerca do patriarcalismo envolve a histórica diferenciação dos
papéis de gêneros na sociedade. Competia às mulheres o trato
da casa e da família, o cuidado e a educação dos filhos, enquanto
aos homens a vida pública, o trabalho externo e a manutenção
econômica da família. Quando crianças estavam sob o mando
do genitor e após o casamento subordinavam-se aos maridos. O
espaço privado continua na maioria dos lares brasileiros sob a
responsabilidade da mulher que tem a difícil tarefa de conciliar
a vida pública com a vida privada, o que dificulta a ascensão a
cargos de decisão e chefia, que ainda percebem rendimentos
inferiores aos dos homens no exercício de atividades similares7.
Na década de 1930, permitiu-se às mulheres o exercício de
um ofício, vedando-se, contudo, o trabalho nas áreas consideradas
masculinas. A Constituição indicou que os cargos das áreas de
ensino e saúde fossem ocupados necessariamente por mulheres
(art. 121, § 1º, d e § 3º da Constituição de 1934)8. Construiu-se uma
imagem estereotipada da mulher sempre meiga, dócil, emocional,
cuidadosa: a elas estariam reservadas as profissões consideradas
femininas, como professora, enfermeira e secretária, não se in-
cluindo nesse grupo a política9.
6 MIGUEL E BIROLI, 2010. p. 655-656.

7 PINHEIRO, 2007. p. 80; TABAK, 1982. p. 64, PINTO, 2001. p. 103; BLAY, 2001. p. 85.

8 BRASIL, 1934.

9 SILVA, 2010. p. 129.

18
Varikas10 afirma que o sistema político é naturalmente excluden-
te, assim a sub-representação feminina é uma constante desde a
obtenção do direito de sufrágio. Bellozo11 entende que o problema
não se trata exclusão por distanciamento, mas sim que essa política
é pouco permeável às mulheres. Outros autores suscitam dificul-
dades e até a resistência partidária em inserir a mulher na disputa
eleitoral, preferindo investir em seus candidatos, em detrimento
de uma candidata com chances de vitória12. Araújo13 pontua que
não há um grande universo de mulheres dispostas a concorrer
a cargos eletivos, o que ocorre não porque sejam mais apáticas
que os homens e sim em razão das trajetórias sociais e a situação
estrutural frente às relações de gênero, aliadas às condições em
que a política institucional e a competição eleitoral operam no
país, não lhes oferecem um cenário favorável ou sequer animador.
Alguns estudiosos14 entendem que, em regra, os
recursos são destinados aos concorrentes com maior chance
de elegibilidade, não se ajustando nesse perfil, a maioria das
candidatas. Logo, a falta de capital social dos grupos dominados
(ou mais frágeis) é um dos mais evidentes limites à participação
na política o que impossibilita uma disputa igualitária e real aos
cargos eletivos. Todavia, Araújo15 salienta que a análise da inserção
da mulher na política não pode estar centrada na manifestação da
chamada resistência masculino-partidária, pois "a ênfase na ideia
de resistência ou preconceito tende a gerar certa subestimação
dos fatores institucionais relacionados com o sistema político-
eleitoral, bem como com a capacidade de avaliação das mulheres".
Para a aludida autora, o espaço político foi estruturado com
base nas vivências das práticas masculinas. É nesse contexto
que permanece e é reproduzido. Contudo, as mulheres também
10 VARIKAS, 1996. p. 66.

11 BELLOZO, 2006. p. 53-54.

12 PINHEIRO, 2007. p. 83; ABREU, 2010. p. 25; FONSECA, 2012. p. 57.

13 ARAÚJO, 2001. p. 238.

14 ABREU, 2010. p. 26; PINTO, 2001. p. 102.

15 ARAÚJO, 2009. p. 27; 2001. p. 239.

19
são agentes desse quadro, pois podem conquistar autonomia e
racionalidade para as escolhas.
De fato, a questão de gênero não é a única que influencia
na baixa representatividade feminina. Não cabe a simples
afirmação de que há uma forte intervenção dos partidos e seus
dirigentes, esquecendo-se de todo o planejamento partidário,
no intuito de lançar o maior número de candidatos que tenham
condições de elegibilidade, independentemente do sexo. No
presente trabalho, apreciaremos tal problemática sob a ótica do
gênero sem desconsiderar a ingerência de questões culturais,
econômicas, sociais, dentre outras, que determinam a dinâmica
da participação da mulher no cenário do legislativo brasileiro e
piauiense.

2.2 Por que as mulheres precisam ocupar espaços nas instâncias


decisórias?

A discussão sobre a sub-representação feminina na


política leva-nos a refletir sobre o distanciamento das mulheres do
poder. Muitos consideram que esse quadro deve ser modificado,
por não condizer com e até ferir a democracia, uma vez que as
mulheres devem estar presentes nos parlamentos, nos tribunais,
nos gabinetes do Executivo, na direção dos partidos políticos e
nos mais altos postos de chefias de empresas. Diante desse po-
sicionamento, uma questão imperiosa se apresenta: por que as
mulheres devem ocupar espaços nas instâncias decisórias?
Miguel16 aponta três vertentes que procuram justificar a
necessidade de se assegurar a participação da mulher na políti-
ca. A primeira diz respeito à representação descritiva em que as
mulheres precisam ocupar mais espaços na política formal por
uma questão de justiça intuitiva, por não ser correto um grupo
tão numeroso ser extremamente sub-representado no âmbito
político. A segunda trata da política do desvelo, segundo a qual

16 MIGUEL, 2000. p. 92.

20
as mulheres, por saberem como cuidar, devem adentrar na
esfera política, trazendo um abrandamento para esse meio
essencialmente masculino; a terceira vertente é a política de
presença, em que as mulheres são legitimadas para proteger
os interesses que lhes concernem. Para o autor17, a descrição
representativa é problemática, pois quando se analisa a
indispensabilidade de representação política por grupo, faz-
se necessária a determinação de quais categorias de pessoas
devem ser levadas em conta, tarefa que é fruto de lutas e
pressões políticas. Sob essa ótica, entende-se como prejudicial
a distância da mulher das esferas políticas e, de tal monta,
o distanciamento dos demais grupos minoritários. Porém,
como se fatiar o parlamento por grupos? Como delimitar
quais categorias devem imprescindivelmente ter participação
garantida?
No sistema democrático representativo, a participação
política possibilita em tese, que qualquer do povo tenha seus
interesses defendidos e garantidos pelos representantes.
Todavia, a ideia de democracia como garantia de participação
de todos os cidadãos em igualdade perdeu-se na prática ao
longo dos anos, tornando-se cenário de disputas de interesse
de grupos, em especial os da minoria dominante. Questiona-
se se a modificação do significado fático do sistema
democrático não legitimaria a fragmentação do parlamento.
Araújo18 entende como questão de reparação e justiça a
equidade de presença entre homens e mulheres, sendo
prejudicial a ausência feminina na política, uma vez que as
decisões tomadas afetam diretamente as mulheres e o efeito
pode não ser positivo. Varikas19 aduz que o reconhecimento
da dimensão de gênero consiste em integrar nas assembleias
representativas as mulheres, enquanto mulheres, e os homens
enquanto homens, contudo, isso é estranho e ameaça a visão
17 MIGUEL, 2000, p. 95.

18 ARAÚJO, 2011. p. 93-94.

19 VARIKAS, 1996. p. 73.

21
de indivíduo abstrato no sistema político, que é substrato de
base da democracia representativa e é desprovido de qualquer
atributo particular.
Quanto à política do desvelo, Miguel 20 expõe que
esse posicionamento é prejudicial, por restringir a área de
atuação das parlamentares aos temas sociais, afastando-as
do que ele denominou de hard politics, que engloba os temas
de administração pública, política econômica e relações
internacionais. O autor considera ainda que

O discurso da "política maternal" insula as mulheres neste nicho


(o social) e desta forma, mantém a divisão do trabalho político,
uma divisão que mais uma vez destina aos homens as tarefas
socialmente mais valorizadas. Ao mesmo tempo, torna impossível
que se cobre dos homens a sua parcela de responsabilidade na
educação das crianças ou, em termos mais gerais, para com as
futuras gerações. Trata-se de uma perspectiva essencialista, que
apresenta um "eterno feminino" (associado às tarefas de cuidar
dos outros) e, assim, naturaliza a atribuição dos papéis sexuais.

A política de presença considera que as mulheres são


as melhores advogadas de si mesmas devendo apresentar e
defender seus anseios presencialmente nos parlamentos.
As críticas a esse posicionamento devem-se à divisão do
parlamento como um retrato exato da sociedade o que
não é possível nem plausível visto que, os representantes
políticos possuem obrigações com seus representados,
devendo defender seus interesses de forma geral. Por sua
vez, os defensores da política de presença entendem que
esperar por uma ação generalizada dos agentes políticos
do parlamento é um posicionamento ilusório, dado que,
independente de exercer um mandato que sirva à população
em geral, o parlamentar defenderá interesses dos grupos
que lhe aprouver.
Tal justificativa, da mesma forma que a política
de desvelo, restringe a atuação política da mulher,

20 MIGUEL, 2000. p. 92-93.

22
desconsiderando que as parlamentares estão ligadas aos
partidos seus posicionamentos políticos e que sustentam
outros interesses, desvinculados das questões de gênero.
Varikas 21 discorda da visão de que apenas alguém de um
grupo pode falar por este e considera ingênua a ideia das
parlamentares defenderem somente interesses relacionados
ao gênero, deixando de agir segundo suas posições políticas.
Araújo 22 sintetiza a questão afirmando que:

Primeiro, porque há a crença de que política importa. Segundo,


porque se promove um link entre uma cidadania ativa e
participatória e demandas por direitos e igualdade política
e civil. Por fim, o foco na agência das mulheres aponta para a
importância das suas atividades como mães, trabalhadoras e
ativistas e para a interconexão das diferentes arenas do estado,
do mercado e da sociedade civil.

Sobre o tema, algumas indagações pertinentes


são levantadas por Varikas 23 : a presença de um número
considerável de mulheres eleitas nas assembleias é capaz
de neutralizar imagens bem mais marcantes presentes no
cotidiano de mulheres (e homens) e que retratam uma
realidade na qual prevalecem a segregação, a dependência,
a hierarquia, a desvalorização, a heteronomia que se abatem
sobre um dos sexos? Outrossim, essa presença é capaz
por si mesma de suscitar uma dinâmica de mobilização e
resistência por parte de outras mulheres? Pode constituir-
se num ponto de partida para a transformação substantiva
das condições materiais e simbólicas que fazem das
mulheres cidadãs de segunda classe? Tais indagações não
serão detalhadamente analisadas no presente trabalho,
mas são importantes quando tratamos sobre a relevância
da atuação não apenas das mulheres, mas da população
em geral no contexto da política brasileira.
21 VARIKAS, 1996. p. 74.

22 ARAÚJO, 2012. p. 157.

23 VARIKAS, 1996. p. 89.

23
3 UMA ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
DE AÇÕES AFIRMATIVAS DE GÊNERO NA
POLÍTICA

O Brasil instituiu as cotas eleitorais de gênero em 1995.


Desde então, o legislador pátrio consolidou as ações afirma-
tivas de gênero na legislação eleitoral subsequente, com des-
taque para a Lei nº 9.100/1995, a Lei nº 9.504/1997 e a Lei nº
12.034/2009.
A Lei nº 9.100/1995 foi pioneira no Brasil no
estabelecimento de reserva de vagas para mulheres nas listas
eleitorais dos partidos. O legislador adotou expressamente
cotas com reserva de vagas, garantindo às mulheres 20% nas
listas partidárias (art. 11, § 3º). Ainda foi permitido o aumento
do número de candidatos por partido/coligação (art. 11, §§ 1º
e 2º). O que na prática, reduziu o percentual real das cotas
que configurou o aumento de candidatos concorrendo no
mesmo pleito24. A medida não era obrigatória nem acarretava
qualquer sanção ou penalidade por parte da Justiça Eleitoral ao
partido que a descumprisse, o que frustrou as expectativas de
progresso na representação política feminina. A lei não previu
qualquer outra medida que contribuísse juntamente com a cota
para a inserção política da mulher. A despeito das deficiências
apontadas, essa norma jurídica foi importante, pois trouxe à tona
a questão da sub-representação política da mulher brasileira,
reconhecendo-a como problema e levantando a necessidade de
modificá-lo.
A Lei nº 9.504/1997, denominada de lei das eleições,
regulou as eleições gerais no país desde 1998 e foi alterada
pelas leis 9.840/1999, 10.408/2002, 10.740/2003, 11.300/2006,
12.034/2009, 12.350/2010 e 12.875/2013. O termo "mulheres",
utilizado na primeira norma, não foi reproduzido nessa lei, que
24 BELLOZO, 2006; ARAÚJO, 2001.

24
ainda dispôs sobre a reserva mínima e máxima de cotas por
sexo:
Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara
dos Deputados, Câmara Legislativa, Assembleias Legislativas e
Câmaras Municipais, até cento e cinquenta por cento do número
de lugares a preencher.
(...)
§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste
artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo
de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para
candidaturas de cada sexo25.

A reserva de 30% novamente foi mitigada com o aumento


em 150% do número de vagas que cada partido/coligação
poderia dispor. Também não foi prevista qualquer punição aos
partidos que descumprissem o dispositivo legal. Para Bellozo26, a
inexistência de ônus legal para o partido facilitava o lançamento
de candidaturas fictícias o que diminuía o impacto das medias
afirmativas. A simples inserção de mulheres nas listas eleitorais
não garante que as concorrentes estejam aptas para a disputa.
A inclusão de candidatos de diversos segmentos sociais não
importa dizer que o partido deseja ver a classe representada. O
abarcamento desses grupos implica em visibilidade ao partido, o
que pode ser convertido em mais votos e na possibilidade de eleger
mais representantes e intensifica o chamado "efeito contágio",
influenciando os partidos a adotarem medidas que favoreçam a
inclusão feminina27.
A Lei nº 12.034/2009 promoveu mudanças substanciais
no sistema brasileiro de cotas de gênero, modificando a lei dos
partidos e a lei das eleições. Outros tipos de ações afirmativas
foram adotados e a inovação ficou por conta da previsão de
punição aos partidos que descumprissem as determinações legais.
Ao art. 44 da Lei nº 9.096/1995 foi acrescido o inciso V, que previu a
destinação obrigatória do mínimo de 5% do fundo partidário para
criação e manutenção de programas de incentivo à participação das
25 BRASIL, 1997.

26 BELLOZO, 2006. p. 73.

27 ARAÚJO, 2005. p. 195; WRIGTH, 2009. p. 91; PINTO, 2001. p. 102.

25
mulheres. A penalidade em caso de descumprimento consiste na
impossibilidade do partido utilizar o fundo para outra finalidade,
além de ter acrescido ao valor mínimo legal o percentual de 2,5%
(art. 44, § 5º).
Incluiu-se o inciso IV ao art. 45 da Lei nº 9.096/1995, que
determinou aos partidos políticos o desenvolvimento de formas
de difusão e promoção da participação feminina na propaganda
partidária. Para tanto, devem dedicar ao menos 10% do tempo
destinado à propaganda eleitoral partidária para tal finalidade. Em
caso de descumprimento, a Justiça Eleitoral aplicará as seguintes
penalidades:
Art. 45. (...)
§ 2º O partido que contrariar o disposto neste artigo será punido:
I - quando a infração ocorrer nas transmissões em bloco, com a
cassação do direito de transmissão no semestre seguinte;
II - quando a infração ocorrer nas transmissões em inserções,
com a cassação de tempo equivalente a 5 (cinco) vezes ao da
inserção ilícita, no semestre seguinte28.

O percentual de reserva de vagas nas listas eleitorais


previsto no § 3º do art. 10 da Lei nº 9.504/1997 foi mantido em
30%. A modificação trazida pela Lei nº 12.034/2009 ficou por conta
da troca da expressão "deverá reservar" por "preencherá": "Art.
10, § 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste
artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30%
(trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para
candidaturas de cada sexo29".
Segundo entendimento do Tribunal Superior Eleitoral,
o termo preencherá tornou aquele dispositivo em uma norma
imperativa aos partidos que, se desobedecerem, serão penalizados
pela Justiça Eleitoral. Dessa forma, a Lei 12.034/2009 veio ao
encontro a parte das críticas proferidas à legislação brasileira de
cotas de gênero. Todavia, ainda restringe as ações afirmativas ao
sistema proporcional e à reserva de vagas nas listas eleitorais e
não ao parlamento como querem os defensores da paridade30.
28 BRASIL, 1995
29 BRASIL, 1997.
30 RICHARTZ, 2007, MIGUEL, 2000, ARAÚJO, 2001, 2009, 2011.

26
4 A EFICÁCIA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS DE
GÊNERO NA POLÍTICA BRASILEIRA

A adoção das medidas de discriminação positiva pelo


legislador pátrio foi fruto de intensas e longas discussões travadas
por grupos de mulheres, organizações sociais e parlamentares,
iniciadas ainda na década de 1970, em todo o mundo, tendo como
marco as Convenções promovidas pela Organização das Nações
Unidas (ONU). Analisando-se o teor das Leis nº 9.100/1995,
9.096/1995, 9.504/1997 e 12.034/2009, percebeu-se que as medidas
tiveram por alvo direto os partidos políticos, dirigindo-lhes
comandos imperativos a fim de incrementar o quadro de mulheres
na política formal.

4.1 O impacto das medidas afirmativas de gênero na representa-


tividade feminina nos partidos políticos brasileiros

Não obstante a obrigatoriedade de difusão e promoção da


participação feminina, a atuação dos partidos nesse sentido ainda
não é consistente e eficaz no Brasil. Analisando-se a situação
concreta, até outubro de 2016, dos 35 partidos registrados no
Tribunal Superior Eleitoral, 19 previam expressamente nos
estatutos órgãos ou departamentos para mulheres31, enquanto
os demais, com exceção do NOVO e do PMB, organizaram
departamento destinado às mulheres não mencionado nos
estatutos.
As ações afirmativas para mulheres estiveram presentes
nos estatutos de 18 partidos, que trataram da reserva de vagas
para mulheres nos órgãos partidários, nas listas de candidaturas
para mandatos eletivos e na destinação de percentual mínimo
do fundo partidário para promoção de programas de incentivo
à participação da mulher na política, conforme teor do art. 44, V,

31 Os dezenove partidos são: PTB, PDT, PT, DEM, PSB, PSDB, PRP, PPS, PV, PP, PRTB, PSDC,
PSOL, PR, PSD, PPL, PEN, PROS e SD.

27
da Lei nº 9096/95. A reserva de vagas foi a medida adotada pelos
seguintes partidos: PDT, PSB, PPS, PP e REDE. Enquanto PMDB,
PTB, PT do B, PHS, PSL, PRB, PR, PROS, SD e NOVO dispuseram
apenas sobre a aplicação do fundo partidário. As duas medidas
foram adotadas simultaneamente pelo PT, PSDB e PV. Dos 17
partidos que não previram qualquer tipo de ação afirmativa de
gênero, dez alteraram seus estatutos após a publicação da Lei nº
12.034/2009, não se adequando à lei, a saber, PSTU, PC do B, PSOL,
PPL, PTC, PRP, PSD, PEN, PSDC e PMB (Apêndice A - Quadro 1).
A maioria dos partidos ou coligações não preenche as
vagas nas listas eleitorais com o percentual mínimo, seja ainda
pela ausência de mulheres dispostas a concorrer ou por influência
do comando partidário. Nos casos de inobservância da norma
eleitoral da cota mínima por gênero, a jurisprudência do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) é pacífica quanto à forma de penalizar os
partidos que não preencherem ao menos 30% de candidatos por
sexo em suas listas eleitorais.
No julgamento do RESPE 78432 PA/201032, o TSE
esclareceu que o cálculo desse percentual deve ser feito com base
no número de candidatos efetivamente lançados pelo partido ou
coligação. Caso não seja atendido, o TRE local deverá convocar
o partido para proceder ao ajuste e regularização na forma da
lei. O TSE entendeu também que se o percentual mínimo não
for atingido, será defeso ao partido ou coligação preencher
com um sexo as vagas destinadas ao outro. Tal conduta, nos
dizeres do Ministro Arnaldo Versiani Leite Soares, tornaria
inócua a previsão legal de reforço da participação feminina nas
eleições, com reiterado descumprimento da lei. Caso não seja
possível o preenchimento do percentual mínimo, o partido ou
coligação deverá reduzir o número de candidatos masculinos
para adequar os respectivos percentuais cuja providência,
caso não atendida, ensejará o indeferimento do demonstrativo
de regularidade dos atos partidários (RESPE 2939 PE/2012)33.
32 BRASIL, 2010.

33 BRASIL, 2012.

28
Ademais, o preenchimento do percentual mínimo deve ser
observado no momento do registro da candidatura e em eventual
preenchimento de vagas remanescentes ou na substituição de
candidatos (RESPE 21498 TRE-RS/2013)34.
Quanto ao repasse obrigatório do mínimo de 5% (cinco por
cento) do fundo partidário, os Tribunais Regionais Eleitorais do
Pará e da Paraíba decidiram que há possibilidade de compensação
no exercício seguinte quanto à do percentual mínimo de recursos
do fundo partidário (PC 3784 TRE-PB/2013)35 e que o partido que
descumpriu o disposto no artigo 44, V, § 5º da Lei nº 9.096/1995
será penalizado com o acréscimo de 2,5% ao percentual mínimo de
5% (PC 6142, TRE-PA/2013)36.
Em relação às irregularidades na propaganda eleitoral, os
Tribunais Eleitorais de São Paulo e do Espírito Santo entenderam
que o art. 45 da Lei nº 9.096/95 é cumprido quando difunde ideias
que promovam a participação política da mulher ou quando
demonstre a efetiva atuação e o desempenho das mulheres filiadas
a um determinado partido, não bastando a simples narrativa
por pessoa do sexo feminino que não seja filiada ou não esteja
identificada (REP 30416 TRE-SP/2013)37. O descumprimento foi
considerado uma infração e ensejou a cassação do tempo de
propaganda de partido no equivalente a cinco vezes o que
deixou de reservar para as mulheres (REP 26956 TRE SP/2013;
REP 29202 TRE SP/2013)38 e no percentual de 10% do tempo
total das inserções veiculadas39. Sem dúvidas, a atuação dos
órgãos da Justiça Eleitoral é imprescindível para que as ações
afirmativas de gênero sejam cumpridas em sua inteireza pelos
partidos e coligações. As penalidades, em seu caráter educativo,
minimizam a discricionariedade da direção partidária quanto à
elaboração das listas e na aplicação das demais medidas.
34 BRASIL, 2013.

35 PARAÍBA, 2013.

36 PARÁ, 2013.

37 SÃO PAULO, 2013b.

38 SÃO PAULO, 2013c; SÃO PAULO, 2013a.

39 ESPÍRITO SANTO, 2014.

29
4.2 A representatividade política da mulher brasileira e piauien-
se e a influência das cotas de gênero.

Desde a adoção das ações afirmativas de gênero, o número


de mulheres candidatas ao cargo de vereador só aumentou passando
de 33.279, em 1996, para 142.732, em 2016, o que, em relação aos
candidatos do sexo masculina, representou um salto de 17,32%
para 32,46%. Entretanto, o mesmo não ocorreu quanto às eleitas,
que alcançaram o maior índice em 2016, com 13,52%, enquanto em
1996 foram 11,07%. Logo, quando comparados os eleitos de cada
sexo, verificou-se que permanece baixa a representação política da
mulher nas câmaras municipais (Tabela 1).

Tabela 1 – Eleições para as Câmaras Municipais: candidatos e


eleitos por gênero de 1996 a 2016.

Ano
de Total Total
eleição

1996 33.279 17,32 158.878 82,68 192.157 4.347 11,07 34.931 88,93 39.278
2000 70.395 19,15 297.297 80,85 367.692 6.987 11,60 53.235 88,40 60.222
2004 76.684 22,14 269.665 77,86 346.349 6.548 12,64 45.256 87,36 51.804
2008 72.476 21,92 258.154 78,08 330.630 6.504 12,53 45.399 87,47 51.903
2012 134.113 31,90 286.291 68,10 420.404 7.653 13,33 49.740 86,67 57.393
2016 142.732 32,46 297.033 67,54 439.765 7.768 13,52 49.806 86,48 57.592

Total 529.679 23,35 1.567.318 76,65 2.096.997 32.039 12,29 228,561 87,71 260.600

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral.

Para a Câmara Federal, entre 1998 e 2014, houve


considerável aumento na quantidade de mulheres candidatas
(397,17%). Quanto aos eleitos, a bancada feminina na Câmara
Federal que se mantinha na proporção de 8% desde 2002, com
pouca variação em 2006 (8,58%) e em 2010 (8,77%), saltou para
9,94% em 2014. Em termos absolutos, o número de Deputadas
Federais passou de 29, em 1998, para 51 em 2014. Quanto às
Assembleias Legislativas, o cenário é bem similar ao descrito
acima. O número de candidatas aumentou 235,12% de 1998 a 2014,

30
enquanto o número de eleitas subiu 12,75% no período avaliado.
Porém, o número de eleitas caiu na última eleição, pois em 2010
foram eleitas 134 deputadas estaduais (12,95%), enquanto em 2014
esse número foi de 115 (11,11%).
Em relação à Assembleia do Distrito Federal, o aumento
das candidaturas femininas foi de 143,22% também entre 1998 e
2014. Das 24 (vinte e quatro) vagas disputadas a cada pleito, as
mulheres ocuparam em média 4 (quatro) cadeiras por legislatura,
totalizando 21 deputadas distritais no período. Em 2014, as
mulheres representaram 20,83% dos parlamentares distritais.
O número de homens candidatos cresceu no período em
questão, para os três cargos, mas em proporção menor (39,20%,
19,09% e 35,86%, respectivamente). Curiosamente, o número de
eleitos decaiu também nos três cargos (-4,55%, -1,39% e -5,00%,
respectivamente). Entretanto, os homens ainda são maioria
considerável das casas legislativas no Brasil, representando 90,06%
dos deputados federais, 88,89% dos deputados estaduais e 79,17%
dos deputados distritais (Tabela 2).

Tabela 2 - Eleições para as Câmaras Federal, Estadual e


Distrital: candidatos e eleitos por gênero de 1998 a 2014.
Candidatos

Cargo e eleitos
por sexo
1998 % 2002 % 2006 % 2010 % 2014 %
Mulheres 353 10,33 490 11,41 628 12,67 933 19,09 1755 29,15
candidatas
Deputado (a)
Federal

Homens 3064 89,67 3806 88,59 4328 87,33 3954 80,91 4265 70,85
candidatos
Mulheres 29 5,65 42 8,19 44 8,58 45 8,77 51 9,94
eleitas
Homens 484 94,35 471 91,81 469 91,42 468 91,23 462 90,06
eleitos

Mulheres 1270 12,64 1638 14,45 1602 13,94


candidatas 2439 20,66 4256 28,93
Deputado (a)
Estadual

Homens 8781 87,36 9700 85,55 9888 86,06


candidatos 9367 79,34 10457 71,07

Mulheres 102 9,86 129 12,46 119 11,5


eleitas 134 12,95 115 11,11

Homens 933 90,14 906 87,54 916 88,5


eleitos 901 87,05 920 88,89

Mulheres 118 19,03 129 20,51 134 20,74


candidatas 201 25,19 287 29,62
Deputado (a)
Distrital

Homens 502 80,97 500 79,49 512 79,26


candidatos 597 74,81 682 70,38

Mulheres 4 16,67 5 20,83 3 12,5


eleitas 4 16,67 5 20,83

Homens 20 83,33 19 79,17 87,5


eleitos 21 20 83,33 19 79,17

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral.

31
No Piauí, no período de 1945 a 1994, 1.534 mulheres
concorreram aos cargos de deputadas federal e estadual,
vereadoras, prefeitas e vice-prefeitas, das quais 419 foram eleitas,
representando um êxito de 27,31%. A participação da mulher
piauiense no parlamento federal e no estadual foi bastante
irrisória até 1994. Apenas uma deputada federal foi eleita, em
1986, dentre as 12 que se candidataram e uma exerceu mandato na
Assembleia Legislativa do Piauí, no ano de 1970, dentre as 31 que
concorreram. Até 1994, nenhuma mulher no estado candidatou-
se ao Senado ou ao Governo do Estado e nas eleições de 1950,
1954, 1956, 1962, 1978 e 1982 nenhuma candidatura feminina foi
registrada (Tabela 3).

Tabela 3 - Número de mulheres candidatas e eleitas no Piauí


por cargo entre 1945 e 1994.
Deputada Deputada
Vereadora Prefeita Vice- Prefeita Federal Estadual

Candidata
Candidata

Candidata

Candidata
Candidata

Eleita
Eleita

Eleita

Eleita
Eleita

Ano/
Cargo
1945 - - - - - - 1 - - -
1947 - - - - - - - - 4 -
1948 1 1 - - - - - - - -
1950 17 x - - - - - - - -
1954 19 - - - - - - - - -
1958 15 4 1 1 - - - - 1 -
1962 18 1 2 x - - - - - -
1966 23 19 1 1 1 1 1 - 3 -
1970 44 23 7 3 5 2 1 - 1 1
1972 42 33 7 4 8 5 - - - -
1974 - - - - - - - - 1 -
1976 60 33 6 4 10 5 - - - -
1982 125 43 13 6 9 2 - - - -
1986 - - - - - - 6 1 6 -
1988 410 72 14 4 26 10 - - - -
1990 - - - - - - 2 - 8 -
1992 580 134 27 6 - - - - - -
1994 - - - - - - 1 - 7 -
Total 1354 363 78 29 59 25 12 1 31 1
Fonte: Elaborada pelas autoras com base nos dados do Tribunal Regional Eleitoral do Piauí.
Legenda: x – dado não informado.

32
Quanto às eleições para as Câmaras Municipais
piauienses, entre 1996 e 2016, os números são pouco
diferenciados. As 10.881 mulheres candidatas no período
representaram 24,15% do total de concorrentes e apenas
14,37% foram eleitas. O melhor desempenho ocorreu em
2012, enquanto o pior ocorreu nas eleições de 2000 (Tabela
4).

Tabela 4 - Assembleia Legislativa do Piauí: candidatos e eleitos


por sexo de 1998 a 2014.

Ano da Candidato (a) Eleito (a)


Eleição Feminino % Masculino % Feminino % Masculino %
1998 23 13,22 151 13,22 2 6,67 28 93,33
2002 16 8,56 171 8,56 3 6,67 28 93,33
2006 22 12,22 158 12,22 3 10,00 27 90,00
2010 46 25,00 138 25,00 7 23,33 23 76,67
2014 66 30,14 153 30,14 4 13,33 26 86,67
Total 173 18,33 771 81,67 18 12,00 132 88,00
Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados do TSE, Eleições anteriores.

Na disputa ao Congresso Nacional e à Assembleia


Legislativa do Piauí, o número de candidatas entre 1998 e
2014 aumentou em 186,96%, passando de 23 concorrentes em
1998 para 66 em 2014. Em relação aos candidatos do sexo
masculino, o maior percentual de candidaturas femininas
ocorreu no último pleito, na razão de 30,14%. Quanto às
eleitas, a representação aumentou em 100%, de 2 deputadas em
1998 para 4 em 2014. Porém, se comparada a eleição de 2010,
a representatividade feminina no parlamento estadual caiu
consideravelmente, de 7 para 4 deputadas, um decréscimo de
42,86%. Em 2014 as mulheres eleitas representaram 13,33%
do parlamento, enquanto em 2010 correspondiam a 23,33%
(Tabela 5).

33
Tabela 5 – Candidatos e eleitos para vereador no estado do
Piauí entre 1996 e 2016.

Ano
de Total Total
eleição

1996 1.021 17,14 4.936 82,86 5.957 267 12,73 1.830 87,27 2.097

2000 1.200 17,20 5.777 82,80 6.977 269 12,69 1.835 87,31 2.119

2004 1.437 19,55 5.913 80,45 7.350 265 13,09 1.759 86,91 2.024

2008 1.405 19,61 5.758 80,39 7.163 284 13,97 1.749 86,03 2.033

2012 2.938 33,06 5.950 66,94 8.888 360 16,85 1.776 83,15 3.136

2016 2.880 33,03 5.840 66,97 8.720 357 16,73 1.777 83,27 2.134

Total 10.881 24,15 34.174 75,85 45.055 1.802 14,37 10.741 85,63 12.543

Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados do TSE, Eleições 2016.

Segundo ensinamento de Diniz40, eficácia é a qualidade


da norma vigente de produzir, no seio da coletividade, efeitos
jurídicos concretos, considerando não só a questão de sua condição
técnica de aplicação, observância ou não pelas pessoas a quem
se dirige, mas também a de sua adequação em face da realidade
social por ela disciplinada e dos valores vigentes na sociedade, o
que conduziria ao seu sucesso. A eficácia diz respeito a saber se
os destinatários da norma ajustam ou não seu comportamento em
maior ou menor grau, às prescrições normativas. Sendo o objetivo
das ações afirmativas em promover a isonomia de gênero na
política, tanto em relação ao incremento das mulheres filiadas nas
listas partidárias quanto ao aumento da quantidade de mulheres
ocupando cargos políticos no Poder Legislativo, constatou-se
que não ocorreram grandes mudanças após a adoção das cotas
de reservas de vagas partidárias por gênero, fato corroborado em
outros trabalhos41. Araújo42 considera como desafio a mudança
de foco da discussão em torno da representação política da
mulher, que não deve ser apenas quanto a ter ou não cotas, pois
40 DINIZ, 2005, p. 319.

41 ARAÚJO, 2001; FREIRE, 2008. p. 75; MIGUEL, 2000. p. 98.

42 ARAÚJO, 2010. p. 119.

34
"as cotas como um recurso válido dependem de outros aspectos
relacionados com a democratização da representação. Há várias
outras estratégias importantes para ampliar e facilitar a participação
política das mulheres".
Essa questão deve ser analisada pelo legislador, face à
ineficácia das cotas por reserva de assentos, adotada há duas
décadas. Já não caberia a substituição dessa medida por outra com
efeito mais promissor? Muito se discute se a mudança no tipo de
lista eleitoral ou mesmo do próprio sistema eleitoral podem alterar
o quadro de sub-representação feminina na política. Levando-se
em conta a natureza temporária da ação afirmativa, o que se vê
é um certo comodismo do legislador em adotar o mesmo método
reiteradamente, esquecendo-se que a problemática é mais ampla,
indo além do campo político. Há de se discutir também o legado
do patriarcado, o papel da mulher na sociedade, na família e no
mercado de trabalho e sobre a importância de se garantir acesso aos
espaços decisórios aos cidadãos. Nos dizeres de Wright43, as cotas
não removem as barreiras culturais e as dificuldades das mulheres
combinarem vida familiar, trabalho e política. Há que se promover
o empoderamento feminino, que implica a alteração radical dos
processos e das estruturas que reproduzem a posição da mulher
como submissa44.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As ações afirmativas surgiram com o propósito de mudar o


quadro da baixa participação da mulher na política. Após a adoção
das cotas de reserva de vagas em listas eleitorais, em 1995, aumentou
o número de mulheres candidatas e eleitas em relação às eleições
anteriores. Porém, esse crescimento não pode ser considerado
significativo, uma vez que o número de candidaturas femininas não
ultrapassou a marca de 26% e o número de eleitas não foi superior
a 17%, sendo que na Câmara Federal, o maior percentual alcançado

43 WRIGHT, 2009. p. 115.


44 LISBOA, 2008.

35
foi de 8,77%, em 2010. No Piauí, o número das candidaturas
femininas e de eleitas cresceu consideravelmente entre 1998
e 2010, passando de, respectivamente, 13,22% a 25%, e 6,67% a
23,33%, e entre 1996 e 2016, de 17,14% para 33,03% e de 12,73%
para 16,73%. Todavia, há muito o que evoluir ainda.
As ações afirmativas cumprem sua função de suscitar o
debate mas não tem sido o instrumento mais eficaz de promoção
do princípio constitucional da isonomia. As mulheres, como
outros segmentos sociais, continuam a não exercer plenamente a
capacidade de contribuir para as questões que afetam a sociedade,
ou seja, não exercem o poder de forma plena45. Há muito tem-se
afirmado a ineficácia do sistema de cotas eleitorais no Brasil e
levantado a necessidade de que outras medidas sejam postas em
prática, como a adoção de cotas de reserva de vagas no parlamento
as mudanças no sistema eleitoral no tocante a adoção de lista
fechada ou flexível, com a alternância de candidatos por sexo na
lista. É sabido que tais medidas por si só, não podem incrementar
a representação política da mulher e que a problemática não pode
ser analisada apenas por esta ótica.
As cotas eleitorais são medidas essencialmente
temporárias, intervenções de natureza "cirúrgica" que visam
sanar determinado problema que se revela urgente e que cedo
ou tarde devem ser retiradas do ordenamento jurídico. Deve ser
consolidada em nossa sociedade a noção de empoderamento
feminino, pois as mulheres podem sim ocupar espaços
de decisão, em qualquer âmbito, quer público ou privado
devendo ser tratada de forma isonômica ampliando-se o
acesso à educação, à profissionalização, o combate à violência
doméstica, de forma a superar os traços do patriarcado. Há que
se discutir o papel da mulher na sociedade, que foram inseridas
intensamente no mercado de trabalho no decorrer do século XX,
mas ainda estão fortemente associadas ao âmbito familiar, sendo
grande ainda a desigualdade entre homens e mulheres.
45 ARAÚJO, 2011.

36
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Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Rio de Janeiro.
p. 105-124.

41
APENDICE A

Quadro 1 – Estatuto dos partidos políticos


segundo a presença de órgão para mulheres
e a adoção de ações afirmativas de gênero

42
Órgão feminino Nome Ano do Previsão no AA1 AA2 AA1 e Sem
Partido
no estatuto Estatuto Estatutoo AA2 AA
PMDB Não PMDB Mulher 2015 Art. 107, IV - 1 - -
PTB Sim (art. 49, b) PTB Mulher 2014 Art. 17 -C - 1 - -
Ação da Mulher
PDT Sim (art. 11, §2º) Trabalhista 2015 Art. 26 e 83 1 - - -
PT Sim (art. 135) Setorial de Mulheres Art. 22, IV e 200, “e” - - 1
2015 -
Mulher Democrata - - -
DEM Sim (art. 17, III, a) 2007 - 1
Secretaria Nacio-
PC do B Não (art. 53 a 55) nal da Mulher 2010 - - - - 1
Secretaria das Mulheres art. 22, §1º
PSB Sim (art. 12, IV, 43, “e”) 2013 1 - - -
Sim (arts. 16, II; 17, Secretarias de art. 25; 41, caput; 142, V
PSDB IV, 90, §1º, 108, §1º) Muheres 2015 - - 1 -
PTC Não PTC Mulher 2015 - - - - 1
PSC Não PSC Mulher 2007 - - - - 1
PMN Não PMN Mulher 2008 - - - - 1
Sim (art. 31, §2º; 52, VIII; art.67, par. unico
PRP 55, IX) PRP Mulher 2015 - - - 1
Sim (art. 26, caput) Coordenação de
PPS Mulheres -CM 2011 art. 14, II 1 - - -
PV Sim (art. 34, XIII; 76) PV Mulher 2011 art. 99, §1º, “e”; 61, I - - 1 -
PT do B Não PT do B Mulher 2015 art. 86, VI - 1 - -

43
44
Órgão feminino Nome Ano do Previsão no AA1 AA2 AA1 e Sem
Partido Estatuto
no estatuto Estatutoo AA2 AA
PP Sim (art. 115, caput) PP Mulher 2015 art. 116 - - - -
Não Secretaria de Mulheres -
PSTU 2013 - - - 1
Coletivo de Mulheres
PCB Não Ana Montenegro 2008 - - - - 1
PRTB Sim (arts. 13; IV; 63) PRTB Mulher 2004 - - - - 1
PHS Não PHS Mulher 2015 art. 21, II - 1 - -
PSDC Sim (arts. 9, IV, f; 83) PSDC Mulher 2016 - - - - 1
Não Coletivo de Mulheres do
PCO PCO Rosa Luxemburgo 1995 - - - - 1
PTN Não PTN Mulher 2006 - - - - 1
PSL Não PSL Mulher 2011 art. 163, IV - 1 - -
PRB Não PRB Mulher 2014 art. 50, §2º, III - 1 - -
Sim (art. 64) Setorial de Mulheres do -
PSOL PSOL 2010 - - - 1
PR Sim (art. 34, §2º) PR Mulher 2015 art. 34, §3º - 1 - -
PSD Sim (arts. 14, III, “a”; 72) PSD Mulher 2015 - - - - -
PPL Sim (arts. 22, IV; 36) PPL Mulher 2013 - - - - 1
PEN im (arts. 29, X; 51, VIII) PEN Mulher 2015 - - - - 1
Fonte:

Previsão no AA1 AA2 AA1 e Sem


Elaborado

AA

1
-
-

-
pelas autoras
com base
nos estatutos
AA2

-
-

-
dos partidos

-
disponíveis no
sítio eletrônico

-
1

1
1

-
do TSE
-

-
-

-
Legenda:
arts. 26, 32, 33,
90, par. único
AA1: Ação
Estatutoo

art. 44, III

art. 87, V

afirmativa
art. 87

1 - Reserva
- de vagas para
mulheres
em órgãos,
Estatuto

na diretoria
Ano do

2015

2015

2015

2016
2016

ou nas listas
partidárias;

AA2: Ação
Secretaria da

Secretaria da

afirmativa
Nome

mulheres
Mulher

Rede de
Mulher

2 - Destinação
-

de 5% do fundo
partidário para
o programa de
Órgão feminino

Sim (arts. 10, IV;

promoção da
Sim (arts. 13, VI,
no estatuto

“a”; 58, I a III)


36, I; 37, §15)

participação
política da
Não

Não

Não

mulher;

Sem AA: não


há previsão de
Partido

ação afirmativa
PROS

Novo

Rede

PMB

no estatuto do
SD

partido.

45
II

DIRIGISMO CONSTITUCIONAL E DESENVOLVI-


MENTISMO: A ATUALIDADE DO COMPROMISSO
SOCIAL DO CONSTITUCIONALISMO
LATINO-AMERICANO

Yago Roberto Lopes Correia Lima 1

Ana Teresa Ribeiro Da Silveira 2

Introdução
O problema instaurado pelo constitucionalismo dirigen-
te não é novo e já foi profusamente discutido no exterior, através
da matriz teórica Canotilho-Lerche-Crisafulli, e no Brasil, atra-
vés de Streck-Faria-Grau-Bercovici-Comparato. Vale referir, o
constitucionalismo compromissório assumiu vasta importância
em solo latino-americano, ou no chamado capitalismo periféri-
co, e inspirou a promulgação de várias Cartas Constitucionais
com missões interventivas, sociais e redistributivas, sobretudo
após a erosão das ditaduras militares.
1 Graduando em Direito pelo Instituto Camillo Filho. Graduando em Filosofia pela Univer-
sidade Federal do Piauí. Membro do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA-SP).
Estagiário do Ministério Público do Estado do Piauí – Fazenda Pública.
2 Graduada em Bacharelado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2001). Mes-
tre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006). Doutora
em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2011). Professora
adjunta do Instituto Camillo Filho e Assessora jurídica do Tribunal de Contas do Estado do
Piauí.

46
Diante disso, a questão que se coloca é: transcorrido
quase três décadas de vigência da Constituição, a tese de uma
Constituição dirigente ainda é sustentável? Tomando, portanto,
como pano de fundo a matriz teórica legada a partir do dirigismo
constitucional, o objetivo do trabalho é apresentar a atualidade do
projeto social e compromissório do constitucionalismo latino-a-
mericano em épocas de volatilidade econômica e de rediscussão
do pacto constitucional diretivo na América Latina, diante do flo-
rescimento da Constituição dirigente invertida.

1 O DISCURSO JURÍDICO EMANCIPATÓRIO


REVELADO PELO CONSTITUCIONALISMO CON-
TEMPORÂNEO.

Em 1909, Lima Barreto, inesquecível literato brasileiro,


escreveu o primeiro e um de seus romances mais importantes, in-
titulado Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Nele, descreveu
de forma primorosa as fissuras da jovem república brasileira, atra-
vés da dura trajetória vivida por Isaías Caminha, prodígio rapaz
nascido no interior, que viu, no Rio de Janeiro do alvorecer do sé-
culo XX, genuínas esperanças de ascender socialmente e realizar
seus sonhos3.
Nesse contexto, pode-se dizer que o constitucionalismo
produzido após a Segunda Guerra Mundial, isto é, no interior do
qual Eric Hobsbawn denominou de Era dos Extremos4, projetou
algumas consequências importantes para o debate contemporâ-
3 Cf. CAMATTA, Nelson; PAULA, Rodrigo Francisco de. Lima Barreto: Subcidadania, Negação
do Estado de Direito e Constitucionalismo Dirigente no Brasil, Direito, Arte e Literatura. XXI
Congresso do CONPEDI, Niterói-RJ, Brasil, 31. Out - 03 Nov., 2012. Ver, também, CORREIA
LIMA, Yago Roberto; MAGALHÃES, Virgínia Maria. A necessidade de um dirigismo consti-
tucional brasileiro através do retrato socioeconômico vislumbrado na obra Recordações do
Escrivão Isaías Caminha. V Colóquio Internacional de Direito e Literatura, Uberaba-MG, Bra-
sil, 26-28 out. 2016.
4 Cf. HOBSBAWNS, Eric. A Era dos Extremos. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Com-
panhia das Letras, 1995.

47
neo em torno da cautonomia do discurso jurídico, da garantia dos
direitos fundamentais e sociais e do compromisso social assumido
pelas constituições democráticas, diante das volatilidades da eco-
nomia e da política em épocas de crise.
Com efeito, este capítulo pretende realizar um estudo
em torno do discurso jurídico (dominante) no constitucionalismo
contemporâneo5, que, por sua vez, permite defender a existência
de três pontos de partida essenciais para a discussão travada en-
tre "volatilidade econômica" versus "autonomia do estatuto jurí-
dico-constitucional". Assim, tal perspectiva direciona a discussão
para: (a) a constatação de uma autonomia jurídica conquistada
por intermédio do reconhecimento da normatividade e da supe-
rioridade hierárquica da Constituição; (b) a constatação de uma
expansão do papel da jurisdição constitucional na concretização
dos direitos fundamentais e sociais; (c) a constatação de uma vin-
culatividade do compromisso social e interventivo assumido pelo
conceito de objetivos fundamentais, frequentemente acoplado ao
conteúdo do dirigismo constitucional.
Nesse sentido, pode-se dizer que um ponto indiscutivel-
mente útil para a defesa da autonomia de um estatuto jurídico
mínimo em face das volatilidades econômicas reside no reconhe-
cimento da força normativa e da superioridade hierárquica das
disposições constitucionais. Isso porque, tal constatação possibi-
lita que o debate em torno da autonomia do discurso jurídico seja
enfrentado no plano da evolução do constitucionalismo e do Esta-
do, que evidenciam a formação de um paradigma jurídico-consti-
tucional incompatível com a (mera) sujeição do estatuto jurídico
ao estatuto econômico; discussão que, por seu turno, aponta para
a própria incompatibilidade existente entre o constitucionalismo
contemporâneo e o constitucionalismo liberal6.
Interpretando o atual o estado de coisas do constitucio-

5 Cf. STRECK, Lenio L. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2014.
6 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 32 ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2013, p.199 e Cf. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

48
nalismo contemporâneo, v.g, Pietro Sanchís7 expõe que o neo-
constitucionalismo não constitui uma postura pronta e acabada
(isto é, "pacificamente compartilhada entre os publicistas"). As-
sim, segundo sua concepção, conquanto não possa ser definido
por completo, tal fenômeno pode ser concebido a partir de quatro
acepções: (a) de um Estado de Direito; (b) de uma teoria do direito;
(c) de uma ideologia de filosofia política; (d) ou de uma filosofia
jurídica. Para efeito deste estudo, suficiente o exame do aspecto
(a), que trata do Estado de Direito.
Segundo Pietro Sanchís8, a concepção de um Estado de Di-
reito Constitucional, justifica-se pela nova forma de organização
política e institucional concebida pelo novo constitucionalismo.
Em outras palavras, é que, para Sanchís, o neoconstitucionalis-
mo teve o condão de reunir tradições constitucionais "distintas",
porquanto albergou tanto o modelo norte-americano (na propor-
ção que acolheu o sentido de superioridade constitucional e de
constituição como "procedimento") quanto o modelo francês (na
proporção que aderiu a uma tradição constitucional destinada a
criar um projeto de transformação social e política), com o intuito
de perfazer uma solução institucional para os novos problemas do
século XX.
Como salienta Lenio Streck9, o constitucionalismo con-
temporâneo constitui, verdadeiramente, a continuação do projeto
do État Providence com um adendo especial: o plus normativo. Em
resumo, equivale a dizer que "a Constituição não configura, ape-
nas a expressão de um ser, mas também de um dever ser"10. Por
esse motivo, como lembra Guastini11, a superioridade hierárquica
e a normatividade constitucional produzem consequências rele-
7 SANCHÍS, Pietro. Justicia constitucional y derechos fundamentales. 2 ed. Madrid: Editora
Trotta, 2009.
8 Id., Ibid., passim.

9 STRECK, Lenio L. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014.
10 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Segio Antonio Fabris, 1991.
11 GUASTINI, Ricardo. La Constitucionalización del ordenamiento jurídico: el caso italiano.
In: CARBONELL, Miguel (org.) Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Trotta, 2003.

49
vantes do novo constitucionalismo; quer dizer, na medida em que
há uma aproximação entre "a noção" de constitucionalismo e de
teoria das fontes12.
Para Guastini, tal aproximação se verifica em dois mo-
mentos. No primeiro, observa-se com a visão de que a consti-
tuição é, realmente, uma "fonte diferenciada", caracterizada pela
distinção do procedimento e/ou das exigências criadas para sua
própria elaboração (que pode defluir desde uma concepção outor-
gada ou promulgada). No segundo, verifica-se com a visão de que
a constituição apresenta, também, um procedimento de "reforma
agravado", impediente de ab-rogação, derrogação ou modificação
por lei de envergadura jurídica positivamente inferior13.
Por outro lado, Guastini também defende que do pró-
prio ponto de vista do sentido das fontes jurídicas, a constituição
pode ser vista a partir de três perspectivas. A primeira, relativa
à circunstância de ela conter mandamentos normativos disci-
plinadores e organizativos das relações entre o Poder Público e
os particulares, e entre estes e o Estado (lato sensu). A segunda,
consistente na idoneidade de a constituição conter instrumentos
para invalidar normas anteriores de nível subconstitucional mate-
rialmente incompatíveis com seu texto ou para invalidar normas
posteriores de nível subconstitucional (formal e materialmente)
em desacordo com seus preceitos14 .
Por fim, Guastini destaca o terceiro sentido de "fontes ju-
rídicas", ligado à ideia de que a constituição não submete aos seus
rigores apenas a disciplina entre o cidadão e o Estado (perspecti-
va vertical do direito público), mas também entre os particulares
(perspectiva horizontal). Portanto, para o autor italiano, é possí-
vel encarar o particular como sujeito passível de "aplicação" por
parte dos juízes constitucionais15.
Ora, este último ponto destacado por Guastini diz exata-
mente respeito à ampliação do papel endereçado à justiça cons-

12 Id., Ibid.

13 Id., Ibid.

14 Id., Ibid.

15 GUASTINI, Ricardo, op.cit.

50
titucional no Direito pós-Auschwitz16. Indubitavelmente, como
lembra Luigi Ferrajoli17 – inclusive quando propõe uma revisão
terminológica do neoconstitucionalismo para constitucionalismo
jurídico ou Estado Judicial de Direito – o Estado Democrático de
Direito – ou, mais amplamente, social e ambiental, como quer Ingo
Sarlet18 – fornece importantíssimos poderes hermenêuticos19 para
os juízes na concretização da Constituição.
Isso indica que, respeitado "o esquema organizatório-
funcional constitucionalmente estabelecido", como afirma
Canotilho20, a missão institucional incumbida à justiça constitucional
liga-se, frequentemente, à realizabilidade e à efetivação dos direitos
fundamentais e dos direitos sociais. Para a maioria dos autores,
esse fenômeno se verifica com aumento das atribuições das Cortes
Constitucionais, que podem ser mais ou menos sumarizadas do
seguinte modo:
1)Tutela dei diritti e delle libertà fondamentali (sponsor et
defensor iurum et libertatum; Grundrechtschutz); 2) garanzia
della pace interna e dell’unità politica (sponsor et defensor pacis
et unitatis; Staatsgerichtsbarkeit – Kompetenzgerischtsbarkeit): in
tale veste l’organo di giustizia costituzzionale agisce quale arbitro
e mediatore in sede di risoluzione dei conflitti interorganici e
dei conflitti intersoggettivi, nonché quale garante del sistema di
articolazione delle competenze; 3) tutela della comunità statale
(defensor rei publicae, censor civitatis – Staatsschutz): in tale veste
l’organo di giustizia costituzionale giudica, in sede di giurusdizione
penale, sulle acuse formulate contro il capo dello stato, ministri
ecc (...); funge da organo di verifica della legittimità costituzionale
dei partiti politici; è l’instanza che dichiara la perdita dei diritti
fondamentali in caso di abusi da parte del titolare; 4) garanzia
della democracia: l’organo di giustizia costituzionale si configura
quale custode di un correto procedimento elettorale; 5) verifica

16 Cf. LOSANO, Mario G. Sistema e Estrutura no Direito. Volume 2: O Século XX. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.
17 FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo garantista e constitucionalismo principialista. Tra-
dução de André Karam Trindade. In: FERRAJOLI, L; STRECK, L.L; TRINDADE, Andre Karam
(orgs). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
18 SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz G.; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional.
Revista dos Tribunais, 2012.
19 Cf. STRECK, Lenio L. O que é isto – decido conforme minha consciência? In: Coleção O
Que é Isto? v.1. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
20 CANOTILHO, J.J. GOMES. Direito constitucional e teoria da constituição. 3 ed. Coimbra:
Almedina, 1999, p.1224.

51
in via preventiva della illegitimià costituzionale di progretti di
legge ed emanazione di pareri in mérito (funzione consultiva); 6)
funzioni di instanza giurisdizion ale di grado supremo; 7) funzione
nomofilatica di guardiano della legge, custode della Constituzione,
garante dell’ordinamento costituzionale oggettivo e del sistema
gerarchico delle fonti adottato dal medesimo. (apud defensor et
sponsor iuris in senso lato21

De conseguinte, cumpre salientar o último aspecto des-


ta seção, relativo ao discurso dirigista, profusamente difundido
entre franceses e portugueses22, e no plano da doutrina euro-
peia, por autores como J.J.Canotilho23, Vezio Crisafulli24 e Peter
Lerche25. Como se verá adiante, o constitucionalismo latino-a-
mericano aderiu amplamente ao conceito de diretividade esta-
tal e econômica via constituição social e normativa, incluindo
o Brasil, que acoplou positivamente o discurso compromissório
e dirigista ao preceito definidor dos objetivos fundamentais da
República na Constituição de 1988 (art.3º).

2 Constitucionalismo latino-americano e Estado


social no capitalismo periférico

No direito brasileiro, constitui lugar-comum o conceito


de Constituição simbólica desenvolvido por Marcelo Neves26.
A partir da matriz teórica Luhmaniana, o publicista denuncia
a desidratação normativa e a perda de autonomia jurídica da
21 Marcic, R. Verfassung und Verfassungsgericht, Springer, Wien, 1963, p.90 ss apud MEZ-
ZETTI, L. et al. La Giustizia Costituzionale. CEDAM: Padova, 2007, p.7-8.
22 VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os
limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999, p.130-131
23 CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador – contributo
para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Ed.,
1982.
24 CRISAFULLI, Vezio. La Constituzione e le sue disposizioni di principio. Milano: Giuffrè,
1952.
25 LERCHE, Peter. Übermass und Verfassungsrecht: zur Bildung des Gezetzgebers an die
Grundsätze der Verhältnismässgkeit und der Erforderlichkeit. 2 ed. Goldbach: Keip, 1999.
26 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

52
constituição em face da voracidade dos sistemas econômicos
e políticos. Tal circunstância, segundo o autor, evidencia uma
ameaça direta à concretização da ideologia constitucional e do
caráter normativo e compromissório assumido pela constitui-
ção em países periféricos27.
Concomitantemente, pode-se dizer que o constitucio-
nalismo latino-americano projeta um constitucionalismo de
contornos particulares, destinado, em último termo, a arquite-
tar um estatuto econômico, político e jurídico decididamente
compromissório28. Por consequência, inevitável assinalar, quer
pela injunção dos acontecimentos históricos, ou pelas caracte-
rísticas de cada constitucionalismo, não haver confusão entre
neoconstitucionalismo e constitucionalismo latino-americano29.
Ora, como lembra Marcelo Neves30, o constitucionalis-
mo latino-americano é historicamente marcado "por uma rela-
ção pendular entre autocracia e democratização na forma". Por
isso, "a retórica política expressa-se mediante o manuseio das
fórmulas ‘restauração da ordem’31 e ‘restauração da democra-
cia’32, daí por que se avulta "o conflito ou tensão entre realismo
idealismo constitucional"33.
Por essas razões, justifica-se o núcleo básico do consti-
27 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Trad. Alfredo Gallego Anbiatarte. Barce-
lona: Ed. Ariel, 1986 apud NEVES, Marcelo, op.cit., 2007, p.219.
28 RODRIGUES, Vicente; VIEIRA, José Ribas. Refundar o Estado: o novo constitucionalismo
latino-americano. 2009. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/24243799/UFRJ-Novo-
-Constitucionalismo-Latino-Americano> Acesso em: 18 nov. 2016.
29 BARCELLOS, Renato de Abreu. Revolução ou reforma? Uma reflexão sobre o novo
constitucionalismo latino-americano. (In): Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica –
RHIJ, Belo Horizonte, ano 10, n.11, p. 257-276, jan/jun, 2012.
30 NEVES, Marcelo. Estado Democrático de Direito e Constitucionalismo na América do
Sul. P.203-222 (In): BOGDANDY, Armin von; PIOVESAN, Flavia; ANTONIAZZI, Mariela Moraes
(Coords.). Direitos Humanos, Democracia e Integração jurídica da América do Sul. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010.
31 Id., op. cit., p.208.

32 Id.,Ibid., loc. Cit

33 Id., Ibid., p. 209.

53
tucionalismo latino-americano ser a orfandade e a necessidade34
Isso porque, além de ter uma vida política recente (praticamen-
te após o surgimento da Revolução Industrial)35, e de ter tido
largos períodos de ausência de democracia efetiva36, outra face-
ta da América Latina (mesmo tendo evoluído desde o fim do
século XIX)37, é o subdesenvolvimento.
Precisamente em decorrência disto, "a orfandade" re-
vela que o novo constitucionalismo latino-americano é "[…]
um constitucionalismo eminentemente caracterizado por
uma radicalização da questão da legitimidade nos processos
constituintes"38. Como ressalta Renato de Abreu Barcellos,
esse novo constitucionalismo latino-americano é um consti-
tucionalismo sem país39, pois, "ninguen, tirando o pobo, pode
sentirse proxenitor da Constituicion, pola xenuína dinâmi-
ca participativa e lexitimadora que acompanha os processos
constitucionales"40.
Lembra a propósito Renato Barcellos, mencionando
Dalmau e Pastor, que o novo constitucionalismo latino-ame-
ricano pode ser entendido como constitucionalismo de neces-
sidade, "na medida em que os contextos sociais em que surgiu
eram caracterizados pela instabilidade político-institucional,
de conflito social, onde a Constituição era incapaz de fazer
valer sua força normativa, principalmente os direitos funda-

34 BARCELLOS, Renato de Abreu, op.cit.

35 FURTADO, Celso. A economia latino-americana: formação histórica e problemas con-


temporâneos. 4 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.25
36 STRECK, Lenio L. A jurisdição constitucional e as Possibilidades Hermenêuticas de
Efetivação da Constituição: Um Balanço Crítico. Revista da Academia Brasileira de Direito
Constitucional, Curitina/PR, v.3, p.367-404, 2003.
37 FURTADO, Celso, op.cit, loc.cit.

38 BARCELLOS, Renato Abreu de, op.cit.

39 BARCELLOS, Renato Abreu de, op.cit.

40 MARTÍNEZ, DALMAU, Rubén. Asembleas constituintes e novo constitucionalismo em


América Latina. Tempo Exterior, Baiona, n. 17, p.5-15, jul/dez. 2008, p-6.

54
mentais nela encartados"41. Por consequência, segundo sua
concepção, o novo constitucionalismo latino-americano veio
a substituir o velho considerado "fraco, adaptado e retórico"42.
No caso brasileiro, "a Constituição de 1988 não se limita
a organizar o sistema político e a garantir direitos, mas regula
largos setores da economia e também da esfera social"43, encar-
tado, positivamente, em "um longo documento, com 245 arti-
gos e mais 70 artigos no Atos de Disposições Constitucionais
Transitórias, com enorme pretensão normativa"44. Com isso,
conquanto Renato Barcellos considere vanguardistas do novo
constitucionalismo latino-americano a constituição colombia-
na, a venezuelana, a boliviana e a equatoriana45, vale lembrar que
os países estão ligados por circunstâncias históricas, políticas e
econômicas inquestionavelmente semelhantes, sobretudo em
face da recente redemocratização ou reconstitucionalização46.
Nesse sentido, Renato Barcellos organiza uma espécie
de "planta" do constitucionalismo latino-americano. Para
tanto, define como características formais: a originariedade, a
amplitude, a complexidade e a rigidez; e materiais: a relação
umbilical entre povo e governo, a profusão de direitos e a
intervenção do Estado na economia47 Para Barcellos, tais
características demonstram que o constitucionalismo latino-
americano não abandonou a forma liberal de constituição,
considerada "[…] positiva, escrita, articulada e racionalizada"48;
41 BARCELLOS, Renato Abreu de, op.cit, p.264-265.
42 Id., ibid., p.208.

43 VIEIRA, Oscar Vilhena, op. cit, 1999, p.130.

44 Id., Ibid., loc. cit.

45 BARCELLOS, Renato Abreu de, op. cit., p.268.

46 Cf. BONAVIDES, Paulo. Constitucionalismo Comparativo: Peculiaridades em la Forma-


ción Constitucional del Brasil. In: ROIG, Francisco Javier Ansuátegui. El Derecho en Red:
Estudios em Homenaje al professor Mario G. Losano. Lisboa: Editorial Dyckinson, S.L, 2006.
47 BARCELLOS, Renato Abreu de, op.cit, passim.

48 BARCELLOS, Renato Abreu de, op.cit, p. 265.

55
em verdade, o constitucionalismo latino-americano procurou
novos arranjos a fim de dar conta da realidade circundante; por
isto, pode ser considerado experimental49.
Outro ponto destacado por Barcellos acerca do
constitucionalismo latino-americano é "a amplitude" dos
documentos normativos. Por exemplo, em um simples
exame constata-se que: "[…] a Constituição colombiana
de 1991 tem 380 artigos; a Constituição venezuelana de
1999, 350 artigos; a Constituição equatoriana de 2008,
impressionantes 444 artigos; e a Constituição boliviana de
2009, 411 artigos"; a brasileira, de 1988, tem 250 artigos 50.
Para Martínez Dalmau, isso significa que o constituinte
quis apenas expressar claramente sua vontade nos textos
normativos.
Por fim, outro ponto destacado por Renato Barcellos
e Martínez Dalmau refere-se à complexidade e à releitura da
rigidez institucional. Para eles, a complexidade institucional
indica que essas constituições latinas buscam soluções
para melhor se adaptar[em] à realidade, já a releitura da
rigidez, indica a previsão de um procedimento dificultoso
para a alteração de seus textos, visando à proteção da
identidade constitucional do(s) poder(es) derivado(s) 51.
Há outros pontos do constitucionalismo latino-americano
salientados por Renato Barcellos, como as novas formas
de participação política e de intervenção econômica 52.
Com efeito, o trajeto político e econômico que
define a América Latina permite que ainda possamos
identificar a (vetusta) distinção entre capitalismo
dependente e capitalismo de centro. Isso porque, "[…] o
modo como os países se desenvolveram, isto é, o modo como
atravessaram processos de colonização, modernização,
industrialização, inovação, inserção internacional,
democratização, positivação e implementação de
49 Id., Ibid., p.266.
50 Ib., Ibid., loc. cit.

51 Id., Ibid., p.267-268.

52 Id., Ibid., p.268.

56
direitos" 53, pode ser um elemento explicativo dos níveis
de desigualdade observados na América Latina. Como
conclui Gilberto Bercovici:
Afinal, não podemos esquecer que o subdesenvolvimento,
em suas raízes, é um fenômeno de dominação. O
subdesenvolvimento é um processo histórico autônomo, não
uma etapa pela qual, necessariamente, os países desenvolvidos
passaram. Segundo Celso Furtado, ele é a manifestação de
complexas relações de dominação entre os povos e que tende
a perpetuar-se. Deste modo, é fundamental ter consciência da
dimensão política do subdesenvolvimento. O que houve nos
países periféricos foi a modernização, sem nenhuma ruptura
com as estruturas socioeconômicas, mantendo-se a reprodução
do subdesenvolvimento. Não existe uma tendência à passagem
automática da periferia para o centro do sistema econômico
capitalista. Pelo contrário, a única tendência visível é a da
continuidade do subdesenvolvimento dos países periféricos.
Portanto, o esforço para superar o subdesenvolvimento requer
um projeto político apoiado por vários setores sociais, pois se
trata da superação de um impasse histórico54.

Como lembra Mário Martinelli, "na década de


1990, os Estados latino-americanos, sob pressão dos
credores internacionais e dos agentes financeiros
multilaterais, seguiram o padrão neoliberal de reformas
estatais" 55, a exemplo da "desarticulação dos sistemas
nacionais de regulação econômica em Estado cujas
dívidas já haviam sido alimentadas nas décadas de 1970
e 1980 pela crise do petróleo e dos juros" 56. No caso
brasileiro, conforme acentua Gilberto Bercovici, adveio
com a chamada "Reforma do Estado", "especialmente por
meio de emendas à Constituição de 1988 e da criação de
53 COUTINHO, Diogo R. Direito, Desigualdade e Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2013, p.57.

54 BERCOVICI, Gilberto. A crise e a atualidade do Estado Social para a periferia do capita-


lismo, n.13, 2013, Estudos do Século XX, Estado Providencia, p. 129-144, Separatas, p.143.
55 MARTINELLI, Mario Eduardo. A determinação dos direitos de igualdade material no
neoliberalismo. Campinas: Millennium Editora, 2009, p.222. Cf: SILVEIRA, Ana Teresa Ri-
beiro da. As organizações sociais e o exercício das competências públicas. 2011. 229f. Tese
(Doutorado em Direito) Faculdade de Direito da PUCSP. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, p.22-50.
56 Id. Ibid., p.219.

57
novos órgãos públicos, chamados de agências, imitando
a estrutura administrativa norte-americana" 57. Por isso,
conclui Martinelli que:
O subdesenvolvimento verificado nos Estados periféricos não
consiste apenas na insuficiência de poupança interna para a
realização dos investimentos necessários em modernização
tecnológica e infraestrutura. O subdesenvolvimento também
não corresponde apenas ao pequeno crescimento do produto
nacional bruto e ao grau insuficiente de industrialização,
avanço tecnológico e modernização. O subdesenvolvimento
das economias periféricas implica a existência de fontes
de privação maciça da liberdade humana, como a pobreza,
carência de oportunidades econômicas e negligência dos
serviços públicos. A pobreza, aliás, não significa somente
baixo nível de renda. A renda é apenas um índice de avaliação
de pobreza. A pobreza refere-se ainda a uma série de outras
privações relacionadas a outras variáveis como desemprego,
doença, baixo nível de instrução e exclusão social. A
pobreza exprime, portanto, uma privação de vários direitos
fundamentais integrados, interelacionados e indissociáveis.
Persistem nas economias periféricas extensos segmentos
populacionais excluídos dos benefícios da sociedade orientada
pelo e para o mercado. São milhões de homens supérfluos,
privados dos direitos de igualdade material e para os quais
as liberdades individuais são direitos completamente ocos58.
Talvez um dos maiores desafios das economias periféricas do
capitalismo mundial ‘consista na necessidade de liberdade os
trabalhadores de um cativeiro explícito ou implícito que nega
o acesso ao mercado de trabalho aberto’59.

Dessa forma, observa-se que o novo


constitucionalismo latino-americano nasceu com um
nítido compromisso emancipatório, visando a proteger
as liberdades fundamentais e os direitos sociais de
forma ampla, originária e complexa, e visando também a
superar as raízes do próprio subdesenvolvimento. Com o
objetivo, portanto, de lançar um alerta sobre um suposto
florescimento de uma Constituição Dirigente Invertida,
57 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir
da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p.74
58 MARTINELLI, Mario Eduardo, op.cit, 2009, p.225.

59 SEM, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Pau-
lo: Companhia das Letras, 2000, p.131 apud Id., op.cit, loc.cit.

58
passamos ao último capítulo deste estudo.

3 A atualidade do compromisso social assumido


pelo constitucionalismo latino-americano

Recentemente, Regina Cláudia Gondim Bezerra Fa-


rias, publicou estudo relevante intitulado Estado mínimo, para
quem? : uma reflexão sobre Estado, política, privatizações e demo-
cracia no Brasil e na Argentina60, em que compara "A reforma
do Estado" ocorrida no Brasil e na Argentina na década de 1990.
No estudo, Farias demonstra que o projeto de desestatização
dos serviços públicos e de ajuste fiscal proposto pelo governo
argentino não logrou êxito, visto que não alavancou o desen-
volvimento do país e não recuperou os investimentos no setor
privado. Ao contrário, institucionalizou desigualdades entre os
cidadãos e alimentou indicadores sociais recalcitrantes.
Vale lembrar, além da crise do capitalismo global in-
ternacional em curso61, o continente latino-americano atravessa
um momento de grande conservadorismo, devido ao desgas-
te de governos sociais e assistencialistas de cunho demagógi-
co e autocrático (populistas), que, segunda indica o Índice de
Percepção de Corrupção de 201662, deve ter impacto sobre o
aumento de desconfiança nas democracias. Isto, com efeito, já
se constatou nas recentes eleições presidenciais do Peru (2016)
e da Argentina (2015), e, no limite, deve evidenciar uma distor-
60 FARIAS, Regina Cláudia Gondim Bezerra. Estado mínimo, para quem?: uma reflexão
sobre Estado, política, privatizações e democracia no Brasil e na Argentina. XIII Congreso
Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Buenos
Aires, Argentina, 4-7 nov. 2008. Disponível: <<portaltcu.gov.br/biblioteca-digital/estado-mí-
nimo-para-quem-uma-reflexão-sobre-estado-política-privatizações-e-democracia-no-bra-
sil-e-na-argentina.htm>> Acesso em: 18 nov. 2016.
61 CASTELLS, M.; CARDOSO, G.; CARAÇA, João (orgs). A crise e seus efeitos: as culturas eco-
nômicas da mudança. Tradução de Alexandra Figuereido, Liliana Pacheco e Túlia Marques.
São Paulo: Paz e Terra, 2013.
62 BARBOSA, Vanessa. Estes são os 40 países mais corruptos do mundo. Exame Abril. São
Paulo, 27 jan. 20016. Mundo. Disponível em: <<exame.abril.com.br/mundo/estes-são-os-
-40-países-mais-corruptos-do-mundo/>> Acesso em: 18 nov. 2016.

59
ção do papel erigido pelo constitucionalismo latino-americano.
Ou, de forma mais direta:

Por outras palavras: a constituição dirigente das políticas


públicas e dos direitos sociais é entendida como prejudicial aos
interesses do país, causadora última das crises econômicas, do
déficit público e da "ingovernabilidade"; a constituição dirigente
invertida, isto é, a constituição dirigente das políticas neoliberais
de ajuste fiscal é vista como algo positivo para a credibilidade e
confiança do país junto ao sistema financeiro internacional. Esta,
a constituição dirigente invertida, é a verdadeira constituição
dirigente, que vincula toda a política do Estado brasileiro à tutela
estatal da renda financeira do capital, à garantia da acumulação
de riqueza privada.63

Com afirma Gilberto Bercovici, "[…] a crítica feita à


constituição dirigente diz respeito, entre outros aspectos, ao
fato de a constituição dirigente ‘amarrar’ a política, substituin-
do o processo de decisão política pelas imposições constitucio-
nais"64. Isso, bem se vê, não se compatibiliza com aquilo que
Lenio Streck denomina de "Teoria da Constituição Dirigente
Adequada a Países de Modernidade Tardia"65 que aponta para a
superação do triângulo dialético de Canotilho66.
Ao contrário, a materialidade presente nos textos consti-
tucionais latino-americanos demonstra que o constitucionalismo
está destinado a superar as promessas incumpridas da moderni-
dade, a superar o subdesenvolvimento, a criar condições dignas
de existência para "homens supérfluos", à medida que se preserva
a autonomia do direito como fundamento normativo, não como
fundamentum inconcussum absolutum veritatis — mas hermenêu-
tico67. Neste ponto reside o compromisso assumido pelo Estado

63 BERCOVICI, G.; Massonetto, L.F. A Constituição Dirigente Invertida: A Blindagem da Cons-


tituição Financeira e a Agonia da Constituição Econômica. Boletim de Ciências Econômicas,
v.XLIX. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2006.
64 BERCOVICI, G.; MASSONETTO, L.F., op.cit, p.73.

65 STRECK, Lenio L., op.cit.


66 STRECK, Lenio L., op. cit., p.139.

67 STRECK, Lenio L.; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. A "secura" a "ira" e as condições para que
os fenômenos possam vir à fala: aportes literários para pensar o estado, a economia e a au-
tonomia do direito em tempos de crise. In: STRECK, Lenio L.; TRINDADE, Andre Karam (orgs).
Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013.

60
Social (Welfare State)68, o que não implica permitir que o conceito
de constitucionalismo dirigente ocasione a desubstancialização69,
por via oblíqua, do próprio constitucionalismo latino-americano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas últimas décadas, proliferou no mundo ocidental


o conceito de constitucionalismo dirigente, a vicejar nas
democracias constitucionais após a Segunda Guerra Mundial.
No caso da América Latina, o constitucionalismo social e
dirigente assumiu contornos ainda mais especiais, evidenciado,
primeiramente, com o surgimento de uma vinculatividade
constitucional simbólica e de uma desjuridicação das imposições
constitucionais.
Em um segundo momento, verificou-se que o consti-
tucionalismo latino-americano criou algumas inovações que o
permite inserir em um novo contexto do constitucionalismo,
de feição interventiva, social, complexa, prolixa e concretista.
Todavia, a crise do capitalismo global internacional legou para
o mundo uma crise sem precedentes. No caso latino-americano,
a referida crise econômica foi agravada pelo aumento da cor-
rupção nos governos populistas latino-americanos, e repercutiu
no aumento da desconfiança popular e dos mercados.
Dessarte, tais desconfianças revelam os desafios a serem
enfrentados pelo constitucionalismo latino-americano. Revela,
sem dúvida, a atualidade do constitucionalismo compromissó-
rio nas economias dependentes, e a missão dessas constituições
na realização das promessas não cumpridas na modernidade.
Por último, revela também os perigos existentes na própria "de-
substancialização" dessas constituições.
68 Cf. HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência: a crise do Estado de bem-estar social e
o esgotamento das energias utópicas. Tradução de Carlos Alberto Marques Novaes. Revista
Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.18, p.103-114, set. 1987.
69 Cf. BERCOVICI, G. Constituição e Política: Uma Relação Difícil. Lua Nova, São Paulo –
SP, v.61, p.5-24, 2004. Disponível em: <<www.scielo.br/scielo,php?script=sci_arttext&pi-
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66
III

FEMINICÍDIO NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO:


ANÁLISE CRÍTICA ALÉM DA TIPIFICAÇÃO 1

Carolina Pereira Madureira 2

Andreia Marreiro Barbosa 3

Introdução
Ainda é invisível a bibliografia que trata de gênero, so-
bretudo de feminicídio – especialmente nos cursos jurídicos, o
que é sintomático. Entender a produção acadêmica como local de
fala com poucas mulheres é compreender que também nas nossas
universidades o regime de vida “gênero” segrega e exclui, pois
continua a dicotomia rua-casa, na qual à mulher é destinado o
espaço doméstico e não o acadêmico. A dominação masculina,
1 O presente artigo foi elaborado como trabalho de conclusão da disciplina Direitos Hu-
manos, ministrada pela Profa. Ma. Andreia Marreiro Barbosa, durante o primeiro semestre
de 2016.
2 Estudante de graduação do curso de Direito na Universidade Federal do Piauí (UFPI).

3 Mestra em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília. Bacharela em


Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Coordenadora de Pesquisa, Pós-Graduação
e Extensão da Faculdade Adelmar Rosado. Coordenadora do Curso de Especialização em
Direitos Humanos Esperança Garcia e Co-coordenadora do Núcleo de Estudo, Pesquisa e
Extensão Lélia González na mesma instituição. Professora substituta do Curso de Direito
da Universidade Estadual do Piauí. Vice-Presidenta da Comissão da Verdade da Escravidão
Negra da OAB/PI e membra da Comissão de Direitos Difusos e Coletivos.

67
livro de Pierre Bourdieu (2002, p. 20), atenta para essa realidade
de negação do espaço público às mulheres:

cabe aos homens, situados do lado exterior, do oficial, do público,


do direito, do seco, do alto, do descontínuo, realizar todos os
atos ao mesmo tempo breves, perigosos e espetaculares, como
matar o boi, a lavoura ou a colheita, sem falar do homicídio e
da guerra, que marcam rupturas no curso ordinário da vida. As
mulheres, pelo contrário, estando situadas do lado úmido, do
baixo, do curvo e do contínuo, vêem ser-lhes atribuídos todos
os trabalhos domésticos, ou seja, privados e escondidos, ou até
mesmo invisíveis e vergonhosos […]. Pelo fato de o mundo
limitado [a] que elas estão confinadas, o espaço do vilarejo, a
casa, a linguagem, os utensílios, guardarem os mesmos apelos
à ordem silenciosa, as mulheres não podem senão tornar-se o
que elas são segundo a razão mítica, confirmando assim, e antes
de mais nada a seus próprios olhos, que elas estão naturalmente
condenadas ao baixo, ao torto, ao pequeno.

Recordemos aqui do Massacre da Escola Poli-
técnica da Universidade de Montreal, ocasião em que
Marc Lepine, estudante de 25 anos, invadiu a esco-
la e atirou em 28 pessoas enquanto perguntava “vocês
são todas feministas?” O massacre resultou na morte
de 14 mulheres por um estudante que não aceitava sua
rejeição na universidade em detrimento da aceitação
dessas mulheres brutalmente assassinadas. A ocupação
de espaços socialmente destinados ao gênero masculino,
tal qual a Escola Politécnica da Universidade de Montreal,
exemplifica uma prática cotidiana: a mulher deve
corresponder às expectativas geradas pelo patriarcado.
Quando essas expectativas são frustradas, os homens
sentem-se no direito de punir a conduta com violência, seja
ela psicológica ou física – isto é, de cometer "feminicídio".
A denominada Lei do Feminicídio foi promulgada em
2015 com o intuito de aumentar as fontes de análise da prática
de violência de gênero, que, embora cotidiana, não é conta-
bilizada. Segundo essa lei, constitui feminicídio o crime que
evidencia menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Nesse diapasão, a nova tipificação incide de modo que os bo-
letins de ocorrência e os inquéritos policiais sejam fontes de

68
qualificação e quantificação dos abusos, dando vez e voz à luta
das mulheres contra a violência de gênero.
Segundo Marcela Lagarde y de los Ríos (2008), feminicídio
é o genocídio de mulheres e ocorre quando as condições históricas
geram práticas sociais, permitindo atentados contra a integridade,
a saúde, as liberdades e a vida de meninas e mulheres. O presente
trabalho problematiza a criação da qualificadora penal a partir
da compreensão do gênero como construção sociológica que
se intersecciona com outros marcadores, como raça e classe,
importantes para entender o assassinato de mulheres por serem
mulheres. Para isso, realizou-se uma pesquisa bibliográfica e
documental a partir dos estudos feministas e da Criminologia
Crítica, com vistas a entender o feminicídio como crime diverso
do homicídio. Visou-se, também, compreender a tipificação e seus
efeitos para demonstrar por que o instituto genérico "homicídio"
é ineficaz para evitar as mortes por crimes de gênero e, ao mesmo
tempo, pensar as limitações da tipificação penal.
Nos dizeres de Sinara Gumieri (2013), a crítica à estrutura
fundamentalmente androcêntrica do direito como gênero e do
direito penal em particular lança dúvidas sobre sua efetividade
como meio de transformações em favor da emancipação feminista.
A saída, nesse contexto, se situa em transformar o direito, de
instrumento de dominação, em meio de legitimação de demandas
feministas.

1 A NOMEAÇÃO E OS LIMITES DO DIREITO PENAL


COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO ÀS MULHE-
RES

Feminicídio é a violação dos direitos das mulheres através


da violência decorrente unicamente do regime de gênero. Nesse
prisma, gênero é uma construção sociológica da qual se vale o
patriarcado como marco de poder (Diniz, 2015). A tipificação
do feminicídio abrange, então, a matança dos corpos sexados

69
das mulheres, a maculação de seus direitos humanos. O intuito
do presente ensaio, no entanto, não é o de vitimizar a mulher,
mas de reforçar a expressiva concentração de violência sobre os
corpos femininos e argumentar que as relações violentas existem
porque as relações assimétricas de poder permeiam a rotina das
brasileiras.
Assim, feminicídio compreende o assassinato de uma mu-
lher cometido por razões da condição de sexo feminino, nos ter-
mos da Lei 13.104/2015: “violência doméstica e familiar e/ou me-
nosprezo ou discriminação à condição de mulher” (Brasil, 2015).
Os parâmetros que definem a violência doméstica contra a mu-
lher estão estabelecidos pela Lei Maria da Penha: ação ou omissão
baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,
sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da
unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de
afeto, independentemente de orientação sexual.
Nesse sentido, a violência de gênero na intimidade amo-
rosa revela a existência do controle social sobre os corpos, a se-
xualidade e as mentes femininas. Evidencia, ao mesmo tempo, a
inserção diferenciada de homens e mulheres na estrutura familiar
e social, assim como a manutenção das estruturas de poder e do-
minação disseminadas na ordem patriarcal. Em Bourdieu (2002),
entendemos o Estado e a escola como macroestruturas de domi-
nação masculina, ao passo que a violência doméstica representa
uma microestrutura. A violência física e sexual perpetua-se, nes-
tes espaços, como forma de controle, já que se ancora na violência
simbólica. É papel do feminismo a luta política contra todas as
formas de dominação, bem como o empoderamento feminino. O
processo inverso, de reconhecimento dos privilégios pelo domi-
nador, parece menos provável, já que esses privilégios foram his-
toricamente construídos.
Para Bourdieu (2002), a mobilização coletiva de resistên-
cia feminina por reformas jurídicas e políticas tem o condão de
des-historicizar a violência simbólica. A dominação masculina
seria, nessa lógica, uma forma particular de violência simbólica

70
na qual o poder impõe significações como legítimas para dissimu-
lar as relações que funcionam como base para a manutenção da
própria força. A dominação do homem sobre a mulher é exercida
por meio de uma violência simbólica, compartilhada inconscien-
temente entre dominador e dominado. A esse respeito, o autor é
enfático:

o efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero,


de cultura, de língua etc) se exerce não na lógica pura das
consciências cognoscentes, mas através dos esquemas de
percepção, de avaliação e de ação que são constitutivos dos
‘habitus’ e que fundamentam, aquém das decisões da consciência
e dos controles da vontade, uma relação de conhecimento
profundamente obscura a ela mesma (Bourdieu, 2002, p. 49).

Quando se discute a violência de gênero, o senso comum


leva a pensar nas violações aos direitos das mulheres ocorridas
no Oriente. Esse pensamento decorre do imperialismo moral ti-
picamente ocidental, que demoniza as práticas de cerceamento
de direitos humanos no Oriente, esquecendo-se das violações oci-
dentais diuturnas. É fato que existe violência contra a mulher no
Oriente, como em todas as sociedades, mas no mundo inteiro a
violência atrelada ao gênero gera vítimas.
Exemplo disso é a exposição de Mariza Corrêa (2001),
pioneira no estudo de crimes de honra – crimes intimamente re-
lacionados ao regime de vida “gênero”. Para a autora, a questão é
multicultural: tanto em países de tradição católica como em países
de tradição muçulmana a questão da honra encobre outras ques-
tões, sendo objeto de usos políticos. A diferença marcante é que,
na América Latina, são os companheiros que matam, ao passo que
em países islâmicos a questão da honra é vinculada à família de
origem. Se, em um caso, trata-se de justificar o orgulho ferido do
marido, no outro, trata-se de reconstituir as relações da família
de origem da mulher. Em suma, se o Estado de Direito for fraco,
em qualquer latitude, vai imperar a lei do mais “forte” (com maior
legitimação social).
Lourdes Bandeira (2014) constata ainda que escolher o
uso da categoria “violência de gênero” significa entender que as
ações violentas são produzidas em contextos e espaços relacio-

71
nais e, portanto, interpessoais, com cenários sociais e históricos
não uniformes. A centralidade das ações violentas incide sobre a
mulher, sejam estas violências físicas, sexuais, psicológicas, pa-
trimoniais ou morais, tanto no âmbito privado-familiar como nos
espaços de trabalho e públicos.
À luz da ideia de gênero, compreendemos como a al-
teridade deve se fazer presente no estudo da violência contra
a mulher quando comparada com outras violências. Motivado
pelo gênero, o ser violento não atua para aniquilar o outro como
pessoa considerada igual ou detentora das mesmas condições de
existência e valor. Ao contrário, a violência de gênero tem cunho
de dominação do homem e subsequente submissão feminina.
A antropóloga Rita Laura Segato (2006) afirma em seu
trabalho “Que és un feminicidio: notas para un debate emergen-
te” que a violação do corpo da mulher enquanto território carac-
terizador de sua identidade leva à compressão de que a violação
dos corpos (que conversa com nossa cultura do estupro) e a con-
quista territorial masculina têm andado lado a lado. Os crimes do
patriarcado, compreendidos como feminicídio, têm dupla função:
a manutenção e a reprodução do poder.
O Mapa da Violência 2015 – focado nas questões de gê-
nero e fundamentado em dados levantados pela ONU Mulhe-
res: Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o
Empoderamento das Mulheres – repisa que as estatísticas sobre
feminicídio no país são praticamente inexistentes. Na mesma
pesquisa, diz-se que o Brasil é o quinto país do mundo onde mais
se matam mulheres. Atrás apenas de Rússia, Guatemala, Colôm-
bia e El Salvador, nossa nação possui uma taxa de 4,8 mortes por
100.000 mulheres. Em conformidade com o Mapa da Violência
2012, a agressividade fatal atingiu mais de 50 mil mulheres entre
2000 e 2010 (Waiselfisz, 2012, 2015).
Ora, ressaltar que não se possui um mapeamento de
dados acerca da violência de gênero em um país onde mulheres
são mortas diariamente por homens legitimados é escancarar o
óbvio: o Estado não se preocupa em contabilizar a violência e
a violação de direitos das mulheres por crimes de gênero.

72
Os cadáveres das vítimas de abuso, crimes sexuais, en-
tre outros vários crimes cometidos em decorrência de gênero, so-
mam-se à cifra da violência sui generis. Os criminosos são puni-
dos, mas nada é esclarecido sobre o porquê dessas mulheres terem
sua vida usurpada. Nos dizeres de Debora Diniz, é nesse encontro
entre cadáveres esquecidos e matadores punidos que se atualizam
os sentidos do conceito de feminicídio proposto por Diana Russel
em 1970.
Não apenas a mulher é vítima sobretudo de relações de
poder historicamente construídas, mas também seus direitos
não são postos, e sim conquistados através de lutas. É nesse
prisma que o estudo da atuação da militância feminista e das
reivindicações dos movimentos sociais demonstra o gradual re-
conhecimento da gravidade da questão, conferindo novos con-
tornos às políticas públicas, que passaram do descaso ao reco-
nhecimento com a promulgação da Lei do Feminicídio. Como
aduz Corrêa (2001), a criação de grupos de combate à violência
e de atendimento às mulheres, a exemplo do SOS Corpo, de Re-
cife (1978) e de São Paulo, Campinas e Belo Horizonte (década
de 1980), é exemplo dessa mudança de agir político.
A necessidade de resistência feminina e luta por direitos
tem raízes na omissão do Estado em tratar dos crimes de gênero
e mesmo na demora a conceber o estudo de uma criminologia
voltada às mulheres. Nesse sentido, o livro Criminologia e femi-
nismo retrata o paradigma da ciência moderna, que assegura e
esconde a dominação masculina. Na criminologia, o estudo da
mulher como vítima ou autora de crimes era negligenciado até
o início dos anos 1970 (Baratta, 1999).
O Direito tem caráter androcêntrico porque se de-
senvolveu em conceitos masculinos, excluindo critérios
de ação extraíveis dos femininos. Para Alessandro Baratta
(1999), o sistema de justiça criminal integra o sistema de
controle social informal, já que este se volta às intérpre-
tes de papéis femininos na medida em que possuam uma
relevância tal que os impeça de serem controlados apenas
pelo patriarcado privado. Interessa ao patriarcado que es-
sas mulheres sejam controladas também na esfera pública.

73
Para Leila Linhares Barsted (2011), a existência de orga-
nizações e movimentos de mulheres possibilitou a constituição
de um sujeito coletivo que alargou o campo democrático no
Brasil. A luta legislativa por igualdade, inclusive nas relações
familiares, rompia gradualmente com a lógica patriarcal da
subordinação feminina. A conquista de direitos formais, cujo
exemplo é a própria Lei Maria da Penha, é processo político e
resultado de lutas. O mesmo se diz da tipificação do feminicídio.
Muito embora seja relevante compreender de onde vem a lei, a
luta feminista não se esgota no reconhecimento formal de direi-
tos, especialmente porque a declaração de direitos não traz de
imediato seu usufruto ou a ampliação do poder de decisão das
mulheres sobre suas vidas.
Destarte, a Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006 –, para
além de seus efeitos legais, representa o resultado de uma bem-
-sucedida ação de advocacy feminista voltada para o enfrenta-
mento da violência doméstica e familiar contra as mulheres. A
lei acompanha a posição das Nações Unidas e de organismos e
instituições de direitos humanos ao ampliar o conceito de segu-
rança por meio do adjetivo “humana”. Sobre o tema, enfatiza a
autora Leila Linhares Barsted (2011, p. 17):

em resumo, a ação de advocacy feminista para a elaboração


da Lei Maria da Penha, na sua tramitação, promulgação e na
mobilização para sua implementação, teve por base o contexto
político democrático, o avanço da legislação internacional de
proteção aos direitos humanos com a perspectiva de gênero e,
especialmente, a existência de organizações feministas atuantes.

A despeito das inúmeras críticas que podem ser tecidas


à Lei 11.340/2006, são inegáveis os avanços que ela trouxe para
coibir a violência doméstica e também para desmarginalizar a
discussão sobre violência de gênero no âmbito interfamiliar. So-
bre o tema, discorre Wânia Pasinato (2010, p. 219):

a Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, entrou em vigor em 22


de setembro de 2006. Trata-se de uma legislação especial cujo
objetivo é "criar mecanismos para coibir e prevenir a violência
doméstica e familiar contra a mulher[…]" (artigo 1º). A legislação
está adequada à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir

74
e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém
de Pará, OEA, 1994), a Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, ONU,
de 1979) e a Constituição Federal (Brasil, 1988). Pode-se dizer
que a nova legislação tem como paradigma o reconhecimento
da violência contra as mulheres como uma violação dos direitos
humanos (artigo 6º da Lei 11.340/2006).

Em consonância com a supracitada lei, os crimes de


violência no âmbito familiar devem ser apurados através de in-
quérito policial, remetidos ao Ministério Público e julgados nos
Juizados Especializados de Violência Doméstica contra a Mu-
lher ou nas Varas Criminais, quando os Juizados Especializados
inexistirem. No rol de alterações trazidas pela Lei 11.340/2006
está a ampliação da pena de um para até três anos de prisão e
o encaminhamento das mulheres em situação de violência bem
como seus dependentes para programas de assistência social,
além da proibição de penas pecuniárias aos criminosos, com o
condão de desestimular a violência intrafamiliar.
Os crimes de violência doméstica, abordados na mídia
como “crimes passionais”, são motivados pela necessidade de
poder e controle do dominador-homem, legitimado pelo ma-
chismo escancarado na sociedade. Utilizar essa nomenclatura
para tipificar crimes movidos pelo ódio às mulheres é ocultar
um sistema de dominação patriarcal. No mesmo sentido, Segato
(2006, p. 4) sugere que, “dentro de la teoría del feminicidio, el
impulso de odio con relación a la mujer se explicó como conse-
cuencia de la infracción femenina a las dos leyes del patriarca-
do: la norma del control o posesión sobre el cuerpo femenino y
la norma de la superioridad masculina”.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
relata que, apesar dos esforços, a vigência da Lei Maria da
Penha não dirimiu os casos de violência: os crimes contra
mulheres aumentaram 11,6% entre 2004 e 2014 no país. De
acordo com o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2012), 41% das
mortes femininas ocorreram na casa da vítima e, no quadro de
mulheres atendidas em situação de violência, essa porcentagem
aumenta para 68,8%. Estatísticas mais recentes comprovam que

75
a violência contra a mulher assume os moldes de uma guerra
civil permanente: segundo o Mapa da Violência 2015, o Brasil
está entre os países com maior índice de homicídios femininos
(Waiselfisz, 2015).
Nove anos depois da promulgação da Lei Maria da Pe-
nha (Brasil, 2006), sancionou-se a Lei 13.104/2015, alterando
o artigo 121 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) e o
artigo 1o da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o
feminicídio no rol dos crimes hediondos e prevê-lo como cir-
cunstância qualificadora do crime de homicídio. Nesse diapa-
são, a qualificadora não incide sobre um aspecto meramente
biológico, mas constitui crime de gênero: regime de vida do pa-
triarcado e construção sociológica.
Segundo a nova lei, a comprovação da violência
de gênero prescinde prova inequívoca. Comprovada essa
circunstância, não se pode mais invocar o motivo torpe. O
regime inicial de cumprimento da pena do feminicídio é o
fechado, e o tempo de reclusão, de 12 a 30 anos. A lei estabelece
que, quando o homicídio de mulher acontece por "razões de
condição de sexo feminino", o crime será hediondo e merecerá,
portanto, maior reprovação por parte do Estado. São previstas
ainda agravantes quando o crime envolver situações específicas
de vulnerabilidade, como a gravidez, por exemplo. Segue a
disposição dos agravantes na Lei do Feminicídio:

§ 7o A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a


metade se o crime for praticado:
I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;
II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60
(sessenta) anos ou com deficiência;
III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima.

Conforme pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos


sobre o Crime e a Pena da Escola de Direito da Fundação Getulio
Vargas (Machado, 2015), 14 outros países da América Latina
possuem leis tipificando o crime de feminicídio: Argentina
(2012), Bolívia (2013), Chile (2010), Colômbia (2008), Costa Rica

76
(2007), Equador, El Salvador (2012), Guatemala (2008), Honduras
(2013), México (2012), Nicarágua (2012), Panamá (2011), Peru
(2011) e Venezuela (2014). A adoção de lei especial representa
um avanço, nesse contexto, pela maior riqueza de possibilidades
regulatórias: tanto de sanções para reprimir o feminicídio
quanto de normas jurídicas de conteúdo não punitivo com o
intuito de conscientização e promoção de políticas públicas.
O estudo realizado pelo Núcleo de Estudos da FGV
utilizou-se, além da legislação comparada, de uma análise
qualitativa de processos judiciais relacionados aos crimes de
homi¬cídio tentado e consumado de mulheres por meio da
escolha de regiões com altas taxas de homicídio em razão do
gênero. Observou-se que o autor do feminicídio é motivado
pelas manifestações de autonomia ou liberdade em oposição
à tradicional submissão feminina (Machado, 2015). A intenção
de provocar aflição suplementar anterior à morte e o desejo de
aniquilar fisica¬mente a mulher são outros traços identificados
na pesquisa sobre violência doméstica, revelando como a
matança das mulheres por regime de gênero tem forte conteúdo
de punição social e repúdio ao corpo sexado de mulher.
A análise dos processos permitiu delinear duas figuras
socialmente preocupantes: vítimas tornam-se, à luz da justiça,
agres¬soras ou provocadoras enquanto a busca pelo estereótipo
do homem trabalhador e pai de família impede que os crimes de
feminicídio sejam quantificados. É a reprodução, no judiciário,
do regime de vida gênero que concentra a violência sobre os
corpos femininos.
Discutida a tipificação e identificada a mulher como
potencial vítima, temos que compreender a existência de outros
regimes de vida para além do gênero. Nesse contexto, é errônea
a categorização da mulher em um único grupo, pois diversas
são as pautas dentro do feminismo e da defesa dos direitos das
mulheres. Em "Nomear feminicídio: conhecer, simbolizar e
punir", Diniz explana que […] o patriarcado é um marco de poder,
com diferentes regimes de governo pela subalternização, pela
vigilância e pelo castigo. O gênero é só um deles; a colonialidade,
a classe ou a cor são outros" (2015, p. 2).

77
Tanto isso é verdade que, em estudo feito pela autora
na capital federal, com base em dados colhidos nos arquivos
do Instituto de Medicina Legal, do Ministério Público e da Polí-
cia Civil e do Judiciário entre 2006 e 2011 sobre homicídios de
mulheres por violência doméstica e familiar, a probabilidade de
uma mulher negra ser morta pelo feminicídio é três vezes maior
do que as de uma mulher branca, sobretudo em áreas de subal-
ternização (Diniz, 2015). A conclusão é de que o patriarcado
atua com outros mecanismos de subalternização e vigilância em
interseção, como a cor ou a geografia. Corrêa (2001) sugere que
esta é a razão da evidência dos estudos sobre o corpo na agenda
dos estudos de gênero: é no corpo que essas marcas classifica-
tórias são impressas.
Nesse ínterim, o próprio patriarcado deve ser entendido
como múltiplo, para que a generalização dos sujeitos da prática
não impeça a observação da realidade. Em mesmo entendimento
se posiciona a socióloga Heleieth I.B. Saffioti, segundo a
qual a violência de gênero se insere em um quadro complexo
com fenômenos de divergentes naturezas e capacidades de
determinação. Homogeneizar uma realidade complexa significa
reduzi-la. Explana Saffiotti: "se é verdade que a ordem patriarcal
de gênero não opera sozinha, é também verdade que ela
constitui o caldo de cultura no qual tem lugar a violência de
gênero, a argamassa que edifica desigualdades várias, inclusive
entre homens e mulheres" (2001, p. 133).
Isto posto, cabe advertir à leitora que a sociedade
patriarcal constitui estrutura complexa graças à intercalação
de três categorias: gênero, etnia e classe. Entendemos, com
Saffiotti (2001), que o patriarcado é poderoso justamente por
utilizar diferentes asseclas garantidoras de seus privilégios e
mantenedores da ordem de gênero. Para a autora, o conceito de
dominação-exploração ou exploração-dominação implica duas
dimensões, a da dominação e a da exploração, em uma realidade
una – um único processo com duas dimensões complementares.
Como vimos, a força da ordem masculina para Bourdieu

78
(2002) situa-se no fato de não necessitar justificar-se. A visão
androcêntrica se impõe como neutra e não tem necessidade de
se enunciar para se legitimar. A ordem social funciona como
uma imensa máquina simbólica, ratificando a dominação
masculina na qual se funda: é a divisão social do trabalho, a
distribuição muito restrita das atividades atribuídas a cada sexo.
Assim, deve-se assimilar que a dominação constitui per si uma
violência: a violência simbólica atua por meio da adesão que o
dominado cede ao dominador dia após dia.
Dessa forma, o poderio masculino atravessa todas as
relações sociais e torna-se objetivo, traduzindo-se em estruturas
hierarquizadas, em senso comum. É bem verdade que há luz
no fim desse túnel: nem todo conhecimento é determinado
pelas lentes do gênero. Mulheres podem oferecer resistência ao
processo de exploração-dominação nas relações de gênero, mas
também atingindo as dominações étnicas e as de classe.
Digno de nota também é o posicionamento da
antropóloga e deputada Marcela Lagarde y de Los Ríos (2008),
que diferenciou femicídio de feminicídio. Enquanto o primeiro,
homólogo de homicídio, é neutro, "feminicídio" seria o vocábulo
mais adequado, denunciando o Estado omisso e nomeando as
diversas violações dos direitos das mulheres unicamente em
razão do gênero. De acordo com a autora,

la traducción de femicide es femicidio. Sin embargo, traduje


femicide como feminicidio y así la he difundido. En castellano
femicidio es una voz homóloga a homicidio y sólo significa
homicidio de mujeres. Por eso, para diferenciarlo, preferí la voz
feminicidio y denominar así al conjunto de violaciones a los
derechos humanos de las mujeres que contienen los crímenes y
las desapariciones de mujeres y que, estos fuesen identificados
como crímenes de lesa humanidad (2008, p. 215-216).

Em verdade, o vocábulo "feminicídio" é recente e tem


suas raízes nas denúncias de assassinatos de mulheres na cidade
de Juárez, no México, pela própria Marcela Lagarde y de los Ríos
(2008). O feminicídio tem transcendido as fronteiras mexicanas,
já que as organizações vinculadas ao processo de justiça e ao

79
movimento recorreram aos organismos internacionais civis e
institucionais.
No estudo realizado por Diniz (2015), a tipificação do
crime de feminicídio possui três efeitos esperados: nomear,
simbolizar e punir. Nomear, enquanto ato político, tem o viés
de tornar pública a morte evitável de mulheres pelo regime
de gênero. Nomear para simbolizar, por sua vez, corrobora o
entendimento de que o tipo penal genérico homicídio oculta
a matança de mulheres e, portanto, tipificar significaria
desnaturalizar a matança. Em aspectos práticos, inexistem
evidências de conexão entre esse jogo performativo de
enunciação e simbolização e a alteração efetiva do regime do
gênero. Nos dizeres de Diniz, no entanto, "feminicídio, em vez
de homicídio, permitiria que o horror da matança ganhasse
texto, envergonhasse os matadores e alterasse o regime político
que o sustenta" (2015, p.3).
Como último efeito, tipificar para punir possui duas
correntes (Diniz, 2015). A primeira sustenta ser o regime do
gênero um modulador para o tipo genérico do homicídio, o que
exigiria aumento de pena. Nessa corrente, nomear significaria
punir. A segunda pressupõe ser o homicídio um tipo genérico
neutro que encobre a matança de mulheres. Com isso, tipificar
o feminicídio seria punir com efetividade. O efeito da nomeação
como punição encontra terreno sobretudo em autoras que
entendem ser o Estado leniente em relação aos crimes de gênero.
Vera Regina Pereira de Andrade (1999), no já citado livro
Criminologia e feminismo, defende que o debate de criminologia
e feminismo no Brasil (pauta que inclui a violência de gênero)
deve situar-se fora do sistema penal. Isso porque nosso país
sofre uma crise de legitimidade desse sistema, que não cumpriu
as promessas feitas à modernidade – promessas de proteção
dos bens jurídicos, de uma aplicação igualitária das penas e
de combate à criminalidade. Segundo a autora, a crise do (sub)
sistema penal confunde-se com a crise do próprio monismo
jurídico, que mistura Estado e lei. Esse paradigma abordado

80
por Andrade conversa com a conclusão de Diniz (2015) – a
"nomeação de feminicídio para apreender" –, na medida em
que, para ambas, não é o encarceramento a solução para dirimir
a violência de gênero.
Foi com esse intuito de ir além da punição que Sinara
Gumieri (2013), em trabalho orientado por Diniz, analisou
35 processos judiciais com trânsito em julgado relativos a
homicídios de mulheres em situação de violência doméstica
e familiar no Distrito Federal entre 2006 (após a sanção da
Lei Maria da Penha) e 2011. O foco da sua pesquisa não foi a
violência doméstica homicida como realidade complexa de
muitas mulheres, mas sim suas versões judiciais. Nesse sentido,
Gumieri ressalta que os estereótipos de gênero tendem a apagar
características individuais das pessoas, negando direitos e
reforçando hierarquias de gênero:

embora […] não se tenha observado um contexto de impunidade


nos casos analisados, o uso de argumentos que buscam
culpabilizar as vítimas e legitimar a violência sofrida mostrou-
se muito expressivo. A principal evidência está nas teses de
defesa: em mais da metade dos casos (18 processos – 52%),
a defesa dos réus baseou-se na confissão da prática delitiva
seguida da apresentação de outras circunstâncias atenuantes da
pena (conforme Código Penal, art. 65, III). Tais circunstâncias
(notadamente violenta emoção após injusta provocação da vítima
e defesa de relevante valor moral) diziam respeito a estereótipos
de gênero que, uma vez desafiados pelo comportamento das
vítimas, justificariam ou minimizariam a ação violenta dos réus
(2013, p. 12).

É importante ressaltar que, em muitos dos trabalhos


utilizados como referência para esta pesquisa, o termo
"feminicídio" ocupa-se apenas de tipificar a morte de mulheres
por violência de gênero. Concordamos, no entanto, com o
posicionamento de Diniz, segundo a qual o feminicídio não se
reduziria a homicídio: é qualquer morte que decorra do gênero,
seja na violência doméstica, seja na violência sexual anônima,
no aborto clandestino, na mutilação genital, na mortalidade
materna, no tráfico de mulheres.

81
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Diniz (2015), o patriarcado nos antecede e nos


acompanha. Doloroso é observar o quão espinhosos são
os meandros da violência de gênero, da morte de mulheres
unicamente pelo fato de serem mulheres: a última etapa de um
continuum de violência que (nos) leva à morte. Tipificar o crime,
muito embora necessário, é um passo pequeno no combate diário
que deve ser travado.
Nomear para apreender, nos dizeres de Diniz, deve ser
entendido como medida urgente em um país onde sequer temos
cifras para escancarar a violência de gênero. Tipificar feminicídio
permite tornar inteligível a morte de mulheres ocasionadas
por essa violência. Sabemos quem morre e quem mata, mas as
motivações são mascaradas: o triste encontro entre cadáveres
esquecidos e matadores impunes que torna o Estado cúmplice da
matança dos corpos sexados pelo patriarcado.
Desse modo, tipificar feminicídio torna visível a morte
decorrente do regime de gênero: nomear o problema compreende
desenraizar práticas socialmente construídas e denunciar o
patriarcado como marco de poder. Nesse sentido, é imprescindível
conhecer a vítima e a motivação do crime, de modo que a atuação
estatal possa ser menos inerte e complacente. Como no lema do
Dossiê Feminicídio (Prado; Sanemtsu, 2017), da Agência Patrícia
Galvão, invisibilidade mata.

82
REFERÊNCIAS

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da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da
cidadania. In: CAMPOS, Carmem Hein de. (Org.). Criminologia e
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criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmem Hein de.
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bem-sucedida de advocacy feminista. In: CAMPOS, Carmem Hein
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Diário Oficial da União, Brasília, 10 mar. 2015. Disponível em:
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Acesso em: 18 jul. 2016.

83
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PRADO; Débora; SANEMATSU, Marisa. (Org). Feminicídio:


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SAFFIOTI, Heleith I. B. Contribuições feministas para o estudo


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SEGATO, Rita Laura. Que és un feminicidio: notas para un debate

84
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Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/
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______. Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no


Brasil. Brasília: Flacso, 2015. Disponível em: <http://www.
mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_
mulheres.pdf> Acesso em: 15 jul. 2016.

85
IV

A RAZÃO COMUNICATIVA E SEU FUNCIONAMEN-


TO – ANÁLISE DO CASO DANIELLA PEREZ

Liza Tajra Nery 1

Luzia Eduarda Bezerra Valadares 2

Introdução
Em dezembro de 1992, o assassinato de Daniella Perez
chocou o Brasil, não apenas pela forma bárbara do crime, como
– e talvez principalmente – pelo fato de serem, a vítima e o réu,
figuras públicas.
Na época com 22 anos, Perez era atriz e trabalhava na no-
vela De Corpo e Alma, escrita por sua mãe, Glória Perez, e trans-
mitida no chamado “horário nobre” da Rede Globo de Televisão.
Percebe-se, portanto, o amplo alcance da figura de Daniella. De
acordo com o então promotor a frente do caso, José Muiños Piñei-
ro, em entrevista ao jornal O Globo (2012),

era a primeira vez que não era necessário explicar aos jurados
quem era a vítima, [...] Daniella Perez estava todos os dias na
novela das oito, era como se fosse a irmã ou a filha de todos os
brasileiros

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Piauí


2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Piauí

86
O réu, Guilherme de Pádua, também era ator e, na época,
contracenava com Daniella. O réu, Guilherme de Pádua, também
era ator e, na época, contracenava com Daniella.
Pádua cometeu o crime com o auxílio de sua esposa, Paula
Thomaz. Daniella foi vítima de uma emboscada planejada pelo
casal e morreu apunhalada 18 vezes com uma tesoura. Contudo,
apesar da comoção ocasionada pelo crime, os réus só foram julga-
dos cinco anos após a ocorrência, em 1997.

Explica-se que em 1990, o então presidente Fernando
Collor havia sancionado a lei nº 8.072 que classificava alguns cri-
mes como hediondos, de forma que esses eram inafiançáveis e não
permitiam o benefício de progressão da pena. Todavia, o assassi-
nato não estava incluso nessa lei, facilitando a postergação de um
julgamento por esse crime.
Por esse motivo, a mãe da vítima, que também é uma fi-
gura pública, passou a questionar o monopólio jurídico do Estado.
Segundo relatos próprios feitos em seu site, Glória Perez aliou-se
a outras mães em situação semelhante e juntas começaram uma
campanha para recolher assinaturas apoiando uma emenda legal
que tornava o homicídio qualificado também um crime hediondo.
Aproximadamente 1,3 milhões de pessoas, em um período de três
meses, assinaram a proposta, que foi levada à votação no Con-
gresso pelo senador Humberto Lucena.

As ações de Perez encontram suporte na Constituição Fe-
deral de 1988, que prevê em parágrafo único de seu art. 1º que
“todo poder emana do povo, que o exerce por meio de represen-
tantes eleitos ou diretamente, nos termos dessa Constituição”
(BRASIL apud OLIVEIRA, 2012, p. 21). E continua, em seu art. 14:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal


e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos
termos da lei mediante:

(...)

III – Iniciativa popular.


(BRASIL apud OLIVEIRA, 2012, p. 28).

Porém, mesmo com a aprovação da emenda, essa não po-


deria ser aplicada ao caso Daniella, tendo em vista que a lei não

87
retroage para punir. Assim, Pádua só foi apenado em 25 de janeiro
de 1997, quando se iniciou no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro o
julgamento que o consideraria culpado.
A sentença proferida pelo juiz esteve em harmonia com o
que se reivindicava socialmente, tendo a condenação sido aplau-
dida pelos presentes. Nesse sentido, vale destacar o apoio geral
destinado à causa, mas também é importante observar a singu-
laridade desse fato. Como exposto anteriormente, Glória Perez
juntou-se a outras mães com o mesmo clamor, visibilizando seus
anseios. Questiona-se se tais mulheres teriam qualquer poder dis-
cursivo não fosse à condição de Perez como novelista da maior
rede televisiva do país.
Portanto, o presente artigo discute o poder da ação co-
municativa associado às conquistas sociais, sem esquecer-se da
relativização desse poder e discutindo centralmente suas implica-
ções na divisão do trabalho jurídico. Analisar-se-á o caso e seus
efeitos, segundo teorias de Beck (1995), Bourdieu (1989) e Haber-
mas (1997), fomentando uma argumentação que reflete a ação co-
municativa como instrumento essencial para o desenvolvimento
do Direito, já que ela possibilita maneiras de infiltrar-se no campo
jurídico sem, contudo, afetar a autonomia deste.

1 A FORMAÇÃO DO MONOPÓLIO JURÍDICO

É necessário perceber o papel da linguagem no de-


senvolvimento do Direito para que haja melhor compreen-
são do poder fundamentado na comunicação. Deve-se notar,
contudo, que, por paradoxal que seja em primeiro momento,
a linguagem atua ora amplificando, ora limitando vozes.
Explica-se que a linguagem jurídica é fundamental
para a delimitação do campo jurídico, tornando-o de difícil
acesso a leigos e distanciando-o de sua construção social.
Para tanto, atribuem-se às palavras de uso vulgar significa-
dos exclusivos quando usadas em contexto legal, salientando
a “dualidade dos espaços mentais, solidários de espaços sociais
diferentes, que os sustentam” (BOURDIEU, 1989, p. 227).

88
Além disso, a retórica do Direito está organizada para
neutralizar e universalizar as regras, criando um locutor suposta-
mente imparcial e partindo de um pressuposto consenso ético. Ao
passo que a neutralidade e a universalidade são necessárias para a
oficialização da resolução de conflitos, essas também contribuem
para o desvio entre a visão popular e a especialista sobre os prin-
cípios legais instituídos pelo Estado.
Deve-se explicitar que a distância entre leigos e doutos é
importante para a manutenção de um poderio estatal simbólico.
Explica-se, segundo Bourdieu, que “o poder simbólico é, com efei-
to, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumpli-
cidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou
mesmo que o exercem” (1989, p. 7).
Dessa forma, a ordem jurídica traduz em dispositivo ofi-
cial relações de força preexistentes, perpetuando uma definição
do mundo social conforme interesses legitimados na figura do
Estado, mas muitas vezes distante da realidade social dos com-
ponentes desse mesmo. Portanto, os locutores imparciais e os
consensos éticos supracitados não se mostram de fato neutros ou
universais.
Por isso, Glória Perez sentiu a necessidade de questionar
a lei nº 8.072 (lei de crimes hediondos), adentrando o campo ju-
rídico com reivindicações pessoais, mas também populares, apro-
ximando-o de uma realidade social que, muitas vezes, é excluída
da formulação legal. Aqui, o desenvolvimento do Direito ocorreu
em um sentido de confrontação entre texto e realidade. Bourdieu
comenta que

paradoxalmente, [...] a autonomização passa, não por um reforço


do fechar-se em si de um corpo exclusivamente devotado à
leitura dos textos sagrados, mas sim por uma intensificação da
confrontação dos textos e procedimentos com as realidades sociais
de que tais procedimentos são tidos por expressão e regulação
(1989, p. 253). paradoxalmente, [...] a autonomização passa, não
por um reforço do fechar-se em si de um corpo exclusivamente
devotado à leitura dos textos sagrados, mas sim por uma
intensificação da confrontação dos textos e procedimentos com

89
as realidades sociais de que tais procedimentos são tidos por
expressão e regulação (1989, p. 253).

Contudo, deve-se perceber que o alcance dos clamores de


Glória se deu devido a seu status social, ao lugar que ocupa na
sociedade, já que não é de qualquer espaço que emergem as re-
gras que são submetidas à formalização e à generalização. (BOUR-
DIEU, 1989).
Segundo Farabulini (2004), antes da emenda popular, a
criação da lei nº 8.072 foi propiciada pelos altos índices de vio-
lência brasileiros. A população demandava uma resposta penal a
questão, porém

a pretensão da sociedade tornou-se frustrada quando os


constituintes disseram ‘não’ à pena de morte e à prisão perpétua,
que realmente impediriam o avanço dos crimes de altíssima
potencialidade (FARABULINI, 2004).

Há, portanto, a percepção de um caráter vingativo da


sociedade brasileira, que se distancia de concepções humanísticas
para aproximar-se do estado penal, cerceando Direitos em troca
de uma suposta proteção contra a violência. Questiona-se o
verdadeiro resultado disso.
É nesse sentido que a ação de Glória Perez pode ser descrita
como paradoxal, pois visibiliza as reivindicações populares, em
uma clara demonstração de representatividade, porém, também
coíbe direitos, ao resultar em maior privação de liberdades.
Por conta disso, entende-se que é fundamental para o
Direito uma aliança entre leigos e especialistas, como maneira de
atender as demandas populares por meio da teoria jurídica.

2 MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO

No caso Daniella, a iniciativa de Glória, somada ao apoio


de outra grande parcela da sociedade, conseguiu conferir mudan-
ças no âmbito jurídico. Isso demonstra que agentes externos ao
sistema político também podem aparecer no cenário do planeja-

90
mento social (BECK, 1995). Assim, observa-se a presença de pon-
tos indispensáveis para a compreensão desse fato na obra do soci-
ólogo alemão Ülrich Beck, destacando-se dentre eles a subpolítica,
a mesa redonda e a reforma da racionalidade.
O primeiro aspecto observado no caso dialoga com o
conceito de subpolítica. Ressalta-se que “subpolítica [...] significa
moldar a sociedade de baixo para cima” (BECK, 1995, p. 35), sendo
importante frisar que “no despertar da subpolitização há oportu-
nidades crescentes de se ter uma voz e uma participação” (BECK,
1995, p. 35). Nesse sentido, o espaço aberto à população ordinária
para interferir na estrutura judicial revela o aspecto subpolítico
da participação social no caso em questão.
Portanto, cabe apontar que o caso Daniella não foi o úni-
co em que houve o elo entre clamor social e mudanças jurídicas (e
políticas). À exemplo desse, foram conquistadas outras emendas
populares, como a lei complementar 135/2010 (lei da Ficha Lim-
pa), que proíbe

assumir cargos públicos aqueles que estão em situação de


inelegibilidade em razão de condenação ou punição de qualquer
natureza, na forma da Lei da Ficha Limpa. [...] O prazo dessa
inelegibilidade é de oito anos (JORNAL DO SENADO, 2013).

Outro exemplo que remete, inclusive, ao mesmo período


do caso trabalhado, foi o movimento dos “caras-pintadas”, que ti-
nha como objetivo o impeachment do presidente Fernando Collor,
o que culminou na renúncia deste, no dia 29 de dezembro de 1992,
um dia após o assassinato de Daniella.
Esses acontecimentos revelam que a moldura do Direito,
bem como de outras instituições da sociedade civil, é também
construída através de iniciativas populares, e, se assim não o fosse,
essas instituições se tornariam ilegítimas, ou ainda, improváveis.
Beck, ao tratar da sociedade de risco (1995), anuncia o
problema da ambivalência, relativo à incapacidade dos grupos
de especialistas de lidarem com toda a estrutura social, decor-
rendo disso, que muitas vezes, ainda que busquem melhorias, os

91
especialistas ocasionam prejuízos; os benefícios e malefícios não
conseguem ser distribuídos equitativamente, sendo necessária a
intervenção da técnica da mesa redonda, responsável por demo-
cratizar a participação nas tomadas de decisão, criando um siste-
ma legítimo onde a população leiga tem progressivamente mais
participação.
Destaca-se a importância do código comunicativo para o
alcance desse aspecto, já que é ele o responsável por produzir “o
centro do qual se originam os projetos de realidade e as oportuni-
dades para a realidade dos subsistemas” (BECK, 1995, p. 46), que
inicia um processo de reforma da racionalidade que se contrapõe
aos sistemas de monopólio especialista.
Como adiantado, a subpolítica insere oportunidade de
expressão no âmbito político aos agentes externos a essa esfe-
ra. Todavia, não é possível discutir satisfatoriamente esse assunto
sem levantar o problema dos discursos ignorados, ou que tiveram
pouco alcance social, e debater quais as causas do insucesso des-
ses discursos. Essa é uma discussão de um segundo momento, mas
cabe adiantar que a relatividade do poder discursivo se associa a
valores morais, portanto, valores sociais.
A partir da importância atribuída à participação social
nas diversas instituições e dispositivos jurídicos, e às críticas des-
tinadas aos sistemas que excluem membros da sociedade dessa
participação, apreende-se que o Direito regulado pela voluntas
populi, parece o melhor e mais evoluído dos Direitos.
Contudo, esse pensamento, que é lugar comum para boa
parte da população brasileira, configura-se muito perigoso, não
apenas pela insegurança jurídica, mas também pela reposição de
um direito repressivo vingativo3 , já que um controle jurídico ad-
vindo da própria sociedade cai em vias de um julgamento moral e
intensamente subjetivo.
Relacionando esse aspecto ao caso citado, vê-se que a po-
pulação pôde intervir no Direito, criando uma emenda popular.

3 (DURKHEIM, 1984) O direito repressivo tem seu ápice na solidariedade mecânica, carac-
terística de sociedades com uma atrofiada divisão social do trabalho, onde os membros da
sociedade partilham de uma consciência comum e o Direito é instrumento para vingança.

92
Todavia, enquanto que para alguns essa situação configura-se em
uma ampliação dos direitos, cabe identificar que houve, na verda-
de, uma limitação dos mesmos, visto que a lei dos crimes hedion-
dos deu mais severidade ao tratamento do homicídio qualificado.
Dessa forma, entende-se que a participação popular é de
grande importância, já que "em uma sociedade sem consenso,
desprovida de um cerne legitimador, é evidente que até mesmo
uma simples rajada de vento, causada pelo grito por liberdade,
pode derrubar todo o castelo de cartas do poder" (BECK, 1995, p.
31). Entretanto, existirá sempre uma conjunção adversativa para
desfazer a pretensa perfeição de dispositivos sociais, visto que
a complexidade e a contingência4 são qualidades intrínsecas à
sociedade.
Compreendeu-se, portanto, que deve haver um cuidado
no entendimento do que representa o poder popular, atentando
para a significação moral desse poder.

3 A LINGUAGEM E O PODER DO DISCURSO


3.1 Comunicação

Enquanto a linguagem jurídica proposta por Bourdieu


age para demarcar o campo jurídico e limitar o acesso a ele, de
acordo com a teoria de Jürgen Habermas (1997), a linguagem é
imprescindível para mudanças sociais, inclusive no Direito.
A razão comunicativa de Habermas é uma superação da
razão prática de Kant. Isso acontece não por meio de uma negação
das ideias kantianas, mas pela adaptação de sua proposta à
contemporaneidade, já que, a partir do século XIX, as sociedades
tornaram-se extremamente complexas e o pluralismo que surgia
não permitia mais o conceito de razão prática como faculdade
subjetiva.
Deve-se explicar que a razão prática, advinda do paradigma
da modernidade, servia como leis práticas que guiavam a vontade
humana, válidas para qualquer ser racional (ZATTI, 2007). Porém,
necessitava de homogeneidade para alcançar sua universalidade,
4 (LUHMANN, 1983)

93
falhando em lidar com o caráter heterogêneo da sociedade.
Nesse sentido, a razão comunicativa surge como ruptura
desse paradigma, e insere uma racionalidade encontrada, não
nos sujeitos, mas na própria linguagem, o que prova que a razão
comunicativa se encaixa no problema das sociedades complexas,
visto que é capaz de lidar com os fenômenos que ultrapassam os
controles dos indivíduos e das coletividades.
Habermas passa a considerar o egoísmo característico
do homem contemporâneo ao tratar da comunicação, assim,
é pressuposto que os sujeitos 1) buscam fins ilocucionários,
2) reconhecem pretensões de validade criticável, 3) aceitam
obrigatoriedades relevantes às consequências da interação e
resultantes de um consenso (HABERMAS, 1997). Seguindo a
razão comunicativa, a sociedade deixa de ter normas práticas
inquestionáveis e passa a buscar o entendimento através da
linguagem. Completa-se ainda que "os pressupostos idealizadores
sobrecarregam, sem dúvida, a prática comunicativa cotidiana;
porém, sem essa transcendência intramundana, não pode haver
processos de aprendizagem" (HABERMAS, 1997, p. 21).
Portanto, fica claro que quem domina a linguagem e/ou
a comunicação, tem maior controle sobre a racionalidade. Dessa
forma, entende-se o poder de alcance da proposta de Glória Perez,
que contava não apenas consigo mesma enquanto escritora, mas
com a emissora de televisão que ainda a emprega. Perez tinha por
duas vezes domínio da comunicação, de modo a exercer ampla
influência sobre o público.
Destaca-se ainda que quem não detém mecanismos para
construir e difundir um discurso dificilmente terá reivindicações
aceitas ou até mesmo consideradas socialmente.

3.2 ACESSO AO E DIFUSÃO DO DISCURSO

O impacto que teve o caso Daniella Perez reflete a


popularidade de sua figura, somada à de sua mãe, Gloria
Perez, e à de seu assassino, Guilherme de Pádua. O assassinato
teve grande significância para telespectadores brasileiros,

94
despertando indignação e até tristeza. A emenda popular
aprovada não deixa de refletir os sentimentos de grande parcela
da população na época, dado o status da violência no Brasil,
e, a partir de então, orientar dispositivos para supostamente
reduzir esse problema.
Entretanto, é evidente que nem todos os homicídios são
tratados da mesma forma. Exemplifica-se usando o contraste
entre o caso em questão, que tem como vítima Daniella, mulher
branca e famosa, e o caso de Victor Pinto, índio do povo Kaingang
de apenas dois anos de idade morto violentamente no dia 30 de
dezembro de 2015. Não se discute o teor hediondo de ambos os
casos, mas a visibilidade de um e a invisibilidade de outro. Há uma
simbologia construída no meio social, através dos costumes e da
moral, mas que se concretiza, finalmente, como um valor atribuído
a diferentes seres humanos de acordo com seus privilégios ou a
falta deles.
Devido a tais valores sociais, existe uma relativização
de discursos, ordenados segundo uma importância subjetiva.
Mesmo que isso limite o acesso ao discurso jurídico, não impede
que minorias sejam de fato ouvidas. Percebe-se ainda que figuras
públicas per si não têm garantia de um poderio discursivo, pois
esse está vinculado principalmente a mídia.
Dessa forma, constata-se que, ainda que a razão
comunicativa esteja disponível a população, seu poder de
utilidade está limitado ao valor que se atribui a cada enunciador
do discurso. Por esse motivo, muitas vezes, é preciso encontrar
alguém que represente seu ponto de vista. Glória Perez não era
apenas mais uma mãe desconhecida vivendo seu luto, ela pôde
difundir sua ideia, seu discurso, conseguindo amplificar a voz de
outras um milhão e trezentas mil pessoas. Entende-se que:

com muita frequência o Direito confere aparência de


legitimidade ao poder ilegítimo. À primeira vista, ele não
denota se as realizações de integração jurídica estão apoiadas no
assentimento dos cidadãos associados, ou se resultam de mera
autoprogramação do Estado e do poder estrutural da sociedade;

95
tampouco revela se elas, apoiadas nesse substrato material,
produzem por si mesmas a necessária lealdade das massas
(HABERMAS, 1997, p. 62).

3.3 O PAPEL DO DIREITO

Ainda na obra de Habermas (1997), supera-se a dialética


marxista com a proposta de que o desenvolvimento social ocorra
por meio dos consensos resultantes de conflitos resolvidos pela
ação comunicativa, já que "o agir comunicativo permite liberar
o potencial de racionalidade da linguagem e mobilizá-lo para
funções de integração social" (1997, p. 65). É nesse sentido que
o Direito assume o papel de conciliar a tensão entre validade e
facticidade.
O autor propõe que essa tensão é não apenas verificada
com a criação da norma, mas também reproduzida sempre que
há sua aplicação. No primeiro aspecto, essa tensão é verificada
entre o fato social e a norma proposta, no segundo, entre o caso
específico e se a norma cabe a ele. Nota-se que o caso de Daniella
e seus efeitos provocam questionamentos em ambas as vertentes
tensionadas: aplicação e criação. Já que ao perceber uma suposta
incompletude da lei de crimes hediondos, Glória Perez passou a
questionar a legitimidade de sua produção.

Assim,

é necessário que o direito continue insistindo que os sistemas


dirigidos pelo dinheiro e pelo poder administrativo não fujam
inteiramente a uma integração social mediada por uma
consciência que leva em conta a sociedade como um todo

(HABERMAS, 1997, p. 65).

Nessa linha, visualiza-se a esfera pública, uma


representação não somente espacial e de natureza inconfundível
com o Estado. Essa categoria é, na realidade, a mediadora

96
entre Estado e sociedade, visto que os debates, frutos do agir
comunicativo racional, que contam com a interferência dos
indivíduos, desenvolvem-se nessa esfera. É ela a responsável
por criar discussões a respeito do poder político e, dessa forma,
representar a busca pela democratização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A razão comunicativa conduz a uma mudança no


paradigma da estrutura jurídica. Estabelecer a visibilidade
daqueles que são os sujeitos do Direito, garante uma democracia,
firmando uma relação que começa a ser satisfatória entre
dispositivos jurídicos, justiça e sociedade. Por isso, ainda que
complexo e, de certa forma, reservado a alguns, o poder da
ação comunicativa, é fundamental para assegurar um Direito
desmonopolizado.
Observa-se ainda que a discursividade só é substancial
pelo fato do campo jurídico ser poroso, isto é, permitir que
simbologias da sociedade façam parte da sua formação. Nesse
seguimento, o conceito de poder simbólico é imprescindível para
a compreensão da razão comunicativa, não apenas no caso de
Daniella Perez, como também em toda a estrutura do campo
jurídico.
Mesmo que as simbologias sejam responsáveis por
favorecer o poder do discurso, elas também podem determinar
julgamentos morais precipitados. Por esse motivo, a construção
do Direito não se faz mediante apenas a população leiga, mas
também perante especialistas, o que exige um diálogo entre esses
dois vieses.
Dessa forma, a mesa redonda de Beck elucida a
necessidade desse comportamento e os passos para alcançá-lo.
As categorias do autor anunciam problemáticas e dispositivos
elementares para a construção de uma sociedade destituída de
monopólios e preenchida por participações plurais.

97
Assim, confunde-se essa intervenção com o fim da
autonomia jurídica. Porém, como assegura Bourdieu, existe
"um universo social relativamente independente em relação às
pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a
autoridade jurídica" (1989, p.221).
Portanto, conclui-se que a razão comunicativa é essencial
para entender como funciona a participação popular no meio
jurídico. Por meio do caso trabalhado, nota-se a tarefa dos três
autores propostos de elucidar como se organiza o campo jurídico,
verificar qual a necessidade e de que forma se dá a interferência no
monopólio do Direito e entender como a ferramenta fundamental
para essa interferência, o discurso, varia de acordo com o status
social de seu enunciador.

98
REFERÊNCIAS

BECK, Ülrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização


Reflexiva. São Paulo: UNESP, 1995

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand,


1989, 313 p.

BRUM, Eliane. 1500, o ano que não acabou. El País. 04 jan. 2016.
Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/04/
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Martins Fontes, 1999, 432 p.

FARABULINI, Ricardo. Crimes Hediondos: Breves considerações


sobre a Lei 8.072/90. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, VII, n. 19,
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HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e


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LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito 1. Rio de Janeiro: Tempo


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SENADO. Senado aprova exigência de ficha limpa a todos os


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em: <http://www12.senado.gov.br/jornal/edicoes/2013/07/03/
senado-aprova-exigencia-de-ficha-limpa-para-todos-os-
servidores>. Acesso em mar. 2016.

99
PEREZ, Glória. A emenda popular. Disponível em <http://www.
daniellaperez.com.br/?page_id=591>. Acesso em 25 de fev. 2016

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Fernando Collor. Disponível


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ROCHA, Carla. Daniella Perez: 20 anos do assassinato que mudou


a lei. Jornal O Globo. 23 de dez. 2012. Disponível em: <http://
oglobo.globo.com/rio/daniella-perez-20-anos-do-assassinato-
que-mudou-lei-7125130>. Acesso em fev. 2016.

ZATTI, Vicente. A educação para a autonomia em Immanuel Kant e


Paulo Freire. Porto Alegre: UFRGS, 2007. Disponível em: <https://
www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/8740/000587895.
pdf?sequence=1>. Acesso em mar. 2016.

100
V

UMA ANÁLISE DAS CONTRIBUIÇÕES DE "A GA-


ROTA DINAMARQUESA" AO ENSINO DO DIREITO
COMPROMETIDO COM OS DIREITOS HUMANOS

Iago Masciel Vanderlei 1

Marcus Vinícius Carvalho da Silva Sousa 2

Introdução
A modernidade ludibriou a sociedade fazendo com
que ela acreditasse que poderia produzir discursos uníssonos,
determinados e tivesse medo das suas divisões e conflitos. O
modelo hegemônico de ensino jurídico, influenciado pelo mito
da neutralidade da ciência moderna e do saber absoluto, tem
formado juristas insensíveis e desencantadas3, que são incapazes
de enfrentar novos conflitos sociais e de contribuir para a geração
de uma sociedade democrática na concretude das vivências

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Piauí.


2 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (2015) e especialista em Direitos
Humanos pela Faculdade Adelmar Rosado – Curso de especialização em Direitos Humanos
“Esperança Garcia” (2017).
3 Por entender que a dissociação entre sintaxe e ideologia é uma falsificação, o presente
trabalho, ao usar como elemento de análise um filme que retrata a vida de uma mulher
transgênera, realizou-se a escolha política do uso do feminismo universal; o que não significa
que este trabalho não seja destinado à leitura dos homens (DINIZ, 2015; FREIRE, 2001).

101
cotidianas.
Na busca de práticas capazes de superar esse arquétipo,
pretende-se, então, por meio da análise do filme A Garota
Dinamarquesa e de uma revisão bibliográfica, a partir dos marcos
teóricos do ensino jurídico, da educação e dos direitos humanos,
compreender como a arte, em especial, o cinema, pode contribuir
para a retomada da sensibilidade no ensino jurídico e para a for-
mação de profissionais capazes de estabelecer novas formas de
relação com as instituições e o outro (WARAT, 1992).
A escolha da obra a ser analisada seu deu em razão de
sua difusão no circuito global de cinema, o que garantiu sua exi-
bição em um número maior de salas, e atingir uma multiplicida-
de de públicos, que a maioria dos filmes que retratam a temática
da transgeneridade costumam alcançar. O filme foi indicado em
quatro categorias na 88ª premiação da Academy Awards (Oscar
2016)4, vencido o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante, e a três no
Golden Globe Award no mesmo ano5. Trata-se, então, de produção
de repercussão mundial e, portanto, com grande capacidade de
influenciar no imaginário instituído.
Nesse sentido, questiona-se: como o filme A Garota Di-
namarquesa pode contribuir para a recuperação da dimensão
política do ensino jurídico e a construção de uma sociedade que
comporte as subjetividades de todas? Durante o estudo, o ponto
central que se apresenta é o do potencial da arte, através da sen-
sibilidade, como método de abalo ao senso comum teórico dos
juristas, reconstruir o ensino do direito como prática política dos
direitos humanos (WARAT, 1997; 2004b; 2010b).

1 EDUCAÇÃO JURÍDICA: EM BUSCA DE UMA


PEDAGOGIA DA DIGNIDADE E DA SOLIDARIEDADE
SOCIAL

4 Disponível em: <http://oscar.go.com/news/winners/oscar-winners-2016-see-the-com-


plete-list>.
5 Disponível em: <http://www.goldenglobes.com/winners-nominees>.

102
Os cursos jurídicos no Brasil se caracterizam por uma
relação de exterioridade entre suas docentes e discentes com o
mundo, fazendo-os não se reconhecer enquanto partícipes da
construção da sociedade. São, por essa razão, terras férteis para a
despolitização do direito e o desprezo ao diálogo sincero e à plu-
ralidade, ou seja, à pedagogia da indiferença. Baseado em saberes
monodisciplinares, seu ensino dissocia a teoria da prática, a razão
da sensibilidade, desestimula o pensar criativo, e resiste a uma re-
novação pedagógica (AGUIAR, 2004). Desse modelo resulta uma
formação deficiente para as estudantes que não são capacitadas
para atender a novas demandas da sociedade (AGUIAR, 2004),
porque não compreendem a si e ao mundo em que vivem.
Essa exterioridade não contribui com a formação das
estudantes, pelo contrário. A presença de seres humanos no mundo
leva-as a pensarem a si mesmas, se saberem presença, intervirem,
transformarem, sonharem, constatarem e compararem (FREIRE,
2015), o que as permite entenderem a si, aos outros e ao mundo,
habilidades essenciais à prática e à ciência jurídica. Sem isso, não
é possível encontrar pontos comuns de discussão e respeitar a
intimidade do outro (WARAT, 2010a), e a existência do diferente.
A busca pelo diálogo e pela aliança entre diferentes, sem
os uniformizá-los, revela-se um elemento substancial à retomada
da dimensão política do ensino do direito para a superação
da pedagogia da indiferença, regra nas Faculdades de Direito.
Entende Warat (1992, p. 1) que "política ficaria caracterizada
como o lugar de interpretação e interrogação do modo pelo qual
a sociedade se institui" e, assim, retomar sua dimensão consiste
em permitir o questionamento das certezas do imaginário social
do direito6, e que as formas de discriminação do verdadeiro e
do falso, do normal e do patológico, do justo e do injusto, do
que é lícito ou proibido sejam interrogadas (WARAT, 1992).
Essas arguições, contudo, não são unilaterais; elas devem
6 A ideia de imaginário social do direito dialoga com a discussão de imaginário como "cria-
ção incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/for-
mas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de ‘alguma coisa’" (CASTORIA-
DIS, 1982, p. 13). Assim, haveria um imaginário sobre o direito e suas práticas, localizado
entre o simbólico e o real, que influi como as pessoas (em especial, os juristas) percebem e
agem no mundo.

103
ocorrer a partir do espaço público (WARAT, 1992; 1997), isto é, de
um lugar de que toda a sociedade participe, em sua diversidade,
construindo a democracia. São, então, reflexões que extrapolam
os limites das Faculdades de Direito e buscam sua integração com
o todo. Para se pensar a construção de um imaginário democrá-
tico, faz-se necessário construí-lo com base n'a autonomia e na
busca da emancipação social; nesse processo, os direitos humanos
precisam ser constitutivos desse espaço público.
Há, contudo, de se encarar os direitos humanos para além
do seu universalismo normativo, que sustentam as diversas decla-
rações historicamente proclamadas, e compreendê-los enquanto
forma de construção da dignidade, com participação plural das
pessoas, que levam suas lutas e reivindicações do que consideram
dignidade humana. Essa perspectiva reconhece o caráter político
dos direitos humanos edificada na pluralidade, sem desconsiderar
sua discursividade, expressividade e normatividade; isto é, sem
abandonar os enunciados normativos, mas os querendo como fru-
to da coletividade, a partir das lutas sociais (HERRERA FLORES,
2002; 2009).
Para Warat (1997) esses direitos humanos consistem em
lutas contra todos os modos e formas de exclusão social, para par-
ticipar do espaço público e pertencer à sociedade política; rein-
vindicações de ter direitos, do reconhecimento das diferenças e de
produzir autonomamente os caminhos de sua existência7. Nessa
ideia, há um caráter de indeterminação como essencial à constru-
ção de um imaginário democrático e à preservação da existência
plena.
Nesta perspectiva é que surge o sentido do ensino do direito
como prática política dos direitos humanos. Ele é concebido
como um espaço político de debates ilimitados e indeterminados;
como um espaço do devir sem fronteiras; como a matriz de uma
dinâmica que ultrapassa os internos de impor limites pelo saber
e suas idealizações perfeitas e fracassadas. Porque se aprende o
direito entregando suas certezas à morte (WARAT, 1997, p. 53).

A reconstrução do ensino do direito enquanto prática

7 As pessoas, no pensamento de Warat (2010b), existem na medida em que possuem a


capacidade de reconhecerem a existência do outro, que irá compor sua própria existência.

104
política dos direitos humanos consiste na solidificação do seu
comprometimento com o que é produzido no espaço público e com
o um imaginário democrático fundado na diferença. Isso implica no
fim do autoritarismo na relação docente-discente; na reformulação
pedagógica dos cursos de direito, para que se tornarem espaços
de criatividade e singularidade; na composição paritária e
diversificada das instâncias universitárias; na reforma dos projetos
pedagógicos dos cursos, que deixariam de se organizar apenas
com base na legislação, e abordariam temáticas pertinentes à
sociedade. Interferindo diretamente no imaginário do direito, essa
reconstrução produzirá, na prática judiciária, a implicação do juiz
e dos demais sujeitos com os conflitos, superando a imparcialidade
moderna, e adotando a perspectiva de sensibilidade (WARAT,
2010b); e, como consequência, o aumento da legitimidade social
das decisões judiciais, mais atentas ao contexto social em que
serão inseridas.
Nesse caminho, práticas de abalo (WARAT, 1997) ao senso
comum teórico dos juristas (SCTJ) – entendido como versões
de um saber como as únicas aceitáveis, com a pretensão de
estabelecê-las como desenhos naturais do mundo; são discursos,
ritos e padrões forjados na práxis jurídica que ratificam um
imaginário do direito construído a partir de crenças em verdades
reveladas e valores banalizados (WARAT, 1997; 2004b; 2010a) –
são fundamentais à recuperação da dimensão política da educação
jurídica e à reconstrução do ensino do direito como prática política
dos direitos humanos.

Aprendemos sempre afastando-nos do estabelecido, descobrindo


o novo. Não se aprende acumulando simplesmente um cabedal
de informações. Aprende-se denunciando as faltas do saber
acumulado, desligando seus signos de seus efeitos, fazendo uma
passagem emancipatória e facilitadora do novo (WARAT, 1997,
p. 64).

A estratégia do abalo busca, então, quebrar o


totalitarismo presente no imaginário do direito através da
libertação criativa dos sujeitos do processo educacional, e
fissurar a ordemsimbólica ao exibir os estereótipos, as anomalias

105
e as razões insensatas que saturam os espaços político e social.
Ela só se realiza com a reinvindicação de uma intervenção terna
nas relações discursivas à procura da diferença, da singularidade
e do desejo reprimidos do espaço público (WARAT, 1997).
Com esse propósito, a arte pode ser utilizada como
prática de abalo, por ser uma forma de redescoberta da própria
sensibilidade, esta como uma forma de compreensão além
do pensamento, que entende que o corpo compreende e se
comunica com outros corpos. Para atender as demandas sociais
que surgem todos os dias, as estudantes de direito necessitam
manter um espírito sensível às reivindicações das excluídas
(WARAT, 2010a).
Durante sua formação, as estudantes possuem pouco
contato com outras formas de conhecimentos, especialmente os
artísticos, que lhes possibilite uma percepção mais sensível do
mundo (AGUIAR, 2004). As artes, e em especial, o cinema, são
capazes de estabelecer um "entre-nós" (WARAT, 2010b), e despertar
alteridade nos interlocutores. Essa comunicação, ao trabalhar a
realidade, ao deslocar o olhar do espectador, ao fazê-lo observar
a condição de vida daqueles que estão em permanente estado de
exclusão, é capaz de sensibilizar e de levar ao reconhecimento dos
direitos dos outros.
Através da utilização cinematografia como prática de
abalo, as discentes podem aprender com as produções, usufruir
mais intensamente da emoção que elas provocam, interpretar
suas imagens, refletir a partir delas, reconhecer valores diferentes
e questionar os seus próprios (DUARTE, 2009). Assim, o cinema é
capaz de proporcionar a abertura do ensino à dimensão política,
possibilitando um aprendizado mais autônomo e a superação do
senso comum teórico dos juristas.
O cinema atua densamente na construção do imaginário
social, na aceitação ou repressão de concepções presentes no
espaço político. Possui o potencial de reafirmar ou transgredir8
padrões, verdades, ritos e discursos a partir das relações entre
8 "Transgredir é corroer por dentro, é riscar lentamente os pilares estruturantes até que
sua reparação não mais seja possível" (ROCHA; FAZIO, 2011, p. 14).

106
produção-espectadores e espectadores-espectadores, utilizando-
se de elementos como roteiro, fotografia, figurino, trilha sonora,
direção e atuação. "O mundo do cinema é um espaço privilegiado
de produção de relações de sociabilidade" (DUARTE, 2009, p. 16).
Consiste, o cinema, em um dos elementos que ainda
mantém a ternura necessária para executar as tarefas de conceber
os espaços da família e do trabalho como lugar de interação política
(SANTOS, 1989) e de sensibilizar a sociedade para reconhecimento
de diretos das excluídas, propiciando condições de sua reinserção
social e sua participação no espaço público (WARAT, 1992; 2010a).
Não se trata meramente de uma tutela de direito por parte do
Estado, mas do reconhecimento dos direitos pela sociedade
(WARAT, 2010a) e da concretização dos direitos humanos na vida
cotidiana das pessoas, na busca de suas dignidades.
Para isso, é preciso que os juristas se reconheçam como
dignos e solidários, pois somente assim eles conseguirão romper
com a indiferença e o autoritarismo do imaginário instituído.
Dignidade e solidariedade são componentes da matriz simbólica
dos direitos humanos e dimensões éticas fundamentais na
geração de uma sociedade plural que respeite às diferenças. A
solidariedade representa o reconhecimento da existência do outro
como diferente e, somente a partir dela, é que se torna possível
a recuperação da dignidade, ou seja, a libertação da opressão
(WARAT, 1997).
O ensino jurídico, para responder à formação de uma
pedagogia da dignidade e da solidariedade social, precisa
estar comprometido com os direitos humanos e entender que
somente a racionalidade não é capaz de formar profissionais
comprometidos com a geração de um outro modelo de sociedade.
As Faculdades de Direito precisam formar estudantes sensível,
pois é com a sensibilidade que elas serão capazes de entender o
sentido da dignidade, quando sentirem a necessidade de cuidar
da dignidade, da sua e da do outro. A utilização da arte dentro do
ensino jurídico cumpre o papel de diminuir a distância ilusória
que a modernidade criou entre a racionalidade e a sensibilidade
(WARAT, 1997; 2004a).
Em A Garota Dinamarquesa, conhece-se a história de Lili

107
Elbe que, em 1931, tornou-se a primeira mulher a se submeter à
cirurgia de redesignação sexual. Assim, analisar-se-á se a obra,
ao contar a história daquela que transgridiu a cisnormatividade,
contrapôs o ensino jurídico tradicional, em seu paradigma
liberal-conservador, de modo a retomar da sensibilidade e formar
profissionais capazes de estabelecer novas formas de relação com
as instituições e o outro, e de questionar o direito posto. E, mais
especificamente, se foi capaz de envolver as espectadoras na luta
das pessoas que não possuem o direito de desenvolver livremente
sua subjetividade, levando-as a superarem o seu contexto
existencial e inserirem-se nessa realidade, experimentada por
meio do filme (FAZIO; ROCHA, 2011).

2 UMA ANÁLISE DE CASO DA ARTE COMO PRÁTICA


DE ABALO: AS CONSTRIBUIÇÕES DE A GAROTA
DINAMARQUESA PARA O ENSINO DO DIREITO

O desenvolvimento do longa-metragem A Garota Di-


namarquesa gravita em torno da sensibilidade, encontrada na
fotografia, na atuação da dupla de atores principiais, na trilha
sonora, na direção de Tom Hooper e, até mesmo, no deficiente
roteiro de Lucinda Coxon. Durante seu desenrolar, mostra-se
evidente a tentativa do diretor de criar uma empatia entre o es-
pectador e as personagens da trama e sua dificuldade em retra-
tar os diversos tons identitários de suas personagens principais.
A narrativa tem início quando a personagem ainda
se identificava como Einar Wegener, interpretado por Eddie
Redmayne, um pintor dinamarquês, casado com Gerda, per-
sonagem interpretada por Alicia Vikander. São as emoções e
os medos de Gerda que constroem o desenrolar da história.
Começando com a dificuldade de sair da sombra do marido
como pintora, e evoluindo para o drama de uma possível trai-
ção, de estar "perdendo" seu marido e seu casamento, de amar
alguém que "nunca existiu", de ver seu marido ser torturado
pelos meios de "tratamento" à trangeneridade, de não conse-

108
guir se envolver com outro homem e, por fim, de presenciar o
difícil processo da cirurgia de redesignação sexual de Lili Elbe.
A união entre a capacidade do cinema de sensibilizar, a
habilidade do ator em transmitir as emoções de Lili e a qualidade
da fotografia, em momentos cruciais à construção da identidade
da personagem, salienta a aptidão do filme em emocionar e em
levar a sua espectadora a desenvolver a alteridade. O corpo
de Lili Elbe é capaz de comunicar ao público uma profusão de
sentimentos. A Garota Dinamarquesa desafia a insensibilidade
que é regra da modernidade. E, ao aliar a atuação de Eddie, a
fotografia e a trilha sonora, Tom Hooper constrói cenas que
se constituem em verdadeiros manifestos de reivindicação da
arte como forma legítima de pensamento para compreender o
mundo (WARAT, 2010a) e para traçar o caminho de abertura a
novos paradigmas sobre a transgeneridade.
O filme retrata diversos procedimentos aos quais Elbe
foi submetida e, através de um discurso de direitos humanos
a partir da dor (WARAT, 1997), cria uma sensibilização
com osofrimento do outro, mas com potencial limitado de
transgressão da indiferença e do autoritarismo presente no
imaginário instituído. Assim, por mais que o filme leve o
espectador a sentir aversão às restrições de direitos a que ela
foi sujeitada, não necessariamente o leva a superar a dor para
se gerar práticas e discursos de preservação do amor (WARAT,
1997). É preciso criar uma dimensão simbólica democrática
que institua outro imaginário, permeado pela autonomia, pela
ternura e pelo respeito às diferenças para que as pessoas se
permitam vislumbrar a criação de uma nova ordem de sociedade
(WARAT, 1992; 1997) em que as situações que suscitam discursos
de direitos humanos a partir da dor sequer aconteçam.
A obra mostra a realidade europeia, mas o Brasil9,
como mostra Green (2000), em nenhum momento se
9 O Relatório Sobre a Violência Homofóbica no Brasil de 2012, da Secretaria de Direitos
Humanos, e o relatório anual de assassinatos de homossexuais no Brasil relativo a 2015 do
Grupo Gay da Bahia, apontam que foram registradas pelo poder público, em 2012, 3.084
denúncias e 9.982 violações relacionadas à população LGBT (BRASIL, 2013) além da docu-
mentação de 318 mortes de LGBT no Brasil, ou seja, um assassinato a cada 27 horas (BAHIA,
2016).

109
encontrou distanciado das tendências mundiais quanto aos
procedimentos médico-legais executados em quem transgredia
a cisnormatividade e a heteronormatividade. Na década de 1930,
o país importou as teorias sobre a origem da homossexualidade10
vindas da Europa. O modo como esses procedimentos são
retratados abala o imaginário instituído, desloca o olhar
do público e o faz observar que, infelizmente, a situação de
subcidadania ainda é a regra para as pessoas transgêneras.
Hooper produziu um filme apto a sensibilizar as pessoas;
ao vê-lo, é possível perceber o grito, que denunciam a tentativa
de desconsideração das diferenças e as subjetividades de minorias
excluídas do espaço público (WARAT, 1992; 2010a; 2010b). O
cinema mostrou sua capacidade de ecoar os gritos da rua e auxiliar
na trivialização dos direitos humanos (SANTOS, 1989), sem
considerá-los autoevidentes11 (HUNT, 2009). Entretanto, A Garota
Dinamarquesa é um exemplo também da importância de refletir
sobre como se constrói a sensibilidade dentro da cinematografia.
Carol Grant (2015), nesse sentido, critica, principalmente,
as falhas da obra ao desenvolver a narrativa sobre identidade de
gênero, que foi retratada a partir da sedimentação de padrões
de gênero, isto é, um conjunto de comportamentos associados
à masculinidade e à feminilidade que hierarquizam homens e
mulheres, e divide os papeis sociais entre aqueles que podem
ser exercido por homens - os de poder - e aqueles que devem ser
exercido por mulheres - os de submissão.

A desigualdade entre mulheres e homens, e a opressão de gênero


têm se apoiado em mitos e ideologias dogmáticas que afirmam
que a diversidade entre mulheres e homens constitui em si
mesma a desigualdade, e que esta última, é natural, ahistórica
e, consequentemente, irremediável. (LACARDE, 1996, p. 5,
tradução livre).12

10 O termo transexualidade somente passou a ser utilizado em 1949.


11 A importância da trivialização dos direitos humanos consiste na expansão da concepção
limitada ao direito estatal criada pela modernidade (SOUSA, 1989), pois eles só tornam-se
significativos quando ganham conteúdo político (HUNT, 2009). O "carimbo" de autoevidên-
cia desestimula a reflexão e a participação daqueles que os detêm (HUNT, 2009), possibili-
tando o aprisionamento do seu potencial de inclusão de novas reinvindicações.
12 La desigualdad entre mujeres y hombres, y la opresión de género se han apoyado en mi-

110
Há, em relação aos padrões de gênero das personagens
femininas do filme, o estabelecimento de arcos completamente
distintos para as mulheres cisgêneras e transgêneras. As
primeiras, nas figuras Gerda Wegener e Oola Paulson, desafiam
os padrões de gênero impostos às mulheres, seus arcos são
desenvolvidos a partir de sua representação como pessoas de
personalidade forte e independente. Entretanto, a construção
do arco da Lili é realizada a partir de uma caricatura de uma
"feminilidade".

O Einar, personagem de Redmaynes, observa movimentos
exagerados de uma stripper cisgênera e imita-os com perfeição,
como se aprende como sensivelmente passar o dorso de sua
mãe no rosto fosse fazê-lo ser uma "verdadeira mulher". Sua
feminilidade é reduzida a caricatura (GRANT, 2015, tradução
livre)13.

Essa hiperbolização da feminilidade nunca está presente em


Gerda, personagem de Alicia Vikader, ou em qualquer outra
personagem cisgênera. Somente em Lili. Intencionalmente ou
não, a câmera inoportuna de Hooper não transmite empatia, mas
apenas outras formas de Lili (GRANT, 2015, tradução livre)14.

Através do cinema, utilizando-se das relações


construídas entre espectadores e filmes, é possível transgredir
ou mesmo reforçar o patriarcalismo do imaginário social. A
Garota Dinamarquesa, embora se construa com base em uma
sensibilidade capaz de criar uma "predisposição a se deixar
devorar pelo outro, a se deixar contagiar, roubar" (WARAT, 2010)
e criar empatia, esbarrou na dificuldade de não estigmatizar o
"ser mulher" transgênera.
Apesar disso, o filme conduz a espectadora a se
tos e ideologías dogmáticas que afirman que la diversidad entre mujeres y hombres encierra
en sí misma la desigualdad, y que ésta última, es natural, ahistórica y, en consecuencia,
irremediable. (LACARDE, 1996, p. 5).
13 Redmayne's Einar examines a cisgender stripper's exaggerated body motions and then
mimics them perfectly, as if learning how to sensually caress the back of your hand against
your cheek will teach him how to be a "real woman". His femininity is reduced to caricature.
(GRANT, 2015).
14 This hyperbolizing of femininity is never given to Alicia Vikander's Gerda, or any of the
other cisgender characters. It is only for Lili. Intentionally or otherwise, Hooper's intrusive
camera doesn't invite empathy, but only further otherizes Lili. (GRANT, 2015).

111
sensibilizar com a história de Lili e, ao possibilitar ampliar o
"quem somos nós", "nosso tipo de gente", "gente como nós"
(ROCHA; FAZIO, 2011, p. 19-20), condiciona sentimentalmente
o público a, mutualmente, respeitarem suas diferenças (WARAT,
1992). Assim, o espectador sensível constata as incoerências da
concepção sobre o direito do paradigma liberal-conservador.
O contraste inicial entre a realidade apresentada no filme
e a igualdade jurídica formal pode ser o início da ruína das
verdades do senso comum teórico dos juristas; a luta por novos
direitos tenciona para a transgressão dos limites do instituído
como jurídico (WARAT, 1992).
É possível sentir, através da linha narrativa do filme,
que usurpar das pessoas transgêneras o direito ao livre
desenvolvimento da personalidade nega a elas a própria
dignidade e, portanto, os próprios direitos humanos. Neste
sentido, tem-se uma proteção direta do sentimento de ser
humano, ou seja, da sua subjetividade. É possível aprender,
através da emoção e da sensibilidade trazidas pelo filme, que
todas as pessoas são diferentes e há a necessidade de que os
sujeitos autônomos estabeleçam entre si relações onde se
reconhecem reciprocamente como diferentes (WARAT, 1992).
O atual modelo de produção científica, asfixiado em
seus mitos, não é conciliável com um imaginário democrático
instituído por uma sociedade na qual pessoas autônomas se
reconhecem como diferentes e que mutualmente respeitam suas
diferenças. Os diagnósticos de esquizofrenia, homossexualidade
e distúrbio hormonal, impostos a Lili por médicos distintos,
são exemplos da incapacidade do atual modelo de educação e
científico de atender as demandas de pessoas transgêneras.
Essa inaptidão e a insensibilidade para lidar com as
questões ligadas ao gênero não foram superadas. Nas ciências
da saúde, os acadêmicos saem das faculdades sem entender
o caráter fragmentado das identidades na pós-modernidade
(HALL, 2011) e tornam-se profissionais com poder de realizar
"restrições normativas e interdições para o acesso aos
procedimentos que incidem sobre transformações corporais
de caracteres sexuais, intermediando de forma" (LIONÇO,

112
2008), mesmo sem as habilidades humanas necessárias para
isso. Nas ciências jurídicas, os estudantes de direito tornar-
se profissionais incapazes de escutar sentimentos, mas com
poderes de restringir ou de efetivar os direitos subjetivos das
pessoas transgêneras.
Em A Garota Dinamarquesa, o cinema contribui,
enquanto prática de abalo, porque é capaz de criar fissuras
ao imaginário instituído utilizando-se da sensibilidade, para
a integração das pessoas transgêneras como integrantes de
uma comunidade em que todas se reconhecem reciprocamente
como autônomas e diferentes na concretude de suas vivências
cotidianas, permitindo o desenvolvimento das singularidades
humanas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Garota Dinamarquesa é um dos poucos filmes sobre


a temática LGBTQ distribuídos dentro do circuito global, o que
garantiu sua exibição em um maior número de salas ao redor do
mundo do que os filmes sobre o tema costumam obter. A sen-
sibilização para as demandas das pessoas trangêneras por parte
dos espectadores o filme advém da capacidade de abalar o ima-
ginário instituído das pessoas que se permitiram estar abertas a
serem levadas "a superarem o seu contexto existencial e inseri-
rem-se em novas realidades" (ROCHA; FAZIO, 2011, p. 19).
Essa sensibilização, maculada pelos vícios decorren-
tes do imaginário instituído, foi incapaz de transgredir, pois,
para fazer isso, com a temática de identidade de gênero, era
imprescindível o deslocamento dos olhares da cisnormativida-
de e do patriarcalismo. É preciso que existam pessoas, como
Carol Grant, para provocar abalos e deslocar os olhares dentro
do mundo cinematográfico e, assim, preservar o potencial de
transformação social da arte.
Em tempo, a indústria cinematográfica, para produzir o
novo, precisa se abrir para a participação de LGBTQs nas pro-

113
duções de seus filmes; os excluídos precisam ser incluídos no
espaço público e exercer seu direito de contar sua própria histó-
ria. O conhecimento novo, ao ser produzido, supera o outro que
antes foi novo e agora se tornou velho e está aberto a ser ultra-
passado, a qualquer momento, por outro conhecimento (FREI-
RE, 2015). A Garota Dinamarquesa contribui para a produção de
um saber novo dentro do circuito de cinema industrial, mas que
já se faz velho em relação à real demanda de representatividade
da comunidade LGBTTQ.
Nesse sentido, sua utilização no ensino do direito pode
representar abalos aos discursos, hábitos e ritos do senso co-
mum teórico dos juristas em relação às questões de gênero,
mesmo que com ressalvas. A inserção do ensino jurídico na
realidade da transgeneridade fornecerá ao estudante uma for-
mação mais plural, comprometidas com as dimensões éticas da
dignidade e da solidariedade social e, uma habilidade de ques-
tionar suas verdades.
A sensibilidade do filme, em sua capacidade de promo-
ver o reconhecimento do outro enquanto diferente e a recipro-
cidade do respeito às diferenças, colabora para a inclusão das
pessoas transgêneras no espaço público, que poderão participar
da produção da política, interrogando as normas cotidianas da
sociedade, e reivindicar suas dignidades, culminando na cons-
trução de direitos humanos comprometido com todas. Assim, é
por meio da inserção de sua abordagem que transgride a cisnor-
matividade e, em parte, o questionamento do padrão de gênero,
no ensino jurídico que A Garota Dinamarquesa contribui para a
recuperação da sua dimensão política.

114
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117
VI

SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO E O DESEM-


PENHO DOS PARTIDOS POLÍTICOS NAS ELEIÇÕES
MUNICIPAIS DE 2016

Pedro Rhuan Piauilino Lima 1

Samille Lima Alves 2

Introdução
Observando a complexidade de definição da democracia,
ao fazermos sua análise sob a égide procedimental, verifica-se que
as eleições e os partidos são elementos fundamentais de sua práxis.
Em tese, as eleições trazem consigo a representatividade, na qual
os mais variados grupos e ideologias se expressam no Legislativo,
e a responsividade, em que o representante do Executivo efetuará,
de forma eficiente, as demandas exigidas pela população. Já os
partidos políticos são agentes essenciais no processo democrático,
pois, ao estarem respaldados pelo voto popular, tornam-se canais
de expressão e titularidade de interesses definidos pelos seus
estatutos, representando um vínculo, ainda que questionável,
entre sociedade e Estado.
1 Advogado, Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Mestrando em
Sociologia pela Universidade Federal do Piauí. Email: rhuanpiauilino91@gmail.com.
2 Advogada, Bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Email: samilleli-
ma@outlook.com.

118
O sistema partidário brasileiro tem como base
constitucional o pluralismo político. Este, por sua vez, encontra no
pluripartidarismo o substrato que norteia o regime democrático
do país. Atualmente, 35 partidos estão registrados no Tribunal
Superior Eleitoral, com registros que datam de 1981 até 2015.
A maioria dos partidos em funcionamento surgiu na década de
1990, período que foi marcado por uma abertura democrática que
refletiu os princípios democráticos estabelecidos pela Constituição
Federal de 1988. Esses partidos caracterizam-se por modificar sua
dinâmica de atuação e projeção política de acordo com o sistema
eleitoral em que estejam disputando, que, no caso do Brasil, são
dois: o sistema majoritário e o proporcional.
Tanto o sistema partidário quanto o sistema eleitoral
brasileiro são alvos dos críticos, que destacam a baixa inteligibilidade
no processo eleitoral e a alta volatilidade eleitoral, gerando
inúmeros questionamentos sobre a fragilidade da integração do
eleitor ao sistema político vigente e a fragilidade ideológica das
agremiações partidárias. Tais fragilidades são oriundas de um
processo histórico de construção da democracia brasileira que, em
poucas décadas, apresenta fissuras e interrupções.
Aludindo especialmente a dinâmica dos partidos políticos
em relação aos sistemas proporcional e majoritário, buscou-
se, neste trabalho, demonstrar e diferenciar o desempenho
dos partidos políticos em razão do cargo disputado, da região
do país, da quantidade de votos obtidos com e sem e analisará
o desempenho dos partidos nas eleições municipais de 2016,
no intuito de estabelecer o painel atual da representatividade
partidária, sob a ótica das principais críticas ao sistema partidário
brasileiro, no que toca à alta fragmentação e à representatividade
inexpressiva dos pequenos partidos políticos.
Para tanto, utilizamos de bibliográfica em periódicos
diversos, com destaque para os trabalhos de Ferreira, Batista e
Stabile, Kinzo e Nicolau e Schmitt, bem como de pesquisa descritiva
e quantitativa, feita pela compilação e análise dos resultados das
eleições de 2016 disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral.
O agrupamento dos dados foi feito em tabelas, figuras e gráficos,
com o uso da técnica estatística de percentagem.

119
1 PARTIDOS POLÍTICOS, SISTEMA ELEITORAL E
A QUESTÃO DA FRAGMENTAÇÃO DO SISTEMA
PARTIDÁRIO BRASILEIRO.

Os partidos políticos são instituições essenciais no siste-


ma eleitoral brasileiro, constituindo-se como intermediários entre
a representação popular e o exercício do poder estatal. Gomes3
explica que os partidos "detêm o monopólio do sistema eleitoral,
chegando a definir o perfil assumido pelo Estado, já que são elas
que, concretamente, estabelecem o sentido das ações estatais".
Bonavides4 conceitua-o como "uma organização de pessoas que
inspiradas por ideias ou movidas por interesses, buscam tomar o
poder, normalmente pelo emprego de meios legais, e nele conser-
var-se para realização dos fins propugnados". Para Gomes, é:

(...) a entidade formada pela livre associação de pessoas, com


organização estável, cujas finalidades são alcançar e/ou manter
de maneira legítima o poder político-estatal e assegurar, no
interesse do regime democrático de direito, a autenticidade do
sistema representativo, o regular funcionamento do governo
e das instituições políticas, bem como a implementação dos
direitos humanos fundamentais5

A Constituição de 1988 proclama, em seu art. 1º como


um dos seus fundamentos, o pluralismo político e o art. 17 con-
sagra o pluripartidarismo como sistema partidário, declarando
livre "a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos polí-
ticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático,
o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana".
Para os defensores, o sistema multi ou pluripartidário se-
ria mais democrático por aglutinar pensamentos diversos e pro-
porcionar a representação do interesse das minorias. Para os críti-
cos, esse sistema conduz à instabilidade e variações de propósitos

3 GOMES, 2016. p. 114.

4 BONAVIDES, 2010. p. 450.

5 Ibidem, p. 116

120
no governo6, bem como o sectarismo intrapartidário como forma
de obtenção de unidade entre filiado7. Segundo Bonavides 8"é o
sistema multipartidário acoimado de emprestar aos pequenos
partidos influência política desproporcionada e incompatível com
a modestíssima força eleitoral de que dispõem, mormente quando
surgem eles por fiel de balança nas competições pelo poder".
O pluripartidarismo brasileiro tem como traço marcante a
fragmentação, que, segundo Kinzo9, seria o reflexo da "acomodação
dos mais variados tipos de disputa intra-elites de caráter regional",
que teria como vantagem a garantia de representação de uma
"ampla gama de grupos políticos organizados em partidos dos mais
variados tamanhos e perfis" e como desvantagem a tendência de
dificultar a formação de maioria no governo "levando à criação de
coalizões muito heterogêneas, com um grande número de partidos
para negociar apoio na formulação e aprovação de políticas".
Atualmente, 35 (trinta e cinco) partidos estão registrados
no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com registros datados entre
1981 e 2015. A maioria dos partidos em funcionamento surgiram
na década de 1990 (16 partidos), seguido pelas décadas de 1980 e
2010, com 8 partidos cada (Gráfico 1).
Gráfico 1 – Registro dos partidos por década no TSE

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados do TSE.

6 Ibidem, p. 473.
7 JEHÁ, 2009. p. 155.
8 BONAVIDES, 2010. p. 474.
9 KINZO, 2003. p. 16.

121
O funcionamento dos partidos políticos relaciona-se
diretamente com o sistema eleitoral. No Brasil, adotou-se o
sistema proporcional e o sistema majoritário. O primeiro deles
aplica-se nas eleições para as Casas Legislativas federal, estadual
e municipal (com exceção da disputa para o Senado), sendo regido
pelas disposições contidas nos arts. 27, §1º, 29, IV, 32, §3º e 45,
caput, da Constituição de 1988. Passou a ser utilizado a partir do
Código Eleitoral de 1932, com o fito de desarticular as oligarquias
que dominavam o Brasil desde a proclamação da República,
mantendo a conhecida política do café com leite10.
A eleição de um candidato no sistema proporcional
dependerá dos votos recebidos por seu partido ou coligação e do
coeficiente eleitoral, que é calculado dividindo-se o número de
votos válidos apurados pelo número de lugares a preencher em
cada circunscrição eleitoral, enquanto o número de vagas a serem
ocupadas será determinado pelo coeficiente partidário (arts. 106
e 107 do Código Eleitoral Brasileiro). Logo, o partido ou coligação
só elegerá candidato se atingir o coeficiente.
O sistema majoritário funciona nos moldes do art. 77,
§§2º e 3º da Constituição brasileira, aplicando-se aos cargos de
Presidente da República, Governador, Prefeito e Senador. A maio-
ria absoluta é exigida nas eleições para as Chefias do Executivo
nacional, estadual e municipal e seus respectivos vices, nos mu-
nicípios com mais de 200 mil eleitores, e é denominado sistema
majoritário de dois turnos. A maioria simples se aplica nas dis-
putas para o Senado Federal, chefias de estados e municípios cujo
número de eleitores seja inferior a 200 mil, que é denominado
sistema majoritário de um turno11.
O sistema eleitoral e a pluralidade de partidos no Brasil
têm sido alvo de inúmeras críticas em razão do entendimento de
que a alta fragmentação do sistema partidário brasileiro decorre
do sistema eleitoral em uso no país12. Essa fragmentação seria um

10 GOMES, 2011, p. 107.


11 Segundo os arts. 28, caput, 29, II, 32, § 2º e 46 da Constituição brasileira (BRASIL,
1988).
12 NICOLAU e SCHMITT, 1995. p. 129

122
problema por que a quantidade exacerbada de partidos políticos
em funcionamento desfigura a real função dessas agremiações,
por não possuir identidade ideológica consistente, por não
representar a realidade diversificada da população brasileira.
Uns criticam a mudança de foco na política, pois os
eleitores olham as candidaturas e os candidatos sob a ótica
pessoal13, esquecendo-se que candidatos são filiados a um partido,
cujos posicionamentos devem ser respeitados. Questiona-se,
também, se a grande quantidade de partidos não constituiria um
problema à consolidação democrática.
A fragmentação, segundo Nicolau e Schmitt14 , não
decorreria apenas da representação proporcional, mas de diversos
outros fatores, como a fórmula, a magnitude e o voto preferencial.
Para Kinzo15, não há dúvidas que o sistema brasileiro é um dos
mais fragmentados do mundo, o que não se constitui em um real
problema, desde que não afete inteligibilidade do sistema eleitoral,
que seria a capacidade de produzir opções claras de voto para os
eleitores.

Aprendemos sempre afastando-nos do estabelecido, descobrindo


o novo. Não se aprende acumulando simplesmente um cabedal
de informações. Aprende-se denunciando as faltas do saber
acumulado, desligando seus signos de seus efeitos, fazendo uma
passagem emancipatória e facilitadora do novo (WARAT, 1997,
p. 64).

Ferreira, Batista e Stabile16, em estudo das eleições de 1982


a 2006, declararam que "apesar da explosão da oferta eleitoral,
observada no início do período analisado, o sistema partidário
tem se mantido estável a partir dos anos noventa. Além disso,
não é tão fragmentado e errático como se imagina à primeira
vista". Para os autores, os partidos políticos "têm cumprido a
contento uma de principais suas tarefas, qual seja, estruturar a
competição política na arena eleitoral".
13 GOMES, 2011. p. 107.
14 NICOLAU E SCHMITT, 1995. p. 134-135.
15 KINZO, 2004. p. 31.
16 FERREIRA, BATISTA E STABILE, 2008. p. 449.

123
De forma diversa, Kinzo17 entende que o sistema
partidário brasileiro não está consolidado e avançou de forma
modesta desde 1985, sendo marcado por "intensa fragmentação,
fragilidade partidária, baixa inteligibilidade da disputa eleitoral e
elevada volatilidade eleitoral". Para a autora, algumas indagações
devem ser suscitadas para uma análise da experiência político-
partidária brasileira desde 1985:

Em que medida os partidos brasileiros têm desempenhado um


papel relevante na integração dos eleitores ao sistema político,
mobilizando-os para participar dos pleitos e para votar em uma
das opções apresentadas (partidos e/ou candidatos)? Em que
medida eles oferecem opções claras e diferenciadas ao eleitor, ou
seja, como têm contribuído para estruturar a escolha eleitoral e
criar identidades políticas?18

Levando em consideração as questões e posicionamentos


acima apontados, analisaremos os resultados das eleições de
2016, analisando o desempenho dos partidos em razão do cargo
disputado, os partidos mais votados em cada região do país, os
votos e eleitos obtidos através de coligações.

2 A REPRESENTAÇÃO PARTIDÁRIA NAS


ELEIÇÕES MUNICIPAIS DE 2016.

No tocante ao número de candidatos eleitos em 2016,


constatou-se que os partidos mais antigos, registrados na dé-
cada de 1980, conseguiram eleger, juntos, mais prefeitos e ve-
readores que os demais partidos. PMDB, PSDB, PSD, PP, PSB,
PDT, PR, DEM, PTB e PT conquistaram, juntos, 85,21% das pre-
feituras e 71,69% das cadeiras nas câmaras de vereadores. Os
demais elegeram 15,11% dos prefeitos e 28,26% dos vereadores.
O PMDB conseguiu, sozinho, o comando de 18,89% das prefei-
turas e 13,07% das cadeiras nas câmaras municipais em todo o
país, seguido pelo PSDB, PSD, PP e PSB (Tabela 1).
Dos partidos registrados na década de 1990, o PP des-
17 KINZO, 2004. p. 35.
18 KINZO, 2004. p. 29.

124
tacou-se ocupando 9,08% das prefeituras e 8,19% das cadeiras
de vereadores. Os demais não ultrapassaram a marca de 3% dos
eleitos a ambos os cargos disputados, sendo que PSTU e PCO
não elegeram qualquer filiado, enquanto o PCB elegeu um ve-
reador. Dos registrados na década de 2000, o PR alcançou re-
sultado mais significativo, com 5,40% de prefeitos e 5,21% de
vereadores, enquanto o PSD foi o partido registrado na década
de 2010 com representação mais elevada (9,79% de prefeitos e
8,02% de vereadores), seguido pelo SD (Tabela 1).

Tabela 1 – Desempenho por cargo dos partidos nas eleições


municipais de 2016.
Partido Prefeita % Vereador % Partido Prefeita % Vereador %
PMDB 1.036 18,89 7.560 13,07 PSL 30 0,55 878 1,52
PSDB 791 14,43 5.364 9,27 PTN 29 0,53 764 1,32
PSD 537 9,79 4.639 8,02 PMN 27 0,49 527 0,91
PP 498 9,08 4.741 8,19 PRP 18 0,33 615 1,06
PSB 405 7,39 3.630 6,27 PTC 16 0,29 572 0,99
PDT 327 5,96 3.765 6,51 PEN 13 0,24 522 0,90
PR 296 5,40 3.012 5,21 PT do B 12 0,22 490 0,85
DEM 268 4,89 2.898 5,01 PRTB 9 0,16 390 0,67
PTB 259 4,72 3.057 5,28 PSDC 8 0,15 418 0,72
PT 255 4,65 2.813 4,86 PPL 5 0,09 111 0,19
PPS 118 2,15 1.671 2,89 REDE 4 0,07 180 0,31
PRB 104 1,90 1.618 2,80 PMB 3 0,05 219 0,38
PV 99 1,81 1.520 2,63 PSOL 2 0,04 56 0,10
PSC 86 1,57 1.523 2,63 NOVO 0 0,00 4 0,01
PC do B 81 1,48 1.004 1,74 PCB 0 0,00 1 0,002
SD 60 1,09 1.437 2,48 PSTU 0 0,00 0 0,00
PROS 50 0,91 984 1,70 PCO 0 0,00 0 0,00
PHS 37 0,67 873 1,51 Total 5.483 100 57.856 100
Fonte: Elaborado pelos autores com base nos resultados das eleições 2016 disponível no
TSE (2016).

Nas eleições de 2016, mesmo com tantos partidos em


disputa, os cargos concentraram-se em apenas dez deles. Os
partidos registrados recentemente e que obtiveram ótimo
desempenho nas eleições não são necessariamente novos, pois

125
resultam da transformação de partidos outrora existentes. Por
exemplo, o PSD foi registrado em 2011 e resulta da união de
figuras importantes do Democratas, do PP e do PSDB. Situação
similar foi observada por Ferreira, Batista e Stabile19, que
observaram que, entre 1982 e 2006, os partidos mais longevos
como PMDB, PT, PDT, PTB, PP, PSDB e DEM alcançaram maiores
êxitos na competição eleitoral, conquistando a maioria dos
votos nas eleições para a Câmara dos Deputados, Assembleias
Legislativas, Senado e o Executivo estadual.
No tocante à representatividade partidária por região do
país, observou-se o predomínio do PMDB e PSDB na maior parte
das regiões brasileiras. No Centro-oeste ocorreu o predomínio
do PSDB, tanto nas prefeituras (32,47%) quanto nas câmaras de
vereadores (14,56%), seguido pelo PMDB, PSD, PR, PSB, PP, PDT
e DEM. Os demais 23 partidos, juntos, conquistaram 13,55%
das prefeituras e 32,84% das cadeiras nas câmaras municipais.
No Nordeste, o PMDB com maior representação (14,65% dos
prefeitos e 10,16% dos vereadores), seguido pelo PSD, PSB, PSDB,
PP, PDT, PT e PR. Os demais partidos conquistaram 24,27% das
prefeituras e 41,23% das câmaras de vereadores (Figura 1).
No Norte, o PMDB elegeu 24,94% dos prefeitos e 11,85%
dos vereadores, seguido pelo PSDB, PSD, PR, PP, DEM, PSB,
PDT e PT. Os demais 22 partidos conquistaram 22,72% das
prefeituras e 40,17% das câmaras de vereadores. No Sudeste, o
PSDB e PMDB conquistaram, respectivamente, 18,94% e 17,08%
das prefeituras e 11,74% e 11,23% das vagas para as câmaras
municipais, seguido pelo PSD, PTB, DEM, PSB, PR e PP. Os
demais 24 (vinte e quatro) partidos conquistaram 25,50% das
prefeituras e 40,44% das câmaras de vereadores. No Sul, o
PMDB e PP conquistaram, respectivamente, 25,87% e 17,96%
das prefeituras e 21,18% e 16,19% das vagas para as câmaras
municipais, seguido pelo PSDB, PDT, PSD, PT e PTB. Os demais
25 partidos conquistaram 18,64% das prefeituras e 24,84% das
câmaras de vereadores (Figura 1).
19 FERREIRA, BATISTA E STABILE, 2008. p. 440 e 446

126
Figura 1 - Desempenho dos partidos nas eleições de 2016
por cargo e por região.

127
Figura 1 - Desempenho dos partidos nas eleições de 2016
por cargo e por região (continuação)

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos resultados das eleições 2016 disponível no
TSE (2016).

Observou-se uma diversidade de partidos na disputa


dos cargos, assim como no êxito eleitoral na maioria dos
municípios brasileiros. Essa diversidade foi maior na disputa
para as câmaras de vereadores, haja vista a maior quantidade
de vagas disponíveis, enquanto na disputa pelas prefeituras foi
maior a quantidade de partidos que deixou de concorrer, com
destaque para as eleições no Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia,
Maranhão, Minas Gerais, Paraná e São Paulo, onde mais de 33
partidos disputaram as eleições, ao passo que o Acre, Rondônia,
Mato Grosso e Espírito Santo foram os estados em que mais
partidos deixaram de lançar candidato a qualquer dos cargos
(Tabela 2).

128
Tabela 2 – Quantidade de partidos por cargo e estado que
concorreram e deixaram de concorrer nas eleições de 2016.
Prefeituras Câmara dos Vereadores
Partidos Partidos Partidos Partidos Partidos Partidos Partidos que
que com que não que com que não não lançaram
Estado lançaram candidatos lançaram qualquer
lançaram candidatos lançaram
candidato eleitos candidatos candidato eleitos candidatos candidato

AC 18 9 17 29 22 6 6
AL 31 14 4 32 31 3 3
AM 27 12 8 33 31 2 2
AP 25 13 10 33 29 2 2
BA 33 23 2 33 31 2 2
CE 31 22 4 33 30 2 2
ES 31 16 4 31 30 4 4
GO 30 18 5 32 30 3 3
MA 33 21 2 33 30 2 2
MG 33 26 2 35 32 0 0
MS 28 11 7 33 29 2 2
MT 26 15 9 31 27 4 4
PA 32 15 3 32 31 3 3
PB 29 17 6 32 30 3 3
PE 33 17 2 34 31 1 1
PI 31 23 4 33 31 2 2
PR 32 24 3 35 30 0 0
RJ 34 20 1 35 32 0 0
RN 30 20 5 32 31 3 3
RO 25 14 10 30 26 5 5
RR 25 12 10 32 27 3 3
RS 27 13 8 35 23 0 0
SC 25 10 10 33 24 2 2
SE 30 15 5 33 30 2 2
SP 33 23 2 35 32 0 0
TO 27 21 8 32 29 3 3

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos resultados das eleições 2016 disponível no
TSE (2016).

Alguns partidos não lançaram candidaturas em diversos


estados. O NOVO foi o partido que mais deixou de lançar candi-
daturas tanto para as prefeituras como câmaras municipais (21
estados), seguido pelo PCO (17 estados), PCB (12 estados), PSTU

129
(5 estados) e PPL, PRTB e PMB (1 estado cada). Dessa forma, é de
se questionar qual a função de um partido que não lança candi-
daturas e não disputa o poder. Ou ainda que concentra suas can-
didaturas em determinados estados do país. Certamente que não
demonstra ter o caráter nacional necessário para seu registro jun-
to ao TSE, nos termos do art. 7º, § 1º da Lei nº 9.096/1995.
As regras e fórmulas utilizadas no sistema eleitoral ado-
tado no país, como a do quociente eleitoral, a cláusula de barrei-
ra, dificultam o êxito de um partido que dispute, sozinho, uma
eleição, pois nem sempre a grande quantidade de votos obtidos
garantirá cadeiras no parlamento. Isso faz com que a coligação
seja a medida a ser adotada por muitos, tanto para potencializar
o número de eleitos, concentrando a maioria dos votos recebidos,
como para reduzir os custos da campanha.
Em 2016, com exceção do NOVO e do PCO, os demais parti-
dos se uniram para a última disputa municipal, seja na disputa para a
Câmara seja nas Prefeituras. Na disputa para prefeito, alguns parti-
dos optaram por lançar apenas candidaturas em coligações (PC do
B, PEN, PMB, PPL, PRTB, PSC, PSOL, PT do B e PTN). Os partidos
menores que não se utilizaram desse instrumento não obtiveram
êxito na disputa. Quanto aos demais, ficou evidente a importância
da coligação, pois a maioria esmagadora dos votos recebidos e
dos filiados eleitos foi através das uniões partidárias (Tabela 3).
As coligações são responsáveis também por promover
a fragmentação partidária e a eleição de candidatos com
baixa quantidade de votos20, bem como dificultar o processo
de escolha pelos eleitores, especialmente naquelas coligações
inconsistentes, muitas das quais envolvendo partidos com
ideologias totalmente opostas. Para o pleito eleitoral de
2016, partidos com orientações políticas diferentes, que
se distanciaram politicamente no cenário nacional após o
impedimento de Dilma Rousseff, formaram coligações tanto nas
disputas proporcionais quanto majoritárias, como DEM e PT,
PC do B, DEM e PSDB, PMDB e PT, PP e PT, PSDB e PT, PSC e
PT, DEM e PSOL, entre outros.
20 MELO E SOARES, 2016. p. 699-700

130
Prefeito
Sem coligação Com coligação Sem coligação Com coligação
Total de Total de



Partido Eleitos % Votos Eleitos % Votos eleitos Partido Eleitos % Votos Eleitos % Votos eleitos
DEM 1 0,37 617 267 99,63 3.155.996 268 PSDB 5 0,63 23.736 786 99,37 10.549.065 791
NOVO 0 0 0 0 0 0 0 PSDC 2 25 8.967 6 75 48.252 8
PCB 0 0 0 0 0 0 0 PSL 1 3,33 4.293 29 96,67 142.851 30
PC do B 0 0 0 81 100 597.082 81 PSOL 0 0 0 2 100 4.675 2
PCO 0 0 0 0 0 0 0 PSTU 0 0 0 0 0 0 0
PDT 7 2,14 19.824 320 97,86 2.388.962 327 PT 4 1,57 8.136 251 98,43 1.708.463 255
PEN 0 0 0 13 100 77.431 13 PT do B 0 0 0 12 100 45.483 12
PHS 3 8,11 5.115 34 91,89 349.282 37 PTB 2 0,77 7.467 257 99,23 1.749.207 259
PMB 0 0 0 3 100 84.846 3 PTC 1 6,25 1.808 15 93,75 103.847 16
PMDB 28 2,7 69.064 1.008 97,3 6.781.011 1.036 PTN 0 0 0 29 100 255.430 29
PMN 1 3,7 2.158 26 96,3 112.017 27 PV 2 2,02 4.646 97 97,98 616.429 99
PP 23 4,62 88.592 475 95,38 2.980.833 498 REDE 1 25 3.823 3 75 47.104 4
PPL 0 0 0 5 100 18.964 5 SD 6 10 29.678 54 90 369.060 60
PPS 6 5,08 64.801 112 94,92 963.078 118 - - - - - - - -
PR 2 0,68 5.156 294 99,32 1.845.869 296 - - - - - - - -
PRB 2 1,92 12.608 102 98,08 677.952 104 - - - - - - - -
PROS 2 4 8.347 48 96 247.579 50 - - - - - - - -
disputado com e sem coligação em 2016.

PRP 1 5,56 2.476 17 94,44 121.496 18 - - - - - - - -


PRTB 0 0 0 9 100 32.399 9 - - - - - - - -
PSB 4 0,99 12.488 401 99,01 3.500.523 405 - - - - - - - -
PSC 0 0 0 86 100 714.501 86 - - - - - - - -
PSD 3 0,56 10.135 534 99,44 3.603.610 537 Total 107 1,95 393.935 5.376 98,05 43.893.297
Tabela 3 – Distribuição de votos e eleitos por partido, cargo

5.483

131
132
Vereador
Sem coligação Com coligação Sem coligação Com coligação
Total de Total de



Partido Eleitos % Votos Eleitos % Votos eleitos Partido Eleitos % Votos Eleitos % Votos eleitos
DEM 207 7,14 334.900 2.691 92,86 1.688.893 2.898 PSDB 475 8,86 531.849 4.889 91,14 3290184 5.364
NOVO 4 100 64.652 0 0 0 4 PSDC 52 12,44 112.080 366 87,56 248425 418
PCB 1 100 636 0 0 0 1 PSL 57 6,49 90.331 821 93,51 497462 878
PC do B 46 4,58 65.543 958 95,42 678.502 1.004 PSOL 12 21,43 20.854 44 78,57 342259 56
PCO 0 0 0 0 0 0 0 PSTU 0 0 0 0 0 0 0
PDT 291 7,73 249.798 3.474 92,27 2.169.009 3.765 PT 259 9,21 301.548 2.554 90,79 1937066 2.813
PEN 24 4,6 54.836 498 95,4 322.874 522 PT do B 28 5,71 54.064 462 94,29 303690 490
PHS 72 8,25 131.907 801 91,75 558.140 873 PTB 203 6,64 350.681 2.854 93,36 1497500 3.057
PMB 11 5,02 31.180 208 94,98 178.038 219 PTC 38 6,64 90.284 534 93,36 361478 572
PMDB 915 12,1 938.148 6.645 87,9 3.548.780 7.560 PTN 52 6,81 187.096 712 93,19 432221 764
PMN 40 7,59 76.209 487 92,41 318.818 527 PV 163 10,72 253.870 1.357 89,28 796305 1.520
PP 428 9,03 317.559 4.313 90,97 2.323.773 4.741 REDE 8 4,44 10.935 172 95,56 145715 180
PPL 12 10,81 29.380 99 89,19 71.436 111 SD 90 6,26 98.386 1.347 93,74 952427 1.437
PPS 137 8,2 146.430 1.534 91,8 993.895 1.671 - - - - - - - -
PR 204 6,77 180.080 2.808 93,23 1.724.394 3.012 - - - - - - - -
PRB 107 6,61 223.922 1.511 93,39 1.299.841 1.618 - - - - - - - -
PROS 40 4,07 62.088 944 95,93 579.004 984 - - - - - - - -
PRP 55 8,94 84.287 560 91,06 438.723 615 - - - - - - - -
PRTB 24 6,15 55.167 366 93,85 244.217 390 - - - - - - - -
PSB 231 6,36 304.147 3.399 93,64 2.184.686 3.630 - - - - - - - -
PSC 132 8,67 306.748 1.391 91,33 844.097 1.523 - - - - - - - -

pelo TSE, Observação: foi contabilizado apenas os votos válidos dos candidatos eleitos.
Fonte: Elaborado pelos autores com base no resultado das eleições 2016 disponibilizados
PSD 223 4,81 248.578 4.416 95,19 2.645.675 4.639 Total 4.641 8,02 6.008.173 53.215 91,98 33.617.527 57.856
A esse respeito, Kinzo21 observou que o discernimento
na escolha do candidato é dificultado e, consequentemente, o
exercício da cidadania, pela complexidade do sistema eleitoral,
pelo excesso de candidatos nas disputas, agravado, ainda,
pelas coligações. Os partidos não possuem contornos definidos
claramente como organizações distintas, e:

Disso decorre a facilidade com que os candidatos eleitos migram


para outro partido sem nenhum constrangimento – o que denota,
aliás, a fragilidade dos partidos, no sentido de que não são
organizações relevantes o suficiente para manter seus próprios
quadros. Evidência mais forte é o fato de os partidos raramente
se engajarem nas disputas eleitorais como atores distintos;
apresentam-se, ao contrário, em alianças partidárias. Ou seja, os
competidores do jogo eleitoral não são os partidos como unidades
diferenciadas, mas candidatos e coligações formadas por diversos
partidos, não raro de diferentes orientações ideológicas.

No mesmo sentido, Jehá22 destaca o amorfismo dos


partidos políticos, que se caracterizam por não possuírem
identidades e ideologias próprias e definidas. Estes não
passariam de meras agremiações homogeneizadas, maldotados
do mínimo substrato programático necessário para diferenciá-
las. Os partidos seriam meros instrumentos de aquisição do
poder político por indivíduos.
Qual seria, então, o valor desse resultado
para a democracia, positivo ou negativo? Em tese, o
sistema pluripartidário corresponde à diversificação dos
posicionamentos ideológicos de um país, porém o sistema
eleitoral não garante que esses interesses estejam formalmente
representados, ocupando cargos eletivos. No caso brasileiro, as
instâncias do poder municipal restringiram-se a uma pequena
parcela de partidos. Entretanto, ainda que em menor escala, os
demais partidos conseguiram êxito nos mais diversos locais.
A questão da fragmentação partidária comumente
apontada pelos diversos estudiosos não seria o maior problema
do sistema partidário, mas, sem dúvidas, dificulta o exercício da
21 KINZO, 2004. p. 32-33.
22 JEHÁ, 2009. p. 105.

133
cidadania pelo voto. E esse é o grande problema da fragmentação
partidária no país. A disputa eleitoral é complexa, os partidos
precisam se utilizar de diversas estratégias para alcançar o
poder, enquanto o eleitor é submetido a uma lista infindável
de candidatos, de inúmeros partidos, cujos traços ideológicos,
objetivos e valores são desconhecidos pelos eleitores, caso
existam de forma consolidada. Essa situação não é salutar
para qualquer democracia. Nesse sentido, conforme questiona
Kinzo23, até que ponto o fortalecimento do sistema partidário é
fator fundamental na consolidação da democracia brasileira?
Certamente mais estudos e análises são necessários para chegar,
se possível, a uma resposta.

Considerações Finais

Em 2016, muitos partidos concorreram e conquistaram


cargos eletivos, principalmente no sistema proporcional.
Entretanto, a maioria expressiva dos cargos disputados foi
conquistada por apenas 10 dos 35 partidos existentes. Os
demais partidos obtiveram representação inexpressiva nas
prefeituras e câmaras de vereadores, o que vai ao encontro
das críticas proferidas ao sistema pluripartidário. Partidos
como PSTU e PCO não elegeram filiados, enquanto o NOVO
e PCB elegeram, juntos, 5 (cinco) vereadores em todo o país.
Em contrapartida, PMDB e PSDB constituíram-se nos maiores
partidos, conquistando, juntos, mais de 30% das prefeituras e
20% das vagas para as câmaras de vereadores e predominaram
nas cinco regiões brasileiras, seguidos de forma mais modesta
pelo PSD, PP, PSB, PDT, PR, DEM, PTB e PT.
Evidente, também, que a disputa eleitoral foi bastante
diversificada, na qual muitos partidos disputavam os cargos
nos diversos municípios, principalmente para as câmaras de
vereadores. Todavia, alguns partidos não lançaram candidaturas
em diversos estados, principalmente o NOVO, que só concorreu

23 KINZO, 2004. p. 35.

134
em municípios de cinco estados do país, o que levanta
questionamentos quanto ao requisito de caráter nacional da
agremiação partidária, assim como a dificuldade dos partidos
menores em conseguir êxito nessas disputas, sem se utilizar
das coligações partidárias, que se constitui em um importante
instrumento de êxito eleitoral.
As coligações são responsáveis por concentrar a
maioria dos votos obtidos nas eleições de 2016. Sem dúvidas as
coligações propiciam melhores resultados no contexto político,
constituindo-se de fato, segundo Kinzo24 , na melhor estratégia
tanto para os pequenos quanto para os maiores partidos.
Poucos partidos não se utilizaram desse artifício em 2016, caso
do NOVO e PCO, e muitas das uniões envolveram agremiações
com orientações ideológicas discrepantes. Essa situação não
pode ser considerada benéfica, tendo em vista que os partidos
não possuem contornos claros e ainda firmam diversas
coligações entre si, a despeito das divergências ideológicas, o
que dificulta a escolha do eleitor e causa a volatilidade eleitoral
e a instabilidade do sistema. Nesse cenário, questiona-se se
o fortalecimento do sistema partidário promove, também, o
fortalecimento da democracia.

24 KINZO, 2004. p. 35.

135
REFERÊNCIAS

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Paulo: Malheiros, 2010.

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sistema partidário brasileiro: número de partidos e votação no
plano subnacional 1982-2006. Opinião Pública, Campinas, vol. 14,
n. 12, novembro, p. 432-453, 2008.

GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 7. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: Atlas, 2011.

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1985. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.19, n. 54. p. 1-19,
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e sucesso de candidatos com baixa densidade eleitoral. Análise
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NICOLAU, J. M; SCHMITT, R. A. Sistema partidário e sistema


eleitoral. Lua Nova, nº 36-95, p. 129-201, 1995.

136
VII

O DIREITO À TERRA: BREVES NOTAS SOBRE


TERRITÓRIO

Luana Elainy Rocha Magalhães 1

Introdução
O presente trabalho surge como resultado final da
disciplina de Identidades coletivas, Memória e Processos de
Territorialização, do Mestrado em Antropologia da UFPI.
Nesse sentido, a metodologia usada foi basicamente a pesquisa
bibliográfica, dialogando com autores consagrados no debate
sobre território e na pesquisa com comunidades e povos
tradicionais.
Este artigo tem o objetivo de trabalhar, ainda que
sem esgotar o tema, o direito à terra no que tange aos povos
e comunidades tradicionais com foco voltado para os índios
e os quilombolas. Propõe ainda permitir a compreensão das
concepções que se tem acerca do que é território, bem como
outras questões envolvidas nessa luta por direitos territoriais.

1 Mestranda em Antropologia pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Advogada.


Membro da Comissão de Direitos Difusos e Coletivos da OAB/PI. Especialização em Direito
e Processo do Trabalho pela Faculdade CEUT. Bacharela em Direito pela Faculdade CEUT.

137
1 ESTRUTURA AGRÁRIA E DELIMITAÇÃO DE
TERRITÓRIO

Pensar a estrutura agrária, a partir das categorias de


estabelecimento e imóvel rural se tornou insuficiente. Almeida
(2002) ensina que havia situações em que as formas de apropriação
dos recursos naturais não eram individualizadas, como no caso
do imóvel rural, mas também não eram unidades de exploração
independente da dominialidade, como nos estabelecimentos.
Tais situações foram denominadas de ocupações especiais,
expressão essa capaz de comportar todas essas situações até
então não reconhecidas, embora legítimas, contemplando assim
as chamadas terras de preto, terras de santo e terras de índio.
A forma como os povos tradicionais delimitam seus
territórios segue não uma ordem objetiva, ou lógica capitalista,
mas uma linha subjetiva que tem a ver com a sua história, com
a sua relação com a terra, com suas memórias, etc. A terra pra
eles tem ligação direta com a vida. Nesse sentido, Paul Little
(2002, p. 3) define "territorialidade como o esforço coletivo de
um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com
uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a
assim em seu território" de modo que este consiste num "produto
histórico de processos sociais e políticos".
Quando órgãos estatais vão "regularizar" as terras
ocupadas, a história do povo é desconsiderada ou não lhe é dada
a importância que merece e criam delimitações que seguem
uma lógica ocidental e capitalista. E isso acontece, porque
nesses processos de regularização o que se busca de verdade é a
"reestruturação de mercados, disciplinando a comercialização da
terra e dos recursos florestais e do subsolo" (ALMEIDA, 2012, p.
63).
Destarte, é possível pensar que a legislação que trata da
regularização de terras dos povos e comunidades tradicionais,
antes de buscar efetivamente legitimar o que lhes é de direito,
tem como escopo conter conflitos, para que se possa beneficiar
os grandes latifundiários, na medida em que, tais regularizações
são no sentido de limitar o espaço ocupado por essas pessoas.

138
2 ORIGEM DOS CONFLITOS POR TERRA E A
SOBERANIA ESTATAL

O Estado brasileiro surge como muitos outros, a partir


de um processo de dominação e consequentemente de desapro-
priação dos povos que aqui já estavam. Iniciam-se aí os confli-
tos territoriais que perduram até os dias atuais. Há nesse sen-
tido uma sobreposição de ideias e de outras formas de pensar o
território. É o que Almeida (2012) chama de "dessemantização"
da ideia de proteção em prol do protecionismo2, o que leva a
uma reconceituação de território onde se tem novos critérios de
classificação de ordem econômica e ambiental, visando o cresci-
mento econômico e com a consequente flexibilização de normas
jurídicas que tratam dos direitos territoriais de povos e comuni-
dades tradicionais.
É claro que ao longo do tempo as noções conceituais
podem mudar e de fato mudam, afinal os índios de hoje não são
os índios da época do "descobrimento" e nem os quilombolas os
escravos de outrora, todavia essa mudança é sempre em fun-
ção de "forças históricas e exteriores que exercem pressão sobre
eles" (LITTLE, 2002, p. 5). Esses povos são obrigados a aceitar
as demarcações de forma estratégica e mesmo por questões de
sobrevivência sob pena de ficar numa eterna disputa na qual
provavelmente não obteriam êxito.
Paul Little chama atenção assim para uma ideologia ter-
ritorial, que consiste nisso que já foi falado, na invisibilização
de outras formas de se pensar o território e faz isso sob a argu-
mentação de que o Estado deve ser soberano, o que implica ter
um território para uso da sociedade nacional e se fundamentam
em preceitos legais que garantem ao Estado o controle do terri-
tório. Diante disso, fica fácil entender a razão pela qual quando
se trata de demarcação de terras indígenas o território continua
sendo propriedade da União.
2 Alfredo Wagner Berno de Almeida (2012), faz distinção entre proteção e protecionismo,
assim ele explica que a proteção "deriva de mecanismos de uma ação ambiental conserva-
cionista perpetrada por agências multilaterais", ao que passo que o protecionismo consiste
numa "ação de Estado inspirada principalmente no potencial de crescimento econômico".

139
Nesse sentido, talvez caiba aqui algumas poucas pala-
vras acerca da categorização de terra para fomentar a reflexão
sobre essa ideologia territorial. A terra é basicamente privada
ou pública. Quando a terra é privada significa dizer que o dono
tem total domínio sobre ela, podendo usá-la da forma que lhe
for conveniente, inclusive vendê-la, já que na lógica capitalis-
ta terra é uma mercadoria. Quando pública, a terra fica sob o
controle do Estado, logo é um bem que pertence a todos os ci-
dadãos, ou seja, será usada pelo Estado visando o bem comum,
então, a priori não seria uma mercadoria, não poderia o Estado
livremente fazer dela o que quisesse.
É seguindo essa linha de raciocínio que o Estado não
pode sair dando terra, sendo necessário seguir processos legais,
atender a requisitos, não para dar, mas para demarcar uma terra
que é tradicionalmente ocupada por determinado povo ou con-
ceder-lhe o direito à propriedade da terra ocupada. Quando isso
acontece a terra sai das mãos do Estado e passa a ser proprieda-
de do povo que reivindicou a terra, salvo em relação aos povos
indígenas, pois a eles cabe apenas a posse e o Estado continua
sendo detentor da propriedade da terra.
Ocorre, entretanto, que esses processos legais também
são realizados para atender finalidades específicas que não cor-
respondem com o bem coletivo. Isso acontece quando a ação
governamental e os interesses privados andam lado a lado, oca-
sionando pressões políticas que se manifestam, por exemplo,
com a privatização de terras públicas. Mas como assim? Almei-
da (2012, p. 67) nos explica que essa privatização ocorre com o
eufemismo de "regularização fundiária" e exemplifica:

Compreende o Programa Terra Legal, instituído a partir da


implementação da Lei 11.952, de julho de 2009, que visa a titular
67 milhões de hectares na Amazônia. Essa medida regulariza a
ocupação de terras da União, permitindo que sejam repassadas,
sem licitação, áreas com até 1.500 hectares aos que detinham a
posse dessas áreas antes de primeiro de dezembro de 2004.

Fica evidente, que a lei não é a mesma para todos, que


o Estado usa dois pesos e duas medidas, quando se trata de

140
interesses privados, de quem já tem poder econômico e político
e quando se trata de interesses de coletividades historicamente
subjugadas. Isso está diretamente ligado à ideologia territorial
da qual Paul Little fala, onde também o Estado–Nação se vê
ameaçado pelas noções de territórios sociais e assim se afasta
dos povos tradicionais e se coliga com particulares.
Para melhor compreender essa questão que envolve as
categorias público e privado, bem como a relação que o Estado
mantém com as terras, convém citar Kant de Lima (2012, p.
48) que elucida muito bem sobre isso, lançando luz para nosso
entendimento:

O significado da palavra público, em nossa língua, enfatiza sua


analogia com Estado, constituindo-se em sinônimo muitas vezes,
de estatal. Trata-se do oposto de seu significado na língua inglesa,
em que public quer dizer referente a determinada coletividade,
ou na língua francesa, na qual publique quer dizer um espaço
em que todos devem se engajar num contrato social, como em
République. Ora, se o caráter público de alguma coisa remete à
sua vinculação com o Estado, isso quer dizer que se impõe nas
coisas públicas sua apropriação particularizada pelo Estado, e
não aquela universalizada pela sociedade. As coisas públicas são,
assim, do Estado, que deve autorizar as formas e regras de sua
apropriação pela sociedade.

Alfredo Wagner de Almeida (2012, p. 65) expõe que


"os sentidos de território remetem, em primeiro lugar, a um
"biologismo" extremado, que caracteriza o ambientalismo
empresarial dos grandes fundos de investimentos". Para os povos
tradicionais, todavia, o sentido de território "é encontrado nos
vínculos sociais, simbólicos e rituais" que eles "mantêm com seus
respectivos ambientes biofísicos" (Little, 2002, p. 10). É nesse
sentido que Little (2002, p. 4) faz uso do termo cosmografia, que
ele define como "os saberes ambientais, ideologias e identidades
− coletivamente criados e historicamente situados − que um
grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território".
Aqui reforçamos então a relação diferente que os povos
tradicionais estabelecem com o território em comparação
com o Estado e como a noção de território que este adota é
hegemônica. Alfredo Wagner de Almeida nos faz entender como

141
essa ressignificação das ideias e das fronteiras de território
colaboram para perceber esses povos como obstáculos ao
desenvolvimento, ao progresso, enfraquecendo assim suas
identidades étnicas.

3 ANTROPOLOGIA VERSUS DIREITO

Nessa percepção do território como espaço de disputa


é possível verificar também o apego à letra fria da lei que
vincula a propriedade a um título, ignorando todo o processo
histórico que vincula e legitima a propriedade da terra ao povo
que a ocupa. Aqui é possível observar ainda um conflito entre
a Antropologia e o Direito, cabendo falar sobre isso, com o
auxílio Eliane Cantarino O’dwyer, algumas poucas palavras.
O’dwyer (2012) chama a atenção sobre a categorização
de indivíduos para atribuir a eles normas jurídicas e citando
Geertz coloca que essas classificações não visam eliminar as
diferenças, mas gerenciá-las. Todavia, de acordo com O’dwyer
(2012, p. 318), essa categorização "representa uma forma de
conceber a realidade e responde, em parte, pelas ações sociais
orientadas por categorias jurídicas".
Esta autora evidencia que as conceituações acerca
dos povos e comunidades tradicionais, bem como a noção de
território são distintas na antropologia e na seara jurídica
normativa. Deste modo, nesta última, a noção corresponde
geralmente a do senso comum, que muitas vezes é eivada de
preconceitos no que diz respeito à compreensão do que é ser
povo ou comunidade tradicional e quanto à ideia de território,
este é pensado a partir de uma questão geográfica e política,
ligada, pois, à noção de mercado.
Na perspectiva antropológica, todavia se compreende
esses povos e comunidades considerando-os a partir deles
mesmo, fazendo o exercício de relativização e valorizando
suas singularidades. Quanto ao território, ele é entendido na
antropologia como intrinsecamente ligado a identidade étnica.

142
Para nos fazer compreender de modo mais simples
essa ideia de território, Barreto Filho (2012) faz analogia
com a natureza tratando da biologia dialética segundo a
qual os ambientes e nichos ecológicos não existem de forma
independente das espécies e dos organismos, deste modo ele
fala em pluralidade de ambientes, que são tantos quanto forem
os organismos e as espécies. Desse modo Barreto Filho (2012, p.
248) nos explica que:
(...) à semelhança do postulado da biologia dialética, para saber
qual é o ambiente físico de uma dada sociedade, temos de
perguntar a esta, pois são seus processos e atividades sociais
que especificam os elementos do mundo biofísico que lhes são
relevantes.

O referido autor nos leva à compreensão de que ao


contrário do que possa parecer, o território não se autodefine,
nem poderia ser definido por fatores e sujeitos exteriores a ele.
Isso significa dizer que território e sujeitos são interdependentes
de tal modo que é quem vive nele que o define através, como ele
disse, de suas atividades. Com isso ele desnaturaliza quaisquer
concepções de território que se possa ter, nos fazendo ver que
de fato há uma pluralidade de definições e conceitos, pois há
uma diversidade cultural e étnica.
De forma prática isso significa dizer que não é o Estado
que deve dizer o que é terra de índio e o que é terra de quilombo
e até onde ela vai, tampouco dizer o que é ser índio e o que é ser
quilombola. Nesse sentido, O’dwyer (2012, p. 322) explica:

Neste tipo de reflexão proposta segundo uma perspectiva da


antropologia, a definição prevalente é a de que os grupos étnicos
são entidades que se autodefinem, as etnicidades demandam uma
visão construída de dentro e não mantêm relações imperativas
com nenhum critério objetivo.

Nesta direção, Oliveira (2012) fala sobre como surgem


as pesquisas acerca de terras indígenas, mostrando que uma das
razões se deve ao conflito entre as perspectivas do Estado, da
Funai – com a ideia de território como sendo uma proposta da

143
comunidade3 – e o que de fato os índios percebem como sendo
seu espaço. Oliveira (2012, p. 371) fala que "as noções de terra
e território indígena se modificaram historicamente", contudo
essa mudança sempre esteve muito mais relacionada "com os
modelos de ação e gestão populacional do Estado brasileiro do
que com os anseios das populações indígenas".
É por isso que Oliveira (2004, p. 23) diz que a
territorialização "é uma intervenção da esfera política que
associa (...) um conjunto de indivíduos e grupos a limites
geográficos bem determinados". Em outras palavras, as
demarcações de terras indígenas são verdadeiros processos de
confinamento dos povos indígenas, pois como vimos isso se dá
seguindo critérios exteriores aos dos povos indígenas.
Sobre isso é relevante refletir sobre a dificuldade de
demarcações das terras indígenas especialmente dos índios do
Nordeste, já que a demarcação pressupõe o reconhecimento
do povo como pertencente à etnia. E como dito alhures, o
imaginário popular acerca do que é ser índio está atrelado a
critérios objetivos, como andar nu, viver na mata, não falar ou
pouco falar o português, não fazer uso de tecnologias, enfim,
ser o índio dos anos 500.
Ocorre que esse imaginário percorre o ambiente jurídico,
que nesse sentido tem resistido em demarcações de terras
indígenas por não compreender que a cultura não é estática
e assim negando aos índios o direito de mudar assim como os
portugueses já não se assemelham aos nossos colonizadores.
Nessa perspectiva, fica evidente que a questão étnica está forte e
diretamente ligada à luta por direitos territoriais influenciando
assim na sua conquista.
Isso propicia um movimento indígena a, em certa
medida, adotar de forma estratégica, os sinais diacríticos que
os órgãos estatais e que a sociedade exigem para que façam
jus ao seu território. Isso significa dizer que a luta pelo direito
à terra, faz com que os povos indígenas, em especial os do
3 Isso ratifica a proposta de Alfredo Wagner ao falar em seu artigo Territórios e Territoriali-
dades específicas na Amazônia, entre a "proteção" e o "protecionismo", sobre a pressão que
os povos e comunidades tradicionais sofrem de um lado pelo protecionismo do Estado e de
outro pela proteção das agências multilaterais.

144
Nordeste, que não vivem isolados, nem correspondem ao nosso
imaginário (re)inventem sua cultura de forma estratégica, mas
também como forma de fortalecimento para a luta por seus
direitos, até porque, é a demarcação do território que lhes
proporciona conquistar também o direito a uma saúde e uma
educação diferenciada.

4 UMA CONQUISTA

Como dito anteriormente, a definição de território está


ligada à questão étnica. A "concessão" de direitos territoriais
então passa pela definição do grupo, para verificar se ele
tem direito ou não à terra que ocupa. Leite (2012), nos fala
da mudança histórica do significado de quilombolas, onde na
Constituição Federal de 1988 se refere a remanescente dos
quilombos, sendo isso fruto de pesquisas que identificavam
grupos de origem africana vivendo em comunidades e mantendo
relações específicas com o território que ocupavam, porém sem
terem a propriedade da terra.
Com isso, a tais povos eram reconhecidos o direito
definitivo à propriedade. Sem dúvida isso foi uma conquista,
porém, provocou reflexões que culminaram em reivindicações
de movimentos negros de modo a rever a concepção de
quilombo. E assim, como resultado dessas reivindicações dos
movimentos negros, tem-se o Decreto nº 4.887/20034 segundo
o qual ao invés de se determinar o que é ser quilombola, diz
que essa definição deve seguir critérios de autoatribuição, ou
seja, são os grupos que primeiro devem se reconhecer como
tais, associando isso à trajetória histórica e a sua relação com a
terra bem como com atitude de resistência.
Almeida (2002) fala das chamadas terras de preto, de
como ganhou força o movimento social quilombola. Essas
4 O Partido Democratas (DEM) ajuizou no Supremo Tribunal Federal – STF no ano de 2004
uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), sob número 3239, alegando vício formal e
material. O DEM alega que houve invasão da esfera de competência do Poder Legislativo
pela Presidência da República, porque, segundo ele o Decreto estaria regulamentando dire-
tamente o art. 68 da ADCT. Questiona ainda a matéria dos artigos 13, §§2º e 3º do artigo 2º
e o §1º do artigo 2º que fala da autodefinição.

145
terras eram tratadas pelo legislador como algo bem definido,
como um verdadeiro sítio arqueológico em que havia figuras
que correspondessem ao seu imaginário. Ocorre que a definição
de "remanescentes das comunidades de quilombos" não era
satisfatória, o que fez surgir diversos questionamentos, dentre
eles o que indagava qual o conceito de quilombo.
Segundo o referido autor, a ideia que se tinha/tem de
quilombos é que são escravos fugidos em número mínimo de
cinco, para localização isolada geograficamente, com moradia
habitual e que não contenha pilões, considerando nesse último
critério que quilombolas não teriam autonomia nem de produção
e tampouco organização para o trabalho, ou seja, seriam vadios.

Dessa forma, esses cinco elementos funcionaram como


definitivos e como definidores de quilombo. Jazem encastoados
no imaginário dos operadores do direito e dos comentadores
com pretensão científica.Daí a importância de relativizá-los,
realizando uma leitura crítica da representação jurídica que
sempre se mostrou inclinada a interpretar o quilombo como algo
que estava fora, isolado, para além da civilização e da cultura,
confinado numa suposta auto-suficiência e negando a disciplina
do trabalho. (ALMEIDA, 2002, p. 49)

Esses elementos datam de 1740 e permanecem até


hoje definindo o que é quilombo, contudo com variação de
intensidade de um elemento em relação aos outros. Este autor
nos faz pensar sobre a importância de trabalhar com um
conceito atual de quilombo, com base não no que foi, mas no
que ele é no presente. É necessário compreender que quilombo
não está atrelado a delimitações tão objetivas como o espaço
geográfico ou conceitos jurídicos de posse, estabelecimento e
imóvel rural. Ao contrário, envolve caracteres subjetivos como
a etnia.
O problema dos territórios e do reconhecimento
de sua titularidade aosquilombolas tem origens antes
de 1755 com a crise sofrida pelos proprietários, gerando
fragmentação dos estabelecimentos algodoeiros e situações
de acamponesamento, que não foram reconhecidas pela Lei
de Terra, que menosprezou situações de ocupação e posse

146
consolidadas. Isso fez surgir um quadro permanente de
conflitos e tensões.

Nesse quadro, o processo de acamponesamento ou de formação


de uma camada de pequenos produtores familiares tende a se
expandir e consolidar. Eis o que explica esses casos de existência
autônoma nos limites das fazendas, no quintal e na própria
senzala. Dessa forma, a noção de quilombo se modificou: antes
era o que estava fora e precisava vir necessariamente para dentro
das grandes propriedades; mas, numa situação como a de hoje,
trata-se de retirar as famílias de dentro das fazendas, ou seja,
expulsá-las da terra. (ALMEIDA, 2002, p. 59)

Fazer uso da arqueologia para determinar o que é


quilombo e delimitar seu território, implica em grave erro e
deturpação de uma realidade que vem se mostrando e que com
tais técnicas certamente seria mais uma vez desvalorizada e
velada. É que escavações em buscas de evidências ou mesmo
testes de arqueologia de superfície iriam trabalhar em cima do
passado ignorando, portanto, a realidade fática atual.
Almeida (2002) defende a ideia de que com o método
etnográfico, ao contrário, é possível compreender melhor essas
comunidades e romper com o positivismo jurídico e analisar
a situação dos quilombos de forma mais crítica, ressaltando
sua autonomia, refutando a falsa ideia do imaginário jurídico
(imperial e colonial) e popular de que os quilombolas são vadios
e sem disciplina para o trabalho e quaisquer organizações.
Nesse sentido, é que se pode romper com uma
limitação discriminatória e restrita de quilombos, que remete
a uma única situação, qual seja a de remanescentes fugitivos
e distantes, quando na verdade muitas outras situações devem
ser consideradas e englobadas. Além disso, como já dito
anteriormente é importante considerar que o que deve valer
não é como os órgãos definem esse grupos/sujeitos, mas como
esses sujeitos se autodefinem, como identificam sua identidade
coletiva e quais critérios eles usam para se guiar e se organizar
politicamente. Desse modo, compreender o significado de
quilombo implica entender a construção histórica desses
sujeitos, sua lógica e estratégias de sobrevivências perante seus
antagonistas.

147
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreensão de que não há uma limitação de raças e


a atualização do conceito de etnia permite trabalhar a questão da
identidade e do sentimento de pertencimento, independente de
relações consanguíneas e com isso lidar melhor com o conflito
de territorialidade. Nesse contexto é que Almeida (2002, p. 75)
diz que: "A permanência dos laços chamados primordiais, como
laços de sangue e de raça, perde sua força de contraste diante de
uma noção de etnicidade considerada como fator contingente".
É com base nesse caráter de autodefinição e sentimento
de pertencimento que os limites de identidade e territórios
devem ser definidos, pois se torna ilegítimo e arbitrário os
classificadores oficiais que trazem para si o poder de ficar
determinando o que o "outro" é ou não é, o que define ou não
sua identidade e com base nisso permitir-lhes e ou vetar-lhes o
direito à terra.
A Constituição Federal traz bons avanços para os povos
indígenas e para as comunidades quilombolas. Esses avanços são
resultados de um processo de reivindicações ao longo do século
XX que lhes deram visibilidade em razão de uma nova crescente
de desaproriação de suas terras em prol do tal crescimento
econômico, o que lhes movimentou para lutar em defesa de suas
terras disputando assim com o Estado e colocando em evidência
as suas formas de compreender o território.
Desta forma, os autores trazidos para debater os
direitos territoriais, nos fazem refletir sobre as concepções
adotadas acerca do que é território e sobre os interesses
envolvidos na "concessão" de tais direitos, posto que os
indígenas em certa medida são vistos como selvagens, como
primitivos e por isso para o Direito tem capacidade civil
relativa, sendo pois tutelados pela FUNAI e no processo de
demarcação de terras, estas continuam sob a propriedade
da União, cabendo aos índios apenas a sua posse, o seu
usufruto, sendo portanto, mediante autorização legislativa
permitido explorar o subsolo de tais terras.

148
Quantos aos quilombos, ainda há uma resistência em
aceitá-los, pois denunciam um passado e um presente que não
queremos lembrar, uma realidade que há muito lutamos para
mascarar. Falo da realidade do racismo, a realidade que o Brasil
é um país negro e não branco como se pretende.
Nesse contexto, compreendê-los é mais difícil, ao passo
que quanto aos índios é uma situação mais "tranqüila", pois
por vezes sequer são vistos como pessoas, mas apenas como
enfeites para se mostrar aos estrangeiros, como algo parte de
nossa cultura, são verdadeiros bibelôs e por isso não se aceita
que mudem, exige-se que se mantenham tais quais os indígenas
da época do "descobrimento".
Assim, é possível afirmar que atualmente muitas
conquistas já foram realizadas, mas há ainda muita luta pela frente,
pois não obstante os direitos trazidos na Constituição Cidadã,
ainda vemos os índios como incapazes, inclusive civilmente e
as comunidades quilombolas dificilmente conseguem de fato o
título que garante a propriedade da terra. Além disso, as terras
ainda estão concentradas nas mãos de poucos, há assim ao
contrário do que querem nos fazer acreditar, "pouca terra para
muito índio".

149
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antropológicos para estudos jurídicos. Brasilia: Contra Capa/
LACED/ABA, 2012.

151
VIII

FEMINICÍDIO: A LEI 13.104/2015 COMO UM


INOVADOR JURÍDICO NA TUTELA DOS DIREITOS
DAS MULHERES

Augusto César Bezerra Chaves 1

Catarina Vilna Gomes de Oliveira Santos 2

Introdução
O artigo exposto procura exibir algumas reflexões acerca
do feminicídio no Brasil. Verifica-se no contexto histórico a
postura da figura da mulher em uma sociedade patriarcal. No
presente momento, apesar de existir formalmente uma isonomia
entre os sexos, na prática, constata-se, que a sua condição de
gênero lhe faz experimentar consequências negativas.
O dissimulado machismo da sociedade brasileira
exterioriza-se diante do índice exorbitante de todas as formas
de violência contra a mulher. A violência contra a mesma está
estabelecida entre todas as esferas sociais.
Diante desta perspectiva, o Brasil ao promulgar a Lei nº.
13.104/15 passou a integrar o rol de países da América Latina que
1 Estudante de Graduação. 6º. Semestre do Curso de Direito na FATEPI. bezerracha-
ves87@gmail.com
2 Estudante de Graduação. 7º. Semestre do Curso de Direito na FATEPI. catarinavilna@
hotmail.com

152
tipificaram o crime de feminicídio, penalizando dessa maneira,
mais severamente, aqueles que praticam o homicídio por motivo
de condição de gênero.
A proposta inicial deste trabalho é uma revisão na
bibliografia que aborda este tema, muitos autores utilizam de duas
variantes para descrever a morte de mulheres em razão de gênero,
o femicídio e o feminicídio.
Nesse sentido, é efetuada uma interpretação da Lei do
Feminicídio com a Carta Magna, Lei Maria da Penha e alguns
aspectos dos direitos humanos relevantes ao caso em pesquisa.
O objetivo deste artigo não foi exaurir todas as variantes do tipo
penal tampouco esgotar todos os assuntos sobre feminicídio
no país e sim, promover uma discussão sobre o tema no país,
reunindo posicionamentos de alguns doutrinadores.

1 MULHER E AGRESSÃO

No que se relata sobre a violência contra a mulher, o


Brasil ainda possui números exorbitantes. De acordo com um
estudo realizado por WAISELFISZ (2012), o país ocupa o 7º
lugar em um ranking de 84 países de onde mais ocorrem ho-
micídios femininos, apesar da Lei Maria da Penha ser ampla-
mente conhecida por 99 por cento das mulheres por todo país,
tal garantia não foi suficiente para reduzir a violência contra
a mulher, esta, presente em todos os segmentos da sociedade.
(Pesquisa DataSenado, 2013. p. 2).
É de conhecimento geral que a violência contra a mulher
não é fato que apareceu somente nos dias atuais. Ao falarmos em
relação de gênero estamos falando de papeis dispares exercido
por homens e mulheres ao longo dos tempos. Por muito tempo
as mulheres sofreram com a desigualdade que assolou as antigas
sociedades, tendo como exemplo, as sociedades patriarcais.
Dessa forma, Costa (2008) leciona que:

Uma organização sexual hierárquica da sociedade tão necessária


ao domínio político. Alimenta-se do domínio masculino na

153
estrutura familiar e na lógica organizacional das instituições
políticas, construídas a partir de um modelo masculino de
dominação. (COSTA, 2008, p. 02)

Nessa compreensão, são muitos os fatores que contri-


buíram ao longo dos séculos para preservar esse pensamento na
atualidade. Frise-se, a título de exemplo, a importância do mito
judaico-cristão “que é a base da nossa civilização atual” (MURA-
RO, 1972, p.70), na propagação da desigualdade entre homens e
mulheres.
Nessa orientação, aduz SILVA (2012) o trecho bíblico, no
capitulo do livro de Gêneses, o qual fala o instante em que Deus
toma conhecimento que aqueles que por ele fora criado haviam
desobedecido a sua ordem e caído em tentação. A mulher, chama-
da Eva, recebeu como sanção as dores do parto e a subjugação ao
homem, uma vez que ela influenciou a Adão agir em pecado. E o
homem como recompensa negativa deveria aprender a dominar a
natureza e através desta prover a si mesmo e sua prole.
À medida que o homem vai controlando a natureza, seu po-
der sobre a mulher vai também, na mesma proporção, aumentando
e se cerrando. O fruto da árvore do conhecimento afasta cada vez
mais o homem da natureza, e a árvore do conhecimento é também
a árvore do bem e do mal. Do bem, no que permite a continuidade
do processo humano, e do mal no sentido em que cria o poder, a
dominação como conhecemos hoje. (MURARO, 1992, p.71).
No intimo deste aspecto, devido a dependência econômi-
ca da vítima em relação ao agressor, combinado com a fragilidade
física manifesta no medo de represálias, as vítimas são impedidas
de denunciarem seus agressores, ou ao denunciarem, voltam a
conviver com o mesmo. Desse modo, em alguns casos as violên-
cias são agravadas até chegarem ao ápice, qual seja: a morte.
Essa violência física ocorre quase sempre por parceiros,
ou ex-parceiros das vítimas, no espaço doméstico, frequentemen-
te ocasionadas por ciúmes, sendo muitas vezes sob influência de
bebidas alcoólicas e dificuldade de aceitar o término da relação
(Pesquisa DataSenado, 2013. p. 4)

154
Posto que no evoluir da história a mulher procura refutar
todas as formas de preconceito, procurando refazer a concepção
para ela estabelecida social, cultural, e economicamente, todos es-
tes esforços não foram o bastante para frear os números assusta-
dores de feminicídio no país.

2 O BRASIL E A CONTENDA DA TUTELA DA


MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA

No que se refere ao tema ora exposto, salienta-se que a


Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, assegura a igualdade
entre todos sem distinção de qualquer natureza. O referido dis-
positivo garante que todos os cidadãos passem a gozar de trata-
mento isonômico evitando assim discriminações indevidas.
Nesse segmento, o legislador deve averiguar não somente
a igualdade na seara formal e sim a igualdade material quando
necessário for. Desta maneira orienta Moraes (2012):

Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis


com a Constituição Federal quando verificada a existência de
uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado.
(MORAES, 2012, p. 65).

Com o objetivo de garantir a igualdade da mulher na


sociedade e combater todas as formas de violência, o Brasil
ratificou inúmeros instrumentos de proteção ao público feminino,
por exemplo, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência Contra a Mulher – (Convenção de Belém
do Pará). A mencionada Convenção explica em seu artigo 1º:

O que é violência contra a mulher: A violência contra a


mulher constitui violação dos direitos humanos e liberdades
fundamentais e limita total ou parcialmente a observância, gozo
e exercício de tais direitos e liberdades. Também ela constitui
ofensa contra a dignidade humana e é manifestação das relações
de poder historicamente.

Salienta-se ainda que o Brasil é signatário da Convention


on the Elimination of all Forms of Discrimination Against Women

155
(CEDAW), comprometendo-se a combater a discriminação
contra a mulher e a adotar sanções para os casos. Nesses termos,
consta no Art. 2° do documento internacional mencionado:
Artigo II. Os Estados Partes condenam a discriminação contra a
mulher em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos
os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a
eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se
comprometem a: [...]
b) Adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter,
com as sanções cabíveis e que proíba toda discriminação contra
a mulher; Situações que configuram a discriminação: matar
mulher por entender que ela não pode estudar, por entender que
ela não pode dirigir, por entender que ela não pode ser diretora
de uma empresa etc. (Convention on the Elimination of all Forms
of Discrimination Against Women)

Portanto, as posições adotadas pelo Brasil através dos


tratados internacionais deverão nortear sua atuação visando à
erradicação da violência de gênero. Nesses pontos, entende-se
que a lei 13.104/2015 não discrimina em prejuízo do homem,
dando maior valor a vida da mulher.
Homens e mulheres possuem igualdade perante a lei, esta
igualdade é a formal, devendo ser mantida para assegurar direitos,
garantias e deveres a ambos. Entretanto, o que o legislador deseja
com a lei do feminicídio é reduzir historicamente a desigualdade
entre homens e mulheres, onde sempre existiu a supervalorização
da figura masculina na sociedade perante a mulher.
Nessa ótica aduz Hermann (2007):

Não se trata de considerar a mulher como, mas de reconhecer


que mulheres e homens vivenciam, na vida privada, no âmbito
doméstico e nas relações afetivas, situações de desigualdade que
propiciam o uso da violência contra as mulheres. (HERMANN,
2007, p. 84)

Contribui ainda com este entendimento Dias (2013):

A efetivação do princípio constitucional da igualdade depende


do reconhecimento das diferenças e das desigualdades históricas
entre homens e mulheres: Para pensar a cidadania, hoje, há que
se substituir o discurso da igualdade pelo discurso da diferença.
Certas discriminações são positivas, pois constituem, na
verdade, preceitos compensatórios como solução para superar as
desequiparações. (DIAS, 2013, p. 2)

156
Nesse olhar, destaca-se a busca da igualdade substancial,
devendo tratar de forma igualitária os iguais e desigualmente os
desiguais na medida e na proporção de suas desigualdades.
Como se sabe a própria Carta Magna estabelece
desigualdades em relação entre homens e mulheres em direitos
e obrigações, de forma clara Lenza (2012), destacam as seguintes
disparidades:

Condições às presidiárias para que possam permanecer com


seus filhos durante o período de amamentação (art. 5, L); b)
licença- maternidade e licença- paternidade (art. 7 XVII E XIX)
e serviço militar obrigatório ( art. 143 § § 1 e 2 ) (LENZA, 2012,
p. 974)

Pode-se ainda se ater as lições de Nunes Júnior (2002):

O constituinte tratou de proteger certos grupos que a


seu entender, mereceriam tratamento diverso. Enfocando-
os a partir de uma realidade histórica de marginalização
social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores,
cuidou de estabelecer medidas compensatórias, buscando
concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de
oportunidades como os demais indivíduos, que não sofreram
as mesmas espécies de restrições. (NUNES, 2002, p. 93)

Ora, portanto, nesse ponto de vista, resta evidente


que a vontade legislativa ao fornecer tratamento diferenciado
às mulheres na lei do feminicídio, ocorre em razão da
hipossuficiência a que foi submetido esse gênero.
A correção das discrepâncias entre as relações de
gênero no Brasil retrata um progresso no sentido de valorização
à dignidade humana, de modo que falar em isonomia material
entre os sexos é também abordar a esfera da dignidade daquele
gênero que restou historicamente alijado da devida proteção
jurídica. Nesse contexto, aduz Kont (2010) ao retratar a
elucidação do princípio da dignidade da pessoa humana na
evolução histórica, a saber:

A compreensão da dignidade suprema da pessoa humana


e de seus direitos, no curso da História, tem sido em grande
parte, fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande
surto de violência os homens recuam, horrorizados, à vista
da ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus

157
olhos; e o remorso pelas torturas, pelas mutilações em massa e
pelas explorações aviltantes faz nascer na consciência, agora,
purificada, a exigência de uma nova vida para todos. (KONT,
2010, p. 71)
Desta maneira, a proposta do autor citado vem com
uma análise passada dos eventos importantes na história como
revisitação dos equívocos enquanto pressupostos das mudanças
de comportamento humano. Assim, não precisamos aguardar o
aumento do número de mulheres vítimas para que as mudanças
paradigmáticas sejam adotadas.
Portanto, a nova lei do feminicídio não se limita apenas
a uma alteração da esfera legislativa no Brasil, cujo caráter
esteja restrito ao seio simbólico das normas jurídicas, mas
ensejando avanços inclusive no comportamento e na relação
com o gênero feminino, de modo a não só garantir direitos e
sim, inequivocamente, assegurar efetiva proteção.

3 FEMICÍDIO X FEMINICÍDIO

Percebe-se claramente que há, doutrinariamente, uma


confusão, no tocante as expressões feminicídio e femicídio, onde
ambas são geralmente utilizadas como sinônimos para a morte
de mulheres por razão do seu sexo, entretanto há uma grande
diferença entre esses termos.
Por femicídio, entende-se como uma tipologia dos crimes
contra vida em que as vítimas são mulheres, independente
de motivação especial por conta do seu gênero, diferente da
expressão feminicídio que traz um nexo entre o resultado e a
condição de gênero.
Deste modo, observa-se que a diferença terminológica
entre os termos anteriormente mencionados tendem a uma
perspectiva de cunho político, haja vista que ambas possuem,
genericamente o mesmo significado.
Nas palavras de Lagarde (apud Pasinato 2010):

Para que se dê o feminicídio, concorrem de maneira


criminal o silêncio, a omissão, a negligência e a conveniência
de autoridades encarregadas de prevenir e erradicar esses
crimes. Há feminicídio quando o Estado não dá garantias para

158
as mulheres e não cria condições de segurança para suas vidas
na comunidade, em suas casas, nos espaços de trabalho e de
lazer. Mais ainda quando as autoridades não realizam com
eficiência suas funções. Por isso o feminicídio é um crime de
Estado. (LARGADE apud PASIANTO, 2010, p. 232)
Portanto, o termo femicídio não se confunde com
feminicídio, pois enquanto femicídio é a morte de indivíduos
do sexo feminino sem distinção de qualquer condição da
causa mortis, a segunda expressão diz respeito à morte de
mulheres em razão do gênero, a morte é motivada pelo
menosprezo à condição de mulher e consideram-se também
razões políticas.

4 FEMINICÍDIO: INOVAÇÃO JURÍDICA

Homicídio qualificado é aquele cuja conduta ocorre


em algumas das situações ditadas no § 2°, artigo 121 do Código
Penal, tais circunstâncias tornam o crime mais gravoso que já é.
Há duas situações de qualificadoras nos incisos elencado
no mencionado parágrafo. De modo que a qualificadora do
crime de feminicídio é considerada subjetiva, pois é possível a
coexistência das circunstâncias privilegiadoras (§ 1º do art. 121).
As referidas qualificadoras distribuem-se da seguinte forma:

Quanto ao motivo tem-se:

a) inciso I - mediante paga ou promessa de recompensa ou


motivo torpe;
b) inciso II- motivo fútil;

Quanto aos meios empregados:

a) inciso III- Com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia,


tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa
resultar perigo comum;

Quanto ao modo de execução:

159
a) inciso IV- à traição, de emboscada , ou mediante dissimulação
ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do
ofendido.
Por consequência, levando em consideração a gravidade
do delito o legislador previu que o homicídio na forma
qualificada fosse considerado hediondo. Assim prevê o artigo 1°
da lei n. 8.072.1990:

Art. 1° [...]

I homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de


grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e
homicídio qualificado (art. 121, § 2°. I, II, III, IV, V e VI);

Neste panorama, a Lei n. 13. 104 de 2015 veio modificar


o citado dispositivo e incluir como hediondo o feminicídio.
Os crimes hediondos são tipificados pelos legisladores, não
possuindo o magistrado nenhuma discricionariedade nesta
atuação, são previstos em um rol taxativo, logo só resta ao
magistrado aplicar o tipo consoante positivado na legislação
Nesse sentindo segue as palavras de Franco (1994):
Não é hediondo o delito que se demonstre asqueroso,
repugnante, sórdido, depravado, abjeto, horroroso, horrível
por sua gravidade objetiva, ou por seu modo ou meio de
execução, ou pela finalidade que presidiu ou iluminou a ação
criminosa, ou pela adoção de qualquer outro critério válido,
mas sim aquele crime que, por um verdadeiro processo de
colagem foi rotulado pelo legislador. (FRANCO, 1994, p. 45)

. Vale salientar que por ser uma norma mais danosa só


poderá ser aplicada aos crimes cometidos após a publicação
da lei, como fala o princípio da irretroatividade da legislação
criminal, tipificado no artigo 5°, inciso XXXIX da Carta Magna.
Logo um crime ao ser taxado como hediondo significa
que todas as circunstâncias atinentes à aplicação das penalidades
ao autor do delito serão mais graves. A pena base será de 12 a 30
anos de reclusão, não se permitindo anistia, graça ou indulto.
Além disso, a progressão de regime dar-se-á somente
após o cumprimento de 2/5(dois quintos) da pena se o reeducando

160
for réu primário, 3/5 (três quintos) se for reincidente.
Nesta questão, finca-se a maior crítica a nova lei, pois
em alguns casos o feminicídio na prática já era abordado como
crime hediondo por alguns magistrados, por exemplo, ao ser
visto como homicídio qualificado por motivo fútil ou torpe.
Nesta vertente aduz Gomes (2015)
Afinal, não há como negar torpeza na ação de matar uma
mulher por discriminação de gênero (matar uma mulher porque
usa minissaia ou porque não limpou corretamente a casa ou
porque deixou queimar o feijão ou porque quer se separar ou
porque depois de separada encontrou outro namorado etc.).
Mas esse entendimento não era uniforme. Daí a pertinência
da nova lei, para dizer que todas essas situações configura
indiscutivelmente crime hediondo. Nos crimes anteriores a
10/3/15 o motivo torpe continua sendo possível. O que não se
pode é aplicar a lei nova (13.104/15) para fatos anteriores a ela
(lei nova maléfica não retroage). (GOMES, 2015, p. 02)

Embora, na prática forense ora existisse a possibilidade


de em determinadas circunstâncias o magistrado acolher a
qualificadora do artigo 121 §2° do CP, ora também, poderia
ocorrer determinadas circunstâncias em que uma mulher viesse
a ser assassinada por razões de gênero e que não fosse possível
caracterizar os requisitos para aplicação das qualificadoras em
comento, ou até mesmo, algumas qualificadoras, dependendo do
caso, poderiam ser descaracterizadas no tribunal do Júri, uma
vez que algumas delas possuem caráter subjetivo e os jurados ao
julgarem poderiam entender que esta qualificadora não existiu.
Assim, para evitar a proteção deficiente ou mesmo o não
reconhecimento de quaisquer das qualificadoras já existentes
que influenciasse em uma consequência mais favorável ao
autor do fato criminoso, agora o feminicídio é formalmente
hediondo, logo, o entendimento deverá ser uniforme em todos
os tribunais do país.
Além disso, a intenção desta tipificação é tirar
este crime da invisibilidade, pois embora seja um crime
existente, não era conhecido por este nome. O feminicídio
saíra da generalidade do campo do homicídio, para ter
um campo específico no boletim de ocorrência.

161
Contribui com este pensamento, Sagot (2002):

Embora a persecução penal de quem tenha tirado a vida de


uma mulher por razões de gênero possa ser alcançada pela
norma jurídica neutra do homicídio, não é possível visualizar
o contexto em que essas mortes têm lugar, tampouco o caráter
social e generalizado da violência baseada no gênero, já que
são registradas simplesmente como homicídios, tendentes a
ser tratadas como assunto pessoal ou privado, resultantes de
problemas passionais, cujos agressores são retratados como
de ou quando, na realidade, há um caráter profundamente
social e político, resultado de relações de poder entre homens
e mulheres na sociedade (SAGOT, 2002, p. 45)

Portanto, além de um caráter simbólico, relevante para


a demarcação de espaço social, com próprio reconhecimento
jurídico da hediondez implica em suprir possíveis lacunas para
um julgamento e adequação típico-penal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não é univocamente a tipificação do feminicídio


que irá diminuir os casos no país, assim torna-se relevante
uma modificação comportamental na sociedade nacional.
O homicídio em nenhuma das suas variantes deveria
ser aceito como natural pela sociedade, a vida humana cada
dia tem o seu valor mitigado, e espantosamente, deveria ser
o oposto, sendo a vida humana possui valor fundamental.
Logo, o óbito de mulheres não pode ser banalizado e
apreciado apenas como valores estatísticos, a vida humana
é extremamente valiosa e apresenta igual valor entre
qualquer ser da espécie humana, independente de sexo,
raça ou religião. Malgrado homens e mulheres possuam
igualdade perante a lei, é inegável que ambos assumirão
papeis sociais diferentes no campo social.
Conclui-se, assim, que a Lei n. 13.104 de 9 de
março de 2015 é um avanço para garantias dos direitos das
mulheres e que toda e qualquer medida que venha para
prevenir e diminuir formas de violência contra a mulher
deverá ser vista como uma vitória feminina.

162
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Mulheres no Brasil, São Paulo, Instituto Sangari, 2012.

164
IX

A FEDERAÇÃO É A UNIDADE : JÚLIO DE CASTILHOS 1

E A DEFESA DO ULTRAFEDERALISMO
TRIBUTÁRIO NA PRIMEIRA CONSTITUINTE
REPUBLICANA

Ana Luísa Melo Nogueira 2

Introdução
Com o objetivo de avançar no projeto institucional de
um estado de direito, o Governo Provisório designou o dia 15 de
setembro de 1890 para eleição geral da assembleia constituinte,
que seria instalada no aniversário do golpe de proclamação da
república (ANDRADE, BONAVIDES, 1988). Júlio de Castilhos fora
eleito deputado pelo Rio Grande do Sul e ao longo dos debates
constituintes firmou sua posição de líder da bancada gaúcha, ca-
racterizada pelo consenso entre seus membros e pela influência
positivista. A principal atuação de Castilhos girou em torno da
defesa do federalismo radical, buscando entregar uma maior au-

1 Júlio de Castilhos costumava se referir a sua proposta de federalismo simplesmente


como federalismo ou real federalismo. Por outro lado, parlamentares da oposição, historia-
dores e juristas denominavam a proposta do gaúcho como ultrafederalismo ou federalismo
radical. Ao longo do texto serão usadas essas quatro denominações como sinônimas.
2 Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí e pesquisadora do grupo de
pesquisa República-UFPI.

165
tonomia aos estados e demonstrando clara oposição ao projeto
governamental, que tendia mais para um federalismo centrípeto:
o poder central administraria os problemas e garantiria o pacto
federativo (ANDRADE, BONAVIDES, 1988).
Um dos pontos de maior preocupação para o parlamentar
foi o federalismo tributário, defendendo a ideia que uma solução
verdadeiramente federalista seria transferir aos estados-membros
serviços que lhes fossem próprios e proporcionalmente ampliar as
competências tributárias desses, objetivando aumentar suas fon-
tes de rendas (RODRIGUEZ, 2000, p.57). A proposta de Castilhos
recebeu muitas críticas, principalmente dos representantes de es-
tados que dependiam ou eram lembrados pelas políticas da União.
Uma proposta vencida perdida em uma história constitu-
cional de quase 195 anos pode parecer algo sem importância para
as análises contemporâneas, mas as ideias de Castilhos na primei-
ra constituinte republicana e a resistência que elas enfrentaram
ajuda a entender a tendência centralizadora que o federalismo
brasileiro passou a ter e que tentativas de reajustes posteriores
foram e são ineficazes, ante a situação de dependência dos entes
infrafederais em relação ao governo central, que se consolidou ao
longo da história, criando estados sem capacidade para se gover-
nar, como previu Castilhos.

1 A IDEOLOGIA DE JÚLIO DE CASTILHOS NO FINAL


DO IMPÉRIO

Nas últimas décadas do século XIX, período de gran-


des mudanças para o Brasil, a doutrina positivista chegou
como um alicerce progressista, um suporte teórico a ser usa-
da pelos intelectuais inconformados com as estruturas semi-
feudal e com a política estática que marcavam o país.
Boris Fausto (2000) afirma não entender o porquê do
Rio Grande do Sul ser o maior foco do positivismo na transi-
ção para a república, mas o certo é que o partido republica-

166
no usava essa doutrina como alicerce ideológico. Provavel-
mente, a melhor explicação é a influência militar na região
somado à necessidade de uma doutrina para torna-los forte
e coeso. Júlio de Castilhos, como líder do partido, era um
adepto do positivismo comteano, mesmo não se declarando
um positivista ortodoxo (FRANCO, 1967, p. 13), as princi-
pais concepções politicas dessa corrente estavam presentes
em artigos, manifestos e discursos assinados pelo gaúcho.
O positivismo de August Comte, visto pela ótica di-
nâmica da sociedade, utilizava a ideia da ordem e progresso,
como uma forma de enfrentar os estados liberais. Comte en-
tendia que a sociedade estava em constante evolução e esse
desenvolvimento necessitava da ordem e da preservação de
elementos estáticos da sociedade, como a forma que a fa-
mília era organizada pelo filósofo (SIMON, 1986). É nesse
contexto que Comte fala sobre a sua ideia de “libertar o Oci-
dente de uma democracia anárquica e de uma aristocracia
retrógrada” (COMTE, 1978).
Dessa forma, Maria Célia Simon (1986, p.81) explica
que o pensamento comteano deixava de lado as ideias de
monarquia, soberania popular e sufrágio universal, enten-
dendo que o desenvolvimento da humanidade viria com a
República, ou melhor, com uma ditadura republicana, com
bases científicas, garantindo a ordem social.
A influência da doutrina de August Comte na ideo-
logia e na política castilhista é notória, principalmente, em
seus escritos que denunciavam os aspectos imediatistas e
oportunistas marcantes da política brasileira:
Neste país em que o cesarismo constitucional tem produzido
todos os seus funestos efeitos, a política não é meio racional de
promover o progresso como um desenvolvimento da ordem, de
palpar as opiniões gerais dominantes e suprimir os obstáculos
para facilitar a sua realização integral, não é o fecundo agente,
incumbido da direção social, que ele efetua - eliminando
paulatinamente o que existe de antagônico com o espírito do
tempo, para dar lugar à transformação natural, determinada
pelas leis fundamentais da sociedade. Entre nós a política,

167
essencialmente empírica, deixa absolutamente de desempenhar
aquelas funções, e desenvolve-se na independência completa da
moral. (CASTILHOS, 2003, p15)
Castilhos apresentava o positivismo como o grande
movimento filosófico que ofereceu as bases da sociologia,
assentando as leis fundamentais que regem os fenômenos
sociais (CASTILHOS, 2003, p.14). O político gaúcho acredi-
tava alcançar, por meio de tal corrente, uma política racio-
nal, metódica, científica, superando, principalmente, meios
imorais de perpetuação no poder.
Em relação ao federalismo, uma de suas principais
bandeiras, Castilhos era considerado um defensor do ul-
trafederalismo, mas não achava prudente, em princípio, o
separatismo. Ele entendia que para manter a união entre
as províncias era necessário garantir suas liberdades e au-
tonomias, respeitando as variedades a fim de garantir uma
unidade real (CASTILHOS, 2003, p.52):

Entregues a si mesmas, livres das extorsões do centro, obrigadas


apenas à contribuição indispensável aos serviços de carácter
essencialmente nacional, igualmente livres na gestão dos seus
interesses, sem dependências e ligações a um poder estranho, as
províncias se desenvolverão de acordo com as suas respectivas
forças econômicas, mais prosperando as que forem mais
conscientes das responsabilidades que o gozo da liberdade impõe
e mais favorecidas ou pelo gênio dos seus habitantes ou pelas suas
circunstâncias naturais. Como um efeito correlato, a harmonia se
restabelecerá entre os organismos provinciais e a união nacional
será fecundamente cimentada. (CASTILHOS, 2003, p.41)

Júlio de Castilhos fazia alertas em relação às surpresas


que o centralismo podia gerar, explicando que no governo centra-
lizador, o centro estabelece certas preferências, deixando de lado
outras províncias aborrecidas; e com a grande repercussão da
propaganda separatista, era necessário ter cautela. A saída para
esse possível problema seria, portanto, a descentralização como
um meio de afastar o sentimento separatista e fortalecer o senti-
mento nacional. Por outro lado, caso a centralização persistisse,
o desmembramento seria uma consequência inevitável. Mas para

168
alcançar essa mudança, era necessário que ocorresse no seio da
República; dentro do império, a ideia de descentralização não pas-
saria de algo ilusório (CASTILHOS, 2003, p.53).
2 EM DEFESA DE UM ULTRAFEDERALISMO NA
CONSTITUINTE REPUBLICANA

O congresso com poderes constituintes desempe-


nhou suas funções com extraordinária rapidez, breves três
meses foram suficientes para a elaboração da nova Consti-
tuição. Isso porque o Governo Provisório já enviará um pro-
jeto base (Decreto nº 914 A, 1890), elaborado pela Comissão
dos 5 e revisado por Ruy Barbosa; tamanha rapidez também
pode ser atribuída a homogeneidade teórica-institucional da
constituinte, fato que gerou calorosas discussões apenas em
torno de interesses inter-regionais, tendo os maiores deba-
tes entre parlamentares que defendiam um federalismo mais
radical e os defensores do federalismo mitigado proposto
pelo projeto governamental (FRANCO, 1967, p.88).
Desde o início dos trabalhos da constituinte, Júlio de
Castilhos demonstrava sua orientação ultrafederalista, em
consonância com os anseios da bancada de seu estado. Acre-
ditando que só seria possível um federalismo administrativo
quando os estados possuíssem autonomia financeira, Casti-
lhos defendeu um federalismo radical na questão tributária,
que fora o ponto que mais exigiu do parlamentar, proferindo
os mais longos discursos sobre a questão e rebatendo quais-
quer críticas.

3 ATUAÇÃO NA COMISSÃO DOS 21 E AS CRÍTICAS


AOS IMPOSTOS CUMULATIVOS

Na data de abertura da constituinte, a população e a


imprensa clamavam por uma reconstitucionalização do país.

169
Durante a atividade do Congresso, não foram poucas as críticas
vindas de jornais da época. O país reclamava, sob orientação de
membros do governo provisório como Rui Barbosa e Quitino
Bocaiúvas, da morosidade nas votações. Nesse contexto agitado,
o Congresso com poderes constituintes optou por eleger uma
comissão, formada por um membro de cada estado, que analisaria
o projeto apresentado pelo governo provisório- a Comissão dos 21
(ANDRADE, BONAVIDES, 1988).
A composição de tal grupo seguia um critério federativo
e geográfico, não se preocupando em escolher conhecedores das
matérias constitucionais, sendo esta uma estratégia arriscada
para o desempenho da função constituinte. Os 21 membros
não formaram um grupo homogêneo e as diversidades foram
inúmeras, mas conseguiram elaborar o primeiro parecer em duas
semanas, que foi apresentado no Congresso pelo relator Júlio de
Castilhos (ANDRADE, BONAVIDES, 1988).
Apesar de ter sido o relator do parecer da Comissão,
Castilhos não deixou de ler seu voto, se empenhando em explicar
melhor suas emendas que foram rejeitadas.
A principal questão abordada por ele foi a da
descriminação das rendas no sistema republicano federativo.
Júlio de Castilhos explicou que o sistema federativo é responsável
por garantir a autonomia da administração local, e ao mesmo
tempo, os interesses nacionais. Para conseguir essa variedade sem
prejudicar a concentração política, ele ressaltou a importância de
garantir a autonomia, passando para os estados os serviços que
são de interesse de cada um, e para efetivar essa autonomia seria
necessária uma igual descentralização das rendas, a fim de não
pôr o sistema federativo em risco (ANAIS, Vol.I, 1890, p.363-364).
Baseado nessas ideias, ele criticou o projeto apresentado
pelo governo (Decreto nº914 A, 1890), na medida em que este
trazia o sistema cumulativo (art.12) de tributos entre estados e
união, considerando-o incompatível com o sistema federativo
(ANAIS, Vol.I, 1890, p.364). Castilhos considerava o projeto
do governo uma continuidade do que vigorava com o Império,
além disso, ele ressaltava que as características políticas

170
e geográficas do país clamavam por efetivas mudanças
administrativas e, consequentemente, tributárias a fim de que
o centralismo fosse realmente superado. Com essa base, é que
ele propôs a seguinte emenda:
Pensando assim, ofereci um plano substitutivo que consiste
em determinar expressamente a competência da União e dos
estados quanto à tributação. Segundo esse plano, é da exclusiva
competência dos estados decretar qualquer imposto que não
esteja consignado no art.6º e que contraria às disposições
da Constituição. Evita-se assim a consequência funesta que
decorrerá do regime de impostos duplos estatuídos no art.12, de
acordo com as lições da longa e desastrosa experiência que nos
legaram os desastres imperiais. Prevendo a possível insuficiência
de produtos dos impostos do art.6º, que, aliais, constitui as mais
abundantes fontes de receitas, propus ao art.12 uma emenda que
especifica os meios que lançará mão a União, quer sobrevenha
caso extraordinário de calamidade pública, quer surjam
necessidades determinadas pelo serviço da dívida nacional.
(ANAIS, Vol.I, 1890, p.364)

Em suma, a proposta do parlamentar gaúcho era que


fosse elencado os tributos que ficaria a cargo da união e todo o
resto seria arrecadado pelos estados. Caso a receita da união não
fosse suficiente, ficaria estabelecido um sistema de quotas a ser
cobrado dos estados, a fim de cobrir o déficit orçamentário.
Ciente que a questão da descriminação das rendas ainda
não estava organizada em consonância com o sistema federalista,
Castilhos pediu que o assunto voltasse a ser debatido nas sessões
subsequentes da Constituinte.

3.2 O discurso contra a repartição de rendas pro-


posta pelo projeto do Governo Provisório

Em um artigo de 1886 - Recriminação do Centro - Júlio de


Castilhos já abordara a questão do centralismo fiscal nas mesmas
linhas que viria a defender ao longo das sessões da constituinte
republicana. Nesse trabalho, ele explicou que em um estado
centralizador, como era o Brasil imperial, o centro era cada vez
mais dependente de verbas das províncias e que nesse intercâmbio
de receitas nasciam desigualdades entre as províncias, uma vez

171
que sempre havia aquelas que eram sustentadas pelo trabalho de
outras:
O que o representante do centro deverá dizer, mas não disse, é
que na verdade há províncias que são beneficiadas com prejuízo
de outras e com grande ônus para a receita geral, mas essas de
ordinário não são as que apresentam uma maior renda, nem as
que concorrem para o império com as quotas mais avultadas. Essa
desigualdade iníqua, essas preferências odiosas, essas predileções
irritantes mostram um dos mais desoladores aspectos do regime
centralista, que em toda parte e em todos os tempos sempre
foi e há de ser assim (...).As próprias províncias por essa forma
preferidas habituam-se às preferências protetoras e a esperar
tudo da tutela central, que assim vai estiolando mais e mais o
já mirrado espírito de iniciativa local, como se já não bastassem
as restrições opressoras do regime para impedir e sufocar a
expansão da atividade livre e desembaraçada (...). Esse caráter
torna-se ainda mais visível com relação às províncias que são
excluídas das estufas do centro e que sentem-se positivamente
extorquidas na sua renda e sugadas na sua vitalidade própria a
bem do ostensivo espírito de dissipação do império e em benéfico
de outras cuja prosperidade é artificialmente fomentada pela
tutela central. (CASTILHOS, 2003, p.39)
.
Castilhos defendia que dessa assimetria de contribuição
decorria duas consequências: primeiro, as províncias prediletas
se acostumavam com a tutela central e o crescimento local ia
sendo inibido; uma segunda e mais perigosa consequência era
o surgimento de revolta em províncias que se consideravam
injustiçadas, colocando em risco a unidade nacional. Por fim, ele
alertava que a falta de liberdade para governar e administrar as
províncias também eram causas da miséria e dos problemas locais,
uma vez que quem as governavam eram emissários do poder
central (CASTILHOS, 2003, p.39-41) e não estavam preocupados
com as necessidades da população da região governada, mas com
interesse de quem os colocava e os tirava do poder.
Com o intuito de resolver esse cenário, Júlio de Castilhos
voltou a defender, nas sessões da constituinte, sua emenda que
visava alterar a questão das competências tributárias apresentadas
pelo projeto governamental.
No início de sua manifestação, ele enfatizou a necessidade
de montar uma federação real, a fim de garantir a unidade política

172
em meio a pluralidade de costumes e interesses provinciais.
(ANAIS, Vol.I, 1890, p.568). Além disso, Júlio alertava para a
necessidade de uma constitucionalização da federação, com
o intuito de evitar os tumultos imperiais. Na sequência, ele foi
didático explicando que para que houvesse um efetivo federalismo,
era essencial que a união devolvesse para os estados os serviços
que eram do interesse deles, juntamente com as suas rendas.
Nesse ponto, ele apresenta o seguinte questionamento:
como classificar as rendas para saber o que deve ficar a cargo
da união e o que deve ficar para os estados? A solução para
tal problema poderia vir de três formas. Na primeira, a união
calcularia suas despesas e os estados teriam que cobri-las; tal
medida ele julgava um tanto inadequada para um país que
acabava de derrubar um regime centralizador e que não preparará
as províncias para sustentar todos os encargos da união. Uma
segunda solução seria que estados e união buscassem suas receitas
nas mesmas fontes e a terceira seria elencar os tributos da união e
deixar os remanescentes para os estados.
O projeto apresentado pelo governo (Decreto nº 914 A,
1890) trazia uma proposta para tal questão. O artigo 6º permitia
à união tributar sobre importação, taxas de selos e contribuições
postais e telegráficas, além de regular as alfândegas e gerenciar
a entrada e saída de navios. O artigo 8º, por sua vez, trazia
a competência tributária dos estados, permitindo que esses
decretassem impostos sobre exportação, propriedade territorial
e transmissão de propriedade. Por fim, o artigo 12 permitia que
estados e união criassem novos impostos, cumulativos ou não,
incorrendo no sistema imperial da bitributação, em que dois entes
da federação tributariam sobre um mesmo fato gerador.
Castilhos interpretou que o projeto governamental,
nos seus artigos 6º, 8º e 12, optou por uma mescla das duas
últimas soluções, podendo gerar um sistema anárquico
e anti-federalista (ANAIS, Vol.I, 1890, p.570). Impostos
cumulativos seriam um retrocesso ao regime imperial, que

173
poderia vir a ser motivo de grande agitação federalista,
tendo em vista a excessiva carga tributária que teria que ser
suportada pelo povo. Garantir aos estados a autonomia de
seus serviços sem lhes garantir renda seria, para Castilhos,
a consagração de uma "liberdade da miséria" (ANAIS, Vol.I,
1890, p.576).
Júlio de Castilhos demonstrou que as fontes de receitas
atribuídas à união no art.6º correspondiam às mais rentáveis,
sendo suficientes para cobrir as suas despesas. No entanto, ele
apresentou a opção de um sistema de quotas que, em casos
extremos, seria facultado à união tributar das antigas províncias:

Pode, em virtude de uma guerra ou em virtude de uma


calamidade, como a peste, a seca, precisar o Governo Federal de
receita extraordinária para ocorrer a despesas extraordinárias.
Pois bem: nessa eventualidade, em vez de deixar a Constituinte
à União a faculdade ampla de tributar o que ela entender
conveniente nos estados, perturbando a economia e invadindo as
atribuições destes, deve a União ficar com a faculdade de tributar
as rendas dos estados de acordo com as condições econômicas
de cada um, quero dizer: deve tributar uniformemente, mas cada
Estado pagará segundo suas forças econômicas. (ANAIS, Vol.I,
1890, p.574)

O parlamentar gaúcho esclareceu que esse sistema


apresentado não deixaria a união na dependência dos estados
pois as fontes mais rentáveis ficariam para o centro e as residuais
para os estados-membros. Apenas em casos excepcionais de
insuficiência da renda da união é que seria cobrado as quotas dos
estados, com o objetivo de não cair no anárquico artigo 12, que
autorizava os tributos duplos e também, buscando não inibir o
crescimento local, não incidindo sobre as atividades econômica,
mas sim sobre a própria receita do estado.
Uma outra dificuldade que Castilhos teve que superar
nos debates da assembleia ao defender sua emenda foi em relação
a insubordinação dos estados, ou melhor, o que aconteceria se
alguma unidade da federação se recusasse a contribuir com o
déficit da união? Para Júlio de Castilhos, a solução era clara: "A

174
intervenção eficaz do governo da união" (ANAIS, Vol.I, 1890,
p.577). No entanto, ele não aprofundou a explicação sobre essa
solução e como nos demais momentos, a intervenção era sempre a
solução, mas os constituintes não chegavam a aprofundar o tema,
que se tornou em um instituto mal utilizado durante a República
Velha.
Por fim, o parlamentar gaúcho recebeu algumas objeções
partindo da ideia que sua emenda deixaria a União desamparada
e ainda sofrendo o risco dos estados não conseguirem suprir as
necessidades extraordinárias do governo federal. Nesse empasse,
Júlio ofereceu uma solução que ele acreditava ser a mais federativa
possível, que consistia em realizar operações de créditos (contrair
empréstimos), ficando os serviços de juros e amortização a cargo
dos estados.
Com o objetivo claro de favorecer os estados-membros
(RODRIGUEZ, 2000, p.57), Castilhos não obteve sucesso e sua
emenda foi rejeitada, mas mesmo assim, ainda conseguiu ganhar
um amplo apoio na assembleia constituinte, além de fomentar o
debate sobre o tema

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão da repartição de competência tributária é


assunto materialmente constitucional, sendo basicamente o que
determina a receita de cada ente da federação, daí o empenho
da constituinte republicana em discutir o assunto, ainda mais
tendo como função instalar e constitucionalizar o instituto do
federalismo no Brasil.
Acreditando estar diante de um sistema tributário
incompatível com o modelo federativo, Júlio de Castilhos
apresentou uma emenda, por duas vezes, que buscava a técnica
de repartição de competências que enumerava os impostos da
união, deixando os remanescentes para os estados-membros.

175
O objetivo era garantir uma real autonomia para que esses
pudessem sustentar seus serviços, mas ao mesmo tempo
garantiria à união os tributos mais rentáveis e o amparo dos
estados em caso de desfalques nas contas federais.
A emenda em questão buscavam efetivar um federalismo
real, como sugeria o constituinte, mas foi bastante criticada
por desamparar a união, sendo a ideia de quotas suplementares
de difícil execução (FRANCO, 1967, p.91). Ruy Barbosa foi um
grande crítico da proposta de Castilhos, alegando que a emenda
invertia as posições dos estados e da união, deixando essa a
mercê da boa vontade daqueles e desmoralizada para pedir
empréstimos no exterior (BARBOSA, 1946, p.175). Diante dessas
críticas, a emenda saiu derrotada mas o parlamentar conseguiu o
apoio de boa parte das bancadas de Pernambuco, Santa Catarina,
Amazonas, Maranhão, Rio Grande do Norte e Goiás; estados que
eram excluídos do favoritismo da União e aspiravam por mais
autonomia. Por outro lado, representantes da Bahia, Capital
Federal, São Paulo e Minas Gerais foram contrários à proposta de
Júlio de Castilhos.
O apoio de paulistas e mineiros à União é curioso mas pode
ser explicado. São Paulo se apresentava como um Estado autônomo,
forte, com uma boa força pública e uma economia pujante. Mas
como a união era responsável pelos rumos financeiros do país, o
estado de São Paulo não poderia ter tamanha autonomia a ponto
de ser absoluto. Os paulistas necessitavam de apoio do governo
federal no plano de valorização do café (FAUSTO, 2000). Os
mineiros, por sua vez, não se voltaram para apenas uma atividade,
dessa forma, não conseguiram se tornar uma potência econômica,
dependiam de investimentos federais. Diante disso, Minas se
estabeleceu como um estado rico em políticos profissionais,
esses tinham expressiva participação na câmara dos deputados,
controlavam a entrada nos cargos federais e conseguiam muitos
investimentos para a região (FAUSTO, 2000).
Diante do exposto, nota-se que a proposta de Castilhos
era descentralizadora e tentava garantir a efetiva autonomia aos

176
estados-membros. No entanto, o receio dos parlamentares que
fizeram oposição apoiava-se na tradição centralizadora, que criara
estados incapazes de se autogovernarem, gerirem suas financias e
seus serviços, chegando a pôr em risco a unidade nacional.
Após a instalação de um federalismo fiscal centralizador,
o Brasil passou por sucessivos momentos de maior centralização
e maior descentralização, a depender do regime político vigente
(SOUZA, 2015, p.4). O período militar, por exemplo, foi o de maior
centralização. As reformas de 1965/1967 (Emenda nº 18 de 1965)
reduziram a autonomia dos estados e municípios para instituir
tributos e apesar de vedar a bitributação, como a proposta de
Castilhos, por outro lado, garantia os impostos residuais à união
e estados e municípios receberiam repasses da receita federal,
que tinha fontes mais rentáveis. Como sintetiza Dornelles
(2008, p.06), a filosofia da reforma militar era a "centralização
da competência tributária com redistribuição do produto da
arrecadação", proposta que foi aos poucos afetada e gerou a
necessidade de reformas.
A constituição de 1988, por sua vez, inaugurou um
período de descentralização fiscal, os parlamentares acharam que
descentralizar as receitas tributárias seria uma opção adequada
para devolver o estado de solvência dos estados e municípios. Dessa
forma, na tentativa de aumentar a autonomia fiscal, terminou
por criar um "arranjo federativo no plano fiscal complexo que
exacerbou mais à frente os conflitos e as tensões entre seus atores
principais" (SOUZA, 2015, p.05), criando um sistema tributário
paralelo com contribuições sobre a folha de salário, o faturamento
e o lucro para a seguridade social, para o ensino fundamental, para
o apoio ao trabalhador e para entidades vinculadas ao sistema
sindical. Esse sistema engrenado (DORNELLES, 2008), nada
mais foi que uma reação à descentralização proposta, gerando
um retrocesso e enfraquecendo o pacto federativo, que cada vez
menos consegue sustentar os períodos de descentralização.
Por certo, que a aplicabilidade da emenda de Castilhos
hoje e seus efeitos positivos podem ser questionados, pois

177
como o próprio movimento pendular do nosso federalismo
fiscal demonstra, as tentativas de descentralização foram e são
frustradas, seguidas por períodos de centralização. No entanto,
conhecer essa proposta e os debates em torno dela nos leva a
compreender melhor as origens do federalismo brasileiro,
como a centralização no momento de instalação do instituto
(genuinamente marcado pela descentralização) foi uma forma
disfarçada de manter a centralização do Império. Se muitos
institutos constitucionais brasileiros vêm conseguindo evoluir,
a federação não consegue avançar e cada tentativa de garantir
maior autonomia aos estados é seguida de medidas mais
centralizadoras.

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REFERÊNCIAS

ANAIS. 1924. Annaes do Congresso Constituinte da República-1890.


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