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CADERNOS

DE
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Uma publicação do Projeto de Formação de Professores
Indígenas - 3º Grau Indígena.

Comissão Editorial
- Prof. Ms. Antonio Francisco Malheiros
- Profª. Ms. Carmen Lúcia da Silva
- Prof. Dr. Elias Januário
- Prof. Félix Rondon Adugoenau
- Prof. Dr. Marcus Antonio Rezende Maia
- Profª. Ms. Renata Bortoletto
- Profª. Drª. Roseli de Alvarenga Corrêa

Cadernos de Educação Escolar Indígena


3º Grau Indígena - Nº. 01, V. 01, 2002
Barra do Bugres - MT
PROJETO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
3º GRAU INDÍGENA

CADERNOS
DE
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Barra do Bugres - MT
2002
Catalogação: Cleide de Albuquerque Moreira
Bibliotecária/CRB 1100
Revisão final: Karla Bento de Carvalho
Projeto Gráfico: Fernando Selleri Silva

Dados internacionais de catalogação


Biblioteca “Curt Nimuendajú”

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA - 3º GRAU IN-


DÍGENA. Barra do Bugres: Unemat, v. 1, n. 1, 2002 -

Semestral
ISSN 1677-0277
1. Educação Escolar Indígena I. Universidade do Estado de Mato
Grosso II. Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso III.
Departamento de Documentação / FUNAI.

CDU 572.95 (81) : 37

UNEMAT - Universidade do Estado de Mato Grosso


Coordenação do 3º Grau Indígena
Campus Universitário de Barra do Bugres
Caixa Postal nº 92
78390-000 - Barra do Bugres/MT - Brasil
Telefone: (65) 361-1964
indiobb@vspmail.com.br

SEDUC/MT - Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso


Superintendência de Desenvolvimento e Formação de
Professores na Educação
Travessa B, S/N - Centro Político Administrativo
78055-917 - Cuiabá/MT - Brasil
Telefone: (65) 613-1021
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
Departamento de Educação
DEDOC - Departamento de Documentação
SEPS Q. 702/902 - Ed. Lex - 1º Andar
70390-025 - Brasília/DF - Brasil
Telefone: (61) 313-3730/226-5128
dedoc@funai.gov.br
SUMÁRIO

Apresentação ........................................................................ 7
Lucas ‘Ruri’õ
Experiência do 3º Grau Indígena ........................... 9
Elias Januário
Ensino superior para índios: um novo paradigma na edu-
cação ............................................................................. 15
Susana Martelletti Grillo Guimarães
Ciências Sociais no Projeto 3º Grau Indígena: focos prin-
cipais ....................................................................... 25
Francisca Novantino de Ângelo
A educação e a diversidade cultural ........................ 34
Severiá Maria Idioriê Xavante
Exercitando o Ser .......................................................... 41
Bruna Franchetto, Marcus Maia, Filomena Sandalo & Luciana
R. Storto
A construção do conhecimento lingüístico: do saber do
falante à pesquisa .............................................................. 47
Glaydson Artur do Vale Freitas
A importância da educação diferenciada nas aldeias do
Brasil ................................................................................ 79
Zoraide Primerano Arguello et alii
Invariantes culturais: conceitos de estética e beleza na
Ciência da Computação ................................................... 84
Carlos Alfredo Arguello
Etnoconhecimento na escola indígena ..................... 92
José de Alencar Simoni et alii
Conversando com a natureza .................................... 100
Roseli de Alvarenga Corrêa
A educação matemática nos Cursos de Licenciatura e a
formação de professores indígenas ............................ 114
Andila Inácio Belforte
A trajetória da liberdade ........................................... 123
APRESENTAÇÃO

“Estudar na Universidade, para mim, é o reconheci-


mento da nossa capacidade, da nossa autonomia e das
nossas diferenças culturais e lingüísticas. É o adeus à ex-
clusão dos índios na história, na política e na educação. Po-
deremos agora lutar mais pelos nossos direitos, mostrando
o quanto somos inteligentes. Estar na Universidade signifi-
ca mudanças na nossa história e a possibilidade de ganhar
novos espaços”.
Jeronimo de Oliveira Santos (Professor Bakairi)

O Projeto 3º Grau Indígena é parte constituinte de


um Programa de Formação de Professores Indígenas
implementado em Mato Grosso, que propõe abrir novos ca-
minhos e estabelecer novas possibilidades na forma de pen-
sar e trabalhar com a educação escolar indígena.
A criação de cursos superiores específicos e dife-
renciados para a formação de professores indígenas signifi-
ca a oportunidade de empreender um diálogo intercultural
na construção de novos paradigmas, por meio da compre-
ensão da alteridade. Representa a abertura de um espaço
onde frutificará a investigação científica e a preparação téc-
nica de um novo ator social, com habilidades de redefinir as
relações sociais de poder existentes, a partir de instrumen-
tos teóricos e analíticos que permitam a compreensão do
mundo ocidental, respeitando a cosmovisão e os valores
culturais das diferentes etnias.
Um projeto dessa amplitude, além de recursos finan-
ceiros e parcerias, requer uma ampla rede de profissionais
especializados engajados na sua implementação, possibili-
tando que a diversidade dialogue, complemente-se e reve-
ja-se na construção de novos conceitos.
7
Um dos pontos importantes para a consolidação de
um programa dessa natureza reside na criação de um es-
paço onde possam ser registradas e divulgadas as experi-
ências vividas e as reflexões realizadas acerca do processo
de ensino-aprendizagem na formação de professores indí-
genas.
Imbuídos dessa premissa, criamos o Caderno de
Educação Escolar Indígena, com o propósito de oportunizar
a apresentação a um público mais amplo, as realizações e
experiências vividas por professores e acadêmicos no pro-
cesso de formação específica, continuada e em serviço, em
particular no que tange à formação em nível superior, bus-
cando desse modo contribuir para legitimar as abordagens
a respeito da formação de professores indígenas, vislum-
brando a abertura de novas possibilidades nessa área.
Será, acima de tudo, uma oportunidade de encontro
de educadores e educandos que trazem consigo diferentes
experiências no campo do ensino, da aprendizagem, da
pesquisa, da prática pedagógica, da execução de políticas
públicas e do exercício da cidadania. Também será um mo-
mento oportuno para realizarmos uma avaliação das nos-
sas formas inovadoras de trabalhar a educação escolar in-
dígena.
Sendo assim, estamos lançando a primeira edição
do Caderno de Educação Escolar Indígena, publicação nas-
cida no contexto do Projeto 3º Grau Indígena, que terá o
perfil de textos abertos, elaborados a partir das experiências
de docentes, técnicos e acadêmicos, procurando, na pers-
pectiva da interculturalidade, partilhar os nossos saberes,
com vistas a fomentar o debate que envolve as políticas
públicas em educação escolar presentes nos programas e
nas escolas indígenas brasileiras.

Elias Januário
Coordenador do 3º Grau Indígena

8
EXPERIÊNCIA DO 3º GRAU INDÍGENA

Lucas ‘Ruri’õ*

O Projeto de Formação de Professores Indígenas -


3º Grau Indígena, é resultado da antiga reivindicação dos
professores indígenas, por ocasião da Conferência
Ameríndia de Educação e do Congresso de Professores do
Brasil, promovido pela SEDUC, em Cuiabá em 1997. O go-
verno do estado proporcionou uma iniciativa inédita na his-
tória do Brasil, publicando o decreto nº. 1.842/97, instituindo
uma Comissão Interinstitucional e Paritária, com a finalida-
de de formular um anteprojeto de cursos específicos e dife-
renciados. Na oportunidade, fui nomeado para fazer parte
da comissão recém-criada, representando o povo Xavante,
sabendo da responsabilidade e compromisso sério median-
te a demanda dos professores pelo 3º Grau, ancorada pela
construção e reconstrução de pedagogias, metodologias e
conhecimento milenares de cada povo, visando ao comple-
mento destes. Aconteciam reuniões plenárias, onde esta-
vam representantes de vários segmentos, como FUNAI,
UNEMAT, UFMT, SEDUC, CEI, CEE, Representantes Indí-
genas (Bororo, Xavante, Kura-Bakairi, Paresi).
Na reunião, todos podiam contribuir, sugerir e con-
testar quando discordavam de alguma idéia que não fosse
atender à expectativa das comunidades indígenas, come-
çando pelo currículo, pela proposta pedagógica e os temas

* Acadêmico do 3º Grau Indígena, professor Xavante da Aldeia Abelinha, T I São


Marcos, Mato Grosso. Membro da Comissão Interistitucional e Paritária.

9
norteadores do futuro Projeto, tão sonhado e espera-
do.
Foi discutida a forma seletiva (vestibular) para ingres-
sar no 3º Grau, aguardado com ansiedade pelos concorren-
tes às 200 vagas, sendo 180 vagas para professores indí-
genas do estado de Mato Grosso e 20 vagas para professo-
res indígenas de outros Estados. Eu, como representante,
não podia desperdiçar o momento oportuno para explanar
os anseios, as expectativas dos professores Xavante den-
tro do projeto em construção.
O anteprojeto, estando na fase de conclusão, a Co-
missão Interinstitucional realizou a sua última reunião plená-
ria, para fazer a leitura das contribuições e pareceres que
chegavam de vários estados do Brasil a fim de formular me-
lhor o Projeto de Formação de Professores Indígenas, con-
siderado como “inédito e pioneiro” na história do Brasil. O
trabalho da Comissão Interinstitucional e Paritária foi muito
importante na história do 3º Grau Indígena, garantindo a cir-
culação de informações ao alcance de todos os professores
indígenas a respeito do 3º Grau em andamento.
Chegando o edital do 3º Grau Indígena, todos os pro-
fessores fizeram preparação em diversos setores: FUNAI,
estado e Município.
Os professores da rede estadual e municipal esta-
vam sendo preparados pelos salesianos, pelos técnicos da
FUNAI e por pessoas conhecidas.
Cada dia que passava, os professores faziam o má-
ximo de esforço para concorrer ao vestibular indígena, con-
siderado o primeiro do país. Chegando o dia 30 de março,
os professores indígenas do estado de Mato Grosso presta-
ram o vestibular em diferentes lugares: Sangradouro/MT,
Meruri/MT, Campinápolis/MT, Água Boa/MT, São Marcos/MT,
Pakuera/MT, Barra do Bugres/MT, Rondonópolis/MT, Xingu/

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MT e Araguaia/MT.
Entrando, na sala de aula, os professores estavam
cheios de emoção e medo, pois pela primeira vez estáva-
mos realizando um vestibular indígena na história do Brasil.
Cada vestibulando saía em silêncio e preocupado se pas-
saria ou reprovaria. Naquela noite, ninguém pôde comemo-
rar o resultado ainda, a comunidade e os velhos não para-
vam de chamar a atenção dos professores de cada aldeia.
Aos 30 dias de abril de 2002, saiu o resultado das
provas. O clima de alegria e emoção tomou conta de muitos
professores que conseguiram passar, enquanto outros fica-
ram decepcionados e tristes.
O primeiro dia de aula começou no auditório, onde o
coordenador do 3º Grau Indígena, Sr. Elias Januário, fez o
pronunciamento e, em seguida, a professora Luciana Storto,
consultora da Área de Línguas, Artes e Literaturas I, convi-
dou os colegas para compor a mesa-redonda e dar conti-
nuidade às atividades propriamente ditas. A professora
Luciana Storto apresentou o currículo específico e diferenci-
ado a todos os acadêmicos, para que tomassem conheci-
mento dele e pudessem comentá-lo. Recebemos os horári-
os para acompanhar os procedimentos das aulas, cujo
temática da primeira etapa foi Gênese.
A aula inaugural ocorreu no dia 09 de julho de 2001,
com a presença do Sr. Dante de Oliveira, Governador do
estado, e outras autoridades locais e regionais, prestigiando
a cerimônia. Os acadêmicos fizeram apresentações cultu-
rais diante da mesa de autoridades e do público
barrabugrense. Nos dias 24/07 a 25/07 de 2001, fizemos a
oficina sobre Política de Saúde Indígena, promovida pelo 3º
grau Indígena, possibilitando o conhecimento profundo da
questão.
Ainda na primeira semana de Língua, Artes e Litera-

11
turas I, aconteceu a eleição do Colegiado de Acadê-
micos, com objetivo de representar os acadêmicos indíge-
nas e apoiar a coordenação geral, garantindo ordem e cum-
primento do regimento interno do Projeto por parte dos aca-
dêmicos. Cada período que passava era discutido e
rediscutido na reunião com as diversas etnias.
A etapa encerrou com Ciências Sociais, discutindo
Política e Economia, mostrando as diferenças de comporta-
mentos, relações de classe e hierarquização dentro da pró-
pria classe social, envolvendo comentários e atividades de
sala. Depois da aula, aconteceu a “Noite Cultural”, agrade-
cemos os professores e autoridades presentes pelo carinho,
apoio e respeito para com os acadêmicos indígenas que
acabaram de encerrar a I Etapa Intensiva do 3º grau Indíge-
na, no âmbito da UNEMAT de Barra do Bugres/MT.
O Coordenador e a equipe de professores auxiliares
têm percorrido as aldeias indígenas para realizar a Etapa de
Estudos Cooperados, com os professores do 3º Grau. Até
agora tem dado resultado, conforme comentário e exposi-
ção das experiências nesta I Etapa Intensiva. Dando pros-
seguimento aos estudos presenciais, os acadêmicos de-
monstraram crescimento intelectual, responsabilidade e
compromisso sério com o Projeto, entregando em dia as
atividades da Etapa Intermediária na secretaria.
Na II Etapa, as aulas começaram com algumas mu-
danças, adequando-se cada vez mais à metodologia e di-
nâmica dos trabalhos, possibilitando maior participação e dis-
cussão no contexto de um determinado assunto, cuja
temática foi Tempo. As aulas de Línguas, Artes e Literaturas
II foram intercaladas com encontros no auditório, em segui-
da retornando para a sala de aula. As aulas sempre tinham
início às 07:30 horas da manhã, sendo que o café da ma-
nhã era servido das 06:00 h. às 06:30 da manhã.

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Antes era muito difícil para acordar bem cedo, para
tomar café e aguardar o horário de saída do ônibus; aos
poucos fomos acostumando com o horário de verão, que
terminou no mês de fevereiro. Neste Projeto, todos nós sen-
timos logo no início a pontualidade, responsabilidade, com-
promisso das pessoas envolvidas no 3º Grau Indígena, co-
meçando da coordenação do projeto; escola agrícola, o si-
neiro, as cozinheiras, os motoristas e os professores; no fim,
todo mundo gostou de apoiar o bom andamento do curso e
da boa formação de todos nós acadêmicos.
O 3º Grau Indígena tem promovido momentos de
lazer e relaxamento para os alunos, reabastecendo a ener-
gia consumida durante a semana. Tivemos ampla satisfa-
ção de visitar a aldeia dos Pareci em Tangará da Serra –
MT, e conhecer um clube que tem piscina para tomar ba-
nho. Desta vez, tivemos aulas práticas para desenvolver as
primeiras experiências na área de Ciências Matemática e
da Natureza (Química, Física, Biologia e Computação). Gos-
tamos muito de realizar as experiências, que ajudarão a tra-
balhar melhor com nossos alunos das escolas Indígenas.
Na aula de computação, gravamos em disquetes os
trabalhos dos alunos da Etapa Intermediária, que em breve
sairá na página completa do livro didático para subsidiar e
dinamizar a nossa prática pedagógica nas aldeias. É impres-
sionante ver a paciência, o carinho e capacidade de apren-
der e entender o ritmo dos alunos, sendo que o 3º grau está
trabalhando com 36 etnias distribuídas em 13 estados da
Federação. Portanto, o 3º Grau Indígena está
correspondendo às expectativas dos professores das co-
munidades Indígenas e está descrevendo a sua própria his-
tória inédita em consonância de todos os envolvidos.
Desde que entrei no 3º Grau Indígena, estou ficando
mais equilibrado, criativo e com visão crítica sobre as coisas

13
que antes eram difíceis de entender e ter respostas
imediatas.
O meu sonho por uma educação específica e dife-
renciada está cada vez mais próximo neste 3º Grau Indíge-
na. Os meus colegas estão percebendo e sentindo a dife-
rença das aulas que ainda prevalecem no sistema conven-
cional.
Os conhecimentos adquiridos no 3º Grau em breve
terão efeitos na vida de todos nós. Por enquanto, estamos
só começando.

14
ENSINO SUPERIOR PARA ÍNDIOS: UM NOVO
PARADIGMA NA EDUCAÇÃO

Elias Januário*

Educação, cada povo, cada sociedade tem a sua.


Ela tem sido a base para a transmissão de conhecimentos e
de valores nos diferentes grupos sociais presentes no Esta-
do brasileiro, seja através de padrões formais ou informais.
Ela é como uma planta que vai crescendo, enraizando-se,
tomando corpo, florescendo e frutificando.
Assim tem sido a educação escolar indígena em Mato
Grosso. Começou pequena, frágil, tímida e com o tempo foi
crescendo, tornando-se uma necessidade, um instrumento
de luta dos povos indígenas. Nasceu no contexto dos proje-
tos de formação de professores leigos, como o Inajá, o Ho-
mem-Natureza e o Geração, em meados da década 80, até
tomar corpo, em 1996, na forma de cursos de Magistério
Específico e Diferenciado, como o Projeto Tucum e o
Urucum/Pedra Brilhante. Das reflexões advindas das eta-
pas do Projeto Tucum, floresceram as discussões acerca
da formação de professores indígenas em nível superior.
Um trabalho árduo e ousado de mais de quatro anos, reali-
zado pela Comissão Interinstitucional e Paritária, que tinha
a participação efetiva de representantes indígenas. A partir
desse esforço coletivo, surgiram as três primeiras Licencia-
turas Específicas e Diferenciadas para a Formação de Pro-

* Dr. em Educação, Docente no Departamento de História da UNEMAT, Coordena-


dor do 3º Grau Indígena.

15
fessores Indígenas do país, através do Projeto 3º Grau Indí-
gena, uma proposta implementada pela SEDUC, UNEMAT
e FUNAI no estado de Mato Grosso, que atende 200 profes-
sores indígenas de 36 etnias e 13 estados da Federação.
O Vestibular Indígena, o primeiro do país, realizado
em duas etapas, nos dias 30 de março e 05 de abril de 2001,
com 570 candidatos inscritos, onde estiveram presentes ín-
dios de 14 estados brasileiros, foi, sem dúvida, uma vitória
da cidadania e do respeito à diferença.

Foto: Acervo 3º Grau Indígena

Vestibular Indígena, março de 2001.

Colocar o Projeto 3º Grau Indígena em prática foi um


longo caminho. Uma trajetória de luta política, de articula-
ção do movimento dos professores indígenas por meio de
mobilizações e reuniões apoiadas pelo Conselho de Educa-
ção Escolar Indígena de Mato Grosso. Enfim, foi uma luta
pela cidadania e pela busca da regulamentação dos direitos
dos índios no campo da educação.
A Constituição de 1988 representou um marco na
definição das relações entre o poder público e as socieda-
des indígenas. Foi a partir desse documento que o Estado
brasileiro reconheceu oficialmente a existência de diferen-
tes sociedades indígenas no interior da nação, garantindo
aos ameríndios o direito de ser e de viver conforme suas

16
formas de organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições. Reconheceu também o direito originário sobre as
terras que tradicionalmente ocupavam. Outro aspecto im-
portante presente neste documento encontra-se no artigo
210, que assegura às sociedades indígenas o direito a uma
educação escolar específica e diferenciada, bilíngüe e
intercultural, reconhecendo a utilização das línguas nativas
e dos seus processos próprios de aprendizagem.
A Constituição Federal representa o primeiro texto
que explicita a relação do Estado com os povos indígenas,
reconhecendo a diversidade étnica e o respeito à diferença,
afastando-se, desse modo, do caráter integracionista pre-
conizado durante vários séculos, em todo o país.
Essa mudança de paradigma na relação entre o Es-
tado brasileiro e as sociedades indígenas teve amplos refle-
xos no contexto da educação escolar, abrindo novas possi-
bilidades de se pensar uma nova escola indígena, longe das
doutrinas positivistas, civilizatórias e evangelizadoras que até
então se faziam presentes na educação ofertada às popula-
ções indígenas.
Para Nietta Monte “... é como se as vozes das socie-
dades indígenas, há séculos silenciadas pelas políticas edu-
cacionais, finalmente pudessem formular e explicitar seu
projeto de escola, fazê-lo ecoar e reproduzir, ainda que so-
bre intenso debate e conflito, em forma de novas propostas
de políticas públicas a serem desenvolvidas pelo Estado Bra-
sileiro” (Monte, 2000).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB/1996,
veio reforçar a legislação educacional, disposta na Consti-
tuição Federal, acentuando a diferenciação da escola indí-
gena das demais escolas do sistema de ensino brasileiro,
incentivando uma educação bilíngüe, intercultural, com ca-
lendários adequados às particularidades locais e aos proje-

17
tos societários de cada comunidade.
A educação escolar específica e diferenciada não se
trata de uma educação de qualidade inferior, de uma forma-
ção menor do que a formação presente nas escolas dos
não-índios. O que ocorre é exatamente o contrário. Ao ser
voltada para as especificidades e as diversidades, ela se
transforma em uma educação de qualidade, uma educação
que atende aos anseios e expectativas de cada grupo soci-
al. Uma educação na qual se aprende “o saber do branco”
sem esquecer ou desmerecer “o saber do índio”.
A base dessa educação específica e diferenciada é
a interculturalidade, isto é, o diálogo entre as culturas, o in-
tercâmbio positivo e enriquecedor entre as diversas socie-
dades, sem que uma se sobreponha em relação à outra.
A educação intercultural valoriza o desenvolvimento
de estratégias que promovem a construção das identidades
particulares e o reconhecimento das diferenças. Trabalha
na perspectiva de que as instituições educativas reconhe-
çam o papel ativo do educando na elaboração, escolha e
atuação das estratégias pedagógicas. Essa prática educa-
cional está constantemente repensando as funções, os con-
teúdos e os métodos escolares, de modo a afastar-se do
caráter monocultural presente no universo escolar.
A educação diferenciada voltada para as populações
indígenas pressupõe uma constante reflexão de sua prática
pedagógica, constituindo-se em um processo que tem como
ponto de partida e de chegada a perspectiva das comunida-
des indígenas. Nela, busca-se a afirmação étnica de cada
povo, valorizando as línguas, os costumes e as tradições.
Na elaboração dos projetos de educação específica
e intercultural no Brasil, precisa-se levar em conta a
especificidade da formação histórica e social do povo brasi-
leiro. É essencial desenvolver um modelo de formação de

18
professores indígenas que não ensinem apenas os conteú-
dos universais, mas que introduzam, na escola, conteúdos
próprios da cultura indígena, que valorizem e reafirmem o
saber de cada povo.
Por meio do ensino voltado à realidade da cada co-
munidade, estaremos dando subsídios para que os índios
estabeleçam limites da integração com a sociedade
envolvente. A escola é o portal de entrada para esse mundo
que está fora da aldeia. É nesse sentido que a escola ganha
o interesse dos índios. A grande demanda é conhecer o
mundo do branco: os códigos, os valores. É preciso dar con-
dições para que se estabeleça esse contato de forma posi-
tiva e enriquecedora (Grupioni, 2000).
É preciso uma troca, um diálogo entre culturas dife-
rentes. Com essa educação, os índios terão condições de
lidar com nossa sociedade.
Nessa nova proposta de educação incentiva-se a
relação entre ensino e pesquisa, rompendo com a prática
escolar reprodutivista, elitista e chanceladora de conheci-
mentos presentes na educação brasileira de um modo ge-
ral. Em um processo educacional voltado para a realidade
sociocultural de cada povo, a aprendizagem estará intima-
mente relacionada com a produção do conhecimento. A in-
vestigação abrirá caminho para a criação de espaços de
comunicação e troca de experiências, garantindo a perma-
nente ressignificação de novos conhecimentos.
A integração entre ensino e pesquisa possibilita afas-
tar-se do lugar comum da sala de aula, onde geralmente
acontecem as atividades didático-pedagógicas; proporcio-
na o rompimento da prática escolar reprodutivista, condu-
zindo à abertura de novas fronteiras pedagógicas. Formam-
se docentes cujas atividades se ampliam para além da sala
de aula (Albuquerque, 1997).

19
Foto: Acervo 3º Grau Indígena
Aula de Ciências Matemática e da Natureza.

Por meio da educação diferenciada, busca-se afas-


tar do ensino monoculturalista, presente no sistema tradici-
onal de ensino brasileiro, que prima pela reprodução de uma
ordem social estratificada da sociedade, onde as classes
hegemônicas reproduzem seus valores e seus princípios de
orientação da conduta social, e as culturas dos grupos soci-
ais minoritários são estereotipadas ou silenciadas (Bandei-
ra, 1995).
Deve-se caminhar para uma educação que promo-
va uma melhoria da qualidade de vida dos educandos. Não
adianta aprender por aprender, tem que ter um sentido, uma
utilidade. É fundamental ensinar o que é preciso aprender
para ser cidadão, para decidir, planejar e expor suas idéias.
Para que possa ter participação na sociedade em que vive.
Tem que habilitar o profissional-docente, pessoa capaz de
atuar como agente transformador da realidade em que se
insere.
Com uma educação específica e diferenciada pre-
tende-se, na verdade, ter um ensino de qualidade, dialógico
e problematizador, que conceba a educação como uma prá-
tica para a liberdade. A sala de aula passa a ser um espaço
de reflexão e construção coletiva do conhecimento, de per-

20
cepção de outras lógicas, onde as diferenças são respeita-
das. Um lugar de troca, de compreensão das diferentes con-
cepções de ser e estar no mundo.
Por meio dos cursos de Licenciatura Indígena, os pro-
fessores indíos serão instrumentalizados de modo que, a
partir daí, possam buscar os conhecimentos que conside-
ram importantes na sua vida. É preciso estar atento para
que o ensinado em sala de aula, pelos professores não-ín-
dios, tenha ressonância na escola da aldeia. É fundamental
fazer emergir o conhecimento de que são portadores, valo-
rizar esses conhecimentos, estabelecer a relação senso co-
mum/saber científico sem perder a riqueza e a especificidade
do conhecimento empírico.
Uma educação específica e diferenciada não deve
ser implementada apenas para as populações indígenas,
deve ser implementada nas diferentes regiões do Brasil, uma
vez que somos uma nação plural, constituída pela miscige-
nação de diferentes povos que vieram para esse país de
dimensões continentais. Não se pode pensar em um siste-
ma de ensino único para o Brasil, em propostas
homogeneizadoras de ensino-aprendizagem – que cami-
nham para a exclusão, a modelagem conceitual e o
insucesso escolar – quando, na verdade, somos um país
multiétnico e pluricultural.
Educação específica e diferenciada representa o ca-
minho para o reconhecimento da cidadania plena, para o
respeito à diferença e para a busca de um futuro com maio-
res possibilidades de igualdade social.
O Projeto de Formação de Professores Indígenas
em Nível Superior – 3º Grau Indígena, trata-se de um proje-
to constituinte, que está abrindo caminho, procurando esta-
belecer o diálogo entre as diferenças étnicas e culturais, unin-
do o saber do índio ao do não-índio, possibilitando a visibili-

21
dade das diferentes lógicas e nos abrindo para lidarmos com
as nossas intolerâncias cognitivas.

Foto: Acervo 3º Grau Indígena


Aula Inaugural, 09 de julho de 2001.

A presença de 200 professores indígenas, de 36


etnias, na Universidade, significa o reconhecimento público
da existência de outras identidades e de outras formas de
saber que não apenas a do “homem branco”. Significa a
oportunidade de empreender o fortalecimento e a valoriza-
ção da auto-estima dos povos indígenas do Brasil, fustigada
pelo processo colonizador empreendido nos últimos sécu-
los.
Foto: Acervo 3º Grau Indígena

Acadêmicos do Projeto, I Etapa de Estudos Presenciais.

Por meio do 3º Grau Indígena estão sendo oferecidos

22
três cursos de licenciatura, nas áreas de Ciências Matemá-
tica e da Natureza, Ciências Sociais e Línguas, Artes e Lite-
raturas.
Com uma educação diferenciada, estaremos nos
afastando da possibilidade de reproduzirmos as formas tra-
dicionais da sociedade ocidental ver e pensar o mundo. Para
isso, é imprescindível conceber a cultura como permanente
processo de transformação, como algo dinâmico, em cons-
tante ressignificação.
Outro aspecto importante da educação diferenciada
reside na garantia da permanência do professor indígena
em contato com sua comunidade de origem, fazendo com
que ele desenvolva habilidades e conhecimentos moldados
nas relações com o seu povo. Desse modo, o ensino passa
a ser contextualizado, com amplas possibilidades de desen-
volver as competências necessárias em cada formador.
Será na perspectiva da problematização e da inves-
tigação, com uma postura dialógica de entendimento e com-
preensão dos modos de inteligibilidade dos professores ín-
dios, que estaremos estabelecendo um novo paradigma na
forma de pensar a diversidade no campo da educação.
O projeto do 3º Grau Indígena será semente que fru-
tificará no futuro, que deixará em cada um de nós o privilé-
gio de estarmos frente a frente com a própria humanidade e
a sensação de termos participado desse movimento pela
cidadania e pelo respeito à diferença.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, Judite G. “Parceladas: uma proposta de


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23
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Professores Indígenas e Identidades Culturais”. In: Cader-
nos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, nº
111, 2000.

24
CIÊNCIAS SOCIAIS NO PROJETO 3º GRAU INDÍGENA:
FOCOS PRINCIPAIS

Susana M. Grillo Guimarães*

Duas orientações principais balizam a equipe da área


de Ciências Sociais, envolvida com o desafio que represen-
ta este projeto ao qual estamos nos dedicando. A primeira é
trabalhar no sentido de construir a autonomia intelectual dos
professores indígenas para formularem os projetos político-
pedagógicos das suas escolas. A segunda é o exercício de
construção de propostas curriculares interculturais – discus-
são em que desembocamos necessariamente, quando nos
colocamos a teorizar e a praticar a educação diferenciada e
específica, derivada do princípio do reconhecimento da di-
versidade sociocultural.
Isso porque acreditamos que o Projeto 3º Grau Indí-
gena, por ser uma iniciativa pioneira, terá que gerar discus-
sões e inovações na área da formação de professores para
a prática pedagógica, em contexto de interculturalidade -
espaço de conhecimento e atuação recentes na história do
país, associados à redemocratização do Estado brasileiro
com foco nos direitos humanos, à afirmação dos povos indí-
genas e à redefinição de seus direitos.
Nesse sentido, o objetivo e compromisso a serem
alcançados pela área de Ciências Sociais, nas licenciaturas
para a formação de professores indígenas, é colaborar para

* Indigenista, com Mestrado em Educação, Consultora e Docente na Etapa de


Ciências Sociais I.

25
que se efetive a autonomia intelectual dos professores na
formulação dos projetos político-pedagógicos de suas es-
colas. Autonomia compreendida como um processo de afir-
mação de sujeitos e horizontes educativos ligados à temática
dos direitos de povos minoritários, inseridos num Estado
Nacional, que legisla e estrutura sistemas e processos de
educação escolarizada. Este Estado, em decorrência do
movimento social pela afirmação dos direitos dos povos in-
dígenas1, vem, a partir da década passada, redefinindo di-
retrizes para uma política educacional a ser desenvolvida
no contexto da pluralidade cultural, constituindo um
paradigma que se pauta por reconhecer, no espaço da edu-
cação escolarizada, a inserção dos universos culturais indí-
genas, via atenção a seus processos próprios de aprendi-
zagem e à utilização das línguas indígenas no Ensino Fun-
damental. Estas estratégias, no campo educacional, tam-
bém derivam ao Estado se atribuir o dever de proteger as
manifestações culturais de matrizes indígenas2.
As diretrizes gerais da educação escolar indígena3,
que ficam postas, então, são indicativas de possibilidades
abertas – interculturalidade, diferenciação, especificidade e
bilingüismo – para a prática pedagógica, em contexto de
sócio-diversidade, ampliadas e confirmadas com o que dis-
pôs, como princípio, a LDB-96, quanto à construção do pro-
jeto político-pedagógico pelos professores, em articulação
com suas comunidades4 .

1
Necessário dizer que esse quadro sustentador de pontos inovadores foi se
constituindo a partir da mobilização política de representantes dos povos indíge-
nas para fazer valer seus direitos, tendo como aliados organizações da socieda-
de civil que tinham como pauta de atuação a defesa dos direitos de minorias
étnicas submetidas a uma política colonialista de negação da pluralidade cultural.
2
Constituição Federal, artigo 215, § 1º, e artigo 216.
3
Diretrizes para uma política nacional de educação escolar indígena, MEC, 1993.
4
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 3.394/96), artigo3º, inciso III,
e artigo 13, incisos I e VI.

26
O norteamento da equipe de Ciências Sociais, com
vistas a favorecer a autonomia intelectual dos professores
indígenas, decorre da diretriz com que trabalharemos, que
é a da valorização da sócio-diversidade, revendo e
desconstruindo práticas pedagógicas que por muito tempo
estiveram a serviço da dominação cultural, do apagamento
da diferença cultural (Sacristán, 1995:84).
Pretendemos, então, desenvolver nosso trabalho na
perspectiva de oferecer instrumentais teórico-práticos aos
professores que sejam competentes para fundamentar suas
opções, escolhas políticas, experimentações, que vão de-
terminar a construção dos projetos político-pedagógicos nas
suas escolas (Giroux & McLaren, 1995:145). Esperamos,
com isso, auxiliar os professores para que se tornem prota-
gonistas, juntos com suas comunidades, na problematização
e definição do papel que a instituição escolar terá para seu
povo, na sua gestão e organização e nas decisões quanto
aos princípios da proposta curricular.
Entendemos que a escola pode desempenhar um
importante papel ao se tornar um espaço de reflexão e cons-
trução de conhecimento sobre a realidade interétnica, sua
história e fator (a realidade) de reordenamentos econômi-
cos, políticos, sociais e culturais a partir das relações sociais
complexas que ficam postas.
A formação do professor deve, portanto, desempe-
nhar uma importante função de ampliar o quadro de análise
e conhecimento sobre a situação atual, vivida por cada povo,
que possa historicizar o processo, apontar caminhos, alter-
nativas, afirmar sonhos, definir ações positivas, orientar dis-
putas por novos espaços, novas formas de maior e melhor
interação com a sociedade majoritária.
Para isso, pensamos em trabalhar os fundamentos
que regem as práticas pedagógicas, muitas vezes não

27
explicitados, nem conhecidos, que são as concepções de
humanidade (Braggio, 1992:7), sociedade, tempo/espaço,
conceitos de cultura, colonialismo, dinamismo social, aquisi-
ção de conhecimento etc. É no desvelamento dessas con-
cepções e na problematização de conhecimentos que ori-
entam o trabalho pedagógico crítico que alcançaremos os
princípios da especificidade, da diferenciação e da
interculturalidade que definem a educação escolar indíge-
na. A renovação da prática pedagógica se concretizará a
partir do conhecimento e da análise crítica sobre as heran-
ças deixadas por modelos homogeneizantes, presentes nas
práticas organizativas e metodologias vividas por professo-
res e alunos (Sacristán, 1995:104), mudando processos
externos e internos à sala de aula desenvolvidos na educa-
ção institucionalizada (idem, p. 88).
A partir dessas bases, estaremos ajudando a formar
um perfil de professor que analise criticamente o papel da
educação escolar (Giroux & McLaren, 1995:146); conheça
a história da educação escolar, em sua comunidade, e como
ela deve ser transformada, para estar a serviço dos projetos
de futuro vislumbrados por seu povo; seja capaz de analisar
materiais didáticos disponíveis e de produzi-los a partir de
uma política editorial definida com sua comunidade que ul-
trapasse e/ou amplie modelos tradicionais de materiais di-
dático-pedagógicos; seja capaz de organizar e gerenciar a
escola de sua comunidade; seja capaz de traduzir e
operacionalizar, na proposta curricular, seus interesses e ex-
pectativas. É fundamental fazer com que a escola esteja
voltada para focos específicos e diferenciados de cada povo
indígena, tendo como pressuposto uma visão dinâmica e
flexível do suporte que poderá estar dando. É fundamental
tornarmos as escolas das aldeias escolas comunitárias, aber-
tas, flexíveis, críticas, propositivas, dinamizadoras de refle-

28
xões e projetos5.
Quando falamos de proposta curricular intercultural,
estamos nos referindo, em primeiro lugar, a um amplo e com-
plexo problema – a capacidade de a educação escolarizada,
cujo modelo tradicional é homogeneizante e eurocêntrico,
acolher a diversidade. Em segundo lugar, o tratamento
simplificador que essa questão geralmente apresenta
(Sacristán, 1995:82). Devemos estar atentos para entender
que não se trata somente de relacionar itens de conteúdos
que seriam considerados pertinentes para a abordagem da
diversidade sociocultural. O resultado dessa estratégia é
gerar a expressão de aspectos reificadores de cultura, to-
mando, muitas vezes, a cultura como uma referência a sis-
temas isolados e monolíticos, sem intercâmbios, trocas so-
ciais. Desse modo, a perspectiva de uma proposta curricular
intercultural deve ser ampliada e complexificada.
Esta proposta não pode estar separada das condi-
ções sociais, políticas e econômicas concretas de cada povo
(Sacristán, 1995:93). Cada situação é singular e deve impor
um direcionamento para a sua construção. Além desse as-
pecto, temos também a própria organização do tempo e
espaço e também uma leitura de prioridades e interesses
que podem não ser coincidentes com nossas visões e prá-
ticas curriculares. A proposta curricular intercultural exige que
novas representações estejam contempladas, novos ato-
res participem de sua elaboração. Assim, têm que estar
previstas e equacionadas estratégias para a participação de
atores sociais antes afastados dessas práticas.
Desse modo, espera-se que os professores-cursistas
participem da avaliação do Projeto do 3º Grau Indígena, na
discussão sobre a organização e metodologias vivenciadas

5
Referenciais Curriculares Nacionais para as Escolas Indígenas, MEC, 1998.

29
nas etapas intensivas, nos estudos que são propostos, na
análise da situação da educação escolar indígena em cada
povo – um conjunto de práticas importantes para o exercí-
cio de uma pedagogia crítica.
Nesse aspecto, a formatação do Projeto do 3º Grau
Indígena constituiu-se em exercício de prática de planeja-
mento educacional intercultural, quando professores indíge-
nas da Comissão Interinstitucional e Paritária, criada para
formular o anteprojeto de cursos específicos para a forma-
ção de professores indígenas, participaram das discussões
e deliberações quanto às diretrizes gerais dos cursos6.
Na montagem da proposta curricular intercultural,
teremos que tratar de questões com as quais não estamos
familiarizados e sobre as quais se construíram preconceitos
e visões equivocadas, como o papel da escrita, a natureza
ágrafa dos povos indígenas (Vidal, 1992:13), o valor como
documento legitimador para os materiais escritos (Oliveira,
2001:24), o não tratamento da oralidade, entre outros.
Nesse aspecto, pretendemos colocar em discussão
a primazia que a cultura escrita vem assumindo em vários
projetos de educação escolar indígena, é claro que a servi-
ço da afirmação da diversidade sociocultural, mas não po-
demos deixar de reconhecer que os povos indígenas se va-
leram de outro produto cultural para resistir ao processo de
colonialismo. Estamos falando da cultura de transmissão via
oralidade que, proponho, passe a ser analisada e estudada
com toda a importância que a cultura escrita tem nas práti-
cas pedagógicas. Impomos o mundo da cultura escrita, sem
antes tratar, ou entender, o universo, o alcance da oralidade.
Trabalhamos com a suposição generalizada de que a escri-

6
Goveno do Estado de Mato Grosso. Projeto de Cursos de Licenciatura Especí-
ficos para a Formação de Professores Indígenas. Cuiabá: SEDUC-MT, UNEMAT,
FUNAI, 2001.

30
ta tem um valor em si e através dela se atinge o domínio de
outros códigos da sociedade ocidental. Uma conseqüência
desse tratamento naturalizador dos produtos culturais da
sociedade majoritária é anular uma dimensão política que
deveria ter um peso maior nas discussões sobre educação
intercultural (Guimarães, 2001:111). Temos que nos recor-
dar que as sociedades indígenas, nos dias de hoje, ainda
têm na oralidade um forte mecanismo de reprodução social.
O estudo da força e dinamismo dessa forma de reprodução
sociocultural ainda é pouco desenvolvido. Cabe a pergunta
que me faço freqüentemente: dado que não conhecemos
com profundidade o universo da oralidade, tanto em termos
gerais quanto em termos específicos a uma sociedade de-
terminada, não teríamos que estar abrindo espaços de re-
flexão e discussão entre nós e os professores em formação
sobre questões ligadas à escrita e à oralidade como cons-
truções culturais específicas, de resultados diferentes e com
diferentes valores internos? Assim, estamos nas oficinas de
produção de textos escritos, nos cursos, constituindo prestí-
gio para autores indígenas que vão se tornando experts, e o
são na verdade, empregando com competência crescente
a linguagem escrita, formando sua individualização a partir
de um instrumento socializado e já repleto de cânones. E o
prestígio de pessoas da comunidade, construído ao longo
de uma vida inteira em saberem manejar o discurso oral, o
domínio da oratória, o carisma em prender a atenção e a
fantasia de ouvintes, a revelação de um aprendizado sofri-
do e permanente de uma vida inteira? A raridade e a rique-
za de uma pessoa como essa dentro de uma pequena co-
munidade. A pedagogia crítica indígena deve pesquisar a
oralidade, seu valor e uso como instrumento pedagógico.
Com isso, nossa pauta está definida em torno dos
seguintes pontos-chave: autonomia intelectual dos profes-

31
sores indígenas, educação intercultural, análise crítica dos
processos organizativos e das metodologias na história da
educação escolar indígena, pesquisa sobre oralidade como
produto e estratégia social, a diversidade na educação
escolarizada, a interdependência entre os diversos campos
de conhecimento.
Creio que o Projeto de Cursos de Licenciatura Espe-
cíficos para Professores Indígenas poderá contribuir para a
problematização e teorização dessas questões num cená-
rio de verdadeiro diálogo intercultural.

Bibliografia

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33
A EDUCAÇÃO E A DIVERSIDADE CULTURAL

Francisca Novatino P. de Ângelo*

Para falarmos sobre a educação e a diversidade cul-


tural, se faz necessário situarmos e reconhecermos os avan-
ços na atualidade, partindo da escola civilizatória e
catequizadora, até a conquista dos direitos constitucionais.
Era um Estado “brasileiro-europeu” que pensava
numa escola para índios, com a finalidade de “civilizar”, atra-
vés da transmissão dos conhecimentos e dos valores da
sociedade ocidental. Nesse contexto, as línguas indígenas
foram consideradas importantes pelos colonizadores para
esse processo, na tradução ou como meio de facilitar a
catequização dos povos. Esse pensamento de acreditar que
os povos indígenas eram seres humanos que atendiam a
uma lógica de desenvolvimento biológico, ou seja, que as
sociedades indígenas, sem escrita, são atrasadas, primiti-
vas, que seguiriam uma evolução biológica até atingirem a
civilização, atravessou séculos e trouxe grandes conseqü-
ências e perdas irreparáveis para os ameríndios. Essa teo-
ria fazia parte da política de colonização da época. Quantos
povos desapareceram baseados nesse entendimento
eurocêntrico? Fomos julgados, ao longo da história, como
selvagens e primitivos, tratados a ferro e a fogo. Acostuma-
ram-se a nos tratar como se fôssemos todos iguais, como

* Índia Paresi, Historiadora, Presidente do Conselho de Educação Escolar Indíge-


na de Mato Grosso, Professora Auxiliar na Etapa de Ciências Sociais I. Texto
apresentado em palestra proferida durante o Congresso Brasileiro de Qualifica-
ção na Educação - Formação Profissional, outubro de 2001.

34
se não existisse a diferença entre os povos. Diante disso,
surgiram variados tipos de preconceito, que justificaram o
tratamento violento sofrido nesses séculos.
Daí surgiu o processo de escolarização, dentro de
uma política indígenista integracionista, que estabeleceu,
com os povos indígenas, relações com o Estado lusitano,
numa prática de controle político e civilizatório, aliado ao
proselitismo religioso dos missionários jesuítas.
A educação escolar foi utilizada como uma ferramenta
de catequização, como aliada na discriminação e na visão
ideológica do “índio”, que influenciou a formação do povo
brasileiro. São construções ideológicas de desvalorização
da imagem do outro, feitas pelo “branco europeu”, que fo-
ram inseridas nos currículos escolares, e se perpetuaram
por muitos séculos, contribuindo para o massacre cultural
dos povos.
Outra idéia era acreditar que o “índio” não tinha pas-
sado histórico, conhecimento e até alma. Eram
desconsideradas as narrativas históricas dos povos, relaci-
onando-os há um tempo primitivo. A imposição do processo
escolar entre os povos destruiu conhecimentos milenares,
guardados na memória coletiva de cada povo e importantes
para a humanidade. Por isso, muitos povos foram extintos e
outros sobreviveram, mas perderam parte de elementos cul-
turais como a língua e o território, porque foram obrigados a
negar sua identidade para serem tratados como brasileiros.
Desde esse tempo, fomos negados também na cons-
trução da história deste país, tratados como gente de acor-
do com a conveniência dos europeus. Quando havia resis-
tência por parte dos povos, a declaração de guerra justa
contra estes era inevitável, tornando-se uma luta desigual.
A educação escolar e o manual didático reforçou e difundiu
essa tese no ensino público. Por muito tempo a educação

35
escolar indígena permaneceu na responsabilidade de missi-
onários de diversas ordens, apoiados pelo Estado brasileiro.
No século passado, a SIL – Sociedade Internacional
da Lingüística, instituição religiosa, que tinha a missão de
educar os índios e salvar as suas almas, se utilizou das lín-
guas indígenas para o convertimento religioso e civilizatório,
através da imposição de adotar normas gramaticais e siste-
mas de tradução das histórias bíblicas, mas partindo dos
valores, princípios e conceitos da sociedade ocidental. Mui-
tos povos tiveram sua língua escrita, mas o preço pago por
isso foi a conversão religiosa, descaracterizando a sua cul-
tura. Dessa forma, surge o monitor bilingüe, um professor
indígena, domesticado e submisso, criado para servir aos
interesses da missão religiosa e na alfabetização da língua
indígena, que somente serviria para a leitura da bíblia. Todo
esse pensamento de “civilizar”, “integrar” os povos à socie-
dade nacional, herança deixada pelos colonizadores, influ-
enciou a visão do Estado, através da legislação e da política
indígenista, criando uma tutela assistencialista de caráter
dependente.
A partir da década de setenta, houve mudan-
ças, nesse contexto, em nível internacional e nacional, com
a mobilização e reorganização dos povos indígenas, apoia-
dos por entidades e em colaboração com os demais seg-
mentos. As relações dos povos indígenas, com a socieda-
de civil, foram estabelecidas através da articulação entre as
organizações não-governamentais, conquistando espaços
sociais e políticos, contrariando as ações integracionistas
do Estado brasileiro.
A escola passou a ser pensada dentro dos direitos
humanos e sociais, foi reconhecida a diversidade cultural e
as experiências sócio-políticas, lingüísticas e pedagógicas
na valorização do saber tradicional dos povos. Reconhecen-

36
do a educação comunitária dos conhecimentos construídos,
ao longo destes séculos, dos processos próprios de apren-
dizagem e a visão de mundo de cada povo. Alguns órgãos
do Estado apoiaram e passaram a discutir a educação es-
colar, dentro de uma nova visão de respeito à educação
intercultural e de afirmação étnica. Os índios, numa neces-
sidade de se apropriar dos conhecimentos da sociedade na-
cional e para fazer valer esses direitos, se organizaram na
busca da sua autodeterminação.
Na minha experiência como militante do movimento
indígena, participar desse momento histórico de reconheci-
mento da valorização da cultura indígena na Constituição
brasileira foi valioso para a afirmação da identidade negada
aos nossos antepassados. São conquistas que mostraram
a nossa resistência a séculos de opressão, garantindo para
as novas gerações um futuro promissor de liberdade. A par-
tir daí, muitos povos surgiram do silêncio secular imposto.
Sabemos que a luta continua num novo contexto, a educa-
ção será um campo de novas conquistas, em busca da rea-
lização do projeto coletivo de cada povo.
Neste cenário nacional de mudanças de paradigma
sobre a educação escolar, os povos aprenderam a se orga-
nizar e a reivindicar seus direitos de cidadania, reconhecen-
do que, mesmo sendo originários e nativos desta terra, na
prática, a cidadania não existia. Os movimentos sociais fo-
ram importantes na contribuição para a mobilização indíge-
na e a sensibilização da consciência de setores da socieda-
de brasileira. Surgiram várias entidades que apoiaram e co-
laboraram com os povos indígenas nesse momento de or-
ganização e articulação dos espaços sociais e políticos com
a sociedade civil.
No entanto, a experiência dessa história contribuiu
imensamente na luta pelos nossos objetivos, a escola é

37
nosso verdadeiro instrumento de consolidação dos direitos
conquistados. Não basta apenas adquirir os conhecimen-
tos, é necessário que seja garantida também a realização
do projeto social para construirmos a escola indígena cida-
dã. Um espaço importante para novas gerações com espíri-
to crítico e participativo, que contemple a valorização da cul-
tura indígena.
Esse é nosso grande desafio, diante das exigências
da sociedade ocidental, sendo também desafio da escola
pública dos não-indígenas para garantir um ensino de qua-
lidade para todos e, ao mesmo tempo, respeitar a diversida-
de regional, social e cultural. Trata-se de construir uma nova
escola pública com a participação de seus beneficiários, com
novas posturas na política educacional. Sabemos que a his-
tória dos nossos antepassados, guardados na memória co-
letiva de cada povo, será o alerta da experiência vivida pelo
contato. Cada povo construirá sua própria escola indígena,
baseada nessas experiências. Considerando as práticas pe-
dagógicas e os conhecimentos adquiridos ao longo desse
processo, estarão construindo a vida comunitária, em que a
educação escolar se insere juntamente com a educação in-
dígena, atendendo às necessidades de cada povo. Os sis-
temas educativos indígenas são processos tradicionais de
transmissão e aprendizagem de conhecimentos, nos quais
os mestres são a família e o contexto social-cultural da co-
munidade. A participação da comunidade na elaboração do
planejamento curricular e político pedagógico requer a pre-
sença da escola nesse processo, para congregar os proje-
tos societários. Pois se trata de valorização da cultura, forta-
lecimento da identidade e desenvolvimento sócio-econômi-
co. Portanto, a verdadeira escola indígena será aquela pen-
sada, elaborada e gerenciada pelo povo indígena. De acor-
do com seus anseios, expectativas e modos de organiza-

38
ção política e social, voltada para seu futuro. Sendo um pro-
jeto coletivo, essa escola indígena específica e diferenciada
será construída para efetivo exercício da cidadania e da au-
tonomia. Para isso, as instituições públicas responsáveis
devem centrar esforços para providenciar estratégias de par-
ticipação, sob pena de cometer a negação dos direitos cons-
titucionais.
No contexto atual, a sociedade nacional também tem
o desafio de redefinir suas posturas, seus conceitos políti-
cos e sociais, para garantir às minorias o direito à igualdade
e à diferença.
Num país como o Brasil, pluricultural e multiétnico,
mas marcado pela desigualdade social, corrigir os erros do
passado requer uma tomada de decisões e mudanças nas
ações governamentais e uma reflexão profunda na história
brasileira. A educação pode ser um dos instrumentos peda-
gógicos sociais para construir as relações interculturais, ba-
seado no diálogo entre as culturas.
Os povos indígenas têm muito a contribuir na busca
de um mundo melhor para a humanidade. É partindo da igual-
dade, da diferença e da parceria que podemos criar o novo.
Esse novo só poderá ser criado se a sociedade nacional
oferecer a oportunidade aos povos de mostrarem a sua ca-
pacidade e competência de gerenciar seu próprio destino.
Enfim, trata-se de construir também novas concepções de
entender o outro dentro da sua potencialidade individual e
coletiva.
Concluo que a relação positiva entre educação e di-
versidade cultural são fundamentais para as mudanças de
políticas, de ações, de posturas e de idéias equivocadas
que degeneram as sociedades. A educação tem o dever de
educar e reeducar a sociedade para o convívio com a dife-
rença entre as sociedades indígenas e a sociedade ociden-

39
tal, mostrando as diferenças existentes entre as sociedades
indígenas e também na própria sociedade ocidental. São
considerações importantes que queremos como povo, cul-
turalmente diferenciado, para o convívio com diálogo e com
respeito mútuo.

40
EXERCITANDO O SER

Severiá Maria Idioriê Xavante*

Sou índia Karajá e Javaé. Cursei Letras Modernas e


Literaturas Correspondentes, Goiânia/GO. Cresci em
Goiânia, com minha família adotiva. Aos 9 anos, perdi mi-
nha mãe, de sarampo. Aos 12, meu pai morreu. Não sei a
causa de sua morte até hoje. Esqueci a língua Karajá, falo
Português, entendo e falo um pouco de Inglês e estou apren-
dendo a língua Xavante.
Aos 6 anos de idade, eu senti que precisava sair de
minha aldeia. Não sabia o porquê. O tempo e as experiênci-
as fora da aldeia me fizeram sentir que a inquietude se de-
via aos últimos dias de vida de minha família. Iríamos come-
çar a sobreviver. E a sobrevida me inquietava. Não sabia
como poderia assegurar o nosso direito à vida. Senti que
era necessário ampliar meus conhecimentos sobre o mun-
do que me cercava. Entender tudo, refletir, escolher os ca-
minhos e buscar soluções. Meu objetivo: estudar e voltar
para meu povo. Minha educação escolar não foi específica,
nem diferenciada. Aprendi a falar Português e a ler. E “co-
nheci” o mundo, lendo.
Aos 19 anos, comecei a trabalhar como monitora de
crianças, próximo a uma favela. Tive várias dúvidas quanto
à minha profissão, igual a qualquer jovem branca.
A única certeza que eu tinha: não quero ser profes-
sora. Minha família, de classe média, me convenceu a estu-

* Índia Karajá e Javaé, Professora Auxiliar na Etapa de Línguas, Artes e Literatura


I.
41
dar Magistério, porque consegui uma bolsa de estudos de
Inglês. Há muito tempo queria aprender Inglês. Para minha
surpresa, adorei estudar temas referentes à educação. Pres-
tei vestibular para Direito na Universidade Federal. Não pas-
sei. Prestei para Letras. Todos sabiam que assim que eu
terminasse os estudos retornaria à aldeia.
Senti que precisava voltar ao meu povo, porém não
desejava ir primeiro ao Karajá ou Javaé. Busquei informa-
ções sobre os projetos da universidade.
Foi aí que começou a grande guinada. Tinha novos
questionamentos e reflexões. Sempre tinha tido a certeza
de que minha formação me auxiliaria na aldeia. Na prática,
visitando e trabalhando em um Projeto de Educação, em
uma aldeia Krahó, em Tocantins, constatei o quanto os con-
ceitos da cultura “branca” estavam impregnados em mim. A
visão de mundo, o conceito de higiene, beleza física e sexu-
alidade eram diferentes do povo indígena. Entrei em conta-
to com o preconceito “pesado” dos não-índios. Vi o ódio e o
espanto nos olhos das pessoas não-índias.
Na aldeia, constatei que meus conhecimentos urba-
nos não me permitiriam sobreviver. Não conhecia o cerra-
do, não sabia fazer fogo ou buscar alimentos.
Em casa, comecei a refletir sobre aquilo que iria me
fazer novamente feliz. Confrontei as diferenças dos conhe-
cimentos e sentimentos. Pude ver quem eu era, minha es-
sência.
Deixei meu coração me guiar e vi que nunca havia
deixado de “ouvir os tambores”, as vozes do meu povo. Senti
que tinha sido formada para colocar o meu conhecimento à
disposição do meu povo. Juntos poderíamos afirmar, cada
vez mais, nossa identidade, nossa capacidade de exercer
nossa cidadania, continuar o exercício de ser.
Casei-me com um índio Xavante. Tenho uma filha

42
lindíssima chamada Clara. Xavante e Karajá são inimigos
tradicionais. Xavante é caçador. Karajá é pescador. Xavante
é sociedade patriarcal. Karajá, sociedade matriarcal. Come-
çava minha formação. Os Xavante são considerados guer-
reiros ferozes pela sociedade envolvente.
Porém, nunca conheci uma família mais carinhosa,
mais gentil, mais risonha, mais respeitosa. O “inimigo” me
ensinou o quanto é importante trabalhar as diferenças para
fazer este mundo um pouco melhor. Ensinou-me que a mis-
são mais nobre é trabalhar pela paz, pela felicidade de to-
dos. Que nós devemos aprender com os erros.
Comecei a trabalhar com projetos de meio-ambien-
te. Iniciamos a implementação do Projeto Jaburu, na Reser-
va Xavante Rio das Mortes, Aldeia Pimentel Barbosa. A filo-
sofia do projeto estava fundamentada nos costumes tradici-
onais de caça e foi pensada pelos anciãos Warodi e Sibupá.
Este projeto consistia em verificar as causas da diminuição
dos animais cinegéticos (animais de caça) utilizados pelos
Xavante. Uma vez detectadas as causas, buscar as solu-
ções. Para os Xavante, a caça não é apenas um alimento
físico, mas sobretudo um alimento espiritual. Se não há caça,
não há sonho. Se não há sonho, não há Xavante.
Ao desenvolvermos este projeto, começamos um di-
álogo com a sociedade envolvente. Começamos um pro-
cesso educacional e de sensibilização. Nosso objetivo era
que a sociedade nos conhecesse e nos passasse a respei-
tar como pessoas de cultura diferenciada, mas pertencente
à sociedade brasileira contemporânea. Recebemos vários
amigos na aldeia, pessoas e povos do Brasil e do exterior.
Fizemos palestras e exposições. Lançamos, junto com o
Núcleo de Cultura Indígena, o CD Etenhiritipá, cantos da
tradição Xavante. Participamos do lançamento do CD Txai,
de Milton Nascimento, e gravamos uma participação no CD

43
Roots, da banda de rock Sepultura. Aprendemos e ensina-
mos muito. Foi um processo de aprendizagem muito rico.
Até 1994, eu não havia iniciado meus trabalhos de
educação escolar por pura insegurança. Iniciei algumas ati-
vidades de educação ambiental. Não queria atrapalhar o pro-
cesso educacional próprio da comunidade Xavante. Quan-
do via as crianças brincando, aprendendo, fazendo o exer-
cício de ser eu me perguntava: Qual é o papel do profes-
sor? Para que a escola? Os conhecimentos tradicionais não
são suficientes para fazê-los cidadão Xavante/brasileiro e
viverem bem?
Durante a minha formação nos conhecimentos
Xavante, comecei a viver segundo a visão daquele povo.
No início, tive resistência. Afinal, eu tinha estudado na cida-
de. Eu sabia muita coisa. Não queria voltar ao “primitivo”.
Foram processos internos de aprendizagem: o que é es-
sencial, o que é dispensável. Ainda estou em formação.
Estou melhorando meu nível de compreensão do mundo e
respeitando a visão das outras pessoas. Mudando aquilo
que é possível em mim. Confesso que é um processo difícil,
nem sempre alegre. Porém, é bem gratificante. E estou
aprendendo que, quando as coisas não são fáceis, a me-
lhor coisa é dar um mergulho no rio e dar umas boas garga-
lhadas. Depois, sentar e ouvir os velhos vendo um céu todo
estrelado. Ver, sentir, ouvir, falar e perguntar tudo que se
queira saber.
É necessário assegurar a continuação do conheci-
mento tradicional.
É importante garantir a continuidade dos conhecimen-
tos tradicionais e possibilitar o acesso aos conhecimentos
universais. É necessária a ampliação do conhecimento so-
bre os “não-índios” para entendermos as suas atitudes. Mas
é fundamental que a formação na aldeia, a formação tradici-

44
onal, assegure o exercício de ser: continuar sentindo o orgu-
lho de ser Karajá, Xavante, Bororo, Potiguara. Somente des-
sa forma seremos respeitados como pessoa, povo perten-
cente à grande “raça humana”, que tem o direito de exercitar
a diferença de pensamento e expressão cultural. É neces-
sário que o povo indígena sinta e analise a sua realidade e os
seus objetivos para poder executar ações positivas que for-
taleçam sua identidade. É este o nosso desafio maior.
Ao mesmo tempo, é necessário conseguirmos alia-
dos da sociedade envolvente. É importante podermos con-
tar com pessoas da sociedade não-índia, para trabalharmos
juntos às questões educacionais. Pessoas que entendam e
conheçam o processo histórico ocorrido no país. Isto por-
que pude constatar na prática os preconceitos diários que
sofremos quando estamos na cidade. Diariamente, temos
que provar que somos gente.
Para analisar a formação em educação escolar indí-
gena, é fundamental a ampliação de nossa visão para ob-
servar todos os aspectos. Cada povo deve pensar sua rea-
lidade de educação escolar. Há que se pensar em alguns
pontos:
- Qual é a importância da escola e do professor para
a comunidade?
- Qual é o compromisso pessoal de cada membro
da comunidade em relação à escola?
- O que é ser educador/professor?
- Quais são os objetivos da educação oferecida na
escola?
- Quais são os conhecimentos e as atitudes que o
educador/professor devem ter?
- Como trabalhar com pesquisadores, amigos, uni-
versidade, poder público e privado? É necessário buscar
parceiros?

45
Estes são alguns pontos que devemos observar para
a definição do tipo de educação escolar que permite ao nos-
so povo continuar o exercício de ser: ser gente feliz.
É através da análise destes vários aspectos que po-
deremos executar ações positivas que consolidem uma edu-
cação escolar diferenciada e específica. Uma educação
escolar que deve primar pela alta qualidade de trabalho e
de profissionais da educação. Uma educação escolar que
busque analisar sua realidade e a sociedade em que se está
inserida. E, deste modo, busque soluções inteligentes e ade-
quadas para os problemas.
Para nosso povo, aprende-se fazendo, exercitando,
observando o outro. Vivendo um contínuo exercício de ser.
Uma hora sendo mestre, outra hora sendo aluno.

46
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO LINGÜÍSTICO:
DO SABER DO FALANTE À PESQUISA

Bruna Franchetto*
Marcus Maia**
Filomena Sandalo***
Luciana R. Storto****

“Pensar na língua... você me tirou do escuro” (tre-


cho da carta enviada da aldeia, em 28 de agosto de 2001,
pelo professor indígena Mutuá Mehinaku - Kuikuro, para a
Profª. Bruna Franchetto).

Introdução

Neste artigo, pretendemos apresentar e justificar al-


gumas das idéias ou linhas de força da nossa proposta de
currículo para uma área de conhecimento definida como “Lín-
guas, Artes e Literatura”, definição que recebemos da
coordenadoria do 3º Grau Indígena da Universidade do Es-
tado de Mato Grosso (UNEMAT) e cuja concepção implícita
passamos a moldar e redefinir. Começamos a refletir e a
procurar operacionalizar o que seria falar, tratar, ensinar,
aprender sobre Línguas ao plural, Artes ao plural, Literatura
ao singular, em um curso dirigido para um público de profes-
sores indígenas em nível universitário (Licenciatura). Este
* Museu Nacional-UFRJ, Docente na Etapa de Línguas, Artes e Literatura I.
** Museu Nacional-UFRJ, Docente na Etapa de Línguas, Artes e Literatura I.
*** IEL-Unicamp, Docente na Etapa de Línguas, Artes e Literatura I.
**** Museu Nacional-UFRJ, Consultora e Docente na Etapa de Línguas, Artes e
Literaturas I.

47
artigo descreve o projeto proposto e executado para a pri-
meira etapa letiva, centrada no tema Gênese, na qual esco-
lhemos conhecer as definições que os alunos têm de “lín-
gua”, focalizando nossos esforços na discussão de precon-
ceitos sobre o que seriam “linguagem”, “dialeto”, “gíria” e
“gramática”.
Deparamo-nos com desafios um tanto assustadores.
Primeiramente, o caráter intensivo do período letivo (60 ho-
ras-aula distribuídas em aproximadamente 8 dias por se-
mestre) impossibilitaria a discussão de textos longos e difi-
cultaria a assimilação do conteúdo, dada a concentração de
temas que seriam discutidos em poucos dias. Tal dificulda-
de é real, imposta pelo fato de que os alunos são profissio-
nais que já atuam nas suas aldeias, como professores, du-
rante 10 meses ao ano. Por isso, o currículo de Línguas,
Artes e Literatura teria que ser elaborado tendo em vista
que sua execução se daria em um período restrito a, aproxi-
madamente, duas semanas ao ano.
Em segundo lugar, nos questionamos sobre os te-
mas que seriam privilegiados no currículo. Decidimos que o
estudo das línguas em particular e da ciência lingüística em
geral é fundamental, pois grande parte do conteúdo dos
cursos de Línguas, Artes e Literatura envolve, como veículo
ou como objeto de estudo, as línguas indígenas faladas pelos
alunos, ao lado, evidentemente, do Português. Isto é óbvio
quando o objeto de estudos é língua ou literatura. Já na área
de artes, tem-se como objetos de estudo, além da tradição
oral, a música, a dança, os adornos, a pintura corporal, os
artefatos, as máscaras e as diversas atividades e entidades
que um determinado povo venha a entender como “arte”,
como estética, ou como “o belo”.
Um terceiro desafio enfrentado foi que tipo de profis-
sional formar e o que produzir (textos, pesquisas,

48
monografias etc.). O nosso objetivo com o curso de Línguas,
Artes e Literatura é formar professores indígenas em nível
de 3o Grau aptos a apreciar, analisar, questionar e criar for-
mas lingüísticas, artísticas e literárias em geral, com ênfase
nas línguas, artes e tradições orais das etnias representa-
das na sala de aula. Para tanto, estamos seguros de que é
necessário provocar e acordar o estudante indígena para a
sua própria capacidade enquanto pesquisador e produtor
de conhecimento, pois acreditamos que a construção da edu-
cação diferenciada se dá com base na autonomia dos po-
vos em questão. Dados os limites que se impõem, nossa
idéia é que cada estudante se concentre em sua própria
língua ou no Português regional, lendo algumas obras rele-
vantes e tendo como foco a pesquisa ativa e participante. A
produção dos conhecimentos resultantes desse processo
investigativo será redigida em forma de material didático, em
níveis variados.

Proposta do currículo de Línguas

Desenvolveremos, neste artigo, uma reflexão sobre


o tema “Línguas”, deixando a discussão do currículo de “Ar-
tes e Literatura” para uma próxima publicação, uma vez que
decidimos dedicar a maior parte do primeiro ano do curso
ao estudo da lingüística, do Português padrão e das línguas
indígenas faladas pelos alunos. Passemos à justificativa do
estudo das línguas, tendo sido colocado como ponto de
partida e linha-mestra da área.
Há 28 línguas indígenas faladas pelos estudantes
matriculados no primeiro ano das licenciaturas, sem contar
as etnias representadas que não utilizam mais a sua língua
indígena original, mas que pretendem documentá-la e
resgatá-la na medida do possível:

49
Línguas faladas por alunos:
- Juruna, Kamayurá, Tapirapé, Apiaká, Kayabi, Irantxe,
Nambikwara, Sabanê, Tukano, Tikuna, Kuikuro, Mehinako,
Munduruku, Matipu, Kalapalo, Ikpeng, Bakairi, Trumai, Paresi,
Baniwa, Karajá, Bororo, Xavante, Rikbaktsa, Suyá, Kaingang,
Kaxinawá, e Manchineri.

Etnias cujas línguas não são mais faladas:


- Tapeba, Tuxá, Potiguara, Pataxó, Tupinikim, Wassu Cocal,
Umutina.

Outras etnias:
- Baré e Baniwa (falantes de Nheengatu).

Frente a esta riqueza lingüística, dedicaremos a maior


parte do primeiro ano do curso ao estudo da fonética e
fonologia destas línguas e do Português e, no segundo ano,
aprofundando posteriormente a morfologia, morfossintaxe,
a sintaxe e a análise do discurso das mesmas.
Propomos uma série de passos ordenados em uma
seqüência lógica ou ligados por nexos compreensíveis. O
entendimento, mesmo que preliminar, da estrutura lingüísti-
ca, com seus princípios e regras naturais, permite um olhar
mais apurado diante dos sistemas de expressão material,
gestual, rítmica, ritual. O entendimento da dialética entre
universal e particular nas línguas permite apreciar a diversi-
dade não aleatória das manifestações que nós chamamos
como artísticas. Conhecer a língua é pré-requisito para falar
de análise do discurso; uma análise do discurso atenta aos
contextos sociais e culturais permite falar dos gêneros de
arte verbal, sua universalidade e especificidades, como a
narrativa (mítica, ficcional, histórica), a oratória, a poética,

50
etc. O ritmo está nas línguas e nas formas de arte verbal,
sobretudo em sociedades de tradição oral (mas não somen-
te). Ritmo, simetria, representação (em seus vários níveis)
atravessam a linguagem, as línguas e as artes. Considera-
mos que esta maneira de construir as relações entre as três
sub-áreas – uma entre as possíveis – é interessante, não
trivial, para docentes e discentes.
Como vimos acima, a diversidade e riqueza lingüísti-
cas representadas são enormes, e não podem ser ignora-
das. Pelo contrário, devem ser reconhecidas, pensadas, ava-
liadas em todas as suas dimensões. Apesar de haver uma
retórica a favor da manutenção desta diversidade entre lin-
güistas, pedagogos e professores atuando junto às comuni-
dades indígenas, na nossa prática, percebemos uma difi-
culdade de que esta diversidade e riqueza sejam levadas a
sério. O levantamento do MEC sobre a situação das esco-
las indígenas brasileiras constatou que a presença e o uso
das línguas nativas, no espaço-tempo da escola, são ainda
incipientes, ou perigosamente excluídos. A valorização da
diversidade deve vir acompanhada pela valorização do alu-
no como ser pensante e capaz de avaliar e decidir por si
mesmo sobre questões cruciais que envolvem diretamente
o estudo da língua, como por exemplo a ortografia de sua
língua indígena. Isso se dá na relação professor-aluno, que
deve estimular a dignificação do saber tradicional, a partici-
pação, o debate e a reciprocidade. Procuraremos experi-
mentar uma metodologia de ensino que trate seriamente o
conhecimento, no nosso caso, principalmente o conhecimen-
to lingüístico, e que evite, conscientemente, toda forma de
paternalismo.
Na nossa experiência, os momentos mais gratifican-
tes, nos cursos de formação de professores, foram momen-
tos em que falamos como lingüistas, e nossos alunos, uma

51
vez despidos de timidez, sentido de inferioridade etc., senti-
ram-se capazes de fazer de suas línguas um objeto de re-
flexão e de estudo, deslanchando processos de descober-
tas, com reflexos positivos de longo alcance. Esperamos que
um primeiro resultado prático dos estudos na área de lín-
guas no 3º Grau Indígena seja a instrumentalização dos alu-
nos para lidar com algumas das questões técnicas que es-
tão por trás das ortografias: a saber, as noções de fone e
fonema. Num segundo momento, trabalharemos com no-
ções chaves da morfologia, sintaxe e análise do discurso.
Nosso objetivo final é que a produção de conhecimento por
parte dos estudantes, resultante das pesquisas desenvolvi-
das, volte-se, naturalmente, à realidade da escola indígena,
que na maioria dos casos é ou pretende ser uma escola
bilíngüe.
A língua é, por sua vez, um saber implícito, um obje-
to natural que está estruturado de acordo com princípios (uni-
versais ou não) e que pode e deve ser estudada pelos pró-
prios falantes, que a carregam consigo a todo o momento,
inconscientes das regularidades que estão nela contidas.
Pretendemos, desde a primeira aula, discutir esta concep-
ção de linguagem/línguas, chamando a atenção do aluno
sobre esta coexistência não aleatória entre o universal e o
particular, entre o consciente e o inconsciente, entre o saber
implícito e o saber normativizado. Em suma, o objetivo des-
te primeiro encontro será provocar e acordar o falante para
a sua própria capacidade enquanto pesquisador e produtor
de conhecimento.
Um outro tema a ser discutido será o
desmantelamento dos preconceitos inferioridade-superiori-
dade, pobreza-riqueza, instabilidade-estabilidade, bem como
o desmantelamento da idéia de que variação dialetal é algo
negativo, de que existe apenas uma única forma certa de

52
falar, o incômodo diante dos diversos registros, diante das
mudanças geracionais etc. Buscaremos apresentar tudo isso
como fenômenos lingüísticos corriqueiros com significados
sociais e culturais, não como anomalias que caracterizam
línguas de tradição oral ou “inferiores”. Assim, o estudo téc-
nico da lingüística caminhará, neste currículo, lado a lado
com uma problematização sobre o uso político de certas
noções lingüísticas equivocadas.
Finalmente, trataremos do uso do Português padrão,
dentro do currículo, através de exercícios de leitura, inter-
pretação e escrita, além de aulas expositivas, em que os
principais problemas encontrados, na produção de textos,
serão discutidos. Estudar o Português é uma reivindicação
dos alunos, que sentem a necessidade de comunicar-se de
forma efetiva com a sociedade envolvente na sua busca
pela cidadania. Para tanto, atividades de estímulo à leitura e
escrita serão propostas também dentro da etapa intermedi-
ária, principalmente através do exercício de elaboração de
documentos úteis, assim como cartas, memorandos, ofíci-
os e projetos. Além da falta de familiaridade com o mundo
da escrita, o que é natural em culturas de tradição oral, os
alunos do 3º Grau Indígena apresentam dificuldades relaci-
onadas ao fato de serem falantes do Português como se-
gunda língua. O currículo trata esses fatos como naturais, e
procura trabalhar as dificuldades que surgem, no uso do
Português, como típicas de qualquer aprendizado de segun-
da língua.
As aulas serão organizadas da seguinte forma: es-
pera-se introduzir todo e qualquer tema através de discus-
sões iniciais em grupo, nas quais o professor estimulará o
debate sobre cada tópico ao fazer perguntas que permitam
aos estudantes pensar sobre questões relacionadas ao con-
teúdo que se pretende estudar. Durante a discussão, o pro-

53
fessor fará notas no quadro negro, com o objetivo de resu-
mir as diversas opiniões emitidas e as questões levantadas.
O que se está buscando com este exercício é mapear as
expectativas, os sentimentos, as crenças e a experiência de
todos os alunos sobre os pontos em discussão. Após este
primeiro momento de problematização, o professor deverá
fazer conexões entre a realidade do aluno e o conteúdo a
ser discutido, procurando utilizar os exemplos levantados na
discussão para introduzir os conceitos a ser estudados. Na
exposição dos conceitos, o professor deverá, sempre que
possível, estimular a participação dos alunos para que a aula
não seja desinteressante ou distante da realidade do aluno.
De fato, o professor visará obter a participação ativa dos
alunos na construção dos conceitos e em sua formulação
nas diferentes línguas. Em algum momento, os alunos de-
verão trabalhar em grupo por, pelo menos, uma hora, pro-
curando resolver algum problema específico relacionado ao
conteúdo. Idealmente, os professores estarão sempre infor-
mados das questões levantadas nas salas de aula de seus
colegas, em busca de um constante aprimoramento da di-
dática utilizada.
Uma fase importante do Projeto 3º Grau Indígena é
a chamada “etapa não presencial” ou “etapa intermediária”,
quando os alunos, de volta às aldeias e, por sua vez, pro-
fessores, devem, em princípio, continuar um processo de
formação, contando com visitas dos professores auxiliares
e de um professor titular. Durante esta fase, os conteúdos
discutidos nas etapas presenciais serão trabalhados atra-
vés de pesquisas interdisciplinares, bem como de exercíci-
os específicos de cada área. A proficiência em língua portu-
guesa, tão almejada pelos alunos, será igualmente traba-
lhada nessas etapas, através de exercícios variados de lei-
tura, interpretação e redação. Neste sentido, serão elabora-

54
dos manuais de leitura e produção de textos, utilizando-se,
inclusive, práticas e textos relevantes para as outras áreas
do projeto, cujos docentes deverão também empenhar-se
na tarefa de capacitação oral e escrita dos alunos. Espera-
se que os professores auxiliares participem das aulas, estu-
dando, pesquisando e resolvendo exercícios, da mesma
forma que os alunos. Deve-se encorajar o maior contato
possível entre estudantes e professores auxiliares, inclusi-
ve além do tempo transcorrido nas áreas e nas aldeias, para
garantir uma continuidade e progressão do trabalho. Uma
avaliação real dos resultados obtidos, das dificuldades e uma
eventual reformulação do papel e da atuação dos professo-
res auxiliares deverão ser realizadas, periodicamente, no
início de cada período presencial. Não podemos esquecer
que, como quase tudo no campo da chamada educação
indígena, estamos vivendo uma experiência, percorrendo
um terreno ainda muito pouco explorado, construindo e re-
construindo práticas a todo momento.
Outra questão importante, ainda a ser melhor defini-
da, diz respeito às chamadas atividades transversais, ou
seja, as atividades que estabelecerão pontes entre a área
de “Línguas, Artes e Literatura” e as duas outras áreas do
projeto do 3º Grau Indígena, a saber, as áreas de “Ciências
Sociais” e de “Ciências Matemática e da Natureza”. A nossa
proposta a esse respeito é a de se constituírem, ao longo
dos cinco anos em que se desenvolverá o projeto, bancos
de dados lexicais, indexando itens vocabulares das diferen-
tes línguas, relevantes para as três áreas do projeto. A ên-
fase na produção dessas bases de dados recairá sobre o
seu processo de elaboração pelos alunos, que poderão, ori-
entados pelos professores do 3º Grau, propor, coletar, defi-
nir, transcrever, traduzir, comparar e analisar os verbetes,
passando a dominar não apenas os seus conteúdos, mas

55
também todas as fases do processo de dicionarização e
informatização. Os verbetes poderão incluir as seguintes in-
formações: entrada lexical na ortografia de cada língua, trans-
crição fonética, transcrição fonêmica, categoria gramatical,
termo equivalente ou definição em Português, definição na
língua indígena, sinônimos, variantes dialetais, informações
sobre contextos de uso, gêneros de fala, exemplos. Essas
bases poderão vir a se tornar verdadeiros dicionários enci-
clopédicos, incluindo quadros sistemáticos de classificação,
fotografias e desenhos de diferentes aspectos das culturas
indígenas, tais como fauna e flora, artes e artefatos, cerâmi-
ca, cestaria, plumária, objetos rituais, máscaras, padrões de
pintura corporal, jogos etc., bem como coleções de mitos e
cantos, com tradução livre e interlinear, além de um registro
de biografias, fatos históricos, aldeias passadas e presen-
tes, sítios históricos etc. Os materiais produzidos poderão
ser levados para as aldeias, servindo de material didático
suplementar para as escolas. Por outro lado, atividades es-
colares e de pesquisa, nas aldeias, poderão ser planejadas,
de modo que as crianças indígenas, bem como anciãos,
lideranças e outros membros das comunidades indígenas
possam também participar da construção dos verbetes, sen-
do consultados pelos alunos do 3º Grau a respeito de dife-
rentes aspectos, tais como sua melhor conceituação, sinô-
nimos, variantes de pronúncia, representações iconográficas
etc. Assim, essas bases – além de permitirem a integração
das três áreas do projeto em um projeto comum – valoriza-
rão a atuação dos alunos como pesquisadores, estimula-
rão o envolvimento das comunidades indígenas nas ativida-
des do 3º Grau e poderão mesmo vir a contribuir, efetiva-
mente, para a documentação e preservacão dos etno-co-
nhecimentos sobre a língua, a história e a cultura de cada
sociedade indígena.

56
Conteúdo do currículo: justificando a opção pela gra-
mática descritiva

No primeiro período (Gênese), colocado em prática


em julho de 2001, discutiu-se um conjunto de atitudes em
relação à linguagem destinadas a provocar reflexão e pos-
tura crítica, sem as quais torna-se impossível um conheci-
mento de tipo científico que o terceiro grau necessita pro-
mover. Isto porque o conhecimento científico sobre a lingua-
gem exige rupturas com princípios normativistas que funda-
mentam o tipo de saber que ainda domina o ensino de lín-
guas no segundo grau. Assim, trataram-se conceitos bási-
cos como o conceito de língua e de linguagem, gramática
(descritiva e normativa), dialeto, variação lingüística, conta-
to lingüístico, mudança lingüística. Neste período, também,
questionou-se fortemente o papel da escola como lugar para
se ensinar exclusivamente o Português padrão e, neste pon-
to, discutiram-se atitudes tidas pela ciência atual como “pre-
conceitos lingüísticos”. Por exemplo, a premissa de que exis-
tem línguas puras e línguas corrompidas, que certas pesso-
as não sabem falar sua língua nativa corretamente e que
existem línguas primitivas e línguas complexas. Em resu-
mo, o conteúdo da discussão se resumiu a uma única gran-
de idéia, como definido por Possenti (1997: 95), a de:
“...fazer com que o ensino de português deixe de ser
visto como uma transmissão de conteúdos prontos, e pas-
se a ser uma tarefa de construção de conhecimento por parte
dos alunos, uma tarefa em que o professor deixa de ser a
única fonte autorizada de informações, motivações e san-
ções. O ensino deveria subordinar-se à aprendizagem”.
O exercício de reflexões como as esboçadas aqui,
em conjunto com professores indígenas, tem sido extrema-

57
mente produtivo e, por vezes, surpreendente, ao se consta-
tar como muitas dessas questões são na verdade conheci-
das e dominadas com agilidade pelos professores. Assim,
com base na nossa própria experiência, a relativização dos
conceitos que estão por trás do termo gramática (descritiva/
normativa), o ensino produtivo e o ensino prescritivo, o estu-
do das variações diacrônicas, diastráticas, diatópicas e
diafásicas1, a noção de norma, são todos tópicos que susci-
taram, nos professores índios, intervenções entusiasmadas.
Eles estão sempre prontos a dar novos exemplos e a pro-
por detalhamentos extremamente criativos, o que torna o
momento do encontro entre lingüista e professor indígena
uma experiência verdadeiramente fascinante.
Além disso, se a responsabilidade social, que desde
sempre tem caracterizado a lingüística indígena, no Brasil,
nos permite imaginar que o Terceiro Grau Indígena pode ter
um papel na questão da preservação e da revitalização das
línguas e culturas indígenas, o exercício desses fundamen-
tos teóricos, certamente, poderia nos servir de base sólida
para desenvolver um programa de estudos da linguagem
efetivamente científico e engajado.
Após a discussão de pressupostos básicos, nosso
foco de discussão será uma introdução à descrição
fonológica de cada uma das línguas representadas na sala
de aula. O primeiro passo, nessa direção, será uma introdu-
ção à fonética articulatória e à transcrição fonética. É neces-
sário que todos os alunos se desliguem das garras da orto-
grafia do Português e/ou de suas línguas nativas. Várias das
línguas representadas no 3º Grau Indígena já contam com
um ou mais sistemas ortográficos desenvolvidos ou em de-
senvolvimento, que podem refletir conflitos políticos entre
1
Respectivamente, variação da linguagem ao longo do tempo, de estratos sociais,
no espaço e nas diferentes situações de fala.

58
agentes ou agências do mundo não-indígena ou internos às
próprias comunidades. Sentimentos de insegurança e de-
sânimo podem resultar do encontro dos próprios falantes
com diferentes sistemas ortográficos. Libertar-se da referên-
cia compulsória à escrita é fundamental para que haja um
desligamento da visão normativa do ensino tradicional e para
que se desenvolva sensibilidade para uma postura de des-
crição. O segundo passo será uma introdução à análise
fonológica segmental e prosódica. Não pretendemos fazer,
entretanto, uma apresentação exaustiva de todos os mode-
los de análise fonológica, nem mesmo uma descrição exaus-
tiva de cada língua e do Português; limitar-nos-emos a apre-
sentar alguns pressupostos e instrumentos de análise
fonológica que guiarão um falante nativo a construir um co-
nhecimento explícito e objetivo de sua língua. Para a cons-
trução deste conhecimento, teremos como inspiração o fato
de que o conhecimento que os falantes têm sobre a gramá-
tica de sua língua nativa independe de instrução formal.

Reflexões sobre uma postura epistemológica a respeito


da linguagem

A experiência ao longo de vários anos em progra-


mas de educação indígena e também em formação de pro-
fessores não-índios em campus avançados da UNEMAT tem
nos convencido não só da importância pedagógica, mas
também da urgência política de se proceder ao
redimensionamento de conceitos fundamentais que possam
restabelecer um substrato teórico adequado para se pensar
questões descritivas na área da linguagem. A relevância
dessas noções é ainda mais dramática para as populações
indígenas que, por assim dizer, estão “sofrendo na pele” (ou
seria mais adequado dizer na carne e na alma?), aqui e ago-

59
ra, as conseqüências do preconceito de quem, por exemplo,
ainda crê que suas línguas são “gírias” ou “dialetos primiti-
vos”, manejados por “ignorantes” que cumpre “civilizar”, como
já se ouviu de professores atuando em cidades próximas às
aldeias Karajá, por exemplo. Preconceitos que, se não fo-
ram elaborados na própria escola, deixaram, no mínimo, de
ser corrigidos por ela.
Do nosso ponto de vista, um objetivo central na for-
mação de professores - indígenas ou não - para atuar na
área de linguagem deve ser o de desenvolverem, desde o
início, a compreensão do conhecimento tácito do falante,
evitando distorções conceituais que, embora superadas há
pelo menos meio século na história da lingüística, ainda pro-
duzem efeitos na educação escolar, onde os frutos do tra-
balho científico têm chegado sistematicamente com atraso.
Ilustraremos esse tipo de conhecimento a seguir, com al-
guns exemplos de Abaurre & Sandalo (em preparação):
Os falantes de Português estão habituados a ou-
vir e a utilizar construções como:

(1) Jorge pensa que João disse que ___ é honesto.


(2) Jorge pensa que João disse que ele é honesto.

Em (1) o sujeito oculto de “é honesto” é João, mas


em (2) “ele” pode ser Jorge. O falante sabe que quando o
pronome “ele” está oculto na posição de sujeito da última
oração subordinada em (1), o referente deve ser necessari-
amente o sujeito da primeira subordinada (neste caso, João).
Sabe, também, que se esse mesmo pronome estiver explí-
cito, como em (2), seu referente pode ser o sujeito da ora-
ção principal. Todo falante de Português tem esse tipo de
conhecimento, embora ele não lhe tenha sido transmitido
explicitamente nem durante o processo de aquisição da lin-

60
guagem, nem durante a fase de escolarização. Como nota-
do por Abaurre & Sandalo, poder-se-ia argumentar que a
referência de um pronome oculto, como em (1), pode ser
memorizada pelos falantes, isto é, poderia ser o caso de
sempre se tomar como referente do pronome o núcleo do
sintagma nominal mais próximo, à esquerda. Isso, no en-
tanto, não é verdadeiro, como se pode verificar pela ambi-
güidade na qual se baseia a piada abaixo:

(3) - Sua mãe tá aí. Você não vai receber?


- Receber por quê? Por acaso ela me deve algu-
ma coisa?

O que faz rir, na piada, é justamente o fato de o fa-


lante, apesar de saber que a interpretação preferencial, no
caso, é aquela que toma como referente do pronome oculto
o termo “mãe”, que é o núcleo do sintagma nominal mais
próximo à esquerda, sabe também que há uma outra inter-
pretação possível nesse contexto: a que toma como refe-
rente do pronome oculto algo que também poderia ser com-
plemento do verbo “receber” (por exemplo, “dinheiro”), ou
seja, algo que não está explícito no discurso. É do conflito
entre essas duas interpretações do referente do pronome
oculto que resulta o humor nessa troca verbal.
O conhecimento pressuposto para a compreensão
de piadas como essa também não supõe, como no exem-
plo anterior, nenhum tipo de instrução formal. Trata-se da-
quilo que sabemos sem saber que sabemos. Os exemplos,
acima, focalizam problemas de natureza sintática. O mes-
mo tipo de conhecimento tácito caracteriza, também, a rela-
ção estabelecida pelo falante com outros módulos da gra-
mática, como a fonologia. Este primeiro momento de estudo
de descrição das línguas faladas pelos nossos alunos será

61
uma reflexão sobre o conhecimento fonológico tácito dos fa-
lantes como base para uma busca dos segmentos
fonológicos contrastivos de cada uma das línguas represen-
tadas no 3º Grau Indígena.
Devemos também ressaltar que a metodologia que
pretendemos empregar tem relevância para a aquisição de
uma segunda língua. A aquisição de uma segunda língua
envolve, muitas vezes, transferência de aspectos da primei-
ra língua. Sabe-se que o Português não permite que uma
sílaba seja travada por uma consoante oclusiva. É bastante
comum que um falante de Português, aprendendo Inglês
como segunda língua, transfira esta restrição para sua pro-
núncia do Inglês, pronunciando palavras inglesas como
[æskt] (asked) ‘perguntou’ como [æskiti]. Este fenômeno é
rotulado de sotaque. Não se rotula um falante de Português
de incapaz de aprender uma segunda língua por transferir
uma regra de sua língua nativa para a língua sendo adquiri-
da.
O exemplo, acima, apresenta um fato de transferên-
cia fonológica, mas transferência gramatical também ocor-
re. Vimos nos exemplos, acima, que é possível se omitir o
objeto direto em sentenças da língua portuguesa. É comum
que falantes nativos do Português, falando Inglês, também
omitam o objeto em Inglês, apesar de este fenômeno não
ser permitido nesta língua. Este fato é entendido como trans-
ferência e não causa perplexidade nos professores de In-
glês para falantes de Português. Isto porque estas duas lín-
guas são amplamente conhecidas. Entretanto, certas difi-
culdades encontradas por falantes de línguas indígenas, ao
adquirirem o Português como segunda língua causam, mui-
tas vezes, perplexidade. Para clarificar esta afirmação, rela-
tamos brevemente a experiência documentada em Sandalo
& Gordon (1999).

62
Cinqüenta crianças de quatro a catorze anos foram
submetidas a um teste de interpretação de texto dentro da
escola indígena Kadiwéu. Trinta crianças falantes de Portu-
guês como primeira língua foram submetidas ao mesmo teste
em São Paulo. Neste experimento, os seguintes textos a
serem interpretados foram apresentados:

Estória 1: A mãe de João estava muito ocupada. Portanto,


ela pediu para João lavar a louça para ela. Ela disse:
- Por favor João, lave a louça.
Mais tarde ela voltou para ver se João já tinha termi-
nado o trabalho.
E apresentamos a seguinte frase, perguntando quem
era o sujeito oculto (i.e. quem disse que João lavou a lou-
ça?):
(1) ____ disse que João já lavou a louça?

Estória 2: Um dia Paulo estava dirigindo um carro, quando


ele viu José atravessando a rua. Neste momento, Paulo bre-
cou. José caiu.
E apresentamos a seguinte frase, perguntando quem
era o sujeito oculto (i.e. quem disse que o carro atropelou
José?):
(2) ____ disse que o carro atropelou José?

Os resultados mostram que 100% das crianças


Kadiwéu (4-7 anos) e 77% de adolescentes Kadiwéu (8-14
anos) responderam que João disse que João lavou a louça.
Apenas 30% deles respondeu que José disse que o carro
atropelou José. Para as crianças paulistas, as frases foram
interpretadas como A mãe disse que João já lavou a louça e
Paulo disse que o carro atropelou José. Este resultado re-
flete a estrutura sintática da língua Kadiwéu, que permite

63
um tipo de referência que o Português proíbe.
A questão da dimensão da diversidade lingüística é
ignorada freqüentemente na formação de professores indí-
genas. Uma tarefa dos professores indígenas é ensinar
Português para crianças que não falam Português como lín-
gua nativa. A importância de uma conscientização sobre di-
versidade lingüística e descrição das línguas brasileiras têm,
portanto, neste lugar, uma importância singular. Uma maior
conscientização de fatos de suas línguas nativas e um me-
lhor aprendizado do Português parece fundamental para que
se evite uma completa opressão e exploração destes pela
cultura dominante, bem como para que os índios se
conscientizem de sua própria riqueza cultural e participem
ativamente em sua manutenção. Os professores atuando
em áreas indígenas, em sua maioria, não estão conscien-
tes da grande diferença existente entre línguas européias e
línguas chamadas de “polissintéticas”, como o Kadiwéu, no
tocante à interpretação de sujeitos ocultos.2
Em línguas como o Português, um substantivo, na
oração subordinada, não pode jamais ser entendido como
algo na oração principal, mas isto é possível em línguas
polissintéticas, desde que algumas restrições sejam respei-
tadas (Sandalo 2001). Os falantes de línguas polissintéticas
transferem este fato para o Português da mesma maneira
que falantes do Português transferem para o Inglês fatos de
sua língua nativa. Transferência lingüística ocorre em todos
os processos de aquisição de segunda língua e nada tem a

2
Note que nem todas as línguas nativas das Américas são polissintéticas. Não
sabemos ainda quantas línguas polissintéticas existem no Brasil. Segundo Sapir
(1921), uma língua polissintética, como seu nome implica, é mais que ordinaria-
mente sintética. A elaboração de uma palavra é extrema. Conceitos que nós nunca
sonharíamos em tratar de uma maneira subordinada são simbolizados por afixos
derivacionais ou mudanças “simbólicas” no elemento radical, enquanto noções mais
abstratas, incluindo relações sintáticas, podem ser também transmitidas pela pala-
vra. Ver Baker (1995) e Sandalo (1997) para uma discussão detalhada dos fatos
destas línguas.

64
ver com uma incapacidade de interpretar textos. Como gran-
de parte de lingüistas e educadores não estão conscientes
desta diferença tipológica entre línguas polissintéticas e lín-
guas flexionais como as línguas românicas, eles pouco en-
tendem o porquê de alunos falantes de línguas polissintéticas
terem grande dificuldade na interpretação de textos em Por-
tuguês e/ou Espanhol durante a escolarização primária. O
conhecimento e entendimento da diversidade lingüística é
fundamental para a educação indígena. Não temos, mes-
mo enquanto lingüistas, um conhecimento total da diversi-
dade existente no Brasil. É, portanto, crucial que formemos
professores-pesquisadores.
Se, ao discutirmos o conhecimento tácito de um fa-
lante nativo, não podemos também ignorar a questão da
universalidade lingüística, uma vez que vemos a linguagem
como fenômeno da natureza. A linguagem humana é uma
capacidade única; todos os seres humanos – e apenas os
seres humanos – a possuem. Esta capacidade é a mesma
nos cerca de seis bilhões de pessoas existentes no mundo
e pode ser considerada uma faculdade própria da mente
humana, que nos permite adquirir e usar diferentes línguas.
As cerca de seis mil línguas faladas, hoje, no mundo, bem
como as milhares de línguas que já não são mais faladas,
ou as línguas que ainda vão ser criadas, são ou serão todas
produtos dessa mesma capacidade da mente humana. Di-
zer que essa capacidade é inata significa que não a apren-
demos no curso de nossa experiência de vida, mas já nas-
cemos com ela. Os macacos, por exemplo, não possuem
esta capacidade, embora possam chegar a compreender e
usar códigos complexos para a comunicação entre si e com
os humanos. As formas de comunicação animal não têm,
de qualquer maneira, as características fundamentais da lin-
guagem humana. É por isso que aos dois, três anos, uma

65
criança humana é capaz de falar frases que nunca ouviu
antes, fazer perguntas, pedidos, comentários originais e cri-
ativos que não são apenas a repetição de frases iguais a
que ouviu em sua volta, como fazem os papagaios, por
exemplo. Já o macaco ou o papagaio, por mais espertos
que possam ser, não sabem falar realmente, não têm essa
faculdade interna, e é por essa razão que até podem apren-
der a reconhecer ou produzir algumas palavras isoladas, mas
não são capazes de formar frases originais.
Se a linguagem fosse aprendida como em um jogo
de repetição, só seríamos capazes de falar o que ouvimos,
mas - de fato - quando falamos uma língua demonstramos
saber muito mais do que aquilo que ouvimos. Essa proprie-
dade da nossa capacidade de linguagem é conhecida pelos
lingüistas como infinitude discreta, ou seja, somos capazes
de produzir um número infinito de expressões gramaticais a
partir de um conjunto finito de elementos e princípios
lingüísticos. Essa propriedade se manifesta também no nos-
so conhecimento de matemática: quantos números pode-
mos formar? Qual é o fim dos números? Todos sabemos
que podemos formar infinitos números com apenas dez al-
garismos. É assim também com os sons das línguas: com
vinte ou trinta sons podemos produzir quantas palavras? Não
dá nem para contar porque não tem fim. Ninguém nos ensi-
nou essa capacidade. Esse conhecimento já veio com o ser
“gente”, é uma das propriedades fundamentais da lingua-
gem humana.
A criança, quando chega na escola, já sabe tudo isso.
E muito mais. Mas havia quem achasse que a cabeça da
criança fosse como uma caixa vazia, uma folha de papel em
branco, na qual se escreve o saber, de fora para dentro.
Essa teoria, conhecida como “comportamentalismo”, defen-
dida pelo psicólogo norte-americano B.F. Skinner, foi desafi-

66
ada por um lingüista, também norte-americano, chamado
Noam Chomsky, na metade do século XX, com argumen-
tos como esses que estamos considerando aqui. Skinner
achava que o fenômeno da linguagem humana podia ser
explicado “de fora para dentro”, isto é, a criança receberia
os estímulos lingüísticos do ambiente e então produziria suas
respostas verbais. Chomsky (1996) demonstrou que os es-
tímulos ambientais são “pobres” quando comparados à com-
plexidade do comportamento verbal exibido pelas crianças.
Tome, por exemplo, uma frase com apenas dez palavras:
“Tente recombinar qualquer período simples formado por
umas dez palavras”. Você tem idéia de quantas combina-
ções seriam matematicamente possíveis com essas dez
palavras? Pois são exatamente 3.628.800 combinações
possíveis, das quais apenas uma combinação é gramatical!
Como se pode haver aprendido tamanha restrição
combinatória? Certamente não por meio de instruções ou
correções de pais e professores. Nascemos com uma es-
trutura inata poderosa que nos permite eliminar milhões de
possibilidades combinatórias. Assim, sabemos que uma fra-
se como (1) é bem formada, enquanto que (2) não é:

(1) Tente recombinar qualquer período simples for-


mado por umas dez palavras
(2)* Palavras dez umas por formado simples período
qualquer recombinar tente

Mesmo alguém que nunca pisou em uma escola sabe


que a frase (2) não é uma frase bem formada em Portugu-
ês, sem que ninguém tenha ensinado isso a ele. Um analfa-
beto também não formaria uma frase composta apenas por
substantivos lado a lado, como “lápis mesa sala professor
escola”. Ele certamente usaria esses substantivos junto com

67
palavras de outras classes gramaticais, como, artigos, pre-
posições, verbos etc.: “O lápis está sobre a mesa da sala do
professor na escola”. Mas como ele faz isso, se nem mes-
mo foi à escola para aprender o que é substantivo, artigo,
preposição, verbo etc.? Novamente, a resposta é que ele
tem o conhecimento implícito dessas classes, não é a esco-
la que vai lhe ensinar isso. A escola vai apenas explicitar
esse conhecimento, ajudá-lo a se tornar consciente de quan-
ta coisa ele já sabe, mas nem sabia que sabia!
Mas se ninguém nos ensina sistematicamente no-
ções importantíssimas e essenciais para o manejo da lin-
guagem, como as que examinamos acima, como é que po-
demos adquirir uma língua? A resposta, como vimos, é que
sabemos tanto porque já nascemos sabendo. Obviamente,
não é que já nasçamos sabendo falar Português ou Inglês
ou Xavante. Já nascemos com princípios lógicos universais
que se aplicam a qualquer uma das línguas humanas e é
por isso que somos capazes de adquirir qualquer uma des-
sas línguas de maneira tão rápida e uniforme. Seja qual for
a língua, em torno de um ano, falamos palavras isoladas;
em torno de um ano e meio, começamos a juntar palavras e
com cerca de três, quatro anos, já adquirimos basicamente
a gramática da língua. Claro que aprendemos novas pala-
vras e mesmo construções gramaticais ao longo de toda a
nossa vida, mas a aquisição das estruturas fundamentais
se dá de maneira muito semelhante para todos os seres
humanos, não importando sua raça, classe social, naciona-
lidade, gênero etc. Embora os dados que recebemos do am-
biente sejam pobres, isto é, assistemáticos e fragmentados,
conseguimos adquirir uma língua porque nascemos com
princípios gerais que nos ajudam a organizar os estímulos
verbais deficientes em estruturas complexas. Vimos também
que esse processo se dá de maneira bastante homogênea

68
para todas as crianças, independentemente do meio em que
sejam criadas. Esse processo natural e espontâneo é que
se chama de aquisição da linguagem, devendo ser diferen-
ciado do termo “aprendizagem”.
A aquisição é o que ocorre à criança exposta a estí-
mulos lingüísticos: a faculdade da linguagem ativamente
opera sobre esses estímulos, produzindo a aquisição de uma
língua específica. Esses princípios universais são também
chamados de Gramática Universal por alguns lingüistas.
Observe-se que a Gramática Universal só é acessada de
maneira natural e espontânea até um certo período da vida,
conhecido como período crítico da aquisição. Esse período,
que se situa em torno da puberdade, atua como verdadeiro
divisor de águas para a aquisição. Note-se que, após a pu-
berdade, pode-se aprender, mas não adquirir uma língua. O
processo de aprendizagem de uma língua, ao contrário da
aquisição, depende de esforço, exercício, prática, e, geral-
mente, não se obtém resultados tão bons. É o que ocorre
no aprendizado de uma língua estrangeira: submetemo-nos
a um processo qualitativamente diverso daquele levado a
efeito na aquisição, um processo muito menos natural, que
depende de nossas habilidades individuais e exige empe-
nho sistemático durante longo período, ao fim do qual o re-
sultado jamais é equivalente ao do falante nativo que adqui-
riu a língua na infância.
Dois outros conceitos que convém distinguir para evi-
tar desde logo ambigüidades na compreensão das ques-
tões lingüísticas são os conceitos de competência gramati-
cal e desempenho lingüístico. A competência gramatical é
um saber abstrato que temos em nossa mente. Ao adquirir-
mos uma língua específica, os princípios da Gramática Uni-
versal interagem com os dados da língua e o resultado é um
complexo de parâmetros, isto é, especificações particulares

69
dos princípios gerais. Esse saber ou competência lingüísti-
ca é acessado toda vez que precisamos produzir ou com-
preender frases. O uso desse saber em uma situação de
fala específica é que constitui o desempenho lingüístico.
Assim, pode-se dizer que, se a competência é um saber, o
desempenho é um saber fazer.
Uma comparação que costuma ser usada para tor-
nar mais clara essa diferença é a de alguém que faz uma
conta grande de dividir, por exemplo. Ele sabe os procedi-
mentos, as regras de como realizar aquela operação mate-
mática, entretanto, às vezes, ele erra. Pode estar cansado,
pode ter se distraído, errou ao fazer um uso de seu saber.
Seu problema foi de desempenho, não de competência. Isso
também ocorre ao falarmos, isto é, quando colocamos em
uso nosso saber lingüístico. Por exemplo, já ouvi alguém
dizer “Vou tortar a corta”, quando, na verdade queria dizer
“Vou cortar a torta”. Vamos analisar esses dados? Como
descrever e explicar o que está acontecendo? Houve uma
troca do [ t ] pelo [ k ], não foi? Vocês já ouviram coisas
assim? Agora, será que o falante não sabe como se pro-
nunciam as palavras “cortar” e “torta”? Será que é um pro-
blema do saber lingüístico, isto é, um problema de compe-
tência? Provavelmente, não, pois, geralmente, ao cometer
um “deslize de língua” como este, o falante se corrige imedi-
atamente. O que parece estar ocorrendo é um problema de
desempenho: o falante conhece os vocábulos, mas confun-
diu certos traços de sua representação fônica ao acessá-
los.
Também, ao construirmos períodos compostos por
várias orações, podemos encontrar certos problemas. Por
exemplo, podemos formar, em Português, um período como
(3), em que há uma oração adjetiva encaixada na oração
principal:

70
(2) O aluno [que o professor aprovou] saiu.

A frase (3) é, sem dúvida, bem formada; está


construída de acordo com as regras da gramática da língua
portuguesa. Podemos aplicar a mesma regra de encaixe de
oração adjetiva para qualificar o constituinte “o professor”
da oração adjetiva. Aí, temos:

(3) O aluno [que o professor [que o novo diretor con-


tratou] aprovou] saiu.

Agora, a nossa compreensão da frase ficou um tan-


to problemática. Por quê? A regra foi a mesma que aplica-
mos em (3) e, no entanto, temos dificuldade em compreen-
der a frase! Não há dúvida que a frase é bem formada, isto
é, construída em conformidade com as regras da língua por-
tuguesa. Então, o que está acontecendo é um problema de
desempenho - os limites de nossa memória tornam difícil
estabelecer as relações. Há várias frases abertas ao mes-
mo tempo e, quando chegamos aos verbos “contratou, apro-
vou, saiu”, confundimo-nos para predicar cada um ao sujei-
to adequado: o aluno saiu, o professor aprovou e o diretor
contratou. Diz-se, então, que a frase (4) é gramatical, mas
não aceitável, sendo a gramaticalidade um critério de com-
petência e a aceitabilidade um critério de desempenho.
Nosso conhecimento da gramática envolve diferen-
tes conhecimentos. Por exemplo, um falante de Português
sabe que uma seqüência de sons como “mave” ou “sale”
são possíveis nesta língua, embora não sejam usadas como
palavras. Por outro lado, o falante rejeitaria seqüências como
“mbae” ou “at” como sendo legítimas em Português. Da mes-
ma forma, um falante de Karajá saberia dizer que palavras

71
como “rori” ou “lie” poderiam existir em sua língua, enquanto
que formas como “bnik” ou “nga” não poderiam ser Karajá.

Conclusão

À guisa de conclusão, apresentamos um breve rela-


tório da primeira etapa presencial do curso de Línguas, Ar-
tes e Literatura, em que conceitos fundamentais da
sociolingüística foram introduzidos, seguidos de uma discus-
são da fonética articulatória. Nosso objetivo com este currí-
culo foi o de instrumentalizar os alunos em alguns conceitos
fundamentais da lingüística, que possibilitarão tanto a pes-
quisa em línguas indígenas quanto uma melhor fundamen-
tação dos projetos político-pedagógicos que estes deverão
desenvolver durante os cinco anos de duração do Terceiro
Grau Indígena.
Nesta primeira etapa (Gênese), o curso de Línguas,
Artes e Literatura buscou discutir as diversas noções de gra-
mática, língua, linguagem e fala presentes na realidade dos
alunos indígenas, visando a questionar o modelo tradicional
de gramática ao introduzir como problematizadores os con-
ceitos sociolingüísticos de variação e dialeto, e como práti-
ca de pesquisa a gramática descritiva de diversas variantes
do Português falado e das línguas indígenas. Para tanto,
foram apresentadas as ferramentas da fonética articulatória,
em especial o Alfabeto Internacional de Fonética, que foi
aplicado imediatamente em trabalhos descritivos dos sons
de línguas indígenas e do Português regional falado. Além
de possibilitar aos estudantes falantes de línguas indígenas
a descrição dos sons das suas línguas maternas, a fonéti-
ca, aliada à análise fonológica (que será estudada em janei-
ro de 2002) permitirá que eles tenham o instrumental neces-
sário para entender as questões técnicas que estão por trás

72
das ortografias.
O Português padrão foi contemplado, no currículo,
dentro das atividades de leitura e produção de textos, princi-
palmente através da discussão explícita de problemas re-
correntes nesta produção (típicas do processo de aquisição
de uma segunda língua), como ausência de concordância
verbal (pessoa e número) e nominal (gênero e número), au-
sência de artigo, utilização de coloquialismos etc. A pedi-
dos, daremos continuidade a este trabalho ao longo dos cinco
anos do programa, através de atividades de leitura e escrita
nas etapas presenciais e intermediárias, visando a uma
melhoria significativa na expressão oral e escrita do Portu-
guês padrão dos alunos. Está incluída na lista de atividades
dos cursos para as etapas futuras a produção de alguns
textos identificados pelos alunos como fundamentais para a
sua formação: memorandos, ofícios, cartas pessoais, car-
tas dirigidas a autoridades, atas, projetos, relatórios e
monografias científicas.
Ficou bastante claro, durante esta primeira etapa, que
o domínio do Português padrão é entendido, pelos alunos
indígenas, como uma das formas mais eficazes de se con-
seguir o reconhecimento e o respeito da sociedade
envolvente. Por isso, o currículo do curso de Línguas, Artes
e Literatura foi modificado para incluir um tratamento espe-
cial a esta variante do Português, sem perder de vista o fato
de que não se trata de uma forma superior da língua, mas
apenas de uma variante que tem prestígio social, já que é
considerada a norma culta.
Nesse espírito, foram discutidas as diferenças entre
língua falada e língua escrita. Identificou-se o Português
padrão estudado nas escolas, com o Português escrito, uma
variante da língua que, pelo menos no Brasil, não chega a
ser falada por segmento algum da população. Por exemplo,

73
nem mesmo o Presidente da República, no conforto de seu
lar, ao conversar com os seus familiares, utiliza sentenças
típicas do Português padrão como “eu o vi”, pois no Portu-
guês falado no Brasil utiliza-se a sentença “eu vi ele”. A fór-
mula lingüística considerada a norma culta foi adotada como
uma convenção nas reuniões periódicas entre Portugal e o
Brasil que discutem a ortografia e gramática do Português
escrito. Esta norma culta está mais adaptada às variantes
do Português falado em Portugal do que às variantes do
Português falado no Brasil.
Foram discutidas, também, em sala de aula, as defi-
nições de gramática descritiva e gramática normativa (tam-
bém chamada de gramática prescritiva ou tradicional). Esta
última pode ser definida como o sistema de regras da língua
padronizada, normativizada, solidificada, que deve ser apren-
dida e memorizada, já que não corresponde à língua falada
pelas pessoas no seu dia-a-dia. Esta variante da língua é
utilizada oralmente apenas em situações específicas que
exigem o uso da norma culta - por exemplo, na imprensa,
em discursos, palestras, em debates políticos e acadêmi-
cos etc. Mesmo nestas situações, ela não é sempre utiliza-
da de acordo com as regras estabelecidas. Ou seja, mes-
mo os políticos, professores e jornalistas desconhecem ou
deixam de usar todas as convenções desta língua padroni-
zada. Vem daí o desconforto que a maioria das pessoas
têm com relação ao Português ensinado na escola. Elas per-
cebem que, apesar de serem falantes de Português, o seu
Português falado é criticado por não se adequar à norma
culta. O curso procurou esclarecer esta questão ao deixar
bem claro que: (1) o Português falado é uma variante dife-
rente do Português padrão; (2) o último é uma variante cria-
da a partir de convenções baseadas na escrita da língua;
(3) nenhuma variante é melhor ou pior do que outra, do pon-

74
to de vista lingüístico, pois todas as variantes de uma língua
têm regras e regularidades, só que as únicas regras que
são valorizadas pela sociedade são as regras do Português
padrão. Já a gramática descritiva é o sistema que descreve
uma determinada variante da língua da forma que ela é fala-
da, descobrindo as regras subjacentes à língua, regras as
quais são utilizadas pelos falantes inconscientemente. Ape-
sar de a maioria das pessoas não saberem disso, a gramá-
tica descritiva é o objeto de estudo da maioria das pesqui-
sas lingüísticas realizadas nas universidades hoje em dia. O
currículo do curso de Línguas proposto para o 3o Grau Indí-
gena propõe-se a privilegiar a gramática descritiva das lín-
guas indígenas e do Português regional dos alunos.
Neste momento da discussão, entramos na noção
de gramática internalizada, ou seja, o saber inconsciente que
qualquer falante tem de sua língua mãe. Esta gramática
internalizada é adquirida pelo falante no contexto social, pois
ninguém nasce sabendo uma determinada língua, mas ao
mesmo tempo, depende do patrimônio genético do ser hu-
mano, já que apenas os seres humanos têm a capacidade
de comunicar-se através da linguagem.
Esta afirmação nos leva a um novo tema: a definição
de linguagem, língua e fala de cada um dos estudantes, re-
presentando as visões de mundo de suas comunidades. Este
tópico foi desenvolvido em sala de aula e resultou na elabo-
ração de cartazes com os termos utilizados nas diversas
línguas indígenas para os três conceitos. Pretendemos, no
futuro, aprofundar esta pesquisa, para que seja possível
entender quais são, para os grupos étnicos representados
na sala de aula, as diversas concepções do falar, do comu-
nicar-se, e das capacidades existentes para tanto. Planeja-
se que os resultados desta pesquisa sejam incorporados
aos materiais didáticos que serão elaborados pelos estu-

75
dantes para as escolas indígenas no decorrer dos trabalhos
interdisciplinares do 3º Grau Indígena.
As atividades de pesquisa que serão realizadas pe-
los alunos, no segundo semestre, estarão centradas no es-
tudo dos sons da sua língua nativa, em busca da definição
dos fonemas. Este processo pode culminar eventualmente
na discussão das ortografias existentes e idealmente na pro-
posta de uma ortografia preliminar para as línguas que ain-
da não possuem um sistema de escrita. Estas discussões e
propostas devem surgir dos próprios alunos e/ou a partir das
demandas das comunidades de falantes3. Após este primeiro
passo4, serão registrados em áudio e de forma escrita al-
guns “textos” tradicionais da cultura oral, que serão analisa-
dos do ponto de vista da morfologia, da sintaxe e do discur-
so no segundo semestre, e no segundo ano do curso (julho
2001 e janeiro 2002). Dicionários enciclopédicos prelimina-
res das línguas serão elaborados desde o primeiro ano, como
exercício, e como material a ser utilizado nas escolas indí-
genas. Sugerimos, ainda, que a totalidade dos trabalhos e
exercícios realizados pelos estudantes no decorrer do cur-
so sejam retrabalhados para ser utilizados como material
didático nas escolas das quais eles são professores.

3
Se a língua em questão já tiver uma ortografia que está sendo utilizada pela
comunidade, não haverá necessidade de se criar uma ortografia.
4
Devemos ter em mente o fato de que o estudo dos sons e fonemas de uma língua,
bem como a elaboração de uma ortografia, são processos complexos, que envol-
vem conhecimento técnico e discussão política. Portanto, não é claro que haverá
tempo hábil para concluir estes processos durante o primeiro semestre, ou mesmo
durante o primeiro ano. Procuraremos mobilizar o grupo de lingüistas que estuda
(ou estudou) as línguas representadas no 3º grau indígena para auxiliar na viabilização
do projeto, mas caso não seja possível a definição de uma ortografia para algumas
línguas até julho de 2002, iniciaremos o segundo ano do curso registrando estas
línguas em transcrição fonética ou fonêmica.

76
Bibliografia utilizada na primeira etapa presencial (Gê-
nese)

FAUSTO, C. História. Índios do Brasil 1, capítulo 3. Brasília:


MEC, 1999.
FRANCHETTO, B. As Línguas Indígenas. In: Índios do Bra-
sil 2, capítulo 2. Brasília: MEC, 1999.
MUSSALIM, Fernanda e Anna Christina Bentes (orgs.) In-
trodução à Lingüística 2. Capítulo 8 (autoria de Marina Célia
Mendonça). Editora Cortez, 2001.
POSSENTI, Sírio. Porque (Não) Ensinar Gramática na Es-
cola. ALB: Mercado de Letras, 1996.
Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas.
Capítulo de Línguas. Ministério da Educação e Desporto,
Secretaria de Educação Fundamental, 1988.
SILVA, Thaïs Cristófaro. Fonética e Fonologia do Portugu-
ês: Roteiro de Estudos e Guia de Exercícios. Editora Con-
texto.

Bibliografia Geral

ABAURRE, Maria Bernadete & SANDALO, Maria Filomena


Spatti. Fonologia Gerativa: da Teoria Padrão à Otimalidade
(em preparação).
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na esco-
la. Mercado das Letras, 1997.
CHOMSKY, Noam. Knowledge of Language, its nature, origin,
and use. New York: Praeger, 1986.
SANDALO, Maria Filomena. (no prelo). A violação da Con-

77
dição C em Kadiweu. Revista Delta.
SANDALO, Maria Filomena Spatti & GORDON, Peter.
Acquisition and Creolization of Condition C “violations” in
Kadiwéu and Portuguese. In Cadernos de Estudos
Lingüísticos 36. UNICAMP, 1999.
SAPIR, Edward. Language. New York, Hartcourt, Brace &
World, 1921.

78
A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO DIFERENCIADA NAS
ALDEIAS DO BRASIL

Glaydson Artur do Vale Freitas*

O nosso Brasil, como todos já devem saber, é muito


rico, tanto em minerais quanto em culturas. Culturas estas
que devem ter o seu merecido lugar, tanto na sociedade
quanto no cotidiano, e nós, índios deste maravilhoso país,
também temos o direito de poder ter um espaço para a nos-
sa cultura e também para a nossa educação. Para isso, é
bom destacar que a história do Brasil não começou no des-
cobrimento, e sim começou conosco, índios! Ou seja, des-
de que o nosso país começou a ser povoado pelos portu-
gueses, holandeses, pelos escravos oriundos da África etc.
Tanto nossa cultura como a forma de educarmos nossos
filhos foram aos poucos sendo tomadas de nós, começa-
mos a ser presos, humilhados e forçados a aprender uma
cultura e língua que realmente não queríamos.
Isso acarretou a perda de muitos povos, e a mistura
de culturas, que culminaram com o fim de muitos rituais em
nossas aldeias. Isso não só se deu no Descobrimento, tam-
bém se repete nos dias atuais (em muitas aldeias), onde
nossos filhos aprendem uma história errônea de nosso povo,
onde o mais importante é o Descobrimento, e não os que já
moravam aqui, nós, índios. Tendo em vista todos os acon-
tecimentos que nos rodearam, começou um processo em

* Acadêmico do 3º Grau Indígena, pertencente à etnia Wassu Cocal do estado de


Alagoas.

79
busca de uma saída para que pudéssemos resgatar a cultu-
ra de nosso povo, surgindo assim um projeto que para mui-
tos é um sonho, para outros, uma mera invenção de alguém
que queria popularidade, ou sua vida na história atual. Mas
para nós uma necessidade, uma forma de mostrar que o
índio é capaz, que pode exercer funções, pode ser um advo-
gado, ou qualquer coisa que seja, sem perder sua cultura.
Que é igual a todos e tão capaz quanto qualquer outro cida-
dão ou cidadã.
A criação de uma educação diferenciada trouxe-nos
uma esperança, uma luz. Esperança que abraçamos e aca-
lentamos como um de nossos filhos, esperança esta que
(no meu ponto de vista) é a maior conquista de todos os
tempos para os índios. Esta porta nos traz mais um fôlego
de vida, mais uma chance de podermos sobreviver nos dias
atuais, de podermos mudar a nossa história, sem que nos-
sos filhos percam sua origem, cultura e língua. É interes-
sante ressaltar que, a cada cultura que se perde, um povo é
perdido, e já está na hora de todos nos olharem não como
um tipo de habitante diferente, pois temos direitos e obriga-
ções como qualquer outro cidadão desta nação, somos tão
brasileiros quanto os demais.
A princípio, encaramos esta educação diferenciada
com um pouco de indiferença, pois era difícil para nós acre-
ditarmos nesta realidade, ou se achávamos algo que não
perduraria, ou que não teria fim, como todas as esperanças
que nos deram. A minha comunidade, por exemplo, não
estava crendo de início, quando recebemos a informação
de que se abriria um vestibular entre os índios de diversos
cantos do país, soou como mais uma viagem que certos
índios de nossa comunidade fariam para “conhecer” o Mato
Grosso, porém o que estava no coração de três índios de
Alagoas, e não só no nosso coração, mas no coração de

80
todos os “parentes” que vieram fazer a prova de seleção,
era uma chance, não de ter um curso superior, e sim um
aperfeiçoamento na nossa área de ensino, para podermos
ser mais dinâmicos e proveitosos em nossas aldeias.
Após alguns empecilhos e barreiras rompidas com
sucessos, conseguimos chegar, assim também pelo menos
um dos que tinham vindo de Alagoas teve sucesso na pro-
va. Eu, nisso, não me sinto vitorioso ou melhor que ninguém,
pois pesa sobre os meus ombros a responsabilidade de um
povo. Quando viajo da minha aldeia para cá, em Barra do
Bugres, para estudar, me sinto como se toda a comunidade
dependesse de mim, e quando retorno estou certo de que
mais uma etapa foi cumprida, que uma parte da caminhada
foi concluída, e se Deus quiser estarei a terminar o restante
desta caminhada. No pódio, sei que só subirei, aliás, que só
subiremos (eu e minha comunidade) quando formado esti-
ver. Para isso lutarei com todas as minhas forças, forças de
um povo, forte, corajoso e que sabe fazer das impossibilida-
des vitórias.
Já para mim está sendo uma experiência extraordi-
nária, pois estamos em contínua troca de informações com
os demais índios deste país, estamos a trocar idéias, expe-
riências e a existir uma participação ampla em nosso meio,
pois não mais olhamos para os demais como índios que
não conhecemos, e sim como “irmãos”, “parentes” que tan-
to nós precisamos deles quanto eles de nós, pois na reali-
dade nós somos um povo, e um povo vive em harmonia,
apesar das diferenças culturais, regionais, e até sociais. Mas
o certo é sabermos que estamos no caminho certo, que
estamos em um rumo, que jamais deve haver preconceitos.
Já bastam os preconceitos que sofremos todos os dias dos
não-índios, já bastam as perseguições que nós estamos a
passar, e é certo que, se nós continuarmos assim, sucumbi-

81
remos no que mais tememos... a solidão.

Fugi da realidade, pelos dias e pelas noites,


Fugi da realidade, pelos arcos dos anos,
Fugi da realidade, pelas ruas em labirintos
Com o meu próprio egoísmo;
e em meio a lágrimas
Fugi da realidade e sob contínua risada,
sobre esperanças imaculadas corri
E atingido caí
Precipitando-me em sombras colossais, então, me
vi só...

Ao passar dos dias, meses e anos, começamos a


pensar que estamos nadando contra uma correnteza que
não tem fim, começamos a nos deparar com situações que
são a cada dia inusitadas para nós, paramos e pensamos
então, o que fazer? Até existem momentos em nossas vi-
das que nós nos indagamos “será que esta luta terá um re-
sultado?”. Bom, o tempo dirá, pois o mesmo é o “Senhor da
razão” e com certeza, após trilharmos por este caminho, que
não é diferente para nós, após vermos que tudo que nós
fizemos servirá de legado para os demais povos que vie-
rem a ler tal trabalho, pensamento ou reflexão deixados para
uma posterior turma de alunos, ou até mesmo para a nossa
comunidade, nos sentiremos orgulhosos e, aí sim, nos sen-
tiremos felizes por ter cumprido uma missão como índios,
guerreiros, como povo.
Também se faz necessário destacar que esta não é
e nem será somente mais uma conquista, e, sim, uma entre
tantas conquistas do povo indígena, pois aos poucos as
portas se abrem e barreiras do preconceito são desfeitas
para que mais uma vez prossigamos caminhando a passos

82
firmes e seguros para a meta e destino tão esperados e al-
mejados. Que esta educação diferenciada não fique e nem
estagne, tornando inútil a nossa luta e a luta de tantos que
deram sangue e sonharam com este momento que estamos
vivendo. Assim, um dia, poderemos ver índios advogados,
médicos, engenheiros etc; a lutarem por suas causas e a
dedicarem suas vidas (como já dedicam) por uma vida dig-
na, justa para todos os povos desta nação.
É esta a esperança que permeia o coração dos
Karajá, Rikbatsa, Bakairi, Xavante, Juruna, Pataxó, Tapeba,
Wassu... Esperança esta que sonhamos a cada dia e ma-
nhã, que contamos com a ajuda de pessoas que se dedi-
cam e se juntam a nós, para que possamos lutar, perseve-
rar, insistir, rompendo os horizontes do preconceito, das de-
sigualdades sociais e culturais que tanto nos afligem.

83
INVARIANTES CULTURAIS: CONCEITOS DE ESTÉTI-
CA E BELEZA NA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO

Zoraide Primerano Arguello*


Rodrigo Fernando Shimazu**
João Batista Desto***
Lauro Ojeda***
José Fernandes Torres da Cunha***
Maria Terezinha R. E. Conciani***

Dentro do Projeto 3o Grau Indígena, se inclui, a pedi-


do dos alunos, um curso de computação, pelo qual temos o
prazer de sermos responsáveis.
Incluído na área de Ciências, teve seu primeiro ciclo
de aulas juntamente com as demais matérias, durante a pri-
meira etapa intensiva, realizada em julho de 2001. As aulas
tiveram lugar nas instalações da UNEMAT, em Barra do
Bugres, no laboratório de informática. Os 200 alunos foram
divididos em grupos de 40, trabalhando com dois cursistas
por computador. Em nosso primeiro contato com os alunos,
constatamos que, para mais de 95% deles, essa foi a pri-
meira oportunidade de utilizarem um computador.
A inserção das aulas de computação, no Projeto 3º
Grau, foi motivada em resposta às expectativas manifesta-
das pela maioria dos candidatos, através reconhecimento

* Drª. em Física, Docente de Informática Aplicada ao Ensino de Ciências. Docente


na Etapa de Ciências Matemática e da Natureza I.
** Docente da UNEMAT, Professor Auxiliar na Etapa de Ciências Matemática e da
Natureza I.
*** Graduandos da UNEMAT, Monitores na Etapa de Ciências Matemática e da Na-
tureza I.

84
do uso de computadores como uma ferramenta de funda-
mental importância na vida moderna.
As aulas de computação deverão sempre integrar-
se com as demais matérias de Ciências, sem no entanto
perder seu objetivo direto e imediato de munir os alunos dos
conhecimentos básicos de computação para uso em
editoração eletrônica, arquivos de som e de imagens, traba-
lhos gráficos, banco de dados, programação simples e
multimídia.
O necessário treinamento, nesses tópicos, será feito
pela execução de tarefas referentes a temas de interesse
cultural e local, escolhidos pelos alunos, entre os quais cita-
mos, por exemplo:
- a produção de material didático para uso em esco-
las;
- a preservação da memória (não somente da cultu-
ra indígena, como do próprio curso), através da preparação
de shows de slides, editoração de livros ou textos didáticos
simples;
- apresentações gráficas multimídia via Power Point
ou análogo;
- editoração de jornais ou seminários que tanto divul-
guem o dia-a-dia das aldeias como seja um fórum para dis-
cussão de seus problemas quotidianos e exercício de cida-
dania.
Dada sua generalidade, esses tópicos podem ser
executados em cooperação não apenas dentro do grupo de
Ciências como também, sem restrição alguma, com as de-
mais áreas do curso do 3º Grau.
Dentro dessa ótica, o curso de computação poderá e
deverá se caracterizar por uma função integradora de todos
os esforços do Projeto. Em realidade, esse é um dos fatores
que fazem com que o computador tenha um uso irrestrito

85
em nossa sociedade e será forçosamente assim, com as
comunidades indígenas.
Reconhecendo o computador, como nada mais que
uma ferramenta. A expectativa do curso é ensinar seu ma-
nejo e aplicação corretos, estimulando que seu uso seja es-
colhido pelos alunos, garantindo, assim, a preservação cul-
tural à qual nos referimos anteriormente.
Com o propósito de que os alunos desenvolvessem
a habilidade de “viajar”, confortavelmente, nas “rotas” do com-
putador, nossa principal meta, nessa primeira etapa, foi con-
seguir que eles, em sua maioria pessoas já adultas e mes-
mo lideranças em suas aldeias, desenvolvessem a coorde-
nação motora indispensável ao uso eficiente do mouse. Para
tanto, propusemos três atividades, todas altamente depen-
dentes da utilização do mouse: ligar e desligar corretamente
o computador, a partir do menu “Iniciar” localizar e reconhe-
cer as características gerais de programas Windows, prati-
car com os programas Calculadora e Paint.
Embora, em todas essas etapas, tivéssemos opor-
tunidade de constatar a capacidade de aprendizado dos alu-
nos, que puderam utilizar os computadores por não mais
que um total de 20 horas, foi no decorrer da terceira etapa,
mais precisamente, ao trabalharem com o Paint (por cerca
de 10 horas), que fomos inquestionavelmente levados às
observações que motivam este artigo.
O Paint, como é sabido, é um dos mais simples pro-
gramas que permitem desenhar com o computador. Embo-
ra possua algumas ferramentas auxiliares, a realização dos
desenhos fica fortemente dependente da habilidade no uso
do Mouse, isto é; da coordenação necessária para movê-lo,
convenientemente, enquanto se olha a tela do monitor. O
procedimento é bastante distinto do desenhar comum, em
que o desenho é feito na mesma superfície para a qual olha-

86
mos, como quando se utiliza lápis e papel, pintura com pin-
cel em tela etc.
Esta é a primeira dificuldade a ser vencida pelo con-
dicionamento. Somente após essa etapa é possível real-
mente desenhar, sendo que essa tarefa pode e deve ser
simplificada pelo uso das “ferramentas” fornecidas pelo pro-
grama. Embora criadas para facilitar várias tarefas, dese-
nhar com essas “ferramentas”, no início, apresenta-se como
uma segunda barreira a ser dominada, pois trata-se de um
conceito inerente ao uso de computadores e portanto com-
pletamente desconhecido para os alunos. Apesar de todas
as dificuldades do processo, das quais somente menciona-
mos umas poucas, os resultados obtidos foram bastante
entusiasmantes. Esses resultados não demonstraram ape-
nas a compreensão prática da técnica, mas também, gra-
ças ao alto nível de elaboração de muitos dos desenhos
apresentados, no final da etapa, permitiram-nos observar o
que denominamos “Invariantes Culturais dos Conceitos de
Estética e Beleza”.
Em conformidade com a principal diretriz, adotada
no curso de 3º Grau, de que é fundamental que se busque
sempre estimular a auto-estima pela valorização e preser-
vação cultural, solicitamos que os alunos, como exercício,
elaborassem desenhos preferencialmente sobre temas de
sua cultura. Parece-nos, portanto, válido considerar que seus
desenhos se alicercem nesses conceitos, consideração essa
que fundamentará todas as conclusões seguintes.
Ao analisarmos os exercícios, observamos que a mai-
oria deles demonstra que o domínio do mouse foi efetivado.
Mesmo alunos que apresentam dificuldades com o Portu-
guês parecem se entender bem com o computador, como
mostram as figuras 1, 2 e 3. Observe que essas figuras fo-
ram feitas com o programa Paint e a mão livre.

87
Fig. 1

Fig. 2 Fig.3

As figuras 4, 5, 6 e 7 mostram os conceitos de pro-


fundidade e composição.

Fig. 4 Fig.5

Fig. 6

88
Fig. 7

As figuras seguintes, tanto nos desenhos gerais


como nos culturalmente específicos, testemunham a impor-
tância do sofisticado conceito de simetria.

89
90
Tudo o que foi mostrado, em todas as figuras acima,
com referência aos conceitos de profundidade, composição
e simetria, tanto nos trabalhos desenhados a mão livre como
naqueles em que foram utilizadas ferramentas do progra-
ma, compõe uma pequena amostra do que, de início, deno-
minamos de “Invariantes Culturais“, pois podem ser encon-
trados nas mais diversas culturas, como uma linguagem
comum que as irmanam em suas expressões de estética e
de beleza, desde os tempos imemoriais até hoje em dia.

91
ETNOCONHECIMENTO NA ESCOLA INDÍGENA

Carlos A. Argüello*

O etnoconhecimento é peça fundamental na nossa


proposta de construção de uma escola indígena, que seja
algo mais que uma escola de brancos pensada para índios.
Propomos uma escola que incorpore o saber dos anciãos,
as características da educação indígena ancestral, integra-
da à comunidade, e que resgate da escola do branco os
saberes necessários a seu empowerment e a prática da Edu-
cação Libertadora.
O dicionário Aurélio (Ferreira, 1975) traz, como pri-
meira acepção da palavra escola: estabelecimento público
ou privado onde se ministra, sistematicamente, ensino cole-
tivo. “Estabelecimento de Ensino Coletivo” pressupõe alguns
professores, muitos alunos, em local determinado.
A escola indígena tem o direito legal de ser uma es-
cola diferenciada. Isto lhe confere um grau de liberdade para
organizar seus currículos, administrar seus horários, possi-
bilidade de organização bilíngüe com direito à alfabetização
na 1a língua etc.
A Escola Indígena é responsabilidade última dos
municípios e dos estados, tendo que se enquadrar nas dire-
trizes de orientações básicas educacionais da Federação.
A tendência geral hoje, é de que os professores das
escolas indígenas sejam índios, e prioritariamente que per-

* Dr. em Física, Consultor e Docente na Etapa de Ciências Matemática e da Natu-


reza I. Texto apresentado em palestra na Sociedade Brasileira de Física, 2001,
Natal.
92
tençam à mesma etnia dos alunos. Mesmo assim, a escola
indígena é a escola do branco para o índio. É a mesma es-
cola que o branco pensou para ele, mas a serviço do índio.
Esta escola possuirá, então, muitos dos defeitos que possui
a escola do branco, a que está ligada geneticamente, al-
guns suavizados pelo direito à diferenciação. A escola do
branco prestigia o pensamento cartesiano, o reducionismo
mecanicista, a disciplinaridade, traz implícita a idéia ou prin-
cípios do progresso, a escrita, o cálculo, a teoria, o acúmulo,
o consumismo, a competição e, apesar de propiciar a utili-
zação dos meios globais de informação, ignora seu entorno
imediato, ignora o conteúdo cultural dos seus alunos e fami-
liares e tende a uma padronização estéril.
As correções de rumo, necessárias, foram realiza-
das dentro do marco da pulverização disciplinar e do apelo
a tendências para as quais nem os professores, nem as
escolas, estão preparados: transdisciplinaridade e visões
estreitas de ambientalismo.

Escola indígena

A escola, como uma estrutura humana, conceitual,


onde se aprende, sempre esteve presente na educação in-
dígena, não propiciando um ensino coletivo, mas, sim, uma
educação artesanal, preceptoral, individualizada,
contextualizada e onde se fomenta o Fazer.
Professores são a família e a família estendida.
Esta escola, baseada na oralidade e na prática exaus-
tiva, não pressupõe competitividade, não é dividida em dis-
ciplinas e predispõe ao afloramento do pensamento com-
plexo. No momento, esta escola está em perigo de extinção.
O recente aparecimento da figura do jovem professor índio
assalariado cria outras instâncias de poder, saber, comuni-

93
cação e liderança que perturbam a estrutura ancestral (Ban-
deira, 1997). Os anciões, os sábios, os antigos mestres se
sentem ignorantes frente aos avanços da “Nova Educação”,
propiciada pela “Escola para Índios”.
Aqui, eu quero relatar duas experiências, duas situa-
ções vividas em locais completamente diferentes e distan-
tes. Um, na escola das etnias Baniwa – Coripaco, nas mar-
gens do rio Içana, afluente do rio Negro, nas terras indíge-
nas do Alto Rio Negro, estado do Amazonas, perto da fron-
teira com a Colômbia, em meados do ano 2000. Outra, na
etapa de preparação das atividades dos cursos de Licenci-
atura para professores indígenas, no Campus de Barra do
Bugres, da Universidade do Estado de Mato Grosso, em
Maio de 2001. Em ambas as ocasiões, antigas lideranças
indígenas, sábios anciões, fizeram discursos parecidos, so-
licitando publicamente que instruíssemos os jovens profes-
sores das suas etnias para que estes não fossem tão igno-
rantes como eles. Mas não são esses anciões, os detento-
res do conhecimento indígena, que nenhum indígena en-
quanto tal deve ignorar? Não são eles os detentores do que
a academia chama de etnoconhecimentos? Não são eles,
os que conhecem os segredos da mata, dos rios, dos ani-
mais, os que curam as doenças, os que conhecem os se-
gredos do céu, conhecem o calendário astronômico que rege
na Terra as chuvas, as migrações das aves, as piracemas,
as enchentes, o tempo certo de plantar? Não são eles os
que conhecem os rituais, as danças, as cerimonias, os que
falam com os Deuses? Não são eles que conhecem o se-
gredo da caça e são os melhores artesãos? Quem destruiu
a sua auto-estima, quem modificou os seus valores de jul-
gamento? Não será a escola evangelizadora, que os queria
cristãos? Não será a escola integracionista, que os queria
integrados, indiferenciados? Não serão as diferentes esco-

94
las, que os queriam tratoristas, cortadores de cana, engre-
nagens microscópicas na grande máquina da economia
branca? Não será também a Escola Indígena, na sua ver-
são “Escola para Índios”? Prestigiando em demasia os co-
nhecimentos e a cultura do branco em detrimento das pró-
prias? Quero citar, aqui, uma experiência que está no come-
ço e irá frutificar somente dentro de cinco anos. Espero, en-
tão, daqui a cinco anos, podermos nos encontrar para infor-
mar e prestar contas. É nosso empenho e trabalho formar
professores indígenas no 3o grau, licenciados em várias áre-
as do conhecimento. Coube-me a delicada tarefa de coor-
denar a área de Ciências Matemática e da Natureza dessas
Licenciaturas diferenciadas.
Os cursos são ministrados em etapas intensivas, no
Campus de Barra do Bugres (MT), para 200 professores
índios, de 36 etnias diferentes.
Nas etapas intermediárias, o professor índio, enquan-
to leciona na sua escola, realiza tarefas, trabalhos e pesqui-
sas ligadas ao seu curso universitário. Nestas etapas inter-
mediárias, também recebe, em sua aldeia, na sua escola, a
visita e a orientação da equipe de professores do curso (do-
centes), que, desse modo, também interagem com a comu-
nidade.
O trabalho na etapa intermediária visa a resgatar para
a escola os conhecimentos ancestrais indígenas, valorizar
os detentores dos diferentes saberes, diminuir a separação
escola – comunidade, permitir a docentes e professores in-
dígenas um conhecimento melhor da realidade das aldeias
e das escolas, estabelecer o diálogo direto com a comuni-
dade.
Nestes momentos, o olho atento e treinado do do-
cente poderá detectar junto à comunidade saberes, valo-
res, práticas, que poderão ser objeto de estudo sistematiza-

95
do, com a finalidade de sua incorporação escolar.
Darei um exemplo.
Junto com as Professoras Marta Azevedo e Judite
Albuquerque, realizamos, na Escola Paanhali1, da etnia
Baniwa, um trabalho de resgate, junto aos professores da
escola, do Calendário astronômico Baniwa. Trouxemos para
as discussões vários anciões, que deram sua importante
contribuição.
Em etapa posterior, reunimo-nos em São Gabriel da
Cachoeira (AM), com alguns desses professores indígenas
e mais cinco anciões. Trabalhamos durante vários dias, até
estabelecer, em forma definitiva, um calendário natural cir-
cular, e um calendário astronômico, explicados em Baniwa
e em Português.
Da riqueza do calendário natural surgiram importan-
tes ensinamentos, como por exemplo o de equilíbrio ecoló-
gico, presa – predador, na sua versão indígena, as conste-
lações Baniwa foram “traduzidas” às constelações acadê-
micas e vice – versa, possibilitando o diálogo intelectual e a
motivação para seguir estudando o céu, os fenômenos as-
tronômicos, climáticos etc., simultaneamente, a partir dos
diversos olhares.
É interessante comentar que a introdução do com-
putador e um programa de simulação do céu encantou os
mais velhos que, em pouco tempo, foram capazes de utili-
zar este novo instrumento sem constrangimento nenhum.
Cito esta passagem como um exemplo de saberes
complementares.
Nossa proposta é incorporar, nas atividades da es-
cola, a comunidade, os velhos mestres, seus saberes e
ensinamentos, os conhecimentos tribais, enfim, derrubar os

1
No rio Içana - Amazonas

96
muros2 que a escola do branco possui e que a separa da
comunidade e realidade que a rodeia, e que a escola para
índios, como citei anteriormente, herdou em algum grau. Em
contrapartida vejo a escola para índios como uma forma de
“potencialização” ao estilo Freiriano.
Segundo Paulo Freire, potencialização ou
empowerment é um processo que “permite ao estudante in-
terrogar e seletivamente se apropriar daqueles aspectos da
cultura dominante, que vão lhe prover as bases para novas
definições e transformações, em vez de meramente servir à
ampla ordem social estabelecida”. Continuando com Paulo
Freire, nosso grande mestre, gostaria de citar, da Pedago-
gia do Oprimido, a seguinte afirmação:
“Ninguém educa ninguém. Ninguém educa a si mes-
mo. Os homens se educam entre si mediatizados pelo mun-
do!” (Freire, 1992).
Comentar esta sentença inspiradora ocuparia horas,
mas vamos nos perguntar tão-somente: qual é esse mundo
mediatizador? Intermediador?
A experiência de vida da pessoa constrói seu mun-
do, comunidades étnicas mais ou menos isoladas, cultural-
mente definidas, produzem mundos individuais com alto
grau de semelhanças. Poderíamos, simplificando, então,
idealizar um mundo “padrão” étnico ou tribal. Mas e o mun-
do do professor indígena, aberto a outras experiências e vi-
sões de mundo? E o mundo do professor de professores
indígenas? Como pode se conceber ou construir um mundo
mediatizador? Na nossa tradição educacional, a escola des-
conhece e ignora o processo de mediatização por mundos
que nem sequer ensina a ler.
Será necessário que, entre os mundos a dialogar,
2
Ref. Ciranda das Ciências – A Ciência na Escola – Palestra “A Escola Sem
Muros”.

97
exista uma interseção que gere o mundo comum que será o
mediatizador. Então, o diálogo de características interculturais
servirá para ampliar o mundo comum a ambos, num pro-
cesso, cuja meta ideal, mas impossível, seja a união destes
mundos individuais. É nossa intenção que a escola seja o
espaço dialógico para a ação mediatizadora.
Note-se que esta iniciativa transborda os limites da
educação em geral, que irá se beneficiar, sem dúvida, da
experiência indígena na educação.
Parafraseando Bartomeu Melia (Ameríndia, 1998):
“Não há um problema de educação indígena, há so-
luções indígenas ao problema da educação”.
A abertura de 200 vagas para os cursos de licencia-
turas, reservados aos professores indígenas, equivaleriam,
na população brasileira, à abertura de aproximadamente 100
000 vagas, resguardando as proporções populacionais.
A necessidade de construir seu próprio material di-
dático, textos, equipamentos, em constante diálogo com a
realidade em volta, incluindo a pobreza, é um desafio, que,
uma vez vencido, como tudo leva a pensar que o será, cons-
tituir-se-á em modelo a ser seguido por outras instâncias
fora da educação indígena.
A revalorização da escola, de uma escola cultural-
mente comprometida, mas aceitando a perspectiva de Edu-
cação Libertadora, poderá servir de modelo a outras minori-
as, movimentos sociais, e, basicamente, à escola tradicio-
nal, qualquer que seja o nível econômico dos seus alunos,
para que, engajada social, crítica e construtivamente, torne-
se uma solução e deixe de ser um problema.

98
Bibliografia

BANDEIRA, Maria de Lourdes. “Formação de Professores


Índios: Limites e possibilidades”. In: Urucum, Jenipapo e Giz.
Cuiabá: CEI/MT, 1997.
FREIRE, Paulo. A Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1992.
MELIÁ, Bartolomeu. “Ação Pedagógica e Alteridade: Por
Uma Pedagogia da Diferença. In: Ameríndia. Cuiabá: CEI/
MT, 1997.

99
CONVERSANDO COM A NATUREZA

José de Alencar Simoni*


Magno Amaldo da Silva**
Paulo Sérgio Vasconcelos de Oliveira**
Márcia Regina Zottesso do Nascimento**
Matthieu Tubino***

Observações iniciais

O presente relato tem por objetivo apresentar uma


das atividades de Ciências, realizadas durante a primeira
etapa de Formação dos Professores Indígenas, no Curso
3º Grau Indígena, na Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT), Campus de Barra do Bugres, cujo tema central
era “Gênese”, realizado em Julho de 2001.
Também apresentamos os roteiros desta atividade e
uma série de observações objetivas sobre o desenvolvimen-
to da mesma. Os cinco procedimentos descritos neste rela-
to foram desenvolvidos num período de, aproximadamente,
8 horas, em cinco turmas de 40 estudantes (professores
indígenas), sendo esta atividade, a primeira de uma série
desenvolvida com estes alunos.
Neste relato, quando nos referirmos à palavra Ciên-
cia, acompanhada de qualificativos como “não-indígena” e
“branco”, estaremos fazendo referências à Ciência feita pela

* Professor Assistente Doutor – Instituto de Química, Universidade Estadual de


Campinas, Docente na Etapa de Ciências Matemática e da Natureza I.
** Professores Auxiliares na Etapa de Ciências Matemática e da Natureza I.
*** Professor Titular – Instituto de Química, Universidade Estadual de Campinas.

100
Sociedade Ocidental Moderna (Snively, 2001: 8).
Apesar de tratarmos exclusivamente do tema Méto-
do Científico, nossa opinião não é a de que há apenas um
método de fazer Ciência, a intenção principal foi a de
exemplificar uma das formas de se fazer Ciência, muitas ve-
zes definida como: “A Ciência Moderna do Ocidente”
(Snively, 2001: 8).
O presente trabalho foi elaborado e desenvolvido den-
tro da visão de pesquisadores / professores da área de Ci-
ências Exatas, e, portanto, tem seu componente mais forte
sob este ponto de vista.
De nossa parte, embora este não tenha sido elabo-
rado para um público específico, acreditamos que ele possa
ser entendido e utilizado por profissionais de diversas áreas
do conhecimento, inclusive por professores de escolas do
“branco”. Neste último caso, os procedimentos experimen-
tais descritos podem ser aplicados, com as devidas adapta-
ções para o nível a que se destinarem.

Introdução

Toda investigação científica envolve aspectos expe-


rimentais e mentais (Vineyard, 1949: 383). Ela é, simultane-
amente, execução e raciocínio, observação e imaginação.
A intenção de investigar alguma coisa, um fato, um fenôme-
no ou uma “suposição” de algo que ainda não foi verificado
surge do fato de as pessoas tentarem explicar os “porquês”
dos fenômenos que as intrigaram (CBA, 1969: 3-7).
Todos nós fazemos diversas observações todos os
dias, entretanto, somente um número relativamente peque-
no delas chama a nossa atenção. Este interesse pode ter
várias causas. A mais elementar de todas é a diversão
(Nuffield, 1968: 1). Qualquer indivíduo se diverte, quando

101
verifica algum fato novo e consegue entender algo a seu res-
peito. No entanto, muitas vezes, estamos interessados em
explicar fatos e observações que nos possibilitem entender
o que foi visto e “tirar algum benefício disto”.
O sucesso que a espécie humana sentiu em sua bre-
ve existência, na face da Terra, e a conseqüente formação
das primeiras cidades, bem como o acúmulo de pessoas
nestas cidades, exigiram esforços redobrados para suprir
as necessidades de uma população cada vez mais cres-
cente. De tudo isto, emergiu o que denominamos a “Ciência
do branco”, caracterizada pelo seu “método científico”. O
“método científico” é um instrumento que o homem utiliza
para entender a Natureza. A Natureza compreende todas
as coisas que existem no Universo (Meis, 2000: 1).
O uso deste “método científico” mostrou-se extraor-
dinariamente produtivo, possibilitando um maior conhecimen-
to sobre a Terra e o Universo, além de aumentar a capaci-
dade de produção de alimentos e remédios. Os resultados
positivos mais importantes deste método são a compreen-
são do mundo em que vivemos e a formação e desenvolvi-
mento dos hábitos mentais imprescindíveis na investigação
deste mundo.
Não queremos com isto dizer que somente este “mé-
todo científico” pode levar ao conhecimento que, hoje, te-
mos, nem que o mesmo tenha sido ou é utilizado só em
“benefício” do homem que o criou. É fácil perceber que não.
Para que os professores indígenas pudessem com-
preender o que significa “o método científico do branco” (en-
tenda-se aqui a palavra branco em seu sentido mais amplo)
é que propusemos a atividade que será descrita a seguir.
Examinar um objeto fechado, como uma caixa ou um saco,
contendo em seu interior objetos que são, entre si, seme-
lhantes em alguns aspectos e muito diferentes em outros,

102
além de estimular a curiosidade do estudante poderia dar
uma visão clara de como o “branco” faz Ciência, ou melhor,
de como ele “conversa com a Natureza” e tenta entendê-la,
explicá-la e tirar algum proveito disto.
Mas, afinal, quais são as características desta Ciên-
cia? As duas principais características que distinguem a ex-
perimentação científica das observações comuns são: o iso-
lamento do fato estudado e o controle do mesmo. O cientis-
ta não-indígena tenta separar ou isolar, de qualquer outra
coisa, o seu objeto de estudo. Denomina-se, então, esta
forma de “conversar com a Natureza”, como a experimenta-
ção controlada.
Pode-se considerar que um experimento científico
seja, de algum modo, o resultado a questões como: “o que
acontece?”, “Como acontece?”, “Com que freqüência isto
acontece?”, “Quantos...?” Etc. As duas primeiras perguntas
preocupam-se com os aspectos qualitativos do fato ou fe-
nômeno e as duas últimas com os quantitativos. Ambos os
tipos de respostas podem ser dadas, dependendo da forma
como conduzimos nosso experimento.
Dois aspectos são importantes para o sucesso des-
ta experimentação: a capacidade de fixar a atenção em tudo
que está ocorrendo durante a experimentação e a habilida-
de de juntar todos os dados e fatos acumulados e associá-
los de forma adequada. Embora ambos os aspectos tenham
um componente individual, os mesmos podem ser, em cer-
ta extensão, trabalhados e aprimorados (Le Chatelier, 1930:
2584).

Objetivo

A atividade proposta teve como objetivos explorar


os aspectos qualitativos e quantitativos do “método científi-

103
co da Ciência do branco”, utilizando, num primeiro instante,
ferramentas aparentemente simples, mas muito sensíveis,
como os órgãos dos sentidos. Os aspectos qualitativos e
quantitativos poderiam ser explorados em sua plenitude, uma
vez que os “roteiros experimentais” eram totalmente aber-
tos e “induzidos” a serem desenvolvidos na forma de pes-
quisa para despertar o interesse do estudante para a inves-
tigação científica. Despertar sua curiosidade para “desco-
brir” coisas, utilizando o método científico. Este despertar
também poderia ser feito com outros tipos de atividades
lúdicas, como jogos de cartas (Ziegler, 1974: 532), ou com
experimentos mais específicos da Química (Hanson, 1981:
4340) ou da Matemática (Sauls, 1990: 958).
Procurou-se mostrar as diversas possibilidades de
investigação, inclusive com o uso da Estatística. A Química,
como um caso particular de Ciências Matemática e da Natu-
reza, foi totalmente contemplada, nesta atividade, sem, no
entanto, permitir-se que fosse explorada de uma forma di-
vorciada das outras áreas.
A exposição do trabalho executado pelos estudan-
tes e o resultado prático obtido também tiveram um signifi-
cado importante, pois serviram para estimular o poder de
síntese e a forma de apresentação de resultados.

Descrição da atividade

Os alunos-professores foram divididos em grupos de


quatro integrantes, totalizando 10 grupos por turma. Todos
eles receberam apenas informações orais sobre o que es-
tariam experimentando (pesquisando).
Cada etapa descrita, na seqüência, era informada
oralmente, assim que a anterior houvesse sido realizada e
discutida. Este método permitiu um maior diálogo com os

104
estudantes e uma maior clareza na exposição dos objetivos
experimentais. Entendíamos, neste momento, que as orien-
tações escritas poderiam ser assimiladas de maneira mais
lenta que as orais e, também, com possibilidades de serem
mal interpretadas.

Procedimento 1
Cada grupo receberia o objeto de estudo (todos os
objetos eram iguais). Este objeto, dois sacos plásticos não
transparentes, tendo em seu interior 10 embalagens de fil-
me fotográfico, contendo, cada uma destas embalagens, di-
ferentes materiais comuns ao dia-a-dia das pessoas (sóli-
dos, líquidos e gases), em seu interior. Eram materiais co-
muns, como: sal, açúcar, água, polvilho, fubá, bicarbonato
de sódio (não muito comum para os estudantes), óleo co-
mestível, areia, pó de café, carvão moído, entre outros. Es-
tas 10 embalagens estavam inseridas dentro de dois sacos
plásticos, sobrepostos, não transparentes e fechados.
Não era permitido abrir os sacos nem apertar com
força as embalagens (nas instruções, eles não receberam
informações sobre o que eram estas embalagens). Utilizan-
do as sensações do tato, audição e visão, os alunos deveri-
am interagir com o objeto e conduzir suas observações. Não
havia qualquer preocupação inicial com o tempo de execu-
ção do experimento.
Depois de encerradas as observações, cada grupo
elaboraria um documento escrito e relataria oralmente suas
observações. Todos os relatos seriam anotados no quadro,
e um resultado final, representativo de toda a turma, seria
discutido como o “resultado aceito”.

Procedimento 2
Na seqüência, o saco, contendo os objetos, poderia
ser aberto, porém não era permitido que o seu interior fosse
105
observado diretamente. Um frasco, por vez, seria retirado,
destampado e as características de seu conteúdo observa-
das e anotadas. O frasco voltaria para o saco e outro aluno,
após mexer o conteúdo dos sacos, retiraria um outro frasco,
podendo ou não ser o anterior, repetindo o mesmo procedi-
mento.
Entre 30 e 50 amostragens deveriam ser feitas, os
resultados anotados e uma previsão do que os frascos con-
tinham seria feita por um tratamento estatístico. Aqui, o ob-
jetivo específico era verificar que, mesmo sem experimen-
tar o objeto por completo, ainda assim é possível inferir ou
mesmo confirmar uma propriedade do conjunto total.
Na seqüência, seria permitido abrir todos os frascos,
observando-se e descrevendo-se seu conteúdo. Caracte-
rísticas como cor e granulação eram as que se desejava
que fossem observadas. O resultado obtido seria compara-
do com aquele feito pela amostragem.
Esta etapa do procedimento tinha como objetivo cen-
tral fortalecer a idéia de que o “fazer Ciência”, como os bran-
cos a entendem, significa, num momento inicial, observar e
anotar de maneira metódica e clara os dados e os fatos per-
tinentes. Além disso, havia a preocupação de se introduzir a
estatística como uma possível ferramenta de investigação,
e como ela pode ser aplicada e seus resultados interpreta-
dos.

Procedimento 3
Nesta etapa, desejava-se verificar a propriedade da
água em solubilizar cada um dos sólidos existentes dentro
das embalagens. Os alunos deveriam colocar uma certa
quantidade de cada material em meio copo de água e verifi-
car o que ocorria. Além da verificação desta propriedade, a
questão da conceituação dos materiais como solúveis, par-

106
cialmente solúveis ou insolúveis também era parte dos obje-
tivos desta parte da atividade.
Também agora, já havia uma certa preocupação em
se ensinar algum conteúdo de Química, mesmo que de uma
forma “disfarçada”, para não comprometer o objetivo maior
de toda a atividade.
Não havia qualquer preocupação com aspectos
quantitativos, os volumes foram tomados como está descri-
to e a quantidade de sólido, qualquer uma, entre uma colher
cheia e uma “ponta de colher”.

Procedimento 4
Nesta parte, cada sólido, separadamente, seria pos-
to em contato com uma solução de iodo, destas encontra-
das em farmácia. A idéia era verificar que nem todos os pós
de mesma característica (cor e granulação) apresentam to-
das as propriedades semelhantes. Aqui, o conceito de rea-
ção química (objetivo central da Ciência Química) foi
tenuamente utilizado. Por outro lado, sólidos tão diferentes
como farinha de trigo e farinha amarela de milho mostram
resultados semelhantes com a solução de iodo.
A idéia que se queria ressaltar, nesta etapa, era a de
que “as aparências enganam”. Sólidos de mesma cor, tex-
tura e granulação (que corresponde aos testes iniciais) po-
dem apresentar propriedades diferentes quando investiga-
dos com outras ferramentas (testes posteriores), e alguns
sólidos que apresentam propriedades diferentes, nos testes
iniciais (visão, tato), podem apresentar resultados semelhan-
tes nos testes posteriores (solução de iodo).

Procedimento 5
Os sólidos brancos e amarelos seriam colocados in-
dividualmente em uma colher protegida por papel alumínio

107
e aquecidos ao fogo de uma chama. Alguns destes sólidos
ficariam negros como carvão e outros não, mostrando, ou-
tra vez, que “as aparências enganam”.
O objetivo central, desta etapa, era o de mostrar que
os materiais que se tornam negros ao aquecimento podem
conter outras coisas em comum, no caso, “átomos de car-
bono” em suas moléculas. Isto já era uma forma de se intro-
duzir, despretensiosamente, a existência de “átomos de car-
bono”. A idéia era “deixar no ar” as palavras: átomo e carbo-
no, as quais seriam objetos de estudo nas próximas ativida-
des sobre a gênese do universo.
Além disso, seria possível mostrar, também, uma das
mais antigas ferramentas do homem na investigação, se não
a mais antiga: a ação do fogo sobre os materiais.
Para finalizar, deve-se acrescentar que este procedi-
mento não foi realizado em todas as turmas e, onde ele foi
realizado, o foi como demonstração.

Resultados e discussão

Procedimento 1
Neste trabalho inicial, os alunos mostraram boa ca-
pacidade de análise do material recebido. A totalidade dos
estudantes tentou atribuir uma identidade ao conteúdo con-
tido nas embalagens, embora esta não tivesse sido nossa
preocupação inicial.
Era desejável que comparassem o som provocado
pelos diversos sólidos, no interior das embalagens, com al-
guma coisa já conhecida. Observou-se que, embora todos
os grupos tivessem usado esta estratégia de investigação,
a grande maioria destes grupos, em suas apresentações
orais, não utilizou uma frase como: “isto se parece com”.
Isto ficou evidente pelo fato de todos, sem nenhuma exce-

108
ção, terem afirmado que os frascos encontrados, no interior
do saco plástico, eram embalagens de filme fotográfico.
Todos os grupos determinaram as dimensões dos
frascos, utilizando régua e isolando cada frasco.
Uma outra característica marcante foi o fato de que
todos os grupos, sem nenhuma exceção, estimaram a mas-
sa do conjunto, embora isto não fosse uma das observa-
ções desejadas ou relevantes, do nosso ponto de vista inici-
al. Entretanto, isto evidencia a curiosidade intrínseca que
estes estudantes possuem.
Ficou evidente que a maioria deles não tinha uma
idéia clara de como e com o que estariam comparando aque-
le objeto para estimar a sua massa. Acreditamos que este
fato esteve associado à construção de uma balança rudi-
mentar nas atividades de Física, já que vários grupos utili-
zavam réguas na forma de alavanca para fazer esta estima-
tiva.
Como alguns frascos de solução de iodo estavam à
disposição na mesa dos docentes e como se tratava de ma-
terial “confiável” (na opinião deles), eles utilizaram alguns
destes frascos para fazer as comparações. Não há uma ex-
plicação segura, dentro da lógica da “Ciência”, para que ado-
tassem este procedimento, já que os rótulos destes frascos
não apresentavam o conteúdo em massa ou, muito menos,
alguma grandeza que permitisse fazer comparações. É pos-
sível que alguns alunos, tendo conhecimento prévio da den-
sidade, especialmente da água, tenham se aventurado a
estabelecer conexões como: densidade da água - volume
da solução - massa da solução - massa do frasco etc.
Alguns grupos utilizaram a régua como simples ala-
vanca para fazer a estimativa. Nestes casos, eles simples-
mente apoiavam parte da régua em uma mão e aplicavam
uma força do lado oposto ao objeto que queriam determinar

109
a massa. Embora isto não se configurasse como uma “boa
técnica” na Ciência do branco, não fizemos qualquer interfe-
rência neste sentido. Nosso papel restringiu-se em questio-
nar os “como” e os “porquês” destas avaliações, de modo a
estimular seu senso crítico na investigação.
Se fizermos uma analogia com o que ocorre com os
estudantes brancos, veremos que o comportamento se re-
pete. Neste caso, temos visto com bastante freqüência, por
exemplo, que quando os estudantes brancos estão estu-
dando reações químicas entre duas substâncias, basta que
deixemos de prestar atenção, por um momento, e os mes-
mos passam a misturar três, quatro, cinco e até todos os
reagentes disponíveis em um só frasco. Faz parte da natu-
reza humana pôr em prática, o mais rápido possível, o co-
nhecimento recém-adquirido na resolução de problemas no-
vos. Isto se mostrou bem claro com os nossos estudantes-
professores indígenas.

Procedimento 2
Na seqüência, os alunos puderam abrir o saco e ob-
servar o seu conteúdo. Puderam contar as embalagens e
também abrir cada uma delas, verificar e descrever seus
conteúdos. A idéia era verificar que observações corretas
podem nos aproximar dos resultados desejados, observa-
ções incorretas, não. Ao relatarem seus resultados, e levan-
do em conta todos os resultados da turma em conjunto,
puderam sentir que a amostragem é uma ferramenta
poderosíssima no “fazer Ciência”.
Antes de se permitir a abertura completa dos sacos
(objeto de estudo), foi feita uma análise conjunta de todos
os dados obtidos na amostragem estatística, evidenciando
que esta análise, o tamanho da amostragem e a repetição
de resultados são características do “fazer Ciência” para o

110
branco.
Com a abertura dos potes, ficou evidente que, ago-
ra, o “fazer Ciência” utilizava uma ferramenta mais podero-
sa: a visão. Inicialmente todos se preocuparam em dar a
identidade ao material contido em cada pote. Foi necessário
intervir, no sentido de que eles apenas se preocupassem
com a descrição do conteúdo, alguma coisa como: um pó
branco de granulação bastante fina etc. Isto não foi um gran-
de obstáculo para eles.
Aqui, devemos fazer um novo parênteses, o com-
portamento dos estudantes repete o comportamento dos es-
tudantes brancos, principalmente aqueles relativos aos es-
tudantes brancos que já são professores. Em vários cursos
de aperfeiçoamento, temos verificado a freqüente tentativa
destes professores brancos em identificar sistemas com fer-
ramentas que não o permitem. Em Ciência é o que classifi-
camos como inferências. A mais comum delas é a afirma-
ção “eu vejo as moléculas se afastando”, quando, na verda-
de, estes professores estão apenas verificando um sólido
colorido se dispersar em um líquido.
No caso do trabalho com as amostragens e com os
aspectos estatísticos, percebemos a grande dificuldade que
os alunos têm com regra de três, proporções e porcenta-
gem. Procuramos desenvolver algumas tarefas para que
pudessem assimilar um pouco destas formas de apresenta-
ção de resultados. No entanto, não nos ativemos muito nis-
to, já que a Matemática estaria trabalhando estes aspectos
nas suas atividades.

Procedimento 3
O terceiro procedimento, nesta primeira atividade,
consistiu em observar a solubilidade dos sólidos presentes
nas embalagens dentro do saco. O objetivo era continuar

111
com a idéia de que a ciência nunca se esgota. A cada etapa
vencida, novas ferramentas são criadas e novos fatos e re-
sultados devem ser obtidos, acumulados e analisados.
Como não havia nenhuma idéia em se fazer testes
com muito rigor, sua realização e os resultados obtidos fo-
ram apenas comentados em cada grupo. No entanto, o pro-
cedimento aguçou a curiosidade dos alunos, principalmente
na classificação dos materiais como insolúveis ou solúveis.
Com certeza, o objetivo da atividade foi atingido, pois, além
de desenvolver a curiosidade sobre os aspectos da
solubilização, foi possível trabalhar um pouco o manuseio
dos materiais, transferências, misturas e lavagem de mate-
rial.

Procedimentos 4 e 5
Teste com solução de iodo e também aquecimento
das amostras eram as propostas iniciais. No entanto, devi-
do à pouca habilidade inicial dos alunos com as ferramentas
que iríamos utilizar, assim como o envolvimento de certa
periculosidade, resolvemos não fazer a atividade. Este as-
pecto tem sido objeto de preocupação desde há muito tem-
po (Young, 1957: 238). Acrescente-se o fato de que o anda-
mento das atividades foi um pouco lento, em relação ao pre-
visto inicialmente, e um tempo maior, nesta atividade, pode-
ria comprometer o andamento das outras.
Em algumas turmas, estes testes foram realizados
na forma de demonstrações, mas não foi possível fazer ob-
servações mais profundas, já que o tempo disponível não
permitiu. Mesmo assim, optamos por desenvolver estes pro-
cedimentos desta forma para, pelo menos, mostrar um pou-
co mais sobre o método de “fazer Ciência” do não-indígena.

112
Bibliografia

Chemical Bond Approach Project (CBA). Química CBA, Sis-


temas Químicos. São Paulo: Edart São Paulo Livraria Ltda,
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Teachers. London: Longman / Peguim Book, 1968.
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ZIEGLER, Gene R. Eloosis-A Card Game Which
Demonstrates the Scientific Method. J. Chem. Educ., 1974:
51.

113
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA NOS CURSOS DE
LICENCIATURA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
INDÍGENAS

Roseli de Alvarenga Corrêa*

A abordagem sobre esse assunto tem por meta in-


centivar discussões com a comunidade educacional e, em
particular, com os professores e futuros professores alunos
dos cursos de Licenciatura em Matemática, sobre alguns
aspectos de uma realidade tão próxima de todos nós e ain-
da tão desconhecida, que é a educação formal nas comuni-
dades indígenas brasileiras. A questão que, no momento,
eu destaco, pode ser colocada da seguinte forma: “Como
as Universidades e seus cursos de Licenciatura em Mate-
mática posicionam-se frente à educação escolar indígena e
à formação de professores indígenas”?
A intenção não é buscar uma resposta para essa per-
gunta, mas, sim, refletir sobre ela. Para tal, alguns esclareci-
mentos de ordem geral, envolvendo as questões da educa-
ção escolar indígena – sem particularizar para grupos étni-
cos específicos – fazem-se necessários nesse momento.
Dados quantitativos sobre os índios no Brasil nos in-
formam que a grande variedade de grupos étnicos brasilei-
ros, com história, saberes, cultura e, na maioria, com lín-
guas próprias, somam aproximadamente 300 mil pessoas.
Segundo o Referencial Curricular Nacional para as Escolas

* Doutora em Educação Matemática, Docente na Etapa de Ciências Matemática e


da Natureza I.

114
Indígenas (MEC, 1998), vivem atualmente, no Brasil, mais
de 200 povos indígenas, com uma diversidade lingüística
de mais de 170 línguas, das 1200 originariamente existen-
tes. Sobre a educação formal indígena, os dados nos dizem
que existem, hoje, no Brasil, cerca de 1600 escolas indíge-
nas e aproximadamente 76 mil alunos matriculados. Dos
professores atuantes, num total de 2.859 professores, 71%,
ou seja, 2.041, são professores indígenas.
Ao longo de sua história, os povos indígenas vêm
elaborando “complexos sistemas de pensamentos e modos
próprios de produzir, armazenar, expressar, transmitir, avali-
ar e reelaborar seus conhecimentos e suas concepções
sobre o mundo, o homem e o sobrenatural” (RCNEI, 1998:
22). Essa sabedoria, através das formas particulares tradici-
onais de educação dos povos indígenas, é comunicada,
transmitida e distribuída por seus membros para toda a co-
munidade. Assim, sempre foi e ainda será, independente-
mente da presença da escola na aldeia, pois, nas comuni-
dades indígenas, ensinar e aprender “combinam espaços e
momentos formais e informais” (RCNEI, 1998: 23), sendo a
escola um desses espaços de aprendizagem formal.
Criada num panorama de negação da diferença, a
escola indígena, desde sua origem, no Período Colonial até
este século, esteve marcada por ações de catequização,
civilização e integração. Ainda hoje, grande parte das esco-
las indígenas “tem como tarefa principal a transformação do
outro em algo assim como um ‘similar’ que, por definição, é
algo sempre inferior ao ‘original’. (Silva e Azevedo, 1995:
151). Com seus currículos idênticos aos das escolas dos
não-índios, os projetos tradicionais de educação escolar in-
dígena “têm encarado as culturas dos povos criativos como
um signo inequívoco do ‘atraso’ a ser combatido pela piedo-
sa atividade civilizatória” (Silva e Azevedo, 1995: 151).

115
Nas últimas décadas, no entanto, os povos indíge-
nas e, mais especialmente, os professores indígenas, vêm
reivindicando a elaboração de novas propostas curriculares
para suas escolas, “em substituição àqueles modelos de
educação que, ao longo da história, lhes vêm sendo impos-
tos, já que tais modelos nunca corresponderam aos seus
interesses políticos e às pedagogias de suas culturas”
(RCNEI, 1998: 11).
Satisfazendo aos próprios anseios atuais das comu-
nidades indígenas, cada vez mais os professores índios
estão atuando nas escolas das aldeias. Tais mudanças es-
tão, nos dias atuais, legalmente garantidas pela Constitui-
ção de 1988, pela LDB de 1996 e, mais recentemente, pela
Resolução CEB (Câmara de Educação Básica) de 1999, que
fixa as Diretrizes Nacionais para o funcionamento das Esco-
las Indígenas e que, pouco a pouco, vêm sendo incorpora-
das pelos diversos povos. Segundo a fala dos próprios pro-
fessores da Comissão dos Professores Indígenas do Ama-
zonas, Roraima e Acre, “A primeira coisa que a gente tem
que fazer para produzir um currículo é se juntar, conversar,
discutir as idéias. É chegar na aldeia, depois desses encon-
tros de professores, e conversar com a comunidade, com
os outros professores. É mostrar que aquele currículo não
está bom, que é preciso mudar” (RCNEI, 1998: 13).

A educação Matemática na escola indígena

Pelo que a experiência tem me oferecido de conhe-


cimento nessa área, pelo conhecimento que tenho do tra-
balho de outros profissionais da educação, atuantes nas
áreas indígenas, um curso de formação de professores in-
dígenas tem que ser analisado, entendido, estruturado, de-
senvolvido, também sob um ponto de vista específico, imerso

116
nas características do grupo étnico, considerado em suas
relações sociais e culturais e levando em conta os valores
que são legitimados pelo grupo em sua atividade de ensino.
Atendendo aos próprios anseios dos povos indíge-
nas quanto à necessidade de construírem seus currículos
educacionais mais voltados para a sua realidade e condi-
zentes com as novas demandas, que as situações pós-con-
tato impuseram, a Educação Matemática, desenvolvida em
cursos de formação de professores indígenas, deve ter em
vista as aspirações das comunidades indígenas e o respei-
to às questões culturais do grupo. Assim, uma postura sem-
pre atenta e aberta para aprender com os índios aspectos
de sua vida cotidiana, de sua cultura, impõe-se ao docente
de outra cultura, que pouco a pouco vai se apercebendo de
outras várias forças implicadas na questão educacional. São
questões religiosas, políticas, ideológicas e outras, assumi-
das pelos não-índios que, conscientemente ou não, confe-
rem ao trabalho que realizam junto aos grupos indígenas,
suas idéias, sua verdade.
Trabalhar na área de Matemática, num curso de for-
mação de professores indígenas, fez-me por diversas ve-
zes perguntar: “Por que aprender a matemática na escola
indígena?”, “ Que matemática deve ser ensinada e aprendi-
da?”, “Como trabalhar a matemática na escola indígena?”,
“Qual a finalidade da educação matemática na escola indí-
gena e no cotidiano da aldeia?” e outras similares. Daí que,
a reflexão, o questionamento, a análise crítica recai também
sobre o nosso próprio trabalho, sobre como temos procura-
do desenvolvê-lo, quais idéias o estruturam, qual é, enfim, a
filosofia que nos move e nos faz criadores de estratégias de
ação para cada momento, para cada situação, para cada
evocação cultural e mística do grupo com o qual trabalha-
mos.

117
A Universidade e sua contribuição na formação de pro-
fessores indígenas

A educação formal indígena e a Educação Matemá-


tica na escola indígena, eu diria, está apenas começando a
ser pensada e exercida de forma diferenciada, de modo a
assegurar “às comunidades indígenas também a utilização
de suas línguas maternas e processos próprios de aprendi-
zagem”, segundo o que diz a Constituição de 1988, cap. III,
seção I. As mudanças significativas iniciadas a partir da dé-
cada de 70, época em que começaram a surgir, no Brasil,
os movimentos propriamente indígenas e aqueles que re-
sultaram na criação de entidades civis de apoio à causa in-
dígena, começam a produzir seus frutos. No final dos anos
80, as várias experiências de implantação de escolas indí-
genas, com currículos e pedagogias próprias, já aconteci-
am, juntamente com a produção de materiais didáticos es-
pecíficos e produzidos pelos próprios índios. A partir de 90,
além da intensificação da pesquisa acadêmica, particular-
mente entre os lingüistas, antropólogos e sociólogos, esta
torna-se mais reflexiva e crítica de seu próprio trabalho. Os
dias atuais têm sido marcados por uma avaliação crítica das
experiências educacionais diferenciadas construídas nas dé-
cadas anteriores. Os debates, temas e problemas tornam-
se mais específicos, sofrendo uma espécie de detalhamento
e sofisticação, tendo como fundo a diversidade de situações,
de cultura e de propostas oferecidas pelas comunidades in-
dígenas.
A bem da verdade, os estudos acadêmicos, em tor-
no da educação escolar indígena, têm levantado mais ques-
tões do que propriamente trazido algumas respostas defini-
tivas, se estas existirem. O que se tem quase como um novo

118
paradigma é que a diversidade dos povos, de línguas, de
culturas, de espaços geográficos, de reivindicações, de ní-
veis de contato, de aspirações, deve estar no cerne da cons-
tituição de qualquer proposta curricular para a educação in-
dígena, incluídas também a educação de minorias raciais e
sociais. Daí que os cursos de Licenciatura e, mais particu-
larmente, os de Licenciatura em Matemática, necessitam
ampliar e/ou abrir espaços no sentido de incentivar e valori-
zar os estudos e pesquisas nessas áreas mais carentes da
docência, ou seja, nas áreas voltadas para o que costuma-
mos chamar de minorias (embora sejam maioria em neces-
sidades e reivindicações): cursos de formação de professo-
res leigos, cursos de formação de professores indígenas,
cursos para jovens e adultos, cursos para a formação de
professores alfabetizadores e outros.
A idéia que desejo proclamar é que, quando nossos
alunos dos cursos de Licenciatura em Matemática e futuros
docentes, nessa área, tiverem a oportunidade de exercer
docência ou assessoria em cursos de formação de profes-
sores, dentre os quais professores indígenas, que esse tra-
balho não se inicie a partir da “estaca quase zero”, como
tem acontecido com a maioria que trabalha ou já trabalhou
em áreas indígenas. Se, há duas décadas, não tínhamos
referenciais teóricos que nos assegurassem melhor conhe-
cer e estruturar nosso trabalho em áreas tão específicas,
hoje, intensificam-se as pesquisas acadêmicas sobre as
questões da educação indígena, educação de jovens e adul-
tos e outras. E a Educação Matemática, através de seus
pesquisadores, está presente nesses campos, onde tem
dado a sua contribuição teórica através de teses, disserta-
ções, artigos e livros. Que possam ser criados e
implementados, nos cursos de Licenciatura, em suas diver-
sas áreas, os espaços de estudos e pesquisa necessários

119
para que essas contribuições sejam analisadas criticamen-
te, rediscutidas, reelaboradas segundo novas visões e no-
vos momentos e que novas idéias possam estar sendo pro-
postas, inspiradas pelos desejos das próprias comunidades
para sua educação formal específica.
A docência e assessoria para essa educação espe-
cífica, como é a educação indígena, amplia-se a cada mo-
mento e, se hoje já é realidade o 3º Grau Indígena em Mato
Grosso – projeto pioneiro do Governo do Estado de Mato
Grosso – outros estados do Brasil já estão se mobilizando
para implantar seus cursos de licenciatura, visando à for-
mação de professores indígenas para o Ensino Fundamen-
tal e Médio.
O que se nota é que, a cada momento, mais especi-
alistas, na área de Educação Matemática, são solicitados
para realizarem trabalhos na educação formal indígena. As
universidades podem estar cumprindo o seu papel para com
a sociedade brasileira, levando ao conhecimento de seus
alunos e futuros professores a realidade das comunidades
indígenas, das comunidades minorias raciais, sociais, mui-
tas vezes tão próximas de nós e, ao mesmo tempo, tão dis-
tantes, dado o desconhecimento que temos delas, dada a
desvalorização de sua língua e cultura e dada uma série de
crenças e mitos que nos foram inculcados pelas gerações
que nos antecederam e pelas escolas que freqüentamos.
Para concluir, devo dizer ainda que é desejo dos ín-
dios serem conhecidos e valorizados em seu próprio país,
assim como desejam o reconhecimento e a valorização de
sua escola por todos os segmentos educacionais do seu
município, estado e país. Sobre essa questão, assim os pro-
fessores Ticuna da região do Alto Solimões, no Amazonas,
se expressaram: “Nós, professores indígenas, queremos que
o MEC repasse este referencial, chamado de RCNE/Indíge-

120
na, para os estabelecimentos de ensino municipais e esta-
duais. Assim, esses setores terão conhecimento das possi-
bilidades de currículo para os povos indígenas do país e
esses currículos poderão ser reconhecidos e valorizados pe-
los órgãos envolvidos com a educação escolar de cada es-
tado” (RCNEI, 1998: 14).

Bibliografia

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as escolas indígenas. 1998.
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de uma política de educação escolar indígena”. In: Cad. CE-
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LOPES DA SILVA, Aracy. “Prefácio”. In: CAPLACA, Marta
Valéria. O debate sobre a educação indígena no Brasil (1975
– 1995). Brasília: São Paulo: MEC/Mari-USP,1995.
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In: LOPES DA SILVA, Aracy e GRUPIONI, Luís Donisete B.
A Temática Indígena na Escola. Brasília: MEC/MARI/
UNESCO, 1995.

122
A TRAJETÓRIA DA LIBERDADE

Andila Inácio Belforte*

Quando completei oito anos de idade, meu pai cha-


mou-me um certo dia e me falou:
- “Filha, você já está uma mocinha e precisa come-
çar a ir para a escola, pois precisa aprender a escrever”.
Falava de uma escola que o estado/RS, havia
construído para nós dentro da nossa aldeia, lá pelos anos
50, na reserva indígena Correteiro, município de Água San-
ta, no Rio Grande do Sul, aldeia natal da minha mãe, onde
nasci.
Na manhã seguinte, lá fomos nós, eu e meu pai, para
me apresentar ao professor e, provavelmente, efetuar a mi-
nha matrícula. Agarrada na mão de meu pai, eu ia feliz, com
meu primeiro caderninho, que minha mãe colocava dentro
de um saco plástico, juntamente com um lápis, com uma
borrachinha branca acoplada à ponta do lápis preto. Não
podia imaginar que aquela alegria, logo se tornaria o meu
primeiro pesadelo a caminho da minha formação.
Meu pai cuidou de tudo, depois me deixou na escola
e voltou para casa. Meu professor, que não era índio, me
levou até a classe, como era chamada pelos brancos. Nos
bancos sentavam duas crianças cada, e começou a falar
comigo, mas eu não entendia nada, quanto mais ele tenta-
va se comunicar comigo, mais assustada eu ficava. Saí cor-
rendo da sala, chorando desesperada, tomei o caminho de
* Acadêmica do 3º Grau Indígena, pertencente à etnia Kaingáng, do estado do Rio
Grande do Sul.

123
volta para minha casa.
Nos próximos dois anos, em vão meu pai tentou me
fazer voltar para a escola, mas não me convenceu. No de-
correr deste tempo, eu já havia aprendido a falar algumas
palavras em Português, então aceitei voltar para a escola.
Apesar de ainda enfrentar muitas dificuldades de comunica-
ção, com 16 anos terminei a 5ª série, chamado de curso
primário.
Meu pai quis voltar para sua aldeia, que ficava dis-
tante 36 Km, chamada Ligeiro, município de Charrua - RS,
tínhamos lá muitos parentes e todos conheciam meu pai,
que era natural de lá.
Quando eu me preparava para fazer o chamado Exa-
me de Admissão, para prosseguir meus estudos no ginásio,
de 6ª a 8ª série, o servidor da FUNAI responsável pela nos-
sa reserva mandou chamar meu pai, que, chegando lá, re-
cebeu a “ordem” para que me preparasse que em poucos
dias a FUNAI me levaria para um colégio interno, em outra
reserva indígena, chamada Guarita, localizada no municí-
pio de Tenente Portela – RS.
Lá, a FUNAI, em convênio com a IECLB (Igreja de
Confissão Luterana do Brasil), tinha criado uma escola para
formar monitores bilíngües, em nível de 1º Grau, chamado
CTPCC, (Centro de Treinamento Profissional Clara
Comarão), e era para lá que iriam me levar.
Quando meu pai voltou e contou para minha mãe e
eu, ele não conseguiu esconder sua tristeza e nem as lágri-
mas que molharam seu rosto. Nós, Kaingáng, não nos se-
paramos assim de nossos filhos, principalmente da filha mu-
lher, que mesmo depois de casada pode continuar moran-
do com os pais.
Fiquei tentada a não ir, mas certamente meu pai se-
ria responsabilizado e penalizado. Outros dois rapazes que

124
também já haviam terminado a 5ª série tinham sido “convo-
cados”, então já não iria sozinha, agora éramos três Kaingáng
daquela aldeia, fiquei mais encorajada.
Assim, no começo do ano de 1970, tivemos a nossa
aula inaugural, com muitas autoridades presentes e mais
ou menos 30 jovens Kaingáng, fardados e perfilados, can-
taram o Hino Nacional. Até este momento não sabíamos
por que estávamos ali, ninguém nos dava nenhuma expli-
cação.
Hoje, recordando aqueles momentos, penso que ali
viramos uma página da nossa história, para nós mesmos
escrevermos a outra “A Luta dos Professores Kaingáng”.
As normas disciplinares do colégio eram muito rígi-
das, tínhamos horário marcado para tudo, nos tornamos
escravos do relógio.
O frio chegou, aumentando ainda mais a saudade
de casa, do calor humano das famílias e do fogo no chão,
mas não podíamos fazer fogo para nos aquecer, porque eles
diziam que a fumaça fedia nas nossas roupas e cabelos.
Escrevia para meu pai, dizendo que estava sofrendo
muito e passando fome, que viesse me buscar, mas tínha-
mos que entregar a nossa correspondência para a direção
levar para os correios, nossas cartas eram violadas e lidas,
e nunca chegaram a seus destinos.
Ainda no primeiro semestre, levaram a maioria das
moças embora, deixaram apenas cinco, chorei porque não
me levaram, também não sei até hoje porque fizeram isso.
Sentimos muita falta delas, eram as mais velhas e com elas
nós nos sentíamos mais protegidas.
Nos proibiram de falar com os nossos colegas e nos
castigavam por qualquer coisa, eu então vivia de castigo,
que era limpar e dormir na casa da diretora. Fazia muitas
gravações da língua com ela. Não sabia por quê.

125
Não tínhamos o costume de comer verduras e legu-
mes como repolho, tomate, alface etc., essas coisas, então
a diretora sentava à mesa e servia uma pratada de verdura
para eu comer primeiro, depois, então, ganhava arroz, fei-
jão e carne, se não comesse acabava ficando sem comer.
Num fim de semana, fugimos para a mata, para co-
lher nossas verduras e legumes. Na volta não nos deixaram
preparar a nossa comida nas panelas da cozinha, como se
fosse algo repugnante ou prejudicial à saúde, então nos to-
maram para jogar fora. Passado algum tempo, descobrimos
que tinham levado as nossas folhas para análise e desco-
briram que as propriedades nutritivas delas superavam o
espinafre, por isso, queriam saber onde encontramos para
tirar as sementes. Respondemos que não era mais tempo e
que não tem o tempo todo, nem tempo certo.
Aprendemos escrever nossa língua, e também re-
cebemos aulas de datilografia e descobrimos que a máqui-
na escrevia em Kaingáng, ficamos tão felizes que fizemos
um jornal de circulação interna para comemorar.
Final do ano de 1972, nos formamos. Foi um aconte-
cimento nacional e internacional. Não tínhamos clareza do
que isso representava para nós, nem para os brancos, mas
para eles era bem claro o que queriam, nos usar enquanto
alfabetizadores da língua Kaingáng e que fariam o processo
de transição da língua Kaingáng para o Português em pou-
co tempo e então os professores brancos fariam o resto,
abreviar a integração dos Kaingáng à sociedade nacional,
usando os índios e sua própria língua para nos
descaracterizar enquanto povo, mas não tínhamos clareza
disso.
Início de 1973, através de uma portaria conjunta, a
FUNAI contratou todos nós para começarmos a atuar em
nossas comunidades dos três estados da Região Sul,

126
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Fomos discriminados por muitos professores da
FUNAI, que diziam que nós não tínhamos estudo para dar
aula, que tínhamos de fazer limpeza da escola.
Foi preciso passar 10 anos para percebermos que
não era essa escola que precisávamos, estava nos despin-
do da nossa cultura, e não era isso que queríamos.
Precisava voltar a estudar, procurei uma escola de
2º Grau Supletivo, apresentei a documentação exigida e efe-
tivei a minha matricula, mas antes que começassem as au-
las me chamaram na secretaria da escola, descobriram que
o certificado de 1º Grau que recebi do CTPCC não era reco-
nhecido pelo Conselho Estadual de Educação, submeteram-
me a uma prova para que meus estudos fossem regulariza-
dos.
Fui aprovada e pude então cursar o 2º Grau. Em dois
anos de aulas freqüentadas, terminei em 1989 o Ensino
Médio, coroando meu sacrifício, pois trabalhava o dia inteiro
na FUNAI e à noite ia para a aula, isso sem falar que, nesta
época, minhas filhas eram todas pequenas.
Contudo, continuamos, eu e meu povo, sendo trata-
do como quem estava condenado a sempre depender dos
outros. Isso começou a me inquietar e, por conseqüência,
em 1992, cinco Kaingáng fizeram vestibular na universida-
de de Ijuí – RS, em cinco áreas estrategicamente escolhi-
das, Direito, Enfermagem, Pedagogia, Agronomia e Histó-
ria. Não conseguimos para Direito, mas ingressamos nas
outras quatro áreas. Eu me lembro que saiu um artigo num
jornal que dizia: “Índios Invadem a Universidade”.
Para nossa decepção, apenas um terminou o curso,
o de Enfermagem, que hoje trabalha em sua comunidade.
As causas da desistência dos outros três foram vári-
as. Não conseguiram se acostumar na cidade e a condição

127
financeira era precária para permanecer estudando.
Quanto a mim, que cursava Pedagogia, tenho parti-
cularmente as minhas razões, desisti porque o que se trata-
va no meu curso nada tinha a ver com meus anseios e ex-
pectativas enquanto professora indígena, tinha também
muita dificuldade para acompanhar a turma, era tudo muito
corrido, os professores falavam demais e me perdia no meio
de tantas falas, e depois, o professor saía e nem pergunta-
va se alguém ficou com alguma dúvida, em seguida aplica-
va a prova. Era como se diz: “cada um por si e Deus para
todos”. Era assim, um querendo ser melhor que o outro. De-
sanimei e larguei a faculdade. Me doeu muito, porque sabia
o que representava para mim e para meu povo a minha for-
mação no 3º Grau, eu estava abrindo mão da única forma
de poder ajudar a mudar o rumo da educação escolar indí-
gena do povo Kaingáng.
Minha preocupação maior era com os professores
que alfabetizavam na nossa língua, pois desde que come-
çamos a trabalhar nunca tivemos uma pessoa preparada
para nos ajudar nas nossas dificuldades na língua Kaingáng.
Sentia muito não ter terminado meu curso, mesmo que não
me ajudasse muito, mas estaria mais apta para fazer frente
às investidas dos professores brancos.
Enquanto queríamos as garantias do ensino diferen-
ciado para conservar a nossa cultura, não tínhamos quem
nos ajudasse nas nossas dificuldades do ensino bilíngüe,
propriamente dito, o que ainda estava segurando pelo me-
nos a língua, e eu via que os professores indígenas, pelas
dificuldades enfrentadas na alfabetização da língua e por
falta de orientação e material didático apropriado, estavam
deixando a língua e alfabetizando em Português, por ter mais
recursos de que lançar mão.
Não pensava mais que pudesse ajudar os professo-

128
res Kaingáng, quem sabe algum dia alguém dos nossos che-
gue lá, para fazer este trabalho, mas quem sabe tarde de-
mais, para um povo que gradativamente está deixando de
falar sua língua, como é o caso do povo Kaingáng.
Assim como dentro da FUNAI existem aqueles ser-
vidores relapsos, temos a sorte que existem algumas pou-
cas pessoas que têm uma visão diferente de nós e nos têm
ajudado dentro das suas limitações. Assim sendo, alguém
da FUNAI teve acesso ao material informativo sobre uma tal
Universidade Indígena, e mandou-me pelo correio. Contin-
ha os formulários para inscrições, corri atrás e consegui ins-
crever três professores da minha aldeia, tudo na correria,
pois as inscrições já estavam se encerrando.
Quando se aproximou o dia do vestibular, a FUNAI
de Chapecó - SC, providenciou as nossas passagens e em-
barcamos rumo a Cuiabá - MT, mais precisamente para Barra
do Bugres – MT, e 09 Kaingáng para pleitear 20 vagas para
os outros Estados. Quando vi o Campus da UNEMAT cheio
de índios das mais diferentes etnias, percebi que não iria
ser fácil.
Passados alguns dias, já em minha aldeia, fui avisa-
da que eu havia passado no vestibular. Efetuei minha matrí-
cula por fax, e fiquei sabendo que apenas três Kaingáng
tinham sido classificados, somente eu da minha aldeia.
Quando chegou o dia, viemos nós três para fazer a I
Etapa, outra vez estava cheia de esperança, senti mais uma
vez a importância de voltar a sonhar.
Começaram as aulas. De cara, começamos a estu-
dar as nossas origens, nossos povos, culturas e línguas, 36
etnias diferentes. Os sons de cada língua estão sendo estu-
dados aqui. Suas representações gráficas e fonéticas. Cada
etnia está descobrindo a estrutura de sua língua,
etnomatemática etc. Aqui, não estamos brigando com a

129
máquina de escrever para falar Kaingáng, estamos numa
verdadeira “guerra”, de línguas cruzadas com o “computa-
dor”, porque estamos querendo que fale não apenas
Kaingáng, mas 36 línguas indígenas diferentes, faladas pe-
los acadêmicos do 3º Grau Indígena.
Enfim, posso dizer que estou realizando o meu mai-
or sonho, de fazer o meu 3º Grau, e principalmente especí-
fico, porque sei que assim poderei ajudar, num futuro bem
próximo, na formação do nosso povo. Posso ver jovens com
orgulho de sua origem, com espírito crítico, imunes à mani-
pulação dos brancos, com clareza das artimanhas da políti-
ca indigenista quanto da política indígena e dos nossos pro-
blemas, para que, numa tarefa conjunta, possam conduzir o
meu povo com segurança pelo caminho da nossa tão so-
nhada “autonomia intelectual”.

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