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verve

Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem...

nas bordas do mar: esboço de uma


aprendizagem experimental
[como desfazer uma educação
ambiental]

ana godoy*

“Não se pode sair da árvore com


meios de árvore.”
Francis Ponge

O propósito deste artigo é menos debater as questões


relativas à educação e ao meio ambiente do que propor
ao leitor uma leitura experimental, leitura que funcio-
naria como meio de experimentação, na qual o leitor se
aventuraria aquém ou além dos disciplinamentos im-
postos pela Razão e pelo conhecimento.
Uma tal leitura avizinha-se do movimento da crian-
ça, que, sempre a fazer de cada coisa meios a serem
explorados e materiais de renovadas explorações, des-
locando-se e deslocando-os em incessantes idas e vin-

* Doutora em Ciências Sociais pelo PEPG da PUC-SP e pós-doutoranda no


Dept. de Filosofia e História da Educação da UNICAMP.

verve, 11: 183-201, 2007

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das, subverte as funções que a circunscrevem e às


quais ela serve, conferindo importância às coisas pelo
uso que delas faz. Assim é que os deslocamentos que
a criança inventa são simultâneos às intensidades
que experimenta.
Propor ao leitor este jogo é colocar sob suspeita a
imbricação entre educação e meio ambiente, na qual
prevalecem discursos e práticas voltados aos objeti-
vos da conservação, explicitados não só por meio da
criação de áreas de conservação e da defesa de ecos-
sistemas e espécies ameaçadas, mas também por
meio de um pensamento da conservação pautado em
práticas consideradas saudáveis e comportamentos
considerados adequados à participação ativa e respon-
sável de cada indivíduo e da coletividade na preserva-
ção do equilíbrio ambiental.
No entanto, colocar sob suspeita não implica nega-
ção, mas destituição do valor de verdade suposto em
tais concepções, pois o problema para o qual aponto não
é conservar ou deixar de conservar, assim como tampou-
co preservar o vivente ou responder às necessidades dos
corpos empíricos. Aponto, colocando sob suspeita, para
a conservação e regulação de vidas, para estratégias
de gerenciamento, que fazem da conservação um modo
de vida cuja finalidade é conservar a grande vida, uma
“gorda saúde dominante”, cujo discurso é, simultane-
amente, o vaticínio de uma catástrofe que obriga a
aceitar e adotar um certo tipo de comportamento e
pensamento, e a revelação do desastre que seria não
fazê-lo. Nesse movimento impõe-se, forçosamente, esco-
lher entre aquelas possibilidades de vida a nós oferecidas
— alternativas circunscritas pelo que se considera o
possível em uma sociedade, em um espaço-tempo his-
tóricos.

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A ecologia, esta que chamarei maior,1 diz respeito ao


possível que se realiza de uma determinada maneira, isto
é, aquele escolhido entre um conjunto pré-determinado,
segundo a lógica das proposições científicas2 a partir de
uma redução da circunstância, aquilo que pode ser obser-
vado: a destruição como realidade e o conservacionismo
como necessidade. Sua finalidade é a restauração de equi-
líbrios por meio de palavras de ordem, que desencadeiam
e conformam a participação; equilíbrios tanto mais ne-
cessários quanto determinantes de uma boa vida que leva
em direção à Vida como ideal.3
Há mais de trinta anos, Ivan Illich apontava4 o prin-
cipal problema que cabia ao pensamento enfrentar na
contemporaneidade das questões ambientais: o espaço
escolar seria o meio de prolongar ou de perpetuar a docili-
dade com que as pessoas respondem às exigências do con-
fronto entre o mundo industrial com o então emergente
pensamento ecológico. Esta colocação permanece res-
soando: a experiência do espaço escolar ensina às crian-
ças e aos jovens a pensarem e se comportarem de acordo
com codificações em relação às quais o ambiente é colo-
cado como anterior às relações, como construção anterior
à experiência. Essa imbricação entre ambiente e espaço
escolar aparece associada a práticas que pressupõem a
adequação dos comportamentos, de maneira que ao am-
biente está sempre vinculada uma qualidade ou uma
propriedade fundamentada em juízos de valor, tais como:
saudável, puro, limpo, agradável ou, em outra escala,
perigoso, sujo, inadequado, nocivo ou imoral. Nessa arti-
culação, a educação emerge “como a casa do ruim e do
bom, permanentemente preocupada em saber se contri-
bui para um mundo melhor ou pior”,5 segundo um modelo
moralizante com o qual permanece comprometida.
Tais concepções, via de regra, apontam a neces-
sidade de regular e controlar comportamentos ditos

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danosos ao meio ambiente, os quais encontram comple-


mentaridade nos comportamentos considerados social-
mente danosos, favorecendo a proliferação de vidas
não qualificáveis, as quais poriam em risco o equilíbrio
sócio-ambiental. Desse modo, perpetuam-se os binaris-
mos e complementaridades, mas sobretudo restauram-se
hierarquias por meio das quais pretende-se medir e con-
tabilizar, reforçando padrões de pensamento, de escuta
e de olhar.
De fato, segundo Illich, o controle político torna-se
tanto mais aceitável quando recebe o nome de iniciação
aos problemas do meio-ambiente, não só porque o contro-
le político, ao investir na noção de meio-ambiente, su-
põe o espaço como fundo neutro e homogêneo, cujos
limites e possibilidades podem ser determinados, mas
também porque, ao fazê-lo, afirma a possibilidade de
fechamento sobre superfícies eminentemente descon-
tínuas. 6
A perpetuação da docilização, sugerida por Illich,
evidencia-se quando o corpo individual e o corpo da
Terra apresentam-se como aquilo a ser formado ou
re-formado pelos novos saberes e suas aplicabilida-
des, de modo a alcançar o equilíbrio, a saúde perfeita
para corpos e mundo a prova de vazamento. Educar
para o meio ambiente é antes adequar o corpo à Terra
e adequar é restaurar equilíbrios perdidos ou conquistar
equilíbrios futuros. A saúde perfeita do corpo individual
e do corpo planetário constituindo-se, concomitantemen-
te, na promessa de reparação de danos e na prevenção
de riscos. Educar para o meio ambiente apresenta-se
como o cumprimento de prescrições que reduzem os
corpos e as relações à conservação.
A necessidade de mais regulação e controle indica,
portanto, não só que se educa para controlar e de forma
cada vez mais democrática e inclusiva — palavras de

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ordem que tendem a apenas atualizar fascismos de toda


ordem7 —, mas também indica que não é possível estabe-
lecer um domínio eficaz e absoluto sobre os indivíduos.
Se é contra as derivas que o pensamento da conserva-
ção luta, são as derivas que nos interessam, pois o que
mais seriam elas do que o próprio movimento de expan-
são da vida na invenção de saídas surpreendentes?

Fugas

Assim, Luis e Armando iam, cada qual por seu ca-


minho, para a escola. O aspecto do colégio era indis-
sociável do que se passava dentro dele. As vozes dos
professores recobriam o colégio como uma crosta sem
brilho que as idéias, assim como o olhar, não consegui-
am atravessar. Os dois meninos encontraram-se na
frente do colégio, olharam-se e, na volúpia do olhar, o
colégio se desvaneceu. Armando, o menino mais velho,
disse: “Não vamos entrar, pois no quebra mar as ondas
estão furiosas, quero vê-las.” Luis, o mais jovem, ine-
briado pela palavra do outro, disse: “Vamos.” A possibilida-
de de a chuva recomeçar e o medo de ser descoberto
matando aula pelos pais misturavam-se, em Luis, ao
gozo da presença do outro. Armando encontrava no olhar
de Luis as palavras, e Luis encontrava nas palavras de
Armando o olhar. Caminhando lado a lado, sentiam o
amolecimento das coisas e a inutilização das palavras
propiciados pelas manhãs úmidas, da mesma umidade
persistente que se notava no suor do rosto de Luis, que
agora fugia com Armando. Tudo transbordava: o ar, o
corpo, o mar. E Luis pensava que eles não deveriam fa-
zer nada senão ir ao colégio de manhã, tudo o mais so-
brava.
“Ali diante do quebra mar, Luis compreendia o es-
paço maravilhoso que Armando ocupava, espaço rítmico

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da mão que arrumava os cachos de cabelo, das gotas


que caíam na terra e a faziam gritar, dos papéis que
iam e vinham nas ondas. A paisagem estreava uma
aparência diversa diante do estilo ou da maneira diver-
sa dos olhares. Eles tinham chegado diante das ondas
um tanto desmemoriados, aquilo parecia não ser sua
finalidade. Momentaneamente servira, mas um segre-
do mais escorregadio os golpeava. As fugas do colégio
são o grito de algo que abandonamos, de uma pele que já
não nos justifica. A curvatura das ondas, a grosseira
assimilação da onda por outra onda produzia uma vaga
de vapores livre de lembranças. Como se as nuvens fos-
sem se estendendo entre eles e transformassem os
meninos nuns arquipélagos úmidos. Um barco bateu
neles suavemente e se viu lentamente rechaçado pe-
los ponteiros de um relógio. Mudaram de rumo, a finali-
dade que os unira se perdia invisivelmente. Iam se
manter mais tensas e secretas as palavras que os enla-
çavam. Mais que ver as ondas, tinham-nas adivinhado
entrando na atmosfera aquosa que desalojavam; chega-
va até eles um rumor distante, uma onda empurrava a
outra, impulsionando curvados sons que se afinavam
para penetrar na baia algoada dos ouvidos. Já tinham
decidido passear. Nenhum ponto fixo podia prendê-los.”8
Pouco se diz da escola nesta breve história, mas o
que se sabe, como bem o sabem os meninos, é que nem
as idéias, nem o olhar conseguem atravessar suas
paredes recobertas pela argamassa das vozes dos pro-
fessores. Isto era o que precisava ser enfrentado, isto
contra o qual toda idéia preferia correr e se atirar ao
mar.
Apressavam o passo em direção à escola e, no en-
tanto, paravam para acompanhar as gotas de chuva
escorrendo pelos vidros, cujos caminhos variavam com
o vento: podiam sempre mudar de rumo. Acordar, ir para

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a escola: entre estes dois pontos — a casa e a escola —


, os meninos esquecem de ser alunos e investem nos
seus passeios. Ao longo do caminho, dobram esquinas
desnecessárias, criam zonas de lentidão nos portões,
inventam mundos. Diante da escola, olham-se, e na volú-
pia do olhar decidem não entrar. Os meninos desbordam,
embriagam-se no gozo de uma presença ausente, lan-
çando-se em direção ao imprevisível. Os meninos de
Lezama Lima afirmam o passeio, não contra a escola,
mas pelo desejo de deambular, pelo desejo de se associar
nesta deambulação que é também sua paixão irresistí-
vel: a inquietação dos corpos escorrendo na distância
entre as palavras. Sabem que deveriam ir para a es-
cola, mas “no tudo mais [que] sobra”,9 que excede, o
querer se afirma frente ao dever evidenciado no peso
das normas, das obrigações, dos bons comportamentos.
Neste pequeno conto, Lezama Lima contrapõe o es-
paço apático, no qual se inserem a escola, os alunos,
suas obrigações e deveres, ao espaço de potencialida-
des irredutíveis ao primeiro, atravessado por uma mul-
tiplicidade de excitações em que os corpos dos meninos
se apresentam em sua dimensão topológica, variando
em função dos afetos que experimentam.
O ritmo dessa linha intensa que os percorre, em que
o olhar dos meninos umedece os corpos, espraiando-se
no azul dos botões emergindo e submergindo como ilhas,
prolonga este espaço singular aquém e além do quebra-
mar. Sobre a ilha, os meninos tornam-se arquipélagos
e os contornos do dia-cinza-dos-alunos-a-caminho-da-
escola desfazem-se no prazer intenso que experimen-
tam. Emerge um entorno de sons e cores, e cada aspecto
torna-se intensamente perceptível, e os meninos experi-
mentam uma nova maneira de ver, sentir e pensar.
O espaço maravilhoso que Armando ocupa é esse
espaço intensivo, o qual, juntos, eles irão povoar, e do

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qual Armando será arrancado pela chegada de Carlos:


“Não tínhamos ficado de ir ao cinema?”.10 Novamente,
surge “a obrigação com nome, a escravidão à linha e ao
ponto”.11 Deste modo, seria equivocado pensar que o mero
ausentar-se da escola resulta em experimentações, pois
estas apontam, sobretudo, para uma espécie de subver-
são silenciosa desencadeada pelas turbulências que os
atravessam — as quais acometem os meninos no en-
contro do olhar —, e que permanecem aquém das obri-
gações encarnadas neste ou naquele, venham elas sob
qualquer forma, afirmando rupturas onde a “escravidão
à linha e ao ponto” é aquela que mantém os meninos
submissos ao “aluno”. Submissão moral, que faz da pró-
pria fuga do colégio uma escravidão: se não estamos lá,
é porque deveríamos estar em outro lugar. A ruptura se
faz ali sob a linha de fuga que os meninos traçam, em
que eles se fazem fugados,12 isto é, puros corpos de sen-
sação que se sucedem, como se cada uma perseguisse
a outra, encontrando-se e separando-se; precipitando-
se umas sobre as outras, avançando e retrocedendo, tra-
çando-se gradualmente e destraçando-se, ora violenta,
ora suavemente, em que o delírio dos corpos é aquele da
própria Terra.
As invenções de Lezama Lima remetem-nos ao in-
domável da escrita e da vida nas suas circunvoluções,
nas quais frases e personagens se contorcem, comprimi-
dos, em meio às distribuições anárquicas da pontuação,
que subvertem a sintaxe, demolindo-a, restando somente
os sulcos de um relevo, linha sinuosa e ondulante na qual
os corpos derivam. Entre duas certezas, exprime-se uma
não-conformidade. Ela diz respeito a uma não-equiva-
lência ou não-igualdade entre os termos, por meio da qual
o furioso escândalo verbal de Lezama Lima põe-nos
diante de uma paisagem que nos vê, “uma vasta topo-
grafia de acontecimentos, objetos, pessoas, utensílios”,13
fragmentos de texturas que esquivam o sentido e o ob-

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jetivo em uma geografia pontuada por uma multiplici-


dade de traçados singulares, cujos desvios e curvaturas
são a expressão dessa condição na qual cada intervalo é
um espaço aberto ao surgimento de uma nova dobra,
uma redobra.14
A questão já não é considerar a diferença das coisas
de aspecto (aparência) diferente; tampouco a diferença
de aspectos sobre uma mesma coisa, mas cada coisa
como um ponto de vista, uma variação que extrai do
mundo seus aspectos, formando um intrincado labirin-
to de montanhas, florestas, rios, homens, animais, plan-
tas, pedras e objetos, deslocando-se e agitando-se contra a
lei, indomesticáveis, indomáveis.15 Um ecossistema com-
plicado.

Experimentações I

Um ecossistema complicado. Foi com essa curta fra-


se que encerrei minha deriva pelo conto de Lezama
Lima. Dificilmente poderíamos dizer que é complicado
por uma mera questão de quantidade de coisas, mas
sim pelas intensidades implicadas. Um ecossistema
complicado não teria começo nem fim, não seria redutí-
vel aos elementos que compõem uma cadeia, tampouco
ao que é dado à percepção, pois ele implica aquilo que
insiste no dado sem ser imediatamente dado. Trata-se
sobretudo de novos modos de perceber e sentir que forçam
o pensar neste encontro com o conto de Lezama Lima.
Nesse sentido, experimenta-se o conto como aprendizado
singular.
Assim é que no conto de Lezama Lima experimenta-
se a ilha e um certo regime climático, mas também a
ilha como um certo regime de intensidades não de-
termináveis. A chuva, a umidade, mas também um
desmanchamento que insiste e que atravessa objetos,

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pessoas, palavras. A paisagem dada: o pier, a escola, as


ruas, o mar, mas também o desmanchamento desta
paisagem, a invenção de outras paisagens táteis, sono-
ras, auditivas, visuais e seus sucessivos desmancha-
mentos. A umidade embebe as palavras e os corpos, a
paisagem torna-se porosa, respira, transpira, dissolve-
se, aqui e ali pontos notáveis: um olhar, os pedaços de
papel que o vento dispersa, os botões de uma blusa, os
cachos de um cabelo, os peixes, as nuvens. Pontos a
partir dos quais pequenos territórios se fazem para em
seguida, no movimento do olhar, de um vento que bate,
de uma voz que sobrevém, serem desfeitos. Os meninos
tornam-se arquipélagos, lugar de seus passeios-experi-
mentações, a paisagem estreando uma aparência di-
versa diante do estilo ou da maneira diversa dos olha-
res...

Experimentações II

Um estilo seria, então, esse tanto de selvageria que


prolifera, menos em busca de paraísos perdidos, e mais
ocupado com a invenção de quantos paraísos uma certa
desrazão ou desordenamento forem capazes de inventar.
Estranhos paraísos feitos à custa de ajuntamentos de
coisas, explicitados na enumeração disparatada, na acu-
mulação, nos arranjos provisórios e heterogêneos, na
colagem, os quais desenham uma rede de conexões
imprevisíveis e cambiantes. Sua característica é a da
desfiguração ou do desobramento por prodigalidade e
desperdício, pela irrisão de toda funcionalidade, de toda
sobriedade: um excesso excessivo.16
O paraíso é este espaço eufórico de intensidades, de
conjunções de heterogeneidades, formando superfícies nas
quais os fragmentos brilham num emaranhado de cama-
das, de simultaneidades que não alcançam a unifica-

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ção, em que as coisas diferem, discordam, fugindo à


regra.
Neste movimento, esquiva-se o objetivo, desvia-se,
instante em que o tempo perde suas marcas, seu ca-
denciamento regular: o que deveríamos estar fazendo, o
que deveremos fazer em breve, o que deveremos fazer
em três décadas, o que deveríamos ter feito. Instante
em que o espaço perde suas determinações: aqui sim,
ali não. Movimento que se faz na não-conformidade ao
uso, onde o uso, ao remeter ao costume ou ao hábito, o
faz para venerar a tradição.17 As instituições nada po-
dem neste lugar que não é um lugar, que já não é um
pedaço da Terra, mas uma variação intensiva dos cor-
pos, tanto mais imprevisíveis quanto o próprio fazer-se
e desfazer-se das ondas no quebra-mar. Não importa se
o período de desvio termina, se as determinações retor-
nam; o tempo da experimentação se prolonga sobre uma
linha infinita que se pega sempre pelo meio.
É assim a experimentação, com seus barroquismos,
mas também o é a vida, ou ainda um modo de viver,
um estilo, que dizem respeito, sobretudo, a um modo
de habitar.

Experimentações III

A paisagem estreava uma aparência diversa dian-


te do estilo ou da maneira diversa dos olhares. Assim
Lezama Lima leva-nos a experimentar a sensação de
que em toda e qualquer coisa brota algo que se libera,
que vaza, assim que uma reflexão tenta representá-la
em conformidade a um modelo de pensamento, algo que
foge à argamassa de palavras, à sua pretensão de preen-
cher completamente e de uma vez por todas o vão entre
as coisas.

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Pois é ali, no trajeto definido e definitivo de todos os


dias, acordar-e-ir-para-a-escola — empurrados pelo so-
nho continental da Razão que lhes diz dever aprender (a
verdade) para melhor conhecer (a verdade) —, que as
crianças inventam desvios, transformando-se, sob os
pingos de chuva, em “arquipélagos que ressoam o silên-
cio trazido pelo mar em sons vergados”.18 É à deriva da
Razão que qualquer coisa se passa, pois a exigência da
Razão, mais do que o confinamento do pensamento e da
vida, é o investimento na sua paralisia e esterilização,19
investimento que redunda em uma vida enfraquecida,
cansada e condenada a uma corporeidade fraca, culpa-
da e ressentida, porque reduzida às legibilidades e esta-
bilizações do jogo comunicacional. No entanto, segundo
Nietzsche, “(...) o mais inteligível não é a própria pala-
vra, mas a tonalidade, a energia, a modulação, o ritmo
com os quais uma série de palavras é proferida, (...): tudo
aquilo, portanto, que não pode ser escrito (...)”,20 e que,
no momento mesmo da reflexão, já a ameaça aproxi-
mando o percebido daquilo que nele escapa.

Experimentações IV

Ao dar as costas à escola, as personagens de Lezama


Lima arrastam-nos para outros passeios, convidam-nos
a desconfiar, a pôr sob suspeita os mecanismos de es-
tabilização dos quais habitualmente nos valemos para
silenciar as perturbações ou ruídos que acompanham
os encontros que se fazem, buscando confiná-los ao já
sabido e sentido.
Nesse sentido, a ecologia e o ambientalismo não po-
dem ser desvinculados da criação de um regime de
signos, que permite enunciar o valor de cada parte da
Terra para o todo da Terra, e também o valor de tudo
sobre a Terra para a Terra, fazendo valer “ora partes

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excessivamente separadas, ora separações excessiva-


mente preenchidas”.21 Não só os contornos devem ser
suficientemente rijos para que não haja transbordamen-
tos, mas, sobretudo, todas as linhas devem se subordinar
a modelos apresentados como dados.
O breve conto de Lezama Lima convida-nos a prestar
atenção nesse jogo entre linhas endurecidas de re-
flexão e linhas de experimentação, que exprimem o
embate entre forças de subordinação e insubordinação.
Ao longo da leitura do conto de Lezama Lima, deixa-
mo-nos levar pela rarefação da atmosfera, as certezas
se esvaindo à medida que a umidade avança, tornando
o próprio pensamento poroso. Não se trata de negar a
escola e todo o aparato educacional, tampouco a ecolo-
gia ou o ambientalismo, mas sim de como inventar as
linhas com as quais nos tornamos fugados, linhas que
afirmam a aprendizagem experimental como aprendi-
zagem da variação dos modos, fazendo ressoar no pen-
samento a complicação implicada na vida,22 levando-o
ou obrigando-o a exercer sua máxima potência: pensar.
Chegamos aqui um pouco, talvez, como as persona-
gens de Lezama Lima, um pouco mais porosos, quem
sabe mais úmidos, talvez até desmemoriados e mais
suscetíveis a perguntarmos a nós mesmos se a educa-
ção ambiental, ao se colocar a missão de “conscienti-
zar”, não se torna uma ferramenta de controle brutal,
reduzindo a aprendizagem a um mero exercício reflexi-
vo, apressando-nos a preencher os vãos entre as coisas
com uma “argamassa” de conceitos, fatos e valores, de
forma a que se sinta, diga ou pense o já sentido, dito e
pensado?
Já aí é todo um território que se desmancha, pois a
porosidade que experimentamos, tal qual os meninos
fugados, em que os encontros e as vizinhanças não es-

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tão determinados, abre-nos a toda sorte de interferên-


cias, intensificando experimentações, potencializando
hibridações inventivas, fazendo fugir a figura da alteri-
dade como suporte de gestões e relativizações por meio
das quais se obtém uma equivalência generalizada.23

Nas bordas do mar...

As fugas do colégio são o grito de algo que abandona-


mos, de uma pele que já não nos justifica, assim como as
gotas que caíam na terra e a faziam gritar. Rompe-se a
camada superficial, a crosta dura, a argamassa de pala-
vras com a qual assentam-se as coisas e suas verdades,
impermeabiliza-se superfícies, regulariza-se e elimina-
se ondulações, nivela-se e apruma-se o mundo. O conto
de Lezama Lima é menos sobre dois meninos que matam
aula, ou sobre a existência quotidiana, e mais o “instru-
mento de uma experimentação afetiva, de uma explora-
ção dos pontos sensíveis da vida”,24 a experimentação de
uma atmosfera de forças que transbordam a palavra. É por
meio dessa atmosfera não-verbal que Lezama Lima torna
sensível o grito, a ruptura da casca: o indizível da lingua-
gem, o inactuável do gesto, o sem nome de toda nomea-
ção, o impensável do pensamento.25
Algo se passa, e esse algo não esta confinado aos mate-
riais dos quais Lezama se vale, mas remete àquilo que
ele investe para deles extrair uma tensão que nos lança
em direção a um futuro não dimensionável. Somos enga-
jados, assim como Luis e Armando, em um processo cuja
efetividade é a ruptura ativa no interior de tecidos estru-
turados quando, diante do quebra-mar esquecem-se para
onde iam, desmemoriados, não reconhecem e tampouco
se reconhecem, e o quebra-mar já não opõe resistência
ao embate das ondas ou das correntes cuja intensidade
não cessam de experimentar. Para onde íamos?

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Ir à escola, não entrar, ir ao quebra-mar. Gestos quais-


quer que desenham territorialidades e arranjos de refe-
rências: o possível da escola, do cinema, do mar. Porém,
impregnados pela umidade, interrompem seu curso: não
se trata mais de ir ou não à escola, tampouco de ver as
ondas, mas de fazer com que tudo isso seja dominado pelo
sensível da intensidade, e de tal modo que aquela paisa-
gem desenhada não possa ser recomposta. É sobretudo a
afirmação de uma porosidade do corpo e da subjetividade,
abertura por meio da qual extrai-se “a matéria que con-
vém ao corpo que se quer edificar”,26 em ressonância com
os modos de subjetivação singulares que o exprimem.
Luis e Armando valem pelo que os envolve, porque
“exprimem um mundo ou mundos possíveis, paisagens
e lugares, modos de vida que é preciso desdobrar, de-
senrolar”.27 Arrastados por Lezama Lima damo-nos con-
ta que as paisagens e os lugares enrolam-se em Luis e
Armando, e que a exuberância está menos nos mares, na
tempestade, nos alunos, na aula, mas no algo mais que
excede, naquilo que neles nos interpela tão violentamen-
te que o mundo vacila, os sentidos perdem seus pontos de
apoio, restando somente os vapores livres.

... um rumor distante

Ao final deste texto o leitor poderia se perguntar: mas


de que se trata? O que era tudo isso? Trata-se de uma
experimentação. Trata-se de juntar alguns elementos. O
conto de Lezama Lima, bem como o texto aqui apresenta-
do, são o que menos contribui para uma aprendizagem
experimental, pois é somente ao manipulá-los que eles
se tornam materiais expressivos, compondo um arranjo
de forças.28 A aprendizagem independe dos materiais es-
colhidos, mas da potência do encontro que se faz, das co-
nexões que se inventa.

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Na perspectiva de uma experimentação, preparar um


texto, um artigo ou uma aula é desenhar alguma coisa,
é compor uma paisagem, mas, como o próprio termo diz,
compor é antes arranjar, é maquinar, de maneira que,
texto, artigo ou aula, se apresentam como uma paisa-
gem que se faz na medida em que é percorrida. O per-
curso não é outra coisa senão as conexões inventadas.
Não importa o que os elementos juntados significam,
tampouco o que vai acontecer, qual o próximo passo, mas
sim mobilizar o corpo, o pensamento, sensibilizá-los de
modo a experimentar-se no experimentar a paisagem,
traçando linhas e acompanhando-as, linhas por meio
das quais a paisagem se desmancha e se inventa.
Afinal, um artigo ou uma aula, na perspectiva de um
aprendizado experimental, compõem-se sobre uma li-
nha de fuga, assim como o texto sobre uma aula, e o
tema aqui privilegiado: as ecologias que a vida inventa,
menores ecologias. Sem sentido ou finalidade, elas não
reconhecem qualquer ordem, qualquer razão, qualquer
estabilidade. Remetem, sobretudo, àquilo que permanece
indomesticável, escapando insistentemente aos siste-
mas de ordenação, sejam eles quais forem.
Um ruído permanece insistentemente, mesmo em
face dos mais arrojados projetos de pacificação impostos
à vida e ao pensamento; esta é a força do menor, ou a
potência minoritária. A existência se retoma, se reite-
ra, sem ser coagida pelas leis; transgressiva, ela mani-
festa uma singularidade contra a lei, sob a lei, não se
constituindo, portanto, como norma para julgar, decidir
ou proceder.

Notas
1
Bruno Latour argumenta pela insustentabilidade da distinção entre ecologia
científica e ecologismo ou ambientalismo, vendo em ambos os portavozes
privilegiados de uma missão que é conduzida em proveito do “bem-estar, prazer

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e boa consciência de um pequeno número de humanos, cuidadosamente seleci-


onados, geralmente americanos, brancos, machos, ricos e educados.” Bruno
Latour. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru, EDUSC,
2004, p.45. Tradução de Carlos Aurélio Mota de Souza.
2
A este respeito ver Pierre Levy . O que é o virtual. Tradução de Paulo Neves.
São Paulo, Ed. 34, 2001, pp.16-17. Tradução de Paulo Neves.
3
Ver Edson Passetti. “Sociedade de controle e anarquia”, o autor coloca que a
restauração de equilíbrios, buscando qualidade de vida, é o que objetiva as
“estratégias de ecopolítica em que participar é mais do que difundir uma ética
de respeito e conservação do planeta (o que, por vezes, confunde-se com a
atuação circunscrita aos santuários ecológicos, últimas espécies animais e ou-
tras a um apelo ao desenvolvimento capaz de dar conta das populações e seus
locais).” in Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Ed. Cortez, 2003,
p.271.
4
Ivan Illich. “Contra a produção do bem-estar” in As instituições e os discursos.
Tempo Brasileiro, out./dez. de 1973, pp. 87-92.
5
Walter O. Kohan. “Entre Deleuze e a educação”, in Educação e Realidade, v. 27,
nº2, jul/dez de 2002, p.126.
6
Kaustuv Roy. “Gradientes de intensidade”, in Educação e Realidade, v.27, nº2,
jul/dez de 2002, pp. 90-91.
7
Gilles Deleuze e Félix Guattari apontam que o racismo não se dá por exclusão
racial, mas por meio de uma estratégia de inclusão diferencial em que o Outro
passa a ser expressão de identidade e homogeneidade étnicas, sempre remetido
ao Mesmo.
8
Recortes do conto “Fugados”, de José Lezama Lima. Fugados. São Paulo,
Iluminuras, 1993. Tradução de Josely Vianna Baptista.
9
Idem, p.17.
10
Ibidem, p. 20.
11
Ibidem, idem.
12
Segundo o Moderno Dicionário de Língua Portuguesa Michaelis, fugado é
um termo proveniente da música, e significa composto em estilo de fuga. Josely
Vianna Baptista preserva o termo na tradução para o português sem utilizar
itálico.
13
Josely Vianna Baptista. “Cardume argênteo de peixes verbais”, posfácio, in
José Lezama Lima, 1993, op. cit, p. 108.
14
Gilles Deleuze. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas, Papirus, 1991, p. 34-
38. Tradução de Luiz B. L. Orlandi.

199
11
2007

15
Segundo Lapoujade “a sensação exprime a força que ela reencontra. (...)
Sentir, é assistir a passagem de uma força, não somente as forças que nos
afetam, mas também as forças que dobram as montanhas, que deformam os
corpos, e que propiciam a emergência de novos modos de subjetivação, novos
modos de existência”. David Lapoujade. “Conférence”, p.4.
16
Severo Sarduy. “Por uma ética do desperdício”, in Severo Sarduy. Escrito
sobre um corpo. São Paulo, Perspectiva, 1979, pp. 57-80. Texto também publica-
do sob o título “Barroco e neobarroco”, no volume de textos América Latina em
sua literatura, organizado pela UNESCO.
17
Benito Pelegrín. “Las vías del desvío en Paradiso. Retórica de la oscuridad”,
in José Lezama Lima. Paradiso (edição crítica). ALCA XX, 1996, p. 626.
18
José Lezama Lima. 1993, op.cit., p. 19.
Carlos Henrique de Escobar. “O gato à deriva da Razão” in Carlos Henrique
19

Escobar (org.). Por que Nietzsche? Rio de Janeiro, Achiamé, s/d., pp.78-79.
20
Friedrich Nietzsche. Fragmentos do espólio verão-outono 1882. Brasilia, Ed. UNB,
2004, § 296. Seleção, tradução e prefácio de Flavio R. Kohte.
Luis B. L. Orlandi. Procedimentos expressivos (curso ministrado no PPG da
21

PUC/SP, 1º semestre de 2005).


22
Idem.
23
A articulação entre biodiversidade e diversidade cultural pretende exprimirse
numa totalidade que tudo abarca, funcionando como uma terapéutica do Todo
em relação ao qual o “material bruto” da diversidade é utilizado para expressar a
identidade e a homogeneidade segundo graus de afastamento do elemento do
branco. Bruno Latour, op.cit., 2004, p. 323 e 45; Kaustuv Roy, op. cit., 2002, p.
94, e Gilles Deleuze e Felix Guattari. Mille Plateux. Paris, Minuit, 1980, p. 218.
24
François Zourabichvili. “Deleuze e a questão da literalidade”, in Educação e
Sociedade, v.26, nº93, set./dez. de 2005, p. 1318.
25
Tais concepções estão presentes nas diversas análises desenvolvidas por Blanchot,
José Gil e Gilles Deleuze.
26
José Gil. Movimento Total: o corpo e a dança. São Paulo, Iluminuras, 2005, p. 75.
27
Gilles Deleuze. Proust e os signos. Rio de Janeiro/São Paulo, Forense Univer-
sitária, 2003, p.113. Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado.
28
Cf. Silvio Ferraz. O Livro das sonoridades [notas dispersas sobre composição). Rio de
Janeiro, 7 Letras/FAPESP, 2005, pp. 89-90.

200
verve

Nas bordas do mar: esboço de uma aprendizagem...

RESUMO

Dois movimentos atravessam este artigo. O primeiro põe sob sus-


peita a articulação entre educação e meio-abiente, na sua imbrica-
ção com um discurso conservacionista e um pensamento da con-
servação, ambos pautados em práticas consideradas saudáveis e
comportamentos considerados adequados. O segundo compõe-se
com o conto Fugados de Lezama Lima, e com ele esboça algumas
linhas, linhas de uma aprendizagem experimental, que remetem,
sobretudo, àquilo que permanece indomesticável: as ecologias que
a vida inventa, menores ecologias.

Palavras-chave: educação, aprendizagem experimental, menores


ecologias.

ABSTRACT

Two movements pass through this article. The first one questions
the relationship between education and environment, in its con-
nection with a conservacionist discourse and a conservation men-
tality, both based on practices seen as healthy and on behaviors
seen as appropriate. The second one is based on Lezama Lima’s
short story Fugados and, from it some lines of a experimental
learning are drafted. Those lines are related with the things that
still are savage: the ecologies invented by life, the minor ecologi-
es.

Keywords: education, experimental learning, minor ecologies.

Recebido para publicação em 27 de agosto de 2006 e confirmado


em 23 de outubro de 2006.

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