”O discurso competente é o discurso instituído. É aquele no qual a
linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera da sua própria competência”. Marilena Chauí, Cultura e Democracia
O entendimento da noção de discurso competente é fundamental para o estudo de
qualquer área da comunicação. Torna-se especialmente importante para a pesquisa da comunicação ou marketing cultural na medida em que o saber/conhecimento instituído é elemento central no processo que, no contexto das sociedades contemporâneas, consagrou a cultura como instrumento de relacionamento entre organizações e públicos. O discurso competente é resultado da burocratização do modo de produção das sociedades e está intimamente relacionado ao surgimento das organizações. Assentado na multiplicação de funções, cargos e especializações, que cada vez mais viriam a alimentar a engrenagem social, o discurso competente despiu-se de qualidades humanas e passou a requisitar, como atributos distintivos, argumentos centrados sobretudo em conhecimento técnico e prático. Numa economia capitalista, a opinião do ministro da economia não admite assinatura; está assegurada pelo poder que tem o cargo – independentemente de quem o esteja ocupando – sobre a vida de todas as pessoas. O discurso, para ser competente, deve ser despersonalizado; simula autonomia e isenção porque se apresenta como um fenômeno da natureza. Não deve ser entendido como opinião, mas como constatação. O discurso competente é uma fala social reificada, desumanizada; sua validade apenas poderá ser atestada por um cargo previamente legitimado pelo modelo de produção instituído. As instâncias autorizadoras da competência e validade de um discurso são sempre organizações: institutos, universidades, laboratórios, veículos de comunicação, marcas e grandes corporações. Na lógica do discurso competente, pessoas somente terão autoridade discursiva depois do reconhecimento de instituições já credenciadas junto à sociedade. Pessoas são competentes quando se confundem com instituições. Em suma, entre os povos organizados, a competência de um discurso não habita o discursante; está alojada no cargo/posição social de onde o discurso é proferido. Nas sociedades burguesas, o discurso científico passou a ser parâmetro de competência para outros discursos; é dizer, a aprovação social de um discurso passou a ser tanto mais fácil quanto mais identificado com as instituições produtoras de conhecimento científico estivesse. Assim, toda proposição que se quisesse válida deveria, antes de alcançar o espaço do debate social, contar com o testemunho de um especialista. A consagração da ciência como importante indicador da autoridade de um discurso adveio da progressiva relevância que a técnica assumiu no modo de produção capitalista. O domínio sobre a técnica passou a significar o domínio sobre a própria produção, de modo que, na relação prostituída entre capital e técnica, o primeiro significava a possibilidade de dispor do segundo, enquanto apenas o desenvolvimento da técnica poderia viabilizar o acúmulo de capital. Títulos de cientificidade, provas da capacidade que teria um indivíduo para submeter a natureza em benefício da produção, passaram, então, a ser requisito àqueles que quisessem crédito para opinar publicamente. A indústria cultural, por sua vez, consagrou uma espécie curiosa de especialista: a celebridade. Autorizada pelos meios de comunicação de massa, mais precisamente pelas instituições que sobre eles detêm controle (emissoras de televisão e rádio, indústria fonográfica, estúdios de cinema, editoras e publicações, agências de notícia, agências de publicidade etc.), e identificada como a projeção dos melhores desejos da audiência, a celebridade foi introduzida em programas, anúncios e filmes publicitários a fim de conferir- lhes maior credibilidade. O discurso da celebridade é, a um tempo, sofisticação e empobrecimento do discurso científico. De um lado, representa uma sofisticação porque apenas se fez possível a partir de um estrondoso refinamento das técnicas de transmissão simbólica à distância. Nesse sentido, a fala da celebridade está respaldada por uma tecnologia tácita, desenvolvida e gerenciada pelo mais seleto grupo de cientistas. O outro verso da moeda, o empobrecimento do discurso científico, reside na teatralidade da celebridade. Ao atestar em favor de medicamentos ou cosméticos, a celebridade interpreta uma fala tomada junto à comunidade científica. Essa apropriação da competência do discurso de outrem, tão freqüente nas sociedades sob os efeitos da comunicação de massa, fez do discurso competente um discurso lacunar, que diz justamente porque deixa de dizer. É o que se verifica com o discurso da celebridade: sempre evasivo, beneficia-se da mitificação promovida pelos meios de massa. Sua competência decorre da notoriedade do emissor, que, por meio do alcance dos meios massivos de comunicação, ocupa um posto discursivo privilegiado e restrito. A celebridade fala – e é ouvida, porque interessa – a todos. Seu discurso é tido como verdadeiro porque se impõe, é, no exato momento da comunicação mediada pelos meios de massa, unilateral, não-dialógico e, por isso, incontestável. A celebridade está autorizada a discursar sobre os mais diversos assuntos porque, quando incorporada pelos veículos de comunicação de massa, é convertida numa fórmula especial de narração: o mito. Os mitos, já se sabe, não mentem, apenas ocultam a parcela do real que não dão conta de explicar . Para um aprofundamento da discussão em torno dos mitos midiáticos da contemporaneidade, sugere-se a consulta de Mitologias, de Roland Barthes Do latim “fábula”, são estudados nas Ciências Sociais justamente como formas paliativas de interpretação de fenômenos da realidade não compreensíveis ao homem. O mito é uma alternativa de relato sobre o real, é uma versão deformada do fato que tenta explicar. Em diferentes povos e períodos, o mito inseriu-se na história para sossegar uma natureza poderosa e desconhecida e, por essa razão, adquiriu traços sobre-humanos e sobrenaturais. É curioso – e muito esclarecedor – notar como as características dos mitos primitivos, ainda que disfarçadas, também podem ser reconhecidas nos mitos consagrados pela indústria cultural. Quando milhares de brasileiros vão às bancas comprar Caras, buscam justamente uma aproximação do mito, uma superação da celebridade super-homem gestada pelos meios de comunicação. Nas sociedades de massa, especialistas e personalidades midiáticas confundem-se. O padre, o médico, o cientista político, o policial, o ator, o economista, o poeta, o esteticista, o escritor, o gastrônomo, o jornalista, o historiador, o metereologista, o advogado, o jogador de futebol, o filósofo: todos, sem exceção, brigam por um espaço na TV. A própria política, governança sobre o destino da coletividade, banalizou-se a ponto de substituir a ágora pelos holofotes imperiosos dos grandes veículos de comunicação. Sob a lógica da produção industrial, a cultura, reproduzida em série como conhecimento e entretenimento instituído, fez-se discurso competente. Compete pela ordem que aí está e, com status de ciência – afinal, um verso de Pessoa em nada deve a qualquer uma das leis de Newton –, consagrou-se como artifício predileto da comunicação de massa. O marketing cultural, peça que é do sistema em que se insere, estará sempre às voltas com artistas midiáticos. A legítima promessa de um patrocínio que se queira responsável estará, cada vez mais, em formas alternativas de incentivo à cultura, capazes de conjugar expressões culturais estabelecidas, os mitos, com formas artísticas instituintes e verdadeiramente transformadoras.
Rodrigo Maceira é graduado em Publicidade e Propaganda pela Escola Superior de Propaganda e
Marketing, e em Relações Públicas pela Universidade de São Paulo. Trabalha com marketing e comunicação cultural, planejando e redigindo projetos nas áreas de teatro, música, cinema e literatura. Atualmente, cursa o doutorado "Teoría e Historia de la Representación Audiovisual", na UAB, em Barcelona.
A Linguagem Do Estado É Analógica e Compacta, Sua Desfragmentação Só Pode Se Dar Por Meio de Outra Linguagem, e A Linguagem Digital Parece Apresentar Essa Possibilidade
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