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1ª edição
Teresina - Piauí
2017
a
1ª edição
Teresina - Piauí
2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
Reitor: Prof. Dr. José Arimatéia Dantas Lopes
Vice-Reitora: Prof.ª Dr.ª Nadir do Nascimento Nogueira
Superintendente de Comunicação Social: Prof.ª Dr.ª Jacqueline Lima Dourado
CONSELHO EDITORIAL
Ricardo Alaggio Ribeiro (presidente)
Acácio Salvador Veras e Silva
Antonio Fonseca dos Santos Neto
Cláudia Simone de Oliveira Andrade
Solimar Oliveira Lima
Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz
Viriato Campelo
Banca Examinadora
Profª Ms. Christianne Matos de Paiva
Profª Dra. Maria Sueli Rodrigues de Sousa
Profª Ms. Natasha Karenina de Sousa Rego
Prof. Dr. Samuel Pontes do Nascimento
FICHA CATALOGRÁFICA
Serviço de Processamento Técnico da Universidade Federal do Piauí
Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco
ISBN 978-85-509-0257-9
Com amor,
Andreia Marreiro Barbosa
Teresina, maio de 2017.
I
1 Introdução
Desde a conquista ao direito de sufrágio, da capacidade
civil plena no século passado até a promulgação da Constituição
Cidadã de 1988, a mulher brasileira ocupou importantes espaços
na esfera pública e privada. Apesar dos avanços, ainda são notó-
rios os traços de uma sociedade fundada no patriarcalismo que
atribui prerrogativas às mulheres em condições inferiores aos ho-
mens, tendo vedado por muito tempo o acesso à educação, a livre
manifestação de vontade, a possiblidade de exercer um ofício ou
mesmo o direito à sucessão. É visível a desvalorização do trabalho
da mulher que ainda recebe remuneração menor que o trabalha-
dor do sexo masculino no exercício do mesmo ofício. São maioria
1 Advogada, Bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. E-mail: samilleli-
ma@outlook.com.
2 Professora da Universidade Estatual do Piauí. Doutora em Educação pela Universidade do
Rio do Sinos. E-mail: lucineidebarrosmedeiros@yahoo.com.br.
15
entre o número de analfabetos e as principais responsáveis pela
educação dos filhos e trabalhos domésticos, necessitando conci-
liar as rotinas profissionais com os cuidados com a família e pos-
suem inexpressiva representação nas instâncias formais de poder.
Muito se tem debatido sobre a função da mulher na atual
sociedade e das dificuldades enfrentadas e da importância do sexo
feminino preencher cada vez mais os espaços predominantemente
masculinos. As ações afirmativas surgiram como possiblidades de
inclusão da mulher no meio político formal. Tais medidas foram
adotadas ainda na década de 1970 por países europeus e entraram
em vigência no Brasil duas décadas depois. Trouxeram consigo
debates e posicionamentos antagônicos, dentre os que suscitam
a questão do mérito, da inconstitucionalidade, da imperiosidade
da adoção das cotas eleitorais para inserir de modo mais incisivo
a mulher nos diversos cargos eletivos, uma vez que não se pode
considerar como estado democrático aquele no qual uma parcela
significativa da população não pode influir nos rumos da sociedade.
Buscou-se analisar a problemática do distanciamento
da mulher brasileira e piauiense do campo político e a impor-
tância em assegurar tal participação como forma de se garan-
tir a concretização do princípio constitucional da isonomia,
da democracia e da cidadania. E, sob a ótica das ações de dis-
criminação positiva adotadas no Brasil com a promulgação
das leis 9.096/1995, 9.100/1995, 9.504/1997 e 12.034/2009, ve-
rificar as mudanças ocorridas ao longo de 20 (vinte) anos, se
tais medidas tem sido eficazes e tem cumprido o objetivo para
qual foram criadas, qual seja, a inserção feminina na política.
Para tanto, comparou-se os candidatos e eleitos em razão
do sexo, no período entre 1996 e 2016, para as câmaras legislativas
pátrias, com enfoque na Assembleia Legislativa do Piauí. Coleta-
ram-se informações sobre ações afirmativas e a representação fe-
minina na política em diferentes fontes bibliográficas, com desta-
que aos autores Araújo, Miguel, Pinheiro, Varikas, dentre outros.
A pesquisa quantitativa de base documental foi realizada no ban-
co de dados virtual do Tribunal Superior Eleitoral. Os resultados
obtidos foram organizados em tabelas, utilizando-se de técnica de
16
percentagem. A escolha desse intervalo temporal foi de extrema
importância na análise do impacto e da eficácia das cotas na inser-
ção da mulher na política.
17
desempenho (apenas 8,6% das mulheres ocupando a Câmara dos
Deputados e 16% no Senado Federal.
As explicações suscitadas ao problema são diver-
sas. Miguel e Biroli6 distinguiram três vertentes explicativas. Na
primeira, enfatiza-se o caráter patriarcal subjacente às instituições
políticas liberais. Na segunda, os padrões culturais e de socialização
que constroem o político como espaço masculino e inibem o
surgimento da "ambição política" entre as mulheres. A última
versa sobre os constrangimentos estruturais à participação política
das mulheres que possuem, em regra, restrito acesso a recursos
econômicos e menos tempo livre que os homens. A discussão
acerca do patriarcalismo envolve a histórica diferenciação dos
papéis de gêneros na sociedade. Competia às mulheres o trato
da casa e da família, o cuidado e a educação dos filhos, enquanto
aos homens a vida pública, o trabalho externo e a manutenção
econômica da família. Quando crianças estavam sob o mando
do genitor e após o casamento subordinavam-se aos maridos. O
espaço privado continua na maioria dos lares brasileiros sob a
responsabilidade da mulher que tem a difícil tarefa de conciliar
a vida pública com a vida privada, o que dificulta a ascensão a
cargos de decisão e chefia, que ainda percebem rendimentos
inferiores aos dos homens no exercício de atividades similares7.
Na década de 1930, permitiu-se às mulheres o exercício de
um ofício, vedando-se, contudo, o trabalho nas áreas consideradas
masculinas. A Constituição indicou que os cargos das áreas de
ensino e saúde fossem ocupados necessariamente por mulheres
(art. 121, § 1º, d e § 3º da Constituição de 1934)8. Construiu-se uma
imagem estereotipada da mulher sempre meiga, dócil, emocional,
cuidadosa: a elas estariam reservadas as profissões consideradas
femininas, como professora, enfermeira e secretária, não se in-
cluindo nesse grupo a política9.
6 MIGUEL E BIROLI, 2010. p. 655-656.
7 PINHEIRO, 2007. p. 80; TABAK, 1982. p. 64, PINTO, 2001. p. 103; BLAY, 2001. p. 85.
8 BRASIL, 1934.
18
Varikas10 afirma que o sistema político é naturalmente excluden-
te, assim a sub-representação feminina é uma constante desde a
obtenção do direito de sufrágio. Bellozo11 entende que o problema
não se trata exclusão por distanciamento, mas sim que essa política
é pouco permeável às mulheres. Outros autores suscitam dificul-
dades e até a resistência partidária em inserir a mulher na disputa
eleitoral, preferindo investir em seus candidatos, em detrimento
de uma candidata com chances de vitória12. Araújo13 pontua que
não há um grande universo de mulheres dispostas a concorrer
a cargos eletivos, o que ocorre não porque sejam mais apáticas
que os homens e sim em razão das trajetórias sociais e a situação
estrutural frente às relações de gênero, aliadas às condições em
que a política institucional e a competição eleitoral operam no
país, não lhes oferecem um cenário favorável ou sequer animador.
Alguns estudiosos14 entendem que, em regra, os
recursos são destinados aos concorrentes com maior chance
de elegibilidade, não se ajustando nesse perfil, a maioria das
candidatas. Logo, a falta de capital social dos grupos dominados
(ou mais frágeis) é um dos mais evidentes limites à participação
na política o que impossibilita uma disputa igualitária e real aos
cargos eletivos. Todavia, Araújo15 salienta que a análise da inserção
da mulher na política não pode estar centrada na manifestação da
chamada resistência masculino-partidária, pois "a ênfase na ideia
de resistência ou preconceito tende a gerar certa subestimação
dos fatores institucionais relacionados com o sistema político-
eleitoral, bem como com a capacidade de avaliação das mulheres".
Para a aludida autora, o espaço político foi estruturado com
base nas vivências das práticas masculinas. É nesse contexto
que permanece e é reproduzido. Contudo, as mulheres também
10 VARIKAS, 1996. p. 66.
19
são agentes desse quadro, pois podem conquistar autonomia e
racionalidade para as escolhas.
De fato, a questão de gênero não é a única que influencia
na baixa representatividade feminina. Não cabe a simples
afirmação de que há uma forte intervenção dos partidos e seus
dirigentes, esquecendo-se de todo o planejamento partidário,
no intuito de lançar o maior número de candidatos que tenham
condições de elegibilidade, independentemente do sexo. No
presente trabalho, apreciaremos tal problemática sob a ótica do
gênero sem desconsiderar a ingerência de questões culturais,
econômicas, sociais, dentre outras, que determinam a dinâmica
da participação da mulher no cenário do legislativo brasileiro e
piauiense.
20
as mulheres, por saberem como cuidar, devem adentrar na
esfera política, trazendo um abrandamento para esse meio
essencialmente masculino; a terceira vertente é a política de
presença, em que as mulheres são legitimadas para proteger
os interesses que lhes concernem. Para o autor17, a descrição
representativa é problemática, pois quando se analisa a
indispensabilidade de representação política por grupo, faz-
se necessária a determinação de quais categorias de pessoas
devem ser levadas em conta, tarefa que é fruto de lutas e
pressões políticas. Sob essa ótica, entende-se como prejudicial
a distância da mulher das esferas políticas e, de tal monta,
o distanciamento dos demais grupos minoritários. Porém,
como se fatiar o parlamento por grupos? Como delimitar
quais categorias devem imprescindivelmente ter participação
garantida?
No sistema democrático representativo, a participação
política possibilita em tese, que qualquer do povo tenha seus
interesses defendidos e garantidos pelos representantes.
Todavia, a ideia de democracia como garantia de participação
de todos os cidadãos em igualdade perdeu-se na prática ao
longo dos anos, tornando-se cenário de disputas de interesse
de grupos, em especial os da minoria dominante. Questiona-
se se a modificação do significado fático do sistema
democrático não legitimaria a fragmentação do parlamento.
Araújo18 entende como questão de reparação e justiça a
equidade de presença entre homens e mulheres, sendo
prejudicial a ausência feminina na política, uma vez que as
decisões tomadas afetam diretamente as mulheres e o efeito
pode não ser positivo. Varikas19 aduz que o reconhecimento
da dimensão de gênero consiste em integrar nas assembleias
representativas as mulheres, enquanto mulheres, e os homens
enquanto homens, contudo, isso é estranho e ameaça a visão
17 MIGUEL, 2000, p. 95.
21
de indivíduo abstrato no sistema político, que é substrato de
base da democracia representativa e é desprovido de qualquer
atributo particular.
Quanto à política do desvelo, Miguel 20 expõe que
esse posicionamento é prejudicial, por restringir a área de
atuação das parlamentares aos temas sociais, afastando-as
do que ele denominou de hard politics, que engloba os temas
de administração pública, política econômica e relações
internacionais. O autor considera ainda que
22
desconsiderando que as parlamentares estão ligadas aos
partidos seus posicionamentos políticos e que sustentam
outros interesses, desvinculados das questões de gênero.
Varikas 21 discorda da visão de que apenas alguém de um
grupo pode falar por este e considera ingênua a ideia das
parlamentares defenderem somente interesses relacionados
ao gênero, deixando de agir segundo suas posições políticas.
Araújo 22 sintetiza a questão afirmando que:
23
3 UMA ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
DE AÇÕES AFIRMATIVAS DE GÊNERO NA
POLÍTICA
24
ainda dispôs sobre a reserva mínima e máxima de cotas por
sexo:
Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara
dos Deputados, Câmara Legislativa, Assembleias Legislativas e
Câmaras Municipais, até cento e cinquenta por cento do número
de lugares a preencher.
(...)
§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste
artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo
de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para
candidaturas de cada sexo25.
25
mulheres. A penalidade em caso de descumprimento consiste na
impossibilidade do partido utilizar o fundo para outra finalidade,
além de ter acrescido ao valor mínimo legal o percentual de 2,5%
(art. 44, § 5º).
Incluiu-se o inciso IV ao art. 45 da Lei nº 9.096/1995, que
determinou aos partidos políticos o desenvolvimento de formas
de difusão e promoção da participação feminina na propaganda
partidária. Para tanto, devem dedicar ao menos 10% do tempo
destinado à propaganda eleitoral partidária para tal finalidade. Em
caso de descumprimento, a Justiça Eleitoral aplicará as seguintes
penalidades:
Art. 45. (...)
§ 2º O partido que contrariar o disposto neste artigo será punido:
I - quando a infração ocorrer nas transmissões em bloco, com a
cassação do direito de transmissão no semestre seguinte;
II - quando a infração ocorrer nas transmissões em inserções,
com a cassação de tempo equivalente a 5 (cinco) vezes ao da
inserção ilícita, no semestre seguinte28.
26
4 A EFICÁCIA DAS AÇÕES AFIRMATIVAS DE
GÊNERO NA POLÍTICA BRASILEIRA
31 Os dezenove partidos são: PTB, PDT, PT, DEM, PSB, PSDB, PRP, PPS, PV, PP, PRTB, PSDC,
PSOL, PR, PSD, PPL, PEN, PROS e SD.
27
da Lei nº 9096/95. A reserva de vagas foi a medida adotada pelos
seguintes partidos: PDT, PSB, PPS, PP e REDE. Enquanto PMDB,
PTB, PT do B, PHS, PSL, PRB, PR, PROS, SD e NOVO dispuseram
apenas sobre a aplicação do fundo partidário. As duas medidas
foram adotadas simultaneamente pelo PT, PSDB e PV. Dos 17
partidos que não previram qualquer tipo de ação afirmativa de
gênero, dez alteraram seus estatutos após a publicação da Lei nº
12.034/2009, não se adequando à lei, a saber, PSTU, PC do B, PSOL,
PPL, PTC, PRP, PSD, PEN, PSDC e PMB (Apêndice A - Quadro 1).
A maioria dos partidos ou coligações não preenche as
vagas nas listas eleitorais com o percentual mínimo, seja ainda
pela ausência de mulheres dispostas a concorrer ou por influência
do comando partidário. Nos casos de inobservância da norma
eleitoral da cota mínima por gênero, a jurisprudência do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) é pacífica quanto à forma de penalizar os
partidos que não preencherem ao menos 30% de candidatos por
sexo em suas listas eleitorais.
No julgamento do RESPE 78432 PA/201032, o TSE
esclareceu que o cálculo desse percentual deve ser feito com base
no número de candidatos efetivamente lançados pelo partido ou
coligação. Caso não seja atendido, o TRE local deverá convocar
o partido para proceder ao ajuste e regularização na forma da
lei. O TSE entendeu também que se o percentual mínimo não
for atingido, será defeso ao partido ou coligação preencher
com um sexo as vagas destinadas ao outro. Tal conduta, nos
dizeres do Ministro Arnaldo Versiani Leite Soares, tornaria
inócua a previsão legal de reforço da participação feminina nas
eleições, com reiterado descumprimento da lei. Caso não seja
possível o preenchimento do percentual mínimo, o partido ou
coligação deverá reduzir o número de candidatos masculinos
para adequar os respectivos percentuais cuja providência,
caso não atendida, ensejará o indeferimento do demonstrativo
de regularidade dos atos partidários (RESPE 2939 PE/2012)33.
32 BRASIL, 2010.
33 BRASIL, 2012.
28
Ademais, o preenchimento do percentual mínimo deve ser
observado no momento do registro da candidatura e em eventual
preenchimento de vagas remanescentes ou na substituição de
candidatos (RESPE 21498 TRE-RS/2013)34.
Quanto ao repasse obrigatório do mínimo de 5% (cinco por
cento) do fundo partidário, os Tribunais Regionais Eleitorais do
Pará e da Paraíba decidiram que há possibilidade de compensação
no exercício seguinte quanto à do percentual mínimo de recursos
do fundo partidário (PC 3784 TRE-PB/2013)35 e que o partido que
descumpriu o disposto no artigo 44, V, § 5º da Lei nº 9.096/1995
será penalizado com o acréscimo de 2,5% ao percentual mínimo de
5% (PC 6142, TRE-PA/2013)36.
Em relação às irregularidades na propaganda eleitoral, os
Tribunais Eleitorais de São Paulo e do Espírito Santo entenderam
que o art. 45 da Lei nº 9.096/95 é cumprido quando difunde ideias
que promovam a participação política da mulher ou quando
demonstre a efetiva atuação e o desempenho das mulheres filiadas
a um determinado partido, não bastando a simples narrativa
por pessoa do sexo feminino que não seja filiada ou não esteja
identificada (REP 30416 TRE-SP/2013)37. O descumprimento foi
considerado uma infração e ensejou a cassação do tempo de
propaganda de partido no equivalente a cinco vezes o que
deixou de reservar para as mulheres (REP 26956 TRE SP/2013;
REP 29202 TRE SP/2013)38 e no percentual de 10% do tempo
total das inserções veiculadas39. Sem dúvidas, a atuação dos
órgãos da Justiça Eleitoral é imprescindível para que as ações
afirmativas de gênero sejam cumpridas em sua inteireza pelos
partidos e coligações. As penalidades, em seu caráter educativo,
minimizam a discricionariedade da direção partidária quanto à
elaboração das listas e na aplicação das demais medidas.
34 BRASIL, 2013.
35 PARAÍBA, 2013.
36 PARÁ, 2013.
29
4.2 A representatividade política da mulher brasileira e piauien-
se e a influência das cotas de gênero.
Ano
de Total Total
eleição
1996 33.279 17,32 158.878 82,68 192.157 4.347 11,07 34.931 88,93 39.278
2000 70.395 19,15 297.297 80,85 367.692 6.987 11,60 53.235 88,40 60.222
2004 76.684 22,14 269.665 77,86 346.349 6.548 12,64 45.256 87,36 51.804
2008 72.476 21,92 258.154 78,08 330.630 6.504 12,53 45.399 87,47 51.903
2012 134.113 31,90 286.291 68,10 420.404 7.653 13,33 49.740 86,67 57.393
2016 142.732 32,46 297.033 67,54 439.765 7.768 13,52 49.806 86,48 57.592
Total 529.679 23,35 1.567.318 76,65 2.096.997 32.039 12,29 228,561 87,71 260.600
Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral.
30
enquanto o número de eleitas subiu 12,75% no período avaliado.
Porém, o número de eleitas caiu na última eleição, pois em 2010
foram eleitas 134 deputadas estaduais (12,95%), enquanto em 2014
esse número foi de 115 (11,11%).
Em relação à Assembleia do Distrito Federal, o aumento
das candidaturas femininas foi de 143,22% também entre 1998 e
2014. Das 24 (vinte e quatro) vagas disputadas a cada pleito, as
mulheres ocuparam em média 4 (quatro) cadeiras por legislatura,
totalizando 21 deputadas distritais no período. Em 2014, as
mulheres representaram 20,83% dos parlamentares distritais.
O número de homens candidatos cresceu no período em
questão, para os três cargos, mas em proporção menor (39,20%,
19,09% e 35,86%, respectivamente). Curiosamente, o número de
eleitos decaiu também nos três cargos (-4,55%, -1,39% e -5,00%,
respectivamente). Entretanto, os homens ainda são maioria
considerável das casas legislativas no Brasil, representando 90,06%
dos deputados federais, 88,89% dos deputados estaduais e 79,17%
dos deputados distritais (Tabela 2).
Cargo e eleitos
por sexo
1998 % 2002 % 2006 % 2010 % 2014 %
Mulheres 353 10,33 490 11,41 628 12,67 933 19,09 1755 29,15
candidatas
Deputado (a)
Federal
Homens 3064 89,67 3806 88,59 4328 87,33 3954 80,91 4265 70,85
candidatos
Mulheres 29 5,65 42 8,19 44 8,58 45 8,77 51 9,94
eleitas
Homens 484 94,35 471 91,81 469 91,42 468 91,23 462 90,06
eleitos
Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral.
31
No Piauí, no período de 1945 a 1994, 1.534 mulheres
concorreram aos cargos de deputadas federal e estadual,
vereadoras, prefeitas e vice-prefeitas, das quais 419 foram eleitas,
representando um êxito de 27,31%. A participação da mulher
piauiense no parlamento federal e no estadual foi bastante
irrisória até 1994. Apenas uma deputada federal foi eleita, em
1986, dentre as 12 que se candidataram e uma exerceu mandato na
Assembleia Legislativa do Piauí, no ano de 1970, dentre as 31 que
concorreram. Até 1994, nenhuma mulher no estado candidatou-
se ao Senado ou ao Governo do Estado e nas eleições de 1950,
1954, 1956, 1962, 1978 e 1982 nenhuma candidatura feminina foi
registrada (Tabela 3).
Candidata
Candidata
Candidata
Candidata
Candidata
Eleita
Eleita
Eleita
Eleita
Eleita
Ano/
Cargo
1945 - - - - - - 1 - - -
1947 - - - - - - - - 4 -
1948 1 1 - - - - - - - -
1950 17 x - - - - - - - -
1954 19 - - - - - - - - -
1958 15 4 1 1 - - - - 1 -
1962 18 1 2 x - - - - - -
1966 23 19 1 1 1 1 1 - 3 -
1970 44 23 7 3 5 2 1 - 1 1
1972 42 33 7 4 8 5 - - - -
1974 - - - - - - - - 1 -
1976 60 33 6 4 10 5 - - - -
1982 125 43 13 6 9 2 - - - -
1986 - - - - - - 6 1 6 -
1988 410 72 14 4 26 10 - - - -
1990 - - - - - - 2 - 8 -
1992 580 134 27 6 - - - - - -
1994 - - - - - - 1 - 7 -
Total 1354 363 78 29 59 25 12 1 31 1
Fonte: Elaborada pelas autoras com base nos dados do Tribunal Regional Eleitoral do Piauí.
Legenda: x – dado não informado.
32
Quanto às eleições para as Câmaras Municipais
piauienses, entre 1996 e 2016, os números são pouco
diferenciados. As 10.881 mulheres candidatas no período
representaram 24,15% do total de concorrentes e apenas
14,37% foram eleitas. O melhor desempenho ocorreu em
2012, enquanto o pior ocorreu nas eleições de 2000 (Tabela
4).
33
Tabela 5 – Candidatos e eleitos para vereador no estado do
Piauí entre 1996 e 2016.
Ano
de Total Total
eleição
1996 1.021 17,14 4.936 82,86 5.957 267 12,73 1.830 87,27 2.097
2000 1.200 17,20 5.777 82,80 6.977 269 12,69 1.835 87,31 2.119
2004 1.437 19,55 5.913 80,45 7.350 265 13,09 1.759 86,91 2.024
2008 1.405 19,61 5.758 80,39 7.163 284 13,97 1.749 86,03 2.033
2012 2.938 33,06 5.950 66,94 8.888 360 16,85 1.776 83,15 3.136
2016 2.880 33,03 5.840 66,97 8.720 357 16,73 1.777 83,27 2.134
Total 10.881 24,15 34.174 75,85 45.055 1.802 14,37 10.741 85,63 12.543
Fonte: Elaborado pelas autoras com base nos dados do TSE, Eleições 2016.
34
"as cotas como um recurso válido dependem de outros aspectos
relacionados com a democratização da representação. Há várias
outras estratégias importantes para ampliar e facilitar a participação
política das mulheres".
Essa questão deve ser analisada pelo legislador, face à
ineficácia das cotas por reserva de assentos, adotada há duas
décadas. Já não caberia a substituição dessa medida por outra com
efeito mais promissor? Muito se discute se a mudança no tipo de
lista eleitoral ou mesmo do próprio sistema eleitoral podem alterar
o quadro de sub-representação feminina na política. Levando-se
em conta a natureza temporária da ação afirmativa, o que se vê
é um certo comodismo do legislador em adotar o mesmo método
reiteradamente, esquecendo-se que a problemática é mais ampla,
indo além do campo político. Há de se discutir também o legado
do patriarcado, o papel da mulher na sociedade, na família e no
mercado de trabalho e sobre a importância de se garantir acesso aos
espaços decisórios aos cidadãos. Nos dizeres de Wright43, as cotas
não removem as barreiras culturais e as dificuldades das mulheres
combinarem vida familiar, trabalho e política. Há que se promover
o empoderamento feminino, que implica a alteração radical dos
processos e das estruturas que reproduzem a posição da mulher
como submissa44.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
35
foi de 8,77%, em 2010. No Piauí, o número das candidaturas
femininas e de eleitas cresceu consideravelmente entre 1998
e 2010, passando de, respectivamente, 13,22% a 25%, e 6,67% a
23,33%, e entre 1996 e 2016, de 17,14% para 33,03% e de 12,73%
para 16,73%. Todavia, há muito o que evoluir ainda.
As ações afirmativas cumprem sua função de suscitar o
debate mas não tem sido o instrumento mais eficaz de promoção
do princípio constitucional da isonomia. As mulheres, como
outros segmentos sociais, continuam a não exercer plenamente a
capacidade de contribuir para as questões que afetam a sociedade,
ou seja, não exercem o poder de forma plena45. Há muito tem-se
afirmado a ineficácia do sistema de cotas eleitorais no Brasil e
levantado a necessidade de que outras medidas sejam postas em
prática, como a adoção de cotas de reserva de vagas no parlamento
as mudanças no sistema eleitoral no tocante a adoção de lista
fechada ou flexível, com a alternância de candidatos por sexo na
lista. É sabido que tais medidas por si só, não podem incrementar
a representação política da mulher e que a problemática não pode
ser analisada apenas por esta ótica.
As cotas eleitorais são medidas essencialmente
temporárias, intervenções de natureza "cirúrgica" que visam
sanar determinado problema que se revela urgente e que cedo
ou tarde devem ser retiradas do ordenamento jurídico. Deve ser
consolidada em nossa sociedade a noção de empoderamento
feminino, pois as mulheres podem sim ocupar espaços
de decisão, em qualquer âmbito, quer público ou privado
devendo ser tratada de forma isonômica ampliando-se o
acesso à educação, à profissionalização, o combate à violência
doméstica, de forma a superar os traços do patriarcado. Há que
se discutir o papel da mulher na sociedade, que foram inseridas
intensamente no mercado de trabalho no decorrer do século XX,
mas ainda estão fortemente associadas ao âmbito familiar, sendo
grande ainda a desigualdade entre homens e mulheres.
45 ARAÚJO, 2011.
36
REFERÊNCIAS
37
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil,
de 16 de julho de 1934. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 16
jul. 1934.
38
DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 2. ed. rev., atual. e aum.
vol 2. São Paulo: Saraiva, 2005.
39
PARAÍBA. Tribunal Regional Eleitoral. Prestação de contas nº
3784, Relator: Tercio Chaves de Moura. DJE, João Pessoa, 13 ago.
2013.
40
TABAK, Fanny. Mulher e Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1982.
41
APENDICE A
42
Órgão feminino Nome Ano do Previsão no AA1 AA2 AA1 e Sem
Partido
no estatuto Estatuto Estatutoo AA2 AA
PMDB Não PMDB Mulher 2015 Art. 107, IV - 1 - -
PTB Sim (art. 49, b) PTB Mulher 2014 Art. 17 -C - 1 - -
Ação da Mulher
PDT Sim (art. 11, §2º) Trabalhista 2015 Art. 26 e 83 1 - - -
PT Sim (art. 135) Setorial de Mulheres Art. 22, IV e 200, “e” - - 1
2015 -
Mulher Democrata - - -
DEM Sim (art. 17, III, a) 2007 - 1
Secretaria Nacio-
PC do B Não (art. 53 a 55) nal da Mulher 2010 - - - - 1
Secretaria das Mulheres art. 22, §1º
PSB Sim (art. 12, IV, 43, “e”) 2013 1 - - -
Sim (arts. 16, II; 17, Secretarias de art. 25; 41, caput; 142, V
PSDB IV, 90, §1º, 108, §1º) Muheres 2015 - - 1 -
PTC Não PTC Mulher 2015 - - - - 1
PSC Não PSC Mulher 2007 - - - - 1
PMN Não PMN Mulher 2008 - - - - 1
Sim (art. 31, §2º; 52, VIII; art.67, par. unico
PRP 55, IX) PRP Mulher 2015 - - - 1
Sim (art. 26, caput) Coordenação de
PPS Mulheres -CM 2011 art. 14, II 1 - - -
PV Sim (art. 34, XIII; 76) PV Mulher 2011 art. 99, §1º, “e”; 61, I - - 1 -
PT do B Não PT do B Mulher 2015 art. 86, VI - 1 - -
43
44
Órgão feminino Nome Ano do Previsão no AA1 AA2 AA1 e Sem
Partido Estatuto
no estatuto Estatutoo AA2 AA
PP Sim (art. 115, caput) PP Mulher 2015 art. 116 - - - -
Não Secretaria de Mulheres -
PSTU 2013 - - - 1
Coletivo de Mulheres
PCB Não Ana Montenegro 2008 - - - - 1
PRTB Sim (arts. 13; IV; 63) PRTB Mulher 2004 - - - - 1
PHS Não PHS Mulher 2015 art. 21, II - 1 - -
PSDC Sim (arts. 9, IV, f; 83) PSDC Mulher 2016 - - - - 1
Não Coletivo de Mulheres do
PCO PCO Rosa Luxemburgo 1995 - - - - 1
PTN Não PTN Mulher 2006 - - - - 1
PSL Não PSL Mulher 2011 art. 163, IV - 1 - -
PRB Não PRB Mulher 2014 art. 50, §2º, III - 1 - -
Sim (art. 64) Setorial de Mulheres do -
PSOL PSOL 2010 - - - 1
PR Sim (art. 34, §2º) PR Mulher 2015 art. 34, §3º - 1 - -
PSD Sim (arts. 14, III, “a”; 72) PSD Mulher 2015 - - - - -
PPL Sim (arts. 22, IV; 36) PPL Mulher 2013 - - - - 1
PEN im (arts. 29, X; 51, VIII) PEN Mulher 2015 - - - - 1
Fonte:
AA
1
-
-
-
pelas autoras
com base
nos estatutos
AA2
-
-
-
dos partidos
-
disponíveis no
sítio eletrônico
-
1
1
1
-
do TSE
-
-
-
-
Legenda:
arts. 26, 32, 33,
90, par. único
AA1: Ação
Estatutoo
art. 87, V
afirmativa
art. 87
1 - Reserva
- de vagas para
mulheres
em órgãos,
Estatuto
na diretoria
Ano do
2015
2015
2015
2016
2016
ou nas listas
partidárias;
AA2: Ação
Secretaria da
Secretaria da
afirmativa
Nome
mulheres
Mulher
Rede de
Mulher
2 - Destinação
-
de 5% do fundo
partidário para
o programa de
Órgão feminino
promoção da
Sim (arts. 13, VI,
no estatuto
participação
política da
Não
Não
Não
mulher;
ação afirmativa
PROS
Novo
Rede
PMB
no estatuto do
SD
partido.
45
II
Introdução
O problema instaurado pelo constitucionalismo dirigen-
te não é novo e já foi profusamente discutido no exterior, através
da matriz teórica Canotilho-Lerche-Crisafulli, e no Brasil, atra-
vés de Streck-Faria-Grau-Bercovici-Comparato. Vale referir, o
constitucionalismo compromissório assumiu vasta importância
em solo latino-americano, ou no chamado capitalismo periféri-
co, e inspirou a promulgação de várias Cartas Constitucionais
com missões interventivas, sociais e redistributivas, sobretudo
após a erosão das ditaduras militares.
1 Graduando em Direito pelo Instituto Camillo Filho. Graduando em Filosofia pela Univer-
sidade Federal do Piauí. Membro do Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA-SP).
Estagiário do Ministério Público do Estado do Piauí – Fazenda Pública.
2 Graduada em Bacharelado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2001). Mes-
tre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006). Doutora
em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2011). Professora
adjunta do Instituto Camillo Filho e Assessora jurídica do Tribunal de Contas do Estado do
Piauí.
46
Diante disso, a questão que se coloca é: transcorrido
quase três décadas de vigência da Constituição, a tese de uma
Constituição dirigente ainda é sustentável? Tomando, portanto,
como pano de fundo a matriz teórica legada a partir do dirigismo
constitucional, o objetivo do trabalho é apresentar a atualidade do
projeto social e compromissório do constitucionalismo latino-a-
mericano em épocas de volatilidade econômica e de rediscussão
do pacto constitucional diretivo na América Latina, diante do flo-
rescimento da Constituição dirigente invertida.
47
neo em torno da cautonomia do discurso jurídico, da garantia dos
direitos fundamentais e sociais e do compromisso social assumido
pelas constituições democráticas, diante das volatilidades da eco-
nomia e da política em épocas de crise.
Com efeito, este capítulo pretende realizar um estudo
em torno do discurso jurídico (dominante) no constitucionalismo
contemporâneo5, que, por sua vez, permite defender a existência
de três pontos de partida essenciais para a discussão travada en-
tre "volatilidade econômica" versus "autonomia do estatuto jurí-
dico-constitucional". Assim, tal perspectiva direciona a discussão
para: (a) a constatação de uma autonomia jurídica conquistada
por intermédio do reconhecimento da normatividade e da supe-
rioridade hierárquica da Constituição; (b) a constatação de uma
expansão do papel da jurisdição constitucional na concretização
dos direitos fundamentais e sociais; (c) a constatação de uma vin-
culatividade do compromisso social e interventivo assumido pelo
conceito de objetivos fundamentais, frequentemente acoplado ao
conteúdo do dirigismo constitucional.
Nesse sentido, pode-se dizer que um ponto indiscutivel-
mente útil para a defesa da autonomia de um estatuto jurídico
mínimo em face das volatilidades econômicas reside no reconhe-
cimento da força normativa e da superioridade hierárquica das
disposições constitucionais. Isso porque, tal constatação possibi-
lita que o debate em torno da autonomia do discurso jurídico seja
enfrentado no plano da evolução do constitucionalismo e do Esta-
do, que evidenciam a formação de um paradigma jurídico-consti-
tucional incompatível com a (mera) sujeição do estatuto jurídico
ao estatuto econômico; discussão que, por seu turno, aponta para
a própria incompatibilidade existente entre o constitucionalismo
contemporâneo e o constitucionalismo liberal6.
Interpretando o atual o estado de coisas do constitucio-
5 Cf. STRECK, Lenio L. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2014.
6 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 32 ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2013, p.199 e Cf. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7 ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
48
nalismo contemporâneo, v.g, Pietro Sanchís7 expõe que o neo-
constitucionalismo não constitui uma postura pronta e acabada
(isto é, "pacificamente compartilhada entre os publicistas"). As-
sim, segundo sua concepção, conquanto não possa ser definido
por completo, tal fenômeno pode ser concebido a partir de quatro
acepções: (a) de um Estado de Direito; (b) de uma teoria do direito;
(c) de uma ideologia de filosofia política; (d) ou de uma filosofia
jurídica. Para efeito deste estudo, suficiente o exame do aspecto
(a), que trata do Estado de Direito.
Segundo Pietro Sanchís8, a concepção de um Estado de Di-
reito Constitucional, justifica-se pela nova forma de organização
política e institucional concebida pelo novo constitucionalismo.
Em outras palavras, é que, para Sanchís, o neoconstitucionalis-
mo teve o condão de reunir tradições constitucionais "distintas",
porquanto albergou tanto o modelo norte-americano (na propor-
ção que acolheu o sentido de superioridade constitucional e de
constituição como "procedimento") quanto o modelo francês (na
proporção que aderiu a uma tradição constitucional destinada a
criar um projeto de transformação social e política), com o intuito
de perfazer uma solução institucional para os novos problemas do
século XX.
Como salienta Lenio Streck9, o constitucionalismo con-
temporâneo constitui, verdadeiramente, a continuação do projeto
do État Providence com um adendo especial: o plus normativo. Em
resumo, equivale a dizer que "a Constituição não configura, ape-
nas a expressão de um ser, mas também de um dever ser"10. Por
esse motivo, como lembra Guastini11, a superioridade hierárquica
e a normatividade constitucional produzem consequências rele-
7 SANCHÍS, Pietro. Justicia constitucional y derechos fundamentales. 2 ed. Madrid: Editora
Trotta, 2009.
8 Id., Ibid., passim.
9 STRECK, Lenio L. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014.
10 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Segio Antonio Fabris, 1991.
11 GUASTINI, Ricardo. La Constitucionalización del ordenamiento jurídico: el caso italiano.
In: CARBONELL, Miguel (org.) Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Trotta, 2003.
49
vantes do novo constitucionalismo; quer dizer, na medida em que
há uma aproximação entre "a noção" de constitucionalismo e de
teoria das fontes12.
Para Guastini, tal aproximação se verifica em dois mo-
mentos. No primeiro, observa-se com a visão de que a consti-
tuição é, realmente, uma "fonte diferenciada", caracterizada pela
distinção do procedimento e/ou das exigências criadas para sua
própria elaboração (que pode defluir desde uma concepção outor-
gada ou promulgada). No segundo, verifica-se com a visão de que
a constituição apresenta, também, um procedimento de "reforma
agravado", impediente de ab-rogação, derrogação ou modificação
por lei de envergadura jurídica positivamente inferior13.
Por outro lado, Guastini também defende que do pró-
prio ponto de vista do sentido das fontes jurídicas, a constituição
pode ser vista a partir de três perspectivas. A primeira, relativa
à circunstância de ela conter mandamentos normativos disci-
plinadores e organizativos das relações entre o Poder Público e
os particulares, e entre estes e o Estado (lato sensu). A segunda,
consistente na idoneidade de a constituição conter instrumentos
para invalidar normas anteriores de nível subconstitucional mate-
rialmente incompatíveis com seu texto ou para invalidar normas
posteriores de nível subconstitucional (formal e materialmente)
em desacordo com seus preceitos14 .
Por fim, Guastini destaca o terceiro sentido de "fontes ju-
rídicas", ligado à ideia de que a constituição não submete aos seus
rigores apenas a disciplina entre o cidadão e o Estado (perspecti-
va vertical do direito público), mas também entre os particulares
(perspectiva horizontal). Portanto, para o autor italiano, é possí-
vel encarar o particular como sujeito passível de "aplicação" por
parte dos juízes constitucionais15.
Ora, este último ponto destacado por Guastini diz exata-
mente respeito à ampliação do papel endereçado à justiça cons-
12 Id., Ibid.
13 Id., Ibid.
14 Id., Ibid.
50
titucional no Direito pós-Auschwitz16. Indubitavelmente, como
lembra Luigi Ferrajoli17 – inclusive quando propõe uma revisão
terminológica do neoconstitucionalismo para constitucionalismo
jurídico ou Estado Judicial de Direito – o Estado Democrático de
Direito – ou, mais amplamente, social e ambiental, como quer Ingo
Sarlet18 – fornece importantíssimos poderes hermenêuticos19 para
os juízes na concretização da Constituição.
Isso indica que, respeitado "o esquema organizatório-
funcional constitucionalmente estabelecido", como afirma
Canotilho20, a missão institucional incumbida à justiça constitucional
liga-se, frequentemente, à realizabilidade e à efetivação dos direitos
fundamentais e dos direitos sociais. Para a maioria dos autores,
esse fenômeno se verifica com aumento das atribuições das Cortes
Constitucionais, que podem ser mais ou menos sumarizadas do
seguinte modo:
1)Tutela dei diritti e delle libertà fondamentali (sponsor et
defensor iurum et libertatum; Grundrechtschutz); 2) garanzia
della pace interna e dell’unità politica (sponsor et defensor pacis
et unitatis; Staatsgerichtsbarkeit – Kompetenzgerischtsbarkeit): in
tale veste l’organo di giustizia costituzzionale agisce quale arbitro
e mediatore in sede di risoluzione dei conflitti interorganici e
dei conflitti intersoggettivi, nonché quale garante del sistema di
articolazione delle competenze; 3) tutela della comunità statale
(defensor rei publicae, censor civitatis – Staatsschutz): in tale veste
l’organo di giustizia costituzionale giudica, in sede di giurusdizione
penale, sulle acuse formulate contro il capo dello stato, ministri
ecc (...); funge da organo di verifica della legittimità costituzionale
dei partiti politici; è l’instanza che dichiara la perdita dei diritti
fondamentali in caso di abusi da parte del titolare; 4) garanzia
della democracia: l’organo di giustizia costituzionale si configura
quale custode di un correto procedimento elettorale; 5) verifica
16 Cf. LOSANO, Mario G. Sistema e Estrutura no Direito. Volume 2: O Século XX. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.
17 FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo garantista e constitucionalismo principialista. Tra-
dução de André Karam Trindade. In: FERRAJOLI, L; STRECK, L.L; TRINDADE, Andre Karam
(orgs). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
18 SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz G.; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional.
Revista dos Tribunais, 2012.
19 Cf. STRECK, Lenio L. O que é isto – decido conforme minha consciência? In: Coleção O
Que é Isto? v.1. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
20 CANOTILHO, J.J. GOMES. Direito constitucional e teoria da constituição. 3 ed. Coimbra:
Almedina, 1999, p.1224.
51
in via preventiva della illegitimià costituzionale di progretti di
legge ed emanazione di pareri in mérito (funzione consultiva); 6)
funzioni di instanza giurisdizion ale di grado supremo; 7) funzione
nomofilatica di guardiano della legge, custode della Constituzione,
garante dell’ordinamento costituzionale oggettivo e del sistema
gerarchico delle fonti adottato dal medesimo. (apud defensor et
sponsor iuris in senso lato21
52
constituição em face da voracidade dos sistemas econômicos
e políticos. Tal circunstância, segundo o autor, evidencia uma
ameaça direta à concretização da ideologia constitucional e do
caráter normativo e compromissório assumido pela constitui-
ção em países periféricos27.
Concomitantemente, pode-se dizer que o constitucio-
nalismo latino-americano projeta um constitucionalismo de
contornos particulares, destinado, em último termo, a arquite-
tar um estatuto econômico, político e jurídico decididamente
compromissório28. Por consequência, inevitável assinalar, quer
pela injunção dos acontecimentos históricos, ou pelas caracte-
rísticas de cada constitucionalismo, não haver confusão entre
neoconstitucionalismo e constitucionalismo latino-americano29.
Ora, como lembra Marcelo Neves30, o constitucionalis-
mo latino-americano é historicamente marcado "por uma rela-
ção pendular entre autocracia e democratização na forma". Por
isso, "a retórica política expressa-se mediante o manuseio das
fórmulas ‘restauração da ordem’31 e ‘restauração da democra-
cia’32, daí por que se avulta "o conflito ou tensão entre realismo
idealismo constitucional"33.
Por essas razões, justifica-se o núcleo básico do consti-
27 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Trad. Alfredo Gallego Anbiatarte. Barce-
lona: Ed. Ariel, 1986 apud NEVES, Marcelo, op.cit., 2007, p.219.
28 RODRIGUES, Vicente; VIEIRA, José Ribas. Refundar o Estado: o novo constitucionalismo
latino-americano. 2009. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/24243799/UFRJ-Novo-
-Constitucionalismo-Latino-Americano> Acesso em: 18 nov. 2016.
29 BARCELLOS, Renato de Abreu. Revolução ou reforma? Uma reflexão sobre o novo
constitucionalismo latino-americano. (In): Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica –
RHIJ, Belo Horizonte, ano 10, n.11, p. 257-276, jan/jun, 2012.
30 NEVES, Marcelo. Estado Democrático de Direito e Constitucionalismo na América do
Sul. P.203-222 (In): BOGDANDY, Armin von; PIOVESAN, Flavia; ANTONIAZZI, Mariela Moraes
(Coords.). Direitos Humanos, Democracia e Integração jurídica da América do Sul. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010.
31 Id., op. cit., p.208.
53
tucionalismo latino-americano ser a orfandade e a necessidade34
Isso porque, além de ter uma vida política recente (praticamen-
te após o surgimento da Revolução Industrial)35, e de ter tido
largos períodos de ausência de democracia efetiva36, outra face-
ta da América Latina (mesmo tendo evoluído desde o fim do
século XIX)37, é o subdesenvolvimento.
Precisamente em decorrência disto, "a orfandade" re-
vela que o novo constitucionalismo latino-americano é "[…]
um constitucionalismo eminentemente caracterizado por
uma radicalização da questão da legitimidade nos processos
constituintes"38. Como ressalta Renato de Abreu Barcellos,
esse novo constitucionalismo latino-americano é um consti-
tucionalismo sem país39, pois, "ninguen, tirando o pobo, pode
sentirse proxenitor da Constituicion, pola xenuína dinâmi-
ca participativa e lexitimadora que acompanha os processos
constitucionales"40.
Lembra a propósito Renato Barcellos, mencionando
Dalmau e Pastor, que o novo constitucionalismo latino-ame-
ricano pode ser entendido como constitucionalismo de neces-
sidade, "na medida em que os contextos sociais em que surgiu
eram caracterizados pela instabilidade político-institucional,
de conflito social, onde a Constituição era incapaz de fazer
valer sua força normativa, principalmente os direitos funda-
54
mentais nela encartados"41. Por consequência, segundo sua
concepção, o novo constitucionalismo latino-americano veio
a substituir o velho considerado "fraco, adaptado e retórico"42.
No caso brasileiro, "a Constituição de 1988 não se limita
a organizar o sistema político e a garantir direitos, mas regula
largos setores da economia e também da esfera social"43, encar-
tado, positivamente, em "um longo documento, com 245 arti-
gos e mais 70 artigos no Atos de Disposições Constitucionais
Transitórias, com enorme pretensão normativa"44. Com isso,
conquanto Renato Barcellos considere vanguardistas do novo
constitucionalismo latino-americano a constituição colombia-
na, a venezuelana, a boliviana e a equatoriana45, vale lembrar que
os países estão ligados por circunstâncias históricas, políticas e
econômicas inquestionavelmente semelhantes, sobretudo em
face da recente redemocratização ou reconstitucionalização46.
Nesse sentido, Renato Barcellos organiza uma espécie
de "planta" do constitucionalismo latino-americano. Para
tanto, define como características formais: a originariedade, a
amplitude, a complexidade e a rigidez; e materiais: a relação
umbilical entre povo e governo, a profusão de direitos e a
intervenção do Estado na economia47 Para Barcellos, tais
características demonstram que o constitucionalismo latino-
americano não abandonou a forma liberal de constituição,
considerada "[…] positiva, escrita, articulada e racionalizada"48;
41 BARCELLOS, Renato Abreu de, op.cit, p.264-265.
42 Id., ibid., p.208.
55
em verdade, o constitucionalismo latino-americano procurou
novos arranjos a fim de dar conta da realidade circundante; por
isto, pode ser considerado experimental49.
Outro ponto destacado por Barcellos acerca do
constitucionalismo latino-americano é "a amplitude" dos
documentos normativos. Por exemplo, em um simples
exame constata-se que: "[…] a Constituição colombiana
de 1991 tem 380 artigos; a Constituição venezuelana de
1999, 350 artigos; a Constituição equatoriana de 2008,
impressionantes 444 artigos; e a Constituição boliviana de
2009, 411 artigos"; a brasileira, de 1988, tem 250 artigos 50.
Para Martínez Dalmau, isso significa que o constituinte
quis apenas expressar claramente sua vontade nos textos
normativos.
Por fim, outro ponto destacado por Renato Barcellos
e Martínez Dalmau refere-se à complexidade e à releitura da
rigidez institucional. Para eles, a complexidade institucional
indica que essas constituições latinas buscam soluções
para melhor se adaptar[em] à realidade, já a releitura da
rigidez, indica a previsão de um procedimento dificultoso
para a alteração de seus textos, visando à proteção da
identidade constitucional do(s) poder(es) derivado(s) 51.
Há outros pontos do constitucionalismo latino-americano
salientados por Renato Barcellos, como as novas formas
de participação política e de intervenção econômica 52.
Com efeito, o trajeto político e econômico que
define a América Latina permite que ainda possamos
identificar a (vetusta) distinção entre capitalismo
dependente e capitalismo de centro. Isso porque, "[…] o
modo como os países se desenvolveram, isto é, o modo como
atravessaram processos de colonização, modernização,
industrialização, inovação, inserção internacional,
democratização, positivação e implementação de
49 Id., Ibid., p.266.
50 Ib., Ibid., loc. cit.
56
direitos" 53, pode ser um elemento explicativo dos níveis
de desigualdade observados na América Latina. Como
conclui Gilberto Bercovici:
Afinal, não podemos esquecer que o subdesenvolvimento,
em suas raízes, é um fenômeno de dominação. O
subdesenvolvimento é um processo histórico autônomo, não
uma etapa pela qual, necessariamente, os países desenvolvidos
passaram. Segundo Celso Furtado, ele é a manifestação de
complexas relações de dominação entre os povos e que tende
a perpetuar-se. Deste modo, é fundamental ter consciência da
dimensão política do subdesenvolvimento. O que houve nos
países periféricos foi a modernização, sem nenhuma ruptura
com as estruturas socioeconômicas, mantendo-se a reprodução
do subdesenvolvimento. Não existe uma tendência à passagem
automática da periferia para o centro do sistema econômico
capitalista. Pelo contrário, a única tendência visível é a da
continuidade do subdesenvolvimento dos países periféricos.
Portanto, o esforço para superar o subdesenvolvimento requer
um projeto político apoiado por vários setores sociais, pois se
trata da superação de um impasse histórico54.
57
novos órgãos públicos, chamados de agências, imitando
a estrutura administrativa norte-americana" 57. Por isso,
conclui Martinelli que:
O subdesenvolvimento verificado nos Estados periféricos não
consiste apenas na insuficiência de poupança interna para a
realização dos investimentos necessários em modernização
tecnológica e infraestrutura. O subdesenvolvimento também
não corresponde apenas ao pequeno crescimento do produto
nacional bruto e ao grau insuficiente de industrialização,
avanço tecnológico e modernização. O subdesenvolvimento
das economias periféricas implica a existência de fontes
de privação maciça da liberdade humana, como a pobreza,
carência de oportunidades econômicas e negligência dos
serviços públicos. A pobreza, aliás, não significa somente
baixo nível de renda. A renda é apenas um índice de avaliação
de pobreza. A pobreza refere-se ainda a uma série de outras
privações relacionadas a outras variáveis como desemprego,
doença, baixo nível de instrução e exclusão social. A
pobreza exprime, portanto, uma privação de vários direitos
fundamentais integrados, interelacionados e indissociáveis.
Persistem nas economias periféricas extensos segmentos
populacionais excluídos dos benefícios da sociedade orientada
pelo e para o mercado. São milhões de homens supérfluos,
privados dos direitos de igualdade material e para os quais
as liberdades individuais são direitos completamente ocos58.
Talvez um dos maiores desafios das economias periféricas do
capitalismo mundial ‘consista na necessidade de liberdade os
trabalhadores de um cativeiro explícito ou implícito que nega
o acesso ao mercado de trabalho aberto’59.
59 SEM, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Pau-
lo: Companhia das Letras, 2000, p.131 apud Id., op.cit, loc.cit.
58
passamos ao último capítulo deste estudo.
59
ção do papel erigido pelo constitucionalismo latino-americano.
Ou, de forma mais direta:
67 STRECK, Lenio L.; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. A "secura" a "ira" e as condições para que
os fenômenos possam vir à fala: aportes literários para pensar o estado, a economia e a au-
tonomia do direito em tempos de crise. In: STRECK, Lenio L.; TRINDADE, Andre Karam (orgs).
Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013.
60
Social (Welfare State)68, o que não implica permitir que o conceito
de constitucionalismo dirigente ocasione a desubstancialização69,
por via oblíqua, do próprio constitucionalismo latino-americano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
61
REFERÊNCIAS
62
FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo garantista e
constitucionalismo principialista. Tradução de André Karam
Trindade. In: FERRAJOLI, L; STRECK, L.L; TRINDADE, Andre
Karam (orgs). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo:
um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012.
63
Constitucionalismo-Latino-Americano> Acesso em: 18 nov. 2016.
64
Capitalismo Subdesenvolvido. 2007. 258 f. Tese (Doutorado em
Direito) Faculdade de Direito da FADUSP. Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo, São Paulo.
65
STRECK, Lenio L.; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. A "secura" a "ira"
e as condições para que os fenômenos possam vir à fala: aportes
literários para pensar o estado, a economia e a autonomia do
direito em tempos de crise. In: STRECK, Lenio L.; TRINDADE,
Andre Karam (orgs). Direito e Literatura: da realidade da ficção à
ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013.
66
III
Introdução
Ainda é invisível a bibliografia que trata de gênero, so-
bretudo de feminicídio – especialmente nos cursos jurídicos, o
que é sintomático. Entender a produção acadêmica como local de
fala com poucas mulheres é compreender que também nas nossas
universidades o regime de vida “gênero” segrega e exclui, pois
continua a dicotomia rua-casa, na qual à mulher é destinado o
espaço doméstico e não o acadêmico. A dominação masculina,
1 O presente artigo foi elaborado como trabalho de conclusão da disciplina Direitos Hu-
manos, ministrada pela Profa. Ma. Andreia Marreiro Barbosa, durante o primeiro semestre
de 2016.
2 Estudante de graduação do curso de Direito na Universidade Federal do Piauí (UFPI).
67
livro de Pierre Bourdieu (2002, p. 20), atenta para essa realidade
de negação do espaço público às mulheres:
68
qualificação e quantificação dos abusos, dando vez e voz à luta
das mulheres contra a violência de gênero.
Segundo Marcela Lagarde y de los Ríos (2008), feminicídio
é o genocídio de mulheres e ocorre quando as condições históricas
geram práticas sociais, permitindo atentados contra a integridade,
a saúde, as liberdades e a vida de meninas e mulheres. O presente
trabalho problematiza a criação da qualificadora penal a partir
da compreensão do gênero como construção sociológica que
se intersecciona com outros marcadores, como raça e classe,
importantes para entender o assassinato de mulheres por serem
mulheres. Para isso, realizou-se uma pesquisa bibliográfica e
documental a partir dos estudos feministas e da Criminologia
Crítica, com vistas a entender o feminicídio como crime diverso
do homicídio. Visou-se, também, compreender a tipificação e seus
efeitos para demonstrar por que o instituto genérico "homicídio"
é ineficaz para evitar as mortes por crimes de gênero e, ao mesmo
tempo, pensar as limitações da tipificação penal.
Nos dizeres de Sinara Gumieri (2013), a crítica à estrutura
fundamentalmente androcêntrica do direito como gênero e do
direito penal em particular lança dúvidas sobre sua efetividade
como meio de transformações em favor da emancipação feminista.
A saída, nesse contexto, se situa em transformar o direito, de
instrumento de dominação, em meio de legitimação de demandas
feministas.
69
das mulheres, a maculação de seus direitos humanos. O intuito
do presente ensaio, no entanto, não é o de vitimizar a mulher,
mas de reforçar a expressiva concentração de violência sobre os
corpos femininos e argumentar que as relações violentas existem
porque as relações assimétricas de poder permeiam a rotina das
brasileiras.
Assim, feminicídio compreende o assassinato de uma mu-
lher cometido por razões da condição de sexo feminino, nos ter-
mos da Lei 13.104/2015: “violência doméstica e familiar e/ou me-
nosprezo ou discriminação à condição de mulher” (Brasil, 2015).
Os parâmetros que definem a violência doméstica contra a mu-
lher estão estabelecidos pela Lei Maria da Penha: ação ou omissão
baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,
sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da
unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de
afeto, independentemente de orientação sexual.
Nesse sentido, a violência de gênero na intimidade amo-
rosa revela a existência do controle social sobre os corpos, a se-
xualidade e as mentes femininas. Evidencia, ao mesmo tempo, a
inserção diferenciada de homens e mulheres na estrutura familiar
e social, assim como a manutenção das estruturas de poder e do-
minação disseminadas na ordem patriarcal. Em Bourdieu (2002),
entendemos o Estado e a escola como macroestruturas de domi-
nação masculina, ao passo que a violência doméstica representa
uma microestrutura. A violência física e sexual perpetua-se, nes-
tes espaços, como forma de controle, já que se ancora na violência
simbólica. É papel do feminismo a luta política contra todas as
formas de dominação, bem como o empoderamento feminino. O
processo inverso, de reconhecimento dos privilégios pelo domi-
nador, parece menos provável, já que esses privilégios foram his-
toricamente construídos.
Para Bourdieu (2002), a mobilização coletiva de resistên-
cia feminina por reformas jurídicas e políticas tem o condão de
des-historicizar a violência simbólica. A dominação masculina
seria, nessa lógica, uma forma particular de violência simbólica
70
na qual o poder impõe significações como legítimas para dissimu-
lar as relações que funcionam como base para a manutenção da
própria força. A dominação do homem sobre a mulher é exercida
por meio de uma violência simbólica, compartilhada inconscien-
temente entre dominador e dominado. A esse respeito, o autor é
enfático:
71
nais e, portanto, interpessoais, com cenários sociais e históricos
não uniformes. A centralidade das ações violentas incide sobre a
mulher, sejam estas violências físicas, sexuais, psicológicas, pa-
trimoniais ou morais, tanto no âmbito privado-familiar como nos
espaços de trabalho e públicos.
À luz da ideia de gênero, compreendemos como a al-
teridade deve se fazer presente no estudo da violência contra
a mulher quando comparada com outras violências. Motivado
pelo gênero, o ser violento não atua para aniquilar o outro como
pessoa considerada igual ou detentora das mesmas condições de
existência e valor. Ao contrário, a violência de gênero tem cunho
de dominação do homem e subsequente submissão feminina.
A antropóloga Rita Laura Segato (2006) afirma em seu
trabalho “Que és un feminicidio: notas para un debate emergen-
te” que a violação do corpo da mulher enquanto território carac-
terizador de sua identidade leva à compressão de que a violação
dos corpos (que conversa com nossa cultura do estupro) e a con-
quista territorial masculina têm andado lado a lado. Os crimes do
patriarcado, compreendidos como feminicídio, têm dupla função:
a manutenção e a reprodução do poder.
O Mapa da Violência 2015 – focado nas questões de gê-
nero e fundamentado em dados levantados pela ONU Mulhe-
res: Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o
Empoderamento das Mulheres – repisa que as estatísticas sobre
feminicídio no país são praticamente inexistentes. Na mesma
pesquisa, diz-se que o Brasil é o quinto país do mundo onde mais
se matam mulheres. Atrás apenas de Rússia, Guatemala, Colôm-
bia e El Salvador, nossa nação possui uma taxa de 4,8 mortes por
100.000 mulheres. Em conformidade com o Mapa da Violência
2012, a agressividade fatal atingiu mais de 50 mil mulheres entre
2000 e 2010 (Waiselfisz, 2012, 2015).
Ora, ressaltar que não se possui um mapeamento de
dados acerca da violência de gênero em um país onde mulheres
são mortas diariamente por homens legitimados é escancarar o
óbvio: o Estado não se preocupa em contabilizar a violência e
a violação de direitos das mulheres por crimes de gênero.
72
Os cadáveres das vítimas de abuso, crimes sexuais, en-
tre outros vários crimes cometidos em decorrência de gênero, so-
mam-se à cifra da violência sui generis. Os criminosos são puni-
dos, mas nada é esclarecido sobre o porquê dessas mulheres terem
sua vida usurpada. Nos dizeres de Debora Diniz, é nesse encontro
entre cadáveres esquecidos e matadores punidos que se atualizam
os sentidos do conceito de feminicídio proposto por Diana Russel
em 1970.
Não apenas a mulher é vítima sobretudo de relações de
poder historicamente construídas, mas também seus direitos
não são postos, e sim conquistados através de lutas. É nesse
prisma que o estudo da atuação da militância feminista e das
reivindicações dos movimentos sociais demonstra o gradual re-
conhecimento da gravidade da questão, conferindo novos con-
tornos às políticas públicas, que passaram do descaso ao reco-
nhecimento com a promulgação da Lei do Feminicídio. Como
aduz Corrêa (2001), a criação de grupos de combate à violência
e de atendimento às mulheres, a exemplo do SOS Corpo, de Re-
cife (1978) e de São Paulo, Campinas e Belo Horizonte (década
de 1980), é exemplo dessa mudança de agir político.
A necessidade de resistência feminina e luta por direitos
tem raízes na omissão do Estado em tratar dos crimes de gênero
e mesmo na demora a conceber o estudo de uma criminologia
voltada às mulheres. Nesse sentido, o livro Criminologia e femi-
nismo retrata o paradigma da ciência moderna, que assegura e
esconde a dominação masculina. Na criminologia, o estudo da
mulher como vítima ou autora de crimes era negligenciado até
o início dos anos 1970 (Baratta, 1999).
O Direito tem caráter androcêntrico porque se de-
senvolveu em conceitos masculinos, excluindo critérios
de ação extraíveis dos femininos. Para Alessandro Baratta
(1999), o sistema de justiça criminal integra o sistema de
controle social informal, já que este se volta às intérpre-
tes de papéis femininos na medida em que possuam uma
relevância tal que os impeça de serem controlados apenas
pelo patriarcado privado. Interessa ao patriarcado que es-
sas mulheres sejam controladas também na esfera pública.
73
Para Leila Linhares Barsted (2011), a existência de orga-
nizações e movimentos de mulheres possibilitou a constituição
de um sujeito coletivo que alargou o campo democrático no
Brasil. A luta legislativa por igualdade, inclusive nas relações
familiares, rompia gradualmente com a lógica patriarcal da
subordinação feminina. A conquista de direitos formais, cujo
exemplo é a própria Lei Maria da Penha, é processo político e
resultado de lutas. O mesmo se diz da tipificação do feminicídio.
Muito embora seja relevante compreender de onde vem a lei, a
luta feminista não se esgota no reconhecimento formal de direi-
tos, especialmente porque a declaração de direitos não traz de
imediato seu usufruto ou a ampliação do poder de decisão das
mulheres sobre suas vidas.
Destarte, a Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006 –, para
além de seus efeitos legais, representa o resultado de uma bem-
-sucedida ação de advocacy feminista voltada para o enfrenta-
mento da violência doméstica e familiar contra as mulheres. A
lei acompanha a posição das Nações Unidas e de organismos e
instituições de direitos humanos ao ampliar o conceito de segu-
rança por meio do adjetivo “humana”. Sobre o tema, enfatiza a
autora Leila Linhares Barsted (2011, p. 17):
74
e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém
de Pará, OEA, 1994), a Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, ONU,
de 1979) e a Constituição Federal (Brasil, 1988). Pode-se dizer
que a nova legislação tem como paradigma o reconhecimento
da violência contra as mulheres como uma violação dos direitos
humanos (artigo 6º da Lei 11.340/2006).
75
a violência contra a mulher assume os moldes de uma guerra
civil permanente: segundo o Mapa da Violência 2015, o Brasil
está entre os países com maior índice de homicídios femininos
(Waiselfisz, 2015).
Nove anos depois da promulgação da Lei Maria da Pe-
nha (Brasil, 2006), sancionou-se a Lei 13.104/2015, alterando
o artigo 121 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) e o
artigo 1o da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o
feminicídio no rol dos crimes hediondos e prevê-lo como cir-
cunstância qualificadora do crime de homicídio. Nesse diapa-
são, a qualificadora não incide sobre um aspecto meramente
biológico, mas constitui crime de gênero: regime de vida do pa-
triarcado e construção sociológica.
Segundo a nova lei, a comprovação da violência
de gênero prescinde prova inequívoca. Comprovada essa
circunstância, não se pode mais invocar o motivo torpe. O
regime inicial de cumprimento da pena do feminicídio é o
fechado, e o tempo de reclusão, de 12 a 30 anos. A lei estabelece
que, quando o homicídio de mulher acontece por "razões de
condição de sexo feminino", o crime será hediondo e merecerá,
portanto, maior reprovação por parte do Estado. São previstas
ainda agravantes quando o crime envolver situações específicas
de vulnerabilidade, como a gravidez, por exemplo. Segue a
disposição dos agravantes na Lei do Feminicídio:
76
(2007), Equador, El Salvador (2012), Guatemala (2008), Honduras
(2013), México (2012), Nicarágua (2012), Panamá (2011), Peru
(2011) e Venezuela (2014). A adoção de lei especial representa
um avanço, nesse contexto, pela maior riqueza de possibilidades
regulatórias: tanto de sanções para reprimir o feminicídio
quanto de normas jurídicas de conteúdo não punitivo com o
intuito de conscientização e promoção de políticas públicas.
O estudo realizado pelo Núcleo de Estudos da FGV
utilizou-se, além da legislação comparada, de uma análise
qualitativa de processos judiciais relacionados aos crimes de
homi¬cídio tentado e consumado de mulheres por meio da
escolha de regiões com altas taxas de homicídio em razão do
gênero. Observou-se que o autor do feminicídio é motivado
pelas manifestações de autonomia ou liberdade em oposição
à tradicional submissão feminina (Machado, 2015). A intenção
de provocar aflição suplementar anterior à morte e o desejo de
aniquilar fisica¬mente a mulher são outros traços identificados
na pesquisa sobre violência doméstica, revelando como a
matança das mulheres por regime de gênero tem forte conteúdo
de punição social e repúdio ao corpo sexado de mulher.
A análise dos processos permitiu delinear duas figuras
socialmente preocupantes: vítimas tornam-se, à luz da justiça,
agres¬soras ou provocadoras enquanto a busca pelo estereótipo
do homem trabalhador e pai de família impede que os crimes de
feminicídio sejam quantificados. É a reprodução, no judiciário,
do regime de vida gênero que concentra a violência sobre os
corpos femininos.
Discutida a tipificação e identificada a mulher como
potencial vítima, temos que compreender a existência de outros
regimes de vida para além do gênero. Nesse contexto, é errônea
a categorização da mulher em um único grupo, pois diversas
são as pautas dentro do feminismo e da defesa dos direitos das
mulheres. Em "Nomear feminicídio: conhecer, simbolizar e
punir", Diniz explana que […] o patriarcado é um marco de poder,
com diferentes regimes de governo pela subalternização, pela
vigilância e pelo castigo. O gênero é só um deles; a colonialidade,
a classe ou a cor são outros" (2015, p. 2).
77
Tanto isso é verdade que, em estudo feito pela autora
na capital federal, com base em dados colhidos nos arquivos
do Instituto de Medicina Legal, do Ministério Público e da Polí-
cia Civil e do Judiciário entre 2006 e 2011 sobre homicídios de
mulheres por violência doméstica e familiar, a probabilidade de
uma mulher negra ser morta pelo feminicídio é três vezes maior
do que as de uma mulher branca, sobretudo em áreas de subal-
ternização (Diniz, 2015). A conclusão é de que o patriarcado
atua com outros mecanismos de subalternização e vigilância em
interseção, como a cor ou a geografia. Corrêa (2001) sugere que
esta é a razão da evidência dos estudos sobre o corpo na agenda
dos estudos de gênero: é no corpo que essas marcas classifica-
tórias são impressas.
Nesse ínterim, o próprio patriarcado deve ser entendido
como múltiplo, para que a generalização dos sujeitos da prática
não impeça a observação da realidade. Em mesmo entendimento
se posiciona a socióloga Heleieth I.B. Saffioti, segundo a
qual a violência de gênero se insere em um quadro complexo
com fenômenos de divergentes naturezas e capacidades de
determinação. Homogeneizar uma realidade complexa significa
reduzi-la. Explana Saffiotti: "se é verdade que a ordem patriarcal
de gênero não opera sozinha, é também verdade que ela
constitui o caldo de cultura no qual tem lugar a violência de
gênero, a argamassa que edifica desigualdades várias, inclusive
entre homens e mulheres" (2001, p. 133).
Isto posto, cabe advertir à leitora que a sociedade
patriarcal constitui estrutura complexa graças à intercalação
de três categorias: gênero, etnia e classe. Entendemos, com
Saffiotti (2001), que o patriarcado é poderoso justamente por
utilizar diferentes asseclas garantidoras de seus privilégios e
mantenedores da ordem de gênero. Para a autora, o conceito de
dominação-exploração ou exploração-dominação implica duas
dimensões, a da dominação e a da exploração, em uma realidade
una – um único processo com duas dimensões complementares.
Como vimos, a força da ordem masculina para Bourdieu
78
(2002) situa-se no fato de não necessitar justificar-se. A visão
androcêntrica se impõe como neutra e não tem necessidade de
se enunciar para se legitimar. A ordem social funciona como
uma imensa máquina simbólica, ratificando a dominação
masculina na qual se funda: é a divisão social do trabalho, a
distribuição muito restrita das atividades atribuídas a cada sexo.
Assim, deve-se assimilar que a dominação constitui per si uma
violência: a violência simbólica atua por meio da adesão que o
dominado cede ao dominador dia após dia.
Dessa forma, o poderio masculino atravessa todas as
relações sociais e torna-se objetivo, traduzindo-se em estruturas
hierarquizadas, em senso comum. É bem verdade que há luz
no fim desse túnel: nem todo conhecimento é determinado
pelas lentes do gênero. Mulheres podem oferecer resistência ao
processo de exploração-dominação nas relações de gênero, mas
também atingindo as dominações étnicas e as de classe.
Digno de nota também é o posicionamento da
antropóloga e deputada Marcela Lagarde y de Los Ríos (2008),
que diferenciou femicídio de feminicídio. Enquanto o primeiro,
homólogo de homicídio, é neutro, "feminicídio" seria o vocábulo
mais adequado, denunciando o Estado omisso e nomeando as
diversas violações dos direitos das mulheres unicamente em
razão do gênero. De acordo com a autora,
79
movimento recorreram aos organismos internacionais civis e
institucionais.
No estudo realizado por Diniz (2015), a tipificação do
crime de feminicídio possui três efeitos esperados: nomear,
simbolizar e punir. Nomear, enquanto ato político, tem o viés
de tornar pública a morte evitável de mulheres pelo regime
de gênero. Nomear para simbolizar, por sua vez, corrobora o
entendimento de que o tipo penal genérico homicídio oculta
a matança de mulheres e, portanto, tipificar significaria
desnaturalizar a matança. Em aspectos práticos, inexistem
evidências de conexão entre esse jogo performativo de
enunciação e simbolização e a alteração efetiva do regime do
gênero. Nos dizeres de Diniz, no entanto, "feminicídio, em vez
de homicídio, permitiria que o horror da matança ganhasse
texto, envergonhasse os matadores e alterasse o regime político
que o sustenta" (2015, p.3).
Como último efeito, tipificar para punir possui duas
correntes (Diniz, 2015). A primeira sustenta ser o regime do
gênero um modulador para o tipo genérico do homicídio, o que
exigiria aumento de pena. Nessa corrente, nomear significaria
punir. A segunda pressupõe ser o homicídio um tipo genérico
neutro que encobre a matança de mulheres. Com isso, tipificar
o feminicídio seria punir com efetividade. O efeito da nomeação
como punição encontra terreno sobretudo em autoras que
entendem ser o Estado leniente em relação aos crimes de gênero.
Vera Regina Pereira de Andrade (1999), no já citado livro
Criminologia e feminismo, defende que o debate de criminologia
e feminismo no Brasil (pauta que inclui a violência de gênero)
deve situar-se fora do sistema penal. Isso porque nosso país
sofre uma crise de legitimidade desse sistema, que não cumpriu
as promessas feitas à modernidade – promessas de proteção
dos bens jurídicos, de uma aplicação igualitária das penas e
de combate à criminalidade. Segundo a autora, a crise do (sub)
sistema penal confunde-se com a crise do próprio monismo
jurídico, que mistura Estado e lei. Esse paradigma abordado
80
por Andrade conversa com a conclusão de Diniz (2015) – a
"nomeação de feminicídio para apreender" –, na medida em
que, para ambas, não é o encarceramento a solução para dirimir
a violência de gênero.
Foi com esse intuito de ir além da punição que Sinara
Gumieri (2013), em trabalho orientado por Diniz, analisou
35 processos judiciais com trânsito em julgado relativos a
homicídios de mulheres em situação de violência doméstica
e familiar no Distrito Federal entre 2006 (após a sanção da
Lei Maria da Penha) e 2011. O foco da sua pesquisa não foi a
violência doméstica homicida como realidade complexa de
muitas mulheres, mas sim suas versões judiciais. Nesse sentido,
Gumieri ressalta que os estereótipos de gênero tendem a apagar
características individuais das pessoas, negando direitos e
reforçando hierarquias de gênero:
81
CONSIDERAÇÕES FINAIS
82
REFERÊNCIAS
83
DINIZ, Debora. Nomear feminicídio: conhecer, simbolizar e
punir. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 114, p. 225-239,
2015.
84
emergente. Série Antropología, n. 401, Brasília: UnB, 2006, p. 1-11.
85
IV
Introdução
Em dezembro de 1992, o assassinato de Daniella Perez
chocou o Brasil, não apenas pela forma bárbara do crime, como
– e talvez principalmente – pelo fato de serem, a vítima e o réu,
figuras públicas.
Na época com 22 anos, Perez era atriz e trabalhava na no-
vela De Corpo e Alma, escrita por sua mãe, Glória Perez, e trans-
mitida no chamado “horário nobre” da Rede Globo de Televisão.
Percebe-se, portanto, o amplo alcance da figura de Daniella. De
acordo com o então promotor a frente do caso, José Muiños Piñei-
ro, em entrevista ao jornal O Globo (2012),
era a primeira vez que não era necessário explicar aos jurados
quem era a vítima, [...] Daniella Perez estava todos os dias na
novela das oito, era como se fosse a irmã ou a filha de todos os
brasileiros
86
O réu, Guilherme de Pádua, também era ator e, na época,
contracenava com Daniella. O réu, Guilherme de Pádua, também
era ator e, na época, contracenava com Daniella.
Pádua cometeu o crime com o auxílio de sua esposa, Paula
Thomaz. Daniella foi vítima de uma emboscada planejada pelo
casal e morreu apunhalada 18 vezes com uma tesoura. Contudo,
apesar da comoção ocasionada pelo crime, os réus só foram julga-
dos cinco anos após a ocorrência, em 1997.
Explica-se que em 1990, o então presidente Fernando
Collor havia sancionado a lei nº 8.072 que classificava alguns cri-
mes como hediondos, de forma que esses eram inafiançáveis e não
permitiam o benefício de progressão da pena. Todavia, o assassi-
nato não estava incluso nessa lei, facilitando a postergação de um
julgamento por esse crime.
Por esse motivo, a mãe da vítima, que também é uma fi-
gura pública, passou a questionar o monopólio jurídico do Estado.
Segundo relatos próprios feitos em seu site, Glória Perez aliou-se
a outras mães em situação semelhante e juntas começaram uma
campanha para recolher assinaturas apoiando uma emenda legal
que tornava o homicídio qualificado também um crime hediondo.
Aproximadamente 1,3 milhões de pessoas, em um período de três
meses, assinaram a proposta, que foi levada à votação no Con-
gresso pelo senador Humberto Lucena.
As ações de Perez encontram suporte na Constituição Fe-
deral de 1988, que prevê em parágrafo único de seu art. 1º que
“todo poder emana do povo, que o exerce por meio de represen-
tantes eleitos ou diretamente, nos termos dessa Constituição”
(BRASIL apud OLIVEIRA, 2012, p. 21). E continua, em seu art. 14:
(...)
87
retroage para punir. Assim, Pádua só foi apenado em 25 de janeiro
de 1997, quando se iniciou no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro o
julgamento que o consideraria culpado.
A sentença proferida pelo juiz esteve em harmonia com o
que se reivindicava socialmente, tendo a condenação sido aplau-
dida pelos presentes. Nesse sentido, vale destacar o apoio geral
destinado à causa, mas também é importante observar a singu-
laridade desse fato. Como exposto anteriormente, Glória Perez
juntou-se a outras mães com o mesmo clamor, visibilizando seus
anseios. Questiona-se se tais mulheres teriam qualquer poder dis-
cursivo não fosse à condição de Perez como novelista da maior
rede televisiva do país.
Portanto, o presente artigo discute o poder da ação co-
municativa associado às conquistas sociais, sem esquecer-se da
relativização desse poder e discutindo centralmente suas implica-
ções na divisão do trabalho jurídico. Analisar-se-á o caso e seus
efeitos, segundo teorias de Beck (1995), Bourdieu (1989) e Haber-
mas (1997), fomentando uma argumentação que reflete a ação co-
municativa como instrumento essencial para o desenvolvimento
do Direito, já que ela possibilita maneiras de infiltrar-se no campo
jurídico sem, contudo, afetar a autonomia deste.
88
Além disso, a retórica do Direito está organizada para
neutralizar e universalizar as regras, criando um locutor suposta-
mente imparcial e partindo de um pressuposto consenso ético. Ao
passo que a neutralidade e a universalidade são necessárias para a
oficialização da resolução de conflitos, essas também contribuem
para o desvio entre a visão popular e a especialista sobre os prin-
cípios legais instituídos pelo Estado.
Deve-se explicitar que a distância entre leigos e doutos é
importante para a manutenção de um poderio estatal simbólico.
Explica-se, segundo Bourdieu, que “o poder simbólico é, com efei-
to, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumpli-
cidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou
mesmo que o exercem” (1989, p. 7).
Dessa forma, a ordem jurídica traduz em dispositivo ofi-
cial relações de força preexistentes, perpetuando uma definição
do mundo social conforme interesses legitimados na figura do
Estado, mas muitas vezes distante da realidade social dos com-
ponentes desse mesmo. Portanto, os locutores imparciais e os
consensos éticos supracitados não se mostram de fato neutros ou
universais.
Por isso, Glória Perez sentiu a necessidade de questionar
a lei nº 8.072 (lei de crimes hediondos), adentrando o campo ju-
rídico com reivindicações pessoais, mas também populares, apro-
ximando-o de uma realidade social que, muitas vezes, é excluída
da formulação legal. Aqui, o desenvolvimento do Direito ocorreu
em um sentido de confrontação entre texto e realidade. Bourdieu
comenta que
89
as realidades sociais de que tais procedimentos são tidos por
expressão e regulação (1989, p. 253).
2 MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO
90
mento social (BECK, 1995). Assim, observa-se a presença de pon-
tos indispensáveis para a compreensão desse fato na obra do soci-
ólogo alemão Ülrich Beck, destacando-se dentre eles a subpolítica,
a mesa redonda e a reforma da racionalidade.
O primeiro aspecto observado no caso dialoga com o
conceito de subpolítica. Ressalta-se que “subpolítica [...] significa
moldar a sociedade de baixo para cima” (BECK, 1995, p. 35), sendo
importante frisar que “no despertar da subpolitização há oportu-
nidades crescentes de se ter uma voz e uma participação” (BECK,
1995, p. 35). Nesse sentido, o espaço aberto à população ordinária
para interferir na estrutura judicial revela o aspecto subpolítico
da participação social no caso em questão.
Portanto, cabe apontar que o caso Daniella não foi o úni-
co em que houve o elo entre clamor social e mudanças jurídicas (e
políticas). À exemplo desse, foram conquistadas outras emendas
populares, como a lei complementar 135/2010 (lei da Ficha Lim-
pa), que proíbe
91
especialistas ocasionam prejuízos; os benefícios e malefícios não
conseguem ser distribuídos equitativamente, sendo necessária a
intervenção da técnica da mesa redonda, responsável por demo-
cratizar a participação nas tomadas de decisão, criando um siste-
ma legítimo onde a população leiga tem progressivamente mais
participação.
Destaca-se a importância do código comunicativo para o
alcance desse aspecto, já que é ele o responsável por produzir “o
centro do qual se originam os projetos de realidade e as oportuni-
dades para a realidade dos subsistemas” (BECK, 1995, p. 46), que
inicia um processo de reforma da racionalidade que se contrapõe
aos sistemas de monopólio especialista.
Como adiantado, a subpolítica insere oportunidade de
expressão no âmbito político aos agentes externos a essa esfe-
ra. Todavia, não é possível discutir satisfatoriamente esse assunto
sem levantar o problema dos discursos ignorados, ou que tiveram
pouco alcance social, e debater quais as causas do insucesso des-
ses discursos. Essa é uma discussão de um segundo momento, mas
cabe adiantar que a relatividade do poder discursivo se associa a
valores morais, portanto, valores sociais.
A partir da importância atribuída à participação social
nas diversas instituições e dispositivos jurídicos, e às críticas des-
tinadas aos sistemas que excluem membros da sociedade dessa
participação, apreende-se que o Direito regulado pela voluntas
populi, parece o melhor e mais evoluído dos Direitos.
Contudo, esse pensamento, que é lugar comum para boa
parte da população brasileira, configura-se muito perigoso, não
apenas pela insegurança jurídica, mas também pela reposição de
um direito repressivo vingativo3 , já que um controle jurídico ad-
vindo da própria sociedade cai em vias de um julgamento moral e
intensamente subjetivo.
Relacionando esse aspecto ao caso citado, vê-se que a po-
pulação pôde intervir no Direito, criando uma emenda popular.
3 (DURKHEIM, 1984) O direito repressivo tem seu ápice na solidariedade mecânica, carac-
terística de sociedades com uma atrofiada divisão social do trabalho, onde os membros da
sociedade partilham de uma consciência comum e o Direito é instrumento para vingança.
92
Todavia, enquanto que para alguns essa situação configura-se em
uma ampliação dos direitos, cabe identificar que houve, na verda-
de, uma limitação dos mesmos, visto que a lei dos crimes hedion-
dos deu mais severidade ao tratamento do homicídio qualificado.
Dessa forma, entende-se que a participação popular é de
grande importância, já que "em uma sociedade sem consenso,
desprovida de um cerne legitimador, é evidente que até mesmo
uma simples rajada de vento, causada pelo grito por liberdade,
pode derrubar todo o castelo de cartas do poder" (BECK, 1995, p.
31). Entretanto, existirá sempre uma conjunção adversativa para
desfazer a pretensa perfeição de dispositivos sociais, visto que
a complexidade e a contingência4 são qualidades intrínsecas à
sociedade.
Compreendeu-se, portanto, que deve haver um cuidado
no entendimento do que representa o poder popular, atentando
para a significação moral desse poder.
93
falhando em lidar com o caráter heterogêneo da sociedade.
Nesse sentido, a razão comunicativa surge como ruptura
desse paradigma, e insere uma racionalidade encontrada, não
nos sujeitos, mas na própria linguagem, o que prova que a razão
comunicativa se encaixa no problema das sociedades complexas,
visto que é capaz de lidar com os fenômenos que ultrapassam os
controles dos indivíduos e das coletividades.
Habermas passa a considerar o egoísmo característico
do homem contemporâneo ao tratar da comunicação, assim,
é pressuposto que os sujeitos 1) buscam fins ilocucionários,
2) reconhecem pretensões de validade criticável, 3) aceitam
obrigatoriedades relevantes às consequências da interação e
resultantes de um consenso (HABERMAS, 1997). Seguindo a
razão comunicativa, a sociedade deixa de ter normas práticas
inquestionáveis e passa a buscar o entendimento através da
linguagem. Completa-se ainda que "os pressupostos idealizadores
sobrecarregam, sem dúvida, a prática comunicativa cotidiana;
porém, sem essa transcendência intramundana, não pode haver
processos de aprendizagem" (HABERMAS, 1997, p. 21).
Portanto, fica claro que quem domina a linguagem e/ou
a comunicação, tem maior controle sobre a racionalidade. Dessa
forma, entende-se o poder de alcance da proposta de Glória Perez,
que contava não apenas consigo mesma enquanto escritora, mas
com a emissora de televisão que ainda a emprega. Perez tinha por
duas vezes domínio da comunicação, de modo a exercer ampla
influência sobre o público.
Destaca-se ainda que quem não detém mecanismos para
construir e difundir um discurso dificilmente terá reivindicações
aceitas ou até mesmo consideradas socialmente.
94
despertando indignação e até tristeza. A emenda popular
aprovada não deixa de refletir os sentimentos de grande parcela
da população na época, dado o status da violência no Brasil,
e, a partir de então, orientar dispositivos para supostamente
reduzir esse problema.
Entretanto, é evidente que nem todos os homicídios são
tratados da mesma forma. Exemplifica-se usando o contraste
entre o caso em questão, que tem como vítima Daniella, mulher
branca e famosa, e o caso de Victor Pinto, índio do povo Kaingang
de apenas dois anos de idade morto violentamente no dia 30 de
dezembro de 2015. Não se discute o teor hediondo de ambos os
casos, mas a visibilidade de um e a invisibilidade de outro. Há uma
simbologia construída no meio social, através dos costumes e da
moral, mas que se concretiza, finalmente, como um valor atribuído
a diferentes seres humanos de acordo com seus privilégios ou a
falta deles.
Devido a tais valores sociais, existe uma relativização
de discursos, ordenados segundo uma importância subjetiva.
Mesmo que isso limite o acesso ao discurso jurídico, não impede
que minorias sejam de fato ouvidas. Percebe-se ainda que figuras
públicas per si não têm garantia de um poderio discursivo, pois
esse está vinculado principalmente a mídia.
Dessa forma, constata-se que, ainda que a razão
comunicativa esteja disponível a população, seu poder de
utilidade está limitado ao valor que se atribui a cada enunciador
do discurso. Por esse motivo, muitas vezes, é preciso encontrar
alguém que represente seu ponto de vista. Glória Perez não era
apenas mais uma mãe desconhecida vivendo seu luto, ela pôde
difundir sua ideia, seu discurso, conseguindo amplificar a voz de
outras um milhão e trezentas mil pessoas. Entende-se que:
95
tampouco revela se elas, apoiadas nesse substrato material,
produzem por si mesmas a necessária lealdade das massas
(HABERMAS, 1997, p. 62).
Assim,
96
entre Estado e sociedade, visto que os debates, frutos do agir
comunicativo racional, que contam com a interferência dos
indivíduos, desenvolvem-se nessa esfera. É ela a responsável
por criar discussões a respeito do poder político e, dessa forma,
representar a busca pela democratização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
97
Assim, confunde-se essa intervenção com o fim da
autonomia jurídica. Porém, como assegura Bourdieu, existe
"um universo social relativamente independente em relação às
pressões externas, no interior do qual se produz e se exerce a
autoridade jurídica" (1989, p.221).
Portanto, conclui-se que a razão comunicativa é essencial
para entender como funciona a participação popular no meio
jurídico. Por meio do caso trabalhado, nota-se a tarefa dos três
autores propostos de elucidar como se organiza o campo jurídico,
verificar qual a necessidade e de que forma se dá a interferência no
monopólio do Direito e entender como a ferramenta fundamental
para essa interferência, o discurso, varia de acordo com o status
social de seu enunciador.
98
REFERÊNCIAS
BRUM, Eliane. 1500, o ano que não acabou. El País. 04 jan. 2016.
Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/04/
opinion/1451914981_524536.html>. Acesso em fev. 2016.
99
PEREZ, Glória. A emenda popular. Disponível em <http://www.
daniellaperez.com.br/?page_id=591>. Acesso em 25 de fev. 2016
100
V
Introdução
A modernidade ludibriou a sociedade fazendo com
que ela acreditasse que poderia produzir discursos uníssonos,
determinados e tivesse medo das suas divisões e conflitos. O
modelo hegemônico de ensino jurídico, influenciado pelo mito
da neutralidade da ciência moderna e do saber absoluto, tem
formado juristas insensíveis e desencantadas3, que são incapazes
de enfrentar novos conflitos sociais e de contribuir para a geração
de uma sociedade democrática na concretude das vivências
101
cotidianas.
Na busca de práticas capazes de superar esse arquétipo,
pretende-se, então, por meio da análise do filme A Garota
Dinamarquesa e de uma revisão bibliográfica, a partir dos marcos
teóricos do ensino jurídico, da educação e dos direitos humanos,
compreender como a arte, em especial, o cinema, pode contribuir
para a retomada da sensibilidade no ensino jurídico e para a for-
mação de profissionais capazes de estabelecer novas formas de
relação com as instituições e o outro (WARAT, 1992).
A escolha da obra a ser analisada seu deu em razão de
sua difusão no circuito global de cinema, o que garantiu sua exi-
bição em um número maior de salas, e atingir uma multiplicida-
de de públicos, que a maioria dos filmes que retratam a temática
da transgeneridade costumam alcançar. O filme foi indicado em
quatro categorias na 88ª premiação da Academy Awards (Oscar
2016)4, vencido o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante, e a três no
Golden Globe Award no mesmo ano5. Trata-se, então, de produção
de repercussão mundial e, portanto, com grande capacidade de
influenciar no imaginário instituído.
Nesse sentido, questiona-se: como o filme A Garota Di-
namarquesa pode contribuir para a recuperação da dimensão
política do ensino jurídico e a construção de uma sociedade que
comporte as subjetividades de todas? Durante o estudo, o ponto
central que se apresenta é o do potencial da arte, através da sen-
sibilidade, como método de abalo ao senso comum teórico dos
juristas, reconstruir o ensino do direito como prática política dos
direitos humanos (WARAT, 1997; 2004b; 2010b).
102
Os cursos jurídicos no Brasil se caracterizam por uma
relação de exterioridade entre suas docentes e discentes com o
mundo, fazendo-os não se reconhecer enquanto partícipes da
construção da sociedade. São, por essa razão, terras férteis para a
despolitização do direito e o desprezo ao diálogo sincero e à plu-
ralidade, ou seja, à pedagogia da indiferença. Baseado em saberes
monodisciplinares, seu ensino dissocia a teoria da prática, a razão
da sensibilidade, desestimula o pensar criativo, e resiste a uma re-
novação pedagógica (AGUIAR, 2004). Desse modelo resulta uma
formação deficiente para as estudantes que não são capacitadas
para atender a novas demandas da sociedade (AGUIAR, 2004),
porque não compreendem a si e ao mundo em que vivem.
Essa exterioridade não contribui com a formação das
estudantes, pelo contrário. A presença de seres humanos no mundo
leva-as a pensarem a si mesmas, se saberem presença, intervirem,
transformarem, sonharem, constatarem e compararem (FREIRE,
2015), o que as permite entenderem a si, aos outros e ao mundo,
habilidades essenciais à prática e à ciência jurídica. Sem isso, não
é possível encontrar pontos comuns de discussão e respeitar a
intimidade do outro (WARAT, 2010a), e a existência do diferente.
A busca pelo diálogo e pela aliança entre diferentes, sem
os uniformizá-los, revela-se um elemento substancial à retomada
da dimensão política do ensino do direito para a superação
da pedagogia da indiferença, regra nas Faculdades de Direito.
Entende Warat (1992, p. 1) que "política ficaria caracterizada
como o lugar de interpretação e interrogação do modo pelo qual
a sociedade se institui" e, assim, retomar sua dimensão consiste
em permitir o questionamento das certezas do imaginário social
do direito6, e que as formas de discriminação do verdadeiro e
do falso, do normal e do patológico, do justo e do injusto, do
que é lícito ou proibido sejam interrogadas (WARAT, 1992).
Essas arguições, contudo, não são unilaterais; elas devem
6 A ideia de imaginário social do direito dialoga com a discussão de imaginário como "cria-
ção incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/for-
mas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de ‘alguma coisa’" (CASTORIA-
DIS, 1982, p. 13). Assim, haveria um imaginário sobre o direito e suas práticas, localizado
entre o simbólico e o real, que influi como as pessoas (em especial, os juristas) percebem e
agem no mundo.
103
ocorrer a partir do espaço público (WARAT, 1992; 1997), isto é, de
um lugar de que toda a sociedade participe, em sua diversidade,
construindo a democracia. São, então, reflexões que extrapolam
os limites das Faculdades de Direito e buscam sua integração com
o todo. Para se pensar a construção de um imaginário democrá-
tico, faz-se necessário construí-lo com base n'a autonomia e na
busca da emancipação social; nesse processo, os direitos humanos
precisam ser constitutivos desse espaço público.
Há, contudo, de se encarar os direitos humanos para além
do seu universalismo normativo, que sustentam as diversas decla-
rações historicamente proclamadas, e compreendê-los enquanto
forma de construção da dignidade, com participação plural das
pessoas, que levam suas lutas e reivindicações do que consideram
dignidade humana. Essa perspectiva reconhece o caráter político
dos direitos humanos edificada na pluralidade, sem desconsiderar
sua discursividade, expressividade e normatividade; isto é, sem
abandonar os enunciados normativos, mas os querendo como fru-
to da coletividade, a partir das lutas sociais (HERRERA FLORES,
2002; 2009).
Para Warat (1997) esses direitos humanos consistem em
lutas contra todos os modos e formas de exclusão social, para par-
ticipar do espaço público e pertencer à sociedade política; rein-
vindicações de ter direitos, do reconhecimento das diferenças e de
produzir autonomamente os caminhos de sua existência7. Nessa
ideia, há um caráter de indeterminação como essencial à constru-
ção de um imaginário democrático e à preservação da existência
plena.
Nesta perspectiva é que surge o sentido do ensino do direito
como prática política dos direitos humanos. Ele é concebido
como um espaço político de debates ilimitados e indeterminados;
como um espaço do devir sem fronteiras; como a matriz de uma
dinâmica que ultrapassa os internos de impor limites pelo saber
e suas idealizações perfeitas e fracassadas. Porque se aprende o
direito entregando suas certezas à morte (WARAT, 1997, p. 53).
A reconstrução do ensino do direito enquanto prática
104
política dos direitos humanos consiste na solidificação do seu
comprometimento com o que é produzido no espaço público e com
o um imaginário democrático fundado na diferença. Isso implica no
fim do autoritarismo na relação docente-discente; na reformulação
pedagógica dos cursos de direito, para que se tornarem espaços
de criatividade e singularidade; na composição paritária e
diversificada das instâncias universitárias; na reforma dos projetos
pedagógicos dos cursos, que deixariam de se organizar apenas
com base na legislação, e abordariam temáticas pertinentes à
sociedade. Interferindo diretamente no imaginário do direito, essa
reconstrução produzirá, na prática judiciária, a implicação do juiz
e dos demais sujeitos com os conflitos, superando a imparcialidade
moderna, e adotando a perspectiva de sensibilidade (WARAT,
2010b); e, como consequência, o aumento da legitimidade social
das decisões judiciais, mais atentas ao contexto social em que
serão inseridas.
Nesse caminho, práticas de abalo (WARAT, 1997) ao senso
comum teórico dos juristas (SCTJ) – entendido como versões
de um saber como as únicas aceitáveis, com a pretensão de
estabelecê-las como desenhos naturais do mundo; são discursos,
ritos e padrões forjados na práxis jurídica que ratificam um
imaginário do direito construído a partir de crenças em verdades
reveladas e valores banalizados (WARAT, 1997; 2004b; 2010a) –
são fundamentais à recuperação da dimensão política da educação
jurídica e à reconstrução do ensino do direito como prática política
dos direitos humanos.
105
e as razões insensatas que saturam os espaços político e social.
Ela só se realiza com a reinvindicação de uma intervenção terna
nas relações discursivas à procura da diferença, da singularidade
e do desejo reprimidos do espaço público (WARAT, 1997).
Com esse propósito, a arte pode ser utilizada como
prática de abalo, por ser uma forma de redescoberta da própria
sensibilidade, esta como uma forma de compreensão além
do pensamento, que entende que o corpo compreende e se
comunica com outros corpos. Para atender as demandas sociais
que surgem todos os dias, as estudantes de direito necessitam
manter um espírito sensível às reivindicações das excluídas
(WARAT, 2010a).
Durante sua formação, as estudantes possuem pouco
contato com outras formas de conhecimentos, especialmente os
artísticos, que lhes possibilite uma percepção mais sensível do
mundo (AGUIAR, 2004). As artes, e em especial, o cinema, são
capazes de estabelecer um "entre-nós" (WARAT, 2010b), e despertar
alteridade nos interlocutores. Essa comunicação, ao trabalhar a
realidade, ao deslocar o olhar do espectador, ao fazê-lo observar
a condição de vida daqueles que estão em permanente estado de
exclusão, é capaz de sensibilizar e de levar ao reconhecimento dos
direitos dos outros.
Através da utilização cinematografia como prática de
abalo, as discentes podem aprender com as produções, usufruir
mais intensamente da emoção que elas provocam, interpretar
suas imagens, refletir a partir delas, reconhecer valores diferentes
e questionar os seus próprios (DUARTE, 2009). Assim, o cinema é
capaz de proporcionar a abertura do ensino à dimensão política,
possibilitando um aprendizado mais autônomo e a superação do
senso comum teórico dos juristas.
O cinema atua densamente na construção do imaginário
social, na aceitação ou repressão de concepções presentes no
espaço político. Possui o potencial de reafirmar ou transgredir8
padrões, verdades, ritos e discursos a partir das relações entre
8 "Transgredir é corroer por dentro, é riscar lentamente os pilares estruturantes até que
sua reparação não mais seja possível" (ROCHA; FAZIO, 2011, p. 14).
106
produção-espectadores e espectadores-espectadores, utilizando-
se de elementos como roteiro, fotografia, figurino, trilha sonora,
direção e atuação. "O mundo do cinema é um espaço privilegiado
de produção de relações de sociabilidade" (DUARTE, 2009, p. 16).
Consiste, o cinema, em um dos elementos que ainda
mantém a ternura necessária para executar as tarefas de conceber
os espaços da família e do trabalho como lugar de interação política
(SANTOS, 1989) e de sensibilizar a sociedade para reconhecimento
de diretos das excluídas, propiciando condições de sua reinserção
social e sua participação no espaço público (WARAT, 1992; 2010a).
Não se trata meramente de uma tutela de direito por parte do
Estado, mas do reconhecimento dos direitos pela sociedade
(WARAT, 2010a) e da concretização dos direitos humanos na vida
cotidiana das pessoas, na busca de suas dignidades.
Para isso, é preciso que os juristas se reconheçam como
dignos e solidários, pois somente assim eles conseguirão romper
com a indiferença e o autoritarismo do imaginário instituído.
Dignidade e solidariedade são componentes da matriz simbólica
dos direitos humanos e dimensões éticas fundamentais na
geração de uma sociedade plural que respeite às diferenças. A
solidariedade representa o reconhecimento da existência do outro
como diferente e, somente a partir dela, é que se torna possível
a recuperação da dignidade, ou seja, a libertação da opressão
(WARAT, 1997).
O ensino jurídico, para responder à formação de uma
pedagogia da dignidade e da solidariedade social, precisa
estar comprometido com os direitos humanos e entender que
somente a racionalidade não é capaz de formar profissionais
comprometidos com a geração de um outro modelo de sociedade.
As Faculdades de Direito precisam formar estudantes sensível,
pois é com a sensibilidade que elas serão capazes de entender o
sentido da dignidade, quando sentirem a necessidade de cuidar
da dignidade, da sua e da do outro. A utilização da arte dentro do
ensino jurídico cumpre o papel de diminuir a distância ilusória
que a modernidade criou entre a racionalidade e a sensibilidade
(WARAT, 1997; 2004a).
Em A Garota Dinamarquesa, conhece-se a história de Lili
107
Elbe que, em 1931, tornou-se a primeira mulher a se submeter à
cirurgia de redesignação sexual. Assim, analisar-se-á se a obra,
ao contar a história daquela que transgridiu a cisnormatividade,
contrapôs o ensino jurídico tradicional, em seu paradigma
liberal-conservador, de modo a retomar da sensibilidade e formar
profissionais capazes de estabelecer novas formas de relação com
as instituições e o outro, e de questionar o direito posto. E, mais
especificamente, se foi capaz de envolver as espectadoras na luta
das pessoas que não possuem o direito de desenvolver livremente
sua subjetividade, levando-as a superarem o seu contexto
existencial e inserirem-se nessa realidade, experimentada por
meio do filme (FAZIO; ROCHA, 2011).
108
guir se envolver com outro homem e, por fim, de presenciar o
difícil processo da cirurgia de redesignação sexual de Lili Elbe.
A união entre a capacidade do cinema de sensibilizar, a
habilidade do ator em transmitir as emoções de Lili e a qualidade
da fotografia, em momentos cruciais à construção da identidade
da personagem, salienta a aptidão do filme em emocionar e em
levar a sua espectadora a desenvolver a alteridade. O corpo
de Lili Elbe é capaz de comunicar ao público uma profusão de
sentimentos. A Garota Dinamarquesa desafia a insensibilidade
que é regra da modernidade. E, ao aliar a atuação de Eddie, a
fotografia e a trilha sonora, Tom Hooper constrói cenas que
se constituem em verdadeiros manifestos de reivindicação da
arte como forma legítima de pensamento para compreender o
mundo (WARAT, 2010a) e para traçar o caminho de abertura a
novos paradigmas sobre a transgeneridade.
O filme retrata diversos procedimentos aos quais Elbe
foi submetida e, através de um discurso de direitos humanos
a partir da dor (WARAT, 1997), cria uma sensibilização
com osofrimento do outro, mas com potencial limitado de
transgressão da indiferença e do autoritarismo presente no
imaginário instituído. Assim, por mais que o filme leve o
espectador a sentir aversão às restrições de direitos a que ela
foi sujeitada, não necessariamente o leva a superar a dor para
se gerar práticas e discursos de preservação do amor (WARAT,
1997). É preciso criar uma dimensão simbólica democrática
que institua outro imaginário, permeado pela autonomia, pela
ternura e pelo respeito às diferenças para que as pessoas se
permitam vislumbrar a criação de uma nova ordem de sociedade
(WARAT, 1992; 1997) em que as situações que suscitam discursos
de direitos humanos a partir da dor sequer aconteçam.
A obra mostra a realidade europeia, mas o Brasil9,
como mostra Green (2000), em nenhum momento se
9 O Relatório Sobre a Violência Homofóbica no Brasil de 2012, da Secretaria de Direitos
Humanos, e o relatório anual de assassinatos de homossexuais no Brasil relativo a 2015 do
Grupo Gay da Bahia, apontam que foram registradas pelo poder público, em 2012, 3.084
denúncias e 9.982 violações relacionadas à população LGBT (BRASIL, 2013) além da docu-
mentação de 318 mortes de LGBT no Brasil, ou seja, um assassinato a cada 27 horas (BAHIA,
2016).
109
encontrou distanciado das tendências mundiais quanto aos
procedimentos médico-legais executados em quem transgredia
a cisnormatividade e a heteronormatividade. Na década de 1930,
o país importou as teorias sobre a origem da homossexualidade10
vindas da Europa. O modo como esses procedimentos são
retratados abala o imaginário instituído, desloca o olhar
do público e o faz observar que, infelizmente, a situação de
subcidadania ainda é a regra para as pessoas transgêneras.
Hooper produziu um filme apto a sensibilizar as pessoas;
ao vê-lo, é possível perceber o grito, que denunciam a tentativa
de desconsideração das diferenças e as subjetividades de minorias
excluídas do espaço público (WARAT, 1992; 2010a; 2010b). O
cinema mostrou sua capacidade de ecoar os gritos da rua e auxiliar
na trivialização dos direitos humanos (SANTOS, 1989), sem
considerá-los autoevidentes11 (HUNT, 2009). Entretanto, A Garota
Dinamarquesa é um exemplo também da importância de refletir
sobre como se constrói a sensibilidade dentro da cinematografia.
Carol Grant (2015), nesse sentido, critica, principalmente,
as falhas da obra ao desenvolver a narrativa sobre identidade de
gênero, que foi retratada a partir da sedimentação de padrões
de gênero, isto é, um conjunto de comportamentos associados
à masculinidade e à feminilidade que hierarquizam homens e
mulheres, e divide os papeis sociais entre aqueles que podem
ser exercido por homens - os de poder - e aqueles que devem ser
exercido por mulheres - os de submissão.
110
Há, em relação aos padrões de gênero das personagens
femininas do filme, o estabelecimento de arcos completamente
distintos para as mulheres cisgêneras e transgêneras. As
primeiras, nas figuras Gerda Wegener e Oola Paulson, desafiam
os padrões de gênero impostos às mulheres, seus arcos são
desenvolvidos a partir de sua representação como pessoas de
personalidade forte e independente. Entretanto, a construção
do arco da Lili é realizada a partir de uma caricatura de uma
"feminilidade".
O Einar, personagem de Redmaynes, observa movimentos
exagerados de uma stripper cisgênera e imita-os com perfeição,
como se aprende como sensivelmente passar o dorso de sua
mãe no rosto fosse fazê-lo ser uma "verdadeira mulher". Sua
feminilidade é reduzida a caricatura (GRANT, 2015, tradução
livre)13.
111
sensibilizar com a história de Lili e, ao possibilitar ampliar o
"quem somos nós", "nosso tipo de gente", "gente como nós"
(ROCHA; FAZIO, 2011, p. 19-20), condiciona sentimentalmente
o público a, mutualmente, respeitarem suas diferenças (WARAT,
1992). Assim, o espectador sensível constata as incoerências da
concepção sobre o direito do paradigma liberal-conservador.
O contraste inicial entre a realidade apresentada no filme
e a igualdade jurídica formal pode ser o início da ruína das
verdades do senso comum teórico dos juristas; a luta por novos
direitos tenciona para a transgressão dos limites do instituído
como jurídico (WARAT, 1992).
É possível sentir, através da linha narrativa do filme,
que usurpar das pessoas transgêneras o direito ao livre
desenvolvimento da personalidade nega a elas a própria
dignidade e, portanto, os próprios direitos humanos. Neste
sentido, tem-se uma proteção direta do sentimento de ser
humano, ou seja, da sua subjetividade. É possível aprender,
através da emoção e da sensibilidade trazidas pelo filme, que
todas as pessoas são diferentes e há a necessidade de que os
sujeitos autônomos estabeleçam entre si relações onde se
reconhecem reciprocamente como diferentes (WARAT, 1992).
O atual modelo de produção científica, asfixiado em
seus mitos, não é conciliável com um imaginário democrático
instituído por uma sociedade na qual pessoas autônomas se
reconhecem como diferentes e que mutualmente respeitam suas
diferenças. Os diagnósticos de esquizofrenia, homossexualidade
e distúrbio hormonal, impostos a Lili por médicos distintos,
são exemplos da incapacidade do atual modelo de educação e
científico de atender as demandas de pessoas transgêneras.
Essa inaptidão e a insensibilidade para lidar com as
questões ligadas ao gênero não foram superadas. Nas ciências
da saúde, os acadêmicos saem das faculdades sem entender
o caráter fragmentado das identidades na pós-modernidade
(HALL, 2011) e tornam-se profissionais com poder de realizar
"restrições normativas e interdições para o acesso aos
procedimentos que incidem sobre transformações corporais
de caracteres sexuais, intermediando de forma" (LIONÇO,
112
2008), mesmo sem as habilidades humanas necessárias para
isso. Nas ciências jurídicas, os estudantes de direito tornar-
se profissionais incapazes de escutar sentimentos, mas com
poderes de restringir ou de efetivar os direitos subjetivos das
pessoas transgêneras.
Em A Garota Dinamarquesa, o cinema contribui,
enquanto prática de abalo, porque é capaz de criar fissuras
ao imaginário instituído utilizando-se da sensibilidade, para
a integração das pessoas transgêneras como integrantes de
uma comunidade em que todas se reconhecem reciprocamente
como autônomas e diferentes na concretude de suas vivências
cotidianas, permitindo o desenvolvimento das singularidades
humanas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
113
duções de seus filmes; os excluídos precisam ser incluídos no
espaço público e exercer seu direito de contar sua própria histó-
ria. O conhecimento novo, ao ser produzido, supera o outro que
antes foi novo e agora se tornou velho e está aberto a ser ultra-
passado, a qualquer momento, por outro conhecimento (FREI-
RE, 2015). A Garota Dinamarquesa contribui para a produção de
um saber novo dentro do circuito de cinema industrial, mas que
já se faz velho em relação à real demanda de representatividade
da comunidade LGBTTQ.
Nesse sentido, sua utilização no ensino do direito pode
representar abalos aos discursos, hábitos e ritos do senso co-
mum teórico dos juristas em relação às questões de gênero,
mesmo que com ressalvas. A inserção do ensino jurídico na
realidade da transgeneridade fornecerá ao estudante uma for-
mação mais plural, comprometidas com as dimensões éticas da
dignidade e da solidariedade social e, uma habilidade de ques-
tionar suas verdades.
A sensibilidade do filme, em sua capacidade de promo-
ver o reconhecimento do outro enquanto diferente e a recipro-
cidade do respeito às diferenças, colabora para a inclusão das
pessoas transgêneras no espaço público, que poderão participar
da produção da política, interrogando as normas cotidianas da
sociedade, e reivindicar suas dignidades, culminando na cons-
trução de direitos humanos comprometido com todas. Assim, é
por meio da inserção de sua abordagem que transgride a cisnor-
matividade e, em parte, o questionamento do padrão de gênero,
no ensino jurídico que A Garota Dinamarquesa contribui para a
recuperação da sua dimensão política.
114
REFERÊNCIAS
115
Roberto Diogo Garcia; Antônio Henrique Graciano Suxberger e
Jefferson Aparecido Dias.
116
___________________. A fantasia jurídica da igualdade:
Democracia e direitos humanos numa pragmática da
singularidade. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos,
Florianópolis, p. 36-54, jan. 1992. ISSN 2177-7055. Disponível
em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/
view/16138/14691>. doi:http://dx.doi.org/10.5007/16138.
117
VI
Introdução
Observando a complexidade de definição da democracia,
ao fazermos sua análise sob a égide procedimental, verifica-se que
as eleições e os partidos são elementos fundamentais de sua práxis.
Em tese, as eleições trazem consigo a representatividade, na qual
os mais variados grupos e ideologias se expressam no Legislativo,
e a responsividade, em que o representante do Executivo efetuará,
de forma eficiente, as demandas exigidas pela população. Já os
partidos políticos são agentes essenciais no processo democrático,
pois, ao estarem respaldados pelo voto popular, tornam-se canais
de expressão e titularidade de interesses definidos pelos seus
estatutos, representando um vínculo, ainda que questionável,
entre sociedade e Estado.
1 Advogado, Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Mestrando em
Sociologia pela Universidade Federal do Piauí. Email: rhuanpiauilino91@gmail.com.
2 Advogada, Bacharela em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Email: samilleli-
ma@outlook.com.
118
O sistema partidário brasileiro tem como base
constitucional o pluralismo político. Este, por sua vez, encontra no
pluripartidarismo o substrato que norteia o regime democrático
do país. Atualmente, 35 partidos estão registrados no Tribunal
Superior Eleitoral, com registros que datam de 1981 até 2015.
A maioria dos partidos em funcionamento surgiu na década de
1990, período que foi marcado por uma abertura democrática que
refletiu os princípios democráticos estabelecidos pela Constituição
Federal de 1988. Esses partidos caracterizam-se por modificar sua
dinâmica de atuação e projeção política de acordo com o sistema
eleitoral em que estejam disputando, que, no caso do Brasil, são
dois: o sistema majoritário e o proporcional.
Tanto o sistema partidário quanto o sistema eleitoral
brasileiro são alvos dos críticos, que destacam a baixa inteligibilidade
no processo eleitoral e a alta volatilidade eleitoral, gerando
inúmeros questionamentos sobre a fragilidade da integração do
eleitor ao sistema político vigente e a fragilidade ideológica das
agremiações partidárias. Tais fragilidades são oriundas de um
processo histórico de construção da democracia brasileira que, em
poucas décadas, apresenta fissuras e interrupções.
Aludindo especialmente a dinâmica dos partidos políticos
em relação aos sistemas proporcional e majoritário, buscou-
se, neste trabalho, demonstrar e diferenciar o desempenho
dos partidos políticos em razão do cargo disputado, da região
do país, da quantidade de votos obtidos com e sem e analisará
o desempenho dos partidos nas eleições municipais de 2016,
no intuito de estabelecer o painel atual da representatividade
partidária, sob a ótica das principais críticas ao sistema partidário
brasileiro, no que toca à alta fragmentação e à representatividade
inexpressiva dos pequenos partidos políticos.
Para tanto, utilizamos de bibliográfica em periódicos
diversos, com destaque para os trabalhos de Ferreira, Batista e
Stabile, Kinzo e Nicolau e Schmitt, bem como de pesquisa descritiva
e quantitativa, feita pela compilação e análise dos resultados das
eleições de 2016 disponibilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral.
O agrupamento dos dados foi feito em tabelas, figuras e gráficos,
com o uso da técnica estatística de percentagem.
119
1 PARTIDOS POLÍTICOS, SISTEMA ELEITORAL E
A QUESTÃO DA FRAGMENTAÇÃO DO SISTEMA
PARTIDÁRIO BRASILEIRO.
5 Ibidem, p. 116
120
no governo6, bem como o sectarismo intrapartidário como forma
de obtenção de unidade entre filiado7. Segundo Bonavides 8"é o
sistema multipartidário acoimado de emprestar aos pequenos
partidos influência política desproporcionada e incompatível com
a modestíssima força eleitoral de que dispõem, mormente quando
surgem eles por fiel de balança nas competições pelo poder".
O pluripartidarismo brasileiro tem como traço marcante a
fragmentação, que, segundo Kinzo9, seria o reflexo da "acomodação
dos mais variados tipos de disputa intra-elites de caráter regional",
que teria como vantagem a garantia de representação de uma
"ampla gama de grupos políticos organizados em partidos dos mais
variados tamanhos e perfis" e como desvantagem a tendência de
dificultar a formação de maioria no governo "levando à criação de
coalizões muito heterogêneas, com um grande número de partidos
para negociar apoio na formulação e aprovação de políticas".
Atualmente, 35 (trinta e cinco) partidos estão registrados
no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com registros datados entre
1981 e 2015. A maioria dos partidos em funcionamento surgiram
na década de 1990 (16 partidos), seguido pelas décadas de 1980 e
2010, com 8 partidos cada (Gráfico 1).
Gráfico 1 – Registro dos partidos por década no TSE
6 Ibidem, p. 473.
7 JEHÁ, 2009. p. 155.
8 BONAVIDES, 2010. p. 474.
9 KINZO, 2003. p. 16.
121
O funcionamento dos partidos políticos relaciona-se
diretamente com o sistema eleitoral. No Brasil, adotou-se o
sistema proporcional e o sistema majoritário. O primeiro deles
aplica-se nas eleições para as Casas Legislativas federal, estadual
e municipal (com exceção da disputa para o Senado), sendo regido
pelas disposições contidas nos arts. 27, §1º, 29, IV, 32, §3º e 45,
caput, da Constituição de 1988. Passou a ser utilizado a partir do
Código Eleitoral de 1932, com o fito de desarticular as oligarquias
que dominavam o Brasil desde a proclamação da República,
mantendo a conhecida política do café com leite10.
A eleição de um candidato no sistema proporcional
dependerá dos votos recebidos por seu partido ou coligação e do
coeficiente eleitoral, que é calculado dividindo-se o número de
votos válidos apurados pelo número de lugares a preencher em
cada circunscrição eleitoral, enquanto o número de vagas a serem
ocupadas será determinado pelo coeficiente partidário (arts. 106
e 107 do Código Eleitoral Brasileiro). Logo, o partido ou coligação
só elegerá candidato se atingir o coeficiente.
O sistema majoritário funciona nos moldes do art. 77,
§§2º e 3º da Constituição brasileira, aplicando-se aos cargos de
Presidente da República, Governador, Prefeito e Senador. A maio-
ria absoluta é exigida nas eleições para as Chefias do Executivo
nacional, estadual e municipal e seus respectivos vices, nos mu-
nicípios com mais de 200 mil eleitores, e é denominado sistema
majoritário de dois turnos. A maioria simples se aplica nas dis-
putas para o Senado Federal, chefias de estados e municípios cujo
número de eleitores seja inferior a 200 mil, que é denominado
sistema majoritário de um turno11.
O sistema eleitoral e a pluralidade de partidos no Brasil
têm sido alvo de inúmeras críticas em razão do entendimento de
que a alta fragmentação do sistema partidário brasileiro decorre
do sistema eleitoral em uso no país12. Essa fragmentação seria um
122
problema por que a quantidade exacerbada de partidos políticos
em funcionamento desfigura a real função dessas agremiações,
por não possuir identidade ideológica consistente, por não
representar a realidade diversificada da população brasileira.
Uns criticam a mudança de foco na política, pois os
eleitores olham as candidaturas e os candidatos sob a ótica
pessoal13, esquecendo-se que candidatos são filiados a um partido,
cujos posicionamentos devem ser respeitados. Questiona-se,
também, se a grande quantidade de partidos não constituiria um
problema à consolidação democrática.
A fragmentação, segundo Nicolau e Schmitt14 , não
decorreria apenas da representação proporcional, mas de diversos
outros fatores, como a fórmula, a magnitude e o voto preferencial.
Para Kinzo15, não há dúvidas que o sistema brasileiro é um dos
mais fragmentados do mundo, o que não se constitui em um real
problema, desde que não afete inteligibilidade do sistema eleitoral,
que seria a capacidade de produzir opções claras de voto para os
eleitores.
123
De forma diversa, Kinzo17 entende que o sistema
partidário brasileiro não está consolidado e avançou de forma
modesta desde 1985, sendo marcado por "intensa fragmentação,
fragilidade partidária, baixa inteligibilidade da disputa eleitoral e
elevada volatilidade eleitoral". Para a autora, algumas indagações
devem ser suscitadas para uma análise da experiência político-
partidária brasileira desde 1985:
124
tacou-se ocupando 9,08% das prefeituras e 8,19% das cadeiras
de vereadores. Os demais não ultrapassaram a marca de 3% dos
eleitos a ambos os cargos disputados, sendo que PSTU e PCO
não elegeram qualquer filiado, enquanto o PCB elegeu um ve-
reador. Dos registrados na década de 2000, o PR alcançou re-
sultado mais significativo, com 5,40% de prefeitos e 5,21% de
vereadores, enquanto o PSD foi o partido registrado na década
de 2010 com representação mais elevada (9,79% de prefeitos e
8,02% de vereadores), seguido pelo SD (Tabela 1).
125
resultam da transformação de partidos outrora existentes. Por
exemplo, o PSD foi registrado em 2011 e resulta da união de
figuras importantes do Democratas, do PP e do PSDB. Situação
similar foi observada por Ferreira, Batista e Stabile19, que
observaram que, entre 1982 e 2006, os partidos mais longevos
como PMDB, PT, PDT, PTB, PP, PSDB e DEM alcançaram maiores
êxitos na competição eleitoral, conquistando a maioria dos
votos nas eleições para a Câmara dos Deputados, Assembleias
Legislativas, Senado e o Executivo estadual.
No tocante à representatividade partidária por região do
país, observou-se o predomínio do PMDB e PSDB na maior parte
das regiões brasileiras. No Centro-oeste ocorreu o predomínio
do PSDB, tanto nas prefeituras (32,47%) quanto nas câmaras de
vereadores (14,56%), seguido pelo PMDB, PSD, PR, PSB, PP, PDT
e DEM. Os demais 23 partidos, juntos, conquistaram 13,55%
das prefeituras e 32,84% das cadeiras nas câmaras municipais.
No Nordeste, o PMDB com maior representação (14,65% dos
prefeitos e 10,16% dos vereadores), seguido pelo PSD, PSB, PSDB,
PP, PDT, PT e PR. Os demais partidos conquistaram 24,27% das
prefeituras e 41,23% das câmaras de vereadores (Figura 1).
No Norte, o PMDB elegeu 24,94% dos prefeitos e 11,85%
dos vereadores, seguido pelo PSDB, PSD, PR, PP, DEM, PSB,
PDT e PT. Os demais 22 partidos conquistaram 22,72% das
prefeituras e 40,17% das câmaras de vereadores. No Sudeste, o
PSDB e PMDB conquistaram, respectivamente, 18,94% e 17,08%
das prefeituras e 11,74% e 11,23% das vagas para as câmaras
municipais, seguido pelo PSD, PTB, DEM, PSB, PR e PP. Os
demais 24 (vinte e quatro) partidos conquistaram 25,50% das
prefeituras e 40,44% das câmaras de vereadores. No Sul, o
PMDB e PP conquistaram, respectivamente, 25,87% e 17,96%
das prefeituras e 21,18% e 16,19% das vagas para as câmaras
municipais, seguido pelo PSDB, PDT, PSD, PT e PTB. Os demais
25 partidos conquistaram 18,64% das prefeituras e 24,84% das
câmaras de vereadores (Figura 1).
19 FERREIRA, BATISTA E STABILE, 2008. p. 440 e 446
126
Figura 1 - Desempenho dos partidos nas eleições de 2016
por cargo e por região.
127
Figura 1 - Desempenho dos partidos nas eleições de 2016
por cargo e por região (continuação)
Fonte: Elaborado pelos autores com base nos resultados das eleições 2016 disponível no
TSE (2016).
128
Tabela 2 – Quantidade de partidos por cargo e estado que
concorreram e deixaram de concorrer nas eleições de 2016.
Prefeituras Câmara dos Vereadores
Partidos Partidos Partidos Partidos Partidos Partidos Partidos que
que com que não que com que não não lançaram
Estado lançaram candidatos lançaram qualquer
lançaram candidatos lançaram
candidato eleitos candidatos candidato eleitos candidatos candidato
AC 18 9 17 29 22 6 6
AL 31 14 4 32 31 3 3
AM 27 12 8 33 31 2 2
AP 25 13 10 33 29 2 2
BA 33 23 2 33 31 2 2
CE 31 22 4 33 30 2 2
ES 31 16 4 31 30 4 4
GO 30 18 5 32 30 3 3
MA 33 21 2 33 30 2 2
MG 33 26 2 35 32 0 0
MS 28 11 7 33 29 2 2
MT 26 15 9 31 27 4 4
PA 32 15 3 32 31 3 3
PB 29 17 6 32 30 3 3
PE 33 17 2 34 31 1 1
PI 31 23 4 33 31 2 2
PR 32 24 3 35 30 0 0
RJ 34 20 1 35 32 0 0
RN 30 20 5 32 31 3 3
RO 25 14 10 30 26 5 5
RR 25 12 10 32 27 3 3
RS 27 13 8 35 23 0 0
SC 25 10 10 33 24 2 2
SE 30 15 5 33 30 2 2
SP 33 23 2 35 32 0 0
TO 27 21 8 32 29 3 3
Fonte: Elaborado pelos autores com base nos resultados das eleições 2016 disponível no
TSE (2016).
129
(5 estados) e PPL, PRTB e PMB (1 estado cada). Dessa forma, é de
se questionar qual a função de um partido que não lança candi-
daturas e não disputa o poder. Ou ainda que concentra suas can-
didaturas em determinados estados do país. Certamente que não
demonstra ter o caráter nacional necessário para seu registro jun-
to ao TSE, nos termos do art. 7º, § 1º da Lei nº 9.096/1995.
As regras e fórmulas utilizadas no sistema eleitoral ado-
tado no país, como a do quociente eleitoral, a cláusula de barrei-
ra, dificultam o êxito de um partido que dispute, sozinho, uma
eleição, pois nem sempre a grande quantidade de votos obtidos
garantirá cadeiras no parlamento. Isso faz com que a coligação
seja a medida a ser adotada por muitos, tanto para potencializar
o número de eleitos, concentrando a maioria dos votos recebidos,
como para reduzir os custos da campanha.
Em 2016, com exceção do NOVO e do PCO, os demais parti-
dos se uniram para a última disputa municipal, seja na disputa para a
Câmara seja nas Prefeituras. Na disputa para prefeito, alguns parti-
dos optaram por lançar apenas candidaturas em coligações (PC do
B, PEN, PMB, PPL, PRTB, PSC, PSOL, PT do B e PTN). Os partidos
menores que não se utilizaram desse instrumento não obtiveram
êxito na disputa. Quanto aos demais, ficou evidente a importância
da coligação, pois a maioria esmagadora dos votos recebidos e
dos filiados eleitos foi através das uniões partidárias (Tabela 3).
As coligações são responsáveis também por promover
a fragmentação partidária e a eleição de candidatos com
baixa quantidade de votos20, bem como dificultar o processo
de escolha pelos eleitores, especialmente naquelas coligações
inconsistentes, muitas das quais envolvendo partidos com
ideologias totalmente opostas. Para o pleito eleitoral de
2016, partidos com orientações políticas diferentes, que
se distanciaram politicamente no cenário nacional após o
impedimento de Dilma Rousseff, formaram coligações tanto nas
disputas proporcionais quanto majoritárias, como DEM e PT,
PC do B, DEM e PSDB, PMDB e PT, PP e PT, PSDB e PT, PSC e
PT, DEM e PSOL, entre outros.
20 MELO E SOARES, 2016. p. 699-700
130
Prefeito
Sem coligação Com coligação Sem coligação Com coligação
Total de Total de
Partido Eleitos % Votos Eleitos % Votos eleitos Partido Eleitos % Votos Eleitos % Votos eleitos
DEM 1 0,37 617 267 99,63 3.155.996 268 PSDB 5 0,63 23.736 786 99,37 10.549.065 791
NOVO 0 0 0 0 0 0 0 PSDC 2 25 8.967 6 75 48.252 8
PCB 0 0 0 0 0 0 0 PSL 1 3,33 4.293 29 96,67 142.851 30
PC do B 0 0 0 81 100 597.082 81 PSOL 0 0 0 2 100 4.675 2
PCO 0 0 0 0 0 0 0 PSTU 0 0 0 0 0 0 0
PDT 7 2,14 19.824 320 97,86 2.388.962 327 PT 4 1,57 8.136 251 98,43 1.708.463 255
PEN 0 0 0 13 100 77.431 13 PT do B 0 0 0 12 100 45.483 12
PHS 3 8,11 5.115 34 91,89 349.282 37 PTB 2 0,77 7.467 257 99,23 1.749.207 259
PMB 0 0 0 3 100 84.846 3 PTC 1 6,25 1.808 15 93,75 103.847 16
PMDB 28 2,7 69.064 1.008 97,3 6.781.011 1.036 PTN 0 0 0 29 100 255.430 29
PMN 1 3,7 2.158 26 96,3 112.017 27 PV 2 2,02 4.646 97 97,98 616.429 99
PP 23 4,62 88.592 475 95,38 2.980.833 498 REDE 1 25 3.823 3 75 47.104 4
PPL 0 0 0 5 100 18.964 5 SD 6 10 29.678 54 90 369.060 60
PPS 6 5,08 64.801 112 94,92 963.078 118 - - - - - - - -
PR 2 0,68 5.156 294 99,32 1.845.869 296 - - - - - - - -
PRB 2 1,92 12.608 102 98,08 677.952 104 - - - - - - - -
PROS 2 4 8.347 48 96 247.579 50 - - - - - - - -
disputado com e sem coligação em 2016.
5.483
131
132
Vereador
Sem coligação Com coligação Sem coligação Com coligação
Total de Total de
Partido Eleitos % Votos Eleitos % Votos eleitos Partido Eleitos % Votos Eleitos % Votos eleitos
DEM 207 7,14 334.900 2.691 92,86 1.688.893 2.898 PSDB 475 8,86 531.849 4.889 91,14 3290184 5.364
NOVO 4 100 64.652 0 0 0 4 PSDC 52 12,44 112.080 366 87,56 248425 418
PCB 1 100 636 0 0 0 1 PSL 57 6,49 90.331 821 93,51 497462 878
PC do B 46 4,58 65.543 958 95,42 678.502 1.004 PSOL 12 21,43 20.854 44 78,57 342259 56
PCO 0 0 0 0 0 0 0 PSTU 0 0 0 0 0 0 0
PDT 291 7,73 249.798 3.474 92,27 2.169.009 3.765 PT 259 9,21 301.548 2.554 90,79 1937066 2.813
PEN 24 4,6 54.836 498 95,4 322.874 522 PT do B 28 5,71 54.064 462 94,29 303690 490
PHS 72 8,25 131.907 801 91,75 558.140 873 PTB 203 6,64 350.681 2.854 93,36 1497500 3.057
PMB 11 5,02 31.180 208 94,98 178.038 219 PTC 38 6,64 90.284 534 93,36 361478 572
PMDB 915 12,1 938.148 6.645 87,9 3.548.780 7.560 PTN 52 6,81 187.096 712 93,19 432221 764
PMN 40 7,59 76.209 487 92,41 318.818 527 PV 163 10,72 253.870 1.357 89,28 796305 1.520
PP 428 9,03 317.559 4.313 90,97 2.323.773 4.741 REDE 8 4,44 10.935 172 95,56 145715 180
PPL 12 10,81 29.380 99 89,19 71.436 111 SD 90 6,26 98.386 1.347 93,74 952427 1.437
PPS 137 8,2 146.430 1.534 91,8 993.895 1.671 - - - - - - - -
PR 204 6,77 180.080 2.808 93,23 1.724.394 3.012 - - - - - - - -
PRB 107 6,61 223.922 1.511 93,39 1.299.841 1.618 - - - - - - - -
PROS 40 4,07 62.088 944 95,93 579.004 984 - - - - - - - -
PRP 55 8,94 84.287 560 91,06 438.723 615 - - - - - - - -
PRTB 24 6,15 55.167 366 93,85 244.217 390 - - - - - - - -
PSB 231 6,36 304.147 3.399 93,64 2.184.686 3.630 - - - - - - - -
PSC 132 8,67 306.748 1.391 91,33 844.097 1.523 - - - - - - - -
pelo TSE, Observação: foi contabilizado apenas os votos válidos dos candidatos eleitos.
Fonte: Elaborado pelos autores com base no resultado das eleições 2016 disponibilizados
PSD 223 4,81 248.578 4.416 95,19 2.645.675 4.639 Total 4.641 8,02 6.008.173 53.215 91,98 33.617.527 57.856
A esse respeito, Kinzo21 observou que o discernimento
na escolha do candidato é dificultado e, consequentemente, o
exercício da cidadania, pela complexidade do sistema eleitoral,
pelo excesso de candidatos nas disputas, agravado, ainda,
pelas coligações. Os partidos não possuem contornos definidos
claramente como organizações distintas, e:
133
cidadania pelo voto. E esse é o grande problema da fragmentação
partidária no país. A disputa eleitoral é complexa, os partidos
precisam se utilizar de diversas estratégias para alcançar o
poder, enquanto o eleitor é submetido a uma lista infindável
de candidatos, de inúmeros partidos, cujos traços ideológicos,
objetivos e valores são desconhecidos pelos eleitores, caso
existam de forma consolidada. Essa situação não é salutar
para qualquer democracia. Nesse sentido, conforme questiona
Kinzo23, até que ponto o fortalecimento do sistema partidário é
fator fundamental na consolidação da democracia brasileira?
Certamente mais estudos e análises são necessários para chegar,
se possível, a uma resposta.
Considerações Finais
134
em municípios de cinco estados do país, o que levanta
questionamentos quanto ao requisito de caráter nacional da
agremiação partidária, assim como a dificuldade dos partidos
menores em conseguir êxito nessas disputas, sem se utilizar
das coligações partidárias, que se constitui em um importante
instrumento de êxito eleitoral.
As coligações são responsáveis por concentrar a
maioria dos votos obtidos nas eleições de 2016. Sem dúvidas as
coligações propiciam melhores resultados no contexto político,
constituindo-se de fato, segundo Kinzo24 , na melhor estratégia
tanto para os pequenos quanto para os maiores partidos.
Poucos partidos não se utilizaram desse artifício em 2016, caso
do NOVO e PCO, e muitas das uniões envolveram agremiações
com orientações ideológicas discrepantes. Essa situação não
pode ser considerada benéfica, tendo em vista que os partidos
não possuem contornos claros e ainda firmam diversas
coligações entre si, a despeito das divergências ideológicas, o
que dificulta a escolha do eleitor e causa a volatilidade eleitoral
e a instabilidade do sistema. Nesse cenário, questiona-se se
o fortalecimento do sistema partidário promove, também, o
fortalecimento da democracia.
135
REFERÊNCIAS
GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 7. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: Atlas, 2011.
136
VII
Introdução
O presente trabalho surge como resultado final da
disciplina de Identidades coletivas, Memória e Processos de
Territorialização, do Mestrado em Antropologia da UFPI.
Nesse sentido, a metodologia usada foi basicamente a pesquisa
bibliográfica, dialogando com autores consagrados no debate
sobre território e na pesquisa com comunidades e povos
tradicionais.
Este artigo tem o objetivo de trabalhar, ainda que
sem esgotar o tema, o direito à terra no que tange aos povos
e comunidades tradicionais com foco voltado para os índios
e os quilombolas. Propõe ainda permitir a compreensão das
concepções que se tem acerca do que é território, bem como
outras questões envolvidas nessa luta por direitos territoriais.
137
1 ESTRUTURA AGRÁRIA E DELIMITAÇÃO DE
TERRITÓRIO
138
2 ORIGEM DOS CONFLITOS POR TERRA E A
SOBERANIA ESTATAL
139
Nesse sentido, talvez caiba aqui algumas poucas pala-
vras acerca da categorização de terra para fomentar a reflexão
sobre essa ideologia territorial. A terra é basicamente privada
ou pública. Quando a terra é privada significa dizer que o dono
tem total domínio sobre ela, podendo usá-la da forma que lhe
for conveniente, inclusive vendê-la, já que na lógica capitalis-
ta terra é uma mercadoria. Quando pública, a terra fica sob o
controle do Estado, logo é um bem que pertence a todos os ci-
dadãos, ou seja, será usada pelo Estado visando o bem comum,
então, a priori não seria uma mercadoria, não poderia o Estado
livremente fazer dela o que quisesse.
É seguindo essa linha de raciocínio que o Estado não
pode sair dando terra, sendo necessário seguir processos legais,
atender a requisitos, não para dar, mas para demarcar uma terra
que é tradicionalmente ocupada por determinado povo ou con-
ceder-lhe o direito à propriedade da terra ocupada. Quando isso
acontece a terra sai das mãos do Estado e passa a ser proprieda-
de do povo que reivindicou a terra, salvo em relação aos povos
indígenas, pois a eles cabe apenas a posse e o Estado continua
sendo detentor da propriedade da terra.
Ocorre, entretanto, que esses processos legais também
são realizados para atender finalidades específicas que não cor-
respondem com o bem coletivo. Isso acontece quando a ação
governamental e os interesses privados andam lado a lado, oca-
sionando pressões políticas que se manifestam, por exemplo,
com a privatização de terras públicas. Mas como assim? Almei-
da (2012, p. 67) nos explica que essa privatização ocorre com o
eufemismo de "regularização fundiária" e exemplifica:
140
interesses privados, de quem já tem poder econômico e político
e quando se trata de interesses de coletividades historicamente
subjugadas. Isso está diretamente ligado à ideologia territorial
da qual Paul Little fala, onde também o Estado–Nação se vê
ameaçado pelas noções de territórios sociais e assim se afasta
dos povos tradicionais e se coliga com particulares.
Para melhor compreender essa questão que envolve as
categorias público e privado, bem como a relação que o Estado
mantém com as terras, convém citar Kant de Lima (2012, p.
48) que elucida muito bem sobre isso, lançando luz para nosso
entendimento:
141
essa ressignificação das ideias e das fronteiras de território
colaboram para perceber esses povos como obstáculos ao
desenvolvimento, ao progresso, enfraquecendo assim suas
identidades étnicas.
142
Para nos fazer compreender de modo mais simples
essa ideia de território, Barreto Filho (2012) faz analogia
com a natureza tratando da biologia dialética segundo a
qual os ambientes e nichos ecológicos não existem de forma
independente das espécies e dos organismos, deste modo ele
fala em pluralidade de ambientes, que são tantos quanto forem
os organismos e as espécies. Desse modo Barreto Filho (2012, p.
248) nos explica que:
(...) à semelhança do postulado da biologia dialética, para saber
qual é o ambiente físico de uma dada sociedade, temos de
perguntar a esta, pois são seus processos e atividades sociais
que especificam os elementos do mundo biofísico que lhes são
relevantes.
143
comunidade3 – e o que de fato os índios percebem como sendo
seu espaço. Oliveira (2012, p. 371) fala que "as noções de terra
e território indígena se modificaram historicamente", contudo
essa mudança sempre esteve muito mais relacionada "com os
modelos de ação e gestão populacional do Estado brasileiro do
que com os anseios das populações indígenas".
É por isso que Oliveira (2004, p. 23) diz que a
territorialização "é uma intervenção da esfera política que
associa (...) um conjunto de indivíduos e grupos a limites
geográficos bem determinados". Em outras palavras, as
demarcações de terras indígenas são verdadeiros processos de
confinamento dos povos indígenas, pois como vimos isso se dá
seguindo critérios exteriores aos dos povos indígenas.
Sobre isso é relevante refletir sobre a dificuldade de
demarcações das terras indígenas especialmente dos índios do
Nordeste, já que a demarcação pressupõe o reconhecimento
do povo como pertencente à etnia. E como dito alhures, o
imaginário popular acerca do que é ser índio está atrelado a
critérios objetivos, como andar nu, viver na mata, não falar ou
pouco falar o português, não fazer uso de tecnologias, enfim,
ser o índio dos anos 500.
Ocorre que esse imaginário percorre o ambiente jurídico,
que nesse sentido tem resistido em demarcações de terras
indígenas por não compreender que a cultura não é estática
e assim negando aos índios o direito de mudar assim como os
portugueses já não se assemelham aos nossos colonizadores.
Nessa perspectiva, fica evidente que a questão étnica está forte e
diretamente ligada à luta por direitos territoriais influenciando
assim na sua conquista.
Isso propicia um movimento indígena a, em certa
medida, adotar de forma estratégica, os sinais diacríticos que
os órgãos estatais e que a sociedade exigem para que façam
jus ao seu território. Isso significa dizer que a luta pelo direito
à terra, faz com que os povos indígenas, em especial os do
3 Isso ratifica a proposta de Alfredo Wagner ao falar em seu artigo Territórios e Territoriali-
dades específicas na Amazônia, entre a "proteção" e o "protecionismo", sobre a pressão que
os povos e comunidades tradicionais sofrem de um lado pelo protecionismo do Estado e de
outro pela proteção das agências multilaterais.
144
Nordeste, que não vivem isolados, nem correspondem ao nosso
imaginário (re)inventem sua cultura de forma estratégica, mas
também como forma de fortalecimento para a luta por seus
direitos, até porque, é a demarcação do território que lhes
proporciona conquistar também o direito a uma saúde e uma
educação diferenciada.
4 UMA CONQUISTA
145
terras eram tratadas pelo legislador como algo bem definido,
como um verdadeiro sítio arqueológico em que havia figuras
que correspondessem ao seu imaginário. Ocorre que a definição
de "remanescentes das comunidades de quilombos" não era
satisfatória, o que fez surgir diversos questionamentos, dentre
eles o que indagava qual o conceito de quilombo.
Segundo o referido autor, a ideia que se tinha/tem de
quilombos é que são escravos fugidos em número mínimo de
cinco, para localização isolada geograficamente, com moradia
habitual e que não contenha pilões, considerando nesse último
critério que quilombolas não teriam autonomia nem de produção
e tampouco organização para o trabalho, ou seja, seriam vadios.
146
consolidadas. Isso fez surgir um quadro permanente de
conflitos e tensões.
147
CONSIDERAÇÕES FINAIS
148
Quantos aos quilombos, ainda há uma resistência em
aceitá-los, pois denunciam um passado e um presente que não
queremos lembrar, uma realidade que há muito lutamos para
mascarar. Falo da realidade do racismo, a realidade que o Brasil
é um país negro e não branco como se pretende.
Nesse contexto, compreendê-los é mais difícil, ao passo
que quanto aos índios é uma situação mais "tranqüila", pois
por vezes sequer são vistos como pessoas, mas apenas como
enfeites para se mostrar aos estrangeiros, como algo parte de
nossa cultura, são verdadeiros bibelôs e por isso não se aceita
que mudem, exige-se que se mantenham tais quais os indígenas
da época do "descobrimento".
Assim, é possível afirmar que atualmente muitas
conquistas já foram realizadas, mas há ainda muita luta pela frente,
pois não obstante os direitos trazidos na Constituição Cidadã,
ainda vemos os índios como incapazes, inclusive civilmente e
as comunidades quilombolas dificilmente conseguem de fato o
título que garante a propriedade da terra. Além disso, as terras
ainda estão concentradas nas mãos de poucos, há assim ao
contrário do que querem nos fazer acreditar, "pouca terra para
muito índio".
149
REFERÊNCIAS
150
__________. Direitos Territoriais. "Terras Indígenas" In:
LIMA, Antonio Carlos de Souza. Antropologia e direito: temas
antropológicos para estudos jurídicos. Brasilia: Contra Capa/
LACED/ABA, 2012.
151
VIII
Introdução
O artigo exposto procura exibir algumas reflexões acerca
do feminicídio no Brasil. Verifica-se no contexto histórico a
postura da figura da mulher em uma sociedade patriarcal. No
presente momento, apesar de existir formalmente uma isonomia
entre os sexos, na prática, constata-se, que a sua condição de
gênero lhe faz experimentar consequências negativas.
O dissimulado machismo da sociedade brasileira
exterioriza-se diante do índice exorbitante de todas as formas
de violência contra a mulher. A violência contra a mesma está
estabelecida entre todas as esferas sociais.
Diante desta perspectiva, o Brasil ao promulgar a Lei nº.
13.104/15 passou a integrar o rol de países da América Latina que
1 Estudante de Graduação. 6º. Semestre do Curso de Direito na FATEPI. bezerracha-
ves87@gmail.com
2 Estudante de Graduação. 7º. Semestre do Curso de Direito na FATEPI. catarinavilna@
hotmail.com
152
tipificaram o crime de feminicídio, penalizando dessa maneira,
mais severamente, aqueles que praticam o homicídio por motivo
de condição de gênero.
A proposta inicial deste trabalho é uma revisão na
bibliografia que aborda este tema, muitos autores utilizam de duas
variantes para descrever a morte de mulheres em razão de gênero,
o femicídio e o feminicídio.
Nesse sentido, é efetuada uma interpretação da Lei do
Feminicídio com a Carta Magna, Lei Maria da Penha e alguns
aspectos dos direitos humanos relevantes ao caso em pesquisa.
O objetivo deste artigo não foi exaurir todas as variantes do tipo
penal tampouco esgotar todos os assuntos sobre feminicídio
no país e sim, promover uma discussão sobre o tema no país,
reunindo posicionamentos de alguns doutrinadores.
1 MULHER E AGRESSÃO
153
estrutura familiar e na lógica organizacional das instituições
políticas, construídas a partir de um modelo masculino de
dominação. (COSTA, 2008, p. 02)
154
Posto que no evoluir da história a mulher procura refutar
todas as formas de preconceito, procurando refazer a concepção
para ela estabelecida social, cultural, e economicamente, todos es-
tes esforços não foram o bastante para frear os números assusta-
dores de feminicídio no país.
155
(CEDAW), comprometendo-se a combater a discriminação
contra a mulher e a adotar sanções para os casos. Nesses termos,
consta no Art. 2° do documento internacional mencionado:
Artigo II. Os Estados Partes condenam a discriminação contra a
mulher em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos
os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a
eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se
comprometem a: [...]
b) Adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter,
com as sanções cabíveis e que proíba toda discriminação contra
a mulher; Situações que configuram a discriminação: matar
mulher por entender que ela não pode estudar, por entender que
ela não pode dirigir, por entender que ela não pode ser diretora
de uma empresa etc. (Convention on the Elimination of all Forms
of Discrimination Against Women)
156
Nesse olhar, destaca-se a busca da igualdade substancial,
devendo tratar de forma igualitária os iguais e desigualmente os
desiguais na medida e na proporção de suas desigualdades.
Como se sabe a própria Carta Magna estabelece
desigualdades em relação entre homens e mulheres em direitos
e obrigações, de forma clara Lenza (2012), destacam as seguintes
disparidades:
157
olhos; e o remorso pelas torturas, pelas mutilações em massa e
pelas explorações aviltantes faz nascer na consciência, agora,
purificada, a exigência de uma nova vida para todos. (KONT,
2010, p. 71)
Desta maneira, a proposta do autor citado vem com
uma análise passada dos eventos importantes na história como
revisitação dos equívocos enquanto pressupostos das mudanças
de comportamento humano. Assim, não precisamos aguardar o
aumento do número de mulheres vítimas para que as mudanças
paradigmáticas sejam adotadas.
Portanto, a nova lei do feminicídio não se limita apenas
a uma alteração da esfera legislativa no Brasil, cujo caráter
esteja restrito ao seio simbólico das normas jurídicas, mas
ensejando avanços inclusive no comportamento e na relação
com o gênero feminino, de modo a não só garantir direitos e
sim, inequivocamente, assegurar efetiva proteção.
3 FEMICÍDIO X FEMINICÍDIO
158
as mulheres e não cria condições de segurança para suas vidas
na comunidade, em suas casas, nos espaços de trabalho e de
lazer. Mais ainda quando as autoridades não realizam com
eficiência suas funções. Por isso o feminicídio é um crime de
Estado. (LARGADE apud PASIANTO, 2010, p. 232)
Portanto, o termo femicídio não se confunde com
feminicídio, pois enquanto femicídio é a morte de indivíduos
do sexo feminino sem distinção de qualquer condição da
causa mortis, a segunda expressão diz respeito à morte de
mulheres em razão do gênero, a morte é motivada pelo
menosprezo à condição de mulher e consideram-se também
razões políticas.
159
a) inciso IV- à traição, de emboscada , ou mediante dissimulação
ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do
ofendido.
Por consequência, levando em consideração a gravidade
do delito o legislador previu que o homicídio na forma
qualificada fosse considerado hediondo. Assim prevê o artigo 1°
da lei n. 8.072.1990:
Art. 1° [...]
160
for réu primário, 3/5 (três quintos) se for reincidente.
Nesta questão, finca-se a maior crítica a nova lei, pois
em alguns casos o feminicídio na prática já era abordado como
crime hediondo por alguns magistrados, por exemplo, ao ser
visto como homicídio qualificado por motivo fútil ou torpe.
Nesta vertente aduz Gomes (2015)
Afinal, não há como negar torpeza na ação de matar uma
mulher por discriminação de gênero (matar uma mulher porque
usa minissaia ou porque não limpou corretamente a casa ou
porque deixou queimar o feijão ou porque quer se separar ou
porque depois de separada encontrou outro namorado etc.).
Mas esse entendimento não era uniforme. Daí a pertinência
da nova lei, para dizer que todas essas situações configura
indiscutivelmente crime hediondo. Nos crimes anteriores a
10/3/15 o motivo torpe continua sendo possível. O que não se
pode é aplicar a lei nova (13.104/15) para fatos anteriores a ela
(lei nova maléfica não retroage). (GOMES, 2015, p. 02)
161
Contribui com este pensamento, Sagot (2002):
CONSIDERAÇÕES FINAIS
162
REFERÊNCIAS
163
HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha: lei com nome de mulher.
Campinas: Servanda, 2007, pp. 83-84.
164
IX
E A DEFESA DO ULTRAFEDERALISMO
TRIBUTÁRIO NA PRIMEIRA CONSTITUINTE
REPUBLICANA
Introdução
Com o objetivo de avançar no projeto institucional de
um estado de direito, o Governo Provisório designou o dia 15 de
setembro de 1890 para eleição geral da assembleia constituinte,
que seria instalada no aniversário do golpe de proclamação da
república (ANDRADE, BONAVIDES, 1988). Júlio de Castilhos fora
eleito deputado pelo Rio Grande do Sul e ao longo dos debates
constituintes firmou sua posição de líder da bancada gaúcha, ca-
racterizada pelo consenso entre seus membros e pela influência
positivista. A principal atuação de Castilhos girou em torno da
defesa do federalismo radical, buscando entregar uma maior au-
165
tonomia aos estados e demonstrando clara oposição ao projeto
governamental, que tendia mais para um federalismo centrípeto:
o poder central administraria os problemas e garantiria o pacto
federativo (ANDRADE, BONAVIDES, 1988).
Um dos pontos de maior preocupação para o parlamentar
foi o federalismo tributário, defendendo a ideia que uma solução
verdadeiramente federalista seria transferir aos estados-membros
serviços que lhes fossem próprios e proporcionalmente ampliar as
competências tributárias desses, objetivando aumentar suas fon-
tes de rendas (RODRIGUEZ, 2000, p.57). A proposta de Castilhos
recebeu muitas críticas, principalmente dos representantes de es-
tados que dependiam ou eram lembrados pelas políticas da União.
Uma proposta vencida perdida em uma história constitu-
cional de quase 195 anos pode parecer algo sem importância para
as análises contemporâneas, mas as ideias de Castilhos na primei-
ra constituinte republicana e a resistência que elas enfrentaram
ajuda a entender a tendência centralizadora que o federalismo
brasileiro passou a ter e que tentativas de reajustes posteriores
foram e são ineficazes, ante a situação de dependência dos entes
infrafederais em relação ao governo central, que se consolidou ao
longo da história, criando estados sem capacidade para se gover-
nar, como previu Castilhos.
166
no usava essa doutrina como alicerce ideológico. Provavel-
mente, a melhor explicação é a influência militar na região
somado à necessidade de uma doutrina para torna-los forte
e coeso. Júlio de Castilhos, como líder do partido, era um
adepto do positivismo comteano, mesmo não se declarando
um positivista ortodoxo (FRANCO, 1967, p. 13), as princi-
pais concepções politicas dessa corrente estavam presentes
em artigos, manifestos e discursos assinados pelo gaúcho.
O positivismo de August Comte, visto pela ótica di-
nâmica da sociedade, utilizava a ideia da ordem e progresso,
como uma forma de enfrentar os estados liberais. Comte en-
tendia que a sociedade estava em constante evolução e esse
desenvolvimento necessitava da ordem e da preservação de
elementos estáticos da sociedade, como a forma que a fa-
mília era organizada pelo filósofo (SIMON, 1986). É nesse
contexto que Comte fala sobre a sua ideia de “libertar o Oci-
dente de uma democracia anárquica e de uma aristocracia
retrógrada” (COMTE, 1978).
Dessa forma, Maria Célia Simon (1986, p.81) explica
que o pensamento comteano deixava de lado as ideias de
monarquia, soberania popular e sufrágio universal, enten-
dendo que o desenvolvimento da humanidade viria com a
República, ou melhor, com uma ditadura republicana, com
bases científicas, garantindo a ordem social.
A influência da doutrina de August Comte na ideo-
logia e na política castilhista é notória, principalmente, em
seus escritos que denunciavam os aspectos imediatistas e
oportunistas marcantes da política brasileira:
Neste país em que o cesarismo constitucional tem produzido
todos os seus funestos efeitos, a política não é meio racional de
promover o progresso como um desenvolvimento da ordem, de
palpar as opiniões gerais dominantes e suprimir os obstáculos
para facilitar a sua realização integral, não é o fecundo agente,
incumbido da direção social, que ele efetua - eliminando
paulatinamente o que existe de antagônico com o espírito do
tempo, para dar lugar à transformação natural, determinada
pelas leis fundamentais da sociedade. Entre nós a política,
167
essencialmente empírica, deixa absolutamente de desempenhar
aquelas funções, e desenvolve-se na independência completa da
moral. (CASTILHOS, 2003, p15)
Castilhos apresentava o positivismo como o grande
movimento filosófico que ofereceu as bases da sociologia,
assentando as leis fundamentais que regem os fenômenos
sociais (CASTILHOS, 2003, p.14). O político gaúcho acredi-
tava alcançar, por meio de tal corrente, uma política racio-
nal, metódica, científica, superando, principalmente, meios
imorais de perpetuação no poder.
Em relação ao federalismo, uma de suas principais
bandeiras, Castilhos era considerado um defensor do ul-
trafederalismo, mas não achava prudente, em princípio, o
separatismo. Ele entendia que para manter a união entre
as províncias era necessário garantir suas liberdades e au-
tonomias, respeitando as variedades a fim de garantir uma
unidade real (CASTILHOS, 2003, p.52):
168
alcançar essa mudança, era necessário que ocorresse no seio da
República; dentro do império, a ideia de descentralização não pas-
saria de algo ilusório (CASTILHOS, 2003, p.53).
2 EM DEFESA DE UM ULTRAFEDERALISMO NA
CONSTITUINTE REPUBLICANA
169
Durante a atividade do Congresso, não foram poucas as críticas
vindas de jornais da época. O país reclamava, sob orientação de
membros do governo provisório como Rui Barbosa e Quitino
Bocaiúvas, da morosidade nas votações. Nesse contexto agitado,
o Congresso com poderes constituintes optou por eleger uma
comissão, formada por um membro de cada estado, que analisaria
o projeto apresentado pelo governo provisório- a Comissão dos 21
(ANDRADE, BONAVIDES, 1988).
A composição de tal grupo seguia um critério federativo
e geográfico, não se preocupando em escolher conhecedores das
matérias constitucionais, sendo esta uma estratégia arriscada
para o desempenho da função constituinte. Os 21 membros
não formaram um grupo homogêneo e as diversidades foram
inúmeras, mas conseguiram elaborar o primeiro parecer em duas
semanas, que foi apresentado no Congresso pelo relator Júlio de
Castilhos (ANDRADE, BONAVIDES, 1988).
Apesar de ter sido o relator do parecer da Comissão,
Castilhos não deixou de ler seu voto, se empenhando em explicar
melhor suas emendas que foram rejeitadas.
A principal questão abordada por ele foi a da
descriminação das rendas no sistema republicano federativo.
Júlio de Castilhos explicou que o sistema federativo é responsável
por garantir a autonomia da administração local, e ao mesmo
tempo, os interesses nacionais. Para conseguir essa variedade sem
prejudicar a concentração política, ele ressaltou a importância de
garantir a autonomia, passando para os estados os serviços que
são de interesse de cada um, e para efetivar essa autonomia seria
necessária uma igual descentralização das rendas, a fim de não
pôr o sistema federativo em risco (ANAIS, Vol.I, 1890, p.363-364).
Baseado nessas ideias, ele criticou o projeto apresentado
pelo governo (Decreto nº914 A, 1890), na medida em que este
trazia o sistema cumulativo (art.12) de tributos entre estados e
união, considerando-o incompatível com o sistema federativo
(ANAIS, Vol.I, 1890, p.364). Castilhos considerava o projeto
do governo uma continuidade do que vigorava com o Império,
além disso, ele ressaltava que as características políticas
170
e geográficas do país clamavam por efetivas mudanças
administrativas e, consequentemente, tributárias a fim de que
o centralismo fosse realmente superado. Com essa base, é que
ele propôs a seguinte emenda:
Pensando assim, ofereci um plano substitutivo que consiste
em determinar expressamente a competência da União e dos
estados quanto à tributação. Segundo esse plano, é da exclusiva
competência dos estados decretar qualquer imposto que não
esteja consignado no art.6º e que contraria às disposições
da Constituição. Evita-se assim a consequência funesta que
decorrerá do regime de impostos duplos estatuídos no art.12, de
acordo com as lições da longa e desastrosa experiência que nos
legaram os desastres imperiais. Prevendo a possível insuficiência
de produtos dos impostos do art.6º, que, aliais, constitui as mais
abundantes fontes de receitas, propus ao art.12 uma emenda que
especifica os meios que lançará mão a União, quer sobrevenha
caso extraordinário de calamidade pública, quer surjam
necessidades determinadas pelo serviço da dívida nacional.
(ANAIS, Vol.I, 1890, p.364)
171
que sempre havia aquelas que eram sustentadas pelo trabalho de
outras:
O que o representante do centro deverá dizer, mas não disse, é
que na verdade há províncias que são beneficiadas com prejuízo
de outras e com grande ônus para a receita geral, mas essas de
ordinário não são as que apresentam uma maior renda, nem as
que concorrem para o império com as quotas mais avultadas. Essa
desigualdade iníqua, essas preferências odiosas, essas predileções
irritantes mostram um dos mais desoladores aspectos do regime
centralista, que em toda parte e em todos os tempos sempre
foi e há de ser assim (...).As próprias províncias por essa forma
preferidas habituam-se às preferências protetoras e a esperar
tudo da tutela central, que assim vai estiolando mais e mais o
já mirrado espírito de iniciativa local, como se já não bastassem
as restrições opressoras do regime para impedir e sufocar a
expansão da atividade livre e desembaraçada (...). Esse caráter
torna-se ainda mais visível com relação às províncias que são
excluídas das estufas do centro e que sentem-se positivamente
extorquidas na sua renda e sugadas na sua vitalidade própria a
bem do ostensivo espírito de dissipação do império e em benéfico
de outras cuja prosperidade é artificialmente fomentada pela
tutela central. (CASTILHOS, 2003, p.39)
.
Castilhos defendia que dessa assimetria de contribuição
decorria duas consequências: primeiro, as províncias prediletas
se acostumavam com a tutela central e o crescimento local ia
sendo inibido; uma segunda e mais perigosa consequência era
o surgimento de revolta em províncias que se consideravam
injustiçadas, colocando em risco a unidade nacional. Por fim, ele
alertava que a falta de liberdade para governar e administrar as
províncias também eram causas da miséria e dos problemas locais,
uma vez que quem as governavam eram emissários do poder
central (CASTILHOS, 2003, p.39-41) e não estavam preocupados
com as necessidades da população da região governada, mas com
interesse de quem os colocava e os tirava do poder.
Com o intuito de resolver esse cenário, Júlio de Castilhos
voltou a defender, nas sessões da constituinte, sua emenda que
visava alterar a questão das competências tributárias apresentadas
pelo projeto governamental.
No início de sua manifestação, ele enfatizou a necessidade
de montar uma federação real, a fim de garantir a unidade política
172
em meio a pluralidade de costumes e interesses provinciais.
(ANAIS, Vol.I, 1890, p.568). Além disso, Júlio alertava para a
necessidade de uma constitucionalização da federação, com
o intuito de evitar os tumultos imperiais. Na sequência, ele foi
didático explicando que para que houvesse um efetivo federalismo,
era essencial que a união devolvesse para os estados os serviços
que eram do interesse deles, juntamente com as suas rendas.
Nesse ponto, ele apresenta o seguinte questionamento:
como classificar as rendas para saber o que deve ficar a cargo
da união e o que deve ficar para os estados? A solução para
tal problema poderia vir de três formas. Na primeira, a união
calcularia suas despesas e os estados teriam que cobri-las; tal
medida ele julgava um tanto inadequada para um país que
acabava de derrubar um regime centralizador e que não preparará
as províncias para sustentar todos os encargos da união. Uma
segunda solução seria que estados e união buscassem suas receitas
nas mesmas fontes e a terceira seria elencar os tributos da união e
deixar os remanescentes para os estados.
O projeto apresentado pelo governo (Decreto nº 914 A,
1890) trazia uma proposta para tal questão. O artigo 6º permitia
à união tributar sobre importação, taxas de selos e contribuições
postais e telegráficas, além de regular as alfândegas e gerenciar
a entrada e saída de navios. O artigo 8º, por sua vez, trazia
a competência tributária dos estados, permitindo que esses
decretassem impostos sobre exportação, propriedade territorial
e transmissão de propriedade. Por fim, o artigo 12 permitia que
estados e união criassem novos impostos, cumulativos ou não,
incorrendo no sistema imperial da bitributação, em que dois entes
da federação tributariam sobre um mesmo fato gerador.
Castilhos interpretou que o projeto governamental,
nos seus artigos 6º, 8º e 12, optou por uma mescla das duas
últimas soluções, podendo gerar um sistema anárquico
e anti-federalista (ANAIS, Vol.I, 1890, p.570). Impostos
cumulativos seriam um retrocesso ao regime imperial, que
173
poderia vir a ser motivo de grande agitação federalista,
tendo em vista a excessiva carga tributária que teria que ser
suportada pelo povo. Garantir aos estados a autonomia de
seus serviços sem lhes garantir renda seria, para Castilhos,
a consagração de uma "liberdade da miséria" (ANAIS, Vol.I,
1890, p.576).
Júlio de Castilhos demonstrou que as fontes de receitas
atribuídas à união no art.6º correspondiam às mais rentáveis,
sendo suficientes para cobrir as suas despesas. No entanto, ele
apresentou a opção de um sistema de quotas que, em casos
extremos, seria facultado à união tributar das antigas províncias:
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intervenção eficaz do governo da união" (ANAIS, Vol.I, 1890,
p.577). No entanto, ele não aprofundou a explicação sobre essa
solução e como nos demais momentos, a intervenção era sempre a
solução, mas os constituintes não chegavam a aprofundar o tema,
que se tornou em um instituto mal utilizado durante a República
Velha.
Por fim, o parlamentar gaúcho recebeu algumas objeções
partindo da ideia que sua emenda deixaria a União desamparada
e ainda sofrendo o risco dos estados não conseguirem suprir as
necessidades extraordinárias do governo federal. Nesse empasse,
Júlio ofereceu uma solução que ele acreditava ser a mais federativa
possível, que consistia em realizar operações de créditos (contrair
empréstimos), ficando os serviços de juros e amortização a cargo
dos estados.
Com o objetivo claro de favorecer os estados-membros
(RODRIGUEZ, 2000, p.57), Castilhos não obteve sucesso e sua
emenda foi rejeitada, mas mesmo assim, ainda conseguiu ganhar
um amplo apoio na assembleia constituinte, além de fomentar o
debate sobre o tema
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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O objetivo era garantir uma real autonomia para que esses
pudessem sustentar seus serviços, mas ao mesmo tempo
garantiria à união os tributos mais rentáveis e o amparo dos
estados em caso de desfalques nas contas federais.
A emenda em questão buscavam efetivar um federalismo
real, como sugeria o constituinte, mas foi bastante criticada
por desamparar a união, sendo a ideia de quotas suplementares
de difícil execução (FRANCO, 1967, p.91). Ruy Barbosa foi um
grande crítico da proposta de Castilhos, alegando que a emenda
invertia as posições dos estados e da união, deixando essa a
mercê da boa vontade daqueles e desmoralizada para pedir
empréstimos no exterior (BARBOSA, 1946, p.175). Diante dessas
críticas, a emenda saiu derrotada mas o parlamentar conseguiu o
apoio de boa parte das bancadas de Pernambuco, Santa Catarina,
Amazonas, Maranhão, Rio Grande do Norte e Goiás; estados que
eram excluídos do favoritismo da União e aspiravam por mais
autonomia. Por outro lado, representantes da Bahia, Capital
Federal, São Paulo e Minas Gerais foram contrários à proposta de
Júlio de Castilhos.
O apoio de paulistas e mineiros à União é curioso mas pode
ser explicado. São Paulo se apresentava como um Estado autônomo,
forte, com uma boa força pública e uma economia pujante. Mas
como a união era responsável pelos rumos financeiros do país, o
estado de São Paulo não poderia ter tamanha autonomia a ponto
de ser absoluto. Os paulistas necessitavam de apoio do governo
federal no plano de valorização do café (FAUSTO, 2000). Os
mineiros, por sua vez, não se voltaram para apenas uma atividade,
dessa forma, não conseguiram se tornar uma potência econômica,
dependiam de investimentos federais. Diante disso, Minas se
estabeleceu como um estado rico em políticos profissionais,
esses tinham expressiva participação na câmara dos deputados,
controlavam a entrada nos cargos federais e conseguiam muitos
investimentos para a região (FAUSTO, 2000).
Diante do exposto, nota-se que a proposta de Castilhos
era descentralizadora e tentava garantir a efetiva autonomia aos
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estados-membros. No entanto, o receio dos parlamentares que
fizeram oposição apoiava-se na tradição centralizadora, que criara
estados incapazes de se autogovernarem, gerirem suas financias e
seus serviços, chegando a pôr em risco a unidade nacional.
Após a instalação de um federalismo fiscal centralizador,
o Brasil passou por sucessivos momentos de maior centralização
e maior descentralização, a depender do regime político vigente
(SOUZA, 2015, p.4). O período militar, por exemplo, foi o de maior
centralização. As reformas de 1965/1967 (Emenda nº 18 de 1965)
reduziram a autonomia dos estados e municípios para instituir
tributos e apesar de vedar a bitributação, como a proposta de
Castilhos, por outro lado, garantia os impostos residuais à união
e estados e municípios receberiam repasses da receita federal,
que tinha fontes mais rentáveis. Como sintetiza Dornelles
(2008, p.06), a filosofia da reforma militar era a "centralização
da competência tributária com redistribuição do produto da
arrecadação", proposta que foi aos poucos afetada e gerou a
necessidade de reformas.
A constituição de 1988, por sua vez, inaugurou um
período de descentralização fiscal, os parlamentares acharam que
descentralizar as receitas tributárias seria uma opção adequada
para devolver o estado de solvência dos estados e municípios. Dessa
forma, na tentativa de aumentar a autonomia fiscal, terminou
por criar um "arranjo federativo no plano fiscal complexo que
exacerbou mais à frente os conflitos e as tensões entre seus atores
principais" (SOUZA, 2015, p.05), criando um sistema tributário
paralelo com contribuições sobre a folha de salário, o faturamento
e o lucro para a seguridade social, para o ensino fundamental, para
o apoio ao trabalhador e para entidades vinculadas ao sistema
sindical. Esse sistema engrenado (DORNELLES, 2008), nada
mais foi que uma reação à descentralização proposta, gerando
um retrocesso e enfraquecendo o pacto federativo, que cada vez
menos consegue sustentar os períodos de descentralização.
Por certo, que a aplicabilidade da emenda de Castilhos
hoje e seus efeitos positivos podem ser questionados, pois
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como o próprio movimento pendular do nosso federalismo
fiscal demonstra, as tentativas de descentralização foram e são
frustradas, seguidas por períodos de centralização. No entanto,
conhecer essa proposta e os debates em torno dela nos leva a
compreender melhor as origens do federalismo brasileiro,
como a centralização no momento de instalação do instituto
(genuinamente marcado pela descentralização) foi uma forma
disfarçada de manter a centralização do Império. Se muitos
institutos constitucionais brasileiros vêm conseguindo evoluir,
a federação não consegue avançar e cada tentativa de garantir
maior autonomia aos estados é seguida de medidas mais
centralizadoras.
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REFERÊNCIAS
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SIMON, Maria Célia. O positivismo de Comte. IN: Curso de
filosofia. Rio de Janeiro: Zahar/Seaf, 1986.
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