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TEXTOS UNIVERSITÁRIOS DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

LÓGICA E ONTOLOGIA
EM PEDRO DA FONSECA

A n t ó n i o M a n u e l M a r tin s

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


JUNTA NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
Título - LÓGICA E ONTOLOGIA EM PEDRO DA FONSECA

Autor - A ntónio M anuel Martins

Edição - Fundação Calouste G ulbenkian


Junta N acional de I nvestigação Científica e T ecnológica

Tiragem: 1 000 exemplares

Composição, impressão e acabamento - António Coelho Dias, S.A.

Distribuição - D inalivro • A udil

q Fundação Calouste Gulbenkian


Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica

Depósito Legal n2 76 169/94

ISBN 972-31-0631-0

Junho de 1994
NOTA PREVIA

Este trabalho corresponde, com ligeiras alterações, ao texto da


dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra em Fevereiro de 1991 com o mesmo título.
Cumpre-me fo rm u la r um agradecimento muito especial ao Prof.
Doutor M iguel Baptista Pereira sob cuja orientação este trabalho f o i
realizado. A o Prof. Dr. Lorenz Bruno Puntel, da Universidade de
Munique, devo um bom acolhimento e ambiente de trabalho du­
rante a estada em M unique bem como numerosas indicações pre­
ciosas para a realização deste estudo. Escusado serã dizer que ne­
nhum deles é responsável pelas inexactidões que o presente texto
possa conter. Delas sou o único responsável.
Aproveito a oportunidade para agradecer igualmente a todos
os que me ajudaram nos longos anos de form ação, professores, am i­
gos e colegas. À fa m ília e à minha mulher em particular uma pala­
vra de agradecimento muito especial.

Coimbra, N ovem bro de 1993

António Manuel Martins


INDICE GERAL

0. Introdução ................................................................... 9
1. A obra de Fonseca ....................................................... 15
1.1 As Instituções Dialécticas e a Isagoge Filosófica .......... 16
1.2 Os Comentários à Metafísica de Aristóteles ................. 22
1. 2. 1 O proémio dos CMA ..................................................... 28
1. 2. 2 Texto, tradução e ‘explanatio’ ......................................... 33
1. 2. 3 As quaestiones............................................................... 35
1.3 A metafísica como filosofia prim eira............................ 39
1. 4 Lógica e filosofia primeira ............................................ 46
1. 4. 1 As “quaestiones” em torno da dialéctica ....................... 47
1 . 4. 2 O lugar das categorias ................................................... 56

2. Determinação do objecto da metafísica ....................... 6l


2. 1 O projecto aristotélico de uma filosofia prim eira.......... 6l
2. 2 A interpretação de Fonseca ........................................... 75
2. 3 Excursus: os significados de elp í .................................. 101
2. 4 A análise do conceito de ens em Fonseca..................... 130
2. 4. 1 A analogia entis ........................................................... 130
2. 4. 2 Conceito objectivo e conceito formal de ens. ............... l6l
2. 4. 3 O conceito de ens e a predicação essencial.................. 184

3- Essência e existência ..................................................... 191


3. 1 Introdução ..................................................................... 191
3. 2 Análise da tese de Gilson em L ’être et l ’essence ............ 194
3. 3 A posição de Fonseca face a esta controvérsia ............ 202
3. 3- 1 Reconstrução das principais teses em confronto .......... 202
3. 3. 1. 1 A tese da distinção gramatical ................................... 202
3- 3- 1. 2 A tese da distinção r e a l................................................ 209
3. 3- 1. 3 As teses intermédias ................................................... 220
3. 3. 2 A tese de Fonseca: a existência como último modo in­
trínseco da essência (distinção modal ex natura rei) 226
Transcendentais e categorias ....................................... 235
A doutrina dos transcendentais e das categorias antes
de Fonseca ............................................................... 236
Aristóteles .................................................................... 236
Plotino ......................................................................... 246
Tomás de A q u in o ........................................................ 248
Escoto e os transcendentais disjuntivos.................... 254
Ockham ....................................................................... 258
A crítica humanista dos transcendentais: L. Valia .... 262
A posição de Fonseca ................................................ 265
A determinação do dom ínio categorial e do transcen­
dental ........................................................................... 265
Os transcendentais simples ....................................... 284
Uno .............................................................................. 284
Verdadeiro ................................................................... 291
Bom ............................................................................. 311
As categorias e os transcendentais depois de Fonseca 325
A escolástica alemã pré-kantiana .............................. 325
A crítica kantiana das categorias e da filosofia trans­
cendental dos antigos ............................................ 330
Categorias e transcendentais: retrospectiva e conclusão 340

O princípio de não co n tra d ição................................ 345


A posição de Aristóteles em Met. T 3......................... 346
A interpretação de Fonseca......................................... 363

Conclusão .................................................................... 371

Bibliografia 377
INTRODUÇÃO

Com este estudo pretendemos, através de uma análise filosófica


do texto de Pedro da Fonseca, contribuir não só para o esclareci­
mento e interpretação desse mesmo texto como também para a clari­
fica çã o da problemática real nele abordada ou proposta. Neste
sentido, procuraremos concentrar a nossa atenção no rigor argu-
mentativo do texto e na definição dos conceitos chave da metafísica
de Fonseca. Contudo, antes de entrarmos na análise e discussão de
alguns temas centrais da filosofia prim eira de Fonseca, começare­
mos p o r uma breve abordagem das características mais salientes da
sua obra e de certas dificuldades de interpretação que teremos de
superar. A obra de Fonseca insere-se naquele movimento de restau­
ração da filosofia de inspiração aristotélica e escolástica que teve
p o r centros principais, na Península Ibérica, na segunda metade do
século XVI, as universidades de Coimbra e Salamanca. Portanto, se
quisermos enquadrar a obra de Fonseca no movimento geral de
ideias da época, teremos que a considerar como um expoente do
arístotelismo dominante ainda em grande parte das universidades
europeias daquele tempo designadamente em Itália. É claro que isto
corresponde a uma prim eira caracterização, necessariamente provi­
sória e vaga. De facto, os “-ismos” revelam-se, de um modo geral,
profundamente inadequados para uma compreensão exacta e dife­
renciada de qualquer obra filosófica. Assim, começam logo aqui as
dificuldades. Mesmo que acrescentemos o qualificativo “escolástico”,
para distinguir o arístotelismo de Fonseca das variantes italianas da
época, não avançamos nada no sentido de uma verdadeira carac­
terização da obra de Fonseca. Em qualquer dos casos estamos
perante termos que designam um sem número de autores que de
uma form a ou de outra comentaram, parafrasearam ou resumi­
ram obras de Aristóteles ou sintetizaram doutrinas tidas, geral-
10 INTRODUÇÃO

mente, como aristotélicas. De facto, sob esta designação ou outra


semelhante esconde-se toda uma série de posições com muitos
pontos de contacto, é certo, mas também com uma diversidade
muito m aior do que seríamos levados a supor confiando ingenua-
mente em rótulos simplistas1. Em relação a Fonseca e aos textos da
escolástica peninsular da segunda metade do séc. X V I é frequente
afirmar-se que não possuem grande originalidade e se limitam a
repetir esquemas medievais de pensamento alheando-se, assim, das
tendências verdadeiramente inovadoras da época. Este tipo de afir­
mações tem, não raro, uma forte carga ideológica. De facto, estas
afirmações são tanto mais problemáticas quanto se sustentam de
uma grande ignorância acerca da matéria em questão. O mais gra­
ve, porém, é que estes juízos sumários tendem a repetir-se indefinida
e acriticamente. É certo que não podemos prescindir totalmente de
tais esquemas classificativos sobretudo numa prim eira fase de explo­
ração do terreno. Mas não se pode pa rar aqui. Assim, um avanço
no sentido de melhor ordenar as peças do puzzle inicial só se pode
conseguir através de uma análise que desça mais ao pormenor. Isto
poderia assumir diversas formas, no caso da obra de Fonseca. Uma
das primeiras tarefas terá que se situar ao nível da recolha de dados
sobre os próprios textos de Fonseca bem como um inventário da
bibliografia secundária. Esta recolha levar-nos-ia à conclusão de
que, apesar de serem já relativamente numerosos os estudos sobre
Fonseca, sobretudo nos anos 50 e 60, ainda há muito a fa ze r a
começar pela edição de textos2. Na verdade, se já possuimos “edições

1 Para ter uma ideia, ainda que muito superficial, da quantidade de autores subsu­
midos sob a designação ‘aristotelismo’ e do muito quo está por fazer neste campo basta
consultar a bibliografia reunida por Ch. Lohr relativa ao período que vai de 1400 a 1650:
Ch. lohr, “Renaissance Latin Aristotle’s Commentaries:Authors A-B” in: Studies in the
R en a issa n ce 21 (1974)228-289; “Authors C”, R e n a issa n ce Q u a rte rly 28( 1975) 689-741;
“Authors D-F”, lb 29 (1976)714-745; “Authors G-K”, lb. ,30 (1977)681-741; “Authors L-M”,
lb, 31 ( 1978)532-603; “Authors N-Ph”, lb, 32(1979)529-581; “Authors Pi-Sm”, lb,
33(1980)623-734; “Authors So-Z”’ lb, 35(1902)184-256

2 Estamos a pensar nos numerosos artigos publicados na Revista Portu guesa de F ilo ­
sofia, entre outras, e nos trabalhos de M. B. Pereira e nos de A. A. Coxito bem como nas
edições que mencionaremos na nota seguinte. Para mais pormenores, consultar a bibliogra­
fia final e a do nosso artigo, “Fonseca, P.” , in LOGOS 11 (Lxa, 1990).
INTRODUÇÃO 11

cuidadas’ das Instituições Díalécticas e da Isagoge Filosófica jã o


mesmo não se pode dizer dos Commentarii in libros Metaphysi-
corum Aristotelis que hoje estão um pouco mais acessíveis graças a
uma reimpressão da edição de Colónia (1615), editada na
Alemanha1. P o r outro lado, sem desconhecermos e negarmos a im ­
portância e o interesse de integrarmos a obra de Fonseca no movi­
mento geral das ideias da época, na cultura do seu tempo, é nossa
convicção, no entanto, que essa tarefa exige outra complementar e
talvez mesmo prelim ina r que é a da análise filosófica dos textos
elaborados p o r Fonseca. Isto não impede que tenhamos bem pre­
sentes os limites de uma anãlise "interna ” do texto filosófico. Poderá
mesmo admitir-se que algumas questões só podem ser devidamente
esclarecidas através da integração de outro tipo de dados que ultra­
passam a simples anãlise filosófica de um texto. Contudo, porque se
trata, neste caso, de um estudo de filosofia e não de história ou so­
ciologia e p o r estarmos convencidos, p o r outro lado, de que tal anãl­
ise e reflexão sobre o texto de Fonseca é condição indispensável mes­
mo para uma análise histórica dentro do âmbito de uma verdadeira
história da cultura, damos a prim azia à interpretação filosófica
neste trabalho. Como o nosso tema gira em torno de aspectos centrais
da lógica e ontologia - entendidas aqui num sentido muito amplo e,
para já, indiferenciado - vamos debruçar-nos, principalmente, sobre
os textos dos CMA que mais nos interessam para a discussão da
problemática em causa. Mas, antes de entrarmos numa análise mais
detalhada das questões centrais do nosso tema procuraremos, num
prim eiro capítulo, fa zer alguma luz sobre a intenção filosófica que
anima a obra de Fonseca e esclarecer o estatuto não só das suas
obras como das questões abordadas. Este trabalho, aparentemente

1 Pedro da Fonseca, In s titu iç õ e s D ía lé ctica s , Introdução, estabelecimento do texto


e tradução de J. Ferreira Gomes, 2 vols Coimbra, 1964. Pedro da Fonseca, Isagoge F ilo ­
sófica. Introd, trad, notas de J. Ferreira Gomes, Coimbra, 1965. P. Fonsecae, C o m m e n -
ta rio ru m in M e ta p h y s ico ru m A ris totelis S ta g irita e Libros, Coloniae, MDCXV (reimpressão
Hildesheim, 1964). Tratando-se da edição hoje mais acessível, embora não tão acessível
quanto seria para desejar, apoiaremos o nosso trabalho no texto desta edição. Usaremos
a sigla CMA seguida da indicação do tomo e da página ou da referência ao livro e ca­
pítulo da M eta fís ica , quaestio e página. Sobre as várias edições de cada uma destas
obras ver a introdução de J. Ferreira Gomes à edição das In s titu iç õ e s D íaléctica s.
12 INTRODUÇÃO

desinteressante e supérfluo, deixa de o ser se quisermos compreender


o que é que está realmente em jogo. De outra form a, será difícil
evitar um certo tipo de confusões como, p o r exemplo, a de teimar em
considerar os CMA como uma etapa precursora do compêndio
didáctico que caracterizaria, p o r hipótese, o ensino mais moderno
da filosofia1. Dentro do tema que nos ocupa faremos uma primeira
análise das linhas gerais da compreensão do que deve ser a filosofia
prim eira de acordo com o texto de Fonseca. Ainda neste contexto de
uma aproximação global e muito genérica veremos como se articu­
lam as relações entre lógica e ontologia no texto dos CMA. No segun­
do capítulo, sob o tema da Determinação do objecto da metafísica,
começamos p o r traçar as linhas gerais do projecto aristotélico de
uma filosofia prim eira e da sua transformação no texto dos CMA. No
mesmo sentido de uma compreensão da especificidade da posição de
Fonseca se insere o Excursus sobre Os significados de eimi. Tudo isto
nos perm ite reflectir sobre o modo como Fonseca vai explicitar a sua
compreensão do tema central da sua filosofia prim eira através de
uma Análise do conceito de ser centrada no conceito de ens
commune. É precisamente através deste conceito complexo que
Fonseca vai tematizar a problemática da analogia entis, tentando
articular a diferença e a pluralidade dos entes no interior daquela
dimensão originária e última. Dada a importância que a dimensão
cognitiva e o conceito assumem na metafísica de Fonseca, a distin­
ção entre Conceito fo rm a l e conceito objectivo de ens acaba p or
assumir um papel crucial. No capítulo terceiro, Essência e existência,
depois de um confronto sumário com a interpretação de E. Gilson
deste tema analisaremos a posição de Fonseca fa ce a esta querela
secular. Finalmente, trataremos com o detalhe requerido pela impor­
tância do tema outro dos grandes núcleos da metafísica clássica, a
doutrina dos transcendentais. Mas como pretendemos realçar o nexo
entre a transcendentalidade e a universalidade que caracterizam a
filosofia prim eira de Fonseca escolhemos para tema do capítulo
quarto, Transcendentais e categorias. Também aqui a intenção de
situar melhor a compreensão inscrita no texto dos CMA, p o r um

1 Sobre este assunto ver, adiante, 1. 2. 1.


INTRODUÇÃO 13

lado, e o esforço de reflexão sobre a problemática envolvida nestes


fragmentos da tradição levaram-nos a fa ze r um breve esboço histó­
rico-crítico que começa em Aristóteles e termina em Kant. Em rigor,
a problemática do Princípio de não contradição, tal como aparece
no texto de Fonseca, insere-se, sob o ponto de vista sistemático, no
dom ínio transcendental. Se a tratamos em separado, no capítulo
quinto, é p o r uma simples questão de maior facilidade de exposição.
1. A OBRA DE FONSECA

Antes de mais, convém salientar que nos cingimos às obras fi­


losóficas impressas1. Destas, as Instituições Dialécticas e a Isagoge
Filosófica foram elaboradas com intuitos marcadamente pedagógi­
cos. Eram textos destinados aos estudantes de filosofia, designada­
mente àqueles que iam iniciar os seus estudos no C olégio das
Artes. Já o m esmo não se p od e dizer dos CMA que, com o veremos,
se destinavam a um aprofundamento das questões centrais da
filosofia. De facto, é um texto que já pressupõe muitos conheci­
mentos. D e forma alguma um texto para principiantes.
Depois de uma breve referência às Instituições Dialécticas e à
Isagoge Filosófica, analisaremos, um pouco mais em pormenor, al­
guns aspectos dos CMA. Ocupar-nos-emos daquilo a que podería­
mos chamar as partes integrantes dos CMA: texto e tradução da Me­
tafísica de Aristóteles, comentário e “quaestiones”. O objectivo
desta análise será duplo: (i) explicitar a intenção filosófica que pre­
sidiu à elaboração de cada uma das obras de Fonseca; (ii) tentar

1 Quanto aos manuscritos atribuídos por F. Stegmüller a Fonseca, ainda não há


nenhum estudo que nos permita concluir pela sua autenticidade. A análise da obra pu­
blicada impõe-se como tarefa prioritária.
16 A OBRA DE FONSECA

articular a temática desenvolvida nas “quaestiones” de m odo a p o ­


dermos definir, p elo menos provisoriamente, o lugar sistemático
das questões abordadas por Fonseca nos CMA.
Não se trata, portanto, de uma análise exaustiva de todos os
problemas de interpretação que os textos de Fonseca colocam ao
leitor interessado numa leitura filosófica da sua obra. Tudo o que
aqui se diz tem um carácter exploratório e provisório.

1. 1 /Is In stitu içõ es D ia léctica s e a Is a g o g e F ilo só fic a

É certo que estas duas obras de Fonseca foram elaboradas


com o objectivo de fornecer textos de apoio aos estudantes do Co­
légio das Artes de Coimbra e de outras instituições congéneres. Em
ordem a aproveitar as vantagens da nova tecnologia da Galáxia de
Gutenberg, Fonseca teria sido superiormente incumbido de coorde­
nar os trabalhos de uma comissão que deveria redigir um conjunto
de textos destinados aos estudantes de artes. É na sequência deste
projecto inicial fomentado, entre outros, por Jerónimo Nadai que
vão surgir, mais tarde, os vários tomos do Curso Conimbricense.
N ão é aqui o lugar de discutir a problemática da génese do Curso
Conimbricense. Porém, talvez não seja inoportuno lembrar que,
neste campo, não se poderá avançar muito para além do actual
estado das investigações sem um estudo sério e o mais com pleto
possível de todos os volum es publicados do Curso e, paralela­
mente, dos numerosos manuscritos de filosofia de Coimbra e de
Évora da segunda metade do séc. XVI. Aqui interessa-nos salientar
que Fonseca se desligou desse projecto inicial e realizou todo o
trabalho que acabou por se materializar nos CMA num sentido dife­
rente daquele em que se desenvolveria o Curso Conimbricense. O
que terá m otivado este afastamento ou distanciamento é assunto
que não cabe no âmbito deste trabalho1. De momento, apenas pre­
tendemos chamar a atenção para algumas confusões que se estabe­

1 Uma referência muito sumária a alguns destes problemas pode ler-se no nosso
artigo “Conimbricenses”, in: Logos I, Lisboa, 1989.
AS IN S T IT U IÇ Õ E S D IA L É C T IC A S 17

lecem quando nâo se atende à natureza dos textos a interpretar. N o


caso das Instituições Dialécticas, por exem plo, sem se negar o inte­
resse que possa ter a comparação com textos similares da época,
importa nâo perder de vista o objectivo perseguido pelo seu autor.
De outra forma corre-se o risco de ir à procura de algo que nâo p o ­
de estar no texto. Os prefácios, da primeira e da segunda edição,
são suficientemente claros quanto aos objectivos que presidiram à
redacção do texto das I. Dialécticas. N o prefácio da segunda edição
lança-se m esmo alguma luz sobre a génese dos CMA. A í se diz que
o m étodo de ensino da Academia Conimbricense deveria assentar
na explicação dos livros de Aristóteles e não no uso de súmulas.
Depois de se referir ao plano de imprimir os comentários ao texto
de Aristóteles, acrescenta que “se torna necessário aos professores
de dialéctica não em preender a exposição dos seus livros [de Aristó­
teles] antes de apresentarem aos alunos uma imagem esboçada de
toda a dialéctica”1. É precisamente esta “imagem esboçada”, “quasi
radio”, de toda a dialéctica que Fonseca apresenta nas suas Institui­
ções. É ele próprio que o diz: “ ...enquanto nâo escrevo os com en­
tários a Aristóteles e à Isagoge de Porfírio, ofereço estas Instituições
Dialécticas não só com o penhor da nossa fé, mas também com o
necessárias àqueles que desejam ser introduzidos nos umbrais da
filosofia“2. Sendo assim, é claro que não se pode esperar encontrar
nas Instituições Dialécticas nem o comentário ao Organon aris-
totélico nem mesmo uma tematização das questões lógicas aborda­
das. O que podem os, talvez, é entrever uma articulação muito geral
das várias partes daquilo a que Fonseca chama a dialéctica. Se esta
dialéctica segue fielmente o paradigma aristotélico ou não é tema
que se poderia discutir, noutro contexto. O facto é que ela foi com ­
preendida, não só por Fonseca com o pelos leitores das numerosas

1 “...ut praeceptoribus Dialecticae necesse sit non ante ad explicationem librorum


eius accedere quam totius Dialecticae adumbratara imaginem discipulis proponant”. Fon­
seca, I D , pref. da I a ed., 12.

2 “ínterim tamen dum commentarios in Aristotelem, Porphyriique Isagogem


conscribo, has Dialécticas Institutiones, cum ut fidei nostrae pignus, tum vero ut necessá­
rias iis offero, qui intra limina Philosophiae recipi cupiunt". Id., loc. cit..
18 A OBRA DE FONSECA

edições das Instituições Dialécticas, com o uma síntese geral preli­


m inar ao estudo dos textos lógicos do Estagirita. Aliás, é nesta mes­
ma qualidade de primeira introdução geral a toda a lógica que este
texto de Fonseca é referido no prefácio do comentário do colégio
conimbricense In uniuersam dialecticam Aristotelis1. A lógica ou
dialéctica é definida por Fonseca, numa formulação de raiz cicero-
niana, com o “ars disserendi” . Arte de discorrer que é articulada, nas
ID, em torno de três momentos principais: divisão, definição e
argumentação. Bastaria isto para perceber que não se trata nem da
partição da lógica mais corrente entre os autores da linha tomista
(segundo as três operações d o intelecto) nem de um esquema que
de algum m odo se possa fazer corresponder a qualquer pretensa
sistematização do Organon aristotélico. Daí que não faça grande
sentido falar, a propósito das Instituições Dialécticas, de um “aristo-
telismo programaticamente puro”2. Uma das críticas que por vezes
se fazem aos textos de lógica do séc. XVI é o seu pendor excessiva­
mente retórico. Trata-se da obra lógica dos humanistas e de quan­
tos por eles foram influenciados. Não vamos aqui entrar na polém i­
ca em torno da dimensão retórica da lógica e da filosofia em geral.
Para os defensores de uma certa interpretação d o projecto humanis­
ta, vistas as coisas a partir de uma análise lúcida da presente situa­
ção de crise do discurso científico e, sobretudo, d o discurso filosó­
fico, não se justificaria aquela crítica. D e facto, ela procederia de
uma aceitação acrítica de um m odelo fundamentalista da racionali­
dade científica servido por uma lógica subsuntiva de características
meramente formais. O n ovo m odelo de pensamento científico de­
senvolvido pelo humanismo italiano poder-nos-ia levar a uma rea­

1 “Ne in Topicorum et Elenchorum labyrinthos lectorem iaduceremus, summam


compendiosetexere constituimus et curiosos earum fabricarum aucupes mittere ad
Introductionem D. Petri Fonsecae e nostra Societate cuius doctrinam seu primum lac
Dialecticae suis studiosis haec instillat Academia”. C o m m e n t . C o l l . C o n i m b r i c e n s i s e S . J .
I n u n i v e r s a m d i a l e c t i c a m A r i s t o t e l i s . Coloniae, MDC, Ad Lectorem.

2 “Dieser programmatisch reine Aristotelismus verlegt sich jedoch nicht auf die
philologische Kommentierung des Textes sondern sucht das System des Organon
teilweise durch Zeitbedingte Modeworte in seinem ureigenen Sinngehalt zu erfassen...”
W. Risse, L o g i k d e r N e u z e i t I, 363-
AS IN S T IT U IÇ Õ E S D IA L É C T IC A S 19

preciação da função do discurso retórico e abrir novas perspectivas


na presente situação de crise1. A discussão da problemática vastís­
sima e com plexa envolvida nestas teses levar-nos-ia demasiado lon­
ge. Relativamente à obra de Fonseca, este estado de coisas signifi­
ca, entre outras coisas, que ela é alvo de apreciações antagónicas e
unilaterais. Para os defensores do m odelo retórico ela permanece
ainda, apesar de alguma aparência em contrário, na esfera da m en­
talidade científica tradicional sendo, portanto, dominada pelo m o­
delo euclideano de estruturação do saber. Para os outros, ele terá
ido longe demais no seu fascínio pelo m odo humanista de tratar as
questões de lógica. Neste caso, a crítica começa log o ao nível da
preferência que Fonseca manifesta p elo termo dialéctica. Esta o p ­
ção terminológica é interpretada, na m elhor das hipóteses, com b e­
nevolência, com o uma concessão ao gosto do tempo, a uma moda.
N ão cremos que o uso do termo dialéctica se possa explicar por
uma mera concessão, fácil, à terminologia em voga na época. Em­
bora não desejemos entrar aqui nesta polémica, não podem os dei­
xar de lembrar o papel importante que a dialéctica desempenha, in­
dependentem ente do que ela possa significar em cada caso, não só

1 Veja-se, neste contexto, o diagnóstico de E. Grassi: “When we look at today’s


scientific panorama, philosophy hardly appears still to play a role, and rhetorical speech is
only recognized outside the framework of scientific discourse as the superficial art of
persuasion. The metaphysical claims and aims of philosophy are rejected or relegated to
the periphery of scientific concerns. The speculative tradition has petrified and metaphysics
leads a sad existence in the bureaucratically prescribed courses of university curriculums.
Logic, structuralism, formal semiotic and - not the least - sociology add to the critique and
rejection of this tradition. It is not our task here to go into this matter. But let it be
remmembered that it is only within the limits of human communication and the tasks
that arise from it that the problems of philosophy and the function of rhetoric can be
discussed. Therefore we ask if, on the basis of a new interpretation of rhetoric and its
function, philosophy itself can receive an unexpected meaning, and if so, what tradition
can be referred to as our starting point ?” E. Grassi, “Can Rhetoric provide a new basis for
philosophizing? The humanist tradition”, in: P h ilo sop h y a n d R h e to ric 11 (1978) 1. Para que
não restem dúvidas quanto ao alcance deste modelo de inspiração humanista e à inevitável
ruptura com o modelo fúndamentalista de tipo euclideano, E. Grassi explicita, assim, o
sentido daquele projecto: “The humanist tradition denies the primacy of logic and its
language. It takes rhetoric as the starting point for philosophizing and attains a new un­
derstanding of scientific thought which is no longer identified with derivations from univer­
sal and necessary premises. It breaks with the mathematical ideal of knowledge”. Id., ib., 5.
20 A OBRA DE FONSECA

na obra de Platão com o na de Aristóteles. Podem os m esmo admitir


que, na história da filosofia, depois de Platão e de Aristóteles, a
dialéctica só vai ser repensada, novamente, de forma notável, por
Hegel. Neste sentido, poderíamos dizer que ao uso do termo dialé­
ctica, em Fonseca e nos seus contemporâneos, não corresponde
uma consciência profunda do alcance da dialéctica enquanto disci­
plina programática fundamental. Por outro lado, convém não es­
quecer que a perplexidade ou a rejeição impensada são, ainda
hoje, a nota dominante quando se trata de abordar este tema.
Assim, a abordagem de Fonseca, neste ponto, não é mais superfi­
cial do que a grande maioria das que ainda hoje aparecem. De
qualquer forma, podem os dizer que o esquema de construção das
Instituições Dialécticas está mais próxim o das fontes da lógica, tal
com o ela se desenvolveu na Academia Antiga, d o que muitos ma­
nuais posteriores. A discussão das questões gerais sobre a natureza
da lógica e das suas relações com outras ciências, designadamente
com a metafísica, surge nos CMA. As primeiras quatro “quaestio-
nes”, inseridas no final de Metafísica II, 3, abordam precisamente
este conjunto de problemas. A í se pergunta se a dialéctica é ciência
ou não, se é ciência contemplativa ou prática, se é parte da filosofia
ou apenas instrumento (organon) e, finalmente, se é necessária
para a compreensão das outras ciências. Estamos perante tópicos
muito discutidos na tradição. Fonseca procura reexaminá-los a
partir da concepção de lógica já implícita nas Instituições Dialécti­
cas. Reconstruir as linhas de força dessa lógica, em termos estrita­
mente lógicos, é uma tarefa que ainda está por realizar e que exigi­
ria uma monografia à parte. O interesse dominante dos estudos até
agora realizados tem sido de ordem histórica. Por exem plo, E. J.
Ashworth refere-se à problemática central dos paradoxos da impli­
cação estrita em Fonseca1. Depois de referir que eles aparecem no
texto de Fonseca apenas de uma forma indirecta, limita-se a situar a
opção de Fonseca na tradição m edieval tardia. Assim, diz-se que
Fonseca terá rejeitado a tradição de Buridano e Marsílio de Inghen

1 E. J. Ashworth, “Traditional logic”, in Ch. Schmidt (Ed.), The C a m b rid g e H is tory


Cambridge, 1988, 168.
o f R en a issa n ce Ph ilosophy,
AS IN S T IT U IÇ Õ E S D IA L É C n C A S 21

que aceitava os referidos paradoxos com o consequências for­


malmente válidas seguindo a linha da tradição inglesa do séc. XIV
da Lógica Oxoniensis, partilhada igualmente por Paulus Venetus,
que lhes reconhecia apenas validade material1. Um estudo da
problemática das modalidades na obra de Fonseca é um impera­
tivo, apesar das dificuldades de uma tarefa deste tipo. Contudo, não
entramos nesta área no nosso trabalho por considerarmos prioritá­
rio o esclarecimento das categorias fundamentais da filosofia pri­
meira de Fonseca. Assim, a problemática da lógica aparece apenas
no seu sentido mais originário e mais amplo na medida em que se
entrecruza com a questão central da própria filosofia primeira.
Acresce que aquele estudo da problemática lógica em Fonseca teria
de ser precedido de outro, porventura mais difícil de realizar, que
procurasse uma clarificação a partir da problemática lógica contem­
porânea tendo em conta, entre muitas outras coisas, os desenvolvi­
mentos mais recentes da investigação no dom ínio das modalidades
e dos condicionais.
O texto das Instituições Dialécticas corporiza, de algum modo,
determinada compreensão da lógica, mas apenas de uma forma in­
cipiente. As múltiplas e breves referências à tradição nem sempre
ajudam numa primeira leitura2.

1 Idem, ib., 169. A discussão mais recente sobre os paradoxos da implicação estrita
está ligada à inclusão dos teoremas TIO e T i l nos sistemas de Lewis, designadamente no
sistema S5. De facto, nos P r i n c i p i a M a t h e m a t i c a , a implicação é entendida como uma re­
lação veritativo-funcional entre P e Q que se verifica sempre que, de facto, não é o caso
que P é verdadeiro e Q é falso. Em Lewis trata-se de uma relação entre P e Q quando
não é possível que P seja verdadeiro e Q falso. A polémica, de facto, remonta ao séc IV
A.C. quando se confrontaram as teses de Diodorus Cronus e de Filon de Mégara. Cf. J.
Vuillemin, N é c e s s i t é o u c o n t i n g e n c e . L ’a p o r i e d e D i o d o r e e t l e s s y s t è m e s p h i l o s o p h i q u e s .
Paris, 1984. Desde então se opunham duas interpretações diferentes da relação de impli­
cação, uma interpretação meramente veritativo-funcional e uma interpretação modal. A
questão de fundo tem que ver com a própria interpretação da lógica. Não se trata de
negar a legitimidade e a operacionalidade da lógica das funções de verdade. O que se
contesta é a redução de toda a lógica àquele fragmento da lógica que não se vê como
possa fornecer meios para uma justificação filosoficamente satisfatória das noções centrais
de validade e de derivação.
2 Escusado será dizer que os textos e autores não mencionados nem sempre são
os menos importantes para uma adequada compreensão de uma obra. Sobre a proble-
22 A OBRA DE FONSECA

A Isagoge Filosófica é um pequeno opúsculo publicado em


Lisboa em 1591. Aliás, esta foi a única edição autónoma deste texto,
uma vez que, desde então, só foi publicado juntamente com as
Instituições Dialécticas. É um texto tardio de Fonseca e que não
oferece qualquer novidade sob o ponto de vista temático relativa­
mente aos textos anteriormente publicados por Fonseca. A julgar­
mos pelas palavras de Fonseca, no proém io, o seu opúsculo deve­
ria substituir, no contexto do curriculum de filosofia então vigente,
a Isagoge de Porfírio. Também aqui encontramos, mais uma vez,
um desencontro com o projecto levado a cabo pelos autores do
Curso Conimbricense. D e facto, alguns anos mais tarde, o volum e
daquele Curso In uniuersam dialecticam Aristotelis inclui, depois
das seis “quaestiones” do proém io e antes do texto e comentário
das Categorias, um extenso comentário à Isagoge de Porfírio. O tex­
to do Conimbricense não explica a não aceitação do opúsculo de
Fonseca. A resposta poderá estar ligada a divergências de opinião
não frontalmente assumidas em virtude da posição de relevo e
prestígio da figura de Fonseca mas, por outro lado, suficientemente
fortes para levarem a uma efectiva contestação da sua obra.

1. 2 O s C o m en tá rio s à M eta fís ic a d e A ristóteles

Esta é, sem dúvida, a obra de Fonseca com mais interesse do


ponto de vista filosófico. Mas é, simultaneamente, a que põe mais
problemas de interpretação não só pela densidade temática com o
pela sua estrutura com plexa e, em certo sentido, híbrida. Dizemos
híbrida porque, de facto, os CMA integram géneros que não é

mática central do método da filosofia em Fonseca e designadamente no que diz respeito


às In s titu iç õ e s D ia lé c tic a s e sua relação, nesta perspectiva, com os CM A, ver M. B. Perei­
ra, S e r e Pessoa. P e d ro d a F onseca . I. O m é to d o d a filo s o fia . Coimbra, 1967, 278-361. Cf.
também A. A. Coxito, “Método e ensino em Pedro da Fonseca e nos Conimbricenses”, in:
R. P . F. 36 (1980) 88-107; Id.,” Pedro da Fonseca: a lógica tópica”, in: R. P . F. 38 (1982)
450-9; Id., “Aspectos renascentistas da obra de Pedro da Fonseca”, in: A in tr o d u ç ã o da
a rte d a R en a s cen ça n a P e n ín s u la Ib é ric a . A cta s d o S im pósio In te r n a c io n a l I V C e n te n á rio
d a M o r te d e J o ã o d e R u ã o, Coimbra, 1981, 195-222.
OS C O M E N T Á R IO S Á M E T A F ÍS IC A 23

corrente encontrarem-se reunidos numa mesma obra. Assim, o tex­


to dos C om entários à M etafísica de Aristóteles apresenta-se-nos com
quatro níveis ou componentes principais: (1 ) estabelecimento do
texto grego da M etafísica de Aristóteles; (2 ) versão latina deste tex­
to; (3 ) explicação do texto aristotélico; (4 ) finalmente, as “quaestio-
nes” onde já não está em causa, primariamente, uma reprodução
fiel do texto d o Estagirita ou do sentido do seu texto, mas antes a
discussão da própria temática da metafísica.
Cada um destes quatro níveis ou componentes é suficiente­
mente com plexo para merecer uma análise atenta e pormenorizada.
Por outro lado, talvez não seja descabido perguntar-nos pela razão
de ser desta síntese algo barroca de géneros tão diferentes sob o tí­
tulo de “Commentarii”. A pergunta parece justificar-se tanto mais
quanto é verdade que Fonseca se revela, noutras obras, com o um
autor dotado de uma extraordinária capacidade de síntese e de
sistematização. Sendo assim, é pouco plausível que o facto de não
ter escrito exactamente um ‘com pêndio’ ou tratado sobre a metafí­
sica ou filosofia primeira se deva a uma incapacidade sua. Se o não
fez foi porque, com o diz na “admonitio lectoris” do primeiro tomo
dos CMA, o objectivo que se propunha alcançar era diferente1.
Subjacente a todo o projecto dos CMA está a ideia de que o
estudo sério da problemática metafísica tem que passar, necessaria­
mente, pela mediação do texto aristotélico. Neste sentido, a leitura
do texto aristotélico não poderia ser substituída por qualquer outro
texto, independentemente do género e qualidade desse texto. O
pressuposto de Fonseca implica que aquela leitura fundamental dos
escritos metafísicos do Estagirita pode, e talvez deva mesmo, ser
completada por outras no sentido de corrigir uma ou outra opinião
e em ordem a um aprofundamento dos temas abordados. Não obs­
tante, o confronto directo com o texto aristotélico é tido com o mo-

1 “Nam etsi facilius nobis foret res ipsas per se seorsum tractare et multis etiam
fortasse gratius; idcirco tarnen ea scribendi rationem secuti non sumus quod nescio quo
pacto Philosophiae studiosos a lectione Aristotelis auertat, quem tarnen qui familiärem
non habet, haud magnos unquam in Philosophiae progressus faciat”. Fonseca, C M A I,
Admonitio Lectoris.
24 A OBRA DE FONSECA

m e n to in e lim in á v e l d a g e n u ín a r e fle x ã o m eta física . É n este p ressu ­


p o s to q u e radica a ra z ã o p rin c ip a l q u e le v o u F o n s e c a a in te gra r
num a m e sm a o b ra os q u a tro e le m e n to s a cim a re fe rid o s . D aí o
c u id a d o p o s to n ã o s ó na e x p lic a ç ã o d o s e n tid o d o te x to d a Meta­
física, c o m o ta m b é m n o e s ta b e le c im e n to c rític o d o te x to o rig in a l
g r e g o e na tra d u çã o latina. L o g o aqu i, n o p o n to d e partida, se n os
d e p a ra u m a d ife re n ç a im p o rta n te re la tiv a m e n te às Disputationes
Metaphysicae d e Suárez. Estas a ssen tam n u m a o r d e n a ç ã o sistem á­
tica independente d o te x to a risto télico . É c e rto q u e S u árez a p re ­
senta, n o in íc io d a sua o b ra , u m b r e v e re s u m o d o s p rin cip a is tem as
da M etafísica d e A ristó teles. Im p o rta n te é o fa c to d e o te x to aristo­
té lic o ter p e r d id o para S u árez o v a lo r d e re fe rê n c ia sem in a l in co n -
to r n á v e l q u e ain d a tinha e m F o n seca . Is to te m c o n s e q u ê n c ia s im ­
p o rta n tes a o n ív e l d a p ró p ria c o m p r e e n s ã o d o p r o je c to d e um a
filo s o fia p rim eira. A q u e le v ín c u lo a o te x to d o s escritos d a M eta­
física e x p lic a , e m g r a n d e p a rte p e lo m e n o s , a d is p o s iç ã o d o s CMA.
E m rigor, ta lv e z n ã o se p o ssa d iz e r q u e as “q u a e s tio n e s ” d o s CMA
d e F o n s e c a esteja m d isp osta s n u m a o r d e m m e n o s sistem ática q u e
as Disputationes d e Suárez. D e fa cto , as “q u a e s tio n e s ” d o te x to d e
F o n seca , d e a c o r d o c o m a in te n ç ã o filo s ó fic a q u e p re s id iu à c o n s ­
tru çã o d e to d a a o b ra , s ã o in sep a rá ve is d o te x to da Metafísica. D a í
q u e o p r o je c to o u su g e s tã o d e sep ara r as “q u a e s tio n e s ” das outras
c o m p o n e n te s d o s CMA e m o r d e m a m ostra r a sua a rticu la çã o siste­
m ática, a lé m d e se a p re sen ta r p r o b le m á tic o q u a n to à sua e x e c u ç ã o ,
seja c la ra m en te c o n trá rio à in te n ç ã o filo s ó fic a d e F o n seca . Esta é a
ra zã o p e la q u a l n ã o p o d e m o s p re s c in d ir d a re fe rê n c ia à Metafísica
d e A ris tó te le s n o n o s s o trab alh o, a p e s a r d e o n o s s o o b je c t iv o p ri­
m á rio n ã o ser a a n á lise d o te x to a ris to té lic o n e m s e q u e r o e stu d o
d e F o n seca na sua q u a lid a d e d e in té rp re te d o Estagirita. D e fa cto ,
se p r e te n d e s s e m o s lim itar-n os, e x c lu s iv a m e n te , a o c o n te ú d o das
“q u a e s tio n e s ” , para a lé m d e d e p a ra rm o s c o m g ra v e s d ific u ld a d e s d e
in te rp reta ç ã o , n ã o c o n s e g u iría m o s e x p lic ita r d e fo rm a m in im a m e n te
satisfatória a in te n ç ã o p ro g ra m á tic a d e F o n seca . Is to n ã o sign ifica,
d e m o d o n en h u m , q u e n ã o se p o ssa fa z e r u m a a n á lise p a rc e la r d e
ca d a u m a das c o m p o n e n te s d o s CMA o u m e s m o d e ca d a u m a d ela s
e m particular. O e s tu d o q u e p r e te n d e m o s re a liza r é q u e te m q u e
v e r c o m a m a n eira c o m o F o n s e c a c o m p r e e n d e o s tem as n u clea res
OS C O M E N T Á R IO S Á M E T A F ÍS IC A 25

da reflexão ontológica, não podendo, por isso, dispensar a referên­


cia a todos os elementos que determinam aquela compreensão.
Não podem os esquecer, neste contexto, os problemas que o
próprio texto dos CMA nos coloca, uma vez que não dispomos de
uma edição crítica. Como se sabe, o primeiro tom o foi publicado em
1577 e o segundo em 1589, ambos em Roma. Esta foi a parte dos
CMA publicada em vida de Fonseca e a que teve várias edições, na
Europa, com repercussão não só entre os meios católicos sob a in­
fluência do ensino dos jesuítas com o entre a escolástica luterana dos
finais do séc. XVI e princípios do séc. X V II1. Com o veremos, neles
são já abordados os temas nucleares da metafísica: objecto e m étodo

1 Sobre as edições dos C M A ver Pedro da Fonseca, In s titu içõ e s D ialéctica s,


Coimbra, 1964, L-LVII. Sobre a difusão dos C o m e n tá rio s á M e ta fís ica de Aristóteles entre
os autores da chamada escolástica luterana alemã do séc. XVII, ver M. Wundt, D ie
D e u ts c h e S chu lm eta physik des 17. Jah rh u n d erts , Tübingen, 1939, XIV, 40-41, 46-49, 62-
-63, 66-69, 192-195, 290 ss. Sem pretendermos discutir aqui, em pormenor, as afirmações
de M. Wundt não podemos deixar de fazer duas breves observações. A primeira refere-
-se à questão da influência da obra de Fonseca. De facto, é bastante claro, até pela sim­
ples amostra das edições que ainda hoje se conservam nas bibliotecas alemãs, que os
C M A foram conhecidos nos principais centros universitários alemães em que dominava a
Reforma. Esquece-se, muitas vezes, que o tomo I dos C M A já circulava na Europa cerca
de vinte anos antes da publicação das D is p u ta tio n e s M eta p h y s ica e de Suárez (Salamanca,
1597). De facto, Wundt é um dos poucos autores que chama a atenção para este facto
mas não o explorou nas suas investigações. É certo que esta questão das influências é
extremamente problemática dado que na história do pensamento elas não são fáceis de
documentar e de avaliar. Contudo, dada a unilateralidade das afirmações que se fazem
neste domínio, não será demais sublinhar que o primeiro tomo dos C M A (Roma,1577)
esteve presente nos meios universitários alemães, entre outros, durante um período de
duas décadas sem qualquer concorrência da obra de Suárez. Como o nosso trabalho
mostrará, os temas abordados em C M A I não têm nada de marginal ou meramente intro­
dutório. Aí se encontram já plenamente articuladas as teses centrais da metafísica. A se­
gunda observação diz respeito à forma como Wundt interpreta alguns aspectos dos CMA.
Sobre a problemática do conceito de metafísica e sobre os transcendentais teremos
ocasião de nos pronunciar nos capítulos 2 e 4 do nosso trabalho. Aqui desejaríamos ape­
nas salientar que Wundt é um dos autores que incorre no erro de considerar os C M A um
mero comentário ou ampliação do texto aristotélico que, por vezes (excepcionalmente),
vai além da letra da M eta fís ica . Cita, neste contexto, as “quaestiones” sobre os universais.
E acrescenta, na linha de uma tese já conhecida, “In solchen Darlegungen ist er selber
schon durchaus auf dem Wege zum selbständigen Lehrbuch”. M.Wundt, op. cit., 67.
Podemos discordar do projecto de Fonseca, formular mesmo um juízo negativo sobre o
resultado final da sua obra, mas o que não podemos é desconhecer os objectivos espe­
cíficos que se propunha atingir e os meios usados. Falar assim é ignorar a especificidade
do texto dos C M A, bem como o seu conteúdo.
26 A OBRA DE FONSECA

da metafísica, a doutrina d o ser e das suas “passiones” vulgarmente


conhecidas pela designação de transcendentais e as categorias.
O terceiro tom o dos CMA só fo i publicado em 1604, em Évora,
cinco anos depois da morte de Fonseca. O quarto tomo, muito mais
pequeno que os restantes, só foi editado pela primeira v e z em
l6 l2 . Nas edições posteriores aparece juntamente com o terceiro
tomo. Estes dois tomos dos CMA, por serem póstumos, põem
problemas especiais sob o ponto de vista da crítica textual que só
poderão ser esclarecidos no âmbito de uma investigação minuciosa
em ordem a uma edição crítica. O terceiro tom o mantém ainda o
mesmo ritmo de desenvolvim ento temático dos anteriores. Já não
se pode dizer o mesmo do último tom o que coloca, neste sentido,
mais problemas de interpretação. N ão só desaparecem totalmente
as “quaestiones”, como, mais tarde, a própria “explanatio” : os dois
últimos livros da M etafísica aparecem apenas com o texto grego e a
tradução latina sem qualquer comentário ou justificação de tal
facto. A primeira impressão é a de que se trata, de facto, de um tra­
balho inacabado. Por outro lado, não deixa de ser curioso que, a
partir de 0 (IX ), não surja mais nenhuma “quaestio” . Também não é
menos digno de nota que sejam apenas os livros M e N a aparece­
rem reduzidos ao texto grego e versão latina. Apesar de tudo, Met.
A (X II) é amplamente comentado. De facto, a “explanatio” de A
não parece ter nada de inacabado. Tudo isto nos poderia levar a
admitir outra hipótese sobre a verdadeira razão de ser deste estado
de coisas. Talvez estejamos apenas perante uma consequência prá­
tica da visão de conjunto que Fonseca tem da M etafísica. Relativa­
mente aos livros M e N, parece claro que Fonseca considera a crí­
tica aristotélica da doutrina académica das formas e dos números
uma controvérsia ultrapassada e sem qualquer relevância sob o
ponto de vista filosófico. Quem tivesse alguma curiosidade em sa­
ber algo sobre essa disputa de outros tempos podê-la-ia satisfazer
através de uma simples leitura do texto que, na opinião de Fon­
seca, é suficientemente claro. Daí não haver qualquer necessidade
de um comentário a um texto que se limita àquele relato1. A ausên­

1 “Denique in 13 et 14 lib. disputat contra Platonem ad euertendas Ideas et mathe-


OS C O M E N T Á R IO S Á M E T A F ÍS IC A 27

cia de “quaestiones” no contexto do livro A é, de facto, estranha,


pelo menos à primeira vista. Neste caso, só depois de analisada
toda a obra de Fonseca e de estudada a documentação relevante
ainda existente se poderia, eventualmente, chegar a uma explicação
mais plausível. A o nível da análise interna da obra resta apenas a
possibilidade de encontrar uma justificação teórica para a elimina­
ção da filosofia primeira daquela problemática teológica habitual­
mente associada a Met. A . Dentro desta ordem de ideias, não deixa
de ser curioso que nos CMA não apareça uma única “quaestio” que
aborde directamente e “ex professo” a problemática das chamadas
provas racionais da existência de Deus. Trata-se de um tópico já
clássico na escolástica m edieval e que acabaria por formar o núcleo
daquela disciplina filosófica que, mais tarde, adquiriu certa autono­
mia, pelo menos curricular, relativamente à metafísica, vulgarmente
conhecida p elo nom e de teodiceia ou teologia natural. Isto é tanto
mais estranho quanto Fonseca se propõe, explicitamente, nos CMA,
defender a fé ortodoxa “ab Ethnicorum calumnia”1. D e facto, abor­
da, de passagem, o m odo humano de conhecer e falar de Deus,
coloca uma série de questões de origem marcadamente teológica,
mas a existência de Deus enquanto problema ou interrogação a re­
solver racionalmente é coisa que não surge na obra de Fonseca.
Uma explicação possível deste facto poderia, eventualmente, en-
contrar-se na sua concepção peculiar do objecto da metafísica que
não permitiria que tal pergunta surgisse, pura e simplesmente, no
seu horizonte. A questão é com plexa e tem que ficar, para já, em
aberto. Contudo, podem os adiantar que Fonseca não chegou, de
facto, a acabar a sua metafísica, tal com o tinha planeado2.
Antes de entrarmos numa análise sumária dos quatro elem en­
tos dos Com entários à M etafísica, acima mencionados, não pode-

matica separata, quae ab illo inducta sunt: quae disputado cum a multis saeculis parum
utilitas afferat et ex dictis utcumque intelligi possit, fere ab huius operis enarratoribus
praetermittitur”. Fonseca, C M A I, col.36.

1 Fonseca, CMA I, Admonitio Lectoris.

2 Sobre este assunto ver a análise e conclusões do nosso estudo, “A metafísica


inacabada de Pedro da Fonseca”, in: R evista P ortu g u e s a d e F ilo s o fia 47 (1991) 517-534.
28 A OBRA DE FONSECA

mos deixar de fazer algumas considerações breves sobre o proém io


com que Fonseca abre o primeiro tom o dos CMA.

1. 2. 1 O Proém io dos C M A

Neste pequeno texto preliminar, Fonseca começa por fazer um


breve resumo dos principais passos da vida de Aristóteles. Num se­
gundo capítulo aborda as questões postas pelas obras do Estagirita.
Partindo das fontes doxográficas, discute a célebre classificação dos
escritos aristotélicos em exotéricos e acroamáticos. Menciona, entre
outras, as opiniões de Alberto Magno, Averróis e G. Sepúlveda
sobre esta matéria. Trata-se de uma questão que não tem um
interesse meramente histórico na medida em que está intimamente
ligada a um m odo de ver e interpretar o texto aristotélico1. Este ca­
pítulo termina com um relato da transmissão dos escritos de Aris­
tóteles que ocupa pouco mais de uma página, mas corresponde, no
essencial, à reconstituição feita pela moderna exegese aristotélica.
O resto do proém io tem mais interesse para nós porque aí se
procura justificar a escolha de Aristóteles com o pensador-mestre na
filosofia em geral e na metafísica em particular. É claro que, entre
outros factores, teve grande influência a directiva de Inácio de Loyo-
la no sentido de se seguir Aristóteles, nos estudos de filosofia, nas
escolas em que os jesuítas ensinavam. Porém, mesmo que esse te­
nha sido o m otivo determinante da opção aristotélica, não deixa de
ter interesse ver com o é que Fonseca justifica essa mesma escolha.
A análise desta justificação tem tanto mais interesse quanto é certo
que a sua concepção da metafísica não se identifica com a de outros
contemporâneos e/ou confrades seus. Já aludimos ao caso típico de
Suárez e sublinhámos a importância que tem a mediação do texto
aristotélico na própria articulação da filosofia primeira de Fonseca.

1 Esta distinção acabou por receber alguma atenção, nos nossos dias, em virtude
das investigações de W. Jaeger e das suas teses sobre a evolução do pensamento de
Aristóteles. Cf. I. Düring, A ristóteles. Heidelberg, 1966, 556-557 e W. K. C. Guthrie, A
H is to ry o f G reek P h ilo sop h y , VI. Aristotle. An encounter. Cambridge, 1981, 53-59.
OS C O M E N T Á R IO S Á M E T A F ÍS IC A 29

Na filosofia, o com o d o saber ou do perguntar são parte inte­


grante do próprio conceito de filosofia. H oje temos, talvez, mais
vincada consciência deste facto: não há um conceito de filosofia,
pré-dado, que seja aceite por todos e que possamos tomar com o
ponto de partida inquestionado e inquestionável. Um conceito de
filosofia é, por isso, sempre já uma afirmação programática que se
insere num contexto plural. Esta pluralidade de vias de acesso que
caracteriza a filosofia tem importantes reflexos no m étodo que aqui
não podem os explorar. Mas não é difícil ver a ligação entre este es­
tado de coisas e o m om ento legitimante de uma filosofia que con­
siste, normalmente, na apresentação de uma série de razões, de or­
dem diversa, que se supõe serem capazes de justificar a preferência
concedida a determinada orientação programática. É exactamente
neste sentido que o texto d o proém io é importante. Em Fonseca a
questão coloca-se já de uma forma muito contextualizada. Trata-se
de saber até que ponto o pensamento de Aristóteles oferece mais
vantagens que o de Platão, designadamente na perspectiva de uma
maior harmonia possivel com os dogmas e os essenciais da doutri­
na da Igreja. Naquela época, esta questão era, de certo m odo, pre­
mente. Na própria Universidade de Coimbra, entre os professores
de teologia, por exem plo, não faltava quem preferisse Platão, com o
mestre de filosofia. O caso mais conhecido é, sem dúvida, o de Frei
Heitor Pinto. Isto para não falar da tese mais radical que rejeitava,
liminarmente, o contributo do pensamento grego para o esclareci­
mento da revelação judaico-cristã.
Fonseca começa a sua apologia de Aristóteles, no capítulo 3
do proémio, comparando o talento do Estagirita com o de outras fi­
guras notáveis da cultura grega: Hom ero, Hipócrates, Sócrates e
Platão. Decisiva é, de facto, a comparação com Platão, uma vez
que só ele poderia competir com o Estagirita ao nível de uma obra
filosófica escrita.
Sem negar o génio filosófico de Platão, Fonseca prefere o ta­
lento aristotélico. A justificação da sua preferência está já condicio­
nada por uma determinada forma de conceber a tarefa da filosofia.
Se a filosofia, com o qualquer saber proposicional digno desse no­
me, significa construção e articulação sistemática, então, Fonseca
não tem qualquer dúvida em considerar Aristóteles o verdadeiro
30 A OBRA DE FONSECA

mestre da arte de filosofar. Platão, na sua obra, foi, talvez, mais elo­
quente, mas não nos deixou articulada ou sistematizada nenhuma
parte da filosofia ou de qualquer outro ramo do saber. Pelo contrá­
rio, em Aristóteles encontramos já um trabalho de construção siste­
mática em vários domínios. Assim, Fonseca indica com o principais
campos de realização da actividade sistematizante de Aristóteles a
poética, a retórica, a filosofia da natureza e a dialéctica designada­
mente no âmbito da silogística. A propósito da silogística aristoté-
lica, Fonseca, antecipando o célebre juízo de Kant sobre a mesma,
acrescenta: “ ...ipse primus et inuenit, et ita persecutus est ut nemo
post eum quicquam quod alicuius momenti sit, adijcere potuerit”
CCMA I, 12).
Tudo isto significa, entre outras coisas, que Fonseca não tem
uma concepção aporética da filosofia nem interpreta o texto aristo-
télico nessa linha. O que não significa que a sua obra esteja isenta
de aporias como, aliás, já acontece com a de Aristóteles. Simples­
mente, esta escolha de Aristóteles por parte de Fonseca significa,
neste contexto, uma compreensão da filosofia com o saber sistemá­
tico e ordenado, um saber que pode ser ensinado e aprendido.
Mais adiante, no cap. 5 do proém io, Fonseca procura explicar
porque é que os primeiros doutores da Igreja preferiram as filoso­
fias estóica e platónica. Tudo leva a crer que as consideravam mais
próximas da visão cristã em pontos essenciais com o a moral, a
origem do mundo, a imortalidade da alma e a providência divina.
Fonseca, porém, crê poder afirmar que, não obstante a primeira im­
pressão em contrário, Platão e os estóicos estão realmente mais
afastados da posição cristã do que Aristóteles. A questão da origem
do mundo e da providência divina são as duas excepções que Fon­
seca está disposto a considerar.
Nos restantes capítulos do proém io (4, 6-8), aborda generica­
mente o conceito de filosofia em Aristóteles para depois se pronun­
ciar sobre o tema da filosofia primeira. N o último capítulo, apre­
senta a sua interpretação, em síntese, do esquema da Metafísica.
Relativamente ao objecto da metafísica, Fonseca antecipa já al­
gumas ideias chave que constituem o núcleo da “quaestio” dedi­
cada ao mesmo tema na sequência de T 1. Logo no início do cap. 6
do proém io afirma que Aristóteles se propôs tratar, na Metafísica,
OS C O M E N T Á R IO S Á M E T A F ÍS IC A 31

“do conhecim ento daquelas coisas que nem constam de matéria


nem existem na matéria e de todos os atributos que lhes são
comuns a elas e às outras coisas”1. Tem os já aqui a problemática
com plexa do ens com m u n e com o tema central da metafísica.
Sublinhe-se a importância que reveste, desde o início, a questão da
imaterialidade enquanto traço distintivo do ens qua ens e, por outro
lado, a análise das propriedades ou atributos comuns a tudo aquilo
que é com o tarefa primordial da filosofia primeira. Dentro desta
linha de orientação programática, teremos que nos interrogar, mais
adiante, sobre o sentido e alcance de doutrinas fundamentais com o
a das categorias e dos transcendentais. A temática dos transcenden­
tais é tratada por Fonseca na série de “quaestiones” em torno de G
2. A problemática das categorias é analisada por Fonseca numa lon­
ga série de “quaestiones” a A 7. É dentro deste quadro que se irá
desenvolver o nosso trabalho procurando esclarecer o sentido e al­
cance da fórmula õv fj ov enquanto tema central da metafísica. Isto
levar-nos-á, entre outras coisas, a perguntar pelo sentido da identi­
dade na diferença, pelo acontecer da pluralidade e, inevitavel­
mente, pelas categorias estruturantes do nosso pensar e dizer.
O texto do proém io mostra que Fonseca tinha consciência das
vicissitudes por que passou o texto da Metafísica até se fixar na for­
ma que hoje conhecemos. Apesar de tudo, considera-o não só g e ­
nuinamente aristotélico - independentemente de uma ou outra alte­
ração posterior - mas também dotado de uma unidade sistemática
inegável. É claro que uma afirmação deste tipo se pode prestar a
equívocos que não cabe aqui eliminar. Convém, no entanto, reter
que a interpretação sistemática que Fonseca perfilha não desconhe­
ce os problemas principais da transmissão textual. Vejamos, agora,
com o é que Fonseca com preende a articulação global dos escritos
da Metafísica tomando com o ponto de partida a síntese apresentada
no cap. 8 do proémio. Assim, teríamos o prefácio ou introdução,
constituído por Met. A 1 e 2, e o tratado de filosofia primeira que se

1 “Instituit Aristoteles tradere in hoc opere cognitione rerum earum quae nec
materia constant nec in materia existunt, omniumque attributorum quae illis cum caeteris
rebus sunt communia”. Fonseca, C M A I, 25.
32 A OBRA DE FONSECA

estenderia pelos outros escritos da M etafísica. O texto de A 3-10


teria com o objectivo refutar as opiniões dos outros filósofos sobre
as causas. Met. oc trataria do m odo de investigar a verdade. Em B o
.leitor seria confrontado com uma série de aporias e questões a
resolver nos restantes livros. D e facto, na opinião de Fonseca, a
apresentação e tematização do objecto da metafísica começaria
apenas em G. Por sua vez, À teria por fim dissipar as ambiguidades
de muitos termos usados no âmbito da filosofia primeira explicando
os vários sentidos em que podem ou devem ser usados. M et. E re­
toma a questão de r mas pressupõe já a explicação dos quatro sig­
nificados principais de ser (rò ov ) apresentada em A 7: trata-se, en­
tão, de saber qual destes quatro significados é determinante na
compreensão do tema da filosofia primeira. Z analisaria o ser real e
p e r se com especial relevo para a substância material; H apresentaria
os princípios constitutivos deste tipo de substância: matéria e forma.
Em 0 falar-se-ia do ser enquanto apreendido pelos conceitos de p o ­
tência e acto; M et. I ocupar-se-ia do uno. Em K e A 1-5, Aristóteles
repete, diz Fonseca, muito do que já escreveu nesta obra e na
Física. Na segunda parte de A (6-10) seria a vez de analisar a pro­
blemática das substâncias separadas e, principalmente, da causa pri­
meira de todas as coisas. Restam os livros M e N que Fonseca consi­
dera uma espécie de apêndice onde se pode ler o relato da crítica
aristotélica à teoria platónica das formas e dos números. Nas intro­
duções a cada um dos livros da M etafísica, Fonseca explicita um
pouco mais a articulação das diversas partes do texto. Neste capí­
tulo final do proém io trata-se apenas de dar uma ideia sumária dos
tópicos principais de m odo a fazer ressaltar a unidade do conjunto.
H oje temos uma consciência mais aguda dos problemas que o
texto da M etafísica nos coloca. Contudo, também já passaram os
tempos da euforia Jaegeriana que pensava poder resolver todas as
dificuldades ou contradições do texto da M etafísica através da
interpretação genética guiada pelo critério geral da maior ou menor
proximidade de supostas teses fundamentais do platonismo. N o seu
entusiasmo, muitos adeptos da hipótese de Jaeger nem se deram
conta de que o conceito de sistema continuava a desempenhar um
papel essencial na própria formulação daquela hipótese explicativa
do desenvolvim ento do pensamento de Aristóteles. Aparentemente
OS C O M E N T Á R IO S Á M E T A F ÍS IC A 33

rejeitava-se com todo o vigor a interpretação tradicional e a própria


ideia de que o pensamento aristotélico pudesse ser considerado
sistemático. Simplesmente, o que Jaeger fez, de facto, foi postular
uma sequência de ‘sistemas’ em vez daquilo que se tinha com o
sendo um sistema único, coeso e fechado. Não é aqui o lugar para
uma crítica mais circunstanciada da interpretação genética de W.
Jaeger. Sem pretendermos minimizar o extraordinário impulso que
os seus estudos deram à investigação da obra de Aristóteles, não
podem os deixar de reflectir sobre as razões que estão na base do
fracasso da interpretação genética. Um dos pontos fracos é, sem
dúvida, o facto de pressupor que o pensamento de Platão é uma
grandeza bem definida e fácil de determinar. De facto, a teoria das
formas aparece nestes trabalhos de Jaeger reduzida a um esquema-
tismo que pouco tem de comum com aquilo que Platão nos deixou
nos diálogos sobre a problemática das formas. Mas o verdadeiro
germ e de auto-destruição da hipótese Jaegeriana é precisamente a
adopção irreflectida do conceito de sistema que levou a uma trans­
formação das aporias e incoerências d o texto aristotélico em mero
problema de cronologia e de recom posição do texto. Apesar de ho­
je ser cada vez mais difícil encontrar, entre os leitores atentos do
texto do Estagirita, quem aceite a hipótese Jaegeriana, na sua for­
mulação original, reina ainda grande diversidade de opiniões quan­
to à interpretação dos temas nucleares do texto da M etafísica. Con­
tudo, não deixa de ser interessante notar que, ultimamente, se tem
vindo a processar uma reabilitação da interpretação sistemática ou
sistematizante, com o alguns preferem dizer, do pensameto de Aris­
tóteles e da M etafísica em particular. Estamos a pensar, entre ou­
tros, nos trabalhos de T. Irwin, G. Reale, L Routila, K. O ehler e E.
Berti. Neste sentido, poderíamos dizer que a interpretação de
Fonseca, nos seus traços essenciais, não perdeu actualidade.

1. 2. 2 Texto, tradução e “explanatio”

Com o já dissemos, cada uma destas componentes dos CMA


mereceria um estudo aprofundado e independente, até porque
cada uma delas p õ e problemas específicos.
34 A OBRA DE FONSECA

U m estu d o crítico d o te x to g r e g o e s ta b e le c id o p o r F o n seca teria,


c o m certeza, o in teresse d e n os p erm itir a valiar c o m m ais e x a c tid ã o o
seu co n trib u to n o c a m p o da transm issão e e s ta b e le c im e n to d o tex to
aristotélico. É u m tip o d e trabalh o n ecessaria m en te d e m o r a d o e q u e
re q u e re já u m c e rto grau d e e s p e c ia liz a ç ã o n o â m b ito d a crítica
textual. É tarefa q u e n ã o c a b e d e n tro d o s o b je c tiv o s d o n o ss o traba­
lho. P o r ou tro la d o , s ó d e p o is d e se possu ir um a e d iç ã o crítica d o
te x to d o s CMA teria sen tid o fa z e r este tip o d e pesqu isa e m to d a a sua
exten são. Q u a n d o m u ito, seria a lg o para realizar e m sim u ltâ n eo c o m
a p re p a ra ç ã o d e um a e d iç ã o crítica b e n e fic ia n d o , assim, d o c o n fro n to
crítico d o te x to g r e g o das várias e d iç õ e s d o s CMA.
Para a lé m d o in teresse h is tó ric o e filo ló g ic o , a re c o n s tru ç ã o d o
te x to g r e g o d a M etafísica b e m c o m o a sua v e r s ã o latina tê m q u e
ser ava lia d a s à lu z d o p a p e l d e s e m p e n h a d o p e lo te x to d o Estagirita
na p ró p ria c o m p r e e n s ã o d a tarefa d a filo s o fia p rim eira. N e s te sen ti­
d o , a tra d u çã o latina n ã o d e v e r ser c o n s id e ra d a a p en a s c o m o m e io
d e torn a r a c e s s ív e l o o rig in a l a ris to té lic o a le ito re s p o u c o v e rs a d o s
o u m e s m o d e s c o n h e c e d o r e s d a lín gu a d e H o m e r o . In d e p e n d e n te -
m e n te d esta fu n çã o , a v e r s ã o latina n ã o p o d e d e ix a r d e ser en ca ra ­
d a c o m o o p r im e ir o m o m e n to im p o rta n te d a in te rp re ta ç ã o d o te x to
a ris to té lic o e u m a ten tativa d e fix a ç ã o d e u m a te r m in o lo g ia filo s ó ­
fic a latina c a p a z d e p e rm itir u m a re c o n s tru ç ã o ex a cta d o p e n s a ­
m e n to aristo télico . N o c o n te x to d o n o s s o estu d o , n ã o n o s interessa
d ire c ta m e n te a a n álise d a tra d u çã o d e F o n seca . Esta in teressa-n os
s o b re tu d o e n q u a n to p r im e ir o m o m e n to d a h e rm e n ê u tic a da o b ra
d e A ris tó te le s q u e p o d e ser m u ito útil e m d e te r m in a d o s casos para
o e s c la r e c im e n to d o a p a ra to c o n c e p tu a l d a filo s o fia prim eira. E,
c la ro q u e a tra d u çã o latina d e F o n s e c a p o d e r ia a in d a ser estu d ad a
s o b m u itos o u tro s p o n to s d e vista q u e v ã o d e s d e a te o ria d a g ra m á ­
tica latina p o r e la p ressu p o sta até à in o v a ç ã o lin gu ística, para n ã o
fa la rm o s já d o e s tu d o c o m p a r a tiv o c o m outras v e r s õ e s latinas d o
te x to da Metafísica. D e n tro d e s te c o n te x to , teria particu lar in teresse
o e s tu d o d a tra d u çã o d e J. P e ro n iu s e d o seu o p ú s c u lo De optimo
genere interpretandi. M as, n este c a m p o , a p rim eira tarefa seria a d e
estu d ar o te x to d e F o n s e c a nas suas d ive rsa s c o m p o n e n te s d e m o ­
d o a q u e a sua o b ra n ã o seja e s q u e c id a , c o m o a c o n te c e tantas
OS C O M E N T Á R IO S Á M E T A F ÍS IC A
35

v e z e s , n u m a h istória d a h e rm e n ê u tic a d o te x to a ris to té lic o 1 . N esta


m e sm a p e r s p e c tiv a d e v e r ia ser analisada a terc eira c o m p o n e n te d o s
CM A, a explanatio. Trata-se, c o m o se sabe, d e u m b r e v e c o m e n tá ­
rio e x p lic a tiv o d o te x to e m q u e se p rocu ra, p o r u m la d o , fa z e r
ressaltar o s e n tid o g lo b a l d o tre c h o e m causa e, p o r o u tro, e s c la re ­
c e r a q u e le s p o n to s q u e a tra d içã o in te rp reta tiva c o n s id e ra v a m ais
p o lé m ic o s . C o m o já re fe rim o s , a explanatio a c o m p a n h a a e d iç ã o e
tra d u çã o d e to d o s o s liv ro s d a M etafísica c o m a e x c e p ç ã o d o s
livro s M e N.

1. 2. 3 As Q u a e stio n e s

Este é, s e m d ú v id a , o n ív e l e m q u e F o n s e c a le v a m ais lo n g e a
te m a tiza ç ã o d a p r o b le m á tic a m e ta fís ica e, p o r isso m e s m o , o lu ga r
p r iv ile g ia d o para r e c o n h e c e r a sua p ró p ria p o s iç ã o filo s ó fic a . A
quaestio é u m a fo rm a literária q u e se e n c o n tra c o m fre q u ê n c ia e m
o b ra s filo s ó fic a s d a é p o c a e q u e terá tid o , p o rve n tu ra , a sua o r ig e m
na disp u ta escolar. S u p õ e já u m c e r to grau d e fa m ilia rid a d e c o m o s
tem as a a b o rd a r e te m c o m o característica g e n é r ic a a c o n tra p o s iç ã o
d e várias teses re la tiv a m e n te à q u e s tã o e m d e b a te . F o n s e c a in tegra-
se nesta tra d içã o m as s e m s e g u ir u m e s q u e m a r íg id o e u n ifo rm e.
A ssim , ca d a quaestio in clu i d ive rsa s s e c ç õ e s e m n ú m e ro va riá ve l.
Em te rm o s q u a n tita tivo s p o d e r ía m o s d iz e r q u e , nas c e n to e n o v e n ta

1 Se é certo que D. Ross, por exemplo, cita a obra de Fonseca na bibliografia da


sua edição da M e ta fís ica de Aristóteles, não é menos verdade que os estudiosos do aris-
totelismo do renascimento continuaram a desconhecer a obra de Fonseca. Basta citarmos
dois casos flagrantes. Na segunda edição da bibliografia de edições de Aristóteles de 1501
a 1600, editada por F. E. Cranz e actualizada por C. B. Schmidt nem sequer aparece o no­
me de Fonseca no índice dos editores, tradutores e comentadores de Aristóteles. Na sec­
ção correspondente à M e ta fís ica , o texto de Fonseca não é referido nem em (a.) - texto
grego - nem em (b.) - traduções latinas - e nem sequer em (d.) - comentários, pará­
frases, etc. - aparecendo aí, sob o número 7, a referência ao Curso Conimbricense que,
como se sabe, não inclui qualquer edição, tradução, comentário ou epitome da M e ta fís i­
ca. F. E. Cranz/C. B. Schmidt, A B ib lio g ra p h y o f A ris to tle ’s E d itio n s . 1501-1600. Baden
Baden, (2a ed.) 1984, 180-183, 225 ss. A mesma ausência inexplicável se pode constatar
cm C. B. Schmidt, A ris to tle a n d th e R en aissa nce, Cambridge, Harvard U. P., 1983.
36 A OBRA DE FONSECA

quaestiones que se distribuem pelos tomos dos C M A, a maior parte


delas contém entre duas e cinco secções. D e facto, as quaestiones
com mais de dez secções são em número bastante reduzido1. O
mais importante é o facto de Fonseca não seguir nenhum esquema
uniforme pré-estabelecido para estruturar as quaestiones. D e um
m odo geral, podem os dizer que ele procura, a propósito de cada
questão, discutir as opiniões mais conhecidas nas escolas sobre o
tema em debate. Há que reconhecer que, para o leitor moderno, a
estratégia de argumentação nem sempre é clara. Ora se começa
pela explicação dos termos, ora com uma série de argumentos a
favor de uma tese que vai ser rejeitada sem se ver lo g o qual é a
tese que vai ser defendida e em que sentido. A tese de Fonseca
vem introduzida, muitas vezes, através de uma breve referência do
tipo “ ...uera sententia...”, “ ... longe probabilior nos...”. Segue-se toda
uma série de argumentos em apoio da tese a justificar. Mas com o
nem sempre o leitor pode avaliar a argumentação desenvolvida em
favor da tese a adoptar, um dos pontos principais da estratégia de
Fonseca consiste precisamente na dissolução dos argumentos que
tornariam mais plausível a opinião contrária. Esta multiplicidade de
argumentos e contra-argumentos exige uma leitura atenta e minuci­
osa das quaestiones. Por outro lado, este estilo de filosofar, muito
vinculado ao exercício académico da disputa, corre o risco de não
tematizar suficientemente os seus pressupostos e não desenvolver
arquitectonicamente as várias partes integrantes d o programa filosó­
fico em que se deveriam inserir. D e facto, o texto de Fonseca per­
tence àquela categoria de textos que pressupõem um acesso directo
e imediato a toda uma série de princípios ou axiomas e, para além
disso, a existência de um vasto consenso entre os filosófos acerca
de um sem número de tópicos. Sendo assim, o que ficaria para
analisar parece reduzir-se àqueles pontos em que há divergências
mais ou menos profundas. Daqui partiria a quaestio.

1 Sob o ponto de vista meramente estatístico, distribui-se assim o número de secções


pelo número de quaestiones-. 2:20; 3:52; 4:47; 5:29; 6:9; 7:15; 8:10; 9:3; 10:1; 11:2; 12:1;
14:2; 16:1.
OS C O M E N T Á R IO S Á M E T A F ÍS IC A 37

Outra questão mais com plexa é a do carácter sistemático das


quaestiones dos CMA. A falta de nexo ou articulação que podem os
constatar ao ler o texto dos CMA e suas quaestiones não se pode
reduzir, com o alguns autores parecem querer insinuar, a uma
simples questão de género literário ou de mera disposição e orde­
nação de matérias. Isto não quer dizer que estas mesmas quaestio­
nes não pudessem ter sido apresentadas numa disposição diferen­
te. Simplesmente não se p od e esquecer a vinculação destas
quaestiones ao texto aristotélico e, sobretudo, que não é de uma
ordem ou disposição exterior que se trata, neste caso. D e facto, o
déficit de nexo sistemático, na obra de Fonseca, tem uma raiz mais
funda e está ligado a uma insuficiente problem atização e tematiza-
Ção dos conceitos fundamentais da metafísica clássica. C om o vere­
mos no decurso d o nosso estudo, este déficit está longe de ser um
exclusivo da obra de Fonseca, mas, com o é dela que parte a nossa
análise, será igualmente sobre ela que incidirá, em prim eiro lugar,
a nossa crítica. Para termos uma ideia d o m odo com o o próprio
Fonseca encarava a possibilidade de uma ordenação diferente dos
temas abordados nas quaestiones dos CMA bem com o acerca da li­
gação, p elo menos exterior, com o curriculum filosófico e teoló­
gico então vigente, seria muito interessante conhecer os índices
anunciados por Fonseca no prefácio “Philosophiae studioso” do
segundo tom o dos Com entários à M etafísica de Aristóteles1. Nesse
prefácio, anuncia-se, além de um índice alfabético das matérias
abordadas no tom o II, um segundo índice comum aos tomos I e II
no qual “seruato ordine eorum quae Philosophiae auditoribus
explicari solent, indicantur ea quae nos de eisdem rebus in hoc
opere disputamus”. E porque, segundo a intenção de Fonseca, a

Este prefácio não se encontra na edição de Colónia que temos estado a usar e a
que é mais acessível, hoje. Trata-se de um texto pequeno que nos dá algumas indicações
com interesse sobre a redacção dos C M A e a sua ligação com os planos do Curso Co-
nimbricense. Por exemplo, ai se confirma explicitamente o facto de Fonseca ter redigido
grande parte da obra em Roma: “reliquum huius operis cuius bonam partem aliquot ante
annos Romae scripsi...”. Além do mais, é claro que pelo menos o trabalho de estabeleci­
mento do texto grego da M e ta fís ica não poderia ter sido feito em Portugal, dada a ine­
xistência, entre nós, de códices do texto aristotélico. Mas o mesmo se poderia dizer da
enorme bibliografia que as q u a estion es pressupõem.
38 A OBRA DE FONSECA

filo s o fia p rim eira e x p lic ita d a nos CMA d e v e r ia ta m b é m a b o rd a r


q u e s tõ e s c o m in teresse para a te o lo g ia , h a v eria a in d a u m te rc e iro
ín d ic e e s p e c ia lm e n te d e s tin a d o a o s estu d an tes d e te o lo g ia : “F eci-
m u s item a d iu n g i tertiu m a d u su m th e o lo g o r u m , seq u u ti e x im iu m
o r d in e m partiu m su m m a e t h e o lo g ic a e D. Thom as th e o lo g o r u m
p rin cip is, ut th e o lo g ia e stu d io si e x p e d itiu s ea in u en ia n t q u a e n os
s a e p e in his libris d e t h e o lo g ic is reb u s c o m m e n ta m u r” . C o m o se sa­
b e , p o ssu ím o s, d e fa cto , ín d ic e s d e m atérias para o s três to m o s q u e
c o n tê m quaestiones. A o q u e p a re c e , o s d o is o u tro s ín d ic e s re fe rid o s
n a q u e le p r e fá c io a in d a n ã o estariam p ro n to s em 1589, data da
p u b lic a ç ã o d o s e g u n d o to m o , e d e v e r ia m ter s id o p u b lic a d o s c o m
o re sto d a o b ra , e n tã o e m fa s e a d ia n ta d a d e re d a c ç ã o . M as, d e
fa c to , o to m o III s ó v e m a ser p u b lic a d o e m É vo ra , c in c o a n os
d e p o is d a m o rte d e F o n seca . O ca rá cter in a c a b a d o d o t o m o IV p o ­
d eria, p o rve n tu ra , c o n firm a r a su speita d e q u e o s ín d ic e s m e n c io n a ­
d o s n ã o ten h a m c h e g a d o a ser c o m p o s to s . É c la ro q u e n ã o se p o d e
e x c lu ir a h ip ó te s e d e e le s te re m s id o e la b o r a d o s e m e s m o d e ain d a
se v ir a d e s c o b rir q u a lq u e r fr a g m e n to d e s s e trab alh o. C o n tu d o , teria
a in d a m ais in te ress e c o n h e c e r o tã o fa la d o re s u m o d a m e ta fís ica a
q u e F o n seca a lu d e n o m e s m o p r e fá c io . E fe c tiv a m e n te , e ss e é q u e
seria o curso d e filo s o fia e m que Fon seca d e v e r ia e x p lic a r as
m atérias “b re u ite r e t su ccin te” , d e m o d o a p o d e r ser u s a d o p e lo s
estu dan tes. T e ría m o s , e n tã o , a tal sín tese c o m a q u a l s o n h a m o b s e s ­
s iv a m e n te m u ito s crític o s d e F o n seca , e m b o r a seja d u v id o s o q u e tal
cu rso tro u x es se a lgu m a n o v id a d e o u m arca sse a lg u m p r o g re s s o real
n a v e r d a d e ir a s is tem a tiza çã o d o s p r o b le m a s e c o n c e ito s cen trais da
m etafísica. O c e r to é q u e , tu d o in d ica , F o n s e c a n u n ca c h e g o u a
re d ig ir tal cu rso s o b re a m eta física . O u tra q u e s tã o , c o m p le ta m e n te
d ife re n te , é a d e s a b e r p o r q u e é q u e o C u rso C o n im b ric e n s e n ã o
in clu i a m etafísica. U m a p rim eira re sp o sta a p o n ta ria para o fa c to d e
já e x is tire m o s C om m entarii d e F o n s e c a e as D isputationes d e Suá-
re z to rn a n d o , assim , su p érflu a u m a n o v a e x p o s iç ã o d a m etafísica. É
c la ro que um a re sp o sta d e s te tip o não satisfaz m in im a m en te.
O cu rso fo i p r o je c ta d o c o m o u m t o d o o rg â n ic o , d e a c o r d o c o m
o p la n o d e e s tu d o s v ig e n t e n o C o lé g io das A rtes. D e fa cto , n ã o
p o d e d e ix a r d e s u rp re e n d e r q u e fa lte p re c is a m e n te a m eta física
n o s v o lu m e s p u b lic a d o s d o C u rso C o n im b ric e n s e . P o r o u tro la d o ,
n e m o s Com entários à M etafísica de Aristóteles d e F o n s e c a n e m as
OS C O M E N T Á R IO S Á M E T A F ÍS IC A 39

D isputationes d e S uárez se e n q u a d ra m na estrutura g e ra l d o Curso


C o n im b ricen se. D e v e h a v e r outra e x p lic a ç ã o q u e n ã o im p orta, aqui,
in v e s tig a r1.
D e ix a n d o d e la d o o c a m p o d e q u a is q u e r p ro b le m á tic a s d o u tri­
nas n ã o escritas d e F o n seca , im p õ e -s e o e s tu d o d o te x to d o s CMA
c o m o tarefa p rioritária. Já s u b lin h á m o s o fa c to d e as quaestiones se
in serirem n o c o n ju n to d o te x to d a M etafísica. A lig a ç ã o a o te x to
a risto télico , n o rm a lm e n te , é m ais d irecta na p rim e ira d e cada g r u p o
d e quaestiones. C o n tu d o , o o b je c t iv o da n ossa a n á lise está m ais li­
g a d o a o e s c la r e c im e n to e a rticu la çã o d o s tem a s cen trais d a m e ta fí­
sica d o q u e à p ro b le m á tic a d a in te rp re ta ç ã o d o te x to a ristotélico.
F o n s e c a ap resen ta , c o m o v im o s , n o fin a l d o p r o é m io , u m e s b o ç o
m u ito e s q u e m á tic o d e u m a articu la çã o e o r d e n a ç ã o ex tern a . A e x ­
p lic ita ç ã o a d e q u a d a d a a rticu la çã o d o s tem a s cen trais d o s CMA e
d o estatu to das q u e s tõ e s a b o rd a d a s s ó será p o s s ív e l d e p o is d e um a
a n álise c u id a d o s a d o s c o n c e ito s fu n d a m en ta is d a filo s o fia d e s e n v o l­
v id a p o r F o n seca . O n o s s o tra b a lh o n ã o p r e te n d e m ais d o q u e ser
u m a ten tativa d e resp o sta a esta qu estã o.
E m b o ra n ã o p o s s a m o s d a r já u m a resp o sta ca b a l a estas q u e s ­
tões, te m o s q u e c o m e ç a r p o r u m a a p ro x im a ç ã o p r o v is ó r ia e g lo b a l.
T a l a p ro x im a ç ã o con sistirá e m e s b o ç a r o c o n c e ito g e n é r ic o d e filo ­
s o fia e m e ta fís ica c o m q u e jo g a o te x to d e F o n seca . In teressaria, a
p artir daí, situar a filo s o fia p rim eira n o c o n te x to m ais a m p lo d o s
saberes. A liás, é c o m esta tem ática p r e lim in a r q u e s e o c u p a a m a io r
p arte das quaestiones in serid a n o c o n te x to d o s d o is p rim e iro s livro s
da M etafísica.

1. 3 A metafísica como filosofia primeira

A e x p re s s ã o ‘filo s o fia p r im e ir a ’ é, certa m en te , c o n tro v e rs a e,


para algu n s, m e ra c u rio s id a d e h istórica o u re líq u ia d e u m p a ssa d o
filo s ó fic o tid o com o d e fin itiv a m e n te u ltrapassado. C u riosa m en te,

1 Sobre este problema dissemos algo, muito sumariamente, em “Conimbricenses”,


LO G O S,I, Lisboa, 1989.
40 A OBRA DE FONSECA

nos últimos tempos não só se renovou a discussão de tópicos tradi­


cionalmente discutidos no âmbito da metafísica, com o vem os a
própria expressão ‘filosofia primeira’ surgir em novas propostas
programáticas. Se Quine rejeita a própria ideia de uma filosofia
primeira, já, por exem plo, autores com o K.-O. A pel e E. Tugendhat
reabilitam esta designação tradicional1. Enquanto que, para Tugen­
dhat, a filosofia primeira, hoje, se deveria assumir com o uma se­
mântica formal2, já A p el pensa que só poderá revestir a forma de
uma semiótica transcendental. Não é aqui a ocasião de discutirmos
estes dois projectos tanto mais interessantes quanto procuram, ex­
plicitamente, reenquadrar as grandes questões da filosofia ociden­
tal. Contudo, há um ponto para o qual gostaríamos, desde já, de
chamar a atenção. Na sua reconstrução esquemática da história do
pensamento ocidental, tanto A pel com o Tugendhat apresentam três
grandes m odelos do pensamento filosófico aos quais fazem corres­
ponder determinados períodos da história da filosofia. Assim, em
A pel teríamos: (i) ontologia, (ii) crítica do conhecim ento ou filoso­
fia da consciência no sentido de Kant (ou mesmo no sentido da
filosofia moderna de Descartes a Husserl) e (iii) a semiótica trans­
cendental enquanto disciplina capaz de justificar adequadamente a
relação sígnica triádica do esquema de Peirce. Em Tugendhat seria
esta a série de modelos: (i) ontologia, (ii) filosofia da consciência
radicalizada em três etapas (cartesiana ou gnosiológica, viragem da
filosofia transcendental e reflexão sobre a consciência), (iii) a
semântica formal3. Apesar das divergências programáticas que os

1 K.-O. Apel, “Transcendental semiotics and the paradigma of first philosophy”, in:
P h ilo s o p h ic a l E x c h a n g e2/4 (1978) 3-22. E. Tugendhat, V orlesu n ge n z u r E in fü h r u n g in
d ie S p ra ch a n a ly tisch e P h ilo sop h ie. Frankfurt, 1976.

2 Cf. os textos citados na nota anterior. Para uma primeira apreciação critica do
projecto de Tugendhat, ver L. B. Puntel, “Idee und Problematik einer formalen Se­
mantik”, in: Z e its c h r .f. P h ilo s . F o rs ch u n g 31 (1977) 413-427.
3 K.-O. Apel, op. cit.; E. Tugendhat, op. cit., passim, em particular 43, 47s, 77-83.
Sobre os três “macroparadigmas da filosofia ocidental - Ser, Consciência e Linguagem”
no contexto de uma compreensão ecuménica da história do pensamento, ver M. B.
Pereira, P re fá c io à versão portuguesa de “A visão d e D e u s ” d e N ic o la u d e Cusa , Coimbra,
1988, 1-78.
FILOSOFIA PRIMEIRA: METAFÍSICA 41

separam, ambos coincidem em considerar a ontologia com o o m o­


delo de filosofia primeira característico do período da história da
filosofia que vai de Aristóteles a Descartes. Trata-se, na verdade, de
caracterizações muito sumárias. Tugendhat, contudo, desenvolve
bastante o confronto com a ontologia clássica na sua expressão
aristotélica. Este facto permitir-nos-á debater, ao longo deste traba­
lho, alguns dos seus pontos de vista. Esta breve referência aos
trabalhos de A pel e Tugendhat pretende sugerir o interesse, renova­
do, da questão da filosofia primeira.
Fonseca não emprega o termo ontologia mas sim ‘metafísica’
para designar a filosofia primeira. O termo ontologia só irá surgir
mais tarde, não obstante os dados fundamentais do problema serem
muito mais antigos. Com o veremos adiante, a estruturação wolffiana
da ontologia já se esboçava no tem po de Fonseca, numa linha de
orientação divergente da sua.
Antes de abordar mais directamente o conceito de metafísica
dos CMA, diremos duas palavras sobre a noção geral de filosofia.
Podíamos dizer que Fonseca não se preocupou muito com uma
definição explícita do conceito de filosofia. Assim, nos CMA, segue
muito de perto as análises de Aristóteles, de m odo que quando fala
de filosofia é quase sempre no sentido de filosofia primeira/metafí-
sica. Contudo, algumas formulações genéricas podem -nos sugerir
vias para um m elhor esclarecimento da sua compreensão da filoso­
fia. N o proémio, por exem plo, descreve a filosofia com o “cognitio
rerum, ut sunt, seu quod eodem redit, perfectam earum intelligen-
tiam”1. Aqui temos, por um lado, a afirmação da filosofia com o
ciência real e não apenas com o um saber da palavra ou do discurso
e, por outro lado, a sugestão de que o conhecim ento real que está
em jogo na filosofia não é conhecim ento qualquer entre muitos
outros tipos ou m odos de saber, mas antes a “perfecta intelligentia”
das coisas. Que sentido pode ter esta expressão enquanto elem ento
definidor da própria tarefa da filosofia e, correlativamente, em que
medida a filosofia se pode e deve assumir com o ciência é, sem

1 Fonseca, CMA I, 15.


42 A OBRA DE FONSECA

dúvida, um dos pontos importantes a esclarecer. Fonseca nâo hesita


em apresentar com o meta a alcançar p elo filósofo a “ueri cognitio
et boni adeptio”. Entendida com o ciência, na acepção aristotélica, a
filosofia tem que procurar a verdade das coisas. Com o Fonseca
explica nas primeiras quaestiones dos CMA, retomando o tema de
Met. A 1, todos os homens desejam, naturalmente, saber. Trata-se,
com o já Aristóteles sublinhava, de um saber por si m esmo e não
em função de qualquer outra coisa. Seria precisamente este
interesse pela pura “theoria” que conduziria o hom em a um conhe­
cimento perfeito de tudo. N o mesmo passo dos CMA, Fonseca faz
um afirmação de grande alcance para a caracterização da filosofia e
do seu método: “...in philosophia n on alia ueritas q u a e ritu r quam
quae p e r se nota est, a u t ex p e r se notis ed u citu r siquidem in his
posita est om nisperfecta cognitio, a d quam naturale sciendi deside-
riu m aspirat”1. Se tomarmos à letra esta profissão de fé no funda-
mentalismo epistémico de raiz aristotélica, seremos forçados a con­
cluir que, na construção filosófica, só p od e entrar aquilo que é (i)
conhecido por si ou (ii) que se pode deduzir logicamente de (i).
Em última análise, a questão decisiva seria a de saber o que é que
pode ser considerado “per se notum” e com o é que temos acesso a
esse tipo de elementos “conhecidos por si”. O resto seria uma mera
questão de análise que não deveria oferecer dificuldade de maior
para quem está treinado na “ars disserendi”. O esclarecimento desta
questão é importante para a compreensão da problemática do
ponto de partida da filosofia e d o conhecim ento humano em geral.
Aliás, é para esta problemática que apontam as quaestiones de A 2.
Se aceitarmos uma interpretação tradicional da expressão “per se
notum”, dificilmente poderem os fugir à admissão de uma espécie
de conhecimento intuitivo dos primeiros elementos (princípios) a
partir dos quais se vai desenvolver todo o processo cognitivo em
geral e o progresso da filosofia em particular. Mas, nesse caso,
pode perguntar-se, que sentido tem procurar uma coisa a que eu
tenho acesso intuitivamente? A questão ainda se complica mais se

1 Fonseca, CMA I, 7.
FILOSOFIA PRIMEIRA: METAFÍSICA 43

nos lembrarmos que Fonseca, noutro texto, depois de afirmar que


os filósofos se devem esforçar por apresentar o m odo de conhecer
os princípios, acrescenta: “ ...satis enim ad eam est inductio ex
singularibus et terminorum explicatio”1. Curiosamente, aqui não só
não se fala de qualquer conhecim ento “por si”, intuitivo, dos princí­
pios, com o surge um elem ento n ovo relativamente à formulação de
CMA I. Estamos a referir-nos à “inductio ex singularibus”. Não
obstante, continua a afirmar que todos os princípios são conhecidos
p o r si2. Estas afirmações de Fonseca são já suficientemente proble­
máticas, mas referem-se ainda à filosofia em geral. Em ordem a d e­
terminarmos com maior exactidão a posição de Fonseca, vejamos
com o é que ele define a metafísica enquanto filosofia primeira.
Sob o ponto de vista term inológico, Fonseca não faz qualquer
distinção apreciável entre as designações ‘metafísica’, ‘filosofia
primeira’ e ‘teologia’ (n o sentido d o texto aristotélico). Contudo,
usa com maior frequência os termos ‘metafísica’ e ‘filosofia pri­
meira’3. Fonseca confere à metafísica o estatuto de uma ciência teo-
rética, integrando-se, assim, naquela tradição que se apoia na c o ­
nhecida tripartição do saber teorético. Contudo, sublinha que esta
classificação é apenas “ratione finis”, não nos dizendo, portanto,
nada sobre a natureza das coisas analisadas nas referidas ciências.
Sob este ponto de vista, Fonseca adopta a classificação que divide
as ciências em dois grandes grupos: reais e “sermocinales” . Entre
estas últimas enumera a gramática, a retórica e a dialéctica. Neste

1 Fonseca, CMA III, 1. VI, c. 1, q. 1, p. 16.

2 “...cum omnia principia sint per se nota”. Fonseca, CMA III, 1. VI, c. 1, q. 2, p. 24.

3 “Hinc factum est ut scientia ipsa, quae his libris traditur, simplici nomine appel-
lari soleat a recentioribus m etaphysica, quasi Post Naturalium aut supra naturalium scien­
tia, cum ab Aristotele saepe appelletur p r im a philosophia-, alias absolute p h ilo s o p h ia ,
quasi praecipua pars philosophiae ut 4 lib. huius operis cap. 2 et 3, et lib. I Physicorum
extremis pene uerbis; alias th e o lo g ia quid de diuinis rebus disserat, ut libro 6 capite 1 et
lib. 11 cap. 6, alias sa p ie n tia quod primas rerum causas teneat ut in ipsa huius operis
praefatione, et cap. 2, lib. 3, alias d o m in a et p rin c e p s reliquarum et cui caeteras contradi-
cere nefas sit ueluti duobus proxime citatis locis et I Post., cap.7, ut quae omnium princi­
pia confirmei ac stabiliet”. Fonseca, C M A I, 29 (sublinhado nosso).
44 A OBRA DE FONSECA

contexto, a metafísica aparece com o uma ciência real sendo,


portanto, o seu objecto com preendido com o algo que se situa mais
ao nível da res do que da palavra {serm ó). Isto pode dar-nos já
uma primeira ideia do nível a que se situam as questões da metafí­
sica nos CMA. À primeira vista parecem situar-se do lado da res
numa dicotomia não problematizada res - sermo. Por outro lado,
Fonseca insiste na relação estreita entre a metafísica e a dialéctica.
N o proém io da Isagoge, por exem plo, diz que “a dialéctica é émula
da metafísica. Ocupam-se das mesmas coisas, embora de m odo di­
verso”1. O que as une é precisamente o facto de ambas se caracteri­
zarem pela universalidade máxima possível no âmbito do saber
humano. Uma das críticas mais frequentes à metafísica clássica con­
siste em dizer que ela pressupunha um acesso directo às coisas.
Sob este ponto de vista, fala-se, então, de uma metafísica ingénua
das coisas para caracterizar a perspectiva da ontologia antiga. Mas a
crítica mais frequente, hoje, talvez se centre no facto de este tipo de
filosofia primeira não ter na devida conta a dimensão linguística do
pensamento humano. Assim, por exem plo, Apel, partindo do
esquema de Peirce/Morris da semiose, caracteriza a ontologia preci­
samente com o aquela filosofia primeira que se m ove exclusiva­
mente dentro do primeiro dos três polos da relação sígnica, o do
ser real. É indiscutível que os pontos de partida e os métodos
divergem. A filosofia primeira de Fonseca inscreve-se dentro de um
m odelo em que a pergunta inicial não assume, de facto, a forma
daquela que Tugendhat coloca no seu esboço de uma semântica
formal: que significa com preender uma frase?2 Uma caracterização
sumária deste tipo poder-se-á aceitar numa primeira tipificação
muito genérica de grandes m odelos de filosofia primeira, mas a
questão é demasiado com plexa para ser discutida apenas a esse
nível genérico. C om o verem os no decurso d o nosso trabalho, talvez
não se trate propriamente de esquecimento ou exclusão da dim en­

1 Fonseca, Isagoge. Coimbra, 1965, 13.

2 E- Tugendhat, V o rlesu n ge n z . E in f. i. d. spra ch a n a ly tis ch e P h ilo sop h ie, Frankfurt,


1976, 56.
FILOSOFIA PRIMEIRA: METAFÍSICA 45

são do logos, mas antes de uma insuficiente problematização do


ponto de partida e consequente falta de articulação de todas as
dimensões e níveis envolvidos. Basta recordar o papel desem pe­
nhado pela dialéctica para verm os que não se exclui, na obra de
Fonseca, a dimensão do logos. As Instituições D ia léctica s começam
exactamente pela análise dos elementos da oração (q u e são o no­
me e o verbo, na sua term inologia) e por uma análise rudimentar
dos vários tipos de sinais. Isto não quer dizer que estejamos peran­
te uma doutrina semiótica em sentido moderno. N o entanto, a sim­
ples colocação destas questões no início de um esboço esquemá­
tico da lógica parece sugerir que a perspectiva filosófica de Fonseca
não é tão acrítica e imediatista com o se poderia pensar. A dimensão
do logos está bem presente na sua obra. O problema não reside na
exclusão ou ausência desta dimensão. O ponto crítico é outro,
com o veremos.
D e facto, a questão central desta filosofia primeira é ainda,
pelo menos formalmente, a da M etafísica de Aristóteles: a pergunta
pelo ov fj ôv. Independentemente dos problemas que se colocam
já ao nível de uma simples interpretação do texto de Aristóteles,
Fonseca tem que se debater com outra série de dificuldades deriva­
das da integração de dados da filosofia cristã. Neste contexto, a
distinção mais importante, com o veremos, é a que se dá entre a
criatura e o criador. C om o já dissemos, Fonseca não desenvolve a
temática das vias para o conhecim ento racional da existência de
Deus. Isto não o impede, contudo, de introduzir constantemente o
discurso sobre Deus na sua obra, a começar pela própria formula­
ção d o objecto adequado da metafísica quando o apresenta com o o
“ens quatenus est commune D eo et creaturis”1. A problemática do
“ente enquanto ente” não pode deixar de surgir aqui com toda a
sua virulência. Daí que Fonseca, naquele conjunto de quaestiones
inseridas em Met. r , ainda antes de abordar a natureza do conceito
de ser, coloque o problema da ana logia entis. "utrum ens qua
ratione est ens sit analogum”. Trata-se de uma doutrina no âmbito

Fonseca, CMA I, 1. IV, c .l, q .l, col. 637 ss.


46 A OBRA DE FONSECA

da lógica da predicação que, para além de permitir articular a


unidade e estrutura do real no seu todo, tem particular importância
para um autor com o Fonseca na medida em que representa a única
possiblidade de justificar racionalmente o discurso sobre Deus. A
importância desta doutrina ainda se torna mais visível se nos lem ­
brarmos que Fonseca, em determinados textos, p elo menos, exclui,
explicitamente, Deus da ordem categorial: “ ...ad quae omnia
om nino praeter Deum Optimum Maximum m odo aliquo pertineat”
(/. D. II, 9). À primeira vista, isto parece indicar que há p elo menos
um significado de ser que é independente e anterior ao que nos é
dado sob a figura das categorias. Por outro lado, isto implica que as
categorias deixam de ser os m odos mais universais de articular o
real. Fonseca rejeita, com o veremos, aquilo a que Tomás de Aquino
chama a analogia “secundum esse tantum”1. Parece ter reconhecido
o perigo de cair num regresso infinito, neste domínio, preferindo
afirmar que o “ens non esse analogum D eo et creaturis attributione
duorum ad tertium”2. Mas, com o acontece na maior parte dos auto­
res que se ocupam deste tema, não aparece, em toda esta discus­
são, a tematização da relação da analogia entis com as categorias e
com uma teoria da predicação minimamente coerente. Este será,
aliás, um dos principais problemas a focar na nossa análise.
Dentro de uma perspectiva de esclarecimento provisório do
papel desempenhado pela dimensão d o logos na filosofia de Fonse­
ca, procuraremos analisar, em traços gerais, o m odo com o ele com ­
preendia a articulação entre a dialéctica e a filosofia primeira.

1. 4 Lógica e filosofia primeira

Uma análise exaustiva deste tema equivaleria a um estudo


porm enorizado de toda a obra de Fonseca. Aqui pretendemos ape­
nas salientar algumas linhas de força que nos permitam começar a

1 Fonseca, CMA I, 701.

2 Fonseca, CMA I, 704. Sobre esta problemática central, ver 2. 4. 1.


LÓGICA E FILOSOFIA PRIMEIRA 47

com preender um pouco m elhor o pensamento de Fonseca e a sua


obra. Para além de uma ou outra alusão breve, algumas das quais
já citadas, pouco encontramos nas Instituições Dialécticas e na
Isagoge que nos possa esclarecer acerca desta questão. Mais uma
vez, a resposta tem que se procurar no texto dos CMA. Nesta
primeira análise concentraremos a nossa atenção nas quaestiones
inseridas a seguir a Met. oc, 3-

1. 4.1 As “quaestiones” em tomo da dialéctica (CMA 1,1. n, c.3, q.1-4)

As duas primeiras “quaestiones” preparam, de certo modo, o


terreno para a discussão de um topos já então clássico: saber se a
lógica é parte integrante da filosofia ou apenas instrumento,
organon. C om o a filosofia é compreendida com o um tipo de saber
científico, a primeira questão que se coloca é a de saber se a lógica
também é uma ciência e, no caso afirmativo, de que tipo. Fonseca
começa por indicar com o objectivo da lógica “uiam et rationem
tradere qua facile et sine errore possimus ex cognitis incógnita
intelligere”1. Depois de uma breve análise dos vários significados
de “disserere”, conclui que o fim próprio e imediato da lógica é, de
facto, ensinar “quonam pacto disserendum sit iuxta tertiam huius
uerbi significationem”2. Na explicação deste terceiro significado de
“disserere”, aparecem, mais uma vez, os três elementos principais
da dialéctica: divisão, definição e argumentação3. Para além da inte­
gração das três componentes da lógica, ressalta o facto de tomar
aqui a argumentação em toda a sua amplitude evitando, assim, uma
contraposição sumária entre lógica e filosofia primeira em que
aquela argumentaria “ex probabilis” enquanto que a metafísica
procederia “ex necessariis” . Esta distinção, corrente na literatura

1 Fonseca, CMA I, l.II, c.3, q .l, col. 486.


2 Fonseca, CMA I, l.II, c.3, q .l, col. 488.
3 “Interdum denique significat incognitum aliquid ex iis quae nota sunt oratione
patefacere, siue id fiat argumentatione probabili siue necessária, siue etiam definitione
aut diuisione”. Fonseca, C M A I, l.II, c.3, q .l, col. 487.
48 A OBRA DE FONSECA

lógica da época e que também surge com frequência na obra de


Fonseca, tem origem numa definição da dialéctica tirada do início
dos Tópicos de acordo com a qual ela seria “methodus siue ars
raciocinandi ex probabilibus”1 . Contudo, nesse m esmo capítulo das
Instituições D ialécticas, Fonseca adverte que esta definição não é a
melhor, pois não convém a toda a dialéctica ou lógica. Fica,
portanto, assente que a lógica trata do m odo de dividir, definir e
argumentar em geral. Dentro desta ordem de ideias, Fonseca rejeita
todas as opiniões sobre o objecto da lógica que forem incompatí­
veis com esta caracterização geral. Assim, nas sec. 3 e 4 da q .l, dis­
cute em porm enor a tese segundo a qual o objecto da lógica é o
“ente de razão” ( “ens rationis”). D e acordo com esta tese, a distin­
ção entre lógica e filosofia seria do mesmo tipo da que existiria
entre o “ens realis” e o “ens rationis”. Relativamente a esta posição,
Fonseca limita-se a discordar da redução das “disserendi formas” a
meros entes de razão2. Rejeita, igualmente, a posição daqueles que
reduzem a lógica à demonstração, argumentação ou silogismo. É
claro que Fonseca não pretende, de m odo algum, negar a im por­
tância destes domínios na análise lógica. O que lhe importa su­
blinhar é que a análise lógica abrange um cam po mais vasto. Por
isso, uma descrição adequada d o objecto da lógica deveria incluir
também a divisão e a definição que, embora possam estar integra­
das num processo argumentativo (estando, neste sentido, já implíci­
tas, de certa forma, na argumentação), não são, em rigor, redutíveis
à argumentação3.
Ainda dentro d o articulado desta q .l, discute com bastante
porm enor a distinção entre “lógica docens” e “lógica utens”.
Fonseca estabelece uma primeira distinção, neste contexto, dizendo
que a lógica se diz “docens” enquanto “ex propriis principiis modos

1 Fonseca, I D. I, 2.

2 Fonseca, CMA I, l.II, c.3, q. 1, col. 491.

3 “Deinde quia etsi diuisio et definido, quatenus sumuntur ad aliquid probandum


reducuntur ad argumentationem; non tamen reducuntur quatenus sunt per se formulae
declarandi ignotum ex notis, praesertim cum ab ea propriam declarandi uim non accipi-
ant”. Fonseca, CMA I, l.II, c.3, q .l, col. 495.
LÓGICA E FILOSOFIA PRIMEIRA 49

disserendi tradit” e “utens” na medida em que “ex probabilibus de


quacumque re proposita dissent”12
. Trata-se de uma distinção cor­
rente na época e que se funda mais na distinção entre o uso e a
doutrina do que numa interpretação particular da posição aristotélica
a partir dos textos dos Tópica ou dos A nalytica1. Posto isto, Fonseca
tenta mostrar que a lógica, pelo menos enquanto “lógica docens”, é
uma ciência. Contudo, a argumentação do texto é bastante confusa.
De facto, começa com argumentos “ex authoritate” citando Platão,
Aristóteles, Tomás de Aquino, Escoto, Alberto Magno, Avicena e
Egídio Romano para confirmar a sua tese. Termina esta primeira
“quaestio” refutando, um por um, os seis argumentos apresentados,
no início, contra o reconhecimento do estatuto científico da lógica3.
Estabelecido, assim, o carácter científico da lógica, trata-se de saber
se a dialéctica é uma ciência prática ou teorética. Este é o tema da q.
2 que vai levar Fonseca a abordar o problema de uma classificação
geral das ciências. O texto da q. 1 já encerrava uma primeira escolha
quando afirmava que a lógica se deve colocar no domínio da ciência
“sermocinalis” em contraste com a filosofia primeira aí compreendida
com o uma ciência real. Afastando-se de certas posições correntes na
escolástica, Fonseca defende que a lógica é uma ciência prática “non
tamen effectiuam sed actiuam”4. Prática porque não tem por fim a
busca de qualquer conhecimento que se possa desejar por si
mesmo, mas antes ensinar com o é que se divide, define e argu­
menta. Por outro lado, é considerada ‘activa’ porque trata, predomi-
nantemente, de dirigir as operações d o intelecto. Na terminologia
usada por Fonseca, na disjunção acima referida, o termo ‘activa’ de­
signa as ciências que tratam dos actos imanentes.
Depois desta caracterização sumária da lógica, surge a questão
de saber se ela é parte integrante da filosofia ou apenas instru­
mento (organ on) da filosofia e de outros saberes. Fonseca inter-

1 Fonseca, CMA I,1. II, c. 3, q. 1, col. 500.


2 Fonseca, CMA I,1. II, c. 3, q. 1, col. 501.
3 Fonseca, CMA I,1. II, c. 3, q. 1, col. 506-8.
4 Fonseca, CMA I,1. II, c. 3, q. 2, col. 512s.
50 A OBRA DE FONSECA

preta a tradição no sentido de afirmar, maioritariamente, que a


lógica é, simultaneamente, parte integrante e organon da filosofia.
Cita, neste sentido, Platão, a Academia, Aristóteles, Simplício,
Boécio, Alberto Magno e “fere reliqui graues auctores”1. Contudo,
Fonseca não se limita a invocar a tradição e procura justificar
argumentativamente a integração da lógica na filosofia. Neste
contexto, destacam-se dois argumentos. Num dos casos, parte-se da
própria “philosophandi ratione” para mostrar que só a lógica pode
ensinar a investigar as causas desconhecidas a partir dos efeitos
conhecidos, uma vez que só a ela pertence ensinar “om nem disse-
rendi rationem”. Por outro lado, o filósofo não poderia receber de
outra disciplina que não seja a lógica a “ratio et norma” do filoso­
far2. Este argumento apoia-se muito na compreensão da filosofia
primeira com o saber que se fundamenta a si mesmo e aos outros
saberes nos diversos níveis disciplinares. O segundo argumento a
que nos referíamos parte da definição de filosofia com o “scientia
rerum per omnes causas” para afirmar que a lógica também explica
todos os m odos de discorrer por todas as causas “cum tradet omnes
diuisionum, definitionum et argumentationum formulas per partes
materiales a primis usque principiis ac elementis quae in praedica-
mentis continentur”3. Dentro de uma linha de confirmação da sua
tese pela tradição, Fonseca salienta a divisão clássica da filosofia
em três áreas - lógica, ética e física - que, de facto, já era corrente
na Academia Antiga. Não se esquece de sublinhar que a lógica,
para Platão e para os estóicos antigos, incluía a metafísica4. Aqui
estava uma bela oportunidade para problematizar a dicotomia mais
tarde banalizada. Porém, Fonseca nem sequer levanta a questão e
contenta-se com a afirmação de uma relação de pertença que fica,
neste sentido, por esclarecer devidamente. N o fim deste processo
argumentativo, faz-se uma simples reafirmação da tese inicial se-

1 Fonseca, C M A 1 ,1. II, c. 3, q. 3, col. 520.


2 Fonseca, CMA I, 1. II, c. 3, q. 3, col. 522.
3 Fonseca, CMA I, 1. II, c. 3, q. 3, col. 522.
4 Fonseca, CMA I, 1. II, c. 3, q. 3, col. 524.
LÓGICA E FILOSOFIA PRIMEIRA 51

gundo a qual a lógica é, simultaneamente, parte integrante e instru­


mento da filosofia. Por outro lado, Fonseca não ignora que a lógica,
enquanto organon universal, ultrapassa os limites da filosofia en­
quanto um saber entre uma pluralidade de saberes. Mais, os pro­
cessos lógicos mais característicos não se aplicam apenas no
dom ínio do saber científico Por isso, Fonseca rejeita a identificação
feita por alguns “recentiores” entre lógica e m étodo científico
(lógica = “modus sciendi”). Tom ado o termo ‘saber’ no sentido es­
trito de scientia, então, o seu âmbito apresenta-se, necessariamente,
mais reduzido do que o da lógica: “N eque enim omnis oratio, quae
ex notis ignotum aliquid patefacit, scientiam parit, cum saepe opini-
onem, aut quandam aliam cognitionem efficiat”1. Este tema, aliás,
ainda não perdeu actualidade, depois do desmoronar do grande
sonho formalista.
A q. 4 aborda a problemática da relação da lógica com as
outras ciências ou saberes que estão fora do âmbito estrito da
filosofia. A questão é colocada em termos de saber até que ponto a
lógica é necessária para as outras ciências. Trata-se de um topos
clássico e conhecido. Se olharmos para a história da ciência vem os
que o progresso científico não esteve condicionado pela lógica
enquanto disciplina mais ou menos autónoma, tal com o se estrutu­
rou a partir de Platão e de Aristóteles. Em traços muito gerais,
Fonseca, antes de responder directamente à questão, começa por
distinguir entre uma lógica “incohatam et naturalem” e outra “per-
fectam et artificiosam”2. A questão coloca-se precisamente a pro­
pósito desta lógica “perfeita e artificial”, pois é ób vio que a outra
está pressuposta em qualquer discurso articulado com sentido seja
a que nível for. Quanto à arte da dialéctica, Fonseca diz não ser
absolutamente necessária mas apenas “ex hypothesi”, isto é,
supondo que alguém quer adquirir determinado tipo de conheci­
mento científico3. Que a lógica “perfecta et artificiosa” não é indis-

1 Fonseca, I. D . I, 3.
2 Fonseca, CMA I, 1. II, c. 3, q. 4, col. 529.
3 “Haec quaestio facile hac una assertione explicabitur: D ia le c tic a m n o n esse
52 A OBRA DE FONSECA

pensável para as diversas ciências é algo bastante claro para


Fonseca, na medida em que está convencido de que a luz natural
da razão ( “lumen naturale intellectus”) é quanto basta para reco­
nhecer os princípios “per se notis” que estão na base de qualquer
ciência e para evitar as formas falaciosas de discorrer*1.
Na parte final da q. 4, torna-se ainda mais clara a visão prag­
mática da lógica e o m odo com o Fonseca concebe a sua articulação
com a filosofia primeira. Assim, referindo-se à dificuldade que mui­
tos encontram no estudo da lógica, apresenta três factos que p od e­
riam explicar a aparente dificuldade da lógica. Em primeiro lugar, o
facto de Aristóteles, nos vários escritos do O rganon e sobretudo
nos Analíticos, apresentar muitos exem plos tirados da geometria
que não se com preendem sem um conhecim ento mínimo deste ra­
m o das matemáticas. Na Academia Antiga, Aristóteles podia pressu­
por estes conhecimentos, dado o lugar que a geometria ocupava na
escola fundada por Platão. Este facto, bem vistas as coisas, mostra
precisamente que os exem plos, em lógica, devem pertencer a um
dom ínio familiar ao sujeito que quer aprender a “ars disserendi”.
Outro factor que está na origem de muitas dificuldades tem
que ver com o facto de se misturarem, na lógica, muitos problemas
que, efectivamente, pertencem ao dom ínio da metafísica. Trata-se,
na opinião de Fonseca, de uma confusão reinante em muitos espíri­
tos na sua época: “quod uitium huius aetatis proprium uideri po-
test”2. Fonseca procura reduzir esta confusão entre lógica e filosofia
primeira a uma simples inadvertência que leva os mais incautos a
tirarem conclusões precipitadas do facto de haver muitas questões
de fronteira que são, naturalmente, abordadas quer no âmbito da fi­
losofia primeira quer no da lógica. Fonseca admite mesmo que
quem quiser aprofundar algumas das questões de fundamentação

s im p lic ite r n ecessariam a d caeteras s cien tia s co m p a ra n d a s sed e x hypothesi, si q u is


in q u a m f a c i le e t a b squ e e rro ris p e ric u lo , b re u ite r a tq u e o r d in e re liq u a s s cien tia s assequi
u e lit”. Fonseca, C M A . I, 1. II, c, 3, q. 4, col. 530 (sublinhado no original).
1 Fonseca, CMA I, 1. II, c. 3, q. 4, col. 530.
2 Fonseca, CMA I, 1. II, c. 3, q. 4, col. 534.
LÓGICA E FILOSOFIA PRIMEIRA 53

que surgem no contexto da lógica terá que se confrontar com a pro­


blemática metafísica nelas implícita1. Isto, porém, não im pede que
se faça uma distinção entre os dois domínios quer a nível teórico
quer a nível prático, na ordenação e ensino das respectivas matérias.
Contudo, o texto de Fonseca não apresenta nenhum critério interno
que permita separar eficazmente os dois domínios disciplinares. En­
contramos apenas uma sugestão de ordem genérica no sentido de
deixar para a metafísica as questões mais difíceis e subtis.
Finalmente, Fonseca chama a atenção para outro elemento
negativo a considerar, resultante do em penho excessivo com que
muitos se dedicariam à lógica transformando-a num fim 'e m si. O
que se pretende criticar, neste contexto, parece ser aquela com pla­
cência algo doentia na pura manipulação verbal que leva a confun­
dir o virtuosismo da logom aquia com o verdadeiro rigor lógico2.
Embora não cite nenhum autor em particular e se limite a caracteri­
zar esta concepção e prática da lógica com o um “uitium huius
aetatis proprium”, é provável que, ao fazer esta crítica, tivesse em
mente os autores da chamada lógica terminista. O facto decisivo,
porém, é a total subordinação da dialéctiva ao fim prático de
ensinar a “ars disserendi” sem se envolver em querelas “de notioni-
bus notionum nec de contortis sophismata” das quais resulta ape­
nas, na prática, a perda de tem po precioso3. Aliás, foi dentro desta
visão pragmática da lógica que foram redigidas as Instituições

1 “Alterum est quod multae quaestiones ac difficultates quae ad Metaphysicum


reuera pertinent in ea arte misceantur; quod uitium huius aetatis uideri potest. Nascitur
autem hoc uitium ex affinitate quae Dialecticae cum Metaphysica intercedit, ob quam si
quis uelit diligentius persequi atque excutere ea quae dialecticae propria sunt, statim pro
Dialectica Metaphysica respondet. Uerum quoad fieri potest mitius agendum est cum
Dialectica nec subtiliora quaeque ab ea importune exigenda sed expectanda suo loco
Metaphysica, quae prouectis iam Philosophiae alumnis et suarum rerum et Dialecticarum
accuratam rationem reddet”. Fonseca, C M A I, 1. II, c. 3, q. 4, col. 534.
2 “Tertium est quod a plerisque nimia exercitatio Dialectica in ipsa materia
Dialecticae ponitur; quo morbo superiores Dialectici magis laborarunt. Hinc enim tam
multa tamque spinosa nascuntur sophismata, ut ingenia potius lacerent, quam doctrinae
fructu robustiora reddant.” Fonseca, C M A I, 1. II, c. 3, q. 4, col. 534.
3 Fonseca, loc. cit.. Porém, o texto que se segue ainda é mais incisivo: “Itaque qui
54 A OBRA DE FONSECA

Dialécticas. A linha de força da argumentação de Fonseca é fácil de


perceber e parece correcta, pelo menos no que diz respeito à
“lógica utens” . Contudo, a fronteira entre o útil e o inútil, neste
campo, nem sempre é fácil de determinar. Se o critério pragmático
parece relativamente fácil de aplicar no caso da “lógica utens”, já o
mesmo não se pode dizer a respeito da “lógica docens”, a menos
que se pressuponha um nexo de aplicabilidade imediata entre as
duas dimensões da lógica. Mesmo assim, continuaríamos a ter pro­
blemas de definição dos limites do útil e do inútil. Acontece que o
texto de Fonseca nem sequer coloca a questão nestes termos que
fazem parte do seu quadro conceptual. Daí a ambiguidade da sua
posição, neste ponto.
Voltando à questão do nexo entre a dialéctica e a filosofia
primeira, dificilmente encontramos no texto de Fonseca algo que
ultrapasse aquela afirmação genérica de uma afinidade entre estes
dois domínios disciplinares que se distinguiriam, a nível epistémico,
pelo facto de a lógica ser um saber prático e a filosofia primeira um
saber eminentemente teorético. Aparece ainda a tese de que todos
os grandes princípios da lógica se reduzem aos primeiros princípios
da filosofia primeira1. Fica, no entanto, por explicar com o é que se
dá a articulação da filosofia primeira com a lógica a partir dos
primeiros princípios de ambas. Será que, dentro do quadro deter­
minante do texto de Fonseca, se pod e caracterizar a relação entre
lógica e a filosofia primeira com o mera subordinação daquela a
esta? Não admira que estas questões não sejam abordadas e apro-

totam exercitationem Dialecticam in sola materia Dialéctica ponunt et diutius quam par
est, in ea uersantur, persimiles uidentur esse iis qui in libra et lancibus probe examinan-
dis totam librae utilitatem sitam esse crederent, neque unquam lancibus quicquam
ponderarent. Itemque iis qui totum id temporis, quod ad scribendum datur, in aptando
calamo consumunt. Nam ut hi nulla forma incisionis contenti usque eo saepe calamum
incidunt, dum qua parte scribant uix ullam relinquant; sic illi cum nouis in dies intra
huius artis fines commentis inuestigandis dant operam, aliquid semper latere arbitrari
quod longiori studio et maiore industria erui possit, turn demum ad alias artes comparan-
das se conuertunt cum eis tempus ad illud agendum oportunum deest”. Fonseca, CAÍA I,
1. II, c. 3, q. 4, col. 534-5.
1 Fonseca, CMA I, 1. II, c. 3, q. 4, col. 535.
LÓGICA E FILOSOFIA PRIMEIRA 55

fundadas no texto de Fonseca, pois o seu pensamento, com o


veremos, inscreve-se naquele tipo de filosofias que não reflectem
coerentemente toda a problemática da dimensão lógica, deixando,
assim, aberta a porta para toda a espécie de dicotomias que fal­
seiam a verdadeira compreensão das coisas.
Fonseca acrescenta a este grupo de “quaestiones” em torno da
lógica uma outra sobre o lugar da filosofia primeira, na ordem da
doutrina, no conjunto das disciplinas filosóficas. Nesta q. 5, procu­
ra, acima de tudo, distinguir a perspectiva característica da filosofia
primeira da que define a filosofia da natureza ou física na acepção
antiga do termo. Aqui interessa-nos salientar duas afirmações acerca
da metafísica que apontam para a problemática da predicação
com o tema central da filosofia primeira. Assim, a metafísica reivin­
dicaria para si a tarefa de distinguir o ente em “prima rerum
genera” e, além disso, “constituenda subiecta cuiusque scientia”1. O
texto não esclarece o que significam, exactamente, estes “prima
rerum genera” nem indica o seu lugar sistemático. Em Fonseca, esta
tarefa de “distinguir o ente” ( “distinguendi ens”) tem um paralelo
naquela com ponente da lógica que é a divisão: “nam diuisio tan-
quam diligens quaedam exploratrix, omnia rerum genera et partes
singularum excurrens, totam entis confusionem exp licat” 2. Esta for­
mulação das Instituições Dialécticas é muito característica e leva­
mos a pensar que este é exactamente um dos pontos de contacto
entre a lógica e a filosofia primeira. Dentro d o quadro de referência
da obra de Fonseca, ambas têm com o tarefa, entre outras, explicar
toda a confusão do ser pela diuisio. É por esta actividade inicial
que começa todo o processo de conhecim ento do real, de explicita­
ção e determinação do Datum inicial que Fonseca designa pela pa­
lavra ens na linha da tradição da metafísica clássica. Aliás, a expres­
são “entis confusionem ”, que surge no texto citado das I. D., está
muito ligada à maneira com o Fonseca analisa o próprio conceito de
ser. Sobre este ponto diremos mais, adiante, em 2. 4.

1 Fonseca, CMA I, 1. II, c. 3, q. 5, col. 543.


2 Fonseca, I. D ., I, 4.
56 A OBRA DE FONSECA

O segundo aspecto que desejaríamos sublinhar tem que ver


com a caracterização do objecto da metafísica. D epois de afirmar
que o metafísico trata de dois géneros de coisas imateriais, umas to­
talmente isentas de matéria e outras que são simultaneamente ma­
teriais e imateriais, chama a estes dois tipos de ‘coisa imaterial’ “res
pure metaphysica”1. Neste contexto, importa sublinhar o facto de
Fonseca caracterizar as coisas de que trata a filosofia primeira pela
sua universalidade máxima. Universalidade que se define em duas
dimensões centrais: causalidade e predicação2. Este texto coloca a
problemática das categorias no centro da reflexão metafísica. Adian­
te, no capítulo 4, verem os algumas dificuldades com que o pen­
samento de Fonseca se debate para tematizar adequadamente esta
dimensão da universalidade. Por agora, no contexto de um primei­
ro esclarecimento, provisório, da articulação possível da lógica com
a filosofia primeira em Fonseca, desejaríamos analisar, sumariamen­
te, um texto d o segundo volum e dos CMA no qual se discute a
questão d o lugar das categorias, zona de fronteira por excelência
daqueles dois domínios disciplinares.

1. 4. 2 O lugar das categorias ( CAÍA n, 1. V, c. 7, q. 1)

Não deixa de ser curioso que seja precisamente no capítulo 7


de Met. A que Fonseca insere n ove “quaestiones” sobre a problemá-

1 -Nam cum duo genera rerum immateriaiium tractentur a Metaphysico, unum


earum quae et consideratione et reipsa expertes omnino sunt materiae; ueluti substantiae
coelorum motrices, alterum earum quae etsi consideratione expertes sunt materiae, tarnen
re ipsa partim materiales sunt, partim immateriales, cuiusmodi sunt substantia, quae genus
summum est, et creatura omnia praedicata, quae rebus materialibus et immaterialibus sint
communia; neutrum eorum nisi per abstractionem a rebus materialibus et sensibilibus
cognosci a nobis posse. Quae enim primo se nobis offerunt, sensibilia sunt; ex quibus ea,
quae non sentiuntur, colligi debent. Eodem modo, cum nobis primo sint obuiae res com-
positae, nullo modo simplices, nisi compositarum adminiculo, intelligere possumus: res
autem pure metaphysicae, si sint prioris generis, sunt simplices re ipsa; si uero posterioris,
sunt ratione siue conceptu simplices.” Fonseca, C M A I, 1. II, c. 3, q. 5, col. 543.
2 “Sunt enim maxime uniuersales, aut in causando, aut in praedicando, ut diciso-
let; utrumque genus uniuersalium est cognitu difficilimum...”. Fonseca, C M A I, 1. II, c. 3,
q. 5, col. 544.
LÓGICA E FILOSOFIA PRIMEIRA 57

tica geral das categorias. Aqui interessa-nos a q. 1 onde Fonseca se


pergunta se pertencerá realmente à metafísica tratar das categorias.
Fonseca inicia a q. 1 com uma abundante informação prelimi­
nar acerca das várias opiniões que defendem quer a integração da
problemática das categorias na lógica quer na metafísica. N ão falta
também uma breve explicação etim ológica do sentido de categoria
( “praedicamentum”). Fonseca opta por uma posição de síntese de
acordo com a qual pertence a ambas a tematização das categorias,
mas principalmente à filosofia primeira. Para compreenderm os me­
lhor a posição de Fonseca, torna-se necessário ter presente uma
distinção que ele faz entre três m odos de considerar o género, a es­
pécie e os indivíduos que ele interpreta com o “elem entos” constitu­
tivos das categorias. Assim, poderíamos considerá-los: ( i) absoluta­
mente, quanto à própria natureza das coisas; esta perspectiva não é
específica de nenhuma das ciências mas antes comum a todas as
chamadas ciências reais que tratam dos vários tipos de coisas natu­
rais; (ii) enquanto são universais ou particulares; este m odo de
abordar os predicamentos é próprio da filosofia primeira porque
parte “ex modis essendi rerum”; (iii) finalmente, podem ser consi­
derados numa perspectiva estritamente lógica, isto é, enquanto
“praedicabiles aut subiicibiles”1. Partindo deste m odo de classificar
os diversos níveis de análise da problemática das categorias,
Fonseca não hesita em afirmar que o lugar das categorias é na
metafísica quando consideradas ao nível (ii) e na lógica quando
vistas no nível (iii). Mas, sendo assim, porque é que Fonseca insiste
em afirmar que o lugar por excelência da análise categorial é a
metafísica? Nesse mesmo texto se diz que, embora ninguém duvide
que seja próprio da lógica tratar da predicação, a possibilidade
dessa mesma predicação se funda nos “m odi essendi”2. Além disso,
acrescenta Fonseca, o tratamento das categorias enquanto considera

1 Fonseca, CMA II, 1. V, c. 7, q. 1, col. 423.


2 O argumento apresentado para justificar a inclusão das categorias na lógica
assenta na articulação entre categorias e modos de predicação: “...quia praedicamenta
distinguuntur per uarios modos praedicandi de primis substantiis”..., “...praedicationum
autem tractationem ad Dialecticum spectare nemo dubitat”. Fonseca, op. cit., loc. cit., 417.
Mas, logo a seguir, justifica a sua vinculação à metafísica: “Deinde quia modi praedicandi
58 A OBRA DE FONSECA

os géneros, espécies e indivíduos “ut uniuersalia et particularia


sunt, speculatiua est”, ao passo que a sua abordagem enquanto
“praedicabilia et subiicibilia in oratione, plane est p ra ctica "*1. Mais
uma vez surge a ideia de que só a lógica e a filosofia primeira
abrangem a totalidade das coisas: “sola prima philosophia et dialec-
tica in toto entis genere uersantur, hae quoque sola de omnibus
disserunt”2. Distinguem-se pelo facto de a filosofia primeira analisar
a “communem rationem essendi” de todas as coisas, enquanto a ló ­
gica tematiza a “communem rationem de omnibus disserendi”3.
Continua a problemática da predicação e das categorias a desem pe­
nhar o papel fulcral. Em ve z de aprofundar e tematizar a articulação
entre estas duas dimensões, Fonseca insiste numa delimitação feita
a partir de esquemas não problematizados e reflectidos. Neste caso,
para além da separação, já de si suficientemente problemática, en­
tre a dimensão do discurso e a dimensão das ‘coisas mesmas’ intro­
duz ainda outro factor de perturbação ao distinguir aqueles dois
domínios disciplinares através de dois tipos de conhecimento: o c o ­
nhecimento a priori que seria característico da metafísica e o
conhecimento a posteriori que seria próprio da lógica. O texto não
explicita o sentido destas afirmações de Fonseca, embora não seja
difícil perceber que esta última distinção assenta em grande parte
num uso e compreensão discutíveis do esquema ‘mais conhecido
por natureza - mais conhecido para nós’. C om o vimos, Fonseca in­
terpreta a função da lógica e da filosofia primeira com o um traba­
lho de ‘explicado’ da totalidade omnicompreensiva d o ‘ens em dois
níveis e através de dois métodos distintos. Isto revela-se de forma
aguda na forma de com preender o próprio ens, com o veremos. De
momento, faremos apenas um breve comentário a uma observação

quibus hoc loco Aristoteles praedicamenta distinguit fundantur in modis essendi per
quos illa prius natura distinguuntur quam per modos praedicandi”. Id., loc. cit., 418.

1 Fonseca, CMA II, 1. V, c. 7, q. 1, col. 423.


2 Fonseca, C M A II, 1. V, c. 7, q. 1, col. 424. Convém notar que Fonseca usa o
termo dialéctica, neste contexto, no sentido da “lógica docens”.
3 Fonseca, CMA II, 1. V, c. 7, q. 1, col. 424.
LÓGICA E FILOSOFIA PRIMEIRA 59

de Fonseca a propósito da classificação do ‘ser’ apresentada por


Aristóteles em A 7. Assim, referindo-se ao texto de 1007a31, faz um
comentário que se nos afigura de capital importância. O ‘verda­
deiro’ de que fala o texto aristotélico não seria o verdadeiro trans­
cendental uma vez que este é convertível com ens e “sequitur
simplicem conceptum re i" e aquele opõe-se ao ‘falso’ dando-se,
portanto, apenas ao nível do logos apofântico1. Aqui, Fonseca já
podia pressupor a tematização do verdadeiro transcendental a que
nos referiremos, adiante, em 4. 2. 2. 2. Vejamos, contudo, o que
diz, neste contexto, sobre a verdade proposicional. Para que não
restem dúvidas quanto à sua interpretação, Fonseca sublinha que o
‘verdadeiro’ e o ‘falso’ de que se fala em Met. D, 7, 1007a À31s
consiste na afirmação ou negação das coisas que se faz na enuncia­
ção mediante as categorias: “...consistunt in affirmatione et negati-
one quae ex mutua rerum quae in praedicamentis ponuntur, com-
paratione fiunt”2. Estamos, portanto, perante uma análise da
verdade proposicional ou, com o diz Fonseca, do ‘verdadeiro’
complexo. Neste passo, apresenta uma formulação que não se
pode comparar, em rigor, mas não deixa de lembrar a célebre
fórmula de Tarski: “...ex eo patet quia ut significemus pronunciatum
esse uerum saepe dicimus, ita est; ut autem declaremus esse fal-
sum, dicere solemus, non ita est”3. Por outras palavras, “uerum=ita
est”. A verdade proposicional teria o seu fundamento no sentido ve-
ritativo de ens. Apoiando-se no texto aristotélico, Fonseca toma es­
te significado de ‘ser’ com o claramente distinto d o significado de
‘ser’ na figura das categorias. Estamos, novamente, perante efeitos
daquela dicotomia que atravessa todo o pensamento de Fonseca.
Neste caso, poder-se-á perguntar até que ponto Fonseca pode
assumir coerentemente a desvinculação ontológica da esfera do juí­
zo patente na afirmação de que o fundamento da verdade proposi­
cional é o “ens rationis, ipsa uidelicet compositio aut diuisio extre-

1 Fonseca, CMA II, 1. V, c. 7, expl., col. 413 s.


2 Fonseca, CAÍA, II, 1. V, c. 7, expl., col. 415 s.
3 Idem, op. cit., loc. cit..
60 A OBRA DE FONSECA

morum affirmationis aut negationis, quae com positio et diuisio non


sunt in rebus sed fiunt opere intellectus”1. Com o é que isto se
articula com a definição clássica da verdade com o “adaequatio rei
et intellectus” é algo que o texto de Fonseca não explicita conveni­
entemente. É claro que isto poderia, eventualmente, ser interpre­
tado com o sintoma de que Fonseca terá percebido, de algum m o­
do, os problemas inerentes à compreensão da verdade com o
relação entre o ‘enunciado’ e a “res” (supostamente não linguística).
De facto, trata-se de uma representação inadequada da ‘relação’
entre a “res” e a linguagem. Por outro lado, a introdução do “ens
rationis”, neste contexto, corre o risco de confundir mais do que
esclarecer a verdadeira problemática a articular, sobretudo se for
acompanhada de uma insistência em dicotomias do tipo “ens realis”
- ”ens rationis”, “intellectus/ratio” - “res” . De facto, é a insistência
em dicotomias deste tipo ou, p elo menos, o facto de as não proble-
matizar que im pede Fonseca de chegar a uma compreensão mais
correcta da articulação da lógica com a filosofia primeira.
Mas, vejamos, mais em detalhe, com o é que Fonseca analisa a
determinação do dom ínio específico da filosofia primeira enquanto
reflexão fundamental sobre o 'en £ .

Fonseca, CM A, II, 1. V, c. 7, expl., col. 415-6.


2. DETERMINAÇÃO DO OBJECTO DA METAFÍSICA

Já aludimos, no capítulo anterior, à concepção que Fonseca


tem da metafísica com o filosofia primeira. Porque a questão conti­
nua a ser controversa sob o ponto de vista da exegese do texto
aristotélico e porque o interesse deste debate ultrapassa o nível
meramente interpretativo, somos obrigados a retomar a pergunta
pela própria ideia de uma filosofia primeira. Começaremos por
situar o problem a ao nível d o texto da M etafísica de Aristóteles e
só numa segunda fase analisaremos a posição de Fonseca.

2. 1 O projecto aristotélico de uma filosofia primeira

Nos três primeiros capítulos de Met. A, fala-se, de uma forma


muito genérica, numa ciência teorética que se procura e que trata­
ria dos primeiros princípios e das primeiras causas. O m odo com o
o texto se refere a esta ciência dos princípios e das causas parece
indicar que estamos perante uma nova ciência, uma forma de saber
até então inexplorada sistematicamente, com sucesso. Servindo-se
do esquema da causalidade, Aristóteles dirá que as tentativas dos
que primeiro filosofaram já apontavam naquela direcção, apesar de
eles nunca terem conseguido formular correctamente a questão. E a
reconstrução da saga do pensar guiada pela demanda da causa de
INDICE GERAL

0. Introdução ................................................................... 9
1. A obra de Fonseca ....................................................... 15
1.1 As Instituções Dialécticas e a Isagoge Filosófica .......... 16
1.2 Os Comentários à Metafísica de Aristóteles ................. 22
1. 2. 1 O proémio dos CMA ..................................................... 28
1. 2. 2 Texto, tradução e ‘explanatio’ ......................................... 33
1. 2. 3 As quaestiones............................................................... 35
1.3 A metafísica como filosofia prim eira............................ 39
1. 4 Lógica e filosofia primeira ............................................ 46
1. 4. 1 As “quaestiones” em torno da dialéctica ....................... 47
1 . 4. 2 O lugar das categorias ................................................... 56

2. Determinação do objecto da metafísica ....................... 6l


2. 1 O projecto aristotélico de uma filosofia prim eira.......... 6l
2. 2 A interpretação de Fonseca ........................................... 75
2. 3 Excursus: os significados de elp í .................................. 101
2. 4 A análise do conceito de ens em Fonseca..................... 130
2. 4. 1 A analogia entis ........................................................... 130
2. 4. 2 Conceito objectivo e conceito formal de ens. ............... l6l
2. 4. 3 O conceito de ens e a predicação essencial.................. 184

3- Essência e existência ..................................................... 191


3. 1 Introdução ..................................................................... 191
3. 2 Análise da tese de Gilson em L ’être et l ’essence ............ 194
3. 3 A posição de Fonseca face a esta controvérsia ............ 202
3. 3- 1 Reconstrução das principais teses em confronto .......... 202
3. 3. 1. 1 A tese da distinção gramatical ................................... 202
3- 3- 1. 2 A tese da distinção r e a l................................................ 209
3. 3- 1. 3 As teses intermédias ................................................... 220
3. 3. 2 A tese de Fonseca: a existência como último modo in­
trínseco da essência (distinção modal ex natura rei) 226
Transcendentais e categorias ....................................... 235
A doutrina dos transcendentais e das categorias antes
de Fonseca ............................................................... 236
Aristóteles .................................................................... 236
Plotino ......................................................................... 246
Tomás de A q u in o ........................................................ 248
Escoto e os transcendentais disjuntivos.................... 254
Ockham ....................................................................... 258
A crítica humanista dos transcendentais: L. Valia .... 262
A posição de Fonseca ................................................ 265
A determinação do dom ínio categorial e do transcen­
dental ........................................................................... 265
Os transcendentais simples ....................................... 284
Uno .............................................................................. 284
Verdadeiro ................................................................... 291
Bom ............................................................................. 311
As categorias e os transcendentais depois de Fonseca 325
A escolástica alemã pré-kantiana .............................. 325
A crítica kantiana das categorias e da filosofia trans­
cendental dos antigos ............................................ 330
Categorias e transcendentais: retrospectiva e conclusão 340

O princípio de não co n tra d ição................................ 345


A posição de Aristóteles em Met. T 3......................... 346
A interpretação de Fonseca......................................... 363

Conclusão .................................................................... 371

Bibliografia 377

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