Sei sulla pagina 1di 232

1

Ariano Suassuna: influências, confluências e uma vida em


prol da cultura nacional

ANAIS ELETRÔNICOS
IV Semana de Letras da UFPE

Organização Editorial
Anderson Souza Santos
Andrea Knöpfle,
Arianne Carla de M. Silva,
Gláucia Renata Pereira do Nascimento,
Inara Ribeiro Gomes,
Jurandir Ferreira Dias Júnior,
Lucas Fernando P. A. dos Santos,
Siane Gois Cavalcanti Rodrigues

Revisão
Anderson Souza Santos e
Ficha Catalográfica Gláucia Renata Pereira do Nascimento
Catalogação na fonte:
Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408 Diagramação dos Anais
Diogo C. Cavalcanti
S471a Semana de Letras da UFPE (4. : 2016 28 mar. / 01 abr. : Recife/PE). Mateus Feitoza
Ariano Suassuna : influências, confluências e uma vida em prol da cultura nacio-
nal : anais eletrônicos [recurso eletrônico] / [coordenação do evento] : Gláucia Renata Sob a orientação da profª
P. do Nascimento. – Recife: Editora UFPE, 2016. Luciana Lopes Freire
Usina Design
Evento realizado no CAC (Centro de Artes e Comunicação da UFPE)
ISBN: 978-85-415-0828-5

1. Suassuna, Ariano, 1927-2014 – Crítica e interpretação – Congressos. 2. Litera-


tura – Congressos. 3. Literatura e sociedade – Congressos. 4. Cultura popular.
5. Linguística. 6. Língua brasileira de sinais. I. Nascimento, Gláucia Renata P. (Coord.).
II. Título.

801 CDD (23.ed.) UFPE (BC2016-083)

2
Realização: Comissão de Estudantes
Departamento de Letras da UFPE
Alessandro Augusto S. Vasconcelos (Letras/Libras)
Anderson Souza Santos (Letras/Português)
Organização Editorial Arianne Carla de M. Silva (Letras/Português)
Clarice Nascimento Fernandes (Letras/Bacharelado)
Anderson Souza Santos Claúdio Henrique T. A. da Silva (Letras/Espanhol)
Andrea Knöpfle, Edjane Rozenda Teodoso (Letras/Português)
Arianne Carla de M. Silva, Eduarda Vanessa do N. Franco (Letras/Português)
Gláucia Renata Pereira do Nascimento, Isabelle Santos Araújo (Letras/Inglês)
Inara Ribeiro Gomes, Izabella Larissa dos S. Santiago (Letras/Espanhol)
Jurandir Ferreira Dias Júnior, Jadson Gomes da Silva (Letras/Bacharelado)
Lucas Fernando P. A. dos Santos, Jéssica Pereira Oliveira (Letras/Libras)
Siane Gois Cavalcanti Rodrigues Lucas Fernando P. A. dos Santos (Letras/Português)
Marcos Henrique dos S. C. Bezerra (Letras/Português)
Pollianna da Silva Cavalcante (Letras/Espanhol)
Revisão
Richard Fernandes de Oliveira (Letras/Português)
Rodrigo Fagner A. dos Santos (Letras/Português)
Anderson Souza Santos e Gláucia Renata Pereira do Nascimento Rosania Viana do Nascimento (Letras/Espanhol)

Comissão Organizadora Comissão Científica


Coordenadora do Evento Português:
Profª. Drª. Ana Lima
Profª. Drª. Gláucia Renata P. do Nascimento (UFPE) Profª. Drª. Andrea Knöpfle
Profª. Drª. Siane Gois
Comissão de Docentes Profª. Drª. Stella Telles
Profª. Drª. Suzana Cortez
Prof. Dr. Darío de Jesús Goméz Sánchez (UFPE) Linguística:
Profª. Drª Dilma Luciano (UFPE) Profª. Drª. Karina Falcone
Profª. Drª Eva Carolina da Cunha (UFPE) Profª. Drª. Medianeira Souza
Profª. Drª. Inara Ribeiro Gomes (UFPE)
Profª. Drª. Joice Armani Galli (UFPE) Francês:
Prof. Dr. Juan Pablo Martin Rodrigues (UFPE) Profª. Drª. Joice Armani
Prof. Jurandir Ferreira Dias Júnior (UFPE) Profª. Otávia Pedrosa

3
Inglês:
Prof. Dr. Edmilson Borborema
Apoio
Profª. Drª. Eva Cunha
PROEXC (Pró-reitoria de Extensão e Cultura da UFPE)
Espanhol:
Profª. Drª. Cristina Corral Diretoria do CAC (Centro de Artes e Comunicação da UFPE)
Prof. Dr. Darío Gómez
Prof. Dr. Vicente Masip
Departamento de Letras
Libras:
Profª. Camila Michelyne PPGL (Programa de Pós-graduação em Letras da UFPE)
Prof. Dr. Jurandir Dias
Profª. Nídia Máximo EDUFPE (Editora Universitária da UFPE)
Estudos Literários:
Prof. Dr. Anco Márcio Tenório (Português) Usina Design do Centro Acadêmico do Agreste da UFPE
Prof. Cristiano Monteiro (Libras)
Prof. Dr. Eduardo França (Português) NACE (Núcleo de Acessibilidade)
Profª. Drª. Imara Bemfica (Espanhol)
Prof. Dr. Ricardo Postal (Português)
Profª. Drª. Rosiane Xypas (Francês) NUCEPI (Núcleo de Estudos em Compreensão e Produção (in-
Prof. Dr. Yuri Caribé (Inglês) ter)Linguísticas)

NEPEL (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre LIBRAS)

Curso de idiomas British and American

Café Santa Clara

4
Universidade Federal
de Pernambuco

Reitor
Anísio Brasileiro de Freitas Dourado

Vice-Reitoria
Florisbela de Arruda Camara e Siqueira Campos

Pró-Reitor para Acadêmicos (Proacad)


Paulo Savio Angeiras de Goes

Pró-Reitor para Assuntos de Pesquisa e Pós-Graduação (Propesq)


Ernani Rodrigues de Carvalho Neto

Pró-Reitora de Extensão e Cultura (Proexc)


Maria Christina de Medeiros Nunes

Pró-Reitora de Gestão Administrativa (Progest)


Niedja Paula S. Veras de Albuquerque

Pró-Reitora de Gestão de Pessoas e Qualidade de Vida (Progepe)


Sonia Maria Medeiros de Menezes

Pró-Reitor de Planejamento, Orçamento e Finanças (Proplan)


Thiago José Galvão das Neves

Pró-Reitora para Assuntos Estudantis (Proaes)


Ana Maria Santos Cabral

Pró-Reitor de Comunicação, Informação e Tecnologia da Informação (Procit)


Décio Fonseca

5
PREFÁCIO (Núcleo de Estudos em Compreensão e Produção (inter)Linguís-
ticas) e NEPEL (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre LIBRAS).
Gláucia Renata Pereira do Nascimento Também tivemos o apoio de empresas do setor privado, o curso
Coordenadora do Evento de idiomas British and American e Café Santa Clara.
Como objetivos alcançados, a IV SELET conseguiu: integrar os
Tendo como princípio a indissociabilidade entre ensino, pes- estudantes dos diferentes cursos de Letras e de outros cursos da
quisa e extensão, além da crença de que é o diálogo permanente universidade; dar acessibilidade aos estudantes surdos do curso
para o intercâmbio de experiências – numa perspectiva multi e in- de Letras-Libras; oportunizar momentos para reflexões e discus-
terdisciplinar – que pode favorecer de modo eficiente uma forma- sões que contribuíram para a formação crítica dos graduandos,
ção mais ampla para estudantes de graduação, emergiu a IV Sema- por meio da interação entre docentes e estudantes da UFPE e de
na de Letras (SELET) da UFPE. Esse evento acadêmico se efetivou outras instituições de ensino superior, pesquisadores e professo-
a partir da iniciativa de um grupo de estudantes dos cursos do res do ensino básico, que partilharam experiências advindas da
Departamento de Letras, que contaram o apoio das coordenações produção do conhecimento científico da grande área Linguística,
dos cursos, no ano de 2016. O evento, realizado de 28/03/2016 a Letras e Artes. Esses participantes discorreram, principalmen-
1º/04/2016, no CAC (Centro de Artes e Comunicação da UFPE), te, sobre novas perspectivas/abordagens nos campos do ensino,
se constituiu de 2 conferências, 11 mesas redondas, 12 sessões de pesquisa e extensão. O evento, ainda, possibilitou a graduandos,
comunicações, 2 oficinas, 6 minicursos e 2 atividades culturais. a pós-graduandos, a professores do ensino básico e do ensino su-
Para que a realização fosse possível, trabalharam na IV Semana de perior e a pesquisadores a apresentação e publicação trabalhos
Letras 8 docentes e 15 estudantes na comissão organizadora, 24 acadêmicos, resultantes de pesquisas realizadas individualmente,
docentes na comissão científica, 5 docentes e 3 estudantes na or- ou no âmbito de grupos e núcleos de pesquisa e de programas
ganização destes anais, 35 estudantes da graduação na monitoria, como o PIBIC, o PIBID, o PET, além de pesquisas que dão origem
3 servidores no apoio técnico, 1 bolsista de manutenção acadêmi- a trabalhos de conclusão de disciplinas e a trabalhos de conclusão
ca e 9 intérpretes de Libras voluntários. de cursos (TCC). A IV Semana de Letras conseguiu proporcionar
Para as palestras, além de 36 professores da UFPE, pudemos aos acadêmicos de Letras e de áreas afins da UFPE e de outras
contar, com a participação de 8 professores de outras instituições, instituições de ensino superior um espaço de reflexão e formação
a saber, 1 da UPE, 2 da UFRPE, 2 da UNICAP, 1 da USP e 1 do para além das salas de aula, contemplando questões sócio-cultu-
Instituto Cervantes. O evento recebeu 403 inscrições, sendo 397 rais mais amplas vistas sob a perspectiva de teorias que têm como
de pessoas ouvintes e 28 de pessoas surdas. A maioria (363) cons- a linguagem como objeto de estudo.
tituiu-se de estudantes de graduação. A IV SELET teve o apoio da Foram aprovados para apresentação em sessões de comuni-
PROEXC (Pró-reitoria de Extensão e Cultura da UFPE), da Dire- cação oral 60 trabalhos. Apenas 43 foram apresentados e, destes,
toria do CAC (Centro de Artes e Comunicação da UFPE), do De- estão publicados, nestes anais, 41 trabalhos, nos formatos de resu-
partamento de Letras, do PPGL (Programa de Pós-graduação em mos e trabalhos completos. Como esta é uma publicação do tipo
Letras da UFPE), da EDUFPE (Editora Universitária da UFPE), ANAIS, as comissões científica e organizadora da IV SELET não
da Usina Design do Centro Acadêmico do Agreste da UFPE, de se responsabilizam por questões de natureza autoral dos conteú-
núcleos da UFPE – NACE (Núcleo de Acessibilidade), NUCEPI dos dos trabalhos, nem por questões de revisão destes.

6
Aproveitamos a oportunidade para agradecer e parabenizar a
todos os que fizeram a IV SELET da UFPE e desejamos que os tra-
balhos aqui publicados ampliem os diálogos entabulados durante
o evento.

7
SUMÁRIO
EIXO I - ARIANO SUASSUNA

A LEITURA DO LITERÁRIO: UMA PROPOSTA DIDÁTICA PARA O TRABALHO COM ILUMINOGRA- ------------------------ 15
VURAS DE ARIANO SUASSUNA

A RELAÇÃO DO CRIADOR COM A CRIAÇÃO: AS VOZES REFRATADAS DA VIDA PARA ARTE NO ------------------------ 21
LIVRO “AUTO DA COMPADECIDA” DE ARIANO SUASSUNA.

AUTO DA COMPADECIDA E EL LAZARILLO DE TORMES: A INFLUÊNCIA DA OBRA ESPANHOLA ------------------------ 25


NA PEÇA DE ARIANO SUASSUNA

EIXO II - ESTUDOS LITERÁRIOS


A FICÇÃO DE AGUSTINA BESSA-LUIS: TRÊS GERAÇÕES DE PERSONAGENS FEMININAS EM A SIBI- ------------------------ 32
LA

ENTRE A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO: O MÁGICO E O MARAVILHOSO EM HERMILO BORBA ------------------------ 38


FILHO

ENTRE O REGIONALISMO E A REGIONALIDADE: UMA ANÁLISE DE FOGO MORTO, DE JOSÉ LINS ------------------------ 43
DO REGO E A MORATÓRIA, DE JORGE ANDRADE.

JOGOS AUTORAIS E SUJEITOS FICCIONAIS: O CONSELHEIRO AIRES E A ESCRITA MACHADIANA ------------------------ 49

MÁRIO DE ANDRADE E OSWALD DE ANDRADE: APROXIMAÇÕES E SEMELHANÇAS ENTRE SUAS ------------------------ 54


OBRAS

O HOMOEROTISMO NO CONTO ‘AQUELES DOIS’ DE CAIO FERNANDO ABREU ------------------------ 59

O ROMANCE NOS ENSINA A LER O NARRADOR: A CAÇA E UMA CANÇÃO TRAGADA EM O NATI- ------------------------ 66
MORTO, DE MUTARELLI

8
SUMÁRIO
PRECONCEITO RACIAL: O TRATAMENTO RACISTA EVIDENCIADO NA OBRA RECORDAÇÕES DO ------------------------ 72
ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA

REPRESENTAÇÕES DO JUDEU EM “SOB CÉUS ESTRANHOS”, DE ILSE LOSA, E EM “OS ESCORPIÕES”, ------------------------ 77
DE GASTÃO DE HOLANDA

UM MUNDO EM RUÍNAS EM “EL VIAJE DE LOS SIETE DEMONIOS”, DE MANUEL MUJICA LAÍNEZ ------------------------ 82

EIXO III - ANÁLISE LINGUÍSTICA E ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA


PORTUGUESA (PRESENCIAL E A DISTÂNCIA)

AÇÕES ANTI-BULLYING E AULA DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA EXPERIÊNCIA DO PIBID LE- ------------------------ 89
TRAS UFPE

ANÁLISE DOS EFEITOS DE SENTIDO CAUSADOS PELA INTERTEXTUALIDADE EM TIRINHAS E ------------------------ 94


CHARGES DO CARTUNISTA WILLIAM LEITE

ARGUMENTAÇÃO NO PROCESSO DE LEITURA: UMA ANÁLISE SOBRE A PRESENÇA DA ARGU- ---------------------- 100
MENTATIVIDADE NO PROCESSO DE LEITURA EM LÍNGUA PORTUGUESA POR SURDOS DO EN-
SINO FUNDAMENTAL

ANÁLISE DAS IMPLICITAÇÕES ENQUANTO RECURSOS DE CRIMINALIZAÇÃO DO MOVIMENTO ---------------------- 105


“OCUPE ESTELITA” PELOS JORNAIS EM PERNAMBUCO

ANÁLISE SINTÁTICA-SEMÂNTICA DAS ATIVIDADES DE LEITURA E ESCRITA COM GÊNEROS ---------------------- 109
TEXTUAIS DA ESFERA MIDIÁTICA EM LIVROS DIDÁTICOS DE LP

ASPECTOS DO PROCESSO DE BRAQUISSEMIA NO PORTUGUÊS BRASILEIRO FALADO EM REGI- ---------------------- 114


ÕES DE PERNAMBUCO

A VARIANTE NORDESTINA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA DO ENSINO ---------------------- 120
MÉDIO

9
SUMÁRIO
DIFERENTES ACEPÇÕES DE GRAMÁTICA E SUAS CONSEQUÊNCIASPARA O ENSINO DE LÍNGUA ---------------------- 124
PORTUGUESA

ENSINO DE GRAMÁTICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O MODELO DE ENSINO TRADICIONAL E O ---------------------- 127


SOCIOINTERACIONISTA

ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA EM NOVA PERSPECTIVA: OS EFEITOS DO ENEM ENQUANTO ---------------------- 132
PORTA DE ENTRADA PARA O ENSINO SUPERIOR

FORMAÇÃO DE VERBOS EM PORTUGUÊS DO BRSIL (PT-PB) EM JOGOS MOBA A PARTIR DE PALA- ---------------------- 138
VRAS DO INGLÊS

GÊNEROS TEXTUAIS NA ESCOLA: UMA EXPERIÊNCIA COM O ENSINO FUNDAMENTAL POR MEIO ---------------------- 144
DO “COLCHA DE GÊNEROS”

ORALIDADE E ARGUMENTAÇÃO: INVESTIGANDO O ENSINO DE GÊNEROS ORAIS NOS LIVROS ---------------------- 149
DIDÁTICOS

O TRATAMENTO DADO ÀS VARIAÇÕES LINGUÍSTICAS NO LIVRO DIDÁTICO DO ENSINO FUN- ---------------------- 155
DAMENTAL

O USO DE ADJETIVOS EM ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS DE REVISTAS ---------------------- 160

OS TEMAS CONTEXTUALIZADORES NO LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS: UMA ANÁLISE DO ---------------------- 165


LIVRO A.L.P (1994)

PROCESSOS DE EXPANSÃO LEXICAL: EMPRÉSTIMOS LINGUÍSTICOS E XENISMOS NO FACEBOOK ---------------------- 173

USO DE TERMOS HIPERÔNIMOS EM TEXTOS DISSERTATIVO-ARGUMENTATIVOS DE ESTUDAN- ---------------------- 173


TES DO ENSINO FUNDAMENTAL DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA)

10
SUMÁRIO
EIXO IV - ANÁLISE LINGUÍSTICA E ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS E
LITERATURAS ESTRANGEIRAS (PRESENCIAL E A DISTÂNCIA)

A IMPORTÂNCIA DO RECURSO AUDIOVISUAL PARA O ENSINO DA FONÉTICA NA APRENDIZA- ---------------------- 179


GEM DA LÍNGUA FRANCESA

ANÁLISE CONTRASTIVA ENTRE PORTUGUÊS E ESPANHOL DENTRO DOS MARCADORES DISCUR- ---------------------- 182
SIVOS

AS ESCOLAS PÚBLICAS DE PERNAMBUCO E A “LEI DO ESPANHOL” ---------------------- 187

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA AMÉRICA DO SUL E O PAPEL DO ---------------------- 192


PROFESSOR NO ENSINO DE ESPANHOL COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA (E/LE) PARA BRASILEIROS.

INTERSEÇÃO ENTRE DUAS LÍNGUAS: TRABALHO COM A TRADUÇÃO ---------------------- 197

EIXO V - ANÁLISE LINGUÍSTICA E ENSINO-APRENDIZAGEM DA LÍNGUA BRASI-


LEIRA DE SINAIS E LITERATURA SURDA

AS CATEGORIAS DE VERBOS E A RELAÇÃO COM SUJEITOS ANIMADOS E INANIMADOS NA LÍN- ---------------------- 201
GUA BRASILEIRA DE SINAIS – LIBRAS

DICIONÁRIOS E GRAMÁTICAS DE LIBRAS E O PROCESSO DE GRAMATIZAÇÃO ---------------------- 207

O TRADUTOR/INTÉRPRETE DE LIBRAS EDUCACIONAL E A FORMAÇÃO: CONSTRUINDO UMA ---------------------- 212


PONTE ENTRE O SURDO E O CONHECIMENTO

11
SUMÁRIO
EIXO VI - FORMAÇÃO HUMANÍSTICA PARA A DOCÊNCIA NA ÁREA DE LETRAS
E OS DESAFIOS EM TEMPOS DE INCLUSÃO E DIVERSIDADE

ANÁLISE DAS PERCEPÇÕES DE PROFESSORES DE LETRAS DE ESCOLAS RECIFENSES EM RELAÇÃO ---------------------- 219
AO TRABALHO DOCENTE SUBSIDIADO POR TRADUTORES E INTÉRPRETES DE LIBRAS NAS AU-
LAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

DIVERSIDADE DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA: APAGAMENTO DE IDENTIDADES, ABJE- ---------------------- 225


ÇÃO E NORMALIZAÇÃO

12
EIXO I - ARIANO SUASSUNA

13
RESUMO o caráter literário das Iluminogravuras ao mesmo tempo em que
possibilita o desenvolvimento de diversas competências no eixo
A obra de Ariano Suassuna vem sendo cada vez mais valo- leitura.
rizada e estudada, de forma que há uma produção bibliográfica
considerável sobre o escritor e suas produções, bem como são di- Palavras-chave: Ariano Suassuna; Iluminogravuras; proposta
versas as propostas pedagógicas para o trabalho com os textos de didática; leitura
Suassuna nas aulas de língua portuguesa. Contudo, Newton Jú-
nior (1999) aponta para certo silenciamento da crítica no que diz
respeito à poesia de Suassuna, o que reverbera no trabalho com
esse gênero literário em sala de aula. São mais comuns práticas de
ensino voltadas para os textos dramáticos de Ariano, de modo que
poemas inseridos em Iluminogravuras são pouco vistos no con-
texto escolar. Diante dessa lacuna, o presente artigo visa propor
uma sequência didática de leitura para o trabalho com as Ilumi-
nogravuras do escritor em aulas de língua portuguesa no 9º ano
do Ensino Fundamental. A ideia é tratar dos poemas tomando
por base: a perspectiva de poesia enquanto mimese (FORTUNY,
2006), enquanto nova compreensão do familiar (ELIOT, 1991), e
enquanto ato social (THOMSON, 1977); e também partindo do
pressuposto sócio-interacionista de gênero discursivo (GERAL-
DI, 2010; ROJO, 2005) a fim de compreender as especificidades do
gênero poema. No trabalho com as Iluminogravuras em sala de
aula, é possível não apenas possibilitar que o aluno conheça parte
importante de nosso repertório cultural e literário, mas também
promover o exercício de formas de pensamento e de linguagem
mais elaboradas, favorecer a fruição estética dos usos artísticos da
linguagem, estimular reflexões críticas e imaginativas acerca dos
textos e dos temas sobre os quais estes tratam. Além disso, pela
sua configuração que articula texto e imagem, as Iluminogravuras
nos permitem estudar a associação entre recursos verbais e não
verbais na busca pela significação do texto. Significação essa que
deve ser trabalhada também na sua relação com aspectos biográfi-
cos de Ariano, com o contexto histórico e cultural de produção de
sua obra, e com o estilo do escritor (COSTA LIMA, 1983). Dessa
forma é possível propor uma sequência didática que contempla

14
A LEITURA DO LITERÁRIO: UMA PROPOSTA DIDÁ- INTRODUÇÃO
TICA PARA O TRABALHO COM ILUMINOGRAVU-
RAS DE ARIANO SUASSUNA Apesar de seus textos mais conhecidos serem peças de teatro e
romances, em diversas entrevistas concedidas, Ariano Suassuna
Emanuele de Souza Pacheco¹ sempre se afirmou, acima de tudo, poeta. Toda a sua criação, diz
Ester Suassuna Simões² ele, tem como fonte e base a sua poesia. Poesia essa que segue
pouco publicada, pouco divulgada e, consequentemente, pouco
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação – CE lida.
– UFPE; bolsista do CNPq; E-mail: pachecoemanuele@gmail.com É verdade que, repletos de símbolos cujas referências se for-
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras – CAC mam dentro do próprio texto, além de inversões e uso de léxico
– UFPE; membro do grupo de pesquisa LENUFLE UFPE; E-mail: diferenciado, os poemas de Suassuna podem ser vistos como her-
ssimoes.ester@gmail.com méticos. Tornam-se de mais fácil acesso, porém, quando lidos em
conjunto, seja com outros poemas, ou com peças e romances do
Resumo - O presente artigo visa propor uma sequência didá- autor. Isto se dá pelo caráter sistêmico da produção do poeta, que
tica de leitura para o trabalho com as Iluminogravuras de Ariano criou – ou vinha criando em continuidade – um mesmo universo
artístico e simbólico no qual convivem peças de teatro, romances,
Suassuna em aulas de língua portuguesa no 9º ano do Ensino Fun-
poesia, pintura, escultura e tapeçaria.
damental. A ideia é tratar dos poemas tomando por base autores
Além do hermetismo já comentado, há, nessa poesia, uma di-
que discutiram leitura de imagens pictóricas e poéticas, a fim de
ferença em relação à veia cômica pela qual Suassuna ficou conhe-
compreender as especificidades de cada uma dessas duas e de dis-
cido pelo grande público. Peças como O Auto da Compadecida e
cutir o próprio papel do poema na escola. Além de possibilitar
Farsa da Boa Preguiça, bem como as inúmeras Aulas-Espetáculo
que o aluno conheça parte importante de nosso repertório cultu-
que apresentou em todas as regiões do país, garantiram essa as-
ral e literário, esse trabalho também pode promover o exercício de
sociação do escritor ao riso, ao dom de contar histórias; mas há,
formas de pensamento e de linguagem mais elaboradas, favorecer
na sua poesia, uma visão trágica do mundo forte e impossível de
a fruição estética dos usos artísticos da linguagem, estimular refle-
ignorar.
xões críticas e imaginativas acerca dos textos e dos temas sobre os
Talvez buscando ampliar as possibilidades de expressão artís-
quais estes tratam. Dessa forma, é possível propor uma sequência
tica e, ao mesmo tempo, criar “chaves” de acesso aos poemas ditos
didática que contempla o caráter literário das Iluminogravuras ao herméticos, Suassuna selecionou 20 sonetos seus e, ilustrando-os,
mesmo tempo em que possibilita o desenvolvimento de diversas criou dois álbuns de iluminogravuras, gênero que está profunda-
competências no eixo leitura. mente conectado com as propostas do Movimento Armorial tanto
por ter sido inspirado nos manuscritos iluminados da Idade Mé-
Palavras-chave: Ariano Suassuna; Iluminogravuras; proposta dia e no traçado característico das xilogravuras nordestinas como
didática; leitura por criar integração entre o texto literário (nesse caso, sonetos) e a
imagem pictórica. Os dois álbuns, Sonetos com Mote Alheio e So-
netos de Albano Cervonegro, foram publicados respectivamente
em 1980 e 1985.

15
Neste trabalho, investigamos as possibilidades de aborda- A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum prin-
gem em aulas de língua portuguesa com essa produção singular de cipal a ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro
Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a música de viola,
Suassuna. Com uma proposta didática para o trabalho com a ilu-
rabeca ou pífano que acompanha seus “cantares”, e com a Xilogravura
minogravura “A Acauhan – A Malhada da Onça”, visamos auxiliar que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes
professores a não apenas possibilitar que o aluno conheça parte e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados.”
importante de nosso repertório cultural e literário, mas também (SUASSUNA, 1974, p. 7).
promover o exercício de formas de pensamento e de linguagem
mais elaboradas, favorecer a fruição estética dos usos artísticos da De maneira geral, pode-se dizer que o Movimento Armorial
linguagem, estimular reflexões críticas e imaginativas acerca dos agregou vários artistas que tinham em comum o desejo de criar
textos e dos temas sobre os quais estes tratam. Entendemos, como uma arte erudita brasileira baseada nos elementos da cultura po-
Gerbara (2002, p. 33) que: pular nordestina, mais especificamente, como está claro no texto
a linguagem poética é tão única que se renova e se constitui a cada de Suassuna, do folheto de cordel. Sobre esta escolha, escreve Ide-
texto, com cada autor – uma universalização de particulares. Porém, lette dos Santos:
com isso não se deseja limitar a compreensão do objeto poético; há em O folheto da literatura de cordel fornece ao artista armorial temas
sua estrutura intersecções com o uso comum da língua que fazem com e esquemas narrativos; a cantoria lhe oferece gêneros poéticos pouco
que o conhecimento prévio do leitor seja recuperado, promovendo o conhecidos, sonoridades e ritmos novos que fazem os poetas esque-
movimento de encontro. Nesse aspecto, a leitura estética da poesia é cerem, através de uma aprendizagem nova, as leis e regras da poesia
possível para todas as idades. letrada. O pintor e o gravador encontraram no folheto a ilustração, a
xilogravura; o músico, sons e cantos novos tocados com instrumentos
Nosso intuito não é, portanto, propor uma sequência de atividades em que reinventados. (SANTOS, 2009, p.34)
o aluno desenvolva apenas a capacidade de localizar informações no texto. Li-
damos aqui com a peculiaridade estética do gênero poema e com as particula-
Ter o folheto de cordel como fonte inspiradora foi essencial
ridades das Iluminogravuras de Ariano Suassuna.
para o Armorial, que, além das bases da cultura popular, tinha
como outro princípio norteador importante a integração entre
REFERENCIAL TEÓRICO as artes. Ao criar as iluminogravuras, Suassuna segue esses dois
princípios fundamentais e consegue fazer uma primeira síntese de
1. As iluminogravuras e o Movimento Armorial seus universos plástico e poético. Toda a sua arte, diz ele, vem de
sua poesia. É portanto em segundo momento que ele cria as ilus-
Em 1970 foi lançado oficialmente o Movimento Armorial, ide- trações, que, no entanto, se fundem de maneira quase inseparável
alizado por Ariano Suassuna. Esse lançamento foi feito a partir de com cada um dos sonetos. Estava, de certa forma, realizado um
uma exposição e de um concerto musical não havendo, naquele dos sonhos do Armorial:
momento, nenhum texto explicativo ou manifesto. A divulgação O sonho de unir o texto literário e a imagem num só emblema, para que
a Literatura, a Tapeçaria, a Gravura, a Cerâmica e a Escultura falem, todas,
das ideias associadas ao movimento foi sendo feita por Suassuna através de imagens concretas, firmes e brilhantes, verdadeiras insígnias das coi-
em palestras e entrevistas em vários lugares do país, e somente sas. Insígnias de qualquer maneira desenhadas, gravadas e iluminadas – sobre
alguns anos depois do lançamento oficial é que o escritor então superfícies de pedra, de barro-queimado, de tecido, de couro, de áspero papel ou,
publica certos encaminhamentos e definições do Armorial. A de- então, modeladas pela forma e pela imagem da palavra.” (SUASSUNA, 1989)
finição geral do Movimento, publicada em 1974, assim explica: Originalmente, as iluminogravuras não existiam em forma de li-

16
vro tradicional; elas são feitas em papel cartão, medem aproxima- (PCNs) de 1997, 1998 e 1999 sugeriram que o principal objeto de
damente 44 cm x 66 cm e foram publicadas em dois álbuns, cada ensino da língua portuguesa seja o gênero textual, pois a ele estão
um com dez trabalhos. O primeiro álbum, de 1980, chama-se Dez ligadas práticas sociais reais.
Sonetos com Mote Alheio; o segundo, de 1985, chama-se Sonetos Os gêneros textuais surgem de contextos sociocomunicativos
de Albano Cervonegro. Cada iluminogravura contém um soneto variados com a função de contribuir com o processo de intera-
e suas ilustrações e os álbuns foram organizados em duas caixas ção social. O fato de se diferenciarem “em função da situação, da
de madeira, também ilustradas por Suassuna. posição social e das relações pessoais de reciprocidade entre os
Há algumas diferenças fundamentais entre os dois álbuns. No participantes da comunicação” (BAKHTIN, 2003, p. 283) implica
primeiro, o fundo das ilustrações é predominantemente branco e, numa grande quantidade de gêneros existentes. Quantidade esta
de maneira geral, as figuras da ilustração correspondem de ma- que pode ser aproveitada em sala de aula pelo professor, de modo
neira direta ao texto do soneto. No segundo álbum, a cor domina que os alunos sejam levados a compreender e dominar as várias
todo o espaço e há bastante uso de imagens vindas da arte pré-co- formas de interação e ação que a Língua nos oferece.
lonial brasileira, o que resulta em menor correspondência entre Em relação ao gênero poema, é preciso, como já dito, tratá-lo
texto e imagem. em sua especificidade, pois a linguagem usual é extrapolada por
meio de um forte apelo estético. O poema é sintético graças a sua
2. O gênero poema na aula de língua portuguesa linguagem extremamente densa:
consegue dizer o intuído, especificar numa linguagem singular aquilo
Enquanto educadoras na área de língua portuguesa, adotamos que a linguagem cotidiana não especifica. A poesia extravasa o signi-
ficado dos valores vinculados às palavras utilizadas no uso comum
a concepção proposta por Bakhtin (2006), segundo o qual a lín- da linguagem; quer conceber uma nova ordem de significação. (FOR-
gua “é um fenômeno social da interação verbal realizada através TUNY, 2006, p. 14)
do enunciado”. Concordamos que, para que haja uma verdadeira
compreensão da linguagem e da sua complexidade, é preciso que Nesse sentido, um poema é composto por uma linguagem di-
se leve em conta também as circunstâncias nas quais um enuncia- ferenciada, que, quando, compreendida e desvendada pelo aluno,
do é produzido, afinal oferece ao mesmo a oportunidade de, cada vez mais, conhecer as
A língua só tem existência no jogo que se joga na sociedade, na in- várias possibilidades de construção que uma língua apresenta.
terlocução. É no interior de seu funcionamento que se pode procurar Como bem disse Eliot (1991, p. 29) um poema comunica “uma
estabelecer as regras de tal jogo (...). No ensino de língua, nessa pers-
pectiva, é muito mais importante estudar as relações que se constituem nova compreensão do familiar, ou a expressão de algo que experi-
entre os sujeitos no momento em que falam do que simplesmente esta- mentamos e para o que não temos palavras — o que amplia nossa
belecer classificações. (GERALDI, 1997, p. 42) consciência ou apura nossa sensibilidade”. Desta maneira, ao de-
cifrar um texto poético e sua linguagem, o aluno decifra também
Desta forma, a língua deve ser entendida como um fenômeno a si mesmo, ficando mais consciente de si e do mundo que o cerca.
diretamente relacionado com a sociedade, estando presente, por Com a leitura de um único poema, é possível questionar valores
conseguinte, no nosso cotidiano. Assim, no contexto escolar é ne- antes encarados como verdade absoluta. A poesia, assim, é um ato
cessário que o professor pense a língua como um fenômeno social social:
e dialógico. Neste sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais

17
O artista conduz os outros homens a um mundo de fantasia, onde seus
anseios se libertam afirmando desse modo a recusa da consciência hu-
mana em aceitar o condicionamento do meio: mobiliza-se assim um
potencial de energias submersas que, por sua vez, regressam ao mun-
do real para transformar a fantasia em realidade. (THOMSON, 1977
apud PINHEIRO, 2007, p. 24)

A poesia pode ter um papel decisivo tanto no desenvolvimen-


to da competência linguística como na formação humana de um
indivíduo. É, portanto, um gênero que precisa ser trabalhado na
escola. No entanto,“a leitura de poemas e as atividades relativas a
este tipo de texto parecem ter sido esquecidas ou relegadas a se-
gundo plano se pensarmos no espaço da sala de aula” (MICHEL-
LETI, PERES E GEBARA, 2006, p. 21).
É preciso que o educador tenha consciência de que o poema
é um gênero diferenciado, de modo que, para uma abordagem
produtiva em sala, são necessários métodos e cuidados específi-
cos. Como bem disse Pinheiro (2006, p. 25), “tendo em vista que
a poesia é um dos gêneros literários mais distantes da sala de aula,
a tentativa de aproximá-la dos alunos deve ser feita de maneira A princípio, deverão ser formados grupos de 3 a 4 alunos e,
planejada”. A proposta didática a seguir pode auxiliar o professor para cada um deles, será entregue uma cópia da Iluminogravura
nesse planejamento. em questão. Antes de explicar a proposta de atividade, o professor
deve destacar que o texto se trata de um poema de Ariano Suassu-
na cuja significação é complementada pelos recursos não verbais
produzidos pelo próprio escritor. Após uma breve apresentação
PROPOSTA DIDÁTICA do que seria uma Iluminogravura, o professor pedirá que os gru-
pos leiam o texto e escrevam no caderno, de maneira objetiva,
de que se trata o poema. Feito isso, cada grupo deverá compar-
O poema “A acauhan – A malhada da onça”, exposto a seguir, tilhar com a turma o que compreendeu do texto. Ao mediar essa
foi escolhido como base para a elaboração de uma breve sequên- discussão coletiva, o professor deve primeiramente tratar com a
cia didática. A escolha se deu pela abordagem de uma temática turma sobre a temática da morte e do pai presentes no poema,
mais adequada à faixa etária de alunos do 9º ano do Ensino Fun- relacionando as diversas impressões dos alunos e auxiliando-os
damental. Além disso, julgamos que o vocabulário utilizado nesse na busca por uma significação mais geral do texto. Naturalmente,
texto também é mais acessível aos adolescentes, que costumam devem surgir da turma questionamentos sobre a vida de Ariano
ser mais resistentes a poemas vistos como herméticos. Dito isso, Suassuna, de modo que cabe ao docente esclarecer os aspectos
vamos ao poema e à proposta didática. autobiográficos do poema: em outubro de 1930, o pai de Ariano,

18
João Suassuna, foi assassinado no Rio de Janeiro com um tiro nas e das imagens usadas tanto na Iluminogravura como no vídeo, o
costas, e isso marcou profundamente o escritor. docente levará os alunos a perceberem a referência às formas da
Para se aprofundar um pouco na relação entre vida e obra xilogravura, aos ferros de marcar o gado e à caligrafia das escritu-
do artista, o professor deve exibir o vídeo “Suassuna, a peleja do ras sertanejas do século XVII. Além disso, por meio do vídeo, nar-
sonho com a injustiça”, escrito e dirigido por Filipe Gontijo, e nar- rado em forma de cordel por um músico do interior de Pernam-
rado, no formato de cordel, pelo músico Lirinha. Os alunos devem buco, os alunos poderão refletir sobre a valorização da cultura
ser questionados como o vídeo os auxilia a compreender melhor sertaneja e popular, de modo que, naturalmente, o professor trará
o poema lido, e, partir dos comentários feitos, o professor trata da para a sala informações sobre o Movimento Armorial, iniciativa
complexidade dos símbolos presentes no texto. Elementos como artística proposta por Ariano Suassuna em 1970 cujo objetivo era
o Sol e a onça, os quais estão presentes tanto na Iluminogravura criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do
como no vídeo, devem ser interpretados no contexto em que apa- Nordeste Brasileiro.
recem, de modo que os alunos os compreendam como metáforas Ainda há diversas possibilidades de abordagem do poema
constantes na obra poética de Suassuna. em questão – tratando, por exemplo, da sua relação com outros
Para uma compreensão mais sistemática das imagens poé- poemas de Ariano, numa construção de um grande e único sis-
ticas e pictóricas do texto, o professor pode, no quadro, fazer uma tema poético; ou do uso subversivo de letras maiúsculas no iní-
tabela com colunas destinadas para cada símbolo presente no po- cio de determinadas palavras; ou da escolha pelo formato de um
ema. Instigando uma discussão coletiva acerca de tais elementos soneto; ou da musicalidade típica da poesia; ou das característi-
no contexto do poema, o professor deve preencher as lacunas com cas formais do gênero poema. Entretanto a pequena extensão do
possíveis associações para cada símbolo. O sol, por exemplo, pode presente trabalho não nos permite desenvolver tais possibilidades,
ser compreendido como o elemento masculino, como represen- de forma que procuramos, aqui, apenas sugerir alguns caminhos
tante do pai, o guia que “se foi para o Sol, transfigurado”. A chuva para o trato das Iluminogravuras de Ariano Suassuna nas aulas de
vermelha que cai sobre os ombros do pai, a qual é vista apenas língua portuguesa. Deixamos para o professor a responsabilidade
na linguagem não verbal, pode ser encarada como anunciação do e felicidade de (re)construir cotidianamente novas maneiras não
evento terrível que, na leitura do soneto, aparece no primeiro ver- só ensinar, mas também, e principalmente, de aprender poesia.
so da terceira estrofe: “Mas mataram meu Pai”. Assim tal gênero literário poderá exercer seu importante papel na
Trabalhados os símbolos, o professor deve questionar se formação escolar e humana dos alunos.
as observações sobre o texto lidas anteriormente por cada grupo
substituem a leitura do poema. Os alunos devem refletir acerca da
linguagem diferenciada desse gênero, de maneira que percebam a
importância da forma não só para a interpretação do texto literá-
rio, mas também para a recepção do leitor, geralmente carregada
de sensações quando se trata de literatura. Além disso, o professor
deve chamar atenção para o trabalho estético peculiar de Ariano
Suassuna, escritor que dialoga bastante com as vivências e a cultu-
ra do sertão. Provocando a turma a refletir sobre a escolha da letra

19
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS RESUMO

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4 ed. São Paulo: Mar- Este trabalho científico se foca no estudo do filósofo russo Mi-
tins Fontes, 2003. chael Bakhtin concernente aos conceitos importantes para os estu-
BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. Marxismo e Filosofia da Lin- dos da linguagem, como por exemplo: o de dialogismo, o de autor
guagem. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2006. e autoria e o de polifonia. Esses pressupostos são essenciais para
ELIOT, T.S. A função social da poesia. In: ________. De poesia e nós pensarmos em como se dá o processamento de uma obra de
poetas. São Paulo: Brasiliense, 1991. arte. Segundo Bakhin, o movimento de criação de uma determina-
FORTUNY, J. Poesia e escola. In: ARANTES, V. A. (org.). Humor da obra é sempre um processo delicado e lento, pois o autor deve
e alegria na Educação. São Paulo: Summus, 2006. analisar, avaliar e recortar as imagens da vida para a obra. Não é
GERALDI, J. W.(org.). O texto na sala de aula. 2.ed. São Paulo: a toa que todos nós quando nos deparamos com uma obra nos
Ática, 1997. reconhecemos ou desconhecemos nela. Essa aproximação ou esse
distanciamento se dá pelo processo dialógico que compõe o cará-
GERBARA, Ana Elvira Luciano. A poesia na escola: leitura e aná-
ter artístico da obra, isto é, em obras de artes encontramos várias
lise de poesia para crianças. São Paulo: Cortez, 2002.
vozes sociais dialogando entre si e estruturando a trama artística.
MICHELETTI, Guaraciaba (coord.) Leitura e construção do real:
Desta forma, o trabalho aqui desenvolvendo tem por objetivo en-
o lugar da poesia e da ficção. São Paulo: Cortez, 2006.
tender como se dá a relação entre o autor-pessoa e o autor-criador
PINHEIRO, H. Poesia na sala de aula. 3 ed. Campina Grande: Ba- na peça do dramaturgo Ariano Suassuna, intitulada “O Auto da
gagem, 2007. Compadecida”. Busca-se também compreender como se dá o pro-
SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética cesso de deslocamento das vozes sociais para o plano axiológico da
popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Campinas: obra. Para análise, nós refratamos uma cena desta comédia. Para a
Editora da Unicamp, 2009. nossa fundamentação teórica nos ancoramos na teoria Bakhtinia-
SUASSUNA, Ariano. A pintura armorial. Edição de Arte, Recife, na, essencialmente, sem nos deixar de aliar com estudiosos como:
mar. 1989. Fiorin (2006), Faraco (2005), Bezerra (2005), Brait (2005). Perce-
_____. Dez Sonetos com mote alheio. Recife: edição manuscrita e be-se a importância deste trabalho, pois, além de estarmos lidando
iluminogravada pelo autor, 1980. com uma obra ícone e de grande relevância da literatura pernam-
_____. O Movimento Armorial. Recife: Editora Universitária da bucana, estamos trazendo questões linguísticas importantes para
UFPE, 1974. pesquisadores da área de Letras e da teoria literária. Portanto, com
_____. Sonetos de Albano Cervonegro. Recife: edição manuscrita este trabalho corrobora-se a interação entre literatura e linguística.
e iluminogravada pelo autor, 1985. A nossa análise de dados mostrou que uma obra de arte não enve-
lhece, pois ainda que escrita em 1955, o “Auto da Compadecida”
ainda é atual, pois Ariano Suassuna consegue trazer para o plano
da arte, vozes sociais da vida humana que perpassam até os dias
de hoje. Com isso, ressalta-se a maestria de um autor em manter a
harmonia entre o autor-pessoa e o autor-criador.

Palavras-chaves: Autoria; polifonia; valores; dialogismo


20
A RELAÇÃO DO CRIADOR COM A CRIAÇÃO: AS VOZES para o plano axiológico da obra. Para análise, nós refratamos uma
REFRATADAS DA VIDA PARA ARTE NO LIVRO “AUTO DA cena desta comédia. Para a nossa fundamentação teórica nos an-
COMPADECIDA” DE ARIANO SUASSUNA. coramos na teoria Bakhtiniana, essencialmente, sem nos deixar
de aliar com estudiosos como: Fiorin (2006), Faraco (2005), Be-
zerra (2005), Brait (2005). Percebe- se a importância deste tra-
Karla Soatman¹ Eduardo Henriques² balho, pois, além de estarmos lidando com uma obra ícone e de
Ericson Santos³ grande relevância da literatura pernambucana, estamos trazendo
questões linguísticas importantes para pesquisadores da área de
¹Estudante do Curso de Mestrado em Linguística do Programa Letras e da teoria literária. Portanto, com este trabalho corrobo-
de Pós-Graduação em Letras – CAC – UFPE; E-mail: kjgsufpe@ ra-se a interação entre literatura e linguística. A nossa análise de
gmail.com dados mostrou que uma obra de arte não envelhece, pois ainda
²Docente do Departamento de Letras – CAC – UFPE; E-mail: que escrita em 1955, o “Auto da Compadecida” ainda é atual, pois
eduardohenriquesdearaujo@hotmail.com Ariano Suassuna consegue trazer para o plano da arte, vozes so-
³Professor de Língua Portuguesa da Rede Pública Municipal de ciais da vida humana que perpassam até os dias de hoje. Com isso,
Vitória de Santo Antão; E-mail: ericson.melo.santos@gmail.com ressalta-se a maestria de um autor em manter a harmonia entre o
autor-pessoa e o autor- criador.

Resumo - Este trabalho científico se foca no estudo do filóso- Palavras-chaves: Autoria; polifonia; valores; dialogismo
fo russo Michael Bakhtin concernente aos conceitos importantes
para os estudos da linguagem, como por exemplo: o de dialogis- INTRODUÇÃO
mo, o de autor e autoria e o de polifonia. Esses pressupostos são
essenciais para nós pensarmos em como se dá o processamento Neste trabalho iremos discutir as diferentes vozes existentes na
de uma obra de arte. Segundo Bakhtin, o movimento de criação obra Auto da compadecida, do dramaturgo Ariano Suassuna. Es-
de uma determinada obra é sempre um processo delicado e lento, colhemos uma cena do livro para refratar falas das personagens,
pois o autor deve analisar, avaliar e recortar as imagens da vida com o intuito de mostrar como as vozes sociais se
para a obra. Não é a toa que todos nós quando nos deparamos colocam e como elas se entretecem e se adéquam ao projeto
com uma obra nos reconhecemos ou desconhecemos nela. Essa do autor para sua obra. Deste modo, conseguiremos entender na
aproximação ou esse distanciamento se dá pelo processo dialógi- prática como se dá a polifonia. Ademais, temos o objetivo de en-
co que compõe o caráter artístico da obra, isto é, em obras de artes tender como se dá a relação do autor-pessoa com o autor-criador
encontramos várias vozes sociais dialogando entre si e estruturan- e sua criatura (a obra de arte).
do a trama artística. Desta forma, o trabalho aqui desenvolvendo O teórico russo Mikhail Bakhtin, em suas teorias sobre dia-
tem por objetivo entender como se dá a relação entre o autor-pes- logismo e polifonia, explicou que todo indivíduo se constitui a
soa e o autor-criador na peça do dramaturgo Ariano Suassuna, partir dos olhos de outrem, e que estamos sempre influenciando
intitulada “O Auto da Compadecida”. Busca-se também compre- ao mesmo tempo em que somos influenciados pelas vozes sociais
ender como se dá o processo de deslocamento das vozes sociais existentes no nosso redor. Nos seus estudos sobre autor e autoria,

21
mostrou como se dá a produção de um ato artístico, como se ob- Feito isso, passamos a analisar as duas cenas que recortamos
tém a forma estético-formal da obra e que se fazem necessários aqui sob o viés da teoria de Bakhtin que diz que “O autor-criador
recortes de elementos de um certo plano axiológico para outro. é considerado como sendo parte constitutiva da obra, ou seja, faz
Devido à importância das pesquisas feitas por Bakhtin, vários parte dela. Já o autor-pessoa é a parte do ético e do social, o artis-
pesquisadores se propõem a examinar as questões por ele levanta- ta” (BAKHTIN, 2010). Em outras palavras, o autor-pessoa está no
das. Para o desenvolvimento deste trabalho foram necessárias as primeiro plano valorativo, a vida, observando os acontecimentos
seguintes leituras: Fiorin (2006), Faraco (2005), Bezerra (2005), que lhe interessam para recortá-los e adequá-los ao segundo pla-
Brait (2005) e Bakhtin (2010). Desse modo, então, é de se perceber no valorativo, a obra. Salientamos que, conforme Bakhtin, todo
a grande importância de entender como é feito esse deslocamento ato artístico consiste nesse processo de análise, de isolamento, de
e como se aplica na obra do escritor paraibano Ariano Suassuna. recortes e de adequação de um plano para outro. Com esse olhar,
passamos para discussão dos nossos resultados.
METODOLOGIA
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Este trabalho busca analisar como se dá a relação entre o autor-
-pessoa e autor- criador na obra Auto da Compadecida, de autoria Na obra analisada, há uma relação harmônica entre o autor-
de Ariano Suassuna. Além disso, buscou-se reconhecer quais as -pessoa e autor-criador, o que demonstra o efetivo teor de obra de
vozes sociais mais presentes no livro. Com esses objetivos nos- arte. O Auto da compadecida é uma peça teatral, tendo como base
so percurso metodológico se deu nas seguintes etapas: 1- Escolha os romances e histórias nordestinas. Está inserida no teatro mo-
pela Obra em questão, 2- Delimitar o corpus, 3- Análise de dados derno brasileiro, mas o autor fez com que sua obra se aproximasse
de acordo com as teorias adotadas. mais das comédias medievais e renascentistas da Europa. Foi es-
Primeiramente, escolhemos o Auto da Compadecida por reco- crita em 1955, porém só veio a ser publicada em 1957. Ariano Su-
nhecermos a grande influência do autor pernambucano na lite- assuna quis que sua peça se passasse em um cenário com formato
ratura brasileira. Além disso, percebemos que o livro de Ariano é de picadeiro de circo. Explica-se, então, a escolha do autor-criador
objeto de análise em diversas pesquisas com diferentes objetivos. como palhaço. Vejamos:
Ou seja, notamos que o estudo dos aspectos que envolvem o tex-
to do autor não se esgota, há muito o que se falar, seja qual a for PALHAÇO – Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo,
o olhar lançado sobre a obra. Ademais, Ariano é tido como um praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço,
para indicar que sabe, mais do que ninguém que sua alma é um velho
exemplo de bom escritor de obra de arte para muitos, o que nos catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar
leva a investigar como se dá relação do autor-pessoa com o autor- nesse tema, mas ousou faze-lo, baseado no espírito popular de sua
criador e a sua criatura. gente, porque acredita que esse povo sofre e tem direito a certas intimi-
A fim de delimitar o corpus, pois analisar a obra por completo dades. (SUASSUNA,2005, p.16)
ultrapassaria os limites de nossa pesquisa, escolhemos um cena
para expor aqui. Ela foi escolhida por nós por dois motivos: 1- Pode-se, a partir deste recorte, compreender a função do au-
por ser a cena menos abordada nos trabalhos acadêmicos, 2- por tor-criador, pois percebe-se que o palhaço (autor-criador) obtém
se tratar de uma cena que envolve quase todos os personagens da o poder nas “mãos”. “É esse posicionamento valorativo que dá ao
obra. autor-criador a força de constituir o todo: é a partir dela que se
22
criará o herói e seu mundo e se dará o acabamento estético” (FA- Com essa leitura, nota-se que nele, estando o padre sob o pedi-
RACO, 2005, p.38). do de benzer um cachorro, fato que não é admitido pelas normas
Desse modo, analisaremos as vozes sociais existentes nas ce- da igreja, dão-se duas respostas para o pedido. De início ele nega,
nas, visto que os personagens Suassunianos não representam uma justificando que isto seria maluquice e que não benzeria de jeito
imagem individualizada, mas toda uma classe social. É interes- nenhum. Com isso, já se consegue perceber o primeiro posicio-
sante observar que a maioria das personagens não possui nomes namento valorativo: sacerdotes que obedecem rigorosamente às
próprios são chamados de: o padeiro, o bispo, o sacristão e etc., regras da igreja. Entretanto, quando é dito que o dono do animal
formando assim certos simulacros. E concordando com (BEZER- é o major Antônio Moraes (personagem muito rica da peça) , o
RA, 2005, p.193): padre que antes achou uma maluquice, agora não ver nada demais
em benzer o cachorro e ainda o trata como criatura de Deus. As-
O romance polifônico só pôde realizar-se na era capitalista, [...], onde sim, percebemos que uma nova voz é implantada: o domínio do
uma diversidade de universos e grupos sociais nitidamente individu-
alizados e conflituosos havia rompido o equilíbrio ideológico, [...], in- capitalismo. Isto explica a citação feita anteriormente, pois nota-
dicando que a essência conflituosa da vida social em formação não mos ideologias diferentes se entrelaçando e formando uma nova
cabia nos limites da consciência monológica. (grifo nosso) ideologia, a obra.

Vejamos o Exemplo 1: Exemplo 2:

23
O exemplo 2, só vem para corroborar as vozes axiológicas exis-
tentes no exemplo 1, pois a mulher do padeiro (que assume a ria. Notou-se que há uma diversidade de planos axiológicos que
voz de uma mulher que defende um animal como se fosse um vão se montando ao longo da peça, dando um contexto especifico
filho) pede ao padre que enterre seu cachorro, porém, por não ser para o objetivo do autor. Com certeza, pode-se dizer que Ariano
de uma classe social nobre, a solicitação é negada e a soberania conseguiu mostrar no Auto da Compadecida sua singularidade,
da igreja passa a ser levada em conta, quando o padre pensa nas porém fez de sua peça, uma peça heterogenia (peça polifônica),
consequências de um ato errado, o enterro de cachorro. Toda- e é essa heterogeneidade que Mikhail Bakhtin preza em seus pre-
via, no momento em que o herói astucioso (João Grilo) fala do ceitos.
“testamento”, o sacristão intervém, convence o padre e o enterro Tanto que, cabe ressaltar que Suassuna escreveu sua obra em
acontece, visto que, em troca tanto o padre como o sacristão iriam 1955, porém ao ser lida em tempos atuais não transparece ser an-
receber uma recompensa em dinheiro. É cabível dizer que o sa- tiga, pois trata de assuntos que nos perpassam até os dias de hoje.
cristão e João Grilo marcam a posição daquela classe social menos Pois, o capitalismo que claramente foi visto nas cenas em que nos
favorecida, e que faz tudo para conseguir algum dinheiro, pois debruçamos ainda se faz presente em nossas vidas.
João Grilo trama tudo com a intenção de ganhar algo em troca Por fim, é importante dizer que não é necessário somente um
e o sacristão porque não pensou outra coisa senão enterrar o ca- engajamento de vozes sociais, como também do autor-criador
chorro para ter o dinheiro deixado no testamento. Concluindo, é com o autor-pessoa, porque foi através de uma perfeita união en-
nessa dinamicidade de realidades se entrelaçando que (FARACO, tre o dois que o escritor com sua grande maestria, tornou o Auto
2005, p.38) afirma: ‘”No ato artístico especificamente, a realida- da Compadecida uma obra de inquestionável importância para o
de vivida (já em si atravessada por diferentes valorações sociais nosso teatro moderno brasileiro.
porque a vida se dá num complexo caldo axiológico) é transposta
para o outro plano axiológico (o plano da obra)”. REFERÊNCIAS
E é por isso que conseguimos ver posicionamentos valorativos
como: indivíduos que dominam outros por sua situação financei- BEZERRA. Paulo. Polifonia. In BRAIT, Beth (org). Bakhtin
ra, pela sua profissão e por se status na sociedade, também foi Conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
possível perceber vozes que retratam pessoas que se deixam in- FARACO, Carlos Alberto. Autor e Autoria. In BRAIT, Beth
fluenciar por dinheiro, pessoas que se apegam mais ao sentimento (org). Bakhtin Conceitos- chave. São Paulo: Contexto, 2005.
do que ao dinheiro e etc. Diante de todas essas vozes refratadas, FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 1ª
constata-se que Ariano Suassuna mesmo incorporando o seu pró- ed. São Paulo: Ática, 2006.
prio mundo nordestino na obra, o que sobressai são as línguas dos RODRIGUES, Siane Gois Cavalcanti e IAPECHINO, Maria
outros (social), pois cada indivíduo se forma a partir de outros Noeli Kiehl. Instâncias enunciativas em “O auto da compadecida”:
olhos. o julgamento de João Grilo. Anais do GELNE. João Pessoa, 2006.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 35ª ed. Rio de Ja-
CONSIDERÇÕES FINAIS neiro: Agir, 2005.

Ao término deste artigo concebeu-se a relação entre o artístico


e o verídico, evidenciando assim, a formação de uma obra literá-
24
RESUMO ponto de reparo. E como foi dito anteriormente, a peça brasileira
em diversos momentos dialoga com o romance espanhol, mesmo
A literatura brasileira sofreu influencias estrangeiras em vários sendo de períodos distintos.
períodos de sua história. Volobuef (1999) afirma que o fato de Para essa análise, serão utilizadas as colaborações, além
o escritor aproveitar elementos de outrem não significa que sua dos autores citados a cima, de Silva (2010), Nascimento Neto
obra não seja original, pois o modo como aproveita os elementos (2014) e Cardoso (2010).
pode ser extremamente pessoal e típico de sua própria poética. Palavras-chave: Auto da Compadecida; El Lazarillo de Tormes;
Esse é o caso de Ariano Suassuna, idealizador do Movimento Ar- Movimento Armorial; Literatura Comparada
morial, grupo criado em outubro de 1970 e tinha o objetivo de
exaltar a cultura nordestina. Na obra do autor paraibano, Auto da
Compadecida, peça escrita a partir de cordéis, é possível encon-
trar influência da obra El Lazarillo de Tormes, romance de um
autor anônimo espanhol. Essa influência fica evidente em alguns
momentos da obra brasileira, pois, encontra-se o riso, a religio-
sidade, as moralidades, elementos presentes na obra espanhola. AUTO DA COMPADECIDA E EL LAZARILLO DE
Segundo Monteiro (2014), a obra está impregnada na tradição TORMES: A INFLUÊNCIA DA OBRA ESPANHOLA
literária picaresca espanhola, uma vez que seu personagem prin- NA PEÇA DE ARIANO SUASSUNA
cipal, João Grilo, encarna perfeitamente o pícaro literário e social
e, assim como Lázaro, personagem principal da obra Lazarillo de
Tormes, João Grilo tenta escapar da miséria por meio da astúcia, Pollianna da Silva Cavalcante1;
realizando ardilosas trapaças em seu favor, com o intuito de as- Julio Ferreira de Souza Neto2;
cender-se socialmente. Dryelle Chaves Bezerra3;
Segundo Bakhtin (1988 apud FIORIN, 2006) a orientação dia- Anne Elaine Santos de Albuquerque4;
lógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Tra- Profª. Drª. Imara Bemfica Mineiro5
ta-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos
os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se 1 Estudante do curso de Letras Espanhol da UFPE; E-mail:
encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de partici- pollianna.cavalcante1@gmail.com
par, com ele, de uma interação viva e tensa. Partindo desse prin- 2 Estudante do curso de Letras Português da UFPE; E-mail:
cípio, o presente trabalho tem por finalidade analisar através das juliovaroni@yahoo.com.br
contribuições da literatura comparada as obras Auto da Compa- 3 Estudante do curso de Letras Espanhol da UFPE; E-mail:
decida e El Lazarillo de Tormes, com o intuito de apresentar o que dryelle.bezerra@hotmail.com
essas obras têm em comum, uma vez que Mello e Souza (1988) 4 Estudante do curso de Letras Espanhol da UFPE; E-mail:
declara que a nossa produção foi sempre tão vinculada aos exem- aa.annealbuquerque@gmail.com
plos externos, que insensivelmente os estudiosos efetuavam as 5 Docente do Depto de Espanhol do CAC – UFPE; E-mail:
suas análises ou elaboravam os seus juízos tomando a esses como imarabmineiro@gmail.com

25
Resumo - A literatura brasileira sofreu influencias estrangeiras obras. Influência não significa plágio, ou incapacidade de ser ori-
em vários períodos de sua história. Volobuef (1999) afirma que ginal. Volobuef (1999), por exemplo, diz que a literatura brasileira
o fato de o escritor aproveitar elementos de outrem não significa sofreu influencias estrangeiras em vários períodos de sua história.
que sua obra não seja original, pois o modo como aproveita os Tais influências, no entanto, argumenta a teórica, não quer dizer
elementos pode ser extremamente pessoal e típico de sua própria que autor brasileiro é um copiador sem identidade própria. O fato
poética. Esse é o caso de Ariano Suassuna em sua obra Auto da do escritor aproveitar elementos de outrem não significa que sua
Compadecida, ícone do Movimento Armorial, e que tem uma in- obra não seja original, pois o modo como aproveita os elementos
fluência da obra Lazarillo de Tormes, de autor anônimo espanhol. pode ser extremamente pessoal e típico de sua própria poética. E
Para Bakhtin (2003), todo discurso tem necessariamente uma re- esse é o caso de Ariano Suassuna.
lação com outro discurso, sendo essa relação direta ou indireta. Idealizador e criador do Movimento Armorial, o autor parai-
Partindo desses princípios, o presente trabalho tem por finali- bano escreve o Auto da Compadecida (1955). É nessa obra que
dade analisar através das contribuições da literatura comparada pretendemos observar a possível relação intertextual El Lazarillo
as obras Auto da Compadecida e El Lazarillo de Tormes, com o de Tormes (1554), romance de um autor anônimo espanhol. Essa
intuito de apresentar o que essas obras têm em comum, uma vez influência fica evidente em alguns momentos da obra brasileira,
que, Mello e Souza (1988) afirma que a produção literária brasi- pois, encontra-se – de maneira muito semelhante à obra espanho-
leira sempre foi ligada a exemplos exteriores. Como isso a peça de la – o riso, a religiosidade, as moralidades.
Ariano Suassuna em diversos momentos dialoga com o romance O romance picaresco é um gênero literário que engloba um
espanhol, mesmo sendo de períodos distintos. grupo de obras espanholas entre os séculos XVI e XVII. Sua base
é o personagem pícaro, que representa uma pessoa de baixa con-
Palavras-chave: Auto da Compadecida; Lazarillo de Tormes; dição social onde se utiliza de meios possíveis, muitas vezes con-
Literatura comparada. trários ao modelo moralmente aceito pela sociedade, fazendo uso
de atitudes ilícitas como o roubo, a trapaça e a malandragem, tudo
em proveito próprio. Walty (1979, p. 19), acerca do personagem
INTRODUÇÃO pícaro, afirma que,

Toda produção textual é formada a partir de outra produção. Tal personagem caracteriza-se por ser homem sem ofício determinado
que vive de forma irregular e vagabunda, com a preocupação única de
Tal relação pode ser de forma direta ou indireta, com ou sem a in- sobreviver ao quotidiano miserável. É considerado anti-herói, princi-
tenção do autor em realizá-la. Julia Kristeva, linguista bakhtiniana palmente porque se deixa levar pelos impulsos primários sem perse-
e formadora do termo intertextualidade, diz que “todo texto se guir um ideal ou buscar satisfações espirituais.
constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e trans-
formação de um outro texto” (KRISTEVA, 2005, p. 68). Ou seja, Na picaresca, o conceito de herói é invertido, pois o modelo
nenhuma produção textual está isolada em si mesma. Pelo con- de herói classicista conhecido é o de uma pessoa com uma moral
trário, tem sempre uma relação obrigatória com outra produção. irrepreensível. O grande homem destacado principalmente nas
Todavia, mesmo sabendo que a ligação entre texto é inevitável, sa- obras de cavalarias, são homens que possuem uma nobreza e espi-
be-se também que é possível ter originalidade na criação de certas ritualidade incontestável e sempre possuem uma meta a cumprir.

26
Esse personagem não é encontrado no romance picaresco, mas te vindos das percepções dos graduandos, em colaboração com a
sim o chamado de anti-herói/ pícaro. Esse personagem, é total- orientadora.
mente contrário ao herói não só em suas atitudes, mas também
em seu aspecto físico. Esse tipo de personagem assemelha-se ao ANÁLISES E RESULTADOS
Lázaro, da obra espanhola analisada que é uma grande represen-
tante da picaresca, e ao João Grilo da obra brasileira. Segundo Ariano Suassuna, em entrevista ao Cadernos de Literatura Bra-
Monteiro (2014, p. 2), sileira, diz que possuía uma grande admiração pelo romance El
a obra está impregnada na tradição literária picaresca espanhola, uma Lazarillo de Tormes. E tal admiração é possível ser notada em sua
vez que seu personagem principal, João Grilo, encarna perfeitamente peça Auto da Compadecida. As obras, apesar de terem sido escri-
o pícaro literário e social e, assim como Lázaro, personagem principal
tas em períodos distintos e serem de gêneros diferentes, em vários
da obra Lazarillo de Tormes, João Grilo tenta escapar da miséria por
meio da astúcia, realizando ardilosas trapaças em seu favor, com o momentos se encontram.
intuito de ascender-se socialmente. Lázaro, o anti-herói da obra espanhola, teve uma infância di-
fícil. Assim como, João Grilo, o pícaro da peça do escritor parai-
METODOLOGIA bano.
Pues sepa V.M. ante todas cosas que a mí llaman Lázaro de Tormes,
Trata-se de uma análise comparativa entre as obras El hijo de Tomé González y de Antona Pérez, naturales de Tejares, aldea
de Salamanca. […]
Lazarillo de Tormes (1554), de autor espanhol desconhecido, e Mi viuda madre, como sin marido y sin abrigo se viese, determinó
Auto da Compadecida), de Ariano Suassuna. Nosso intento é o arrimarse a los buenos por ser uno dellos, y vínose a vivir a la ciudad,
de observar, na peça do autor paraibano, escrita 401 anos depois y alquiló una casilla, y metióse a guisar de comer a ciertos estudian-
do romance espanhol, a semelhança com aspectos da obra espa- tes, y lavaba la ropa a ciertos mozos de caballos del Comendador de
nhola. Partimos do pressuposto de que tal similaridade não seja la Magdalena, de manera que fue frecuentando las caballerizas (EL
LAZARILLO DE TORMES, 1554, p.4).
um processo simplesmente imitatório utilizado por Ariano, e sim
um processo intertextual, dada à influência da literatura espanho- JOÃO GRILO: Minha Senhoria não tem nome nenhum, porque não
la em Suassuna. Para tal análise, buscou-se uma fundamentação existe. Pobre tem lá senhoria, só tem desgraça. […]
teórica sólida, e estudo dos textos literários já ditos de maneira A COMPADECIDA: João foi um pobre como nós, meu filho. Teve
não taxativa, mas com bastante comprometimento. de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como a
nossa. Não o condene, deixe João ir para o purgatório. (SUASSUNA,
Marcuschi (2008) diz que os níveis de compreensão de um 2005, pp. 101 e 156)
texto podem ir além da intenção do autor. Para o linguista, a inter-
pretação textual se dá na relação múltipla que se estabelece na trí- Como se pode notar nos trechos acima, o personagem João
plice: autor, texto e leitor. Assim, olhando para o texto, cada leitor Grilo passa por situações semelhantes vivida por Lázaro. Vale res-
pode ter sua própria compreensão, na qual pode ser igual ou não saltar que os dois possuem um contato com pessoas religiosas.
a do escritor. O leitor pode ainda inferir e perceber certas relações Todos os amos do anti-herói espanhol, o cego, o clérigo, o escu-
intertextuais que o próprio autor não percebeu ao escrever sua deiro, o frade, o buldero, o capelão e o arcipreste de San Salvador
obra. Com isso, as análises e os resultados obtidos são coerentes são religiosos. Todos são, aparentemente, extremamente devotos.
(iguais ou não com as ideias de Ariano Suassuna) e exclusivamen- Sobre a religiosidade de seus amos, o cego e o escudeiro, Lázaro

27
descreve: Y en toda la casa no había ninguna cosa de comer, como suele estar en
otras: algún tocino colgado al humero, algún queso puesto en alguna
En su oficio era un águila; ciento y tantas oraciones sabía de coro: un tabla o en el armario, algún canastillo con algunos pedazos de pan
tono bajo, reposado y muy sonable que hacía resonar la iglesia donde que de la mesa sobran; que me parece a mí que aunque dello no me
rezaba, un rostro humilde y devoto que con muy buen continente po- aprovechara, con la vista dello me consolara. Solamente había una
nía cuando rezaba, sin hacer gestos ni visajes con boca ni ojos, como horca de cebollas, y tras la llave en una cámara en lo alto de la casa.
otros suelen hacer[…]. Entonces se entró en la iglesia mayor, y yo Destas tenía yo de ración una para cada cuatro días; y cuando le pe-
tras él, y muy devotamente le vi oír misa y los otros oficios divinos, has- día la llave para ir por ella, si alguno estaba presente, echaba mano al
ta que todo fue acabado y la gente ida. Entonces salimos de la iglesia falsopecto y con gran continencia la desataba y me la daba diciendo:
(EL LAZARILLO DE TORMES, 1554, pp. 6 e 21) “Toma, y vuélvela luego, y no hagáis sino golosinar”, como si debajo
della estuvieran todas las conservas de Valencia, con no haber en la
Suassuna, por sua vez, cerca também seu personagem Grilo dicha cámara, como dije, maldita la otra cosa que las cebollas colgadas
com religiosos. Na peça, tem-se o bispo, o frade, o padre, o sacris- de un clavo, las cuales él tenía tan bien por cuenta, que si por malos
tão, o padeiro e sua mulher, e até mesmo o antagonista Severino de mis pecados me desmandara a más de mi tasa, me costara caro.
Finalmente, yo me finaba de hambre. Pues, ya que conmigo tenía poca
de Aracaju.
caridad, consigo usaba más. Cinco blancas de carne era su ordinario
para comer y cenar (EL LAZARILLO DE TORMES, 1554, p. 13).
SEVERINO: Nossa Senhora! Só tendo sido abençoada por Meu Padri-
nho Padre Cícero. Você não está sentindo nada? [...] Ah meu Deus,
só podia ser Meu Padrinho Padre Cícero mesmo. João me dê essa gai-
tinha! [...] De conhecer Meu Padrinho? Nunca tive essa sorte. No Auto da Compadecida, por sua vez, a crítica fica relativa-
Fui uma vez ao Juazeiro só para conhecê- lo, mas pensaram que eu mente mais evidente, principalmente quando aparece a perso-
ia atacar a cidade e fui recebido a bala. (SUASSUNA,2005, pág. 105- nagem Encourado. Essa personagem fala todos os pecados dos
107) religiosos e, coincidência ou não, em sua maioria, os pecados são
PADEIRO: Eu é que pergunto: que é isso? Afinal de contas eu sou pre-
semelhantes aos mostrados na obra espanhola. O Encourado, jun-
sidente da Irmandade das Almas, e isso é alguma coisa. tamente com o Manuel, mostra que todos eram falsos religiosos.
MULHER: De hoje em diante não me sai lá de casa nem um pão para Além dos pecados visto em Lazarillo de Tormes, na peça de Aria-
a Irmandade! [...] E olhe que as obras da igreja é ele no Suassuna encontram-se também o orgulho, o preconceito ra-
quem está custeando! cial, a preguiça e o assassinato:
(SUASSUNA, 2005, pp. 38-39)
MANUEL: Cale-se você. Com que autoridade está repreendendo os
Porém, apesar de haver tantos “santos” nas duas obras, é pos- outros? Você foi um bispo indigno de minha Igreja, mundano, autori-
sível notar uma grande crítica à falsa religiosidade. Embora os tário, soberbo. Seu tempo já passou. Muita oportunidade teve de exer-
amos de Lazarillo serem apresentados como grandes religiosos, cer sua autoridade, santificando-se através dela. Sua obrigação era
ser humilde porque quanto mais alta é a função, mais generosidade e
na prática, são pessoas mesquinhas, avarentas, egoístas, ganan-
virtude requer. [...]
ciosas, astutas, mentirosas e adulteras. O primeiro amo diz que o ENCOURADO: Avareza do marido, adultério da mulher. Bem medi-
menino Lázaro teria que aprender que para ser moço de um cego, do e bem pesado, cada um era pior do que o outro. [...] E pre-
ele deveria ser mais esperto que o diabo. A partir dessa afirmação cisa? São dois cangaceiros conhecidos. Mataram mais de trinta. (SU-
é possível imaginar que a vida do servo não seria fácil. O clérigo, ASSUNA,2005, pp. 126 e 133-134)
seu segundo amo, quase o mata de fome:
28
Além da hipocrisia religiosa vista no excerto acima, outro pon- Além do cômico, eu tenho um interesse muito grande pelo humorístico,
to que liga as obras é a fome. Os dois personagens passaram mui- que talvez seja o mais difícil dos gêneros cômicos. As pessoas normal-
ta fome na vida. Lázaro desde sua infância padeceu necessidades mente tem uma ideia errada do humorismo; elas falam dos “humo-
com sua mãe e com o seu primeiro amo. Quando se tornou ho- ristas” da tv – ora, humorista foi Cervantes, era Machado de Assis.
No humorismo você funde a delicadeza poética mais refinada ao riso.
mem, continuou padecendo com outros amos. João Grilo, por sua (SUASSUNA, 2000, p.29)
vez, padeceu essa necessidade por ter o azar de ter maus patrões:
Por fim, é possível perceber que, todas as trapaças e trapalha-
Estando así, díjome: “Tú, mozo, ¿has comido?” “No, señor -dije yo-,
que aun no eran dadas las ocho cuando con vuestra merced encontré.” das feitas por João Grilo e Lázaro, foram necessárias para que eles
“Pues, aunque de mañana, yo había almorzado, y cuando ansí como pudessem se manter vivos. Era necessário que o cego, primeiro
algo, hágote saber que hasta la noche me estoy ansí. Por eso, pásate amo de Lázaro, acabasse com sua inocência infantil para que ele
como pudieres, que después cenaremos. Vuestra merced crea, cuando sobrevivesse no mundo de pessoas hipócritas. A mesma coisa
esto le oí, que estuve en poco de caer de mi estado, no tanto de hambre
acontece com o Grilo. Apesar da peça não mostrar sua infância,
como por conocer de todo en todo la fortuna serme adversa. Allí se me
representaron de nuevo mis fatigas, y torné a llorar mis trabajos; allí se em determinado momento ele perdeu sua inocência, tornando-se
me vino a la memoria la consideración que hacía cuando me pensaba aquilo que o cego desejava para Lazarillo, “saber mas que el dia-
ir del clérigo, diciendo que aunque aquél era desventurado y mísero, blo” (EL LAZARILLO DE TORMES, 1554, p. 5).
por ventura toparía con otro peor: finalmente, allí llore mi trabajosa
vida pasada y mi cercana muerte venidera. Y con todo, disimulando lo CONCLUSÕES
mejor que pude: “Señor, mozo soy que no me fatigo mucho por comer,
bendito Dios. (EL LAZARILLO DE TORMES, 1554, p. 22)
Vassalo (2000) afirma que um dos elementos textuais mais
JOÃO GRILO: Muito pelo contrário, ainda hei de me vingar do que utilizado por Suassuna é a intertextualidade:
ele e a mulher me fizeram quando estive doente. Três dias passei em
cima de uma cama para morrer e nem um copo dágua me mandaram. As operações intertextuais em Suassuna se apresentam sob duas fa-
[...] Ó homem sem vergonha! Você inda pergunta? Está esquecido cetas: reelaboração do próprio texto ou intratextualidade e retomada
de que ela o deixou? Está esquecido da exploração que eles fazem co- do texto alheio ou intertextualidade propriamente dita. O último caso
nosco naquela padaria do inferno? Pensam que são o Cão só porque incide tanto em textos da cultura popular quanto da erudita. [...]
enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a raiva que eu tenho é Uma leitura minuciosa da obra de Suassuna comprava que os temas
porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, e estruturas advindos do romanceiro remontam a material europeu
via passar o prato de comida que ela mandava para o cachorro. Até (VASSALO, 2000, pp. 153 e 155).
carne passada na manteiga tinha. Para mim, nada, João Grilo que se
danasse. Um dia eu me vingo. (SUASSUNA,2005, p. 25 e 27) Com essa afirmação, vê-se que existe, nas obras, de Ariano Su-
assuna uma influência europeia. Como o próprio autor afirma,
teve um grande contato com a literatura espanhola, talvez seja por
Além da dificuldade financeira dos personagens dos livros ana-
isso que há uma semelhança com Lazarillo, e ainda é possível que
lisados, as duas obras ainda são satíricas. O romance espanhol e a
a peça seja uma homenagem a obra espanhola, já que o auto foi
peça brasileira são recheadas de ironia e comicidade. Em relação
escrito exatamente 401 anos depois de El Lazarillo de Tormes.
ao humor, o próprio Ariano Suassuna afirma:

29
REFERÊNCIAS

EL LAZARILLO DE TORMES. Edición de Burgos, 1554.


KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena
França Ferraz. 2ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gênero
e compreensão. 3. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
MONTEIRO, Romildo Biar. Os resíduos do culto mariano medie-
val no “Auto da Compadecida”. In: GOMES, Carlos; RAMALHO,
Christina; CARDOSO, Ana Leal. São Cristóvão: GELIC, Volume
05, 2014, pp. 1-9.
SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. Ilustrações de Rome-
ro de Andrade Lima. 35ª Ed. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
___________. Cadernos de literatura brasileira. Orgs.: FURTA-
DO, Celso; ARRAES, Guel et al. Número 10, São Paulo – SP: Ins-
tituto Moreira Salles, 2000, pp. 23-51.
VASSALO, Ligia. Cadernos de literatura brasileira. Orgs.: FUR-
TADO, Celso; ARRAES, Guel et al. Número 10, São Paulo – SP:
Instituto Moreira Salles, 2000, pp. 147-180.
VOLOBUEF, Karin. Frestas e arestas: a prosa de ficção do Roman-
tismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: UNESP, 1999.
WALTY, Ivete Lara Camargos. Cadernos de linguística e teoria da
literatura. Orgs. ; RUMEU, Márcia Cristina de Brito.; SILVA, Hen-
rique Vieira da; RIBEIRO, Alda Lopes. Número 4, Minas Gerais
– MG. UFMG, 1979, pp. 19 - 26.

30
EIXO II - ESTUDOS LITERÁRIOS

31
RESUMO sociedade e letramento, desenvolvido no Laboratório de Estudos
Literários, do Grupo de Pesquisa- Centro de Estudos Linguísticos
O presente trabalho encontra-se na fase embrionária, objetiva e Literários da UPE - CELLUPE.
o estudo das personagens femininas que vivem os acontecimentos Palavras-chave: Literatura; Feminismo; Gênero
no romance A Sibila, relacionando as três gerações que se suce-
dem no contexto social de uma fazenda. Trata-se de uma narra-
tiva em que se ressaltam as questões de gênero, numa sociedade
predominantemente patriarcal. Será desenvolvido a partir de uma
abordagem social de gênero analisar o preliminar do projeto in- A FICÇÃO DE AGUSTINA BESSA-LUIS: TRÊS GERA-
titulado As personagens femininas de A Sibila no contexto social ÇÕES DE PERSONAGENS FEMININAS EM A SIBILA
rural. Contudo encontramos as temáticas entrelaçadas que desfia
a escrita Agustiniana, podemos ressaltar o papel primordial das
mulheres na ambiente que compõe o universo fictício da escritora Myrna Machado Borges1¹;
portuguesa, em que constrói romances em que se percebe clara- Amara Cristina de Barros e Silva Botelho2²;
mente a tentativa de retratar uma visão social da mulher como
instrumento da manutenção do equilíbrio familiar. Refere-se uma
investigação cuja relevância também se encontra no fato de que ¹Estudante do Curso de Letras - FFPNM- UPE-mail: Myrna-
pouco se lê em nosso país principalmente a literatura produzida borge@hotmail.com
por mulheres e, ainda, de nacionalidade portuguesa. Entretan- ² Docente/pesquisador do Depto de Letras – FFPNM – UPE-
to é uma pesquisa de caráter bibliográfico qualitativa, para cuja -E-mail: acristinabotelho@gmail.com
problemática social seguir-se-ão as pressupostos teóricos de LU-
CKÁS E GOLDMAN, AGUIAR E SILVA, CANDIDO, MOREI- RESUMO - O presente trabalho encontra-se em desenvolvi-
RA ALVES; B. PITANGUY, J., HALL, Stuart., FORSTER, E.M., , mento, objetiva o estudo das personagens femininas que vivem os
LOURO, L. G dentre outras. A partir desses teóricos, buscaremos acontecimentos no romance A Sibila, relacionando as três gera-
conclusão para desenvolver analisar nas dimensões que compõem ções que se sucedem no contexto social de uma fazenda. Trata-se
o feminismo no decorrer da obra, apresentando um discurso re- de uma narrativa em que se ressaltam as questões de gênero, numa
velador do imaginário feminino, muito pouco considerado nos sociedade predominantemente patriarcal. Está sendo desenvolvi-
diferentes níveis de ensino. Apesar dos avanços que ocorreram do a partir de uma abordagem social visando analisar o projeto
em relação ao reconhecimento do social do gênero feminino, as preliminar intitulado As personagens femininas de A Sibila no
personagens ainda se apresentam, de certo modo, submissas aos contexto social rural. Contudo, as temáticas encontram-se entre-
senhores da casa, isto é, trazem marcas profundas de uma reali- laçadas, ressaltam o papel primordial das mulheres no ambiente
dade social em que a mulher é mimetizada através de persona- que compõe o universo fictício de Agustina Bessa-Luís escritora
gens femininas em que ainda acarretam marcas de dependência portuguesa, que cria romances nos quais se percebe claramente a
e submissão. Esta pesquisa estar vinculado ao projeto intitulado: tentativa de retratar uma visão social da mulher como instrumen-
A ficção produzida por escritoras de língua portuguesa gênero, to da manutenção do equilíbrio familiar. Trata-se de uma investi-

32
gação cuja relevância também se encontra no fato de que pouco se mais emblemático por pertencer à terceira fase do Modernismo,
lê em nosso país, principalmente a literatura produzida por mu- também é considerado por alguns críticos, por trazer temas regio-
lheres, e, ainda, de nacionalidade portuguesa. Entretanto é uma nalistas e nacionalistas, como uma obra neo-realista. Entretanto
pesquisa de caráter bibliográfico qualitativa, para cuja problemá- possui uma problemática que é inerente aos comportamentos e
tica segue os pressupostos teóricos de LUCKÁS E GOLDMAN, acontecimentos sociais e históricos apresentando conhecimen-
AGUIAR E SILVA, CANDIDO, MOREIRA ALVES; B. PITAN- tos sobre a questão do papel da mulher na sociedade portuguesa,
GUY, J., HALL, Stuart, FORSTER, E.M., LOURO, L. G dentre ou- priorizando as relações familiares, de três personagens que per-
tros. A partir desses teóricos, buscar-se-á analisar o feminismo no sonificam perfis sociais, sendo então a mulher o tema central do
decorrer da obra, apresentando um discurso revelador do ima- romance de Bessa-Luís.
ginário feminino, muito pouco considerado nos diferentes níveis A Sibila adquire um papel importante, pois permite ao leitor
de ensino. Apesar dos avanços que ocorreram em relação ao re- a reflexão de um tema que além de ser atual, é considerado ins-
conhecimento social do gênero feminino, as personagens ainda tigante e permite discussões até os dias atuais e, ainda analisa, ao
se apresentam, de certo modo, submissas aos senhores da casa, seu tempo, as questões de gênero, considerando-se o contexto his-
isto é, trazem marcas profundas de uma realidade social em que tórico-social de uma narrativa cuja temática prioriza as relações
a mulher é mimetizada através de personagens que apresentam familiares e de gênero em uma ambientação rural. Ressalta tam-
marcas de dependência e submissão. Esta pesquisa está vinculada bém um discurso revelador do imaginário feminino, muito pou-
ao projeto intitulado: A ficção produzida por escritoras de língua co considerado nos diferentes níveis de ensino. Constata-se que
portuguesa gênero, sociedade e letramento, desenvolvido no La- a obra em pauta apresenta certo misticismo de modo a atenuar a
boratório de Estudos Literários, do Grupo de Pesquisa- Centro de denúncia social da situação da mulher do pós guerra.
Estudos Linguísticos e Literários da UPE - CELLUPE. A importância dessa trabalho é de fato que, através dele será
introduzida, uma temática que apresenta uma forte relação com
Palavras-chave: Ficção Feminina; Gênero; Literatura e Sociedade a realidade, uma vez que resgata a vida no campo, mostrando a
transição que se iniciava no país, o deslocamento da vida agrária
para a cidade, que faz parte tanto da ficção como da realidade da
INTRODUÇÃO zona rural. O presente trabalho divide-se em duas partes: inicial-
mente conceitos fundamentais trazendo considerações a respeito
O presente trabalho resulta de uma investigação cuja relevân- do feminismo e gênero e no segundo momento traz as persona-
cia também se encontra no fato de que pouco se lê em nosso país gens Maria, Quina e Germa como representação feminina.
principalmente a literatura produzida por mulheres e, ainda, de
nacionalidade portuguesa. Agustina Bessa-Luis é um dos grandes METODOLOGIA
nomes da literatura Portuguesa, do período salazarista. Em suas
narrativas ficcionais, preocupa-se com as problemáticas vivencia- Trata-se de uma pesquisa de caráter bibliográfico qualitati-
das em sua época, que se fazem presentes no enredo. Ou seja, foi va. Busca-se as respostas para todas as indagações, através dos
nesse contexto que a romancista portuguesa deu vida à obra A seguintes passos: releitura e fichamento do romance corpus do
sibila (1954), romance que a consagrou como escritora. Torna-se trabalho, levantamento teórico, discussão, e elaboração de artigo

33
para apresentação em eventos científicos. A Sibila da autora por- da conceito de mulher como objeto de posse do homem. Judith
tuguesa Agustina Bessa-Luís foi selecionada e indicada pela coor- Butler (2003, p.75) defende que as questões de gênero não podem
denação tendo em vista ser uma das autoras que está selecionada continuar sendo vistas exclusivamente pelas diferenças existentes
para análise desde o início do Projeto Principal e ainda não havia entre sexos numa época em que as exigências sociais e de mercado
sido motivo de investigação. de trabalho já não permitem certas posturas, pois para ela:
A aplicabilidade da teoria de gênero em A Sibila reside no fato
O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural
de que, através das personagens femininas, é apresentada uma te- de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica);
mática que demonstra forte relação com o contexto social rural, tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o
uma vez que resgata a vida no campo, priorizando assim o am- qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não
biente rural. Além do fato de ser escrito por uma mulher, que está para cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio
surgia como representante portuguesa das novas concepções e discursivo/cultural pelo qual a ‘natureza sexuada’ ou ‘um sexo natural’
é produzido e estabelecido como ‘pré - discursivo’ anterior à cultura,
pensamentos a respeito do sujeito feminino naquele momento de uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura.
mudanças.
Entretanto Louro entende o gênero como constituinte da iden-
RESULTADOS E DISCUSSÃO tidade dos sujeitos:

Movimento que surgiu com a Revolução Francesa buscando O conceito passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que
a emancipação e a igualdade de gênero entre homens e mulhe- os projetos e as representações sobre mulheres e homens são diversos.
res, o feminismo se apresenta como uma luta em combate ao pa- Observar-se que as concepções de gênero diferem não apenas entre as
sociedades ou momentos históricos, mais no interior de uma dada so-
triarcalismo e ao androcentrismo, pensamentos que consiste em ciedade, ao se considerar os diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais,
ponderar o homem como centro do universo, trazendo consigo de classe) que a constituem. (LOURO, 2003, p.23)
o machismo e o sexismo atos milenários e preconceituosos que
estão enraizados na cultura, que foi erguida sobre valores conser- “Marcas de gênero são convenções responsáveis pela distinção
vadores, como resultantes de uma sociedade patriarcal. entre os sexos que informam as pessoas, entre outras coisas, como
Infelizmente, quando se trata das questões de gênero, logo tratar umas às outras ou como pensar sobre elas mesmas e os ou-
surge quem afirme que o movimento feminista já obteve suas tros.” (BARBOSA, 2011 p.17) Ou seja, deve estar claro em outras
conquistas, permitindo que frequentassem as escolas, o direito ao palavras que gênero nada mais é que, a preferência por um sexo
voto, licença maternidade, o divórcio, a participação nos três po- ou outro. Dessa forma, gênero é uma construção social adquirida
deres, a liberdade e segurança pessoal, todavia, apesar dos avan- através da sociedade apresentando as características comporta-
ços que ocorreram em relação ao reconhecimento social do gê- mentais específicas de cada sexo, por exemplo, os meninos desen-
nero feminino, as mulheres ainda se apresentam, de certo modo, volvem a objetividade, o gosto pela luta, a agressividade, a rapidez
submissas aos senhores da casa, isto é, ao sexo masculino, tra- e a competitividade, pois neles são depositados maiores expecta-
zendo uma realidade social em que o ser feminino é mimetizado tivas como lógica analítica, enquanto as meninas apresentam uma
apresentando marcas de dependência e submissão, entretanto, é personalidade calma, educada, sensível, intuitiva que consiste em
necessário a mudança de mentalidade, ou seja, a desconstrução sempre estar associada ao cuidar, por isso são considera femini-

34
Era em Setembro, e a casa, temporariamente habitada, expulsava o
nas. É evidente que a crítica feminista enxerga na literatura os ele-
seu caráter de abandono e de ruína, com aquele calor de vozes e de
mentos reveladores de uma sociedade cujas ideias inovadoras e passos que amarrotam folhelhos amontoados em todos os sobrados. O
até mesmo transgressoras surgem e modificam as percepções do tempo estava morno, impregnado dessa quietude de natureza exauri-
passado. No corpus, isto é, em A Sibila, são três as personagens da que se encontra num baque ondulante de folha ou na agua que cor-
principais (Maria da Encarnação, Joaquina Germana) que per- re inutilmente pela terra eriçada de canas donde a bandeira de milho
foi cortada. Desde a morte de Quina, nunca mais a casa tivera aquela
sonificam os perfis sociais daquele contexto. Agustina enfrenta a
emanação de mistério grotesco ou ingênuo; e Gerrna não encontrava
pressão e acaba por ser uma mensageira da época. Como diz, mais sabor nos serões ao borralho, mexendo as achas; fazendo rodi-
nhas de fogo-preso com o atiçador esbraseado, ou catando nos encanos
O escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo ca- o rapa do Natal, em cujas faces as letras tinham sido desenhadas com
paz de exprimir a sua originalidade (que o delimita e especifica entre tinta venenosa de bagoinhas. Ah, Quina, tão estranha, difícil, mas que
todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma não era possível recordar sem uma saudade ansiada, quem fora ela?
posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas (BESSA-LUIS, p. 07)
expectativas dos leitores ou auditores. (CANDIDO, 2011, p. 84)
Vale Ressaltar que no romance há a inclusão de “fatos reais”,
As personagens, como representação feminina em A Sibila, são deve-se estar atento ao fato de que as ações presentes naquela oca-
de fundamental importância, pois o enredo do romance apresenta sião se tornam vivas a partir do momento em que o leitor as inter-
o contexto político-social da fase da ditadura salazarista, regime preta e as correlaciona com o meio em que vive.
político autoritário vivenciado em Portugal dos anos 30 até início Enquanto na primeira geração Maria da Encarnação surge
dos anos 70, do século passado. A autora traz como representa- como a personificação da realidade da época, núcleo gerador, ou
ção do perfil social da época três personagens: Maria da Encarna- seja, sólida e frutífera; na segunda geração, Quina é apresentada
ção, Joaquina (Quina) Germana (Germa). Por ser uma narrativa como alguém detentora de uma inteligência inigualável, possuin-
que se desenvolve a partir das ações de três personagens que se do um faro aguçado para expandir os bens e a terceira persona-
sucedem no comando econômico da casa da Vessada, é necessá- gem da última geração, Germa, possui um caráter moderno que
rio traçarmos um perfil de cada uma delas. Nas primeiras linhas transmite confiança.
do romance, observa-se uma diferenciação entre as personagens São as indagações do narrador, tais como “Quina, quem fora
principais, ressaltada pela personagem Germa, que, através de seu ela? Qual à origem de Quina”? Que leva o narrador a desenvolver
fluxo de consciência, nos deixa a par do que pensa a respeito da- a narrativa.
quele lugar, propriedade que acaba de herdar. Assim se abre a nar- Vale ressaltar que há um momento na vida de Quina que ela
rativa, que se volta para o passado através de um flashback com passa a ser denominada de Sibila, o que termina por dar nome
uma recusa do tempo cronológico, de modo geral, diferentemente ao romance. E por que essa nova identidade? Ora pelo profundo
das outras expressões artísticas, origina a problemática do tempo. e controverso discurso de sabedoria humana, o que a caracteriza
Esse elemento é essencial na narrativa em que Quina é relembrada como uma sibila, ou seja, alguém dotado de poderes especiais em
pela sobrinha desde a infância, a velhice e morte. relação à previsão do futuro e à obtenção de favores divinos me-
Sentada na varanda da casa da Vessada, Germa evoca a lem- diante preces Esse fato introduz na narrativa certo misticismo, tal
brança de Quina, sua tia, senhora absoluta do lugar: como se percebe no fragmento que segue:

35
A doença fez-se invalidez, estorvo para o regresso à vida normal que mentos é Germa, Contudo, cabe ao narrador penetrar na interio-
a devolveria à mediocridade e à sombra; adquiriu uma forma de ex- ridade da personagem e acompanhar o que ela pensa, enxerga e
pressar sibilina e delicada, que deixava suspensos os ouvintes, as amas
estremecendo numa volúpia de inquietações, curiosidade e esperança.
sabe sobre os acontecimentos que ocorreram na casa da Vessada,
(BESSA-LUIS, 2000, p.46) quando esta era dirigida pelas suas duas antecessoras.
Em A Sibila, narrativa ficcional singulariza as concepções e
Bessa-Luís traz à tona a personagem feminina como alguém. pensamentos reveladores da visão social que se tinha da mulher
Mas não foi sempre assim, por muito tempo, a mulher foi margi- na época, com os quais a protagonista Quina rompe, conforme foi
nalizada na literatura. Seja como autora, seja como personagem. visto no decorrer dos comentários.
Apesar da investigação ainda não está concluída, pode-se sem
Para Zinani: dúvida afirmar que Agustina Bessa-Luís em A Sibila construiu
[...] é na literatura que se encontra o espaço da subjetividade gendra- uma narrativa que da conta de algumas mudanças que se ocor-
da, que possibilita a constituição de uma posição não hegemônica pela reram nos papéis sociais exercidos pela mulher, tal como os re-
emergência da diversidade de discursos, situação essa que lhe confere
um caráter privilegiado. Esse mesmo caráter detém o discurso literário
presentados pelas personagens femininas Maria, Quina e Germa
na relação saber e poder, uma vez que essa modalidade de discurso proprietárias e administradoras de uma fazendo, no período de
possibilita a subversão e a desagregação dessas redes pelo conteúdo pós Segunda Guerra Mundial, em um país dominado pela ditatu-
emancipatório que a obra de arte carrega em si, na medida em que ra salazarista de ideologia fascista.
desautomatiza a percepção do sujeito, promovendo a reflexão. (ZINA- Em suma, o romance assume, mesmo que implicitamente, um
NI, 2013, p.77)
função de insinuação que leva o leitor à reflexão, além de um tema
Por fim, o romance se estabelece no mundo feminino, contu- que, até os dias atuais, é considerado instigante e afoba discussões.
do, nele as personagens masculinas, ou seja, os homens apresen-
tam-se transitórios, boêmios e cônscios de que devem aproveitar
a vida, principalmente, no que respeita à sexualidade. Por outro REFERÊNCIA
lado, as personagens femininas revelam-se fortes que tomas con-
ta dos filhos e se sobressaem pelo controle que exercem sobre a BESSA-LUIS, Agustina. A Sibila. Campinas: Pontes, 2000.
família e por administrar os bens materiais. Dessa forma, elas se BRAIT, B. A personagem. 4º edição. São Paulo: Ática, 1990.
encadeiam na trama narrativa como um universo de personagens BRANDÃO, Ruth S. Mulher ao pé da letra: a personagem femini-
que se organiza em torno das sucessivas gerações de mulheres, na na literatura. 2.ed.revista. Belo Horizonte: 2006.
pois Maria é substituída, pela filha por Quina, e está por Germa, BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão
que no início da narrativa, já tem recebido a casa da Vessada como da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
herança, substituindo a tia, na administração dos bens da família. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e
história literária. 5 ed. Revista. São Paulo, Editora Nacional, 1976.
CONSIDERAÇÕES FINAIS CANDIDO, A. et. al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspec-
tiva, 2007
Percebe-se pela narrativa que o narrador é onisciente, mas de LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo:
focalização seletiva, pois na verdade quem conhece os aconteci- Ática, 1976.

36
LOURO, L. G. Gênero, sexualidade e educação - uma perspectiva RESUMO
pós-estruturalista. 11º edição: Petrópolis: Editora vozes, 2008.
MOREIRA ALVES, Branca; PITANGUY, Jacqueline. O que é fe- O discurso presente na literatura de Hermilo Borba Filho é mar-
minismo. São Paulo: Brasiliense, 2003. cado por traços e influencias das histórias populares nordestinas,
MOISÉS, Massaud. A Literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, principalmente pernambucanas. Por trazerem, intrinsecamente,
2008. p. 516-519. elementos insólitos que orbitam sobre a realidade factual huma-
RIBEIRO, S. A.; PÁTARO, F, R. Reflexões sobre o sexismo a par- na, tais histórias populares relacionam-se, por vezes, aos âmbi-
tir do cotidiano escolar. Revista educação e Linguagem, Campo tos de estudo literário que abrangem o mágico, o maravilhoso e o
Mourão, v.4, 2015. fantástico. No seu primeiro livro de narrativas curtas, O general
ZINANI, C. J. Literatura e gênero: a construção da identidade fe- está pintando (1973), grande parte das histórias possuem relação
minina. Caxias do Sul: Editora da Universidade de Caxias do Sul, (direta ou indireta) com mitos, crendices, histórias de fantasmas
2013. e causos que tendem a aproximar o discurso hermiliano com a
(Em: <http://www.zemoleza.com.br/trabalho-academico/sociais- realidade-imaginada da cultura popular da região. A importância
-aplicadas/letras/a-emancipacao-da-mulher-representada-pe- dada pelo autor para a cultura popular, principalmente a de Per-
la-obra-de-agustina-bessa-luis/> Acesso em 24 de fevereiro de nambuco, torna este livro repleto de elementos que fazem parte da
2016) história cultural do estado e de seu povo, de modo que se universa-
(Em: <http://www.efdeportes.com/efd176/o-conceito-de-gene- lizam por tratar de temas que inquietam a humanidade como um
ro-e-suas-representacoes-sociais.htm> Acesso em 19 de fevereiro todo. Assim, este trabalho tem por objetivo desenvolver um estu-
de 2016) do acerca do primeiro livro de novelas, supracitado, de Hermilo
Borba Filho, partindo de estudos sobre os elementos mágicos e
maravilhosos da cultura popular pernambucana e suas facetas na
literatura do autor. Ao desvendar os modos e estratégias discursi-
vas em que: são contrastados opostos estridentes; o heterogêneo
e o excêntrico se sobrepõem; a realidade factual se imbrica com
a realidade imaginada de Pernambuco; a memória individual e
coletiva se misturam para a construção de uma nova realidade,
a ficcional; entre outros, esta pesquisa, desenvolvida dentro dos
âmbitos de estudo do mágico e do maravilhoso, são cruciais para
o desenvolvimento de um (re)conhecimento da cultura popular
pernambucana. De cunho bibliográfico, esta pesquisa identificou
por meio das teorias de Chiampi (2012), Ceserani (2006), Borba
Filho (2007), Ferreira (2003), Volobuef (2011), entre outros, influ-
ências da cultura popular pernambucana na construção diegética
de Hermilo Borba Filho que podem ser caracterizados como má-
gico e/ou maravilhoso por conta de seu teor insólito que foge do

37
paradigma de realidade construído pelo homem moderno, mas se como um todo. Assim, este trabalho tem por objetivo desenvol-
revela no universo ficcional do autor. ver um estudo acerca da narrativa “O Arrevesado Amor de Piran-
gi e Donzela ou o Morcego da Meia-Noite” contida no primeiro
Palavras-chave: Maravilhoso; Mágico; Hermilo Borba Filho; cul- livro de novelas, supracitado, de Hermilo Borba Filho, partindo
tura popular de estudos sobre os elementos mágicos e maravilhosos da cultura
popular pernambucana e suas facetas na literatura do autor. Ao
desvendar os modos e estratégias discursivas em que: são con-
trastados opostos estridentes; o heterogêneo e o excêntrico se so-
ENTRE A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO: O MÁGICO brepõem; a realidade factual se imbrica com a realidade imagina-
E O MARAVILHOSO EM HERMILO BORBA FILHO da de Pernambuco; a memória individual e coletiva se misturam
para a construção de uma nova realidade, a ficcional; entre outros,
Rodrigo Fagner Araujo dos Santos1; esta pesquisa, desenvolvida dentro dos âmbitos de estudo do má-
Anco Márcio Tenório Vieira2 gico e do maravilhoso, é crucial para dar ensejo a um (re)conheci-
mento da cultura popular pernambucana. De cunho bibliográfico,
1. Estudante do curso de Licenciatura em Letras Português – CAC esta pesquisa identificou por meio das teorias de Chiampi (2012),
– UFPE; rodfstix@gmail.com Ceserani (2006), Ferreira (2003), entre outros, influências da cul-
2. Docente/pesquisador do Depto de Letras – CAC – UFPE; anco- tura popular pernambucana na construção diegética de Hermi-
vieira@yahoo.com.br lo Borba Filho que podem ser caracterizados como mágico e/ou
maravilhoso por conta de seu teor insólito que foge do paradigma
de realidade construído pelo homem moderno, mas se revela no
Resumo – O discurso presente na literatura de Hermilo Borba universo ficcional do autor.
Filho é marcado por traços e influencias das histórias populares
nordestinas, principalmente pernambucanas. Por trazerem, in- Palavras-chave: Maravilhoso; Mágico; Hermilo Borba Filho; cul-
trinsecamente, elementos insólitos que orbitam sobre a realidade tura popular
factual humana, tais histórias populares relacionam-se, por vezes,
aos âmbitos de estudo literário que abrangem o mágico, o maravi-
lhoso e o fantástico. No seu primeiro livro de narrativas curtas, O INTRODUÇÃO
general está pintando (1973), grande parte das histórias possuem
relação (direta ou indireta) com mitos, crendices, histórias de fan- De origem interiorana (Engenho Verde – Palmares, PE), Her-
tasmas e causos que tendem a aproximar o discurso hermiliano milo Borba Filho nasceu em 1917, momento histórico que já
com a realidade-imaginada da cultura popular da região. A im- ansiava por mudanças de ideologias e de perspectivas em rela-
portância dada pelo autor para a cultura popular, principalmente ção à arte, à cultura e à sociedade. Estreou como autor em 1935
a de Pernambuco, torna este livro repleto de elementos que fazem com Felicidade e seu primeiro conto, As pernas daquela moça,
parte da história cultural do estado e de seu povo, de modo que se foi publicado pela primeira vez na revista Renovação, em 1941. O
universalizam por tratar de temas que inquietam a humanidade ator, encenador, dramaturgo, tradutor, pesquisador, romancista,

38
contista etc. pernambucano desenvolveu, ao longo de sua vida, da linguagem popular, o uso do realismo mágico/maravilhoso, o
uma busca incansável por uma arte expressiva vinda do Nordeste. erotismo, entre outros. Todo este discurso inovador presente na
Observando atentamente às datas de suas primeiras produções, dramaturgia do autor é confirmado e ampliado em seus romances
pode-se perceber que a linha de pensamento modernista já estava e novelas.
relativamente consolidada em Pernambuco (tendo como marco Assim, este trabalho intenta observar a importância dada pelo
a publicação de Catimbó, de Ascenso Ferreira, em 1927). Talvez autor à cultura popular pernambucana dentro de sua obra em
por influência de seu tempo, Borba Filho tenha dado grande im- prosa narrativa e os elementos mágicos e maravilhosos que per-
portância à cultura popular do Nordeste, principalmente de Per- meiam tanto a cultura popular, quanto a literatura do autor, com
nambuco. Ao associar isso ao teatro, sua paixão, o autor – à frente atenção especial a temática da memória e do esquecimento. Estes
do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) –, por vezes, an- dois últimos, opostos complementares, são intrínsecos a criação
tecipou “propostas e procedimentos que seriam, anos depois, ce- da cultura de um povo pois dialoga diretamente com a história,
lebrados como ‘marcos históricos’ protagonizados por conjuntos o mito e a consciência coletiva (FERREIRA, 2003). Para isso, será
de São Paulo e do Rio de Janeiro” (REIS, apud CARVALHEIRA, feito um estudo da novela “O Arrevesado Amor de Pirangi e Don-
2011, p. 14). Logo, a ânsia modernista que buscava, por um lado, zela ou o Morcego da Meia-Noite”, contida no livro O general está
inovações e visões singulares da arte, e, por outro lado, a essência pintando (1973) – o primeiro da trilogia de histórias curtas que
da cultura popular – tentando, com isso, encontrar um “Eu” que tem como outros títulos Sete dias a cavalo (1975) e As meninas
representasse o homem moderno e uma identidade genuinamen- do sobrado (1976) –, usando como base estudos acerca: da cul-
te brasileira – era vista dentro da produção bibliográfica do autor, tura popular – como o de Ferreira (2003); da literatura mágica
tanto como artista, quanto como pesquisador. e maravilhosa – como os de Chiampi (1980) e Sena (2015); e da
“Cheio de ideias a respeito da arte dramática, da valorização produção do autor não só como ficcionista, mas também como
da cultura regional e do autor nordestino, Hermilo Borba Filho encenador e pesquisador – como os de Lima (1986) e Carvalhei-
começou a criar espaços onde pudesse maturar e ampliar, por ra (2011). Não só a narrativa analisada, mas todas as novelas do
meio da experiência prática, suas concepções” (LIMA, 1986, p. livro usam como palco cidades do Nordeste e tomam como base
5), inicialmente no teatro e posteriormente na narrativa. Quanto o imaginário popular pernambucano que trazem consigo uma at-
ao teatro, suas ideias inovadoras e renovadoras que giravam em mosfera insólita que tende a exorbitar “as leis físicas e as normas
torno da valorização artística do povo nordestino agitaram a pro- humanas” (CHIAMPI, 1980, p. 48) atingindo, por vezes, o nível
dução da década de 1940 que, “na história do teatro brasileiro [...] do mágico e do maravilhoso. Porém, este imaginário popular per-
talvez tenha sido o momento de maior tensão estética, ou mesmo nambucano, juntamente com tais ambientes físicos comuns do
de ruptura” (REIS, apud CARVALHEIRA, 2011, p. 14). Na drama- Nordeste servem apenas como cenário por onde os protagonistas
turgia hermiliana encontram-se características singulares de um destas histórias hermilianas transitam e como arcabouço artísti-
autor inovador e à frente de seu tempo, como, por exemplo, a uti- co para suas narrativas. O verdadeiro drama tem lugar no íntimo
lização de “problemas e assuntos caracteristicamente brasileiros”, destas personagens (LIMA, 1986). Logo, a literatura produzida
debates sobre “a valorização da arte do povo nordestino”, “a luta por Borba Filho “é comprometida com as dores do homem”, cujo
política” (REIS, apud CARVALHEIRA, 2011, p. 15), as intertextu- intuito principal é “gritar que são imorais as guerras, as torturas,
alidades ou transtextualidades (LIMA, 1986), o uso de expressões as bombas, todas as armas” (BORBA FILHO apud LIMA, 1986,
p. 12).

39
METODOLOGIA “A cultura não é um depósito de informações; é um mecanis-
mo organizado, de modo extremamente complexo, que conser-
Esta é uma pesquisa de cunho bibliográfico. Para que fosse pos- va as informações, elaborando continuamente os procedimentos
sível analisar a narrativa “O Arrevesado Amor de Pirangi e Don- mais vantajosos e compatíveis” com o momento histórico e social
zela ou o Morcego da Meia-Noite”, contida no primeiro livro de de um povo. “Recebe as coisas novas, codifica e decodifica mensa-
novelas de Hermilo Borba Filho, O general está pintando (1973), gens, traduzindo-as para um outro sistema de signos” (LOTMAN
foi feita, após a leitura inicial de tal livro, um levantamento biblio- apud FERREIRA, 2003, p. 73). Na cultura popular de Pernambu-
gráfico acerca de cultura, memória e esquecimento, ligados ao es- co, os momentos histórico-sociais conturbados os quais seu povo
tudo do próprio autor pernambucano na área da cultura popular. presencia/presenciou alimentam os elementos culturais da região,
Tais bibliografias foram associadas aos estudos sobre o mágico e o sendo traduzidos, muitas vezes, em forma de seres, criaturas e, até,
maravilhoso na literatura, tendo em vista a recorrência e a produ- monstros insólitos que “subverte[m] os padrões convencionais da
tividade desses elementos nas obras ficcionais do escritor. Após o realidade ocidental” (CARPENTIER apud CHIAMPI, 2008, p. 32)
estabelecimento dos conceitos apropriados e das noções centrais e, ao mesmo tempo, ajudam a desentranhá-la, expondo e criti-
para a análise do corpus, foi feita a análise e a interpretação de cando as mazelas político-sociais e as ações humanas opressoras
todas as doze novelas que compõem o livro O general está pintan- (CHIAMPI, 2008).
do (1973), sendo, destacada das demais, a novela já mencionada Assim, Borba Filho, ao ressignificar os elementos da cultura
por conter, em maior grau, todos os aspectos supracitados que se pernambucana, tenciona seus ‘limites’ maleáveis ao adicionar ele-
relacionam à memória e ao esquecimento e ao universo mágico e mentos da oralidade e do universo mítico da cultura popular de
maravilhoso. Pernambuco. Além disso, seu comprometimento com os anseios,
medos e injustiças da sociedade da época fazem com que o uso
deste universo seja feito como arma ideológica para disseminar
RESULTADOS E DISCUSSÃO uma crítica social ferrenha – porém, sutil – ao período em que o
Brasil esteve sob os desmandos do golpe cívico-militar de 1964.
Pernambuco traz consigo um legado de mesclas entre diversas “Aí está valorizada a complexidade da poesia popular, como um
culturas que habitaram (e ainda habitam) seu território. A cultura exercício de mestria que articula, de modo perene, as malhas da
de povos indígenas, colonizadores europeus e escravos africanos memória [de um tempo e espaço sociais] em situação narrativa ou
ajudaram a ampliar o arcabouço do imaginário popular do estado dramática” (FERREIRA, 2003, p. 13).
e, quando misturadas, promoveram uma interculturalidade que, A memória, outro elemento que perpassa todas as narrativas
até hoje, mostra-se viva e produtiva (SANTOS; PEREIRA, 2015); do escritor pernambucano, é projetada em seu livro O general
como é o caso do Maracatu, do Bumba meu boi e do Pastoril. Esse está pintando (1973) de modo que a realidade factual e a reali-
arcabouço cultural é explorado por vários autores pernambuca- dade ficcional sejam confundidas dentro do universo ficcional
nos, inclusive Hermilo Borba Filho. O escritor utiliza os elemen- que o autor cria. “Toda cultura se cria como um modelo inerente
tos da cultura popular para expandir e, até mesmo, subverter a à duração da própria existência [...] e à continuidade da própria
realidade imaginada da região, promovendo, assim, uma ressigni- memória”. Dessa forma, “a cultura se dirige contra o esquecimen-
ficação dos símbolos culturais já existentes. to. Vive-o, transformando-o num dos mecanismos da memória”

40
(FERREIRA, 2003, p. 79). Não é à toa que Hermilo Borba Filho, Essa seletividade causada por conta do atrito está presente na
ao construir os enredos de suas narrativas, tenciona a oposição novela “O Arrevesado Amor de Pirangi e Donzela ou o Morcego
entre a memória e o esquecimento. Quanto a isso, o autor diz, no da Meia-Noite”. Usando o tema hierático do Nascimento de Je-
início do primeiro livro de sua tetralogia, Margens da Lembrança sus Cristo, a narrativa desenvolve a história de duas personagens:
(1966): “Teço, neste papel, um passado real, às vezes e, outras, pu- Pirangi e Donzela. O primeiro, vigia de um mercado, conforma-
ramente imaginado na esperança de que no fim deus confunda o do em sua existência monótona e rotineira, recebe a visita de um
que vivi e o que inventei e me dê um saldo favorável para uma mo- morcego que prenuncia o sexo hipnótico e quase sonâmbulo com
desta pensão no Purgatório” (p. 1-2). Ao dizer isso, o autor salien- uma “mulher que não era mulher”. Tal afirmação serve para acen-
ta a linha tênue entre a memória e o esquecimento – elementos tuar a dúvida sobre a presença fantasmática ou virginal da segun-
constitutivos da cultura – em sua tetralogia biográfico-ficcional da personagem. Esta, por sua vez, um possível duplo da Virgem
e que aparecem salientes, também, nas novelas que compõem O Maria, é uma mendiga, suja, que não fala – por que não quer ou
general está pintando (1973) e, em maior relevo, em “O Arrevesa- por que não pode? Não fica claro – e, certa vez, aparece grávida.
do Amor de Pirangi e Donzela ou o Morcego da Meia-Noite”, foco Nove meses depois sua bolsa rompe, antecedendo o Nascimento,
deste trabalho. enquanto come tanajuras vivas. Esta cena, grotesca, termina na
“Se a poesia [e a prosa] popular é memória e recriação, lem- viagem que o jato d’água saído de sua vagina após o rompimento
brança intensa e permanente de matrizes arcaicas que se rearran- da bolsa faz até alcançar um caixeiro viajante que, ao ser atingi-
jam, agrupam e recriam em processos contínuos, cresce de impor- do, começa a pegar fogo. A cena do Nascimento mistura religioso
tância a avaliação do fenômeno: a falha da memória” (FERREIRA, com profano, suscitando a abundancia, a festa, a solidariedade e
2003, p. 91). Mais ligado à criação, o esquecimento de ordem nar- a morte, descritas a partir de modos comuns ao grotesco. Após o
rativa remete ao próprio texto e revela estratégias estruturais que nascimento,
dialogam com o enredo de modo que os acontecimentos ligados
à quebra de expectativa e à fuga do paradigma de realidade cons- Os pitus do rio Una cresceram dez vezes o seu tamanho e invadiram a
truído pela sociedade da época, terminam por gerar, por vezes, rua da Lama, eles mesmos entrando nas panelas de barro que também
cresceram para cabe-los, as lavadeiras aceitaram o acontecido natu-
uma situação limite na qual apenas o mundo mágico/maravilhoso ralmente e acenderam o fogo e ferveram a água e se banquetearam [...]
pode expressar. Esse processo, ao fim do episódio insólito pode Muitas famílias que viviam pranteando seus mortos queridos – avós,
nutrir a fé, associando-o aos elementos culturais, ou pode criar pais, irmãos, filhos – foram por eles visitadas e houve repulsa total,
um lapso, ou seja, uma quebra da linearidade de informações, ranger de dentes, desmaios foram o de menos [...] Dona Íria pegou
causando, assim, o esquecimento. Em ambos os casos, associados trinta e três crianças e todas as trinta e três pesavam mais de cinco
quilos, um menino de dez anos contou para quem quisesse que vira
às crenças e à religiosidade, “assinala[m] uma falta de comunica- Pirangi, o vigia, de capote e rifle atravessar o pátio do mercado, en-
ção consigo próprio” o que termina por fundar “práticas rituais”, contrando-se com Donzela, a quem dera a mão, subindo a ladeira do
que preservam, em partes, “a continuidade do vivido” (LÉVI-S- Matadouro, andando para o horizonte, dois toquinhos no lusco-fusco
TRAUSS apud FERREIRA, 2003, p. 93-94). Vale a pena salientar (BORBA FILHO, 1973, p. 44-45).
aqui a “questão da seletividade e de como o indivíduo, a comuni-
dade ou o próprio atrito ente eles expulsa os elementos indesejá- Toda esta cena, descrita com ênfase de detalhes, é um con-
veis, aquilo que faz explodir a tensão” (FERREIRA, 2003, p. 92). tra-senso, ou seja, é um mundo em que a realidade real daquele
universo ficcional, se confunde com uma realidade imaginada,

41
abstrata e religiosa. Ela foge do paradigma de realidade contem- do (1973), possuem relação (direta ou indireta) com mitos, cren-
porâneo à sua época, já que a ciência e as leis criadas por ela não dices, histórias de fantasmas e causos que tendem a aproximar o
conseguem regular, nem explicar a partir da ciência humana aque- discurso hermiliano com a memória popular da região. Como
la nova realidade (CESERANI, 2006). A ciência não consegue jus- o próprio escritor pernambucano comenta: “a arte do Nordeste,
tificar tais acontecimentos, restando apenas à fé fundamentá-los. abrangendo a literatura, a pintura, a escultura, o teatro, [tende a
representar] a realidade imaginada, campo onde o artista se mo-
Pode-se recordar, a propósito, a definição de ‘realidade’ dada pelo físi- vimenta numa região em que o mágico, o fantástico, o maravilho-
co David Bohm: ‘a palavra ‘realidade’ é derivada da raiz ‘coisa’ (res) e so andam de mãos dadas com a realidade” (BRAGA, 1996, grifo
‘pensar’ (revi). ‘Realidade’ significa ‘tudo aquilo que se pode pensar’. O
do autor). A importância dada pelo autor para a cultura popular,
que não significa ‘tudo aquilo que é’. Nenhuma ideia pode sustentar a
‘verdade’ no sentido ‘daquilo que é’ (CESERANI, 2006, p. 147). principalmente a de Pernambuco, torna este livro repleto de ele-
mentos que fazem parte da história da cultura do estado e de seu
É por esse motivo que “tudo o quanto os olhos atônitos das povo, de modo que se universalizam por tratar de temas que in-
comadres e dos compares viram não restou lembrança, caído no quietam a humanidade como um todo.
esquecimento maior amnésia, porque viram e não se lembraram
do dossel em veludo púrpura e franjas de ouro sustentado por
quatro rechonchudos querubins...” (BORBA FILHO, 1973, p. 44)
e daí, em diante. Toda a cena de nascimento e pós-nascimento foi
vista e esquecida, restando apenas os elementos os quais a fé justi-
fica. O caso (ou causo), contado pelo narrador, desembocou num REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
esquecimento coletivo, causado pelo conflito entre real e irreal,
remontando os elementos ritualizados nas representações drama- BRAGA, Carlos Eduardo Galvão. O maravilhoso nas novelas de
tizadas do Pastoril. Hermilo Borba Filho. Em: http://www.soniavandijck.com/hermi-
lo_carlosbraga.htm. Acesso em: 12 de novembro 2014. 1996
CONSIDERAÇÕES FINAIS BORBA FILHO, Hermilo. O general está pintando: novelas. Porto
Alegre: Editora Globo, 1973.
A partir dos pontos levantados anteriormente, pode-se perce- _____. Margem das Lembranças: Um Cavalheiro da Segunda De-
ber que o discurso de Hermilo Borba Filho flerta com os elemen- cadência – I tetralogia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
tos que, de acordo com Ferreira (com base em Lotman), são par- CARVALHEIRA, Luiz Maurício Britto. Por um teatro do povo e
tes constituintes da Cultura: a memória e o esquecimento. Além da terra: Hermilo Borba Filho e o Teatro do Estudante de Pernam-
disso, por trazerem, intrinsecamente, elementos insólitos que buco. 2. ed. revista. Recife: Cepe, 2011.
impulsionam a realidade factual humana, as histórias populares CESERANI, Remo. O fantástico. ; tradução de Nilton Cezar Tri-
pernambucanas utilizadas como arcabouço artístico pelo escri- dapalli. Editora UFPR, Curitiba, 2006.
tor relacionam-se, por vezes, aos âmbitos de estudo literário que CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia
abrangem o mágico e o maravilhoso. Grande parte das histórias no romance hispanoamericano. São Paulo: Perspectiva, 1980.
narradas em seu primeiro livro de novelas, O general está pintan- FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória. Cotia, SP: Ate-
liê Editorial, 2003.
42
LIMA, Sônia Maria van Dijck. Hermilo Borba Filho: fisionomia nalidade, ressaltando os autores já mencionados acima. Após,
e espírito de uma literatura (Série lendo). 1. ed. São Paulo: Atual, damos prosseguimento ao texto com uma explicação sintética e
1986. reflexiva acerca do conteúdo narrativo das obras, demonstrando
SANTOS, Rodrigo F. A.; PEREIRA, Ygor S. S. Manifestações so- seus enredos e personagens, bem como selecionando trechos para
brenaturais do imaginário popular pernambucano: uma análise analisá-los à luz das concepções teóricas elencadas para este estu-
de O coronel de Macambira. In: SENA, André de (org.). Litera- do. Por fim, nas considerações finais, apresentamos ponderações
tura fantástica em Pernambuco e histórias de fantasmas. Recife: gerais que focalizam a expressividade das obras analisadas, base-
Editora UFPE, 2015. adas nos conceitos levantados, trazendo a reflexão de que tanto A
moratória como Fogo mortoconstituem-se através de construções
de sentidos que, mesmo em cenários que particularizam regiona-
lidades e regionalismos, trazem consigo o aporte de leitura para
além do citadino, quando se refere, assim como toda literatura, ao
grau de humanidade de suas letras.
RESUMO
Palavras-chave: Fogo morto; A moratória; José Lins do Rego; Jor-
O presente trabalho se propõe analisar o romance Fogo morto, ge Andrade; Regionalismo e Regionalidade
de José Lins do Rego e a peça de teatro A moratória, de Jorge An-
drade. Assim, demonstramos que tais obras tanto trazem aspectos
do regionalismo, enquanto um discurso literário, como da regio-
nalidade, pontuando elementos que perfazem a simbolização da ENTRE O REGIONALISMO E A REGIONALIDADE: UMA
experiência regional citadina. Tendo em vista esta apresentação ANÁLISE DE FOGO MORTO, DE JOSÉ LINS DO REGO E A
sobre os autores supramencionados, queremos afirmar a repre- MORATÓRIA, DE JORGE ANDRADE.
sentatividade de suas obras para um estudo analítico de suas ex-
pressões estéticas. No recorte de pesquisa, que ora construímos
neste artigo, trabalharemos com a obra dos autores centralizados, Olavo Barreto de Souza (PPGLI/UEPB)¹
levando em consideração os aspectos do regionalismo e da regio- Silvanna Kelly Gomes de Oliveira (PPGLI/UEPB)²
nalidade na tessitura diegética de suas narrativas. Para tanto, nos
portamos das ponderações críticas de Haesbert (2010), Chiappini
(2014, 1995) e Garbuglio (1979). Muito embora as obras estejam ¹Mestrando, Programa de Pós-graduação em Literatura e Inter-
estabelecidas em gêneros literários diferentes - sendo elas um ro- culturalidade, UEPB.
mance e uma peça de teatro – o nosso foco, aqui, depara-se com a E-mail: <olavo.bareto@live.com>.
constituição da diegese de suas narrativas e não, exclusivamente, ²Mestranda, Programa de Pós-graduação em Literatura e Inter-
sobre a técnica utilizada para o estabelecimento do texto. Assim, culturalidade, UEPB.
nas secções que seguem, temos, inicialmente, uma apresentação E-mail:<silvannakelly@hotmail.com>.
sumária dos conceitos que referendam o regionalismo e a regio-

43
RESUMO: O presente trabalho se propõe analisar o romance perceber que ambos os autores já foram objeto de estudo de pes-
Fogo morto, de José Lins quisadores brasileiros sob diferentes abordagens de pesquisa. É
do Rego e a peça de teatro A moratória, de Jorge Andrade. As- de se notar, também, que José Lins do Rego é um nome aclamado
sim, demonstramos que tais obras tanto trazem aspectos do regio- pelos estudos literários no Brasil há algum tempo. Várias histórias
nalismo, enquanto um discurso literário, como da regionalidade, da Literatura Brasileira, ao exemplo de Bosi (2006), Nejar (2011),
pontuando elementos que perfazem a simbolização da experiên- Coutinho (2004), além de antologias analíticas como as de Moisés
cia regional citadina. Tendo em vista esta apresentação sobre os (1998) e Gonçalves, Aquino e Bellodi (2006) figuram seu nome
autores supramencionados, queremos afirmar a representativida- no escopo dessas obras de referência. Jorge Andrade também é
de de suas obras para um estudo analítico de suas expressões es- um autor prestigiado por alguns estudos críticos, mais específicos
téticas. Para tanto, nos portamos das ponderações críticas de Ha- do campo das artes cênicas e seus diálogos interdisciplinares com
esbert (2010), Chiappini (2014, 1995) e Garbuglio (1979). Assim, a história e outros assuntos. Sobre tal, destacamos os estudos de
nas secções que seguem, temos, inicialmente, uma apresentação Neves (2011) e Arantes (2001).
sumária dos conceitos que referendam o regionalismo e a Tendo em vista esta apresentação sobre os autores supramen-
regionalidade. Após, damos prosseguimento com uma explicação cionados, queremos afirmar a representatividade de suas obras
sintética e reflexiva acerca do conteúdo narrativo das obras, de- para um estudo analítico de suas expressões
monstrando seus enredos e personagens, bem como selecionando estéticas. No recorte de pesquisa, que ora construímos neste
trechos para analisá-los à luz das concepções teóricas elencadas artigo, trabalharemos com a obra dos autores centralizados, tendo
para este estudo. Por fim, nas considerações finais, apresentamos em vista os aspectos do regionalismo e da regionalidade na tes-
ponderações gerais que focalizam a expressividade das obras ana- situra diegética de suas narrativas. Para tanto, nos portamos das
lisadas, baseadas nos conceitos levantados, trazendo a reflexão de ponderações críticas de Haesbert (2010), Chiappini (2014,
que as obras analisadas se constituem através de construções de 1995) e Garbuglio (1979).
sentidos que, mesmo em cenários que particularizam regionalida- Muito embora as obras estejam estabelecidas em gêneros lite-
des e regionalismos, trazem consigo o aporte de leitura para além rários diferentes - sendo elas um romance e uma peça de teatro - o
do citadino. nosso foco, aqui, depara-se com a constituição da diegese de suas
narrativas e não, exclusivamente, sobre a técnica utilizada para o
Palavras-chave: Fogo morto; A moratória; José Lins do Rego; estabelecimento do texto.
Jorge Andrade; Regionalismo e Regionalidade. Assim, nas secções que seguem, temos, inicialmente, uma apre-
sentação sumária dos conceitos que referendam o regionalismo e
a regionalidade, tendo em vista os autores já mencionados aci-
ma. Após, damos prosseguimento ao texto com uma explicação
PALAVRAS INICIAIS sintética e reflexiva acerca do conteúdo narrativo das obras, de-
monstrando seus enredos e personagens, bem como selecionando
Na linha da crítica literária brasileira, vários estudos já aborda- trechos para analisa-los à luz das concepções teóricas elencadas
ram aspectos concernentes às obras de Jorge Andrade e José Lins para este estudo. Por fim, nas considerações finais, apresentamos
do Rego. Em consulta ao Banco de Teses da CAPES1 pudemos ponderações gerais que focalizam a expressividade das obras ana-
1
<http://bancodeteses.capes.gov.br/> Na nossa investigação, em 02/08/15, constaram 06 estudos
sobre José Lins do Rego e 04 sobre Jorge Andrade. 44
lisadas, tendo em vista os conceitos levantados. O espaço tratado pela pesquisadora é o literário que na cons-
trução diegética toma os elementos da realidade regional, os
REGIONALISMO E REGIONALIDADE: DEFINIÇÕES transmutando, não focalizando um exotismo circunscrito na
cópia da realidade, mas no construto dos simbolismos emergentes
Os estudos interdisciplinares entre a Geografia humana, as da experiência vivida. Mesmo sendo um espaço discursivo, cria-
Ciências Sociais, a Crítica literária, dentre outras disciplinas das do, mimetizado, de certo modo, ele antevê uma referencialidade
humanidades, velem-se dos conceitos de Regionalismo e Regio- com um local, uma região marcada.
nalidade para tecer muitas de suas ponderações sobre os fatos cul- O Regionalismo está mais para um discurso, uma tendência
turais que envolvem o homem e sua relação com o espaço geográ- estética verificável
fico imaginário, físico, ou em simbiose entre os dois. em determinados momentos marcados pela historiografia li-
O geógrafo Rogério Haesbert em Região, regionalização e re- terária, ou na estilística de determinados autores e obras. Ligia
gionalidade: questões contemporâneas indica que a regionalidade Chiappini defende a ideia de que, enquanto tendência estética,
historicamente, a obra regionalista “[...] em literatura vincula-
envolveria a criação concomitante da “realidade” e das representa- -se [às] que expressam regiões rurais e nelas situam suas ações
ções regionais, sem que elas possam ser dissociadas ou que uma se co- e personagens, procurando expressar suas particularidades lin-
loque, a priori, sob o comando da outra - o imaginário e a construção
simbólica moldando o vivido regional e a vivência e produção concre- guísticas.” (Chiappini, 1995, p. 155). No entanto, não é apenas ao
tas da região, por sua vez, alimentando suas configurações simbólicas. rural que o Regionalismo se vincula, mas, na historiografia
(HAESBAERT, 2010, p. 08). da literatura, principalmente da brasileira, temos muitas obras
regionalistas que seguem este status. No universo de referência
Desse modo, seria este fato uma construção simbiótica entre do leitor de literatura brasileira, não versado nas discussões sobre
o imaginário, o simbólico e a realidade patente. Uma vez que a regionalismo/regionalidade, estão marcadas obras regionalistas
realidade possui conteúdo para a mimetização dela, o imaginário como Vidas secas, de Graciliano Ramos, Luzia-homem, de Do-
reforça o conteúdo de realidade. Uma via de mão dupla que tece mingos Olímpio, O quinze, de Raquel de Queirós, ou A bagaceira,
uma comunicação interdependente. de José Américo de Almeida. São obras cujos personagens, enre-
De modo semelhante, tendo em vista a focalização deste con- dos e espaços tomam o lugar rural brasileiro para o funcionamen-
ceito para a Crítica literária pautada nas questões regionais, Ligia to de suas narrativas. Esta noção, de vincular o Regionalismo ao
Chiappini, em Regionalismo(s) e regionalidade(s) num mundo espaço rural, nasce dos tempos industriais que fazem a acepção
supostamente global, define: entre campo e cidade, rural e urbano, como indica Chiappini: “Na
verdade, a história do regionalismo mostra que ele sempre surgiu
O que a categoria da regionalidade supõe é muito mais um compro-
misso entre referência geográfica e geografia fictícia. Embora fictício, e se desenvolveu em conflito com a modernização, a industriali-
o espaço regional criado literariamente remete, enquanto portador zação e a urbanização.”. (CHIAPPINI, 1995, p. 155). Seria, assim,
de símbolos, a um mundo histórico-social e a uma região geográfica o Regionalismo uma espécie de discurso de resistência aos tem-
existente. A regionalidade seria, portanto, resultante da determinação pos capitalistas ou neoliberais. Sendo assim, o discurso da obra
como região ou província, de um espaço, ao mesmo tempo, vivido e regionalista vale-se de uma identidade que a qualifica como tal,
subjetivo. (CHIAPPINI, 2014, p. 52).
determinando a região vislumbrada pelo texto literário. De modo

45
análogo, Ligia Chiappini, assegura esta visão ao considerar o Re- FOGO MORTO E A MORATÓRIA: REGIONALISMO E RE-
gionalismo como GIONALIDADE

um fenômeno universal, como tendência literária, ora mais ora me- A leitura verticalizada da peça teatral A moratória, de Jorge
nos atuante, tanto como movimento - ou seja, como manifestação de Andrade e do romance Fogo morto, de José Lins do Rego faz-nos
grupos de escritores que programaticamente defendem sobretudo uma
literatura que tenha por ambiente, tema e tipos uma certa região rural perceber, do ponto de vista de suas criações estéticas, ecos de si-
em oposição aos costumes, valores e gosto dos citadinos, sobretudo das militude que vislumbram aspectos referentes à associação de tais
grandes capitais - quanto na forma de obras que concretizem, mais ou obras a um processo de construção discursiva que pode marca-las
menos livremente, tal programa, mesmo que independentemente da como regionalistas e manifestando matizes de regionalidades.
adesão explícita de seus autores. (CHIAPPINI, 1995, p. 153-4). Publicada inicialmente em 1959, a peça do dramaturgo paulis-
tano Jorge Andrade, A moratória, retrata o dilema de uma família
Ou seja, uma literatura que nasce na oposição aos centros ur-
cafeeira no trânsito entre as décadas de 1920 a 1930 que perde
banos, seja isso intencional ou inconsciente na obra literária.
suas terras em decorrência de uma crise financeira ocorrida na-
De modo a tecer algumas caracterizações acerca da obra regio-
quela época. O drama é constituído de seis personagens: Joaquim,
nalista, Gargublio (op. cit.) sistematiza as quatro características
o patriarca, homem da terra e senhor de sua memória-honra que
que lhe referenda, são elas: (1) conservadoras - dos costumes,
insiste em afirmar a esperança que suas terras voltarão ao seu do-
das crenças, das tradições; (2) denunciante - das realidades so-
mínio; Helena, sua esposa, é o símbolo da dona de casa submissa,
ciais, das misérias; (3) acomodadas - apresentando o pitoresco,
reclusa, também, em suas lembranças dos tempos de cafezal, mas,
o exótico da regionalidade; (4) globalizantes - tecem o fio nar-
diferente de Joaquim, ela tem consciência de que jamais voltará
rativo com o regional de modo à experienciar na diegese da obra
a família ao status de antes; Lucília, filha do casal, na realidade
fatores universais. (Cf. GARBUGLIO, 1979).
pós-perca da terra é a provedora dos bens familiares através da
Por fim, vale ressaltar que os processos de regionalidade/regio-
costura; Marcelo, irmão de Lucília, jovem que não se habitua ao
nalismo na literatura podem não se circunscrever, tão-somente,
trabalho, não exerce ofício em longa duração, não acostumado
ao espaço rural, como ora apresentado. O aspecto de universa-
com a nova situação da família; Olímpio, advogado, pretendente
lização, apontado tanto por Chiappini (op. cit.), quanto por Gar-
de Lucília para casamento; Tia Elvira, irmã de Joaquim, é a repre-
buglio (op. cit.) levam a crer que o regionalismo e a regionalidade
sentação da aristocracia, mulher de posses, mas, mesmo assim,
podem ser aplicados não apenas ao que, historicamente, se con-
não ajuda o irmão na penúria pela perda da terra. A “moratória”
cebeu enquanto obra regionalista, mas a toda literatura. Afinal, de
refere-se ao tempo de dilatação de prazo, concedido judicialmen-
um ponto de vista amplo, toda obra literária está localizada em
te, para a quitação de uma dívida. A família de Joaquim não con-
algum espaço geográfico simbolizado, seja ele rural/urbano ou em
segue este lenitivo, concluindo a narrativa com a perda total das
suas confluências, sendo marcado por regionalidades.
terras sem esperança de que elas sejam devolvidas ou recuperadas
por eles.
Fogo morto, do paraibano José Lins do Rego, é um romance
publicado, inicialmente, em 1957 e tem sua trama ambientada no
agreste do estado da Paraíba, sobretudo, na cidade do Pilar, no iní-

46
cio do século XX - além de apresentar uma parte do romance que pecto de similitude, em ambas as obras, pelo apego a terra. Tanto a
volta para o século anterior. A narrativa é dividia em três partes: peça como o romance trabalha nesta ótica. Abaixo apresentamos
(1) O Mestre José Amaro; (2) O Engenho de Seu Lula; (3) O Ca- alguns trechos que estão vinculados a esta proposição:
pitão Vitorino. Na parte (1) encontramos, como o título indica, as
ações diegéticas concentradas na personagem Mestre José Amaro: Em A moratória, de Jorge Andrade
celeiro de profissão, vive como agregado ao Engenho Santa Fé, Helena: Se seu tio arrematar a fazenda, o Quim poderá continuar,
trabalhar, morrer em suas terras. Há homens que não sabem, não po-
pertencente, àquele momento, ao Seu Lula. Homem de gênio difí- dem viver fora de seu meio. Seu pai sempre morou na fazenda. Para
cil, vive em pé de guerra com todos que o rodeia. Sempre dono da nós o mundo se resume nisto. [...] Viveríamos, mas não é só por isto
verdade, não aceita a opinião alheia quando seu ponto de vista é que importa. A gente nasce, vive e trabalha na terra. Não aprendemos
contrariado. Mora com sua mulher, dona Sinhá, e sua filha Marta. a viver outra coisa, nem a viver de outra maneira. Se tivéssemos que
São duas mulheres de certa amargura. Dona Sinhá casa-se com o sair, não sei o que poderia acontecer. (ANDRADE, 1996, p. 99-100).
Mestre sem calor de paixões e na casa a relação entre eles é jamais Em Fogo morto, de José Lins do Rego
amistosa. Marta, moça-velha, está na habitação dos trinta anos e é Tinha terra gorda para trabalhar, dinheiro, negros, sementes, e ficava
solteira, além de permanecer, durante toda a narrativa, louca dos dentro de casa, naquela leseira, naquela preguiça sem fim. Como po-
sentidos normais. No fim da primeira parte temos o ápice da lou- dia um homem com uma manhã de maio, com os negros cavando cova
cura de Marta que vai ocasionar na sua internação em uma clínica de cana para o plantio, ficar dentro de casa? Como podia um homem
não tomar gosto pela lavoura crescendo na terra, com um engenho
psiquiátrica. A (2) segunda parte do romance retrata a origem do moendo, um bonito safrejar de vinte e quatro horas? O cheiro do mel,
Engenho Santa Fé apresentando sua gênese, sua apoteose e sua o cheiro da terra molhada, a chuva, o sol, os lagartos, as cheias do rio,
decadência. Tem como personagens principais: o capitão Tomás nada daquilo valia para o seu genro? (REGO, 2004, p. 231).
Cabral de Melo, fundador do engenho; dona Mariquinha, esposa
do capitão; e dona Amélia, sua filha - em um primeiro momen- Como podemos observar, nos trechos, ambos tratam do apego
to. Após, aparece o Seu Lula de Holanda, que casa-se com dona a um determinado espaço regional. O primeiro, da peça, apresen-
Amélia, e desta união surge Neném. Além destes personagens, ta a fala da personagem Helena, tratando da vinculação de sua
há ainda dona Olívia, irmã de Amélia, que assim como Marta, é família, bem como do seu marido ao espaço da fazenda de café,
louca e sobrevive durante toda narrativa afirmando banalidades. como único local de identificação, de sobrevivência. No trecho
Na última parte (3) do romance encontramos a continuação da do romance, encontramos a proposição do narrador que, de certo
primeira parte, tendo como foco principal a valentia picaresca do modo, apresenta o discurso do capitão Tomás, fundador do Enge-
capitão Vitorino Carneiro da Cunha. Nesta parte haverá a inva- nho Santa Fé, que está insatisfeito com as atitudes de indiferença
são do cangaceiro Antonio Silvino nas propriedades de engenho e ao trabalho com a terra feito pelo seu genro, Lula de Holanda.
de comércio do Pilar. Essa ação narrativa será a mola responsável Ecoa nesses trechos algo bastante peculiar àqueles que trabalham,
para as ações que estão adjacentes a ela. A narrativa conclui-se que mantem o seu sustento com a terra, o apreço à vivência com
com o suicídio do Mestre José Amaro. o espaço de produção rural. Existe um aspecto a ser considerado
Observando os aspectos da regionalidade, na confluência entre na associação das narrativas quanto as suas regionalidades, além
a “realidade” e a representação do regional, mediante as configu- do apego à terra. Porque este espaço, tão apreciado pelas perso-
rações simbólicas do experiencial, podemos vislumbrar um as- nagens, é suscitado com elementos que caracterizam o espaço

47
regional. Por exemplo, no segundo trecho observamos a com- históricos na dramaturgia de Jorge Andrade. Rev. bras. Hist.,
posição do cenário citadino em um ambiente rural de engenho. São Paulo , v. 21, n. 42, p.457-480, 2001
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
PALAVRAS FINAIS arttext&pid=S0102-
01882001000300010&lng=en&nrm=iso>.
Como podemos perceber nestas obras, de autores distintos, Acessado em 02/08/2015. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-
marcadas por regionalidades similares, porém, emergidas de es- 01882001000300010.
paços regionais diferentes, anunciam com suas tessituras estéticas CANDIDO, Antonio. Direito à literatura. In: _____. Vários es-
a afirmação do discurso regionalista, enquanto tendência expres- critos. 3ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
siva na literatura brasileira. De modo amplo, podemos compreen- BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 47ª ed.
der, seguindo a ótica de Chiappini (1995), de que tais obras figu- São Paulo: Cultrix, 2006. CHIAPPINI, Ligia. Regionalismo(s) e
ram uma demonstração de literatura que, embora matizadas de regionalidade(s) num mundo supostamente global. In: MACIEL,
regionalidades, demonstram particularidades que transcendem Diógenes André Vieira (Org.). Memórias da Borborema 2:
o regional, notadamente situado. O código literário enquanto internacionalização do regional. Campina Grande: Abralic, 2014.
espelho da experiência humana, com sua função humanizadora _____. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na lite-
(CANDIDO, 1995), traz consigo a subjetividade do ser, com suas ratura. In: Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 08, n.º 15, 1995,
memórias, e meios de convivência, que embora cada homem ma- p. 153-159.
nifeste, marcadamente, sua cultura, ainda assim existe uma simi- COUTINHO, Afrânio. (dir.). A literatura no Brasil. Vol. 5. 7ª
litude que o faz compreender o que está além de si, em termos de ed. São Paulo: Global,
experiência humana. O lamento pela terra perdida ou a dor da fa- 2004.
mília que perece por um dos seus que sofrem, são experiências que GARBUGLIO, José Carlos. Fôlego de gato (o regionalismo e
trazem consigo não apenas um tempo marcado, mas um modo de suas versões) In: Acta
encarar os reveses de suas trajetórias. E, assim, compreendemos Semiótica et Lingvistica, PPGL/UFPB - SBPL, v. 03, n.º 01, p.
que tanto A moratória como Fogo morto constituem-se com 41-46, 1979.
construções de sentidos que, mesmo em cenários que particula- GONÇALVES, Magaly Trindade; AQUINO, Zélia Thomaz de;
rizam regionalidades e regionalismos, trazem consigo o aporte de BELLODI, Zina C.
leitura para além do citadino, quando se refere, assim como toda (orgs). Antologia comentada de Literatura Brasileira: poesia e
literatura, ao grau de humanidade de suas letras. prosa. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2006.
REFERÊNCIAS HAESBAERT, Rogério. Região, regionalização e regio-
nalidade: questões contemporâneas. In: Antares, n.º 03, jan/jun,
ANDRADE, Jorge. A moratória. 16ª Ed. Rio de Janeiro: Agir, 2010.
1996. MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos.
ARANTES, Luiz Humberto Martins. Quando o teatro tece a 21ª ed. São Paulo: Cultrix,
trama: apontamentos 1998.

48
NEJAR, Carlos. História da literatura brasileira: da Carta presentes nesses dois romances a partir do modo como os sujeitos
de Caminha aos contemporâneos. São Paulo: Leya, 2011. ficcionais – autor, narrador, personagem – são constituídos. Em
NEVES, Larissa de Oliveira. A personagem e seu mundo: uma paralelo, pretende-se pensar o papel da escrita literária na consti-
análise de A moratória, tuição desses sujeitos, estando ela (escrita) e eles (sujeitos) sempre
de Jorge Andrade. Pitágoras, 500 - vol. 1 - Outubro 2011. a desafiar os limites de sua própria existência no âmbito ficcional.
Disponível em < Para tal, é fundamental debruçar-se sobre a história do romance
http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/pit500/arti- moderno; assim, os estudos de Ian Watt em seu A ascensão do
cle/view/8634752/2671>, romance (1957) é referência fundamental para esta análise. Por
acessado em 02/08/2015. outro lado, pensar os sujeitos ficcionais requer também recorrer à
REGO, José Lins do. Fogo morto: romance. 61ª Ed. Rio de Ja- filosofia contemporânea, sendo Michel Foucault e Giorgio Agam-
neiro: José Olympio, 2004. ben nomes fundamentais, na medida em que discutem a noção de
sujeito a partir também da noção de autor – autor como função,
para Foucault; autor como gesto, para Agamben. Teremos, assim,
uma visão desses dois romances como um círculo biográfico que
se aproxima da escrita de si contemporânea, pensada por estu-
RESUMO diosos como Leonor Arfuch em seu O espaço biográfico (2010).
A análise dos textos literários, ampliada pelo arcabouço teórico
Personagem marcante e intrigante da literatura machadiana, o indicado, permite perceber que, muito antes do surgimento do
Conselheiro Aires constitui-se como uma ferramenta importante termo autoficção, Machado de Assis já colocava em jogo a sua au-
para a reflexão sobre os sujeitos ficcionais a partir das concepções toridade por meio de uma escrita de si contaminada pelo outro.
de autoria que se podem inferir nos jogos que se estabelecem nos
dois últimos romances do escritor carioca – Esaú e Jacó (1904) Palavras-chave: Machado de Assis; autoria; romance moderno;
e Memorial de Aires (1908). A começar pelas advertências des- escrita de si
ses romances, as quais compõem um nível ficcional à parte das
histórias contidas nos dois livros, vemos constituir-se um sujeito
autor que se desdobra em sujeito personagem e sujeito narrador, JOGOS AUTORAIS E SUJEITOS FICCIONAIS: O
sendo assim, um mosaico de fragmentos espalhados por meio de CONSELHEIRO AIRES E A ESCRITA MACHADIANA
uma escrita não menos fragmentária. Narrativa com resquícios
de diário no primeiro romance, e diário contaminado por uma
Ana Carla Lima Marinato¹
narrativa no segundo, a escrita machadiana nos anos finais de sua
vida não cessa de refletir sobre o seu próprio estatuto enquanto
¹ Mestre em Letras - CCHN - Ufes; E-mail: anamarinato@gmail.
escrita, ao passo que o sujeito Machado de Assis, enquanto au-
com
tor, se imiscui na ficção que engendra, o que nos leva a pensar
na autoria como algo que se coloca no limite entre a realidade
e a ficção. Pretende-se, então, discutir as concepções de autoria

49
Resumo - Pretende-se neste trabalho analisar o modo de constitui- A escrita machadiana já foi incansavelmente estudada, e sua for-
ção da autoria em Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), tuna crítica vem apontando, frequentemente, o fato de seus textos
últimos romances publicados de Machado de Assis. Tal análise é investirem sempre na produção de sentido, exigindo um leitor ati-
feita em paralelo a uma reflexão sobre um sujeito autor que se faz vo, que se atente para o devir do texto. Entretanto, não podemos
juntamente com os outros sujeitos ficcionais que se apresentam afirmar, à maneira de um new critic, que a figura do autor está
nos livros. Percebemos que as estratégias ficcionais empregadas totalmente descolada do texto literário, sendo este uma coisa neu-
por Machado nesses dois últimos romances nos levam a pensar o tra, pronta para ser cartesianamente estudada. Vemos delinear-se,
lugar do autor de modo semelhante ao que se vê em torno do que a partir das advertências, todo um jogo autoral, em que o escritor
se denomina autoficção, na literatura contemporânea. Machado de Assis se coloca em um plano ficcional, no mesmo
nível de sua personagem. A leitura dos romances mostra, por ou-
tro lado, uma propagação desse jogo, que se espalha por outras
INTRODUÇÃO instâncias ficcionais - personagem, narrador. Constatam-se, as-
sim, recursos de autorreferencialidade e de constituição do sujeito
Algo de bastante intrigante se passa com a constituição do Con- autoral que vão além da mera negação da existência do autor em
selheiro Aires nos dois últimos romances de Machado de Assis: sua obra; tais recursos parecem ser semelhantes, a princípio, aos
Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). Esse personagem que são normalmente utilizados em (auto)biografias, gênero cuja
permite pensar o estatuto de sua posição enquanto autor, além recepção crítica vem sendo pensada e repensada na contempo-
de deixar reflexões sobre uma possível presença do seu criador: raneidade, sobretudo quando se têm em vista as concepções de
Machado de Assis. Sabemos que os dois romances são precedidos sujeito comuns no pensamento filosófico a partir dos escritos de
de advertências. No primeiro, um misterioso editor afirma ter en- Friedrich Nietzsche. Percebem-se, na literatura contemporânea,
contrado alguns cadernos entre os pertences do conselheiro, após inúmeras intromissões autorais que – talvez de forma um tanto
a sua morte, informando o leitor sobre o fato de que o romance mais “discreta” do que faria um Bernardo Carvalho ou um Silvia-
em questão (integralmente encontrado em um dos cadernos) fora no Santiago, para fazer jus à figura recatada do escritor em ques-
escrito por Aires: ele é o autor, embora o título do texto tenha tão – também aparecem aqui e lá na obra de Machado de Assis.
sido alterado pelo editor. No segundo, o mesmo editor diz que O estudo conta, assim, com a contribuição de estudiosos que
resolveu editar uma outra parte dos cadernos do conselheiro, re- buscam investigar o fenômeno biográfico na contemporaneidade,
ferente ao seu Memorial, dessa vez editando o texto para formar como Leonor Arfuch em seu Espaço biográfico (2010); dessa for-
um narrativa, embora tenha conservado a forma de diário. E nes- ma, será possível perceber, no escritor carioca de fins do século
sa segunda advertência, um fato novo: uma assinatura - M. de A. XIX, algo semelhante ao que se vem constatando na escrita de
Seria Machado de Assis esse editor? Ou a sigla se refere ao nome si contemporânea. Por outro lado, é necessário pensar em ques-
do romance - Memorial de Aires? Tais são os questionamentos já tões formais: vemos que uma análise conjunta dos dois romances
levantados por Wilberth Salgueiro (2006-07) em estudo onomás- nos leva a indagar sobre a própria forma narrativa do romance,
tico sobre o nome do conselheiro. pensada por Ian Watt em seu Ascensão do romance (2010). Ve-
Não se pretende, neste estudo, claro está, tentar levantar dados mos em Machado de Assis uma luz que se volta para as origens
biográficos para explicar algo relativo à vida do escritor carioca. do gênero com o qual trabalha, ao mesmo tempo em que torna

50
problemáticas suas premissas. Por fim, Michel Foucault e Giorgio Arfuch (2010), sendo o diário um elemento imprescindível nesse
Agamben, com suas discussões a respeito do autor, nos ajudam a espaço. Arfuch (2010, p. 144) lembra a qualidade de “limo” do di-
pensar a constituição do sujeito contemporâneo de forma similar ário, o lugar do íntimo: “o diário cobiça um excedente, aquilo que
ao que vemos nos textos literários estudados: sujeitos múltiplos, não é dito inteiramente em nenhum outro lugar ou que, assim que
constituídos em uma escrita que se desdobra em sua exteriorida- é dito, solicita uma forma de salvação.” Assim, Aires faz-se autor
de; sujeitos que deixam ver sua presença ao mesmo tempo em que de romance, primeiramente, entrando para o círculo da atividade
desaparecem no texto. artística e, em seguida, desponta como autor de diário; a publi-
cação deste último eleva a curiosidade do leitor, que encontra no
METODOLOGIA Memorial, a princípio, uma forma de espiar, pelo buraco da fecha-
dura, os detalhes até então secretos de sua vida cotidiana, vistos
O presente estudo baseou-se na leitura e análise dos textos lite- apenas por relances em Esaú e Jacó, onde se tem acesso a trechos
rários em questão comparativamente, na tentativa de compreen- do Memorial. Além disso, queremos encontrar ali as motivações
der os indícios deixados em cada um dos livros, os quais compõem que o levaram a escrever o romance, como surgiram suas ideias,
ligações e contatos que formam um rede ficcional. A partir dos de onde teria vindo a inspiração para criar personagens tão enig-
resultados dessa análise, foi possível cotejar as conclusões prévias máticos; enfim, poderíamos encontrar as respostas às perguntas
com as ideias dos teóricos consultados - Arfuch, Watt, Foucault e que se fizeram no romance, e que não pudemos encontrar devido
Agamben - para, por fim, chegar a uma conclusão sobre o modo à obscuridade com que os eventos se encobriram. Essa esperança
como a literatura machadiana discute a noção de autor e sujeito. é vislumbrada nas primeiras anotações do Memorial, quando nos
deparamos com a lembrança de Aires de ter chegado aposentado
RESULTADOS E DISCUSSÃO ao Rio de Janeiro há exatamente um ano do dia daquela anotação.
Segue-se um bilhete de sua irmã pedindo-lhe para acompanhá-la
Analisando o jogo autoral que se estabelece a partir da adver- ao cemitério; dá-se a ida ao cemitério, aparece a figura de Fidélia...
tência do primeiro livro, Esaú e Jacó, estendendo-se até o Memo- e as anotações se desviam então para outro foco. O leitor se frustra
rial de Aires, vemos um círculo ficcional ser criado em torno de ao perceber que ali não encontrará os detalhes da vida do autor
fatos aparentemente “reais”: a autoria de Aires. Ele é o autor dos Aires que esperava, mas apenas algumas breves confissões e, prin-
dois livros, sendo o primeiro um romance que se tece por meio de cipalmente, sua obsessão em estudar a vida dos outros. O mesmo
um narrador “oniciente”, que vez ou outra expõe dados de sua vida afã que o leitor do diário apresenta em espiar a vida do diarista,
e os compara à personalidade do conselheiro, que aparece no tex- Aires revela em relação à vida que o rodeia. E é apenas sob essa
to também enquanto personagem. A relação entre o narrador e o perspectiva que poderemos chegar a sua “intimidade”.
personagem Aires parece formar, assim, um mesmo eu que é uno É preciso ter em mente, entretanto, que toda essa artimanha
e múltiplo: eles compõem juntos a escrita, na medida em que ve- só é possível devido à intervenção do editor: é ele quem promove
mos aqui e ali reflexões do conselheiro, até mesmo citações diretas tal desfiguração da autoria de Aires, rasurando-lhe a identidade a
do seu memorial. A ponte entre os dois romances é clara, e vemos partir do momento em que publica uma parte do Memorial “des-
formar-se aí uma espécie de círculo biográfico ficcional: Machado bastada e estreita, conservando só o que liga o mesmo assunto”
parece simular um “espaço biográfico”, na expressão de Leonor (ASSIS, 2008, p.51). Como num efeito de simetria, as intenções

51
de Aires são tão inacessíveis quanto as intenções de Fidélia, Tris- muito deve ao autor-narrador de Esaú e Jacó, do mesmo modo
tão, Carmo, Aguiar e todos os outros personagens que rodeiam que o diarista Aires muito deve aos personagens que observa em
o Conselheiro. O jogo autoral adquire camadas, como máscaras seu cotidiano. O sujeito é constituído em sua alteridade, desapa-
eternas que apenas escondem fragmentos. E a camada final, o recendo de sua escrita sempre que, por algum desvio, focalizar o
editor, sendo também criação ficcional, coloca-se no limiar que seu “eu” mais íntimo; ele reaparece enquanto relação com o ou-
toca a figura do nosso escritor carioca: Machado de Assis se revela tro, de modo que o seu “eu” se transforma em uma dispersão e
aqui como um ponto sensível que guarda potencialmente o conta- pluralidade de egos. Vemos o encontro dessa perspectiva com a
to contaminador entre ficção e realidade; seria, quiçá, a chegada e ideia foucaultiana de autor: o sujeito autor não é exatamente o
a largada de uma corrida cuja pista é povoada por sentidos que se sujeito fundador, sendo na verdade uma função, “característica do
mantêm vivos e se movimentam na efetividade da leitura. modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos
Tais estratégias mostram-se como verdadeiras ameaças ao ro- discursos no interior de uma sociedade” (FOUCAULT, 2001, p.
mance em sua forma tradicional, a qual começa a ganhar o público 274). Agamben, por outro lado, afirma que o autor é um gesto, já
na Inglaterra do século XVIII. Como constatou Ian Watt em seu que não está presente de forma substancial, pois instala um “va-
Ascensão do romance, o romance moderno aparece em meio a zio central”, sendo então “o que resulta do encontro e do corpo-a-
uma sociedade que, pouco a pouco, substitui os elementos univer- -corpo com os dispositivos em que foi posto – se pôs – em jogo”
sais provenientes da literatura grega antiga por elementos indivi- (2007, p. 159). Parece-nos que a assinatura do editor dos livros
duais, de modo que o sujeito busca constituir “um relato completo encarna metonimicamente e ficcionalmente esse gesto, pois é ela
e autêntico da experiência humana”, fornecendo ao leitor “deta- que garante, paradoxalmente, a presença e a ausência do autor su-
lhes da história como a individualidade dos agentes envolvidos, os posto nos textos publicados. Podemos incluir ainda a figura do
particulares das épocas e locais de suas ações” (2010, p. 34). Watt próprio escritor, Machado de Assis, se tivermos em conta a con-
destacou que tais características estão associadas uma necessidade fusão onomástica presente em M. de A., do Memorial de Aires,
de ser “realista”, já que os romancistas de então empregam uma como foi elucidada por Wilberth Salgueiro (2006-07, p. 60): na
linguagem muito mais referencial do que se percebia na tradição dúvida quanto à referência estabelecida por essa assinatura – Me-
literária anterior; assim, o estudioso entende que o romance reúne morial de Aires, Marcondes Aires ou Machado de Assis? – vemos
características gerais que podem ser entendidas como constituin- a garantia de um indivíduo real pondo-se em jogo em sua escrita,
tes de um “realismo formal”. Trata-se de uma tendência que se liga ao que se recria ficcionalmente. A ausência do autor Aires (não é
à tradição filosófica cartesiana, a qual vê no sujeito um ser uno, ele que fala enquanto editor dos seus livros) reafirma sua identi-
homogêneo, fundador do conhecimento, operando o seu método dade enquanto ser de papel; por outro lado, esse ser de papel não
científico baseado no dualismo entre sujeito e objeto de estudo, poderia ser descolado do autor Machado, sob pena de ser tomado
em que o sujeito se distancia do objeto para o bem da neutralida- por uma “realidade substancial”. O autor – seja Machado, seja Ai-
de da análise. res – não pode ser imediatamente apreendido por meio da mera
Vemos, nos textos machadianos, justamente o questionamento referência possivelmente estabelecida pelo pronome pessoal; mes-
dessa possível base cartesiana do romance: a observação da rela- mo assim, não cabe eliminá-lo da escrita, conferindo a esta um
ção entre os sujeitos ficcionais nos mostra que eles constituem- estatuto transcendental. A presença de Machado em seu livro é as-
-se justamente na medida em que se tocam. Assim, o autor Aires segurada pela assinatura – M. de A. –, garantindo sua existência,
como autor, a partir de sua própria ausência: enquanto um gesto.
52
CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS

Vemos, na literatura machadiana, a criação do devir, de uma AGAMBEN, Giorgio. O autor como gesto. In: _____. Profanações.
“zona de vizinhança” - na expressão de Deleuze (1997, p. 13), Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 55-64.
entre o eu e o outro: trata-se de uma impessoalidade que jamais ARFUCH, Leonor. O Espaço biográfico. Dilemas da subjetivida-
deixa de ser individualizada. Vemos esse tipo de trabalho ser em- de contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ,
preendido, nos textos analisados, não apenas no âmbito das rela- 2010.
ções entre os personagens, mas também no modo como o texto ASSIS, Machado. Esaú e Jacó. São Paulo: Martin Claret, 2001.
se lança em direção a um além da ficção, sem tirar os pés do seu _____. Memorial de Aires. Porto Alegre: L&PM, 2009
solo. O Conselheiro Aires figura em vários pontos dessa zona de DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: ____. Crítica e clínica.
vizinhança: como personagem, lançando-se na trama, movendo- Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 11-16.
-se entre os diversos ambientes e estabelecendo infinitos pontos FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: ______. Estética: li-
de contato com os outros personagens; e, ao mesmo tempo, como teratura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado
autor, utilizando-se das prerrogativas de tal posto – organização Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 264-298.
da escrita e de seus devires – e dividindo um espaço com a assina- (col. Ditos e Escritos, v. III)
tura de Machado. Certamente, esses papéis se misturam, e a partir SALGUEIRO, Wilberth. “José da Costa Marcondes Aires” – Con-
dessa mistura formam-se outras camadas abertas ao devir. selheiro, diplomata, escritor: um nome-calidoscópio em Esaú e
A análise dos jogos autorais, a produção subsequente de um Jacó e Memorial de Aires. In: Espelho: revista machadiana. Nú-
conhecimento a respeito da subjetividade que não se restringe ao mero 12/13, 2006-07. Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 45-67.
cogito cartesiano e a consequente constatação da relação ambígua WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Ri-
que se vislumbra entre ficção e realidade, todos esses movimentos chardson e Fielding. Trad. de Hildegard Feist. São Paulo: Compa-
operados até aqui nos remetem à atual configuração daquilo que nhia das Letras, 2010.
se tem conhecido como autoficção na literatura contemporânea.
Os efeitos provocados pelas estratégias de construção da autoria
nos textos machadianos remetem às mesmas reflexões suscitadas RESUMO
pelo estudo da autoficção: autor e sujeito se abrem para o acaso
da escrita, o que se efetua particularmente pela confluência entre Esse artigo realiza uma análise literária das principais obras
a forma diário e a forma romance, ambos retrabalhados a partir dos dois escritores do Modernismo, destacando suas aproxima-
dos pressupostos ligados a suas concepções tradicionais. Pensar ções e peculiaridades. Sem nos valermos de um arcabouço teórico
a autoria em Esaú e Jacó e Memorial de Aires é pensar a respeito específico, desenvolvemos um cotejo entre suas principais obras,
das mais variadas discussões que ela suscita, as quais só podem ser contextualizando-os e trazendo elementos para análise do próprio
engendradas pelo questionamento acentuado, no pensamento e texto literário. Mário e Oswald de Andrade formaram a dupla de
na literatura ocidental, de um dualismo (sujeito/objeto) insistente liderança do Modernismo no Brasil, responsável pela introdução
e insuficiente. das novas propostas artísticas das vanguardas europeias. Tão pre-
ocupados com o estabelecimento de um projeto cultural genui-

53
namente brasileiro quanto com a recepção e adaptação das ideias dois baluartes do Modernismo no Brasil: Osvald de Andrade e
vanguardistas, produziram obras que tinham como objetivo tra- Mário de Andrade. Os dois pensaram o país e sua nacionalidade
duzir as tradições nacionais com registro inovador. Mas ambos a partir de uma ótica vanguardista, mas também profundamente
tinham a noção da responsabilidade que estavam em suas mãos. nacionalista. Irreverentes e inovadores na forma e conteúdo, su-
E ambos sabiam que, não obstante os nascentes modernismos blevando as normas gramaticais graças a uma inteligente crítica
de outros lugares – Recife, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, por à linguagem empolada e erudita, herança do parnasianismo que
exemplo, a capital paulista serviria de grande disseminação dos tanto tempo influenciou o comportamento intelectual das elites e
ideais vanguardistas em todo país. Publicado em 1933, Serafim artistas do Brasil até o começo do século XX.
Ponte Grande, de Oswald de Andrade, possui, entretanto, o es-
pírito do Primeiro Tempo Modernista (1922-30), pois foi produ- PALAVRAS-CHAVES: Mário de Andrade; Osvald de Andrade;
zido durante o clima iconoclasta desse período. Essa é a explica- Mário de Andrade e Osvald de Andrade; Modernismo, 1ª. Gera-
ção tanto para os seus méritos como para seus defeitos. Apesar de ção; Serafim Ponte Grande; Memórias Sentimentais de João Mi-
ser considerado continuação de Memórias Sentimentais de João ramar.
Miramar, a presente obra representa um dos pontos máximos da
prosa dos anos heroicos do modernismo, mesmo que não che-
gue perto de Brás, Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcântara
Machado ou de Macunaíma, de Mário de Andrade. Seu grande MÁRIO DE ANDRADE E OSWALD DE ANDRADE:
valor está no cuidado em se colocar na vanguarda literária de seu APROXIMAÇÕES E SEMELHANÇAS ENTRE SUAS
tempo. Sua temática, por exemplo, se não é moderna, é típica do
OBRAS
modernismo. Por último, destacaríamos a não linearidade dos
romances. Serafim, ainda segue algum tipo de fio condutor, mas
muito tênue. Poderíamos ler seus capítulos isoladamente, como
André Cervinskis
contos autônomos. Há textos que são peças de teatro, diários, en-
Mestre em Linguística (UFPB)
ciclopédias ou glossários e outro gêneros tradicionais também.
No caso de Memórias, esse fio condutor se desfaz completamente.
Resumo: Esse artigo realiza uma análise literária das principais
Há textos em forma de cartas, poemas, pequenos contos, numa
obras dos dois escritores do Modernismo, destacando suas apro-
total fragmentação: Quinta-feira; Vem-me à cabeça a toda hora
ximações e peculiaridades. Sem nos valermos de um arcabouço
uma ideia idiota e absurda. Enrabar o Pinto Calçudo. Cheguei a
teórico específico, desenvolvemos um cotejo entre suas principais
ficar com o pau duro. Preciso consultar um médico! (ANDRADE,
obras, contextualizando-os e trazendo elementos para análise do
1933, p. 33) “Joãozinho, Depois que tu partiste a Celiazinha estava
próprio texto literário. Mário e Oswald de Andrade formaram a
um pouco abatida, caiu doente com resfriado. Há seis dias que
dupla de liderança do Modernismo no Brasil, responsável pela in-
o Dr. Pepe Esborracha vem vê-la todos os dias no Ford de Pin-
trodução das novas propostas artísticas das vanguardas europeias.
dobaville. Felizmente já sarou porque os remédios foram muito
Tão preocupados com o estabelecimento de um projeto cultural
acertados. Ele é muito bom médico”. [...] (ANDRADE, 1990, p.
genuinamente brasileiro quanto com a recepção e adaptação das
79). Assim sendo, as três obras são as mais representativas dos
ideias vanguardistas, produziram obras que tinham como objeti-

54
vo traduzir as tradições nacionais com registro inovador. Assim METODOLOGIA
sendo, as três obras são as mais representativas dos dois baluartes A literatura comparada foi a opção metodológica aplicada
do Modernismo no Brasil: Osvald de Andrade e Mário de An- por nós nesse trabalho. No caso, comparamos os livros Memórias
drade. Os dois pensaram o país e sua nacionalidade a partir de sentimentais de João Miramar e Macunaíma, de Mário de Andra-
uma ótica vanguardista, mas também profundamente nacionalis- de, e Serafim Ponte Preta de Osvald de Andrade, num perspectiva
ta. Irreverentes e inovadores na forma e conteúdo, sublevando as crítica.
normas gramaticais graças a uma inteligente crítica à linguagem
empolada e erudita, herança do parnasianismo que tanto tempo RESULTADOS E DISCUSSÃO
influenciou o comportamento intelectual das elites e artistas do
Brasil até o começo do século XX. Uma das inovações praticadas por Oswald de Andrade em
Memórias Sentimentais de João Miramar é a extensão dos capí-
Palavras-chaves: Mário de Andrade; Osvald de Andrade; Mário tulos do livro, extremamente curtos. Funcionam como retalhos
de Andrade e Osvald de Andrade; Modernismo, 1ª. Geração; Se- do passado do narrador, cuja memória é acionada de forma frag-
rafim Ponte Grande; Memórias Sentimentais de João Miramar. mentada. João Miramar pertence a uma rica família burguesa. Sua
infância é marcada pela morte do pai. Miramar estuda em bons
colégios de São Paulo e, depois de se formar, parte para uma longa
INTRODUÇÃO viagem de conhecimento e amadurecimento, passando por Tene-
rife, França, Alemanha, Itália, Suíça e Inglaterra. Neste último país
Mário e Oswald de Andrade formaram a dupla de liderança recebe um dinheiro extra, enviado pela família, que solicita seu
do Modernismo no Brasil, responsável pela introdução das no- rápido retorno ao Brasil. O jovem deve voltar ao país para assumir
vas propostas artísticas das vanguardas europeias. Tão preocupa- suas responsabilidades de herdeiro e de homem adulto. Ao chegar,
dos com o estabelecimento de um projeto cultural genuinamente toma conhecimento da morte da mãe – o que completa sua con-
brasileiro quanto com a recepção e adaptação das ideias vanguar- dição de órfão. Recebe a herança que lhe é devida e se casa com a
distas, produziram obras que tinham como objetivo traduzir as prima Célia, estratégia usual naquela época para manter o contro-
tradições nacionais com registro inovador. Mas ambos tinham a le financeiro em mãos familiares. Daí, seguem-se várias desventu-
noção da responsabilidade que estavam em suas mãos. E ambos ras amorosas e desencontros até que se reaproxima da filha.
sabiam que, não obstante os nascentes modernismos de outros Memórias Sentimentais de João Miramar, publicado em
lugares – Recife, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, por exemplo, a 1924, é tão importante para a literatura brasileira quanto Macu-
capital paulista serviria de grande disseminação dos ideais van- naíma, de Mário de Andrade, publicado alguns anos depois. Nos
guardistas em todo país. Afinal, como o próprio Oswald dizia: dois casos, nota-se o esforço de renovação da ficção brasileira,
tanto na abordagem do assunto quanto em sua expressão verbal.
O movimento modernista, culminado no sarampão antropofágico, Obra de leitura exigente, Memórias Sentimentais representa um
parecia indicar um fenômeno avançado. São Paulo possuía um pode- dos pontos altos do radicalismo oswaldiano. O romance repre-
roso parque industrial. Quem sabe se a alta do café não ia colocar a
literatura nova-rica da semicolônia ao lado dos custosos surrealistas senta a primeira tentativa de construção do romance moderno no
imperialistas? (ANDRADE, 1933, p. 11) Brasil. Inserido no projeto modernista, busca desconstruir as ba-

55
ses da forma tradicional da narrativa de ficção. Esse exercício de paulistana. É uma postura contraditória, mas muito comum entre
demolição começa já no prefácio, ele próprio parte da ficção, já os primeiros modernistas. A começar, chama a atenção, no relato
que vem assinado por Machado Penumbra, personagem do livro. das memórias de Serafim Ponte Grande, a sexualização constante,
Ao final do volume, a informação a respeito do local e data da pro- já presente no primeiro capítulo:
dução da narrativa é mais um elemento de ficção: “Sestri Levante
– Hotel Miramare, 1923”.
Já começando a estabelecer um cotejo entre as obras dos dois PRIMEIRO CONTATO DE SERAFIM E A MALÍCIA
escritores, percebemos que, segundo o prefaciador desse livro, à
sua 22ª. edição, Haroldo de Campos afirma: “É o próprio Mário A – e – i- o- u
de Andrade quem, expressamente, registra a influência de Oswald Ba – Be – Bi – Bo – Bu
sobre sua prosa. Na carta de 1927, dirigida a Manuel Bandeira, Ca – Ce – Ci – Co – Cu
em que Mário se detém sobre o processo de elaboração do IX epi- (ANDRADEa, 1933, p. 19)
sódio de Macunaíma (“Carta pra Icamiabas”), encontra-se esse
depoimento:
Também nas Memórias, sentimos a mesma erotização e exa-
Essas são as intenções da carta. Agora ela me desgosta em dois pon- cerbação da sexualidade, assunto ainda tabu naquele época;
tos: parece imitação do Oswaldo e decerto os preceitos usados por ele
atuaram subconscientemente na criação da carta e acho comprida por 16. BUTANTÂ
demais. O primeiro ponto não acho remédio. O segundo, vou encurtar
a carta. Mas não tiro ela não, porque gosto muito dela. (CAMPOS Prima Nair que estava interna com as irmãs bochechudas Célia e Co-
apud ANDRADE, 1933) tita noutro colégio mandou uma carta ao Pantico dizendo assim:
“Já sabes que estou na classe amarante? As meninas aqui não são tão
Publicado em 1933, Serafim Ponte Grande, de Oswald de An- maliciosas como no internato de Miss Piss. Mas...nunca vi que espírito
drade, possui, entretanto, o espírito do Primeiro Tempo Modernis- civilizado elas têm. Pois como elas não têm moços para namorar elas
ta (1922-30), pois foi produzido durante o clima iconoclasta desse namoram-se entre si. Todas elas um namorado como elas dizem e é
período. Essa é a explicação tanto para os seus méritos como para uma outra menina: uma faz o moço e a outra a moça.
E quando elas se encontram se beijam como noivos. Por mais que não
seus defeitos. Apesar de ser considerado continuação de Memó- se queira ficar como elas, inconscientemente fica-se. As meninas de
rias Sentimentais de João Miramar, a presente obra representa um agora não são como as de outro tempo. Logo nascerão sabendo. Uma
dos pontos máximos da prosa dos anos heroicos do modernismo, de seis anos não é inocente; já têm desde pequenas aqueles olharzinhos
mesmo que não chegue perto de Brás, Bexiga e Barra Funda, de que mais tarde servirá para malícia.
Antônio de Alcântara Machado ou de Macunaíma, de Mário de Eu só comecei saber a vida aos dez anos. Hoje em dia com sete já se
sabe tudo. (ANDRADE, 1990, p. 49)
Andrade. Seu grande valor está no cuidado em se colocar na van-
guarda literária de seu tempo. Sua temática, por exemplo, se não é
moderna, é típica do modernismo. Despeja-se um humor corro- Igual erotização e sexualização encontramos também no pri-
sivo em cima das tradições e valores de uma classe social da qual meiro capítulo de Macunaíma, coincidentemente:
faz parte e chega a compactuar em certos momentos: a burguesia

56
No fundo da mata virgem, nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. portugueses e dos primeiros cronistas que deram relato de nos-
[...] Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres sol- sa terra. De envolta, é redicularizada a gramatiquice dos puristas;
tavam gritos gozados por causa dos guaiamuns diz-que habitando a
água-doce por lá. No mocambo, si alguma cunhatã se aproximava dele
[...] Já a paródia oswaldiana apanha esses mesmos vezos na sua
pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã diluição retórica”. Assim, para exemplificar:
se afastava. Nos machos guspia na cara. (ANDRADE, 2007, p. 13 –
grifos nossos) Mário:

Por estas paragens mui civis, os guerreiros chamam-se polícias, grilos,


Com esse comentário, já podemos introduzir algumas infor- guardas-cívicos, boxistas, legalistas, mazorqueiros, etc; sendo que al-
guns desses termos são neologismos, absurdos – bagaço nefando com
mações acerca de Macunaíma. Ele nasce à margem do Uraricoera
que desleixados e petimetres conspurcam o bom falar lusitano. Mas
na Floresta Amazônicae já manifesta suas características mais for- não sobra já vagar para sub tergmine fagi sobre a língua portuguesa,
tes: a sexualidade, a falta de caráter, a preguiça. Desde pequeno ele também chamada lusitana. (ANDRADE, 2007, p. 225)
busca prazeres amorosos com a mulher de seu irmão Jiguê. Em
uma de suas “brincadeiras” amorosas, Macunaíma se transforma Oswald:
em um príncipe lindo. Por suas traquinagens, Macunaíma é aban-
[...] em sua diluição retórica, Paulo Prado infelizmente engendra o
donado pela mãe. Com a ajuda dos irmãos, Macunaíma consegue mal da eloquência balofa e roçavante, um dos grandes males da raça.
fazer sexo com Ci, a Mãe do Mato, que engravida e perde o filho. (ANDRADE, 1933, p. 117)
Após a morte do filho, Ci sob e ao céu e se transforma em uma
estrela. Antes disso, ela dá a Macunaíma a famosa muiraquitã, um
tipo de talismã ou amuleto. Triste, Macunaíma segue seu caminho Mário de Andrade, centrando-se nas pesquisas etinográficas e
após se despedir das Icamiabas (tribo das índias sem marido). Vai da cultura popular, recheia seu livro de coloquialismos, não sem
a São Paulo atrás do muiraquitã. inovar a linguagem, desrespeitando a norma culta, compondo um
No retorno a São Paulo, Macunaíma escreve a famosa “Carta romance não-canônico ou tradicional, com parágrafos curtos.
pras Icamiabas”, na qual descreve, em estilo afetadíssimo, a agita- Oswald vai centrar seus dois livros principalmente na crítica aos
ção e as mazelas da vida paulistana. Com Venceslau Pietro Pietra costumes. Isso, porém, não isenta de o introdutor do poema-pílu-
adoentado por conta da surra que levou de Exu, Macunaíma fica la no Brasil esmerar-se em contos, poemas e textos epistolográfi-
impossibilitado de recuperar a pedra. Assim, ele gasta seu tempo cos curtos, inovando também na estética literária. Assim, segundo
aprendendo as difíceis línguas da terra: “o brasileiro falado e o Campos (apud ANDRADE, 1933):
português escrito”. Por fim, no epílogo o narrador conta que ficou
O Serafim de Oswald de Andrade é um livro que, desde logo, põe em
conhecendo essa história através do papagaio ao qual Macunaíma
discussão a sua estrutura. Já no Miramar Oswald desenvolvera o pro-
havia relatado suas aventuras. jeto de um livro estilhaçado, fragmentário, feito de elementos que se
Um outro elemento comum em ambos os escritores é a deveriam se articular no espírito do leitor, um livro que era como que
paródia. Como afirma o escritor e crítico Haroldo de Campos, a antologia de si mesmo. [...] Se no Miramar a grande inovação se
em prefácio à 22ª. edição de Memórias Sentimentais de João Mi- punha sobretudo no nível da sintaxe da escritura, no nível microes-
tético do encadeamento estilístico das unidades do texto (palavras e
ramar, “A paródia marioandradina é mais arcaizante, voltada para
frases), aqui é a grande sintagmática da narrativa que merece a aten-
o linguajar quinhentista, colhido nas fontes escritas dos clássicos

57
ção do autor. No Miramar, podemos reconhece um estilo cubista ou leitura mais fluida, fazendo o leitor literalmente “viajar” no texto:
metonímico, na maneira pela qual Oswald recombinava os elementos
frásicos à sua disposição. [...] Agora, no Serafim, essa técnica cubista, [...] O herói apanhava. Recebera já um murro de fazer sangue no na-
esse tratamento metonímico, parece ocorrer no nível da própria arqui- riz e um lapo fundo de txara no rabo. A icamiaba não tinha nem um
tetura geral da obra, na macroestrutura, portanto. O Serafim é um li- arranhãozinho e cada gesto que fazia era mais sangue no corpo dos
vro compósito, híbrido, feito de “pedaços” ou amostras de vários livros passarinhos. Afinal se vendo nas amarelas porque não podia mesmo
possíveis, todos eles propondo e contestando uma certa modalidade do com a icamiaba, o herói fugindo chamando pelos manos:
gênero narrativa ou da assim dita arte da prosa (ou mesmo do escre- - Me acudam que sinão eu mato! Me acudam que sinão eu mato! (AN-
ver tout court). (Grifos nossos) DRADEb, 2007, p. 31)

Por último, destacaríamos a não linearidade dos romances. Se- CONSIDERAÇÕES FINAIS
rafim, ainda segue algum tipo de fio condutor, mas muito tênue.
Assim sendo, as três obras são as mais representativas dos dois baluartes do
Poderíamos ler seus capítulos isoladamente, como contos autô-
Modernismono no Brasil: Osvald de Andrade e Mário de Andrade. Os dois pen-
nomos. Há textos que são peças de teatro, diários, enciclopédias saram o país e sua nacionalidade a partir de uma ótica vanguardista, mas tam-
ou glossários e outro gêneros tradicionais também. No caso de bém profundamente nacionalista. Irreverentes e inovadores na forma e conteúdo,
Memórias, esse fio condutor se desfaz completamente. Há textos sublevando as normas gramaticais graças a uma inteligente crítica à linguagem
em forma de cartas, poemas, pequenos contos, numa total frag- empolada e erudita, herança do parnasianismo que tanto tempo influenciou o
comportamento intelectual das elites e artistas do Brasil até o começo do século
mentação:
XX.

Quinta-feira
Vem-me à cabeça a toda hora uma ideia idiota e absurda. Enrabar o
Pinto Calçudo. Cheguei a ficar com o pau duro. Preciso consultar um REFERÊNCIAS
médico!
(ANDRADE, 1933, p. 33) ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João Miramar. 12ª. edi-
ção, São Paulo: Globo, 1999.
“Joãozinho, _____. Serafim Ponte-Grande. São Paulo: Círculo do Livro, 1933.
Depois que tu partiste a Celiazinha estava um pouco abatida, caiu do- ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Ja-
ente com resfriado. Há seis dias que o Dr. Pepe Esborracha vem vê-la neiro: Agir, 2007.
todos os dias no Ford de Pindobaville. Felizmente já sarou porque os CAMPOS, Haroldo de. Miramar na Mira. In: ANDRADEa, Oswald de. Me-
remédios foram muito acertados. Ele é muito bom médico”. [...] mórias Sentimentais de João Miramar. 12ª. edição, São Paulo: Globo, 1999.
(ANDRADE, 1990, p. 79) _______. Serafim: um grande não-livro. In: Serafim Ponte-Grande. São Pau-
lo: Círculo do Livro, 1933.

Da mesma forma, em Macunaíma, mesmo conseguindo-se


perceber o enredo, o personagem é sempre escorregadio; a im-
pressão que dá é que sempre quer enganar o leitor. Fora isso, as
referências indígenas, geográficas e a mistura do português casti-
ço com a linguagem abrasileirada (uso de “si” ao invés de “se” ou o
uso do pronome oblíquo no início de frases, por exemplo), torna a

58
RESUMO mens como um vínculo de conotação sexual, baseado no precon-
ceito e na homofobia social. O autor deixa lacunas no texto para
Este trabalho é recorte de uma pesquisa desenvolvida no curso que o leitor deposite suas parcelas de sentido e reflexão. Embora
de graduação em Letras pelo Núcleo de Pesquisa e Iniciação Cien- a narrativa revele uma grande tensão, Raul e Saul mantêm-se dis-
tífica da FAFIRE, e busca analisar o conto ‘Aqueles dois’ de Caio tantes sexualmente. No entanto, a sociedade que reprime e castiga
Fernando Abreu, publicado na coletânea Morangos mofados, de qualquer conduta desviante da norma heterossexista, associa um
1982, buscando o viés homoerótico e homoafetivo. Ainda é es- vínculo entre eles a uma conduta anormal e doentia, culminando
casso um estudo apurado acerca da literatura homoerótica, pois, no assédio moral e na demissão. Caio Fernando Abreu demonstra
por muito tempo, a homoafetividade foi relatada de forma velada de forma simples e poética que o ser humano precisa se relacionar,
e preconceituosa, como doença ou perversão. Atualmente, o tema mesmo sem entender o que está acontecendo consigo mesmo, e
ganhou mais projeção na esfera literária, como nas obras de Caio que precisamos estar mais atentos, nos colocando no lugar do ou-
Fernando Abreu, que por muito tempo foram esquecidas pelos câ- tro, respeitando a alteridade. As pessoas não são iguais, somos in-
nones acadêmicos, principalmente, por tratar de temas polêmicos divíduos diferentes uns dos outros, tornando o ser humano mais
e pouco abordados pela sociedade, como o homoerotismo. A bi- interessante na formação de suas relações identitárias. Neste sen-
bliografia escolhida na metodologia da pesquisa perpassa a teoria tido, a literatura nos ajuda a pensar e viver melhor, pois recoloca
da literatura, a cultura e a literatura gay contemporânea com base em nossas vidas a complexidade humana, observando com outros
na teoria queer, que oferecem sustentação ao trabalho. Também olhares e desmistificando estereótipos através da diversidade das
se faz necessário ressaltar o homoerotismo e a homoafetividade relações humanas, sejam elas homoeróticas, homoafetivas, sim-
em obras e artigos de outros autores e o legado contemporâneo na plesmente de amizade ou não.
produção literária brasileira, do qual faz parte o escritor gaúcho. Palavras-chave: Homoerotismo; Conto; Caio Fernando Abreu
A narrativa em ‘Aqueles dois’ é madura, pois sintetiza e relaciona
temas como iniciação, dúvida e o descobrimento do ser homos-
sexual, a homofobia individual e coletiva e a superação perante a
sociedade. Quanto à contextualização, o conto reflete o contexto O HOMOEROTISMO NO CONTO ‘AQUELES DOIS’ DE
político de exceção pelo qual passava o país, momento de grande CAIO FERNANDO ABREU
perseguição, sofrimento e desconfiança entre as pessoas, princi-
palmente no ambiente de trabalho, devido à repressão. Foi escrito Rosembergh da Silva Alves1
durante a ditadura militar, porém, publicado no período de aber- Vilani Maria de Pádua2
tura política brasileira e Morangos mofados é o reflexo do autor
sobre o projeto da contracultura de sua geração, reprimido pela 1. Estudante do Curso de Letras - FAFIRE;
ditadura, sobrando o mofo dos morangos. O conto está dividido rosemberghalves@bol.com.br
em seis partes e o desenrolar da narrativa ocorre simultaneamente 2. Docente/Pesquisadora do Curso de Letras - FAFIRE;
com a construção do relacionamento homoafetivo entre Raul e vivipadua@hotmail.com
Saul. A aproximação entre os dois protagonistas e o desinteresse
pelas mulheres permite uma interpretação da amizade entre ho-

59
Resumo - Este trabalho foi desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisa que descritiva, não utilizando do clichê da linguagem crua, ou a
e Iniciação Científica - NUPIC, no curso de graduação em Letras obviedade dos detalhes das cenas de sexo. O autor elegeu a homo-
da Faculdade Frassinetti do Recife - FAFIRE, e procura analisar afetividade como tema constante de sua obra, no momento em
o conto ‘Aqueles dois’ de Caio Fernando Abreu, buscando o viés que a repressão política no Brasil perdia forças e durante o surgi-
homoerótico e homoafetivo. Nos dias atuais, o tema ganhou mais mento da AIDS, doença vinculada, de início, à homossexualidade
projeção na esfera literária, como nas obras deste escritor gaúcho, e suas personagens geralmente são sujeitos solitários que existem
que por muito tempo foram esquecidas pelos cânones acadêmi- dentro da solidão urbana e vivem à procura da afirmação, princi-
cos, principalmente, por tratar de temas polêmicos, como o ho- palmente social e também sexual (LIMA, 2007).
moerotismo. A bibliografia escolhida na metodologia da pesquisa As expressões literatura gay ou literatura homoerótica, são na
perpassa a teoria da literatura, a cultura e a literatura gay contem- verdade, algo recente, fundamentou-se a partir do movimento de
porânea com base na teoria queer, que oferecem sustentação ao emancipação política da comunidade homossexual, que ocorreu
trabalho. O conto reflete também o contexto político pelo qual no fim dos anos 60 (COSTA, 1992). Assim, entre os anos 1970 e
passava o país, momento de grande perseguição e desconfiança 1980 houve um grande avanço no cenário das pesquisas e campos
entre as pessoas, principalmente no ambiente de trabalho, devido de estudos sobre a literatura homoerótica. Na Inglaterra surgiu
à repressão e a ditadura militar. com a expressão Queer Studies, e no Brasil foi chamada de Teoria
Queer, que, entre outras relevâncias, submete a noção de orienta-
Palavras-chave: Caio Fernando Abreu; conto; homoerotismo ção sexual a uma crítica profunda, que está na base do conceito de
homossexualidade. A Teoria Queer emergiu nos Estados Unidos
no fim da década de 1980, em oposição crítica aos estudos so-
INTRODUÇÃO ciológicos sobre minorias sexuais e gênero. A escolha do termo
queer para se autodenominar, ou seja, um xingamento que de-
As personagens homoeróticas aparecem com pouca frequência notava anormalidade, perversão e desvio, servia para destacar o
na literatura brasileira do século XIX e início do século XX. São compromisso em desenvolver uma analítica da normalização que
alguns romances em que a temática da homossexualidade apre- era focada na sexualidade (MISKOLCI, 2009). Para Costa (1995),
senta-se com clareza, porém, abordando de forma ainda tímida o quando se fala de homossexualidade deve-se estar atento para o
amor homossexual e a homoafetividade. Na contemporaneidade fato de que esta palavra não designa algo que sempre foi, é e será
as abordagens são mais poéticas e essa tendência de fazer emer- idêntica a si mesma, mas algo que é produto do vocábulo moral da
gir questões homoafetivas reacende velhas discussões em torno modernidade. Segundo Foucault (2000), isto se deve ao precon-
de parte da produção de escritores que não foram devidamente ceito e misticismo criado em torno da homossexualidade, pois,
valorizados em sua época e, subsequentes, por questões não de muitos homossexuais se concentravam na busca pelo ato em si. A
ordem estética, mas de ordem ética, moral, religiosa e cultural, escrita homoerótica é mais profunda em seu estudo do que a ên-
configurando forte preconceito e discriminação a autores e obras fase dada aos temas dos encontros sexuais entre homens, abran-
que buscaram refletir o tema do amor entre iguais. Assim, no con- gendo também os pontos de contato diretos e indiretos entre a
to ‘Aqueles dois’, de Caio Fernando Abreu, o tema homoerotismo obra e as identidades das personagens, sejam elas homossexuais
é tratado valendo-se de uma linguagem lírica, mais sugestiva do ou indivíduos em formação de gênero.

60
Essas diferentes vertentes do homoerotismo são visíveis e dife- dessas identidades, independente de classificações das práticas se-
renciáveis analisando-se a identidade e a figuração homoerótica xuais.
das personagens nos contos “Aqueles Dois”, “Os sobreviventes”,
“Sargento Garcia” e “Terça-feira Gorda”, de Caio Fernando Abreu, METODOLOGIA
publicados na coletânea Morangos mofados, de 1982 (OLIVEI-
RA; COQUEIRO, 2012). A análise do conto foi realizada a partir de leituras da obra esco-
Estamos passando por um período em que as minorias emer- lhida, apoiada nas teorias citadas e nos estudos já existentes sobre
gem e buscam espaço na esfera literária. Assim, Caio Fernando Caio Fernando Abreu e em outras obras que tratam da repressão
Abreu é um dos autores que ganha espaço e reconhecimento entre aos homossexuais durante a ditadura militar. O conto está dividi-
a crítica literária, suas obras passam a receber mais atenção e con- do em seis partes e tem como temáticas-chave o homoerotismo e
sideração, devido a suas temáticas e fino trato com a linguagem, a repressão social. É feito um desenho da sociedade, contrapondo
discutindo a homossexualidade entre textos homoeróticos dentro os padrões de moral da época às ações dos sujeitos nela envolvi-
de um contexto da literatura contemporânea que busca uma iden- dos; há um cenário de descentralização, situações fragmentadas e
tidade homossexual positiva, vinda de uma elaboração de sensibi- histórias que se cruzam e que formam um todo social.
lidades homoeróticas mais complexas, que ultrapassam a dimen- Tentamos fazer uma leitura queer a partir dos elementos ho-
são do gueto, não se preocupando em subverter ou transgredir as moeróticos e do contexto social, mas, principalmente, das ações
condutas sociais e a ordem vigente dentro de um contexto moral das personagens. Caio Fernando Abreu inicia o conto com uma
ou religioso. provocação no subtítulo irônico: “História de aparente mediocri-
Na literatura queer, os indivíduos homoeróticos tendem a criar dade e repressão” e o título nos remete a seus personagens centrais,
um espaço para si, um lugar estranho, queer, lugar este que pos- Raul e Saul, dois homens que viriam a sofrer pela mediocridade
sibilita que se relacionem entre si e possam coexistir livres das re- das pessoas e pela repressão social. O próprio título do conto nos
presálias, que aprisionam. Mas, ao se isolarem, perdem um pouco leva a refletir sobre o distanciamento proposital das protagonis-
do seu poder nesta esfera, ficando à margem da sociedade. No tas em relação às outras personagens e vice-versa e a forma como
entanto, identidade e homoerotismo se cruzam nas obras de Caio eram vistos e conceituados pela sociedade, frente à estigmatização
Fernando Abreu, eles coexistem e interdependem-se. O homoero- e aos estereótipos formulados. Raul e Saul não são tratados como
tismo não é apenas um novo termo para o gay, mas sim um con- esses ou simplesmente os dois rapazes e colegas de trabalho da re-
ceito que busca abranger as diferentes formas de relacionamento partição, mas sim, como ‘Aqueles dois’ rapazes que supostamente
homossexual, independentemente das relações histórico-cultu- tinham um envolvimento homoerótico e homoafetivo. Neste caso
rais, das identidades e funções específicas, de sexo ou de órgãos fica a pergunta: será que negar a identidade queer seria preferível
genitais. É um conceito livre de pré-conceitos, dentro da crítica a suportar a pressão de uma sociedade repressiva e homofóbica?
literária principalmente, pois não impõe modelos identitários às
personagens. O fundamental na literatura homoerótica de Caio RESULTADOS E DISCUSSÃO
não é descrever as preferências dos sujeitos quanto aos objetos de
atração sexual, é precisar ou sugerir quais os tipos de interações A narrativa em ‘Aqueles dois’ é madura, pois sintetiza e in-
físicas, afetivas ou espirituais implicadas no processo da formação ter-relaciona como um todo, temas como iniciação, dúvida e o

61
descobrimento do ser homossexual, o da homofobia individual e sociedade na invenção do ser homossexual, porém, ainda as-
coletiva e o da superação perante a sociedade. O conto não trata sim são expostos à violenta coerção social. No entanto, deixam
da homossexualidade como um motivo pessoal ou uma bandeira acontecer naturalmente e corajosamente e enfrentam sorrindo a
coletiva a ser levantada, uma problemática ou uma questão a ser maldade do “deserto de almas também desertas”, reconhecendo-
defendida pelo autor e pelos leitores simpatizantes. Isso não quer -se e combinando-se gradativamente. “Acontece, porém que não
dizer, no entanto, que o conto e a temática não tenham significa- tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo
dos próprios. Na verdade, o que se narra nesse conto não é apenas para tentar entendê-las” (ABREU, 2005, p.132). O que eles refu-
a sexualidade das personagens, mas também seus desdobramen- tam e acabam por negar é a falsa heterossexualidade anterior, um
tos, que interferem na caracterização delas mesmas, isto é, não casamento e um noivado, fracassados e frustrados. “[...] Que mais
se trata de definir sexualidades, mas de contar histórias de vida: restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se co-
descobertas, encontros e desencontros amorosos, afetivos, sen- nhecerem, se misturarem?” (ABREU, 2005, p.133).
suais e eróticos entre humanos, com virtudes e defeitos, além de O conto começa quando eles já haviam saído da repartição e
sentimentos contidos e reprimidos pelo conservadorismo social. estavam juntos e misturados, antecipando e confirmando o que
Do confronto entre o homoerotismo da narrativa e o menospre- viria a acontecer, uma aproximação homoafetiva lenta e gradativa,
zo social e homofóbico dirigido a estes indivíduos, surge na voz porém, que não culminou no envolvimento e no relacionamento
do narrador, uma atitude sociopolítica que legitima a abordagem homoerótico. Assim como deixa hiatos no texto, o autor também
dessa obra numa perspectiva da reconfiguração da identidade ho- nos leva a uma dúvida no final do conto, pairando uma pergunta:
mossexual, já que o narrador é onipresente e onisciente na histó- a relação homoafetiva se concretizou após a demissão dos prota-
ria do conto e em sua narrativa. gonistas? No entanto, o autor deixa pistas, observadas nos últimos
Segundo Nascimento (2014), ainda que a narrativa em ‘Aque- parágrafos do conto. A repartição decerto continuou um “deserto
les dois’ se encerre de forma melancólica e discriminatória, dei- de almas” que a partir de então seriam infelizes para sempre e
xando espaço para a predominância dos padrões do normativo Raul e Saul, mais altivos do que nunca, permaneceram parados
heterossexual, os sujeitos que deveriam ser vitimizados buscam se em frente ao prédio por alguns instantes refazendo-se do susto da
materializar fora de padrões convencionais. No entanto, a opção demissão, da perplexidade do assédio moral, da intolerância e da
da escrita de Caio em negar a reivindicação de um campo identi- injustiça que haviam sofrido. Logo, pegaram o mesmo táxi e par-
tário, dentro do binarismo hetero/homossexual explícito, mostra tiram juntos, quem sabe para vivenciarem com liberdade o que
como sua literatura desmonta, desorganiza e duvida da estrutura não havia sido concretizado de fato. Enquanto os protagonistas
repressora sexual, preconceituosa e homofóbica discursivamente seguiam em um novo êxodo migratório, na forma de exílio social,
imposta pela sociedade. juntos em direção ao que desconhecemos, a atitude deles foge dos
Os protagonistas ao vivenciarem uma experiência afetiva (e padrões, pois, apesar da demissão foram bem sucedidos frente ao
não sexual) entre dois homens, se veem diante desse binarismo controle heterossexual sobre suas vidas, gerando um desconforto
hetero/homossexual. Eles poderiam assumir uma identidade ta- e uma reflexão coletiva nos próprios algozes, fazendo-os repensa-
xada pela norma como homossexual e serem punidos. No en- rem sua atitude. Se em um primeiro momento o grupo, através do
tanto, eles não entendem o que está acontecendo neles mesmos chefe não hesitou em punir a dupla através das cartas anônimas de
e ignoram completamente a identidade marcada e imposta pela “Um Atento Guardião da Moral”, ou em ser conivente, calando-se

62
diante da punição, uma vez aplicada a pena da demissão, surge foi percebido pelos protagonistas, que inocentemente continua-
o espaço para se redimensionar o acontecido, uma nova culmi- vam se aproximando e descobrindo particularidades um do outro
nância através da partida dos protagonistas e a certeza que seus e até mesmo afinidades, apesar de tão diferentes.
ex-colegas tinham da própria infelicidade é uma prova da intole- O desenrolar da narrativa ocorre simultaneamente com a cons-
rância e mediocridade social quanto à opção pelo surgimento de trução do relacionamento homoafetivo entre Raul e Saul, consta-
novas identidades por meio dos sujeitos punidos. Ao mesmo tem- tando-se através de elementos fornecidos pelo narrador, em que
po, seus juízes se tornavam vítimas de sua prisão. “Ninguém mais as personagens não possuíam trejeitos estereotipados, esperados
conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro pela sociedade e até mesmo por uma parcela dos leitores; pelo
tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E contrário, segundo Giddens (1993), na atualidade, a sexualidade
foram” (ABREU, 2005, p.140). tem sido descoberta e revelada, propiciando o desenvolvimento
Quanto à contextualização, o conto foi escrito durante a dita- de estilos de vida bastante variados. De fato, Raul e Saul não bus-
dura militar, porém, publicado no período de abertura política cam assumir em nenhum momento da narrativa um sexo social-
brasileira e Morangos mofados é o reflexo do autor sobre o projeto mente taxado como homo ou heterossexual.
da contracultura de sua geração. A obra é a busca dessa saída que Embora o texto em alguns momentos revele uma grande ten-
o autor gaúcho compôs dividindo-a em três partes (O mofo, que são entre os dois, as personagens mantêm-se distantes sexual-
traz as restrições, o ranço e o medo do período militar; Os moran- mente, mesmo nos momentos de maior intimidade. No entanto,
gos, que misturam o frescor e o tom amargo de mofo através do a sociedade que reprime qualquer conduta desviante da norma
desgaste, o doce e azedo dos morangos maduros; e Morangos mo- heterossexista, associa um vínculo entre eles a uma conduta efe-
fados, que nomeia o livro e traduz a esperança de um novo projeto minada e reprovável, classificando a relação entre eles como anor-
na parte final da obra). ‘Aqueles dois’ é o último conto da segunda mal, desavergonhada, doentia e de psicologia deformada, sendo
parte da obra, em que metaforicamente, os protagonistas podem eles friamente demitidos, sofrendo assédio moral no ambiente de
ser reconhecidos como os morangos da epígrafe, trazendo o viço e trabalho. Em nenhum momento as personagens vão reivindicar
a jovialidade de dois homens entre 31 e 29 anos, que mesmo com seus direitos civis, ante os colegas de trabalho, uma relação sexual
experiências distintas, realidades diferentes e vivências anteriores ou uma conduta desviante, entretanto, a negativa de tais posturas
não perderam a vontade de se redescobrirem e buscarem novos não é suficiente para que a dupla sofra a punição infligida com a
caminhos. Vindos um do Norte e um do Sul tinham as mesmas demissão, que reflete o castigo da sociedade para o desvio da nor-
expectativas numa cidade onde ninguém se conhecia de verdade, ma heterossexista. A obra de Caio Fernando Abreu não se limita a
e a única perspectiva era profissional. No entanto, com o frescor representar literariamente o contexto repressivo brasileiro, como
dos morangos vem a delicada doçura do fruto através do despre- uma denúncia do imperativo heterossexista, como também reali-
paro e da incompreensão das emoções, de que mesmo [...] “sem za uma análise mais aprofundada, e nos permite verificar que o es-
efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro critor gaúcho não só denuncia a arbitrariedade desse imperativo
minuto” (ABREU, 2005, p.132). Já o acre e azedume da mordida como busca, por meio da literatura, abrir caminhos de ruptura da
vieram com a exclusão dos colegas de trabalho, os cochichados norma sexual, através das próprias aberturas deixadas no conto.
das moças e os olhares de repúdio e reprovação dos funcionários Os protagonistas não buscam, nem tentam criar ou assumir na
da repartição, além de algumas piadas enigmáticas, porém nada narrativa um relacionamento homo ou heterossexual, pois sequer

63
têm consciência clara a este respeito. O autor nem menciona as antevendo o andamento das situações, e ficando a favor deles, pois
palavras: homossexual e heterossexual. é uma estratégia político-estética. A intensificação da experimen-
O narrador contrapõe certa ignorância dos protagonistas em tação da amizade entre os dois os afasta dos demais, fazendo-os
vista da experiência homoerótica, do mesmo modo que sugere estreitar a relação homoafetiva, por meio de confidências sobre
que eles reconhecem o tabu social para as expressões afetivas e os relacionamentos anteriores desfeitos, concordando que foram
eróticas para sujeitos do mesmo sexo (NETO, 2009). Saul e Raul passos incertos e afirmando que estavam cansados das tramas e
percebem claramente que a cidade não é o lugar onde a vida pode das exigências das mulheres, e “que gostavam de estar assim, [...],
se realizar plenamente, em razão de outras formas de existência sós, donos de suas próprias vidas” (ABREU, 2005, p. 136), porém,
terem sido banalizadas pela frieza das metrópoles e suas relações inseguros e ainda incertos sobre o que fazer com elas. Para Orte-
efêmeras, pois, “eles não tinham ninguém naquela cidade [...] a ga (2000), a amizade prepara o caminho para a criação e experi-
não ser a si próprios” (ABREU, 2005, p. 133). mentação de formas possíveis de vida para além de modelos, sem
Outra questão que o conto traz para discussão é o das regras prescrever um modo de existência como correto, sem proibições.
que norteiam a vida do trabalho. A repartição, descrita no conto,
assemelha-se a um deserto de almas, do qual os protagonistas são CONSIDERAÇÕES FINAIS
excluídos, afinal “num deserto de almas também desertas, uma
alma especial reconhece de imediato a outra” (ABREU, 2005, p. A aproximação entre os dois protagonistas e o desinteresse pe-
133). A constatação imediata de que são especiais ou diferentes, e las mulheres permite uma interpretação da amizade entre homens
por isso a existência de algo comum que os aproxima, representa como um vínculo de conotação sexual, baseado no preconceito e
uma forma de reconhecimento recíproco no primeiro segundo do na homofobia social.
primeiro minuto em que se viram, pois para eles, “a verdade é que Caio Fernando Abreu demonstra de forma simples, mas poéti-
não havia mais ninguém em volta” (ABREU, 2005, p. 132). No ca, que o ser humano precisa se relacionar, mesmo sem entender
entanto, o conto explicita a hipocrisia e o impasse daqueles que o que está acontecendo consigo mesmo. E que nós todos devería-
não sabem dar nome às emoções, nem entendê-las, como resposta mos ser mais atentos com o outro, ou seja, respeitar a alteridade,
ao preconceito e à discriminação existentes e internalizados nas nos colocando no lugar do outro. Neste sentido, a literatura nos
pessoas. Isso é reflexo do momento em que o conto veio a público ajuda a pensar e viver melhor, pois recoloca em nossas vidas a
e a realidade social no Brasil ainda não comportava uma aceitação complexidade humana, que não havíamos visto, por estar em nós
ou visibilidade das relações homoafetivas. mesmos, observando com outros olhares e desmistificando este-
Para Neto (2012) a amizade entre Saul e Raul, revestida de reótipos através da diversidade das relações humanas, sejam elas
componentes homoafetivos e homoeróticos, vai se revelando para homoeróticas, homoafetivas, simplesmente de amizade ou não.
ambos e para a repartição de trabalho. O narrador relata, com O conto reflete também o contexto político de exceção pelo
precisão, a descoberta de algo para além da amizade meramente qual passava o país, momento de grande perseguição, sofrimento
masculina, percebida antes pelos colegas de trabalho do que pelos e desconfiança entre as pessoas, principalmente no ambiente de
próprios envolvidos. O narrador coloca o leitor sob a perspectiva trabalho, devido à repressão desenfreada e a ditadura militar.
do casal, arremessando o incômodo e a inconformação do am-
biente de trabalho para o pano de fundo da história; o leitor acaba REFERÊNCIAS

64
ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. Rio de Janeiro: Agir, RESUMO
2005.
COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício: estudos sobre o Quando nos dispormos a assistir a um musical, sabemos de
homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992. antemão que vamos encontrar na obra assistida – seja ela cinema-
COSTA, Jurandir Freire. A face e o verso: Estudos sobre o homo- tográfica ou teatral – musicas, canções, danças e diálogos falados.
erotismo II. São Paulo: Editora Escuta, 1995. A musica, a interprestação teatral e o enredo devem ser relaciona-
FOUCAULT, Michel. Um diálogo sobre os prazeres do sexo – dos, e o que será cantado pelos atores vai servir de guia narrativo
Nietzche, Freud e Marx – Theatrum Philosoficum. São Paulo: para o público. Diante disso, será possível pensar em um musical
Landy, 2000. onde o que se impõe é o que é ditado pelo silencio? Ou, ao menos,
GIDDENS, Anthony. Experiências do cotidiano, relacionamen- pelo o que não é dito de forma explicita?Ao escrever O natimor-
tos, sexualidade. In: As transformações da intimidade: sexuali- to (2009), Lourenço Mutarelli se propõe um desafio interessante:
dade, amor e erotismo nas sociedades ]modernas. Trad. Magda compor um musical, sendo este silencioso. Ao publico, ele lança o
Lopes. São Paulo: Unesp, 1993. desafio de “assistir” tal espetáculo e ter de se relacionar com cada
LIMA, Marcos Hidemi de. Quando eles se amam: homoerotis- um de seus peculiares personagens, em especial, com seu protago-
mo nos contos de Caio Fernando Abreu e Waldir Leite. Educação, nista. Nele, o Agente e a Voz, sob a luz esfumaçada de uma câmara
Cultura, Linguagem e Arte. Londrina: Travessias, Ed. 03, UNIO- opaca, vão duelar verbalmente de maneira acirrada, porém desi-
ESTE, p. 1-8, 2007. gual, cada qual em seu lado no centro de um palco, sendo apenas
MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de um deles plenamente consciente da dança que está ocorrendo e
uma analítica da normalização. Sociologias, Porto Alegre, ano 11, do que de fato está sendo posto em jogo. Dentro desse cenário,
nº 21, p. 150-182, jan./jun. 2009. as imagens contidas nos maços de cigarro, as advertências, como
NASCIMENTO, Cyro. A narrativa de Caio Fernando Abreu e a bem as chama O Agente, vão servindo de script narrativo. E elas
configuração de um campo homoerótico nas artes brasileiras. Re- se tornam roteiro tanto para as ações de tal personagem, para as
vista de Literatura, História e Memória. Cascavel: UNIOESTE, v. reações que ele tenta suscitar na Voz durante o decorrer da obra,
10, n. 15, p. 35-44, 2014. bem como para que os leitores que aceitam o desafio de Mutarelli
NETO, José Mariano. A cidade em “Aqueles dois”: reverberações desvendem a natureza perturbada, e por isso mesmo, surpreen-
do desejo homoerótico masculino em Caio Fernando Abreu. In: dente, da personagem. O presente trabalho tem por objetivo fazer
Anais do SILEL. V. 1. Uberlândia: EDUFU, p. 1-6. 2009. uma análise a respeito na narratividade apresentada em tal obra.
NETO, José Mariano. Os afetos masculinos em Caio Fernando Procurarei observar como o protagonista da obra vai traçando
Abreu. Fazendo gênero, Volume 9, p. 1-17, 2012. uma emboscada para a Voz ao longo da narrativa, utilizando-se
OLIVEIRA, Patrícia de; COQUEIRO, Wilma dos Santos. Entre do tarô/cigarro, e como este dá pistas que direcionam seus leitores
morangos e mofos: figurações do homoerotismo em Caio Fernan- ao clímax da obra. Pretendo também tecer algumas considerações
do Abreu. In: VII Encontro de Produção Científica e Tecnológica. a respeito do subtítulo “Um musical silencioso” a fim de demons-
Campo Mourão, PR. p. 1-15. 2012. trar como esse se relacionada com a caçada presente na narrativa.
ORTEGA, Francisco. Para uma política da amizade. Arendt, Der- Para tanto, utilizarei das considerações teóricas de Roland Barthes
rida, Foucault. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000. (2005), Lukács (2009), Ligia Chiappini Moraes Leite (1985) e Ja-

65
mes Wood (2011) no que se diz respeito à construção formal da Resumo: O presente trabalho tem por objetivo fazer uma aná-
narrativa. A utilização de tais teóricos, juntamente com a leitura lise a respeito na narratividade apresentada na obra O natimorto,
crítica da obra abordada, deverá demonstrar como ao se utilizar de Lourenço Mutarelli. Procurarei observar como o protagonista
dos recursos da poesia e do teatro, Mutarelli subverte o gênero da obra vai traçando uma emboscada para A Voz, ao longo da
romance, e é capaz de criar um texto delicado e sensualmente ins- narrativa, se utilizando do tarô/cigarro, e como este dá pistas que
tigante. O autor dá voz a canção violenta de seu narrador, mas a direcionam seus leitores ao clímax da obra. Pretendo também te-
abafa para as demais personagens com a utilização do monologo cer algumas considerações a respeito do sub titulo “Um musical
interior, que envolve o leitor e toda a narrativa. Esse recurso, jun- silencioso” a fim de demonstrar como esse se relacionada com a
tamente com a escolha do autor em convergir todo o foco narra- caçada presente na narrativa.
tivo sobre uma só personagem, acaba por ser basilar para a leitura
de Mutarelli que aqui está sendo proposta. E nesse contexto, a Voz Palavras-Chave: Lourenço Mutarelli; musical silencioso; nar-
e o Agente, personagens centrais na obra, ambos em crise e sem rativa
lugar no mundo, dançam, ela os passos incertos e ele calculan-
do onde pisar, ao ledor de si no texto, que se torna palco opaco
e esfumaçado para o leitor. Leitor esse que, aprendendo a ler os INTRODUÇÃO
maços/tarô, começa a adivinhar, junto com o narrador, os acordes
seguintes desse musical silencioso. Quando nos dispormos a assistir a um musical, sabemos de
antemão que vamos encontrar na obra assistida – seja ela cinema-
PALAVRAS-CHAVE: Foco narrativo; Narrador; Mistura de tográfica ou teatral – musicas, canções, danças e diálogos falados.
gênero; Romance; Mutarelli A musica, a interprestação teatral e o enredo devem ser relaciona-
dos, e o que será cantado pelos atores vai servir de guia narrativo
para o público. Diante disso, será possível pensar em um musical
onde o que se impõe é o que é ditado pelo silencio? Ou, ao menos,
pelo o que não é dito de forma explicita? Ao escrever O natimorto
O ROMANCE NOS ENSINA A LER O NARRADOR: A (2009), Mutarelli se propõe um desafio interessante: compor um
CAÇA E UMA CANÇÃO TRAGADA EM O NATIMORTO, musical, sendo este silencioso. Ao publico, ele lança o desafio de
DE MUTARELLI “assistir” tal espetáculo e ter de se relacionar com cada um de seus
peculiares personagens, em especial, com seu protagonista. Nele,
Dayane Rouse Fraga Lima o Agente e a Voz, sob a luz esfumaçada de uma câmara opaca, vão
duelar verbalmente de maneira acirrada, porém desigual, cada
Estudante do Curso de Mestrado em teoria da Literatura- CAC - qual em seu lado no centro de um palco, sendo apenas um deles
UFPE; E-mail: daday.red@gmail.com plenamente consciente da dança que está ocorrendo e do que de
fato está sendo posto em jogo. Dentro desse cenário, as imagens
contidas nos maços de cigarro, as advertências, como bem as cha-
ma O Agente, vão servindo de script narrativo. E elas se tornam

66
roteiro tanto para as ações de tal personagem, para as reações que a certa hesitação na hora de sua classificação por parte de boa do
ele tenta suscitar na Voz durante o decorrer da obra, bem como público. E o torna hibrido, pois a utilização dos recursos de um
para que os leitores que aceitam o desafio de Mutarelli desven- gênero não vem a excluir o outro, ao contrario, vem complemen-
dem a natureza perturbada, e por isso mesmo, surpreendente, da tar o todo literário da obra. A mistura de gêneros começa a ser
personagem. Para embasar a analise que aqui será explicitada foi evidenciada a partir de seu subtítulo. O autor trata o Natimorto
utilizado o seguinte arcabouço teórico: Roland Barthes - A prepa- como um musical silencioso. Mas, se a intenção é escrever um
ração do Romance II – A obra como vontade (2005), Lukács - A “musical”, qual a finalidade de fazer o mesmo ser silencioso? Dos
teoria do romance: Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas muitos temas e das muitas questões que podem ser levantadas por
da grande épica (2009), James Wood – Como funciona a ficção meio da leitura de O Natimorto, uma das possíveis interpretações
(2011) e Ligia Chiappini Moraes Leite - O foco narrativo ou A suscitadas pela obra é o argumento da caça. E isso é dito por que,
polêmica em torno da ilusão (1985). terminada a leitura da obra, podemos perceber como o Agente,
personagem que carrega em si todo o foco narrativo vai, como
METODOLOGIA apontado, traçando toda uma estrutura argumentativa, sustenta-
da pela leitura de maços de cigarro, para que A Voz fique junto
Foi realizada uma leitura crítica acerca da obra e, a partir dela, a ele dentro do quarto fechado. Saber que o livro pode ser visto
traçada relações entre o narrador do texto e a construção da obra sob a ótica da caça se torna significativo, pois em uma caçada, o
enquanto musical que se propõe silencioso. silencio é elemento fundamental para o desfecho triunfante do
caçador.
ESULTADOS E DISCUSSÕES Existe, de fato, enredo nos musicais, mas esse diz respeito a
parte falada (e não a cantada) da obra, bem como em sua ação
Em A preparação do Romance (2005), Barthes, ao falar de “In- teatral. A canção, desse modo, deve ser adaptada à ação dos per-
distinção/Pikílos” afirma que ao longo do século XIX, ouve um sonagens. E sendo O Natimorto também um musical, a canção
ímpeto para a indiferenciação dos escritos que geralmente foi que nele ecoa é moldada para e por seu narrador, que também
freado pelas editorais. Ele afirma com isso que “o campo privi- é o personagem chave. E narra em primeira pessoa. Se a obra é
legiado dessa Indecisão [de gênero] é aquele traçado pela explo- musical silencioso, portanto, isso acontece menos porque a Voz
são do Romance ou, pelo menos, de sua deformação” (p.35) e que não canta e mais porque O Agente a caça. A musica ali presente é
esse fato contribui para que “um novo nome, não genérico, mas musica intima, de câmara, particular, e por cumprir uma determi-
designando uma obra cujo gênero é indefinido: o Texto” (p.36) nada demanda (a exigida pela caça), silenciosa. E porque narrada
fosse formado. Tendo o estimulo maior dado pelo Romantismo em primeira pessoa, interna. Por isso, toda a canção que poderia
– mesmo que já utilizada anteriormente a ele (BARTHES, 2005) ecoar, estridente, na obra, aparece sendo tragada pelo Agente sob
-, a mistura de gêneros é um recurso comum nas obras contem- o talhe de monologo interior e em forma de versos que, dotados
porâneas. Se utilizando de recursos do teatro e da poesia, o livro de algum tom poético, no entanto, não se sustentam como poe-
de Mutarelli não é nem uma coisa e nem outra, e, não seguindo sia. Em versos, também, e talvez, porque canções não são – pelo
o formato tradicional do gênero romanesco, o deforma. E, se isso menos não usualmente – escritas em prosa. Eles, os versos, pare-
não o transforma exatamente em outra coisa, ao menos pode levar cem surgir para que nossa leitura pause, tal qual acontece quando

67
um fumante interrompe a fala no ímpeto da próxima tragada, ou necessariamente, sair no mundo em busca de aventuras a serem
como uma pessoa já saturada de vários cigarros tem de suspender vencidas: somos-nos um universo de/para nós mesmo, e por isso
o que diz para recuperar o fôlego antes da palavra seguinte. Mas o resto do mundo não é mais nossa medida. A aventura nos ins-
O Natimorto, além de musical, é, também, um romance, mesmo creve – a aventura da (nossa) própria busca e descoberta – e so-
que deformado, e por isso o olhar desse trabalho se voltará para mos labirínticos para nós mesmos. O texto estudado mostra ym
ele como tal. Surgido quando o individuo e o mundo quebram homem que não é mais a medida do mundo, e que não é preciso
o elo – alias, a ideia de individuo só surge em nós porque esse existir um herói que saia em busca de aventuras para que a ação
abraço foi rompido - o romance se alimenta do silencio existente ocorra. Ao contrario, o personagem chave de Mutarelli isola-se
quando um fosso é aberto entre o eu e um outro que é todo o resto em um único e praticamente estéril cenário, sendo toda a obra
do mundo. Mundo este que, como bem afirma Lukács, “tornou-se voltada para os diálogos que ocorrem nesse lugar, bem como para
infinitamente grande” (2009, p.31). O capitalismo e a burguesia os monólogos que circulam dentro da cabeça desse único perso-
surgiram por e vieram coroar a atitude ego contra mundun que nagem. O vazio do cenário – um quarto com cama, uma TV que
nos é tão contemporânea, e a forma anterior de conceber a arte, nunca é ligada, tapete e porta para o banheiro – contribui para
predominantemente grega, já não é mais capaz de nos abarcar por que, junto com a fumaça de cigarros, o ar dentro do mesmo seja
completo: claustrofóbico para a Voz, e portador de tranquilidade e pureza,
para o Agente. O texto, assim, torna-se um palco onde as perso-
O circulo em que vivem metafisicamente os gregos é menor que o nos- nagens agem representado uma para a outra, cada qual centrado
so: eis por que jamais seríamos capazes de nos imaginar nele com vida; dentro de si, de maneira que o que é dito tem de ser lido na entre-
ou melhor, o círculo cuja completude constitui a essência transcen-
dental de suas vidas rompeu-se para nós; não podemos mais respirar linha, e, máscaras erguidas, lemos a historia de um homem que só
num mundo fechado. Inventamos a produtividade do espírito: eis por ouve o que quer ouvir (e lê o que lhe é conveniente ler) e de uma
que, para nós, os arquétipos perderam inapelavelmente sua obviedade mulher, cuja a mala é insistentemente descrita como sendo “muito
objetiva e nosso pensamento trilha um caminho infinito da aproxi- leve”, que canta o que ela quer pensar que canta. Cada um, a seu
mação jamais inteiramente concluída. Inventamos a configuração: modo, corroído pelo desespero de não ter lugar.
eis por que falta sempre o último arremate a tudo que nossas mãos,
cansadas e sem esperança, largam pelo caminho. Descobrimos em nós E, da mesma forma que só ele é capaz de ouvir a voz da pureza,
a única substância verdadeira: eis por que tivemos de cavar abismos apenas o Agente é capaz de ouvir a música, que ele próprio pro-
intransponíveis entre conhecer e fazer, entre alma e estrutura, entre eu duz, e entoar a canção, que ele próprio compõe aos ler as cartas,
e mundo, e permitir que, na outra margem do abismo, toda a subs- na obra. Apenas ele tem a real (e integral) capacidade de enxergar
tancialidade se dissipasse em reflexão; eis porque nossa essência teve a dança de gato e rato que ele a Voz protagonizam ao longo da
de converte-se, para nós, em postulado e cavar um abismo tanto mais
profundo e ameaçador entre nós e nós mesmos. (LUKÁCS, 2009, p. narrativa. Em Como funciona a ficção (2011), Wood afirma que
30-31, grifo meu) a “casa da ficção” pode até ter inúmeras janelas, mas que nela só
pode haver, para que uma narração possa, de fato, ser reconhecida
Agora somos conhecedores do real tormento da procura e o como tal, duas ou três portas. O autor faz tal observação para nos
real perigo da descoberta, pois somos filhos de tais perigos. Co- dizer que uma história só pode ser narrada em terceira ou pri-
locamos a nós mesmo em jogo a todo instante – e porque não meira pessoa, sendo outros exemplos de narração muito escassos.
dizer: somos o próprio jogo -, de modo que não mais precisamos, O Natimorto, de Mutarelli, é um caso de narração em primeira

68
pessoa, sendo O Agente o protagonista que narra, e esse fato se com o que se espera de um musical, ou do gênero teatral no geral.
torna basilar para a leitura da obra. Geralmente os narradores em Gênero esse onde a ação da peça ocorre na linguagem da ação
primeira pessoa são vistos como não sendo confiáveis. Isso ocorre dramática que, falada em palavras, se dá no presente. E é desse
porque tudo o que por eles é narrado se dá subjetivamente. Posi- não distanciamento do que está sendo narrado para o que está
cionado em uma marca fixa, o próprio eu, ele não tem acesso ao acontecendo no enredo que nasce a surpresa do leitor na medida
estado mental das demais personagens (LEITE, 1985), e isso aca- em que ele vai se dando conta de qual é realmente a natureza cruel
ba por limitar a narrativa a suas próprias percepções, sentimentos. de tal homem no texto de Mutarelli. Assim, vamos descobrindo
Ele pode meditar acerca dos fatos, das outras personagens, pode quem é O Agente na medida em que os fatos ocorrem e o fazem
elaborar diversas hipóteses, pensar em varias explicações parar os reagir de encontro a eles. E, como não temos acesso a mente da
acontecimentos do enredo, mas sua visão é essencialmente limi- Voz, a vemos como ele a interpreta, e temos a noção de seu de-
tada.Wood (2011), porém, afirma que, diferente do que se pode sespero diante do mundo por meio de detalhes como o fato dela
pensar, a narração em primeira pessoa “costuma ser mais confi- ter aceitado rapidamente dividir o quarto de hotel com um estra-
ável que não confiável, e a narração ‘oniciente’ na terceira pessoa nho, tentar seguir carreira musical, quando na verdade ela sabe
costuma ser mais parcial que oniciente” (p.20). O autor explica que não é capaz de cantar, e, a pista mais descara, a leveza de sua
como a narração oniciente em terceira pessoa pode ser inconfiável mala de viagem. Porque o Agente narrar o seu “aqui e agora”, não
por vários motivos, desde o fato do estilo do autor poder atrair existem digressões – elas até existem, mas aparecem sobre formas
atenção durante a leitura, a até mesmo o próprio foco narrativo de divagações faladas pela personagens, como quando ele conta as
torna a onisciência total praticamente inviável: sua estória para Voz. Desse modo, ele rememora o passado, mas
isso aparece dentro do enredo, e não como construção estrutural
A chamada onisciência e quase impossível. Na hora em que alguém da narrativa – que deem pistas do rumo que ira tomar à narrativa.
conta uma história sobre um personagem, a narração parece querer se Essas pistas, por outro lado, existem, mas se encontram nos
concentrar em volta daquele personagem, parece querer se fundir com
ele, assumir seu modo de pensar e de falar. (p. 22) maços de cigarro. Se como diz Wood (2011), “o romance nos en-
sina a ler o narrador” (p.21), na obra de Mutarelli, ao dispor de
Assim, a dita onisciência, que daria mais credibilidade ao nar- seus maços/tarô, O Agente acaba por ir, aos poucos, mostrando
rador de terceira pessoa acaba sendo diluída graças ao foco nar- suas verdadeiras feições ao ir se transmutando em praticamente
rativo dado aos personagens, e “habitamos, simultaneamente, a todas as cartas, bem como projetando as ações da Voz em outras.
onisciência e a parcialidade” (p.25). O narrador em primeira pes- Seu método de ação (e caçar é, sobretudo, possuir um método efi-
soa, diz o autor, pode ser, por outro lado, não tendo o peso de uma ciente de escolha e aprisionamento), a leitura dos maços, torna-se,
narração que tudo cobre, “confiavelmente não confiável” (p.20). portanto, importante não apenas para a composição do enredo da
O narrador protagonista de O Natimorto narra o “presente”. Dife- obra, como também para as interpretações que podemos elaborar
rente da maioria dos grandes narradores em primeira pessoa, que finalizada a leitura. Principalmente quando começamos a nos dar
costumam narrar fatos já distanciados de si, os rememorando, o conta de que ele força os resultados que precisa obter para manter
Agente de Mutarelli narra o que lhe vai acontecendo na medida a Voz a seu lado. E adapta as estórias que conta para ela omitindo
em que o fato se dar. Ele narra, portanto, o seu “aqui e agora” e ser protagonista das mesmas, e as moldando de maneira a servir
não uma historia longínqua em de sua memória. O que é coerente de advertência direta a sua reação as ações e decisões que a Voz

69
toma ao longo do enredo. Os maços/tarô e as estórias (tais como torna menor, até mesmo filosófico, do que seria dizer que “eu” sou
a do castelo de areia esmagado, a do cão assassinado e a do me- um monstro, e por isso a Voz não se sente ameaçada. Dizer que
nino/monstro no poço) se tornam ameaças (não tão) veladas da todos são monstros se torna também, ainda que indiretamente,
parte dele, e são tomadas como vinganças verbais por ela. Para o parte de sua argumentação, quando este diz que os dois devem se
leitor, que sabe sobre esse homem um pouco mais do que ela, por insular no quarto de hotel para que eles, que são monstros inclu-
conta da narração em primeira pessoa, eles se tornam mais do sos no “todos” da estória, mas não tem suas monstruosidades par-
que retaliações ou avisos: eles são, assim como são para ele, pistas ticularizadas por um “eu” que é monstro, não sejam feridos pelo
a respeito do que vai acontecer na obra, pois, assim como ele ler a mundo monstruoso que os cerca. Existe, nas estórias contadas
sorte do dia nos arcanos do cigarro, nós, o publico, somos capazes pelo Agente, certa artificialidade na escolha de palavras não co-
de ler as ações dele nas leituras que ele faz das “cartas”. Tentando mum para um dialogo corriqueiro, mas isso parece se dá porque
convencer A Voz a dividir o quarto com ele, o narrador nos dá a ele, de certa forma, as fabulou, as treinou, de maneira a se omitir,
segunda pista de sua verdadeira personalidade. Porém, ele o faz antes de repassá-las para a Voz.
de forma encoberta: E talvez essa seja um dos recursos utilizados por Mutarelli para
indicar a seu leitor que existe algo de errado com o que está sen-
O Agente – Eu não quero ir embora. / A Voz – E por que você não quer do narrado. O maço seguinte, a Luminescência, o eterno infinito,
ir?/O Agente – Quando eu era pequeno, quando eu era criança, na deve ser lido em conjunto com o a carta do Diabo que vem no
casa de minha avó tinha um velho poço./ O Agente – Esse poço estava
desativado, por isso o cobriram com tábuas, um tapume. (...) O Agen- maço da Voz. Eles são o ponto de virada no enredo, pois é a partir
te – Um dos meus tios, que por sinal era padeiro, para nos proteger e da aparição deles que a relação Agente-Voz entra em descompas-
nos manter afastados do poço tentava nos assustar, dizendo que ali so. Lembrar que em uma dança a dois, nossos passos devem en-
dentro, ali no fundo, havia um monstro. (...) O Agente – um dia meu trar em acordo com o ritmo de nosso parceiro, devem ser, se não
primo, que por sinal é advogado, por descuido acabou caindo no fundo sincronizados, ao menos, harmoniosos. Mas aqui, por não ser ca-
do poço. (...) O Agente – Mas, como estava apavorado e levou algum
tempo para que o resgatassem, ele ficou muito desesperado. / O agen- paz de ouvir com perfeição a música que está sendo tocada, e nem
te – Por sorte e por azar, ainda havia um pouco de água no fundo do a canção do Agente, a Voz não é capaz de se previnir do que está
poço./ O Agente - Por sorte, isso amorteceu a queda./ O Agente – Mas, por vir -, e se afastar por completo – e nem de dançar conforme
ao mesmo tempo, com a luz que entrava no buraco e incidia na água, ela. Esses dois maços (a Luminescência e o Diabo), assim, se cor-
ele acabou vendo seu próprio reflexo. /O Agente – Por fim, quando o respondem, também, na medida em que os dois revelam para am-
içaram, eu corri e perguntei a ele: “E então, como é o monstro?”/ O
Agente – E a resposta foi: “Ele é como nós. Todos somos monstros” bos as personagens seus destinos: o eterno retorno, tirado por ele,
(MUTARELLI, 2009, p.25-27, grifo meu). mostra que, assim como “a Rainha despreza o Rei pelo o que sai de
sua boca”, que aparece no inicio da obra e que pode fazer referen-
No decorrer da narrativa, o leitor descobre que quem realmen- cia a relação conflituosa entre o Agente e sua Esposa, essa nova re-
te caiu no poço foi o próprio Agente. Ao atribuir o protagonismo lação dele com a Voz está fadada ao fracasso. A partir desse ponto,
da estória a um terceiro, e ao dividir a monstruosidade igualmente um paralelo entre ele e os demais arcanos do tarô/maços pode ser
entre os seres humanos (“Todos somos monstros”), o narrador feito por meio da narrativa que ele faz das cartas e podemos notar
acaba por, ao se incluir dentro do “todos”, excluir-se da monstruo- que apesar do Natimorto, da pureza que essa carta representa, ser
sidade particular, e o peso de dizer que “todos somos monstros” se perseguida por ele durante toda a obra, é na figura do Louco que

70
podemos encontrar a verdadeira face do Agente. Ele, percebe que REFERÊNCIAS
nada do que conquistou até aquele momento vale de alguma coi-
sa. E deve agora resignar-se. Perdida a Voz para o Maestro, o mun- BARTHES, Roland, A preparação do Romance II – A obra
do, assim como a carta do tarô, já o derrotou. E agora ele deve se como vontade (Notas de curso no Collège de France 1979-1980),
resignar a admitir sua própria natureza bipolar, de louco. O eterno Texto estabelecido e anotado por Nathalie Léger, Tradução: Leyla
retorno e o Louco, desse modo, são arcanos que não puderam ser Perrne-Moisés, São Paulo: Martins Fontes, 2005;
contidos pela pureza do Natimorto. O Agente, tal como a carta LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polê-
sem numero, sem lugar, vai seguir, errante, pois “ninguém/ enga- mica em torno da ilusão). São Paulo: ática, Série Princípios, 1985;
na/ o jogo. O tarô/ é um jogo/ onde sempre/ perdemos./ O jogo do LUKÁCS, A teoria do romance: Um ensaio histórico-filosófico
destino” (MUTARELLI, 2009, p.128). Ninguém engana o destino, sobre as formas da grande épica. Tradução, posfácio e notas: José
porém vemos o Agente, herói moderno, manipula-lo nas cartas. Marcos Mariani de Macedo,2° Ed. São Paulo: Duas Cidades, Edi-
E o final em aberto do Natimorto passa a sensação de que os dois, tora 34, 2009;
Agente e Voz, vão ser eternamente sujeitados a esse jogo de cartas: MUTARELLI, Lourenço, O Natimorto, 1° reimpressão, São
ela, porque não sabe que será, talvez, devorada, e ele, porque, ma- Paulo: Companhia das Letras, 2009;
nipulador e errante, adivinha suas ações ao mesmo tempo em que WOOD, James, Como funciona a ficção, São Paulo: Cosac Nai-
as justifica nessa dança por entre a fumaça. fy, 2011.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se utilizar dos recursos da poesia e do teatro, Mutarelli sub- RESUMO


verte o gênero romance, e é capaz de criar um texto delicado e
sensualmente instigante. Ele dá voz à canção violenta de seu nar- O romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha de Lima
rador, mas a abafa para as demais personagens com a utilização do Barreto explora a questão do racismo vivido pelo personagem Isa-
monologo interior, que envolve o leitor e toda a narrativa. A crise ías Caminha. A escravidão, embora abolida, continuava a persistir
entre o eu-mundo é um dos motores centrais da obra, e seu fun- na sociedade através do racismo. O próprio escritor, Afonso Hen-
damento, pois esse herói não mais se reconhece entre seus pares rique de Lima Barreto, sofreu com o preconceito racial. Sempre
e por isso busca isolar-se. Sua condição mental, apesar da bipola- vivera afastado dos colegas do colégio por possuir a tez escurinha,
ridade, muitas vezes pode ser entendida pelo leitor, que há de se seu conforto estava na Biblioteca Nacional, onde passava as tardes
identificar com ele em alguns momentos. Assim, nesse contexto, a lendo e a capelinha do Apostolado Positivista. Não bastasse o dis-
Voz e o Agente, ambos em crise e sem lugar no mundo, dançam, tanciamento dos alunos, ainda existia a perseguição do professor
ela os passos incertos e ele calculando onde pisar, ao redor de si Lícinio, que cometia injustiças com Lima Barreto, a ponto de re-
no texto, que se torna palco opaco e esfumaçado para o leitor. Lei- baixá-lo por conta de sua cor. Diante do racismo presente no ro-
tor esse que, aprendendo a ler os maços/tarô, começa a adivinhar, mance analisado, o autor utilizando-se de uma linguagem simples
junto com o narrador, os acordes seguintes desse musical silen- e comunicativa, procura mostrar de forma importante e sem me-
cioso. andros que para a sociedade não adianta ser inteligente e honesto

71
para ter algum prestígio social, bastava ser branco. Isaías queria Com isso, para a fundamentação sobre o racismo e sobre a ide-
ser alguém muito importante socialmente, seria uma maneira de ologia difundida pelo escritor na obra, foram usadas as ideias de
apagar o sofrimento que sua cor causava, mas devido às mesmas Bernd (1988), Fanon (2008), Silva (1981) e Rocha (2008).
questões com as quais Lima Barreto sofreu, ele não alcançou o seu
objetivo ser doutor. Palavras-chave: Negro; Racismo; Segregação; Sociedade
O presente trabalho tem por finalidade analisar o preconceito
racial no romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Es-
pecificamente, observaremos os momentos de conflito racial so-
fridos por Isaías e como o escritor apresenta esta questão a partir
do seu ponto de vista. Para o crítico Silva (1981), mais que se PRECONCEITO RACIAL: O TRATAMENTO RACISTA
possa supor a cor da pele, haverá sempre um conflito neste país EVIDENCIADO NA OBRA RECORDAÇÕES DO ESCRI-
mestiço, a sociedade olhará para o negro como um ser incapaz VÃO ISAÍAS CAMINHA
de pensar e de viver dignamente em meio ao branco. Para o eles é
como se o preto não fosse capaz de se equiparar após anos de pri- Marcelo Severo do Nascimento1;
são. Segundo Fanon (2008), eles eram vistos como pessoas sujas, Sara Maria da Silva2;
sem capacidade mental, seres que foram extintos do meio social Orientador: Dr. Fernando Oliveira Santana Junior3
por serem “diferentes” da civilização que participavam, porém
é preciso enfrentar a sociedade discriminatória com ação, mos- 1. Estudante do curso de Letras/Licenciatura-CAC-UFPE;
trando que é capaz de viver livre, sem opressões ou humilhações. Email:marcelosevero1505@hotmail.com
A personagem Isaías demonstrou sua superioridade intelectual 2. Estudante do curso de Letras/Licenciatura-CAC-UFPE;
quando recebeu o convite para tomar notas na redação, enfren- E-mail: princesasarinh@hotmail.com
tou dificuldade por parte dos colegas de trabalho, que queriam 3. Professor/Pesquisador do departamento de Letras-CAC-
desmoralizá-lo, mas obteve prestígio escrevendo um artigo e se -UFPE; E-mail: fernandooliveira.letras@gmail.com
tornando funcionário do jornal. Partindo desse conflito, é que
analisaremos o preconceito racial vivenciado pela personagem
principal da obra.
Chegamos à conclusão de que as dificuldades enfrentadas pela Resumo: O romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha
personagem principal do romance não a impediram de continuar de Lima Barreto explora a questão do racismo vivido pelo perso-
tentando contrariar as expectativas de uma sociedade preconcei- nagem Isaías Caminha. A escravidão, embora abolida, continuava
tuosa e segregadora. Isaías Caminha sentia revolta pelo precon- a persistir na sociedade através do racismo. O próprio escritor,
ceito que padecia, no entanto a sua revolta não era guiada pelo Afonso Henrique de Lima Barreto, sofreu com o preconceito ra-
ódio e sim pelo amor. Constatamos que as impressões do ponto de cial. O presente trabalho tem por finalidade analisar o preconcei-
vista do escritor sobre o racismo são postas no romance, devido à to racial no romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha.
relação da situação socioeconômica existente entre o escritor e a Especificamente, observaremos os momentos de conflito racial
personagem do romance. sofridos por Isaías e como o escritor apresenta esta questão a par-

72
tir do seu ponto de vista. Selecionamos trechos da obra a fim de vouras de cana-de-açúcar. Muitos já chegavam doentes pelas con-
alcançar os objetivos propostos. Chegamos à conclusão de que as dições subumanas com que eram transportados, outros quando
dificuldades enfrentadas pela personagem principal do romance resistiam a tanto sofrimento, trabalhavam sob sol forte, com pou-
não a impediram de continuar tentando contrariar as expectati- ca alimentação e viviam em senzalas, muitas vezes acorrentados
vas de uma sociedade preconceituosa e segregadora. Constatamos para não fugirem; já as mulheres escravas eram obrigadas a traba-
que as impressões do ponto de vista do escritor sobre o racismo lhar nas casas dos senhores de engenhos e sofriam abuso sexual
são postas no romance, devido à relação da situação socioeconô- por parte dos seus donos.
mica existente entre o escritor e a personagem do romance. Com Então, diante dessa situação que o negro viveu e ainda vive na
isso, para a fundamentação sobre o racismo e sobre a ideologia sociedade brasileira, não mais como escravos, mas numa visão de
difundida pelo escritor na obra, usamos as ideias de Bernd (1988), acorrentado pelo preconceito, faz-se necessário discutir o assunto
Fanon (2008), Silva (1981) e Rocha (2008). por meio de obras de alguém que vivenciou a luta do racismo dia-
riamente, desde menino até se tornar independente. Lima Barreto
Palavras-chave: Negro; Racismo; Segregação; Sociedade mesmo sendo um bom aluno e tendo notas exemplares, era escan-
teado e excluído da presença dos amigos por ser negro e pobre.

INTRODUÇÃO O romancista queixa-se pra valer em todos os seus livros de rebai-


xamento social, consciente das injustiças atribuídas à sua cor. Mas
aí, ele, Lima Barreto, comete um erro. Se fosse branca sua pele, teria
Este trabalho tem como finalidade analisar o racismo existente passado nos exames da Escola Politécnica e se formado. (A causa da
no romance barreteano, observando especificamente o preconcei- sua reprovação estava na ordem direta do preconceito do seu professor,
to racial presente no corpus que será a obra Recordações do Es- Licínio Cardoso.) E teríamos, então, não o criador de Policarpo Qua-
crivão Isaías Caminha, uma vez que o autor Lima Barreto sendo resma, mas um doutor a mais... (SILVA, 1981, p. 23-24)
nascido de escravos, vivenciou a luta contra o preconceito desde a
infância até sua fase adulta. Foi perseguido pelo professor, sofrendo constantes reprova-
O preconceito racial tem ficado mais transparente na socieda- ções e vivendo de frente com a descriminação racial. Porém, fo-
de. Darcy Ribeiro (2006) afirma que a luta mais árdua do negro ram as dificuldades sofridas por meio do preconceito racial que o
africano e de seus descendentes brasileiros foi, ainda é, a conquista levou a produzir obras que evidenciam as suas percepções diante
de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade do racismo.
nacional. Apesar de terem passado mais de 100 anos da abolição
da escravatura, segundo Faria (2014), o Brasil ainda é tardio nas O PRECONCEITO RACIAL NA OBRA RECORDAÇÕES DO
reparações e elaborações de políticas públicas que possam dirimir ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA
as desigualdades produzidas desde os tempos de expansão e ex-
ploração. No início do século XIX com o avanço da tecnologia e da Revo-
É sabido que, mesmo antes da libertação dos escravos (1888), lução Industrial na Europa, houve uma grande transformação no
os negros já sofriam no Brasil. Foram trazidos da África em em- mundo. O que antes era realizado pelas mãos do homem, passou
barcações conhecidas como tumbeiros para trabalharem em la- a ser feita por máquinas, surgindo fábricas e os funcionários pas-
saram a ser assalariados. No Brasil ocorreu uma grande imigração

73
de europeus e o cenário colonial também sofreu modificações. O espetáculo de saber do meu pai, realçado pela ignorância da minha
A paisagem no Brasil colonial era composta por negros escra- mãe e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como
um deslumbramento.
vos trabalhando diariamente em lavouras de cana-de-açúcar, sen- Pareceu-me que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu de-
do açoitados e maltratados por feitores, mas com o advento da sembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e
tecnologia surgido na Europa, algumas medidas foram providen- compreendê-las, constituíam, não só uma razão de ser de felicidade,
ciadas para mudança desse cenário, e, uma delas foi a luta pelo fim de abundância e riqueza, mas também um título para o superior res-
da escravidão que ocorreu de forma lenta e em etapas. peito dos homens e para a superior consideração de toda gente. (BAR-
RETO, 1990, p. 19).
A guerra pelo término da escravidão iniciou por volta do ano
de 1850 quando promulgaram a Lei Eusébio de Queirós, extin-
Caminha dedicou-se aos estudos porque tinha o desejo de ser
guindo o tráfico de escravos. Em seguida, no ano de 1871 houve
diferente como o pai, adquirir prestígio da sociedade pelo elevado
a promulgação da Lei do Ventre Livre, que tornava os filhos de
nível colegial e quem sabe, futuramente, ser um doutor para apa-
escravos livres nascidos a partir daquela data; dando continuidade
gar o sofrimento que carregava a sua cor.
no processo surgiu a Lei Saraiva-Cotegipe (1885), que beneficiava
os negros com mais de 65 anos e para finalizar o sofrimento dos Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento
escravos, foi então decretada a Lei Áurea (13 de maio de 1888), humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de mi-
assinada pela Princesa Isabel, que os libertava definitivamente das nha cor... Nas dobras do pergaminho da carta, traria presa a conside-
opressões dos senhores de engenho e da sociedade preconceitu- ração de toda a gente. (BARRETO, 1990, p. 23).
osa. Mas, será que o negro realmente foi liberto do preconceito
racial? Existem vários tipos de racismo, étnico, religioso, cultural A sociedade tinha uma descrença no indivíduo de pele escura,
e o que entristece é saber que um país como o Brasil, que tem é como se os negros não conseguissem equiparar o modo de vida
em sua formação nacional uma mistura de etnias, possa sustentar que levavam anteriormente (antes da libertação dos escravos), a
uma ideia de preconceito racial. Após a libertação dos escravos, o nova realidade imposta, sentindo-se impotente socialmente, mas
negro chega ao mundo dos brancos, devagar, não querendo sofrer para Fanon (2008), esquivar-se do mundo é o mesmo que escorre-
preconceitos que já existiam no período colonial. Como os negros gar em uma ladeira, no final das contas, leva à perda de si mesmo,
não tinham tempo para os estudos, a sua desigualdade mental era ou seja, é preciso enfrentar uma sociedade discriminatória com
refletida na vida cotidiana. Segundo Fanon (2008), eles eram vis- ação, mostrando que é capaz de viver livre, sem opressões ou hu-
tos como pessoas sujas, sem capacidade mental, seres que foram milhações.
extintos do meio social por serem “diferentes” da civilização que Isaías Caminha sofreu humilhação semelhante ao decidir fa-
participavam. zer sua viagem para o Rio de Janeiro, quando em uma estação de
O personagem Isaías Caminha sentia a tristeza da desigualda- trem, ao parar para fazer um lanche e aguardar o troco, foi descri-
de de nível mental pela ignorância nos estudos de sua genitora e minado e não conseguia entender o porquê de tanto preconceito:
de alguns parentes, mas o seu pai tinha um estudo espetacular,
O trem parara e eu abstinha-me de saltar. Uma vez, porém, o fiz; não
lia e compreendia diversas línguas, isso o tornava “diferente”, pois sei mesmo em que estação. Tive fome e dirigi-me ao pequeno balcão
conseguia respeito e consideração das pessoas, não sofria precon- onde havia café e bolos. Encontravam-se lá muitos passageiros. Ser-
ceito pela falta de estudo. vi-me e dei-me uma pequena nota a pagar. Como se demorassem em

74
trazer-me o troco reclamei: “Oh! fez o caixeiro indignado e em tom perior e digno a quem um epíteto daqueles feria como uma bofetada.
desabrido. Que pressa você tem?! Aqui não se rouba, fique sabendo!” (BARRETO, 1990, p. 51).
Ao mesmo tempo a meu lado, um rapazola alourado reclamava o dele,
que lhe foi prazenteiramente entregue. O contraste feriu-me, e com os
olhares que os presentes me lançam, mais cresceu a minha indigna- Ser negro no Brasil é ter certeza que obstáculos serão enfrenta-
ção. Curti, durante segundos, uma raiva muda, e por pouco ela não dos, é ser capaz de viver com dignidade e alcançar seus objetivos,
rebentou em pranto. [...]/ Minhas mãos fidalgas, com dedos afilados e
esguios, eram herança da minha mãe, que as tinham tão valentemente mesmo que para almejá-los sofra algumas discriminações. Para
bonitas que se mantiveram assim, apesar do trabalho manual a que a Bernd (1988), ser negro no Brasil é ter orgulho de suas tradições,
sua condição a obrigava. Mesmo de rosto, se bem que os meus traços que na maioria das vezes, não receberam o devido valor entre tan-
não fossem extraordinariamente regulares, eu não era hediondo nem tas contribuições deixadas para nossa cultura.
repugnante. Tinha-o perfeitamente oval, e a tez de cor pronunciada- Isaías sabia todo o momento que obstáculos surgiriam, mas
mente azeitonada. (BARRETO, 1990, p. 26).
que tinha orgulho de sua tradição, tanto que outros personagens
Nota-se neste trecho da obra um contraste do tratamento ofer- do romance ficaram admirados pela educação que o mulatinho
tado ao branco e ao negro. Tanto para os passageiros quanto para recebera, para eles todo negro é igual, os homens são vagabundos,
o caixeiro, ali estava mais um “negrinho sem modos” exigindo mentirosos e as mulheres eram apenas produtos exóticos.
algo, ao mesmo tempo em que um “alourado” reclamava a mesma
Percebi que o espantava muito o dizer-lhe que tivera mãe, que nascera
coisa. O personagem não conseguia, talvez, entender o precon- num ambiente familiar e que me educara. Isso, para ele, era extraor-
ceito sofrido porque possuía uma fisionomia com traços fidalgos. dinário. O que me parecia extraordinário nas minhas aventuras, ele
Como afirma o crítico Silva (1981), mais que se possa supor a cor achava natural; mas ter eu mãe que me ensinasse a comer de garfo,
da pele, haverá sempre conflitos neste país mestiço, o que Isaías isso era excepcional. Só atinei com esse seu íntimo pensamento mais
não compreendia é que se tratava de um negro, e a tez da pele para tarde. Para ele, como para toda a gente mais ou menos letrada do
Brasil, os homens e as mulheres do meu nascimento são iguais, mais
muitos já expressam outros sentidos degradantes. iguais ainda que cães de suas chácaras. Os homens são uns malan-
Mulatinho, escurinho, sujo, são palavras como essas que en- dros, planistas, parlatões quando aprendem alguma coisa, fósforos dos
tristecem e que o personagem Isaías ouviria durante sua estadia politicões; as mulheres (a noção aí é mais simples) são naturalmente
no Rio de Janeiro, não importava de quem partiria se do caixeiro fêmeas. (BARRETO, 1990, p. 135).
ou de uma autoridade maior, o que importava é que elas soavam
como uma espada cortante, fazendo as lágrimas chegarem aos A capacidade do ser humano de não querer enxergar que to-
olhos por causa do tamanho tratamento desrespeitoso. dos são iguais é simplesmente lamentável, chegando a comparar o
homem (negro) a um cão que toma conta de um sítio. Isaías Ca-
- E o caso do Janikalé? Já apareceu o tal “mulatinho”? minha sentiu-se lisonjeado pela atenção que conquistara ao final
Não tenho pejo em confessar hoje que quando me ouvi tratado assim, do romance, mas ainda sim não ficou satisfeito com o pensamento
as lágrimas me vieram aos olhos. Eu saíra do colégio, vivera sempre tardio de muitos doutores:
num ambiente artificial de consideração, de respeito, de atenções co-
migo; a minha sensibilidade, portanto, estava cultivada e tinha uma A indolência mental leva-os a isso e assim também pensava o doutor
delicadeza extrema que se ajuntava ao meu orgulho de inteligente e Loberant. Não tive grande trabalho em o fazer modificar o juízo na
estudioso, para me dar não sei que exaltada representação de mim parte que me tocava. Não me dei por satisfeito. [...]/ fiquei anima-
mesmo, espécie de homem diferente do que era na realidade, ente su- do, como ainda estou, a contradizer tão malignas e infames opiniões,

75
seja em que terreno for, com obras sentidas e pensadas, que imagino O preconceito de cor relatado no romance de Lima Barreto é
ter forças para realizá-las, não pelo talento, que julgo não ser muito apenas uma maneira de apresentar para os leitores que os anos
grande em mim, mas pela sinceridade da minha revolta que me vem
do Amor e não do Ódio, como podem supor. (BARRETO, 1990, pp.
podem passar, mas sempre haverá vítimas de um racismo que
135-136). nunca se acaba, pode até ficar encoberto, porém surgirá em algum
momento e lugar. Ademais, constata-se a exposição das ideologias
Desigualdade mental, impotência social e equiparação a um do autor na produção da sua obra literária em análise.
animal foram pequenas imagens do preconceito racial vivido pelo
mulato Isaías, e em todas elas sentiu tristeza, angústia, revolta,
mas conduziu-as com puro amor e não com raiva, como se pode REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
observar.
Outrossim, vê-se que o autor expõe as suas perspectivas sobre BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2.
o racismo, pois sofrera semelhantes preconceitos aos que Isaías ed. São Paulo: Ática, 1990.
Caminha sofreu. Rocha (2008, p.4) ao fazer uma análise de outros BERND, Zilá. O que é negritude. São Paulo: Brasiliense, 1988.
textos afirma que FARIA, Cristiano José Galvão. Abolicionistas da contempora-
neidade: agenciamentos de policiais, promotores e procuradores
a literatura é um complexo produto da imaginação e experiência in- frente ao racismo institucional. In: CARDOSO, Fernando da Sil-
dividuais, somada a ideologia escolhida pelo autor. Por esse motivo, o
foco desse estudo é a análise de como as questões raciais aparecem nos
va; CAVALCANTI, Maria de Fátima Galdino da Silveira; LUNA,
romances selecionados, como o tratamento dado a essas questões refle- Maria José de Matos (Orgs.) Cultura de paz: gênero, sexualidade e
tem as ideologias adotadas pelos autores e as pressões sócio-ideológicas diversidade. Recife: Ed. Universitária, 2014.
que estes sofreram durante a sua trajetória. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Suas experiências e ideologias levaram-no à produção da obra ROCHA, Elaine P. O racismo refletido na literatura brasileira e
literária em análise, ou seja, o romance Recordações do Escrivão sul-africana entre 1909 e 1953. XIII Encontro de História Anpuh-
Isaías Caminhas revela a perspectiva de Lima Barreto quanto ao -Rio, 2008. Disponível em: http://encontro2008.rj.anpuh.org/re-
preconceito racial sofrido por ele mesmo. sources/content/anais/1215566243_ARQUIVO_Racismoresumi-
do-anpuh-rio.pdf. Acesso em: 09 de janeiro de 2016.
SILVA, H.Pereira. Lima Barreto Escritor Maldito. 2. Ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 23-24.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da análise aqui realizada, percebe-se que o preconceito


racial vivido pelo personagem Isaías Caminha foi enfrentado com RESUMO
tristeza e não com rancor. Desde a sua ida ao Rio de janeiro até
obter um lugar de destaque no jornal da cidade, foi humilhado Apesar de Portugal e do Brasil atuarem como espaços vitais
pela sociedade e tido para muitos como uma pessoa sem capaci- para a sobrevivência do povo semita em meados da 2.a Guerra
dade mental. Mundial, a sistematização de obras literárias publicadas nesse pe-

76
ríodo em que a figuração do Judeu esteja presente praticamente REPRESENTAÇÕES DO JUDEU EM “SOB CÉUS ES-
inexiste.Com o intuito de atenuar essa lacuna da Crítica Literária TRANHOS”, DE ILSE LOSA, E EM “OS ESCORPIÕES”,
de Língua Portuguesa, esta proposta de comunicação visa a abar- DE GASTÃO DE HOLANDA
car dois romances que, contendo a representação do Judeu no es-
paço citadino, possibilitam a análise do ambiente ficcional, assim Raul da Rocha Colaço¹
como da sociedade ficcionalizada: Sob Céus Estranhos (1962), da Antony Cardoso Bezerra²
autora teuto-portuguesa Ilse Losa, e Os Escorpiões (1954), do es-
critor pernambucano Gastão de Holanda. Para isso, realiza-se um ¹ Estudante do Curso de Licenciatura em Letras – DL –
percurso filológico, sempre partindo das obras ora investigadas, UFRPE. E-mail: rauldarochacolaco@gmail.com
com a intenção de se compreender o projeto estético de ambos ² Professor Adjunto 3 do Departamento de Letras – DL –
autores. Além disso, para expandir o horizonte de apreensão das UFRPE. E-mail: antony.bezerra@ufrpe.br
figurações relativas aos seguidores da Estrela de Davi, aproveita-se
o conto “Nasci com Passaporte de Turista” (1991), produzido pelo
ficcionista lusitano Alves Redol, que dá conta da representação Resumo – Apesar de Portugal e de o Brasil atuarem como espa-
do Judeu no período já destacado e, mais além, traz a lume uma ços vitais para a sobrevivência do povo semita, quando emigrado
feição semelhante àquelas encontradas no corpus. Outros instru- no horizonte da 2.a Guerra Mundial, é incipiente a sistematização
mentais relevantes a este estudo são Neill Lochery (2012), à medi- de obras literárias lusófonas publicadas nesse período nas quais a
da em que esboça um quadro de Portugal no período circundante figuração do Judeu esteja presente. Com o intuito de atenuar essa
à 2.a Guerra; e Michael Brenner (2013), por narrar, de forma bre- lacuna da Crítica Literária de Língua Portuguesa, este trabalho
ve, a trajetória da comunidade judaica desde os tempos bíblicos visa a contemplar dois romances que, contendo a representação
até a contemporaneidade. Como resultados parciais, chegou-se, do Judeu no espaço citadino, possibilitam a análise do ambien-
até o presente momento, em uma caracterização detalhada de três te ficcional, assim como da sociedade ficcionalizada: Sob Céus
perfis do Judeu nas obras abordadas: 1) o Judeu como homem de Estranhos (1962), da autora teuto-portuguesa Ilse Losa, e Os Es-
negócios; 2) o Judeu como alguém que possui, naturalmente, ta- corpiões (1954), do escritor pernambucano Gastão de Holanda.
lento para a atividade comercial; e 3)o descendente de Judeu que Para isso, realizou-se um percurso filológico, sempre partindo das
não se adapta às tradições judaicas. [Este trabalho se desenvol- obras ora investigadas e na busca pela compreensão do projeto
veu no contexto do projeto de pesquisa A Personagem Judaica em estético dos autores. Instrumentais de fundo histórico relevantes
Narrativas de Ficção Portuguesas e Brasileiras (dos anos 1930 aos ao estudo foram Neill Lochery (2012) e Michael Brenner (2013).
anos 1960), com financiamento do PIBIC-FACEPE.] No tocante à representação ficcional e à exposição da realidade
na Literatura, aproveitaram-se Auerbach (1997), Eco (1999) e
Palavras-chave: Figurações; Judeu; Ilse Losa; Gastão de Holanda Schutz (2002). Com o fito de se expandir o escopo de apreensão
das figurações relativas aos israelitas, visitou-se o conto “Nasci
com Passaporte de Turista” (1940), do ficcionista lusitano Alves
Redol. Como resultados parciais, chegou-se a uma caracteriza-
ção detalhada de três perfis do Judeu: 1) o Judeu como homem

77
de negócios; 2) o Judeu como alguém que possui natural talento Em adição a isso, aponta-se outro fator relevante, que consiste
para o comércio; e 3) o descendente de Judeu que não se adapta na investigação de um autor praticamente não estudado em am-
às tradições judaicas. [Este trabalho se desenvolveu no contexto biente acadêmico e pouco lido na atualidade: Gastão de Holan-
do projeto de pesquisa A Personagem Judaica em Narrativas de da. Em outros termos, este estudo favorece a recuperação de um
Ficção Portuguesas e Brasileiras (dos anos 1930 aos anos 1960), escritor recifense que ambientou narrativas em sua terra natal e
com financiamento do PIBIC-FACEPE.] que conseguiu alcançar repercussão nacional (visto que, a título
de exemplo, a obra Os Escorpiões foi vencedora do “Prêmio José
Palavras-chave: figurações; Gastão de Holanda; Ilse Losa; Ju- de Anchieta para Romance Instituído pela Comissão do IV Cen-
deu tenário de São Paulo”).
Este trabalho, assim, destina-se a divulgar os resultados par-
ciais, obtidos nos primeiros seis meses do Projeto de Pesquisa, à
INTRODUÇÃO comunidade acadêmica.

Ao se realizar o levantamento inicial para o Projeto de Pes- METODOLOGIA


quisa A Personagem Judaica em Narrativas de Ficção Portuguesas
e Brasileiras (dos anos 1930 aos anos 1960), encontrou-se uma Como método principal, lançou-se mão da Filologia, arcabou-
lacuna na esfera da Crítica Literária de Língua Portuguesa. Ape- ço científico que permite a elaboração de um esboço da vida social
sar de Portugal e de o Brasil terem se afirmado como espaço de tanto do período em que se passa a fábula dos romances investiga-
passagem (em especial, o país europeu), assim como de destino dos, quanto da época em que cada autor produziu sua obra; tudo
do povo judaico no período que envolve a 2.a Guerra Mundial, isso equacionado em termos de linguagem.
o inventário de obras ficcionais em que a figuração do Judeu se Outro ganho trazido pela leitura filológica consiste na viabi-
manifeste é quase nulo. lidade de se integrarem os textos literários e os instrumentais de
Com vistas a minimizar os efeitos dessa carência, desenvol- distintas áreas do conhecimento. No campo dos referenciais de
ve-se o Plano de Trabalho Figurações do Judeu em Ilse Losa e História (particularmente aqueles que se voltam para os Judeus),
em Gastão de Holanda: representações sociais na cidade (inicia- foram úteis, por exemplo, materiais que apresentam reflexões
do em agosto de 2015 e com finalização prevista para julho de sobre o fazer historiográfico (White, 2008); investigações que se
2016), com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Ciência dedicam a discutir a presença judaica nos contextos em estudo
e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). Este inquérito (Lewis, 2004; Lochery, 2012); e, num sentido mais amplo, Histó-
tem como fito examinar dois romances que, sendo portadores da rias do povo judeu (Brenner, 2013).
representação do Judeu no espaço citadino, facultam a apreciação No que diz respeito à representação ficcional e à exposição da
do espaço ficcional e, por extensão, da sociedade ficcionalizada: realidade na Literatura, deu-se destaque a Auerbach (1997), bem
Sob Céus Estranhos (1962), da escritora alemã, naturalizada por- como a Eco (1999) e a Schutz (2002). Por outra parte, em relação
tuguesa, Ilse Losa, e Os Escorpiões (1954), do autor pernambuca- ao estudo da narrativa, a síntese de Adam & Revaz (1997) fez-se
no Gastão de Holanda. essencial.

78
Além disso, enfatiza-se que a leitura de narrativas que contem- acarretar o rompimento desse namoro. Em adição a isso, é impor-
plam a temática em estudo, como os contos “Nasci com Passapor- tante mencionar que, além da convivência com a jovem semita,
te de Turista”, de Alves Redol, e “Gringuinho”, de Samuel Rawet, Leopoldo e seu grande amigo Frederico Sarmento interagem com
foram fundamentais para o apuro desta investigação. outros judeus e, ademais, com os seus costumes (caso do persona-
Em síntese, para dar andamento ao estudo, executaram-se os gem Oinos Apatanta, hóspede da pensão em que moram os dois
seguintes passos: 1) leitura inspecional das obras literárias do cor- rapazes).
pus; 2) leitura, fichamento e resumo da bibliografia sobre História, Após a leitura inspecional dos romances e o estudo sistemáti-
Filologia e Narratologia; 3) leitura de textos literários que se de- co de materiais teóricos e críticos, partiu-se para a realização de
diquem à figuração do Judeu; 4) atividades de análise do corpus. exercícios de análise, o que resultou na descrição pormenorizada
de algumas visões sobre a figura do Judeu. O perfil medular en-
RESULTADOS E DISCUSSÃO contrado nessas apurações consiste na representação do israelita
como um homem de negócios, conforme se pode ver no excerto
A primeira das obras literárias investigadas, Sob Céus Estra- a seguir:
nhos, cobre, em essência, o ano de 1948 e fornece destaque ao per-
sonagem José Berger, um jovem alemão (filho de mãe protestante Porque inicialmente ele se estava contentando com uma fortuna de
3.

e de pai judeu) que é obrigado a abandonar sua terra para não ser experiências. Precisava tomar pé naquela cidade de incircuncisos,
integrar-se na colônia, conhecer um mínimo de pessoas, para depois
vítima do Governo Nazista, devido à hereditariedade judaica que declarar-se um verdadeiro homem de negócios. Aí, a guerra seria tre-
carrega. Após essa fuga, José se encaminha para Portugal, onde menda. Formidável! Veriam, realmente, o gênio do comércio. (HO-
deseja seguir caminho em direção aos Estados Unidos. No país LANDA, 1954, p. 51.)
ibérico, depara, então, com milhares pessoas em situação seme-
lhante. Ao desenrolar da fábula, esse jovem não consegue partir
de onde está, sendo obrigado a estabelecer-se, mesmo que de for- Nesse trecho, percebe-se, com nitidez, o anseio de enriqueci-
ma instável, na cidade do Porto. A partir da expatriação de José mento de José Berensky, pai de Bertha, ao desembarcar na capital
Berger, Losa esboça com detalhes as contrariedades enfrentadas pernambucana. Para alcançar o sucesso financeiro nesta cidade, o
pelos refugiados judeus: dificuldades com a nova língua e a nova judeu, primeiramente, planejou familiarizar-se com o novo povo,
cultura; complicações financeiras; proibição de se empregarem e, ou seja, com os seus costumes, com a sua história, os seus hábitos
com isso, adquirirem residência fixa; instabilidade em relação aos comerciais etc. Em seguida, com base nos conhecimentos adqui-
vistos de permanência no país, entre outros problemas. ridos sobre o mercado recifense, exploraria um negócio que lhe
Já a fábula da segunda obra, Os Escorpiões, desenvolve- fosse rentável.
-se no contexto do ano de 1936 e se atém à relação amorosa dos Sendo assim, já é possível ressaltar a representação do talento
recifenses Leopoldo, um rapaz cristão, e Bertha, uma moça judia. para o comércio da comunidade judaica em geral, devido à evi-
À medida em que narrativa é contada, entra-se em contato com dente habilidade de Berensky para esboçar um projeto comercial.
as tradições judaicas que emperram esse relacionamento (como a Esse talento para as vendas é retratado, também, em Sob Céus
expectativa de um casamento arranjado com alguém de posses e Estranhos, no instante em que José Berger traz à tona as figuras da
da mesma religião, especialmente) e que, ao final da diegese, irão mãe e do irmão:

3
Aqui já se tem uma modificação importante na vida de José Berger: a adaptação de seu nome
em alemão, Josef, para o português.
79
Mulher ambiciosa, a mãe. Por vezes perguntava-se se ela lhe fizera cuidaria também da tradição, e pronto! perder-se ia um elemento inte-
falta depois de a ter deixado e de ela ter morrido. Sempre a falar em fa- ligente, genial mesmo, e, sobretudo, uma mulher. (HOLANDA, 1954,
zer dos filhos homens importantes. O desgosto que ela tivera por Tony p. 57.)
não querer estudar! Tony só pensava em negócios, já com cinco anos
de idade tentara vender a outros meninos o pião às cores que o pai No fragmento acima, o narrador se apropria do discurso indi-
lhe trouxera de Berlim. Foi por isso que escolheu a América quando reto livre para conceder ao leitor o ponto de vista de José Berensky
teve que emigrar. Aliás, a mãe concordou, tinha a América em alta
conta. «Na América os homens têm muitas ocasiões e largo espaço sobre sua filha. Desde cedo, o patriarca notou que o espírito de
para avançarem na vida», dizia. Ou então: «Para um rapaz que não Bertha não se ajustava com facilidade às doutrinas judaicas. Dessa
quer estudar há só uma única terra onde consegue vencer, a América». maneira, era de suma importância que houvesse um maior esme-
(LOSA, 1987, p. 22-23.) ro com a educação judaica da menina, para que ela não se afas-
tasse do caminho traçado pelos pais. Além disso, manter a jovem
Ao recuperar a lembrança da mãe, de religião protestante, o dentro dos costumes judaicos era fundamental por dois motivos:
protagonista José Berger rememora a relação dela com o filho 1) devido a sua inteligência, que, provavelmente, renderia lucros
Tony. Por ser ambiciosa, ela almejava que os dois herdeiros estu- à família e, mais além, à comunidade israelita; e, principalmen-
dassem e, nesse caminho, consolidassem uma carreira profissional te, 2) pela sua condição feminina, ou seja, seu papel de genitora,
promissora. No entanto, Tony nunca quis se dedicar aos estudos, de multiplicadora do povo hebreu. Assim sendo, é patente que a
preferindo, desde muito novo, direcionar seus esforços ao comér- condição de Judeu é decretada, em boa parte das vezes, pelo olhar
cio. Desse modo, tanto para a mãe, quanto para Tony, só havia do outro em detrimento de um autorreconhecimento do persona-
um local onde ele poderia prosperar financeiramente: os Estados gem, o que coincide, também, com a observação do sionista The-
Unidos. Diante disso, pode-se mapear dois perfis do Judeu: o este- odor Herzl, ao afirmar que “o que unia todos os judeus era a sua
reótipo do Judeu como um homem naturalmente empreendedor, ancestralidade comum, sua história e o fato de serem rejeitados
sempre à procura da prosperidade financeira (representado pelo pela sociedade ao redor.” (apud BRENNER, 2013, p. 240.)
personagem Tony); e o Judeu apenas por descendência, que é o
caso de José, visto que não se identifica com a tradição judaica,
seja nos aspectos religiosos, seja na esfera do acúmulo financeiro. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A última figuração a ser discutida com mais detalhes é a do
filho de pai judeu que não se adapta às doutrinas judaicas. Essa Como foi exposto no tópico anterior, chegou-se, até agora, a
conjuntura (para além de José Berger em Sob Céus Estranhos) uma caracterização minuciosa de três perfis do Judeu nas obras
também ocorre em Os Escorpiões, com a adolescente Bertha. analisadas. O primeiro destes, o Judeu como homem de negócios ,
Contudo, seus pais mantêm um maior controle sobre sua condu- costuma ser a feição mais recorrente, seja no imaginário do senso
ta, não permitindo que ela se afaste do judaísmo: comum (que visualiza o Judeu como um ser ambicioso, que sem-
pre almeja o lucro), seja na sua representação nos romances (para
Mas sucedeu que, crescendo Bertha, ele notava nela falta de unidade.
O seu temperamento não era uníssono como o da grande tribo. Com se ter uma ideia, em Os Escorpiões, todos os judeus adultos e do
isso a menina poderia criar um perigo de maiores proporções para o sexo masculino estão envolvidos em algum tipo de empreendi-
resto da comunidade. Era preciso vigiá-la de perto. Primeiro ela não mento), seja em materiais históricos (documentos que patenteiam
topava com a religião. No princípio seria assim, diziam. Depois des- essa condição rentável).

80
Seguindo o curso, indica-se que essa primeira representa- REFERÊNCIAS
ção já atrai o segundo perfil: o Judeu como alguém que possui, na-
turalmente, habilidade para as atividades mercantis. Nessa senda, ADAM, J.-M.; REVAZ, F. A Análise da Narrativa. Lisboa: Gra-
os filhos de Israel são caracterizados como pessoas que desde cedo diva, 1997.
se envolvem em transações comerciais (como foi visto no caso de AUERBACH, E. Figura. São Paulo: Ática, 1997.
Tony, irmão do protagonista de Sob Céus Estranhos). BRENNER, M. Breve História dos Judeus. São Paulo: Martins
Por oposição, também foram encontradas figurações sobre os Fontes, 2013.
judeus que não manifestam qualquer vocação para os costumes ECO, U. Seis Passeios pelos Bosques da Ficção. São Paulo: Com-
hebraicos, a exemplo de Bertha, personagem de Gastão de Holan- panhia das Letras, 1999.
da. Isso aproxima a terceira figuração: o filho de Judeu que não se HOLANDA, G. de. Os Escorpiões. Recife: Companhia Editora de
adapta às tradições judaicas. Como observado em ambas obras (e Pernambuco, 2013.
também em outros textos literários, como em “Nasci com Passa- LEWIS, S. Pernambuco, Anti-semitismo e Espionagem Alemã no
porte de Turista”), alguns filhos de judeus são enquadrados nessa Estado Novo. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs/in-
condição devido a sua descendência e não por, efetivamente, se- dex.php/srh/article/view/11294/6408>. Acesso em: 20 fev. 2016.
guirem e acreditarem no judaísmo. LOCHERY, N. Lisboa: 1939-1945: guerra nas sombras. Rio de Ja-
Enfim, aproveita-se a ocasião para registrar que, além dessas neiro: Rocco, 2012.
feições do Judeu, foram indiciados outros pontos de vista sobre LOSA, I. Sob Céus Estranhos. 2. ed. ref. Porto: Afrontamento,
essa figura (exemplos: o Judeu como ser obstinado; o Judeu como 1987.
ser pitoresco; o Judeu como escorpião; o Judeu como homem prá- RAWET, S. Gringuinho. In: _____. Contos e novelas reunidos.
tico; o Judeu como homem de fé, entre outros), que serão investi- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. p. 42-45.
gados, detalhadamente, ao longo do desenvolvimento do Projeto REDOL, A. Nasci com Passaporte de Turista. In: ______. Nas-
de Pesquisa e que, certamente, irão habitar os trabalhos vindou- ci com Passaporte de Turista: e outros contos. Lisboa: Caminho,
ros. 1991. p. 93-110.
SCHUTZ, A. Dom Quixote e o problema da realidade. In: LIMA,
4
Essa figuração do judeu é bastante recorrente. Além de estar presente nas duas obras do corpus, L. C. (Org.) Teoria da Literatura e suas fontes. Rio de Janeiro: Ci-
encontra-se, ainda, em Edith, protagonista do conto “Nasci com o Passaporte de Turista”: “Não sei vilização Brasileira, 2002. v. 2. p. 773-779.
falar o yiddish e, quando passava às sinagogas, Jeovah nunca me chamou. As palavras quentes e
os gestos largos dos rabinos nunca me souberam levar ao rebanho de Israel. O sábado foi sempre, WHITE, H. Enredo e Verdade na Escrita da História. In: MALER-
como outro qualquer, um dia sujeito a desditas ou alegrias. [...] o Deus da minha raça nunca me BA, J. (Org.). A História Escrita: teoria e História da Historiogra-
chamou, nem pude compreender os messias das outras.” (REDOL, 1991, p. 95.)
fia. São Paulo: Contexto, 2008. p. 192-210.
5
Embora a atividade do comércio não se relacione diretamente com as doutrinas judaicas, é fácil
perceber que essa ocupação profissional seja usual ao povo de Israel, quase uma marca dessa comu-
nidade. Segundo Brenner (2013), essa “tradição” passou a ganhar força na Idade Média, em meados
do século XII. Nessa época, os semitas estavam sendo afastados dos seus ofícios e “o comércio foi o
campo principal que permaneceu acessível aos judeus. A proibição da cobrança de juros, imposta
pelo III Concílio de Latrão em 1179, pela qual se interditava aos cristãos emprestar dinheiro a
juros a outros cristãos, fez aumentar o número de prestamistas judeus. Levados, assim, a adotar
determinadas profissões, os judeus se tornaram corpos estranhos não só em matéria de religião,
mas também na economia.” (BRENNER, 2013, p. 91-92.)

81
RESUMO terísticas multifacetadas das ruínas, portadoras da complexidade
entre grandiosidade e declínio tessitura da trama dessa narrativa.
Manuel Mujica Laínez nasceu na cidade de Buenos Aires (Argen- Palavras-chave: Literatura Hispano-Americana; Ruínas; Manuel
tina), no ano de 1910, tendo como cerne de suas obras literárias o Mujica Laínez.
olhar voltado ao passado, como contemplador e relator histórico,
tendo em certas ocasiões um tom irônico empregado pela voz do
narrador, que possibilita ao leitor lançar sobre a obra uma visão UM MUNDO EM RUÍNAS EM “EL VIAJE DE LOS SIETE
inusitada de momentos trágicos, desconcertantes e perturbado- DEMONIOS”, DE MANUEL MUJICA LAÍNEZ
res. Entre suas obras, ganham destaque: Misteriosa Buenos Aires
(1950), Bomarzo (1962) e El laberinto (1974), sendo Bomarzo a Isabela Cristina Tavares da Silva¹
mais reconhecida; apesar disso, o autor cai no esquecimento por Alfredo Adolfo Cordiviola²
motivações políticas, deixando de ser citado em manuais e aulas a
respeito da literatura hispano-americana como um dos exponen- Estudante do Curso de Mestrado em Teoria da Literatura – CAC
tes do realismo maravilhoso na América Latina, justificando sua – UFPE; E-mail: isabela.ctsilva@gmail.com
escassa circulação no Brasil. Em El viaje de los siete demonios a Docente/pesquisador do Depto de Letras – CAC – UFPE;
mescla entre Literatura Fantástica e História aparece de maneira E-mail: alfredo.cordiviola@gmail.com
latente, com a ironia já mencionada, em diversos aspectos: carac-
terização comportamental e física das personagens; motivação da
viagem realizada na narrativa; transição entre passado, presente e Resumo - Manuel Mujica Laínez nasceu na cidade de Buenos Ai-
futuro ao longo do texto. Sendo assim, baseando-se nas conside- res (Argentina), no ano de 1910, tendo como cerne de suas obras
rações de Aleida Assman (2011), Walter Benjamin (1994), Jacques literárias o olhar voltado ao passado, como contemplador e rela-
Le Goff (2013) e Mary Louise Pratt (1999) sobre as relações entre tor histórico, tendo em certas ocasiões um tom irônico emprega-
Literatura, História e Memória, o presente trabalho, apresentado do pela voz do narrador, que possibilita ao leitor lançar sobre a
para a disciplina Literatura e Artes Visuais (PPGL – UFPE), pre- obra uma visão inusitada de momentos trágicos, desconcertantes
tende discutir a presença das ruínas como composição temática e perturbadores. Entre suas obras, ganham destaque: Misteriosa
na obra El viaje de los siete demonios, de Mujica Laínez, na tenta- Buenos Aires (1950), Bomarzo (1962) e El laberinto (1974), sendo
tiva de estabelecer uma tipologia das ruínas à luz dessa narrativa, Bomarzo a mais reconhecida; apesar disso, o autor cai no esque-
percebendo os desdobramentos ou ocorrências dessas tipologias cimento por motivações políticas, deixando de ser citado em ma-
nos limites externos à obra ficcional. Para tanto, dentro da pers- nuais e aulas a respeito da literatura hispano-americana como um
pectiva de análise qualitativa, selecionam-se fragmentos do cor- dos exponentes do realismo maravilhoso na América Latina, jus-
pus que possam elucidar a reflexão acerca das ruínas. Dada a aná- tificando sua escassa circulação no Brasil. Em El viaje de los siete
lise, é possível afirmar que se encontram em El viaje de los siete demonios a mescla entre Literatura Fantástica e História aparece
demonios quatro categorias de ruínas: do espaço, do indivíduo, da de maneira latente, com a ironia já mencionada, em diversos as-
crença e do poder, salientando que as mesmas estão interrelacio- pectos: caracterização comportamental e física das personagens;
nadas, já que a constituição do texto de Laínez trabalha as carac- motivação da viagem realizada na narrativa; transição entre pas-

82
sado, presente e futuro ao longo do texto. Sendo assim, baseando- herança monumental arquitetônica como representatividade da
-se nas considerações de Aleida Assman (2011), Walter Benjamin materialização da ruína, sendo a mesma considerada uma inscri-
(1994), Jacques Le Goff (2013) e Mary Louise Pratt (1999) sobre as ção na história, por ser o indício de algo ou alguém que existiu e
relações entre Literatura, História e Memória, o presente trabalho, foi grandioso, pois essa grandiosidade resiste ao tempo, tanto fi-
apresentado para a disciplina Literatura e Artes Visuais (PPGL – sicamente, quanto na memória coletiva de uma sociedade. Sendo
UFPE), pretende discutir a presença das ruínas como composição essa resistência, o que garante à tal obra ou indivíduo, o caráter de
temática na obra El viaje de los siete demonios, de Mujica Laínez, monumental.
na tentativa de estabelecer uma tipologia das ruínas à luz dessa Acreditamos que pensar as ruínas na América Latina, significa
narrativa, percebendo os desdobramentos ou ocorrências dessas pensar além dessa conceitualização primeira, percebendo a ruína
tipologias nos limites externos à obra ficcional. Para tanto, dentro como uma representação do passado, sendo o passado uma das
da perspectiva de análise qualitativa, selecionam-se fragmentos maneiras pelas quais o presente busca ver como representa a si
do corpus que possam elucidar a reflexão acerca das ruínas. Dada mesmo; recuperar as ruínas indica um apreço pelo passado que
a análise, é possível afirmar que se encontram em El viaje de los ressoa no presente .
siete demonios quatro categorias de ruínas: do espaço, do indiví- Ao debruçar-se sobre a obra objeto desta discussão, pode-se
duo, da crença e do poder, salientando que as mesmas estão in- perceber a dimensão que toma a ideia de ruína, aparecendo leve-
terrelacionadas, já que a constituição do texto de Laínez trabalha mente satirizada na obra quando para regressos ao passado o au-
as características multifacetadas das ruínas, portadoras da com- tor se utiliza de acontecimentos marcantes para o mundo europeu
plexidade entre grandiosidade e declínio tessitura da trama dessa (tomados como relevantes na história universal da humanidade)
narrativa. e para projeções no futuro, a construção do cenário e enredo re-
metem à sociedade na qual vivemos, marcada pela visão colonial
Palavras-chave: Literatura Hispano-Americana; Manuel Mujica imposta (unilateral e unidimensional), revestida nos trajes do ca-
Laínez; Ruínas pitalismo.
Diante dessas observações e comentários, adentra-se uma re-
visão teórica que auxiliará a fortalecer a tessitura entre memória,
INTRODUÇÃO história e ruínas a ser discutida nesse trabalho, bem como, apoiar
a tipologia que se pretende estabelecer a partir da obra de Mujica
Neste trabalho pretende-se discutir a presença das ruínas como Laínez, percebendo em que partes e de quais maneiras o autor
tema na composição da obra El viaje de los siete demonios, do es- estabelece a temática das ruínas ao longo da obra.
critor argentino Manuel Mujica Laínez, na tentativa de desenhar Em Magia e técnica, arte e política, Walter Benjamin chama
uma tipologia das ruínas à luz da obra, percebendo os desdobra- nossa atenção para o fascínio da humanidade pelo passado, atra-
mentos ou ocorrências dessas ruínas nos limites externos a essa vés do seguinte argumento:
obra de ficção. Deste modo, é necessário lançar mão de algumas
inquietações que motivaram o interesse por esse recorte. “Nossa imagem da felicidade é totalmente marcada pela época que
Ao tratar a temática das ruínas nos remetemos quase que ins- nos foi atribuída pelo curso da nossa existência. A felicidade capaz de
suscitar nossa inveja está toda, inteira, no arque já respiramos, nos
tantaneamente, ao momento da Antiguidade Clássica e toda sua homens com os quais poderíamos ter conversado, nas mulheres que

83
poderíamos ter possuído. Em outras palavras, a imagem da felicidade Segundo Assman, a fama se orienta em direção ao futuro e a
está indissoluvelmente ligada à da salvação. O mesmo ocorre com a
memória em direção ao passado “e avança passado adentro por
imagem do passado, que a história transforma em coisa sua. O passa-
do traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção” (1994, entre o véu do esquecimento. Ela segue rastros enterrados e es-
p. 222-223). quecidos, e reconstrói provas significativas para a atualidade”
(2011, p. 53), denotando que o interesse pela memória já surge no
Quer dizer, que na nossa condição presente nosso espelho de Renascimento. Esse interesse por resgatar a memória para escre-
comparação é o passado e, muitas vezes, acreditamos que a feli- ver a história, aparece, por exemplo, inserido no projeto de desco-
cidade possa residir nas possibilidades que o passado teria a nos lonização discutido por Walter Mignolo, Mary Louise Pratt, entre
oferecer. Esta figura acontece materializada, por exemplo, no fil- outros.
me Meia-noite em Paris (2011), com direção e roteiro original de Pratt (1999) em seu ensaio Pós-Colonialidade: projeto incom-
Woody Allen, baseado no livro Autobiografia de Alice B. Toklas, pleto ou irrelevante?, aponta para a necessidade do resgate da me-
de Gertrude Stein. mória, ao afirmar que:
Em Espaços de recordação, Aleida Assman nos convida a per-
“Se se procura simplesmente estabelecer a continuação, no presente,
ceber de que maneira organizamos nossa memória e como tenta- de um ‘legado colonial’ não será possível explicar os processos pelos
mos materializá-las através de símbolos, sendo um desses símbo- quais este ‘legado’ tem sido continuamente integrado e reintegrado
los de materialização, a memoração dos mortos, que para a autora num mundo em mutação, por meio de contínuas permutações de seu
poder significativo [...]. A descolonização do conhecimento inclui o de-
“[...] tem uma dimensão religiosa e outra mundana, que se opõem ver de se compreender as maneiras pelas quais o Ocidente (a) constrói
entre si como pietas e fama. Piedade é a obrigação dos descendentes de seu conhecimento do mundo em linha com suas ambições econômicas
perpetuar a memoração honorífica dos mortos [...]. Já a fama, isto é, a e políticas, e (b) subjuga e absorve os conhecimentos de outros” (pp.
memoração cheia de glórias, cada um pode conquistar para si mesmo, 20 – 22).
em certa medida, no tempo de sua própria vida. A fama é uma forma
secular da autoeternização, que tem muito a ver com a autoencena- Pratt auxilia a perceber que o exercício de recuperação da me-
ção” (2011, p. 37).
mória permite reconhecer traços do outro, incutidos em mim,
para que seja possível reconstruir aquilo que foi apagado pela his-
Em outras palavras, há algo de glorioso na morte, pois depen- tória, incitando a criação do que Assman denomina como “novos
dendo dos feitos do sujeito em vida, de sua posição social, de como espaços de recordação” (2011, p. 54), sejam na literatura, nas ar-
morreu, este pode chegar a ser lembrado (de maneira voluntária tes ou através das mídias digitais. Acredito que podemos inserir
ou imposta), fazendo sua inscrição na história. as ruínas nesse grupo, mas não como um espaço de recordação
Permite-se dizer, portanto, que a memoração da morte é uma criado, senão como um espaço de recordação a ser reconhecido e
materialização da ruína, ao passo que representa aquilo que foi identificado .
e já não o é, e mesmo não o sendo, ecoa num tempo que não lhe Le Goff identifica o século XX como obcecado pelo passado,
pertence. Ou seja, habitam em contraste na ruína dois corpos: a) em História e Memória descrevendo que
um em degradação, dando a ideia de finitude, que nos permite
reconhecer uma ruína como tal; b) outro em seu estado de mag- “A ligação com o passado começa por adquirir formas inicialmente
nitude, permitindo-nos reconhecer uma importância capaz de ul- exasperadas, reacionárias, depois, a segunda metade do século XX,
trapassar as barreiras do tempo.
6 7
Como indicado por Le Goff (2013, p. 53): “Toda história é contemporânea, na medida em que o passado é apreendido no
presente e responde, portanto, aos seus interesses, o que não só é inevitável como legítimo. Pois que a história é duração, o passado 84 Essa memoração estaria no campo do denominado por Assman (2011), baseada nas reflexões cicerônicas, como “memória dos
locais”, mais especificamente, sob a classificação de genius loci ou a memória das ruínas, que tratarei mais adiante sob a tipologia
é ao mesmo tempo passado e presente”. de ruína do espaço.
entre a angústia atômica e a euforia do progresso científico e técnico, so, o que seria inadmissível, portanto, é necessário reestabelecer a
volta-se para o passado com nostalgia, e, para o futuro, com temor ou reputação negativa do recinto, que se apresenta a seguir:
esperança [...]. A aceleração da história, por outro lado, levou as mas-
sas dos países industrializados a ligarem-se nostalgicamente às suas
“Aclaradas las prioridades, tomó el Diablo la palabra. –Estoy –dijo,
raízes: daí a moda retro, o gosto pela história e pela arqueologia, o in-
dirigiéndose a sus siete grandes vasallos– muy descontento de uste-
teresse pelo folclore, o entusiasmo pela fotografia, criadora de memó-
des. Viven aquí una vida inútil, recostados sobre laureles antiguos, y
rias e recordações, o prestígio da noção de patrimônio” (pp. 209 – 210).
no hacen más que discutir, como si fueran teólogos […] En resumen,
ninguno de los siete sirve de nada y eso implica un mal ejemplo, que
Acompanhamos esse processo no século XXI, com os nossos ya empieza a cundir entre los espíritus menores. Se relaja la disciplina,
espaços de recordação nas redes sociais, enfrentando a exposição y yo aspiro a que el Infierno sea un modelo disciplinario. Allá ellos en
de sujeitos de imagens manipuladas e memórias selecionadas. el Cielo; que procedan como les plazca; que manejen a su antojo la
indulgencia. El Infierno es un instituto penal, y debe funcionar sobre
Uma memória constantemente em ruínas, porque se edifica em
bases serias. Si los supremos guardianes de nuestra casa olvidan su
algo que é relevante, e de maneira rápida e constante, deixa de obligación, poco a poco se irá convirtiendo, para vergüenza nuestra,
ser, exigindo no mesmo ritmo, a criação ou invenção de novas en un Paraíso” (p. 9).
lembranças.
Trabalhando sobre esse constructo das relações estabelecidas
entre passado, presente e futuro, Laínez apoia a narrativa de El Ao iniciar a descrição do local, a imagem construída pelo nar-
viaje de los siete demonios, recuperando a ideia da viagem como rador, passa ao leitor a impressão de uma construção em ruínas,
momento onde se adquirem experiências que alterarão para sem- denotando “que carecía de final”, quer dizer, o Inferno como es-
pre a visão de um sujeito e direcionada a um sujeito; um conjunto paço reflete a sua condição de representação constante da ruína.
de movimentos de conhecer, viver e explorar, como já fora apre- Caracterizada, principalmente, pela monumentalidade, a ruína
sentado por Goethe. do espaço geralmente é associada aos grandes edifícios arquitetô-
nicos com base em três funções: edifícios governamentais, edifí-
METODOLOGIA cios religiosos e edifícios de entretenimento, salientando que essas
funções podem mesclar-se em uma única construção.
Para perceber de que maneira e sob quais figuras se estabelece A ruína do espaço também está centrada na destituição, des-
a constituição das ruínas no corpus El viaje de los siete demo- construção ou reconstrução de uma nova geografia do espaço
nios, foram selecionados fragmentos da obra, confrontados com (seja numa comunidade ou nos centros urbanos, em linhas ge-
o aporte teórico. rais). Sendo assim, representa área de interesse para a Arquitetura,
objeto de grande impacto desde as primeiras civilizações, que ga-
RESULTADOS E DISCUSSÃO nha instituição de disciplina a partir da constituição dos tratados
de Arquitetura, fornecendo bases para a construção da História
Sete demônios representantes dos sete pecados capitais via- da Arte no período de transição ao Renascimento.
jam em busca da recuperação de sua fama, pois começam a correr
comentários de que no Inferno não há uma execução de tarefas e 8
A atribuição dos pecados aos demônios se dá da seguinte forma, segundo fragmento da obra: “–Aquí está –puntualizó–, aquí
está la clasificación de Binsfeld, que considero la más perfecta. Él distribuye entre los demonios la hegemonía de los pecados
todos estão satisfeitos com sua condição, comparando-o ao Paraí- capitales (los siete que enumeró Tomás de Aquino, quedándose corto) así: a Lucifer, la Soberbia; a Satanás, la Ira; a Mammón, la
Avaricia; a Asmodeo, la Lujuria; a Belcebú, la Gula; a Leviatán, la Envidia; a Belfegor, la Pereza. Es admirable” (p. 7).

85
Como comentado no início dessa discussão, a nosso ver, a Goethe. Na narrativa, o Diabo (grande conhecedor da Literatura,
ruína do espaço é a representação visual, e, por conseguinte, re- História e poliglota) acredita que eles não souberam representar
presentação primeira que reconhecemos como ruína em uma so- o Inferno de maneira decente e apropriada, pois acabam por su-
ciedade. No caso da obra em questão, o impacto imagético é pro- avizar a visão do espaço para os seres humanos. É provável que
vocado nas primeiras palavras do livro, pela mistura de elementos Mujica Laínez se utilize desse recurso para alertar que a visão
de equilíbrio e desconstrução presentes na descrição fornecida apresentada do Inferno na narrativa difere da clássica: “Sobre una
pelo narrador, como podemos perceber nesse trecho: nívea consola interminable, estaban los bustos pálidos de Dante y
de Milton, puestos cabeza abajo, y en medio colgaba un retrato de
“El aposento era en verdad diabólico, porque desafiaba y burlaba las Goethe con orejas de burro” (p. 5).
leyes de la perspectiva lógica. Lo cierto es que carecía de final, como
si lo multiplicaran incontables espejos enfrentados, pese a que en él Em uma das tarefas, os demônios retornam a cena deixada por
no había ni un solo espejo. Había, en cambio, hileras de ventanales, Gilles de Reis, tentado por Lucífer. O demônio descreve como ar-
de estrechos ventanales góticos, que se perdían en eternos túneles, y mou toda a trama desde a infância do jovem, que cometeu pro-
que fueron colocados allí, probablemente, para mofa y caricatura del gressivamente assassinatos em prol de o segredo de sua homos-
más cristiano de los estilos. Esas aberturas parecían estremecerse; su sexualidade, além de residir nele, a culpa pela sua omissão em
extraña ondulación resultaba de las hogueras que en el exterior ardían
y que se levantaban en lenguas oscilantes. Pero al fuego no se lo veía relação a morte de Joana D’Arc, sua amiga. Reis teve sua vida ar-
con claridad, por la multitud de rostros que se agolpaban contra los ruinada pela ausência de audácia e coragem. Perdendo sua huma-
espesos vidrios” (p. 5). nidade pela busca cega e obstinada pelo poder em detrimento do
outro, tentando apagar ou esconder traços que podem permane-
Ainda na descrição do espaço, o narrador encerra por dizer que cer juntamente com sua perpetuação na memória, caracterizando
apesar de toda a agressividade do local, ele era totalmente branco, deste modo, a ruína do indivíduo.
a cor que geralmente representa equilíbrio, paz. Essa representa- A ruína do indivíduo possui ligações diretas com as relações
ção híbrida também é transmitida na descrição física dos perso- de poder em uma sociedade, logo, é necessário considerar que há
nagens, combinando algo de belo, com um elemento provocador uma linha tênue separando a ruína do indivíduo da ruína de um
de estranhamento ou repulsa, a exemplo da descrição de Lucífer: poder, entendendo a ruína do poder como um enfraquecimento
ou rompimento de determinadas estruturas de organização social
“[...] era negro como la noche y estaba vestido por su desnudez total y e políticas pela fragmentação da dialética regente em uma deter-
musculosa. Llevaba una corona sembrada de diamantes y anchas alas
de murciélago, con incrustados carbúnculos. Su orgullo se evidenciaba minada comunidade. Um conjunto de forças que corroboram à
en los elementos heráldicos que se entretejían en su manto transparen- uma mudança de olhar centrada na detenção do poder.
te: águilas, leones, grifos, lobos, castillos, flores de lis, y que ascendían É esse desejo por um certo tipo de poder que movimenta a
también por su cetro de ébano. “Hijo de la mañana” lo llamó Isaías, y trama, e estimula o seguimento da viagem dos sete demônios. O
con ser tan negro resplandecía como el amanecer” (p. 8). Diabo teme perder sua posição na organização social em que vive,
os demônios temem perder suas atribuições e sua fama, os dois
Essa característica pode representar a intenção de originalida- lados abominam o esquecimento, anseiam por serem lembrados.
de do autor, que traz ao texto várias referências literárias e artís- Há nesses personagens o desejo da existência, pois desejam que
ticas sobre o Inferno, satirizando as figuras de Dante, Milton e alguém acredite neles.

86
Transitando por essas linhas, Laínez retoma, de maneira des- deusa. Juntos conseguem fazer com que todos acordem, e final-
construída, o mito do Céu e do Inferno presente na cultura das mente, termina a viagem dos demônios, chegando o Diabo a con-
civilizações ocidentais, tratando os sete demônios como respon- clusão de que seria melhor não realizar nenhuma outra atividade
sáveis pelas ruínas que assolam a humanidade, quer dizer, como externa.
figuras causadoras de fatos até então atribuídos aos próprios seres
humanos, postos como passivos e vulneráveis. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O humanismo marca um rompimento com o discurso hege-
mônico fornecido pela Igreja Católica, apontando a presença da Contudo, conclui-se que a tipologia das ruínas proveniente
ruína de um poder centrado na religião, em outras palavras, ruí- da narrativa de Mujica Laínez não resulta em estabelecer catego-
na da crença. Resumidamente, poderia dizer que essa ruína está rias fixas, já que a constituição do texto trabalha as características
marcada pela derrocada ou instabilidade do poder estabelecido multifacetadas da ruína, logo, é importante tratar essas classifi-
por determinada instituição religiosa, exigindo dela atitudes que cações como interrelacionadas, e não como isoladas, pois apesar
possam recuperar a estabilidade ou hegemonia de senso comum das diferenças que as formam, se entrelaçam como componentes
ao redor de suas influências na sociedade. da complexa engrenagem que é a ruína, portadora da dualidade
Ao apresentar o Diabo, os demônios e suas peripécias como entre a grandiosidade e declínio, presente constantemente em El
centro da sua trama, Manucho utiliza-se do espaço favorecido por viaje de los siete demonios, provocando o movimento que tece
essa ruína, que vai perpassando toda a obra, até o fim, quando se essa trama.
torna mais evidente na tarefa de Belfegor, a preguiça. Enviados
a uma cidade futurista totalmente mecanizada e voltada para o
trabalho (Bet-Bet), os demônios não conseguem fazer com que os REFERÊNCIAS
indivíduos sucumbam às tentações por eles oferecidas, chegando
a conclusão de que é necessário que a preguiça intervenha, para ASSMAN, A. Espaços da recordação: formas e transformações da
que eles possam agir. memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.
Belfegor se instala como trabalhadora de uma fábrica e logo BENJAMIN, W. Magia e técnica, Arte e política: Obras escolhidas
chama atenção por sua aparência corpulenta. Os trabalhadores de I. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Bet-Bet ficam admirados com a leveza e lentidão dos movimentos LAÍNEZ, M.M. El viaje de los siete demonios. Disponível em:
de Belfegor, e de que como entre os intervalos curtos entre uma http://biblio3.url.edu.gt/Libros/el-viaje.pdf. Acesso em: 20 jan.
tarefa e outra, ela consegue dormir. Logo, todos começam a imi- 2016.
tá-la, e o mal da preguiça acomete toda a cidade. O fenômeno da LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp,
cidade que dorme é noticiado, e o mundo resolve aderir a nova 2013.
rotina. PRATT, M.L. Pós-colonialidade: projeto incompleto ou irrelevan-
Se todos estiverem parados, como os demônios e o Diabo te?. In: SANTOS, P.B.; VÉSCIO, L.E. (orgs.). Literatura e História:
poderão tentar a humanidade? Desesperados, Céu e Inferno se perspectivas e convergências. Bauru: Edusc, 1999.
unem para realizar uma intervenção, na tentativa de recuperar o
antigo ritmo do planeta, que agora encara a preguiça como uma

87
EIXO III - ANÁLISE LINGUÍSTICA
E ENSINO-APRENDIZAGEM DE
LÍNGUA PORTUGUESA
(PRESENCIAL E A DISTÂNCIA)

88
RESUMO experiência, com a sala de aula, nos proporcionou o repensar de
questões relevantes sobre o ensino de língua portuguesa, contri-
Bullying, um assunto que requer atenção e abordagem crite- buindo para o nosso crescimento enquanto professores em for-
riosa em sala de aula, foi o tema desenvolvido no âmbito do PI- mação.
BID Português em 2015, por seruma prática, infelizmente, muito
comum no dia a dia escolar. Os efeitos desta prática acabam por Palavras-chave: língua portuguesa; multiletramento; anti-
gerar diversas consequências para as relações humanas, para o -bullying
desenvolvimento pessoal, acarretando danos nas relações sociais,
atrapalhando o próprio processo de ensino-aprendizagem, etc.
Cientes de tal realidade escolar, as escolas envolvidas no PIBID
Português tomaram o bullying como tema central para suas ações AÇÕES ANTI-BULLYING E AULA DE LÍNGUA PORTU-
de linguagem nas intervenções didáticas. Termos como racismo, GUESA: UMA EXPERIÊNCIA DO PIBID LETRAS UFPE
homofobia, transfobia, intolerância religiosa, gordofobia, xeno-
fobia, entre outros, foram trazidos para a sala de aula, de modo
que discussões foram geradas a fim de se criar, nos alunos, uma Adeline Ruthiely de Melo Guedes¹
consciência mais crítica, atentando para o incentivo de práticas Andrielle Karine Gomes Ferreira (UFPE)²
pacíficas, gentis, de respeito e solidariedade para a proliferação Angela Paiva Dionisio (UFPE)³
de ambientes mais harmônicos, éticos e democráticos. Tomamos
como base os estudos realizados por Possenti e Ilari (1992), Ge- ¹Estudante do curso de Licenciatura em Letras Português – CAC
raldi (1999, 2011), Neto (2005), Bunzen e Mendonça (2006), Su- – UFPE; adele9421@hotmail.com
assuna (2006), Ruotti (2006), Dionisio (2007; 2013), Guimarães ²Estudante do curso de Licenciatura em Letras Português – CAC
(2012), Silva (2014) e Soares (2000), no qual abordam questões – UFPE; andriellekgf@gmail.com
relevantes sobre o ensino de língua portuguesa e o atual quadro ³Docente/pesquisador do Departamento de Letras – CAC –
do bullying nas escolas. Neste trabalho, abordaremos as atividades UFPE; angela_dionisio@uol.com.br
que foram realizadas na turma do 3º ano A da Escola Estadual
Senador Novaes Filho, em que utilizamos gêneros como o con-
to, a fotografia, o diagrama etc., para trabalhar, de forma articu- Resumo – Bullying, um assunto que requer atenção e abordagem
lada, questões relacionadas a língua e ao tema abordado. Dentre criteriosa em sala de aula, foi o tema desenvolvido no âmbito do
as atividades desenvolvidas, destacamos a importância da leitura PIBID Português em 2015, por ser uma prática, infelizmente,
e da análise linguística do conto Tentação, de Clarisse Lispector muito comum no dia a dia escolar. Os efeitos desta prática acabam
e do diagrama construído com palavras referentes às práticas do por gerar diversas consequências para as relações humanas, para o
bullying. Os resultados deste trabalho foram satisfatórios para to- desenvolvimento pessoal, acarretando danos nas relações sociais,
dos os envolvidos. Notamos a relevância das atividades nas res- atrapalhando o próprio processo de ensino-aprendizagem etc.
postas e conscientização observadas, por exemplo, na produção Cientes de tal realidade escolar, as escolas envolvidas no PIBID
textual realizada pelos alunos ao final da intervenção. Por fim, esta Português tomaram o bullying como tema central para suas ações

89
de linguagem nas intervenções didáticas. Termos como racismo, tem atrapalhado a permissão de relações sociais mais saudáveis,
homofobia, transfobia, intolerância religiosa, gordofobia, xenofo- o que também atrapalha o comportamento do indivíduo como
bia, foram trazidos para a sala de aula, de modo que discussões estudante em processo de aprendizagem. Visto isso, resolvemos
foram geradas a fim de se criar, nos alunos, uma consciência mais intercalar essa temática às aulas de língua portuguesa. Este traba-
crítica, atentando para o incentivo de práticas pacíficas, gentis, lho tem o objetivo de relatar sobre três atividades realizadas pelo
de respeito e solidariedade para a proliferação de ambientes mais PIBID Letras Português da UFPE por meio de uma intervenção
harmônicos, éticos e democráticos. Tomamos como base os estu- didática na turma do 3° ano A, na Escola Senador Novaes Filho.
dos realizados por Possenti e Ilari (1992), Geraldi (1999, 2011), As atividades foram subsidiadas pela leitura e análise linguística,
Neto (2005), Bunzen e Mendonça (2006), Suassuna (2006), Ruot- levando em consideração ações de combate ao bullying. As prá-
ti (2006), Dionisio (2007; 2013), Guimarães (2012), Silva (2014) ticas educativas desenvolvidas, envolvendo situações reais de uso
e Soares (2000), nos quais se abordam questões relevantes sobre por meio de linguagens diversas, contribuíram significativamente
o ensino de língua portuguesa e o atual quadro do bullying nas para que os estudantes tomassem consciência de como o bulling
escolas. Neste trabalho, abordaremos algumas atividades que fo- se manifesta, fazendo com que refletissem sobre os seus compor-
ram realizadas na turma do 3º ano A da Escola Estadual Senador tamentos, considerando a possibilidade de se lutar contra esta
Novaes Filho, em que utilizamos gêneros como o conto, a fotogra- agressão. É perceptível os resultados positivos deste trabalho, uma
fia, o diagrama, etc., para trabalhar de forma articulada questões vez que os envolvidos apresentaram uma boa compreensão sobre
relacionadas à língua e ao tema abordado. Dentre as atividades aspectos da língua portuguesa, bem como a importância de se ter
desenvolvidas, destacamos a importância da leitura e da análise um comportamento adequado ao convívio social, com a predomi-
linguística do conto Tentação, de Clarisse Lispector; e do diagra- nância do respeito as diferenças.
ma construído com palavras referentes às práticas do bullying. Os
resultados deste trabalho foram satisfatórios para todos os envol- METODOLOGIA
vidos. Notamos a relevância das atividades nas respostas e cons-
cientização observadas, por exemplo, na produção textual realiza- As atividades foram elaboradas por meio de intervenções di-
da ao final da intervenção, pelos alunos. Por fim, esta experiência, dáticas realizadas na turma do 3º ano A, na Escola Estadual Se-
com a sala de aula, nos proporcionou o repensar de questões rele- nador Novaes Filho. Dentre as atividades realizadas, destacamos
vantes sobre o ensino de língua portuguesa, contribuindo para o o trabalho com o conto Tentação, de Clarice Lispector, em que os
nosso crescimento enquanto professores em formação. alunos foram levados a relacionar algumas palavras com a temá-
tica do “diferente”, do “outro”, de modo que a análise linguística e
Palavras-chave: anti-bullying; ensino; língua portuguesa; literária fossem trabalhadas. Outra atividade consistiu na leitura
de um diagrama, de nossa autoria, construído com palavras (mui-
INTRODUÇÃO tas delas, verbos) referentes ao bullying, de forma que os sete tipos
desta prática, segundo a cartilha Bullying: o que é isso? vamos
É significativo o desenvolvimento de ações anti-bullying na es- enfrentar com amor, de Mário Júlio Béllio Enzio, fossem definidos
fera escolar, local em que acontece a maioria dos casos de agres- por meio dessas palavras. A análise linguística também se fez pre-
são. Este tema, tão comum e, por vezes, considerado “brincadeira” sente na escrita e reescrita de relatos pessoas sobre o bullying, ati-

90
vidade em que os estudantes escreveram sobre suas experiências que ela não gostava e se sentia, muitas vezes, solitária. Essa situ-
com esta prática. Estes gêneros foram trabalhados por meio da ação também abriu espaço para que os temas do preconceito, da
leitura e análise linguística, sendo entrelaçado o tema abordado e discriminação, do bullying etc. fossem abordados. Deste modo,
questões relacionadas à língua. os conhecimentos do léxico, da coerência, da semântica subsidia-
ram a análise textual, dando base para diversas leituras do conto
RESULTADOS E DISCUSSÃO e associações a questões importantes sobre as relações humanas.
Dando continuidade ao trabalho, na segunda aula, foi entregue
A intervenção didática foi iniciada com uma atividade motiva- um livreto contendo informações sobre o bullying e o projeto de
dora, isto é, uma atividade em que os alunos são instigados e con- Lei da Câmara nº 68, de 2013 e a Lei nº 13.995, de 22 de dezem-
vidados a participarem da construção de conhecimentos que se bro de 2009. A capa do livreto possui um diagrama que contém
dará dali em diante. A atividade consistiu, inicialmente, na leitura termos, palavras (em sua maioria, verbos) referentes aos sete tipos
do título do conto Tentação, de Clarice Lispector e se teve o tra- de bullying, segundo a cartilha Bullying: o que é isso? vamos en-
balho com o léxico. Os alunos disseram que a palavra “tentação” frentar com amor, de Mário Júlio Béllio Enzio.
se refere a “desejo”, “fraqueza”, “coisa boa” etc. e alguns arriscaram
dizer que o texto abordava um assunto sobre “algo bom e que não
se pode ter”. Em seguida, realizamos a leitura do trecho inicial do
conto: “Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade
das duas horas, ela era ruiva.” Convidando os alunos, dessa for-
ma, para a leitura. Após a leitura e questionamentos feitos sobre a
construção da narrativa, os alunos observaram que algumas confi-
gurações de palavras e ideias se repetiam, como “Olhamo-nos”, “A
menina abriu os olhos pasmada”, “Ela olhava-o”, “Eles se fitavam
profundos”, “Acompanhou-o com olhos pretos”. A partir disso, se
formou uma discussão em torno dessa questão do “olhar”; obser-
vada por meio da análise linguística, “o meu olhar sobre o outro”.
Esta análise possibilitou que os alunos criassem várias possibi-
lidades de leitura para o conto como, por exemplo, o fato de que
situações são contadas por meio do olhar de outra pessoa. Pode
ser que esses aspectos narrados não sejam reais, o que demons-
tra uma situação comum em nosso dia a dia porque muitas vezes
julgamos determinados casos corriqueiros por meio dos nossos
olhares. Neste momento, essas possibilidades de leitura também
foram relacionadas com a temática do “diferente”, do “outro” –
assuntos abordados na intervenção anterior a esta. A menina do
conto era ruiva e o narrador aborda esse aspecto como sendo algo

91
Os tipos de bullying não estavam sinalizados, pois, fez parte da Em outro momento, foi pedido para que os alunos escreves-
atividade fazer com que os alunos relacionassem as informações sem um relato pessoal sobre uma prática do bullying em que eles
para se chegar à conclusão sobre qual tipo se tratava tais com- haviam participado como vítima, agressor ou testemunha. Foram
portamentos por meio das palavras. A atividade teve início com construídos relatos com experiências chocantes, com a predomi-
a leitura do texto informativo, em que um aluno leu em voz alta. nância da posição de vítima. Em princípio, ninguém queria rela-
Após a leitura, os alunos, não escondendo a empolgação para tar experiências como sendo o agressor, todos se colocaram como
compreender o diagrama, que chamou bastante a atenção deles, vítimas e testemunhas. Na reescrita dos textos, alguns alunos se
não aguentarem a ansiedade e quiseram descobrir qual tipo de sentiram mais a vontade e perguntaram se poderiam escrever ou-
bullying se relacionava com as palavras contidas no diagrama. tro relato porque eles queriam dizer como já foram agressões em
Esse momento de leitura do diagrama estava mais adiante, no algumas situações. Esta posição dos alunos demonstra que se sen-
planejamento, mas para aproveitar o momento de motivação dos tiam mais seguros em relação à temática, o que é bastante positivo
alunos, permitimos que a relação fosse estabelecida. O resultado porque sabemos que existiram reflexões significativas. Durante a
foi muito gratificante, percebemos que eles realmente compreen- produção textual, vários alunos nos chamavam para tirar dúvidas
deram as diversas formas e manifestação do bullying. Pedimos sobre pontuação, principalmente, vírgula, bem como conjunções
para que eles respondessem o questionário que seguia o texto, no e construção de frases e parágrafos em que sabiam que faltava co-
livreto entregue, para trabalharmos na aula seguinte. esão e/ou coerência. Após a escrita dos relatos, pelos alunos, fo-
Começamos a terceira aula com a discussão das questões do ram realizadas as leituras por nós, bolsistas, e feita sugestões, nos
livreto. A maioria dos alunos se sentiu à vontade, expuseram suas textos, para devidas alterações.
respostas e questões pertinentes ao tema. Sobre as leis, presentes Na aula seguinte, os relatos, sugerindo a reescrita dos textos,
no texto, os alunos se queixaram das escolas, de um modo geral, foram devolvidos aos alunos. Pedimos para que eles analisassem
principalmente da gestão escolar, porque este assunto, tão sério e alguns aspectos como a pontuação, a acentuação, a escrita de al-
recorrente no ambiente escolar, é pouco trabalhado. Um dos alu- gumas palavras etc., a reelaboração de alguns enunciados que po-
nos chegou a dizer que “a escola coloca placas “DIGA NÃO AO deriam desenvolver melhor, bem como algumas ideias contidas
BULLYING” nas salas de aula, mas ela não explica o que significa em alguns textos, equivocadas, sobre o que é bullying e como ele
esta prática e o que pode causar, não adianta de nada”. Algo tão se manifesta porque, por exemplo, alguns alunos confundiram
presente na escola, de forma negativa e prejudicial, não se tem a uma agressão repentina com o bullying, isto é, um erro conceitu-
atenção devida pela gestão escolar, mesmo já existindo leis para a al. No geral, a turma tinha familiaridade com a produção textual
conscientização e preparação para que toda comunidade escolar e os textos produzidos eram bons, tanto a ideia dele como sua
se manifeste contra e desenvolva ações anti-bullying. Em suma, a estrutura; alguns ajustes eram o suficiente para que o texto ficasse
atividade nos permitiu explorar alguns aspectos da língua como bem escrito. Alguns textos só precisaram de alguns ajustes, outros
o léxico, a semântica, abrindo espaço, também, para o trabalho precisavam de um cuidado bem maior, em que a reescrita do tex-
com os verbos. Por meio da leitura e associações, os alunos con- to foi trabalhosamente feita cerca de quatro vezes, o que, inicial-
seguiram identificar os tipos de bullying relacionados às palavras mente, para os alunos, era motivo de insatisfação e desmotivação,
disponíveis. Ao passo que trabalhávamos a temática proposta, os ao término da atividade, depois de visualizarem o seu texto bem
alunos também adquiriam conhecimentos específicos da língua escrito, se tornou em satisfação.
portuguesa.
92
Por fim, acreditamos na produtividade das atividades desen- REFERÊNCIAS
volvidas na turma do 3° ano A, uma vez que, de forma muito in-
terativa e positiva, os alunos participaram significativamente das GERALDI, João Wanderley.O texto na sala de aula. 5 ed. São Pau-
discussões, da produção textual e das reflexões sobre as manifesta- lo: Ática, 2011.
ções do bullying, suas causas e consequência, bem como da cons- ______.Concepções de linguagem e ensino de português. In: GE-
trução do entendimento sobre aspectos linguísticos. Na maioria RALDI, J. W. [org.] O texto na sala de aula.2 ed. São Paulo: Ática,
dos relatos produzidos, percebemos a construção da consciência 1999.
sobre o combate ao bullying e sobre a importância do respeito GUIMARÃES, Ana Maria de Mattos. Caminhos da construção:
mútuo como basilar para um bom convívio social por meio de projetos didáticos de gênero na sala de aula de língua portuguesa.
depoimentos como “Hoje, eu vejo o quanto é importante sermos – Campinas, SP: Mercado de letras, 2012.
defensores dessas pessoas que sofrem bullying”, “O bullying não MENDONÇA, Márcia. Análise linguística no ensino médio: um
deve ser praticado de nenhuma forma”. novo olhar, um outro objeto. In: BUNZEN, Clécio; MENDON-
ÇA, Marcia [orgs.] Português no ensino médio e formação do
CONSIDERAÇÕES FINAIS professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
NETO, Aramis A. Lopes. Bullying - Comportamento agressivo
Os alunos puderam ampliar suas práticas de letramentos, entre estudantes. Jornal de Pediatria - Vol. 81, Nº5 (Supl), 2005.
aprendendo sobre a importância do papel social que exercem en- Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/jped/v81n5s0/v81n-
quanto sujeitos falantes da língua portuguesa. Desse modo, pro- 5Sa06.pdf> Acesso em 05 out. 2015>. Acesso em 7 nov. 2015.
piciar o trabalho com diversos gêneros, de forma a estimular a POSSENTI, Sírio e ILARI, R. Ensino de língua e gramática: alte-
leitura, a produção textual e a análise linguísticas, relacionadas a rar conteúdos ou alterar a imagem do professor? In: CLEMENTE,
uma prática social recorrente no ambiente em que os alunos estão Elvo e KIRST, Marta H. [orgs.]. Linguística aplicada ao ensino do
inseridos, consistiu no desenvolvimento de atividades produtivas, português.2, ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992.
em que aprendizagem dos alunos foi o foco. As atividades realiza- RUOTTI, Caren; ALVES, Renato; CUBAS, Viviane de Oliveira.
das apresentaram resultados proveitosos em relação à língua por- Violência na escola: um guia para pais e professores. – São Paulo:
tuguesa por meio de diversas linguagens, uma vez que os alunos Andhep : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. Dis-
se envolveram com diversos textos voltados para a contribuição ponível em: <http://www.nevusp.org/downloads/down235.pdf>.
na luta contra o bullying, no caminho da conscientização e respei- Acesso em 05 out. 2015.
to ao próximo. Podemos perceber uma revisão de valores, ética e SILVA, Wagner Rodrigues; SANTOS, Janete Silva dos. Pesqui-
moral. As ações anti-bullying contribuíram de forma que os alu- sas em língua(gem) e demandas do ensino básico. Campinas, SP:
nos se tornassem mais sensíveis em relação à temática, ao mesmo Pontes Editores, 2014.
tempo em que aspectos linguísticos, com destaque para a leitura e SOARES, Magda. As condições sociais da leitura: uma reflexão
análise linguística, foram explorados. em contraponto. In: ZILBERMAN, R.; SILVA, E. T. [Org.]. Leitu-
ra: perspectivas disciplinares. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

93
RESUMO daquele texto, já que eles se ancoram em textos já existentes e, re-
lacionando com os diversos tipos de intertextualidade existentes.
Os seres humanos são constituídos de linguagem. Essa lingua- Através das análises realizadas, chegamos à conclusão de que a in-
gem se manifesta através das atividades comunicativas interacio- tertextualidade em tirinhas e charges é feita pela interdependência
nais coordenadas pela língua e expressas em textos, isso quer dizer do texto verbal com o não verbal, causando a percepção coerente
que, quando falamos ou escrevemos, em situações comunicativas, e relevante do sentido do texto. Se as imagens e os elementos gráfi-
estamos produzindo textos. Sobre texto, Beaugrande (1997) apud cos não são levados em consideração, o propósito do autor que se
Marcuschi (2008) afirma, que é fundamental tomá-lo como um apropriou do texto do outro para produzir um novo texto, acaba
evento comunicativo no qual convergem ações linguísticas, cog- não surtindo efeito e por fim, vemos que textos representados por
nitivas e sociais. Com base nessa definição, entende-se que o texto elementos verbais e visuais também apresentam relações com ou-
não se restringe apenas a um amontoado de frases ou a junção tros textos, podendo ser de forma direta ou indireta, produzindo
de categorias gramaticais, mas vai muito além, envolvendo vários efeitos de sentido de acordo com o propósito do autor, e, para que
outros elementos e fatores que são necessários na sua produção e isso seja detectado é preciso considerar seu caráter multimodal e
compreensão. Dentre esses elementos, destacaremos neste artigo o conhecimento dos textos-fontes utilizados.
a intertextualidade, que, de acordo com Koch & Elias (2012), está
presente na base da constituição de todo e qualquer dizer, ou seja, Palavras-chave: linguística textual; intertextualidade; efeitos de
em nosso falar/escrever existem outros textos prévios que fazem sentido
parte da nossa memória social. As autoras destacam também os
modos de constituição da intertextualidade, que pode ser explíci-
ta, evidenciando a fonte do texto citado, ou implícita, ocultando a ANÁLISE DOS EFEITOS DE SENTIDO CAUSADOS PELA IN-
fonte do texto citado, modos que são gerenciados de acordo com TERTEXTUALIDADE EM TIRINHAS E CHARGES DO CAR-
o propósito do produtor do texto, podendo alterar ou adulterar o TUNISTA WILLIAM LEITE
sentido do texto-fonte. Neste artigo, pretendemos analisar os efei-
tos de sentido produzidos pela intertextualidade, tanto explícita
como implícita, em textos que possuem dois modos de represen- Anna Paula Alves Monteiro¹
tação, especificamente, palavras e imagens, que, segundo Dionísio Rita de Cássia Wanderlei Kramer²
(2011), são textos multimodais. Pretendemos observar como é fei-
to o processo de intertextualidade e quais estratégias discursivas
e visuais são usadas para expressar a finalidade comunicativa do ¹ Estudante do curso de Letras – CAC – UFPE;
texto, ressaltando sempre seu caráter multimodal, analisado como E-mail: annapaulabcct@gmail.com ;
constituinte dos efeitos de sentido. Selecionamos para o corpus da ² Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Letras – CAC
análise, especificamente, charges e tirinhas do cartunista e ilustra- – UFPE. E-mail: ritakramer42@gmail.com
dor William Leite, retiradas do seu site na internet, Will tirando.
Em seguida, analisamos os textos multimodais selecionados, ob-
servando como funcionava o processo de construção de sentido

94
Resumo: Nesta pesquisa, pretende-se analisar os efeitos de sentido não se restringe apenas a um amontoado de frases ou a junção
produzidos pela intertextualidade, tanto explícita como implícita, de categorias gramaticais, mas vai muito além, envolvendo vários
em textos que possuem dois modos de representação, especifica- outros elementos e fatores que são necessários na sua produção e
mente, palavras e imagens, que, segundo Dionísio (2011), são tex- compreensão. Dentre esses elementos, destacaremos neste artigo
tos multimodais. Baseando-se nas teorias sobre o funcionamento a intertextualidade, que, de acordo com Koch & Elias (2012), está
dos textos difundidas pela Linguística Textual, temos como obje- presente na base da constituição de todo e qualquer dizer, ou seja,
tivo observar como ocorre o processo de intertextualidade nesse em nosso falar/escrever existem outros textos prévios que fazem
tipo de texto, que é fruto de práticas comunicativas do ser humano, parte da nossa memória social. As autoras destacam também os
e quais estratégias discursivas e visuais são usadas para expressar modos de constituição da intertextualidade, que pode ser explí-
sua finalidade comunicativa, ressaltando seu caráter multimodal, cita, evidenciando a fonte do texto citado, ou implícita, ocultan-
analisado como constituinte dos efeitos de sentido que ele pode do a fonte do texto citado, modos que são gerenciados de acordo
apresentar. Selecionamos para o corpus da análise, algumas char- com o propósito do produtor do texto, podendo alterar ou adul-
ges e tirinhas do cartunista e ilustrador William Leite, retiradas do terar o sentido do texto-fonte. De acordo com Koch (2004) apud
seu site na internet, Will tirando. Através da realização das análi- Koch & Elias (2012), adulterações e alterações do texto-fonte por
ses, chegamos à conclusão de que a intertextualidade em tirinhas causa da relação com outros textos podem ocorrer em diversas
e charges é feita pela interdependência do texto verbal com o não práticas comunicativas como anúncios, slogans, publicidades,
verbal que colaboram dando indícios do texto-fonte ao qual se poemas, contos etc. Inclusive nos gêneros que apresentam, além
referem, permitindo ao leitor construir uma percepção coerente e do texto escrito, elementos gráficos carregados de significações.
relevante do sentido do texto. Como dito anteriormente, ao falarmos ou escrevermos, estamos
produzindo textos. Segundo Dionísio (2011), ao executarmos es-
Palavras-chave: linguística textual; intertextualidade; efeitos de sas ações, usamos no mínimo dois modos de representação, que
sentido podem ser: palavras e gestos; palavras e entonações; palavras e
imagens; palavras e animações, etc. Logo, esses textos apresentam
caráter multimodal e possibilitam uma variedade de formas em
diferentes situações comunicativas e com objetivos distintos. Esse
INTRODUÇÃO caráter também está presente em charges e tirinhas, gêneros tex-
tuais que utilizam recursos verbais e visuais em sua construção.
Os seres humanos são constituídos de linguagem. Essa lingua- Se textos multimodais são modos diferentes de representação de
gem se manifesta através das atividades comunicativas interacio- um texto, e os textos, no geral, são resultados das nossas práticas
nais coordenadas pela língua e expressas em textos, isso quer dizer comunicativas, pode-se entender que textos multimodais tam-
que, quando falamos ou escrevemos, em situações comunicativas, bém podem apresentar o recurso da intertextualidade, pois fazem
estamos produzindo textos. Sobre texto, Beaugrande (1997) apud parte de uma prática comunicativa e apresentam um propósito.
Marcuschi (2008) afirma, que é fundamental tomá-lo como um Usar esse recurso para construir o sentido dos textos, segundo
evento comunicativo no qual convergem ações linguísticas, cog- Antunes (2010), faz com que o autor assuma determinado ponto
nitivas e sociais. Com base nessa definição, entende-se que o texto de vista, discuta, destaque, avalie e se posicione sobre as palavras

95
originais do texto-fonte, podendo fazer isso através da intertex- como a cena de um filme de sucesso (texto 1); a fala do perso-
tualidade da semelhança ou da diferença. De acordo com Bentes nagem de uma série de TV famosa (texto 2) e até desenhos com
(2009), a primeira refere-se à repetição pura e simples de outro traços e cores correspondentes ao cenário ou aos personagens de
texto e a segunda representa o que foi dito para propor uma lei- um programa de TV (texto 2 e 3). Logo, a intertextualidade em
tura diferente. Ambas produzem efeitos de sentido distintos nos textos multimodais pode se apresentar fazendo referência através
textos, principalmente nos textos multimodais. Com está análise da escrita como também da imagem, das cores e dos traços. Os
pretendemos observar como se dá o processo da intertextualidade recursos visuais como cores, diagramação do quadrinho, traços
em textos multimodais e quais os possíveis efeitos de sentido cau- dos personagens, balões de fala, etc. caracterizam referências, na
sados através dessa relação. maioria das vezes indiretas, pois apresentam um grau de compre-
ensão que vai além do texto-fonte propriamente dito e produzem
METODOLOGIA um efeito de sentido a partir da diferença, como constatamos, por
exemplo, na charge que faz referência ao filme O chamado, no
Após a leitura de textos teóricos sobre a intertextualidade e a qual um elemento do filme foi colocado ao lado dos personagens
busca por compreender o funcionamento desse critério de textua- da charge, construindo um efeito de sentido diferente. Já na tiri-
lidade em textos multimodais, definimos nosso objeto de análise: nha do Chaves, os recursos visuais funcionam de maneira direta,
charges e tirinhas, ambos os gêneros ricos em recursos visuais e pois os próprios personagens do seriado constroem a história da
verbais que se enquadram dentro do objetivo da pesquisa. Em tirinha e o sentido se constrói pela semelhança entre os desenhos
seguida, selecionamos duas tirinhas e uma charge disponíveis no dos personagens e suas falas no seriado. Já na tirinha Porquê ca-
site Will Tirando, de William Leite, cartunista e ilustrador que chorros comem grama?, os elementos visuais que caracterizam os
vem ganhando espaço no ramo das web tirinhas humorísticas personagem do desenho animado Du, Dudu e Edu são extrema-
nos últimos anos no Brasil. Coletamos as mais significativas e que mente importantes para que o sentido da intertextualidade seja
apresentavam algum tipo de relação com outros textos. Feita a se- capturado da melhor forma. Percebemos também que o conhe-
leção, analisamos cada uma de acordo com o texto-fonte do qual cimento do gênero textual, o público a quem são direcionados os
faziam referência; o tipo de intertextualidade usada pelo autor e textos e o suporte onde ele é veiculado também se faz importante
o efeito de sentido que esse texto causava no leitor que conseguia para o funcionamento da intertextualidade e contribui para o tipo
depreender os recursos multimodais e intertextuais, embasando de referência que o autor poderá utilizar na construção do seu
nossa análise com os teóricos da Linguística Textual. texto. Os textos que selecionamos circulam na internet e são dire-
cionados a jovens e adultos que por estarem “conectados a rede”,
RESULTADOS E DISCUSSÕES pressupõe-se que farão as relações necessárias para compreender
o sentido do texto. De acordo com Koch (2012), vários tipos de
Os resultados alcançados com esta pesquisa atenderam nos- conhecimentos são ativados quando fazemos a leitura de um tex-
sas expectativas e se apresentaram de ordem qualitativa de acordo to. A autora destaca o conhecimento linguístico, que se refere ao
com o corpus que selecionamos. Inicialmente, notamos que os conhecimento prévio sobre a estrutura da língua, léxico, sintaxe,
textos fontes utilizados pelo autor, abarcavam não só textos es- semântica, etc., conhecimento enciclopédico, que está relaciona-
critos, mas também aspectos discursivos, visuais e multimodais, do às experiências, à cultura, ao mundo, etc. e conhecimento inte-

96
racional, sobre as formas de interação/comunicação na sociedade. do o rosto. Essas seriam referências visuais de contextualização
Então, esses conhecimentos são acionados através de mecanismos e compreensão da charge. Após captarmos os elementos visuais,
cognitivos para que possamos dar sentido a um texto. Entretanto, percebemos que o homem fala: Muito boa essa tecnologia 3D!,
ao tratarmos de textos carregados de intertextualidade, o leitor referindo-se à TV diante dele e ao óculos que está usando. Porém,
precisa partilhar das mesmas experiências/referências do autor vemos que o efeito de sentido causado é o humor, pelo fato de o
para que possa compreender o efeito de sentido pretendido por homem não perceber que não é a tecnologia dos óculos que está
ele e por meio da análise pudemos observar o quanto são impor- fazendo com que ele veja uma mulher saindo da TV, mas de fato,
tantes esses conhecimentos. De maneira geral, observamos que a mulher sai da TV. Como percebemos esse humor? Pela inter-
os elementos que estão em um campo mais discursivo, somados textualidade. A referência ao filme O chamado é feita através do
aos elementos linguísticos do texto, produzem a intertextualida- desenho da menina saindo da TV, cena pertencente ao filme em
de e funcionam de maneira interdependente para causar o efeito que a personagem sai da TV literalmente e é provável que o filme
desejado, porém um texto sempre apresentará um sentido, mes- que o casal assiste na charge é o mesmo a que os personagens de
mo que os leitores não alcancem as referências intertextuais que O chamado assistem. Percebemos aí uma intertextualidade explí-
o autor utilizou e criem sentidos a partir do que veem. O humor, cita, mas restrita. Explícita pelo fato de apresentar o desenho com
característica desses gêneros e presente nos três textos analisados, todas as características de Samara, personagem principal do filme,
só é alcançado quando se identificam os critérios de textualidade e restrita pelo fato de restringir a compreensão da charge somente
presentes no texto. Portanto, acreditamos que ainda vários aspec- a quem assistiu ao filme. Isso não quer dizer que nenhum senti-
tos podem ser descobertos a partir de pesquisas desse tipo com do seja recuperado. Segundo Bentes (2009), o conhecimento do
outros textos do gênero multimodal. texto-fonte ajuda o leitor a compreender a intenção do texto, mas
o desconhecimento o faz imaginar sentidos possíveis e cabíveis.
Logo, o autor da charge usa da intertextualidade pela diferença,
expressa pela imagem, para alcançar humor.

No texto acima, observamos uma relação intertextual com o


filme de terror O chamado (2002). A charge apresenta um casal
assistindo a um filme com óculos 3D, (tecnologia que permite
ao usuário ver as coisas com profundidade, quase como reais), e
uma mulher saindo de dentro da televisão com os cabelos cobrin-

97
Na tirinha sobre o jogo do México contra a Holanda na Copa mas exprimem o mesmo sentido, o México iria perder e o jogo
do Mundo de 2014, destacamos a intertextualidade com o seria- seria muito chato, logo é melhor ir assistir ao filme do Pelé.
do mexicano Chaves. Os personagens da tira são Chaves e Chi-
quinha, personagens também do seriado. Os dois comemoram a
classificação do México para a próxima fase na Copa do Mun-
do, já que o seriado é de origem mexicana, mas se amedrontam,
como evidenciado na imagem do terceiro quadrinho, porque o
time rival do México será a Holanda, considerado o melhor time
da copa. Então, o Chaves decide ir comprar ingressos para ver o
filme do Pelé. Essa ação a princípio não faz sentido, se não for le-
vada em conta a intertextualidade existente no texto. Notamos aí
uma intertextualidade explícita, que demonstra o posicionamento
do autor da tira quanto ao jogo entre o México e a Holanda. Para
entendermos isso, recorremos a nossa memória sobre o seriado e Na tira “Por que cachorro come grama”, a intertextualidade é
nos lembramos da frase Teria sido melhor ir ver o Pelé, na versão expressa sutilmente através das imagens e da organização sintática
brasileira famosíssima na voz do personagem Chaves. Foi ouvida do texto escrito, já que o William Leite tem uma série de tirinhas
pela primeira vez no episódio chamado Vamos ao cinema. O epi- chamada “Viva intensamente” onde os personagens são cachor-
sódio narra o dia em que todos os moradores da vila foram ao ci- ros. O texto relaciona-se com o desenho animado Du, Dudu e
nema assistir a um filme e o Chaves, personagem principal, estava Edu exibido pelo canal de TV por assinatura Cartoon Network.
achando o filme chato e não queria mais assistir e para demons- Percebemos a intertextualidade através dos traços dos cachorros
trar sua insatisfação repetia o tempo inteiro: Teria sido melhor que correspondem ao desenho dos amigos Du, Dudu e Edu. O
ir ver o Pelé. Além de estar referente na tirinha, a frase também primeiro cachorro é desenhado com os traços do Edu. A fala é
foi usada pelas pessoas para referir-se a vários jogos da Copa do característica do personagem, que é ativo e travesso. O segundo
Mundo em que se pensava que a derrota seria certa ou a vitória cachorro é desenhado com os traços do menino Dudu, sensível
seria muito fácil e não seria interessante assistir. Esse uso da fra- e inteligente, e sua fala demonstra isso pelo fato de ser a mais ló-
se fora de contexto do seriado acabou gerando um esvaziamento gica de todas. O terceiro cachorro é desenhado com os traços do
de sentido da expressão, que terminou sendo usada pra qualquer menino Du, o mais desvairado e asqueroso de todos, logo sua fala
situação, não apenas relacionada ao México ou ao Chaves. Sem também faz sentido. O texto verbal marca a personalidade de cada
o conhecimento de todos esses aspectos que não estão explícitos personagem e ajuda na busca pelo sentido da relação com o dese-
nos elementos linguísticos do texto, não se teria a compreensão nho animado gerando o humor da tira. A intenção do autor pro-
adequada da tira. Percebemos que o autor do texto refere-se ao vavelmente era a pura relação entre textos, relação essa que no fim
seriado e ao episódio usando a intertextualidade da semelhança. das contas acaba causando humor e recordação, já que o desenho
Isso é constatado na referência ao seriado mexicano através dos é antigo e os personagens eram muito engraçados. Definiremos
desenhos dos personagens e no texto do último quadrinho. Certa- esse tipo de intertextualidade como implícita e multimodal, pois
mente as palavras não estão na mesma ordem das do texto-fonte, predominam traços visuais e a organização do texto verbal que re-

98
metem ao texto-fonte, revelando assim a estratégia argumentativa tratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2012.
do produtor que faz com que o leitor recorra ao conhecimento MARCUSCHI, Luis Antônio. Produção textual, análise de gêne-
desse desenho animado específico. ros e compreensão. São Paulo: Parábola editorial, 2008

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através das análises realizadas, chegamos à conclusão de que


a intertextualidade em tirinhas e charges é feita pela interdepen- RESUMO
dência do texto verbal com o não verbal, causando a percepção
coerente e relevante do sentido do texto. Se as imagens e os ele- Tendo o Bilinguismo como filosofia educacional, a opção bra-
mentos gráficos não são levados em consideração, o propósito do sileira para a educação de surdos se encontra em sintonia com a
autor que se apropriou do texto do outro para produzir um novo maioria dos países do mundo. Essa filosofia atenta para o uso da
texto, acaba não surtindo efeito primeiramente desejado. Percebe- Libras como primeira língua (usada para comunicação) e, como
mos que é necessário que o leitor tenha conhecimentos específicos segunda língua, a Língua Portuguesa (que permite o acesso aos
sobre o texto-fonte, que pode ser representado simplesmente por conteúdos escritos). Diante dos repetidos insucessos de crianças,
uma imagem ou por uma expressão sem referências diretas, para jovens e adultos surdos na aquisição de conhecimentos que circu-
que intertextualidade provoque o efeito de sentido adequado. Por lam na escola, da alfabetização até o Ensino Superior, procuramos
fim, vemos que textos representados por elementos verbais e vi- refletir como seria a possível mudança desse quadro e, o direcio-
suais também apresentam relações com outros textos, podendo namento para novas estratégias, tendo como foco a leitura, que é
ser de forma direta ou indireta, produzindo efeitos de sentido de certamente, um dos aspectos que mais preocupam os educadores
acordo com o propósito do autor, e, para que isso seja detectado é de surdos, cabendo nesse espaço o uso da argumentação como
preciso considerar seu caráter multimodal e o conhecimento dos fundamental no processo de leitura, pois possibilita o resgate dos
textos-fontes utilizados. conhecimentos prévios, a comparação com os seus conhecimen-
tos e as informações do texto, e por fim, a aquisição de novos
REFERÊNCIAS conhecimentos. Portanto, o objetivo dessa pesquisa foi analisar
a argumentação no processo de leitura em Língua Portuguesa
ANTUNES, Irandé. Análise de textos: fundamentos e práticas. por surdos do ensino fundamental. Os dados foram coletados no
São Paulo: Parábola Editorial, 2010. GEAS- Grupo de Estudo e Atendimento à Surdez, realizado no
BENTES, A.C. Introdução à linguística: domínios e fronteiras. laboratório de Linguagem, do Doutorado em Ciências da Lingua-
V.1. São Paulo, Cortez, 2009. gem da Universidade Católica de Pernambuco. Nesse contexto,
DIONISIO, Angela Paiva. Gêneros textuais e multimodalidade. trazemos na fundamentação teórica autores como, Ducrot, Koch,
In: BRITO, Karim Siebeneicher; GAYDECZKA, Beatriz; KA- Solé, Karnopp, Aguirre, dentre outros, que darão base a nossa
RWOSKI, Acir Mário. (Orgs.) Gêneros textuais: reflexões e ensi- discussão. A opção metodológica utilizada foi uma pesquisa qua-
no. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. litativa, de caráter intervencionista, os dados apresentados nessa
KOCH, Ingedore Villaça, ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: es- pesquisa fazem parte do projeto “Construindo sentido contextual:

99
dialogando em Sinais sobre a leitura e a escrita em Língua Por- Resumo - Diante dos repetidos insucessos de crianças, jovens
tuguesa” executada Programa Institucional de Bolsas de Inicia- e adultos surdos na aquisição de conhecimentos que circulam
ção Científica – PIBIC da Universidade Católica de Pernambuco. nos âmbitos educacionais, da alfabetização ao Ensino Superior,
Foram ministrada seis (6) oficinas de leitura obedecendo a uma procuramos refletir como se poderia mudar esse quadro, tendo
proposta bilíngue. Os resultados mostraram que em atividade co- como foco a leitura, enxergando nesse processo o uso da argu-
municativas, como a leitura, apesar de termos duas língua envol- mentação como fundamental, pois ela possibilita o resgate dos co-
vidas nesse processo, o encadeamento discursivo esteve presente, nhecimentos prévios, a comparação dos conhecimentos existen-
e mesmo com a ausência dos conectivos na estrutura da Libras, a tes com as informações do texto, e por fim, a aquisição de novos
leitura realizada pelos surdos apresentou uma coerência. Portan- conhecimentos. Sendo assim, o objetivo dessa pesquisa foi anali-
to, os empregos dessa prática contribuem para a geração de novas sar a argumentação no processo de leitura em Língua Portugue-
motivações e hábitos criados pela frequência do uso da leitura e sa por surdos do ensino fundamental. Os dados foram coletados
a exploração da argumentação no ato de leitura, proporcionando no GEAS- Grupo de Estudo e Atendimento à Surdez, realizado
uma ampliação nos vocabulários e uma familiarização com a es- no laboratório de Linguagem, do Doutorado em Ciências da Lin-
trutura da Língua Portuguesa. guagem da Universidade Católica de Pernambuco. Autores como
Ducrot, Koch, Solé, Karnopp, entre outros, darão embasamento
Palavras chaves: leitura; argumentação; libras; língua portuguesa teórico a nossa discussão. Os resultados mostraram que no pro-
cesso de leitura, apesar de existirem duas línguas envolvidas, o en-
cadeamento discursivo esteve presente, e a leitura realizada pelos
ARGUMENTAÇÃO NO PROCESSO DE LEITURA: UMA ANÁ- surdos apresentou coerência. Portanto, o emprego dessa prática
LISE SOBRE A PRESENÇA DA ARGUMENTATIVIDADE NO contribuiu para a geração de novos hábitos de leitura e a explora-
PROCESSO DE LEITURA EM LÍNGUA PORTUGUESA POR ção da argumentação nesse ato, proporcionando uma ampliação
SURDOS DO ENSINO FUNDAMENTAL nos vocabulários e uma familiarização com a estrutura da Língua
Portuguesa.

Matheus Lucas de Almeida 1 Palavras chaves: Leitura; Argumentação; Libras; Língua Por-
Izabelly Correia dos Santos Brayner 2 tuguesa

INTRODUÇÃO
1. Estudante do Curso de Licenciatura Plena em Letras: português
e inglês – Centro de Teologia e Ciências Humanas- CTCH - Universi- Entendemos a leitura como um ato político, social, mental e
dade Católica de Pernambuco; E-mail: Matheus.luks@hotmail.com , linguístico, cabendo nesse espaço à argumentação como funda-
2 Docente/Pesquisadora do Depto de Letras locada no Cen- mental no processo de leitura para possibilitar a criação de uma
tro de Teologia e Ciências Humanas - CTCH – Universidade determinada intuição (defendida pelo argumentador) em torno
Católica de Pernambuco. E-mail: Izabelly.correias@gmail.com de um sujeito ativo, participativo e reflexivo. Por isso, tendo a lei-
tura como fundamental no processo de inserção social, focamos

100
nossa pesquisa na comunidade surda usuária da Língua Brasilei- dades de encadeamentos discursivos e devem ser compreendidos
ra de Sinais – Libras, que apesar da Lei 10.436/2002 reconhecer como fontes do discurso, e não como conclusões dele. Por exem-
como meio de comunicação e expressão das comunidades sur- plo, um topos segundo o qual a riqueza traz felicidade, não põe
das brasileiras, as diversas funcionalidades de leitura no país es- em relação uma ideia de riqueza e uma ideia de felicidade, mas
tão dispostas em Língua Portuguesa. Nesse caso teremos o uso da forma a noção de uma felicidade obtida a partir da riqueza e de
Libras como primeira língua -usada para comunicação- e, como uma riqueza capaz de trazer felicidade; fazendo com que a atribui-
segunda língua, a Língua Portuguesa- que permite o acesso aos ção da propriedade felicidade à palavra riqueza se faça dentro da
conteúdos escritos- Goldfeld (2002). Porém, os estudos que re- enunciação por meio da polifonia. Segundo Bakhtin (1999 apud
tratam essa temática mostram que o processo de leitura de alunos LUCIA E ANDRÉIA 2010), a polifonia são as diferentes vozes que
surdos conduz a resultados insatisfatórios, segundo Pereira e Kar- ocorrem e que se expressam dentro de um mesmo enunciado, e
nopp (2003) essas dificuldades parecem decorrer, principalmente, todo discurso é formado por diversos discursos. Ou seja, não é à
por conta da falta de conhecimento da língua usada na escrita, o significação da palavra que se atribui a tal propriedade, mas sim,
português, no caso dos surdos brasileiros. um valor extralinguístico. Se invertermos a ordem dos compo-
Além disso, como afirma Koch (1996) todo discurso possui nentes linguísticos os deixando do seguinte modo “felicidade traz
uma ideologia que o subjaz, ou seja, a neutralidade é inexistente e riqueza”, o sentido da frase se altera, pois ocorre a alteração da
sempre haverá implícitos histórico-sociais que foram construídos perspectiva dos enunciadores, mesmo que os fatos representados
ao longo do tempo, e que são naturalmente cristalizados nas me- permaneçam idênticos. Em entrevista concedida a Universidade
mórias dos indivíduos. É exatamente nesse ponto que às palavras Federal de Santa Catarina, Ducrot (1996 apud MAURÍLIO 1998)
adquirem sentidos; através das práticas sociais e locais de inserção afirma:
dos sujeitos. Parece-me que a ideia geral que domina todo o meu trabalho é
São esses estereótipos que constituem o lugar dos princípios a percepção de que a língua (mais precisamente, deveríamos falar
que mobilizam os topois na Teoria dos Topois Argumentativos de em discurso) não pode ser reduzida à função informativa e que as
Ducrot (2002), na qual o autor afirma que os elementos linguísti- frases da língua comportam, semanticamente, elementos que não
cos, possuem três especificidades: equivalem às condições de verdade (DUCROT, 1996).
São universais, pois, são entendidos como saberes partilhado Destarte, quando se afirma que a significação da frase se altera,
por um determinado grupo de pessoas, ou são, no mínimo, apre- indica-se que os encadeamentos possíveis a partir desta frase se
sentados como tal no enunciado. alteram. Por isso, a polifonia é um dos fatores que levam Ducrot
São gerais, porque se aplicam a um vasto número de situações, (2002) e seus colaboradores a afirmarem que o sentido dos enun-
e não apenas a do momento do diálogo. ciados não se resume apenas ao seu valor referencial, e nessa pers-
São graduais, ou seja, relacionam-se em duas escalas, e o movi- pectiva a Teoria dos Topoi envolve uma série de hipóteses sobre o
mento de um condiciona o movimento do outro. Dessa forma, se sentido lexical.
o valor em uma escala cresce ou decresce, ocorrerá o equivalente Dentro desse jogo discursivo existem os operadores argumen-
no outro. tativos que possuem relação direta com o sentindo que o enuncia-
Para Ducrot (2002), os topois não constituem apenas uma rela- do irá tomar e que são encarregados de estabelecer relações entre
ção entre dois conceitos, mas constituem por si mesmos, possibili- frases, períodos e orações. Eles ajudam a passar diversas ideias,

101
como de intensificação, de comparação, de conclusões diferentes, Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC da Universidade Católica
etc. Por exemplo, nos enunciados “Pedro trabalhou pouco” e “Pe- de Pernambuco. Onde se foi criado um Grupo de Estudo e Aten-
dro trabalhou um pouco”, ao utilizar “pouco” o enunciado cami- dimento à Surdez – GEAS, sediado no laboratório de Linguagem,
nha para um lado negativo, já ao utilizar “um pouco” o enuncia- do Doutorado em Ciências da Linguagem da Universidade Cató-
do caminha para um lado positivo, tendo em vista que Pedro ao lica de Pernambuco. A coleta de dados foi realizada através de seis
menos exerceu algum trabalho. Dessa forma, como afirma Maria oficinas de leitura, com duração de uma hora para cada oficina,
(2013, pág 28): que possuíam como objetivo trabalhar a argumentação como fa-
Quando há omissão de conectivos ou o emprego deles é inade- cilitadora no processo de leitura. As oficinas foram videografadas
quado, o texto não fica bem construído, pois falta coesão que ligue para posteriores transcrições que foram feitas adotando o Sistema
as orações e parágrafos. Falta também o fio condutor que facilitara de Transcrição utilizado pelas autoras Quadros e Karnopp (2004).
a compreensão e a clareza (MARIA, 2013, pág 28).
Sendo assim, um texto precisar possuir em sua estrutura uma Segue abaixo uma tabela com a discrição das oficinas realiza-
relação elaborada com coesão e coerência para o entendimento, das:
e consequentemente a interpretação do discurso, essa relação é
essencial para que no processo comunicativo se alcance o êxito,
ou seja, compreender e se fazer compreendido. Por isso, busca-
mos aqui analisar a argumentação no processo de leitura realizada
por surdos do ensino fundamental. Tendo em vista que eles, por
possuírem uma língua com estruturação diferente da Língua Por-
tuguesa, apresentam dificuldades em realizar leituras satisfatórias
(com um bom grau de compreensão) em Língua Portuguesa. Por-
tanto, a exploração da argumentatividade auxiliaria na compreen-
são do texto lido, proporcionando a criação de novos hábitos de
leitura, acarretando assim, a ampliação do vocabulário e o contato
com a estrutura da Língua Portuguesa.

METODOLOGIA

A opção metodológica utilizada foi uma pesquisa qualitativa,


de caráter intervencionista, a opção por esse tipo de pesquisa deu- Sabendo que essa pesquisa se trata de surdos, que utilizam
-se pelo fato de ela não somente propor resoluções de problemas, a Libras como meio comunicacional, as propostas das oficinas ti-
mas também resolvê-los de forma efetiva e participativa. Os dados veram um viés bilíngue. A população de estudo foi constituída
apresentados nessa pesquisa fazem parte do projeto “Construindo por oito surdos do Ensino Fundamental, de ambos os sexos, que
sentido contextual: dialogando em Sinais sobre a leitura e a escrita utilizam a Libras como meio de comunicação e que participaram
em Língua Portuguesa” executada no Programa Institucional de semanalmente do GEAS. Foi apresentado aos responsáveis pelos

102
participantes da pesquisa o Termo de Consentimento Livre e Es- do o que eles sabiam sobre o tema, e mesmo eles não tendo com-
clarecido, que expõe os objetivos e a metodologia do estudo para preendido cerca de 50% das palavras do texto, como referido no
que decidam sobre a participação na pesquisa. Todos assinaram dado anterior- que em sua maioria eram palavras com mais de
concordando participar da pesquisa. três sílabas, como “intensamente”, “proprietário” e “guloseimas”-
eles argumentaram sobre a temática com o auxilio de seus conhe-
RESULTADOS E DISCUSSÃO cimentos prévios, e começaram a fazer relações com elementos
característicos da festividade.
Após a realização das seis oficinas que introduziram nosso tra-
balho e proporcionaram a coleta dos materiais necessários para 2.Uso da argumentação no processo de leitura
analisar a argumentatividade no processo de leitura em Língua
Portuguesa por surdos que utilizam a Libras como meio comu- Foi identificado o uso da argumentatividade em todas as ofici-
nicacional, chegamos aos seguintes resultados parciais, que até o nas, destacamos aqui dois recortes da oficina 01:
momento, foram categorizados em dois tópicos:
Recorte 1 – Contexto: ao distribuir os textos e explicar o assun-
to da oficina foi questionado o dia da festa do Halloween que já
havia acontecido

Notou-se que em oficinas como a do Halloween e a do Na-


tal as dificuldades foram com palavras especificas dessa seção, Ao ser exposta a proposta da 1º oficina, o Halloween, o sujeito
como presépio, Halloween, etc. Já nas oficinas de Boas Maneiras S3 questionou o fato da festividade já ter ocorrido, mas não sa-
e dos Meios de Transportes, as palavras na qual eles possuíram bia a data exata do evento e perguntou a P1 quando aconteceu,
mais dificuldades foram palavras com as quais eles comumente ela mandou que eles lessem no texto, S2 viu que ocorreu no dia
não tinham muito contato, e que normalmente possuíam mais de 31, um sábado, em seguida foi pedido para que eles continuas-
três silabas. Além dos verbos, e dos verbos em suas conjugações, sem a leitura do texto e vissem imagens que eram relacionadas ao
muitas vezes por conta das conjugações que possibilitam diversas Halloween.
formas de uso para uma mesma palavra escrita. Após a leitura Outro destaque importante no uso da argumentatividade na
completa do texto do Halloween, por exemplo, lhes foi pergunta- atividade de leitura foi identificado na oficia 02:

103
Recorte 2 – contexto: durante a leitura, muitas palavras foram cadeamentos discursivos, como propõe Ducrot (2002) na Teoria
elencadas como desconhecidas por eles, mesmo assim foi pergun- dos Topois Argumentativos, o que proporcionou a compreensão
tado o que eles conheciam sobre o Halloween. do texto lido, onde mesmo não se fazendo presente o uso de co-
nectivos na Libras, as leituras foram realizadas e a compreensão
aconteceu em todas as oficinas. Além, de reafirmar a tese da exis-
tência da polifonia proposta por Bakhtin (1999 apud LUCIA E
ANDRÉIA 2010), como se pode observar no caso da representa-
ção do verão pelo sinal em Libras do calor, mas que dependendo
do contexto, pode significar de fato seu valor referencial, no caso,
o calor. Esse fato nos mostra a dificuldade dos surdos no acesso
a Língua Portuguesa, o que reforça nosso entendimento sobre o
resultado positivo do incentivo a atividades de leituras nela, bus-
cando proporcionar a criação de hábitos contínuos de leitura, o
que minimizará o desconhecimento dos léxicos e da estrutura da
Língua Portuguesa para os sujeitos surdos.
A argumentação em torno da temática foi realizada com o au-
xilio de seus conhecimentos prévios, onde além de S3 questionar
a data da realização da atividade, eles começaram a fazer relações
com elementos característicos da festividade. S5 fez a primeira REFERÊNCIAS
relação com os filmes dos Estados Unidos, S2 com os vampiros,
bruxas e fantasias- que ele inclusive comparou com as que usamos GOLDFELD, Marcia. A criança surda: linguagem e cognição
no carnaval, S6 com doces, chocolates e vassouras (referência às numa perspectiva sociointeracionista. 6. ed. São Paulo: Plexus,
vassouras que as bruxas usam para voar nos filmes). Percebeu-se 2002. 172 p.
nessa oficina que mesmo eles não sabendo o significado de mui- KOCH, I. G. V. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez,
tas palavras como da própria palavra “Halloween”, eles conheciam [2000] 2009.
a festividade e os elementos que compõe ela, além disso, conse- LÚCIA,Vera Pires.; ANDRÉIA, Fátima Tamanini-Adames. De-
guiam fazer associações, como a que S2 fez com as fantasias- o senvolvimento do conceito bakhtiniano de polifonia. 2010. Em:
que evidencia a presença da argumentação proposta por Ducrot http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es/eSSe62/2010esse62_vlpi-
(2002)- no ato da leitura realizada pelos surdos. res_fatamanini_adames.pdf Acesso: Dezembro, 2015.
MARIA, Célia da Paz Teixeira. Redação no Ensino Médio: A argu-
CONSIDERAÇÕES FINAIS mentação de alunos do projeto travessia. Recife: UNICAP, 2013.
MAURÌLIO, Heronides de Melo Moura. Semântica e argumenta-
Evidenciamos aqui que no momento da leitura em Língua ção: diálogo com oswald ducrot. 1998. Em: http://www.scielo.br/
Portuguesa realizada por surdos que utilizam a Libras como meio scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-44501998000100008
comunicacional, se fez presente a argumentação através dos en- Acesso: Outubro, 2015.

104
PEREIRA, M. C. C. e KARNOPP, L. B. Leitura e surdez. Letras de didos. Exploraremos um corpus baseado no episódio em que o
hoje. Porto Alegre. 2003. movimento em questão realizou uma manifestação que culminou
QUADROS, R.M. de; KARNOPP, L. B. Língua de sinais: estudos dentro do principal shopping da cidade de Recife. Com esta aná-
lingüísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004. lise, podemos evidenciar como se dão os efeitos de criminalização
e marginalização do “Ocupe Estelita”, de seus organizadores e da-
queles que o apoiam, e como a mídia jornalística consegue fazer
com que seus leitores reproduzam tais efeitos e perpetuem tais
RESUMO concepções do que são os movimentos sociais.

É notável que a mídia possua uma ampla atuação nos dias atu- Palavras-chave: Jornais de Pernambuco; Criminalização de movi-
ais, sobretudo com o advento da internet. Há que se questionar, mentos sociais; Ocupe Estelita; Linguística Textual; Análise Tex-
entretanto, a real função exercida pela mídia: afinal, será que ela tual dos Discursos
tem de fato como objetivo informar os cidadãos, sem atender a
qualquer interesse? Para Herman e Chomsky (1988), é evidente
que não. Segundo esses autores, jornais, revistas e afins tendem a
causar efeito de criminalização a tudo aquilo que represente peri-
go a certos interesses particulares, como os movimentos sociais. ANÁLISE DAS IMPLICITAÇÕES ENQUANTO RECURSOS
Como objetivo deste trabalho, buscamos compreender os me- DE CRIMINALIZAÇÃO DO MOVIMENTO “OCUPE ESTE-
canismos textuais pelos quais os discursos de criminalização do LITA” PELOS JORNAIS EM PERNAMBUCO
movimento “Ocupe Estelita” se processam nos veículos jornalís-
ticos de Pernambuco. Para tanto, apoiamo-nos no aparato teórico
da Análise Textual dos Discursos, de Jean-Michel Adam. O autor
defende a “renúncia à descontextualização e à dissociação entre Gabriel do Nascimento Santana1
texto e discurso” (ADAM, 2011, p. 24), entendendo essa renúncia José Roberto de Luna Filho2
como uma evolução teórica e metodológica. Este trabalho provém Ana Maria Costa de Araújo Lima3
de um estudo maior de Santana e Luna (no prelo) que trabalha
com o mesmo corpus, no qual é feita uma ampla análise de to-
das as categorias trabalhadas por Adam (2011). Por isso, a partir 1.Estudante do Curso de Licenciatura em Letras-Português –
da categorização dessa linha de estudo, faremos, neste trabalho, CAC – UFPE; E-mail: gabriel.n_santana@live.com,
um apanhado geral de todas as categorias elaboradas por Adam 2.Estudante do Curso de Letras-Bacharelado – CAC – UFPE;
(2011) – visando a entender em que as outras categorias discur- E-mail: beto_luna10@hotmail.com,
sivo-textuais dialogam com a categoria de implicitações – para, 3.Docente/pesquisador do Depto de Letras – CAC – UFPE; jala-
a partir disso, aprofundarmos na análise das implicitações em si, raujolima@hotmail.com.
em suas subcategorias: elipses e implícitos – para então estudar-
mos estes mais a fundo, entendo os pressupostos e os subenten-

105
Resumo – Acreditamos, inicialmente, que a mídia usa o mecanis- seu lucro ou o modelo econômico que os favorece. A função da
mo da implicitação para criminalizar os movimentos sociais, en- mídia é, inevitavelmente, a de fabricar o consenso: permitir que
tre eles o Ocupe Estelita; temos, portanto, como objetivo, analisar uma minoria siga dominando uma maioria.
se essa criminalização de fato existe e de que modo ela é feita. Para No presente trabalho, visamos a descrever como ocorre o efei-
tal análise, exploraremos um corpus composto por três matérias to de criminalização, por parte da mídia pernambucana, do mo-
dos principais jornais impressos de Pernambuco, cujas notícias vimento social chamado Ocupe Estelita e a defesa de interesses
são sobre o episódio em que o movimento em questão realizou particulares por parte de jornais pernambucanos. Para tanto, ire-
uma manifestação que culminou dentro do principal shopping da mos nos apoiar no aparato teórico de Jean-Michel Adam (2011),
cidade de Recife. Com essa análise, pudemos compreender que os no que concerne à sua teoria de Análise Textual dos Discursos. O
jornais adotam uma posição contrária à do movimento, utilizan- autor busca não dissociar os conceitos de texto e discurso, como
do-se da omissão de informações e do conhecimento de mundo os pesquisadores dessas áreas costumam fazer, e compreende a
do leitor. Linguística Textual como um subcampo da Análise do Discurso,
servindo de ferramenta metodológica de análise para se
Palavras-chave: jornais de Pernambuco; criminalização de movi- entender a construção ideológica de sentido materializada nos
mentos sociais; Ocupe Estelita; Linguística Textual; Análise Tex- discursos.
tual dos Discursos O autor francês formula seis categorias de análise textual dos
discursos: Anáforas e correferências; Isotopias e colocações; Im-
plicitações; Conexões; e Sequências de atos do discurso. Neste
INTRODUÇÃO trabalho, buscaremos compreender os fenômenos textuais que
ocorrem na categoria das Implicitações, que se divide em: Implí-
A mídia, hoje em dia, possui um grande poder e alcance. Em citos e Elipses. E, através disso, estudaremos estes mais a fundo,
qualquer lugar e em qualquer momento, podemos estar conecta- entendendo os pressupostos e os subentendidos. Com isso, visa-
dos às recentes notícias sobre o que acontece ao redor do globo. mos a descobrir de que formas tais recursos textuais são utilizados
Além disso, a mídia detém uma grande credibilidade e a função, pela mídia e se há o fim de criminalizar os movimentos através da
na crença comum, de informar a realidade. É corriqueiro, por isso, manipulação da opinião pública.
que vários jornais, por exemplo, se declarem imparciais e compro-
metidos unicamente com os fatos. METODOLOGIA
Entretanto há que se questionar a real função exercida pela mí-
dia; afinal, será que ela tem de fato como objetivo informar os Utilizamos como corpus matérias online dos três principais jor-
cidadãos, sem atender a qualquer interesse que seja? Para Herman nais impressos de Pernambuco – Diário de Pernambuco (dora-
e Chomsky (1988) é evidente que não. Tomamos como base o mo- vante DP), Jornal do Comércio (doravante JC) e Folha de Per-
delo de propaganda desenvolvido por eles: a mídia é uma empresa nambuco (doravante FP) –, este escolhido por sua característica
e, como tal, depende de lucros; mas o lucro midiático não vem dos de possuir uma linguagem menos formal e ser voltado para um
jornais vendidos e sim dos patrocínios, que são feitos por empre- público-alvo mais popular, esse e aquele por serem mais voltados
sas, que não vão, evidentemente, apoiar matérias que ameacem para um público-alvo de maior poder aquisitivo e prestígio social;

106
sendo possível, assim, analisarmos o contraste nos discursos de argumento é significativo: ao omiti-lo, o jornal apaga e esconde os
cada um. sujeitos envolvidos na ordem e ainda confere um status de impar-
Analisamos três matérias, uma de cada um dos portais online, de cial. Isso fica evidente quando vemos que nunca se operam elipses
um mesmo evento: o dia 05 de maio de 2015, quando houve uma quando os manifestantes são os sujeitos. Ademais, nenhum dos
manifestação do Ocupe Estelita que seguiu do centro da cidade jornais indica que a votação deveria ser pública e que os ativistas
ao bairro do Pina, encerrando dentro do shopping RioMar. Com tinham o direito de entrar no local.
isso, em nossa análise, observamos a intertextualidade temática O mesmo apagamento há quando indicam a existência de
que há entre as matérias e comparamos como, através de elemen- “princípio de tumulto” na frente da câmara. Escondem os agentes
tos textuais implícitos e das elipses, se dá a criminalização do mo- e não dizem se foi causado pelos policiais, pelos manifestantes ou
vimento em questão por cada um dos veículos. pelos dois, deixando ao leitor a inferência – que, provavelmente,
será a de que o tumulto fora causado pelos integrantes do Ocupe
RESULTADOS E DISCUSSÃO Estelita.
No texto do JC, encontramos uma elipse significativa. Faz-se a
Após as análises, pudemos constatar que os jornais analisados elisão do agente que impediu a entrada da população na câmara,
usam, de fato, os implícitos para, assim, manipular a notícia de no seguinte trecho: “O movimento voltou à câmara de Vereadores
modo a influenciar as inferências feitas pelo leitor. Ficou claro que da Capital pernambucana mas foram impedidos de entrar”, pre-
os jornais conhecem seu público e, por isso, seu conhecimento sente no penúltimo parágrafo da notícia. Quem é impedido de
de mundo. Graças a esse conhecimento, frequentemente jogam alguma coisa o é por alguém, mas esse alguém não é mencionado,
com elipses, em pontos estratégicos das orações, para direcionar a numa clara tentativa de apagá-los. Tal apagamento fica ainda mais
interpretação atribuída ao trecho da notícia. claro quando comparamos esse trecho com outro de mesmo
Assumimos, aqui, a hipótese de que a mídia recifense, fren- tema do DP, em que diz que foi a Polícia Militar quem fechou os
te aos acontecimentos relativos às reivindicações do movimento portões e impediu os manifestantes de entrar; é claro que ainda
Ocupe Estelita, permaneceria ao lado do consórcio novo Recife, assim não diz por qual motivo ou por ordem de quem.
visto ser ele um investimento altamente lucrativo para o setor pri- Conforme lemos na matéria do DP, foram cerca de 1000 ma-
vado. Além disso, as empresas que fazem parte do consórcio são nifestantes, segundo integrantes do movimento Ocupe Estelita, e
assinantes dos jornais que analisaremos; tendo isso em vista, é es- cerca de 500, segundo a polícia militar. No entanto, o JC e a FP
perado que a mídia, que depende das propagandas, fará a defesa dizem que havia cerca de 250 e 200 pessoas, respectivamente. Há
do seu lucro. um implícito na assunção desses dados: 200 ou 250 pessoas repre-
No trecho que visa a explicar o motivo por que guardas muni- sentam um pequeno número para um protesto e desqualificam
cipais e agentes da PM fecharam as portas da câmara e impediram as reivindicações do movimento por serem elas vindas de uma
a entrada dos manifestantes, no segundo parágrafo do texto da FP, minoria.
diz-se: “o argumento é que o expediente da casa legislativa teria Nos três textos aqui analisados, na manchete, há uma ênfase
acabado”. O jornal dá toma por implícito de que se saiba que o ar- no fato de que o protesto terminou no shopping RioMar. Esses
gumento venha do responsável por ordenar o fechamento da câ- trechos trabalham com o implícito de que o RioMar é um local
mara. Mas é claro que a opção por não indicar quem é o dono do que representa uma ideologia diferente da representada pelos ati-

107
vistas, principalmente pelo fato de que foi construído sobre área vel em: http://m.jc.ne10.uol.com.br/canal/polit ica/pernambuco/
de mangue. Isso possibilita interpretar o movimento como hipó- noticia/2015/05/05/ativistas-do-movimento-ocupe-estelita-re-
crita ou com bases não muito firmes nos seus objetivos e no seu alizam-passeata-ate-a-zona-sul-179880.php. Acesso em: 02 jul.
motivo de luta. 2015.
Com base em tais resultados, podemos observar que a mani- HERMAN, E. S; CHOMSKY, N. Manufacturing Consent: the po-
pulação das informações, com base em elipses e na interação com litical economy of the mass Media. New York: Pantheon Books,
o conhecimento enciclopédico do leitor, há o interesse em crimi- 1988.
nalizar e denegrir o movimento Ocupe Estelita, com o objetivo OCUPE ESTELITA deve entrar com mandado de segurança
de defender o consórcio Novo Recife. Logo, isso confirma a nossa para anular votação de plano urbanístico. Diário de Pernam-
hipótese inicial. buco, Recife, 05 maio 2015. Disponível em: http://www.diario-
depernambuco.com.br/app/noticia/vidaurbana/2015/05/05/
CONSIDERAÇÕES FINAIS interna_vidaurbana,574992/ocupe-estelita-deve-entrar-com-
-mandado-de-seguranca-para-anular-votacao-de-plano-urbanis-
Haja vista os resultados obtidos, postulamos a existência de tico.shtml. Acesso em: 2 jul. 2015.
uma manipulação midiática a fim de defender os grandes em- PROTESTO contra sanção de plano urbanístico termina com
presários da capital. O presente trabalho, por contar com uma ocupação de shopping no Pina. Folha de Pernambuco, Recife,
base teórica inovadora e ainda recente, contribui para uma nova 05 maio 2015. Disponível em: http://www.folhape.com.br/cms/
perspectiva da análise ideológica dos jornais e de demais mídias opencms/folhape/pt/cotidiano/noticias/arqs/2015/05/0036.html.
formadoras de opinião; ademais, utilizamos uma interação com Acesso em: 2 jul. 2015.
uma das mais testadas e bem sucedidas teses das ciências sociais,
o modelo de propaganda de Herman e Chomsky (1988).
Tais bases possibilitam uma visão mais firme e crítica do mo-
delo de mídia atual, o que expande os horizontes desse tipo de RESUMO
pesquisa. Sabemos, entretanto, que a análise apenas de jornais re-
cifenses não é suficiente para esgotar essa nova perspectiva, por Este trabalho procura analisar o funcionamento da perspectiva
isso são muito importantes novas pesquisas, utilizando outros ti- sintática e semântica presente nas atividades que trabalham com
pos de mídias e movimentos reivindicatórios, a fim de melhor tes- os gêneros textuais da esfera midiática em livros didáticos de LP,
tar e, se possível, corroborar as conclusões a que chegamos aqui. pois, atualmente, numa sociedade tão informativa como a nos-
sa, é imprescindível saber interpretar bem os textos desta esfera.
REFERÊNCIAS Afinal, os livros didáticos tem um papel importante para auxiliar
no desenvolvimento do pensamento crítico dos alunos, além do
ADAM, Jean-Michel. A linguística textual: introdução à análise material extra-escolar, como internet, jornais, revistas e etc.
textual dos discursos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2011. Com isso, é imprescindível que os educadores questionem
ATIVISTAS do movimento Ocupe Estelita realizam passeata até a formação crítica do discente através das suas relações com os
a Zona Sul. Jornal do Comércio, Recife, 05 maio 2015. Disponí- recursos midiáticos. Além de discutir como dá-se o processo de

108
compreensão desses conteúdos e sua relação nos processos de ANÁLISE SINTÁTICA-SEMÂNTICA DAS ATIVIDADES
aprendizagens. DE LEITURA E ESCRITA COM GÊNEROS TEXTUAIS DA
A análise será fundamentada por visões e pesquisas feitas por ESFERA MIDIÁTICA EM LIVROS DIDÁTICOS DE LP
Luiz Antonio Marcuschi (2008), para quem o gênero tem um pro-
pósito comunicativo e social; por Graça Caldas (2006) que ao ex-
planar sobre o texto da esfera midiática afirma que devemos tentar Arianne Carla de Morais Silva¹
compreender as diversas polifonias nos enunciados da narrativa Lucas Fernando Prazeres Amorim dos Santos²
jornalística para podermos ter uma leitura crítica mais analítica. Elizabeth Marcuschi³
A partir destas visões, este trabalho foi pensado e idealizado. In-
gedore Koch, Irandé Antunes, Zanchetta Junior também compõe
este estudo, sobretudo as noções por eles debatidas sobre gênero, ¹Estudante do Curso de Letras Português – CAC – UFPE;
leitura e ensino. E-mail: ariannecbarromeu@gmail.com,
O corpus desta pesquisa será composto por dois livros didáti- ²Estudante do Curso de Letras Português – CAC – UFPE;
cos de língua portuguesa aprovados pelo Programa Nacional do E-mail: lucas.amorimsantos@gmail.com,
Livro Didático (PNLD): “Português, nos dias de hoje”, de Faraco ³Docente do departamento de Letras – CAC – UFPE; E-mail:
e Moura, e “Gramática Reflexiva”, de Cereja e Magalhães, ambos bethmufpe@gmail.com
do 9ª ano fundamental. Através de um pressuposto metodológico
que envolvia a relevância do tema, a análise do corpus e o levanta-
mento minucioso dos dados qualitativos e documental das obras, Resumo - O livro didático é uma das ferramentas mais impor-
pode-se notar características distintas entre os LDs referente a tantes para o aprendizado do aluno em sala de aula, sendo bastan-
presença de gêneros textuais da esfera midiática numa perspectiva te utilizado em toda instituição de ensino, da educação básica ao
sintática e semântica em suas atividades. nono ano. Tendo em vista isso, este trabalho irá propor uma aná-
Cada obra teve suas peculiaridades e diferenças destacadas no lisedos aspectos semânticos e sintáticos sendo empregados nas
decorrer da análise, pois, enquanto uma trabalhava o tema da pes- atividades de leitura e produção escrita,que envolvem os gêneros
quisa de maneira satisfatória, a outra teve algumas deficiências em textuais da esfera midiática,de dois exemplares de LD. É impor-
trabalhá-lo. Com isso, ressaltamos a importância dessa pesquisa tante que os alunos tenham a oportunidade de desenvolver sua
para os alunos em graduação em Letras e para professores de Lín- capacidade de, através de temas relacionados à sintaxe e à semân-
gua Portuguesa ao trabalharem a mídia e a educação em sala de tica, compreender o gênero midiático, com seus diversos tipos de
aula, na estrutura sintática e semântica. texto, pois, atualmente, os alunos têm contato com diversos textos
desse gênero (como em jornais, revistas, propagandas, internet).
Palavras-chave: livros didáticos; gêneros textuais; textos midiáti- O método de análise foicomposto por quatro momentos sucessi-
cos vos: a) a idealização do tema; b) busca pelos antecessores teóricos;
c) montagem do corpus da pesquisa; d) e a quarta parte foi res-
ponsável pela análise qualitativa e documental dos dados obtidos
nos livros didáticos. O segundo momento teve como bases teóri-

109
cas trabalhos de Prof. Dr. Luiz Antônio Marcuschi (2008), Graça to metodológico que envolvia a relevância do tema, a análise do
Caldas (2006), Irandé Antunes (2003) e Ingedore Koch (2006). corpus e o levantamento minucioso dos dados qualitativos e do-
Palavras-chave: livros didáticos; gêneros textuais; textos midi- cumental das obras, pode-se notar características distintas entre
áticos os LDs referente a presença de gêneros textuais da esfera midiática
numa perspectiva sintática e semântica em suas atividades. Cada
INTRODUÇÃO obra teve suas peculiaridades e diferenças destacadas no decorrer
da análise, pois, enquanto uma trabalhava o tema da pesquisa de
Procurando analisar o funcionamento da perspectiva sintática maneira satisfatória, a outra teve algumas deficiências em traba-
e semântica presente nas atividades que trabalham com os gêne- lhá-lo. Com isso, ressaltamos a importância dessa pesquisa para
ros textuais da esfera midiática em livros didáticos de LP, este os alunos em graduação em Letras e para professores de Língua
trabalho de pesquisa se propõe a analisar dois LDs (de autores Portuguesa ao trabalharem a mídia e a educação em sala de aula,
e editoras diferentes, porém do mesmo ano curricular), e verifi- na estrutura sintática e semântica.
car se tais atividades contemplam todos os critérios estabelecidos
nesta pesquisa. Afinal, os livros didáticos têm um papel impor- METODOLOGIA
tante para auxiliar no desenvolvimento do pensamento crítico dos
alunos, além do material extra-escolar (como internet, jornais, Essa pesquisa fez parte da disciplina Análise e Produção de
revistas). Com isso, é imprescindível que os educadores questio- Material Didático de Língua Portuguesa, orientado pela Profª.
nem a formação crítica do discente através das suas relações com Drª. Beth Marcuschi. A proposta deste trabalho, como dito na
os recursos midiáticos. Além de discutir como se dá o processo introdução, é analisar os aspectos sintáticos e semânticos funcio-
de compreensão desses conteúdos e sua relação nos processos de nando nas atividades com textos da esfera midiática. Na primeira
aprendizagens. A análise será fundamentada por visões e pesqui- etapa foi pensando sobre o desenvolvimento do tema que seria
sas feitas por Luiz Antônio Marcuschi (2009), para quem o gênero trabalhado. Sobre isso, uma das principais preocupações seria se
tem um o tema seria relevante às práticas de ensino da Língua Portuguesa.
propósito comunicativo e social; por Graça Caldas (2006) que Logo após, na segunda etapa, houve a busca de trabalhos, artigos
ao explanar sobre o texto da esfera midiática afirma que devemos e livros, que estivessem correlacionados com o tema (fundamen-
tentar compreender as diversas polifonias nos enunciados da nar- tação teórica: livros, artigos e ensaios). A terceira etapa, que tinha
rativa jornalística para podermos ter uma leitura crítica mais ana- como proposta a montagem do corpus da pesquisa, foi dividida
lítica. Ingedore Koch, Irandé Antunes, Zanchetta Junior também em três momentos: no primeiro momento foi a escolha dos livros
compõe este estudo, sobretudo as noções por eles debatidas sobre de língua portuguesa que seriam estudadas: “Português, nos dias
gênero, leitura e ensino. A partir destas visões, este trabalho foi de hoje” e “Gramática Reflexiva”. No segundo momento, respon-
pensado e idealizado. O corpus desta pesquisa será composto por sável pela coleta de dados nos livros, foi elaborada a matriz com a
dois livros didáticos de língua portuguesa aprovados pelo Progra- pergunta macro “As atividades trabalham a compreensão sintáti-
ma Nacional do Livro Didático (PNLD): “Português, nos dias de co-semântica nas abordagens dos gêneros textuais da esfera midi-
hoje”, de Faraco e Moura, e “Gramática Reflexiva”, de Cereja e Ma- ática?” e os setes descritores que seriam responsáveis pelo corpo
galhães, ambos do 9ª ano fundamental. Através de um pressupos- da pesquisa e a satisfazer a pergunta macro:

110
Os LDs analisados demonstraram resultados distintos entre si,
pois o “Português nos dias de hoje”, em termos quantitativos, não
atendeu de forma satisfatória a pergunta macro e foi parcial nos
termos qualitativos. Entretanto, o segundo livro “Gramática Re-
flexiva” foi bastante satisfatório em atender à pergunta macro, seja
nos termos qualitativos ou quantitativos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A primeira obra analisada foi “Português nos dias de hoje” (Fa-


raco e Moura). As atividades de produção e compreensão presen-
Por fim, a quarta parte foi responsável pela análise qualitativa e tes no livro não contribuem efetivamente para o entendimento
documental dos dados obtidos nos livros didáticos. da abordagem sintático-semântica funcionando nos gêneros tex-
tuais da esfera midiática. Neste volume, a quantidade de textos
do gênero midiático não foi muito grande, contudo, houve casos
em que o livro contemplou o contexto de produção nas atividades
com gênero midiático (p. 35, at. 1 e 5; p. 122, at. 2.) e também os
objetivos de leitura (p. 198, at. 1). Nesse último exemplo, na se-
ção “Prática de linguagem”, a questão explica rapidamente sobre a
função social do gênero publicitário e depois pede para identificar
a inadequação de uso da regência presente no texto. No anún-
cio há três árbitros de futebol juntos e o seguinte texto: “amanhã
quando você for ao futebol, lembre-se que é o Dia das mães”. Esse
tipo de atividade direciona a leitura do aluno e pode facilitar a
resolução da questão de forma mais contextualizada. Outro exem-
plo (p. 122, at. 3 e 4) está na exploração, em textos midiáticos,
das figuras de linguagem na seção “Prática de Linguagem” em que
há uma questão onde os alunos formem grupos e pesquisem um
anúncio publicitário veiculado em algum meio de comunicação e
depois identificar a figura presente para explicar como elas estão
funcionando para a interpretação do texto. Uma das alternativas
das questões (at. 3 c) pede para os alunos recriarem o texto es-
colhido utilizando outras figuras de linguagem. Essas atividades
permitem que os alunos tenham contato e explorem os recursos
semânticos funcionando além de exemplos presentes no livro

111
(como revistas, jornais, internet, televisão etc). É importante res- guagem em seus exercícios, pois, traz questões que trabalham os
saltar que o volume atende de maneira parcial, pois, em algumas sentidos que uma palavra ou um enunciado poderiam significar
atividades, coloca os objetivos de leitura após o texto (p.161, at. 1) dentro dos textos midiáticos. No livro isso é exemplificado na se-
não deixando muito claro para o aluno o porquê daquela leitura. ção “Semântica e discurso” (p. 78, at. 1), onde a questão irá trazer
Também foram muito frequentes atividades em que o enunciado um anúncio com fotos do ex-jogador Pelé e um texto que servirá
era “Observe a imagem e responda as questões” ou “Leia o texto e de base para a questão: “Pelé também já deu muita cabeçada na
responda as questões”. Há uma seção formulada estrategicamente vida. Mas você só viu as que entraram no gol”, com isso, a questão
para abordar a gramática no texto: “Gramática textual”. Porém, pede para que o aluno responda os possíveis sentidos da palavra
em se tratando dos gêneros midiáticos, o livro não utilizou esta “cabeçada”. A atividade reconhece a importância que as figuras de
seção de maneira efetiva para esta análise, pois não foram encon- linguagem possuem para construir e auxiliar a compreensão dos
trados exemplos de abordagens sobre o estudo dos radicais para textos e à rica simbologia em torno dos significados das palavras.
trabalhar os sentidos do texto e nem o uso dos pronomes funcio- Mesmo que o livro não traga um capítulo específico para trabalhar
nando para atender os objetivos do gênero. Quando tratamos o assunto e o desenvolvimento satisfatório para sua compreensão.
livro de maneira geral, o volume contém muitas falhas quando Há exercícios que contemplam o contexto da produção e a ambi-
se trata de abordar a compreensão e produção das perspectivas guidade do conjunto dentro do texto midiático. Por exemplo, ao
sintática e semântica nos textos da esfera midiática, por isso, as trazer uma imagem de um pneu furado e o enunciado “você não
atividades não contribuem efetivamente para o desenvolvimento parece tão preocupado com os pneus” (p. 105, at. 2b), a atividade
desta temática no aluno. pede para o aluno levar em consideração o contexto e dizer qual é
A segunda obra analisada foi “Gramática reflexiva” (William o significado do termo da palavra “pneus”. Essa questão traz uma
Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães). As atividades de metalinguagem que permite maiores pontos de vista, seja semân-
compreensão e produção de texto do livro contribuem parcial- tico ou discursivo, dentro do contexto dialogado com os alunos.
mente para o entendimento das abordagens sintático e semântica O livro desenvolve, mesmo que parcialmente, a importância do
funcionando em gêneros textuais da esfera midiática. Os exercí- valor semântico dos radicais para trabalhar os sentidos do texto.
cios são contextualizados, geralmente, dentro do assunto do ca- Temos a primeira menção na seção “Para falar e escrever com ade-
pítulo proposto e utilizam-se de textos midiáticos (cartum, tiri- quação”, quando ao trazer uma tirinha do Laerte (p. 21, at. 2-3),
nhas, propagandas, etc.) para compor a realização das questões. os exercícios pedem para identificar os radicais e depois falarem
Tais textos selecionados não servem apenas como pretexto para os seus sentidos interpretados. Quanto à definir os objetivos para
a abordagem do determinado tema, mas como estímulo aos alu- a leitura proposta dos alunos, o livro é insuficiente, pois, grande
nos à trabalhar e questionar formas gramaticalmente tradicionais parte dos exercícios não apresentam aos alunos as circunstâncias
ensinadas. Essas atividades desenvolvem no aluno a capacidade que devem ser consideradas para a leitura. Nas poucas atividades
de compreender o contexto da produção e o funcionamento das presentes, o livro apresenta, de maneira insatisfatória, os objetivos
figuras de linguagem na compreensão dos sentidos do texto, mes- da leitura, pois, os alunos têm conhecimento dos objetivos apenas
mo que, por outro lado, não definam de maneira satisfatória os durantes as questões (p. 59, at. 1). Ao se referir ao uso dos adje-
objetivos de leitura, nem ampliem a textualidade do aluno. O li- tivos funcionando de forma interacional na língua, as atividades
vro contemplou de forma interessante a relação das figuras de lin- da obra não contemplam a temática de forma satisfatória. Além

112
de trazer essas atividades, em sua maioria, apenas em único capí- atividades suficientes com textos da esfera midiática, e, quando as
tulo do volume, ele trabalha apenas de forma argumentativa para inseria, não atendia de maneira adequada e satisfatória à pesqui-
a escolha do determinado adjetivo no texto midiático. Como, por sa. Através desta explanação, este trabalho se torna interessante
exemplo, ao perguntar a classe gramatical das palavras destacadas para alunos de graduação em Letras e para professores de Língua
dos exercícios - “Qual é a classe gramatical da palavra ‘branca’? Portuguesa, pois, abordou dois campos interligados: a mídia e a
Que palavra ela modifica?” (p. 69, at. 2-3). Os exercícios demons- educação. Dentro disso, estão as linguagens e a necessidade de
tram apenas limitar-se a identificar e classificar os adjetivos (p. um ensino que mantenha a preocupação de mostrá-las, aos alu-
76, at. 1) e não de interagir efetivamente na compreensão dos alu- nos, como funcionam no meio midiático: Como o campo sintáti-
nos. Mesmo com essas lacunas identificadas, é possível afirmar a co se faz presente nesta esfera? Como analisar os textos midiáti-
contribuição do livro para a compreensão sintático-semântica nas cos, através da estrutura sintática e semântica? Como a linguagem
abordagens dos gêneros textuais da esfera midiática, pois, além de funciona, semanticamente, para gerar sentido(s) no discurso?
trazer um incrível acervo de textos midiáticos, o livro cumpre sua Este trabalho tentou responder a essas questões (e outras) através
função de desenvolver em suas atividades o trabalho de compre- da análise das duas obras didáticas de LP.
ensão dos alunos. Através de exercícios que ampliam para além
da abordagem tradicional do conteúdo gramatical, explorando-o
de maneira satisfatória pela perspectiva semântica. Ao fim des- REFERÊNCIAS
ta análise, podemos concluir as diferenças apresentadas entre as
duas obras ao trabalharem com atividades que correspondem à ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. Pa-
pergunta macro. Os autores Faraco e Moura, no livro “Português rábola Ed., 2003.
nos dias de hoje”, trazem de forma parcial o uso dos textos midi- BARBOSA, Raquel Lazzari Leite; DE FÁTIMA BOLDARINE, Ro-
áticos em suas atividades e o seu aspecto quantitativo é reduzido saria. Livros didáticos de Língua Portuguesa e representações de
em comparação à obra “Gramática Reflexiva”. Os autores dessa leitura a partir de suportes midiáticos. RESGATE-Revista Inter-
última obra, Cereja e Magalhães, cumprem satisfatoriamente os disciplinar de Cultura, v. 19, n. 22, p. 44-51, 2012.
aspectos quantitativos e qualitativos. CALDAS, Graça. Mídia, escola e leitura crítica do mundo. Educa-
ção & Sociedade, v. 27, n. 94, p. 117-130, 2006.
CONSIDERAÇÕES FINAIS JUNIOR–UNESP-ASSIS, Juvenal Zanchetta.O TEXTO MIDIÁ-
TICO NOS LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS.
Seguindo a temática de analisar as atividades através da compre- KOCH, IngedoreGrunfeld Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e
ensão sintático-semântica dos gêneros textuais da esfera midiáti- compreender: os sentidos do texto. Contexto, 2006.
ca, as obras didáticas aqui trabalhadas apresentaram resultados MARCUSCHI, Luiz Antonio. Produção textual, análise de gêne-
diferentes. Com isso, o livro “Gramática Reflexiva” atendeu mais ros e compreensão. Parábola Ed., 2009.
satisfatoriamente a nossa pesquisa do que a obra “Português nos
dias de hoje”. O primeiro tinha mais atividades com textos da
esfera midiática e elas satisfizeram a maioria dos descritores da
análise. Por outro lado, “Português nos dias de hoje” não trouxe

113
RESUMO em uso atualmente, examinamos 7 gramáticas. Observamos, ain-
da, que esse processo de redução é tão frequente na fala das pes-
O presente trabalho é o resultado de uma pesquisa de peque- soas que, para todas as imagens apresentadas na pesquisa, exis-
no porte que objetivou verificar a recorrência da braquissemia na tiram respostas com palavras braquissêmicas, mesmo estas não
fala de brasileiros pernambucanos. A pesquisa foi realizada como constituindo, em alguns casos, uma opção tão recorrente a ponto
trabalho de conclusão da disciplina morfossintaxe I no curso de de contrastar com a forma original. Ao relacionar as variáveis -
bacharelado em letras, ministrada pela professora Gláucia Nasci- faixa etária, gênero e localidade - de maneira isolada, os gráficos
mento no semestre 2015.2. A hipótese que norteou a investigação indicaram o predomínio do uso de nomeação por braquissemia
é: há uma tendência, no português brasileiro (PB), para o uso de por parte de pessoas da faixa de idade de menores de 18 anos,
formas reduzidas de palavras (braquissemia) no cotidiano – tema do gênero feminino e moradores do município de Camaragibe. O
pouco abordado pelas gramáticas normativas em geral. Postula- resultado global indica que deve haver uma tendência para o uso
mos que se uma mesma entidade tem mais de uma denominação, de redução de palavras na fala no brasileiro, bem como mostra
sendo uma dessas, uma forma reduzida, o falante tende a preferir que há uma necessidade urgente de atualização de informações
a forma reduzida. A fim de verificar a validade de tal hipótese, sobre tal fenômeno em gramáticas escolares, que usam, em geral,
aplicamos uma enquete a cem voluntários, entre homens e mulhe- exemplos de formas cristalizadas, em que já se perdeu a memória
res (não identificados), residentes de cinco municípios pernam- da forma não reduzida de palavras como: ‘ônibus’(redução de au-
bucanos. A enquete consistiu de perguntas que objetivavam levar to-ônibus). Consideramos que o resultado atesta a relevância do
os voluntários a informar os nomes de quinze entidades apresen- tema para a atualização de gramáticas escolares, pois defendemos
tadas a eles em imagens impressas. As entidades escolhidas fazem que o ensino deve contemplar fenômenos linguísticos em corres-
parte do cotidiano de brasileiros no momento atual e têm, no PB, pondência com o uso.
mais de uma denominação, sendo uma delas uma forma reduzi- Palavras-chave: morfologia; formação de palavras; braquissemia
da. Procedemos a uma investigação quantitativa, considerando o
fenômeno em foco sincronicamente. Utilizamos como aporte te-
órico, Cunha; Cintra (2013), Monteiro (2002), Martelotta (2011)
e Antunes (2014). A análise do corpus se baseou em categorias de ASPECTOS DO PROCESSO DE BRAQUISSEMIA NO
Cunha; Cintra (2013) para o estudo deste fenômeno, a saber: a) PORTUGUÊS BRASILEIRO FALADO EM REGIÕES DE
formas plenas (reduzidas); b) formas concorrentes (formas não PERNAMBUCO
reduzidas) e c) formas cristalizadas (reduzidas sem concorrente).
O resultado revelou que, das quinze imagens apresentadas na en-
quete, sete foram nomeadas, em sua maioria, com formas plenas Ana Lídia Rocha de Lima Souza1
(reduzidas); cinco foram nomeadas com formas concorrentes Isabela Lapa Silva2
(formas não reduzidas); uma foi nomeada apenas como uma for- Talita Albuquerque Bruto da Costa3
ma já cristalizada; e quatro não se encaixaram em nenhuma das Talita Varela da Silva4
três categorias. A fim de verificar se a abordagem de tal fenômeno Viviane Rufino da Silva5
se dá em gramáticas escolares, considerando palavras que estão Gláucia Renata Pereira do Nascimento6

114
1. Estudante do Curso de Letras – CAC – UFPE; E-mail: anali- te, sete obtiveram em maioria de respostas, formas plenas; cinco
diarocha@outlook.com, apresentaram respostas com formas concorrentes; uma mostrou a
2. Estudante do Curso de Letras – CAC – UFPE; predominância apenas de uma forma cristalizada; e duas não se
E-mail: isa_bela.lapa@hotmail.com; encaixaram em nenhuma das três categorias. Observamos, ainda,
3. Estudante do Curso de Letras – CAC – UFPE; que esse processo de redução é tão frequente na fala das pessoas
E-mail: talitabruto@gmail.com; que, para todas as imagens apresentadas na pesquisa, existiram
4. Estudante do Curso de Letras – CAC – UFPE; respostas com palavras braquissêmicas, mesmo estas não cons-
E-mail: talita_.varela@hotmail.com; tituindo em alguns casos uma opção tão recorrente a ponto de
5. Estudante do Curso de Letras – CAC – UFPE; contrastar com a forma original. Ao relacionar as variáveis – faixa
E-mail: viviane.ruf@hotmail.com; etária, gênero e localidade – de maneira isolada, os gráficos indi-
6. Docente/pesquisador do Departamento de Letras – CAC – caram o destaque das reduções no percentual da faixa de idade de
UFPE/CNPq E-mail: profa_glaucia@yahoo.com.br. 18 anos, o percentual da localidade de Camaragibe e o percentual
do gênero feminino. Diante disso tudo, os resultados podem in-
dicar a tendência do uso desse fenômeno pelos falantes do por-
tuguês brasileiro, bem como mostraram, quando da comparação
Resumo: O presente trabalho tem como foco analisar a recorrên- das análises com os exemplos de palavras reduzidas apresentados
cia do processo de braquissemia na fala de brasileiros pernam- em gramáticas o modo como são abordadas definições por parte
bucanos. Nossa hipótese é que há uma tendência, no português dos teóricos, que chegam a ser obsoletas e podem ser ineficientes
brasileiro (PB), do uso recorrente da redução de palavras no coti- para o processo de ensino e de aprendizagem. Ou seja, os resulta-
diano – tema pouco abordado pelas gramáticas em geral. Postula- dos atestaram a relevância desse tema para as gramáticas, pois de-
mos que se uma mesma entidade tem mais de uma denominação, fendemos que o ensino deve contemplar fenômenos linguísticos
sendo uma dessas, uma forma reduzida, o falante tende a preferir em correspondência com o uso.
a forma reduzida. Assim, a fim de verificar a validade de tal hipó-
tese, aplicamos uma enquete, que foi respondida por cem volun- Palavras-chave: braquissemia; oralidade; produtividade; processo;
tários, dentre homens e mulheres, residentes de cinco localidades
do estado de Pernambuco. A enquete consistiu de perguntas que INTRODUÇÃO
objetivavam levar os voluntários a informar os nomes de quin-
ze entidades que foram a eles apresentadas por meio de imagens Os falantes de quaisquer línguas, ao estabelecerem relações de
impressas. As entidades escolhidas fazem parte do cotidiano de comunicação, embasadas em uma troca recíproca por meio dos
brasileiros no momento atual e têm, no PB, mais de uma denomi- seus atos de fala, criam usos específicos das línguas. Certos usos
nação, sendo uma delas uma forma reduzida. Procedemos a uma específicos podem, ao longo do tempo, se transformar, de modo
investigação quantitativa, considerando o fenômeno da mudança que palavras passam, por exemplo, tanto a sofrer modificações
linguística sincronicamente. Para tanto, utilizamos como aporte no que diz respeito a sua estrutura mórfica quanto ocorrerem si-
teórico, Monteiro (2002), Martelotta (2011) e Antunes (2014). multaneamente com outras palavras que concorram consigo por
A análise do corpus revelou que, das quinze imagens da enque- terem um mesmo significado, visto que “[...] toda língua é uma

115
entidade eminentemente social, partilhada, compartilhada, de- motocicleta (moto), oftalmologista (oftalmo), refrigerante (re-
pendente de todo o traçado que fez a história passada de um povo fri), professor (profe, fessor), facebook (face), whatsapp (whats,
e, ao mesmo tempo, sinalizante dos rumos que acontecem no pre- zap, zapzap), auto-ônibus (ônibus), notebook (note), quilograma
sente ou que podem acontecer no futuro, como se fosse uma linha (quilo), biblioteca (biblio, bib) e internet (net).No total, foram en-
sem rupturas.” (ANTUNES, 2014, p. 24). É partindo dessa ideia de trevistadas 100 (cem) pessoas de diferentes localidades da região
variação e mudança desse uso que observamos ser muito comum metropolitana do Recife, sendo 20 (vinte) pessoas do município
o fato de os falantes tenderem a ser econômicos no momento da de Jaboatão dos Guararapes; 20 (vinte) de Camaragibe; 18 (dezoi-
fala espontânea, por meio da redução de palavras, por exemplo, to) de Vitória de Santo Antão e 29 (vinte e nove) do Recife; além
uma vez que, de acordo com Martelotta (2011), as mudanças das de 13 (treze) pessoas de Caruaru. Após o período das entrevistas,
línguas estão relacionadas às estratégias comunicativas utilizadas foram feitos a compilação, a tabulação e o tratamento estatístico
pelos falantes, trabalhando ao lado do caráter dinâmico inerente dos dados coletados. Nos gráficos, o foco foi o total de entrevis-
à linguagem. Nesse sentido, procuramos observar se em quinze tados relacionado com as percentagens de cada uma das variáveis
palavras, muito usadas atualmente, efetua-se o processo morfoló- nas quinze perguntas.
gico denominado de ‘braquissemia’ que, segundo Monteiro (2002,
p.192), “é o emprego de parte de um vocábulo pelo vocábulo in- RESULTADOS
teiro.”. Ao utilizarmos constantemente uma forma reduzida, pode-
mos consolidá-la na língua, o que ocasiona a tendência à mudança O resultado da análise das respostas à enquete – nesse caso,
na forma da palavra. Com base nisso, consideramos a hipótese de sem considerar os gráficos das variáveis idade (de menores de 18
que tal fenômeno se sucede de forma altamente produtiva na lín- anos, de 18 a 24 anos, 25 a 31 anos, 32 a 38 anos, 39 a 45 anos, mais
gua, sobretudo na modalidade falada. Procuramos, ainda, atestar de 45 anos), gênero e localidade – aparece nos gráficos a seguir.
a relevância desse processo e, portanto, a necessidade de tratá-lo,
no âmbito do ensino básico, de forma mais significativa, já que
exemplares por nós consultados de gramática tradicional abor-
dam esse assunto de modo inexpressivo.

MATERIAIS E MÉTODOS

Para a realização da pesquisa, foi elaborada uma enquete com o


objetivo de coletar dados para posterior análise e comprovação ou
não da hipótese. A enquete foi feita de forma direta aos voluntá-
rios e as respostas, anotadas de imediato. Os voluntários entrevis-
tados foram orientados a dizer como se referiam espontaneamen-
te às entidades representadas em 15 (quinze) imagens diferentes
mostradas pelo entrevistador, que foram: cinematógrafo (cinema,
cine), pneumático (pneu), lipoaspiração (lipo), fotografia (foto),

116
A partir da análise desses gráficos e das variáveis, percebemos
que as formas utilizadas pelos voluntários da pesquisa enqua-
dram-se em três categorias: 1) Categoria A – Formas plenas. Essas
formas são as reduzidas (CUNHA; CINTRA, 2013), e comprovam
o fenômeno da braquissemia, uma vez que também aparecem na
maioria dos discursos. 2) Categoria B – Formas concorrentes. São
as formas que contrastam, quanto à produtividade, com as formas
plenas, quando remetem a uma determinada entidade do mundo
denotando sua tendência à redução. 3) Categoria C – Formas cris-
talizadas. Por sua vez, essas formas são as consolidadas na língua,
devido ao fato ou de os falantes não apresentarem uma memória
linguística que remeta a um uso da forma original, ou por tais

117
falantes não se utilizarem de formas concorrentes na nomeação DISCUSSÃO
da mesma entidade. Para a inclusão das palavras resultantes das
respostas da enquete nas categorias acima, foram estabelecidos Constatamos que o processo de redução (braquissemia) ocor-
por nós parâmetros mínimos, tanto para as formas plenas quanto re principalmente na omissão do segmento final do radical das
para as formas cristalizadas. Para as formas plenas o percentual palavras, tendo apenas um caso em que o segmento inicial do
foi de 90%, enquanto para as formas concorrentes, foi de 20%. Na radical da palavra foi apagado. Percebemos, também, que além
categoria A, estão: ‘pneu’, ‘foto’, ‘moto’, ‘quilo’, ‘cinema’. Na categoria da redução de parte da palavra, tanto do segmento final (maioria
B, estão: ‘oftalmo’, ‘whats’, ‘note’, ‘refri’, ‘net’. Na categoria C, está: dos casos) como no segmento inicial (‘fessor’), há variações lexi-
‘biblioteca’. 4 (quatro) das 15 (quinze) formas, ‘professor’, ‘ônibus’, cais em seis categorias: ‘pneu’ e ‘roda’; ‘foto’, ‘fotografia’ e ‘retrato’;
‘lipoaspiração’ e ‘facebook’ não se encaixaram dentre as três ca- ‘lipo’, ‘lipoaspiração’ e ‘cirurgia’; ‘oftalmo’, ‘oftalmologista’ e ‘ocu-
tegorias já mencionadas, pois não atingiram nenhum percentu- lista’; ‘notebook’, ‘note’ e ‘computador’; ‘refri’, ‘refrigerante’ e ‘gua-
al mínimo para qualquer qualificação, tampouco apresentaram raná’. Constatamos, ainda: 1) nos casos das opções ‘zap’ e ‘zapzap’,
formas que concorrentes. No entanto, vale destacar que no caso a redução de ‘whatsapp’, no primeiro caso, e uma derivação dessa
das respostas ‘ônibus’, ‘lipo’ e ‘face’, comprova-se o fenômeno da redução no segundo caso, houve a mudança do fonema /S/ pelo
braquissemia, com os percentuais de ocorrência respectivamente fonema /Z/. E ainda, na resposta ‘wa’, há um caso de abreviação
de 75%, 69% e 82%. No que diz respeito à existência de um cru- da palavra original, ou ainda, um processo acrossômico, segundo
zamento de categorias da tabela, ‘pneu’, ‘foto’, ‘moto’, ‘quilo’, ‘cine- Monteiro (2002). 2) Nas respostas ‘teacher’, ‘bus’ e ‘internet’, ob-
ma’, essas foram as formas que se apresentaram tanto como plenas serva-se casos de estrangeirismos, sendo que, no último caso, a
em relação as suas formas originárias quanto como cristalizadas palavra já se encontra incorporada no português brasileiro. 3) O
na língua por terem alta produtividade/incidência, característica caso de ‘pc’ constitui um estrangeirismo – ‘personal computer’ – e
esta indicada pela ocorrência do percentual mínimo estabeleci- uma abreviação desse, outra ocorrência de acrossomia. 4) O caso
do. Ademais, atestamos que na faixa de idade dos entrevistados de ‘busão’ é uma palavra híbrida, formada por derivação, uma vez
menores de 18 anos houve uma maior predominância das formas que se adiciona à palavra inglesa ‘bus’ com o sufixo ‘-ão’ do por-
reduzidas em relação aos percentuais dos outros grupos etários, tuguês brasileiro. 5) E por fim, o caso de ‘busú’ é uma palavra
com um percentual de 66%. Esse percentual relativo de palavras híbrida também, pois formada pela palavra do inglês ‘bus’ com
reduzidas em relação ao total de respostas, considerando cada o acréscimo do segmento ‘u’ do português brasileiro. Tudo isto
faixa etária, sempre maior que o percentual de palavras não re- posto, verificamos que a braquissemia de formação de palavras
duzidas, com exceção dos voluntários da faixa etária de 39 a 45 no português que se dá por meio de um conjunto de modificações
anos. Já comparando o percentual de palavras reduzidas sobre o que os falantes impõem diacronicamente ao sistema, de modo
total de respostas de cada localidade, encontramos o município que passa a ser um fenômeno que emprega formas distintas a uma
de Camaragibe sobressaindo-se, com uma percentagem de 65% mesma entidade com mesmo significado: as formas antigas, com
de entrevistados que optam pelas formas reduzidas. Percebemos tendência à redução e as novas, já reduzidas e consolidadas.
também que o percentual de redução na fala de mulheres, 59%, foi
maior que o percentual de redução da fala dos homens, com 56%.

118
CONCLUSÕES REFERÊNCIAS

Na fala espontânea, parece que há mesmo uma tendência na- ABAURRE, Maria Luiza M.; ABAURRE, Maria Bernadete M.;
tural à redução de palavras. Por estar tão presente no cotidiano PONTARA, Marcela. Gramática: texto: análise e construção de
dos falantes, as gramáticas deveriam abordar a braquissemia de sentido. Vol. Único. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2010.
forma mais completa, apresentando exemplos atualizados e, de ANTUNES, Irandé. Linguagem como interação social: língua,
fato, usados na língua portuguesa atualmente. Consultamos 7 gramática e ensino. In: ____________. Gramática contextualiza-
(sete) gramáticas, que estão nas referências deste trabalho, e que da: limpando “o pó das ideias simples”. 1. ed. São Paulo: Parábola
trazem como exemplos para o estudo desse fenômeno palavras Editorial, 2014, p. 15-29.
como ‘cinematógrafo’ (para cinema), ‘pneumático’ (para pneu), AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da Língua Portu-
‘metrô’ (para metropolitano) e ‘ônibus’ (Para auto-ônibus). Essas guesa. São Paulo: Publifolha, 2014.
palavras quase que praticamente desapareceram da fala dos brasi- BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed.
leiros em geral. Conjeturamos que a maioria dos falantes não tem Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
mais memória linguística para recuperar esses fatos e usos da lín- CEGALLA, Domingo Paschoal. Novíssima Gramática da Língua
gua. Consideramos relevante, portanto, que os gramáticos tragam Portuguesa. 48. ed. São Paulo: Companhia Editorial Nacional,
exemplos mais contemporâneos, como é o caso de palavras advin- 2008.
das do mundo virtual, ligados às mídias sociais, como ‘whatsapp’ e CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES Tereza Cochar. Gra-
‘facebook’, que já fazem parte do vocabulário dos brasileiros. ‘face’ mática Reflexiva. 4.ed. São Paulo: Atual, 2013.
e ‘whats’, formas reduzidas, podem ser observadas na fala espon- CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português
tânea. Por isso, nas gramáticas – sejam elas acadêmicas ou esco- contemporâneo. 6. Ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2013.
lares – palavras desse tipo já poderiam ser usadas como forma de MARTELOTTA, Mário Eduardo. Mudança linguística: uma abor-
explicar a braquissemia, o que, a nosso ver, facilitaria a compreen- dagem baseada no uso. São Paulo: Cortez, 2011.
são do fenômeno por parte dos estudantes. Compreende-se, logo, MESQUITA, Roberto Melo. Gramática da Língua Portuguesa. 10.
que as formas plenas – aquelas em que a redução já é consolida- ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
da na fala, como é o caso de ‘pneu’, ‘foto’, ‘quilo’, ‘moto’, ‘cinema’ e MONTEIRO, José Lemos. Morfologia portuguesa. 4. ed. Campi-
‘lipo’– não devem ser tratadas, no ensino, com tanta ênfase, visto nas: Pontes, 2002.
que são extremamente espontâneas e recorrentes na oralidade,
fato que pode não ajudar muito à compreensão do fenômeno. No
que diz respeito às formas concorrentes, estas também poderiam RESUMO
ser incorporadas às gramáticas, já que, no futuro, elas podem vir
a ser consolidadas, como ‘refri’ (que já pode ser encontrado em Sabe-se que, na história da disciplina Português, as discussões
Cereja (2013) e Cegalla (2008)), ‘whats’, ‘note’ e ‘net’. Ressaltamos sobre variação linguística tiveram início a partir dos anos 1960,
que nas nossas atividades comunicativas, vemos que a linguagem com a entrada de ciências como a Sociolinguística nos currículos
é uma ação vista a partir da interação, mostrando à gramática tra- de formação de professores. As escolas, por volta dos anos 1980,
dicional que a língua é um fenômeno que vive sempre evolução. abriram as portas para essa “novidade” e a disciplina Português,

119
por sua vez, passou por uma série de modificações, dentre as ²Docente/pesquisador do Departamento de Letras – CAC –
quais se pode mencionar uma maior atenção à heterogeneidade UFPE;
dos alunos e, consequentemente, uma preocupação com as dife- E-mail: jalaraujolima@uol.com.br
rentes variedades linguísticas faladas por eles (SOARES, 2012).
Os livros didáticos de Português (LDP) produzidos nas últimas
décadas têm aberto espaço para discussões sobre variação linguís- RESUMO
tica, e não podia ser diferente, tendo em vista que, em se tratan-
do dos LDP, “considerar a língua padrão no contexto da variação Os livros didáticos de Português (LDP) produzidos nas últimas
linguística” é uma das principais exigências do Programa Nacio- décadas têm aberto espaço para discussões sobre variação linguís-
nal do Livro Didático (PNLD). Partindo dessa importância dada tica, e não podia ser diferente, tendo em vista que, em se tratan-
à variação linguística por parte do PNLD, este trabalho pretende do dos LDP, “considerar a língua padrão no contexto da variação
verificar, em três LDP dos anos 1º, 2º e 3º do Ensino Médio apro- linguística” é uma das principais exigências do Programa Nacio-
vados pelo processo avaliativo do PNLD 2015, se há o trabalho nal do Livro Didático (PNLD). Partindo dessa importância dada
com as variantes faladas e escritas no Nordeste e como está sendo à variação linguística por parte do PNLD, este trabalho pretende
a apresentação e o trabalho com elas, a fim de, semelhantemente verificar, em três LDP dos anos 1º, 2º e 3º do Ensino Médio apro-
a COELHO (2007), analisaras concepções de língua e gramática vados pelo processo avaliativo do PNLD 2015, se há o trabalho
adotadas pelos LDP; verificar se, ao se falar da variante nordesti- com as variantes faladas e escritas no Nordeste e como está sendo
na, são considerados, além dos lexicais e prosódicos, os fenôme- a apresentação e o trabalho com elas, a fim de, semelhantemente
nos gramaticais; e averiguar se persiste a ideia de que a variedade a COELHO (2007), analisar as concepções de língua e gramática
de prestígio é a que melhor se adequa à comunicação, tudo isso adotadas pelos LDP; verificar se, ao se falar da variante nordesti-
em consonância com as discussões de BAGNO (2007), POSSEN- na, são considerados, além dos lexicais e prosódicos, os fenôme-
TI (1996) e TRAGAVLIA (2000) sobre variação linguística. nos gramaticais; e averiguar se persiste a ideia de que a variedade
Palavras-chave: língua portuguesa; livro didático; variação lin- de prestígio é a que melhor se adequa à comunicação, tudo isso
guística; variante nordestina em consonância com as discussões de BAGNO (2007), POSSEN-
TI (1996) e TRAGAVLIA (2000) sobre os assuntos.

A VARIANTE NORDESTINA NOS LIVROS DIDÁTICOS Palavras-chave: língua portuguesa; livro didático; variação lin-
DE LÍNGUA PORTUGUESA DO ENSINO MÉDIO guística; variante nordestina

Carlos Henrique da Silva Santos¹ INTRODUÇÃO


Ana Maria Costa de Araújo Lima²
De acordo com Bagno (2007, p. 93), a maioria dos autores de
¹Estudante do Curso de Letras – Licenciatura em Língua Portu- livros didáticos de Português – doravante LDP – tem na gramática
guesa – CAC – UFPE; tradicional a fonte de concepções e teorias sobre a língua, e ela,
E-mail: henrickcarlos.ch@gmail.com em sua vertente normativo-prescritiva, tem prevalecido nos com-

120
pêndios gramaticais mais recentes. Para Possenti (1996, p. 62), a que, para a sua dissertação de Mestrado, analisou LDP do Ensino
vertente normativo-prescritiva da gramática, com a qual o profes- Médio visando investigar como estava sendo o tratamento da va-
sor de português dos graus primeiro e segundo está bastante fa- riação linguística neles. Semelhantemente ao trabalho dela, mas
miliarizado devido a sua recorrência nos LDP, pode ser entendida selecionando apenas uma coleção de LDP do Ensino Médio (anos
como um “conjunto de regras que devem ser seguidas”. Os autores 1º, 2º e 3º) para analisar especificamente o tratamento da variante
que produzem LDP seguindo essa linha de pensamento geralmen- nordestina, este trabalho tem como objetivo geral a análise das
te têm o objetivo de fazer com que seus leitores aprendam a falar e concepções de língua e gramática adotadas pelos LDP bem como
escrever corretamente, apresentando-lhes “um conjunto de regras observar se persiste a supervalorização da variedade de prestígio
[...] que, se dominadas, poderão produzir como efeito o emprego em detrimento das demais variedades, para em seguida, nos obje-
da variedade padrão (escrita e/ou oral)” que, nas mãos de alguns tivos específicos, verificar se há o trabalho com a variante nordes-
autores de LDP, pode facilmente se mostrar superior às variedades tina e, se sim, tentar averiguar se esse tratamento não se restringe
não padrão, muitas vezes consideradas inferiores ou até erradas apenas a fenômenos de ordem lexical e prosódica, mas também
pela gramática. De acordo com os Parâmetros Curriculares Na- gramatical.
cionais (1998, p. 31), um bom ensino da escrita e da língua padrão
precisa estar isento de mitos que dizem, por exemplo, que “existe METODOLOGIA
uma forma correta de falar”, ou que “a fala correta é a que se apro-
xima da língua escrita”, ou até mesmo que “a fala de uma região é A escolha da coleção de LDP do Ensino Médio a ser analisada
melhor do que a de outras”, pois, como se deve perceber, são esses não se deu de forma aleatória, mas sim com base no Guia de Livros
mitos que fomentam o que se conhece por preconceito linguístico, Didáticos elaborado pelo PNLD 2015. Nele, pareceristas especia-
num país em que, de acordo com um documento importante para listas na área de língua portuguesa analisaram e resenharam dez
o ensino-aprendizagem como os PCN, a língua nacional é “uma coleções, montando, também, um quadro esquemático em que,
unidade que se constitui de muitas variedades” (1998, p. 29). Nes- ao lado das categorias destaque, programação de ensino e manual
se contexto, a indústria do livro didático, nas últimas décadas, tem do professor, são mencionados os pontos fracos e fortes de cada
produzido livros de português em que, felizmente, a discussão so- coleção. Como este trabalho se insere no campo das pesquisas so-
bre variação linguística tem ganhado espaço, o que não podia dei- bre variação linguística, a escolha da coleção a ser analisada levou
xar de acontecer, haja vista o processo avaliativo do Programa Na- em consideração os quadros esquemáticos que elencaram como
cional do Livro Didático (PNLD), que, apesar de muito criticado, ponto forte dos LDP a abordagem de conhecimentos linguísticos,
exige dos LDP um posicionamento que considere a língua padrão o que não foi tão difícil, já que apenas três de dez coleções tinham
no contexto da variação linguística, contribuindo, assim, para essa abordagem como ponto forte. Feita essa seleção, foi escolhi-
uma “revisão das formas tradicionais de elaboração desse tipo de da para análise a coleção Língua Portuguesa, da Editora Positivo e
livro” e dando “um passo adiante no combate ao preconceito lin- autoria de Roberta Hernandes e Vima Lia Martin, coleção que, de
guístico” (BAGNO, 2007, p. 95). Apesar desse notável progresso acordo com o PNLD (2015, p. 37), prioriza os estudos literários,
na produção de LDP, sempre que novos livros forem produzidos, o que é evidenciado nos sumários dos três livros. Portanto, esta
avaliados pelo PNLD e elencados como aptos a serem usados nas análise se ateve apenas aos capítulos que tratam de conteúdos da
escolas, fazem-se necessárias análises como a de Coelho (2007), gramática da língua portuguesa e variação linguística, resultando

121
num conjunto de dez capítulos analisados – dois no LDP do 1º evidenciando, assim, uma concepção de língua como instrumen-
ano, quatro no do 2º e quatro no do 3º – buscando-se, evidente- to de interação, já que os textos e exercícios dos LDP direcionam
mente, quaisquer referências ao termo “variante nordestina”. o estudante do Ensino Médio a saber se adequar linguisticamente
à situações de comunicação específicas, para que a atuação sobre
RESULTADOS E DISCUSSÃO o interlocutor (ouvinte/leitor) seja feita com sucesso. Esse posicio-
namento nos diz que não há, por parte da coleção analisada, uma
A partir da análise dos capítulos que tratam de conteúdos gra- supervalorização da variedade de prestigio em relação às demais
maticais e da variação linguística nos LDP dos anos 1º, 2º e 3º do variedades, e que a concepção de gramática adotada pelos LDP
Ensino Médio, descobrimos que não existe, em nenhum dos capí- não é a normativa, mas sim a dos usos, já que nos exercícios dos
tulos analisados, o trabalho com as variantes faladas e escritas no livros, por exemplo, o texto é, na maioria das vezes, a unidade de
Nordeste, o que evidentemente nos impediu de colocar em prática estudo e de ensino da língua e o estímulo que se faz ao aluno é o
as ações dos objetivos específicos, nos deixando apenas com as de que ele desenvolva os princípios de uso dos recursos das dife-
dos objetivos gerais: analisar as concepções de língua e gramáti- rentes variedades da língua, alcançando, então, a internalização de
ca adotadas pelos LDP e observar se persiste a supervalorização unidades linguísticas, construções e regras de uso da língua para
da variedade de prestígio em detrimento das demais variedades. usar a seu dispor em situações comunicativas específicas (TRA-
Nos dois capítulos analisados no LDP do 1º ano (7º, “Dimensão VAGLIA, 2000, p. 111).
sonora da língua e convenções da escrita” e 11º, “Variação linguís-
tica”), o mais próximo que se chegou de um possível trabalho com CONSIDERAÇÕES FINAIS
a variante nordestina foi quando, no 7º capitulo, foram menciona-
dos os fatores regionais como contribuintes para as variações no A análise dos capítulos dos LDP nos fez chegar às seguintes
modo de se pronunciar os fonemas (alofones) e quando, no 11º, se conclusões: (I) na coleção analisada (Língua Portuguesa, Editora
falou em variações regionais, em interações sociais influenciadas Positivo), a concepção de gramática como um conjunto de regras
por fatores regionais e em preconceito linguístico, quando foi tra- que devem ser seguidas é praticamente nula. Isso porque em al-
zida à tona uma charge em que o nordestino é representado na fi- guns exercícios ainda se pode ver resquícios dessa concepção, o
gura de um migrante caipira. O livro do 2º ano, ao tratar dos usos que não acontece nos textos teóricos, em que algumas das noções
do verbo (capítulo 11º) e dos pronomes e colocação pronominal da gramática dos usos estão sempre sendo retomadas; (II) a va-
(capítulo 15º), menciona, neste capítulo, as variedades “ocê” e “cê” riante nordestina, especificamente, não é necessariamente objeto
para o pronome de tratamento “você”, e naquele o termo “portu- de estudo, mas a variação linguística, de uma forma mais geral,
guês brasileiro” e o fato de que as conjugações verbais também sim, pelo menos no livro do 1º ano, que reserva um capítulo intei-
estão sujeitas a sofrer variação. E os capítulos analisados no livro ro para a discussão sobre o assunto, o que nos induz a dizer que, de
do 3º ano retomam algumas vezes a ideia de um português brasi- acordo com a coleção, variação linguística é um conteúdo pontual
leiro, principalmente as peculiaridades, para, na maioria das ve- a ser discutido com riqueza de detalhes apenas no ano primeiro
zes, se fazer um contraponto com o que é dito pela norma padrão do Ensino Médio e por um tempo especifico, mas não algo que, se
e alertar os alunos de que, em algumas situações específicas, faz-se possível, deve estar presente em todas as aulas de Português; (III)
necessário um pouco mais de atenção ao que se fala ou se escreve, apesar de não muito desenvolvida, a coleção, influenciada eviden-

122
temente por linguistas como Marcos Bagno, abre espaço para a vem sendo utilizado. Essas acepções perpassam uma grande va-
discussão sobre algumas particularidades do português brasileiro riedade de sentidos, desde um sentido mais geral até um senti-
e para o preconceito linguístico, mesmo que apenas para alertar do bastante específico. De acordo com Neves (apud Lima, 2012),
os estudantes de que as variações carregam consigo avaliações so- por exemplo, “a concepção mais básica de gramática é a de um
ciais, podendo algumas ter mais prestigio que outras. Estas con- sistema de princípios que organizam os enunciados, pelo qual os
clusões indicam que o PNLD tem cumprido com o seu papel de falantes nativos de uma dada língua se comunicam nas diversas
elencar bons LDP para serem usados nas escolas, mas ao mesmo situações de uso”. Mas ‘gramática’ também pode ser entendida
tempo mostram que análises de pontos específicos, como a con- em uma perspectiva mais restrita, como uma disciplina escolar
cepção de língua, de gramática, variação linguística etc. devem ou como um manual. Além disso, segundo vários autores, a no-
estar sempre sendo feitas, a fim de se verificar se os LDP estão ção de gramática pode ser discutida a partir de subtipos, sendo os
dialogando com o progresso das ciências linguísticas. mais conhecidos a ‘gramática normativa’, a ‘gramática descritiva’ e
a ‘gramática internalizada’. Sob o ponto de vista teórico de Franchi
(2006), a primeira diz respeito a um conjunto de regras para falar
REFERÊNCIAS e escrever bem, conforme o padrão defendido por especialistas;
a segunda trata da descrição do funcionamento geral da língua,
BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 50. ed. observando as funções, categorias, estruturas e a gramaticalidade
São Paulo: Loyola, 1999. dos elementos linguísticos e das sentenças; quanto à terceira, ela
BRASIL. Guia de livros didáticos PNLD 2015 – Ensino Médio: é definida como um sistema interiorizado pelos usuários de uma
Português. Ministério da Educação. Brasília: MEC, 2015. língua, que lhes permite produzir enunciados e compreendê-los.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Brasília, Apesar de haver vários sentidos para o termo ‘gramática’, muitos
MEC/SEF, 1998. professores de língua portuguesa mantêm a percepção equivoca-
COELHO, Paula M. C. R. O tratamento da variação linguística da de que devem ensinar apenas a gramática normativa, e, por
no livro didático de português. 2007. 162 f. Dissertação (Mestra- isso, consideram-na como um conjunto de princípios inquestio-
do em Linguística) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília, nável. Ao contrário do que eles acreditam, é necessário esclarecer
Brasília. 2007. que a gramática normativa não deve ser interpretada como uma
POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campi- verdade única e absoluta. Cabe ao professor atuar no tripé for-
nas: Mercado de Letras, 2010. mado pela concepção normativa, pela concepção descritiva e pela
TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o gramática internalizada. Com base nos pressupostos teóricos de
ensino de gramática. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2003. Possenti (1996), Franchi (2006), Neves (2009) e Lima (2012), este
trabalho objetiva discutir as diversas acepções que subjazem ao
termo ‘gramática’ e mostrar, com dados coletados em materiais
RESUMO didáticos, que a adoção de uma concepção centrada apenas na
norma prescritiva prejudica o ensino e a aprendizagem da língua
Atualmente, têm sido frequentes as discussões sobre o que é, portuguesa, em todos os níveis de ensino.
de fato, gramática, dadas as várias acepções com que esse termo Palavras-chave: Língua portuguesa; Gramática; Ensino

123
DIFERENTES ACEPÇÕES DE GRAMÁTICA E SUAS CONSE- de que devem ensinar apenas a gramática normativa, e, por isso,
QUÊNCIASPARA O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA consideram-na como um conjunto de princípios inquestionável.
Ao contrário do que eles acreditam, é necessário esclarecer que a
Hayla Jeysie Candido Oliveira gramática normativa não deve ser interpretada como uma verda-
Ana Maria Costa de Araújo Lima de única e absoluta. Cabe ao professor atuar no tripé formado pela
concepção normativa, pela concepção descritiva e pela gramáti-
Estudante do Curso de Letras – CAC- UFPE; E-mail: haylajey- ca internalizada. Com base nos pressupostos teóricos de Possenti
sie1@hotmail.com (1996), Franchi (2006), Neves (2007 e 2003) e Lima (2012), este
Docente/pesquisadora do Depto de Letras – CAC – UFPE; trabalho objetiva discutir as diversas acepções que subjazem ao
E-mail: jalaraujolima@uol.com.br termo ‘gramática’ e mostrar, com dados coletados em materiais
didáticos, que a adoção de uma concepção centrada apenas na
norma prescritiva prejudica o ensino e a aprendizagem da língua
Resumo - Atualmente, têm sido frequentes as discussões sobre o portuguesa, em todos os níveis de ensino.
que é, de fato, gramática, dadas as várias acepções com que esse
termo vem sendo utilizado. Essas acepções perpassam uma gran- Palavras-chave: Língua portuguesa;Gramática; Ensino
de variedade de sentidos, desde um sentido mais geral até um sen-
tido bastante específico. De acordo com Neves (apud Lima, 2012),
por exemplo, “a concepção mais básica de gramática é a de um
sistema de princípios que organizam os enunciados, pelo qual os INTRODUÇÃO
falantes nativos de uma dada língua se comunicam nas diversas
situações de uso”. Mas ‘gramática’ também pode ser entendida Afinal, o que é gramática? Quais as concepções que subjazem
em uma perspectiva mais restrita, como uma disciplina escolar ao termo “gramática”? Como a gramática está sendo vista e tra-
ou como um manual. Além disso, segundo vários autores, a no- tada no ambiente escolar? Diante desses questionamentos, este
ção de gramática pode ser discutida a partir de subtipos, sendo os trabalho objetiva discutir sobre as práticas que predominam em
mais conhecidos a ‘gramática normativa’, a ‘gramática descritiva’ e sala de aula e relacionar essas práticas às diferentes concepções de
a ‘gramática internalizada’. Sob o ponto de vista teórico de Franchi ‘gramática’.
(2006), a primeira diz respeito a um conjunto de regras para falar Acerca da realidade do ensino de língua materna é necessário
e escrever bem, conforme o padrão defendido por especialistas; esclarecer que o ensino baseado somente na gramática normati-
a segunda trata da descrição do funcionamento geral da língua, va,além de prejudicar a aquisição de conhecimento da língua por-
observando as funções, categorias, estruturas e a gramaticalidade tuguesa, também leva a sociedade a acreditar em conceitos equi-
dos elementos linguísticos e das sentenças; quanto à terceira, ela vocadossobre o que realmente representa a gramática. Para que os
é definida como um sistema interiorizado pelos usuários de uma professores de portuguêspossam refletir sobre o tratamento dado
língua, que lhes permite produzir enunciados e compreendê-los. à gramática em sala de aula, este trabalho fará uma breve análise
Apesar de haver vários sentidos para o termo ‘gramática’, muitos de exercícios de dois livros didáticos e abordará as consequências
professores de língua portuguesa mantêm a percepção equivocada da adesão da perspectiva tradicional e da funcionalista de ensino
de gramática.
124
Em face dadiversidade de noçõesreferentes ao termo “gramá- tática), levantamento de traços de algumas classes e categorias,
tica”,é essencial que os professores determinem com clareza que classificações e nomenclatura” (TRAVAGLIA, 1995, p.235 apud
tipo de gramática irão lecionar, pois ela pode ser entendida tanto NEVES 2003, p. 126). Mas ao contrário do que tradicionalistas
por uma perspectiva amplaquantopor umamais restrita.No que acreditam, Neves (2003) defende que “ensinar eficientemente a
concerne a uma perspectiva abrangente, Neves (2003) afirma que língua [...]é, acima de tudo, propiciar e conduzir à reflexão sobre o
“a concepção básica de gramática é a de um sistema de princípios funcionamento linguagem [...]”, pois é a partir dessa reflexão que
que organiza os enunciados, pelo qualos falantes nativos de uma o aluno poderá empregar com eficiência os conteúdos da língua
dada língua se comunicam nas diversas situações de uso”.Ou seja, nas diversas situações de uso e, por conseguinte, escreverá e falará
o sujeito possui os conhecimentos da língua materna e aplica-os melhor.
de acordo com a situação de comunicação. Porém, é primordial
que nesse processo o indivíduo realize reflexões sobre o funcio- METODOLOGIA
namento da língua, a fim de que ele empregue esses conteúdos
eficientemente. O primeiro passo para a elaboração deste trabalho foi a es-
Além disso, a gramática pode ser observada a partir de sub- colha do tema, que estava baseado nos pontos de vistas teóricos
tipos: a ‘gramática internalizada’, a ‘gramática descritiva’ e a ‘gra- de autores como Franchi (2006), Possenti (1996), Lima (2012) e
mática normativa’. De acordo com Franchi (2006), a primeira é Neves (2007 e 2003). Para que a proposta do trabalho não fosse
definida como um sistema interiorizado pelos usuários de uma unicamente teórica, houve a seleção do corpus da pesquisa e uma
língua, que lhes permite compreender e produzir; a segunda tra- breve análise. O corpus coletado consistiu em questões retiradas
ta da descrição do funcionamento geral da língua, observando as em dois livros de língua portuguesa. A análise do material cole-
funções, categorias, estruturas e a gramaticalidade dos elementos tado foi desenvolvida por meio de comparações entre exercícios
linguísticos; já a terceira diz respeito a um conjunto de regras para dos dois livros, a fim de saber como a gramática era abordada nas
falar e escrever bem, conforme o padrão defendido por especialis- atividades. E por fim, foi feita a conclusão com base nos resultados
tas. Mas apesar de haver três subtipos de gramática, muitos pro- obtidos. Os livros analisados foram os seguintes:
fessores de língua portuguesa mantêm a percepção equivocada de Hildebrando, A. de André. Gramática ilustrada. São Paulo: Mo-
que devem ensinar apenas a gramática normativa e, por isso, con- derna, 1982.
sideram-na como um conjunto de regras inquestionável. Mas é
necessário esclarecer que ela não deve ser interpretada como uma SARMENTO, Leila Lauar; TUFANO, Douglas. Português: Litera-
verdade única e absoluta. tura, gramática e produção de texto. São Paulo: Moderna, 2010.
Muito se tem discutido acerca de como ensinar gramática, pois
apesar de haver metodologias baseadas em propostas funciona- RESULTADOS E DISCUSSÃO
listas que conduzem à reflexão da língua, ainda há muitos profes-
sores que persistem no ensino tradicional de gramática. Assim, Na análise do livro de Hildebrando (1982), verificou-se que
lecionam uma gramática “baseada numa visão estreita e redutora havia o predomínio de uma concepção tradicional de ensino de
do que ela seja, se eternizam em exercícios que só têm a ver com gramática. As atividades seguem uma proposta de responder
segmentação de elementos linguísticos (análise morfológica e sin- questões para completar lacunas e reescrita e que provavelmente

125
o aluno responderá com base nos conteúdos memorizados. Mas- REFERÊNCIAS
convém dizer que, mesmo sendo um livro da década de 1980, ati-
vidades desse tipo ainda podem ser encontradas nos livros didá- HILDEBRANDO, A. de André. Gramática ilustrada. São Paulo:
ticos de hoje. Moderna, 1982.
No que diz respeito ao livro de Sarmento e Tufano (2010), NEVES, Moura. Gramática na escola. 8. ed. São Paulo: Contexto,
constatou-se que seguiauma perspectiva funcionalista, isto é, que 2007.
conduziao aluno a refletir sobre o conteúdo abordado nas ativida- NEVES, Moura. Que gramática estudar na escola?São Paulo:
des. Pode-se mencionar, por exemplo, que nos exercícios em que Contexto, 2003.
havia textos as autoras questionavam aos estudantes o porquê do POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. São
uso de determinada pontuação. Paulo: Mercado de Letras, 1996.
SARMENTO, Leila Lauar; TUFANO, Douglas. Português:Litera-
CONSIDERAÇÕES FINAIS tura, gramática e produção de texto. São Paulo: Moderna, 2010.
SILVA, A.; PESSOA, A. C.; LIMA, A. (Orgs). Ensino de gramáti-
Levando-se em consideração os aspectos apresentados, é im- ca: Reflexões sobre a língua portuguesa na escola. Belo Horizonte:
prescindível esclarecer que a gramática é mais que uma disciplina Autêntica, 2012.
ou manual escolar, é principalmente um sistema que organiza as
palavras, sentenças e expressões da língua que possibilita ao sujei-
to o emprego dos conhecimentos da língua materna nas situações RESUMO
de uso. É através da compreensão efetiva do conhecimento que
o aluno será capaz de escrever e falar melhor. Mas, para que esse A partir da década de 1980, estudos linguísticos viabilizaram im-
processo ocorra é necessário que não só a escola e professores de portantes discussões sobre o ensino da língua materna e reflexões
língua portuguesa, como também a sociedade em geral conheçam acerca do trabalho realizado em sala de aula, no que tange ao en-
o que realmente representa a gramática, para que estereótipos e sino-aprendizagem da gramática. No entanto, apesar das discus-
noções inautênticas não os impeçam de desfrutar plenamente da sões e dos trabalhos desenvolvidos, persiste, em alguns aspectos,
língua. Além disso, recomenda-se ao especialista em português uma prática pedagógica que enfatiza um ensino-aprendizagem da
dois pontos de vista teóricos importantes para o ensino de língua língua focado na palavra e na frase isoladas e sem sentido para o
portuguesa. A primeira é a proposta de Neves (2003), que sugere aluno, prática que dificilmente mudará se o professor não tiver
à escola e ao professor de língua materna a proposta de ensinar clareza sobre as várias concepções de linguagem correlacionadas
gramática conduzindo o aluno a fazer reflexões sobre o uso da ao ensino gramatical. Como defendem Travaglia (2000), Possenti
linguagem. A segunda é perspectiva de Sírio Possenti (1996), que (1998) e Neves (2003),a forma como o professor de língua conce-
consiste em trabalhar em sala de aula os três subtipos de gramáti- be a linguagem vai determinar sua forma de trabalhar a gramática
ca, primeiro, internalizada, segundo, a descritiva e por fim, a nor- em sala de aula. Em consonância com esses autores, o presente
mativa prescritiva. trabalho tem por objetivo cotejar duas concepções de ensino de
língua portuguesa e de gramática: a perspectiva conhecida como
‘tradicional’, que acredita que a formação de um aluno crítico e

126
criativo depende apenas da bagagem de informação adquirida Resumo- O presente trabalho busca refletir sobre o ensino da gra-
por ele, que o professor é detentor do conhecimento e seu papel mática pautado na visão tradicional e na perspectiva sociointera-
é de apenas transmitir informações; e a perspectiva chamada de cionista da linguagem, a partir de teorias que procuram elucidar
‘sociointeracionista’, que tem como foco a interação, ou seja, a o assunto. Para tanto, serão assinaladas algumas das concepções
aprendizagem acontece em contextos históricos, sociais e cultu- de gramática e as teorias subjacentes a tais visões e sua relação
rais. Assim, o conhecimento é construído e concretizado progres- com o ensino gramatical em sala de aula. A visão que norteia essas
sivamente, e o professor age como alguém que conduz o aluno discussões é a de que trabalhar gramática na perspectiva socioin-
ao aprendizado. Defendemos, aqui, que o professor de língua teracionista se torna essencial para que o trabalho com a língua
portuguesa deve adotar uma concepção de língua/linguagem que aconteça de forma dinâmica e produtiva, viabilizando uma leitu-
proporcione um ensino-aprendizagem que se utilize de fatos reais ra, produção e análise textual proficientes e capazes de desenvol-
da língua, portanto, que faça sentido para o aluno. Sendo assim, ver a competência comunicativa dos educandos.
é essencial que o professor de língua materna tenha consciência
de que atividades baseadas na análise de palavras e frases isoladas Palavras-chave: competência comunicativa; concepções de gra-
não contribuem em nada para que o aluno assimile os processos mática; ensino tradicional
de leitura e produção textual, mas se configuram apenas como
práticas mecânicas em torno da língua que, por consequência, se
tornam práticas insípidas e nem um pouco significativas para a INTRODUÇÃO
construção do saber.
As duas últimas décadas do século XX constituíram um perí-
Palavras-chave: Língua portuguesa; concepções de língua; ensi- odo de crítica à Gramática Tradicional e a seu ensino. Esse mo-
no-aprendizagem; gramática vimento se deu principalmente pelas ciências linguísticas e edu-
cacionais no país, assim como pelas mudanças sociopolíticas que
ocorreram na sociedade, em cujo contexto estava a escola brasi-
leira.
ENSINO DE GRAMÁTICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O Assim, a formação de usuários competentes da língua materna
MODELO DE ENSINO TRADICIONAL E O SOCIOINTE- vem despertando há muito tempo grande interesse dos estudiosos
RACIONISTA da linguagem no âmbito da Linguística. Esses estudos defendem,
em sua essência, a ideia de que o objetivo do Ensino Fundamental
Bruna Pereira Ribeiro¹ e Médio deve ser o desenvolvimento da competência comunica-
Ana Lima² tiva. No entanto, as práticas correntes no ensino de gramática são
subsidiadas pelo modelo tradicional, que não abarca reflexões so-
¹Estudante do Curso de Letras/ Lic. em Língua Portuguesa-CA- bre a língua e seu funcionamento, que faz uma abordagem descon-
C-UFPE; E-mail: pr.bruna@hotmail.com textualizada, e se volta para a exploração da gramática normativa,
²Docente/pesquisadora do Depto de Letras- CAC-UFPE; E-mail: em sua perspectiva prescritiva, quando se impõe um conjunto de
jalaraujolima@uol.com.br regras a ser seguido, e também analítica, quando se identificam as

127
partes que compõem um todo, com suas respectivas funções. RESULTADOS E DISCUSSÃO
É fundamental, portanto, que o professor tenha clareza das
concepções de linguagem correlacionadas ao ensino gramatical, Didaticamente, as concepções de linguagem podem ser dividi-
pois, como pondera Travaglia (2000), a forma como o professor das em três. A primeira vê a linguagem como expressão do pensa-
de língua concebe a linguagem vai determinar sua forma de traba- mento, uma espécie de tradução, de representação fônico-escrita
lhar a gramática em sala de aula. É a conjunção dessas concepções do pensamento, e nessa perspectiva, o ensino gramatical quase
que vai sustentar a prática docente e dar sentido a esse trabalho. nunca trabalha com textos, concentrando-se no ensino de regras
Neste sentido, o objetivo deste estudo é refletir acerca da ine- de boa formação de orações isoladas, à espera de que o aluno as
ficiência de um ensino de gramática prescritivo e descontextuali- articule no momento de produção textual.
zado, esclarecendo a importância do ensino sociointeracionista, Na segunda concepção, ela é tida como instrumento de co-
bem como suas implicações no processo de ensino-aprendizagem. municação. A noção de língua como um sistema de códigos que,
Consideramos serem relevantes as reflexões feitas acerca do tema combinados, obedecendo a determinadas regras, transmite uma
proposto, pelo fato de que o ensino de gramática é fundamental mensagem de um emissor para um receptor. Os estudos nessa
para auxiliar o usuário e falante no conhecimento de sua própria concepção são de cunho formalista, interessados na estrutura
língua materna, e por se tratar de uma temática que apresenta al- linguística imanente e sua lógica interna, e não na sua realização
gumas inconsistências no que diz respeito às práticas de ensino- empírica em situações concretas de uso. Soares (1998) explicita
-aprendizagem. que a preocupação, conforme essa concepção, era desenvolver e
aperfeiçoar os comportamentos do aluno como emissor e recebe-
METODOLOGIA dor de mensagens, através da utilização e compreensão de códigos
diversos.
Para a elaboração do estudo, primeiramente foram realizadas A terceira concepção visa a linguagem como lugar de intera-
leituras de textos teóricos relacionados com o tema em questão, ção, mas uma interação social. Através da língua como fenômeno
os quais possibilitaram uma reflexão sobre os modelos de ensino sociointerativo, os indivíduos não apenas expressam seus pensa-
gramatical. mentos, comunicam-se, mas, também, atuam sobre o outro, agem
Esta pesquisa, de cunho bibliográfico, apresenta conceitos tra- sobre o outro, modificando e construindo os objetos do discurso,
dicionais, reflexões, compilações de críticas ao modelo tradicio- produzindo interacionalmente os sentidos dos textos, ou seja, o
nal, posições de teóricos acerca da temática, e parte das conside- sujeito é um ser ativo. Tal concepção, baseada numa abordagem
rações também são provenientes de discussões feitas no grupo de dialética de produção do conhecimento, procura mostrar a lin-
pesquisa do NURC-UFPE. guagem como social, resultado de uma construção coletiva e de
O tema do estudo é dividido em algumas seções, em que são processos de interação. Baseando-se nos estudos do psicólogo
explicitadas, por primeiro, as noções de gramática e de lingua- bielorusso Lev Semyonovich Vygotsky (1896-1934), a linguagem
gem, por meio de considerações feitas por Soares (1998), Possenti passa a ser entendida como um fator que constitui o homem, ten-
(1998),Vygotsky (1896-1934), Franchi (1991), Mendonça (2000) e do função social e comunicativa. É a linguagem que possibilita
Antunes (2009); e em seguida, são apresentadas algumas reflexões um contato com o mundo.
sobre as duas concepções de ensino abordadas neste trabalho, Como defendem Travaglia (2000), Possenti (1998) e Antunes
bem como suas implicações.
128
(2009), a forma como o professor de língua concebe a linguagem “Quando alguém é capaz de falar uma língua, é então capaz
vai determinar sua forma de trabalhar a gramática em sala de de usar, apropriadamente, as regras (fonológicas, morfológicas,
aula, por isso, é de fundamental importância que o docente te- sintáticas e semânticas) dessa língua (além, é claro, de outras de
nha clareza dessas concepções, para que elas possam sustentar as natureza pragmática) na produção de textos interpretáveis e re-
práticas de ensino-aprendizagem que envolvem as competências levantes. Aprender uma língua é, portanto, adquirir, entre outras
linguísticas. coisas, o conhecimento das regras da formação dos enunciados
Do mesmo modo que a concepção de linguagem direciona o dessa língua. Quer dizer, não existe falante sem conhecimento de
professor em seu fazer pedagógico, no ensino de gramática não gramática. (2003, p. 85-86)
é diferente; o docente segue a concepção que ele traz consigo do É relevante esclarecer que o estudo das concepções, nesse tra-
que, para ele, seja a gramática e, consequentemente, do que signi- balho, não serve para dizer que uma ou outra não deve estar pre-
fica “saber” gramática. sente na sala de aula, ao contrário, cada uma tem sua importância.
Alguns linguistas, como Franchi (1991), Possenti (1996), Men- Todavia, pretende-se deixar claro que antes de escolher uma das
donça (2000), Travaglia (2002), abordam três concepções grama- teorias, o docente deverá considerar a finalidade que se tem para
ticais, cada qual correspondente a uma concepção de língua: a optar por um (ou mais) conceito(s), pois há diferentes caminhos.
gramática normativa (segue as teorias da linguagem como expres- Acerca dos modelos de ensino, considera-se que ainda persiste
são de pensamento); a gramática descritiva (representa o conceito no espaço escolar uma prática de ensino da Língua Portuguesa
de linguagem como meio de comunicação); e a gramática inter- pautada nos exercícios tradicionais de gramática, apesar da ne-
nalizada (corresponde à concepção de linguagem como processo cessidade de um trabalho mais reflexivo com a língua. O que se
de interação). percebe, então, em muitas práticas de ensino da gramática, é uma
O conceito de linguagem como expressão de pensamento es- exercitação da metalinguagem por meio de atividades voltadas à
tuda a gramática normativa, a qual se prende a conceitos e regras gramática normativa ou com preocupação descritiva.
e defende a norma culta, ou seja, o português “correto”; tudo o No ensino tradicional, a gramática é sempre enfocada como
que foge a esta norma culta representa um erro. Já a concepção uma “obra acabada, sem consideração para o que ela tenha repre-
de linguagem como instrumento de comunicação aborda o ensi- sentado em termos de esforço de pensamento”, quase sempre pela
no da gramática descritiva, que apresenta um “conjunto de regras exposição de regras e a realização de exercícios descontextualiza-
que são seguidas”, segundo Possenti (1996, p.65). Ainda de acordo dos de estruturas que o aluno só vê nos livros, raramente no seu
com o autor, “a preocupação central é tornar conhecidas, de for- dia a dia (RIBEIRO, 2001). Assim, o discente não é visto como
ma explícita, as regras de fato utilizadas pelos falantes”, ou seja, a usuário da língua, mas, sim, como um depositário das nomencla-
preocupação maior desta gramática é descrever e/ou explicar as turas e regras gramaticais, que ouve as explicações do docente, e,
línguas tais como elas são faladas. a partir delas, responder uma série de exercícios de fixação. Esse
Outro conceito de gramática é a internalizada. Nesta concep- modelo acredita que a formação de um aluno crítico e criativo
ção, os falantes dizem da maneira que sabem, e essas ‘frases’ po- depende apenas da bagagem de informação adquirida por ele, que
dem ser compreendidas pelos demais. É o “conjunto de regras que o professor é detentor do conhecimento e seu papel é de apenas
o falante domina”. Acerca dessa gramática, Antunes (2003) defen- transmitir informações.
de que:

129
Na definição de Mendonça (2006), esse modelo de ensinar lín- em um trabalho de análise e reflexão da utilização da língua, com
gua materna pode ser entendido como um “conjunto de práticas base em sua estrutura e funcionamento, e da tomada de consci-
que se solidificaram com o passar do tempo, com regularidade de ência dos resultados obtidos por meio dos diversos recursos ofe-
ocorrência, o que terminou por constituir uma tradição”. recidos por essa língua: “Saber gramática, portanto, vai além de
No que tange ao ensino sociointeracionista, colocamos que ele saber dar nomes às suas unidades e categorias” (ANTUNES, 2007,
tem como foco a interação, ou seja, a aprendizagem acontece em p.81). Para tanto, a eficiência, na sala de aula, obtida na interação
contextos históricos, sociais e culturais. Assim, o conhecimento cotidiana, ocorrerá somente quando a escola ensinar a linguagem
é construído e concretizado progressivamente, e o professor age a partir do uso real, isto é, quando o discurso for relacionado com
como alguém que conduz o aluno ao aprendizado. a vida.
Referindo-se ao ensino de gramática, Possenti (1996) elenca
que saber uma gramática não significa saber de cor algumas regras CONSIDERAÇÕES FINAIS
que se aprendem na escola, ou saber fazer algumas análises mor-
fológicas e sintáticas (POSSENTI, 1996, p.30). O autor defende a Considerando o que foi apresentado neste trabalho, enfatiza-
ideia de que muito mais importante do que o conhecimento das mos que, ao abandonar a função puramente prescritiva da gramá-
estruturas gramaticais é o conhecimento (inconsciente) essencial tica e assumir a sua função principal, qual seja, a de promover o
para utilizar efetivamente a língua. desenvolvimento da competência linguística do aluno, por meio
Como afirma Vygotsky (2009[1934]), é necessário possibilitar de práticas que façam sentido para este. Sendo assim, é essen-
ao aluno uma tomada de consciência sobre a importância da uti- cial que o professor de língua materna tenha consciência de que
lização das formas gramaticais no emprego da língua, para que atividades baseadas na análise de palavras e frases isoladas não
o discurso seja organizado de maneira consciente e intencional, contribuem em nada para que o aluno assimile os processos de
pois, acima de tudo, o indivíduo depende de uma atividade lin- leitura e produção textual, mas se configuram apenas em práticas
guística que seja diversificada, que lhe possibilite ter acesso às no- mecânicas em torno da língua que, por consequência, se tornam
vas maneiras de dizer e a outros recursos expressivos equivalentes práticas insípidas e nem um pouco significativas para a constru-
aos de sua linguagem. ção do saber.
Assim, pode-se afirmar que quando o professor assume a lín- Defendemos a tese de que o objetivo primordial do ensino da
gua como interação, em sua dimensão discursivo-textual, certa- gramática é propiciar a produção dos discursos - nos quais se ma-
mente criará oportunidades para o aluno refletir, construir, consi- terializam todos os aspectos gramaticais, além daqueles essencial-
derar hipóteses, a partir da leitura e da escrita de diferentes textos, mente discursivos - adequados aos contextos em que ocorrem.
criando condições para que o próprio aluno caminhe para a cons- Para tanto, o professor de Língua Portuguesa precisa, antes de
trução de sua competência textual. qualquer coisa, conhecer as novas teorias que embasam os estu-
O objetivo primordial da escola deve ser o de levar o aluno a dos linguísticos. Como afirma Antunes (2003, p.108), “o professor
dominar a modalidade culta escrita de sua língua e também ofe- precisa ser visto como alguém que pesquisa, observa, levanta hi-
recer-lhe condições, instrumentos e atividades que lhe garantam o póteses, analisa, reflete, descobre, aprende, reaprende”.
acesso às formas linguísticas diversificadas e permitam operar so-
bre elas. Desse modo, o ensino de gramática deve fundamentar-se

130
REFERÊNCIAS RESUMO

ANTUNES, Irandé. Aula de Português: Encontro & Interação. 2ª O presente artigo objetiva compreender a nova situação em
Ed., Parábola, 2003. que se encontram os professores de Língua Portuguesa face
________________ Língua, texto e ensino. Outra escola possível. àconsolidação do Enem enquanto prova única para a admissão
São Paulo: Parábola, 2009. de novos alunos no ensino superior. O Exame Nacional do En-
CAMILLO, Luciana Cristina. Concepção de linguagem e ensino sino Médio vem, há aproximadamente seis anos, tornando-se a
gramatical: a visão do professor. Estudos Linguísticos XXXVI, prova nacional para o ingresso nas principais universidades do
Londrina, v.2, p. 59 -67, maio-agosto, 2007. país. Deste modo, assiste-se a uma modificação no foco dos es-
CAMPOS, Elenice de. Reflexões sobre o ensino de gramática. tudantes e professores, que, antes preocupados com vestibulares
GEDOZ, Sueli. COSTA-HUBES, Terezinha da Conceição. Con- específicos, passam a encarar o ensino de outro modo, conforme
cepção sociointeracionista de linguagem: percurso histórico e o molde que o Enem lhes impõe. Através da análise de provas de
contribuições para um novo olhar sobre o texto. Revista Trama, vestibulares diferentes, apontamos as diferenças nas concepções
Paraná, v. 8, n. 16, p. 125-138, jul./dez., 2012. de língua aítrabalhadas, o que revela diferenças ainda maiores en-
MENDONÇA, M. R. S. Análise linguística no ensino médio: um tre as estruturas dos exames. Baseados nos estudos de Guimarães
novo olhar, um outro objeto. In: BUNZEN, M.; MENDONÇA, C. de Castro e Tiezzi (2007), de Souza (2009), de Marcelino e Re-
(Orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São cena (2012) e na análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais
Paulo: Parábola, 2006a. do Ensino Médio (BRASIL, 2000), demonstramos que, embora os
NEVES, Maria Helena de Moura. Que Gramática Estudar na Es- Parâmetros vigorem desde 2000, a concepção de língua demanda-
cola?: Norma e Uso na Língua Portuguesa. São Paulo: Contexto da começa, particularmente agora, a mudar radicalmente, o que
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola? implica um posicionamento outro face a prática docente no nível
Campinas, São Paulo: ALD: Mercado de Letras, 1996. médio. A análise foi feita através da criação de categorias analíti-
RIBEIRO, Josilene Auxiliadora. PETRONI, Maria Rosa. Conside- cas, as quais correspondem às habilidades e competências, pos-
rações teóricas de Bakhtin e Vygotsky sobre o ensino de gramáti- tuladas pelos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio, a serem
ca: da proscrição ao desenvolvimento das competências linguísti- trabalhadas em Língua Portuguesa. As questões, todas relativas
cas do aluno. Polifonia, Cuiabá, v. 20, n. 27, p. 129-159, jan./jun., ao domínio da língua materna, foram classificadas conforme estas
2013. categorias fundamentais, de modo a formar um corpo preciso da-
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta quilo que pode ser considerado como a nova proposta de ensino
para o ensino para Língua Portuguesa. Foram estudados, além das edições do
da gramática no 1º e 2º grau.1ª Edição. São Paulo: Cortez,2002. Enem, os vestibulares das seguintes universidades: Universidade
Federal de Pernambuco, Universidade Estadual do Rio de Janeiro
e Universidade de Pernambuco. Cobrimos um percurso de quatro
anos, começando em 2011 e terminando em 2015. A análise dos
dados coletados demonstra que a quantidade de questões elabora-
das, na prova do Enem, conforme os novos conceitos postulados

131
pelos Parâmetros Curriculares é demasiadamente alta em relação de Marcelino & Recena (2012), Borges & Gomes, nos quais nos
às questões de vestibulares tradicionais, em que imperavam os fundamentamos para realizar a análise. Através da leitura dos
conceitos tradicionais de língua e linguagem. Procuramos, assim, Parâmetros Curriculares do Ensino Médio, criaram-se catego-
jogar alguma luz sobre a situação em que os professores de Língua rias analíticas, com as quais categorizamos os itens das provas e
Portuguesa encontram-se, face a um sistema de seleção que, ex- os computamos. Foram estudadas, além das edições do Enem, os
tremamente novo e ainda em expansão, exige um outro modo de vestibulares das seguintes universidades: Universidade Federal de
ensino e de entendimento da língua materna. Pernambuco, Universidade de Pernambuco e Universidade Esta-
dual do Rio de Janeiro. Os dados coletados demonstram que a
Palavras-chaves: Ensino de Língua-Portuguesa; Enem; Ensino quantidade de itens elaborados segundo as diretrizes é, no Enem,
Médio significativamente maior do que nos vestibulares tradicionais.
Confirmam-se, com isso, as hipóteses dos estudiosos que veem
no Enem uma forma de alteração do currículo do Ensino Médio.
Palavras-chaves: Ensino de Língua-Portuguesa; Enem; Ensino
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA EM NOVA PERS- Médio
PECTIVA: OS EFEITOS DO ENEM ENQUANTO PORTA
DE ENTRADA PARA O ENSINO SUPERIOR INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o Enem vem tornando-se a única possibili-
Gabriel Loureiro Pereira da Mota Ramos dade de entrada em uma universidade federal. Como método de
David Pessoa de Lira avaliação do Ensino Médio, a prova nasce em 1998, como resulta-
do de uma série de discussões que visavam melhorar a qualidade
Estudante do curso de Letras-Espanhol - CAC - UFPE; email: do ensino e introduzir os conceitos internacionais em Educação
loureiropmramos@gmail.com (GUIMARÃES DE CASTRO; TIEZZI JUNIOR S., 2005). No ano
Docente/pesquisador do Departamento de Letras - CAC - UFPE; 2000, os efeitos destes debates consolidam-se sob a égide dos
email: Parâmetros Curriculares do Ensino Médio, que dão uma forma
david.plira@ufpe.br mais concisa às novas propostas educacionais, além de fornecer
as diretrizes fundamentais a serem seguidas pelo Exame Nacional
do Ensino Médio. Face às rápidas mudanças contemporâneas e
Resumo - O presente trabalho faz uma análise comparativa en- aos problemas enfrentados no ensino de nível médio, os novos
tre as últimas três edições do Enem e de vestibulares tradicionais. Parâmetros Curriculares (doravante PC) buscam desenvolver um
Parte-se do pressuposto de que há uma diferença essencial no tra- aluno que seja capaz de raciocinar, de refletir criticamente sobre
tamento de língua materna, postulado pelos Parâmetros Curricu- o meio em que se insere e de contextualizar os conhecimentos
lares do Ensino Médio, o que acarreta uma mudança na docên- adquiridos, dando-lhes sentido (CASTRO & TIEZZI, 2005, p.
cia de Língua Portuguesa. Assim, utilizamo-nos dos trabalhos de 14). É um “processo de ensino e de aprendizagem contextuali-
Guimarães de Castro & Tiezzi (2005), de Dutra & Garcia (2014), zado, não compartimentalizado e não baseado na quantidade de

132
informações e no simples exercício de memorização” (Idem). Em & Nuñez (2011), concebido como uma forma de mudar os currí-
conformidade com esta estrutura, o Enem é elaborado de forma culos do Ensino Médio, uma vez que estes se adequam às imposi-
analiticamente mais rica, com conteúdos voltados “para o desen- ções dos exames qualificatórios para ingresso no ensino superior.
volvimento do raciocínio e a capacidade de aprender a aprender,
buscando a eliminação paulatina dos currículos gigantescos” (Op METODOLOGIA
cit, p.17). Com os Parâmetros Curriculares, a cuja estrutura cor-
responde, o Enem foi uma das ferramentas criadas para melhorar Para compreender a diferença essencial no tratamento de Lín-
um mecanismo historicamente falho - o mecanismo do Ensino gua Portuguesa entre o Exame Nacional do Ensino Médio e os
Médio . vestibulares tradicionais, selecionamos as últimas quatro provas
Embora tenha inicialmente servido de benchmark, identifi- de três grandes universidades do país, UERJ, UFPE e UPE, e as
cando o desempenho dos alunos como reflexo do sistema escolar comparamos com as últimas edições do Enem. Buscou-se analisar
de que são egressos, o Exame Nacional tornou-se a via de acesso o número de questões correspondentes aos requisitos propostos
ao ensino superior, consolidando-se como única prova em vários pelos PC, o que confirmaria ou não a hipótese inicial. Importante
municípios brasileiros. Como afirmam certos autores, dentre os para tanto é a compreensão do conceito de língua no Enem, ex-
quais Marcelino & Piazza (2012), o Enem passa, a partir de 2009 plicitado pelos PC. O paradigma adotado é o sociointeracionis-
com a aprovação da Matriz do Novo Enem, a tornar-se uma ferra- ta, como demonstram Dutra e Garcia de Paiva (2014) em estudo
menta de mudança do ensino médio, deixando de ser um processo detalhado sobre o assunto. A linguagem é vista pelos Parâmetros
de diagnóstico para impor uma reestruturação da prática docente como meio de estruturação simbólica do mundo, geradora de sen-
(MARCELINO; PIAZZA, 2012, p. 7). Os autores apontam que, tidos negociados intersubjetivamente, condição para a constru-
objetivando a mudança do currículo através do Exame Nacional, ção do conhecimento. Em oposição à concepção de língua como
se intende “revolucionar as práticas pedagógicas, as ferramentas mero código, instrumento utilizado na codificação/decodificação
de instrução e o planejamento escolar pela mudança dos objetivos de mensagem, ela é vista aqui como uma forma de vida e de ação
e alvos do ensino” (Idem). Os antigos vestibulares são esqueci- social (BRASIL, p.5 a 6). Guiados por este entendimento, procu-
dos, e, com eles, o modelo de ensino que se lhes adequava. Se os ramos compreender a estrutura dos itens do Enem conforme as
Parâmetros Curriculares foram criados com o intuito de guiar a diretrizes que lhe prescrevem os Parâmetros. Assim, analisaram-
forma de ensino no nível médio, é notável que o façam somente -se as habilidades e competências postuladas, o que nos levou à
agora, quase quinze anos depois, em virtude da consolidação do elaboração de seis categorias básicas de análise, as quais, aplicadas
Exame Nacional como condição única para o ingresso no ensino aos itens do Enem, tornariam possível e prática a sua classifica-
superior. ção. A partir do estudo das provas tradicionais, criaram-se cinco
Nossa hipótese é a de que há, entre as estruturas da prova do categorias, cuja aplicação torna inteligível a estrutura dos vestibu-
Enem e dos antigos vestibulares, uma diferença considerável, a lares, ao menos no que concerne os por nós analisados. Entre os
qual reflete uma necessidade de mudança na docência de língua itens estudados, distinguimos entre os de Língua Portuguesa e os
materna. Parte-se do pressuposto de que o Enem é, como afirmam de Literatura. Para estes, identificamos as questões que exigiam
autores como Marcelino & Piazza (2012), Maceno et al. (2011 conhecimento específico, como movimento literário, autor e co-
apud MARCELINO; PIAZZA, 2012), Minhoto (2003) e Ramalho nhecimento da obra, o que nos levou a desconsiderá-las e a não

133
as computar; àquelas, porém, cuja resolução se baseava em uma do texto, as intenções do autor e o público-alvo a que se destina o
interpretação do texto, seja a nível básico ou contextual, deu-se o texto, bem como a interação entre essas esferas.
mesmo status prescrito às de Língua Portuguesa. Tendo, pois, seis
categorias para questões do Enem e cinco para as provas tradicio-
nais, enumeramo-las como segue, numa tentativa de sistematizar Para questões tradicionais:
o material:
1 - Relações intersígnicas (sintaxe e semântica) e conhecimen-
Para questões do Enem: tos da norma padrão - o aluno deve ser capaz de identificar as
relações lógicas que as palavras mantêm entre si num sintagma
1 - Processamento de dados a nível contextual - compreende dado, bem como as implicações semânticas que daí derivam. O
identificar os sentidos veiculados na e pela linguagem, sejam eles aluno deve, também, demonstrar conhecimento da norma pa-
históricos, sociais, culturais ou científicos, conjugados com as for- drão, identificando erros em enunciados que não correspondam
mas linguísticas específicas. às prescrições gramaticais.
2 - Identificação do eixo pragmático - o aluno deve colocar-se 2 - Relações lógicas a nível cotextual: coesão - compreende as
no lugar do produtor, identificar-lhe as intenções, ao mesmo tem- relações interfrásticas de um texto; o aluno deve ser capaz de esta-
po que faz uma leitura do contexto comunicativo: interlocutores, belecer nexos lógicos entre as sequências de um texto, seus pres-
histórico da comunicação, relações de sentido etc. A identificação supostos, enfim, todos os elementos que mantêm a coesão em um
do eixo deve ser feita por meio de processos inferenciais, preen- texto. Compreende, também, a identificação de silogismos verda-
chendo as lacunas do texto, o que constitui a diferença entre o deiros e de falsos, como os sofismas.
mero processamento básico dos dados textuais. 3 - Identificar figura de linguagem - o aluno deve ser capaz de
3 - Inferência a partir do imaginário cultural acionado - o alu- identificar a figura de linguagem utilizada, sem, contudo, refletir
no deve identificar nos códigos semióticos conteúdos cognitivos sobre suas implicações contextuais.
que pertecem a sua cultura, cujo conhecimento só é possível atra- 4 - Processamento de dados a nível básico - compreende o ní-
vés da linguagem. vel mais básico de compreensão textual: o aluno é capaz de fazer
4 - Leitura de texto em duas naturezas - o aluno deve 1) ser paráfrases e de identificar elementos básicos do texto. Não lhe é
capaz de estabelecer relações de sentido entre textos de duas na- demandado que faça inferências complexas, nem que relacione as
turezas a partir de leitura semiótica satisfatória; 2) ser capaz de fa- escolhas linguísticas com público-alvo, condições específicas de
zer paráfrases entre os textos: ideia global de um texto não-verbal produção, etc.
transposta em texto verbal. 5 - Processamento de dados a nível médio - Compreende um
5 - Identificar variantes linguísticas - o aluno deve ser capaz de nível mais elevado da compreensão textual, em que atuam a per-
compreender variantes da Língua Portuguesa, bem como aplicar cepção da estrutura do texto, seus tópicos discursivos e algumas
processos de derivação a uma determinada variante; compreen- sutilezas semânticas a nível cotextual. Aqui, o aluno deve identi-
der nuances linguísticas causadas pelo uso de variantes. ficar a ideia global de um texto e compreender a relação de suas
6 - Identificar Gêneros Textuais - o aluno deve ser capaz de partes com o todo, embora não estabeleça relações contextuais
compreender as condições específicas de produção, o conteúdo complexas. Categoria pertinente nas provas da UPE.

134
As categorias por nós estabelecidas podem constituir um
eixo combinatório, porquanto um único item pode demandar
habilidades e competências diversas. Assim, a confrontação dos
enunciados-problemas e sua leitura a partir dos códigos dados
possibilitou-nos a categorização dos itens em termos de ques-
tões tradicionais e questões típicas do Enem, a que chamamos
ENEMQ. Pudemos, deste modo, passar à análise efetiva dos ves-
tibulares, cujas questões foram classificadas e computadas, de
sorte que pudemos comprovar se há ou não um número maior
de enunciados-problema para cuja resolução são necessárias as
competências e habilidades postuladas pelos PC.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Após a análise e computação do material, chegou-se ao seguin- Um breve olhar sobre a tabela mostra-nos que existe uma dife-
te resultado: rença considerável entre as estruturas das provas, no que concer-
ne o quantitativo de questões ENEMQ. Considerando as provas
da UERJ, percebe-se que há uma oscilação quase que anual. Em
2012 e 2015, o número de questões ENEMQ foi levemente supe-
rior ao número das tradicionais; em 2011, 2013 e 2014, observa-se
a presença maior de questões tradicionais. Constata-se, portanto,
que, embora uma concepção de língua análoga à dos PC permeie
algumas questões, o antigo tratamento de língua materna conti-
nua majoritário, exposto, sobretudo, nas questões de gramática
normativa e de sintaxe formal. A UPE mostra-se mais estável, ten-
do uma orientação mais tradicional que as outras. Com um con-
traste fortíssimo, as edições do Enem apresentam, todas elas, um
número muito maior de questões orientadas pelas diretrizes dos
PC. Se se considera a edição de 2012, tem-se um quadro exemplar
da radical diferença estrutural que subjaz às provas analisadas.
Infere-se, daí, que a prova do Enem demanda habilidades e
competências outras, sintetizadas em nossas categorias, as quais
passam, se bem estudadas, a contrastar com aquelas antes exigidas
pelos antigos vestibulares. Fica visível uma mudança na exigência
das provas, o que deve gerar uma modificação no processo mes-

135
mo de preparação que os precede. E isto em virtude do tratamento formação, nos nossos alunos, de um sujeito crítico, capaz de ler
que se dá à língua, um tratamento que, nas provas do Enem, é um texto e nele construir sentidos através de processos inferen-
muito mais pragmático do que nos vestibulares tradicionais. Con- ciais, parece ser um dos desafios que a prova do Enem impõe-nos
firmamos, assim, nossa hipótese inicial, segundo a qual há uma enquanto docentes de língua materna.
diferença fundamental entre as estruturas do Enem e dos antigos A comparação entre o Enem e provas tradicionais de ingresso
vestibulares, o que induz à modificação nos currículos do Ensino em IESs representa, acreditamos, uma nova perspectiva dentro do
Médio, incluído aí o ensino de Língua Portuguesa. campo abordado. Além de confirmar a tese dos estudiosos, em
Autores como Minhoto (2003 apud MARCELINO; RECENA, cujo trabalho nos apoiamos, o presente estudo indica uma nova
2012, p.4), em estudo sobre as implicações curriculares do Enem, possibilidade de compreensão do fenômeno dentro de ambientes
destacam o papel atribuído à prova para acelerar as mudanças no ignorados pelos estudiosos, como os “cursinhos” preparatórios e
currículo do Ensino Médio, já previstas pelos documentos ofi- o último ano do Ensino Médio, compreendido como preparação
ciais e pelos PC. Borges e Gomes (2009), estudando o exame sob para o Enem, e não como fim de um ciclo educacional. A conside-
a perspectiva da cognição, constatam a estrutura construtivista ração destes espaços é fundamental, pois evidencia uma contradi-
da prova, em que a Resolução de Problemas, a Rapidez Cogniti- ção entre um sistema educacional ainda behaviorista, sobre o qual
va e a Compreensão Verbal são exploradas de modo a estimular se fundamentam os “cursinhos”, e uma concepção construtivista
o pensamento autônomo e a reflexão. Alguns estudiosos como da prova para a qual estes mesmos cursinhos preparam seus alu-
Maceno et al. (2011 apud MARCELINO; RECENA, 2012, p. 4), nos.
embora pessimistas quanto aos resultados, encontram na matriz
referencial do Enem um enfoque na articulação dos conteúdos CONSIDERAÇÕES FINAIS
com o mundo, com o cotidiano, nas relações entre ciência e tec-
nologia, tendo como principal pressuposto a interdisplinaridade. O Enem, enquanto porta de entrada para o ensino superior, é
Esta característica da prova, cuja estrutura incita o confronto com ainda novo. Parece, no entanto, já impor uma reestruturação nos
um sujeito crítico e pensante, objetiva, como apontam Marcelino currículos escolares, por força da lógica de um sistema educacio-
e Recena (2012) , a modificar e definir a prática docente. No que nal em que o objetivo último é o ingresso na universidade. No
diz respeito à concepção de Língua Portuguesa presente no Enem, que tange o ensino de Língua Portuguesa, a mudança se efetiva de
Dutra e Garcia de Paiva (2014) deixam claro a concepção socioin- maneira radical, como demonstram os dados coletados. Destar-
teracionista adotada pela prova. As autoras analisam, em estudo te, a consciência deste quadro é fundamental aos pesquisadores
semelhante ao nosso, itens do Enem e a correspondência entre e professores de língua. Parece-nos que à Linguística Aplicada é
eles e as habilidades e competências postuladas pelos PC. Embora oferecido um objeto de estudo promissor, atual e extremamen-
indiquem os pontos principais demandados pelo exame, não in- te relevante em termos educacionais, pois que em relação direta
sistem sobre o como da prática docente, problema principal numa com a prática docente. Neste sentido, nosso estudo joga luz sobre
prova em que o ensino tradicional de gramática é abandonado um campo ainda a ser explorado. Responder a questões relativas
em proveito de uma visão sociointerativa do fenômeno linguísti- à prática educacional, apontando modos e estratégias compatíveis
co. É, sobretudo, esta nova visão que se mostra como o objeto do com a realidade do Ensino Médio, devem constituir promissores
ensino, e é a ele que nos devemos voltar enquanto professores. A temas para trabalhos futuros.

136
REFERÊNCIAS RESUMO

BORGES, Otto; GOMES, C. Mauro Assis. O Enem é uma avalia- A pesquisa que deu origem a este trabalho foi realizada para a
ção educacional construtivista? Um estudo de validade de cons- disciplina morfossintaxe I no curso de bacharelado em letras, mi-
truto. Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 20, n. 42, p. 73-88, jan./abr. nistrada pela professora Gláucia Nascimento no semestre 2015.2.
2009. O presente trabalho apresenta a análise de verbos em uso atual-
BRASIL. Parâmetros Curriculares do Ensino Médio,. Disponível mente no léxico do português brasileiro (PB) criados (neologis-
em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf. Acesso mos) a partir de palavras da língua inglesa, em partidas de jogos
em 14 de março de 2016. MOBA (Multiplayer Online Battle Arena, em tradução livre: Are-
DUTRA, Vania; MARCPHERSON GARCIA DE PAIVA, Carla. A na de Batalha Online com múltiplos jogadores). Para a pesquisa,
língua portuguesa no Enem: o que ensinar?. ECOS DE LINGUA- foram coletados 12 verbos usados em respostas obtidas no fórum
GEM, v. 3, p. 41, 2014. Acesso em 14 de março de 2016. online brasileiro do jogo LoL (League of Legends) e no fórum on-
GUIMARÃES DE CASTRO, M. Helena; TIEZZI, Sérgio A refor- line brasileiro do jogo DotA 2 (Defense of the Ancients 2). O obje-
ma do Ensino Médio e a implantação do Enem no Brasil.In: Colin tivo principal da produção desse trabalho foi o de entender como
Brock & Simon Schwartzman. (Org.). Os Desafios da Educação se formam tais verbos no português a partir de bases do inglês.
no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, v. , p. 119-151. Esses verbos são aportuguesados pelos usuários de jogos MOBA,
MARCELINO, L. Victor; RECENA, M. C. Piazza. Possíveis influ- durante partidas do jogo e em ambientes discursivos relacionados
ências do novo Enem nos currículos educacionais de Química. aos jogos. A pesquisa também analisou quatro gramáticas esco-
Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 23, n. 53, p. 148-177, set/dez. 2012. lares do português no Brasil, a fim de verificar as palavras usadas
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO, Vestibulares disponí- como exemplos de neologismo nas propostas para o ensino des-
veis para download em: http://vestibular.brasilescola.uol.com. se fenômeno, considerando que, para sua melhor compreensão,
br/downloads/universidade-pernambuco.htm. Acesso em 14 de alguns exemplos devem fazer parte do universo dos estudantes
março de 2016 do no ensino básico. Muitos desses estudantes são jogadores de
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO, Vestibu- MOBA. A base teórica se fundamenta em Castillo (2012), Carva-
lares disponíveis para download em: http://www.vestibular.uerj. lho (2012), Câmara Jr. (2013), Monteiro (2002) e Coelho (2003).
br/portal_vestibular_uerj/2016/exame_de_qualificacao/eq_pro- A análise do corpus mostrou que a criação de verbos a partir do
va_e_gabarito.php. Acesso em 14 de março de 2016. inglês em jogos MOBA ocorre, nas palavras analisadas, exclusi-
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO, Vestibula- vamente pelo acréscimo da terminação -ar à base, seja um verbo,
res disponíveis para download em: http://vestibular.brasilescola. um adjetivo ou um substantivo da língua inglesa. Como essa é
uol.com.br/downloads/universidade-federal-pernambuco.htm. uma pesquisa de pequeno porte, não se pode afirmar que todos
Acesso em 14 de março de 2016. os verbos que emergem nesse contexto se formam, apenas, com
a adição de -ar, embora seja esta a forma mais produtiva para a
formação de verbos em português. Já o resultado da análise das
gramáticas revela que três das quatro gramáticas analisadas pos-
suem um tópico sobre neologismo, e nenhuma delas usa exemplos

137
atuais, que facilitariam a aprendizagem do alunado, como esses Resumo - A pesquisa que deu origem a este trabalho foi realiza-
exemplos presentes nos jogos MOBA e em entre outros espaços da para a disciplina Português 2 - Morfossintaxe I no curso de
discursivos familiares aos jovens. Foi possível descobrir mais uma bacharelado em letras, ministrada pela professora Gláucia Nasci-
forma como a tecnologia digital influi na língua e como pode ser mento no semestre 2015.2. O presente trabalho apresenta a aná-
utilizada em sala de aula para alcançar os estudantes de forma in- lise de verbos em uso atualmente no léxico do português brasi-
teressante. leiro (PB) criados (neologismos) a partir de palavras da língua
inglesa, em partidas de jogos MOBA (Multiplayer Online Battle
Palavras-chaves: morfologia; formação de palavras; neologismo; Arena, em tradução livre: Arena de Batalha Online com múlti-
MOBA plos jogadores). Para a pesquisa, foram coletados 12 verbos usa-
dos em respostas obtidas no fórum online brasileiro do jogo LoL
(LeagueofLegends) e no fórum online brasileiro do jogo DotA 2
(DefenseoftheAncients 2). O objetivo principal da produção desse
FORMAÇÃO DE VERBOS EM PORTUGUÊS DO BRSIL trabalho foi o de entender como se formam tais verbos no portu-
(PT-PB) EM JOGOS MOBA A PARTIR DE PALAVRAS guês a partir de bases do inglês. Esses verbos são aportuguesados
DO INGLÊS pelos usuários de jogos MOBA, durante partidas do jogo e em
ambientes discursivos relacionados aos jogos. A pesquisa também
analisou quatro gramáticas escolares do português no Brasil, a fim
de verificar as palavras usadas como exemplos de neologismo nas
Amanda Bomfim Ribeiro; propostas para o ensino desse fenômeno, considerando que, para
Clarice Nascimento Fernandes²; sua melhor compreensão, alguns exemplos devem fazer parte do
Giovana Lasalvia Teles³; universo dos estudantes do no ensino básico. Muitos desses es-
Tiago Pedro Filipine Galdino4; tudantes são jogadores de MOBA. A base teórica se fundamenta
Gláucia Renata Pereira do Nascimento5. em Castillo (2012), Carvalho (2012), Câmara Jr. (2013), Monteiro
(2002) e Coelho (2003). A análise do corpus mostrou que a cria-
¹Estudante do Curso de Letras- CAC – UFPE; ção de verbos a partir do inglês em jogos MOBA ocorre, nas pala-
E-mail: amandapunny@gmail.com vras analisadas, exclusivamente pelo acréscimo da terminação -ar
²Estudante do Curso de Letras- CAC – UFPE; à base, seja um verbo, um adjetivo ou um substantivo da língua
E-mail: nfernadesclarice@gmail.com inglesa. Como essa é uma pesquisa de pequeno porte, não se pode
³Estudante do Curso de Letras- CAC – UFPE; afirmar que todos os verbos que emergem nesse contexto se for-
E-mail: lasalvia.giovana@gmail.com mam, apenas, com a adição de -ar, embora seja esta a forma mais
4Estudante do Curso de Letras- CAC – UFPE; produtiva para a formação de verbos em português. Já o resultado
E-mail: tiagofilipini@hotmail.com da análise das gramáticas revela que três das quatro gramáticas
5Docente/pesquisador do Depto de Letras - CAC - UFPE. analisadas possuem um tópico sobre neologismo, e nenhuma de-
E-mail: profa_glaucia@yahoo.com.br las usa exemplos atuais, que facilitariam a aprendizagem do alu-
nado, como esses exemplos presentes nos jogos MOBA e em entre

138
outros espaços discursivos familiares aos jovens. Foi possível des- que envolvem estrangeirismos, em geral, parece que esse alcance
cobrir mais uma forma como a tecnologia digital influi na língua do inglês é desconsiderado. Um dos exemplos mais usados em
e como pode ser utilizada em sala de aula para alcançar os estu- gramáticas escolares brasileiras para o fenômeno do hibridismo,
dantes de forma interessante. por exemplo, é a palavra “automóvel”, que crianças e jovens que
Palavras-chaves: morfologia; formação de palavras; neologismo; estão nas escolas atualmente não sabem que é uma palavra com-
MOBA. posta, formada por elementos de duas diferentes línguas (grego e
latim). Por que não usar um exemplo do inglês, já que esta é a lín-
gua estrangeira a que estudantes brasileiros têm mais acesso?! Ao
INTRODUÇÃO analisar as gramáticas: “Aprender e Praticar Gramática” (2007) de
Mauro Ferreira e “Gramática em Textos” de Leila Lauar Sarmento
O presente trabalho apresenta a análise de verbos do português (2005) –as quais são utilizadas para o ensino básico –, é visto o
usados nos ambientes de jogos MOBA a partir de palavras do in- distanciamento presente entre informações apresentadas nestas
glês. Seja durante as partidas ou nas discussões relacionadas a elas obras didáticas e seu respectivo público alvo. Quando um aluno
e/ou a elementos nelas presentes, diversos verbossão criados, mas se depara com o estudo de neologismos, encontra, às vezes, como
todos têm algo em comum: se baseiam no acréscimo do mesmo exemplos, palavras que nem podem mais ser classificadas como
sufixo do português, o -ar, conhecido como o de maior produtivi- neologismo e que não ajudarão,de forma eficaz na construção de
dade na língua portuguesa brasileira para a formação de verbos. seu entendimento. É encontrada nos cenários dos jogos analisa-
No estudo aqui apresentado, o foco é voltado para o aportugue- dos uma boa alternativa para aprimorar e atualizar o conteúdo
samento de palavras existentes na língua inglesa enquanto nomes de gramáticas escolares, aproximando-as da realidade vivenciada
que, ao sofrer o processo de neologismo, mudam para a classe pelo alunado atualmente, já que nos MOBA os jovens se comuni-
de palavra “verbo”. Além disso, foi colocada em pauta no traba- cam de uma forma contemporânea, que constitui um uso de um
lho a relevância de se trabalhar, no ensino de língua, com uma grande público, e que, provavelmente, aumentará com o passar do
plataforma atual, usual e informal. Com um mercado cada vez tempo, devido ao crescimento da quantidade de jogadores. Afinal
mais abrangente, o ambiente dos jogos MOBA vem tomando o LoL e DotA deixaram de ser apenas lazer e viraram mais uma op-
público infantil/jovem, fazendo com que estes tornem-se adeptos ção de esporte/profissão.
às linguagens utilizadas em tal âmbito. Dessa forma, é colocada
em questão, ao longo do trabalho, a importância da apresentação, MATERIAIS E METÓDOS
nas gramáticas de ensino básico,de verbos aportuguesados usados
pelos usuários dos jogos, visto que embora de tal recurso possa ser Para a realização da presente pesquisa, foi coletado o total de
útil para exemplificação do fenômeno denominado neologismo, 14 verbos do uso dos jogadores do DotA 2 e LoL (muitos verbos
este não é encontrado com tanta frequência nas gramáticas de en- se repetiram em ambos os jogos, restando dois verbos exclusiva-
sino básico. Segundo Crystal (apud CARVALHO, 2003, p.39), ne- mente usados no DotA 2) em perguntas nos fóruns dos respecti-
nhuma língua teve o alcance do inglês – nem mesmo o latim, usa- vos jogos com a participação voluntária de 2 jogadores de LoL e
do na Roma Imperial. Apesar disso, para tratar de neologismos ou 1 de DotA. Posteriormente foram tirados prints(capturas de tela)
de outros fenômenos ligados a processos de formação de palavras das respostas analisadas – ao final desta seção, estão as capturas

139
de tela. Para fins analíticos, os verbos foram separados por radical RESULTADOS
e sufixo. O radical sempre é uma base de língua inglesa e o sufi-
xo – sempre de origem portuguesa –, é o -ar. Ainda com fins de A partir da análise dos dados coletados – os verbos usados em
análise, foram usados os livros “Criação neológica: teoria e práti- partidas de MOBA –, pudemos chegar ao primeiro achado da pes-
ca” organizado por Nelly Carvalho, “Morfologia portuguesa” de quisa: novos verbos que partem de um léxico estrangeiro, no caso o
José Lemos Monteiro, “Nova gramática do português brasileiro” inglês, seguem a formação mais produtiva na língua. Percebemos,
de Ataliba Castilho, “Moderna Gramática Portuguesa” de Eva- também, sendo esse o segundo achado da pesquisa, que a bases da
nildo Bechara, e a dissertação de Carla C. A. Coelho “Formação língua inglesa usadas para a formação dos verbos aqui analisados
de verbos em –ar em português”, além das gramáticas escolares: são verbos (stun, counter, feed, rule, farm e dive), substantivos
“Aprender e Praticar Gramática” de Mauro Ferreira e “Gramáti- (build, gank, ward, comb), adjetivos (noob e creep) e um advér-
ca em Textos” de Leila Lauar Sarmento, com o intuito de análise bio (up). A presença de apenas um gramema (o advérbio) como
comparativa. base se explica pela maior produtividade de lexemas na formação
de novas palavras. Podemos perceber isso analisando individual-
mente os verbos encontrados. Os verbos stunar, counterar, feedar,
rular, farmar e divar vêm dos respectivos radicais stun, counter,
feed, rule, farm e dive, que com a mesma morfologia assumem
mais de uma função sintática, sendo assim, possível classificá-los
como mais de uma classe gramatical. No contexto do uso dos
jogos MOBA, vimos uma maior chance de uso dessas palavras
como verbos significando, respectivamente, atordoar, contrariar,
alimentar, dominar, cultivar e mergulhar. No socioleto brasilei-
ro dos jogos MOBA, esses verbos significam, respectivamente,
stunar: atordoar o personagem adversário; counterar: reverter a
partida, mudar de estratégia; feedar: deixar que o personagem ad-
versário se fortaleça; rular: mostrar domínio sobre o adversário;
farmar:coletar recursos durante a partida; divar: o personagem
ser atacado pela torre. Além da regra de acréscimo do sufixo -ar
aos radicais, em dois casos, os processos de formação de verbos
em português no Brasil nos jogos MOBA com radicais verbais al-
tera a morfologia dos radicais, são eles: dive + ar, onde há a queda
da vogal e para formar divar, e rule + ar, onde acontece da mesma
maneira para formar rular. Em sequência, podemos perceber que
outra classe gramatical produtiva nas palavras de língua inglesa
na formação de verbos em português no Brasil em jogos MOBA é
a de substantivos. Essa produtividade dos substantivos é eviden-

140
ciada nos verbos buildar, wardar e combar que são originados a tuando neologismo, mas usando um exemplo impraticável, que
partir dos radicais build, ward e comb que significam, respectiva- não se encontra presente no cotidiano do falante de hoje, muito
mente, estrutura, guarda e favo de mel (supostamente, o uso é me- menos do jovem estudante para o qual a gramática é destinada.
tafórico no sentido de algo muito bom). Ao acrescentar o sufixo – Na metade referente ao ensino superior do estudo comparativo,
ar sem quaisquer modificações nos radicais formam-se os verbos foram avaliadas a obra de Evanildo Bechara “Moderna Gramática
usados nos jogos MOBA e aqui analisados. No socioleto brasileiro Portuguesa” (2009), e a “Gramática do Português Brasileiro” de
dos jogos MOBA, esses verbos significam, respectivamente, buil- Ataliba T. de Castillo(2012). Em Bechara, encontra-se um tópi-
dar: equipar seu personagem, wardar: instalar wards (item de vi- co que trata do neologismo, mas não aproveita para exemplificar,
gilância) no mapa, combar: fazer uma sequência de ataques. Um nem compreende um subtópico sobre o tema. Por outro lado, em
caso especial é o verbo gankar, seu radical é uma gíria ainda não Castillo, há um tópico que aborda lexicalização e dentro desse tó-
dicionarizada, portanto seu significado é pouco esclarecido. A hi- pico há a compreensão de neologismo, mas, novamente, com um
pótese levantada pelo grupo da pesquisa é que tenha surgido gank exemplo que carece no seu trabalho de facilitar o aprendizado do
a partir de gang (gíria dicionarizada que significa “quadrilha”). O estudante. O que se percebe é uma lacuna sobre neologismo, pois
uso de gankar é aplicado em situações que se assemelham a atu- o processo continua crescendo e trazendo diversas outras palavras
ações de quadrilhas na sociedade, ou seja, gankar significa, em para a vivência brasileira, mas, mesmo assim, não é abordado de
geral, atacar de surpresa, deslocar-se para atacar em outro lugar forma prática, que é como ele acontece em ambientes discursivos
do mapa. Muito similar ao processo de formação de verbos em de MOBA, onde grande parte do alunado está submerso.
português no Brasil nos jogos MOBA com radicais substantivos,
os adjetivos seguem o mesmo padrão de acréscimo do sufixo -ar DISCUSSÃO
sem modificações nos radicais. Podemos perceber esse processo
nos verbos noobar e creepar, que são criados a partir dos radicais Assim como visto nos resultados, os verbos formados através
adjetivos noobe creep que significam respectivamente iniciante e do neologismo nos ambientes de jogos MOBA são marcados pela
desagradável. No socioleto brasileiro dos jogos MOBA, esses ver- adição do sufixo –ar, e verificamos que, no aspecto de inovação
bos significam, respectivamente, noobar: agir como iniciante, cre- através de verbos em –ar, o português do Brasil é mais produtivo
epar: matar os personagens automáticos do jogo. No estudo com- do que o português europeu. [...] Em suma, podemos afirmar que
parativo foi realizada a análise de 4 gramáticas, duas dirigidas ao o processo em análise no presente estudo é, actualmente, aquele
ensino básico e as outras duas ao ensino superior. As gramáticas que maior produtividade apresenta na criação de novas formas
escolares são a “Aprender e Praticar Gramática” de Mauro Ferreira verbais (Coelho, 2003). Por isso em todos os exemplos retirados
(2007), e a “Gramática em textos” de Leila Lauar Sarmento (2005). dos ambientes discursivos dos jogos vemos o neologismo sendo
Na primeira, não se trata da formação de palavras no geral, não formado com o mesmo sufixo, é a confirmação de um paradig-
há informação da origem das bases, nem em empréstimos de ou- ma já pensado pela equipe de análise. O fato de todas as palavras
tras línguas, Ferreira aporta genericamente, em seu livro, um tó- serem originadas do inglês também é um fator importante, dei-
pico sobre “Variações linguísticas” que não contempla a criação xa clara a influência que a potência econômica mundial – aqui
de palavras. Já na segunda, há um capítulo intitulado “Estrutura e falando exclusivamente dos Estados Unidos, mas sabendo que
formação das palavras”, onde pode-se encontrar um item concei- o inglês é uma língua nativa da Europa e é língua oficial em di-

141
versos outros países – exerce sobre as outras nações, desde a lin- po de estudo pouco explorado, foi possível descobrir como o co-
guagem até às questões relativas à política. A hipótese era de um tidiano tecnológico influi na língua e como pode ser utilizado em
ensino distanciado da realidade dos alunos do ensino básico, e o sala de aula para alcançar os estudantes de forma contundente.
resultado encontrado foi que as gramáticas até abordam o tema,
mas de forma muito rasa e usando exemplos que não facilitam REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
o aprendizado. O estudo comparativo entre gramáticas de nível
fundamental e médio contra gramáticas acadêmicas foi de certa BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37 ed. rev.,
forma surpreendente, porque primeiramente o grupo imaginava ampl. e atual. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
que as gramáticas básicas nem falariam sobre neologismo, mas CÂMARA JR, Joaquim Mattoso. Estrutura da língua postuguesa.
foi provado o contrário. Ao fim, foi discutido que os neologismos 45 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
encontrados nos chats e fóruns de LoL e DotA ajudariam no ensi- CAMPOS JR, J. L. Dicionário inglês-português/português-inglês.
no e comprovam a produtividade de um sufixo já muito utilizado, São Paulo: FTD S.A.
proposições confirmas pela equipe. CARVALHO, Nelly (org.) Criação neológica: teoria de prática. 1
ed. Curitiba: Editora Appris, 2012.
CONCLUSÕES CASTILLO, Ataliba T. de. Nova gramática do português brasilei-
ro. 1 ed., 2° reimpressão. São Paulo: Contexto, 2012.
Ao final da pesquisa, os resultados reforçam a já consagrada COELHO, Carla C. A. Formação de verbos em –ar em português.
constatação de que o falante utiliza da regra mais produtiva para Coimbra: UC, 2003. Dissertação (Mestrado em Linguística Por-
criação de palavras usual– mesmo com o avanço tecnológico, o tuguesa, sob orientação da Senhora Prof° Doutora Graça Maria
que poderia, a nosso ver, possibilitar outras atitudes linguísticas Rio-Torto, apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de
nesse âmbito, a regra continua consolidada, mostrando assim que Coimbra).
a produtividade é universal na linguística –, e que a cultura da lín- FAHEY, Mike. Savage take on defense of the ancients enters open
gua “emprestada” influencia em demasia para que ela seja a esco- beta. Disponível em: <http://kotaku.com/5507382/savage-take-
lhida. Investigando como se dá o processo e o possível motivo de -on-defense-of-the-ancients-enters-open-beta>. Acesso em: 08
este acontecer de determinada maneira, foi observado como o en- dez 2015.
sino de neologismos era exemplificado em gramáticas escolares, e FERREIRA, Mauro. Aprender e praticar gramática. Ed. renovada.
a conclusão é de que ainda há um déficit que precisa ser sanado. São Paulo: FTD, 2007.
De quatro gramáticas avaliadas – duas escolares: “Aprender e pra- HARPER, Douglas. Birtish dictionary definition for noob.Dispo-
ticar gramática” de Mauro Ferreira e “Gramática em textos” de nível em: <http://dictionary.reference.com/browse/noob>. Aces-
Leila Lauar Sarmento; e duas acadêmicas: “Moderna Gramática so em: 08 dez 2015.
Portuguesa” de Evanildo Bechara e “Nova gramática do português HILL, Simon. The originsofnewbie, nooband n00b. Disponível
brasileiro” de Ataliba Castillo – três possuem um tópico sobre ne- em: <http://www.digitaltrends.com/gaming/noob-newbie-word-
ologismo, e nessas que abordam o tema, nenhuma usa exemplos -origins/>. Acessoem: 08 dez 2015.
atuais, que facilitariam a aprendizagem do alunado, como esses KLUG, Melânia B. Minidicionário escolar: português/inglês, in-
exemplos presentes nos jogos MOBA analisados. Por ser um cam- glês/português. Blumenau, SC: Vale das Letras, 2012.

142
LOCKLEY, Greg. MOBA: the story so far. Disponívelem: <http:// entende a língua enquanto atividade de interação ou sociointe-
www.mcvuk.com/news/read/moba-the-story-so-far/0133335>. ração entre seus falantes. Dessa forma, ela deve ser vista como
Acessoem: 08 dez 2015. “[...] o lugar de constituição de relações sociais, onde os falantes
MONTEIRO, José Lemos. Morfologia portuguesa. 4 ed. Cmapi- se tornam sujeitos [ativos].” (GERALDI, 1996:41 – inserção nos-
nas, SP: Pontes, 2002. sa). Nessa perspectiva, atribuímos à escola o papel de emancipar o
NUTT, Crhistian. The valve way: Gabe Newell and Erik Johnson aluno e ajudar na formação de um sujeito ativo socialmente. Essa
speak. Disponível em: <http://www.gamasutra.com/view/featu- possibilidade dá-se principalmente por meio da língua(gem), já
re/6471/the_valve_way_gabe_newell_and_.php?page=3>. Acesso que é através dela que acontecem suas interações sociais com o
em: 08 dez 2015. mundo, e essas interações se dão por meio dos gêneros criados em
RAPHAEL, Pablo. UOL jogos explica os MOBA, jogos que mis- cada situação de interlocução, sejam eles orais ou escritos. Nos-
turam estratégia e RPG. Disponível em: <http://jogos.uol.com.br/ sa proposta de trabalho levou em consideração, no momento de
ultimas-noticias/2012/01/31/league-of-legends-dota-etc-conhe- seleção dos gêneros a serem trabalhados, o contexto de vivência
ca-os-jogos-estilo-moba.htm>. Acesso em: 08 dez 2015. dos alunos e seus níveis de conhecimento por série, procurando
SARMENTO, Leila Lauar. Gramática em textos. 2 ed. rev. São também desenvolver atividades de produção que fizessem sentido
Paulo: Moderna, 2005. para além da avaliação da aprendizagem de características de tais
gêneros (ANTUNES, 2003; MARCUSCHI, 2008; SILVA, 2012).
Como o trabalho com a produção de texto também deve obede-
cer a certas regras, no que diz respeito a um trabalho que efetiva-
RESUMO: mente garanta o desenvolvimento das competências atreladas ao
ato de escrever, procuramos obedecer a três etapas (ANTUNES,
Este trabalho trata de um relato de experiência vivenciada du- 2003; PCN, 1998) na produção dos gêneros supracitados: (i) o
rante a disciplina de Estágio Supervisionado II: Língua Portugue- planejamento do gênero a ser trabalhado, por meio da seleção e
sa (ESO II), no campo de estágio Escola Estadual Irnero Ignacio, estudo de textos; (ii) produção/escrita dos gêneros; (iii) revisão/
em Serra Talhada-PE, com turmas do 6º, 7º e 8º anos do Ensino reescrita(s). Após as produções houve a exposição do trabalho no
Fundamental. A partir deste relato, apresentamos a experiência salão da biblioteca com a apresentação de alguns alunos e a visita-
do trabalho com a prática da leitura e produção de textos por ção das demais turmas acompanhadas de seus professores.
meio de gêneros como: HQ, fábula, conto e poesia, além do gê-
nero oral da tradição nordestina, a toada/aboio, demonstrando o Palavras-chave: Gêneros orais e escritos; Planejamento; Produção
sucesso do projeto que nomeamos de Colcha de Gêneros, sobre- textual; Reescrita(s)
tudo por meio do bom rendimento e integração dos alunos nas
atividades de produção dos gêneros propostos, além da assiduida-
de da maioria deles no momento preparatório para apresentação
do projeto para toda a escola. Para montagem do projeto, nossas
ações estiveram pautadas no aporte teórico que discute sobre o
ensino de língua portuguesa através dos gêneros textuais e que

143
GÊNEROS TEXTUAIS NA ESCOLA: UMA EXPERIÊNCIA “[...] o lugar de constituição de relações sociais, onde os falantes
COM O ENSINO FUNDAMENTAL POR MEIO DO “COL- se tornam sujeitos [ativos].” (GERALDI, 1996:41 – inserção nos-
CHA DE GÊNEROS” sa). Nessa perspectiva, atribuímos à escola o papel de emancipar o
aluno e ajudar na formação de um sujeito ativo socialmente. Essa
Ivanilson José da Silva¹ possibilidade dá-se principalmente por meio da língua(gem), já
Kelly Gomes da Silva² que é através dela que acontecem suas interações sociais com o
Thaís Ludmila da Silva Ranieri³ mundo, e essas interações se dão por meio dos gêneros criados em
cada situação de interlocução, sejam eles orais ou escritos. Nos-
¹Graduado em Letras pela UFRPE/UAST e mestrando em Lin- sa proposta de trabalho levou em consideração, no momento de
guística pelo PPGL-UFPE; seleção dos gêneros a serem trabalhados, o contexto de vivência
E-mail: ivanilsons@live.com dos alunos e seus níveis de conhecimento por série, procurando
²Graduada em Letras pela FAFOPST e professora da também desenvolver atividades de produção que fizessem sentido
SEDUC-PE/Escola Estadual Irnero Ignacio; para além da avaliação da aprendizagem de características de tais
E-mail: kellygomes0@hotmail.com gêneros (ANTUNES, 2003; MARCUSCHI, 2008; SILVA, 2012).
³Doutora em Linguística pelo PPGL-UFPE e professora adjunta Como o trabalho com a produção de texto também deve obede-
1º do curso de Letras da UFRPE/UAST; cer a certas regras, no que diz respeito a um trabalho que efetiva-
E-mail: thaisranieri@yahoo.com.br mente garanta o desenvolvimento das competências atreladas ao
ato de escrever, procuramos obedecer a três etapas (ANTUNES,
Resumo: Este trabalho trata de um relato de experiência viven- 2003; PCN, 1998) na produção dos gêneros supracitados: (i) o
ciada durante a disciplina de Estágio Supervisionado II: Língua planejamento do gênero a ser trabalhado, por meio da seleção e
Portuguesa (ESO II), no campo de estágio Escola Estadual Irnero estudo de textos; (ii) produção/escrita dos gêneros; (iii) revisão/
Ignacio, em Serra Talhada-PE, com turmas do 6º, 7º e 8º anos do reescrita(s). Após as produções houve a exposição do trabalho no
Ensino Fundamental. A partir deste relato, apresentamos a expe- salão da biblioteca com a apresentação de alguns alunos e a visita-
riência do trabalho com a prática da leitura e produção de textos ção das demais turmas acompanhadas de seus professores.
por meio de gêneros como: HQ, fábula, conto e poesia, além do
gênero oral da tradição nordestina, a toada/aboio, demonstrando Palavras-chave: Gêneros orais e escritos; Planejamento; Produção
o sucesso do projeto que nomeamos de Colcha de gêneros, sobre- textual; Reescrita(s).
tudo por meio do bom rendimento e integração dos alunos nas
atividades de produção dos gêneros propostos, além da assiduida-
de da maioria deles no momento preparatório para apresentação INTRODUÇÃO
do projeto para toda a escola. Para montagem do projeto, nossas
ações estiveram pautadas no aporte teórico que discute sobre o Ao pensarmos sobre ensino de língua na atualidade não há
ensino de língua portuguesa através dos gêneros textuais e que como nos distanciarmos da perspectiva que vê a língua como o
entende a língua enquanto atividade de interação ou sociointe- lugar das relações em sociedade e da interação entre seus falantes
ração entre seus falantes. Dessa forma, ela deve ser vista como (cf. GERALDI, 1996). Assim, nossa experiência desenvolveu-se

144
tendo por base a perspectiva de língua enquanto atividade so- [...] geralmente, as atividades com gêneros orais, quando muito, for-
ciointerativa. necem ao aluno apenas o nome do gênero a ser produzido (entrevista,
A experiência narrada aqui se deu durante as aulas práticas do debate, seminário etc.), esperando que ele saiba desenvolver o traba-
lho.
Estágio Supervisionado Obrigatório II (ESO II), em Língua Por-
tuguesa (em 2014, na Unidade Acadêmica da UFRPE em Serra No entanto, para ter sucesso numa tarefa dessa natureza, o aluno
Talhada), com um trabalho integrado com as turmas nas quais o precisa ser orientado sobre os contextos sociais de uso dos gêneros re-
estágio foi desenvolvido, 6º, 7º e 8º anos do Ensino Fundamen- queridos bem como familiarizar-se com suas características textuais
tal da Escola Estadual Irnero Ignacio, com a proposta do ensino (composição e estilo, entre outras). O aluno necessita saber, por exem-
plo, que apresentar um seminário não é meramente ler em voz alta
da leitura e escrita por meio da perspectiva dos gêneros textuais. um texto previamente escrito. Também não é se colocar à frente da
Nossos objetivos estiveram voltados para a criação de uma pro- turma e “bater um papo” com os colegas sobre aquilo que pesquisou.
posta de trabalho com a leitura e escrita que culminasse em algo (CAVALCANTI; MELO, 2007, p. 89-90).
que fosse além da avaliação pura do desempenho dos alunos na
adequação gráfica, conforme os padrões de escrita do da Língua Existe a cultura de que não é necessário ensinar a modalidade
Portuguesa (LP). Para tanto, nossa proposta foi desenvolver o tra- de língua oral aos alunos porque eles já vêm de suas casas com
balho com os gêneros HQ, fábula, conto, poesia e toada com o essa competência pronta. De fato, é óbvio que eles já possuem um
propósito de divulgar para escola o que fosse desenvolvido por repertório muito amplo e sabem lidar em vários contextos com a
cada aluno. Por se tratar de uma seleção de gêneros textuais, no- língua falada, já que se comunicam a todo o momento por meio
meamos o projeto de Colcha de gêneros. dela, entretanto, ao educador cabe a obrigação de refletir que al-
No ensino de LP é necessário considerar que a modalidade guns gêneros orais seus alunos não produzem no dia a dia, como
da língua oral é tão importante quanto a escrita, e isso se aplica por exemplo, o seminário. Este gênero requer certa formalidade e
também aos gêneros de ambas as modalidades. Como defendem disposição frente a pessoas que embora eles já conheçam não se
vários estudiosos, entre os quais se destaca Luiz A. Marcuschi em trata de um momento de conversa informal e natural, mas sim de
vários trabalhos escritos e em um programa chamado “Bate-Pa- um momento em que todas as atenções, inclusive a do professor-
po Acadêmico”, promovido pelo Núcleo de Investigações sobre -avaliador, estarão voltadas para ele. Nesse momento a situação e
Gêneros Textuais (NIG-UFPE). A edição foi nomeada por “Fala o contexto de produção oral são distintos dos demais momentos
e Escrita”, produzida em julho de 2012 e está disponível em três de sua vida. Por isso, cabe ao professor trabalhar essas formas de
blocos, disponíveis em: <http://www.nigufpe.com.br/serie-aca- expressão de seus alunos.
demica/volumes/volume-2-fala-e-escrita/>. Na edição, Marcus- Ainda nesse sentido, mesmo aqueles gêneros que os alunos já
chi juntamente com Angela P. Dionísio levantam muitos pontos conhecem e já praticam no dia a dia valem destaque, principal-
relevantes sobre as modalidades de fala e escrita mostrando que mente quando, por exemplo, trata-se de gêneros da tradição oral
ambas têm suas singularidades, mas cada uma possui relevância, que nos remetem a uma região, a cultura de um povo, como é o
desfazendo-se assim o equívoco da supremacia da escrita em re- caso do abio, da toada e do repente. Gêneros estes que são carac-
lação à oralidade. terísticos da região do sertão nordestino e que merecem que suas
Ainda no sentido do trabalho com a valorização de gêneros da raízes mantenham-se vivas.
oralidade na sala de aula, Cavalcanti e Melo (2007, p. 89-90), ba- Os gêneros textuais surgem através de situações que são viven-
seadas em Silva e Mori-de-Angelis (2003, p. 207) asseguram que, ciadas e compartilhadas socialmente, a fim de que possam alcan-

145
çar um determinado objetivo. Marcuschi (2008) nos explica que também da tarefa do professor em eleger quais tipos de produção
ou gêneros possuem relevância ao contexto de seus alunos. Nem
[...] cada gênero textual tem um propósito bastante claro que o de- todo gênero deve ser trabalhado em sala de aula, alguns estão
termina e lhe dá uma esfera de circulação. [...] todos os gêneros tem mais restritos a uma esfera da sociedade e o ensino deles não te-
uma forma e uma função, bem como um estilo e um conteúdo, mas
rão grande significado para o aluno. Por outro lado, alguns gêne-
sua determinação se dá basicamente pela função e não pela forma.
ros, principalmente aqueles de maior circulação e acesso de todos
(MARCUSCHI, 2008, p. 150).
precisam ser bem trabalhados. Ensinar nosso aluno a formular
Compreendemos que atualmente, e cada vez mais, acentua-se um abaixo-assinado ou uma declaração, por exemplo, é dar a ele
a necessidade de trabalhar em sala de aula o texto, a relação com a possibilidade de usar o que foi ensinado na escola para exercer
a linguagem e as possíveis formas de interação. A intenção é fazer sua cidadania. É mostrar a ele que o que foi lhe ensinado possui
com que os alunos compreendam a função que um determinado uma finalidade.
texto exerce socialmente. Há também aqueles gêneros que não necessariamente pos-
Existem diferentes gêneros que nos possibilitam uma interação suem uma função social explícita, mas que se caracterizam pelo
social através do contexto de produção ao qual estamos inseridos. viés da recreação e que podem exercer algum impacto na forma-
Eles estão relacionados aos mais variados tipos de textos, que tem ção social e ideológica do nosso aluno. Um exemplo seria o traba-
uma determinada finalidade de interação voltada para o uso da lho com a fábula, que à primeira vista seria um gênero “ingênuo”,
linguagem e seu funcionamento da língua. mas que pode nos mostrar muitos pontos positivos, não apenas
De acordo com Marcuschi (2008, p. 161) os gêneros são “ne- o recreativo, já que conforme Michelli (2007 p.9 – In: <http://alb.
cessários para a interlocução humana” e estes são criados e con- com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais16/sem08pdf/
vencionados segundo as necessidades sociais, é “conveniente par- sm08ss05_02.pdf>):
tir de uma situação” em sala de aula, para possibilitar que o seu
Acompanhar a trajetória da fábula significa atravessar os tempos bus-
trabalho não se torne artificial. Eles podem ser orais ou escritos cando compreender o homem e seu viver em sociedade. A intertex-
dependendo de suas diferentes intenções e finalidades específicas. tualidade, estabelecendo a relação com textos anteriores, revitaliza a
Nessa mesma perspectiva de evitar que o texto torne-se pura- fábula, permitindo a abordagem de diferentes “mundos” – o literário,
mente artificial, Silva (2012, p. 7) esclarece que “É necessário um o social, o histórico –, segundo a época estudada.
trabalho progressivo e aprofundado com os gêneros textuais orais
e escritos, envolvendo situações em que essa exploração faça sen- Nesse sentido, o gênero fábula pode ajudar não só no desen-
tido”. Fazer sentido significa ter representatividade também para volvimento da competência escrita, e das primeiras noções sobre
o aluno escritor, e não apenas para o professor avaliador. A priori- intertextualidade, mas também leva a reflexão sobre valores éticos
dade da atividade precisa estar centrada no desenvolvimento da- ao convívio em sociedade.
quele e não essencialmente na avaliação deste. Ainda pensando sob o viés interacionista, a escrita desse gêne-
O trabalho com a escrita dos gêneros e de qualquer produção ro também remete a percepção e direcionamento duplo ao outro,
textual precisa estar pautado principalmente no planejamento (cf. ao seu interlocutor. Isso porque, além de fazer nosso aluno pensar
ANTUNES, 2003). Este planejamento inclui não só a preparação na maneira mais adequada de escrever e se fazer entender, ele tem
dos alunos para escrever sobre determinado tema, mas faz parte a missão de criar uma situação em que se possa tratar uma moral
humana, um valor ético.
146
O contexto de preparação para a produção textual precisa tam- escolar o trabalho desenvolvido com as turmas supracitadas. Du-
bém estar distante da velha forma de se trabalhar com escrita em rante a apresentação, não apenas divulgamos as produções dos
sala de aula. Ao pensarmos em escrita, portanto, devemos pensar alunos, como também contamos com o envolvimento da maioria
nas orientações presentes nos PCNs (1998) e em Antunes (2003) deles na preparação do ambiente e recepção dos colegas de outras
que enfatizam a necessidade do trabalho com a escrita dar-se em turmas do ensino fundamental 1 e 2, que vieram visitá-los com
três etapas: planejamento, escrita e reescrita, pois “[...] não basta seus professores.
o cumprimento da etapa de escrever. É preciso que se providencie A apresentação ocorreu no salão da biblioteca, onde montamos
uma etapa anterior e uma posterior à escrita propriamente” (AN- mesas específicas para funcionarem como rodas de leitura para
TUNES, 2003, p. 59). Estas etapas se correlacionam e cumprem cada gênero e, como as produções foram escritas em formato de
funções específicas na produção do texto. livretos, elas foram distribuídas em envelopes em cada mesa para
Não teremos bons textos, provenientes dos alunos em níveis que os visitantes pudessem pegar e lê-las. Também montamos da-
de ensino inicial, que possuem um repertório curto de visão de tashow com a exibição de uma entrevista feita por com um aluno
mundo, se solicitarmos deles produções sem prepará-los previa- que desenvolve HQs e para exibição de imagens dos momentos de
mente; sem lhes oferecer condições necessárias para desenvolver produção dos gêneros, além de um vídeo com a apresentação dos
bem seu texto, tanto em temática quanto nos aspectos linguísticos alunos cantando aboio. Além disso, eles e o “cartunista” também
e estéticos que correspondem ao gênero desenvolvido. fizeram apresentação ao vivo para os presentes no salão.

METODOLOGIA

Nossa metodologia se desenvolveu nos seguintes passos: (i)
apresentação em forma de rodas de leituras dos gêneros a serem
trabalhados em cada turma, de modo que os alunos tivessem con-
tato com a parte estrutural do gênero, de forma sutil e principal-
mente pudessem conhecê-los ou revisitá-los por meio do acesso a
tais textos em sala de aula; (ii) aplicação dos conceitos e estudo de
cada gênero trabalhado, observando a estrutura, função e meios
de circulação de cada gênero; (iii) orientação e apoio nas primei-
ras escritas dos gêneros; (iv) revisão e reescrita das produções, Foi muito nítida a motivação dos alunos participantes do pro-
além de ilustrações dos gêneros compostos também pela lingua- jeto tanto durante a produção dos gêneros, com um trabalho cole-
gem visual. tivo bastante proveitoso onde a grande maioria esteve integrada e
produzindo, quanto durante a preparação para apresentação para
RESULTADOS E DISCUSSÃO a escola. Esta experiência reforça a ideia de que uma das vias para
o trabalho com a produção de textos deve ser sempre um pla-
Como resultados destacamos, sobretudo, o dia da apresentação nejamento baseado em qual destino será dado às produções dos
do Colcha de gêneros, quando pudemos mostrar à comunidade alunos. Percebemos que é preciso valorizar a escrita dos alunos

147
de modo que ele sinta-se motivado a escrever mais e saiba que tros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC, 1998.
aquela escrita chegará a outras pessoas, para além da correção do CAVALCANTI, M. C. B.; MELO, C. T. V. Gêneros orais na escola.
professor. In: SANTOS, C. F.; MENDONÇA, M.; CAVALCANTI, M. C. B.
(Org.). Diversidade textual: os gêneros na sala de aula. 1. ed., 1.
CONSIDERAÇÕES FINAIS reimp. Belo Horizonte: Autêntica , 2007. p. 89-90.
GERALDI, J. W. Concepções de linguagem e ensino de português.
Chegamos à conclusão de que é preciso ofertar aos nossos alu- In: GERALDI. J. W. (Org.). O texto na sala de aula. 4. ed. São Pau-
nos um contexto de ensino-aprendizado mais dinâmico, atrativo lo: Ática, 2006. p. 39-46.
e direcionado a objetivos que não sejam apenas de aprender a li- ______. Unidades básicas do ensino de português. In: GERALDI.
dar com a LP no seu viés estrutural e categórico. As aulas de LP J. W. (Org.). O texto na sala de aula. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006.
precisam ser renovadas, é necessário dar espaço tanto às produ- p. 59-77.
ções escritas quanto as orais, pois embora cada uma tenha suas ______. Prática da leitura na escola. In: GERALDI. J. W. (Org.). O
particularidades, ambas precisam ter igual importância e serem texto na sala de aula. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 88-99.
reconhecidas como tal nesse contexto. HERÓDOTO et al. O anel de Polícrates e outras histórias. ACH-
As atividades de regência foram fundamentais para que pu- CAR, F.; HAFEZ, R. (Orgs.). Sistema Objetivo de Ensino. São Pau-
déssemos “testar” práticas de ensino voltadas à perspectiva dos lo: Sol, 1998.
gêneros e mostrar, por meio do sucesso da culminância do pro- MARCUSHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e com-
jeto Colcha de gêneros, que o trabalho com língua não pode ficar preensão. São Paulo: Parábola, 2008. p. 149-161.
restrito à gramática normativa. Além disso, percebemos também MICHELLI, R. S. A fábula e suas armadilhas. In: ALB - Asso-
que a integração dos alunos no processo de produção daqueles ciação de Leitura do Brasil: 16º Congresso de Leitura do Brasil.
textos se deu graças ao fato deles escreverem sobre algo que ti- Anais... Disponível em: <http://alb.com.br/arquivo-morto/edico-
nham conhecimento e sabiam como deveriam produzir. Outro es_anteriores/anais16/sem08pdf/sm08ss05_02.pdf>. Acesso em:
ponto muito importante que podemos considerar decisivo para a 10 nov. 14.
participação daqueles alunos foi eles saberem qual a finalidade da NÚCLEO DE INVESTIGAÇÕES SOBRE GÊNEROS TEXTUAIS
atividade: mostrar para escola, mostrar para os demais colegas o (NIG-UFPE) Fala e Escrita. [Vídeo] julho de 2012. Disponível em:
que eles haviam produzido do próprio punho. <http://www.nigufpe.com.br/serie-academica/volumes/volume-
-2-fala-e-escrita/>. Acesso em: 11 jul. 14.
SILVA, L. N. Os gêneros textuais em foco: pensando na seleção
REFERÊNCIAS e na progressão dos alunos. In: BRASIL. Secretaria de Educação
Básica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Pacto nacional
ANTUNES, I. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: pela alfabetização na idade certa - O trabalho com os diferentes
Parábola, 2003. gêneros textuais na sala de aula: diversidade e progressão escolar
______. Muito além da gramática: por um ensino de gramática andando juntas: ano 03, unid. 05 / Brasília: MEC, SEB, 2012, p. 6
sem perdas no caminho. São Paulo: Parábola, 2006. a 11.
BRASIL, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâme-

148
RESUMO Palavras-chave: Oralidade, Gêneros Orais, Livro Didático, Ar-
gumentação, Linguística Aplicada
Este artigo traz o resultado de uma investigação concernen-
te ao espaço dado nos Livros Didáticos aos gêneros textuais da
oralidade, com ênfase para aqueles de natureza argumentativa. ORALIDADE E ARGUMENTAÇÃO: INVESTIGAN-
Concebendo a escola como o ambiente de excelência para práti- DO O ENSINO DE GÊNEROS ORAIS NOS LIVROS
cas de ensino e de aprendizagem, cuja função social é habilitar os
DIDÁTICOS
educandos à vida social, preparando-os para as diversas situações
interacionais do cotidiano, à sala de aula cabe o ensino da língua
Karla Soatman¹
tanto na modalidade oral quanto na escrita. Contudo, não é sem-
Eduardo Henriques²
pre que isto se verifica. Por esta realidade, ratificada em diversas
pesquisas acadêmicas, este trabalho prestigiou a língua em sua
¹Estudante do Curso de Mestrado em Linguística do Progra-
materialidade oral, buscando compreender a sua operacionaliza-
ma de Pós-Graduação em Letras – CAC – UFPE; E-mail: kjgsu-
ção didatizada tendo o livro didático como sólido indicador, haja
fpe@gmail.com
vista a sua posição destacada nas práxis escolares em todo o país.
²Docente do Departamento de Letras – CAC – UFPE; E-mail:
À luz de Koch (2006), que afirma que todo texto é iminentemente
eduardohenriquesdearaujo@hotmail.com
argumentativo, buscamos verificar o ensino dos gêneros orais se-
gundo os norteamentos do livro didático, com primaz atenção à
argumentatividade na fala, em virtude do defendido nas diretrizes
Resumo - A oralidade como objeto de ensino não é um assun-
curriculares do MEC para os anos finais do Ensino Fundamen-
to novo. Ainda que há muito haja forte preocupação com o assun-
tal: gêneros da fala mais complexos e que demandam habilida-
to, percebe-se que os gêneros orais não ocupam lugar privilegiado
des comunicacionais aprimoradas. O corpus é composto por um
em sala de aula. Percebe-se, ainda, que junto ao déficit de ensino
exemplar do 9º ano da coleção Português: Linguagens, William
de gêneros orais, vige uma deficiência da exploração da argumen-
Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães (2012). Esta escolha
tação oral na escola. Portanto, ao considerar os manuais didáticos
baseou-se em dois critérios: (i) aprovação da coleção pelo siste-
enquanto cernes das práticas pedagógicas escolares, esta pesquisa
ma de avaliação do Programa Nacional do Livro Didático e, por
observou como se dá a abordagem da oralidade nos Livros Didá-
conseguinte, resenhada no Guia PNLD/2014 e (ii) pertencer às
ticos, e analisou se a competência argumentativa é contemplada
cinco mais bem distribuídas no Brasil. Fundamentada em estudos
no ensino dos gêneros orais. O objeto de análise desta pesquisa foi
de Bakhtin ([1992]2010), Marcuschi (2001), Dolz e Schneuwly
o manual didático do 9º ano do Ensino Fundamental Anos Finais
(2004), Neves (2001), Koch (2006), Leitão (2012), entre outros.
da coleção Português: Linguagens, dos autores: William Cereja
Os resultados denunciam a insuficiência no ensino de gêneros
e Thereza Magalhães. A coleção foi aprovada pelo PNLD/2014 e
orais, evidenciado na averiguação da argumentação na fala, sa-
está entre as mais bem distribuídas nacionalmente. Nossa avalia-
liente nesta análise de livro didático. Entretanto, a pesquisa aponta
ção apontou que, ainda que os documentos oficiais reiterem a im-
alguns avanços acerca do ensino da oralidade.
portância de desenvolver as capacidades orais do aluno, avanços
são necessários no trato da argumentação oral e dos gêneros orais

149
nos livros didáticos. As teorias e pesquisas que ancoraram essa de Marcuschi de que a oralidade é “uma prática social interativa
pesquisa são de autores como: Bakhtin ([1992]2010), Marcuschi para fins comunicativos que se apresenta sob variadas formas ou
(2001), Dolz e Schneuwly (2004), Ribeiro (2009), Leitão (2012), gêneros textuais fundados na realidade sonora” (2001, p. 25). Isto
Koch (2006), etc. é, a partir da fala nos comunicamos em diversas situações, nos fa-
zemos ser entendidos pelo outro e nos posicionamos na sociedade
em que vivemos. Então, devemos lançar um olhar mais cuidadoso
Palavras-Chave: Argumentação; Gêneros Orais; Linguística ao trabalho da oralidade na sala de aula.
Aplicada; Livro Didático; Sabendo que, como nos diz Marcuschi (2001), não há uma su-
premacia da escrita sobre a fala, mas há uma primazia cronológica
desta sobre aquela, reconhecemos que em nosso cotidiano par-
INTRODUÇÃO ticipamos de diferentes situações comunicativas e que a maioria
delas se dá no âmbito oral. Entretanto, ainda que reconheçamos
Ao possibilitar um estudo sobre oralidade e argumentação, o uso intenso da oralidade, percebemos que a escola, por mui-
adentramos em um universo antigo, mas que ainda precisa de tas vezes, não contempla gêneros formais, isto é, que exijam mais
muita atenção, principalmente, na sala de aula. Sobre a oralida- sofisticação na modalidade oral da língua materna. Em geral, na
de, como afirma Marcuschi (2001), o homem “pode ser definido instituição escolar, o aluno é levado a produzir textos orais de si-
como um ser que fala e não como um ser que escreve”, por isso, tuações coloquiais.
defendemos o quão é importante uma maior dedicação dos pro- A partir de pesquisas, nota-se que, na maioria das vezes, os
fessores aos gêneros orais, em especial, àqueles mais formais usa- gêneros que a escola – mais especificamente os livros didáticos –
dos em contextos públicos. requer são os usados no cotidiano do aluno, como: diálogo, telefo-
O autor supracitado nos dá uma série de razões para ter um nema, entrevista informal, etc. Pudemos perceber isso a partir de
pouco mais de atenção com a oralidade, como por exemplo, as- levantamentos feitos por estudiosos da área nos Anos Iniciais aos
sim como a modalidade escrita, a modalidade oral também tem Anos Finais do Ensino Fundamental. Por exemplo, Leal, Brandão
as suas regras em a sua sintaxe, ainda que pareça que não. A fala e Lima (2012) trazem uma análise de quatro coleções do Ensi-
não corresponde a, simplesmente, reproduzir um aglomerado de no Fundamental Anos Iniciais aprovadas pelo PNLD e constatam
frases ou reproduzir um pensamento, mas significa uma forma de que os gêneros orais mais presentes são aqueles informais, usa-
agir criticamente no mundo (KOCH, 2000). Entretanto, ainda, é dos em situações corriqueiras. Em um estudo elaborado por Cruz
possível encontrar pessoas que não conseguem se expressar coe- (2012) em sua dissertação de mestrado, constata-se, também, que
rentemente ou que têm medo de expor as suas opiniões em públi- os livros do Ensino Fundamental Anos Finais, embora aprovados
co. Para nós, isso se dá quando o indivíduo não tem familiaridade pelo Programa Nacional de Livro Didático, precisam reformular
com o gênero exigido e, portanto, não consegue adequar o seu seu trabalho com os gêneros orais formais públicos. Dessa forma,
discurso à situação comunicativa. Dessa forma, compreendemos comprova-se a necessidade de rever o que e como ensinar gêneros
que é um equívoco afirmar que não é necessário trabalhar a fala orais na instituição escolar.
do indivíduo, já que falar de um assunto em um gênero não será Em relação à argumentação, Breton (2003) afirma que todos
do mesmo jeito em outro gênero. Concordamos com a afirmação os indivíduos, desde cedo, já são cientes de suas capacidades ar-

150
gumentativas e que a questão do ensino da argumentação com a deste estudo é observar aspectos da modalidade oral da língua.
oralidade não é recente. Esses dois vieses foram tidos como objeto Ressalta-se também que a coleção cujo livro faz parte é destinada
de estudo de uma das mais antigas disciplinas, a retórica. Esta foi, aos Anos Finais do Ensino Fundamental.
durante muito tempo, o foco de todo o ensino. Nela, o ser humano Para optar pelo livro didático desta coleção, fizemos uso de al-
era treinado para falar em público com o objetivo de convencer o guns critérios: (i) a coleção deveria ter sido aprovada pelo sistema
outro de suas ideias e, como Koch (2006) nos mostra, todo discur- de avaliação do Programa Nacional do Livro Didático e, por con-
so é carregado de ideologias socioculturais. seguinte, resenhada no Guia PNLD/2014; (ii) A coleção deveria
Percebe-se, ainda, como nos mostra Leitão (2011), Koch estar entre as três mais bem distribuídas no Brasil; (iii) a resenha
(2006), Breton (2003) e Ribeiro (2009), que a todo o momento: do PNLD/2014 deveria elogiar a coleção no que diz respeito ao
defendemos um ponto de vista, formamos opiniões sobre um de- eixo da oralidade.
terminado tema, convencemos as pessoas acerca de algo, etc. As- Apenas a partir do enquadramento nesses critérios, escolhe-
sim, percebemos a importância de trabalhar a capacidade de argu- mos nosso objeto de análise. Dessa forma, optamos por escolher
mentar e contra-argumentar nas diversas situações comunicativas a coleção de Cereja e Cochar, Português: linguagens (a coleção
e em diferentes gêneros orais. Entretanto, ainda é perceptível um que está em primeiro lugar na tabela de distribuição), já que o
grande déficit na escola quando se trata de trabalhar argumenta- PNLD/2014 expõe que as atividades da coleção “possibilitam ex-
ção e oralidade em sala de aula. Professores compartilham a ideia periências efetivas de uso da linguagem oral em instâncias sociais
de que não é necessário trabalhar a oralidade em sala de aula, já públicas e formais”. Chamamos a atenção para essa coleção, pois
que a criança aprende a falar por ela mesma, e que a capacidade seus autores são bastante conhecidos e elogiados no meio escolar
argumentativa é algo inato ao ser humano, portanto não necessita e, como está em primeiro lugar na tabela de distribuição, vamos
de ensinamentos. Entretanto, como veremos na fundamentação analisar algo que sabemos estar atualmente na sala de aula.
teórica, vários estudos comprovam o contrário. Como nosso foco também é analisar a argumentação oral do
Portanto este trabalho de pesquisa visa desmistificar essa ideia livro didático, esse nível de escolarização corresponde às nossas
equivocada presente no pensamento de muitos e, subjacente a expectativas, pois inferimos que um aluno do nono ano do Ensino
isso, defender a importância de trabalhar gêneros orais formais Fundamental saiba argumentar mais formalmente do que os alu-
concomitantemente com a argumentação. Procuraremos analisar, nos do sexto ano, por exemplo. E, dessa forma, o manual didático
em um livro didático, como se dá a abordagem da oralidade, se deve incentivar e ampliar a capacidade argumentativa do estudan-
nele há interligação entre argumentação e modalidade oral, com te. Dito isso, passaremos, agora, a explicar a escolha das atividades
quais gêneros orais o manual trabalha e, por fim, observaremos se do livro didático.
a capacidade argumentativa do aprendiz é estimulada juntamente
com os gêneros trabalhados. RESULTADOS E DISCUSSÃO

METODOLOGIA O livro didática analisado se organiza através de unidades te-


máticas, as quais trazem consigo apenas duas seções em que há a
Para esta pesquisa, optamos por selecionar um livro didático presença de gêneros textuais didatizados, passíveis de um ensino
do componente curricular Língua Portuguesa, já que o objetivo de e através de gêneros textuais. Estas seções são intituladas “Es-

151
tudo do Texto” e “Produção de Texto”, cujo diálogo entre ambas conclusão do estudo do gênero ocorre com uma atividade de pro-
culmina por privilegiar acentuadamente os gêneros textuais rea- dução de um texto jornalístico, orientando o aluno a utilizar as re-
lizados na escrita – ou que em havendo duas modalidades de re- portagens lidas como “molde” - uma mera engenharia de gênero.
alização, há a possibilidade escrita e esta é a tratada pelo manual, Em síntese, o livro didático trouxe uma boa proposta de pro-
como é o caso do gênero “conto”. dução, mas não abordou a reportagem oral. E, quanto à argumen-
É salutar que o livro aborda a modalidade escrita de modo tação, os exercícios, em nenhum momento, preocuparam- se em
criativo e diversificado, levando o aluno a uma experiência cujo desenvolver a capacidade argumentativa do educando à luz de
enfoque é o vislumbre de um vasto universo discursivo realiza- práticas de letramento.
do por meio da linguagem escrita. Abordando tanto questões da Já o gênero Conto é proposto nos três capítulos da segunda
identidade e da estrutura dos gêneros quanto aspectos mais dis- unidade, havendo o acréscimo do Projeto Quem conta um conto
cursivos, como a argumentatividade, em sua concepção conven- aumenta um ponto. Contudo, ao longo de toda a unidade, assim
cer versus persuadir, o Português: Linguagens atua em consonân- como na análise do gênero anterior - Reportagem, o educando
cia com estabilizados prelados do ensino da língua portuguesa no só teve contato com as especificidades do gênero a partir de per-
que concerne à glosar a língua e da língua de modo sistematizado guntas de interpretação de texto. Ressalte-se que a mediação do
e sistêmico, com lentes epi e metalinguísticas. Todavia, o que dizer docente não é solicitada a fim de promover uma experienciação
acerca da oralidade? do gênero mais profícua e apreensiva. Na atividade final, realizada
O escasso, para não dizer nulo trabalho efetivo da modalidade na seção Produção de Texto, a produção é feita a partir de inícios
oral da língua pelo livro didático supracitado traz à baila não um de conto.
quadro raro, mas uma situação persistente no ensino da língua Chama a atenção, além de todo o exposto, o fato de o Livro
materna nas escolas brasileiras. Ainda que haja espaço, deman- Didático focar em aspectos formais do conto como: introdução,
da e orientações pedagógicas de cunho teórico-metodológico, os complicação, clímax e desfecho da história. E mais, reproduz um
gêneros orais seguem negligenciados nas salas de aula. No caso embate acerca do “escrever certo” versus a reflexão do “uso da lín-
do Português: Linguagens, houve condições e possibilidades re- gua”, sem que tenha havido uma contextualização deste cenário
ais de um trabalho concreto e primaz com as nuances da língua dentro das possibilidades de modalidade, variação, contextos de
falada. Os gêneros Reportagem, Conto e Debate Público Regrado uso e registro de língua. Verificou-se que nos três capítulos o foco
figuram no livro e poderiam ter sido instrumentos de ensino da é o conto escrito, sendo negligenciada a origem do conto na ora-
oralidade formal e da argumentação oral em métier didatizado. lidade. Por fim, o Projeto Quem Conta um Conto Aumenta um
Contudo, isso não se realizou. Ponto é a reunião de contos escritos e a produção de uma mostra.
O gênero Reportagem é trabalhado em 2 capítulos da 1ª uni- Por sua vez, o Debate Regrado Público, o único gênero predo-
dade, havendo na seção Estudo de Texto a proposta de leitura minantemente oral e explicitamente argumentativo, é abordado
de duas reportagens, de fontes diferentes, sobre o mesmo tema, pelo livro. Verifica-se uma maior atenção para o contexto discur-
com o objetivo de o aluno responder questões de interpretação de sivo do gênero ao longo dos dois capítulos da 2ª unidade – onde o
texto. Por sua vez, na seção Produção de Texto figura mais uma mesmo é trabalhado.
reportagem e mais exercícios de interpretação. Ou seja, as ativida- A abordagem deste gênero, tipicamente oral e genuinamente
des norteiam a percepção do gênero por inferência e, além disso, a argumentativo, deu-se da seguinte forma:

152
Capítulo 1: Seção de Produção de texto: leitura e transcrição de ízes na oralidade, na tradição da contação de estórias e transmis-
um debate e, em seguida, encontram-se questões de interpretação são de ensinamentos e moralidades através de narrativas a qual
de texto; Debate sobre “Televisão: deformadora de costumes ou remonta a Antiguidade. Ainda que contenha um projeto aludindo
espelho de uma sociedade doente”; Leitura de quatro textos com à modalidade oral do gênero - Quem Conta um Conto Aumenta
teses diferentes. um Ponto – o que se observa é, mais uma vez, um deturpamento
Capítulo 2: Reflexão de aspectos formais do gênero = função com vistas à asseveração da modalidade escrita.
do moderador, regras de um debate, regulação de trocas, anima- Note-se, também, uma grande dificuldade de explorar a orali-
ção e aprofundamento, etc. dade em sintonia com o desenvolvimento da habilidade argumen-
O encaminhamento de produção é bem mais estruturado com- tativa do educando, haja vista que esta só é tratada para a escrita,
parado ao capítulo anterior, pois após a leitura dos textos, promove tal qual foste prerrogativa da escrita o ato de argumentar.
um discussão. Entretanto, os exercícios propostos não apresenta- O livro apresenta uma contradição que há entre o que dizem
ram estratégias argumentativas adequadas e, tampouco, mostrou os documentos oficiais e o que fazem os livros didáticos, pois é
aos alunos como a argumentação se faz presente nestas realiza- latente o desencontro entre o que o PNLD/2014 afirma e o que
ções linguísticas. Por fim, o trabalho é finalizado com a proposta o livro verdadeiramente faz. Quadro facilmente detectável nos
de produção de uma Reportagem - gênero de outra unidade que exercícios, os quais estão mais preocupados com aspectos formais
não esta, e, mais uma vez, em sua modalidade escrita. do gênero do que com o uso dele, apartando o trabalho com gê-
Pelo exposto, o Livro Didático é eficiente quando traz o deba- neros de uma perspectiva de letramento, apreensão e autonomia
te de temas atuais e de conhecimento dos educandos, e quando linguística. Isto pode ser resumido em uma análise simples: o li-
possibilita a leitura de textos antes da produção. Mas oferta graves vro não trouxe atividade que possibilitasse a compreensão d’o que
lacunas no que tange à oralidade, à oralização e à reflexão concer- fazer e como fazer.
nente às modalidades da língua. Ainda por cima, o livro trouxe Portanto, o livro carece de severos ajustes a fim de se tornar
um gênero oral formal público, mas não explorou a formalidade apto ao ensino da oralidade abalizado com o da escrita, ofertando
da linguagem – o que culmina no trabalho com um gênero argu- ao aluno uma compreensão e apreensão holísticas das práticas,
mentativo, porém sem explorar a argumentação. possibilidades e demandas de linguagem. Em suma, à escola “É
necessário definir claramente as características do oral a ser ensi-
CONSIDERAÇÕES FINAIS nado” (DOLZ E SCHNEUWLY,2004, p. 126).

Em virtude de todo o percurso investigativo realizado, perce-


be-se- que o livro didático Português: Linguagens apresenta de- REFERÊNCIAS
ficiências na abordagem de gêneros orais. Isto se verifica quando
dentre os gêneros trazidos pelo livro, somente um deles era tipica- BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 5 Ed. São Paulo:
mente oral – o Debate Regrado Público. Editora WMF Martins Fontes, 2010.
Outra séria constatação é a de que, quando o gênero se configu- BAUER, Martin W; GASKELL, George (editores). Pesquisa quali-
ra nas duas modalidades, o livro privilegia a modalidade escrita. tativa com texto: imagem e som: um manual prático. Tradução de
Isto é notório na abordagem do gênero Conto, o qual tem suas ra- Pedrinho A. Guareschi. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

153
BRASIL, Ministério de Educação. Guia de Livros Didáticos:PNLD em contexto de ensino. São Paulo: Cortez, 2009.
2014: língua portuguesa: ensino fundamental: anos finais – Brasí- SILVA. Maria Shenia Bezerra. As atividades de produção escrita
lia: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2013. no livro didático e o desenvolvimento da crítica e da autonomia
BRETON, Philippe. A argumentação na comunicação. Tradução do aluno autor. Recife. Dissertação de Mestrado em Letras. Pro-
de Viviane Ribeiro. 2 ed. Bauru, São Paulo: Edusc, 2003. grama de Pós-Graduação em Letras (UFPE), 2014.
CASTILHO, Ataliba Teixeira de. A língua falada no ensino de
português. 3 Ed. São Paulo: Contexto, 2000.
CEREJA,William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Por-
tuguês: linguagens, 9º ano: língua portuguesa. 7 Ed. São Paulo: RESUMO
Saraiva, 2012.
CRUZ, Welington de Almeida. Gêneros Orais nos Livros Didá- Este trabalho objetiva analisar e compreender o lugar ocupado
ticos de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de pela variação linguística em dois volumes didáticos (6º e 9º ano)
Letras, 2012. do ensino fundamental, de língua portuguesa, da Coleção Para
DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY,Bernard. Gêneros orais e escritos Viver Juntos, indicada pelo Programa nacional do Livro Didático
na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. – PNLD, se fundamentando nos constructos teóricos da Socio-
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e linguagem. linguística, principalmente, do viés variacionista, que desencade-
10 ed. São Paulo: Cortez, 2006. aram propostas de ensino fundamentadas na correlação existen-
LEITÃO, Selma. O lugar da argumentação na construção do co- te entre língua e sociedade, mostrando que a realidade empírica
nhecimento em sala de aula. IN: S.Leitão; na esfera linguística é o fato de que as línguas mudam, seja por
M. C. Damianovic (Orgs). Argumentação na escola: o conheci- fatores linguísticos ou extralinguísticos. Nesse sentido, busca-se
mento em construção. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011. averiguar o tratamento dado às variações linguísticas nos volu-
LEAL,Telma; GOIS, Siane (Orgs.). A oralidade na escola: a inves- mes da coleção supracitada e a sua relação com os Parâmetros
tigação do trabalho docente como foco de reflexão. Belo Horizon- Curriculares Nacionais - PCNs (BRASIL, 2000), a fim de que se
te: Autêntica Editora, 2012. possa contribuir tanto para a formação e o trabalho do professor,
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de quanto para o processo de ensino-aprendizagem dos aprendizes
retextualização. São Paulo: Cortez, 2001. na escola, dado o lugar ocupado pelos livros didáticos na educa-
NEVES, Maria Helena de Moura. Língua falada, língua escrita e ção brasileira. Para tanto, buscou-se construir dois quadros, um a
ensino: reflexões em torno do tema. IN: H.Urbano, A.R.F.Dias, et partir de uma pergunta principal e sete subsequentes e o outro, a
al. (Orgs). Dino Preti e seus temas: oralidade, literatura, mídia e partir da análise dos livros, no qual colheu-se exemplos. Para isso,
ensino. São Paulo: Cortez, 2001. toma-se como base teórica os disseres de autores, tais como: Fara-
PERNAMBUCO, Secretaria de Educação. Parâmetros Curricula- co (1998), Bagno (1999), Alkmim (2001), Camacho (2001), Mar-
res de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental e Médio do cuschi (2001) e Carmona-Ramires (2013), que problematizam a
Estado de Pernambuco. –Pernambuco: Secretária de Educação, lingua(gem) desde uma perspectiva realista, de uso; isto é, sob a
2012. óptica da língua como interação. Assim, a pesquisa caracteriza-se
RIBEIRO, Roziane Marinho. A construção da argumentação oral como bibliográfica e documental, de cunho descritivo-qualitativo.

154
A partir das análises realizadas nota-se que as obras apresentam da Coleção Para Viver Juntos, indicada pelo Programa Nacional
um conjunto de atividades que relativamente contribui para o de- do Livro Didático (PNLD) sob a luz dos constructos teóricos da
senvolvimento da reflexão consciente acerca do uso da língua, isso Sociolinguística, principalmente, do viés variacionista, a fim de
por que, ainda, há certa resistência em abordar além dos aspectos averiguar o tratamento dado às variações linguísticas na obra e
de mudanças linguísticas que ocorrem em razão de circunstâncias a sua relação com os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs
geográficas, bem como é notório a escassez na abordagem do uso (BRASIL, 2000). Para tanto, buscou-se construir dois quadros,
da língua em contexto real, se resumindo a algumas questões. um a partir de uma pergunta principal e sete subsequentes e o
outro, a partir da análise dos livros, no qual colheu-se exemplos
Palavras-chaves: língua portuguesa; livro didático; pesquisa apli- que foram analisados tendo como base teórica os disseres de au-
cada; sociolinguística variacionista tores, tais como: Bagno (1999), Alkmim (2001), Camacho (2001),
Marcuschi (2001) e Carmona-Ramires (2013). Assim, a pesquisa
caracteriza-se como bibliográfica e documental, de cunho des-
O TRATAMENTO DADO ÀS VARIAÇÕES LINGUÍS- critivo-qualitativo. A partir das análises realizadas nota-se que as
TICAS NO LIVRO DIDÁTICO DO ENSINO FUNDA- obras apresentam um conjunto de atividades que relativamente
contribui para o desenvolvimento da reflexão consciente acerca
MENTAL
do uso da língua, pois, ainda, há certa resistência em abordar além
dos aspectos de mudanças linguísticas que ocorrem em razão de
circunstâncias geográficas.
José Edson da Silva¹
Ana Karollina Gomes da Silva²
Palavras-chave: Língua portuguesa; Livro didático; Pesquisa apli-
Elizabeth Marcuschi³
cada; Sociolinguística variacionista
¹Estudante do Curso de Letras com habilitação em Língua Espa-
nhola e suas respectivas Literaturas- CAC- UFPE;
INTRODUÇÃO
E-mail: edsons_@hotmail.com
² Estudante do Curso de Letras com habilitação em Língua Espa-
As línguas não são únicas, tampouco homogêneas, pois “as lín-
nhola e suas respectivas Literaturas- CAC- UFPE;
guas humanas não constituem realidades estáticas; ao contrário,
E-mail: ana.karollina0@hotmail.com
sua configuração estrutural se altera continuamente no tempo”
³ Professora/Pesquisadora da Universidade Federal de Pernam-
(FARACO,1998, p.9). Sendo assim, um dos ramos da Linguística
buco (UFPE), locada no Departamento de Letras- Centro de
que se propõe a estudar e analisar os sistemas linguísticos e suas
Artes e Comunicação (CAC); E-mail: bethmaufpe@gmail.com
variações é a Sociolinguística, cujas primeiras pesquisas datam
das décadas de 50 e 60. Seu objeto de estudo é a língua correlacio-
nada à sociedade, pois “linguagem e sociedade estão ligadas entre
Resumo - Este trabalho objetiva analisar e compreender o lu-
si de modo inquestionável” (ALKMIM, 2003, p.21).
gar ocupado pela variação linguística em dois volumes didáti-
A Sociolinguística se divide em duas linhas, a Interacionista e
cos do ensino fundamental (6 º e 9º ano) de língua portuguesa,

155
a Variacionista. A de viés interacional concentra-se nos estudos visto que não podemos monopolizar, padronizar e tratar a língua
relacionados à lingua(gem) dentro de um contexto comunicativo, como única, sem considerar as possíveis diversas formas verbais
enquanto a Variacionista tem como principal preocupação o es- de expressar-se. Nesse sentido, a tríade escola-professor-livro di-
tudo da variação linguística, que acontece de acordo com o meio dático tem um importante papel na formação e conscientização
social no qual se insere o indivíduo, a situação comunicativa, den- do aluno. Para isso, é necessário adotar uma atitude realista diante
tre outras motivações. É a partir dessa perspectiva que o presente das diferenças linguísticas, que se distancie da posição elitizada e
trabalho se aporta. padronizadora da língua adotada na educação durante séculos no
Perpassados anos após a democratização do ensino, ainda, se Brasil e, que ainda hoje é adotada por muitos profissionais na sua
pode observar aulas, cujo interesse é enquadrar a lingua(gem) na prática docente.
dicotomia certo-errado, bem como a abordagem dos livros didá- Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa
ticos (LD), isso advindo de uma visão idealizada e elitista do siste- - PCNs (BRASIL, 2000) conduzem o professor e a escola a um
ma linguístico, que acaba cometendo o que Bagno (1999) chama processo de ensino-aprendizagem que atenda a clientela escolar
de “preconceito linguístico”, devido a não aceitação das diversas que por sua vez, também, não é homogênea. Nesse contexto, os
formas de dizeres e/ou as mudanças ocorridas em diversos con- PCNs propiciam e estimulam a reflexão sobre o funcionamento
textos, por diversos fatores. da língua nos seus diferentes contextos de uso.
A variação linguística é uma realidade inerente em todas as Assim sendo, o presente artigo objetiva analisar e compreen-
línguas; logo, na língua portuguesa não é diferente. O Brasil, por der o lugar ocupado pela variação linguística em dois volumes
exemplo, possui/possuía mais de 150 línguas indígenas, outras didáticos do ensino fundamental (6 º e 9º ano) da Coleção Para
mais de vinte línguas trazidas por imigrantes desde o século XIX e Viver Juntos, indicada pelo Programa Nacional do Livro Didá-
mais de 180 milhões de habitantes, assim caracterizando-se como tico (PNLD) e que foram adotados para o triênio 2014-2016 por
uma nação com uma grande diversidade em todos os aspectos algumas escolas da rede municipal da cidade de Olinda, a fim de
quer seja no cultural, quer seja nos aspectos linguísticos. Todos que possa contribuir para a formação e prática do profissional de
esses povos influenciaram/influenciam a língua de maneira mais educação, bem como para o processo de ensino-aprendizagem de
marcante ou não, pois a língua surge na práxis diária de seus usu- língua portuguesa, dado o lugar ocupado pelo LD na educação
ários, representa identidade e atua de maneira dialógica com a básica brasileira.
cultura de um povo. Como bem coloca Brown (1994) citado por
Carmona-Ramires (2013) “língua e cultura estão intrinsecamente METODOLOGIA
interligados de modo que uma não pode se separar da outra sem
a perda do significado da língua ou da cultura”. Ademais, corro- Esta pesquisa caracteriza-se como bibliográfica e documental,
borando com o pensamento do autor Carmona-Ramires (2013) de cunho descritivo-qualitativo, pois busca-se identificar, regis-
completa: “es imprescindible la enseñanza de las variantes para el trar e analisar as características do objeto de estudo para uma pos-
contacto del alumno con diferentes formas de hablar que, a su vez, terior determinação de efeitos sem a interferência do pesquisador
expresan diferentes culturas e identidades ”. (PEROVANE, 2014) levando em conta duas questões, a naturali-
O reconhecimento disso leva-nos a dá um grande passo e mo- dade e o grau de generalização (PARRA FILH; SANTOS, 2011).
dificar a maneira de pensar, refletir, considerar e ensinar a língua, Para realizarmos a investigação, a priori formulamos uma per-

156
gunta principal (macro) para situarmos a nossa pesquisa, que foi: Assim, a partir dos exemplos colhidos podemos responder as
“As atividades sobre variação linguística levam o aluno a relacio- perguntas subsequentes à macro (quadro II) com S (sim) ou N
nar a forma linguística ao contexto de uso?”. Para auxiliar a per- (não).
gunta macro formulamos sete perguntas subsequentes (micro)
que serviram de aporte à pesquisa, como mostra-nos o quadro a
seguir e que serão respondidas posteriormente mediante análise
dos dados.

A partir da análise dos livros construiu-se um segundo quadro Diante dos presentes quadros busca-se averiguar o lugar ocu-
intitulado de “Levantamento de Exemplos”, no qual o preenche- pado pela variação linguística nos dois volumes didáticos, para
mos mediante a presença dos exercícios práticos do livro, excluin- tanto têm-se como aporte os constructos teóricos da Sociolinguís-
do-se assim, notas e quadros que a coleção costuma utilizar para tica Variacionista e disseres de professora/pesquisadores que pro-
aclarar e trazer uma perspectiva mais teórica. blematizam a questão supracitada. Sendo assim, apresenta-se, a
seguir, os resultados e alguns apontamentos em relação aos dados
coletados.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os dois volumes analisados partem de uma mesma perspec-


tiva, o ensino-aprendizagem e o tratamento dado aos conteúdos
a partir da perspectiva dos gêneros textuais/discursivos diversos
e estruturam-se igualmente. Verifica-se que o trabalho com a va-
riação linguística se apresenta por meio de atividades práticas que
buscam analisar determinados usos linguísticos dentro de um
certo evento comunicativo e correlacioná-los com as causas e cir-
cunstâncias da comunicação, bem como através de boxes (exem-
plos I e II) que auxiliam e explanam sobre os conteúdos, pois,

157
sempre trazem anotações e informações adicionais e importantes
que não são expostas noutras partes do LD. Por outro lado, é im-
portante ressaltar que no LD a variação linguística não é tratada
como “erro”, senão “desvio” promovendo, assim, o reconhecimen-
to e respeito às diversas formas de expressão linguística que estão
condicionadas aos fatores internos e/ou externos à língua, como a
questão geográfica expressa no exemplo III.
Entretanto, ainda, há uma certa resistência em tratar a variação
linguística noutras esferas para além da geográfica. Fazendo um
comparativo entre ambos os livros percebemos que o livro do sex-
to ano possui uma abordagem do tema um pouco mais ampla que
o livro do nono ano, mesmo que deixe a desejar em alguns aspec-
tos da sociolinguística (como um exemplo as variações históri-
cas). Além do mais, no que se refere à indicação de outros supor-
tes e/ou meios que tratem do tema analisado, é possível perceber
que há um déficit, no qual as referências sugeridas são bastante
escassas. São valorizadas nas indicações, obras (filmes/livros) com
outro viés em ambos os volumes.
Apesar das falhas existentes, a obra apresenta um conjunto de
atividades que relativamente contribui para o desenvolvimento da
reflexão consciente acerca do uso da língua e as possíveis mudan-
ças (desvios) que pode ocorrer devido a fatores extralinguísticos,
isto é, ao contexto de uso.

158
CONSIDERAÇÕES FINAIS DIN, Odair Ruiz; LUGLI, Viviane Cristina Poletto (orgs.). Espa-
nhol como Língua estrangeira: reflexões teóricas e propostas di-
Desde democratização do ensino se percebe avanços signifi- dáticas. Campinas: Mercado de Letras, 2013
cativos e profundos na maneira como o ensino-aprendizagem da FARACO, Carlos Alberto. Linguística Histórica. São Paulo: Ática,
língua portuguesa se concretiza nas salas de aula devido às de- 1998.
mandas e necessidades da sociedade, principalmente no que se MARCHETTI, Greta; COSTA, Cibele L.; SOARES, Jaira. J. B. Para
refere à maneira de ver e definir o objeto de estudo da Sociolin- viver juntos: português, 6º ano: ensino fundamental. 3. ed. São
guística, a lingua(gem). Com isso, demanda do professor uma Paulo: Edições SM, 2012.
atuação mais firme em relação à língua estudada, entretanto que MARCHETTI, Greta; STRECKER, Heidi. CLETO, Mirella L.
se distancie daquele ensino normatizador e padronizador da lín- Para viver juntos: português, 9º ano: ensino fundamental. 3. ed.
gua, pois, a língua se materializa na práxis do dia a dia e não pode São Paulo: Edições SM, 2012.
ser concebida a partir de um plano abstrato. MARCUSCHI, Luiz Antonio. Da fala para a escrita: atividades de
Em razão disso, é necessário uma (re)construção, uma (re) retextualização.São Paulo: Cortez, 2001.
significação, um (re)pensar na prática pedagógica. É necessário PARRA FILHO, Domingos; SANTOS, João Almeida. Metodolo-
compreender que o LD não pode ser o único norteador do ensino, gia Científica. São Paulo: Futura 2011.
pois embora possua um importante papel no processo de ensi- PEROVANO, Dalton Gean. Manual de Metodologia Cientifica.
no-aprendizagem, dado o contexto da educação básica brasileira, Curitiba: Jurua Editora, 2014.
ele limita o acesso e o repasse de informações importantes, bem
como à prática docente e deixa muitas vezes lacunas.

REFERÊNCIAS RESUMO

ALKMIM, T. M. Sociolinguística- parte I. In: MUSSALIN, F.; A publicidade tem a função argumentativa de informar, lem-
BENTES, Anna C. (orgs.). Introdução à linguística: Domínios e brar e convencer o leitor de que o uso do produto anunciado é
Fronteiras. V. 1. São Paulo: Cortez, 2001, p. 21-47. indispensável para o seu cotidiano. Atualmente, o discurso publi-
BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São citário adaptou-se à necessidade dos novos tipos de consumidores
Paulo: Loyola, 1999. ao longo do tempo, partindo de um sistema que transmite ideo-
BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros Curriculares logias e valores. Dessa forma, podemos observar a real função da
Nacionais: terceiro e quatro ciclos do Ensino Fundamental: Lín- propaganda que é manipular o receptor, valendo-se de diversos
gua Portuguesa. Brasília: MEC/SEB, 1999. recursos linguísticos, sendo um deles a adjetivação, o qual é um
CAMACHO, R. G. Sociolinguística - parte II. In: MUSSALLIM, recurso que ajuda a evidenciar os fenômenos psicológicos da lin-
F.; BENTES, A. C. (orgs). Introdução à linguística: domínios e guagem, revelando os posicionamentos assumidos pelo enuncia-
fronteiras. V.1 São Paulo: Cortez, 2011, p. 49- 75. dor. Sendo assim, é oportuno que haja uma discussão, na tentativa
CARMONA-RAMIRES, Andréia Roder. El pronombre vos: uma de compreender o porquê dessas mudanças e como os recursos
propuesta de trabajo para la clase de lengua española. In.: NA- morfossintáticos, como os adjetivos são utilizados nos meios de

159
comunicação impressos, com o intuito de convencer o consumi- fenômenos psicológicos e afetivos da linguagem.
dor no ato da compra. Esta pesquisa objetiva discutir como a adje- Palavras-chave: adjetivo; revistas; consumidor; publicidade
tivação é utilizada nos anúncios publicitários presentes em revistas
e qual a influência estabelecida por esse recurso nos consumido-
res modernos. Analisaremos, ainda, como esta classe de palavras
se adapta, variando conforme a intencionalidade do anunciador
e com a realidade social do público-alvo que ele pretende atingir.
Na realização desta pesquisa utilizamos trinta anúncios publicitá- O USO DE ADJETIVOS EM ANÚNCIOS PUBLICITÁ-
rios, sendo dez de cosméticos, dez de produtos alimentícios e dez
RIOS DE REVISTAS
de automóveis, tendo como instrumentos de pesquisa as revistas
Caras, Época e Veja. As revistas escolhidas são atuais e de fácil
aquisição, abrangendo tanto o público feminino quanto o mascu-
lino e as diversas faixas etárias e classes sociais. Para tanto, conta-
Cleiton Daniel dos Santos Moreira da Silva¹
mos com as contribuições de (CARVALHO,1998; SANDMANN,
Laysa Diná de Andrade Nicolau²
1999) no que se refere à publicidade, bem como das concepções
Sara Carvalho de Lima Falcão³
de adjetivo (BECHARA, 1999; NEVES, 2000; CAMARA JÚNIOR,
Glaucia Renata Pereira do Nascimento4
1991), para compreender o uso dos adjetivos nas propagandas
publicitárias em revistas. Nessa pesquisa verificamos que os ad-
¹Estudante do Curso de Letras – CAC – UFPE;
jetivos variam de acordo com a intencionalidade do anunciante,
E-mail: cleiton_daniel@hotmail.com,
dependendo do tipo de público que ele deseja alcançar, como po-
²Estudante do curso de Letras – CAC – UFPE;
demos observar nos anúncios de automóveis, onde é clara a va-
E-mail: lay.saandrade@hotmail.com,
riação de adjetivos utilizados de acordo com a classe econômica
³Estudante do curso de Letras – CAC – UFPE;
do consumidor. Nas propagandas de cosméticos os adjetivos qua-
E-mail: sc.falcao@hotmail.com,
lificadores predominam, levando o individuo a sentir o desejo de
4Docente/Pesquisador do Depto de Letras – CAC – UFPE.
adquirir tal qualidade expressa no enunciado, enquanto que os de
Email: profa_glacia@yahoo.com.br.
alimentos usam de adjetivos que expressam no leitor a impressão
de sentir a textura dos alimentos apresentados, provocando no
receptor a vontade de consumi-los. Através desse trabalho chega-
Resumo: A pesquisa aqui apresentada aborda o uso de adjetivos
mos à conclusão de que os adjetivos apresentam uma importância
em anúncios publicitários de revistas, observando como eles são
significativa no texto publicitário, pois esta classe gramatical está
empregados nos anúncios de cosméticos, automóveis e de produ-
diretamente relacionada à persuasão, envolvendo o emocional do
tos alimentícios. Esta análise pretende, ainda, discutir comocertos
consumidor levando-o a acreditar que precisa de fato do produto
adjetivos podem influenciar o indivíduo e fazer com que ele com-
anunciado. Por fim, salientamos que a classe gramatical dos adje-
pre o produto. Tendo em vista aforça da propaganda publicitária,
tivos é bastante abrangente, se expandindo para o nosso cotidia-
pode-se notar que este gênero é um recurso didático viável para o
no, além de ser um valioso recurso linguístico que evidencia os
ensino da língua portuguesa. Como base para o desenvolvimen-

160
to deste trabalho, utilizamos conceitos da Gramática de Usos do méticos para mulheres e alimentos. Analisaremos, ainda, como
Português de Maria Helena de Moura Neves (2001) e como auxí- esta classe de palavras se adapta, variando conforme a intencio-
lio teórico o livro Publicidade: a linguagem da sedução, de Nelly nalidade do anunciador e com a realidade social do público-alvo
Carvalho. que ele pretende atingir.

Palavras-chave: adjetivos; persuasão; publicidade METODOLOGIA

INTRODUÇÃO Para a realização desta pesquisa, analisamos trinta anúncios


publicitários, sendo dez de cosméticos, dez de produtos alimentí-
A publicidade tem a função argumentativa de informar, con- cios e dez de automóveis. Escolhemos este número de propagan-
vencer e lembrar o leitor de que o uso de um produto anunciado é das porque acreditamos ser o necessário para fazer uma análise
indispensável para o seu cotidiano. Atualmente, o discurso publi- da função dos adjetivos no discurso publicitário. Ao escolher três
citário adaptou-se à necessidade dos novos tipos de consumidores tipos de propagandas diferentes, estaremos observando também
ao longo do tempo, partindo de um sistema que transmite ideolo- como se dá esta variação de adjetivos conforme o público alvo que
gias e valores. Como aponta SANDMANN (1999, p.34), sendo “a se quer persuadir.
linguagem da propaganda, até certo ponto, reflexo e expressão da As revistas que escolhemos foram publicadas nos últimos dois
ideologia dominante, dos valores em que se acredita, ela manifes- anos, sendo assim, atuais e de fácil aquisição, abrangendo tanto o
ta a maneira de ver o mundo de uma sociedade em certo espaço público feminino quanto o masculino e diferentes faixas etárias e
da história.” Partindo disso, podemos observar a real função da classes sociais, entre elas estão a Revista Veja, a Revista Época e a
propaganda, que é manipular o receptor, valendo-se de diversos Caras, no total foram utilizadas três exemplares de revistas.
recursos linguísticos, sendo um deles a adjetivação. Em cada propaganda encontrada, identificamos os adjetivos
A adjetivação é um recurso linguístico que ajuda a evidenciar que estavam presentes no corpo do texto e no slogan (considera-
fenômenos psicológicos da linguagem, revelando os posiciona- mos também as locuções adjetivas). Destacamos das revistas pro-
mentos assumidos pelo enunciador. Para entender melhor a im- pagandas encontradas e separamos em três grupos de dez anún-
portância deste recurso em um anúncio publicitário, é necessário cios para cada tipo de propaganda que seria analisada.
conhecer o estatuto desta classe gramatical. Segundo Neves (2000,
p.173), os adjetivos são usados para atribuir uma propriedade sin- RESULTADOS E DISCUSSÃO
gular a uma categoria (que já é um conjunto de propriedades) de-
nominada por um substantivo. Ou seja, o adjetivo será uma pa- Podemos observar o papel imprescindível dos adjetivos no tex-
lavra que se unirá a um substantivo para denotar sua condição, to publicitário a partir da análise das propagandas escolhidas em
estado ou qualidade. nossa pesquisa. A seguir iremos expor alguns dos anúncios que
Para este trabalho, objetivamos observar como se dá o meca- analisamos.
nismo de persuasão por meio do adjetivo e como é estabelecido o Nas propagandas de cosméticos, foi notória a presença de ad-
diálogo entre o enunciador e o receptor através de sua utilização jetivos que valorizam a feminilidade da mulher. Através deles, o
em textos publicitários variados: propagandas de automóveis, cos- anunciador expressa a ideia de que só haverá o alcance do padrão

161
de beleza se houver a compra dos produtos anunciados.

Já nos anúncios de carros mais caros, os adjetivos utilizados


irão fazer menção principalmente a beleza, conforto e força para
atender aos interesses do público consumidor deste tipo de auto-
No anúncio 1, que é da marca Cor &Tom, uma empresa que móvel, que, em tese, não teria muita preocupação com economia.
produz tinturas para os cabelos, temos os adjetivos: vivas, lumi- No anúncio 4, temos um exemplo disto:
nosas e duradouras,que fazem referência à cor do cabelo que só
será alcançada pelo uso do produto. Neste exemplo, identificamos
o recurso de adjetivação ternária, ou seja, o anunciador utiliza três
adjetivos qualificadores para um único referente, que, neste caso,
é o substantivo cor. Em outro anúncio de cosméticos da marca
OxFibers (anúncio 2) além do liso absoluto, também encontra-
mos adjetivos qualificadores: disciplinados e livres. Este tipo de
adjetivação é bastante utilizada em propagandas de cosméticos
por transmitir uma série de qualidades que só serão alcançadas
através do uso do produto apresentado.
As propagandas de automóveis, por sua vez, se diferenciam de
acordo com o público que se quer alcançar. Nas propagandas re-
ferentes a carros populares, o público-alvo é a classe média bai-
xa, e para conquistar a confiança e o interesse deste público, são As propagandas de produtos alimentícios valorizam a saúde e
utilizados os adjetivos: econômico, potente e confortável, como a boa qualidade de vida. Sendo assim, houve uma intensificação
podemos observar no anúncio 3: nos recursos de estímulo através da linguagem.

162
Seguindo a nossa análise, foram observadas tais situações nas CONSIDERAÇÕES FINAIS
propagandas a seguir: no anuncio 5, do Iogurte Vigor Grego, o
adjetivo rápida denota a facilidade e praticidade do consumo do Esta pesquisa nos levou a concluir que os adjetivos apresentam
produto; em ultrassaborosos, ultracremosos, ultragostosos, os ad- uma importância significativa no texto publicitário, pois esta clas-
jetivos superlativos absolutos analíticos qualificam bem o produto se gramatical está diretamente relacionada à persuasão, envolven-
e se usa da repetição da palavra ultra para enaltecer a qualidade do o emocional do consumidor levando-o a acreditar que precisa
do produto. de fato do produto anunciado.
Verificamos que os adjetivos variam de acordo com a inten-
cionalidade do anunciante, dependendo do tipo de público que
ele deseja alcançar, como podemos observar nos anúncios de au-
tomóveis, onde é clara a variação de adjetivos utilizados de acordo
com a classe econômica do consumidor. Nas propagandas, os ad-
jetivos qualificadores predominam, levando o individuo a sentir o
desejo de adquirir tal qualidade expressa no enunciado, enquanto
que os de alimentos usam de adjetivos que expressam no leitor a
impressão de sentir a textura dos alimentos apresentados, provo-
cando no receptor a vontade de consumi-los.
Por fim, salientamos que a classe gramatical dos adjetivos é
bastante abrangente, se expandindo para o nosso cotidiano, além
de ser um valioso recurso linguístico que evidencia os fenômenos
psicológicos e afetivos da linguagem.
No anúncio 6, da cerveja Itaipava, quente e gelada são adjetivos Além disso, o gênero anúncio publicitário é um recurso di-
de qualidades opostas que são colocadas para descrever o bendito dático viável para o ensino de língua portuguesa. E isso porque
choque térmico entre a garota e a cerveja. O adjetivo bendito irá os anúncios são ricos, possuindo linguagem verbal e não verbal
enaltecer este acontecimento, gerando o humor comum nas pro- (imagens, slogans, logomarca, etc) e também passível de diversas
pagandas de cervejas além de revelar a mulher como uma consu- interpretações. Ao analisar o gênero, os discentes são levados a
midora quente e sensual. identificar suas características e exercer sua criticidade.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Nelly de. Publicidade: A linguagem da sedução.


2.ed. São Paulo: Ática, 1998.
NEVES, Maria Helena de Moura. A Gramática Funcional. 2.ed.
São Paulo: Livraria Martins Fontes, 2001.
SANDMANN, Antônio José. A linguagem da propaganda. 3.ed.

163
São Paulo: Contexto, 1999. teórico metodológico, utilizamos a concepção de LDP como um
CAMARA JÚNIOR, J. M. Dicionário de linguística e gramática: gênero do discurso de Bunzen (2005). Apoiado em pressupostos
referente à língua portuguesa. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 1991. bakhtinianos sobre gênero e autoria, o autor acredita que o LDP
possui uma unidade discursiva, autoria e estilo didático próprio,
uma expectativa interlocutiva (alunos e professores), e objetos de
ensino que são apresentados em unidades didáticas (Bunzen e
Rojo, 2005).Também o conceito de “unidade didática” (Bunzen,
RESUMO 2005; 2009, Cargnelutti, 2015), como importante forma de orga-
nização do livro didático, que o sistematiza do ponto de vista edi-
Esta apresentação oral aponta resultados parciais da pesqui- torial, pedagógico curricular, e metodológico, guiou nosso olhar
sa de Iniciação Científica (CNPq) “Temas (meta) Linguísticos no LDP.
e não Linguísticos em Livros didáticos de Português do Ensino Escolhemos a primeira edição da coleção A.L.P (Cócco e Hai-
Fundamental das décadas de 80 e 90”. Nessa investigação pressu- ler, 1994), especificamente o volume 8, organizado em três uni-
pomos que os livros didáticos de português (LDPs) apresentam, dades didáticas, coordenadas por temas caracterizadores não
nos últimos trinta anos, como característica textual-discursiva, a linguísticos, na ordem: “Amor”; “Mistério e suspense” e “O ho-
organização das unidades didáticas ou capítulos por temas carac- mem e o mundo”. Cada unidade é composta por seções didáticas,
terizadores. Para Bunzen (2015) tais temas podem ser (i) temas chamadas de: “Exploração”, “Extrapolação”, “Gramática textual” e
caracterizadores (meta) linguísticos; (ii) temas caracterizadores “Produção”, além da seção, no final das unidades, de “Introdução
não linguísticos ou (iii) temas que hibridizam conteúdos temáti- à literatura”, que insere o aluno nas estéticas literárias. Essas seções
cos (meta) linguísticos com não linguísticos. No intuito de perce- estão diretamente ligadas aos eixos que organizam o currículo de
ber como os LDPs organizam suas unidades didáticas do ponto de língua portuguesa (oralidade, leitura, produção, gramática e lite-
vista diacrônico, nos concentramos em coleções publicadas entre ratura).
as décadas de 80 e 90, já que elas não sofreram o impacto da ava- Na unidade “Amor”, escolhida para a análise, o tema caracteri-
liação oficial do PNLD. Como são raras as investigações, tanto zador não-linguístico materializa-se principalmente pela escolha
no campo da Linguística/Linguística Aplicada como na Crítica/ de 15 textos verbais ou visuais e na apresentação do Romantismo
Teoria Literária, sobre temas caracterizadores nos LDPs acredi- como estética literária, em que o texto principal é retirado do ro-
tamos que a presente pesquisa poderá auxiliar na história de tais mance A Moreninha de Joaquim Manoel de Macedo. As perguntas
materiais didáticos e, consequentemente, na história da disciplina de compreensão sobre o texto e as propostas de produção textuais
Português. também retomam aspectos do tema caracterizador, apresentado
Nosso objeto de análise nessa apresentação é o livro Análise, na ótica da diversidade textual. Têm-se, assim, vários pontos de
linguagem e pensamento, conhecido como A.L.P, de Maria Fer- vista e vozes sociais que textualizam o conteúdo temático “amor”
nandes Cócco e Marco AntonioHailer, editora FTD, com circula- na unidade didática.
ção na década de 90. Propomos ver como o tema caracterizador
perpassa os eixos de ensino, o projeto gráfico do livro e como/ Palavras-chave: Livro didático de português; temas caracterizado-
se ele constitui um objeto de ensino no LDP. Como referencial res; ensino de língua materna

164
OS TEMAS CONTEXTUALIZADORES NO LIVRO INTRODUÇÃO
DIDÁTICO DE PORTUGUÊS: UMA ANÁLISE DO
Ainda são poucos os estudos sobre a organização temática nos
LIVRO A.L.P (1994)
LDPs. Bezerra (2001), ao falar da seleção de textos e variedade de
temas e gêneros nos livros didáticos aprovados no PNLD-2000,
Mayara Camila Mariano¹
informa que havia uma tendência das lições em se estruturarem
Clecio dos Santos Bunzen Júnior²
em torno, do que ela chama de “temas sociais (fome, desempre-
go, educação, discriminação)”, e temas que eram do “interesse da
¹ Estudante do curso de Letras/ Licenciatura em Português-CA-
faixa etária do público destinado (família, animais – de estimação
C-UFPE; E-mail: mcamila.mariano@gmail.com
ou não – amor, esporte, mistério, aventura, viagem)” e em escala
² Docente/Pesquisador do Departamento de Métodos e Técnicas
menor temas pouco convencionais em livros didáticos, o que a au-
de Ensino (DMTE)- CE-UFPE; E-mail: clecio.bunzen@ufpe.br
tora considera um avanço (poetas, língua e astrologia) (Bezerra,
2001, p.38).
Acreditamos na hipótese de que os livros didáticos de Portu-
Resumo: O presente resumo faz parte da pesquisa PIBIC intitu-
guês, produzidos no Brasil, têm como característica a organização
lada de “Temas (meta) Linguísticos e não Linguísticos em Livros
via temas caracterizadores e pressupomos que esse fenômeno se
didáticos de Português do Ensino Fundamental das décadas de
intensificou nas últimas 03 décadas. Mas, como o tema caracte-
80 e 90”, em que se investiga a configuração dos livros didáticos
rizador ajuda a compor o LDP, como influencia nos objetos de
de Português (LDPs) que apresentam como característica textual
ensino, qual a finalidade? Essas são algumas indagações que são
discursiva a organização em unidades e/ou capítulos temáticos,
feitas na pesquisa.
chamados aqui de temas caracterizadores. Notamos que eles po-
É importante ressaltar que concebemos os LDPs como um
dem ser: (i) temas caracterizadores (meta)Linguísticos; (ii) temas
enunciado num gênero do discurso, conforme Bunzen e Rojo
caracterizadores não linguísticos e (iii) temas caracterizadores
(2005). Os autores, apoiados em pressupostos bakhtinianos so-
que hibridizam entre conteúdos (meta)linguístico e não linguís-
bre gênero e autoria, acreditam que o LDP possui uma unida-
ticos. Nossa hipótese é que essa organização das unidades didá-
de discursiva, autoria e estilo didático próprio, uma expectativa
ticas dos LDPs via temas se deu nos últimos 30 anos, por isso a
interlocutiva (alunos e professores), e objetos de ensino que são
escolha por coleções dos anos 80 e 90. Propomos então investigar
apresentados em ‘unidades didáticas’. Elas são, conforme Cargne-
essa característica textual discursiva do livro Análise, Linguagem
lutti (2015), formas textuais-discursivas de organizar os objetos
e Pensamento, mais conhecido como A.L.P de Maria Fernandes
de ensino e as atividades no LDP. Bunzen (2005) defende que as
Cócco e Marco Antonio Hailer, que começou a circular na escola
unidades didáticas possuem uma formatação codificada que aju-
na década de 90.
da alunos e professores a reconhecer os objetos de ensino e os mo-
vimentos discursivos típicos a cada unidade já que ela apresenta
Palavras-chave: Livro didático de português; temas caracterizado-
uma determinada ordem metodológica. Elas podem ser articula-
res; ensino de língua materna
das em conteúdos voltados a um programa de ensino; unidades
baseada ao calendário escolar ou como instrumento de normali-

165
zação de atividades (observar, ler, responder, escrever). Também leitura é dito que a adoção da diversidade de textos – verbais e ex-
auxiliam a organização da produção do LDP do ponto de vista traverbais - proporcionaria o desenvolvimento da expressividade,
editorial. O projeto gráfico editorial dos livros, por exemplo, tem do uso funcional da linguagem, da leitura e também da reflexão
uma forte relação com as unidades didáticas e suas seções. Ele é sobre o mundo, e ainda que a análise da leitura de textos visa um
um componente de estruturação do discurso didático que se ma- trabalho de leitura que foca o Conteúdo, Estrutura e a Análise de
terializa no LDP (MARSARO, p.89, 2015) discursos de um texto. O volume 8 da coleção é dividido em três
Com os conceitos que orientam a análise já expostos, partimos unidades didáticas. Essas unidades são anunciadas através de três
para a investigação dos temas no livro A.L.P. temas caracterizadores do tipo não linguístico, são eles: “Amor”
(Unidade 1), “Mistério e suspense” (Unidade 2) e “O homem e o
METODOLOGIA mundo” (Unidade 3). Escolhemos aqui a unidade 1 (Amor) para
ser explorada. Ela conta com o total de 87 páginas e 15 textos di-
A primeira edição do livro Análise, linguagem e pensamento vididos entre verbais e “extraverbais”. As seções didáticas do A.L.P
circulou na escola na década de 90, com publicação pela editora são: “Exploração”, em que as lições englobam a compreensão do
FTD e tem como autores Maria Fernandes Cócco e Marco An- texto o conteúdo, sua estrutura e discurso; “Extrapolação”, segun-
tonio Hailer. Pesquisas como a de Lauria (2004), afirmam que o do os autores, são questões que trabalham com a temática, mas
A.L.P “surpreendeu por trazer para o livro textos antes inimagi- não abordam o conteúdo específico do texto; “Produção”, é consi-
náveis para além dos óbvios fragmentos de romance e crônica” (p. derada a macroestrutura e superestrutura do texto, sem esquecer
271), ou seja havia uma forte diversidade textual que foi fruto da a microestrutura; “Gramática textual”, os assuntos gramaticais são
proposta sociointeracionista dos autores. Na presente análise, foi refletidos através da exploração e comparação de textos diversifi-
escolhido o volume 8 da edição de 1994 para demonstrar os pri- cados; e por fim, neste volume, aparece no final de cada unidade
meiros resultados obtidos. Foi feito um levantamento geral e uma um bloco intitulado “Introdução à literatura”, que introduz os alu-
caracterização da coleção, observando a estrutura interna das nos às estéticas literárias.
unidades didáticas e se há algum tema caracterizador explícito ou No que concerne ao tratamento do tema, ele é perpetuado prin-
implícito ao longo do volume. Observamos, então, o que dizem os cipalmente pela coletânea textual, uma característica comum a ela
autores no manual do Professor (MP), a organização das unidades é o tratamento do tema por vários olhares, por exemplo, ao falar
pelos índices/sumário, para a coletânea textual (ou antologia) de de amor os textos apresentam conteúdos temáticos como beijo, a
cada unidade didática, para as seções didáticas e o projeto gráfico união cívica, o sexo na adolescência, ou seja, são temas que estão
editorial do LDP. diretamente ligados uma determinada concepção e representação
do “amor”. Tal ação didática, nesse LDP, cria uma intertextualida-
RESULTADOS E DISCUSSÃO de temática no sentido de Koch, Bentes e Cavalcante (2008) entre
os textos, que apesar de possuírem seus próprios temas estão dire-
Segundo Cócco e Hailer, no MP, o objetivo da obra é “o desen- tamente relacionados ao tema caracterizador da unidade. Além de
volvimento de um trabalho de linguagem que leve o aluno a ob- revelar o ponto de vista em que o amor é discutido pelos autores,
servar, perceber, descobrir, refletir sobre o mundo, interagir com as vozes sociais que anunciam cada assunto do texto e revelam a
seu semelhante, através do uso funcional de linguagens”. Sobre a visão que é construída pelos autores do tema na unidade didática,

166
um amor romântico, que tinha assuntos que estava (ou deveriam) sais, corações, flores, cores como vermelho e rosa para retartar o
para a época em debate, como é o caso do sexo na adolescência. “Amor”. A imagem abaixo retrata como o projeto gráfico editorial
Classificamos então esse movimento de temas caracterizadores conversa com o conteúdo temático do texto Sufoco de Leminski,
secundários, gerados pelo tema caracterizador principal (amor). que fala dos conflitos do sentimento. O projeto gráfico retrata-o
O esquema abaixo resume melhor essa relação: através de luvas de boxe, flores e pequenos corações com o poema
ao centro e entre as imagens opostas.

Esquema 1: Movimento do tema caracterizador principal e os


temas caracterizadores secundários.

O tema “Amor” é discutido principalmente nas seções didáti-


cas de “Exploração” e “Extrapolação” que estão diretamente liga-
das aos textos e a temática, logo são do eixo de leitura e compre-
ensão; e na “Produção”, das 09 questões que aparecem na unidade,
06 requerem o conteúdo temático Amor nos textos que serão ela- CONSIDERAÇÕES FINAIS
borados, vale ressaltar que essas seções são as que mais aparecem
dentro da unidade. O tema caracterizador chega ao bloco “Intro- Como nota-se O A.L.P de 1994 já anunciava a característi-
dução à literatura” da unidade, através da estética do Romantismo, ca textual discursiva de organização por temas caracterizadores
pois os autores trazem como texto principal exemplificador da transformando o tema também em um objeto de ensino no LDP.
estética A esmeralda e o Camafeu, extraído do romance A More- Ele está presente principalmente nas seções didáticas de leitura,
ninha de Joaquim Manuel de Macedo. Antes mesmo desse bloco compreensão, produção e literatura; e no projeto gráfico editorial,
os alunos já têm contato com textos da estética literária romântica criando novos textos a serem lidos. Retrata o amor na ótica de
com Iracema de José de Alencar. Os dois textos literários trazem vários pontos de vista e vozes sociais, discutindo a temática com
a característica Romântica de idealização do amor e da mulher. o público (alunos e professores). Acreditamos que a presente in-
Sobre o projeto gráfico editorial da unidade, o tema caracteri- vestigação poderá auxiliar na história dos livros didáticos de Por-
zador também o circunda. Tornando-se comum imagens de ca- tuguês e, consequentemente, na história da disciplina Português,
também poderá ter destaque na formação de professores.

167
REFERÊNCIAS possibilita uma interação sem barreiras entre os indivíduos que,
além de atingir as relações interpessoais, também provoca mu-
BEZERRA, M. A. seleção variada e atual. In: DIONÌSIO, A, P. BE- danças na língua. Essas mudanças linguísticas acontecem, entre
ZERRA, M.A. O livro didático de Português: múltiplos olhares. outros fatores, graças à influência que uma língua sofre quando
Rio de Janeiro: Lucerna, p. 33 - 45, 2001. entra em contato com outra no ambiente virtual. Esse contato in-
BUNZEN, C. S.; ROJO, R. Livro didático de língua portuguesa terfere diretamente no léxico dos usuários que, devido ao surgi-
como gênero do discurso: autoria e estilo. In: Maria da Graça mento de novas práticas, novos eventos, novas entidades (selfie,
Costa Val; Beth Marcuschi. (Org.). Livros didáticos de língua por- likes, tablet, por exemplo),sentem a necessidade de usar palavras
tuguesa: letramento, inclusão e cidadania. 01ed.Belo Horizonte: estrangeiras para nomeá-las. Sendo assim, o objetivo deste tra-
CEALE/Autêntica, 2005, v. 01, p. 73-118. balho é analisar o uso de palavras estrangeiras nas páginas de sé-
CARGNELUTTI, Joceli. A unidade didática dos livros didáticos ries de TV do Facebook, que têm como usuários, em sua maioria,
de português do ensino fundamental II: um olhar ao longo dos jovens. A pesquisa que deu origem a este trabalho foi realizada
tempos. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2015. para a disciplina morfossintaxe I no curso de licenciatura em le-
CÓCCO, M, F; HAILER, M, A. Alp8: Análise, linguagem e pensa- tras, ministrada pela professora Gláucia Nascimento no semestre
mento: A diversidade de textos numa proposta socioconstrutivis- 2015.1. Tomamos como base Carvalho (2002) que informa que as
ta. São Paulo: FTD, 1994. palavras estrangeiras, quando são inseridas na língua receptora,
KOCH, I, V; BENTES, A, C; CAVALCANTE, M, M. Intertextuali- podem passar por dois processos chamados de ‘empréstimo lin-
dade: diálogos possíveis. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. guístico’ e ‘xenismo’. A autora ainda destaca que esses processos
LAURIA, M. P. P. Livro didático de Português: entre as concep- são resultados de uma “adequação da língua à sua própria supe-
ções de ensino, os trilhos da lei e as sendas do texto. São Paulo; ração e tem como determinantes fins culturais, estéticos e funcio-
Faculdade de Educação- Universidade de São Paulo, 2004. nais” (2002, p. 34). A análise do corpus revelou que as palavras es-
MARSARO, F. P. Projeto gráfico-editorial de livros didáticos de trangeiras, seja por meio de empréstimo ou xenismo, se integram
língua portuguesa: pressupostos teóricos para análise. In: BUN- rapidamente à língua, funcionando como forma de expressão de
ZEN, C. S. (Org). Livro didático de Português: políticas, produção identidade do público em questão. Observamos ainda que há uma
e ensino. São Paulo: Pedro e João editores, 2015. incidência maior das palavras na língua inglesa, base do corpus
deste trabalho. Nossa hipótese é que, como a língua inglesa tem
forte influência econômica e cultural, além de amplo espaço na
internet, o processo de importação de termos ingleses nas línguas
RESUMO receptoras se torna mais recorrente. Dessa forma, as palavras es-
trangeiras podem atuar no processo de “colonização à distância”
A presença da internet atualmente é forte na vida das pessoas, (CARVALHO, 2002, p.101). Com esta análise, podemos eviden-
que por estarem habitualmente conectadas, ficam mais vulnerá- ciar como o Facebook tem contribuído para a introdução de no-
veis às influências desse ambiente. As redes sociais e, especifica- vas palavras no léxico do português, fazendo com que elas sejam
mente, o Facebook se tornaram fontes de novas práticas linguís- difundidas rapidamente ao ponto de algumas ultrapassarem o
ticas, entre as quais, novas construções lexicais. O Facebook ambiente virtual, funcionando com naturalidade fora da internet.

168
Defendemos que esse fato precisa ser discutido com estudantes do morfológicos diferentes do habitual nas suas composições, por-
ensino básico. que incluem elementos de outras línguas. Sendo assim, o objetivo
Palavras-chave: morfologia; léxico; empréstimos linguísticos; deste trabalho se baseia na análise das publicações nas páginas
xenismo do Facebook, especificamente nas páginas de temáticas voltadas
para séries de TV, identificando as construções mais usadas pelo
público que, frequentemente, acessa tais espaços: os jovens. Como
PROCESSOS DE EXPANSÃO LEXICAL: EMPRÉS- fundamentação teórica, tomamos como base Carvalho (2002),
TIMOS LINGUÍSTICOS E XENISMOS NO FACE- em cuja obra apresenta reflexões acerca dos empréstimos linguís-
ticos, distinguindo-os dos xenismos. A análise nos relevou que as
BOOK
palavras estrangeiras, independentemente do processo pelo qual
passam (empréstimo ou xenismo), se integram rapidamente à lín-
gua em que se inserem. Por se tratar de uma pesquisa de pequeno
Albenise Macena dos Santos1
porte, identificamos, no corpus analisando, uma incidência maior
Anderson Souza Santos2
de palavras na língua inglesa. Nossa hipótese para esse fenômeno
Eduarda Vanessa do Nascimento Franco3
é que a língua inglesa, por ter ampla influência econômica e cultu-
Marcos Henrique Bezerra dos Santos Carvalho4
ral, encontra facilidade para difundir itens do seu léxico no espaço
Gláucia Renata Pereira do Nascimento5
virtual. Dessa forma, também contribui para a expansão lexical
das línguas que as recebem. Além de analisarmos a presença de
1Estudante do Curso de Licenciatura em Letras-Português –
palavras estrangeiras no Facebook, também analisamos uma co-
CAC – UFPE; E-mail: albenise.macena@hotmail.com
leção de livros didáticos do ensino fundamental a fim de observar
2Estudante do Curso de Licenciatura em Letras-Português –
qual o tratamento dado aos empréstimos linguísticos. Como é um
CAC – UFPE; E-mail: anderson_souza7@yahoo.com
assunto que está cada vez mais presente no nosso cotidiano, em
3Estudante do Curso de Licenciatura em Letras-Português –
virtude das questões levantadas anteriormente, defendemos que
CAC – UFPE; E-mail: eduarda_nathierto@hotmail.com
o assunto precisa ser discutido com estudantes do ensino básico.
4Estudante do Curso de Licenciatura em Letras-Português –
CAC – UFPE; E-mail: marcosmh21@hotmail.com
Palavras-chave: morfologia; léxico; empréstimos linguísticos; xe-
5Docente/pesquisadora do Depto de Letras – CAC – UFPE;
nimos
E-mail: profa_glaucia@yahoo.com

INTRODUÇÃO
Resumo: Como consequência da presença da internet nas diver-
sas práticas cotidianas, as redes sociais, entre elas, especialmen-
O léxico de uma língua vive em constante expansão como uma
te, o Facebook, têm facilitado o surgimento de novas práticas
galáxia, como caracteriza Carvalho (2002, p.31). Essa expansão se
linguísticas, entre as quais, novas construções lexicais. Por ser
dá através da incorporação de experiências surgidas na comuni-
um ambiente propício às influências de outras línguas, as novas
dade que a fala. Por estarmos inseridos em um contexto marca-
construções lexicais do português do Brasil apresentam traços

169
do pela presença da internet e de suas múltiplas tecnologias digi- timos (quando há alguma adaptação) e Xenismos (quando não
tais, nossas experiências são, de alguma forma, afetadas pelo que há adaptação). Ao encontrarmos palavras como Spoiler, Ship, Li-
emerge na rede mundial de computadores. Além disso, como a kes, Crush, Selfie, Bad, Cool, Flop, Fandom, Hater etc, vimos a
língua também é marcada pela sua dinamicidade, as mudanças relevância contextual que elas tinham ao serem utilizadas. Essas
também a acompanham. Para exemplificar esse fenômeno, pode- palavras indicam, na sua maioria, questões ligadas ao universo
mos nos valer das redes sociais que, por sua vez, possibilitam uma das séries. Entretanto, como é típico nos ambientes virtuais, algu-
interação sem barreiras entre diferentes indivíduos, como aconte- mas delas já estão disseminadas em outros domínios discursivos,
ce com o Facebook. Consequentemente, essa interação sem bar- inclusive funcionando com naturalidade fora da internet. Quan-
reiras dá margem a influências de diversos segmentos, principal- to aos livros didáticos, analisamos a coleção dirigida aos últimos
mente se levarmos em consideração a popularidade do Facebook. anos do ensino fundamental, ‘Singular & Plural’ – do 6º ao 9º ano
Parte dessas influências se revela nos Empréstimos Linguísticos, – publicados em 2012 em busca de informações sobre a temática
que consistem na apropriação e na adaptação de palavras de uma deste trabalho. Por fim, comparamos o que é apresentado ao estu-
determinada língua. Quando as palavras estrangeiras são intro- dante no livro didático e o que acontece nos usos recorrentes no
duzidas no léxico de outra língua sem sofrer adaptação, temos Facebook.
os Xenimos. Essas duas classificações são usadas por Carvalho
(2002, p. 61) ao explicar o processo de introdução de uma palavra RESULTADOS E DISCUSSÕES
estrangeira. Como citamos anteriormente, uma das característi-
cas das redes sociais é a possibilidade de aproximar os indivíduos Conforme Carvalho (2002, p.102) afirma, “a adoção do termo
independentemente do local em que estão. Então, muitos desses estrangeiro [...] é sempre gerada por uma necessidade prática”.
indivíduos fazem usos de palavras de outras línguas, por uma ne- Com novas práticas surgidas na relação com a internet, os falantes
cessidade, por exemplo, de definir novas práticas, novos eventos. sentem a necessidade de nomeá-las. Principalmente quando essa
Podemos, ainda, atribuir às redes sociais o caráter de “coloniza- relação é mediada por uma cultura hegemônica, como é possível
doras a distância”. Carvalho (2002, p. 101) indica que os emprés- ver nas palavras de língua inglesa que compõem o corpus deste
timos do inglês americano, que predomina no nosso corpus, são trabalho. O processo de importação de palavras é legítimo, além
causados por um processo de “colonização a distância”. Atribuí- de ser um dos mecanismos de expansão do léxico. No caso do
mos a essa colonização o fato de a língua inglesa ter uma grande português brasileiro, percebemos, ao navegar pelas páginas do Fa-
hegemonia econômica e cultural que, aliada às redes sociais, en- cebook, até mesmo em páginas que não usam a temática de séries
contra potencialidade para disseminar suas palavras. de TV, palavras como Ship, Crush, Bad, entre outras funcionan-
do em harmonia com as demais palavras da nossa língua. Esse
METODOLOGIA movimento, proporcionado pelas redes sociais, possibilita uma
reflexão sobre a criatividade dos falantes para fazer tais usos. Por
Para a realização da pesquisa, foram observadas cinco pági- exemplo, quando iniciamos esta pesquisa, na disciplina Morfos-
nas de séries de TV no Facebook. Analisamos as publicações e os sintaxe I do curso de licenciatura em letras-português, ministrada
comentários presentes nelas, procurando a presença de palavras pela professora Gláucia Nascimento, no semestre 2015.1, encon-
estrangeiras, levando em consideração a diferença entre Emprés- tramos, nas páginas de séries, a palavra ship, derivada da palavra

170
relationship, que, em português, significa ‘relacionamento’. Essa verbo para indicar uma “perseguição virtual”. Embora a palavra
palavra é usada, muitas vezes, pelos usuários do Facebook que perseguição nos remeta a uma ideia negativa, a prática virtual,
torcem por determinado casal de personagens. Inclusive, criou-se usada por muitos jovens, consiste em visitar o perfil da outra pes-
o verbo shippar (ou shipar – as duas grafias foram encontradas), soa para avaliar seus gostos, suas atividades, a fim de encontrar
que indica esse ato. E, em uma das publicações, vimos o seguinte questões semelhantes. Não nos cabe, aqui, fazer juízos de valor
comentário: em relação às práticas virtuais exemplificadas anteriormente, mas,
sim, observar como essas práticas afetam o léxico da nossa língua.
Além de contribuir do ponto de vista linguístico, as práticas sur-
gidas na relação com a internet também funcionam para garantir
certa identidade em relação àqueles que as usam. Vale ressaltar,
também, que as palavras apresentadas neste trabalho estão, em
sua maioria, em fase de adaptação no português. Ou seja, embo-
ra tenham surgido em virtude da necessidade prática, as palavras
podem ser rejeitadas ou substituídas. Isso inclui, por exemplo, a
tradução ou a adequação total ao padrão morfológico do portu-
guês, processo conhecido por aportuguesamento. O uso dessas
Percebemos, neste comentário, como o verbo shippar está palavras ao longo dos anos vai definir se elas se mantêm da forma
conjugado de acordo com o paradigma dos verbos da primeira que são usadas neste momento ou se sofrerão algum tipo de re-
conjugação do português, ainda que mantenha o PP, forma que jeição ou substituição, como afirma Carvalho (2002, p. 66) “a lín-
não existe no sistema gráfico de nossa língua. Esse uso, além de gua é feita pelo povo, pelo uso, não pelo esforço dos gramáticos”.
evidenciar a conjugação verbos mais produtiva da língua (-ar), Partindo para análise dos livros didáticos, notamos que a abor-
nos mostra como essas práticas encontram respaldo na língua em dagem do tema estrangeirismo foi bastante superficial. O assunto
que se inserem, quebrando a barreira que, muitas vezes, impede foi mencionado apenas no último volume, indicado para o 9º ano,
a palavra estrangeira de se inserir devido a questões de nature- com uma abordagem insuficiente, seguida de alguns exercícios.
za fonética, uma vez que, nem sempre, há a correlação entre os Por fim, foi apresentada uma tabela com poucos exemplos de em-
fonemas de duas línguas distintas. Ressaltamos, também, que o préstimos linguísticos, considerados clássicos (‘estresse’ é um dos
verbo shippar já ultrapassou a barreira do mundo das séries de exemplos). Parece que os autores de livros didáticos ainda não es-
televisão comentadas na internet, funcionando, também, com tão explorando a internet como deveriam, já que os estudantes
pessoas no espaço social real. Outro exemplo de verbo neológico do ensino básico são usuários da rede e identificam fenômenos
surgido nessa prática virtual é o stalkear, bastante usado nas redes linguísticos facilmente nesse ambiente.
sociais. Diferente do shippar, que indicou uma prática até então
sem tradução na língua, stalkear possui uma correspondência no CONSIDERAÇÕES FINAIS
português. O verbo em questão vem do verbo to stalk que, em
Português, significa ‘perseguir’. Entretanto, por razões semânticas, Através da pesquisa, foi possível perceber que, graças à que-
além, claro, da influência da língua inglesa, optou-se por criar esse bra de barreiras proporcionada pela internet, especialmente pelas

171
redes sociais, a introdução de palavras estrangeiras no léxico do RESUMO
português se intensificou. Vimos que a expansão do léxico está
diretamente ligada ao contexto social em que os falantes estão in- O presente trabalho apresenta os resultados de uma análise que
seridos, seja pelo âmbito de uma sociedade específica ou global. enfocou o uso do recurso coesivo substituição hiperônimos em
Nesse ponto, especificamente, a língua inglesa ocupa, atualmente, textos do gênero discursivo dissertação escolar escritos por estu-
um papel de destaque, encontrando nos espaços virtuais facili- dantes de uma turma da Educação de Jovens e Adultos (EJA). O
dade na propagação da sua cultura. Além disso, defendemos que objetivo geral da pesquisa aqui apresentada foi verificar o domí-
o assunto Empréstimos Linguísticos/ Xenismos (ou Estrangeiris- nio de estudantes do módulo final (oitavo e nono anos do ensino
mos, como outros autores usam) seja abordado no ensino básico fundamental) da EJA de uma escola municipal da cidade de Picuí,
através da reflexão sobre diversos usos, incluindo os que foram estado da Paraíba, em relação ao uso de hiperônimos como recur-
apresentados neste trabalho. Provavelmente, ao atrair o estudante so de coesão por substituição no gênero dissertação escolar. Como
para o ambiente virtual no qual ele navega, o ensino será mais objetivos específicos, pretendemos refletir sobre os motivos das
produtivo, pois ele poderá observar as construções lexicais em dificuldades de escrita dos estudantes voluntários que envolvem
uso. A influência de palavras estrangeiras precisa ser mais explo- o uso desse recurso, para contribuir para a ampliação do debate
rada no ensino de português. acerca da necessidade de um trabalho mais efetivo e pertinente
com o léxico em sala de aula; além de possibilitar a reflexão dos
estudantes no que diz respeito aos processos de coesão textual, em
REFERÊNCIAS especial aos recursos de substituição, com o uso de hiperônimos.
Os voluntários da pesquisa são 11 estudantes da EJA com faixa
CARVALHO, Nelly. Empréstimos Linguísticos. Recife: Ed. Uni- etária maior de 18 anos. Nossa hipótese foi que muitos estudantes
versitária da UFPE, 2002. de séries finais do ensino básico apresentariam dificuldade com o
FIGUEIREDO, Laura de; BALTHASAR, Marisa; GOULART, uso de hiperônimos como recurso de coesão. Procedemos a uma
Shirley. Singular & Plural. São Paula: Moderna, 2012. análise dos dados do tipo quali-quantitativa, a fim de verificar a
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasil: MEC, 1998. pertinência e a frequência do recurso coesivo investigado. A base
SILVA, Ana Cristina Barbosa da. Empréstimos Linguísticos nos teórica da pesquisa está assentada principalmente em Halliday;
Livros Didáticos de Português. Dissertação de Mestrado Progra- Hasan (1976), Beaugrande; Dressler (1981), Ungerer; Schmid
ma de Pós–Graduação em Letras. Recife: UFPE, 2003. (1996), Lyons (1980), Bidernam (1996), Menegassi; Fuza (2008),
SOUZA, Samara Falcão Tavares de; CARVALHO, José João de. O Menegassi (2005), Costa Val (1999), Marcuschi (2003, 2012), An-
internetês nos livros didáticos. Hipertextus Revista Digital, v. 12, tunes (1996, 2003, 2005, 2009, 2010 e 2012) e Koch (1999, 2002,
n.8. 2014.1. 2005). Os resultados indicaram que a maioria dos voluntários fez
recurso ao hiperônimo, mas ainda de uma maneira pouco satisfa-
tória, fato que revela que, provavelmente, a escola ainda não tra-
balha suficientemente o léxico.
Palavras-chave: Coesão textual; Hiperônimos; Produção de
textos; Redação escolar

172
USO DE TERMOS HIPERÔNIMOS EM TEXTOS DIS- ria dos voluntários fez recurso ao hiperônimo, mas ainda de uma
SERTATIVO-ARGUMENTATIVOS DE ESTUDAN- maneira insatisfatória, fato que revela que, provavelmente, a esco-
la ainda não trabalha suficientemente o léxico.
TES DO ENSINO FUNDAMENTAL DE EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS (EJA) Palavras-chave: coesão textual; hiperônimos; produção de tex-
tos; redação escolar
Cristiane de Souza Castro¹ INTRODUÇÃO
Gláucia Renata Pereira do Nascimento²
A presente pesquisa apresenta os resultados de uma análise que
¹Professora do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecno- enfocou o uso do recurso coesivo substituição por hiperônimos
logia da Paraíba – IFPB; em textos do gênero discursivo dissertação escolar escritos por
crscastrope@gmail.com estudantes de uma turma da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
²Docente pesquisadora do Departamento de Letras do CAC – Entendemos que uma investigação científica que tenha como
UFPE. objetivo identificar os problemas enfrentados pelos estudantes no
profa_glaucia@yahoo.com.br processo de produção de textos coesos, especialmente, no que diz
respeito ao domínio do uso dos elementos coesivos de substitui-
ção por hiperônimos é, a nosso ver, pertinente.
RESUMO – A maioria dos estudantes dos módulos finais do A investigação teve como objetivo geral verificar, a partir de
ensino fundamental da EJA apresentam dificuldade com uso de análises de produção de textos escritos, o domínio de estudantes
hiperônimos como recurso coesivo. O objetivo geral da pesquisa do módulo final (oitavo e nono anos do ensino fundamental) da
foi verificar o domínio desses estudantes em relação ao uso de Educação de Jovens e Adultos (EJA) de uma escola municipal da
hiperônimos no gênero dissertação escolar. Como objetivos es- cidade de Picuí, estado da Paraíba, em relação ao uso de hiperô-
pecíficos, pretendemos refletir sobre os motivos das dificuldades nimos como recurso de coesão por substituição no gênero disser-
de escrita desses estudantes que envolvem o uso desse recurso, tação escolar.
para contribuir para a ampliação do debate acerca da necessidade Nossa hipótese é que muitos estudantes de séries finais do en-
de um trabalho mais efetivo com o léxico na escola; elaborar um sino básico apresentam dificuldade com o uso de hiperônimos.
protótipo de um livro – produto final de nossa pesquisa – que Em nossa avaliação, isso pode ocorrer pelo fato de eles não co-
apresenta informações teóricas a respeito do tema recurso de coe- nhecerem, explicitamente, esse fenômeno de coesão, mas também
são por hiperônimo, com o objetivo de ser um material que pode por não terem acesso a diferentes meios para a ampliação de seu
ser usado e processos de formação continuada de professores da acervo lexical.
EJA, além de possibilitar a reflexão dos estudantes no que diz res- Muitos são os obstáculos enfrentados por esses estudantes em
peito aos processos de coesão textual, em especial, aos recursos relação ao uso dos hiperônimos como recurso coesivo, o que nos
de substituição por hiperônimos. Procedemos a uma análise dos ficou evidente em face à análise de suas produções (o corpus de
dados do tipo quali-quantitativa para verificar a pertinência e a nossa pesquisa). Entre as maiores causas para essas dificuldades,
frequência dos hiperônimos. Os resultados indicaram que a maio-

173
entendemos que há, ainda, uma defasagem no ensino de língua Os participantes da pesquisa foram 11 (onze) estudantes vo-
portuguesa no que diz respeito ao trabalho com léxico, não na luntários, que estão na faixa etária entre 18 e 36 anos. Foi realizada
perspectiva morfológica propriamente dita, mas na observação uma pesquisa de campo que se consistiu: (i) da coleta dos dados
das palavras como importantes recursos para a promoção da co- – 11 (onze) textos de estudantes do módulo final (oitavo e nono
esão nos textos. anos do ensino fundamental) da Educação de Jovens e Adultos
Como base bibliográfica para nossa pesquisa, fizemos recur- (EJA) –; e (ii) a análise dos textos coletados – na intenção de ava-
so a autores, como Halliday; Hasan (1976), Beaugrande; Dressler liar a frequência e a pertinência do uso de termos hiperônimos.
(1997 [1981]), Costa Val (1999), Marcuschi (2003, 2012), Antunes A coleta dos textos foi realizada com a colaboração da profes-
(1996, 2003, 2005, 2009 e 2012), Koch (1999, 2002, 2005), Unge- sora dos voluntários desta pesquisa, que, gentilmente, trabalhou
rer; Schmid (1996), Bidernam (1996), Menegassi; Fuza (2008) e com o grupo a leitura de dois textos motivadores sobre o tema
Menegassi (2005). merenda escolar (os textos Programa de Alimentação Escolar: es-
paço de aprendizagem e produção de conhecimento, de Ester de
METODOLOGIA Queirós Costa, Victória Maria Brant Ribeiro e Eliana Claudia de
Otero Ribeiro e A Importância da Merenda Escolar no Desenvol-
Para que a pesquisa com os voluntários fosse possível, o projeto vimento do Aluno, de Raul Enrique Cuore Cuore, e a proposta de
passou pelo comitê de ética da Universidade Federal de Pernam- produção de um texto no gênero dissertação escolar com o tema
buco e o processo, sob o número 38758714.4.0000.5208, foi apro- A MERENDA ESCOLAR É UM ELEMENTO FUNDAMENTAL
vado em 17 de dezembro de 2014. NA ROTINA DA ESCOLA E NO DESENVOLVIMENTO DO
Foi realizada uma revisão bibliográfica acerca da contribuição ALUNO?
da Linguística Textual para o estudo da coesão textual. Procede-
mos, ainda, à revisão teórica sobre esse fator da textualidade – RESULTADOS E DISCUSSÕES
com ênfase na reiteração por substituição por hiperônimos (AN-
TUNES, 2005) – e sobre os processos de produção textual escrita Encerradas as análises dos textos que compuseram o corpus de
na escola. nossa pesquisa, podemos chegar a algumas conclusões. Quanto
A opção feita foi pela abordagem da análise de natureza qua- ao uso de hiperônimos, principal foco da nossa pesquisa, cons-
li-quantitativa. No tratamento dos dados, predominou a análise tatamos que, dos 11 (onze) textos analisados, 8 (oito) utilizaram
qualitativa, considerando-se, principalmente, duas características esse recurso coesivo, dando aos textos escritos uma possibilida-
desse tipo de abordagem: a natureza descritiva dos dados; e a ne- de de concisão, de precisão referencial para a exposição de suas
cessidade de maior ênfase no processo, que no produto (LÜDKE; ideias. Seus autores valeram-se desse recurso e, dessa forma, ficou
ANDRÉ, 1986). Por meio do enfoque qualitativo, o objetivo foi muito clara a contribuição da hiperonímia na articulação entre
verificar a ocorrência e a pertinência do uso de hiperônimos no partes que compõem as superfícies desses textos, além de propi-
corpus que foi coletado. Entretanto, houve a recorrência também ciar uma maior precisão às informações para a construção da ar-
à análise quantitativa dos dados, a fim de verificar a frequência de gumentação.
uso do recurso coesivo objeto de nosso estudo, o que pode corro- Além dessas ocorrências, há usos de termos hiperônimos, que
borar aspectos da análise qualitativa. nos revelam que esses estudantes demonstram conhecimentos en-

174
ciclopédicos pertinentes ao tema. Isto é, são usos que revelam que análise desses aspectos não prejudicam a análise do foco principal
os autores dos textos construíram conhecimentos que ultrapas- da pesquisa – usos de hiperônimos – e pode render informações
sam aqueles sobre a função imediata da merenda escolar, mas que importantes para contribuir para o ensino de produção escrita a
abarcam a noção de que o fornecimento da merenda constitui de EJA. Após a análise, acreditamos que essas informações podem
uma ação política. Isso se fez evidente em dois textos em que seus contribuir para que os professores da EJA valorizem ainda mais o
autores se referem à merenda como ‘programa de alimentação es- potencial dos seus estudantes para a produção desse gênero.
colar’ e ‘programa da merenda da escola’, expondo uma informa- No que diz respeito à manutenção da continuidade temática,
ção que eles tanto podem ter construído em sua experiência de tendo em vista os usos dos recursos coesivos disponíveis em nossa
vida quanto na leitura dos textos motivadores para a produção do língua, os voluntários desta pesquisa conseguiram, ao longo de
texto aqui analisado. seu texto, utilizar esses recursos de modo a estabelecerem unidade
Em dois dos textos, os usos de hiperônimos denotam posicio- temática.
namentos mais críticos dos autores acerca do tema, o que ultra-
passa o que podemos denominar de ‘senso comum’. Os autores CONSIDERAÇÕES FINAIS
desses textos consideraram como ‘merenda’ apenas o que é ‘sau-
dável’, o que é de ‘boa qualidade’, o que traz benefícios nutricio- A partir da experiência de sala de aula com turmas da EJA, per-
nais aos estudantes. Além disso, um autor apresentou a opinião de cebemos que muitos dos estudantes apresentam dificuldades ao
que a merenda não é apenas ‘um lanche’, mas ‘uma refeição’, o que organizar seus textos em relação ao uso de recursos coesivos em
demonstra a grande importância dada por esse estudante a essa geral, mais, em particular, de recursos coesivos por substituição.
merenda, uma vez que ‘refeição’, na percepção do autor, conside- A partir da análise dos 11 (onze) textos que compuseram o
rando-se uma escala de importância, está um patamar maior do corpus de nossa pesquisa, conseguimos confirmar nossa hipótese,
que ‘lanche’. segundo a qual muitos estudantes de séries finais do ensino básico
Como dito, dos 11 (textos) 3 (três) não apresentaram esse re- da Educação de Jovens e Adultos (EJA) de uma escola da cidade
curso coesivo, mas entendemos que o uso desse recurso poderia de Picuí, no estado da Paraíba, apresentam dificuldades com o uso
ter dado aos textos mais uma possiblidade de construção de senti- de elementos coesivos de substituição por hiperônimos, especial-
dos importantes para a defesa das ideias dos autores. Entendemos, mente em contextos nos quais esses hiperônimos revelam, além
também, que o escritor, conhecendo diferentes possibilidades de de maior precisão, a demonstração de conhecimento enciclopédi-
sua língua, poderá ter mais autonomia para escolher a melhor for- co sobre o tema proposto para a escrita do texto.
ma de expressar e se comunicar com seu interlocutor. O uso ou Embora 8 (oito) dos 11 (onze) textos examinados tenham
não dos recursos é uma questão de escolha; o importante é que os apresentado o uso de termos hiperônimos como recurso coesivo
estudantes saibam que eles existem e que saibam usá-los de modo – assim, a maior parte de nosso corpus –, somente 3 (três) autores
adequado. esboçaram usos que vão além do estabelecimento da coesão das
Tal como já informamos, consideramos relevante não perder ideias apresentadas em sua argumentação. Apenas, nesses 3 (três)
a oportunidade para contribuir para uma reflexão sobre o gêne- textos, encontramos hiperônimos que revelam conhecimentos
ro dissertação escolar, verificando aspectos da organização desse que se configuram como fora do que consideramos senso comum,
gênero por parte dos voluntários da pesquisa. Os resultados da fazendo com que o leitor possa perceber que os autores tinham

175
‘algo a mais’ a dizer, coisas mais relevantes para a defesa de seus bola Editorial, 2005.
pontos de vista, tendo em vista as escolhas dos hiperônimos. ______. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo:
Assim, constatamos que a maioria dos estudantes, de fato, apre- Parábola Editorial, 2009.
sentou dificuldade ao organizar suas produções textuais, valendo- ______. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Pa-
-se do uso dos recursos coesivos, no que diz respeito à diversidade rábola Editorial, 2010.
das possiblidades de substituição por hiperônimos. ______. Território das palavras: estudo do léxico em sala de aula.
Em nossa avaliação, como já discutido antes, essa dificuldade São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
ocorre, possivelmente, pelo fato de eles não conhecerem, explici- BEAUGRANDE, Robert-Alain de; DRESSLER.Wolfgang Ulrich.
tamente, esse fenômeno de coesão, mas também por não terem Introducción a la linguística del texto. Barcelona: Editorial Ariel,
acesso a diferentes meios para a ampliação de seu acervo lexical. S.A. 1997.
Acreditamos que, provavelmente, ainda falta a esses estudantes COSTA VAL, Maria das Graças. Redação e Textualidade. 2. ed.
um estudo mais consistente sobre esse tema, além de outros te- São Paulo: Martins Fontes, 1999.
mas ligados ao léxico. Por serem estudantes dos anos finais do COSTA, Ester de Queirós; RIBEIRO, Victória Maria Brant; RI-
ensino fundamental, apesar de terem estado afastados da escola, BEIRO, Eliana Cláudia de Otero. Programa de alimentação esco-
poderiam apresentar maior habilidade no uso dos termos hiperô- lar: espaço de aprendizagem e produção de conhecimento. Revista
nimos, sobretudo do uso dos hiperônimos que apresentam um ní- de Nutrição, Campinas, SP, v.14, n. 3, set./dez.. 2001. Disponí-
vel de generalização mais estrito, o que se denomina hiperonímia vel em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
estritamente lexical, que se dá pelo uso de designadores rígidos d=S1415-52732001000300009> Acesso em: 21 nov. 2014.
(ANTUNES, 1996; 2005). CUORE, Raul Enrique Cuore. A importância da merenda esco-
A recorrência do fato de os estudantes não se valerem do lar no desenvolvimento do aluno. Disponível em: <http://www.
uso de termos hiperônimos como uma possibilidade de substitui- artigonal.com/educacao-artigos/a-importancia-da-merenda-es-
ção, como recursos de itens que já apareceram em suas produções, colar-no-desenvolvimento-do-aluno-945032.html>. Acesso em:
pode ser justificada pela grande ênfase ainda dada aos aspectos 21 nov. 2014.
gramaticais da língua nas práticas escolares, em detrimento de um HALLIDAY, M, A, K; HASAN, Ruqaiya. Cohesion in English.
trabalho relacionado ao léxico e à sua importância para a orga- London: Longman, 1976.
nização e expressão mais precisa das ideias do texto, à escrita e à KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A coesão textual. 20. ed. São
reescrita. Paulo: Contexto, 2005.
______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez,
REFERÊNCIAS 2002.
______. O desenvolvimento da Linguística Textual no Brasil.
ANTUNES, Irandé. Aspectos da Coesão do Texto: uma análise D.E.L.T.A., v. 15, n. especial, 1999. p. 165-180.
em editoriais jornalísticos. Recife: Editora Universitária. 1996. LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: aborda-
______. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Pa- gens qualitativas.
rábola Editorial, 2003. São Paulo: EPU, 1986.
______. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Pará- LYONS, John. Semântica 1. Lisboa: Editorial Presença/Martins

176
Fontes, 1980.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Do código para a cognição: o pro-
cesso referencial como atividade criativa. Revista Veredas, Juiz de
Fora, MG, v.6, n.1, 2003. p. 43-62.
______. Linguística de texto: o que é e como se faz? São Paulo:
Parábola Editorial, 2012.
______. Aspectos da questão metodológica na análise da intera-
ção verbal: o continuum qualitativo-quantitativo. In: Reunião do
Grupo de Trabalho da ANPOLL: Análise da Conversação e Lin-
guística de Texto. Fortaleza: UFC, 31 ago. 1999.
______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São
Paulo: Parábola Editorial, 2008.
MENEGASSI, Renilson José; FUZA, Ângela Francine. Procedi-
mentos de escrita na sala de aula do ensino fundamental. Signóti-
ca. Revista do Programa de Pós-graduação em Letras e Linguísti-
ca, Goiás, v. 20, jul./dez. 2008. p. 469-493.
MENEGASSI, R.J. A internalização da escrita no ensino funda-
mental. 2005. Material de circulação interna no Grupo de Pesqui-
sa “Interação e escrita no ensino e aprendizagem” mimeo.
UNGERER, F.; SCHMID, J.H. An Introduction to Cognitive Lin-
guistics. Longman, England, 1996.

177
EIXO IV- ANÁLISE LINGUÍSTICA
E ENSINO-APRENDIZAGEM DE
LÍNGUAS E LITERATURAS
ESTRANGEIRAS
(PRESENCIAL E A DISTÂNCIA)

178
RESUMO A IMPORTÂNCIA DO RECURSO AUDIOVISUAL
PARA O ENSINO DA FONÉTICA NA APRENDIZA-
Aprender outro idioma é um processo complexo e comunicar-
-se oralmente requer do aprendiz muita dedicação e prática. Ad-
GEM DA LÍNGUA FRANCESA
quirir uma pronúncia clara a fim de ser compreendido é o objetivo
Izabel Cristina Barbosa de Oliveira
de muitos estudantes. Desenvolver e buscar materiais que ajudem
os estudantes a superarem problemas de pronúncia é uma das
Estudante do curso de Mestrado – ProfLetras (UPE – Campus
grandes dificuldades de muitos professores. Nesta perspectiva este
Mata Norte)
trabalho tem por objetivos analisar a parte destinada ao ensino da
E-mail: izabel_cbarbosa@hotmail.com
fonética de dois materiais de Língua Francesa, evidenciar de que
forma o tópico é trabalhado e identificar qual recurso audiovisual
Resumo – Este trabalho tem por objetivos analisar a parte des-
é utilizado. Os estudos de McGurk e MacDonald (1976) já revela-
tinada ao ensino da fonética de dois materiais de Língua Francesa,
vam a importância da junção de mais de um canal sensorial para
evidenciar de que forma o tópico é trabalhado e identificar qual
a percepção da fala. Baseando-se, também, nos estudos feitos por
recurso audiovisual é utilizado. Os estudos de McGurk e MacDo-
Rajagukguk (2012), Çakir (2006), Al-Yaari (2013), Aproliaswati e
nald (1976) já revelavam a importância da junção de mais de um
Sumarni (2014) é possível evidenciar a importância de se utilizar
canal sensorial para a percepção da fala. É possível evidenciar a
recursos audiovisuais para aprimorar a pronúncia em aprendizes
importância de se utilizar recursos audiovisuais para aprimorar
de língua estrangeira, uma vez que este recurso oferece mais possi-
a pronúncia em aprendizes de língua estrangeira, uma vez que
bilidades de percepção do sons emitidos. No caso deste trabalho, é
este recurso oferece mais possibilidades de percepção dos sons
importante salientar a importância da visão, que também faz par-
emitidos. Neste trabalho, salientamos a importância da visão, que
te do estímulo para a aquisição da linguagem, Esmeraldo (2013).
também faz parte do estímulo para a aquisição da linguagem, Es-
Desenvolvendo, desta maneira tanto a pronúncia quanto a habi-
meraldo (2013).
lidade comunicativa dos estudantes. Primeiramente, analisou-se
um livro indicado para aprendizes iniciantes de Língua France-
Palavras-chave: percepção da fala; pronúncia; recurso audio-
sa, e de um vídeo, disponível na internet. Foram selecionados os
visual
sons /e/, /ǝ/ e /ɛ/, presentes nos dois materiais e que causam nos
aprendizes, falantes da Língua Portuguesa, alguns inconvenien-
INTRODUÇÃO
tes durante a pronúncia. Analisou-se o livro, observando de que
forma os sons /e/, /ǝ/ e /ɛ/ são trabalhados e, posteriormente, foi
A relação da visão com a percepção da fala já vem sendo estu-
feita a análise do vídeo. O resultado da análise demonstrou que o
dada há alguns anos por vários autores, dente eles podemos citar
livro dispõe apenas do texto, do CD, e de exemplos. Já no vídeo,
McGurk e MacDonald (1976), Al-Yaari (2013), Esmeraldo (2013),
pudemos observar que a visualização do formato dos lábios (sua
Aproliaswati e Sumarni (2014). Os estudos demonstram que algu-
configuração) associado ao som e aos exemplos, facilita a aquisi-
mas pessoas que possuem dificuldade de produzir um determina-
ção da pronúncia dos fonemas selecionados.
do som, ao se acrescentar o suporte visual à audição, ampliam-se
Palavras-chave: recurso audiovisual; percepção da fala; pro-
as possibilidades para a percepção da fala, Esmeraldo (2013, p.24).
núncia

179
O recurso audiovisual é conhecido também como pista visual, useful to the language learner”. Desta forma, não podemos, como
pois serve de apoio e auxilia o estudante a perceber como o som profissionais no ensino de idiomas, desassociar o ensino da foné-
se produz. Compartilhamos com a teoria de Libermam et al (1967 tica da utilização do recurso audiovisual.
apud Esmeraldo, 2013, p.21-22) chamada de Teoria Motora da Não podemos deixar de destacar a importância que o vídeo
Percepção da Fala (TMPF) na qual explica que “os componentes possui no ensino de língua estrangeira. Rajagukguk (2012, p.1)
auditivos não são suficientes para percepção da fala, pois o pro- afirma que o “video as an audio visual aids is beneficial for the
cesso de percepção da fala envolveria a observação, pelo ouvinte, teacher and students […] Video can be used as an aid to teach the
dos gestos articulatórios produzidos pelo falante [...] A teoria de four skills namely reading, listening, speaking and writing”.Ob-
percepção motora da fala defende que esta percepção ocorre por serva-se que o vídeo pode ser utilizado não apenas no ensino da
meio dos gestos fonoarticulatórios do falante”. fonética, mas em qualquer uma das quatro habilidades que devem
A TMPF “defende que, para perceber os sons da fala, o cérebro ser ensinadas ao estudante.
humano procura imaginar o que é necessário para que esses sons
sejam produzidos” (ESMERALDO, 2013, p.22), por isso é impor- METODOLOGIA
tante mostrar como a boca se articula para pronunciar o som e
auxiliar o estudante a produzi-lo da mesma maneira. Os estudos O trabalho foi desenvolvido analisando dois materiais que
de McGurk e MacDonald (1976 apud Esmeraldo, 2013, p.32) tam- abordam o ensino da fonética de Língua Francesa, um livro para
bém revelam “que a percepção da fala é de natureza multimodal”, iniciantes, utilizado por uma escola especializada no ensino do
não podendo ser limitado apenas ao áudio nem a escrita isolada- Francês, e um vídeo disponível na internet. Dentre as várias dife-
mente, deve haver uma integração dos sentidos. E continua afir- renças fonéticas existentes entre a Língua Portuguesa e a Francesa,
mando que “os autores defendiam que a natureza monomodal a análise focou-se nos fonemas /e/, /ǝ/ e /ɛ/ que são abordados
para percepção da fala não se sustentava. A percepção da fala seria nos dois materiais.
de base multimodal, em que visão e audição participariam desse No livro, que vem acompanhado por um CD, percebe-se que
processo”. (ESMERALDO, 2013, p.32) a fonética é ensinada utilizando o alfabeto fonético internacional
As pistas visuais consistem, de acordo com Dian, Apriliaswati associada a algumas palavras como forma de exemplificar o som
e Sumarni (2014, p.3), em “television, video, tape recorder, sou- a ser produzido. O CD vem como auxílio, ele deve ser escutado
nd film strip projector, sound motion projector and VCD player”. para que o estudante possa reproduzir o som, repeti-lo e, assim,
Ainda de acordo com os autores, a utilização do recurso audio- aprender a pronunciar a palavra de maneira correta.
visual, como ferramenta de ensino integrado ao sonoro, melhora O vídeo, segue basicamente o mesmo aspecto do livro, utiliza-
não só a pronúncia dos estudantes, mas também a sua confiança -se do alfabeto fonético internacional, há a reprodução do som,
em pronunciar as palavras. dá exemplos de palavras que trazem este som indicado, mas, ele
Na visão de Al-Yaari (2013, p.232) o recurso audiovisual inter- apresenta um diferencial, a imagem, que apresenta o formato da
fere no “recognizing the word in the brain before it is articulated”. boca, sua configuração. O recurso audiovisual indicando como a
Desta forma, o cérebro necessita de pistas visuais para ajudá-lo a boca deve estar, se aberta, entreaberta ou fechada ajuda na orien-
reproduzir o som com maior fidelidade. Wright (1976 apud Çakir, tação de como a palavra deve ser pronunciada, o que se pode cha-
2006, p.67) acrescenta que “many styles of visual presentation are mar de pista visual.

180
RESULTADOS E DISCUSSÃO perceba como pronunciar de forma mais adequada e próxima do
original o fonema. Espera-se que outros estudos possam aprofun-
Foram analisados um livro de francês para iniciantes utilizan- dar esta pesquisa e demonstrar ainda mais a influência do recurso
do em um curso especializado no ensino da Língua Francesa, na audiovisual na aquisição de outro idioma. E que os profissionais
cidade de Recife, e um vídeo direcionado ao ensino da fonética de que trabalham com o ensino de idiomas possam buscar ou desen-
Língua Francesa disponível na internet. volver materiais audiovisuais que auxiliem seus estudantes a com-
Percebemos que com o recurso audiovisual (a configuração de preender como se articulam alguns sons, que em muitos casos,
como os lábios e a língua são posicionados para a pronúncia de não existem em sua língua materna.
um determinado fonema), além do sonoro, facilitam a compreen-
são do estudante de como produzir o som de maneira mais próxi-
ma possível do original. REFERÊNCIAS
Desta forma, quando mostramos a configuração da boca (ob-
servado no vídeo), referente ao fonema e uma palavra como exem- AL-YAARI (2013), Sadeq Ali Saad. Using audio-visual aids and
plo que possui este fonema, o estudante é capaz de pronunciar de computer-assisted language instruction (cali) to overcome lear-
maneira mais confiante e próxima do original do que quando se ning difficulties of speaking in students of special needs. Journal
mostra apenas o som e a palavra escrita (observada no livro). Uma for the Study of English Linguistics, Riyadh, Kingdom of Saudi
vez que a pista audiovisual ajudará a desenvolver no estudante a Arabia, 2013. ISSN 2329-7034, Vol. 1, No. 2
consciência de como irá articular para pronunciar do som estuda- ÇAKIR, Ismail.The use of video as an audio-visual material in fo-
do. McGurk e MacDonald (1976, p.54) explicam que “in speech reign language teaching classroom. The Turkish Online Journal of
perception both auditory and visual information, if available, is Educational Technology – TOJET October 2006. ISSN: 1303-6521
important […] The visual cue gives information about the place of volume 5 Issue 4 Article 9.
articulation (e.g. bilabial, alveolar or velar), and the acoustical cue, DIAN, Rosita; APRILIASWATI, Rahayu; SUMARNI, Neeny. Im-
about the manner of articulation (e.g. voiceless, voiced or nasal)”. proving students’ speaking ability by using audio visual as tea-
Com a análise dos autores estudados, do livro adotado no cur- ching media. Tanjungpura University, Pontianak, 2014.
so de idioma e do vídeo foi possível observar a importância, a ESMERALDO, Luciana R.O papel do léxico e das pistas auditivas,
eficácia e a influência do recurso audiovisual no ensino de uma visuais e audiovisuais na percepção das oclusivas labiais e velares
língua estrangeira. O quanto o recurso audiovisual pode influen- do português brasileiro. Dissertação de Mestrado em Linguística
ciar na aprendizagem da fonética do idioma alvo. Aplicada da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Fortaleza,
2013.
CONSIDERAÇÕES FINAIS McGURK, H.; MAcDONALD J. Hearing lips and seeing voices.
Nature, v. 264, n. 23, 1976.
Espera-se com este trabalho esclarecer ainda mais a importân- RAJAGUKGUK, Donal Sepdo. Teaching speaking skill using vi-
cia da utilização do recurso audiovisual no ensino da fonética no deo presentation at bengkel bahasa course.English Education
ensino de línguas, neste caso, da Língua Francesa, compreende- Study Program Language and Arts Department Sekolah Tinggi
mos que o estímulo sonoro não é suficiente para que o estudante Keguruan dan Ilmu Pendidikan (STKIP), Siliwangi, Bandung,

181
2012. Disponível em: <http://publikasi.stkipsiliwangi.ac.id/karya- de quem fala. Segundo Aschenberg ∞ LouredaLlamas (2011), os
-ilmiah-mahasiswa/teaching-speaking-skill-using-video-presen- marcadores discursivos possuem características polifuncionais,
tation-at-bengkel-bahasa-course/>. Acesso em 03/01/2016. não só paradigmáticas, mas também sintagmáticas. Isso significa
que nem sempre a um marcador discursivo lhe corresponde um
só significado, porém muitas vezes se produz a convergência de
dois ou mais valores semânticos em uma só situação. Foi visto
através desse trabalho, que os falantes de espanhol como segunda
RESUMO língua, pelo menos a maioria deles, não levam em consideração a
importância do estudo dos marcadores discursivos. É necessário
Este trabalho é resultado de um estudo sobre os marcadores que se tenha em mente que, apesar de as línguas portuguesa e
discursivos e sua utilização dentro do âmbito da língua espanho- espanhola serem “parecidas”, elas têm suas especificidades e isso
la e como os brasileiros, enquanto aprendizes da língua utilizam também se reflete no uso dos marcadores. Percebemos através do
esses conectores na oralidade do espanhol. Nosso trabalho tem trabalho de gravações e análise que a mescla das duas línguas se
como principal objetivo, analisar como os brasileiros utilizam os refletem também no uso das partículas discursivas e que geral-
marcadores do espanhol, através de gravações, de modo a obser- mente há uma preocupação grande em escolher bem os vocabu-
var os conectores contrastivamente. Através de algumas gravações lários, mas deixam os marcadores discursivos como “termos peri-
tomadas em algumas aulas de espanhol e suas transcrições, reali- féricos” nos enunciados. Concluímos que muitos marcadores que
zamos uma análise de como os conectores discursivos utilizados foram utilizados nas gravações haviam sido traduzidos de forma
em espanhol por lusófonos tinham uma interferência do portu- direta do português ao espanhol e que, na verdade, a forma cor-
guês. Consideramos que os marcadores discursivos são partícu- reta era outra. É necessário pensar que o espanhol e português
las, pertencentes a diversas classes gramaticais, que podem em são línguas distintas e possuem seus próprios conectores. Por fim,
determinados contextos, desempenhar algumas funções externas concluímos que é necessário um maior estudo sobre as distinções
às suas funções predicativas. Esses marcadores servem para fa- entre os conectores do português e espanhol, a fim de ajudar aos
zer interferências no discurso de modo procedimental, ou seja, aprendizes do espanhol a utilizar bem a língua.
servem para ajudar o falante a dar continuidade ao seu discurso. Palavras- chave: Marcadores; discurso; contrastiv
Alguns autores creem que os conectores discursivos servem para
dar coesão a um determinado enunciado. Para Portolés (1993), a
coesão não é um fim no uso dos marcadores discursivos, mas uma ANÁLISE CONTRASTIVA ENTRE PORTUGUÊS E
consequência. Estas partículas discursivas têm funções pragmá- ESPANHOL DENTRO DOS MARCADORES DIS-
ticas, ou seja, estão relacionadas com as funções elocutivas que o
CURSIVOS
falante deseja cumprir com seus usos. Com isso, podemos ver que
um marcador pode ter vários significados, dependendo de como
Girleide Santos da Silva Melo
e onde é utilizado. Os marcadores são de categoria extraoracional,
José Alberto Miranda Poza
que de determinado modo estão vinculados a noções externas a de
predicação, como as que fazem referência às atitudes ou intenções

182
Estudante do Mestrado na área de Linguística- UFPE; afirma, um professor de línguas estrangeiras não pode reduzir seu
Email: Girleydesantos@hotmail.com papel ao de um simples animador cultural. Um profissional de
Docente/ pesquisador Doutor do Depto de Letras- UFPE; ensino de idiomas deve conhecer os mecanismos que regulam a
Email: ampoza@globo.com gramática e sua estrutura (tanto de sua própria língua, como a
da que ensina). Deste modo será possível detectar possíveis pro-
Resumo: Este trabalho é resultado de um estudo sobre os mar- blemas que poderão surgir ao longo da aprendizagem, ajudando
cadores discursivos e sua utilização dentro do âmbito da língua na utilização de métodos e estratégias para culminar com êxito a
espanhola e como os brasileiros, enquanto aprendizes da língua assimilação e aquisição das estruturas linguísticas por parte do
utilizam esses conectores na oralidade do espanhol. Nosso traba- aprendiz.
lho tem como principal objetivo, analisar como os brasileiros uti- A língua espanhola é muito próxima à língua portuguesa, logo
lizam os marcadores do espanhol, através de gravações, de modo é muito comum que um brasileiro, aprendiz do espanhol faça al-
a observar os conectores contrastivamente. Através de algumas gumas interferências em seu discurso em espanhol do português.
gravações tomadas em algumas aulas de espanhol e suas transcri- O processo de interlíngua é comum para todos os aprendizes de
ções, realizamos uma análise de como os conectores discursivos um idioma estrangeiro, o problema passa a ser quando há uma
utilizados em espanhol por lusófonos tinham uma interferência fossilização. Podemos ver que hoje, o espanhol está ganhando um
do português. Foi visto através desse trabalho, que os falantes de status diferenciado. Cada vez mais, as pessoas têm interesse em
espanhol como segunda língua, pelo menos a maioria deles, não aprender o espanhol como L2. Brasil é um país que está rodeado
levam em consideração a importância do estudo dos marcado- de países hispanos. O desenvolvimento econômico brasileiro, a
res discursivos. É necessário que se tenha em mente que, apesar relação com o MERCOSUL está provocando que os brasileiros,
de as línguas portuguesa e espanhola serem “parecidas”, elas têm realmente, sintam a necessidade de aprender a língua espanhola.
suas especificidades e isso também se reflete no uso dos marcado- A facilidade de um brasileiro, hoje em dia, ir a um país americano
res. Percebemos através do trabalho de gravações e análise que a também faz com que mais pessoas tenham melhor interesse por
mescla das duas línguas se refletem também no uso das partículas aprender o idioma.
discursivas e que geralmente há uma preocupação grande em es- Quanto aos marcadores discursivos, um grande problema ain-
colher bem os vocabulários, mas deixam os marcadores discursi- da existente é que não há muitos estudos sobre o assunto, prin-
vos como “termos periféricos” nos enunciados. Este trabalho tem cipalmente de forma contrastiva entre o português e espanhol.
a finalidade de pensar nas diversas diferenças entre o espanhol e Logo, o que ocorre quase sempre é um brasileiro aprende espa-
o português. nhol, mas continua utilizando os conectores do português, muitas
vezes limitando-se a traduzir a forma de sua L1 na língua meta.
Palavras- chave: contrastivo; discurso; marcadores Pensando nisso, cremos que é muito importante um estudo de
contraste entre as duas línguas: espanhol- português, de modo
INTRODUÇÃO em que se compreenda as suas diferenças e similitudes, no uso
das partículas discursivas, analisando contrastivamente os valores
Um profissional de línguas estrangeiras deve estar bem pre- semântico- pragmáticos nos dois âmbitos- português e espanhol.
parado para assumir seu papel. Como Bugueño Miranda (1998) Acreditamos que o trabalho com as línguas espanhola e portu-

183
guesa , de modo contrastivo é bastante importante, pois ajuda na crições das gravações feitas, em que observamos a existência de
compreensão das diferenças linguísticas existentes nos dois âmbi- um problema de interlíngua.
tos, de modo que se possa expandir também sua importância na
união dos países de América com o Brasil, facilitando a expansão
comunicativa nas diversas relações, sejam sociais e/ou econômi-
cas/ financeiras.

METODOLOGIA

Para este trabalho nos utilizamos de uma metodologia de


caráter duplo: prático e bibliográfico. Para a parte bibliográfica,
utilizamos materiais sobre análise contrastiva, interlíngua, mar-
cadores discursivos. Na parte prática, a princípio escolhemos três
informantes, que foram selecionados em função de suas carac-
terísticas: procedência, profissão, idade, tempo de contato com
a língua espanhola, etc. A seleção levou em consideração outros
fatores sócio- linguísticos de praxe, ocupação, profissão, grau de
instrução. Os informantes se submeteram a algumas gravações,
de forma em que foi respeitada a espontaneidade de cada um. As
três gravações foram feitas dentro de sala de aula, duas no núcleo
de línguas da UFPE e uma de um grupo de sétimo período de Le-
tras/ espanhol. Os dois grupos do Núcleo de línguas tinham como
nível, intermediário 2 e avançado 1.
Após as transcrições dos dados obtidos nas gravações, esta-
belecemos sua análise, buscando sempre os elementos que não
pertenciam à língua espanhola, mas que era resultado de uma
contaminação (interlíngua) com a língua portuguesa. Após isso,
fizemos a determinação das causas que provocaram as interferên-
cias, o que nos conduziu ao conhecimento de estruturas opacas na
relação biunívoca entre ambas as línguas que impedem ao falante,
sem uma margem de tempo mínima para a reflexão, expressar-se
corretamente dentro dos padrões e estruturas da língua meta.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Como resultados de nossa pesquisa, colocamos aqui, alguns
marcadores discursivos que foram analisamos dentro das trans-

184
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos concluir que, apesar de que os marcadores discur-


sivos não tenham um espaço muito grande quanto a seu estudo
no ensino de língua espanhola, o uso de um conector discursivo
pode ser fundamental para a coerência ou não de um enunciado.
Sabe-se que a interlíngua é uma fase intermediária entre a lín-
gua materna e a estrangeira, quando a aprendizagem está em cur-
so. Mas, a partir do momento em que esta fase prolonga-se cada
vez mais e não há muita preocupação em avançar o nível, então
já podemos encontrar um problema de fossilização. Vemos isto
refletido frequentemente na oralidade: brasileiros que acreditam
que a língua espanhola é muito fácil, mas na verdade o que falam
trata-se muito mais do português que precisamente do espanhol.

185
É necessário que nos ambientes de ensino- aprendizagem desta REFERÊNCIAS
língua no Brasil, haja uma prioridade maior, de modo em que se o
incentive a evolução nos níveis de aprendizagem do aluno. ANSCOMBRE, Jean Claude; DUCROT, Oswald. La argumentaci-
Todo este problema de interlíngua, muitas vezes reflete-se tam- ón en la lengua. Madrid: Gredos, 1994.
bém no uso dos marcadores discursivos. É muito comum para um ARMENGAUD, Françoise. A Pragmática. São Paulo: Parábola
estudante de línguas estrangeiras, inserir os conectores discursivos Editorial, 2006.
de seu idioma materno na língua estudada. Como já foi discutido ASCHENBERG, Heidi; LOUREDA LAMAS, Óscar. (eds.) Mar-
ao decorrer deste trabalho, cada língua possui suas especificidades cadores del discurso: de la descripción a la definición. Madrid /
e suas próprias partículas discursivas e seus usos particulares, não Frankfurt am Main: Iberoamericana / Vervuert, 2011.
sempre intercambiáveis. BRIZ GÓMEZ, Antonio. Reflexiones sobre el Diccionario de par-
Um grande problema ainda existente acerca dos marcadores tículas discursivas del español (DPDE). Más allá de lo estricta-
discursivos é que não há tantos estudos sobre o assunto e especial- mente lexicográfico. En: Veyrat, Montserrat el al (eds.): La linguís-
mente de forma contrastiva entre o português e o espanhol. Tam- tica como reto epistemólogo. Homenaje al profesor Ángel López.
bém podemos ver que esta temática não é muito abordada em au- Madrid: Arco/ Libros, vol. 2, 569- 582.
las de ELE. Logo, o que quase sempre ocorre é que um brasileiro BUGUEÑO MIRANDA, Félix. Sobre algunos tipos de falsos cog-
aprende o espanhol, mas continua utilizando os conectores de do nados. Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos, nº 8, 1998, pp.
português, muitas vezes limitando-se a traduzir a forma de sua L1 21-27.
na língua meta. Conseguimos observar de modo mais concreto as FEIJÓO, Benito. Dicionário de falsos amigos do espanhol e do
interferências da língua portuguesa na oralidade no espanhol de português. São Paulo: Embaixada da Espanha, 1992.
um brasileiro falante do português. Ao longo das gravações, foi FERNÁNDEZ LOPEZ, Sonsoles. Interlengua y Análisis de Erro-
evidente como o espanhol mesclava-se com o português, em não res en el aprendizaje del español como lengua extranjera. Madrid:
poucas situações. Edelsa, 1997.
Foi possível observar que muitos marcadores foram utiliza- MARTÍN ZORRAQUINO, Maria Antonia.; PORTOLÉS, José.
dos nas gravações foram traduzidos de forma direta ao espanhol, Los marcadores del discurso. In: BOSQUE, Ignacio; DEMONTE,
quando a forma correta era outra. Tudo isso nos fez ver que às Violeta. (eds.) Gramática descriptiva de la lengua española. Ma-
vezes não há uma preocupação muito grande por cuidar no mo- drid: Espasa-Calpe, 1999, vol.3, pp.4051-4213. Los marcadores
mento da enunciação, o marcador que emprega-se. É notório, del discurso. Teoría y análisis, 1998.
para nós, que os marcadores discursivos produzem um efeito, que PORTOLÉS, José. Pragmática para hispanistas. Madrid: Síntesis,
muitas vezes pode ser decisivo em um enunciado e uma partícula 2004. La distinción entre los conectores y otros marcadores del
pode ter vários sentidos, dependendo do seu uso, o que pode difi- discurso en español. Verba, 20, 141-170. 1993
cultar no processo de aprendizagem para um estrangeiro. ROLDÁN, Eduardo. ¿Qué es la interlengua?. Documentos Lin-
Neste sentido, chega-se à conclusão de que é necessário abrir güísticos y Literarios 15: 1989, 11-12.
um espaço maior para os estudos dos marcadores discursivos,
tanto nas escolas, como em cursos e idiomas, pois como o espa-
nhol e português são línguas próximas, se produz uma tendência
a uma interferência muito grande do primeiro sobre o segundo.
186
RESUMO ao ensino de espanhol no Brasil, sua perspectiva histórica e seus
desdobramentos na atualidade; CELADA; (2002) para discutir
O presente trabalho é realizado em cima das observações do a importância da motivação do ensino de espanhol no Brasil; os
informe focado na construção político-pedagógica da escola cam- PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (2000) a fim de
po, elaborado no âmbito da disciplina “ESTÁGIO CURRICULAR reforçar a importância do ensino do espanhol para a pluralidade
EM ESPANHOL I”, sob a responsabilidade do Prof. Juan Pablo cultural; a Lei 11.161 em contraposição as relatos de observação,
Martín Rodrigues na Universidade Federal de Pernambuco, que produzidos na escola campo de estágio, tendo em vista que a mes-
tem por objetivo a observação do processo de ensino-aprendiza- ma representa uma amostra de escolas públicas em Pernambuco.
gem e avaliação da língua espanhola nas escolas . Por isso busca-se A partir dessa observação, é possível indicar que o desrespeito da
apresentar as inquietações dos estudantes em formação docente Lei do espanhol prejudica a pluralidade cultural e intensifica o
acerca do não cumprimento das leis que regulamentam o ensino preconceito de que a língua espanhola não é tão relevante para a
da língua espanhola nas escolas públicas de Pernambuco. Pois, é aprendizagem.
perceptível logo ao inicio das observações, a dificuldade de en-
contrar escolas que ofereçam a disciplina de língua espanhola a Palavras-chave: Ensino-aprendizagem da língua espanhola; A
seus estudantes. Essa dificuldade nos indica que existe uma cisão Lei do Espanhol; Pluralidade cultural
entre a prática e a legislação, já que de acordo com a lei 11.161,
de 05 de agosto de 2005, o ensino da língua espanhola é de oferta
obrigatória as escolas e facultativa aos estudantes, tendo apenas a
faculdade da implantação da língua espanhola em seus currículos, AS ESCOLAS PÚBLICAS DE PERNAMBUCO E A
as escolas de ensino básico, ou seja, as que ofereçam o ensino de “LEI DO ESPANHOL”
nível fundamental I e II (6°ano ao 9°ano). Além disso, o art.36,
inciso III, da Lei 9394/96 da LDB (Lei de Diretrizes e Bases) já
implementava desde 1996, a inclusão de uma língua estrangeira Andréia Florêncio de Figueiredo
moderna enquanto disciplina obrigatória e outra em caráter opta- Prof. Dr. Juan Pablo Martín Rodrigues
tivo para os alunos. O ensino de espanhol no Brasil começa pela
necessidade econômica e comercial, principalmente pela criação Estudante do curso de Letras/Espanhol – CAC – UFPE;
do MERCOSUL, que corroborou para a institucionalização da Lei E-mail: andreiafflorencio@hotmail.com
11.161, mais conhecida como a “Lei do Espanhol”, entretanto, per- Docente/pesquisador do Depto de Letras – CAC – UFPE;
cebemos que essa legislação é negligenciada no sistema educativo E-mail: jpablosburgos@gmail.com
brasileiro, caso já indicado pela dificuldade de encontrar escolas
publicas em Recife que tenham o ensino da língua espanhola em
seus currículos. Sendo assim, esse trabalho pretende abordar os RESUMO - O presente trabalho é realizado em cima das obser-
entraves sofridos pelos estudantes em processo de formação, fren- vações do informe focado na construção político-pedagógica
te ao não cumprimento da lei do espanhol. Utilizamos para apoiar da escola campo, elaborado no âmbito da disciplina “ESTÁGIO
nossa discursão: as contribuições de LASECA (2008) em relação CURRICULAR EM ESPANHOL I”, sob a responsabilidade do

187
Prof. Juan Pablo Martín Rodrigues na Universidade Federal de para a institucionalização da Lei 11.161, mais conhecida como
Pernambuco, que tem por objetivo a observação do processo de a “Lei do Espanhol”, entretanto, percebemos que essa legislação
ensino-aprendizagem e avaliação da língua espanhola nas esco- é negligenciada no sistema educativo brasileiro, caso já indicado
las. Por isso busca-se apresentar as inquietações dos estudantes pela dificuldade de encontrar escolas públicas em Recife que te-
em formação docente acerca do não cumprimento das leis que nham o ensino da língua espanhola em seus currículos, o que vem
regulamentam o ensino da língua espanhola nas escolas públicas a ferir o direito do estudante a pluralidade cultural e linguística
de Pernambuco, embasado na Lei 11.161/2005, CELADA (2002), defendidas pelos PCN do Ensino Médio (Parâmetros Curricula-
LASECA (2008), e os PCN’s (Parâmetros Curriculares Nacionais res Nacionais) e as OCEM (Orientações Curriculares para o En-
para o Ensino Médio, 2000), para apoiar nossa discussão e indicar sino Médio). Sendo assim, esse trabalho pretende abordar os en-
a partir das observações práticas na escola campo de estágio, que traves sofridos pelos estudantes em processo de formação, frente
o desrespeito da Lei do Espanhol prejudica a pluralidade cultural ao não cumprimento da Lei do Espanhol, entre eles o déficit em
e intensifica o preconceito de que a língua espanhola não é tão nossa formação docente, já que nosso campo prático de formação
relevante para a aprendizagem. se torna demasiadamente limitado, pois pela ausência de escolas
com a língua espanhola no ensino regular, acabamos por realizar
Palavras-chave: Ensino-aprendizagem da língua espanhola; A a prática em cursos de idiomas, geralmente composto por pesso-
Lei do Espanhol; Pluralidade cultural as da terceira idade, ou fase adulta, com formações distintas, e/
ou com um objetivo especifico, geralmente profissional, que vem
INTRODUÇÃO a enxergar a língua espanhola meramente como instrumento de
ascensão e/ou exigência.
Ao início das observações foi perceptível a dificuldade de en- A Lei 11.161/2005 é um marco para a democratização do en-
contrar escolas que oferecessem a disciplina de língua espanhola a sino de línguas estrangeiras no Brasil, e abriu um espaço para
seus estudantes. Essa dificuldade nos indica que existe uma cisão a reflexão de como se faz necessário repensar o papel da língua
entre a prática e a legislação, já que de acordo com a Lei 11.161, espanhola nas escolas, e mesmo que ainda muito se falte para o
de 05 de agosto de 2005, o ensino da língua espanhola é de oferta total cumprimento da lei, nós enquanto professores e futuros pro-
obrigatória as escolas e facultativa aos estudantes, todas as escolas fessores, não devemos nos acomodar com a atual situação, não
de ensino médio obrigatoriamente devem ofertar a disciplina em somente pelo respeito a luta pela regulamentação, mas como tam-
seu currículo, tendo apenas a faculdade da implantação da língua bém porque somos nós, professores, os mais interessados no total
espanhola em seus currículos, as escolas de ensino básico, ou seja, cumprimento da lei.
as que ofereçam o ensino de nível fundamental I e II (6°ano ao
9°ano). Além disso, o art.36, inciso III, da Lei 9394/96 da LDB METODOLOGIA
(Lei de Diretrizes e Bases) já implementava desde 1996, a inclusão
de uma língua estrangeira moderna enquanto disciplina obrigató- Utilizamos para apoiar nossa discursão: as contribuições de
ria e outra em caráter optativo para os alunos. O ensino de espa- LASECA (2008) em relação ao ensino de espanhol no Brasil, sua
nhol no Brasil começa pela necessidade econômica e comercial, perspectiva histórica e seus desdobramentos na atualidade; CE-
principalmente pela criação do MERCOSUL, que corroborou LADA; (2002) para discutir a importância da motivação do ensi-

188
no de espanhol no Brasil; os PARÂMETROS CURRICULARES ao menos uma referência nessa legislação ao respeito do ensino
NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO (2000); a fim de reforçar de línguas estrangeiras no Brasil. Em sua reformulação no ano de
a importância do ensino do espanhol para a pluralidade cultural; 1971, a LDB traz em seu corpus a referência do ensino de línguas
as ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO estrangeiras no Brasil, entretanto de maneira a ocupar o papel de
(2006); visando ressaltar a importância da formação de um aluno disciplina extracurricular, logo, não se faziam necessárias na es-
cidadão que venha a compreender que há uma heterogeneidade trutura curricular das escolas. Porém, finalmente em sua última
no uso de qualquer língua; a LEI 11.161 em contraposição as rela- reformulação, em 20 de dezembro de 1996, realizada depois do
tos de observação, produzidos na escola campo de estágio, tendo período ditatorial, a nova LDB vem a devolver as línguas estran-
em vista que a mesma representa uma amostra de escolas públicas geiras o caráter obrigatório nos dois níveis de escolarização. Vale
em Pernambuco. A partir dessa observação, é possível indicar que salientar que a obrigatoriedade nos dois níveis de escolarização
o desrespeito da Lei do Espanhol prejudica a pluralidade cultural foi um avanço ao espanhol, pois até aquele momento o ensino do
e intensifica o preconceito de que a língua espanhola não é tão espanhol havia sido obrigatório somente em um nível. Há quem
relevante para a aprendizagem. defenda que a ascensão do espanhol em solo brasileiro ocorreu
devido o advento do MERCOSUL (Mercado Comum do Sul)
RESULTADOS E DISCURSÃO em 1991, entretanto, vemos que a luta por espaço nos currículos
escolares não é de hoje, logo, é injustiça esquecer de toda uma
O ensino de espanhol no Brasil começa aproximadamente a luta de quase um século para que em 05 de agosto de 2005, fosse
um século atrás, no período imperial, quando o espanhol foi in- sancionada a lei que garantisse o ensino de espanhol nas escolas
cluído no sistema brasileiro de ensino como uma disciplina opta- brasileiras, por tanto, é inegável a influência do MERCOSUL para
tiva, por meio da escola Don Pedro II, mais adiante em 1930, logo a sansão da Lei de Espanhol, porém não é ele o ápice precursor, e
depois da revolução que levou Getúlio Vargas ao poder, foi ini- sim mais um entre muitos outros fatores que contribuíram para
ciada a “campanha de nacionalização”, que tomado por extremo a implementação da lei. A Lei 11.161 de 05 de agosto de 2005,
nacionalismo, o governo brasileiro fechou escolas fundadas por sancionada pelo presidente da época, Luís Inácio Lula da Silva,
imigrantes, prendeu a professores estrangeiros e destruiu todos os juntamente com o Ministro da Educação, Fernando Haddad, im-
materiais didáticos de língua estrangeira que eram encontrados. plementa em resumo que o ensino da língua espanhola é de oferta
Em 1942, Gustavo Capanema no intuito de reestruturar a educa- obrigatória pela escola, sobretudo as escolas que ofertem o ensino
ção nacional, decretou a Lei Orgânica do ensino secundário, qual médio, tendo apenas a facultatividade a lei as escolas de ensino
determinava a obrigatoriedade do ensino de espanhol nas escolas fundamental I e II, e de matricula facultativa pelo aluno, e que
secundárias do Brasil, e em 1958, com o governo brasileiro incli- esse processo de implementação da lei deveria estar concluído
nado a América Latina, Juscelino Kubitscheck propôs o projeto no prazo de cinco anos, a partir da implementação da mesma.
da lei número: 4.606, que visava implantar o ensino de espanhol Entretanto, percebemos que essa legislação é negligenciada no
nos dois ciclos do ensino secundário. Em contraposição a isso, no sistema educativo brasileiro, caso já indicado anteriormente pela
ano de 1961 com a sanção da primeira LDB (Lei de Diretrizes e dificuldade de encontrar escolas públicas na região metropolitana
Bases), houve o apagamento quase que por completo da memória do Recife que tenham o ensino de língua espanhola em seus currí-
discursiva que o espanhol tinha até esse momento, pois não há culos. O que afeta diretamente nossa formação docente, pois essa

189
dificuldade ademais de servir de elemento desestimulante, pois aluno, possibilitando-lhe o acesso e apropriação de conhecimento
percebemos o verdadeiro espaço que vem a ter o espanhol nas de outras culturas, fazendo-o ter acesso as diferentes formas de
instituições educacionais, nos priva do contato direto com nosso pensar, agir, criar, sentir, e conceber a realidade, o que propicia
público alvo, que são os estudantes do ensino fundamental e do ao indivíduo uma formação mais abrangente e ao mesmo tempo
ensino médio, porque já que não temos campo de estágio nas mais sólida, assim como também propõe as OCEM (Orientações
turmas regulares, somos encaminhados aos Núcleos de Estudos Curriculares para o Ensino Médio), que visa a formação de um
de Línguas, que é um curso de línguas, qual tem por objetivo a aluno cidadão, que saiba entender e discutir sobre qual lugar ocu-
instrumentalização da língua, ou seja, sua preocupação é atender pa na sociedade, se está incluído ou excluído do processo cultural
a demanda do mercado de trabalho, já que a maioria dos estudan- que analisa, e que venha atuar sempre de maneira crítica-reflexiva
tes se matriculam e frequentam as aulas com esse objetivo. em seu meio, considerando que cada língua, longe de ser homo-
gênea, é composta por variantes culturais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS O que nos faz voltarmos a outra reflexão, o preconceito que o
brasileiro tem para com o espanhol, trazendo um conceito antigo
Muitas das justificativas ouvidas nas direções das escolas pú- de ignorância a língua e a cultura hispano-americana, de que todo
blicas de rede estadual da cidade do Recife que não oferecerem brasileiro naturalmente sabe falar espanhol, pois é uma língua
em seus currículos a disciplina de língua espanhola, sempre estão fácil, sendo o “portunhol” muita das vezes utilizado, preconcei-
embasadas nas distintas interpretações do texto da lei, como por to esse que é reforçado pelas instituições brasileiras de ensino ao
exemplo a relação paradoxal que se tem do artigo primeiro da lei, negarem a oportunidade da maioria dos estudantes terem conta-
o qual põe a oferta obrigatória as escolas e facultativa aos estu- to direto com a língua, sobretudo as instituições públicas de en-
dantes, o que de forma implícita situa o espanhol como disciplina sino médio do Estado de Pernambuco, que quase por completo
de “carácter optativo”, ou até mesmo, o que deve ser considerado retirou os horários de aula de espanhol do currículo e o colocou
como horário regular, como as escolas vão garantir a liberdade nos núcleos de línguas para a “comunidade”, o que em realida-
dos alunos, e o espaço dado as interpretações mais favoráveis a de, acaba por deixar sem espanhol a maioria dos estudantes de
cada escola pública, que é o artigo 3º da lei, que determina a obri- ensino público. Esse preconceito e desvalorização do espanhol e
gatoriedade das escolas públicas implantarem Centros de Ensino da cultura hispano-americana em Pernambuco, é claramente de-
de Línguas Estrangeiras que incluam obrigatoriamente a oferta clarado e reforçado, pois além do desrespeito ao cumprimento da
de língua espanhola, que em nosso estado, são conhecidos como Lei 11.161/2005, na última convocatória do Governo do Estado
NEL’s (Núcleo de Estudos de Línguas Estrangeiras). Em meio a de Pernambuco por meio de concurso público para professores da
tantas estratégias para não se cumprir efetivamente a Lei do Espa- rede estadual de ensino, que ocorreu no ano de 2015, não se abriu
nhol, se faz necessário reflexionar as possíveis consequências do uma vaga se quer para professores de espanhol, o que acaba por
não cumprimento da mesma, pois, essa infração fere por exemplo, deixar em evidência o descaso com o ensino da língua espanhola
o direito dos estudantes a pluralidade cultural e linguística, já que no Estado, pois as alternativas que ficam a serem seguidas com
de acordo com os PCN do Ensino Médio (Parâmetros Curricula- essa postura são: a não oferta da disciplina, por falta de profes-
res Nacionais), o domínio de uma língua estrangeira se constituí sores, e/ou a oferta da disciplina por professores de habilitações
em mais uma possibilidade de ampliação do universo cultural do distintas, ou seja, que possuam licenciatura em outra área, caso

190
muito recorrente também no Estado, principalmente no progra- da língua espanhola nas escolas, pois juntamente com as OCEM
ma intitulado GANHE O MUNDO, que é um programa criado (Orientações Curriculares para o Ensino Médio), pôs em ênfase
em 2011 pelo governo do estado de Pernambuco, com o intuito a cidadania, a busca de um cidadão pluricultural, o sentimento, e
de enviar estudantes do ensino estadual para intercâmbios em pa- de certo modo, a postura de irmandade com os países da Améri-
íses de língua inglesa e espanhola, quais os professores de língua ca Latina, não somente de maneira comercial mas em todas rela-
espanhola em sua grande maioria possuem outras habilitações, ções humanas e culturais, como também, a interdisciplinaridade
porém já viajaram a um país de língua espanhola e a falam e com- na aprendizagem, qual o espanhol pode contribuir, influenciar e
preendem bem, o que acaba por os habilitarem a ensinarem nesse melhorar muitas outras dimensões do saber. O que torna o es-
programa, o que é uma discursão para um outro momento. Vale panhol algo fundamental em nossa educação, logo, é de extrema
salientar, que esse dado aqui é apresentado em cima de relatos importância que lutemos pela não acomodação dos profissionais
corriqueiros por estudantes que fazem e/ou fizeram parte desse da educação, sobretudo dessa disciplina, pois cabe a nós enquanto
programa, e nos serve de reforço para com o descompromisso do professores e futuros professores, a responsabilidade de defender
Estado de Pernambuco com o ensino da língua espanhola. A pos- nossos interesses.
tura adotada pelo atual Governo do Estado frente ao ensino do
espanhol, nos faz chegar à conclusão que o mesmo mantém uma
postura neoliberal de caráter conservador, pois governos desse REFERÊNCIAS
teor ideológico em nossa história, acabam por tentarem a total
exclusão do espanhol em nossas escolas e portanto, de nossa cul- BRASIL. Lei n°11.161, de 05 de agosto de 2005.
tura, pois não querem unir-se com a América Latina, seu foco de BRASIL/SEMTEC. Orientações Curriculares para o Ensino Mé-
união sempre está voltado aos EUA (Estados Unidos da América), dio. Brasília: MEC/SEMTEC, 2006.
logo, priorizam sempre o ensino da língua e consequentemente BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Ensino Mé-
da cultura, inglesa, qual é a língua e cultura de quem os finan- dio. Brasília: MEC/SEF, 2000.
cia, ademais, esse tipo de governo prioriza o caráter profissional CELADA, María Tereza. O espanhol para brasileiro: uma língua
e comercial da língua, que é o que vemos acontecer nos Núcleos singularmente estrangeira. Campinas, SP:2002, Dissertação de
de Línguas do Estado de PE. Em contraposição a esses governos, Doutorado.
vemos os de posturas mais progressistas ampliarem os cursos e LASECA, Martínez-Cachero Álvaro. O ensino do espanhol no
vagas para o ensino e a aprendizagem do espanhol, oferecendo in- sistema educativo brasileiro. Brasília. Thesaurus,2008.
clusive melhores salários, quais podem chegar até R$:5.000, como
é o caso por exemplo dos governos do Rio Grande do Norte e do
Maranhão.
Concluímos portanto, que mesmo com sua aplicação defa-
sada e muitas das vezes inexistente, não podemos nos esquecer
que a lei 11.161/2005 é um marco para a democratização do en-
sino de línguas estrangeiras no Brasil, e que a mesma abriu um
espaço para a reflexão de como se faz necessário repensar o papel

191
RESUMO flete Carmona-Ramires (2013), pensamento que corrobora com
os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Para isso além dos
O processo de ensino-aprendizagem de Espanhol como língua já citados têm-se, também, como base teórica os estudos de Mo-
estrangeira (E/LE) não é uma prática recente no Brasil. Contu- reno Fernández (2000), LopeBlanch (2001), Alatorre (2002), Ruiz
do, nas últimas três décadas aconteceram mudanças significativas (2004) e Bagno (2007).
que visualizam novos caminhos e necessidades frente à realidade
das aulas, principalmente devido a criação do MERCOSUL, nos Palavras-chave: América do Sul; Língua Espanhola; Professor
anos 90, e de outros acordos político-econômicos que integraram de E/LE; Sociolinguística
o Brasil ainda mais aos países sul-americanos cuja língua oficial
é o Espanhol, bem como a promulgação da lei nº 11.161/2005,
que assegura o ensino obrigatório do espanhol em escolas com CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VARIAÇÃO LIN-
turmas de nível médio e ensino facultativo às escolas que ofertam GUÍSTICA NA AMÉRICA DO SUL E O PAPEL DO
o nível fundamental, Tendo em vista os fatos supracitados e base-
PROFESSOR NO ENSINO DE ESPANHOL COMO
ando-se no que Brown (1994) nos aclara sobre a relação intrínse-
ca entre língua e sociedade/cultura, o presente trabalho objetiva LÍNGUA ESTRANGEIRA (E/LE) PARA BRASILEIROS
problematizar o papel do professor diante às peculiaridades que
possui a língua espanhola em contexto sul-americano, pois ela se
caracteriza como um produto das diferenças sócio-político-cultu- José Edson da Silva1
rais e do contato com as diversas e diferentes línguas dos povos in- Ana Karollina Gomes da Silva2
dígenas, como afirma Alcaine (2005): “[...] las áreas lingüísticas de Ana Carla da Silva Santos3
influencia ameríndia ocupan una parte importante del territorio Alfredo Cordiviola4
americano de habla hispana” e isso não pode/deve ser esquecido
nas aulas de E/LE, já que a língua, a cultura e a identidade cami-
nham juntas. Por essa razão e a partir de pesquisas de cunho bi- 1. Estudante do Curso de Letras com habilitação em Língua
bliográfico e de nossas experiências enquanto professores e alunos Espanhola e suas respectivas Literaturas- CAC- UFPE;
de espanhol, pretendemos (des) construir crenças e pressupostos E-mail: edsons_@hotmail.com
e, sobretudo, tecer algumas considerações tendo como arcabouço 2. Estudante do Curso de Letras com habilitação em Língua
teórico a Sociolinguística, com a finalidade de apresentar possí- Espanhola e suas respectivas Literaturas- CAC- UFPE;
veis caminhos e sugestões frutos de reflexões acerca da questão E-mail: ana.karollina0@hotmail.com
problematizada. Sem contar que, considerar e oportunizar aos 3. Estudante do Curso de Letras com habilitação em Língua
alunos o conhecimento das peculiaridades da língua, isto é, das Espanhola e suas respectivas Literaturas- CAC- UFPE;
variantes linguísticas do espanhol na América é contribuir para E-mail: anac.amd5@gmail.com
um processo de ensino-aprendizagem de língua, cujo aprendiz 4. Professor/Pesquisador da Universidade Federal de Pernam-
terá uma visão mais ampla da cultura do outro e assim o ajudará buco (UFPE), locado no Departamento de Letras- Centro de
no cultivo e contato com outras identidades e culturas, como re- Artes e Comunicação (CAC);
E-mail: alfredo.cordiviola@gmail.com
192
Resumo–Neste trabalho, apresentamos considerações sucintas a tões geográficas e históricas, quer seja pelo nível de conhecimento
variação linguística e o papel do professor de E/LE quanto à abor- linguístico dos que a utiliza, entretanto mesmo possuindo suas
dagem da diversidade linguística e da variação linguística do es- peculiaridades, em todos os lugares se utiliza o mesmo idioma
panhol em contexto sul-americano. Para tanto, tem-se como ar- por apresentar uma estrutura sólida comum em todas as regiões,
cabouço teórico os disseres de autores, tais como: López (1969), como nos aclara Moreno Fernández (2000, p.15):
Faraco (1998), Moreno Fernández (2000), Alatorre (2002), Bagno La homogeneidad relativa de la lengua española está funda-
(2007) e Carmona-Ramires (2013) que buscam problematizar a mentada en un sistema vocálico simple (5 elementos), un sistema
língua desde uma perspectiva de uso real. Assim, a pesquisa ca- consonántico con 17 unidades comunes a todos los hispanoha-
racteriza-se como bibliográfica e documental, de cunho descri- blantes, en un importante léxico general, en lo que se refiere a los
tivo-qualitativo. Com isso, pretende-se (des) construir crenças e elementos léxicos estructurados, y una sintaxis que presenta una
pressupostos e, sobretudo, tecer algumas considerações e refletir variación moderada, sobre todo en sus usos cultos.
sobre o fazer docente frente a realidade linguística do espanhol. Nesse sentido, pode-se afirmar que as variedades não excluem
Sem contar que, considerar e oportunizar aos alunos o conheci- a unidade, porém é importante reconhece-las, pois não existe lín-
mento das peculiaridades da língua, isto é, das variantes linguísti- gua homogênea, tampouco realidades estáticas, ela [a língua] se
cas do espanhol na América é contribuir para um processo de en- altera continuamente no tempo e está inerentemente em constan-
sino-aprendizagem de língua, cujo aprendiz terá uma visão mais te mutação (FARACO, 1998, p.9).
ampla da cultura do outro e assim o ajudará no cultivo e contato Podemos reconhecer a variedade linguística do espanhol ao
com outras identidades e culturas, como reflete Carmona-Rami- consideramos que a língua e a cultura estão intrinsicamente li-
res (2013), pensamento que corrobora com os Parâmetros Curri- gadas uma a outra é que é impossível conceber uma sem a ou-
culares Nacionais (PCNs). tra. Historicamente essa questão é notória no Espanhol falado na
América que tem como característica ser produto das diferenças
Palavras-chave: América do Sul; Língua Espanhola; Professor sócio-político-culturais e do contato com as diversas e diferentes
de E/LE; Sociolinguística línguas dos povos originários, como afirma Alcaine (2005, p.3):
“[...] las áreas lingüísticas de influencia amerindiaocupan una
INTRODUÇÃO parte importante delterritorio americano de habla hispana” e isso
não pode/deve ser esquecido nas aulas de E/LE, já que a língua, a
A língua espanhola, assim como as outras línguas romances cultura e a identidade caminham juntas.
é uma continuação do latim falado, isto é, latim vulgar e, nasceu Buscamos a partir desse breve estudo problematizar e refletir
como dialeto na região do “Reino de Castilla”, cujo o idioma oficial sobre o processo de ensino-aprendizagem da língua espanhola
era o latim. Hoje, o idioma usado por Cervantes para escrever a para brasileiros, valendo-se dos constructos teóricos da Socio-
obra mestra da Literatura Universal -Don Quijote de la Mancha-, linguística, principalmente a Variacionista que concebe como
é a línguao ficial de 22 países , em sua maioria nações pertencentes inerente ao sistema linguístico a variação, visto que, infelizmente
ao continente americano, em cada um deles a língua se materiali- ainda é perceptível a visão purista e abstrata que muitos profes-
za com suas peculiaridades e particularidades, por diversos fato- sor possuem a respeito da língua e isso influencia diretamente no
res de uso, quer seja a situação comunicativa, quer seja por ques- modo em que os mesmos conduzem o processo ensino-aprendi-
zado.
193
Entender a variação linguística como um fenômeno presente e quando os colonizadores espanhóis chegaram e habitaram as ter-
inerente às línguas, sobretudo a de cunho geográfico ajuda a des- ras hispano-americanas.
construir algumas crenças e pressupostos a respeito de como se
materializa a língua, ajudando a rechaçar o que Bagno (2007) cha- RESULTADOS E DISCUSSÕES
ma de preconceito linguístico. Pois, como propõe e explica Ala-
torre (2002, p. 363 apud Venâncio da Silva, 2010, p.11): Embora exista uma unidade em comum, cada país utiliza a lín-
[…] todas las realizaciones del español son legítimas. No hay gua espanhola de acordo com a sua história, o seu contexto, a sua
aquí buenos y malos. Lo que hay es una multiplicidad de ‘reali- cultura, atribuindo-a as suas próprias características, entretanto
zadores’ de eso impreciso, de eso abstracto, de eso irreal que es la Moreno Fernández (2000) chama atenção para que existe mais se-
entidad única llamada ‘el español’. Nuestra lengua es la suma de melhanças a diferenças, e as diferenças estão mais relevantes no
nuestras maneras de hablarla. campo lexical.
Assim, objetivamos tecer algumas considerações e refletir so- A quantidade de vocábulos típicos do cone sul americano é
bre o fazer docente ao considerar as diferentes variedades do espa- bem significativa, isto porque o repertório lexical é suscetível à in-
nhol usado na América do Sul, a fim de que possamos reconhecer fluência de determinadas comunidades, o que Saussure chamará
o espanhol quer seja em sua unidade, quer seja em sua diversidade de arbitrariedade do signo linguístico. Com a finalidade de exem-
tão marcante na América Hispânica. plificar citamos o termo “canudo” em português que em espanhol
é:
METODOLOGIA

Para a elaboração do presente trabalho adotamos uma meto-


dologia que se divide em três etapas: (1) leitura de textos teóricos
que abordam a temática em questão, (2) reflexão sobre como se
materializa linguisticamente a língua espanhola na América do
Sul, suas similitudes e diferenças em relação as outras regiões
desde uma perspectiva pancrônica e por último (3) reflexão so-
bre a diversidade linguística do espanhol com a qual deve lidar
o professor de ELE em suas aulas. Por essa razão, esta pesquisa
caracteriza-se como bibliográfica e documental, de viés descriti-
vo-qualitativo. Nesse nível linguístico, podemos perceber uma grande influ-
Vale ressaltar que a escolha pela região sul-americana não ência de palavras de origem indígena. Por outro lado, há as mu-
aconteceu de forma aleatória, mas sim porque observa-se uma danças de cunho fonético/fonológico que muitas vezes funcionam
grande diversidade linguística, em todos os níveis linguístico como identidades de determinadas comunidades, o “seseo” (pro-
(fonológico/fonético, lexical, sintático, morfológico, semântico e núncia de “z” e “c” antes de “i” e “e” como “s”) e o yeísmo, cujas
pragmático) nas realizações do espanhol nesta região, principal- letras “y” e “ll” passa a representar o mesmo som, são exemplos de
mente pelo contato com os muitos povos indígenas que ali viviam variação do espanhol a nível fonético/fonológico.

194
Já a nível morfológico podemos destacar a preferência em “vo- assim o ajudará no cultivo e contato com outras identidades e cul-
sear” a “tutear”, isto é, a utilização do pronome de segunda pessoa turas como aborda os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)
do singular “vos” no lugar do “tú”, por exemplo: há preferência de língua estrangeira.
pelo uso do “¿vos queréscafé?”a“¿túquieres café?, bem como a não
utilização da segunda pessoal do plural (vosotros). CONSIDERAÇÕES FINAIS
O “loísmo”, isto é, o uso do pronome complemento “lo” no lu-
gar do “le” quando cumpre função de objeto indireto masculino Tendo em vista o exposto sobre variação linguística e a conce-
também é outra marca de variação linguística do espanhol sul-a- bendo como um fenômeno inerente as línguas naturais, conside-
mericano concretizada. Ressaltamos que os exemplos dados são ramos de grande importância o papel do professor e indispensável
genéricos e usados com a finalidade de ser mais didático. tratar a língua, também, através de suas variações. O fazer docente
Nesse contexto, ao pensar a variedade linguística do espanhol não deve apenas estar pautado na prescrição gramatical e num
e o papel do professor de E/LE diante disso surgem vários interro- ensino de espanhol-padrão, pois nem o nosso próprio idioma ma-
gantes que muitas vezes por uma lacuna na formação do docente terno, a língua portuguesa, é “pura”.
acarretará em falhas na maneira de conduzir do processo de en- É necessário o trabalho desde um ponto de vista real e de uso,
sino-aprendizagem, sendo distante do que é necessário e aconse- considerando o nível do aluno e suas necessidades e intenções,
lhável. correlacionando a língua em sua forma e função, contemplan-
Além do conhecimento sobre a situação do espanhol é impres- do, também, a diversidade da língua. É um desafio possível, que
cindível que o docente possa expor a seus alunos mostrar dessas requer mais cautela, atenção e planejamento do professor. Nesse
variantes e o coloque em contato com essa realidade através de sentido, López (1969) lista sete pontos significativos no processo
eventos comunicativos autênticos, sem criar ou reproduzir dis- de ensino-aprendizado de espanhol:
cursos que concebem a língua como um fato abstrato (o espanhol
da Espanha é mais puro/neutro) e/ou dão um valor de superio- 1. No sentirnos dueños del idioma, sino servidores suyos.
ridade/inferioridade a um ou outra realidade linguística (o espa- 2. Admitir y proclamar que la versión culta peninsular de nuestra len-
gua no es la única legítima: tan legítimas como ella son las versiones
nhol da Argentina é melhor e mais bonito). cultas vigentes en cada país hispanoamericano.
Para isso, é necessário que o professor esteja consciente de sua 3. Rechazar la tendencia pueblerina a caricaturizar o menospreciar
função diante dessas circunstâncias e oportunizem seus alunos ao los modos de hablar español admitidos en otros países del mundo his-
conhecimento das peculiaridades da língua e os conduzam para pánico.
um processo de aprendizado que legitima os diferentes usos da 4. No erigirnos en únicos herederos de la tradición lingüística y litera-
ria hispánicas.
língua, pois ao falarmos em línguas, estamos falando em cultura 5. Consecuentemente, admitir y proclamar que nuestros clásicos de
e identidade, como nos aclara Brown (1994, p.167) apud Carmo- todas las épocas lo son también para los mejicanos, cubanos, colom-
na-Ramires (2013, p.165) que língua e a cultura estão intrinseca- bianos, peruanos, argentinos, etc., etc.
mente interligadas e não existe uma sem a outra. Nesse sentido, 6. Admitir y proclamar igualmente que los clásicos hispano-america-
oportunizar aos alunos o conhecimento da língua, é contribuir nos antiguos, modernos e actuales lo son también para nosotros.
7. Aplicar estos principios a todos los grados de enseñanza.
para um processo de ensino-aprendizagem de língua, cujo apren-
diz terá uma visão mais ampla, também, da cultura do outro e

195
REFERÊNCIAS que a primeira delas remete ao século XIX, conhecidas como “mé-
todo gramática tradução” (MGT).
ALCAINE, A. P. Situaciones de contacto lingüístico en Hispano- Embora tivesse na tradução um de seus elementos sustentado-
américa: Español y Lenguas amerindias. Disponível em: < https:// res, esse método, que era caracterizado pela memorização de pa-
www.uam.es/personal_pdi/filoyletras/alcaine/mesa%20ahle. lavras e posteriormente sua aplicação em uma oração, provocou
pdf>. Acesso em: 26 mar. 2016. diversas reações, principalmente sob a alegação de que limitava o
BAGNO, M. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. 26 ed. aluno e seu aprendizado visto como restrito.
São Paulo: Loyola, 2003 As discussões sobre a tradução e seu papel em práticas de en-
CARMONA-RAMIRES, A. R. El pronombre vos: una propuesta sino-aprendizagem de Língua Estrangeira, no entanto, já estão
de trabajo para la classe de lengua española. In: NADIN, O. L.; muito além do proposto no MGT, exigindo novos olhares tanto
LUGLI, A. C. P. (orgs.). Espanhol como língua estrangeira: refle- no ponto de vista teórico quando da prática em sala de aula.
xões teóricas e propostas didáticas. Campinas: Mercado de Letras, Neste trabalho, pretendemos, a partir de observações em sala
2013. de aula, durante o período de estagio I, discutir, a contribuição
FARACO, C. A. Linguística Histórica. São Paulo: Ática, 1998. da tradução nas escolas de LE, inserindo-a em um contexto de
LÓPEZ, M. A. Variedad y unidad del español. Estudios lingüís- aprendizagem baseado em pressupostos sociocomunicativos.
ticos desde la Historia. Madrid: Editorial Prensa Española. 1969. Partimos, para tanto, do discutido por LIBERATTI (2012), para
MORENO FERNÁNDEZ, F. ¿Qué español enseñar?.Madrid: Ar- quem é necessário “desmistificar o uso da tradução, demonstran-
colibros, 2000. do que ela pode ser uma aliada, e não uma inimiga dos envolvidos
PCNs. Ministério da Educação e Cultura. Parâmetros Curricu- no processo de ensino-aprendizagem.” (2012, p. 176). Assim, a
lares Nacionais, 2006. Disponível: <http://portal.mec.gov.br/seb/ autora nos expõe outra perspectiva sobre o ensino-aprendizagem
arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf>. Acesso em: 27 de da tradução, sendo essa vista não de forma programada, mas sim
mar. 2016. planejada e, que considera o aluno como um ser reflexivo, no qual
VENÂNCIO DA SILVA, B. R. C. La presencia del pronombre esse contribui de forma ativa para as diversas coisas que aconte-
“vos”en publicidades en Montevideo. 2010. Trabalho de Conclu- cem a sua volta.
são de Curso (Graduação em Licenciatura em Espanhol)- Institu- Portanto, dessa nossa experiência de estagio I, realizada no
to Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do período de setembro a novembro de 2015.1, foi possível desen-
Norte, Natal, 2010. volver uma proposta que desencadeia uma discussão a respeito
da utilização do “método funcional” nas salas de aula de língua
estrangeira espanhola. Ademais, de sua importância de entender a
tradução como um mecanismo que ajuda a compreender a língua
RESUMO estrangeira, assim como ressignificar a língua materna.

O papel da tradução do processo de ensino-aprendizagem de Palavras-chave: Ensino-aprendizagem; estágio; língua estrangei-


línguas estrangeiras é um tema discutido desde o surgimento das ra; tradução
primeiras metodologias de ensino de línguas - podemos destacar

196
INTERSEÇÃO ENTRE DUAS LÍNGUAS: TRABALHO COM A observações em sala de aula, durante o período de estagio I, discu-
TRADUÇÃO tir, a contribuição da tradução nas escolas de LE, inserindo-a em
um contexto de aprendizagem baseado em pressupostos socioco-
Luane Irene Pessoa Dos Santos1 municativos. Partimos, para tanto, do discutido por LIBERATTI
Maria Luana Caminha Valois2 (2012), para quem é necessário “desmistificar o uso da tradução,
Suzanna Silva De Almeida3 demonstrando que ela pode ser uma aliada, e não uma inimiga
Waleska Caroline De Oliveira Cavalcanti4 dos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. ” (2012, p.
Fabiele Stockmans De Nardi5 176). Assim, a autora nos expõe outra perspectiva sobre o ensino-
-aprendizagem da tradução, sendo essa vista não de forma pro-
1Estudante do curso de Letras Espanhol – CAC-UFPE; E-mail: gramada, mas sim planejada e, que considera o aluno como um
luane.lips@gmail.com, ser reflexivo, no qual esse contribui de forma ativa para as diversas
2 Estudante do curso de Letras Espanhol – CAC-UFPE; E-mail: coisas que acontecem a sua volta. Portanto, dessa nossa experi-
luana_valois@hotmail.com, ência de estagio I, realizada no período de setembro a novembro
3 Estudante do curso de Letras Espanhol – CAC-UFPE; E-mail: de 2015.1, foi possível desenvolver uma proposta que desencadeia
suzanna_almeida@hotmail.com, uma discussão a respeito da utilização do “método funcional” nas
4 Estudante do curso de Letras Espanhol – CAC-UFPE; E-mail: salas de aula de língua estrangeira espanhola. Ademais, de sua im-
walfelixfelicis@hotmail.com, portância de entender a tradução como um mecanismo que ajuda
5Docente/pesquisador do Depto de Letras – CAC-UFPE. E-mail: a compreender a língua estrangeira, assim como ressignificar a
fabielestockmans@gmail.com. língua materna.

Palavras-chave: Ensino-aprendizagem; estágio; língua estrangei-


RESUMO - O papel da tradução do processo de ensino-apren- ra; tradução
dizagem de línguas estrangeiras é um tema discutido desde o
surgimento das primeiras metodologias de ensino de línguas
- podemos destacar que a primeira delas remete ao século XIX, INTRODUÇÃO
conhecidas como “método gramática tradução” (MGT). Embo-
ra tivesse na tradução um de seus elementos sustentadores, esse As práticas de ensino de língua estrangeira vêm se modifican-
método, que era caracterizado pela memorização de palavras e do, ao longo do tempo, conforme as necessidades sociais e cultu-
posteriormente sua aplicação em uma oração, provocou diversas rais. O primeiro método, conhecido como Método Gramática e
reações, principalmente sob a alegação de que limitava o aluno e Tradução (MGT), surge no século XVIII com o objetivo de en-
seu aprendizado visto como restrito. As discussões sobre a tradu- sinar Latim e Grego, línguas consideradas eruditas na época. As-
ção e seu papel em práticas de ensino-aprendizagem de Língua sim as aulas eram ministradas na língua materna (LM) do sujeito
Estrangeira, no entanto, já estão muito além do proposto no MGT, que tinha como foco reproduzir estruturas semânticas através dos
exigindo novos olhares tanto no ponto de vista teórico quando da exercícios de gramática e tradução.
prática em sala de aula. Neste trabalho, pretendemos, a partir de No contexto de trabalho com metodologias, surge, em meados

197
do século XX, uma nova proposta metodológica sobre o ensino de METODOLOGIA
línguas. Diferentemente do método GMT, que visava à aprendiza-
gem do sujeito a partir da sua língua materna, o Método Direto Com base nos artigos estudados, sobre as distintas perspectivas
(MD) propõe o distanciamento de qualquer influência da LM do em relação à definição de tradução, nosso trabalho estrará funda-
aluno. Nesse sentido, o MD propõe o desenvolvimento da com- mentado no conceito que assim expõe BRANCO (2011, p. 11): “É
petência do sujeito para sua compreensão de língua estrangeira reflexão sobre o sentido e ideias que vão além da transposição de
a partir da oralidade, corroborando do método Gramatica e Tra- palavras entre línguas, respeitando os contextos e multifunções
dução. dessas palavras em ambientes diferentes”.
Em meados dos anos 40 e 50 do século XX surgem o Méto- A partir disso, então, iremos expor a importância de unir a tradu-
do Audiovisual e o Método Áudio-oral que ganharam destaque ção ao contexto sociocultural e a elementos linguísticos e extra-
no ensino de língua estrangeira. Enquanto o Método Áudio-oral linguísticos.
tinha por base ignorar a língua materna e estimular a programa- Buscamos nesse trabalho relatar experiências vivenciadas no de-
ção de estruturas semânticas; o Audiovisual utilizava-se da LM correr da disciplina Estágio curricular I, contribuindo assim para
somada a imagens como suporte para o aprendizado das línguas a ressignificação do valor da tradução como uma ferramenta para
estrangeiras. o ensino e a aprendizagem de uma língua estrangeira.
Em contrapartida aos métodos supracitados, surge nos anos
70 do século XX a Abordagem Comunicativa ou Funcionalista. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir dessa abordagem e da dissertação de SILVA (2014, p.48),
compreendemos que a língua é um sistema, porém não se trata de Com as visitas as escolas e as discursões em sala de aula, consi-
um sistema fechado, homogêneo e cujos “sentidos não são trans- deramos que a tradução tem sido tratada de maneira inadequada.
parentes”, mas sim, uma configuração que sofre com as interven- Nossas observações nos mostram que o trabalho com a tradução
ções da exterioridade, que remete a questão histórica do sujeito. ainda tem sido realizado dentro de moldes muito tradicionais,
Nesse jogo de ideias, existe a possibilidade de o aprendente uti- que se assemelham aos do método conhecido como Gramatica
lizar-se de uma língua estrangeira e cometer erros. No entanto, e Tradução (MGT) em suas vertentes mais restritivas. A respei-
esses erros contribuem para os sentidos de desenvolvimento de to disso, Branco e De Nardi (2012, p. 83) comentam: “Não era a
sua competência em seu processo de construção. língua o elemento central de interesse nesse momento, mas o que
Para este trabalho, nos baseamos neste último enfoque me- se produzia ou registrava por meio de seu uso, estando limitada a
todológico aplicado a tradução: Abordagem comunicativa ou um papel puramente instrumental”.
funcionalista. Sendo assim, o principal objetivo é que o aluno se Nesse sentido, percebemos que as práticas levam em conside-
ponha como autor na construção da atividade da tradução fazen- ração apenas a equivalência de significado, sem levar em conta
do-o identificar-se com o seu contexto social. o contexto, as variações linguísticas e a cultura em que o sujeito
enquanto ser de linguagem se encontra inserido.
Assim, um exemplo que podemos destacar das aulas observa-
das foi o ensino de provérbios em língua espanhola em equivalên-
cia aos provérbios de língua portuguesa. Em outras palavras, os

198
docentes não levaram em consideração as perspectivas abarcadas ral. Revista Fragmentos, Florianópolis, v. 22, p.09-25, jan. 2011.
pelos países falantes de língua espanhola em relação ao que estava Semestral. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/
sendo trabalhado em classe. fragmentos/article/view/31961/26152>. Acesso em: 17 jan. 2016.
Portanto, procuramos neste trabalho destacar a relevância de se BRANCO, Sinara de Oliveira; NARDI, Fabiele Stockmans de.
trabalhar a tradução, considerando a língua materna como ferra- Interlocuções entre a análise do discurso e os estudos da tradu-
menta de auxilio no processo de compreensão do que é produzido ção: algumas contribuições para o ensino de línguas. Conexão
na língua estrangeira estudada. Tal perspectiva é sustentada por Letras, Florianópolis, v. 7, n. 7, p.81-94, jan. 2012. Anual. Dispo-
Branco e De Nardi (2012, p. 82) quando afirma que: “É justamente nível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/conexaoletras/article/
quando começa a estabelecer comparações entre LE e a LM que o view/55462/33729>.
aprendiz passa a se mover com mais liberdade nessa outra língua, Acesso em: 17 jan. 2016.
já que passa a questionar estruturas e vocabulário, percebendo as BRANCO, Sinara de Oliveira. Os estudos da tradução no brasil:
distinções (e semelhanças) entre as línguas materna e estrangeira”. relatos de pesquisa. Traduzires, Brasília, v. 1, n. 1, p.49-60, maio
2012. Semestral. Disponível em: <http://periodicos.unb.br/index.
CONSIDERAÇÕES FINAIS php/traduzires/article/view/6654/5370>. Acesso em: 17 jan. 2016.
BRANCO, Sinara de Oliveira. Teorias da tradução e o ensino de
A discrepância entre a teoria desenvolvida nas universidades língua estrangeira. Revista Horizontes de Linguistica Aplicada,
e as práticas observadas nos estágios curriculares nos leva a en- Brasília, v. 8, n. 2, p.185-199, nov. 2009. Semestral. Disponível
tender a necessidade de uma formação continuada, para que o em: <http://periodicos.unb.br/index.php/horizontesla/article/
professor de línguas não caia em armadilhas que o leve a ministrar view/2941/2545>. Acesso em: 17 jan. 2016.
uma aluna de maneira superficial, não explorando o caráter críti- LIBERATTI, Elisângela. A tradução na sala de aula de LE: (des)
co reflexivo que os alunos trazem da língua materna. Além disso, construindo conceitos. Entrepalavras, Fortaleza, v. 2, p.175-187,
devemos ter a consciência de que a língua materna é importante jan. 2012. Anual. Disponível em: <http://www.entrepalavras.ufc.
nesse processo tradutório, ademais, que é através dela que o aluno br/revista/index.php/Revista/article/view/50/101>. Acesso em:
se sente confortável para assumir uma postura e assim desenvol- 17 jan. 2016.
ver sua competência linguística. SILVA, Karla Janaína Alexandre da. OS (DES) CAMINHOS DA
Tendo em vista isso, o professor deve considerar que a tradu- ESCRITA NA AULA DE LÍNGUA ESTRANGEIRA: Língua,
ção pode ser uma ferramenta para o ensino aprendizagem de lín- sujeito e autoria no livro didático de E/LE. 2014. 144 f. Disser-
guas, quando utilizada de maneira que mobilize os contextos nos tação (Mestrado) - Curso de Letras, Cac, Ufpe, Recife, 2014.
quais ambas as línguas estão inseridas. Disponível em: <http://repositorio.ufpe.br/bitstream/hand-
le/123456789/13279/DISSERTAÇÃO Karla Janaína Alexandre da
Silva.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acessoem: 17 jan. 2016.
REFERÊNCIAS

BRANCO, Sinara de Oliveira. A tradução como ferramenta lin-


guístico-cultural. A tradução como ferramenta linguístico-cultu-

199
EIXO V- ANÁLISE LINGUÍSTICA
E ENSINO-APRENDIZAGEM DA
LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS E
LITERATURA SURDA

200
RESUMO como esse referente se comporta na ação verbal. Para exemplifi-
car, temos os verbos CAIR-COPO e CAIR-PESSOA, e em relação
O objetivo do presente trabalho é analisar as categorias de ver- ao COLOCAR, Quadros e Karnopp consideram que é um verbo
bos e a sua relação com os sujeitos animados e inanimados na espacial, mas na nossa análise percebemos que esse verbo apre-
língua brasileira de sinais – Libras. O verbo é uma classe que faz senta mudanças na realização dos parâmetros configuração de
parte da morfologia da Libras e se caracteriza por descrever os mão e movimento em função do tipo de sujeito.
eventos do mundo (GIVÓN, 2011). A Libras utiliza as mãos, a Palavras-chave: Libras; Verbo; Sujeito animado; Sujeito inani-
percepção visual, o espaço físico e próprio corpo do sinalizador mado
para compor o sistema vísuo-espacial da sua gramática nos ní-
veis fonológico, morfossintático e semântico. Segundo Quadros
e Karnopp (2004), a partir de Padden (1988), os verbos na Libras
apresentam uma classificação tripartida: (1) verbos simples, que AS CATEGORIAS DE VERBOS E A RELAÇÃO COM
não se refere diretamente em pessoa e número e não incorporam SUJEITOS ANIMADOS E INANIMADOS NA LÍN-
afixos locativos, e alguns desses verbos pode ter flexão de aspec-
GUA BRASILEIRA DE SINAIS – LIBRAS
to; (2) verbos com concordância, que se referem diretamente em
pessoa, número e aspecto, e não incorporam afixos locativos; (3)
Alessandro Augusto de Souza Vasconcelos¹;
verbos espaciais, que não se referem diretamente em pessoa, nú-
Darlene Seabra de Lira²;
mero ou aspecto, e possui incorporam afixos locativos. Os verbos
Orientadora: Nídia Nunes Máximo³
selecionam o argumento sujeito que pode ser dividido em ani-
mados (pessoas e animais) e inanimados (objetos). Diante disso,
¹Estudante do Curso de Licenciatura Letras Libras – CAC –
nos questionamos se o tipo de sujeito acarreta mudança em um
UFPE; alessandro.augusto1995@gmail.com,
ou mais parâmetros fonológicos do sinal do verbo na estrutura
²Docente/pesquisadora da FACHO;
frasal da Libras. Para tal, realizamos uma pesquisa bibliográfica
darleneseabra@hotmail.com,
em que listamos os verbos da Libras para analisar quais verbos se
³Docente/pesquisadora – CAC – UFPE;
encaixam em cada uma das três categorias. Depois, convidamos
nidia.maximus@hotmail.com.
voluntários surdos fluentes na Libras, mostramos imagens e víde-
os referentes aos verbos listados para eles descrevem o que viam.
A partir disso, pudemos investigar como eles utilizam os sinais re-
Resumo – Este resumo expandido apresenta uma pesquisa sobre
ferentes aos verbos e relacionar tais verbos com os tipos de sujeito
as categorias de verbos e a sua relação com os sujeitos animados e
– animado e inanimado. Na análise, não conseguimos enquadrar
inanimados na língua brasileira de sinais – Libras. O verbo é uma
alguns verbos em alguma das três categorias. Assim, propomos
classe que faz parte da morfologia da Libras e se caracteriza por
uma quarta categoria intitulada de verbos classificadores, na qual
descrever os eventos do mundo (GIVÓN, 2011). Segundo Qua-
um verbo incorpora pessoas e objetos através de configurações
dros e Karnopp (2004), a partir de Padden (1988), os verbos na Li-
de mão e movimentos específicos, havendo, então, mudança na
bras apresentam uma classificação tripartida: verbos simples, ver-
realização dos parâmetros fonológicos, para descrever a maneira
bos com concordância e verbos espaciais. Os verbos selecionam o

201
argumento sujeito que pode ser divididos em animados (pessoas estrutura interna dos sinais, assim como das regras que determi-
e animais) e inanimados (coisas). Diante disso, nos questionamos nam a formação dos sinais. O verbo é uma classe que faz parte da
se o tipo de sujeito acarreta mudança em um ou mais parâmetros morfologia da Libras e se caracteriza por descrever os eventos do
fonológicos do sinal do verbo na estrutura frasal da Libras. Para mundo (GIVÓN, 1979). Segundo Quadros e Karnopp (2004), a
tal, realizamos uma pesquisa bibliográfica em que listamos os ver- partir de Padden (1988) na ASL, os verbos na Libras apresentam
bos da Libras para analisar quais verbos se encaixam em cada uma uma classificação tripartida: verbos simples, verbos com concor-
das três categorias. A partir disso, pudemos investigar os sinais re- dância e verbos espaciais. Os (1) verbos simples são verbos que
ferentes aos verbos e relacionar tais verbos com os tipos de sujeito. não se flexionam em pessoa e número e não incorporam afixos
Na análise, não conseguimos enquadrar alguns verbos em alguma locativos, e alguns desses verbos podem ter flexão de aspecto.
das três categorias. Assim, propomos uma quarta categoria intitu- Exemplos dessa categoria são os verbos CONHECER, APREN-
lada de verbos classificadores. DER, GOSTAR. Os (2) verbos com concordância são verbos que
se flexionam em pessoa, número e aspecto, mas não incorporam
Palavras-chave: Libras; Sujeito animado; Sujeito inanimado; afixos locativos. Exemplos desta categoria são DAR, PERGUN-
Verbo TAR, RESPONDER. Os (3) verbos espaciais são verbos que têm
afixos locativos. Exemplos dessa categoria são: IR, CHEGAR, CO-
LOCAR. Os verbos projetam o argumento sujeito nesse processo
INTRODUÇÃO de descrever os estados e eventos do mundo. Os sujeitos podem
apresentar as características de animacidade e inanimacidade. “A
A Libras utiliza as mãos, a percepção visual, o espaço físico animacidade é um conceito básico para qualquer sistema cogniti-
e próprio corpo do sinalizador para compor o sistema vísuo-es- vo. Perceber a animacidade se resume na capacidade de discrimi-
pacial da sua gramática nos níveis fonológico, morfossintático e nação se algo redor está vivo (com anima, com vida) ou não. Não
semântico. William Stokoe (1960) é considerado pai de linguística há consenso no uso do termo animacidade, quando nos referimos
da Língua de Sinais Americana (ASL) e a partir dele as línguas a humanos e animais como animados e a plantas, objetos e mine-
de sinais são consideradas como línguas naturais dos surdos ao rais como inanimados. Ainda mais difícil é o consenso linguísti-
redor do mundo conforme os países. Além disso, ele estudou os co: raramente há padrão de conceito de animacidade” (SOUZA,
níveis gramaticais da ASL e propôs três principais unidades mí- 2015, p.29) Os verbos na Libras selecionam o argumento sujeito
nimas para a realização dos sinais, denominadas de parâmetros animado (pessoas e animais) e inanimado (coisas), apresentando
fonológicos, os quais são configuração de mão (CM), locação (L) sinais diferentes por conta da (in) animacidade para um mesmo
e movimento (M). Depois, Battison (1974, 1978) adicionou mais evento do mundo. Isso pode ser exemplificado através dos verbos
dois parâmetros, que são orientação palma da mão (Or) e expres- FALTAR (ausência pessoal) e FALTAR (ausência de coisas), os
sões não-manuais dos sinais (NM) – expressões faciais e corpo- quais têm diferenças em alguns dos parâmetros. Diante disso, nos
rais. Diante disso, a brasileira Ferreira-Brito (1990) defende os se- questionamos se o tipo de sujeito acarreta mudança em um ou
guintes parâmetros fonológicos para a língua brasileira de sinais: mais parâmetros fonológicos do sinal do verbo na estrutura fra-
configuração de mão, locação, movimento, orientação de mão e sal da Libras. Na análise, não conseguimos enquadrar alguns ver-
expressão facial e corporal. No nível morfológico, é analisada a bos em alguma das três categorias. Assim, propomos uma quarta

202
categoria intitulada de verbos classificadores, na qual um verbo português que é uma língua de natureza oral-auditiva e tem espe-
incorpora pessoas e objetos através de configurações de mão e cificidades que diferem das línguas de sinais. Abaixo temos alguns
movimentos específicos, havendo, então, mudança na realização exemplos das imagens que mostramos.
dos parâmetros fonológicos, para descrever a maneira como esse
referente se comporta na ação verbal. Para exemplificar, temos os
verbos CAIR-COPO, CAIR-PESSOA, dentre outros. Em relação
ao COLOCAR, Quadros e Karnopp (2004) consideram que é um
verbo espacial, mas na nossa análise percebemos que esse verbo
apresenta mudanças na realização dos parâmetros configuração
de mão e movimento em função do tipo de objeto.

METODOLOGIA
Fizemos uma tabela para cada voluntário em que colocamos o
Entrevistamos 5 (cinco) voluntários surdos e usuários de Li- número de slide, o verbo, a frase, o sinal, o parâmetro (CM, L, M,
bras - 3 (três) homens e 2 (duas) mulheres. Utilizamos equipa- OR e EX), a mão dominante (M.D.) e a não-dominante (M.N.D.),
mento para entrevistar, os quais foram notebook, câmera, Power o tipo de verbo (T.V.) e sujeito (S) para identificarmos em quais
point, imagens, vídeos e GIFs (Graphics Interchange Format). A verbos pode haver mudança nos parâmetros no sinal do verbo por
filmagem total teve em média 30 (trinta) minutos. Escolhemos 12 conta do sujeito (animado ou inanimado). Depois disso, coloca-
(doze) verbos, que foram AVISAR, BRIGAR, CAIR, COLOCAR, mos mais uma tabela em que focamos a mudança na configuração
COMBINAR, CORTAR, CUIDAR, FALTAR, MUDAR, SENTAR, de mão para saber se a configuração de mão do sinal do verbo
SAIR, VOLTAR, em que colocamos as imagens, GIFs e vídeos de mudou para incorporar a forma do sujeito animado ou inanima-
cada slide (Power Point) para que os voluntários descrevessem o do. Eis a estrutura das tabelas:
que viam nas imagens e vídeos a fim de que mostrassem como se
dá a relação verbo-sujeito na Libras considerando a in (animaci-
dade). No total, trabalhos com 58 (cinquenta e oito) slides (4 “AVI-
SAR”, 4 “BRIGAR”, 7 “CAIR”, 6 “COLOCAR”, 4 “COMBINAR”, 6
“CORTAR”, 4 “CUIDAR”, 6 “FALTAR”, 6 “MUDAR”, 5 “SENTAR”,
4 “SAIR”, 2 “VOLTAR”). Tivemos, no mínimo, 2 (duas) imagens
de cada verbo que demonstram as diferenças na relação verbo-
-sujeito, gerando mudanças nos parâmetros fonológicos. Pedimos
aos voluntários que olhassem as imagens e descrevessem o que
viam em sua língua. Consideramos que essa estratégia de visuali-
zação das imagens/vídeos que evidenciam os eventos do mundo
privilegia a natureza vísuo-espacial da Libras e as especificidades
próprias desta língua sem a necessidade de buscar equivalentes ao

203
RESULTADOS E DISCUSSÃO Então, na frase (1) vimos o uso da “figura 5” para designar um
sujeito animado (pessoa) na descrição da figura 7. Na frase (2),
Analisamos todos os vídeos dos voluntários em que estes des- identificamos o uso da “figura 6” para designar um sujeito ina-
crevem as imagens visualizadas e colocamos os dados na tabe- nimado (ovos). No entanto, na frase (3), o voluntário utilizou a
la de cada voluntário de todos os sinais dos verbos pesquisados. “figura 6” que designa a falta de objetos para designar a falta de
De acordo com Capovilla e Raphael (2009), o verbo “FALTAR” um sujeito animado. Embora dois voluntários tenham seguido
tem duas formas de realização do sinal, usadas aqui em Recife/PE o padrão de realização do sinal FALTAR para sujeitos animados
conforme nossa experiência como surdo usuário da Libras, que (figura 5) e inanimados (figura 6), a frase do voluntário 3 nos faz
são marcadas através das configurações de mão diferentes entre corroborar com Souza (2015, p. 29) quando destaca que “Ainda
sujeito animado e inanimado. Na figura 5 o verbo é usado para mais difícil é o consenso linguístico: raramente há padrão de con-
designar a ausência de pessoas e na figura 6 o verbo é usado para ceito de animacidade”.Isso reforça a necessidade de analisarmos
designar a ausência de coisas. mais verbos para tentar apontar para um consenso acerca do pa-
pel da animacidade do sujeito na realização dos sinais dos verbos.
Em relação ao verbo CAIR, há mudança na configuração de mão
nas frases CAIR-COPO e CAIR-PESSOA, em que vemos que a
mudança da CM revela a incorporação da forma do sujeito na
realização do sinal. A frase CAIR-COPO utiliza CM em C (mão
dominante) e B (mão não-dominante), em que C é como se es-
tivesse segurando algum objeto redondo como copo e B é como
uma superfície sobre a qual o copo estava antes da ação de cair.
Além disso, o movimento é semicircular. A frase CAIR-PESSOA
Mostramos aos voluntários as imagens abaixo acerca dos ver- utiliza CM em V (mão dominante) e B (mão não-dominante), em
bos FALTAR (1)e FALTAR (2). que V é referente às pernas de uma pessoa e B é referente a uma
superfície. O movimento é um movimento de riscar como se o
indivíduo tivesse escorregado.
Alguns verbos têm mais um sinal para apontar sentidos dife-
rentes. Por exemplo, o verbo “MUDAR” tem dois sentidos: “Alte-
rar, Transformar, Substituir, Trocar” e “Mudança, Transferir, Re-
mover, Pôr em outro lugar”. O verbo “BRIGAR” também designa
dois tipos de brigas: “Física” e “Discussão”. O verbo “COMBINAR”
apresenta dois usos: “Fazer um acordo, Programar (algo) de co-
mum acordo” e “Harmonizar e Aliar”. Nesses verbos, observamos
que são verbos que animacidade também interfere na realização
do sinal do verbo. No entanto, a mudança não está relacionada
à mudança de um parâmetro fonológico, pois o verbo tem dois

204
sinais que expressam sentidos diferentes. Após avaliação das configurações de mão em todos os verbos
analisados em suas respectivas categorias de Quadros e Karnopp
MUDAR (1): 1- MENINA FOTO COMPARAR MU- (2004), tivemos o resultado seguinte na tabela 3. Os verbos CAIR,
LHER CRESCER MUDAR ALTAR. (Sujeito animado)2- CORTAR e COLOCAR, SENTAR apresentaram um comporta-
ROUPA MUDAR ROUPA CHIQUE GRAVATA MALA. mento diferente do sujeito que nos faz questionar o enquadra-
(Sujeito inanimado) mento desses verbos nas três categorias verbais de Quadros e Kar-
MUDAR (2): 1-CASA FAMILIA MARCAR MUDAR nopp (op cit). As configurações de mão variam por conta da (in)
CASA ARRUMAR MALA COLOCAR CARRO MU- animacidade do sujeito (verbo CAIR). As configurações de mão
DAR CASA. (Sujeito animado) 2- TERÇA FEIRA DIA 1 também variam a ação verbal por conta tipo do objeto que sofre
CANCELAR MUDAR DIA 10 QUINTA FEIRA. (Sujeito a ação do sujeito e a CM assume, então, a forma física do objeto
inanimado) (verbos SENTAR, COLOCAR e CORTAR). Essas duas motiva-
BRIGAR (1): 1- HOMEM DOIS BRIGAR (FÍSICA) (Su- ções que acarretam mudanças nas CM nos fazem pensar na pos-
jeito animado) 2- DOIS CANGURU BATER BRIGAR sibilidade de uma nova categoria verbal para a Libras – verbos
(FÍSICA) PERNA CHUTAR (Sujeito animado) classificadores. Nesse sentido, essa categoria permite mudanças
BRIGAR (2): 1- HOMEM MULHER BRIGAR (DIS- nas configurações de mão, principalmente, e nos movimentos que
CUSSÃO) (Sujeito animado) COMBINAR (1): 1- PER- as outras categorias não permitem. Quadros e Karnopp (2004) de-
GUNTAR FAZER O QUE VAMOS BRINCAR CINEMA ram exemplo do verbo “COLOCAR” como um verbo espacial. O
COMBINAR. (Sujeito animado) verbo COLOCAR muda a CM por conta do objeto e não do sujei-
COMBINAR (2): 1- CASAL COMBINAR BEM. (Sujei- to, o que nos faz pensar em dois motivos para tal mudança, a qual
to animado)2- MULHER TER COR BATOM UNHA corroboraria uma nova categoria de verbos – os verbos classifica-
IGUAL COMBINAR. (Sujeito inanimado) dores: 1- Animacidade do sujeito (A CM assume características
físicas do sujeito na mão dominante) e 2- Objeto (A CM muda as-
Diante disso, fizemos um gráfico para saber quantas configu- sumindo forma física do objeto. Essa mudança ocorre na mão do-
rações de mão são possíveis em cada verbo para ver quais verbos minante e na mão não-dominante). Nesse sentido, é importante
aceitam mais mudanças na CM a fim de que o sujeito incorpore a destacar que há uma restrição nas mãos que sofrem mudança na
ação verbal ressaltando a forma física do sujeito. CM. No primeiro caso, a mudança de CM é só na mão dominante
e no segundo caso a mão dominante ou não-dominante podem
mudar, como ocorre nas construções COLOCAR-COPO, CO-
LOCAR-PORTA-RETRATO, COLOCAR-VASO e etc. O verbo
“SENTAR” tem o comportamento de verbo simples quando é rea-
lizado com CM em 5 e em U, designando uma ação de alguém que
senta em qualquer lugar. Porém, este verbo apresentou mudança
na mão não-dominante apresentando CM em B, em 4 enquanto
a mão dominante não sofreu qualquer mudança. Então, supomos
que este verbo também pode assumir o comportamento de um

205
verbo classificador quando permitir mudança configuração de possibilidade de uma categoria de verbo porque o verbo espacial
mão nas construções sintáticas como SENTAR-CIMA-CARRO, também têm afixos locativos, porém não apresentam mudanças
SENTAR-PARAPEITO, SENTAR-CHÃO. Abaixo temos uma ta- na configuração de mão, o que nos faria, também, defender que o
bela em que reorganizados as categorias verbais conforme os usos verbo “COLOCAR” seria um verbo classificador ao invés de um
observados nos voluntários, considerando as análises acima: verbo espacial. Além disso, percebemos que a relação sintática en-
tre verbo e sujeito mostra que este fenômeno possui interface com
a fonologia e com a morfologia da Libras, visto que acarreta mu-
danças nesses dois níveis também. Isso reforça o estatuto linguís-
tico da Libras como língua natural dos surdos e aponta para a ne-
cessidade de mais pesquisas linguísticas de caráter descritivo que
possibilitem o conhecimento e estudo da gramática desta língua.
Ainda reconhecemos que é preciso analisar mais verbos a fim de
enriquecer mais os nossos argumentos através de mais dados. E,
destacamos a relevância da nossa pesquisa como mais um passo
nessa bela jornada de exploração e investigação linguística acerca
da Libras no tocante aos seus níveis gramaticais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS

Na análise sintática da relação entre verbo (simples, com con- CAPOVILLA, F. C.; RAPHAEL, W. D.; MAURICIO, A. C. L.
cordância, espaciais) e tipo de sujeito (animado e inanimado),per- Novo Deit-Libras Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue
cebemos que 1) há verbos que acarretam mudanças fonológicas da Língua de Sinais Brasileira (Libras) baseado em Linguística e
na configuração de mão para que CM remeta à forma física do Neurociências Cognitivas, Volume I: Sinais do A a H – São Paulo:
sujeito (CAIR-COPO, CAIR-PESSOA). Ainda 2) há verbos que Capes, 2009.
acarretam mudanças na CM, em que a CM assume a forma para CAPOVILLA, F. C.; RAPHAEL, W. D.; MAURICIO, A. C. L.
designar o objeto que sofre a ação do sujeito (SENTAR-PARA- Novo Deit-Libras Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue
PEITO, SENTAR-CIMA-CARRO). Isso acontece com menos da Língua de Sinais Brasileira (Libras) baseado em Linguística e
frequência nos verbos simples, de concordância e espaciais. E, 3) Neurociências Cognitivas, Volume II: Sinais do I a Z – São Paulo:
há verbos que apresentam sinais diferentes (com os 5 parâmetros Capes, 2009.
diferentes e não a mudança em um ou dois parâmetros) quando GIVÓN, Talmy. A compreensão da gramática. São Paulo: Cortez;
o sujeito é animado e quando o sujeito é inanimado (FALTAR1, Natal, RN: EDUFRN, 2012.
FALTAR 2). Então, os dados apontam para a possibilidade de uma PERINI, Mário A. Estudos de gramática descritiva: as valências
nova classe de verbos: verbos classificadores, os quais têm afixos verbais. São Paulo, Parábola Editorial, 2008.
locativos com mudanças nas configurações de mão, que podem QUADROS, R. M. de; KARNOPP, L. B. Língua de sinais brasilei-
se dar na mão dominante e/ou não-dominante. Acreditamos na ra: estudos linguísticos – Porto Alegre: Artmed, 2004.

206
RESUMO DICIONÁRIOS E GRAMÁTICAS DE LIBRAS E O PROCES-
SO DE GRAMATIZAÇÃO
Este trabalho faz parte do projeto de Pibic “Forma e substância
na linguagem: desafios para pensar a natureza da escrita alfabé- Enézia de Cássia de Jesus¹
tica a partir da escrita do surdo” e que assume a discussão feita Núbia Rabelo Bakker Faria²
por Auroux (1992) a respeito da constituição dos saberes sobre a
linguagem, a partir de duas revoluções tecno-linguísticas: o apa- ¹Estudante do Curso de Letras francês - FALE - UFAL;
recimento da escrita, que possibilita a reflexão metalinguística, e o E-mail: enezia.cassia@hotmail.com
processo de gramatização das línguas, isto é, a prática de descrever ²Docente/pesquisador do Depto de Letras- FALE – UFAL;
e instrumentar uma língua com a criação de gramáticas e dicioná- E-mail: nrbfaria@uol.com.br
rios. Buscou-se, sobretudo, esclarecer o conceito de gramatização
e suas consequências para a sistematização do saber linguístico RESUMO-Este trabalho parte da discussão feita por Auroux
ocidental, notadamente no Renascimento, e articular a criação de (1992) a respeito da constituição dos saberes sobre a linguagem,
dicionários e gramáticas de Libras com a discussão empreendi- que possibilita a reflexão metalinguística, e o processo de grama-
da sobre o efeito desses instrumentos na constituição da cultura tização das línguas. Buscou-se, sobretudo, esclarecer o conceito de
surda.). É dado destaque ao Renascimento Europeu (séc. XIV a gramatização e suas consequências para a sistematização do saber
XVI), ao qual se pode associar o retorno aos estudos clássicos, a linguístico ocidental, notadamente no Renascimento, e articular
invenção da imprensa e um particular interesse pelas línguas ver- a criação de dicionários e gramáticas de Libras com a discussão
náculas, em função da nova configuração política e econômica da empreendida sobre o efeito desses instrumentos na constituição
Europa. E para isso foram consultados os manuais de linguística da cultura surda. É dado destaque ao Renascimento, ao qual se
como: Robins (1979), Paveau e Sarfati (2006), Camara Jr, e Lyons pode associar o retorno aos estudos clássicos, a invenção da im-
(1979). Com a atenção voltada para as modernas línguas, surge prensa e um particular interesse pelas línguas vernáculas. E para
um número significativo de novas gramáticas e dicionários de di- isso foram consultados os manuais de linguística como: Robins
versas línguas do mundo. Gramáticas e dicionários são tratados (1979), Paveau e Sarfati (2006), Camara Jr, e Lyons (1979). Com
por Auroux como instrumentos linguísticos que têm efeitos deci- a atenção voltada para as modernas línguas, surge um número
sivos sobre a percepção sobre as línguas e as práticas linguísticas significativo de novas gramáticas e dicionários de diversas línguas
humanas. Articulando-se a discussão com o movimento de cria- do mundo. Articulando-se a discussão com o movimento de cria-
ção das gramáticas e dicionários de Libras, podemos observar o ção das gramáticas e dicionários de Libras, podemos observar o
movimento de circulação dos instrumentos linguísticos para esta movimento de circulação dos instrumentos linguísticos para esta
língua em consonância com o que Auroux assinala ocorrer com língua em consonância com o que Auroux assinala ocorrer com a
a constituição das modernas nações europeias. Em Libras, tem-se constituição das modernas nações europeias.
uma importante valorização da política linguística, com apelo à
unificação de um povo, o povo surdo, em torno de uma cultura e Palavras-chave: Dicionário; Gramática; Libras
uma língua materna próprias.
Palavras-chave: Gramática, Dicionário, Libras

207
INTRODUÇÃO mento, para o caso de Libras foi feito um levantamento, em sites
especializados e outras fontes disponíveis, referências de gramáti-
Com base nas discussões sobre a constituição do saber linguís- cas e dicionários de Libras: CAPOVILLA, F. C (2004), FERREIRA
tico em Auroux (1992),que possibilitou a reflexão metalinguística, L. (2010), GRASSI D.; ZANONI G.; VALENTIN, S.M. L. (2011),
e o processo de gramatização das línguas, buscamos sobretudo, PEREIRA, M. C. C. e outros (2011), CAPOVILLA F. C.; RAPHA-
esclarecer o conceito de gramatização e suas consequências para a EL W. D. (2001).
sistematização do saber linguístico ocidental. Auroux (1992) de-
fine o processo de gramatização como “[...] processo que conduz RESULTADOS E DISCUSSÃO
a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecno-
logias, que são ainda hoje pilares de nosso saber metalinguístico: O período do Renascimento é particularmente importante
a gramática e o dicionário” (p. 65) e, para isso, é dado destaque para a discussão aqui empreendida, tendo em vista o retorno aos
ao Renascimento Europeu (séc. XIV a XVI), período considerado clássicos, a invenção da imprensa, as Grandes Navegações e o sur-
essencial, pois durante o Renascimento surge um número signi- gimento de muitas gramáticas das línguas vernáculas europeias e
ficativo de novas gramáticas e dicionários de diversas línguas do de outras línguas descobertas durante a expansão marítima.
mundo. Esta discussão nos interessa na medida em que nos pos-
sibilita compreender melhor os recentes movimentos em torno da [...] o Renascimento europeu é um ponto de inflexão de um processo
constituição da cultura surda, através da criação de dicionários e que conduz a produzir dicionários e gramáticas de todas as línguas do
mundo (e não somente dos vernáculos europeus) na base da tradição
gramáticas, além de uma escrita para Libras. greco-latina. Esse processo de “gramatização” mudou profundamente
a ecologia da comunicação humana e deu ao Ocidente um meio de
METODOLOGIA conhecimento/dominação sobre as outras culturas do planeta (AU-
ROUX 1992, p. 9).
A metodologia adotada caracteriza-se pelo levantamento,
seleção e análise de dados bibliográficos. Na primeira etapa foram Neste período, a invenção da imprensa servirá para impulsio-
realizadas leituras e fichamentos voltados para a discussão feita nar a circulação da escrita, possibilitando o acesso direto aos tex-
por Auroux (1992), a respeito da importância da escrita para a tos.
constituição dos saberes sobre a linguagem, a partir do que classi-
fica de revoluções tecno-linguísticas: o aparecimento da escrita e o [...] o aparecimento da imprensa no contexto da diversidade de línguas
processo de gramatização das línguas do mundo, dando destaque das nações europeias, e do desenvolvimento do capitalismo mercantil
[...] é um motor decisivo para a gramatização e a estandardização dos
ao período do Renascimento. vernáculos europeus. (AUROUX 1992, p.29)
Para aprofundar a pesquisa sobre a influência desse perío-
do nas modernas reflexões sobre a linguagem, foram consultados Com a imprensa, cria-se a possibilidade de distribuir textos es-
ainda manuais de linguística como ROBINS (1979), PAVEAU e critos com muito maior facilidade, amplia-se o caminho para os
SARFATI (2006), CAMARA JR, e LYONS (1979). estudos de novas línguas, surgindo um particular interesse pelas
E por fim para articular a questão da instrumentação das línguas vernáculas, seguido da criação das gramáticas e dicioná-
línguas, aos moldes do que se observa no período do Renasci- rios. A disponibilidade de textos proporcionada pela invenção da

208
impressa e pela expansão marítima europeia a outros continentes trumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ain-
abre caminho para os estudos de novas línguas. da hoje os pilares de nosso saber metalingüístico: a gramática e o
Afirma Robins (1979) que, “Desde então, ampliam-se os ho- dicionário. ” (p.65), surgiu da necessidade de oficializar línguas
rizontes linguísticos: as obras de gramáticos não europeus come- vernáculas, no período de constituição das nações europeias. Até
çam a causar impactos na tradição europeia, as línguas vivas da então, esses instrumentos linguísticos eram usados para o ensi-
Europa passam a ser sistematicamente estudadas [...]. ” (p.75) no-aprendizagem de línguas estrangeiras como o latim e o grego.
Insistindo sobre movimento da gramatização, que obteve seu
auge durante o Renascimento, destaca Auroux (1992) que este As crianças gregas ou latinas que frequentavam a escola do gramático,
movimento vai além de uma conservação de manuscritos, pois já sabiam sua língua, sendo a gramática só uma etapa do acesso à
cultura escrita. Para um europeu do século IX, o latim é antes de tudo
passa a investigar as questões linguísticas em torno das “novas lín- uma segunda língua que ele deve aprender. A gramática latina existe
guas”, das línguas faladas pelo povo. e vai se tornar prioritariamente a uma técnica de aprendizagem da
língua. (p. 42)
Não se trata somente de fornecer um instrumento para a poesia, mas
de deslocar o meio linguístico do conjunto das atividades intelectuais. No Renascimento, prossegue o autor, gramáticas e dicionários
Certamente, isto concerne à literatura em primeiro lugar (seu apare- tornam-se instrumentos de ensino da língua materna e a concor-
cimento precoce parece ter consequências para o da gramatização, e é
ela que guia as discussões teóricas), mas, para compreender a ampli- rência entre as nações estabelece uma nova relação política na
tude do deslocamento, basta observar que o aparecimento dos tratados qual a língua exerce um papel central enquanto elemento funda-
de lógica redigido no vernáculo acompanha globalmente a gramatiza- dor de identidade nacional.
ção. (p.49) Articulando agora a questão da instrumentação das línguas,
aos moldes do que se observa no período do Renascimento, para
Auroux (1992) chama atenção, ainda, para os contatos linguís- o caso de Libras, observamos que fica cada vez mais explicitada a
ticos que foram possíveis durante o Renascimento pela propaga- relação entre a formação da identidade surda e a separação esta-
ção dos textos escritos. belecida entre o português e a língua nativa dos surdos. Isso pode
ser observado num levantamento preliminar que fizemos, onde
[...] os contatos linguísticos se tornaram um dos elementos determi-
nantes dos saberes linguísticos codificados e as gramáticas se tornam figuram vários “instrumentos linguísticos”, sobretudo dicionários
as peças-mestras de uma técnica do conhecimento das línguas. Em de Libras: Minidicionário SAT; Dicionário Enciclopédico Ilustra-
seguida, o desenvolvimento do livro impresso dá a este fenômeno uma do Trilíngue da Língua de Sinais Brasileira (Libras); Novo Dicio-
difusão incomparável. (p.29) nário Trilíngue Ilustrado – português, inglês e Libras de Capo-
villa, Raphael e Maurício, Dicionário Ilustrado de Libras de Flávia
Processo de “gramatização”: Gramáticas e Dicionários de LI- Brandão, Dicionário da Língua de Sinais Brasileira – Acessibilida-
BRAS de Brasil (versão 2.1/2008), Dicionário Libras (http://www.dicio-
nariolibras.com.br/ ), dentre outros.
Vimos que as gramáticas e os dicionários são instrumentos Podemos ler, por exemplo, na apresentação do monumental
linguísticos objetivamente criados para a uniformização de uma Dicionário Trilíngue Ilustrado de Capovilla e outros (2001), feita
língua. Auroux (1992) enfatiza que, durante o Renascimento, a por Oliver Sacks:
gramatização, isto é, “processo que conduz a descrever e a ins-

209
Se a Libras é a língua nativa do surdo, ela deve ser ponte para adquirir De acordo com o levantamento feito por nós, foram encontra-
o português, e não o contrário. Não faz sentido tentar usar uma lín- das várias obras que usam termos da gramática, não necessaria-
gua estrangeira como ponte para aquisição da língua nativa. Por isso
é preciso criar um instrumento capaz de dar ao surdo acesso direto
mente uma gramática específica de Libras. Nessas obras pode-se
aos sinais da Libras, e não apenas um acesso mediado pela glosa em observar os termos usados para uma construção gramatical, base-
português. (p.15) ados na gramática da Língua Portuguesa:

É bastante evidente o processo de gramatização que se repete Para os empréstimos lexicais, a LIBRAS desenvolveu um alfabeto ma-
nual que é constituído de Configurações de Mão constitutivas dos si-
em Libras, com a criação de dicionário e a tentativa de se escrever
nais, as quais representam as letras do alfabeto da língua portuguesa.
uma gramática, na base das línguas europeias, sob a influência do Através da “datilografia” ou soletração digital, este alfabeto é utilizado
mundo latino que unificou o saber linguístico ocidental, a partir para traduzir nomes próprios ou palavras para as quais não se encon-
do que Auroux (1992) chama de rede de conhecimento: “A gra- tram equivalentes prontos em LIBRAS ou para explicar o significado
matização (a base do latim) de um vernáculo europeu pode igual- de um sinal a um ouvinte. ” (FERREIRA, 2010, p.22)
mente servir de partida para uma outra língua e lhe transmitir sua
“latinidade” (p. 44). Considerando o fato de a Libras ser majoritariamente ensinada
A introdução do livro de Ferreira (2010), Por uma gramática ao surdo quando este já passou a primeira infância, os instrumen-
de língua de sinais, é bastante significativa para a nossa discussão: tos linguísticos encontram-se, de forma particular, destinados ao
ensino da língua materna, como mencionamos acima.
[ Libras] É uma língua natural surgida entre os surdos brasileiros da Acrescente-se a isso o objetivo declarado de constituição de
mesma forma que o Português, o Inglês, o Francês, etc. surgiram ou uma identidade linguística e cultural, separando-se assim, da cul-
se derivaram de outras línguas para servir aos propósitos linguísticos tura e da língua portuguesa dos ouvintes brasileiros.
daqueles que as usam. (p.11) No processo de construção dos instrumentos linguísticos na
Língua Sinais Brasileira, nota-se explicitamente o apelo à unifica-
Auroux (1992) elenca os elementos primordiais de uma gra-
ção de um povo em torno de uma língua materna própria, como
mática: a) uma categorização das unidades; b) exemplos; c) regras
ocorreu na formação das nações europeias no período do Renas-
mais ou menos explícitas para construir enunciados (os exemplos
cimento.
escolhidos podem tomar seu lugar) ” (p.66).
Além disso, chama a atenção para a interferência da noção de [...] a língua carrega consigo a identidade e a cultura de um povo. Os
regra, como uma forma de contenção da variação linguística típi- surdos, assim como outras comunidades linguísticas, constroem a sua
ca das línguas não “instrumentalizadas”. identidade e cultura através da interação com as pessoas iguais a si
Mais uma vez vemos esse fenômeno se apresentar em Libras: mesmo, no caso dos surdos, nas mesmas condições da surdez - com o
povo surdo. Portanto, o contato com seu grupo faz com que se haja a
identificação com a língua de sinais e com uma identidade e cultura
[...] apesar da diferença existente entre línguas de sinais e línguas orais,
peculiar as suas raízes. (GRASSI e outros, 2011, p.65 – grifo nosso)
ambas seguemos mesmos princípios pelo fato de possuírem um léxico,
isto é, um conjunto de símbolos convencionais, e uma gramática, ou
seja, um sistema de regras que rege o uso desses símbolos. (PEREIRA
e outros, 2011, p. 59)

210
CONSIDERAÇÕES FINAIS Neuropsicologia. Disponível em :<http://www.ip.usp.br/lance/
capitulos.html>. Acesso em: 24 jun.2015
Como foi constatado no desenvolvimento deste trabalho, é CAPOVILLA, Fernando César; RAPHAEL, Walkíria Duarte
possível estabelecer uma relação entre o movimento de criação (Ed). Dicionário encidopédico ilustrado trilingiie da lingua de si-
das gramáticas e dicionários das línguas das modernas nações eu- nais brasileira. 2. ed. Ilustrações de Silvana Marques. São Paulo:
ropeias, durante o Renascimento, e o que ocorre em Libras. Isto USP/Imprensa Oficial do Estado, 2001.v. I: sinais de A a L e v. 11:
é, podemos observar um intenso movimento de criação e circula- sinais de M a Z.
ção desses instrumentos linguísticos para Libras em consonância FERREIRA, Lucinda. Por uma gramática de línguas de sinais. Rio
com o que Auroux (1992) destaca a propósito da construção dos de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2010.
saberes linguísticos ocidentais. Considerando o fato de a Libras GRASSI, Dayse; ZANONI, Graziely Grassi; VALENTIN, Silvana
ser majoritariamente ensinada ao surdo quando este já passou M. Lopes. Língua Brasileira de Sinais : Aspectos linguísticos e cul-
a primeira infância, os instrumentos linguísticos encontram-se, turais. Projeto Saber, Revista Trama. Marechal Cândido Rondon,
de forma particular, destinados ao ensino da língua materna e à Vol. 7, nº 14, 2011. Disponível em :<http://e-revista.unioeste.br/
constituição de uma identidade linguística e cultural, separando- index.php/trama/article/view/5786>. Acesso em: 19 mai. 2015
-se assim, da cultura e da língua portuguesa dos ouvintes brasi- LYONS, John. Introdução à Linguística Teórica. São Paulo: Ed.
leiros. Nota-se explicitamente o apelo à unificação em torno de Nacional; Ed da Universidade de São Paulo, 1979.
uma língua materna própria, como ocorreu na formação das na- PAVEAU, Marie-Anne; SARFATI, Georges-Elia. As Grandes Teo-
ções europeias no período do Renascimento. O desenvolvimento rias da Linguística. São Carlos: Claraluz, 2006.
de um sistema de escrita, o signwriting, ao que parece, compõe PEREIRA, Maria Cristina Cunha e outros. Libras conhecimento
o quadro traçado por Auroux (1992) na formação das nações além dos sinais. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2011.
modernas. Não casualmente, assistimos a expressão “comunida- ROBINS,R.H. Pequena História da Linguística. Rio de Janeiro: Ao
de surda” ser progressivamente substituída pela expressão “povo livro técnico, 1979.
surdo”, no contexto da oficialização da Língua Brasileira de Sinais.

REFERÊNCIAS

AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campi- RESUMO


nas, SP : Ed. da Unicamp, 1992.
CAMARA JR., Joaquim Mattoso. História da Linguística. Petró- O surgimento e desenvolvimento profissional dos Tradutores/In-
polis, Vozes: 1975. térpretes de Libras - Língua Brasileira de Sinais – no Brasil são
CAPOVILLA, F. C., e outros. O desafio do bilinguismo na educa- recentes (década de 1980) e foram construídos com base nas ati-
ção do surdo: Descontinuidade entre a língua de sinais e a escrita vidades religiosas e de caridade realizadas por estes, sem a ne-
alfabética e estratégias para resolvê-la. Neuropsicologia e apren- cessidade de formação específica para desempenhar a função.
dizagem: Uma abordagem multidisciplinar (2a. ed.,2004, pp. 253- Atualmente atuando de forma majoritária no espaço educacional,
265). São Paulo, SP: Memnon, Capes, e Sociedade Brasileira de estes profissionais permanecem sendo contratados sem maiores

211
exigências e esse tipo de situação interfere diretamente no enten- O TRADUTOR/INTÉRPRETE DE LIBRAS EDUCA-
dimento e desenvolvimento do sujeito Surdo inserido em sala de CIONAL E A FORMAÇÃO: CONSTRUINDO UMA
aula, o qual possui necessidades comunicacionais e educacionais
PONTE ENTRE O SURDO E O CONHECIMENTO
especiais. Por essa razão, esse trabalho tem como finalidade pro-
por a reflexão acerca da formação do Tradutor/Intérprete de Li-
Manoel Caetano do Nascimento Júnior ¹;
bras da área educacional, evidenciando a conexão existente entre
Mariana Damião Farias²;
esta temática e o desenvolvimento do aluno Surdo. Partindo deste
Graziella Fernanda Santos Queiroz³;
objetivo inicial, abrangeremos desde o surgimento desta atividade
Tayana Dias de Menezes4
profissional até as problemáticas atualmente enfrentadas por estes
profissionais e pelos discentes Surdos na educação infantil e em
¹Graduando do Curso de História/Lic. - CFCH - UFPE;
séries iniciais do ensino fundamental. Para tal êxito, fora utilizada
E-mail: manoel_nascimento01@hotmail.com,
metodologia do tipo qualitativa, baseada em revisão bibliográfica
²Graduanda do Curso de Letras-Libras/Lic. - CAC - UFPE;
de artigos e dissertações de Quadros (2004), Silva; Macedo Júnior;
E-mail: mariannadamiao@gmail.com,
Lima (2008), Góes (2011) e Anater; Passos (2013), bem como nos
³Graduanda do Curso de História/Lic. - CFCH - UFPE;
livros de Lacerda (2010), Lacerda; Santos (2013) e Ampessan;
E-mail: graziequeirozgago@gmail.com,
Guimarães; Luchi (2013), anteriormente publicadas na área sobre 4
Docente/pesquisadora do Depto.de Letras- CAC - UFPE;
a temática, e nas legislações federais acerca da Educação Espe-
E-mail: tayana_dias@yahoo.com.br.
cial Inclusiva (BRASIL, 2007) e do Tradutor/Intérprete de Libras
(BRASIL, 2010). Este trabalho conclui que há uma necessidade
Resumo – O surgimento e desenvolvimento profissional dos Tra-
urgente de se repensar a formação inicial e continuada dos pro-
dutores/Intérpretes de Libras - Língua Brasileira de Sinais – no
fissionais Tradutores/Intérpretes de Libras na área educacional,
Brasil são recentes (década de 1980) e foram construídos com base
visto que, além de mediar a comunicação entre o sujeito Surdo
nas atividades religiosas e de caridade realizadas por estes, sem a
e o ambiente escolar, estes também são agentes imprescindíveis
necessidade de formação específica para desempenhar a função.
no processo de construção de conhecimento desenvolvido pelo
Atualmente atuando de forma majoritária no espaço educacional,
educando Surdo.
estes profissionais podem estar sendo contratados sem maiores
exigências e esse tipo de situação interfere diretamente no enten-
Palavras-chave: Tradutor/Intérprete de Libras; Sujeito Surdo; Es-
dimento e desenvolvimento do sujeito Surdo inserido em sala de
paço Educacional
aula, o qual possui necessidades comunicacionais e educacionais
especiais. Por essa razão, esse trabalho tem como finalidade pro-
por a reflexão acerca da formação do Tradutor/Intérprete de Li-
bras da área educacional, evidenciando a conexão existente entre
esta temática e o desenvolvimento do aluno Surdo. Partindo deste
objetivo inicial, abrangeremos desde o surgimento desta atividade
profissional até as problemáticas atualmente enfrentadas por estes
profissionais e pelos discentes Surdos na educação infantil e em

212
séries iniciais do ensino fundamental. Para tal êxito, fora utilizada não se exigia uma atuação formal dos envolvidos e esses agiam de
metodologia do tipo qualitativa, baseada em revisão bibliográfica maneira clandestina e informal, sem terem a devida capacitação
de artigos e dissertações de Quadros (2004), Silva, Macedo Júnior para o exercício da função - muitos eram pais ou amigos de sur-
e Lima (2016), bem como nos livros de Lacerda (2003; 2005), San- dos e, em alguns casos, curiosos da Língua de Sinais. A atuação
tos (2012) e Ampessan, Guimarães e Luchi (2013), anteriormen- do profissional TILS sem formação profissional era defendida por
te publicadas na área sobre a temática, e nas legislações federais alguns segmentos, os quais argumentavam ser necessário, apenas
acerca da Lei de Libras (BRASIL, 2002); do Decreto nº 5.626/2005 o conhecimento da Libras e a convivência com a comunidade
e da Lei do Tradutor/Intérprete de Libras (BRASIL, 2010). Este Surda. Na década de 90, com a Conferência Mundial sobre “Ne-
trabalho conclui que há uma necessidade urgente de se repensar cessidades Educativas Especiais: acesso e qualidade, realizada em
a formação inicial e continuada dos profissionais Tradutores/In- Salamanca, Espanha” (Santos, 2012 p. 5), o profissional TILS já é
térpretes de Libras na área educacional, visto que, além de mediar citado. Já nos anos iniciais do século XXI, com a criação da Lei de
a comunicação entre o sujeito Surdo e o ambiente escolar, estes Libras (Lei nº 10.436/2002) e com o Decreto nº 5.626/2005 que
também são agentes imprescindíveis no processo de construção regulamenta a Lei anterior, o Tradutor/Intérprete de Libras passa
de conhecimento desenvolvido pelo educando Surdo. a ganhar espaço em diversos contextos, pois os surdos começam
a participar de várias áreas da sociedade, fazendo-se necessária
Palavra-Chave: Tradutor/Intérprete de Libras; Sujeito Surdo; Es- a presença do profissional TILS na mediação comunicacional.
paço Educacional A área que se apresenta como a de maior demanda do TILS é a
educacional. É o campo educacional que tem gerado grandes dis-
INTRODUÇÃO cussões e no qual Lacerda (2005), Quadros (2004), Silva (2016),
Ampessan, Guimarães e Luchi (2013);entre outros têm se detido,
Primeiramente, é pertinente, ao introduzir esse trabalho, de- no sentido de melhorar a atuação e a relação entre o TILS e o seu
finir o que é um Tradutor/Intérprete de Libras – Língua Brasilei- alvo, o aluno Surdo . É nesse contexto – em sala de aula - que
ra de Sinais – e Língua Portuguesa, doravante TILS, pois muitas temos de agir de forma cuidadosa e reflexiva; há evidências de
pessoas ainda desconhecem esse profissional. Segundo Quadros profissionais que desconhecem a realidade das comunidades sur-
(2004, p. 11), ele é a “pessoa que domina e interpreta de uma lín- das, como também há a falta de preparo destes para desenvolver
gua de sinais [brasileira] (língua destinada ao sujeito Surdo do a atividade de tradução/interpretação entre a Libras e a Língua
Brasil) para uma língua falada e vice-versa, em qualquer moda- Portuguesa (Lacerda, 2003, p.3). A inclusão de TILS desprepara-
lidade que se apresente, seja ela oral ou escrita”. Dito isto, temos dos pode ser um complicador ainda maior, se pensarmos na sua
de explicar, brevemente, como esses profissionais surgiram, bem atuação na educação infantil e no ensino fundamental, onde as
como a profissão se expandiu através do tempo. A bibliografia crianças, em sua maioria, têm raso conhecimento da língua ma-
trabalhada com Quadros (2004); Lacerda (2003; 2005); Santos terna ou estão em processo de formação do conhecimento sobre
(2012), entre outros em estudo, nos dizem que “Em nosso país, a língua, além de ter as atribuições expandidas para mais do que
reconhece-se que as práticas de interpretação mais antigas vincu- realizar serviços de tradução e interpretação, assumindo também
lam-se também a instituições religiosas e tiveram início no come- um papel pedagógico em sala de aula. Este trabalho vai discutir
ço da década de 1980” (ALMEIDA, 2010, p.18). Nesse período, esses aspectos com o intuito de motivar uma reflexão respeito da

213
profissão de TILS, apresentando os complicadores desta recente cacional. Por fim, optamos em refletir a partir de Walter Benjamin
função e, quem sabe, auxiliar com novos olhares para o profissio- (1994) e sua concepção de experiência, pois notamos a possibili-
nal Tradutor/Intérprete de Libras/Língua Portuguesa. dade de analogia entre a capacidade de transmitir experiências
– leia-se ensino de aspectos significativos – e a importância de
METODOLOGIA profissionais com tais habilidades no contexto educacional dos
anos iniciais. O intuito foi evidenciar que no campo educacional
Este trabalho seguiu a ótica da metodologia qualitativa, sen- independente de qualquer faixa etária o Tradutor/Intérprete pode
do esta a escolhida por “trazer como contribuição ao trabalho ser de valia se tiver uma formação consistente e puder assim inter-
de pesquisa uma mistura de procedimentos de cunho racional e cambiar o conhecimento.
intuitivo capazes de contribuir para a melhor compreensão dos
fenômenos” (NEVES, 1996, p.3). Fez-se um levantamento bi- RESULTADOS E DISCUSSÃO
bliográfico em diferentes gêneros: artigos, dissertações e livros,
além de alguns sites. Para o trabalho sobre a trajetória do Tra- Pudemos inferir que ao longo de sua trajetória, o TILS, na
dutor/Intérprete de Libras-língua portuguesa foi determinante os atividade de intermediar a comunicação do Surdo, saiu de uma
textos de Quadros (2004),de Santos (2012) e de Almeida (2010). atividade voluntária e de amizade, onde familiares ajudavam as
Para trabalhar os avanços concernentes ao campo do Legislati- pessoas com surdez (geralmente realizada em Igrejas e lugares de
vo, trabalhamos com a Lei de Libras de nº 10.436/2002 – a qual convivência dos Surdos), para uma atividade profissional e regu-
fala a respeito da difusão da Língua Brasileira de Sinais; a Lei nº lamentada pela Lei nº 12.319, de 1º de Setembro de 2010. Vimos
12.319/2010, regulamentadora da atuação do TILS, e o Decreto que as consecuções dos Tradutores/Intérpretes de Libras/Língua
nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005 que regulamentou a Lei de Portuguesa estiveram, durante todo o seu passado até o presente
Libras já citada. Estas conquistas foram de muita relevância tanto momento, ligadas a ações conjuntas entre estes e os sujeitos Sur-
para o Surdo quanto para o TILS, por favorecer a expansão e a dos, porque eles, ao se inserirem em diversas áreas do conheci-
aceitação das suas atuações na sociedade. Depois, afunilamos o mento, fizeram com que os intérpretes, como o profissional da
debate para tratar da área que foi mais receptiva ao trabalho do acessibilidade, os acompanhassem com o intuito de aniquilar a
TILS: a educacional. Quem apresentou textos importantíssimos barreira comunicacional. Outro fato apreendido na literatura es-
para nossa discussão foi Lacerda (2003), Lacerda (2005), Silva tudada é o de que mesmo com esses avanços – principalmente os
(2016), por refletirem sobre a atuação e colocação do TILS nas tocantes ao campo Legislativo – não há um órgão de fiscalização
salas de aula do ensino fundamental e na educação básica de uma para avaliar se o TILS, inserido no âmbito educacional, possui as
forma geral. Bernardi (2006; 2007) foi significativa, por estudar qualificações necessárias, principalmente no que tange a educação
como é a relação Surdo/TILS na educação infantil. Pilleti (2011) infantil e no nível fundamental, pois “No desenvolvimento desses
ajudou por proporcionar a concatenação entre o desenvolvimento estágios, com os conflitos que os constituem e na superação dos
da criança e do adolescente e a reflexão sobre o papel do Intér- mesmos pela criança e pelo adolescente, a escola, os educadores,
prete nesse processo. As argumentações de Ampessan, Guimarães [e os intérpretes] podem contribuir significativamente, com con-
e Luchi (2013) nortearam as atribuições dadas e a complexidade dutas que viabilizem os limites e apoios necessários para enfrentá-
existente entorno da atuação do Tradutor/Intérprete da área edu- -los, ao contrário de acirrá-los” (PILETTI,2011, p. 108-109). Se os

214
TILS não tiverem a devida formação e a capacitação continuada Intérprete na Educação infantil e nos anos iniciais do ensino fun-
para estar no âmbito educacional, ele pode ser um agravante na damental e a relevância desse profissional nesse serviço, pois se o
dificuldade de aquisição da língua de sinais pela criança e adoles- intérprete consegue ser alguém contribuinte para o alavancar do
cente Surdo, visto que o profissional TILS participa da formação aprendizado do aluno Surdo ele é alguém pertinente no contexto,
educativa de crianças e jovens surdos em instituições de ensino. se ele é conhecedor e a escola entende a situação da criança e do
(SOUZA, 2007, p. 159-160). A formação insuficiente do profissio- adolescente com Surdez ele pode usar da sua capacidade para ser
nal TILS também apresenta outros complicadores, como a relação formativo na vida do sujeito surdo(BENJAMIN, 1994, p.114).Da
com os demais membros do ambiente escolar, em detrimento da mesma forma, se ele mantiver atenção constante em sua prática,
parca proficiência demonstrada por este no que se tange à Libras, se agir com um olhar sempre inquisidor poderá aprimorá-la e ser
além do desconhecimento dos preceitos éticos inerentes à pro- mais um recurso de valia ao aluno, pois como diz W. Benjamin
fissão (AMPESSAN; GUIMARÃES; LUCHI, 2013).Uma corrente em seu texto “Experiência”: “O indivíduo imprudente acomodas-
defende que não se deve utilizar o Tradutor/Intérprete de Libras se no erro. “Nunca encontrarás a verdade” diz ele ao [TILS], “eu já
na educação infantil e no ensino fundamental I, por acreditar que passei por isso”. Mas para o pesquisador o erro é apenas um alento
seja benéfico para essa faixa etária a convivência com o professor para encontrar a [o melhor caminho]” (BENJAMIN, 1984, p. 23-
Surdo, assim o aluno teria a possibilidade de um contato/ apren- 25). Se o profissional TILS atuar em conjunto com a comunidade
dizado natural com a língua e a cultura Surda e, mais adiante, teria escolar, o discente com tal necessidade só tem a ganhar, além de
mais chances para adaptar-se ao TILS quando este o fosse intro- ir se acostumando com a presença desse profissional desde cedo.
duzido, a partir das séries do ensino fundamental II, na pré-a- Sendo assim, depois de passar por essa explanação verifica-se a
dolescência(AMPESSAN; GUIMARÃES; LUCHI, 2013). Porém, necessidade de “Cursos de interpretação, discutindo temas como
uma vez os Tradutores/Intérpretes de Libras inseridos no contex- estratégias de interpretação [e tratamento com o aluno], situações
to escolar, precisam ter uma boa formação inicial e serem bem ca- de interpretação, ética [para o Intérprete educacional] ou moral
pacitados, e o mínimo para isso é serem “bilíngues para poderem dos Intérpretes” (AMPESSAN; GUIMARÃES; LUCHI,2013, p.
oferecer, por sua vez, uma educação bilíngue” (AMPESSAN;GUI- 53).
MARÃES; LUCHI, 2013, p. 15).Entretanto, o âmbito educacional
requer dos TILS educacionais, além do domínio da Libras e da CONSIDERAÇÕES FINAIS
Língua Portuguesa, um trabalho todo especial de acompanha-
mento; esse trabalho os singulariza dentre todas as outras áreas de Ao longo desse trabalho, observou-se a trajetória do profissio-
atuação, pois requer uma postura e um comportamento que foge nal Tradutor/Intérprete de Libras/Língua Portuguesa, desde suas
do mero serviço de tradução e interpretação. Mas, diferentemente atuações iniciais até a sua inserção na área educacional. Vimos
dos que acreditam na exclusão do Tradutor/Intérprete da educa- que, para a inserção desse profissional no campo educacional, os
ção infantil e dos anos inicias do ensino fundamental, observa-se surdos junto aos TILS travaram batalhas e estas possibilitaram
que esse caminho é um pouco precipitado. Ao ler um texto do avanços por meio das Leis nº 10.436/2002; n° 12.319/2010 e o De-
escritor alemão Walter Benjamin (1994) intitulado “Experiência e creto nº 5.626/2005. Através da bibliografia, foi possível eviden-
Pobreza”, onde analisa a capacidade de transmitir aprendizado aos ciar que o Tradutor/Intérprete de cunho educacional transcende
mais jovens, foi possível tecer uma analogia sobre a presença do ao mero ato de interpretar de uma língua para outra, ele assume

215
também a função pedagógica de, não raro, se inteirar e intervir REFERÊNCIAS
em diversas situações escolares – tendo o intuito de favorecer o
desenvolvimento intelectual do Surdo. A grande questão desse ALMEIDA, Elomena Barbosa de. O Papel de Professores Surdos
trabalho foi vista em Ampessan, Guimarães e Luchi (2013); La- e Ouvintes na Formação do Tradutor e Intérprete de Língua Bra-
cerda (2005) e Bernardi (2007) e reside no fato de haver uma linha sileira de Sinais. 2010. 111 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de
tênue onde o Tradutor/Intérprete educacional transita, pois o seu Educação, Educação, Universidade Metodista de Piracicaba, Pi-
trabalho parece amplo demais, por isso, pode incorrer em desvios racicaba, 2010. Disponível em: <https://www.unimep.br/phpg/
de postura e assim transgredir as questões éticas. Esse trabalho foi bibdig/pdfs/docs/03062013_144221_elomena_me.pdf>. Acesso
importante por apresentar um profissional muitas vezes negligen- em: 13 mar. 2016.
ciado pela academia e pouco conhecido pelos demais seguimen- ANICETO JÚNIOR, Dalcides dos Santos. O Intérprete Educa-
tos sociais. Outro fator é ser esse profissional majoritariamente do cional de LIBRAS: Desafios e Perspectivas. 2010. Disponível em:
campo educacional e por essa atividade requerer uma responsabi- <http://www.webartigos.com/artigos/o-interprete-educacional-
lidade que transcende a simples comunicação. Por esses motivos é -de-libras-desafios-e-perspectivas/46242/>. Acesso em: 15 mar.
necessária uma reflexão maior entorno de uma melhor formação 2016.
para atuação nesse espaço, principalmente se ele estiver envolvido AMPESSAN, João Paulo; GUIMARÃES, Juliana Sousa Pereira;
com a educação infantil e com os anos iniciais do ensino funda- LUCHI, Marcos. Intérpretes Educacionais de Libras: orientações
mental (BERNARDI, 2007). Para aprender qualquer arte, o tra- para a prática profissional. Florianópolis: Dioesc, 2013. 96 p.
balho do TILS, por exemplo, requer uma reflexão continua entre BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, W. (Ed.).
sua prática e sua teoria e a dedicação deste em romper barreiras, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
visto que essas se apresentam continuamente em sua atividade da cultura. 7. ed. Trad. Sérgio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
por ela permitir o ineditismo. Para finalizar, como expectativa de 1994. p. 114-119.
pesquisa, seria interessante se houvesse uma preocupação em sa- BENJAMIN, Walter. Experiência. In.A Criança, o Brinquedo e a
ber como esses TILS estão sendo admitidos no âmbito municipal Educação. Trad. Marcus
e estadual, quais os pré-requisitos e se estão respeitando os dizeres Vinicius Mazzari. São Paulo: Summus, 1984.(Original publicado
da Lei nº 12.319/10. Outra possibilidade de estudos é analisar a em 1974)
presença do TILS na educação infantil pública e perceber, além da BERNARDINO, Bruna Mendes. O Intérprete de Língua Brasileira
capacitação, como esses indivíduos conseguem ser uma presença de Sinais No Contexto de Escola Inclusiva. In: CONGRESSO DE
positiva ao aluno Surdo. INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 15. 2007, Piracicaba. Anais... Piraci-
caba: Unimep, 2007. p. 1 - 4. Disponível em: <http://www.unimep.
br/phpg/mostraacademica/anais/5mostra/1/179.pdf>. Acesso
em: 15 mar. 2016
BERNARDINO, Bruna Mendes. O Interprete de Língua Brasileira
de Sinais no Contexto da Escola Inclusiva: Focalizando sua Atua-
ção na Educação Infantil. 2006. Relatório PIBIC. Disponível em:
<http://www.unimep.br/phpg/mostraacademica/anais/4mostra/

216
pdfs/169.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2016. SOUZA, Regina Maria de. O Professor Intérprete de Língua de
BRASIL, Presidência da República Casa Civil. Decreto nº 5.626, Sinais em Sala de Aula: Ponto de Partida para se Repensar a Rela-
de 22 de dezembro de2005. Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 ção Ensino, Sujeito e Linguagem. Campinas, Educação Temática
de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Digital, 2007, p. 154-170.
LIBRAS, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. SILVA, Anderson Tavares Correia da; MACEDO JÚNIOR, Már-
BRASIL, Presidência da República Casa Civil. Lei n° 12.319, de 1° cio Ribeiro; LIMA, Francisco José. O intérprete de Língua Bra-
de setembro de 2010, que Regulamenta a profissão de Tradutor e sileira de Sinais no Ensino Fundamental e o Seu Papel na Escola
Intérprete da Língua Brasileira de Sinais - LÍBRAS. Comum. Disponível em: <https://www.ufpe.br/ce/images/Gra-
BRASIL, Presidência da República Casa Civil. Lei nº 10.436, de 24 duacao_pedagogia/pdf/2008.1/o interprete de lingua brasileira de
de abril de 2002, que sinais no ensino fundamental e seu papel na escola comum.pdf>.
dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Acesso em: 14 mar. 2016.
LACERDA, C. B. F. O intérprete educacional de língua de sinais
no ensino fundamental: refletindo sobre limites e possibilidades.
In: LODI, A C B. (et al.) Letramento e minorias. 2ª edição. Media-
ção, Porto Alegres: 2003.
LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de. O Intérprete de Língua de
Sinais em Sala de Aula: experiência de atuação no ensino funda-
mental. Contrapontos, Itajaí, v. 5, n. 3, p.353-367, dez. 2005.
NEVES, José Luis. Pesquisa qualitativa: características, usos e pos-
sibilidades. Caderno de Pesquisa em Administração, São Paulo, v.
1, n. 3, p.1-5. 1996. Semestral. Disponível em: <http://www.unisc.
br/portal/upload/com_arquivo/pesquisa_qualitativa_caracteris-
ticas_usos_e_possibilidades.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2016.
PILETTI, Nelson; ROSSATO, Solange Marques. Psicologia da
aprendizagem: da teoria do condicionamento ao construtivismo.
São Paulo. Contexto, 2011.
QUADROS, Ronice Müller. O tradutor e intérprete de língua bra-
sileira de sinais e língua portuguesa / Secretaria de Educação Es-
pecial; Programa Nacional de Apoio à Educação de Surdos - Bra-
sília: MEC; SEESP, 2004.
SANTOS, Ozivan Perdigão. Travessias Históricas do Tradutor/
Intérprete de Libras: De 1980 a 2010. Artifícios, Pará, v. 2, n. 4,
p.1-16, dez. 2012.
SACKS, Oliver. Vendo Vozes: uma jornada pelo mundo dos sur-
dos. Tradução Alfredo B.P. de Lemos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

217
EIXO VI- FORMAÇÃO HUMANÍSTICA
PARA A DOCÊNCIA NA ÁREA DE
LETRAS E OS DESAFIOS EM TEMPOS
DE INCLUSÃO E DIVERSIDADE

218
RESUMO va que consiste na categorização dos dados definida a posteriori,
ou seja, emergida do teor crítico dos comentários dos indivíduos
O contexto educacional inclusivo de alunos surdos está pauta- intervencionados. Os resultados da pesquisa convergiram para a
do em legislações que contemplam a acessibilidade comunicacio- necessária formação continuada de tradutores e intérpretes de Li-
nal, o direito linguístico e tratativas que partem, principalmente, bras educacionais, em especial, no tocante ao papel mediador, à
pela inserção do tradutor e intérprete de Libras em salas regulares ética profissional e à postura atitudinal em sala de aula, bem como
de ensino. Estes profissionais têm contato com diversos docentes a realização de momentos formativos com professores de letras a
como, por exemplo, professores de língua portuguesa, os quais fim de explanar sobre o papel e a ética do profissional tradutor e
convivem e realizam suas atividades pedagógicas simultaneamen- intérprete de Libras.
te com o saber-fazer do intérprete educacional. Contudo, estas
relações podem apresentar problemas no que tange ao papel me- Palavras-chave: Percepções; Professores de Letras; intérpretes
diador, à ética profissional e à postura atitudinal – fatores obser- de Libras; sala de aula
vados pelos professores em relação aos intérpretes. Neste sentido,
este trabalho busca responder ao seguinte questionamento: Como
os professores de língua portuguesa acompanhados por traduto- ANÁLISE DAS PERCEPÇÕES DE PROFESSORES DE LETRAS
res e intérpretes de Libras percebem o desenvolvimento de sua DE ESCOLAS RECIFENSES EM RELAÇÃO AO TRABALHO
prática docente? Para atender a esta interpelação, estabelecemos DOCENTE SUBSIDIADO POR TRADUTORES E INTÉRPRE-
como objetivo geral investigar as percepções de professores de TES DE LIBRAS NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
língua portuguesa de três escolas da região metropolitana reci-
fense acerca do trabalho docente assistido por tradutores e intér- Roberto Carlos Silva dos Santos1 (UFRPE)
pretes de Libras no contexto da sala de aula. Diante do problema Carlos Eduardo Oliveira2 (IFPE)
de pesquisa e objetivo geral levantados, traçamos como objetivos Diego Germano Barbosa3 (UFPE)
específicos: 1) Elaborar um questionário semiestruturado relativo Thiago Cézar de Araújo Aquino4 (UFPE)
à visão do professor de letras frente ao trabalho auxiliado pelo Wilka Karla Martins do Vale5 (UFRPE)
intérprete; 2) Levantar as opiniões desses professores mediante o
questionário construído; 3) Analisar as percepções desses sujeitos 1.Mestrando em Ensino das Ciências – PPGEC – UFRPE;
por meio da categorização qualitativa dos posicionamentos levan- E-mail: robertolibras@yahoo.com.br,
tados. Neste sentido, estabelecemos um percurso metodológico 2. Pós-graduando em Libras – UNIVERSO;
de natureza qualitativa, valendo-se de um questionário semies- E-mail: carlos.oliveira@barreiros.ifpe.edu.br,
truturado como instrumento de coleta de dados aplicado junto ao 3. Estudante do curso de Letras-Espanhol – CAC – UFPE;
corpo docente de letras de três escolas públicas da região metro- E-mail: diegogermanob@gmail.com,
politana da cidade do Recife. Utilizamos ainda elementos de uma 4. Estudante do curso de Letras-Libras – UFPB;
investigação quantitativa, haja vista que estas duas abordagens E-mail: thiagocsa@gmail.com,
não são excludentes entre si, mas complementares. A discussão 5. Mestranda em Ensino das Ciências – PPGEC – UFRPE;
dos resultados foi realizada a partir da Análise Textual Qualitati- E-mail: wilkiss_karla@hotmail.com

219
Resumo – O presente trabalho analisa as percepções de um Nessa direção, existem alguns trabalhos que se debruçam em
grupo de docentes de letras da rede pública de ensino do Reci- compreender a atuação deste profissional e propor critérios para o
fe no que tange o trabalho pedagógico auxiliado por Intérpretes exercício da profissão. Dentre os compêndios disponíveis, o traba-
de Libras. Neste sentido, este estudo se sustenta nos trabalhos de lho de Quadros (2003) traz a baila orientações que visam instruir
Quadros (2003), Filietaz (2008) e Ferreira (2010) os quais assina- à prática, a conduta e as atitudes do profissional-intérprete frente
lam a importância de se compreender a relação entre intérpretes e às diferentes demandas que permeiam suas atribuições, além das
professores, bem como pressupostos legais que garantem o acesso discussões em Filietaz (2008), a qual sustenta o necessário caráter
à informação pelo indivíduo surdo mediante a inserção do tra- neutro do intérprete no processo educativo, seu papel mediador,
dutor Intérprete de Libras, em especial, no contexto educacional. suas competências e seu âmbito de atuação.
Por fim, é apresentado os resultados de uma pesquisa qualitativa Direcionando nosso olhar especificamente para o contexto
e quantitativa de caráter investigativo, os quais apontaram des- educacional, é importante salientar que estes profissionais têm
vios quanto ao papel mediador, à ética profissional e à postura contato com diversos docentes como, por exemplo, professores
atitudinal de Intérpretes em sala de aula, além da a necessidade de de língua portuguesa, os quais convivem e realizam o magisté-
realização momentos de formação continuada periódicos com o rio simultaneamente com o saber-fazer do intérprete educacional.
corpo docente escolar a fim de explanar sobre o papel e a ética do Acerca dessa relação, Ferreira (2010) a acentua como necessária
profissional tradutor e intérprete de Libras. aos processos pedagógicos, pois, na medida em que o conteúdo
formal está sendo exposto pelo regente, o intérprete se vale das
Palavras-chave: Percepções; Professores de Letras; intérpretes competênciastécnica, metodológica e de transferência intrínsecas
de Libras; sala de aula ao processo tradutório e adequações culturais inerentes a cada
sistemalinguístico para garantir o acesso à informação e facili-
tar a aprendizagem pelo indivíduo surdo. Contudo, essa relação
INTRODUÇÃO pode apresentar problemas no que tange ao papel mediador, à éti-
ca profissional e à postura atitudinal – fatores observados pelos
O contexto educacional inclusivo de alunos surdos está pauta- professores em relação aos intérpretes e vagamente discutido nos
do em legislações que contemplam à acessibilidade, o direito lin- artigos científicos publicados recentemente.
guístico e tratativas que partem, principalmente, pela inserção do Em vista disso, este trabalho busca responder ao seguin-
Tradutor e Intérprete de Libras em salas regulares de ensino. Por te questionamento: Como os professores de língua portuguesa
exemplo, em virtude das prerrogativas apontadas na lei 10.436/02 acompanhados por tradutores e intérpretes de Libras percebem
e seu respectivo decreto deliberativo 5.626/05, a lei 12.319/10 o desenvolvimento de sua prática docente? Para atender a esta in-
aborda as diretrizes profissionais e institucionais que devem ser terpelação, estabelecemos como objetivo geral investigar as per-
levadas em consideração quanto ao perfil, formação e atribuições cepções de professores de língua portuguesa de três escolas da re-
do Tradutor e Intérprete de Libras. Por sua vez, a Lei Brasileira gião metropolitana recifense acerca do trabalho docente assistido
da Inclusão (13.146/15) dispõe de dispositivos que argumentam por tradutores e intérpretes de Libras no contexto da sala de aula.
a presença deste profissional em atividades relativas à acessibili- Diante do problema de pesquisa e objetivo geral levantados, tra-
dade comunicacional e, em nosso caso, o acesso à educação por çamos como objetivos específicos: 1) Elaborar um questionário
indivíduos surdos.
220
semiestruturado relativo à visão do professor de letras frente ao suas aulas se configuraram sujeitos participantes deste estudo.
trabalho auxiliado pelo intérprete; 2) Levantar as opiniões desses Vale salientar que o número de docentes interpelados se deu pela
professores mediante o questionário construído; 3) Analisar as disponibilidade destes indivíduos no momento da inquirição.
percepções desses sujeitos por meio da categorização qualitativa Por conseguinte, nos valemos de um questionário semiestrutu-
dos posicionamentos levantados. rado como instrumento de coleta de dados. Sustentamos a perti-
Diante dos objetivos suscitados, apresentamos a seguir o per- nência do uso do questionário pelo fato deste instrumento garan-
curso metodológico e suas respectivas etapas adotadas para reali- tir o anonimato dos sujeitos intervencionados e a não exposição
zação desta pesquisa. dos pesquisados à influência das opiniões e dos aspectos pessoais
do pesquisador (GIL, 2008). Sendo assim, este questionário cons-
METODOLOGIA tituiu-se de 2 perguntas fechadas com 3 assertivas disponíveis e 1
pergunta aberta para apreciação escrita dos entrevistados, confor-
A investigação que realizamos é de natureza qualitativa e ca- me apresentamos no quadro 1.
ráter investigativo, pois, conforme explanado por Neves (2008, p.
7), esse tipo de estudo se destaca pela interpretação das ações dos
indivíduos e “busca o significado e características do resultado
das informações obtidas através da aplicação de questionários e
atividades abertas”. Ou seja, a pesquisa qualitativa conduz a ob-
jetivação do fenômeno e o respeito ao caráter interativo entre os
objetivos buscados pelos investigadores, suas orientações teóricas
e seus dados empíricos. Por meio da pesquisa qualitativa podem Ao término da intervenção, realizamos a análise dos dados co-
ser avaliadas as contribuições da pesquisa acerca das “percepções letados por dois vieses procedimentais: 1) viés quantitativo: neste
ou mudanças conceituais apresentadas por indivíduos” (NEVES, respeito, adotamos a linha metodológica quantitativa disposta em
2008 p.7). Entretanto, também conduzimos uma abordagem Gil (2008). Ou seja, tanto a pergunta relativa à escola de atuação
quantitativa dos dados, uma vez que essas duas abordagens não do sujeito de pesquisa quanto as assertivas disponíveis para livre
precisam ser necessariamente excludentes, mas complementares escolha dos entrevistados presentes na questão fechada foram
(NEVES, 2008). contabilizadas e apresentadas em forma de porcentagem obede-
O contexto de intervenção da pesquisa se deu duas escolas da cendo a lei geral: Percentual de assertiva = [ (N° de entrevistados
rede estadual e uma escola da rede municipal de ensino da região que escolheram a assertiva / N° total de entrevistados) x 100]%.
metropolitana da cidade do Recife – PE. Estas escolas foram esco- Analogamente, para fins de cálculo das recorrências dos comen-
lhidas por serem consideradas centros de referência na inclusão tários dispostos no questionamento relativo à percepção dos pro-
de surdos quer no ensino fundamental quer no ensino médio e, fessores quanto à atuação dos intérpretes, nos valemos da seguinte
principalmente, pelo expressivo número de profissionais Traduto- equação: [ (N° de comentários pertencentes a categoria / N° total
res e Intérpretes de Libras em seu quadro funcional, totalizando 20 de comentários) x 100]%; 2) viés qualitativo: relativa à análise das
profissionais. Neste respeito, 14 professores de língua portuguesa percepções dos professores de Letras quanto ao seu trabalho com
que são acompanhados por Tradutores e Intérpretes de Libras em o Intérpretes de Libras em sala de aula. Neste ponto assumimos

221
a Análise Textual Qualitativa proposta por Moraes (2003), a qual dades na dinâmica da sala de auladesses indivíduos que divergem
envolve identificar e isolar enunciados dos materiais a ela subme- quer no processo pedagógico esperado para o contexto inclusivo
tidos, categorizar esses enunciados e produzir textos, integrando quer nas facetas ligadas à ética da profissão do Tradutor e Intér-
nestes, descrição e interpretação, “utilizando como base de sua prete de Libras (QUADROS, 2003).
construção o sistema de categorias desenvolvido na análise” (MO- Dando continuidade, a questão argumentativa proposta no
RAES, 2003 p. 87). questionário versava sobre quais as concepções dos entrevistados
Assim sendo, apresentamos os resultados e alguns apontamen- quanto aotrabalho docente com intérpretes durante suas aulas.
tos em relação aos dados que emergiram da pesquisa. Após a leitura dos comentários dispostos, designamos 3 catego-
rias de análise a posteriori, as quais subsidiaram a interpretação
RESULTADOS E DISCUSSÃO das colocações coletadas: 1) papel mediador: nesta categoria agru-
pamos comentários que refletiram aspectos positivos e/ou nega-
Em relação ao quantitativo de docentes entrevistados pelo nú- tivos na mediação entre o aluno surdo e o professor regente; 2)
mero total de escolas que se constituíram campo dessa pesquisa, ética profissional e postura atitudinal: elencamos aqui colocações
verificamos que 28,6% são lotados na escola A, 50% desempe- observadas pelos professores que cogitaram sobre questões rela-
nham suas atividades na escola B e 21,4% trabalham na escola C tivas à ética do intérprete; 3) lacunas na formação continuada do
(os nomes das escolas foram preservados para preservar o anoni- docente: englobamos nesta categoria comentários de professores
mato das instituições). Esta variabilidade de realidades escolares que prefiguraram imperícia quanto aos pormenores da profissão
vivenciada pelos interpelados é entendida como positiva, haja vis- do Tradutor Intérprete de Libras. Nesta direção, o quadro 2 siste-
ta que buscamos avaliar as percepções de um grupo de indivíduos matiza os dados coletados nas categorias emergidas para sua dis-
que possa exprimir o ponto de vista dos docentes de Letras atuan- cussão subsequente.
tes na educação pública recifense.
Outrossim, os professores foram arguidos quanto sua relação
com Tradutor e Intérprete de Libras em sua aula. Neste respeito,
diagnosticamos que 57,2% dos docentes consideram como sa-
tisfatória a sua relação com o profissional mediador da comuni-
cação de entre indivíduos surdos e ouvintes no ambiente formal
de aprendizagem dentro das instituições em que trabalham, en-
quanto que 35,7% declaram que seu convívio com os intérpretes
durante as aulas deixa a desejar e 7,1% entendem que suas as ati-
vidadespedagógicas com estes indivíduos são plenamente satis-
fatórias. Estes dados revelam a avaliação positiva da maioria dos
professores em relação aos seus tratos com os Intérpretes de Li-
bras. Contudo, entendemos como preocupante o percentual dos
docentes que consideram que sua relação com esses profissionais
deixa a desejar, o que nos permite inferir que existem peculiari-

222
À luz do quadro 2, constatamos que a categoria relativa ao papel dentre outras coisas,a relação colaborativa com os professores nas
mediador prefigura a menor recorrência de colocações (14,28%) adaptações de materiais e estratégias didáticas para a melhoria do
em relação as dimensões categóricas restantes. Adicionalmente, processo de ensino-aprendizagem com os alunos surdos, fatores
encontramos nesta dimensão categórica falas como “acho funda- estes consonantes com os requisitos dispostos na legislação e rei-
mental a atuação do intérprete por que ele é que fala ‘pra’ gente o terados nos preceitos éticos da profissão (BRASIL, 2010; QUA-
que o aluno surdo diz e vice e versa” e argumentado em “a minha DROS, 2003).Sendo assim, consideramos os descuidos relatados
percepção é de que este profissional ajuda na comunicação com nas falas dos professores em relação aos intérpretes como graves e
os surdos [...]”,as quais dão destaque ao intérprete enquanto canal incoerentes com as habilidades e competências exigidas para sua
de comunicação entre o professor e o aluno surdo. Contudo, a respectiva atuação ao contexto educacional (FILIETAZ, 2008).
baixa expressividade do papel mediador do intérprete aponta para Por fim, a última categoria denuncia a carência na formação
a visão intimista dos professores em relação ao papel do profis- continuada expressa nas colocações de um número considerável
sional-intérprete no contexto educativo e, principalmente, à sua de docentes (28,57%) quanto ao sentido e relevância da atuação
relevância para o processo pedagógico (FERREIRA, 2010). Além do Tradutor e Intérprete de Libras no contexto educacional. Dian-
disso, a colocação levantada em “sem ele [o intérprete] simples- te das declarações “[...] o intérprete faz os sinais e os meninos en-
mente o aluno surdo não aprenderia nada”, nos leva a crer que tendem, embora eu não entenda nada do que ele faz” e “é difícil
este professor concebe o intérprete como agente empoderado da dizer o que eu percebo sobre o trabalho de alguém que faz algo
“capacidade de fazer o aluno surdo aprender” (FILIETAZ, 2008, que eu não compreendo. É meio frustrante”, notamos claramente
p.3), o que se configura numa visão deturpada em relação ao pa- os sentimentos de apatia e frustação diante de uma atividade que,
pel do intérprete. ao nosso ver, é um universo desconhecido para estes professores.
Por conseguinte, observamos uma expressiva recorrência de Sobretudo, estes comentários relevam lacunas que podem e pre-
comentários (57,15%) dispostos na segunda categoria referente a cisam ser exploradas em momentos de formação continuada no
ética profissional e postura atitudinal. De maneira geral, os pro- espaço escolar a fim de que os docentes tenham a oportunidade
fessores revelaram em suas declarações algumas posturas e atitu- de se instrumentalizar no que tange à dinâmica de uma sala de
des por parte dos intérpretes que os acompanham, as quais são aula inclusiva, cuja a comunicação é mediada por um Tradutor e
incongruentes em relação ao que se espera no código de ética para Intérprete de Libras (FILIETAZ, 2008).
profissão disposto em Quadros (2003). Nas falas [...] só não enten- Após esgotarmos a análise textual qualitativa das dimensões
do porque o intérprete conversa tanto com os alunos surdos” e na categóricas que propusemos, apresentamos a seguir nossas im-
alegação “[...]as vezes atrapalha muito quando ele chega atrasado”, pressões finais para este estudo.
fica evidente deslizes de conduta profissional que podem incorrer
no descrédito dos Tradutores e Intérpretes de Libras frente à classe
docente e, não menos importante, no descumprimento das prer- CONSIDERAÇÕES FINAIS
rogativas dispostas no ordenamento jurídico relativas à profis-
são e à acessibilidade comunicacional da pessoa surda (BRASIL, Esta pesquisa investigou as percepções de professores de Letras
2010; BRASIL, 2015). Neste respeito, a quebra de decoro em sala de escolas recifenses quanto ao trabalho docente subsidiado por
de aula e a falta de assiduidade por parte do Intérprete prejudica, tradutores e intérpretes de Libras no contexto em sala de aula.

223
Neste sentido, o estudo apontou alguns desvios de conduta éti- REFERÊNCIAS
ca quanto à assiduidade e falta de engajamento na dinâmica esco-
lar, fatores estes que, segundo alguns professores, os intérpretes BRASIL, República Federativa do. Lei 10.436/02. Disponível
deixam a desejar. Entretanto, estes elementos são inerentes ao pa- em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10436.htm.
pel e as atribuições dos intérpretes, conforme previsto no código Acesso em: 05 de junho de 2015.
de ética da profissão e na legislação que subsidia a profissionaliza- _______. Lei 5.626/05. Disponível em: http://www.planalto.gov.
ção dos Tradutores e Intérpretes de Libras. br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm. Acesso
Além disso, diante da análise qualitativa dos comentários dos em: 05 de junho de 2015.
docentes sujeitos desta investigação observamos que os resulta- _______. Lei 12.319/10. Disponível em: www.planalto.gov.br/cci-
dos obtidos convergiram para a necessária formação continuada vil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12319. Acesso em: 05 de junho
de tradutores e intérpretes de Libras educacionais, em especial, de 2015.
no tocante à ética profissional e à postura atitudinal em sala de _______. Lei13146/15. Disponível em: http://www.planalto.gov.
aula. Constatamos ainda a tímida identificação dos intérpretes br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm. Acesso em:
como mediadores do processo comunicativo entre alunos surdos 05 de janeiro de 2016.
e sujeitos ouvintes pelos professores, fato este evidenciado pela FERREIRA, Leandra Costa. O tradutor Intérprete de Libras entre
diminuto percentual de docentes que expuseram a atuação do in- o domínio da língua e da cultura surda. InPlaneta e Educação.
terprete como profissional da acessibilidade comunicacional. Cuiabá – MT, 2010. Disponível em: http://www.planetaeducacao.
Suplementarmente, o expressivo percentual de professores que com.br/portal/artigo.asp?artigo=1969. Acesso: 10 de fevereiro de
não percebem a relevância da função do intérprete de libras edu- 2016.
cacional no contexto inclusivo denuncia as lacunas existentes na FILIETAZ, M. R. P. Atuação do tradutor-intérprete de língua de
formação continuada desses licenciados, o que denota a urgente sinais/língua portuguesa. InI SIES: Trajetória do Estudante Sur-
necessidade de realização de momentos de discussão com o corpo do. Londrina – PR, Maio,2008. Disponível em: http://www.uel.br/
docente das instituições onde realizamos a pesquisa a fim de ex- eventos/seminariosurdez/pages/arquivos/palestra_mesa_03_01.
planar sobre o papel, a atuação e a ética do profissional Tradutor e pdf. Acesso em: 05 de janeiro de 2016.
Intérprete de Libras. MORAES, R. Mergulhos discursivos: Análise textual qualitativa
Todavia, o que há por trás do conteúdo dos comentários dos entendida como processo integrado de aprender, comunicar e in-
professores em relação ao seu trabalho com o auxílio de intérpre- terferir em discursos. In GALIAZZI, Maria do Carmo;
tes em sala de aula? Que unidades de registro emergem desse con- FREITAS, José Vicente de. Metodologias emergentes de pesquisa
teúdo? Haja vista que o presente estudo não contempla elementos em educação ambiental. Ijuí: Editora Unijuí, 2007, 2° ed.
capazes de responder com propriedade estes questionamentos, NEVES, J. L. Pesquisa qualitativa: características, usos e possibi-
sugerimos que futuras pesquisas se debrucem numa apreciação lidades. InCadernos de pesquisa em Administração. v. 01, n. 3,
exaustiva dos elementos inerentes à análise do conteúdo das per- 2008. Disponível em: http://www.ead.fea.usp.br/cad-pesq/arqui-
cepções desses professores acerca do trabalho docente subsidiado vos/C03-art06.pdf. Acesso em: 28 de maio de 2015.
por Intérpretes de Libras no contexto da sala de aula. QUADROS, R. M. O tradutor intérprete de Língua Brasileira de
Sinais e Língua Portuguesa. Brasília: MEC, 2003.

224
RESUMO DIVERSIDADE DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA
ESCOLA: APAGAMENTO DE IDENTIDADES, AB-
Este trabalho tem por objetivo a investigação do tratamento
JEÇÃO E NORMALIZAÇÃO
dados às identidades abjetas, notadamente ao comportamento
apresentado por professores e por educandos frente a situações de
Eduardo Henriques¹
performances de gênero não normalizadas dentro do seio peda-
gógico da normalização de performances de gêneros: a instituição
Estudante do Curso de Mestrado em Letras Linguística - CAC –
escolar (LOURO,2001 ;MISKOLCI, 2012). Para tanto, far-se-á um
UFPE; E-mail: eduardohenriquesdearaujo@hotmail.com
percurso bibliográfico concernente à Linguística Queer, com San-
tos Filho (2012) e Moita-Lopes (2009), a fim de observar como a
linguagem permeia as situações de enfrentamento e de resistên-
RESUMO - Este trabalho objetiva a investigação do tratamento
cia no ambiente pedagógico, assim como buscar-se-á amparo na
dados às identidades abjetas, notadamente ao comportamento
ciência da educação com foco no Paradigma da Diferença, com
apresentado por professores e por educandos frente a situações de
Roland (2003) e Bamberg (2002), com vistas à melhor elucidar o
performances de gênero não normalizadas dentro da instituição
papel da escola no século XXI. Almejando promover uma refle-
escolar (LOURO,2001; MISKOLCI, 2012). Almejando promover
xão acerca do papel docente no respeito e na inserção das diversas
uma reflexão acerca do papel docente no respeito e na inserção
identidades de gênero e sexualidade na sala de aula, de modo que
das diversas identidades de gênero e sexualidade na sala de aula,
a escola represente o universo plural da sociedade além do espaço
de modo que a escola represente o universo plural da sociedade
pedagógico, trar-se-ão à baila exposições e experiências de êxi-
além do espaço pedagógico, trar-se-ão à baila exposições e expe-
to e de traumas ainda por ser superados na experiência escolar,
riências de êxito e de traumas ainda por ser superados na experi-
as quais trazem a figura do professor como basilar à cidadania
ência escolar, as quais trazem a figura do professor como basilar à
inclusiva, alicerçada em uma formação de sujeitos crítico-refle-
cidadania inclusiva, alicerçada em uma formação de sujeitos crí-
xivos com papel autônomo e propriamente ativo. É neste sentido
tico-reflexivos com papel autônomo e propriamente ativo. É neste
que, dialogando com Moita-Lopes (2009), Louro (2001), Roland
sentido que, dialogando com Louro (2001) e Miskolci (2012), a es-
(2003) e Miskolci (2012), a escola figura enquanto ambiente ideal
cola figura enquanto ambiente ideal de instauração das mudanças
de instauração das mudanças basilares sociais, haja vista que é na
basilares sociais, pois é na escola e através da educação que toda
escola e através da educação e toda a sociedade se significa e res-
a sociedade se significa e ressignifica, formativamente. A escola
significa, formativamente. A escola pode ser o ambiente da opres-
pode ser o ambiente da opressão e da nulidade das idiossincrasias
são e da nulidade das idiossincrasias identitárias (MISKOLCI,
identitárias (MISKOLCI, 2012; LOURO, 2001), contudo também
2012; LOURO, 2001), contudo também pode ser na escola onde o
pode ser na escola onde as subjetividades de cada indivíduo ga-
despertar para as subjetividades de cada indivíduo ganhe espaço.
nham espaço. Para isso, ela necessita ser um local de inclusão e de
Para isso, ela necessita ser um local de inclusão e de aceitação, um
aceitação, um ambiente de aprendizagem pelas diferenças.
ambiente de aprendizagem pelas diferenças.
Palavra-Chave: Identidade de Gênero; Gênero e Sexualidade na
Palavra-Chave: Formação Docente; Gênero e Sexualidade na Es-
Escola; Linguística Queer; Formação Docente
cola; Identidade de Gênero; Linguística Queer;

225
INTRODUÇÃO universo em que se encontra inserido. Assim, pensar em Identida-
de de Gênero e Sexualidade na escola é estar atento ao fato de que,
Neste trabalho, a escola tem posição destacada por ser um am- já nos primeiros anos de vida, a criança começa a perceber a dife-
biente pedagógico marcado por múltiplas tensões, e que se encon- rença entre o feminino e o masculino, através de relações sociais
tra intimamente atrelado aos processos de produção e reprodução dadas, e, por estas, as crianças veem estabelecidos sócio- histori-
das desigualdades sociais, todavia não é apenas isto o que ocorre camente os comportamentos e as ações prototípicas do homem e
nesse lugar (PETITAT, 1994). É na escola onde são semeadas as da mulher (NERE & LIMA, 2010). O que a escola fará com esses
mudanças e as inovações socioculturais, onde jovens e adultos de modelos comportamentais e o modo como os tratará no trabalho
diferentes realidades e com diversificados pontos-de- vista podem pedagógico é o grande “X” da questão.
encontrar uma oportunidade de colocarem à prova suas visões Noutro enfoque, cabe a ressalva de que o currículo possui dois
de mundo e refletirem juntos, entre dissensos e consensos, acerca lados com múltiplas potencialidades: em uma face pode aprofun-
dos mais plurais temas e problemas de suas realidades, em busca dar os processos de exclusão verificados na sociedade, na medida
de soluções - nem que sejam teóricas. em que silencia a pluralidade existente na realidade social; mas na
Portanto, credita-se à escola um ofício hercúleo de, além de outra face, o currículo figura como vetor de mudança e de pro-
uma formação curricular que leve os educandos ao desenvolvi- blematização destes processos de exclusão existentes (OLIVEIRA,
mento e amadurecimento de habilidades, competências e sabe- 2015). A figura docente, a qual põe em prática as diretrizes cur-
res elencados pelos currículos como basilares à autonomia social, riculares em sala de aula, tem destacado papel no tratamento dos
promover uma consciência cultural e cívica que oferte à sociedade temas e das questões socioculturais que atingem a escola. Em se
sujeitos letrados e cidadãos (OLIVEIRA, 2015). Com isto, a insti- tratando de questões de Identidade de Gênero e de Sexualidade, o
tuição educadora acaba tendo sobre os ombros a responsabilidade professor precisa decidir que atitude pedagógica irá seguir, se a de
de trazer à baila em suas classes temas que nem sempre são sim- asseveramento ou a de problematização dos processos de exclu-
ples de tratar. são, pois na escola atuam “forças sociais que impõem, desde cedo,
Além disto, em meio a gama de ofícios atribuídos ao processo modelos de comportamento, padrões de identidades e gramáticas
de escolarizar, surge o currículo e este figura como um campo de morais aos estudantes” (MISKOLCI, 2012, p. 36). Na busca por
batalha onde diversos interesses e perspectivas didático-pedagó- uma padronização e enquadramento dos sujeitos, a instituição
gicas disputam espaço e prestígio no universo escolar, somando- educadora incorre no erro histórico de buscar apagar as identi-
-se a isto as questões políticas e ideológicas imbrincadas na gestão dades, negando as subjetividades de seu alunado, para imprimir
educacional, com vistas à construção de uma experiência curricu- uma cultura hegemônica de performance cultural que homogene-
lar que transpareça concepções de homem e de sociedade que se íze a todo a população.
deseja ver perpassada de geração em geração (OLIVEIRA, 2015). É assim que, não raro, afloram no espaço escolar querelas as-
Orientando o binóculo para o corpo discente, a escola assume sociadas à sexualidade abjeta (não heterossexual) e às identidades
um papel crucial no processo de formação curricular, cidadã e éti- de gênero não normalizadas, também abjetas (masculinidades
co-moral, isso porque desde a tenra infância todos são confiados não viris e vitorianas e feminilidades transgressoras e feministas).
à educação escolar e esta é agente primordial na construção do A incitação à exclusão dessas identidades não normalizadas acaba
mundo que o educando vê e da leitura que este educando faz do por ser a realidade recorrente, porém, desde os anos 1990, no Bra-

226
sil, ganha espaço uma atitude pedagógica que agrega valor curri- A questão da identidade, da diferença e do outro é um problema social
cular à experiência abjeta, concebendo-a como saberes subalter- ao mesmo tempo que é um problema pedagógico e curricular. É um
problema social porque, em um mundo heterogêneo, o encontro com
nos, e que prega um aprendizado pela diferença, gerando mais do o outro, com o estranho, com o diferente, é inevitável. É um problema
que tolerância para com os “diferentes”, buscando respeito, acei- pedagógico e curricular não apenas porque as crianças e os jovens,
tação e inclusão (MISKOLCI, 2012; BAMBERG, 2002; LOURO, em uma sociedade atravessada pela diferença, forçosamente intera-
2001). Com isto, a atitude docente frente ao socialmente abjeto gem com o outro no próprio espaço da escola, mas também porque
tem peso determinante no olhar do educando sobre a questão, a questão do outro e da diferença não pode deixar de ser matéria de
preocupação pedagógica e curricular (SILVA 2000, p.97).
haja vista que afirmações de identidade e a marcação das dife-
renças acarretam em operações de inclusão e de exclusão, via de
regra. Assim, afirmar uma identidade consiste em assinalar fron- Com isto, verifica-se que a escola pode ser o ambiente da
teiras e promover distinções entre o que fica dentro e o que fica opressão e da nulidade das idiossincrasias identitárias (MISKOL-
fora (SILVA 2000, p.82). CI, 2012; LOURO, 2001), todavia ela tem o poder de ser um local
Por todo o exposto, neste trabalho, ter-se-á sob os holofotes atenção e respeito para com as peculiaridades subjetivas de cada
a figura docente como uma substância pedagógica de sine qua indivíduo, suas essências identitárias, no caso de se comutar em
non importância no trato e na didatização de questões sociais que um espaço de inclusão e de aceitação e aprendizagem pelas dife-
suplantam as diretrizes curriculares e os saberes disciplinares da renças, à luz do que defende Miskolci (2012) ao tutelar os saberes
pedagogia cartesiano- positivista da escola tradicional brasileira. emergentes na composição do currículo real.
Pondo-se em glosa essencialmente o tratamento ofertado às Iden- Todo este debate será vivificado através da exploração analí-
tidades de Gênero e à Sexualidade no espaço escolar, a naturali- ticas de experiências pedagógicas de inclusão das diferenças no
zação deste debate e a problematização de padrões estanques de debate escolar e na experiência de sala de aula como componente
performance de gênero em contraponto à manutenção de norma- curricular vivificador das tensões e das necessidades de atenção
lizações homofóbicas, sexistas, machistas, heteronormativas, ra- e tratamento responsável para com as questões de gênero e sexu-
cistas e de hegemonia cultural (eurocêntrica) acabam por, grosso alidade na escola. Como propósito maior deste trabalho, busca-
modo, gerar um binarismo atitudinal alusivo ao comportamento -se, dessarte, provocar e incentivar educadores de todas as áreas
docente para com o caso. e níveis a assumirem seu papel de combater a escola segregadora,
Contudo, muito mais do que apenas uma sintaxe binária resu- excludente, meritocrática, seletista, elitista e reprodutora de su-
midora das possibilidades de postura docente frente às questões jeitos acríticos e modelados por uma estrutura normalizadora e
de gênero e sexualidade na escola, há uma gama de experiências normatizadora que, acima de tudo, reforça situações de abjeção e
de inserção do paradigma da diferença como forma de manuseio de alienação.
deste temas em sala de aula enquanto um saber de emergência e Por uma agência educativa que aceite que a “escola tem gênero,
valoração sociais, os quais atingem e significam o ambiente es- sexo e classe social sim! E mais do que isso, a escola é a instituição
colar, fazendo parte da agenda pedagógica e da experiência te- onde todas as elementariedades humanas acham um espaço para
mática de educação crítico-reflexiva vocacionada à cidadania. E a reflexão, debate e significação coletivas. Portanto, à educação do
pertinência desta discussão na educação sistemática é explicada e século XXI cabe a problematização dos conceitos cristalizados, e o
explicitada por Silva (2000): professor é o alicerço para tudo isto (HENRIQUES, 2016).

227
METODOLOGIA * Experiência I - Identidade de Gênero e Escola: Concepções e
Práticas Docentes em Itabaiana - SE
Para a realização do proposto neste trabalho, serão analisados A pesquisa realizada por Neres e Lima (2010) entrevistou 10
os dados extraídos das experiências trazidas por Neres e Lima professores da rede municipal de Itabaiana, em Sergipe. As per-
(2010), através de uma pesquisa que entrevistou 10 (dez) profes- guntas giraram em torno das questões de gênero, tanto para o
soras da rede pública de ensino da cidade de Itabaiana - Sergipe, exercício da docência quanto no imaginário coletivo e dos refle-
objetivando analisar as concepções de identidade de gênero tra- xos deste senso comum no ponto-de-vista trazido pelos educan-
zidas por estes docentes e como aplicam às práticas em classe; e dos para a sala de aula.
por Oliveira (2015), por meio dos resultados de um estudo etno- No tocante às performances de gênero, verificou-se a manu-
gráfico tenção do binarismo homem x mulher dentro da projeção deste
docentes acerca das questões e “condições” de gênero possíveis.
realizado na oficina “Papo Sério”, realizado no 8º (oitavo) ano Quando versam sobre o “ser mulher”, trazem características como
do Ensino Fundamental de uma escola público do município de “determinação, independência e responsabilidade”, porém isto di-
Águas Mornas, Santa Catarina. vide espaço com outras identificações do gênero feminino: “ser
A oferta e a análise crítica destas duas experiências têm o inte- mãe, ser esposa, ser carinhosa, seguir regras, ser compreensiva,
resse de servir como indicativo das potencialidades educacionais ser delicada, temente a Deus” (NERES & LIMA, 2010, p. 6). Por
e formativas advindas da inserção da discussão concernente à di- sua vez, o ser homem é caracterizado como “ser responsável, ser
versidade, contemplando questões de identidade de gênero e de trabalhador, ser provedor e ser livre”, o que revela certa autonomia
sexualidade nas escolas básicas brasileiras. do gênero masculino, haja vista ser de sua natureza a liberdade,
enquanto que às mulheres recai a necessidade de cumprir deveres,
RESULTADOS E DISCUSSÃO seguir regras. Isto contradiz a qualificação atribuída pelo adjetivo
“independência”, haja vista que ser mãe e ser esposa são condições
Para verificar a postura docente frente à situações de normali- que põem a mulher atrelada a uma figura masculina: o esposo,
zação, abjeção e “desvio ao padrão” dentro das questões de identi- o pai do seu filho – ainda que ela não precise de um marido ou
dade de gênero e sexualidade na escola, far-se-á a análise de dois similar para realizar a maternidade no século XXI.
estudos de caso, um realizado por Neres e Lima (2010), o qual Neres e Lima (2010), dialogando com Louro (1997), leem as
investigou 10 professores da rede pública de Sergipe, e outro em- posturas discursivas destes professores acerca de performances de
preendido por Oliveira (2015), que formulou e promoveu uma gênero assinalando há uma recorrência de caracteres indicando
oficina em uma classe do Ensino Fundamental II da rede pública que a equidade de gênero caminha lentamente. Isto denota que a
de Santa Catarina. Com base na reflexão crítica destas duas ex- luta por respeito e espaço soma conquistas, porém também se veri-
periências, busca-se promover um maior esclarecimento acerca fica a persistência “da ideologia de uma mulher frágil, dependente,
das questões subalternas aqui glosadas e promover, através dos limitada e naturalmente nascida para ser mãe e esposa”(NERES &
exemplos, alicerces teórico-metodológicos para que educadores LIMA, 2010, p. 6). Portanto, se estes docentes trazem consigo um
incluam em seus planejamentos curriculares e planos de aula o discurso progressista e aponta para uma emancipação do gêne-
debate concernente às diferenças na sociedade. ro feminino mas que, efetivamente, não se consolida em virtude

228
de estar imerso em uma visão de performance de gênero deveras do Ensino Médio, cujo objetivo é ofertar aos jogadores um maior
tradicional, binária, machista e sexista, a qual inviabiliza um equi- conhecimento sobre as questões da diversidade de gênero e orien-
dade de valoração social entre os gêneros, significa que a escola tação sexual (GROSSI; GARCIA; GRAUPE, 2014 apud OLIVEI-
reproduz esta realidade. RA, 2015).
Assim, é preciso clarificar que na escola o professor tem a fun- Para o caso em glosa, a análise consiste em uma oficina numa
ção social de difundir e reproduzir valores culturais às crianças, escola da rede de Águas Mornas, onde se trabalhou questões de
o que facilita a reprodução de discursos tradicionais acerca dos gênero e sexualidade com os 7º, 8º e 9º anos, ao longo de dis-
gêneros e da sexualidade, pois atua sobre o que já está dado. To- ciplinas diferentes, em caráter inter e transdisciplinar, revelando
davia, o docente também é formador de cultura e valores, a partir “a potencialidade deste conteúdo em perpassar os diversos níveis
das práticas e relações pedagógicas. E para isso é preciso um pro- escolares” e mais que isto, indo de encontro ao “silenciamento do
fessor com olhar crítico, reflexivo e problematizador de questões currículo escolar acerca da diversidade aprofunda ainda mais as
normalizadas. À escola cabe uma experiência didática edificada desigualdades e os processos de exclusão existentes” (OLIVEI-
na percepção da importância do discurso da escola como forma RA, 2015). As oficinas realizadas nas classes foram decorrentes
de transformação sociocultural (NERES & LIMA, 2010). da vontade dos professores em pôr em prática o que vivenciaram
Desta forma, o que se conclui é que, ainda que realizem ati- em uma formação continuada realizada em um curso de GDE.
vidades em classe que envolvam o debate acerca de questões de Isto revela que a inserção do paradigma da diferença e as questões
gênero e sexualidade, os professores de Itabaiana trazem à bai- de gênero e sexualidade são demandas da escola que precisam de
la um discurso da diferença que, em verdade, ainda é uma mera um respaldo teórico-metodológico que, via formação, habilite aos
maquilagem sobre uma verdadeira concepção internalizada que professores didatizar a problematização e torná-la um debate pe-
preconiza o ser homem e o ser mulher, em performances de gê- dagógico.
nero bastante delimitadas. Com isto, fica evidente a necessidade Ao longo das oficinas, verificou-se que, diante de “tabus” de
de que, antes de didatizar o debate, é preciso que os professores gênero e sexualidade, como o trato de “lésbicas” e a referência pe-
tenham um ponto-de-vista amadurecido sobre a questão, que o jorativas entre os educandos para as performances femininas não
compreendam consistentemente na teoria e com perspectivas normalizadas (meninas que não agem segundo um parâmetro de
práticas de tornar o assunto parte do currículo por uma escola “princesa da Disney”), e também como a eclosão de preconceito
emancipadora. contra homossexuais e, por conseguinte, os educandos inserirem
* Experiência II – Projeto Papo Sério, em Águas Mornar - SC preconceitos de classe e raça e, nestes, atrelar as dificuldades vi-
Acerca do projeto, a autora contextualiza dizendo que é vin- vidas por homossexuais em diferentes classes sociais e sob dife-
culado aos cursos de Gênero e Diversidade na Escola (GDE) da rentes apreciações étnico-raciais; os jovens estudantes denotaram
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), vigente desde uma postura crítica salutar, um saber subalterno de grande valia
2009, sob a coordenação do Instituto de Estudos de Gênero da pedagógica (OLIVEIRA, 2015, p. 148).
UFSC. Nele articulam-se atividades como o concurso de cartazes O debate acerca de temas como equidade entre os gêneros per-
sobre Homofobia Lesbofobia e Transfobia, desenvolvido pelo Nú- formances de gênero, homossexualidade, homofobia, lesbianis-
cleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS) da UFSC, mo, feminismo e preconceitos sociais revelaram que
e a elaboração do jogo “Fuxico” para ser utilizado junto a jovens

229
os aprendizes trazem diversos pontos-de-vista de suas experi- REFERÊNCIAS
ências extraclasse para a escola, a partir de reflexões e aprendiza-
gens domésticas, religiosas, midiáticas etc. Portanto, a figura do BAMBERG, M.. (2002) Construindo a masculinidade na adoles-
docente no amadurecimento e na condução destes educandos à cência: Posicionamentos e o processo de construção da identida-
consciência crítica, reflexiva, ética e cidadã frente ao dicotômico de aos 15 anos. In: L. P. Moita Lopes & L. Cabral Bastos (orgs.),
duelo paradigmático da Diversidade e da Diferença, é de nodal Identidades: Recortes multi e interdisciplinares. Campinas: Mer-
importância, pois traz para a escola uma prática e experiência for- cado de Letras. 2002, p.149-85.
mativa humanizadora e “de produção de sentidos, de sociabilida- HENRIQUES, E. Bichas: um olhar Queer sobre as novas mas-
des múltiplas entre os alunos”, caminhando para “uma sociedade culinidades e performatividades gays. Recife: UFPE, 2016; 21 p.
mais justa e democrática” através da educação (OLIVEIRA, 2015, (Relatório Técnico em Antropologia Linguística: Etnografias de
p. 149). Gênero). LOURO, G. L. Teoria Queer: uma perspective pós-iden-
titária para a Educação. Revista de Estudos Feministas 9(2):541-
CONSIDERAÇÕES FINAIS 553. UFSC. Santa Catarina, 2001.
LOURO, G. L. O corpo educado: pedagogias da Sexualidade. 2ª
Este trabalho teve como premissa sensibilizar o seu leitor ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 9-34
quanto à pertinência do debate acerca das questões de identida- LOURO, G. L. A construção escolar das diferenças. In: Gênero,
de de gênero e sexualidade no âmbito da sala de aula. Com foco Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Pe-
substantivo na figura do professor, trouxe um espelho das análises trópolis, Rio de Janeiro, Vozes, 1997, p. 57- 87.
de dois casos de inserção da temático em experiências docentes MISKOLCI, R. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças.
e ofertou resultados de curto prazo, haja vista que os efeitos de Belo Horizonte: Autêntica Editora/UFPO, 2012. 80 p. (Série Ca-
uma vivência pedagógica formativa repercute por toda a vida do dernos da Diversidade, 6)
educando. NERES, A. L. O. M. & LIMA, M. B. Gênero na Escola: um diálo-
Entretanto, é ratificável que os casos apresentados orientam go com docentes da rede municipal da Itabaiana. Disponível em
para as potencialidades do trabalho destas questões em aula, fi- <http://200.17.141.110/forumidentidades/IVforum/textos/Ana_
cando à margem quaisquer intenções de apontar uma fórmula Lucia_de_Oliveira_Menezes_Neres.pdf> Acessado em 21 de Ja-
mestra para realizar essa tarefa. Ao docente fica o exercício de re- neiro de 2016.
flexão enquanto agente educador, o qual precisa ter em mente a OLIVEIRA, A. P. de. Gênero, Sexualidade e Diversidade no currí-
responsabilidade formativa frente aos seus educandos, reconhe- culo escolar: a experiência do Papo Sério em Santa Catarina. Dis-
cendo neles e através deles as práticas didáticas que produzem ponível em <http://periodicos.uesb.br/index. php/praxis/article/
mais sentidos e significações no decurso da formação crítica de viewFile/4705/4491> Acessado em 22 de Janeiro de 2016.
sujeitos cidadãos ativo-reflexivos. PETITAT, A. Produção da escola/produção da sociedade. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1994. SILVA, T. T. da. A produção social
da identidade e da diferença. Identidade e diferença: a perspectiva
dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 73-102.

230
231
232

Potrebbero piacerti anche