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O TRATAMENTO DISPENSADO AOS POVOS INDÍGENAS NO ORDENAMENTO

JURÍDICO BRASILEIRO – ANÁLISE DOS DIREITOS TERRITORIAIS À LUZ DO


SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

6 DE SETEMBRO DE 2014 ⋅ POST A COMMENT


Déborah Carolina Celeste da Silva Soares*
Maraluce Maria Custódio**
Banca Examinadora12

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar a existência de discrepância


entre o tratamento dispensado aos povos indígenas no Brasil, sob a perspectiva do
Sistema Interamericano de Direitos Humanos, de forma a verificar qual o tratamento
mais adequado aos povos tradicionais na garantia de seus direitos humanos, no que
tange aos direitos territoriais das terras ocupadas por povos indígenas, uma vez que o
Brasil é signatário do Pacto de San José da Costa Rica, assim como de outros
importantes instrumentos de proteção internacional.

PALAVRAS-CHAVE: Povos Tradicionais; Propriedade Comunal; Direitos territoriais;


Direitos Humanos.

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Modo de vida diferenciado e proteção especial; 2.1 A Corte


Interamericana de Direitos Humanos e os direitos territoriais dos povos indígenas; 2.1.1
Casos emblemáticos e direitos assegurados; 2.2 O ordenamento jurídico brasileiro e os
direitos territoriais dos povos indígenas; 2.2.1 Casos emblemáticos em relação aos
povos indígenas no Brasil; a) Caso Raposa Serra do Sol; 3 Povos indígenas e a
necessidade de efetivação de direitos no brasil; 3.1 Reforma legislativa; 3.2 Demarcação
das terras indígenas; 3.3 Consulta prévia e ampla participação; 4 Conclusão;
Referências.

1 INTRODUÇÃO
Em tempos de busca pelo desenvolvimento sustentável – um dos temas de maior
relevância na atualidade – torna-se cada vez mais evidente a importância dos povos
tradicionais e a necessidade de proteção do seu modo de vida diferenciado e de seus
conhecimentos.

Entre os povos tradicionais estão os povos indígenas, definidos pelo art. 1º, “b” da
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) como aqueles:

1
povos em países independentes considerados indígenas pelo fato de descenderem de
populações que viviam no país ou região geográfica na qual o país estava inserido no
momento da sua conquista ou colonização ou do estabelecimento de suas fronteiras
atuais e que, independente de sua condição jurídica, mantêm algumas de suas próprias
instituições sociais, econômicas, culturais e políticas ou todas elas. (OIT, 2011, p. 17)

Tal dispositivo é apontado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos


(doravante “Comissão” ou “CIDH”) como o instrumento internacional de Direitos
Humanos específico mais relevante aos direitos dos povos indígenas1. Faz-se mister
salientar a relevância da CIDH, uma vez que é um órgão principal e autônomo da
Organização dos Estados Americanos (OEA), encarregado da promoção e proteção dos
direitos humanos no continente americano.

Preenchidos os três requisitos previstos para configuração de uma comunidade


tradicional (descendência de povos ancestrais, modo de vida diferenciado e o último e
mais importante requisito, a autoidentificação), uma série de direitos especiais são
conferidos a tais povos segundo entendimento da Corte Interamericana de Direitos
Humanos e importantes instrumentos internacionais, tais como a necessidade de
consulta prévia e o reconhecimento das terras ocupadas pelos indígenas como sendo de
propriedade comunal (pertencente àquela comunidade).

Tal entendimento coaduna com a nova tendência constitucionalista que começa a se


desenvolver em alguns estados americanos, como Bolívia e Equador, no
reconhecimento de diversos direitos de comunidades tradicionais, em observância a
autodeterminação destes povos.

Neste viés, salienta José Luiz Quadro de Magalhães que (MAGALHÃES, 2008, p.
202):

[o] estado plurinacional rompe com a uniformização do estado nacional que


possibilitou o desenvolvimento do capitalismo moderno. Esta ruptura, que pode ser
revolucionária, se apresenta na aceitação constitucional de diversos direitos de
propriedade e de diversos direitos de família, assim como a admissibilidade de
tribunais para resolver estas questões no âmbito de cada comunidade étnica.

2
Sob esta nova perspectiva democrática é que se busca uma análise dos direitos
territoriais dos povos indígenas, superando a concepção uniformizadora do Estado
Moderno, assim como o viés individualista da propriedade moderna, uma vez que o
sistema interamericano de direitos humanos, do qual o Brasil faz parte, se mostra muito
mais progressista e garantidor de direitos.

Neste sentido, resta demostrar que o entendimento da Corte IDH encontra-se em


consonância com a autodeterminação dos povos indígenas, que perpassa pela ideia de
sua organização não somente política e cultural, mas também territorial, uma vez que a
noção de território compartilhado é elemento integrante do modo de vida destes povos,
conforme salienta Alcida Rita Ramos (1988).

Autodeterminação esta que não deve se confundir com uma tendência separatista ou
mesmo insubordinação dos povos indígenas ao ordenamento pátrio, mas:

às noções desrespeito e integridade, ou seja, de viver bem, conforme seus valores e


crenças, obtendo o devido respeito da sociedade majoritária. Os termos direito e
justiça, de sua vez, em certas línguas indígenas podem ser traduzidos como bem viver
juntos. Assim, para a maior parte dos povos indígenas o verdadeiro sentido da
autodeterminação não é a aquisição de poder institucional, mas sim a liberdade de
viver bem como seres humanos e determinar o que isso significa, ou seja, trata-se do
sentimento de que eles podem decidir seu próprio modo de vida (ANJOS FILHO, 2009,
p. 606).

Com base no caráter multiétnico e pluricultural do Brasil, reconhecida pela Constituição


de 1988, o trabalho pretende fazer análise da propriedade no que tange aos direitos
territoriais dos povos indígenas, considerando novas interpretações acerca do
pertencimento e da definição de posse e propriedade, buscando a superação do conceito
de propriedade presente no Estado Moderno.

Segundo Sérgio Said Staut Júnior (2004, p. 160):

A referência ao termo propriedade (especialmente privada) carrega, e não é de hoje,


um significado muito específico na história, limitado a uma concepção individualista e
potestativa da relação entre homens e bens. A palavra propriedade remete
habitualmente a uma forma de apropriação dos bens que parte sempre de um sujeito
proprietário e de seu poder exclusivo e soberano sobre as coisas, ou seja, uma

3
perspectiva de propriedade que adquiriu uma posição hegemônica quase que absoluta
na Modernidade.

A Corte Interamericana por sua vez, já sinalizou entendimento mais extensivo no que
tange aos direitos territoriais, a exemplo do Caso da Comunidade Indígena
Sawhoyamaxa vs. Paraguai (Corte IDH, 2006, pár. 120), onde estabeleceu que:

igualmente que os conceitos de propriedade e posse em comunidades indígenas podem


ter um sentido coletivo, no sentido de que a propriedade não é focada em um indivíduo,
mas no grupo e sua comunidade. Esta noção de propriedade e posse da terra não
corresponde necessariamente ao conceito clássico de propriedade, mas que merecem a
proteção igual sob o artigo 21 da Convenção Americana. Desconhecer as versões
específicas dos direitos uso e gozo da propriedade, a partir da cultura, costumes e
crenças de cada povo, equivaleria a sustentar que só existe uma forma de usar e dispor
de bens, que, por sua vez significaria fazer ilusória proteção do artigo 21 da
Convenção para milhões de pessoas.

Neste sentido, Boaventura de Sousa Santos já ressaltou o importante papel do SIDH na


proteção e garantia dos direitos dos povos indígenas, em observância a
autodeterminação destes povos (SANTOS, 2012, p. 43):

Este é o caso do Sistema de Direitos Humanos e de suas duas principais instituições


Interamericano: a Comissão de Direitos Humanos e Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Apesar das críticas sobre eles, da Comissão e do Tribunal tomaram decisões
importantes, especialmente na última década, a favor do reconhecimento de posições
indígenas sobre o princípio da autodeterminação, com um impacto direto sobre a
justiça indígena, considerado um componente essencial da autonomia interna dos
povos indígenas e controle sobre seus territórios.

Com base na análise extensiva feita pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em
relação aos direitos territoriais dos povos indígenas, trazendo a possibilidade da
propriedade comunal e a previsão constitucional do regime de usufruto permanente no
Brasil, busca-se a melhor interpretação para os direitos territoriais dos povos indígenas
de maneira a garantir e preservar todos os direitos especiais inerentes aos povos

4
tradicionais, em respeito à sua autodeterminação, com base no pós-modernismo que
vem modificando a noção de coletividade, propriedade e mesmo de democracia.

2 MODO DE VIDA DIFERENCIADO E PROTEÇÃO ESPECIAL


O Brasil possui mais de 800 mil índios, um contingente populacional que representa
cerca de 0,4% da população brasileira, segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE, 2010). Estima-se que, no que hoje é delimitado como
território brasileiro, viviam cerca de 5 milhões de índios, população esta que foi
dizimada e perseguida e, até hoje, sofre com os resquícios deste passado de preconceito
e incompreensão.

Os povos indígenas possuem modo de vida diferenciado, incluindo especial ligação com
sua terra, tanto pelos costumes que ali praticam, como também pela preservação da
história de seu povo, de seu patrimônio material e imaterial.

A terra, que em sua concepção moderna tem significado patrimonial e está diretamente
vinculada ao poder, para os povos indígenas parece significar parte inerente de sua
história, símbolo da resistência a opressão e repressão sofridas desde à Colonização do
Brasil, bem como da construção e preservação de sua cultura.

Neste contexto, é editado o Princípio nº 22 da Declaração do Rio, de 1992, que ressalta


a importância dos povos indígenas, estabelecendo que:

as populações indígenas e sua comunidades e outras comunidades locais desempenham


um papel vital na gestão e desenvolvimento do ambiente devido aos seus conhecimentos
e práticas tradicionais. Os Estados deverão reconhecer e apoiar devidamente a sua
identidade, cultural e interesses e tornar possível a sua participação efetiva na
concretização de um desenvolvimento sustentável (ONU, 1992, p. 04).

Para que se possa compreender este modo de vida, é importante que se atente para a
história destes povos, desprendendo-se dos conceitos construídos pela hegemonia
europeia e da concepção do “homem branco”, buscando entender a cultura indígena por
meio de sua ótica, na medida em que for possível fazê-lo. Neste sentido:

Como sugere João Asiwefo Tiriyó, para apreciarmos a riqueza dos patrimônios
culturais indígenas, é necessário considerar essa “mistura” entre aspectos materiais e

5
imateriais e, sobretudo, procurar as variadas “fontes” do conhecimento, para além dos
saberes tecnológicos. (IEPÉ, 2006, p. 08)

A Convenção Para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial considera como


patrimônio cultural imaterial:

as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os


instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as
comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte
integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se
transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e
grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história,
gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para
promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana (UNESCO, 2003, p.
04)

Mister se faz ressaltar, portanto, a importância do reconhecimento e manutenção das


terras ocupadas pelos povos indígenas, considerando que sua cultura, costumes e
tradições encontram-se diretamente ligados a estes locais, considerando ainda, a
mutabilidade deste patrimônio intangível que modifica-se e aperfeiçoa-se de geração em
geração, preservando, contudo, a essência do saber, da história destes povos.

2.1 A Corte Interamericana de Direitos Humanos e os direitos territoriais dos


povos indígenas
A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) – ratificada pelo Brasil em
06/09/1992, por meio do decreto nº 678 – não possui nenhum artigo específico sobre a
proteção dos povos indígenas das américas, porém, é possível destacar em sua
jurisprudência um rol especial de direitos consagrados a estes povos, fruto de
interpretação extensiva que leva em consideração o modo de vida diferenciado e a
vulnerabilidade destes povos tradicionais.

No que tange ao direito à propriedade, o art. 21 da Convenção Americana de Direitos


Humanos (OEA, 1969) estabelece que:

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1.Toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus bens. A lei pode subordinar esse uso e
gozo ao interesse social. 2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, exceto
mediante o pagamento de indenização justa, por razões de utilidade pública ou de
interesse social, e nos casos e segundo as formas estabelecidas pela lei.3. Tanto a usura
como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem devem ser proibidas
pela lei

Neste sentido, resta configurado e assegurado o direito à propriedade privada, nos


mesmo parâmetros estabelecidos pelo Direito Civil2 em relação aos direitos individuais
sobre a propriedade. Contudo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos construiu
em sua jurisprudência, entendimento acerca da dimensão coletiva da propriedade, no
que tange aos povos tradicionais, conferindo direitos especiais a estes povos, conforme
se demonstrará.

2.1.1. Casos emblemáticos e direitos assegurados


Em 2001, a Corte julgou um dos caos mais emblemáticos de toda a sua jurisprudência,
sendo este precursor no que tange aos direito dos direitos dos povos indígenas, o
chamado Caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicaragua.

Neste caso, a Corte entendeu que:

Dada a natureza do caso, é necessário fazer algum esclarecimentos sobre o conceito de


propriedade nas comunidades indígenas. entre povos indígenas existe uma tradição
comunitária sobre uma forma comunal de propriedade coletiva da terra, no sentido de
que a propriedade não é centrada em um indivíduo, mas no grupo e na comunidade. O
indígena em sua própria existência, têm o direito de viver livremente no seu próprio
território; o estreitas relações dos povos indígenas com a terra deve ser reconhecida e
compreendida como a base fundamental de suas culturas, sua vida espiritual, sua
integridade e sua sobrevivência econômica. Para as comunidades indígenas, as
relações a terra não é meramente uma questão de posse e produção, mas uma elemento
material e espiritual de que devem gozar plenamente, inclusive para preservar seu
legado cultural e transmiti-lo às gerações futuras. (Corte IDH, 2001, p. 78)

Desde então, a Corte tem reiterado a necessidade de preservação da peculiar conexão


entre as comunidades indígenas e suas terras e recursos naturais provenientes destes,

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sendo essenciais para a sobrevivência física e cultural destas comunidades e dos direitos
humanos que devem ser garantidos a estas comunidades.
No Caso da Comunidade Moiwana Vs. Suriname (Corte IDH, 2005) – que tratou da
responsabilidade internacional do Estado do Suriname pela falta de investigação e
sanção dos responsáveis pela morte, desaparecimento forçado e maus tratos de membros
da comunidade Moiwana por parte de agentes das forças armadas do Estado do
Suriname em 1986 – a Corte destacou a ligação material espiritual daquele povo com
sua terra.

Os membros da Comunidade Moiwana que escaparam do massacre foram expulsos de


sua terra e não puderam realizar o ritual de sua etnia para descanso dos mortos de sua
comunidade, alterando o processo de luto e causando grande sofrimento àquela
comunidade. Neste sentido, o direito à propriedade estava intimamente ligado também
ao direito à integridade física e até mesmo ao direito à vida dos membros da
Comunidade Moiwana. Tanto que na sentença dos referido caso, foi ordenado pela
Corte à busca dos restos mortais dos membros da comunidade, para que pudesse ser
promovido enterro digno aos mesmo, de acordo com as tradições de Moiwana, bem
como o direito à propriedade onde viveram tradicionalmente os membros da
comunidade, até o ano de 1986.

Com as sentenças dos Casos de Sánchez Massacre Vs Guatemala (2004)3, Comunidade


Indígena Yakye Axa Vs. Paraguai (2005)4 e outros5, a Corte pode não somente
estabelecer parâmetros e corroborar com a efetivação dos direitos dos povos indígenas,
incluindo os direitos territoriais sobre as propriedades que secularmente ocupavam.

Em 2007 outro caso emblemático foi julgado pela Corte, o Caso Saramaka vs.
Suriname, que tratou da violação de direitos territoriais de povos quilombolas, enquanto
povos tribais, no Estado do Suriname. O referido caso trouxe significativos avanços
acerca dos direitos territoriais dos povos tradicionais – sejam eles indígenas ou tribais –
no que tange à necessidade de consulta prévia.

Assim, destaca-se a importância do direito das comunidades indígenas de participar de


todas as decisões sobre assuntos e políticas públicas tratem de seus direitos, de acordo
com seus valores, usos, costumes e formas de organização.

2.2 O ordenamento jurídico brasileiro e os direitos territoriais dos povos indígenas

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Em 1973 é editada a Lei 6.001, o chamado “Estatuto do Índio”, ainda em vigor no
ordenamento jurídico brasileiro. A referida lei surge ante às duras críticas direcionadas
ao governo federal da época em relação a política indigenista que vinha promovendo,
inclusive de exercer o pleno domínio sobre as terras indígenas.

O “Estatuto do Índio” foi editado no período ditatorial militar no Brasil, trazendo


consigo a concepção de índios aculturados que deveriam ser integrados à sociedade
brasileira. Em tal legislação, nota-se o total desconhecimento ou falta de interesse pela
cultura indígena, buscando promover a transição entre seu modo de vida diferenciado e
a imersão na cultura comum do povo brasileiro.

Embora o art. 1º da referida lei trate sobre a preservação da cultura indígena, uma leitura
mais criteriosa do Estatuto demonstra o posicionamento do legislador em não considerar
tais povos como parte integrante da chamada comunhão nacional, neste sentido:

Art. 1º Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades
indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e
harmoniosamente, à comunhão nacional. (BRASIL, 1973)

Especificamente sobre os direitos territoriais, o art. 2º, IX do “Estatuto do Índio”


estabelece que:

Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas
administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das
comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos: IX – garantir aos índios e
comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que
habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de
todas as utilidades naquelas terras existentes. (BRASIL, 1973)

O Estatuto possui ainda seção que trata exclusivamente “Das Terras dos Índios (Título
III), abordando a inalienabilidade das terras indígenas, da necessidade do processo de
demarcação, bem como da intervenção da União nestas terras.

Em 1983 surge o Decreto nº 88.118 que tratava do processo de demarcação das terras
indígenas no qual a FUNAI – Fundação Nacional do Índio – é responsável, nos termos
do suscitado Estatuto. Com o decreto 88.118 o estudo prévios das terras passa a ser
submetido a um Grupo de Trabalho de Ministérios vinculados ao poder Executivo.
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Tal medida foi tomada à época de modo a garantir o maior controle dos militares – que
muitas vezes chegaram a presidir a FUNAI – sobre as questões indígenas e o controle
das terras, tendo em vista que muitos antropólogos e indigenistas faziam parte deste
órgão e buscavam a efetiva proteção de direitos dos povos indígenas (ARAÚJO, 2006).

Em seguida, o Decreto nº 94.945, de 23/09/1987 trouxe algumas alterações no que tange


à demarcação das terras indígenas, porém mantendo o Grupo de Trabalho
Interministerial e outras influências do período ditatorial.

Com o advento da Constituição da República de 1988, a questão indígena começou a


ser trabalhada sob um novo paradigma, de uma relação mais justa e igualitária entre o
Estado e os povos indígenas, bem com de sua participação e interação na sociedade
brasileira.

A Constituição de 88, ao contrário do “Estatuto do Índio” que parecia objetivar a


inserção do índio na “sociedade branca”, com a consequente perda de suas
características e cultura, destaca o direito à diferença que estes povos possuem. Afinal,
são cerca de 225 povos distintos, com aproximadamente 180 línguas. Sendo estes povos
diferentes entre si, indiscutível é o contraste entre estes e as demais camadas da
população brasileira, as quais todas devem ser amparadas e protegidas pelo Estado.

Neste sentido, o art. 231 da CR/88 preconiza que:

São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens
(BRASIL, 1988)

Além deste feito, a Constituição reconheceu a capacidade processual dos índios, bem
como das comunidades e organismos de proteção das questões indígenas e elegeu a
Justiça Federal para dirimir conflitos referentes a direitos indígenas, com a devida
intervenção do Ministério Público nesta senda.

Com o advento do Código Civil de 2002 outro importante avanço se deu em relação aos
povos indígenas, estabelecendo que temas referentes à capacidade para a prática dos
atos da vida civil deveriam ser tratados em lei específica, afastando a capacidade
relativa dos índios fixada no Código de 1916, além de não abordar sobre a “tutela”
destes povos.
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Mister se faz ressaltar ainda acerca da Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho, que trata dos povos indígenas e tribais nos países independentes, aprovada
pelo Congresso Nacional em 20 de junho de 2002, por meio do Decreto Lei nº 143 e
promulgada em 19 de abril de 2004, por meio do Decreto nº 5.051.

A Convenção, além de trazer a conceituação do que seriam os povos tradicionais –


indígenas e tribais – trata de direitos como consulta e participação, direitos territoriais e
recurso naturais, identidade étnica, entre outros.

O Programa Nacional de Direitos Humanos 3 – programa desenvolvido com apoio


popular a fim de traçar as ações programáticas, diretrizes do que se espera construir no e
para o futuro do país – elenca em sua Diretriz nº 9, em seu Objetivo Estratégico III o
apoio aos projetos de lei com o objetivo de revisar o “Estatuto do Índio”, com base no
texto constitucional de 1988 e na Convenção 169 da OIT.

Nesta senda, embora o Brasil sofra de inflação legislativa e flagrante falta de efetivação
das leis vigentes, nota-se a necessidade de modificação e adequação das leis vigentes
relacionadas aos direitos dos povos indígenas, bem como reformulação dos órgãos e
setores que atendem tais povos, de forma a cumprir o disposto em nossa Lei Maior, bem
como nos tratados internacionais firmados pelo Brasil.

2.2.1. Casos emblemáticos em relação aos povos indígenas no Brasil


Recentemente instalou-se grande discussão no Brasil acerca da Hidrelétrica de Belo
Monte que inundará uma área de 400 km² – empreendimento que faz parte do complexo
hidrelétrico do Rio Xingu – atingindo cerca de 10 (dez) povos indígenas, como os
Juruna de Paguiçamba, Assurini do Xingú, os Araweté, os Parakanã, os Kuruia, os
Kayapó, entre outros.

Além do desequilíbrio ambiental que Belo Monte gerará, discute-se muito à aprovação
do estudo referente à hidroelétrica – aprovado pela Agência Nacional de Energia
Elétrica (ANEEL) – sem a devida consulta prévia as comunidades atingidas.

Situação semelhante ocorre em relação a Transposição do Rio São Francisco que poderá
atingir cerca de 30 (trinta) povos indígenas e também vem sendo tratada sem a devida
participação dos povos indígenas atingidos.

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Além destes, inúmeros casos de violação aos direitos dos povos indígenas ocorrem
diariamente no Brasil, como a situação desumana e degradante da comunidade indígena
Guaraní-Kaiwoá, do povo indígena Cinta Larga – com a extração ilegal de diamantes,
riquezas florestais e recursos minerais localizados em suas terras – e tantos outros casos
demonstram o flagrante e reiterado desrespeito aos povos indígenas, à sua terra e ao seu
conhecimento tradicional.

a) Caso Raposa Serra do Sol

O caso mais emblemático acerca da demarcação de terras indígenas no Brasil ocorreu


em relação a área conhecida como Raposa Serra do Sol, a qual havia sido reconhecida e
demarcada as terras indígenas no Estado de Roraima e, tendo em vista a necessidade de
retirada dos não-índios das terras, foi cenário de intensos conflitos entre fazendeiros e
índios.

No próprio Congresso Nacional, por meio de alguns de seus representantes, tramitou


projetos que almejavam a anulação do referido reconhecimento formal, inclusive para
construção de uma hidrelétrica no local (PL 2540/2006), sem que nenhuma das
comissões da Câmara dos Deputados ou Senado Federal tivesse escutado os povos
indígenas interessados.

O reconhecimento formal dos direitos originários e imprescritíveis de posse permanente


e usufruto exclusivo dos povos indígenas que a ocupam (cerca de 19.000 – dezenove –
mil índios) – por meio do Decreto Presidencial de 15 de abril de 2005 – só foi obtido
devido a luta dos povos indígenas, bem como dos diversos organismos internacionais e
ONG’s envolvidas nas questões indígenas, uma vez que eram alvo constante de invasão
por parte de garimpeiros e fazendeiros da região.

Em 2009, após tentativa para suspender a ordem de desocupação das referidas terras
pelos não índios, o STF decidiu pela demarcação contínua da terra Indígena Raposa
Serra do Sol, a qual deveria ser deixada pelos produtores rurais que a ocupavam, por
meio da Petição 3388/RR. Estabelecendo condições acerca da demarcação das terras e
homologando o ato administrativo realizado em 2005.

Na referida decisão, o Supremo destacou que:

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Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente
dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas
atividades produtivas, mais as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e ainda aquelas que se revelarem necessárias à
reprodução física e cultural de cada qual das comunidades étnico-indígenas, segundo
seus usos, costumes e tradições (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não
usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo
aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro
ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade
de uma etnia.

Nota-se, com isto, significativo avanço na interpretação dos direitos territoriais dos
povos indígenas no Brasil, uma vez que embora não tenha força vinculante, tal decisão
torna-se importante precedente na efetiva proteção de direitos territoriais indígenas que
pode e deve inspirar novos julgados no país, embora o Brasil tenha um longo caminho a
percorrer neste sentido.
A importância do referido julgado foi ressaltada nos Embargos de Declaração na
aludida Ação Popular acerca da demarcação das terras indígenas Raposa do Sol,
ressaltando que:

A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido


técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma
automática, a outros processos em que se discuta matéria similar. Sem prejuízo disso, o
acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta
Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite
da superação de suas razões (STF, 2013, p. 02).

Ainda na Petição 3388-RO o Supremo Tribunal Federal tratou da diferenciação entre


terra e território indígena, asseverando que:
Todas as “terras indígenas” são um bem público federal (inciso XI do art. 20 da CF), o
que não significa dizer que o ato em si da demarcação extinga ou amesquinhe qualquer
unidade federada. Primeiro, porque as unidades federadas pós-Constituição de 1988 já
nascem com seu território jungido ao regime constitucional de preexistência dos
direitos originários dos índios sobre as terras por eles “tradicionalmente ocupadas”.
Segundo, porque a titularidade de bens não se confunde com o senhorio de um
território político. Nenhuma terra indígena se eleva ao patamar de território político,

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assim como nenhuma etnia ou comunidade indígena se constitui em unidade federada.
Cuida-se, cada etnia indígena, de realidade sócio-cultural, e não de natureza político-
territorial.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos por sua vez, ao tratar sobre a definição de
Território no Caso Saramaka Vs. Suriname, considera que:

O termo território se refere a totalidade da terra e dos recursos naturais que os povos
indígenas e tribais tem utilizado tradicionalmente. (Corte IDH, 2007, par. 63)

Neste sentido, em conformidade com a Convenção 169 da OIT – em seu artigo 13.2 – o
conceito de terras deve incluir o conceito de território, tratando da totalidade do habitat
das regiões ocupadas pelos povos indígenas, no que inclui a utilização de seus recursos
ou de outra maneira, não devendo o conceito interno – político-territorial – ser
confundido com o conceito sócio-cultural, mas não podendo aquele deixar de observar
este.

3 POVOS INDÍGENAS E A NECESSIDADE DE EFETIVAÇÃO DE DIREITOS


NO BRASIL
É recorrente no Brasil a violação dos direitos territoriais dos povos indígenas. Seja na
desocupação das terras indígenas por particulares – como garimpeiros e fazendeiros –
ou na expropriação de conhecimentos tradicionais destes povos para lançamento de
cosméticos, medicamentos e produtos alimentícios, patenteados sem a autorização e
devida repartição dos lucros com as comunidades indígenas – a chamada biopirataria6 –
a cada dia surgem novos casos acerca da não observância dos direitos especiais
concedidos a estes povos.

Terras indígenas são frequentemente alvo de organizações paraestatais para o transporte


de drogas, armamento e fuga de criminosos procurados pela polícia, considerando a
falta de fiscalização e a localização destas comunidades, muitas vezes afastadas e em
zonas de fronteira no Estado Brasileiro.

Estas e muitas outras ameaças tem assolado as comunidades indígenas no Brasil,


colocando em risco não somente os direitos territoriais que originariamente possuem,
mas também a própria manutenção das culturas destes povos.

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Neste sentido, a Comissão Interamericana e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos já destacaram que a preservação da conexão particular entre as comunidades
indígenas e suas terras e recursos se vincula com a própria existência desses povos
(CIDH, 2002, pár. 128).

3.1 Reforma legislativa


Conforme destacado, alguns avanços se deram em relação a consolidação legislativa dos
direitos dos povos indígenas, porém, longo caminho ainda deve ser percorrido para que
tais direitos sejam garantidos em sua amplitude e para que questões ainda muito
polêmicas sejam tratadas legislativamente.

Desde a Constituição de 1988, destaca-se a necessidade de revisão e reforma do


“Estatuto do Índio”, tendo em visto o período e a forma como foi editado – uma vez que
data da época da ditadura e foi formulado sem a devida participação dos povos
indígenas.

Destaca-se ainda, a tramitação no Congresso nacional, desde o início da década de 90,


do projeto de lei que trata da revisão/edição de um novo estatuto direcionado aos
direitos dos povos indígenas – Projeto nº 2.057/91 – porém, tendo em vista o lapso
temporal entre a propositura e atual condição dos povos indígenas no Brasil, muito se
fala acerca da necessidade de substituição do referido projeto que trata de normas penais
e punições para delitos cometidos contra índios, uso de recursos florestais, proteção
ambiental e demarcação de terras.

Também datando da mesma década o Projeto de Lei Nº 1.610/96 que dispõe sobre a
exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas, sendo um dos
assuntos de maior interesse da comunidade indígena no Brasil. Se aprovado, o referido
projeto criaria condições para que as terras indígenas fossem exploradas
economicamente, principalmente por mineradoras, sendo de suma importância a
participação dos povos indígenas nesta discussão, estando até a presente data pendente a
marcação de audiência pública para discussão com os povos indígenas e demais
interessados sobre o tema.

Ambos os projetos, além da devida adequação aos direitos elencados na Convenção 169
da OIT, prescindem da ampla participação e consulta dos representantes das
comunidades indígenas, uma vez que são os maiores interessados na demanda. Talvez

15
por estes motivos e considerando interesses escusos de não efetivação dos direitos dos
povos indígenas, principalmente no que tange aos seus direitos territoriais tem
culminado na demasiada demora na discussão, modificação e aprovação dos projetos de
leis que contemplam direitos que são reivindicados pelos índios.

Conforme assevera Ana Valério de Araújo (2006, p. 77):

o Legislativo tem repetidamente se omitido de regulamentar alguns dos direitos criados


e demonstra hoje uma tendência a limitá-los e a minimizar a sua aplicação por meio de
emendas constitucionais e projetos de lei ora em trâmite no Congresso Nacional. Por
outro lado, o Executivo insiste em revisitar paradigmas revogados de integração,
incitando polêmicas desnecessárias que pouco permitem avançar na direção da
concretização da concepção contemporânea de igualdade. Por fim, tão pouco o
Judiciário tem sido unânime na interpretação inovadora e justa dos preceitos
constitucionais

Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos estabeleceu no Caso da


Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguai (Corte IDH, 2005, pár. 100):

a obrigação adaptar a legislação interna à Convenção Americana nos termos do artigo


2 é, por sua própria natureza, uma obrigação de resultado. Os estados devem,
portanto, rever as suas leis, procedimentos e práticas para garantir que os direitos
territoriais dos povos e pessoas indígenas e tribais sejam definidos e determinados de
acordo com os direitos estabelecidos nos instrumentos interamericanos de direitos
humanos.

Neste sentido, nota-se que muito ainda deve ser feito para que os direitos contemplados
na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, na Convenção 169 da OIT e na
Constituição de 1988 sejam plenamente contemplados no ordenamento jurídico
brasileiro, atendendo aos direitos que os povos indígenas possuem, uma vez que o
ordenamento jurídico brasileiro oscila entre leis extremamente modernas, porém não
aplicadas em sua plenitude e entre leis arcaicas e fundamentados em uma visão
preconceituosa e superada das comunidades indígenas que ainda estão em vigor.

3.2 Demarcação das terras indígenas


16
O direito originário de demarcação das terras indígenas é um dos mais importantes
direitos reconhecidos na Constituição de 1988. O dever iniciativa, orientação e
demarcação de terras cabe à FUNAI – Fundação Nacional do Índio, conforme previsto
no “Estatuto do Índio” e no Decreto nº 1.775/96.

Mesmo a criação do Parque Nacional do Xingu – hoje chamado de Parque Indígena do


Xingu – em 1961, um marco na mudança de demarcação de terras indígenas no Brasil,
uma vez que trazia consigo a visão de preservação não somente das terras mas do modo
de vida, da reprodução sociocultural das comunidades indígenas que viviam às margens
do Rio Xingu, sofreu para que fosse implantado. O projeto sofreu diversas represálias,
assim como foi aprovado em dimensão extremamente menor do que a inicialmente
proposta e só vingou devido a insistência e a luta de várias personalidades, como os
irmãos Villas-Boas.

Tal projeto, embora pioneiro, tratou-se de uma exceção à política indigenista nacional
vigente à época e, somente com a Constituição de 1988 que se tratou do correto
processo de demarcação das terras indígenas no Brasil.

Segundo a FUNAI Atualmente existem 462 terras indígenas regularizadas,


representando 12,2% do território nacional, sendo que cerca de 8% das 426 terras
indígenas tradicionalmente ocupadas não se encontram na posse plena das comunidades
indígenas7. Até o ano de 2013, 115 localidades ainda estariam em estudo para serem
consideradas como terras indígenas8.

Nesta senda, embora a maioria das terras indígenas já tenham sido demarcadas, vários
problemas ainda são enfrentados pelas comunidades. Além da demora na demarcação
das terras indígenas no Brasil9, muitas vezes as terras não são demarcadas em sua
dimensão total, além de os índios não conseguirem gozar da posse mansa e pacífica dos
territórios demarcados.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos – em diversos oportunidades, como no


caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua (2001, pár. 153) –
destacou a importância da demarcação das terras indígenas, uma vez que embora a falta
de reconhecimento formal não obste o reconhecimento do direito de propriedade dos
povos indígenas, a falta de título gera clima de incerteza entre os índios, uma vez que
estes:

17
não sabem precisamente onde se estende geograficamente seu direito de propriedade
comunal e, consequentemente, onde podem usar e gozar livremente dos respectivos
bens

Muito criticada é a PEC 215/2000 em trâmite no Congresso Nacional que trata de


possíveis mudanças no processo de demarcação das terras dos povos indígenas, onde a
competência para demarcação das terras passaria pelo Congresso Nacional, além da
possibilidade de revisão das terras até o momento demarcadas.

Tal projeto é amplamente rejeitado pelos organismos de proteção dos povos indígenas
uma vez que poderia acarretar grande retrocesso no processo de demarcação das terras,
tendo em vista interesses escusos de muitos parlamentares em atender interesses de
particulares e de grandes indústrias.

Neste sentido resta clarividente a necessidade de finalização da demarcação das terras


dos povos indígenas, bem como de políticas de fiscalização e preservação da posse
destas terras por parte dos povos indígenas, uma vez que a cada dia surgem novas
artimanhas a fim de atingir e esbulhar a posse destas terras.

3.3 Consulta prévia e ampla participação


Conforme demonstrado nos Casos emblemáticos em relação aos povos indígenas no
Brasil10, muitos dos casos atuais de violação dos direitos territoriais dos povos
indígenas dizem respeito à falta de consulta prévia e ampla participação das
comunidades indígenas nos processos que atinjam seus territórios, de acordo com seus
modos e costumes.

Nos termos do que foi estabelecido no caso Saramaka vs. Suriname, estando
intimamente o direito de propriedade dos povos tribais e indígenas com o direito
político de participação, a consulta prévia que deve ser dar para:

a) o processo de demarcação, delimitação e titulação do território ancestral; b) o


processo de concessão do reconhecimento legal da capacidade jurídica coletiva, para a
comunidade; c) o processo de adoção de medidas legislativas, administrativas ou
outras que possam ser necessárias para reconhecer, proteger, garantir e dar efeito
legal aos direitos dos povos indígenas e tribais sobre o território que tradicionalmente
têm ocupado e utilizado; d) o processo de adoção de medidas legislativas,
18
administrativas ou de outra forma obrigados a reconhecer e garantir o direito do povos
indígenas a serem efetivamente consultados, de acordo com as suas tradições e
costumes; e) em relação aos estudos anteriores de impacto ambiental e social, e em
relação a qualquer proposta de restrição sobre os direitos de propriedade dos povos
indígenas e tribais , especialmente em relação aos planos de desenvolvimento ou
investimento propostos dentro, ou que afetem o território (CORTE IDH, 2008, pár. 16)

Belo Monte, a Transposição do Rio São Francisco e tantos outros casos demonstram o
total e completo desrespeito à referida previsão do direito a consulta prévia das
comunidades indígenas, demonstrando a desconsideração da personalidade jurídica dos
povos indígenas como sujeitos de direitos aptos a defender seus direitos e opiniões.

O mesmo se dá no âmbito dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas que,


constantemente, tem suas terras invadidas por cientistas e multinacionais que buscam
lucrar com os conhecimentos e recursos naturais destas comunidades, sem a devida
consulta, autorização e repartição dos lucros11, corroborando mais uma vez com o
entendimento de que no Brasil, infelizmente, muitas vezes ainda vigora a incapacidade
civil dos povos indígenas do Código de 16, bem como a visão indigenista herdada dos
tempos da Colonização.

4 CONCLUSÃO
As terras indígenas foram inseridas no âmbito da União, como parte de seu patrimônio
pela EC nº 1/69, como forma de conter e evitar o constante esbulho que as terras
originariamente ocupadas pelos índios vinham sofrendo pelos estados, perdurando tal
previsão até os diais atuais.

Mesmo no âmbito da União, a cada dia surgem novos casos de disputas territoriais entre
povos indígenas, fazendeiros e garimpeiros, bem como de projetos de construção de
estradas, rodovias, hidrelétricas e exploração de recursos naturais que atingirão os
direitos territoriais dos povos indígenas sem o devida respeito e observância das regras
vigentes ou pendentes no ordenamento jurídico brasileiro.

Tais conflitos demonstram o longo caminho que deve ser percorrido pelo Brasil na
efetivação dos direitos territoriais dos povos indígenas e adequação aos preceitos
estabelecidos no Sistema Interamericano de Direitos Humanos – do qual o Brasil faz

19
parte – e dos mais modernos instrumentos de Direitos Humanos do Direito
Internacional.

Na efetivação do direito à diferença e da pluralidade do Estado Brasileiro é necessário


que ocorra rápida e urgente mudança legislativa em nosso ordenamento, pressupondo
para tal a derradeira superação da visão arcaica e tacanha do índio brasileiro como parte
não integrante da cultura nacional e como ser aculturado e incapaz.

Por fim e certamente o mais importante, necessário que os direitos inerentes ao modo de
vida diferenciado dos povos indígenas – estando eles previstos formalmente ou não –
em respeito ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos em que o Brasil está
inserido e aos Direitos Fundamentais que estes povos possuem, necessário que se
implementem urgentemente medidas de proteção e efetivação de direitos das
comunidades indígenas, uma vez que somente a mudança formal das normas não
garante a manutenção e preservação do patrimônio material e imaterial destas
comunidades, a fim de que a propriedade comunal dos povos indígenas seja
implementada e respeitada em sua plenitude.

O Direito, como instrumento de controle social que é, busca acompanhar a mentalidade


da sociedade em que está inserido e, no que tange aos povos indígenas, sua atuação não
é diferente. Aos poucos a sociedade brasileira vem alterando seu modo de visualizar e
atender às necessidades dos povos mais vulneráveis, no que inclui índios, quilombolas e
populações ribeirinhas; avanço desejado e necessário para o desenvolvimento igualitário
no país.

O Direito é, portanto, importante instrumento para que a descrição dos primeiros


colonizadores no Brasil, ao taxar os índios brasileiros como um povo “sem lei, sem fé,
sem rei”, não mais permaneça incrustida em nossa sociedade e, certamente, o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos encontra-se um passo à frente na proteção dos
direitos territoriais dos povos indígenas, devendo o Brasil se adequar e efetivar tais
direitos.

REFERÊNCIAS:
ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Direito ao Desenvolvimento de Comunidades
Indígenas no Brasil. Tese apresentada ao Programa da Pós-Graduação da Faculdade de

20
Direito da USP, sob orientação do Professor Gilberto Bercovici, como requisito parcial
à obtenção do título de Doutor, 2009.
ARAÚJO, Ana Valéria et alii. Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à
diferença. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.
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Brasil. Brasília, 5 out. 1988. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso
em: 31 nov 2013.
_____. Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Código Civil Brasileiro. Presidente:
Fernando Henrique Cardoso.
_____. Decreto nº 1775, de 8 de janeiro de 1996. Dispõe sobre o procedimento
administrativo de demarcação das terras indígenas e dá outras providências. Brasília,
DF, 8 dez. 1996. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D1775.htm>.
CENTRO UNIVERSITÁRIO NEWTON PAIVA. Manual para Elaboração e
Apresentação dos Trabalhos acadêmicos: padrão Newton. Belo Horizonte, 2011.
_____. Normas de Publicação da Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário
Newton Paiva, padrão Newton. Belo Horizonte, 2013. Disponível em: <
http://blog.newtonpaiva.br/direito/wp-content/uploads/2013/05/Normas-de-
publicacao.pdf > Acesso em: 02 jun 2014.
CIDH. Direitos dos povos indígenas e tribais sobre suas terras ancestrais e recursos
naturais. Publicado em 30 set. 2009. Disponível em:<
http://cidh.org/countryrep/TierrasIndigenas2009/Tierras-Ancestrales.ESP.pdf>.
_____. Informe No. 75/02, Caso 11.140, Mary y Carrie Dann (EUA), 27/12/02, pár.
128. (Estados Unidos), 27 de dezembro de 2002, parr. 173, recomendações 1 e 2.
_____. Segundo Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no
Peru. OEA/Ser.L/V/II. 106 Doc. Doc 59 rev., 2 de junho de 2000.
CIDH.

_____. Terceiro Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no


Paraguai. OEA/Ser./L/VII. 110 Doc, Doc 52, 09 de Março de 2001.
Corte IDH. Caso Comunidade Indígena Yakye Axa Vs. Paraguai. Mérito, Reparações e
Custas. Sentença de 17 de junho de 2005. Serie C No. 125, parr. 100. CIDH.
_____. Caso da Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Fundo,
Reparações e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2001. Serie C No. 79. Pár. 149.

21
_____. Caso da Comunidade Moiwana vs. Suriname. Fundo, Reparações e
Custas. Sentença de 15 de junho de 2005. Serie C No. 124.
_____. Caso do Povo Saramaka Vs. Suriname. Interpretação da Sentença de Exceções
Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 12 de agosto de 2008. Serie C
No 185. § 16.

_____. Caso do Povo Saramaka Vs. Suriname. Exceções Preliminares, Mérito,


Reparações e Custas. Sentença de 28 de novembro de 2007. Serie C No. 172. § 194 (c).
IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: 2012. Disponível em:
< http://www.ibge.gov.br/indigenas/indigena_censo2010.pdf> acesso em: 26 mai 2014.
_____. Tendências demográficas: uma análise dos indígenas com base nos resultados
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23/10/2013, p. 2
____. Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, 19-3-2009, Plenário, DJE de 01/07/10

22
UNESCO. Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, 2003.
Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 2003.

NOTAS DE FIM
* Aluna do 9º Período do Centro Universitário Newton Paiva. Membro do Grupo de
Estudos em Direito Internacional do Centro Universitário Newton Paiva (GEDINP).
Email: deborah_gtc@hotmail.com

** Mestre em Direito Constitucional pela UFMG, mestre em Direito Ambiental pela


UNIA (Espanha) e Doutora e Geografia em Convenção de Doutorado Sanduíche
financiado pela CAPES entre a UFMG e a UAPV (França). É professora do Curso de
Direito do Centro Universitário Newton Paiva. Email: maralucem@hotmail.com

1 Conforme explicitado no Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai,


pár. 117 e nos Relatórios “Terceiro Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no
Paraguai. e “Segundo Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos no Peru.

2 O artigo 1.228 do Código Civil de 2002 assegura o direito à propriedade privada,


estabelecendo que: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o
direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Tal
artigo encontra-se em consonância com disposto no art. 5º, XXII da Constituição 1988
que trata da garantia ao direito de propriedade.

3 O referido caso trata do conflito armado interno ocorrido na Guatemala entre os anos
de 1962 e 1996. Com a chamada “Política Nacional de Segurança e Desenvolvimento”
militares do Estado da Guatemala praticaram uma série de ações destinadas à destruição
de grupos e comunidades, promovendo o desaparecimento geográfico forçado de
comunidades indígenas, quando as consideravam envolvidas com guerrilhas.

4 O caso trata da não garantia do direito de propriedade ancestral da Comunidade


Indígena Yakye Axa que teve parte de suas terras vendidas na bolsa de valores,
sofrendo todo tipo de esbulho, condicionando a comunidade a viver em área
incompatível com suas necessidades para manutenção de sua sobrevivência e prática de
seus rituais e costumes.

5 Outros casos envolvendo direitos indígenas podem ser encontrados nos julgados da
Corte, tais como Yatama Vs. Nicarágua (2005); Caso Chitay Nech e outros vs.
23
Guatemala (2010); Caso Comunidade Indígena Xáxmok Kasek Vs. Paraguai (2010);
Caso Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs Equador (2012).

6 Segundo o Instituto Brasileiro de Direito do Comércio Internacional, da Tecnologia da


Informação e Desenvolvimento – CIITED, Biopirataria consiste no: “ato de aceder a ou
transferir recurso genético (animal ou vegetal) e/ou conhecimento tradicional associado
à biodiversidade, sem a expressa autorização do Estado de onde fora extraído o recurso
ou da comunidade tradicional que desenvolveu e manteve determinado conhecimento ao
longo dos tempos (prática esta que infringe as disposições vinculantes da Convenção
das Organizações das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica). A biopirataria
envolve ainda a não-repartição justa e equitativa – entre Estados, corporações e
comunidades tradicionais – dos recursos advindos da exploração comercial ou não dos
recursos e conhecimentos transferidos.” Definição fornecida pela ONG Amazon Link
Disponível em: Definição fornecida pela ONG Amazon Link. Disponível < em:
http://www.amazonlink.org/biopirataria/biopirataria_faq.htm > Acesso em: 27 fev de
2014.

7 Dados fornecidos pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Disponível em: <
http://www.funai.gov.br/index.php/nossas-acoes/demarcacao-de-terras-
indigenas?limitstart=0 > Acesso em: 23 mai 2014.

8 Danos fornecidos pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Disponível em: <
http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/brasiltem-672-terras-indigenas-entenda-
como-funciona-demarcacao.html > Acesso em: 28 jan 2014.

9 O art. 67 da Constituição da República de 1988 estabeleceu o prazo de 5 (cinco) anos


para demarcação das terras indígenas, a contar da data da promulgação da Constituição.
Passados mais de 25 (vinte e cinco) anos, o processo ainda não foi concluído.

10 Item 2.2.1

11 Em relação aos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e sua proteção – que
se dá no âmbito do Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI) – tem-se a
Medida Provisória nº 2.186-16 de 2001, bem como o Decreto 4.339/2002. Porém, ainda
não foi editada Lei Ordinária em substituição à referida Medida Provisória e muito se
discute acerca da pouca efetividade na proteção dos conhecimentos tradicionais dos
povos indígenas, bem como a falta de autorização das comunidades e da obrigatória
repartição dos lucros na utilização de seus conhecimentos, nos termos da Convenção

24
sobre Diversidade Biológica assinada no Rio de Janeiro em 5 de Junho de 1992 e que
passou a vigorar no Brasil em 29 de Maio de 1994, promulgada através do Decreto nº
2.519 de 16 de Março de 1998.

12 Maraluce Maria Custódio; Ludmila Stigert.

25

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