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A LITERATURA NO

BANCO DOS RÉUS


uma tentativa de diálogo entre Arte e Direito

Ricardo Lísias
2018

1
Para Marcelo Ferroni

2
“Remover a obra é destruir a obra.”

Richard Serra

3
UM

4
A literatura no banco dos réus nasce impelido pelas circunstâncias. Enquanto escrevo,
um livro que criei está sendo julgado por duas instâncias jurídicas diferentes. O problema
começou há 3 semanas e deve se estender por bastante tempo.

Em meados de outubro de 2016, acompanhando os movimentos jurídico-políticos que,


freneticamente, o Brasil protagonizava (e continua protagonizando) comecei a escrever um
romance sob a forma de diário, que acabaria assinado por "Eduardo Cunha (pseudônimo)".
Senti nojo assistindo à votação da Câmara dos Deputados que afastou inicialmente Dilma
Roussef da presidência da república, no dia 17 de abril de 2016. Ainda tenho a lembrança do
meu estômago se encolhendo e uma queimação subindo pela garganta no início da noite. Por
duas ou três vezes, tentei me afastar da tela da televisão. Estranhamente, o mal estar
aumentava e eu sentia que, se não voltasse a testemunhar aquele horror, a tontura
aumentaria. Eu acabaria vomitando.

Tenho fixação por acontecimentos históricos. Muito novo, fiquei pregado à TV


enquanto Charles e Diana se casavam no Reino Unido. Quando Airton Senna morreu, quase
não dormi entre o acidente e o enterro. Claro que não tenho nenhum interesse por
automobilismo. Sequer sei dirigir...

Esses e muitos outros momentos são claros para mim: a primeira invasão do Iraque, o
sequestro de M. Gorbatchov e a morte de Tancredo Neves. A sessão dirigida por Eduardo
Cunha com certeza foi a cena que mais me impressionou. Sem mediações ou cinismo, ali o
Brasil revelou a sua pior face. A cada minuto ia ao microfone uma sociedade violenta,
medíocre, corrupta, machista, homofóbica, torturadora, mentirosa, cafona e boçal.

Qualquer que seja o espectro político a que leitor se amolde hoje, não vejo como
discordar de que aquela foi a noite da nossa desesperança. Para não sucumbir a uma
melancolia paralisante, resolvi reagir. Só assim a náusea passaria.

Até ser eleito presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha era uma
personagem obscura da política brasileira.1 Acostumado a manobrar nos bastidores, dirigiu a
Telerj e tomou força politicamente, sempre na sombra, a partir da campanha de Fernando

1
Fernando Henrique Cardoso se refere a Eduardo Cunha da seguinte maneira: “Na verdade o que eles
querem é nomear o Eduardo Cunha diretor comercial da Petrobrás! Imagina! O Eduardo Cunha foi
presidente da Telerj, nós o tiramos de lá no tempo do Itamar porque ele tinha trapalhadas, ele veio da
época do Collor. Eu fiz sentir que conhecia a pessoa e que sabia que havia resistência, que eles estavam
atribuindo ao Eduardo Jorge; eu disse que não era ele e que há, sim, problemas com esse nome. Enfim,
não cedemos à nomeação.” É preciso um pouco de cuidado, porém, com as habilidades analíticas do ex-
presidente. O livro em que essa afirmação foi feita é de 2015. Evidentemente, o próprio aparato
editorial que afirma não ter havido modificações entre a data da escrita e a publicação não é suficiente
para que o leitor não fique de pé atrás. Todo sentido a uma leitura é construído no momento em que
ela ocorre. Portanto, FHC já sabia bastante sobre Eduardo Cunha quando publicou seus diários. De um
jeito ou de outro, é essa a imagem que o ex-deputado federal recebe de seus colegas políticos. Cf.
CARDOSO, Fernando Henrique. Diários da presidência 1995 – 1996. São Paulo: Companhia das Letras,
2015.

5
Collor de Mello à presidência. Aos poucos, Cunha se tornou um nome decisivo na engrenagem
que fez o PMDB estar próximo de todos os presidentes que ocuparam o cargo desde a
redemocratização.

Quando se tornou realmente famoso, Cunha liderou o processo que conduziu seu
partido à presidência através da derrubada de seus antigos aliados. A queda de Dilma Roussef
ainda vai ser muito discutida e as ciências políticas precisam urgentemente se deter no papel
que figuras secundárias tomaram em todo o processo. Em texto sobre outro assunto, Roberto
Schwarz cunhou uma expressão que pode ser útil aqui: "a revanche da província, dos pequenos
proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em lei etc".2

Eduardo Cunha caiu logo depois de Dilma Roussef. Com certeza ele não assistiu a
muitos filmes de gangster: quem faz o trabalho sujo será vitimado. Não podemos dizer o
mesmo de Aécio Neves, que foi gravado afirmando que o ideal, para transportar malas
suspeitas, seria a contratação de um laranja que pudesse depois ser assassinado. Quando o
declínio de Eduardo Cunha começa, ele afirma que pretende escrever um livro. Segundo ele,
Impeachment descreveria as entranhas da política brasileira. Evidentemente, muitos políticos
devem ter se assustado.

Não consegui dormir direito na madrugada seguinte à votação que Cunha dirigiu. Na
manhã seguinte, com as mãos meio paralisadas e a vista tão enevoada quanto a carreira do
meu autor, comecei a esquematizar Impeachment. Fiz um plano, iniciei a pesquisa e rascunhei
alguns trechos. Desde o início, minha ideia não era fazer nada verossímil ou que pudesse
transmitir as ideias políticas de Eduardo Cunha, até porque ele não parece ser exatamente
muito sofisticado nesse campo.

Eu queria realmente intervir: em primeiro lugar, redigir um romance Impeachment que


fizesse frente ao livro que hipoteticamente estava sendo escrito, depois, criar algo que
realmente risse da cara das pessoas que, na minha opinião, passaram décadas rindo da nossa.

Algum tempo depois, quando eu já tinha algumas páginas do Impeachment e uma boa
pesquisa, Cunha foi preso. Naturalmente, para um trabalho que se pretende de franca
intervenção, eu não poderia ignorar esse leve incidente na vida da minha personagem. Refiz o
plano inicial e resolvi junto com o Impeachment, que ali já tinha virado uma sátira, dobrar a
aposta na gozação e redigir um diário em primeira pessoa, procurando ficcionalizar os dias de
Eduardo Cunha na cadeia de Curitiba.

Para afastá-lo do ex-deputado federal, tornei o meu Cunha um pouco menos obcecado
por códigos e leis e o aproximei de uma certa religiosidade destrambelhada, a partir de
algumas notícias que encontrei na imprensa. Decidi que ele teria um texto descuidado e
confuso, para inclusive afastá-lo do meu próprio estilo. Não haveria revisão. Eu tomaria até o
cuidado de reler tudo apenas uma vez. Revisei A vista particular, último livro que assinei como
Ricardo Lísias, no mínimo doze vezes. Do mesmo jeito, meus outros livros foram, no geralm
muito revistos até chegarem à editora.

2
CF. SCHWARZ, Roberto. "Cultura e política, 1964-1969", em O pai de família e outros estudos. São
Paulo, Companhia das Letras, 2008.

6
Não sou o autor de Diário da cadeia.

Para mim era cristalino que o livro deveria ser uma caricatura. Há algum tempo tudo
no Brasil é exagerado e deformado. O afastamento de Dilma Roussef me parece excessivo,
bem como são quase inacreditáveis os valores usados pela Odebrecht para o pagamento de
Caixa 2 a campanhas políticas do PT. Michel Temer é desproporcionalmente horroroso. Marcar
uma manifestação contra as draconianas reformas trabalhistas que ele propõe para a véspera
do primeiro de maio, conseguindo assim um feriadão, mostra como a oposição a ele se tornou
igualmente caricata. O gênero agrada bastante os adolescentes. Ontem, três promotores
publicaram no Facebook uma espécie de jogral protestando contra o projeto que pretende
coibir o abuso de autoridade.3

Com exceção do início, redigi cada entrada de Diário da cadeia no próprio dia em que a
trama se passa. A Editora Record aceitou publicar o livro nos moldes que eu propunha e no
mês de março o anúncio do lançamento nas livrarias foi logo surpreendido pela proibição de
sua circulação, através de medida liminar.

Meu estado de espírito deu tantas voltas quanto o processo que o ex-deputado federal
Eduardo Cunha impetrou contra o livro, a editora e o criador do “Eduardo Cunha
(pseudônimo)”, no caso eu.4 Do espanto inicial quanto à natureza da ação, passei por graus
diferentes de ansiedade, bastante raiva e uma decepção ingênua com a justiça brasileira. Hoje,
sinto curiosidade pelos desdobramentos e uma pequena sensação de ridículo.

O processo começou com uma juíza acatando os pedidos dos advogados de Cunha.
Antes de chegar às livrarias, o romance foi proibido de circular. Além disso, determinou-se a
revelação do nome do “escritor desconhecido”, responsável pelo pseudônimo. Essas
solicitações foram acatadas em caráter liminar. Para a sentença, pedem ainda que seja
retirado de qualquer espaço de divulgação ou circulação a capa e trechos do livro, que o nome
do autor do livro seja exposto em “espaço de ampla visibilidade” e que eu e a editora sejamos
condenados a indenizar Eduardo Cunha por danos morais. Um recurso na segunda instância foi
proposto, dez dias depois, reivindicando a permissão para o livro circular e a manutenção do
pseudônimo.

A primeira desembargadora sorteada declarou-se impedida de julgar o recurso. Suas


razões são de foro íntimo. Fiz uma breve pesquisa e descobri que ela é muito ligada à família
Garotinho, inimiga intimíssima de Eduardo Cunha. O segundo relator sorteado não analisou o
recurso imediatamente.

3
Esse último parágrafo é um ótimo exemplo das dificuldades que estou enfrentando durante a revisão
de A literatura no banco dos réus. Quando o redigi, o apartamento em que Geddel Vieira de Lima
escondia mais de 50 milhões de reais em dinheiro vivo ainda não tinha sido estourado, renovando assim
o nosso catálogo de bizarrices infames. O meu medo é que quando mandarmos o livro para a gráfica já
tenha acontecido alguma coisa ainda mais grotesca. Não para...
4
O número do processo no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é 0063612-11.2017.8.19.0001.

7
*

Ontem, segunda-feira, 17 de abril de 2017, o prazo para apresentarmos nossa


contestação em primeira instância se encerrou sem o julgamento do recurso na segunda
instância. Foi preciso portanto apresentar meus dados ao juízo. A rigor, a justiça brasileira com
isso desfez o pseudônimo com que assinei o livro, intervindo em um conceito artístico criado
por mim. Meu nome ainda não aparece no site que traz as informações do processo. Agora,
tanto a juíza quanto os funcionários do tribunal em que a ação corre já têm acesso ao meu
nome. Qualquer advogado que entrar no processo eletrônico terá acesso à informação. Com
isso, a minha criação está no mínimo mutilada.

Aqui, na prática, começa a intervenção do Estado no meu trabalho. Em resumo: a


censura.

Ainda ontem também, o advogado conseguiu despachar com o desembargador que


julgará nossa contestação. Saiu otimista da conversa. Não é bem isso: ao menos achou que foi
ouvido com rigor e que a gravidade do caso ficou clara. Já o editor, Carlos Andreazza, está
bastante nervoso. Tanto a petição inicial quanto as contra-razões ao nosso recurso (redigidas e
protocoladas com extraordinária rapidez pelos defensores de Cunha) parecem tentar intimidá-
lo. Os advogados de acusação apresentaram à justiça várias entradas do editor no Facebook,
deixando claro que o estavam monitorando minuto a minuto. São agressivos, embora me
pareçam na verdade apenas escandalosos e salientes. Talvez seja uma estratégia. Segundo
informações que obtive, são advogados respeitados na área criminal, mas com pouca
experiência cível. Não sei se isso pode justificar o baixíssimo nível da ação que propuseram.
Alguns argumentos que apresentam, conforme o leitor logo poderá comprovar, são risíveis até
para um estudante secundarista.

Não quero de maneira nenhuma fazer o papel de crítico literário de mim mesmo. Acho
bastante desconfortável a hipótese de explicar minha própria criação. Sequer acredito que o
artista detenha necessariamente os melhores sentidos para sua obra. Uma vez, em um debate
na Universidade de São Paulo, um doutorando me perguntou por que dei meu próprio nome
para uma personagem do romance Divórcio. Respondi algo mais ou menos protocolar e que
achava, até ali, funcionar.

A professora Ana Paula Pacheco levantou a mão: “não gostei da sua explicação”.
Depois que formulou outra, nunca mais repeti a minha. Segundo ela, Divórcio é um livro de
denúncia. Quanto mais intimidade o narrador mostrar com as situações e tão maior for essa
experiência para o leitor, melhores serão os efeitos que o livro procura. Agora, a própria justiça
me obriga a pensar e escrever sobre a criação do “Eduardo Cunha (pseudônimo)” e do livro
que ele assina, o Diário da cadeia. Tenho que elaborar uma defesa.

A literatura no banco dos réus embasa a forma como vou me defender. Apesar de não
ter nenhum tipo de formação jurídica, os incidentes que vivi nos últimos anos me levaram a,
no mínimo, compreender parte do funcionamento do Poder Judiciário. Inclusive sua linguagem
propositalmente hermética e, às vezes, desastrada.

8
Foi com bastante desagrado que aprendi, por exemplo, que na maior parte das vezes
uma liminar é concedida sem que as duas partes sejam ouvidas. Tentarei usar o juridiquês
apenas quando for inevitável. Quero, obviamente, atingir um público mais amplo. Acho que o
excesso de tecnicismo serve não apenas para afastar as pessoas da noção dos próprios
direitos, o que por si só já é inadmissível, mas também para criar um ambiente em que um
palavrório muitas vezes sem sentido é aceito.

Meu ensaio tem como centro a prática artística. E é redigido sob protesto, já que
nenhuma obra de arte deveria ser levada a escrutínio jurídico. Um bom índice de adoecimento
de uma sociedade é o número de artistas que, por causa de seus trabalhos, são levados à
justiça. O Brasil não está bem.

Para reduzir o aspecto desagradável desse texto, e quem sabe até mais adiante
começar a sentir prazer ao redigi-lo, resolvi que ele será minha atividade principal nas
próximas semanas. Localizo o leitor no dia 19 de abril de 2017.

Escrevo diariamente há quase vinte anos. No início, a redação era quase um hobby.
Aos poucos, a atividade se tornou para mim não apenas profissionalmente decisiva, mas vital:
nas poucas vezes em que, desde então, deixei de criar alguma coisa, não me senti bem. Devem
ter sido, nesse tempo todo, por volta de cinco dias. Nunca em sequência.

Hoje, sou capaz de dividir minha rotina em duas atividades diferentes de criação. Não
acho o ideal, pois nessas ocasiões me ressinto de um pouco mais de tempo para ler. É o que
faço agora, no entanto. Além de A literatura no banco dos réus, redijo um conjunto de cartas
que “José Dirceu (pseudônimo)” está enviando para Fidel Castro. Seria a segunda parte do
conjunto de criações sobre o momento político contemporâneo. Não sei se vou publicá-las.

Nenhum desses dois textos é algum tipo de hobby. Para descansar, desde o ano
passado estou mergulhado no universo das pimentas. Comecei com a biquinho e a rosa e, em
dezembro, passei para uma líquida bem leve. Para, nessa segunda fase, não sofrer nenhum
impacto, eu consumia a cada dois dias e apenas no jantar, enquanto fazia pesquisas de várias
naturezas diferentes, inclusive de campo, sobre elas.

Continuo com as pimentas depois. Como separo uma quantidade exata de linhas a ser
redigidas em um dia, já estou chegando ao limite de hoje. A literatura no banco dos réus é a
forma que tenho para fazer voltar ao texto o que saiu dele de um jeito autoritário e violento.
Quero retomar o controle. Se não isso, ao menos a ilusão de domínio que me faz todo dia
perceber que não estou escrevendo exatamente o que quero e, portanto, terei que tentar
outra vez amanhã. É uma luta, mas também um alento, o que de novo me faz pensar no
universo das pimentas.

Espero que o leitor não se decepcione ao não achar aqui nenhuma palavra
grandiloquente. Nada que dê a impressão de eu estar em um palanque fazendo um discurso.
Não é o meu ânimo atual.

9
Alguém de gosto mais tonitruante não precisa desistir, porém. Não sei obviamente
como vou reagir quando a decisão do recurso for publicada. Se ficar com vontade de xingar,
prometo fazer isso. No decorrer do ensaio, vou colocar uma série de datas. O leitor com
necessidade incontornável de segurança não deve se animar muito: ao contrário de Diário da
cadeia, aqui farei uma série de revisões.5

No momento, a minha sensação é a de ridículo. De forma alguma sou o tonto da


história. Só que é desalentador saber que no dia 19 de abril de 2017, às 6 horas da manhã, um
ficcionista está precisando organizar sua defesa jurídica enquanto a editora luta para reformar
uma decisão judicial que impede a circulação de um romance. Não afirmo em voz alta, mas
quase com um muxoxo: o Brasil continua sendo uma República de Bananas.

Como ingrediente constante na alimentação a pimenta só fez parte da minha vida nos
dias que passei no México em 2013. Antes, apenas em situações ocasionais e, no geral,
desagradáveis. Na terra de Juan Rulfo, os pratos são por regra apimentados. Quem não quiser,
precisa pedir com bastante clareza. Mesmo assim, um prato sem pimenta será levemente
picante. Não tem jeito.

Logo na primeira refeição, senti o tradicional ardor na boca. A viagem tinha sido muito
incômoda, com um atraso de quase 10 horas na conexão entre a Cidade do México e
Guadalajara. Eu estava faminto e não queria esperar outro prato.

O suadouro veio enquanto eu ainda comia. Tomei bastante água, senti a pele
levemente eriçada e a cabeça pesada. A dose havia sido forte. Uns quarenta minutos depois,
bastante suado e ainda com sede, comecei a me sentir animado e desperto. Resolvi aceitar a
culinária mexicana sem pedir nenhuma alteração.

Lembro-me de beber muita água. Passei algum aperto e muita palpitação após alguns
pratos mais fortes. Por fim, acabei me sentindo muito bem com a cozinha mexicana. De volta
ao Brasil, deixei, àquela altura, a pimenta de lado. Não sei por quê.

Acompanhei a Operação Lava Jato com interesse crescente. Comecei a me debruçar


com mais profundidade apenas durante as eleições presidenciais do final de 2014. Hoje, e
muito graças ao projeto que Diário da cadeia inaugurava, posso dizer que conheço a história
contemporânea brasileira nos menores detalhes. Sei os trejeitos de seus principais atores, boa
parte da cronologia dos vazamentos seletivos que foram moldando a operação e, inclusive, os
textos mais importantes do juiz Sergio Moro e de alguns dos procuradores que estão deixando
os políticos brasileiros com mais dor de barriga que o meu hobby com a pimenta.

Ao contrário da maioria dos meus leitores, tenho bastante dificuldade para emitir uma
opinião segura sobre o que aconteceu com o Brasil desde que o doleiro Alberto Youssef voltou

5
As primeiras começaram em 2 de junho de 2017. Essa nota de rodapé, por sua vez, está sendo de novo
revisada em 2 de outubro de 2017. Estou voltando da Bienal do Livro de Alagoas, após um evento que
discutiu por 4 horas a censura sofrida por Diário da cadeia.

10
para a cadeia, em Curitiba. Concordo quando Nuno Ramos diz que “a história dos vazamentos
é tão interessante quanto a do próprio impeachment”.6 Tem muito de espetáculo nisso tudo.
Do mesmo jeito, acompanho com certa apreensão a leitura um tanto particular que Moro tem
do Código de Processo Penal. Não acho nada razoáveis as longas prisões preventivas de que a
operação tanto se vale. Não aplaudo prisão nenhuma, inclusive.

Por outro lado, assisti a boa parte das audiências conduzidas pelo juiz mais famoso do
Brasil. Dá para ver que ele de fato está lidando com gente, no geral, da pior qualidade. Talvez
haja alguma simplificação se eu disser que o Brasil é um país pobre por causa de sua classe
política, já que os réus foram eleitos e, muitos, reconduzidos aos cargos algumas vezes.
Continuo com muitas dúvidas sobre as justificativas que destituíram Dilma Roussef da
presidência (votei nela no segundo turno das eleições de 2014) e acho Michel Temer
asqueroso, para dizer o mínimo.

Hoje sinto, na mesma proporção, muita reserva pelo Partido dos Trabalhadores.
Voltarei a isso mais adiante, mas muita gente que se considera de esquerda no Brasil faz só
jogo de cena. Uma massa de figuras intransigentes rapidamente se colocou a favor ou contra a
Operação Lava-Jato. É como se os abusos do corpo jurídico que a conduz nos obrigasse a
absolver José Dirceu, por exemplo.

Do mesmo jeito, Guido Mantega, ex-ministro da economia do governo Lula, confessa


ter uma conta na Suíça jamais declarada à receita federal brasileira. Não é porque a conduta
jurídica de Deltan Dallagnol é bastante questionável que vou, então, ficar ao lado de Dirceu e
Mantega. Afasto-me de ambos os lados. Não vou me enfiar em nenhum nicho ideológico
alheio.

(A última frase do parágrafo anterior está causando urticária em boa parte dos leitores
de A literatura no banco dos réus. Sem problema: toda leitura é mesmo enviesada.
Responsabilize-se pela sua.)

Fiquei bastante intrigado quando li que Cunha, presidente da sessão que afastou Dilma
da presidência, pensava em escrever um livro sobre o impeachment. As primeiras notícias
contavam que ele pretendia esclarecer episódios obscuros e, ao mesmo tempo, ganhar
dinheiro.

O livro seria assim uma espécie de documento que esclareceria um momento bastante
traumático da história recente do Brasil e, inclusive, sanaria lacunas e pacificaria pontos
polêmicos do processo político que acabou retirando Dilma Rousseff da presidência. Os
próprios advogados de Eduardo Cunha repetem a crença no poder de esclarecimento que o
livro teria. Se acreditam mesmo nisso ou se estão apenas protagonizando alguma pantomima
para o gosto do público, não importa muito. O que interessa mesmo é que produzem esse tipo
de discurso: “Analisando-se a sinopse divulgada [do livro que Cunha estaria escrevendo sobre
o Impeachment] percebe-se que se trata de um livro tão impactante quanto sério, certamente

6
Cf. RAMOS, Nuno. “Fooquedeu”. Em: Piauí. N.° 118. Jul. 2016.

11
uma obra de relevante estudo para cientistas políticos, juristas e historiadores”.7 Como se
pode ver, pretensão não falta. Nesse trecho, dei risada.

Evidentemente, não acho que livro algum, de ficção ou de qualquer outro gênero,
tenha capacidade de pacificar uma discussão. A propósito, sequer acho que esclareçam
alguma coisa. A literatura não explica nada. Como o leitor já deve ter percebido, para mim a
linguagem serve para muita coisa, mas não para apaziguar conflitos.

Um mês com a pimenta biquinho cortada sobre o arroz e a carne e, alternadamente, a


pimenta rosa na salada não me trouxeram a mesma sensação de bem-estar que tive no
México. Ainda assim, senti o ritmo cardíaco estável e não posso deixar de dizer que o sabor é
delicioso.

Com o molho de pimenta verde Tabasco, comecei a suar um pouco mais. Acho que o
usei em quantidade razoável, em dias alternados, durante o mês de dezembro de 2016. Aqui,
achei que meu intestino estava funcionando um pouco melhor. Foi com essa companhia na
cozinha que concluí o Diáro da cadeia. Lembro-me de estar bastante feliz.

Planejei passar o mês de janeiro de 2017 com a pimenta cumari do Pará. É um frasco
com alguns grãozinhos um pouco maiores que arroz, amarelos e conservados no azeite. Eu os
cortava em pedacinhos ainda menores e jogava sobre o prato todo. A essa altura, pensei em
pesquisar alguma coisa sobre a quantidade que estava consumindo e, do mesmo jeito, os
pratos que poderiam ir melhor com esse ou aquele tipo. Achei que seria precoce, porém.

A cada prato, gostava mais da sensação. O suor era grande, bem como a satisfação que
ele trazia. Para o mesmo que eu sentia no México faltava apenas que tudo isso ficasse mais
acentuado e que até a pele reagisse à pimenta. Não iria demorar.

Da pimenta cumari, procurei um molho tradicional, de ardência média. Optei pelo


Tabasco Suave para não correr nenhum risco. A ousadia ficou com a decisão de usar uma
quantidade razoável todos os dias no jantar. A sensação foi ótima. Os efeitos da cumari
ficaram acentuados, com a minha pele se eriçando quase como acontecia no México. Pelo que
anotei, comecei a respirar melhor. Logo depois do jantar as vias respiratórias davam a
impressão de estar completamente desobstruídas. Eu me sentia com mais fôlego.

Fevereiro de 2017 foi um mês muito tranquilo. Diário da cadeia estava encerrado, já
na gráfica, e eu me divertia com as cartas assinadas pelo José Dirceu (pseudônimo). Não dava
mesmo para imaginar o maremoto dos meses seguintes.

Resolvi, assim, começar a ler mais sobre pimentas. Os hobbies não escondem a nossa
natureza. Como servem para relaxar, a gente se denuncia. Preferi começar pelos livros de
receita. Eu já conhecia as saladas com pimenta biquinho. Também não me atraí pelas receitas

7
Trecho da ação inicial proposta contra o livro Diário da cadeia, disponível no processo citado.

12
de geléia. Parecem aqueles livros de clássicos de literatura facilitados. Decidi experimentar um
“risoto de brie com duas pimentas”.

Corte em pedacinhos bem pequenos duas colheres de pimenta biquinho. Arranje mais
ou menos a mesma quantidade de dedo-de-moça. Acho que uns 150 gramas de queijo brie são
suficientes. Faça o arroz arbóreo normalmente. Para quem gosta, um pouco de manjericão a
mais no final pode dar um odor agradável ao prato. O detalhe especial fica com os 100 ml de
vinho branco seco que você acrescenta enquanto coloca a manteiga. De resto, é só preparar
como um risoto comum.

Não consegui localizar nas minhas anotações o dia exato em que fiz esse risoto. A
lembrança do bem-estar que ele me causou, porém, é muito clara. Enquanto suava, chateado
com o pouco que tinha sobrado no meu prato, fui até a sacada e abri levemente os lábios,
sentindo o vento do começo da noite se chocando com a pele do interior da boca meio
anestesiada por causa da pimenta. Meus pelos estavam arrepiados e a respiração parecia
chegar até o fundo dos pulmões.

Raras sensações são mais agradáveis e poucas vezes me senti melhor.

Como eu disse, costumo escrever pela manhã, assim que consigo o mais absoluto
silêncio. Para Diário da cadeia, porém, reservei as noites. Como o texto trataria do próprio dia,
e no Brasil contemporâneo dá para dizer que é impossível prever quando teremos outro
terremoto político (provavelmente daqui a pouco...), não havia outra forma. Esse método foi
importante, por exemplo, durante os primeiros dias da prisão de Sérgio Cabral ou na eleição
para prefeito de 2016.

No início, apesar do cansaço, tive dificuldades para abandonar meu método de


trabalho. Eu revisava muito os trechos, por exemplo. Também buscava excesso de vírgulas e
de adversativas. Precisei de duas semanas para me afastar razoavelmente de mim mesmo.

Do mesmo jeito, além do referencial mais objetivo, eu não queria nada que pudesse
remeter ao ex-deputado federal. Aqui, sublinho que, de novo, estou falando de questões
estilísticas. Analisei os textos que de vez em quando ele enviava à imprensa e muitas de suas
entrevistas. Eu fugiria daquela correção gramatical afetada.

O autor de Diário da cadeia não é Eduardo Cunha e nem Ricardo Lísias, mas sim
“Eduardo Cunha (pseudônimo)”. Pessoas diferentes, portanto.

Para me precaver, consultei a definição de pseudônimo do Dicionário Houaiss:

3 (1873) diz-se de obra escrita ou publicada sob um nome que não é o do seu autor (um livro p.).8

O significado é claro: Diário da cadeia pode ter sido escrito e publicado por qualquer pessoa,
menos pelo próprio ex-deputado federal Eduardo Cunha. Qualquer outra leitura contém uma

8
Cf. HOUAISS, Antonio e Mauro de Salles Vilar. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2001. Pág. 2324.

13
boa parcela de má-fé ou, no mínimo, desconhecimento lexical. Ingenuamente, para mim com
isso os problemas jurídicos estariam resolvidos.

Para continuar fiel ao princípio de que não sou o autor do livro, resolvi fazer contato
com um editor com quem trocava algumas mensagens de vez em quando: “caso você recuse o
que vou propor, promete não comentar com absolutamente ninguém?” Carlos Andreazza, da
Editora Record, aceitou. Expus o projeto. Ele fez algumas perguntas e topou publicar Diário da
cadeia, explicando-me que só não conseguiria esconder minha identidade da proprietária da
editora. De resto, garantiu-me que nem seus auxiliares mais diretos saberiam quem criou o
pseudônimo.

No final do dia 20 de abril, o desembargador responsável por julgar o caso suspendeu


a decisão que impedia a circulação do livro. Do mesmo jeito, confirmou ao menos em caráter
liminar a legalidade do pseudônimo. Augusto Alves Moreira Júnior afirma que Diário da cadeia
é de fato uma obra literária, o que, segundo ele, enfraquece muito também o pedido de danos
morais feito pelo ex-deputado federal.9 Finalmente caía, com uma decisão enfática, a censura
a um romance no Brasil. Vale ressaltar que o desembargador recebeu um exemplar de Diário
da cadeia e tudo indica que o tenha lido.

A decisão de primeira instância, em caráter liminar, foi tomada sem o conhecimento


da obra. Eu não me conformo.

No início da tarde do dia 21 de abril, o jornalista Maurício Meirelles, da Folha de S


Paulo, escreveu-me avisando que descobrira, através do processo de 1° instância, que sou o
criador do “Eduardo Cunha (pseudônimo)” e que faria seu trabalho, publicando a informação
no site do jornal, ainda naquela tarde e em sua coluna na edição impressa do dia seguinte. Ele
perguntava se eu queria dar alguma declaração.

Respondi que não. Para mim àquela altura o pseudônimo já não existia. A rigor, a obra
já tinha sido mutilada quando os envolvidos no imbróglio jurídico (advogados da editora e do
ex-deputado federal, funcionários da justiça, a própria juíza etc) souberam a minha identidade.
Não compreendo porque um magistrado se veja no direito de ocupar uma posição diferente,
diante de uma obra de arte, do resto do público.

Eu não me conformo mesmo.

Às 17 horas, a Folha de S Paulo colocou no site a notícia que estaria no jornal impresso
do dia seguinte:

9
A decisão irretocável do desembargador pode ser lida no seguinte link:
http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=00041B22CF9439E7A8B3283B36A3
0E1F8567C5062135122D&USER= (último acesso em 5 de dezembro de 2017.)

14
Alguns minutos depois, publiquei em uma rede social uma nota avisando que eu não
tinha muito a declarar diante daquela situação. Algo bastante inesperado para mim começou a
acontecer. Por mais ou menos duas semanas, fui alvo de uma patrulha, sintomática e
impressionante, via redes sociais, emails, whatsapp e telefone. Tanto o conteúdo quanto os
autores das agressões me deixaram boquiaberto, e não foi do mesmo jeito que o risoto de
pimenta com brie.

Ainda resta um detalhe crucial para o desenvolvimento da obra, sobretudo no que diz
respeito ao pseudônimo: politicamente, tomando o cuidado que esse tipo de classificação
exige e mais ainda no Brasil contemporâneo, pode-se dizer grosso modo que Andreazza é uma
pessoa de direita. Mais além, é um militante político bastante ativo: além de uma coluna fixa
no jornal O Globo, mantém um programa diário de rádio no canal Jovem Pan. Aqui, ele se
afasta do perfil dos editores contemporâneos, em sua maioria avessos a um posicionamento
político mais explícito. A maior parte das grandes editoras brasileiras conta com capital
internacional ou forte presença do mercado financeiro. São portanto muito ligadas ao
capitalismo, embora não publiquem evidentemente apenas uma linha editorial, como aliás não
é o caso nem da editoria do próprio Andreazza.

Esse silêncio político da classe editorial no Brasil não é uma tradição. Há poucas
décadas, Enio Silveira, Jorge Zahar e Fernando Gasparian colocavam-se no debate interno com
muita ênfase e frequência. Um ponto interessante de estudo seria observar como a retirada
dos editores do ambiente público acompanha o profissionalismo da atividade. Deve haver algo
aqui de esforço por não desagradar ninguém, o que exige sempre uma boa dose de silêncio e
um cuidadoso afastamento. O que acontece nos bastidores, evidentemente, é outra história.

15
Do mesmo jeito, o establishment brasileiro prefere escritores bem comportados. Se
falarem de política, ótimo, mas desde que não incomodem muito o poder. Há aqui também o
impulso para certo tipo de literatura, mas esse não é meu assunto aqui.

Durante a patrulha, algumas pessoas ressaltaram o fato de Andreazza ser editor de


livros “de direita”, sem atentar para o fato de que eles estão em todas as maiores casas
brasileiras de publicação hoje em dia, já que são um produto para amplo público. Carlos Fico,
citando Daniel Aarão Reis, lembra que a população brasileira é, ideologicamente falando,
formada por uma maioria conservadora silenciosa.10 Naturalmente, as grandes editoras
querem atingir esse público.

Além da intolerância típica de alguns meios de esquerda – no que de novo se


aproximam dos piores momentos da direita – houve também na patrulha dirigida a mim um
detalhe que muita gente já percebeu, embora poucas tenham externado com clareza. Acabou,
no mundo inteiro, os anos sabáticos do pensamento de esquerda. E muita gente se ressente
disso. Se quisermos evitar que os conservadores destruam todas as pequenas conquistas que
conseguimos aqui e ali (no Brasil por exemplo o acesso à universidade das classes antes
excluídas), é preciso parar de choramingo agressivo e voltar a refletir. A censura não vai
adiantar nada. Como vou discutir abaixo, ela não é coisa só de gente ignorante.

A intenção satírica de Diário da cadeia é óbvia. O aspecto político do livro, no entanto,


tomou um rumo bastante inesperado. Se Timothy Snyder tiver razão ao afirmar que “a vida é
política, não porque o mundo se importa com o que você sente, mas porque o mundo reage
ao que você faz”11, as reações violentas que observei logo após a veiculação da informação de
que escrevi o livro servem para um exame do que se tornou o debate político contemporâneo.

Se somar emails, recados de whatsapp e mensagens no Facebook, privadas ou


públicas, devo ter recebido por volta de duzentas agressões de pessoas ligadas, de uma forma
ou de outra, ao “meio literário”. No geral, vieram de ficcionistas e poetas, embora professores
universitários (todos com a minha idade ou menos, nenhum mais velho), editores e outros
profissionais também tenham aderido ao enxovalhamento virtual. (Ninguém me falou nada
pessoalmente.12) Não conto aqui, claro, conversas públicas que essas pessoas

10
CF. FICO, Carlos. “Ditadura militar brasileira: aproximações teóricas e historiográficas”. Tempo e
argumento. Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 05 – 74. Jan./abr. 2017.
11
SNYDER, Timothy. Sobre a tirania. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Pàg. 32. Tradução de
Donaldson Garschagen.
12
Para mostrar como funciona o tal “meio literário” no Brasil, talvez valha a pena narrar o que o stalker
que mais me agrediu resolveu fazer alguns meses depois, em um ambiente cheio de pessoas ligadas à
literatura. O leitor logo descobrirá que as instâncias superiores da justiça brasileira derrubaram todos os
argumentos dos advogados de Eduardo Cunha, recusando inúmeros recursos em seguida. Ninguém
perde por esperar. Em novembro de 2017, quando Diário da cadeia circulava com todo aval possível,
estive em um jantar oferecido pela Biblioteca Nacional para os finalistas de um prêmio literário. Não sei
exatamente como descrever o tal stalker: carioca radicado em São Paulo, costuma com o companheiro
cercar todos os ambientes que lhe oferecerão algum espaço. Publica edições nebulosas de prosa, poesia
e alguns ensaios meio ilegíveis, enquanto mantém um blog com baixa circulação. É presença frequente
em todo tipo de evento, quando normalmente é identificado por uma risada estranha, daquelas que a

16
tiveram nas redes sociais com interlocutores que não me agrediram diretamente. Aí o número
seria enorme.

O tal “meio literário” não se virou contra Diário da cadeia. Muita gente se solidarizou
com a censura e, depois, condenou o intenso patrulhamento. No entanto, apenas pessoas
ligadas à literatura tomaram a iniciativa de publicar agressões. O argumento de que o livro não
atinge outros públicos é inválido: há artigos sobre ele escritos por advogados e jornalistas.
Além disso, a intervenção também interessou ao público das artes plásticas e, evidentemente,
a toda uma gama de gente que está atenta à política brasileira.

Outro traço de identidade dos haters é a forma como se enxergam politicamente:


apresentam-se como “de esquerda” e costumam fazer colocações políticas nas redes sociais
com bastante frequência. Por fim, a maioria tem alta escolaridade.

O termo “patrulha” aplicado ao ambiente artístico ficou bem conhecido em 1978


quando Cacá Diegues, em uma entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, reclamou de
algumas críticas ao filme Xica da Silva, que seriam mais cobranças do que análises. Em 1980,
em um interessante volume de entrevistas, Heloísa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto M.
Pereira localizaram bem a discussão: “podemos observar como questão central a relação
arte/engajamento, vista de diversos ângulos: o papel do intelectual, monopólio do saber, o
alcance social da arte, o gosto popular, as questões de uma cultura nacional popular, o
verdadeiro sentido de uma arte revolucionária etc.etc.”.13

Naquele momento, no final de uma ditadura bastante violenta, havia uma urgência de
posicionamento. Tudo estava para ser reconstruído, inclusive a liberdade de expressão.
Embora nenhum artista deva ser constrangido a ocupar esse ou aquele espaço, quando todos
estão proibidos de falar com franqueza, alguns debates são de fato mais importantes que
outros. A cobrança atual vai por outro caminho: agora, querem destruir a liberdade de
expressão e criação que, duramente, foram conquistadas no curto período democrático que o
Brasil viveu entre os golpes de 1964 e 2016!

Hoje, quase quarenta anos depois, os patrulheiros são diferentes. A observação da


obra já não importa. Como eu disse, toda a agressão se deu antes que Diário da cadeia
chegasse a ser distribuído. Por conta da proibição, ninguém tinha lido, portanto não se trata de
crítica ao livro. Agora, o que importa é certa imagem que o artista consiga desempenhar, o
grupo em que ele se insere e o forte zelo para não ultrapassar os limites muito bem definidos

pessoa parece estar engasgando. Propagou todo tipo de pós-verdade sobre Diário da cadeia, publicando
poemas cafonas me agredindo e alimentando a sede de violência simbólica de muita gente. Enfim,
ofereceu argumentos, como eu disse todos refutados na justiça, para os advogados de Eduardo Cunha.
Meses depois, resolveu em público estender-me a mão para me cumprimentar na Biblioteca Nacional.
Minha reação fez esbugalhar o olho de todo mundo que estava perto, mas infelizmente a figura
confirmou que todo patrulheiro é de fato um covarde e se afastou. Teria sido divertido se bancasse a
provocação. Aí está o cinismo brasileiro.
13
Cf. HOLLANDA, Heloísa Buarque e Carlos Alberto M. Pereira. Patrulhas ideológicas. São Paulo:
Brasiliense, 1980. Pág. 9.

17
pela própria turma. Um dos meus stalkers mais animados (o da Biblioteca Nacional...) chegou a
afirmar que eu estava preocupado demais com questões estéticas!

Com muito prejuízo pela variedade das ofensas, é possível dividir a patrulha em três
grupos, embora no geral as cobranças viessem juntas, mudando apenas a intensidade entre
elas. Muita gente afirmou que é um completo absurdo eu ter feito um projeto literário com
uma pessoa assumidamente de direita como Carlos Andreazza. Depois, a ideia seria
unicamente oportunista, com o objetivo exclusivo de produzir um best-seller. Dois professores
universitários chegaram a trocar vários tweets abertos para o público comentando o fato de
Diário da cadeia constar nas listas de livros mais vendidos. O fato de o livro na verdade sequer
estar distribuído no momento em que faziam tal afirmação não lhes importava.14 Por fim,
muita gente afirmou que eu estava lançando uma biografia de Eduardo Cunha. Todos os
exemplos citados nesse parágrafo são de pessoas com o título de doutor. Segundo Timothy
Snider, “a pós-verdade é o pré-fascismo”.15

Talvez alguém pense que passado o ímpeto agressivo dessas pessoas, assim que
observassem com cuidado o que estavam dizendo, admitiriam os problemas. Pelo tamanho da
virulência, acho difícil. Ainda assim, o prejuízo já estaria feito: basta ver a quantidade de gente
que leu essas pós-verdades, inclusive estudantes, e saiu por aí repetindo tudo. No interior de
Minas Gerais, no Recife, em Maceió e por fim na Bahia, perguntaram-me se é verdade que
fomos condenados a escrever a palavra “pseudônimo” na capa.16

De maneira geral, março de 2017 também foi um mês tranquilo. Usei o molho Tabasco
Tradicional com regularidade e por fim consegui o efeito que sentia no México. Muita gente
afirma que a pimenta sequestra o sabor da comida. Só no começo. Com o hábito, ela na
verdade passa a ser apenas mais um tempero.

Para isso, evidentemente, é preciso acertar o tipo de pimenta com cada comida. Eu
fazia isso com as receitas que estava testando. Por mais que as descreva aqui, nenhuma vai
melhor que o risoto. A essa altura, comecei a achar que a pimenta talvez se integrasse ao meu
dia-a-dia, como aconteceu com o café. O que era só um hobby evoluiu para algum estudo, o
consumo diário e até mesmo a entrada em um clube de consumidores. Desde então, aliás,
tenho bastante cuidado quando resolvo escolher um passatempo diferente. Se acabar
integrando-os todos à minha rotina, logo não vou conseguir fazer mais coisa nenhuma a não
ser me divertir descobrindo coisas novas, sites especializados, lojas e clubes. É esse tipo de

14
Até hoje, vários meses depois de liberado para circular pela justiça o livro não figurou em nenhuma
lista de mais vendidos e está longe de ser um best-seller.
15
Cf SNYDER, Timothy. Op. cit. Pág. 69.
16
No início de novembro eu soube de algo ainda mais estarrecedor: em um curso de graduação em
Letras, na disciplina de Teoria Literária, uma professora (também com doutorado) ficou mais ou menos
uma hora discutindo como fui habilidoso ao lançar o boato de que Diário da cadeia havia sido proibido.
Segundo ela, lépida e faceira, a editora atrasara o lançamento para fazer uma inédita jogada de
marketing. Entre os alunos havia um advogado que, através do smartphone, localizou o processo no site
do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Ele levantou a mão e apontou o erro da professora, que parece
ter tido uma gastura estomacal antes do fim da aula, encerrando-a abruptamente. Eu não sei mais o que
estão chamando por aí de Teoria Literária, mas talvez seja melhor voltarmos a Aristóteles.

18
coisa que sempre fez com que eu me sentisse um privilegiado. Às vezes dá vergonha, mas acho
que assumi-la é a possibilidade menos indigna.

Enfim, no final de março chegou a notícia de que Diário da cadeia estava proibido de
circular por uma decisão liminar. Ao contrário do editor Carlos Andreazza, que ficou tenso
desde o começo (como eu disse, para ele os livros são quase como filhos), acabei reagindo
com certa fleuma. Aos poucos, ela foi sendo substituída pela melancolia, o desânimo e a
sensação de ridículo. Com o livro proibido, viajei para um evento em Belo Horizonte e resolvi
visitar uma loja de pimentas no mercado municipal da cidade.

Acho fecundo observar que as agressões usaram basicamente os mesmos argumentos


dos advogados do ex-deputado federal Eduardo Cunha. A única diferença foi o momento.
Quando vieram, já tinham sido consideradas ilegítimas pela justiça. Mesmo o vocabulário
ofensivo foi igual: oportunista, leviano, aproveitador e por aí vai. Tudo isso dito por gente que
não havia lido o livro.

Não é segredo que a esquerda não lida muito bem com a liberdade de expressão. Se a
direita faz o mesmo, não é o meu assunto aqui. O fato é que essas pessoas se identificam em
absoluto com o que pensa o arquiconservador Eduardo Cunha. Reproduziu-se na patrulha a
um romance a união entre PT e PMDB a que o Brasil assiste há bastante tempo. A aliança é
portanto algo visceral, já instalado na cabeça de muita gente.

Só aceito como verdadeiramente de esquerda uma ação política que se coloque contra
as instituições financeiras, as grandes corporações e, portanto, se oponha ao capitalismo.
Evidentemente, liberdade de criação artística e de expressão não são valores negociáveis. Não
vale a pena sacrificá-las por absolutamente nada.

Recentemente, Tales Ab’Saber afirmou que os líderes do PT, inclusive e talvez


sobretudo Lula, estão sendo levados à justiça exatamente por sua proximidade quase
univitelina com a versão ultra selvagem do capitalismo que vigora desde sempre no Brasil.17
Apesar de seus ganhos sociais, não foram governos de esquerda. Fernando Haddad, por
exemplo, agiu com impressionante rapidez, quando foi prefeito de São Paulo, para regularizar
o funcionamento da Uber, uma das empresas mais exploradoras do mundo contemporâneo. A
propósito, a mesma pessoa que mereceu o cargo de Secretário de Finanças na gestão de
Haddad ocupou o cargo de secretário-adjunto de Fazenda do governo de Geraldo Alckmin...

Haddad era o prefeito de São Paulo quando estouraram as manifestações de junho de


2013. O ideário dos protestos eram de fato anticapitalistas. Ele não conseguiu compreender,
como o resto do PT, coisa alguma. Em artigo recente, afirma que aqueles movimentos
acabaram culminando no afastamento de Dilma Rousseff.18 Fica claro como para muitos
setores do PT a retirada da presidenta, por mais traumas que venha a gerar, foi conveniente.
Haddad, por exemplo, encontra no golpe um ótimo desdobramento para seu desastre político

17
Não é à toa que o melhor analista político no Brasil contemporâneo é um psicanalista. Cf. AB’SABER,
Tales. Dilma Roussef e o ódio político. São Paulo: Hedra, 2015.
18
Cf. HADDAD, Fernando. “Vivi na pele o que aprendi nos livros.” Piauí. Jun. de 2017

19
com as manifestações. De novo, aqui está a proximidade, muito mal disfarçada, entre setores
que se enxergam de esquerda e o ex-deputado federal que comandou a sessão legislativa que
afastou uma presidenta legitimamente eleita sem que houvesse qualquer tipo de crime de
responsabilidade.19

Quero ainda voltar a 2013.

Em ensaio sobre a psicologia e as formas de ação de partidos e grupos de esquerda,


Renato Janine Ribeiro observa que “muita gente à esquerda se considera superior à direita, em
especial do ponto de vista ético, e com isso se autoriza a utilizar meios que não são corretos,
como se os fins superiores permitissem meios duvidosos”.20

De fato, esse comportamento é muito claro. Pessoas que se enxergam como “de
esquerda” assumem seu lugar como uma espécie de posição virtuosa. Os outros seriam mal
intencionados, voltados unicamente para a exploração da sociedade e o enriquecimento
próprio, dotados de ignorância e violência.

Com isso, obviamente, o virtuoso não ocupa um espaço político, em que deve
argumentar sobre a validade de suas ideias e opções. Ao contrário, por conta de sua virtude,
elas são a priori as corretas. Esse tipo de posicionamento (sim, pois como todos os outros, ele
nada mais é do que um lugar no mundo) faz com que os métodos usados pelos virtuosos não
tenham nenhum tipo de diferença quanto a qualquer outro autoritarismo. Aqui está a
opressão que a pessoa cheia de virtude realiza.

Nada impede que gente de direita achem a mesma coisa. No final, o resultado é que a
política termina escamoteada pela violência, em que posições ideológicas recusam-se a
colocar seus argumentos, pois se consideram corretas antes de tudo.

Esse fragmento está sendo escrito meses depois dos anteriores, mais precisamente em
17 de outubro de 2017. Nesse momento, museus discutem a adoção de medidas restritivas
para o público, depois da ação dos grupos conservadores citados. O Museu de Arte de São
Paulo (MASP) abre amanhã uma ampla exposição sobre sexualidade na arte. Na última hora,
ficou resolvido que será adotada a recomendação de 18 anos como idade mínima para os
frequentadores.

Um amigo escreveu em uma rede social que achava a atitude do MASP “covarde”.
Imediatamente, pessoas que se consideram progressistas apareceram, algumas em tom
bastante exaltado, para acusá-lo de leviandade. Afinal de contas, aquela seria a única forma de
a exposição se proteger dos grupos conservadores, que do contrário tentariam impedi-la de
existir. Pouco tempo depois, o texto do meu amigo foi retirado do ar, sob acusação de

19
Em delação premiada, Lúcio Funaro, apontado como um dos operadores de Eduardo Cunha, afirma
que o ex-deputado federal teria comprado diversos votos a favor do afastamento de Dilma Roussef. Cf.
O Globo. 16 de outubro de 2017. https://oglobo.globo.com/brasil/funaro-diz-ter-repassado-1-milhao-
para-cunha-comprar-votos-pelo-impeachment-de-dilma-21948977 (Acesso em 6 de dezembro de 2017.)
20
CF RIBEIRO, Renato Janine. A boa política – ensaios sobre a democracia na era da internet. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017. Pág. 200.

20
conteúdo ofensivo. Os grupos que se acham progressistas, portanto, agiram com os mesmos
métodos dos reacionários e chegaram ao mesmo objetivo: a censura.21

As relações entre arte e seus mecanismos de financiamento nunca foram pacíficas. Se


a indústria cultural convive muito bem com o mercado, objetos estéticos têm como pré-
requisito de eficácia a tensão com as instituições de qualquer ordem, inclusive as financeiras.
As artes plásticas, por exemplo, são capazes de oferecer altos valores a um grupo de artistas
por obras que, ao mesmo tempo, contestam a existência das próprias instituições que as
acolhem.

Pela própria natureza técnica, o cinema exige enormes recursos. Dois filmes que
recentemente agradaram amplos setores da esquerda brasileira, Acquarius e Que horas ela
volta?, tiveram as Organizações Globo como uma de suas financiadoras. Tanto o jornal
impresso quanto o canal de TV desse mesmo grupo, por outro lado, foram acusado pelos
mesmos setores que aplaudiram esses filmes de promover o afastamento de Dilma Rousseff,
sobre quem aliás Ana Muylaert, diretora de Que horas ela volta, está fazendo um
documentário. Kleber Mendonça Filho, que dirigiu Acquarius, protagonizou um protesto
contra o golpe durante o lançamento do filme no Festival de Cannes. A obra de Muylaert,
ainda, foi distribuída pela Pandora Filmes, empresa de André Sturm, atual Secretário de
Cultura de João Dória Júnior, prefeito conservador de São Paulo.22

É possível produzir uma arte de qualidade fora das instituições? Em termos. Talvez
Banksy consiga situar sua obra longe do circuito tradicional. Ainda assim, ele depende dos
meios de comunicação do establishment, dos quais fez largo e inteligente uso, para ampliar o
alcance e eficácia de sua denúncia. O fato é que, apesar dessa ambiguidade, a arte é
provavelmente o único meio de que consegue criticar o sistema por dentro dele, desde que
não se conforme às regras bem estabelecidas (e estáveis demais) do mercado.23 Um dos
principais artistas das últimas décadas compreende isso muito bem: “A revolução continua a
ser a nossa preocupação mais própria, Contudo, em vez de planejá-la, ou parar o que estamos
fazendo a fim de realizá-la, pode ser que nos encontremos o tempo todo nela. Faço uma
citação do livro de M. C. Richard, The Crossing Point: ‘Em vez de a revolução ser considerada
exclusivamente como um ataque de fora sobre uma forma estabelecida, ela está sendo
considerada como um recurso potencial – uma arte de transformação voluntariamente
empreendida a partir de dentro’.”24

21
Como nota pitoresca, agora há pouco vi em uma rede social uma professora universitária qualificando
como “lixo” as pessoas que apóiam um político que costuma agredir quem discorda dele.
22
Esses exemplos me foram dados por João Varella, da editora Lote 42.
23
Estou incluindo aqui coletivos que praticam o que ultimamente ficou conhecido como artiativismo.
Um dos mais interessantes é o Yes Men.
24
Cf CAGE, John. “O futuro da música”. Em: Escritos de artistas – anos 60/70. Org. de Glória Ferreira e
Cecilia Cotrim. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. Pág. 339. No final do ensaio, o excepcional músico é ainda
mais claro: “A utilidade do inútil é uma boa notícia para os artistas. Pois a arte não serve a nenhum
propósito material. Ela tem a ver com a mudança das mentes e do espírito. (...) A mudança não é
destruidora. Ela é animadora.” (Pág. 347.)

21
Uma arte verdadeiramente transformadora é aquela em que os princípios estéticos,
inclusive a ambiguidade, estejam à frente dos políticos na constituição de sua forma. Não o
contrário. Exigir que um artista se submeta a parâmetros da política cotidiana, deixando de
lado assim a aversão à interpretação única e imediata, significa enquadrar sua arte em apenas
um sentido, confortável, limitado e inclinado à sociabilidade, pronto para ser consumido.
Patrulheiros estão portanto a serviço da mercadoria e do conservadorismo.

Em novembro de 2017, com bastante alarde a imprensa noticiou a condenação de


Bernardo Paz, o executivo que criou, financiou e manteve o Instituto Inhotim, a 9 anos e 3
meses de prisão por lavagem de dinheiro. A defesa dele nega o crime e na mesma hora
anunciou o protocolo de um recurso. Não é apropriado, portanto, nenhum tipo de comentário
sobre o mérito do caso até que tudo seja apreciado pelas instâncias superiores.25

Poucos dias depois, outra notícia envolveu o empresário e seu acervo artístico. A
manchete do jornal Valor econômico é eloquente: “Empresário oferece obras de Inhotim para
pagar dívida com o governo de MG”.26 Segundo a matéria, Paz ofereceu trabalhos de Adriana
Varejão, Cildo Meireles e Amílcar de Castro para saldar débitos de algumas de suas antigas
empresas, a maioria já extinta, com o governo de Minas Gerais.

Os artistas, evidentemente, não têm nada com isso. Depois que suas obras são
vendidas, caso não haja nenhuma especificidade no contrato, eles perdem o controle sobre
onde serão expostas, como vão ser mantidas e se acaso acabarão renegociadas. O assunto,
porém, tem outras nuances. Como fica, por exemplo, o alcance político de obras que estão
envolvidas em acusações de lavagem de dinheiro e impostos devidos?

Sem prejulgar ninguém, se o alcance político de uma obra de arte está em seu contato
com tudo o que a cerca, por mais contradições e atrito que gere, uma obra que retrata a
angústia que é viver em uma sociedade tão desigual como o Brasil, mas que acaba envolvida
em operações que servem sobretudo para manter essa desigualdade, terá seu poder de
intervenção diminuído. No mínimo, teremos aqui uma operação de soma zero.

O problema é mais complexo. Como se sabe, muitos museus e coleções são


financiados por dinheiro de origem duvidosa – enfim, todo dinheiro é no mínimo um enorme
problema. O caso do Banco Santos talvez seja um dos mais óbvios entre nós. Algumas
iniciativas arquitetônicas recentes estão tentando obedecer a alguns princípios
ecologicamente viáveis, ao menos de início. Pedro Arantes comenta uma delas, levada a cabo
por um grande arquiteto nos Emirados Árabes Unidos: “O valor inicial do investimento está
orçado em 22 bilhões de dólares. Ironicamente, a cidade é patrocinada pela renda do petróleo,
por um governo ditatorial e por fundos de investimentos que foram justamente os
responsáveis pela substituição das culturas construtivas locais por uma máquina imobiliária

25
“Criador de Inhotim é condenado à prisão por lavagem de dinheiro”. Valor econômico. Sexta-feira, 17
de novembro de 2017. Pág. A4. “Justiça condena Bernardo Paz por lavagem de dinheiro”. Folha de São
Paulo, 17 de novembro de 2017. Pág. A 17.
26
Valor Econômico. Quarta-feira, 22 de novembro de 2017. Pág. A2.

22
apoiada no modelo ocidental de arranha-céus e automóveis, de uma nova Abu-Dhabi erguida
por trabalho migrante semi-escravo.”27

Sem muito exagero, dá para dizer que com exceções muito raras, se um artista plástico
for optar por expor apenas em espaços livres de controvérsia, sua obra ficaria escondida. É o
mesmo problema de escritores que contestam a ordem capitalista, mas publicam seus livros
pelas grandes editoras.

Como, então, tentar preservar o aspecto de intervenção política de uma obra de arte?
Afastar a hipocrisia pode ser um bom passo inicial. Por isso, tento estabelecer uma relação
tensa com todos os meios que envolvem a literatura, inclusive os próprios textos. Com isso,
deixo claro que conheço o terreno e piso nele porque do contrário minha criação seria ainda
menos efetiva. Do mesmo jeito, é preciso denunciá-lo, colocar todos os seus problemas com
muita clareza e sobretudo aceitar lugares alternativos para circular e, quem sabe, viver.

A melhor arma para destruir o campo literário é a literatura. Sei que outro campo vai
aparecer. Será preciso então renovar as armas.

No Mercado Central de Belo Horizonte comprei um vidro de pimenta malagueta de


ardência forte e outro de molho chipotle, também intenso. Comecei a consumi-los justamente
no momento em que o advogado estava formulando nosso recurso e, depois, nos dias em que
os desembargadores iriam julgá-lo.

Na primeira vez que fui usar a malagueta, exagerei. Coloquei uma quantidade tão
grande em cima de uma carne moída com tomate e palmito que o prato ficou inviabilizado.
Com os dias, fui aprendendo a dosar as gotas. O molho chipotle, consistente e bem vermelho,
foi outra descoberta e tanto. Os pratos ficaram cremosos e o sabor levemente amargo
continuava no céu da boca por bastante tempo. A anestesia dos lábios também perdurava.
Gostei tanto que preparei uma porção de estrogonofe e troquei o catchup pelo chipotle. A
quantidade foi generosa.

Já repeti inúmeras vezes que não fiquei nervoso em momento algum de toda essa
confusão. Então, isso deve ter alguma importância para mim. Do mesmo jeito, não perdi
nenhuma noite de sono. Alguns dias depois de os desembargadores e da ministra Rosa Weber
liberarem a circulação de Diário da cadeia, porém, tive uma noite de violento mal-estar.

Comi bem devagar e com bastante gosto o estrogonofe de carne com chipotle. Bebi
bastante água, li alguma coisa e fui me deitar. Uma ou duas horas depois, senti uma pontada
muito forte no estômago e meus intestinos se soltaram. No banheiro, não aguentei e mesmo
sentado no vaso acabei vomitando no chão. Um ar abafado passou pela minha garganta e
parou no esôfago. Não daria para sair do banheiro nem para ir ao hospital. A dor de estômago
foi tão grande que, com a vista periodicamente se escurecendo, achei algumas vezes que iria
desmaiar. Apenas de manhã senti alguma disposição para me arrastar ao médico.

27
Cf. ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura na era digital financeira. Tese de doutorado. USP 2010. Em:
file:///C:/Users/Usuario/Downloads/PedroArantes_72dpi.pdf (Último acesso em 6 de dezembro de
2017)

23
Está tudo bem com o meu estômago. Deve ter sido uma somatização, apesar do
exagero nas porções de pimenta. Naquela noite, encerrei meu hobby. Até a revisão final desse
livro (janeiro de 2018) não posso sequer sentir o cheiro da mais leve delas. Essa perda, acho
que não vou superar.

24
DOIS

25
Antes de tudo, vou apresentar a ação que os advogados de Eduardo Cunha
propuseram contra o livro Diário da cadeia e, com a quebra do pseudônimo, contra mim. Uma
ação como essa tem como principal interesse jurídico o mero fato de ter sido aceita em
primeira instância e causado, de início, a censura por parte do Estado brasileiro a um romance
e, depois, sua mutilação.

Hoje é quarta-feira, dia 26 de abril de 2017, um pouco antes das 11 horas da manhã. O
primeiro desembargador sorteado para analisar o mandado de segurança interposto pelos
advogados que nos acusam se declarou impedido por razões íntimas. Temos esperança de que
o segundo julgue-o ainda hoje. Se confirmada a decisão a nosso favor, os livros começam a ser
distribuídos imediatamente. Os ebooks já estão circulando.

A petição inicial contra o romance Diário da cadeia tem 44 páginas bastante


grandiloquentes. Além do jargão jurídico, há imagens da capa do livro, citações da página do
Facebook do editor, alguns recortes da imprensa, algumas obras jurídicas descontextualizadas,
e basicamente dois argumentos: o uso do pseudônimo, da forma como fizemos, é ilegal e a
publicação do livro tem exclusivamente interesse comercial e denigre a imagem pública de
Eduardo Cunha.

Começo pelo final. As provas que os advogados apresentam são basicamente


manifestações do editor do livro, dizendo que a obra causa confusão entre real e ficcional,
afirmação da qual, aliás, eu discordo. Trata-se apenas de um recurso de marketing bastante
usado hoje em dia. Ligado a esse há um outro argumento, sub-reptício mas sintomático: a
publicidade que o editor fez “não deixa ao consumidor médio interpretação outra senão a de
que o próprio EDUARDO CUNHA seria o redator dos excertos pejorativos (...)”.28 Logo abaixo, a
ação continua: “Percebe-se então que os Réus aproveitaram-se do mercado conquistado pelo
Autor para o lançamento de seu verdadeiro livro que já estava sendo publicamente esperado
(...)”.29

O raciocínio colocado aqui é o seguinte: Cunha teria aberto um “mercado” no


imaginário brasileiro ao anunciar que escreveria um livro. Os advogados afirmam que, se esse
tipo de imaginário de fato existir, apenas uma pessoa pode se manifestar sobre ele: o próprio
ex-deputado. Na verdade, ele quer ser o único a manipular o espaço hipotético que teria
criado, por isso não aceita uma obra que intervenha nesse lugar. Sendo claro: os advogados
afirmam que apenas Cunha tem o direito de falar de um determinado assunto. É censura.

Vale também notar que um político que defende a liberdade de mercado propõe,
assim que lhe convém, proteção a esse mesmo mercado. É um sinal da fragilidade das ideias
político-ideológicas no Brasil.

Em um julgamento recente, o ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de


Justiça definiu o “homem médio”: “4. A questão acerca da confusão ou associação de marcas

28
Ação inicial protocolada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro contra o romance Diário da cadeia.
Pág. 18.
29
Idem.

26
deve ser analisada, em regra, sob a perspectiva do homem médio (homus medius), ou seja,
naquilo que o magistrado imagina da figura do ser humano dotado de inteligência e
perspicácia inerente à maioria das pessoas integrantes da sociedade.”30

Como se pode ver, trata-se de uma abstração. O “público médio” seria um grupo de
pessoas com uma compreensão normalizada sobre um objeto ou determinada situação. E o
julgamento desse grupo poderia ser estendido para o da maioria da sociedade. Como o
próprio texto do ministro deixa claro, é algo que “o magistrado imagina”. Naturalmente, para
construir essa imagem, ele fará uso de todo tipo de vivência a que ele possa ter acesso. Como
no entanto a vivência só pode ser a dele mesmo, sua imaginação do que é o “homem médio”
não terá a mais remota objetividade. Para o filósofo Jurgen Habermas, não tem como ser
diferente: “Um conceito não pode ser aceito como medida de verdade, se o ideal de verdade a
que ele serve pressupõe em si mesmo processos sociais cuja vigência o pensamento não pode
aceitar enquanto dados últimos”.31

Não é à toa que os advogados de Eduardo Cunha colocaram em sua petição inicial
apenas as bobagens que foram ditas em redes sociais sobre Diário da cadeia. Produziram
assim eles mesmos o público médio que lhes interessava.

Espanta ver como o discurso jurídico, que busca no mínimo alguma seriedade e
coerência, e tem tanto poder sobre a vida da sociedade, possa usar um conceito tão descabido
de qualquer justificativa lógica ou mesmo razoabilidade como o de “público médio”.

No ambiente artístico, ele não tem a menor possibilidade de sequer ser cogitado. Uma
obra de arte terá tantos sentidos quantos forem os olhos que se voltarem sobre ela. Talvez
alguns sejam mais bem explicados que outros, mas não existe nenhuma hierarquia sobre eles.
Minha opinião sobre as Bachianas de Heitor Villa Lobos vale tanto quanto a do maestro
Gustavo Dudamel, embora ele tenha regido um momento de fato sublime da música e eu
apenas o tenha ouvido.

Evocar um certo e hipotético “público médio” para impedir a circulação de uma obra
ou mesmo punir um artista, exigir indenização ou direito de resposta (responder a uma obra
de arte já parece por si mesmo uma tolice nos termos...) é apenas manipular as palavras para
praticar censura. J. M. Coetzee, em livro incontornável sobre essa prática autoritária, é
bastante claro: “O censor age, ou acreditar agir, pelo interesse de uma comunidade. Na prática
ele muitas vezes cria uma ofensa àquela sociedade, ou imagina essa ofensa e age sobre ela;
muitas vezes ele imagina tanto a comunidade quanto a ofensa”.32

30
Cf. REsp 1342741 / RJ RECURSO ESPECIAL 2011/0146719-8
31
Cf. HABERMAS, Jurgen. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Martins Fontes, 2012. Pág.
647. Vol. 1.
32
Cf. COETZEE, J. M. Giving offense – Essays on censorship. Chicago: University of Chicago
Press, 1996. Pág. 9. A tradução é minha.
27
Se não quiser continuar algumas décadas atrasado no que diz respeito à filosofia, à
linguística e enfim às ciências humanas em geral, o Direito deve abandonar o uso do “público
médio”. Ele não tem sentido e serve apenas para criar desastres como o que estou narrando.

A acusação contra o uso do pseudônimo vai na mesma linha. A ação alega que o nome
Eduardo Cunha na capa tem o único objetivo de fazer o leitor acreditar que o livro foi escrito
pelo ex-deputado federal. Há vários trechos ilustrativos desse raciocínio. Selecionei o seguinte
pois ele também mostra a gradiloquencia afetada da denúncia:

Chega ao absurdo a ironia de se publicar, em autoria anônima, um livro cuja capa retrata as grades de uma cela,
expõe em primeira pessoa o que seria o dia a dia da prisão e, dessa mesma maneira (em nome de EDUARDO
CUNHA), profere as mais variadas suposições e opiniões sobre a política nacional.33

O fato de a capa do livro especificar que se trata de um pseudônimo, o que


basicamente, como vimos, invalidaria o raciocínio, não recebe atenção. Aqui, a petição inicial
começa a se aproximar de um besteirol lascado, disfarçado pelo vocabulário jurídico. Cito um
acacianismo risível:

Só há um único Eduardo Cunha que foi Presidente da Câmara dos Deputados e que é réu na Operação Lava
Jato!34

Com o alargamento da definição de obra de arte operado pelas vanguardas do século


XX, que aliás chegaram a declarar o conceito como a própria obra, o nome que assina o
trabalho passa a fazer parte dele. Como sempre, Marcel Duchamp é um exemplo inevitável35: Commented [U1]: imagem retirada de
http://ecoarte.info/ecoarte/wp-content/uploads/2012/11/Fonte-
urinol-Marcel-Duchamp-1917.jpg

33
Idem. pág 10. O negrito é dos advogados do ex-deputado federal.
34
Inicial, pág. 27. O negrito é dos advogados do ex-deputado federal
35
Naturalmente, a Fontaine de Duchamp tornou-se objeto de intervenção estética, mostrando que na
arte nada está livre de manipulação e transformação, o que de novo reforça o prejuízo de toda coerção
jurídica nesse campo. Quem conta é Charles Feitosa: “Em 2006 Pierre Pinoncelli, um artista
performático francês de 76 anos, deu uma leve martelada na cópia em exposição no Centro Pompidou
de Paris. Em 1993 ele já tinha urinado sobre outra cópia, que estava exposta no museu de Nimes.
Acusado de vandalismo, ele argumentou, não sem certa razão, que se tratava de uma performance
artística e que o próprio Duchamp teria apreciado tal atitude. ‘Meu golpe de martelo foi o do martelo do
leiloeiro que desceu em uma nova obra de arte’”. Cf. “FEITOSA, Charles. “A tarefa de resistir”. Em: Cult.
São Paulo. Ano 20. N. 230. Dezembro de 2017.

28
Com trabalhos politicamente empenhados, o uso do pseudônimo já se tornou uma
tradição. No Brasil, as Cartas chilenas talvez sejam um dos principais modelos.
Contemporaneamente, o já citado Banksy deve ser o melhor exemplo do uso da assinatura
como extensão do trabalho. O grupo performático Guerrilla Girls age ressaltando a forte
predominância masculina nos museus, feiras, galerias e inclusive na história da arte. Sempre
que se manifestam, as integrantes do coletivo usam uma máscara de gorila e o nome de uma
artista conhecida. Commented [U2]: foto emhttp://guerrillagirlsontour.com/

O recurso é explicado com clareza pelo coletivo: “Produzimos mais de 80 pôsteres,


material impresso e ações que expõem o sexismo e o racismo no mundo da arte e da cultura
em geral. Usamos uma máscara de gorila para manter o foco nas ações e não na nossa
personalidade. Usamos o humor para mostrar que feministas podem ser engraçadas. Nosso

29
trabalho circula pelo mundo através de simpatizantes que também se consideram parte do
Guerrilla Girls. Podemos ser qualquer uma; estamos em todos os lugares.”36

Pretendo voltar a falar do pseudônimo mais adiante, mas quero desde já ressaltar sua
validade legal:

“Recurso artístico tão antigo quanto fundamental, o pseudônimo integra a esfera de


liberdade de expressão e de privacidade do autor – ambas amparadas constitucionalmente.
Recorde-se Fernando Pessoa e se constata que o pseudônimo pode ser um recurso estético
relevante. Uma ordem judicial que autoriza a violação de um pseudônimo expõe a privacidade
do autor e cerceia sua liberdade de criação artística, além de contrariar o dever constitucional
que o Estado tem de incentivar a cultura (art. 215). O art. 19 do Código Civil, ademais, assegura
que o pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome. A Lei
de Direitos Autorais também reconhece e protege em muitos dos seus artigos a utilização dos
pseudônimos. O uso de um nome, enfim, não parece dar ao seu portador o direito a um uso
exclusivo, cerceando inclusive a livre-circulação de uma obra de ficção.”37

Antes de continuar, quero responder uma questão direta: por que o nome que assina
o romance é “Eduardo Cunha (pseudônimo)”?

a) Porque uma obra de arte deve ser assinada com o nome que o artista desejar;
b) Diário da cadeia é, na forma livro, uma obra conceitual que abrange a capa, a
orelha e até mesmo o fato de ter sido escrito. Para que o leitor compreenda isso,
precisa ler o texto. Um dos meus objetivos é mostrar que os sentidos de uma obra
de arte devem ser construídos a partir de sua análise;
c) O uso do pseudônimo ampliaria o alcance político de Diário da cadeia, retirando o
foco da autoria para o da atribuição, o que reforçaria seu caráter de intervenção.38

Claro que o uso do nome “Eduardo Cunha” foi jocoso: o livro é uma sátira. Mas mesmo
aqui não há nenhum tipo de ilegalidade: “Alvo privilegiado de sátiras e caricaturas são as
chamadas pessoas absolutas ou relativas da história contemporânea, i.e., pessoas ‘públicas’,
que têm, por definição e livre escolha, diminuída a proteção de sua esfera privada”.39 Em
resumo: se Eduardo Cunha resolveu ser quem é, não pode nos impedir de fazer piada com a
sua cara.

A revelação do pseudônimo foi solicitada para que eu pudesse ser criminalmente


responsabilizado por um romance:

36
Cf. GUERRILLA GIRLS. The Guerrilla Girls’ Bedside Companion to the History of Western Art. New York:
Penguim, 1998. Pág. 7.
37
Cf. FRANCA FILHO, Marcilio Toscana e Inês Virgínia Soares. “O direito a um pseudônimo”. Em:
https://jota.info/artigos/o-direito-a-um-pseudonimo-10062017 . Última consulta em 11 de julho de
2017.
38
A necessidade de redigir esses três tópicos foi uma violência para mim.
39
Cf. MARTINS, Leonardo. “Direito constitucional à expressão artística”. Em: MAMEDE, Gladston,
Marcílio Toscano Franca Filho e Otavio Luiz Rodrigues Junior. Direito da arte. São Paulo: Atlas, 2014. Pág.
66.

30
Ora, não podem os Réus omitir a verdadeira identidade do escritor, uma vez que também é informação
imprescindível à tutela dos direitos do Autor em esfera criminal!40

A acusação fabrica um crime para, depois, procurar um criminoso. Como tudo está no
ambiente da ficção, a decisão judicial que decretou o fim do pseudônimo acabou produzindo o
efeito de tornar crime uma obra de ficção que interpela a realidade através de uma caricatura,
inclusive no que diz respeito ao nome que a anima. Fica a impressão de que a primeira
instância tentou diminuir o aspecto transgressivo da obra ao exigir que existe uma pessoa
punível, ou seja um autor de carne e osso. Quem afirma é Michel Foucault: “Os textos, os
livros, os discursos começaram a ter realmente autores (diferentes dos personagens míticos,
diferentes das grandes figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor podia
ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam ser transgressores.”41

A ação também incorre em meros absurdos de ordem estética, que não seriam
perdoáveis nem para um estudante do Ensino Médio. A certa altura, os advogados defendem
que a palavra “diário” no título significa que o livro é uma obra “autobiográfica”! Como o leitor
não deve estar acreditando, cito:

Como exposto, são várias as provas do abuso de direito: o uso da imagem de EDUARDO CUNHA na divulgação do
livro; o uso de seu nome na capa do livro (ainda que a expressão “pseudônimo” seja indicada em cor fosca); o título
do livro que indica tratar-se de obra autobiográfica (i.e. “Diário”); e o fato de o estilo textual adotado ser
autobiográfico, inclusive com escrita na 1° pessoa do singular. 42

O objetivo da construção, por mais absurda que seja, está na página seguinte: “O
nome, enquanto atributo de uma personalidade, é de uso exclusivo de seu titular”. Não sei o
que isso quer exatamente dizer, mas de novo destaco o “exclusivo”. Querer controlar como,
em que circunstância e de qual forma o nome de um político deve ser usado em uma obra de
arte é censura.

A propósito, a censura aparece ainda outras vezes:

Ocorre que o livro ora rechaçado não possui conteúdo crítico ou humorístico sobre a temática em questão,
tampouco expõe informações verídicas de interesse social. Ele consiste, em verdade, em um instrumento ilícito, que
usurpa a imagem do Autor para a proliferação, em seu nome, das mais variadas suposições, críticas e opiniões sobre
a política nacional.43

De início, dá para notar o desejo de controlar o que é e o que não é engraçado. Censura outra
vez. O que se afirma aqui é o seguinte: algumas das opiniões que Diário da cadeia deixam
inferir não deveriam ser expressas. Do mesmo jeito, reclamam que o deboche é inadequado.
Para o debochado, naturalmente...

Além disso, era preciso divulgar que o ex-deputado federal não pensa como a
personagem do meu livro, conforme solicitação expressa na ação inicial:

40
Ação inicial contra o romance Diário da cadeia, pág. 22.
41
Cf. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Veja, 1992.
42
Ação inicial contra o livro Diário da cadeia, pág. 27. Aqui os advogados grifaram e sublinharam
justamente o trecho em que falam uma bobagem que deve entrar para a história do Direito brasileiro.
43
Idem, pág. 19.

31
Em virtude do direito de resposta do Autor, sejam expostos, no site da Primeira Ré (Editora), em espaço de ampla
visibilidade, esclarecimentos quanto à verdadeira autoria da obra “DIÁRIO DA CADEIA”, de modo a desvincular da
imagem do Autor os deboches, as ofensas e as suposições políticas ali constantes, em especial no trecho
disponibilizado em rede mundial de computadores;44

Aqui, deixo interpretações psicanalíticas de lado, mas elas seriam bastante interessantes. A
questão principal para mim é outra. Como o leitor sabe, uma petição inicial com esse nível de
argumento foi aceita e depois dos sobressaltos descritos na primeira parte desse ensaio, meu
nome foi revelado, o que causou assim a mutilação de uma obra de arte.

É fácil ver aqui que a juíza que em primeiro lugar julgou o caso foi induzida a erro pelos
advogados, que construíram um raciocínio para esconder que Diário da cadeia é um romance.
Ainda assim, dá para notar que o Poder Judiciário se perde quando está diante de obras de
arte e muitas vezes produz decisões que destroem o trabalho.

Antes de continuar, registro que ontem à noite, o desembargador Nagib Slaib Filho,
também do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, negou o mandado de segurança interposto
pelos advogados do ex-deputado federal Eduardo Cunha. Com dois desembargadores se
manifestando a favor da circulação do livro e do uso do pseudônimo, a distribuição será
completada hoje, dia 27 de abril de 2017.

Em 1977, o aparelho repressivo da ditadura militar proibiu a circulação do romance Em


câmera lenta, tendo inclusive detido seu autor, Renato Tapajós. Balanço dos anos de
resistência à ditadura, fazendo inclusive uma reflexão sobre a validade da luta armada, o livro
foi acusado de “apologia do terrorismo, da subversão e da guerrilha em todos os seus
aspectos”.45 O procurador Henrique Vailati diz que o romance manipula a realidade, para atrair
a atenção dos leitores desatentos, ou seja do “público médio”: “Há em toda a narrativa, que
flui harmoniosa e absorvente, um tom patético, algo de profundamente humano como ímã
psicológico a captar a simpatia do desavisado para a ação dos guerrilheiros que saltam em
cena como quixotes esquálidos e se convertem, nas pinceladas de tonalidades cada vez mais
intensas, em imitáveis ‘bayards’, brandindo o gládio com o destemor dos justos”.46

Como se pode ver, os advogados de Eduardo Cunha usaram contra Diário da cadeia
argumentos da mesma natureza dos que eram lançados pela censura durante a ditadura
militar. E foram bem sucedidos.

A propósito, parece que o tom grandiloquente é um dos preferidos quando censores


se confrontam com a ficção. Aqui a declaração do coronel Erasmo Dias à imprensa sobre o
livro de Tapajós: “O titular da Pasta de Segurança disse que o livro é ‘sem estilo, romanceado e

44
Idem, Ibidem. Pág. 42
45
Cf. ARAGÃO, Eloísa. Censura na lei e na marra – Como a ditadura quis calar as narrativas sobre as suas
violências. São Paulo: Fapesp/Humanitas, 2013. Pág. 93.
46
Idem. Pág. 111.

32
lírico’, uma lição de subversão, de guerrilha e de agitação das massas, ‘muito pior do que
qualquer livro de Mao-Tse Tung”.47

No parecer que redigiu para a defesa de Renato Tapajós, Antonio Candido cita outros
três casos de livros que tiveram seus sentidos manipulados segundo o interesse dos
defensores dessa e daquela comunidade hipoteticamente ofendida: “Madame Bovary , de
Flaubert, é pró ou contra o adultério? Em busca do tempo perdido, de Proust, é uma apologia
ou uma condenação do homossexualismo? Sob os olhos do Ocidente, de Conrad, exalta ou
denigre os revolucionários? Todas estas questões são secundárias e, na verdade, inócuas”.48 A
conclusão de Eloísa Aragão é precisa e não consigo ser mais claro do que ela: “Antonio
Candido, de modo subjacente, está demonstrando que assim como naquele momento
presente ocorria a censura em relação ao romance de Tapajós, ela se repetiu em outros
tempos, tendo como julgamento desvios de interpretação que se serviram de um enfoque
ideológico e não relacionado à estética, levantado questionamentos de ordem moral, calcados
na estreiteza de uma forma de compreender o mundo por meio de critérios dogmáticos.”49

Como se pode ver, e sempre é necessário repetir, toda censura é além de tudo um ato
moralista.

Durante as revisões de A literatura no banco dos réus entre setembro e outubro de


2017, quando as vitórias do livro Diário da cadeia contra o ex-deputado federal Eduardo Cunha
já somavam mais de 5, a censura à arte tornou-se um dos assuntos mais discutidos do dia-a-
dia da política brasileira.

Através de pressão nas redes sociais (o que outra vez demonstra a importância e os
perigos desse espaço hoje), um grupo conseguiu que uma exposição sobre arte queer fosse
fechada pelo banco Santander, patrocinador do museu que a abrigava. Logo depois, uma
performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) viu-se alvo de nova patrulha
nas redes sociais, acusada inclusive de pedofilia, por ter permitido que uma criança tocasse o
tornozelo de um artista nu.

Entre muitos outros casos, ao abrir a mostra Histórias da sexualidade, o Museu de Arte
de São Paulo (MASP-SP) pela primeira vez utilizou uma medida restritiva e impediu que
menores de 18 anos tivessem acesso à exposição. Pela legislação em vigor, quando a
classificação indicativa chega a no máximo 16 anos, são os pais que decidem se os filhos
menores dessa idade devem ou não ver o trabalho. Quando a indicação é para 18 anos,
menores não poderão entrar nem se seus pais ou responsáveis expressamente permitirem.

O tom moralista das acusações às exposições vai do discurso em defesa da infância até
um impagável veredicto: “isso não é arte”. Seria apenas ridículo, e nada novo, se a censura
tivesse ficado restrita aos grupos reacionários. Um banco cancelar uma exposição por causa de

47
Idem. Pág. 263.
48
Idem. Pág. 159.
49
Idem. Pág. 160.

33
alguns milhares de comentários toscos no Facebook também não merece muito comentário.50
Aqui não há nem mesmo um novo capítulo na história da arte que, aliás, é ela mesma uma
história da censura.

Espanta e assusta, porém, que a direção de um museu com a estatura do MASP acabe
cedendo a pressões, e faça renascer a sombra da censura no Brasil. Como se sabe,
movimentos opressores costumam agir progressivamente. Ainda que a história do MASP
esteja umbilicalmente ligada à elite paulistana (a mesma que gerou o “pato da Fiesp”) talvez a
atitude do museu seja a mais perigosa das tantas que estão colocando problemas à prática
artística no Brasil contemporâneo.

O vocabulário da ação que tentou impedir Diário da cadeia de circular é o seguinte:


escárnio, lesão, dano, sarcasmo ímpar, ironia, conteúdo sarcástico, ardil e afrontoso,
pejorativo, deboche, rebuliço social e político, malícia, chacota, ofensa, malsinado livro, má-fé,
mácula, falácia e outros do mesmo campo semântico.

Quero aqui por fim admitir que Diário da cadeia pode ser classificado com todas essas
palavras. Como o livro pretende confrontar a classe política brasileira, formada no geral pelas
piores pessoas que o Brasil abriga, não seria diferente.

Obras de arte podem ser um escárnio, cheias de ironias, sarcasmos e chacotas. Uma
sociedade que pretende torná-las um crime é, para dizer o mínimo, bastante imatura e
atrasada, além de autoritária.

Na sentença que impediu em primeira instância a circulação do romance e quebrou o


pseudônimo, a juíza escreveu o seguinte: “ na hipótese de improcedência do pedido, poderá a
parte ré buscar o seu suposto prejuízo”.51 Duas decisões em seguida reformaram essa
sentença. Agora pergunto com objetividade:

Como o Poder Judiciário pretende refazer o sigilo do pseudônimo?

Hoje é véspera do feriado do dia do trabalhador. Ontem a imprensa informou que os


advogados do ex-deputado federal Eduardo Cunha protocolaram uma “Reclamação” no
Supremo Tribunal Federal. A ministra Rosa Weber emitiu rapidamente uma decisão a meu
favor, confirmando o que os desembargadores já tinham decidido.

50
Em texto brilhante, o curador da exposição, Gaudêncio Fidelis, revela a forma de agir do patrocinador:
“É inconcebível, ética e moralmente, que uma instituição solicite obras para a exibição pública, retire-as
de visibilidade sob uma lamentável nota de condenação, não as devolva e, ao mesmo tempo, continue
difamando-as moralmente enquanto inviabiliza sua visibilidade”. Bancos definitivamente não prestam.
CF. FIDELIS, Gaudencio. “Não à censura”. Em: Cult. São Paulo. Ano 20. N. 230 Dez. 2017.
51
Sentença liminar disponível no processo 0063612-11.2017.8.19.0001 do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro.

34
Imagino que a questão jurídica já esteja confusa para o leitor distante desse universo.
Para mim também é. Por isso, resolvi fazer um desenho. Nele, vou acrescentar o percurso dos
recursos a que o leitor ainda não teve acesso:

Na 1° instância, uma juíza


emite uma liminar impedindo
a circulação de Diário da ca-
déia e determinando a reve-
lação do nome do autor.

Os defensores do livro protocolam


um recurso aos desembargadores do
Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro.

No Tribunal de Justiça, um
desembargador acata o recur- Meses depois a câmara a que
so, permite a circulação do pertence esse primeiro desembargador confirmou sua
livro e atesta a legalidade do decisão por unanimidade e sem ressalvas. Commented [U3]: Acrescentar aqui uma flecha em algum lugar:
pseudônimo. Os advogados de Eduardo Cunha protocolam então “Embargos de
declaração”, alegando obscuridade na sentença, e o
desembargador prontamente os recusa.

Os advogados de Eduardo Cunha


entram com um mandado de segurança
contra o primeiro desembargador.

No Tribunal de Justiça o segundo De novo por unanimidade e sem ressalvas, a câmara desse
desembargador recusa o manda- segundo desembargador confirma sua decisão inicial.
do de justiça e confirma a
decisão do primeiro
desembargador.

Os advogados de Eduardo Cunha


fazem então uma “Reclamação” no
Supremo Tribunal Federal.
Por conta dessa decisão, há um
recurso no Superior Tribunal de
Justiça. O Ministro considera o
recurso inadequado e o rejeita.
No Supremo Tribunal Federal a
ministra Rosa Weber recusa a
“Reclamação”, julgando-a ina-
dequada, e adianta o julga-
mento do mérito: o livro e o

35
pseudônimo são legais.

Alguns meses depois, também por


unanimidade e sem ressalvas, a decisão da ministra
Rosa Weber é confirmada pela 1° Turma do Supremo
Tribunal Federal.

Agora, acho que só mesmo pedindo clemência ao Papa Francisco.

Não vale muito a pena descrever cada um desses recursos. O conteúdo nunca mudava
muito: sempre apareciam aquelas manifestações estapafúrdias da petição inicial, redigidas em
tom grandiloquente. A certa altura, Eduardo Cunha trocou de advogado, o que não mudou
muito a natureza tresloucada e autoritária da argumentação. Do mesmo jeito, sempre
encontro o nome desses defensores atrelado a gente com as mais variadas e lamentáveis
acusações de corrupção.

Estranho mesmo foi o dia em que, embarcando para um evento na Biblioteca Nacional,
dei de cara com uma edição da revista Veja com uma matéria de capa narrando a vida dos
advogados que ficaram milionários com a operação Lava Jato. Claro que os autores da petição
inicial, com aqueles argumentos inacreditáveis, estavam na matéria.

Não vou defender aqui, evidentemente, nenhum tipo de insegurança jurídica. Ao


contrário, acho que a justiça deve oferecer de fato todo tipo de recurso para um acusado, e ele
só pode ser considerado culpado, seja lá do que for, quando todos forem esgotados. Ainda
assim, parece óbvio que no caso que estou apresentando houve um enorme abuso. Se existe
matéria razoável passível de discussão recursal, que isso se faça. É incompreensível, por outro
lado, que argumentos com equívocos elementares (que como eu disse não seriam cometidos
por um bom estudante ginasial) movimentem o poder judiciário com tanta intensidade.

A impressão que dá é que de fato alguns advogados os utilizam para depois colocar o
tempo de trabalho na timesheet. Eu queria muito saber quanto alguns advogados cobram para
escrever uma ação afirmando que a palavra Diário na capa de um livro indica que ele é uma
autobiografia...

36
TRÊS

37
Como parâmetro, vou apresentar alguns casos de obras de arte que sofreram
intervenção do Poder Judiciário. Não pretendo lidar com países que estavam em regime de
exceção quando as interferências se deram. Obviamente sei que nesse momento (2 de maio
de 2017) a segurança jurídica brasileira parece ameaçada. Mesmo assim, não estamos sob o
jugo do Taleban, que explode estátuas milenares. Até segunda ordem, prefiro achar que a
nossa democracia é imatura. Mas mesmo em Estados de Direito bem mais consolidados que o
brasileiro, as relações entre a arte e o Poder Judiciário são conflituosas.

No início de 1857, Gustavo Flaubert foi levado a julgamento, acusado pelo Estado
francês de uma série de crimes por conta de Madame Bovary. Por parte da acusação, atuou o
advogado imperial Ernest Pinard. A defesa esteve a cargo de Jules Senard, um antimonarquista
moderado. De maneira geral, o livro é acusado de imoralidade. “Sustento que o romance
chamado Madame Bovary, considerado do ponto de vista filosófico, não é de forma alguma
moral. (...) O tom geral do autor, permitam-me dizê-lo, é o da lascívia”.52

Diante disso, a acusação passa a construir a figura do “público médio”, que não teria
condições de compreender as nuances do livro: “Vocês acreditam que um juízo muito frio será
forte o suficiente contra essa sedução do sentimento e dos sentidos?”53

Todos os processos judiciais contra obras de arte que estudei trazem no seu interior os
preconceitos em voga na sociedade e muitas vezes têm frases de sentido absurdo,
contraditório ou autoritário. Aqui está, por exemplo, o machismo da sociedade francesa com
toda a sua força: “Quem lê o romance do senhor Flaubert? Homens que se dedicam à
economia política ou social? Não. As páginas levianas de Madame Bovary vão cair em mãos
mais ligeiras, nas mãos das moças, talvez até nas mãos de mulheres casadas”54. Encerrando a
fala, o acusador dá lições sobre a prática artística: “Essa moral estigmatiza a literatura realista,
não porque ela pinta as paixões: o ódio, a vingança, o amor – o mundo só vive nelas, e a arte
deve pintá-las – mas porque as pinta sem freio nem medida. Sem uma regra, a arte deixaria de
ser arte.”55

A defesa de Flaubert começa listando a importância do escritor para a cultura francesa


e, em seguida, apresenta o nome de autoridades que elogiaram Madame Bovary. Como a
acusação havia lido longos trechos do romance, a defesa faz o mesmo, destacando o valor
artístico de diversas passagens.

O objetivo é refutar a possibilidade de haver algo de imoral no livro. Para isso, o


advogado afirma que se trata, na verdade e tão simplesmente, de um ótimo romance:

“a leitura de um livro como esse inspira amor ou horror ao vício? A


terrível expiação do erro não impulsiona, não incita à virtude? A leitura desse
livro não pode produzir em vocês uma impressão diferente da que produziu
em nós, a saber: que em seu conjunto esse livro é excelente e que seus

52
Cf. TABAROVSKY, Damián. El origen del narrador – Actas completas de los juicios a Flaubert y
Baudelaire. Buenos Aires: Mar Dulce, 2011. Pág. 43. Todas as traduções são minhas.
53
Idem. Pág. 42.
54
Idem. Ibidem.
55
Idem. Pág. 45.

38
detalhes são irrepreensíveis. Toda a literatura clássica nos autorizava a nos
servir de pinturas e cenas bem distintas das que nos temos permitido. Nesse
aspecto teríamos podido tomá-la como modelo, e não o temos feito;
impusemo-nos uma sobriedade que vocês levarão em conta. E no caso de que,
nessa ou naquela palavra, o senhor Flaubert tivesse ultrapassado o limite que
se havia imposto, não apenas preciso recordar-lhes que essa é uma obra
prima, mas também que mesmo que se tivesse equivocado, seu erro não
redundaria em prejuízo da moral pública.”56

A sentença é anunciada a favor de Flaubert. O juiz aceita o argumento de que há


algumas passagens exageradas, mas afirma que no geral se trata de um ótimo livro:

“Mas considerando a obra de que Flaubert é autor é uma obra que


parece ter sido intensa e seriamente trabalhada desde o ponto de vista
literário e de estudo das personagens, que as passagens destacadas pelo
pedido de retenção, ainda que repreensíveis, são pouco numerosas se as
comparamos com a extensão da obra; que essas passagens, o mesmo pelas
ideias que expõem como pelas situações que representam, integram o
conjunto das personagens que o autor quis pintar, exagerando-os e
impregnando-lhes de um realismo vulgar e às vezes chocante;

Considerando que Gustave Flaubert diz de seu respeito os bons


costumes, e por tudo o que se refere à moral religiosa; e que não parece que
seu livro tenha sido escrito, como o foram certas obras, com o único objetivo
de proporcionar satisfação às paixões sensuais, ao espírito licencioso ou de
libertinagem, ou de ridicularizar as coisas que devem permanecer cercadas
pelo respeito de todos.

Que apenas cometeu o erro de perder às vezes de vista as normas que


todo escritor que se respeite não deve nunca violar, e de esquecer que a
literatura, o mesmo que a arte, para levar a cabo o bem que está chamada a
produzir, não apenas deve ser pura e casta em sua forma, mas também na
expressão.”57

Damián Tabarovsky, em excelente ensaio sobre a obra de Flaubert, percebe como um


processo judicial contra uma obra de ficção acaba interferindo na leitura do texto. Os
advogados irão evidentemente trabalhar pela absolvição do cliente, o que muitas vezes
significa produzir um sentido digerível e de compreensão mais fácil. Do mesmo jeito,
neutralizarão qualquer possível transgressão. Toda vez que aparece para emitir algum
julgamento, o Poder Judiciário acaba empobrecendo a obra de arte, já que tenta enquadrá-la
em alguns de seus códigos pré-estabelecidos. “Sénard consegue a absolvição de seu cliente,
mas gera uma imensa confusão na recepção de sua obra, gera a ideia equivocada de que em

56
Idem. Pág. 124.
57
Idem. Pág. 130

39
Flaubert há uma literatura concebida como arquitetura, que em seus textos há uma pergunta
permanente pela mimese (...).”58

Em outubro de 1926, Marcel


Duchamp tentou entrar nos Estados
Unidos com algumas esculturas de
Constantin Brancusi. Vinha da Europa e
pretendia exibi-las em uma galeria
conhecida pelo interesse na arte de
vanguarda. Na alfândega, porém, os
oficiais se recusaram a reconhecer que
a bagagem era formada por obras de
arte e decidiram cobrar o imposto pela
importação de produtos manufaturados
de ferro.

A escultura que mais chamou


atenção foi a bela Birds in Space, já
vendida para um fotógrafo, Edward
Steichen. Em Nova York para montar a
exposição, Brancusi se revoltou. Com a
repercussão, uma solução intermediária
foi encontrada: a alfândega liberou a
obra de Brancusi com a rubrica de
“Utilidades de cozinha e instrumentos
hospitalares” e a exposição, portanto,
pôde acontecer.

Commented [U4]: https://www.guggenheim.org/artwork/669

No começo do ano seguinte uma autoridade alfandegária federal voltou atrás e


declarou que as esculturas deveriam ser tratadas como ferro manufaturado e não obras de
arte. Naturalmente, várias pessoas ligadas ao meio artístico começaram a opinar. Uma delas,
por exemplo, afirmou que “se isso for arte, de hoje em diante sou um pedreiro”.59 Declarações
dessa natureza foram anexadas ao relatório aduaneiro que recusava o caráter artístico das
esculturas de Brancusi.

É interessante notar que quando a mão pesada da justiça ameaça intervir em trabalhos
artísticos, muita gente do próprio meio procura se posicionar a favor do arbítrio. Como se
sabe, o poder oferece muitos fetiches...

58
Cf. TABAROVSKY, Damián. “Perder o juízo”. Em: Literatura de esquerda. Belo Horizonte: Relicário,
2017. Tradução de Ciro Lubliner e Tiago C. Fernandes. Pág. 96.
59
Cf. GIRY, Stéphanie. “An odd bird”. Legal affairs. Set./out. 2012. Em
http://www.legalaffairs.org/issues/September-October-2002/story_giry_sepoct2002.msp. (Acesso
em 7 de dezembro de 2017.)

40
O imbróglio acabou nos tribunais e ficou conhecido como o caso “Brancusi v United
States”. A estátua foi levada à Corte, bem como a dúvida de Brancusi ser mesmo um escultor.

À frente da defesa esteve o proprietário da obra, admirador do trabalho do artista


romeno e, mais ainda, da arte modernista. Como sempre acontece quando a arte vai parar no
banco dos réus, muito absurdo foi dito com bastante naturalidade:

Juiz: Como você chama isso?


Steichen: Uso o mesmo termo do escultor: oiseau, um pássaro.
Juiz: O que faz você chamar isso de pássaro, parece um pássaro para você?
Steichen: Não parece um pássaro, mas sinto que é um pássaro, foi chamado de pássaro pelo artista.
Juiz: Simplesmente porque ele chamou isso de pássaro, para você isso é um pássaro?
Steichen: Sim, excelência.
Juiz: Se você visse isso na rua, jamais pensaria em chamar de pássaro, não é verdade?
(Steichen fica em silêncio)
Young: Se você visse isso na floresta, não atiraria nele?
Steichen: Não, excelência.60

Uma das testemunhas a favor do governo, contra a obra, portanto, acabou mostrando
que sempre há uma natureza autoritária quando alguém tenta dizer o que é e o que não é uma
obra de arte. Diante da justiça, a tentativa acaba a um passo de virar censura:

Juiz: Agora, senhor Aitken, você poderia explicar por que essa não é uma obra de arte?
Aitken: Em primeiro lugar, eu diria que não é bela.
Juiz: Em outras palavras, não causa uma reação emocional estética em você?
Aitken: De forma nenhuma.
Juiz: Você resumiria sua resposta exclusivamente no fato de que até onde você percebe, ela não te causa qualquer
reação emocional estética?
Aitken: Bem, não é uma obra de arte para mim.
Speiser: Esse é o único motivo para você?
Aitken: Não é uma obra de arte para mim.61

Depois de muito debate, a sentença foi pronunciada a favor do trabalho de Brancusi:

“O objeto agora em consideração... é belo e simétrico em esboço, e mesmo que alguma dificuldade possa ser
encontrada para associá-lo a um pássaro, ainda assim, é agradável aos olhos e muito ornamental, e enquanto
percebemos que se trata de uma produção original de um escultor profissional e é de verdade uma obra de
escultura e um trabalho de arte de acordo com as autoridades acima listadas, acolhemos o recurso e julgamos que a
obra deve entrar sem taxas.”62

A sentença se divide em duas partes. Na primeira, o juiz coloca o que para ele há de
“belo” na obra de Brancusi, destacando seu gosto pessoal, em evidente contrariedade à
testemunha Aitken. Aqui temos apenas um gosto contra outro. Logo depois, porém, cita um

60
Idem.
61
Idem.
62
Idem. Impostos parecem ser um bom pretexto para levar a arte ao banco dos réus. Em 2010 a
prefeitura de Bruxelas resolveu sobretaxar uma exposição de Dan Flavin com o seguinte argumento:
“parecem luminárias... e portanto devem ser classificadas como... luminárias de parede”. Cf.
https://www.theguardian.com/artanddesign/2010/dec/20/art-dan-flavin-light-eu (Último acesso em 7
de dezembro de 2017). Devo esse exemplo ao professor Marcílio T. Franca Filho, uma das nossas
maiores autoridades nas relações entre arte e direito.

41
grupo de autoridades que atestou a natureza artística do trabalho. Nesse caso, ele desloca a
decisão para os especialistas. Como vimos, não era uma opinião pacífica mesmo entre “as
pessoas do meio”. Um professor da Universidade de Columbia, por exemplo, testemunhou
contra a obra, declarando que a escultura era “muito abstrata e um mau uso da forma da
escultura”.63

Mantidos os devidos contraditórios e após todas as partes serem ouvidas, o juiz tomou
uma decisão baseada no próprio gosto, com auxílio de opiniões especializadas.
Evidentemente, não dá para dizer o que poderia acontecer se ele achasse a escultura Bird in
Space feia ou, como se diz de muita coisa na arte dos séculos XX e XXI, apenas uma fraude. O
ideal seria que ele declarasse a incapacidade da justiça dizer o que é uma obra de arte.

De um jeito ou de outro, aqui o Poder Judiciário acabou adiantando muito do que


constituiria a recepção da arte contemporânea: um enorme debate.

O escultor Richard Serra passou quase todo o governo de Ronald Reagan às voltas com
um processo bastante desagradável. Em 1981, depois de vencer uma concorrência pública, ele
instalou a obra Tilted Arc na Federal Plaza em Manhattan. Com sua habitual clareza técnica, o
próprio Serra descreveu, dois anos depois, seu trabalho mais polêmico: “Tilted Arc é uma
chapa retilínea dobrada 30 centímetros ao longo de sua elevação. Foi fincada no chão pelas
duas extremidades, de modo que sua seção central corre nivelada ao chão. Quando se curva a
chapa sem cortá-la, o fato de o centro estar se desenvolvendo continuamente ao longo do
chão faz com que o topo sirva de coroamento, de modo que a peça se eleve na parte
central.”64

63
Idem.
64
Cf. SENIE, Harriet F. “A polêmica em torno de Tilted Arc: um precedente perigoso?” Temáticas. Pág.
152. Em: http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp- content/uploads/2012/01/ae17_Harriet_Senie.pdf (Último
acesso em 7 de dezembro de 2017)

42
Commented [U5]: Fonte: http://www.tate.org.uk/context-
comment/articles/gallery-lost-art-richard-serra

A peça causou polêmica desde a construção. A praça abriga alguns edifícios do


governo (a Corte de Comércio Internacional por exemplo) e incomodou alguns juízes. Como no
caso “Brancusi vs. United States”, pessoas do meio artístico colaboraram com as intenções de
censura. Uma crítica de arte do New York Times, por exemplo, escreveu que Tilted Arc era
“uma peça incomodamente agressiva, provavelmente a obra de arte pública mais feia da
cidade”.65 O artigo, é claro, foi usado nas alegações contra a obra.

Evidentemente, muitos críticos defenderam o trabalho de Serra. Douglas Crimp


manifestou-se muitas vezes a favor da escultura: “E, quando a obra de arte pública rejeita os
termos da política de consenso no próprio âmbito do aparelho estatal, a reação inescapável é
a censura. Não é de surpreender que o poder coercitivo do Estado, disfarçado de
procedimento democrático, tenha sido logo chamado para pressionar Tilted Arc. Na farsa de
julgamento montada para justificar a remoção, não foi do público em geral que veio a
oposição mais feroz à obra, mas dos representantes do Estado, dos juízes das cortes e dos

65
Idem. pág. 154

43
expoentes da burocracia federal cujos escritórios ficam no Edifício Federal.”66 Mesmo políticos
manifestaram o perigo que significa a intrusão externa em uma obra de arte: “(...) uma carta
assinada por dois senadores e seis deputados, alertando-o de que independentemente da
opinião que alguém possa ter sobre a arte abstrata, ou sobre esse trabalho em particular, a
ação de desapropriação e destruição da escultura representaria um alarmante precedente de
subjetivismo crítico e desrespeito aos procedimentos aplicáveis.”67

As discussões incluíram inclusive um pedido do escultor: o de reunir as pessoas que


trabalhavam na região da praça e se declaravam incomodadas com o trabalho, para que ele
pudesse explicá-lo. O pedido não foi atendido. Durante todo o processo, os acusadores se
recusaram a discutir padrões estéticos, definições artísticas e nem fizeram qualquer
julgamento de mérito sobre a obra. Como veremos a seguir com o caso de Nuno Ramos, a
censura acaba muitas vezes bem sucedida quando se afasta dessas questões.

O imbróglio envolveu inúmeras reuniões, comissões e declarações de todo tipo. Há


uma série de nuances no caso, inclusive de natureza jurídica, que escapam ao alcance do meu
ensaio. Importa notar que no final das contas, oito anos depois de instalada, a escultura foi
removida da praça sob protesto de seu criador.

Consciente de que Tilted Arc dialogava com o local onde foi instalado, Serra declarou
que sua remoção significava a própria destruição e não permitiu que a obra fosse remontada
em qualquer outro lugar. Ao contrário do que aconteceu com o livro de Flaubert e a escultura
de Brancusi, nesse caso a censura basicamente acabou com o trabalho.

Bandeira Branca, instalação que marcou a presença de Nuno Ramos na 29° Bienal
Internacional de Arte de São Paulo, unia o samba homônimo de Dalva de Oliveira ao ambiente
soturno das fábricas e galpões abandonados, tendo por resguardo o sobrevoo de três urubus.
A obra era ladeada por uma cerca de proteção e ocupava um espaço privilegiado no pavilhão
de exposições.

Logo na abertura, um grupo de pichadores cortou a tela e escreveu, em uma das


paredes do fundo da obra, a frase que acabou pautando o debate das semanas seguintes:
“Liberte os urubu”.68 Daí em diante, a opinião pública, em rara repercussão no Brasil para
obras de arte, passou a discutir a pertinência da presença de animais na instalação. Commented [U6]: Localização: site oficial do Nuno Ramos

66
Cf. CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Pág. 163.
67
Cf. SENIE. Op. cit. Pág. 159
68
No atual estado dos estudos linguísticos, não acho razoável mais usar a expressão “(sic)”.

44
Responsável pela licença, o IBAMA de São Paulo solicitou, no início da polêmica,
algumas modificações. Logo o artista e a direção da Bienal atenderam todas. É importante
dizer que antes mesmo da abertura da exposição, Bandeira branca obtivera as licenças
exigidas por lei para esse tipo de trabalho.

Ao contrário das outras obras que analisei, salvo engano no caso de Nuno Ramos não
houve nenhum tipo de declaração desastrosa de alguém do meio artístico. Ainda assim, a
discussão acabou inflada o suficiente para que o IBAMA nacional, que centraliza as ações das
seções estaduais, decidisse sem muita argumentação que os animais deveriam ser retirados da
obra.

A Fundação Bienal de São Paulo, evidentemente, tentou um recurso suspensivo, para


manter a integridade de Bandeira branca. Em 6 de outubro de 2010, um juiz federal negou o
recurso, determinando assim que os animais fossem imediatamente retirados da exposição. A
decisão ilustra às maravilhas a tese de que no geral quando se debruça sobre obras de arte,
sobretudo em caráter liminar, a justiça acaba falando bobagem, data venia.

Como no caso de Richard Serra, aqui a decisão evita entrar no mérito estético do
trabalho. O juiz citou o inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal: o Estado tem o dever
de “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua
função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade.”69
Depois de reconhecer a autoridade do IBAMA nacional a lidar com o caso (mas sem sequer
entrar no mérito da decisão e nem considerar o estranho descompasso entre o que pensava a
mesma autarquia em âmbito federal e estadual), o juiz fundamenta sua decisão, através de

69
Cf. Processo n° 0020168-85.2010.403.6100 Tribunal de Justiça, São Paulo.

45
uma doutrina redigida por Terence Dornelles Trennepohl para a defesa do meio ambiente em
caráter preventivo:

“O princípio da prevenção é aquele em que se constata, previamente,


a dificuldade ou a impossibilidade da reparação ambiental, ou seja, consumado
o dano ambiental, sua reparação é sempre incerta ou excessivamente onerosa.
A razão maior desse princípio é a necessidade da cessão imediata de algumas
atividades, potencialmente poluidoras, em razão dos resultados danosos para
o meio ambiente.”70

Ora, claro que o Estado tem o dever de zelar pelo meio ambiente, mas como concluir,
com um mínimo de bom senso, que havia na obra de Nuno Ramos algum tipo de potencial
poluente? Por algum motivo, depois dessa citação a um perigo de poluição, o juiz afirma que
não é preciso aguardar as provas de maus tratos para que haja uma medida protetiva. Aqui, a
decisão já não tem lógica: “Vale lembrar que os animais expostos fazem parte de uma espécie
silvestre e são provenientes do Parque dos Falcões, criadouro intervencionista onde mantêm
vida livre.”71 Para mutilar uma obra de arte, o juiz afirma que animais que vivem em um
criadouro são livres! Sequer se trata de uma questão de Direito, ou mesmo de hermenêutica, é
apenas uma bobagem.

Com esse tipo de raciocínio e muito espalhafato, pouco tempo depois os animais
foram retirados da obra por um oficial de justiça e retornaram ao tal criadouro, onde ficaram
em um espaço menor do que estavam na Bienal. Nenhum veterinário ou tratador atestou que
de fato eles sofriam maus tratos na exposição. Restou para o público uma instalação ainda
mais lúgubre e extremamente melancólica. Talvez morta.

São inúmeros os casos de censura ligados à literatura no mundo contemporâneo.72 Na


Argentina, o excelente escritor Pablo Katdchadjian acabou também precisando
constituir advogados e defender-se perante um juiz por causa de um livro. Em 2009, ele
fez uma simpática plaquete de tiragem bastante reduzida (200 exemplares) para
distribuir entre os amigos. A ideia era excelente: ele inseriu diversas passagens de sua
autoria no conto “O Aleph”, de Jorge Luis Borges, fazendo com isso um novo texto,
chamado por ele de O Aleph engordado. O procedimento borgiano é uma bela
homenagem ao autor de Ficções.
Maria Kodama, que detém os direitos de Borges, viu na criação de Katdchadjian
algum tipo misterioso de ofensa e o interpelou na justiça. Além de impedi-lo de publicar
novamente seu trabalho, solicitou uma indenização. O caso até hoje viveu inúmeras
reviravoltas. Depois de ser bem sucedido nas instâncias inferiores, Katdchadjian viu a
justiça desconsiderar todas as suas alegações (que vão do citado procedimento

70
idem
71
Idem
72
Publiquei a análise a seguir no artigo “Ninguém de boca fechada”. Cf. Continente. Recife. N. 204.
Dezembro de 2017.

46
borgiano73, até o esclarecimento de que toda a história da arte adota o mesmo
mecanismo que ele. Marcel Duchamp foi um de seus exemplos). O escritor foi
condenado a pagar uma multa de 16 mil dólares e seus bens ficaram bloqueados por
algum tempo. Depois, uma corte de apelação reviu a sentença e, outra vez, deu razão a
Katdchadjian, determinando o arquivamento do caso. A viúva deve recorrer.
O mundo muçulmano até hoje de vez em quando aparece com um caso
gravíssimo de perseguição. Apesar da enorme repercussão negativa que a fatwa (ordem
que uma autoridade religiosa lança para o assassinato de alguém) lançada pelo Aiatolá
Khomeini contra Salman Rushdie, por causa de um trecho de Os versos satânicos, esse
triste hábito continua. Recentemente o escritor franco argelino Kamel Daoud foi vítima
da mesma violência, por conta de seu excelente romance de estreia, O caso Meursault.
Indo na contramão do cânone literário, o livro narra a história da família do
homem assassinado no início de O estrangeiro, a grande obra de Albert Camus. Agudo,
o romance de Daoud denuncia supressões e apagamentos, confirmando a célebre
afirmação de Walter Benjamin de que os objetos culturais são, ao mesmo tempo,
veículos de barbárie.
O caso Meursault narra uma série de conversas que o irmão da vítima tem com
um francês que havia ido à Argélia, fascinado, estudar O estrangeiro. Desde o começo,
porém, o que ele ouve é a denúncia de como o cânone literário tende a muitas vezes
seguir o mesmo caminho de opressão da geopolítica internacional: “Você registrou
isso? Meu irmão se chamava Moussa. Ele tinha um nome. Mas continuará sendo o
árabe, para sempre. O último da lista, excluído do inventário do seu Robinson.
Estranho, não é? Há séculos o colono espalha a sua fortuna dando nomes às coisas de
que se apropria e retirando os nomes daqueles que o incomodam. Se ele chama meu
irmão de o árabe, é para matá-lo como se mata o tempo, passeando sem rumo.”74
O livro de Daoud não é, no entanto, apenas um acerto de contas com o europeu
invasor – mesmo o da voz libertária de Camus, aqui mais francês que argelino. O
próprio movimento de independência, com a sociedade politicamente radical que o
seguiu, é alvo de crítica: “Ele se levantou, abriu uma gaveta com violência, tirou dali
uma pequena bandeira argelina e se aproximou para agitá-la diante do meu nariz. Com o
tom ameaçador e a voz meio anasalada, ele voltou a perguntar: 'E isso aqui, você
conhece?'”75
A crítica ecoou na Argélia e um ímã lançou uma fatwa contra Kamel Daoud. O
caso também foi parar na justiça, como de hábito. Por fim, o autor obteve a vitória nos
tribunais e o religioso que o acossou recebeu uma pena de prisão e multa. Nada
aconteceu com Daoud, por sorte. Independentemente da decisão da justiça, não é difícil

73
Em entrevista recente, Alberto Manguel afirmou que o próprio Borges, se fosse levar em conta
os argumentos de Maria Kodama, não poderia ter escrito o conto Pierre Menard, autor do Quixote. Cf.:
http://www.peixe-eletrico.com/single-post/2016/10/10/Peixe-el%C3%A9trico-entrevista-Alberto-
Manguel?fb_comment_id=829401487157653_878700025561132
Formatted: English (United States)
74
Cf. DAOUD, Kamel. O caso Meursault. São Paulo: Editora Globo, 2016. Tradução de Bernardo
Ajzemberg. Pág. 22.
75
Idem. Pág. 129

47
que algum maluco, em busca da redenção eterna, ouça o chamado de um líder religioso
e tente um ato extremo. Esse tipo de violência persegue a vítima por toda a vida.

No caso de Diário da cadeia, como vimos as acusações foram muitas. Embora seja
quase irresistível fazer gozação, vou pular os trechos mais burlescos, até porque imagino que o
leitor já está cheio deles. Restam na verdade com mais interesse para a discussão jurídica dois
pontos: o direito à personalidade e a questão do pseudônimo.

Sobre o nome que assina o livro, acho que já discuti o suficiente nas páginas
anteriores. Ainda assim, quero concluir citando a lei 12853, que regulamenta a legislação sobre
direitos autorais. O artigo 12 é cristalino:

“Para se identificar como autor, poderá o criador da obra


literária, artística ou científica usar de seu nome civil, completo ou
abreviado até por suas iniciais, de pseudônimo ou qualquer outro sinal
convencional”.

Depois, o artigo 24, inciso IV, que trata dos direitos morais do autor, é claro ao afirmar
que apenas ele pode fazer qualquer alteração no seu trabalho. A lei brasileira, portanto,
garante o meu direito de “assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer
modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo,
como autor, em sua reputação ou honra”.

Quando foi exigida, portanto, a revelação de quem havia redigido Diário da cadeia, a
Lei de Direitos Autorais foi desrespeitada. Eduardo Cunha afirma, através de seus advogados,
que apenas ele pode lidar com sua afirmação de que escreveria um livro sobre o
impeachment. Ele está, como eu já disse, tentando manipular um imaginário.

Antes de entrar no mérito do tal “Direito à personalidade”, quero desfazer uma


confusão. É bastante comum que o direito à liberdade de criação artística seja tratado em
conjunto com o da liberdade de expressão. A arte evidentemente contém uma parcela de
expressão. Por isso faz sentido que os dois direitos caminhem juntos. Mas é preciso esclarecer
um detalhe: enquanto um jornalista ou um biógrafo devem construir narrativas baseadas em
documentos, a arte não responde a nenhum tipo de obrigação com nada que seja externo à
própria obra. A doutrina jurídica faz essa salvaguarda: “Nem mesmo nos dispositivos relativos
à comunicação social (art. 220 ss. CF) encontra-se uma limitação específica da atividade
artística, ao contrário do que ocorreu com as outras liberdades tuteladas pelo inciso IX, tal
como a liberdade de atividade de comunicação, que abrange, além das liberdades dos
chamados new media, a liberdade de imprensa e a liberdade de radiodifusão”76 Em um trecho
da ação inicial contra Diário da cadeia, os advogados de Eduardo Cunha chegam a afirmar que

76
Cf. MARTINS, Leonardo. “Direito Constitucional à Expressão Artística”. Em: Direito da arte.
Org. de Gladston Mamede, Marcílio Toscano Franca Filho e Otavio Luiz. São Paulo: Atlas, 2015.
Pág. 37.
48
nada no romance aconteceu. Como outra vez o leitor não deve estar acreditando no tamanho
da presepada, cito: “Como inferido do conjunto fático-probatório coligido nesta exordial, a
narrativa da obra não se refere a exposição informativa da vida do Autor e dos fatos a ele
relativos”.77 Deixo aqui uma pergunta, só para ressaltar que qualquer resposta a ela já
escorrega para, na melhor das hipóteses, o patético. Na pior, denovo, para a censura: qual
seria o “conjunto fático-probatório” contra um romance?

A Constituição Federal Brasileira garante no artigo 5°, inciso IX, que o exercício da
prática artística deve ser livre. A doutrina esclarece: “Como direito público-subjetivo, o direito
fundamental à liberdade artística do art. 5°, IX implica deveres de não intervenção estatal,
destinados aos órgãos dos três poderes em prol do ‘livre exercício da atividade artística’”.78 Ao
exigir, portanto, a quebra do pseudônimo, a justiça carioca violou a Constituição Brasileira,
além da Lei de Direitos Autorais.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815, que afasta a necessidade de autorização


prévia para biografias, ficou famosa depois da declaração da ministra Carmen Lúcia, de que o
“cala boca já morreu”. Ao julgar a Reclamação protocolada no Supremo Tribunal Federal, a
ministra Rosa Weber declarou que, dado que os dois desembargadores já haviam reconhecido
a ficcionalidade de Diário da cadeia, não existe mais nada a discutir no âmbito da lei: “Diante
de ausência de estrita aderência entre o paradigma invocado e o ato reclamado, a presente
reclamação constitucional não encontra campo para prosperar”.79

O “Direito à personalidade” encontra abrigo no artigo 5°, inciso X, da Constituição


Federal: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (...)”. No
que diz respeito à intimidade e à vida privada, não há muito o que discutir: não existem
pessoas em um texto de ficção, mas sim personagens, então ela não pode invadir a vida de
ninguém. Sei que muitos leitores têm por fetiche dizer que conhecem essa e aquela
personagem, quando não garantem que são eles próprios que estão no romance.

Quando o Delegado Tobias anunciou nas redes sociais que estava proibindo os ebooks
que discutiam se ele existe ou não, algumas pessoas me procuraram para dizer que o
conheciam. Um poeta chegou a garantir, para me tranquilizar, que sua tia trabalhava na
mesma delegacia que Paulo Tobias e, assim que conseguisse contato com ele, iria intervir. É
divertido, mas operadores do Direito precisam ter muito claro que se tomarem qualquer
decisão impedindo uma obra de arte por que as pessoas se dizem invadidas por ela, estarão se
aproximando do absurdo: os advogados de Eduardo Cunha, como vimos, afirmam que Diário
da cadeia invade a intimidade dele e, ao mesmo tempo, que o livro não descreve a verdade
objetiva dos fatos. Não há como agir judicialmente com bom senso, nesse caso, se não for
simplesmente descartando a acusação.

77
Ação inicial contra o romance Diário da cadeia. Pág. 22.
78
Cf. Leonardo Martins. Op. Cit. Pág. 32
79
Cf. Recl. 26884 (RJ). Supremo Tribunal Federal.
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=5175098 (Último acesso
em 7 de dezembro de 2017)

49
Resta a “honra” e a “imagem”. O ministro Luis Roberto Barroso define a questão da
honra: “A honra é igualmente um direito da personalidade previsto constitucionalmente. Por
ele se procura proteger a dignidade pessoal do indivíduo, sua reputação diante de si próprio e
do meio social no qual está inserido”.80

Naturalmente, esse direito não pode ser evocado para impedir que uma pessoa
pública (na minha opinião, aliás, qualquer pessoa) determine como uma crítica ou uma sátira
deve se comportar diante dela. Se isso ocorrer, logo o trabalho dos cartunistas, por exemplo,
estará encerrado – como acontece em muitas sociedades autoritárias. Em resumo: quem
pretende ocupar um cargo público, deve se preparar para ser ridicularizado e ter maturidade
para suportar isso. É recomendável também algum bom humor.

Barroso também define o “Direito à imagem” como sendo aquele que “protege a
representação física do corpo humano ou de qualquer de suas partes, ou ainda de traços
característicos da pessoa pelos quais ela possa ser reconhecida.”81 Ele mesmo explica que
“atos judiciais, inclusive julgamentos, são públicos via de regra (art. 93, IX da Constituição
Federal), o que afasta a alegação de lesão à imagem captada nessas circunstâncias.
Igualmente, a difusão de conhecimento histórico, científico e da informação jornalística
constituem limites a esse direito.”82

Se textos históricos, científicos e jornalísticos estão livres das limitações do “Direito à


imagem”, quanto à arte, que tem liberdade ainda mais ampla, não há nem o que falar. Ainda
assim, e apenas porque o admiro muito, quero deixar aqui a lista de algumas personagens da
peça Stuff Happens do dramaturgo inglês David Hare:

George W. Bush
Dick Cheney
Colin Powell
Condoleezza Rice
Donald Rumsfeld
John McCain
Tony Blair
Jacques Chirac
Saddam Hussein

A capa da minha edição também é bastante eloquente:

80
BARROSO, Luis Roberto. “Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade.
Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei
de Imprensa”. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-01.htm
(Último acesso em 8 de dezembro de 2017)

81
Idem.
82
Idem
50
Na Inglaterra, a justiça jamais colocou qualquer empecilho ao trabalho de Hare.
Acho importante, ainda, citar o seguinte trecho do ministro Barroso para deixar tudo
bem claro:
“As pessoas que ocupam cargos públicos têm o seu direito de
privacidade tutelado em intensidade mais branda. O controle do poder
governamental e a prevenção contra a censura ampliam o grau
legítimo de ingerência na esfera pessoal da conduta dos agentes
públicos. O mesmo vale para as pessoas notórias, como artistas,
atletas, modelos e pessoas do mundo do entretenimento.
Evidentemente, menor proteção não significa supressão do direito. Já
as pessoas que não têm vida pública ou notoriedade desfrutam de uma
tutela mais ampla de sua privacidade.”83

Por fim, no caso de colisão de direitos, há uma grande quantidade de julgados que
coloca em posição de preferência a liberdade de expressão, que inclui por óbvio a de criação
artística: “Tanto em sua dimensão individual como, especialmente, na coletiva, entende-se
que as liberdades de informação e de expressão servem de fundamento para o exercício de
outras liberdades, o que justifica sua posição de preferência em tese (embora não de
superioridade) em relação aos direitos individualmente considerados.”84 É do mesmo ministro
a frase certeira: o julgador deve dar “preferência por medidas que não envolvam a proibição
prévia da divulgação”.85

83
Idem.
84
Idem.
85
Idem.

51
Depois de tudo isso, então, como explicar que em 2017 um romance foi proibido de
circular no Brasil e, além disso, um pseudônimo foi obrigado a se desfazer pela justiça? Talvez
minha resposta não seja simples, mas é direta: porque uma medida liminar inaudita altera
parte foi aplicada a um trabalho artístico.

A liminar inaudita altera parte é aquela proferida sem que o réu seja ouvido. Trata-se
de uma decisão provisória que irá considerar apenas o que diz uma das partes. O juiz
concordará ou não com um ponto de vista único. O pedido de liminar precisa ser julgado com
rapidez, já que em tese trataria de um direito em risco iminente de ser violado.

O filósofo Theodor Adorno começa sua Teaoria estética com a seguinte afirmação:
“Tornou-se manifesto que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser evidente, tanto em si
mesma como na sua relação com o todo, e até mesmo o seu direito à existência. A perda do
que se poderia fazer de modo não refletido ou sem problemas não é compensada pela
infinidade manifesta do que se tornou possível e que se propõe à reflexão.”86 Os movimentos
que a arte protagonizou nos últimos 50 anos só vieram a confirmar esse diagnóstico, talvez até
o ampliando, já que no interior de todo bom objeto artístico contemporâneo é possível
encontrar uma reflexão sobre a sua natureza.

Dessa forma, é intrínseca à arte contemporânea a atribuição de interpretações


múltiplas, os debates amplos e multifacetados e as leituras das mais variadas naturezas. Tudo
isso é evidentemente incompatível com a natureza de uma medida liminar inaudita altera
parte, que ouve apenas uma única voz e com rapidez muito grande.

Como tudo no Direito, é possível debater se a arte realmente pode violar um direito de
alguém. Mas a arte e o procedimento da medida liminar inaudita altera parte são excludentes:
toda vez que, por qualquer motivo, um juiz emite uma decisão liminar que afeta, mesmo
temporariamente, uma obra de arte, ele está no mínimo vedando o debate. Muitas vezes
acaba destruindo o trabalho, como nos exemplos que apresentei. Para dar conta da minha
discreta indignação, repito: e agora, como refazer o sigilo do meu pseudônimo?

Por tudo isso, deixo uma proposta para juízes e outros operadores do Direito:

Ao se deparar com um pedido de medida liminar que tenha a mais


remota possibilidade de estar tratando de uma obra de arte, seja ela
de que natureza for, o ideal, para não recair em censura, é o juiz
recusar uma decisão unilateral e abrir o debate, sempre se dispondo a
ouvir o maior número possível de vozes. Além disso, deve resguardar a
integralidade e livre circulação da obra, para que todos esses sentidos
possam ser produzidos com a máxima liberdade.

Evidentemente, não estou alheio ao argumento que deve estar na ponta da língua de
muitos leitores: mas como vamos definir o que é arte? “Então vou roubar a carteira do meu

86
ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 2008. Tradução de Artur Morão. Pág. 11.

52
vizinho (ou fazer coisa pior) e depois afirmarei que tudo não passou de uma performance...”
Quem pensou em levantar esse tipo de argumento precisa, antes de pensar em arte, deixar a
adolescência para trás. Não estou propondo nenhum tipo de absurdo. No caso de uma
controvérsia, críticos, instituições e outras instâncias sociais adequadas, sempre em grande
número de vozes diferentes, podem ser ouvidas. Aqui faço uma aposta: se ainda assim uma
obra de arte for proibida, essa sociedade é uma ditadura.
No caso da instalação de Nuno Ramos, Bandeira branca, bastava que alguns
veterinários tivessem tempo de visitar a obra para uma análise, críticos pudessem esclarecer a
natureza do trabalho e o artista fosse ouvido com tranquilidade para que uma obra não fosse
violada e um único sentido – que é uma das definições de censura – prevalecesse.
Sem meias palavras, o que reivindico aqui para o Direito é apenas a possibilidade de
discussão sem nenhum estrago ou sombra de censura. Se um juiz nota que uma das partes de
uma controvérsia é a Bienal de Arte de São Paulo, uma editora ou um escritor e o objeto da
discussão é uma obra de arte, esse detalhe já é suficiente para que seja negada a liminar
inaudita altera parte. O contrário, é censura e destruição in limine do trabalho artístico.

53
EPÍLOGO

54
Durante o segundo semestre de 2017, como o leitor já sabe pelos gráficos da página X,
as decisões que permitiram a circulação de Diário da cadeia e, em caráter prévio, julgaram
improcedentes as acusações de Eduardo Cunha contra mim e o livro, começaram a ser
analisadas pelos colegiados.

Nesse período, muita gente me perguntou se não é desconfortável viver esse tipo de
imbróglio jurídico. Um excelente escritor do Recife me disse que não conseguiria dormir. Há
nisso, claro, algum desconhecimento dos trâmites jurídicos. Como citei, muitas vezes eu só
ficava sabendo das decisões depois que elas eram proferidas. Em certas ocasiões, apenas a
editora se pronunciava. No final das contas, a gente se acostuma, respondi.

Repito uma convicção: a história da arte, com algum ajuste, é a história da sua
censura. Ainda assim, é óbvio que alguns ordenamentos jurídicos reagem melhor às tentativas
de silenciamento à arte e ao pensamento do que outros. No Brasil, além de tudo o Poder
Judiciário é usado como forma de intimidação. Quantas vezes a gente não houve uma frase
bem nossa: vou te processar!

Diante disso, talvez o caráter de bom comportamento e a ausência total de confronto


com os poderes estabelecidos que reina na literatura brasileira há alguns anos, com as
exceções de praxe, explique-se também pela autocensura. Ninguém quer perder o sono e,
afinal de contas, advogados são caros. No final das contas, isso acaba também moldando
formas de expressão e intensidades críticas.

O Poder Judiciário portanto tem uma responsabilidade ainda maior. Decisões que se
tornem inibitórias à criação acabam empobrecendo criticamente a arte. O ideal é que
realmente seja desenvolvida uma cultura entre juízes e operadores do Direito que cerceie
desde o início a censura. Até porque as instâncias superiores irão, em tempos democráticos,
repeli-la. O que se pede, assim, é que as obras não sejam liminarmente destruídas e que os
artistas sejam deixados livres para fazer a crítica que bem entenderem, com a intensidade que
desejarem, através da forma que acharem mais eficaz. Definitivamente, o lugar de julgamento
do bom ou mau resultado dessas criações não é o tribunal.

A epígrafe que abre minha defesa na justiça, clara e lúcida, poderia servir a todos os
julgadores de guia e jurisprudência. Ela veio da coerência e cultura do ministro Celso de Mello
e está entre os melhores momentos das nossas autoridades jurídicas:

“A liberdade de expressão artística não se sujeita a controles


estatais, pois o espírito humano, que há de ser permanentemente
livre, não pode expor-se, no processo de criação, a mecanismos
burocráticos que imprimam restrições administrativas, que

55
estabeleçam limitações ideológicas ou que imponham
condicionamentos estéticos à exteriorização dos sentimentos. ”87

Foi no período em que os plenos analisavam a liberação de Diário da cadeia, que novas
patrulhas, muito mais violetas do que as que policiariam o livro, passaram a atacar obras de
arte. No caso da minha intervenção, portadores do título de doutor em Letras afirmaram que
ele não é literatura. Quanto à exposição Queermuseu, que eu já apresentei, entre outros um
ex-ator pornô afirmou que as obras não eram arte. É exatamente o mesmo discurso, com igual
disposição de censura. Os dois grupos, doutores e atores pornô, retroalimentam-se.

Nos vários casos de tentativa de censura que o Brasil sofreu no segundo semestre de
2017, um detalhe passou despercebido: diversas vezes, o lugar da controvérsia carregava o
nome de uma arquiteta ousada e elegante. O SESC Pompéia começou a sofrer bastante
assédio depois de anunciar que sediaria o congresso Os fins da democracia, organizado por
uma parceria entre a Universidade de São Paulo e a Universidade da Califórnia em Berkeley. Os
mesmos grupos que já tinham atacado Queermuseu lançaram várias manifestações contra a
presença da filósofa Judith Butler, uma das organizadoras do seminário, no Brasil. O
argumento não era menos patético do que as acusações de incitação à pedofilia e zoofilia que
haviam sido lançadas antes: a obra de Butler seria uma ameaça à família tradicional, seja lá o
que for isso.

As instituições envolvidas agiram com firmeza e a programação foi mantida. Apesar do


reforça no segurança, Butler acabou sendo agredida quando saía de São Paulo, no aeroporto
de Congonhas. Ecoando os piores momentos da história da humanidade, algumas pessoas se
colocaram em frente ao SESC Pompéia enquanto Butler falava no auditório, queimaram um
boneco com o rosto dela.88

Um pouco antes, o Museu de Arte de São Paulo abriu a exposição Histórias da


sexualidade com uma atitude inédita: menores de 18 anos não poderiam entrar, nem mesmo
acompanhados de seus pais. Não havia nenhum tipo de protesto ou ameaça contra a
exposição. O museu agiu de forma preventiva, produzindo assim um dos piores efeitos do
policiamento às artes: a autocensura. Depois de inúmeros protestos e manifestações da classe
artística e intelectual e sobretudo após uma declaração explícita do Ministério Público
recomendando o fim da restrição, o Museu, não sem bastante constrangimento, reviu sua
decisão.89

87
RE 635.023. Voto proferido pelo Min. Celso de Mello, acompanhado pelos demais Ministros
do Pleno do E. STF. Esse e alguns outros exemplos foram fornecidos pela minha advogada,
Andressa Paula Senna, a quem agradeço.
88
Confirmando seu papel de pensadora central para o mundo contemporâneo, Butler analisou
o que aconteceu em um texto brilhante. Cf. BUTLER, Judith. “O fantasma do gênero – reflexões
sobre liberdade e violência”. Em: Folha de S Paulo. Domingo, 19 de novembro de 2017.
89
Também em artigo publicado na imprensa, dois procuradores explicaram os equívocos de análise do
MASP. Cf. DUPRAT, Deborah e Sergio Gardenghi Suiama. “(Nem) toda nudez será castigada”. Folha de S
Paulo. Terça-feira, 14 de novembro de 2017. Pág. A5.

56
Enquanto isso, o tradicional Teatro Oficina viu outra atitude bastante regressiva tomar
de assalto o descampado ao lado de sua sede, na frente do janelão que divide o palco da rua.
Depois de anos de controvérsia judicial, o Grupo Silvio Santos, comandado por um empresário
cafona e inconsequente da indústria do entretenimento, obteve autorização para construir um
empreendimento imobiliário no lugar, o que vai comprometer a visão do palco do teatro. Se
de fato isso acontecer, a obra irá alterar incontornavelmente a arquitetura do Oficina e,
inclusive, seu alcance cênico. O prédio comandado por José Celso Martinez Correa dialoga com
o entorno.

SESC Pompéia, MASP e Teatro Oficina têm algo em comum: foram projetados pela
arquiteta Lina Bo Bardi.90

Lina Bo Bardi sempre esteve muito perto do poder para ser considerada uma artista de
esquerda. Na inauguração de um de seus projetos mais famosos, a atual sede do MASP,
estiveram presentes várias autoridades políticas ligadas à ditadura, sem falar na rainha da
Inglaterra, Elizabeth II, em pessoa. Ainda assim é possível dizer que ela e seu grupo constituíam
uma espécie de elite ilustrada, raridade no Brasil.

Sem abrir mão da proximidade com o capital, Bo Bardi concebia seu trabalho como um
ato quase civilizatório. É o tipo de arquitetura que toma força no início do século XX e chega a
projetos como os dela, que imaginava os espaços públicos como lugares de reunião e a
realização da cidade como um bem comum. É assim que ela queria que o novo MASP
funcionasse: “Eu gostaria que lá fosse o povo, ver exposições ao ar livre e discutir, escutar
música, ver fitas. Até crianças, ir brincar no sol da manhã e da tarde.”91

Para Bo Bardi, a arquitetura não precisa de muito para chegar a seus objetivos. O
projeto do SESC Pompéia é ilustrativo de sua proposta, que aliás guarda um diálogo profícuo e
revelador com a arte povera, um dos desdobramentos mais interessantes do Modernismo: “A
ideia inicial de recuperação do dito conjunto foi a ‘Arquitetura Pobre’, isto é, não no sentido da
indigência, mas no sentido artesanal que exprime Comunicação e Dignidade máxima através
dos menores e humildes meios.”92 Um empresário como Silvio Santos, uma espécie de Rei
Midas da cafonagem, não podia mesmo aceitar a proposta de Bo Bardi. Quanto ao teatro de
José Celso Martinez Correa, ela é eloquente: “Do ponto de vista da arquitetura, o Oficina vai
procurar a verdadeira significação do teatro – sua estrutura Física e Táctil, sua Não-Abstração –
que o diferencia profundamente do cinema e da tevê, permitindo ao mesmo tempo o uso total
desses meios.”93

Os grupos que agora se voltam contra o trabalho dela, portanto, não estão
combatendo nenhum tipo de “proposta esquerdista”. Quando afirmam isso, criam apenas um
slogan para figuras alucinadas que não perceberam ainda que a União Soviética já acabou faz
tempo. Em primeiro lugar, opõem-se de fato a uma proposta de comunicação: para eles não

90
Quem aparentemente primeiro chamou atenção para isso foi o dramaturgo Kiko Raiser.
91
CF. BO BARDI, Lina. Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo Bardi, 1992. Pág. 102.
92
Idem. Pág. 220.
93
Idem. Pág. 258.

57
deve haver sequer espaço de encontro para que as pessoas troquem ideias. Interdita-se
portanto, a reunião. Depois, se os vários estratos da sociedade não podem conversar ou, mais
ainda, sequer conhecerem-se direito, não reivindicarão nada. Aqueles que já têm seus espaços
tradicionalmente garantidos podem continuar argumentando sobre a manutenção de seus
privilégios, enquanto os outros não devem nem mesmo falar. É, de novo, censura.

Por fim, combate-se ainda uma das últimas elites com razoável bom gosto entre nós.
Herdeira dos primeiros modernistas Bo Bardi projeta espaços abertos em diálogo com a cidade
pulsante, tirando dela algum oxigênio para a multidão e oferecendo a ela possibilidades de
expressão e recriação, além da recreação que parte da arquitetura modernista preconizou.

A agressão à obra de Lina Bo Bardi tem o intuito de fazer as ideias no Brasil regredirem
ao século XIX, desautorizando e apagando todos os espaços modernistas que foram
construídos entre nós. Com isso mais uma vez ficam impedidas de crescer por aqui as questões
libertárias que já nos anos 1960 fizeram a Europa e os Estados Unidos assistir às grandes
manifestações pelos direitos dos negros, homossexuais, indígenas, mulheres e outros grupos
vulneráveis.

Além de consolidar uma política econômica liberal que interessava sobretudo às


grandes empresas internacionais, o golpe militar de 1964 tinha como objetivo lateral impedir
que no Brasil movimentos como os de maio de 1968 na Europa ou as manifestações pelos
direitos civis nos Estados Unidos tomassem força por aqui.

Nos últimos anos, porém, os movimentos pelos direitos das minorias cresceram e
abalaram o espectro político tradicional no Brasil. Esses novos grupos reacionários assim
repetem as operações realizadas pelos militares em 1964, atualizando a maneira de agir mas
não as intenções: impedir que algum dia por fim avancemos. Para eles, temos que continuar
infinita e tediosamente realistas.

Um dos momentos mais controvertidos da história brasileira contemporânea são as


manifestações de 2013. Surgidas a partir da ação de grupos de jovens que contestam a
necessidade de tarifa para o transporte urbano, tomaram uma proporção gigantesca para, de
forma inesperada, constituírem inclusive um vocabulário novo nas ciências políticas entre nós:
manifestação horizontal, movimentos autônomos e jornadas de junho são, agora, para
irritação de muita gente, expressões incontornáveis em qualquer debate mais consequente
sobre o nosso tempo.

Foram muitos os atingidos. Apesar de bem mais pacíficas que seus correlatos
estrangeiros, (o número oficial de mortos durante os protestos na praça Maydan, na Ucrânia é
o de 102 pessoas. Durante a Primavera Árabe, a cifra passa de um milhar, se não contarmos
evidentemente a tragédia na Síria) até hoje as feridas de junho não cicatrizaram. Entre as
vítimas que de fato podem receber esse qualificativo, o fotógrafo Sergio da Silva já tentou
duas vezes ser indenizado na justiça por conta de um olho que perdeu enquanto cobria uma
das manifestações.

58
Em texto recente, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad é peremptório: “Tenho
para mim que o impeachment de Dilma não ocorreria não fossem as Jornadas de Junho.”94 O
sociólogo Jessé Souza vai na mesma direção, ainda que com menos ênfase: “Em junho de 2013
constroi-se a base social do golpe”.95

Haddad e Souza acreditam que os movimentos de 2013 criaram espaço para o


surgimento dos grupos conservadores que, a partir do ano seguinte, trouxeram para o palco as
ideias reacionárias que, agora em 2017, terminaram pedindo a censura às artes a que estamos
assistindo.
Vladimir Safatle acha que isso se deu porque a esquerda não estava preparada para
lidar com a forma como os protestos emergiram: “A força que tal adesão [a discursos
reacionários a partir de 2013] ganhou é resultado de uma reação; ela é a constituição de um
sujeito reativo que emerge como efeito colateral de todo verdadeiro acontecimento. Que seja
apenas um sujeito reativo aquele que até agora emergiu, isso significa apenas que a esquerda
brasileira não estava pronta para a revolta.”96 Em uma excelente reconstituição histórica, o
filósofo Renato Janine Ribeiro observa como as manifestações começaram aos poucos a
ganhar apoio popular: “Foi após a repressão, isto é, a violência da polícia, que os protestos
ganharam ímpeto. A opinião pública mudou de lado para condenar a violência”.97 Para ele, os
desdobramentos seriam também os protestos contra a corrupção (lembremos que sempre
apenas contra a corrupção do Partido dos Trabalhadores) que deram força à queda de Dilma
Roussef.
Ao contrário da maior parte dos analistas, participei dos protestos de junho de 2013.
Nunca estive na linha de frente e gás lacrimogêneo só me engasgou duas vezes. No entanto,
dei aula de literatura para alguns dos jovens que estiveram desde a primeira hora nas
manifestações. Vários outros foram ao lançamento dos meus últimos livros.

As manifestações de 2013 não são bem digeridas no Brasil porque, basicamente, não
tivemos o nosso 1968. Para grande parte da classe intelectual aqui, se não houver uma base
partidária forte, um levante é inválido. Aqui, Safatle é preciso e certeiro: “Os intelectuais não
transformaram o Estado brasileiro, eles se integraram a ele. Com isso, ficou cada vez mais clara
a impotência da classe intelectual como classe de transformação política”.98

Renato Janine tem razão ao afirmar que a violência policial chocou a população. Mas
não foi isso que engrossou os protestos. O povo brasileiro é terrivelmente tolerante com os
abusos que o poder repressivo do Estado realiza todos os dias com parte grande da população.
Quanta gente esteve nas manifestações contra o desaparecimento do pedreiro Amarildo?
Todos aderiram em massa às propostas do Movimento Passe Livre e seus aliados porque
sabem que o transporte público no Brasil, para o que oferece, é muito caro. Com muita
clareza: as pessoas saíram às ruas em junho de 2013 porque concordavam com as
reivindicações.

94
HADDAD, Fernando. “Vivi na pele o que aprendi nos livros”. Piauí. N°129. Junho de 2017.
95
Entrevista disponível em https://jornalggn.com.br/noticia/para-jesse-souza-golpe-nasceu-em-junho-
de-2013 (último acesso em 8 de dezembro de 2017).
96
Cf. SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço São Paulo: Três estrelas, 2017. Pág. 55. O itálico é do autor.
97
Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A boa política. Ensaios sobre a democracia na era da internet. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017. Pág. 222.
98
CF. SAFATLE, Vladimir. Op. cit. Pág. 99.

59
Depois de uma série de protestos, o aumento nos transportes foi revogado. Portanto,
as manifestações funcionaram. Parte dos militantes que as organizaram saiu de cena. Outra
parcela se manifestou contra a Copa do Mundo de 2014 e depois as Olimpíadas de 2016.
Segundo eles, os eventos seriam um balcão de negócios para os políticos corruptos. Estavam
certos de novo.

No caso, porém, esse segundo movimento não teve o mesmo apoio que os anteriores,
que reivindicavam a redução nas tarifas de transporte público. Agora no geral a população
apoiou a mesma violência policial que antes repudiara. Aqui também não há mistério: a massa
da população brasileira não achou que as manifestações contra a Copa do Mundo e as
Olimpíadas valiam a pena. Se houver futebol, que roubem e que a polícia bata em quem está
atrapalhando nosso espetáculo.

Aqui, quero resolver uma confusão que, com maldade, algumas pessoas às vezes
promovem: os manifestantes que se rebelaram contra o aumento da passagem não têm
ligação com os que inflaram o pato da FIESP e apoiaram o discurso de gente como Eduardo
Cunha e Geddel Vieira de Lima. (No momento em que escrevo, os dois estão presos.)

Os grupos regressivos que surgiram no Brasil a partir de 2014 e ficaram simbolizados


pelo pato da FIESP não são derivados das manifestações do ano anterior. Na verdade,
representam a reação que a classe dominante operou para justamente conter os levantes que,
assustada, viu tomarem força e por fim obter uma vitória rara no contexto político brasileiro.

Não é difícil imaginar os abutres do capital financeiro mortos de medo com a


possibilidade, por exemplo, de um protesto contra a taxa de juros ou o cheque especial.
Vamos lembrar que a fachada de alguns bancos veio abaixo. Era preciso agir rápido. Com a
eficácia de sempre, os homens do capital manipularam sua vasta massa de manobra para
tentar conter a sangria.

Um levante é de fato muito arriscado e é sempre impossível saber seus resultados.


Marie-José Mondzai é precisa quando analisa o que nos faz, revoltosos, arriscar: “Uma raiva
impetuosa nos arranca do chão, mesmo que pague um preço tão jubiloso quanto perigoso, o
preço do incontrolável.”99 Depois das revoltas estudantis e operárias de maio de 1968, Paris
assistiu ainda no fim daquele mês mágico a uma enorme manifestação de gente que queria,
pelo amor de Deus, que a vida voltasse logo ao normal.100 Um capítulo bastante triste da nossa
história é o despudorado apoio que boa parte da população manifestou e manifesta até hoje
ao golpe militar de 1964.

Todos os levantes levarão a reações. Se não a quisermos teremos que condenar


qualquer revolta. É o que fazem aqueles que culpam as jornadas de junho de 2013 pela queda
de Dilma Roussef e pela visibilidade que grupos regressivos tomaram desde então. Em resumo,
a mensagem é: não se revoltem pois a gente não sabe o que pode acontecer depois.
Conservadores, por definição até mesmo etimológica, não gostam de mudanças e têm medo

99
Cf. MONDZAIN, Marie-Jose. “Para ‘os que estão no mar...’”. Em: Levantes. Organização de George
Didi-Huberman. São Paulo: SESC, 2017.
100
Uma das melhores referências que já vi a isso está no recente filme de João Moreira Salles, No
infinito agora.

60
do desconhecido. Portanto, quem condena as manifestações de 2013 contra o aumento das
passagens está no interior de grupos politicamente regressivos. Ou então acha que o
transporte público brasileiro vale o quanto cobra.

Quanto a mim, confesso um delírio: em uma das ocasiões em que, por fim, o gás
lacrimogêneo me sufocou, um pouco antes eu subia a rua da Consolação bradando, com
alguma discrição é claro, pelo direito ao nouveau roman.

Segundo Giorgio Agamben, o autor de um texto é apenas o “ilegível que torna possível
a leitura, o vazio lendário de que procedem a escritura e o discurso”.101 Atrás do pseudônimo,
antes que a justiça violasse Diário da cadeia, reinava o mais eloquente descampado. Com esses
recursos todos contra o livro, fica evidente que o ex-deputado federal, um dos artífices da
assustadora degradação que o Brasil vive, tentou ocupar esse vazio.

“Eduardo Cunha (pseudônimo)” era simplesmente nada, ou melhor: o nada. Ora, um


político que esteve por trás de todos os abalos do país não poderia mesmo aceitar ser
substituído pelo vazio e lutou para se manter respirando em um mundo que já não é o dele,
não o aceita e o repele o tempo inteiro. É nesse lugar terminantemente desconhecido,
desabitado e descampado que está a possibilidade transformadora da arte.

Antes que o leitor dê sentido a Diário da cadeia e ao nome que o assina, tudo ali é só
ausência. Não há como, porém, apenas uma pessoa povoar todo esse vazio. Não será apenas
um deputado, um único juiz, só uma pessoa que irá ocupar esse mundo. Aqui, enxergo a
plenitude da arte: se ela tem de fato a possibilidade de fazer uma violência tão grande como a
que meu livro impôs ao ex-deputado federal – a de relegá-lo ao nada – também me permite
todo dia criar mais e mais espaços infinitos de possibilidades.

Há algo de ético nisso tudo. Como eu disse, porém, não vou me defender. Mas faço
questão de dizer que essa criação diária de um espaço infinita e incontornavelmente vazio é,
para mim, uma

São Paulo, 20 de dezembro de 2017.

101
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. Tradução de Selvino J. Assmann
Pág. 61.

61

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