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Ivo Tonet
Salvador ム Maceió
23/08/2012
Índice de Textos
Ciência/Categorias
Educação
Esquerda/Marxismo/Atualidade
Prefácios/Introduções/Resenhas
Trabalho/Socialismo
1. O grande Ausente
2. Sobre o Socialismo
3. Socialismo e Democracia
4. Socialismo: Obstáculos a uma Discussão
5. Trabalho Associado e Revolução Proletária
6. Trabalho, Educação e Luta de Classes (Prefácio)
Ciência e Categorias
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CIDADANIA OU EMANCIPAÇÃO HUMANA?
Introdução
Fala-se muito, hoje, em cidadania como se esse termo fosse sinônimo de liberdade tout
court. Supõe-se que lutar por um mundo cidadão equivaleria a lutar por uma sociedade
efetivamente livre e humana. Supõe-se, também, que com a cidadania, que é certamente
inseparável da democracia, se haveria descoberto a forma mais aperfeiçoada possível da
sociabilidade.Não porque ela fosse perfeita, mas porque estaria indefinidamente aberta a novos
aperfeiçoamentos.
Ao contrário, parece-nos equivocado pensar que a cidadania expressa a forma superior da
liberdade humana. Por suas origens e sua função na reprodução do ser social, ela representa uma
forma de liberdade, certamente muito importante, mas essencialmente limitada. Ao nosso ver, a
efetiva emancipação humana é, por seus fundamentos e sua função social, algo radicalmente
distinto e superior à cidadania, que é parte integrante da emancipação política. É da máxima
importância esclarecer, hoje, essa distinção se queremos que a luta social esteja orientada no
sentido da superação dessa forma desumanizadora de sociabilidade, cujas raízes se encontram no
capital. Por sua vez, esse esclarecimento supõe a busca da natureza mais íntima da cidadania e da
emancipação humana. É o que nos propomos fazer brevemente nesse texto.
1. O ponto de partida
O caminho mais comum, quando se pretende entender a questão da cidadania, é tentar
refazer a sua trajetória histórica. Não cremos que esse seja, de fato, o melhor caminho. Sem
dúvida, o conhecimento da história é muito importante. No entanto, o processo histórico é algo
muito complexo e variado. Como evitar que nos percamos em meio a essa complexidade e
variedade de aspectos? Precisamos de um fio condutor que nos permita compreender a lógica do
processo histórico. Esse fio, ao nosso ver, são as determinações gerais que caracterizam o
processo de autoconstrução humana. Ou seja, a primeira pergunta não pode ser a respeito do que é
a cidadania, mas a respeito do que é o homem, do que são essas determinações fundamentais que
demarcam o processo de tornar-se homem do homem. Esse é o caminho que nos parece mais
adequado para compreender todo e qualquer fenômeno social.
Na perspectiva marxiana, esse fio tem como ponto de partida o ato que, para Marx, é o ato
originário do ser social, vale dizer, o ato do trabalho. Segundo ele, se queremos respeitar o
processo real temos que partir não de especulações ou fantasias, mas de fatos reais,
“empiricamente verificáveis”, ou seja, dos indivíduos concretos, o que fazem, as relações que
estabelecem entre si e suas condições reais de existência. E o primeiro ato dos homens é
exatamente o ato de trabalhar. Somente desse modo, seremos capazes de capturar as
determinações fundamentais que caracterizam o ser social e seu processo de reprodução. O exame
rigoroso do ato de trabalho permite a Marx perceber que este se compõe de dois momentos: a
teleologia e a causalidade. Dois momentos, ressalte-se, de igual estatuto ontológico. Ou seja, de
um ponto de vista ontológico, a consciência é tão importante como a realidade objetiva. Trabalhar
é, portanto, conceber antecipadamente o fim que se pretende alcançar e atuar sobre a natureza
para transformá-la segundo esse objetivo. Por outro lado, ao transformar a natureza, o homem
cria, ao mesmo tempo, o seu próprio ser. Tanto Marx, como Lukács insistem em que é por
intermédio do ato do trabalho que se realiza o salto ontológico do ser natural para o ser social.
A partir dessa análise mais rigorosa da estrutura ontológica do trabalho, pode-se perceber
que o ser social é um ser radicalmente histórico e social. Isso quer dizer que nada existe, no ser
social, que seja imutável; que a totalidade deste ser é sempre o resultado dos atos humanos. Como
conseqüência, nenhum tipo de ordem social pode afirmar a sua insuperabilidade. A partir da
análise do trabalho, também se pode perceber que o ser social é é um ser que se caracteriza
essencialmente pela atividade, a socialidade, a consciência, a liberdade e a universalidade. Essas
determinações constituem elementos essenciais do ser social. No entanto, é preciso ressaltar
enfaticamente: a noção marxiana de essência não é, de modo algum uma noção metafísica, mas
inteiramente histórica. O que significa que essas determinações também têm suas origens nos atos
humanos. O que as distingue dos aspectos fenomênicos não é sua imutabilidade, mas a sua maior
continuidade e unidade.
No entanto, apesar de ser o ato originário e fundante do ser social, o trabalho não esgota a
natureza deste ser. Por sua natureza, o ato do trabalho é um ato que tem a possibilidade de
produzir de maneira cada vez mais ampla. O que tem como conseqüência o fato de que a
complexificação sempre mais intensa é uma característica própria do ser social. Essa
intensificação da complexificação é responsável pelo surgimento de problemas e necessidades que
não podem ser resolvidos ou satisfeitas diretamente pelo trabalho. A resolução desses problemas e
necessidades exige a estruturação de outras dimensões específicas, como a linguagem, a ciência, a
arte, a educação, o direito, a política, etc. Todas essas dimensões têm a sua origem na dimensão
fundante do trabalho, o que não significa, de modo algum que sto se dê por derivação mecânica
ou direta. A autonomia relativa é-lhes necessária para que possam cumprir suas funções na
reprodução do ser social. Em conseqüência disso, para compreender qualquer uma dessas
dimensões teremos sempre que buscar as suas origens histórico-ontológicas e a função que devem
cumprir na reprodução do ser social.
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1
ÉTICA E CAPITALISMO
Ivo Tonet
Introdução
1. Um período de decadência.
Para aqueles que admitem que as classes sociais são os sujeitos fundamentais
(embora de modo nenhum únicos) da história, o ano de 1848 marca o início do período de
decadência da sociabilidade burguesa. Isto porque foi neste ano que a burguesia derrotou um
conjunto de tentativas feitas pela classe trabalhadora de vários países europeus, para eliminar,
pela raiz, a exploração do homem pelo homem. Sem dúvida esta não foi uma vitória definitiva
– mesmo porque isto é algo impossível – do capital sobre o trabalho. Contudo, esta vitória, de
Prof. do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas. Doutor em educação pela UNESP-
Marília.
2
grande importância exatamente porque se deu sobre a classe trabalhadora dos países mais
desenvolvidos, permitiu à burguesia consolidar plenamente o seu poder econômico e político.
Viu, então, abertas diante de si as portas para um desenvolvimento extraordinário das forças
produtivas e para a configuração de uma ordem social à sua imagem e semelhança. Contudo,
isto também significou, como foi muito bem expresso pelo lema positivista “ordem e
progresso”, que o desenvolvimento da humanidade, daí para diante, se faria tendo por base a
propriedade privada e, portanto, a continuidade da exploração do homem pelo homem.
Como conseqüência, aquele impulso progressista, que levava a burguesia, desde o
seu nascimento, a demolir as barreiras que a ordem feudal colocava ao desenvolvimento da
humanidade, agora se transformava em uma força conservadora.
Naquele primeiro momento, em sua luta contra a ordem feudal, a burguesia foi
responsável pelo impulso conferido ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia; pela
supressão dos privilégios feudais e, portanto, pela ênfase na igualdade de todos os indivíduos;
pela valorização da razão e da atividade humanas; pela intensificação do caráter universal da
humanidade e pela ampliação do processo de individuação.
Tudo isso, não obstante ter sido realizado a um custo altíssimo de violência e
exploração, abriu caminho para a elevação de toda a humanidade a um novo patamar de
existência. Neste sentido, vale a pena ressaltar o caráter decisivo que a revolução industrial
(1760-1830), capitaneada pela burguesia, teve para o desenvolvimento da humanidade. Com a
revolução industrial, a humanidade viu abrir-se, pela primeira vez na sua história, a
possibilidade de produzir riqueza suficiente para satisfazer as necessidades de todos os
homens. Contudo, foi exatamente o enorme desenvolvimento das forças produtivas, que se
iniciou a partir dela, que tornou claro, desde então, que a desigualdade social, com todo o seu
cortejo dos chamados “problemas sociais”, já não era uma questão de escassez de
conhecimentos, de recursos, de tecnologia ou de bens, mas um problema de exclusiva e total
responsabilidade das relações entre os próprios homens.
Este é exatamente o fundamento da decadência desta forma de sociabilidade. Uma
ordem social que, tendo alcançado a possibilidade de criar riquezas capazes de satisfazer as
necessidades de todos, vê-se impossibilitada de atender essa exigência. E que, para manter-se
em funcionamento, precisa impedir, de maneira cada vez mais aberta e brutal, o acesso da
maior parte da humanidade à riqueza social. Em vez de impulsionar a humanidade toda no
sentido de uma elevação, cada vez mais ampla e profunda, do seu padrão de ser (ontológica e
não apenas material e empiricamente entendido), o que se vê é uma intensa e crescente
degradação da vida humana.
3
2. O que é decadência
Para evitar mal-entendidos, vale a pena clarificar um pouco esse conceito. Quando
falamos em decadência não estamos afirmando que, de 1848 para cá, as coisas se tornaram
piores em todos os aspectos. Tal afirmação não faria sentido, uma vez que ela é contraditada
pelos próprios fatos.
Na esteira marxiano-lukacsiana, entendemos que a sociedade é um complexo de
complexos. Vale dizer, uma totalidade (sempre em processo), articulada e formada por
inúmeras partes. Embora matrizadas ontologicamente pelo trabalho, cada uma destas partes
tem uma especificidade própria e uma autonomia relativa. Deste modo, a natureza delas e a
função que exercem na reprodução do ser social são elementos importantes para o seu próprio
desenvolvimento. Não há, pois, um evolver uniforme e homogêneo do conjunto do ser social.
O mesmo vale para o processo que se dá no interior de cada uma das partes que o compõem.
Poderá haver avanços em certos aspectos ao mesmo tempo que, em outros, poderá haver
recuos.
Contudo, assim como o desenvolvimento da totalidade é o momento predominante
em relação ao desenvolvimento de cada uma das partes, assim também podemos dizer que a
direção – positiva ou negativa – que a totalidade toma é um dos critérios mais importantes
para aferir o caráter de ascenso ou decadência de uma forma de sociabilidade. A questão,
assim, é: considerado o patamar geral atingido pela humanidade, qual é a tendência geral em
relação aos indivíduos singulares? A apropriação, ampla e profunda, do patrimônio
acumulado; a possibilidade dos indivíduos, por meio dessa apropriação, realizarem
largamente as suas potencialidades ou a exclusão e/ou o acesso limitado, estreito,
unilateralizado e deformado? Uma vida cada vez mais digna e autenticamente humana ou uma
vida sempre mais pobre e esvaziada de sentido?
Mas, há um outro critério, também da maior importância, para esse julgamento.
Trata-se da resposta à pergunta: o que é que nos permite distinguir o que é positivo e o que é
negativo no processo geral de tornar-se homem do homem? Evidentemente, esta reposta só
pode ser dada na medida que definirmos quais são as linhas essenciais deste processo de
tornar-se homem do homem.
Sem podermos nos alongar aqui a respeito dessa questão, e tomando como base o
pensamento marxiano-lukacsiano, diremos, resumidamente, o que segue. Partindo do trabalho
como momento fundante do ser social, podemos constatar que ser homem é (obviamente de
modo sempre processual) ser criativo, social, consciente, livre e universal. De modo que o que
permitir ao homem expandir, cada vez mais, as suas potencialidades, construir um mundo
4
adequado a uma vida digna, criar bens que possam atender as suas necessidades, apropriar-se
(cada indivíduo) do patrimônio – material e espiritual – comum ao gênero humano, participar,
de modo cada vez mais consciente, do processo histórico, sendo seu sujeito efetivo, terá um
caráter positivo. Tudo que se transformar em obstáculo a esse andamento, terá um caráter
negativo.
Se articularmos esses dois critérios, poderemos com facilidade confirmar, sem cair
numa homogeneização simplificadora, a decadência que marca a atual forma de sociabilidade.
Sem dúvida, não há como negar que, de 1848 para cá, houve um enorme
desenvolvimento das forças produtivas. E que houve inúmeros avanços científicos e
tecnológicos, que resultaram no melhoramento da vida de um número significativo de
pessoas.
Vale ressaltar, contudo, já aqui, que não é por acaso que é no conhecimento e na
transformação da natureza ou daqueles setores sociais que mais podem contribuir para a
reprodução do capital que se fizeram sentir esses progressos. Exatamente porque aí se trata
dos aspectos que mais contribuem para a produção de mercadorias, o que é uma exigência da
própria dinâmica interna do capital.
Contudo, também não há como negar que, mesmo esse desenvolvimento científico e
tecnológico não tem contribuído para melhorar a vida de toda a humanidade. Mas, não só não
tem contribuído para melhorar como, sob certos aspectos, tem sido um fator de degradação
profunda da vida humana. Basta lembrar dos avanços no campo da medicina. Sob o aspecto
científico e tecnológico são enormes, enquanto sob o aspecto da socialização desses
benefícios as coisas andam em sentido contrário.
O agravamento crescente dos problemas sociais de toda ordem está aí para confirmar
que a dinâmica desta ordem social não vai no sentido de ampliar, mas de diminuir –
relativamente – o universo daqueles que têm acesso ao patrimônio da humanidade. Se houve,
ao longo desses últimos cento e cinqüenta anos, ilhas e períodos de elevação do padrão de
vida (sem levar em conta que mesmo esse conceito de padrão de vida é muito questionável),
da maioria da população de alguns países (welfare state), também houve, do ponto de vista do
conjunto espaço-temporal da humanidade, um crescente retrocesso.
Mas, não é apenas no âmbito da produção e do acesso à riqueza material que se
verifica essa decadência. É na degradação do conjunto da vida humana, na crescente
mercantilização de todos os aspectos da realidade social; na transformação das pessoas em
meros objetos, e mais ainda, descartáveis; no individualismo exacerbado; no apequenamento
da vida cotidiana, reduzida a uma luta inglória pela sobrevivência; no rebaixamento do
5
horizonte da humanidade que leva a aceitar, com bovina resignação, a exploração do homem
pelo homem sob a forma capitalista, como patamar mais elevado da realização humana.
Vale a pena relembrar, aqui, o que dissemos acerca da importância da revolução
industrial para a história da humanidade. Ela significou a possibilidade de a humanidade
produzir riquezas suficientes para atender as necessidades de toda a humanidade. Se, apesar
disso, se verifica uma tendência geral no sentido da degradação da vida humana, então pode-
se dizer que estamos vivendo um momento de decadência e não de progresso.
Sabemos que a exploração do homem pelo homem é da natureza do capitalismo. E
que, portanto, a desumanização da vida humana está sempre presente, independente de qual
seja o momento histórico. O que distingue, porém, o primeiro (primórdios até 1848) do
segundo período do mundo moderno é que no primeiro a burguesia representava, ainda que
apenas de modo limitado, os interesses de toda a humanidade. Ao contrário, no segundo seus
interesses de classe particular colocam-se inteiramente em primeiro plano. Obviamente, em
detrimento do restante da humanidade. Esse predomínio dos interesses dessa classe particular
é o responsável maior pela crescente decadência – em todos os setores – dessa forma de
sociabilidade.
Em resumo, esta forma de sociabilidade já não tem mais como abrir novos
horizontes para a totalidade da humanidade. A concentração brutal da riqueza em
pouquíssimas mãos e o cinismo dos que a detêm são apenas os aspectos mais visíveis desse
fato.
Contudo, de algumas décadas para cá, este segundo momento (de 1848 a nossos
dias), o da decadência, ganhou contornos muito particulares. Com a eclosão da crise, não mais
conjuntural, mas agora estrutural, do capital, aquilo que era um processo mais ou menos lento
de decadência se tornou uma perspectiva de catástrofe iminente. Não no sentido da implosão
imediata do sistema, mas no sentido de que os caminhos pelos quais a lógica do capital está
conduzindo a humanidade colocam claramente em perigo a própria sobrevivência desta. A
devastação da natureza e a violência, sob todas as formas, cuja matriz é a absurda
concentração da riqueza em poucas mãos, levarão, fatalmente, a humanidade pelo caminho da
sua destruição. Não é preciso citar os inúmeros estudos que comprovam essa afirmação.
Ora, é verdade que nenhuma forma de vida assiste passivamente a sua morte. Não
enquanto puder lutar contra ela. Também é verdade que sua defesa face ao perigo implicará
na ativação de todos os meios de que possa dispor. É exatamente o que acontece com a forma
de vida burguesa. Sentindo-se ameaçada, lança mão de todos os meios para defender a sua
existência. Mesmo que isso signifique a barbarização mais brutal de toda a humanidade.
Nesse sentido, o exemplo mais estarrecedor não é tanto o fato do atual presidente dos Estados
6
Unidos invocar, descaradamente, a lei da força nas relações internacionais, mas o fato de o
seu cinismo ser largamente aceito sem grandes resistências.
4. O alargamento da fratura
5. É sanável a fratura?
A guisa de conclusão
Referências bibliográficas
INTERDISCIPLINARIDADE, FORMAÇÃO E
EMANCIPAÇÃO HUMANA
Introdução
Fala-se muito, hoje, em interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, multidisciplinaridade,
pluridisciplinaridade e outras denominações semelhantes. Todas essas seriam formas de superar o
problema da fragmentação do saber e da formação profissional.
Não é nossa intenção discutir, aqui, em detalhes, essa problemática. Não desconhecemos as
diferenças que são feitas entre as várias denominações acima referidas e entre a
interdisciplinaridade na pesquisa científica e na ação pedagógica. Também não é nosso objetivo
discutir a interdisciplinaridade entendida como proposta epistemológica e como atitude pedagógica.
Nossa intenção, nesse texto, é fazer uma crítica dos fundamentos da proposta da
interdisciplinaridade, demonstrando que, apesar do seu caráter atraente e dos seus aparentes
resultados, é uma solução equivocada para um problema mal equacionado.
Qual é o estado da questão?
Há uma sensação generalizada e causadora de mal-estar de que o conhecimento está
excessivamente fragmentado; de que cada disciplina trata isoladamente de um determinado aspecto
– econômico, histórico, sociológico, psicológico, filosófico, artístico, etc – e que, assim, não é
possível adquirir uma visão de conjunto dos objetos estudados. O resultado disto é uma formação
construída com fragmentos desconexos e justapostos. Em conseqüência dessa visão fragmentada da
realidade, a intervenção prática para o enfrentamento dos problemas sociais também se vê
comprometida, levando a buscar soluções isoladas.
Para essa formação fragmentada colaboraria, também, a intensa especialização, que levaria
a uma concentração cada vez mais localizada em aspectos restritos, tornando, de novo, o indivíduo,
incapaz de uma percepção da totalidade.
A causa mais comum dessa fragmentação é atribuída à crescente complexificação da
realidade social e à conseqüente ampliação do território do conhecimento. Salta aos olhos a enorme
amplitude que esse território adquiriu, em especial a partir da modernidade. É um fato amplamente
reconhecido o avanço extremamente rápido do conhecimento nos mais variados aspectos a partir do
Renascimento. Se na Antiguidade era admissível a existência de uma figura enciclopédica como
Aristóteles, que não era a única, mas certamente a maior, e no Renascimento ainda podemos
admirar uma mente que dominava saberes tão vastos e diversificados como Leonardo da Vinci, hoje
seria impensável, diante da vastidão do que já foi descoberto, que alguém pudesse abarcar,
2
impedindo uma visão de totalidade. Do mesmo modo, também são visíveis os variados e complexos
problemas sociais que foram surgindo a partir da revolução industrial e a impossibilidade de
resolver cada um deles de modo isolado.
Diante disso, parece que, de fato, o trabalho interdisciplinar é um procedimento que tem
resultados imediatos positivos. Pois, é certamente verdade que a soma de aspectos econômicos,
sociológicos, filosóficos, históricos e outros, trará um conhecimento mais ampliado do que se esse
tratamento se limitasse a apenas uma dessas áreas. Por outro lado, um conhecimento mais amplo
permitiria um tratamento menos isolado de cada problema, seja no âmbito profissional, seja na
esfera da ação social.
Tudo isso confere a esse modo de pensar essa aura de obviedade, pois entre
disciplinaridade (fragmentação) e interdisciplinaridade (unificação) a escolha só poderia ser óbvia.
Em resumo, entre a fragmentação resultante da compartimentação do saber e a ação
focalizada sobre os problemas sociais, de um lado, e a visão de totalidade que seria fornecida pela
interdisciplinaridade e a possibilidade de uma ação social que considerasse os vários aspectos como
partes de uma totalidade, de outro lado, não há dúvida que esta última alternativa é, obviamente, a
mais atraente. Ela se impõe com o poder de algo inteiramente evidente.
Deste modo, não se trataria de discutir a validade da interdisciplinaridade, mas apenas as
suas formas concretas. E é sobre isso que se debruçam autores conhecidos, no Brasil, como Ivani
Fazenda, Hilton Japiassú e Antonio Joaquim Severino, entre outros.
2. Equacionando o problema
Parafraseando Marx, em sua referência à religião, poderíamos afirmar que a crítica da
interdisciplinaridade não é a crítica da interdisciplinaridade, mas a crítica do mundo que produz e
necessita dessa forma de produção do saber. A questão inicial e fundamental, então é: que mundo é
este?
Considerando, pois, esse pressuposto, antes de propor qualquer fórmula de superação da
fragmentação do saber é preciso explicar esse fenômeno e não aceitá-lo como um fato natural. É
necessário compreender, desde suas raízes materiais, o processo que levou a esse resultado.
Contudo, a compreensão desse processo não pode partir de um momento já bem avançado do ser
social que é a modernidade. Partir da modernidade é tomar como ponto de partida uma situação que
já é o resultado de um determinado processo histórico. Seria, de novo, tomar como pressuposto
exatamente aquilo que deve ser explicado.
Para entender como se chegou até esta situação faz-se necessário apreender a trajetória do
ser social a partir dos seus fundamentos originais, tanto em termos históricos como em termos
ontológicos. Em termos históricos, porque a própria modernidade já é o resultado de uma longa
trajetória. E em termos ontológicos, porque é preciso buscar, na natureza do ser social, os
fundamentos que deram origem ao processo de fragmentação.
Somente assim se poderá compreender tanto a natureza mais profunda da realidade social
quanto os seus desdobramentos ao longo da história. Vale dizer, só é possível compreender tanto o
processo de complexificação quanto o de fragmentação apreendendo o caráter unitário do ser social
5
e o processo social que deu origem à quebra dessa unidade. E isto, tanto em termos da sua
materialidade quanto no que se refere ao processo de conhecimento. Para isso, é preciso partir do
ato fundante do ser social. Na esteira de Marx, pressupomos que esse ato é o trabalho1.
É a partir da análise do trabalho e de suas relações com as demais dimensões do ser social
– tais como linguagem, socialidade, arte, ciência, política, direito, educação, filosofia, etc. – que se
compreende que o ser social é uma totalidade, isto é, um conjunto de partes articuladas, em
constante processo. O trabalho, esse intercâmbio do homem com a natureza, através do qual são
produzidos os bens materiais necessários à existência humana é o ato que funda o mundo social.
Porém, a própria realização do trabalho exige a intervenção de outras dimensões, como linguagem,
socialidade, conhecimento, educação para a sua realização. Por outro lado, a complexificação da
sociedade a partir do trabalho, faz surgir novas situações, problemas e necessidades que demandam
outras dimensões sociais para o seu enfrentamento. Pense-se na arte, na religião, na ciência, na
política, no Direito. Nenhuma dessas dimensões é trabalho, mas todas têm a sua origem a partir do
trabalho. Vale dizer, todas elas têm uma dependência ontológica em relação ao trabalho. O ser
social, assim, é, na feliz expressão de Lukács, um complexo de complexos, mas matrizado pelo
trabalho. Desse modo, fica claro que a categoria da totalidade, antes de ser uma categoria
epistemológica é uma categoria ontológica, isto é, constitutiva da própria natureza essencial do ser
social.
A análise do trabalho também nos permite perceber que ele é uma categoria que remete
sempre para além de si mesmo, vale dizer, que possibilita a criação permanente do novo e não a
simples reposição do mesmo como acontece no reino animal. Deste modo, é próprio do ser social
tornar-se cada vez mais complexo e universal. Isto significa que a complexificação não é um
defeito, mas uma determinação ontológica do ser social.
É também a partir da análise do trabalho – uma síntese entre teleologia e causalidade, ou
consciência e realidade natural – que se compreende que o conhecimento é um momento que,
juntamente com a realidade natural, constitui uma unidade indissolúvel, cuja efetivação resulta na
constituição da realidade social. Porém, esta análise também permite compreender que o
conhecimento tem uma relação de dependência ontológica em relação ao trabalho. Repetindo Marx
e Engels (1984, p. 37): “Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência”. Isto significa, sem nenhuma relação mecânica, mas levando em conta todas as
mediações insuprimíveis, que a forma do trabalho, ou seja, o modo como os indivíduos concretos se
relacionam entre si no processo de transformação da natureza, é o fundamento da forma como se
1
A esse respeito, ver, de K. Marx. Manuscritos econômico-filosóficos e O Capital; de G. Lukács, Ontologia
dell´Essere Sociale e Prolegomeni ad una ontologia oggi divenuta possibile e As bases ontológicas do pensamento e da
atividade do homem; de S. Lessa, Mundo dos homens; de José Paulo Netto e Marcelo Braz, Economia Política – uma
introdução crítica, cap. 1.
6
estrutura o conhecimento da realidade. Como síntese e exemplo disto poderíamos dizer que a
cientificidade (não simplesmente a ciência) do mundo moderno é a forma do fazer científico
historicamente condicionada pelo mundo moderno.
Trata-se, então, de compreender, a partir dessa unidade originária do ser social, como se
deu, ao longo da história, seu processo de entificação, que levou tanto à complexificação e à
especialização quanto à fragmentação e isso tanto na realidade material quanto no âmbito do
conhecimento.
Partindo-se, pois, desse ato fundante do ser social, que é o trabalho, pode-se perceber como
a complexificação é uma característica ontológica, e por isso insuprimível, do ser social. Dos
grupos primitivos e mais simples ao mundo atual, temos um processo ao longo do qual a realidade
social vai se tornando cada vez mais complexa e universal. Por seu lado, a complexificação resulta,
necessariamente, na especialização pois, de fato, é impossível a um único indivíduo abarcar a
totalidade do fazer e do saber sociais.
Porém, a entrada em cena da divisão social do trabalho e da propriedade privada imprimem
a essa complexificação uma especificidade própria e radicalmente diferente daquela que existia no
interior da comunidade primitiva. Opera-se, então, no interior do ser social, uma profunda cisão.
Trata-se da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. Esta divisão não é, de modo
nenhum, natural, embora adquira um caráter de naturalidade. Pelo contrário, resulta de um processo
claramente social. Saber e fazer são separados e essa separação é justificada teoricamente e
contribui poderosamente para manter a exploração e a dominação de classes.
Essa cisão ganha uma forma toda particular na sociedade burguesa através da
fragmentação no interior do próprio processo de trabalho. Como se sabe, esta fragmentação faz do
trabalhador uma mera peça na engrenagem de produção, impedindo-o de ter o conhecimento e o
controle da totalidade do processo produtivo. Este conhecimento e este controle são detidos pelo
capital e são instrumento fundamental de sua dominação sobre o trabalho. Além disso, pelo
processo de fetichização, cuja origem está na forma específica da produção da mercadoria, a
realidade social é recoberta por um caráter de naturalidade. Deste modo, tanto a fragmentação do
processo de trabalho como do conhecimento se apresentam como desdobramentos naturais na atual
forma da realidade social.
teorização a partir deles. Deste modo, o objeto de conhecimento já não é o mundo real, mas aquilo
que o sujeito constrói a partir dos dados colhidos pelos sentidos.
A conseqüência lógica, também extraída por Kant é que nós não podemos conhecer a
“coisa em si” (o númeno); só podemos conhecer a coisa como ela é para nós (o fenômeno). Vale
dizer, por esse andamento, a categoria da essência, tão cara à concepção greco-medieval, se torna
inatingível e a categoria da totalidade se transforma em uma categoria puramente lógica. A
realidade já não é mais um compósito de essência e aparência, mas apenas fenômeno. Por isso
mesmo, a ordem do mundo já não se encontra nele, mas é o sujeito que imputa ao mundo um
determinado ordenamento.
Em síntese, nessa transição do mundo greco-medieval ao mundo moderno há uma
passagem de uma perspectiva ontológica – centralidade do ser, embora de caráter metafísico – para
uma perspectiva gnosiológica – centralidade do conhecer.
Por outro lado, na origem da ciência moderna também encontra-se uma acirrada disputa
entre a concepção de mundo cristã e as novas tendências profanas do conhecimento. Disputa que,
como se sabe, não era meramente teórica, mas tinha conseqüências práticas da maior gravidade. A
solução intermediária encontrada foi atribuir a cada ciência a competência de falar sobre um
determinado campo restrito da realidade. À religião se reservava a competência de elaborar uma
visão de mundo totalizante. Deste modo, as diversas ciências se viam impedidas de extrair das suas
pesquisas considerações a respeito do mundo em geral.
Mas, havia ainda outro aspecto da maior importância. Como se sabe, a sociedade burguesa
é marcada, como nenhuma outra anterior, por uma intensa divisão social do trabalho, resultado da
lógica auto-expansiva do capital. Divisão esta que se acentuou extraordinariamente com a entrada
em cena da revolução industrial.
Como a sociedade burguesa seria a expressão da própria natureza humana (“socialmente
insociável”, no dizer de Kant), nada mais justo que essa divisão do trabalho fosse considerada o
modo natural de manifestar-se dessa natureza. A naturalidade dessa divisão social do trabalho, por
sua vez, esteve na origem das chamadas ciências humanas, cada uma delas surgindo a partir da
delimitação de um território específico. Essa delimitação partia do pressuposto de que a realidade
social não era um conjunto de partes intimamente articuladas, mas uma soma de partes sem conexão
essencial entre si. Daí porque cada uma das disciplinas – economia, sociologia, ciência política,
psicologia, antropologia, etc. – poderia reivindicar o tratamento isolado de uma parte da realidade
social.
Ora, a teoria da interdisciplinaridade, como vimos acima, não tem como ponto de partida
uma teoria da fragmentação. Vale dizer, não começa buscando uma explicação para o processo de
fragmentação do saber. Apenas reconhece esse fato e as suas consequências negativas. Mesmo
9
quando faz referência à fragmentação do processo produtivo capitalista, a conexão desta com o que
acontece na dimensão científica é muito tênue. Deste modo, a proposta de superação da
fragmentação do saber ganha um caráter marcadamente subjetivo. Deixando de lado as raízes
materiais da fragmentação do conhecimento, e mesmo admitindo que este é um processo natural,
pressupõe que se trate de um problema meramente epistêmico e que, portanto, pode ser superado
também no plano epistêmico. Quando muito, além desse plano meramente epistêmico também se
agrega um plano moralista, enfatizando a necessidade de ter atitudes pedagógicas integradoras.
Por sua vez, a articulação entre o caráter fenomênico da cientificidade moderna, ao qual já
aludimos acima, e o fetichismo da mercadoria, faz com que a realidade social seja resumida à
aparência, ao fenômeno, aos dados empíricos, perdendo-se, deste modo, as categorias da totalidade
e da essência, que, como vimos, são constitutivas da natureza do ser social.
Vale lembrar, ainda, que a constituição da sociedade burguesa é um processo que,
começando por volta do século XV, continua até hoje. No interior dele, podemos distinguir dois
grandes momentos. O momento de ascensão, que vai do século XV até a metade do século XIX.
Nesse período, a burguesia, que é o sujeito fundamental desse processo, é uma classe
revolucionária, ou seja, está impulsionando a abertura de uma nova forma de sociabilidade, mais
favorável ao desenvolvimento da humanidade. Para isso, ela precisa de uma forma de conhecimento
mais adequada a esse novo empreendimento. Daí a necessidade de um conhecimento da natureza e
da própria realidade social de caráter mais empírico e não especulativo. Como o seu antagonista é a
nobreza feudal e ainda não o proletariado, sua demanda por um conhecimento mais verdadeiro da
realidade, inclusive social, pode ter um impulso muito positivo. Ainda que não seja um padrão de
conhecimento que vá até a raiz do ser social ou que se equivoque na identificação dessa raiz, trata-
se de uma aproximação à realidade bem mais efetiva do que aquela proporcionada pela perspectiva
greco-medieval. Exemplos desse impulso positivo são autores como Maquiavel, na política, Smith e
Ricardo, na economia, Vico, na história e Bacon e Galileu, no âmbito da ciência.
Contudo, esse impulso positivo sofre uma profunda inflexão negativa quando a burguesia
se torna classe dominante. A partir desse momento, a burguesia tem necessidade de bloquear uma
compreensão mais profunda da realidade social. Trata-se, da perspectiva dessa classe, de
compreender a realidade social na forma e até o limite que permita a reprodução dessa ordem social
considerada, não por acaso, a mais consentânea com a natureza humana. Nada disso é intencional
no sentido conspirativo, mas certamente é intencional no sentido de que os pensadores tem
consciência do que estão fazendo e acreditam que esse é o caminho mais adequado para a
humanidade.
É exatamente nesse momento que se constituem as chamadas ciências sociais.
Respondendo à fragmentação da materialidade do ser social, mas também à necessidade de
10
A primeira (...) concebe a análise dos fenômenos a partir de sua expressão empírica
(...). Nesta ótica, o trabalho teórico tem na sistematização operada sobre o material
empírico (seleção, organização, classificação, tipificação, categorização) um
patamar prévio: é sobre ela que a teoria se estrutura, produzindo um símile ideal que
procura contemplar a organização interna da empiria abordada através de um
rigoroso tratamento analítico. A resultante da elaboração teórica, o produto teórico
por excelência, é um modelo que a razão elabora e cria a partir do objeto
empiricamente dado.
2
Marxismo para o século XXI e Educação, cidadania e emancipação humana, cap. 1. Ver, também, de J.
Chasin, Marx: Estatuto ontológico e resolução metodológica.
12
deixará de ser fragmentada e mistificada e, portanto, já não haverá necessidade de uma forma de
saber que impeça sua compreensão como totalidade, até a sua raiz, e se transforme num instrumento
de opressão e dominação.
Em resumo, complexificação e especialização fazem parte da natureza mesma do processo
de reprodução do ser social. Pelo contrário, a fragmentação é um processo social típico da
sociedade de classes (no sentido da separação entre trabalho manual e trabalho intelectual) e, na sua
forma mais desenvolvida, típico da sociedade capitalista.
Vale salientar que a superação da fragmentação no processo de produção da riqueza
material e a superação da fragmentação no processo de produção do conhecimento são dois
momentos articulados. Cada um tem uma especificidade própria, mas condicionam-se mutuamente
nesta trajetória de construção de outra forma de sociabilidade. É preciso, contudo, acrescentar que,
entre os dois, a fragmentação material é o momento fundamental. Sua eliminação é conditio sine
qua non para por um fim efetivo à cisão no interior do saber.
Do que foi dito até aqui, seguem-se algumas consequências importantes.
Primeira: a forma atual do mundo, regida pelo capital, fundamenta e exige a fragmentação
do saber como um instrumento necessário à sua reprodução. Por isso, enquanto o capital for a força
dominante, a fragmentação do saber será também a forma dominante deste. Em síntese: um saber
de um mundo fragmentado é um saber de um mundo fragmentado
Segunda: do ponto de vista estritamente científico, a superação da fragmentação não passa
pela soma ou pela justaposição ou, ainda, por atitudes e esforços do sujeito em integrar várias áreas
de conhecimento. A propósito disto, Lukács faz referência a Max Weber, um intelectual que
abrigava em si variadas áreas de conhecimento. Ele era economista, sociólogo, historiador, filósofo
e cientista político. No entanto, diz Lukács (1992, p. 123), “...não existe nele qualquer sombra de
um verdadeiro universalismo”. Esta incapacidade provinha, segundo Lukács, exatamente dos
fundamentos metodológicos – típicos da cientificidade moderna – das ciências dominadas por
Weber.
A eliminação da fragmentação do saber passa, sim, pela superação da perspectiva da
cientificidade moderna, de caráter gnosiológico, onde o sujeito detém a centralidade, e pela
apropriação da perspectiva metodológica (de caráter onto-metodológico)3 fundada por Marx, onde o
objeto (de caráter histórico-social e não metafísico) tem a regência e o sujeito a tarefa ativa de
traduzir teoricamente o processo social. Não basta ter boa vontade ou envidar esforços ou criar
novos métodos a talante do sujeito. É preciso assumir e dominar o método que, tendo se originado,
3
A esse respeito, ver, de G. Lukács, Ontologia dell´Essere sociale; O marxismo ortodoxo; A ontologia de
Marx: questões metodológicas preliminares; de J. Chasin, Marx: Estatuto ontológico e resolução metodológica; de S.
Lessa: Lukács: o método e seu fundamento ontológico e de I. Tonet, A questão dos fundamentos.
13
em seus fundamentos, do mundo, permita voltar a ele para compreendê-lo como uma totalidade e
segundo a sua lógica própria e não ao arbítrio do sujeito.
Terceira: uma formação, em geral, voltada para a emancipação humana, hoje, só pode
significar uma contribuição para o engajamento na radical superação da sociedade capitalista e na
construção de uma sociedade comunista. Por isso, uma atividade educativa que se pretenda
emancipadora passa, necessariamente, pela apropriação de um saber que permita a compreensão
desta sociedade como uma totalidade, até a sua raiz mais profunda, e que também possibilite
compreender a origem, a natureza e a função social da fragmentação, desmistificando, ao mesmo
tempo, a sua forma atual.
Concluindo
Como se pode ver ao longo desse texto, a pretensão de superar a fragmentação do
conhecimento através de uma reordenação epistêmica, mas sem o pressuposto da dependência
ontológica do saber em relação ao mundo objetivo e sem buscar a origem, a natureza e a função
social do processo de fragmentação, tanto material quanto intelectual e sem a superação da
perspectiva moderna da cientificidade, pode ser muito atraente, porém é inteiramente equivocada e
fadada ao insucesso. Não é a soma de partes justapostas que produz um conhecimento totalizante.
Este só pode ser produzido a partir de fundamentos metodológicos radicalmente diversos daqueles
que embasam a perspectiva da cientificidade moderna. Estes fundamentos implicam uma teoria
geral do ser social (uma ontologia – histórico-social – do ser social) e tem na categoria ontológica
da totalidade a sua chave mestra!
Deste modo, para todos aqueles que se propõem como objetivo contribuir com suas
atividades educativas para a construção de uma autêntica comunidade humana, plenamente
emancipada, é imperativo o domínio da perspectiva metodológica – de caráter ontológico – à qual
nos referimos acima, pois só ela permite a produção de um saber totalizante. Considerando que,
para essa perspectiva, o real é sempre um complexo de complexos, então qualquer parte dele só
pode ser efetivamente compreendida se remetida, com todas as mediações necessárias, para o todo
do qual faz parte. Assim, produção de um saber totalizante e luta pela construção de um mundo
unitário e emancipado são dois momentos de uma mesma atividade revolucionária.
14
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PARA ALÉM DOS DIREITOS HUMANOS*
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Introdução
.
*Professor do Dep. de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas.
2
Não entrarei no mérito do conceito de Direitos Humanos. Ele tem uma história
complexa e sofreu muitas alterações desde a sua elaboração inicial até o momento presente.
Utilizarei, aqui, este termo com o sentido de direitos básicos, de direitos mais elementares, de
direitos considerados os mais fundamentais.
Os chamados Direitos Humanos foram oficialmente proclamados, pelas primeiras
vezes, nas constituições dos Estados Unidos e da França, entre 1776 e 1789. Sua afirmação,
porém, como sobejamente sabido, é muito anterior e vem inserida no combate ao absolutismo
e à sociedade feudal.
Seu ponto de partida era a pressuposição de que o homem, como parte da natureza, era
portador de uma natureza anterior ao seu estado de sociedade. E de que esta natureza era
dotada de algumas determinações que não poderiam ser modificadas pela intervenção dos
próprios indivíduos. Nas primeiras formulações, entre estas determinações fundamentais
encontravam-se: a liberdade, a igualdade, a propriedade, a segurança e a felicidade. Esta
natureza era a base para a afirmação de que os homens eram portadores de direitos – por isso
chamados de naturais – cuja fonte não eram nem o Estado nem a sociedade, mas este núcleo
imutável da natureza humana.
De passagem, vale a pena notar que a idéia de uma natureza humana não histórico-
social não resultou de uma análise do processo social na sua integralidade e concretude, mas
de uma necessidade de encontrar uma base para a burguesia opor-se ao sistema feudal. Era,
portanto, mais uma exigência lógica, amparada em dados empíricos muito frágeis (as
descobertas dos povos “primitivos”). Algo semelhante – mutatis mutandis – ocorrerá com a
idéia do caráter universal dos Direitos Humanos.
Contudo, julgavam os pensadores jusnaturalistas e os filósofos políticos desta época
que a simples existência destes direitos potenciais não teria sido suficiente para a sua
efetivação. Na ausência de qualquer limite, para além dos próprios interesses de cada
indivíduo, o exercício destes direitos degeneraria em uma guerra de todos contra todos e
anularia o fim ao qual eles estariam dirigidos, ou seja, a auto-realização humana.
De modo que se teria feito necessária a estruturação de uma dimensão jurídico-política
capaz de proclamar oficialmente estes direitos e velar pela sua proteção. Por outro lado, a
própria natureza destes direitos os colocava acima da sociedade e também do Estado. Todo
poder e todo ordenamento social deveriam ter como fim a defesa e o estabelecimento de
condições para o pleno florescimento destes direitos. Esta teria sido a origem da sociedade
como sociedade. Certamente, a idéia de que a lei e a política fundam a sociedade como
sociedade não é nada nova. Os gregos já pensavam assim. Basta lembrar do exemplo de
Sócrates. Mas o desconhecimento de que existiria uma natureza humana como fundamento de
3
determinados direitos e séculos de poder arbitrário tinham obscurecido esta problemática. Ela
voltou a ser reposta com toda a intensidade pelo jusnaturalismo e pela filosofia política
clássica moderna. Daí para diante, até os nossos dias, esta idéia ganhou o estatuto de um
pressuposto absolutamente evidente. Seria óbvio que sem lei e sem poder político a
“sociedade” não seria mais do que o entrechoque desordenado de indivíduos regidos pela
única lei possível, a lei do mais forte. E seria de per si evidente que em uma situação como
esta não se poderia falar em liberdade, determinação sem a qual também não se poderia falar
em homem. Donde se segue, com toda coerência, a idéia de que o indivíduo não pode ser livre
a não ser em sociedade, mas – frise-se, embora por tautológico – em uma sociedade jurídica e
politicamente organizada.
É claro que, sendo este pressuposto de fato correto, não caberia pensar nem propor a
extinção do direito e da política porque isto equivaleria à extinção da própria sociedade.
Caberia apenas buscar o aperfeiçoamento destas duas dimensões, uma vez que seriam
dimensões insuprimíveis do ser social. E, ainda mais, na medida em que se foi instaurando o
sistema democrático-cidadão, estaria posto o espaço indefinidamente aberto ao
aperfeiçoamento desta ordem social. Política e direito não só teriam fundado e continuariam a
fundar a sociedade, mas ainda teriam, hoje, a atribuição de controlar a dinâmica do capital,
buscando impor-lhe limites e orientá-lo no sentido do interesse comum. O que significaria que
seriam também estas duas dimensões os carros-chefe que conduziriam à construção de uma
sociedade cada vez mais igualitária e humana.
Esta idéia se tornou mais evidente ainda com o fracasso das revoluções ditas
socialistas. Pretendendo seguir as idéias de Marx, todas elas se propunham a extinguir o
direito e a política. No entanto, o que sucedeu foi mais do que o contrário. Não só estas duas
dimensões não foram extintas, senão que ambas retrocederam a níveis muito inferiores ao que
de melhor existia na sociedade burguesa. Em vez de se tornarem mais livres, os homens se
tornaram muito menos livres. O que, além de comprovar a inviabilidade do socialismo,
também seria prova de que qualquer tentativa de extinguir o direito e a política não fazia
progredir e sim regredir a humanidade.
Partindo disto, ele constata que, durante o longo período primitivo, o trabalho, devido
ao seu precário desenvolvimento, apenas produzia o suficiente para a subsistência imediata.
Durante este período, as forças sociais eram diretamente sociais, quer dizer, eram
imediatamente as forças de todos os indivíduos postas em comum. Não havia, pois,
propriedade privada nem oposição antagônica entre interesses particulares e coletivos.
Certamente, também neste período a comunidade humana se encontrava em um estado de
sociedade e não em um pretenso estado de natureza. Também ali havia conflitos, também ali
era necessário levar os indivíduos a agir de acordo com os interesses da coletividade. Deste
modo, também ali se faziam necessárias “leis” e “poder”, mas essas eram representadas pelos
usos e costumes e este pela autoridade paterna, grupal ou tribal.
Com o surgimento da propriedade privada e das classes sociais, a partir da apropriação
particular da força de trabalho coletiva, a sociabilidade humana sofre uma mudança muito
profunda. As relações entre os homens já não são comunitárias, mas antagônicas. Assim, a
reprodução deste tipo de relações já não seria possível apenas com base nas “leis” e no tipo de
poder até então vigentes. O poder político, que como diz Marx (1998: 31) no Manifesto, “é o
poder organizado de uma classe para opressão de outra”, tornou-se, então, uma condição
indispensável para a reprodução social. Assim, o poder político, nada mais é do que a força
social apropriada por determinados grupos particulares e posta a serviço da reprodução de
uma forma de sociabilidade na qual os interesses desses grupos são predominantes. Esta força
social privatizada, cujo núcleo é o Estado, com todo o seu aparato político, jurídico,
ideológico e administrativo, apresenta-se – sob formas, ao longo do tempo cada vez mais
diferenciadas – como algo destacado da sociedade, pairando por cima dela e representando os
interesses coletivos.
Contudo, apenas o poder político não seria suficiente para garantir a reprodução de uma
forma de sociabilidade marcada pelo antagonismo de classes. Outras dimensões, como a
educação, a religião, a ciência, etc., também passaram a contribuir para isto, embora esta não
fosse a sua finalidade essencial. Contudo, uma nova dimensão, além da política, também
surgiu com a função precípua de garantir a reprodução desta forma de sociabilidade. Trata-se
do direito.Certamente, o uso da força direta era o elemento mais adequado para dirimir os
conflitos quando se tratava da sociedade escravista. Mesmo aí, no entanto, como observa
Lukács (1981: 207), o conflito entre escravos e proprietários de escravos não era o único
existente. Havia outros, entre os quais avultava o conflito entre credores e devedores.
Porém, como observa ainda este autor, a crescente socialização e complexificação da
sociedade – fundada no antagonismo social – tornava impossível a solução de todos os
conflitos através do uso da força direta. Impunha-se um outro tipo de força – indireta, mas
5
apoiada numa força direta (a força pública armada) – para regular os conflitos sociais. Esta
força é o direito. Por isso, Lukács (1981: 208) pode concluir que : “O direito, surgido porque
existe a sociedade de classes é, por sua essência, necessariamente um direito de classe: um
sistema para ordenar a sociedade segundo os interesses e o poder da classe dominante”.
A desigualdade social é, portanto, o solo matrizador do direito. Vale dizer, o direito
regula a atividade social no interior de uma sociabilidade fundada na desigualdade social sem,
em nenhum momento, atingir a raiz desta desigualdade. Assim como a política, o direito é
expressão e condição de reprodução da desigualdade social. E isto é verdade, segundo Marx
(1971), mesmo no caso daquele período de transição, denominado socialismo, entre o
capitalismo e o comunismo, quando já está bastante atenuada a vigência das relações
capitalistas. Reconhecendo o tratamento formalmente igualitário que o direito dá aos
trabalhadores nesta fase, diz ele: “Este direito igual é um direito desigual para um trabalho
desigual. (...) Portanto, no seu teor, é um direito baseado na desigualdade, como todo direito”
(1971: 20).
A conclusão salta aos olhos: superada – em uma sociedade efetivamente emancipada –
a desigualdade social (o que só pode ser feito mediante o desenvolvimento extraordinário e
humanamente adequado das forças produtivas), estará eliminado o solo matrizador do direito.
Nesta sociedade, o acesso à riqueza já não terá como critério o trabalho de cada um, mas as
necessidades de cada um.
De acordo com o que vimos acima, as dimensões política e jurídica têm uma origem e
uma natureza histórico-ontológicas muito precisas. Elas não são dimensões eternas e
constituintes da natureza mais essencial do ser social. O solo social que as chama à existência
e que lhes confere sua específica função social é a sociabilidade antagonicamente estruturada,
o que significa que o término do antagonismo também significará a sua supressão.
Mas há um outro elemento importante que caracteriza estes dois momentos do ser
social. Como se pôde ver da sua origem e da sua natureza, eles se configuram, na sua
concreticidade, como obstáculos à entificação plenamente humana dos indivíduos. Se
constituir-se como indivíduo plenamente humano implica a apropriação do patrimônio
comum ao gênero humano, política e direito constituem, em última instância, obstáculos a
esta realização. Pois eles são precisamente instrumentos de reprodução de ordens sociais que
não permitem a todos os indivíduos o acesso aos bens materiais e espirituais que constituem, a
cada momento, a riqueza do gênero humano.
Assim sendo, por mais progressistas que sejam, em momentos e aspectos tópicos, estas
duas dimensões não podem deixar de ser superadas quando o objetivo maior é a construção de
uma forma de sociabilidade plenamente emancipada.
6
mesmo a propriedade privada deveria ser inteiramente eliminada. O que se deveria fazer seria
conferir-lhe um forte conteúdo social. Este seria o caminho, certamente tortuoso e complexo,
mas indefinidamente aberto para a construção de uma sociedade mais justa e humana.
Ora, mas o que é, de fato, socialismo, para Marx? Não como ideal especulativo, mas
como abstração do processo histórico concreto. Não posso, dada a limitação do texto, fazer
uma exposição detalhada a respeito desta questão. Direi apenas, e sempre a meu ver, que, para
Marx, socialismo implica uma forma de sociabilidade cujo fundamento é o trabalho
associado. Forma esta de trabalho que tem como condições indispensáveis um alto grau de
desenvolvimento das forças produtivas e uma grande redução do tempo de trabalho
necessário. Além disso, tem por núcleo decisivo o fato de que os indivíduos põem em comum
as suas forças e de que estas permanecem sempre comuns, tanto na produção, como na
distribuição e no consumo. É esta base material que permite aos homens serem plenamente
livres, ou seja, terem o controle consciente e coletivo do processo de trabalho e,
conseqüentemente, de todo o processo social. É esta base material, também, que permite a
todos o acesso à riqueza universal – tanto material como espiritual – de modo a poderem
realizar plenamente as suas potencialidades e dar um sentido autêntico à sua vida. É evidente
que isto não acontece de um dia para o outro. Contudo, é meridianamente claro que, em
nenhum lugar onde se tentou realizar uma revolução de caráter socialista, existiam estes
pressupostos reais (aí incluídos com destaque os próprios indivíduos) para que se pudesse
caminhar nesta direção. Nenhum daqueles elementos mencionados acima (estatização,
supressão da propriedade privada, etc.) caracteriza, realmente uma sociedade socialista.
Porque nenhum deles resulta no controle consciente e coletivo dos próprios produtores sobre
o processo social, que é sinônimo de plena e efetiva liberdade e de instauração de um patamar
de possibilidade de ampla realização para todos os indivíduos.
Por isso mesmo, para Marx, socialismo não é o contrário de capitalismo. Quer dizer,
para ele o eixo do socialismo não é a coletividade, em oposição ao indivíduo como eixo da
sociabilidade capitalista. Segundo ele, a predominância da coletividade sobre o indivíduo teve
lugar em formas de sociabilidade anteriores ao capitalismo. O socialismo, contudo, só pode
ser uma articulação harmônica – não isenta de conflitos e tensões – entre indivíduo e
coletividade. Isto porque socialismo é – não por uma simples aspiração do sujeito, mas por
determinação do processo histórico-social – a apropriação, pelos indivíduos, da riqueza
humana universal – material e espiritual – e sua conseqüente configuração como um indivíduo
rico, multifacetado, omnilateralmente desenvolvido. E como resultado disto, e em
determinação recíproca, o enriquecimento do gênero humano. O pleno desenvolvimento do
indivíduo , mas entendido como indivíduo social, é inseparável do socialismo. Deste modo, a
subsunção do indivíduo à coletividade ou o inverso nada têm a ver com socialismo. O que
deveria ser suprimido, então, seria o caráter burguês do indivíduo – cuja origem é material e
não um simples fato de consciência – com todas as suas consequências, e não o próprio
11
indivíduo. De modo que a minha afirmação enfática é de que a revolução soviética não foi –
porque não podia ser – uma revolução de caráter socialista. Pode-se até afirmar que nela
foram realizadas tarefas prévias relativas à desmontagem do poder político das classes
dominantes, mas não aquelas que são próprias do socialismo.
Da concepção de socialismo exposta acima decorre a correção ao pressuposto dos
marxistas tradicionais. Os direitos e institutos democrático-cidadãos só poderiam ser
suprimidos por via social, ou seja, na medida em que deixassem de existir as bases objetivas
que requerem a sua existência, e jamais por via da coerção jurídico-política. O que, aliás,
Marx deixou bem claro desde o texto das Glosas Críticas, de 1844. Assim como o Estado,
todo este conjunto de objetivações democrático-cidadãs somente deveria desaparecer quando
lhes fosse tirado o chão social que lhes dava origem. Qualquer outra tentativa de supressão
estaria fatalmente fadada ao fracasso. O que de fato aconteceu. Realizou-se simplesmente
aquilo que Marx (1984: 50) previu em A Ideologia Alemã, quando dizia: ... por outro lado,
este desenvolvimento das forças produtivas (que contém simultaneamente uma verdadeira
existência humana empírica, dada num plano ‘histórico-mundial’ e não na vida puramente
local dos homens) é um pressuposto prático, absolutamente necessário, porque, sem ele,
apenas generalizar-se-ia a escassez e, portanto, com a ‘carência’ recomeçaria novamente a
luta pelo necessário e toda a imundície anterior seria restabelecida.
Mas, há mais uma questão. Ao contrário do que pensava o marxismo tradicional, Marx
não rejeita a categoria da essência humana, e isto não apenas nos textos de juventude, mas
também nos da maturidade. O que ele fez foi mostrar que, tanto quanto o fenômeno, ela é
histórica. Ela é histórica, mas não deixa de ser essência, ou seja, algo distinto do fenômeno.
Lukács (1981: 357ss), por sua vez, argumenta, baseado em Marx, que o que caracteriza a
diferença entre fenômeno e essência é o grau de continuidade de cada um.Ou seja, a essência
humana é constituída de um conjunto de determinações, que resultam de relações sociais e
que, por sua maior continuidade, garantem a identidade do ser social como ser social. Deste
modo, o argumento da inexistência de uma essência humana como base para sustentar a
supressão dos Direitos Humanos ficava totalmente prejudicado. Como também ficava
prejudicada a base para a afirmação da naturalidade de qualquer direito.
Por outro lado, dessa noção de socialismo, também decorre a problematização da
crítica à concepção marxiana dos Direitos Humanos. Com efeito, é interessante notar que esta
crítica tem por pano de fundo o suposto fracasso da revolução soviética por causa do
menosprezo das dimensões jurídica e política. Estas críticas não partiram da problematização
da noção de socialismo como “socialização da economia”. Pelo contrário, aceitaram-na como
válida. Por isso mesmo, só poderiam buscar a correção no âmbito jurídico-político. Daí
12
porque se esforçaram por conferir aos Direitos Humanos um caráter universal. Daí, também,
porque o socialismo se tornou “socialismo democrático”, como se fosse possível a existência
de um socialismo autocrático. Vê-se logo que a intenção era deixar clara a caracterização do
socialismo como uma forma de sociabilidade efetivamente livre. Contudo, em vez de partir da
própria natureza do socialismo, foi-lhe agregada a única forma de liberdade conhecida, a
liberdade democrático-cidadã. O que tornava a idéia de “socialismo democrático” uma
contradição nos termos. Quando, no entanto se parte do socialismo do modo como foi por
mim conceituado acima, não há necessidade de agregar-lhe o conjunto de objetivações
democrático-cidadãs, alçadas a valores universais, para garantir-lhe o caráter de efetiva
liberdade. Socialismo – como exigência do processo social – é o patamar mais elevado
possível da sociabilidade humana, e portanto, da liberdade, ou não é socialismo.
Mas, para fins de exame, admitamos que direito e política possam subsistir em uma
sociedade socialista. É evidente que isto não poderia ser concluído senão após uma profunda
discussão acerca do que é socialismo. Com efeito, para Marx, assim como a crítica da religião
não é a crítica da religião, mas do solo social que lhe dá origem e sustentação, também no
caso do direito e da política (e de toda outra atividade humana) a crítica de qualquer uma
delas é a crítica de sua matriz originária. Se, pois, posto o matrizamento ontológico de uma
sociedade socialista (a forma específica do trabalho) – visto sempre numa perspectiva da
autoconstrução humana – direito e política fossem uma condição necessária para a reprodução
do ser social neste novo patamar, então eles teriam, por força das coisas, sua existência
garantida. Sem o exame crítico da problemática do socialismo, a partir do solo matrizador do
trabalho, e sem a eliminação, por completo, do pressuposto falso do chamado “socialismo
real”, toda a discussão fica desfocada e, a meu ver, toda tentativa de fundamentar a
perenidade do direito e da política e a validade universal dos Direitos Humanos, se torna, no
mínimo, problemática.
Por sua vez, a concepção liberal-democrática perde o argumento de que o fracasso da
revolução soviética é prova da inviabilidade do socialismo. Obviamente, o que não existiu não
pode servir de argumento para nada. Também não vale argumentar que socialismo não é um
ideal, mas o que de fato aconteceu. Tal argumento equivaleria a dizer que a teoria do arquiteto
que ideou uma casa não é válida porque o mestre-de-obras que a construiu, na ausência de
material de primeira, usou material de quinta categoria e por isso ela ruiu. É óbvio que este
último fato não torna inválida aquela teoria. Isto porque, dadas as condições por ela exigidas,
a casa poderia ter sido construída e poderia funcionar perfeitamente. O mesmo se dá com a
teoria marxiana do socialismo. Para Marx, a construção de uma sociedade socialista exigia
determinadas condições, em cuja ausência isto seria impossível. Mas, para sepultar de vez
13
esse argumento, bastaria um exemplo tirado da história da ciência. Sabe-se que a teoria do
heliocentrismo, já conhecida na antiguidade, foi durante muitos séculos rejeitada como falsa.
Seria ela menos verdadeira (ou até efetivamente falsa) porque, por circunstâncias históricas
concretas, não pode se tornar a teoria dominante? Vê-se logo que a relação entre a teoria e o
processo histórico concreto é muito diferente do que supõe o argumento acima.
Ora, ao se instaurar uma forma de sociabilidade efetivamente socialista já não haverá
direito à propriedade, muito menos à propriedade privada, como também não haverá direito à
liberdade, à igualdade, à vida, à segurança, ao trabalho, à saúde, à educação, etc. Vale reforçar
mais uma vez: estes direitos, por mais aperfeiçoados que possam ser, enquanto permanecerem
como direitos sempre serão essencialmente diferentes de sua realização efetiva numa
sociedade socialista. E, por isto mesmo, sempre expressarão uma forma de sociabilidade
humanamente inferior à sociabilidade socialista. Estes direitos continuarão a existir, segundo
Marx, como direitos de caráter burguês, no período de transição do capitalismo ao
comunismo, mas de modo nenhum na própria sociedade comunista. Aqui chegamos ao
verdadeiro punctum saliens: onde algo efetivamente existe por força da natureza das coisas,
não pode existir como direito. Por exemplo: onde todos podem apropriar-se da riqueza
universal – porque ela existe em abundância e sob forma adequada a uma vida humana,
historicamente falando, digna – esta apropriação já não necessita de nenhuma garantia
jurídico-política. Deixa de existir o direito à propriedade para existir simplesmente o acesso
natural à riqueza. O mesmo se dá em relação a todos os outros direitos. Em resumo, uma
sociedade plenamente emancipada, onde foi suprimida radicalmente a desigualdade social,
onde os homens são efetivamente livres e iguais, onde os indivíduos podem, de fato,
construir-se como indivíduos plenamente humanos porque têm acesso ao patrimônio genérico
comum, não faz sentido a exist6encia de qualquer tipo de poder político e de direito.
Sei que, neste ponto, se levanta uma questão que, infelizmente, não posso desenvolver
aqui. Trata-se do seguinte: Se o direito desaparecer, o que, então, regulará as relações sociais,
já que algum tipo de regulação é intrínseco à existência da sociedade? Pode-se dizer, muito
brevemente que, em primeiro lugar, é impossível saber isto, em detalhes, com antecedência.
Em segundo lugar, que os valores morais e éticos terão ali um papel primordial. Mas, é óbvio
que não basta afirmar isto. Seria preciso evidenciar os lineamentos da nova forma de
sociabilidade para mostrar este papel da moral e da ética na regulação da vida social. Como
não podemos alongar-nos sobre isto, remetemos de novo à Ontologia do Ser Social, de G.
Lukács. Embora este autor não tenha escrito uma ética, nesta obra se encontram elementos
interessantes para pensar esta problemática.
14
Se o que dissemos acima está no caminho certo pode-se, então, afirmar que os Direitos
Humanos, como todos os outros direitos têm um caráter essencialmente limitado. Vale dizer,
eles só têm validade em uma forma de sociabilidade em que a efetiva realização do indivíduo
é impossível. Onde ela é possível, eles perdem a sua validade. Neste sentido, os Direitos
Humanos têm, sim, um caráter burguês. São direitos, como todos os outros, que integram a
sociabilidade que se ergue sobre os alicerces do capital, da propriedade privada. Nem por isso
são menosprezáveis agora nem suprimíveis no socialismo, a não ser por via social. Pois, se de
um lado, eles contribuem – independentemente das intenções dos que os defendem – para a
reprodução da sociabilidade capitalista, de outro lado, eles também possibilitam a defesa e a
ampliação do espaço de realização do indivíduo e, portanto, do gênero humano nesta mesma
sociedade. De modo que a luta pelos Direitos Humanos, como pelo conjunto das objetivações
democrático-cidadãs, não só é válida como pode ter um papel muito importante. Mas é
preciso ter claro que ela pode ter um caráter reformista ou revolucionário. Terá um caráter
reformista e, portanto, contribuirá para a reprodução desta ordem social desumana se tiver
como fim último o aperfeiçoamento da cidadania e da democracia. Terá um caráter
revolucionário se tiver clareza quanto aos seus limites e se estiver articulada com lutas clara e
radicalmente anti-capitalistas.
Infelizmente, o que predomina, hoje, é a primeira perspectiva. Esta perspectiva
fundamenta-se no pressuposto, falso, de que são as dimensões jurídica e política que fundam a
sociedade ou, pelo menos de que elas integram a insuprimível natureza do ser social, devendo,
portanto, continuar a existir numa sociedade socialista. O que quer dizer que sem direito e
sem política não é possível existir sociedade. Se isto for verdade, não faz sentido pensar e
lutar por uma sociedade onde não exista nem direito nem política. Trata-se, então, de
aperfeiçoar a sociabilidade por elas integrada ou, então, eliminar os obstáculos que impedem a
sua plena efetivação. Minha enfática afirmação, ao contrário, é de que onde existirem o direito
e a política a humanidade não poderá atingir o grau mais elevado e possível da sua realização.
De que, por mais que se aperfeiçoe a ordem jurídica e política, ela jamais será capaz de por
em questão as raízes da ordem social do capital. De modo que direito e política continuarão a
ser, sempre, expressões e condições de reprodução da desigualdade social. E onde a
desigualdade social tiver sido eliminada pela raiz já não haverá necessidade nem de direito
nem de política.
Retomo, pois, a minha tese inicial. A luta pelos Direitos Humanos só adquire seu mais
pleno e progressista sentido, hoje, se tiver como fim último a própria extinção dos Direitos
Humanos. Portanto, não se estiver voltada para o aperfeiçoamento da cidadania e da
democracia, mas para a radical superação da ordem social capitalista, da qual cidadania e
15
democracia são parte indestacável. E creio ter argumentado o suficiente para deixar claro que
a extinção destes direitos – no socialismo – não significará uma regressão, mas um progresso
na autoconstrução do ser social.
Referências Bibliográficas
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Educação
1
A EDUCAÇÃO NUMA ENCRUZILHADA
Esse artigo pretende contribuir para pensar a educação partindo da crise do mundo
atual. A crise estrutural do capital, fruto da própria lógica deste, põe, hoje, a
humanidade diante de uma clara disjuntiva: ou a intensificação da barbárie do capital
ou a superação deste em direção ao socialismo. Como parte dessa sociabilidade, e
como mediação para a reprodução social, a educação também se vê diante de uma
encruzilhada: ou contribui para a reprodução do capital e sua barbárie ou para a
construção de uma nova e superior forma de sociabilidade. Palavras-chave: Crise.
Emancipação humana. Educação. Via colonial.
Introdução
Não é de se admirar que a educação, assim como todas as outras dimensões sociais,
estejam em crise. Não só nos países periféricos, mas, embora de modos diferentes, também
nos países centrais. Afinal, o mundo todo está em crise. Há algumas décadas ele vem sendo
sacudido por intensas, amplas e profundas transformações que, tendo seu epicentro na
economia, se espraiam por todas as dimensões sociais.
A existência de crises no capitalismo não é nova. Por isso mesmo, muitos pensam
que esta, à semelhança de outras, é uma crise de caráter conjuntural, após a qual a
humanidade encontrará um outro patamar superior de desenvolvimento. E que, como toda
crise tem aspectos positivos e negativos, não há porque cair no pessimismo. Seria preciso
apenas trabalhar no sentido do desenvolvimento dos aspectos positivos.
Outros, porém, entendem que há uma diferença substancial entre esta crise e as
crises precedentes. Não que ela significasse o colapso inevitável do capitalismo, mas que ela
estaria atingindo as estruturas mais profundas desta ordem social. A consequência mais geral
disto seria que, para reproduzir-se, o capital agravaria cada vez mais os problemas da
humanidade.1
Por motivos que exporemos mais adiante, partilhamos esta segunda idéia. E, em
consequência, achamos que a educação não poderia deixar de ser profundamente afetada por
essa crise estrutural. De modo que a atividade educativa se vê diante de uma encruzilhada:
contribuir para a reprodução ou para a superação desta ordem social? Nossa reflexão irá no
sentido de pensar a atividade educativa voltada para esta segunda alternativa, uma vez que o
1
Não estamos nos referindo a esta crise como se fosse a última. Sua importância não está no fato de que possa
ser insuperável, mas de implicar um agravamento de tal ordem dos problemas sociais, que põe em perigo a
existência da própria humanidade.
2
compromisso com a primeira significaria a perenização de uma ordem social fundada na
exploração do homem pelo homem. Contudo, surgem aí algumas perguntas inevitáveis: de
que modo a educação é afetada por esta crise estrutural? Como conduzir a atividade educativa
de modo a que ela contribua para a superação desta ordem social? Isto é possível? Em que
medida?
A resposta não é de modo nenhum fácil, uma vez que envolve inúmeros e
complexos aspectos. A dificuldade é ainda maior, se levarmos em consideração a gravidade e
a urgência dos problemas a exigirem soluções imediatas. Contudo, por maior que seja a
urgência, é preciso fazer um esforço no sentido de uma reflexão serena e rigorosa, pois desta
depende uma prática lucidamente orientada.
No intuito de contribuir para responder àquelas questões, exporemos aqui algumas
idéias.
1. A lógica do capital
Antes de mais nada, é preciso apreender a lógica mais profunda que preside o
evolver da sociedade capitalista, já que ela é a matriz a partir da qual se ergue todo este
edifício social. Não se pretende, com isto, deduzir mecanicamente a situação da educação a
partir de crise do capital. Quer-se, apenas, deixar claro que é impossível compreender a
primeira sem buscar as suas raízes na segunda.
Como se sabe, o capital é uma relação social e não uma coisa. Esta relação, por sua
vez, tem sua origem na compra-e-venda da força de trabalho do produtor pelo capitalista.
Vale enfatizar que esta compra-e-venda pode assumir as mais variadas formas, implicando
sempre a dominação do capital sobre o trabalho e a apropriação privada (ainda que de forma
indireta) da maior parte da riqueza produzida. Nesta relação, o capitalista paga ao trabalhador
um salário, que representa o custo – socialmente estabelecido – da reprodução da força de
trabalho. Como o custo dessa reprodução é menor do que aquilo que o trabalhador produz
durante o tempo de trabalho contratado, a parte que sobra – em geral a parte maior – vai para
as mãos do capitalista, transformando-se nas várias formas da propriedade privada.
É por si evidente que esta relação implica, necessariamente, uma relação de
exploração e de dominação do capitalista sobre o trabalhador. O que significa que a produção
da desigualdade social não é um defeito, mas algo que faz parte da natureza mais essencial
desta matriz geradora do capitalismo. O que, por sua vez, significa que é impossível construir,
a partir dela, uma autêntica comunidade humana, vale dizer, humanizar o capital.
3
Desde que este ato originário seja admitido como insuperável, toda reflexão e toda
ação não poderão deixar de resumir-se à busca das melhores formas possíveis – jurídicas,
políticas, éticas, educativas, etc. – de convivência social, no interior dos limites por ele
demarcados.
Porém, esta lógica, uma vez posta em movimento, adquire uma vida própria, um
evolver que é sempre resultado dos atos humanos singulares e que pode assumir as mais
variadas formas, mas que nenhum poder é capaz de controlar.2. Daí porque Marx chama de
férreas as leis que regem o capitalismo. Não vai aí nenhum determinismo porque, à diferença
das leis da natureza, as leis do capitalismo são oriundas de atos humanos e, portanto, são de
caráter histórico-social e não natural. Enquanto permanecerem vigentes os atos que lhes dão
origem, nenhum outro ato – jurídico, político, ético, etc. – poderá controlar essa lógica.
Para evitar mal-entendidos, vale esclarecer que a incontrolabilidade do capital não
significa a impossibilidade de qualquer controle ou limitação. Significa sim, e precisamente,
que é impossível impor ao capital uma outra lógica que não seja a da sua própria reprodução.
Por exemplo: obrigá-lo a ter como objetivo primeiro uma produção voltada para o
atendimento das necessidades humanas. O capital é como um rio, cada vez mais caudaloso. É
possível opor-lhe obstáculos, desvios, limites provisórios, mas ele sempre encontrará meios e
modos de superá-los. Basta ver o que aconteceu tanto nos países ditos socialistas quanto nos
próprios países capitalistas.
Dessa lógica do capital faz parte o fato de que há, necessariamente, uma disputa,
tanto entre os próprios capitalistas, quanto entre estes e os trabalhadores. É a já velha e ainda
insuperada luta de classes. Um dos resultados desta disputa é uma modificação crescente
naquilo que é conhecido como composição orgânica do capital. Sabe-se que o capital é
composto de duas grandes partes: o capital constante (máquinas, imóveis) e o capital variável
(mão-de-obra). A disputa mencionada acima é responsável (Não única e nem sempre direta,
mas fundamental) pelo desenvolvimento científico e tecnológico. Com a incorporação de
novas tecnologias, os capitalistas tanto podem superar-se uns aos outros como manter,
sempre, sob controle a classe trabalhadora. Ora, na medida em que novas máquinas, com
todas as suas exigências, são incorporadas ao processo de produção, é possível produzir mais
com menos custos e, portanto, com menos mão-de-obra, resultando isto no barateamento dos
produtos. Aumenta, assim, o capital constante e diminui o capital variável. Resultado
imediato: crescimento da capacidade produtiva, mas, ao mesmo tempo, aumento do
2
Sobre a questão da incontrolabilidade do capital ver, de I. Mészáros, Para além do capital. São Paulo:
Boitempo, 2002.
4
desemprego, rebaixamento dos salários e da capacidade de consumo. Em decorrência,
diminuição dos lucros dos capitalistas, acirramento da concorrência, etc.
Como se apresenta esta situação no momento atual? A introdução crescente de novas
e avançadas tecnologias levou aquelas determinações normais do processo capitalista a um
nível sem precedentes. Em consequência, todo o processo produtivo sofreu e continua a sofrer
uma enorme e profunda reestruturação.3 Como resultados, temos o aumento do desemprego,
porém agora de uma forma avassaladora e irreversível; a precarização do trabalho; a corrosão
dos direitos trabalhistas e sociais; a ampliação do trabalho informal; o processo de
mercantilização das empresas e serviços públicos; uma produção cada vez mais destrutiva, ou
seja, obrigada a tornar os bens cada vez mais rapidamente obsoletos; uma competição cada
vez mais violenta entre as empresas e entre os Estados nacionais; a submissão mais direta dos
Estados aos interesses do capital e inúmeros outros fenômenos. Tudo isto, juntamente com o
enorme agravamento dos problemas sociais de toda ordem: miséria, pobreza, fome,
violências, degradação dos serviços de saúde, habitação, saneamento, educação, etc.
Vale, aqui, acentuar, porém: tudo isto acontece em um momento da história da
humanidade em que existiriam condições tecnológicas para produzir bens suficientes de modo
a satisfazer as necessidades básicas (materiais e espirituais) de toda a humanidade. De modo
que não é pela falta de desenvolvimento das forças produtivas, mas pela forma que este
desenvolvimento assume como resultado de determinadas relações sociais assentadas na
apropriação privada da riqueza socialmente produzida que se dá o agravamento dos
problemas. Esta forma, que é a manifestação da lógica férrea do capital, tende a caminhar no
sentido de um agravamento cada vez maior dos problemas da humanidade e não, como
pensam muitos autores, no sentido da sua solução.
Mas, as conseqüências não se fazem sentir apenas na área mais diretamente
econômica. Elas afetam, também e poderosamente, o mundo das idéias, dos valores e das
relações sociais. Diante dessa lógica perversa e poderosa do capital, o indivíduo humano se
sente perdido, nulificado e completamente impotente. Exacerba-se, com isto, o
individualismo, a “guerra de todos contra todos”, levando a um empobrecimento e a uma
brutalização crescente da vida humana.
O mais interessante é que a maioria dos pensadores passa até a elaborar teorias para
confirmar e sustentar essa impotência como algo que deve ser aceito já que expressaria a
efetiva condição humana. Teorias da morte do sujeito, do fim da história, da diminuição do
poder da razão e, especialmente, teorias para demonstrar a insuperabilidade desta ordem
3
Sobre a reestruturação produtiva e suas conseqüências existe uma vasta e conhecida bibliografia, o que
dispensa referências.
5
social, cabendo apenas o seu aperfeiçoamento. Nestas duas vertentes podem ser encontrados
intelectuais considerados dos mais expressivos no mundo de hoje e no passado recente, tais
como: Foucault, Lyotard, Baudrillard, Vattimo, Habermas, Rawls, Rorty, Touraine, B. de
Souza Santos e tantos outros.
2. A educação e a crise
É neste quadro que a educação tem que ser pensada, hoje, tanto no sentido geral
como no sentido específico do Brasil.
Na esteira de Marx, entendemos que o trabalho é o fundamento ontológico do ser
social. E que todas as outras dimensões sociais – a exemplo da política, do direito, da ciência,
da arte, etc. – mantêm com ele uma relação de dependência ontológica e de autonomia
relativa. Ao trabalho, pois, pertence este caráter matrizador que nenhuma das outras
dimensões pode assumir. Quanto às outras dimensões, embora se originem a partir do
trabalho, sua natureza e legalidade específicas mostram que elas não são uma expressão direta
e mecânica dele. Deste modo, na dinâmica social, sempre temos uma determinação recíproca
tanto entre trabalho e outras dimensões como entre estas mesmas.
É, pois, fácil entender que, na medida em que a matriz do mundo, que é o trabalho,
está em crise, a educação não poderia deixar de participar desta mesma crise. Como, porém,
esta crise rebate na educação? Das mais variadas formas, mas, sinteticamente, em primeiro
lugar, revelando a inadequação da forma anterior da educação frente às exigências do novo
padrão de produção e das novas relações sociais; constatando que as teorias, os métodos, as
formas, os conteúdos, as técnicas, as políticas educacionais anteriores já não permitem
preparar os indivíduos para a nova realidade. Em segundo lugar, levando à busca, em todos os
aspectos, de alternativas para esta situação.4 Em terceiro lugar, imprimindo a esta atividade,
de modo cada vez mais forte, um caráter mercantil. Isto acontece porque, como consequência
direta de sua crise, o capital precisa apoderar-se, de modo cada vez mais intenso, de novas
áreas para investir. A educação é uma delas. Daí a intensificação do processo de privatização
e de transformação desta atividade em uma simples mercadoria. Não é preciso referir as
conseqüências danosas que este processo traz para o conjunto da atividade educativa.
Frente a esta situação de crise, duas são as respostas mais importantes dos teóricos
da educação. Uma primeira (desnecessário dizer que não há homogeneidade no seu interior),
que pode ser chamada de conservadora, vai no sentido de apontar a necessidade de novas leis,
4
Também aqui a bibliografia é ampla e muito conhecida, dispensando referências.
6
novas políticas educacionais, novos métodos, técnicas e conteúdos, que permitam formar os
indivíduos de modo que eles se adequem às novas exigências e, especialmente, de enfatizar a
necessidade de parcerias da escola com a “comunidade” e com as empresas. Neste sentido, é
sintomático o uso de termos como qualidade total, formação flexível e polivalente, novas
qualificações, competências, empregabilidade, etc. Tudo isso recoberto com o manto de
valores humanistas, solidários e cidadãos.
Esta primeira resposta tem por certo que a crise do mundo atual, como outras, é
passageira e terá como resultado um novo patamar de desenvolvimento que trará benefícios
para toda a humanidade. Vale dizer, partilha a convicção da perenidade desta ordem social,
cabendo buscar o seu aperfeiçoamento, mas respondendo, fundamentalmente, aos interesses
expressos pelo mercado.
Uma segunda, que poderia ser chamada de progressista (e que também não é
homogênea), entende que são as políticas neoliberais as responsáveis pelo agravamento dos
problemas da humanidade. Outras políticas poderiam levar à construção de uma sociedade
mais justa e igualitária. Isto mostra que esta segunda resposta pressupõe aquilo que antes
afirmamos ser inviável: a possibilidade de controlar a lógica mais profunda do capital. Supõe
que “um outro mundo é possível”, “uma outra educação é possível” sem, contudo, exigir a
superação radical do capital.
É esta segunda resposta que põe a ênfase numa “educação cidadã crítica”. Vale
dizer, numa educação que não vise apenas a formar indivíduos para a reprodução direta e
imediata desta ordem social, que não os prepare apenas para servirem de mão-de-obra para o
capital, mas que sejam trabalhadores e cidadãos. Capacitados para atender às novas
exigências do processo produtivo, mas também conscientes dos seus direitos e dispostos a
participar ativa e criticamente da construção de uma sociedade mais justa, mais humana e
mais igualitária. Daí porque as palavras-chave são “educação cidadã crítica”, “educação
democrática”, “educação participativa”, “educação emancipadora”, “educação
humanizadora”.
Ambas as respostas, ao nosso ver, estão fadadas ao insucesso. A primeira porque
supõe que esta crise seja de caráter conjuntural e que, uma vez ultrapassada, se abrirá um
novo ciclo de bem-estar extensivo a toda a humanidade. Além do mais, esta concepção de
educação, inteiramente voltada – apesar do discurso humanista – para a reprodução do capital,
contribui poderosamente para a mais profunda desumanização do homem, uma vez que aceita
e consolida o seu caráter de mercadoria e, portanto, aceita como um fato consumado a
exploração do homem pelo homem.
7
A segunda porque supõe, sem nenhuma base para demonstração e desconhecendo a
lógica mais profunda do capital, a possibilidade de controle e humanização deste, quando isto
é impossível. Supõe que cidadania seja sinônimo de liberdade, bastando agregar-lhe o termo
“crítica” para que ela ganhe uma qualidade superior. Supõe, portanto, que quanto mais ampla
e profunda a cidadania, maior será o grau de liberdade e de humanização dos indivíduos, sem
que isto implique uma ruptura radical com a ordem do capital. Entendemos que isto é falso.
Já demonstramos em nossa tese de doutorado, intitulada “Educação, cidadania e
emancipação humana”, e em outros escritos, a natureza essencialmente limitada da
cidadania.5 A cidadania moderna tem a sua base no ato que funda o capitalismo, que é o ato
de compra-e-venda de força de trabalho. Ao realizar este contrato, capitalista e trabalhador se
enfrentam como dois indivíduos livres, iguais e proprietários. E esta é a base do
desenvolvimento – certamente processual e conflitivo – de todos os subseqüentes direitos
civis, políticos e sociais. Contudo, ao entrar em ação o processo de trabalho assim contratado,
evidencia-se imediatamente a não simetria dos dois contratantes. O capitalista evidencia-se
como mais igual, mais livre e mais proprietário. Afinal, é ele que explora, domina e se
apropria da maior parte da riqueza e não o trabalhador. Fica claro, deste modo, que cidadania
é forma política de reprodução do capital e que, por isso, jamais poderá expressar a autêntica
liberdade humana.
Está, pois, instaurada, no coração mesmo do ato que funda a sociabilidade do
capital, a desigualdade social. A dimensão jurídico-política poderá, certamente, contribuir
para impor-lhe limites, mas não para erradicá-la. Nenhum aperfeiçoamento, melhoria,
ampliação, correção ou conquista de direitos que compõem a cidadania poderá eliminar a raiz
que produz a desigualdade social. Pelo contrário, o exercício daqueles direitos permite, ao
aparar as arestas e ao tornar menos brutal a escravidão assalariada, que este sistema social,
fundado na desigualdade, funcione melhor, pois conta com o beneplácito dos próprios
explorados e dominados.
Reconhecer as limitações intrínsecas da cidadania não significa, de modo nenhum,
menosprezar a importância que ela teve e tem no processo de autoconstrução do ser social.
Significa apenas reconhecer que ela integra necessariamente– ainda que de modo
contraditório e tensionado – a sociabilidade regida pelo capital. De modo que cidadania, por
mais plena que seja, jamais será sinônimo de liberdade plena.6
5
Democracia ou Liberdade. Maceió, Edufal, 1997. e Educação e Concepções de Sociedade. In: Universidade e
Sociedade, 19 (9), 1999, p. 100-104.
6
Por liberdade plena não entendemos liberdade absoluta, total, irrestrita, mas uma liberdade que expresse o fato
de que os homens são efetivamente senhores da sua história.
8
Conservando a questão neste nível de generalidade, isto é, sem discutir, ainda, as
situações e as mediações histórico-concretas, o que se conclui das afirmações anteriores é que
toda atividade educativa que pretenda contribuir para a formação de indivíduos efetivamente
livres – definida a liberdade no seu patamar mais elevado historicamente hoje possível – deve
ter como horizonte norteador a emancipação humana e não a emancipação política, da qual a
cidadania é parte integrante..
Em que consiste a emancipação humana? Para uma explicitação e fundamentação
mais ampla da natureza e da possibilidade desta categoria, remetemos, de novo, à nossa tese
de doutorado acima citada. Aqui referiremos apenas os elementos essenciais.
Os homens serão efetivamente (plenamente) livres quando puderem, de fato, ser
senhores do seu destino. Isto nada tem a ver com liberdade absoluta, anárquica ou irrestrita.
Tem a ver apenas (e isto é essencial) com a possibilidade de os homens estarem em condições
– a partir de uma base material capaz de criar riquezas suficientes para satisfazer as
necessidades de todos – de serem efetivamente sujeitos da sua história. Como o capital é o
sujeito fundamental da atual forma de sociabilidade – nesta sociedade quem é livre é o capital
e não os homens – a plena liberdade humana só pode florescer para além do capital. Este para
além do capital se chama comunismo.7 Uma forma de sociabilidade que deve,
necessariamente, ter como base o trabalho associado. Este – que nada tem a ver com o
trabalho em cooperativas no interior do capitalismo – tem como característica essencial o fato
de os produtores controlarem, de forma livre, consciente e coletiva o processo de produção e
distribuição da riqueza. Vale dizer, estabelecerem o que, quanto e em que condições os bens
serão produzidos e distribuídos. Como todos trabalharão, na medida das suas possibilidades e
capacidades, estará eliminado o fundamento da desigualdade social – a exploração e a
dominação do homem pelo homem – com todo o seu cortejo de categorias (capital, mais-
valia, trabalho assalariado, mercadoria, divisão social do trabalho, alienação, etc.) e todo o
conjunto de mediações essenciais para a sua reprodução (estado, política, direito, etc.).
É claro que a instauração do trabalho associado exigirá forças produtivas muitíssimo
desenvolvidas, já que é impossível construir uma sociedade comunista (homens plenamente
livres) sobre uma base material precária. Serão estas forças produtivas altamente
desenvolvidas que permitirão diminuir o tempo de trabalho necessário e aumentar o tempo
livre. Tempo livre só é efetivamente livre quando não estiver sujeito à lógica do capital. Frise-
se: o tempo livre é a exata medida da emancipação humana. Pois é ele que possibilitará o
7
Poucas noções foram tão deformadas pela luta ideológica como esta de comunismo. Por isso, é preciso retomar
essa problemática do começo, ou seja, a partir da natureza do próprio ser social, sob pena de entrar em inúmeros
becos-sem-saída. Procuramos expressar nossas idéias a esse respeito, de forma bem introdutória, no livro
intitulado Sobre o socialismo, publicado pela HDLivros, de Curitiba, em 2002.
9
desabrochamento das potencialidades dos indivíduos a serviço da sua autoconstrução e não da
reprodução do capital.
Neste momento estará aberto um patamar de sociabilidade – Marx chama isso de
história humana propriamente dita – no qual os homens terão a regência – na forma mais
ampla e profunda humanamente possível – do processo histórico.
Parece-nos claro que a educação, sendo uma mediação para a reprodução social,
terá, sendo esta uma sociedade de classes, suas funções sociais voltadas predominantemente
para a reprodução das relações dominantes desta forma de sociabilidade. Nesse sentido,
parece-nos fadada ao insucesso qualquer tentativa de criar uma escola, uma política
educacional, uma educação como algo universal, que não tenha – ainda que em formas e
intensidades diferentes – aquela tendência acima referida. Contudo, esta não é a única
possibilidade. Por isso mesmo, a afirmação acima não significa nenhum imobilismo ou
acomodação. Pelo contrário, significa realizar o que é possível, ainda que este pareça pouco,
mas na direção certa. Mas, qual é a direção certa? O que é o possível?
Aqui vale a pena um pequeno excurso sobre a categoria do possível. Esta categoria é
freqüentemente utilizada para justificar objetivos que demonstrem uma viabilidade imediata,
opondo-se, assim, a objetivos julgados de difícil ou impossível obtenção. O sentido atribuído
a essa categoria por Aristóteles, pode nos ajudar a equacionar melhor o problema. Segundo
ele, o possível é um conjunto de determinações do objeto que podem ou não vir a se realizar.
Em princípio, todas são possíveis. Contudo, nem todas se realizarão. Esta realização depende
de muitas coisas. O rumo, porém, que ela tomará – o que é da maior importância – depende
do fim que se quer atingir. O que significa que é incorreto definir o que é possível pela sua
viabilidade imediata. Muito mais importante do que isso é verificar em que medida aquilo que
está sendo realizado se conecta, através de quais mediações, com qual fim. Não se trata,
portanto, de menosprezar a viabilidade, mas de compreender que, sendo esta sempre
importante, sua definição, em termos de amplitude, profundidade e prazos, sempre estará –
explícita ou implicitamente – vinculada ao fim almejado. Portanto, a primeira e principal
questão é: qual a natureza do fim pretendido?
O desconhecimento ou o uso impreciso desta categoria da possibilidade e,
juntamente com ele, o estabelecimento de fins que contrariam aquilo que se diz pretender (no
caso, cidadania plena como sinônimo de liberdade plena), são responsáveis, em larga medida,
pelo extravio da reflexão pedagógica progressista atual. Pois esta, em sua ampla maioria e
independente das diferenças entre os autores, põe como fim um mundo de cidadania plena e
como mediação uma educação (políticas, conteúdos, métodos, técnicas, etc.) cidadã crítica.
Vale dizer, busca um fim impossível e que não significa a plena liberdade humana e
10
estabelece meios, que aparentam uma viabilidade imediata, mas que, a um prazo maior,
revelam-se apenas instrumentos de reprodução de uma forma de sociabilidade marcada pela
exploração do homem pelo homem.
Contudo, é preciso reconhecer que o esclarecimento desta categoria do possível e de
sua conexão com o fim desejado não torna fácil, por si mesma, a tarefa de “dar passos na
direção certa”. Seu grande mérito é contribuir para estabelecer parâmetros que ajudarão a
decidir quais os meios – independente do sucesso imediato – que deverão ser utilizados para
alcançar o fim colimado.
Se o que dissemos até agora está no caminho certo, então, diante da crise estrutural
em que o mundo está imerso, que resulta da lógica do próprio capital e que leva a uma
barbarização cada vez maior da vida humana, a superação radical do capital e a conseqüente
instauração de uma sociedade comunista se colocam como objetivos evidentes. Por isso
mesmo, toda atividade educativa, teórica e prática, que pretenda contribuir para formar
pessoas que caminhem no sentido de uma autêntica comunidade humana, deve nortear-se pela
perspectiva da emancipação humana e não pela perspectiva da construção de um mundo
cidadão. Vale enfatizar: um mundo cidadão significaria a melhor forma política de
reprodução da sociabilidade mantendo, ao mesmo tempo, a desigualdade social. Por mais que
aquele objetivo pareça difícil e sem viabilidade imediata, ele deve ser perseguido
incansavelmente porque ele é o objetivo mais humanamente digno.8
Contudo, não é nada fácil, no meio da extremamente complexa e complicada
situação atual, orientar a ação educativa no sentido da emancipação humana. De nada adianta
buscar modelos e receitas. Mas, certamente não é possível sem ter clara noção, em primeiro
lugar, da natureza e da possibilidade dessa emancipação. Basta perguntar aos educadores o
que é emancipação humana, quais os fundamentos ontológicos e histórico-concretos da sua
possibilidade para termos a dimensão do problema. A maioria certamente quer uma sociedade
mais justa, mais livre, mais igualitária e mais humana. Mas, o que significa isso para além de
um conteúdo vago onde tudo pode caber? E, mesmo quando há uma reflexão mais acurada
sobre isso, as concepções são as mais problemáticas, pois tendem a identificar emancipação
humana com cidadania plena. Como, então, contribuir para atingir um objetivo do qual se tem
uma idéia tão vaga?
Poder-se-ia alegar que não é possível saber como será uma sociedade futura e que “é
preciso fazer o caminho caminhando”. Esta alegação tem uma parcela de verdade. Porém,
tomada ao pé-da-letra, é um absurdo. É evidente que não se pode saber como será uma
8
Sobre as condições ontológicas e histórico-estruturais de possibilidade ver nossa tese de doutorado
anteriormente citada.
11
sociedade futura. Não existem modelos. Mas, o que se pode e deve saber são os parâmetros
gerais e essenciais que nortearão essa sociedade. Porque estes parâmetros são abstraídos do
próprio processo histórico-social. E, embora tenham um caráter altamente abstrato, nada têm
de especulativo, ou seja, não são um mero construto da razão ou da imaginação. São apenas
momentos, mas momentos reais, efetivos, que a razão faz emergir ao analisar o concreto
processo histórico. A partir deles, e sempre norteados por eles, é possível, sim, “fazer o
caminho caminhando”. Sem eles, é o mesmo que “buscar, num quarto escuro, um gato preto
que lá não existe”.
Dissemos, acima, que a educação é uma mediação para a reprodução social. E que,
numa sociedade de classes, ela, necessariamente, contribuirá predominantemente para a
reprodução dos interesses das classes dominantes. Daí a impossibilidade de estruturar a
educação, no seu conjunto, de modo a estar voltada para a emancipação humana. É por isso
que entendemos não ser possível “uma educação emancipadora”, mas apenas a realização de
“atividades educativas emancipadoras”. Ao nosso ver, é perda de tempo querer pensar uma
educação emancipadora (conteúdos, métodos, técnicas, currículos, programas, formas de
avaliação, etc.) como um conjunto sistematizado que possa se transformar em uma política
educacional. Certamente, podem-se estabelecer políticas educacionais mais ou menos
progressistas e, por isso, a luta nessa esfera não deve ser menosprezada. Porém, o conjunto da
educação só poderá adquirir um caráter predominantemente emancipador na medida em que a
matriz da sociabilidade emancipada – o trabalho associado – fizer pender a balança para o
lado da efetiva superação da sociabilidade do capital. Vale dizer, na medida em que se realizar
uma revolução. Se se quiser um exemplo, basta lembrar da revolução cubana. Sem entrar na
questão da natureza dessa revolução e mesmo descartando qualquer caráter socialista dela, é
inegável que, na medida em que a revolução fez pender a balança para o lado dos interesses
populares, todo o sistema educacional foi profundamente modificado, ganhando um enorme
impulso no sentido do favorecimento daqueles interesses.
Propor, hoje, uma “educação emancipadora” não pode passar da simples projeção de
um desejo, de um discurso humanista abstrato. O que é possível fazer, hoje, ao nosso ver, são
atividades educativas que apontem no sentido da emancipação (além, obviamente, da disputa
com o capital no terreno das políticas educacionais). Parece muito pouco face à enormidade
dos problemas. Vale, então, lembrar o que dissemos acima sobre a categoria da possibilidade.
É melhor fazer pouco na direção certa, do que muito na direção errada. Mesmo assim, quando
se examinam de perto as atividades educativas possíveis na direção da emancipação humana,
a quantidade e a qualidade delas são enormes. Sua realização, porém, depende do que anda na
12
cabeça das pessoas. Pois é lá que estão as idéias, os conhecimentos, os valores, as convicções
que permitem fazer as escolhas.
Mas, para isso, além de ter clareza quanto ao objetivo final a ser atingido, também é
necessário compreender bem a lógica que preside a sociedade capitalista e a natureza atual da
crise; ter clareza acerca da natureza e das funções sociais da educação, de modo a nem
subestimá-la nem superestimá-la; ter um domínio tal da área com a qual se trabalha que
permita oferecer o melhor conhecimento possível aos educandos e, finalmente, articular as
lutas específicas da categoria dos educadores com as lutas mais gerais.
9
Por revolução burguesa entendemos um longo e complexo processo que implicou transformações econômicas,
políticas, sociais e ideológicas que, capitaneadas pela burguesia, levaram à superação do sistema feudal e
incluíram em seus benefícios também as outras classes contrárias àquele sistema.
13
Estas questões, de suma importância, nem sequer são postas. Não se parte do
pressuposto, exaustivamente discutido, de que tudo isto é possível. Parte-se do pressuposto de
que é possível sem sequer ter examinado a questão.
Ora, o pressuposto de que é possível realizar a revolução burguesa, no Brasil, é, no
mínimo, problemático. O Brasil é um país cuja formação se deu, sempre, sob a égide da
dependência e da subordinação a nações mais desenvolvidas. Processo extremamente
complexo, responsável pelo atraso e pelas deformações que ele tem sofrido em todos os
aspectos. Em particular, a produção da riqueza tem, aqui, uma característica toda peculiar. Ela
é o resultado não apenas da exploração do trabalho, como nos países desenvolvidos, mas da
superexploração. Vale dizer, há aqui uma dupla exploração. O trabalhador brasileiro trabalha
não só para enriquecer a burguesia brasileira como também a burguesia internacional. É este o
fato gerador mais fundamental da miséria brasileira.10 Qualquer discussão acerca da
possibilidade de desenvolvimento – no sentido da realização da revolução burguesa – e
qualquer proposta para efetivá-lo, teriam que começar por atacar esta questão. A história do
Brasil deveria ensinar alguma coisa a respeito das conseqüências de se ignorar esta
problemática.
Deste modo, nunca se realizou uma revolução burguesa, no seu sentido pleno, no
Brasil. Todas as mudanças sempre foram resultados de acomodações pactuadas entre as
classes dominantes. As classes subalternas, quando eram chamadas a participar, não passavam
de massa de manobra. Ora, sabe-se que a universalização da educação é um dos aspectos
desta revolução, como mostram muito bem os países mais desenvolvidos. É isto que explica,
em última análise, a precariedade e as distorções da cidadania no Brasil e, dentro dela, os
problemas seculares da educação. É índice de monumental ignorância desfazer os estreitos
laços existentes entre economia e cidadania, como faz Cristovam Buarque, ministro da
Educação, em artigo publicado na Folha de São Paulo em 09/03/2003. Referindo-se ao
objetivo da eleição de Lula, diz ele: “Lula não foi eleito para implantar ou mudar a estrutura
central da economia, nem para construir a igualdade na renda ou no consumo, mas para
fazer com que todos sejam iguais na cidadania, completando a República e a abolição”. E,
mais adiante, acrescenta: “Para completar a República é preciso garantir uma educação
igualitária a todos os cidadãos, o que só é possível por meio de uma escola pública, gratuita
e com qualidade para todos”.
É difícil acreditar que aquelas tarefas possam ser realizadas agora, quando a crise
atinge o capital em suas estruturas mais profundas e quando os próprios países desenvolvidos
10
A respeito da formação da sociedade brasileira de maneira dependente e subordinada – pela via colonial – ver,
de J. Chasin, O Integralismo de Plínio Salgado (cap. IV). São Paulo: Ciências Humanas, 1978.
14
estão mergulhados nela. A extrema e veloz concentração do capital e o acirramento da
competição internacional indicam que não há mais lugar, no clube dos países ricos, para os
países pobres. Certamente com graus variados de exclusão. Deste modo, a realização da
revolução burguesa, em qualquer país periférico, é praticamente uma impossibilidade. Até
porque as burguesias nacionais, que deveriam ser o carro-chefe deste processo, estão muito
satisfeitas na sua associação dependente e subordinada e não têm o menor interesse em liderar
essa revolução.
Ora, a construção da cidadania e, nela, a universalização da educação são partes
integrantes da revolução burguesa, como já vimos. O que significa que persegui-las é o
mesmo que correr atrás de uma miragem, de um objetivo desejável, mas inatingível. Isto não
quer dizer que as lutas pelos direitos democrático-cidadãos não sejam justas e importantes.
Quer apenas dizer que não se deve ter a ilusão de que é possível, no Brasil, alcançar o seu
pleno desenvolvimento burguês e muito menos de que isto poderia significar o patamar mais
elevado possível da emancipação humana. Quer dizer que ela –a cidadania, – com a atual
crise, se realizará sempre e cada vez mais de maneira deformada e precária, avançando em
alguns aspectos, mas retrocedendo na maioria deles. Em resumo, criando mais ilusões do que
realidades.
Pensar a educação brasileira na perspectiva de uma cidadania crítica é, ao nosso ver,
duplamente equivocado. Em primeiro lugar porque, não sendo a cidadania plena a forma mais
elevada hoje possível da liberdade humana, seria contribuir para a reprodução de uma forma
perversa e alienada de sociedade em um momento em que é possível ir para além dela.
Em segundo lugar porque, não sendo a revolução burguesa possível e, portanto, com
ela o estabelecimento da plena cidadania (aí incluído o direito efetivo de todos à educação),
toda atividade educativa estaria sendo orientada no sentido de atingir um objetivo
inalcançável. Como consequência, em vez de contribuir para a construção de uma sociedade
de pessoas efetivamente livres, estaria ajudando a reproduzir uma sociedade extremamente
brutal e desumana.
Se, portanto, o objetivo for contribuir para construir uma sociedade realmente
humana – considerando as possibilidades hoje existentes – então, àquelas tarefas acima
mencionadas, relativas à educação em qualquer país, agrega-se, no Brasil, uma outra, da
maior importância. Trata-se do conhecimento da realidade brasileira e do modo como ela se
insere na crise do capital internacional. Somente esse conjunto de conhecimentos permitirá –
sem que se exclua a possibilidade de erros – a tomada de decisões lúcidas, na atividade
educativa cotidiana, em direção à emancipação humana.
15
Reconhecemos que pensar e orientar a atividade educativa neste sentido não é nada
fácil. Em primeiro lugar, pelo que dissemos acima a respeito da categoria da possibilidade. A
atividade educativa cotidiana voltada para o objetivo da emancipação humana não traz
nenhum grande sucesso aparente. Além do mais, tem que lutar contra a corrente, que é
extremamente forte e que engloba não só as vertentes conservadoras, mas também a maioria
das chamadas progressistas. Em segundo lugar, porque o desnorteamento da luta mais geral e
especialmente dos setores mais importantes das classes subalternas, é enorme. O reformismo,
mesmo quando se intitula de “reformismo revolucionário” é, hoje, a sua marca mais evidente.
Por isso mesmo, hoje, mais do que nunca é preciso ter paciência e dispor-se a dar pequenos
passos na direção certa. É preciso reorientar toda a luta social num sentido claramente anti-
capitalista (o que significa situar o seu eixo fora do parlamento e não dentro dele) e o tempo
que isto pode levar é imprevisível. A atividade educativa pode contribuir para isto, mas não
pode tomar a frente do processo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARROYO, M. A. (org.). Da escola carente à escola possível. São Paulo: Loyola, 1986.
Ivo Tonet*
Introdução
Uma das críticas mais frequentes que se ouvem, hoje, a respeito da educação, até em
âmbito internacional, é de que ela estaria desatualizada, em descompasso com as exigências e
necessidades atuais da sociedade. E certamente existem dados suficientes para comprovar que
estas críticas são verdadeiras.
De fato, se levarmos em conta as transformações no mundo do trabalho, que estão
em curso nas últimas décadas, não há dúvida de que a educação já não responde às
necessidades do momento atual. Como se sabe, até por volta da década de setenta, imperava,
na produção, o modelo chamado fordista-taylorista, que se caracterizava por uma produção
em série e em larga escala. Neste modelo, o trabalhador era considerado uma simples peça de
uma imensa engrenagem, devendo executar praticamente a mesma tarefa durante todo o seu
tempo de trabalho.
Deste modo, a educação, deveria preparar os indivíduos para o exercício de uma
determinada profissão que, assim se esperava, seria exercida até o tempo da sua
aposentadoria. É claro que tal educação teria, necessariamente, um caráter
predominantemente informativo e limitado, pois o conteúdo de que o trabalhador necessitava
não exigia um pensamento crítico e capacidade inventiva.
Nas últimas décadas, com a revolução informacional, o mundo do trabalho sofreu
profundas mudanças. Instaurou-se - algo que ainda está em andamento – um novo modelo
produtivo, caracterizado pela incorporação cada vez maior da ciência e da tecnologia à
produção, pela flexibilidade, pela descentralização, pela necessidade de um giro muito rápido
dos produtos e por uma produção voltada para o atendimento de uma demanda mais
individualizada.
É claro que este novo modelo produtivo exigia um outro tipo de formação.
Certamente, a informação – especialmente o domínio das novas tecnologias - continua a ser
importante, mas agora o trabalhador precisa aprender a pensar, a resolver problemas novos e
imprevistos; precisa ter uma formação polivalente, ou seja, uma formação que lhe permita
*
Prof. do Dep. de Filosofia da UFAL e doutorando em educação na UNESP-Marília
2
realizar tarefas diversas e, além disso, a transitar com mais facilidade de um emprego a outro,
pois a estabilidade já não faz parte desta nova forma de produção.
Dois pressupostos, comumente não explicitados, estão subjacentes a esta forma de
pensar. O primeiro é de que o caráter mercantil da sociedade é algo que faz parte da sua
própria natureza. Variariam as formas, mas a troca é tida como algo tão natural como a
respiração. Não haveria, pois, sentido em pensar uma forma de sociabilidade para além do
mercado, como também não haveria sentido em pensar que uma forma histórica concreta, tal
como o modelo fordista-taylorista de produção pudesse durar eternamente. O segundo é de
que a função essencial da educação é a de preparar os indivíduos para o trabalho. Admite-se
que isto poderia até não ser tão verdadeiro para épocas mais remotas, mas é demonstrado
claramente pela sociedade atual, que é a mais desenvolvida.
Sendo verdadeiros estes dois pressupostos, nada mais justo que a educação seja
avaliada em função da sua eficácia em providenciar uma preparação dos indivíduos adequada
ao exercício profissional.
homem realiza o seu intercâmbio com a natureza. Que o trabalho se realize sob forma
primitiva, asiática, escrava, feudal, assalariada, associada ou qualquer outra, em nada altera o
fato de que ele permanece uma determinação humana essencial.1
Ao contrário do trabalho enquanto criador de valor-de-uso, o trabalho como criador
de valor-de-troca tem uma existência muito recente. Ainda que existisse, em formas muito
embrionárias e dispersas, na antiguidade, ele só emergiu, como elemento nucleador de uma
forma de sociabilidade, com a sociedade capitalista. Deste modo, é historicamente falso
confundir trabalho com trabalho gerador de valores-de-troca e pressupor que esta forma de
trabalho é uma determinação essencial do ser social.
Do mesmo modo, também é historicamente falso confundir a troca com a troca
realizada por intermédio do mercado. A primeira é certamente uma forma de intercâmbio que
existiu desde que os primeiros grupos humanos entraram em contato entre si e dispunham de
algum excedente. Mas, a segunda é tão recente quanto a produção realizada tendo como
objetivo fundamental não atender as necessidades humanas, mas a reprodução do capital.2
Ora, ao supor que o trabalho abstrato – gerador de valor-de-troca (realizada pela
intermediação do mercado) é uma determinação que compõe a natureza essencial do ser
social, tem-se, sobre pressupostos falsos, a consequência de que esta forma de sociabilidade é
a forma mais adequada que a humanidade conseguiu alcançar para o seu desenvolvimento. O
que não significaria, de modo nenhum, que não tivesse imperfeições. Significaria, apenas que,
apesar das imperfeições, se comparada com outras que a antecederam, seria a única que se
mostraria passível de um constante aperfeiçoamento e que permitiria o desenvolvimento de
todos os indivíduos e não apenas de um número limitado.
Se estes pressupostos e suas consequências são falsos, então podemos concluir que o
trabalho abstrato e a troca mercantil são componentes de uma forma histórica de
sociabilidade, a sociabilidade regida pelo capital. Esclarecido isto, e na medida em que se
compreende que, nesta forma de sociabilidade, a produção de mercadorias – não importa sob
que forma concreta – é o momento fundamental, então sim seria razoável afirmar que a
função hegemônica da educação é a de preparar os indivíduos para se inserirem no mercado
de trabalho. Pois, nesta forma de sociabilidade, o indivíduo vale enquanto força-de-trabalho e
não enquanto ser humano integral.
1
Sobre o trabalho como fundamento ontológico do ser social, ver, além da Ontologia do ser social, de Lukács,
também do mesmo autor, As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem, in Temas de Ciências
Humanas, n. 4, SP, Ed. Ciências Humanas, 1978, p. 1-18; de Sérgio Lessa, A ontologia de Lukács, Maceió,
Edufal, 1997 e Trabalho e ser social, Maceió, Edufal/UFC, 1997.
2
É sabido que a idéia de que a troca – da qual o mercado atual seria apenas uma forma mais aperfeiçoada – é
uma disposição natural do homem é um dos pressupostos fundamentais – até hoje – de toda a economia política.
Ergo, se este for falso...!
4
Contudo, a análise marxiana demonstrou, ao nosso ver, com toda pertinência, que a
sociedade capitalista não é um todo homogêneo, mas uma totalidade contraditória. Ele deixou
bem claro que capital não é uma coisa, mas, antes de mais nada, uma relação entre pessoas.
Só se gera capital e, daí, uma sociabilidade capitalista, quando de um lado se encontra o
possuidor de trabalho acumulado e de outro o que dispõe apenas da sua força de trabalho. Isto
dará origem a uma forma de sociabilidade necessariamente antagônica em sua essência. É
desta forma de sociabilidade que fazem parte as categorias do capital, do trabalho assalariado,
da propriedade privada, da mais-valia, do valor-de-troca como elemento decisivo, do mercado
e dos produtos como mercadoria.
Mas, além disto, também faz parte essencial desta forma de sociabilidade o
fetichismo da mercadoria, processo através do qual os produtos do trabalho humano se
transformam em mercadorias e passam a assumir as qualidades típicas daqueles que as
produziram enquanto estes tomam a forma de coisas. Gera-se, deste modo, o estranhamento,
isto é, o fato de que, como diz Marx (1986: 47): “a própria ação do homem converte-se num
poder estranho e a ele oposto, que o subjuga ao invés de ser por ele dominado”.
Ora, na medida em que o trabalho morto (capital) subjuga e põe a seu serviço o
trabalho vivo (o trabalhador) o que está em jogo já não é o desenvolvimento pleno dos
indivíduos, mas a reprodução ampliada do capital. O indivíduo só interessa enquanto força de
trabalho e todas as atividades voltadas para o indivíduo não visarão, na verdade, o seu
desenvolvimento omnilateral, harmonioso, integral, mas adequá-lo, da melhor forma possível,
à produção de mercadorias.
É evidente que isto não será realizado, necessariamente, de forma direta. Isto porque
a totalidade social é, como diz Lukács, “um complexo de complexos” . Se, por um lado, o
trabalho é o fundamento ontológico do ser social, a complexidade resultante do próprio
trabalho fez com que a reprodução do ser social exigisse o surgimento de esferas de atividade,
com uma especificidade e uma legalidade próprias, – tais como arte, religião, política,
ciência, direito, educação, etc., – que cumprem, cada uma, determinadas funções nesta
reprodução. É claro que, numa sociedade marcada por conflitos antagônicos, todos estes
momentos serão também perpassados, mesmo que com inúmeras mediações, pelo
antagonismo social.
Deste modo, – e referindo-nos à sociabilidade capitalista, – não obstante as
diferenças que existem – e devem existir não por uma exigência ética, política, jurídica ou de
qualquer outro gênero, mas por uma exigência ontológica – entre as diversas partes que
compõem a totalidade social, todas elas têm no capital o elemento hegemônico da sua
entificação. O que não significa que esta hegemonia se expresse sob forma mecanicista. Pois,
5
como vimos, o capital é a matriz desta forma de sociabilidade apenas no sentido ontológico e
exclusivamente neste sentido. Em todos os outros sentidos há, entre todos os momentos da
totalidade social, uma determinação reflexiva e somente uma investigação concreta poderá
determinar o peso de cada uma num determinado momento histórico.
É neste sentido que podemos dizer que a esfera da educação tem na reprodução do
capital a tônica do seu desenvolvimento. E que ele envidará todos os esforços para subsumir à
sua lógica toda e qualquer iniciativa, mesmo aquelas que, em princípio lhe poderiam ser
contrárias. Mas, na medida em que a sociabilidade gerada pela contradição entre capital e
trabalho é contraditória, a possibilidade de uma oposição à hegemonia do capital também é
uma possibilidade real.
Assim postas as coisas, é compreensível que a preparação para o trabalho seja vista
como a função essencial da educação. Pois, a exclusão do campo do trabalho tem, nesta forma
de sociabilidade, uma função bastante parecida com o ostracismo para os gregos ou a
excomunhão, para os cristãos. Vale dizer, significa condenar os indivíduos à morte social,
quando não à própria morte física. Deste modo, toda a vida dos indivíduos, em todas as suas
manifestações é, de algum modo, posta sob a ótica do capital. Desde o trabalho propriamente
dito, até as manifestações mais afastadas dele, como a religião, os valores morais e éticos, a
afetividade e as relações pessoais. O que não significa, vale a pena enfatizar de novo, que
todos os aspectos, em sua totalidade, estejam subsumidos ao capital. Se assim fosse, sequer os
indivíduos poderiam existir enquanto indivíduos. Esta afirmação significa, apenas que
nenhum aspecto da vida social e individual, hoje, deixa de ser perpassado pelos interesses do
capital. Educar, portanto, seria uma atividade voltada, sob as mais variadas formas, para a
preparação dos indivíduos para vida a social, entendendo por vida social a vida nos marcos,
ainda que sempre em processo, desta forma de sociabilidade.
Contudo, como já vimos, esta forma de sociabilidade é necessariamente
contraditória. Pois, de um lado se encontram – em termos de raiz – os interesses do capital e
de outro os interesses do trabalho. E estes dois elementos radicalmente antagônicos dão
origem a duas perspectivas sociais, dois mundos organizados ou organizáveis sob princípios e
formas inteiramente diferentes. Já nos referimos antes à primeira. Detenhamo-nos, agora, um
pouco, sobre a segunda, tendo sempre claro que se a forma capitalista é já uma efetividade, a
forma socialista é apenas uma possibilidade e, portanto, só pode ser apanhada em suas
determinações mais gerais.
Parece-nos que é aqui onde naufraga muita boa vontade. Pois, na ânsia de se opor à
desumanização, à degradação da vida e a toda sorte de injustiças sociais produzidas pelo
capital, muitos dão asas à imaginação e até a uma razão apoiada apenas em si mesma,
tentando elaborar um modelo de sociedade que dê prioridade ao desenvolvimento integral da
pessoa humana e não à simples produção de mercadorias. No entanto, já nos advertia Marx
em A Ideologia Alemã (47):
“O comunismo não é para nós um estado que deve ser estabelecido, um ideal para o qual a realidade
terá que se dirigir. Denominamos comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual.
As condições desse movimento resultam de pressupostos atualmente existentes”.
O que ele enfatiza, pois, é que para pensar uma forma de sociabilidade que seja mais
justa, mais igualitária e, portanto mais humana, não devemos partir de idéias, especulações ou
fantasias, mas do processo de desenvolvimento real e concreto em que os homens estão
envolvidos, de modo a compreender tanto a lógica desta forma de sociabilidade quanto a
possibilidade de superá-la, partindo das suas próprias contradições.
Devemos esclarecer que não é nossa intenção, neste momento, expor detalhadamente
a concepção marxiana do ser social, mas apenas os elementos que nos permitam compreender
a fundamentação de uma nova forma de sociabilidade não centrada na mercadoria.
É por demais conhecida aquela afirmação de Marx (1986: 27), de que, embora
possamos distinguir os homens dos animais por muitas coisas, “eles próprios só começam a
se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir os seus meios de vida”. E como é
que eles produzem estes meios? Apropriando-se da natureza, submetendo-a ao seu controle e
transformando-a de modo a adequá-la à satisfação das suas necessidades. É neste momento
que a dinâmica própria da natureza sofre uma alteração substancial a partir da qual se instaura
o ser social. O elemento mediador para a realização deste salto ontológico do ser natural para
o ser social é o trabalho. E ele tem este caráter de mediação exatamente porque é uma síntese
entre dois elementos, entre si heterogêneos, - consciência (teleologia) e natureza
(causalidade) – que, neste processo compõem uma unidade indissolúvel.
É também por demais conhecida aquela passagem em que Marx (1975: v. I, l. 1, p.
202) afirma que
O que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de
transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia
antes idealmente na imaginação do trabalhador.
7
O ato do trabalho, pois, implica uma atividade consciente e livre uma vez que, ao
contrário dos animais, o homem não satisfaz as suas necessidades de maneira direta e
imediata, regida por leis genéticas, mas pela mediação de uma atividade que conhece e
escolhe os materiais adequados, configura previamente um objetivo e transforma
intencionalmente a natureza. Além do mais, esta atividade é sempre social, pois a
generalização – tanto individual como social – das conquistas obtidas por cada indivíduo é um
elemento que caracteriza essencialmente o trabalho. Como consequência, a autoconstrução e
cada indivíduo só pode se dar mediante a apropriação do patrimônio comum ao gênero
humano.
Mas, além disto, Marx também enfatiza que esta atividade de transformação da
natureza não é apenas uma adequação desta às necessidades humanas, mas, ao mesmo tempo,
uma auto-transformação do próprio homem. Com efeito, se examinado o ato do trabalho na
sua complexidade, percebe-se que cada novo ato singular implica – tanto para o indivíduo
como para a comunidade social – a incorporação dos resultados dos atos anteriores. De modo
que, a cada novo ato, tanto um como outra sofrem modificações e situam-se em um novo
patamar, num processo que se repete ao longo de toda a história humana. E, ao contrário do
animal, cuja reprodução é marcada pela contínua produção do mesmo, o homem se carateriza
por reproduzir-se sempre de forma nova e ampliada.
Tornar-se homem é, pois, para Marx, na sua essência, transformar o mundo e a si
mesmo; criar objetos e criar-se de forma cada vez mais ampla, universal e multifacetada;
tornar parte de si mesmo um conjunto cada vez maior de elementos que fazem parte do
gênero humano; agir de forma sempre mais consciente e livre, isto é, dominando o processo
de autoconstrução de si mesmo e do mundo. É ocioso ressalvar que este processo não é, de
modo nenhum, linear e cumulativo, mas antes extremamente complexo e contraditório.
Do que vimos até agora, pode-se concluir que o ser social é radicalmente histórico e
social. Isto significa que o ser social é, em sua integral totalidade, o resultado de um processo
que tem no trabalho o seu ato originário e que, portanto, como diz Marx (1989: 204) “a
totalidade do que se chama história mundial é apenas a criação do homem através do
trabalho”. Deste modo, torna-se insustentável afirmar que o homem é um ser, por natureza,
proprietário privado, mercantil e individualista. Em consequência, também torna-se
insustentável a afirmação de que esta ordem social é estruturalmente imutável e a mais
adequada ao desenvolvimento pleno do homem.
Gostaríamos de enfatizar, aqui, uma questão a que nos referimos anteriormente.
Trata-se da relação entre as categorias do trabalho e da reprodução. É certo que, para Marx, o
trabalho é a categoria ontológico-primária do ser social. Mas, também é certo que, para ele, o
8
ser social não se reduz ao trabalho. O processo social é, segundo ele, um contínuo
afastamento das barreiras naturais, ou seja, um processo através do qual o ser social se torna
cada vez mais social. O trabalho tem, desde o início, em sua natureza essencial, a capacidade
de produzir mais do que o necessário para a reprodução daquele que o realiza e, por isto, ele é
o fundamento desta crescente complexificação do ser social. Esta complexificação, que tem
como um dos seus momentos mais importantes a divisão do trabalho, implica que, ao longo
do processo, surjam necessidades e problemas, cuja origem última está no trabalho, mas que
não poderiam ser atendidas ou resolvidos diretamente na esfera do trabalho. Daí a necessidade
do surgimento de outras esferas de atividade, já anteriormente mencionadas, para fazer frente
a estas necessidades e problemas. Quando examinadas estas atividades em sua estrutura
fundamental, ver-se-á que todas elas têm a mesma estrutura do trabalho – ou seja, implicam
uma síntese entre teleologia e causalidade – mas nem a ele se reduzem nem são dele
diretamente dedutíveis. Todas elas têm uma relação de dependência ontológica em relação ao
trabalho, mas a função que são chamadas a exercer exige que elas tenham em relação a ele
uma distância – base da autonomia relativa – sem a qual não poderiam cumpri-la. Daí a sua
especificidade.
Contudo, como já vimos antes, a autoconstrução humana não é, de modo nenhum,
um constante progresso. A apropriação, pelos indivíduos, das objetivações genéricas é um
processo complexo e cheio de obstáculos. A estes Marx chamou de estranhamento ou, como
são mais comumente conhecidos, alienação. E é na sociabilidade capitalista que o
estranhamento ganha a sua forma mais acabada, pois ali o conjunto do processo, incluindo o
produtor, o processo de trabalho e o próprio produto, se torna uma realidade estranha,
poderosa e hostil, que se opõe a uma construção autenticamente humana dos indivíduos.
Deste modo, a construção de uma forma de sociabilidade que abra, para todos, a possibilidade
de uma vida cheia de sentido, implica, necessariamente, como horizonte, a superação do
capital.
Mas, coerentes com os nossos pressupostos, assim como afirmamos que o trabalho –
em sua forma de compra-e-venda de força de trabalho – é o ato fundante da sociabilidade do
capital, também teremos que buscar qual a nova forma do trabalho que possibilite a
construção desta nova sociedade. E, mais uma vez, é Marx quem nos auxilia. De acordo com
ele, esta forma deve ser a do trabalho associado. Por que o trabalho associado? Porque
somente ele permite superar todas as formas estranhadas de relações entre os homens geradas
pelo capital ou por ele apropriadas e subsumidas. Ao trabalharem associadamente, as relações
entre os homens passarão a ter o caráter de relações entre pessoas e não entre coisas; já não
haverá relações de exploração e de dominação; todos os indivíduos terão a possibilidade de
9
À guisa de conclusão
Com os argumentos até aqui desenvolvidos, cremos ter deixado claro que a
sociabilidade capitalista é uma forma inteiramente histórica e essencialmente limitada,
resultante da atividade humana e de modo nenhum o patamar superior e indefinidamente
aperfeiçoável da humanidade. Pelo contrário, ficou manifesto que se trata de uma forma
contraditória que se, de um lado, permitiu ganhos positivos para a humanidade, de outro,
também deu origem a elementos extremamente desumanizadores. E mais ainda, no estágio
presente, por motivos que não podemos expor aqui, mas que já foram extensamente tratados
por muitos autores, ela já não tem possibilidade de abrir novos horizontes para a realização
superior da humanidade. Tende, pelo contrário, a agravar cada vez mais os problemas sociais
exatamente em um momento em que já existiriam condições de resolver plenamente muitos
deles. Por isso, a superação desta forma de sociabilidade é um imperativo tanto para a
sobrevivência como para um desenvolvimento mais pleno da humanidade.
11
Por outro lado, também cremos ter deixado claro que uma outra forma de
sociabilidade, que tenha no efetivo desenvolvimento integral do homem o seu eixo
estruturador é uma possibilidade real, cujos traços ontológicos já podem ser vislumbrados
hoje. Contudo, a grande questão é que esta nova forma de sociabilidade é, hoje, apenas uma
possibilidade, cuja efetivação dependerá de decisões dos próprios homens. Vale dizer, da
consciência, da organização e da disposição de luta de todos aqueles que tem na sociabilidade
do capital um obstáculo à sua realização. A humanidade está, pois, num momento crucial que
tanto poderá levar à sua autodestruição, como a novas formas de barbárie ou ao acesso a um
patamar superior de entificação. Nada está definido por antecipação.
Isto nos permite afirmar que uma concepção de educação está vinculada ao tipo de
sociedade que se deseja construir, o que inclui todo um conjunto de concepções a respeito do
homem, da sociedade e da história. E que é de capital importância ter claro que existem, hoje,
duas grandes alternativas em jogo. De modo que, não basta dedicar-se, com afinco, à
atividade educativa. É preciso saber – e, certamente, hoje, isto não é nada fácil – com que
objetivos mais gerais se articula esta atividade.
Se, como deve ter ficado claro ao longo deste texto, nossa opção for por uma
sociedade efetivamente emancipada, então ainda será preciso fazer toda uma discussão – tanto
no aspecto filosófico como nos vários aspectos científicos – acerca de como a educação pode
contribuir para a construção desta sociedade. Tarefa extremamente complexa, sobre a qual
pretendemos escrever em outro momento.
Referências Bibliográficas
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1
EDUCAÇÃO E REVOLUÇÃO
Um dos grandes problemas que, a nosso ver, marcaram a luta pela superação
do capitalismo, nestes últimos cento e cinqüenta anos, foi a mudança da centralidade do
trabalho para a centralidade da política1. Esta mudança se deu tanto a partir do caminho
reformista quanto do caminho revolucionário. E significou, em resumo, a atribuição ao
Estado da tarefa de ser o protagonista das transformações sociais.
Esta crença teve enormes repercussões teóricas e práticas. Não é nossa intenção
referir-nos a elas nesse texto. Nosso objetivo é fazer referência ao fato de que a reflexão
sobre a educação foi profunda e negativamente afetada por esta crença de que a
revolução soviética foi uma revolução socialista e continuou a ser durante largos anos.
1
Ver, a esse respeito, o livro de I. Tonet e A. Nascimento: Descaminhos da esquerda: da centralidade do
trabalho à centralidade da política.
2
Por este motivo, Marx também sempre deixou claro que a revolução que
levaria à superação do capitalismo teria que ser uma revolução política com alma social
3
ao contrário de todas as outras que foram revoluções sociais com alma política. Com
isto, ele queria enfatizar que esta revolução deveria ser regida por uma forma de
trabalho que levaria à extinção das classes sociais e, portanto, da desigualdade social.
Com efeito, num primeiro momento, o poder político burguês foi desmantelado
e, com a estruturação de um novo Estado, supostamente sob controle da classe
trabalhadora, foram tomadas medidas econômicas – supressão da propriedade privada
dos meios de produção, estatização da economia, planejamento centralizado da
produção, desenvolvimento acelerado das forças produtivas, organização da produção
no sentido de atender as necessidades da maioria da população – que pareciam
encaminhar todo o processo na direção do socialismo.
No entanto, também este caminho se revelou não ser a via adequada para o
socialismo.
A aparência foi esta, mas a realidade efetiva foi outra. Ao contrário do que foi
afirmado acima, entendemos que foi a falta de possibilidade de efetiva socialização da
economia, dado o enorme atraso do desenvolvimento das forças produtivas, que
impediu a continuidade da participação direta e intensa das massas trabalhadoras. Foi
4
este atraso o principal elemento responsável, mas, de maneira nenhuma o único, por
orientar todo o processo no sentido de atribuir à política, na figura do Estado e do
Partido e não ao trabalho a direção das transformações sociais.
O que nos interessa, aqui, é aludir ao fato de que, para todos esses autores, o
pressuposto de sua elaboração era, de algum modo, a idéia de que a revolução soviética
tinha sido uma revolução de caráter socialista e de que o caminho trilhado por ela, não
obstante todos os percalços, continuava a ser socialista.
5
Sabe-se que uma das características que marcam todas as sociedades de classes
é a divisão social do trabalho, que separa o trabalho manual do trabalho intelectual.
Por isso mesmo, a superação dessa dicotomia entre trabalho manual e trabalho
intelectual, entre teoria e prática, vale dizer, a apropriação dos produtores do saber a
respeito do conjunto do processo produtivo, é uma questão fundamental para a
construção de uma sociedade socialista. Isto suporia uma educação na qual houvesse
uma articulação entre a teoria e a prática, entre o trabalho manual e o trabalho
intelectual. Daí a preocupação dos teóricos socialistas em elaborar uma pedagogia que
permitisse a integração desses dois momentos.
6
Esta elaboração deve muito a uma teorização mais ampla, que podemos
denominar “caminho democrático para o socialismo”2 e, especialmente, à leitura da
obra gramsciana.
2
Ver, a esse respeito o livro citado na nota 1.
7
Como poderia a educação contribuir para isso? Não queremos ignorar que há
uma enorme diversidade nas idéias de cada um dos autores. Contudo, poderíamos dizer,
de modo geral, que essa contribuição passava, em primeiro lugar, pela apropriação das
reformulações acima mencionadas. Em segundo lugar, pela elaboração acerca dos
conceitos de escola unitária, de politecnia e de trabalho como princípio educativo e pela
busca de ocupação de espaços, ainda no interior do sistema capitalista, que permitissem
avançar no sentido da concretização dessa nova pedagogia.
trabalho manual e trabalho intelectual, entre teoria e prática e, deste modo, possibilitar a
entificação omnilateral do ser humano.
Certamente, é preciso levar em conta que esta forma de trabalho não poderia
entrar em cena, em sua plenitude, desde os momentos iniciais da revolução. Porém, o
que é importantíssimo deixar claro é que a possibilidade de o trabalho associado fazer-
se presente deve existir desde o início, para que ele, então possa ser o eixo de todo o
processo revolucionário. E esta possibilidade tem como pressuposto incontornável um
desenvolvimento das forças produtivas capaz de produzir riqueza – em quantidade e
qualidade – suficiente para atender as necessidades básicas de todos. Esta possibilidade
é que inexistia na revolução soviética.
Como vimos acima, essa concepção implica a ideia de que sem democracia não
há socialismo e de que sem socialismo não há democracia (verdadeira). Deste modo, a
ampliação contínua da democracia seria o caminho para o socialismo. Daí ganharem
força as idéias de construir uma escola democrática, uma escola cidadã; de formar
cidadãos críticos e de encontrar, ainda no interior do sistema capitalista, formas de
organizar a educação que permitissem superar a cisão entre trabalho manual e trabalho
intelectual, entre teoria e prática.
sua realidade material quanto ideológica e politicamente por esta crise. Isto não
significa que não existam inúmeras lutas, tanto da classe trabalhadora como de outros
setores sociais, em andamento. No entanto, a tônica dessas lutas não é de enfrentamento
do modo capitalista de produção para superá-lo, mas apenas para obter ganhos que não
desbordam a sua lógica. É como se a possibilidade do socialismo tivesse desaparecido
completamente do horizonte.
Ao não contestar, na sua lógica mais profunda, nem o capital, nem a sua força
política, que é o Estado, a classe trabalhadora viu-se desarmada, política e
ideologicamente, porque, não importa quais sejam os seus ganhos parciais – hoje cada
vez mais magros – ela sempre pagará os custos da reprodução dessa ordem social e
jamais poderá resolver plenamente os seus problemas.
3
Veja-se, a esse respeito, o cap. 18 do livro Para além do Capital, de I. Mészáros.
10
Para isso, são necessárias duas coisas. Primeira: fazer a crítica do passado. E
essa crítica significa essencialmente a crítica da centralidade da política, que se
instaurou tanto pelos caminhos reformistas quanto pelas vias revolucionárias. Isto
implica, obviamente, resgatar a centralidade do trabalho, tanto no seu sentido ontológico
como político e também como eixo do processo de transição do capitalismo ao
comunismo4.
Esta crítica não poderia ser feita sem o resgate do caráter radicalmente crítico e
revolucionário – no sentido ontológico – do pensamento de Marx5. Foi o abandono
desta radicalidade crítica e revolucionária – repetimos, no sentido ontológico e não
simplesmente político – que levou, do ponto de vista teórico, à mudança da centralidade
do trabalho para a centralidade da política.
Mas, segundo Mészáros, o que o capital vive hoje não é uma simples crise
comum, mas uma crise estrutural7. Segundo ele, a diferença mais marcante reside no
4
Ver, a esse respeito, de nossa autoria: Descaminhos da esquerda: da centralidade do trabalho à
centralidade da política, cap. 1. e Trabalho associado e revolução proletária.
5
Para maiores aprofundamentos, ver, de nossa autoria: Marxismo para o século XXI.
6
A ideia de imprimir, hoje, às lutas sociais um caráter de ofensiva em direção ao socialismo é defendida,
com solidez por I. Mészáros no livro Para além do Capital, especialmente, cap. 18.
11
fato de que, ao contrário das crises comuns, que afetam apenas alguns setores ou partes
do mundo capitalista, esta atinge tanto o conjunto do mundo como todos os segmentos
da sociabilidade capitalista.
Ora, ainda segundo Mészáros, na luta entre o capital e o trabalho, que vem
sendo travada há décadas, o conjunto dos instrumentos de enfrentamento criados pelo
trabalho, foi profundamente afetado por um caráter defensivo. Num primeiro aspecto,
por causa da clandestinidade, com óbvias incidências nas condições organizativas. Num
segundo aspecto, pelo abandono do objetivo revolucionário, que levou partidos e
sindicatos a se tornarem cada vez mais reformistas. Neste caso, a erradicação do
capitalismo deixou de ser o objetivo estratégico para, em seu lugar, ser colocada apenas
a defesa de ganhos parciais.
Deste modo, a ofensiva socialista não significa colocar como bandeira de luta a
consigna “socialismo já”, mas orientar, teórica e praticamente as lutas sociais no sentido
de terem claramente como alvo final a superação radical do capitalismo. Esta orientação
implica a auto-organização da classe trabalhadora, de forma independente e contrária
tanto ao capital como ao Estado, a formulação de um projeto próprio que tenha no
7
A respeito da ideia de crise estrutural ver, de I. Mészáros, Para além do Capital, cap. 18.
12
Considerando tudo isso, a atividade educativa não pode pretender ter, hoje, um
caráter massivo. O que significa que é impossível pretender imprimir à educação, como
proposta hegemônica, uma tônica que contribua para um processo de transformação
radical da sociedade. Mas, nem por isso uma atividade educativa com esse objetivo
deve ser abandonada. Trata-se, apenas, de adequá-la a esse momento. Mas, como?
Adequar pode significar rebaixar o horizonte, sob o pretexto da situação atual, ou
simplesmente proclamar os princípios e o objetivo final, desconhecendo as mediações
que permitam alcançá-lo.
No entanto, cremos que, entre essas duas alternativas, existe uma mais
apropriada a esse momento.
8
A esse respeito ver nosso artigo: Eleições: repensando caminhos. No site: WWW: ivotonet.xpg.com.br
13
Não se trata de abrir mão das lutas pelo acesso universal a uma educação de
alta qualidade. Mas, é preciso ter claro que este objetivo não é alcançável no interior do
capitalismo e, nesta situação de crise estrutural, cada vez menos. Nele, embora uma
certa universalização quantitativa ainda seja possível, o rebaixamento da qualidade é um
fato cada dia mais gritante. A efetiva resolução dessa questão – a possibilidade do
acesso universal a uma educação de alta qualidade – só existe numa sociedade
comunista.
Por isso mesmo, pensamos que, na educação, o foco deveria estar situado na
realização de atividades educativas que contribuam para a formação de uma consciência
revolucionária. Trata-se de nortear tanto a teoria como as práticas pedagógicas no
sentido da emancipação humana e não no sentido do aperfeiçoamento da democracia e
da cidadania. Pois a questão é formar indivíduos que tenham consciência de que a
solução para os problemas da humanidade está na superação da propriedade privada e
do capital e na construção de uma forma comunista de sociabilidade.
Deste modo, não se trata de lutar apenas pelo acesso universal ao patrimônio
acumulado do saber. Para além disso é preciso fazer a crítica desse saber e permitir a
aquisição de um conhecimento de caráter revolucionário9. Desnecessário dizer que a
figura do professor é, aqui, de suma importância, pois depende dele imprimir à sua
atividade educativa esse caráter. Aqui, a célebre afirmação de Marx de que o educador
também tem que ser educado, ganha toda a sua importância. Por isso o domínio, sólido,
amplo e profundo dessa perspectiva revolucionária, que se refletirá em todos os
9
Não entendemos caráter revolucionário em um sentido apenas, nem principalmente, político, mas de
uma concepção de mundo abrangente e radical, cujos fundamentos foram instaurados por K. Marx.
14
Por outro lado, esse conhecimento, pela sua própria natureza, será um poderoso
estímulo para o engajamento nas lutas práticas tanto aquelas particulares como aquelas
mais gerais.
Referências Bibliográficas
Ivo Tonet
RESUMO
“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade,
em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente
encontradas, dadas e transmitidas pelo passado”(K Marx, 2008. P. 207). É em
circunstâncias muito precisas que os homens fazem a sua história hoje. E, do ponto de
vista dos interesses mais profundos da classe trabalhadora, esse momento se apresenta
com um caráter fortemente contra-revolucionário. O resgate sólido da teoria
revolucionária, o que implica uma crítica das deformações teóricas e práticas passadas,
é condição imprescindível para continuar a sustentar o projeto histórico comunista e, ao
mesmo tempo, iluminar os caminhos do futuro. Como a educação pode contribuir para
isso? É sobre isso que pretendemos refletir nesse texto.
ABSTRACT
16
“Men make their own history, but do not do according their free will, under
circumstances chosen by themselves, but in the circumstances immediately found,
given and transmitted from the past” (K. Marx, 2008, p. 207). It is in very precise
circumstances that men make history today. And in the point of view of the deepest
interests of the working class, this moment presents itself with a strong tendency to
counter-revolutionary. The strong recovery of the revolutionary theory, which implies a
critique of the past theoretical and practical distortions, is imperative to continue to
support the historical and communist project and, at the same time, illuminate the paths
of the future. How can education contribute to this? It´s about what we want to reflect in
this text.
RESUMEN
“Los hombres hacen sua propia historia, pero no segundo su libre voluntad, en
circunstancias elegidas por ellos mismos, sino en las circunstancias inmediatamente
dadas y transmitidas por el pasado” (K. Marx, 2008, p.207). Hoy los hombres hacen sua
historia en circunstancias muy definidas. Y, considerando el punto de vista de los
intereses más profundos de la clase obrera, el presente momento tiene un carácter
fuertemente contra-revolucionario. El rescate solido de la teoria revolucionaria, que
supone la crítica de las deformaciones teóricas y prácticas pasadas, es una condición
indispensable para que podamos continuar a sostener el proyecto histórico comunista y,
al mismo tiempo, iluminar los caminos del futuro. Como puede la educación contribuir
para ese fin? Este es el objectivo de nuestra reflexión en el presente texto.
EDUCAR PARA A CIDADANIA OU PARA A LIBERDADE?
Ivo Tonet
Introdução
O termo cidadania se tornou, hoje, uma espécie de lugar-comum. E ele também foi
incorporado pelo discurso pedagógico, inclusive o de esquerda. É comum ouvir-se falar, por
estes autores, em educação cidadã, educar para a cidadania, formar cidadãos críticos. Embora
haja diferenças entre os diversos autores acerca do conteúdo deste termo, pode-se dizer que, de
modo geral, ele é tomado como sinônimo de liberdade1. Vale dizer, contribuir para a formação
de cidadãos, seria contribuir para a formação sempre processual de indivíduos cada vez
mais livres e humanos.
Poderíamos, porém, perguntar: Este conceito de cidadania não estaria sendo utilizado
de forma pouco crítica ou seria ele, efetivamente, aceito como sinônimo de plena liberdade
humana? Será de fato livre uma sociedade onde vigem plenamente as liberdades
democráticas? Será este tipo de sociedade o horizonte inultrapassável da humanidade, isto é,
uma forma de sociabilidade aberta ao contínuo aperfeiçoamento? Não haverá uma confusão
entre socialidade e cidadania, sendo a primeira um componente da natureza essencial do ser
social e a segunda uma categoria histórica e concretamente datada? Não será a cidadania,
embora ressalvando decididamente os seus aspectos positivos e a sua importância na história
da humanidade, uma forma de liberdade essencialmente limitada? A crítica radical à cidadania
implicaria, necessariamente, uma opção por uma forma autocrática de sociabilidade? Haveria
bases razoáveis, isto é, reais, para sustentar a possibilidade de uma forma superior de
sociabilidade, radicalmente diferente da forma democrático-cidadã? Qual seria a natureza
essencial daquela forma? E quais as consequências que derivariam daí para a prática educativa
hoje?
1
Alguns autores partem do pressuposto de que a existência da desigualdade social é algo natural e que a
cidadania (e a democracia) é um meio para minimizar os efeitos mais nocivos desse fato. Outros partem do
pressuposto de que a cidadania é simplesmente um dado da condição humana e que, portanto, ela poderia existir
em qualquer forma de sociabilidade. Discutiremos isso mais adiante.
2
Muitas perguntas, pouco espaço. Nossa intenção, neste texto, não é examinar em
extensão e profundidade toda a problemática aí implicada, mas apenas sinalizar uma
abordagem diferente, resumindo um trabalho de fôlego bem maior. Estamos conscientes de
que um resumo é sempre empobrecedor, ainda mais considerando o caráter polêmico das
idéias aqui expostas. Mas resolvemos correr o risco.
2
Sobre essas características, ver, de Agnes Heller, Teoría de las necesidades en Marx e, de G. Markus,
Marxismo y antropologia.
3
social que dele decorre, surgem inúmeras outras dimensões da atividade humana, cada qual
com uma natureza e uma função próprias na reprodução do ser social.
Deste modo, constatamos que o processo de tornar-se homem do homem não é um
acontecer aleatório. O que não significa dizer que seja determinado aprioristicamente. É uma
processualidade que tem como substância última os atos dos indivíduos singulares, que são, de
alguma forma, atos livres. E que, tendo, além disso, como fundamento, o trabalho, vai se
pondo sob a forma de um complexo de complexos, ou seja, de um conjunto de dimensões que
interagem entre si e com a dimensão fundante. Ao longo deste processo, o ser social se torna
cada vez mais heterogêneo, diversificado e multifacetado, mas, ao mesmo tempo, também,
mais unitário.
Vale ressaltar, também, que, a partir da análise do trabalho, pode-se constatar que
neste processo de tornar-se homem do homem, dois momentos assumem um papel
especialmente relevante: o momento da singularidade (indivíduo) e o momento da
universalidade (gênero). Do ponto de vista ontológico, este dois momentos constituem uma
unidade indissolúvel. Suas relações concretas, porém, só podem ser entendidas a partir da
própria lógica do processo real e jamais tomadas como um dado ontológico do ser social.
Deste modo, o processo de autoconstrução do homem, matrizado pelo trabalho, será, sempre o
fio condutor do processo social e, portanto, da nossa exposição.
Dito isto, podemos abordar a problemática da cidadania e da emancipação humana e
da relação destas duas categorias com a problemática da educação, deixando claro que o
faremos sempre a partir de uma perspectiva marxiana.
A teoria liberal da cidadania (Kant, Hobbes, Locke, Rousseau e outros) tem como
pressuposto que todos os homens são iguais e livres por natureza. As desigualdades sociais
seriam apenas o desdobramento da igualdade e da liberdade naturais. A busca da realização
pessoal, uma exigência da liberdade e da igualdade naturais, teria dado origem a toda sorte de
conflitos, que, na ausência de qualquer elemento inibidor, poderiam por em perigo a
sobrevivência da própria humanidade. Por isso mesmo, os homens ter-se-iam visto obrigados a
se organizar em sociedade e a instituir uma autoridade (Estado) capaz de garantir a
observância de certos limites. Deste modo, a desigualdade social é considerada legítima e
constitutiva do mundo humano. Tratava-se, pois, não de suprimi-la, o que seria impossível,
mas apenas de coibir os seus excessos.
4
Como se pode ver, ainda que não se falasse em cidadania, a igualdade e a liberdade
naturais já punham a base para o seu desenvolvimento futuro. Neste sentido, todos os homens
já eram potencialmente cidadãos. O desenvolvimento posterior, sempre complexo e
contraditório, seria apenas a concretização daquilo que já estava posto, como possibilidade,
desde o início. Mas a cidadania seria sempre vista como um instrumento para equilibrar as
desigualdades sociais e não para erradicá-las.
Mesmo autores liberais atuais, como H. Arendt, N. Bobbio, J. Rawls, que não aceitam
a igualdade e a liberdade como determinações naturais, mas como produtos sociais, não
desbordam aquele campo. Também para eles trata-se de encontrar uma forma de equilibrar, já
que é impossível superar, as contradições existentes entre a liberdade e igualdade.
Para a esquerda democrática (a exemplo de C. Lefort, E. M. Wood, M. Chauí, C. N.
Coutinho), ao contrário, não há uma articulação essencial entre cidadania e classes sociais e,
portanto, entre cidadania e capitalismo. Segundo estes autores, na esteira de Aristóteles, o
homem é um animal político por natureza. Isto significaria que a condição de cidadão é um
elemento constitutivo da condição humana . Sua forma concreta seria historicamente datada,
mas a sua natureza essencial acompanharia a humanidade desde o começo até o fim.
Argumenta-se, ainda, que a cidadania existiu antes do capitalismo, de modo que sua relação
com ele seria apenas acidental e não essencial Mais ainda: a história da construção da
cidadania mostraria que esta é muito mais o resultado das lutas das classes trabalhadoras do
que uma concessão da burguesia. Deste modo, a sua conquista plena seria um interesse
daquelas classes e não da burguesia. Em última análise, a realização da cidadania plena se
chocaria contra a lógica do capital, só sendo possível com a superação deste. Assim, a luta das
classes subalternas não iria no sentido de superar a cidadania, mas de afastar as barreiras
postas à sua plena realização.
Se construir uma sociedade democrático-cidadã é construir uma sociedade
efetivamente livre, qual seria a contribuição da educação (referimo-nos aqui à educação
formal) nesta tarefa? Contribuir, no âmbito específico da educação, para a conquista da
hegemonia, pelas forças progressistas, no seio da sociedade civil e, portanto, para a construção
de uma sociedade cada vez mais livre e humana. Esta contribuição pode ser resumida por um
termo muito difundido, hoje, na esquerda democrática: educação cidadã. Quer dizer, uma
educação que contribua para formar os indivíduos como cidadãos e cidadãos críticos, isto é
5
indivíduos que participam ativamente do processo social. Isto supõe ampliar cada vez mais o
acesso de todos à educação; garantir um nível cada vez mais elevado de acesso ao saber, o que
implica melhorar as condições gerais de trabalho de todos os envolvidos no processo; buscar
métodos democráticos e ativos de ensino-aprendizagem; estabelecer uma interação ativa entre
a escola e a comunidade; estabelecer formas democráticas e participativas tanto na gestão da
escola quanto na elaboração da política educacional mais geral, etc. Em resumo, construindo
experiências de educação democrática, participativa, autônoma e sintonizada com os interesses
das classes populares.
A abordagem da problemática da cidadania, na perspectiva marxiana é
profundamente diferente tanto da concepção liberal quanto daquela da esquerda democrática.
E, para nós, a questão decisiva situa-se no ponto de partida.
A perspectiva liberal parte da idéia de que o indivíduo precede ontologicamente a
sociedade e de que a natureza essencial desse indivíduo é egoísta, competitiva. A desigualdade
social seria uma decorrência inevitável dessa natureza, competindo ao Estado, com seus vários
instrumentos, impedir os seus excessos.
A perspectiva da esquerda democrática parte da idéia de que cidadania é sinônimo de
socialidade e de que as formas concretas da cidadania seriam apenas manifestações datadas
daquela condição humana essencial. Vale notar, no entanto, que o próprio Aristóteles deixa
claro que cidadania pertence à dimensão da política e de que esta admite como natural a
desigualdade social3. Neste pensamento, em nenhum momento está presente a questão de uma
ruptura radical entre a forma do trabalho e a forma da sociabilidade. Exatamente porque a
problemática do trabalho, como fundamento ontológico do ser social, não se faz presente.
Diferentemente destas duas teorizações, Marx, como vimos, parte do exame da
origem ontológica do homem, constatando que o ato fundante do ser social é o trabalho. E que
este é uma síntese entre subjetividade e objetividade, o que permite definir o homem não
apenas como um animal racional, mas como um ser da práxis. Ao ser a mediação entre o
homem e a natureza e ao produzir os bens materiais necessários à existência humana, o
3
Infelizmente, dada a limitação do espaço, na podemos aprofundar aqui a concepção aristotélica. Vale
ressaltar, no entanto, que esta concepção, além de ser finalística (há uma tendência natural, no homem, para a
constituição da polis), também define o homem como um ser cuja característica essencial é a racionalidade (o
logos), deixando de explicar como surge essa racionalidade (ou, melhor, pressupõe que proveio dos deuses). Isto
tem enormes conseqüências no desenvolvimento do seu pensamento.
6
trabalho põe-se como o fundamento de toda e qualquer forma de sociabilidade. Daí decorre
que a cisão entre vida social (aqui entendida como o conjunto de relações que os homens
estabelecem entre si no trabalho) e vida política (o conjunto de relações que dizem respeito ao
exercício do poder) surge quando a humanidade se divide em classe sociais (portanto, quando
surge a propriedade privada). Como conseqüência, a superação dessa cisão implica a
eliminação das classes sociais e da propriedade privada.
No caso concreto da sociabilidade capitalista, existe, na perspectiva marxiana, uma
relação indissolúvel entre sociedade civil (o momento das relações econômicas) e a
emancipação política (o momento jurídico-político), da qual fazem parte a democracia e a
cidadania.
Para Marx, o ato fundante da sociabilidade capitalista é o ato de compra-e-venda de
força de trabalho. Este ato é, necessariamente, gerador de desigualdades sociais e de uma
relação de subordinação do trabalho ao capital. Mas, para que este ato fundante e a
sociabilidade que se constrói a partir dele possam realizar-se, é necessário que existam
indivíduos, no sentido de pessoas livres e autônomas. Isto significa indivíduos livres, iguais e
proprietários. Sem estas qualidades, a sociabilidade capitalista não poderia funcionar. Note-se,
porém, que os indivíduos não comparecem como homens integrais, mas apenas como
contratantes. É apenas neste sentido que são iguais, livres e proprietários. O que temos, então,
é que a desigualdade de raiz (economia) se inverte em uma forma de igualdade, de liberdade e
de propriedade. Há, portanto, uma articulação férrea, obviamente não isenta de tensões, entre a
matriz econômica (o capital) e a forma jurídico-política (emancipação política; democracia e
cidadania). Por isso mesmo, cidadão é, por sua natureza, sempre homem parcial. O homem
em sua plenitude está necessariamente para além da cidadania.
Parece-nos, pois, que a consequência disto é que, não obstante os aspectos positivos
que a emancipação política trouxe para a humanidade, em sua essência ela é uma expressão e
uma condição de reprodução da desigualdade social. O que significa dizer que ela é
certamente uma forma da liberdade humana, mas uma forma essencialmente limitada, parcial
e alienada de liberdade. O que também significa dizer que por mais plena que seja a cidadania,
ela jamais pode desbordar o perímetro da sociabilidade regida pelo capital. Isto é muito
claramente expresso pelo fato de que o indivíduo pode, perfeitamente, ser cidadão sem deixar
de ser trabalhador assalariado, ou seja, sem deixar de ser explorado.
7
Queremos, porém, deixar claro que esta concepção da cidadania de modo algum
implica sua desqualificação ou menosprezo, mas apenas a apreensão da sua natureza própria, o
que implica o conhecimento das suas possibilidades positivas na autoconstrução da
humanidade, mas também dos seus limites intrínsecos. Ela poderá ser uma mediação, junto
com outras, mas jamais o fim maior da humanidade.
Procuremos, antes de mais nada, esclarecer o que entendemos por educação. Isto é
importante para podermos compreender se e de que modo ela pode ser uma mediação para a
construção de uma sociabilidade plenamente emancipada.
9
Partimos, para isto, da categoria do trabalho, que consideramos, com Marx, a raiz
ontológica do ser social. Ao examinar esta categoria, vemos que, assim como a linguagem e o
conhecimento, também a educação é, desde o primeiro momento, inseparável dela4. O
trabalho, por sua própria natureza, é uma atividade social, e, por isso, sua efetivação implica
sempre, por parte do indivíduo, a apropriação dos conhecimentos, habilidades, valores,
comportamentos, objetivos, etc., comuns ao grupo. Somente através desta apropriação é que o
indivíduo pode tornar-se (objetivar-se)5 efetivamente membro do gênero humano. Esta
apropriação/objetivação tem na educação uma das suas mediações fundamentais.
Resumindo, podemos dizer que a natureza essencial da atividade educativa consiste
em propiciar ao indivíduo a apropriação de conhecimentos, habilidades, valores,
comportamentos, etc. que se constituem em patrimônio acumulado e decantado ao longo da
história da humanidade, contribuindo, assim, para que o indivíduo se construa como membro
do gênero humano e se torne apto a reagir face ao novo de um modo que contribua para a
reprodução do ser social, que se apresenta sempre sob uma determinada forma particular.
Ora, este processo de apropriação, por parte dos indivíduos, do patrimônio social,
não poderia deixar de ser atravessado pelos antagonismos sociais, já que vivemos numa
sociedade de classes. Além disso, todo este conjunto de elementos que constituem o
patrimônio da humanidade não é um todo homogêneo e acabado e muito menos neutro. Ele é
um vasto e complexo campo, sempre em processo, do qual, a cada momento e a partir de
determinados fundamentos, valores e objetivos, são selecionados, via políticas educacionais,
currículos, programas, métodos e outras atividades julgados mais importantes. É aqui onde se
faz sentir o peso das questões político-ideológicas. Em uma sociedade de classes, o interesse
das classes dominantes será sempre o pólo determinante da estruturação da educação. O que
significa que ela será configurada de modo a impedir qualquer ruptura com aquela ordem
social. Em consequência, a educação, quer formal, quer informal, sempre terá um caráter
predominantemente conservador.
Mas, a existência do antagonismo de classe também implica o surgimento sob
formas explícitas ou implícitas de outras propostas, com outros fundamentos, outros valores
4
Sobre a categoria do trabalho, ver: G. Lukács: Ontologia dell Essere Sociale, v. II e S. Lessa: Trabalho
e ser Social.
5
A respeito da questão da relação entre apropriação e objetivação, ver, de Newton Duarte: A
individualidade para si.
1
e outros objetivos. Isto nos permite constatar que o campo da educação também é um espaço
onde se trava uma incessante luta, ainda que a hegemonia esteja sempre em mãos das classes
dominantes. Qualquer outra proposta sempre terá um caráter muito limitado.
Se considerarmos, então, a sociedade atual, veremos que uma proposta de educação
emancipadora só poderá ser explicitada em seus elementos gerais, mas nunca levada à prática
como um conjunto sistematizado. A disputa, certamente pode e deve ser efetuada, mas não se
pode ter a ilusão de que é possível estruturar uma educação emancipadora como um conjunto
sistematizado e largamente praticável em oposição a uma educação conservadora.
Há, portanto, aqui, uma disputa antagônica entre diferentes perspectivas. Por isso
mesmo, e considerando os interesses mais profundos, sem dúvida interessa à perspectiva do
trabalho a apropriação, o mais ampla, sólida e profunda possível deste patrimônio humano e
do que há de mais rico e sólido nele, por parte de todos os indivíduos. Quanto mais rico o
indivíduo, mais rico o gênero e os outros indivíduos e vice-versa. O mesmo não se pode dizer
da perspectiva do capital. É de sua natureza não apenas limitar o acesso quanto ao número de
pessoas, mas também quanto à qualidade do conteúdo, tendo sempre em vista que o objetivo
último imposto pela sua própria lógica interna não é a realização plena de todos os
indivíduos e, pois, do gênero humano, mas a sua própria reprodução
realidade do mundo atual (capitalista), a lógica do capital que o preside e a natureza da crise
em que está mergulhado o mundo, hoje. Afinal, a educação é uma parte dessa totalidade
complexa que é o conjunto da sociabilidade. Sociabilidade que, por sua vez, tem no trabalho o
seu fundamento. Deste modo, é absolutamente necessário que as articulações com esse mundo
sejam compreendidas para que a dimensão educativa não seja vista de modo isolado.
Um terceiro requisito está no conhecimento da natureza essencial do campo
específico da educação. Este conhecimento é necessário para evitar que se atribuam à
educação responsabilidades que não lhe são próprias, como, por exemplo, promover a
transformação do mundo, ou, então, diminuir demais as suas possibilidades, concebendo-a
como um simples instrumento de reprodução da ordem social atual. Não é qualquer conceito
de educação que é consistente com o objetivo da emancipação humana. Pelo contrário, ao
nosso ver, apenas um conceito ontologicamente fundado pode ser coerentemente articulado
com este objetivo maior. E é ainda necessário para que se possa tomar posição diante de
questões que são constantemente repostas, tais como: a educação deve ser neutra ou engajada;
deve ser diretiva ou não diretiva; deve privilegiar o conteúdo ou o método; deve colocar no
centro a figura do professor ou do aluno?
Um quarto requisito consiste no domínio dos conteúdos específicos, próprios de cada
área do saber. Tanto daqueles que integram as ciências da natureza quanto daqueles que
abrangem as ciências sociais e a filosofia. Sem esse domínio, de nada adiantaria, para as
classes populares, que o educador tivesse uma posição política favorável a elas, pois a efetiva
emancipação da humanidade implica a apropriação do que há de mais avançado em termos de
saber e de técnica produzidos até hoje. Para dar um exemplo bem claro: o momento
predominante mas não único que faz de um físico um educador emancipador não está no
seu compromisso político, mas no seu domínio do saber e da difusão do conteúdo específico e
de um modo que sempre estejam articulados com a prática social.
Um quinto e último requisito para uma prática educativa emancipadora encontra-se
na articulação da atividade educativa com as lutas desenvolvidas pelas classes subalternas,
especialmente com as lutas daqueles que ocupam posições decisivas na estrutura produtiva.
Certamente, não cabe à educação a tarefa de liderar a construção de uma nova sociedade.
Contudo, ela pode dar uma contribuição importante na medida em que desperte e fundamente
1
Conclusão
Referências bibliográficas
AZEVEDO, J. C. et alii (org.) Utopia e democracia na educação cidadã. Porto Alegre: Ed. da
UFRGS, 2000.
ARENDT, H. As origens do totalitarismo. Rio de Janeiro: Documentário, 1979.
1
Ivo Tonet
Introdução
Este debate, este congresso e outros dos quais temos participado, estão sendo feitos
em um momento histórico muito particular. Em outro momento o tom deles, com certeza,
seria muito diferente.
Uma das características desse momento, a nosso ver, é que a humanidade está
atravessando um período profundamente contra-revolucionário. Um período em que
sucessivas vitórias do capital ao longo desses últimos 150 anos e, especialmente nas
últimas décadas, parecem ter deixado o capitalismo como única alternativa para
humanidade. E quando a maioria da intelectualidade sustenta que esta é a única alternativa
não é por acaso. É por que parece que, de fato, a realidade cotidiana, o mundo em que
vivemos, não põe outra possibilidade. Ainda mais porque a maioria das pessoas, por uma
série de circunstâncias que não dá nem para abordar aqui, pensa que com o
desmoronamento daqueles países, daquelas sociedades que se diziam socialistas, acabou a
alternativa que se chamava socialismo. Então, parece que, de fato, a única alternativa, para
aqueles que não querem a selvageria do capitalismo atual, seria o aperfeiçoamento da
ordem vigente. Este aperfeiçoamento se chama: instauração, o mais plena possível, da
cidadania e da democracia. Esta parece ser a única alternativa real.
Isto, certamente, configura uma situação histórica muito difícil. Para desmistificar
estas idéias, seria necessário fazer, aqui, uma exposição mais ampla da questão do método
de modo a mostrar como os fundamentos metodológicos instaurados por Marx permitem
ultrapassar essa empiricidade coisificada e fragmentada e vislumbrar a possibilidade – real,
embora não inevitável – de superação dessa forma de sociabilidade. Na impossibilidade de
fazer essa exposição, fica, aqui, apenas aludida a importância dessa questão.
Esse texto baseia-se em uma conferência pronunciada no I Congresso de Ontologia do Ser Social e
Educação, promovido pelo IBILCE – UNESP – São José do Rio Preto em nov/dez 2007.
Professor de Filosofia do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes da Universidade Federal de
Alagoas. Doutor em Educação.
2
1. Três teses
Para deixar as coisas, de início, bem claras, esclarecemos que vamos defender três
teses.
Primeira tese: Cidadania e democracia, que compõem a emancipação política, são
uma coisa muito boa, um progresso para a humanidade, mas são uma forma de liberdade
essencialmente limitada. Não apenas topicamente limitada, mas essencialmente limitada.
Mais ainda: elas são, pela sua própria natureza (sobre a qual vamos falar depois), ao
mesmo tempo, expressão da desigualdade social e condição de sua reprodução; portanto
não são caminhos para a superação da exploração do homem pelo homem.
Segunda tese: A emancipação humana é uma forma de liberdade radicalmente
diferente e superior à liberdade expressa pela emancipação política, e é a forma mais
autêntica de liberdade que o ser humano pode ter.
Portanto, e aí vem a terceira tese: qualquer educação, qualquer atividade educativa,
que se pretenda emancipadora no sentido forte do termo, não no sentido idealista, tem que
estar conectada, com todas as mediações necessárias, com a emancipação humana, não
com a emancipação política.
Trabalhar para formar cidadãos é trabalhar para formar pessoas que vivam dentro
dessa sociedade regida pelo capital, se conformem com ela e se limitem a melhorá-la.
Trabalhar pela emancipação humana é conectar nossa atividade com a perspectiva da
superação radical do capital.
Outra questão conjuntural importante: não há três alternativas para a humanidade.
Só há duas. E a realidade, tanto histórica do capitalismo, quanto cotidiana, mostra cada vez
mais isso: ou a barbárie cada vez mais intensa do capitalismo, ou a superação dele em
direção à emancipação humana, ao comunismo. Não há terceira alternativa (obviamente, a
extinção da humanidade, embora sendo uma possibilidade, não é considerada uma
alternativa). E, no entanto, a maioria dos intelectuais e a maioria dos movimentos de
esquerda está procurando uma terceira alternativa, está defendendo uma terceira via. Uma
alternativa que não existe. Está procurando, não importa o nome que seja dado, o
aperfeiçoamento dessa ordem social. Este é um aspecto trágico do nosso momento
histórico. Nós temos que levar em conta isso, sabendo que a história é um movimento, é
um processo, não é algo estático nem a eterna repetição do mesmo. O amanhã poderá ser
3
melhor ou pior. Depende do que os homens fizerem. Afinal, a história é feita pelos seres
humanos, pelos homens, não é feita nem por Deus, nem pela Natureza.
Dito isso, para entrar na problemática da educação, o que se observa é que grande
parte dos teóricos da educação, e me refiro aqui aos mais conhecidos, não só do Brasil,
mas também da área internacional, toma a cidadania como sinônimo de liberdade, como se
ser cidadão fosse participar da forma de sociedade mais elevada possível. Sempre
aperfeiçoável, mas não ultrapassável. Esta forma de sociabilidade comporia um patamar
indefinidamente aberto ao melhoramento. Não caberia, portanto, falar em outra forma,
mais aperfeiçoada de sociedade. Quem conhece Marilena Chauí, que é uma expoente dessa
maneira de pensar, quem leu o livro dela Convite à Filosofia, sabe que nos últimos
capítulos ela diz exatamente isso. Ela afirma que a democracia é o único sistema
verdadeiramente histórico, porque sempre aberto. Ele permite criar direitos, melhorar
direitos, corrigir direitos, está indefinidamente aberto para o progresso da humanidade. E
se vocês lerem autores como Libâneo, Gadotti, Frigotto e muitos outros, verão que todos
eles entendem a cidadania como simplesmente sinônimo de liberdade. E até, observe-se
como a coisa é complicada, e queremos enfatizar que falamos isso com todo respeito,
porque consideramos esse autor o que há de melhor e mais revolucionário na teoria
educacional brasileira, até o Saviani, num determinado texto, faz uma louvação à cidadania
sem apontar as suas limitações intrínsecas.
Ao que nos parece, a maioria desses intelectuais da área da educação absorveu o
conceito de cidadania como sinônimo de liberdade, de maneira inteiramente acrítica. Isso
foi num momento histórico determinado. Por volta de 1970, mais ou menos, com toda
aquela crítica ao chamado socialismo do Leste Europeu, que tinha todos aqueles defeitos,
todas aquelas deformações. Então, pareceu que a proposta da revolução deveria ser
substituída pela proposta da reforma, gradual, lenta e especialmente democrática. A
conclusão era de que a revolução, que era sinônimo de revolução de tipo soviético, sempre
levava à ditadura, sempre levava àquela situação perversa, em todos aqueles países. Se, de
fato, a revolução era isso, então, o que é que sobraria? Apenas a ampliação da democracia,
que era exatamente o que estaria faltando nas revoluções de tipo soviético. Seria a
ampliação dos espaços democráticos, o que era chamado de socialização do poder político.
E todo mundo entrou por esse caminho: cidadania e democracia compõem o espaço
indefinidamente aperfeiçoável da liberdade.
4
temos tempo para explicar em detalhes o que é histórico-ontológico. Porque não estamos
simplesmente falando histórico, mas histórico-ontológico. Mas, algumas coisas devem ser
ditas.
Há um livro bastante alentado chamado História da cidadania, organizado por
Jaime Pinsky e Carla B. Pinsky. Pode-se ler todo ele e chegar ao fim pensando que se sabe
o que é cidadania. No entanto, chega-se ao fim com uma idéia falseada do que é cidadania,
por que é uma história social do que é cidadania, no máximo sociológica, no máximo de
ciência política, mas não é histórico-ontológica.
O que é uma abordagem histórico-ontológica? É uma abordagem que parte do
pressuposto de que o ser social é uma totalidade articulada de partes cuja matriz fundante é
o trabalho. Por isso vai buscar, ao mesmo tempo que a gênese histórica, também os
fundamentos para entender onde, quando e por que surgiu aquele fenômeno.
Segundo: compreender a função social que aquele fenômeno exerce. Como isto
poderia se confundido com funcionalismo, gostaríamos de deixar bem claro que aqui
função social significa a função que determinada atividade humana, determinada dimensão
social tem na reprodução do ser social.
Então, na medida em que se toma essa categoria da cidadania e se rastreia o seu
surgimento, a partir de que solo social ela se originou, com que função social emergiu,
pode-se ver qual é a natureza dela, quais são as suas possibilidades e também quais são os
seus limites. Esse é um procedimento histórico-ontológico porque faz emergir o sentido
essencial daquele fenômeno. Certamente, todo aquele material histórico, todos aqueles
fatos são interessantes, mas os fatos, sem uma teoria geral do ser social, sem uma ontologia
do ser social, falseiam a compreensão dos fenômenos sociais.
Então, se nós procedermos dessa forma, se formos buscar a gênese da cidadania
moderna, onde é que vamos encontrar a raiz dela? Na descrição de como ela nasceu e na
sua história? Certamente, isso é necessário. Mas, não é, de modo nenhum, suficiente.
Precisamos voltar ao pressuposto da teoria do ser social, da ontologia do ser social,
começar do ato fundante do ser social? Por quê? Porque é a partir dele que se configura o
mundo social. Por que ele é o ato que funda, que dá origem ao ser social. É a partir dele
que se dá a passagem do ser natural para o ser social. E este ato de trabalho vai permanecer
sempre como ato fundante de qualquer forma de sociabilidade humana.
Isto é importante: toda forma de sociabilidade humana tem, sempre, como seu
fundamento ontológico, uma determinada forma de trabalho. Então, se nós quisermos ir à
6
raiz, compreender qualquer fenômeno social, teremos que chegar até à forma como os
homens se organizam para produzir os bens materiais necessários à sua existência, vale
dizer, como trabalham. Levando em conta, evidentemente, todas as mediações necessárias.
Se nós queremos compreender a essência do que é cidadania temos que ir à raiz, que não
está nela, mas na forma de trabalho concreta que lhe dá origem. Esta forma de trabalho é a
forma de trabalho moderna. Qual é a forma de trabalho que constitui o pilar da sociedade
moderna? É a compra e venda de força de trabalho, seja ela direta ou indireta. É através da
compra e venda da força de trabalho que se geram todas as categorias que perfazem a
sociedade capitalista.
Vamos, então, examinar um pouquinho este ato fundante da sociabilidade
capitalista. A título de esclarecimento, vale observar que contrato de trabalho, ao qual nos
referiremos, não é o chamado contrato social. O contrato de trabalho é aquele que celebram
entre si o capitalista e o trabalhador. Este contrato exige, para sua efetivação, dois sujeitos
que tenham pelo menos três qualidades fundamentais: que sejam livres, iguais e
proprietários. Só sujeitos que tenham no mínimo essas três qualidades podem fazer esse
contrato. Ora, este contrato, na medida em que é feito, o que aparenta? Que de fato estes
dois sujeitos são livres, porque não são jurídica e politicamente obrigados, são iguais,
porque trocam equivalentes e são proprietários, cada um de alguma coisa, um da força de
trabalho e o outro do capital.
Vamos ficar um pouco nesta parte para depois voltar a retomar o ato fundante. O
desdobramento subseqüente disto é a historia da emancipação política moderna. A
emancipação política moderna nada mais é do que a transformação de todos os indivíduos
em cidadãos; a superação dos privilégios medievais; a superação da concepção medieval
de que a desigualdade era natural pela concepção de que a igualdade é natural.
Contudo, essa igualdade existente naquele contrato carrega em si determinados
elementos que vão convertê-la em desigualdade, uma vez que cada um busca a satisfação
dos seus interesses individuais. A correção dessa desigualdade é feita exatamente pelos
direitos de cidadania e pelas instituições democráticas do Estado. Estes direitos de
cidadania, este conjunto de instituições democráticas, dos quais nós podemos fazer história
a partir do século XV se quisermos ir à raiz mais longínqua, constituem a história da luta
entre capital e trabalho. É através disso que se constituem esse conjunto de direitos e
deveres e estas instituições nos quais nós vivemos hoje. De uma forma extremamente
7
uma invenção da cabeça. Por que se há uma coisa que Marx sempre frisou é que nós temos
que ter o pé no chão. Quem leu a Ideologia Alemã (1986, 26) sabe disso:
sentido, por que a lógica do capital é universal. Ou se desmonta essa lógica universal ou
não dá para construir uma forma de sociedade para além do capitalismo.
Esse trabalho supõe a universalidade e este trabalho associado supõe também
aquilo que Marx disse na Ideologia Alemã: um alto grau de desenvolvimento das forças
produtivas. Não é possível haver trabalho associado, neste sentido de Marx, onde há atraso,
baixo desenvolvimento das forças produtivas, carências, enfim onde há miséria. Por que o
trabalho associado supõe que se produzam bens necessários à satisfação das necessidades
de todos naquele momento histórico. Supõe uma forma de produção voltada para o valor
de uso e abundante, não para o valor de troca.
Se entrar em cena esse trabalho associado extinguem-se o capital, o trabalho
assalariado, a exploração do homem pelo homem, as classes sociais, a desigualdade social,
todas essas categorias do capitalismo. Por que não faz sentido, não cabe a exploração do
homem pelo homem onde todos trabalham, onde com este trabalho é possível produzir
aquilo que atende as necessidades humanas e em quantidade e qualidade adequadas. E
frise-se que não é apenas quantidade, é também qualidade adequada. E isso permite, então,
que a humanidade se torne uma autêntica comunidade humana, uma vez que já não
existem classes sociais.
Se isso parece utópico, então vale a pena examinar os dados à disposição
atualmente, inclusive de órgãos insuspeitos, que não são marxistas, não são comunistas.
Eles dizem claramente que com a tecnologia média de hoje seria possível, pegando só a
questão da alimentação, produzir alimentos suficientes para saciar plenamente a fome de
toda a humanidade. Se não se sacia não é por falta de tecnologia, não é por falta de
conhecimento cientifico, é por outro fenômeno que se chama relações sociais. E relações
sociais fundadas na propriedade privada.
Isso é uma possibilidade real, não é uma fantasia do Marx. Há 200 anos não era
possível. Era, digamos, uma aspiração generosa, mas não era possível, uma vez que não
existia capacidade de produzir riqueza em abundância. Hoje é plenamente possível, mas
para isso é preciso acabar com o capitalismo, então a humanidade resolve esse problema
tranquilamente.
Gostaria de deixar bem clara essa questão da necessidade de uma base material
altamente desenvolvida, porque toda a discussão sobre o socialismo, sobre o comunismo
foi deformada a partir do mau entendimento dessa problemática. Por que por atrás disso,
por trás dessa discussão, às vezes de maneira não explicitada, está a idéia de que os países
13
ditos socialistas eram de fato socialistas. Que aqueles países, de alguma forma, embora
com todas as imperfeições, problemas e obstáculos, estavam no caminho do socialismo.
Até Lukács, um dos autores que mais contribuiu para resgatar o caráter
radicalmente crítico e revolucionário do marxismo se enganou a respeito disso. Até o fim
da vida ele acreditava que a União Soviética estava no caminho do socialismo. Acreditava
que era possível democratizar o país e retomar o caminho do socialismo.
A discussão toda está falseada quando se começa por admitir que, do ponto de vista
econômico, aqueles países, embora com todos os problemas, estavam construindo as bases
materiais do socialismo. Começa-se com um argumento que é imprestável, porque
estatização, nacionalização, planejamento econômico centralizado, supressão jurídico-
política da propriedade privada, tudo isso nada tem a ver com socialismo. Então começa-se
a dizer: aquilo era socialismo, embora com problemas. O que faltava? Faltava exatamente
o que toda essa teorização “descobriu”: a socialização do poder político, a democracia e a
cidadania. Logo, todo o esforço foi despendido na sustentação de que cidadania e
democracia são valores universais e não particulares e que, por isso mesmo, à socialização
da economia, já em andamento, dever-se-ia adicionar a efetivação da cidadania e da
democracia. Aí sim haveria socialismo, mas um socialismo democrático.
Esqueceu-se, e até Lênin também, de alguma forma, esqueceu – de começar pelo
exame da categoria que funda qualquer forma de sociabilidade, que é o trabalho. No caso
do socialismo, do trabalho associado. E esqueceu-se que Marx afirmou que uma revolução
proletária, comunista, que leve à emancipação humana, tem que ser uma revolução política
com alma social e não uma revolução social com alma política. Essa é uma distinção
fundamental.
Essa importantíssima distinção se encontra num texto de Marx chamado Glosas
críticas ao artigo O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano. Quem não leu,
deveria ler por que é um texto, de 1844, belíssimo e importantíssimo. Ele demole toda a
filosofia e toda a ciência política desde Aristóteles até hoje, por que mostra o que é o
Estado, como nasce o Estado e qual é a função essencial do Estado. Também mostra qual a
relação entre a economia e a política, deixando claro que o fundamento da vida social está
na primeira e não na segunda. E ainda mostra que todas as revoluções até então foram
revoluções sociais com alma política, ou seja, mantiveram a exploração do homem pelo
homem, a dominação do homem pelo homem. E conclui afirmando que a revolução
proletária tem que ser uma revolução política com alma social.
14
coisa do século XIX, que isso não faz nenhum sentido hoje. É claro que faz sentido.
Produzida a riqueza necessária e suficiente em pouco tempo, no restante do tempo, as
pessoas poderão dedicar-se àquilo que é mais especificamente humano. Desenvolver
atividades artísticas, científicas, filosóficas, lúdicas etc. Animal nenhum faz arte. Só os
humanos fazem arte. Isto é especificamente humano. Aí está a autêntica liberdade humana.
Liberdade é uma categoria importante, mas muito mal compreendida. Liberdade é
autodeterminação e autodeterminação só pode ser coletiva. Liberdade só pode existir onde
sejam os indivíduos humanos a dirigir o processo social. Mas esta regência do processo
social só pode existir quando houver uma base material que permita isso. A solidariedade
nos diz muito claramente isso. Faz dois mil anos que o cristianismo prega o amor ao
próximo e por que não se ama o próximo? Porque em uma sociedade onde há exploração
do homem pelo homem não é possível; por que a realidade material impede isso. Ela nos
faz todos opostos uns aos outros, nos faz concorrentes uns dos outros. Nessa situação, a
solidariedade pode até aparecer como uma aspiração generosa, como atos isolados, mas
não pode passar daí.
Aí entra o importante problema da ética. Para compreender melhor essa questão,
permitimo-nos sugerir a leitura de um artigo nosso, publicado numa coletânea intitulada
Contra o pragmatismo e a favor da filosofia da práxis. Nele procuramos mostrar que não é
possível haver uma ética no capitalismo, por que ética são valores universais, que não
podem se tornar realidade cotidiana no capitalismo, uma vez que nós somos opostos uns
aos outros.
Para finalizar esta parte e entrar na educação. Emancipação humana
necessariamente implica a superação radical do capital e de todas as suas categorias:
trabalho assalariado, valor de troca, mercadoria, dinheiro, classes sociais, Estado,
cidadania, democracia, etc. Observe-se, porém, que não estamos dizendo que é para jogar
fora estas últimas duas categorias. Não estamos menosprezando. Elas têm um grande valor,
mas também têm um limite inultrapassável. É preciso construir uma liberdade humana
superior à liberdade político-jurídica, a famosa emancipação política. Esta é a liberdade da
emancipação humana.
Mas, o que tem tudo isso a ver com a educação?
Primeiro, parece-nos claro que não dá para trabalhar para formar cidadãos. Em sã
consciência, quem entende o que é cidadania não pode trabalhar para formar cidadãos, no
sentido de colocar isto como horizonte e no sentido de que isto poderia ser ampliado
17
indefinidamente. Não estamos dizendo que não se deve lutar por direitos civis, políticos e
sociais. Estamos dizendo que é importante, que se deve lutar sim, porque isto é uma forma
de resistência da classe trabalhadora ao capital. O que estamos querendo enfatizar é que
isto tem um limite inultrapassável e que não leva à superação da exploração do homem
pelo homem.
E, dada a situação em que a humanidade se encontra hoje, o horizonte de nossas
atividades no âmbito da educação tem que ser a emancipação humana e não a cidadania.
Por um motivo muito simples. Voltamos àquela questão: a classe trabalhadora, os
indivíduos que pertencem à classe trabalhadora, que são os indivíduos que produzem as
riquezas. Para que esses indivíduos possam se tornar efetivamente membros do gênero
humano na sua plenitude possível hoje, só tem uma condição: acabar com o capitalismo
(capitalismo-capital entenda-se tudo isso sempre junto). Acabar com esta forma de
sociabilidade que os põe como trabalhadores que produzem a riqueza e que são impedidos
de se apropriar dela pela forma da relação entre capitalista e trabalhador. Não há outra
saída, simplesmente não há. Se pensamos em formação humana integral, se queremos uma
formação humana integral temos que ser sérios. Formação humana integral só é possível
para além do capital, para aquém não dá.
Falar em formação humana integral; que temos que ter uma educação integral do
homem hoje, o que é isto? O trabalhador está sendo desumanizado praticamente, está
sendo expropriado de sua humanidade. Como se pode falar em formação humana integral
numa situação dessas? É preciso dar o devido peso a esse conceito e não utilizá-lo de
forma superficial e irresponsável. Formação humana integral implica a apropriação do
patrimônio, material e espiritual, à disposição da humanidade hoje, necessário à nossa
configuração como indivíduos pertencentes ao gênero humano. Nenhum indivíduo pode
apropriar-se adequadamente desses valores na sociedade capitalista, muito menos os
trabalhadores. Portanto, falar em formação humana integral sem mostrar quais as
condições para essa formação e sem mostrar a necessidade de se engajar na superação
radical do capital é no mínimo enganar as pessoas.
Chegamos, então, à nossa última tese. Pensamos nós, e sabemos que isso é
polêmico, mas é da boa polêmica que se faz uma boa universidade, que não podemos
pensar em uma educação emancipadora, numa política educacional emancipadora. O que
podemos fazer hoje – estamos falando na quadra histórica que desenhamos no começo – é
um conjunto de atividades educativas emancipadoras, de caráter revolucionário.
18
tendo aquele sucesso imediato, mesmo sendo pequena, vá na direção certa. Entendemos
que é muito preferível dar passos pequenos na direção certa do que dar passos grandes na
direção errada. Que passos?
Bem, na universidade o que se dá é a luta política, a luta ideológica e outros tipos
de lutas. Fazer a crítica das teorias reformistas, contra-revolucionárias é uma atividade
revolucionária. Promover um evento em que se discutam revolução, comunismo,
emancipação humana, em que se procure pensar a educação na perspectiva da
emancipação humana, todo esse conjunto de idéias, isto é uma atividade educativa
revolucionária. Não se vai ter uma política educacional dentro do capitalismo que faça isso
Os exemplos estão todos aí. Se tomarmos qualquer departamento, qualquer universidade,
qualquer escola, lá dentro delas as idéias dominantes são as das classes dominantes. O que
nós podemos fazer é todo um trabalho contra a corrente, contra isso. Temos espaços para
isto, temos oportunidades, até por que o espaço não é uma coisa dada, o espaço se faz,
dentro de certas limitações, mas se faz.
Em favor das atividades educativas de caráter emancipador e não de uma educação
emancipadora há ainda o fato de que a educação não é o carro-chefe da revolução. A
educação nunca foi e nunca será a locomotiva da transformação social. Ela pode contribuir
para isso, mas não encabeçar o processo. E para agravar o quadro, na situação em que nos
encontramos hoje, em que a classe trabalhadora não está se movendo, está cooptada, está
profundamente alienada, não adianta querer uma educação de caráter revolucionário no
sentido mais geral. Se a conjuntura mudar e a classe trabalhadora começar a se mexer no
sentido de assumir esta tarefa revolucionaria contra o capital, certamente a coisa vai se
tensionar no sentido de obrigar professores e alunos a tomar posições. E aí sim, aí o
processo vai se tornar mais intenso e mais dinâmico.
Se isto é verdade, então diríamos, para finalizar, que são necessários alguns
requisitos por que não basta querer virar revolucionário, não é suficiente ter disposição. A
primeira coisa a fazer é estudar. É preciso compreender a realidade para poder transformá-
la. Como disse uma vez Marx: a ignorância nunca ajudou ninguém. Contudo, muitas
pessoas dizem: porque só ficar fazendo teoria; é preciso ir à prática! Esquecem que a
prática sem a teoria é cego guiando cego. Ambos caindo no abismo. É claro que não se
trata de fazer toda a teoria primeiro para depois ir para a prática. Esse não é o processo. É
preciso começar iluminando a prática; tem que ter teoria para começar a iluminar; da
prática volta-se à teoria, para ampliá-la, para de novo melhorar a prática; esse é o processo
20
real, não primeiro todo um, depois todo o outro. Mas muita gente se esconde atrás do
discurso da importância da prática para não precisar estudar. Porque estudar exige esforço,
exige paciência e não dá resultados grandiosos e imediatos.
Então, a primeira coisa é ter clara a natureza da emancipação humana. Para lutar
por ela tem que ter claro do que se trata. E para ter claro isso faz-se necessária uma teoria
do ser social que sustente tudo isso, pois deve se tratar de convicções solidamente
sustentadas. Não se trata de fé; trata-se de sustentação racional. É preciso poder sustentar
que a emancipação humana é possível e para isto são necessários argumentos sólidos. Mas,
para saber o que é a emancipação humana tem que saber o que é o ser humano, o que é o
processo histórico social, o que caracteriza esse processo histórico social. E a menos que
alguém consiga por osmose ou por alguma revelação de alguma entidade, isso só pode vir
através de um estudo muito sério e muito penoso. Penoso no sentido de que vai exigir um
tempo e um esforço muito grande. É certamente muito gratificante, muito gostoso, muito
prazeroso fazer isto, mas tem que dedicar um tempo grande. Quem não quer fazer isto não
pode ficar falando de revolução e de emancipação humana.
Segundo, é preciso que conhecer a dinâmica do capitalismo, conhecer a base
material desta sociedade. Não dá para querer superar o capitalismo sem conhecê-lo. E isto
certamente significa um esforço muito grande. E para isso o estudo da obra de Marx é
imprescindível. Mesmo assim, isso ainda não é suficiente. Certamente, o que Marx disse,
em O Capital e em outras obras, continua, em sua grande maioria, de enorme atualidade,
mas não está tudo lá e nem poderia. A base está lá, mas depois de Marx aconteceu muita
coisa; o mundo mudou muito. O próprio capitalismo de hoje é muito diferente daquele do
tempo de Marx. Por isso, não basta conhecer a lógica mais essencial do capital. Isso
certamente é fundamental. Mas, além disso, temos que conhecer a história do capitalismo e
o que está acontecendo hoje, a crise atual.
Além disso, além de conhecer a realidade histórica do capitalismo na sua natureza
dinâmica, na sua lógica mais profunda e no seu desdobramento histórico e na atual crise, é
preciso saber o que é a educação. Não dá para simplesmente querer educar no sentido
muito genérico. É preciso saber o que é educação no sentido muito preciso e para isso é
necessária, de novo, uma teoria geral do ser social, uma ontologia do ser social. Ela nos
permite entender o que é este ato humano que se chama educação. Sem poder entrar em
detalhes, aqui, sinalizo que é preciso saber como é que a educação se gera histórico-
21
ontologicamente, qual é a natureza e a função social dela. Isso para nem subestimar e nem
superestimar a importância dela no processo social.
Mas isso não basta. Também é preciso dominar os conteúdos que vai se tratar. E
nesse terreno a questão é muito séria, porque não basta falar em conteúdos no sentido
geral. É preciso perguntar: de que conteúdos se trata?
Por exemplo, para quem vai ensinar filosofia ou sociologia. Não basta dominar o
conteúdo destas disciplinas no sentido tradicional. É preciso perguntar: de que filosofia e
de que sociologia se trata? Os conteúdos não são neutros. Numa sociedade de classes, os
conteúdos têm uma forte determinação pelo viés das classes dominantes. Só para
provocar: não há nada mais perdido do que a filosofia hoje e a maioria da sociologia é
contra-revolucionária. O velho Marx dizia na décima primeira tese ad Feuerbach: Os
filósofos até hoje se preocuparam em interpretar o mundo; trata-se de transformá-lo. Mas,
os filósofos continuam apenas a interpretar o mundo. É preciso uma teoria, uma filosofia e
uma ciência que contribuam para conhecer o mundo até a sua raiz, que permitam visualizar
a possibilidade de transformá-lo radicalmente e tudo isto é o que a academia não faz.
Voltamos àquela nossa provocação anterior. Marx instaurou um paradigma
científico e filosófico radicalmente novo. Este paradigma instaurado é o que a humanidade
tem à disposição de mais elevado em termos de instrumental de conhecimento. Mas, quem
é que estuda Marx hoje? Isto é um problema. Se a afirmação acima é verdadeira, então
temos que voltar a resgatar o velho Marx. Não tem saída, por que ele é o autor que mais
contribui para que possamos conhecer a realidade e visualizar a possibilidade de superação
desta forma de sociabilidade. Portanto, tem que haver uma filosofia de caráter radicalmente
revolucionário e essa filosofia, essa ciência se chama, a nosso ver: ontologia do ser social.
Então se eu sou filósofo, se eu vou ensinar filosofia. Que filosofia? Não é
simplesmente ensinar filosofia. A maioria das filosofias é essencialmente contra-
revolucionária – existencialismo, fenomenologia, filosofia analítica, filosofia da mente,
estruturalismo etc. Pergunte-se a elas, a essas teorias e a essas filosofias proeminentes hoje
se elas propõem a superação radical do capital. Nenhuma delas propõe. Logo, se é verdade
o que dissemos até agora, elas não estão do lado da revolução, não estão do lado da
emancipação humana. Como só tem dois lados, não tem três, elas estão do lado da
reprodução do capital, mesmo com a maior das boas intenções.
Não é só. Seria necessário fazer a crítica das ciências sociais. Porque não é qualquer
ciência social, tem que ser uma ciência, uma filosofia de caráter ontológico. Por que esta é
22
a ciência e a filosofia que vai à raiz e que permite sustentar uma outra forma de
sociabilidade radicalmente diversa. Esta é a pedra de toque de qualquer filosofia e de
qualquer ciência social. Se ela permite conhecer a realidade até a raiz e ultrapassar a
imediaticidade a partir dessa raiz. E se ela está do lado de uma possibilidade racionalmente
sustentada de transformação radical da ordem social.
Pra finalizar, então, vamos à prática também. Temos que nos engajar nas lutas
sociais, tanto nas específicas quanto nas mais gerais. Essas lutas estão ocorrendo
cotidianamente. Temos que entrar nelas. Há o momento da elaboração teórica e há o
momento do engajamento nas lutas práticas. Esse engajamento é importante até para
realimentar a nossa elaboração teórica. Enfim, embora a quadra esteja hoje muito difícil,
muito complicada, é preciso participar das lutas sociais, tanto das especificas da educação
quanto das mais gerais, se não ficamos apenas fazendo uma parte.
Concluindo
Com isso terminamos aqui a nossa fala. Voltando a resumir a questão, tentamos
demonstrar que a cidadania e a democracia fazem parte da emancipação política; que são
uma forma de liberdade que a humanidade conquistou e que tem o seu valor, que produziu
bons frutos, mas que é essencialmente limitada, e que defender cidadania e democracia
hoje como horizonte da humanidade é favorecer a burguesia.
Procuramos também mostrar que a emancipação humana é o patamar mais elevado
possível da liberdade humana e que expressa uma forma de sociabilidade em que todos os
seres humanos, todos os indivíduos podem se realizar como indivíduos humanos
plenamente livres. Plenamente livres, e gostaríamos de acentuar essa categoria, deixando
claro que plenamente livres não significa absolutamente livres, irrestritamente livres.
Significa uma sociedade emancipada em que todos possam ter as bases materiais para
reger o processo social e, portanto, se porem como indivíduos efetivamente livres, que
podem se autodeterminar coletivamente. E para finalizar tentamos fazer a articulação entre
emancipação humana e educação, deixando claro que nós podemos fazer atividades
educativas revolucionárias dentro de nossa sala de aula, fora da nossa sala de aula,
individualmente, em grupos, mas que não podemos pensar em uma educação
emancipadora dentro desta sociedade como algo generalizado. E finalmente procuramos
deixar claro que qualquer atividade educativa que pretenda contribuir para a construção de
23
indivíduos efetivamente livres, terá que perspectivar-se pela emancipação humana e não
pela cidadania.
Referências bibliográficas
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|Esquerda| Marxismo |
|Atualidade|
1
Introdução
*
Prof. do Dep. de Filosofia da UfAL e doutorando na UNESP.
1
Por perspectiva do trabalho entendemos aquele projeto sócio-histórico que tem por fundamento a classe
trabalhadora surgida com o capitalismo e cujos elementos fundamentais foram expressos por Marx e Engels.
2
Para evitar mal-entendidos, esclarecemos que a essência da propriedade privada não tem um caráter jurídico-
político, mas é, antes de mais nada, uma relação social de apropriação que se configura no processo produtivo e
2
que, então sim, se expressa na esfera jurídico-política. É importante frisar isto, porque a mera abolição jurídico-
política da propriedade privada não caracteriza efetivamente uma revolução socialista.
3
de modo que é absurdo pedir a este que elimine os males sociais produzidos por aquela. É o
que também, de outro modo, afirma Mészáros. Segundo ele, é na própria essência do capital
que reside o mecanismo que o impulsiona a se reproduzir ampliadamente, de modo que
nenhuma força externa pode fazer frente a esta lógica. Daí que o autor conclua que o capital
só pode ser superado – pela contraposição de uma outra lógica – mas não controlado. É,
portanto, uma ilusão (perseguida não só pelos liberais de todos os matizes, mas também pela
ampla maioria dos que hoje se consideram socialistas) pensar que o Estado e/ou a sociedade
civil (entendida num sentido político) – sejam eles nacionais ou internacionais – possam
impor limites intransponíveis ao capital, com o fim de barrar-lhe a sua perversa trajetória
Desta situação decorre o terceiro argumento: a extraordinária degradação da vida
humana. Quanto a isto, os aspectos são inúmeros e saltam aos olhos. Gostaríamos de fazer
alusão apenas a alguns, que caracterizam especificamente esta situação atual. Em primeiro
lugar, a nulificação do próprio e principal produtor da riqueza, que é o trabalhador. É
certamente próprio do sistema capitalista explorar, de muitas formas, o trabalhador. Mas
colocar-lhe a mera subrevivência, ao nível mais precário, e até o perecimento como
perspectiva de vida, é algo assustador, exatamente porque não são o resultado – como, de
certa forma, no passado, do insuficiente desenvolvimento das forças produtivas, – mas da sua
extraordinária intensificação, evidentemente sob a regência da sua lógica.
Em segundo lugar, a submissão direta do Estado aos interesses do capital. Costuma-
se criticar o Manifesto, de 1848, por reduzir o Estado a um instrumento direto dos interesses
da burguesia. Sem entrar no mérito desta crítica, o Estado está, hoje, para além da sua
essência de opressão de classe, cumprindo exatamente a função de “comitê executivo dos
negócios da burguesia”. Neste sentido, gostaríamos de fazer alusão a algo muito sintomático,
que está em curso. Trata-se do pouco conhecido, mas extremamente significativo, AMI
(Acordo Multilateral de Investimentos). É um acordo, negociado no âmbito da OCDE
(Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico) desde 1995, que estabelece as
bases para a redistribuição do poder mundial. Segundo a LAFIS – pesquisa e investimento
em ações na América Latina, em artigo publicado na revista Carta Capital, ano III, n. 78, de
julho de 1998, – este acordo garante ao capital “o direito absoluto de investir sem nenhum
tipo de restrição e a obrigação dos governos de garantir plena rentabilidade a esses
investimentos. Ou seja, intervenções estatais que possam limitar a lucratividade dos
investimentos terão que ser indenizadas pelos respectivos governos” (p. 53). Porém, não se
trata só de garantir o ressarcimento de alguma perda sofrida, mas até de potenciais ganhos não
efetivados por causa de medidas governamentais ou ações populares. E mais grave ainda é
que não é imposta nenhuma obrigação ou responsabilidade aos investidores, como também
4
não é contemplado nenhum direito aos Estados (evidentemente dos países periféricos) e
cidadãos de defenderem-se contra qualquer ação dos investidores. É algo simplesmente
inacreditável. A garantia, obviamente respaldada pela força político-militar dos Estados de
origem, de todos os direitos e nenhum dever para o capital. Com o que a tão decantada
participação democrática popular fica reduzida a um mero simulacro. Situação que faria
Rousseau corar de vergonha com a sua teoria da vontade geral.
Em terceiro lugar, o esvaziamento de toda busca por um sentido de vida mais digno.
Não é a toa que se fala tanto em fim das ideologias, fim da história, fim da utopia, fim da
ciência. A aspiração a uma vida mais cheia de sentido foi reduzida ao mero direito de sonhar,
porém sem nenhuma base real. O homem não é limitado apenas a ser mercadoria, mas a ser
uma mercadoria descartável. Na verdade, agora configura-se, em sua plenitude, aquilo que foi
designado por Hobbes como o “bellum omnium contra omnes”. Pois não é outro o sentido das
idéias em voga de competitividade e qualidade total. A contrapartida desta verdadeira guerra
civil – de classes – são as chamadas “políticas sociais”, que supostamente assistiriam os
desvalidos neste breve (!) momento de transição para uma situação melhor.
É esta situação dramática, da qual apenas assinalamos alguns aspectos essenciais,
que põe a humanidade diante de um dilema crucial: socialismo ou barbárie; revolução –
política, mas com “alma social”, conforme acentuava Marx nas Glosas críticas – ou
reprodução cada vez mais intensa e perversa da barbárie. E é uma enorme ilusão – que
certamente custará muito caro – agarrar-se, sob o pretexto de que o socialismo não está no
horizonte, à idéia de que é preciso “fazer o possível” (deixando o desejável para as calendas
gregas), quando o possível, no caso de países como o Brasil, é apenas pleitear um papel
menor neste teatro de horrores. Ilusão maior ainda quando se pensa ser viável – conquistado
(?) este papel menor – preocupar-se, então, com o desejável.
Contudo, se atentarmos para outros aspectos desta mesma situação, veremos que a
revolução não é, de fato, algo que esteja no horizonte. Tanto que defendê-la, – mesmo em
termos de possibilidade ontológica, – é motivo de chacota por parte da maioria dos bem
pensantes. O mais grave, porém, é que após cento e cinqüenta anos de sucessivas derrotas, o
projeto de superação, pela raiz, da sociabilidade capitalista se encontra numa situação
tremendamente complicada; uma situação em que não há nem sujeito nem objeto adequados à
realização de uma empreitada revolucionária. Voltaremos a estas questões mais adiante, para
precisar bem o seu sentido e para atribuir um conteúdo inteiramente diverso à categoria do
possível.
1.2 – Necessidade e inviabilidade da teoria
5
produziu ao longo da sua trajetória, objetivações estas que, em momentos diversos podem
impulsionar ou refrear o avanço do conhecimento. O exemplo do próprio Marx é
significativo. Sua genialidade teve um papel indiscutível, mas não se pode esquecer do papel
igualmente importantíssimo que exerceram as elaborações de um conjunto de pensadores que
o precederam. É sobre as consequências deste último aspecto, ou seja, da possibilidade de
que o estado em que se encontra o instrumental teórico dificulte o progresso do conhecimento,
que queremos insistir mais adiante, embora tenhamos claro que os dois momentos –
individualidade e universalidade –, ainda que guardando uma especificidade própria, estão
intimamente articulados. Quanto ao objeto. É óbvio que sem objeto não há possibilidade de
conhecimento. Mas não é disto que se trata. Em diversos momentos da sua obra, Marx
ressalta que não basta o esforço de uma individualidade, ainda que qualificada, para que se
produza conhecimento científico. É preciso que o objeto se ponha de modo adequado. Em
dado momento (1982, III: 392), diz ele: “Não basta que o pensamento tenda à realidade, é
precso que a realidade mesma tenda ao pensamento”. Em outro momento, referindo-se à
situação dos economistas alemães, afirma que aconteceu um descompasso entre eles e o
objeto, ou seja, quando eles tinham condições subjetivas de produzir ciência o objeto (a
realidade alemã) não estava maduro e quando o objeto amadureceu eles já não dispunham de
condições de possibilidade subjetiva de apreendê-lo. É ainda conhecida aquela observação
dele de que é a anatomia do homem que explica a anatomia do macaco e não o contrário. E
vale ainda lembrar a referência à impossibilidade de Aristóteles, apesar da sua genialidade,
poder apreender o trabalho abstrato, dada a sua quase absoluta inexistência. Com tudo isto,
quisemos ressaltar a ênfase que Marx confere à presença de um objeto maduro, quer dizer,
explicitado em seus elementos essenciais, como condição de possibilidade de sua apreensão.
Em alguns momentos da história, como vimos, há um desencontro entre sujeito e
objeto. Em outros momentos, porém, estão ausentes tanto o objeto, que não está
suficientemente maduro, quanto o sujeito (historicamente formado), que está desaparelhado
para apreendê-lo. O que certamente torna a situação muito mais complicada. É o que
caracteriza, segundo pensamos, o momento atual. Dado o essencial extravio da racionalidade
e a falta de maturidade do objeto (mundo atual), estão ausentes os dois elementos essenciais
para a produção de uma teoria revolucionária que possa orientar lucidamente as lutas sociais.
O significado e as causas da imaturidade tanto do sujeito como do objeto é o que veremos a
seguir.
3
Quando falamos em centralidade epistemológica do sujeito referimo-nos àquela virada que, na transição do
feudalismo ao capitalismo, se deu nos fundamentos do conhecimento. Se, nas épocas grega e medieval, o objeto
era o eixo a partir do qual se definia o que era verdadeiro ou falso, a partir da modernidade este eixo passou a ser
8
classe trabalhadora, na medida em que houve uma melhora sensível – sem que isto exclua o
papel das lutas sociais – das suas condições de vida. Estava posto – de novo, sem que fosse
inevitável – o chão social para o reformismo. Reformismo que começou com a prática da
social-democracia alemã, já criticada por Marx e Engels e continuou a aprofundar-se com a
impossibilidade de transformação da revolução soviética em revolução socialista4, para depois
ter continuidade no euro-comunismo e, atualmente, no chamado socialismo democrático.
Deste modo, já desde o fim do século passado, estavam postos os elementos teóricos
e práticos que se configurariam como importantes condições para as derrotas futuras do
mundo do trabalho.
o sujeito. Deste modo, a verdade já não é concebida como a representação intelectual do objeto, mas passa a ser
o resultado do trabalho intersubjetivo.
4
Sabemos que o caráter da revolução soviética é ainda motivo de muita discussão. Ao nosso ver, a revolução de
1917 foi aquele momento preparatório a que se refere Marx como sendo a tarefa da política, mas que, dada a
precariedade do desenvolvimento econômico e a não efetivação da revolução nos países mais avançados, se viu
impedido de explicitar a sua “alma social”.
9
De modo geral, quanto mais intensa é uma derrota, maior é o desnorteamento dos
derrotados. Foi que aconteceu com a esquerda após o desmoronamento do chamado
socialismo real. Muitos dos intelectuais de esquerda passaram, com armas e bagagens, para o
lado vencedor. Outros simplesmente abandonaram a causa e foram cuidar da sua vida
particular. Outros ainda, por motivações éticas, políticas ou até religiosas, pretenderam
continuar a luta sem aperceber-se da gravidade da situação produzida pelas sucessivas
derrotas e pelas novas tarefas por ela impostas. No meio intelectual (especialmente acadêmico
e midiático) tornou-se, hoje, de bom tom, para ser aceito pelo “establishment” e para não ser
tratado como marginal, adotar uma postura flexível, pluralista, realista e de abertura crítica. O
resultado disto é que, ao invés de ver-se fortalecida, a perspectiva do trabalho se vê
enfraquecida, na medida em que o debate vai sendo situado cada vez mais no campo do
adversário, e isto tanto no campo da elaboração científico-filosófica quanto no campo da
prática política. Em resumo, caminhou-se da revolução à reforma, variando apenas quanto ao
conteúdo desta. Não seria nada difícil, embora não caiba no espaço deste artigo, aduzir
10
exemplos, seja na área da filosofia, seja na área das ciências humanas ou nos projetos
políticos em curso, que confirmariam esta convergência ao centro da maioria dos intelectuais
e partidos políticos.
Neste contexto, os intelectuais verdadeiramente de esquerda – aqueles que defendem
– não apenas proclamam, mas sustentam de modo articulado e sólido – a superação radical do
capital como conditio sine qua non para a entificação da humanidade numa forma superior –
são uma ínfima minoria. E é inevitável e justa a pergunta: o que fazer? A que não falta,
certamente, uma dose de angústia diante de uma situação tão difícil e na qual, se há sólidas
garantias de possibilidade (ontológica), não há nenhuma garantia de viabilidade efetiva. Vale
a pena, porém, lembrar que a aposta do trabalho – pois de aposta também se trata, já que o
processo histórico é ontologicamente fundado, mas não pré-determinado – tem uma vantagem
imensa sobre o capital. Esta vantagem está em que a vitória do capital, pela própria natureza
deste, jamais pode ser definitiva ( a não ser como suicídio ou como extinção da humanidade)
ao passo que a do trabalho pode ser definitiva. Poder-se-ia pensar que isto não passa de um
“consolo de pobre”, mas não o é de forma alguma. Trata-se, de fato, de uma aposta, mas de
uma aposta que está fundada no processo real e além disto é eticamente superior, pois
significa uma tomada de posição em favor da realização integral de toda a humanidade e não
apenas de uma parte minoritária dela, como não pode deixar de ser a aposta do capital.
De modo que é nesta situação adversa que cabe à intelectualidade de esquerda uma
tarefa extremamente importante e complexa: reconstruir a teoria revolucionária5. Daí, pois, a
importância da idéia de refundação, que não deve ser entendida em sentido nem meramente e
nem principalmente político, mas no sentido de reconstruir, a partir da própria base, o
conjunto da teoria revolucionária. Aliás, seja dito de passagem, tomar esta idéia pelo lado
político, ou seja, como organização de um novo (?) partido, ainda que armado de novas (?)
idéias, é índice de que não se entendeu, em profundidade, a natureza da crise da perspectiva
do trabalho.6
Poderia parecer que este preceito conflita com a afirmação acima acerca da
inviabilidade da teoria. Tal não é o caso, porque se trata de um processo no qual a
reconstrução teórica é um momento importantíssimo do próprio amadurecimento do objeto e
especialmente, do objeto enquanto sujeito revolucionário. Como já acentuamos acima: a
afirmação acerca da inviabilidade da teoria não se refere a uma impossibilidade de todo
trabalho teórico, mas apenas à impossibilidade de uma teorização que, apreendendo o mundo
5
Vale ressaltar que não restringimos o sentido deste termo à sua dimensão política, ainda que esta tenha um
papel de primeira plana, mas o estendemos ao conjunto da atividade humana, de vez que se trata de transformar
o mundo em sua totalidade e não apenas uma parte dele.
11
6
Precisamente, a teoria do partido – sua natureza e sua função social, hoje, em sentido ontológico e não
meramente sociológico ou político – é um dos elementos da teoria revolucionária que precisa ser reconstruído.
7
Neste sentido, é também sugestivo o título (e o conteúdo) do livro de La Grassa e Preve – La Fine di una
Teoria. Independente de concordância com as suas idéias (presentes em inúmeros outros livros), vale ressaltar o
caráter estimulante da obra pela radicalidade da sua proposta e pelo rigor da sua sustentação, sem que isto dê
margem, em momento algum, a qualquer concessão anti-revolucionária.
12
para isto teríamos capacidade – oferecer uma proposta de conjunto. Pretendemos apenas
pontuar uma questão que, por estar no início e ser de crucial importância, decide de todo o
encaminhamento seguinte. Antes de partir para o ataque ou a defesa, antes de procurar
identificar aspectos positivos ou negativos, antes de buscar lacunas, erros e insuficiências, é
preciso identificar o espírito da obra marxiana, o fio condutor, aquilo que dá o eixo a partir do
qual se torna compreensível todo o seu ulterior desenvolvimento. Isto não significa, de modo
algum, afirmar que a obra é um todo harmônico e homogêneo. Significa apenas apreender os
parâmetros – eles mesmos em construção ao longo da obra – que permitem tornar inteligíveis
os progressos, as modificações, as lacunas, os erros, as insuficiências. Ou seja, que permitam
ver a obra numa perspectiva de totalidade e que, portanto, possibilitem não apenas julgar, com
mais rigor, o que há de vivo e o que há de morto, mas por onde passa o caminho do
desenvolvimento e do aperfeiçoamento no sentido do seu fundador8. O não acatamento deste
preceito explica, ao nosso ver, porque tantos “erros” e “debilidades” são encontrados na obra
marxiana, enquanto as suas verdadeiras falhas passam, muitas vezes, despercebidas. A
começar da velha questão da inexistência de um momento filosófico na obra de Marx,
passando pela tensão entre momentos deterministas e momentos voluntaristas, pela cesura
entre o jovem e o velho Marx, pela dicotomia entre ciência e ideologia, pela inexistência de
uma teoria da política, pela ausência de uma “preocupação” com a relação entre o homem e a
natureza e uma infinidade de outros “achados”.
O mais grave, porém, não são as lacunas, erros ou insuficiências eventualmente
descobertos. Tudo isto existe e não há razão nenhuma para negá-lo. O mais grave é que com
isto se perde aquilo que confere à teoria marxiana a sua nota mais distintiva, ou seja, o seu
caráter radicalmente crítico e, com isto, a sua capacidade de enfrentar os problemas do nosso
tempo, que não são apenas econômicos e/ou políticos, mas dizem respeito à construção de
uma nova concepção de mundo, a uma forma essencialmente nova de sociabilidade.. E já foi
dito, mas vale a pena repeti-lo uma vez que, conforme o dito latino, repetita juvant, esta nova
forma de fazer ciência e filosofia, instaurada por Marx, é, por sua própria natureza, crítica e
autocrítica. E isto, não no sentido corriqueiro da necessidade da crítica intersubjetiva para o
progresso do conhecimento, mas no sentido da centralidade ontológica e não epistemológica
da sua impostação. O que equivale a dizer que ela permite ter não só o mundo como objeto,
mas também a si mesma. Se não se compreendeu isto ou se este caráter autocrítico foi
8
Neste sentido, pensamos que a ontologia lukacsiana representa uma das mais fecundas tentativas, exatamente
porque satisfaz aquele requisito de restituir ao marxismo a radical criticidade que lhe era própria na sua origem.
O prosseguimento crítico realizado por Mészáros (e outros autores), no conjunto da sua obra, mas especialmente
em Beyond Capital, ilustra, ao nosso ver, a produtividade deste caminho.
13
Concluindo
esta parte será tanto melhor realizada quanto mais se tiver consciência da magnitude e da
profundidade das tarefas a serem efetivadas.
Referências Bibliográficas
ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris, Maspéro, 1965
CHASIN, J. Marx: Da Razão do Mundo ao Mundo sem Razão. In: Marx
Hoje, SP, Ensaio, 1987.
DEL ROIO, M. O império universal e seus antípodas. SP, Ícone, 1998.
HABERMAS, J. Per la ricostruzione del materialismo storico. Milano, 1979.
LUKÁCS, G. História e consciência de classe. Porto, Escorpião, 1974.
MARX, K. Glosas críticas ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social. De um
Prussiano”. In: Praxis, BH, Projeto Joaquim de Oliveira, n. 5, 1995.
______, Para a crítica da economia política (e outros escritos). SP, Abril Cultural,
1982.
MÉSZÁROS, I. Beyond capital. London. The Merlin Press, 1995.
MORAES, J. Q. de. O Manifesto e a refundação do comunismo. In: Crítica
Marxista, n. 6, SP, Xamã, 1998.
PAULO NETTO, J. Razão, ontologia e praxis. In: Serviço Social e Sociedade.
SP, Cortez, Ano XV, n. 44, 1994.
TONET, I. Democracia ou liberdade. Maceió, Edufal, 1997.
Ivo Tonet♯
A crise que a humanidade está vivendo hoje e que se agrava cada vez mais,
torna cada dia mais premente a necessidade de discutir alternativas. Não se trata, no
entanto, de inventar alternativas, mas de compreender a lógica interna do processo
social e de extrair dele possibilidades que sejam reais.
Sabemos que em um texto tão breve não seria possível sequer aflorar a
quantidade imensa de questões importantes para tratar da problemática acima titulada.
Procuraremos aludir, apenas, a algumas delas, que nos parecem de capital importância.
E, ainda assim, de modo muito breve.
Deste modo, nunca foi mais urgente do que hoje a luta pelo socialismo. Até
porque, no limite, ela é a luta pela sobrevivência da própria humanidade. Porém, ao
mesmo tempo, nunca, como hoje, esta alternativa pareceu mais longínqua. Explica-se
isto como resultado de um complexo processo histórico em que, na luta entre capital e
trabalho, ao longo destes últimos cento e cinqüenta anos, apesar de ganhos pontuais do
♯
Professor de filosofia do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes da Ufal.
2
último, o primeiro sempre venceu, dadas as circunstâncias concretas em que a guerra foi
travada.
Por isso mesmo, a crítica do passado, vale dizer, o exame dos caminhos
teóricos e práticos trilhados pelas lutas da classe trabalhadora com o objetivo de superar
o capitalismo, é uma condição indispensável para iluminar os caminhos do futuro. Esta
crítica do passado é, evidentemente, uma tarefa ingente e multifacetada. Gostaríamos de
assinalar, aqui, apenas alguns elementos que nos parecem fundamentais. A nosso ver, o
exame destes caminhos revela as profundas alterações que a teoria marxiana sofreu,
com enormes e prejudiciais conseqüências para a luta do trabalho contra o capital.
Mais uma vez, esta impostação ontológica foi obliterada pela maioria dos seus
discípulos. Por um processo histórico extremamente complexo, e não por meros desvios
teóricos, a centralidade do trabalho foi substituída pela centralidade da política, vale
dizer, pela atribuição ao Estado da tarefa de dirigir o processo de superação do
capitalismo em direção ao comunismo.
Esses dois extravios tiveram como uma das mais perversas conseqüências
imprimir às lutas da classe trabalhadora um caráter cada vez mais reformista, tanto do
ponto de vista teórico como prático, pois deslocava para o campo da burguesia toda a
elaboração teórica e toda ação prática que visaria construir uma nova forma de
sociabilidade.
porque evidencia que a história é feita pelos próprios homens como porque comprova
que a humanidade já dispõe, hoje, de capacidades suficientes para produzir os bens
materiais necessários à satisfação das necessidades de todos e não apenas de alguns.
Também permite demonstrar a premente necessidade de superar essa forma de
sociabilidade, dadas as terríveis conseqüências que a reprodução social regida pelo
capital acarreta para o momento atual e para o futuro da humanidade.
Com base nesses fundamentos também é possível fazer uma crítica radical de
todas as propostas reformistas, demonstrando a impossibilidade de construir uma forma
de sociabilidade efetivamente igualitária, livre e fraterna sem a eliminação daquela que
é a raiz desta sociedade, ou seja, do capital. Esta crítica também permite demonstrar o
caráter não socialista de todas as tentativas revolucionárias levadas a cabo até o
momento, uma vez que, dadas as condições objetivas, era impossível entrar em cena o
trabalho associado, fundamento material do comunismo. Por isso mesmo, todas elas
tiveram que atribuir ao Estado a tarefa de dirigir um processo que se imaginava estar
caminhando para o comunismo. Por isso também, todas elas se transformaram em
ditaduras, não do proletariado, mas sobre o proletariado.
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1
Ivo Tonet
Introdução
Caracterizando a crise
Antes de mais nada, convém esclarecer o que entendemos por social e cultural,
já que esses termos não são unívocos. Do ponto de vista da ontologia do ser social – o
pensamento de Marx entendido nesse sentido – não há nada que não seja social já que a
distinção básica se dá entre ser natural e ser social. Desse modo, tudo que resulta da
práxis humana é social. No interior do ser social distinguem-se dimensões diferentes
(trabalho, política, direito, educação, arte, etc). O critério fundamental para a distinção
entre essas diversas dimensões é sempre a função que cada uma delas exerce na
reprodução do ser social.
Contudo, o título que nos foi proposto para o presente texto diz: “expressões
sócio-culturais”. Entendemos então que, quando se faz referência a expressões sociais
se está querendo apontar para determinadas manifestações da crise atual do capital que
afetam grande número de pessoas e que se referem à vida material ou que, pelo menos,
têm estreita conexão com essa materialidade. Em contraposição, quando se faz
referência a expressões culturais se aponta para manifestações no âmbito da
subjetividade, tais como atividades artísticas, de ciência, de filosofia, de comunicação,
de valores, de comportamentos, de relações sociais.
Dito isso, é importante também esclarecer que não se deve pensar que há uma
separação rígida entre essas diversas expressões, tanto materiais quanto espirituais
porque, de fato, há um profundo imbricamento entre elas.
A conseqüência mais geral dessa crise, para a humanidade, é terrível. Com
efeito, esse sistema social já não pode abrir perspectivas de realização superior para toda
a sociedade. O que não quer dizer que ele não possibilite avanços. Contudo, esses
avanços se limitam a alguns setores e os benefícios deles se restringem cada vez mais a
segmentos muito restritos.
Dada a lógica intrínseca do capital – de produção coletiva, mas de apropriação
privada da riqueza, – a construção de uma autêntica comunidade humana sob a sua
regência é uma impossibilidade absoluta. Essa sua lógica o impulsiona a reproduzir-se
numa direção cada vez mais perversa e desumana. Como demonstrou muito bem I.
Mészáros, o capital é incontrolável. Isto significa que é impossível impor-lhe uma outra
lógica que não seja a da sua própria auto-reprodução. Vale dizer, é impossível impor-lhe
uma produção voltada para o valor de uso e não para o valor de troca. Desse modo, ele
pode – em princípio – ser erradicado, mas não ser controlado. Pode ser erradicado
porque, como tudo o que concerne ao ser social, ele também é resultado da atividade
humana, ou seja, ele não é uma determinação natural. Em resumo, porque são os
homens que fazem a história. Mas, não pode ser controlado, vale dizer, não é possível
impor-lhe uma lógica que tenha como primeira preocupação o atendimento das
necessidades humanas e não a produção para o lucro. Basta examinar a história do
capitalismo para ver o acerto dessa afirmação. Nenhuma tentativa de controle até agora
teve êxito, seja ela de tipo do Estado de Bem-Estar Social ou do tipo chamado de
“socialista”. Por isso mesmo, a degradação cada vez maior da vida humana, em todos os
aspectos, é uma conseqüência inevitável da reprodução do capital.
Miséria, pobreza, fome, desnutrição, subnutrição e todo o cortejo de horrores –
gerado pela falta de acesso (em quantidade e qualidade adequadas) aos bens materiais
necessários à manutenção de uma vida digna – acompanham essa situação. Populações
inteiras são submetidas às condições de vida mais degradantes e praticamente
descartadas como supérfluas, pois o capital não pode incluí-las no seu processo de
reprodução. Milhões de pessoas são obrigadas a viver em condições subumanas porque
4
De modo especial, no campo da ética amplia-se cada vez mais o fosso entre o
dever-ser e o ser. Isto é, entre uma realidade objetiva que se torna a cada dia mais
desumanizadora e o discurso ético que proclama valores humanistas. Nunca, como hoje,
se falou tanto em solidariedade, direitos humanos, honestidade, respeito à vida e à
pessoa humana. Sente-se, no entanto, que há uma generalizada confusão na área dos
valores. Em todas as áreas da vida social, valores que antes eram considerados sólidos e
estáveis sofreram profundas mudanças. Parece que, de uma hora para outra,
desapareceram os critérios do que é bom ou mau, correto ou incorreto e que a sociedade
se transformou num vale-tudo onde predominam o individualismo, o interesse
imediatista e utilitário, a subsunção do interesse público ao interesse particular,
chegando, muitas vezes, ao cinismo mais deslavado.
Por sua vez, a cientificidade atual (no âmbito social) tem assumido um caráter
cada vez mais manipulatório. Vale dizer, ela tem se manifestado cada vez mais incapaz
de compreender a realidade como uma totalidade articulada em processo e de ir até a
raiz dos fenômenos sociais. Tendo nascido sob o signo da fragmentação e da
empiricidade, viu essas características se tornarem cada vez mais intensificadas. Essa
intensificação, por sua vez, é resultado do fato de que o aprofundamento da crise do
capital confere à realidade social um caráter cada vez mais fragmentado e fetichizado.
Daí a crescente desconfiança na capacidade da razão de compreender a realidade social
como uma totalidade, o que dá margem à intensificação do irracionalismo e da
fragmentação do conhecimento.
O abandono de categorias fundamentais para a compreensão da realidade
social, como classes, luta de classes, revolução, socialismo, comunismo, alienação e até
capitalismo, mostra bem a distância que se estabeleceu entre a cientificidade social
dominante na atualidade e o processo social real. Expressão clara disso é o fato de que
praticamente nenhum dos cientistas sociais tidos, hoje, como mais importantes –
economistas, sociólogos, cientistas políticos, antropólogos, psicólogos, teóricos da
educação – se refere à superação do capitalismo, mas apenas ao seu aperfeiçoamento.
Uma segunda manifestação é a da efemeridade. Esta, por sua vez, está muito
ligada à superficialidade, à banalização, ao modismo e à massificação. De novo, é a
crise do capital que se manifesta aqui. A brutal concorrência entre os capitais faz com
que as mercadorias tenham que girar cada vez mais rapidamente para gerar lucro. Isso
resulta naquilo que Mészáros chamou de “produção destrutiva”, ou seja, um tipo de
produto que precisa se tornar obsoleto de modo cada vez mais rápido e assim dar lugar a
outro.
Ora, na medida em que os produtos espirituais são transformados em
mercadorias, eles também são submetidos a essa lógica da obsolescência. Também
devem ser rapidamente consumidos e rapidamente descartados, pois a sua finalidade
também passa a ser gerar lucro. A todo momento estão sendo lançados no mercado
novos produtos, novas fórmulas, novos métodos, novas soluções, que rapidamente
devem ser descartados, porque o importante não é a sua real qualidade (medida em
função de uma vida digna), mas a sua “novidade”, uma vez que é isso que os torna
vendáveis. Mas, para que isso aconteça, eles são obrigados a ser superficiais e, portanto,
a terem vida curta, pois a densidade, a profundidade e a durabilidade são qualidades que
exigem maturação, o que implica um tempo maior de elaboração.
Por paradoxal que pareça, essa enorme efemeridade vai de par, por sua vez,
com a sua sensação oposta, que é a perenidade. Tudo muda, mas, ao mesmo tempo,
nada do que é essencial muda. De um lado, os fenômenos imediatos, em todas as
dimensões da vida, parecem indicar que nada existe de estável. De outro lado, esse
sistema social parece ter atingido um patamar absolutamente insuperável. A sempre
9
a crise do capital e a conseqüente guerra de todos contra todos na disputa pela riqueza.
O fracasso das tentativas de mudar o mundo através de esforços coletivos, centrado nas
revoluções que se pretendiam socialistas, agravou enormemente essa convicção
individualista. Como já não se visualizam soluções coletivas, é levada ao paroxismo a
idéia de que a solução dos problemas é individual, de que o sucesso ou fracasso na vida
dependem dos próprios indivíduos, considerados isoladamente.
A falência dos valores tradicionais que, de alguma forma, faziam uma
referência maior ao aspecto comunitário, deve-se exatamente a essa exacerbação
daquilo que é a própria essência do capitalismo: a concorrência. Afinal, o valor supremo
dessa forma de sociabilidade é o ter. Não por um suposto egoísmo humano natural, mas
como imposição da lógica da reprodução do capital, que se espraia por toda a vida
cotidiana. Daí porque a preocupação com o bem comum, a solidariedade, um agir
eticamente orientado são, no mais das vezes, um discurso vazio ou apenas expressões
pontuais e superficiais que não podem transformar-se, de modo permanente e profundo,
em vida cotidiana. Do mesmo modo, a ação coletiva para a solução dos problemas
sociais se vê tremendamente dificultada por um mundo onde a lei maior é a lei do
“salve-se quem puder”.
E, por último, podemos ainda fazer referência aos gravíssimos problemas que
afetam a relação do homem com a natureza. Apenas para referir: poluição da atmosfera,
de rios e lagos, destruição de ecossistemas e da camada de ozônio, aquecimento global e
milhares de outros. Como resultado do uso indiscriminado, predatório, anárquico e
agressivo – típico do capitalismo – está em risco a própria existência de todas as formas
de vida. Não obstante esforços e boas intenções, a lógica do capital é, por sua natureza –
anárquica e concorrencial – predatória e destrutiva. E é essa lógica, levada ao extremo
pela crise atual, que impede uma relação harmônica do ser humano com a natureza.
Eis aí algumas das principais expressões sócio-culturais que marcam a crise da
sociabilidade capitalista atual.
Referências bibliográficas
SÉRGIO LESSA
IVO TONET
Redação final V8 3:24 11/8/2004
SUMÁRIO
Prefácio
Introdução
VI. O conhecimento
VII. Um pouco de história
1 – a sociedade primitiva
2 - o modo de produção asiático
VIII. O Escravismo
1 - a crise do escravismo e origem do feudalismo
IX. O feudalismo e a origem do capitalismo
1 – O feudalismo
2 – Algumas características da sociedade burguesa
X. A Reprodução social
1- a reprodução dos indivíduos
XI. Marx e a crítica ao individualismo burguês
1- a moral e a ética
XII. A política e o Estado democrático
1- a democracia burguesa e o Estado burguês
XIII. Os fundamentos sociais da alienação
1- a alienação
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PREFÁCIO
1
Lukács a empreitada mais significativa e que aponta o melhor caminho para o resgate do
sentido radicalmente crítico e revolucionário do pensamento de Marx, o que não significa
desconsiderar contribuições importantes de outros autores, entre eles, e com ênfase particular,
István Mészáros. Não pretendemos aqui uma posição doutrinária ou sectária, mas apenas
esclarecer para o leitor a posição que assumimos nesse riquíssimo debate.
A esta dificuldade soma-se outra, originada da existência de inúmeras interpretações de
Marx. Os textos de introdução podem cumprir, também, um papel de "amortecimento" da
consciência crítica do leitor. O que se requer de um texto introdutório, ou seja, sua clareza,
sua coerência e sua facilidade de leitura pode ser, atmbém, a principal razão que dê ao leitor a
impressão de que as questões "tratadas", e os problemas "solucionados", sejam muito mais
simples e palmares do que de fato são. Não poucos manuais do passado, a despeito do desejo
de seus autores, terminaram cumprindo também esse papel. Esse o motivo de muitos não
verem com bons olhos os textos de introdução, e deve-se reconhecer que eles têm alguma
razão. Estamos convencidos, todavia, de que os textos introdutórios podem ter um papel
diverso, desde que consigam despertar no leitor mais curiosidades do que certezas. É com a
esperança de que esse texto seja apenas a abertura e a sinalização de um horizonte, e não a
produção de respostas acabadas, que nos propusemos redigi-lo.
INTRODUÇÃO
1
O estudo da evolução do seu pensamento está ainda no seu início; não há
nenhuma obra que dê conta do conjunto de sua produção teórica. Seus
primeiros escritos foram influenciados por Kant e Hegel, filósofos
burgueses da transição do século XVIII ao XIX. Sob o impacto da I Guerra
Mundial (1914-18) e da Revolução Russa de 1917, redigiu as primeiras das
suas obras marxistas, das quais a mais conhecida é História e Consciência
de Classe (1923). Entre 1930 e 1950, realizou investigações com textos
inéditos de Karl Marx, entre eles os Manuscritos de 1844, combateu o
stalinismo enfatizando a importância de Hegel para o marxismo (O Jovem
Hegel -1948), combateu o fascismo com sua investigação acerca de suas
raízes filosóficas (A Destruição da Razão-1952), e redigiu inúmeros
artigos, ensaios e livros sobre arte e literatura. O realismo russo, Thomas
Mann, Balzac e o realismo francês, o realismo socialista, etc. foram alguns
dos temas aos quais retornou mais de uma vez nesse período de sua vida.
Entre a segunda metade dos anos cinqüenta e o seu falecimento em 1971
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oferecem uma resposta a esse dilema, às vezes explicitamente, outras vezes de modo velado e
sutil; às vezes com um discurso aberto, outras vezes pretendendo ignorar o tema. E a resposta
que oferecem deve ser um dos elementos importantes na avaliação que fazemos de cada uma
delas.
Isto não significa reduzir a filosofia à política. Quando as questões filosóficas recebem
um encaminhamento político, tal como fez o stalinismo ou como fazem hoje as filosofias mais
conservadoras, o resultado é sempre uma filosofia de baixo nível. As respostas alcançadas se
perdem rapidamente na medida em que a conjuntura política se altera. Como a filosofia é uma
reflexão sobre a história e o destino humanos, ela não deve se limitar ao aspecto
imediatamente político e, por isso, toda e qualquer redução da filosofia à política leva a uma
filosofia ruim e a uma prática política pior ainda.
Se isto é verdade, também correto é que as relações sociais se tornaram, em especial nos
últimos séculos, de tal forma desumanas, que toda filosofia exibe uma dimensão política
Querendo ou não, explicitamente ou não, intervém nas lutas sociais. Não existem filosofias
neutras, ou seja, filosofias que ignorem os dilemas históricos cruciais que a humanidade
enfrenta.
Devemos ou não, nos dias atuais, manter a exploração do homem pelo homem? Apenas
duas respostas verdadeiramente radicais (no sentido de ir à raiz) são possíveis para esta
questão.
A primeira resposta, conservadora, afirma que não é possível a superação da exploração
do homem pelo homem porque ela corresponde à verdadeira essência humana. Desde o
irracionalismo do filósofo nazista alemão Martin Heidegger, passando por elaborações
filosóficas muito mais civilizadas e sofisticadas como as de J. Habermas, H. Arendt, N.
Bobbio e J. Rawls, todas estas correntes, cada uma a seu modo, concebem a vida social como
uma luta entre indivíduos que são essencialmente mesquinhos, egoístas, individualistas e
movidos pelo desejo de acumular propriedades. Por isso, diz Heidegger, a luta é a dimensão
autêntica da existência humana; pelo mesmo motivo, afirmam Habermas, Arendt, Bobbio e
Rawls, o capitalismo, a democracia burguesa e o mercado são as mediações insuperáveis da
vida civilizada. Todos eles, cada um à sua maneira, buscam conservar o capitalismo e
consideram uma impossibilidade a sociedade emancipada comunista tal como proposta por
Marx.
O argumento fundamental da maior parte das filosofias conservadoras não é nenhuma
novidade: afirmam que há uma essência dos indivíduos humanos que os torna individualistas;
e que esta essência, justamente por ser imutável, não poderia ser alterada pela história. Para
eles, a história nada mais seria que a afirmação, em diferentes momentos e sob formas
distintas, desta mesma essência mesquinha dos homens. Por isso, segundo eles, o máximo que
se pode almejar é desenvolver o mercado e a democracia que, para eles, são as melhores e
mais civilizadas formas de disputa entre os indivíduos, não passando de um mero sonho a
proposta de Marx de uma sociedade sem classes. Como poderia ser abolida a sociedade de
classes, perguntam eles, se os homens são essencialmente marcados pela propriedade privada,
se são individualistas, mesquinhos e egoístas?
Em suma, a resposta conservadora à nossa questão (devemos hoje manter a exploração
do homem pelo homem?) afirma que há uma essência humana que faz dos homens seres
necessariamente individualistas. Esta essência não poderia ser alterada pela história, o que
impossibilitaria a superação da forma da sociedade atual por uma outra sem classes e sem
opressão. Como os homens são essencialmente individualistas, argumentam os conservadores,
a melhor sociedade possível é a capitalista.
A segunda resposta radical à nossa pergunta é a dos revolucionários. Afirmam eles que
não só é possível, como também necessário, que a humanidade se emancipe da exploração e
da opressão. A evolução da sociedade contemporânea não nos conduzirá a formas cada vez
mais civilizadas de opressão, como afirmam os conservadores, mas sim a uma barbárie
crescente ou à própria extinção da humanidade. E a única forma de evitar esta barbárie é
superar as desumanidades da sociedade capitalista. Para escapar à crescente barbárie, afirma
Marx, não há outra alternativa senão a emancipação humana da opressão dos homens pelos
homens.
Obviamente, há uma dimensão imediatamente política neste debate acerca da
necessidade e da viabilidade da revolução comunista. Contudo, sem desconsiderar a
importância deste debate político,o que nos interessa, aqui, é o seu fundamento filosófico.
Para Marx, não haveria uma essência humana independente da história. Os homens são o que
eles se fazem a cada momento histórico. A reprodução da sociedade burguesa produz
individualidades essencialmente burguesas. Contudo, reconhecer este fato não significa
afirmar que a essência mesquinha do homem burguês seja a essência imutável da
humanidade. Demonstra Marx que, tal como a humanidade se fez burguesa, ela também pode
se fazer comunista. Por isso, dizem os revolucionários, o capitalismo não é o fim da história.
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Entre a sociedade burguesa e a sociedade comunista não há nenhum outro obstáculo senão as
próprias relações sociais. Isto significa que existe a possibilidade histórica de a fraternidade
comunista se tornar, nas nossas vidas cotidianas, um fato tão característico da futura essência
humana quanto o individualismo burguês o é da nossa essência atual.
Não nos deve surpreender que a concepção revolucionária soe estranha aos ouvidos de
muitas pessoas. Submetidos a uma vida de miséria e privação, à opressão cotidiana, à
competição desenfreada por um lugar ao sol, todos nós convivemos com a sensação de
estarmos submetidos a um destino, a uma força, que não controlamos e sequer conhecemos.
Esta vida cotidiana desumana (ou seja, não-humana) faz com que os homens sequer cheguem
à consciência de que são eles que fazem a sua própria história. E, por isso, o que deveria ser
uma evidência se transforma num grave problema filosófico que pode ser resumido, muito
introdutoriamente, nesta pergunta: se os homens são os artífices de sua própria história, por
que eles construíram um mundo tão desumano? Se a história é feita pelos homens, por que
eles não têm sido capazes de construir uma sociedade verdadeiramente humana? Se os
homens constroem a si próprios, por que são tão desumanos não apenas com os outros, mas
também com aqueles que amam e mesmo consigo próprios? Se não há uma essência humana
que imponha um destino à humanidade, como querem os conservadores, de onde vem esta
força que freqüentemente empurra as nossas vidas para onde não desejamos, por vezes
transformando nossos mais belos sonhos em pesadelos?
RESUMO DO CAPÍTULO:
1 - Prévia-ideação e objetivação
Vamos imaginar que alguém tenha a necessidade de quebrar um coco. Para atingir este
objetivo, há várias alternativas possíveis: pode jogar o coco no chão, pode construir um
2
Temos aqui uma importante característica metodológica de Marx: o seu pressuposto pode ser historicamente
verificado. Se encontrarmos alguma sociedade que não necessite do intercâmbio orgânico com a natureza para a
sua reprodução, todo o marxismo teria que ser revisto. O fato de ter por pressuposto algo que pode ser verificado
na realidade faz do pensamento de Marx uma teoria muito distinta de todas as outras correntes filosóficas que
quase sempre “deduzem” ou “inferem” os seus pressupostos de seus próprios fundamentos.
Versão 7 11/8/2004 3:24 10
machado, pode queimá-lo e assim por diante. Para escolher entre as alternativas, deve
imaginar o resultado de cada uma ou, em outras palavras, deve antecipar na consciência o
resultado provável de cada alternativa.
Esta antecipação na consciência do resultado provável de cada alternativa possibilita às
pessoas escolherem aquela que avaliam como a melhor. Escolha feita, o indivíduo leva-a à
prática, ou seja, objetiva a alternativa.
Vamos imaginar que a alternativa escolhida para quebrar o coco seja a de construir um
machado. Ao construí-lo, o indivíduo transformou a natureza, pois o machado era algo que
não existia antes. Isto é da maior importância, uma vez que toda objetivação é uma
transformação da realidade.
Este é o modo de agir cotidiano que todos conhecemos. Vejamos o que de fato ocorreu:
1) há uma necessidade: quebrar o coco;
2) há diversas alternativas para atender a esta necessidade (jogar o coco no chão,
construir o machado, etc.);
3) o indivíduo projeta, em sua consciência, o resultado de cada uma das alternativas, faz
uma avaliação delas e escolhe aquela que julga mais conveniente para atender à necessidade;
4) uma vez projetado na consciência, ou seja, uma vez previamente ideado o resultado
almejado, o indivíduo age objetivamente, transforma a natureza e constrói algo novo. Este
movimento de converter em objeto uma prévia-ideação é denominado por Marx de
objetivação.
Iniciamos este capítulo tentando esclarecer por que, para Marx, o trabalho é o
fundamento do ser social. Até agora obtivemos uma resposta apenas parcial a esta pergunta:
através do trabalho, o homem, ao transformar a natureza, também se transforma. Quando os
homens constroem a realidade objetiva, também se constroem como indivíduos.
Contudo, este exemplo que estamos analisando (um indivíduo que precisa quebrar um
coco, e para isso faz um machado) tem uma séria limitação: ele trata do indivíduo e da sua
ação como se a sociedade não existisse. Como uma etapa preparatória para o estudo da
reprodução social, este passo é indispensável porque possibilita a identificação precisa dos
elementos essenciais do trabalho. Todavia, como não há indivíduos sem sociedade, restringir
a análise do mundo dos homens apenas aos indivíduos seria um enorme equívoco. Por isso,
para respondermos a pergunta mais satisfatoriamente, analisaremos no próximo capítulo a
relação entre os atos dos indivíduos e a sociedade.
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RESUMO DO CAPÍTULO:
b) todo ato de trabalho modifica também o indivíduo, pois este adquire novos
conhecimentos e habilidades que não possuía antes, bem como novas ferramentas que
também antes não possuía;
c) todo ato de trabalho, portanto, dá origem a uma nova situação, tanto objetiva quanto
subjetiva. Esta nova situação possibilitará aos indivíduos novas prévias-ideações, novos
projetos e, deste modo, novos atos de trabalho, os quais, modificando a realidade, darão
origem a novas situações, e assim por diante.
1- Objetivação e sociedade
2- Objetivação e conhecimento
medida em que o indivíduo constrói machados, ele aprende a distinguir as pedras umas das
outras. Isto lhe permite diferenciar as pedras duras das menos resistentes, as pesadas das mais
leves, etc. O que lhe possibilita, também, conhecer outras características das pedras, por
exemplo, as pedras vermelhas têm esta qualidade e aquele defeito para se fazerem machados,
as pedras negras têm outras qualidades e defeitos e assim por diante. Do conhecimento
imediatamente útil para a produção do machado, se evolui para um conhecimento das
propriedades das pedras em geral e, deste modo, para um conhecimento da natureza. O
mesmo ocorre com todos os objetos com os quais os homens entram em contato: de um
conhecimento singular e imediato se evolui para um conhecimento cada vez mais abrangente,
genérico. Por esse meio, um conhecimento que se originou da construção do machado pode
converter-se em algo útil para a construção de casas, pontes, etc. Isto é, pode ser aplicado em
situações muito diferentes daquela em que se originou.
Este fato não deve ser subestimado. Ele pode abrir possibilidades novas e inesperadas
ao desenvolvimento social. O conhecimento das pedras, adquirido ao se fazerem machados
pode, por exemplo, ser decisivo para uma tribo descobrir que determinadas pedras, uma vez
colocadas no fogo, derretem e liberam metais como o cobre e o ferro.
Este é um dos níveis de generalização do conhecimento, que estamos estudando. Um
conhecimento de um caso singular (construção de um machado) se transforma em um
conhecimento genérico que pode ser útil em diversas circunstâncias.
Mas há, também, um outro processo de generalização que envolve o conhecimento. Os
conhecimentos adquiridos por um indivíduo tendem a se tornar patrimônio de toda a
sociedade. Em mais ou menos tempo, dependendo do caso, os novos conhecimentos se
generalizam a todos indivíduos. O que era de domínio de apenas uma pessoa torna-se
conhecimento de toda a humanidade.
Podemos, agora, retornar à afirmação que fizemos acima e torná-la ainda mais
complexa. Dizíamos que todo ato de trabalho possui uma dimensão social. Em primeiro lugar,
porque ele é também o resultado da história passada, é expressão do desenvolvimento anterior
de toda a sociedade. Em segundo lugar, porque o novo objeto promove alterações na situação
histórica concreta em que vive toda a sociedade; abre novas possibilidades e gera novas
necessidades que conduzirão ao desenvolvimento futuro. Em terceiro lugar, podemos agora
acrescentar, porque os novos conhecimentos adquiridos se generalizam em duas dimensões:
tornam-se conhecimentos aplicáveis às situações mais diversas e transformam-se em
patrimônio genérico de toda a humanidade na medida em que todos os indivíduos passam a
compartilhar dos mesmos.
Versão 7 11/8/2004 3:24 15
Podemos, agora, responder à nossa pergunta do capítulo anterior acerca das razões de
ser o trabalho a categoria fundante do mundo dos homens. O trabalho é o fundamento do ser
social porque transforma a natureza na base material indispensável ao mundo dos homens. Ele
possibilita que, ao transformarem a natureza, os homens também se transformem. E esta
articulada transformação da natureza e dos indivíduos permite a constante construção de
novas situações históricas, de novas relações sociais, de novos conhecimentos e habilidades,
num processo de acumulação constante (e contraditório, como veremos). É este processo de
acumulação de novas situações e de novos conhecimentos – o que significa, novas
possibilidades de evolução – que faz com que o desenvolvimento do ser social seja
ontologicamente (isto é, no plano do ser) distinto da natureza.
RESUMO DO CAPÍTULO:
I) Todo ato humano tem por base a evolução passada da sociedade, a situação presente
concreta em que se encontra o indivíduo e suas aspirações e seus desejos para o futuro. Não
há ato humano fora da história, fora da sociedade.
trabalho: ela depende da ação de, ao menos, um indivíduo. Sem esta síntese, o machado não
Prévia-ideação e causalidade
3
. Síntese é um conceito filosófico que adquiriu enorme importância com Hegel (1770-1831) e, depois, com Karl
Marx. Ele significa que coisas distintas (no nosso caso, a idéia de machado e a madeira e a pedra) se articulam
dando origem a uma terceira, qualitativamente distinta das anteriores (o machado, no nosso exemplo).
Versão 7 11/8/2004 3:24 17
secando, apodrecendo, etc, a pedra vai se oxidando, rachando, reagindo com os componentes
do ambiente em que se encontra, e assim por diante. Os processos naturais continuam a agir
sobre o machado e esta ação é um componente importante de sua história.
Mas, ao lado destas transformações naturais, o machado também passa por
transformações provocadas pelos humanos. O seu uso pelas pessoas pode submeter a pedra e
a madeira a um tipo de desgaste que não sofreriam na natureza. Ou, também, o seu uso pode
protegê-lo de desgastes que sofreria em seu estado natural: ele pode ser preservado das
chuvas, do sol, etc.
Em suma, sendo o machado a unidade sintética entre a prévia-ideação e a natureza, sua
evolução é determinada tanto pelos processos naturais quanto pelo seu uso pelos homens.
A evolução do machado – ou, mais precisamente, a história do machado – não pode
jamais ser controlada de forma absoluta pelo seu criador. Por mais que o indivíduo cuide da
sua ferramenta, ela pode evoluir num sentido diferente – às vezes mesmo oposto – àquele
desejado. O machado pode quebrar no momento em que ele seria mais necessário; ou então,
pode levar a descobertas de novas possibilidades para a evolução social de que seu criador
jamais poderia suspeitar.
Quantas vezes nós nos deparamos, nas nossas vidas, com conseqüências de nossas
ações que jamais imaginamos possíveis? Estas conseqüências podem ser boas ou ruins, aqui
não importa. O que importa é que toda ação humana produz resultados que possuem uma
história própria, que evoluem em direções e sentidos que não podem jamais ser
completamente previstos ou controlados, produzindo conseqüências inesperadas.
Essa independência da realidade frente à consciência – mesmo daquela porção da
realidade produzida pelos homens – existe porque todos os nossos atos constroem objetos que
são distintos de nós e de nossas consciências. Estes objetos possuem uma evolução própria
porque neles atuam causas a eles inerentes e que impulsionam seu desenvolvimento. No caso
do machado, estas causas são causas naturais (o apodrecimento da madeira, o envelhecimento
da pedra) somadas a causas sociais (a forma como o machado é utilizado, etc.). Outras vezes,
como quando se trata das lutas de classe, as causas são exclusivamente sociais.
Em outras palavras, a idéia que é objetivada se transforma em objeto. O novo objeto se
converte em parte da causalidade e passa a sofrer influências e a influenciar a evolução da
realidade da qual é parte. Ao fazê-lo, é submetido a uma relação de causas e efeitos que
impulsionam a sua evolução com autonomia frente à consciência que o idealizou.
Há, assim, a esfera subjetiva, a consciência e, de outro lado, o mundo objetivo. Este
último evolui movido por causas que lhe são próprias. Esta esfera puramente causal é
denominada, por Lukács, causalidade. Ou seja, a causalidade possui um princípio próprio de
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RESUMO DO CAPÍTULO:
I) Idéia e Matéria são qualitativamente distintas. Jamais uma será a outra. A idéia, ao se
objetivar em um produto, deixa de ser idéia e se converte em matéria. A matéria, ao ser
4
pensada pela consciência, é convertida em idéias .
II) A matéria se distingue da consciência por possuir em si própria suas causas, seus
princípios de movimento, de evolução. Por isso Lukács, para diferencia-la da prévia-ideação,
denomina-a causalidade.
III) Os objetos criados pelo trabalho se originam da objetivação de prévias-ideações.
Contudo, ao se objetivarem as prévias-ideações, o objeto produzido é inserido na cadeia de
causas que rege o setor da realidade ao qual pertence, e sua evolução passa a ser determinada
4
Isto é uma aproximação que pode ser aceitável em uma introdução, mas que
está longe de dar conta da questão. Pois a subjetividade humana é composta
muito mais do que por idéias; ela contém emoções, sensações, complexos
valorativos, pulsões afetivas, etc. que, ainda que tenham todos eles seu
fundamento na relação do homem com o mundo em que vive, não são de modo
algum redutíveis a idéias. Por outro lado, um objeto como uma mesa não é
apenas a matéria (madeira, pregos, etc.), mas também expressão da
subjetividade que a idealizou. Isto pode ser nitidamente percebido nas
obras de arte, nas quais a personalidade do artista é determinante --mas de
forma mas atenuada, este fato se faz presente em toda e qualquer
objetivação. Por isso, a contraposição aqui feita entre idéia e matéria não
vai além de uma enorme simplificação que, repetimos, pode servir como
introdução, mas que não se refere à totalidade do problema.
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também por estas causas. Do mesmo modo, sua ação sobre a evolução da realidade, seja ela
social ou natural, se dará de modo puramente causal.
IV) O fato de idéia e matéria serem ontologicamente distintas não impede as idéias de
exercerem força material na transformação do mundo dos homens. Ao se converterem em
"força material", as idéias jogam um papel objetivo na história. Veremos isso com mais
cuidado ao tratarmos da ideologia.
1- O materialismo
2 - O idealismo
O idealismo foi mais rico em formulações e suas variações são mais intensas e amplas
do que o materialismo. Desde Parmênides, passando por Platão, toda a Idade Média e os
racionalistas modernos, conheceu inúmeras variantes. Todas elas, contudo, parecem convergir
para, nas últimas décadas do século XVIII, dar origem ao idealismo subjetivo de Kant.
O pressuposto do idealismo é o reconhecimento do papel ativo, decisivo, das idéias e da
consciência humana na história. Esse reconhecimento, contudo, é equivocadamente exagerado
a tal ponto que todo o mundo em que os homens vivem (portanto, tanto a sociedade quando a
natureza) passam a ser decorrentes da ação da consciência. O idealismo não nega a existência
da matéria, apenas afirma que, na nossa relação com o mundo material, este assume a forma
pelo qual é reconhecido pela consciência.
Para Kant, todo conhecimento humano passa pelos sentidos. Sem as sensações,
portanto, nenhum conhecimento do mundo seria possível. As sensações, todavia, possuiriam,
segundo ele, duas limitações fundamentais. A primeira é que não são as coisas que produzem
as sensações, mas nossos órgãos dos sentidos. Assim, embora as sensações se refiram às
coisas, elas são, na verdade, produzidas no e pelo sujeito. Portanto, as sensações nos dizem
como percebemos as coisas, mas não como as coisas são. Um exemplo: Aristóteles, que não
conhecia a gravitação universal, postulava que o universo seria finito e esférico. O universo,
portanto, para ele, era de fato finito e esférico. Newton, já no século XVII, com a lei da
gravitação universal, afirma que o espaço teria necessariamente que ser infinito e, portanto,
que o universo seria infinito. Einstein, já no século XX, vai demonstrar novamente a finitude
do universo com a sua teoria acerca da curvatura do espaço. Esses exemplos, segundo Kant,
demonstrariam como nossa sensação do que é o universo revelaria como nós o "enxergamos",
mas não como ele de fato é. Esta, portanto, a primeira limitação das sensações: informam-nos
como percebemos as coisas, mas não nos dizem como as coisas são.
A segunda limitação das sensações, segundo Kant, estaria no fato de que elas sempre se
refeririam a um evento, ou a um número relativamente pequeno de eventos. Faça-se uma
experiência: fechem-se os olhos e percebam-se as sensações, isoladas umas das outras. Elas
não têm, isoladamente, o mesmo significado que quando articuladas em uma "imagem" do
mundo. Sentir uma cadeira sob o nosso corpo pode ter muitos significados. Na Idade Média,
apenas o rei poderia sentar, portanto, em algumas circunstâncias, o fato de alguém estar
Versão 7 11/8/2004 3:24 22
sentado poderia indicar que esse alguém era o rei. Se alguém estiver estudando para uma
prova, estar sentado tem outro significado. E assim sucessivamente. O que vai conferir
significado à sensação, portanto, não é a sensação como tal, mas a sua articulação, o seu lugar
e a sua função no mundo em que ocorre. Ela tem que ser articulada com a universalidade do
mundo para que possa ter qualquer sentido. E, como as sensações não nos revelam a
universalidade, esta universalidade teria que vir da razão. E, de fato, segundo Kant, seria isso
que aconteceria. A razão humana seria portadora dos conceitos universais de tempo e espaço.
Seria a atividade da consciência que inseriria as sensações do singular e do particular no
tempo e no espaço (repetimos, universais) e, ao fazê-lo, conferiria a cada sensação o seu
significado. Ser portador dos conceitos "a priori" de espaço e tempo, segundo Kant, seria a
"natureza" imutável, fixa para todo o sempre, da razão.
Portanto, para o idealismo kantiano, não podemos jamais saber o que as coisas de fato
são. O que podemos conhecer e explorar é a imagem do mundo que nossa consciência produz
a partir da organização das nossas sensações no tempo e no espaço. E esta imagem do mundo
pode variar tanto quanto a de Aristóteles, Newton ou Einstein. O espírito humano, em seu
processo interno de desenvolvimento, vai construindo imagens do mundo. Ao explorá-las,
este mesmo espírito vai descobrindo novas contradições e problemas que ele antes
desconhecia e, a partir destes problemas e contradições, vai produzindo uma visão de mundo
mais sofisticada e desenvolvida. Esta nova concepção, todavia, também terá problemas e
conduzirá, com o tempo, a uma terceira, a uma quarta, imagens de mundo, etc. Assim, a
história passa a ser vista como o resultado de uma luta de idéias e, de modo mais geral, como
o processo constante de auto-aperfeiçoamento do espírito humano.
Antes de passarmos a Marx, é importante que se perceba que tanto o idealismo quanto o
materialismo mecanicista, cada um a seu modo, acentuam um aspecto da questão. Os
idealistas reconhecem, corretamente, o papel decisivo das idéias. Os materialistas, não menos
corretamente, reconhecem o fundamento material do espírito humano. De modo simétrico, os
idealistas se equivocam ao não perceberem o peso determinante da vida social objetiva sobre
as concepções de mundo e, analogamente, os materialistas se equivocam por não
reconhecerem o papel ativo das idéias sobre o desenvolvimento humano.
Tais debilidades dos idealistas e dos materialistas, como vimos, decorriam do pouco
desenvolvimento das forças produtivas até o início do século XIX, o que impediu que a
humanidade percebesse com clareza como os homens são, ao mesmo tempo, distintos e
dependentes da natureza. Por isso, a solução da questão não estava em unir as duas correntes,
mas sim em superar historicamente este patamar de desenvolvimento da humanidade. Foi
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necessário que a sociedade passasse por transformações tão radicais como a Revolução
Francesa e a Revolução Industrial para que surgisse uma nova situação histórica que tornasse
possível a Marx superar os velhos materialismo e idealismo.
3 - O materialismo histórico-dialético
objetiva, realmente existente, tão existente quanto uma pedra ou o universo: a sociedade
humana. E, como a sociedade humana age sobre a pedra e sobre o universo, o
desenvolvimento da própria natureza passa a sofrer interferências materiais das ações
humanas orientadas por idéias. As idéias são resultado tardio do desenvolvimento do
universo, mas isso não as torna "menos reais" do que a materialidade natural.
Nesse preciso sentido, o materialismo histórico-dialético concebe o mundo dos homens
como a síntese de prévia-ideação e matéria natural. Nem apenas idéia, nem só matéria, mas
5
uma síntese entre as duas, tipicamente realizada no e pelo trabalho, que origina uma nova
forma de ser: o mundo dos homens.
Todavia, não é suficiente afirmar que o mundo dos homens é uma síntese de idéia e
matéria. Pois isto pode levar ao equívoco de cancelar a prioridade da matéria sobre a idéia,
em dois momentos fundamentais. O primeiro é o fato de que a matéria é anterior à idéia; que
a natureza existia antes de os homens surgirem; que a idéia é um desenvolvimento tardio da
matéria. O segundo é que, em se tratando da reprodução do mundo dos homens, as
determinações materiais (que são fundadas prioritariamente pelo desenvolvimento das forças
produtivas) constituem o momento predominante no desenvolvimento das idéias. É a
existência social dos homens que determina as suas consciências, e não o inverso. Trataremos
dessas questões à frente, no Capítulo X.
RESUMO DO CAPÍTULO:
I) Há três grandes tendências filosóficas que tentam dar conta da relação entre espírito e
matéria:
a) o idealismo: considera a história como o puro movimento das idéias, como idéias
em movimento. Na prática política, os idealistas tendem a superestimar a importância da luta
ideológica e a desprezar os atos práticos de transformação da realidade.
b) o materialismo mecanicista: reduz as idéias e a história ao mero movimento da
matéria, tentando explicar tudo pela evolução inevitável da realidade objetiva. Na prática
política, tende a desprezar a importância da luta ideológica nos processos históricos.
c) o materialismo histórico-dialético: descoberto por Marx ao estudar a sociedade
capitalista, caracteriza-se por conceber o mundo dos homens como a síntese da prévia-ideação
com a realidade material, típica e elementarmente através do trabalho. As dimensões ideal e
material dos atos humanos são integradas, possibilitando tanto reconhecer a importância das
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idéias para a história, como também a sua impotência quando não encontram as condições
históricas necessárias para que sejam traduzidas em prática (para que sejam objetivadas) por
atos humanos concretos.
d) o materialismo histórico-dialético, portanto, é a superação histórica tanto do
idealismo quanto do materialismo mecanicista. Ele possibilita compreender a base material
das idéias e, ao mesmo tempo, a força material das idéias na reprodução social.
Capítulo VI - O conhecimento
5
Tipicamente, portanto não apenas. Todo e qualquer ato humano, toda e qualquer objetivação, altera o mundo
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aos doentes por um período de tempo mais prolongado, descobre que este remédio termina
por matar as células do intestino. Ao pesquisar porque o remédio afeta o intestino, nosso
cientista descobre que este órgão possui uma substância nas suas células, que antes ninguém
percebera, que, ao reagir com o remédio, termina matando o intestino e, logo depois, o
próprio paciente.
Neste exemplo, o "período de conseqüências" é bem visível. Ao alterar a composição do
sangue, introduzindo o remédio, o objetivo imediato do cientista é alcançado: a AIDS evolui
mais lentamente. Contudo, no “período de conseqüências” um fato novo é descoberto: há uma
substância no intestino, até então despercebida, que é alterada pelo remédio, matando assim o
paciente. Logo, o remédio não deve ser usado.
Observe-se como o “período de conseqüências” é importante. Ele fornece novas
indicações e informações sobre a realidade e sobre o que foi produzido, possibilitando aos
homens adquirirem conhecimentos até então sequer imagináveis. Nosso cientista jamais
poderia imaginar que, ao pesquisar a AIDS, iria descobrir um novo composto no intestino
humano. O resultado alcançado foi completamente diferente do pretendido! E, ainda que a
cura da AIDS não tenha sido alcançada, o conhecimento obtido certamente é útil e será
aproveitado nesta e em outras circunstâncias.
Veremos, ao estudar as alienações que, muitas vezes, o “período de conseqüências”
pode resultar não no desenvolvimento do conhecimento e da capacidade dos homens
dominarem a natureza, mas sim no surgimento e desenvolvimento de relações sociais
desumanas, que tornam as pessoas – e a sociedade -- menos humanas do que poderiam ser.
Mas, agora, o que nos interessa é que o “período de conseqüências” abre a possibilidade de
conhecermos a realidade através dos efeitos que resultam dos nossos atos. Vejamos como isto
se dá.
Para que o trabalho tenha êxito, é necessário que o indivíduo e a sociedade possuam o
conhecimento mínimo indispensável para a transformação desejada da realidade. A prévia
ideação que propõe transformar a água em machado seria uma impossibilidade, porque as
propriedades da água não permitem isso. Para que o ato de trabalho alcance seu objetivo, é
necessário o conhecimento que possibilite escolher os meios da realidade que são adequados à
objetivação da prévia ideação. Conhecer estes meios é, pois, imprescindível para a realização
do trabalho. Por isso, quase sempre, o ato de trabalho bem sucedido se baseia em um
“conhecimento adequado” da realidade que foi transformada.
Contudo, este “conhecimento adequado” é correspondente ao objetivo que se tem em
mente. Por exemplo, para um homem pré-histórico fazer um machado, era imprescindível que
ele conhecesse a madeira e a pedra o suficiente para distinguir um do outro e do resto da
natureza. Era necessário que ele conhecesse as madeiras e as pedras o suficiente para que
pudesse escolher a melhor pedra e o melhor pedaço de madeira. Contudo, não era
indispensável que ele conhecesse que a madeira e a pedra são compostas por átomos. O
conhecimento dos átomos é indispensável para uma transformação muito mais intensa e
desenvolvida da natureza, como a que ocorre nos reatores atômicos, mas o homem pré-
histórico poderia perfeitamente construir o machado sem este conhecimento.
Portanto, todo ato de trabalho requer o conhecimento do setor da realidade a ser
transformado. Contudo, isto não significa que se deva conhecer tudo da realidade, mas apenas
os aspectos diretamente envolvidos no ato da transformação. O conhecimento que surge
relacionado a esta exigência traz a marca do seu momento histórico, pois, ao construir um
machado, investigamos a realidade a partir deste nosso objetivo. Isto faz com que todo
conhecimento da realidade evolua muito influenciado pelas necessidades e pelos objetivos
que se tem a cada momento histórico.
Em resumo, a consciência deve refletir a realidade para ser capaz de produzir um
conhecimento adequado. Por isso, ao investigar a realidade, é da máxima importância que a
consciência possa construir uma idéia que reflita o real do modo mais fiel possível. Contudo,
esta fidelidade do reflexo é condicionada pelas necessidades e pelos objetivos que orientam a
investigação. O reflexo jamais poderá ser um reflexo fotográfico, mecânico, da realidade. Ele
é sempre uma construção da consciência, uma atividade da consciência. Esta atividade da
consciência é a apropriação das propriedades da realidade segundo as necessidades e
objetivos do momento. E como essas necessidades e objetivos surgem ao longo da história,
todo reflexo do real é historicamente condicionado.
Por outro lado, quando o conhecimento é utilizado num ato de trabalho, ele também é
colocando à prova, podendo, assim, ser verificada a sua validade nesta nova situação. Vale
dizer, pode ser avaliada a sua maior ou menor fidelidade como reflexo da realidade. Ao
checar sua validade, é possível perceber até que ponto ele é verdadeiro, quais são seus limites,
etc., obtendo-se assim novos conhecimentos que irão, por sua vez, possibilitar novos atos de
trabalho e, por esta via, novos conhecimentos.
Por fim, já que tanto a realidade quanto a subjetividade estão sempre em evolução, é
impossível um conhecimento absoluto da realidade. O conhecimento é uma atividade da
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consciência que, através da construção de idéias, reflete as qualidades do real. Por outro lado,
o real é um processo histórico. Uma realidade e uma consciência, ambas em movimento, não
podem jamais resultar em um conhecimento absoluto, fixo, imutável. Por isso a reflexão da
realidade pela consciência é um constante processo de aproximação das idéias em relação à
realidade em permanente evolução.
Em suma: conhecemos a realidade externa à consciência porque, ao transformá-la
tipicamente pelo trabalho, podemos verificar a validade e a veracidade dos nossos
conhecimentos.
RESUMO DO CAPÍTULO:
Iniciamos nosso estudo afirmando que, para Marx, os homens são os artífices de sua
própria história. Afirmamos que, segundo ele, quando os homens transformam a realidade,
tipicamente através do trabalho, também se modificam e se constroem como seres humanos.
Vimos como, através do trabalho, ao objetivarem as suas prévias-ideações, os homens
produzem um ambiente cada vez mais favorável à sua sobrevivência, num processo bastante
complexo através do qual idéia e causalidade se sintetizam em objetos distintos da
consciência. Dois são os resultados concretos deste fato.
O primeiro: como os objetos criados são distintos da consciência, possuem
conseqüências que não podem ser por ela controladas. Há, por isso, um “período de
conseqüências” após cada ato, no qual este possui uma ação de retorno sobre o indivíduo e,
também sobre a sociedade. Ao se confrontarem com as conseqüências de suas ações, os
homens podem avaliar o conhecimento que já possuem, bem como adquirir outros novos.
O segundo: com base nos objetos já produzidos e nos novos conhecimentos, os homens
desenvolvem suas forças produtivas, isto é, sua capacidade de transformar a natureza segundo
as suas prévias-ideações. Portanto, para Marx, ao transformarem a natureza, os homens
transformam também a si próprios como seres humanos.
Esta explicação do porquê os homens são artífices do seu destino é certamente
verdadeira; contudo ganhará em riqueza se considerarmos, ainda que muito
introdutoriamente, o movimento histórico concreto.
1 - A sociedade primitiva
6
A investigação sobre a origem da espécie humana é um dos aspectos da
história, da arqueologia e da antropologia que mais tem avançado. Contudo,
o conhecimento que possuímos é ainda fragmentado, e com certeza será muito
alterado nos próximos anos, com novas descobertas. Todos os indícios levam
a crer, contudo, que os homens surgiram na África a partir da evolução de
um primata muito primitivo denominado Rhamapithecus, que deu origem ao
Australopithecus que, por sua vez, deu origem aos primeiros homens, o Homo
Erectus e o Homo Habilis e, finalmente, ao Homo sapiens. Há um texto
interessante sobre o tema: Leakey, R. A Origem da Espécie Humana. Ed.
Record. São Paulo, 1999.
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organização social não poderia evoluir para além de pequenos bandos que migravam de um
lugar a outro em busca de comida.
Pequenos bandos migratórios: esta é a primeira forma humana de organização social.
Como a produtividade era muito pequena, e todos normalmente passavam fome, não havia
qualquer possibilidade econômica de exploração do homem pelo homem. Era uma sociedade
tão primitiva que sequer possibilitava a existência das classes sociais.
Contudo, o trabalho e seus efeitos já se faziam presentes mesmo neste ambiente
primitivo. Ao coletarem os alimentos, os homens iam conhecendo a realidade, e este
conhecimento era generalizado por todos os membros do grupo. Com o tempo, estes bandos
foram capazes de produzir ferramentas cada vez mais desenvolvidas e foram conhecendo cada
vez melhor o ambiente em que viviam. Com o desenvolvimento das forças produtivas, os
bandos puderam aumentar de tamanho e se complexificaram. Indivíduos e sociedade já
naquele momento estavam em permanente evolução. É importante acentuar: o que
caracterizava o trabalho (tomado socialmente) nesta comunidade primitiva, era o fato de que
todos trabalhavam e também usufruíam do produto do trabalho.
Esta evolução levou à primeira grande revolução na capacidade humana de transformar
a natureza: a descoberta da semente e da criação de animais.
Com o aparecimento da agricultura e da pecuária, os homens puderam, pela primeira
vez, produzir mais do que necessitavam para sobreviver, ou seja, surgiu um excedente de
produção.
A existência deste excedente tornou economicamente possível a exploração do homem
pelo homem. Temos aqui a gênese de algo radicalmente novo na história humana. Nas
sociedades primitivas, os indivíduos, por mais que divergissem, tinham no fundo o mesmo
interesse: garantir a sobrevivência de si e do bando ao qual pertenciam. Com o surgimento da
exploração do homem pelo homem, pela primeira vez as contradições sociais se tornam
antagônicas, isto é, impossíveis de serem conciliadas. A classe dominante tem que explorar o
trabalhador, este não deseja ser explorado.
da riqueza produzida nas aldeias através de impostos, sempre recolhidos sob a ameaça do
emprego da força militar.
Para possibilitar esta exploração dos trabalhadores pela classe dominante, foi necessária
a criação de novos complexos sociais. Entre estes, os mais importantes foram o Estado e o
Direito. O Estado é a organização da classe dominante em poder político. Tal poder apenas
pode existir apoiando-se em um conjunto de instrumentos repressivos (exército, polícia,
sistema penitenciário, funcionalismo público, leis, etc.). Independente da forma que esse
Estado assuma e das formas de exercer o poder, segundo Marx e Lukács, o Estado é,
essencialmente, um instrumento de dominação de classe.
Vale notar que, na comunidade primitiva, também existia a autoridade, mas não existia
o Estado. Nela, a autoridade, baseada na idade, na sabedoria, na experiência de vida, nos
dotes físicos, etc. não estava a serviço da exploração do homem pelo homem, ao contrário das
sociedades de classe nas quais a autoridade tem por função social o domínio de uma parte da
sociedade sobre outra.
Quando ao Direito, vale uma observação semelhante. Nas sociedades primitivas não
existiam leis: como os interesses eram bastante parecidos, a tradição e os costumes eram
suficientes para organizar a vida social. Os eventuais desacordos e conflitos eram resolvidos a
partir de procedimentos e rituais que compunham a cultura tradicional da sociedade. Com a
7
divisão da sociedade em classes, os interesses, agora antagônicos , não podiam ser resolvidos
a não ser pela força. A reprodução da sociedade, contudo, ficaria inviabilizada se esta
afirmação de força degenerasse cotidianamente em uma luta aberta entre as classes, em uma
guerra civil. Evitar que isso aconteça é a função social do Direito. Cabe ao Direito
regulamentar a vida social por meio de leis que jamais ultrapassem a dominação de classe.
Como a principal divergência, agora, é entre os que detêm a propriedade dos meios de
produção e os que têm apenas a força de trabalho, o objetivo fundamental do Direito será o de
regulamentar a vida social de modo a que ela possa se reproduzir sobre a base da propriedade
privada.
Em suma, com a exploração dos homens pelos homens, surgiram as primeiras formas de
sociedades de classe. Existem agora têm interesses antagônicos, inconciliáveis: de um lado os
exploradores, de outro os explorados. Para manter a sua dominação, os exploradores criaram
o Estado, que é o conjunto formado pelos funcionários públicos (a burocracia), a polícia, o
exército e o Direito.
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RESUMO DO CAPÍTULO:
7
Isto é, opostos, impossíveis de serem conciliados, que não admitem uma
solução comum, que não conhecem um meio-termo.
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8
Produção é o total produzido. Produtividade é a relação do produzido com o
tempo de trabalho, ou com o número de trabalhadores, ou em relação à área
plantada, ou quantidade de máquinas empregadas, etc. Uma produção maior,
com mais trabalhadores ou mais horas trabalhadas, pode ter uma
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Para que os senhores de escravos enriquecessem, já vimos, era necessário que tivessem
cada vez mais escravos e foi com esse objetivo que criaram o Estado.
Contudo, a eficiência do Estado foi diminuindo conforme aumentavam o número de
escravos e o tamanho do império. E, a partir de um dado momento histórico, o exército e o
Estado haviam crescido tanto (e, com eles, a corrupção) que a riqueza que eles propiciavam
aos senhores já não era suficiente para mantê-los. Os seus custos se tornaram maiores do que
os lucro dos senhores. Em outras palavras, os impostos se tornaram tão caros que os senhores
já não tinham como pagá-los. Soldados e funcionários públicos começaram a receber cada vez
menos.
produtividade menor que outra produção menor que é realizada com muito
menos trabalhadores ou horas trabalhadas.
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RESUMO DO CAPÍTULO:
9
Sobre esta crise, cf. Anderson, P. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo.
Ed. Afrontamento, Porto, 1982.
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1- O feudalismo
Com a crise do escravismo, abriu-se um longo processo, que durou séculos, de transição
para o novo modo de produção, o feudalismo. O que caracterizou este processo de transição
foi, em primeiro lugar, o fato de nele não atuar uma classe revolucionária. Os escravos não
eram uma classe revolucionária porque não tinham condições históricas de levar à prática um
projeto alternativo de sociedade. Naquela situação histórica, o desenvolvimento das forças
produtivas ainda não atingira o patamar que possibilitasse aos homens o conhecimento
indispensável ao surgimento de uma classe revolucionária para liderar a transição da velha
sociedade para uma nova.
Com isso, a transição foi caótica, fragmentada, lenta e o novo modo de produção, o
feudalismo, se estruturou de modo muito diferenciado de lugar para lugar.
Com o desaparecimento da estrutura produtiva e comercial do Império Romano, o
comércio e o dinheiro praticamente desapareceram. A auto-suficiência passou a ser uma
necessidade. A interrupção dos contatos entre as localidades mais distantes acarretou uma
regressão na produção, na cultura e na sociedade. Por isso, a principal característica do
feudalismo foi a organização da produção em unidades auto-suficientes, essencialmente
agrárias e que serviam também de fortificações militares para a defesa: os feudos. O trabalho
no campo era realizado pelos servos. Estes, diferente dos escravos, eram proprietários das
suas ferramentas e de uma parte da produção. A maior parte da produção ficava com o Senhor
Feudal, proprietário da terra, e também líder militar, a quem cabia a responsabilidade da
defesa do feudo. O senhor feudal não poderia vender a terra ou expulsar o servo; este, em
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contrapartida, não poderia abandonar o feudo. O servo estava ligado à terra e, o senhor feudal,
ao feudo.
A queda do Império Romano provocou, portanto, uma regressão das forças produtivas,
no sentido mais amplo do termo. Contudo, esta regressão foi, ao mesmo tempo, um avanço.
Pois, ao destruir o escravismo, aboliu ao mesmo tempo todos os entraves ao desenvolvimento
histórico típicos daquele modo de produção. Acima de tudo, aboliu a incapacidade de
elevação da produtividade de trabalho que é inerente à condição do escravo. Esta regressão
imediata tornou possível o surgimento de uma nova forma de organização social na qual o
desenvolvimento das forças produtivas poderia ocorrer livre dos velhos entraves. De
imediato, foi sem dúvida alguma uma regressão; mas a médio e longo prazos foi a condição
indispensável para que a humanidade continuasse a desenvolver as forças produtivas, isto é,
as capacidades humanas para transformar a natureza.
Nesse contexto, a grande novidade histórica do feudalismo está no fato de que –
diferente de tudo o que ocorrera nas relações entre o escravo e o seu senhor, -- os servos
ficavam com uma parte da produção e, assim sendo, interessava aos servos aumentá-la. Como
resultado desse interesse, começaram a desenvolver novas ferramentas, novas técnicas
produtivas, novas formas de organização do trabalho coletivo, aprimoraram as sementes,
melhoraram as técnicas de preservação do solo. Em poucos séculos a produção voltou a
crescer e, graças à melhor alimentação, a população aumentou. Logo em seguida, o aumento
da produção e da população provocou uma crise no sistema feudal: o feudo possuía mais
servos do que necessitava e produzia mais do que conseguia consumir.
Frente à crise, os senhores feudais romperam o acordo que tinham com os servos e
expulsaram do feudo os que estavam sobrando. Estes, sem terem do que viver, começaram a
roubar e a trocar o produto do roubo com outros servos. Como todo mundo estava produzindo
mais do que necessitava, todos tinham o que trocar e voltou a florescer o comércio. Em pouco
mais de dois séculos, as rotas comerciais e as cidades renasceram e se desenvolveram em
quase toda a Europa.
Com o comércio e as cidades, surgiram duas novas classes sociais: os artesãos e os
comerciantes, também chamados de burgueses.
base no mercado mundial e no constante desenvolvimento das forças produtivas que ele
possibilitou, realizou a Revolução Industrial (1776-1830). Após a Revolução Industrial, a
sociedade burguesa atingiu sua maturidade e amadureceram as suas classes fundamentais: a
burguesia e o proletariado.
O modo de produção capitalista tem em sua essência uma nova forma de exploração do
homem pelo homem: do trabalhador, a burguesia compra apenas a sua força de trabalho.
Como a utilidade da força de trabalho é apenas uma, produzir; e como ela possui uma
propriedade única entre as mercadorias, que é a de, empregada adequadamente, produzir um
valor maior do que ela própria vale, o burguês que comprou a força de trabalhado tem, ao
final do mês, um valor maior do que aquele que paga ao trabalhador sob a forma de salário.
Este valor maior é a mais-valia.
Contudo, para que a força de trabalho possa ser convertida em mercadoria, ou seja,
possa ser comprada e vendida no mercado, é necessário que o trabalhador seja separado dos
meios de produção e do produto produzido. Este é um longo processo histórico que teve
início mesmo nos modos de produção anteriores ao capitalismo, mas que se intensificou e
recebeu sua forma final entre os séculos XV e XVIII. Com as grandes navegações (sec. XV e
XVI), surgiu um mercado mundial que possibilitou à burguesia européia acumular capital na
escala necessária para ir transformando o artesão medieval, que trabalhava em sua oficina,
com suas ferramentas, sua matéria-prima e com a posse do produto final, em um trabalhador
assalariado justamente porque perdeu a posse de todo o resto menos de sua força de trabalho.
A Revolução Industrial (1776-1830) transforma, finalmente, esse trabalhador em operário.
Esta separação do trabalhador dos meios de produção é o fundamental do que Marx e Engels
chamaram do período de acumulação primitiva do capital.
Essa acumulação primitiva teve, ainda, uma outra característica importante, diretamente
associada à separação do trabalhador dos meios de produção. A criação do mercado mundial e
a criação de um mercado de força de trabalho exigiram e possibilitaram um aumento de
produção que, por sua vez, intensificou a divisão social do trabalho. O que se produz não é
mais para consumo próprio, mas para vender no mercado. Deste modo, todos precisam, agora,
se dirigir ao mercado (com dinheiro, claro) para adquirir os bens necessários à vida. A
sociedade se converte, assim, em um enorme mercado e tudo passa a ser mercadoria. Com o
amadurecimento do modo de produção capitalista, esta forma de relação social se converte no
padrão de relacionamento de todos os homens entre si. As sociedades que não conseguiram se
integrar ao mercado são destruídas pelo capitalismo (as sociedades indígenas na América,
África e Ásia, o modo de produção asiático tal como sobreviveu na Índia, na China, Japão,
Coréia, etc.) e, as outras que o conseguiram, adaptaram as suas formações sociais para
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Essa é a razão fundamental para que a sociedade burguesa marque o surgimento de uma
nova forma de relação entre os homens. No capitalismo, as relações sociais são, antes de mais
nada, instrumentos para o enriquecimento pessoal. Se para um burguês enriquecer, ou se
tornar ainda mais rico, for necessário jogar milhões na miséria – ou mesmo matar milhões –
ele assim o fará, e a sociedade burguesa aceitará este fato como "natural". Insano o burguês
que deixar de ganhar dinheiro para defender os interesses coletivos. Para o indivíduo típico da
sociedade burguesa, a coletividade nada mais é do que o instrumento para o seu
enriquecimento pessoal. Esta é a essência do individualismo burguês, tão característico da
vida social dos nossos dias.
Versão 7 11/8/2004 3:24 40
RESUMO DO CAPÍTULO:
Lukács assinala que a história evidencia que a reprodução social segue algumas linhas
gerais:
1) Há uma tendência de fundo para a constituição de relações sociais sempre mais
genéricas, que abarcam uma porção cada vez maior da humanidade. A humanidade evoluiu
dos pequenos bandos para sociedades cada vez maiores, que articulam um número crescente
de indivíduos. Com o desenvolvimento do capitalismo, estas sociedades foram por fim
articuladas através do desenvolvimento do mercado mundial, de tal modo que, nos dias de
hoje, a humanidade está efetivamente integrada numa vida social comum. Um exemplo será
suficiente: há milhares de anos, o que ocorria na China em nada afetava a vida de um indígena
brasileiro. Hoje, a vida de todos nós está submetida à crise de um mercado mundial. Uma
superprodução de arroz na China pode afetar o agricultor gaúcho ou goiano. Portanto, ainda
que não se conheçam, a vida dos produtores de arroz do mundo inteiro está, de algum modo,
relacionada. O mesmo ocorre em todos os setores da atividade social.
Com isto Lukács não quer negar que existam diferentes sociedades, países e culturas;
mas assinalar que estas diferenças não impedem que a vida de todos os indivíduos do planeta
Terra esteja articulada de forma bastante estreita. Hoje, como nunca na história da
humanidade, os indivíduos compartilham de uma mesma história.
2) A segunda tendência de fundo do desenvolvimento social, para Lukács, é a
constituição de sociedades cada vez mais internamente heterogêneas, complexas. De uma
situação inicial na qual as únicas diferenças decisivas entre os indivíduos eram a idade e o
sexo, a evolução levou a uma divisão de trabalho cada vez mais intensa com o aparecimento
de diferentes atividades produtivas (separação da agricultura da pecuária, seguida pelo
desenvolvimento do artesanato e pelo surgimento do comércio, da cidade e do campo, etc.).
Após o surgimento das classes sociais, a diferenciação interna da sociedade adquiriu um novo
impulso. Com as lutas de classe, há necessidade de um novo conjunto de instituições, em
especial o Estado e o Direito, que aumenta ainda mais a complexidade e a heterogeneidade
das formações sociais. Essa linha de evolução continua até o dia de hoje, quando a crescente
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10
Há aqui uma possível diferença significativa entre Lukács e Marx. Sobre
isso consultar Lessa, S. "Lukács: direito e política" in Pinassi, M. O. e
Versão 7 11/8/2004 3:24 44
fator predominante do desenvolvimento histórico. É isto que Marx queria dizer quando
apontava a economia como o complexo predominante do desenvolvimento social – coisa
muito distinta daquela interpretação de seu pensamento, infelizmente muito comum à
esquerda e à direita, de que para o pensador alemão a vida se resumiria essencialmente à
economia.
Estas quatro tendências de fundo do desenvolvimento social exemplificam com clareza
o que Lukács quer dizer ao afirmar que o ser social é um complexo de complexos. Ou seja, é
um conjunto articulado de partes diferentes. É uma totalidade e, como toda totalidade, é
resultante da síntese de suas partes. Na medida em que a sociedade evolui, estas partes
diferentes tendem a crescer em número, e tendem a ser cada vez mais diferentes entre si.
Quanto mais as formações sociais se desenvolvem, mais elas articulam a vida dos indivíduos
entre si e mais heterogêneas se tornam, dando origem a diferentes e novas relações sociais,
instituições e complexos sociais.
Ou, o que dá no mesmo, quanto mais diferenciada for internamente uma sociedade,
quanto maior a variedade de relações sociais que ela contenha, maior será a articulação das
vidas individuais com a história coletiva. É também a este fato que Lukács se refere quando
afirma ser o mundo dos homens um complexo de complexos.
profissão. Hoje, ainda que esta escolha não seja livre, pois é condicionada pelas posses do
indivíduo, sem dúvida ela é maior do que no passado.
Portanto, a necessidade e a possibilidade de desenvolvimento dos indivíduos como
personalidades cada vez mais complexas e ricas são dadas pelo desenvolvimento social.
Quanto mais rica e intensa for a vida social, quanto mais articulada for a vida do indivíduo
com a história de toda a humanidade, mais desenvolvida no sentido humano será sua
existência.
Não há desenvolvimento social que não implique, de algum modo, também o
desenvolvimento dos indivíduos e, vice-versa, o desenvolvimento dos indivíduos é uma
necessidade e possibilidade postas pela reprodução social. Por isso a reprodução da sociedade
e a reprodução do indivíduo são dois pólos do mesmo processo, isto é, são momentos
distintos, porém sempre articulados, da reprodução social.
RESUMO DO CAPÍTULO:
Já vimos que, segundo Lukács o desenvolvimento do mundo dos homens tem seu
fundamento no fato de o trabalho, através da reprodução social, sempre produzir novas
situações históricas. Por esta razão, o produto concreto e imediato de cada ato de trabalho é
também momento do processo de desenvolvimento da sociedade que é a história humana. E
como, ao construir o mundo material, ao desenvolver as sociedades, os indivíduos se
constroem como seres humanos, a reprodução social e a reprodução do indivíduo são
processos sempre articulados.
Este desenvolvimento das sociedades e dos indivíduos passou por várias etapas
históricas, demarcadas pela sucessão dos modos de produção (sociedade primitiva, modo de
produção asiático, escravismo, feudalismo e capitalismo). No interior de cada uma destas
etapas históricas, se desdobrou uma determinada relação do indivíduo com a sociedade. De
um modo geral, nas sociedades asiáticas, no escravismo e no feudalismo, a reprodução social
era ainda tão primitiva que não possibilitava que a reprodução dos indivíduos possuísse uma
autonomia maior.
Há uma conhecida passagem na vida de Sócrates, em Atenas, que talvez auxilie na
compreensão desta questão. Injustamente condenado à morte, Sócrates recusou a oferta de
fugir da cidade para salvar a própria vida. Não havia sentido, para ele, em viver fora de
Atenas. A razão que tornava a sua existência humanamente digna era o engrandecimento da
cidade. Se a cidade incorrera em erro ao condená-lo, deveria aprender com o fato e absolvê-lo
ou, então, deveria conviver com a injustiça da sua morte. Fugir significaria, para Sócrates,
evitar que a cidade se confrontasse com o erro cometido. Rompidos os laços como cidadão de
Atenas, sua vida não mais teria qualquer sentido. Ou, dito de outro modo, o sentido da vida
não residia na acumulação privada de riqueza, mas sim no engrandecimento da cidade. Não
havia, ainda, uma autonomia, tal como hoje conhecemos, entre a reprodução dos indivíduos e
a reprodução da sociedade à qual pertencem. E isto por uma razão material, econômica. Na
Grécia de Sócrates, as fortunas individuais não eram ainda suficientemente grandes para
poderem se expandir sozinhas. Elas dependiam da abertura de novos mercados pela expansão
militar e isto só poderia ocorrer com a união dos esforços de todos os proprietários da cidade.
Esta era a razão que levou Sócrates a recusar a possibilidade da fuga. O predomínio da
dimensão genérica, social, sobre a existência pessoal está claramente evidenciado neste
exemplo. A existência individual se afirma pela sua dimensão social. Fora da cidade, o
indivíduo Sócrates não mais existiria, deixaria de ser um ateniense para ser um "bárbaro".
No feudalismo, algo semelhante pode ser encontrado. A existência social envolve de tal
forma a existência individual que o sobrenome das pessoas é dado de acordo com o feudo, ou
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11
com o lugar do feudo em que habitam . A identidade social do indivíduo reside na sua
conexão com a totalidade social através do lugar que ocupa no feudo. Fora do feudo, o
indivíduo nada é, pois não pode ter qualquer existência social.
Com o surgimento e desenvolvimento do capitalismo, este tipo de conexão indivíduo-
sociedade é rompido. A vida social passa a ser predominantemente marcada pela propriedade
privada, e a razão da existência pessoal deixa de ser a articulação com a vida coletiva, para
ser o mero enriquecimento privado. O dinheiro passa a ser a medida e o critério de avaliação
de todos os aspectos da vida humana, inclusive os mais íntimos e pessoais. Com o dinheiro,
como diz Henfil, compra-se "até amor sincero".
O capitalismo transformou a vida cotidiana em mera luta pela riqueza. Os indivíduos
passaram a considerar todos os outros indivíduos como adversários e a sociedade se converteu
na arena em que esta luta se desenvolve. As relações econômicas de mercado são expressões
nítidas desta nova relação entre os indivíduos e a totalidade social.Ttodos são inimigos de
todos, “o homem é o lobo do homem”, no dizer do filósofo Hobbes (1588-1679).
Esta nova situação histórica possui um aspecto positivo e outro negativo, como quase
tudo na vida. Pelo lado positivo, a nova situação permite explicitar, até as últimas
conseqüências, que entre a reprodução do indivíduo e a reprodução da sociedade há
diferenças significativas. O desenvolvimento do indivíduo é um processo que não se
identifica com a reprodução social no seu conjunto; há uma diferença entre estes dois
processos.
Reconhecer esta diferença é fundamental porque possibilita que as necessidades
individuais sejam reconhecidas em sua plenitude. Possibilita que a humanidade, como um
todo, tome consciência do fato de que o desenvolvimento do indivíduo é fundamental para o
desenvolvimento social e que, vice-versa, o desenvolvimento social é o fundamento do
desenvolvimento pessoal; mas que um não garante nem absorve o outro. Tanto há
necessidades individuais, como há necessidades coletivas, que devem ser atendidas numa
sociedade comunista, emancipada. Reconhecer este fato é, para Marx, da maior importância
para se compreender o mundo dos homens e para a constituição de um projeto revolucionário.
Mas, negativamente, o capitalismo, ao desenvolver o individualismo burguês, que lhe é
inerente, deu origem a uma sociedade na qual as necessidades coletivas estão subordinadas às
necessidades de enriquecimento privado, e na qual as necessidades humanas (coletivas e
individuais) estão subordinadas ao complexo processo de acumulação do capital pelos
11
É famoso o exemplo de Pierre DuPont, que significa Pedro da Ponte. Ou
então, Conde de Montpellier, sendo Montpellier o local da propriedade
feudal.
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burgueses. Desse modo, o capitalismo deu origem a indivíduos que perderam a noção da real
dimensão genérica, social, das suas existências, ficando presos à mesquinha patifaria, ao
estreito e pobre horizonte da acumulação do capital. Ganhar dinheiro se tornou a razão central
da vida dos indivíduos, e a dimensão coletiva, genérica, das suas vidas foi massacrada pelo
egoísmo e mesquinharia que caracterizam o burguês.
1 - A moral e a ética
RESUMO DO CAPÍTULO:
Relembremos que, segundo Lukács, a sociedade burguesa é produto dos atos humanos.
Em última análise, o movimento histórico que vai das sociedades primitivas ao capitalismo
mais desenvolvido tem o seu fundamento no impulso, inerente ao trabalho, que remete o ser
social a formações sociais cada vez mais desenvolvidas. Toda esta evolução tem por base a
reprodução social, ou seja, o processo que sintetiza os atos humanos singulares em tendências
históricas universais.
Também vimos como, para Lukács, a reprodução social é um processo que possui dois
pólos: a reprodução da totalidade social e a reprodução dos indivíduos. Cada um dos pólos
apenas pode se desenvolver articulado ao outro (sem desenvolvimento social não há
desenvolvimento dos indivíduos e vice-versa). Contudo, a relação entre eles é marcada por
desigualdades, de tal modo que entre o desenvolvimento da sociedade e o do indivíduo
sempre haverá contradições. O desenvolvimento social colocará exigências ao
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desenvolvimento dos indivíduos que estes nem sempre atenderão imediatamente ou sem
contradições; por outro lado, o desenvolvimento das personalidades individuais gera
necessidades pessoais que as relações sociais nem sempre podem atender. A
contraditoriedade nesta esfera é um dado sempre presente.
Quando o desenvolvimento social alcançou a etapa capitalista, esta contradição atingiu
um novo patamar. Pois, por um lado, a potencialização das forças produtivas (o que significa,
em última análise, o aumento da capacidade dos indivíduos) e o enorme desenvolvimento daí
decorrente, abriram a possibilidade de um desenvolvimento, antes inimaginável, tanto da
sociedade como dos indivíduos. E este desenvolvimento é a característica mais importante da
história desde o século XIX.
Por outro lado, porque este desenvolvimento sem precedentes das forças produtivas está
longe de ser harmônico. A forma individualista, privada, de acumulação da riqueza, que
caracteriza o capitalismo, faz com que estas possibilidades de desenvolvimento possam ser
aproveitadas plenamente apenas pelas classes dominantes. Elas são, quase sempre, negadas
aos trabalhadores, isto é, à maior parte da humanidade.
O que ocorre hoje em dia com a informatização e a robotização das fábricas é um claro
exemplo dessa contradição. A introdução de robôs na produção significa, objetivamente, que
os homens podem trabalhar menos e produzir mais. O robô substitui a força de trabalho
humano e por isso deveria aumentar o tempo livre dos trabalhadores. Com uma máquina para
produzir, porque não diminuir a jornada de trabalho de todo mundo, mantendo o mesmo
salário, já que a mesma quantidade de riqueza está sendo produzida?
Todo aumento da capacidade produtiva dos homens deveria ter este significado:
produzindo-se mais em menos tempo, dever-se-ia contar com um tempo livre cada vez maior.
Contudo, como sabemos, é justamente o inverso que ocorre. A riqueza produzida pelos
trabalhadores é apropriada pelos capitalistas como riqueza pessoal, privada; e o que interessa
à burguesia é aumentar o lucro individual dos proprietários. Por isso, a introdução dos robôs,
em vez de reduzir a jornada de trabalho, gera desemprego em escala crescente, pois mantendo
a mesma produção, ou aumentando-a, com menos salários, faz aumentar a taxa de lucro do
burguês.
Mas os resultados são ainda mais perversos. Pois, se o desenvolvimento da capacidade
produtiva tem gerado, hoje em dia, desemprego em vez de tempo livre, também é verdade que
o trabalhador que ainda mantém seu emprego sofre a concorrência dos companheiros
desempregados. Nesta situação de desemprego crescente, o poder da burguesia sobre cada
operário aumenta ainda mais. Ela os faz trabalhar mais intensamente, num ritmo mais
frenético, e por uma jornada maior, freqüentemente com redução real do salário.
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Outros exemplos podem ser encontrados por toda a sociedade. Produzir armamentos só
interessa aos capitalistas, que obtêm muitos lucros com o desperdício de riqueza e de pessoas
que é uma guerra; na indústria farmacêutica, produz-se não o remédio necessário, mas aquele
que dá lucro ao burguês, etc.
As contradições entre a produção social da riqueza em uma escala crescente de
produtividade e volume, e a apropriação privada desta mesma riqueza, podem ser encontradas
por toda parte. Segundo Marx, estas contradições fazem parte da essência da sociedade
burguesa madura.
Devido a esta sua essência antagônica, assinalam Marx e Lukács, a vida cotidiana no
capitalismo é sempre a “luta de todos contra todos”. Por um lado, porque apenas vivendo em
coletividade podem os indivíduos acumular suas fortunas (ou suas misérias, no caso dos
trabalhadores). Por outro lado, porque esta vida coletiva é fragmentada pelos interesses
inconciliáveis de cada indivíduo. Cada um quer enriquecer e, para isso, deve tirar proveito do
outro, deve explorar o trabalho alheio.
Repetimos: todas as relações humanas são convertidas em instrumentos desta luta pela
acumulação privada de capital. Os homens têm no capital seu espelho, e se constroem
cotidianamente como sua imagem. As necessidades que impulsionam as prévias-ideações não
são mais necessidades humanas, mas necessidades que brotam da dinâmica reprodutiva do
capital. De modo obrigatório, necessário, o capital predomina sobre as necessidades
verdadeiramente humanas, fazendo com que a reprodução social dos indivíduos e da
totalidade social esteja a serviço dos interesses particulares da burguesia.
Essa essência da sociedade capitalista faz com que a vida cotidiana seja marcada pela
disputa, e não pela cooperação, entre os indivíduos. E, para que esta disputa não degenere em
guerra civil, o que significaria desorganizar a produção e interromper a acumulação
capitalista, é necessário que ela seja organizada de forma aceitável à reprodução capitalista.
Uma das formas decisivas de organização desta disputa segundo as necessidades do
capitalismo é a democracia burguesa.
A democracia, no sentido moderno do termo, é uma criação burguesa. Antes do
12
capitalismo, não havia democracia .
12
Na Grécia antiga, onde surgiu a palavra democracia, ela possuía um
significado muito distinto da que possui hoje. Então, escravidão e
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reproduz a desigualdade entre o burguês e o operário também pela ilusão de que, ao votar e
eleger os políticos, a maioria da população estaria dirigindo o país.
Em outras palavras, o Estado capitalista afirma a igualdade formal, política e jurídica,
com o objetivo real e velado de manter a dominação da burguesia sobre os trabalhadores. A
igualdade burguesa, tal como a democracia burguesa, nada mais é do que a máxima liberdade
do capital para explorar os trabalhadores. E o Estado burguês, por mais democrático que seja,
será sempre um instrumento especial de repressão contra os trabalhadores.
Por isso, todas as vezes que os conflitos ameaçarem a burguesia, o Estado intervirá para
garantir o poder dos capitalistas sobre os trabalhadores. Muitas vezes, inclusive, abolindo a
própria democracia burguesa. Marx tem toda razão quando afirma que a democracia burguesa
apenas funciona democraticamente quando assim interessa à classe dominante. Quando for do
interesse dos capitalistas suspender a ordem democrática para melhor reprimir os
trabalhadores, assim será feito.
RESUMO DO CAPÍTULO:
burguês se faz presente apenas em um período da história humana; não sendo, portanto, uma
essência imutável dos homens. Os homens já foram, e possivelmente serão, diferentes do
indivíduo burguês, assim como as sociedades já foram distintas do capitalismo. O segundo
equívoco é pretender que o futuro será idêntico ao presente. A mesquinha existência que o
capitalismo possibilita aos homens não é o único futuro possível para a humanidade, a única
vida social possível, mas apenas o futuro possível enquanto durar a regência do capital.
Ou, para dizer o mesmo de outro ângulo, o pressuposto de todo pensamento
conservador, que não pode ser demonstrado por nenhuma argumentação histórica e que não
vai muito além de um ato de fé, é a perenidade do capital. Como, para os conservadores, o
capital é uma dimensão insuperável da vida humana, então o indivíduo burguês tem que ser,
também, eterno. E, então, eles fazem o percurso inverso. Como o homem é irrevogavelmente
um animal burguês, então não há melhor sociedade do que a capitalista. Tanto do ponto de
vista histórico, quanto do ponto de vista metodológico, este é um argumento fantasticamente
débil.
A questão a ser respondida, portanto, é a seguinte: os homens fazem a história e foram
eles que criaram o capital. Como, então, é possível que eles sejam dominados pelo capital que
eles próprios criaram? Como é possível que o objeto construído possa dominar o seu criador?
Ou, em termos filosóficos, como é possível que, ao objetivar uma prévia-ideação, o que foi
objetivado possa dominar o sujeito da objetivação? A resposta de Marx e Lukács a esta
questão é: através dos processos de alienação. Vamos, pois, a eles.
1- A alienação
Recordemos que, nos Capítulos III a V, vimos como todo ato humano é a objetivação de
uma prévia-ideação. Ele origina uma nova situação, tanto em termos externos ao sujeito,
como em temos subjetivos (a produção de novos conhecimentos e a aquisição de novas
habilidades). Vimos, também, que a nova realidade produzida pelos atos humanos, ainda que
tivesse na sua origem uma prévia-ideação (que é, sempre, uma resposta a uma situação social
concreta, historicamente determinada), é pura causalidade. Ou seja, a nova realidade
produzida pela objetivação da prévia-ideação possui uma existência objetiva que independe
da consciência. O desenvolvimento da realidade material, mesmo aquela criada pelos homens,
se processa de acordo com causas que atuam no seu interior, independente dos desejos,
necessidades e vontades das pessoas. Os homens podem agir para alterar as conseqüências
dos seus atos, mas tais conseqüências são decorrentes dos nexos causais que nada têm de
teleológico.
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RESUMO DO CAPÍTULO:
I) Se os homens são os artífices de sua própria história, por que a fazem de modo tão
desumano?
1) Os conservadores respondem: porque a natureza humana é mesquinha e ruim. Na
verdade, eles consideram a essência do burguês como a essência de todos os homens, o que é
uma enorme falsificação da história.
2) Os revolucionários respondem: porque, ao longo da história, os atos humanos têm
conseqüências que terminam por dificultar, ao invés de impulsionar o desenvolvimento
humano. Os processos históricos pelos quais a humanidade cria relações sociais que, com o
tempo, se transformam em obstáculos socialmente construídos ao desenvolvimento humano,
são os processos de alienação.
Os homens – e apenas eles – são os responsáveis por suas misérias. Foram os homens
que construíram as alienações geradas pelo predomínio do capital na vida social; cabe a eles
superarem tais alienações.
As alienações que brotam da submissão do ser humano ao capital são muito variadas. A
necessidade de consumo que gera prestígio, e não de consumo para atender reais
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necessidades, como ocorre com a moda, por exemplo, é uma delas. Consumir para demonstrar
status social é uma das formas mais freqüentes de alienação contemporânea.
Contudo, há uma esfera das alienações capitalistas à qual os revolucionários devem
prestar especial atenção, pois tem enormes conseqüências políticas.
Relembremos que, para Marx e Lukács, o Estado é um organismo especial de repressão
a favor das classes dominantes. Todavia, com o surgimento da sociedade burguesa, este papel
repressor do Estado já não é mais tão evidente como no passado. E isto porque, na sociedade
capitalista, a exploração do trabalho assume uma forma diferente daquela das formações
sociais asiáticas, escravistas e feudais. Como vimos, no capitalismo o próprio trabalho
termina por se converter em mercadoria. Sabemos que, na sociedade capitalista, o valor de
uma mercadoria corresponde ao custo de sua produção. Qual o custo da produção de um
trabalhador assalariado? Nada mais, nada menos do que o que custa à sociedade a reprodução
da sua força de trabalho. E, como para isso basta que a pessoa seja mantida viva e com um
mínimo de saúde, a maior parte das necessidades autenticamente humanas dos trabalhadores
não será sequer reconhecida, quanto mais levada em consideração pelo capital. Isso vale tanto
para o trabalhador do primeiro mundo, que pode receber um salário elevado, quanto para o
trabalhador mais miserável da África ou do Brasil. Em ambos os casos, apesar da evidente
diferença no conforto da situação de cada um deles, o ser humano é levado em consideração
apenas como uma coisa, um montante de força de trabalho. Por isso, o custo da força de
trabalho é muito baixo e o seu valor – o salário – está sempre muito abaixo das verdadeiras
necessidades do trabalhador como ser humano. O salário expressa o quanto custa ao sistema
capitalista reproduzir a força de trabalho, mas não expressa as necessidades verdadeiras, as
reais necessidades humanas que o trabalhador como ser humano possui. É claro que este
necessário para repor a força de trabalho varia em lugares e momentos históricos diferentes.
Além disso, o seu cálculo é estabelecido pelo mercado e não por relações individuais.
Mas, observe-se que o que o salário expressa é real. Segundo as leis de mercado
(sempre leis capitalistas, em nossos dias) o valor da força de trabalho é exatamente o salário
recebido pelo trabalhador. O trabalhador, na sociedade burguesa, vale o que recebe. Não há aí
qualquer roubo por parte do capitalista. A relação burguês-trabalhador, se for permitida a
expressão, é absolutamente honesta. O patrão paga o que compra, da mesma forma que o
trabalhador paga as mercadorias que compra. E quem estabelece os preços das mercadorias,
inclusive da mercadoria força de trabalho, são as famosas “leis de mercado”, e não o
indivíduo-patrão que contrata o indivíduo-trabalhador.
Por isso, para Marx e Lukács, a desumanidade – a alienação – da relação entre as
personificações do capital que se expressam no burguês e no operário não está nos baixos
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todos ao paraíso. Como se o capitalismo pudesse existir sem reproduzir as misérias humanas,
e como se as crises não fizessem parte da sua história.
São inúmeras as alienações que brotam da submissão dos homens ao capital. A essência
de todas elas, segundo Marx e Lukács, está em tratar o ser humano como mercadoria,
desconsiderando por completo suas reais necessidades humanas. As necessidades que
impulsionam cotidianamente as prévias-ideações já não refletem as necessidades reais dos
homens, mas sim as necessidades da acumulação privada de capital, tanto no plano individual
quanto no plano global da sociedade capitalista.
RESUMO DO CAPÍTULO:
é através dele que se dá o salto da natureza para a sociedade, como no sentido de que toda e
qualquer forma de sociabilidade terá no trabalho aquele tipo de atividade que, transformando
a natureza, constrói a base material da sociedade. É sempre a partir de determinada forma de
trabalho (primitiva, asiática, escravista, feudal, capitalista ou outra) que se ergue determinada
forma de sociabilidade.
Vimos, também, que o tipo de trabalho que fundamenta o capitalismo é aquele em que o
capital extrai a mais-valia da força de trabalho. É a partir daí que se ergue todo o edifício da
sociedade capitalista. Vale notar que é também esta forma específica de trabalho a
responsável última pela alienação e pelas desigualdades sociais típicas desta forma de
sociabilidade.
Qual seria, então, a forma de trabalho que funda o comunismo? O trabalho associado; a
associação dos produtores livres, responde Marx. Uma forma de trabalho na qual todas as
pessoas participam segundo as suas possibilidades e capacidades e, por isso, todas têm,
segundo as suas necessidades, acesso ao que é produzido. "De cada um segundo a sua
capacidade, a cada um segundo a sua necessidade", dizia Marx. O que caracteriza,
essencialmente, o trabalho associado é o controle, consciente, livre e coletivo, dos
trabalhadores (que serão necessariamente todas as pessoas capazes) sobre o processo de
produção e de distribuição dos bens. Isto significa que serão os próprios produtores que
estabelecerão, considerando as efetivas necessidades humanas, o que deve ser produzido, em
que condições dar-se-á a produção e como serão repartidos os bens produzidos. Dito de outro
modo, o valor de uso e não o valor de troca, ou seja, o atendimento das necessidades humanas
e não dos interesses do capital, será o objetivo da produção. Isto configurará a base a partir da
qual tornar-se-á historicamente possível o desaparecimento de toda e qualquer forma de
exploração do homem pelo homem, o que significa que também desaparecerão a propriedade
privada, o capital, a mais-valia, o trabalho assalariado, o dinheiro, o caráter de mercadoria dos
produtos e todas aquelas outras relações de exploração e de dominação necessárias para o
funcionamento do capitalismo, como o Estado, a política, o Direito, o casamento
monogâmico, etc.
Comunismo e abundância
Mas, se o trabalho associado é uma coisa tão boa, por que os homens já não o
instauraram há muito tempo? Por que, justamente ao contrário, com o passar da história o
trabalho terminou assumindo formas tão desumanizadoras?
Versão 7 11/8/2004 3:24 65
Porque não basta a vontade para instaurar o trabalho associado. Ele requer a era da
abundância, ou seja, o gigantesco desenvolvimento da ciência, da tecnologia, das relações
sociais, enfim, das forças produtivas, que foi atingido apenas pela Revolução Industrial
(1776-1830). Antes da Revolução Industrial, o comunismo era uma impossibilidade histórica
porque o total do que podia ser produzido era inferior ao necessário para atender a todas as
necessidades da humanidade. Enquanto o total produzido era inferior às necessidades de todos
os homens, a carência era uma dimensão inevitável da existência humana. Com a produção
menor que a necessidade, a divisão igualitária da riqueza não iria além de se repartir
igualmente a miséria. Ou seja, nestas circunstâncias históricas, por mais justas que fossem as
relações sociais, ainda assim todos passariam igualmente necessidade. A miséria humana não
era apenas decorrente de relações sociais injustas, mas uma situação insuperável da vida
humana porque a produção era inferior às necessidades.
Mas há ainda um outro aspecto, importantíssimo, a ser considerado. Nesse período
histórico marcado pela carência, se a riqueza fosse dividida igualmente entre todos, tudo seria
imediatamente consumido. Com isso não restaria nada para se investir no desenvolvimento
das forças produtivas que evoluiriam, então, muito mais lentamente. Nas sociedades de classe,
pelo contrário, a concentração da propriedade nas mãos da classe dominante permitiu que
uma parte ponderável da riqueza fosse empregada no desenvolvimento das forças produtivas,
que assim evoluíram rapidamente. Por essa razão, as sociedades primitivas, mais igualitárias,
conheceram um desenvolvimento muito lento e foram desaparecendo ao entrarem em contato
com as sociedades de classe. Estas, por sua vez, foram evoluindo ao longo da história nos
modos de produção asiático, escravista, feudal e capitalista. Perceba-se que as sociedades de
classe jogaram um papel fundamental na história dos homens ao possibilitarem um
desenvolvimento muito mais acelerado das forças produtivas. Mas isso, apenas e tão somente
na era da carência, ou seja, enquanto o desenvolvimento das capacidades humanas ainda não
permitia aos homens produzirem mais do que necessitavam.
A era da carência terminou com a Revolução Industrial (1776-1830) e com o
surgimento do capitalismo maduro. O desenvolvimento das novas tecnologias e das novas
relações de produção, que marcam o surgimento do capitalismo maduro, fez com que a
humanidade passasse, objetivamente, à era da abundância, isto é, ao período histórico em que
a produção total é maior do que a requerida para a reprodução da humanidade.
A sociedade capitalista, contudo, não pode viver na abundância. Ela é herdeira de um
período histórico marcado pela carência; a abundância fere-a de morte. Uma oferta maior do
que a procura faz com que os preços tendam a cair e que os capitalistas tenham prejuízos. As
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É aqui, para tirar o maior proveito possível da abundância, que o trabalho associado é
fundamental. Se toda a produção for colocada à disposição da humanidade, a carência estará
socialmente superada. Para tanto, a humanidade terá que se organizar com base no trabalho
associado. Todos nós teremos que decidir o que deve produzido e qual a melhor forma de
produção. Teremos que nos organizar coletivamente para despendermos o menor tempo de
nossas vidas transformando a natureza e podermos ter o maior "tempo disponível" possível.
Sem o empecilho da concorrência e da propriedade privada, o trabalho associado propiciará
um incremento na produção que tornará irrisória a abundância produzida pelo capital. Esta
será imensamente maior quando a criatividade de bilhões de pessoas se manifestar livremente.
O objetivo da economia será, então, ampliar o "tempo livre disponível" para cada um de nós.
Tempo realmente livre, em que as pessoas, satisfeitas as suas necessidades básicas e contando
com condições objetivas muitíssimo propícias, poderão se dedicar à realização de atividades
de sua livre escolha.
mas serão apenas a livre expressão das potencialidades humanas, na forma de arte, ciência,
filosofia, jogo e outras do gênero.
Esta nova forma de sociabilidade implicará uma mudança essencial da relação da
humanidade com o processo histórico em geral. Mudança tão essencial, que Marx afirma que
todo o período de carência (das sociedades primitivas ao capitalismo) não passa de "pré-
história" da humanidade e que, somente com o comunismo terá começado a "história"
propriamente dita. Só então os homens serão, conscientemente, senhores do seu destino. Vale
dizer, quem comandará o processo histórico não serão nem forças da natureza nem forças
sociais alienadas, mas os próprios homens, com o grau máximo de liberdade.
comum expresse aquilo que se passa na própria realidade. Deste modo, entre os indivíduos e o
gênero humano haverá uma relação de enriquecimento mútuo.
O comunismo não é, portanto, a dissolução do indivíduo e a supremacia total da
coletividade. A oposição entre indivíduo e coletividade é um sinal seguro de que não existe
comunismo. Este só existe de fato onde todos os indivíduos podem desenvolver amplamente
as suas potencialidades, as suas especificidades, as suas diferenças. Mas eles poderão
desenvolvê-las exatamente porque farão parte de uma coletividade com a qual não estão em
relação de oposição, mas de união. Somente um indivíduo socialmente desenvolvido,
complexo, pode integrar uma sociedade comunista. Por sua vez, um indivíduo só se
desenvolve ao se apropriar do patrimônio comum do gênero humano e, em retorno, ao
contribuir para o maior enriquecimento deste último. Daí porque, no comunismo, a condição
de desenvolvimento amplo, integral e diferenciado de cada indivíduo implica o
desenvolvimento de todos os outros indivíduos e, por conseqüência, do próprio gênero
humano.
Deste modo, comunismo é, necessariamente, uma autêntica articulação entre o
indivíduo e a coletividade e entre os próprios indivíduos. Isto não significa, de modo nenhum,
a ausência de conflitos e a total identidade entre os interesses individuais e os da coletividade.
Indivíduo e gênero, como já vimos, são dois pólos inelimináveis do ser social. A anulação de
qualquer um em favor do outro indica, seguramente, uma fase inferior da humanidade. Só no
comunismo, e exatamente por estar fundado numa forma de trabalho que permite superar a
exploração e a dominação do homem pelo homem, é que pode existir uma relação harmônica
entre estes dois pólos, na qual cada um guarda a sua mais plena especificidade. Esta
harmonia, por sua vez, significa apenas que já não há possibilidade, por causa do fundamento
do trabalho associado, de que qualquer conflito entre o interesse individual e o interesse geral
se torne antagônico e, portanto, dê origem a uma nova forma de poder do homem sobre o
homem.
RESUMO DO CAPÍTULO
I) A derrota das tentativas, que conhecemos, de construção do comunismo apenas
prova que Marx e Engels estavam certos ao afirmarem que não seria possível
superar o capital em países pouco desenvolvidos e, ainda, em alguns poucos
países enquanto o restante do planeta permanecesse sob o domínio do capital.
II) A base do comunismo é o trabalho associado, a associação dos produtores
livres. Sua essência é o total controle, por parte dos trabalhadores, de todo
processo de produção e distribuição dos bens. É o exato oposto do que ocorre
Versão 7 11/8/2004 3:24 70
Se os homens fazem a sua própria história, não menos verdadeiro é que eles a fazem nas
circunstâncias históricas herdadas do passado. Isto significa, imediatamente, que todas as
ações humanas são historicamente condicionadas. Significa, também, que todas as ações
humanas, todos os processos sociais, são desenvolvimentos das possibilidades históricas em
cada situação. Tanto do ponto de vista de um indivíduo, quanto do ponto de vista coletivo,
uma objetivação só pode ocorrer se for possível naquele momento histórico. O sonho de voar
já estava presente na Antigüidade, mas, para que esta possibilidade se tornasse real, foi
necessário um enorme desenvolvimento das forças produtivas. Toda objetivação, para ter
êxito, deve ser a efetivação das possibilidades historicamente existentes.
Versão 7 11/8/2004 3:24 71
A liberdade, por isso, não é agir sem qualquer constrangimento exterior, como querem
muitos idealistas, mas sim agir com conhecimento de causa para ser capaz de atingir os
14
objetivos almejados em cada momento histórico . O conhecimento adequado da realidade é
indispensável para a escolha de objetivos que atendam às necessidades humanas no contexto
de cada momento histórico. Por isso, conhecimento do que é a realidade e liberdade são duas
coisas que andam sempre juntas.
Contudo, o que seria esse "conhecimento adequado da realidade a cada momento
histórico"?
Não há uma resposta a priori para esta questão. Apenas depois de concluída a
objetivação, seja ela um ato de um indivíduo ou um processo histórico mais complexo como
uma revolução, poderemos saber qual o grau de conhecimento era mais ou menos adequado
para as objetivações que estavam na ordem do dia. Sabemos, também, que, todo
conhecimento é um processo que se desdobra entre um sujeito em desenvolvimento e um
objeto também em evolução. Por isso, toda objetivação sempre gera algum conhecimento
novo e, portanto, não há jamais uma situação em que o conhecimento seja absolutamente
suficiente para a objetivação. Sempre há algo a ser aprendido, por mais familiar que seja a
objetivação em questão. Feita esta observação mais geral, não há dúvida de que há algumas
situações em que o conhecimento é o suficiente – e, em outras, insuficiente – para a
objetivação que se faz necessária. Portanto, a maior ou menor adequação do conhecimento
que se possui terá por referência o momento histórico em questão e a objetivação a ser
efetivada.
Na sociedade burguesa contemporânea, em se tratando da possibilidade da revolução,
esta situação torna-se ainda mais complicada. O predomínio das necessidades do capital sobre
as necessidades humanas faz com que, no dia a dia, as pessoas percebam como possíveis
apenas as necessidades que refletem o processo de acumulação do capital. As possibilidades
que o desenvolvimento das forças produtivas gera para a emancipação humana são veladas e
as pessoas só conseguem enxergar como possível a reprodução da sociedade burguesa como
tal. Este é um dos efeitos dos processos alienantes que brotam da regência do capital. É por
isso que as pessoas são, na sua enorme maioria, conservadoras. Elas pensam que o
capitalismo é eterno, pois não percebem as possibilidades históricas de superá-lo e de se
construir uma sociedade emancipada. E isto ocorre porque, no dia a dia, a vida das pessoas
14
Esta formulação é devida a Engels. Lukács, em A verdadeira e a falsa
ontologia de Hegel (Ed. Ciências Humanas, S. Paulo, 1979) explora várias
das facetas dessa formulação e aponta algumas debilidades. Não será
possível, neste texto introdutório examinarmos estas questões, por isso
apenas a mencionaremos para que o leitor possa aprofundar seus estudos.
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determina as suas consciências. Como vivem sob o capital, são dominadas pelas ideologias
burguesas.
Como, então, determinar o que é “historicamente possível”? Segundo Marx e Lukács,
antes de mais nada, realizando a crítica mais completa e radical (no sentido de ir à raiz) da
sociedade burguesa e das alienações capitalistas, de modo a abrir caminho para o
conhecimento da realidade. Com base neste conhecimento, é possível determinar as
tendências históricas predominantes e, então, determinar as reais necessidades e
possibilidades históricas da humanidade.
Contudo, a identificação destas possibilidades não significa que elas de fato ocorrerão.
Tudo depende de como as pessoas agirão no futuro e isto que está diretamente relacionado às
opções que venham a fazer na vida cotidiana. Por isso, nessa esfera não é possível qualquer
certeza absoluta. As possibilidades históricas são possibilidades que serão ou não objetivadas
no futuro dependendo das alternativas escolhidas pelos indivíduos em escala social.
Por exemplo: no capitalismo de nossos dias, o desenvolvimento das forças produtivas
leva ao desenvolvimento de desumanidades cada vez mais brutais. As misérias tendem a
aumentar para todos os lados com o desenvolvimento das forças produtivas. Isto,
historicamente, e não apenas para Marx e Lukács, é um óbvio contra-senso. O
desenvolvimento das forças produtivas não poderia levar ao crescimento da miséria; muito
pelo contrário, deveria conduzir ao crescimento do bem-estar e da riqueza. Nesse sentido, o
desenvolvimento das forças produtivas capitalistas acresce as possibilidades de uma
sociedade mais humana e, ao mesmo tempo, aumenta a miséria dos homens. Esta contradição
(crescimento das possibilidades de uma sociedade emancipada e ao mesmo tempo aumento da
miséria) torna a revolução comunista não apenas uma necessidade cada vez maior, mas
também uma possibilidade sempre mais efetiva. Mas esta possibilidade não é algo obrigatório
na história. Tudo dependerá das decisões que os indivíduos, em escala social, tomarem sobre
as suas vidas e o seu futuro.
Por isso a revolução comunista não é uma realização necessária e inevitável do
desenvolvimento histórico (como tanto afirmaram o “marxismo vulgar” e o stalinismo), mas
sim um ato de afirmação do ser humano que se emancipa e se liberta. Que se emancipa
porque estará se livrando das alienações capitalistas; que se liberta porque objetivará uma
finalidade essencialmente humana e, ao mesmo tempo, possível no quadro histórico atual. A
revolução é o ato pelo qual os homens assumirão conscientemente e com toda radicalidade o
fato de serem eles os artífices da sua própria história. Se os homens fazem a história, não há
razões para continuarem a fazê-la sob o domínio do capital e de suas alienações; não há
razões que justifiquem a produção crescente de desumanidades. Mas, para isso, é
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imprescindível que os homens voltem a colocar as reais necessidades humanas como objetivo
de suas ações, superando radicalmente o capital.
A revolução comunista é, portanto, qualitativamente distinta dos atos humanos
cotidianos com os quais estamos acostumados. Enquanto estes representam, na enorme
maioria das vezes, a submissão dos homens ao capital, a revolução é a afirmação da
humanidade sobre as desumanidades produzidas pelo capitalismo. Como tal, segundo Marx e
Lukács, a revolução comunista não poderá deixar de ser (sob pena de não ser comunista) um
ato livre e emancipado da humanidade.
Como afirmamos no início, trataríamos dos fundamentos filosóficos da revolução,
deixando em segundo plano seus aspectos imediatamente políticos. Contudo, para evitarmos
mal-entendidos de toda espécie, é necessário assinalar aqui que o fato de a revolução
comunista ser um ato emancipado e livre da humanidade não significa que ela deixe de ser um
processo social e político de luta de classes. Pelo contrário. A forma historicamente possível
da revolução comunista é a vitória dos operários, da cidade e do campo, contra as
desumanidades produzidas pelas classes dominantes. Este ato livre e emancipado da
humanidade possui, como sua forma historicamente concreta, a vitória dos revolucionários
sobre os conservadores, a vitória dos trabalhadores sobre as classes dominantes capitalistas, a
vitória do operariado sobre o capital. E estas vitórias possuem necessariamente uma dimensão
política e de luta de classes; são o exercício do poder da maioria sobre os interesses privados
das classes dominantes. Enquanto revoluções, são a afirmação do poder de uma parte da
humanidade sobre outra e, por isso, têm uma ineliminável dimensão política. Contudo, para a
construção da sociedade emancipada, a política se tornará um instrumento tão inadequado a
uma sociedade livre quanto o dinheiro, o Estado e o Direito e, por isso, tenderá a desaparecer
no processo de emancipação da humanidade tal como desaparecerão o Estado, o Direito e o
dinheiro.
Como entre o capitalismo e o comunismo há necessariamente uma revolução – em
outras palavras, como o comunismo é a superação do capital e não o desenvolvimento do
capitalismo levado às suas últimas conseqüências – Marx e Lukács foram ásperos críticos de
todas as tentativas de reformar o capital. Para eles, enquanto este existir, as necessidades
humanas serão sempre e permanentemente reduzidas à possibilidade de lucro, e as
desumanidades serão sempre e permanentemente a essência da relação entre os homens. Não
há reforma capaz de tornar o capitalismo “humano”, já que ele é essencialmente desumano.
Marx e Lukács criticaram duramente todas as vertentes reformistas, afirmando que elas nada
mais são, em última análise, do que aliadas do capitalismo contra os trabalhadores.
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RESUMO DO CAPÍTULO:
CONCLUSÃO
A tese central do pensamento de Marx e Lukács, com vimos, é de que os homens são os
artífices de sua própria história. As realizações e as misérias humanas são única e
exclusivamente fruto das ações humanas. A responsabilidade pelo destino da humanidade está
inteiramente nas mãos dos homens.
Esta tese central tem um único pressuposto: os homens, para se reproduzirem, têm que
transformar a natureza, e o modo humano de fazê-lo é o trabalho. Ao trabalharem, como
vimos, desencadeiam um constante desenvolvimento tanto da objetividade como da
subjetividade, dando origem a sociedades e a indivíduos cada vez mais complexos. A
reprodução social é este processo pelo qual os atos singulares se sintetizam em tendências
históricas que desembocaram na atual sociedade capitalista. Esta, por sua vez, tem sua base na
compra-e-venda de força de trabalho e sua essência na redução do ser humano a mercadoria, a
uma coisa; e tal coisificação é o fundamento das alienações contemporâneas. Tanto a
sociedade, quanto os indivíduos, encontram-se limitados no seu desenvolvimento por essa
redução da essência humana ao capital. Neste contexto, as necessidades humanas são
subordinadas à reprodução do capital. A lógica desumana da reprodução capitalista, tanto na
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sua dimensão global como na sua dimensão mais individual, torna-se a própria dinâmica da
vida social. O desenvolvimento da sociedade, por isso, se converte na intensificação das
alienações, das desumanidades socialmente produzidas.
Por isso, afirmam Marx e Lukács, na sociedade burguesa, a liberdade não pode ter outro
significado senão a liberdade do capital. Ao submeter a humanidade às alienações capitalistas,
a sociedade burguesa destrói qualquer possibilidade do livre e pleno desenvolvimento
humano. Esta é a razão que leva Marx a afirmar que, por mais aperfeiçoada que seja a
democracia burguesa, por mais “livre” que ela seja, será sempre a expressão política da
alienada submissão da humanidade ao capital, dos trabalhadores aos burgueses, e dos homens
às mercadorias.
O "reino da liberdade" só pode vir com a superação do capital e da sociedade burguesa.
Só por esta via será possível colocar em primeiro lugar o que é primordial: as necessidades
humanas, tanto dos indivíduos quanto da sociedade. Ao libertar as necessidades
verdadeiramente humanas do jugo do capital, tornar-se-á evidente o absurdo de se promover a
miséria dos trabalhadores para se conseguir a estabilidade e o desenvolvimento econômico;
tornar-se-á patente a barbaridade que significa produzir desemprego, fome e marginalização
social para que o desenvolvimento das forças produtivas possa continuar. O "reino da
liberdade", segundo Marx, nada mais é do que o atendimento das verdadeiras e reais
necessidades humanas, postas pelo desenvolvimento histórico-social.
Esta recuperação da proposta revolucionária de Marx é o que torna Lukács um filósofo
tão especial para os nossos dias. Ele permite desfazer os equívocos tão freqüentes que retiram
do pensamento de Marx sua essência revolucionária. Ele demonstra até que ponto, e em que
medida, os fundamentos filosóficos de Marx são, na sua essência, a crítica mais radical -- a
proposta superadora mais global -- da sociedade alienada pelo capital. Ele renova e
aprofunda, no campo da filosofia, a crítica radical à desumanidade do capitalismo que é a
essência – tantas vez perdida neste século – da tradição revolucionária do marxismo.
Para finalizar, uma advertência. Ao leitor que chegou até essas linhas finais, nossos
cumprimentos pela sua dedicação e interesse. É como uma homenagem a esse esforço que
retomamos a introdução ao lembrar que este texto jamais esgota os temas que aborda e alguns
dos aspectos fundamentais de muito do que expusemos sequer foram mencionados. Nossa
intenção foi auxiliar na introdução ao estudo do pensamento de Marx e lançar o leitor em um
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percurso próprio de investigação que contribua para a revolução comunista. Que o leitor não
tome esse livro como resolutivo de nenhuma das questões que abordamos – em definitivo ele
não é --, mas o receba como um estímulo para que continue seus estudos e pesquisas. Tendo
em vista este percurso, sugerimos abaixo algumas leituras que nos parecem imprescindíveis a
um leitor que está se introduzindo no tema.
Ivo Tonet**
*
Esse texto é o resultado da participação na Mesa Redonda Lukács e as esquerdas brasileiras, integrante da VI
Jornada de Ciências Sociais: Jornada de estudos Leandro Konder, promovida pelo Dep. de Sociologia e
Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, campus de Marília, realizada de 06 a 08 de
outubro de 1998.
**
Prof. Do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas e doutorando em educação na
ENESP-Marília.
prática. Leandro Konder foi uma destas pessoas. É justa, pois, a homenagem que se lhe está
prestando. Mas é sempre bom lembrar que a melhor homenagem que se pode prestar a um
autor é ser obrigado, pela sua própria trajetória, a reconhecer as contribuições que o fizeram
elevar-se acima das outras pessoas, mas também poder evidenciar deficiências, lacunas e
limitações face à causa maior que é a superação desta forma de sociabilidade. Pois, o que,
afinal, está em jogo não é apenas um indivíduo, mas os destinos da própria humanidade. É
com este pano de fundo que farei a minha intervenção.
Se Lukács teve alguma influência nas esquerdas brasileiras – e penso que teve,
embora bastante reduzida – deveu-a a um grupo de intelectuais, entre os quais se destaca a
figura de Leandro Konder. Não é o caso de referir, aqui, porque outros já o fizeram com
muito mais pertinência e conhecimento, a importância que Leandro Konder teve na trajetória
do marxismo e da luta social no Brasil. O fato é que, por volta da década de 60, em um
momento em que se travava uma luta intensa contra décadas de deformação e dogmatização
do pensamento marxiano e contra o obscurantismo mantido pelas baionetas a serviço da
burguesia, Leandro Konder teve, inegavelmente, um papel destacado na luta pelo resgate de
um pensamento crítico. E entre as muitas contribuições que deu à renovação do marxismo
destaca-se a introdução, junto com Carlos Nelson Coutinho e outros, do pensamento
lukacsiano no Brasil.
Não é minha intenção historiar o papel de Leandro Konder nesta empreitada.
Gostaria, apenas, de fazer algumas observações a respeito das relações entre Lukács e as
esquerdas brasileiras, tomando como pretexto elementos da trajetória do autor a quem esta
semana é dedicada.
Celso Frederico, em seu texto, que faz parte do vol. II de A história do marxismo no
Brasil (ed. da Unicamp, 1995) após historiar a introdução e a divulgação do pensamento
lukacsiano no Brasil, faz uma constatação e uma indagação instigantes. Segundo ele, no exato
momento em que os intelectuais que trabalhavam com aquele pensamento puderam dedicar-
se, mais direta e intensamente, às questões políticas, acabaram abandonando aquele
instrumental teórico. O autor lembra que a introdução e a divulgação da obra lukacsiana no
Brasil coincidiram, quase inteiramente, com o período da ditadura militar. Deste modo, a luta
intelectual tendeu a nuclear-se ao redor das questões da cultura, da estética e da teoria
literária. Ora, é sabido que Lukács teve uma ampla e original elaboração sobre estas questões.
Assim, ainda que os aspectos ontológico e político não fossem de todo esquecidos, foi sob o
viés cultural que sua obra foi mais conhecida. Quando, pois, a problemática política – com o
início da redemocratização – pode ser mais diretamente abordada, a teoria do pensador
húngaro foi posta em segundo plano e substituída pelo pensamento gramsciano.
O autor pergunta-se por que teria acontecido isto, já que, de modo geral, para todo
autor marxista, a dimensão da política é de inegável importância. Sua resposta vai no sentido
de afirmar que este abandono do pensamento lukacsiano e a maior aproximação com o de
Gramsci se deveria ao fato de que a reflexão do primeiro sobre a dimensão da política é muito
reduzida, quando não tópica, ao contrário de Gramsci, que fez dela o eixo do seu trabalho
teórico.
Na sua imediatez, estes fatos são inegáveis. Com efeito, na Ontologia do ser social
(Roma, Riuniti, 1976-1978) de Lukács, sua grande obra de maturidade, o espaço reservado
explicitamente à reflexão sobre a política é relativamente pouco extenso. Mais ainda, o
aspecto privilegiado é o aspecto mais propriamente filosófico e não o da teoria e da ciência
política, o que lhe confere, por sua própria natureza, um caráter necessariamente mais
abstrato. Mesmo, porém, suas intervenções não propriamente filosóficas são bastante
limitadas. Além disto, suas contribuições, em termos de teoria política e de análise de
situações concretas, não podem de fato, comparar-se com as elaborações de Gramsci, que,
além de extremamente profundas, são também muito extensas.
A explicação de Celso Frederico parece bastante razoável e se apoia em fatos reais.
No entanto, ao meu ver, ela é bastante limitada. Falta o enquadramento desta problemática em
um contexto maior para poder compreender o seu sentido mais profundo.
Com efeito, tanto a aproximação quanto o abandono do pensamento lukacsiano se
inserem, a meu ver, na questão mais ampla da trajetória do marxismo e do mundo em que esta
se deu. Vejamos, pois, rapidamente, esta problemática.
Parece fora de dúvida que a obra original de Marx teve um caráter radicalmente
crítico em relação à sociedade capitalista. O que confere este caráter de radicalidade crítica foi
e continua a ser objeto de discussão. Filio-me àqueles que pensam que o fundamento desta
criticidade está na identificação do caráter radicalmente histórico e social do ser social. Em
síntese, este seria o significado desta afirmação: Marx parte do trabalho como ato ontológico
originário e, através da análise dos elementos essenciais deste ato e dos seus desdobramentos
no processo social, constata que a história humana nada mais é do que o complexo processo
de autoconstrução social do homem. Com isto, ele alcança a raiz última do processo social, ou
seja, o homem enquanto autor decisivo de si mesmo. Este achado corta o passo a qualquer
interpretação determinista, teológica ou teleológica da história. Do mesmo modo, corta o
passo a toda tentativa de eternizar qualquer forma de organização social, deixando claro que
isto não passa de expressão de determinados interesses particulares. De modo que a captura da
lógica interna da forma da sociabilidade capitalista implica também, necessariamente, a
constatação da possibilidade da sua superação. Este caráter ontológico (histórico e social) é, a
meu ver, o que define a originalidade e a profundidade da ruptura de Marx com a tradição
ocidental e o que lança as bases para um novo patamar científico-filosófico. É também este
caráter ontológico que confere à teoria marxiana a capacidade intrínseca – que, quando
perdida, o destrói – de não somente criticar (tomando esta palavra num sentido ontológico e
não apenas epistemológico) a realidade e as outras teorias, mas também de exercer a
autocrítica sobre si mesma.
Acontece que a recepção e a difusão, larguissimamente hegemônicas, do que veio a
se chamar de marxismo – por motivos históricos que não podemos detalhar aqui – não
compreendeu, perdeu ou rejeitou explicitamente como metafísico este caráter originalmente
ontológico do pensamento de Marx. O marxismo hegemônico – adotado por todos os partidos
comunistas – assumiu um caráter francamente objetivista e/ou idealista, transformando, deste
modo, a proposta original, de cunho essencialmente crítico – no sentido ontológico – em uma
teoria incapaz de agarrar o movimento do processo social como totalidade histórica. O
resultado disto foi um misto de empirismo e idealismo, que serviu para justificar uma certa
ordem social identificada, por determinadas instâncias políticas, como sendo o socialismo
proposto por Marx.
É claro que o marxismo não se esgotava nesta forma hegemônica. A luta contra esta
e outras deformações sempre se fez presente, com altos e baixos, com maior ou menor
intensidade. Mas é inegável que aquela concepção objetivista teve, ao longo de décadas, uma
hegemonia praticamente indiscutível. Por outro lado, muitos autores, que perceberam o
absurdo e a contradição do marxismo objetivista, opuseram-lhe críticas que, de uma forma ou
de outra, terminaram por acentuar a tendência contrária, ou seja, o idealismo. Afirmação esta
válida para o próprio Lukács até História e consciência de classe. Poucos foram aqueles que,
implícita ou explicitamente identificaram o caráter ontológico como a chave do resgate da
radicalidade crítica do marxismo. Entre estes últimos, o autor mais significativo é, sem
dúvida, Lukács, em sua obra de maturidade.
Ora, a obra lukacsiana, após a adesão do autor ao marxismo e também ela com uma
trajetória complexa, insere-se neste esforço por restituir ao marxismo o seu sentido
genuinamente crítico. Contudo, por razões que não é possível expor neste breve texto, a obra
de Lukács que mais avança na reconstrução da teoria marxiana, a Ontologia do ser social, foi
e continua a ser uma grande desconhecida. Não somente no Brasil, mas também no exterior.
E, embora não sendo o único, e com todos os defeitos, lacunas e problemas, Lukács me
parece o autor mais importante neste esforço pela reconstrução do marxismo enquanto teoria
efetivamente crítica Todas as outras tentativas de resgatar o caráter crítico da obra de Marx,
integrantes daquilo que foi chamado de marxismo ocidental, vão numa linha claramente anti-
ontológica. E, a meu ver, a recusa, o desconhecimento e/ou o insuficiente aproveitamento
desta concepção ontológica do marxismo são os responsáveis pelo insucesso destas tentativas
de renovação.
Ora, no caso em tela, da introdução e utilização do pensamento lukacsiano no Brasil,
todo este conjunto de circunstâncias teve um grande peso, aliado às especificidades do
momento histórico nacional.
Com efeito, a introdução de Lukács no Brasil é realizada por intelectuais integrantes
ou próximos do partido comunista do Brasil. Intelectuais estes que, naquele momento, se
inscreviam na luta contra a hegemonia do dogmatismo e do objetivismo vigentes neste
partido, mas certamente não deixavam de pagar algum tributo à sua formação original. Além
disto, como já disse, a chegada de Lukács ao Brasil também praticamente coincidiu com a
instauração da ditadura militar, o que levou a flexionar a luta teórica mais para o campo
cultural do que para o campo da política. Deste modo, o que se privilegiou, na obra
lukacsiana, não foi o seu teor propriamente ontológico – essencial para uma renovação radical
do marxismo – mas a problemática relativa à arte e à cultura. Certamente, este caráter
ontológico não era desconhecido, muito pelo contrário, mas o seu estudo, a sua apreensão
exaustiva e detalhada, que permitisse a compreensão da sua real importância na reconstrução
da teoria marxiana a partir das suas raízes, foi claramente insuficiente. Tanto é que não existe,
até hoje, nenhum trabalho mais sistematizado sobre a obra de maturidade do pensador
húngaro. Sintomaticamente, o próprio Konder não faz nenhuma referência a ela em seu livro
O futuro da filosofia da praxis (Paz e Terra, 1992).
Durante algum tempo, o pensamento gramsciano pareceu fornecer o instrumental
necessário para superar o dogmatismo stalinista e prover teoricamente de modo crítico a luta
dos trabalhadores. Contudo – como já é sabido – por um lado, a própria natureza da obra de
Gramsci permitiu que fossem feitas várias leituras, das quais a mais privilegiada foi aquela
que desembocou no chamado “socialismo democrático”. Por outro lado, a ausência de uma
elaboração filosófica explícita, que repusesse, a partir dos fundamentos, a capacidade crítica
da teoria marxiana, impediu que o pensamento gramsciano – mesmo nas suas leituras não
reformistas – pudesse levar a cabo esta tarefa. Pois, o fato é que não se tratava – como não se
trata hoje – apenas de teoria política ou de ciência política, mas de um resgate da teoria a
partir dos seus fundamentos filosóficos. A insuficiente, ou muitas vezes equivocada,
resolução destas questões acabava mostrando todas as suas fragilidades nos embates com o
pensamento burguês nas mais diversas áreas. Fragilidade que, a meu ver, levou o marxismo a
perder a sua identidade própria, tornando-se apenas mais um dos muitos pontos de vista
possíveis e, com isto, aceitando, no mais das vezes sem perceber e justificando até tal atitude,
a batalha teórica – e os seus desdobramentos práticos – no campo do adversário.
É neste sentido que é sintomática a trajetória de Leandro Konder. Como já disse, sua
contribuição na luta cultural, na luta política e nas batalhas práticas teve um destaque que
deve ser reconhecido. Por outro lado, ela mostra claramente uma inflexão explícita em direção
ao que acima chamei de “socialismo democrático”, que me parece um caminho equivocado.
Faltar-me-ia tempo e espaço para mostrar em detalhes esta inflexão. Limito-me a apontar
como sintomático o livro intitulado O futuro da filosofia da praxis. Nele o autor pretende
apontar o caminho que o marxismo deverá seguir se quiser renovar-se e subsistir enquanto
instrumento de luta por um mundo melhor. Essencial para isto é, segundo ele, a “assimilação
dos valores do pluralismo”, que inclui uma postura teórica e prática aberta, anti-dogmática e
anti-sectária e a aceitação da luta por uma “cidadania democrática”, como objetivo maior. É,
sem dúvida, justíssima a preocupação de Leandro Konder de opor-se ao dogmatismo, ao
sectarismo e à estreiteza teórica e prática que caracterizou o marxismo, na sua vertente
hegemônica. Mas, ao meu ver, o resgate da radical criticidade desta teoria não passa, de modo
algum, pela assimilação dos valores do pluralismo – seja ele epistemológico, político, ético ou
estético. Antes pelo contrário, é na assimilação da teoria marxiana enquanto perspectiva
ontológica – visceralmente crítica, anti-dogmática, anti-sectária e intrinsecamente atada à
emancipação humana – que está a possibilidade de restabelecer a identidade mais profunda do
marxismo e delimitar claramente a perspectiva própria do trabalho contra o capital. Em meu
livro Democracia ou liberdade (Maceió, Edufal, 1988) podem-se encontrar, mais explicitadas
as razões que me levam a opor-me, frontalmente, ao pluralismo tanto epistemológico quanto
político, sem que isto signifique, de modo algum, uma adesão ao dogmatismo e ao sectarismo.
O que, a meu ver, explica o que me parece serem equívocos de Leandro Konder é
exatamente não o desconhecimento, mas a insuficiente assimilação da ontologia do ser social
lukacsiana. E fique claro que não penso em termos de uma aceitação servil, mas como o
caminho – constituendo e constituinte – capaz de resgatar o marxismo como o método mais
apropriado para compreender e orientar a transformação do mundo. Leandro contribuiu para
introduzir a divulgar as idéias lukacsianas no Brasil. Circunstâncias históricas levaram-no e a
outros a relegá-las a um segundo plano e a assumir outros pontos de vista, sem contudo
abandonar a idéia de que a superação do capitalismo é uma necessidade se se tem em vista a
construção de um mundo melhor. Por isto mesmo, esta contribuição, da máxima importância,
precisa ser retomada e levada adiante porque, se o homenageado me permite, ela atende
exatamente àqueles objetivos aos quais ele dedicou e continua a dedicar a sua vida.
MARXISMO E DEMOCRACIA
Ivo Tonet
Introdução
O tema, assim colocado pelo título, é por demais vasto. Faz-se necessária uma
delimitação. Falar em marxismo pode dar a idéia de que exista uma doutrina homogênea e
coerente com esse nome. O que, de fato, existe, é uma tradição marxista, complexa e
contraditória, onde se entrecruzam variadas interpretações do pensamento de Marx. Com
posições, às vezes, muito conflitantes e excludentes. Mas, todas elas se reportando ao
pensamento do fundador dessa tradição.
De modo que falar em marxismo e democracia num sentido tão amplo seria abordar
a história dessas variadas interpretações do pensamento de Marx e dos que se pretendem
seguidores dele acerca dessa problemática. O que, obviamente, não é realizável em tão pouco
espaço nem seríamos nós competentes para tal empreitada.
Por isso, preferimos ater-nos apenas ao que julgamos seja o pensamento de Marx a
respeito dessa questão. E mesmo assim, sabendo que circunstâncias histórias determinadas
levaram a colocar essa questão, a nosso ver, de modo equivocado. Vale dizer, a discussão, em
geral, começa por colocar a questão dessa forma: Marx é contra ou a favor da democracia? É
claro que, colocada assim a questão, não é difícil, ao examinar a obra dele, encontrar
argumentos para sustentar qualquer uma das duas posições. Especialmente, a primeira.
Entendemos que o caminho deve ser diferente. O ponto de partida não deve ser o
exame dos textos onde Marx se refere explicitamente à questão da democracia. Infelizmente,
é isso o que costuma acontecer, com o conseqüente descaminho de toda a problemática. A
nosso ver, o ponto de partida deve ser o estabelecimento da natureza do pensamento de Marx,
a sua arquitetura fundamental para, em seguida, compreender aquela problemática a partir
desse fio condutor. Isto porque, o sentido de qualquer questão (no caso, da democracia) só
aparecerá efetivamente quando ela for remetida à arquitetura do conjunto da obra desse autor.
Aliás, essa necessidade de não isolar qualquer tema do conjunto da obra de um autor
é, a nosso ver, um princípio heurístico que deveria nortear a compreensão de qualquer
problema, de qualquer autor, e não apenas de Marx.
Para situar melhor essa problemática cumpre fazer referência ao momento histórico-
social que deu origem à forma particular como ela é abordada e ao equívoco acima
mencionado. Esse momento tem por epicentro a revolução soviética de 1917.
Ao fazer uma crítica, teórica e prática, do caminho reformista trilhado pela social-
democracia alemã, a revolução soviética recolocou na ordem do dia a perspectiva original
marxiana, de caráter radicalmente crítico e revolucionário. Tratava-se de erradicar o capital e,
com ele, o conjunto da sociabilidade burguesa e não de reformá-los.
Como se sabe, não foi nada disso que aconteceu. Ao invés de uma forma de
sociabilidade mais livre e superior, o que emergiu desse processo foi uma brutal ditadura na
qual nem sequer as objetivações democrático-cidadãs burguesas tiveram a possibilidade de
florescer.
Esse resultado foi entendido de duas maneiras. Para os conservadores, foi a prova
prática do caráter visceralmente antidemocrático do marxismo e de sua expressão prática, o
socialismo. E, adicionalmente, a prova cabal da inviabilidade do socialismo. Para os que
continuavam a acreditar na possibilidade do socialismo, mas, que assumiam uma postura
crítica face à revolução soviética, significava a existência de um grave defeito, teórico e
prático. Esse defeito indicava uma concepção estreita e equivocada, de Marx, acerca da
questão da democracia e da cidadania. Segundo esses pensadores, para Marx, o conjunto de
instituições, direitos e liberdades democráticos teria um caráter essencialmente particular e
burguês (individualista). Por isso mesmo, deveria ser suprimido pela revolução proletária.
Tratava-se, pois, para esses pensadores, de fazer uma crítica do pensamento de Marx,
demonstrando que a democracia e a cidadania têm um caráter universal. Que são valores que
interessam a toda a humanidade e não apenas a uma classe. E que, quando liberados da sua
conexão e sujeição ao capital, elevam a humanidade a um grau superior de existência. Marx
estaria certo quanto à questão da socialização da economia, mas estaria errado quando
propunha a eliminação da democracia. Tratava-se de corrigir esse erro.
O resultado dessa postura, foi estabelecer que a oposição se dava entre democracia –
um valor universal, que contribuía para o desenvolvimento superior da humanidade/cidadania
– e ditadura – um obstáculo ao avanço do progresso humano. A democracia/cidadania seria a
forma mais elevada possível da liberdade humana. E, sendo ela um valor universal, sua
relação com o capital seria apenas circunstancial, de maneira nenhuma essencial. Mais ainda:
seu pleno florescimento só poderia se dar quando os entraves postos pelo capital fossem
eliminados.
O resultado final disso foi a elaboração do que veio a ser chamado de “o caminho
democrático para o socialismo”, ou seja, a construção de uma sociedade socialista através da
tomada pacífica do Estado burguês, sua transformação e sua colocação a serviço dos
interesses da classe trabalhadora.
2. Marx e a democracia
Para Marx, não é o Estado que funda a sociedade como sociedade. É o trabalho. É o
que ele afirma no Prefácio à Contribuição para a Crítica da Economia Política. Diz ele (1973,
p 28):
Nas minhas pesquisas cheguei à conclusão de que as relações jurídicas –
assim como as formas de Estado – não podem ser compreendidas por si
mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se, pelo
contrário, nas condições materiais de existência de que Hegel, à semelhança
dos ingleses e franceses do século XVIII, compreende o conjunto pela
designação de “sociedade civil”; por seu lado, a anatomia da sociedade civil
deve ser procurada na economia política.
A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio
condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na
produção social da sua existência, os homens estabelecem relações
determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de
produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das
forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção
constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual
se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem
determinadas formas de consciência social.
Como se pode ver, é a partir desse intercâmbio do homem com a natureza que surge
um novo tipo de ser que é o ser social. Isso deixa claro que o trabalho, e não a política, é o
fundamento ontológico do ser social. Em nenhum momento a categoria do trabalho perde o
seu caráter de fundamento. O que significa que toda e qualquer forma de sociabilidade terá,
sempre, como seu fundamento, uma determinada forma de trabalho.
Sabe-se que, para Marx, o Estado tem sua origem na existência da propriedade
privada e das classes sociais. É do antagonismo existente entre as classes que brota a
necessidade do Estado, porém com a clara finalidade de defender os interesses das classes
dominantes.
A forma que esse Estado assumirá ao longo da história dependerá da concreta relação
entre as classes num determinado momento e espaço históricos. O exame dessa situação
concreta permite explicar a existência das várias formas de Estado, inclusive da forma
democrática na Grécia antiga e também desta forma, ainda que embrionária, em Florença.
Quanto ao mundo moderno, sabemos que, para Marx, a forma específica de trabalho,
que funda o capitalismo, é a relação capital-trabalho. Esta relação se expressa num conjunto
de categorias – trabalho abstrato, trabalho assalariado, valor de troca, mercadoria, mais-valia,
capital, dinheiro, etc. – que implicam, necessariamente, a subordinação do trabalho ao capital,
a exploração do trabalho pelo capital e a existência da desigualdade social. Este conjunto de
relações de produção, que supõe um determinado desenvolvimento das forças produtivas é o
que Marx chama de anatomia da sociedade civil em, o travejamento fundamental da
sociedade burguesa.
Ora, esta relação entre capital e trabalho, que se põe sob as mais variadas formas, não
poderia funcionar sem a presença de um “instrumento”, externo a essa mesma relação, mas
requerido necessariamente por ela, que garantisse a reprodução da sociedade sob essa forma.
Vale dizer, que mantivesse os trabalhadores como trabalhadores assalariados e os capitalistas
como proprietários dos meios de produção e do capital. Esse “instrumento” é o Estado. Sem a
interveniência do Estado, com o seu aparato político, jurídico, militar, burocrático e
ideológico, o capitalismo simplesmente não poderia funcionar. Como afirma Mészáros em
Para além do capital, interpretando corretamente o pensamento de Marx, capital, trabalho e
Estado são três momentos intimamente articulados. Nenhum deles pode ser eliminado
isoladamente sob pena de impedir o funcionamento do modo de produção capitalista. E
também nenhum deles pode ser mantido na ausência dos outros. Que a presença do Estado se
faça de forma coercitiva e/ou consensual em nada altera o caráter essencial dele, embora faça
enorme diferença quando se trata da análise concreta e da luta concreta.
Por isso mesmo, o Estado não é propriamente um “instrumento”, vale dizer, algo que
possa ser apropriado por qualquer classe e colocado ao seu serviço. Ele é, na verdade, uma
relação social, gerada pela existência de classes sociais antagônicas e que tem como função
permitir a reprodução da sociedade segundo os interesses das classes dominantes. Ora, manter
esses interesses significa, sob as mais variadas formas, garantir a exploração e a dominação
do homem pelo homem. Por isso, diz Marx (Glosas críticas ao artigo O Rei da Prússia e a
Reforma social. De um prussiano, p. 81): A existência do Estado e a existência da escravidão
são inseparáveis. E acrescenta que a impotência do Estado face aos problemas sociais é a
clara demonstração de que ele não pode eliminar aquilo que é o seu fundamento e que dá
origem àqueles problemas, vale dizer, a propriedade privada.
Como se pode ver, essa célula mater da sociedade capitalista, que é o contrato de
trabalho, carrega em si uma divisão interna. Ela articula em si dois momentos: o momento da
desigualdade real e o momento da igualdade formal. As formas certamente variarão, tanto ao
longo do tempo quanto nos diversos espaços. O campo da desigualdade real poderá ser maior
ou menor e bem assim o da igualdade formal. Isso dependerá da luta de classes em cada
momento e em cada espaço históricos. Mas, esses dois momentos guardam, entre si, uma
relação incindível no capitalismo.
Além disso, o capital, por sua própria natureza, implica a concorrência entre os
diversos capitais que compõem a sua totalidade. E essa concorrência supõe a existência de
determinadas regras que devem ser observadas por todos. Ora, quanto mais plenamente
desenvolvido o capital, ou, como Marx diz, quanto mais verdadeiro ele for, esse verdadeiro
significando a sua forma industrial, mais ele necessita, para sua reprodução, de um espaço
democrático. É preciso observar, porém, que mesmo nessa forma mais desenvolvida, nada o
isenta das suas insuperáveis contradições internas, o que faz com que, mesmo aí, a
democracia possa ser mais ampla ou mais restrita.
Por isso mesmo, ela também é uma forma de liberdade necessariamente limitada.
Não importa quão aperfeiçoada ela seja, não importa quanto ela possa diminuir a
desigualdade social, ela jamais poderá arrancar (e nem sequer identificar) a raiz dessa
desigualdade, que é a propriedade privada, uma vez que ela repousa sobre essa própria raiz.
Ora, a existência da propriedade privada significa a existência da exploração e da dominação
do homem pelo homem. A conseqüência necessária disto é a impossibilidade de os homens
serem efetivamente livres.
E, para perceber melhor essa relação entre capital e democracia, basta examinar
como isso se dá na fábrica. Lá onde se produz a mercadoria, no processo de produção da
riqueza, o capital reina soberano. Lá não pode existir democracia. Lá é o capital que dá as
ordens. Por outro lado, a forma política também se faz presente na fábrica, mas, dessa vez,
apenas para regular, de alguma maneira a produção da mercadoria. Isso em nada altera o
cerne da questão que é a subordinação do trabalho ao capital. Por isso mesmo, o trabalhador e
o capitalista são, cada um deles ao mesmo tempo, bourgeois e citoyen, indivíduo privado e
indivíduo público, ambos os momentos compondo uma unidade indissolúvel. Autocratismo e
democracia são duas faces da mesma moeda.
Nada disso diminui, aos olhos de Marx, o valor destas objetivações democráticas.
Referindo-se á emancipação política, que encerra esse conjunto de objetivações democráticas,
diz ele (1991, p. 28):
Por isso mesmo diz Marx (e Engels), no Manifesto Comunista (1998, p. 29-30) que
(...) o primeiro passo na revolução operária é a passagem do proletariado a classe
dominante, a conquista da democracia pela luta. Este é um momento superior da democracia
porque, ao contrário da sua forma anterior, é o domínio da maioria sobre a minoria. Contudo,
mesmo assim, ela não deixa de ser uma forma limitada de liberdade. Trata-se de uma
liberdade mais ampla para a maioria, mas ainda é uma liberdade onde inexistem os
pressupostos fundamentais para a “liberdade plena”, vale dizer, para o domínio livre,
consciente, coletivo e universal sobre o processo de produção e, a partir dele, sobre o conjunto
do processo social.
Mas, esse, segundo Marx, será, necessariamente, apenas um momento – que ele e
Engels julgavam razoavelmente curto – de transição do capitalismo ao comunismo. Esse é o
momento em que, ao contrário da forma tipicamente burguesa, a democracia está voltada ao
atendimento dos interesses da maioria (os trabalhadores) em detrimento dos interesses da
minoria (os burgueses). Esse momento transitório durará o tempo necessário para que o
trabalho associado, a alma do socialismo, entre em cena, se desenvolva e ponha os
fundamentos de uma forma radicalmente nova de sociabilidade.
Para bem entender o que Marx pensa acerca da democracia é preciso ter claro que o
seu objetivo – que ele extrai da análise do capital e não de seu coração – é a eliminação da
exploração do homem pelo homem, cuja última forma, segundo ele, é o capitalismo. Quando,
pelo contrário, se põe no centro da discussão o dilema ditadura ou democracia, o que está em
pauta é a forma mais ou menos explícita, mais ou menos brutal dessa exploração, mas não a
sua supressão. A Marx interessa pensar uma forma de sociabilidade em que os homens
possam ser plenamente livres e não apenas mais livres.
Por isso mesmo, a liberdade, na sua forma plena (portanto, para além da forma
democrática), só pode configurar-se com a supressão radical da propriedade privada, das
classes sociais e, por conseqüência, do seu instrumento fundamental de manutenção, que é o
Estado.
Marx já fazia alusão a isso em um texto de 1844, A Questão Judaica. Lá, diz
ele (1991, p. 52):
Porém, um dos efeitos perversos de todo esse processo foi identificar socialismo com
ditadura, com supressão coercitiva das liberdades e instituições democrático-cidadãs, com
Estado autocrático. Perdeu-se, desse modo, o fio condutor da discussão da problemática do
socialismo, que é a autoconstrução humana plenamente livre. Liberdade essa, porém, que
requer, necessariamente, para sua edificação, uma base material, que só pode ser posta pelo
trabalho associado. Ausente este, ou a liberdade se configura sob a forma democrático-cidadã
ou sob qualquer outra forma inferior a esta. Liberdade plena (que nada tem a ver com absoluta
ou irrestrita) implica, para Marx, o controle – livre, consciente, coletivo e universal – dos
produtores sobre o processo de produção e, a partir dele, sobre o conjunto do processo social.
Porém, o que nos parece mais importante recuperar, nessa discussão acerca da
posição de Marx em relação à democracia, é a sua perspectiva metodológica. Esta se
caracteriza por ter como ponto de partida a afirmação do trabalho como fundamento
ontológico do ser social. E, em decorrência disso, também a afirmação de que toda forma de
sociabilidade terá, sempre, como fundamento, uma determinada forma de trabalho. E, mais
ainda, que a forma mais livre possível da sociabilidade humana, o comunismo, deverá ter,
necessariamente, como fundamento, a forma mais livre possível do trabalho, que é o trabalho
associado.
Podemos, pois, concluir, dizendo que Marx não é contra a democracia. Ele, apenas, é
a favor da emancipação humana, da plena liberdade dos homens, coisasi que a democracia não
pode proporcionar.
Referências bibliográficas
MARXISMO E EDUCAÇÃO
Ivo Tonet♯
1. Introdução
Antes de mais nada vale observar que não pretendemos nos referir ao conjunto
do que a tradição marxista produziu a respeito da educação. Isso é muito amplo e
variado, o que impossibilitaria uma abordagem em tão pouco espaço e nem seríamos
nós capacitados a realizar essa empreitada. Nem sequer é nossa intenção rastrear o que
Marx disse a esse respeito. Nosso objetivo é sinalizar uma determinada abordagem do
fenômeno da educação a partir do ponto de vista de Marx. Trata-se, pois, em primeiro
lugar, de esclarecer qual seja esse ponto de vista.
A maioria dos autores segue o primeiro caminho, que parece o mais óbvio.
Nada parece mais razoável do que partir do que o próprio autor disse, mesmo que isso
não represente uma reflexão específica e acabada sobre o tema.
♯
Professor de filosofia da Universidade Federal de Alagoas.
2
qual se filiarão outros leitores de Marx. O problema é que, a nosso ver, a maioria dessas
interpretações e especialmente aquela que se tornou predominante – a da Segunda
Internacional – (para nem falar da completa contrafação que é o stalinismo), não
apreendeu o que constitui a novidade mais radical do pensamento desse autor e que o
demarca como uma perspectiva essencialmente nova em relação ao padrão científico-
filosófico moderno. Referimo-nos ao seu caráter radicalmente crítico e radicalmente
revolucionário.
a maioria dos seguidores de Marx. Como, porém, não se trata apenas de uma questão
teórica, mas também prática, os resultados, para a luta social, são extremamente
danosos, pois sempre desembocam ou no voluntarismo ou no reformismo.
1
A respeito da natureza ontológica do método de Marx e das relações entre ontologia e metodologia ver,
de J. Chasin, Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. In: TEIXEIRA, F.J.S., Pensando com
Marx e de I. Tonet, A questão dos fundamentos. In: TONET, I., Educação, cidadania e emancipação
humana.
2
A esse respeito ver no nosso artigo Marxismo para o século XXI, in: TONET, I. Em defesa do futuro.
4
pelo capital. E é essa mesma identificação que lhe permite, ao compreender a natureza
do processo histórico-social e fazer a crítica do capital, vislumbrar a possibilidade – real
e não meramente volitiva – de uma forma de sociabilidade para além dele e
humanamente superior a ele. Aí reside o seu caráter radicalmente crítico e radicalmente
revolucionário. E esse caráter de modo nenhum é infirmado pelos fracassos nas
tentativas de efetivar a superação do capital.
gerais dessa nova forma de ser que se denomina ser social. Em resumo, trata-se da
resposta à pergunta: o que é o ser social; quais são as determinações mais gerais dessa
forma de ser que o distinguem radicalmente das formas naturais do ser.
Deste modo, o ato do trabalho comparece como sendo aquele que funda o ser
social. Aquele no qual se encontra a raiz do ser social.
Marx, contudo, ao analisar o ato que funda o ser social – o trabalho – constata
que este é uma síntese entre subjetividade e objetividade, entre consciência e realidade
7
objetiva. E esta síntese é realizada pela atividade prática. De modo que, para ele, o que
caracteriza essencialmente o ser social, o que o demarca frente ao ser natural, não é
apenas a racionalidade, mas a práxis, ou seja, uma atividade que, articulando as
categorias da subjetividade e da objetividade, dá origem a um novo tipo de ser, que é
precisamente o ser social.
Com isso fica demonstrado que a divisão entre trabalho manual e intelectual
nada tem de natural. Pelo contrário, é resultado de uma determinada forma de
relacionamento que os homens estabelecem entre si no processo de transformação da
natureza.
O que importa assinalar, aqui, é que o trabalho é a única categoria cuja função
social é a produção dos bens materiais necessários à existência humana. Nenhuma das
outras atividades humanas tem essa função. Por isso mesmo, nenhuma dessas outras
atividades é trabalho. Desnecessário dizer que, ao se afirmar isso, não se está fazendo
nenhuma valoração, mas apenas uma constatação de natureza ontológica.
3. Trabalho e educação
Se, então, examinarmos o ato do trabalho mais de perto, veremos que sua
realização implica imediatamente algumas outras categorias. Em primeiro lugar, a
socialidade. O trabalho é sempre um ato social. Por mais que ele seja realizado por um
indivíduo só, inteiramente isolado, sua natureza é sempre social. Como diz Marx (1989,
p. 195): Mesmo quando eu sozinho desenvolvo uma atividade científica, etc. uma
atividade que raramente posso levar a cabo em direta associação com outros, sou
social, porque é enquanto homem que realizo tal atividade. Não é só o material da
minha atividade – com o também a própria linguagem que o pensador emprega – que
me foi dado como produto social. A minha própria existência é atividade social.
Além disso, o exame do ato do trabalho também nos permite constatar que o
ser social é composto de dois pólos: o pólo da singularidade e o pólo da universalidade.
O indivíduo humano singular não é apenas um representante de uma espécie. Ele não se
confunde com a espécie. Ele tem um estatuto que ao mesmo tempo o distingue e o faz
membro da espécie humana. No centro dessa questão está o processo de individuação,
ou seja, o processo em que aquele ente singular, com potencialidades de se tornar
humano, passa do ser meramente em-si ao ser-para-si.
Mas, esses dois pólos não são coisas fixadas de uma vez para sempre. |A
constituição desses dois pólos é um processo que se desenvolve concretamente ao longo
de toda a história humana, tanto no sentido geral como individual. Por um lado, o pólo
universal, genérico, se constitui como um patrimônio que resulta da atividade dos
indivíduos e que se objetiva de muitas formas. Por outro lado, o pólo da singularidade,
10
Já aqui pode-se perceber que o sentido da educação não é determinado por ela
mesma. Vale dizer, não são os que fazem a educação e nem sequer o Estado ou outras
instâncias sociais que estabelecem qual o sentido dessa atividade. Nesses vários níveis
se decide a sua forma concreta, mas não o seu sentido mais profundo. Este é definido
pelas necessidades mais gerais da reprodução do ser social. Ora, como o trabalho é o
fundamento ontológico do ser social, é óbvio que, em cada momento e lugar históricos,
uma determinada forma de trabalho será a base de uma determinada forma de
sociabilidade e, portanto, de uma certa forma concreta de educação.
Temos, então, aqui, um exemplo daquela relação de que falamos acima entre o
trabalho e os outros momentos da totalidade social e de todos os momentos entre si.
Dependência ontológica, autonomia relativa e determinação recíproca. Dependência
ontológica no sentido de que a educação tem a sua matriz na forma como os homens se
organizam para transformar a natureza. Autonomia no sentido de que ela se constitui
como uma esfera e uma função específicas, portanto diferentes do trabalho, e que,
11
justamente para cumprir essa função própria, tem que organizar-se de maneira
independente dele. E determinação recíproca, no sentido de que há uma relação de
influência mútua entre a educação e todos os outros momentos da totalidade social –
trabalho, política, direito, arte, religião, ciência, filosofia, etc.
Dessa divisão social do trabalho, ou seja, do fato de que o trabalho não mais é
dividido de forma consciente entre os membros de uma comunidade, como nas formas
sociais primitivas, mas é imposto aos indivíduos por um processo social que escapa ao
controle deles, resulta esse poder estranho e hostil ao homem que Marx chama de
alienação. Os poderes humanos sociais, objetivados, se transformam, por esse meio, em
forças estranhas, poderosas, hostis e que passam a dominar a vida humana.
Essa ignorância, por sua vez, levou a teoria educacional burguesa, como
veremos, a se enredar numa contradição cada vez mais insolúvel até os dias de hoje.
Por outro lado, a sociedade burguesa também nasce e se configura tendo como
eixo o indivíduo singular. É pressuposto basilar dela que o indivíduo precede
ontologicamente a sociedade de modo que o que cada um será vai depender do seu
esforço e desempenho individual.
14
O que a teoria educacional burguesa, nas suas mais variadas expressões não
pode ver, por causa do seu caráter de classe, é a unitariedade que caracteriza o ser social
e as conseqüências unilateralizantes da divisão social do trabalho. Ao privilegiar o
espírito, a racionalidade, a subjetividade, essa teoria se torna incapaz de perceber que o
ser humano é uma totalidade composta, em unidade indissolúvel, de subjetividade e
objetividade. Isso significa, precisamente, que subjetividade (mundo interno) e
objetividade (mundo externo) não podem ser pensadas de modo separado. Há uma
determinação recíproca entre esses dois momentos, e especialmente uma determinação
ontológica do segundo sobre o primeiro, o que implica a impossibilidade de desenvolver
de maneira integral e harmoniosa o mundo interno (intelecto, sensibilidade, valores,
comportamentos, etc.) sem, ao mesmo tempo, configurar um mundo externo de modo
integral e harmonioso. Dito de outro modo, onde há divisão social do trabalho, onde há
desigualdade social, exploração e dominação do homem pelo homem, é impossível uma
educação voltada para a formação integral do ser humano.
Como vimos antes, é a Marx que se deve essa descoberta de que o ser social é
uma síntese entre subjetividade e objetividade; que, ao transformar e criar o mundo
externo o homem também se transforma e se cria a si mesmo. A dissociação entre esses
dois momentos, resultado da divisão social do trabalho, refletiu-se na teoria como
unilateralidade, como incapacidade de perceber que a formação integral do indivíduo
15
Por isso mesmo, as teorias educacionais burguesas, que são a ampla maioria,
vêem ampliar-se, cada vez mais, o fosso entre o discurso e a realidade objetiva.
Enquanto o discurso enfatiza o direito de todos à educação e a necessidade de uma
formação integral, a realidade objetiva, ao ser regida pela lógica do capital, põe sempre
mais obstáculos à efetivação desse direito e à possibilidade de uma educação integral e
harmoniosa. A transformação, cada vez mais ampla e intensa, da educação em uma
mercadoria, que, portanto, só pode ser adquirida por quem pode pagar por ela, mostra
sempre mais que é a lógica da reprodução do capital que impõe os fins dominantes que
a organizam. Vale enfatizar que, apesar de dominantes, estes não são e nem podem ser
os fins únicos e absolutos. Dada a natureza contraditória do capital, seu antagonista
mais radical, que é o trabalho, estabelece outros fins, inteiramente diferentes. Estes fins
sinalizam para uma autêntica formação humana, integral, de todos os indivíduos. Mas, a
condição imprescindível para isso, é a supressão completa da sociabilidade capitalista.
Somente uma forma de sociabilidade em que já não exista propriedade privada,
exploração do homem pelo homem e alienação pode propiciar aos indivíduos uma
verdadeira formação integral porque somente então ser verificará aquela harmonia entre
mundo objetivo e mundo subjetivo.
Concluindo
dos resultados a que Marx chegou a partir desses mesmos fundamentos. Pelo contrário,
é a partir deles que se podem avaliar esses próprios resultados.
Referências Bibliográficas
Ivo Tonet
Introdução
Para a maioria dos intelectuais, Marx não passa, hoje, de um “cachorro morto”. Não
por acaso, esses intelectuais abriram mão de qualquer perspectiva revolucionária em relação à
ordem atual, se alguma vez acreditaram nela.
Contudo, para aqueles que julgam que é impossível resolver, no interior do
capitalismo, os graves problemas que a humanidade enfrenta, a reconstrução da teoria
revolucionária é uma das tarefas mais importantes neste momento. E, no interior dela, o
resgate do pensamento marxiano ocupa um lugar centralíssimo. Ambas as tarefas têm uma
enorme urgência e importância, dado o extravio e a confusão em que se vê enredada a luta
anti-capitalista na atualidade. Contudo, nossa intenção, aqui, é de ocupar-nos apenas da
questão do pensamento de Marx.
Mesmo no tocante a este, porém, a quantidade e a densidade dos problemas
envolvidos é imensa. Nossa intenção, nesse texto, é abordar apenas alguns aspectos dessa
problemática.
A primeira questão que, ao nosso ver, se coloca, é esta: qual o sentido deste resgate?
Para alguns, trata-se, apenas, de defender o marxismo dos ataques dos seus adversários e de
corrigir eventuais falhas e deformações historicamente situadas. Para outros, levando em
consideração as enormes mudanças que o mundo sofreu desde o nascimento do marxismo até
hoje, trata-se de estabelecer “o que é vivo e o que é morto” nele, atualizando-o face aos
problemas do mundo atual. Para isto, há quem advogue a necessidade de entrecruzá-lo com
outras correntes atuais, o que permitiria evitar todo dogmatismo e sectarismo e traria mais
produtividade ao próprio marxismo.
Não nos parece que estes sejam os melhores caminhos para a realização dessa tarefa.
Com efeito, se partirmos do pressuposto de que o núcleo mais íntimo dessa tarefa é a
restituição, ao ideário marxiano, daquele caráter radicalmente crítico e revolucionário, que é a
sua marca mais essencial, então nem as interpretações dogmatizantes nem aquelas ecléticas
conseguiram atingir esse objetivo. E ambas – por maiores que sejam as suas diferenças –
1. O argumento histórico
1
Infelizmente, a história das idéias tem sido, de modo predominante, uma história centrada nos
indivíduos, com uma relação apenas circunstancial com as classes sociais. A pretexto de evitar uma
relação mecânica entre idéias e a realidade objetiva – especialmente a das classes sociais – concede-se às
idéias uma autonomia que, na realidade elas não têm. Contudo, entre uma autonomia absoluta e uma
dependência direta e mecânica, existe a autêntica relação entre estes dois elementos: uma dependência
ontológica das idéias em relação à realidade objetiva e uma autonomia relativa.
5
esta classe encontram-se numa situação tal que, para poderem realizar-se como seres
genuinamente humanos, se vêem obrigados a destruir a sua própria condição de classe e, para
isso, a própria sociedade de classes. Daí porque ela é uma classe cujos interesses mais
essenciais não são particulares, mas universais. Daí porque ela tem necessidade de um outro
tipo de conhecimento, um conhecimento que vá até a raiz das desigualdades sociais, um
conhecimento que permita intervir na realidade social de modo a alcançar aqueles objetivos
universais.
Não parece existir dúvida de que os grandes pensadores modernos – de modo muito
especial Kant – instauraram um novo patamar científico-filosófico. E de que esta instauração
se deu em confronto com o modo de pensar greco-medieval.
Mas, para além disso, para nós também não existe dúvida de que – com a autonomia
relativa que é própria das elaborações ideativas – os pensadores modernos expressavam –
independente do seu grau de consciência – a perspectiva da classe burguesa. Classe esta que,
ao mesmo tempo que se formava, também ia assumindo a liderança na luta por uma nova
forma de sociabilidade. É preciso ressaltar que não vai nisto nenhum juízo de valor, mas
apenas a constatação de um fato, a afirmação do caráter histórico-social de todos os
fenômenos sociais. Certamente não é por acaso que, em um momento em que o interesse
maior começou a voltar-se para a produção de mercadorias, as ciências da natureza foram as
primeiras a se constituir e desenvolver. Como também não era por acaso que nos modos de
produção escravista e feudal, quando os senhores de escravos e os senhores feudais não
tinham envolvimento direto com a produção, havia uma valorização maior de outras esferas
de conhecimento e de outros valores.
Porém, os próprios pensadores modernos não poderiam admitir, aberta e claramente,
que estavam expressando um ponto de vista particular. E isto, por dois motivos. Em primeiro
lugar, porque a própria realidade social ainda não estava suficientemente madura para permitir
que isto fosse percebido. A imaturidade do capitalismo, no século XVII, ainda não permitia
que a conexão ontológica entre as idéias e a realidade objetiva fosse plenamente apreendida.
Em segundo lugar, porque toda classe que aspira ao poder tem que apresentar os seus
interesses, mesmo quando particulares, como sendo universais. É por este motivo que essa
nova perspectiva científico-filosófica foi afirmada como sendo a descoberta não de um
caminho particular, historicamente configurado, mas do caminho que responderia aos anseios
de construção de uma forma de sociabilidade que atenderia os interesses da humanidade no
seu conjunto.
Ressaltemos, porque isso é importante para a nossa argumentação, que não foi a
justeza e a correção das novas idéias que deu a vitória aos pensadores modernos. Foram, de
6
modo preponderante, as mudanças que se deram nas relações de produção – obviamente em
determinação recíproca com o mundo das idéias – o elemento fundamental dessa vitória. Isto
demarca, ao nosso ver, com clareza, as possibilidades e os limites dessa perspectiva. Baste um
exemplo. A idéia de uma natureza humana genérica, mas não- histórica, podia fundar
teoricamente a igualdade de todos os homens, mas, ao mesmo tempo expressava as
insuperáveis limitações desta noção de igualdade.
Ora, se é válido o raciocínio anterior para a passagem do mundo feudal ao mundo
capitalista, por que não seria para a passagem do mundo capitalista ao mundo comunista? A
grande diferença – de larguíssimas conseqüências – é que a primeira já se realizou e, portanto,
a perspectiva burguesa mostrou a sua superioridade sobre a anterior, ao passo que a segunda
ainda é apenas uma possibilidade. O que nos permite dizer que, se algum dia a humanidade
viver numa forma comunista de sociabilidade, a superioridade desta última – tomada de modo
geral – se evidenciará de modo tão claro como se evidencia a da perspectiva burguesa sobre a
feudal.
O pressuposto dessas afirmações é que as idéias são sempre mediações – ainda que
indiretas – para o conhecimento e a intervenção na realidade. Ora, é claro que, numa
sociedade de classes, as classes dominantes buscarão compreender a realidade e orientar a
intervenção nela de modo a favorecer os seus interesse que, não esqueçamos, são sempre
apresentados como interesses universais. Não se trata de querer ou não. Trata-se de uma
necessidade inescapável. Isto acontece até, embora de forma muito diferente, com relação ao
conhecimento da natureza. Quanto mais em relação ao conhecimento da sociedade! Afinal,
como bem disse Marx “As idéias dominantes são as idéias das classes dominantes”.
De modo que não é nada por acaso que a ideologia burguesa quer demonstrar por
todos os meios a impossibilidade de superação desta ordem social. No que é auxiliada
alegremente por muitos intelectuais que se proclamam de “esquerda”. A burguesia sabe que o
que está em jogo é a sobrevivência dos seus interesses particulares e que, neste jogo, as idéias
têm um papel muito importante.
Contudo, não há nenhum argumento conclusivo que demonstre que a passagem do
capitalismo ao comunismo é impossível. Argumentando ad hominem, em boa lógica
popperiana, a afirmação de que o comunismo é impossível é uma afirmação não falsificável, o
que lhe retira qualquer caráter científico e traduz muito mais o desejo da burguesia. O
fracasso das tentativas até agora feitas apenas prova que aquele não era o caminho, mas não a
impossibilidade de atingir tal objetivo. Isto é boa lógica!
O que nós afirmamos é que, no século XIX, a classe trabalhadora, por sua própria – e
histórica – natureza, estabelecia as bases para uma outra forma de sociabilidade: a
7
sociabilidade comunista. Com ela comparecia a possibilidade de compreender a realidade
social até a sua raiz mais profunda, vale dizer, até a ação humana como responsável última e
única e, ao mesmo tempo, de superação da sociabilidade capitalista. Abria-se, assim, uma
nova e superior perspectiva para a humanidade.
Ora, nossa tese é de que, assim como os pensadores modernos expressaram a
perspectiva cujas bases materiais foram postas pela classe burguesa, do mesmo modo, Marx
(e outros pensadores) lançou os fundamentos teóricos da perspectiva cuja matriz material
encontrava seu núcleo na classe trabalhadora. Mas, valha enfatizar: Marx não criou uma nova
doutrina; não concebeu especulativamente uma nova forma de sociabilidade. Ele apenas (e
este apenas em nada diminui a grandeza do seu feito) reproduziu intelectualmente aquilo que
estava acontecendo no próprio processo real. Não inventou, não imaginou, não especulou.
Apenas traduziu, no nível das idéias, aquilo que se passava no mundo real. E ele tinha
consciência disto. Tanto que o expressou inúmeras vezes. No Manifesto do Partido
Comunista, por exemplo, ele diz:
As proposições teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo nenhum, em idéias ou princípios
inventados ou descobertos pr este ou aquele reformador do mundo. São apenas expressões gerais de relações
efetivas de uma luta de classes que existe, de um momento histórico que se processa diante de nossos olhos”
(1998: 21)
Meu método dialético, por seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo a ele inteiramente
oposto. Para Hegel, o processo do pensamento, – que ele transforma em sujeito autônomo sob o nome de idéia –
é o criador do real, e o real é apenas sua manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do
que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado. (1975: 16).
É a classe trabalhadora, por sua própria natureza, que expressa, como já vimos, a
possibilidade e a exigência de superação do capitalismo. É na análise da sociabilidade regida
pelo capital que Marx encontra as possibilidades de sua superação, as balizas que deverão
fundamentar essa superação e o sujeito decisivo dessa tarefa. Nada disto confere validade a
tudo o que Marx escreveu. Apenas expressa o fato de que ele, ao examinar o processo real,
lançou as bases para uma nova forma de fazer ciência e filosofia e de intervir no mundo,
trazendo, assim, à tona a possibilidade de uma nova e superior forma de sociabilidade.
Alguém poderia, então, perguntar: por que esta nova concepção de mundo não é,
hoje, dominante, assim como aconteceu com a concepção moderna? A resposta é simples.
Assim como as vitórias da burguesia foram as principais responsáveis pelo sucesso da
concepção moderna, também as sucessivas derrotas da classe trabalhadora foram e estão
8
sendo responsáveis pelo até agora insucesso da concepção marxiana.Vale, porém, frisar:
sucesso ou insucesso não são a medida da verdade de uma teoria. O que garante a verdade de
uma teoria é a apreensão do objeto na sua integralidade e na maior profundidade permitida
por aquele momento histórico. O que garante o seu sucesso ou não é a prática social, e
especialmente as lutas sociais. Certamente estes dois momentos estão interconectados, mas
não se pode, de modo nenhum, esquecer essa distinção fundamental.
O que assistimos, desde o século XIX até os dias de hoje, é o embate, teórico e
prático, entres estas duas grandes perspectivas. Com altos e baixos, mas, infelizmente, com
sucessivas derrotas para a perspectiva da classe trabalhadora. Derrotas tão significativas,
algumas já sucedidas ainda em vida de Marx, que levaram a inúmeras alterações, “correções”,
deformações e extravios da teoria por ele formulada, não só por parte dos ideólogos burgueses
– o que é plenamente compreensível – mas até por parte da maioria dos que se proclamavam
seus seguidores.
2. O argumento teórico
À guisa de conclusão
Apreender a realidade social como algo que é integralmente resultado da atividade social
dos próprios homens, ainda quando se lhes opõe como um poder hostil (alienação); compreendê-
la como uma totalidade de partes, articuladas, em processo, cuja matriz fundante é o trabalho;
nunca perder de vista que qualquer fenômeno social é sempre o resultado da interação entre
subjetividade e objetividade; ao fazer ciência, partir dos dados imediatos, mas dissolvê-los,
buscando a lógica mais profunda da qual eles são uma manifestação e, com isso, fazer emergir a
possibilidade de superação de sua forma atual. É isto que caracteriza o novo patamar filosófico-
científico instaurado por Marx. E é esta forma de fazer ciência e filosofia que deve ser resgatada
se se quer um instrumento teórico adequado às enormes tarefas que a classe trabalhadora tem
pela frente com o objetivo de superar o capitalismo e construir uma autêntica comunidade
humana.
Sem deixar de reconhecer os grandes ganhos obtidos pela cientificidade moderna,
especialmente no âmbito da ciência da natureza, mas também na ciência do social, é preciso
deixar bem clara a diferença entre estes dois patamares e a superioridade da perspectiva marxiana
– quando ontologicamente configurada – sobre a perspectiva moderna. Por esse motivo,
reafirmamos a nossa idéia central: se o objetivo é obter um conhecimento da realidade social
capaz de orientar a sua transformação radical, então, após Marx, não é mais possível fazer
filosofia e ciência do mesmo modo como se fazia antes dele e como se continua fazendo na trilha
aberta pela perspectiva moderna.
Referências Bibliográficas
18
I - INTRODUÇÃO
Está em curso, desde há algumas décadas, no interior da cristandade, em especial da Igreja Católica,um
processo de cristianização de Marx.
Como não poderia deixar de ser, este processo é tempestuoso, cheio de conflitos, chegando a opor de
forma bastante violenta pessoas integrantes da mesma comunidade cristã.
Para os que defendem este processo de cristianização, ele não significaria nada mais do que aproveitar o
pensamento de Marx no que ele tem de útil para a elaboração de um discurso teológico doutrinário cristão.
Para os que são contra, o pensamento de Marx é radicalmente contrário à mensagem cristã e toda tentativa
de utilização dele terá como conseqüência a descaracterização da essência do cristianismo.
A compreensão deste processo de cristianização de Marx, exigiria, na coerência com os fundamentos
metodológicos para a compreensão de qualquer fenômeno ideológico, uma análise do mundo atual a partir de sua
matriz econômica. É a partir dela e na articulação com os outros momentos da realidade social que se poderia situar
melhor as perspectivas e os limites deste empreendimento.
No entanto, dada a brevidade deste artigo, limitar-me-ei a levantar algumas questões que me parecem
relevantes, a partir da comparação de certos aspectos importantes dos processos de cristianização de Marx e de
Aristóteles.
Devo dizer, também, que o objetivo deste trabalho não é o de entrar na polêmica - própria dos cristãos -
acerca da possibilidade e do modo de conciliação do pensamento de Marx com o cristianismo, mas tão somente de
examinar este processo enquanto fenômeno social com implicações que atingem não apenas os cristãos mas o
conjunto da sociedade.
II - O BATISMO DE ARISTÓTELES
Como se sabe, nos séculos XIII e XIV, o filósofo Aristóteles também foi submetido a um processo
semelhante de cristianização. O cristianismo, durante longos séculos, tinha sido mais uma expressão de fé do que de
razão, apesar das tentativas de alguns Padres da Igreja, em especial S. Agostinho, de encontrar um “modus vivendi”
entre a fé e a razão.
Começava, no entanto, a esboçar-se nesta época (s. XIII e XIV) aquilo que pouco mais tarde se apresentaria
como a tônica do pensamento moderno: a razão como instância última diante da qual deveria comparecer tudo que
quisesse adquirir foros de conhecimento verdadeiro.
E neste momento que se faz necessário, para a própria sobrevivência do cristianismo, um trabalho mais
sistemático que permitisse dar à fé um suporte racional.
O pensamento de Aristóteles mostrou-se o instrumento adequado a este empreendimento. Mas havia dois
problemas sérios e interligados. Um proveniente do próprio caráter do sistema construído por Aristóteles, que não
se harmonizava facilmente com a ortodoxia cristã. O outro, em conseqüência disto, proveniente da autoridade
eclesiástica, guardiã desta mesma ortodoxia, ou seja, depositária de uma interpretação do cristianismo considerada
verdadeira.
Ao contrário da cerimônia batismal, onde tudo é festa, o batismo de Aristóteles foi muito agitado, gerando
inúmeras polêmicas, processos, ameaças de excomunhão e até recursos ao braço secular. O próprio Tomás de
Aquino, figura maior deste empreendimento, chegou a ver teses suas condenadas como heréticas pelo bispo de
Paris.
No entanto, apesar dos inúmeros percalços, o processo de cristianização de Aristóteles, do ponto de vista
cristão foi um sucesso, permitindo armar a mensagem religiosa com um travejamento filosófico que perdura até os
nossos dias. Este sucesso se deveu, também, em grande parte, ao fato de que esta nova expressão pensada da fé
significou uma articulação íntima com os interesses das classes dominantes.
Poder-se-ia perguntar se nesta operação o pensamento de Aristóteles foi respeitado, se esta era a leitura
mais correta dele, mas isto não teria, hoje, mais do que um interesse puramente histórico.
O que ao meu ver é mais interessante de se constatar é que todo este sucesso também teve os seus custos e
muito altos. Os seus pontos fortes se tornaram exatamente os seus pontos fracos.
Um desses pontos fortes era a articulação entre fé e razão. A articulação foi feita e não vem ao caso aqui
discutir o seu conteúdo, mas verificar o fato que a partir de então ela tornou-se uma camisa-de-força, uma
dogmática que somente admitia aperfeiçoamentos, mas não questionamentos quanto aos seus fundamentos e ao
seu conteúdo essencial. Uma determinada forma histórica de razão foi articulada com uma determinada
interpretação do cristianismo e o produto disto foi alçado à condição de verdade meta-histórica. A ignorância -
1
inevitável naquele momento - da determinação social do pensamento levou a considerar aquele produto não como
um dos possíveis discursos, mas como o discurso verdadeiro.
Um outro ponto forte era a harmonia que se estabeleceu entre a ideologia religiosa e a ideologia político-
social dominante, permitindo uma ampla difusão da doutrina cristã, escudada nos aparelhos do Estado. No entanto,
esta aliança político-ideológica entre a Igreja e o Estado contribuiu para configurar um cristianismo não apenas de
fato, mas com todo um embasamento teórico, comprometido com a alienação, a dominação e a exploração. Este
comprometimento era tanto mais poderoso porque articulado com um discurso de defesa de valores humanos
abstratamente concebidos (Veja-se a última Instrução do Vaticano sobre a Teologia da Libertação).
Um terceiro ponto forte ainda era a garantia que a autoridade religiosa emprestou a este processo para que
fosse levado a bom termo, estabelecendo parâmetros que não podiam ser ultrapassados sob pena de exclusão da
comunidade cristã. Esta garantia significou, por sua vez, a impossibilidade de trilhar outros rumos que não os
estabelecidos pelo discurso dominante, impedindo o surgimento de outras formulações que pudessem dar ao
cristianismo uma expressão mais sintonizada com as perspectivas sociais que não fossem as das classes dominantes.
2
Não vem ao caso aqui discutir qual a solução deste conflito no âmbito interno da Igreja. Mas vem ao caso
perguntar quais as conseqüências sociais que ele pode ter, e já manifesta, no processo de cristianização do
pensamento de Marx.
Em primeiro lugar, a inibição da própria investigação. Esta inibição está claramente expressa numa
declaração do teólogo Leonardo Boff no conflito com o Vaticano, quando afirma preferir ficar com a Igreja a
arriscar-se sozinho na investigação.
O pensador sente-se compelido pelas exigências da razão e da honestidade intelectual a prosseguir no
caminho que lhe parece mais justo, mas encontra as barreiras do discurso oficial e da autoridade.
Posta assim a questão entre um discurso normativo, fundado na fé e um discurso investigativo, fundado na
razão, instala-se um conflito insanável que só pode resultar em conseqüências danosas para a investigação e para a
ação dela decorrente. Pois que a produção do saber não é uma questão meramente pessoal, mas de profundas
repercussões sociais.
Em segundo lugar, e como conseqüência disto, na resolução de questões problemáticas, que só poderiam
ser dirimidas mediante o prosseguimento livre do trabalho intelectual, gera-se um discurso da ambigüidade e da
conciliação, que procura aparar as arestas e evitar os atritos de modo a não ultrapassar os limites estabelecidos.
Exemplo claro desse discurso ambíguo é a recente carta dos irmãos Boff ao cardeal Ratzinger. Como a carta
foi escrita de livre e espontânea vontade, pode-se crer que representa efetivamente o pensamento dos autores.
Mas não só nesta carta, como também em outras obras dos teólogos da libertação está presente este
discurso da ambigüidade, tornando problemático todo o avanço da investigação.
No caso específico da cristianização do pensamento de Marx poder-se-ia documentar com precisão como a
sombra do discurso da autoridade se faz presente para prevenir os desvios da ortodoxia cristã.
Veja-se, por exemplo, o caso da tematização da luta de classes e da violência. A ortodoxia oficial, que já
condenou a luta de classes como uma invenção malévola de Marx, hoje avançou até admitir a existência do
fenômeno, mas não como constitutivo da realidade social. E quanto à questão da violência revolucionária, o
parâmetro ainda é aquele fixado por S. Tomás: recurso legítimo, mas último e em caso de comprovada tirania.
Os teólogos são obrigados a toda sorte de malabarismos intelectuais para escapar de um falso dilema (falso
do ponto de vista intelectual) entre a posição oficial da Igreja, da qual discordam e a posição marxiana, que
consideram correta e que até em nada conflitaria com o cristianismo coerentemente interpretado à luz dos próprios
fundamentos em que assenta a TdL.
O prosseguimento da investigação com esse tipo de conceitos leva a sérios enfrentamentos com a doutrina
e a autoridade religiosa, motivo porque, ainda quando utilizados, o são com uma prudência que não nasce do
interior do discurso científico mas da autoridade censuradora.
A interrogação que levanto a seguir sobre os rumos que a TdL está imprimindo ao batismo de Marx a partir
deste conflito, exigiria uma comprovação - perfeitamente factível - muito mais detalhada desse discurso da
ambigüidade, suprimida em favor da brevidade.
Pelo caminho que parece predominar, a TdL que hoje, com todos os problemas que a caracterizam,
representa uma inegável tendência para o compromisso com a emancipação da humanidade, poderá levar a um
batismo de Marx muito semelhante ao de Aristóteles, ou seja, à elaboração de um discurso teológico travejado por
uma perspectiva filosófico-científica denunciadora das injustiças sociais e até incentivadora de uma consciência e de
um compromisso de luta bastante fortes, mas incapazes de intervir para uma mudança radical nas estruturas que
originam estas injustiças.
Resumindo, eu diria que todo este processo de cristianização de Marx pode (mas não necessariamente)
resultar numa adequação do cristianismo à atual etapa histórica do sistema capitalista. Isto porque entre a
perspectiva marxiana e a perspectiva teológica tradicional há uma posição radical. Ora, na medida em que esta
última é tomada pela TdL como horizonte, a possibilidade de constituição de um discurso cristão revolucionário
(no mais legítimo sentido da palavra) é, no mínimo, problemática.
Examinemos por outro angulo o batismo de Marx.
No caso de Aristóteles, sabemos que o seu batismo teve como pressuposto um estudo intenso de sua obra,
ainda que sempre à sombra da autoridade. Aristóteles foi lido e relido, discutido per longum et latum até receber a
modelagem final.
O mesmo não está acontecendo com Marx. Um estudo mais sério e aprofundado do seu pensamento ainda
está por ser feito pela TdL.
Muitas vezes polemiza-se com Marx quando na verdade se está polemizando com um marxismo de corte
estalinista que nada tem a ver com o genuíno pensamento de Marx. Ou então o marxismo que comparece e a
interpretação de Marx feita por E. Bloch , ou por Althusser, ou por Gramsci ou pela Escola de Frankfurt.
Duas conseqüências imediatas surgem daí. Por um lado, a rejeição de determinados aspectos do
pensamento de Marx oriundos dessas interpretações. Por outro lado, uma conciliação apressada entre marxismo e
cristianismo fundada numa adulteração, ainda que de modo algum intencional, do pensamento de Marx.
3
A meu ver, a ação política dos setores progressistas da Igreja, que tem muito a ver com a TdL, e que é
perpassada pelo espontaneísmo e por um humanismo ainda bastante abstrato, está relacionada (mas não só) com
esse processo de cristianização de Marx que resulta de uma conciliação superficial e mal feita entre marxismo e
cristianismo.
Sei que a questão posta acima suscita o problema de que, afinal, há muitos marxismos e que não é possível
estabelecer qual o autêntico pensamento de Marx. Ainda assim, sou de opinião que uma leitura séria e rigorosa da
obra de Marx - que passará até por um confronto com todas interpretações - é o melhor caminho para a
compreensão do seu pensamento.
Como disse acima, esta leitura não parece ter sido feita ainda, o que está longe de dizer que nada foi feito.
Mas mesmo o que foi realizado é ainda muito problemático.
Esta afirmação também careceria de uma ampla documentação através do estudo das obras dos teólogos da
libertação.
Aponto, aqui, apenas um exemplo.
Uma das questões que perpassa a tentativa de cristianização de Marx é o dilema entre filosofia e ciência.
Toma-se como evidente a existência de um corte, no interior do pensamento marxiano, entre filosofia e
ciência. A parte filosófica seria o chamado materialismo dialético e a parte científica, o materialismo histórico. A
primeira é inteiramente rejeitada e a segunda aceita com reservas. Mas acaba ficando no ar uma interrogação não
resolvida: é possível separar uma da outra? Não haveria uma conexão indissolúvel entre as duas?
Ora, a questão da relação entre filosofia e ciências, posta nestes termos não responde ao espírito da obra de
Marx. Esse corte poderia ter a ver com Engels, mais ainda com a vertente estalinista, continuada de certo modo por
Althusser. Mas não me parece encontrar o menor suporte na obra de Marx. E no entanto esse corte tem profundas
conseqüências sobre todo o entendimento do pensamento de Marx.
Aliás, a própria suspeita que a TdL lança sobre a mediação filosófica, acusando-a de tender a um
especulativismo que não ajuda a “morder” o real histórico, antepondo-lhe a mediação científica, levanta uma
questão conexa: que filosofia é esta de caráter tendencialmente especulativista? Toda filosofia tem este caráter? Não
seria necessário submeter ao crivo da crítica todo o instrumental filosófico que serviu de mediação para a
construção do discurso teológico tradicional antes de lançar tal suspeita sobre toda a filosofia? E não teria Marx
realizado, não somente na ciência, mas também na filosofia uma virada fundamental? E esse “tournant” filosófico
não permitiria pensar a configuração de uma perspectiva filosófica que não tendesse ao especulativismo, mas a uma
intervenção transformadora da realidade histórico-social?
A compreensão do sentido e das tarefas da filosofia no pensamento marxiano bem como da articulação
entre ciência e filosofia permitiria, a meu ver, uma abordagem muito mais fecunda de inúmeras questões
conflitantes entre marxismo e TdL.
Nada disto significa a eliminação dos problemas. Outras questões surgirão. Mas então não serão falsas
questões, geradas ou por uma leitura superficial ou distorcida da obra de Marx ou por um discurso da ambigüidade
à sombra da autoridade.
Questões semelhantes poderiam ser encontradas em toda a extensão da problemática ontológica,
epistemológica, da filosofia da história, da antropologia filosófica e da filosofia política para não falar da leitura
científica da realidade histórico-social tomada como mediação pela TdL.
A TdL pretende superar Marx, isto é, fazer um uso não servil do seu pensamento, no dizer de Leonardo
Boff. O que é um direito que lhe assiste. Mas, a meu ver, o melhor meio para superar (no sentido hegeliano)
qualquer autor não é contornando os problemas postos por ele, nem deformando o seu pensamento, mas
enfrentando-o diretamente e levando-o, com toda honestidade, até as últimas conseqüências.
Sei que esse desideratum tem a sua tessitura realizada para além das vontades individuais e enfrenta todos os
percalços da luta ideológica que perpassa a realidade histórica, mas ainda assim permanece como um desafio para
aqueles que acreditam que marxismo e TdL têm contribuições importantes a dar no processo de emancipação da
humanidade.
Marx certamente será batizado, apesar dos temores e resistências de largos setores da cristandade. Os rumos
deste processo é que ainda estão em aberto. E certamente não é indiferente para a libertação da humanidade que
caminhos trilhará essa cristianização.
4
1
Belmira Magalhães *
Sérgio Lessa **
Ivo Tonet ***
Antes de mais nada, gostaríamos de esclarecer que a finalidade desse texto não é tomar
posição no interior do atual processo eleitoral, mas contribuir para colocar a questão numa
perspectiva mais ampla.
Mais do que em qualquer outro período da história, a humanidade vive, hoje, um
dilema extremamente grave. Há uma crise estrutural profunda na lógica interna de reprodução do
capital, que está levando à produção, cada vez mais intensamente, de desemprego, precarização
do trabalho, miséria, fome, violência, problemas de saúde, consumo de drogas, guerras,
concentração brutal de riqueza em poucas mãos, desigualdades sociais extraordinárias,
mercantilização e degradação de todos os aspectos da vida humana, devastação da natureza e
inúmeros outros.
De modo que o dilema, para a humanidade, se torna muito claro: ou a superação do
capital em direção ao efetivo socialismo, ou a intensificação da barbárie do capital. A busca de
uma terceira via, que significaria a “humanização” do capital”, com a correção de defeitos de
administração, cada vez mais demonstra a sua ineficiência.
Por força desta lógica do real, só existem estas duas alternativas: ou a continuidade,
cada vez mais degenerada, da reprodução da sociabilidade do capital, com o risco de destruição
da própria humanidade; ou a erradicação total dele em direção a uma forma superior de
sociabilidade que se chama socialismo. Que, diga-se logo, nada tem a ver com o chamado
“socialismo real”.
No entanto, afirmar com toda ênfase que o socialismo é a única saída para a construção
de uma forma de sociabilidade efetivamente humana não significa dizer que o socialismo está,
hoje, na ordem do dia. Significa apenas deixar claro que ele é o objetivo maior que deve ser
perseguido. Que, não importa quais sejam os obstáculos, as dificuldades, os percalços, ele deve
ser perseguido incansavelmente por todos aqueles que pretendem contribuir para resolver os
problemas que a humanidade enfrenta hoje. Significa afirmar, com a mais firme convicção, que
não existe outra alternativa nesse sentido.
Agradecemos a todos os que, com suas sugestões e críticas, colaboraram na feitura desse texto.
* Professora do Dep. de Ciências Sociais/UFAL.
** Professor do Dep. de Filosofia/UFAL.
*** Professor do Dep. de Filosofia/UFAL
2
Contudo, essa afirmação deve ir de par com o esclarecimento acerca da natureza do
socialismo. Dadas as tremendas deformações, teóricas e práticas, que este ideário sofreu ao
longo das tentativas de sua efetivação, é preciso repor as questões essenciais. Não tendo como
base uma idealização qualquer, nem o que de fato aconteceu, mas a análise do processo social
como totalidade, pode-se afirmar que socialismo é, essencialmente, uma forma de sociabilidade
que, por estar fundada no trabalho associado1, permite aos homens terem o controle, consciente e
coletivo, do processo de produção e, conseqüentemente, o mesmo controle sobre o conjunto do
processo social. Isto não criaria nenhum “paraíso terrestre”. Apenas abriria a possibilidade de
que todos tivessem acesso à riqueza produzida e, portanto, pudessem ter uma vida efetivamente
digna, usufruindo de todas as conquistas da humanidade.
A clara afirmação e sustentação deste objetivo último é da maior importância. Porque,
de um lado, enfatizará a mais absoluta recusa da ordem social fundada no capital e, de outro,
servirá de orientação para todas as lutas sociais. Com efeito, é preciso saber, com precisão, ainda
que possa ser apenas no nível de parâmetros gerais e essenciais, qual o objetivo último a ser
atingido. Rebaixar e diluir este horizonte em nada contribui para orientar as lutas sociais em
direção ao socialismo.
No entanto, esta perspectiva revolucionária, que esteve na origem do marxismo, sofreu,
ao longo destes últimos cento e cinqüenta anos, inúmeras derrotas e deformações, tanto teóricas,
como práticas. De um lado, se viu, devido a circunstâncias históricas, impossibilitada de sair
vitoriosa a partir da revolução soviética de 1917 e se transformou em inúmeras ditaduras. De
outro, foi assumindo uma conotação cada vez mais reformista, até perder inteiramente de vista o
objetivo de superação do capital.
A trajetória da esquerda européia é particularmente significativa neste sentido. A
social-democracia alemã original, que, embora vagamente, ainda falava em socialismo, foi
substituída pela posterior social-democracia do Estado de Bem-Estar Social, que implicava
precisamente o abandono, por parte dos trabalhadores, da idéia de erradicação do capital. Os
restantes partidos comunistas europeus, à frente o Partido Comunista Italiano, buscaram
encontrar uma “via democrática” para o socialismo, primeiro através do eurocomunismo e,
depois, através de uma vago “socialismo democrático”, até perderem completamente a sua
identidade. Outros partidos, denominados socialistas, diluíram de tal modo este ideário socialista
que ele acabou por não significar mais nada além da busca por reformas no interior da ordem do
capital. Nesse percurso, perdeu-se o caráter radicalmente crítico e revolucionário do marxismo e
1
Por trabalho associado entenda-se o fato de que todos os produtores colocam em comum as suas forças individuais
e estas permanecem comuns até o fim do processo produtivo. Deste modo, e não havendo mais quem se aproprie do
trabalho dos outros, os homens poderão controlar, de modo livre, consciente e coletivo, todo o processo de
produção e de distribuição da riqueza.
3
o ideário socialista se tornou apenas uma idéia vazia. Vale a pena lembrar, neste contexto, o que
Marx já dizia nas Glosas críticas. Referindo-se às tentativas de eliminação do pauperismo pelos
Estados inglês, francês e alemão, diz ele: Onde há partidos políticos, cada um encontra o
fundamento de qualquer mal no fato de que não ele, mas o seu partido adversário, acha-se ao
leme do Estado. Até os políticos radicais e revolucionários já não procuram o fundamento do
mal na essência do Estado, mas numa determinada forma de Estado, no lugar do qual eles
querem colocar uma outra forma de Estado2.
2
Marx, K. Glosas críticas ao artigo O Rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano. In: Práxis, n. 95,1995.
4
extremamente claro que sua fonte de poder está fora do parlamento. Por isso mesmo, nunca
perde o poder nem fora nem dentro do parlamento.
Ressalvadas as diferenças, a trajetória da esquerda no Brasil tem grandes semelhanças
com a trajetória da esquerda européia. Há nela uma constante oscilação entre o esquerdismo e o
reformismo. O primeiro se manifesta em propostas e ações que, desconhecendo a lógica mais
profunda da entificação da sociedade brasileira e as mediações que podem levar ao objetivo
revolucionário, têm um caráter apenas discursivamente radical. O segundo se expressa
especialmente na trajetória do Partido dos Trabalhadores. De uma impostação inicial com caráter
acentuadamente anticapitalista, ele foi, passo a passo, abandonando qualquer veleidade
revolucionária. Hoje, o Partido dos Trabalhadores é, reconhecidamente, um partido da ordem.
Por mais que se declare de oposição, ele já não tem como objetivo, nem sequer a longo prazo,
uma ruptura radical com o capital. Pretende, apenas, “fazer reformas”, estabelecer “outras
políticas econômicas”, construir uma sociedade mais justa, mais livre, mais igualitária. Não se
trata, pois, de um partido de oposição ao capital e ao Estado (o que seria o papel de um partido
revolucionário), mas de um partido de oposição à forma atual do capital e do Estado. Exemplo
recente deste lugar da esquerda no Brasil pode ser detectado na fala do economista Guido
Mantega, um dos baluartes das propostas atuais do PT para as eleições. Referindo-se à não-
qualificação intelectual de Lula como economista, diz ele: Não, porque a saída para o país é
política. O presidente pode ser um gênio da economia, mas se ele não for respaldado pela
sociedade, nada funciona. O Brasil precisa de um líder político, um estadista, para fazer um
pacto social em torno de um projeto.3
A muitos parecerá que um tal governo de “esquerda”, mesmo que não possa fazer
grande coisa, significará, pelo menos, uma abertura de espaços mais favoráveis para as lutas
populares. É nisto que reside o grande apelo para votar neste partido, apesar de suas ações,
teóricas e práticas, sinalizarem, cada vez mais intensamente, na direção de uma submissão às
políticas essenciais do imperialismo. Mais do que em bases reais, este voto se fundamenta em
créditos passados, no discurso de pretensa oposição, na falta de outras alternativas imediatas, na
esperança, no desejo de que se abram perspectivas mais promissoras.
Será verdadeira a afirmação que abre o parágrafo anterior? Quanto a aspectos parciais e
localizados, pode até ser4. Mas também pode ocorrer um prolongamento da ausência de
melhorias, com a solicitação do governo de um prazo para colocar “a casa em ordem”, que
significará, necessariamente, desmobilização dos movimentos sociais, já bastante fragilizados.
3
Entrevista publicada na revista Isto É, de 14 de agosto de 2002.
4
Algumas categorias de empregados podem receber aumentos, outras podem conseguir vantagens pontuais, como
manutenção do emprego por determinado tempo em troca de vantagens para a indústria, etc.
5
No entanto, está ausente exatamente aquele elemento que poderia proporcionar algum
fundamento a esta esperança. Ou seja, a força das massas, um forte movimento popular que
forçasse um tal governo a tomar atitudes mais favoráveis aos interesses das classes subalternas.
Ora, tal movimento não existe, até como resultado da própria orientação reformista e politicista
que a “esquerda” tem imprimido a este movimento. Ter-se-á, então, o pior dos mundos: um
governo que prometeu realizar reformas capazes de melhorar significativamente a vida da
população mais sofrida – que é a imensa maioria –, mas que não pode realizar o que prometeu
porque não tem forças para enfrentar as tremendas pressões exercidas pelo capital, tanto nacional
quanto internacional. Não tem forças exatamente porque sua orientação teórica e prática
contribuiu para impedir que estas forças se desenvolvessem. É este precisamente o resultado de
seu ideário reformista e politicista. Ao fim e ao cabo, restarão apenas duas alternativas, nenhuma
delas do interesse das classes populares. Ou ser apeado do poder por algum tipo de golpe de
Estado (lembremos os acontecimentos na Venezuela)5, ou ver as massas desiludidas apoiarem os
partidos de direita nas próximas eleições.
Não esqueçamos que a lógica fundamental do capital em crise aguda continuará em
andamento. E com todo seu poder de pressão. Não será, pois, de espantar, se um tal governo de
“esquerda” se transformar no instrumento mais apropriado para a continuidade dos interesses do
capital. Lembre-se do que aconteceu na Espanha de Gonzalez, na Inglaterra de Toni Blair, na
França de Mitterand e Jospin, na Alemanha de Schröder e na Itália de D’Alema. Isso é
explicitado na entrevista de um dos mais importantes intelectuais do Partido dos Trabalhadores,
quando sintetiza seu pensamento afirmando, na entrevista acima citada, que: A questão
ideológica está em segundo plano. A primeira coisa que eu falo no exterior é que nós somos um
partido de esquerda. Isso não assusta, porque eles se acostumaram com a esquerda européia,
que humanizou e dinamizou o capitalismo. A esquerda tem uma estratégia mais eficiente para
fortalecer o capitalismo do que a direita.
Aqui, mais do que na Europa, a situação é adversa. O enfrentamento dos gravíssimos
problemas nacionais e, portanto, a melhoria significativa das condições de vida da população,
implicariam a realização da revolução burguesa, ou seja, o estabelecimento do capitalismo em
sua plenitude. Ora, esta não é possível porque a própria burguesia, dada sua estreita e
subordinada associação com a burguesia internacional, não tem o menor interesse em realizá-la.
De modo que a resolução daqueles problemas passa exatamente por uma revolução de caráter
socialista. Coisa que, evidentemente, não está no horizonte imediato. Mas que, mesmo assim,
não pode, de modo nenhum, deixar de figurar no horizonte mediato. Em tal situação, um governo
de “esquerda”, sem a alavanca de um forte movimento popular, chegará, inevitavelmente, ao
5
Houve uma tentativa de deposição do governo pelas forças conservadoras. E outras tentativas estão em curso.
6
beco-sem-saída acima mencionado. Mesmo no caso de um governo que tivesse ao seu lado este
forte movimento de massas, ainda assim não seria nada fácil encontrar as mediações que
permitissem caminhar no sentido de uma revolução socialista. Sem isto, então, as possibilidades
são nulas.
De tudo o que foi dito, parece brotar uma conclusão lógica. Não é este caminho,
trilhado pela “esquerda”, a mediação para dar passos no sentido da construção de uma sociedade
justa, livre e igualitária. Não faz sentido assumir o poder a qualquer custo, especialmente ao
custo de concessões ao imperialismo em questões fundamentais. Assumir o poder nestas
circunstâncias é candidatar-se a contribuir para a reprodução dos interesses do capital.
Deste modo, a grande tarefa atual da esquerda não é assumir o poder do Estado, mas
reconstruir uma alternativa revolucionária. Isto implica, em primeiro lugar, o resgate, sólido e
bem fundamentado, do ideário socialista e, conseqüentemente, a crítica do chamado “socialismo
real”, mas, também, do “socialismo democrático”. O que, por sua vez, implica o resgate do
caráter radicalmente crítico e revolucionário do marxismo.
Em segundo lugar, implica o deslocamento do eixo das lutas , do terreno do parlamento
para o terreno extraparlamentar. E o esforço para imprimir a todas estas lutas um caráter o mais
claramente anticapitalista possível. Está claro que não se trata de desconhecer ou menosprezar o
terreno parlamentar. Trata-se, isto sim, de inverter a presente situação, ou seja, de articulá-lo, de
modo subordinado, às lutas extra-parlamentares.
Um argumento sempre esgrimido pelos críticos destas idéias é de que um tal
posicionamento tende a levar a esquerda ao isolamento. Isto é verdade e, no momento, não há
como ser diferente. Contudo, a questão não é simplesmente de superar o isolamento. Este pode
ser superado através do rebaixamento do horizonte da humanidade, do abandono da crítica
radical ao capital, de promessas que não poderão ser cumpridas, de alianças as mais estranhas, de
comportamentos que sinalizem o respeito integral à ordem burguesa. Ou, então, pode ser
superado graças à criação de formas que permitam às massas perceber a articulação entre o
objetivo maior que é a erradicação do capital e a instauração do socialismo e a resolução dos
problemas imediatos.
Qual é a estratégia da “esquerda democrática”?6
Em primeiro lugar, ela pressupõe que a democracia é o patamar mais elevado de
liberdade que a humanidade pode alcançar. E que, por isso mesmo, o sistema democrático jamais
deve ser quebrado ou ultrapassado, mas defendido a qualquer custo, buscando-se o seu constante
aperfeiçoamento.
6
Não ignoramos que no seio desta esquerda existem modos de pensar profundamente diferentes. Limitar-nos-emos,
aqui, a expressar o que nos parece ser a linha predominante.
7
Em segundo lugar, de acordo com esta esquerda, a história mostraria que foram os
movimentos populares de massa, conduzidos por uma esquerda não-democrática, os principais
responsáveis pelo surgimento das ditaduras latino-americanas (tese do Castañeda, louvada pela
“esquerda”). E que, especialmente, foram estes movimentos que deram origem aos golpes
militares no Chile, de Allende e no Brasil, de Jango.
Em terceiro lugar, ela também pressupõe que a transformação (ou até a revolução) da
sociedade em sentido profundo é um processo que só pode ter sucesso se realizado de modo
“lento, gradual e seguro”, e sem ferir, em nenhum momento e de maneira nenhuma, a legalidade
democrática. A luta pelo aprofundamento da democracia e da cidadania seria o caminho para a
construção de uma sociedade justa, livre e igualitária.
Deste modo, para chegar ao poder e realizar as profundas transformações sociais que
interessam às classes populares, é preciso não “assustar” as classes dominantes, os mercados, os
Estados Unidos. Além disso, é preciso demonstrar, por palavras e atos, o mais absoluto respeito
pela lei e pela ordem, devendo isto ser inculcado profundamente na mente das massas populares.
Ainda mais; é preciso cercear quaisquer manifestações populares que possam ser vistas como
uma ameaça a esta imagem de bom comportamento, chegando, se necessário, até à repressão.
Contrariamente a isso, o que nós entendemos que a história ensina?
Em primeiro lugar, que a ordem democrática constitui, certamente, um grande avanço
para a humanidade e por isso mesmo deve ser defendida com todo o empenho. Contudo, ela não
representa o patamar mais elevado da liberdade humana, por estar atada, incindivelmente, à
propriedade privada e à existência das classes sociais. Por isso mesmo, ela pode e deve ser
ultrapassada em direção a uma forma superior de sociabilidade. Forma esta que, por estar
baseada no trabalho associado, expressará a efetiva igualdade e liberdade de todos.
Em segundo lugar, que às classes dominantes interessa que as reivindicações populares
se expressem sempre no mais restrito marco da lei e da ordem. Lei e ordem estas que, “por
acaso”, sempre são as mais adequadas à defesa dos interesses das classes dominantes.
Em terceiro lugar, que o atendimento das reivindicações populares ferirá,
necessariamente, os interesses das classes dominantes. E que, por isso mesmo, estas reagirão,
como sempre reagiram, defendendo, por todos os meios, estes interesses. Quando isto acontece,
as classes dominantes não demonstram o menor constrangimento em desrespeitar a ordem
democrática e utilizar os instrumentos mais violentos e brutais.
Em quarto lugar, que, sem um amplo movimento de massas – num processo de tomada
de consciência e de auto-organização – e sem forçar e até ultrapassar a lei e a ordem burguesas,
as classes populares jamais conseguiram e nunca conseguirão conquistas mais substanciais e
duradouras, muito menos alterações profundas na ordem social.
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Disto se conclui que o que pode impedir que as classes populares sejam vitoriosas não
é, de modo geral, a radicalização dos seus movimentos, mas muito mais o fato de não terem –
através de um processo de lutas concretas – acumulado forças suficientes para enfrentar, nos
momentos cruciais, as forças das classes dominantes. E a estratégia reformista da “esquerda
democrática” é a principal responsável por esta falta de acúmulo de forças.
Quando, por sua vez, a “esquerda democrática” assumir o poder, certamente as massas
populares pressionarão pelo atendimento das suas reivindicações. Até porque isto foi prometido
antes das eleições. Ora, isto será imediatamente pretexto para que as classes dominantes
comecem o processo de desestabilização do “governo popular”. Como toda a estratégia anterior
da “esquerda democrática” impediu o fortalecimento dos movimentos populares, este governo
ver-se-á sem forças para fazer frente a este processo de desestabilização. Em conseqüência, ou
será apeado do poder (por golpe militar ou por artimanhas “democráticas”), ou terá de fazer
concessões tais que desiludirão as classes populares, cujos interesses diz representar. Estas,
então, se voltarão para os partidos de direita.
Estas idéias parecem paralisantes e desmotivadoras? Só para aqueles que querem fazer
a história do modo como gostariam e não nas condições reais e efetivas. Que, como diz Marx em
O 18 Brumário de Louis Bonaparte, são “diretamente dadas e transmitidas pelo passado”. Deste
modo, se a situação atual é marcada, de um lado, pelo enorme agravamento dos problemas
sociais (que nos causam angústia e indignação) e, por outro lado, pela ausência de forças
revolucionárias conscientes e organizadas, isto não nos deve fazer sucumbir nem ao imediatismo
(com ações que pareçam ter sucesso imediato), nem ao purismo dos princípios (com um discurso
que cancele as mediações entre o fim e os meios). Trata-se de buscar, na situação concreta de
hoje, as tarefas que possam conduzir à conquista do fim maior, que é a superação da ordem
social do capital.
São inúmeras e enormes estas tarefas para a reconstrução da perspectiva revolucionária.
Nenhuma delas espetacular; nenhuma delas de sucesso imediato na superação dos gravíssimos
problemas enfrentados hoje pela humanidade. Porém, quanto mais forem postergadas, mais
difícil se tornará a conquista da nova sociedade.
Ivo Tonet*
*
Prof. do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas
2
Gostaria muito de acreditar que as coisas fossem tão simples assim. Infelizmente,
creio que estão longe de ser. Não há como negar que o pensamento original de Marx teve
inúmeras interpretações; que a trajetória do ideário marxiano foi extremamente complexa e
contraditória; que em nome do marxismo foram realizadas as práticas mais diversas. E,
sobretudo, não é possível ignorar as profundas e devastadoras derrotas que as lutas sociais
inspiradas na doutrina marxista sofreram.
Não é, porém, minha intenção discutir aqui diretamente esta problemática.
Pretendo ilustrá-la através de um exemplo prático, ou seja, partindo de um determinado texto.
Por que este? Por um acaso e porque é um texto de um autor que se pretende de esquerda,
marxista e revolucionário. E que, por isso mesmo, permite perceber com clareza o problema a
que acima me referi. Neste sentido, ressalvadas as diferenças, ele é representativo de uma
maneira de pensar largamente difundida, que se faz presente sob vários aspectos e em várias
áreas.
Para evitar qualquer mal-entendido, quero deixar claro que o meu objetivo não é
atacar nem desqualificar ou menosprezar o autor. Tomo a apenas a liberdade de servir-me do
texto como um pretexto para chamar a atenção para o fato de que o resgate de uma teoria
efetivamente revolucionária está longe de ter sido realizado e de que esta é uma tarefa
prioritária para as forças que pretendem se opor radicalmente à ordem do capital. Do mesmo
modo, dada a complexidade da questão, quero enfatizar que meu único objetivo, aqui, é
acentuar o fato de que este resgate tem que retomar as coisas do começo e pela raiz e de que
não se trata simplesmente de atualizá-lo, de fazer algumas correções ou de defendê-lo dos
ataques e deformações dos adversários. Vale dizer, quero defender a idéia de que as tarefas
logo acima numeradas são certamente necessárias, mas não constituem o cerne da questão. O
que quer dizer que o problema fundamental está no interior do marxismo e não fora dele. O
que tudo isto significa, ficará mais claro ao longo do texto.
O pretexto concreto é o artigo do prof. José Welmowicki, publicado no n. 1,
jun/set de 2000, da revista Marxismo Vivo. O artigo intitula-se O discurso da cidadania e a
independência de classe. Nele o autor faz um histórico da cidadania desde a Grécia antiga até
os nossos dias. Seu intuito é mostrar que, nas suas mais diversas formas ao longo da história,
a cidadania sempre teve uma articulação com as classes sociais, ou seja, a definição de quem
seria ou não cidadão sempre tinha como base a propriedade privada. Segundo ele, isto era
inteiramente claro até o advento da sociedade moderna. Foi somente nesta, com a separação
entre o econômico e o político, que este fundamento classista da cidadania ficou ocultado e
mistificado, parecendo que ser cidadão nada tinha a ver com a posição dos indivíduos no
3
sistema produtivo. Donde a sociedade vista como uma soma de indivíduos e o enfrentamento
dos problemas como uma tarefa comum de toda a sociedade.
Segundo o autor, grande parte da esquerda também assumiu este discurso
mistificador a respeito da cidadania, não só deixando de lado a sua concreta vinculação com
as classes sociais, como também elegendo o caminho da colaboração e da negociação entre as
classes para o estabelecimento de uma sociedade plenamente cidadã.
Contrapondo-se a esse modo de pensar, o autor enfatiza que “para lutar por esses
direitos mínimos, que qualquer cidadão mereceria ter, se necessita de uma organização
independente dos trabalhadores contra a reação burguesa”.(p. 76); que é preciso superar
esta idéia de que “é possível uma melhoria baseada na parceria, na ação conjunta de toda a
sociedade”. E conclui ele, então: “A cidadania, algo que se considera pleno e de toda a
sociedade, só poderá ser alcançada com uma política de classe, ou seja, de uma parte desse
todo que aponta uma saída anti-capitalista para o conjunto”. (p. 77).
A leitura do texto permite perceber que o alvo da crítica do autor não é
propriamente a natureza da cidadania, mas a estratégia conciliadora assumida por muitos
partidos de esquerda para a sua conquista. Contudo, na medida em que critica autores, como
Habermas, por afirmarem que a cidadania plena já existe nos países capitalistas mais
avançados, parece razoável inferir que ele entende cidadania como a existência de direitos (os
mais variados) e por cidadania plena a realização plena dos direitos democráticos. O que
significa que, no essencial, seu conceito de cidadania não difere do conceito daqueles a quem
critica. Na citação acima, isto ficou inteiramente claro. Pode-se também inferir, de todo o
texto, que esta seria uma abordagem marxista, crítica e revolucionária desta questão.
Não pretendo, aqui, discutir o problema da estratégia. O que me interessa é
ressaltar a problemática metodológica, ou seja, o fato de que o marxismo utilizado pelo autor
–que, como já disse, é amplamente representativo – não recupera o caráter genuinamente
crítico da teoria marxiana e, deste modo, não permite fazer uma crítica radical da
problemática da cidadania (e de quaisquer outros fenômenos da vida social). Enfim pretendo
mostrar que com este marxismo não é possível fazer uma crítica revolucionária das posições
reformistas. E, mais ainda, deixar claro que, apesar das intenções em contrário, ele não
colabora para a construção de uma perspectiva independente da classe trabalhadora. Por outro
lado, também é minha intenção sustentar, também através deste exemplo prático, que aquela
crítica pode melhor ser realizada a partir do marxismo entendido como ontologia do ser
social. E, como conseqüência, também aludir à idéia de que esta vertente é o caminho mais
adequado para o resgate do caráter revolucionário do marxismo. Contudo, mais adequado não
significa de modo algum pronto, acabado, exclusivo, sem possibilidade de erros, mas apenas o
4
balizamento de um trajeto cuja realização só pode realizar-se através do debate com outros
modos de pensar.
Voltando ao texto, o que se pode constatar é que, após fazer um pertinente resgate
histórico da problemática da cidadania, nos limites impostos pela exigüidade do espaço, o
autor conclui que a cidadania plena é algo de toda a sociedade e não apenas de uma parte
dela. E que, como este “algo de toda a sociedade” não pode ter existência numa sociedade de
classes, então só poderá realizar-se numa sociedade sem classes sociais, ou seja, numa
sociedade socialista. Mais claro ficaria se citasse um autor que ele provavelmente considera
representativo de um modo conciliador de pensar. Trata-se de C. N. Coutinho (2000: 67-68),
que diz: “...só uma sociedade sem classes – uma sociedade socialista – pode realizar o ideal
da plena cidadania, ou, o que é o mesmo, o ideal da soberania popular e, como tal, da
democracia”. E este autor ainda enfatiza que, para Marx, cidadania plena é sinônimo de
emancipação humana.
Contudo, vale lembrar que o intuito de J. Welmowicki era o de deixar claro o
caráter classista da cidadania. O que inviabilizaria a colaboração entre as classes sociais. Mas,
como poderia ela ter um caráter classista e existir em uma sociedade sem classes? Um
aparente curto-circuito. Era de se esperar que ela desaparecesse juntamente com as classes
sociais. No entanto, a posição, não explicitada do autor, é a mesma de toda a “esquerda
democrática”, ou seja, a posição de que não há uma vinculação essencial entre cidadania e
classes sociais, mas apenas uma vinculação circunstancial. Só assim se pode entender que ela
tenha uma estreita relação com as classes sociais, mas não desapareça com elas. De modo que
o problema não estaria na natureza da cidadania, mas apenas nos obstáculos postos por toda
sociedade de classes à sua plena realização. Daí o raciocínio coerente: cidadania=liberdade;
cidadania plena= liberdade plena= socialismo (emancipação humana).
Terei ocasião, mais adiante, de mostrar que, para Marx, cidadania plena não é, de
modo nenhum, igual a emancipação humana. No momento, interessa-me apenas perguntar: O
que leva o autor a pensar daquele modo? O que leva o autor, contra suas próprias intenções, a
situar-se, quanto ao objetivo final, no mesmo campo daqueles a quem critica? A meu ver, o
que explica isso é o instrumental metodológico do qual ele se vale, ou seja, o tipo de
marxismo por ele utilizado. E o que caracteriza este instrumental? É evidente que o autor
pretende valer-se do instrumental marxista, e de um marxismo crítico, para tratar desta
problemática. Ora, para ele, o ponto nodal deste marxismo está na ênfase de que história é a
história da luta de classes. (p. 77). O defeito fundamental do reformismo seria exatamente o
abandono desta idéia, abrindo caminho para a ilusão de que é através da colaboração entre as
classes que se resolvem os problemas sociais. Poderíamos, então, dizer, que ele faz uma
5
abordagem histórico-classista. Deste modo, ao deixar clara a relação entre cidadania e classes
sociais ao longo de toda a história, ele estaria realizando uma abordagem realmente crítica e
marxista desta problemática, reafirmando exatamente categorias que o reformismo tende a
expurgar do marxismo.
É inegável que Marx afirmou que a história é a história da luta de classes. Em
conseqüência, a problemática das classes sociais jamais pode ser deixada de lado – ainda que
com todas as mediações – na análise de qualquer fenômeno social. Mas, a meu ver, isto não é
de modo algum suficiente nem é a questão decisiva. Vejamos os problemas suscitados por
este procedimento metodológico do autor.
Em primeiro lugar, apesar de enfatizar, em cada momento da história, a estreita
relação da cidadania com as classes sociais, esta relação não é vista como intrínseca, mas
apenas como algo acidental. Não é essencial. Tanto não é essencial que o autor entende que a
cidadania plena só poderá ter uma existência plena em uma sociedade sem classes, ou seja, no
socialismo. Isto equivale a dizer, em última análise, que ser cidadão é uma determinação
ontológica do ser humano. O fato de esta determinação ter-se manifestado apenas a partir da
Grécia antiga seria uma questão secundária. Equivale também a dizer que os direitos que
compõem a cidadania estão ancorados na natureza humana e que sua plena explicitação é
impossibilitada pela existência das classes sociais. Quando estas forem extintas, então esta
determinação essencial poderá ser plenamente efetivada; todos os homens poderão ser
plenamente cidadãos.
Em segundo lugar, e como decorrência do anterior, fica claro que cidadania plena
é igual a liberdade plena. Uma sociedade onde os direitos e liberdades democráticos tivessem
vigência plena teria atingido a sua forma mais aperfeiçoada possível – (frise-se que possível
não quer dizer absoluta ou perfeita). A partir daí tratar-se-ia apenas de aperfeiçoar
constantemente esta forma de sociabilidade, mas não de construir uma outra, qualitativamente
diferente. Deste modo, o problema não estaria na natureza da cidadania, mas nos obstáculos
que as classes sociais colocam à sua plena realização.
Em terceiro lugar, constata-se que escapou ao ator a natureza mais profunda da
cidadania. O que, na verdade, aparece são as suas formas históricas concretas. A resposta à
pergunta: o que é a cidadania seria encontrada no estudo destas formas históricas. Ora, isto
pressupõe a idéia de que a teoria brota diretamente dos fatos empíricos, o que é rejeitado até
por anti-marxistas como K. Popper. Em conseqüência se, ao analisar a problemática da
cidadania eu levar em conta as classes sociais, terei um tipo de teoria (marxista,
revolucionária); se deixar de levá-las em conta, terei outro tipo (burguesa, reformista).
Apesar de a análise histórica ter deixado claro que ser cidadão significa ter direitos (sejam
6
civis, políticos ou sociais), portanto, uma forma particular de liberdade, a cidadania é
simplesmente confundida com a liberdade. Por isso mesmo, sua plenitude só pode ser atingida
em uma sociedade sem classes.
Em quarto lugar, e sintomaticamente, em nenhum momento o autor aborda a
questão da natureza da cidadania. Ele faz referências ao conceito de cidadania daqueles para
os quais a sociedade é apenas composta de cidadãos, mas não de classes sociais. Mas, se este
é um conceito problemático, qual seria o conceito que o autor considera mais adequado?
Ficamos, explicitamente, sem saber. Mas, implicitamente, o que ficamos sabendo é que o que
é problemático naquele conceito não é o seu conteúdo, a sua natureza essencial, mas o fato de
que este conteúdo é falseado pela eliminação do conceito de classes sociais. É esta relação –
entre cidadania e classes sociais – que o autor pretende recuperar e através dela desembocar
em uma proposta revolucionária (classista e anti-capitalista).
Em quinto lugar, e como resultado do que foi dito antes, percebe-se que o autor,
em nenhum momento abandona o campo da política. A problemática da cidadania é
apreendida de um ponto de vista daquilo que Marx chamou, nas Glosas críticas, de razão
política e não do ponto de vista da razão social. Deste modo, a esfera jurídico-política não
aparece como fundada na esfera da produção (social) e por isso mesmo pode continuar a
existir mesmo em uma sociedade socialista.
Marx poderia estar errado e se isto acontecesse seria justo criticá-lo. Contudo,
certo ou errado, não me parece, de modo nenhum, ser esse o seu modo de pensar a respeito da
questão da cidadania. Como também não é o que caracteriza o seu modo de pensar a respeito
de qualquer fenômeno social. O que, a meu ver, marca o seu pensamento é a sua natureza
ontológica.1 Evidentemente histórico-ontológica e não metafísico-ontológica. É essa natureza
que garante o seu caráter radicalmente crítico e revolucionário. Ora, o que caracteriza uma
abordagem marxista de caráter histórico-ontológico? J. Chasin (1987: 45) dá uma ótima
explicação disto. Referindo-se ao fato de que Marx instaura uma nova forma de pensar que
compreende o mundo até a sua raiz, diz ele que, eliminada a especulação, o pensamento
“Volta ao mundo para tomá-lo no complexo de complexos de sua totalidade. Debruça-se
sobre ele para capturá-lo pela raiz, colhê-lo pela anatomia da sociedade civil, matriz da
sociabilidade (pela dimensão social fundante, não por um fator social qualquer, escolhido a
talante e conveniência do intérprete). Ou seja, operação ontológica que rastreia e determina
o processo de entificação do mundo e da lógica de sua transformação”.
1
A brevidade do texto me impede de expor, mesmo que em traços mínimos, o que seja a ontologia do ser social.
Sugiro, para isto, a leitura da obra de maturidade de Lukács, especialmente a Ontologia do ser social e os
Prolegômenos, bem como de textos de N. Tertulian, G. Oldrini, S. Lessa, J. Paulo Netto e C. Frederico.
7
Trata-se, pois, aqui, de buscar, na análise de qualquer fenômeno social, a lógica da
sua entificação a partir da matriz ontológica do ser social, isto é da economia, e não apenas da
problemática das classes sociais. Não se trata de fazer nenhuma relação mecânica entre a
economia e qualquer fenômeno social, mas de ter sempre em conta que as relações que os
homens estabelecem entre si na produção (o trabalho; a economia) constituem o solo
matrizador do ser social, vale dizer, a raiz do processo de tornar-se homem do homem. E que
é a partir desta dimensão fundante, em determinação recíproca e como resposta a
determinados problemas e necessidades enfrentados pela humanidade, que surgem, com uma
especificidade e função próprias, as outras dimensões da atividade humana. Por isso mesmo,
não basta apenas buscar a história de determinado fenômeno social, mesmo uma história que
acentue a sua conexão com a luta de classes (onde houver classes). O que é preciso é buscar a
gênese e a entificação histórico-ontológica, ou seja, desvendar, no curso do processo, a
relação entre as determinações mais essenciais e as formas concretas em que elas se
manifestam. Vale dizer, não são os dados empíricos, mesmo quando levada em conta a
existência das classes sociais, que revelam a natureza de determinado fenômeno social. Por
outro lado, também não é uma teoria, abstratamente formulada, que permite desvendar o
sentido daqueles dados. O que permite fazer emergir a natureza do fenômeno é a apreensão de
como se articulam os dados empíricos com a essência (também certamente histórica), ou seja,
a articulação entre a teoria (aqui entendida como aqueles momentos gerais e universais,
abstraídos do próprio processo real e não apenas formulados pela razão) e os dados
fenomênicos. É esta articulação que permitirá a elaboração de um conceito científico.
É procedendo desta forma que Marx constata que a dimensão da política (da qual
faz parte a cidadania) não é um elemento constituinte da natureza essencial do ser social. Para
ele, a política é essencialmente a privatização – cuja origem está no surgimento da
propriedade privada e, com ela, das classes sociais – das forças sociais comuns para fins de
dominação, não importa sob que forma isto se realize. Quer dizer, para ele, há uma relação
essencial entre economia e política e não apenas uma relação essencial, mas uma relação na
qual a economia é o elemento matrizador. O que significa dizer que, para ele, a política não é
uma dimensão insuperável – a exemplo do trabalho, da arte, da ciência, etc. – da existência
humana, mas que apenas terá vigência enquanto existirem a propriedade privada e as classes
sociais. Ora, o conjunto de direitos que constitui a cidadania (moderna) faz parte do que Marx
denomina emancipação política, isto é, a dimensão da política posta na especificidade
necessária à reprodução da sociabilidade do capital. É por isso que ele faz questão de acentuar
a essencial diferença que existe entre emancipação política e emancipação humana. Esta
idéia está muito clara tanto nas Glosas críticas como em A Questão Judaica, mas
8
implicitamente também em todo o restante da sua obra. Para o bem ou para o mal, não é
possível, de forma nenhuma, afirmar que, para Marx, cidadania plena é igual a emancipação
humana.
A distinção entre estas duas categorias é da máxima importância para evidenciar a
profunda diferença entre as perspectivas do capital e do trabalho. E não é preciso negar a
importância da cidadania na trajetória da autoconstrução do ser social para admitir esta radical
diferença. Assim, a cidadania moderna, nas suas mais variadas formas, inclusive na sua forma
mais aperfeiçoada possível, é um momento inseparável da sociabilidade do capital. É
certamente liberdade, mas uma forma de liberdade matrizada pelo capital e por isso
necessariamente parcial e limitada. Ao contrário, o que integra a perspectiva do trabalho é a
emancipação humana, uma forma de liberdade infinitamente diferente e superior à liberdade
democrático-cidadã.
Deste modo, ao contrário do autor, penso que o raciocínio coerente deveria ser
este: cidadania plena= liberdade limitada= capitalismo. Vale dizer, cidadania plena é uma
categoria que só pode existir no capitalismo. Isto porque, mesmo quando se refere a direitos
sociais, ela não deixa de faze-lo do ponto de vista da dimensão política. Para ficar mais claro:
direito ao trabalho só pode haver no interior do capitalismo. No socialismo, como diz Marx, o
trabalho não será um direito, mas a expressão, que não precisará ser garantida por lei, da
primeira e fundamental necessidade humana, a da autoatividade.
Pode-se, então, dizer que cidadania plena – isto é, o grau máximo de liberdade
que os indivíduos podem atingir na sociabilidade do capital – é algo que já existe hoje, por
exemplo, nos países mais desenvolvidos. Com diferenças, com variações e, necessariamente,
como limitações intrínsecas. Ao contrário, uma sociedade socialista será constituída de
homens plenamente livres (o que nada tem a ver com perfeitamente, absolutamente,
totalmente livres) e não de cidadãos plenos.
Ora, a idéia acima pareceria colocar-me no mesmo campo de Habermas, criticado
pelo autor. Qual seria a diferença? A diferença – radical – está em que, para Habermas, a
sociedade cidadã representa o espaço indefinidamente aperfeiçoável da sociabilidade; a última
forma possível de sociabilidade. Para mim, ao contrário, na esteira de Marx, a sociabilidade
democrático-cidadã, mesmo na sua forma mais plena, é apenas a última expressão de uma
sociabilidade fundada nos antagonismos sociais.
É por não deixar clara a diferença entre estas duas categorias que a esquerda,
mesmo quando bem intencionada, vem se situando cada vez mais, tanto teórica como
praticamente, no campo da perspectiva burguesa. Não basta acentuar a relação que a
cidadania tem com as classes sociais. Muito mais do que isto, é preciso demonstrar que há
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uma relação essencial entre a cidadania e as formas antagônicas de produção. E, no caso
atual, entre a cidadania moderna e a forma de produção cuja matriz é o capital. Para além das
formas antagônicas de produção, onde a matriz da sociabilidade for o trabalho associado, já
não haverá lugar para cidadãos, mas para homens plenamente livres. Para evitar mal-
entendidos, esclareço que por homens plenamente livres entendo homens que controlam,
consciente e coletivamente o processo de produção econômica e, como conseqüência, o seu
processo social de autoconstrução.
Volto a repetir: Marx pode estar errado – e seria preciso, antes de mais nada,
demonstrá-lo – mas certamente jamais concordaria com a afirmação de que cidadania plena é
algo de toda a sociedade, no sentido da igualdade social. Como também não concordaria com
a idéia de que a diferença entre reformistas e revolucionários é uma questão de estratégia e
não de fins. Quer dizer, de que o fim seria o mesmo para todos – a cidadania plena – mas
enquanto os primeiros pretendem atingi-lo através da colaboração e da negociação entre as
classes, e por isso se enganam, os segundos pretendem alcançá-la por meio do confronto, da
luta de classes.
Como disse no início, meu objetivo não era criticar, em detalhe, as idéias do autor
acerca da problemática da cidadania. Minha intenção era demonstrar que o caminho seguido
por ele – representativo de um amplo modo de pensar - não permite atingir o objetivo a que
ele mesmo se propunha, qual seja, o de fazer do marxismo um instrumento de independência
político-ideológica da classe trabalhadora.
A confusão, ou a clara igualização entre cidadania plena e emancipação humana
não expressam apenas uma opinião acerca de uma questão tópica. Elas vão muito mais longe.
Conscientemente ou não, elas têm por trás toda a problemática – literalmente problemática –
do assim chamado socialismo democrático e, mais ainda, uma determinada compreensão do
pensamento marxiano.Certa ou errada, esta concepção tem um caráter anti ou não ontológico.
E é este viés, a meu ver, que pode até permitir críticas tópicas, mas interdita o resgate do
caráter radicalmente crítico do pensamento marxiano. E porque repetita juvant, volto a dizer:
para mim, este resgate radicalmente crítico significa capturar o movimento de autoconstrução
do ser social a partir do seu ato fundante, o trabalho, rastreando, então, o surgimento e a
natureza das mais diversas dimensões e momentos deste ser. É este procedimento que permite
que, mesmo no exame da menor parcela, do menor aspecto do ser social, não se perca nunca
de vista a sua conexão com a totalidade. É também este procedimento, que nunca perde de
vista o caráter essencialmente histórico e social do ser social, que permitir perceber a
possibilidade de superação da sociabilidade fundada no capital e de instauração de uma
sociabilidade fundada no trabalho efetivamente livre, vale dizer, a possibilidade da revolução.
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Retomando a questão inicialmente posta da necessidade da reconstrução da teoria
revolucionária, tendo como eixo o resgate do pensamento de Marx. Não há como ocultar o
fato de que, não obstante tenha experimentado momentos de muito vigor e tenha recebido
contribuições valiosas de vários teóricos, a teoria marxiana sofreu, desde sua fundação até
hoje, um movimento de crescentes deformações extravios. E que sua forma dominante, cujas
bases foram lançadas na segunda metade do século XIX, se tornou, aos poucos, com o nome
de marxismo-leninismo, uma completa contrafação do pensamento de Marx.
Se se quer demonstrar – racionalmente – a possibilidade da superação da
sociabilidade capitalista; a possibilidade de construção de uma forma de sociabilidade onde os
homens sejam plenamente livres e, portanto, senhores do seu destino; se se quer dar conta dos
complexos problemas que a transformação radical do mundo atual implica, então é preciso ir
fundo na crítica das deformações e extravios sofridos pelo marxismo. Para isso, o resgate do
espírito original – intrinsecamente crítico – do pensamento de Marx, é condição
imprescindível.
Referências Bibliográficas
CHASIN, J. Marx: Da Razão do Mundo ao Mundo sem Razão. In: ___. (org.)
Marx Hoje. n. 1, São Paulo: Ensaio, 1987, p. 13-52.
COUTINHO, C. N. Contra a corrente. Ensaios sobre democracia e socialismo.
São Paulo: Cortez, 2000.
LUKÁCS, G. Ontologia dell’Essere sociale. Roma: Riuniti, 1976-1981.
MARX, K. A Questão Judaica. São Paulo: Moraes, 1991
______. Glosas críticas al articulo “El rey de Prusia y la reforma social”. Por un
prusiano”. In: ___. Escritos de juventud. México: Fondo de cultura economica,
1987, p. 505-521.
PAULO NETTO, J. Razão, Ontologia e Práxis. Serviço Social e Sociedade, n. 44,
1994, p. 26-42.
Ivo Tonet
Professor do Dep. de Filosofia
da Universidade Federal de Alagoas
Entendemos que a resposta a essas questões só pode ser obtida se observarmos três
princípios metodológicos fundamentais: buscar a gênese histórico-ontológica; compreender a
função social e fazer uma análise imanente. Cremos que a observação destes três princípios
nos permitirá apreender o pensamento marxiano como o patamar de conhecimento mais
elevado que a humanidade atingiu até hoje e, por conseqüência, o melhor instrumento teórico
para orientar a transformação do mundo.
Como Marx faz isso? Tomando como ponto de partida a realidade (social)
efetivamente existente, Marx resgata a centralidade da objetividade (característica da
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perspectiva greco-medieval), – daí o caráter ontológico do seu pensamento – subordinando a
esta a resolução de todas as questões relativas ao conhecimento. Demonstra, porém, que esta
objetividade é radicalmente histórica e social. Nesta empreitada, duas categorias são
fundamentais: as categorias da essência/fenômeno e da práxis. Por um lado, ao historicizar a
primeira e ao demonstrar a sua relação com o fenômeno, ele resolve os problemas da relação
entre unidade e diversidade e entre permanência mudança no ser social. Por outro lado, ao
demonstrar como a realidade social é sempre o resultado da determinação recíproca entre
subjetividade e objetividade (teleologia e causalidade), porém sob a regência da segunda, e
como a práxis é a categoria mediadora entre estes dois momentos, ele pode integrar
harmonicamente aquelas duas categorias, superando, ao mesmo tempo, o idealismo e o
materialismo mecanicista.
Com isso, ele supera tanto a unilateralidade da perspectiva greco-medieval (centrada
no ser, mas metafisicamente concebido), como a unilateralidade da perspectiva moderna
(centrada no conhecer, mas abstratamente entendido).
É no trabalho, portanto, como ele mesmo diz, um princípio “empiricamente
verificável”, (“os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida...”), que ele
encontra a raiz, o fundamento ontológico-primário do ser social. A análise deste ato fundante
permite-lhe demonstra a radical historicidade e socialidade do mundo dos homens bem como
a natureza específica deste mundo. É também a análise do trabalho que lhe permite mostrar
como surgem, com natureza e funções específicas, todas as outras dimensões sociais,
garantido, deste modo, tanto o matrizamento ontológico quanto a autonomia relativa. Como
resultado, o ser social emerge como uma totalidade articulada em processo, sem jamais perder
essa característica, não importa quanta fragmentação possa resultar do andamento concreto da
história.
Do mesmo modo, com esta impostação podem ser facilmente refutadas quaisquer
acusações de determinismo, economicismo, dogmatismo, menosprezo do indivíduo,
metafísica, messianismo e tantas outras que resultam de leituras não ontológicas do
pensamento deste pensamento.
5
Vale frisar: com isto não estão resolvidos todos os problemas. Estão apenas (e isto é
muitíssimo importante) lançados os fundamentos, está aberto um patamar para a abordagem
de qualquer fenômeno social e para impulsionar a compreensão, o mais profunda hoje
possível, da realidade social. Parece evidente que não vai nisto nenhum dogmatismo, pois
estes fundamentos – eles mesmos sempre necessitados de crítica e aprofundamento – não
garantem a correção e a superioridade do conhecimento produzido a partir deles, apenas a
tornam possível.
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Prefácios | Introduções | Resenhas
1
1. Texto e contexto
A Ideologia Alemã é uma obra escrita por K. Marx e F. Engels nos anos de
1845/1846. Sem dúvida, a mais importante no que se refere à elaboração dos
fundamentos de uma nova concepção de história.
Por outro lado, a sociedade burguesa, por ser baseada numa forma de
exploração do homem pelo homem que mistifica as relações sociais, também oculta a
sua verdadeira natureza. Ao transformar as relações sociais em relações entre coisas faz
com que estas relações apareçam como se fossem naturais. Como conseqüência, as
relações de exploração não aparecem como produtos da atividade humana, mas como
algo que independe dos homens.
Como Marx mesmo adverte, esse texto foi escrito como um meio de passar a
limpo os fundamentos dessa nova maneira de pensar, que para ele e Engels tinham
ficado claros ao longo desses anos. Dificuldades surgidas na publicação desse trabalho
fizeram com que ele fosse deixado de lado e nem sequer recebesse uma forma final
apropriada. Como Marx conta no Prefácio da Introdução à Crítica da Economia Política,
em 1859, eles abandonaram o manuscrito à “crítica roedora dos ratos”, já que tinham
atingido o seu objetivo que era o de ver com clareza esses novos fundamentos.
Contudo, é preciso ter sempre em mente que esse texto é um manuscrito, que
não recebeu uma forma final para publicação. Trata-se, portanto, de um esboço. Suas
idéias centrais permanecerão inteiramente válidas, mas algumas delas sofrerão
correções e aprofundamentos em obras posteriores. Além disso, escrito em 1845/1846,
permaneceu durante muitos anos desconhecido, somente sendo redescoberto e
publicado em 1932, pelo Instituto de Marxismo-Leninismo de Moscou. Ao longo desse
tempo, páginas foram perdidas e outras se deterioraram, dificultando enormemente a
sua ordenação e compreensão. Além do mais, tratava-se, especialmente na primeira
parte, referente a Feuerbach, onde aparecem mais claramente os fundamentos da
concepção materialista da história, de um trabalho inacabado, cheio de interrupções,
lacunas, correções e rasuras.
Vale lembrar que toda obra, de qualquer autor, deve ser lida, sempre, com
espírito crítico. Mais ainda, quando se trata de uma obra, como esta, que não recebeu de
seus autores uma forma definitiva.
2. Idéias fundamentais
Por isso mesmo, enfatizam eles, o ponto de partida para compreender a história
deve ser concreto, real, objetivo. Nas palavras deles: “Os pressupostos de que partimos
não são arbitrários, nem dogmas. São pressupostos reais de que não se pode fazer
abstração a não ser na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições
materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas, como as produzidas por sua
própria ação. Estes pressupostos são, pois, verificáveis por via puramente empírica”.
processo histórico-social. O que significa que nenhuma dessas partes pode ser
compreendida sem que seja apreendida a sua relação com os outros momentos da
realidade social.
Ivo Tonet
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PREFÁCIO
Ivo Tonet
Junho de 2007
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1
MUDAR O MUNDO SEM TOMAR O PODER, de John Holloway.
Ivo Tonet
1. As idéias do autor
3. Os equívocos do livro
Certamente, há muitas questões de detalhe bastante discutíveis ao longo dessa obra.
Não é nosso objetivo situar a crítica nesse nível. Pretendemos ater-nos a questões mais gerais
e de fundo.
5
O primeiro grande equívoco refere-se ao próprio ponto de partida da crítica do autor.
Como já vimos, segundo ele, o ponto de partida de Marx, esquecido pelos revolucionários e,
em geral, pelos intelectuais marxistas, é a categoria do fetichismo. Esta categoria permitiria
fazer a crítica da realidade capitalista e apontar os caminhos da sua superação.
Não há dúvida de que a categoria do fetichismo é fundamental no pensamento de
Marx. E que ela contribui para conferir a esse pensamento uma característica toda particular.
Em conseqüência, o seu abandono não pode deixar de ter reflexos profundamente negativos
tanto sobre a teoria como sobre a prática.
Não se trata, portanto, de negar essa categoria nem de desmerecer a sua decisiva
importância. Trata-se de ver que ela não pode ser o ponto de partida. Percebe-se isso quando
se vê que a própria compreensão e a crítica do fetichismo só podem ser levadas a termo após
sabermos o que é uma realidade social não fetichizada. Ora, essa compreensão do que seja
uma realidade social não fetichizada só pode ser obtida na medida em que apreendermos
quais são os traços ontológicos que demarcam o processo de tornar-se homem do homem. Os
traços mais gerais e essenciais desse processo é que permitirão compreender o que é positivo
e o que é negativo nessa trajetória da autoconstrução humana. Por sua vez, esses traços mais
gerais e essenciais só podem aparecer na medida em que se identificar a gênese ontológica do
ser social. Chegamos, aqui, à questão fundamental; ao que nos parece ser, para Marx, o
verdadeiro ponto de partida: o trabalho como fundamento ontológico do ser social.
É, ao nosso ver, o caminho seguido por Marx e é ele que permite fazer a crítica do
processo de alienação que, aliás, – é o próprio Marx que mostra em “A Ideologia Alemã” – é
muito mais amplo e antigo do que a sua forma específica no capitalismo.
Mas, esse ponto de partida – o trabalho como fundamento ontológico do ser social –
e todo o percurso realizado a partir dele, têm uma conseqüência importantíssima. É a partir
dele que se pode apreender o processo de tornar-se homem do homem como uma totalidade
em processo, um complexo de complexos em movimento e que se constroem em
determinação recíproca. Esse ponto de partida permite estabelecer que o trabalho (como
síntese de prévia-ideação e causalidade; de subjetividade e objetividade) é a matriz originária
do ser social. E que á a partir dele, e em decorrência da necessidade de enfrentamento de
problemas que não podem ser resolvidos diretamente no âmbito do trabalho, que surgem
todas as outras dimensões da realidade social. Há, portanto, uma lógica essencial que preside
todo o evolver do processo social, mesmo quando esse processo se manifesta sob a forma de
fragmentação, de estilhaçamento, de um aparente caos. Por mais complexo, contraditório e
aparentemente caótico que seja esse processo (lembre-se do desmoronamento do sistema
escravista), ele nunca deixa de ter o trabalho como sua matriz ontológica, nem deixa, jamais,
6
de ser uma totalidade. Nem por isso há uma derivação mecânica (como entendia o marxismo
vulgar) das diversas dimensões sociais a partir do trabalho. Há apenas uma dependência
ontológica e uma autonomia relativa.
É dessa descoberta da justa articulação entre subjetividade e objetividade – a partir
do trabalho – que decorre toda a concepção marxiana acerca do ser social, inclusive do
fetichismo.
Ora, é o desconhecimento desse fio condutor – tão bem desenvolvido por Lukács a
partir de Marx – que leva o autor a afirmar que o trabalho já não é o eixo da oposição ao
capital. Para ele, essa luta já não tem, hoje, mais nenhum eixo. Ela simplesmente se encontra
representada por todos os movimentos e lutas sociais que de alguma forma, mesmo que a
mais indireta, se opõem a algum aspecto do capitalismo.
Não é o único autor que, desconhecendo a articulação entre o trabalho em sentido
ontológico (como aquela necessidade eterna de transformação da natureza) e no sentido
histórico-concreto (no caso do capitalismo, o trabalho abstrato) e perdido na aparência das
transformações que a classe trabalhadora vem sofrendo ao longo das últimas décadas, afirma
a não centralidade do trabalho na oposição ao capital, substituindo-o pelo “povo” em geral,
pelos “oprimidos”, pela “humanidade”, pelos “movimentos sociais”. O resultado,
independente da intenção do autor, é sempre alguma forma de reformismo e/ou voluntarismo.
É exatamente o que evidenciam as lutas sociais, hoje. Descentradas do trabalho, único que
pode se opor radicalmente ao capital, seu grande leit-motiv se resume em construir um mundo
cidadão, o que é a quintessência do reformismo.
Evidentemente, não se trata de desconsiderar a importância das diversas formas de
luta social. Trata-se, apenas, de enfatizar que, desnucleadas do trabalho, elas não podem
adquirir um caráter revolucionário.
Também não se trata, simplesmente, de reafirmar a centralidade do trabalho
desconhecendo a importância das lutas sociais e os gravíssimos problemas referentes à
natureza atual da própria classe trabalhadora. Trata-se de buscar a articulação entre esses dois
momentos, sem deixar de afirmar que o trabalho continua a ser o eixo de toda a luta.
Há, porém, aqui, uma questão que deve ser realçada. O que produz todas aquelas
confusões acima apontadas, todas as dificuldades da ação prática não são as idéias errôneas
dos autores. É a própria forma concreta da realidade atual. São as próprias transformações
sofridas pelo mundo do trabalho, em especial pela classe trabalhadora, nas últimas décadas,
que tornam difícil, se não impossível no momento, a identificação clara da natureza dessa
classe e, portanto, da sua ação prática. Ora, se não há clareza quanto à natureza atual da classe
trabalhadora, o mínimo que se pode exigir é uma atitude cautelosa de investigação desse
7
processo em curso e não, com tanta ligeireza, a imediata negação de sua centralidade na luta
contra o capital. Não é o fato de a classe trabalhadora não estar empenhada na revolução que
lhe retira o caráter potencialmente revolucionário. Mesmo porque esse caráter não lhe
pertence por alguma essência metafísica, mas se realiza pela articulação entre sua posição no
processo de produção e seu envolvimento nas lutas concretas.
Não ignoramos que é fácil afirmar que se deve articular todas as lutas sociais ao
redor do eixo das lutas do trabalho. Acontece que realizar essa articulação, nesse momento
histórico, está se revelando imensamente difícil, até pelos problemas que dizem respeito à
própria natureza da classe trabalhadora. Entendemos, porém, que, exatamente por reconhecer
essas enormes dificuldades, deveria haver mais cautela tanto nas análises quanto nos
caminhos a serem apontados.
O segundo e enorme equívoco do autor, intimamente conexo com a questão anterior,
é o que se manifesta no próprio título do livro: “mudar o mundo sem tomar o poder”.
É um fato que todas as tentativas de superar o capitalismo tomaram o caminho
apontado pelo autor, ou seja, buscaram apoderar-se do poder para, por seu intermédio, realizar
as mudanças que transformariam o sistema social. E é também um fato que todas elas
fracassaram.
A conclusão imediata, tirada pelo autor, nos parece inteiramente correta: não se pode
mudar o mundo através do poder. O problema é que ele não tira apenas essa conclusão. Ele
vai muito mais longe ao concluir que a questão do poder deve ser deixada de lado quando se
pretende mudar o mundo; que o foco da luta, como já vimos, deve concentrar-se nas lutas
sociais que não visam a tomada do poder, mas a superação da ruptura entre o “fazer e o feito”
que, na sua opinião é a questão fundamental.
Ora, na medida em que o autor identifica o equívoco dos revolucionários, o que se
esperaria? Que ele procurasse analisar o processo histórico para mostrar por que eles erraram.
E que ele, como materialista histórico-dialético que se pretende, fizesse aparecer, nessa
análise, a articulação entre as idéias e a realidade objetiva. Sua argumentação, no entanto,
situa-se, apenas, no terreno das idéias, sem nenhuma articulação com o processo histórico
concreto. Ele simplesmente afirma que os revolucionários agiram daquele modo porque
entendiam que revolução era sinônimo de tomada do poder e que, por intermédio desse poder
mudariam o mundo. Ou seja, agiram erradamente simplesmente porque tinham idéias erradas.
O primeiro passo que se poderia esperar do autor seria o exame das idéias de Marx
acerca dessa questão. Não no sentido de um argumento de autoridade, mas como um autor
cuja teoria não pode, de modo algum, ser descartada sem um exame sério. Até para ser
submetida à crítica. Em vão procura-se esse exame. Embora as idéias de Marx acerca da
8
revolução, do Estado e do socialismo sejam sobejamente conhecidas, o autor simplesmente
passa ao largo delas.
O que Marx – em alguns casos junto com Engels – disse acerca do Estado, da
revolução e do socialismo nas “Glosas Críticas”, em “A Questão Judaica”, em “A Ideologia
Alemã”, no “Manifesto Comunista”, em “As lutas de classe na França”, em “O Capital” e em
várias outras obras, não pode, de modo nenhum ser deixado de lado. Marx foi enfático ao
afirmar que o objetivo da revolução não era a tomada do poder, mas a emancipação da
classe trabalhadora. Exatamente porque tinha claro que o Estado tem sua origem nas relações
econômicas e é uma condição indispensável para a reprodução dessas relações de
desigualdade. Além do mais, também deixou claro que a verdadeira emancipação deveria ter
por fundamento uma forma efetivamente livre de trabalho (a associação dos produtores livres,
o trabalho associado) e que ela não poderia realizar-se sem o desenvolvimento de forças
produtivas que permitisse a criação de uma riqueza abundante. Sem falar na afirmação,
inteiramente clara, de que a emancipação da classe trabalhadora deveria ser obra da própria
classe trabalhadora. O que, diga-se de passagem, não exclui, de modo nenhum, a existência de
partidos dessa classe, deixando claro, porém, que a classe, e não os partidos, são o elemento
fundamental.
E se é para criticar os revolucionários pelo caminho assumido, porque não incluir
também Marx quando diz, no “Manifesto Comunista” que o proletariado deverá “...centralizar
todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado
como classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível a massa das forças
produtivas”. (p. 29-30).
Esta passagem parece combinar às mil maravilhas com o procedimento dos
revolucionários. Afinal, foi exatamente isso que eles fizeram.Voltaremos a essa passagem
mais adiante.
É certo que, para Marx, a essência da revolução (como emancipação humana) está
numa transformação das relações de produção que instaure o controle livre, consciente e
coletivo dos produtores sobre o processo de produção (precisamente o restabelecimento da
unidade entre o fazer e o feito preconizado por Holloway). Somente na medida em que essas
transformações se realizassem, os homens seriam verdadeiramente humanos, verdadeiramente
livres e verdadeiramente sujeitos da sua história. A partir daí, com uma produção abundante e
voltada para o atendimento das autênticas necessidades humanas e não para a reprodução do
capital, os homens poderiam trabalhar menos (e de uma forma mais digna) dispondo, então,
de muito tempo efetivamente livre para dedicar-se a atividades mais propriamente humanas.
9
Mas, para chegar a isso, diz ele, é preciso quebrar o poder das classes dominantes.
Por isso, afirma ele, uma revolução socialista deve, necessariamente, ser uma “revolução
política com alma social”. E, por “alma social” entende uma forma de trabalho que seja o
fundamento de uma sociabilidade efetivamente livre.
Há, portanto, em Marx, uma íntima e essencial vinculação entre economia e política,
no caso da sociedade burguesa, entre Estado e Capital . O que não quer dizer, de modo algum,
que o Estado seja visto como um simples reflexo da economia. Como já vimos, a concepção
de Marx, é de uma dependência ontológica (da política para com a economia) e uma
autonomia relativa da primeira em relação à segunda. Por isso mesmo, o Estado não é algo
que possa ser apropriado por qualquer classe e colocado ao seu serviço. O Estado é uma
condição fundamental na reprodução da ordem burguesa. Não faz, pois, sentido, no interior do
pensamento de Marx, a idéia de um “Estado proletário”, um “Estado socialista”. Mas, também
não faz sentido desconhecer o caráter decisivo que o Estado tem na reprodução do capital. De
modo que pensar a revolução sem levar em conta essa questão-chave é tão absurdo como
colocar a tomada do poder como objetivo dela.
Não se pode, também, confundir, de modo nenhum, a idéia de que a classe
trabalhadora deve organizar-se, deve utilizar o poder político para enfrentar a classe burguesa
com a idéia de que ela deve constituir um “Estado” da classe trabalhadora. Esta idéia de um
“Estado socialista” surgiu exatamente das circunstâncias concretas em que se deu a revolução
soviética. Surgiu não porque eles tivessem uma visão instrumentalista do Estado, mas
precisamente da impossibilidade de que a “alma social” do socialismo aflorasse, dadas as
condições concretas objetivas. Porém, a infelicidade é que, uma vez surgida, ela foi tomada
como se fosse o caminho preconizado por Marx para a realização da revolução socialista. A
partir daí é que se gerou essa absurda idéia de que “revolução” é sinônimo de tomada do
poder. Por esse caminho, toda a proposta marxiana foi por água abaixo.
E aqui vale a pena examinar aquela afirmação feita por Marx e Engels no “Manifesto
Comunista”. Vejamos a afirmação na sua integralidade. Dizem eles: “O proletariado utilizará
o seu domínio político para ir arrancando todo o capital das mãos da burguesia, para
centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isso é, do proletariado
como classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível a massa das forças
produtivas” (p. 29-30).
Não foi isso exatamente que os revolucionários fizeram? A resposta é: sim, mas
somente se tomarmos essa afirmação em sentido isolado, deixando de lado o seu contexto
teórico e histórico. O contexto histórico era o do capitalismo mais desenvolvido. Era ali que
se teriam criado as condições necessárias para a rápida produção de uma riqueza abundante
10
após a quebra do poder político da burguesia. Portanto, a referência não era a países
parcamente desenvolvidos. Nestes ainda seria necessário criar as forças produtivas adequadas
ao socialismo. Naqueles, tratar-se-ia, apenas, de liberá-las dos entraves das relações
capitalistas e transformá-las em relações socialistas.
O contexto teórico, por sua vez, indicava, desde os primeiros textos de Marx, que
essa produção rápida e abundante só seria possível com a entrada em cena do trabalho
associado, ou seja, com a liberação da produção dos entraves do capital. Mais ainda: Nesse
intervalo – em termos históricos, relativamente breve – que mediaria entre o capitalismo e o
comunismo, a classe trabalhadora teria que se organizar para enfrentar a resistência da
burguesia. Mas, nesse caso, os autores têm o cuidado de precisar que o Estado é o proletariado
organizado e não uma organização acima e fora das classes. Referindo-se à Comuna como
“...a forma política finalmente encontrada que permitia realizar a emancipação econômica do
Trabalho”, diz Marx: “Sem esta última condição, a Constituição comunal teria sido uma
impossibilidade e um engodo. O domínio político do produtor não pode coexistir com a
eternização da sua escravidão social. A Comuna devia, pois, servir de alavanca para extirpar
as bases econômicas sobre as quais se funda a existência das classes, logo, o domínio de
classe. Uma vez emancipado o trabalho, todo homem se torna um trabalhador e o trabalho
produtivo deixa de ser o atributo de uma classe”(A guerra civil em França, p. 99).
A similaridade entre o que Marx preconizou e o que os revolucionários pensaram e
fizeram é apenas aparente. É o próprio Marx, em “A Ideologia Alemã”, que,
premonitoriamente, realça a diferença. Aí ele deixa claro que a exist6encia de forças
produtivas altamente desenvolvidas é condição absolutamente indispensável para a construção
do socialismo. E, em “O Capital” e nos “Grundrisse”, enfatiza que esse desenvolvimento das
forças produtivas é obra do próprio capitalismo. Mas, por que não poderia ser realizado por
um Estado “socialista”? Exatamente porque elas só podem vir a existir sobre a base de
relações sociais de exploração, algo inteiramente contraditório com o socialismo. “...este
desenvolvimento das forças produtivas – diz Marx – (...) é um pressuposto prático,
absolutamente necessário, porque, sem ele, apenas generalizar-se-ia a escassez e, portanto,
com a carência, recomeçaria novamente a luta pelo necessário e toda a imundície anterior
seria restabelecida” (p. 50).
Do que foi dito acima, pode-se legitimamente inferir que uma revolução socialista
não pode, de modo nenhum, ser conduzida pelo Estado. E é exatamente isto que Marx afirma.
Porém, em vez de concluir que o desafio é “mudar o mundo sem tomar o poder”, o que diz
ele? Que uma revolução socialista deve ser, necessariamente, uma “revolução política com
alma social”. Vale dizer, que a quebra do poder político das classes dominantes é um
11
momento absolutamente necessário da revolução socialista. Contudo, embora necessário, é
um momento apenas preparatório e negativo, é uma espécie de limpeza do terreno para que a
“alma social” do socialismo possa aparecer. E que alma social é essa? É aquilo que – em nível
genérico – constitui o fundamento de qualquer forma de sociabilidade, ou seja o trabalho. Só
que, no caso da sociedade socialista, o trabalho deverá assumir a forma de trabalho associado,
de associação livre dos produtores. É aí que começa, para Marx, a autêntica revolução
socialista, o domínio consciente, livre e coletivo dos trabalhadores sobre o processo de
produção, base indispensável para a construção de uma forma de sociabilidade efetivamente
livre e humana.
Esperamos que essa afirmação – limpar o terreno e aparecer a alma social – não seja
tomada em sentido meramente cronológico. Trata-se, obviamente, de um processo em que os
dois momentos se imbricam. Mas, em algum momento, essa quebra do poder do Estado
burguês faz-se necessária. Se, porém, quebrado esse poder, a “alma social” do socialismo não
puder aparecer (por falta de condições objetivas – vide o caso recente da Nicarágua) ou não
puder se instaurar por erros dos revolucionários, então aquela quebra de nada adiantará. Aí
sim, se põe com toda força a afirmação do autor que, antes de ser dele é de Marx, de que não
é possível mudar o mundo através do poder do Estado.
Como se vê, a concepção de Marx é profundamente diferente da concepção
instrumentalista, reificada, fetichizada do Estado. Isso, porém, não o leva a diminuir a
importância do Estado. Pelo contrário, continua a enfatizar o seu papel crucial na reprodução
da ordem social burguesa. Daí não se segue, porém, que, para ele, a revolução tenha como
objetivo a conquista do Estado nem que este venha a ser o instrumento para a construção do
socialismo.
A intenção do autor é, certamente, louvável. Seu propósito é fazer uma crítica do
caminho – teórico e prático – trilhado pelas revoluções que se pretendiam socialistas e que
pretenderam realizar a revolução através do Estado. Contudo, ao atribuir esse equívoco a uma
concepção objetivista e fetichizada da realidade social, que teria resultado numa idéia
politicista da revolução e numa idéia instrumentalista do Estado, e, ao abandonar a análise do
processo histórico, chega, ao nosso ver, a uma posição tão equivocada quanto a dos
revolucionários. Preocupado em criticar o objetivismo, ele cai no extremo oposto, que é o
subjetivismo.
Ao contrário do que o autor pensa, o zapatismo – seu grande inspirador – é o melhor
argumento, não a favor, mas contra a sua tese. O não enfrentamento da questão do poder, que
aquele movimento, por sua própria natureza, não pode questionar em sua lógica mais
profunda, mostra os seus limites insuperáveis. O mesmo acontece com os mais variados tipos
12
de lutas sociais, todos importantes, mas todos limitados. O Estado permanece como principal
– embora não única – condição de reprodução do capital. Nenhuma das outras condições teria
condição de assegurar-lhe a reprodução sem a existência do Estado.
Concluindo
O balanço final da obra é melancólico. A intenção é boa, o esforço é grande,
problemas importantes são apontados. Infelizmente, o caminho trilhado pelo autor o leva a
criticar um extremo para cair no outro: contra a centralidade do Estado, a total nulificação
deste. O que lhe impede de apreender a função própria da política na luta pelo socialismo.
Mas, só se pode perceber as possibilidades e os limites da política na medida em que se
apreender a lógica própria do ser social. Esta lógica, como já vimos, tem no trabalho a sua
categoria fundante. Como o autor não toma o trabalho como ponto de partida, mas a categoria
do fetichismo, aquela lógica se vê perdida. Entra, então, em cena a subjetividade, à procura de
novos caminhos que, descentrados da lógica objetiva, terminam por impor à realidade rumos
que expressam muito mais desejos do que possibilidades efetivas.
O fracasso dessa obra em atingir os objetivos propostos, reforça o que dissemos em
vários textos1: o resgate do pensamento marxiano, que lhe restitua o seu caráter original,
radicalmente crítico e revolucionário – e esse resgate passa, ao nosso ver, pelo caminho
indicado por Lukács em sua obra da maturidade – é condição indispensável para compreender
o mundo atual e identificar os caminhos de superação do capitalismo. A busca desses
caminhos é, hoje, uma tarefa extremamente difícil, até porque não é um problema nem só e
nem principalmente teórico. Por isso mesmo, os equívocos são inevitáveis. Mas, entendemos
que, desde que o objetivo maior seja a superação radical do capital, melhor arriscar-se a
comete-los do que abandonar essa luta.
1
TONET, I. As tarefas dos intelectuais, hoje. In: Novos Rumos, n. 29, 1999 e Marxismo para o século XXI,
2003 (mimeo).
1
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Introdução
A problemática do socialismo sempre foi uma questão muito complexa. Porém, hoje,
após a derrocada do que se costuma chamar, equivocadamente, de “socialismo real”, ela se
tornou muito mais complexa e, sobretudo, confusa.
Entre outros, três problemas jogam um papel fundamental para a geração desta
confusão. Um primeiro é a pressuposição de que ele é algo suficientemente conhecido, não
sendo necessário “perder tempo” com uma abordagem mais demorada. A verdadeira
questão não seria o que é o socialismo e sim qual o caminho para chegar a ele. Um segundo
problema é a deterioração do instrumental teórico que permitiria pensar esta problemática.
O que marca esta deterioração, a nosso ver, é a perda da radicalidade crítica que caracteriza
a natureza essencial deste instrumental, o pensamento de Marx. O resultado disto é a
diluição cada vez maior da especificidade própria do pensamento marxiano e sua
aproximação ao pensamento burguês. Um terceiro problema é o pano de fundo constituído
por aquilo que é denominado pelo infeliz termo de “socialismo real”. Não é nossa intenção
abordar, aqui, os três problemas, mas apenas o terceiro.
É nossa convicção que este termo – “socialismo real” – deve ser inteiramente abolido
porque falseia qualquer discussão acerca do socialismo. Mesmo quando utilizado entre
aspas, o que chamaria a atenção para o seu caráter problemático, ele não deixa de
permanecer como um conceito que designaria, ainda que apenas sob algum aspecto, algo
que efetivamente existiu. No mínimo, deixa dúvidas no ar, o que contribui para confundir a
questão. Mas há quem o use sem aspas, pretendendo que ele designa, de fato, algo bem
real, ou seja, o próprio socialismo.
Exemplos desta “categoria” como pano de fundo podem ser encontrados em autores
os mais diversos. Entre eles: A. Schaff, E. Hobsbawn, C. Lefort, Boaventura de S. Santos,
Professor de filosofia da Universidade Federal de Alagoas
2
a boa teoria é aquela que captura o objeto na sua integralidade (observe-se que
integralidade não quer dizer totalidade), o que implica tomá-lo como uma totalidade,
incluindo a relação entre essência e fenômeno e entre o seu modo presente de ser e
possibilidades futuras. Ora, entre o modo presente de ser do objeto e os acontecimentos
futuros, interpõem-se muitos elementos – incluindo o acaso – que não podem ser previstos,
ainda mais quando se trata do mundo social.
Interpõem-se, de modo especial, o modo como ela é entendida e posta em prática
pelos indivíduos e grupos sociais mais diversos e as circunstâncias concretas de tempo e
lugar em que se dá a sua recepção. Tudo isto pode levar a modificações significativas na
própria teoria. (Isto ficaria extremamente fácil de entender se fosse aceita e levada em conta
a determinação social – em sentido ontológico e não meramente sociológico – do
conhecimento). Não há, pois, como existir uma relação direta entre uma teoria e práticas
futuras realizadas em seu nome. A história é feita de alternativas e não de desdobramentos
inevitáveis. O curso dos acontecimentos pode ou não fluir no sentido apontado pela teoria
inicial. O fato de não seguir o caminho indicado pela teoria não a torna falsa. Apenas indica
que houve um desdobramento diferente. A demonstração da falsidade de uma teoria
implica outras questões, como veremos mais adiante.
Deste modo, os “fatos” não constituem elementos isolados, contrapostos à teoria,
mas resultados objetivados de decisões tomadas pelos sujeitos em circunstâncias históricas
concretas. Eles poderão ou não realizar-se no sentido posto pela teoria. Quando é, então,
que os “fatos” contribuem para a verificação de uma teoria? Quando, tendo-se desdobrado
em conformidade com o previsto por ela, confirmam ou negam a sua veracidade. Um
exemplo muito simples: temos uma teoria de que a água ferve a 100 graus. Pomos água
para ferver; ela chega a 100 graus e nada acontece. Isto comprova que a teoria estava
errada? Se, de fato, se puder ter certeza (nunca absoluta) de que não houve nenhuma
circunstância que pudesse ter alterado o processo, então creio que a resposta seria
afirmativa. Mas, para isto é preciso, sob pena de completa falta de rigor, perguntar: o que,
de fato, aconteceu? Entre a teoria e este fato interveio alguma circunstância capaz de alterar
significativamente o processo? Se interveio, então a teoria pode muito bem estar certa,
apesar de não ter sido confirmada por este fato.
4
Deste modo, o que se observa é que não basta confrontar uma teoria com os fatos. É
preciso analisar o conjunto do processo. Os fatos são parte de uma totalidade complexa e só
em relação a essa totalidade seu sentido poderá ser apreendido. Por outro lado, entre a
teoria original e o momento atual, a própria teoria pode ter sofrido alterações. De modo que
é preciso saber o que se está pondo em confronto. A teoria original ou alguma sua
interpretação subseqüente? Além disso, também é preciso examinar o processo
intermediário entre a teoria e o momento atual. Circunstâncias concretas podem ter levado a
um desdobramento contrário à teoria original. Neste caso, aquela teoria não seria falsa. Os
“fatos” apenas indicariam que estas novas circunstâncias não tornaram possível a sua
realização. Repetimos: os fatos só contribuem para negar a veracidade de uma teoria
quando tiverem se realizado de acordo com o previsto e quando, mesmo assim, os
resultados finais tiverem sido contrários a ela.
Em resumo, o que queremos dizer é o seguinte: uma análise séria, rigorosa e realista
implica a firme convicção de que teoria e prática não são momentos isolados, mas
articulados, de um processo social como uma totalidade. E se, como para Marx, este
processo social é um compósito de essência e fenômeno, então é preciso capturar o
processo social como uma totalidade em que estão implicadas estas duas categorias. Deste
modo, os fatos, em sua imediaticidade, constituem apenas o momento fenomênico do
processo. O desvelamento do seu sentido não pode ser feito apontando apenas para eles
mesmos, mas expondo a sua articulação com uma essência da qual são a manifestação.
Caberia, então, no caso em tela, retomar a concepção marxiana de socialismo,
analisar as modificações teóricas e práticas por ela sofridas nas mãos de seus seguidores,
verificar as condições em que se deram as tentativas de revolução socialistas, de modo a
apreender o sentido dos fatos que se sucederam e se eles estavam em consonância com a
teoria original e, se não estavam, explicar porque não estavam. Nos debates sobre o
socialismo, no entanto, nada disto é feito. Parte-se simplesmente da idéia de que o que foi
realizado em nome do socialismo era a efetivação da teoria socialista original de Marx, não
importando as suas modificações nem as circunstâncias concretas da sua realização,
concluindo-se por criar uma “categoria” absurda chamada “socialismo real”. É evidente que
esta forma de proceder só pode ser o resultado de má-fé, ignorância, ou, quando no caso de
5
Uma das conseqüências mais sérias da utilização, mesmo que seja como pressuposto,
desta “categoria” do “socialismo real” é uma outra categoria, que pretende ser o seu oposto,
isto é, a de “socialismo democrático”.
Sabemos que é uma tarefa muitíssimo ingrata tecer críticas à concepção de
“socialismo democrático”. Muito mais ainda a de pretender demonstrar a inconsistência
desta “categoria” e as suas problemáticas conseqüências sociais. Como, porém, não se trata
de um mero debate intelectual, mas de idéias que têm fortes repercussões na prática social,
é preciso, quando se está convicto e até para não ser acusado de falar apenas post festum,
navegar mesmo que contra a corrente.
Socialismo, hoje, é um conceito bastante fora de moda até entre autores que se
pretendem de esquerda. Mas, quando ele é utilizado, tem-se sempre o cuidado de enfatizar
que se trata de um socialismo democrático e não autoritário. O objetivo é tanto fazer um
mea culpa e, portanto, demarcar a diferença, a distância e a oposição em relação ao
chamado “socialismo real”, de caráter autocrático, como enfatizar a profunda adesão atual
aos valores democráticos. Digamos que há, até, uma certa concorrência entre os diversos
pensadores, liberais e de esquerda, para ver quem defende com mais empenho a
democracia. É claro que os pensadores de esquerda procuram demarcar-se também em
relação ao conceito liberal de democracia, donde a busca da elaboração de uma nova teoria
da democracia1.
É inegável que, após tantos e tão contundentes fatos denunciadores da brutalidade do
chamado “socialismo real”, esta firme adesão aos valores democráticos tem um fortíssimo
apelo positivo. Dificilmente se pode encontrar alguém que, diante de uma escolha entre
ditadura e democracia, não faça uma opção por esta última. O problema é que as
alternativas socialmente relevantes do ponto de vista de uma sociabilidade efetivamente
6
mais humana talvez não sejam estas. Talvez haja uma outra alternativa superior. Não
conviria examiná-la?
Em outros textos2 procurei demonstrar a radical diferença entre liberdade
democrática e liberdade socialista, enfatizando o pertencimento da primeira ao âmbito da
emancipação política e o da segunda ao âmbito da emancipação humana. O que significa
dizer que os termos que se opõem não são democracia e ditadura (ambas formas do
universo da sociabilidade do capital), mas liberdade democrática e liberdade socialista.
Nosso objetivo, aqui, é levantar alguns questionamentos a respeito desta “categoria”
do “socialismo democrático”, buscando compreender, a partir das suas origens, sua
natureza e suas conseqüências para a luta social.
Considerando o atual ambiente teórico-ideológico e político, gostaríamos de fazer
uma observação inicial. Nossas críticas ao “socialismo democrático” não significam, de
modo nenhum, uma defesa de algo que considero que nunca existiu, ou seja, do “socialismo
real”. Mas adiante explicarei porque considero absurda esta “categoria”. Nossas críticas, se
algo de pertinente contiverem, têm o intuito de impulsionar no sentido de pensar uma forma
superior de entificação da humanidade e não de tentar resgatar aquilo que se chamou de
“socialismo real”.
Vale observar, também, que a construção desta nova proposta é resultado de um
processo longo e complexo. Não é nossa intenção expor detalhadamente o seu
desdobramento. Pretendemos apenas apontar os elementos que nos parecem mais
relevantes para, com isso, expor o equívoco fundamental que preside à sua elaboração e
algumas das conseqüências que se seguem. Em resumo, nossa idéia é a seguinte: a
“categoria” do “socialismo democrático”, com tudo que ela implica, é resultado imediato de
um pressuposto falso. Tal pressuposto é o de que a revolução de outubro teria tido um
caráter essencialmente – isto é, relativamente às questões econômicas de base, – socialista.
Sua falha fundamental teria sido a não socialização do poder político, o que teria entravado
o aprofundamento da socialização da própria economia. Daí o “socialismo real”,
burocrático, ditatorial, antidemocrático. Tratar-se-ia, então, de recuperar o caráter
democrático do socialismo. É o que pretendiam a construção da “categoria” e da proposta
do “socialismo democrático”. Mas, e se a revolução de outubro não tivesse tido um caráter
7
socialista? Se, de fato, não tivesse havido a possibilidade de lançar os fundamentos de uma
forma radicalmente nova de sociabilidade? As conseqüências serão imensas.
Por outro lado, como veremos em seguida, a idéia de socialismo democrático é uma
contradição nos termos. Democracia é sinônimo de liberdade regida pelo capital.
Socialismo é sinônimo de liberdade regida pelo trabalho (emancipado). Impossível casar
essas duas formas.
3. Um pouco de história
Como se pode ver, havia um problema real que precisava ser examinado. Não era um
problema criado por adversários burgueses. Tratava-se do fato real de que uma sociedade
que se dizia socialista não correspondia de modo algum à idéia que se fazia de socialismo,
ou seja, de uma sociedade justa, livre e igualitária. O enfoque politicista que norteou a
resposta é que, a nosso ver, se constituiu num grande equívoco.
É interessante notar que já em 1844, em As Glosas críticas, Marx fazia uma clara
distinção entre razão política e razão social. Segundo ele, a razão política, expressão da
perspectiva burguesa, é aquela que pensa a totalidade social, incluindo a economia, do
ponto de vista da política, ou seja, tomando a dimensão política como a dimensão fundante
do ser social. Como se sabe, esta é uma das teses básicas da concepção burguesa: a de que a
sociedade é instaurada qua sociedade pela existência do Estado. O que equivale a dizer que
é impossível a existência da sociedade sem esta dimensão. A conseqüência deste modo de
pensar é necessariamente a subordinação da economia à política; a entronização da política
como princípio de inteligibilidade da totalidade social e do norteamento da ação sobre ele.
No caso dos marxistas, porém, era preciso afrouxar os laços entre economia e
política, já que, para Marx, a primeira era vista claramente como a dimensão fundante do
ser social. Daí toda a discussão acerca da necessidade de rever os conceitos de sociedade
civil, de Estado, de democracia, de cidadania, de direitos humanos e de reexaminar a
relação entre economia e política. Não estamos, com isso, querendo dizer que este reexame
não trouxe contribuições interessantes. Como já afirmamos antes, nosso objetivo é apenas
ressaltar o viés que o ponto de partida acima mencionado – fazer a crítica do ponto de vista
da política – impôs à abordagem de toda a problemática e o deslizamento que a partir daí
foi se dando para o campo da perspectiva burguesa.
Rejeitada, por incompreensão ou por decisão consciente, a relação ontológica entre
economia e política, o marxismo foi se diluindo e perdendo aquilo que é a sua pedra de
toque: o caráter radical da sua crítica. Deste modo, o socialismo já não é uma forma
radicalmente nova de sociabilidade, mas uma busca sem fim de meios para harmonizar
duas categorias cuja oposição seria insuperável, as categorias da liberdade e da igualdade.
É “a democracia sem fim”, um horizonte nunca efetivável, mas apenas uma espécie de
impulsionamento contínuo em direção a uma vaga sociedade mais justa.
13
como justificar a supressão das liberdades e direitos democráticos sob a alegação de que
isto seria secundário quando considerada a ampliação do atendimento muito mais
igualitário das necessidades materiais da população na sua totalidade e não apenas de um
pequeno número. Aquelas formas de sociabilidade não resistiam à comparação com as
formas capitalistas mais avançadas. E de novo se colocava um dilema falso: ou liberdade
ou igualdade; a ênfase em qualquer uma das duas implicando necessariamente a restrição à
outra.
Diante disto, a esquerda se viu compelida a admitir que o ideário marxiano e
marxista e a prática realizada em nome deles tinha concepções equivocadas acerca das
questões da democracia. Como, porém, a ênfase na liberdade sempre tinha sido um
apanágio do liberalismo, a esquerda viu-se obrigada a buscar uma fundamentação diversa
para esta problemática. Mas, de novo, em vez de começar indagando pela natureza da
liberdade, pela especificidade da liberdade sob a regência do capital e sob a regência do
trabalho emancipado, tomou o caminho da demonstração de que a liberdade democrático-
cidadã, quando eliminadas as barreiras impostas pelo capital, era a forma indefinidamente
aberta e mais elevada possível da liberdade humana. Daí a defesa da democracia como
valor universal. Daí a necessidade de afrouxar cada vez mais a relação entre economia e
política, entre capitalismo e democracia/cidadania, de modo a permitir afirmar que estas
categorias só poderiam ter sua realização plena para além do capitalismo.
Mas há um outro elemento importante, que é preciso enfatizar. Do ponto de vista
teórico, este desarmamento da esquerda tem tudo a ver com a recepção do pensamento
marxiano da qual falamos acima. O marxismo do qual estava armada a maioria da esquerda
era um amálgama impossível de positivismo e idealismo que de modo algum poderia
manter-se de pé sob os golpes da realidade objetiva. Aquele marxismo não tinha sequer
como resolver as questões de fundo mais importantes, tais como a relação entre ser natural
e ser social, entre subjetividade e objetividade, entre consciência e realidade objetiva, entre
essência e fenômeno, a fundamentação do caráter essencialmente histórico e social do
homem, a relação entre a economia e as outras dimensões do ser social, entre igualdade e
liberdade e inúmeras outras. Do ponto de vista teórico, portanto, foi este marxismo, o
chamado “marxismo do movimento operário” ou “marxismo da Segunda Internacional”
que impediu uma crítica radical do que estava acontecendo e, com sua concepção
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Se, em linhas gerais, faz sentido o que dissemos acima, então devemos retomar a
questão ab initio. O que significa que, para fazer a critica do passado e estabelecer, ainda
que em linhas gerais, um objetivo claro para o futuro, temos que começar discutindo a
questão da natureza do objetivo: a questão do socialismo.
Certamente esta questão já foi tratada uma infinidade de vezes. Qual seria a novidade
desta nova abordagem? Em síntese, creio que a novidade está no resgate da centralidade do
trabalho, em detrimento da centralidade da política, de modo a ver nessa categoria tanto o
fundamento ontológico do ser social e, portanto, o fundamento de qualquer forma de
sociabilidade, como o elemento norteador do processo revolucionário em direção ao
socialismo.
Considerando a limitação do espaço deste artigo, faremos apenas algumas alusões a
essa problemática, cujo desenvolvimento exigiria um trabalho mais alentado.
Entendemos que, para Marx, o trabalho é a categoria que funda o ser social. Segundo
ele, o ser social surge quando tem início essa atividade de transformação intencional da
natureza de modo a adequá-la ao atendimento das necessidades humanas. Ao transformar a
17
Para o bem ou para o mal, vale a pena enfatizar que nenhum dos grandes
revolucionários, que participaram ou foram contemporâneos das tentativas de revolução
socialistas, se detiveram a refletir sobre a questão da centralidade ontológica do trabalho no
processo revolucionário. Alguns, provavelmente (outros, certamente) admitiam a
centralidade ontológica do trabalho em relação ao ser social. Todos eles admitiam a
centralidade política da classe operária. Mas, quanto à centralidade ontológica do trabalho
no processo revolucionário, nenhum deles deu a essa questão a decisiva importância que ela
tem. Falou-se muito em socialização da economia, em auto-gestão operária, em controle
operário da produção. Nenhuma destas categorias fugiu a um conteúdo de caráter
economicista. Em nenhum momento se refletiu sobre a natureza própria do trabalho
associado, distinguindo-o, assim, daquelas outras categorias e da importância
absolutamente fundamental que ele tem para que se pudesse prosseguir no caminho para o
19
socialismo. E, por outro lado, nos problemas que sua ausência acarretaria. Nem Lenin, nem
Trotski, nem Rosa Luxemburgo, nem Gramsci, nem Lukács, para só citar alguns dos
grandes dirigentes e/ou teóricos revolucionários escreveram nada sobre isso. E Mészáros,
na sua alentada obra de mais de mil páginas, Para além do capital, faz apenas algumas
poucas, embora importantes, alusões a essa problemática.
Um exemplo prático e atual de como essa questão é mal compreendida é o caso da
situação da Venezuela. O processo venezuelano em curso tem despertado em muitos a
esperança de que significaria um impulso em direção ao socialismo. Nada mais ilusório. E
o mais interessante é que o próprio Mészáros tem sido um fervoroso apoiador desse
processo. Sem entrar numa análise acerca do significado que está ocorrendo naquele país e
aludindo apenas a essa questão específica, não parece haver dúvidas de que aquele
“controle consciente, livre, coletivo e universal dos produtores sobre o processo de
produção”, que caracteriza o trabalho associado não está, de modo nenhum, presente. O
que, sem embargo de outros aspectos positivos que possa haver, elimina a possibilidade de
estar em curso a construção de uma sociedade socialista. Para isso não basta a vontade, a
disposição e até, quem sabe, uma implícita clareza teórica. É preciso que aquele controle se
efetiva na prática cotidiana, pois só ele é capaz de arrancar as bases materiais do
capitalismo e, em seu lugar, lançar os fundamentos de uma nova forma de sociabilidade.
Concluindo
Uma crítica correta do passado é condição essencial, embora não suficiente, para
orientar a luta no sentido de uma efetiva construção do socialismo. Não bastam a vontade, a
disposição, a dedicação no sentido de lutar pelo socialismo. É preciso que todo esse esforço
esteja, de fato, dirigido naquele sentido. E essa direção só existe na medida em que se fizer
presente aquele “controle, livre, consciente, coletivo e universal dos trabalhadores sobre o
processo de produção”, que é a alma do socialismo. Este controle tem que se manifestar de
modo prático e efetivo na vida cotidiana.
Um elemento fundamental dessa crítica é o resgate da centralidade ontológica do
trabalho. Nos três significados acima referidos, mas, de modo especial em relação ao
20
Notas
1
Ver, nesse sentido, os livros de Boaventura de Souza Santos, Pela mão de Alice e Democratizar a
democracia.
2
Ver os livros, de minha autoria: Democracia ou liberdade? e Educação, cidadania e emancipação
humana.
3 Ver, de K. Marx, o artigo: Glosas críticas ao artigo O Rei da Prússia e a Reforma Social. De Um
prussiano.
21
Referências bibliográficas
Introdução
Por isso mesmo, antes de entrar in medias res é preciso deixar claro que a
crítica do passado é condição imprescindível para iluminar os caminhos do futuro; que
as críticas, venham de onde e de quem vierem, devem ser examinadas pela solidez dos
seus argumentos e não pelo comprometimento afetivo dos seus autores. Como já diziam
os latinos: amicus Plato, magis amica veritas. Ou, como dizia Marx: A ignorância
nunca ajudou ninguém.
Para ser mais abrangente, esta crítica deveria começar pelos fundamentos
metodológicos – num sentido ontológico – que constituem o seu ponto de partida e
travejamento. Tarefa impossível num breve texto. Por outro lado, já assinalamos, em
2
outros textos1, esses parâmetros metodológicos. Nossa intenção, nesse texto, é discutir
um aspecto, que nos parece de capital importância no contexto da problemática da
transição do capitalismo ao comunismo. Trata-se da relação entre as categorias de
trabalho associado e de revolução. Vale dizer, trata-se de examinar como se articulam
essas duas categorias no processo de transição de uma sociedade capitalista a uma
sociedade comunista. O que implica, necessariamente, a clarificação acerca da natureza
do trabalho associado, de sua distinção em relação a outras formas de trabalho, das
relações entre economia e política, bem assim como o exame do significado da
revolução proletária.
Entendemos por crítica tradicional aquela feita por marxistas com o objetivo de
buscar compreender os descaminhos dessa revolução e de todas as outras que seguiram,
de algum modo, esse modelo.
Esta crítica, não obstante a imensa diversidade dos seus aspectos, fundava-se
no pressuposto de que a revolução soviética tinha sido uma revolução de caráter
socialista. As divergências se situavam na identificação do quando e do como ela teria
perdido esse caráter. Assumia-se, mais ou menos explicitamente, que, mesmo não tendo
seguido o caminho clássico, indicado por Marx e Engels, ela teria sido uma revolução
de caráter socialista. Combinando ou não diversos aspectos, a perda desse caráter era
atribuída à burocratização, ao dirigismo do partido bolchevique, ao cerceamento da
participação das massas trabalhadoras, aos problemas econômicos, políticos e sociais
criados pela primeira guerra mundial, à intervenção militar e política das potências
imperialistas, à guerra civil interna, à repressão instaurada por Stalin. A própria
discussão acerca das questões econômicas não versava sobre a essência, vale dizer,
sobre se ela era realmente socialista ou não, mas sobre a forma, isto é, sobre quais as
melhores formas econômicas que poderiam implementar o seu caráter socialista.
1
Ver, de nossa autoria, cap. 1 do livro Educação, cidadania e emancipação humana; também, Marxismo
para o século XXI, encontrável no site: www.ivotonet.xpg.com.br
3
2
Valha observar que Lenin e Rosa morreram quando essa revolução ainda estava se iniciando. E que eles
tinham consciência, assim como a maioria da liderança bolchevique, de que o prosseguimento da
revolução pelo caminho do socialismo só seria possível com a deflagração desse movimento nos países
mais desenvolvidos. A ideia de socialismo em um só país é posterior à morte de Lenin e Rosa. Vale
observar também que Trotski e Gramsci se opuseram, de modo diferente, à ideia de socialismo e um só
país sem, contudo, negarem o caráter socialista da revolução de outubro.
5
apontam quais são essas condições. Por um lado, ela é demarcada pelo objeto a
apropriar (2009: 108). Por outro lado, pelo modo como tem de ser realizada (2009:
109). Pelo objeto, no sentido de que este – a totalidade das forças produtivas – tem,
hoje, um caráter universal. Por isso, Essa apropriação tem, portanto, e desde logo por
esse motivo, de ter um caráter universal, correspondente às forças produtivas e ao
intercâmbio. Pelo modo, no sentido de que Só pode ser realizada por meio de uma
união, a qual, pelo caráter do próprio proletariado, só pode ser, por sua vez, uma
união universal. E concluem eles (2009: 109): Com a apropriação das forças
produtivas totais pelos indivíduos associados cessa a propriedade privada.
Esta forma nova de apropriação das forças produtivas é o que Marx chama de
trabalho associado. Em vários momentos da sua obra, ele fala dessa forma de trabalho
que deverá ser o fundamento material da emancipação humana.
Para que fique bem clara a natureza do Trabalho Associado é preciso salientar
que ele tem quatro características identificadoras. Liberdade, consciência, coletividade
e universalidade. Trata-se de uma forma de intercâmbio com a natureza, portanto, de
produção da riqueza material, feita por indivíduos livres, isto é, senhores das suas
decisões. Embora sujeitos às leis da natureza, são eles que decidem, partindo das suas
necessidades, o que deve ser produzido, como deve ser produzido e como deve ser
repartido o fruto do trabalho. Isto significa, obviamente, que o produto do trabalho tem
como objetivo único atender as necessidades humanas e não acumular capital. Daí
porque trabalho associado e valor de uso formam uma unidade incindível.
poderes privados e restituí-las aos seus verdadeiros donos, isto é, aos produtores. Essa
restituição é tarefa do trabalho associado.
Ora, esta forma de trabalho implica uma mudança radical em todo o processo
de produção. A começar pelo objetivo, que deve ser o valor de uso, ou seja, o
atendimento das necessidades humanas e não o valor de troca. Por isso mesmo, trabalho
associado e produção de mercadorias são categorias que se excluem de modo absoluto,
pois mercadorias sempre implicam relações de exploração entre os homens. Também
implica a eliminação da divisão social do trabalho, na medida em que serão os próprios
produtores que dirigirão a totalidade do processo. Como diz Marx (1988: 6):
Mas, e nunca é demais acentuar, o trabalho associado implica, pela sua própria
lógica e não por um dever abstrato, a não cessão do controle da produção a qualquer
9
instância que escape ao domínio dos produtores. Qualquer forma organizativa terá que
estar, necessariamente, subordinada àqueles que produzem a riqueza e às finalidades e
formas por eles estabelecidas.
Como se pode facilmente verificar, esta forma de trabalho, com todas estas
características, só pode existir se houver capacidade de produzir riqueza em abundância,
isto é, suficiente para atender as necessidades de todos. Vale dizer, a abundância é
conditio sine qua non da possibilidade de existência do trabalho associado. Marx deixou
isso bem claro na Ideologia Alemã. Lá ele afirma (1984: 50):
Partindo do ato modelar da práxis social, que é o trabalho, Marx mostra que
subjetividade e objetividade são dois momentos, com o mesmo estatuto ontológico, que
compõem este ato. Da síntese desses dois momentos é que surge o ser social. Porém,
Marx não afirma apenas a interação entre esses dois momentos, mas também o fato de
que a objetividade é o momento determinante. O processo de objetivação, isto é, de
efetivação do que foi teleologicamente elaborado, implica que o sujeito tenha que
buscar na realidade objetiva os materiais necessários à obtenção do fim colimado. Isto
deixa clara a determinação ontológica da objetividade, pois que se nela não existirem as
possibilidades reais de nada adiantará o sujeito enfatizar a sua vontade. Sua intenção
sempre estará fadada ao fracasso. Por outro lado, a existência das possibilidades
demonstra a importância da intervenção da subjetividade. É ela que tem que fazer as
escolhas e impulsionar as ações necessárias para dar vida a determinadas possibilidades.
Mas, isto significa que se estas possibilidades não existirem, de nada adiantará o esforço
subjetivo.
Num dos seus primeiros escritos, Glosas crítica marginais ao artigo O Rei da
Prússia e a Reforma Social. De um prussiano, Marx (1987:520) afirma que a revolução
socialista tem que ser uma revolução política com alma social. Política porque significa
...a derrocada do poder existente e a dissolução das velhas relações...Social porque
...ali onde tem início a sua atividade organizativa, ali onde aparece o seu próprio
objetivo, a sua alma, então o socialismo se desembaraça do seu revestimento político.
Deste modo, para Marx, a revolução é uma articulação entre esses dois
momentos: político e social. Ambos imprescindíveis, mas ambos com tarefas diferentes.
Não apenas diferentes, mas em uma relação em que o momento político é uma atividade
com tarefas preliminares e sempre subordinadas, no sentido ontológico, ao momento
social. O momento político implica a destruição – não a simples apropriação – de todo o
aparato de Estado da burguesia. Como Marx afirmou (2009:399) ... a classe operária
não pode apossar-se simplesmente da maquinaria de Estado já pronta e fazê-la
funcionar para os seus próprios objetivos. Isto é reafirmado por Engels no prefácio a
esta mesma obra, de 1891, e ainda por Lenin em O Estado e a Revolução. A mesma
afirmação é retomada atualmente por Mészáros e reforçada ao acentuar que, sendo o
aparato estatal a força política que sustenta a exploração do capital sobre o trabalho, é
imprescindível a quebra deste instrumental para que o trabalho possa libertar-se.
Vale dizer, como todos esses autores afirmam, que as tarefas políticas são
essenciais à revolução, mas têm um caráter negativo, isto é, de destruição do poder
político burguês, de preparação do terreno no qual possa florescer a “alma social” do
socialismo, sua forma específica de trabalho, o trabalho associado.
Considerando que o poder político é força social que foi, pelo processo de
constituição da propriedade privada, separada dos seus autênticos possuidores e posta a
serviço de interesses particulares; considerando que este poder representa sempre um
interesse particular, mesmo quando exercido pelo proletariado, não há a menor
possibilidade de que ele assuma as tarefas positivas de construção do socialismo.
Essas tarefas positivas devem, necessariamente, ter como pólo regente o campo
do econômico, pois é nele que se encontra a “alma” do socialismo, o fundamento
material da nova ordem social.
13
Porém, é claro que, mesmo destruído o Estado burguês, não será da noite para
o dia que essa “alma” do socialismo poderá entrar em cena em toda a sua plenitude.
Haverá um período de transição – que precisamente foi denominado de socialismo – em
que as velhas formas produtivas ainda estarão fortemente presentes e no qual as novas
formas irão configurar-se como o fundamento da sociabilidade comunista.
substituída pelo partido e pelo Estado, não importam as boas intenções dos dirigentes.
Na ausência dessas condições acontecerá, fatalmente, o que foi previsto por Marx e
Engels, em A Ideologia Alemã: a luta pelo necessário voltará a se repor e, com isso,
todo o universo da exploração do homem pelo homem.
participação efetiva das massas na condução do processo social. Vale dizer, essas
decisões – e elas são, de modo geral, atribuídas ao período dominado por Stalin, mas
não só – de cerceamento da participação das massas, de intensificação da
burocratização, teriam sido as principais responsáveis por impedir a continuidade da
socialização da economia.
A modo de conclusão
Referências bibliográficas
Ivo Tonet
TRABALHO, EDUCAÇÃO E LUTA DE CLASSES (PREFÁCIO)
O presente texto é o prefácio ao livro Trabalho, educação e luta de classes, organizado por Susana Vasconcelos
Jimenez e Jackline Rabelo, integrantes do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário da Universidade
Federal do Ceará, publicado pela Editora Brasil Tropical em 2004.
qualquer forma de sociabilidade, inclusive, obviamente, da sociabilidade capitalista. E, por outro
lado, está fundamentada a possibilidade de que os próprios homens superem esta forma de
sociedade e construam outra.
Ivo Tonet