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Quando?
A tradição pretende que a filosofia ocidental haja tido início nos anos 580
a.C., com um homem chamado Tales. É sem dúvida Aristóteles (384-322) que
está na origem dessa tradição1, e no entanto o próprio Aristóteles não teria
reconhecido a ausência de «busca da sageza» antes de Tales. Existem
diferentes formas de sageza, e nem todas são filosóficas. O próprio Tales, como
veremos, tinha bastos outros objectos de interesse.
As histórias da filosofia seguem com frequência Aristóteles ao começarem
por Tales, e nós faremos o mesmo. Essas histórias buscam igualmente
elementos precursores da filosofia na poesia arcaica ou nas culturas vizinhas
mas estranhas à cultura grega. A tal assunto dedicaremos algumas observações.
Onde?
Tales viveu em Mileto, uma cidade costeira da Ásia Menor onde se cruzavam
rotas comerciais provenientes das ilhas do mar Egeu, da Grécia continental, do
Egipto e do Médio Oriente. Anaximandro e Anaxímenes viveram igualmente
em Mileto, pelo que, se estes filósofos «milésios» foram os verdadeiros
pioneiros da filosofia, esta começou então em Mileto.
No seu início, a filosofia exibe uma espantosa geografia. Surgem grupos de
pensadores na Jónia – em Mileto, Éfeso, Samos ou Colófon –, depois outros a
oeste, nas cidades costeiras do Sul da Itália e da Sicília. Certos pensadores,
como Pitágoras, emigraram com toda a evidência de este para oeste, pelo que
os grupos não estão inteiramente isolados, mas nem por isso os seus estilos de
pensamento deixam de testemunhar importantes diferenças. Estas últimas
permitem distinguir aquilo a que as histórias da filosofia de inspiração
hegeliana dos séculos XIX e XX chamam os momentos «dórico» e «jónico» da
filosofia.
Nessa época, a Grécia interior parece haver permanecido inculta, até à
chegada a Atenas de Anaxágoras, em meados do século V. Atenas era então o
retiro dos sofistas, ainda que estes ministrassem o seu ensino noutras cidades,
satisfazendo assim as necessidades de uma rede cada vez mais complexa de
comunidades políticas.
De onde?
Terá a filosofia caído do céu? Ou ter-lhe-á uma actividade mais antiga aberto
o caminho? Tratar-se-á de um fenómeno exclusivamente grego, ou apropriou-
se das descobertas que terá furtado a culturas que lhe eram alheias? Eis
perguntas que poderão dar lugar a diversas controvérsias relativas a eventuais
desvios culturais. Supondo-se que os gregos conseguiram efectivamente algo
de extraordinário, do que se trata ao certo? Em que é que a filosofia contribuiu
para a cultura ocidental?
Para detectar eventuais influências não gregas, convirá que nos voltemos
para as culturas com as quais as cidades jónicas tinham o costume de
comerciar, como o Egipto, a Babilónia (no actual Iraque) ou a Fenícia (a leste
do Mediterrâneo). Terão essas prestigiosas culturas antigas produzido a
centelha de onde nasceu o fogo da filosofia ocidental?
Poderá um dos factores determinantes nesta matéria ser a invenção da escrita
alfabética, em lugar dos hieróglifos e da escrita silábica? Esta última conquista
a Grécia no século VII a.C. A escrita poderia ter induzido o desenvolvimento da
filosofia, visto permitir que os leitores se confrontem de maneira crítica com os
pensamentos expostos por outros, mas também por as leis escritas
possibilitarem a existência de instituições legais, no seio das quais os debates
dos tribunais se substituem ao juízo de um soberano autocrata. E contudo, antes
da escrita, já existiam leis e regras orais, muitas vezes versificadas, que se
recitavam de memória. Da mesma maneira, os antigos filósofos ensinavam
oralmente, e pouco ou nada escreviam. A filosofia, no seu início, releva
essencialmente de um género poético que se poderia dizer didáctico, e que saiu
de sociedades orais. Eis o que tornaria a filosofia herdeira da transmissão oral
das narrativas, desenvolvida numa sociedade anterior à escrita.
Sem dúvida que a diversidade cultural e religiosa é, por seu turno, factor de
mudança. É lícito pensar-se que, navegando os gregos ao encontro de outras
línguas, de deuses estrangeiros, de normas morais diferentes, de vestes ou de
usos espantosos, tenham achado nisso ocasião para se interrogarem sobre os
seus próprios costumes. Xenófanes (século VI a.C.) já havia encontrado na
variedade das representações dos deuses argumentos para desacreditar o
antropomorfismo religioso2. Encontramos em historiadores como Hecateu e
Heródoto um fascínio semelhante pela diversidade cultural.
Certas civilizações do Próximo Oriente tinham registado por escrito dados
astronómicos e desenvolvido investigações matemáticas. Ter-se-á Tales servido
dos dados astronómicos babilónicos para prever um eclipse solar? Terá
Anaximandro recorrido a cálculos egípcios ou babilónicos quando formou
hipóteses sobre o tamanho do universo?
Podemos supor que assim foi. Mas ainda que tal hipótese se revelasse exacta,
os dados então obtidos não passariam do material de partida do filósofo. Ela
continua a não estabelecer que outras culturas antigas se teriam podido
consagrar à filosofia antes de a transmitirem aos gregos. Mas se tais culturas
dispunham da matemática, dos arquivos astronómicos, da escrita e da
experiência de um certo relativismo cultural, porque não colocaram elas as
questões que caracterizam o início da filosofia? Porque não procuraram elas o
porquê? O nascimento da filosofia parece exigir outras explicações.
Para além da influência das outras culturas, é preciso levar em conta a
herança da cultura grega, essencialmente oral e difícil de reconstituir. Tem de
mencionar-se por um lado a tradição épica, Homero, Hesíodo e os mitos
tradicionais dos deuses olímpicos; e por outro lado o conjunto assaz
desconhecido de tudo o que tem a ver com as religiões dos mistérios, a poesia
órfica e o culto ctoniano.
Por exemplo, podemos comparar a representação pré-socrática do mundo à
da epopeia homérica. Em Homero, a terra é um disco plano dominado por uma
abóbada celeste; as terras habitadas estão rodeadas pelo rio Oceano3. O Sol
ergue-se a partir do Oceano e atravessa o céu durante o dia, antes de mergulhar
à noite no mar do Oeste4. Os tremores de terra e os arco-íris são o reflexo das
emoções divinas. Sob a terra encontra-se o reino das sombras que é a morada
do Hades, onde vivem os mortos. Hesíodo (século VII) precisa algumas das
dimensões deste, quando explica que são precisos nove dias para que uma
bigorna de bronze caia do céu até à terra, e outros nove dias para atingir o
Tártaro a partir da Terra5.
A Teogonia de Hesíodo descreve a origem dos deuses e do cosmos,
imputando-a no essencial a um duplo processo: 1) a relação sexual de duas
divindades engendra uma nova entidade, e depois 2) a progenitura apodera-se
violentamente do poder paternal. É tentador pensar-se que tais mitos serviram
ao mesmo tempo de inspiração e de alvo aos primeiros filósofos, os quais
teriam substituído os caprichos divinos pelas explicações naturais do processo
cósmico. Ainda que tal hipótese comporte a sua dose de verdade, nem por isso
os filósofos descrevem menos frequentemente como «divinas» as causas
naturais. Não se contentam eles apenas em substituir a «separação» ou a
«emergência» a partir de elementos primevos ao «nascimento», tal como este é
descrito nos mitos antigos?
Os mitos órficos interessavam-se pelo destino da alma humana. Conhecemo-
los mal, já que os dados textuais são frequentemente escassos e aqueles de que
dispomos são difíceis de datar. Todavia, eles lançam alguma luz sobre a
concepção pitagórica da reincarnação e sobre as imagens que Parménides
empregou. Como sempre, os filósofos herdam temas próprios da mitologia
local, antes de fazerem uso destes e de explorarem a metafísica neles implícita.
Quem?
São uma vintena, os pensadores de primeira linha anteriores a Platão que
mencionaremos. No século VI, Tales, Anaximandro e Anaxímenes, Pitágoras,
Xenófanes; cerca do ano 500 a.C., Parménides e Heraclito; no século V, os
antigos pitagóricos, entre os quais Filolau, Zenão de Eleia e Melissos (os
discípulos de Parménides), Empédocles, Anaxágoras, os dois atomistas
Leucipo e Demócrito, bem como Diógenes de Apolónia, e depois os principais
sofistas, como Protágoras, Górgias, Pródico, Hípias e Antifonte. Esta lista
segue em geral a cronologia, mas tais pensadores podem ser reagrupados de
diversas maneiras. Passaremos a propor um esboço do seu pensamento,
apresentando-os segundo diferentes temas.
Como conhecemos?
Reconstituir a obra dos filósofos pré-socráticos não é uma tarefa fácil. Não
existe deles quase nenhum texto completo. Em lugar disso, temos de nos
remeter às apresentações (aos «testemunhos») que encontramos nos autores
posteriores, muitas vezes em vários séculos, bem como às citações que figuram
nesses textos. Essas citações, a que se chama «fragmentos», estão muitas vezes
compiladas por editores modernos, que tentam reconstituir o aspecto das obras
originais dispondo os fragmentos numa certa ordem. Nesta matéria, a edição
mais autorizada é a de Diels-Kranz (doravante DK) que contém
simultaneamente os testemunhos e os fragmentos de todos os pensadores pré-
socráticos. As edições mais recentes seguem em geral a mesma via. Elas
deveriam inspirar bastas dúvidas quanto à pertinência e à exactidão da
reconstrução que propõem das teses dos autores antigos.
Uma terceira fonte é-nos oferecida pela descoberta fortuita de papiros, como
os de Afrodísia e de Herculanum. Tais textos são em geral cópias romanas,
frequentemente em muito mau estado, que contêm os erros de seis séculos ou
mais de transmissões; no entanto, por vezes ensinam-nos algo de novo.
Cosmologia
Admitimos comummente que a filosofia começa com questões cosmológicas
relativas à origem e à composição material do mundo, bem como ao
funcionamento deste. É a Tales que se deve a famosa iniciativa de haver
começado, quando afirmou que era a água o princípio elementar de todas as
coisas, e que a terra flutuava sobre a água6. Todavia, já na época de Aristóteles,
ninguém compreendia nem o que Tales quisera dizer ao certo, nem o que
dissera ele ao certo, tal como não se sabia quais as palavras que empregara.
Mas Tales interessava-se igualmente por outras questões. Exprimiu-se acerca
da natureza da vida ou da alma7, e os geómetras posteriores atribuíram-lhe a
paternidade de cinco teoremas, dos quais ele talvez haja feito uso para fins
práticos, por exemplo para calcular a distância dos navios no mar8. Encontram-
se em Heródoto algumas narrativas acerca de Tales – como ele possibilitou que
o exército atravessasse o rio Thalys sem qualquer ponte, ou como preveniu os
jónicos do risco de um eclipse solar antes de uma batalha9. Era reputado pela
sua sabedoria política10 e por hábeis investimentos baseados na previsão de um
excelente ano para a colheita de azeitona11. Semelhante variedade de interesses
vai muito para além daquilo a que hoje em dia chamamos «filosofia»; mas é
certo que a definição do que cabe à filosofia se restringiu desde a Antiguidade.
O contributo de Anaximandro para a cosmologia inclui a tese segundo a qual
a matéria do mundo se desenvolve a partir de um material indeterminado, ao
qual ele acabará por retornar. Esse material primordial é o «ilimitado» (o
apeiron, aquilo que é sem limite ou indefinido), o que aparentemente significa
não se tratar nem de água (como pensava Tales), nem de qualquer outra matéria
conhecida, mas de algo que é absolutamente desprovido de qualidades12. Outro
ponto importante: Anaximandro sustentava que as coisas advêm e desaparecem
de modo sucessivo. Uma frase que descreve esse equilíbrio parece ter
sobrevivido nos próprios termos que haviam sido empregues por
Anaximandro:
As coisas que dão o seu nascimento às realidades são também aquelas para onde elas tendem na
sua destruição, segundo o que deve ser; pois elas se tornam justiça e castigo, umas às outras, da sua
injustiça, segundo a ordem do tempo13.
Anaximandro usa aqui imagens algo desusadas e arcaicas para sugerir que,
onde um elemento ganha terreno durante um certo tempo e um outro se retira,
terá lugar um «castigo» no momento oportuno, quando o segundo retornar e o
primeiro for destruído, por uma duração de tempo igual.
O que Anaximandro diz da forma do cosmos é notável para a sua época. A
Terra continua a ser plana, no centro do universo, mas é agora um pequeno
cilindro espesso, dotado de duas superfícies planas: o nosso lado já não é o
único «cimo14». Com uma abóbada de céu em cada extremidade, ela forma
uma esfera no centro de rodas que transportam o Sol, a Lua e as estrelas. Em
lugar de se perguntar o que sustenta a Terra, Anaximandro faz notar que aquilo
que se mantém a igual distância do que o rodeia não tem motivo algum para se
deslocar para um ou outro lado, pelo que a pergunta «Porque é que ela não
cai?» está mal colocada. O equilíbrio é a chave da física, tal como da química.
Ao redor da Terra, os círculos concêntricos são como os contornos de umas
rodas de carroça. Jactos de fogo que brotam de orifícios nos cilindros sombrios
fazem aparecer o Sol, a Lua e as estrelas. Atribuindo aos diâmetros medidas
que são múltiplos exactos de uma mesma medida (na ocorrência, a espessura
da Terra15), Anaximandro adopta o princípio científico de que a natureza tem
um significado matemático, ao ponto de as teorias cosmológicas serem
demonstradas pela matemática, e não pela observação.
Após Anaximandro, Anaxímenes parece bem menos sofisticado; a sua Terra
é um disco. Mas dotado de um único «cimo», o nosso, orlado por uma abóbada
de céu. O Sol e as estrelas percorrem a abóbada do céu e giram ao redor dela,
mas não passam abaixo do solo16. Ele recusa a tese de Anaximandro segundo a
qual a Terra se manteria sem suporte algum, para afirmar que ela «flutua nos
ares», por ser plana. Será isso ingenuidade? Talvez não, se compreendermos
que «flutuar nos ares» (epocheisthai) significa que, se uma corrente de ar vier
de baixo, o disco plano que é a Terra não poderá descer contra o vento17. Além
disso, a corrente de ar que rodeia as extremidades da Terra desvia os outros
discos, os do Sol, da Lua e dos astros, e projecta-os através da abóbada celeste
tal como as folhas vogam ao vento.
Para Anaxímenes, é o ar o elemento primordial. Para ele os outros materiais
não são mais do que formas de ar de diferentes densidades. Quando o ar se
condensa, produz primeiramente o nevoeiro, depois a água, a terra e as pedras
sólidas. O ar rarefeito dá o fogo18. Do ponto de vista metafísico, trata-se de
uma doutrina parcimoniosa. Os sólidos, os líquidos e os gases não se
distinguem senão pela sua densidade – ou seja, do ponto de vista físico, e não
do da composição química. As mudanças de densidade resultam do
aquecimento ou do arrefecimento físicos, sem que para tal seja exigido
qualquer outro elemento além do ar19. Em apoio da sua teoria, ele parece haver
sustentado que se pode expirar um sopro frio através de lábios fechados, e um
sopro quente através de uma boca mais aberta20. Encontram-se aqui elementos
de observação científica em apoio da hipótese, bem como um recurso a efeitos
susceptíveis de serem observados.
As teses cosmológicas de Xenófanes, Parménides, Heraclito e Empédocles
serão mencionadas mais adiante, quando apresentarmos as suas teses
metafísicas e psicológicas. A cosmologia torna-se um objecto em si mesma no
século V, com Anaxágoras, os atomistas e Diógenes de Apolónia.
Anaxágoras partilha com os mais célebres atomistas, Leucipo e Demócrito, a
ideia de que existe uma pluralidade de elementos primordiais permanentes.
Todos os três reduzem além disso todas as mudanças observáveis ao
movimento desses elementos constitutivos microscópicos, demasiado pequenos
para poderem ser percebidos. Mas enquanto Anaxágoras defendia que os
elementos primordiais eram infinitamente divisíveis, de modo a não existir
limite para a pequenez de uma gota de água, os atomistas, pelo seu lado,
concebiam-nos como elementos corpóreos indivisíveis. As variadas
combinações desses átomos (que são de diferentes tipos) explicam a variedade
dos compostos de que nos apercebemos. Este resumo, no entanto, não retém
mais do que o parentesco entre Anaxágoras e os atomistas. Devemos
considerar com maior atenção o que Anaxágoras se propunha realizar. Um dos
seus objectivos, ao que tudo indica, era oferecer uma explicação para a
alteração química que respeita o velho adágio segundo o qual «nada vem de
nada21». Anaxágoras explica que, em toda a mudança aparente, o material de
origem, que parece puro, é na realidade uma mistura, de modo que o material
ao qual a mudança dá lugar estava na realidade já presente nessa mistura: ele
não faz mais do que aparecer, como quando a água se evapora de um copo e
deixa um resíduo calcário. Uma explicação semelhante pode ser dada para todo
o tipo de mudanças: Anaxágoras sustenta que tudo, mesmo o depósito calcário
assim deixado no fundo do copo, contém minúsculas combinações de todas as
espécies de materiais22.
Para explicar como o mundo nasceu de uma primeira mistura, Anaxágoras
apela ao «Intelecto», uma forma de inteligência ordenadora que é a única
realidade não composta23. O «Intelecto» parece designar igualmente a
inteligência inerente a cada coisa viva24.
Tais teses podem ser distinguidas das de Leucipo e Demócrito. A cosmologia
destes dispensa qualquer recurso a um intelecto divino; em vez disso, os
átomos deslocam-se ao acaso no vazio. Os átomos não têm, ao que parece,
nenhum movimento natural, mas ricocheteiam de algum modo uns nos outros,
suscitando assim novos movimentos25. Além disso, um efeito de turbilhão faz
com que se formem estruturas cósmicas em certos pontos do espaço: para
formar não só este mundo, mas uma multidão de mundos possíveis26. Algumas
destas proposições foram retomadas pelos epicuristas na época helenística e
serviram de inspiração tanto a cientistas como a filósofos no início da
modernidade.
Diógenes de Apolónia rejeita este mecanismo causal e a separação da
matéria e do intelecto. Concebe um princípio que é ao mesmo tempo ar e
inteligência, um princípio material inteligente que justifica o universo material,
a origem da vida ou ainda a razão por que os seres dotados de inteligência
respiram. As mudanças que afectam a inteligência devem-se às variações da
temperatura. Eis uma teoria cosmológica que se apoia numa filosofia do
intelecto27.
a) Não podemos entrar duas vezes no mesmo rio, segundo Heraclito, e não podemos também
apreender duas vezes no mesmo estado uma realidade mortal. As mudanças vivas e rápidas
dispersam-lhes os elementos, e depois reúnem-nos de novo; ou antes, não é de novo, nem mais
tarde, é simultaneamente que ela se constitui e se desfaz, aparece e desaparece39.
b) Sobre aqueles que entram nos mesmos rios, escorrem outras e outras águas40.
c) Entramos e não entramos nos mesmos rios. Somos e não somos41.
A alma e o intelecto
O inquérito sobre a natureza da alma e do intelecto começa com Tales. Ele
pensava (segundo Aristóteles) que «tudo está cheio de deuses» e que o amante
tem uma alma50. A segunda afirmação sugere que a alma é uma aptidão para
mover as coisas que mais convêm, mas que ela nada nos ensina sobre a
psicologia da alma humana.
Com o pitagorismo, a alma torna-se o lugar do «si». Encontram-se menções à
reincarnação como doutrina pitagórica em Xenófanes, Empédocles e Íon de
Quios51, bem como em duas passagens de Heródoto52. Para além de duas
menções obscuras em Heraclito, é esse o essencial das fontes antigas sobre
Pitágoras53. Em Empédocles, no século V, a reincarnação figura igualmente em
primeiro lugar. Este último instituiu os quatro elementos54, movidos pelo amor
e o ódio55, bem como a ideia de selecção natural56. Com efeito, ele é autor de
uma narrativa cosmológica, mas essa narrativa está ligada a uma outra que trata
da causa intencional e das escolhas que fazem os seres inteligentes. A
alternância do «amor» e do «ódio» não é somente uma metáfora. Em
Empédocles, os «elementos» são também deuses ou espíritos (daimones), que
experimentam atracção ou repulsão uns pelos outros, ou seja que amam ou
odeiam. Uma célebre passagem descreve os espíritos exilados longe do deus e
condenados a vaguearem pelo mundo, incarnados em diferentes meios
elementares, durante trinta mil estações. Esse exílio é a punição de um crime,
porventura o assassinato57. Isso concorda com a maneira como Empédocles
condena o sacrifício e o consumo da carne, considerados pecados por os
animais serem a reincarnação dos seres queridos58.
As obras de Empédocles reúnem análises científicas (sobre a sensação e a
respiração, por exemplo59) e explicações profundamente religiosas (sobre o
nosso lugar no mundo e os meios de obtermos a nossa salvação). A questão de
saber se o conjunto desses ensinamentos pertence a um único poema ou antes a
dois (sendo um deles científico, e o outro moral e religioso) continua em
disputa. Esta controvérsia foi reavivada, nos anos 1990, pela descoberta de um
papiro fragmentário, que junta novos elementos aos que até aí nos ofereciam
duas tradições distintas de testemunhos antigos60.
Concluiremos esta secção recordando a existência das teses de Anaxágoras e
de Diógenes de Apolónia sobre o papel cósmico da alma, bem como o
contributo de Demócrito em prol de uma explicação materialista da percepção
e do conhecimento.
8 Proclus, Comentário aos Elementos de Euclides, 352. 14-18 (DK 11A20); ver 157.10; 250.20; 299.1.
13 DK 12B1.
17 DK 13A20.
21 DK 59B17.
22 DK 59B6.
23 DK 59B1, B12.
24 DK 59B11, B12.
27 Ver DK 64B5.
28 DK 21B26 e 25.
31 W. Burkert, Weisheit und Wissenschaft. Studien zu Pythagoras, Philolaos und Platon, Nuremberga, H.
Carl, 1962. Cf. a tradução inglesa por E. L. Minar, Love and Science in Ancient Pythagoreanism,
Cambridge, Harvard University Press, 1972.
32 Sexto Empírico, Contra os Sábios, 7. 94-96. Hipólito, Refutação de Todas as Heresias, VI, 23.
35 Em B1.
36 B6.9.
37 B7.5.
38 B14.
39 DK 22B91.
40 DK 22B12.
41 DK 22B49a.
42 DK 22B1.
43 DK 22B60.
44 DK 22B61.
45 DK 22B57.
46 DK 22B110.
47 En B2.
48 B8.
53 DK 22B40, 22B129.
54 DK 31B6, 31B21.
55 DK 31B17.
57 DK 31B115.
58 DK 31B136 e B137.
66 DK 31B141.
O inteligível
Platão propôs a hipótese da existência de realidades inteligíveis,
simultaneamente distintas das coisas sensíveis e em relação com estas. Não se
trata, no caso, de um gesto paradoxal destinado a fazer crer que seria possível a
um pequeno número de privilegiados refugiarem-se num alhures ideal; ela
explica em que é que este mundo, onde tudo está em constante mudança,
oferece não obstante suficiente permanência e estabilidade para que o homem o
possa conhecer, falar dele e agir nele. Convencido de que essa estabilidade e
essa permanência não se poderiam encontrar no sensível, Platão declarou que
deveria existir uma realidade de outro tipo que respondesse a tais exigências, e
que explicasse porque, em toda essa mudança, há algo que não muda.
A hipótese da existência de Formas separadas das coisas sensíveis é
efectivamente admitida nos diálogos, nomeadamente a partir do Fédon68. Ela
constitui até o objecto de uma obra que se baseia na distinção entre intelecto e
opinião69. Se distinguirmos no ser humano duas faculdades cognitivas
distintas, teremos de admitir a existência dos seus respectivos objectos, que
deverão pertencer a níveis de realidade diferentes: o sensível e o inteligível. As
coisas sensíveis devem no entanto manter alguma relação com as formas
inteligíveis que orientam a acção do homem, asseguram a organização da
cidade e se situam até, segundo o Timeu, no princípio do universo. Essa relação
é assemelhada a uma imitação, pois o sensível mantém com o inteligível a
relação que a cópia tem para com o modelo. No quadro dessa relação, o
inteligível tem o papel de causa e o sensível o de efeito. Por conseguinte, a
relação entre sensível e inteligível não é simétrica, pois para a sua existência e
para a sua constituição o sensível depende do inteligível, o qual, por seu turno,
existe em si. Somente o reconhecimento desta assimetria, indissociável de uma
separação radical entre o sensível e o inteligível, permite escapar às
consequências do argumento do «terceiro homem», o qual implica a existência
de um termo que englobe o sensível e o inteligível, e assim sucessivamente até
ao infinito.
Sendo imagens delas, as coisas sensíveis devem assemelhar-se às formas
inteligíveis. Mas a noção de semelhança tem um duplo aspecto: ela implica ao
mesmo tempo conformidade e disparidade. No Timeu, é a intervenção do
demiurgo que assegura a conformidade das coisas sensíveis às Formas de que
elas participam; e é a khôra, ou «meio espacial», que dá conta da disparidade
delas em relação às Formas. Todas as coisas sensíveis, que delas são feitas, ali
aparecem múltiplas e distintas e ali se transformam70. Se Timeu pode dizer da
khôra que «ela participa do inteligível de uma forma particularmente
desconcertante», isso não significa que haja uma forma inteligível da khôra,
mas que esta apresenta diversos aspectos que a aparentam ao inteligível; é um
princípio, é imutável, não é perceptível pelos sentidos, etc. No Timeu, Platão
distingue portanto não dois, mas três géneros: para além das formas inteligíveis
e das coisas sensíveis, ele evoca a existência da khôra, na qual se acham as
coisas sensíveis e a partir da qual elas são constituídas71.
A alma
Na tradição que Platão conhece e que remonta pelo menos à Ilíada e à
Odisseia, a questão da «interioridade» humana transforma-se, mas não de
maneira radical. Ela passa do corpo para uma entidade quase corpórea, sempre
ligada a um elemento corpóreo. Essa entidade quase corpórea é a alma, que se
encontra no interior do corpo segundo duas modalidades: como seu motor e
como seu hóspede provisório. O interesse da posição de Platão prende-se com
o facto de, na sua representação da alma, esses dois modelos se acharem
associados. O modelo da alma ligada ao corpo que ela anima a partir do interior
impõe-se sempre que se fala de seres vivos, ao passo que o modelo de alma
como hóspede temporária de um corpo aparece sempre que se evoca a
reincarnação. Convém ainda situar esta posição num determinado contexto
filosófico.
A alma, definida como «origem e princípio de movimento para tudo o que é
movido72», pode ser associada a um corpo que ela anima e para o qual ela
procura um movimento espontâneo, estabelecendo assim uma oposição entre
vivo e não vivo. Além disso, ela é invisível porque se situa num nível
intermédio entre o sensível e o inteligível, como dá a entender Platão em duas
passagens do Timeu em que se encontra descrita a mistura de onde todas as
almas brotaram: a alma do mundo, as dos deuses, dos demónios, dos homens
ou dos animais73. E como o invisível e o imaterial andam a par, compreende-se
que a alma possa exercer essa actividade imaterial que é o conhecimento, quer
se trate de perceber as coisas sensíveis ou de captar as realidades inteligíveis.
Por outro lado, a alma não se reduz a um processo ou a uma actividade; é
uma entidade autónoma que, enquanto hóspede provisória de um corpo, tem
uma personalidade e uma história. Deve portanto levar-se a sério a «descrição»
da mistura obrada pelo demiurgo no Timeu74 e da qual provêm a alma do
mundo e a alma dos outros seres vivos, pois, para que seja possível um sistema
retributivo como o que é proposto por Platão, é preciso que uma entidade
autónoma subsista após a morte, quando a alma se separa do corpo, e que essa
entidade passe de um corpo a um outro, em função da qualidade da sua
existência anterior num corpo.
Para Platão, é portanto a alma o que de mais precioso há no homem –
nomeadamente quando ela exerce a sua função mais elevada –, que permite
definir o que determinado homem é verdadeiramente. Contudo, o corpo
mantém relações muito fortes com a alma cuja qualidade ilustra.
Os corpos
Como foi fabricado o corpo em que vive a alma? Se estimarmos que uma
cosmologia deve propor uma representação simples mas coerente e rigorosa do
universo, cujas propriedades surjam como as consequências logicamente
deduzidas de um conjunto limitado de pressupostos, então o Timeu de Platão
representa uma verdadeira cosmologia, a primeira efectuada com o auxílio da
linguagem matemática, e não somente da linguagem vulgar, como é o caso em
Aristóteles, por exemplo.
Conformando-se a uma opinião tradicional, que remonta provavelmente a
Empédocles e se iria perpetuar até ao século XVIII, Platão toma por adquirido
que o corpo do universo foi fabricado exclusivamente a partir de quatro
elementos: o fogo, o ar, a água e a terra75. Mas vai muito mais longe. Por um
lado, avança um argumento matemático para justificar o número desses
elementos. Por outro lado, está consciente de dar provas de uma grande
originalidade76 ao estabelecer uma correspondência entre esses elementos e os
quatro poliedros regulares, ou seja ao transpor em termos matemáticos o
conjunto da realidade física e as mudanças que o afectam.
Com efeito ele associa o fogo ao tetraedro, o ar ao octaedro, a água ao
icosaedro e a terra ao cubo. Estes quatro poliedros são por seu turno
construídos a partir de dois tipos de superfícies, elas próprias resultantes de
dois tipos de triângulos rectos: o triângulo isósceles, que é a metade de um
quadrado, e o triângulo escaleno, que é a metade de um triângulo equilátero de
lado x. Estes dois triângulos rectos elementares entram na construção de dois
tipos de superfície, o quadrado e o triângulo equilátero: um quadrado resulta da
reunião de quatro triângulos isósceles77; e um triângulo equilátero da reunião
de seis triângulos escalenos78. Os triângulos equiláteros servem para construir
esses três poliedros regulares que são o tetraedro79, o octaedro80 e o
icosaedro81, associados respectivamente ao fogo, ao ar e à água. Por outro lado,
seis quadrados servem para constituir o cubo82 associado à terra. Todas as
propriedades dos poliedros a que estão associados os quatro elementos
permitem explicar matematicamente a transformação dos três primeiros
elementos entre si.
No corpo do mundo, que apresenta o aspecto de uma gigantesca esfera – uma
vez que, enquanto cópia de um original perfeito, também esse corpo deve ter a
forma mais perfeita, e portanto a mais simétrica –, os elementos repartem-se
em quatro camadas concêntricas, entre as quais há intercâmbio: o fogo
encontra-se na periferia, depois vêm o ar, a água e a terra, no centro. Entre os
corpos, alguns podem mover-se por si mesmos – são os vivos – e outros não.
Entre os vivos, devem contar-se os deuses, além do mundo, dos demónios, dos
homens, dos animais e das plantas. É no anel ocupado pelo fogo que se
encontram os corpos celestes regidos por um sistema astronómico83 que
apresenta uma espantosa simplicidade, pois baseia-se exclusivamente em
movimentos circulares cuja regularidade é determinada por três tipos de
relações matemáticas: geométrica, aritmética e harmónica. A extraordinária
complexidade dos movimentos que afectam todos os corpos celestes acha-se
reduzida a dois elementos de ordem matemática: círculo e relação matemática.
E, muito naturalmente, é o movimento da esfera do mundo sobre si mesma que
explica todos os movimentos relativos às trocas entre os elementos, que passam
de uma camada concêntrica para uma outra e por vezes se transformam até uns
nos outros: a água no ar, o ar em fogo, e vice-versa.
A epistemologia
A divisão de ordem ontológica entre modelos que constituem a realidade
verdadeira e cópias que só comportam uma realidade derivada implica uma
distinção estritamente paralela ao nível do conhecimento e do discurso, como
se constata ao ler Timeu, onde o intelecto, que tem por objecto as formas
inteligíveis, se opõe à opinião verdadeira, a qual tem por objecto as coisas
sensíveis percebidas pelo corpo84. E esta oposição de ordem epistemológica e
argumentativa vê-se ainda apoiada por esta outra, de ordem sociológica: «[na
opinião verdadeira] todo o homem toma parte, há que dizê-lo, enquanto na
intelecção são os deuses [que tomam parte] e, entre os homens, uma pequena
classe apenas85». Essa muito pequena classe de homens é evidentemente a dos
filósofos.
A ética
Nesta perspectiva, é a sua alma e não o seu corpo que constitui o que de mais
importante há para o homem; a alma é o que um homem tem de próprio. É pela
sua alma, que lhe concede uma certa imortalidade, que o homem se pode
assemelhar a deus, característica totalmente estranha à anterior tradição grega
baseada na oposição entre mortais (homens) e imortais (deuses). É este
princípio que vai governar a ética e a política em Platão.
Se considerarmos a moral como um sistema de comportamentos admitidos e
encorajados numa sociedade, podemos definir a ética como a avaliação
racional da moral. Uma tal definição supõe portanto que, nessa sociedade,
certos comportamentos são admitidos e favorecidos, e outros interditos e
condenados; este sistema implica a ideia de sanção. Porquê adoptar tal
comportamento admitido, ou pelo contrário privar-se de um outro que é
condenado? Porque daí resultará para o agente, cujo fito é atingir a excelência
(aretê), uma vantagem ou inconveniente num dado plano. A avaliação e a
sanção não dependem porém de si mesmas, pois implicam uma representação
prévia do que é um ser humano.
É para dar conta da relação dessa alma imortal com um corpo perecível que
Platão, a partir d’A República, distingue na alma três espécies, cuja primeira é
imortal em si, ao passo que as duas restantes só fruem da imortalidade na
condição de o corpo que elas regem ser indestrutível. A espécie imortal da
alma, o intelecto (nous), contempla as realidades inteligíveis de que as coisas
sensíveis são meras imagens. Por intermédio dela, o homem aparenta-se a um
deus, ou antes a um daimôn. As duas outras espécies só são imortais em certas
condições. Trata-se por um lado do ardor (thumos) que permite ao vivente
mortal defender-se, e por outro do apetite (epithumia) que lhe permite
assegurar a sua subsistência e a sua reprodução. Enquanto, no caso dos deuses
– com corpo indestrutível –, elas podem ser ditas imortais, essas duas espécies
são declaradas mortais quando se acham associadas a funções que permitam
assegurar a sobrevivência do corpo sensível ao qual a alma está
provisoriamente ligada.
Mas, tal como o corpo que ela move, a alma do ser humano pode ser objecto
de desregulamentos que não se devem a ela: embora ela conheça o bem, não
consegue conformar-se a este. Tais desregulamentos devem portanto ter causas
exteriores. Essas causas são em número de duas: o mau funcionamento do
corpo88 e as más instituições que originam uma educação má89.
Não se podem evitar as doenças da alma ou sará-las a menos que se aplique o
duplo princípio seguinte. Instaurar uma justa proporção entre um corpo e uma
alma aos quais se atribuirá exercício, tomando como modelo não só os
movimentos da alma do mundo, mas também os do seu corpo. E velar no
interior da alma por uma justa proporção entre as partes desta, atribuindo
sistematicamente a preeminência ao intelecto90. O problema da
responsabilidade da alma não pode ser adequadamente resolvido, na medida
em que não se encontra em Platão uma vontade que, face à razão, frua de uma
verdadeira autonomia. Esse problema não deixa de ser colocado, pois o Timeu
conclui-se com a descrição de um sistema retributivo que supõe uma falta real
e por conseguinte a consideração de uma certa responsabilidade91.
Diferentemente das dos deuses e dos demónios, toda a alma humana é
susceptível de passar pelos corpos de seres vivos diferentes, homem, mulher ou
animal, em função da qualidade das suas vidas anteriores. Para evitar decair, ou
para ascender na escala dos seres vivos, o ser humano deve guardar uma justa
proporção entre o seu corpo e a sua alma: é esse o fito da educação. O intelecto
deve igualmente permanecer dominante na alma. Ora, como esse intelecto não
é mais do que um resíduo da alma do mundo, a contemplação das revoluções
dos corpos celestes propiciar-lhe-á não só a ciência, mas um modelo de bom
funcionamento92.
Assim sendo, a contemplação do universo sensível constitui um preâmbulo
indispensável à contemplação das formas inteligíveis, a única que permite
determinar o valor moral de uma existência humana. Platão retoma aí uma
convicção de Sócrates que se baseia em dois postulados93: 1) O mal e o erro
são indissociáveis; o reino do bem coincide com o da verdade, o qual se instala
quando, no homem, domina o movimento do círculo do mesmo que é o lugar
do conhecimento racional. 2) O desejo segue necessariamente o pensamento;
eis porque é impossível desejar outra coisa senão o bem que se impõe à razão.
Esta posição, igualmente posta na boca de Sócrates por Xenofonte94, encontra-
se em muitas passagens dos diálogos. Para lutar contra o mal que o homem não
pode cometer cientemente e que em última análise resulta da ignorância, a
melhor arma é a educação dispensada pela cidade boa.
A política
Para os contemporâneos, a política consiste em gerir os conflitos que nascem
forçosamente numa comunidade onde os grupos tomam por bons diferentes
objectivos. Platão, pelo seu lado, quer simplesmente eliminar o conflito (stasis)
na cidade.
A causa do mal na cidade, ou seja a causa de todo o conflito, externo ou
interno, é a competição (agôn) que move a inveja ou o ciúme (phthonos) e que
conduz à avidez (pleonexia), ou seja à ambição de ter sempre mais. No
exterior, isso leva a cidade a querer incessantemente aumentar o seu território
fazendo guerras sem cessar. E, no interior, leva cada cidadão a querer aumentar
o seu domínio (oikos) invadindo o dos outros ou muito simplesmente
apoderando-se destes pela astúcia ou pela violência: daí a guerra civil.
Para fazer desaparecer todo o conflito, Platão ataca a causa última deste, a
saber a família em sentido lato, o oikos, que abrange ao mesmo tempo uma
população e o território em que vive essa família com os seus bens. N’A
República, Platão proíbe aos guardiões – ou seja àqueles que devem manter a
lei e a ordem e fornecer os dirigentes que são igualmente filósofos – a posse de
qualquer bem que seja. E, mais fundamentalmente, recomenda que se atribua a
esse grupo funcional a comunidade das mulheres e das crianças. Deste modo,
uma família não poderá acumular as riquezas transmitindo-as de geração em
geração. Enfim, os dirigentes saídos desse grupo serão escolhidos não em
função da sua riqueza ou do seu poder, mas em função do seu saber.
Uma vez que a ética e a política se fundam em última instância na ciência,
entendida como conhecimento da realidade inteligível, as constituições
propostas n’A República e n’As Leis insistem na necessidade de uma educação
que toque não só os dirigentes mas também os cidadãos. Não se trata de
subordinar os esforços de uma cidade à criação de uma casta de intelectuais
que se contentem em prosseguir os seus estudos, mas de utilizar a ciência
possuída pelos melhores para modelar o corpo e a alma dos outros cidadãos; é
por isso que, n’A República, aqueles que saíram da caverna (segundo a célebre
comparação que descreve o homem ainda não educado como um prisioneiro
acorrentado no fundo de uma caverna) são forçados a regressar a ela. Nesta
perspectiva, pode dizer-se que a política é a prática de cuja ciência se faz a
teoria. O que Platão repete n’A República, n’O Político e n’As Leis não é mais
do que essa dupla necessidade: colocar à frente da cidade governantes sábios,
que além do mais tenham por fito modelar o corpo e a alma dos outros
cidadãos. E isto, em função da ciência que é a deles e que deve dirigir todas as
outras, impondo regras estritas aos dois fundamentos da educação: o exercício
físico (gumnastikê) e a cultura (mousikê), que asseguram o desenvolvimento
harmonioso das duas partes de todo o ser.
É para atingir esse fim que, no final do Livro III d’A República, Platão
propõe uma organização na qual os indivíduos se repartem entre grupos
funcionais hierarquizados, segundo a predominância neles de uma ou outra
espécie de alma: intelecto, ardor ou apetite. O grupo mais numeroso,
encarregado de assegurar a produção de alimentos e de riquezas, é composto
por agricultores e artesãos. Este grupo é protegido por guardiões, os guerreiros
encarregados de velarem pela manutenção da ordem no interior e no exterior da
cidade. Na medida em que não podem possuir nem bens nem dinheiro, os
guardiões estão completamente separados dos produtores, que, em troca da
protecção recebida, devem alimentá-los e garantir a sua manutenção. É neste
grupo funcional que é escolhida uma muito pequena quantidade de indivíduos
destinados a uma educação superior e ao governo da cidade.
N’As Leis, reencontra-se o mesmo projecto, mas num quadro ainda mais
constrangedor, uma vez que as parcelas de terreno (klêroi) não são possuídas,
mas administradas pelos cidadãos. A maneira como todos os cidadãos,
libertados do trabalho e do negócio, participam na vida cívica, distingue As
Leis d’A República. Aqui, Platão não separa os cidadãos em grupos funcionais:
opta pela distinção de quatro classes censitárias, que agrupam os cidadãos
segundo o seu património. Com a precisão notável de que a riqueza e a pobreza
não podem exceder certos limites: o cidadão mais pobre nunca desfrutará de
menos do que uma das 5040 parcelas do terreno cívico, e o mais rico nunca de
mais de quatro vezes o valor de uma parcela95.
No primeiro livro d’As Leis encontra-se uma definição da lei como decreto
comum da cidade (dogma poleôs), decisão tomada pela cidade após um cálculo
racional e considerador dos sentimentos que são a confiança ou o temor,
explicando-se respectivamente pela expectativa de dores ou de penas96. Esta
definição, que subordina a moderação e até a coragem à razão, acha o seu
fundamento numa outra definição da lei como «distribuição do intelecto» (tên
tou nou dianomên), que atribui ao legislador uma dupla tarefa. Estabelecer uma
ordem proporcional entre as faculdades da alma do indivíduo, o que significa
fazer reinar o intelecto e fazer do cidadão um ser razoável que sabe dominar-se
perante o prazer e a dor, perante a confiança ou o temor, e isso designadamente
por meio da educação. Estabelecer uma ordem proporcional entre os cidadãos,
assegurando o reino dos mais meritórios e dos mais virtuosos, ou seja daqueles
que fazem melhor uso da faculdade mais elevada da sua alma, o intelecto
(nous), sobre aqueles que o são menos, reservando-lhes as honrarias e as
magistraturas. Ora, a legislação d’As Leis distingue-se de todos os outros
códigos de leis gregas que chegaram até nós por um aspecto essencial, descrito
no Livro IV: cada texto de lei que compreende a formulação da lei
propriamente dita e um inventário das penas em que incorre aquele que não se
submeter a elas é precedido por um preâmbulo destinado a persuadir cada
cidadão, cujo comportamento teria sido previamente modelado nesse sentido, a
obedecer à lei sem sequer pensar nela. Ora esses preâmbulos são por um lado
mitos e por outro exortações retóricas que fazem intervir o elogio e a censura,
com uma excepção porém: o Livro X, no qual se desenvolve uma
demonstração destinada a convencer os jovens ateus, que não foram
persuadidos nem pelos mitos nem pelas exortações retóricas.
Mesmo se ela tem por auxiliar o mito, que desempenha um papel essencial
no domínio da ética e no da política, é em definitivo à lei escrita que na cidade
cabe o papel principal. Mas a própria lei escrita depende de um princípio
superior, o intelecto (nous), representado na cidade pelo Colégio de vigília e
agindo no universo como a alma do mundo, que dá regularidade e permanência
à marcha dos corpos celestes. É aliás por esse fundamento na cosmologia que a
ética e a política se unem. O homem, a cidade e o mundo constituem um
conjunto comum onde intervém uma alma cuja actividade superior é guiada
pela contemplação da realidade verdadeira.
Em 387 a.C., no regresso da sua primeira viagem à Grande Grécia (sul de
Itália) e à Sicília – onde se apresentou na corte de Dionísio, O Antigo, tirano de
Siracusa, e travou conhecimento com Dion –, Platão estabeleceu a expensas
próprias a sua escola, a Academia, no parque do herói Academos. A Academia,
que após a morte de Platão teve como primeiros chefes Speusipo e Xenócrates,
conheceu rapidamente um grande sucesso, e depressa entrou em conflito com a
escola de Isócrates, onde se ensinava sobretudo a retórica. Com Arcésilas de
Pitano, que sucedeu a Crates em 268-264, a Academia tornou-se uma «Nova
Academia». O epíteto «nova» justifica-se a vários títulos. Aí se recomenda a
suspensão universal do juízo por oposição ao dogmatismo estóico, e o ensino
permanece essencialmente oral, tomando assim o exemplo de Sócrates. No
início do Império, fez-se sentir entre os platónicos a necessidade de um
pensamento livre da interpretação estóica e aristotélica que havia conhecido
Cícero, e mais religioso, centrado nos meios dados à alma humana para aceder
a uma outra ordem, a do Deus cujas Formas são os pensamentos que organizam
a matéria. E com Plotino, que instaura o Uno para além do ser, ou seja para
além do Intelecto e do Inteligível, é inaugurada a última corrente de
interpretação da doutrina platónica, o neoplatonismo, que durará até 529.
Durante cerca de um milénio, os textos de Platão foram lidos, recopiados,
meditados e cuidadosamente transmitidos por pessoas de alta cultura; eis o que
explica a excepcional qualidade dos nossos manuscritos dos diálogos e a
imensa difusão do pensamento platónico.
LUC BRISSON
68 100c-d.
69 Timeu, 51d3-e6
70 Ibid., 52c2-d1.
71 Ibid., 51e6-52c1.
72 Fedro, 245c-d.
74 Ibid., 35a-b.
75 Ibid., 56b-c.
76 Ibid., 53e.
77 Ibid., 55b.
78 Ibid., 54d-e.
79 Ibid., 54e-55a, quatro triângulos equiláteros.
83 Ibid., 38c-39e.
84 Ibid., 51d-e.
85 Ibid., 51e.
88 Timeu, 86b-87a.
89 Ibid., 87a-b
90 Ibid., 87c-89d.
91 Ibid., 90e-92c.
92 Ibid., 89d-90d.
93 Ibid., 86d-e.
95 As Leis, V, 744a-d.
96 Ibid., I, 644c-d.
Aristóteles
Aristóteles nunca publicou por si mesmo os textos dos seus cursos; estes só
foram editados mais tarde, na segunda metade do século I a.C., por Andrónico
de Rodes, provavelmente em Roma. Esses textos constituem o corpus
aristotelicum, e chegaram até nós através da tradição manuscrita.
Esse corpus compreende obras:
– de lógica (Categorias, Da Interpretação, Primeiros Analíticos, Segundos
Analíticos, Tópicos, Refutações Sofísticas);
– de física (Física, Do Céu, Da Geração e da Corrupção, Meteorológicos);
– de psicologia (Da Alma, Pequenos Tratados de História Natural);
– de biologia (História dos Animais, Do Movimento dos Animais, Da Marcha
dos Animais, Das Partes dos Animais, Da Geração dos Animais);
– de filosofia primeira (Metafísica);
– de ética (Ética a Nicómaco, Ética a Eudemo, Grande Moral);
Devem acrescentar-se ainda as obras seguintes: Política, Retórica, Poética.
Por fim, convém mencionar a Constituição dos Atenienses, que chegou até
nós num papiro e cujo autor foi Aristóteles.
Lógica e dialéctica
Aristóteles é considerado o inventor da lógica, compreendida como a ciência
que estuda as leis do pensamento (logos). Foi com efeito este o nome que foi
dado à doutrina por ele exposta nas obras que a tradição reúne na compilação
intitulada Organon, ou seja «instrumento», considerando que a lógica é um
instrumento utilizado pelas diferentes ciências. Primeira obra, o tratado das
Categorias distingue as realidades que existem em si mesmas, por exemplo o
homem, daquelas que existem noutras realidades, como o branco; Aristóteles
chama às primeiras «substâncias» e às segundas «acidentes». Entre as
substâncias, Aristóteles distingue seguidamente as «substâncias primeiras», que
são os sujeitos individuais, por exemplo um dado homem, e as «substâncias
segundas», que são as espécies universais de que fazem parte os sujeitos, tais
como o homem em geral, ou os géneros de que fazem parte tais espécies, como
por exemplo o animal. As espécies e os géneros são os «predicados» dos
indivíduos, no sentido em que indicam as características gerais destes. As
substâncias primeiras são a condição de existência de todas as coisas, quer se
trate das substâncias segundas ou dos acidentes. Elas não têm nem contrário,
nem graus, mas, em momentos diferentes, podem acolher acidentes contrários.
Na categoria dos acidentes, há igualmente indivíduos (por exemplo um certo
branco) e universais (por exemplo o branco em geral, ou a cor). Enquanto as
substâncias pertencem ao género supremo chamado justamente «substância»
(ousia), os acidentes comportam nove outros géneros, que são: a quantidade, a
qualidade, a relação, o lugar, o momento, a posição, a possessão, a acção e a
paixão. Estes dez géneros supremos são chamados «categorias», ou seja tipos
de predicados.
No tratado Da Enunciação (De interpretatione), Aristóteles afirma que as
palavras, que formam a linguagem, são os signos convencionais dos conceitos
ou, mais geralmente, que eles são conteúdos do espírito, sendo estes por seu
turno imagens das coisas: entre a linguagem, o pensamento e a realidade existe
portanto uma relação de significação. As palavras principais são os nomes e os
verbos; a reunião delas constitui a proposição ou logos (tendo o nome a função
de sujeito e o verbo a de predicado). A proposição pode enunciar um estado de
coisas ou não passar de expressão, como é o caso da oração. A proposição
enunciativa pode ser uma afirmação, quando liga dois nomes, ou uma negação,
quando os separa. Além disso, pode ser verdadeira ou falsa: é verdadeira
quando liga palavras que indicam coisas realmente ligadas ou quando separa
palavras que indicam coisas realmente separadas; a proposição é falsa quando
estabelece o contrário. A afirmação e a negação do mesmo predicado a
propósito do mesmo tema constituem a contradição: elas não podem ser ambas
verdadeiras ao mesmo tempo (princípio da não-contradição), mas é necessário
que uma das duas seja verdadeira e a outra falsa (princípio do terceiro
excluído). As proposições podem também ser universais, quando têm um tema
universal (por exemplo, todos os homens), ou particulares quando têm um tema
particular (por exemplo, um dado homem).
Nos Primeiros Analíticos, Aristóteles expõe a sua famosa descoberta do
«silogismo» (dedução): trata-se de um raciocínio segundo o qual duas
proposições universais, chamadas «premissas», conduzem necessariamente a
uma terceira proposição chamada «conclusão». Por exemplo: se todos os
homens são mortais (premissa maior, ou seja a mais universal) e se todos os
atenienses são homens (premissa menor), então todos os atenienses são mortais
(conclusão). Vemos que as duas premissas têm um termo em comum,
qualificado de «médio», que ocupa – no esquema mais simples – a função de
predicado na premissa maior e de sujeito na premissa menor. Os dois outros
termos, qualificados de «extremos», constituem a conclusão. Se as premissas
são particulares e a conclusão geral, já não se trata de uma dedução, mas de
uma indução (epagogê); porém, em tal caso, a conclusão não decorre
necessariamente das premissas.
Nos Segundos Analíticos, Aristóteles examina um tipo particular de
silogismo, chamado silogismo científico ou demonstração. É o caso quando as
premissas são verdadeiras e delas deriva necessariamente uma conclusão: essa
conclusão é necessariamente verdadeira. Quando as premissas da demonstração
são primeiras (não sendo a conclusão de outras demonstrações), chama-se-lhes
então «princípios». Os princípios são de dois tipos: particulares, quando
concernem realidades de natureza particular, formando o objecto de uma
ciência particular (por exemplo os números, no caso da aritmética, e as
grandezas, no caso da geometria). Os princípios podem igualmente ser gerais,
quando concernem diversos tipos de objectos (por exemplo o princípio
segundo o qual «ao subtrair partes iguais de objectos iguais se obtêm objectos
iguais»). Tais princípios são também chamados «axiomas». Os princípios
comuns a todas as ciências são o princípio da não-contradição e o do terceiro
excluído. Pode demonstrar-se igualmente uma tese ao deduzir de premissas
verdadeiras uma conclusão que contradiga a proposição inversa àquela que
pretendemos demonstrar. Nesse caso, trata-se de uma demonstração por
absurdo.
Nos Tópicos, Aristóteles ilustra um outro tipo de silogismo a que chama
silogismo dialéctico; as suas premissas são «endoxais» (endoxa), ou seja
admitidas por todos, ou pela maioria, ou pelos peritos, ou pela maioria destes.
Tais premissas não são verdadeiras em todos os casos, mas na maior parte
deles. O silogismo dialéctico é assim chamado por ser o tipo de argumentação
que se emprega nas discussões dialécticas, quando dois interlocutores debatem
uma questão e um dos dois se esforça por refutar a tese defendida pelo outro. A
refutação é um silogismo dialéctico cuja conclusão contradiz uma dada tese.
Em geral, quem se opõe a uma tese visa, por perguntas apropriadas, conseguir
que o seu interlocutor admita premissas endoxais, a partir das quais possa
deduzir a conclusão que pretende. Os meios de obter tais premissas são os
«locais» (topoi, daí o título do tratado), ou seja os tipos de argumentação que
cada um admite. Por fim, nas Refutações Sofísticas, Aristóteles ensina a
desmascarar as refutações justas na aparência (visando em particular as que se
baseiam, não em silogismos dialécticos, mas em silogismos erísticos ou
sofísticos, ou seja que parecem decorrer de premissas endoxais ou têm a
aparência de silogismos), mas que na realidade comportam um artifício (por
exemplo uma homonimia).
Física e cosmologia
Segundo Aristóteles, a primeira forma de conhecimento do homem é a
percepção dos objectos sensíveis, de onde proveio a recordação, e é graças a
um conjunto de recordações do mesmo objecto que se constitui a experiência.
Trata-se do conhecimento do «quê», ou seja do próprio estado das coisas.
Quanto à ciência, ou filosofia, ela é o conhecimento do «porquê», ou seja das
razões pelas quais as coisas se acham, necessariamente ou na maior parte dos
casos, num dado estado.
O primeiro objecto ou conjunto de objectos que Aristóteles procurou
conhecer foi a natureza (phusis), ou seja o conjunto dos corpos em devir que
possuem uma evolução totalmente autónoma; é aliás o que os distingue das
produções da actividade humana, ou seja dos objectos artificiais. Aristóteles
defende que os objectos podem relevar de quatro categorias de causas: as
causas motrizes (o que produz a transformação de um objecto), as causas
materiais (a matéria – hulê – de que um objecto é constituído), as causas
formais (a forma – eidos ou morphê – que estrutura um objecto), e as causas
finais (a finalidade – telos – em vista da qual um objecto existe ou se
transforma).
Na Física, Aristóteles mostra que é possível determinar as causas da
natureza, e, por conseguinte, aceder a uma ciência da natureza, que é
justamente a física. As causas materiais dos objectos naturais são, em última
análise, os quatro elementos dos corpos terrestres: a água, o ar, a terra e o fogo,
associados de diferentes modos segundo as formas dos objectos de que eles
constituem a matéria. As causas formais são precisamente essas formas, ou
ainda o modo segundo o qual os elementos nelas estão misturados; no caso dos
corpos vivos (plantas e animais), a forma é a sua alma, ou seja a sua capacidade
para viver. As causas finais são, para os seres inanimados, o seu «lugar natural»
(a terra para os corpos pesados, o céu para os corpos leves); para os seres
animados, as causas finais são a sua realização perfeita e a sua reprodução. As
causas motrizes imediatas dos corpos naturais são diferentes segundo o tipo de
transformação que eles conheçam e Aristóteles distingue quatro: o movimento
local ou translação, a alteração, o aumento e a diminuição, a geração e a
corrupção. Em geral, a causa destas transformações é a própria natureza,
enquanto princípio interno de movimento e de repouso; mas, por seu turno, a
natureza está submetida à acção motriz suscitada pelo movimento dos céus
(principalmente do sol, que determina a sucessão das estações e, por
conseguinte, a alternância do calor e do frio).
No tratado Do Céu (De caelo), Aristóteles explica que os céus são esferas
concêntricas, no centro das quais se acha a esfera terrestre; a matéria delas é
um elemento diferente dos elementos terrestres, graças ao qual elas não
conhecem nem geração nem corrupção e permanecem eternas: o éter, ele
próprio, não conhecendo geração nem corrupção e sendo eterno.
Cada céu se desloca segundo um movimento circular, girando sobre si
mesmo e deslocando na sua rotação os diversos planetas que a ele estão
ligados. O movimento aparentemente irregular dos planetas explica-se
(segundo a hipótese do astrónomo Eudoxo de Cnido, adoptada e parcialmente
corrigida por Aristóteles) como resultado dos movimentos dos grupos de
esferas, unidas pelos seus pólos mas girando sobre eixos diferentes. Deve ainda
acrescentar-se que todos os céus estão englobados numa esfera extrema, que
contém o universo inteiro; ela arrasta na sua rotação todos os outros céus e
receberá mais tarde o nome de esfera das estrelas fixas. Cada movimento de
rotação, definido como eterno, requer necessariamente uma causa motriz
possuindo em si mesma uma potência infinita, não beneficiando de qualquer
intervenção exterior, e sendo portanto ela própria imóvel: é a razão pela qual
existem tantos motores imóveis (ou seja, substâncias imateriais exteriores aos
próprios céus) quanto céus. O motor imóvel da esfera extrema é o primeiro
motor imóvel; é ele que põe em movimento o universo inteiro, graças à esfera
das estrelas fixas.
Toda a transformação supõe um substrato, ou seja uma matéria subjacente,
que passa de um estado sem forma (estado de «privação») a um estado em que
possui uma forma, quer se trate de um lugar (movimento local ou translação),
ou de uma qualidade (alteração), de uma dimensão (aumento e diminuição), ou
ainda da forma de uma nova substância (geração e corrupção). Aristóteles
chama «potência» (dunamis) – por outras palavras, capacidade para tomar uma
dada forma – à condição em que se encontra o substrato sem forma; chama
«acto» (energeia ou entelekheia) à condição do substrato quando tomou uma
forma; é por isso que a mudança se define igualmente como a actualização
(passagem ao acto) de uma potência.
A matéria é constituída, em última análise, pelos quatro elementos terrestres;
estes, por seu turno, transformam-se e passam de um estado a outro: a água
transforma-se em ar sob o efeito do calor (evaporação) ou em gelo, que é sólido
como a terra, sob o efeito do frio (congelação), e a terra transforma-se em fogo
sob a acção do calor (combustão). Estas transformações significam que existe
uma matéria comum aos quatro elementos terrestres, a que se pode chamar
«matéria primeira», a qual não pode porém existir fora desses elementos. Em
compensação, não existe uma forma única à qual se liguem todas as outras,
nem finalidade única para a qual tendam todos os seres.
Todos os seres tendem a realizar perfeitamente a sua própria forma.
Aristóteles tem portanto uma concepção global da natureza que se pode
qualificar como finalista, ou teleológica; mas essa concepção corresponde a um
finalismo particular, não resultando da acção de uma inteligência externa e não
implicando uma finalidade única e exterior. Pelo contrário, tal finalismo é
devido à acção de um princípio inconsciente e interno, como a natureza
justamente: é esse finalismo que se manifesta na tendência dos indivíduos
vivos para se alimentarem e se reproduzirem, assegurando assim a perpetuação
infinita da sua espécie.
Psicologia e zoologia
A parte da natureza mais estudada por Aristóteles é a que é formada pelos
seres vivos, plantas, animais e homens. Estes seres têm em comum uma alma
(psukhê), o que explica que esta ciência da alma (a que hoje em dia chamamos
psicologia) faça parte da física; Aristóteles estuda-a no tratado Da Alma (De
anima). Para ele, a alma não é uma entidade separada do corpo vivo; ela é na
verdade a capacidade de viver própria de um corpo, ou seja a sua forma de
estar vivo; ela é o «acto primeiro» da sua potencialidade de ser vivo, no sentido
em que a possui efectivamente. A vida realiza-se segundo diferentes níveis de
actividade (chamada mais tarde «acto segundo»). Estes níveis são, para as
plantas, a nutrição e a reprodução, às quais se deve acrescentar para os animais
o movimento e a percepção. Por fim, para os homens, os níveis compreendem
igualmente o pensamento e as actividades conexas. Encontram-se portanto três
categorias de alma: vegetativa, sensitiva, intelectiva. Porém, a categoria
superior contém sempre, potencialmente, a categoria inferior; é por isso que há
uma única alma em cada ser vivo, vegetativa nas plantas, nutritiva nos animais
(mas incluindo as funções da alma vegetativa), intelectiva nos homens (mas
incluindo as funções da alma vegetativa e as da alma sensitiva).
Os seres vivos têm em comum a reprodução, que exprime a tendência de
cada um para deixar atrás de si um outro ser semelhante a si, assegurando
assim a perpetuação da espécie. Nos seres animados em geral, sub-humanos e
humanos, a percepção (aisthêsis), ou conhecimento sensível, é a primeira
forma de conhecimento possível; ela consiste na actualização da capacidade de
perceber (própria de todo o órgão dos sentidos) e, simultaneamente, da
possibilidade de ser percebido (própria de todo o objecto sensível). Esta
actualização resulta da acção de uma causa já actuante, como por exemplo a
luz para a visão ou a vibração do ar para a audição. Graças a ela, o órgão do
sentido respectivo toma a forma do objecto mas não a sua matéria. É pela
percepção e graças à imaginação (phantasia) que se forma a imagem
(phantasma), conservada na memória enquanto recordação. Nos seres
humanos, é pela imagem, ou pela recordação, que o intelecto (nous) assume a
forma inteligível do objecto que nela está contido e da qual ele se apropria, no
sentido em que a integra como forma própria, evidentemente sem matéria. É
desta maneira que a alma intelectiva é o lugar de todas as formas inteligíveis.
Também neste caso, a capacidade para se apropriar de uma forma, ou seja a
intelecção, é simultaneamente a actualização da faculdade que permite
compreender – própria do intelecto (por este motivo qualificado como
potencial ou passivo) – e a da faculdade de ser compreendido – própria da
forma. Ainda aí, a actualização deve resultar de uma causa já actuante, a que
Aristóteles chama intelecto activo, ou produtivo; e por esse intelecto estar
sempre actuante, ele parece separado da alma intelectiva, e eterna. Todavia,
Aristóteles muito pouco diz a esse respeito para que se possa compreender se
ele é individual e se, como tal, implica a imortalidade da alma intelectiva de
cada homem.
À capacidade de conhecer da alma, acrescenta-se a sua capacidade para
desejar, ou desejo (orexis), tendo por objecto um bem que pode ser sensível,
isto é particular, ou inteligível, isto é universal. Quando um bem inteligível é
reconhecido como tal pelo intelecto, o desejo desse bem toma o nome de
«vontade»; esse desejo leva o homem a apropriar-se desse bem, pela acção
(praxis), e daí o qualificativo de «prático» que nesse caso se dá ao intelecto.
Ética e política
A física e a filosofia primeira são ciências «teoréticas», pois têm por fito o
conhecimento puro (theôria), tal como a matemática, mas Aristóteles considera
que existem também ciências práticas, as quais têm por fito a acção (praxis), a
acção justa, o bem. Como o bem de um indivíduo é uma parte do bem da
cidade (polis), a ciência – ou filosofia – prática que as engloba a todas é a
«ciência política», apresentada por um lado nas Éticas (a Nicómaco e a
Eudemo), que têm por objecto o bem do indivíduo, e por outro lado na Política,
que tem por objecto o bem da família e da cidade. À ciência do que é o bem
para a família chama-se também ciência económica (de oikia, «casa» ou
«família»), mas a obra dedicada a esse tema no corpus aristotelicum, a saber a
Económica, é provavelmente apócrifa. Para Aristóteles, o bem supremo, tanto
para o indivíduo como para a cidade, é a felicidade (eudaimonia); ela define-se
pela efectivação, da melhor maneira possível, das capacidades próprias ao
homem, que as exerce com virtude (aretê), isto é ao seu mais alto nível. Essas
virtudes serão dianoéticas e éticas, já que com efeito o homem não só é feito de
razão (dianoia), mas também possui outras capacidades que formam o seu
carácter (êthos), quando são efectivadas ao seu melhor nível.
As virtudes éticas acham-se no justo meio entre dois defeitos opostos, o qual
é determinado pela razão: por exemplo, a coragem é o justo meio entre a
cobardia e a temeridade, a moderação é o justo meio entre o excesso e a
insensibilidade, a generosidade situa-se entre a avareza e a prodigalidade, e
assim sucessivamente. Entre as virtudes éticas, a justiça tem uma importância
particular pois concerne as relações entre as pessoas. Quando para ela se trata
de distribuir honrarias ou poderes, a justiça (o justo meio) deve saber
proporcionar as honrarias e os méritos (justiça distributiva); mas quando se
trata de trocar vantagens ou penalizações, ela deve repartir a sua atribuição
respeitando a igualdade (justiça comutativa).
As virtudes dianoéticas são a perfeição da razão «científica» (ou teorética),
isto é a sabedoria (sophia), que se assemelha ao intelecto (nous), como
conhecimento dos princípios, e a ciência (epistêmê), como capacidade para
demonstrar a partir dos princípios; elas compreendem igualmente a perfeição
da razão prática e «calculadora», ou prudência (phronêsis), capacidade para
decidir com justeza, para escolher a boa maneira de agir, para si mesmo, para a
sua família e para a sua cidade. A prudência é superior à arte (tekhnê),
considerada como capacidade para produzir bens, porque a acção é superior à
produção (poiêsis), não se achando a finalidade da produção nela mesma, mas
no objecto produzido. Porém, a prudência é inferior à sabedoria, que é a virtude
da melhor parte do homem; para alcançar a sabedoria, é portanto a prudência
que indica quais as acções a cumprir e quais a excluir.
Segundo Aristóteles, a felicidade compreende igualmente o prazer; este não é
o bem supremo, mas sendo a felicidade definida como exercício da actividade
perfeita, o prazer decorre da sua realização. A felicidade compreende também a
amizade, que é em si mesma uma virtude quando esse sentimento aproxima
pessoas de qualidade. Contudo, mesmo na hipótese de serem reunidas todas as
qualidades, às quais se acrescentariam algumas vantagens como a saúde, um
certo bem-estar, um físico agradável, uma boa família e bons amigos,
Aristóteles considera que a felicidade reside essencialmente na vida teorética,
ou seja numa vida inteiramente consagrada à investigação, ao estudo, às
actividades que têm por fito o conhecimento. Esse tipo de vida, com efeito, é
finalidade em si. É uma vida auto-suficiente e semelhante à que é conduzida
pelos deuses. Alguns especialistas consideram que Aristóteles limita a
felicidade à vida teorética; outros sustentam que ele inclui nela a prática de
todas as virtudes. Na realidade, a vida teorética não seria possível sem as outras
virtudes. Além disso, Aristóteles estima que a pessoa que conduza uma tal
vida, a saber o filósofo, deve igualmente mostrar aos homens políticos a
maneira de realizar o bem para a cidade e definir para ela a melhor
constituição; e isso confirma que só esse tipo de vida engloba o conjunto das
virtudes.
A cidade é a sociedade perfeita, ou seja auto-suficiente e não tendo por fim a
vida material dos cidadãos (que é o fito da família), mas o de lhes dar a
possibilidade de viverem bem, em suma a felicidade. Ela engloba a família,
sociedade natural que compreende marido e esposa, pais e filhos, senhor e
escravos. A cidade é também uma sociedade natural porque o homem é por
natureza um «animal político», no sentido em que é feito para viver na pólis. O
signo dessa natureza política do homem é que ele possui a palavra (logos),
graças à qual pode discutir com os outros acerca do que é útil e do que é justo.
No entanto, a «natureza» do homem não é definida pelo seu nascimento mas
pelo seu fim, pelo seu cumprimento, ou seja pela sua felicidade. E o homem
não pode alcançar essa felicidade senão na cidade.
Na família estão reunidas as condições necessárias à vida material, incluindo
a presença de escravos, inevitável, uma vez que «os teares não tecem
sozinhos», e a aquisição de riquezas, chamada «crematística». Todos os que
são escravos não o são por natureza; em compensação, são escravos aqueles
que não conseguem prover às suas necessidades por si mesmos; é por isso que
precisam de um amo. Nem todas as riquezas são naturais, mas são naturais
todas as que são necessárias para a satisfação das necessidades. É na cidade,
sociedade de homens livres e iguais, que se pode viver plenamente e bem. Para
aí chegar, há que se dotar de uma boa constituição, ou seja de uma boa
organização dos ofícios públicos, ou ainda de um governo instituído como deve
ser. Quando examina as seis constituições tradicionais, as três que são boas
(monarquia, aristocracia e politeia) e as três que são pervertidas (a tirania, a
oligarquia e a democracia), Aristóteles exprime a sua preferência pela politeia,
para a qual não dispõe de nome particular, o que lhe vale ser mencionada sob o
vocábulo geral de «constituição» (politeia); ela parece-lhe ser a que melhor se
adequa a uma sociedade de homens livres e iguais. De facto, a politeia é
definida como sendo o justo meio entre duas perversões opostas, a oligarquia e
a democracia; é por isso que ela ganha o nome de constituição «intermediária»,
onde é a classe média que exerce o poder. Mas, dado que não podem todos
simultaneamente governar e ser governados, é justo que todos governem e
sejam governados por sua vez, pondo-se ao serviço dos outros quando
governam e beneficiando dos serviços de outrem quando são governados. A
cidade pode assim garantir a cada um a possibilidade de consagrar um período
da sua vida a actividades que são um fim em si, como a música, a poesia e a
filosofia.
Retórica e política
As duas primeiras obras do corpus aristotelicum, a Retórica e a Poética, são
dedicadas à apresentação de duas «artes» (ou técnicas), respectivamente a arte
de construir discursos persuasivos e a arte de escrever poesia.
A retórica ensina a encontrar instrumentos de persuasão (pisteis) de tipo
técnico, ou seja argumentações. É por isso que ela acompanha, de modo
«especular» (antistrophos), a dialéctica, técnica da argumentação geral, com a
qual tem em comum o facto de argumentar sobre tudo, partindo de pontos de
vista opostos; diferencia-se dela por se dirigir a um auditório que permanece
mudo mas nem por isso deixa de ajuizar. Aristóteles distingue três tipos de
argumentações retóricas: as que são deliberativas (visando persuadir uma
assembleia política e debater uma dada decisão), as que são judiciárias
(visando defender ou acusar uma pessoa inculpada), e as que ele qualifica
como epidíticas (visando celebrar ou recriminar uma personagem pública).
Aristóteles chama «entimema» (enthumêma) à argumentação retórica, talvez
porque ela age igualmente sobre o coração (thumos); define-a como um
silogismo, uma dedução que decorre de premissas verosímeis (eikota), ou seja
partilhadas pela audiência, como os endoxa, que não são válidos em todos os
casos mas somente na maior parte deles. Este tipo de argumentação pode
também partir de «signos»; se esses «signos» forem necessários e certos, são
então «provas»; senão, só estabelecem a verosimilhança. O entimema deve
igualmente ser mais sucinto que o silogismo didáctico, devendo passar em
silêncio as premissas mais evidentes, para não enfadar a audiência. Além disso,
a arte retórica ensina a tomar em consideração outros factores de persuasão,
como o carácter (êthos) do orador, que deve ser uma pessoa credível, ou ainda
as paixões (pathê) da audiência, que a fazem pender em favor de um ou outro
argumento. É por isso que Aristóteles considera a arte retórica como um
«ramo» da ciência política, relativo justamente aos caracteres e às paixões. Por
fim, o filósofo assinala a importância da elocução (lexis), da maneira de falar e
do estilo do orador.
Para Aristóteles, a poesia é mimêsis, o que não significa imitação passiva,
mas representação, capacidade para fazer viver uma ficção como se ela fosse
real. Ela pode tomar por objecto personagens nobres, e nesse caso trata-se de
poesia épica ou trágica; no caso das personagens não nobres, trata-se de poesia
cómica. A poesia épica e a tragédia diferenciam-se assim: a primeira só
transmite a narrativa dos factos ao passo que a segunda os representa de
maneira dramática. Esta última característica remete também para a comédia.
A Poética dá uma célebre definição da tragédia dizendo que ela consiste na
«imitação de uma acção que forma um todo, é grave e apresenta uma certa
nobreza, segundo uma forma não narrativa mas dramática e que, por meio da
compaixão e do terror, permite a purificação das paixões semelhantes». O
elemento mais importante aqui é a ideia de «purificação» (katharsis), que
parece livrar paixões como a compaixão e o terror dos elementos dolorosos que
tais sentimentos apresentam na vida real, procedendo de modo a que eles se
tornem agradáveis. O prazer associado a uma tal imitação é, como sempre para
Aristóteles, o de conhecer, ou seja de aprender. Enquanto a catarse produzida
pelo canto educa os jovens nas virtudes éticas (tal como é dito na Política), a
catarse produzida pela tragédia educa os adultos nas virtudes dianoéticas, ou
seja na prudência.
Se a catarse é a finalidade própria da tragédia, o elemento mais importante
desta é o «mito» (a história representada); ele deve propor factos que possam
produzir-se, seja verosimilmente, seja necessariamente, isto é o mais das vezes
ou sempre. É por isso que Aristóteles diz que a poesia é «mais filosófica» que a
história, por ser mais apta a conduzir em direcção ao conhecimento. Com
efeito, a história faz a narrativa de casos particulares, ao passo que a poesia, ao
representar o verosímil, dá a conhecer o universal. Na Poética, Aristóteles
ilustra igualmente os outros elementos da tragédia e da poesia épica
(catástrofes, peripécias, revelações, intrigas e resoluções, caracteres, etc.),
embora não estude tão profundamente a comédia, talvez porque o segundo
livro da obra – hoje em dia perdido – lhe era dedicado.
ENRICO BERTI
Os saberes e as ciências na cidade grega
As escolas de medicina
A partir do século III, esta fractura suscitou o nascimento de diferentes
escolas ou correntes («seitas»). Para seguir a orientação dada pelas descobertas
de Herófilo e Erasístrato, assistiu-se à formação da corrente dos «dogmáticos»
(ou racionalistas). Estes sustentavam que os sintomas visíveis (externos) se
explicavam por causas invisíveis (internas), reveladas pela anatomia; os
cuidados de saúde deveriam então referir-se às causas e já não aos sintomas. A
anatomia e a fisiologia integraram portanto a formação do médico, tornando-a
muito mais longa, mais difícil e certamente mais onerosa.
Aos dogmáticos racionalistas opunha-se a corrente da medicina «empírica»,
fundada por Filinos de Cós no século III. Segundo esta corrente, a prática
médica não se deveria apoiar senão na experiência, sem jamais recorrer nem à
explicação pelas causas nem ao estudo anatómico. A experiência – a do médico
e sobretudo a que estava contida nos textos da tradição hipocrática – bastava
para saber que remédios convinham como resposta a um ou outro conjunto de
sintomas.
Finalmente, entre os romanos, no século I a.C., formou-se uma terceira
tendência, a dos médicos «metódicos», fundada por Temiso e dirigida no
século seguinte por Tessálio. Estes médicos eram radicalmente hostis a toda a
tradição médica que, segundo eles, havia complicado inutilmente os
conhecimentos necessários à sua formação. Era possível preparar-se um bom
médico em seis meses, o que deveria permitir responder à crescente procura
nas grandes metrópoles do Império. Com efeito, segundo eles, todas as doenças
se podiam referir a dois estados do organismo: o estado de «prisão de ventre»
(donde, por exemplo, as tosses secas, as anemias, o próprio tolhimento dos
intestinos) ou o estado de «soltura» ou de «fluidez» (responsável pelas
constipações, as diarreias, as hemorragias).
A matemática e a astronomia
Galeno contava que o filósofo Aristipo, havendo naufragado ao largo de
Siracusa, se tranquilizara ao ver na areia o desenho de uma figura geométrica,
sinal de que chegara junto de gente que conhecia tal ciência, portanto gregos, e
não bárbaros. Quando pensamos naquilo que os gregos nos transmitiram como
herança, vemos imediatamente na matemática (e em particular na
extraordinária construção de geometria contida nos Elementos de Euclides,
elaborados entre o final do século IV e o início do século III a.C.) uma espécie
de modelo da racionalidade produzida por esta cultura, bem como a
codificação duradoura da concepção ocidental do espaço. Mas a matemática
grega nem sempre relevou de um «sistema» euclidiano, a saber de um conjunto
organizado de axiomas e de deduções perfeitamente homogéneo e coerente.
Nos séculos anteriores à grande sistematização operada por Euclides, havia-se
desenvolvido um saber assaz diferente, mais baseado nos problemas do que nos
teoremas. Ele era sobretudo muito menos sistemático, no sentido em que os
princípios utilizados tinham uma função limitada, «local», e não universal
como os de Euclides. Os raros testemunhos relativos à geometria pré-
euclidiana parecem remeter para procedimentos nos quais as proposições que
faziam função de princípios para a solução de um dado problema podiam
perder essa capacidade para resolver um outro problema. Parece que esse modo
de proceder «por problemas» constitui a característica dos Elementos de
Hipócrates de Quios (século V a.C.).
As premissas decisivas para a elaboração dos axiomas da geometria por
Euclides só foram avançadas no decurso do século IV a.C.; decorriam da
reflexão conduzida na Academia de Platão, e mais tarde da epistemologia de
Aristóteles, quer fossem estritamente matemáticas ou de ordem metodológica.
Do ponto de vista epistemológico, o elemento mais importante da reflexão
aristotélica consistia na interrogação sobre o afastamento entre a forma
dedutiva necessária à actividade matemática e o carácter sobretudo intuitivo
das premissas, que são os princípios que fornecem as bases das deduções. Este
sistema axiomático-dedutivo está fundado na identificação de alguns axiomas
fundamentais, a partir dos quais se é levado a deduzir necessariamente uma
série de consequências, complexas e ligadas umas às outras. O esquema dos
Elementos de Euclides reproduz a estrutura teorizada por Aristóteles,
nomeadamente nos Segundos Analíticos.
A Academia de Platão, pelo seu lado, forneceu à axiomatização matemática
um conteúdo, mas também um contributo formal – a metodologia. Deve-se a
Eudóxio de Cnide a formulação do primeiro modelo de astronomia matemática
e diversas contribuições fundamentais para a geometria. A sua teoria das
proporções demonstrava que o domínio das relações entre as grandezas é mais
vasto que o dos números; ela oferecia, entre outras, uma solução satisfatória
para a questão da relação entre o lado e a diagonal de um quadrado, que parecia
porém irracional em termos numéricos (uma vez que não se pode exprimir essa
relação com o auxílio dos números inteiros). Foi assim que Eudóxio
subordinou a aritmética à geometria e construiu para esta última uma forte
estrutura axiomática.
Foi todavia Euclides que, pelos seus Elementos, transformou definitivamente
o saber geométrico numa cadeia de deduções rigorosas, onde uma sequência
homogénea de teoremas podia desenvolver-se a partir de um dado conjunto de
definições e de axiomas, considerados a priori como indemonstráveis. A partir
de Euclides, a geometria apresenta-se como um saber cumulativo, capaz de
integrar acrescentos sem que sejam postas em causa a coerência e a
estruturação globais da disciplina; no século III a.C., por exemplo, a teoria das
curvas cónicas de Apolónio de Perga e as descobertas de Arquimedes em
geometria, em estática e em mecânica engrandeceram o edifício construído por
Euclides sem causar dano aos seus fundamentos.
A astronomia matemática
A astronomia merece um lugar à parte numa exposição sobre a história da
matemática grega, nomeadamente porque as reflexões empreendidas na
Academia desempenharam um papel decisivo na sistematização da disciplina.
Platão havia estabelecido o quadro das normas gerais no interior do qual uma
astronomia de vocação científica se deveria desenvolver. Tratava-se de
princípios ligados à visão de conjunto que o filósofo elaborara, apoiando-se em
particular nas reflexões conduzidas pelos meios pitagóricos. Mas o ponto mais
importante é que Platão parece haver estabelecido as bases daquilo a que se
chama «o universo de duas esferas», a saber a imagem do cosmos que
dominará sem rival durante quase dois milénios (até à publicação em 1543 do
As Revoluções das Orbes Celestes de Copérnico).
O modelo cosmológico antigo propunha duas esferas fundamentais: uma, no
centro do universo, era constituída pela Terra imóvel (na época antiga, somente
Aristarco de Samos, no século III a.C., propôs um modelo que colocava o Sol
na posição central); a outra, situada nos confins do cosmos, era constituída pela
esfera das estrelas fixas. A estrutura e o movimento – quer ele seja global ou
limitado a cada um dos astros – do universo não poderiam ser pensados senão
segundo este esquema de conjunto, que permaneceu como quadro cosmológico
de referência de todo o pensamento antigo (embora tenha conhecido diversos
modelos cinemáticos).
Dado que os astros são substâncias eternas e imutáveis, os seus movimentos
não podem ser senão circulares (sendo o círculo a figura perfeita), regulares e
uniformes, ou seja racionais. Contudo, a observação revela uma série de
comportamentos desviantes dos astros e dos planetas que não respeitam tais
princípios filosóficos. Poderá dizer-se que toda a astronomia antiga,
atravessada por diferentes modelos de explicação, está marcada por esforços
que visam referir a aparente irregularidade dos movimentos planetários à
combinação de uma série de movimentos, cada um dos quais apresenta as
características de circularidade, regularidade e uniformidade estabelecidas por
Platão. A orientação geral da astronomia matemática antiga é dada por um
testemunho do neoplatónico Simplício (século VI d.C.), que avançava que a
intenção de Platão era a de «salvar os fenómenos», na ocorrência descobrindo
quais os movimentos uniformes e ordenados capazes de explicar as aparentes
anomalias dos movimentos dos astros.
Mas que anomalias eram essas? Tratava-se por exemplo do movimento anual
do Sol no círculo da eclíptica (o círculo maior que o Sol percorre num ano); ora
esse movimento não é uniforme mas mais rápido ou mais lento segundo o local
percorrido. Tratava-se também das retrogradações que afectavam a revolução
de todos os planetas ao redor da Terra (eles interrompiam o seu movimento em
direcção a leste para retrocederem em direcção a oeste, e depois dirigiam-se de
novo para leste).
Eudoxo propôs um modelo matemático complexo, visando integrar cada um
desses movimentos irregulares na estrutura de diversos movimentos que eram
eles próprios circulares, regulares e ordenados. Formulou a hipótese de que
cada planeta fosse movido por uma série de esferas (mais ou menos numerosas
segundo a complexidade do movimento aparente), providas do mesmo centro
que a Terra (daí o seu nome de «sistema das esferas homocêntricas»). Endoxo
imaginava que o planeta se encontrava na esfera mais interna de um certo
sistema, e que o seu movimento fosse determinado pelo agenciamento dos
movimentos do conjunto dessas esferas concêntricas; além disso, cada planeta
apresentava uma inclinação diferente, o que permitia explicar que o movimento
do planeta também tomasse diferentes inclinações; em consequência, o seu
movimento aparente era dado pela resultante dos movimentos (circulares e
regulares) das esferas ligadas à esfera a que esse planeta pertencia. O modelo
de Eudoxo definia-se somente como hipótese matemática. Aristóteles retomou
o modelo, dando porém uma consistência física às esferas, afirmando que elas
eram constituídas por éter (a «quinta essência», uma matéria invisível e
incorruptível).
O sistema eudoxiano das esferas homocêntricas foi substituído (ou mesmo
acompanhado) por outros modelos que conseguiram explicar melhor certas
anomalias dos movimentos planetários. Foi provavelmente através de Apolónio
de Perga e de Hiparco de Niceia que se impôs um outro modelo astronómico,
baseado nas excentricidades e nos epiciclos. O modelo excêntrico imaginava
que um planeta (por exemplo o Sol, considerado como um planeta pela
astronomia antiga) se deslocava segundo um círculo e de maneira uniforme em
torno de um centro que não era a Terra mas um ponto excêntrico, situado nas
proximidades desta; assim se tornava possível explicar como esse planeta se
podia achar mais próximo ou mais distante da Terra, embora girasse numa
órbita perfeitamente circular.
O modelo dos epiciclos formulava a hipótese de que um planeta se deslocava
(segundo um movimento circular e uniforme) num círculo de pequenas
dimensões, chamado epiciclo, cujo centro se deslocava por seu turno (sempre
segundo um movimento circular e uniforme) num círculo mais vasto (o círculo
deferente), tendo por centro a Terra ou um ponto excêntrico em relação a esta.
Esse sistema permitia não só explicar o movimento retrógrado dos planetas,
tornando-o facilmente compreensível, como também representar de modo
visível a maior ou menor distância que separava um planeta de um observador
terrestre.
Todas essas explicações foram compiladas e tornaram-se objecto de uma
sistematização definitiva no século II d.C., com a grandiosa obra de Ptolomeu,
a Composição Matemática (Syntaxis mathematikê), escrito conhecido sob o
título arabizante de Almageste. A par dos Elementos de Euclides, o Almageste
constituiria durante muito tempo a herança mais importante do pensamento
matemático grego, extraordinário pela amplitude das suas observações e das
suas medidas e pela sua capacidade para as estabelecer de acordo com modelos
geométricos rigorosos. Mas poderia dizer-se também que o próprio sucesso da
obra de Ptolomeu constituiria uma espécie de obstáculo epistemológico, pois,
pelo menos até Copérnico, ele levou ao esquecimento e ao abandono da
hipótese heliocêntrica formulada por Aristarco.
MARIO VEGETTI
100 Pode ler-se esta proclamação num dos textos mais antigos do Corpus Hipocrático, «Dos locais no
homem», cap. 46.
O atomismo antigo
101 O livro X das Vidas e Doutrinas dos Filósofos, de Diógenes Laércio, reproduz a Carta a Heródoto,
sobre a física, a Carta a Fitócles, sobre os meteoros, a Carta a Meneceias, sobre a ética, e quarenta
máximas morais, as Máximas Capitais, às quais se devem acrescentar as Sentenças Vaticanas.
102 Epicuro, Carta a Heródoto, 59; Lucrécio, Da Natureza das Coisas, I, 599-634.
103 Ver por exemplo: Aristóteles, Metafísica, A, 4, 985b5-9 (DK 67A6); Plutarco, Contra Colotes, 1108F
(DK 68B156).
109 Ver por exemplo Sexto Empírico, Contra os Sábios, VII, 135 (DK 68B9).
110 Carta a Heródoto, 40-41; comparar com Da Natureza das Coisas, I, 483-484.
111 Ver por exemplo Sexto Empírico, Contra os Sábios, VII, 138-139 (DK 68B11).
113 Ver Diógenes Láercio, X, 31-34; Sexto Empírico, Contra os Sábios, VII, 203-216.
116 Da Natureza das Coisas, IV, 353-363. Ver Sexto Empírico, Contra os Sábios, VII, 208-209.
Filosofia
Ainda que as doutrinas da escola tenham evoluído consideravelmente
durante o meio milénio da sua existência, a versão mais acabada e mais
influente do estoicismo continua a ser seguramente a de Crisipo e dos seus
discípulos. É cómodo, tanto para nós como para os próprios estóicos,
apresentar a filosofia do Pórtico distinguindo nela três «partes»: a lógica, a
física e a ética. Esta divisão, que remonta ao platónico Xenócrates, está longe
de ser rígida. Para Zenão, na realidade trata-se mais de uma divisão do discurso
sobre a filosofia do que de uma divisão da própria filosofia132; outros filósofos
(como Séneca na Carta 39) afirmam com insistência que a filosofia no seu
conjunto é uma, e que a divisão em partes é certamente útil mas totalmente
artificial. Podem existir divergências entre os estóicos quanto à ordem de
aprendizagem destas partes. Segundo eles, esta ordem é em certa medida efeito
de uma convenção; disso é testemunha a necessidade de entrecruzar os temas
próprios a cada uma dessas partes no ensino133. Sabe-se que os estóicos
empregavam diversas analogias para descreverem a relação das partes da
filosofia entre si e relativamente ao todo, e a maior parte delas implica uma
concepção holista e orgânica da filosofia. A única imagem que tende a fazer de
uma parte da filosofia um elemento autónomo é a que compara a lógica a um
cercado que rodeie um campo cultivado, onde a ética designa os frutos que
crescem, a física as árvores que os sustentam ou a terra que produz a colheita.
Através desta imagem, a física surge numa relação íntima e directa com a ética
da qual se recolhem as benfeitorias (a física é então a árvore de onde brotam as
azeitonas ou a terra onde cresce o trigo), ao passo que a lógica é um
instrumento de protecção que parece arredado dessas benfeitorias. Não se pode
certamente conceber que existam azeitonas sem oliveiras, nem trigo sem terra
apropriada e trabalhada para o efeito. Mas a colheita pode ser protegida de
muitas maneiras (muros de pedra, ameias, cães de guarda ou jardineiros,
entrincheiramento numa ilhota), o que implica uma certa contingência quanto
ao papel da lógica no seio da filosofia. Porém, noutras analogias, a lógica, no
seu papel de protecção, é muito mais solidária com aquilo que defende: ela é a
casca do ovo, ou então os ossos e os tendões do corpo animal134.
Física
A física estóica é profundamente influenciada pelo Timeu de Platão e pela
cosmologia de Aristóteles. O cosmos é uno, é um todo finito, composto pelos
quatro elementos fundamentais da matéria (a terra, o ar, o fogo e a água) e seus
compostos. (Os estóicos consideravam que existem dois princípios nos
elementos: um princípio activo divino, e um princípio inerte, sem qualidade, e
passivo; mas estes dois factores ou princípios nunca estão separados um do
outro nos corpos.) Tal como Platão, os estóicos pensam que o cosmos é um ser
vivo. No entanto, a alma deste não é incorpórea: ela é feita de pneuma, uma
espécie de sopro composto de ar e de fogo (ainda que a sua natureza seja
controversa no seio da escola). O cosmos é com efeito um pleno físico, onde
não existe nem vazio no interior (embora o cosmos esteja rodeado por um
espaço vazio infinito), nem entidades causais eficientes incorpóreas. A causa da
unidade do cosmos segundo os estóicos é uma solução alternativa à teoria
aristotélica do lugar natural. Eles afastam-se de Platão e de Aristóteles ao
considerarem que os corpos celestes fazem parte de um mesmo sistema
corpóreo (não há separação entre os mundos sublunar e supralunar, tal como
não existem almas divinas incorpóreas operando no universo). Enquanto Platão
pensa, ao que parece, que foi um deus-artesão que criou o cosmos, e Aristóteles
recusa a teoria da fabricação do mundo para preferir a da existência eterna do
universo, os estóicos defendem a ideia de que há ciclos de criação e de
destruição do universo, sob a influência de uma entidade activa divina, Zeus,
responsável tanto pelo eventual fim do cosmos numa conflagração ígnea como
pela sua regeneração a partir do fogo passando por uma zona húmida, até à
reaparição dos quatro elementos conhecidos do cosmos.
No sistema estóico, todo o acontecimento é causado e determinado por uma
cadeia racional e providencial de causas e de efeitos, que se reproduz
naturalmente em cada ciclo de criação e de destruição do cosmos. Só os corpos
podem ter causas ou efeitos. Também existem incorpóreos no sistema estóico:
o vazio, o espaço, o tempo, os «exprimíveis» (lekta), o conteúdo intelectual do
discurso e do pensamento. Mas a alma, o espírito e deus são entidades causais
que interagem com outros corpos; por conseguinte, eles são de cariz material,
ou seja feitos do pneuma anteriormente mencionado. A alma humana é da
mesma espécie que a dos deuses. Por isso o ser humano perfeito é
indiscernível, tanto fisicamente como moralmente, do ser divino. O
determinismo causal que caracteriza este sistema físico suscita críticas dos seus
adversários, mas Crisipo e outros estóicos conseguem demonstrar que a forma
de determinismo por eles defendida não exclui a responsabilidade moral e a
possibilidade de cada um se tornar melhor, como pressupõe a sua teoria ética.
Ética
No domínio ético, os estóicos sustentam uma forma de eudemonismo: o fito
da vida humana é o cumprimento do fim (telos) que lhe é próprio. Este fim
consiste em viver conformemente à natureza (à nossa natureza e à do cosmos;
compreende-se assim a importância da ideia segundo a qual a nossa natureza é
idêntica à potência divina que estrutura o mundo natural). A vida perfeitamente
conforme à razão é a única vida virtuosa e feliz, e o melhor guia para conduzir
essa vida perfeita e divina, segundo Crisipo, é a compreensão dos eventos que
sucedem por natureza. A vontade cínica de seguir mais a natureza do que as
convenções torna-se, nos estóicos eminentes, o esforço de viver em
conformidade com essa ordem própria do cosmos regido pela providência. O
ideal da vida humana racional que se encontra no Timeu implica igualmente
que a vida humana e as suas actividades se inspirem nos modelos do cosmos (o
homem imita o modelo circular perfeito dos corpos divinos), mas é aqui que as
semelhanças acabam. Na corrente dominante do estoicismo, o ideal de vida é
muito mais naturalista, e é orientado tanto para a acção como para a
contemplação. Os estóicos da corrente aristoniana parecem mais socráticos do
que platónicos nesse ponto: para exercer a virtude, afirmam eles, o homem não
precisa de estabelecer uma teoria física elaborada. Todos os estóicos estão no
entanto de acordo em afirmar que a virtude humana designa o estado ideal da
alma racional unificada; nesse sentido eles subscrevem o ideal socrático do
Protágoras ou do Fédon, mais do que o modelo platónico ou aristotélico da
harmonização das «partes» da alma entre elas, tendo cada uma uma função
própria e comportando-se de maneira quase autónoma.
Viver em acordo com a natureza significa desde então ter uma vida activa, ter
um ideal moral de governo de si, e esforçar-se por atingi-lo. Os meios da
educação moral que os estóicos retêm parecem inspirados por Aristóteles:
tornamo-nos corajosos ao cumprir acções corajosas, ainda que à primeira vista
a maior parte das acções corajosas não atinja o ideal almejado. O facto de os
estóicos terem a virtude por ideal coloca-os perante uma série de paradoxos
acerca do progresso moral (prokopê): o facto, por exemplo, de os erros morais
serem «equivalentes» e de ninguém ser verdadeiramente feliz antes de atingir a
«perfeição» no domínio moral. Encontra-se o mesmo absolutismo paradoxal na
psicologia moral dos estóicos: dado que a alma humana é una (não existem
partes irracionais a controlar, trata-se somente de aperfeiçoar o exercício da sua
razão), a única maneira de preservar a liberdade dela contra as perturbações
devastadoras e dolorosas a que chamamos paixões (pathê) consiste em
erradicar pura e simplesmente todo o erro e toda a forma de fraqueza moral. Só
o «sábio» pode atingir esse estado; infelizmente, os modelos a imitar são em
todo o caso muito pouco numerosos, sendo Sócrates a única figura de sábio que
não se presta a controvérsia. Estas consequências paradoxais da teoria moral
expuseram os estóicos a numerosas críticas que se reclamavam do «senso
comum» na Antiguidade, mas muitos pensavam que as aspirações descritas na
teoria moral estóica constituíam um poderoso incentivo para melhorar o
carácter, o pensamento e a acção; pelo menos isso empenhava os indivíduos na
via, que eles jamais haveriam empreendido por si mesmos, dessa vida estável e
racional, que os estóicos pensavam ser o horizonte natural da vida de cada um.
I.
Se o primeiro, então o segundo.
O primeiro
logo o segundo.
II.
Se o primeiro, então o segundo.
Não o segundo
logo não o primeiro.
III.
Não o primeiro e o segundo.
Ora, o primeiro
logo não o segundo.
IV.
Ou o primeiro, ou o segundo.
Ora, o primeiro
logo não o segundo.
V.
Ou o primeiro, ou o segundo.
Ora não o segundo
logo o primeiro.
122 Ver os capítulos 1 (D. Sedley) e 2 (C. Gill) da obra The Cambridge Companion to the Stoics
(Cambridge, Cambridge University Press, 2003) para outras precisões relativas à história da escola.
123 Diógenes Laércio, VII, 2-3.
130 Ver Der Neue Pauly, s.v. «Chrysippus» para mais pormenores.
131 Stoicorum veterum fragmenta (doravante SVF), textos recolhidos e editados por J. von Arnim,
Estugarda, Teubner, 1978 (1.a ed. 1905), Antipater, 56.
Pirro e Timão
Pirro de Élis (cerca de 365-275 a.C.) é tradicionalmente considerado o
primeiro verdadeiro céptico da história da filosofia. Esta tese histórica coloca
porém dois problemas. Podemos antes de mais encontrar numerosos
argumentos cépticos em autores anteriores, como Heraclito, Xenófanes,
Parménides e Zenão de Eleia, Protágoras e Górgias, Sócrates, Demócrito, ou
mesmo Platão. A maior parte deles foram aliás invocados pelos pirrónicos ou
pelos académicos como precursores da sua própria filosofia. Mas os primeiros
estimavam Pirro como mais radical do que todos os seus predecessores. Se nos
debruçarmos sobre o único testemunho fiável e preciso de que dispomos acerca
da filosofia de Pirro, descobrimos porém um pensamento bem diferente do
cepticismo tal como ele é considerado desde Descartes.
Segundo o seu primeiro discípulo, Timão de Flionte (cerca de 325-235),
Pirro teria declarado que «as coisas são igualmente indiferentes, instáveis e
indecidíveis, ainda que nem as nossas sensações nem as nossas opiniões as
digam verdadeiras ou falsas, ainda que não nos devamos fiar nelas mas ser sem
opinião, sem inclinação e inabalável, ao dizer, a propósito de cada uma, que ela
é ou que ela não é, ou ao mesmo tempo que ela é e não é, ou que nem ela é nem
não é135». Por um lado, o questionamento dos nossos conhecimentos é aqui
deduzido da indeterminação das coisas, ao passo que o cepticismo começa
geralmente pela crítica das nossas percepções e crenças. Por outro lado, Pirro
não se contenta em duvidar da objectividade delas, mas pretende dispensá-la
inteiramente em proveito de uma dissolução de toda a indeterminação. A
propósito do ser, do conhecimento deste e do discurso, Pirro parece assim
assumir posições próximas das que Aristóteles atribui aos que negam o
princípio da contradição e que ele julga absurdas136.
Segundo Timão, estas posições conduziam primeiramente à aphasia, ou seja
ao silêncio ou a um uso novo da linguagem que não implica qualquer
determinação, e depois à ausência de perturbação (ataraxia). Como todos os
filósofos antigos, Pirro pretendia com efeito conduzir uma vida em acordo com
as suas posições e encontrar nela a felicidade. A sua filosofia da indistinção
aplicava-se não só às propriedades mas também (e talvez sobretudo) aos
valores – positivos ou negativos, utilitários, estéticos ou morais – que as coisas
e as acções possuíam para o conjunto dos homens. Desde então, Pirro não tinha
repugnância em cumprir tarefas reputadas vis, e esforçava-se por se manter
indiferente aos eventos ou às pessoas que o rodeavam, e mesmo insensível à
dor, inspirando-se porventura nos sábios indianos que havia conhecido ao
acompanhar Alexandre, o Grande nas suas campanhas137.
Não tendo Pirro escrito nada, foi o seu discípulo Timão quem se encarregou
de dar a conhecer ou defender o seu pensamento e sobretudo a sua vida,
louvadas por Timão como superiores às de todos os outros homens pela sua
lucidez e a sua tranquilidade perfeitas. Timão parece além disso haver-se
empenhado em criticar e zombar de todos os filósofos do passado e do seu
tempo, conferindo assim ao pirronismo a sua dimensão fortemente polémica e
a sua ambição de ultrapassar todas as filosofias existentes, reduzidas a produtos
ilusórios da vaidade humana138.
A Nova Academia
Apesar dos talentos satíricos de Timão, o pirronismo não parece ter tido
muita influência durante dois séculos. Porém, pouco depois da morte de Pirro,
Arcésilas (316-241) fica à frente da Academia, a escola fundada por Platão, e aí
elabora uma outra forma de cepticismo, que será desenvolvida por Carnéades
(214-130). Tal como Pirro, Arcésilas e Carnéades nada escreveram, e alguns
dos adversários de Arcésilas censuraram-no por se haver inspirado em Pirro.
Isso não está excluído, mas o cepticismo académico é não obstante original.
Ele elaborou-se no quadro de um debate com as filosofias sistemáticas e
dogmáticas da sua época, em particular o estoicismo. Este último julgava o
espírito humano capaz de formar representações «compreensivas» (kataleptikê)
dos objectos, simultaneamente verdadeiras e ostentando a marca da sua
verdade, a tal ponto que podiam servir de critério para o conhecimento e a
acção. Utilizando numerosos argumentos que se tornariam clássicos, como o
dos objectos distintos mas indiscerníveis, das ilusões sensoriais ou do sonho,
Arcésilas e depois Carnéades mostram que nenhuma representação pode atestar
de maneira certa a sua conformidade ao seu objecto, e que não existe portanto
nenhuma representação compreensiva, ao ponto de o sábio ser obrigado a
suspender o seu assentimento em relação a todas as suas representações, sob
pena de cair nas incertezas da opinião139. Esta «suspensão [epoché] universal»
não paralisa toda a acção, contrariamente ao que objectam os estóicos, porque
o homem não precisa de um conhecimento certo e verdadeiro, mas pode fiar-se
no que é «razoável» (eulogon) ou «verosímil» (pithanon) para agir140.
Quer isto dizer que Arcésilas e Carnéades se contradisseram ao sustentarem
teses filosóficas negativas («nada pode ser compreendido») ou positivas, a
propósito da acção, como lhes censuraram os estóicos e, mais tarde, os
neopirrónicos? O problema pôs-se logo aos seus sucessores e ainda hoje divide
os intérpretes actuais. Para fazerem escapar Arcésilas e Carnéades à auto-
refutação, alguns defenderam que todos os seus argumentos eram dialécticos:
ter-se-iam contentado em tomar os conceitos e as premissas dos estóicos e
tirarem daí consequências válidas mas opostas às teses estóicas, refutando
assim o sistema dos seus adversários a partir do interior, sem sustentarem eles
próprios qualquer tese, à maneira de Sócrates revelando aos interlocutores dele
a incoerência das suas crenças, e portanto a sua ignorância, nos primeiros
diálogos de Platão. Ora, se Arcésilas utilizou efectivamente o método de
Sócrates, do qual se reclamava, para confundir a arrogância dogmática dos
estóicos, o cepticismo da Nova Academia parece haver tido também uma
inspiração e objectivos propriamente platónicos. Com efeito ele demonstra que
a experiência sensível e a razão humana não podem conduzir-nos à verdade,
mas que o filósofo é aquele que a procura incansavelmente, ciente da fraqueza
das nossas faculdades e da relatividade das nossas certezas. Em ética e em
física, Carnéades insistia com o mesmo espírito nas incoerências do
naturalismo estóico, tirando em particular consequências epicuristas dos
princípios deste: as nossas tendências naturais não podem conduzir-nos por si
mesmas às virtudes, a sabedoria que procura o nosso bem e a justiça que exige
sacrificá-lo são incompatíveis141, os deuses não têm mais nenhuma realidade se
se confundem com a natureza, a providência divina não é benfeitora se está na
origem do conjunto da natureza e da natureza humana142.
A Nova Academia encontra portanto o seu ponto de partida numa refutação
das pretensões filosóficas e vulgares ao conhecimento do real, e chama-nos
mais a uma lucidez inquieta sobre a incerteza das nossas verdades e dos nossos
valores, do que à tranquilidade da indiferença. Ela constitui assim o verdadeiro
antepassado do cepticismo moderno, que raramente a invoca mas que
incorporou muitas das suas ideias ou argumentos por intermédio de Cícero e do
neopirronismo.
135 Eusébio, Preparação Evangélica, XIV, 18, 1-5 (texto 1 F in A. Long e D. Sedley, The Hellenistic
Philosophers, Cambridge, Cambridge University Press, 1987, vol. 1).
137 Diógenes Laércio, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, IX, 66-67 e 61-62.
138 Ver os textos reunidos por A. Long e D. Sedley, op. cit., cap. 2.
141 Cícero, Dos Fins dos Bens e dos Males, V, 16-23 e A República, III, 12-29.
143 Fócio, Biblioteca, 212, 169b 18-171a 5 e Diógenes Laércio, VII, 106.
149 Diógenes Laércio, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, IX, 105-106.
151 Sexto reage em particular contra aqueles que, adversários dogmáticos ou filósofos cépticos como
Favorino de Arles (nascido cerca do ano 80, falecido em meados do século II), pretendiam aproximar o
pirronismo e o cepticismo da Nova Academia.
A filosofia imperial
(século I a.C. – século II d.C.)
O papel do estoicismo
Platónicos e aristotélicos tinham em comum estarem profundamente
implicados na vida académica propriamente dita e na prática do comentário; é
isso que diferencia nitidamente as duas grandes tendências rivais. Os estóicos –
tal como os epicuristas, aliás – dispunham em princípio dos mesmos
instrumentos que os seus adversários, as escolas e a interpretação dos escritos
dos mestres. De facto, essa actividade de comentário era desde há muito
praticada de forma parcial pelos epicuristas e a leitura de Epicteto permite
constatar que as escolas estóicas estudavam e interpretavam as obras de Crisipo
e as dos pensadores mais importantes da antiga Stoa. Mas existem muito
poucas informações sobre uma literatura de natureza exegética produzida pelos
estóicos; além disso, os seus adversários platónicos e aristotélicos jamais a
consideraram digna de interesse.
Apesar disso, os estóicos mantiveram-se presentes, pelo menos até ao final
do século II, mas ocupavam outras funções e os seus centros de interesse eram
diferentes. Desde a época dos Cipiões, na sociedade romana, assistiu-se ao
fenómeno da vinda de intelectuais gregos, filósofos incluídos, como hóspedes
das maiores mansões aristocráticas, onde serviam como professores: Cícero,
por exemplo, beneficiou da presença do estóico Diódoto. Mas com o tempo, a
função desses mestres de filosofia parece ter vindo a transformar-se numa
função de conselheiros espirituais e de guias morais capazes de assistirem aos
seus protectores e aos seus discípulos nos momentos difíceis da existência. Foi
precisamente nesse papel que os estóicos se especializaram e quase se poderia
apostar ter sido um deles que acompanhou e apoiou até ao cadafalso uma das
vítimas das perseguições imperiais contra a aristocracia senatorial, uma vez que
foi apresentado como «seu filósofo156». O objectivo não é dizer-se que esse
papel dos estóicos fosse desprovido de importância: conseguir reconfortar os
homens nos momentos difíceis da vida pode ser considerado um dos resultados
mais nobres que a filosofia pode obter. As obras de Epicteto (cerca de 50-125)
e de Marco Aurélio, que afortunadamente ainda podemos ler e que remetem
para uma concepção da filosofia como disciplina interior que visa encorajar os
esforços de autocontrolo e de aperfeiçoamento moral, mostram como uma tal
orientação pode inspirar páginas muito fortes e proveitosas ainda hoje157. Mas
o que falta a este projecto é o esforço teórico de elaboração de conceitos: as
obras do estoicismo romano chegadas até nós (Musónio, Epicteto, Marco
Aurélio) manifestam uma grande capacidade para conceber e fazer a apologia
de um modelo de vida em que o empenhamento moral jamais enfraquece, onde
permanecemos senhores de nós mesmos, onde nos esforçarmos por guardar
uma liberdade interior que garanta total autonomia face às vicissitudes do
destino. Todavia, estas páginas não desenvolvem de modo algum os
fundamentos lógicos, os laços teóricos e a coerência do sistema estóico, e não
poderiam compensar o desaparecimento das obras de Zenão e de Crisipo. Por
vezes, apercebemo-nos de que os estóicos da época imperial não estavam em
condições de compreender certos aprofundamentos teóricos refinados dos
mestres fundadores (em todo o caso, julgavam-nos desprovidos de
importância). As novidades mais significativas que marcam a produção deles
parecem resultar da fortíssima exigência moral que os caracteriza: assim, na
proairesis (escolha moral) de Epicteto e na voluntas (vontade) de Séneca,
podem ver-se duas etapas importantes do desenvolvimento da noção de
vontade que atingirá o seu apogeu em Agostinho. Mas nem Séneca nem
Epicteto dispõem de teoria a respeito dessas noções que continuamente
empregam.
Séneca
Antes de concluir esta apresentação sintética, não se pode ignorar o caso,
interessante e específico, de Séneca (cerca de 4-65 d.C.), mestre, conselheiro e,
finalmente, vítima do imperador Nero. Séneca é considerado – e sempre se
considerou a si mesmo – como estóico, para além da distância que sempre
manteve em relação a certos elementos da doutrina da escola em física e em
lógica, para além da sua reivindicação de liberdade quanto ao seu juízo pessoal.
Uma grande parte dos seus trabalhos poderia muito bem entrar no quadro de
pensamento dos grandes moralistas como Epicteto e Marco Aurélio: isto é
verdade quanto aos seus Diálogos em geral, mas também quanto à sua obra-
prima, as Cartas a Lucílio.
Convém sublinhar que é precisamente nesta compilação de cartas que se
manifesta uma grande curiosidade intelectual, que leva Séneca a revisitar de
forma crítica numerosas questões da doutrina da escola e a debater (cartas 58 e
65) as teorias dos «médio-platónicos» que começavam a propagar-se. Mas,
simultaneamente, Séneca sofreu fortemente a influência da hipótese de
orientação platónico-aristotélica sobre a possibilidade de o homem se consagrar
a uma actividade teórica puramente distinta da actividade prática e largamente
superior a esta. Tal perspectiva reaparece no próprio fundamento de uma outra
obra tardia de Séneca, as Questões Naturais165. De certo modo, pode já
pressentir-se nas obras de Séneca o fim da fortuna do estoicismo e o triunfo
próximo de uma filosofia da transcendência, de origem platónica e aristotélica.
PIERLUIGI DONINI
152 P. Moraux, Der Aristotelismus bei den Griechen von Andronicos bis Alexander von Aphrodisias,
Berlim-Nova Iorque, De Gruyter, 1973, p. 45-48.
153 H. Tarrant, Scepticism or Platonism? The Philosophy of the Fourth Academy, Cambridge, Cambridge
University Press, 1985.
154 Ver a este respeito: P. Donini, «Testi e commenti, manuali e insegnamento: la forma sistemática e i
metodi della filosofia in età postellenica», in W. Haase e H. Temporini (eds.), Aufstieg und Niedergang der
römischen Welt, Berlim-Nova Iorque, De Gruyter, 1994, p. 5027-5034.
155 Ver a este respeito: P. Domini, Le scuole, l’anima, l’impero, La filosofia antica da Antioco a Plotino,
Turim, Rosenberg & Sellier, 1982, p. 31-39.
157 A tese do célebre livro de P. Hadot, Exercices spirituels et philosophie antique, Paris, Études
augustiniennes, 1987, vale principalmente pelos estóicos. Do mesmo autor, deve igualmente referir-se La
Citadelle intérieure. Introduction aux pensées de Marc Aurèle, Paris, Fayard, 1992.
158 Sobre os métodos da exegese, o leitor deverá referir-se ao ensaio de P. Domini anteriormente citado, em
particular p. 5075-5082; deve acrescentar-se, sobre o platonismo, F. Ferrari, «Struttura e funzione
dell’esegesi testuale nel medioplatonisme: il caso del Timeo», Athenaeum, LXXXIX, 2001, p. 525-574.
159 Ver o livro de M. Bonazzi, Accademici e platonici. Il dibattito antico sullo scetticismo di Platone,
Milão, LED, 2003.
161 Para uma apresentação completa, ver o livro maior de J. Dillon, The Middle Platonists. A Study of
Platonism 80 B.C. to A.D. 220, Londres, Duckworth, 1977. Ver igualmente: M. Zambon, Porphyre et le
moyen-platonisme, Paris, Vrin, 2002.
164 É porventura a obra de Alexandre mais célebre na época moderna, rica de numerosas edições e
traduções, algumas das quais recentes. Ver a notável edição de R. W. Sharples, Alexander of Aphrodisias on
Fate, Londres, Duckworth, 1983. Deve acrescentar-se: Alexandre d’Aphrodise, Traité du destin, texto
estabelecido e traduzido por P. Thillet, Paris, Les Belles Lettres, 1984.
165 B. M. Gauly, Senecas Naturales Quaestiones. Naturphilosophie für die römische Kaiserzeit, Munique,
Beck, 2004.
Plotino
As ideias-espíritos
A par de teses tradicionais, encontram-se proposições fortemente inovadoras
na versão plotiniana da doutrina das ideias platónicas. Fundamentalmente de
acordo com as exegeses anteriores, Plotino nega a existência de modelos ideais
de realidades contra-natura ou do que seja mau e suscite repugnância; pelo
contrário, no que concerne os artefactos e os indivíduos, a sua posição é
aparentemente mais elaborada que a de outros platónicos, ainda que ela,
porventura, conheça algumas hesitações174. Sobre o número das ideias, Plotino
permanece convicto, concordando ainda com a quase totalidade dos intérpretes,
de que esse número é finito, em conformidade com a sua concepção do mundo
inteligível enquanto cosmos, verdadeiro e perfeito, totalidade harmoniosa e
completa175.
No debate sobre o lugar e a natureza das ideias, ou seja sobre a relação que
existe entre estas e a inteligência do Deus-demiurgo do Timeu, debate muito
vivo na escola, Plotino intervém de uma maneira efectivamente original. A
maior parte dos platónicos contemporâneos acreditava que as ideias tinham
uma existência autónoma, portanto exterior ao intelecto divino; Plotino, pelo
contrário, alinha por aqueles que (como Fílon de Alexandria ou Albino, autor
do Didaskalikos) haviam situado os arquétipos ideais directamente no interior
do espírito divino, estimando que eles eram, a bem dizer, «pensamentos de
Deus». No entanto, a grande novidade foi a de conceber as ideias já não
somente como conteúdos ou instrumentos da inteligência divina, mas
verdadeiramente como espíritos pensantes. Uma vez abolida a figura mítica do
Demiurgo, Plotino concebeu então a segunda hipóstase como o conjunto de
uma pluralidade de entidades que são ao mesmo tempo ideias e faculdades de
compreensão; em suma, para ele, ser e pensamento já não são distintos ou,
quando muito, unidos no mesmo local – o espírito divino – mas absolutamente
idênticos176. A identidade entre o pensamento e o que é pensado não é
imaginada por Plotino de modo estático mas no quadro de um movimento
espiritual, de uma «vida», onde as ideias não cessam de se pensar a si mesmas
com a totalidade orgânica que elas constituem177. Devido à interpenetração
total e recíproca que caracteriza o mundo ideal, cada ideia é ao mesmo tempo
ela mesma e todas as outras; ela tem um conhecimento intuitivo de si mesma e
de todas as outras sem com isso perder a sua autonomia e a sua
individualidade178.
Por isso, o dinamismo individual constitui a essência das ideias e, por
conseguinte, de toda a realidade, que é uma cópia das ideias. Porém, o mundo
sensível não é a primeira cópia do mundo inteligível, uma vez que Plotino, pela
utilização repetida da relação platónica modelo/imagem e pela exploração
exagerada de certas indicações contidas no Timeu, multiplica os níveis de
entidades ideais: as ideias que se encontram na Alma, igualmente chamadas
logoi (princípios racionais) primários, são segundo ele imagens debilitadas das
ideias que se encontram no Ser-Intelecto, ao passo que os «vestígios» das
ideias que se encontram na natureza, ou logoi secundários, são imagens
debilitadas das ideias que residem na alma. Daí resulta que os logoi, que
finalmente dão forma aos compostos sensíveis, não passem de cópias de cópias
de ideias179.
Alma e almas
A Alma deriva do Ser-Intelecto em virtude de um processo análogo àquele
pelo qual a segunda hipóstase deriva do Uno; em relação ao Ser-Intelecto do
qual ela deriva, ela é degradada, uma vez que dá forma e vida ao corpóreo.
Plotino não cuida nada de ser preciso quanto às diversas articulações do nível
psíquico; em geral, pode dizer-se que após a Alma hipostática se encontra a
Alma do mundo e com esta as almas individuais, que são de uma natureza
próxima da sua (a influência do Timeu é evidente), e que todas essas almas,
tanto a alma colectiva como as almas individuais, têm uma dimensão superior,
voltada para o inteligível, e uma dimensão inferior (Natureza), voltada para a
produção do sensível. O ser humano, enquanto corpo governado por uma alma,
e por uma alma provida de funções tanto superiores (racionais e intelectuais),
como inferiores (sensitivas e vegetativas), é verdadeiramente o ponto de
encontro dos dois «mundos» tradicionais de Platão: o inteligível e o sensível.
É precisamente essa estreita relação com o sensível que suscita aporias
complexas quanto à natureza da alma. Com efeito, como pode – interroga-se
Platão – um princípio que governa e anima a totalidade do mundo sensível
deixar de implicar extensão? Como pode o princípio psíquico residir em várias
partes de corpos complexos sem estar por seu turno dividido em partes? Uma
resposta possível é que a alma esteja totalmente presente em cada parte do
corpo animado; uma outra é que não é a alma que está no corpo mas o corpo
que está nela, da mesma maneira que um corpo iluminado ou aquecido está na
luz ou no calor. O exame de todas estas questões releva mais frequentemente
dos livros vi, 4 e vi, 5 das Eneadas (originalmente um tratado único, dividido
em dois por Porfírio), onde Plotino elabora a sua resposta às questões relativas
às relações entre inteligível e sensível, levantadas principalmente na primeira
parte do Parménides de Platão.
A matéria e o mal
O tema da matéria apresenta numerosos aspectos que suscitam debate.
Parece no entanto que, para Plotino, a matéria não é engendrada senão uma
única vez e para toda a eternidade (no sentido em que ela está fora do tempo)
pela Natureza, ou ainda pela parte inferior da Alma180. Plotino descreve
frequentemente a matéria como um puro não-ser caracterizado pela privação, a
esterilidade e a ausência total de vida. Resulta de tais premissas que dizer-se
que as formas ideais ou logoi se encontram na matéria é inapropriado, uma vez
que esta última também não é um substrato apto a acolhê-las: os logoi não
fazem parte da matéria senão na aparência, visto unirem-se a esta sem a
modificarem nem a determinarem de maneira alguma: a matéria, quando
muito, não é mais do que uma espécie de espelho inerte181, sobre o qual as
formas produzem um reflexo aparente (a saber, porque ele não reproduz
fielmente as feições do princípio formal), inconsistente e fugaz.
Tratando-se do mundo sensível, resultado da interacção entre a matéria e os
princípios ideais, o pensamento de Plotino varia com frequência. Opondo-se às
doutrinas de tipo gnóstico que condenam absolutamente a corporeidade e
imputam a um Demiurgo mau a criação do mundo sensível, Plotino reafirma
com vigor a bondade do mundo sensível e a sua origem divina e perfeita.
Segundo esta concepção, a beleza e a harmonia do cosmos visível reflectem
justamente a beleza e a harmonia do mundo inteligível182. Quando, pelo
contrário, aborda as concepções aristotélicas ou materialistas, que negam a
existência de uma esfera inteligível à parte e valorizam a experiência do prazer
no sentido comum do termo, Plotino sublinha que o mundo dos corpos naturais
não é mais do que um pálido reflexo deformado das causas incorpóreas
verdadeiras, apto a lograr o conhecimento e a perverter a moral. O papel da
matéria e da corporeidade do ponto de vista ético é examinado principalmente
no tratado i, 8, onde Plotino estima ser na matéria que o mal primário, origem
de todo o mal para a alma, encontra lugar, ao mesmo tempo que confirma a
tese de que a matéria deriva de princípios superiores. Assim, por um lado
Plotino permanece fiel à tese monista que exclui a existência de um princípio
negativo oposto desde a origem aos princípios supremos, e por outro lado não
hesita em sustentar a existência de um dualismo dos valores, segundo o qual a
matéria é o princípio do mal moral, capaz de impelir a alma humana para o que
é inferior e negativo, ou seja para o corpo e a atenção que é prestada a este183.
166 Cf. Eneadas, IV, 8, 8.1-3; V, 1, 8.1-14; VI, 2, 1.3-5; VI, 3, 1.1-2.
172 No platonismo dogmático (ao contrário do platonismo céptico-académico) anterior a Plotino, era do
Timeu que provinha a doutrina fundamental dos três princípios: Deus-demiurgo, ideias e matéria. O primado
do Timeu tornou a ser posto em causa quando Plotino, e, mais sistematicamente, os neoplatónicos que se lhe
seguiram, creram reconhecer na segunda parte do diálogo, aquela que é dedicada à discussão das oito (ou
nove) hipóteses acerca do Uno, as características do Uno transcendente ao Ser e aos níveis de realidade que
ele engendra. Antes de Plotino, em Eudoro e em Moderatus, podemos aperceber-nos dos vestígios de uma
interpretação semelhante, e não pode portanto excluir-se que personagens como Numénio ou Amónio
Sacas, que influenciaram a formação de Plotino, hajam sofrido os efeitos dela. Os estudos sobre este tema
foram inaugurados pelo célebre ensaio de E. Dodds, «The Parmenides of Plato and the Origin of the
Neoplatonic “One”», Classical Quarterly, 22, 1928, p. 129-142.
175 Ibid., III, 2, 1.26-45; III, 7, 4.12-15; VI, 7, 14. Ver, para uma apresentação de conjunto, M. Baltes e M.-
L. Lakman, «Idea (dottrina delle idee)» in F. Fronterotta e W. Leszl (dir.), Eidos-Idea. Platone, Aristotele e
la tradizione platónica, Sankt Augustin, Academia Verlag, 2005.
176 Cf. por exemplo Eneadas, V, 9, 8. Pode facilmente reconhecer-se aqui o contributo dos intérpretes de
Aristóteles, em particular de Alexandre de Afrodísia, que, algumas dezenas de anos antes de Plotino, havia
identificado o deus do livro Λ da Metafísica pensando-se sempre a si mesmo por meio do intelecto em acto
do livro III do Da Alma, que pensa constantemente o conjunto dos inteligíveis.
177 Cf. por exemplo Eneadas, VI, 7, 13. A razão principal para isso prende-se com a exigência de Platão,
atestada por uma célebre passagem do Sofista (248e e seguintes), de atribuir ao Ser movimento, vida, alma
e pensamento, bem como com a descrição do deus de Aristóteles enquanto pensamento de si sempre em
acto.
178 Cf. por exemplo Eneadas, V, 8, 4. A fim de ilustrar esta característica particular – e sob muitos aspectos
paradoxal – da natureza das ideias, Plotino compara-as aos teoremas de uma ciência única onde cada
teorema não é na aparência mais do que ele próprio, mas implica na realidade todos os outros, quer eles
sejam antecedentes ou consecutivos, e portanto a totalidade da ciência em questão (cf. Eneadas, IV, 9, 5;
VI, 2, 20).
183 Essa é uma contradição aparente, como não deixará de sublinhar Proclo no De malorum subsistentia.
Elementos de Teologia
Os Elementos de Teologia são sem dúvida alguma a obra mais original de
Proclo, não tanto pelo seu conteúdo – pois a maior parte dos princípios nela
desenvolvidos vem dos seus predecessores –, quanto pelo esforço notável que
ela prossegue a fim de desenvolver toda a metafísica platónica a partir de um
conjunto de axiomas. Nos Elementos, Proclo demonstra de uma maneira quase
geométrica os teoremas fundamentais da teologia ou ciência metafísica tal
como ele a concebe. A obra contém 211 proposições, cada uma delas seguida
de uma demonstração. A primeira parte (1-112) examina os princípios
fundamentais que estão na base de tudo o que existe, como a relação entre o
uno e o múltiplo, entre a causa e o efeito, o todo e as partes, a participação, a
processão e a conversão dos seres, o limite e o ilimitado, o automovimento e a
autoconstituição, o acto e a potência, a eternidade e o tempo. Na segunda parte
(113-211), Proclo passa em revista todos os graus da realidade, aplicando-lhes
os princípios metafísicos gerais da primeira parte. Examina sucessivamente as
hénades divinas, os intelectos e as almas. O mundo físico, que não constitui
uma verdadeira hipóstase, não tem lugar nesta metafísica teológica.
O Uno e o múltiplo
Os Elementos começam pelo princípio fundamental de todo o neoplatonismo
posterior a Plotino: «Toda a pluralidade participa de algum modo no Uno.»
Com efeito, sem a unidade que o mantém no seu ser, o múltiplo tornar-se-ia
uma pluralidade infinita de partes e deixaria de existir. Mas uma pluralidade
não pode por si mesma ser a unidade em que participa e que a faz subsistir. O
ser unificado não é o Uno enquanto tal, o Uno absoluto. Ele recebeu a unidade
como uma determinação distinta do que ele é por si mesmo. O que é pois esse
Uno do qual a pluralidade como ser unificado participa e ao qual ele está
subordinado? O que explica, por exemplo, a unidade de um organismo vivo é a
sua alma. Mas a alma não poderia ser a explicação última da unidade: ela
própria é uma multiplicidade de potências e de actividades. É preciso pois
remontar a uma outra forma de unidade que a explique, e assim
sucessivamente, até que se chegue ao princípio de todos os seres, que é
verdadeiramente o Uno absoluto. Este Uno é igualmente o Bem absoluto. Com
efeito, se a função própria do Uno é a de manter os seres múltiplos no seu ser, é
também essa a função do Bem. A perfeição e o bem-estar das coisas vêm-lhes
da sua unificação, ao passo que a sua dispersão e a sua fragmentação são a
causa da destruição e do mal. O Uno e o Bem são nomes que designam uma
mesma realidade, ou antes as relações dos seres em referência a essa realidade.
Nós chamamos-lhe o Bem quando a encaramos como finalidade suprema de
todos os seres, e chamamos-lhe Uno quando a consideramos como a origem
transcendente de todos os seres.
Processão
«Cada ser produz seres semelhantes a si mesmo antes de fazer existir os seus
dissemelhantes190.» O que é absolutamente diferente não pode proceder
imediatamente da sua causa. Daí a necessidade de seres intermédios para
religar os termos extremos. Está assim excluído que o Intelecto, que contém a
multiplicidade das ideias, proceda directamente do Uno, como pensava Plotino.
O que procede primeiramente do Uno é o ser absoluto, que é também o
primeiro objecto inteligível (noêton). Para aproximar o inteligível e o intelecto
é preciso postular a ordem inteligível e intelectiva, que corresponde à Vida
absoluta. Do Uno vem portanto o Ser, do Ser a Vida, da Vida o Intelecto. Nesta
processão, o nível superior exerce uma causalidade mais compreensiva, que se
estende mais longe do que o nível que lhe está subordinado. Deste modo todos
os seres participam no Ser, mas nem todos na Vida, e ainda menos no Intelecto.
A causalidade do Uno estende-se ainda mais longe do que a do Ser, pois a
própria matéria, o substrato indeterminado de todo o mundo físico, depende do
Uno, ainda que ela não exista verdadeiramente.
A estrutura triádica da realidade
Se a processão se faz segundo a semelhança, tudo o que é produzido pré-
existe de uma certa maneira na potência fecunda da sua causa. Pode dizer-se
que «reside» na sua causa (kat’aitian) sem nela ter uma existência formalmente
distinta (kath’huparxin). No entanto, se o efeito aí permanecesse imutável, ele
em nada se distinguiria da sua causa e nada se produziria dela. É somente pela
«processão» que o efeito começa a existir à parte, como um ser formalmente
distinto, fora da sua causa. Se é verdade que um ser não pode ficar
integralmente na sua causa, está igualmente excluído que ele proceda até ao
infinito. É preciso pois que o efeito se refira continuamente à sua origem para
continuar a existir. «Todo o ser que procede de um princípio se converte
segundo o seu ser naquilo de que procede191.» Pois que outro princípio lhe
poderia procurar o bem que lhe é próprio, senão a causa da qual ele recebe o
seu ser? A conversão ou o retorno é essa aspiração do efeito para a sua causa
porquanto esta constitui o seu bem. O termo da conversão coincidirá portanto
sempre com o princípio da processão. Como todos os seres se convertem na
causa de que procedem, eles realizam uma actividade cíclica. «Estes ciclos
fazem-se amplos ou mais curtos segundo as conversões se dirijam às causas
imediatamente superiores ou a outras mais elevadas192.»
Participação
A metáfora da participação introduzida por Platão para explicar a relação
entre a forma e as coisas múltiplas suscita tantas dificuldades quanto as que
resolve. Se a forma permanece una e «separada» das coisas múltiplas, parece
que estas últimas não poderiam ter nela uma «parte». Se ao invés ela está
presente nos seres que dela tomam parte, torna-se particularizada e perde a sua
universalidade. A solução de Proclo consiste em distinguir o modo participado
e o modo não participado ou imparticipável da forma. O que é participado
pelos seres particulares não pode ser a forma ideal em si mesma. Essa forma
permanece imparticipável, mas a partir dela provêm formas participadas que
são imanentes aos seres que dela participam: essas formas correspondem às
formas na matéria (enuloi) de que trata Aristóteles. Mas enquanto Aristóteles
rejeita as formas separadas como uma duplicação supérflua da realidade,
Proclo mostra que a existência da forma não participada é necessária para
garantir o carácter universal das formas participadas. Com efeito, uma forma
participada pertence inteiramente à coisa que participa e não pode estar ao
mesmo tempo numa outra. Se não houvesse mais do que a forma participada,
não se poderia explicar como todas as coisas que participam de uma forma têm
essa forma em comum com as outras coisas da mesma espécie. Existe portanto,
anteriormente às formas participadas, uma mónada não participada que garante
a unidade e a universalidade da forma nos seres múltiplos. «Todo o
imparticipável produz a partir de si mesmo formas participadas e todos os seres
(hypostaseis) participados se referem aos seres imparticipáveis193.»
A distinção entre os modos participado e imparticipável não se aplica
somente às Formas ideais, mas a todas as hipóstases: a Alma, o Intelecto e
mesmo o Uno. Em cada nível, deve fazer-se uma distinção entre a mónada
imparticipável e a série das formas participadas que lhe estão subordinadas.
Assim, anteriormente à série das almas das quais os corpos participam em
níveis diferentes – há com efeito almas divinas dos astros, almas de demónios,
almas particulares de humanos –, existe uma alma imparticipável da qual
procede a série das almas participadas segundo os diferentes graus de
participação. E antes dos intelectos nos quais participam as almas divinas,
demoníacas ou humanas, existe um intelecto imparticipável absoluto, que
compreende em si a totalidade de todas as formas ideais. Os múltiplos
intelectos procedem deste intelecto absoluto e constituem assim uma série
coordenada de intelectos, cada um tendo o mesmo conteúdo intelectual. O
intelecto é portanto simultaneamente uno e múltiplo. Segundo o mesmo
argumento, devemos estabelecer junto do Uno – que é absolutamente
transcendente e no qual não pode participar nenhum dos seres – uma série de
«unos» ou «hénades», na qual participam as diferentes classes de seres que dela
provêm. Essas hénades não são as modalidades da unidade adquiridas pelos
seres, mas unidades que subsistem por si mesmas embora permanecendo
transcendentes em relação aos seres que delas dependem. Embora permaneçam
unidas ao Uno primordial e estejam, tal como ele, para além do ser e para além
de todo o conhecimento, podemos conhecer indirectamente as suas
características distintivas a partir das diferentes classes de seres que estão
suspensas delas. As primeiras entre as hénades, e as mais próximas do Uno
absoluto são o limite e o ilimitado.
A doutrina das hénades desempenha um papel absolutamente determinante
na elaboração do sistema teológico de Proclo. Se o Uno é o Bem, ele é
igualmente o deus. Com efeito, como não há nada de superior (de «melhor») ao
Uno-Bem, ele é o primeiro princípio dos seres, e portanto deus. Falar do Uno e
da série das hénades que estão unidas a ele equivale por conseguinte a falar do
deus e dos deuses. Enquanto unidades para além do ser, as hénades divinas são
inefáveis e incognoscíveis, mas elas deixam-se definir indirectamente pelas
diferentes classes de seres que nelas participam. «Só o primeiro deus é
totalmente incognoscível como ente imparticipável194.» A controvérsia «um só
deus ou deuses múltiplos» – tema central na oposição do monoteísmo cristão e
do paganismo politeísta – baseia-se pois numa questão mal colocada. Deus é
uno e o Uno é deus, eis o que é manifesto. Mas o Uno absoluto faz subsistir ao
seu redor e unifica em si múltiplas hénades, que constituem tantas formas de
unidade quantos os seres que delas participam. Assim, é possível explicar num
sistema racional a processão e as propriedades distintivas de todas as classes de
deuses.
Teologia platónica
Se todos os homens concordam em utilizar o nome «deuses» para designar os
primeiros princípios, eles fazem-no segundo modalidades de discurso
extremamente diferentes. Proclo distingue quatro tipos de discurso teológico:
1) O discurso mítico com uma encenação trágica e símbolos (como na tradição
órfica ou em Homero e Hesíodo); 2) a revelação divinamente inspirada dos
profetas, como nos Oráculos Caldaicos; 3) o discurso matemático dos
pitagóricos, que evocam ordens divinas com o auxílio de imagens de números e
de figuras; 4) a teologia científica que trata os deuses utilizando termos
tomados à dialéctica, como «uno» e «ser», «todo» ou «parte», «idêntico» e
«diferente», e oferece demonstrações das suas propriedades. Foi Platão quem
levou essa ciência teológica à sua perfeição no Parménides, em particular no
exame dialéctico da hipótese do Uno, por pouco que este seja
convenientemente interpretado. Uma vez admitida a equivalência entre o Uno e
deus, pode ler-se a série de argumentos sobre o Uno como uma exposição
científica consagrada a deus e aos deuses. No Parménides, Platão demonstra
pois de uma maneira científica «a processão ordenada de todas as classes
divinas a partir do primeiro princípio, as suas diferenças e as suas propriedades
comuns e específicas195». É segundo este modelo que Proclo quer ele próprio
construir a sua Teologia Platónica: «Neste tratado», escreve ele, «enumerarei
todos os graus da hierarquia divina, definirei, segundo a maneira de Platão, as
suas propriedades e as suas processões196.» É a partir dos princípios científicos
do Parménides e de todos os argumentos sobre os deuses nos outros diálogos
de Platão que é possível interpretar e integrar num sistema coerente todas as
informações sobre os deuses que se encontram nas narrativas míticas, nas
rapsódias órficas e nos Oráculos Caldaicos.
201 Os trabalhos de P. Henry e sobretudo de P. Hadot mostraram a que ponto as ideias teológicas de
Victorino dependiam do neoplatonismo.
202 Contra os Académicos, III, 17, 37; Da Verdadeira Religião, III, 3; A Cidade de Deus, VIII, 6-8; uma
parte da Carta 118. Cf. P. Hadot, La Présentation du platonisme par Augustin, in A. M. Ritter (ed.),
Kerygma und Logos, Festschrift für C. Andresen zum 70. Geburtstag, Göttingen, Vandenhoeck und
Ruprecht, 1979, p. 272-279.
Damasco e Bagdade
O movimento de tradução
O interesse pelas questões de saúde e de bem-estar favoreceu inicialmente a
tradução de obras de medicina e de astronomia. Mas depressa os textos gregos
sobre a ciência, quer ela fosse poiética, prática ou teorética, e sobre a filosofia
do período helenístico antigo e tardio abundaram nos meios islâmicos graças às
traduções árabes do grego e do siríaco. As longas listas encontradas no
catálogo (fihrist) de Ibn al-Nadim, um livreiro de Bagdade do século X,
permitem-nos saber mais acerca desses textos. Entre os primeiros tratados
filosóficos a serem traduzidos, encontram-se as Categorias, Da Interpretação,
e os Segundos Analíticos de Aristóteles, bem como o Isagoge ou a Introdução
às Categorias de Porfírio, cuja versão árabe se deve a Abdullah ibn al-
Muqaffaʿ ou ao seu filho Mohammed, no reinado de al-Mansur. O movimento
de tradução perpetuou-se sob o reinado dos seus sucessores, entre os quais o
lendário Harun al-Rashid (que reinou entre 786-809) das Mil e Uma Noites e
al-Ma’mun (que reinou entre 813-833), tristemente célebre por haver iniciado a
Mihna ou inquisição religiosa em Bagdade. Os tradutores mais conhecidos são
os do século IX, que assiste à emergência de dois grupos cujos estilo, interesses
e ensinamentos filosóficos eram distintos.
Al-Kindî (801-866)
Ainda que somente uma pequena parte das cerca de duzentas e cinquenta
obras de al-Kindî tenha chegado até nós, podemos avaliar nos seus escritos a
amplitude do encontro entre as ideias filosóficas dos gregos e a teologia
islâmica, bem como a importância do papel desempenhado pela tradição
neoplatónica no desenvolvimento da filosofia islâmica. Al-Kindî escreveu em
Bagdade no século IX, no momento em que a teologia racionalista mu’tazilita
leva a melhor em influência, e no período imediatamente posterior. No prefácio
à sua Epístola sobre a Filosofia Primeira, al-Kindî explica que a filosofia
secular herdada dos gregos deve ser compreendida como uma tentativa de
descrição da unidade divina e do respeito que o homem lhe deve, tais como se
encontram na revelação e na teologia islâmicas sob o nome de Tawhîd. Após
haver agradecido ao seu mecenas, al-Kindî explica porque a filosofia primeira
deve ser definida como conhecimento da causa da verdade no seu conjunto, o
Uno verdadeiro. Al-Kindî serve-se da lógica aristotélica e da teoria das quatro
causas para alcançar verdadeiras definições. Deve reconhecer-se aos antigos o
mérito de haverem produzido este método capaz de atingir a verdade. Al-Kindî
passa porém, auxiliado por um argumento retórico de uma espantosa insolência
e efectivamente falacioso, a atacar certos teólogos contemporâneos, que não
nomeia, dizendo: «Eles consideram como inimigos audaciosos e perigosos
aqueles que detêm as virtudes humanas que eles não puderam atingir, e das
quais estão bem distantes, para defenderem as suas cátedras usurpadas que
erigiram sem terem tal direito mas antes para dominarem e para traficarem
religião embora não tenham religião alguma; com efeito, aquele que trafica
uma coisa vende-a, e quem vende uma coisa deixa de a ter: portanto aquele que
trafica religião já não tem religião; merece ser despojado da religião aquele que
se opõe com furor a que adquiramos a ciência das coisas nas suas verdades e
lhe chama descrença210.» A verdade à qual se acede pela filosofia, uma vez que
inclui o conhecimento de Deus, é portanto necessária, digam o que disserem os
teólogos. O prefácio conclui-se com agradecimentos dirigidos ao seu benfeitor,
após uma oração solicitando a assistência divina para estabelecer contra os
inimigos da filosofia argumentos racionais capazes de provarem a existência de
Deus e de explicarem o que é Uno para atingir a verdade. Este prefácio é
importante na história da filosofia islâmica, pois al-Kindî afirma que a filosofia
permite apreender a unidade divina (Tawhîd) tanto como a revelação e a
doutrina religiosas, e que essa apreensão é fundamental para o conjunto da vida
humana. O raciocínio filosófico e as suas demonstrações apodícticas, por um
lado, e o islão e a revelação divina, por outro, são portanto duas vias iguais
para conduzir a Deus, ao Uno verdadeiro e à causa de toda a verdade. No
entanto, em caso de conflito de interpretação, deve dar-se preferência à
explicação filosófica, devendo a revelação ser entendida alegoricamente, tal
como Ibn Rushd/Averróis afirmará mais tarde.
O seguimento da Epístola sobre a Filosofia Primeira assemelha-se a um
tratado filosófico acerca do que é o Tawhîd, apoiando-se no exame aristotélico
e, mais ainda, no do neoplatonismo de Plotino e de Proclo. O género, a espécie,
o acidente, o movimento, a matéria, a alma, o intelecto, as partes (etc.) não
podem ser atribuídos ao Uno verdadeiro, ao Primeiro, ao Criador, que excede o
poder que o homem tem de o compreender e de o descrever. Deus é o Uno puro
e causa de todo o ser e de toda a verdade que decorre dessa unidade. Al-Kindî
aprofunda este tema num pequeno tratado intitulado «Sobre o agente
verdadeiro, primeiro e perfeito e sobre o agente deficiente que é agente por
extensão». A propósito da diferença entre causalidade primeira e causalidade
segunda, como aquela que se encontra no primeiro capítulo do Kalâm fî mahd
al-khair/Liber de causis que lhe é atribuído, e em todo o caso associado ao
círculo de al-Kindî211, ele mostra que o termo «agente» não pode
verdadeiramente aplicar-se senão àquilo que não pressupõe nenhum outro
agente, nem nenhum outro substrato ou matéria que pré-existisse ou coexistisse
com a sua actividade criadora. Assim, à excepção desse único Agente
verdadeiro, todos os outros se dizem ser causas num sentido metafórico ou
derivado212. O criacionismo de al-Kindî acompanha a sua bem conhecida
recusa da doutrina aristotélica da eternidade do mundo, fazendo uso de
argumentos tirados do cristão de Alexandria João Filopono.
O aristotelismo desempenhou portanto um papel maior, tanto nos Plotiniana
Arabica e na Teologia de Aristóteles, editados por al-Kindî, como no
pensamento do próprio al-Kindî, ainda que este tenha sido sobretudo
influenciado pelo neoplatonismo, do qual se encontram vestígios na sua teoria
da alma como intelecto imaterial simples.
O seu tratado Do Intelecto assemelha-se, à primeira vista, aos trabalhos
peripatéticos tardios sobre o intelecto agente, o intelecto em potência, o
intelecto em acto, etc. No entanto, a concepção que al-Kindî faz da alma e do
intelecto está mais de acordo com a teoria platónica segundo a qual o
conhecimento intelectual humano se realiza através dos objectos inteligíveis,
que existem independentemente da alma que os apreende por memória ou
reminiscência, e não por extracção ou abstracção, como em al-Fârâbî.
Al-Fârâbî (870-950/951)
Conhecemos mal a identidade e a vida de al-Fârâbî. Supomos que ele venha
da Turquia ou da Pérsia, ou pelo menos da parte oriental do Império. Sabe-se
que começou por estudar em Bagdade, com o cristão Yuhannâ b. Haylân, lendo
a Introdução às Categorias de Porfírio, as Categorias, o Da Interpretação, os
Primeiros e Segundos Analíticos de Aristóteles. Foi também junto de al-Fârâbî
que estudou o grande teólogo e filósofo cristão Yahyâ b. Âdî (f. 974). Passou
verosimilmente uma grande parte da sua vida em Bagdade, mas em 942 trocou
essa cidade por Damasco, onde terminou o seu Tratado das Opiniões dos
Habitantes da Cidade Ideal. Demorou-se igualmente em Alepo e viajou ao
Egipto, antes de regressar a Bagdade, onde morreu em 950-951213.
Com os seus contemporâneos, Abû Bishr Mattâ b. Yûnus (f. 940), al-Fârâbî,
é hoje em dia tido por um dos promotores da tradição filosófica da escola de
Alexandria em Bagdade, que era uma mistura de aristotelismo e de
neoplatonismo, e da qual Amónio foi arauto no século V. É o que mostram os
métodos de ensino praticados em Bagdade, e em certa medida pelo próprio al-
Fârâbî, que traça no Da Aparição da Filosofia as linhas desse novo
aristotelismo de Bagdade, perpetuando a tradição grega de uma maneira
inteiramente diversa da de al-Kîndî no século anterior. Das raras obras de al-
Fârâbî que chegaram até nós, solta-se uma nova cosmologia de inspiração
aristotélica, onde o mundo nasce por emanação da Causa primeira, a partir da
qual é criada toda uma hierarquia de intelectos, de almas e de corpos celestes
superiores, onde cada intelecto, por intelecção de si mesmo, dá origem a outros
intelectos, almas e corpos inferiores. Única causa da existência (wujûd) das
outras coisas e isento de qualquer defeito, o Primeiro é uno e imaterial,
conformemente ao neoplatonismo, e a sua substância não é comparável a
nenhuma outra. Não se lhe pode descrever a essência na medida em que «ele é
o Ser cuja existência não pode ter nem causa formal, nem causa eficiente, nem
causa final214». O Primeiro não pode ser caracterizado senão negativamente:
ele é indivisível, incorpóreo, imaterial, não tem substrato e é sem começo. No
entanto, a sua substância é a de um intelecto e de um inteligível, pois,
conformemente ao aristotelismo, ele é uma essência que se pensa a si mesma e
que é objecto do seu pensamento. É por isso que a razão nos ordena que
evoquemos o Primeiro por toda uma série de nomes: ele é sabedor, sábio, real,
verdadeiro, vivo, ele é a vida, ele é belo, brilhante, maravilhoso, ele
experimenta os maiores prazeres, ele é o primeiro objecto de amor. «Os nomes
pelos quais convém tratar o Primeiro são aqueles que para nós designam os
seres mais eminentes em perfeição e em existência. Mas esses nomes não
evocam senão o que aí há de perfeição e de eminência segundo o hábito
corrente pelo qual designamos os seres que estão entre nós, e aqueles que são
os melhores. Para o Primeiro, esses nomes caracterizam a perfeição que é a Sua
Substância215.» Contrariamente a al-Kindî, que considera que Deus na teologia
islâmica e na metafísica é a mesma coisa que o Uno verdadeiro, al-Fârâbî
pensa que o objecto da ciência teorética (a metafísica) é o que é comum a todos
os seres (na sua existência), o que inclui o princípio absoluto de todas as coisas
existentes, a saber Deus. Uma vez que não existe senão uma única ciência
universal para todos os seres, a metafísica compreende a teologia como uma
das suas partes que tratam de Deus, causa criadora por emanação de todas as
coisas, por intermédio da escala dos intelectos materiais.
O último intelecto criado por emanação é o intelecto agente ou intelecto
activo (al-caql al-faccâl), que é associado à esfera da Lua, e do qual emanam
formas no mundo e em outros seres do mundo sublunar, segundo certos
tratados de al-Fârâbî. Este intelecto intervém junto dos animais racionais, ou
seja dos homens, na compreensão intelectual, conformemente ao que diz
Aristóteles no De anima (III, 5), seguindo al-Fârâbî sem dúvida neste ponto os
ensinamentos de Alexandre de Afrodísia216.
Segundo ele, os seres humanos distinguem-se dos outros animais pelas suas
faculdades de escolha e de compreensão intelectual, graças às quais conseguem
superar as determinações do mundo físico e atingem mesmo um nível próximo
do do intelecto agente. Os comentadores gregos de Platão e de Aristóteles
discutem entre si a diferença entre as formas transcendentes do primeiro, que
são universais atingíveis pela alma, e os conceitos aristotélicos que derivam do
mundo e cuja intelecção se deve a um conjunto complexo de faculdades
psíquicas. Em certos casos, como em Porfírio, ambas as explicações são
retidas: os universais aristotélicos são fundados na experiência e abstraídos
dela; a experiência é considerada essencial para apreender as Formas por meio
dessa actividade inteiramente diversa que é a reminiscência217. Na sua Epístola
sobre o Intelecto e em outras obras, al-Fârâbî considera no entanto que os
inteligíveis existem naturalmente em acto na alma humana somente por um
processo que faz intervir a sensação, a imaginação e quatro intelectos, dos
quais três estão na alma, sendo o quarto o intelecto agente, que lhe é
transcendente. O processo começa pela apreensão dos sensíveis pelos cinco
sentidos e a sua unificação pelo sentido comum dominante, que produz
impressões na faculdade mimética de representação ou de imaginação. Esta
última exerce uma actividade pré-noética que «combina as sensações umas
com as outras, ou então as separa umas das outras por combinações ou
separações diversas218».
A intelecção produz-se graças à intervenção de quatro intelectos. O intelecto
em potência, ou intelecto material, é «uma certa coisa cuja essência foi
preparada ou aprestada a separar as quididades de todos os entes, bem como as
suas formas das suas matérias, fazendo delas todas uma forma, ou formas, para
ela mesma219». Ao receber estas formas abstractas, a alma humana possui e
identifica essas formas presentes enquanto inteligíveis em acto no que é
presentemente o intelecto em acto. Antes de serem abstraídas pelo intelecto
material, elas tinham um estatuto ontológico diferente, o de inteligíveis em
potência. Tal nome não lhes convém senão na medida em que elas se referem a
um intelecto, pois, em si mesmas, as formas das coisas do mundo material não
são inteligíveis. Al-Fârâbî escreve: «Mas quando [elas] se tornam inteligíveis
em acto, então a sua existência enquanto são inteligíveis em acto não é a sua
existência enquanto formas nas matérias. E a sua existência em si mesma não é
a sua existência enquanto são inteligíveis em acto220.» O papel do intelecto
agente, tal como é descrito pela Epístola sobre o Intelecto, consiste em dar ao
intelecto material aquilo que lhe permite receber os inteligíveis e tornar-se
inteligível, tal como o sol dá à visão a luz que lhe permite ver em acto e às
coisas visíveis serem visíveis em acto. Encontra-se a mesma ideia no Tratado
das Opiniões dos Habitantes da Cidade Ideal, onde o intelecto agente faz
passar (yanqulu) os inteligíveis da potência que é a sua, quando eles existem
nas coisas particulares e nas faculdades pré-noéticas da alma, ao acto no
intelecto em acto, na medida em que ele «dá ao intelecto material uma espécie
de luz». Escreve ele: «Quando na potência razoável se produz a partir do
intelecto agente essa coisa que está na mesma situação que a luz em relação à
vista, os sensíveis realizam-se a partir do que está conservado na potência
imaginativa e tornam-se inteligíveis na potência razoável221.» Enquanto os
inteligíveis imateriais em acto estão presentes no intelecto da alma, as Formas
podem ser pensadas de outro modo, como separadas e inteligíveis em acto. A
actividade imaterial do pensamento sobre estas formas abstractas,
completamente separadas da matéria, dá então lugar a uma nova actualidade do
intelecto, chamada «intelecto adquirido». O intelecto adquirido já não precisa
de nenhuma faculdade da alma que exista no corpo. É nesse sentido que se
pode falar de realização ou de transformação da alma incarnada em intelecto. A
alma já não precisa do corpo para a intelecção uma vez que doravante ela é
uma entidade imaterial em acto, eterna por natureza, alçando-se ao nível do
intelecto agente ao qual se assemelha. Não se trata de um evento místico em
que o intelecto se unisse com o intelecto agente, como mais tarde em Ibn
Bâjjah, mas antes de um indivíduo humano que se realiza completamente ao
tornar-se um intelecto separado, graças à abstracção intelectual que o homem é
capaz de escolher e de prosseguir durante a sua vida, segundo al-Fârâbî. A
doutrina por ele elaborada da abstracção dos inteligíveis a partir da experiência
ocupa um lugar considerável no ensinamento de Ibn Rushd/Averróis, mas
também em Tomás de Aquino, que a descobre na tradução latina do Grande
Comentário sobre o De Anima de Averróis.
Verdadeiro guia para o homem, o intelecto agente desempenha igualmente
um importante papel nas ciências poiética, prática e teorética ao dar à acção
humana voluntária que visa a felicidade os primeiros fundamentos inteligíveis
da realidade. A partir de uma interpretação d’A República de Platão
influenciada pela leitura de Aristóteles, al-Fârâbî mostra como o imã (o guia
religioso), o filósofo e o legislador se tornam um na cidade ideal. O método
mais seguro para atingir uma verdade apodíctica é o da demonstração
filosófica, que utiliza silogismos válidos a partir de premissas verdadeiras. No
entanto, a maior parte das pessoas dá o seu assentimento às acções ou às
doutrinas não em razão de provas filosóficas complexas, mas graças à
persuasão que utiliza os recursos da imaginação para revelar a vontade divina.
Estas imitações transmitem as prescrições divinas por símbolos, que o imã-
filósofo-legislador emprega quando governa a cidade e os cidadãos de modo a
conduzi-los à felicidade. Não obstante, «a religião é uma matéria de opinião»,
como recorda al-Fârâbî nas primeiras páginas do seu Livro da Religião, e a
felicidade para o homem, a sua verdadeira felicidade, não se obtém senão
quando atinge a verdade graças aos filósofos que usam da demonstração e das
ciências, e não quando aquiesce ingenuamente às imagens e aos símbolos, nem
quando dá o seu consentimento dialéctico ao religioso. O conhecimento
absoluto e transcendente do filósofo não é fácil de atingir e nem todos os
homens são igualmente capazes dele, devido à diferença das disposições
naturais e à dificuldade em atingir um tal grau de intelecção. Certos intérpretes
contemporâneos tentaram mostrar que as declarações de al-Fârâbî constituem
uma rejeição céptica do pensamento grego e marcam a criação de uma nova
ciência política que não estaria fundada nas teorias tradicionais da natureza
humana222. No entanto, é sem dúvida menos anacrónico procurar no
pensamento de al-Fârâbî sobre a política, a psicologia, a epistemologia e a
metafísica, pontos de acordo com uma mistura de neoplatonismo e de
aristotelismo saída da tradição grega tardia223.
Entre os filósofos de Bagdade, al-Fârâbî é hoje o mais conhecido, mas
sabemos que o movimento aristotélico foi inaugurado pelo cristão Abû Bishr
Mattâ (f. 940), ao qual se deve a tradução do siríaco para o árabe dos Segundos
Analíticos de Aristóteles e que se opôs ao gramático Abû Sacîd al-Sîrâfî (f.
979). Este último negava a universalidade da lógica grega ao pretender que se
tratava apenas de gramática grega sob uma veste filosófica. O aluno de al-
Fârâbî, o cristão Yahyâ b. Âdî (f. 974), traduziu as Refutações Sofísticas e
compôs numerosos tratados de lógica e de teologia. A presença do
neoplatonismo era igualmente muito forte nessa época. O vocabulário e as
teses neoplatónicas dos Plotiniana Arabica encontram-se na obra de
Miskawayh (f. 1030) e de al-Sijistani (f. 985). Al-Âmirî (f. 991) seguiu a via de
al-Kindî em filosofia e utilizou a tradição neoplatónica nas suas interpretações
do Alcorão, embora recorrendo ao auxílio de citações e de paráfrases do Kalâm
fi mahd al-khair/Liber de causis no seu tratado Sobre a Vida após a Morte. Na
mesma época, as Epístolas dos Irmãos da Pureza, obra que mistura a filosofia
e a revelação islâmica, apresentam-se como um guia religioso para que a alma
atinja a felicidade aquando da sua vida futura e testemunham a influência do
pitagorismo e do neoplatonismo.
Damasco e Bagdade são os dois maiores centros de tradução e de actividade
intelectual entre os séculos VII e X em terras do islão. A cidade nova de
Bagdade eclipsou rapidamente a antiga cidade de Damasco, a partir do século
VIII.
Paralelamente ao movimento de tradução, al-Kindî e al-Fârâbî
desenvolveram uma filosofia própria, ainda que os seus trabalhos e os seus
ensinamentos tenham sido rapidamente eclipsados pela importância das obras
de Ibn Sînâ/Avicena (f. 1037), a partir do século XI. No entanto, as teorias
metafísicas sobre Deus e sobre a alma humana saídas do círculo de al-Kindî
encontram-se em pensadores muçulmanos posteriores que regressavam
sistematicamente aos Plotiniana Arabica, e no Ocidente latino onde a tradução
do seu primo Kalâm fi mahd al-khair/Liber de causis era abundantemente
estudada e comentada na Universidade de Paris. A influência de al-Fârâbî em
metafísica, em psicologia filosófica e no pensamento político é atestada em Ibn
Sînâ, bem como em filósofos do al-Andaluz, entre os quais Ibn Bâjjah e Ibn
Rushd/Averróis. No Ocidente latino, as traduções de al-Fârâbî influenciaram
profundamente a teoria das ciências, e o desenvolvimento que Averróis fez do
seu pensamento teve um impacto decisivo nas concepções da natureza humana
e da alma nos debates cristãos.
RICHARD C. TAYLOR
203 Na literatura portuguesa também correntemente designado como Almançor. (N. do T.)
204 D. Gutas, Greek Thought, Arabic Culture, Nova Iorque, Londres, Routledge, 1998.
207 R. C. Taylor, «Aquinas, the Plotiniana Arabica, and the Metaphysics of Being and Actuality», Journal
of the History of Ideas, n.o 59, 1998, p. 217-239.
208 C. D’Ancona, «Greek into Arabic: Neoplatonism in Translation», in P. Adamson e R. C. Taylor (dir.),
The Cambridge Companion to Arabic Philosophy, Cambridge, Cambridge University Press, 2005, p. 10-31.
209 D. Gimaret, La Doctrine d’al-Asharî, Paris, Cerf, 1990; id., «Mu’tazila» in P. J. Bearman, C. E.
Bosworth, E. van Donzel, W. P. Heinriches et al. (dir.), Encyclopedia of Islam, 2.a ed., Leyde, Brill, 1960-
2005, t. 9, p. 783-793.
210 Al-Kindî, Œuvres philosophiques et scientifiques d’al-Kindî, R. Rashed e J. Jolivet (ed.), Leyde, Brill,
1997-1998, 2 vols., vol. 2, p. 14-15.
211 G. Endress, «The Circle of al-Kindî. Early Arabic Translations from the Greek and the Rise of Islamic
Philosophy», in G. Endress e R. Kruk (dir.), The Ancient Tradition in Christian and Islamic Hellenism.
Studies on the Transmission of Greek Philosophy and Sciences dedi cated to H. J. Drossaart Lulofs on his
ninetieth birthday, Leyde, Research School CNWS, School of Asian, African, and Amerindian Studies,
1997, p. 43-76.
213 D. Gutas, «Fârâbî», in Ehsan Yarshater (dir.), Encyclopaedia iranica, Londres, Routledge & Kegan
Paul, t. 9, 1985.
214 Al-Fârâbî, Traité des opinions des habitants de la cite idéale, trad. do árabe [para francês] por T. Sabri
(Études musulmanes, n.o 31), Paris, Vrin, 1990, p. 43.
216 Ver M. Geoffroy, «La tradition arabe du d’Alexandre d’Aphrodise et les origines de la
théorie farabienne des quatre degrés de l’intellect», in C. d’Ancona et G. Serra (dir.), Aristotele e
Alessandro di Afrodisia nella Tradizione Araba, Pádua, Il Polígrafo, 2002.
217 H. Tarrant, Thrasyllan Platonism, Ithaca, Londres, Cornell University Press, 1993, p. 108-147.
218 Al-Farâbî, Tratado das Opiniões dos Habitantes da Cidade Ideal, op. cit., p. 81.
219 Id., Alfarabi. Risalah fî al-caql, M. Bouyges (ed.), Beirute, Dar el-Machreq, 1983, 2.a ed.; trad. do
árabe [para francês] por D. Hamza. L’Épître sur l’intellect. Al-Risâla fî al-caql. Abû Nasr Al-Fârâbî, Paris,
L’Harmattan, 2001, § 12, p. 70.
221 Id., Tratado das Opiniões dos Habitantes da Cidade Ideal, op. cit., p. 92 (trad. ligeiramente
modificada).
222 Ver C. A. Colmo, Breaking with Athens: Alfarabi as Founder, Lanham, Maryland, Lexington, 2005, e
M. Mahdi, «Fârâbî», in Encyclopaedia Iranica, op. cit.
223 Ver D. O’Meara, Platonopolis: Platonic Political Philosophy in Late Antiquity, Oxford, Oxford
University Press, 2005, e P. Vallat, Farabi et l’école d’Alexandrie, Paris, Vrin, 2004.
Averróis/Ibn Rushd
225 O Fasl al-Maqâl ou Discurso Decisivo, o curto Tratado do Conhecimento Divino, o al-Kashf an al-
manâhij ou Desvelamento dos Métodos de Demonstração dos Dogmas Religiosos, e o Tahâfut at-Tahâfut ou
Incoerência da Incoerência.
226 Averróis, Tahafot at-Tahafot, M. Bouyges (ed.), Beirute, Imprimerie Catholique, 1930, p. 427-428.
227 A. El Ghannouchi, «Distinction et relation des discours philosophique et religieux chez Ibn Rushd: Fasl
al maqal ou la double verité», in R. G. Khoury, Averroes (1126-1198) oder der Triumph des Rationalismus,
Internationales Symposium anlässlich des 800. Todestages des islamischen Philosophen, Heidelberga,
Universitätsverlag C. Winter, 2002, p. 145.
228 Averróis, Discours décisif, trad. M. Geoffroy modificada.
232 Averróis não cita a origem aristotélica deste princípio: Aristóteles, Primeiros Analíticos, 1.32, 47a 8-9.
O corpus político
A Política de Aristóteles teve duas traduções escolásticas devidas a
Guilherme de Moerbecke238, e uma terceira, redigida por Leonardo Bruni no
século XV, que releva da era «humanista»239. Para os mestres em artes da
primeira metade do século XIII, a «política» é, com a «monóstica» e a
«económica», uma das três componentes da «filosofia moral». Trabalhada num
contexto em que não se dispõe nem de uma Ética completa, nem das
Económicas atribuídas a Aristóteles, nem da Política, esta tríade informa-nos
acerca do que constituía a base textual da visão universitária das três
disciplinas: para a monóstica, as «Éticas», ou seja, na época, a Ethica vetus (a
saber os livros II e III, até 1119a34) e a Ethica nova (o livro I), reunidas num
Liber Ethicorum em três ou quatro livros (com os capítulos 1-8 do livro iii a
constituírem o terceiro livro, e os capítulos 9-15 a formarem o quarto); para a
económica, o De officiis de Cícero; para a política, as leges et decreta, por
outras palavras: as leis civis e as leis eclesiásticas. É somente na década de
1270 que os escolásticos dispõem dos textos de Aristóteles que fundam a
divisão-padrão entre ética (ciência do indivíduo), económica (administração
doméstica) e política ou «civil» (administração da cidade). A dimensão que
unifica as três disciplinas é a do «regime» (regimen): a política é a ciência do
«regime de um povo, de um país ou de uma cidade», a económica a do regime
da família, a monóstica a do regime «de um só, a saber de si mesmo». Se
regime e governação são aqui sinónimos, o cruzamento das três redes
conceptuais distingue o regimen da noção moderna de governação. A
«conduta» de si está presente no próprio princípio da «administração
doméstica» e da «direcção da Cidade». A passagem do regime de si estendido à
arte de governar é um dos horizontes que permitem avaliar a novidade do
Príncipe de Maquiavel. Não é o único.
O modelo hierárquico
O corpus dos escritos atribuídos a Dionísio, o Areopagita é a fonte de um
pensamento hierárquico que impregnou fortemente a teoria política medieval e
depois moderna. «Dionísio», o monge sírio do século VI sob cujo nome os
carolíngios confundiram três personagens distintas: o primeiro convertido
ateniense de Paulo, o primeiro bispo de Atenas e o primeiro bispo de Paris,
supliciado no alto do «monte dos Mártires» (Montmartre), havia distinguido
duas hierarquias: a hierarquia celeste para o mundo angélico, a hierarquia
eclesiástica para o dos homens. Ainda que ela não tenha originariamente
dimensão política, a noção dionisiana de hierarquia recebeu muito rapidamente
uma interpretação política. O modelo «hierárquico» da soberania é regido por
três princípios. O princípio da «redução ao um» (reductio ad unum), tirado ao
mesmo tempo da Metafísica de Aristóteles244, de Dionísio e de Proclo, permite
«reduzir» o conjunto da sociedade humana, e portanto da ordem política, à
soberania do papa. A formulação propriamente dionisiana do modelo
hierárquico é dada no De ecclesiastica potestate, de Gil de Roma (1301-1302),
manifesto da teologia política pontifícia do século XIV. Ela baseia-se numa
regra, a lex divinitas («lei da ordem divina»), cujo enunciado tradicional é: «a
lei da ordem divina é a de referir os inferiores aos superiores através de
intermediários» (lex divinitas est ultima per media reducere). Transposta em
instituição de governo de um inferior por um intermediário em virtude de um
superior, a «hierarquia» definiu a política como um caso particular da ordem
universal, ordem essencialmente desigual, onde cada coisa tem o seu lugar,
determinado pela sua capacidade, e está subordinada a uma série de
mediadores que lhe asseguram a recepção do que lhe cabe: não há relação
directa do inferior ao superior, do mais baixo ao mais alto. Em cada caso é
preciso uma mediação, um intermediário.
Tal como os corpos deste baixo mundo são regidos pelos corpos do alto, e como a substância
inteira do corporal é regida pelo espiritual, também na Igreja de Nosso Senhor as realidades
temporais e inferiores são regidas por realidades superiores, e o universo temporal e a potência
terrestre são inteiramente regidos pelo espiritual e supremamente regidos pelo soberano pontífice.
Quanto ao pontífice em si mesmo, só Deus o pode julgar245.
O «corpo político»
Desde Agostinho que os teólogos medievais tinham o hábito de apresentar a
Igreja, incluindo a Igreja dita «invisível», a comunidade cristã passada,
presente e por vir, segundo o modelo de um corpo – o corpo «místico» do
Cristo –, que se reconstituiria por inteiro no fim dos tempos, após o Juízo Final.
Nesse corpo, o Cristo, Verbo incarnado, aparecia como a cabeça, o «chefe» –
Roberto de Lincoln chegou mesmo a chamar «Cristo total» ou «integral»
(Christus integer) ao conjunto formado pelo Cristo e a sua Igreja: Verbum
incarnatum cum corpore suo quod est Ecclesia. Não é pois de espantar que a
ideia de apresentar a sociedade política como um corpo, e depois, apoiando-se
em Aristóteles, como um organismo vivo, se tenha imposto na Idade Média, e
se tenha durante muito tempo combinado com o modelo hierárquico. No
entanto, no século XIV, comparando o Estado a um corpo, os teólogos de Filipe,
o Belo demonstram que se, como representante do Cristo, o papa é a cabeça – o
«chefe» – do reino, o rei é o seu coração. Ambos são igualmente
indispensáveis, tal como o cérebro e o coração o são para o organismo humano.
Assim reformulado, o modelo orgânico já não está hierarquizado: ele
argumenta um equilíbrio funcional, e entra em contradição aberta com o
modelo dionisiano da hierarquia utilizado pelos teólogos pontifícios. À
reductio ad unum da hierarquia dionisiana, os autores de Rex pacificus opõem a
ideia peripatética de harmonia dos órgãos reitores da vida, que, fundando na
natureza a independência dos poderes civil e religioso, permite reservar a
plenitude do poder temporal para aquele que reina exclusivamente no mundo
terrestre: o rei. O modelo do «corpo» apresenta além disso um carácter médico.
No século XV, Cristina de Pisa utiliza-o no Livro do Corpo de Polícia para
denunciar a inutilidade dos membros que deixassem de ser solidários com o
conjunto:
A parte que não se ajuste ao todo é vergonhosa e o membro que recuse sustentar o corpo é inútil
e como que paralisado. Laicos ou clérigos, nobres ou de baixa extracção, quem recusar prestar o seu
apoio à sua cabeça e ao seu corpo, a saber ao senhor rei e ao reino, e, em definitivo, a si mesmo,
revela ser uma parte mal ajustada e um membro inútil e como que paralisado.
É um princípio que tem por única função causar dano aos interesses dos reis que não prestam
homenagem ao papa no que respeita ao seu próprio reino: graças a esse princípio, o rei de França
pode parecer errar perigosamente em matéria de fé, quando não reconhece nenhum superior a si nos
assuntos temporais251.
234 G. de Lagarde, La Naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen Age, Lovaina, Nauwelaerts, Paris,
Béatrice-Nauwelaerts, 1956-1970.
235 Cf. A. Boureau, La Religion de l’État. La construction de la République étatique dans le discourse
théologique de l’Occident medieval, Paris, Les Belles Lettres, 2006.
236 Cf. R. Imbach, Dante, la philosophie et les laics, Paris, Cerf, 1996.
238 A Translatio prior ou imperfecta que compreendia somente os livros I-II.11, e uma tradução completa,
redigida cerca de 1267.
239 Contenta Politicorum Aristotelis libri octo. Economicorum ejusdem duo.
251 Ibid.
Tomás de Aquino
A univocidade do ente
O século XIII havia adoptado maciçamente a tese, fruto de uma longa tradição
de interpretação de Aristóteles, segundo a qual «ser» não se dizia num único
sentido, mas em vários, porém não por pura equivocidade mas por analogia. A
analogia é intermediária entre a univocidade e a equivocidade. Ela permite
preservar a transcendência absoluta de Deus em relação à criatura, que a
univocidade teria suprimido, embora evitando condenar o conhecimento
natural de Deus a uma simples teologia negativa, consequência da pura
equivocidade.
Duns Escoto é o primeiro a romper com esta tradição. Ele sustenta que o
mesmo conceito de ente (ens) se diz univocamente de Deus e da criatura: é
com o mesmo significado que eu digo que «esta pedra é um ente», que «o
homem é um ente» ou que «Deus é um ente». Esta univocidade estende-se a
todas as propriedades imediatas do conceito de ente, a que os medievais
chamavam os transcendentais (verdadeiro, bem, etc.), bem como às categorias
(substância, acidente, etc.). Trata-se portanto de uma verdadeira revolução
metafísica.
A posição de Duns Escoto deve ser compreendida a partir da concepção da
analogia que ele achara desenvolvida em Henrique de Gand (cerca de 1220-
1293). Henrique compreende a analogia como uma combinação de
equivocidade e de univocidade. O conceito de ente predicável a Deus é distinto
do conceito de ente aplicável à criatura, ainda que não seja possível ao nosso
espírito distingui-los absolutamente como dois conceitos diferentes, mas
somente como duas propriedades opostas de um mesmo conceito: o ser
compreende-se «em parte como equívoco e em parte como unívoco». Não é
pois de espantar que toda a discussão de Duns Escoto acerca da univocidade do
ser ande em torno desta questão da distinção ou confusão dos conceitos. O
doutor subtil não vê como se poderá saber que dois conceitos diferem um do
outro sendo-se incapaz de os distinguir como tais. Ou conhecemos dois
conceitos, caso em que sabemos estabelecer a distinção, ou então não
conhecemos mais do que um só. Ora a certeza na unidade dos conceitos é a
condição de possibilidade de todo o conhecimento verdadeiro. A univocidade
do ente é apresentada por Duns Escoto como uma exigência epistemológica: se
o conceito de ente não fosse unívoco, toda a demonstração metafísica ou
teológica que entendesse fazer uso desse conceito num silogismo (a começar
pela demonstração da existência de Deus) estaria tingida de engano e de
equivocidade. Consciente da grande novidade da sua tese, Duns Escoto
sublinha que não faz mais do que tornar evidente o que toda a gente já sabia.
Desde os pré-socráticos, os filósofos procuraram incessantemente conhecer a
natureza de Deus; procuraram saber se ele possuía ou não um corpo, se era um
ser finito ou infinito, etc. Ora, ao colocarem tais questões, todos concordavam
pelo menos num ponto, que era a própria condição de possibilidade da sua
dúvida, a saber que, qualquer que seja a sua natureza, o Deus que procuravam
deveria ser um «ente».
A ontologia
A partir de meados do século XIII, os esforços de um realismo consequente
fizeram rebentar a estrutura binária entre o ser exterior ao espírito e a pura
representação mental. Entre o ser de razão, que é uma pura operação lógica do
intelecto, e o ser exterior, que nem sempre é inteligível a não ser em certas
formas, modos ou graus, é necessário um espaço intermédio, que justifica a
eficácia de um pensamento voltado para o real, porquanto ele se rege pelos
diferentes aspectos possíveis deste. A teoria escotista da distinção formal com
fundamento real (distinctio formalis ex parte rei) é seguramente a mais célebre,
mas ela constitui já uma crítica da distinção intencional de Henrique de Gand,
segundo a qual os conceitos realmente distintos do espírito correspondem a
aspectos potencialmente distintos na coisa. Duns Escoto considera pelo
contrário que a distinção, numa mesma coisa, entre diversas realidades formais
não é simplesmente em potência, mas muito actual, sem que com isso se
quebre a unidade da coisa. Na coisa, é-me dado a conhecer um certo aspecto,
aspecto que, na medida em que não resulta da operação do meu intelecto, é
uma propriedade real, e não de mera razão. Todavia, essa propriedade, se se
deixa pensar (e portanto definir) independentemente do seu tema, não se deixa
dissociar concretamente deste como uma outra coisa que pudesse ter uma
existência independente. O sucesso da distinção formal escotista é devido em
particular ao seu potencial para resolver o problema da unidade divina: os
atributos divinos ou as pessoas divinas são realmente distintos, sem que a
unidade e a simplicidade divinas sejam afectadas por isso.
O realismo de Duns Escoto é moderado e revela-se assaz diferente daquele
que se desenvolverá entre os reales a partir do século XIV. O doutor subtil
esforça-se por mostrar que a simples oposição entre a pura existência mental e
a realidade exterior ao espírito é insuficiente: é necessário um domínio
intermédio. Os graus de semelhança ou de contrariedade que se observam na
natureza, e nos quais se funda a nossa faculdade de abstracção, não se explicam
pela mera existência de seres singulares, numericamente distintos uns dos
outros, uma vez que a unidade numérica não engendra nenhuma hierarquia.
Deve portanto supor-se uma unidade intermédia entre a existência individuada
e o conceito universal: a unidade de uma «natureza» (natura). Uma natureza
não é em si nem individual nem universal, ela é indiferente a um ou outro
desses modos de existência.
Se a transposição de uma natureza comum num conceito universal se deixa
compreender como uma operação do intelecto, resultado da sua faculdade de
abstracção ou de universalização, a singularização dessa natureza numa
realidade exterior requer quanto a ela um princípio ontológico próprio. Duns
Escoto examina longamente esta questão, afastando um após outro os
candidatos clássicos ao papel de princípio de individuação: a negação, a
existência, a quantidade, a matéria. Evitar-se-á, em particular, confundir
individuação e indivisibilidade. A individuação não poderia ser uma
propriedade lógica, acidental ou extrínseca de uma substância (seria a sua
existência); um ser é individuado em virtude do facto de se apropriar
totalmente das propriedades comuns de que é portador. Em Sócrates, a
humanidade torna-se o próprio Sócrates: ela torna-se «socrateidade», ou seja,
ao mesmo tempo a realização e a apropriação da humanidade por um
indivíduo. O princípio de individuação é a perfeição ou forma última que um
ser realiza, a sua haecceitas252 (de haec, «isto»). O singular realiza a
inteligibilidade de que é portador pela sua individuação. A individualidade não
é um princípio extrínseco à inteligibilidade de uma coisa.
Teologia
Guilherme de Ockham tanto é teólogo como lógico. Ele interroga-se sobre o
estatuto das verdades teológicas256. Em primeiro lugar coloca-se a questão dos
conceitos pelos quais significamos Deus. Não podemos ter dele qualquer
conceito intuitivo, pelo menos nesta vida; mas também não temos dele
qualquer conceito abstractivo simples, supondo este um conceito intuitivo
prévio. Em compensação, podemos ter acerca de Deus um conceito composto
que lhe seja próprio, uma espécie de descrição definida que só a Ele convenha.
Este conceito, composto de partes abstractas dos outros entes, pode servir de
sujeito nas proposições em que se refere a Deus. Quanto às «perfeições», não
se trata de qualidades que fossem nele distintas da sua essência, uma vez que
Deus é radicalmente simples. Elas não são coisas mas signos, atributos
predicáveis desse conceito. Tais propriedades convêm a Deus, mas são, ou
comuns a outros entes, ou termos conotativos, como «criador», que significa de
maneira segunda o mundo criado.
A partir daí, Ockham analisa as proposições utilizadas em teologia segundo
os cânones da lógica (salvo no caso da relação trinitária). Isso tem por
consequência reduzir consideravelmente o âmbito demonstrativo das
proposições teológicas, uma vez que a exigência de referência directa do termo
sujeito raramente é satisfeita. Designadamente, nenhuma demonstração de
existência pode ser considerada. Muitos dos raciocínios que os seus
predecessores julgavam demonstrativos são rejeitados como inconcludentes.
Algumas dessas proposições são porém acessíveis à razão por meio de uma
argumentação persuasiva.
A filosofia prática
Encontram-se elementos de ética dispersos nas diferentes obras teológicas. A
ciência moral comporta uma parte «positiva», contendo leis divinas e humanas
que obrigam a procurar certas coisas e a fugir de outras, e uma parte «não
positiva», que não assenta em nenhum preceito superior mas depende de
princípios conhecidos por si ou pela experiência257. Tais princípios são já
tratados na lógica aristotélica. A ética ockhamista considera além disso que
nenhum acto é por si mesmo bom ou mau, a não ser amar Deus por si mesmo e
acima de tudo. A intenção é colocada em primeiro plano. Daí resulta que o
cumprimento ou incumprimento de uma ou outra acção não deve condicionar o
juízo moral efectuado sobre alguém. Estes dois princípios implicam que não se
pode identificar com certeza o que no domínio prático corresponde a uma boa
ou má intenção. Ockham admite contudo que há acções que são prescritas
como boas e outras interditas como más. Tais prescrições, positivas ou
racionais, devem ser seguidas. Mas uma acção não tem valor moral senão por
derivar da vontade boa. O único acto intrinsecamente virtuoso é um acto da
vontade: é o facto de se amar Deus por si mesmo e acima de tudo258.
A salvação, porém, não só supõe a virtude, mas também requer o mérito.
Guilherme de Ockham aborda as questões da predestinação de um ponto de
vista semântico259. Opõe a verdade segundo Aristóteles à verdade em teologia:
Deus conhece os futuros contingentes e sabe, de duas proposições
contraditórias, qual é verdadeira; mas a questão de saber como isso é possível
permanece misteriosa. Todavia, Deus sabe o futuro como contingente e não
como necessário.
No que concerne a questão de saber se a caridade criada (distinta do Espírito
Santo) é requerida para que um homem seja salvo, Guilherme de Ockham
recusa colocar uma forma criada na alma, que seja distinta da própria alma.
Nenhuma forma, nem natural nem sobrenatural, é necessária para isso.
Nenhum acto é meritório em si mas em razão de um mandamento divino; só é
meritório um acto aceite por Deus de maneira contingente. Nem por isso deixa
de suceder que, segundo as leis instituídas, o mérito preceda normalmente a
graça e a graça a salvação. Mas uma tal ordem nada tem de necessário. Deus
teria podido estabelecer uma diferente. Se Deus houvesse criado um mundo no
qual fosse bom odiá-lo, esse teria sido um acto meritório!
A filosofia política de Ockham é exposta por ocasião de polémicas sobre os
poderes respectivos do papa e do imperador. O «direito natural» designa na
origem a Lei divina, mas também o que dela deriva no estado instituído; ele
serve de fundamento e de norma crítica à lei positiva. O mesmo sucede para a
propriedade, que não existe no estado original, e depois se torna um direito de
apropriação de todas as coisas, e por fim um direito de propriedade
propriamente dito. A ordem política releva para ele da mera instituição. Na
Igreja, Ockham respeita em princípio a primazia do papa, mas este não está
isento de erro e pode mesmo ser herético. Em compensação, recusa-se a
transferir a infalibilidade para o Concílio geral. Cada um se mantém juiz na sua
alma e consciência.
JOËL BIARD
254 Por exemplo Questões sobre a Física, qu. 7, Opera philosophica, VI, p. 410.
255 Expositio in libros Physicorum Aristotelis, Brevis summa libri physicorum, Summula philosophiae
naturalis, Opera philosophica, IV, V, e VI.
Petrarca e o humanismo
Contrariamente à imagem que dela forjou o humanismo de inspiração
petrarquiana, a Idade Média filosófica e científica elaborou-se a partir da
Antiguidade. Falou-se de um «Renascimento carolíngio» a propósito do século
IX, ou ainda de um «Renascimento do século XII». Essa época é o ponto de
partida do notável desenvolvimento da filosofia e da ciência medievais, quando
inúmeras peças da filosofia e da ciência antigas – nomeadamente o corpus
aristotélico – foram restituídas, graças à mediação islâmica, e depois teve lugar,
a partir do século XIII, a instauração das universidades.
Na mesma época, o estudo dos clássicos (latinos) conheceu um
desenvolvimento decisivo. Associado ao aristotelismo universitário, ele passou
para Itália, onde se fundiu com as tradições locais de uma retórica aplicada ao
campo do direito e da política. Esse ímpeto classicista, unido à cultura das artes
do discurso (a gramática, a retórica, a poesia), atingiu um auge com a obra de
Francesco Petrarca (1304-1374). Petrarca conseguiu formular com toda a
clareza o programa de uma restauração cultural dirigida contra a decadência e
as errâncias de um saber contaminado pela barbárie islâmica, e fundado na
redescoberta das línguas e da literatura clássicas, bem como no retorno aos
temas autênticos da filosofia: a reflexão moral e espiritual do sujeito humano,
por oposição ao cientismo naturalista e ao logicismo vazio das escolas
universitárias. Se é verdade que Petrarca apresentava o seu projecto como uma
batalha a favor da restauração da Antiguidade – identificada com a cultura
pagã, que Petrarca todavia estimava ser compatível com o cristianismo e
susceptível de ser harmonizada com este – e contra a barbárie dos «séculos
privados de Roma», nem por isso deixa de se tratar da tentativa de ressuscitar o
ideal medieval da sapientia ou do saber cristão unificado, face à fragmentação
e à profissionalização do saber que eram promovidas pelo aristotelismo
averroísta das universidades e pela sua doutrina da «dupla verdade», e portanto
face à autonomia da investigação filosófica em relação à religião.
A rebelião cultural de Petrarca teve uma audiência considerável em Itália,
nomeadamente em Florença. Foi assim que nasceu o movimento ao qual o
século XIX iria dar o nome de humanismo. Os seus promotores, que no jargão
estudantil da época eram conhecidos como os «humanistas», seguiam o curso a
que Cícero havia chamado os Studia humanitatis, os estudos que convêm
propriamente tanto ao interesse como à cultura do homem livre: as disciplinas
relativas à linguagem (gramática, retórica, poesia) bem como à reflexão prática
(história e ética). O campo assim ocupado pelo humanismo é em boa parte
estranho àquele que a tradição medieval reservava para a filosofia, à excepção
da ética. A cultura do renascimento era com efeito estranha à lógica e ao curso
de estudos que a tradição peripatética e nominalista havia colocado no
princípio do pensamento científico. O humanismo também não mostrava
interesse pelo domínio da ciência natural nem pelo da metafísica. Interessava-
se antes de mais pela linguagem como aquela qualidade essencial do sujeito
humano que exprime a sua dinâmica espiritual e por meio da qual ele entra em
relação com os seus semelhantes no campo da prática. A consciência aguda da
dependência do pensamento relativamente à linguagem era então acompanhada
por um interesse pela rectidão da expressão linguageira do pensamento (o que
equivaleu a favorecer a reabilitação do latim clássico, contra o jargão bárbaro
da escolástica), e por uma atenção persistente à retórica concebida como arte
do «bem falar» destinada à eficácia persuasiva no quadro das relações
humanas.
Se no seu início o humanismo era estranho à filosofia ensinada nas
universidades sob a autoridade da tradição peripatética, o desenvolvimento da
sua reflexão própria levou-o a transformar consideravelmente a filosofia.
Confrontado com a lógica medieval tardia, que estava ligada às exigências do
discurso científico, o humanismo com efeito veio a promover uma lógica nova,
estreitamente ligada à retórica, bem como às exigências da boa «invenção» e
«disposição» dos argumentos chamados a serem proferidos perante um público
que convenha formar ou convencer. Com os trabalhos percursores de Lourenço
Valla (1407-1457) e por intermédio de Rudolfo Agricola (1433/4-1485), a
«lógica humanista» atingiu a sua maturidade nas obras de Melâncton (1497-
1560) e de Pedro de la Ramée260 (1515-1572). Da mesma maneira, a
orientação predominantemente prática do humanismo fez-se acompanhar por
um deslocamento da atenção votada aos autores. Assim, no tocante a
Aristóteles, foram a Ética a Nicómaco, a Política, a Económica e a Retórica
que estiveram no centro das preocupações humanistas no início do século XV.
Ao mesmo tempo, nomeadamente em Florença, formava-se aquilo a que se
chamou o «humanismo civil», cujos principais representantes foram Colucio
Salutati (1331-1406) e Leonardo Bruni (1370-1444), particularmente
empenhados em escorar as opções políticas republicanas da oligarquia
florentina.
Foi não obstante por se reapropriarem dos textos antigos e por se dotarem de
uma nova biblioteca filosófica que os humanistas obtiveram os seus resultados
mais notáveis. Contra o reino indiscutido do Aristóteles latinus com título de
paradigma da filosofia, o humanismo proclamou a diversidade filosófica.
Convicto de que uma parte importante do legado filosófico grego havia sido
perdido e convicto sobretudo de que era necessário aceder ao estudo dos textos
na sua língua original, o humanismo restabeleceu a língua grega no Ocidente.
A busca de tradições perdidas encorajou uma caça sistemática aos manuscritos,
que permitiu reencontrar textos extremamente importantes, os quais depressa
inspiraram uma reflexão filosófica renovada: em primeiro lugar, os de Platão e
da tradição platónica, depois dos autores e das obras que tornaram possível um
conhecimento muito melhor dos pensamentos pré-socrático e helenístico.
Lucrécio e Diógenes Laércio deram assim acesso ao empirismo autêntico,
enquanto pelo seu lado Sexto Empírico fazia descobrir as correntes filosóficas
que ele julgara dogmáticas, entre as quais figurava o estoicismo. O
aristotelismo beneficiaria também ele da redescoberta das obras de
comentadores tão importantes quanto Alexandre de Afrodísia, Temístio ou
João Filopono, sem falar da abundante circulação das obras marginais do
corpus aristotélico, como a Poética e a Mecânica. Um vasto ímpeto de
tradução destes textos em latim – pois o conhecimento do grego continuava a
ser limitado, incluindo entre o público letrado – conclui esse empreendimento,
com o auxílio, a partir da segunda metade do século XV, da difusão acrescida
que a imprensa tornara possível.
O platonismo
O platonismo renascente é obra do humanismo, e não teria sido possível caso
este último não houvesse empreendido a sua obra de restauração da língua
grega e das filosofias concorrentes do aristotelismo. Mas ao contrário do
interesse que o primeiro humanismo votara a Platão, essencialmente
preocupado com a ética e a política mas indiferente à reflexão física e
metafísica, o platonismo desenvolvido por Marsílio Ficino (1433-1499), e que
João Pico de Mirândola (1463-1494) prosseguiu modificando-o, constituiu
incontestavelmente uma verdadeira filosofia.
Ficino empreendeu uma obra sistemática de tradução e de comentário: a sua
tradução da obra de Platão, concluída desde 1469, foi impressa em 1484 e
complementada por comentários cuja influência foi considerável, em particular
aqueles que se referem a O Banquete e ao Fedro, que estiveram na origem da
doutrina do «amor platónico», extremamente influente em todos os domínios
da cultura europeia até ao final do século XVI. Tal empreendimento foi
completado pela tradução do Corpus Hermeticum e pela tradução e comentário
das Eneadas de Plotino (surgidas respectivamente em 1471 e 1492), e pela
redacção de uma obra pessoal no seio da qual se destacam a Teologia Platónica
da Imortalidade das Almas, impressa em 1482, o Da Religião Cristã (1474) e
os Livros da Vida (1489), que expõem a sua teoria da melancolia, cujo impacto
no pensamento ocidental foi imenso, desde a literatura e as artes até à
medicina.
Ficino lia e interpretava a filosofia de Platão à luz do neoplatonismo mas
também do hermetismo, que ele via como um corpus doutrinal redigido por
Hermes Trismegisto pouco depois da época de Moisés, e no qual fora
consignada a antiga sabedoria egípcia. Aos olhos de Ficino – que conseguiu
fazer partilhar tal crença na Europa do século XVI –, isso significava que Platão
era o ponto culminante de uma tradição erudita única, que remontava às
origens da humanidade, pois era posterior à revelação divina feita na Escritura
ao povo de Israel, e dependente desta. Ficino atribuiu o nome de prisca
theologia («teologia antiga») a essa herança pagã, e considerava que ela era ao
mesmo tempo coerente e compatível com o cristianismo, adoptando quanto a
esse tema a opinião favorável que sobre ele tinham os primeiros autores
cristãos e os Pais da Igreja, que viam em tal tradição o testemunho da revelação
divina feita à humanidade pagã por meio do logos, como uma espécie de
preparação para o Evangelho.
Desse modo, Ficino pôde apresentar a sua restauração do platonismo e da
prisca theologia como uma forma de apologética da religião em geral e do
cristianismo em particular, oposta à impiedade aristotélica. Com efeito o
aristotelismo distinguia-se, nas suas correntes maioritárias (tanto o averroísmo
como a nova corrente «alexandrina», que se alimentava do comentário de
Alexandre de Afrodísia), pela afirmação do carácter moral da alma humana (o
que demitia a providência divina sobre a humanidade e, por esse motivo, a
religião) e pela separação do discurso filosófico (que é o exercício racional
superior) e da religião, destinada a comandar politicamente o povo graças a um
discurso mítico e imaginário. Pelo contrário, a prisca theologia estabelecia a
unidade da filosofia e da religião, cujo divórcio, durante o período dominado
pelo aristotelismo, produzira simultaneamente a impiedade filosófica e a
degenerescência da religião numa superstição ou numa religião indocta. Tanto
a obra de Platão como o conjunto que constituía a prisca theologia revelam um
pensamento que não se limita ao conhecimento da natureza, mas que se eleva a
partir dele até ao conhecimento e ao culto da divindade. O resultado disso é
uma filosofia piedosa (pia philosophia) e uma religião douta (docta religio).
Assim se restaurava a unidades delas, permitindo não somente reencontrar a
filosofia verdadeira, mas estabelecer ao mesmo tempo as bases da necessária
reforma da religião cristã. Era assim que Ficino – o qual além disso estava
convencido de que a sua obra e o seu projecto obedeciam a um desígnio da
providência divina – compreendia o platonismo (concebido como o elo
fundamental da cadeia formada pela prisca theologia) como o remédio
necessário para o aristotelismo. A crise espiritual contemporânea deveria
encontrar a sua superação graças à instauração de todas as potencialidades
inerentes ao platonismo.
A questão que ocupa o cerne da reflexão de Ficino é a do lugar que cabe ao
homem na escala dos seres, da relação que ele mantém tanto com o mundo
como com Deus – princípio e fim dessa escala – e da imortalidade da alma
racional humana como realização necessária do fim natural que incumbe ao
homem: a união permanente com Deus. A Theologia platonica de
immortalitate animorum (Teologia Platónica da Imortalidade da Alma) indica
de que maneira cada um desses temas está presente na obra de Platão, e em
geral nas principais peças da prisca theologia, para demonstrar que, longe de
ser uma fonte de impiedade, a filosofia é o solo firme sobre o qual se podem
edificar a crença e a esperança religiosas.
Ficino reformula o tema platónico (e aristotélico) tradicional da hierarquia
dos seres atribuindo-lhe a forma de uma escada com cinco degraus: Deus, o
espírito angélico, a alma racional, a qualidade e o corpo. Nessa escada, a alma
racional, presente tanto no mundo como no homem (o que explica que o
macrocosmo corresponda ao microcosmo), é a cúpula, ou o lugar que dá à
realidade a sua coerência. Em virtude da sua dupla tendência para a ascensão e
a descida, a alma dá a sua unidade a uma escala que é como uma realidade
dinâmica no seio da qual o superior desce para o inferior e o inferior se eleva
para o superior. Desse modo, a descida da alma em direcção à matéria (que é
uma queda para o inferior) dá a vida, informa e aproxima a divindade da
matéria inerte, conformando o mundo como uma realidade bela e boa (um
cosmos). Ao mesmo tempo, graças ao retorno da alma a si mesma e, por
conseguinte, graças à sua elevação contemplativa rumo à inteligência e à
divindade, o composto da criação é reconduzido à origem divina da qual
procede e com a qual se reúne.
Ficino considera essa tendência ou esse desejo de Deus presente na alma
racional (e por esse motivo no homem) como natural e como universalmente
presente entre os homens (ubique et semper: em toda a parte e sempre). Para
além dos objectos finitos e pontuais do seu desejo, o amor da alma – o desejo
dela de conhecer, de se unir ao e de fruir do seu objecto – dirige-se para Deus
como seu termo último. Em suma: o desejo de Deus da alma racional (humana
e individual) é simultaneamente infinito e impossível de satisfazer nos termos
sempre finitos da existência mundana. Por conseguinte, tanto para o
cumprimento de todas as tendências naturais como para fazer face à
irracionalidade que torna o homem incapaz de satisfazer o desejo e o fim mais
íntimo da sua natureza, fazendo assim dele «o mais infeliz de todos os
animais261», há que afirmar a necessidade da imortalidade da alma individual:
Além disso, uma vez que um desejo natural não é vão, daí resulta que a alma humana obtém a
existência perpétua que necessariamente almeja, existência perpétua, digo eu, não somente na
espécie, mas na substância própria [ao contrário do que se encontra em Averróis, não há
imortalidade do intelecto universal, mas da alma individual]. Pelo contrário, todos nós desejamos
uma existência eterna e isso sempre, mesmo quando estamos inconscientes desse desejo. É pois por
não ser impossível atingi-lo262.
260 Na tradição portuguesa também ocasionalmente referido sob a designação latina de Petrus Ramus. (N.
do T.)
261 Marsílio Ficino, Theologie platonicienne de l’imortalité des âmes, texto crítico estabelecido e traduzido
do latim para francês por R. Marcel, Paris, Les Belles Lettres, «Les Classiques de l’humanisme», 1965 e
1970 (reimp. 2007), 3 vols, vol. 1, p. 38.
263 Ela está exposta nas Disputationes adversus astrologiam divinatricem, publicadas a título póstumo em
1496.
264 Estes dois textos foram publicados em Basileia, respectivamente em 1556 e 1567.
265 Cf. Giordano Bruno, Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos, trad. portuguesa, notas e
bibliografia de Aura Montenegro, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1978, 2.a ed. (N. do T.)
Thomas Hobbes
O corpo
«Ele afirma, efectivamente, que Deus é um corpo», faz Hobbes dizer ao
personagem que o representa no Apêndice III do Leviatã latino de 1668. Se
uma tal afirmação tem antecedentes no pensamento estóico e até no estoicismo
cristão, ela não é porém conforme, ou disso se duvida, aos princípios
usualmente recebidos da fé cristã. Tratar-se-á então de uma daquelas
provocações que se explicam pelas circunstâncias históricas, nomeadamente os
conflitos de Hobbes com os teólogos e os sábios da década de 1660? Na
realidade, para Hobbes, dizer que Deus é um corpo (body, corpus) é dizer que
ele é um ente (being, ens); dizer que ele é um ente é dizer que ele existe. Ou
ainda, por outras palavras, não é possível que Deus possa ser concebido – se o
é, e para Hobbes é-o – de outro modo que não seja como corpo.
É que a filosofia de Hobbes repete incansavelmente uma tese: tudo é corpo e
não é pensável senão como corpo, e todos os fenómenos se explicam pelo
movimento dos corpos. O tratado Do Corpo considera assim o corpo e o
movimento como os verdadeiros princípios de elucidação da natureza inteira.
Decerto que eles não surgem senão em segunda posição na dedução que abre o
livro (cap. VIII), após o espaço e o tempo (cap. VII), mas isso é porque estes são
caracterizados pela sua simplicidade de puras imagens. A noção de «corpo»
ganha forma no espírito desde que se pense em qualquer coisa que se coloca no
espaço anteriormente imaginado; o que o distingue verdadeiramente desse
espaço é que ele resiste ao poder da imaginação, pelo que não depende dela.
Quanto ao «movimento» (local), ele está na base de todas as mudanças do
corpo e, portanto, de todos os aspectos da realidade natural.
Compreende-se então a condição enunciada por Hobbes logo no limiar do
tratado Do Corpo (cap. I) para delimitar o domínio do conhecimento racional:
os corpos não podem ser conhecidos a menos que sejam afectados por
movimentos que provoquem em nós fantasmas, eles próprios explicáveis em
termos mecânicos. Isso exclui a teologia do campo da filosofia. Para Hobbes, a
palavra «Deus» não pode então designar senão um corpo muito subtil e muito
ténue, ao ponto de este já não poder afectar os nossos sentidos. Ele não designa
porém uma realidade incorpórea. Mais do que isso, Deus não deve ser apenas
dito extenso, mas propriamente corpóreo. Face ao dilema: ou a espiritualidade
infinita, ou a corporeidade finita, Hobbes responde por algo que ele não
concebe de modo algum como um paradoxo. Deus é corpóreo e infinito: tem
uma grandeza indeterminada, o que significa que nós não podemos imaginar-
lhe o termo (não há em Hobbes ideia positiva de infinito). Deus é além disso
um espírito, mas corpóreo: ele é um corpo fino ao ponto de ser invisível; ele
não pode pois, por via natural, provocar em nós fantasmas; ora, uma vez que o
conhecimento parte dos fantasmas, ele mantém-se inconcebível.
O objectivo visado por Hobbes ao defender a tese da corporeidade de Deus é
assim muito preciso: não se trata de especificar Deus e a natureza da sua
presença e da sua acção no mundo, trata-se de assegurar a integralidade da
univocidade do ente a partir do conceito de corpo. Hobbes afirma certamente a
relação de equivocidade, ou de homonímia, entre Deus e os entes finitos; mas é
necessário, apesar dessa equivocidade proclamada e aquém dela, qualificar
como ente, e portanto como corpo, toda a instância – Deus incluído – devido à
decisão a favor da univocidade do ente. A equivocidade só surge depois, para
assinalar o carácter incompreensível do corpo divino. Hobbes ratifica assim a
morte da analogia como princípio de acesso a Deus pela linguagem, e substitui-
a por uma lógica do conceito representativo, a qual impõe que, antes de mais e
de pleno direito, se pense univocamente tudo o que é como corpo.
O homem
No prolongamento desta orientação teórica, trata-se então para Hobbes, na
sua investigação referente ao homem, de substituir uma explicação corpórea à
explicação por uma alma imaterial reputada inexistente. Pois não só a
diversidade dos fantasmas é produzida pela diversidade das operações dos
corpos sobre os nossos órgãos dos sentidos, como o sujeito onde são
despertadas as representações e os afectos é ele próprio um corpo. Doravante
trata-se pois de elaborar modelos para explicar as funções sensitivas,
perceptivas, afectivas, motrizes, tal como o conjunto dos processos mentais da
imaginação, do encadeamento das imaginações, do sonho, do delírio, etc., que
fazem por inteiro a economia da imaterialidade da alma. Neste sentido, a
hipótese da materialidade da alma opera efectivamente um «desencantamento»
do homem, se por isso entendermos que o projecto de Hobbes consistiria em
perseguir o sobrenatural até ao interior do homem. Mas a fórmula é enganosa
caso permita pensar que Hobbes não teria em vista uma investigação que se
inquietasse com o carácter específico do homem. Pois o paradoxo que Hobbes
entende elaborar é com efeito este: reduzida à natureza, em virtude das
exigências da ciência, a natureza humana não se confunde no entanto com a
natureza pura; somente a radicalidade de Hobbes pretende que não se dê de
antemão uma distinção já feita entre natureza e natureza humana.
A noção de «marca» é decisiva para compreender o que constitui aquilo que
é próprio do homem, ou seja o seu poder para produzir o artifício e constituir
uma esfera de realidade antinatural. Os animais, diz Hobbes, não se recordam
do local onde esconderam o seu alimento quando a fome reaparece. Em
compensação, o homem sabe que pode esquecer-se e, por via de consequência,
é capaz de se prover dos meios de estender a sua memória e de se elevar à
consciência de uma temporalidade mais ampla que a do animal, instituindo
arbitrariamente «marcas» memoriais. É pois efectivamente a partir do estado de
natureza, ou seja na condição dos homens fora de um poder público investido
de direito, que o homem produz efeitos que vão contra a natureza. Deve
todavia acrescentar-se que se o homem não se ativesse senão às «marcas», a
vida dele em pouco se diferenciaria da do animal. Com efeito o homem não se
torna verdadeiramente humano senão no momento da formação da palavra e,
sobretudo, do impacto que esta tem sobre a natureza do seu desejo. A
linguagem não introduz a distinção entre o homem e o animal, mas
desmultiplica a maneira como o homem, no próprio seio da natureza, rompe
toda a comunidade com os animais.
De um modo geral, é a capacidade de se determinar, não só pelos bens
presentes e aparentes, mas também em função do futuro, que distingue as
paixões dos homens das dos animais. A este título, a curiosidade é mesmo a
única paixão que Hobbes afirma ser especificamente humana. Por definição, se
a reprodução do movimento vital é sempre desejada para o futuro, ela não está
porém jamais garantida. O movimento vital é dado, ao passo que a reprodução
dele tem de ser obtida. E a representação da incerteza quanto a tal reprodução
produz uma dor que, segundo Hobbes, não engendra no homem uma simples
aversão, que vale para o objecto presente, mas antes uma «ansiedade do
porvir», que o dispõe a interrogar-se sobre as causas das coisas, tornando-o tal
conhecimento mais apto a ordenar o presente tendo em vista a sua maior
vantagem. Viver não é somente querer sobreviver; é desejar e querer continuar
a desejar. Mas, para o homem, desejar é incontornavelmente viver numa
perpétua preocupação com o futuro. Todo o animal encadeia ideias em
«discursos mentais» e desejos em «deliberações». O «discurso mental» da
besta é uma batalha onde uma imagem imediatamente produzida é sentida
quando leva a melhor sobre todas as que foram conservadas na memória. Mas,
no homem, um tal poder está hipertrofiado: ele é aquele animal que pode
enlouquecer por ser incessantemente arrancado ao presente e projectado num
futuro que jamais pode ser dominado por inteiro.
O cidadão
Para apaziguar a ansiedade do homem e contrariar os possíveis delírios dos
seus desejos quando estes se tornam patologicamente obnubilados pela
preocupação com o futuro, Hobbes inventa uma solução política, de
considerável importância na constituição da modernidade: segundo ele próprio,
Hobbes foi para a ciência política o que Galileu foi para a ciência do
movimento e William Harvey para a ciência dos corpos vivos.
O temor de outrem transforma o desejo das coisas em desejo insaciável do
poder; não que para Hobbes todo o homem seja, como demasiadas vezes se
disse, um ambicioso insatisfeito e agressivo, mas porque os homens hostis são
sempre suficientemente numerosos para que os melhores e os moderados
tenham interminavelmente de se precaver contra a morte que cada um tem a
força de dar a todos. É essa situação que descreve a hipótese teórica do estado
de pura natureza. Se se puder dizer em termos narrativos que esse estado é o
estado anterior a toda a instituição, em termos de estrutura ele é o estado de
desinstituição. O estado de natureza é, com efeito, sem que seja necessário
formar a hipótese de uma malvadez natural do homem, um estado de guerra de
todos contra todos. Porquê? Porque a natureza, responde Hobbes, fez os
homens iguais, de modo que eles podem sempre infligir-se uma morte violenta.
Foi erroneamente, acrescenta ele, que Aristóteles acreditou na desigualdade
natural entre aqueles que estão destinados a comandar e aqueles que estão
destinados a servir. E é precisamente por a natureza ser incapaz de
normatividade que o artifício do Estado deve suplementar as insuficiências
dela. Se a igualdade natural não suscita mais do que uma desordem de perpétua
insegurança, só a instituição de uma desigualdade deverá permitir instaurar
uma ordem estável e segura.
Para compreender esta invenção, devemos debruçar-nos sobre a definição do
direito natural. No estado de natureza, certos obstáculos podem sempre privar-
me de uma parte do meu poder de fazer o que quero, mas nenhum obstáculo
me pode impedir de usar, como eu quiser, um ou outro poder. Se nos
ativéssemos a esta primeira caracterização, seria preciso concluir dela que tudo
o que é de facto é igualmente de direito. Daí a importância da segunda
caracterização: cada um tem efectivamente a liberdade de usar o seu poder
como quiser, mas unicamente para a preservação da sua natureza. Dessa
exigência de conservação de si, que limita o nosso poder e funda o nosso
direito natural, cada um deve calcular as consequências. A razão dita-nos leis
naturais. Estas são regras gerais, descobertas pela razão, que interditam os
homens de omitir tudo aquilo por que eles pensam poder ser mais bem
preservados. Mas estas leis estão votadas a prescrever no vazio enquanto for
permitido a cada um julgar, por um exame pessoal, o que permite atingir a paz.
É preciso obter a garantia de uma reciprocidade, que é a condição da aplicação
das leis naturais. Só um poder comum que mantenha todos os homens em
respeito pode articular eficazmente o direito natural e a lei natural.
Para Hobbes, a instituição do Estado equivale então a isto: é preciso
transformar um «consenso», que mantém sempre a pluralidade das vontades e
portanto do estado de multiplicidade conflitual dos homens, numa «união» que
exige a existência de uma só vontade de todos. Por outras palavras, é preciso
que a convenção entre os particulares, simultaneamente, num só e mesmo acto,
una os particulares (antes da união fundadora, nenhuma unidade, ao nível dos
conflitos do estado de natureza, pode ser pressuposta) e engendre o poder
soberano. O que é possível, se cada um convier com cada um submeter a sua
vontade e renunciar a fazer um uso irrestrito do seu poder, em proveito não do
outro (que a contrai igualmente), mas de um terceiro que é por isso mesmo
engendrado a título de vontade soberana. O princípio do dispositivo
hobbesiano compreende-se bem, mas não é fácil de apreender no seu detalhe. A
dificuldade é a seguinte: como pode uma convenção entre particulares
engendrar a relação de soberania que encerra a um tempo a obrigação civil e a
realidade de um poder necessitante? É neste ponto que os progressos
conceptuais de Hobbes, dos Elementos da Lei ao Cidadão, e do Cidadão ao
Leviatã, são mais importantes. A principal invenção reside na solução trazida
pelo Leviatã com o conceito de autorização (cap. XVI). A instituição de uma
pessoa civil supõe que os indivíduos se façam representar pela autorização de
um domínio de actos a um único representante-actor (homem ou assembleia),
comum a todos. A atribuição é dupla. Em virtude de uma personificação
artificial por atribuição fictícia, a multidão torna-se uma pessoa à qual são
atribuídas as palavras e as acções do representante-actor. Nenhum dos autores
atribui as palavras e as acções do representante-actor à comunidade. Em
compensação, cada um atribui-as a si mesmo, e é a convergência dessas
atribuições que transforma a multidão em pessoa única. Quanto ao
representante-actor, ele assegura uma dupla representação: a de cada indivíduo
pertencente à multidão; a da multidão tornada pessoa representada. A
autorização nunca emana portanto da própria multidão. A partir de um esquema
que parece referir-se à outorga de um mandato (da multidão a um ou a vários
dos seus), o processo de personificação artificial atinge uma inversão: é o
mandatário (o soberano) que faz o mandante (o povo, ou o corpo político no
qual se subsume a multidão, tornada uma só pessoa representada pelo acto de
autorização). Não é pois o povo que faz Leviatã, mas é Leviatã que institui o
povo.
Hobbes, enfim, sela a indivisão da autoridade política para preservar o corpo
social da dissolução ao remeter para as mãos do soberano o poder religioso.
Sendo a fé no Cristo e a obediência às leis civis os únicos artigos necessários à
salvação prometida pelo cristianismo, em parte alguma se funda, em contexto
cristão, que se não obedeça às leis do soberano no que concerne os actos
exteriores da religião. Mas o Estado de Hobbes não é um «corpo místico», do
qual só Deus conheça os corações. A religião, não sendo mais do que uma
competência pertencente ao soberano, deve sincronizar, no domínio público, o
que releva do religioso e o que releva da ordem civil para que reine a paz. Não
é portanto a tolerância propiciadora de discussões político-religiosas que
Hobbes professa, mas uma forma de conformismo: o de indivíduos
aglomerados que formam a matéria do corpo de Leviatã, esse «deus mortal»
engendrado pelos homens a fim de assegurarem para si não uma salvação
absoluta, a qual só pertence à arte política divina, mas uma salvação relativa.
266 Cf. Thomas Hobbes, Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, trad.
portuguesa de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, Lisboa, INCM, 1995. (N. do T.)
René Descartes
O método
Descartes publica aos quarenta anos a sua primeira obra, a mais célebre de
todas: o Discurso do Método. Mas não era através deste que Descartes esperava
apresentar-se ao mundo dos sábios. Estamos em 1637, num momento em que o
filósofo renunciou a publicar o seu tratado de física, O Mundo ou tratado da
luz. A condenação de Galileu leva-o a temer sorte análoga na medida em que,
nessa obra, ele confere um lugar central à teoria heliocêntrica que valeu ao
sábio italiano a ira da Igreja. Foi por isso que Descartes se decidiu a não fazer
editar senão uma parte da sua produção científica, sob a forma de três ensaios:
A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria. Como preâmbulo a estes, colocou
deliberadamente o Discurso, um ensaio autobiográfico que lhe permite ilustrar
o método por ele próprio seguido para «buscar a verdade nas ciências». Falar
mais da iniciativa que o levou à ciência do que dos resultados dela não é o
projecto inicial de Descartes, mas é o expediente que lhe é imposto pela época
e pela azáfama da censura.
Descartes considera que as regras do método descrevem o processo natural
do espírito exercendo a sua faculdade cognitiva, tal como o testemunham
nomeadamente a matemática: e, como esta beneficia do estatuto de ciência
exacta, está em posição de aclarar os procedimentos de investigação que
permitem atingir a verdade. O conhecimento verdadeiro, tal como o atesta a
matemática, deve partir de premissas evidentes por si mesmas, e destas deduzir
consequências certas por meio de procedimentos que se possam controlar em
permanência. A esses dois momentos de certeza próprios das demonstrações
matemáticas correspondem duas funções do intelecto: a intuição, graças à qual
se captam as verdades evidentes por si mesmas, e a dedução, que permite
avançar das premissas às consequências, progressivamente, segundo uma
sucessão de passagens em que cada qual é evidente por si mesma. Na medida
em que a dedução se refere a uma sequência de passagens intuitivas, é afinal na
intuição que assenta a justeza do raciocínio.
No Discurso, Descartes resume as regras metodológicas – já enumeradas no
seu tratado inacabado das Regras para a Direcção do Espírito (Regulae ad
directionem ingenii) – em quatro preceitos. O primeiro princípio ordena que
nos guardemos de toda a precipitação e de toda a prevenção e que não
tenhamos por verdadeiro senão aquilo de que se não possa duvidar. A exclusão
de tudo o que não é mais do que provável manifesta-se claramente: ou o
conhecimento é verdadeiro, ou ele é falso. A segunda regra recomenda que se
refiram os problemas complicados aos seus elementos simples e consiste em
resolver um problema tratando-o degrau a degrau e segundo um movimento
que vai para montante e remontando até atingir um termo impossível de reduzir
ulteriormente. É na análise que Descartes baseia a sua convicção de que é
possível elaborar uma mathesis universalis, ou seja uma ciência das relações
que tratam de toda a quantidade possível. O terceiro preceito preconiza que se
construam séries dedutivas onde toda a proposição é precedida pela proposição
que é necessária e suficiente para permitir deduzir a partir dela. A quarta regra
exige verificar que a divisão em elementos simples e a sequência de
demonstrações estão completas, ou seja que nenhum elo da demonstração foi
esquecido. Ela visa anular os erros da memória e dominar todo o encadeamento
do raciocínio. Trata-se de dar a um conjunto de conhecimentos complexos
aquela evidência imediata que não pertence senão à intuição e que, do ponto de
vista do método, é a única garantia de verdade. Veremos que esta garantia
metodológica revelará as suas insuficiências do ponto de vista da metafísica.
A metafísica
O método cartesiano mostra a via que conduz às ideias «claras e distintas»;
«claras», porque estão presentes num espírito que reflecte com atenção, e
«distintas» porque não atribuem ao objecto conhecido senão aquilo que é
próprio dele. O espírito humano considera tais ideias como absolutamente
certas. No entanto, referir-se a ideias deste tipo não basta para legitimar a
pretensão da ciência física a descrever o real. Essa legitimidade não pode achar
fundamento seguro senão numa outra ciência, a metafísica. A tradução francesa
dos Princípios de Filosofia, de 1647, é acompanhada por uma longa carta ao
autor da tradução, o abade Claude Picot, na qual Descartes retoma a velha
metáfora da árvore das ciências; na árvore imaginada por Descartes, as raízes
são a metafísica, o tronco a física e os ramos a medicina, a mecânica e a moral.
A metafísica desempenha pois um papel fundador para a física, que pode ser
referido a duas doutrinas essenciais: por um lado a existência e a veracidade de
Deus, por outro lado a distinção do corpo e do espírito. A primeira doutrina é
necessária para garantir a verdade das ideias claras e distintas e, por
conseguinte, para assegurar que a ciência matemática e a física descrevem
verdadeiramente a realidade do mundo; a segunda doutrina permite justificar a
teoria do conhecimento, graças à qual a essência das coisas é conhecida
independentemente da experiência, através das ideias inatas do espírito.
Descartes apresenta a sua metafísica em quatro obras distintas e ao longo de
um período de quase quinze anos: uma primeira vez num tratado, redigido em
latim em 1629, que não chegou até nós; seguidamente na quarta parte do
Discurso do Método, e depois nas Meditações Metafísicas surgidas em 1641;
finalmente, na primeira parte dos Princípios de Filosofia. Mas é à sua
correspondência que confia uma das suas concepções metafísicas mais
originais: aquela a que se chama a teoria da livre criação das verdades eternas,
segundo a qual as verdades necessárias que concernem a matemática e a
essência das coisas dependem da livre decisão divina, e onde se afirma que
Deus, se o houvesse querido, teria podido instaurar uma lógica na qual tais
verdades o não fossem. A tese é formulada pela primeira vez na carta de 15 de
Abril de 1630 dirigida a Marino Mersenne, um frade da Ordem dos Mínimos,
que mantinha relações com quase todos os sábios do seu tempo, e com o qual
Descartes se correspondeu com regularidade após se instalar na Holanda.
Descartes continuaria a desenvolver essa tese em missivas posteriormente
dirigidas a Mersenne e a outros interlocutores. Todavia, nas obras publicadas,
tal doutrina só aparece ocasionalmente, em resposta às objecções dirigidas às
Meditações, e Descartes não a utilizará explicitamente na exposição das
doutrinas que ocupam os seus tratados de metafísica.
Da dúvida ao eu
A investigação metafísica cartesiana começa pela vontade de duvidar
sistematicamente de todas as certezas aceites até então; por outro lado, essa
investigação convida a não considerar como verdadeiro senão aquilo que
resistir ao exercício exaustivo da dúvida. A dúvida cartesiana, ao invés da
dúvida céptica, tem por finalidade a conquista da verdade ou da certeza. O que
Descartes torna a pôr em causa é toda a bagagem teórica do homem de cultura
média, impregnado das noções clássicas e da filosofia aristotélica. Tal como ele
declara no resumo que antecede as Meditações, a dúvida visa principalmente as
coisas materiais. São estas que devem ser objecto de um saber perfeito. Os
conhecimentos vulgares que as concernem relevam todos eles de um princípio
empirista, segundo o qual todos os nossos conhecimentos provêm dos sentidos.
A validade desta opinião torna a ser posta em causa por dois tipos de
argumentos: a infidelidade dos sentidos, que leva a duvidar da correspondência
entre imagens mentais e mundo exterior, e a impossibilidade de distinguir com
certeza a vigília do sono, que torna até incerta a existência do mundo exterior e
do seu próprio corpo. Contudo, as operações matemáticas resistem à dúvida,
dado que a verdade matemática não depende dessa existência. Coloca-se então
a questão de saber se tal privilégio não permite nenhuma dúvida razoável da
matemática, tal como as Regras pareciam mostrar, e justifica que se lhe atribua
um papel fundador para a ciência, sem qualquer inquérito ulterior. A esse
respeito, é certo que a matemática apresenta uma característica promissora: é
impossível pensar o contrário do resultado de uma operação matemática
simples. É no entanto possível encontrar um argumento susceptível de ameaçar
a própria matemática: com efeito, se Deus é todo-poderoso, tal como estima a
tradição cristã, ele pode ter dotado o homem de uma natureza tal que esta se
engane mesmo nas verdades mais simples e mais evidentes. Assim, as
operações matemáticas pareceriam necessariamente verdadeiras para um
espírito humano, ao passo que seriam falsas para Deus. E se a hipótese de que
Deus dotou as suas criaturas de uma natureza incapaz de atingir a verdade pode
parecer indigna da bondade de Deus, poderemos substituí-la pela figura de um
génio maligno muito poderoso que, armando-lhe ardis, conduza o homem para
o erro.
A filosofia escolástica, quando se tratava de analisar o poder divino, colocara
frequentemente a questão de saber se Deus poderia fazer com que o espírito
humano aceitasse como verdadeira uma proposição falsa. É aliás nesse
contexto que se deve ler a dúvida cartesiana: o fito que Descartes visa atingir é
o de garantir que o conhecimento humano pode aspirar à verdade, apesar da
omnipotência divina. Neste sentido ele opõe-se a todos os teólogos que
julgavam a ciência humana provisória ou hipotética, arguindo com a distância
entre a infinidade de Deus e o carácter finito e portanto imperfeito dos homens;
apenas Deus conhece a realidade das coisas e o homem só lhes pode captar a
aparência. Pelo contrário, Descartes – tal como Galileu – conta com a ciência
para descrever a verdadeira natureza do mundo. É por isso que é necessário
empenharmo-nos no estudo das questões metafísicas e examinarmos se a
omnipotência divina e a verdade da ciência podem coexistir.
O cogito e a natureza do eu
Neste vazio de certezas que a dúvida cria, Descartes assenta a primeira pedra
da reconstrução da ciência: a dúvida não pode referir-se à condição que permite
duvidar, a saber a existência do eu que duvida. Ego cogito, ergo sum («Penso,
logo existo») é a primeira certeza que Descartes adquire; ela servirá de
fundamento à construção teórica que virá. O carácter de princípio primeiro que
Descartes entende reservar ao cogito é igualmente estabelecido pela técnica
argumentativa que permite estabelecê-lo como certo: tal como no caso dos
primeiros princípios aristotélicos, é impossível que ele seja demonstrado, mas a
sua verdade é estabelecida pelo facto de toda a tentativa de o refutar levar de
facto a reafirmá-lo: se eu penso que não existo, existo; se sou enganado por um
ser muito poderoso e ardiloso, existo.
Apoiando-se na certeza adquirida da existência do eu, Descartes empenha-se
seguidamente na investigação da sua natureza. A certeza de existir não depende
senão do pensamento. Se eu parasse de pensar, não poderia mais estar certo de
existir; pelo contrário, posso negar ter um corpo e continuar certo de que
existo. Só o pensamento (com as suas diferentes modalidades: duvidar,
conceber, afirmar, querer, imaginar, sentir) é inseparável do eu. A garantia de
que o pensamento pertence à minha natureza é tão indubitável quanto a
existência do eu: a própria hipótese de que o meu criador empregue todo o seu
poder para abusar de mim confirma-a em lugar de a destruir. Por conseguinte, o
pensamento constitui o atributo essencial do eu, o único que permite conhecê-
lo como uma coisa existente. O eu, conclui Descartes, é pois uma substância
cuja natureza é constituída pelo pensamento.
Uma vez mais, encontramo-nos perante uma tomada de posição oposta à
doutrina de Aristóteles. Segundo este filósofo, tudo o que sabemos do espírito
resulta da reflexão sobre os actos pelos quais o espírito conhece os corpos.
Descartes sustenta, pelo contrário, que o conhecimento que o espírito tem de si
mesmo é independente do do mundo exterior. Sustenta até que os corpos não
são conhecidos senão por ideias que não provêm dos corpos. Descartes
demonstra-o por meio de uma experiência teórica que tem por objecto o
conhecimento de um pedaço de cera: as características percebidas pelos
sentidos não permitem conhecer a natureza verdadeira desse corpo, dado que
elas podem mudar, tal como sucede quando a cera se derrete sob o efeito do
calor e nós não obstante julgamos achar-nos na presença do mesmo pedaço de
cera, anteriormente apreendida como fria e dura. Como tal juízo não é
legitimado pela experiência dos nossos sentidos, ele não pode resultar senão da
intervenção do espírito que conhece o corpo através de uma ideia de origem
não empírica e o descreve pelas suas propriedades geométricas e cinéticas, que
se conservam apesar da mudança. Deste modo as ideias intelectuais tornam até
possíveis os juízos fundados na experiência. Trata-se de uma verdadeira
inversão do empirismo: até os juízos fundados na experiência seriam
impossíveis se não se referissem a ideias de origem não empírica.
A existência de Deus
A afirmação indiscutível do cogito não basta para estabelecer os fundamentos
da ciência: todas as outras ideias claras e distintas, e em primeiro lugar as da
matemática, permanecem sob a ameaça de um Deus enganador. Porém, dado
que a existência do sujeito que pensa é a única verdade que escapa à hipótese
do Deus enganador, é no próprio interior do pensamento e a partir dele que se
deverá procurar a verdade e tentar retomar a posse do mundo. Deste modo a
demonstração da existência de Deus e do facto de que ele não poderia ser
enganador, premissas indispensáveis à fiabilidade do saber humano, deverá
partir da existência do eu pensante e dos conteúdos do pensamento, ou seja das
ideias. As três provas da existência de Deus estabelecidas por Descartes
supõem efectivamente como premissa a ideia de Deus.
Na primeira prova, Descartes distingue, na ideia, o acto do pensamento de
que o espírito está consciente e aquilo que a ideia representa, a que ele chama a
«realidade objectiva» da ideia. Emprega aqui uma expressão escolástica, por
oposição à realidade que as coisas possuem em si mesmas, independentemente
do facto de serem objecto do pensamento, realidade que ele qualifica de
«formal». Seguidamente, Descartes supõe que a realidade objectiva deve ter
uma causa que possua uma realidade formal. Com efeito, a ideia, definida
como simples modificação do pensamento, jamais poderá justificar a
diversidade dos conteúdos das suas representações e, portanto, é preciso
procurar a causa da realidade objectiva da própria ideia na realidade formal dos
objectos representados. Até aqui, só estamos certos da realidade formal de uma
única coisa, a saber o eu, ou seja a substância pensante. Enquanto substância
finita, o eu poderia ser a causa da realidade objectiva de todas as ideias, à
excepção da ideia de Deus, ideia de uma substância infinita e infinitamente
perfeita. Com efeito, a realidade objectiva da ideia de Deus excede a realidade
formal do eu; daí resulta que o princípio de causalidade, segundo o qual o
efeito não pode ter mais realidade do que a causa, seria transgredido se o eu
fosse a causa da ideia de Deus. Portanto, só Deus pode ter causado a ideia de
Deus e, a partir do instante em que o espírito possui verdadeiramente a ideia de
Deus, Deus existe.
Esta prova não é válida a menos que suponhamos que há uma ideia de Deus
positiva e não decorrente de nada. Se o pensamento de Tomás de Aquino é
justo – não pode haver do infinito senão uma ideia negativa que decorre da
negação do finito –, então a ideia de Deus pode decorrer da ideia de um
qualquer ser finito e ser produzida pelo eu. Descartes não hesita em inverter os
pressupostos da teoria tomista: não é a ideia do infinito que deriva da do finito,
mas, pelo contrário, é a ideia do finito que deriva da do infinito. Deve-se pois
considerar a ideia do infinito como uma ideia original e positiva, mais clara e
mais distinta até do que as outras ideias, embora o infinito não possa ser
compreendido (ou seja, conhecido em todas as suas implicações) mas apenas
concebido (ou seja, definido, a justo título, como sendo o que não tem limite).
Podemos aliás dizer o mesmo acerca de tudo o que é infinito, e a matemática
ensina que o facto de o infinito permanecer incompreensível não impede o
conhecimento dele. Descartes havia percebido bem que, na sua filosofia, a
metafísica precede a física; sabemos agora porquê: porque os seus princípios
fundadores, e em primeiro lugar a ideia de Deus, não provêm de outra coisa.
Consciente do carácter inédito da primeira prova, Descartes elabora logo de
seguida uma segunda, onde procura a causa do único efeito finito cuja
existência conhecemos: o eu dotado da ideia de Deus. Essa causa não pode ser
outra senão um ser que traz em si mesmo o princípio da sua existência e que,
por esse motivo, pode atribuir-se todas as qualidades que a ideia de Deus
contém. Descartes sublinha que também esta prova tem por centro a ideia de
Deus de que o espírito finito está dotado.
A terceira prova decorre da definição de Deus como ser infinitamente
perfeito; ela supõe como premissa menor que a existência é uma perfeição e
desta deduz necessariamente que Deus existe. Se alguém negasse a existência
de Deus, seria levado a contradizer-se pois negaria a própria definição de Deus.
Trata-se de uma prova a priori, ao invés das duas provas precedentes, que
partiam ambas dos efeitos. Kant qualificará este argumento como
«ontológico», uma vez que Descartes supõe como premissa maior a definição
da essência de Deus.
As provas da existência de Deus têm como resultado tornar impossível a
hipótese de um Deus que me tivesse atribuído uma natureza irresistivelmente
disposta ao erro. Deus existe e é veraz. A ciência humana já não está ameaçada
de falsidade.
Descartes foi acusado de haver caído num círculo vicioso ao demonstrar a
existência de Deus e ao assegurar graças a essa existência a verdade das ideias
claras e distintas. A acusação pode ser formulada assim: ele recorreu a Deus
para garantir as ideias claras e distintas, mas a demonstração da existência de
Deus é efectuada por meio de ideias claras e distintas, e portanto toda a
demonstração é circular pois o que funda deveria por seu turno ver-se fundado.
Descartes respondeu a esta crítica fazendo uma distinção entre os axiomas, dos
quais é impossível duvidar-se, e as demonstrações que deles decorrem; tais
demonstrações não podem ser postas em causa senão quando as suas etapas
deixam de estar presentes ao espírito. No entanto, os resultados das
demonstrações podem ser contestados se houver razões válidas para duvidar
deles. Supondo-se que todas essas razões tenham sido eliminadas graças a
métodos apropriados e conduzidos com ideias claras e distintas, como quando
se demonstrou que Deus existe e que ele não é enganador, então já não é
possível justificar razoavelmente a dúvida sobre o que nos parece evidente, e
ainda menos sobre a própria prova da existência de Deus. Toda a tentativa de
fornecer uma razão válida para duvidar se confrontará com a certeza doravante
adquirida de que Deus existe e não é enganador. A hipótese de que a ciência
seja uma impostura absoluta não é inquietante senão na medida em que a
pudermos sustentar com argumentos e suposições realmente concebíveis, como
era o caso quando não se chegara ainda a uma ideia clara e distinta de Deus e
este podia ser pensado como um Deus enganador. Uma dúvida sem motivo e
contrária a todas as convicções adquiridas por meio de procedimentos
racionalmente controláveis seria simplesmente insensata.
As ideias e o mundo
A matemática é o exemplo por excelência de conhecimentos claros e
distintos e é exclusivamente constituída por ideias inatas. Descartes funda a sua
oposição ao empirismo aristotélico num nítido retorno ao platonismo e numa
retoma da sua teoria das ideias. Para distinguir as ideias inatas, ele sublinha que
tais ideias, ao contrário das que provêm dos sentidos (ideias adventícias), se
apresentam ao espírito de forma voluntária e precisa que o conteúdo delas, ao
invés das ideias que resultam da imaginação entregue ao seu livre curso (ideias
factícias), se impõe ao espírito de uma maneira tal que ele não pode ser
modificado e é necessário. Descartes insiste em particular na resistência do
conteúdo das ideias inatas a toda a tentativa de manipulação que o espírito
humano quisesse operar. As verdades da matemática não são invenções, mas
descobertas do homem; aliás, o facto de neste domínio os progressos se
fazerem passo a passo atesta-o igualmente. A própria passividade do espírito
em relação ao conteúdo das ideias inatas indica claramente que o que lhes
corresponde se encontra fora do espírito e que se trata da essência das coisas,
imutável e eterna. Eis porque Descartes retoma a definição clássica da verdade
compreendida como adequação do pensamento e da coisa. Com efeito, os
raciocínios matemáticos são verdadeiros porque descrevem de maneira
adequada as realidades a que se referem, a saber os elementos constitutivos
essenciais, imutáveis e eternos da matemática e da geometria. É assim claro
que a veracidade divina, associada à teoria das ideias inatas, garante que a
ciência descreve bem a estrutura real do mundo.
Embora as ideias adventícias não tenham nenhuma legitimidade para nos
informarem sobre a própria natureza do mundo exterior, é a elas que Descartes
atribui a importante função de demonstrar a existência deste. Com efeito, elas
incitam irresistivelmente a pensar que esse mundo exterior as suscitou. Ora, se
os corpos não existissem, Deus seria enganador, dado que não dotou o homem
de nenhum instrumento para corrigir essa forte propensão. Deve no entanto
observar-se que Descartes não tentará demonstrar a existência do mundo senão
uma vez conhecida a natureza deste graças às ideias inatas. Pode dizer-se que o
projecto de se opor ao empirismo fica assim concluído: é possível conhecer a
estrutura do mundo mesmo sem saber se esse mundo existe verdadeiramente.
A alma e o corpo
O conhecimento da natureza da alma, adquirido independentemente do
conhecimento dos corpos (e mesmo do corpo de cada um), é a premissa do
dualismo cartesiano. Uma vez que são concebidos independentemente um do
outro, a alma e o corpo constituem duas substâncias distintas. Isso não exclui
que Deus tenha decidido uni-las de uma maneira tal que jamais estejam
separadas uma da outra; mas como Deus pode sempre cumprir o que se
concebe clara e distintamente, a alma e o corpo podem sempre ser dissociados
pela omnipotência divina. O facto de a alma e o corpo serem duas substâncias
diferentes dá à doutrina das ideias inatas o seu fundamento antropológico: uma
vez que a alma é uma substância independente do corpo, ela pode estar dotada
de ideias que não passam pelo corpo.
Ainda que as duas entidades estejam separadas, une-as uma ligação estreita,
e na verdade uma combinação única. Ao sentir o prazer e a dor, a alma percebe
o corpo ao qual está ligada como um corpo diferente de todos os outros, como
o seu corpo. Descartes inaugura assim uma via nova, entre o modelo
aristotélico e o modelo platónico. Para Aristóteles, a alma e o corpo formam
uma só substância, ao passo que, para Platão, são duas substâncias distintas,
com o corpo a abrigar a alma e a mantê-la prisioneira. Descartes procura
elaborar uma teoria que concilia os dois modelos. Platão tem razão quando
estima que a alma e o corpo são duas substâncias distintas; porém só uma união
como a que Aristóteles imagina, onde a alma e o corpo formam um todo, é
susceptível de justificar o facto de a alma ser o lugar das ideias claras e
distintas mas também o das ideias confusas e obscuras, no caso de a mensagem
mecânica transmitida pelo corpo exterior ser deformada pela alma e achar a sua
tradução em características que não tenham relação alguma com a realidade
exterior. Com efeito, se a ligação não fosse dessa natureza, não teríamos mais
do que ideias claras e distintas e não cometeríamos erro algum. A união da
alma e do corpo, qualificada por Descartes como substancial, parece constituir
um grave inconveniente para o homem. Isso parece evidente de um ponto de
vista cognitivo, mas é o contrário que sucede de um ponto de vista prático. As
sensações dão informações deformadas acerca do mundo exterior, mas
susceptíveis de serem corrigidas, ao passo que, normalmente, elas dão
informações justas acerca do que é útil ou nocivo para o conjunto alma-corpo.
A finalidade da estreita união entre o corpo e a alma não serve senão para o
domínio prático e o homem engana-se quando utiliza para os fins do
conhecimento informações que lhe foram dadas para melhor guiar a sua vida (e
que não têm em si mesmas nenhuma finalidade especulativa). A distinção real e
a união substancial do corpo e da alma são efectivamente duas teses opostas, e
não obstante não se pode afastar nem uma nem a outra, pois a primeira é
garantida pela razão e a segunda é um dado indubitável da experiência interior,
e como tal garantida por Deus.
A moral e as paixões
A intenção cartesiana de elaborar uma moral científica havia sido anunciada
desde o Discurso. Porém, nesse momento, a tarefa parecera difícil e Descartes
havia-se limitado a indicar uma moral «por provisão» que pudesse servir de
guia na vida enquanto se aguardava a elaboração da moral definitiva. A moral
provisória comporta três máximas e uma regra de vida: a primeira máxima
prescreve a obediência às leis e aos costumes do seu país, a observação da
religião e quanto ao resto o acatamento das opiniões comuns mais moderadas;
a segunda prescreve que se tenham opiniões pessoais enérgicas e firmes, desde
que se decida assumi-las; a terceira propõe que adaptemos os nossos desejos ao
que está realmente no nosso poder, o que somente é o caso para os nossos
pensamentos, tudo o resto escapando largamente ao nosso controlo. Esta última
máxima mostra claramente a influência do estoicismo em Descartes. A estas
três máximas, Descartes acrescentava a decisão de confirmar a sua opção de
vida, ou seja de cultivar a sua razão seguindo as regras do seu método.
Descartes escreveu as suas cartas sobre a moral entre 1643 e 1649; os
principais destinatários delas foram a princesa Palatina Elisabete, Pedro
Chanut, embaixador junto da casa real da Suécia, e Cristina da Suécia. O fito
do homem é a beatitude, que consiste numa satisfação interior que deve ser
distinguida da felicidade, pois pessoas bem servidas pelo acaso ou pela fortuna
também aí podem encontrar a felicidade. Pelo contrário, alcança-se a beatitude
quando se limita o desejo às coisas que dependem de nós, como a virtude ou a
sabedoria. Na carta a Elisabete de 21 de Julho de 1645, Descartes explica que
será possível atingir essa satisfação interior observando os três preceitos já
indicados no Discurso, aos quais ele acrescenta algumas modificações
importantes. Contrariamente ao que fora enunciado no Discurso, o
conhecimento do bem conduzido pela razão é doravante evocado. Com efeito,
o exercício da virtude é tornado possível pelo conhecimento de certas ideias: na
ocorrência, a da existência de um Deus de quem tudo depende, transformação
cristã do destino estóico, a da distinção do corpo e da alma que impede o temor
da morte, a da imensidão do universo que relativiza a importância do homem
no seio deste e, por fim, o sentimento de fazer parte da comunidade em que se
vive, bem como do mundo inteiro.
Os últimos trabalhos de Descartes são consagrados ao estudo das paixões. A
obra As Paixões da Alma foi publicada em 1649; Descartes quer estudar
cientificamente as paixões, sem objectivos retóricos nem moralistas, projecto
que seguidamente será retomado por Espinosa. As paixões são emoções que o
movimento dos espíritos animais suscita na alma; todas as paixões
consideradas em si mesmas são boas e úteis; pode mesmo dizer-se que uma
vida sem paixões seria uma vida miserável e desprovida de prazeres. De facto,
nada está mais distante da atitude de Descartes do que o projecto estóico de
eliminar as paixões. No entanto, elas devem ser dominadas e os seus excessos
controlados. Mas, opondo-se uma vez mais à doutrina estóica, Descartes
sustenta que o controlo dos excessos de emoção não pode resultar de um
afrontamento directo entre a razão e as paixões, pois o movimento fisiológico
do qual elas decorrem não pode ser combatido senão por um movimento
idêntico e contrário. E portanto, se a razão quer dominar as paixões por meio
de argumentos sólidos e certos, ela deverá suscitar paixões contrárias àquelas
que não queremos sofrer, por uma reflexão sobre os pensamentos que estão
habitualmente ligados à paixão que se deseja sentir. A razão pode além disso
explorar o carácter arbitrário da relação entre a alma e o corpo. Em geral, os
pensamentos do espírito estão ligados aos movimentos corporais devido a uma
escolha livremente operada por Deus, da mesma maneira que as palavras estão
ligadas arbitrariamente aos seus significados. É ao explorar o carácter arbitrário
desta relação que o espírito, guiado pelo hábito e a experiência, poderá
procurar religar os movimentos corporais a pensamentos diferentes daqueles
aos quais a natureza os havia originalmente ligado e conseguir, por exemplo,
que reajamos com dureza perante um inimigo em lugar de termos medo. Este
investimento das paixões, semelhante àquele que permite criar uma segunda
natureza num cão de caça, faz do homem o artesão da sua própria natureza.
Descartes deixa surgir aqui o profundo laço que o liga à cultura do
Renascimento e o seu apego à ideia de que o melhor do homem está ligado ao
exercício da sua liberdade, que faz dele um ser repleto de qualidades e capaz de
assumir a natureza com que decida dotar-se a si mesmo. De resto, para
Descartes, o homem virtuoso é guiado por uma paixão que é igualmente uma
virtude, a generosidade: ela consiste em julgar por si mesmo o que tem
verdadeiro valor, o que, para ele, é o único uso correcto do livre-arbítrio, sendo
o resto obra do destino.
EMANUELA SCRIBANO
267 Na tradição literária portuguesa também muitas vezes referido como Renato Cartésio. (N. do T.)
As Reformas
269 F. Laplanche, Bible, sciences et pouvoirs au XVIIe siècle, Nápoles, Bibliopolis, 1997, p. 11-12. Cf.
igualmente id., L’Écriture, le Sacré et l’Histoire. Érudits et politiques protestants devant la Bible en France
au XVIIe siècle, Amesterdão, Maarsen, APA-Holland University Press, 1986; M. Grandjean e B. Roussel
(dir.), Coexister dans l’intolérance, Genebra, Labor et Fides, 1998.
270 Lodewijk Meyer, Philosophia S. Scripturae interpres. La philosophie interprète de l’Écriture Sainte,
ed. francesa por J. Lagrée e P.-F. Moreau, Paris, Intertextes, 1988, cap. 3, p. 48.
272 H. Méchoulan et al. (dir.), La formazione storica dell’alterità. Studi di storia della tolleranza nell’etá
moderna offerti a A. Rotondó, Florença, Olschki, 2001, 3 vols.
273 Este termo designa as terras de exílio dos protestantes após a revogação do édito de Nantes. (N. do E.)
274 Cf. J. Garrison, L’Édit de Nantes et sa révocation. Histoire d’une intolerance, Paris, Seuil, 1985, em
particular o cap. 1; id., L’Édit de Nantes, Biarritz, Atlantica, 1997.
275 Déclaration des causes qui ont meu ceux de la Religion à reprendre les armes pour leur conservation.
L’an 1574. Montauban, 1574.
276 De la concorde de l’Estat. Pour l’observation des Edicts de Pacification, Paris, 1599, p. 40.
277 É. de La Boétie. De la servitude volontaire, in S. Goulard (ed.), Mésmoires de l’Estat de France sous
Charles neufiesme, Genebra, 1577.
278 Innocent Gentillet, Remonstrance au Roy Tres Chrestien Henry III de ce nom, Roy de France et de
Pologne, sur le faict des deus Edicts de sa Maiesté donnés à Lyon, l’un du X. de Septembre, et l’autre du
XIII. d’Octobre dernier passe, presente année 1574. Touchant la nécessité de la paix, et moyens de la faire,
Frankfurt, 1574. Id., Discours sur les moyens de bien gouverner et de maintenir en bonne paix un Royaume
ou autre Principauté, divisez en trois partes à savoir du Conseil, de la Religion et Police, qui doit tenir um
Prince. Contre Nicolas Machiavel Florentin, Genebra, 1976.
279 S. J. Brutus, Vindicae contra tyrannos. Sive, de Principis in Populum, populique in Principem, legitima
potestate, Edimburgo, 1579; De la puissance legitime du Prince dur le peuple, et du peuple sur le Prince.
Traité tres-utile et digne de lecture en ce temps, Genebra, 1581.
280 Para uma análise aprofundada das implicações filosóficas cépticas da questão da tolerância em Bayle,
convém referirmo-nos não só às obras monográficas e às numerosas publicações de É. Labrousse, mas
também a G. Paganini, Analisi delle fede e critica della ragione nella filosofia de Pierre Bayle, Florença, La
Nuova Italia, 1980, em particular nos caps. 4 e 6; H. Bost, Pierre Bayle, Paris, Fayard, 2006. Cf. igualmente
W. J. Stankiewicz, Politics and Religion in Seventeenth Century France. A study of political ideas from the
Monarchomachs to Bayle, as reflected in the Toleration Controversy, Berkeley, Los Angeles, 1960; E. I.
Perry, From Theology to History. French Religious Controversy and the Revocation of the Edict of Nantes,
Haia, Nijhoff, 1973.
281 P. Bayle, Réponse aux questions d’un provincial, terceira parte, Œuvres diverses, vol. III, caps. 17 e 18.
282 Cf. por exemplo os artigos: «Bodin», «Hobbes», in P. Bayle, Dictionnaire historique et critique, 5.a ed.,
Amesterdão, P. Brussel, 1740. Sobre a crítica do direito de resistência, cf. «Buchanan» e a «Dissertation
concernant le livre d’Étienne Junius Brutus» (ibid., vol. IV, p. 569-577) e «Loyola», «Mariana».
283 P. Bayle, «Geldenhaur», Dictionnaire historique et critique, op. cit., nota: F. Cf. G. Paganini, Analisi
della fede e critica della ragione nella filosofia di Pierre Bayle, op. cit., cap. 4; D. Taranto, Pirronismo e
assolutismo nella Francia del’ 600, Milão, Franco Angeli, 1994, cap. 7.
284 Ver o opúsculo: «L’Affaire Bayle». La bataille entre Pierre Bayle et Pierre Jurieu devant le consistoire
de l’Église wallone de Rotterdam, A. McKenna e H. Bost (dir.), Saint-Étienne, Institut Claude Longeon,
2006.
Blaise Pascal
Conhecimento e moral
Pascal é sábio e cristão. Cristão e sábio. Essas duas lógicas coexistem nele
sem se misturarem. Sem mistura, mas também sem combate. A actividade
científica não se refere às matérias de fé que não possa regular. A razão deve
cessar a sua actividade onde começa o domínio das verdades reveladas:
Pelo seu lado, a teologia não pode ditar à ciência o que esta deve considerar
como verdadeiro ou falso. É impossível, diz Pascal na décima quarta
Provincial, obter «contra Galileu aquele decreto de Roma que condenava a sua
opinião acerca do movimento da Terra. Não será isso a provar que ela
permanece em repouso». Pode-se portanto ser sábio e cristão, ainda que esse
cristianismo não seja efectivamente conforme às posições defendidas pela
Igreja. Mas poderá ser-se filósofo e cristão? Uma tal pergunta define para
Pascal uma relação diferenciada com a razão segundo consideremos esta na sua
função teórica ou prática, e poderá admitir-se que esta última releva para ele,
como para a maioria dos seus contemporâneos, de uma parada de grande
importância. Compreendê-la-emos facilmente se examinarmos a maneira como
a filosofia moral e política moderna que se constrói sob os olhos de Pascal
coloca o problema das relações da razão e da religião. Tanto Hobbes como
Grócio haviam procurado mostrar que existe na realidade uma convergência
entre as prescrições racionais em matéria de lei natural, de direito natural e de
contrato social e as Leis divinas reveladas. Essa convergência é
minuciosamente exposta no capítulo iv do Cidadão, intitulado «Que a lei de
natureza é uma lei divina», onde se comparam as vinte leis naturais construídas
pela razão com os correspondentes preceitos da lei divina. Ora, tal
convergência apresenta a particularidade de poder ser interpretada num duplo
sentido. Pode ver-se nela a ideia segundo a qual a razão se pode achar posta ao
serviço da verdade e da justeza dos Mandamentos da religião ou, ao invés, a
ideia segundo a qual a Escritura é chamada a confirmar a iniciativa da razão.
Uma tal correlação revela-se particularmente ambígua: poderíamos ser tentados
a interpretar este reforço respectivamente da razão e da Escritura como um
possível enfraquecimento da religião. Com efeito, se cabe à razão justificar os
Mandamentos da religião, isso poderá significar, por um lado, que a religião
arrisca vir a achar-se submetida à justificação racional, e, por outro, que as
prescrições racionais poderiam acabar por valer por si mesmas, sem que se
tenha já de recorrer aos preceitos da religião. Por outro lado, se a Escritura
oferece confirmação às construções normativas da razão, isso pode querer dizer
que, para o filósofo, o essencial do recurso ao texto sagrado visa validar as
prescrições desta e que, por esse motivo, a religião se acha posta ao seu
serviço. Essa convergência das prescrições racionais e religiosas revela-se pois
uma faca de dois gumes e é preciso saber perceber o perigo real de tal apoio
nas aparentes vantagens de que a religião parece beneficiar. É essa situação que
parece perigosa a Pascal e que explica não só a sua hostilidade relativamente ao
apoio que a razão possa trazer à religião, ainda que de modo indirecto quando
as provas da religião se alimentem dos limites da razão, mas também a sua
crítica aberta à própria possibilidade de uma autonomia da razão na esfera
prática. Ele tem portanto de recusar a ideia de uma moral e de uma política
racionalmente estabelecidas, e atacar todos os elementos que formam a
ossatura destas: a capacidade da razão para estabelecer ou conhecer normas
morais, as leis naturais e o direito natural de onde decorre uma concepção da
justiça, a sua faculdade de justificar a existência de um pacto social constitutivo
da ordem política e de exercer uma crítica do direito positivo caso este
contradiga as leis naturais. É nesse ponto que Pascal vai ao encontro do
cepticismo de Montaigne na crítica radical que este último dirige
simultaneamente às vertentes teórica e prática da razão e que Pascal retoma por
sua conta. Porém, o confronto de ambos permite estabelecer que o cepticismo
de Pascal difere do do autor dos Ensaios. De facto, a crítica pascaliana da razão
exprime-se a partir de uma posição que integra o trabalho da ciência moderna
em via de ser construída e o da filosofia que a acompanha, e formula-se através
de um «ponto de vista» que se inspira simultaneamente nas posições de Hobbes
e de Descartes sem se reduzir a nenhuma delas: Pascal situa-se do lado de
Hobbes quando se trata de compreender o estatuto da verdade na ciência, e
situa-se do lado de Descartes (mas de um Descartes profundamente
remodelado) quando se trata de compreender o estatuto do erro em matéria de
moral e de política. Hobbes havia explicado, nas suas objecções às Meditações
e contra a teoria cartesiana do papel da vontade na formação do juízo, que o
assentimento da vontade nada tem a ver com o processo de formação do
verdadeiro. Quando a razão estabelece com clareza a necessidade e o estatuto
de uma ideia verdadeira, como no caso de uma demonstração por exemplo,
embora o possamos querer de outra forma, só somos levados a crer nela por
sermos forçados a isso por argumentos. Desta objecção decorre a negação da
tese cartesiana da liberdade da vontade: a ideia verdadeira, em razão da
necessidade interna dos encadeamentos demonstrativos, obriga a vontade a
aquiescer. Assim, a produção da verdade não é sinónimo de liberdade, mas de
constrangimento. Pascal parece aliar-se a esta posição quando explica que, nas
ciências (geometria, física) e para certas proposições de tipo filosófico (o
cogito por exemplo, no fr. 131), os princípios podem ser estabelecidos pelo
«coração» apoiando-se no recurso a provas indirectas (a falsidade da tese da
não-divisibilidade infinita do espaço valida a tese contraditória), e que as
consequências são a seguir demonstrativamente deduzidas desses princípios
que assim se impõem à vontade, seja o que for que ela possa desejar de diverso.
Não se poderá no entanto concluir daí que a razão científica atinge uma certeza
inabalável uma vez que, segundo Pascal, existe uma tal dissociação entre a
ordem do conhecimento e a ordem do ser que esta transborda infinitamente
daquela287, e cabe precisamente à razão perceber ela mesma os seus próprios
limites288. Deve portanto admitir-se que o que é certo para nós não remete por
natureza a uma realidade que ela conhecesse integralmente, posição que, ao
invés da de Montaigne, pode ser qualificada como de cepticismo moderado.
Não é isso que sucede quando não dispomos de provas semelhantes, como
mostra Pascal em A Arte de Persuadir. Neste caso, quando o prazer da vontade
não pode renunciar ao seu objecto sob o efeito do juízo do entendimento,
obtém-se uma interferência da vontade na formação do juízo, não sob a forma
de uma liberdade de indiferença como em Descartes, mas sob a forma de uma
estratégia de dissimulação dos desejos dela. Esta mascara as suas opções
embora as mantenha, e é assim que pode «orientar» a relação do entendimento
para com os seus objectos. A vontade, sem marcar abertamente a sua
preferência, leva o espírito que caminha «unido com a vontade […] a
contemplar o rosto que ela ama e é assim que ele o julga por aquilo que nele
vê289». A multiplicidade de pontos de vista parciais – cada um dos quais se
considera como um absoluto – e a oposição destes conduzem à única atitude
racional nessa circunstância, o cepticismo. É assim que se pode compreender
porque se opõem as escolas filosóficas ou as diferentes confissões: cépticos
contra dogmáticos, cépticos contra estóicos, estóicos contra epicuristas,
molinistas contra calvinistas, etc. Cada uma possui um ponto de vista
fragmentário porque só vê um único aspecto das coisas, não podendo nenhuma
delas defender um ponto de vista tal que, sendo o seu contrário
necessariamente falso, este se revelasse verdadeiro. Por outras palavras, é por
não existir prova demonstrativa convincente das suas teses que a vontade pode
operar sobre o entendimento e levá-lo a não perceber mais do que um aspecto
da verdade das coisas. De cada vez que nos encontramos perante uma
contradição entre doutrinas, das quais nenhuma consegue impor-se, podemos
considerar que estamos a lidar com um esquema semelhante de interferência da
vontade no entendimento. Isso é verdade não só para a definição do homem
acerca da qual disputam os estóicos e os cépticos, mas também para a da graça,
a respeito da qual se opõem molinistas e calvinistas, bem como para a do
conhecimento, que opõe dogmáticos e cépticos. Em todos esses casos de
monta, a ordem de subordinação da vontade ao entendimento acha-se
formalmente respeitada, mas realmente invertida. Ao não surgir abertamente
como princípio de escolha, a vontade permite ao indivíduo ser estimado por
outrem, coisa que ele procura antes de tudo, uma vez que não age abertamente
senão segundo a razão, regulando a sua conduta pelas ideias do
entendimento290. Mas ao constituir realmente e de forma disfarçada o princípio
da escolha a partir do que pretende, a vontade obtém uma dupla satisfação: a do
prazer que lhe traz a sua escolha contra o primeiro juízo do entendimento e a
do prazer de parecer conformar-se abertamente a esta para afirmar a potência
do indivíduo (poder gabar-se abertamente de escolher por razão), enquanto o
juízo do entendimento foi modificado para a satisfazer. É na base de uma tal
contradição e do relativismo moral que dela decorre que Pascal pode apresentar
simultaneamente uma crítica radical das virtudes morais naturais, tão
impossíveis de estabelecer quanto de concretizar291, e o ensino das Escrituras
como o único ponto de vista possível susceptível de fazer concordar essas
verdades parciais, tal como mostra A Conversa com o Senhor de Saci. Uma tal
crítica da moral acha-se no terreno da política.
290 Ibid., fr. 470, 149, 372, 421, 423, 617, 668, 749, 796, 978.
A sabedoria
A Ética Demonstrada segundo a Ordem Geométrica compõe-se de cinco
partes, respectivamente intituladas: «De Deus», «Da natureza e origem da
alma», «Da origem e da natureza das afeições», «Da servidão do homem ou da
força das afeições», «Do poder do entendimento ou da liberdade do homem».
É fútil inquirir se essa «ordem geométrica» adoptada por Espinosa na Ética
corresponde efectivamente à ordem codificada nos tratados de geometria a
partir do modelo dado na Antiguidade por Euclides. O modo de exposição
espinosista aqui retido corresponde de facto a um tipo de racionalismo que,
embora inspirando-se, como já o havia feito Descartes, no modelo de rigor e de
certeza incarnado pela matemática, elabora sob uma nova forma a sua própria
doutrina da ciência.
As noções fundamentais em que assenta a ontologia espinosista são as de
substância, de atributo e de modo. A substância, o que é em si e é concebido
por si, é uma e uma só: Espinosa liberta-se aqui da concepção cartesiana da
dualidade das substâncias. Esta substância é constituída por uma infinidade de
atributos, entre os quais o pensamento e a extensão: a coisa pensante e a coisa
extensa, que Descartes concebia como duas substâncias, não passam de dois
atributos, na ocorrência os únicos atributos entre os atributos infinitos que a
alma humana é capaz de conhecer. Os modos, por fim, são as afeições de uma
substância, as formas nas quais ela se exprime e pelas quais ela se torna
concretamente cognoscível. O mundo inteiro das coisas finitas não é mais do
que uma série infinita de expressões modais da substância.
Quanto à identidade entre Deus e a natureza, que já havíamos encontrado no
Tratado Teológico-Político, ela surge na Ética sob a forma de uma definição, a
de um Deus pensado como substância única que existe necessariamente, que é
e age pela mera necessidade da sua natureza: Deus é causa livre de todas as
coisas uma vez que todas as coisas procedem necessariamente da sua natureza,
que é idêntica à das coisas. A necessidade não se opõe portanto à liberdade,
mas à contingência: opor a liberdade à necessidade, como fazem aqueles
homens para os quais a liberdade rima com a possibilidade de perturbar a
ordem da natureza eterna e infinita, equivale a confundir a liberdade com a
contingência. Na filosofia espinosista, nada nem ninguém pode subtrair-se à
necessidade natural: quem crê agir livremente contra a lei divina ou contra si
mesmo (os exemplos escolhidos por Espinosa vão da embriaguez ao suicídio) é
na realidade movido por causas exteriores cujo poder ultrapassa a sua. A crítica
dos milagres, já presente no Tratado Teológico-Político, fundava-se no facto de
ser impossível a Deus, ou à natureza, agir contrariamente à sua própria
natureza; aqui é a impossibilidade de que um ser finito como o homem possa
agir livremente contra a necessidade da sua própria natureza que nos é
demonstrada. Agir significa exprimir a necessidade da sua natureza; o contrário
da acção não é outro senão a paixão, que consiste em sofrer a acção de causas
exteriores: o que é precisamente o oposto da liberdade.
A liberdade é portanto necessidade. Necessidade da natureza divina, da qual
devem decorrer uma infinidade de coisas e uma infinidade de modos na medida
em que a infinidade da natureza de Deus não é estática mas dinâmica: ela
estende-se incessantemente até ao infinito. Estando estabelecido esse
fundamento ontológico, a demonstração prossegue com a explicação das coisas
que devem decorrer necessariamente da essência de Deus, ou do Ser eterno e
infinito; não de todas porém, na medida em que elas são infinitas, mas daquelas
que nos podem conduzir ao conhecimento da alma humana e à sua perfeição.
Passamos assim da dinâmica do infinito em expansão à dinâmica do finito em
tensão, que dá todo o seu sentido ao título da obra: o finito em que Espinosa se
concentrará a partir daí será com efeito o «nós» humano, que a Ética
considerará sob o duplo ponto de vista do que ele é e daquilo em que se pode
tornar ao realizar-se.
Como indica Espinosa no seio da Ética, a perfeição e a realidade são uma
única e mesma coisa: considerar-se-á como perfeito o que é realizado segundo
o projecto que é imanente a toda a coisa finita, onde, pelo contrário, a perfeição
de Deus é em si e não deriva de projecto algum. Se seria erróneo conceber a
natureza infinita de Deus de maneira antropomórfica, ao imaginá-la tendendo
para qualquer fim, em compensação é essencial para a natureza humana finita
tender para fins. Dizendo a ética precisamente respeito ao homem, ela deverá
interessar-se pelo objectivo de perfeição que este último persegue
naturalmente.
O que é aperfeiçoar e realizar? O homem é corpo e espírito, os quais não são
realidades separadas mas modos da substância divina. Para Espinosa, a alma é
a ideia do corpo, e a ordem das ideias é idêntica à das coisas, no sentido em que
nós forjamos uma ideia de cada coisa e em que cada ideia é por seu turno ideia
de qualquer coisa. A minha alma é portanto ideia do meu corpo, sendo este um
certo modo da substância divina considerada sob o atributo da extensão; tal
como a ideia é um modo dessa mesma substância considerada sob o atributo do
pensamento, a alma humana é assim uma parte do entendimento infinito de
Deus.
É na pesquisa de conhecimentos universais que consistirá principalmente a
busca de perfeição que a alma humana persegue. A via seguida para aí chegar
não é porém única. Começamos com efeito por forjar ideias gerais a partir de
experiências vagas, confusas e fragmentárias: por outras palavras, estamos
naturalmente inclinados a generalizar as relações entre as coisas e os factos
singulares que conhecemos e a extrair delas leis ou propriedades universais. É
o que constitui o conhecimento do primeiro género, mundo da imaginação ou
da opinião não científica de onde vêm todos os nossos preconceitos e todas as
nossas superstições. O segundo género de conhecimento, o da razão, consiste
em formar noções universais a partir de noções comuns e de ideias adequadas
das propriedades das coisas: estamos aqui ao nível da ciência, definida como
formulação de leis gerais às quais chegamos após haver adoptado, graças à
experiência e ao procedimento demonstrativo, princípios evidentes e
universalmente válidos. Existe por fim um terceiro tipo de conhecimento, a
ciência intuitiva, que procede do conhecimento adequado dos atributos da
substância para o conhecimento adequado da essência das coisas. Sabendo que
não podemos perceber a substância divina senão através dos seus atributos ou
propriedades, e não directamente, nenhum conhecimento é mais universal que
o dos atributos; e esse conhecimento universal não é, para a alma, um meio de
proceder para outros universais, mas para o conhecimento das coisas
singulares. Notemos que este conhecimento das coisas é estranho à
imaginação, a qual não percebe a essência mas as modificações das coisas; ela
já não é o objecto da razão científica do segundo género que se interessa pelas
leis gerais e não pela singularidade das essências. A essência das coisas é o
objecto da ciência intuitiva.
Espinosa dá disso uma aplicação concreta ao demonstrar como chegamos ao
conhecimento adequado da essência humana – essência de uma coisa singular –
a partir do corpo e do espírito: estes dois modos infinitos permitem estabelecer
a relação entre os atributos (a extensão e o pensamento) e as coisas finitas.
Cada coisa, escreve Espinosa, tende a perseverar no seu ser; essa tendência ou
esforço (connatus) que tende para a autoconservação apresenta-se como o dado
mais profundo e mais essencial da natureza das coisas: «Cada coisa, enquanto
está em si, esforça-se por perseverar no seu ser303.» O connatus que distingue o
homem exprime-se sob a forma do desejo (cupiditas). A essência humana
caracteriza-se pois por esse impulso consciente para a conservação e o
desenvolvimento de si. Conhecer adequadamente essa essência implicará
examinar as formas de expressão desse impulso, e analisar a partir daí a vida
afectiva.
As afecções podem ser activas ou passivas, segundo tendam a aumentar ou a
reduzir, devido à influência de causas exteriores, o nosso poder de agir:
falaremos neste segundo caso de paixões. A principal afecção activa, para além
do desejo, é a alegria, pela qual a alma passa de uma perfeição menor a uma
perfeição maior. Ao invés, a paixão de que dependem todas as afecções
passivas é a tristeza, que faz passar a alma a uma perfeição menor. Todas as
outras afecções se reduzem a essas três afecções primitivas: o amor e o ódio, a
título de exemplo, não são mais do que uma alegria ou uma tristeza que
acompanham a ideia de uma causa exterior.
Como chegamos a partir de então à sabedoria, ou seja à perfeição humana?
Como já pudemos indicar em diversas instâncias, Deus não é mais do que a
natureza, ou seja o conjunto infinito das causas. É precisamente ao chegar a
conhecer essas causas que passamos de uma perfeição menor a uma perfeição
maior. Estas, para além de serem causas das coisas, são portanto igualmente as
causas exteriores do aumento da nossa perfeição: é por termos chegado a
conhecê-las que somos mais perfeitos, e isso de um ponto de vista intelectual,
na medida em que essa perfeição releva do domínio do conhecimento. O
conhecimento das causas é aquilo a que Espinosa chama amor intelectual de
Deus, e não consiste, como entre os místicos medievais, no isolamento ascético
do corpo e das coisas do mundo para aceder a uma visão extática do absoluto,
mas no conhecimento mais rico e mais extenso das essências: quanto mais
coisas conhecermos na natureza, maior e mais perfeito será o nosso
conhecimento de Deus.
A perfeição do homem, a sua maior alegria, consiste pois no
desenvolvimento da sua potência natural, ou seja no uso do seu intelecto em
benefício da sua própria utilidade, e no estabelecimento de relações com os
homens, pois nada é mais útil ao homem do que o homem.
É o tema ao qual Espinosa se consagra no seu último escrito que ficou
inacabado, o Tratado Político: partindo da constatação de que os homens são
mais guiados pelas suas paixões do que pela razão, é necessário imaginar
artifícios institucionais pelos quais os governantes, quer o queiram quer não,
sejam espontaneamente levados a obrar pela segurança dos cidadãos ao
prosseguirem o seu próprio interesse. Aqui, é ao realismo do acutissimus
Machiavellus que se refere muito evidentemente Espinosa: não é ao elaborar
modelos racionais a priori mas ao partir do conhecimento da natureza humana
tal como no-la descreve a ciência intuitiva do terceiro género – bem como ao
agir, quanto ao resto, na base da experiência – que será possível identificar os
fundamentos do melhor Estado. Toda a forma de governo (monarquia,
aristocracia ou democracia), desde que seja habilmente organizada, é
susceptível de reduzir a esfera da potência privada e de aumentar a da liberdade
comum. Compreender-se-á desde então que não é desejável determinar um
modelo universal que fosse válido para todas as nações e em todas as situações.
É assim à elaboração, para a Holanda, de uma constituição aristocrática rica de
potencialidades liberatórias, numa época em que a realização da democracia
parece comprometida, que se dedicará Espinosa neste último escrito, o qual no
entanto não renuncia à possibilidade de um modelo democrático. Mas qualquer
que seja o regime de um país, incluindo o regime monárquico, que porém
apresenta para Espinosa os maiores perigos e os maiores limites, o objectivo da
ciência política não é o de subverter as instituições, o que arriscaria a
provocação de um desencadeamento irracional das paixões colectivas. O papel
da ciência política consiste em elaborar instrumentos de controlo que
permitam, por um lado, dissipar as esferas de despotismo e, por outro, criar um
terreno propício ao desenvolvimento da liberdade pública graças à qual cada
vez mais homens conseguirão conhecer e realizar a sua natureza, atingir, por
outras palavras, a perfeição.
PAOLO CRISTOFOLINI
299 L. Strauss, «Comment lire le Traité théologico-politique de Spinoza», in id., Le testament de Spinoza.
Écrits de Leo Strauss sur Spinoza et le judaïsme, trad. francesa (do original alemão) de G. Almaleh et al.,
Paris, Cerf, 1991, p. 191-257.
300 Maimónides, Le Guide des égarés, trad. do árabe (para francês) por J. Wolf, Lagrasse, Verdier, 1979.
301 M. Bloch, Apologie pour l’histoire ou Métier d’historien, Paris, Armand Colin, 1997, p. 87-94.
Verdade e realidade
Como concebe Locke a verdade de uma proposição e mais geralmente o
acordo das ideias e das coisas? Sob a sua pena, em certos casos, como no das
proposições que enunciam as propriedades das noções matemáticas, é o acordo
entre as próprias ideias que assegura a verdade. Noutros casos, como quando as
proposições mobilizam as nossas ideias das substâncias, a verdade consiste na
conformidade do acordo enunciado pela proposição com o acordo entre as
coisas para as quais as ideias apontam. A questão da adequação das ideias, ou
seja das relações delas com as coisas, muda por inteiro consoante tenhamos de
lidar com um ou outro tipo de ideias. Ela é complicada em superior grau
quando juntamos à consideração das ideias a das palavras – objecto do livro III
do Ensaio: com a distinção entre proposição verbal e proposição mental, o erro
pode situar-se também ao nível da articulação destas.
Em regra geral, as ideias são adequadas quando representam perfeitamente
os seus modelos316. Mas, como sempre em Locke, há que desconfiar das
generalidades e considerar a questão caso a caso. As ideias simples não são
adequadas senão no sentido em que, pela sua ocorrência, indicam a existência
de qualquer coisa que as causou sem nos informar acerca da sua natureza. As
sensações são adequadas à existência – e não à essência – de poderes que as
coisas têm de as causar e que Locke, no seguimento do químico Robert Boyle,
denominou «qualidades segundas317». Quanto às ideias complexas de modo e
às ideias de relação, cujos exemplos mais imediatos são as noções matemáticas,
elas são plenamente adequadas, mas num sentido bem diferente. Como são
construídas pelo espírito, essas ideias são para si mesmas os seus próprios
modelos. Finalmente, no caso das ideias de substância, há um afastamento
muito grande entre a ideia e a coisa, embora essas mesmas ideias comportem
como que a pretensão de descrever as coisas.
Podemos justificar de duas maneiras muito diferentes as ideias de substância,
segundo as acompanhemos pela pressuposição de uma essência real, ou as
analisemos como uma colecção de ideias simples. A essência real é a
constituição interna da coisa318, mas devemos constatar com Locke que ela não
é objecto de conhecimento. Na segunda concepção, as ideias dos corpos são
compreendidas como colecções de propriedades, cuja coexistência num mesmo
sujeito constatamos. Esta concepção baseia-se na essência nominal, ou seja na
significação do termo expresso na sua definição – mas a consideração dela não
nos dá acesso à realidade da coisa e não nos permite compreender como
surgem as propriedades desta, embora elas devam ter um fundamento real.
Deve pois existir uma relação entre a essência real de uma coisa e as
propriedades que detectamos nela e que nos servem para a definir
nominalmente, mas ignoramo-la no seu detalhe. É por isso que «todas as
nossas ideias complexas das substâncias são imperfeitas e inadequadas319».
Quando tratamos dos objectos matemáticos, a essência real é por nós
conhecida imediatamente e ela é a razão da conexão natural entre as ideias. A
matemática incarna o ideal de um conhecimento adequado, mas não é o
conhecimento de outra coisa senão as construções do espírito. Quando nos
voltamos para as ideias das substâncias, não conhecemos a essência real da
coisa, da qual decorrem as propriedades e que determina as relações e os
efeitos delas320. À falta de uma «ciência perfeita», podemos no entanto ter uma
opinião provável do quadro geral da explicação. Para isso, recorremos ao
modelo corpuscular. Resta uma hipótese, mas que temos bons motivos para
adoptar, em particular porque ela se apoia comodamente numa analogia entre
as propriedades microfísicas que nos escapam e as propriedades macrofísicas
que podemos observar.
Empirismo ou racionalismo?
Devemos situar a filosofia de Locke em relação ao empirismo, sem minorar
os seus aspectos racionalistas. Isso equivale a precisar o alcance da célebre
crítica do inatismo, que é objecto do primeiro livro do Ensaio relativamente ao
projecto geral de Locke. Os platónicos de Cambridge afirmavam que todo o
conhecimento é reminiscência: o espírito, quando conhece, alimenta-se do seu
próprio fundo. Uma primeira maneira de compreender a rejeição do inatismo
consistiria em dizer que, se o conhecimento deriva da experiência sensorial, é
preciso então rejeitar o princípio das ideias inatas. Não haveria ideias inatas
pois todas as ideias seriam factícias e adventícias. Se essa hipótese,
frequentemente atribuída a Locke, fosse a boa, o Ensaio deveria então ter
começado pelo livro ii, que expõe a origem das ideias. O argumento
efectivamente adoptado por Locke consiste em dizer que não há ideias inatas
porque a teoria inatista é incoerente e inútil. A sua rejeição não assenta de
forma determinante na tese de uma origem empírica do nosso conhecimento,
que não passa de um argumento entre outros321. Consideremos a proposição «o
branco não é o negro» ou «um quadrado não é um círculo»322. A interpretação
empirista consistiria em dizer que os termos da proposição são tirados da
experiência sensorial e que a própria proposição é uma cópia de uma
experiência anterior. Para Locke, uma proposição desse tipo não é inata, não
pelas razões invocadas pelo empirismo, mas porque o nosso conhecimento
dessa proposição não assenta em conhecimentos inatos, mas simplesmente na
nossa faculdade de intuição. Da mesma maneira, a proposição «Deus existe»
não é inata, não porque a ideia de Deus derive de dados sensoriais, mas porque
essa proposição é objecto de um conhecimento demonstrativo. Sem subscrever
uma tese empirista que reduzisse o conhecimento à experiência sensível ou ao
hábito, Locke subscreve inegavelmente uma tese empirista sobre a origem das
ideias. Mas não é esta tese que motiva a sua rejeição do inatismo, antes uma
outra, racionalista, que se prende com a natureza do conhecimento: ele é
percepção (intuição, demonstração, ou conhecimento sensitivo) de uma
proposição que consiste num acordo ou desacordo entre ideias. A quantidade
de ideias simples directamente oriundas da experiência não basta, aliás, para
constituir o conhecimento; deve acrescentar-se-lhe o «exercício da faculdade
discursiva», o «uso da razão»323.
A filosofia parece haver esgotado as suas forças e haver feito tudo o que lhe era possível. Se ela
tivesse ido mais longe do que aquilo que constatamos, e se a partir de princípios incontestáveis ela
nos houvesse dado uma ética na forma de uma ciência semelhante à matemática, demonstrável em
todos os pontos, mesmo isso não teria sido eficaz para o homem na sua condição imperfeita, nem
teria constituído um remédio apropriado332.
LAURENT JAFFRO
304 O projecto de redacção começa em 1671. A primeira edição surge em 1689. Terá quatro edições
durante a vida de Locke.
312 Ibid., I, 1, 8.
313 Locke não segue Descartes e Arnauld neste ponto. Sobre a querela das ideias, ver N. Jolley, The Light
of the Soul. Theories of Ideas in Leibniz, Malebranche, and Descartes, Oxford, Clarendon Press, 1990.
324 Ibid., I, 3, 4.
325 Ibid., I, 3, 1.
326 Ibid., I, 3, 3.
332 J. Locke, The Reasonableness of Christianity, cap. XIV, ed. J. C. Higgins-Biddle, Oxford, Clarendon
Press, 1999, p. 157.
Nicolau Malebranche
333 De la recherche de la vérité, VI, segunda parte, cap. 9, OEuvres complètes, Paris, Vrin, «Bibliothéque
des textes philosophiques», 22 vols. surgidos desde 1958, vol. 2, p. 449; ed. J.-C. Bardour et al., Paris, Vrin,
2006, vol. 2, p. 402.
O que é um homem? Direi eu que é um animal racional? Decerto que não, pois seguidamente
seria preciso procurar o que é um animal, e o que é ser racional, e assim a partir de uma única
pergunta cairíamos insensivelmente numa infinidade de outras mais difíceis e embaraçosas339.
Da consciência ao desejo
O dualismo cartesiano da alma e do corpo faz da paixão (que se deve
entender no sentido lato de afecto, polarizado em prazer e dor) um objecto
teórico eminentemente original. Signos da minha corporeidade, as paixões nem
por isso deixam de ser sentidas na e pela minha alma apenas, pelo que são
espirituais nesse sentido. Não se deduzirá pois a paixão nem das leis da
mecânica, que regem integralmente o corpo, nem das propriedades de uma
alma que vivesse, sem a menor paixão, uma vida plena e inteira. Deste modo,
por mais paradoxal que isso possa parecer, o dualismo cartesiano, logo que sai
das suas paragens metafísicas e físicas para finalmente explorar o campo da
antropologia, faz da paixão o centro da sua definição de homem342. A união da
alma e do corpo, que se efectua na paixão, resiste à captação abstracta pelo
entendimento, e mesmo à apreensão imaginativa. Ela é mais sentida do que
pensada:
As coisas que pertencem à união da alma e do corpo não se conhecem senão obscuramente pelo
entendimento apenas, ou mesmo pelo entendimento auxiliado pela imaginação; mas conhecem-se
muito claramente pelos sentidos343.
Descartes opera assim uma revolução filosófica que faz do homem um ser de
paixão, definido pela sua passividade, pela sua relação com uma exterioridade
que se oferece mais na confusão do vivido do que na distinção do concebido. A
promoção da consciência faz do homem enquanto homem um ser de
sentimento.
Privado de toda a validade no que concerne o conhecimento metafísico e
físico, o sentimento rege integralmente o domínio da vida. A percepção
sensível não nos dá acesso ao real, sendo as representações que temos das
coisas determinadas não pelo que elas são mas pelo uso que delas temos. É o
útil e o nocivo, não o verdadeiro e o falso, que desenham e coloram as coisas,
tornadas objectos. A percepção sensível está submetida à lei do prazer e da dor,
e de todas as paixões que dela decorrem. A vida mantém-se, prossegue e
reforça-se sem que para isso seja necessário um saber racional, com a natureza
regulando o composto de alma e de corpo que nós somos. É por isso que as
paixões «são todas boas pela sua natureza344». A percepção sensível enquanto é
sentida, o prazer, a dor, as paixões preenchem uma função vital; são elementos
do vivente humano, que cabem à organização material do corpo na medida em
que esta deve absolutamente dispor um espírito que lhe é ontologicamente
heterogéneo a reagir em vista da preocupação que ele reclama: «A utilidade de
todas as paixões não consiste senão em que elas fortificam e fazem durar na
alma pensamentos, os quais é bom que ela conserve, e que, sem isso, poderiam
facilmente ser apagados345.» Pelas paixões, e a ordem inteira da sensibilidade,
o corpo e a alma pertencem-se mutuamente. Ora essa dupla pertença da
afectividade ao corpo e à alma não oferece solução antropológica ao problema
do dualismo metafísico senão reconduzindo o dualismo ao próprio interior do
cogito. É que na realidade o dualismo metafísico da alma e do corpo envolve a
desvalorização do corpo. Não foi somente em Berkeley que o corpo, no sentido
de uma realidade material qualquer (esta mesa diante de mim, mas também a
minha mão), desapareceu, foi em toda a filosofia clássica, incluindo a
materialista. Se com efeito entendermos pelo termo pensamento «tudo o que
está de tal modo em nós que dele somos imediatamente conscientes346», então
a existência dos corpos escapa inevitavelmente a toda a apreensão intelectual.
Segundo Descartes, não temos mais do que uma «grande inclinação para
crer347» que as nossas ideias de corpo venham de corpos que existam realmente
fora do espírito, e não é preciso menos do que a veracidade divina para fundar
a nossa confiança em tal pretensão. Malebranche radicaliza essa tese: o que a
sensibilidade me dá não é o corpo, mas uma simples modificação da minha
alma. Sentimos decerto o corpo, mas, justamente, o corpo sentido não é o corpo
real: «Nem o nosso corpo nem os das cercanias podem ser objecto imediato do
nosso espírito; não podemos aprender pelo nosso cérebro que ele exista
actualmente, e muito menos que haja corpos que nos cerquem348.» A existência
não é de todo vista, ela é apenas experienciada. Há portanto uma cisão radical
entre a ordem das ideias e a do sentimento. Essa pregnância da representação
opera igualmente entre os empiristas, e Locke terá o cuidado de fazer do nosso
conhecimento da existência das coisas materiais uma espécie à parte de
conhecimento, diferente daquela pela qual tanto temos a intuição da nossa
existência como da inferência que nos permite descobrir a de Deus349. Pode
portanto dizer-se que há um horizonte berkeleyano em todo o pensamento
moderno, até Hume e Kant. Certamente que, à parte Berkeley, para o qual
«esse est percipi350», todos afirmam que o corpo, na sua materialidade, existe.
Mas na realidade ele desapareceu efectivamente no plano teórico, uma vez que
não é captado na sua essência senão por representação, e que, quanto à
existência, esta é estabelecida pelo sentimento cego constitutivo do vivido. O
corpo não é portanto objecto de ciência senão na medida em que é
matematizado, ou seja determinado pela ideia da grandeza e das suas relações.
Quanto à alma, ela ordena o seu pensamento para a racionalidade nos domínios
físico e metafísico, e para o sentimento na esfera da vida. É de facto no interior
do ego que se joga a tensão entre evidência racional e evidência sentida. Ora,
se a alma pode sentir-se dona de si mesma no exercício da razão, não é esse o
caso na vivência do sentimento. Apesar da infinita diversidade dos seus
objectos, a razão procede por ideias claras e distintas, ao passo que o
sentimento releva do instinto, que o torna por natureza refractário à apreensão
intelectual, pelo que a consciência, como abrange toda a realidade, toma a seu
cargo a parte de opacidade que, outrora, relevava fosse da corporeidade animal,
fosse da parte inferior da alma.
Doravante, a consciência, por ser una, indivisível, integralmente espiritual,
recolhe em si todo o peso do ser, ainda que, princípio fundador, ela se torne
contudo sofrivelmente obscura, visto não poder justificar os seus conteúdos,
sobre os quais constata que lhe chegam de alhures ao mesmo tempo que ignora
o que eles poderiam ser fora dela mesma. Há aí um nó que seria preciso desatar
– ou cortar. O preço a pagar para fundar toda a ontologia na consciência está à
medida do paradoxo, uma vez que se trata de fundar a nossa relação com o ser
numa instância que escapa, ela própria, à lógica do ser. Com efeito, toda a
filosofia que faz da consciência a instância pela qual existe o ser se vê obrigada
a cindir o conhecimento em dois pólos: o pólo objecto (isto é uma mesa) e o
pólo sujeito (eu percebo a mesa, que não é mais do que a minha representação).
Ora o pólo sujeito é por natureza inobjectivável. Pois se eu abandono o objecto
para fazer da minha consciência que o vê o novo objecto do meu olhar, a cisão
reproduz-se: há a instância que observa e a instância observada. A consciência
jamais pode portanto captar-se a si mesma directamente; pior, nessa duplicação
reflexiva, ela perde de vista o objecto – doravante longe do olhar, focalizado no
trabalho da consciência –, sem com isso ganhar o novo objecto que deveria ser
para si mesma. A estrutura sujeito/objecto torna opaco o sujeito ao tirar
realidade ao objecto. O conhecimento acha-se assim inteiramente suspenso de
uma instância que só pode dar luz permanecendo ela própria na obscuridade.
O gesto pelo qual a consciência se torna princípio fá-la sair da ordem do
conhecimento. Por isso Descartes legara como tarefa aos seus sucessores
produzirem uma teoria da consciência que tivesse um conteúdo doutrinal, ou
pelo menos gnoseológico. Mas isso implicava que a consciência fosse
reintroduzida na natureza. A idade clássica não sairá dessa tensão, que a
dinamiza em profundidade. Ou então basear toda a nossa relação com o ser e a
razão – ou seja, também com Deus – na consciência, deixando-a pelo seu lado
fora do campo do conhecimento, ou então investir a consciência com o
conhecimento e, partindo do princípio de que o estava, constituí-la como
objecto. De facto, independentemente das intenções de uns e de outros, é esta
segunda alternativa que será escolhida pela maioria dos grandes filósofos. O
cogito havia dado a Descartes aquela evidência superior a partir da qual ele
formara a «regra geral351» para julgar tudo, uma vez que, ao reflectir sobre essa
evidência, ele não achara nada nela além da clareza e da distinção que o
haviam constrangido a dar-lhe o seu assentimento. Ora esses mesmos critérios
viram-se agora contra o cogito para mostrar que ele não é claro. Tal ataque,
dirigido de resto não tanto à consciência como à absolutização desta, assume
diversas formas no mundo filosófico após Descartes. É assim que Espinosa
naturaliza integralmente o homem ao fazer dele um ser cuja essência, tal como
a de todo o ser, é o esforço para perseverar no seu ser352. Quanto à consciência,
pelo simples facto da reinscrição do homem no campo da natureza, ela torna-se
mais um princípio de erro do que de saber. É com efeito por os homens terem
consciência do seu desejo embora ignorem as causas reais que os levam a
desejar que se crêem livres:
Os seres humanos têm a opinião de que são livres por estarem cônscios das suas volições e das
suas apetências, e nem por sonhos lhes passa pela cabeça a ideia das causas que os dispõem a
apetecer e a querer, visto que as ignoram353.
A questão de saber, entre os objectos, quais deles são causas e quais são efeitos, não poderia
apresentar o menor interesse se o conjunto das causas e dos efeitos nos fosse indiferente. Quando os
próprios objectos não nos afectam, eles jamais podem ganhar influência pela sua conexão; e é
evidente que, como a razão não é mais do que a descoberta dessa conexão, não pode ser por meio
dela que os objectos são susceptíveis de nos afectar367.
Aquilo a que chamamos razão prática não é na realidade mais do que paixão
calma.
O mundo que a filosofia encontra em meados do século XVIII é um mundo
invertido: motivando a imaginação e a razão, o afecto determina a figura que o
mundo assume: o real fez-se meio. Vemo-lo muito claramente pela maneira
como o laço social é teorizado. A partir de Descartes, a paixão está na ordem
do dia: ela exprime mais do que perturba a natureza. As paixões já não são
apenas o lugar do afrontamento dos homens, mas também o da sua
socialização. Depois de Descartes, toda a ordem da sociedade se vê
progressivamente pensada segundo o modelo da instituição de natureza:
primeiramente com Malebranche, as relações afectivas familiares prolongam as
relações naturais que Descartes estabelecera entre o corpo e a alma371. Bayle
opera seguidamente uma verdadeira revolução teórica ao integrar no jogo da
natureza os preconceitos e as crenças mais irracionais372; é o conjunto do
mundo dos erros e das paixões que se acha explicado pela sua função de
conservação da sociedade. O ciúme, a vaidade, a necedade são necessários à
manutenção das sociedades humanas. Entre os jansenistas, o amor-próprio
fabrica uma sociedade comparável nos seus efeitos àquela que poderia fazer a
caridade se esta não desfalecesse373. O automatismo passional justifica a
permanência social. Ora, enquanto a naturalização do espírito conquista o
campo das relações sociais, a vontade emancipa-se de todo o fundamento na
natureza. A tensão, interna à consciência, entre actividade e passividade,
focaliza-se numa tensão entre a actividade passionalmente motivada e o acto do
querer.
Ao mesmo tempo que vê nascer o projecto de uma ciência da natureza
humana, ciência que se quer a si mesma naturalista nas condições
anteriormente vistas, a época clássica faz triunfar a vontade no campo moral e
político. Duas tradições se confrontam aqui, em função do papel que atribuem
ao querer. Em Hobbes, Espinosa, Locke e Hume, a vontade não é mais do que
o outro nome do desejo. Em Descartes, Malebranche, Rousseau e Kant, mesmo
quando que integraram uma naturalização dos afectos, tudo é deixado à
vontade livre. De resto, independentemente do estatuto metafísico atribuído à
vontade, o pensamento político constrói-se em torno do conceito de vontade, e
por conseguinte de obrigação374.
No mundo antigo, a filosofia política organizava-se em torno do problema do
saber específico requerido pela administração do bem público; no mundo
moderno, a filosofia política subordina o estatuto do saber político ao da
vontade. Esta mudança radical procede no essencial da herança cristã, que
havia constituído os indivíduos em pessoas, iguais em valor, e definidos como
livres pela sua vontade. Por outro lado, a viragem nominalista do direito375
fizera da vontade a instância suprema do espírito. Enfim, era inevitável que a
subordinação da razão à consciência se fizesse acompanhar por uma vitória da
vontade, que iremos encontrar em Rousseau e em Kant. Enquanto a razão se
mostrasse sob as feições tradicionais da própria sabedoria do mundo, a vontade
não podia de modo algum deixar de lhe estar subordinada. Mas logo que a
razão se torna uma maneira de pensar, ela própria compreendida no interior de
um quadro teórico geral da representação, a vontade emancipa-se e torna-se a
instância da autonomia, pois ela é sentida como o único lugar da actividade
pura. É pela vontade, não pelo entendimento, que nós somos deuses. A posição
de Rousseau é a esse respeito reveladora, pois se, quanto ao entendimento, os
homens não diferem dos animais senão em grau, já a vontade é própria deles:
Não é […] tanto o entendimento que faz entre os animais a distinção específica do homem
quanto à sua qualidade de agente livre. A natureza comanda todo o animal e a besta obedece. O
homem experimenta a mesma impressão, mas reconhece-se livre de aquiescer ou de resistir; e é
sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade da sua alma: pois a física
explica de alguma maneira o mecanismo dos sentidos e a formulação das ideias; mas na potência de
querer ou antes de escolher, e no sentimento dessa potência, não se encontram senão actos
puramente espirituais, nenhum dos quais se explica pelas leis da mecânica376.
338 M. de Montaigne, Essais, ed. A. Tournon, Paris, Imprimerie nationale, 1998 e 1999, 3 vols., III, 13-
432.
339 R. Descartes, Méditations métaphysiques, II, Œuvres complètes, ed. de Ch. Adam e P. Tannery, Paris,
CNRS/Vrin, 1996 (doravante assinalado como AT, seguido do volume e da página), AT-IX-20.
340 Sobre a articulação do antigo e do moderno, veja-se a exaltante obra de R. Brague, La Sagesse du
monde. Histoire de l’expérience humaine de l’univers, Paris, Fayard, 1999.
342 Veja-se D. Kambouchner, L’Homme des passions, Paris, Albin Michel, 1995.
346 Texto modificado: a versão francesa propõe «cognoscentes» no lugar de conscii (Meditações, op. cit.,
AT-IX-124). Já para Montaigne, «mesmo as coisas presentes, só as temos por fantasia [representação]»
(Ensaios, op. cit., III, 9-326).
347 Meditações, op. cit., AT-IX-63.
348 N. Malebranche, VIe Éclaircissement, Éclaircissements sur la Recherche de la vérité, ed. J.-C. Bardout,
Paris, Vrin, 2006, p. 53.
349 J. Locke, Ensaio, 4, 11. Se não há nenhuma ligação necessária entre uma existência real e a ideia que
dela temos (§1), resta que não podemos impedir-nos de ser afectados pela visão do sol, ao passo que
podemos expulsar do espírito a ideia que dela temos (§5). Além disso, a sensação efectiva é acompanhada
de prazer ou de dor, o que já não é o caso da sua ideia (§6). Temos de facto fundamento para confiar no
nosso sentimento de que os corpos existem realmente fora da representação.
352 B. Espinosa, Ética, III, 7: «O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar no seu ser não é
mais do que a essência actual da coisa».
354 Veja-se o seu prefácio aos Novos Ensaios: «Essas percepções insensíveis […] constituem o mesmo
indivíduo que é caracterizado pelos traços que elas conservam dos estados precedentes desse indivíduo,
fazendo a conexão com o presente estado dele.»
358 Locke pretende examinar as faculdades do espírito «de uma maneira clara e histórica» (Ensaio, 1,
Antelóquio, § 2), ou seja fazer uma história natural do espírito.
361 Isto não é válido para Malebranche, que só reabilita o movimento indefinido do desejo para ver nele o
signo de que o espírito, sempre insatisfeito, busca o bem em geral, ou seja Deus. Mas ele é o último grande
pensador da aspiração ao Bem e da graça.
363 Ibid.
369 Ibid.
370 Ibid.
372 Nouvelles lettres critiques, Œuvres Diverses, II, 1727, nomeadamente Cartas 15 a 17.
373 P. Nicole, «De la charité et de l’amour-propre», Essais de morale. Choix d’essais, ed. L. Thirouin,
Paris, PUF, 1999.
374 Sobre este ponto veja-se o estudo decisivo de B. Bernardi, Le Principe d’obligation, Paris,
Vrin/EHESS, 2007.
375 Sobre este ponto veja-se a obra clássica de M. Villey, La Formation de la pensée juridique moderne,
Paris, PUF, 2003.
376 J.-J. Rousseau, Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens.
377 E. Kant, Crítica da Razão Prática, exame crítico da analítica da razão pura prática (nomeadamente AK
V-94 e segs.)
378 R. Popkin faz da rejeição por Lutero da autoridade papal em matéria de fé o momento inaugural da
modernidade filosófica. Decerto que a consciência luterana não é a consciência de Rousseau nem de Kant,
pois ela não é critério senão quando é iluminada por Deus. Resta que, ao negar a autoridade do papa, Lutero
colocou a questão, que se haveria de estender a todos os domínios, do critério de verdade, forçando os
partidários da tradição a argumentarem a favor da tradição, ou seja a justificarem na razão a preeminência
da tradição, e portanto a saírem da esfera da tradição. Veja-se The History of Scepticism from Savonarola to
Bayle, Oxford, Oxford University Press, 2003.
379 Veja-se B. Latour, Nous n’avons jamais été modernes. Essai d’anthropologie symétrique, Paris, La
Découverte, 1991.
Gottfried Wilhelm Leibniz
Metafísica e substância
A articulação entre metafísica, lógica, física, teologia e moral está presente
em toda a parte na sua obra, segundo modalidades em ruptura com a
epistemologia contemporânea. Leibniz não separa a metafísica dos restantes
domínios do saber e, mais do que isso, sendo Deus o princípio das coisas e dos
conhecimentos, metafísica e lógica não só se confundem entre si, mas também
se confundem com a teologia. Neste sentido, há nele uma jamais desmentida
conformidade da fé e da razão, ao encontro de alguns dos seus próprios
contemporâneos, como Descartes. As ciências particulares não são autónomas
em relação à teoria do ser e, de um modo mais profundo, o próprio método do
saber visa pensar essa interdependência: o mundo, objecto das ciências, deve
exprimir a realidade metafísica e teológica. Há uma constante preocupação de
unificação daquilo que parece díspar, e não há tema do conhecimento que se
ache desligado do conjunto do que é e do que ele deve conhecer. A
consequência de tudo isto é que existe efectivamente em Leibniz um
«sistema», a um tempo enciclopédia de todos os saberes possíveis e totalidade
fechada por um mesmo método, que é também um mesmo projecto, o da glória
de Deus manifestada em todas as coisas. Num sistema deste tipo, foi
frequentemente deduzido que o seu primado era na verdade a arquitectura,
decerto brilhante, em detrimento da sua evolução interna.
A imagem do sistema monadológico, onde cada parte remete para o todo e
vice-versa, é porém um ecrã para a captação do próprio sistema. Uma vez
constatado que Leibniz se repete frequentemente, o que é certo, deduz-se com
demasiada rapidez que ele diz sempre a mesma coisa, ao correr do tempo, ao
ponto de a sua própria escrita ser monadológica, tal como o seu sistema. A
Monadologia seria assim a forma e o conteúdo desse sistema de pensamento.
Ora, importa corrigir esta visão sistemática e arquitectónica percebendo a
evolução histórica interna do corpus, única maneira de respeitar o teor
conceptual deste. O primeiro paradoxo, e não dos menores, é que o termo
«monadologia» é muito pouco utilizado pelo próprio Leibniz, e não teve para
ele a função de resumir ou de sistematizar a sua metafísica: foi inventado pelo
editor Heinrich Köller em 1720, ao publicar a tradução alemã do opúsculo
muito classicamente intitulado Esclarecimento sobre as Mónadas. Neste
sentido, a monadologia não é um conjunto real, constituído por mónadas
numerosas e exteriores umas às outras; o termo só designa um discurso sobre
as mónadas381. Além disso, esse termo só interveio tardiamente na obra do
filósofo, a partir de 1696.
A cronologia dos textos acha-se pois recomposta, ou antes aprofundada. Um
primeiro conjunto, constituído nomeadamente pelo Discurso de Metafísica de
1686 e pela correspondência com Arnauld que a ele se segue, permite
estabelecer a «noção completa», primeira formulação conseguida da entidade
ontológica fundamental. Um segundo conjunto, que vê surgir o termo
«mónada», elabora-se graças às renovadas reflexões de Leibniz sobre a noção
de força física, ou seja é exactamente contemporâneo da constituição da sua
«dinâmica». Este segundo momento compreende o Sistema Novo da Natureza
e da Comunicação das Substâncias (1695), onde a citação do termo «mónada»
continua a ser alusiva, o Da Produção Original das Coisas Tomada na Sua
Raiz, o Ensaio de Dinâmica e o Da Natureza em si Mesma (1698). Enfim,
torna-se possível falar de monadologia na Monadologia de 1714, nos
Princípios da Natureza e da Graça de 1715-1716, na Correspondência com
Clarke, mas também na Teodiceia, surgida em 1710 e único livro de filosofia
que Leibniz publicou durante a sua vida.
Qual é o sentido desta evolução? Uma mesma ambição habita estes textos:
explicar o sistema do universo propondo uma definição da substância, evitando
sempre os ardis do atomismo e do mecanismo. Trata-se efectivamente de uma
ambição metafísica, no sentido que Leibniz atribui a esse termo: discurso sobre
o que é, a metafísica é também lógica, lugar da invenção regulada das nossas
representações e das suas regras de demonstração, e não se compreende sem a
referência a Deus, ser que permite todos os outros seres. O princípio de ordem
que rege o universo é assim válido em todos os seus aspectos: «Deus não faz
nada fora de ordem» (Discurso de Metafísica, § 13); e segundo a bela imagem
desse mesmo parágrafo «não há por exemplo rosto algum cujo contorno não
faça parte de uma linha geométrica e não possa ser desenhado num traço só por
um certo movimento regulado». No entanto, a ordem do mundo não se satisfaz
com a mera explicação mecanista saída de Descartes (Discurso de Metafísica,
§ 17). Leibniz reintroduz portanto o que foi banido: «a forma substancial»,
saída da escolástica, mas sobretudo de uma necessidade oriunda das suas
investigações em mecânica. A forma substancial quer pensar a unidade do que
é. Ora a mera matéria não pode oferecer a resposta, sendo uma colecção de
partes, uma soma de átomos que não chega a dar a ideia de um todo. É
necessário fazer intervir uma forma que reúna o múltiplo numa unidade que o
ultrapasse. Ele explicá-lo-á ao retomar a sua própria iniciativa: «Apercebi-me
de que a mera consideração de uma massa extensa não bastaria, e de que seria
preciso empregar ainda a noção de força, que é muito inteligível, ainda que
provenha do domínio da Metafísica382.»
Ao reintroduzir a forma substancial, Leibniz não se contenta em reactivar um
conceito desvalorizado. Ele autoriza-se a reconsiderar o conjunto da física
cartesiana e nomeadamente as leis do movimento desta, mas também as da
causalidade. A partir dos seus primeiros trabalhos de filosofia, ele interessa-se
de muito perto pela física. Em 1678, tirando as consequências da sua estadia
em Paris, onde pôde tomar conhecimento das teses mais contemporâneas,
chega a corrigir Descartes ao mostrar que a lei da conservação da força é o
produto da massa do corpo pelo quadrado da velocidade (mv2). Não sendo a
força uma mera questão de deslocamento, portanto de substância extensa
geométrica, como afirmava Descartes, Leibniz confessa retomar uma dimensão
metafísica sem que isso signifique no entanto reintroduzir o incompreensível.
Pelo contrário, ele estima tornar acessíveis as relações entre o corpo e a alma,
onde Descartes criara entre ambos uma ruptura impossível de superar. O
conceito que então permite religar o que parece não poder ser religado é o de
«expressão». Contrariamente ao que pensava Descartes, a causalidade é
metafísica, ideal e não material. A unidade do díspar resolve-se numa relação
fundada por todos os elementos das coisas; Leibniz manterá durante toda a vida
a seguinte definição: «uma coisa exprime uma outra quando há relação
constante e regulada entre o que pode dizer-se de uma e de outra. É assim que
uma projecção de perspectiva exprime o seu geometral» (XXI carta a Arnauld
de 9 de Outubro de 1687). O conceito de expressão define pois a relação da
ideia e da palavra, tal como a da alma e do corpo. Trata-se de uma analogia
estrutural cujo fundamento está em Deus, de modo algum no espírito humano,
sendo ele próprio uma expressão do universo ordenado. A física deve ter a
consciência de que não descreve senão o mundo dos fenómenos, o mundo
aparente, e não a causalidade ideal das substâncias, o que Descartes não teria
compreendido. E se Leibniz está convencido de haver conseguido oferecer leis
justas em física, o que é certo para a conservação da força, é porque sabe que
seria preciso admitir essa dimensão metafísica.
Todavia, o Discurso de Metafísica usa reformas não só físicas mas também
lógicas para pensar a teoria da substância. Não basta dispor da forma
substancial e da expressão, é preciso ainda inquirir em que é que uma
substância se reconhece, enquanto tal, e semelhante a nenhuma outra.
Retomando a ideia antiga de que uma substância inclui os seus predicados,
Leibniz concebe a derradeira entidade metafísica como uma «noção completa».
O § 8 oferece dela uma imagem de grande impacto:
Assim a qualidade de rei que pertence a Alexandre, o Grande, fazendo abstracção do sujeito, não
está suficientemente determinada a um indivíduo e não encerra de todo as outras qualidades do
mesmo sujeito nem tudo o que a noção de príncipe compreende, ao passo que vendo Deus a noção
individual ou hecceidade de Alexandre, vê nela ao mesmo tempo o fundamento e a razão de todos
os predicados que verdadeiramente se podem dizer dele, como por exemplo que ele venceria Dário
e Poro, até conhecer nela a priori (e não por experiência) se ele morreu de morte natural ou por
veneno, o que nós só podemos saber pela história. Por isso, quando consideramos efectivamente a
conexão das coisas, podemos dizer que há em todo o tempo na alma de Alexandre restos de tudo o
que lhe sucedeu e as marcas de tudo o que lhe sucederá, e mesmo vestígios de tudo o que se passa
no universo, ainda que só a Deus caiba conhecê-las todas.
Pela leitura deste extracto, compreende-se bem que a noção completa é mais
do que uma simples soma de predicados: ela responde a uma ordem, a uma
razão, que ultrapassa o que dela possamos conceber, e não está completa senão
aos olhos de Deus, que lhe funda a coerência. A história integra a classe de
coisas que apreendemos, a partir da nossa finitude, ao passo que Deus pode
apreender num só acto tudo o que é em Alexandre.
Se a definição da expressão perdura ao longo de todo o corpus leibniziano, a
da substância, essa, modifica-se. A passagem da noção completa à da mónada
efectua-se graças a novas transformações no seio da teoria física, que permitem
conceber um dinamismo interno do elemento metafísico, uma clara tendência
para a expressão que o corpus leibniziano não entrega de imediato. É assim
que, dez anos após o Discurso, em 1696, aparece o termo «mónada», veiculado
por um neologismo importante: o de «dinâmica». A consequência muito visível
dessa evolução manifesta-se na impossibilidade de ligar um nome próprio a
uma mónada: não há mónada de Alexandre sob a pena de Leibniz. Como
explicá-lo? Ganhando em maturidade, o sistema leibniziano depura-se de uma
certa maneira, encaminha-se para uma cada vez maior simplicidade e unidade,
ou para uma cada vez maior ordem, libertando-se da consideração do
individual.
A dinâmica resulta, entre outros, do importante trabalho de reflexão
efectuado aquando da sua viagem a Itália nos anos 1689-1690, de que um
primeiro manifesto será o texto de 1694: Sobre a Reforma da Filosofia
Primeira e sobre a Noção de Substância. Mas é no Sistema Novo da Natureza e
da Comunicação das Substâncias, de 1695, que se apaga toda a noção em
proveito de um «ponto metafísico». Este último é doravante dotado de uma
força primitiva, de uma enteléquia, vocabulário antigo ainda aí reapropriado
por Leibniz, significando aqui uma forma substancial activa. Este ponto
metafísico novamente definido exprime-se num ponto matemático,
correspondendo portanto a uma posição definida na ordem do mundo. Tudo
está no devido lugar para dar sentido ao termo de mónada. Os «mecanistas»,
como diz Leibniz, não têm uma ideia suficientemente vasta da «majestade da
natureza», e ignoram assim que ela releva de uma espécie de atemporalidade da
qual não captamos senão as formas empíricas da morte e do nascimento. As
leis físicas de conservação do movimento e do choque mostram finalmente que
cada corpo reage a um outro pela presença nele de um dinamismo, de uma
«elasticidade» que o faz ressaltar segundo uma direcção que lhe é própria.
Nada se perde nem nada se cria, se pudermos parafrasear essa célebre fórmula,
tudo se transforma; o universo é constituído por uma energia vital, orgânica,
que tem o seu fundamento em Deus. A «máquina natural» permanece aquilo
que é, mas dobra-se e desdobra-se, instaurando a imensa variedade dos seus
possíveis. O sentido metafísico das leis físicas é então consideravelmente
alargado, vertendo-se numa redefinição do orgânico e na recusa dos «animais
máquinas».
O universo caracteriza-se por uma ordem fabulosamente enriquecida em
relação aos textos anteriores. A monadologia desmultiplica-o, articulando os
seus diferentes níveis como melhor lhes convier, organizando ao mais alto grau
cada elemento: «assim nada há de inculto, de estéril, de morte no universo,
nenhum caos, nenhuma confusão senão na aparência; mais ou menos como
pareceria um lago em que à distância se visse um movimento confuso e um
formigar, por assim dizer, dos peixes do lago, sem discernir os próprios peixes»
(§ 69). Essa ordem magnífica releva do que Leibniz chama a «harmonia pré-
estabelecida» (§ 78), noção característica do seu sistema e que vem de algum
modo aprofundar a de «harmonia universal», presente muito anteriormente. A
mónada unifica em definitivo aquilo que dividia o campo da metafísica: as
relações da alma e do corpo, de cada parte com o todo e reciprocamente. Deve
no entanto notar-se que essa harmonia mantém uma hierarquia estrita, onde
Deus domina, e acerca da qual testemunham as referências finais do texto a
Deus como Arquitecto e como Monarca.
Finalmente, como sublinham com radicalismo os Princípios da Natureza e
da Graça, e como a Monadologia vem ilustrar, Leibniz sente-se apto a
responder à derradeira pergunta: «Porque há qualquer coisa em vez de nada?»
Torna-se possível conceber uma ordem geral, onde ordem e hierarquia
pertencem à constituição interna de cada mónada, estabelecida em Deus. O
individual supõe uma resolução até ao infinito, um «detalhe sem termos». A
razão de tudo isso deverá estar fora da série do detalhe (Monadologia, § 37): a
sua necessidade está em Deus. O § 403 da Teodiceia poderá assim dizer que
não sabemos mais nada acerca dessa razão suprema a não ser que ela está em
Deus; nem sempre sabemos e não precisamos de saber como tudo se faz.
Liberdade e determinismo
Convém não esquecer que se toda a natureza é um sistema, uma harmonia
pré-estabelecida, isso também é válido do ponto de vista moral. Um universo
bem «ligado» deve ser moral. A Monadologia também visa pois provar que o
nosso mundo é o melhor dos mundos possíveis graças a Deus e convidar o
homem a realizar-se plenamente nele. Ora a hipótese da harmonia pré-
estabelecida provoca o espanto, ou mesmo a incredulidade: como pode o mal
ser possível se Deus faz sempre pelo melhor? Como conciliar a imperfeição
que o mal representa com a perfeição de Deus? Este problema é um
labirinto383, no sentido em que não parece permitir senão duas soluções
igualmente insatisfatórias: ou que o homem está condenado a fazer o mal, caso
em que ele não é livre, ou que Deus não é Deus, pois não é omnipotente. Se
relermos a passagem acima indicada relativa a Alexandre, também duvidamos
de que o objectivo resida na necessidade de saber se ele é ou não livre de
vencer Dário e Poro, embora Deus o possa saber em toda a eternidade. Mas
isso não é tudo: um homem livre é um homem responsável, sendo preciso pois
poder imputar-lhe os seus actos a fim de que responda por eles. Leibniz tenta
resolver o problema distinguindo três níveis diferentes de análise que se
resumem numa fórmula a ser esclarecida: Deus inclina sem necessitar.
Deus quer o melhor e não quer nada arbitrariamente, só o quer
racionalmente. A sua perfeição é infinita, o que garante que a sua vontade se
dirige para o bem, sendo o mal uma imperfeição. A Monadologia conclui-se no
§ 87 com a imagem de um Deus arquitecto e monarca. O fim do texto concerne
a finalidade moral do mundo, reinando o monarca sobre uma cidade dos
espíritos que o arquitecto construiu segundo uma física óptima, assegurando a
harmonia entre o reino da natureza e o da graça: «se pudéssemos entender
suficientemente a ordem do universo, acharíamos que ele ultrapassa todas as
aspirações mais sábias, e que é impossível torná-lo melhor do que é»
(Monadologia, § 90).
Se a ordem do mundo é perfeita a esse ponto, como se explica que o mal
sobrevenha? É preciso distinguir entre o que releva da vontade dita
«antecedente» e o que releva da vontade dita «consequente». Se Deus quer a
priori o melhor, resta que a criação do mundo induz uma escolha entre
compossíveis. Esse limite nas combinações, mesmo levado ao seu máximo de
riqueza, implica assim uma forma de privação, de imperfeição. Há portanto
uma causa ideal do mal (Teodiceia, § 20), inseparável do próprio acto de
criação. Leibniz ousa aliás uma interessante comparação entre a inércia física
da matéria e a imperfeição humana no § 30: em ambos os casos, há um defeito
de perfeição, não querido por Deus mas inerente ao que ele criou. Em suma,
como diz Leibniz no § 230, o mal é uma condição sine qua non da existência
do mundo, sem ele o nosso mundo não seria o nosso mundo, mas ele não é um
decreto de Deus, não foi querido mas permitido. Isso implica que tudo esteja já
escrito, como se tivéssemos de seguir a ordem das coisas, sem nada tentarmos?
Ainda aí, o texto de Leibniz é delicado: há que distinguir entre a «necessidade
absoluta» ou metafísica e a «necessidade moral» ou ainda a contingência. Se a
contingência é sempre um defeito na captação da determinação de Deus, ela é
também o que oferece um espaço à actividade humana. Os «futuros
contingentes», ou seja a questão de saber se os eventos futuros se produzirão
ou não, recebe aqui uma resposta subtil: é certo que o futuro será, mas tal
determinação não implica a fatalidade. O contingente não é sem razão, «uma
vez que nada sucede sem que para ele haja uma causa ou uma razão
determinante, isto é qualquer coisa que possa servir para lhe dar razão a priori,
porque é isso mais existente do que não existente, e porque é isso mais assim
do que de maneira diversa» (Teodiceia, § 44). Mas se há uma razão, o
contingente não se explica para nós senão em retrospectiva, uma vez que se
tornou efectivo.
Se a necessidade não reina na ordem das acções humanas, em que sentido é o
homem livre e como opera ele uma escolha da qual é responsável? A raiz da
liberdade está na infinitude da criação, ou ainda na continuidade, que não
cessamos de reencontrar, entre a ordem do mundo e a transcendência. Temos
em nós uma marca daquele que nos criou à sua imagem, embora não possamos
evidentemente igualá-lo. Essa marca é simultaneamente um incitamento ao
bem e um dever de o fazer, é nisso que reside a nossa salvação. É importante
perceber que jamais a liberdade estará no excesso, na ruptura com a ordem do
mundo, pois isso é válido apenas para os milagres, que só Deus pode permitir-
se. Ela reside na apreensão das leis metafísicas e físicas, à medida da nossa
imperfeição; ela não está portanto em mais lado algum a não ser nesse universo
bem «ligado» que é gabado por Leibniz. Se Deus sabe tudo e vê tudo, nós
estamos reduzidos a não apreender as coisas senão a partir dos efeitos e não das
causas. Leibniz deduz daí que temos duas vias para nos determinarmos: a
experiência e a razão, sendo esta última evidentemente a que mais importa. O
conhecimento de si, o do princípio de razão ou do mundo como ordem,
cristalizam uma única e mesma iniciativa e não têm mais do que um único e
mesmo objecto. Mas só Deus é capaz de seguir sem falha o seu entendimento,
o homem, pelo contrário, está sujeito a ideias inadequadas que provêm de uma
infinidade de percepções confusamente sentidas. O juízo prático é portanto
atravessado de um lado a outro por inclinações insensíveis (Teodiceia, § 310), o
que explica as suas errâncias. A racionalidade da escolha não é garantida senão
na conformidade à ordem geral e portanto às aspirações de Deus. É preciso
reencontrar em si essa inclinação que Deus impulsiona, mas que não pode ser
uma necessidade «fatal». A liberdade caracteriza-se assim pela inteligência
daquele que age, capaz de conhecer distintamente, pela espontaneidade, que
releva dessa força interna que Deus põe em cada mónada, e pela contingência,
a saber um motivo que incline sem necessidade (Teodiceia, § 288).
Leibniz propõe assim uma pragmática da escolha, a par de uma
racionalização da escolha melhor. Na articulação entre escolha, saber e acção,
sugere uma arte da «conjectura» que releva de uma teoria da prudência – tal
arte já se encontrava nos seus primeiros projectos, em que Leibniz buscava
uma arte da invenção regulada nos nossos conhecimentos. A Teodiceia (§ 326)
relembra que o homem é dono de si desde que saiba fazer uso da sua razão,
devendo pois preparar-se para bem querer por meio de uma reflexão oportuna e
da habilidade adquirida. Quando há vários partidos a tomar, a alma é bem mais
do que uma balança, ela é como uma força que faz um esforço para vários
lados e que tenderá a agir onde encontrar menor resistência, indo a sua
espontaneidade na direcção do bem (Teodiceia, § 325). O que importa pois, é a
«prevalência» (Novos Ensaios, II, 21, § 8 e § 47-48), essa inclinação que se
sente por aquilo que sentimos mais, e que não se separa de uma certa confiança
em si e nas coisas. Longe de se contentar com uma liberdade de indiferença,
onde tudo se equivale ao ponto de já não se escolher, longe também de
promover uma vontade que se contente em querer, há para Leibniz uma
vontade que se conjuga com a razão conduzindo ao bem. A «razão
prevalecente» adere à escolha do melhor, que Deus não pôde deixar de fazer, e
tira a sua legitimidade da bondade do próprio Deus.
É preciso pois tomar gosto pela virtude, e de uma certa maneira aprender a
querer. Trata-se aí de uma educação que conjuga sensibilidade e entendimento,
mas também, por mais paradoxal que isso possa parecer, uma certa forma de
cegueira (Teodiceia, § 403): porquê querer sempre saber como se fazem as
coisas? Há uma qualidade própria ao «autómato espiritual», a de aproveitar da
ordem das coisas que o ultrapassa. Existe, com efeito, uma forma de
automatismo do pensamento que releva por exemplo dos procedimentos de
cálculo que se fazem sem reflectir, mas também das acções que se fazem sem
as decompor em cada uma das suas etapas. Também neste sentido, Leibniz vê
no amor de Deus a resposta a tais dilemas morais (o que não significa que ele
os resolva assim): «Tudo deve culminar no bem dos bons, ou seja daqueles que
não estão de todo descontentes neste grande Estado, que se fiam na
Providência, após haverem cumprido o seu dever, e que amam e que imitam,
como deve ser, o Autor de todo o bem, regozijando-se na consideração das suas
perfeições segundo a natureza do puro amor verdadeiro, que faz tomar prazer
na felicidade daquilo que se ama.» (Monadologia, § 90)
CAROLE MAIGNÉ
380 Voltaire, Romans et contes, Paris, Flammarion, «GF», 1966. Para além do célebre Cândido ou o
optimismo (1759), Leibniz é largamente ridicularizado em Zadig ou o destino (1747) e Memnon ou a
sabedoria humana (1750). [Cf. Voltaire, O Desastre de Lisboa, trad. Jorge Pereirinha Pires, Lisboa, Frenesi,
2005 (N. do T.)]
381 Estas análises e tudo o que concerne seguidamente a evolução interna do sistema leibniziano são as de
M. Fichant, na sua edição do Discurso de Metafísica e da Monadologia, Paris, Gallimard, «Folio Essais»,
2004.
A obra
Um dos fitos principais da filosofia de Berkeley é manifestar a presença
íntima de Deus nos nossos espíritos. Esse fito requer a elaboração de um
sistema que comporte dois aspectos estreitamente solidários, um negativo, o
outro positivo. A vertente negativa é o imaterialismo, o qual afirma que a
matéria não existe. A vertente positiva é o fenomenalismo, segundo o qual os
corpos não são substâncias, mas colecções de fenómenos imateriais bem
regulados, chamados qualidades ou ideias sensíveis. Estas, bem como os
corpos que elas constituem, são os objectos da percepção e do conhecimento
sensível. O universo empírico, objecto da ciência física, tira em larga medida a
sua realidade e a sua objectividade da sua coerência interna, conforme às leis
naturais.
Imaterialismo e fenomenalismo são elaborados principalmente no Tratado
dos Princípios do Conhecimento Humano (1710) e nos Três Diálogos entre
Hylas e Filonos (1713). Mas o fenomenalismo expresso nas suas obras apela a
importantes complementos teóricos. Ele exige uma concepção original da
percepção e em particular uma teoria da visão, quanto mais não fosse a fim de
explicar, por exemplo, como podemos nós realmente ver corpos à distância se
eles são colecções de ideias sensíveis. Tal teoria é formulada segundo a via
analítica em Um Ensaio para Uma Nova Teoria da Visão (1709), e depois
sinteticamente em A Teoria da Visão Defendida e Explicada (1733). O
fenomenalismo apela também a uma filosofia das ciências naturais e a uma
filosofia da matemática. Berkeley dedica o De motu (1721) à primeira, e à
segunda O Analista (1734) e a Defesa do Livre-Pensamento em Matemática
(1735), onde critica os fundamentos do cálculo infinitesimal. Enfim, uma vez
que se trata de manifestar a presença íntima de Deus aos nossos espíritos, o
sistema requer uma teologia filosófica, uma apologética e as grandes linhas de
uma filosofia moral. Estas são apresentadas em Alcífron ou o filósofo
minucioso (1732).
Assinalemos o interesse particular que apresentam as Notas Filosóficas,
habitualmente datadas entre 1707 e 1708. Trata-se de cadernos nos quais o
jovem Berkeley assenta as suas notas de leitura, nomeadamente sobre
Descartes, Hobbes, Espinosa, Malebranche, Locke e Bayle, bem como
reflexões filosóficas em constante evolução. É um laboratório onde se colocam
progressivamente no devido lugar os contornos do sistema, ainda como
tacteamentos, tentativas frustradas, faíscas de génio e de paciente construção.
Aí se assiste à génese paralela da Nova Teoria da Visão e dos Princípios.
O estranho Siris (1744) – última grande obra do autor – é um pleito em favor
das pretensas virtudes terapêuticas da água de alcatrão. A partir de uma
reflexão sobre a química, Berkeley desvenda a cosmologia grandiosa, inspirada
pelo platonismo, de uma cadeia de seres que culmina em Deus, manifestando a
actividade omnipresente do espírito no mundo. Embora Siris prolongue e
desenvolva diversos temas metafísicos anteriormente elaborados, a sua
coerência com o resto da obra filosófica de Berkeley pôde ser posta em causa.
O imaterialismo
A Introdução dos Princípios contém as grandes linhas da filosofia da
linguagem de Berkeley, à qual o Alcífron trará mais tarde preciosos
complementos. Berkeley procura mostrar que uma falsa teoria da linguagem
conduz a uma crença errónea na possibilidade de formar ideias abstractas
gerais, apesar de estas serem psicologicamente e logicamente impossíveis.
Berkeley não rejeita porém toda a forma de abstracção. Podemos generalizar a
função representativa das ideias particulares, sem por isso formarmos ideias
intrinsecamente gerais. Se acrescentarmos a isso um uso bem compreendido
dos signos linguísticos e dos símbolos matemáticos, podem explicar-se os
nossos conhecimentos gerais, sem postular mais do que ideias particulares e as
relações destas. As ideias abstractas gerais não são portanto nem necessárias,
nem possíveis.
Berkeley emprega o termo «materialismo» para falar da tese que afirma a
existência da matéria, contrariamente ao actual uso corrente, em que a
expressão designa a doutrina segundo a qual tudo o que existe é material.
Assim, do seu ponto de vista, não só Hobbes que deve ser contado entre os
materialistas, mas também Descartes, Malebranche e Locke, uma vez que estes
crêem na existência da matéria. Aos olhos de Berkeley, essa crença sempre foi,
desde a Antiguidade até aos tempos modernos, a principal fonte do cepticismo
e do ateísmo que ele pensa ver florescer na sua época. Ao demonstrar a
inexistência da matéria, Berkeley procura cortar pela raiz a fonte de tais males.
A noção de matéria, segundo Berkeley, é a de uma substância não pensante
cuja existência é ontologicamente independente da dos espíritos; uma tal
substância seria provida de qualidades ditas primeiras (propriedades espaciais e
mecânicas) e de poderes causais. Através dos seus argumentos centrais a favor
do imaterialismo, Berkeley visa dois objectivos estreitamente solidários. Por
um lado, Berkeley quer negar toda a distinção entre ideias sensíveis e
qualidades sensíveis, bem como entre os compostos dessas ideias e os corpos.
Por outro lado, quer demonstrar que a hipótese da existência de uma substância
material encerra uma contradição.
Um primeiro argumento central é o argumento dito semântico, que se refere
ao significado do termo «existir» aplicado às qualidades sensíveis e aos corpos.
Dizer que tais entidades existem significa ou que elas são percebidas por mim,
ou que eu poderia percebê-las em certas condições, ou ainda que elas são
percebidas por um outro espírito, finito ou infinito. Em segundo lugar, o
argumento da abstracção estabelece a impossibilidade de abstrair da percepção
das coisas sensíveis a existência delas. A conclusão dos dois argumentos é a
mesma: o esse das qualidades e dos corpos sensíveis é inseparável do seu
percipi. Um terceiro argumento central chega à mesma conclusão após haver
estabelecido a tese da identidade das qualidades sensíveis e das ideias
sensíveis. Assim: não percebemos mais do que ideias; ora, nós percebemos
qualidades sensíveis e corpos; portanto essas entidades são, respectivamente,
ideias e colecções de ideias. Como uma ideia não existe a menos que seja
percebida, daí se segue que as qualidades sensíveis e os corpos não existem a
menos que sejam percebidos.
Uma vez instaurada esta conclusão, Berkeley pode demonstrar o carácter
contraditório da noção de substância material. Com efeito, uma substância
material seria por definição um substrato não percebente dotado de qualidades
sensíveis. Ora, é verdade que estas existem necessariamente em qualquer
substância. Mas, como as qualidades sensíveis são ideias, é preciso que as
substâncias de que elas dependem ontologicamente as percebam. Por
conseguinte, a própria definição de uma substância material encerra uma
contradição: ela supõe que as qualidades sensíveis, cujo ser é ser percebido,
existam numa substância não percebente.
Estes argumentos centrais deverão supostamente alcançar uma conclusão
metafísica, a da inexistência da matéria. Mas Berkeley instaura também
argumentos secundários, cuja conclusão é epistémica: ainda que, por hipótese,
a matéria existisse, ela seria incognoscível. Embora tal conclusão seja mais
fraca do que a conclusão metafísica, os argumentos secundários, não obstante,
são muito importantes. Eles explicam com efeito porque está Berkeley
firmemente convencido de que todos os sistemas filosóficos que afirmam a
existência da matéria implicam o cepticismo – e isso apesar das intenções dos
seus autores, que não pareceram aperceber-se de tal consequência.
Antes de mais, se as qualidades sensíveis são idênticas a ideias, ao percebê-
las nós não apreendemos nenhuma qualidade que pertença a uma substância
material, já que uma ideia, cujo ser é ser percebido, não pode pertencer a uma
substância não percebente. Ora, se nenhuma das qualidades percebidas é um
modo de uma substância material, daí se segue que a matéria, a existir, será
imperceptível.
O amigo da matéria retorquirá aqui que as ideias nos nossos espíritos são,
decerto, percebidas imediatamente, mas que os objectos materiais possuem
qualidades que podem ser conhecidas mediatamente, ou seja por meio das
nossas ideias sensíveis. Não se poderiam então conhecer objectos materiais
dessa maneira, pela percepção? De todo que não. Se a matéria existisse e se ela
possuísse qualidades distintas das nossas ideias sensíveis, o conhecimento das
primeiras dependeria necessariamente, segundo Berkeley, do conhecimento de
uma conformidade entre elas e pelo menos algumas das nossas ideias sensíveis.
Ora, para saber se uma coisa é ou não conforme a uma outra, é preciso poder
compará-las. E seria impossível comparar as nossas ideias sensíveis com as
hipotéticas qualidades da matéria. Pois estas não nos seriam dadas senão sob as
feições do conteúdo das ideias percebidas imediatamente, que supostamente as
representam. A matéria, se existisse, seria portanto empiricamente
incognoscível.
Além disso, nem mesmo a hipotética matéria seria concebível, estima
Berkeley, pois não poderíamos imaginar-lhe as qualidades. Todas as qualidades
sensíveis de que temos a experiência são com efeito ideias sensíveis, e
nenhuma delas pode pertencer a uma substância não percebente. Caso se
objecte que as nossas ideias sensíveis poderiam ainda assim assemelhar-se a
certas qualidades da matéria, Berkeley responde que isso seria tão inconcebível
como imaginar-se uma semelhança entre as cores e qualquer coisa invisível.
Não será preciso apesar de tudo postular a existência da matéria, quanto mais
não fosse para atribuir uma causa às nossas ideias sensíveis? Estas são
produzidas independentemente da nossa vontade; têm portanto uma causa
exterior a nós. Certamente. Mas coloca-se a questão de saber de que causa
exterior se trata. Ora os próprios «materialistas» declaram incompreensível a
causalidade da matéria sobre o espírito. Aliás, Malebranche e os ocasionalistas
dizem-na impossível. Berkeley alinha com Malebranche e Locke ao afirmar
que a única causalidade de que temos uma ideia clara é a da vontade. Segundo
ele, a causa exterior das nossas ideias sensíveis não pode ser senão a vontade
de um outro espírito. Ora este deve ser infinitamente potente e sábio, pois as
nossas ideias sensíveis, em número infinitamente grande, apresentam uma
ordem e uma coerência conformes às leis naturais. Por conseguinte, a causa
delas não pode ser outra senão Deus e é dessa maneira que Berkeley entende
provar-lhe a existência.
O fenomenalismo
Na base do fenomenalismo de Berkeley encontra-se uma invenção metafísica
fundamental: a de uma categoria de entidades que possuem certas propriedades
das ideias sensíveis lockeanas e outras propriedades das qualidades sensíveis
lockeanas. É por isso que, não sem o risco de alguma confusão entre os seus
leitores, Berkeley tanto nomeia tais entidades como ideias sensíveis, como lhes
chama qualidades sensíveis. Por exemplo, tal como as ideias em Locke, as
ideias sensíveis de Berkeley são imateriais. Elas têm uma causa exterior à
substância finita que as percebe e não existem a menos que sejam percebidas.
Quando são percebidas imediatamente, são-no exactamente tal como são. Por
outro lado, sendo verdadeiras qualidades sensíveis, elas não são nem entidades
intencionais, nem modos das substâncias percebentes; o seu ser é heterogéneo
ao dos espíritos; e elas – tal como os objectos físicos que compõem – são os
objectos da percepção e do conhecimento perceptual.
A realidade das ideias ou qualidades sensíveis deve ser tomada em sentido
forte. Mesmo que seja estranho falar assim, segundo Berkeley nós comemos e
bebemos ideias sensíveis, e vestimo-nos com elas. Mas o que é que constitui a
realidade dessas ideias por oposição às ficções da imaginação? Três factores
são constitutivos da sua realidade: a sua força e a sua vivacidade; a sua
independência causal em relação às substâncias finitas; e sobretudo a sua
ordem e a sua coerência, conformes às leis naturais instituídas por Deus. Por
este último factor, Berkeley junta-se ao seu antecessor, Leibniz, e ao seu
sucessor, Kant, ao fazer a realidade e a objectividade do universo fenomenal
dependerem largamente da sua coerência interna, regida pelas leis naturais.
Deus produz as ideias sensíveis segundo uma ordem regular que manifesta a
sua sabedoria e a sua benevolência. Ele institui entre as ideias relações de signo
com a coisa significada, que fundam a previsibilidade de fenómenos futuros.
Essas relações são exemplificadas em dois domínios efectivamente distintos: a
percepção mediata e a causalidade empírica. Consideremo-las por essa ordem.
Em Um Ensaio para Uma Nova Teoria da Visão, Berkeley oferece uma
teoria filosófica da visão que se distingue tanto da óptica geométrica como da
fisiologia do olhar. Certas combinações de ideias visíveis, acompanhadas por
certas sensações cinestésicas, constituem signos visuais complexos. Estes são
instituídos por Deus para significar as ideias da figura, da distância, da
grandeza e da situação de sólidos que percebemos – ou poderíamos perceber –
imediatamente pelo tacto, mediante certas condições empíricas. Como não há
nenhuma conexão necessária entre signo e significado, é somente por
observação, experiência e hábito que aprendemos progressivamente que uma
ou outra combinação de ideias visíveis e de sensações cinestésicas significa
uma ou outra ideia tangível. Uma vez correctamente adquirida a aprendizagem
empírica, ao percebermos tal signo visual imaginamos desde logo – ou seja,
percebemos mediatamente – as ideias tangíveis significadas, de maneira
análoga à que se produz quando lemos um livro: a nossa percepção visual das
frases cede o lugar, na nossa consciência, à compreensão do seu significado. É
possível uma percepção mediata não verídica da figura, da distância, da
grandeza e da situação de objectos tangíveis; ela é causada pela má
interpretação de certos signos visuais devido a uma má aprendizagem do seu
significado. Assim sendo, os signos visuais formam conjuntamente um sistema
instituído por Deus: a linguagem do Autor da natureza.
A teoria da visão tem diversos corolários. Todas as qualidades sensíveis são
próprias a um sentido; é portanto impossível perceber imediatamente uma
qualidade sensível por dois ou mais sentidos. Por outro lado, as ideias próprias
a cada sentido são inteiramente heterogéneas; não só elas não estão ligadas por
nenhuma conexão necessária, como também não há semelhança entre elas.
Nenhuma semelhança, portanto, entre a extensão visível e a extensão tangível,
nem mesmo entre um quadrado visível e um quadrado tangível. Não se poderia
pois formar por abstracção uma ideia da extensão, ou de uma figura, que fosse
comum à visão e ao tacto. Enfim, os objectos da geometria são exclusivamente
a extensão e as figuras tangíveis; essa ciência não se refere aos seus
homónimos visíveis.
Uma das consequências do princípio esse est percipi é a de que todas as
características sensíveis das ideias aparecem necessariamente na percepção
imediata. Como nós não percebemos nelas nenhuma força ou eficácia causal,
daí se segue que as ideias são causalmente inertes. Por conseguinte, como em
Malebranche, nem há causalidade física real entre corpos, nem causalidade do
corpo sobre o espírito. Na realidade, segundo Berkeley, as relações entre aquilo
a que erradamente chamamos causas e os efeitos físicos são relações de
significação, instituídas por Deus. Elas devem ser apreendidas pela observação
e pela experiência. A sua finalidade é permitir aos espíritos finitos fazer
previsões sobre o curso dos eventos futuros e assegurar por esse meio a
sobrevivência e o bem-estar deles.
Nem por isso Berkeley entende rejeitar a física contemporânea,
nomeadamente as leis do movimento. Ele procura integrar a física no
imaterialismo mediante uma reinterpretação dos pressupostos metafísicos com
que os «materialistas» a sobrecarregaram. É por isso que rejeita a distinção
newtoniana entre espaço, tempo e movimento absolutos e relativos, bem como
a divisibilidade da extensão até ao infinito. Espaço, tempo e movimento são
somente relativos. As leis estabelecidas pela ciência não passam de
formulações teóricas das regularidades observáveis entre os fenómenos
produzidos por Deus. O enunciado das leis naturais tira a sua legitimidade da
sua utilidade. Ele não consiste de modo algum em nos oferecer uma
compreensão das causas reais dos fenómenos naturais, e ainda menos em nos
aproximar de um conhecimento daquilo a que certos «materialistas» chamam a
constituição interna submicroscópica dos corpos. As leis científicas só são úteis
na medida em que permitam uma previsão mais exacta dos fenómenos. No De
motu, Berkeley explica que a noção de força, ainda que desprovida de objecto,
desempenha um papel legítimo, embora puramente teórico, justificado do
ponto de vista instrumental pelas previsões empíricas tornadas possíveis pela
teoria de que tal noção faz parte.
Os espíritos finitos
Berkeley estabelece um dualismo radical entre os espíritos e as ideias; são
dois géneros de entidades inteiramente heterogéneos, que só têm em comum os
nomes «ser» e «coisa». Porque, enquanto o ser das ideias é serem percebidas, o
das substâncias é perceberem. Os espíritos finitos são substâncias activas e
indivisíveis, que pensam constantemente. As ideias são causalmente inertes,
fugazes e ontologicamente dependentes das substâncias que as percebem, ainda
que não sejam modos destas. A dependência ontológica das ideias em relação
aos espíritos é precisamente um dos motivos que fundam a heterogeneidade e a
distinção delas, uma vez que a dependência não é recíproca. Esse dualismo
situa-se entre por um lado os espíritos, e por outro lado a totalidade das ideias,
tanto as da sensibilidade quanto as da imaginação e da memória. Esta maneira
de estabelecer o dualismo acarreta duas consequências importantes.
Em primeiro lugar, não pode existir nenhuma ideia do espírito, nem mesmo
uma ideia da imaginação. Pois uma tal ideia deveria representar um espírito, e
para isso ela deveria assemelhar-se a ele, o que é impossível do ponto de vista
da heterogeneidade de ambos. É por isso que, segundo Berkeley, o
conhecimento de si de um espírito se realiza por uma consciência reflexiva
imediata, sem a intermediação de uma ideia.
Em segundo lugar, como as ideias da imaginação e da memória são tão
distintas das substâncias quanto o são as ideias sensíveis, e como também não
são modos delas, é somente no interior do domínio geral das ideias que se
efectua a distinção entre as ficções da imaginação e a realidade sensível,
conformemente aos três critérios anteriormente mencionados. Daí a
necessidade de estabelecer uma diferença, em Berkeley, entre a simples
existência de uma ideia e a sua realidade, a saber a sua pertença ao mundo
empírico. Se todas as ideias imediatamente percebidas existem, só as ideias
sensíveis são constitutivas da realidade empírica. Isso significa que o dualismo
radical de Berkeley não é precisamente o do espírito e do corpo. Decerto que a
distinção espírito-corpo é com efeito um dualismo, mas ela está subordinada,
porque se situa entre as substâncias percebentes e somente uma parte das
ideias, a saber as ideias sensíveis, constitutivas dos corpos.
A teoria berkeleyana dos espíritos finitos dá lugar a uma tensão: se o ser do
espírito é perceber, e se a percepção é passiva, como diz Berkeley, como
afirmar que o espírito é uma substância activa? Antes de mais, o espírito está
também dotado de vontade, poder essencialmente activo. Seguidamente, é
apenas a percepção imediata que é passiva. A percepção mediata, por seu turno,
supõe ao invés uma actividade importante por parte do espírito. Ora, ao dizer
que o ser do espírito é perceber, Berkeley tanto compreende a percepção
mediata, activa, como a percepção imediata. Nenhuma contradição ao
sustentar, nestas condições, que o espírito é uma substância activa e que o seu
ser consiste em perceber.
A teoria berkeleyana do espírito finito ficou infelizmente inacabada, pois não
se saberia que estatuto ontológico atribuir a numerosos géneros de eventos
mentais. Que fazer, por exemplo, com as emoções, as volições e as operações
cognitivas como o juízo, o raciocínio e a deliberação? Na condição de evitar
conceber as substâncias finitas como substratos, nada impediria Berkeley de
dizer que esses eventos mentais, contrariamente às ideias, são modos das
substâncias percebentes. Todavia, ele nada diz quanto a isso, deixando
indeterminado o seu estatuto ontológico.
Deus e a apologética
As ideias sensíveis percebidas imediatamente pelos espíritos finitos são
éctipos, são produzidos por Deus a partir do modelo das ideias arquetípicas
eternas que existem no seu espírito. Contrariamente ao que por vezes se
pretendeu, esta concepção do conhecimento divino não está portanto ameaçada
pelas implicações cépticas de uma teoria representativa. Pois as ideias pelas
quais Deus conhece os éctipos são as ideias arquetípicas segundo o modelo das
quais Ele as pensa e as produz. Uma outra pergunta que muitas vezes se faz é a
de saber se Deus, que não tem sensibilidade, pode não só conhecer mas
também perceber os éctipos, porquanto estes sejam sensíveis. Mas a
pertinência da pergunta é duvidosa, pois ela supõe em Deus uma distinção
entre conhecimento e percepção, que Berkeley, tal como outros filósofos, não
está disposto a aceitar. Aliás ele tem toda a latitude para determinar, por
analogia, uma noção eminente da percepção que conviesse propriamente a
Deus, em conformidade com a doutrina da analogia exposta no Alcífron.
No Alcífron, Berkeley ataca os livres-pensadores em matéria de moral e de
religião, nomeadamente Shaftesbury, Mandeville e Collins. Sabendo que o seu
imaterialismo é mal recebido pelo público, defende a sua apologética sem a
fazer depender estreitamente do imaterialismo. É nesse espírito que defende a
verdade da teologia natural, depois a utilidade e a verdade da religião e da
moral cristãs. Devido às suas posições acima de tudo muito conservadoras
sobre tais questões, não é fácil classificar Berkeley entre os pensadores das
Luzes.
O campo de convergência do pensamento de Berkeley, comum ao Alcífron e
a toda a sua obra, é a presença íntima de Deus nos nossos espíritos. Se a
presença de Deus está tão próxima, é porque Ele produz as ideias sensíveis
directamente, sem intermédio de nenhuma causa segunda material, e porque
essas ideias, constitutivas da realidade física, são perceptíveis imediatamente.
No Alcífron, tal como anteriormente, Berkeley põe em primeiro plano a
organização do universo fenomenal em diversos sistemas de signos que nos
permitem prever os seus significados empíricos. Os signos sensíveis, pela sua
origem causal, testemunham a omnipotência de Deus, a sua complexidade
manifesta a inteligência e a sageza d’Ele, e a sua coerência regular, conforme
às leis naturais, exprime a bondade e a providência d’Ele. Do ponto de vista
metafísico, o universo físico é um local de encontro, nesta vida, dos espíritos
finitos interpretantes e do seu autor transcendente.
RICHARD GLAUSER
A filosofia natural no século XVII:
Galileu, Huygens, Newton
Estabelecemos em princípio que dois graves ligados conjuntamente não se podem mover por si
mesmos, a menos que o seu centro de gravidade comum desça393.
SAGREDO: Sucedeu-me um dia observar uma cisterna na qual se havia adaptado uma bomba
[…] tal que atingindo a água um nível determinado na cisterna, a bomba a tirava em abundância,
mas ela deixava de operar aquém de uma certa altura. A primeira vez que assisti a tal incidente
julguei que o aparelho estava deteriorado; mas o artesão que eu encontrara para fazer a reparação
disse-me não haver defeito algum, senão do lado da água que, estando demasiado baixa, já não
sofria ser elevada tão alto; e acrescentou que bomba alguma teria o poder de a fazer subir um
cabelo acima dos 18 côvados395.
Até ao presente expus os fenómenos celestes e os do nosso mar pela acção da força da gravidade,
mas não estabeleci ainda a causa da gravidade. Em todo o caso essa força nasce de uma causa
qualquer, que penetra até aos centros do Sol e dos planetas, sem que a sua virtude seja por isso
diminuída; e ela age não em função da quantidade das superfícies das partículas sobre as quais
actua (como o fazem as causas mecânicas), mas em função das quantidades de matéria sólida; e a
sua acção estende-se em todas as direcções a distâncias imensas, decrescendo sempre na razão
dupla das distâncias399.
Newton havia indicado noutro local o resultado das suas especulações sobre
a causa da gravidade e situara-as então no horizonte de uma matéria etérea:
«Quando eu digo que a estrutura do universo não pode ser outra coisa senão o
éter condensado por um princípio de fermentação, em lugar destas palavras
escrevei que ela não pode ser outra coisa senão as composições diversas de um
certo espírito ou vapor etéreos condensados, por assim dizer, por
precipitação400.» Como vemos, o engendramento da qualidade por uma causa
pode revelar-se (sem chegar a afirmar o enfeudamento do pensamento
científico de Newton à Cabala) extremamente estranho ao primado do
movimento local, tal como o definiam os apoiantes da mecânica. A carta,
datada de 1675, não é precisamente destinada ao segredo da confissão, uma vez
que é dirigida ao secretário da Royal Society, lugar da publicidade e da
comunicação por excelência. Independentemente dessa maneira fermentativa
ou precipitante de estabelecer a causa, Newton mostra-se aqui atento ao esboço
de um meio activo, suporte e sede das operações naturais. Essa orientação
interna do pensamento de Newton é prolongada (e não contradita, ao que
parece) pelas tomadas de posição fortemente mecanistas401 adoptadas a partir
de 1687:
Que a gravidade deva ser inata, inerente e essencial à matéria, de tal modo que um corpo possa
agir sobre um outro à distância através de um vazio, sem a mediação do que quer que seja por outra
parte e através da qual a sua acção e a sua força possam ser transportadas de um ao outro, é a meu
ver uma tão grande absurdez, que eu creio que nenhum homem, que tenha em matérias filosóficas
aptidão suficiente para pensar, jamais se poderá ater a ela402.
Copérnico […] não é coperniciano. Não é, também, um homem moderno. O universo dele não é
um espaço infinito. É limitado, tanto quanto o de Aristóteles ou de Peurbach. Maior, decerto, mas
finito, inteiramente contido na e pela esfera dos fixos. […] Ordem esplêndida, geometria luminosa,
cosmo-óptica que substitui a astrobiologia dos antigos405.
Assim, Copérnico, que ainda faz largo uso das técnicas ptolomaicas de
correcção dos movimentos celestes por epiciclos, excêntricos e equantes, vale
essencialmente por haver introduzido, com o heliocentrismo, um método
geométrico de descrição que se basta a si mesmo, sem suposições relativas à
natureza dos planetas ou da causa física (força ou esfera406) que os retém na
sua orbe. O teólogo Osiandro, que redige sem que Copérnico o saiba uma
Advertência ao Leitor, sobre as hipóteses contidas neste livro407, colocada
antes do prefácio escrito pelo astrónomo, mostra bem que no contexto da
Contra-Reforma as teses copernicianas podiam ser interpretadas como uma
violação das Escrituras. Com efeito, em certos pontos, parece evidente que a
Bíblia se apoia numa representação geocêntrica do universo. O Concílio de
Trento408 é chamado a reunir-se a 8 de Abril de 1546, ou seja três anos após a
publicação do De revolutionibus. Ora é no termo desse Concílio, em 1564, que
será afirmada uma posição intransigente da Igreja. Osiandro afirma que as teses
de Copérnico não devem ser tomadas senão como hipóteses matemáticas
desligadas de qualquer ancoragem na percepção ou na descrição do mundo.
Teses semelhantes encontravam-se já no nominalismo medieval409, e
antecipam uma certa tradição epistemológica que só atribui aos enunciados
científicos um mero valor de coerência formal, sem relação com as coisas.
Enquanto instrumentos formais, as hipóteses não são mais do que as descrições
de um conjunto de relações convergentes – tais relações são as leis em si
mesmas. Essa tradição é a do instrumentalismo, que será ilustrada, a títulos
bem diversos, por Emanuel Kant410 e por Pierre Duhem411.
O livro de Copérnico é publicado entre uma relativa indiferença: o seu
conteúdo, à excepção do Primeiro Livro, não é acessível ao vulgo, e será
preciso combinar os esforços interpretativos sucessivos (e mais ou menos
conformes ao texto do cónego polaco) de Kepler, de Giordano Bruno e depois
de Galileu, para que a substância subversiva do heliocentrismo, que transvaza
largamente o quadro da astronomia, seja apreciada na sua justa medida. É
preciso pois esperar por Março de 1616 para ver o texto de Copérnico inserido
no Índex dos livros proibidos: esse instrumento de censura intelectual foi
contudo instaurado a partir do fim do Concílio de Trento, em 1564, ou seja no
próprio ano do nascimento de Galileu.
Como outros antes dele, Copérnico introduz uma suposição heliocêntrica. Os
movimentos desordenados dos planetas adquirem então uma significação mais
simples, que não permite porém fazer economia dos artifícios matemáticos
forjados pela escola ptolomaica: os excêntricos, mas também os epiciclos,
aparecem no sistema de Copérnico. A mudança de referência cosmológica é
anunciada por Copérnico no capítulo vii do livro i do De revolutionibus, numa
evocação imagista do princípio de relatividade óptica. Levado pelo movimento
regular de um navio, um observador é incapaz de discernir o sujeito do
movimento, como já Virgílio bem dizia: «O porto e a cidade recuam412.» O
universo de Copérnico permanece fechado, ele nada pode opor à física
aristotélica e, nesse sentido, todo o edifício pode, a bem dizer, reduzir-se ao
objecto puramente instrumental descrito por Osiandro: uma hipótese
matemática, sem relação com os factos ou com qualquer valor de verdade.
O manual dominante da astronomia pré-coperniciana – e que sobreviverá por
muito tempo à data de 1543 – é o tratado conhecido pelo nome da Sphæra de
Sacrobosco, porque ele é um dos primeiros a beneficiar da vasta difusão das
ideias tornada possível pela invenção da imprensa. Tradução e ajustamento do
Almageste de Ptolomeu, ele é o fundamento matemático limitado mas durável a
partir do qual a astronomia ptolomaica opera a ligação do período helenístico e
romano à época pré-coperniciana. São propostas numerosas tentativas
matemáticas de refinamento, como as de Peurbach (Theoricæ novæ
planetarum) e de Regiomontanus. Deve recordar-se que a astronomia é, desde
a injunção de Platão, transmitida por Aristóteles e por toda a tradição
ptolomaica, essencialmente uma questão de matemática. Ora o De
revolutionibus pode legitimamente surgir aos olhos dos seus contemporâneos
como mais uma construção matemática, seguindo nisso a ortodoxia
metodológica da astronomia dos Antigos.
O contributo de Galileu para a astronomia permanece estritamente
observacional. A observação sucessiva da Lua, da Via Láctea, de Júpiter e dos
seus satélites, das fases de Vénus, das manchas solares, fez-se com a manifesta
intenção de construir uma tese física menos dedicada à investigação
astronómica pura do que ao conhecimento do movimento da Terra. São as três
leis de Kepler que dão à astronomia simultaneamente a sua estrutura
calculatória moderna e a força de persuasão necessária ao estabelecimento do
heliocentrismo. Nem Copérnico nem Galileu foram com efeito capazes de
encontrar, no interior da tradição dos orbes circulares que mantêm, um
argumento decisivo a favor da verdade de uma hipótese heliocêntrica já
adquirida em parte em Aristarco de Samos. As razões que explicam essa
adesão ao heliocentrismo por todos aqueles que deram à ciência nova os seus
maiores impulsos prendem-se mais, de facto, com a rejeição do bloco objectivo
formado pelo aristotelismo e pelo ptolomaísmo do que com a crítica objectiva
dos méritos de um ou outro sistema do mundo. Foi antes de mais pela sua
rejeição da física aristotélica, da sua identificação do centro do mundo com o
centro da Terra413, bem como da sua análise não matematizável do movimento,
que os autores desejosos de produzirem outra ciência do movimento
encontraram na hipótese coperniciana uma representação do mundo conforme
às noções centrais da sua mecânica renovada.
Neste sentido, se Galileu não era coperniciano antes de 1609, parece
temerário afirmar-se que ele não vira a que ponto a sua cinemática exigia que
se pusesse o Sol no seu lugar414. A adesão de Galileu ao sistema coperniciano
não é alimentada pela retoma das ideias keplerianas415, tal como não é
estimulada pelas ricas hipóteses de Brahe416. Ela faz-se portanto às arrecuas,
lateralmente, por ocasião da elaboração de princípios decisivos para a
mecânica, como o princípio do movimento relativo, que não têm
correspondência nos céus a menos que se considere que a Terra se move. No
entanto, a via traçada por Galileu é aquela que encontrará o seu auge na
unificação das leis do movimento, contida nas leis de Kepler mas só revelada
por Newton.
Galileu falha totalmente a viragem que consistiria em matematizar
verdadeiramente a astronomia. Mas, embora permanecendo afastado desse
domínio, passa com razão para aquele que soube dar à astronomia coperniciana
a mecânica terrestre de que ela precisava para se estabelecer. Kepler continua a
ser essencialmente um homem do Renascimento para o qual não existe uma
chave única na explicação das tendências profundas que conduzem a criação
divina ao equilíbrio e à simetria. Galileu é por seu turno adversário da profusão
barroca das causas: uma estrutura única, universal, está na base da produção de
todos os efeitos naturais. Há portanto na natureza uma necessidade que
concorda bem com aquela que se encontra na matemática, e que deve portanto
poder reduzir-se a esta.
É essencialmente por conceber os fenómenos naturais como redutíveis ao seu
índex matemático, ou seja aos parâmetros de grandeza, figura e movimento,
que Galileu acaba por dar ao heliocentrismo a consistência de uma
representação do mundo. É por ele o fazer avançar um passo, da geometria para
a mecânica, do abstracto para o concreto, que Galileu faz do heliocentrismo um
problema que confronta a estrutura bem estabelecida da ciência que se ensina à
maneira de um dogma: o aristotelismo.
A síntese newtoniana
A obra maior de Newton, os Philosophiæ naturalis principia mathematica,
começa pela cinemática (livro i), prolonga-se numa mecânica dos meios fluidos
em que uma resistência modifica as leis puras do movimento (livro ii) e
culmina com o duplo esboço de um sistema do mundo e de um método para
«bem filosofar». Bem filosofar é começar sempre pelo observável, a
experiência, de onde são tiradas as leis mais gerais. As doutrinas cujas
proposições não sejam tiradas da experiência são obras ficcionais. Newton,
pelo seu lado, «não finge hipóteses», não constrói nada que não seja antes de
mais uma propriedade atestada dos corpos submetidos à experiência e aos
sentidos. Paradoxalmente, dessa afirmação derivou a noção vaga, obscura e
certamente não observável, de atracção. É que a força em questão tira a sua
ambivalência de ter sido pensada em diversas ocasiões por Newton enquanto
analogia com o choque dos corpos, sem que o domínio ao qual a atracção se
aplica jamais se possa satisfazer com tal orientação mecânica. Depois de
Newton, torna-se difícil pensar o universo em termos de turbilhões, esses
grandes artefactos mecânicos de que Descartes, Leibniz e Huygens haviam
tentado estabelecer a necessidade, para guardarem à filosofia natural o sentido
de uma interrogação racional. A atracção newtoniana é com efeito
simultaneamente uma lei que faz entrar a astronomia na sua fase moderna, e
uma ideia que faz surgir uma vez mais, no próprio cerne da demanda científica,
qualidades ocultas de que ninguém poderá dar razão – mas que servem para o
cálculo.
Moderna, a física newtoniana exprime o conjunto dos progressos da física
galilaica em três leis sintéticas. A lei de inércia, a lei de composição das forças
e depois a lei da acção e da reacção são os fundamentos de uma mecânica que
ignora a distinção da terra e do céu. A relação fundamental da dinâmica
384 Intróito das missas das Ascensão, citado in Huysmans, L’Oblat. OEuvres complètes, Paris, Cres, 1934,
vol. 17, p. 143. Este sermão terá constituído o ataque do sermão de Lorini contra Galileu em 1614.
385 Deverá consultar-se, acerca desta questão, entre uma muito rica literatura, T. S. Hall, History of
General Phisiology, 600 BC to AD 1900, 2 vols., Chicago, University of Chicago Press, 1969; F.
Duchesneau, Les Modeles du vivant de Descartes à Leibniz, Paris, Vrin, 1998, ou P. Rossi, La Naissance de
la science moderne en Europe, Paris, Seuil, 1999, com, por exemplo, o paralelo que é estabelecido por
Rossi entre o método de Borelli e os «pressupostos de ordem galilaico-cartesiana» (p. 215).
386 Esta leitura é mesmo admitida pelos defensores de uma abordagem social dos saberes científicos, pois
ela dificulta o conceito de revolução científica. Ver S. Shapin, La Révolution scientifique, Paris,
Flammarion, 1998: «A continuidade entre a filosofia natural do século XVII e o seu passado medieval está
todavia hoje em dia largamente reconhecida.» A interrogação suscitada por Shapin é esta: não será a
«revolução científica» mais do que uma invenção de historiadores? J. Henry, em The Scientific Revolution
and The Origins of Modern Science (Londres/Nova Iorque, McMillan/St. Martin Press, 1997) responde a
essa questão de uma maneira bem mais matizada, e sem dúvida mais exacta, do que Shapin.
387 Duhem é certamente o autor de uma Física de Crente, mas a sua crítica da ideia da revolução galilaica
comporta uma análise que esclarece as relações entre a ciência clássica e os seus «precursores», oxonianos
ou parisienses. Cf. P. Duhem, Études sur Léonard de Vinci. Les précurseurs parisiens de Galilée, Paris,
Hermann, 1913.
388 Riposta alle oppositioni del Sig. Lodvico, etc., contro al trattato del Sig. Galileo, Delle cose che stanno
sopra acqua, Bologna: 1655.
389 Publicada em Roma em 1628, traduzida para francês por Saporta em 1664, e que conheceu numerosas
edições até ao século XIX.
390 Onde havia sido enviado em missão de estudo pelo cardeal Corsini em 1625.
392 A Sexta Jornada, relativa à força de percussão, só é publicada em 1674, ver o cap. 6 da primeira parte.
394 Aristóteles, Física, 214b12. Consultar o dossier completo por J.-L. Poirier em Leçons de physique,
Paris, Presses Pocket, 1990.
396 Ed. Naz, XIV, 130. A altura da água equivale a 10,3 metros, corresponde a uma pressão de 1,033
kg/cm2, normal ao nível do mar.
398 O Puy de Dôme é um vulcão extinto que integra o chamado Maciço Central francês e constitui a
segunda maior montanha da região de Auvergne (1464 metros de altitude). Situa-se a dez quilómetros de
Clermont-Ferrand. (N. do T.)
399 I. Newton, Principia mathematica philosophiæ naturalis, Lib. III, Scholium Generale, p. 530 [terceira
edição, 1726], in Isaac Newton’s Principia Mathematica Philosophiæ Naturalis, ed. I. B. Cohen e A. Koyré,
2 vols. Cambridge, Harvard University Press, 1972, vol. II, p. 764.
400 I. Newton, Carta a Oldenburg de 25 de Janeiro de 1675. Citado em Isaac Newton’s Papers and Letters
on Natural Philosophy, and related documents, ed. I. B. Cohen e R. E. Schofield, Cambridge, Harvard
University Press, 1958.
401 Cf. as Cartas a Bentley de 1692, publicadas em 1756, citadas em Isaac Newton’s Papers and Letters on
Natural Philosophy, and related documents, op. cit.: Carta I, p. 20; Carta II, p. 23 e 26; Carta III, p. 26.
403 B. Le Bovier de Fontenelle, Théorie des tourbillons cartésiens, Œuvres complètes, I, Genebra, Slatkine
reprint, 1968.
405 A. Koyré, introdução a N. Copérnico, Des révolutions des orbes celestes, Paris, Diderot Éditeur, 1998,
p. 22-23.
406 Ver M.-P- Lerner, Le Monde des sphères (2 vols.), Paris, Les Belles Lettres, 2000-2001.
407 A. Koyré, introdução a N. Copérnico, Des révolutions des orbes celestes, op. cit., p. 27-29.
408 P. Sarpi, Historia del Concilio Tridentino. Nella quale si scoprono tutti gli artifizi della Corte di Roma
per impedire che né la veritá dei dogmi si palesasse, né la riforma del Papato & della Chiesa si trattasse.
Di Pietro Soave Polano, Londres, Giovanni Billio, 1619 (reed. Turim, Einaudi, 1974).
409 A. O. Lovejoy, «Pragmatism and Realism», The Journal of Philosophy, Psychology and Scientific
Method, 6, 1909, p. 575-580. Ver também M. R. Gardner, «Realism and Instrumentalism in Pre-Newtonian
Astronomy», Minnesota Studies in the Philosophy of Science, vol. X, 1983, p. 201-265.
410 E. Kant, Crítica da Razão Pura. O criticismo, verdadeiro ponto de partida do instrumentalismo
contemporâneo, apoia-se inteiramente na constituição dos fenómenos pela actividade esquematizante do
sujeito do conhecimento. Nesse sentido não podemos conhecer senão sob a espécie da lei, formada e
distante de toda a determinação de uma coisa incondicionada.
411 P. Duhem, La Théorie physique, son objet, sa structure, Paris, Chevalier et Rivière, 1916 (reed. Vrin,
1989).
412 N. Copérnico, As Revoluções dos Orbes Celestes, livro I, cap. VIII. Esta imagem, que descreve bastante
bem a relatividade do movimento percebido, está já presente em Lucrécio, Dererum natura, Canto IV, v.
387 e segs. A fonte comum de Lucrécio e de Virgílio não é outra senão Cícero, Académicas, II, 25, 81.
414 É uma das teses de M. Clavelin, La Philosophie naturelle de Galilée, essai sur les origines et la
formation de la mécanique classique, Paris, Albin Michel, 1996.
415 Recordemo-nos da sua tímida profissão de fé coperniciana, em Agosto de 1597, numa carta a Kepler
em que mal lhe agradece o envio de uma obra da qual parece não ter lido mais do que o prefácio.
416 Muito pelo contrário, como vimos aquando da análise galilaica da natureza dos cometas.
417 As regras do choque tornam-se assim objecto de um tratamento geral por C. Huygens ao interpretar as
forças em presença graças, por um lado, à equivalência da velocidade do choque e das alturas de queda que
foi preciso atribuir aos corpos para atingir tal velocidade, e por outro lado ao uso sistemático do princípio de
Torricelli e, por fim, à suposição segundo a qual o centro de gravidade comum permanece no mesmo estado
de movimento antes e depois do choque. Ver o nosso artigo «La découverte des lois du choc par Christiaan
Huygens», Revue d’histoire des sciences, 56-1, 2003, p. 15-58.
David Hume
Quando levamos as nossas definições a remontar às mais simples ideias e ainda encontramos
mais ambiguidade e obscuridade, que recurso possuímos nós então? […] Devemos produzir as
impressões ou sentimentos originais, dos quais as ideias são copiadas. Essas impressões são
inteiramente fortes e sensíveis. Elas não admitem ambiguidade. Não só elas próprias estão em plena
luz, como podem lançar luz sobre as ideias que lhes correspondam e que se achem na
obscuridade427.
Teoria do entendimento
As relações causais estão no cerne da teoria humeana do entendimento. Sem
elas, «seria o fim de toda a inferência e de todo o raciocínio sobre as operações
da natureza; a memória e os sentidos passariam a ser os únicos canais que
poderiam dar acesso no espírito ao conhecimento de uma existência real434».
Entre todas as relações que ligam as ideias às impressões, nenhuma é tão
potente quanto a causalidade para produzir crenças, que são ideias vivas. Por
exemplo, se eu vejo fumo entrar na sala, penso naturalmente no fogo que o
causa, e creio na existência real do fogo tanto como na do fumo, ainda que eu
represente para mim o fogo graças a uma ideia, sem dele ter a sensação sob a
forma de uma impressão. Assim, de cada vez que, para um dado efeito, eu lhe
infiro a causa, ou para uma causa dada o seu efeito, eu alargo aquilo que para
mim é o campo da realidade: «É este último princípio que povoa o mundo e
nos permite conhecer as existências que, pelo seu distanciamento no tempo e
no espaço, se acham para além do alcance dos nossos sentidos e da nossa
memória435.»
Há segundo Hume quatro elementos necessários à ideia de causa e de efeito:
os objectos ligados pela causalidade devem ser diferentes no sentido específico
do princípio de separabilidade; eles devem ser contíguos no tempo e no espaço
quando os objectos em causa se acham num lugar; a causa deve preceder o
efeito; e deve existir uma conexão necessária entre ambos. Os três primeiros
elementos compreendem-se facilmente; Hume dedica-se pois a esclarecer o
quarto delimitando a impressão originária de que ele deriva.
Que a conexão entre a causa e o efeito seja necessária parece paradoxal
segundo Hume, uma vez que ela pressupõe a distinção entre os objectos, ou
seja as percepções, que liga. As montanhas e os vales, por exemplo, não estão
ligados causalmente, porque é impossível conceber a existência de umas
independentemente dos outros. O fogo e o fumo, em compensação, existem de
maneira distinta e podemos assim conceber ligá-los enquanto causa e efeito.
Mas é aqui que reside o problema: se conceber os objectos como distintos
equivale a pensar a possibilidade da existência de um mesmo sem a existência
do outro, e concebê-los como necessariamente ligados equivale a dizer que é
impossível pensar a existência de um sem que o outro o tenha precedido, então
a combinação da distinção e da necessidade numa só e mesma ideia parece
contraditória. A fim de encontrar a origem das ideias de conexões necessárias,
Hume põe-se em busca de uma percepção que, sem dar lugar a essas ideias
entre os objectos (o que é impossível), satisfizesse o pensamento e a acção.
Segundo Hume, as impressões produzidas pelas ideias de conexão necessária
provêm de associações costumeiras, formadas pela experiência de cada vez que
certos objectos se sucedem a outros objectos da mesma maneira. Essas
impressões têm por conteúdo os actos e os sentimentos que se experimentam
na própria imaginação: a facilidade com que sentimos a transição entre uma
percepção e a que lhe está habitualmente associada, e a vivacidade com que
sentimos a formação da ideia que lhe está associada quando a transição provém
de uma impressão. «A conexão necessária entre as causas e os efeitos» e «a
transição que nasce da união costumeira […] são portanto idênticas436.» A fim
de explicar porque atribuímos invariavelmente aos próprios objectos, ainda que
de maneira inteligível, uma impressão cuja origem é o conhecimento
associativo, Hume postula a intervenção de uma ilusão projectiva semelhante à
que leva a localizar os odores, os sabores e outras propriedades num local que,
a bem dizer, não existe em parte nenhuma437.
Hume define a «causa» ao mesmo tempo como uma relação de associação
costumeira e como uma relação filosófica de sucessão constante438. Na medida
em que nenhuma ideia de conexão necessária pode ser tirada da constância de
uma sucessão de eventos sem o efeito do hábito, a definição filosófica dessa
relação procede da sua definição natural439. Mas precisamente graças a essa
origem, a causalidade filosófica permite inferir conexões necessárias onde se
carecer do hábito, prolongando então consideravelmente o domínio de
aplicação das relações causais. E as duas definições garantem a validade da
máxima geral segundo a qual tudo o que vem a existir tem necessariamente
uma causa440.
Nada na filosofia de Hume atraiu mais atenção do que a solução para o
problema dito da indução: ou inferimos da experiência conexões necessárias
«por intermédio do entendimento ou da imaginação; ou então pela razão ou por
uma certa associação441». Para justificar a racionalidade da inferência, seria
preciso que a crença nesse princípio em que assenta a inferência fosse ela
própria racional: «que os casos de que não tivemos experiência se devam
assemelhar àqueles de que tivemos experiência, e que o curso da natureza
permaneça sempre uniformemente idêntico442». A razão demonstrativa, ou seja
o conhecimento, é desde logo desqualificada, uma vez que «podemos conceber
uma mudança no curso da natureza443», o que funda a sua possibilidade. Mas o
raciocínio provável não vale mais:
Tentar provar esta última suposição [que o futuro será conforme ao passado] por argumentos
prováveis, por argumentos que concernem a existência, é portanto necessariamente e evidentemente
andar em círculo e tomar por acordado o próprio ponto que está em questão444.
Na medida em que não se poderia produzir um raciocínio provável se não se
acreditasse já que os factos passados servem para avaliar os factos presentes e
futuros, esse raciocínio não poderia estar na origem da crença na uniformidade
da natureza. Só a associação costumeira pode justificar uma crença tão
essencial, tão universal e tão inabalável445.
Hume serve-se da associação para explicar a formação de outras ideias, além
da da conexão necessária, as de entidades complexas (corpos, espíritos,
substâncias) que aparecem num momento dado (é a «simplicidade»), e na
duração (a «identidade»). A simplicidade que se pode reconhecer nos objectos
é manifestamente incompatível com a complexidade: as percepções podem ser
simples, e nesse caso há somente um único indivíduo, ou complexas, caso em
que deverá haver mais do que um; mas na medida em que elas não podem ser
simultaneamente unas e múltiplas, a noção de um indivíduo complexo é
ininteligível. A situação é ainda mais delicada a propósito da identidade na
duração: na medida em que «todas as impressões são existências internas e
perecíveis e aparecem como tais446», a ideia de identidade não poderia ser
estabelecida a partir dos próprios objectos.
Uma vez que a origem da identidade e da simplicidade não se encontra nos
objectos representados no pensamento, Hume fá-los derivar das acções e dos
afectos da própria representação. Se um sentimento de facilidade na transição
entre duas percepções qualitativamente similares cria uma associação de
semelhança, então a sucessão dessas transições produzirá um sentimento de
invariabilidade e de continuidade; é essa disposição afectiva que Hume toma
por impressão originária da «identidade perfeita447». Afirmamos a identidade
de uma coisa a despeito da sua interrupção ou da sua variação se, em lugar da
sucessão de percepções similares, há uma sucessão de percepções de relações
entre percepções similares. Assim, mesmo se as percepções ligadas dessa
maneira variam ou se interrompem, a facilidade das transições de pensamento
produz um sentimento de constância e de estabilidade que se aproxima da
identidade perfeita ao ponto de se confundir com esta448. Essas «identidades
imperfeitas449» estão na origem das ideias dos corpos ou de si mesmo,
consoante as relações e as circunstâncias. Assim, Hume justifica a simplicidade
destes objectos complexos pela constância dessa confusão que releva da
afectividade450.
A vontade
A vontade é a «impressão interna que sentimos e da qual temos consciência,
quando suscitamos cientemente um novo movimento do nosso corpo ou uma
nova percepção do nosso espírito451. A sua natureza não é conceptual mas
afectiva; e uma vez que, em virtude do princípio de separabilidade, os actos da
vontade são distintos das ideias, Hume confronta-se com o problema da sua
relação causal, afirmando que «a razão jamais pode ser por si só um motivo
para uma acção da vontade452». A experiência mostra que só as paixões
despertam a vontade.
A razão é e não deve ser senão a escrava das paixões; […] não é contrário à razão preferir a
destruição do mundo inteiro a um arranhão no meu dedo […]. Tão-pouco é contrário à razão que eu
prefira, mesmo com conhecimento de causa, um menor bem ao meu maior bem, e que eu
experimente uma afecção mais ardente pelo primeiro que pelo segundo453.
Paixões indirectas
As paixões que melhor se prestam à análise por associação são aquelas a que
Hume chama indirectas: é o caso dos pares orgulho/humildade, amor/ódio, mas
também da ambição, da vaidade, da inveja, da piedade e da malevolência. Elas
têm em comum serem uma «dupla relação de impressões e de ideias455». Dado
um objecto que produza um certo tipo de prazer, se eu associar o objecto a mim
mesmo por uma relação suficientemente potente, essa relação de ideias
acompanhada pela qualidade agradável do objecto leva-me a sentir a paixão de
orgulho que se lhe assemelha, pois ela é igualmente agradável; se, pelo
contrário, o mesmo objecto, ligado a mim mesmo, causa um sentimento
desagradável, então serei inclinado à paixão que se lhe assemelha, a saber a
humildade. Se, enfim, eu suprimir a relação entre mim e o objecto, não sentirei
nem orgulho nem humildade em reacção à sua qualidade agradável ou
desagradável. Se pelo contrário eu restabelecer essa ligação mas suprimir a sua
qualidade agradável ou desagradável, não experimentarei nenhuma dessas duas
paixões. O orgulho e a humildade só existem em virtude de uma dupla relação
de associação que implique impressões e ideias.
Hume sabe que os aparentes contra-exemplos não faltam; ele esforça-se por
refutá-los ou usá-los para sua vantagem456. A maior parte dessas críticas
aprecia mal o carácter associativo destas duplas relações; elas consistem em
transições fáceis e são sentidas como tais entre impressões e ideias457. Quando
se examina cada um desses aparentes contra-exemplos prestando atenção à
dimensão afectiva das associações, parece que são circunstâncias excepcionais
que conferem a uma transição do pensamento oposta à das duplas relações uma
maior facilidade, anulando então o seu efeito sobre as paixões. É portanto
efectivamente a facilidade que determina principalmente não só as crenças,
mas também as paixões indirectas.
A simpatia
A extensão das nossas paixões reduzir-se-ia ao círculo dos nossos próximos
se a simpatia não triunfasse da indiferença, dando uma vivacidade renovada às
ideias que nós fazemos dos sentimentos daqueles que não nos são próximos ou
que o são pouco. A simpatia é simplesmente uma extensão do princípio de
associação na esfera social, que torna mais vivazes as ideias ligadas às
impressões458.
O sentido moral
As teses de Hume sobre a moral são solidárias do resto da sua filosofia.
Existirão ideias especificamente morais? Ou, acerca das percepções, o discurso
moral não poderá pretender atribuir algum sentido objectivo às suas
prescrições? Se há ideias, então, ao referi-las às impressões que as produzem,
poderemos esclarecer suficientemente a função delas no conjunto das
actividades cognitivas e/ou conativas do espírito humano de modo a pôr termo
aos sempiternos debates sobre os princípios do juízo moral e da acção moral.
Hume pensa que as ideias morais não podem ser cópias, nem dos objectos,
ou seja das percepções, nem das suas relações; a origem dessas ideias é uma
certa maneira de as perceber. Ele afirma que as ideias morais não provêm da
imaginação, mas de um certo tipo de sentimento, de paixão ou de impressão de
reflexão. Assim, julgar que um acto ou o carácter de um indivíduo é virtuoso, é
simplesmente sentir de maneira agradável tal sentimento, e julgá-lo vicioso é
simplesmente experimentá-lo de uma maneira desagradável459.
A causalidade dos sentimentos morais, tal como a das paixões indirectas,
implica uma dupla relação entre as impressões e as ideias: um objecto ou ideia,
ligado a uma pessoa ou a uma outra ideia, suscita um sentimento agradável ou
desagradável que, em virtude da relação entre os objectos, produz um
sentimento moral aparentado, agradável ou desagradável. Assim, os prazeres e
as penas que suscitam os sentimentos morais acabam por ser precisamente
aqueles que suscitam os sentimentos de orgulho ou de humildade, e de amor ou
de ódio para com outrem460; pode então considerar-se que os sentimentos
morais não são mais do que formas «mais fracas ou mais imperceptíveis»
dessas mesmas paixões461.
Para Hume, é claro que numerosas qualidades consagradas como virtudes ou
vícios nas sociedades contemporâneas poderiam significar o contrário se certas
influências exteriores, como a religião, não entravassem os esforços de cada
um para atingir um ponto de vista estável e universal, bem como um
empenhamento baseado na simpatia que permite ao seu sentido moral julgar os
actos e os comportamentos com o desprezo ou o assentimento que eles
suscitariam naturalmente e universalmente462. Hume distingue a verdadeira da
falsa moral, tal como diferencia o raciocínio provável «filosófico463» do «não
filosófico464»: ainda que não haja provavelmente facto objectivo que permita
discernir o bom do mau e o bem do mal, o juízo moral é mais consequente
quando é guiado pelos princípios constantes e universais da natureza humana
do que quando o é por princípios arbitrários e efémeros.
Certas virtudes são seguramente «artificiais»: a justiça ou a propriedade, a
lealdade ou ainda a castidade são absolutamente solidárias das instituições que
as determinam: a propriedade, os contratos, a governação, as relações
intergovernamentais, o casamento, outros tantos artifícios que não existem no
estado de natureza. Uma vez estabelecidas essas instituições, atribuímos-lhes
naturalmente uma função e esforçamo-nos por as manter e lhes reforçar a
eficácia. Os indivíduos tomam então um prazer interessado nas qualidades que
fazem deles homens justos. Quando tais qualidades são finalmente
consideradas de um ponto de vista suficientemente geral, não se acantonando
ao círculo imediato dos mais próximos, pode então falar-se de sentido moral; o
que inicialmente era valorizado do estrito ponto de vista do interesse pessoal é
então consagrado como uma virtude.
A religião
Em concordância com Locke e com outros opositores do inatismo, Hume
afirma que a ideia de um «Ser infinitamente inteligente, sábio e bom nasce da
reflexão sobre as operações do nosso próprio espírito quando aumentamos sem
limites essas qualidades de bondade e de sabedoria465». No entanto, reconhece
também que «a capacidade do espírito é limitada e não pode em caso algum
atingir uma concepção plena e adequada do infinito466». As ideias de Deus que
formamos de maneira empírica a partir das qualidades do espírito humano
jamais poderão produzir uma ideia que se aproxime por pouco que seja daquilo
que os teólogos dizem acerca delas.
Hume mostra-se igualmente muito crítico contra os argumentos que visam
demonstrar a existência de Deus. Rejeita o argumento ontológico a priori, uma
vez que este considera a existência como uma propriedade necessária de Deus,
no mesmo plano que os outros atributos da natureza divina. Antes de mais, a
existência não pode ser considerada como uma propriedade, quer se trate de
Deus ou de qualquer outro objecto: «Quando penso em Deus, quando o penso
como existente, e quando creio que ele existe, a ideia que tenho dele não se
acresce nem se diminui467.» Em segundo lugar, ainda que possuíssemos essa
ideia da existência, nada permite dizer que ela fosse aplicável a um qualquer
objecto de maneira necessária.
Tudo o que concebemos como existente, podemos também concebê-lo como não existente. Não
existe portanto ser cuja não-existência implique contradição468.
Cepticismo
Se o céptico é aquele que põe em causa o uso da razão como meio de chegar
à verdade, então Hume não é céptico. Na condição de sermos guiados pela
intuição nas nossas inferências em matemáticas, e pela experiência quanto aos
factos, «podemos considerar o nosso juízo como uma espécie de causa, cuja
verdade é o efeito natural473». Não é pertinente duvidar de numerosas crenças,
porque somos literalmente incapazes de não crer nelas e de não as considerar
como evidências nos nossos raciocínios, incluindo certos postulados filosóficos
como a existência dos objectos exteriores, do sujeito, do espaço e do tempo e
da necessidade de todo o evento ter uma causa.
Isto não significa porém que o cepticismo humeano se contentasse em
afirmar que as nossas crenças escapariam às refutações cépticas por não
estarem fundadas em razão alguma. A natureza verdadeira e radical do seu
cepticismo torna-se manifesta quando ele explica porque atribuímos crédito a
certas ideias. Ao procurar as impressões que estão na origem das ideias de
conexão causal, do indivíduo complexo (simplicidade e identidade) e de muitas
outras, Hume mostra que é impossível «conceber» tais coisas sem que as ideias
contenham cópias de impressões irredutivelmente subjectivas, como são a dor
ou o nojo. Que importa então se a crença que atribuímos a tais ideias torna o
céptico impotente para as refutar, na medida em que as próprias ideias são de
uma natureza tal que nenhum céptico as poderia atacar? Se, por exemplo,
«supusermos que a necessidade e o poder residem nos objectos que nós
consideramos e não no espírito que os considera», então «não nos é possível
formar uma ideia, mesmo a mais remota, dessa qualidade»474; assim, «ou nos
contradizemos, ou as nossas palavras não têm sentido nenhum475». Esta
restrição do campo de aplicação das nossas ideias mais fundamentais nos
limites de uma consciência formada pela experiência pode incontestavelmente
ser qualificada como forma extrema de cepticismo – o bastante, pelo menos,
para que Kant faça dela a destruidora da metafísica.
WAYNE WAXMAN
418 De 1748, e rebaptizados Investigação sobre o Entendimento Humano em 1758.
421 O termo «reflexão» remete para todos os objectos que se representam pelo «sentido interno» ou pelo
«sentimento interior». Ele inclui portanto as paixões, as emoções, os desejos, as vontades, de uma maneira
geral todas as operações do espírito.
422 Tratado da Natureza Humana, I, I, 7; I, III, 7; I, III, 8; I, III, 10; II, I, 11; II, II, 4.
426 Ibid., I, I, 1.
430 Ibid., I, I, 4.
437 Ibid.
438 Ibid.
442 Ibid.
443 Ibid.
445 Ibid., VI, II, § 2-4; Tratado da Natureza Humana, I, III, 16.
447 Ibid.
448 Ibid.
453 Ibid.
Há com efeito diferença entre o homem natural que viva na natureza, e o homem natural que
viva no estado de sociedade. Emílio não é um selvagem que se deva relegar para os desertos; é um
selvagem feito para habitar as cidades489.
476 S. Campbell Howard e J. T. Scott, «The Politic Argument of Rousseau’s Discourse on the Sciences and
the Arts», American Journal of Political Science, vol. 49, n.o 4, Outubro de 2005.
477 J.-J. Rousseau, Principes du droit de la guerre, texto estabelecido e apresentado por B. Bernardi e G.
Silvestrini, Annales J.-J. Rousseau, t. 46, Genebra, Droz, 2005, p. 201-282.
479 Lettres écrites de la montagne, Œuvres complètes, Paris, Gallimard, «Bibliothèque de la Plêiade»,
1959-1995, 5 t., t. 3, p. 806-807. B. Bernardi, Le Principe d’obligation, Paris, EHESS/Vrin, 2007, cap. 1 e
6.
480 B. Bachofen, La Condition de la liberté. Rousseau critique des politiques, Paris, Payot, 2002, p. 228-
239.
484 B. Bernardi (dir.), Discours sur l’économie politique, edição, introdução e comentário, Paris, Vrin,
2002, p. 46.
488 A. M. Melzer, Rousseau et la bonté naturelle de l’homme. Essai sur le système de pensée de Rousseau
(trad. francesa por J. Mouchard), Paris, Belin, 1998
491 Profession de foi du vicaire savoyard, apresentada e anotada por B. Bernardi, Paris, Flammarion, «GF»,
1996.
493 «Somente a esperança do justo não engana de todo», Profession de foi, op. cit., p. 126. «Aquilo que se
deve fazer depende muito daquilo em que se deve crer», Rêveries du promeneur solitaire, Œuvres
complètes, op. cit., t. 1, p. 1013.
Emanuel Kant
Perguntava-me com efeito [escreve Kant] qual o fundamento em que assenta a relação daquilo a
que se chama em nós representação com o objecto.
Dito isto, restaria compreender em que é que há lugar, nesta herança, para
disputas. No essencial, o idealismo crítico elaborado por Kant a partir da
questão da representação e sob a forma de uma filosofia do sujeito ou da
consciência (como consciência de si e consciência de objecto) acha-se
contestado, nomeadamente pela ética da discussão em Apel ou Habermas e nos
seus próprios discípulos, como procedendo de um paradigma caduco:
precisamente, o paradigma da consciência ou da subjectividade. Não temos de
evocar aqui em detalhe a objecção dirigida desse ponto de vista por Habermas
ou Apel ao kantismo. Ela consiste em estimar que, desde a viragem linguística
do pensamento contemporâneo (para simplificar: desde Wittgenstein), a
filosofia já não pode, como em Kant, partir do sujeito, mas deve partir da
comunicação e do intercâmbio linguístico. Não procurarei aqui sublinhar nem a
força nem as fraquezas dessa objecção, que, não obstante aparece como
paradoxal ainda que apesar de tudo se encontre um ponto comum de
importância entre o criticismo de Kant e a ética contemporânea da discussão, a
saber a definição da objectividade em termos de intersubjectividade.
Simplesmente, Habermas e Apel consideram que o que fora entrevisto por
Kant não poderia ser plenamente efectuado no quadro do criticismo tal como
ele o havia concebido enquanto filosofia do sujeito ou da consciência centrada
no problema da representação, uma vez que hoje em dia seria preciso substituir
pelo paradigma da consciência o da comunicação dialógica mediatizada pela
linguagem. Apreciação que explica em grande parte não só a circunscrição da
ética da discussão no debate francês sobre uma eventual figura pós-metafísica
da subjectividade, mas também o distanciamento em relação a um
empreendimento como o de Rawls, que teria ele próprio integrado muito
escassamente as exigências do paradigma da comunicação. Serão estas
clivagens insuperáveis? Não estou de modo algum convencido disso. Mas, seja
como for, a sua existência indica que a referência kantiana não conduz a
nenhum dogmatismo: sinal, caso ele ainda fosse necessário, de que o kantismo
continua seguramente a ser uma filosofia viva.
ALAIN RENAUT
494 Nosso sublinhado do termo que indica a exclusão da teoria realista da afecção.
A economia política
Qual é o cerne da crítica de Marx? Ricardo, diz ele, erra ao atribuir a baixa
da taxa de lucro a factores naturais, como a demografia e a escassez das terras,
e comete o erro de acreditar que o progresso técnico e o maquinismo retardam
o declínio do capitalismo, ao passo que pelo contrário lhe provocam a queda.
Ricardo não vê a contradição interna do capitalismo: é ao quererem aumentar a
produtividade do trabalho pelas máquinas e o progresso técnico, que os
empresários contraem cada vez mais a parte do trabalho que cria valor para
além da quantidade necessária à reprodução do capital total. Ora é dessa
criação de valor ou mais-valia que se tira o lucro. O alargamento da economia
às dimensões mundiais pela livre troca em nada poderá alterar isso. «A
verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital499.»
A fraqueza de Ricardo advém de ele não ter feito as distinções necessárias;
primeiro, entre capital constante e capital variável, em correspondência com a
distinção entre objecto e meios de trabalho, por um lado, e força de trabalho
pelo outro; seguidamente, entre lucro, provento obtido por repartição, e mais-
valia, grandeza extraída na produção e depois repartida como lucro, renda e
juro; enfim, entre preço de produção, grandeza construída por conta do
empresário – custo de produção mais taxa de lucro média – e valor, grandeza
que exprime o ponto de vista do trabalhador e é igual à quantidade de trabalho
directo e indirecto necessária à produção e à reprodução de um bem nas
condições capitalistas dessa produção. Estas distinções supõem portanto que a
análise do capitalismo não se faça apenas sob o ponto de vista dos empresários
que tomam as decisões de investir, mas também e antes de mais sob o ponto de
vista dos trabalhadores cuja acção constitui a riqueza ou o verdadeiro valor.
Os contemporâneos de Ricardo, com Malthus e Sismondi à cabeça,
censuraram-no por abandonar a observação e se comprazer na abstracção. A
censura de Marx é exactamente oposta. «Ricardo não é suficientemente
abstracto», repete ele com frequência. A sua insuficiência provém de ele não
ter querido levantar o véu das contas, afastar-se do ponto de vista dos actores
do momento e procurar a realidade ou a substância profunda do trabalho vivo
sob aquilo a que chama o princípio do valor. O que lhe falta e o que ele recusa
é o fundamento histórico dessa ciência. Ricardo viu bem que a economia
política é uma maneira de medir em grandezas mercantis o trabalho social e a
riqueza que ele produz. O que não viu ele foi que a mercadoria pertence ao
reino da quantidade e do desejo de dinheiro. Sob o capitalismo, o trabalho
concreto dos homens surge apenas sob a forma de uma quantidade de trabalho
abstracto e a felicidade para cada um de usar as suas riquezas segundo um
desejo de bem viver já não é mais do que a fruição amarga de ter sempre mais.
Para Marx, toda a economia política clássica se inscreve assim sem o saber
naquilo a que Aristóteles chama a má crematística – ou a falsa ciência da
acumulação infinita.
ARNAUD BERTHOUD
496 O bulionismo – ou metalismo – é a teoria económica que define a riqueza pela quantidade de metais
preciosos possuídos, forma arcaica do mercantilismo. (N. do T.)
498 Veja-se o primeiro capítulo dos seus Princípios de Economia Política e do Imposto (1817).
A escrita da Revolução
Às capitais empobrecidas de um império sem forma, chegam os ecos da
Revolução Francesa. Entre essas cidades da Alemanha, Königsberg é então
sobretudo a fortaleza de Kant, cuja obra já nem por isso tem o aspecto de um
edifício acabado. Em compensação, Iena caracteriza-se pela profusão das suas
actividades culturais, universitárias, editoriais, franco-maçónicas. Schiller vive
lá, onde se encontrou com Goethe, e tanto um como o outro deram a sua mais
alta expressão ao classicismo alemão, outorgando a ideia tumultuosa de um
génio espontâneo e a exigência de regras que dirigem a natureza e a criação
artística. Iena revelar-se-á portanto particularmente receptiva ao pensamento
kantiano da Revolução, apresentada como a suprema conciliação da
espontaneidade do povo e da lei. É aí que os estudantes seguem os cursos de
um kantiano afamado, Reinhold. Fichte sucede-lhe entre 1794 e 1799.
Schelling é nomeado em 1798. Três anos mais tarde, ele forma equipa com um
antigo amigo, Hegel. É claro que Iena é o berço do idealismo alemão. Mas não
só: A. W. Schlegel torna-se lá professor em 1796. Ao redor dele, da sua esposa
Carolina e do seu irmão Friedrich, forma-se uma constelação (em parte
berlinense) de pensadores e de poetas: Doroteia Veit, Tieck, Schleiermacher,
Wackenroder, Novalis, bem como Fichte e Schelling. Esta família próxima do
idealismo chama-se a si mesma Frühromantik e conhece o seu apogeu com a
redacção de uma revista, a Athenaeum (1798-1800).
Durante algum tempo, Iena vê-se no centro do pensamento pós-
revolucionário. Mas depressa a solidariedade interna dos dois movimentos é
sujeita a uma série de provas que misturam os conflitos teóricos, pessoais ou
passionais à factualidade das mudanças de residência ou dos desaparecimentos.
Em 1800, Fichte, acusado de ateísmo, refugia-se em Berlim, e Schelling
reivindica pouco depois a originalidade do seu sistema. Ele próprio abandona
Iena em 1803, e rompe com Hegel em 1807. Quanto aos românticos, separam-
se antes mesmo de sofrerem a morte de Novalis (Março de 1801); o grupo
renasce, mas em Berlim, ainda ao redor dos Schlegel, e depois em Heidelberga.
Iena, pouco antes de ser o local onde se desmoronará o exército prussiano
diante de Napoleão, estilhaça-se em múltiplos nomes, nomes de pessoas mas
também de cidades; e às tentativas de unificação do sistema crítico junta-se a
profecia de Novalis: «É por caminhos diversos que vão os homens. Quem os
seguir e os comparar verá nascer estranhas figuras.»
Fichte, em Iena, tira o seu impulso da vida real do espírito e do único facto
que não poderá ser imposto a esta: a sua acção imediata sobre o mundo.
Voltada para o ser das coisas, a consciência real pensa obscuramente conhecer-
se, mas sem acreditar nisso, como ser particular ou modo de ser do mundo
(Descartes, Espinosa) ou como a forma de um acto separado do ser que lhe
fornece a sua matéria sensível (Kant). Mas o espírito livre pode ainda
apreender o acto da consciência na consciência imediata, intuitiva, de si; ele
pode decidir abstrair essa intuição do seu alcance mundano e da sua
receptividade sensível para a recolocar tal como ela é: uma intuição intelectual.
Fichte chama «doutrina da ciência» (Wissenschaftslehre) ao acto de reflexão
que atinge o princípio de todo o saber ao redobrar a intuição de si, e eleva
assim ao conceito aquilo que a consciência sempre acreditou ser: o próprio
princípio do mundo.
Este acto desdobrado formula-se Eu = Eu: o espírito da doutrina da ciência
requisita a letra do princípio de identidade (A = A) para reconduzir toda a
identidade à unidade de um eu que se estabelece assim literalmente como
princípio absoluto. A dualidade desse princípio, que identifica sujeito
estabelecente e objecto estabelecido, eu e eu, abre este, em si mesmo
infinitamente activo, à possibilidade de ser afectado e limitado pela acção de
um não-eu. Tal acção sobrevém, sem ser deduzida, na brusquidão de um
choque que exprime um segundo princípio: o oposto de mim = não-eu. O
choque é portanto um limite que o eu sente sem si e deve estabelecer em si. Se
o não faz, torna a cair sob o império da coisa em si. Se o faz, tende de novo
para o infinito que ele é primordialmente. E para isso, é preciso que ele
restabeleça a sua oposição com o não-eu como uma simples diferença
quantitativa entre duas actividades: uma, real, de posição, a outra, ideal, de
limitação. Esse acto de síntese exprime-se num terceiro princípio – o eu e o
não-eu são divisíveis – e depois desenvolve-se em múltiplas sínteses. Em cada
uma delas a intuição do eu implica uma imaginação que ultrapassa a divisão do
eu finito e do não-eu, tende para o eu infinito, e finalmente oscila entre o finito
e o infinito. Essa imaginação implica ela própria um entendimento que reflecte
sobre si, a fixa, e assim determina um novo limite, ou seja um novo conceito.
Os conceitos primeiros do entendimento a que Kant chama «categorias»
tornam-se assim outros tantos estados-limite que o eu estabelece no decurso de
uma construção livre e necessária, e portanto autolegislativa.
Enquanto o eu se estabelece como limitado pelo não-eu, as sínteses
sucessivas desenvolvem a génese da sua actividade teórica. Mas o espírito da
doutrina da ciência permanece essencialmente prático: o eu, ao agir realmente,
estabelece-se enquanto estabelecendo o não-eu, num esforço de
autodeterminação que tende para o infinito. Ele liberta-se então
verdadeiramente na posição de um outro eu, que se determina também
livremente: é esse o fundamento do direito, que põe de acordo todos os sujeitos
segundo as mesmas leis e coloca a sua esfera de actividade sob a garantia do
Estado. Cada sujeito ultrapassa porém a sua esfera jurídica ao exigir de si
mesmo a posição de todo o não-eu: ele deve tornar-se o legislador do mundo
dos espíritos. Pergunta-se então como pode um mesmo mundo moral ser
construído por sujeitos múltiplos. Abandonando Iena, Fichte dá à sua resposta
os contornos de um misticismo racional: é preciso que a intenção da acção livre
se realize verdadeiramente numa ordem inteligível, graças ao autor supra-
objectivo dessa ordem. Um Deus vivo torna-se o fundamento último da moral e
a fonte de uma beatitude que anima o eu. O espírito da Wissenschaftslehre visa
ainda estabelecer sem resto um absoluto subjectivo, mas este eleva-se acima do
eu que, tornado saber penetrante ou manifestação do ser absoluto, se devota a
construir o inconstrutível.
A obra romântica
O século faz-se acompanhar também pelas suas glosas marginais, o «breve
texto» da filosofia pelo seu subsequente comentário, e o próprio comentário
pelas suas figuras épicas: aquelas ou aqueles que, atentos ao curso do tempo,
«não querem calar-se nas passagens difíceis», diz a Athenaeum500 ao designar
do fundo do seu anonimato os poetas românticos.
Se seguirmos com eles os complexos contornos desse tempo, seguro de que
«a Revolução Francesa, a doutrina da ciência de Fichte e o Meister de Goethe
são as três grandes tendências da época501», as efusões da Athenaeum parecem
o lugar plural onde essas mesmas tendências se quebram e se encontram. A
Revolução é afectada por uma dualidade: assinalando a passagem definitiva à
idade moderna, ela volta-se porém para o antigo (o mundo greco-romano),
pronta a projectá-lo no futuro. Esse futuro começa com Fichte no sentido em
que as verdadeiras revoluções passam pelo meio, pela interioridade do Eu. Mas
sob o nome de Fichte, ouve-se agora – para além do de Kant – o de Schelling.
O primeiro encontro (em 1798, em Dresden) entre os dois filósofos e o grupo
romântico foi livremente reescrito pela Athenaeum e por F. Schlegel. Essa
Conversa sobre a Poesia atribui a Schelling, alias Ludoviko, uma experiência
poética – recordação, porventura, do seu contributo para a revista: um poema
epicurista cuja publicação fora interditada por Goethe. Depois confia-lhe um
discurso fundador (e fiel), que vê na arte o cumprimento do idealismo e prevê a
instituição de uma nova mitologia em acordo com a nova filosofia da natureza.
A unidade filosófica da filosofia e da poesia faz portanto tender uma para a
outra, e é afinal por isso que o Meister escrito por Goethe é a mais alta
tendência da época. Esse romance proteiforme é como que a própria ideia do
romantismo, porque ele reflecte a sua individualidade na das suas personagens
e transforma a arte em arte de viver. Mas, evidentemente, sob o nome de
Goethe, há que ouvir outros, Jean Paul, Sterne, Cervantes, Dante ou
Shakespeare, embora levando em consideração a nova relação filológica que
mantêm essas obras modernas e as obras antigas desde a Revolução. E então
vê-se bem como os românticos procuram uma síntese infinita: a de uma
sinfilosofia que fosse igualmente simpoesia.
A obra simpoética oferece mais do que uma versão do absoluto: ela é a sua
tradução filológica. Com efeito o absoluto já se enunciou na arte antiga,
naquela totalidade individual que é a poesia grega. A epopeia, género misto e
originário, é a expressão maciça dessa individualidade; ela imita o nascimento
da linguagem, ela própria imitando ou simbolizando a natureza. A linguagem
poética é portanto inata, no sentido em que, como diz W. A. Schlegel, ela não
cessa de nascer. Desde logo, toda a poesia é tradução da epopeia originária,
imitação da linguagem nascente, língua da língua, poesia da poesia. E o
passado não está simplesmente revoluto, tal como não deve ser coagulado num
ideal que o separe do moderno (é o impasse neoclássico). Ele é eterno, ele é o
primeiro elemento de uma estrutura orgânica do tempo da qual Schelling, no
limiar da sua última filosofia, deixará o sistema inacabado. Enfim, se os gregos
são os filhos do passado, é por serem os guardiões jubilosos e inconscientes de
uma unificação da linguagem e da natureza que uma nova epopeia, moderna e
consciente, se esforça por atingir. Compreende-se então que os românticos se
vejam como os profetas do passado, do presente e do futuro; ou como os heróis
de uma «poesia universal progressiva» movida pela nostalgia da idade de ouro,
essa idade absolutamente antiga, inalterável, dissimulada e esperada.
A filosofia é o espírito, a filologia é a letra, mas os românticos nem por isso
mudam a letra do idealismo, correndo o risco de fazer dos actos do eu outros
tantos espíritos independentes. F. Schlegel concentra a agilidade ou a
genialidade do eu na fulgurância da intuição intelectual, que sela a amizade de
dois pensamentos incompatíveis; a poesia assenta então na matemática
obscura, ao mesmo tempo instintiva e consciente, do Witz (o dito espirituoso).
O idealismo mágico de Novalis liberta antes a imaginação produtiva; a alma do
poeta torna-se o espelho interior e caótico da natureza, o lugar onde as coisas
alheias se encontram, se animam, ou se ensombram num sonho mortal. Mas o
génio romântico culmina numa reflexão infinita: a autolimitação do sujeito
situa então a sua escrita num ponto em que se equilibram criação e destruição.
A imaginação torna-se potência crítica, o Witz ganha a forma (infinita) da
ironia, e a obra poética torna-se o reflexo da individualidade característica do
poeta, mas também o símbolo de um inacabamento, ou o fragmento fechado
sobre si mesmo da obra absoluta. É por isso que os fragmentos da Athenaeum
são o apogeu do primeiro romantismo. Após a sua publicação, este último é
como que conquistado pela sua fulgurância e depressa se funda sob a pena de
F. Schlegel, convertido ao misticismo religioso de Schleiermacher: à ironia
substitui-se o sacrifício do artista. Mas ao mesmo tempo esse romantismo
renasce das suas cinzas porque não parou de se retraduzir: nos contos e nos
romances (Novalis, Tieck), no romance teórico (a Lucinda de F. Schlegel), e
depois nas obras de Brentano, Kleist, Hoffmann, Lenau, e muitos outros.
500 Fragmento 332. Os fragmentos da Athenaeum foram traduzidos para francês e publicados em P.
Lacoue-Labarthe e J.-L. Nancy, L’Absolu littéraire, Paris, Seuil, 1978, p. 98-178.
As lendas
As interpretações de Hegel desafiam por vezes as regras de uma
hermenêutica razoável. Algumas teses que lhe são atribuídas fazem ofício de
véu para a leitura dos textos, já de si tão exigente. Não é inútil verificar os
principais lugares comuns que organizam a percepção dominante do
hegelianismo.
3) Kojève, que fez dela o eixo de uma interpretação global da obra de Hegel,
julgou poder fazer da «dialéctica do amo e do escravo» simultaneamente o
paradigma do que se deve entender por dialéctica e uma parábola sobre a
génese da humanidade e da sociedade. O tema aparece no início do capítulo 4
da Fenomenologia do Espírito. Segundo Kojève, essa passagem significa que o
acesso à consciência de si, portanto à humanidade, não passa tanto pelo
conhecimento como pelo reconhecimento; ele procede de um confronto no qual
o vencedor imediato (o amo) é no fim de contas dominado pelo vencido (o
escravo). Este, condenado pelo seu temor da morte ao trabalho servil,
empenha-se por isso num processo de aculturação que lhe irá permitir triunfar
sobre o mestre, votado à fruição ociosa e estéril. Há lugar para contestar esta
interpretação. A própria escolha dos termos «amo» e «escravo» é discutível.
Traduzir Herr por amo ilude o parentesco da palavra com Herrschaft, o
exercício de um poder (legítimo ou não) do homem sobre o homem; herrschen
é mais reinar do que dominar, e em todo o caso não é reduzir à escravatura.
Quanto à tradução de Knecht por escravo, ela induz uma confusão entre a
servidão originária e política que constitui o reconhecimento extorquido
instaurado por ocasião do confronto e o estatuto económico e social do escravo
(Sklave) nas sociedades antigas. Para mais, a interpretação de Kojève forma um
impasse acerca daquilo a que Hegel chama o espírito absoluto (a arte, a religião
e a filosofia) e confere um privilégio excessivo àquilo a que chama o espírito
finito. Enfim, o próprio Hegel ofereceu na Enciclopédia uma apresentação do
combate pelo reconhecimento que proíbe fazer da «dialéctica do amo e do
escravo» a matriz de uma interpretação do conjunto da sua obra:
O combate pelo reconhecimento e a submissão a um amo são o fenómeno no seio do qual surgiu
a vida em comum dos homens, como um começo dos Estados. […] Esse é o começo exterior, ou o
começo no fenómeno dos Estados, não o seu princípio substancial519.
Não é a ideia universal que se expõe ao conflito, ao combate e ao perigo; ela mantém-se ao
fundo, ao abrigo de qualquer dano. Pode chamar-se malícia da razão ao facto de ela deixar agir em
seu lugar as paixões […]. A ideia paga o tributo da existência e da caducidade não por si mesma,
mas através das paixões dos indivíduos527.
Sob a relação da história lidamos com o que foi e com o que é, mas em filosofia não se trata
apenas do que foi ou do que será, mas do que é e do que é eternamente: da razão, e com ela já
temos para fazer quanto baste528.
O sistema
A ideia de sistema está no centro da filosofia moderna, singularmente desde
Kant. O que é próprio de um sistema científico é que os conhecimentos estejam
nele organizados segundo um «conceito racional» que determina «o fim e a
forma do todo»534. Mas, para os pós-kantianos, a sistematicidade não concerne
apenas o mero modo de exposição; ela exprime o carácter autofundador da
filosofia. Seguindo essa concepção forte da sistematicidade, Hegel faz da
apreensão da totalidade («o verdadeiro é o todo») a pedra de toque da liberdade
do saber: a «ciência do absoluto é essencialmente sistema» porque «o
verdadeiro não o é senão enquanto totalidade», e a «necessidade» da sua
organização é a própria expressão da «liberdade do todo»535. Essa preocupação
de sistematicidade não é incompatível com a do concreto: o pensamento
hegeliano combina os interesses especulativos mais elevados e a atenção às
realidades comuns. É o próprio Hegel que concebe ambiciosos programas
metafísicos e que lê os economistas e os historiadores ou se interessa pelo
destino da Alemanha. Esse sistema do real, essa Realphilosophie na qual ele
trabalha não deve ser o seu sistema, mas o sistema da filosofia, que deve
pensar na sua totalidade (natural e espiritual) a dialecticidade do real. É preciso
atribuir um nome e achar um lugar para aquilo que permite pensar «a
identidade da identidade e a não-identidade536»: esse nome será o conceito, e
esse lugar, a lógica.
O prefácio da Fenomenologia do Espírito expõe essa compreensão do
sistema como filosofia do conceito: «A figura verdadeira na qual existe a
verdade não pode ser senão o sistema científico desta537.» Mas, por o conceito
ser um processo dialéctico que inclui o momento da negatividade, a
Fenomenologia propõe uma concepção dinâmica da sistematicidade, opondo-
se à representação comum de um acabamento do saber. O sistema não é um
«círculo que repouse fechado em si mesmo538»; ele é antes «o devir de si
mesmo539». Essa circularidade dinâmica exprime-se no carácter subjectivo do
processo de verdade: «Aquilo de que tudo depende […] não é de apreender e
exprimir o verdadeiro como substância, mas de o apreender e de o exprimir
enquanto sujeito540.» Mas o sujeito não é a subjectividade finita (humana). A
subjectividade é antes de mais a propriedade do conceito enquanto produção de
si, e não de uma substância, ainda que ela fosse pensante. Esta última é antes
uma imagem mutilada da verdadeira subjectividade. Conceito, sujeito, sistema:
estas determinações formam corpo. Há que acrescentar-lhes o termo que
procura unificá-las, o espírito:
Que o verdadeiro seja efectivo apenas como sistema, ou que a substância seja essencialmente
sujeito, está expresso na representação que enuncia o absoluto como espírito541.
É porque o absoluto é espírito que o verdadeiro não pode dizer-se a não ser
como sistema. Mas o que se deve entender por espírito? É ao redigir a
Fenomenologia que Hegel se apercebe da necessidade de superar uma
concepção estritamente consciencial do espírito, o que lhe permite identificar a
«ciência» (o sistema) e o «espírito que se capta como espírito». O sistema da
ciência é a explicitação pelo espírito do seu próprio conceito.
Círculo de círculos, o sistema acolhe a contingência no que esta tem de
aparentemente irredutível ao conceito. Mas a contingência não é a liberdade;
convém portanto justificar também a ligação necessária da necessidade e da
liberdade. A Lógica apresenta tal ligação como aquilo que há de mais difícil
para pensar. A transição da substância para o conceito, da «lógica objectiva»
para a «lógica subjectiva», descreve a constituição da liberdade no próprio seio
da necessidade. A necessidade não é suprimida, mas aufgehoben, elevada pela
sua superação à sua significação verdadeira; a um tempo estabelecida como
necessidade e ordenada para a livre processualidade do conceito. Mas se «a
verdade da necessidade é a liberdade», e se esta última é a mais alta
determinação do conceito, então o próprio sistema deve ser entendido como
dinâmica de autoprodução da verdade. O sistema não é aberto no sentido em
que seria indefinidamente revisível: há apenas um sistema. Mas esse sistema
está em processo. Um tal processo não pode fechar-se num ponto qualquer, e é
por isso que a verdade do sistema se joga em cada um dos seus momentos. O
absoluto hegeliano é utópico: ele não reside em parte alguma, embora as suas
expressões sejam ordenadas pelo movimento do conceito. A circularidade do
saber sistemático é a manifestação última da capacidade deste para engendrar a
sua própria alteridade: no termo da Lógica, a ideia «despede-se livremente de si
mesma542» para se fazer natureza, «ideia na forma do ser-outro543». É na
completa alienação que ela faz prova da sua liberdade: o conceito demonstra a
sua potência ao reconhecer-se num elemento de radical alteridade.
A Enciclopédia executa o programa de um sistema que expõe o ponto de
vista, não de um sujeito singular (isso seria um sistema), mas do espírito
captado como dialéctica da constituição de si:
Por sistema, entendemos falsamente uma filosofia provida de um princípio limitado, diferente de
outros princípios; pelo contrário, o princípio de uma filosofia verdadeira é o de conter em si todos
os princípios particulares544.
505 Comparar com Hegel, Princípios da Filosofia do Direito: «O que é racional é efectivo; e o que é
efectivo é racional.»
508 Ibid., 2, 6.
510 Ibid., 1, § 6.
514 Ibid.
515 Ibid.
520 R. Haym, Hegel et son temps, trad. francesa do original alemão por P. Osmo, Paris, Gallimard, 2008, p.
421.
524 Correspondência, 2.
528 Ibid.
529 Ibid.
530 Ibid.
531 Ibid.
538 Ibid.
539 Ibid.
540 Ibid.
541 Ibid.
O que resta após a supressão total da vontade é efectivamente o nada. Mas pelo contrário, para
aqueles que converteram e aboliram a vontade, é o nosso mundo actual, este mundo tão real com
todos os seus sóis e todas as suas vias lácteas, que é o nada550.
546 Ibid.
551 Collected Works of John Stuart Mill, J. M. Robson et al. (ed.), 33 vols. Londres, Routledge, 1963-1991,
I, p. 171.
O temor dos malfeitores e das bestas ferozes obriga a viajar no deserto com grandes caravanas.
Os indivíduos também têm hoje um certo horror à existência por ela estar abandonada por Deus;
não ousam viver senão em grandes sociedades e juntam-se en masse567 uns aos outros para ainda
assim serem qualquer coisa568.
Há «massa» desde que o homem seja levado pelo «temor dos homens569» a
não se fazer notado, ainda que em todas as situações da vida ele se oriente em
função dos outros. Estes últimos, por seu turno, orientam-se segundo a média, e
é o nivelamento que, por toda a parte, se apodera de todos570. Com a máxima
«como os outros571», os indivíduos crêem poder desligar-se de toda a
responsabilidade e do peso da existência, ao passo que, na verdade, já não são
eles mesmos.
É na ciência que os contemporâneos desorientados buscam ao mesmo tempo
um ponto de vantagem e uma protecção. Isso é particularmente verdadeiro para
o sistema hegeliano. Este coloca-se bem acima do indivíduo: existir implica um
devir. Está além disso ligado à mobilidade da história. Segundo Kierkegaard, a
pretensão de Hegel de haver submetido – no sentido da mediação dialéctica – o
devir à lógica é infundada: «Não pode haver sistema da existência572.» Tentar
apreendê-la pelo pensamento sobre o devir do indivíduo e da história da
humanidade fracassa, segundo Kierkegaard, perante o «absurdo» e o
«paradoxo». Ser chamado a determinar o próprio eu pelos actos que se
escolheu – ainda que esse eu se revele somente nas escolhas a que procede –,
ser entregue à morte que escapa a toda a previsibilidade, dever realizar a
liberdade na base do que está já decidido pela facticidade: tudo isso mostra a
estrutura paradoxal da existência. O cumprimento da existência requer então
que o indivíduo «suspenda» o pensamento (na sua pretensão ao universal) e
efectue o «salto» na «fé» – no sentido da confiança numa liberdade obtida pela
graça divina e pela transparência a si573. No que concerne a história cristã da
salvação, o paradoxo – e antes de tudo, o «paradoxo absoluto574» pelo qual
Deus deve aparecer no tempo e sofrer o martírio da Cruz – opõe-se, segundo
Kierkegaard, à tentativa hegeliana de reinterpretar essa história como um
processo lógico e racional. A religião não se deixa «abolir» na ciência, como
Hegel tenta fazer. O paradoxo não permite ter uma relação intelectual e
distanciada com os conteúdos da fé. Ele suscita seja o «escândalo575», seja a fé,
isto é uma relação interessada que empenha a própria existência e a maneira
como esta se cumpre.
Entre os fenómenos típicos da época, conta-se também o romântico.
Diferentemente do pequeno-burguês, que Kierkegaard despreza, o romântico
reconhece de bom grado a esfera do possível, do fantástico, do abissal, do
ideal. Ainda que o romântico se considere como um ser único e cheio de
espírito, segundo Kierkegaard ele carece precisamente de espírito e não pode
ser ele próprio, uma vez que se perde no infinito. Ele já não consegue
reintegrar a possibilidade e o ideal no factual. O carácter romântico manifesta-
se como uma fraqueza que não quer estabelecer-se na realidade. O que há de
exemplar e de grandioso no passado, o «herói», não aguarda que o
admiremos576, mas que o imitemos. A repetição – diferentemente da atitude
romântica, voltada para o passado – é o movimento «para diante» que deve
conduzir o homem à imortalidade que lhe está prometida e que se posta diante
dele577. A repetição reclama o reconhecimento do factual; ela exige que «nos
inclinemos diante do que há de necessário em si mesmo578» e que nos
confrontemos com o passado no cumprimento do «arrependimento579».
Enquanto os pseudónimos cada vez diferentes iluminam de maneira crítica
estes fenómenos da época, o conceito kierkegaardiano de existência desenha-se
como um «correctivo», embora a bem dizer ele não surja no seio de uma
elaboração sistemática nem de uma terminologia unificada. À «massa» opõe-se
o «indivíduo», ao pequeno-burguês opõem-se o facto de «ser si» e o «espírito»,
à exaltação do romântico, a «repetição». Ao invés do pensador sistemático, que
é pintado como uma figura cómica por colocar um abismo entre a vida e o
pensamento, o «pensador da existência» surge como aquele que tem um
«interesse infinito pela existência»580.
Há três esferas da existência: as esferas estética, ética e religiosa […]. A esfera estética é a esfera
da imediatez, a esfera ética é a da exigência […], a esfera religiosa, a do cumprimento591.
556 Ibid.
565 A Doença.
566 Ibid.
569 A Doença.
570 Um Balanço.
571 A Doença.
572 Pós-Escrito, I.
574 Pós-Escrito, I.
575 A Doença.
576 Sobre a «admiração deslocada» que pensa poder dispensar-se do ético, cf. Pós-Escrito, II.
578 A Doença.
579 A Alternativa.
582 A Doença.
583 A Alternativa.
587 A Doença.
588 Ibid.
589 Ibid.
590 A Doença.
593 Ibid.
594 A Doença.
Filologia e filosofia
O período universitário de Nietzsche, em Bona, testemunha uma
personalidade inquieta e insatisfeita: o jovem procura o seu caminho; os seus
centros de interesse e as suas paixões, numerosas e díspares – com a música no
primeiro plano –, acarretam uma grande dispersão, que ameaça conduzi-lo a
um diletantismo estéril. Mas Nietzsche manifesta também a vontade de não
sofrer as paixões violentas do seu temperamento; experimenta a necessidade de
as dominar, transformando-as em consciência crítica, em experiências de
escrita e de estilo que integra deliberadamente na construção de si mesmo. É
um Nietzsche «apaixonadamente severo» que aos perigos em que incorre opõe
a probidade do estudo, o método da história crítica e as armas da filologia
aprendidas na escola de Pforta. Nietzsche marca a história dos estudos
clássicos com um contributo significativo, nomeadamente pelos seus trabalhos
sobre Diógenes Laércio e Teógnis. A sua competência de filólogo junta-se ao
seu profundo conhecimento da filosofia de Schopenhauer, mestre de sabedoria
e de vida, que ele estuda a partir do Outono de 1865. Mas, muito rapidamente,
Nietzsche critica os fundamentos metafísicos da doutrina de Schopenhauer,
referindo-se a um fenomenismo radical e neokantiano – a leitura da História do
Materialismo de Lange teve nele uma influência decisiva. No entanto,
Schopenhauer é designado como o filósofo mais verdadeiro, aquele que
exprime uma Alemanha regenerada, por se opor à filosofia ensinada na
universidade e a uma abordagem puramente histórica da Antiguidade, cujo
espírito os estudos filológicos da época, por estreiteza de vistas, são incapazes
de apreender. A relação entre o espírito filosófico («dador de ordem») e o
espírito filológico («operário de oficina») regressa por diversas vezes às
reflexões do jovem Nietzsche, que conclui a sua lição inaugural de Basileia596
com a profissão de fé «o que foi filologia tornou-se doravante filosofia».
A metafísica da arte
Com A Origem da Tragédia (1872), Nietzsche aborda o mundo grego
renovando a sua prática filológica, embora mantendo-se do lado de Wagner
para defender o renascimento da cultura alemã.
O tema filológico da tragédia grega (das suas origens e, sobretudo, do seu
fim) quase desaparece, arrastado por uma visão metafísica de conjunto e pela
urgência do projecto cultural. O inimigo principal do trágico é o optimismo
socrático que afirmou o valor da ilusão dos fenómenos e levou à destruição do
indivíduo, quando ele se reflecte naquela bela comunidade grega, levada pelos
seus instintos vitais e pelos seus fundamentos míticos. Tudo isso se inscreve na
perspectiva schopenhaueriana da contradição entre a unidade metafísica
original e a individualização fenomenal (a aparência) faltosa. Essa falta, que
implica a própria existência, apela a uma redenção estética. A contradição
original reflecte-se na oposição entre Dionísio e Apolo no próprio seio da
natureza. Apolo diviniza o princípio da individualização (como forma, beleza
da aparência, sonho) que liberta do sofrimento. Dionísio, pelo contrário, é a
expressão imediata da força primitiva que destrói o indivíduo, reabsorvendo-o
na unidade original. O sofrimento da individualização transforma-se finalmente
– com uma «consolação metafísica» – num prazer superior, uma vez que o
próprio indivíduo participa da sobreabundância do Ur-Ein.
O esquema que Nietzsche segue para apresentar os princípios apolíneo e
dionisíaco só à primeira vista é linear. Os termos que definem esses princípios
são antitéticos e produzem oposições sobre as quais estão articulados os
fenómenos estéticos: escultura e música, poesia lírica e poesia épica. Na
realidade, Dionísio e Apolo não são os termos extremos de uma contradição:
toda a cultura apolínea se apresenta como uma máscara que permite suportar o
carácter trágico da existência, como que um esforço intenso para tentar ocultar
o fundo dionisíaco por detrás da construção de formas estáveis e
tranquilizantes.
Em A Origem da Tragédia, está presente uma espécie de filosofia da história
que se joga nos dois princípios em busca da sua unidade. O eterno sujeito
criador encontra na arte a sua consolação e a sua razão de ser. O artista (o
génio) é por seu turno, para a natureza, obra de arte, suprema realização – e sua
justificação. A criação artística encontra a sua origem na sua identidade
inconsciente com o Uno original, único autor e espectador da comédia, que tira
dela e para si mesmo uma fruição sem fim.
A civilização grega é uma construção piramidal que culmina com a
afirmação do génio e está estreitamente e solidamente ligada à vitalidade do
instinto. Por isso ela mantém uma relação não destrutiva com o fundo trágico,
que encontra no génio uma maneira satisfatória de exprimir as suas
capacidades expressivas e artísticas. Para o mundo germânico, o génio é
Wagner; Nietzsche havia estabelecido com ele relações de amizade e o trabalho
teórico que o músico elaborara acerca do drama musical (Beethoven, 1870)
parecia-lhe mesmo «a filosofia da música».
No prefácio à edição de 1886 de A Origem da Tragédia, Nietzsche explicará
que uma das razões para o apagamento da descoberta do elemento dionisíaco
no mundo grego se prende com a adopção «romântica» das referências
estéticas ligadas a Wagner e a Schopenhauer. No entanto, mesmo quando se
mostrou severamente autocrítico, Nietzsche sempre considerou que esta obra
reunia a maior parte dos problemas que iria estudar ao longo de toda a sua vida,
trazendo-lhes diferentes respostas (a relação entre a arte e a ciência, entre a arte
e a vida, o pessimismo da força e da decadência, etc.).
GIULIANO CAMPIONI
597 A Filosofia na Época da Tragédia Grega, e Acerca da Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral.
598 Fragmentos Póstumos (1872-1874), (32[32], 1874), in G. Colli e M. Montinari (ed.), Werke. Kritische
Gesamtausgabe (doravante KGW), Berlim, de Gruyter, 1967-, III, 4, p. 379.
Que objecto?
O quadro é ainda mais complexo quando nos interessamos pelo objecto dessa
ciência: a sociedade. Observar-se-á que, tanto para essa ciência como para
todas as outras, o objecto pré-existe ao seu estudo, ainda que tal evidência seja
mais voluntariamente contestada e contestável a propósito da sociologia do que
a propósito da física ou da biologia: o «facto social» e a sociedade não são
provavelmente realidades tão antigas quanto o mundo material ou a vida.
Hannah Arendt defendeu a ideia de que a sociedade, agregação de vidas
privadas singulares, se substituiu, ao passar do mundo antigo para o mundo
moderno, à cidade e à comunidade política609. O termo «sociedade» não tem
com efeito um equivalente satisfatório na língua grega e o latim societas
designa primitivamente um agrupamento de homens particulares, ligados por
um interesse comum (affectio societatis610), sem que isso possa englobar a
totalidade da população: as sociedades (civis ou comerciais) não devem ser
confundidas com a sociedade. O nascimento da ciência da sociedade está
portanto historicamente determinado pelo nascimento da sociedade – pôde
assim falar-se da «invenção da sociedade611» ou da «invenção da sociedade
civil612». Infelizmente, o objecto «sociedade» não coloca simplesmente um
problema vertical (quando aparece ele?); coloca igualmente um problema
horizontal (em que se distingue a «sociedade» das outras realidades
colectivas?): com efeito o termo sociedade coabita precocemente com toda
uma série de expressões que constituem outros tantos «falsos sinónimos»
problemáticos: «sociedade civil», «comunidade», «contrato social»,
«sociabilidade», «povo», «população», «grupo», «cidade», «associação», etc.
Estes «falsos sinónimos», se favorecem o trabalho filosófico de distinção613,
complicam a tarefa do historiador que não só deve evitar confundir os
nascimentos da sociologia e da ciência social – a expressão «ciência da
sociedade», aqui preferida, favorece uma abordagem global e «neutra» – mas
também, por exemplo, os nascimentos da ciência da «sociedade civil», da
enumeração da «população» e das teorias do «contrato social».
Questões de método
Para tentarmos situar-nos nesta nebulosa de noções e de etiquetas, convém
que nos limitemos a um inquérito elementar: procurar-se-á aqui descrever o
nascimento da ciência da sociedade através da questão da cientificidade do
método e da especificação do objecto. Por outras palavras, será ligado à
história da ciência da sociedade todo o discurso que se apreenda
reflexivamente, por um lado, como discurso «científico» (o que não significa
que ele seja necessariamente redutível ou assimilável à cientificidade das
ciências da natureza ou da matemática) e, por outro lado, que vise determinar
explicitamente como «social» o objecto de que trata. Em suma, um duplo
critério, epistemológico e ontológico. Esta problemática pode parecer
irrazoavelmente restritiva, na medida em que acaba por desprezar os textos que
possuam um valor sociológico sem serem construídos para tal fim. Afastam-se
assim as fontes anteriores à emergência da noção de sociedade, como as fontes
antigas, que permitem no entanto elaborar uma «sociologia da Antiguidade»
(genitivo objectivo – mas carece-se do genitivo subjectivo). Não se consideram
também as obras literárias, de bom grado portadoras de um «conhecimento»,
por vezes muito fino, da sociedade e da psicologia social. Tal restrição tem
porém como virtude saber do que se fala e evitar um «sociologismo» de mau
agouro: «tudo é sociológico» tal como «tudo é político» – dizer isso é nada
dizer. Ela leva-nos a restringir cronologicamente a exposição do nascimento da
ciência da sociedade nos séculos XVIII e XIX – de 1748 a 1895, mais
precisamente, ou seja, da publicação de O Espírito das Leis de Montesquieu à
publicação de As Regras do Método Sociológico de Durkheim.
Sociólogos e precursores
Numa obra614 que continua a ser um dos grandes clássicos da história da
sociologia, Raymond Aron distingue os «fundadores» da sociologia
(Montesquieu, Tocqueville, Comte, Marx) dos sociólogos da «viragem do
século» (Weber, Pareto, Durkheim). Mais recentemente, Bruno Karsenti615
procurou reafirmar que a verdadeira «ciência social» nascera com Augusto
Comte, que se considerava a si mesmo o inventor da «sociologia»,
correspondendo as anteriores teorizações da sociedade a intuições
fragmentárias, por vezes engenhosas, mas desprovidas de sistematicidade.
Porém, Émile Durkheim considerava tanto Montesquieu como Comte
«antepassados» da ciência social científica e não verdadeiros «sociólogos».
Como se vê, de uma leitura a outra, a origem da sociologia (ou da «iniciativa
sociológica») pode ser situada com uma diferença de quase dois séculos,
segundo se retenha Montesquieu, Comte ou Durkheim como ponto de partida –
o precursor, o pioneiro, ou o universitário. A categorização mais persuasiva é
provavelmente aquela que distingue uma era disciplinar e uma era pré-
disciplinar da sociologia616: antes de Comte, existem «teorias sociais»,
concebidas de maneira científica e que identificam distintamente o objecto a
descrever, mas elas não se organizam no seio de uma disciplina que tenha por
vocação ser estudada e ensinada. De jure, essa disciplinarização é um feito de
Comte, mas ela é cumprida, de facto, por Durkheim.
Montesquieu e Rousseau
Se há uma «pré-história» da ciência da sociedade incarnada tanto pelas
tentativas – muito antigas – de recenseamento da população como pelos
moralistas do século XVII, antropólogos à sua maneira, a história da ciência da
sociedade é verdadeiramente inaugurada pelos «filósofos» do século das Luzes,
nomeadamente Montesquieu e Rousseau. A maior parte dos historiadores das
ciências sociais concorda que o nome de Montesquieu (1689-1755) incarna a
primeira grande figura das suas ciências, pois encontram nele a tomada de
consciência da incapacidade dos discursos político e jurídico para razoarem a
realidade social na sua globalidade. É a altura de vistas de Montesquieu que lhe
permite descrever a partir do interior aquilo que escapa ao olho do politizador e
do jurista. O Espírito das Leis vai dar uma «densidade» positiva à matéria
política e jurídica ao fundar-se em dados históricos, geográficos, climáticos,
financeiros: ao procurar identificar a relatividade dos princípios político-
jurídicos e as razões que presidem a essa relatividade (as leis da variação da
lei), Montesquieu apoia-se nas intuições antropológicas de Montaigne mas
inverte integralmente o cepticismo deste. Montesquieu inaugura a ciência
social por compreender que não há invariante por detrás do termo «sociedade»,
mas regras que determinam as variações internas desses conjuntos, o que, ao
mesmo tempo, instala a «cientificidade» do discurso «social», ou seja, a sua
racionalidade, a sua regularidade, a sua generalidade.
A acção de Rousseau (1712-1778) ilustra menos directamente este projecto
de uma ciência da sociedade, provavelmente porque Rousseau é muito mais
antropólogo do que sociólogo: o facto social não lhe interessa senão na medida
em que permita esclarecer a ciência do homem, ao passo que a invenção da
sociologia, em Montesquieu, o leva antes a apoiar-se no conhecimento da
humanidade para pensar os factos sociais. Nem por isso deixa de ser verdade
que o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens ou o Ensaio sobre a Origem das Línguas, tal como, em certa medida,
a Carta a d’Alembert sobre os Espectáculos constituam etapas importantes da
história da ciência social620. No entanto, a reflexão rousseauniana está
largamente ancorada no horizonte político-jurídico e «pré-sociológico», como
prova O Contrato Social, que reafirma, tal como o jusnaturalismo moderno, a
necessidade da passagem pela ligação jurídica para realizar a verdadeira
ligação social. Ao opor ontologicamente uma simples agregação de indivíduos
justapostos, incapaz de vontade geral, e a associação institucionalmente
instituída pela lei, só ela susceptível de manifestar a soberania do povo,
Rousseau mantém-se epistemologicamente distante do projecto sociológico.
Os anglo-escoceses
A contrario, David Hume (1711-1776) reconhece a consistência da ligação
pré-política621 e instaura assim os fundamentos antropológicos de uma ciência
da sociedade que, precisamente, não se resuma a uma antropologia. Hume é
também aquele que inventa uma nova maneira de ler a história622, enquanto
terreno de uma ciência empírica, para além da edificação política e da erudição
comparatista. Abre assim caminho a autores como Adam Ferguson (1723-
1816) e Adam Smith (1723-1790), cuja extraordinária importância na génese
da sociologia foi mostrada por Claude Gautier. Ferguson e Smith prolongam as
intuições humeanas, articulando-as com as teses de Mandeville (1670-1733), a
fim de mostrar que pela conjunção de uma «sociabilidade» – sob a forma da
simpathy, da capacidade para partilhar o afecto de outrem – e de um interesse
individual bem compreendido, pode explicar-se o desenvolvimento da
«sociedade civil» sem necessitar da hipótese da ligação jurídica livremente
consentida. A sociedade não necessita do Estado para existir623 e, como tal, os
recursos da filosofia jurídica e política são insuficientes para explicar o facto
social. De Mandeville a Ferguson, passando por Hume e Smith, surge uma
outra ideia forte, que terá uma bela posteridade: a racionalidade individual não
basta para justificar a racionalidade colectiva, ou, mais exactamente, o que é
visado pelo indivíduo distingue-se fortemente daquilo que a sua acção produz
quando ela encontra as outras acções individuais. O todo é mais do que a soma
das partes. A lição da Fábula das Abelhas de Mandeville é a seguinte: a soma
de comportamentos puramente egoístas produz um bem colectivo impossível
de compreender à escala do indivíduo: é inútil trabalhar individualmente para o
bem da sociedade; basta trabalhar para o seu próprio bem, e a sociedade
beneficiará disso. Smith formula a ideia falando de «mão invisível», ao insistir
na virtude inerente ao processo de socialização. Adam Ferguson sublinha por
seu turno os elementos mais deletérios saídos dessas somas de vontades
individuais por vezes animadas de más paixões: ele prefigura assim a teoria
contemporânea dos «efeitos perversos» da ordem social.
Condorcet e Sieyès
Essas duas grandes teses, a da autonomia da esfera social em relação à esfera
político-jurídica, e aquela que enuncia a diferença de natureza entre o todo e a
soma das partes, percorrem historicamente a preocupação política da
enumeração da população, constituindo a primeira base «positiva» da ciência
da sociedade e abrindo caminho à ciência demográfica, cuja primeira grande
figura será Adolphe Quételet (1796-1874). O século XVIII é com efeito o da
emergência da «aritmética política624», das estatísticas que permitem qualificar
e quantificar a população presente num território. Metodologicamente, essa
nova ciência apoia-se nos avanços do instrumento probabilista na matemática
desde o século XVII. Robustecida com essa metodologia e com os dois
princípios fundamentais herdados das filosofias anglo-escocesas, a ciência da
sociedade pode prolongar as intuições de Montesquieu atribuindo-lhes um
conteúdo rigoroso, indo além da compilação de dados e de saberes por vezes
incertos. É então o tempo da «arte social», fórmula partilhada por Condorcet e
Sieyès. Como mostrou Jean-Louis Morgenthaler625, a história da sociologia
não apreendeu ainda toda a dimensão do contributo desses dois autores para a
ciência da sociedade: Condorcet (1743-1794) foi abusivamente «historicizado»
(por Comte em primeiro lugar) e Sieyès abusivamente «politizado», o que
levou a que se desprezasse a importância histórica de ambos. Deve-se porém a
Condorcet626 uma tentativa sem precedente – e infelizmente sem grande
posteridade – de juntar a teoria da decisão, a estatística, a ciência política, os
direitos fundamentais e a pedagogia. E deve-se a Sieyès627 (1748-1836) a forja
termo de «sociologia» e a definição muito exacta dos respectivos lugares das
ciências jurídicas e sociais. Como escreve Jean-Louis Morgenthaler: «A
sociedade, para Sieyès, é uma combinação permanente entre uma construção
de que o direito é o utensílio conceptual, e um dado, o organismo social, do
qual a sociologia é a ciência.» Deve notar-se um uso significativo dessa
fórmula, «arte social», na Opinião do 2 Thermidor ano III628, quando Sieyès
procura demarcar-se de Montesquieu: para ele é a ocasião de lhe mostrar que a
ciência da sociedade não deve ser confundida nem com o conhecimento da
história, nem com a arte das montagens constitucionais. A acção política, por
intermédio da legislação, é sempre a posteriori, quando a arte social permitiu
isolar os princípios de organização da população que se trata de governar. A
arte social é assim uma ciência crítica: a das condições de possibilidade a
priori da acção político-jurídica. É essa mesma arte social que opera para
Sieyès, quando, nas Opiniões sobre os Meios de Execução…, ele descreve a
organização jurídica do Antigo Regime como uma «desordem inveterada».
Enquanto não houver apreensão possível pela razão de uma totalidade
organizada, os indivíduos que povoam a nação estão simplesmente justapostos,
aglomerados. A nação exige ser «reconhecida», mais do que «constituída»,
rompendo com as falsas «classificações» e as más «ordens» (privilegiadas). Em
O Que é o Terceiro Estado?, Sieyès descreve a nação como «entravada»,
«limitada» pela política de distinção das ordens. Para Sieyès, a arte social deve
permitir identificar com precisão as necessidades de uma população, bem como
os modos de optimização da sua riqueza total – e para atingir isso, é preciso
reconhecer e proclamar os direitos fundamentais dos indivíduos, a fim de
erguer uma verdadeira «comunidade» nacional unificada. O termo «comum»
está de resto no centro da reflexão sociológica de Sieyès, que lhe atribui o
sentido de um «como um», ou seja de uma totalidade em movimento em
direcção à unidade. Fala assim de «adunação», de encaminhamento para o
Uno:
Sinto desde há muito a necessidade de submeter a superfície da França a uma nova divisão. Caso
deixemos passar esta ocasião, ela não voltará mais, e as províncias guardarão eternamente o seu
espírito de corpo, os seus privilégios, as suas pretensões, os seus ciúmes. A França jamais chegará a
essa «adunação» política que tão necessária é para não fazer mais do que um povo regido pelas
mesmas leis e nas mesmas formas de administração629.
Bonald e Hegel
Nem a abordagem estatística de Condorcet nem a «sociologia» de Sieyès
tiveram posteridade imediata. Augusto Comte rejeitou muito amplamente o
instrumento probabilista, vendo na abordagem de Condorcet um «preconceito
metafísico» a favor da matemática630, e Sieyès – tal como Condorcet – pagou
visivelmente pela sua ligação «metafísica» aos direitos do homem. É preciso
esperar por Durkheim para que a estatística e Condorcet sejam reabilitados no
pensamento sociológico; não tendo pelo seu lado Sieyès sido seriamente
estudado pelos historiadores da sociologia antes destes últimos anos (nem
Raymond Aron, nem Robert Nisbet631, nem Friedrich Jonas632, nem ainda
Johan Heilbron o evocam, senão para fazer referência ao seu papel político).
Em compensação, a história da sociologia concedeu um lugar importante à
obra dos contra-revolucionários, que alimentou largamente a ciência social dos
séculos XIX e XX.
Bonald (1754-1840), autor em 1796 de uma Teoria do Poder Político e
Religioso, apela à fundação de uma «ciência da sociedade» na direcção oposta
da arte social de Condorcet e de Sieyès, na medida em que essa ciência deve
permitir demonstrar a absurdidade da Revolução Francesa e dos princípios que
a sustêm633. Bonald considera que longe de legitimar a ordem política e
jurídica pós-revolucionária, como pensava Sieyès, a compreensão da sociedade
lhe mostra a inanidade, a inutilidade e a perigosidade: segundo ele, a ciência da
sociedade deve substituir-se à ciência política, constituindo o ponto de chegada
e não o ponto de partida da inteligência social. Compreender a sociedade é
compreender que se deve validar aquilo que o facto social segrega
naturalmente – família, desigualdade, nobreza, tradição – e aperceber assim a
absurdidade e a desmesura do artificialismo jurídico que produz igualdade,
indistinção, liberdades subjectivas.
Separada do seu sentido político reaccionário, uma tal teorização é sedutora
para o pensamento sociológico, porque ela esclarece a consistência da ligação,
da relação social, da totalidade, e retira as ilusões do «sujeito» individualista.
De resto, no século XX, só depois de integrados na ciência social os contributos
da sociologia compreensiva de Max Weber, tanto no individualismo
metodológico de Raymond Boudon como na teoria do habitus de Pierre
Bourdieu, é que se puderam superar as precauções em relação ao subjectivismo
e à sua suposta ingenuidade. A crítica de uma subjectividade ingénua como
fundamento de uma ciência da sociedade não se encontra aliás somente no
pensamento contra-revolucionário, uma vez que Hegel634 (1770-1831) se apoia
numa análise da «sociedade civil» ou «sociedade burguesa» (bürgerliche
Gesellschaft) para esclarecer a passagem da moralidade individual (Moralität)
à ética pública (Sittlichkeit). Na segunda secção da terceira parte dos Princípios
da Filosofia do Direito, Hegel dedica-se assim a descrever o que, na vida
comum, escapa ao político e ao jurídico, ao mesmo tempo que o Estado
político e jurídico é a esfera de plenitude dessa «socialidade». A «sociedade
civil» hegeliana não é puramente «social» no sentido em que integre as
questões económicas e uma parte dos objectivos jurídicos; mas, no sentido em
que constitui, tal como a família e o Estado, uma «etapa» entre a esfera
individual e a esfera política, ela permite a elaboração de uma filosofia social
específica, distinta da filosofia moral e da filosofia política. Essa análise
hegeliana da sociedade civil desempenhou um papel essencial na história da
sociologia e do direito alemães dos séculos XIX e XX635.
Comte
Pode considerar-se Augusto Comte (1798-1857) como herdeiro de Bonald e
de Hegel na medida em que também ele entende superar a analítica do
indivíduo para chegar a uma plena inteligência do facto social, que para ele é a
verdadeira realidade humana. Mas contrariamente a Bonald, que procurava
fazer com que a filosofia política sofresse uma espécie de reductio ad
societatem, e contrariamente a Hegel, que fazia com que a ciência social
sofresse uma forma de reductio ad jus no quadro de uma filosofia do direito
concreto englobante, Comte pretende elevar a sociologia à mais alta das
políticas, concedendo ainda à ciência da sociedade o estatuto de uma ciência
que coroa e determina a totalidade dos saberes, à maneira de um saber
constituinte que se distinguisse dos saberes constituídos. Saber que, desde logo,
se tornaria a chave de toda a filosofia política ao ser a chave da compreensão
do espírito humano tal como este se manifesta – sempre socialmente. Bruno
Karsenti636 mostrou bem que havia, em Comte, uma «nuvem» que pairava
entre filosofia política e filosofia do espírito: a acção política supõe a ciência
social, no sentido em que esta permite à sociedade pensar-se como sociedade,
reconhecer-se reflexivamente e, a partir daí, deduzir desse conhecimento as
ideias adequadas para governar essa totalidade. Por outras palavras, e é uma
lição que Comte retém de Bonald, não poderia haver aí transcendência do
político em relação ao social: «O governo regular não pode ser senão uma
expansão da preponderância civil637.» A organização imanente à ordem social
das coisas tem vocação para primar sobre a esfera da pura vontade política: a
ciência torna-se então política na medida em que o conhecimento das coisas
sociais permite determinar as necessidades do corpo social e o sentido (a
direcção) do seu desenvolvimento. Da mesma maneira que a «liberdade» em
Espinosa se traduz pela capacidade de obedecer às suas próprias
determinações, a ciência social comtiana ilustra a necessidade para a sociedade
de cumprir o seu próprio destino, e assim ela se liberta, não escapando às suas
determinações, mas fazendo a triagem delas, aceitando e valorizando as suas
determinações internas – que são outros tantos sinais da sua «razão de ser» – na
abordagem assimptótica do poder e do saber.
Marx
A verdade do político está assim no social, e a filosofia política não poderia
fazer a economia de uma ciência da sociedade, fosse como prólogo (em
Condorcet ou Sieyès), fosse como cumprimento (em Bonald ou Comte). Tal
tese é também ilustrada pela obra de Marx (1818-1883), que nega à
superestrutura política e jurídica toda a realidade autónoma. Ontologicamente,
epistemologicamente e historicamente, convém a Marx relacionar essa
superestrutura com a infra-estrutura social e económica, indo para além das
ilusões ideológicas. A luta das classes sociais é o verdadeiro princípio
explicativo dos fenómenos histórico-políticos – é no socioeconómico que se
encontra o sentido último das montagens jurídicas e dos eventos políticos. A
sociologia de Marx638 dá provas de uma grande fineza na tipologia das classes
e na descrição das relações que elas mantêm. Mas essa sociologia tem dois
pontos fracos: o seu voluntarismo político e o seu economicismo. Marx não dá
à sociedade a sua oportunidade, no sentido em que, contrariamente a Comte,
ele considera que esta necessita de ser «orientada» pelo discurso político
revolucionário639. Por outras palavras, o «socialismo» não pode ser um
sociologismo integral, porque é um economismo. Marx também não reconhece
suficientemente a singularidade própria do social, atribuindo um lugar
preponderante aos objectivos económicos: a reductio ad œconomicam é posta
em jogo com frequência, com a luta de classes a assumir de bom grado a forma
de uma expressão «epidérmica» dos objectivos mais profundos (e só esses
reais) que respeitam à produção, ao domínio dos instrumentos de produção, ao
valor640.
Le Play […] não se opõe a uma ou outra concepção sociológica; ele está efectivamente fora do
movimento de ideias que deu origem a esta ciência. As suas preocupações nem sequer são
exclusivamente científicas, mas, em grande parte, apologéticas643.
Durkheim
Mas deixemos as margens e regressemos, para terminar, à corrente principal
da história da sociologia, com Émile Durkheim (1858-1917). A ciência da
sociedade conclui a sua mudança com este autor que, sob muitos aspectos,
opera uma síntese entre os elementos mais sólidos das filosofias anteriores ao
fixar, por um lado, uma definição rigorosa de «facto social» (ontologia) e, por
outro lado, um método para apreender cientificamente esse objecto
(epistemologia). Esse duplo projecto está exposto em detalhe n’As Regras do
Método Sociológico e é ilustrado na célebre obra O Suicídio. Durkheim
determina três características do «facto social»: ele é exterior, constrangedor e
colectivo. Exterior porque não depende da tomada de consciência individual.
Durkheim dá o exemplo do dinheiro, da linguagem: a sua existência não
depende do uso singular que eu faça deles. Mas o facto social não é apenas
independente de mim, ele é também constrangedor no sentido em que não
posso escapar a ele, mesmo se tal facto não é em nada um «dever moral»:
Não sou obrigado a falar francês com os meus compatriotas, nem a usar as moedas legais; mas é-
me impossível proceder de outro modo. Se eu tentasse escapar a esta necessidade, a minha tentativa
fracassaria miseravelmente. Se eu for um industrial, nada me proíbe de trabalhar com os
procedimentos e métodos do século passado; mas, se o fizer, arruinar-me-ei seguramente644.
Enfim, esse facto social é colectivo, o que equivale a dizer que o sociólogo
adopta uma certa leitura do real: assim, o casamento ou o suicídio são eventos
individuais, susceptíveis de uma descrição psicológica (fulano desposa sicrano
por tal ou tal motivo – atracção, amor, interesse; beltrano suicida-se por haver
tido tal ou tal experiência dolorosa), mas o olhar do sociólogo vai ter de
apreender essas realidades à escala colectiva graças a um instrumento
estatístico (a taxa de suicídio, que será seguidamente examinada fazendo variar
os parâmetros sociológicos: credo religioso, dia da semana, idade, etc.). O
objecto da sociologia é o «facto social» assim caracterizado. Esse objecto será
apreendido segundo uma metodologia particular que marca o carácter científico
do discurso sociológico e o faz escapar assim ao discurso filosófico. Essa
metodologia é objectivista: ela considera «os factos sociais como coisas», o
que implica romper com todo o finalismo, com toda a pré-noção, com toda a
psicologia. Em suma: é preciso «sociologizar» a sociologia – ela deve ser uma
«ciência autónoma».
O século XX respondeu às esperanças de Durkheim e a ruptura entre filosofia
e sociologia está agora consumada. Isso não impede certos filósofos de se
aventurarem no terreno da ontologia dos factos sociais (John Searle, por
exemplo645) nem certos sociólogos de se encostarem à filosofia crítica (como
Pierre Bourdieu646), mas as disciplinas evoluem doravante em esferas
largamente separadas.
PIERRE-YVES QUIVIGER
608 A arqueologia das ciências do homem foi estudada por M. Foucault (As Palavras e as Coisas) e, mais
recentemente, por F. Brahami (Le Travail du scepticisme; Paris, PUF, «Pratiques théoriques», 2001) e T.
Gontier (De l’homme à l’animal. Montaigne et Descartes ou les paradoxes de la philosophie moderne sur
la nature des animaux, Paris, Vrin, «Philosophie et mercure», 2000; Descartes et la causa sui, Paris, Vrin,
«Philosopie et mercure», 2005).
610 A expressão é ainda de uso corrente na língua jurídica contemporânea, particularmente no direito
comercial.
611 L. Kaufmann e J. Guilhaumou (dir.), L’Invention de la société. Nominalisme politique et science sociale
au XVIIIe siècle, Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales, «Raisons pratiques», 2003.
612 C. Gautier, L’Invention de la société civile, Paris, PUF, «Recherches politiques», 1993.
615 B. Karsenti, Politique de l’esprit. Auguste Comte et la naissance de la science sociale, Paris, Hermann,
2006.
616 J. Heilbron, Naissance de la sociologie, trad. francesa do original neerlandês por P. Dirkx, Marselha,
Agone, 2006.
617 Para a génese do longo curso dessa ciência do jurídico-político, ver os trabalhos de Q. Skinner, Os
Fundamentos do Pensamento Político Moderno.
618 C. Larrère, L’Invention de l’économie au XVIIIe siècle, Paris, PUF, «Léviathan», 1992.
619 D. Cohen, Le Peuple. De l’autre au différent. La contruction des identités individuelles et collectives
des classes populaires au XVIIIe siècle, tese de história, École des Hautes Études en Sciences Sociales,
2004.
620 Pode assim pensar-se, no segundo Discurso, nos desenvolvimentos consagrados à «festa» ou a
distinção entre amor-próprio e amor de si, que analisam a passagem do indivíduo ao grupo, e o efeito do
grupo sobre o indivíduo, por meio de uma atenção dirigida ao olhar, à disposição dos corpos e às relações.
621 F. Brahami, Le Travail du scepticisme, op. cit.; id., Introduction au Traité de la nature humaine de
David Hume, Paris, PUF, «Quadrige», 2003.
622 C. Gautier, Hume et les savoirs de l’histoire, Paris, Vrin/École des Hautes Études en Sciences Sociales,
2005.
623 P. Clastres, La Société contre l’État. Recherches d’antropologia politique, Paris, Minuit, 1974.
624 T. Martin (dir.), Arithmétique politique dans la France du XVIIIe siècle, Paris, INED, 2000; E. Brian,
La Mesure de l’État. Administrateurs et géomètres au XVIIIe siècle, Paris, Albin Michel, «L’évolution de
l’humanité», 1994.
625 J.-L. Morgenthaler, «Condorcet, Sieyès, Saint-Simon e Comte. Retour sur une anamorphose», Socio-
logos, revista publicada pela Associação Francesa de Sociologia, n.o 2, 1997.
626 K. M. Baker, Condorcet: From Natural Philosophy to Social Mathematics, Chicago, University of
Chicago Press, 1975.
628 E. J. Sieyès, Essai sur les privilèges et autres textes, Paris, Dalloz, 2007, p. 116.
629 Id., «Observations concernant la nouvelle organisation de la France», in Écrits politiques, Paris,
Montreux, Éditions des Archives Contemporaines, 1985, p. 247.
636 B. Karsenti, Politique de l’esprit. Auguste Comte et la naissance de la science sociale, op. cit.
637 A. Comte, Discours sur l’ensemble du positivisme, Paris, Flammarion, «GF», 1998, p. 229.
639 Sartre tentará superar estas dificuldades, nos dois tomos da Crítica da Razão Dialéctica, ao pensar a
imanência política própria do grupo, da multidão, do povo, do movimento histórico.
640 As leis «fundamentais» da filosofia social de Marx são económicas e de modo algum sociológicas:
valor-trabalho, teoria da mais-valia, reprodução alargada do capital, baixa tendencial da taxa de lucro.
642 P. Merklé, «La “science sociale” de Charles Fourier», Revue d’histoire des sciences humaines, n.º 15,
Éditions Sciences Humaines, 2006.
645 J. R. Searle, A Construção da Realidade Social; ver também J. Benoist e B. Karsenti (dir.),
Phénoménologie et sociologie, Paris, PUF, «Fondements de la politique», 2001.
646 P. Bourdieu, Le Sens pratique, Paris, Minuit, 1980; Raisons pratiques, Paris, Seuil, «Points Essais»,
1996; Méditations pascaliennes, Paris, Seuil, «Points Essais», 2003.
Edmund Husserl
O «espectro» do psicologismo
Retomando com maior pormenor esse desenvolvimento histórico do
pensamento de Husserl, podemos dizer que a sua primeira etapa foi
caracterizada por uma grande hesitação entre o psicologismo e o logicismo na
análise fenomenológica dos objectos ideais da aritmética e da lógica. O
psicologismo dos primeiros escritos de Husserl, tão criticado por Frege,
consistia em justificar o conceito de número a partir da sua génese psicológica
em actos de percepção selectiva e de colecção unificante. Essa posição
defendida na Filosofia da Aritmética (1891) foi muito depressa abandonada por
Husserl e substituída no primeiro volume das Investigações Lógicas
(Prolegómenos a Uma Lógica Pura, 1900) pela posição diametralmente oposta
de um logicismo de tipo platónico segundo o qual os objectos lógicos existem
independentemente de todo o pensamento humano. A oposição entre estas duas
concepções ilustra bem a dificuldade de Husserl em conciliar o seu programa
de análise da origem subjectiva dos objectos da aritmética e da lógica com o
reconhecimento do seu carácter objectivo e ideal. Só no segundo volume das
Investigações Lógicas (1901) é que Husserl conseguirá superar essa
dificuldade.
647 Ver G. Deleuze, «L’immanence: une vie», in Deux régimes de fous, Paris, Minuit, 2004, p. 361.
648 G. Deleuze, Proust et les signes, Paris, PUF, «Quadrige», 2003, p. 128.
649 J. Wahl, Tableau de la philosophie française, Paris, Gallimard, 1962, p. 72. Encontra-se essa mesma
expressão, a respeito de Biran, sob a pena de D. Janicaud, em Ravaisson et la métaphysique, 1997, p. 142.
651 H. Bergson, La Pensée et le Mouvant, Paris, PUF, «Quadrige», 1998, p. 177 e segs.
652 Ibid.
655 G. Simondon, L’Individu et sa genèse physico-biologique, Grenoble, Jérôme Millon, 1995, p. 44.
Alma e imortalidade
O Fédon articula a questão da alma e a da imortalidade por meio da morte de
Sócrates. Pensar a morte é pensar a imortalidade como libertação da alma e seu
distanciamento do corpo. Tal é o objectivo da filosofia: ao elevar-se à essência
das coisas, o pensamento livra-se do corpo e da mortalidade, desvelando o
parentesco da alma e da ideia, e a dimensão ética de tal filiação. Conceber e
abstrair-se do sensível é também uma maneira autêntica de existir ao
emancipar-se dos prazeres, das riquezas e das honrarias para encontrar um bem
verdadeiro. Ora, Sócrates admite que a existência de uma alma separada do
corpo não é evidente. Por isso recorre a dois mitos. O primeiro é a antiga lenda
que relata o regresso das almas apresentadas no Hades, porque, como toda a
vida engendra a morte, os vivos nascem dos mortos. Este argumento dos
contrários no eterno movimento da vida e da morte prova que, para pensar um
termo, se tem de apreender o seu oposto e que, renascendo o pensamento da
negação, a morte só o é para a vida que se esgota com o corpo. O mito da
reminiscência vem dar apoio a esta lenda: se o nosso saber é uma recordação
daquilo que aprendemos numa vida anterior, a alma deve preceder-se a si
mesma. O argumento dos contrários permitia opor o pensamento e o seu nada,
o inconsciente; a reminiscência, por seu turno, funda a possibilidade de uma
razão em potência, devido à insuficiência do pensamento consciente em relação
à nossa exigência de saber e a um inferno que não é somente o Hades, mas o
nosso inferno pessoal, o dos nossos apetites mais obscuros. Mais do que de
provas da imortalidade da alma, trata-se aí de hipóteses: parente da ideia, a
alma não é porém uma essência e a sua imortalidade tem de conquistar-se. O
homem ganha a imortalidade pela sua praxis: segundo a sua conduta, ele
morrerá ou imortalizar-se-á e tornar-se-á divino. Kant dirá o mesmo à sua
maneira: a imortalidade da alma releva de uma fé racional que depende da
nossa acção moral.
Sendo a função da alma a de ver as ideias, ela não pode formar uma ideia da
mortalidade que não é uma essência e não concerne senão a existência que
releva do devir e da física. Realidade intermédia entre o sensível e o inteligível,
a alma deve purificar-se enquanto aguarda uma libertação da morte. Ora,
enquanto individual e unida a um corpo, ela é composta; a distinção entre uma
função racional e uma função desejante permite explicar a participação do
inteligível e do sensível. O mito da parelha alada do Fedro, onde cada um dos
cavalos puxa a alma para o seu lado e onde o auriga desempenha o papel da
instância racional, mostra que o homem é um ser cindido, disputado entre duas
instâncias. Se o intelecto é, dirá Aristóteles, a melhor parte de nós mesmos,
resta que a alma é a enteléquia, a plena actualização do corpo. Antes de ser
intelectiva, a alma é pois vegetativa e sensitiva, no princípio das funções vitais
elementares e da percepção. O problema aristotélico é o dos graus do vivente,
desde as formas mais elementares da vida até às mais elevadas da existência
humana, culminando na vida política e na sageza. A dimensão escatológica que
se encontrava em Platão apaga-se então em proveito da questão ético-política
relativa às disposições humanas e aos seus diversos tipos de excelência. Com o
pensamento cristão, a escatologia reencontra os seus direitos: Santo Agostinho
retoma a ideia de uma alma separada do corpo na tradição neoplatónica,
embora acentuando a dimensão de interioridade em que a consciência de si é
também a via de acesso a Deus. Ao integrar e ao transformar a conceptualidade
aristotélica, o pensamento medieval estabelece a superioridade da alma
racional para afirmar a sua transcendência em relação ao corpo corruptível. São
Tomás demonstra assim a imortalidade da alma baseando-se na imaterialidade
do intelecto.
O espírito e o corpo
Essa tradição será integrada na psicologia racional da metafísica escolar até
Wolff, e será Kant que a liquidará ao afirmar que o «Eu penso é o texto único
da psicologia racional». No entanto, o gesto kantiano pressupõe a revolução
cartesiana que estabelece a distinção real da alma e do corpo ao referir a
pluralidade das almas aristotélicas à unidade da mens, do espírito
compreendido como substância pensante. É a partir desse dualismo que opõe o
pensamento e o corpo que o inconsciente se vai tornar problematizável. Com
efeito, à unidade do espírito acessível ao intelecto opõe-se a complexidade de
um corpo acessível ao sentimento, na medida em que o meu corpo não sou eu,
embora ele afecte todo o meu ser: há em mim paixões da alma que provêm do
corpo, ou seja representações cuja origem não sou eu. É por isso que as nossas
primeiras ideias são obscuras e confusas e nos remetem para o corpo e para a
exterioridade em geral.
Algo inconsciente do pensamento relaciona-se portanto com algo
desconhecido do corpo. Ao referir a multiplicidade das almas aristotélicas à
unidade do espírito que, como presença própria do pensamento, é a primeira
verdade a fazer cessar a dúvida, Descartes define a essência do homem como
substância pensante. A dificuldade é então conceber a união dessa coisa
pensante com essa coisa extensa que é o corpo, matéria redutível à extensão e
inteligível pelas suas meras determinações geométricas. Daí resulta um
dualismo que opõe uma metafísica do espírito e uma física materialista. Ora, as
dificuldades levantadas pelo mecanismo cartesiano e pelo problema da união
da alma e do corpo vão levar a substituir o dualismo por um pan-psiquismo.
Espinosa define o espírito como a ideia do corpo existindo em acto, somente
se podendo compreender a sua união à alma pelo conhecimento dos
mecanismos do corpo. A doutrina do «paralelismo» substitui o dualismo por
uma teoria da complexidade: quanto mais um corpo pode ser afectado por uma
multiplicidade de coisas, mais o espírito que lhe corresponde pode percebê-las
distintamente. Isso não significa que as ideias que formamos sejam
necessariamente verdadeiras. Na medida em que percebemos antes de mais
efeitos dos quais ignoramos as causas, tendemos a considerar que desejamos
livremente as coisas, ao passo que ignoramos os mecanismos cegos que regem
os nossos desejos. Se Espinosa define o desejo como apetite inconsciente de si,
essa reflexividade do desejo não constitui a essência deste, que reside no
conatus enquanto esforço de todo o indivíduo para perseverar no seu ser.
Mesmo sendo uma filosofia do sujeito, o pensamento da idade clássica não
deixa de especular sobre essa subjectividade. Para os gregos, o exame da
essência da alma exigia que se determinasse o lugar dos desejos irracionais
numa topologia da alma. Para os clássicos, a redução da alma à unidade do
espírito coloca o problema das ideias obscuras e confusas, que constituem a
maior parte das nossas representações: a aposta é a de um domínio psíquico
que inclua tanto ideias falsas como afectos e paixões. Se esse domínio escapa
de facto ao empreendimento da razão, ele pode não obstante tornar-se objecto
de um conhecimento verdadeiro, sendo o modelo de inteligibilidade da
afectividade o das ciências da natureza. A psicologia constituir-se-á então na
base do modelo destas, a partir de uma psicologização do ego cartesiano. G.
Canguilhem nota que a história da psicologia como ciência do sentido interno
pode «ser escrita como história dos contra-sensos a que as Meditações de
Descartes deram ocasião, sem disso terem responsabilidade658». É no entanto
por um mesmo gesto que a constituição da psicologia passa pela crítica do
cartesianismo e da ideia de que a alma é «mais apta a conhecer que o corpo».
Malebranche afirma que a essência do corpo é mais bem conhecida porque, se
temos uma ideia clara da extensão, não temos ideia alguma da alma. A única
psicologia possível é portanto empírica, e é em última instância para a
fisiologia que nos devemos virar.
A consciência
A noção de inconsciente não existe ainda e, por outro lado, a consciência não
desempenha o papel que se lhe poderia atribuir com demasiada rapidez. O
termo «consciência» é pouco usado por Descartes. Utilizado por Coste na sua
tradução de Locke para traduzir o inglês consciousness, ele é adoptado pelos
cartesianos franceses para designar a interioridade do pensamento e permitir
estabelecer a imortalidade da alma. Ora, a noção continua a ser sobremaneira
equívoca, designando tanto a presença a si do espírito, ou mesmo a sua
imortalidade, como uma reflexividade mais ou menos clara das afecções do
corpo. A consciência é em todos os casos uma forma de identidade da pessoa
psicológica e moral e, desde que se rejeitem as ideias inatas como faz Locke,
ela torna-se o «sentido interno», poder de reflexão do espírito sobre as suas
operações. Para Locke, ela é um princípio de continuidade temporal da
individualidade independente da substancialidade metafísica de uma alma.
É com o idealismo alemão que a consciência se torna um filosofema maior. A
distinção kantiana entre consciência empírica e consciência pura significa que,
se todas as nossas intuições e representações não são nada «a menos que
possam ser recebidas na consciência», então toda a consciência na sua
diversidade empírica deve estar ligada num princípio sintético que é uma
consciência de si transcendental. Esta é a condição de possibilidade de todo o
pensamento: ela precede toda a experiência e torna-a possível. Ela é assim a
condição da consciência empírica que se produz em diferentes graus até à
inconsciência659. Kant retoma o problema leibniziano das pequenas percepções
inconscientes: quando eu ouço o ruído do mar, ouço confusamente o ruído de
cada vaga e de cada gota de água que são diferenciais inconscientes cuja
percepção clara do ruído do mar seria a integral. O inconsciente esboça-se em
Leibniz como o elemento genético da consciência, tornado inteligível pelo
cálculo infinitesimal: a percepção consciente integra as pequenas percepções
inconscientes, tornando-se assim objecto de uma análise infinita. Kant
reinterpreta o inconsciente diferencial de Leibniz como distanciamento entre o
sujeito empírico e o sujeito transcendental. Tendo toda a sensação um grau de
intensidade, os diversos graus de intensidade da consciência, indo de 0 a X, são
um jogo de variações contínuas, onde o sujeito transcendental é o grau 0, e a
consciência empírica de um objecto determinado o grau X. Kant chama
«antecipações da percepção» à operação que permita a uma sensação unir-se a
um conceito como acto do sujeito transcendental, o qual se torna fenómeno no
sujeito empírico segundo um grau de sensação antecipada pelo trabalho
inconsciente da imaginação, que é «uma arte escondida nas profundezas da
alma humana». O trabalho da imaginação que assegura a síntese da forma
temporal do fenómeno e dota o conceito de uma determinação de tempo, de um
esquema, para o tornar aplicável aos objectos, pode ser dito inconsciente. A
consciência transcendental kantiana é o acto de conceber, de apreender o
objecto na sua objectividade, e a revolução coperniciana mostra que a
objectividade do objecto é imanente a essa consciência transcendental que
pressupõe a consciência comum. O problema não é portanto o da relação da
consciência e do seu objecto, mas da consciência empírica e da consciência
transcendental que a funda ao superá-la. Sendo um acto e não uma coisa, a
consciência transcende-se sem cessar, vai além dela segundo o seu movimento
de negatividade. A consciência empírica supera-se pois para se tornar
consciência transcendental, e é assim que toda a consciência é sempre mais do
que aquilo que crê ser, que o saber é inquieto e deve avançar sem parar.
O fenómeno da consciência vai revestir-se de uma importância muito
particular com Fichte e Hegel, ao articular-se em torno das noções de desejo e
de pulsão. Na esteira do conatus espinosista e da dinâmica leibniziana, Fichte
elabora a noção de pulsão como raiz do sujeito actuante. Ao afirmar o primado
do agir, ele coloca o Eu na sua oposição ao Não-Eu como pulsão originária
susceptível de se reflectir: a consciência resulta de um choque do Não-Eu
experimentado pelo Eu como uma inibição que se torna um sentimento
enquanto unidade da passividade produzida pelo choque e da actividade
própria à reflexão do Eu. Com estas noções de pulsão e de inibição instala-se
uma conceptualidade que se irá reencontrar em Freud.
A consciência descobre então uma sua história, compreendendo-se como a
aventura de um espírito que se eleva acima da natureza, a qual, segundo
Schelling, é o seu passado transcendental. A Fenomenologia do Espírito de
Hegel apresenta-se assim como a «ciência da experiência da consciência». A
fenomenologia é o romance da consciência, a exemplo do romance de
formação, como Wilhelm Meister de Goethe, ele próprio inspirado pelo Émile
de Rousseau. Ora, esse romance é uma obra científica, pois o desenvolvimento
da consciência procede de uma necessidade imanente. Revelando-se ilusório o
que a consciência toma por verdade, o caminho dela é o da dúvida e do
desespero. Não se trata mais de uma dúvida metódica prévia como a de
Descartes, mas de uma progressão em que a consciência aprende pouco a
pouco a duvidar do que anteriormente estimou verdadeiro. Se tal caminho é
trágico, é porque a consciência perde nele não só o que tomava por seu
conhecimento verdadeiro, mas também a sua vida e a sua visão do mundo.
Todavia, se o resultado de uma experiência de consciência é negativo para ela,
essa negação é sempre determinada, referindo-se a um conteúdo sempre
particular. Essa negação é portanto ao mesmo tempo sempre posição pois, ao
descobrir a falsidade do que tomava por verdadeiro, a consciência descobre um
novo saber. Conhecer o seu erro é portanto conhecer uma outra verdade: há
sempre na negação de um erro a génese de uma verdade. A negatividade é
assim imanente ao conteúdo e explica o seu desenvolvimento necessário. Se a
consciência ingénua visa desde o início o conteúdo integral do saber sem poder
atingi-lo, é preciso que ela faça prova da sua negatividade, permitindo ao
conteúdo desenvolver-se em posições particulares que se articulem segundo o
movimento da negação.
A consciência é portanto primeiramente tomada tal como ela se dá enquanto
relação ao Outro, ao objecto. Ora, se esse saber do Outro é também um saber
de si, este é igualmente um saber do Outro. O mundo não é assim senão o
espelho no qual nos reencontramos, revelando-se a consciência na história dos
seus objectos, ao descobrir que essa história é a sua e que, ao conceber o seu
objecto, ela se concebe a si mesma. Hegel compreende a consciência de si
como um movimento dialéctico, cujo nervo é o desejo de reconhecimento. A
consciência de si é a verdade da consciência tal como ela se cumpre no
entendimento, que por seu turno descobre não conhecer nada além de si
mesmo. Verdade da vida natural e abertura da vida espiritual, a consciência de
si é desejo de si mesma. Percorrendo o caminho do desespero, a consciência é a
cada passo despossuída daquilo que ela acreditava possuir. Tanto para Hegel
como para Freud, a verdade recalcada dá lugar a uma doença, pois a
consciência é sempre um distanciamento entre o sujeito e o objecto e nunca é a
verdade, indo a sua experiência de certezas ilusórias a verdades duvidosas. Se
cada etapa é uma ilusão, a verdade é a narrativa dessas ilusões perdidas e da
sua autodestruição permanente. A história da consciência é portanto a odisseia
da verdade que, da certeza sensível ao saber absoluto, percorre um caminho
que tanto é o calvário da história quanto a assunção da identidade do
pensamento e do ser, da substância e do sujeito.
Quando Hegel retoma a teoria aristotélica das três almas na Filosofia do
Espírito da Enciclopédia, ela é mediatizada pela filosofia moderna do sujeito.
Verdade da natureza como primeiro momento do espírito subjectivo, a alma
releva da antropologia, que estuda o homem como pertencente à natureza: ela é
antes de mais alma natural, sono do espírito próprio da alma nutritiva, que se
individualiza como alma sentinte e se cumpre como alma efectiva e pensante.
Permanecendo a alma assim dependente da natureza, a antropologia deve
superar-se numa fenomenologia do espírito, mostrando como este aparece a si
como consciência, objectivando-se na consciência de si e numa luta pelo
reconhecimento onde ele se manifesta como razão universal. Unidade da alma
e da consciência, o espírito como espírito livre e activo é então objecto da
psicologia. Se ao nível da alma não há mais do que uma inconsciência animal e
se ao nível da consciência há o desejo, é somente no plano do espírito livre,
enquanto representação que produz imagens e lembranças, que se pode colocar
o problema do inconsciente. Enquanto para o pensamento clássico o problema
do inconsciente era considerável a partir da afectividade e do desejo,
presentemente ele é considerado ao nível da psicologia, pois não é nem
natureza nem mero desejo. A existência de um inconsciente irredutível à
simples inconsciência supõe a representação como interiorização da intuição.
Ora, se, para se conservar, uma intuição necessariamente singular requer uma
alusão a si numa imagem, são essas imagens múltiplas do passado,
adormecidas no espírito, que estão na origem do inconsciente, verdadeira
imagem imersa «no poço da inteligência». O espírito é uma actividade que tem
por base o trabalho inconsciente do imaginário que culmina na linguagem e no
pensamento. Herdeiro das teorias da pulsão e da interpretação do psiquismo
como força, que se encontram em Espinosa, Leibniz e Fichte, Hegel não
oferece porém uma teoria específica do inconsciente.
O inconsciente
Se portanto a filosofia dá a pensar o inconsciente, ela jamais o explicita como
instância psíquica específica. O próprio termo não satisfaz Freud, que lhe vai
dar o nome de «id», para o demarcar da sua conotação negativa ou privativa.
Para a psicanálise, o inconsciente designa antes de mais um outro lugar que não
a consciência, a que Freud chama «o outro palco». A sua existência é dedutível
da teoria do recalcamento: existem representações psíquicas subtraídas ao
campo da consciência, mas que nem por isso desaparecem e que, embora
permanecendo inacessíveis, produzem efeitos que se traduzem em sintomas. O
traço essencial é então a concepção dinâmica do psiquismo: os sintomas
histéricos resultam da dinâmica de conflitos, e, por extensão, toda a formação
psíquica assenta numa dinâmica. Freud chama «libido» ao elemento energético
geral de todos os processos psíquicos oposto à energia das pulsões do eu, que
são pulsões de autoconservação. A noção de pulsão é decisiva como conceito-
limite entre o psíquico e o somático: permite superar a dualidade tradicional da
alma e do corpo ao justificar a conservação dos processos somáticos em
energia psíquica. A teoria das pulsões leva Freud a introduzir a noção de id,
compreendida como reservatório de energia pulsional da qual o ego e o
superego são modificações. Embora não seja redutível à consciência, o ego
constitui o pólo da personalidade e o princípio de realidade, embora estando
investido pela libido devido ao narcisismo. Do mesmo modo, o superego está
no princípio da consciência moral, embora remetendo para os processos
inconscientes porquanto resulta da agressividade edipiana.
Kant deslocou o problema do ego considerado até então simultaneamente
como unidade empírica das determinações da subjectividade e como essência
do pensamento ou alma, ao mostrar que o nosso mero conhecimento empírico
do eu supõe como sua condição a unidade formal do sujeito transcendental. Se
pudermos dizer que para Kant, antes de Rimbaud, «Eu é um outro», com Freud
é o próprio estatuto do sujeito que é modificado: o ego está tolhido entre o id e
o superego. Com a teoria das pulsões, ele reencontra o que os gregos haviam
pensado como physys e psyché. Por um lado, a pulsão, ao articular o somático e
o psíquico, não deixa de se assemelhar à physis como processo e princípio do
movimento e do repouso. Por outro lado, a psyché como «enteléquia» do corpo
nada tem a ver com o sujeito moderno. Freud utiliza assim a noção de
psiquismo para recusar o estatuto constituinte do sujeito moderno. Se há
portanto um contributo da psicanálise para a filosofia, não é nem a ideia de um
determinismo psíquico, nem mesmo a distinção entre consciente e
inconsciente, já conhecida pela filosofia, nem a clivagem do sujeito bem vista
por Kant, que importam aqui. C. Castoriadis sublinha assim, ao referir-se ao
mito platónico da parelha alada, que o que mostra a psicanálise «é antes a
pluralidade dos sujeitos contidos no mesmo invólucro – e o facto de, em cada
caso, se tratar com efeito de uma instância que possui os atributos essenciais do
sujeito660». Longe de ser uma destituição do sujeito, a psicanálise elucida-lhe a
estrutura: ela é uma teoria da psyché que nos ensina que a essência do homem
não é ser um animal racional, mas um ser imaginante. Se portanto o psíquico é
estranho à racionalidade, daí resulta a impossibilidade de articular
representações, afectos e desejos, que permanecem inextrincavelmente
misturados numa espécie de magma que explica a ambivalência dos afectos
inconscientes. Castoriadis afirma assim que a psicanálise demole o
determinismo na vida psíquica pensando o homem como imaginação radical a
partir dessa indeterminação.
Ora, Freud distingue entre princípio de prazer e princípio de realidade,
processo primário e processo secundário. Definindo o sistema inconsciente
onde circula a energia psíquica, o processo primário tem por origem o princípio
de prazer segundo o qual as pulsões buscam a satisfação pelo caminho mais
curto. Em compensação, o processo secundário, que define o sistema
consciente, é regido pelo princípio de realidade, exigindo que a busca da
satisfação use desvios de acordo com as condições do mundo exterior. Essa
distinção não é uma retoma do dualismo tradicional, pois o processo
secundário é uma modificação do processo primário e o princípio de realidade
um modificação do princípio de prazer. A questão é portanto bem mais a da
diferença entre energia livre e energia ligada. A psicanálise cumpre-se então
numa metapsicologia que é ao mesmo tempo uma tópica como teoria dos
lugares psíquicos, uma economia das pulsões relativa à sua génese, à sua
circulação e à sua regulação segundo um princípio, e finalmente uma dinâmica
como determinação dos conflitos. Ora, se a economia justifica o trabalho do
psiquismo consecutivo à ligação deste ao somático, a dinâmica supõe um
dualismo pulsional a exigir a ruptura com o monismo libidinal e a elaboração
da oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte.
Com a pulsão de morte, a psicanálise é confrontada com um problema
«transcendental», pois a questão é a de um «além do princípio do prazer»,
embora admitindo que não há excepção a tal princípio. A questão é pois a de
saber o que funda a submissão da vida psíquica a esse princípio. Dado ser uma
ligação de energia que converte esta num prazer susceptível de descarregar
energia, Freud chama Eros ao princípio da síntese que é condição de
possibilidade do prazer e concebe essa actividade transcendental como
repetição. Ora, para além da repetição sintetizante, há uma repetição que
destrói: a repetição é portanto simultaneamente vida enquanto funda uma
ligação e uma consistência, e morte enquanto torna possível um desligamento
que se perde num para além do princípio de prazer. É esse o sentido da
diferença entre Eros e Tanatos, entre as pulsões da vida que produzem formas
dotadas de um alto nível de tensão e pulsões de morte que tendem a reduzir as
tensões.
A compulsão de repetição é portanto mais originária do que o princípio de
prazer: ela exprime uma tendência própria do vivente e impele-o a reproduzir
um estado anterior ao qual ele teve de renunciar sob a influência de forças
exteriores. A elaboração da noção de um masoquismo primário, que não é um
simples regresso do sadismo e de uma agressividade antes de mais virada para
o exterior, mas um processo em que a pulsão de morte se dirige para o sujeito,
desempenha um papel essencial na constituição desta problemática. Face a esse
masoquismo primordial da pulsão de morte, a libido aplica-se a desviar essa
pulsão para o exterior como agressividade, dando assim origem ao sadismo e a
um masoquismo secundário, que têm um papel essencial na formação do
superego e na sublimação – esta tem então uma formação criativa nas
formações culturais. Freud considera a pulsão de morte um elemento
fundamental da sua doutrina.
O psíquico e o social
Se a doutrina freudiana do psiquismo liberta instâncias, ela não abandona a
doutrina do sujeito. Sendo a função do eu a de elaborar um compromisso com
instâncias inconscientes, Freud concebe a pulsão como o princípio da génese
da representação e esclarece a importância do fantasma na vida psíquica. Na
medida em que não existe no inconsciente regido pelo princípio de prazer
nenhum indício de realidade, o substrato psíquico não pode antes de mais
referir-se senão a si. Há portanto à partida aquilo a que Castoriadis chama uma
«mónada psíquica» autista submetida somente ao princípio de prazer. O sujeito
é uma identidade imediata da qual a diferença não surgiu, e o fantasma é
precisamente esse estádio em que o sujeito é tudo e em que ele está em toda a
parte, numa identidade do objecto de desejo e da realização do desejo. A
historicidade da mónada psíquica é então a irrupção da alteridade e da
diferença aferente ao princípio de realidade, ou seja a criação do indivíduo
social. O nó monádico da psyché é tornado impossível pela abertura de um
mundo que está sempre lá, impondo uma transformação do princípio de prazer
e fundando assim a possibilidade do recalcamento. Ora, o inconsciente
permanece dominado pelo nó monádico que, como tal, não pode deixar de estar
ausente do inconsciente, e se manifesta como desejo de unificação total, de
abolição de toda a diferença. É assim que «se o inconsciente ignora o tempo e a
contradição, é também porque, agachado no mais escuro dessa caverna, o
monstro da loucura unificante nele reina como senhor661». A passagem da
loucura à razão faz-se não só pela instituição social, mas também pela renúncia
à satisfação imediata, que permite a instauração de uma relação com a
alteridade. A razão continua assim a ser «um avatar da loucura unificadora662»,
pois trata-se de reencontrar, através da diferença e da alteridade, as
manifestações do mesmo. O uso racional da identidade tende pois a
transformar-se em identificação imaginária, hipostasiando a identidade
racional. É por isso que o eu é, no fundo, da ordem do imaginário. É porém
dessa hipóstase de uma identidade racional que procedem tanto o esquecimento
do social-histórico como a negação da alteridade e da temporalidade.
Essa crítica da razão identificante leva Castoriadis a pensar o indivíduo
segundo um duplo processo de constituição, o da idiogénese – ou psicogénese
– e o da koinogénese – ou sociogénese. O indivíduo social é assim coexistência
de um mundo privado e de um mundo comum. Ao impor-lhe uma relação com
a alteridade, a socialização inflige à mónada psíquica uma ruptura à qual ela
deve sobreviver para se individuar. Com efeito, a imposição da relação com a
alteridade é uma sequência de rupturas infligidas à mónada psíquica pela qual
se constrói o indivíduo social. Este está dividido entre o pólo monádico, que
tende a tudo encerrar para o conduzir ao estado monádico impossível ou aos
seus substitutos – satisfações alucinatórias e fantasmatização – e as construções
sucessivas pelas quais a psyché chega a integrar o que lhe foi imposto. Essa
cisão é constitutiva do sujeito e a sublimação não é mais do que a forma
idiogenética da socialização, permitindo à psyché substituir os seus objectos
próprios por objectos comuns que se tornem suportes de prazer.
Ora, o ponto de vista idiogenético não basta para justificar a socialização da
psyché, pois o seu modo de ser e o do social são totalmente diversos embora
sendo indissociáveis. Compreendida como imaginação radical, a psyché é uma
condição da sociedade que esta não pode eliminar. Castoriadis forja assim um
conceito específico da representação, mostrando em que permite ela repor em
causa a ontologia da substância e a lógica identitária – ou seja uma
compreensão do ser como subsistência – e uma lógica formal ordenada pelo
princípio de identidade, pressupondo ambas formas estáveis e pré-estabelecidas
e uma subordinação do devir ao permanente. Se com efeito elevarmos até ao
fim as exigências desta lógica, ela autodestrói-se, ao exigir que tudo seja
definido e determinado, ao passo que o termo primeiro releva não do logos mas
da intuição, do nous, como mostra Aristóteles. O fundamento da lógica não é
nada de lógico e a lógica tradicional baseia-se na ontologia da substância, não
podendo as significações prestar-se senão a uma elaboração interminável. A
representação designa então o carácter radical da imaginação, cujo fluxo
representativo consista na alteração incessante de figuras transitórias; ela não é
portanto senão a mobilidade do pensamento. Castoriadis concebe assim a
psicanálise como uma teoria da representação, compreendida como
imaginação, repondo em causa a ordem ontológica substancial e a lógica da
identidade.
A psicanálise mostra que a representação, longe de ser um decalque do
mundo, é aquilo em que e pelo qual se abre um mundo, ao passo que a
percepção, como fetichismo da realidade, não é mais do que a ocultação da
representação compreendida como imaginação. A percepção e a constituição
do real que se seguem não podem com efeito conceber-se senão do ponto de
vista koinogenético, pois não há abertura do mundo a não ser para um
indivíduo inserido no social-histórico. Não há portanto consistência das coisas
senão sobre o fundo de mobilidade da representação que faz com que o
imaginário seja condição lógica e ontológica do real e de toda a forma de
pensamento. A imaginação não é simples potência de aniquilação do real, mas
potência da sua configuração. Kant descobriu assim, na sua doutrina da
imaginação transcendental como faculdade de ligação da forma temporal dos
fenómenos e de esquematização ou temporalização dos conceitos, a própria
raiz de toda a logicidade e a conexão do ser e do tempo.
O interesse da tese de Castoriadis está em tratar do inconsciente a partir de
uma teoria da alma que justifica a articulação do psíquico e do sócio-histórico.
O próprio do psiquismo humano é estabelecer uma ruptura na ordem de
autoconstituição do vivente: ao contrário do vivente que organiza o seu mundo
próprio em relação com a sua constituição neurofisiológica, o psiquismo
humano não depende de uma finalidade determinada, sendo dominado por um
prazer representativo ilimitado e criador de imagens. É assim que se pode
distinguir o instinto da pulsão e da sexualidade animal da sexualidade humana,
distinta da finalidade da reprodução. Ora, se Freud distinguiu a criatividade de
uma imaginação irredutível à mera racionalidade, discernindo o imaginário
como matriz de fantasmas que constituem o homem como ser de desejo, não
foi até ao fim. Tal como, segundo Heidegger, Kant não prolongou a perspectiva
fazendo da imaginação e do tempo a raiz da razão, Freud acabou por retomar a
concepção tradicional da imaginação reprodutora. Com efeito ele concebe o
fantasma como reprodução de uma percepção anterior, compreendendo os
fenómenos de cultura como resultados de desejos e de angústias infantis.
O sujeito da psicanálise
A noção de psiquismo permite assim problematizar a questão do sujeito,
desde a noção de substrato ou subjectum até à subjectividade, passando pela
alma. A psyché designa antes de mais o sopro ou a respiração, pneuma. A
sistematização operada pela filosofia permitiu concebê-la como um termo
genérico, cujas espécies hierárquicas são, em Platão, o intelecto, o coração e o
desejo. Concebendo a alma como enteléquia do corpo e mobilidade da vida,
Aristóteles retrabalhou a tripartição platónica distinguindo três almas
correspondentes a faculdades: nutrição, desejo, pensamento. Por outro lado, o
sujeito designa antes de mais o substrato do enunciado ao qual se atribuem
predicados, e depois, por extensão dessa acepção lógica, a substância distinta
dos acidentes, o que permanece para além das suas modificações e constitui a
essência de uma coisa. Essa noção entra no domínio da psicologia na Idade
Média por meio do comentário aristotélico, sendo a questão saber qual é o
sujeito do pensamento. Paralelamente, o pensamento medieval desenvolve, na
esteira de Agostinho, a ideia de uma auto-apreensão do eu que desembocará na
subjectividade moderna pensada como intuição que o sujeito tem de ser o autor
dos seus actos. No cruzamento da tradição conservada na escolástica tardia e da
filosofia moderna da subjectividade, a filosofia escolar dos séculos XVII e XVIII
constitui a psicologia racional como ciência a priori da alma, na qual Kant verá
uma ilusão, mostrando que não posso atribuir-me a categoria de substância sem
fazer um uso ilegítimo deste conceito e cair nos paralogismos. A única
psicologia legítima é então a psicologia empírica que se constitui a partir do
modelo das ciências experimentais.
Sob muitos aspectos, a psicanálise aparece como o cumprimento desta longa
história, e Lacan sublinha em que é que o sujeito da psicanálise é o sujeito
cartesiano da ciência moderna. Se, portanto, a descoberta freudiana parece
inaugurar uma era nova ao destituir o eu do seu privilégio fundador, como
Copérnico transtornando a hierarquia do mundo e Darwin a ascendência do
homem, ela pressupõe porém a filosofia moderna do sujeito663. Esta fez
emergir a subjectividade das teorias da alma e do sujeito, não cessando porém
de tornar problemáticas as noções de sujeito e de consciência, ao libertar a
possibilidade do campo do inconsciente explorado por Freud. A despeito dos
seus progressos essenciais, este ateve-se a uma concepção positivista, ou seja
também metafísica do psiquismo. A desconstrução da subjectividade e, com
ela, a de um pensamento metafísico ordenado para a substância e a lógica
identitária apelam a uma desconstrução do inconsciente porquanto ele não pode
ser senão um outro nome do desconhecido do sujeito moderno.
JEAN-MARIE VAYSSE
658 G. Canguilhem, «Qu’est-ce que la psychologie?», Études d’histoire et de philosophie des sciences,
Paris, Vrin, 1970.
659 E. Kant, Crítica da Razão Pura, Dialéctica transcendental, II, 1; Prolegómenos, § 24.
660 C. Castoriadis, «Psychanalise et philosophie», Fait e à faire, Paris, Seuil, 1997, p. 143.
663 Ver o nosso livro L’Inconscient des Modernes, Paris, Gallimard, 1999.
Martin Heidegger e os seus herdeiros
A relação existencial
O homem «ex-siste» o seu ser, ou seja «é destinado» pelo ser. O homem não
se contenta em compreender o ser; pode também fazer dele um problema e
preocupar-se com ele como se fosse o assunto mais importante. A dimensão da
ex-sistência constitui um eixo mais tenso da experiência: ela intensifica e torna
a preocupação mais aguda. O estado de quase sonolência que consiste em
situar-se numa rede familiar de relações estruturadas pelo hábito é percorrido
por essa tendência para se destinar a qualquer coisa, para se «pro-pôr», para se
extirpar do seu estado inicial em direcção a um futuro aberto. Enquanto a
compreensão sugeria aparentemente que haveria uma certa proximidade do
homem com o ser, a existência cava um abismo entre eles, desde o seu
ambiente até às franjas mais longínquas do ser.
Como a compreensão, a existência constitui o próprio ser do homem como
ser-aí. Enquanto a primeira testemunha o contexto estrutural em que os homens
se acham estar inicialmente, ou seja o seu mundo, a segunda acentua a
actividade temporal do ser-aqui projectado como ser-aí. Tal como a
compreensão se aplica mais ao facto de que o homem é do que ao facto de ele
possuir o ser, também, na ex-sistência, o homem é a própria possibilidade do
seu ser, o seu único poder-ser. Assim, mais como modo de existência do que
como modo de conhecimento, a nossa compreensão do que significa «ser»
consiste menos em se fixar num sentido do ser do que em viver distanciado da
sua significação temporal plena e inteira. Resumindo, o aparecimento do
sentido é anterior à sua conceptualização. À semelhança de outras técnicas, o
«saber-como-fazer» que se aprende da vida é um saber-fazer, um «poder fazer»
ou um «poder ser» em nome do qual o homem existe. Lançado no que não é
mas no que pode ser, o homem é desafiado pelas consequências da sua
existência: deve descobrir-lhe o sentido profundo e reconciliar-se inteiramente
com ela. Explicar este sentido é então, para o questionamento, passar do que é
implicitamente conhecido a um conhecimento explícito.
A situação do homem estrutura-se através da sucessão de revelações que
começam por considerações prosaicas mas que podem culminar num choque
extraordinário e inabitual: o reconhecimento de si, através do qual o homem se
espanta com tudo o que significa «ser aí». Na realidade, os segredos do
prosaico afloram nas formas «exclamativas» da experiência do ser-aqui, que
põem em causa esse prosaico. A expressão «eis-me aqui» não é somente uma
revelação das mais banais e das mais anódinas; ela pode igualmente constituir
uma epifania da qual não se podem medir as consequências senão após se
haver dedicado a vida ao questionamento no mundo histórico em que sucedeu
ter-se sido lançado. Entre as «situações-limite» que nos precipitam para o
extremo da condição humana, como o sofrimento, o conflito ou o acaso,
situações que Karl Jaspers pensa estarem na origem da arte, da religião e da
filosofia670, Heidegger retém particularmente duas, a fim de sublinhar a
extensão real da experiência limitada do ser-aí: a morte e a experiência comum
que consiste em se achar situado na existência, de bom ou mau grado. Acho-me
lançado num mundo que não concebi, numa vida que não pedi. Deixar que essa
revelação de «ser-lançado» me espante leva-me muito naturalmente a colocar
as perguntas mais fundamentais sobre o ser: porque estou eu aqui? Que
significa tudo isso? Que sentido tem para mim ser aqui? Face a essas duas
situações extremas, o ser-lançado da minha própria situação e a minha morte
concebida como minha última possibilidade dão-me ocasião de reconquistar
esse eu finito na sua totalidade, esse eu que me é próprio, na sua
individualidade radical671.
Essa ex-posição ex-trema da ex-sistência lança-nos numa demanda infinita
de respostas às perguntas inesgotáveis do nosso ser-aí. Ela só se explica numa
temporalidade não estática ou «ex-stática» – que nunca termina embora se
oriente para um fim – que se inscreve numa transcendência sempre diferida no
futuro e portanto finita. A temporalidade ex-stática, que é a temporalidade
originária do Dasein, distingue-se muito nitidamente daquela outra, estática, da
presença constante e oportuna dos objectos. A compreensão assim
existencializada traça a totalidade do trajecto temporal do Dasein como
projecção lançada na temporalidade originária de uma vida humana finita.
Várias outras dimensões do Dasein nos surgiram na explicação da interacção
entre a compreensão e a existência. Mencionamos aqui as mais importantes.
O Dasein é um ser-descobridor
Ele é o lugar da verdade como desvelamento do ser672. Este modo originário
da verdade manifesta-se já no carácter tácito da compreensão pré-predicativa.
A situação hermenêutica da vida facticial, desdobrando-se ela própria no
contexto do mundo circundante feito de objectos, e do seu mundo de si em que
nos esforçamos por ser e onde tomamos consciência de sermos um ser único,
constitui a arena da descoberta da verdade como desvelamento. A verdade é
assim deslocada do seu lugar tradicional, a saber o juízo e a asserção, incluindo
asserções aparentemente totalizantes como o cogito ergo sum, e torna-se uma
questão existencial.
A capacidade de desvelamento do homem foi contudo reconhecida desde
muito cedo na tradição filosófica. Aristóteles escreve por exemplo que «a alma
humana é, num sentido, o ente»: ela é capaz de «se juntar com» todos os entes
pela sua intelecção673. Mas essa tradição, que vai de Parménides a Husserl,
identifica esse modo elementar de conhecimento com uma visão esclarecedora
e transparente, com a intuição, ou seja, em termos temporais, com uma
«presentificação». No quadro de uma hermenêutica da facticidade, por
contraste, o modo elementar de conhecimento é a ex-posição de uma
interpretação a partir de um contexto de compreensão que permanece tácito,
latente, retirado. Em termos temporais, esse contexto é quando muito uma
presença tangencial que se retira para a sombra do velamento do ser. A
explicitação dos entes e o desvelamento do ser e do seu mundo têm lugar
aquando de uma «abertura» temporal, onde o ser se desvela, exibindo uma
tendência irresistível para se retirar, para se velar. Mas essa retirada é
precisamente o que leva o homem a buscar o ser, o que o força a questionar
incessantemente o sentido e o mistério do ser.
O Dasein é sempre meu, teu, nosso
Para retomar os próprios termos de Heidegger, «O ser que se joga no ser
desse ente é sempre meu [teu, nosso]674». Noutras situações, os deícticos
ontológicos que são os pronomes pessoais «Eu sou, tu és, nós somos»
exprimem a unicidade concreta do tempo da vida que se vence, em cada um de
nós. Um tempo que não se reproduzirá. Vir ao meu/nosso ser supõe que se
admita a finitude temporal desse ente «situado» que é propriamente meu/nosso,
e que se seja sensível às directivas e às tarefas evocadas pela situação temporal
particular na qual eu/nós me/nos achamos «lançados». Essa sensibilidade
mostra que a nossa relação com o ser consiste num deixar-ser, e que a nossa
posição relativamente à situação que se abre para nós é uma abertura recíproca.
É a própria situação que o exige de mim, e que me interroga no meu próprio
ser, e a resposta autêntica e fundamental consiste em me tornar sensível ao que
me é pedido, em responder ao «apelo da preocupação675», a estar em situação
de «escuta». Devo reconhecer a carência inerente à minha finitude, aceitar
defrontar a angústia de uma interrogação tão fundamental, e tolerar que tal
interrogação me leve onde quiser. Esse caminho conduz ao verdadeiro si, a esse
ser situado no seu tempo próprio.
Tomar posse do si (eigenes), acolher o que é mais de si (eigenstes), orientar-
se para o si mais verdadeiro, autentificar-se a si mesmo no seu ser próprio:
todas estas expressões denotam esse único desejo-de-ser que se encontra no
pensamento mais tardio de Heidegger para significar a relação entre o Sein e o
Dasein, o Er-eignis, o evento da apropriação.
Os herdeiros
A força da «hermenêutica filosófica» de Hans Georg Gadamer (1900-2002),
menos radical sem dúvida, consiste em reinvestir as dinâmicas situacionais da
hermenêutica da facticidade heideggeriana nos lugares mais comuns das
humanidades. A obra maior de Gadamer, Verdade e Método, assenta no
conhecimento da situação hermenêutica do nosso «ser-lançado» inscrevendo-se
num projecto que é o da tradição. Esta obra não procura impor um «método»
mas simplesmente descrever fenomenologicamente como a compreensão (a
«verdade» no seu contexto histórico), selada pela tradição, «advém»
naturalmente por via dessa mesma tradição nas nossas experiências humanistas
da arte, da história e da linguagem. Gadamer oferece desse círculo da
«experiência hermenêutica» (que parte da tradição para chegar à tradição) as
funções seguintes: ele é um encontro entre o intérprete e a transmissão do
texto, ele próprio concebido como um interlocutor que faz perguntas; consegue
mostrar, na distância temporal que instaura entre eles, as possibilidades inéditas
de mediações entre o presente e o passado em vista de uma fusão salvadora dos
horizontes; tem por resultado a transformação dessa tradição num conjunto
novo e inédito; mostra como a própria história opera o restauro da nossa
compreensão de um passado que à partida nos é estranho e remoto, e como o
jogo «especulativo» da linguagem constitui a fonte última dessa produção
salvadora («o intermediário mediatiza»); sublinha por fim o acabamento do
processo de compreensão da interpretação no próprio momento da sua
aplicação.
664 J. Beaufret, Dialogue avec Heidegger, t. 3, Approche de Heidegger, Paris, Minuit, 1974, p. 116 e segs.
667 Ibid., p. 323-325. A secção intitula-se: «A temporalidade como sentido ontológico da preocupação.»
668 «Das Dasein ist ein Seiendes, dem es in seinem Sein um dieses Sein selbst geht». Cf. Sein und Zeit, p.
12, 42, 52-53, 84, 104, 123, 133-135, 153, 179, 191-193 et passim.
670 Jaspers começou por desenvolver a noção de «situação-limite» na sua obra Psychologie der
Weltanschauungen, de 1919, sobre a qual Heidegger se apressou a escrever uma recensão crítica. Ver
«Anmerkungen zu Karl Jaspers “Psychologie der Weltanschauungen”», Gesamtausgabe, t. 9, p. 1-44.
671 Cf. Sein und Zeit, II, cap. 1 e 2, que tratam respectivamente do «ser-para-a-morte como ser-tudo
possível» e da «abertura determinada para a minha situação única e própria».
673 Aristóteles, Da Alma, III, 5, 430a14 e segs. Citado em Sein und Zeit, p. 14.
678 A melhor tradução deste termo segue a etimologia: com-posição sin-tética. «Ge-Stell» é o título
original da conferência de 1949; o título é modificado em 1954 e torna-se «A questão da técnica».
679 No final dos anos 1930, somente os poetas e os pensadores figuram entre os combatentes na guerra a
que Nietzsche chama a «grande política»: por seu turno, o homem de Estado deixa de ser mencionado. Essa
estridente omissão marca o descomprometimento de Heidegger em relação ao movimento nacional-
socialista, ao qual havia anteriormente aderido; o seu empenhamento foi tornado público uma primeira vez
quando aceitou ser reitor da Universidade de Friburgo em Abril de 1933, cargo que abandonou dez meses
mais tarde. Em 1935, reafirmou publicamente a «verdade e a grandeza» do «movimento» que, caso tivesse
sido bem dirigido, teria sido capaz de elaborar uma identidade nacional em acordo com as tradições alemãs
conservadoras. Mas, ao longo dos anos seguintes, Heidegger perdeu toda a esperança de ver as decisões do
Führer demarcarem-se das dos limitados funcionários do partido; descreveu-o então como o técnico
supremo de um grande sistema, levado por um pensamento calculador caturrento, completamente
desprovido da natureza meditativa do pensamento requerida para um homem de Estado. Noutros escritos
deste período de «emigração interior», recentemente redescobertos, Hitler figura explicitamente na curta
lista dos «principais criminosos do mundo e do século». Cf. M. Heidegger, Die Geschichte des Seyns,
Gesamtausgabe, t. 69, Frankfurt, Klostermann, 1998, p. 78.
Contingência e liberdade
Habitualmente apresenta-se o pensamento de Sartre começando por evocar a
esplanada de um café parisiense onde Raymond Aron lhe terá revelado a
própria essência da fenomenologia. Existe contudo um Sartre que,
anteriormente, entre 1924 e 1933, já desenvolve «um pensamento
profundamente original […] do qual se encontram vestígios profundos mesmo
em O Idiota da Família682». Esse pensamento é dominado nomeadamente por
uma ideia que Sartre conservará durante toda a vida e à qual consagra o seu
primeiro romance: a absoluta contingência do ser, ou seja o carácter supérfluo e
como que «em excesso» de tudo o que é ou existe. Assim, Roquentin, sentado
num jardim público, contempla desencorajado as raízes de um castanheiro,
«massas monstruosas e moles, em desordem – nuas, de uma aterradora e
obscena nudez683». O próprio Deus, caso exista, não escapa à contingência, e a
sua própria existência é desprovida de necessidade.
A descoberta da obra de Husserl (1859-1938), fundador da fenomenologia,
nem por isso deixa de ser um evento decisivo para Sartre que, bolseiro no
Instituto Francês de Berlim (1933-1934), mergulha nas leituras das
Investigações Lógicas (1900) e das Ideias Directrizes para Uma
Fenomenologia (1913). Sartre redige então dois textos: por um lado um artigo
de título significativo, «Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl: a
intencionalidade», que lhe permite expor a concepção da consciência
intencional – «a consciência nada é fora de si mesma e é essa fuga absoluta,
essa recusa de ser substância que a constitui como consciência684». Por outro
lado, um breve ensaio, A Transcendência do Ego, que, em nome de um cogito
pré-reflexivo, impessoal, se opõe à concepção simultaneamente cartesiana e
husserliana de um ego que habite na consciência. Porque o eu, para Sartre, é
um objecto transcendente, constituído pelo retorno da consciência a si mesma
ou reflexão.
Impessoal, não substancial, a consciência sartreana é além disso uma pura
espontaneidade. Por outras palavras, «cada instante da nossa vida consciente
revela-nos uma criação ex nihilo685». Daí se segue que a consciência, para
Sartre, é estranha a toda a forma de passividade, ao ponto de nada poder agir
sobre a consciência. Deste ponto de vista, como mostra o Esboço de Uma
Teoria das Emoções (1939), deve renunciar-se à própria ideia de paixões da
alma, e compreender então essas emoções que são a alegria, a tristeza ou a
cólera como outras tantas condutas mágicas em relação ao mundo,
espontaneamente adoptadas pela consciência. Do mesmo modo, o ódio ou o
amor são para Sartre condutas adoptadas pelo sujeito. Por isso, como ele
recordará nas suas Reflexões sobre a Questão Judaica (1946), o anti-semitismo
não é uma paixão de que seria vítima o anti-semita mas antes de tudo uma
atitude escolhida: o anti-semita escolheu «viver no modo apaixonado»,
escolheu «raciocinar falsamente», «ser impermeável», «ser terrível686», etc.
Se O Imaginário (1940) é ainda escrito numa perspectiva nitidamente
husserliana, em compensação a redacção de O Ser e o Nada (1943) – que pode
ser considerada a primeira grande obra de Sartre – está estreitamente ligada à
leitura de Heidegger (1889-1976), nomeadamente de Ser e Tempo (1927).
Sartre propõe-se aí expor as estruturas da consciência na sua relação com o ser:
a consciência resulta daquilo a que ele então chama uma descompressão do ser
ou «nadificação», isto é a produção de um nada no seio do ser. Assim,
diferentemente de um calhau ou de uma couve-flor, ou seja de um ser em si que
é e que é o que ele é, a consciência ou para-si não poderia coincidir consigo
mesma. Sempre à distância de si mesma, nem que fosse pela simples presença
a si, a consciência existe, ou seja ela possui esse modo de ser específico
segundo o qual a consciência não é o que ela é e é o que ela não é.
É o que poderemos igualmente compreender ao considerar a maneira como a
consciência se temporaliza no sentido em que ela escapa ao que ela é e se
projecta no futuro: ela não é portanto (mais) o que ela é, e não é (ainda) o que
ela já é. Daí resulta que a consciência é livre. E essa liberdade, como revela a
angústia, não é uma propriedade da consciência entre outras. Ela está inscrita
no seu próprio ser, que é radicalmente estranho ao princípio de identidade bem
como a toda a forma de determinismo. Sem dúvida que a consciência não está
no fundamento do seu ser e, por conseguinte, não escolhe nem o lugar nem o
momento do seu nascimento. Mas o «facto» contingente da sua existência
conjuga-se com a sua absoluta liberdade, a sua facticidade com a sua livre
transcendência, ou seja com esse movimento de nadificação que lhe permite
ser sempre outra coisa do que aquilo que é.
No entanto, o homem está de má-fé. Tal como o empregado de café que finge
ser empregado de café, o homem não pára de fugir, e de dissimular a
contingência do seu ser. Ele persegue então aquilo a que Sartre chama a
impossível síntese do em-si-para-si, ou seja de uma livre subjectividade (para-
si) que seria igualmente coisa ou substância (em-si), e que, no fundamento do
seu ser enquanto realidade substancial, escaparia à contingência.
Compreendemos já a frase com que termina O Ser e o Nada: «O homem é uma
paixão inútil687.» É essa mesma paixão que reencontramos operando nas
nossas relações com outrem em que, umas vezes como olhar que olha e outras
como olhar que é olhado, umas vezes como sujeito e outras vezes como
objecto, cada um persegue incansavelmente via outrem essa síntese do em-si-
para-si.
A inteligibilidade da história
Na conclusão de O Ser e o Nada, Sartre anuncia uma obra seguinte
consagrada aos prolongamentos éticos da sua reflexão. Os Cadernos para Uma
Moral, publicados três anos após a sua morte, reúnem um conjunto de notas
redigidas entre 1947-1948 e que ficou por concluir. Simultaneamente, Sartre
expõe com O Que é a Literatura? (1947) a sua concepção do empenhamento
literário. Aí apela aos escritores para abandonarem a estética da arte pela arte e
para considerarem a escrita como uma arma da luta que os homens conduzem
contra o mal. Enfim, Sartre empreende um vasto debate com o marxismo que
leva à publicação, em 1957, de Questões de Método e, em 1960, da Crítica da
Razão Dialéctica. Esse «tijolo» – cerca de 900 páginas – pode ser considerado
a sua segunda grande obra. Sartre esforça-se aí por tornar a história inteligível a
partir de uma interpretação ao mesmo tempo materialista e dialéctica da acção
humana no meio da «escassez».
Uma interpretação materialista antes de mais. Em 1946, num longo artigo
intitulado «Materialismo e revolução», Sartre critica aquilo a que chama o
«neomarxismo estalinista» que se inspira muito particularmente no pensamento
de Engels, e denuncia a absurdidade de uma dialéctica materialista da natureza:
«A natureza, como diz Hegel tão profundamente, é exterioridade. Como achar
lugar nessa exterioridade para esse movimento de interiorização absoluta que é
a dialéctica?» Ao «mito materialista», Sartre opõe portanto a sua filosofia da
transcendência, ou seja da liberdade, que é a única verdadeira filosofia
revolucionária688. O mesmo já não sucede dez anos mais tarde. Em Questões
de Método, embora mantenha a sua crítica de uma dialéctica da natureza, Sartre
declara-se materialista no sentido em que reconhece, como Marx n’O Capital,
que «o modo de produção da vida material domina em geral o desenvolvimento
da vida social, política e intelectual689». O marxismo é doravante, para Sartre, a
inultrapassável – inultrapassável porque as circunstâncias que a engendraram
não foram ainda ultrapassadas – filosofia do nosso tempo690.
Uma interpretação dialéctica, seguidamente. Sartre descobre no seio do
marxismo «uma falha» que convém remediar elaborando uma «antropologia
histórica e estrutural» que tomaria por ponto de partida o que o marxismo,
senão Marx, ignora totalmente: a existência. Sob este aspecto, a Crítica da
Razão Dialéctica situa-se efectivamente no prolongamento de O Ser e o Nada,
cuja descrição da existência é, de certa maneira, retomada em 1960 sob o nome
de praxis. Com esse termo, Sartre designa a acção de um indivíduo ou de um
grupo de indivíduos que modificam o seu ambiente material em vista de um
dado fim. A forma elementar dela é a carência enquanto multiplicidade de
comportamentos animada pelo projecto de se conservar vivo. Ora, para Sartre,
a praxis individual já é dialéctica «na medida em que a acção é em si mesma
superação negadora de uma contradição, determinação de uma totalização
presente em nome de uma totalidade futura691». Assim, a racionalidade da
acção é dialéctica. E, como a história resulta da praxis, a sua inteligibilidade
releva de uma razão dialéctica da qual Sartre, à maneira de Kant na Crítica da
Razão Pura, projecta estabelecer a extensão e o limite.
A história começa portanto com a carência enquanto praxis. Mais
exactamente, ela começa com o facto rigorosamente contingente da
«escassez»: como na jangada da Méduse «não há que chegue para todos692».
Assim, a escassez faz pesar sobre cada organismo a ameaça do seu
aniquilamento, de modo que a praxis é antes de tudo luta contra a morte. Além
disso, a escassez está no princípio seja da inumana humanidade dos homens,
seja da nossa história enquanto luta encarniçada contra a «escassez». Pois a
escassez une os homens, que devem associar-se para lutarem contra ela; e ela
divide-os, uma vez que nem todos podem ser satisfeitos e que cada um é uma
ameaça para a vida do outro. Enfim, não sejamos ingénuos ao ponto de
acreditar que a escassez seja o efeito de um modo de produção determinado,
por exemplo do modo de produção capitalista. Ela está pelo contrário no
princípio tanto do modo de produção como da luta de classes: qualquer que
seja o modo de produção, a diferenciação das funções no meio da escassez
implica necessariamente a constituição de um grupo de produtores
subalimentados.
O primeiro tomo da Crítica da Razão Dialéctica permite a Sartre colocar o
problema da história de um ponto de vista dialéctico, enquanto totalização de
todas as multiplicidades práticas. No entanto, não é possível conceber a história
segundo o modelo da praxis individual, totalizadora de um conjunto de
condutas. Pois, no caso da história, haveria antes totalização de uma infinidade
de condutas sem totalizador. Como é possível uma tal totalização? Por outras
palavras, a história terá efectivamente um sentido? Renunciando a publicar o
segundo volume da Crítica, Sartre deixa a sua empresa inacabada693.
A psicanálise existencial
De uma certa maneira, as diferentes investigações filosóficas de Sartre
conjugam-se para responder à pergunta com que se inicia O Idiota da Família
(cujos dois primeiros tomos são publicados por Sartre em 1971 e o terceiro em
1972): «O que se pode saber de um homem hoje em dia694?» Monumental
estudo dedicado a Gustave Flaubert, O Idiota da Família representa a terceira
grande obra de Sartre. É porém antecedida por dois ensaios: Baudelaire (1947),
São Genet, comediante e mártir (1952), ao qual se poderá acrescentar
Mallarmé. A lucidez e a sua face de sombra, publicado a título póstumo em
1986, que se prendem com esse mesmo projecto de hermenêutica existencial.
A bem dizer, Sartre define-lhe já o alcance e as regras durante a quarta e
última parte de O Ser e o Nada, nomeadamente ao opor-se à psicanálise
freudiana, na qual rejeita o conceito de inconsciente psíquico, embora
reconheça em Freud um precursor. Sartre escreve aí:
O princípio dessa psicanálise é que o homem é uma totalidade e não uma colecção; que em
consequência ele se exprime inteiramente na mais insignificante e na mais superficial das suas
condutas – por outras palavras, que não há um gosto, um tique, um acto humano que não seja
revelador695.
Sempre me senti livre desde a infância. A ideia de liberdade desenvolveu-se em mim, perdeu os
aspectos vagos e contraditórios que tem em qualquer um quando a tomamos assim à partida, e
complicou-se. Tornou-se precisa; mas morrerei como vivi, com um sentimento de profunda
liberdade697.
PHILIPPE CABESTAN
686 Reflections sur la question juive (1946), Paris, Gallimard, 1954, p. 19-23.
692 Ibid., p. 239-240. [O autor refere-se aqui ao naufrágio do navio francês La Méduse, a 2 de Julho de
1816, ao largo do Senegal, evento que inspirou um igualmente célebre quadro de Théodore Gericault três
anos mais tarde. (N. do T.)]
693 O manuscrito inacabado desse segundo volume foi publicado em 1985 na Gallimard por A. Elkaïm-
Sartre.
697 «Entretiens avec Jean-Paul Sartre, août-septembre 1974», in S. de Beauvoir, La Cérémonie des adieux,
Paris, Gallimard, 1981, p. 492.
Maurice Merleau-Ponty
A metafísica no homem
Estimulada pelo problema cartesiano da união da alma e do corpo, a filosofia
não fica porém acantonada a esse tema antropológico. Merleau-Ponty fala
pouco do homem, ou muito sobriamente; de tanto se pronunciar essa palavra,
esquece-se com efeito que o essencial deve ser procurado longe do homem: «A
sua existência estende-se a demasiadas coisas – exactamente: a tudo – para se
fazer ela mesma objecto de deleitação ou para autorizar aquilo a que se chamou
um “chauvinismo humano”704.» É por isso que não é uma antropologia da
união o que constrói Merleau-Ponty: é antes, após a Fenomenologia da
Percepção, uma interrogação sobre o ser. É menos o homem do que «o
metafísico no homem705» que doravante prevalece, por outras palavras o
mistério ontológico de que o homem, como espírito incarnado, não é mais do
que testemunha.
Essa ambição ontológica nova motiva a abertura de um vasto trabalho que
culminará, no final da década de 1950, com a redacção da grande obra
inacabada, O Visível e o Invisível. Chamado em 1949 à Sorbonne para aí
ensinar a Psicologia da Criança, nomeado em final de 1952 professor no
Collège de France, Merleau-Ponty alimenta com numerosas leituras um
trabalho filosófico prolífico; um após outro, todos os aspectos do viver humano
se vêem questionados no sentido das suas derradeiras implicações ontológicas.
O próprio corpo, em primeiro lugar, é interrogado em novos moldes, através de
uma reflexão sobre a psicanálise freudiana e pós-freudiana (M. Klein, P.
Schilder, J. Lacan). Uma representação dinamizada do esquema corporal, uma
nova consideração dos investimentos carnais e afectivos, instruem uma
representação inédita do corpo humano, corpo definitivamente impróprio,
radicalmente descentrado na direcção de outrem. Os «pensamentos bárbaros da
primeira idade706», sonhando a passagem mimética de outrem em mim e de
mim em outrem, são a primeira comunicação, a desrazão no princípio de toda a
razão. Para além do corpo, a linguagem vê-se também ela reexaminada, e isso
após a linguística de Saussure. Redefinida como o lugar do advento do sentido,
ou do sentido enquanto se faz, a linguagem deixa-se facilmente promover ao
nível de modelo universal, acreditando de cada vez, desde a ordem humana da
cultura até às profundezas da natureza, a ideia de uma historicidade
fundamental. Os textos redigidos a partir do fim dos anos 1940 para A Prosa do
Mundo deslocam assim o centro da reflexão, da simples incarnação –
anteriormente definida como confusão ou mistura dos contrários – para a
expressão, definida como poder universal de fazer sentido. Só a análise
política, nacional e internacional não se deixa apreender como um dos lugares
dessa intensa experimentação filosófica. Ao sair da Segunda Guerra Mundial,
em plena Guerra Fria, e nomeadamente através da criação com Sartre da revista
Os Tempos Modernos, Merleau-Ponty exorta a uma conversão do olhar: não é
para um céu de princípios jurídicos que nos devemos voltar para sondar o
sentido da história. A ideia de uma direcção superior – mesmo simplesmente
reguladora – e o cepticismo histórico são duas posições que se encontram,
postulando uma e outra um olhar dominante. Só capta o sentido histórico
enquanto este se faz aquele que faz o sentido, ou que pelo menos se sabe
empenhado numa situação histórica produtora do seu próprio sentido. Foi
assim que Merleau-Ponty sempre quis compreender o marxismo: como o
instrumento de uma nova inteligência dos factos, avessa a todo o pensamento
separado. Um instrumento que de resto seria errado julgar demasiado parcial
ou partidário, se é certo que ele conseguiu motivar, em relação à experiência
estalinista, tanto uma adesão atenciosa e prudente em 1947 (Humanismo e
Terror) como um verdadeiro distanciamento alguns anos mais tarde
(oficializado em 1955 com As Aventuras da Dialéctica).
Nessas diferentes explorações encontra-se sempre a mesma cifra ontológica.
Seria preciso conceber a ontologia terminal de Merleau-Ponty como o
resultado de investigações muito díspares, mas deixando porém transparecer
um ar de família – o de um ser «primordial», precedendo todo o pensamento
objectivo, e tão velho quanto os nossos primeiros desejos; um ser para sempre
«expressivo» ou «inacabado», à imagem das palavras criadoras do verdadeiro
escritor ou das vozes silenciosas do pintor; um ser enfim «bruto» ou
«selvagem», ressoando violências matriciais da relação inter-humana. A união
da alma e do corpo é doravante, no termo de uma série de alargamentos
espectaculares, ao mesmo tempo o originário, o incoativo e o bárbaro em nós.
É ainda a «carne do mundo», segundo uma fórmula que dá toda a medida (ou
desmesura) desse trabalho de elaboração ontológica.
Filosofia e não-filosofia
Em cada uma dessas investigações, é sempre o «uso da vida», como dizia
Descartes, o viver na sua radical precessão sobre o pensamento, que instrui a
filosofia e a faz aceder ao nível de filosofia concreta. Merleau-Ponty foi muito
longe nesse sentido, como testemunha o tema, omnipresente nos seus últimos
cursos no Collège de France707, da «não-filosofia». A não-filosofia é, em
conformidade com o alargamento do tema da incarnação operado após a
Fenomenologia da Percepção, o conjunto do mundo vivido anteriormente à
filosofia, esse mundo agido antes de ser sabido, verdadeiro laboratório da
filosofia que vem. É ainda a confusão generalizada do tempo presente, a
«crise708» que, através da ciência, da pintura, da literatura, da religião, da
política, denuncia a esterilidade manifesta do pensamento objectivo, esse
pensamento «de sobrevoo709»: para uma certa filosofia, tal como para uma
certa ciência, o ser não nos toca, conhecemo-lo sem o sermos, puros sujeitos
contemplando puros objectos. Mas tal como a percepção não é um saber
desligado mas uma presença experimentada, uma adesão sem distância,
também a filosofia deve reaprender a ser, na promiscuidade e na usurpação,
aquilo que quer levar ao conhecer. Daí o apelo a uma «filosofia militante710»,
capaz de renovar as suas categorias no plano da experiência, quando a
«filosofia triunfante711» pelo contrário não se sabe pensar senão pensante e
separada. Foi assim à psicologia em plena pesquisa de si, na transformação
activa dos seus próprios métodos e na superação operante dos seus dualismos,
em suma àquilo a que ele chamou um dia a «autocrítica do psicólogo712», que
Merleau-Ponty quis pedir uma filosofia da percepção e do desejo. Foi à arte, ao
gesto silencioso do pintor, bem como às suas perplexidades, que ele quis
regressar para penetrar o segredo do nosso poder de expressão. Foi enfim à
análise política factual, bem como à experiência comunista, que ele pediu um
veredicto acerca das possibilidades a vir para a coexistência humana.
Essa falsa humildade do filósofo, que finge abandonar a filosofia para melhor
voltar a ela, essa suspensão do saber em proveito da vida, que acaba por
reabastecer o saber com uma abundante matéria alheia, é sem dúvida o que nos
falta reconhecer de mais original em Merleau-Ponty. Há um paradoxo a reter
nesta vontade de fazer servir para a renovação da filosofia tudo o que a
ameaçava de impotência: «A filosofia […] começa com a consciência do que
corrói e faz ruir, mas também renova e sublima os nossos significados
adquiridos713.»
ÉTIENNE BIMBENET
699 Cf. Sens et non-sens, Paris, Nagel, 1948, p. 8: «Seria preciso que a experiência da desrazão não fosse
simplesmente esquecida. Seria preciso formar uma nova ideia da razão.»
700 Cf. M. Foucault, Les Mots et les Choses. Une archéologie des sciences humaines, Paris, Gallimard,
«NRF», 1966, cap. 10.
711 Ibid.
Em lógica, não há moral. Cada um tem a liberdade de construir a sua própria lógica, i.e. a sua
própria forma de linguagem, tal como desejar. Tudo o que lhe é pedido […] é que estabeleça os
seus métodos claramente e que forneça regras sintácticas em lugar de argumentos filosóficos719.
A logicização da matemática
Em Russell, a definição contextual, nova forma da navalha de Ockham,
permite reduzir toda a ontologia dos objectos lógi-co-matemáticos. A teoria
«nada de classes» dos Principia Mathematica definia contextualmente toda a
classe a partir de uma função proposicional cuja extensionalidade estivesse
garantida725. Assim, o número 2 revela ser não um objecto inteligível, mas uma
simples construção simbólica, uma «ficção lógica»: a classe de todas as classes
semelhantes a um dado par. Enquanto classe de classes, todo o número se
resolve desde logo numa ficção de ficção. A partir destas bases, os Principia
Mathematica de Russell e Whitehead propõem uma redução lógica de toda a
matemática, incluindo a geometria. Esse grandioso projecto logicista fracassa
por pouco na medida em que teve de aceitar irredutíveis axiomas matemáticos
(axiomas de escolha e do infinito). Mas constituiu um progresso significativo,
fundado na inegável potência analítica do cálculo das relações. Notar-se-á aliás
que a posição formalista que lhe opôs David Hilbert resultava também de uma
exploração da meta-matemática concebida como ciência dos sistemas formais.
714 Cf. G. Bachelard, Le Nouvel esprit scientifique, Paris, PUF, 1934; La Philosophie du non, Paris, PUF,
1940; M. Foucault, Les Mots et les Choses, Paris, Gallimard, 1968
715 B. Russell e A. N. Whitehead, Principia Mathematica, Cambridge, Cambridge University Press, 1910-
1913.
716 Cf. a nossa La Philosophie mathématique de Bertrand Russell, Paris, Vrin, 1993.
717 A «convivência» designa em Russell a relação autêntica entre o sujeito e os objectos com os quais ele
está em contacto directo.
718 J. Łukasiewicz, La Syllogistique d’Aristote, trad. do polaco para francês por F. Caujolle-Zaslawsky,
Paris, Collin, 1972.
719 R. Carnap, The Logical Syntax of Language, Londres, Routledge & Kegan, 1937, § 17, p. 52.
722 B. Russell, Misticismo e Lógica, cap. 10: «Conhecimento por convivência/conhecimento por
descrição».
724 Cf. «Le dépassement de la métaphysique par l’analyse logique du language», Manifeste du Cercle de
Vienne et autres écrits, Paris, PUF, 1985.
725 A extensionalidade de uma função proposicional reside na sua verificação por um ou mais indivíduos.
Cf. o nosso Bertrand Russell, Paris, Flammarion, «GF», 2003, § 3-4, p. 130-137.
727 J.-M. Monnoyer (dir.), Lire Quine. Logique et ontologie, Paris, Éd. de l’Éclat, 2006.
Michel Foucault
728 Em 1979, porém, as suas lições no Collège de France sobre o liberalismo levá-lo-ão a mostrar que, a
partir do século XIX, se instaura uma governamentabilidade liberal que exigirá que o Estado pelo contrário
intervenha o menos possível.
729 Trata-se de uma referência a João Cassiano (370-435), fundador do monasticismo ocidental. (N. do T.)
Filosofia política: poder e democracia
Consenso e dissenso
Estas concepções antagónicas da essência da democracia deixam-se resumir
na oposição entre «consenso» e «dissenso». Esta formulação poderá parecer
esquemática, na medida em que autores que pertencem incontestavelmente à
corrente institucionalista, como Habermas ou Rawls, reconhecem que os
conflitos, de interesses ou de valores, não podem ser eliminados numa
sociedade democrática. Um e outro foram aliás levados a modificar as suas
primeiras interpretações da base normativa das sociedades democráticas e a
constatar essa impossibilidade. A crítica dos comunitarianos desempenhou aqui
um papel motor743. Estes fizeram valer, contra o que estimavam ser o
universalismo abstracto dos teóricos que se inscreviam na posteridade kantiana,
os direitos da diferença e da particularidade: diferença dos sexos e das
preferências sexuais, particularidades das religiões e das culturas em geral.
Quando, na Teoria da Acção Comunicativa (1981), propunha procurar nos
pressupostos de toda a discussão (aquilo a que chamava a racionalidade
comunicacional) os fundamentos racionais da política, Habermas prolongava
antes de mais uma reflexão sobre o papel da esfera pública no funcionamento
das instituições democráticas modernas encetada desde o seu primeiro grande
livro, O Espaço Público (1962), mas ao mesmo tempo submetia essa esfera
pública a um forte constrangimento, que era a busca do entendimento.
Qualquer que fosse o lugar que atribuía ao «mundo vivido», Habermas
mantinha uma exigência de universalidade, que, para ser interpretada em
termos de procedimento, exclui tacitamente as posições políticas que resistam a
essa exigência. Da história alemã do século XX, Habermas guardou uma
profunda desconfiança em relação a toda a interpretação identitária da
comunidade política. É por isso que, confrontado com as objecções dos
comunitarianos, que insistem nas condições não políticas das identidades
colectivas – comunidade de língua, de religião e de cultura, ou ainda de uma
história partilhada –, Habermas foi levado a precisar as implicações daquilo a
que chamara em tempos a «ética da comunicação», distinguindo entre as
questões de ética, que se prendem com a identidade das comunidades, e as de
justiça, que só concernem as condições razoáveis da coexistência no quadro de
uma colectividade democrática744. A discussão, que segundo ele está no cerne
do funcionamento dos regimes democráticos, respeita unicamente à justiça, e
não à ética, compreendida nesse sentido novo e restrito.
Visto a partir de França, onde o debate anglo-saxão entre liberais e
comunitarianos foi transcrito para uma oposição entre o universalismo
republicano e o particularismo comunitarista, poderá parecer curioso que
Habermas impute aos republicanos a confusão entre ética e justiça. A razão
para tal é que o que ele retém como característica do republicanismo não é a
afirmação de um universal que relegaria os particularismos de todos os tipos
para a esfera pré-política, mas pelo contrário a tentação de pensar a própria
comunidade democrática em termos identitários. Quando Habermas estiliza o
diferendo que a crítica dos comunitarianos revelou acerca da natureza da
democracia ao construir de maneira antitética um modelo liberal e um modelo
republicano da democracia745, pode crer-se antes de mais que a sua preferência
vá desde logo para o segundo, e que a contrastada simetria da sua apresentação
dos dois modelos não passe de um artifício de apresentação destinado a
introduzir um terceiro modelo, o da democracia «deliberativa», que
supostamente conjuga as vantagens dos dois primeiros evitando os seus
respectivos defeitos. «Segundo a concepção republicana», escreve ele, «a
formação da opinião e da vontade política no espaço público e no parlamento
não obedece às estruturas do mercado, mas às estruturas autónomas de uma
comunicação pública orientada para o entendimento. Para a política no sentido
de uma prática de autodeterminação dos cidadãos, não é o mercado mas a
conversação que tem valor de paradigma746.» Este segundo paradigma parece
confundir-se com o de uma política fundada na ética da comunicação.
Habermas difere porém dos republicanos quanto ao objecto da «conversação»:
nas sociedades complexas modernas, caracterizadas pelo pluralismo cultural e
social, tal objecto, sustenta ele, não pode ser a natureza da identidade colectiva.
Para exorcizar o espectro de uma referência fundadora da democracia na
homogeneidade do povo, que, embora não seja pensada como homogeneidade
étnica, é sempre geradora de exclusão, ele julga necessário despojar o demos de
todos os atributos do sujeito: da identidade, compreendida como relação
reflexiva consigo, mas ao mesmo tempo também da capacidade de agir. Só o
sistema político, ou seja aquilo a que Habermas também chama o poder
administrativo, tem a «competência específica de tomar as decisões que
empenham a colectividade747». O espaço público é sem dúvida estruturado por
uma vontade de entendimento, mas cabe ao poder, cuja autonomia não é de
modo algum posta em causa por esta interpretação fraca da autolegislação, pôr
fim aos desacordos que a discussão não possa resolver numa sociedade
irredutivelmente heterogénea, ou seja impor os inevitáveis compromissos. É
significativo que Habermas reprove a Hannah Arendt, uma das grandes
referências do pensamento republicano contemporâneo, que esta defenda uma
concepção da política «que mantém uma relação polémica com o aparelho de
Estado748». A inconsistência do demos, privado da capacidade de agir, não
pode ser compensada senão pela confiança num aparelho de Estado, do qual se
admite por hipótese que se submete às normas universais do direito. Com a
inflexão trazida aos princípios da ética comunicacional em Direito e
Democracia (Faktizität und Geltung, 1992), Habermas acaba por esvaziar a
noção de «soberania popular» de toda a dinâmica de contestação, e a
concepção que forma do funcionamento institucional de uma democracia
liberal revela-se em definitivo mais próxima da dos liberais do que daqueles a
que ele chama os republicanos.
Foi também a crítica dos comunitarianos que levou Rawls, em textos
publicados após a Teoria da Justiça749, a reconhecer a inevitável
incompatibilidade das «doutrinas compreensivas750», morais, filosóficas e
religiosas, das quais se possam reclamar os membros de uma sociedade de
homens livres e iguais. Para ele, porém, tal como para Habermas, divergências
e incompatibilidades de interesses e de doutrinas não são um argumento
suficiente para fazer da dissensão a essência da política. Rawls remete-se a um
fundo comum de ideias implicitamente aceites por todos os membros das
sociedades democráticas, a que chama a «razão pública», ou a «cultura
política» comum, para garantir a possibilidade de um acordo mínimo sobre os
termos fundamentais da cooperação política e social. Esse «consenso por
verificação» está certamente muito distante de um universal racional de tipo
hegeliano, mas permite assegurar no quadro de um «pluralismo razoável» a
unidade política de um corpo social ideologicamente dividido, devido aos
próprios princípios que são o da sua base normativa. Encontra-se a mesma
ideia em Habermas quando ele observa, não obstante a separação que
estabelece entre cultura política e formas de vida culturais, que para a
viabilidade de um Estado de direito democrático é necessário que as diferentes
formas de vida coexistentes no seu seio «se verifiquem numa cultura política
comum751». A única diferença em relação a Rawls prende-se com o facto de
Habermas defender uma concepção dinâmica dessa cultura política comum,
que ele espera que permaneça aberta ao eventual contributo de «formas de vida
novas» que os particularismos de origem estrangeira ou autóctone introduzam
nas democracias constituídas. É porém evidente que tais inovações não devem
afectar a base universalista do Estado de direito, que segundo Habermas
mantém uma «ligação interna» com a democracia752.
A própria possibilidade de uma cultura política comum que não resulte de
uma história política partilhada permanece pois assaz fluida, tanto num como
noutro. Não nos podendo demorar nisso, apenas reteremos aqui a sua recusa
conjunta em tirar do reconhecimento da heterogeneidade das sociedades
contemporâneas conclusões que comprometessem a indexação da democracia
ao consenso. Habermas teve ocasião de exprimir essa resistência a uma
interpretação dissensual da democracia na sua reacção a um colóquio que foi
organizado em meados da década de 1990 sobre a sua obra Direito e
Democracia. O filósofo americano T. McCarthy, que muito contribuiu para dar
a conhecer a obra de Habermas nos Estados Unidos e não pode passar por um
adversário, fazia valer no entanto o carácter irredutível dos conflitos sobre os
valores. Ao que Habermas respondia que, se os antagonismos sobre os valores,
ou seja antagonismos dotados de um alcance existencial, devessem tocar todas
as questões políticas, chegar-se-ia a uma concepção schmittiana da política753.
Não se pode significar mais claramente que a tese segundo a qual a política é
uma esfera de acção essencialmente dissensual é incompatível com a noção de
democracia.
Não é contudo uma concepção schmittiana da política, dificilmente adaptável
à democracia, que representa a verdadeira alternativa à norma do consenso,
mas ainda aqui a posição desenvolvida no seu rigor mais extremo por Rancière.
Quando este afirma que «a essência da política é o dissenso754», não faz
referência ao conflito dos interesses ou à incompatibilidade dos valores, mas ao
encerramento da comunidade de discurso, compreendida como espaço público,
e à necessidade para aqueles que dela estão excluídos (os «sem parte») de nela
se introduzirem sub-repticiamente. Se Jacques Rancière concede efectivamente
a Habermas que o diálogo supõe uma relação igualitária, a do locutor para com
os seus auditores, a de um querer dizer para com um querer ouvir, ele observa
que tal relação supõe que estejam já constituídos e identificados o palco, o
objecto e os parceiros da discussão, o que não é o caso nessa esfera de acção a
que chamamos a política. «A igualdade das inteligências» é efectivamente o
pressuposto da democracia, compreendida como uma prática, mas ela não pode
ser o fundamento de um «poder democrático». Um «poder democrático» é de
resto, na perspectiva de Jacques Rancière, uma expressão intrinsecamente
contraditória, salvo para significar o poder de «não importa quem», ou seja o
exercício do direito de cada um em se ocupar dos assuntos públicos. Se existe
efectivamente um espaço comum da política, este não é estruturado pela busca
do consenso, mas apresenta-se como um «lugar polémico»: não um lugar de
conflito entre pontos de vista definitivamente inconciliáveis, que só uma
decisão sem razão poderia resolver (uma consequência que motiva a evocação
por Habermas do fantasma de Carl Schmitt), mas o lugar onde se põe à prova
um pressuposto igualitário cujas implicações nenhuma configuração
institucional pode esgotar.
730 Encontra-se uma teorização explícita da confiança como categoria central do liberalismo em L. Jaume,
La Liberté et la Loi, Paris, Fayard, 2000.
731 As interrogações sobre a noção de representação (B. Manin, Principes du gouvernement représentatif,
Paris, Flammarion, 1996) e os desenvolvimentos que inspiram nos partidários de uma democracia
participativa (Y. Sintomer, Le Pouvoir au peuple, Paris, La Découverte, 2007) podem ser consideradas
como tentativas de reabertura dessa investigação.
733 Esses constrangimentos normativos (os procedimentos que o poder deve respeitar, os bens que ele deve
garantir aos membros da sociedade) podem, bem entendido, funcionar como critérios de distinção entre
poderes justos e poderes injustos, mas não justificam o poder enquanto tal, ou seja a obrigação de o
indivíduo se submeter à autoridade de uma instância pública que para ele conserva sempre o carácter de
uma autoridade exterior. É por isso que parece necessário distinguir a questão da justiça do poder e a da sua
legitimidade.
734 Não evocamos aqui senão as posições extremas de um escaparate, no interior do qual, bem entendido,
se encontram híbridos, que combinam a aceitação sem estado de alma da autonomia do poder sob a forma
do governo eleitoral-representativo e a consideração das manifestações da sociedade civil nas quais se
exprime a suspeita em relação a tal poder. Assim, P. Rosanvallon (La Contre-démocratie, Paris, Seuil,
2006), para o qual as diversas formas de contestação dos poderes institucionalizados são pensadas ao abrigo
das categorias da «contra-democracia» ou da «impolítica». Rosanvallon propõe repolitizar essas práticas
impolíticas da política atribuindo-lhes um quadro institucional. Aos olhos dos téoricos radicais da
contestação, essa institucionalização, quaisquer que sejam as suas formas, surgirá necessariamente como
uma tentativa de refreamento, ou mesmo de domesticação.
735 C. Schmitt (1888-1985). A obra deste jurista alemão – A Noção de Política (1932), Teologia Política
(1922, 1970), Teoria da Constituição (1938) – exerceu uma influência considerável no pensamento político
contemporâneo, nomeadamente no campo alemão. As suas proposições provocadoras (em particular a
referência constitutiva do político na distinção amigo/inimigo), o seu antiliberalismo, e mais ainda o seu
empenhamento no regime nacional- socialista causam, porém, aversão a muitos: as suas posições só são
evocadas para se distanciarem delas.
736 Na continuidade da separação estabelecida por H. Arendt (Du mensonge à la violence, Paris, Calmann-
Lévy, 1972, p. 144-157) entre poder e violência, J. Habermas convida a compreender o pacto social como
um «modelo abstracto do modo de constituição de uma dominação que já não se legitime senão pela
instauração da autolegislação democrática. Ao mesmo tempo, a dominação política perde o seu carácter de
força natural: trata-se com efeito de extirpar da potência do Estado todo o resíduo de violentia»
(L’Intégration republicaine, Paris, Fayard, 1998, p. 72).
737 J. Rawls, Political liberalism, Nova Iorque, Columbia University Press, 1993.
738 Ibid.
739 Cf. por exemplo C. Lefort, Le Temps présent, op. cit., p. 561. Este vazio do lugar do poder não significa
a sua abolição, como precisa Lefort no mesmo texto (p. 560). Ainda que a democracia suscite naturalmente
«o fantasma de uma sociedade sem poder, este não é abolido nela. Ele continua a assegurar as condições da
coesão social».
741 Remeto aqui para o belíssimo texto intitulado «La communauté des égaux» (Ibid., p. 129-174).
743 A nossa análise debruça-se sobre as diferenças entre Rawls e Habermas. Para uma exposição sintética e
reflectida de tais diferenças, leia-se nomeadamente J.-C. Merle («La réception des communautariens en
Allemagne», in C. Colliot-Thélène e J.-F. Kervégan, De la société à la sociologie, Lyon, ENS Éditions,
2002).
747 Ibid., p. 271. Habermas utiliza a expressão «poder administrativo» num sentido não técnico, incluindo
nela tanto os órgãos propriamente administrativos do Estado como os parlamentos e o governo.
749 Os mais importantes estão reunidos na compilação Libéralisme politique, op. cit.
750 Rawls chama «compreensivas» às doutrinas que englobam todas as concepções relativas ao valor da
vida humana, em função das quais um indivíduo rege a sua conduta. O liberalismo político, tal como ele o
entende, não é uma doutrina compreensiva, e também não está ligado a uma doutrina compreensiva
específica.
751 J. Habermas, L’Intégration republicaine, op. cit., p. 93.
752 «Du lien interne entre État de droit et démocratie», L’Intégration républicaine, op. cit., p. 275-286.
753 Ibid., p. 305. Trata-se muito evidentemente de uma alusão ao critério proposto por C. Schmitt para
distinguir o político de qualquer outra esfera da vida humana: a distinção entre amigo e inimigo. Cf. supra.
754 «Dix théses sur la politique», Aux bords de la politique, op. cit., p. 244.
755 «Anti-institucionalistas» não no sentido em que visassem a abolição das instituições, mas no de que a
essência da política não reside, segundo eles, no ajustamento dos dispositivos institucionais.
756 Aos olhos dos leitores americanos, a grande inovação da Teoria da Justiça era a de integrar a crítica
social na teoria liberal.
758 «Demokratie als reflexive Kooperation. John Dewey und die Demokratietheorie der Gegenwart», in A.
Honneth (dir.), Das Andere der Gerechtigkeit, Frankfurt, Suhrkamp, 2000, p. 282-309.
759 Cf. em particular: «Pathologien des Sozialen. Tradition und Aktualität der Sozialphilosophie», in Axel
Honneth, Das Andere der Gerechtigkeit, op. cit., p. 11-60.
760 Cf. por exemplo os trabalhos de M. C. Nussbaum, em particular Frontiers of Justice, Cambridge,
Harvard University Press, 2006.
761 A. Honneth, Das Andere der Gerechtigkeit, op. cit., p. 390, sublinhado nosso.
763 Segundo a sugestão de É. Balibar (cf. nomeadamente La Crainte des masses, Paris, Galilée, 1997, p.
39-52).
As filosofias do vivente
Genética
O conceito de gene, nascido no início do século XX, foi reelaborado no
quadro da biologia molecular, após a descoberta da estrutura bi-helicoidal do
ácido desoxirribonucleico (1953) e a interpretação da sequência das bases
enquanto constituintes do código genético dos indivíduos. O entusiasmo foi tal
que se julgou haver-se revelado «o segredo da vida». A sucessão das bases e o
seu emparelhamento sistemático buscavam com efeito um mecanismo simples
para explicar o espantoso poder de auto-replicação de que é dotado o ADN.
O conceito de gene não deixa porém de colocar numerosas dificuldades à
filosofia das ciências. Ele mudou tão consideravelmente de rumo no decurso da
história da genética que podemos interrogar-nos acerca da sua unidade. A
genética mendeliana e a genética molecular serão a mesma ciência? O gene
mendeliano pode dizer-se «fenomenológico»: ele regista simplesmente a
variação de traços macroscópicos (ser uma ervilha frisada ou lisa, uma
drosófila de olhos brancos ou vermelhos). O gene molecular é estrutural: uma
sequência de ADN que supostamente fornece o código de fabricação dos
elementos que integram a morfogénese e dos processos fisiológicos. Por um
lado, a análise refere-se à transmissão de traços de um indivíduo à sua
descendência: ela conduz ao cálculo de rácios, definindo a frequência de um
traço numa população. Por outro lado, o interesse refere-se aos mecanismos
moleculares que regem a relação do ADN com as proteínas.
Entre o gene como elemento transmitido e o gene como elemento
participante da construção e do desenvolvimento do organismo, haverá alguma
correspondência possível? Não se pode identificar um nível molecular que
corresponda aos genes discretos mendelianos (condições das características
fenotípicas transmitidas). Por conseguinte, toda a tradução estrita de uma teoria
a outra parece impossível. A epistemologia depara aí com um caso de
equivocidade conceptual.
Qual é o quadro conceptual geral em que funcionam o ADN e os genes?
Através dos termos «informação», «programa», «operon», os biólogos
descrevem a maneira como sequências determinadas de ADN (os genes) são
«reguladas», sucessivamente activadas e desactivadas. Tais noções, apoiadas
em metáforas desenvolvidas pela cibernética, tendem a assemelhar o
organismo a um computador que segue uma série de instruções. Daí, podem
tirar-se diversos fios. O «código» suscitou novas reflexões acerca do seu
aparecimento: a origem da vida. A interpretação cibernética do vivente em
termos de «informação» incitou o aperfeiçoamento de máquinas que
reproduzissem toda a complexidade dos comportamentos animais (e humanos):
a vida artificial. A descoberta do «código genético» teve muito rapidamente as
suas aplicações práticas: as biotecnologias que esperam modificar o vivente à
discrição.
A retórica da «chave da vida» trouxe a realização de imensos projectos
internacionais, como o Projecto do Genoma Humano, que conduziu a um
impasse: os biólogos renunciaram por fim à ideia de que as estruturas e funções
complexas dos organismos vivos estivessem contidas no genoma, e portanto
directamente acessíveis a partir do conhecimento das sequências. Além disso,
tendo o próprio ADN, molécula-chave da construção do vivente, surgido como
uma molécula inerte, questionaram-se os conceitos e modelos que estruturavam
a genética.
Isso levou a uma contestação geral do «reducionismo molecular» e do
«programa». Redefiniu-se o que «fazem» os genes, questionou-se a relação
deles com o ambiente, deslocou-se o interesse da dupla hélice do ADN
cromossómico para todos os mecanismos citoplásmicos, pondo a tónica no
«epigenético»769. O termo «genético» não implica que todo o ácido nucleico
tivesse, por si mesmo, a capacidade de engendrar o conjunto do organismo que
o contém, ainda que se lhe atribuísse a capacidade de auto-replicação. É a
grande decepção do programa «informacional» nas ciências da vida: a
decifração do genoma (o conjunto dos genes) não permitiu «apreender»
directamente a essência da vida ou a receita mecanística para a fabricação dos
corpos vivos. Assim, certos genes podem ser inactivados sem que o indivíduo
padeça por isso. Uma corrente vigorosa proclama a «morte do gene» e apela à
consideração dos «fenómenos emergentes»770. «Programa» e «código» são
acusados de formarem uma metáfora essencialista, militar, reducionista.
Criticou-se até o Kernmonopol, monopólio nuclear, como uma metáfora com
preconceitos de género, que operava uma sexualização abusiva da célula771:
segundo um esquema em que o núcleo, visto como o amo masculino da célula,
controla um citoplasma passivo e feminilizado. A crítica do ADN nuclear e do
seu papel hierárquico na construção do organismo levou a que se insistisse nos
mecanismos citoplásmicos.
A partir daí, destacam-se aparentemente duas maneiras de ler as
biotecnologias. Por um lado, a temática dos OGM (organismos geneticamente
modificados) mostra como a tendência mecanista e reducionista autorizou
práticas de sequenciação, de divisão e de patenteamento do ser vivo. O corpo
vivo já não é um «organismo»; é analisado numa conjunção de diferentes
«componentes bióticos», susceptíveis de serem separados, trocados,
comerciados772. O nível do indivíduo parece dissolvido em proveito dos
«replicadores» que o produziram, actores egoístas unicamente preocupados em
produzirem cópias de si mesmos773. Por outro lado, a manipulação das células
estaminais suscitou um renovado interesse pela plasticidade do vivente e pela
adaptabilidade da célula. Porém, tais pesquisas, como as relativas à clonagem,
consistem em «reprogramar» uma célula, em substituir-lhe o núcleo para lhe
modificar a história – por onde se vê bem que a metáfora do programa ainda é
operatória.
Tais manipulações não deixam de ter efeito sobre o nosso conceito de
«individualidade»774. Já no século XVIII, os fenómenos de regenerações após
amputações, observadas em patas de lagostins, a reprodução por enxertia, cisão
ou rebento, observada nos pólipos ou nos pulgões, incitaram os naturalistas a
produzir uma teoria geral da reprodução alternativa à via sexuada. O organismo
mostrou que podia ser dividido, rompido na sua «harmonia», sem ser destruído.
No caso das biotecnologias, o nível de intervenção é diferente, uma vez que
doravante se trata de intervir na identidade genérica dos organismos.
Evolução
A dimensão evolutiva forma o segundo aspecto fundamental da ciência do
vivente e oferece-nos um outro olhar sobre as biotecnologias. O carácter
evolutivo da vida justifica o vivente na sua profunda unidade genética e na sua
diversidade, na dimensão de transformação das espécies, no parentesco que as
une, da bactéria à baleia. A teoria darwiniana, apoiada nos conceitos de
«variação» e de «selecção», ocupou primeiramente o locus classicus da
teologia natural: as «admiráveis» (beautiful) adaptações e co-adaptações. Ela
pôde assim justificar o mimetismo da borboleta que ganha a aparência de uma
folha morta, ou de uma espécie comestível que ganha o aspecto de um parente
venenoso. Mas, para S. J. Gould, a teoria da selecção natural jamais teria
substituído a doutrina da criação se a adaptação perfeita fosse frequente na
natureza.
O tema da perfeição alimenta antes o sentimento providencialista de uma
natureza perfeitamente racional, ordenada e ecónoma. Darwin, em particular,
não evoca os órgãos supostamente «perfeitos» senão como objecções à sua
teoria que ele se dedicará a remover: onde se supõe uma perfeição, ele mostra
que um olhar mais atento revela um conjunto de ajustamentos ou de defeitos.
Deste modo, se a criação perfeita supõe um engenheiro, a consideração dos
desvios convida a pensar noutro modelo: a intervenção da selecção natural,
operando aquilo a que F. Jacob chamou «a reparação do vivente»775.
A reparação permite sublinhar os constrangimentos estruturais que pesam
sobre a evolução (ela trabalha a partir do existente), a contingência (a
importância das circunstâncias) e a conversão de funções (um fragmento de
maxilar torna-se um pedaço de orelha). As organizações (dispositivos,
contrivances) são efectivamente «propositadas» (adaptadas a um propósito)
mas nem por isso são previstas para tal uso, ou orientadas para ele. Por outras
palavras, a adaptação não é um destino. Trata-se de um processo cego sem
antecipação nem inteligência no seu princípio. As reparações põem em causa a
tese de uma finalidade natural. Elas aproximam-se da evolução a partir não das
adaptações mais bem sucedidas, mas de arranjos bizarros e de soluções
atrevidas.
Onde o providencialismo louva a maravilhosa adaptação entre uma estrutura
e uma função, julgando ler nela um sinal da economia, da sageza e da
omnipotência divinas, o darwinismo apresenta ao invés essa variação como
uma acumulação sem razão de montagens singulares, localmente eficazes mas
de alcance limitado, tal como ilustra o «polegar» do panda, que não é um dedo
mas a deformação de um osso do punho776. O caso é geral: o olho (o
fotorreceptor) apareceu sob formas muito diversas. Do mesmo modo, ao nível
molecular, os cristalinos (as proteínas que representam entre 20 e 60% do peso
do cristalino no olho) são na realidade enzimas ligeiramente transformados;
quanto à hemoglobina, a sua função era a de simples despoluente nos
organismos inferiores e só se tornou meio de transporte do oxigénio nos
organismos superiores. A reparação aplica a plasticidade fisiológica; não existe
relação necessária e sistemática entre estrutura e função. Deve-se pelo contrário
constatar a versatilidade de funções em muitas moléculas, aquilo a que G.
Canguilhem chamou «a vicariância» do vivente. A antiga economia
providencial da natureza é reinterpretada como um bricabraque, onde do velho
se faz o novo.
O «jogo dos possíveis» significa que «se joga», que há flutuação e
imperfeição. Uma vez começada a vida sob a forma de um organismo primitivo
capaz de se reproduzir, a evolução operou-se por modificação de componentes
existentes. A existência de ADN não específico (a oposição dos exões e dos
intrões) fornece a matéria-prima para recombinações e permutas; as velhas
sequências são utilizadas para novas funções e a diversificação precisa apenas
de uma utilização diferente da mesma informação estrutural. É o que mostra a
corrente da «evo-devo», nomeadamente a partir do estudo dos genes Hox.
Estes genes são sequências que codificam o desenvolvimento dos organismos,
as quais se acham particularmente bem conservadas ao longo de toda a
filogenia, da drosófila aos vertebrados superiores777.
As biotecnologias resultam da confluência das práticas seculares de
melhoramento das espécies vegetais e animais por selecção e dos novos
instrumentos celulares (enzimas de restrição, transcriptase inversa,
transgénese). No cruzamento dessas duas linhagens, as biotecnologias não
constituem uma antinatureza ou uma contra-natureza, mas propõem uma
natureza possível e realizável. Elas são tornadas possíveis por algumas
propriedades da matéria viva, como a maleabilidade e a estabilidade. Elas não
fazem mais – pelo menos é o que declaram – do que propor uma «evolução
dirigida» que reproduz e prolonga in vitro os mecanismos biológicos: a
paridade entre natureza e laboratório permite pois a realização do possível778.
A tese do jogo da natureza e o seu corolário prático, a reparação, dão ocasião
a uma nova aposta: a genética pode passar de uma teoria da hereditariedade de
aspecto fatalista, ou mesmo reaccionário, a uma teoria das manipulações, com
matizes potencialmente progressistas: em lugar de transmitir o passado, ela
pode abrir um futuro utópico, mas isso não sem um risco de alienação.
Tais práticas revestem-se com efeito de importantes objectivos políticos:
estão ligadas a empresas que se apropriam do vivente em nome da sua
patenteabilidade; redefinem a medicina como um mercado da saúde que é
partilhado entre os laboratórios; colocam problemas de liberdade pública, com
o cadastro genético e a biometria. Interrogam a ética com a questão das
«opções de vida» e das «opções de sociedade». A filosofia política, social,
moral investiu o campo do vivente em torno das práticas biológicas e médicas
sobre o orgânico: estatuto do embrião, propriedade do corpo, definição do
humano. Do mesmo modo, fala-se de éticas ambiental e animal para essas
filosofias que, apoiando-se por vezes no parentesco genealógico dos viventes,
qualificam a natureza a partir da noção de «valor» e estendem a noção de
«respeitabilidade» para além do campo do humano. Poderemos assim estender
o estatuto jurídico (standing) a entidades que não são susceptíveis de clamar
justiça para defender esses direitos: gerações a vir, ecossistemas, animais,
vegetais? Estes últimos com efeito não são desprovidos «de interesses», ainda
que os não possam exprimir. É isso que tenta abarcar o conceito de
«considerabilidade moral», contra a perspectiva restrita que limita a esfera dos
direitos à esfera do humano779. O «neo-evolucionismo» tem igualmente um
objectivo relativo à «biodiversidade»: as biotecnologias vão introduzir nas
dinâmicas naturais organismos susceptíveis de ganharem primazia. A oposição
que Darwin estabelecia no quadro da colonização entre «espécies insulares» e
«espécies continentais» deveria doravante ser reformulada na das espécies
«naturais» e das espécies «artificiais», em luta pela obtenção dos mesmos
recursos. Como se formulará esse novo «contrato natural»?
Classificação
O vivente parece pois tolhido entre duas grandes abordagens: genética e
evolucionária, replicação e variação, identidade e diferença. Essa tensão
traduziu-se na história das classificações. Classificar é em sentido estrito
formar classes, reagrupar indivíduos segundo as suas semelhanças e separá-los
segundo as suas diferenças. Os níveis taxonómicos, ou taxa, estão
hierarquizados segundo uma escala de graus de generalidade: dos mais vastos
(reinos, ordens, classes) aos mais restritos (géneros, espécies, variedades)780.
Estarão estes conceitos da sistemática adaptados a um pensamento
evolucionário? A classificação foi relida como filogenia, dando a árvore
genealógica da evolução do vivente, mas ela é em princípio independente,
unicamente fundada na observação de afinidades estruturais e funcionais
(cladística, taxonomia numérica).
Os conceitos gregos de genos e de eidos, tomados a Platão e a Aristóteles,
são por vezes tidos como responsáveis por «2000 anos de estagnação em
taxonomia» e colocados na origem de uma tradição de essencialismo na
biologia781. O essencialismo considera que a tarefa do conhecimento é
descobrir e descrever a verdadeira natureza das coisas – ou seja a sua realidade
oculta ou a sua essência, a qual se encontraria ao nível das formas, julgado
mais, ou unicamente, «real». Por oposição, o espírito filosófico do darwinismo
seria antes um nominalismo, para o qual não existem senão indivíduos
(variações) e para o qual todos os termos gerais são construções artificiais. O
essencialismo é acusado de ignorar as singularidades dos indivíduos em
proveito das formas e de desqualificar toda a dinâmica ou todo o estado
transitório em proveito de um ideal intemporal. Ao invés, o pensamento da
evolução seria susceptível de integrar a mudança, de pensar a vida como
produção de novidade e de dissolver as categorias essenciais e os termos gerais.
As unidades da lógica aristotélica são interrogadas de maneira especial pelo
encontro com a perspectiva taxonómica: quando a biologia identifica espécies,
será que ela designa «realidades»? «Indivíduos»? A classificação implica mais
do que o vasto catálogo do vivente ou o inventário de todas as riquezas dos três
reinos da natureza. Ela coloca, por meio dos conceitos da espécie e do género,
uma questão de lógica: existirá o conhecimento somente por operadores de
generalidade que dirigem a atenção acima do nível do individual ou da pura
singularidade?
A biologia evolutiva mostra que todo o sistema de classificação não vale um
outro: o interesse da posição darwiniana é que ela nem é realista nem
nominalista. As classes podem ser abstracções, mas não são arbitrárias: elas
representam uma ordem na natureza que resulta dos processos evolucionários.
As classes não são reais, mas os grupos de indivíduos (as «populações») são-
no. Isso equivale a afirmar a realidade das propriedades relacionais. A
classificação baseia-se pois na descoberta dessas propriedades e na sua
integração num sistema cognitivo.
Simbiose
As práticas das biotecnologias não seriam compreensíveis sem a análise do
mundo microbiano, encetada pela biologia molecular782. «Micróbio» designa
uma escala de tamanho (10-6 m) e abrange organismos que pertencem a dois
«super-reinos» ou «clados»: Bactéria e Archaea783. O seu estudo perturba a
nossa irreprimível focalização nos «macróbios» e os expedientes que ela traz à
nossa representação da organicidade e da individualidade, da oposição do vivo
e do morto. O mundo da célula contém um verdadeiro «microzoo» que alarga o
nosso material ontológico e nos revela uma sobreposição de níveis e de tipos de
existência: priões, plasmídeos, organitos, simbiontes extra- ou intracelulares,
como os Buchnera, pequenos genomas que habitam nas células dos afídeos
(pulgões) com os quais co-evoluem.
Esta vida microscópica revela, sob o indivíduo e a sua aparente autonomia,
uma importante vida cooperativa e colectiva, mesmo numa simples célula
eucariote, devida à endossimbiose. Um vegetal não poderia funcionar sem
aquilo a que se chama a «rizosfera»; as térmitas ou a espécie Homo sapiens
tem um «microbioma», indispensável ao seu metabolismo e integrado no seu
sistema imunitário. A própria ideia de um «organismo» monogenómico
independente se torna duvidosa, na medida em que o funcionamento de cada
entidade se baseia nas interacções entre as suas componentes simbióticas. Todo
o «indivíduo» parece resolver não ser mais do que um colectivo unificado pelo
funcionamento metabólico. Os «organismos» revelam-se como «meta-
organismos».
Essa natureza cooperativa do vivente tende a atenuar a ideia de uma distinção
nítida entre vivente e não vivente. A descrição do espectro das formas de vida
permite alcançar uma melhor compreensão das interacções e dos modos de
coexistência e de interdependência que existem entre entidades. Mitocôndrias,
plasmídeos, ou cloroplastos, todos entidades simbióticas, partes integrantes de
um todo orgânico, poderão dizer-se «vivos»? Os vírus ocupam aqui um lugar à
parte. São elementos de ADN ou de ARN que formam estirpes, mas não
metabolizam por si mesmos e utilizam o material genético de um anfitrião para
se reproduzirem. Conseguiu-se sintetizar artificialmente um vírus (1935). Esse
feito renova a síntese artificial da ureia (1828): esta remete-os para um estatuto
puramente mineral, ou significa que as macromoléculas que constituem o
vivente nada têm de misterioso ou de essencialmente diferente do mundo da
química. Porém, há aí uma dimensão superior. Um vírus não é uma mera
molécula, ele tem uma forma de independência ou de autonomia parcial, que
permite qualificá-lo como «organismo» ou «ser vivo». O vírus seria uma
entidade «alternativamente viva», viva no interior do corpo e morta no exterior
dele. Mas o problema clássico (essa entidade é ou não viva? Um indivíduo
autónomo? Um organismo?) é doravante contornado: a questão do vivente não
se coloca senão a propósito de um sistema ou de uma entidade colectiva, uma
pluralidade cooperativa, capaz de metabolizar e de criar linhagens.
A consideração das bactérias e dos micróbios convida igualmente a redefinir
conceitos como o de «sexo»784. O sexo designa doravante todo o mecanismo
de recombinação genética, uma simples mistura de genes, ou uma união entre
moléculas de ADN provenientes de diferentes origens. No seio desta definição
muito geral, distingue-se o «sexo eucariote», definido pelo processo de meiose,
tal como o conhecemos por exemplo nos animais superiores, e o «sexo
procariote», que designa processos (lisogenia, transdução, etc.) de
recombinação genética de entidades autopoiéticas (como as células
bacterianas) ou não autopoiéticas (como os vírus e os plasmídeos). Pode
separar-se o «sexo» das categorias de género (masculino/feminino,
macho/fêmea) e da atribuição de uma finalidade reprodutiva. Ele descreve
simplesmente o processo pelo qual uma nova combinação genética individual
viva é formada a partir de genes de pelo menos duas fontes diferentes. Segundo
esta definição, o vírus da gripe que nos faz adoecer é «sexual», uma vez que
introduz os genes virais nas nossas células.
Estas quatro dimensões do vivente (genética, evolutiva, taxonómica e
simbiótica) põem em causa a ideia do vivente como indivíduo autónomo, mero
exemplar de «tipos ideais» (a espécie). Enxertia, mundo microbiano e
reparação evolutiva das biotecnologias convidam a filosofia a modificar as suas
perguntas e os seus conceitos (organismo, indivíduo, vida). Os nossos
conceitos inadequados nasceram da identificação rápida do «vivente» com uma
máquina, ou da «vida» com a «nossa vida», com a vida tal como a vivemos. A
filosofia do vivente, apoiada numa história natural que observa e descreve
entidades «naturais», ou seja que funcionam segundo as leis da natureza,
liberta-nos de tais preconceitos. Ela convida-nos a considerar, com novos
olhos, uma nanomáquina que, tal como uma célula, mobiliza recursos para se
replicar, mas igualmente a própria Terra, que pode ser pensada como um
«super-organismo». Nestes ecossistemas alargados, as relações de competição
e de cooperação são complexas: serão os organismos para o superorganismo o
que as células são para o organismo? As espécies serão para ele o que os
órgãos são para um organismo? Poderemos considerar tais associações naturais
como formando um «organismo»? Tanto Stanislas Lem como Michael
Crichton o sugeriram785. Estas questões ganham particular acuidade no
momento em que a biologia toma consciência dos fenómenos de coexistência
no seio da nossa própria individualidade.
THIERRY HOQUET
764 Cf. D. L. Hull e M. Ruse, The Philosophy of Biology, Oxford, Nova Iorque, Oxford University Press,
1998; F. Duchesneau, Philosophie de la biologie, Paris, PUF, 1997; J. Gayon, «La philosophie et la
biologie», in J.-F. Mattéi (dir.), Encyclopédie philosophique universelle, t. IV, Paris, PUF, 1998, p. 2152-
2171.
768 G. Canguilhem, «La nouvelle connaissance de la vie. Le concept et la vie», in Études d’histoire et de
philosophie des sciences, Paris, Vrin, 1983, p. 335-364; H. Jonas, Le Phénomène de la vie. Vers une
biologie philosophique, Paris, Bruxelas, De Boeck, 2001.
769 Cf. L. E. Kay, Who Wrote the Book of Life?, Stanford, Stanford University Press, 2000; E. Fox Keller,
Le Siècle du gène, Paris, Gallimard, 2003; E. Jablonka e M. J. Lamb, Epigenetic Inheritance and Evolution.
The Lamarckian Dimension, Oxford, Oxford University Press, 1995.
770 Cf. nomeadamente J. Atlan, La Fin du «tout génétique», Paris, INRA, 1999; J.-J. Kupiec e P. Sonigo,
Ni Dieu ni gène, Paris, Seuil, 2000; A. Fagot-Largeault, D. Andler, B. Saint -Sernin, Philosophie des
sciences, Paris, Gallimard, 2002.
771 The Biology and Gender Study Group, «The importance of feminist critique for contemporary cell
biology», Hypatia, 3-1, Bloomington, Indiana University Press, 1988, p. 61-76.
775 F. Jacob, Le Jeu des possibles, Paris, Fayard, 1981. [Traduziu-se por «reparação» o termo original
bricolage. (N. do T.)]
777 Cf. W. Gehring, La Drosophile aux yeux rouges, Paris, Odile Jacob, 1999.
778 Cf. C. Debru (e P. Nouvel), Le Possible et les Biotechnologies, Paris, PUF, 2003.
779 Cf. H.-S. Afeissa (dir.), Éthique de l’environment, Paris, Vrin, 2007.
780 Cf. as obras de H. Daudin, Études d’histoire des sciences naturelles, Paris, Alcan, 1926, 3 vols. e J.-M.
Drouin, L’Herbier des philosophes, Paris, Seuil, 2008.
781 Cf. D. Hull, «The Effects of Essentialism on Taxonomy: Two Thousand Years of Stasis», BJPS, n.º 15,
1965, p. 314-326 e n.º 16, 1965, p. 1-118.
782 Cf. M. Morange, Histoire de la biologie moléculaire (1994), Paris, La Découverte, 2003, p. 70-75.
783 C. M. O’Malley e J. Dupré, «Size Doesn’t Matter. Towards a More Inclusive Philosophy of Biology»,
Biology and Philosophy, n.º 22, 2007, p. 155-191.
784 L. Margulis e D. Sagan, What Is Sex?, Nova Iorque, Simon & Schuster, 2007.
O interesse dos filósofos pelo cérebro e pelo sistema nervoso não é recente:
de Descartes a Bergson, passando por Diderot, La Mettrie, Maine de Biran e
James, o que disseram médicos e fisiólogos sobre esse órgão sempre reteve a
atenção dos filósofos. Contudo, foi somente durante a segunda metade do
século XX, com os trabalhos de Flourens, Broca, Wernicke, Helmholtz, e
sobretudo Ramón y Cajal, o primeiro a descrever a organização cerebral e as
conexões neuronais, que o cérebro se tornou um objecto filosófico, e o lugar
por excelência do estudo das relações do corpo e do espírito786. Os medievais
consideravam o coração como o princípio de individuação do ser humano: se
dois gémeos siameses tinham duas cabeças mas um único coração e um único
tronco, considerava-se que eram um único indivíduo. Hoje em dia, o princípio
de identidade é o cérebro, e a medicina considera que o sinal da morte clínica é
a morte cerebral, e já não a paragem do sistema cardiovascular.
Os filósofos, porém, levaram tempo a colocar o cérebro no centro das suas
reflexões sobre as relações entre o espírito e o corpo. Bergson, apesar do seu
interesse pela neurologia, considerava o cérebro como uma central telefónica e
desvalorizava a sua função cognitiva para acentuar o seu papel na planificação
da acção. O cérebro não tinha maior lugar na concepção behaviorista do
espírito, uma vez que o mental se reduz nesta à sua face estritamente externa e
às meras relações entre stimuli e respostas comportamentais, deixando de lado
a «caixa negra» interna. A concepção filosófica que melhor incarna esse
distanciamento do poder causal do cérebro é o «behaviorismo lógico»
defendido por positivistas lógicos como Hempel787, que entende reduzir o
significado dos enunciados psicológicos ao de enunciados relativos ao
comportamento. Por exemplo, «Ele está com dor de dentes» não significa mais
do que: «Ele faz caretas agarrando o maxilar e faz estes ou aqueles gestos.»
Mas não se podem definir os estados mentais por comportamentos a menos que
se suponha que os comportamentos em questão são causados por estados
mentais. Em A Noção de Espírito788, Gilbert Ryle sustenta uma versão subtil
desta tese, contra o mito «cartesiano» do espírito «fantasma na máquina»,
defendendo a ideia segundo a qual o espírito não é algo de interno, físico ou
mental, mas um conjunto complexo de disposições. Embora seja mais
complexa, a noção de Wittgenstein789, segundo a qual um processo interno
necessita de critérios externos, participa da mesma desconfiança em relação à
ideia de que se poderia alojar o espírito por dentro.
A reacção veio de filósofos como H. Feigl, U. T. Place e J. J. C. Smart790,
que defenderam a tese da identidade do espírito e do cérebro, a que chamaram
também «materialismo do estado central». Sustentam que os estados mentais
são idênticos a estados físicos do cérebro, no sentido em que tipos de
propriedades mentais (a dor, os estados conscientes, as crenças, os desejos,
etc.) são idênticos a tipos de estados cerebrais. Mas a redução proposta é-o
somente em princípio, pois ela não está empiricamente verificada, e a teoria da
identidade pressupõe um modelo muito forte da redução científica que requer
que as propriedades mentais e as propriedades físicas sejam co-extensivas.
Segundo a concepção da redução das teorias de E. Nagel791, isso carece da
existência de «leis-pontes» que permitam reduzir as leis de um domínio às de
um outro. Todavia, se existissem leis-pontes desse género, seria preciso que
toda a propriedade mental «realizada» num organismo tivesse um mesmo
substrato físico nos outros organismos. Isso suporia, por exemplo, que a dor
fosse realizada pelo mesmo substrato neuronal num humano, num polvo ou
numa rã. Mas embora haja algo de comum quando esses diferentes tipos de
organismos experimentam a dor, é óbvio que os eventos ocorridos no sistema
nervoso de cada um deles não são idênticos, o que é igualmente verdadeiro
entre dois indivíduos no seio de uma mesma espécie. É aquilo a que se chama a
«realizabilidade múltipla» dos estados mentais, e isso constitui um sério
obstáculo à ideia de uma redução espírito-cérebro. Além disso, a identidade
tem a sua lógica própria: se entendermos dizer que todo o estado mental
consciente (a propriedade de experimentar uma dor, ou a percepção visual, por
exemplo) é idêntico a um estado neuronal ou a uma configuração de estádios
neuronais, tem de admitir-se que, segundo o princípio de indiscernibilidade dos
idênticos, toda a propriedade de propriedade mental é também uma propriedade
de um estado neuronal, o que é absurdo: se virmos vermelho, a nossa
experiência tem a propriedade de se referir ao vermelho, mas isso não implica
que o nosso estado neuronal seja vermelho. Aqui, o materialista pode responder
que é preciso distinguir o processo relativo à propriedade de ter uma dor da
sensação qualitativa experimentada quando se tem uma dor, tal como é preciso
distinguir a referência das expressões «a estrela da tarde» e «a estrela da
manhã» (que é a mesma) do sentido dessas expressões (que é diferente). Mas
essa distinção entre o que seria «em si» a dor (um estado cerebral) e a maneira
como ela seria sentida é justamente o que é negado pelo dualismo: neste caso, a
essência da dor ou de outros estados qualitativos ou fenomenais é o seu modo
de aparecer, e há um abismo irredutível entre o cérebro e os qualia
conscientes792.
Face a tais objecções, o teórico da identidade pode adoptar dois tipos de
estratégias. A primeira consiste em negar que a maneira como nos aparecem os
eventos mentais e o conteúdo das nossas experiências tenha qualquer
importância que seja quanto à sua natureza e aos seus poderes causais. Segundo
esta concepção, desde que as bases neuronais da consciência tenham sido
estabelecidas, deixará muito simplesmente de haver lugar para continuar a falar
de «experiências conscientes», de «percepções», de «lembranças», de
«crenças», de «desejos», etc. A versão mais radical desta tese «eliminativista»
é defendida por Paul Churchland793, para quem a nossa «psicologia popular»
ou ingénua não passa de uma mitologia ou de uma teoria falsa, ao mesmo título
da química do flogisto, que será substituída, quando a nossa ciência do cérebro
estiver mais avançada, por taxonomias apropriadas em termos de conexões
neuronais. Eliminar o mental e reduzi-lo não são a mesma coisa. Reduzir uma
teoria a outra, por exemplo a termodinâmica fenomenológica à termodinâmica
estatística, é admitir que os fenómenos descritos pela primeira são reais, ao
passo que eliminar uma teoria é sustentar que ela é falsa e que os seus termos
nada designam. Mas a eliminação da psicologia popular pelas neurociências
não se produziu, porque a primeira não é simplesmente uma teoria científica ou
protocientífica do espírito, mas um esquema geral de compreensão de nós
mesmos, uma «postura intencional» impossível de eliminar794.
A segunda estratégia que pode ser adoptada pelo teórico da identidade
consiste em enfraquecer a sua tese, renunciando à ideia de que se possam
identificar tipos de estados mentais com tipos de estados físicos, para adoptar
apenas a tese segundo a qual todo o evento mental particular é idêntico a um
evento físico particular ou a outro. É uma consequência directa da
realizabilidade múltipla. Admite-se assim que a dor possa ser realizada pela
activação de certas fibras neuronais nos humanos, mas que ela se efectue por
outros eventos físicos em organismos diferentes. Em lugar de sustentar que
propriedades como «dor» ou «crença» sejam co-extensivas com propriedades
físicas, sustenta-se que as propriedades mentais sejam co-extensivas com uma
disjunção de ocorrências particulares de propriedades mentais. É aquilo a que
se chama a teoria da identidade das ocorrências. Mas sobre ela também existem
duas versões.
A primeira versão não é mais do que o desenvolvimento da velha ideia
aristotélica segundo a qual a alma é a forma do corpo: a natureza de um estado
mental não é constituída pelo seu substrato material, mas pela sua função. No
seguimento de Turing795, os filósofos funcionalistas contemporâneos, como H.
Putnam, D. Lewis e J. Fodor796 exprimiram essa ideia comparando o espírito
ao programa informático de um computador que se possa adaptar a múltiplas
bases materiais. A metáfora teve sucesso, mas a tese funcionalista tem um
alcance mais vasto. Ela expõe que um estado mental é constituído pela sua
função, a qual é o papel causal desempenhado por esse estado, constituído
pelas suas causas e os seus efeitos característicos. Assim, a dor é o estado
mental cujo papel é o de receber entradas sensoriais que detectem os danos
sofridos pelo organismo e que tenham por efeitos característicos o evitamento
desses danos. A tese pode ser estendida à ideia de função biológica, o que a
distingue da metáfora do espírito-computador. Durante cerca de trinta anos, o
funcionalismo foi a tese dominante das ciências cognitivas. Ele permitiu o
desenvolvimento de um tipo de investigação que se achava no cruzamento das
neurociências, da psicologia cognitiva, da inteligência artificial e da robótica. O
velho projecto positivista de uma unidade da ciência, que aliaria a física, a
biologia, as neurociências e as ciências sociais, viveu então uma segunda
juventude. Depressa se constatou porém que a unificação não era fácil.
O funcionalismo é um fisicalismo fraco. Ele admite que todo o evento mental
é um evento físico, mas não admite que todo o tipo de evento mental seja um
evento físico. Não implica portanto o reducionismo. Neste sentido, nem a
psicologia nem a biologia, nem as ciências sociais e as «ciências especiais» são
redutíveis à física, porque todas elas assentam em generalizações estruturais.
Até que ponto pode o funcionalismo fazer abstracção não só dos detalhes
físicos, mas também de certas características mentais? Ele parece adaptar-se a
estados mentais que desempenhem um papel explícito na acção, como as
crenças e os desejos, mas torna-se bem mais problemático quando se trata de
estados mentais cuja natureza não seja relacional mas intrínseca, como é o caso
das experiências vividas e das propriedades fenomenais. Mesmo que se defina
a dor pelo seu papel funcional, ela está sempre associada a uma certa qualidade
sentida, um «que efeito isso faz797». Mas um «morto-vivo» que fosse
desprovido de experiências conscientes embora tivesse todas as funções
humanas habituais teria verdadeiramente estados mentais798? Um indivíduo
colocado numa sala onde recebesse instruções em chinês, que ele não
compreenderia mas ligaria a respostas correctas graças a um conjunto de regras
que associassem as frases chinesas a outras frases chinesas poderia ser
creditado como compreendendo chinês799? Cada uma destas experiências de
pensamento permite entender que as malhas da rede funcionalista são
demasiado largas.
A segunda versão da tese da identidade das ocorrências recusa a própria ideia
de que possa haver leis psicológicas. O funcionalismo admite generalizações
do tipo: «Sendo de resto todas as coisas iguais, se X tem sede e se X crê ter
diante de si um copo de água, ele beberá esse copo.» Mas até que ponto são as
coisas «de resto todas iguais»? Se X crê que a água do copo não é potável, ele
não cumprirá a acção especificada. Devem pressupor-se todas as espécies de
condições de normalidade e de racionalidade. A isso soma-se o facto de que os
estados mentais são holísticos, e só se podem atribuir tendo por fundo outras
atribuições, o que parece interditar a possibilidade de leis psicológicas estritas,
isoláveis da mesma maneira que o podem ser as leis físicas. A negação da
existência de leis psicológicas segue a par da negação da teoria da identidade
dos tipos, pois, se não há leis mentais, elas também não podem ser reduzidas a
estados físicos. É no entanto possível, como mostrou D. Davidson800, defender
a seguinte conjunção de teses: 1) não há leis psicológicas nem psicofísicas
estritas; 2) os eventos mentais e físicos mantêm entre si relações causais; 3) os
eventos mentais ocorrentes são idênticos a eventos físicos. Este «monismo
anómalo» é um materialismo. Ele aceita a ideia de que o mental depende do
físico, e o princípio dito de «sobreveniência» (segundo o qual o físico é
suficiente para o mental, ou que estabelece que toda a diferença mental implica
uma diferença física), mas nega que isso implique a redução. Deixa de se ver
porém em que é que as propriedades mentais possam ter a mais pequena
eficácia causal: elas tornam-se puramente epifenomenais, e o espírito reduz-se
ao esquema de interpretação pelo qual se atribuem estados mentais. Para que
pode então servir a ideia de que os eventos mentais são eventos cerebrais? Se
quisermos manter ao mesmo tempo o materialismo e a tese segundo a qual as
propriedades mentais têm um poder causal e explicativo, o cérebro deve poder
ser a causa do espírito e não apenas a sua condição suficiente.
Estamos visivelmente num impasse: ou a identidade do cérebro e do espírito
é demasiado forte quando implica um reducionismo ou um eliminativismo, ou
então ela é demasiado fraca quando o não implica. Algo não funciona no
argumento da realizabilidade múltipla do funcionalismo. Porque deveríamos
nós supor que a relação entre um espírito e um cérebro é tão lassa quanto a que
existe entre um programa informático e a sua realização material num
computador? Até onde nos poderemos abstrair da base material? Até que ponto
a variação no substrato altera a natureza do tipo de objecto? O que causa
problema é a ideia de que os eventos neuronais que instanciam leis funcionais
seriam ocorrências disjuntas. Mas se as propriedades funcionais (como a dor)
são sobrevenientes às disjunções de eventos neuronais, como se justifica que
tais eventos não tenham qualquer relação entre si? Poder-se-á admitir que um
gene tenha propriedades causais a um nível superior ou «macro» sem que as
configurações moleculares que as sustêm ao nível inferior ou «micro» estejam
fortemente unificadas801? J. Kim802 mostrou que se deveria adoptar uma
concepção da redução das propriedades mentais às propriedades físicas mais
forte que a do funcionalismo. Kim propõe que se atribua uma caracterização
funcional a todas as propriedades psicológicas, que especifique o papel causal
destas, e que se admita que essas propriedades são realizadas em configurações
causais neuronais, elas próprias classificáveis em tipos. Isso autoriza pelo
menos reduções de propriedades no seio de cada espécie: se a dor não é a
mesma coisa nos polvos e nos mamíferos, ela deve ser fortemente unificada no
seio de cada espécie. O fisicalismo deve ser mais robusto do que um
fisicalismo funcionalista ou «anómalo».
A resistência filosófica à ideia de que uma teoria do espírito se deve reduzir
de uma maneira ou de outra a uma teoria do cérebro apoia-se principalmente
em dois tipos de argumentos, encontrando-se a fonte de ambos em
Wittgenstein. O primeiro é avançado por filósofos críticos das ciências
cognitivas803. «Que o cérebro, dizem-nos eles, seja o órgão do pensamento, o
substrato da consciência, das crenças e das emoções, é uma coisa sobre a qual
poderemos concordar. Não é – para parafrasear Aristóteles acerca da alma804 –
o cérebro que pensa, mas o homem, por meio do seu cérebro.» Do mesmo
modo, os filósofos que criticam as explicações dos fenómenos psicológicos das
ciências cognitivas gostam de denunciar o «sofisma do homúnculo»: não é o
olho que vê, não é um homúnculo em nós que calcula, compreende ou infere,
mas o indivíduo inteiro. Este argumento é um non sequitur: o facto, inegável,
de que os critérios (os nossos conceitos, a «gramática») pelos quais
reconhecemos o pensamento, a consciência, ou a visão diferem daqueles pelos
quais reconhecemos os mecanismos cerebrais, não implica que o pensamento
nada tenha a ver com os mecanismos em questão. O facto de chamarmos
«sonho» ao tipo de acontecimentos de que temos consciência durante o nosso
sono e do qual nos recordamos ao despertar não implica que a natureza dos
sonhos possa ser constituída por processos cerebrais de que não temos
consciência.
O segundo tipo de argumento provém dos filósofos que defendem uma
concepção «externalista» da intencionalidade e dos conteúdos mentais: o que
nós pensamos ou percebemos é determinado em larga medida pela natureza do
ambiente a que pertencemos, e um indivíduo que fosse uma nossa réplica física
mas que vivesse num ambiente diferente do nosso não teria os mesmos
conteúdos mentais. Há diversas variedades de externalismo, segundo se
«estenda» o espírito à acção e às relações com o ambiente físico e biológico, ou
às relações sociais e linguísticas. De acordo com o externalismo social, que
nisso vai ao encontro da crítica de Comte contra a assimilação do espírito ao
cérebro, o espírito não está dentro, mas fora, nas suas obras, nas instituições
humanas. Trata-se de saber se se entende manter uma concepção causal do
espírito. Se as crenças, desejos e outros estados mentais – incluindo os estados
conscientes ou qualia – desempenham presumivelmente um papel causal na
acção, é algo que o externalismo dos conteúdos mentais não permite explicar,
pois os processos causais devem ser locais, ou seja estar situados onde se acha
a pilotagem do sistema nervoso, e não distais ou exteriores ao organismo. Ele
viola portanto o princípio da sobreveniência do mental em relação ao físico.
Quando estou a apanhar sol, é certamente uma causa exterior ao meu
organismo que age, mas a causa está à superfície da minha pele. O
externalismo tem razão na medida em que o espírito é em grande medida
constituído por relações externas (sociais, linguísticas, institucionais,
históricas) com a mera caixa craniana. Mas erra ao confundir essa constituição
com a causalidade exercida pelos estados mentais e pelos estados cerebrais, se
os primeiros são sobrevenientes aos segundos. Se quisermos manter o lugar do
espírito na natureza, o cérebro deve ter um poder causal. Ele não será
porventura o único piloto do navio do espírito, mas é no navio dele que
estamos embarcados.
As técnicas da imagística cerebral e a compreensão das bases neuronais do
espírito alteraram a maneira como compreendemos questões como a da
identidade humana. Parece longínqua a época em que se perguntava se o
homem tem uma essência ou se é constituído pela cultura e pela história. Já
ninguém duvida do facto de que a compreensão da relação entre o inato e o
adquirido passa pela compreensão das bases genéticas da natureza humana, e
da questão de saber como evoluíram as estruturas do cérebro. Por mais
distantes que pareçam as discussões sobre a doença mental e a psicopatologia
que opuseram os defensores da autonomia da psychê e os «organicistas». Não
que os segundos tenham ganho, mas o facto é que a questão da liberdade e da
pessoa passa pela compreensão do grau de plasticidade das estruturas neuronais
e da sua relação com o ambiente. Aquilo a que ainda há um século se chamava
o problema filosófico «do conhecimento de outrem» já não pode ser colocado
sem levar em conta o que sabemos das estruturas da «teoria do espírito», que a
nossa espécie partilha em parte com os primatas. Grande número das nossas
doenças são doenças cerebrais: priões, Alzheimer. Isso, a meu ver, em nada
altera a natureza dos problemas metafísicos clássicos, como o da liberdade e do
determinismo, que não estão de modo algum resolvidos; mas o cérebro tornou-
se o órgão metafísico por excelência.
PASCAL ENGEL
786 Cf. M. Jeannerod, Le Cerveau-machine. Physiologie de la volonté, Paris, Fayard, «Le Temps des
sciences», 1983.
787 C. Hempel, «L’analyse logique de la psychologie», Journal de Synthèse, 10, 1935, republicado em D.
Fisette e P. Poirier (ed.), Philosophie de l’esprit, Paris, Vrin, «Textes clés», 2002, vol. 1.
788 G. Ryle, The Concept of Mind, Londres, Hutchinson’s University Library, 1949.
790 U. T. Place, «Is Consciousness a Brain-Process?», British Journal of Psychology, 71, 1956; J. Smart,
Philosophy and Scientific Realism, Londres, Routledge, 1963.
793 P. Churchland, Matter and Consciousness, Oxford, Oxford University Press, 1984.
796 H. Putnam, «The nature of mental States», 1967, in D. Fisette e P. Poirier, op. cit.; Representation and
Reality, Cambridge, MIT Press; D. Lewis, «How to define theoretical terms», Philosophical Papers,
Oxford, Oxford University Press, 1992; J. Fodor, The Language of Thought, Cambridge (Massachussetts),
MIT Press, 1975.
797 T. Nagel, Mortal Questions, Cambridge, Cambridge University Press, 1979.
798 D. Chalmers, The Conscious Mind, Oxford, Oxford University Press, 1996.
799 J. R. Searle, The Rediscovery of the Mind, Cambridge, MIT Press, 1992.
800 D. Davidson, Essays on Actions and Events, Oxford, Oxford University Press, 1980.
801 E. Sober, «The Multiple Realizability Argument Against Reductionism», Philosophy of Science, 66,
1999, p. 542-564.
804 Da Alma, I, 4.
As descobertas filosóficas negativas
da física contemporânea
O impacto filosófico da física não poderia ser mais bem pensado do que na
perspectiva enunciada por Merleau-Ponty do seguinte modo:
O sentido da física é fazer-nos fazer «descobertas filosóficas negativas» ao mostrar que certas
afirmações que pretendem uma validade filosófica não a têm na verdade […]. A física destrói certos
preconceitos do pensamento filosófico e do pensamento não filosófico sem por isso ser uma
filosofia. Ela limita-se a inventar expedientes para suprir a carência dos conceitos tradicionais, mas
não estabelece conceitos de direito. Ela incita a filosofia a pensar conceitos que sejam válidos na
situação que é a sua805.
A substancialidade
A física clássica assentava na noção de corpúsculo, ou ponto material,
entidade de base da mecânica newtoniana, essência abstracta da ideia de
corpúsculo. Ela acreditava poder considerar toda a substância como montagem
de um conjunto de tais corpúsculos, e formalizar assim um atomismo
consequente. Notemos a evidente idealidade de uma tal noção, e o seu carácter
no mínimo pouco intuitivo: como atribuir uma propriedade física como a massa
a um objecto pontual, ou seja sem extensão espacial? De facto, a fecundidade
de uma tal abstracção decorre de ela levar ao extremo na ordem do pensamento
percepções visuais directas como as de um grão de pó ou de um planeta
longínquo. Restava porém um problema fundamental, levantado por Descartes
e bem percebido pelo próprio Newton (era a este ponto que se referia o seu
famoso Hypotheses non fingo), a saber a dificuldade de compreender a
existência de interacções à distância entre esses corpúsculos, através do vazio e
sem agente intermediário.
Foi para resolver essa aporia que emergiu no último terço do século XIX, após
longos e laboriosos desenvolvimentos, a noção de campo, primeiramente no
seio do electromagnetismo maxwelliano. Não se sublinhou suficientemente o
carácter radical da mudança assim introduzida na ontologia da física. O campo
havia inicialmente sido concebido como uma descrição fenomenológica de um
estado de um meio subjacente, suporte da propagação das ondas mediadoras
das interacções (a água para as ondas, o ar para o som). A renúncia a um
hipotético éter que desempenharia tal papel para a luz, devido às suas
propriedades demasiado problemáticas, privara o campo electromagnético de
toda a interpretação em termos mecânicos e, ao mesmo tempo, promovera-o a
uma existência autónoma. Surgia assim um ser físico dotado de um estatuto
ontológico de pleno exercício, mas com características radicalmente distintas
das das entidades corpusculares clássicas: não localizado numa porção pré-
definida do espaço e sem forma própria, desprovido de uma massa substancial
específica embora sendo portador de energia, caracterizado por uma
propagação simultaneamente global e diferencial. O campo, embora
desempenhasse maravilhosamente o seu papel de vector das interacções e
suprimisse a acção à distância e as suas dificuldades insuperáveis, exigia a
concepção de um modo inédito de existência material. Não se tratava de menos
do que renunciar à ideia das necessárias e naturais qualidades primeiras da
matéria no sentido de Descartes e de Locke: um campo não tem extensão, nem
solidez, nem figura, nem mobilidade, para retomar o rol lockeano dessas
qualidades. A noção de campo obriga afinal a renunciar ao ideal cartesiano de
uma necessária e suficiente descrição «por figuras e movimentos».
Mas antes mesmo que esta inovação radical pudesse ser dominada, ela iria
ser suplantada e amplificada pelo desenvolvimento da teoria quântica a partir
do início do século XX. Onde a física clássica concluía por uma dualidade
ontológica dos seus objectos ideais, partículas ou campos, a quântica
demonstrava um monismo fundamental, não conhecendo senão um único tipo
de objecto, os «quantões». Decerto que estes, por vezes, e em todo o caso
aquando das suas primeiras revelações observacionais, se assemelham seja aos
corpúsculos clássicos, seja às ondas. Mas não se trata senão de aparências
aproximativas (e mutuamente exclusivas), sob as quais se acha uma essência
única. A natureza dos quantões leva ao seu auge o conflito com a intuição
comum, como é bem mostrado pelo seu posicionamento em relação à
antinomia fundamental do contínuo e do discreto. Essa antinomia tem dois
aspectos, segundo se refira à espacialidade ou à quantidade. Se esses aspectos
são confundidos na física clássica tanto para os corpúsculos (discretos quanto
às suas posições espaciais e à sua enumeração) quanto para as ondas (contínuas
quanto à sua extensão espacial e à sua amplitude), eles distinguem-se para os
quantões, discretos e enumeráveis em quantidade (o que justifica o seu nome),
contínuos e deslocalizados quanto à sua espacialidade. A natureza quântica do
mundo material requer assim modos de inteligibilidade originais.
A mutação einsteiniana das propriedades materiais dos objectos físicos vem
ainda acrescentar-se à mudança das nossas concepções da substancialidade.
Com efeito, a equivalência massa-energia mina a lei clássica de conservação da
matéria, identificada desde Lavoisier com a da massa. Numa interacção entre
dois quantões, por exemplo, uma parte da sua energia cinética pode transmutar-
se em energia de massa, permitindo o aparecimento de novos quantões – e
vice-versa. Compreende-se que fenómenos como o da transformação de um par
electrão-positrão em fotões (de massa nula!), seja e+ + e– → γ + γ, ou a criação
de um tal par seja γ + X → e+ + e– + X, tenham podido ser descritos como uma
«aniquilação» ou uma «criação» de matéria e interpretados como um golpe
lançado a toda a concepção materialista da natureza. Mas com o recuo do
tempo, já não se deve ler nisso mais do que a necessidade de uma refundação,
certamente profunda, das nossas concepções da própria matéria. É um
enunciado mais geral, o da conservação da energia sob as suas diversas formas,
incluindo a massa, que doravante assegura a permanência de uma materialidade
com conteúdo renovado.
A elementaridade
Desde o atomismo filosófico dos materialistas da Antiguidade até à física e à
química atomistas do século XIX, uma mesma ideia prevalece: a de uma
composição dos corpos muito diversos da natureza a partir de um pequeno
número de elementos fundamentais, estáveis e inalteráveis.
Sucede ainda que a natureza desses constituintes considerados como
elementares deverá ter sido modificada quando, no início do século XX, a
descoberta do núcleo atómico mostrou que os átomos, longe de serem
indivisíveis como pretendia a sua designação, eram de facto compostos por
electrões, fotões e nucleões, estes últimos revelando cinquenta anos mais tarde
serem eles próprios constituídos por quarks e gluões, mas foi a própria noção
de elementaridade que se achou modificada. Três ideias se impuseram a este
respeito:
– antes de mais, a noção de estabilidade, a priori consubstancial à de
elementaridade, está… desestabilizada. A classificação dos quantões em
famílias homogéneas obriga a pôr no mesmo plano alguns objectos estáveis
e outros instáveis, submetidos à desintegração quando isolados. É o caso dos
nucleões, uma vez que o protão é estável, ao passo que o neutrão se
desintegra espontaneamente ao fim de cerca de um quarto de hora;
– seguidamente, a possibilidade de dividir um objecto composto nos seus
componentes, intuitivamente necessária à própria noção de composição,
torna a ser posta em causa ao nível dos quarks: na medida em que as forças
que ligam essas entidades no seio dos nucleões crescem indefinidamente
com a sua distância mútua, é impossível partir um nucleão e isolar os quarks,
que, contudo, o constituem e lhe explicam as propriedades;
– enfim, a ideia usual de elementaridade requer uma permanência estática
dos objectos aos quais ela se aplica. Já não há nada disso no mundo
quântico, onde um electrão, por exemplo, cuja elementaridade se admite, só
é ele próprio em virtude de uma dinâmica interna: interagindo em
permanência com os fotões que emite e absorve, ele é, por assim dizer,
composto de si mesmo e desses fotões, e as suas propriedades são
profundamente afectadas por essa interacção intrínseca.
Há aí um profundo questionamento do reducionismo ontológico que
constituía um dos objectivos epistemológicos da física clássica. Já não é
possível representar-se o real como estruturado por uma sucessão de níveis
unilateralmente encadeados, sendo cada um deles integralmente determinado,
em princípio pelo menos, por aquele que lhe é subjacente. Doravante é preciso
aceitar interacções «descendentes», pelas quais um sistema composto age sobre
os seus componentes. O exemplo mais simples é aqui o do neutrão,
espontaneamente e intrinsecamente instável em estado isolado, mas que pode
ser estabilizado de maneira absoluta no seio de um núcleo atómico, dada a sua
pertença colectiva. Pode ver-se neste abalo do reducionismo ingénuo a
pertinência ao nível porventura mais fundamental da ideia de complexidade,
muito frequentemente vaga mas não obstante indispensável, que as ciências da
vida ou da informação a partir de agora convocam.
A individualidade
O atomismo da física clássica acomodava-se a uma concepção individual dos
componentes da matéria, segundo a qual, em conformidade com a intuição
comum dos objectos vulgares, os diferentes átomos que constituem um corpo
podem ser separadamente identificados e distinguidos: mesmo que dois átomos
de oxigénio do ar, por exemplo, tenham propriedades intrínsecas (massa,
energia, estrutura, etc.) idênticas, diferenciam-se pelas suas posições espaciais.
Tal distinção é porém insuficiente do ponto de vista do «princípio dos
indiscerníveis» de Leibniz na sua versão forte, que exige a dois indivíduos
distintos diferenças qualitativas essenciais; segundo o exemplo clássico, não
pode haver duas folhas idênticas no parque de Charlottenburg, contrariamente
ao caso dos nossos dois átomos. Era por isso aliás que Leibniz recusava o
atomismo clássico.
A teoria quântica permite aqui deslocar o problema. Na descrição que ela
oferece de um sistema composto por quantões idênticos, já não é possível
atribuir a cada um dos constituintes qualquer propriedade individual que seja,
mesmo que fosse a sua posição. A perfeita simetria do estado global do sistema
em relação a toda a permutação dos seus constituintes afecta a cada um a
mesma propensão para ocupar todos os sítios disponíveis. Por outras palavras,
o estado colectivo, mesmo que seja definido por um conjunto de estados
individuais, não pode ser descrito atribuindo a cada constituinte um desses
estados. Essa simetrização é a prazo de uma extrema importância concreta,
uma vez que sustém as estatísticas quânticas (de Fermi-Dirac e de Bose-
Einstein), as únicas a poderem explicar propriedades essenciais do mundo
macroscópico, como a impenetrabilidade dos sólidos ou a coerência da
radiação laser. Mas, devido a isso, a individuação dos quantões no seio de um
conjunto perde toda a pertinência: pode certamente afirmar-se que há oito
electrões num átomo de oxigénio, mas em princípio é impossível numerá-los e
identificá-los separadamente. A sua enumeração releva da mera cardinalidade,
excluindo a ordinalidade. A negação leibniziana dos indiscerníveis é assim
refutada, ao preço porém de um considerável enfraquecimento da noção de
individualidade.
De uma maneira mais geral (para além do caso dos quantões idênticos), a
teoria quântica não permite descrever o estado de um sistema composto de
subsistemas pela simples conjunção dos estados destes. Melhor ainda,
conhecendo o estado do sistema composto, não é possível atribuir
separadamente a cada um dos subsistemas um estado particular determinado –
o que, claramente, deixa mal a individuação desses subsistemas. Esta
característica essencial da teoria quântica, que está no cerne do seu formalismo
desde a década de 1920, e ainda que claramente detectada por Schrödinger em
1935, permaneceu durante muito tempo implícita. Conhecida pelo nome de
não-separabilidade (fala-se também de intricação, mas teria sido sem dúvida
preferível um neologismo, por exemplo «implexidade»), ela está hoje em dia
no cerne de uma compreensão aprofundada da teoria quântica, mas igualmente
de múltiplos desenvolvimentos práticos (informática quântica).
A causalidade
Uma consequência inesperada da cronogeometria einsteiniana é a de
enfraquecer a extensão espaciotemporal das relações de causalidade. Nem na
concepção comum nem na ciência clássica existindo nenhuma limitação quanto
à velocidade de propagação de uma influência qualquer que seja, um evento
pode ser causa de qualquer outro que lhe seja posterior, e efeito de qualquer
outro que lhe seja anterior. Mas, uma vez que existe uma velocidade-limite que
nenhuma influência causal poderia superar, tal não é já o caso. Por exemplo,
distando a Terra do Sol oito minutos-luz, nenhum evento que se produza no Sol
poderia afectar a Terra antes de uma demora de oito minutos. O conjunto das
causas (resp. efeitos) possíveis de um evento não ocupa senão uma zona
espacial limitada do seu passado (resp. futuro).
Mas a física clássica, pelo menos no seu domínio de jurisdição, tinha
questionado, sem que isso haja sido muitas vezes notado, a própria noção de
causa, ao substituir a concepção de uma causalidade múltipla e qualitativa que
remontava a Aristóteles, por um determinismo quantitativo único. De facto, as
leis da mecânica determinam de maneira absoluta o estado de um sistema a
todo o instante em função desse estado num instante dado. Segundo os célebres
termos de Laplace, «devemos encarar o estado presente [de um sistema físico]
como o efeito do seu estado anterior e como a causa daquele que se lhe
seguirá». Mas não é certo que o termo «causa» guarde aqui a sua legitimidade,
na medida em que a distinção de natureza entre efeito e causa é suprimida pela
homogeneidade da série temporal.
Ainda assim, a teoria quântica pareceu trazer um golpe fatal a esse
determinismo. Contrariamente ao caso de uma partícula clássica, a posição e a
velocidade de um quantão não têm em geral determinação numérica única (o
que é expresso pelas famosas «relações de incerteza de Heisenberg»). Elas não
podem pois ser numericamente previstas de maneira absoluta no decurso do
tempo. A teoria quântica substitui então às atribuições deterministas da física
clássica avaliações probabilistas. Mas este enfraquecimento do determinismo
deve-se ao facto de procurarmos para um sistema quântico uma previsão em
termos clássicos, a de valores numéricos determinados para as grandezas
físicas. Se o sistema é caracterizado em termos intrinsecamente quânticos, pelo
seu «vector de estado» (ou «função de onda»), ele evolui segundo um modo
perfeitamente determinista, pelo menos enquanto esteja isolado. Em
compensação, a sua evolução só pode ser descrita de maneira aleatória desde
que o sistema interaja com o exterior, com um aparelho de medida por
exemplo, ou mais geralmente com um ambiente macroscópico descrito de
maneira clássica. Esta ideia (conhecida pelo nome de «descoerência»),
desenvolvida muito tardiamente (a partir dos anos 1980), atenuou amplamente
as dificuldades conceptuais outrora ligadas ao aparente indeterminismo da
teoria quântica, sem as resolver definitivamente. Resta porém compreender
melhor quando e como um objecto macroscópico, de constituição
fundamentalmente quântica, pode relevar, pelo menos aproximadamente, das
teorias clássicas, e esclarecer assim a relação conflitual entre dois
determinismos heterogéneos, clássico e quântico.
Por uma ironia singular, pouco antes de ser retomada e adoptada pela teoria
quântica, a questão do determinismo havia ressurgido no próprio seio da física
clássica. A retoma na década de 1970 de trabalhos empreendidos em particular
por Poincaré no início do século XX, mostrava que a mecânica newtoniana,
salvo casos muito particulares de sistemas elementares (como o pêndulo
simples), não permitia, de facto, efectivas previsões deterministas. É que a
maioria dos sistemas mecânicos exibem, na sua evolução temporal, uma
extrema «sensibilidade às condições iniciais»: uma ligeiríssima diferença na
caracterização do estado inicial provoca afastamentos exponencialmente
crescentes quanto à determinação do estado nos instantes ulteriores. Isto faz-se
acompanhar por comportamentos temporais extremamente irregulares,
ilustrando aquilo que foi baptizado com o oximoro «caos determinista». Se é
esse o caso para sistemas mecânicos ainda que simples, a mesma situação vale
a fortiori de maneira geral para sistemas complexos, como a atmosfera – daí as
limitações intrínsecas da previsão meteorológica ou climática. Num sentido
mais lato, são ipso facto invalidadas todas as considerações banais sobre o
pretenso paradoxo que opõe determinismo físico e livre-arbítrio humano.
A cientificidade
Um dos efeitos maiores do desenvolvimento da física no século XX é
porventura o de ter posto em causa, para além das categorias gerais do
pensamento estudadas acima, a própria noção de «ciência». Na base dos
desenvolvimentos da física clássica, que supostamente oferecia o cânone mais
acabado de cientificidade, concordava-se em pensar que uma ciência digna
desse nome deveria produzir conhecimentos experimentalmente reprodutíveis,
socialmente neutros e conceptualmente inteligíveis. Ora estes três critérios
foram no mínimo abalados pela transformação das práticas da física moderna.
A sua organização colectiva, a sua dimensão económica e as suas implicações
sociais colocam difíceis questões quanto à validade dos critérios clássicos de
cientificidade, tanto nos sectores da «ciência pesada» (física nuclear e
subnuclear, astrofísica espacial) como nos domínios directamente ligados à
produção industrial (electrónica, física dos materiais).
O aperfeiçoamento da arma nuclear durante a Segunda Guerra Mundial
(Projecto Manhattan) assinalou a passagem de uma ciência fundamental
relativamente autónoma para uma tecnociência intimamente ligada às
exigências sociais, militares e industriais em primeiro lugar. Esta transformação
fez-se acompanhar por uma mudança de escala da investigação, quanto ao seu
financiamento (vários milhares de milhões de euros para um grande acelerador
ou um telescópio), às suas instituições (equipas de várias centenas de
investigadores), às suas escalas de tempo (vários anos).
Tal situação levou a privilegiar as experiências mais susceptíveis de darem
resultado, e ao mesmo tempo a evitar tanto quanto possível a sua replicação.
São portanto os projectos mais convencionais que são postos em
funcionamento, em detrimento das perspectivas mais aventurosas. No plano
teórico, o uso cada vez mais desenvolvido dos meios de cálculo informático e
das técnicas de simulação digital levou a instaurar formalismos matemáticos de
uma considerável sofisticação que se desenvolvem sem que o seu domínio
conceptual esteja bem garantido. Os conhecimentos são portanto validados
mais pela constatação empírica da sua adequação do que pela sua
inteligibilidade racional. Não nos deverá espantar então que as inovações da
ciência física aqui exploradas datem no essencial da primeira metade do século
XX.
Será este crescente afastamento do ideal racional da ciência irreversível? O
futuro o dirá. Devemos agora interrogar-nos sobre a maneira como esta
transformação das categorias fundamentais da física encontrou eco entre os
filósofos.
805 M. Merleau-Ponty, La Nature, Paris, Seuil, «Traces écrites», 1995, p. 138. Merleau-Ponty colhe a
expressão «descobertas filosóficas negativas» junto dos físicos London e Bauer: Fritz London & Edmond
Bauer, La Théorie de l’observation en mécanique quantique, Paris, Hermann, 1939, p. 51.
806 Sobre esta questão, cf. o livro de É. Meyerson, La Déduction relativiste, Paris, Payot, 1925.
As etapas da filosofia
matemática contemporânea
Da fenomenologia ao estruturalismo
Hilbert, o Círculo de Viena, Brouwer: outras tantas figuras-chave da filosofia
da matemática do início do século XX. Outros desempenharam um papel
decisivo, como Poincaré ou Enriques (1871-1946), mas a sua obra passará aqui
em silêncio para somente conservarmos, de uma história complexa, os aspectos
mais salientes e significativos.
Falta porém à chamada um filósofo maior, cuja obra influenciou
profundamente a epistemologia francesa da matemática, e cujas ideias
principais têm, ainda hoje, um papel importante nos debates sobre a filosofia da
matemática contemporânea: Husserl (1859-1938). Contrariamente às filosofias
oriundas da lógica matemática e da rejeição do sintético a priori kantiano, que
militam por uma refundação radical da epistemologia, quando não concluem
pelo fim da metafísica, a filosofia husserliana, a fenomenologia, está
fortemente ancorada na tradição. Herda desta diversas questões, como a do
estatuto dos objectos matemáticos ou a do papel constitutivo da consciência e
da intuição, com uma acuidade filosófica e instrumentos conceptuais muito
mais poderosos que os que foram postos em funcionamento por um Brouwer.
No entanto, a filosofia husserliana virou-se resolutamente para a matemática
moderna e tomou nota do poder dos métodos simbólicos e lógicos. A
fenomenologia quer triunfar onde outras filosofias da matemática falharam. Ela
visa pensar simultaneamente a actividade criadora da consciência e as
estruturas formais da matemática realizada, que põem em evidência rigidezes
sintácticas e estruturas simbólicas autónomas. Husserl desenvolve assim a ideia
de uma extensão do campo da lógica tradicional que permitiria justificar, para
além da forma dos juízos, os conteúdos de pensamento.
Diversas dificuldades obstam porém à eficácia da fenomenologia
husserliana. Assim, na maior obra de filosofia matemática da sua maturidade,
Lógica Formal e Lógica Transcendenta811l, Husserl optou por sublinhar o
carácter crucial dos pontos técnicos de lógica ligados à noção de encerramento
dos sistemas axiomáticos (a noção de teoria nomológica, na qual o sistema de
objectos do domínio é definido de maneira unívoca) que seguidamente se iriam
revelar pouco pertinentes, nomeadamente devido aos teoremas de Gödel. A
força da fenomenologia deve ser procurada para além das tentativas de Husserl
em participar nos debates hilbertianos sobre os fundamentos. Ela reside antes
de mais nos múltiplos instrumentos que define e põe em funcionamento para
pensar, na matemática, a relação da consciência do matemático com o trabalho
no domínio de objectos por ele considerado. É nisso que ela conserva, ainda
hoje, toda a sua pertinência.
Qualquer que seja o juízo que cada um possa fazer sobre as suas diferentes
escolas de pensamento em epistemologia da matemática, a primeira metade do
século XX conclui-se finalmente com a dupla constatação de um grande triunfo
e de um grande fracasso. Grande triunfo: a filosofia da matemática foi
renovada, mais do que alguma vez em toda a sua história, pelos debates sobre
os fundamentos, sobre a lógica matemática, sobre o formalismo e o papel da
consciência na edificação do saber científico. Fracasso: por causa dos teoremas
de Gödel, o formalismo e o projecto hilbertiano tiveram de ser abandonados; a
escola do positivismo lógico difundiu a ideia de que, se «as proposições da
lógica dizem todas a mesma coisa, ou seja nada812», a mesma conclusão vale
para as proposições matemáticas; a própria fenomenologia se revelou incapaz
de dar uma solução filosófica satisfatória às aporias do formalismo.
Em parte alguma esse fracasso foi mais bem analisado do que na obra
póstuma de Cavaillès, Sobre a Lógica e a Teoria da Ciência813. Cavaillès
(1903-1944) é uma das figuras mais comoventes da filosofia do século XX.
Quando rebenta a Segunda Guerra Mundial, é um dos jovens filósofos cuja
obra promete marcar profundamente a epistemologia do século XX. Combatente
durante o Inverno de 1939-1940, é feito prisioneiro, evade-se durante a sua
transferência para a Alemanha e torna-se um dos fundadores dos primeiros
movimentos da Resistência. Detido em Agosto de 1943 pelos serviços da
contra-espionagem alemã, morre fuzilado. A sua obra, demasiado breve,
impressiona pela sua largueza de vistas, pela sua maturidade e pelas
perspectivas que ficariam sem amanhã, à falta de herdeiros que estivessem à
altura da tarefa.
O olhar que Cavaillès lança sobre as filosofias da matemática do início do
século XX é, no essencial, conforme ao quadro que delas oferecemos
anteriormente. Em Sobre a Lógica e a Teoria da Ciência, após haver analisado
a herança kantiana, ele recusa a aptidão das filosofias neopositivistas para
pensarem a matemática, antes de dirigir um olhar crítico ao empreendimento
husserliano: «É em função de Husserl, um pouco contra ele, que eu tento
definir-me814.» As conclusões de Cavaillès pesarão duradouramente na
epistemologia francesa:
Não é uma filosofia da consciência mas uma filosofia do conceito que pode dar uma doutrina da
ciência. A necessidade geradora não é a de uma actividade, mas de uma dialéctica […]. Não há uma
consciência geradora dos seus produtos, ou simplesmente imanente a eles, mas ela está de cada vez
no imediato da ideia.
Gödel e o platonismo
O impacto dos teoremas de Gödel na filosofia matemática foi considerável.
Em termos filosóficos, o seu corolário mais marcante é a necessidade de
repensar, a partir de novos fundamentos, as noções de verdade e de
«probabilidade» nas relações destas com o funcionamento dos sistemas
dedutivos e com a sua sintaxe.
No entanto, talvez devido à pregnância do estruturalismo que considerava
tais questões bastante anedóticas, os resultados de Gödel não conduziram de
modo algum às mudanças conceptuais da epistemologia matemática que seria
lícito esperar-se, como se pensar a verdade para além dos sistemas formais e da
lógica se houvesse tornado uma tarefa impossível depois de Frege, Hilbert, ou
do Círculo de Viena.
O próprio Gödel fez, contudo, uma tentativa através de uma releitura do
platonismo, tentativa recentemente retomada por matemáticos de primeiro
plano como Alain Connes (1947). Bem entendido, o platonismo, concebido
como teoria filosófica que atribui aos objectos matemáticos uma existência real
e um estatuto de objecto a parte inteira, sempre existiu. A teoria assume porém
um novo sentido e ganha um poder de convicção graças aos teoremas de
Gödel, os quais mostram haver «qualquer coisa» na matemática que escapa à
lógica e resiste a todas as tentativas de redução da matemática a uma teoria
puramente formal e vazia de conteúdo.
Assim, segundo Gödel, os objectos matemáticos formam «uma realidade não
sensível, que existe independentemente dos actos e das disposições do espírito
humano, e só pode ser percebida, e provavelmente percebida de maneira muito
incompleta, pelo espírito humano818». A intuição matemática desempenha um
papel decisivo nos processos de percepção intelectual dos objectos
matemáticos complexos que escapam a toda a forma de experiência sensorial.
Afirmar que o platonismo, ainda que pós-gödeliano, é susceptível de abrir
novos caminhos à filosofia das ciências do século XX pode certamente parecer
paradoxal, dada a ingenuidade conceptual tantas vezes presente nas
reivindicações de platonismo por parte dos matemáticos. Não se deve esquecer
porém a mensagem de Gödel e, mais próximo de nós, a de Alain Connes819:
para um matemático, os objectos matemáticos existem, e essa existência, essa
presença necessitam ainda hoje de ser pensadas com toda a radicalidade
necessária – uma radicalidade que verosimilmente se deverá procurar numa
renovação da fenomenologia, a única teoria do conhecimento do século XX apta
a pensar a nossa relação com os objectos matemáticos com a largueza de vistas
necessária.
As tarefas da filosofia matemática
De facto, a filosofia matemática não poderá ser, amanhã, o que foi no século
XX. Para além das análises já efectuadas sobre as lacunas das filosofias
recentes, ela deve aprender a acabar com a sua relativa autonomia face a outras
problemáticas filosóficas e reencontrar o seu estatuto de ponta de lança da
teoria do conhecimento – uma dimensão que percorreu a filosofia clássica, de
Platão a Kant, e só subsistiu, durante o século passado, em Husserl.
A evolução geral da ciência abre por outro lado novos horizontes. O
conhecimento do homem «neuronal» e dos condicionamentos biológicos e
fisiológicos do pensamento não poderia deixar de, a prazo, interagir com a
nossa concepção da natureza do pensamento matemático. As ciências da
natureza, as suas constantes interacções com a matemática, colocam
igualmente questões decisivas a respeito da ligação entre determinismo,
causalidade e modelização matemática, a epistemologia dos sistemas
dinâmicos ou ainda a aptidão da matemática para descrever o mundo
fenomenal.
Todas estas interrogações supõem, para serem levadas a cabo, que a filosofia
matemática renove profundamente os seus métodos e os seus objectivos. Ela
não poderá fazê-lo senão reatando com todo o seu passado, e isso bem para
além de Frege, uma vez que os problemas com que ela se confronta hoje em
dia são os que o século XX, o dos epistemólogos pós-fregeanos, havia
maioritariamente acreditado poder ignorar, quer se trate do estatuto dos
objectos matemáticos ou da surpreendente adequação da matemática aos
fenómenos.
FRÉDÉRIC PATRAS
808 J. Sebestik e A. Soulez (ed.), Le Cercle de Vienne. Doctrines et controverses, Paris, Méridiens -
Klicksieck, 1986.
810 L. Wittgenstein, Lectures on the Foundations of Mathematics, Cambridge, 1939 (University of Chicago
Press, 1989).
811 E. Husserl, Logique formelle et logique transcendentale, trad. francesa por S. Bachelard, Paris, PUF,
1957.
812 Sobre a vacuidade das proposições da lógica, vejam-se, por exemplo, as proposições 5.142, 6.1 ou 6.11
do Tractatus Logico-Philosophicus de L. Wittgenstein.
818 K. Gödel, Collected Works, Oxford, Oxford University Press, 1986-2002, t. 3, p. 323.
A FILOSOFIA ANTIGA
Estudos
Aubenque, P., Études sur Parménide, Paris, Vrin, 1987, 2 vols.
Burkert, W., Weisheit und Wissenschaft. Studien zu Pythagoras, Philolaos und
Platon, Nuremberga, H. Carl, 1962; trad. em língua inglesa por E. L. Minar,
Lore and Science in Ancient Pythagoreanism, Cambridge (Massachussetts),
Harvard University Press, 1972.
Caston, V. e Graham, D. W. (dir.), Presocratic Philosophy. Essays in Honour of
Alexander Mourelatos, Aldershot, Ashgate, 2002.
Huffman, C. A., Philolaus of Croton, Pythagorean and Presocratic. A
Commentary on the Fragments and Testimonia with Interpretive Essays,
Cambridge, Cambridge University Press, 1993.
Platão (428-348)
Obras
O texto grego dos diálogos de Platão foi editado por J. Burnet em Oxford
(Oxford University Press) entre 1900 e 1907. O mesmo editor empreendeu o
relançamento dessa edição. Foram editadas as tetralogias I e II, por E. A. Duke,
W. F. Hicken, W. S. M. Nicoll, D. B. Robinson e J. C. G. Strachan, em 1995 (o
volume contém o texto do Eutífron, d’A Apologia de Sócrates, do Críton, do
Fédon, do Crátilo, do Teeteto, do Sofista e do Político), bem como A
República, por S. R. Slings, em 2003.
O texto grego dos diálogos foi igualmente editado em França, por diversos
autores, entre 1920 e 1956 (Paris, Les Belles Lettres).
Além disso, os diálogos foram recentemente traduzidos para francês, entre
1987 e 2006, e publicados pelas edições Flammarion, em Paris; essas
traduções, às quais se somam as das obras duvidosas e apócrifas, foram
publicadas num único volume, Platão, Œuvres Complètes, Paris, Flammarion,
2008.
Estudos
Brisson, L. e Fronterotta, F. (dir), Lire Platon, Paris, PUF, 2006.
Erler, M., Platon, Grundriss der Geschichte der Philosophie [Ueberweg-
Praechter]. Die Philosophie der Antike, vol. 2, Basileia, Schwabe, 2007.
Goldschmidt, V., Les Dialogues de Platon, Paris, PUF, 1947.
Pradeau, J.-F., Platon. L’imitation de la philosophie, Paris, Aubier, 2009.
Robin, L., Platon, Paris, PUF, 1935; reed. «Quadrige», 1981.
Aristóteles (384-322)
Obras
A edição de referência dos textos originais de Aristóteles é a que foi publicada
por I. Bekker em Berlim, em 1831, e que foi revista e prosseguida por O.
Gigon. A edição foi reimpressa e aumentada em 1960 em Berlim (W. de
Gruyter), e completada por um terceiro volume em 1987. O texto grego de
numerosas obras separadas foi editado em Scriptorum classicorum bibliotheca
oxoniensis (Oxford, Clarendon Press), ou ainda, em tradução francesa, em
Paris, nas Belles Lettres.
Muitas obras estão disponíveis na tradução francesa de J. Tricot para as edições
Vrin, e algumas foram até traduzidas recentemente para as edições
Flammarion.
Estudos
Aubenque, P., Le Problème de l’être chez Aristote, Paris, PUF, 1962.
Barnes, J., Schofield, M. e Sorabji, R. (dir.), Articles on Aristotle, Londres,
Duckworth, 1975-1979, 4 vols.
Berti, E., Dialectique, physique et métaphysique. Études sur Aristote, Lovaina-
a-Nova, Peeters, 2008.
Crubellier, M. e Pellegrin, P., Aristote. Le philosophe et les savoirs, Paris,
Seuil, 2002.
Jaeger, W., Aristoteles. Grundlegung einer Geschichte seiner Entwicklung,
Berlim, Weidmann, 1923; trad. francesa de O. Seyden, Aristote. Fondements
pour une histoire de son évolution, Paris, Éditions de l’Éclat, 1997.
Os saberes e a ciência na cidade
Obras
Hipócrates – A única edição completa dos escritos de Hipócrates é que foi
estabelecida por É. Littré, em 10 volumes, em Paris, de 1839 a 1861
(reimpressa em Amesterdão, por Hakkert, em 1962). Muitos textos de
Hipócrates foram objecto de edições críticas, estando a ser considerada uma
tradução francesa, em Paris, para as Belles Lettres.
Galeno – A única edição completa dos escritos de Galeno (à excepção dos que
chegaram até nós na sua versão árabe) é a edição estabelecida por G. C.
Kuhn, em 20 volumes, em Leipzig, de 1821 a 1833. Certos textos de Galeno
foram objecto de edições críticas e estão traduzidos no Corpus medicorum
Graecorum, em Berlim, Academia, ou também em Paris, nas Belles Lettres.
Euclides – A edição de referência dos Elementos continua a ser a que foi
estabelecida por T. L. Heath, em Cambridge, em 1908 (reimpressa em Nova
Iorque, por Dover, em 1956). Foi publicada uma tradução francesa dos
Elementos, abundantemente comentada, em Paris, nas PUF, por B. Vitrac
(1990-2001).
Ptolomeu – Syntaxis, ed. J. L. Heiberg, Leipzig, Teubner, 1898-1903.
Estudos
Brunschwig, J. e Lloyd, G. E. R., Le Savoir grec, Paris, Flammarion, 1996.
Grmek, M. D. (dir.), Histoire de la pensée médicale en Occident, t. 1, Paris,
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Lloyd, G. E. R., Cambiano, G. e Vegetti, M., Storia della scienza, t. 1, Roma,
Istituto della Enciclopedia Italiana, 2001.
Neugebauer, O., The Exact Sciences in Antiquity, Providence, Brown
University Press, 1957.
Vegetti, M., Il sapere degli antichi, Turim, Boringheri, 1985.
O atomismo antigo
Obras
Les Présocratiques, trad., introd. e notas por J.-P. Dumont, Paris, Gallimard,
1988
Lucrécio, De rerum natura; trad. francesa de J. Kany-Turpin, De la nature,
Paris, Flammarion, «GF» 1997.
Epicuro, Lettres et maximes, trad. francesa de M. Conche, Paris, PUF, 1987.
Estudos
Bailey, C., The Greek Atomists and Epicurus, Oxford, Clarendon Press, 1928.
Morel, P.-M., Démocrite et la recherche des causes, Paris, Klincksieck, 1996.
–, Atome et nécessité. Démocrite, Épicure, Lucrèce, Paris, PUF, 2000.
Salem, J., L’Atomisme antique. Démocrite, Épicure, Lucrèce, Paris, Librairie
générale française, «Le Livre de Poche», 1997.
O estoicismo
Obras
Les Stoïciens, ed. sob a dir. de P.-M. Schuhl, trad. para francês por É. Bréhier,
Paris, Gallimard, 1962, 2 vols.
Estudos
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Diógenes Laércio, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres; trad. francesa sob a
dir. de M.-O. Goulet-Cazé, Vies et doctrines des philosophes ilustres, Paris,
Librairie générale française, «Le Livre de Poche», 1999.
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O cepticismo antigo
Obras
Long, A. A. e Sedley, D., The Hellenistic Philosophers, 2 vols., Cambridge,
Cambridge University Press, 1987.
Sesto Empirico [Sexto Empírico], Contro gli etici, trad. e comentário por E.
Spinelli, Nápoles. Bibliopolis, 1995.
Sextus Empiricus [Sexto Empírico], Esquisses Pyrrhoniennes, trad. francesa
por P. Pellegrin, Paris, Seuil, 1997.
Estudos
Annas, J. e Barnes, J., The Modes of Scepticism, Cambridge, Cambridge
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Bett, R. Pyrrho. His Antecedents and his Legacy, Oxford, Oxford University
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A filosofia imperial
Obras
Alexandre d’Aphrodise [Alexandre de Afrodísia], Traité du destin, texto
estabelecido e trad. para francês por P. Thillet, Parios, Les Belles Lettres,
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Sénèque [Séneca], La Tranquilité de l’âme, in Les Stoïciens, ed. sob a dir. de
P.-M. Schuhl, trad. francesa de É. Bréhier, Paris, Gallimard, 1962, 2 vols.
Estudos
Babut, D., Plutarque et le stoïcisme, Paris, PUF, 1969.
Bonazzi, M., Accademici e platonici. Il dibattito antico sullo scetticismo di
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Plotino
Obras
Plotini Opera, ed. P. Henry e H.-R. Schwyzer, Oxford, Clarendon (OCT),
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Traités, trad. para francês sob a dir. de L. Brisson e J.-F. Pradeau, Paris,
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Estudos
Bréhier, É., La Philosophie de Plotin, Paris, Boivin, 1928, reed. Vrin, 1961.
Dufour, R., Plotinus. A Bibliography 1950-2000, Leyde, Nova Iorque, Colónia,
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O’Meara, D. J., Plotinus. An Introduction to the «Enneads», Oxford,
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O neoplatonismo de Proclo
Obras
Marinus, Proclus ou sur le bonheur, ed. H. D. Saffrey e A.-P. Segonds, Paris,
Les Belles Lettres, 2001.
Proclus, Commentaire sur le Timée, ed. A.-J. Festugière, Paris, Vrin, 1966-
1968, 5 vols.
–, Commentaire sur la République, ed. A.-J. Festugière, Paris, Vrin, 1970, 3
vols.
–, The Elements of Teology, ed. E. R. Dodds, 2.ª ed., Oxford, Clarendon Press,
1963 (continua a ser a melhor introdução ao pensamento de Proclo). Proclos,
Éléments de théologie, trad. do grego para francês por J. Trouillard, Paris,
Montaigne, 1965.
–, Théologie platonicienne, ed. H. D. Saffrey e L. G. Westerink, Paris, Les
Belles Lettres, 1968-1997, 6 vols.
–, Sur le premier Alcibiade de Platon, ed. A.-P. Segonds, Paris, Les Belles
Lettres, 2 vols. 1985-1986.
Estudos
Segonds, A.-P. e Steel, C. (dir.), Proclus et la théologie platoni-cienne,
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Steel, C. (dir.), Proclus: Fifteen Years of Research (1990-2004). An Annotated
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A herança da filosofia grega
no cristianismo antigo e latino
Obras
As obras patrísticas traduzidas em francês estão disponíveis na colecção
«Sources chrétiennes», nas Éditions du Cerf.
Estudos
Arnou, R., «Platonisme des Pères», Dictionnaire de théologie catholique, XII,
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Courcelle, P., Les Lettres grecques en Occident de Macrobe à Cassiodore,
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Daniélou, J., Message évangélique et culture hellénistique, Tournai, Desclée,
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A FILOSOFIA MEDIEVAL
Damasco e Bagdad
Obras
Al-Fârâbî, Traité des opinions des habitabts de la cité idéale (Mabâdi’ârâ ahl
al-madînat al-fâdilah), trad. do árabe para francês por T. Sabri, Études
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Al-Kindî, Œuvres philosophiques et scientifiques d’al-Kindî, ed. R. Rashed e J.
Jolivet, Leyde, Brill, 1997-1998, 2 vols.
Ibn al-Nadîm, Kitâb al-Fihrist, ed. G. Flügel, Leipzig, F. C. W. Vogel, 1871-
1872, 2 vols.; trad. do árabe para inglês por B. Dodge, The Fihrist of al-
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Estudos
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Colmo, C. A., Breaking with Athens. Alfarabi as Founder, Lanham, Maryland,
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Mahdi, M., La Cité vertueuse d’Alfarabi. La fondation de la philosophie
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Averróis/Ibn Rushd (1126-1198)
Obras
La Beatitude de l’âme, ed. e trad. M. Geoffroy e C. Steel, Paris, Vrin, 2001.
L’Inteligence et la Pensée. Grand commentaire du De anima. Livre III (429 a
10-435 b 25), trad. do árabe para o francês por A. de Libera, Paris,
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L’Islam et la Raison. Anthologie de textes juridiques, théologiques et
polémiques, trad. M. Geoffroy, antecedido de «Pour Averroès» por A. de
Libera, Paris, Flammarion, 2000.
Le Livre du discours décisif, trad. do árabe para francês por M. Geoffroy, Paris,
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Middle Commentary on Aristotle’s De Anima. A Critical Edition of the Arabic
Text with English Translation, Notes and Introduction, ed. e trad. por A. L.
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Estudos
Averroès et les averroïsmes juif et latin: Actes du colloque international, Paris,
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Obras
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principum doctrina, ed. V. Courdaveux, Paris, 1857; trad. do latim por H. de
Gauchy, Li Livres du gouvernement des rois, ed. S. P. Molenaer, Li Livres du
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Colonna’s Treatise De regimine principum, Nova Iorque, 1899, reed. 1966.
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Tomás de Aquino (1225-1274)
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Somme contre les Gentils, trad. do latim para francês, introd. e notas por V.
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João Duns Escoto (1266-1308)
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Erstes Buch, Husserliana 3, Haia, Nijhoff, 1976; trad. do alemão para francês
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Formale und transzendentale Logik, Husserliana 17, Haia, Nijhoff, 1974; trad.
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Cartesianische Meditationen, Husserliana 1, Haia, Nijhoff, 1991; trad. do
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Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale
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O empirismo filosófico francês
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Obras
Henri Bergson
Essai sur les données immédiates de la conscience (1889), ed. A. Bouaniche,
Paris, PUF, «Quadrige», 2007.
Matière et mémoire (1896), ed. C. Riquier, Paris, PUF, «Quadrige», 2008.
L’Évolution créatrice (1907), ed. A. François, Paris, PUF, «Quadrige», 2007.
La Pensée et le Mouvant (1934), Paris, PUF, «Quadrige», 6.ª ed., 1998.
Gilles Deleuze
Empirisme et subjectivité. Essai sur la nature humaine selon Hume (1953),
Paris, PUF, 2003.
Nitezsche et la philosophie (1962), Paris, PUF, 1997.
Différence et répétition (1968), Paris, PUF, 1989.
Maine de Biran
As obras completas de Maine de Biran foram publicadas em 18 volumes, sob a
direcção de F. Azouvi, pela Librairie J. Vrin. Para um primeiro contacto
poderão recomendar-se as duas obras seguintes: t. 3, Mémoire sur la
décomposition de la pensée; t. 4, De l’aperception immédiate.
Estudos
Descombes, V., Le Même et l’Autre. Quarante-cinq ans de philosophie
française (1933-1978), Paris, Minuit, 1979.
Janicaud, D., Ravaisson et la métaphysique, Paris, Vrin, 1997.
Montebello, P., La Décomposition de la pensée. Dualité et empirisme
transcendantal chez Maine de Biran, Grenoble, Jérôme Millon, 1994.
Wahl, J., Tableau de la philosophie française, Paris, Gallimard, 1962.
–, Les Philosophies pluralistes d’Angleterre et d’Amérique (1920), Paris, Les
empêcheurs de penser en rond, 2005.
A alma posta a nu. Da psicologia à psicanálise
Obras
Aristote [Aristóteles], De l’âme, trad. do grego para francês por R. Bodéüs,
Paris, Flammarion, «GF», 1993.
Castoriadis, C., L’Institution imaginaire de la société, Paris, Seuil, 1975, e
«Points Essais», 1999.
Freud, S., Essais de métapsychologie, trad. do alemão para francês por J.
Laplanche e J.-B. Pontalis, Paris, Gallimard, 1990.
Lacan, J., Séminaire XI. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalise,
Paris, Seuil, 1973.
Leibniz, G. W., Nouveaux Essais sur l’entendement humain, trad. do alemão
para francês, introd. e notas de J. Brunschwig, Paris, Flammarion, «GF»,
1966.
Platon [Platão], Phédon, trad. do grego para francês por L. Robin, Paris, Les
Belles Lettres, 1967.
Estudos
Canguilhem, G., «Qu’est-ce que la psychologie?», Études d’histoire et de
philosophie des sciences, Paris, Vrin, 1970.
Vaysse, J.-M., L’Inconscient des Modernes, Paris, Gallimard, 1999.
Martin Heidegger e os seus herdeiros
Obras
Derrida, J., Glas, Paris, Galilée, 1974.
Gadamer, H. G., Wahrheit und Methode. Grundzüge einer philosophischen
Hermeneutik, Tubinga, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1960, reed. 1986.
Heidegger, M., Sein und Zeit, Tubinga, Niemeyer, 1927, reed 1953 e 2001.
–, «Vom Wesen der Wahrheit (1930)», Wegmarken, Heidegger Gesamtausgabe,
t. IX, Frankfurt, Klostermann, 1976, p. 177-202.
–, «Der Ursprung des Kunstwerkes», Holzwege, Frankfurt, Klostermann, 1950,
p. 7-69.
–, Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis) [1936-1938], Heidegger
Gesamtausgabe, vol. 65, Frankfurt, Klostermann, 1989.
–, «Die Frage nach der Technik», Vorträge und Aufsätze, Pfullingen, Neske,
1954, p. 13-44.
–, «Das Ge-Stell», Bremer und Freiburger Vorträge, Heidegger
Gesamtausgabe, t. LXIX, Frankfurt, Klostermann, 1994, p. 24-45.
A tradução francesa das obras de Heidegger está disponível na Gallimard,
colecção «Bibliothèque de philosophie».
Estudos
Beaufret, J., Dialogue avec Heidegger, t. III, Approche de Heidegger, Paris,
Minuit, 1974.
Ludwig Wittgenstein (1889-1951)
Obras
Tractatus Logico-Philosophicus, trad. do alemão para francês por G.-G.
Granger, Paris, Gallimard, «Tel», 2001.
Le Cahier bleu et le Cahier brun, trad. do inglês para francês por M. Golberg e
J. Sackur, Paris, Gallimard, «Bibliothèque de philosophie», 1996.
Remarques sur les fondements des mathématiques, trad. do alemão para francês
por M.-A. Lescourret, Paris, Gallimard, «Bibliothèque de philosophie»,
1983.
Estudos
Hacker, P. M. S., Wittgenstein’s Place in Twentieth Century Analitic
Philosophy, Oxford, Blackwell, 1996.
Kenny, A. J. P., Wittgenstein, Londres, Allen Lane, 1973.
Monk, R., Wittgenstein. The Duty of Genius, Londres, J. Cape, 1990.
Schroeder, S., Wittgenstein, Cambridge, Polity Press, 2006.
Jean-Paul Sartre (1905-1980)
Obras
L’Être et le Néant (1943), Paris, Gallimard, «Tel», 1976.
La Critique de la raison dialectique (1960), precedido de Questions de
méthode, Paris, Gallimard, 1985.
L’Idiot de la famille, Paris, Gallimard, 1971 e 1972, 3 vols.
Situations, Paris, Gallimard, 1947-1972, 9 vols.
La Transcendance de l’ego (1937), Paris, Vrin, 1988.
Estudos
Cabestan, P., Dictionnaire Sartre, Paris, Ellipses, 2009.
Cabestan, P. e Tomès, A., Sartre, Paris, Ellipses, 2002.
Cohen-Solal, A., Sartre, Paris, Gallimard, 1985.
Coorebyter, V. de, Sartre avant la phénoménologie, Bruxelas, Ousia, 2005.
Noudelmann, F. e Philippe, G. (dir.), Dictionnaire Sartre, Paris, Champion,
2004.
Simont, J., Jean-Paul Sartre. Um demi-siécle de liberté, Bruxelas, De Boeck
université, 1998.
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961)
Obras
La Structure du comportement, Paris, PUF, 1942.
Phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard, «NRF», 1945.
Sens et non-sens, Paris, Nagel, 1948.
Signes, Paris, Gallimard, «NRF», 1960.
Le Visible et l’Invisible, Paris, Gallimard, «NRF», 1964.
L’Œil et l’Esprit, Paris, Gallimard, «NRF», 1964.
Estudos
Barbaras, R., Le Tournant de l’expérience. Recherches sur la philosophie de
Merleau-Ponty, Paris, Vrin, 1998.
Bimbenet, É., Nature et humanité. Le problème anthropologique dans l’œuvre
de Merleau-Ponty, Paris, Vrin, 2004.
Saint Aubert, E. de, Le Scénario cartésien. Recherches sur la formation et la
cohérence de l’intention philosophique de Merleau-Ponty, Paris, Vrin, 2005.
Investigações epistemológicas
Obras
Bachelard, G., Le Nouvel Esprit scientifique, Paris, PUF, 1934.
Bergson, H., Durée et Simultaneité [1922], Paris, PUF, «Quadrige», 2009.
Carnap, R., Der logische Aufbau der Welt, Berlim, Schlachtenser, Weltkreis
Verlag, 1928.
Friedman, M., Reconsidering Logical Positivism, Cambridge, Cambridge
University Press, 1999.
Meyerson, É., La Déduction relativiste, Paris, Payot, 1925.
Popper, K. R., Logik der Forschung, Viena, J. Springer, 1935.
Whitehead, A. N., The Concept of Nature, Cambridge, Cambridge University
Press, 1920.
Estudos
Boyd, R. et al. (dir.), The Philosophy of Science, Cambridge (Massachussetts),
MIT Press, 1991.
Brunschvicg, L., L’Expérience humaine et la Causalité physique, Paris, Alcan,
1922.
Capek, M., The Philosophical Impact of Contemporary Physics, Princeton, Van
Nostrand, 1961.
Chalmers, A. F., What is this Thing Called Science?, Saint Lucia, University of
Queensland Press, 1976.
Schlick, M., Raum und Zeit in der gegenwärtigen Physik, Berlim, J. Springer,
1920.
Michel Foucault (1926-1984)
Obras
Histoire de la folie à l’âge classique, Paris, Gallimard, 1961.
Les Mots et les Choses, Paris, Gallimard, 1961.
Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975.
La Volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1976.
L’Herméneutique du sujet (curso de 1982 no Collège de France), Paris, Seuil,
Gallimard, 2001.
Estudos
Gros, F., Michel Foucault, Paris, PUF, «Que sais-je?», 1996.
Filosofia política: poder e democracia
Arendt, H., Du mensonge à la violence, trad. do inglês para francês por G.
Durand, Paris, Calmann-Lévy, 1972.
Balibar, É., La Crainte des masses, Paris, Galilée, 1997.
Habermas, J., Théorie de l’agir communicationel [1981], trad. do alemão para
francês por J.-M. Ferry e J.-L. Schlegel, Paris, Fayard, 1987.
–, L’Espace public [1962], trad. do alemão para francês por M. de Launay,
Paris, Payot, 1997.
Hayek, F. A., Droit, législation et liberté [1973, 1976, 1979], trad. do inglês
para francês por R. Audouin, Paris, PUF, 1995-.
Jaume, L., La Liberté et la Loi, Paris, Fayard, 2000.
Lefort, C., Le Temps présent, Paris, Belin, 2007.
Nussbaum, M. C., Frontiers of Justice, Cambridge (Massachussetts), Harvard
University Press, 2006.
Rancière, J., Aux bords du politique, Paris, Gallimard, 2004.
Rawls, J., A Theory of Justice [1971], Cambridge (Massachussetts), Harvard
University Press, reed. 2005.
Schmitt, C., La Notion de politique [1932], trad. do alemão para francês por
M.-L. Steinhauser, Paris, Flammarion, 1992.
As filosofias do vivente
Canguilhem, G., «Machine et organisme», La Connaissance de la vie, Paris,
Hachette, 1952.
Debru, C. e Nouvel, P., Le Possible et les Biotechnologies, Paris, PUF, 2003.
Duchesneau, F., Philosophie de la biologie, Paris, PUF, 1997.
–, Les Modèles du vivant de Descartes à Leibniz, Paris, Vrin, 1998.
Fox Keller, E., Le Siécle du géne, Paris, Gallimard, 2003.
Hull, D. L. e Ruse, M., The Philosophy of Biology, Oxford (Nova Iorque),
Oxford University Press, 1998.
Jacob, F., Le Jeu des possibles, Paris, Fayard, 1981.
Jonas, H., Le Phénomène de la vie. Vers une biologie philosophique, Paris,
Bruxelas, De Boeck, 2001.
Kay, L. E., Who Wrote the Book of Life?, Stamford, Stanford University Press,
2000.
Jablonka, E. e Lamb, M. J., Epigenetic Inheritance and Evolution. The
Lamarckian Dimension, Oxford, Oxford University Press, 1995.
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Pradeau, T. e Ludwig, P., L’Individu, Paris, Vrin, 2008.
Neurociências e pesquisas cognitivas
Churchland, P., Matter and Consciousness, Oxford, Oxford University Press,
1984.
Davidson, D., Essays on Actions and Events, Oxford, Oxford University Press,
1980.
Dennett, D., Consciousness Explained, Nova Iorque, Littlebrown, 1991.
Fodor, J., The Language of Thought, Cambridge (Massachussetts), MIT Press,
1975.
Jeannerod, M., Le Cerveau-machine. Physiologie de la volonté, Paris, Fayard,
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Ryle, G., The Concept of Mind, Londres, Hutchinson’s University Library,
1949.
Searle, J. R., The Rediscovery of the Mind, Cambridge (Massachussetts), MIT
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Wittgenstein, L., Philosophische Untersuchungen, Oxford, Blackwell, 1953.
As descobertas filosóficas negativas
da física contemporânea
Balibar, F., Galilée, Newton lus par Einstein. Espace et relativité, Paris, PUF,
2007.
Feynman, R., La Nature de la physique, Paris, Seuil, 1980.
Klein, É., Les Tactiques de Chronos, Paris, Flammarion, 2004.
Lecourt, D. (dir.), Dictionnaire d’histoire et de philosophie des sciences, Paris,
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Lévy-Leblond, J.-M., Aux contraires. L’exercice de la pensée et la pratique de
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–, De la matière: quantique, relativiste, interactive, Paris, Seuil, 2006.
Weinert, F., The Scientist as Philosopher. Philosophical Consequences of Great
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As etapas da filosofia matemática contemporânea
Caveing, M., Le Probléme des objets dans la pensée mathématique, Paris, Vrin,
2004.
Cavaillés, J., Sur la logique et la théorie de la science, Paris, Vrin, 1947.
Frege, G., Les fondements de l’arithmétique [1884], trad. do alemão para
francês por C. Imbert, Paris, Seuil, 1969.
Le Lionnais, F. (dir.), Les Grands Courants de la pensée mathématique [1948],
Paris, Hermann, 1998.
Patras, F., La Pensée mathématique contemporaine, Paris, PUF, 2001.
Vuillemin, J., La Philosophie de l’algèbre, Paris, PUF, 1962.
Os autores
Direcção da obra
Jean-François Pradeau
Professor de Filosofia. Universidade de Lyon III
Colaboradores
Jean-Christophe Bardout
Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Rennes I
Thomas Bénatouïl
Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Nancy II
Bruno Bernardi
Professor agregado de Filosofia, Marselha
Rudolf Bernet
Professor de Filosofia. Universidade de Lovaina (K. U. Leuven)
Arnaud Berthoud
Professor emérito em Economia. Universidade de Lille I
Enrico Berti
Professor de Filosofia. Universidade de Pádua
Joël Biard
Professor de Filosofia. Universidade de Tours
Étienne Bimbenet
Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Lyon III
Arnaud Bouaniche
Professor de Filosofia. Gondecourt
Frédéric Brahami
Professor de Filosofia. Universidade de Franche-Comté
Luc Brisson
Director de investigação. CNRS, UPR 76
Philippe Cabestan
Professor agregado de Filosofia. Paris
Giuliano Campioni
Professor de Filosofia. Universidade de Pisa
Fabien Chareix
Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Paris IV – Sorbonne
Catherine Colliot-Thélène
Professora de Filosofia. Universidade de Rennes I
Paolo Cristofolini
Professor de Filosofia. Scuola Normale Superiore de Pisa
Dominique Demange
Engenheiro. United Monolitich Semiconductors (UMS)
Pierluigi Donini
Professor de Filosofia. Universidade de Milão
Élie During
Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Paris Oeste – Nanterre La
Defense
Pascal Engel
Professor ordinário de Filosofia Contemporânea. Universidade de Genebra
Laurent Jaffro
Professor de Filosofia. Universidade de Clermont-Ferrand II
Richard Glauser
Professor de Filosofia. Universidade de Neuchâtel
Miguel Angel Granada
Professor de Filosofia. Universidade de Barcelona
Frédéric Gros
Professor de Filosofia. Universidade de Paris XII – Val-de-Marne
Peter Hacker
Professor de Filosofia. Saint John’s College, Oxford
Thierry Hoquet
Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Paris Oeste – Nanterre La
Defense
Brad Inwood
Professor de Filosofia e de Estudos Clássicos. Universidade de Toronto
Jean-François Kervégan
Professor de Filosofia. Universidade de Paris I – Panthéon-Sorbonne
Théodore Kisiel
Professor de Filosofia. Universidade de Northern Illinois
Christian Lazzeri
Professor de Filosofia. Universidade de Paris Oeste – Nanterre La Defense
Jérôme Lèbre
Professor agregado de Filosofia. Saint-Quentin
Jean-Marc Lévy-Leblond
Professor emérito de Física e de Epistemologia. Universidade de Nice
Alain de Libera
Professor de Filosofia. Universidade de Genebra.
Salvatore Lilla
Scriptor graecus da Biblioteca Vaticana e professor de Patrística e de
Paleografia Grega. Istitute Patrístico Augustiniarum, Roma
Alessandro Linguiti
Professor de Filosofia. Universidade de Siena
Carole Maigné
Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Paris IV – Sorbonne
Cyrille Michon
Professor de Filosofia. Universidade de Nantes
Pierre-Marie Morel
Professor de Filosofia. École Normale Supérieure – LSH, Lyon
Catherine Osborne
Professora de Filosofia. Universidade de East Anglia (Norwich)
Frédéric Patras
Director de investigação. CNRS e Universidade de Nice
Pierre-Yves Quiviger
Mestre de conferências de Filosofia. Universidade de Paris I – Panthéon-
Sorbonne
Alain Renaut
Professor de Filosofia. Universidade de Paris IV – Sorbonne
Emanuela Scribano
Professora de Filosofia. Universidade de Siena
Luisa Simonutti
Professora de Filosofia. CNR – Universidade de Milão
John Skorupski
Professor de Filosofia. Universidade de Saint Andrews (Escócia)
Carlos Steel
Professor de Filosofia. Universidade de Lovaina (K. U. Leuven)
Richard C. Taylor
Professor de Filosofia. Universidade Marquette, Wisconsin
Rainer Thurnher
Professor de Filosofia. Universidade de Innsbruck
Jean-Marie Vaysse
Professor de Filosofia. Universidade de Toulouse – Le Mirail
Mario Vegetii
Professor de Filosofia. Universidade de Pavia
Denis Vernant
Professor de Filosofia. Universidade de Grenoble – Pierre Mendès France
Wayne Waxman
Professor de Filosofia. Universidade de Maynooth (Irlanda)
Dominique Weber
Professor agregado de Filosofia. Sceaux
Peter Welsen
Professor de Filosofia. Universidade de Trèves
Índice
CAPA
Ficha Técnica
Prefácio
O nascimento da filosofia
Platão
Aristóteles
Os saberes e as ciências na cidade grega
O atomismo antigo
O estoicismo
O cepticismo antigo
A filosofia imperial (século I a.C. – século II d.C.)
Plotino
O neoplatonismo de Proclo
A herança da filosofia grega no cristianismo antigo grego e latino
Damasco e Bagdade
Averróis/Ibn Rushd
Filosofia política e teologia na Idade Média
Tomás de Aquino
João Duns Escoto
Guilherme de Ockham
O mundo e o poema
Thomas Hobbes
René Descartes
As Reformas
Blaise Pascal
Bento Espinosa
John Locke
Nicolau Malebranche
A ciência da natureza humana
Gottfried Wilhelm Leibniz
George Berkeley
A filosofia natural no século XVII: Galileu, Huygens, Newton
David Hume
Jean-Jacques Rousseau
Emanuel Kant
A economia política
Iena. Pós-kantismo e romantismo
Georg Wilhelm Friedrich Hegel
Arthur Schopenhauer
John Stuart Mill
Søren Kierkegaard
Friedrich Nietzsche
A ciência da sociedade
Edmund Husserl
O empirismo filosófico francês
A alma posta a nu
Martin Heidegger e os seus herdeiros
Ludwig Wittgenstein
Jean-Paul Sartre
Maurice Merleau-Ponty
Investigações epistemológicas
Michel Foucault
Filosofia política: poder e democracia
As filosofias do vivente
Neurociências e pesquisas cognitivas
As descobertas filosóficas negativas da física contemporânea
As etapas da filosofia matemática contemporânea
Indicações bibliográficas
Os autores