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Inspirada em uma experiência real, o mote da obra é o ataque de leões a uma pequena
comunidade no norte de Moçambique. Entretanto, o episódio se desenvolve como pano de
fundo para iluminar tanto questões existenciais, como a morte e a loucura, quanto impasses
sociais e históricos ao refletir a condição da mulher e as marcas deixadas pela colonização e pela
guerra.
O escritor explica, nas primeiras notas, que o romance surge de sua experiência como biólogo:
“Em 2008, a empresa em que trabalho enviou quinze jovens para atuarem como oficiais
ambientais de campo durante a abertura de linhas de prospecção sísmica em cabo Delgado, no
Norte de Moçambique. Na mesma altura e na mesma região, começaram a ocorrer ataques de
leões a pessoas. Em poucas semanas, o número de ataques fatais atingiu mais de uma dezena.
Esse número cresceu para vinte em cerca de quatro meses.”
Inspirado neste caso, Mia Couto acrescenta, ainda, que as personagens da trama foram
baseadas em pessoas reais. Entre as personagens, estão os dois protagonistas, Mariamar e
Arcanjo Baleiro. Ambos são narradores-personagens, pois a obra se desenvolve a partir de seus
escritos biográficos, apresentados de forma intercalada no romance. Os escritos da moça,
intitulados versão de Mariamar, ainda que repletos de subjetividades, relatam os
acontecimentos pela ótica local. A moça vive em Kulumani, aldeia onde se desenvolve a trama.
De seu pertencimento à terra, resulta a intimidade com o espaço – o rio que cruza a vila, o mato,
a aldeia – e com as tradições locais – a religiosidade, os costumes, a memória. Em contraposição,
os escritos de Baleiro, diário do caçador, apresenta o olhar do viajante. O caçador de leões,
proveniente da capital.
Mestrando sob orientação Profa. Rosangela Sarteschi, Programa de Estudos Comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa lança mão de sua condição de estrangeiro para refletir sobre
os insólitos episódios da aldeia.
kusungabanga, isto é, costuram “a vagina da mulher com agulha e faca” (COUTO, 2012, p. 203)
antes da emigração do marido para trabalhar. A narradora e suas irmãs são abusadas
sexualmente pelo pai. Tandi, empregada do administrador da província, é violentada e morta
pelos homens da aldeia por cruzar uma região proibida às mulheres.
Todas são impedidas de frequentar a shitala, local de encontro dos homens na comunidade.
Contudo, a primeira dama da província, Naftalinda, aparece então como a voz que confrontará
esta realidade, denunciando em alto tom o crime cometido pelos homens e demonstrando
publicamente que se opõe às regras de submissão impostas à mulher.
COUTO, Mia. A Confissão da Leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012
"Um acontecimento real - as sucessivas mortes de pessoas provocadas por ataques de leões
numa remota região do Norte de Moçambique - é pretexto para Mia Couto escrever um
surpreendente romance. Não tanto sobre leões e caçadas, mas sobre homens e mulheres
vivendo em condições extremas. Como afirma um dos personagens, «aqui não há polícia, não
há governo, e mesmo Deus só há às vezes».
Em A Confissão da Leoa, Mia Couto, à semelhança do que tem acontecido com os seus livros
mais recentes, inventa menos palavras. Acaba por ser um livro menos fantasioso, menos mágico
na forma como nos envolve na leitura, no entanto, a história não parece perder com esta escrita
mais séria de Mia Couto. Se calhar por ser um livro que fala de um tema sério, os espaço para
interpretações não deva ser tanto.
Arcanjo Baleiro vem de uma família de caçadores. É contratado para se deslocar a Kulumani para
matar os leões que andam a atacar as mulheres da aldeia. Traz consigo, para além da espingarda,
a alma carregada de tristeza. O coração pesado de dor e revolta. Traz consigo um amor não
correspondido pela cunhada, mulher do seu único irmão, que está internado num hospício por
ter morto o pai de ambos há muitos anos atrás. Algo que atormenta Arcanjo e o impede de
dormir à noite. Assaltado pelos fantasmas desse dia em que acorda com o disparo da espingarda
e encontra o pai banhado em sangue e a espingarda na mão do irmão, pouco mais do que um
adolescente. Um acidente? É a versão com que vive durante os anos que se seguem, sem nunca
perdoar totalmente o irmão pelo que fez. Sem nunca perceber na totalidade o que se passou
naquele dia.
É sempre bom regressar a Mia Couto. A Confissão da Leoa é um livro triste, essencialmente triste
mas que se lê muito bem. Recomendo como não podia deixar de ser.
Boas leituras!
"Deus já foi mulher. Antes de se exilar para longe da sua criação e quando ainda não se chamava
Nungu, o atual Senhor do Universo parecia-se com todas as mães deste mundo. Nesse outro
tempo, falávamos a mesma língua dos mares, da terra e dos céus. O meu avô diz que esse
reinado há muito que morreu. Mas resta, algures dentro de nós, memória dessa época
longínqua. Sobrevivem ilusões e certezas que, na nossa aldeia de Kulumani, são passadas de
geração em geração. Todos sabemos, por exemplo, que o céu ainda não está acabado. São as
mulheres que, desde há milénios, vão tecendo esse infinito céu. Quando os seus ventres se
arredondam, uma porção do céu fica acrescentada. Ao inverso, quando perdem um filho, esse
pedaço de firmamento volta a definhar."
"O verdadeiro nome da mulher é «Sim». Alguém manda: «não vais». E ela diz: «eu fico». Alguém
ordena: «não fales». E ela permanecerá calada. Alguém comanda: «não faças». E ela responde:
«eu renuncio»."
Provérbio do Senegal
"Todas as manhãs a gazela acorda sabendo que tem de correr mais veloz que o leão ou será
morta. Todas as manhãs o leão acorda sabendo que deve correr mais rápido que a gazela ou
morrerá à fome. Não importa se és leão ou uma gazela: quando o sol desponta o melhor é
começares a correr."
Provérbio africano
"Um exército de ovelhas liderado por um leão é capaz de derrotar um exército de leões liderado
por uma ovelha."
Por isso, quando soube da chegada de A Confissão da Leoa às livrarias, não pude evitar aquela
luz de expectativa que se acende em nós sempre que um lançamento de um escritor que
gostamos ou uma obra que esperamos muito é publicada.
Baseado em uma história real – tendo o próprio Mia Couto estado presente em uma aldeia
moçambicana onde se dava caça a leões comedores de gente – A Confissão da Leoa é um misto
de elementos da cultura de Moçambique (em se tratando de África é bom evitar generalizações
culturais, então vamos fechar o cerco por aí mesmo); características políticas do continente
como um todo, centrado na oposição entre a tradição e o novo modelo sociopolítico; a memória
histórica, nesse caso, trazida à tona como feridas da Guerra da Independência; e por fim, a
problematização do papel social e do direito (jurídico e humano) da mulher.
O livro é narrado sob dois pontos de vista, um pelo diário do caçador Arcanjo Baleiro, que
acompanhado pelo escritor Gustavo Regalo (alter-ego de Mia Couto), pelo administrador do
distrito e a primeira dama, vão à aldeia de Kulumani a fim de resolver o “problema com o leão”.
O outro ponto de vista é pelo diário de Mariamar (Mar – i – Amar), uma nativa que encarna a
dor e a vida da mulher presa a uma cultura tradicional, uma mulher que se crê Leoa, uma prova
viva de que milagres, magia, metamorfose e o contato com ancestrais não são apenas lendas.
Dada a ideia geral do argumento do livro, o leitor desavisado pode pensar que se trata de uma
série de visões sobre um fato ocorrido, algo nada novo na literatura e que foi trabalho por outros
escritores em formatos até menores que um romance (tenho em mente o conto No Matagal
[também conhecido como Dentro de um Bosque], de Rynosuke Akutagawa, mas este é apenas
um dentre vários exemplos). Mas aí é que entra a prosa rica de Mia Couto. Lançado o conflito e
estabelecido o grupo de pessoas de ambos os lados para lidar com ele, o escritor arruma vias
paralelas, atalhos oníricos, descrição de rituais, cenas do passado, alucinações, desejos e
incômodos para a maior parte dos protagonistas: todos são contemplados com alguma
mudança, ninguém sai isento das garras dos leões, seja direta ou indiretamente, metafórica ou
fisicamente.
Nessa linha tênue entre a fantasia e a realidade, temos em destaque o papel da mulher. Aliás, a
feminilidade é a alma do livro, tendo já o seu início uma declaração linda, desenvolvida com a
visão da mitologia africana, claro, mas que sabemos também ser real para as outra civilizações:
Deus já foi mulher. Desse ponto em diante, acompanhamos a queda livre da personalidade, da
alma e da própria existência da mulher na sociedade, de Deusa a Ninguém. Os papéis sociais
violentamente definidos são o cerne dessa deposição, o que faz com que tenhamos acesso aos
diferentes modos dessas ex-deusas lidarem com a sua atual condição de não serem nem pessoa
(se não puderem ter filhos) e de serem completamente despidas de palavra, de ação própria, de
viver.
O desfecho do livro é doloroso mas muito real e coerente com a proposta geral, trazendo o
assumir de uma personalidade forte, mortal e amedrontadora para Mariamar e sua mãe Hanifa
Assula, ao mesmo tempo colocando em pauta a loucura e outros patamares de realização para
diferentes mulheres: a imensa Naftalinda e a indecisa Luzilia. Todas elas atormentadas por
diferentes demônios e saciadas a grande custo e de alguma forma. O mais curioso é que mesmo
com essas realizações de desejos individuais, temos a permanência de toda a estrutura que
provocou marcas no passado e que evidentemente continuará marcando a alma e o corpo
dessas e de outras mulheres. Uma luta que só mesmo leoas assassinas, reais ou imaginárias,
podem ter coragem de enfrentar.
Lendo A confissão da leoa, romance publicado em 2012, é possível perceber uma porção de
pontos em comum com outros escritores africanos. A presença das culturas tribais e das
milenares tradições é um desses pontos, e a forma como os caracteres mitológicos – oriundos
de crenças longamente sedimentadas – se entrelaçam com os rumos históricos desses povos
parece também ser uma questão recorrente e de primeira importância.
Conforme Mia Couto nos esclarece ao início do livro, a história foi inspirada numa viagem que
ele empreendeu a uma região que estava sendo assolada por ataques de leões. Por conta disso
é que, também na trama, o palco dos acontecimentos é a aldeia Kulumani, numa região do
Moçambique que sofre do mesmo mal. E, tendo em vista a preocupação do autor em retratar
esses eventos, é que a narração cabe a dois personagens: Arcanjo Baleiro, o caçador contratado
para dar cabo dos leões; e Mariamar, uma moça da aldeia. Curiosamente, Mia Couto pouca
participação concede ao personagem escritor, Gustavo Regalo, cujo papel é brevíssimo e
totalmente coadjuvante.
Cada personagem enfrenta seus conflitos particulares. Baleiro tem um histórico familiar
traumático, o irmão entrou em estado de choque e permanece numa casa de cuidados especiais,
onde conta com o alento de Luzilia, sua noiva, pela qual Baleiro tem uma paixão. Mariamar tem
o mesmo fardo das mulheres de Kulumani, que é o de serem tiranizadas pelos maridos e viverem
num silêncio cruel e macambúzio. Mariamar perdeu a irmã num dos ataques dos leões, evento
que aprofundou o desalento familiar e doméstico em que ela vivia.
A presença dos leões nas redondezas enseja o encontro dos dois narradores, sendo na
contraposição dos dois pontos de vista narrativos – a partir dos olhos de alguém “de fora” e de
alguém “de dentro” – que se encontra a riqueza da história de Mia Couto. Arcanjo Baleiro é mais
realista e durão, sua formação num contexto externo ao da aldeia faz com que ele encare os
fatos de forma mais objetiva, tendo em sua interpretação da realidade, seja dos hábitos das
feras ou dos comportamentos dos habitantes de Kulumani, uma precisão que se espera também
de sua espingarda na hora do tiro. Mariamar, por sua vez, criou-se no seio da aldeia, entrelaçada
nas tramas míticas que compõem o tecido da realidade tanto quanto os fatos, motivo pelo qual
enxerga a realidade de uma maneira muito distinta de Baleiro, porém não menos fascinante.
O título do livro não é A confissão da leoa à toa: trata-se da fêmea e não do célebre “rei dos
animais”. Mia Couto dá voz às mulheres de Kulumani para contar a história de suas vidas de um
ponto de vista não tão comum: o delas próprias. O autor faz isso com uma prosa sensível, que
valoriza o potencial simbólico das cenas e da utilização dos personagens e das situações.
Podemos aludir, por exemplo, ao sonho de Mariamar, no qual ela tenta fugir da aldeia – e da
tirania masculina – por meio do rio, encontrando a leoa a beber na sua margem. A água se
mancha de vermelho, sangue cuja procedência é propositalmente desconhecida: trata-se do
sangue das vítimas da leoa que bebe ou da transformação de Mariamar em mulher? Ou ambas?
A rica confluência de mitos, sonhos e realidade é o recurso de uma expressividade tão política
quanto literária.