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sumário
APRESENTAÇÕES
03 Dos Editores
06 Expediente
07 Colaboradores
PERFIS
08 Ramiro, empregado do Brasil
– João Francisco Pereira
14 Embaixador Ovídio de Andrade Melo,
o Juca – Filipe Nasser
ESPECIAL: COMUNIDADES
BRASILEIRAS NO EXTERIOR
28 Presos no exterior –
Adriana Telles Ribeiro
36 Comunidades Brasileiras no espaço
MERCOSUL – Aloísio Barbosa de S. Neto
43 Desafios das migrações internacionais
ao Direito e ao Brasil – Leandro Vieira
49 Comportamento social e preconceito
– Mariana Lobato
ARTIGOS E ENSAIOS
56 Espartanos, mutantes e excluídos:
um ensaio sobre cultura e relações
internacionais – Paulo André Moraes de Lima
63 Sob o olhar cético: diplomacia e
cultura na Antigüidade
– Gabriella Guimarães Gazzinelli
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Juca número 02
68 Dança das Cadeiras: a reforma do Conselho de
Segurança das Nações Unidas
– Fábio Simão Alves
75 La cuestión del cambio en la Teoría de las
Relaciones Internacionales
– Romina Paola Bocache
PELO MUNDO
84 Uma experiência brasileira no Sudão
– Luiz Fernando Deo Evangelista
92 Heriberto, nosso homem em Havana: reflexões
literárias sobre a vida cultural em Cuba
– Felipe Krause Dornelles
RESENHA
100 O Amor nos Tempos do Cólera: amor, cinema
e literatura no universo de Gabriel Garcia
Márquez – Maurício Alves da Costa
POESIA E PROSA
104 Orientações importantes à nova musa
– Raphael Nascimento
108 Buenos Aires – Romina Bocache
110 Nuvem – César Nascimento
111 Arquitetura – D.G. Ducci
112 Papo de língua – Francisco Figueiredo de Souza
116 Buraco na parede – André Cortez
DEPOIMENTO
120 Crónicas de un emotivo encuentro entre Río
Branco e Isen – Silvina Aguirre, Sebastián Coronel,
M. Florencia Segura (ISEN)
122 Nota sobre a capa – Embaixador Ovídio de
Andrade Melo
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expediente
Comissão Editorial
Bruno Santos de Oliveira
Candice Sakamoto Souza Vianna
Carlos Augusto Resende
Carlos Kessel
Catarina da Mota Brandão de Araújo
Christiana Lamazière
Diretor Honorário Ciro Marques Russo
Embaixador Fernando Guimarães Reis Cristina Vieira Machado Alexandre
Daniel Afonso da Silva
Felipe Krause Dornelles – Editor-Chefe Fábio Simão Alves
Raphael Nascimento – Diretor Executivo Felipe Santos Lemos
Bruno Rodrigues – Editor de Resenhas Filipe Thomaz Mallet
Daniel Guilarducci – Editor de Poesia e Prosa Gabriela Guimarães Gazzinelli
Francisco Figueiredo de Souza – Editor do Gustavo da Cunha Westmann
Especial Comunidades Brasileiras no Exterior Gustavo Ludwig Ribeiro Rosas
João Francisco Pereira – Editor de Perfis João Augusto Costa Vargas
Pedro Brancante Machado – Editor de Leandro Antunes Mariosi
Artigos e Ensaios Maurício Gomes Candeloro
Leonardo Valverde – Relações Públicas Sydma Aguiar Damasceno
Mariana Lobato – Projeto Gráfico
Vanessa Bonifácio – Diretora Jurídica Direção de Arte e Diagramação
Vicente Amaral Bezerra – Diretor Financeiro Fabiana Marafiotti
Agradecimentos
Embaixador Ramiro Elysio Saraiva Guerreiro e Embaixatriz Maria da Glória Vallim Guerreiro;
Embaixador Ovídio de Andrade Melo; Embaixador Francisco Soares Alvim Neto; Embaixador
Jeronimo Moscardo ; Conselheiro Sérgio Barreiros de Santana Azevedo; Conselheiro
Sarquis José Buainain Sarquis; Conselheiro Geraldo Cordeiro Tupynambá; Secretário Pedro
Montenegro; Secretário Filipe Nasser, Secretário Eduardo Lessa e toda a Equipe JUCA 01;
Secretário Octavio Lopes; Clarissa Henriques e Silva; George Wanderley Costa Júnior e
Maria Nilva de Almeida.
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colaboradores Adriana Telles Ribeiro (turma 2006-2008 do
IRBr) é bacharel em Ciência Política pela New
School for Social Research.
Luiz Fernando Deo Evangelista (turma
2007-2009 do IRBr) é bacharel em Medicina
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e
pós-graduado em Relações Internacionais pela
Aloísio Barbosa de S. Neto (turma 2007-2009 Universidade Cândido Mendes.
do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
pela Universidade de Brasília. M. Florencia Segura (turma 2007-2008 do
Instituto del Servicio Exterior de la Nación
André Souza Machado Cortez (turma 2007- – ISEN) é formada em Direito e mestre em
2009 do IRBr) é bacharel em História pela Filosofia e Ciência Política pela Universidad
Universidade de São Paulo. Nacional de Mar del Plata.
César Nascimento (turma 2006-2008 do IRBr) Mariana Lobato Benvenuti (turma 2007-2009
é bacharel em Administração de Empresas pela do IRBr) é bacharel em Direito pela Faculdade
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. de Direito da Universidade de São Paulo.
Daniel Guilarducci Moreira Lopes, D.G.Ducci Maurício Alves da Costa (turma 2007-2009 do
(Turma 2007-2009 do IRBr) é bacharel em IRBr) é bacharel em Letras/Japonês e mestre em
História e bacharel em Biblioteconomia e Ciência Letras pela Universidade Federal do Rio Grande
da Informação pela Universidade de Brasília. do Sul.
Fábio Simão Alves (turma 2007-2009 do IRBr) Michel Laham Neto (turma 2007-2009 do
é bacharel em Relações Internacionais pela IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela
Universidade de São Paulo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Felipe Krause Dornelles (turma 2007-2009 Paulo André Moraes de Lima (turma 2000-
do IRBr) é mestre em Desenvolvimento 2002 do IRBr) é bacharel em Comunicação
Internacional pela Universidade de Oxford. Social pela Universidade Federal Fluminense
e mestre em Comunicação e Cultura pela
Filipe Nasser (turma 2006-2008 do IRBr) Universidade Federal do Rio de Janeiro.
é bacharel em Relações Internacionais pela
Universidade de Brasília. Foi Editor-Chefe da Juca 01. Raphael Nascimento (turma 2007-2009
do IRBr) é bacharel e mestre em Relações
Francisco Figueiredo de Souza (turma 2007-2009 Internacionais pela Universidade de Brasília.
do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Romina Paola Bocache (turma 2005-2006 do
e bacharel em Comunicação Social/Jornalismo ISEN e turma 2007-2009 do IRBr) é formada
pela Universidade de São Paulo. Integrou o projeto em Direito pela Universidad de Buenos Aires,
“Universidades em Timor Leste” durante o com Medalha de Ouro, e pós-graduada em
segundo semestre de 2004. Diplomacia e Tecnologias da Informação e
da Comunicação pela University of Malta e
Gabriella Guimarães Gazzinelli (turma 2007- DiploFoundation.
2009 do IRBr) é bacharel em Letras/Grego
Antigo e mestre em Filosofia pela Universidade Sebastián Leonardo Coronel (turma 2007-
Federal de Minas Gerais. 2008 do ISEN) é formado em Direito pela
Universidad Nacional de Tucumán e pós-
João Francisco Pereira (turma 2007-2009 do IRBr) graduado em Relações Internacionais pelo
é bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela Instituto para la Integración y el Desarrollo
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Latinoamericano.
Leandro Vieira Silva (turma 2007-2009 do IRBr) Silvina Aguirre (turma 2007-2008 do ISEN)
é mestre cum laude em Direito Internacional é formada em Direito e mestre em Relações
Público pela Universidade de Leiden. Foi Internacionais pela Universidad de Buenos
Consultor Legislativo do Senado Federal, assessor Aires. Completou Curso de Aperfeiçoamento
técnico da CPMI da Emigração e revisor final do em Direito Internacional e Europeu de Direitos
Relatório apresentado pela Comissão. Humanos na Universidad de Alcalá.
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PERFIL
RAMIRO,
EMPREGADO
DO BRASIL
João Francisco Pereira
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_perfil
Quando Figueiredo teve a certeza de que que o jovem Ramiro pudesse imaginar em
seu nome seria o escolhido pelo governo princípios de 1945, quando então com pouco
para a sucessão de Ernesto Geisel à frente mais de 25 anos ingressara definitivamente nas
da Presidência da República, uma mudança arcadas neo-coloniais daquele vistoso palácio
substancial já tivera início nas diretrizes básicas na antiga rua Larga, hoje avenida Marechal
da política externa nacional. Azeredo da Silveira, Floriano. Primeiro colocado em um concurso
que assumira o comando do Ministério das que também trouxera à carreira diplomática
Relações Exteriores anos antes, impusera uma nomes como Antônio Houaiss e João Cabral
nova linha à atuação internacional do Brasil, de Mello Neto, Saraiva Guerreiro muito se
resgatando alguns dos pressupostos da Política esforçara para estar ali. Alguns anos antes,
Externa Independente levada a cabo nos anos ao deparar pela primeira vez com a idéia
imediatamente precedentes ao golpe militar de de seguir a carrière, a falta de conhecimento
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dedicação exclusiva e não podíamos alguns anos, deslocou-se o jovem Terceiro
mesmo servir a outro patrão; em Secretário para integrar os trabalhos da
segundo lugar porque a palavra Comissão de Direito Internacional.
‘empregado’, geralmente usada para As lembranças da carreira parecem
denominar domésticos, em minha tornar-se mais claras à medida que,
opinião, mesmo nesse caso é honrosa pausadamente, em tom baixo e professoral,
para esses trabalhadores de que tanto a vasta experiência vai sendo passada
dependemos; em terceiro lugar, porque adiante. A convicção é absoluta ao assumir
sublinha o aspecto de disciplina que é o papel protagônico na solução da
essencial à nossa carreira, embora ela contenda, que já se arrastava há alguns anos,
seja civil. Não há capacidade de mando com a Argentina no âmbito da construção
se antes não se obedeceu”. de Itaipu. Os fatos não o desmentem. Ao
assumir a chancelaria, o debate acerca
Prestes a completar 90 anos, o da inviabilidade de serem construídas
Embaixador vive sua aposentadoria ao duas hidrelétricas no mesmo Rio Paraná,
lado de Dona Glória, sua companheira há ainda mais considerando-se o tamanho
mais de seis décadas, em um confortável descomunal do empreendimento paraguaio-
apartamento no bairro carioca de Ipanema. brasileiro, parecia longe de ser resolvida.
Mantém-se cercado por fotografias da família As opiniões públicas de ambos os países,
e de seus tempos áureos, enquanto, todos insufladas pelo tom belicoso tradicional
os fins de semana, a juventude a caminho dos governos militares, exigiam, cada qual
da praia insiste em invadir a tranqüilidade para seu lado, uma saída que satisfizesse os
de sua rua. O olhar é carregado, mirando interesses estratégicos internos.
um horizonte imaginário e saboreando, aos O problema, porém, ao menos aos
poucos, à medida que vêm aos olhos, todos olhos do recém-empossado Chanceler,
aqueles momentos vividos tempos atrás. O não parecia se resumir a aspectos práticos
vigor físico talvez não seja o mesmo de há 30 envolvendo a construção de Itaipu. Para
anos, mas a memória e a lucidez continuam Saraiva Guerreiro, parecia claro que qualquer
a mesma do homem que viu, como poucos tentativa de consenso entre as partes não
e de forma tão próxima, a história do século seria possível enquanto o tema não passasse
XX ser construída. a ser tratado de modo unicamente racional.
Entrando para O excesso de carga política e emotiva que
o serviço exterior envolvia a questão acabava por dificultar
no apagar das luzes quaisquer possibilidades de acordo, o qual,
da Segunda Guerra para o novo governo, poderia ser facilmente
Mundial, Ramiro alcançado se fossem ressaltados apenas os
Saraiva Guerreiro elementos técnicos. A estratégia, singela, mas
testemunhou a profundamente estudada, começara já no dia
construção de uma de sua posse. Dentre todas as autoridades
das instituições presentes à Brasília, a que recebera
mais sólidas e mais maior atenção fora o brigadeiro-do-ar
importantes do reformado Carlos Pastor, o nome à frente
século XX. Quando da chancelaria argentina. Caberia aos dois
se mudou para Nova resolver o impasse em que se encontravam.
Iorque em meados de 1946, Em realidade, a conclusão de um acordo
o imponente prédio-sede das tripartite já quase obtivera êxito ainda
Nações Unidas às margens do na gestão anterior. Mas a insistência do
East River ainda nem saíra do governo brasileiro em acrescentar duas
papel. As reuniões da recém- outras turbinas às dezoito inicialmente
criada ONU ocorriam no planejadas acabara por levar as conversas
longínquo subúrbio de Flushing de volta à estaca zero. Sendo assim, sob a
Meadows, para onde, durante nova perspectiva, havia que se garantir que
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notícia em si, Saraiva Guerreiro era capaz de argumentação, e apesar de alguns atritos
relembrar vivamente o encontro que tivera inerentes à gravidade do conflito, as relações
em Brasília, apenas alguns meses antes, com bilaterais com ambas as partes conseguiram
sua contraparte argentina, agora representada ser mantidas de forma harmônica. Ademais, por
pelo doutor Nicanor Costa Méndez. Este, ser respeitado por ambas as partes, o Brasil,
embora afirmasse que a questão envolvendo de junho de 1982 a fevereiro de 1990, seria
as Malvinas era de fato prioritária aos o responsável por representar os interesses
argentinos, dera claras indicações de que argentinos junto ao governo de Londres.
qualquer solução para o litígio seria buscada A vida de Ramiro Elysio Saraiva Guerreiro
por intermédio da Assembléia-Geral das há muito já não é envolvida por alvoroços
Nações Unidas. de tal monta. Os tempos de chancelaria,
O Embaixador, então, em um momento os tempos de crise econômica, os tempos
que imediatamente identificara como um de embaixada, os tempos de empregado
dos mais delicados que já havia enfrentado, do Itamaraty já ficaram para trás. Este
tentou se concentrar, procurando uma saída senhor que parcimoniosamente chega a sua
que satisfizesse minimamente os anseios da nonagésima década já parece ter realizado
imprensa e que permitisse, ao menos, que tudo o que esperara de sua vida, talvez até
algumas horas fossem ganhas até o regresso mais do que sonhara quando resolveu, jovem,
ao Brasil. Uma declaração urgia e não havia a optar pelo Serviço Exterior nacional. Agora,
quem recorrer. sempre em companhia de Dona Glória,
Vinte e seis anos mais tarde, ao relembrar descansa confortavelmente em Ipanema,
a insólita situação, Ramiro Saraiva Guerreiro acompanhado de notícias de seus dois
repetiria, sorrindo largamente, o que já filhos, dois netos e um bisneto. Este último
dissera em seu livro de memórias: naquela certamente ouvirá falar do bisavô como
longínqua manhã de 1982 fora salvo por pertencente a um tempo fundamental para a
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EMBAIXADOR OVÍDIO
DE ANDRADE MELO,
O JUCA
Filipe Nasser
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Juca é a assinatura que consta do rodapé libertação nacional. Ovídio seria também
dos quadros – inspirados nos métodos e responsável pela instalação do Escritório
imagery da arte naïf – que Ovídio de Andrade de Representação brasileiro e, após a
Melo pinta desde 1969, quando era o Cônsul- independência, da futura Embaixada em
Geral do Brasil em Londres. O apelido teria Luanda. A intenção do Governo brasileiro
sido dado pela esposa, Dona Ivony, em alusão era ser o primeiro país a chancelar o novo
à sua teimosia em pintar até as “wee hours of status da ex-colônia lusa em sua estréia na
the morning” da capital britânica2. comunidade das nações.
Em Londres, vale a curiosidade, havia sido Em Luanda, Ovídio mantinha interlocução
chefe do Chanceler Celso Amorim, então em com as três forças que disputavam
seu primeiro posto no
exterior. Antes, Ovídio
havia servido no Consulado Em Londres, vale a curiosidade,
em Toronto, na Embaixada
em Lima, no Consulado havia sido chefe do Chanceler Celso
em Cobe, na Missão junto
à OEA e nas Embaixadas Amorim, então em seu primeiro
em Buenos Aires e em
Argel. No Ministério das posto no exterior.
Relações Exteriores, havia
sido chefe da prestigiosa Divisão das Nações a hegemonia política na Angola pré-
Unidas e Chefe de Gabinete do Embaixador independência e que na capital tinham, cada
Sérgio Corrêa da Costa quando Secretário- uma, o seu Primeiro-Ministro no governo de
Geral. Depois de Angola, seria ainda nosso transição: o Movimento Popular de Libertação
Embaixador em Bancoc e Kingston3. de Angola (MPLA), de Agostinho Neto,
A passagem que, no entanto, singularizou inicialmente baseado na Tanzânia; a Frente
a carreira do Embaixador Ovídio de Nacional de Libertação de Angola (FNLA), de
Andrade Melo foi seu protagonismo em um Holden Roberto, sediado no Zaire; e a União
dos momentos mais ousados da história Nacional para a Independência Total de Angola
diplomática brasileira recente. Nos meses (Unita), cuja base era Nova Lisboa, localizada
que separaram o Tratado de Alvor, em 10 no planalto central angolano. A decisão do
de janeiro de 1975, da independência formal governo brasileiro de manter diplomatas em
de Angola, em 11 de novembro do mesmo Luanda, é preciso dizer, se deu na contramão
ano, o então Cônsul-Geral em Londres foi das outras repartições estrangeiras, que
convidado a servir provisoriamente em fecharam suas portas ao rufar dos tambores
Luanda, por recomendação de Ítalo Zappa – para o reinício da guerra civil.
seu amigo de juventude, conterrâneo de Barra Depois de meses de observação da
do Piraí e então Chefe do Departamento evolução da política local e tendo em vista
de África, Ásia e Oceania do Itamaraty. O que havia elementos suficientes para levar a
convite era para ser Representante Especial crer que o MPLA havia expulsado de Luanda
do Brasil junto ao Governo de Transição de os dois outros movimentos, o representante
Angola, que reunia os três movimentos de brasileiro sugeriu ao Chanceler Azeredo da
1 O autor agradece aos Embaixadores Arnaldo Carrilho, ao Embaixador Fernando Reis e à Embaixatriz Ivony de Andrade Melo
pelos gentis depoimentos e, muito especialmente, ao próprio Embaixador Ovídio de Andrade Melo pela entrevista generosamente
concedida com a finalidade de redigir este ensaio. Agradece também os amigos Gustavo Pacheco, Carlos da Fonseca e João Vargas
pela inspiração, leitura e sugestões.
2 Entrevista com o Embaixador Ovídio de Andrade Melo, Rio de Janeiro, 17/5/2008.
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Cf. MRE. Anuário do Pessoal. Brasília: sem editora, 1992, p. 560
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Silveira que o Brasil deveria estar preparado povos sob a guarida de Lisboa. Além disso,
para reconhecer a vitória militar e o governo a África lusófona se afigurava como porta
de facto do MPLA. Pareceu a Ovídio o de entrada natural para a aproximação
mesmo que já era aceito pelos observadores com o continente africano, que, por sua
internacionais em solo africano: as eleições vez, constituía prioridade na estratégia
previstas em Alvor seriam de impossível universalista da política externa de Geisel e
realização e a força comandada por Agostinho Azeredo da Silveira, cujas sementes haviam
Neto já governava Angola em meio à guerra sido lançadas por Jânio Quadros e Afonso
civil. No primeiro minuto de 11 de novembro Arinos e pelos demais progenitores da
de 1975, quando os panos rubro-verdes Política Externa Independente.
deram lugar à bandeira da mais nova nação Operador e um dos artífices de um desses
africana alforriada dos grilhões coloniais, a flashes de nossa história diplomática em
Embaixada brasileira se tornaria a primeira que o Brasil desiste de ser espectador do
missão diplomática permanente aberta na concerto das nações para integrar a orquestra,
capital, e estava apta para funcionar. Ovídio, no entanto, não desembarcou da
Ovídio havia desembarcado em Luanda, África coberto das glórias dispensadas, por
de Londres, em janeiro de 1975. Só em exemplo, ao seu “xará” Juca Paranhos após
agosto expediu o telegrama em que conquistar, em Washington, a vitória no litígio
aventava a necessidade de reconhecer o fronteiriço com a Argentina. Pelo contrário,
MPLA, vitorioso pelas armas, quando a data o Juca de Barra do Piraí foi sistematicamente
prevista para a independência chegasse. O preterido em sua promoção a full-Ambassador
despacho do Itamaraty informando que o pelo estamento militar que então controlava
reconhecimento da independência angolana o Estado brasileiro e acusado de ter rendido
pelo governo brasileiro seria feito em 10 seu compromisso patriótico de ofício às suas
de novembro, às 8.00 da noite, horário de simpatias ideológicas.
Brasília, de modo que, dada a diferença de
fusos horários, tivesse efeito exatamente
à meia noite em Luanda. Tal comunicado,
que só chegou às mãos de Ovídio na Descortinemos o pano de fundo: na esteira
véspera, informava que na mesma data do da Revolução dos Cravos, também posta
reconhecimento seria levado o decreto na rua para dar cabo ao império colonial
que determinava a abertura da Embaixada lusitano, o jovem governo de Lisboa reuniu
do Brasil em Luanda para assinatura do MPLA, FNLA e Unita, em Alvor, no sul de
Presidente Geisel. Portugal, num esforço de conciliação política
A decisão de o Brasil ter sido o primeiro que culminou na montagem de um Governo
país a reconhecer Angola como Estado de Transição tripartite. Em Alvor, foi agendada
independente, em meio a uma disputa a retirada das tropas portuguesas de
política local gradualmente contaminada território angolano para 30 de abril daquele
pelos vícios da Guerra Fria, importou gesto ano e, mais importante, estabelecida a data
de outrora rara autonomia, coragem e “mágica” de 11 de novembro de 1975 para
ativismo diplomáticos. A manobra brasileira casar o direito de autodeterminação angolano
foi decorrente exclusivamente de uma leitura com sua respectiva soberania.
do interesse nacional gestada entre as quatro O movimento angolano não estava
paredes do serviço diplomático brasileiro, historicamente isolado, na medida em que
desvinculada dos movimentos de maré do então sucumbia, de uma vez por todas, o
conflito bipolar. Não seria exagerado atestar império colonial português. Em setembro
que também reinventou o compromisso da de 1973, a Guiné-Bissau já havia declarado
política externa brasileira com o continente unilateralmente sua independência; Portugal
africano, até então claudicante quanto ao a reconheceria no ano seguinte. Moçambique
apoio ao direito de autodeterminação dos perfilaria sua bandeira no pavilhão das
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Nações Unidas ainda em 1975. O Timor- questionável, uniu forças à Unita, em outubro
Leste, embora fosse logo em seguida ocupado de 1975, para avançar em uma blitzkrieg de
pela Indonésia, se preparava, naquele mesmo duzentos tanques em direção a Luanda e lá
contexto, para berrar sua liberdade. Ressaca tentar tomar o poder antes da independência.
dos ventos de abril... Como reação aos movimentos de Pretória,
Em Angola, a despeito da solução de Havana passou a enviar tropas, recursos e
compromisso arrancada de Alvor, em janeiro, conselheiros militares para fortalecer o MPLA4.
em prol da divisão das pastas ministeriais Em agosto, entretanto, o MPLA já tinha
do governo de transição entre as forças de conquistado Luanda, expulsando os outros dois
Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas movimentos e estancando militarmente seu
Savimbi, o março de 1975 testemunhou regresso. Com a vitória nos campos de batalha,
o ressurgimento de combates fratricidas passou a executar funções administrativas
que ressuscitaram a guerra civil, que só e a tocar o governo de transição sem
seria apagada um quarto de século depois. concorrentes. Com a aproximação da data
Livres dos combates com as metrópoles, os marcada para a independência, a questão
postuladores do timão angolano fatiaram o do reconhecimento estrangeiro tornava-se
país em busca do controle territorial de suas seminal para a conclusão do processo de
porções, em particular da capital, e deram descolonização e para a fundação do Estado
sinal verde para intervenções estrangeiras angolano independente. Só que o calcanhar de
transformarem o fim de uma batalha pela Aquiles do MPLA era menos sua plataforma
descolonização em uma arena para os de governo do que sua origem ideológica, esta
gladiadores sob procuração de Moscou e “exótica” ante os olhos do Ocidente.
de Washington.
Acusado de “satélite do Kremlin” e de
tentar instalar uma república comunista no
oeste da África, o MPLA, despertou, desde A rápida missão do Embaixador Ítalo
o seu nascedouro, calafrios em Washington. Zappa a Tanzânia, Zâmbia e Etiópia, em
Para contrarrestar o apoio soviético às forças novembro de 1974 (anterior, portanto, da
de Agostinho Neto, a CIA passou a financiar abertura da Representação Especial), tinha
o FNLA e,
posteriormente,
a Unita, sem É razoável supor que, ademais de
muita parcimônia.
O governo da deixar um legado para a nova política
África do Sul,
aventurando-se africana da diplomacia brasileira, a
em política de
intervencionismo missão ovidiana importou altas doses de
regional de
legalidade sacrifício pessoal para seu protagonista.
4 A cronologia da chegada das tropas cubanas a Angola é importante para compreender a batalha de argumentos em que
Ovídio Melo seria posteriormente envolvido. Henry Kissinger afirmara que soldados cubanos estavam em Angola desde os
enfrentamentos de março. Ovídio afirma que eles só chegariam com o advento da independência, constatando que, antes disso,
só seria possível “no máximo, admitir a presença de poucos conselheiros militares esparsos incógnitos na capital, ou ocultos no
interior do país. Quanto a tropas cubanas e artilharia, só desembarcaram em Luanda na noite mesmo da independência, depois
que a última autoridade portuguesa saiu de Angola, quando Agostinho Neto discursava em praça pública e proclamava Angola
livre. Esse reforço cubano saiu do aeroporto vazio e escuro e foi imediatamente transportado para a frente de batalha, a fim de
enfrentar e derrotar os tanques sul-africanos.”
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como objetivo expor às lideranças angolanas exilado Agostinho Neto, e, finalmente, para
e moçambicanas, ainda então exiladas, a o sul do país, para conversar com Savimbi.
mudança de posição brasileira em relação Seu objetivo era contar com anuência das
à descolonização das antigas possessões três forças para abertura do Escritório de
portuguesas. A decisão de reconhecer Angola Representação brasileiro. Das conversas,
e de manter um representante brasileiro no colheu a aprovação dos três chefes, que
país durante todo o governo de transição demonstraram variados graus de entusiasmo
foi tributária dessa mudança de ventos. De quanto à iniciativa da diplomacia brasileira.
acordo com Ovídio, Notou que Agostinho Neto era o mais
preparado dos líderes e o mais interessado
“Silveira pretend[ia] antecipar o e na nova política angolana do Itamaraty.
relacionamento político do Brasil Savimbi – cuja morte, em 2002, poria
com as colônias portuguesas que se finalmente termo à guerra civil angolana
encaminhavam para a independência. E, – pareceu-lhe o mais alheio e indiferente às
para isso, ainda no período de transição, posições políticas que o Brasil havia tido ou
pensava em abrir em Lourenço Marques demonstrava querer ter com Angola e com a
[futura Maputo] e Luanda uma espécie África em geral.
de embrião de Embaixada, para tratar A esta altura, é importante ressaltar
com os movimentos negros que que o Brasil tinha se comprometido com a
Portugal qualificasse como candidatos neutralidade entre as três forças angolanas.
ao poder.”5 Segundo o Representante Especial, foi
somente a realidade dos fatos o motivo do
Zappa tinha ciência de que a oscilação reconhecimento do governo do MPLA.
brasileira em governos anteriores,
excessivamente ciosos das relações com “Fui então para Angola com
Portugal, era recebida com ressentimento instruções para ficar neutro, sem
pelos libertadores e libertados africanos. favorecer qualquer partido, em eleições
A Frelimo, por exemplo, dera evidentes ou lutas que ocorressem, como
demonstrações de desconfiança quando o executor de uma política que era
Brasil buscou reconhecer a independência bem nacional apenas porque parecia
de Moçambique. Recusou a abertura da inspirada em Machado de Assis: ‘Ao
representação especial em Lourenço Marques, vencedor, as batatas’”7.
porque preferia ver como o Brasil se
comportaria em Angola com respeito à isenção O representante brasileiro se situava em
proclamada pelos representantes brasileiros. um conflito antes sobre autodeterminação
O reconhecimento de Angola viria, depois do que sobre ideologia política em que, não
de novembro6, a manobrar a má-vontade obstante, a Guerra Fria estendia suas garras:
moçambicana em relação à política africana
do Brasil e facilitaria, posteriormente, a maior “O Brasil teve que agir e ser visto
penetração do Brasil na África lusófona. como agindo como um observador
Antes de fixar-se em Angola, Ovídio se estrangeiro imparcial em um contexto
deslocou para o Zaire, para encontrar-se extremamente complicado. Ao final de
com Holden Roberto, para Tanzânia, onde 1975, [Angola] tinha se tornado palco
pela primeira vez entrevistou-se com o ainda para agentes da CIA, tropas cubanas e
5 ANDRADE MELO. Ovídio de. “O reconhecimento de Angola pelo Brasil em 1975” In ALBUQUERQUE, José Augusto
Guilhon de (org). Sessenta Anos de Política Externa, Vol III. O desafio geoestratégico. São Paulo: Editora NUPRI/USP, 2000, p. 350.
6 O Brasil reconheceu a independência de Moçambique apenas 4 dias depois, em 15 de novembro.
7
ANDRADE MELO (2000), p. 365.
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doses de sacrifício pessoal para seu militar brasileira, cuja afeição por qualquer
protagonista. Amparado por somente mais um movimento de esquerda era insuspeita,
diplomata no Posto na maior parte do tempo, uma decisão de Estado lastreada por um
nos primeiros seis meses, pelo Conselheiro cálculo diplomático foi interpretada por
Cyro Cardoso e nos meses restantes, pelo setores mais “realistas do que o rei” como
Secretário Raul de Taunay, Ovídio viu-se mais aproximação com os comunistas.
que privado dos confortos da Londres que o O Ministro do Exército Sylvio Frota,
abrigara meses. Entretanto, manteve-se tenaz na qualidade de porta-voz da linha-dura,
em seu propósito de transformar o Escritório enxergou uma ameaça soviética embutida
do antigo Consulado numa futura Embaixada na vitória de Agostinho Neto projetando-se
e, principalmente, relatar ao Itamaraty as transatlanticamente contra o Brasil. Frota
minúcias da incrementalmente complicada abriu o manifesto que divulgou em 1978,
política angolana. quando tentou depôr Geisel, com a seguinte
Em depoimento de quando já estava referência: “convenci-me de que Geisel
assentada a poeira dos tempos, nosso homem estava levando o Brasil para o comunismo
em Luanda rememora: quando reconheceu Angola”. E, depois, em
livro publicado postumamente, desferiu:
“Estava numa cidade sitiada, onde
faltava comida, água e luz de vez em “Não se compreende como o
quando e onde as dificuldades de vida governo brasileiro, representante de
eram tremendas. Somente a organização uma revolução visceralmente contrária
de minha mulher conseguiu fazer com ao marxismo, fosse o primeiro, no
que aquelas dezesseis pessoas que concerto universal das nações, a
estavam comigo pudessem manter-se estender a mão ao governo de Luanda,
durante um ano em Angola, porque ela de legitimidade discutida, quando
montou um verdadeiro armazém e um Portugal, onde pululavam os comunistas,
verdadeiro hospital. Tivemos de blindar só o faria depois de três meses.”11
as janelas mais expostas a tiroteios, e
mesmo assim a casa do consulado foi O Estado de S. Paulo atribuiu a decisão à
metralhada de alto a baixo.”10 suposta filiação esquerdista de Ovídio, Zappa
e Silveira, submetendo-lhes as lealdades antes
Mais do que desconforto físico ao a Moscou do que a Brasília:
representante brasileiro, contudo, o
pioneirismo do reconhecimento da “O reconhecimento extemporâneo
independência angolana cobrou ao [da independência de Angola] foi inspirado
desenho de política externa de Geisel e de pelos embaixadores Azeredo da Silveira,
Silveira e, particularmente, ao Embaixador Ítalo Zappa e Ovídio de Andrade Melo.
Ovídio de Andrade Melo críticas das Os três eram esquerdistas notórios e
metralhadoras mais conservadores da favoráveis a um alinhamento automático
sociedade brasileira. Neste episódio em com os interesses e projetos da União
particular da “longa noite” da ditadura Soviética.”12
Embaixador Ítalo Zappa. In REBELO, Aldo, FERNANDES, Luis & CARDIM, Carlos Henrique. Seminário Política externa para o século
XXI. Brasília: Câmara dos Deputados, 2004, p. 551.
11 FROTA, Sylvio. Ideais traídos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2006, p. 185.
12
Editorial de O Estado de S. Paulo, 1º/10/1987.
_21
_perfil
16 Despacho telegráfico n. 393, 6/11/1975. Reproduzido em GARCIA, Eugênio Vargas (org.). Diplomacia Brasileira e Política
_22
retrucou, por meio de seu porta-voz, do Brasil em Luanda foi aberta e o
que jamais acataria pressões de governos fato comunicado ao Itamaraty. Passei
estrangeiros e que Ovídio agiu seguindo a ser designado como Encarregado
ordens expressas do Governo brasileiro. de Negócios de uma Embaixada que
Ovídio, entretanto, havia de fato sido legalmente ainda não existia”.19
substituído de Angola em um processo que
não foi bem esclarecido. O decreto seria finalmente assinado nas
Pressionados pela miopia ideológica (ou derradeiras horas daquele 1975. E depois
interessada) dos que queriam enxergar de ser Representante Especial em Angola,
um títere soviético sentado no Gabinete comissionado e apresentado como Embaixador;
do Chanceler brasileiro, Geisel e Azeredo depois também de ser nomeado como
da Silveira mantiveram a decisão de Embaixador para as festas da Independência,
reconhecer o “Governo instalado”17 em Ovídio Melo afirma que não poderia aceitar
Luanda, mas optaram por imprimir, em ser rebaixado a Encarregado de Negócios na
um segundo momento, um “low profile” às Embaixada criada após a Independência.20
relações bilaterais. Para isso, em telegrama Silveira designou, então, por telegrama ao
particular, Silveira recomendou que Ministro das Relações Exteriores de Angola,
Ovídio Melo evitasse manter contato com José Eduardo dos Santos, o então Conselheiro
autoridades do Governo angolano. Ovídio Affonso Celso de Ouro Preto como novo
respondeu que isso era impraticável, uma Encarregado de Negócios. Ovídio esperou que
vez que a Embaixada do Brasil era a única Ouro Preto chegasse à capital angolana e, então,
que estava instalada e ainda “porque todas passou-lhe o serviço. No entanto, ao chegar
as novas autoridades tendiam a procurar a Lisboa em seu regresso ao Brasil, Zappa
insistentemente a colaboração do Brasil e Silveira pediram-lhe para voltar a Luanda
com o novo Governo”18. A intenção de imediatamente, a fim de descobrir por que
Silveira era baixar a temperatura dos Ouro Preto não fora devidamente credenciado
críticos, sobretudo dos círculos militares, como novo representante do Brasil. Ovídio
sem, ao mesmo tempo, melindrar Luanda voltou então para Luanda, teve um encontro
e Maputo. com o Ministro Santos, e logo ficou esclarecido
Silveira optou então, por retirar Ovídio que Affonso Ouro Preto havia sido confundido
de Angola, inclusive porque, desde a com Silvestre Ouro Preto – seu meio-irmão e
Independência, o Juca de Barra do Piraí ex-Embaixador do Brasil em Lisboa, que havia
queria deixar o serviço provisório em visitado Angola dez anos antes e, na ocasião,
Luanda. Ovídio Melo nota, a propósito da fizera um discurso de teor colonialista do
situação em que foi deixado em Angola que: qual os novos líderes angolanos não haviam
se esquecido. Entre idas e vindas, Ovídio pôde
“O Itamaraty por esquecimento finalmente partir de Luanda. O Itamaraty
ou prudência não levou o decreto informou que a partida era por “motivos de
de abertura da Embaixada do saúde” do Representante – o que, segundo
Brasil em Luanda para assinatura, e Ovídio Melo, era de fato verdadeiro.
esqueceu de comunicar este fato ao Assim Letícia Pinheiro interpreta a
representante em Luanda. Assim, na simbologia política da maneira como foi
data da independência a Embaixada conduzida a saída de Ovídio de Angola:
17 A Nota de 10/11/1975, cuidadosa com a linguagem empregada, adota o termo “Governo instalado”, omitindo a designação
específica do MPLA, o que não deixa de ser consoante à política inicialmente concebida.
18 Entrevista com Ovídio de Andrade Melo, Rio de Janeiro, 17/5/2008.
19 Idem.
20
Ibidem.
_23
_perfil
24
Tradução livre de KISSINGER, Henry. Years of renewal. Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1999, p. 801.
_24
evidências na historiografia de que não. Nas palavras do nosso homem em Luanda,
Mesmo que tivesse tomado simpatia pessoal “ao abrirmos um embrião de Embaixada num
pelos líderes daquele movimento, a vitória país que ainda não era independente”, com
militar e o governo de facto do grupo de quem o Brasil tinha uma “dívida histórica”,
Agostinho Neto era incontestável. Ovídio de modo a garantir ingresso privilegiado à
havia sido, de toda maneira, instruído explícita diplomacia brasileira, “pudemos fazer uma
e formalmente pelo Itamaraty a reconhecer o coisa diferente na política externa”.26
governo instalado em Luanda como condutor
da independência angolana.
Avaliando o mérito do reconhecimento
da independência angolana, a ousadia da O estilo naïf que inspira a obra artística
manobra de Silveira, Zappa e Ovídio residiu do Embaixador Ovídio serve também como
na precisão da análise política local em metáfora para sua trajetória profissional,
detrimento da escravização à moldura de sobretudo no que se refere a sua “hora
pensamento da Guerra Fria e, mormente, de estrela” lispectoriana. Tal qual a pintura
na disposição da diplomacia brasileira em naïf, caracterizada pela técnica algo
participar nas relações internacionais de errante, cores vibrantes, simbologia de
modo proativo. Consolidou a mudança subversão e temário da “cidade baixa”, o
de leme a respeito da descolonização e gesto diplomático do reconhecimento da
vislumbrou a ampliação das fronteiras independência de Angola e do Governo
diplomáticas brasileiras. Representou uma do MPLA não careceu de simbolismo nem
tentativa de franquear ao Brasil um acesso de certa “ingenuidade subversiva” em seus
inédito, de forma particular, à Angola contornos – se não do ponto de vista
independente e, de modo geral, enviava geopolítico, ao menos do ângulo de sua
um sinal de aproximação diplomática aceitação nos corredores daquela hora da
com as antigas possessões portuguesas. política brasileira.
Era mais um lance da opção pelas vias Como a Macabéia de Clarice Lispector,
atlântica, africana e, no limite, universalista seu ápice foi também o motivo de seu
da política externa de Geisel, que seria ocaso: sacado de Luanda por força de
logo mais aprofundada por Figueiredo. pressões de todos os lados, Ovídio
Tais vertentes seriam redesenhadas pela amargou o ostracismo em duas embaixadas
política externa do Presidente Lula, cuja que considerou “de menor porte”. Sua
ação diplomática também tem colhido os passagem por Angola não somente lhe
frutos da semente plantada por Silveira, havia imposto privações pessoais, como
Zappa e Ovídio – legado reconhecido pelo lhe rendeu indisposição com o estamento
atual Chanceler brasileiro: mais conservador do Itamaraty e da
República sob o chicote militar. Apesar
“Nas conversas que mantive [em de ter protagonizado momento da
Angola, em 2003], foi recordado maior importância diplomática para o
o significativo fato de ter sido o Brasil, foi preterido em mais de noventa
Brasil o primeiro país a reconhecer oportunidades de promoção, tendo podido
o governo angolano, bem como anexar plenamente o sufixo “Embaixador”
o papel desempenhado pelo ao seu nome somente após a desmontagem
embaixador Ovídio de Andrade do regime militar.
Melo nos primeiros momentos do Zappa foi promovido a Ministro
relacionamento bilateral.”25 de Primeira Classe em dezembro de
_25
_perfil
Embaixador Ítalo Zappa. In REBELO, Aldo, FERNANDES, Luis & CARDIM, Carlos Henrique. Seminário Política externa para o século
XXI. Brasília: Câmara dos Deputados, 2004, p. 552.
30
GASPARI, Elio. “O teimoso continua na briga. É Juca” In Jornal do Commercio, 23/01/2000.
_26
_27
_especial
PRESOS NO
EXTERIOR
Adriana Telles Ribeiro
_28
O contínuo aumento do número de nacionais detidos no exterior
instiga reflexão sobre os desafios da política de assistência consular do
Ministério das Relações Exteriores (MRE). Dos detidos por imigração
irregular aguardando deportação nos Estados Unidos aos encarcerados em
diferentes países da Europa e da América do Sul por tráfico de drogas, o
objeto da análise é amplo e heterogêneo.
_29
_especial
1 Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas e Consulares de 1963, artigo 36: “Há obrigação da autoridade local de
informar ao cônsul da prisão de seu nacional, subordinado ao pedido do interessado”.
2 Relatório Consular Anual do Ministério de Relações Exteriores, 2006, 2007.
3 Fonte: Arquivos do Núcleo de Assistência a Brasileiros (NAB) da Divisão de Assistência Consular, MRE.
4 Idem.
5 www.immigrationforum.org
_30
Geralmente o imigrante irregular detido não
conhece seus direitos e em muitos casos não
tem acesso à autoridade consular brasileira.
_31
_especial
_32
As brasileiras saem principalmente Assistência consular a presos no
das cidades litorâneas (Rio de Janeiro, exterior – o papel do Itamaraty
Vitória, Salvador, Recife e Fortaleza),
mas há também numerosos registros de A política de assistência a brasileiros no
casos nos estados de Goiás, São Paulo, exterior está delineada no terceiro capítulo
Minas Gerais e Pará. Ramificação do do Manual de Serviço Consular e Jurídico
crime organizado, as quadrilhas do tráfico (MSCJ) do MRE (veja box) e é executada pela
de pessoas se aproveitam de condições equipe do Núcleo de Assistência a Brasileiros
sociais desfavoráveis e de expectativas das (NAB) da Divisão de Assistência Consular
brasileiras em prosperar para jogá-las em (DAC). Criado em 1995, o NAB é formado
um regime servil e desprovido de qualquer por uma equipe de funcionários treinada
garantia de direitos. O crime organizado e dotada de meios para prestar assistência
muitas vezes se vale de expedientes consular a nacionais no exterior. Diariamente,
aparentemente lícitos, tais como proposta funcionários atendem a uma diversidade de
de casamento repentina, moradia no casos que dizem respeito, principalmente,
estrangeiro, convites para trabalhar no à localização de brasileiros desaparecidos,
exterior ou para viajar para fora do país, denegação de entrada em outros países,
para aliciar brasileiras, a maior parte com detenção em aeroportos, auxílio a enfermos e
idade entre 18 e 30 anos. Cabe lembrar, desvalidos e assistência humanitária a presos.
com relação às redes ilícitas envolvidas no Com relação aos brasileiros cumprindo
tráfico de pessoas, que o consentimento do pena no exterior, funcionários da DAC
indivíduo não descaracteriza o crime. costumam solicitar aos Postos que designem,
Fonte: Manual do Serviço Consular e Jurídico do MRE, Cap. 3 - Assistência e Proteção a Brasileiros - Seção 3.1.23.
_33
_especial
_34
do MRE pode, em alguns casos, reverter o um modo geral, a triste situação de um Brasil
destino de brasileiros que receberam penas que, apesar de avanços consideráveis, ainda
desproporcionais a seus crimes de acordo não consegue oferecer condições plenamente
com o regime jurídico brasileiro. favoráveis ao desenvolvimento de sua população
e cuja emigração de nacionais reflete aspectos
políticos, econômicos e sociais. Cabe assinalar
Conclusão que análise do conjunto de casos de brasileiros
Dos que migram de forma irregular em detidos no exterior assistidos pela DAC revela
busca de condições sócio-econômicas melhores que a grande maioria não possuía antecedentes
aos que arriscam sua liberdade em troca criminais. Entre os crimes pelos quais foram
de compensação financeira ao transportar condenados há pouquíssimos casos de
ilícitos, o retrato dos nacionais presos ou homicídios ou infrações graves.
com liberdade tolhida no exterior revela, de Longe de seu país e de suas famílias ou
amigos, que raramente possuem recursos
para visitá-los, enfrentando barreiras como o
O retrato dos idioma e o isolamento cultural, muitos desses
brasileiros têm na assistência consular do MRE
nacionais presos seu único vínculo com o Brasil. Ao receber
a visita de uma oficial de chancelaria, um
ou com liberdade brasileiro preso em Mianmar disse ter caído
em lágrimas, pois adquirira ali a certeza de que
tolhida no exterior não seria abandonado à própria sorte9.
No contexto da valorização da ação
revela, de um modo
consular do MRE, é necessário prosseguir na
direção de uma mudança de cultura quanto à
assistência a presos, acabando com a percepção
geral, a triste situação redutora que por vezes ainda a associa a uma
rotina secundária, substituindo-a por outra que
de um Brasil que, valorize sua importância como serviço público e
que garanta sua eficácia e continuidade.
apesar de avanços
consideráveis, ainda
Michel Lahan Neto
_35
_especial
COMUNIDADES
BRASILEIRAS
NO ESPAÇO
MERCOSUL
Aloísio Barbosa de S. Neto
_36
A s comunidades de brasileiros
radicadas nos países do Cone Sul participaram
menos expressivo, porém de grande relevância,
e que sugere alguma correlação com o
de importantes acontecimentos históricos aprofundamento da integração no bloco.
ocorridos entre o Brasil e seus vizinhos,
muito antes que a região se convertesse na
prioridade da política brasileira de integração.
As comunidades de brasileiros
Apenas para citar alguns exemplos, cabe nos países do MERCOSUL
relembrar o protagonismo dos estancieiros De maneira geral, os fluxos migratórios
gaúchos radicados no Uruguai nos processos tradicionais de brasileiros em direção aos
que culminaram na Guerra do Paraguai, ou, países limítrofes estão relacionados com
ainda, o movimento de intensa migração desequilíbrios agrários do Brasil aprofundados
de agricultores brasileiros ao Paraguai na nas décadas de 1960 e 1970, os quais
década de 1970, que alavancou o agronegócio provocaram deslocamentos populacionais
daquele país. importantes. Marcelo Santa Bárbara aponta
As origens do movimento migratório de os principais fatores de repulsão do
brasileiros em direção aos países limítrofes, campo brasileiro: o processo de reforma
especialmente os do Cone Sul, remontam agrária, a forte concentração fundiária, a
ao século XIX. Esse fluxo teve seu ápice fragmentação de propriedades por herança
nas décadas de 1960 e 1970, pelas razões – que dificultava a venda dos terrenos –, a
que discutiremos a seguir, e atraiu, à época, valorização do preço das terras e, finalmente,
grande visibilidade política, sobretudo em a modernização tecnológica e especialização
função de tensões agrárias decorrentes do da agricultura, que desestruturou as
estabelecimento de agricultores brasileiros e relações de emprego no campo.1 Esses
de problemas de posse e titularidade das terras fatores repulsivos repercutiram tanto sobre
adquiridas por brasileiros nos países vizinhos. proprietários rurais (grandes proprietários
Atualmente, a comunidade de brasileiros no ou pequenos produtores familiares), que
Paraguai é bastante expressiva em termos deixaram suas áreas de cultivo originais
numéricos, enquanto as comunidades em busca de terras mais baratas, quanto
brasileiras na Argentina e no Uruguai são sobre trabalhadores rurais assalariados ou
menos numerosas; deve-se ressaltar, entretanto, mesmo subempregados do campo, tais como
que as três devem ser objeto de atenção do coletores ou extrativistas. Esses últimos,
governo e de pesquisadores, por se situarem na maioria dos casos, permaneceram em
na região prioritária da política brasileira de situação irregular nos países vizinhos ou iam
integração, o MERCOSUL. e voltavam para o Brasil como trabalhadores
Neste artigo, analisaremos a formação sazonais, empregados por patrões brasileiros
das comunidades brasileiras nos países do nos países limítrofes.
MERCOSUL. Buscaremos destacar, de início, as Podemos considerar, portanto, as migrações
condicionantes que levaram ao que chamamos originais de brasileiros em direção aos países
de fluxos migratórios tradicionais e, em limítrofes como desdobramentos dos grandes
seguida, as condicionantes de um movimento fluxos de migrações internas, que expandiram
migratório mais recente, numericamente as fronteiras de produção agrícola para
1
SANTA BARBARA, Marcelo. “Brasiguaios: territórios e jogos de identidades”. A Defesa Nacional, N.o 795. Janeiro-Abril de 2003.
_37
_especial
além das fronteiras geográficas do país. A Paralelamente, Sprandel chama a atenção para
respeito dos migrantes brasileiros no Paraguai, o fato de que os brasileiros residentes nos
por exemplo, Sprandel não os considera países fronteiriços, especialmente no Paraguai,
exatamente “migrantes” ou “emigrantes tiveram pequena participação nas iniciativas mais
internacionais”, mas “agentes de estratégias recentes de mobilização política dos emigrados
familiares ou comunitárias de reprodução brasileiros, como, por exemplo, o I Simpósio
econômica e social, que eventualmente Internacional sobre Emigração Brasileira (Lisboa,
perpassam as fronteiras nacionais”. 2 1997) e o Encontro Ibérico da Comunidade
Sem a pretensão de homogeneizar migrantes de Brasileiros no Exterior (Lisboa, 2002).3 Isso
brasileiros radicados nos países vizinhos sob pode ser indicativo da menor mobilização
uma mesma categoria, o que nos levaria a dessas comunidades como “brasileiros
reforçar estereótipos, mas considerando que residentes no exterior” talvez por estarem
há diferenças notáveis entre estes brasileiros muito próximos do Brasil e conectados a
e aqueles que emigraram para países do uma forte rede que os mantém vinculados
Hemisfério Norte, por exemplo, podemos ao país de origem.
apontar algumas de suas peculiaridades. Em Por último, a própria dinâmica dos
primeiro lugar, a grande maioria dos brasileiros movimentos migratórios em direção aos
que se fixaram no Paraguai, na Argentina ou no países fronteiriços, que constituem, em
Uruguai nas décadas de 1960 e 1970, sobretudo, última análise, uma expansão da fronteira
reside perto da fronteira com o Brasil. Isso agrícola brasileira, levou muitos emigrantes
os leva a permanecer ligados ao País por a continuar realizando as mesmas atividades
diversas redes sociais e comerciais, ao passo profissionais a que se dedicavam no Brasil,
que vivenciam uma duplicidade de vinculações ao contrário dos brasileiros no Hemisfério
típica dos espaços de fronteira. Enquanto Norte, que, em geral, exercem atividades
muitos dos emigrantes de primeira geração diferentes daquelas que exerciam no Brasil4.
já têm filhos registrados nos países de
residência, por exemplo, não raro recorrem
aos serviços de saúde, educação e assistência
Brasileiros no Paraguai
social brasileiros, acessíveis do outro lado da A comunidade brasileira residente no
fronteira. Isso leva a uma grande circulação Paraguai, composta por cerca de 450 mil
de pessoas nas zonas fronteiriças, engrossada, cidadãos, é a mais numerosa na América do
ainda, pelos nacionais dos Estados vizinhos Sul, e corresponde a quase um quarto do
que procuram determinados serviços no total de brasileiros que vivem no exterior. Por
Brasil. Essa realidade reforça a importância isso, o Paraguai aparece como o segundo país
de uma discussão sobre a harmonização de em quantidade de brasileiros residentes, atrás
políticas públicas nas faixas de fronteira. apenas dos Estados Unidos.
Em segundo lugar, a proximidade com o A origem do movimento migratório em
Brasil leva os emigrantes a dispor de um leque direção ao Paraguai está relacionada aos
maior de opções para mediar suas demandas, fatores da conjuntura fundiária do Brasil
que inclui não somente as autoridades comentados anteriormente, mas deriva,
locais, mas também as instituições brasileiras, em grande medida, de uma conjunção
sejam elas as repartições consulares ou as desses fatores com uma política explícita
próprias instâncias administrativas no Brasil. do governo Stroessner para promover o
2 SPRANDEL, Marcia Anita. “Aqui não é como na casa da gente... - comparando agricultores brasileiros na Argentina e no
Paraguai”. In: FRIGERIO, Alejandro e RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). “Argentinos e brasileiros - Encontros, imagens e estereótipos”.
Petrópolis, Ed. Vozes, 2002.
3 SPRANDEL, Marcia Anita. “Brasileiros na fronteira com o Paraguai”. Estudos Avançados, N.o 20. São Paulo, 2006.
4 A idéia de continuidade dos espaços e das atividades econômicas entre o Brasil e o país fronteiriço é bem expressa por
Márcia Anita Sprandel no título de seu trabalho “A terra é estrangeira, mas a da minha roça é igual”, apresentado no XXII
Encontro Nacional da ANPOCS, em 1998.
_38
desenvolvimento agrícola paraguaio. Essa e Verón ressaltam que a zona de maior
política, aliada ao baixo preço relativo confluência de brasileiros no Paraguai, entre
das terras e à flexibilidade da legislação os rios Paraná e Caaguazú, sofreu uma
paraguaia, que permitia a aquisição de “brasilianização” econômica e cultural.6
terras por estrangeiros5, fez do Paraguai Outro estudioso do assunto, Sylvain
uma grande zona de atração para grandes Souchaud, que publicou tese de doutorado
contingentes de produtores brasileiros, sobre o tema na Universidade de Poitiers,
sobretudo na década de 1970. na França, defende a existência de um novo
Esses emigrantes, em sua maioria, fixaram- espaço na América do Sul, chamado de
se nos departamentos paraguaios de Alto “brasiguaio”, que não é totalmente paraguaio
Paraná e de Canindeyú e dedicaram-se e tampouco é uma extensão do oeste
principalmente ao cultivo da soja e do do Brasil.7 Para esse autor, a colonização
algodão. É importante ressaltar que, no caso brasileira favoreceu a integração econômica
dos brasileiros no Paraguai, as estratificações e política do Paraguai, mas, ao mesmo tempo,
sociais que experimentavam no Brasil foram aprofundou sua dependência externa.
basicamente reproduzidas naquele país, pois Naturalmente, a ocupação de muitos dos
para lá confluíram tanto grandes empresários brasileiros residentes no Paraguai diversificou-
rurais quanto trabalhadores humildes, muitas se com o tempo e, atualmente, o setor de
vezes em situação clandestina. A estratificação comércio e de serviços também conta com
social “importada” do Brasil provocou o expressiva participação de brasileiros. Ainda
deslocamento de muitas tensões agrárias assim, a grande maioria continua localizada
para o Paraguai. Esses problemas, agravados nos departamentos paraguaios fronteiriços
pelo fim dos contratos de arrendamento com o Brasil. Dos cerca de 450 mil brasileiros
para milhares de famílias de agricultores lá residentes, aproximadamente 325 mil são
e por novos conflitos surgidos em torno contabilizados na jurisdição consular de
da titularidade das terras no Paraguai, Ciudad del Este (Alto Paraná), 70 mil na de
levou a uma inversão do fluxo migratório, Pedro Juan Caballero (Amambay), e 40 mil na
provocando um movimento de retorno ao de Salto del Guairá (Canindeyú).
Brasil, por volta de 1985. Muitos “brasiguaios”,
que assim passaram a ser chamados
justamente por ocasião de seu retorno ao
Brasileiros na Argentina
Brasil, fixaram-se em acampamentos no Sul e e no Uruguai
Centro-Oeste do País e engrossaram as filas O fluxo migratório de brasileiros em
dos trabalhadores rurais que reivindicavam direção à Argentina data de fins do século
terras ao recém-criado Ministério da Reforma XIX e, embora seja mais antigo do que
e do Desenvolvimento Agrário, que então aquele dirigido ao Paraguai, seu volume foi
coordenava o processo da reforma agrária. sempre mais reduzido. Em termos absolutos, a
Os efeitos da migração brasileira em comunidade brasileira na Argentina não sofreu
direção ao Paraguai são notáveis, dadas as grandes variações, diferentemente do boom da
proporções que a comunidade brasileira emigração de brasileiros para o Paraguai na
atingiu no país e a sua considerável década de 1970. O censo argentino de 1895
participação no setor agropecuário da registrava 24.725 brasileiros vivendo no país,
economia local. Os autores paraguaios Palau ao passo que o de 2001 computou 34.7128,
5 O Governo paraguaio revogou, em 1967, lei que impedia a compra de terras por estrangeiros em um raio de 150 km a
partir das fronteiras.
6 Apud SALES, Teresa. “Migrações de fronteira entre o Brasil e os países do Mercosul”. Revista Brasileira de Estudos Populacionais,
8 Instituto Nacional de Estadísticas y Censo de La República Argentina (INDEC). Censo Nacional de Población, Hogares y
Viviendas, 2001.
_39
_especial
9 HASENBALG, Carlos & FRIGERIO, Alejandro. Imigrantes Brasileiros na Argentina: Um Perfil Sociodemográfico. Série Estudos, n.
101. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), 1999.
10 INDEC (Censos de 1980 e 1991, e Encuesta Complementaria de Migraciones Internacionales)
13
Instituto Nacional de Estadística - Uruguay.
_40
de um perfil diferenciado, como, por De fato, o estabelecimento de cidadãos
exemplo, a internacionalização de empresas do MERCOSUL nos outros países sócios
brasileiras nos sócios do MERCOSUL, a é uma das conseqüências esperadas de
formação de parcerias com empresas locais um mecanismo de integração econômica
ou ainda o aumento dos convênios de e política. Nesse sentido, estão em curso
intercâmbio acadêmico. alguns avanços no plano normativo, com
Em estudo sobre o perfil sociodemográfico vistas a regular um fluxo de pessoas que
dos imigrantes brasileiros na Argentina, tende a ser crescente à medida em que
Hasenbalg e Frigerio identificaram uma avance o MERCOSUL. Cabe citar, a este
progressiva reorientação do fluxo de respeito, o Acordo sobre Residência
migrantes brasileiros da Província de Misiones para Nacionais dos Estados Partes do
para a Área Metropolitana de Buenos Aires. MERCOSUL, assinado em 2002.
Ainda segundo esses autores, o fato de que Embora o Acordo não esteja ainda em
o período analisado no estudo, entre 1990 vigor como normativa do bloco, pois não
e 1997, corresponda a uma fase de altos cumpriu os procedimentos de internalização
índices de desemprego na região de Buenos em todos os países membros, o Brasil já
Aires minimiza a possibilidade de migração o aplica bilateralmente, desde 2006, com a
laboral pura e simples. Além disso, a hipótese Argentina14 e com o Uruguai15. O Acordo
da migração seletiva, impulsionada pela de Residência estabelece condições
integração regional, é corroborada por dados simplificadas para que nacionais de um Estado
de radicações e permissões temporárias Parte se estabeleçam em outro membro
(vistos) concedidas a brasileiros, as quais do MERCOSUL e gozem dos mesmos
cresceram significativamente no período direitos e liberdades civis, sociais, culturais e
1994-1997, se comparadas com aquelas econômicas concedidos aos nacionais daquele
concedidas entre 1990 e 1994, período em Estado, inclusive o direito ao trabalho e à
que o MERCOSUL, embora já em vigor, ainda livre iniciativa. Nesse sentido, o instrumento
estava em estágio inicial. A título de exemplo, serve a um duplo propósito: por um lado, cria
podemos citar o número de permissões condições para a regularização dos migrantes
temporárias concedidas pelo Consulado indocumentados, que são uma realidade em
Geral da Argentina no Rio de Janeiro para todos os países do MERCOSUL. Por outro,
a categoria “técnicos”, que aumenta de quando em vigor, será a base normativa para
apenas um no período 1990-91 para 92 no regular o livre trânsito e o estabelecimento
período 1994-97, ou a categoria “executivos, de pessoas no espaço do bloco.
profissionais e gerentes”, que aumenta de 2, Seria precipitado afirmar que está em curso
no primeiro período, para 53, no segundo. uma integração dos mercados de trabalho
Infelizmente não houve estudos posteriores nacionais, ou mesmo que há plenas condições
que demonstrassem a continuidade da para o livre trânsito de pessoas no MERCOSUL.
tendência apontada pelos autores além de Mas tanto a persistência dos movimentos
1997, mas é bastante provável que este tipo migratórios “tradicionais” quanto o incremento
de migração “seletiva”, que, em alguma medida, das comunidades estrangeiras que decorre da
está relacionada à integração econômica, tenha integração regional justificam a necessidade de
permanecido crescente. Naturalmente, não se discussões sobre políticas sociais e trabalhistas
trata um movimento migratório de grandes harmonizadas no bloco. Cada vez mais, o
proporções, mas de uma diferenciação no perfil atendimento às demandas dos brasileiros
dos migrantes e nas motivações que levam ao residentes nos países sócios do MERCOSUL, e
estabelecimento de brasileiros em outros países o próprio aprofundamento deste, dependerá de
do MERCOSUL, sobretudo na Argentina. avanços dessa natureza.
14 O acordo que determina a aplicação bilateral foi assinado pelos Presidentes Lula e Nestor Kirchner na celebração dos 20
anos das Atas de Iguaçu, em 2005, e publicado no Diário Oficial da União em 29/08/2006.
15
A aplicação foi acordada pelos países por troca de notas em outubro de 2006.
_41
_especial
DAS
DESA FIOS
Ç Õ E S
M I G R A N A I S
NAC I O L
IN T E R A
E O B R A S I
TO
AO DIREI Leandro Vieira
_42
Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.
Que carregamos as coisas,
(...)e um chão, um riso, uma voz
ressoam incessantemente
em nossas fundas paredes.
_43
_especial
Parte do contingente de brasileiros que temáticas mais antigas no que tange à proteção
se dirige ao exterior se vale de redes sociais jurídica internacional – caso dos direitos sociais,
já constituídas para se dirigir aos Estados em que os direitos trabalhistas se inserem –, a
Unidos, ao Japão e ao Paraguai, países que, salvaguarda dos direitos humanos dos migrantes
considerados conjuntamente, concentram em está longe de estar consolidada.
torno de 70% dos emigrados brasileiros. O
restante da população brasileira no exterior
se espalha por países e continentes em que os
Os direitos sociais dos migrantes
laços com o país de origem são mais tênues. e o impacto da jurisprudência
A existência de comunidades brasileiras da Corte Interamericana sobre a
concentradas em determinadas regiões e países
cumpre importante papel na manutenção
proteção dos direitos dos migrantes
de vínculos entre os próprios emigrados e No nível multilateral, destaquem-se quatro
entre estes e o Brasil. A “cultura brasileira”, instrumentos normativos entre os vários que
reinventada, por exemplo, na celebração há relativos aos direitos dos trabalhadores
de festas, na publicação de periódicos em migrantes, que vinculam os países que deles
língua portuguesa, na remessa de divisas e fazem parte: a Convenção nº. 97/1949, da
no comércio de produtos brasileiros, ganha Organização Internacional do Trabalho (OIT);
visibilidade econômica e social e faz de seus a Convenção nº. 143/1975, da OIT, relativa
porta-vozes, os brasileiros emigrados, agentes às Migrações em Condições Abusivas e à
reivindicadores de direitos, tanto em relação à Promoção da Igualdade de Oportunidades e
comunidade na qual se inserem quanto no que de Tratamento dos Trabalhadores Migrantes;
tange à sociedade e ao governo brasileiros. o Protocolo Adicional à Convenção das
Esse quadro, em que o Brasil é, a um só Nações Unidas contra o Crime Organizado
tempo, país de origem de milhões de emigrados Transnacional, relativo ao Combate ao Tráfico
e destinatário de expressivo número de de Migrantes por via Terrestre, Marítima e Aérea,
imigrantes, suscita uma miríade de questões do ano de 2000; e a Convenção Internacional
jurídicas.A título meramente exemplificativo, para a Proteção dos Direitos de Todos os
dada a abrangência do temário passível de ser Trabalhadores Migrantes e Membros de Sua
abordado e a escassez de espaço para análises Família, adotada pela Resolução nº. 45/158 da
mais aprofundadas neste espaço, este texto fará Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1990.
breve menção à proteção legal do trabalhador Entre esses instrumentos, o Brasil ratificou
migrante e às evoluções mais relevantes relativas somente a Convenção da OIT nº. 97/1949
à jurisprudência internacional sobre assistência e o Protocolo contra o Crime Organizado
consular, e deter-se-á, com um pouco mais de Transnacional, concluído em 2000. A Convenção
vagar, sobre a questão atinente à participação nº. 143/1975 da OIT conta com meras 23
política do migrante no país de origem – e ratificações, enquanto a mencionada Convenção
também no de destino. de 1990, que entrou em vigor em 2003, contava
Espera-se, com tais exemplos, indicar a com 33 ratificações em 1º de outubro de 2005.
importância da evolução doutrinária e normativa O baixo número de países que aderiram a
do direito internacional – particularmente na esses instrumentos internacionais é indicativo
vertente de proteção dos direitos humanos das dificuldades de se universalizar o tratamento
– para a proteção dos migrantes e, também, uniforme e livre de preconceitos em relação ao
situar o Brasil, país em desenvolvimento, diante trabalhador migrante. Para que o Brasil tenha
do fenômeno das migrações internacionais. reforçada a defesa do tratamento multilateral
Ao se optar por esses três eixos de análise, dos aspectos referentes aos direitos trabalhistas
atente-se para o fato de que, mesmo em áreas dos migrantes, a adesão aos principais
_44
instrumentos multilaterais com ânimo definitivo, também da Corte Interamericana. Segundo o
mediante assinatura e subseqüente ratificação, parecer da Corte, exarado em setembro de
constitui etapa indispensável. 2003, os princípios da igualdade e da não-
Em relação ao direito à assistência discriminação são essenciais para a proteção
consular, o entendimento acerca de dos direitos humanos, seja no plano interno,
sua importância para a proteção dos seja no âmbito internacional. De impacto
direitos dos migrantes tem passado por profundo para a proteção dos migrantes,
grandes transformações – ênfase seja principalmente aqueles em situação de
posta na decisiva contribuição da Corte fragilidade diante do Estado estrangeiro,
Interamericana de Direitos Humanos para o a manifestação da Corte Interamericana
desenvolvimento desse direito. aponta a direção axiológica que a evolução do
Por meio da jurisprudência da Corte direito deve seguir e institui responsabilidade
Interamericana de Direitos Humanos, em que internacional para os Estados que
se destaca a Opinião Consultiva nº. 16/1999, descumprirem os supracitados princípios.
sobre a Assistência Consular no Âmbito das
Garantias do Devido Processo Legal, a Corte
não deixa dúvida acerca do vínculo do direito Os migrantes e o direito à
à assistência consular com as garantias do participação política
devido processo legal e com o direito à vida.
Em uma época em que o preconceito e a Transformações jurídicas importantes,
suspeição contra o estrangeiro se agravam, derivadas do fenômeno das migrações, têm
por questões de “segurança nacional” ou desafiado concepções tradicionais de cidadania
no contexto da “luta contra o terror”, e de participação política. No Brasil e nas
a interpretação de que dispositivos da demais democracias, o vínculo de nacionalidade
Convenção de Viena sobre Relações tem sido considerado como condição para
Consulares, de 1963, – notadamente o exercício do direito de voto. O Capítulo
o direito à informação sobre destinado aos direitos políticos na Constituição
assistência consular – encontram- Federal estabelece a nacionalidade brasileira
se integrados, nos dias de hoje, como pré-requisito para a fruição dos direitos
à normativa internacional de eleitorais. A única exceção a essa regra é a dos
proteção dos direitos humanos portugueses equiparados, nos termos definidos
constitui alento significativo pelo Tratado de Porto Seguro de 22 de abril
para a salvaguarda da de 2000, celebrado entre Portugal e Brasil
inviolabilidade do direito à (promulgado pelo Decreto nº. 3.927, de 19 de
vida, princípio norteador do setembro de 2001).
Estado brasileiro. Ressalte-se, no entanto, que a correlação
Essa visão humanística entre o vínculo da nacionalidade e o de
do direito internacional, cidadania para o exercício de direitos
que concebe o indivíduo políticos vem sendo matizada em todo o
como sujeito ativo e mundo. Ainda que a implementação dessas
passivo de deveres e importantes transformações conceituais
de direitos na ordem ainda se verifique, na maior parte, no âmbito
jurídica internacional, do direito interno dos Estados nacionais, há
é corroborada formulações doutrinárias e instrumentos
pela Opinião de direito internacional que nos permitem
Consultiva analisar a matéria do ponto de vista do
nº. 18/2003, direito internacional dos direitos humanos.
_45
_especial
1 Artigo XIX: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência,
ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.”
2 Jaime Pinsky adverte que “mesmo dentro de cada Estado-nacional o conceito e a prática da cidadania vêm se alterando ao
longo dos últimos duzentos ou trezentos anos. Isso ocorre tanto em relação a uma abertura maior ou menor do estatuto de
cidadão para sua população (por exemplo, pela maior ou menor incorporação dos imigrantes à cidadania), ao grau de participação
política de diferentes grupos (o voto da mulher, do analfabeto), quanto aos direitos sociais, à proteção social oferecida pelos
Estados aos que dela necessitam.” In: PINSKY, Jaime, e PINSKY, Carla (orgs.), História da cidadania, Ed. Contexto, p. 5.
3 CARNEIRO, Roberto (Coordenador do Observatório da Imigração do Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas).
Nota introdutória ao trabalho de SILVA, Jorge Pereira da. Direitos de cidadania e direito à cidadania. Lisboa, ACIME, maio de 2004.
_46
mínimo internacional’. O desenvolvimento dos as comunidades brasileiras no exterior,
mecanismos de proteção internacional dos estimadas em mais de três milhões de pessoas,
direitos do homem acabou por fazer prevalecer correspondem a contingente populacional igual
este último critério sobre aquele princípio”4. ou superior a 11 unidades federativas, além do
Nesse contexto, é oportuno frisar Distrito Federal. Pode-se antever o impacto
que a própria Convenção Internacional no sistema político brasileiro que adviria da
sobre os Trabalhadores Migrantes de 1990 representação política específica para brasileiros
já contempla, no artigo 13.2, o direito à no exterior, fenômeno inédito no Brasil, mas
liberdade de expressão, de forma análoga que já ocorre, com conformações variadas, na
ao previsto no artigo 19 da Declaração Itália, França, Portugal, Croácia e Colômbia.
Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Uma novidade importante de se destacar
em um instrumento de Direito Internacional
O Itamaraty e o Congresso
dos Direitos Humanos é o previsto no Nacional diante das comunidades
artigo 42.2, que se lê, em tradução livre do brasileiras no exterior
inglês: “O Estado de emprego deve facilitar,
em consonância com a legislação nacional, a O Estado brasileiro tem procurado
consulta ou a participação de trabalhadores acompanhar cada vez mais de perto as demandas
migrantes e membros de suas famílias das comunidades brasileiras no exterior.
em decisões que concernem à vida e à No âmbito do Itamaraty, o tratamento do
administração de comunidades locais.” tema na Secretaria de Estado detém status
Segundo David Earnest5, desde a década de Subsecretaria-Geral desde 2006, pelo
de 1960 há pelo menos 23 democracias Decreto nº. 5.979, que aprovou a estrutura
em que o direito de voto ao estrangeiro regimental do Ministério das Relações
domiciliado passou a ser reconhecido, Exteriores e criou a Subsecretaria-Geral das
ainda que a abrangência desse direito varie Comunidades Brasileiras no Exterior (SGEB),
consideravelmente. No Brasil, proposições cuja responsabilidade inclui “cuidar dos temas
legislativas6 tramitam (ou já tramitaram) no relativos aos brasileiros no exterior e aos
Congresso Nacional para estender o direito estrangeiros que desejam ingressar no Brasil”.
de voto ao estrangeiro domiciliado. Esse fato, A criação da SGEB e o aumento recente
somado às proposições que sustentam a do quantitativo de diplomatas – necessário
ampliação do direito de voto de brasileiros em função do adensamento da participação
residentes no exterior e a criação de do Brasil nos foros internacionais, com a
circunscrições eleitorais específicas para decorrente ampliação do número de postos
as comunidades brasileiras no exterior, no exterior, inclusive os de natureza consular
indica a importância crescente do tema no – podem ser compreendidos como a tentativa
Congresso Nacional. do Estado brasileiro de fazer face aos desafios
Heterogêneas, complexas, com graus que vão surgindo à medida que as comunidades
diferentes de carência e de necessidade de brasileiras no exterior vão crescendo e
assistência por parte do Estado brasileiro, transformando-se.
_47
_especial
_48
COMPORTAMENTO
SOCIAL
e PRECONCEITO
Mariana Lobato
“O tratamento preconceituoso
dado a grupos de imigrantes é tema
de grande relevância para o Brasil, que
nas últimas décadas deixou de ser um
receptor expressivo e passou a enviar
muitos brasileiros para o exterior. Assim
como ocorre com pessoas de diversas
nacionalidades, brasileiros residentes no
exterior são, com freqüência, vítimas de
preconceito e discriminação. Para combater
_49
_especial
_50
“Muitas vezes, porém, e está diretamente relacionada à
idéia de comportamento verbal, do
um homem age apenas comportamento que não se dá apenas por
meio da interação com o ambiente não-
indiretamente sobre o meio do social. É com base na comunidade verbal
que uma pessoa aprende a descrever
qual emergem as conseqüências situações não-verbais. Da mesma forma, a
pessoa aprende a fazer afirmações sobre
últimas de seu comportamento. o mundo com base em comportamentos
verbais de outros, como quando
O primeiro efeito é sobre os estudamos história, ou lemos notícias no
jornal. Ambos representam instâncias do
outros homens” . Esse é o caso de
5 conhecimento socialmente construído. 6
comportamentos verbais. Comportamento
verbal não se limita, como se poderia Conceitos são socialmente
imaginar, a expressões escritas ou
faladas. O conceito, dentro da análise do construídos. Assim, são mantidos
comportamento, é mais amplo: envolve
todo e qualquer comportamento cuja com base em conseqüências
conseqüência relevante depende da ação
de outra pessoa. Pode ser piscar, fazer mediadas pela comunidade verbal.
um gesto, desenhar, e mesmo silenciar
diante de algo. O importante é que a Como todo comportamento, no
conseqüência para aquele que se comporta
não seja imediata e sim mediada por outra entanto, não são desinteressados:
pessoa. O exemplo mais óbvio talvez seja
fazer um pedido. Se estamos com fome, dependem de suas conseqüências.
pedimos algo para comer. A conseqüência
relevante será comer, mas não pegamos Ao descrever o mundo, geramos
diretamente a comida: pedimos ao garçom
e ele a traz até nós. Ao piscar para conseqüências específicas
alguém, podemos receber sua atenção.
Se contarmos uma piada em um grupo, mediadas pela comunidade verbal.
podemos conseguir riso, prestígio, amizade,
que geram muitas outras conseqüências Como as conseqüências relevantes não
mediadas por aquele grupo. são as imediatas, os comportamentos verbais
A construção social de conhecimentos podem ser totalmente “desconectados”
decorrentes da interação de pessoas nas do ambiente não-verbal. Essa desconexão
comunidades é um fenômeno de grande da realidade pode se dar por diferentes
interesse da psicologia contemporânea motivos. Pode ocorrer se um grupo não
_51
_especial
7 Visãosemelhante a respeito da construção social da verdade pode ser encontrada em “A Ordem do Discurso”, de Michel
Foucault.
8 GERIN, B. “Behavior Analysis and the Social Construction of Knowledge”. Hamilton: University of Waikato, 1995.
_52
são, no entanto, divulgados e emissor do comportamento
exaustivamente repetidos e preconceituoso crê naquilo
mantidos por uma comunidade que expressa ou mesmo deseja
verbal. Dessa forma, a que os outros creiam no que
compreensão da dinâmica dos é dito. Falas preconceituosas
“comportamentos verbais” parece apresentam-se das mais variadas
essencial para a discussão sobre a formas. Sem diminuir a importância das
demais formas de discriminação, Bernard
manutenção dos preconceitos nas Guerin, em estudo de 2003, intitulado
“Combating Prejudice and Racism: New
diversas sociedades. Interventions from Functional Analysis of
Racist Language”, propõe apresentar um tipo
Os preconceitos podem surgir porque particular de discriminação: a discriminação
trazem benefícios para um determinado “sutil”, realizada cotidianamente por meio
grupo. No entanto, podem passar a da linguagem em conversas informais com
ser mantidos não mais porque trazem conteúdo preconceituoso.
esse benefício específico, mas porque Segundo o autor, muitos posicionamentos,
são considerados como afirmativas crenças, atitudes, ou representações sociais
“corretas”, em razão das práticas que de tópicos abstratos podem ter a função de
levam à desconexão com o mundo não- manter relacionamentos ou, simplesmente,
verbal. A partir daí, são mantidos de manter o seguimento de conversas. Podem ser,
forma generalizada pela comunidade portanto, desvinculados de uma intenção de
verbal, que, historicamente, mantém convencer o ouvinte da verdade ou veracidade
aquilo que é considerado correto. Como das colocações. Há muitas formas para manter
afirmado, no entanto, a definição do que é a atenção dos ouvintes, uma delas, infelizmente,
“correto” é controlada pelo próprio grupo são as falas preconceituosas. O argumento do
social e independe, muitas vezes, de sua autor baseia-se na idéia de que comentários
correspondência com o ambiente não-verbal. preconceituosos, muitas vezes, não pretendem
fazer com que as outras pessoas ajam de forma
O desligamento dos nefasta e discriminatória. Seriam realizadas
em contextos de diversão, como piadas. São
preconceitos do mundo não- formas utilizadas por oradores para ganhar
atenção, “status”, em um relacionamento.9 Isso
verbal pode ser tão radical que, não significa que este comportamento não
seja extremamente prejudicial para aqueles
muitas vezes, nem mesmo o grupos que são alvo dos comentários. Apesar
9 GUERIN, B. “Combating Prejudice and Racism: New Interventions from a Functional Analysis of Racist Language”, 2003.
_53
_especial
_54
Para combater as falas preconceituosas, conquista de apreciação social.
Guerin propõe novas formas de intervenção: Ao analisar a característica funcional
correções educadas, contra-piadas, fortes das conseqüências do comportamento, em
“put-downs” para calar aquele que fez o especial das conseqüências mediadas pela
comentário indesejado, entre outras, a comunidade verbal, podemos entender como
depender do contexto. Acredita-se que a os preconceitos, apesar de desconectados da
utilização social das falas preconceituosas realidade não-verbal, são mantidos por muito
poderia ser substituída por outras formas de tempo nas diferentes sociedades. Assim, é
se conseguir atenção nas conversas, já que, possível pensar em métodos mais eficientes
com certa freqüência, o conteúdo exposto para combater essa forma tão perversa de
não é o que realmente está em jogo, e sim a comportamento discriminatório.
_55
ARTIGOS E ENSAIOS
ESPARTANOS,
MUTANTES E
EXCLUÍDOS Um ensaio sobre
cultura e relações
internacionais
_56
L
caderno que só consegue abrigar rabiscos e
desenhos sem aparente valor “cultural”3.
eônidas e Xerxes encontram-se no Três filmes, três narrativas que podem
campo de batalha. De um lado, Esparta: o oferecer, para aqueles que se interessam pela
corpo musculoso e viril do bravo soldado, reflexão sobre as questões da cultura, três
disposto a lutar até a morte por sua leituras distintas sobre o lugar da diferença e
liberdade. Do outro lado, a Pérsia: o corpo da diversidade na vida social das comunidades.
andrógino e excessivo que parece encarnar o Tradicionalmente, a vinculação entre
pesadelo da alteridade, assustadora, opressiva cultura e relações internacionais encontra-
e monstruosa. Uma espécie de Madame Satã se associada à idéia de “diplomacia cultural”.
do Oriente. Ao redor deles, jazem os corpos Nesse contexto, a cultura é entendida como
dos mortos no que nos é apresentado como uma ferramenta a ser utilizada pelos Estados
o choque inevitável entre a em sua política externa. Em uma vertente
civilização e a barbárie1. teórica mais elaborada, a diplomacia cultural
O outro, que surge como o aparece como uma das modalidades do poder
grande vilão em 300, torna-se que os Estados procuram projetar na arena
herói na saga cinematográfica internacional: o soft power, que busca influenciar
dos X-Men2. Aqui, a verdadeira o comportamento dos atores externos e a
ameaça não nasce da diferença conformação da agenda internacional pela
entre “nós” e “eles”, mas da atração dos valores e das idéias transmitidos,
intolerância que ronda todos, entre outros, pelas expressões culturais4
mutantes e humanos, e põe em De uma perspectiva menos “realista” e
risco a sobrevivência tanto de unilateral, a diplomacia cultural é vista como
uns quanto de outros. um instrumento capaz de fomentar a paz e as
Antônio Biá, o “intelectuário” relações harmoniosas entre os Estados, por
do Vale de Javé, tem a missão meio da promoção do conhecimento mútuo
de registrar “cientificamente” e do intercâmbio de manifestações e agentes
a história de sua comunidade culturais, seja na esfera bilateral, seja no nível
num caderno, para demonstrar mais abrangente dos organismos multilaterais.
a presença de um “patrimônio” Para a diplomacia cultural, a articulação
a ser preservado e, assim, evitar entre cultura e relações internacionais aparece
que o local seja submerso pelas como exterior tanto à cultura quanto às
águas de uma barragem em relações internacionais. O entendimento do
construção. Para isso, começa a que pode ser abarcado pela idéia de cultura
ouvir dos moradores de Javé os permanence relativamente limitado a uma
contraditórios e desorganizados combinação, em proporções variadas, de bens
relatos sobre suas origens. Mas e expressões da criatividade humana, oriundos
Javé é um lugar como outro do campo das artes, das formas industriais de
qualquer, habitado por gente produção de entretenimento e das tradições
comum. Seu povo não é nem populares. Ao mesmo tempo, a cultura assim
espartano, nem mutante. São compreendida encontra-se, no que se refere à
apenas excluídos, cujo maior sua vinculação com as relações internacionais,
feito, no fundo, consiste na vã subordinada a algo estranho à sua dinâmica
tentativa de buscar afirmar sua própria: a política externa dos Estados que, por
identidade nas páginas de um sua vez, se limitam a fazer uso dos recursos e
4
NYE JR., Joseph S. Soft Power: The means to success in world politics. New York: Public Affairs, 2004.
_57
_artigos e ensaios
possibilidades que a cultura lhes oferece para modo específico de articulação entre
a realização de seus interesses, definidos numa cultura e relações internacionais.
esfera na qual os “agentes culturais” estão, de A Declaração do México sobre Políticas
um modo geral, ausentes. Culturais, adotada pela Conferência Mundial
Sem eliminar ou substituir a noção de sobre Políticas Culturais, a MONDIACULT,
diplomacia cultural, o surgimento, nas últimas celebrada na Cidade do México, em 1982,
décadas, e a proliferação, mais recente, oferece um mapa abrangente e ainda atual
de diversas questões relacionadas com a do espaço no qual cultura e relações
cultura na agenda internacional refletem e internacionais têm-se relacionado. A
apontam para a constituição de um campo MONDIACULT coroou um extenso processo
no qual a vinculação entre cultura e relações de reuniões internacionais sobre o tema
internacionais ganha novas dimensões e torna- das políticas culturais, com especial ênfase
se, ela mesma, “problemática” e objeto de uma na relação entre cultura e desenvolvimento,
discursividade própria e de um conjunto de realizadas desde o final da década de 1960.
práticas, mecanismos e instituições. A Declaração do México apresenta uma
A partir de uma perspectiva inspirada definição de cultura que será retomada por
pelo pensamento de Michel Foucault ou, todos os documentos oficiais adotados no
mais precisamente, pela atitude crítica e âmbito da UNESCO a partir de então:
metodológica em relação à atualidade,
desenvolvida por Foucault em sua “em seu sentido mais
obra5, procurarei identificar, a seguir, amplo, a cultura pode ser agora
alguns dos elementos que me parecem entendida como o complexo
especialmente relevantes para determinar integral de distintos traços
as possibilidades, tensões e limites desse espirituais, materiais, intelectuais
e emocionais que caracterizam
uma sociedade ou grupo social.
Ela inclui não apenas as artes e
as letras, mas também modos de
vida, os direitos fundamentais do
ser humano, sistemas de valores,
tradições e crenças.”
5 Atitude elaborada teoricamente por Foucault em diversos textos e intervenções, entre os quais: FOUCAULT, M. Qu’est-ce
que les Lumières? IN: Dits et Ecrits IV. Paris: Gallimard, 1994, p 562-578.
_58
e a legitimidade de políticas públicas que
tenham essas manifestações como objeto,
introduz a dimensão da cultura nos debates e
práticas internacionais da “governabilidade”. As
manifestações culturais, em seu sentido estrito,
condensam e cristalizam a essência dos valores,
tradições e crenças de cada cultura, tomada
em sua acepção “antropológica” ampliada.
Tornam-se, assim, os veículos privilegiados das
diferentes “identidades” culturais que formam
o todo da raça humana. Não são mais a
“cereja do bolo” ou um mero instrumento de
atração ou sedução, mas traduzem a própria
essência da cultura e, como tal, necessitam ser
preservadas e promovidas.
Nesse sentido, nos termos adotados
pela MONDIACULT, fazem-se necessárias
políticas culturais que “protejam, estimulem
e enriqueçam a identidade cultural e
o patrimônio natural de cada povo, e
estabeleçam o respeito absoluto e a apreciação
das minorias culturais e as outras culturas do
mundo”. Além disso, “qualquer política cultural
deveria restaurar o significado profundo e
humano do desenvolvimento”. Uma política
cultural “democrática” deverá ainda “prover
o gozo da excelência artística por todas as
comunidades e pela população inteira”.
Dessa forma, a ampliação do conceito
de cultura, tal como refletida na Declaração
do México, inscreve-se no contexto de
uma reconfiguração das discussões e
das práticas culturais, que expande o
campo de possibilidades, competências e
responsabilidades de atuação dos Estados no
que se refere às suas políticas públicas para
a cultura, tanto na esfera interna quanto na
externa. Os debates em torno da negociação
e da implementação da Convenção sobre identificação de diretrizes, padrões e limites a
a Proteção e Promoção da Diversidade serem levados em conta e respeitados pelos
Cultural6, que afirma o “direito soberano” Estados quando, no plano interno, elaboram e
dos Estados de “formular e implementar implementam suas políticas públicas.Trata-se de
suas políticas culturais”, constituem o um fenômeno que se manifesta, naturalmente,
desdobramento mais recente dessa dinâmica. por meio de instrumentos normativos e de
A trajetória que vai da MONDIACULT à declarações políticas negociados pelos Estados
Convenção da Diversidade Cultural traduz, e que traduzem, nesse sentido, consensos e
no campo da cultura, um fenômeno que denominadores comuns obtidos ao longo
acompanha o crescimento das organizações dos processos negociadores. Entretanto,
internacionais nas últimas décadas: a paralelamente à dinâmica inter-estatal,
6
Adotada pela 33ª Conferência Geral da UNESCO em outubro de 2005 e em vigor desde março de 2007.
_59
_artigos e ensaios
7 No campo especifico da cultura, por exemplo, esse corpo se reflete, entre outros, em publicações como os “Relatórios
Mundiais sobre a Cultura” (UNESCO, 1998 e 2000), na coleção de estudos sobre cultura e desenvolvimento publicados pela
UNESCO na década de 1990 e ainda no Relatório sobre Desenvolvimento do PNUD de 2004, que teve como tema “A
Liberdade Cultural num Mundo Diversificado”.
8 Ministério da Cultura, Plano Nacional de Cultura – Diretrizes Gerais. Brasília, 2007.
p. 29. A Constituição Federal brasileira de 1988 inclui, em sua seção relativa à ordem social, dois artigos sobre a cultura, que
atribuem ao Estado a responsabilidade de garantir o “pleno exercício dos diretos culturais e acesso às fontes da cultura nacional” e
define como patrimônio cultural brasileiro, entre outros, os “modos do criar, fazer e viver”. A aprovação da Emenda Constitucional
Nº 48, em agosto de 2005, cria o Plano Nacional de Cultura (PNC), que tem como base conceitual uma compreensão da
cultura em suas dimensões simbólica, cidadã e econômica, e define o papel do Estado como indutor, fomentador e regulador das
atividades, serviços e bens culturais. Constata-se assim, no caso brasileiro, o progressivo aprofundamento da aplicação, às políticas
públicas, do conceito ampliado de cultura.
_60
ao tentar explicar à comunidade as razões da se os vínculos entre a cultura e as relações
construção da barragem e do conseqüente internacionais, para além da noção tradicional
alagamento da vila. de diplomacia cultural.
Além disso, a agenda internacional será, ela Restaria refletir, ainda, em que medida
também, “contaminada” por preocupações de uma noção ampliada da cultura abre também
ordem cultural. O desenvolvimento da noção caminho para a formação de uma dimensão
da natureza “específica” dos bens e serviços conceitual (mas com implicações concretas
culturais, que asseguraria à cultura um local em termos de formulação de políticas) que
diferenciado nas relações comerciais; a discussão identifica a cultura como uma categoria
sobre a relação entre os conhecimentos essencial para a compreensão da dinâmica
tradicionais e os regimes de propriedade das relações internacionais, segundo a qual as
intelectual; a idéia de um necessário equilíbrio diferenças culturais teriam um papel fundador
entre a promoção do direito de acesso à cultura nas interações entre os povos e os Estados.
e a proteção dos direitos de autor; o espaço De um certo modo, volta-se aos princípios
concedido, dentro das políticas e programas que orientam a prática da diplomacia cultural.
de desenvolvimento, às “indústrias criativas”; Entretanto, há aqui uma clara mudança de
a construção de democracias “multiculturais”, ênfase. Onde uma concepção baseada numa
com base na compatibilização entre “liberdade visão da cultura restrita a um conjunto limitado
cultural”, entendida como ampliação das de bens e manifestações culturais colocava
possibilidades de escolha de modos de vida a diplomacia cultural a serviço de interesses
pelos indivíduos; e a preservação das tradições políticos que lhe eram externos (seja no sentido
religiosas e culturais: proliferam os pontos nos do exercício do poder ou da “influência”, seja no
quais a transversalidade da cultura, inerente à sentido do fomento da paz e do entendimento),
sua afirmação como campo autonômo dentro uma visão “culturalista” das relações
da agenda internacional, encontra limites que internacionais, levada ao extremo, subordina o
procura ultrapassar. exercício do político ao reconhecimento das
Assim, se no plano da diplomacia cultural, diferenças culturais e de sua irredutibilidade.
a utilização da cultura como ferramenta de É nesse contexto que voltamos a
política externa mantinha os dois campos encontrar espartanos e mutantes. Para os
externos um ao outro, a transversalização primeiros, o outro aparece como a ameaça
das questões culturais implica, de modo absoluta, que necessita ser combatida a
crescente, a reivindicação de que a própria todo custo. A visão da diferença apresentada
formulação da política externa dos Estados em 300 traduz uma perspectiva neo-
internalize e incorpore a cultura como um de conservadora do mundo e pode ser
seus elementos constituintes. entendida como uma ilustração, dentro da
Foi possível sugerir, até agora, que a estética de Hollywood, da polêmica tese
disseminação de uma noção ampliada da de Samuel Huntington sobre o “choque
cultura favoreceu o desenvolvimento de um das civilizações”9. Quem não é como nós é
conjunto de discussões e práticas interiores à contra nós.
própria cultura, associado à idéia de políticas No caso dos mutantes, em que pese
culturais, que, pela própria natureza transversal o incômodo permanente causado pela
da cultura assim concebida, aponta para pontos presença da diferença, que se tenta eliminar
onde a cultura, de certo modo, “transborda” e pelo extermínio ou pela assimilação (a
“invade” áreas que lhe são externas. Ao longo “cura” dos mutantes), prevalece a visão
desse processo, no qual o papel desempenhado “multiculturalista” liberal encarnada pelo
pela atuação e pelos debates promovidos Professor Xavier, não por acaso, ele próprio
no âmbito das organizações internacionais um mutante. Trata-se de visão análoga à
não deve ser subestimado, redimensionam- que inspira, direta ou indiretamente, ações
9 HUNTINGTON, Samuel P. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. New York: Touchstone, 1997 (1ª Ed. 1996).
10
Resolução 90 da 62ª Assembléia Geral da ONU, adotada por consenso em 14 de dezembro de 2007 (A/RES/62/90).
_61
_artigos e ensaios
_62
SOB O OLHAR CÉTICO:
DIPLOMACIA
E CULTURA NA
ANTIGÜIDADE
Gabriela Guimarães Gazzinelli
Luciano de Samósata,
Icaromenipo
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_artigos e ensaios
que atacava a justiça que elogiara na véspera. sucessores – diferenciaram-se dos acadêmicos
O parecer severo do autor cristão afirma que por sua maior ênfase nos benefícios de
tal discurso foi feito “não com a seriedade do uma disposição cética para a vida comum,
filósofo, cuja opinão deve ser firme e estável, sobretudo em vista da tranqüilidade (ataraxía)
mas à maneira de um exercício de retórica, que dela resultaria, bem como por seu exame
com argumentos pro e contra”. Um exame mais acurado dos fenômenos, que adotaram
mais cuidadoso, todavia, leva a crer que como critério da ação.
Carnéades não desejava, com isso, subverter A curiosa relação entre o ceticismo e a
a justiça, mas, sim, evidenciar a volubilidade da diplomacia, sugerida pelo episódio da vida de
argumentação. Carnéades, talvez seja menos improvável do
O ceticismo antigo data do final do século que se poderia imaginar. A natureza dialética
IV a.C., tendo se prolongado até meados da filosofia cética assemelha-se, em certo
do século III d.C. Caracterizava-se pela sentido, ao exercício da diplomacia, em que
contraposição de discursos em defesa de também se opõem discursos rivais, em defesa
teses contrárias (diaphonía) visando alcançar de interesses nem sempre coincidentes. Com
um estádio de equipolência entre diferentes efeito, qual os diplomatas da Antigüidade,
lados de um debate (isosthenía), ao qual muitos dos quais eram retores, os céticos
se acreditava seguir a suspensão de juízo eram tidos por excelentes argumentadores e
sobre a real natureza das coisas. Além de empreendiam verdadeiras logomaquias contra
defenderem uma posição teórica contrária seus adversários filosóficos. O repúdio cético ao
ao dogmatismo no conhecimento, os céticos discurso monológico, caro à filosofia dogmática,
preocupavam-se com questões de natureza evitava reduzir as diferenças aos termos da
prática, procurando, por sua filosofia, meios posição que, porventura, fosse dominante no
de se atingir um estado de tranqüilidade na debate em questão. Muito embora a suspensão
vida comum. O ceticismo antigo compreendia cética do juízo, que resultaria do embate das
duas vertentes: os acadêmicos e os pirrônicos. opiniões, não possa ser facilmente transposta
Os acadêmicos, como Arcesilau, Carnéades à diplomacia, a maneira como sua filosofia
1 Cf. Lactâncio, Divinarum Institutionum, 5.14.3-5. Lactâncio (séc. IV d.C.), retor do norte da África, escreveu obras apologéticas
do cristianismo.
2
Cf. Diógenes Laércio, A vida dos filósofos ilustres, 9.61.
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lidava com o conflito de opiniões – voltando e a tranqüilidade, descrevem estados
cuidadosa atenção à “diafonia” discursiva reminiscentes do pensamento oriental.
e desfazendo-se de dogmatismos – pode Afora isso, na própria corte de Alexandre,
aproximá-la da diplomacia. observavam-se oposições teóricas, já que
Mais significativa para essa aproximação, se cercara de filósofos representantes de
porém, parece-me ser a maneira como diversas correntes: o cínico Onesicrito,
os filósofos céticos assimilavam o o atomista Anaxarco, o cético Pirro, o
contato que tiveram com outros povos. peripatético Calístenes e o hindu Calano.
O ceticismo antigo floresceu justamente O pirronismo teria assimilado essa
no período helenístico, marcado pela experiência em suas práticas filosóficas. Um
difusão da cultura grega pelo Mediterrâneo trópos consagrado da argumentação cética
e pela intensificação desse contato. O apóia-se justamente na variedade de estilos
conhecimento de novas culturas, adeptas de vida, leis e crenças míticas que prevalece
de seus próprios costumes e cosmovisões, entre diferentes povos. Como ponderam os
punha em xeque as certezas da filosofia e pirrônicos, o que é justo para alguns, para
da moral gregas. A expansão do império de outros é injusto; e o que, para uns, é bom, é mau
Alexandre Magno (séc. IV a.C.) – a partir da para outros. Diógenes Laércio, ao descrever a
Macedônia até a Índia – e a passagem por variedade dos costumes, ilustra-a por meio de
regiões incógnitas para os gregos operavam, exemplos que, por mais duvidosos que sejam,
portanto, mudanças efetivas na maneira guardam interesse anedótico:
helenística de conceber o mundo.
Pirro de Élida, fundador da escola cética “Os persas não consideram
pirrônica, teria participado da expedição inapropriado ter relações incestuosas,
de Alexandre ao Oriente, vivenciando mas os gregos o repudiam. E os
esse momento de transformação na massagetos, como conta Eudoxo
Antigüidade. Foi nessas viagens que Pirro no primeiro livro do Périplo, têm as
teria conhecido os “magos persas” e os mulheres em comum e os gregos, não.
“sábios nus” indianos (os gimnosofistas)2. Os cilícios deleitam-se na pirataria, mas
Tal convívio parece ter exercido expressiva os gregos não.
influência na formulação de sua filosofia: Cada qual tem em consideração os
muitos de seus fundamentos, como a próprios deuses e uns acreditam na
indiferença, a ausência de afecções, a afasia antevisão e outros não. Os egípcios
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_artigos e ensaios
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Os céticos, por outro lado, jamais olhos e precisavam tomar emprestados
pretenderam reduzir a “diafonia cultural” os alheios. O humor na caracterização é
a um discurso universalista. Evitavam esclarecedor: provoca um riso irônico. Nas
fazer juízos de valor sobre as diferenças palavras do Machado “esse movimento ao
culturais, uma vez que nada lhes parecia canto da boca, cheio de mistérios, inventado
ser “nem belo nem feio, nem justo nem por algum grego da decadência, contraído
injusto por natureza, mas segundo a por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire,
convenção e o costume”6. Ao partirem da feição própria dos céticos e desabusados”8.
própria diversidade de valores e costumes Os autores satíricos descreveram-no como
inerente a qualquer sociedade ou grupo um “riso sério” (spoudogelóion) que, nesse
de sociedades, os céticos introduziram caso, tematiza literariamente a percepção
6 Diógenes Laércio, As vidas dos filósofos ilustres IX, 61. Vale lembrar que, no grego, os termos “belo” (kallós) e “feio” (aisxrós)
seus escritos literários. Nas Histórias verdadeiras, aparecem brevemente em um episódio na Ilha dos Bem-Aventurados, em que
não conseguem decidir-se por ir ou não à ilha, já que duvidam de sua existência e temem o juiz Radamanto depois de tanto terem
“suspendido o juízo”. Em todo caso, como, no prefácio, Luciano alerta os leitores contra a veracidade de suas histórias e insite que
não acreditem em uma palavra, acredito haver motivos céticos em outras passagens.
8 MACHADO DE ASSIS, “A teoria do medalhão”, Obras Completas, vol. 2, Editora Aguilar, 1962, p. 294.
9 LINS BRANDÃO, Jacyntho. A tradição da diversidade cultural: ensaio de tipologia. p. 11. Disponível em <http://www.letras.ufmg.
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_artigos e ensaios
DANÇA DAS
CADEIRAS A reforma do
Conselho de
Segurança
das Nações
Unidas
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mais atores, que se externa seja pelo controle Embora os P-5 – especialmente o P-3 (Estados
do processo decisório, seja pela tomada de Unidos, França e Reino Unido) – atuem em
decisões tout court2. caucus no processo decisório do Conselho,
Em segundo lugar, deve-se ver com a influência dos membros não-permanentes
reserva a suposta ineficiência do Conselho é decisiva, seja porque têm capacidade de
de Segurança. Se é fato que o Conselho não influenciar a agenda3, seja porque podem
pôde impedir a eclosão de inúmeros conflitos enfraquecer ou dificultar a tomada de decisões,
ao longo de sua existência, também é fato seja porque, ainda, o Conselho tem como regra
que em muitas oportunidades foi ele, sim, não-escrita a busca pelo consenso.Ademais, o
capaz de compor as vontades e os interesses voto negativo de sete dos dez membros eleitos é
de seus membros e impor suas decisões, capaz de barrar qualquer decisão do Conselho4.
especialmente ao longo da primeira metade O Estado membro do Conselho de
dos anos 90, período marcado por intensa Segurança, permanente ou não-permanente,
atuação do Conselho, alavancado pelo clima assegura para si uma dupla posição de poder:
de otimismo do pós-Guerra Fria. é, simultaneamente, co-formador da vontade
Outra questão que precisa ser abordada, de um grupo que decide sobre as questões
finalmente, é a capacidade de influência dos fundamentais de paz e segurança internacionais
membros não-permanentes no Conselho. e co-autor da agenda global de segurança. O
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_artigos e ensaios
1 Para uma conceituação da teoria relacional (poder como relação) e da teoria substancialista (poder como material), v.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
2 V. BACHRACH, P. & BARATZ, S. “Two Faces of Power”. American Political Science Review, vol. 56, nº 4, Washington, 1962, pp. 947-52.
3 Os assuntos com os quais lida o Conselho em cada sessão compõem, em cada sessão, sua agenda, elaborada em draft pelo
Secretário-Geral, após comunicação aos quinze membros do Conselho, e aprovada pelo Presidente do órgão. No início de cada
sessão se adota a agenda definitiva por votação procedimental, não sujeita a veto. UNITED NATIONS. Security Council Rules of
Procedure, Document S/96/Rev.7, New York, 1983.
4 Para uma avaliação da importância dos membros não-permanentes, v. Teixeira, P. Le Conseil de Sécurité à l’Aube du XXème
e/ou os métodos de trabalho do Conselho de Segurança. A reforma do Conselho tem sido discutida desde 1979, colocada na
agenda da Assembléia Geral sob o item intitulado “Question of Equitable Representation on and Increase in the Membership of the
Security Council”.
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Paquistão, Qatar, Síria e Turquia); a Organização da “o desafio de qualquer
Unidade Africana, que reclamava não menos que
dois assentos permanentes para o continente, reforma é aumentar
com direito a veto; e, finalmente, o Movimento
dos Não-Alinhados, que julgava inaceitável
tanto a eficiência
qualquer reforma que se fizesse com a adição quanto a credibilidade
de menos de 11 assentos e que respeitasse um
cronograma preciso6. Como naquela brincadeira do Conselho e, mais
infantil, a dança das cadeiras começara, a música
parou, mas ninguém se sentou. Faltaram cadeiras.
importante, aprimorar
sua capacidade e
Uma nova oportunidade
disposição de agir frente
Em 2003, o insucesso do Conselho
de Segurança na condução dos assuntos
a ameaças. Isso requer
envolvendo o Iraque e sua incapacidade de um maior envolvimento
impedir a invasão do país despertaram na
comunidade internacional a convicção de no processo decisório
que era imperativa uma reforma abrangente
da ONU, com o intuito de adequá-la a uma
do Conselho daqueles
realidade internacional para a qual não parecia [Estados] que mais
preparada. A euforia do início dos anos 90 dera
lugar, afinal, à sensação de impotência diante de contribuem com
desafios e crises com as quais a Organização
não soube – e ainda não sabe – lidar.
as Nações Unidas,
Com vistas a reformular a ONU para o financeira, militar e
século XXI, o Secretário-Geral Kofi Annan
convocou, em setembro de 2003, o Painel de diplomaticamente” . 9
9
Idem, A More Secure World: our shared responsibility, New York, 2004, par. 248.
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_artigos e ensaios
10 Curiosamente, a representação regional proposta contrariava a distribuição tradicional dos grupos regionais na Assembléia
Geral, nomeadamente os grupos da África, da América Latina e Caribe, da Europa Ocidental e outros países, da Europa Oriental e
da Ásia-Pacífico.
11
Ibidem, par. 250-3.
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Com base no Modelo A, o G-4 inicialmente opõem à expansão da categoria de membros
propunha a criação de seis novos assentos permanentes no Conselho: Argentina, Canadá,
permanentes (um para cada um de seus Colômbia, Coréia do Sul, Costa Rica, Espanha,
membros, mais dois para a África) com Itália, Malta, México, Paquistão, San Marino e
prerrogativa de veto e de quatro não- Turquia. A rivalidade regional com os países do
permanentes (um para a África, um para a Ásia, G-4 é a força motriz por trás da oposição do
um para a América Latina e Caribe e um para a UfC à proposta daquele grupo, como se pode
Europa Oriental). Circulou entre os membros observar por sua composição. O Representante
da ONU, em maio de 2005, uma proposta de Permanente do Paquistão, falando em nome
resolução que contemplava suas aspirações de do UfC, referiu-se aos membros do G-4
reforma, que, diante da fria acolhida por parte como “aqueles que buscam privilégios e
dos demais Estados, levou o Grupo a mudar de poderes especiais, [e que] se mascaram de
estratégia, abandonando a pretensão ao poder de defensores dos fracos e desprivilegiados16”.
veto e propondo um mecanismo de revisão, a ser Argumentando que qualquer reforma que inclua
acionado quinze anos após aprovada a reforma. membros permanentes “dividiria a Assembléia-
Em 11 de julho de 2005, o G-4, co-patrocinado Geral” e “criaria um Conselho ineficiente e
por outros 23 Estados, apresentou formalmente antidemocrático”, o UfC defende a criação de
um draft de resolução à consideração da mais dez novos assentos não-permanentes e a
Assembléia Geral13. Foi o ensejo para que outros abolição da não-reeleição imediata.
Estados entrassem em cena14. O projeto do G-4 não foi colocado em
A União Africana (UA, ex-OUA) mantém votação, alvo de ataques que foi da UA e do
uma posição comum sobre a reforma do UfC, além de ter sofrido oposição aberta por
Conselho desde 1997, quando seus Estados parte dos Estados Unidos e da China. Em
membros aprovaram a Declaração de Harare, 18 de julho, a UA apresentaria seu próprio
defendendo a concessão, para a África, de dois projeto de resolução17, a que se seguiria, em
assentos não-permanentes e dois assentos 26 de julho, o draft do UfC18, que não seriam
permanentes com direito a veto. Respaldadas tampouco colocados em votação. Em setembro,
pela confirmação dos termos de Harare no a Assembléia Geral encerraria seus trabalhos.
chamado Consenso de Ezulwini, de 2005, as Viriam a Cúpula Mundial e as 60ª e 61ª
nações africanas se mobilizaram para rejeitar Assembléias Gerais, sem quaisquer resultados
a “falta de ambição da proposta do G-4”. Nas concretos. A tentativa mais consistente de
palavras do Representante da Argélia, falando reforma do Conselho de Segurança parecia
em nome da UA na sessão em que se discutiu haver falhado.
o projeto do G-4, “as propostas que hoje estão
na mesa de negociações [são] insatisfatórias Conclusão: rumo a um compromisso?
vis-à-vis as aspirações legítimas da África”15. A
mais forte oposição à proposta do G-4 não A reforma do Conselho de Segurança
veio, no entanto, da UA, mas do grupo Unidos continua no topo da agenda das Nações Unidas.
pelo Consenso (Uniting for Consensus – UfC). O G-4, a UA e o UfC continuam tentando forjar
A origem do UfC está diretamente ligada alianças e angariar apoio para seus projetos.
à atuação do G-4. Conhecido como “Coffee A novidade está, no entanto, no fato de que
Club”, referência à informalidade de sua parecem dispostos a rever algumas de suas
formação, o Grupo reúne 12 países que se reivindicações. Recentemente, foi constituído no
12 Comunicado Conjunto do G-4, Nova York, 21 de setembro de 2004. In: MINISTÉRIO das Relações Exteriores. O G-4 e as
Nações Unidas: textos, comunicados e documentos. Brasília: FUNAG, 2007, pp. 21-2.
13 Projeto de Resolução do G-4 sobre a Reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, Documento A/59/L.64.
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_artigos e ensaios
âmbito do OEWG, por iniciativa da Alemanha, Assembléia Geral, de ocupar posto de membro
um grupo informal de consultas (o “informal permanente do Conselho de Segurança.Alguns
overarching group”), com vistas a chegar a uma países africanos, desejosos de barrar o acesso
solução de compromisso entre as diversas desses três países ao Conselho de Segurança,
alternativas de reforma apresentadas. Fala-se, defenderiam a extensão do veto como estratégia
inclusive, numa solução transitória, que seria para uma não-reforma, preferindo esta última
obrigatoriamente revista após determinado a uma reforma que não os contemplasse com
período de tempo. Entre os P-5, os Estados assentos permanentes no Conselho.
Unidos e a China continuam reticentes, embora Outro empecilho são as rivalidades regionais,
aqueles apóiem explicitamente o Japão19 e esta dê que se manifestam de forma inequívoca na
mostras de estar disposta a apoiar a Alemanha, atuação do UfC. É evidente que a intensidade e
o Brasil e, mesmo, a Índia, além de apoiar o nível de tais rivalidades variam; não se pode
explicitamente a inclusão de países africanos perder de vista a diferença que existe, por
como membros permanentes; a França e o Reino exemplo, entre a rivalidade Japão v. Coréia do
Unido apóiam o G-4; a Rússia ostenta uma defesa Sul e Paquistão v. Índia. Ainda assim, parece claro
retórica de qualquer reforma “feita por amplo que a atuação do pequeno grupo se baliza pela
consenso”, mas apóia o ingresso de países em oposição de seus membros a que os países
desenvolvimento como membros permanentes. do G-4 ingressem no Conselho de Segurança
Ao contrário do que se costuma imaginar, como membros permanentes. No caso de Brasil
o grande empecilho para uma reforma do e Alemanha, vencer essa resistência regional a
Conselho de Segurança não tem sido, até o seu pleito por um assento permanente é tarefa
momento, a posição dos P-5, mas, sim, a atuação consideravelmente mais fácil do que no caso de
da UA.Ao insistir na ampliação da prerrogativa Índia e Japão.
do poder de veto a eventuais novos membros As discussões sobre a reforma do Conselho
permanentes, o grupo africano colide exatamente são delicadas na medida em que qualquer
com aquele ponto que se tem mostrado o reforma comportará alterações na distribuição
mais sensível nas discussões sobre a reforma. de poder internacional, como se tentou mostrar
Se os P-5 apóiam, ao menos de forma retórica, no início deste artigo.Talvez por essa razão
a ampliação do Conselho, inclusive com o a ausência de mudanças concretas no curto
aumento de número de membros permanentes, prazo não deva ser vista como sinal de fracasso
nenhum deles, por outro lado, aceita a extensão das negociações. É sempre um processo
do veto a novos membros.A posição comum complexo acomodar interesses fundamentais
da UA, aliás, tem pouco de comum: o fato é que que concernem à segurança internacional. O
determinados países dentro da UA insistem Conselho, cedo ou tarde, terá de ser reformado,
na ampliação do veto como tática para que a sob pena de ver erodidas sua legitimidade e sua
reforma seja bloqueada: são países que, aspirando capacidade de atuação. Alguns países poderão
a ocupar um eventual assento permanente, se ganhar mais do que outros numa eventual
sabem pouco qualificados para tal. Pouco se reforma. Fato é, no entanto, que é a comunidade
dúvida de que África do Sul, Egito e Nigéria internacional como um todo que ganhará com
são os três países que mais chances têm, por a transformação do Conselho num instrumento
seu perfil político e econômico no continente mais adequado para confrontar a realidade
africano e por sua atuação diplomática na internacional contemporânea.
16 Ibid., p. 8.
17 UN Document A/59/L.67, Draft resolution, New York, 2005.
18 UN Document A/59/L.68, Draft resolution, New York, 2005
19 Os EUA apóiam a admissão de “dois ou três” membros permanentes (“two or so”, segundo o ex-Subsecretário Nicholas
Burns), inclusive o Japão. Para o ex-Representante Permanente junto à ONU, John Bolton, “we believe that the [Security] Council
would be more effective if Japan were a permanent member”. UNITED STATES Department of State. Statement by Jonh R. Bolton,
US Permanent Representative to the United Nations, on Security Council reform and expansion, at the General Assembly, July 21, 2006.
Acesso em 06/02/2008, em http://www.reformtheun.org/index.php/government_statements/c466/?startnum=101&theme=alt2.
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LA CUESTIÓN
DEL CAMBIO EN
LA TEORÍA DE
LAS RELACIONES
INTERNACIONALES
Romina Paola Bocache
_75
_artigos e ensaios
EL CAMBIO:
UN PROBLEMA FILOSÓFICO
La cuestión del cambio es uno de los “idealista”, hago alusión a una realidad en
problemas filosóficos más antiguos y la que, además de los atributos de poder,
controvertidos, problema al cual la Teoría cuentan elementos superestructurales como
de las Relaciones Internacionales no podía las ideas y las instituciones. En su versión pura
permanecer ajena y que ha llegado a (constructivismo) esto implica que el actor es
constituir uno de los aspectos cruciales a la lo que piensa, y como el pensamiento dirige
hora de diferenciar las distintas escuelas de la acción, en última instancia uno es lo que
pensamiento dentro la disciplina. hace; 2) unidad de análisis: hombre (primera
Desde este enfoque filosófico, hay tres imagen), estado (segunda imagen) o el sistema
variables fundamentales a la hora de definir una internacional (tercera imagen); 3) concepción
postura en cuanto al cambio: 1) concepción del cambio en sí mismo. La relación de lo
de la realidad materialista o idealista. Por nuevo y lo viejo puede concebirse de diversas
“materialista” me refiero a una visión de formas: lo nuevo se yuxtapone a lo viejo
la realidad configurada por la distribución (acumulación), lo viejo y lo nuevo se funden
de los atributos de poder (principalmente en una síntesis (cambio dialéctico), lo viejo
factores económicos y militares): uno es se transforma internamente y da lugar a algo
lo que tiene y actúa según el lugar que nuevo (evolución), lo nuevo es la negación de
ocupe en el ranking del poder. Cuando digo lo viejo (ruptura).
Concepción Concepción
Materialista Idealista
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A partir de esta primera aproximación disparidades internas se explica a partir de
esquemática, surge que aquellos la inmutabilidad del principio ordenador
autores que sustentan una concepción del sistema. Más allá de las diferencias
“materialista” de la realidad son escépticos internas, Atenas, Roma o Estados Unidos
en cuanto a la posibilidad de cambios. se han comportado en forma similar pues
Por el contrario, aquellos que introducen han ocupado posiciones similares en la
elementos “idealistas”, creen en la estructura de poder.
existencia del mismo, aunque con diversos La persistencia del principio ordenador
matices, como veremos. de la estructura, es decir, la anarquía,
En la sección II analizaré a los es la que explica la continuidad a nivel
“materialistas sistémicos” que niegan la sistémico, aunque el cambio exista a nivel
existencia de cambios sustanciales en el de la unidad. Para Waltz hay cambio a nivel
sistema internacional; en la sección III de la segunda imagen, pero hay continuidad
abordaré la perspectiva de los que creen en la tercera imagen. Son iluminadoras sus
en el cambio; en la sección IV aplicaré esas siguientes expresiones:
“lentes conceptuales” a la época actual; y en
la sección V concluiré con una reflexión sobre “A veces, la política internacional
el cambio y sus múltiples aristas. es descripta como el dominio de los
accidentes y las perturbaciones, de los
cambios rápidos e impredecibles. Aunque
DOS MATERIALISTAS abundan los cambios, las continuidades
SISTÉMICOS: WALTZ y GILPIN son igualmente impresionantes... La
textura de la política internacional sigue
El sistema internacional para Waltz siendo muy constante, los esquemas
está constituido por la estructura y por se repiten, y los acontecimientos
las unidades interactuantes (estados). La recurren infinitamente. Las relaciones
estructura está definida por tres aspectos: que prevalecen internacionalmente
1) principio ordenador: anarquía; 2) rara vez cambian en tipo o cualidad.
funciones no diferenciadas entre las Están marcadas por una desoladora
unidades; 3) distribución de los atributos persistencia que debe esperarse mientras
de poder, que determina la posición de las ninguna de las unidades involucradas sea
unidades en la estructura. capaz de convertir el anárquico reino
Para Waltz sólo el cambio del principio internacional en un reino jerárquico.”
ordenador significaría un cambio (Theory of International Politics, cap 4).
cualitativo o cambio de sistema. Mientras
ello no ocurra, sólo se verifican cambios Gilpin comparte un enfoque similar. En
cuantitativos dentro del sistema referidos efecto, como Waltz, sostiene que a nivel
al tercer elemento de la estructura, es sistémico hay cambios en la distribución
decir, cambios en la distribución de los de poder entre las unidades. Para explicar
atributos de poder, y por ende, cambio en esta redistribución de poder recurre a
las posiciones relativas de las unidades. Esto la “tasa diferencial de crecimiento”. El
implica un cambio en la polaridad crecimiento económico, tecnológico y
del sistema. militar de los estados a tasas diferentes
Desde este enfoque, la semejanza en hace que la brecha entre las unidades
la conducta de los actores a pesar de sus más poderosas y los competidores que
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_artigos e ensaios
le siguen se acorte. De esta manera, para la estructura misma como la identidad y los
estos últimos los costos de cambiar el intereses de dichos actores están dados y son
sistema disminuyen y los incentivos para exógenos a todo el proceso.
hacerlo crecen, lo que conduce a una
contradicción entre el orden existente
(funcional a los intereses del hegemón en
decadencia) y la distribución de poder, que
DESDE OTRAS PERSPECTIVAS,
está virando a favor de los competidores EL CAMBIO DEL SISTEMA
en ascenso. Esta disyunción entre el
sistema y la distribución de poder ha sido
INTERNACIONAL ES POSIBLE
resuelto a lo largo de la historia a través
de guerras hegemónicas, que conducen La teoría liberal de la paz interdemocrática
a un nuevo equilibrio del sistema, con plantea que la instauración de democracias
la emergencia de un nuevo hegemón liberales (cambios internos en los estados)
(individual o colectivo) que impondrá un genera cambios en el sistema internacional
orden nuevo, favorable a sus intereses (Kant, Doyle, Fukuyama).
(teoría de la estabilidad hegemónica). Para otros autores liberales, la fuente
Además del cambio en la polaridad del del cambio reside en la economía o en la
sistema, ligado a un cambio en la distribución estructura interna de los estados, y por
de poder, Gilpin distingue otros dos tipos de tanto señalan la debilidad del neorrealismo
cambio a nivel internacional: para explicar el cambio al obviar este
- cambio de sistema: cambio en la naturaleza nivel de análisis. En este sentido, Keohane
de los actores (por ejemplo, pasaje de imperio señala que Gilpin pretende realizar un
a estado nación). No son frecuentes. análisis sistémico del cambio, para luego
- cambio de interacción: cambio en las contradecirse al basar en parte la decadencia
relaciones o procesos interestatales. Son los del hegemón en factores internos.
más frecuentes.
Para Waltz, sólo el reemplazo de “This Thucydides- Gilpin theory
un principio ordenador por otro is a systemic theory of change only
podría generar un cambio de sistema. in a limited sense. …Yet at a more
Manteniéndose la anarquía, sólo son fundamental level, it does not account
posibles cambios en la polaridad (o fully for the sources of change….
“cambios sistémicos” en el lenguaje de Although it is insightful about systemic
Gilpin) que generan cambios en la conducta factors leading to hegemonic decline, it
de las unidades (“cambios de interacción” also has to rely on internal processes to
según Gilpin). Waltz no considera el cambio explain the observed effects.”
en la naturaleza de los actores como un (“Theory of World Politics: Structural
cambio de sistema ya que ello entraría Realism and Beyond” in Neorealism and
dentro de un análisis de segunda imagen its critics, ed. Keohane, pag. 159, 179).
(al igual que los cambios de interacción) y
por ello no lo toma en cuenta al reflexionar Para el liberalismo institucionalista, las
sobre el sistema internacional. instituciones juegan un rol importante al
En el universo neorrealista sólo aparece una mitigar el impacto de la anarquía sobre
estructura en esencia inmutable impactando los estados, facilitando de ese modo la
sobre la conducta de los actores, pero tanto cooperación entre ellos al reducir el
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temor al engaño. En esta perspectiva, las de poder, sino que es un cambio en la
instituciones, si bien dependen para su cultura, en las ideas compartidas. Es que
creación de la voluntad de los estados, la estructura no es material sino social y
luego adquieren cierta autonomía frente a está formada por ideas y conocimientos
éstos, influyendo en su conducta al reducir compartidos. De esta forma, en anarquía,
la incertidumbre, aumentar la confiabilidad los estados pueden actuar de acuerdo con
y facilitar el flujo de la información. distintas lógicas (hobbesiana –de enemistad-
En este sentido es interesante la , lockeana- de rivalidad- o kantiana – de
postura de Ikenberry, para quien la amistad) ya que la anarquía es lo que los
creciente institucionalización del sistema estados hagan de ella.
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_artigos e ensaios
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de los otros estados. Así, para Waltz, dada Otro aspecto resaltado es la creciente
la preponderancia de los Estados Unidos, institucionalización del sistema. En este
los otros estados (principalmente la Unión sentido, Ikenberry señala en “After
Europea, China, Japón, Rusia) tenderán a Victory” que luego del fin de la Guerra
contrabalancear su poder, hasta que se Fría por el colapso de la Unión Soviética,
llegue a un nuevo equilibrio. En segundo Estados Unidos ha promovido la extensión
lugar, las otras tendencias de carácter de la OTAN y la creación de nuevas
económico-tecnológico y sociológico instituciones (NAFTA, APEC, OMC)
anteriormente señaladas – como la siguiendo con el modelo institucional de
interdependencia, la democratización y la construcción de orden. Esta estrategia
creciente institucionalización- son vistas habría dado más legitimidad al orden
por estos autores como cambios a nivel instaurado y reducido el temor de los más
de las unidades (sea en sus atributos débiles al abandono o a la dominación,
internos o en sus interacciones) que no disminuyendo el incentivo a hacer
impactan significativamente en el sistema balancing contra los Estados Unidos. Este
internacional. Así, el temor al engaño y a sistema altamente institucionalizado y
depender del otro, junto con la barrera legítimo contendría elementos del orden
de las ganancias relativas hacen que los constitucional que, al tornar al poder
grandes poderes no cooperen entre americano aceptable para los demás
sí. En cuanto a las instituciones, para estados, reduciría el incentivo de éstos a
los neorrealistas éstas responden a los deslizarse hacia los órdenes tradicionales
intereses de los poderosos, no teniendo de equilibrio de poder o de hegemonía.
autonomía ni impacto alguno en la
conducta de éstos.
Contrariamente a esta lectura de la
LAS AMBIGÜEDADES DEL
realidad, otros analistas proclaman el CAMBIO
advenimiento de una “nueva era” en la Cuáles son las causas de que exista tanto
política internacional. Así, por ejemplo, debate en torno a la cuestión del cambio en
Fukuyama proclama el “fin de la historia” las relaciones internacionales?
frente al colapso del comunismo y la Como hemos visto, los que pregonan
victoria del modelo representado por la el inicio de una “nueva era” en las
democracia liberal. relaciones internacionales subrayan la
Los liberales en sus diversas corrientes trascendencia de procesos tales como la
recalcan la presencia de un cambio creciente interdependencia, la revolución
profundo en el sistema a partir de diversas tecnológica en los medios de transporte
variables: la extensión de la democracia y de comunicación, la expansión de la
liberal y la “zona de paz separada” (Doyle); democracia, el rol de las instituciones
la creciente participación en las relaciones internacionales, etc... Para otros, estos
internacionales de actores no estatales cambios no han alterado la lógica de
(ONGs, empresas multinacionales, etc...), la política internacional y subrayan las
estableciéndose múltiples canales de continuidades con el pasado.
comunicación y de acción (interestatales, Analizando las dos posturas extremas
transgubernamentales y transnacionales) del “todo ha cambiado” y del “todo sigue
con agendas desjerarquizadas (Keohane igual”, pareciera que uno de los motivos de
y Nye). discrepancia radica en que no existe consenso
_81
_artigos e ensaios
acerca de qué debe entenderse por cambio ni En segundo lugar, la noción misma de
cuales son sus marcadores. cambio debe explicitarse ya que puede
Sucede que el cambio no es un dato objetivo ser pensado de distintas formas: como
de la realidad sino que está en la mirada del ruptura y reemplazo de lo viejo (Fukuyama
sujeto. De las discusiones sobre el cambio, surge afirma su existencia, Waltz y Gilpin lo
claro que no todos vivimos en el mismo mundo niegan), como cambio dialéctico (Cox),
pues vemos realidades distintas, y a ello se suma como evolución (Ikenberry, Wendt) o como
que luego asignamos significados diversos a acumulación con el consiguiente aumento
aquello que vemos. En las discusiones sobre de la complejidad del sistema (Bull y su
el cambio haría falta explicitar tres premisas idea de que los elementos de una sociedad
básicas: la perspectiva, la concepción del cambio anárquica de estados –intereses comunes,
y la concepción de la realidad. reglas e instituciones- coexisten en el
En primer lugar, la perspectiva desde la sistema internacional con los elementos
cual miremos el mundo determinará nuestra hobbsianos y kantianos).
percepción del cambio. Tal como lo sostiene La primera noción de cambio (ruptura)
Rosenau en “Turbulence in World Politics”: implica que lo nuevo no tiene nada
en común con lo que lo ha precedido.
“The interpretation of continuity and Particularmente no adhiero a esta visión
change depends on the systemic and ya que considero que lo nuevo no
time perspectives from which they are necesariamente desplaza a lo viejo, sino
assessed. Change and continuity, in other que puede convivir con él de diversas
words, are not objective phenomena. maneras. El concepto dialéctico del cambio
Their observation acquires form through implica trascender la contradicción de lo
conceptual formulation, not from nuevo y lo viejo en una síntesis en la que
empirical ‘reality’.” coexisten novedad y continuidad. El cambio
como evolución implica que lo nuevo surge
Es necesario, pues, delinear con claridad de lo viejo a través de la acumulación
el horizonte temporal y espacial. Cuanto en el tiempo de cambios marginales e
más micro sea la mirada (como la de incrementales.
los medios), más cambios percibiremos. En general, cuando oímos hablar de
Cuando mayor sea el nivel de abstracción cambio, tiende a pensárselo como ruptura,
y generalidad, la sensación de continuidad especialmente después de grandes eventos
predominará sobre la de cambio. como el fin de la guerra fría. Sin embargo,
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desconfío de la idea de un “nuevo orden dialéctico), o desaparición. Si las principales
mundial” ya que los cambios suelen instituciones del sistema se hubieran
presentarse como síntesis dialécticas o transformado radicalmente o hubieran
evolución en que conviven la novedad y la desaparecido, entonces se podría hablar de
continuidad. Es más, en muchos casos el un nuevo orden. Como, por el contrario, las
cambio se presenta como una yuxtaposición instituciones mantienen sus características
de lo viejo y lo nuevo, aumentando la principales, aunque con cierto grado de
complejidad del sistema. Esto puede evolución o mayor complejidad, entonces
significar que mientras la lógica realista no puede invocarse un cambio de sistema
persiste en muchas áreas del mundo, nuevas a pesar de cambios en la distribución de
formas de cooperación y gobernabilidad poder o de fenómenos sociológicos tales
estén apareciendo (Unión Europea, como una creciente interdependencia o
procesos de integración regionales, intensificación de las comunicaciones.
regímenes internacionales, etc...). En síntesis, propongo una actitud
Por último, un tercer componente prudente tanto frente a los que pregonan
para definir la visión del cambio reside el advenimiento de una “nueva era” en la
en la concepción del mundo. La visión de que todo sería novedoso, como a los que
un realista, de un liberal, de un marxista sostienen que las “verdades eternas” de
o de un constructivista son, como diría Tucídides son suficientes para comprender
Waever, inconmensurables pues ven mundos todos los rasgos de las relaciones
distintos, y por tanto, no habrá consenso internacionales contemporáneas.
entre ellos acerca de qué ha cambiado y Además, sostengo una visión moderada
que continúa. Sin embargo, más allá de dicha en la que cambio y continuidad no se
“inconmensurabilidad”, deberían intentar excluyen mutuamente dada la complejidad
establecerse marcadores o puntos de del sistema internacional. Es justamente en
referencia, a fin de poder notar desviaciones el marco de esta complejidad que surge
o apartamientos e identificar cambios. la necesidad de disponer de distintos
Ikenberry destaca una tendencia instrumentos teóricos para comprender
hacia una creciente institucionalización un mundo multidimensional, en el que el
del sistema internacional. Partiendo de realismo da cuenta sólo de ciertas facetas (
la noción de institución de Bull –como dilemas de seguridad, auto-ayuda, guerra y
combinación de ideas, prácticas y normas- paz), siendo necesario complementarlo con
, una forma posible de analizar el cambio otros enfoques que iluminen otras parcelas
sería la propuesta por Holsti (“Change in de la realidad, como la cooperación, el
the International System”), consistente en manejo de problemas globales, la creciente
ver qué ha sucedido con las principales institucionalización, etc....
instituciones del sistema internacional Por lo tanto, una teoría del cambio debe
moderno (el estado nación, la soberanía, ser multicausal – ya que deben englobarse
la guerra, la diplomacia, el derecho tanto factores materiales (procesos de
internacional). El cambio podría asumir producción, tecnología) como “idealistas”
distintos matices: creación de instituciones (ideas e instituciones)– , multidimensional
nuevas que aumentan la complejidad (diversos niveles de análisis) y polimorfa
del sistema (cambio acumulativo); (admitir diversos conceptos de cambio) a
transformación de las existentes (evolución); fin de captar la complejidad del poliédrico
síntesis de nuevas y viejas (cambio sistema internacional.
_83
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_84
A ssistir às cenas que ilustram os noticiários televisivos acerca dos
conflitos africanos tornou-se rotina na vida dos cidadãos. Para diplomatas,
tornam-se angustiantes, na medida em que aquelas imagens revelam a
dificuldade e, freqüentemente, a insuficiência das ações preventivas. Esse
texto é um breve relato da minha experiência vivida durante seis meses
- entre dezembro de 1999 e maio de 2000 - no país africano de maior
extensão territorial e com uma história de guerra civil prolongada, cujo
início remonta à independência em 1956.
_85
_pelo mundo
tardaram a provocar guerra civil pouco Para os diretores e gerentes locais da ONG,
tempo depois que a independência deu tornar-se-ia frustrante a recuperação física de
autonomia de administração aos governantes um centro cirúrgico e o abandono sem função
islâmicos do norte. devido à falta de profissionais especializados. O
Restringir a explicação dos conflitos convite para assumir a responsabilidade dessa
a aspectos culturais passa pelo risco de tarefa foi feito em novembro de 1999 e aceito
defender uma hipótese reducionista da para um período de seis meses. Algum tempo
situação. O território sudanês é rico em depois, foi possível perceber a dificuldade de
petróleo, gás natural, ouro, prata e em manter profissionais sudaneses na cidade.
uma variedade enorme de metais para Alguns médicos, presentes na cidade por
aproveitamento diverso nas indústrias de obrigações de serviço militar, ansiavam pelo
transformação. Muitas dessas riquezas ainda fim do serviço obrigatório e pela emigração
não exploradas aguardam investimentos, para outros países mais desenvolvidos no
impossíveis de serem realizados na conjuntura Oriente Médio. Uma breve conversa revela
de guerra. Essas riquezas determinam também a utopia de manter cirurgiões na cidade de
competição envolvendo as grandes potências, forma espontânea.
cujo resultado é um interessado concerto As dificuldades locais vão desde a obtenção
político nos organismos internacionais. de um padrão mínimo de conforto para um
Malakal é uma cidade com profissional com formação universitária até a
aproximadamente 80 mil habitantes. Suas instabilidade política da região. Não existiam
únicas construções de alvenaria são a habitações confortáveis; a rede de esgoto era
mesquita, a prefeitura, as residências oficiais inexistente (um dos projetos de outra ONG
e o hospital. A reforma do hospital foi feita holandesa no local era a construção de latrinas);
com recursos provenientes da organização a água era farta, proveniente do rio Nilo, mas
não- governamental (ONG) francesa Hôpital o tratamento inexistia para a maior parte
sans frontière (HSF). Essa ONG tem como da população; o comércio local limitava-se a
leitmotiv a recuperação de plantas hospitalares pequenas vendas e feiras; televisão e telefonia
em locais carentes e, quando possível, o por satélite eram restritas aos locais de extrema
suporte à administração local para fazer o necessidade e só podiam ser utilizadas no
hospital funcionar. O trabalho como cirurgião pequeno intervalo de tempo em que a energia
dessa unidade hospitalar insere-se nesse elétrica era fornecida durante duas horas pela
último objetivo. manhã e quatro horas após o pôr-do-sol.
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Malakal é uma cidade com aproximadamente
80 mil habitantes. Suas únicas construções de
alvenaria são a mesquita,
a prefeitura, as residências
oficiais e o hospital
Durante os meses vividos na cidade, pudesse ser marcada, uma série de contatos
não houve registro de conflitos armados. com outras ONGs permitiu perceber a
A percepção da guerra era apenas a ronda importância do trabalho humanitário no
constante de tanques pelas ruas de terra da país. Instaladas no setor de embaixadas da
cidade, o toque de recolher após as 22 horas cidade, as sedes das ONGs administravam
e a angústia de um povo que, veladamente, uma enorme rede de assistência em todo
deixava transparecer a insatisfação com os o território. Próximo à sede da Hôpital sans
governantes na capital. frontière, centenas de sudaneses aglomeravam-
O contato dos habitantes com os se diariamente nos portões da embaixada
expatriados era, sistematicamente, de respeito, da Arábia Saudita em busca do sonho da
de carinho e de reconhecimento pelo esforço emigração. A sensação de estranheza por se
que não os deixava em abandono. Em um encontrar no sentido inverso, mesmo que
ambiente de imensa carência, a notícia de um temporariamente, aumentava a percepção
cirurgião na cidade se alastrou com rapidez e das dificuldades que ainda estavam por vir,
não tardaram as filas para atendimento. mas eram mitigadas pela certeza de estar
Longas três semanas foram necessárias contribuindo para que futuros sudaneses não
para que alguma cirurgia pudesse ser realizada precisem sonhar com a partida do solo pátrio.
desde o pouso da aeronave em Cartum até A documentação necessária para a viagem a
a utilização do centro cirúrgico. As iniciativas Malakal só ficaria pronta em janeiro e, naquele
tomadas na capital do país centravam-se momento, os preparativos para o reveillon
na obtenção de vistos de deslocamento, sinalizavam as previsões milenaristas típicas
de permissão de trabalho e de visitas ao e a apreensão em relação ao bug do milênio
consulado brasileiro. Naquele momento, foi (Y2K). A idéia de comemorar a passagem para
estranho encontrar o cônsul do Brasil no o século XXI nas belas pirâmides sudanesas,
Sudão e ter de conversar em inglês. Tratava-se em uma localidade chamada Meroe, acabou
de um consulado honorário, cujas ações eram demonstrando a força do trabalho realizado
reportadas ao Cairo. A sensação de isolamento em equipe. Os expatriados, funcionários
tornou-se maior quando recebi a notícia de de ONGs sediadas em Cartum, tiveram a
que não havia outro brasileiro no território interessante idéia de iluminar a principal
sudanês naquele momento. pirâmide de Meroe, plágio do que Jean Michel
Enquanto as exigências legais eram Jarre faria no mesmo momento em Gizé, no
providenciadas para que a viagem a Malakal Cairo. As dificuldades burocráticas e logísticas
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_pelo mundo
foram superadas com empenho individual, e o transporte dos pacientes operados, sobretudo
cerca de cinqüenta estrangeiros, de origens em dias chuvosos. Beneficiado pela estação
diversas, celebraram o novo milênio com uma seca, outras dificuldades se imporiam: ausência
ceia no deserto ao norte de Cartum. de anestesistas; centro cirúrgico pequeno;
Não havia ligação rodoviária ou ferroviária inexistência de unidades de cuidados intensivos;
entre Cartum e Malakal. O acesso à cidade serviço de enfermagem muito mal capacitado
só poderia ser feito por uma viagem de e uma enorme expectativa em torno de um
barco subindo o rio Nilo ou por avião. A cirurgião, como se apenas minha presença
necessidade de poupar tempo tornou a pudesse solucionar qualquer dificuldade.
opção aérea mais adequada e os oitocentos A boa vontade dos funcionários acabou
quilômetros entre as duas cidades foram facilitando a transposição de obstáculos.
transpostos em duas horas. As precariedades Uma equipe de colaboradores diretos
da cidade são rapidamente percebidas, mas se formou rapidamente e planos foram
logo são minimizadas pela simpatia das traçados para que fossem selecionados os
pessoas que nos recebiam. Além do mais, a casos após consultas regulares no período
habitação da ONG se localizava dentro do da tarde. O horário da manhã foi reservado
hospital, construída em alvenaria com dois para as eventuais cirurgias, tão logo as reais
quartos, sala de estar, cozinha, copa e uma possibilidades do hospital fossem identificadas
varanda voltada para o rio Nilo, cuja visão ao e planos fossem feitos para que situações
entardecer amenizava as agruras da distância. de emergência pudessem ser previstas e
As filas de pedidos se avolumaram solucionadas. A principal angústia era a
rapidamente. Fazia seis meses que o último ausência de anestesistas e de respiradores
cirurgião expatriado havia partido e muitos no centro cirúrgico. Alguns técnicos de
dos casos cirúrgicos aguardavam a chegada enfermagem diziam-se preparados para
do próximo médico. Antes de atendê-los, foi administrar anestesia venosa e para monitorar
necessário tomar ciência das possibilidades os sinais vitais durante os procedimentos
locais e adequar o que poderia ser feito ali cirúrgicos, desde que não necessitassem de
e o que deveria ser removido para Cartum. acesso artificial às vias respiratórias.
As diversas instalações do hospital não eram As incertezas quanto à possibilidade de
contíguas, e o trajeto entre uma e outra deveria realizar cirurgias só começaram a desaparecer
ser feito por caminhos de pedra sobre o quando os primeiros casos foram submetidos
terreno de terra. Essa característica dificultaria à cirurgia e os pacientes puderam, após os dias
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necessários de recuperação, ter alta com seus Algumas idiossincrasias da medicina local
problemas resolvidos e sem complicações. acrescentavam tensão nas relações médicas.
Precauções foram tomadas para que o tempo Muitas vezes dificultada por dupla tradução-
operatório não excedesse uma hora, quando do idioma tribal para o árabe e desse para
os efeitos colaterais do método anestésico o inglês- certas explicações não convenciam
empregado poderiam ser mais deletérios alguns pacientes. Tornou-se hábito, na região,
do que a solução cirúrgica ser benéfica. As a apendicectomia preventiva, realizada por
cirurgias foram limitadas aos casos mais médicos locais em períodos anteriores. A
simples de pequenas hérnias da parede verdadeira indicação cirúrgica só se verifica na
abdominal, cirurgias proctológicas rápidas, presença de sinais e de sintomas de apendicite
procedimentos obstétricos de partos normais aguda, o que torna a extirpação do apêndice
ou cesarianos. Médicos prestando o serviço vermiforme normal uma prática condenada.
militar obrigatório auxiliavam nas cirurgias e Certa vez, um homem não aceitou a recusa
alguns deles, com interesse na especialização e simulava os sintomas para conseguir o que
cirúrgica, tornavam-se colaboradores queria. Acabou internado por dez dias até
atenciosos e dedicados, fazendo da troca de se convencer de que o que sentia não seria
experiências um aprendizado para todos. corrigido por cirurgia.
Algumas cirurgias maiores tiveram de ser A prática diária da cirurgia nessas
realizadas devido a situações de emergência. Na condições tornava o trabalho também
ausência de traumatismos graves provocados inusitado e preenchia o tempo com
por guerra, duas laparotomias exploradoras particularidades às quais não estava
foram realizadas devido a traumas provocados acostumado. Os horários tinham de ser
por agressões interpessoais. A solução rápida adaptados aos costumes locais, como o
das lesões encontradas acrescentava tensão respeito às horas destinadas à oração voltada
devido ao tempo operatório limitado pelas para Meca e à folga semanal nas sextas-feiras
possibilidades anestésicas. Cirurgias no andar no lugar do domingo. Os hábitos islâmicos se
superior do abdome, normalmente remetidas impunham pela burocracia oficial, mesmo que
a Cartum devido a possíveis complicações a maior parte da população preservasse suas
respiratórias, tiveram de ser realizadas em crenças católicas ou animistas. A presença de
situações de emergência, quando o tempo de missionárias católicas ajudava na catequese
remoção previsto não seria compatível com a e no conforto religioso àqueles de confissão
rapidez necessária à solução. cristã. Apesar da pluralidade de crenças,
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_pelo mundo
_90
A angústia está na percepção de que um
pequeno pote de água foi jogado contra o
grande incêndio em que consiste a situação
político-social do Sudão
_91
_pelo mundo
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REFLEXÕES
LITERÁRIAS
SOBRE
A VIDA
CULTURAL
EM CUBA
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_92
A lcancei a Plaza de Armas pela Calle
O’Reilly, o suave sol de janeiro derramando-
para nós, no pacato e arborizado bairro de
Vedado, a poucas quadras da nossa pousada.
se entre as folhas, a iluminar as fachadas Apesar de severamente deterioradas, as casas
centenárias. Do outro lado da Plaza, avistei aqui ainda detinham certo charme, e algumas
Heriberto, alojado em seu agradável cantinho eram verdadeiramente belas e impressionantes.
à sombra da folhagem densa que também Ecoavam, longínquas e fantasmagóricas, as
protege a estátua do líder revolucionário descrições de Graham Greene em Our Man in
novecentista Carlos Manuel de Céspedes. Havana (1958): “Wormold drove back to Vedado,
Era final de tarde, e Heriberto, gordinho e to the little white houses and the bougainvilleas
sorridente, estava sentado em uma cadeira of the rich...What quarrels were still in progress
de praia, ao lado de seus companheiros, behind those doll’s house walls?”. Meio século
provavelmente discutindo as vendas do dia, e uma revolução depois da publicação do
o último jogo de pelota. Tragava seu cigarro, clássico romance, os interiores de Vedado,
olhava para os lados, dava uma gargalhada. O alegremente humildes, destoavam das ruinosas
que estava pensando, no fundo? Aproximei-me fachadas burguesas e, às vezes, imponentes.
lentamente. Será que me reconheceria? Heriberto e seu companheiro dividiam com
Foi C. quem conheceu Heriberto outras famílias – não perguntamos quantas
primeiro, uma semana antes das eleições – uma dessas residências.
nacionais. Havíamos recém chegado a Naquela noite, C. comprou vários livros.
Havana, era voraz nosso apetite por Eu comprei um só (o excelente Aire de luz:
experimentar de tudo, conversar com todos. Cuentos cubanos del siglo XX, organizado por
C. queria comprar livros para sua irmã, uma Alberto Garrandés e publicado em 1999):
apreciadora da literatura latino-americana, estava mais interessado em ouvir o próprio
e havíamos ouvido falar da feira de livros Heriberto, que discorria sobre literatura
usados. Heriberto, logo percebemos, era cubana contemporânea com o entusiasmo
talvez o único feirante que legitimamente e a propriedade de um professor. Descobri,
amava e conhecia seus livros. “De hecho, soy mais tarde, que se tratava, na realidade, do
un pésimo negociante”, disse-nos mais tarde. entusiasmo e da propriedade de um escritor.
Marcamos com Heriberto um encontro, à Conquanto não tivesse a postura e o vigor de
noite, para ver os livros que guardava em sua um Ondjaki, discerni em Heriberto algumas
casa. Era localizada, muito convenientemente das qualidades do jovem e brilhante escritor
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_pelo mundo
1
Festa Literária Internacional de Parati
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de tropas rebeldes, qual era o melhor time em Leningrado, “an almost catatonic demeanor”,
de baseball, ou qual era o melhor jogador da algo entre espanto e genuína incompreensão,
atualidade... Sentamo-nos em um banco de entre os atores soviéticos que haviam sido
pedra, sem encosto, e abri meu caderninho convocados para receber os americanos.
de anotações marrom. Nada no ar indicava, Entretanto, se a turnê da sensual opera que
com precisão, que estávamos em uma Havana conquistou o mundo com melodias como
prestes a despedir-se do Comandante-em- “Summertime” foi, afinal, “warmly received”
Chefe Fidel Castro Ruz. O que se pressentia, pelos soviéticos, Heriberto sentiu-se
sim, era um momento de ebulição equilibrada, irreparavelmente gélido: terminou uma noite
produto de alguns anos de cocção. soterrado na neve em uma rua de Moscou,
vítima de um tremendo conflito interno e de
uma “borrachera infernal”.
“Borrachera infernal” Heriberto não completou os estudos na
Heriberto nasceu em Havana, em 1962. URSS. Retornando a Cuba, dedica-se ao serviço
Seu pai trabalhava no palácio presidencial, militar e reingressa na universidade, formando-
antes da revolução, e sua mãe, uma senhora se em engenharia elétrica. O ano era 1990 e
“casi analfabeta”, era doméstica. Heriberto Cuba estava às vésperas da grande ruptura,
sente a necessidade de ressaltar que nasceu do início dos longos anos de crise econômica.
depois da revolução, e que por isso teve Hoje, permanece peculiar símbolo do fim dos
acesso total à educação. Depois da escola anos dourados da Revolução: partindo de
primária, estudou em uma escola vocacional, Havana pela Autopista Nacional – projeto que,
“la máxima aspiración de cualquier estudiante” financiado pelos soviéticos, deveria vincular
daquela faixa etária. Conta, contudo, que a capital, no ocidente, a Santiago de Cuba,
sentia, entre os colegas, certo preconceito no extremo oriente – chega-se a um ponto,
gerado pelo fato de que seu pai havia sido logo antes da província central de Ciego de
funcionário de Fulgêncio Batista. Ávila, em que a extraordinária estrada de seis
Mas, por um tempo, tudo deu certo, avalia faixas submerge em meio ao mato tropical,
Heriberto. Terminou o colégio e ganhou oferecendo-se como continuação modesta pista
uma bolsa para estudar na União Soviética. de mão única. A abrupta interrupção rodoviária
Heriberto, afinal, era um cidadão exemplar: assemelha-se ao malogro da fulminante
aluno aplicado, foi também militante e depois trajetória do jovem militante: inicialmente
dirigente da Unión de los Jovenes Comunistas. sem emprego, depois recebendo 198 pesos
Heriberto não explica, talvez por reserva, mensais (uma pizza valia 20 pesos) na Unión
exatamente o que aconteceu em Moscou. Não Elétrica – onde, segundo ele, “no había nada que
o pressionei sobre esse assunto, mas tive a hacer, no había trabajo” – Heriberto opta pelo
sensação de que Heriberto houvesse sofrido improvisado caminho do comércio de livros.
uma crise de identidade. Pela primeira vez Se na Cuba de Fidel sempre houve mercado
longe da família, de seu país, inserido em uma subterrâneo de comida e roupa, a partir dos
cultura em muitos aspectos diametralmente anos 1990 o comércio paralelo de livros usados
oposta à cubana, o jovem militante não (assim como o de muitos outros itens do
se adaptou à versão russa da sociedade cotidiano) robusteceu-se. Em 1994, Heriberto
socialista. Ressalvadas as diferenças de época obtém licença que regulariza o estande de
e proporção, recordo-me, ao ouvir a narrativa, livros na Plaza de Armas. Desde então, vive do
de um relato de Truman Capote (“The Muses comércio de livros usados e escreve no tempo
Are Heard”), que descreve a turnê de Porgy livre que lhe resta.
and Bess na União Soviética, em pleno inverno
de 1955. Acompanhados da Sra. Ira Gershwin
– esposa de um dos célebres compositores
O Estado da arte
– e do próprio Capote, os membros do elenco Em seguimento a essa aclaração
– todos negros – provocam, ao desembarcar biográfica, instiguei o engenheiro letrado –
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2 Importante ressaltar que Nicolás Guillén recusou-se a tomar parte nos episódios.
3 Mariana Martins Villaça, A política cultural cubana e o movimento Nova Trova (http://www.hist.puc.cl/iaspm/mexico/articulos/
Villaca.pdf)
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de águas, na medida em que intelectuais do o qual também contribuiu para intensificar os
mundo inteiro sentiram-se na obrigação de debates a respeito da liberdade de expressão
tomar uma posição contra (Jean-Paul Sartre, no regime revolucionário.
Octavio Paz, Federico Fellini...) ou a favor
(notavelmente, Julio Cortázar) de certas Os anos 1970 e 1980: da
decisões do governo de Fidel Castro. parametraje ao Mariel
A crise político-intelectual ainda rendeu A arte da censura atinge o auge em
mais um dramático capítulo quando, em 1971, abril de 1971, com o I Congreso Nacional de
o diplomata e escritor Jorge Edwards, enviado Educación y Cultura. Desse encontro, surge
pelo recém-formado governo socialista de legislação detalhada para orientar a produção
Salvador Allende para reabrir a Embaixada do artística, grupo de normas conhecidas como
Chile em Cuba, foi declarado persona non grata “parametraje”.Além do mote revolucionário
em decorrência de suas críticas ao governo de de 1961, estabelece-se o critério de que a arte
Fidel Castro e convidado a retirar-se da ilha. deve ser “facilmente assimilada pelas massas”.
Edwards, outro célebre vencedor do Prêmio Nas palavras de Heriberto, considerando-
Cervantes, publicou polêmico livro relatando os retrospectivamente, os anos 1970 – seus
o acontecimento (Persona non grata, de 1973), anos de juventude – foram um “período vacío y
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_pelo mundo
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tendo os líderes de escolher entre o modelo causas desses fenômenos.Tabu absoluto é tratar
russo e o chinês (Che Guevara, nos últimos os dirigentes políticos de maneira crítica, ou até
anos de sua vida, já havia aderido ao maoísmo). mesmo humorística (sátiras, charges). Permeia,
Para Cuba, a adesão às orientações soviéticas no mundo cultural cubano, o que Heriberto
significou o recebimento imediato e maciço de qualifica de “autocensura”, ou seja, por medo
recursos e divisas tão escassos na ilha. das conseqüências, as pessoas são, em geral,
Nas palavras de Heriberto, os anos 1980 cautelosas com o que dizem e, sobretudo, com o
gradualmente insuflaram “aires de renovación” que publicam.
nas artes cubanas. É possível que as mudanças Estamos chegando ao final de nossa entrevista.
tenham tido motivações econômicas, em parte. Um policial passeia com seu pastor alemão, mas
Os problemas já haviam começado ao final dos não nos dá bola. Pergunto a Heriberto se ele se
anos 1970, quando a crise econômica mundial preocupa que estejamos sentados em um parque
atingiu Cuba e a insatisfação com o regime no centro de Havana conversando abertamente
castrista produziu uma série de protestos. sobre temas politicamente sensíveis, eu com o
Milhares de dissidentes invadiram as sedes das caderninho marrom na mão. Gostaria que eu
embaixadas em Havana, sobretudo a do Peru, publicasse a matéria sem revelar seu verdadeiro
para pedir asilo. Heriberto lembra então o nome? Ele diz que em outra época, sim. Hoje, não
famoso “êxodo de Mariel”, uma janela entre é necessário. Está contente com os atuais “aires
os meses de abril e setembro de 1980 em que de renovación”. Para ele,
o Governo cubano permitiu o abandono em
massa de aproximadamente 125.000 pessoas, que “Hay muchos temas en Cuba que hay
embarcaram no Porto de Mariel para ir à Florida. que ponerselos sobre la mesa. Raul [Castro]
Ao falar de Mariel, Heriberto menciona o ha hablado de errores, de cosas que tienen
nome de Reinaldo Arenas, autor de Antes que que cambiar. Pero lo más importante para
anochezca, a emocionante e poética autobiografia Cuba es su soberania, despues arreglar la
que inspirou o igualmente brilhante filme, economia, los asuntos sociales. En Cuba, la
homônimo, do artista plástico Julian Schnabel. gente quiere debate, quiere discutir, necesita
Arenas, aliás, figura no meu Aire de Luz, com o tomar conciencia. La Asamblea Nacional es
libertino e refrescante El cometa Halley (1986), un simulacro. El país tiene que cambiar, es
continuação paródica do clássico La casa de una exigencia de los tiempos.”
Bernarda Alba, de Garcia Lorca. Fiquei alegremente
surpreso com a inclusão desse conto no Aire de Em última análise, Heriberto está longe de
Luz, coletânea declaradamente representativa do ser um típico “miamero”. De fato, se o fosse,
conto cubano contemporâneo e publicada em teria fugido há muito tempo, junto com os
Havana pelo Instituto Cubano del Libro. mais de 50% (de acordo com seus próprios
cálculos) dos colegas com quem se formou na
faculdade de engenharia. Heriberto considera-
Temas tabu e mudanças políticas se um “iconoclasta”: como o britanicamente
– dos anos 1990 em diante cético Wormold, nosso homem em Havana
Essa inclusão, no entanto, não vai de encontro desconfia de toda fonte de autoridade,
à análise de Heriberto acerca da problemática inclusive a norte-americana. De certa forma,
da liberdade de expressão em Cuba a partir não difere da maioria dos cubanos que ele
dos anos 1990. Para Heriberto, hoje o escritor mesmo descreve – para Heriberto, o cubano,
pode, sim, descrever com liberdade razoável as em geral, não se preocupa com o futuro, está
realidades do país: os problemas econômicos, intimamente ligado ao cotidiano. A visão de
a libertinagem sexual (inclusive a onipresente mundo do cubano contemporâneo, segundo
prostituição), as falhas gritantes no sistema de Heriberto, resume-se no popular mote,
transporte público, os mercados subterrâneos, os oferecido normalmente como resposta à
diferentes modos de corrupção cotidiana. O que pergunta de como andam as coisas: estou bem,
não se pode fazer é analisar, profundamente, as obrigado, estou “luchando el presente”.
_99
RESENHA
Amor,
cinema e
literatura
no universo
de Gabriel
Garcia
Márquez
Maurício Alves da Costa
_100
A tentativa de uma análise
comparativa entre uma obra literária e
por seu pai, rejeita Florentino Ariza, na
feira de Cartagena, após ouvir a frase
uma adaptação cinematográfica pode “este não é um lugar adequado para uma
malograr graças às tentadoras “armadilhas” deusa coroada”. Na narrativa de Gabriel
interpretativas inerentes a duas linguagens García Márquez, o leitor acompanha
tão diversas entre si quanto a literatura e cada gesto de Florentino Ariza à espreita
o cinema, ainda que mantenham constante de sua amada, quase sente o cheiro das
relação de intertextualidade. Ao escolhermos verduras e das frutas que acompanham
como objeto de cotejo um obra escrita o protagonista em sua ansiedade, que se
pelo mestre Gabriel García Márquez, essas torna tristeza e decepção profundas. Na
“armadilhas” tornam-se ainda mais atraentes obra cinematográfica, a feira de Cartagena
para o analista. é apenas uma imagem, ainda que belíssima e
A leitura de O Amor nos Tempos do muito bem retratada, o que impossibilita ao
Cólera é um exercício de elaboração e de
assimilação de sentimentos. É incomparável
a forma pela qual Gabriel García Márquez
retrata o cenário da Cartagena das Índias
do século XIX e de suas transformações
sociais e culturais, ao longo dos 55
anos da narrativa, como pano de fundo
de uma história de amor considerada
impossível pelos céticos de nosso mundo
crescentemente utilitarista. O leitor é
envolvido por uma teia de sensações, de
cheiros e de emoções que o fazem se
materializar como personagem naquele
universo fantástico. A subjetividade do
leitor protagoniza a narrativa junto a
Florentino Ariza - o anti-herói romântico.
A “tradução” dessas riquezas narrativa
e descritiva, na qual a subjetividade do
leitor tem participação fundamental, para leitor se envolver da mesma maneira que a
a linguagem cinematográfica, na qual os narrativa literária o permitiria fazer.
cenários são apresentados ao leitor, constitui Escapar do julgamento fácil, no entanto,
desafio de alto risco. Se cada leitor de Gabriel não significa que “não existe pecado
García Márquez tem o cenário mentalmente abaixo do Equador”. A má caracterização
formado, não seria diferente para o diretor de Giovanna Mezzogiorno como Fermina
da obra cinematográfica. A “armadilha” da Daza, a qual parece envelhecer dez anos
decepção, baseada no argumento de que em cinqüenta, e o estereótipo usado para
“eu imaginava tudo diferente”, é, ao mesmo caraterizar Lorenzo Daza são exemplos
tempo, natural e injusta: deve-se respeitar as de aspectos negativos relativos a questões
opções do diretor. básicas da produção.
As dificuldades inerentes à transposição Entre os diversos pecados da versão
de linguagens são fatores de dificuldade na cinematográfica de O Amor nos Tempos
adaptação, como na cena em que Fermina do Cólera, os quais não é possível listar
Daza, após retornar do isolamento imposto nesta breve resenha e nem mesmo é seu
_101
objetivo, pode-se destacar o “corte” da linguagens exige do executor a capacidade
narrativa escolhido pelos autores. Ainda de “transluciferar”, nas palavras de Haroldo
que não seja possível reproduzir a narrativa de Campos, para conseguir recriar o
em todos os seus detalhes e em todos os universo desejado em uma nova plataforma
seus personagens, não se pode prescindir de produção textual.
de elementos essenciais à preservação do A mais significativa e revoltante
sentido interpretativo da obra. Uma das “violência” contra a obra de Gabriel García
passagens mais interessantes da narrativa, Márquez foi a mudança de natureza da
que é a comunicação telegráfica mantida relação entre Florentino Ariza e América
pelos dois jovens apaixonados durante o Vicuña. Certamente resultado da prudência
isolamento de Fermina, reduziu-se a uma comercial da indústria de Hollywood,
mera menção numa cena colateral do filme. América Vicuña, de estudante de treze anos
A edição do filme abdica de quaisquer da sétima série, transformou-se em recém
recursos de transição entre as fases da universitária e professora da escola normal,
narrativa e faz “cortes” bruscos, que são com mais de dezoito anos de idade. Os
_102
Aureliano Buendía por Remédios, de nove
anos de idade, que se tornaria sua esposa,
quanto em Do Amor e Outros Demônios, pela
paixão entre Sierva Maria de Todos Los
Angeles, de catorze anos de idade, e um
padre. A retirada dessa temática do filme por
motivos comerciais e morais impede que o
espectador depare com algo perturbador
que o faria refletir sobre as contradições da
natureza humana.
Para que este resenhista não se transforme
numa “raposa velha”, que se deixa cair
em “armadilhas” fáceis, discutirei alguns
dos méritos da versão cinematográfica. A
cenografia está perfeita. É quase impossível
imaginar uma Cartagena das Índias diferente
daquela trazida pelo diretor às telas de
cinema. Pelo menos três atuações estão
próximas da perfeição: Javier Bardem vaga
pela telas como a verdadeira “sombra”
retratada por Gabriel Garcia Márquez, o Anos de Solidão. O objetivo era o lucro? Que
mesmo “gerente do amor”, cujo coração pena, mas ainda é melhor lucrar mediante a
é um “prostíbulo”; Fernanda Montenegro, divulgação de grandes obras do que repetir
no papel de Trânsito Ariza, personifica a apenas “mais uma comédia romântica”.
mãe do protagonista de forma magistral Diante de todos os obstáculos, dos
e o Dr. Juvenal Urbino desfila pelas ruas equívocos e dos acertos da equipe de
de Cartagena com toda a elegância e toda produção da versão cinematográfica de
a frieza descritas por García Márquez, O Amor nos Tempos do Cólera, é possível
personificado por Benjamin Bratt. A fotografia, afirmar que prevalece a força do
a cenografia e essas três atuações são os universo literário de Gabriel García
grandes pontos altos do filme. Márquez e a “razão de amor”
Mais uma vez, seria fácil rejeitar a versão magistralmente sintetizada e interpretada
cinematográfica de O Amor nos Tempos do por esse homem capaz de transformar
Cólera como mais um “blockbuster” sem a palavra em emoção pura. O desafio dos
importância ou como um mero “enlatado” produtores foi gigantesco: nas palavras
para entretenimento. Nesse caso, o de Drummond “havia uma pedra
caminho correto é o mais difícil: reconhecer no meio do caminho”, e essa
a importância da difusão da obra para o pedra era a dificuldade de
grande público, que provavelmente teve seu transpor a insuperável capacidade
primeiro e, esperançosamente da minha narrativa de García Márquez. O
parte, não último contato com a obra desafio do leitor e do espectador
daquele que considero o maior escritor é ainda maior: deixar-se envolver
da era moderna. Os defeitos da produção pela narrativa e acreditar que o
tornam-se pequenos diante da dimensão verdadeiro amor existe e supera
dada àquela que é a maior obra desse quaisquer ceticismo e
prêmio Nobel de literatura, ao lado de Cem racionalidade.
_103
POESIA E PROSA
Orientações
importantes
à nova musa
Raphael Nascimento
_104
P ois que se recebeste
este texto significa que assumiste por
aclamação inconteste e consensual o
também foi cogitada, mas como ela é
normalmente utilizada para falar aos céus
com Aquele que nunca me escutou, para ti
posto de Musa Inspiradora. Como toda sobrou “tu” mesmo. Prossigamos.
posição de destaque, o cargo tem as suas Peço-te imediatamente que não te assustes
liturgias, que devem ser observadas para o com os possíveis excessos que por certo
bom andamento da tua gestão. Procurarei irei cometer. Tranqüiliza-te, que os escritores
descrevê-las aqui, sem muita pompa somos inofensivos: vivemos nos tempos
ou circunstância, com o intuito puro e em que ainda havia admiradores secretos e
simples de facilitar-te a vida e precaver-te amores-à-primeira-vista e estes não eram
contra eventuais mal-entendidos. Antes de confundidos, um e outro, com serial killers
encerrar este breve intróito, adianto-te e instintos selvagens.Vivemos na época
que a partir de hoje tens a honra de fazer dos bichos falantes, que na segunda pessoa
companhia a marias, fernandas, marianas, espalhavam a sua crua ingenuidade animal
carlas, carolinas e melissas, que outrora, sobre a superfície da Terra. Nosso tempo
com maior ou menor destaque, com mais é de solidão gigantesca e incomensurável,
ou menos elegância, foram donas do cetro que se resolve com um simples e-mail de
que ora carregas nas mãos. agradecimento. Não te preocupes, pois, com os
Cabe primeiro explicar o porquê deste excessos que mencionei, que eles serão apenas
manual de instruções – que isto não é textuais e se materializarão em crônicas,
outra coisa senão um manual de instruções! contos ou poesias. Embora odeie mesóclises,
– seguir escrito na segunda pessoa do enviá-los-ei todos a ti, com maior ou menor
singular. Quando aceitaste a coroa que te freqüência, conforme o grau de sofrimento
ofereci, automaticamente te converteste pelo qual estiver passando. Grau este que
em um estado diferenciado da matéria, algo
entre o líquido e o gasoso, que vez por
outra aparecerá de modo inesperado diante
de meus olhos incrédulos, em qualidade
adimensional, unindo de maneira misteriosa
as paralelas do tempo e do espaço. A um
ser nessa condição, tu hás de concordar, não
se pode dirigir pelo corriqueiro tratamento
de “você”. O “tu”, embora bastante íntimo,
à medida que se descarrilou da locomotiva
velha que conduz o uso cotidiano da
língua, dá ao texto ares de eternidade e o
devido tom de respeito para um diálogo
entre o mortal, que sou eu, e a tua figura
de semideusa. A segunda pessoa do plural
_105
_poesia e prosa
Neste cargo,
cumpre esclarecer, teus
direitos são vários.
Tens, sobretudo,
o direito de sorrir.
Sorria sempre que
jamais deverá baixar do nível laranja utilizado
pelo Homeland Security Department para puderes que é para
medir a possibilidade de um ataque terrorista.
Como podes ver, falarei sempre num que eu eventualmente
tom exagerado e pouco lógico, tentando
transmitir a angústia mentirosa de uma vida veja o teu sorriso e
que não pode mais viver sem a tua. Não me
leves tão a sério, portanto. Este sofrimento me sinta um pouco
é necessário para o processo de escrever
e sem ele eu seguiria uma rotina muito da mais feliz na miséria
sem graça a trabalhar nestas coisas que
agora abandono para preparar-te este guia. que será minha vida
Algumas vezes, destarte, direi que sofro
muitíssimo além do que realmente dói. a observar-te tão
Farei isso apenas para chamar um pouco
mais a tua atenção. Outras vezes, contudo,
padecerei de uma dor tão intensa que até
distante. Tens o direito de ler
os meus textos que mais gostares em voz
a morte terá de mim pena e me deixará alta a tuas amigas. Faça de forma que elas
quieto no Martinica a embebedar-me com saibam que dividem o ambiente com um ser
várias Heinekens geladas e a enegrecer importado diretamente do firmamento e que
meus pulmões com os malditos alcatrão a tua presença exala uma fragrância inebriante
e nicotina. Ficarei lá, mudo, fitando o que deve ser aproveitada ao máximo. Dize-
horizonte com a mão no queixo, o olhar lhes que tens asas e que a qualquer momento
_106
podes desaparecer dali, migrar para o sul proceda, prometendo-me a eterna danação
como fazem as garças em busca de um clima caso deixe de cumprir algum dos teus
mais ameno e de melhores oportunidades de mandamentos. Tens, finalmente, o direito
trabalho. Tens também o direito de comprar de ser impossível e inalcançável, sem, no
uma placa de mármore e nela gravar em entanto, ignorar-me. Não poderás nunca
letras grandes o título: “Musa Inspiradora”. demorar mais de 37 horas para responder a
Coloque-a na mesa de teu escritório, na porta um de meus e-mails.
do teu quarto, na carteira da faculdade ou Por fim, devo advertir-te sobre um fato
em qualquer outro lugar que entendas como grave: teu reinado não será longo. Não te
o principal locus dessa tua nova ocupação. assustes. Minha obrigação é avisar-te para
Faça também cartões de visita, que poderás não criar em ti ilusões descabidas sobre a
precisar quando interpelada em uma dessas tua instável condição. Teu domínio sobre
reuniões de afrodites das quais participarás de minha mente e minha alma é efêmero.
hoje em diante. Cedo ou tarde aparecerá outra moça
Não te esqueças, além disso, que és fada que confundirá meus pensamentos e
e, como fada, tens o dom da magia. Tens irresistivelmente dominará minha atenção,
o direito, por conseguinte, de ser sempre exigindo, como o fazem todas – tolas! –, total
mais leve que as meninas comuns e de exclusividade. Eu, novamente fraco, cego,
dizer-lhes, sem um pingo de arrogância perdido, apaixonado, lhe concederei juras
(por favor!), que a elas também está de amor eterno sem nenhum grande peso
reservado um dos meus irmãos de letras. na consciência. Nesse momento, teu nome
Eu, contudo, serei só teu, e tu tens nesse será flexionado ao plural e mecanicamente
sentido o direito de usar-me para os teus posicionado ao lado daqueles que foram
fins incompreensíveis, que minha rasteira citados no último período do primeiro
percepção da realidade jamais conseguirá parágrafo. Serás mais uma. Este texto será
vislumbrar. Neste momento, posso apenas então encaminhado à nova musa e tu, assim,
adorar-te com estes rituais metalingüísticos, sem mais nem menos, virarás apenas mais
e tu tens o direito de exigir que eu assim um fantasma em minha memória.
_107
_poesia e prosa
BUENOS AIRES
Romina Bocache
El Ciego la garabateó
en su íntima penumbra:
hazañas hurañas de héroes,
el grito ensangrentado del cuchillo en los arrabales del último coraje,
la frescura verde de un patio.
Desde entonces,
inconstante, huidiza,
intangible, lunar,
la ciudad titila y se apaga en la claridad del sol.
_108
Sólo reverbera en la suave aspereza de la juventud perdida,
en la ironía de una mueca macabra,
en el laberinto de las encrucijadas titubeantes,
en los vagabundeos de las calles perdidas que nos pierden,
en cada esquina mareada de la vida
en el vértigo de los vacíos abismales
con que todas las otras ciudades la citan
obsesivamente...
_109
_poesia e prosa
O corpo poroso
Incorpora ao vácuo
O vapor que calcina.
Do poro o suor
Ao céu se insinua,
Ínfima neblina
Que a pele nua
Expele, expia.
_110
ARQUITETURA
D.G. Ducci
_111
_poesia e prosa
_112
Naquele ano de 2004, em Timor-Leste,
estrangeiro que respondesse assim, de
pronto e em português, só podia ser luso ou
brasileiro. O motorista arrisca novo palpite. O taxista ri do outro, surpreso. O
professor sabe que seu esforço para aprender
– Então, você, brasileiro? a língua local não tem apenas motivos nobres.
– Eu sou. Além do sorriso, espera ganhar um desconto
Fazia sentido. Brasileiro, se não era tropa, no final da corrida. Aprendera na Nicarágua
só podia ser evangélico ou professor. Os lusos existir uma tabela subjetiva entre taxistas
distribuíam-se por atividades mais diversas. de todo o mundo. Por ela, estrangeiros sem
Havia quem arriscasse classificá-los como domínio da língua franca do lugar merecem
“Rambos” ou “Madres Teresas”, a depender pagar o dobro. Norte-americanos, ou
da motivação para estadia tão longe de casa. forasteiros com bronzeador na cara, o triplo.
Brasileiros pareciam ter um pouco dos dois. Corretos ou não os critérios, parecia-lhe
Dobrada a esquina da nacionalidade, dois tentativa válida de precificar o respeito.
caminhos são oferecidos para o papo, quase
por dedução matemática: futebol e música. – Quanto vai custar?
Ronaldinho era mesmo o melhor jogador – Satu dólar.
do mundo. Uma fita de Leandro e Leonardo Satu é o número um em indonésio. O
estava no porta-luvas. Talvez devessem ouvi-la. preço era bom, mas o professor ainda não
Com breve gesto, o professor recusa. se acostumara com o hábito timorense de
Sugere percurso mais sinuoso. Pretende falar contar dinheiro apenas na língua da escola.
de língua: metalinguar. – Então você também fala bahasa?
– Quero muito aprender tétum – diz. – pergunta ao taxista. Em indonésio, bahasa
quer dizer idioma. É a forma como todos se
– Por quê? referem à língua.
– Acho importante, se vou morar aqui. – Bahasa e um pouco de fataluco, da
O professor recorda os poucos termos minha avó.
que conhece na língua, tão oficial quanto
o português. Fuan, por exemplo, que quer – E sua avó era de onde?
dizer “coração”. E ai-fuan, que ao pé da letra – De Lautém, o distrito mais para lá de
é “coração de árvore”, mas que quer dizer Timor – responde o condutor, apontando
“fruto”. E ainda li-fuan, forma tão fantástica e para o leste. Em Lautém quase só se fala
verdadeira de dizer simplesmente “palavra”. fataluco.
A palavra é o coração da língua. A palavra é o O professor se surpreende com a
fruto do tronco da história. capacidade lingüística dos timorenses. Era
comum encontrar quem falasse quatro,
cinco, seis línguas. Em todo o território, com
cerca um milhão de pessoas, pesquisadores
contabilizaram a existência de trinta e duas.
Línguas ou dialetos, não saberia discriminar.
Dizem que a diferença entre língua e dialeto é
que dialetos não têm exércitos.
– E bahasa falam no país inteiro, não é?
_113
_poesia e prosa
_114
Com o olhar no horizonte sobre o mar,
onde brilhava a ilha de Ataúro, o professor
relembra visita que fizera ao Cabo da
Boa Esperança. Fora triste ver a cruz
de Bartolomeu Dias, o Capitão do Fim,
solitária e calada em seu outeiro, cercada
motor do carro.
As línguas, no fim
das contas, são como
pássaros. Algumas fogem de casa e
caminham pelos postes antes de voar para
longe. Outras sofrem nas ruas e vêm procurar
ninho nas beiras das casas, discretas.
_115
_poesia e prosa
BURACO
NA PAREDE
André Cortez
_116
H avia exatamente dois dedos de
água dentro do copo abandonado sobre a
mas idêntico ao seu o contemplava do fundo
do copo, desconfiado. Sentia-se cada vez
pia de mármore. O homem mediu com a menor, cada vez menos o morador daquele
mão direita. Um gole. O resto da cozinha duplex. As suas costas, o motor da geladeira
estava absolutamente em ordem. Branco zunia incessantemente como o ronco de um
milimétrico. Cada coisa em seu devido lugar. demônio adormecido.
Facas inoxidáveis, panelas, utensílios para abrir, Sentiu seu corpo esquentar. Desfez o nó da
espremer, triturar, decantar, e alimentos tão gravata e arregaçou as mangas da camisa listrada.
bem organizados que pareciam nunca terem Um filete de suor escorreu da axila pelo flanco
sido tocados. do tórax. Perturbou-se e decidiu investigar.
Não era a primeira vez que chegava do Sobre a mesa de centro da sala ampla, o
escritório e encontrava o copo ali. Outras jornal, cuidadosamente dobrado, repousava
vezes, sobre a mesma pia de mármore, ao lado dos livros de arquitetura e do vaso
encontrara-o vazio. Outras ainda, fora de cristal. O homem recordou que não estava
surpreendido pelo objeto nos demais lá quando saiu de manhã. O havia deixado
cômodos do apartamento. Já o havia notado no banheiro. Também abrira a cortina antes
sobre o criado-mudo do quarto. Não sabia de partir. Agora, no entanto, constatou que
explicar como nem por quê. estava completamente fechada, e a luz da rua
A única pessoa que possuía as chaves transparecia pálida através do tecido.
da casa era ele. Morava só. Passava o Caminhou até o quarto vagarosamente.
dia todo fora, trabalhando dois turnos O corredor parecia ainda mais estreito na
condensados em um. Demorava-se ainda penumbra. Acendeu a luz. Os quadros nas
por causa da academia. Aos finais de semana, paredes iluminaram-se, subitamente revelando
as indispensáveis viagens ao litoral. O coloridas figuras de desenho animado. Ao
apartamento ficava vazio. Ou assim presumia. abrir a porta, surpreendeu-se por definitivo:
Até que começou a reparar na freqüência a cama havia sido feita e roupas limpas jaziam
com que o fenômeno do copo se repetia. dobradas e empilhadas sobre a poltrona
De início, julgou que andava distraído. de canto. Coisas que ele sem dúvida não
Atordoado pela correria do escritório, tivera tempo de fazer ao levantar, pensava
dormindo três horas por noite em média, redobrado, testando a veracidade dos fatos.
a cabeça lhe doía muito. O copo itinerante, Esquadrinhou seus objetos pessoais
inferiu, era conseqüência da pressa e das revirados, e o medo que experimentava de
aspirinas, consumidas às dúzias, uma atrás da repente se liqüefez em uma espécie de raiva.
outra. Parecia-lhe natural que alguns detalhes Ocorreu-lhe esta idéia: a ex-mulher teria
da vida cotidiana passassem despercebidos. passado no apartamento para resgatar vestidos
Ele mesmo consumia o copo d’água antes ou vasos ou qualquer coisa do gênero. Há
de sair e não lembrava disso ao voltar. O quanto tempo vinha fazendo isso? Não havia
raciocínio faria sentido não fosse a certeza de, devolvido a chave ainda? Resolveu ligar.
aquela manhã, perturbado pela dúvida, o haver O telefone tocou várias vezes antes de
propositadamente colocado de ponta cabeça. cair na caixa postal. Sobreveio uma voz
O homem fitava imóvel o objeto de vidro delicada, anunciando uma longa viagem
sobre a pia da cozinha. Meditava enquanto o ao exterior. Voltaria dali a dez dias, dizia
silêncio asséptico do apartamento ameaçava em seguida. A melodia macia da gravação
engoli-lo. Um pequeno rosto deformado impeliu o homem à irritação profunda.
_117
_poesia e prosa
Devolveu o auscultador sem fio à base cozinha. Atentou para área de serviço ao fundo,
com um estouro. Lembranças ruins escondida na escuridão. O vulto só poderia ter
ameaçaram voltar. O enigma do copo migrado para lá. Caminhou até o interruptor
permanecia sem solução. ao lado do fogão elétrico e acionou o botão.
Voltando para a sala pelo corredor, As lâmpadas frias piscaram indecisas antes
arrastava-se encurvado sobre si mesmo. O de acender completamente. Duas máquinas
relógio prateado no seu pulso marcava nove grandes em forma de cubo, com as quais
e meia. Queria assistir ao jornal das dez. tinha pouca familiaridade, emergiram do breu.
Ouvir a opinião dos analistas econômicos Examinando-as, lembrou-se que serviam para
a respeito da crise imobiliária. A televisão lavar e secar roupa e que já lhe haviam sido
ficava no escritório, se é que também não úteis há muito tempo, na época nebulosa que
havia sido trocada de lugar. sucedeu a partida da ex-mulher. Um passado
Achou graça na situação. Daria uma boa remoto do qual se sentia mais ou menos
história, calculou. O dia em que alucinou e emancipado. Certificou-se de que não havia
encontrou a própria casa de pernas para nada dentro ou atrás dos aparelhos.
o ar. Obra das medicações que o analista Quase imperceptivelmente, uma corrente
recentemente lhe receitara, diria: um de vento deslizou pela fresta de uma
comprimido de fluoxetina com três doses do das janelas e agitou os imensos lençóis
uísque de tarja vermelha. Sorriu.Vieram-lhe a pendurados no varal a sua direita. Não havia
expressão “efeito colateral” e as gargalhadas reparado neles ainda. Estavam tão limpos que
dos colegas de trabalho. Ao erguer a cabeça, pareciam a continuação da parede. Achou
sentiu sua espinha como um cabo de alta curiosa a maneira como o pano oscilava
tensão. Seus olhos flagraram nitidamente um em ondas, reproduzindo o ruído suave do
vulto acelerando em direção à cozinha. algodão. Era como se derretesse, revelando
Paralisado, concentrou-se em um ponto outra dimensão.
imaginário localizado na parede cândida O homem, então, conscientizou-se de que
a sua frente, dentro da copa. Ficou ali nunca antes havia reparado que ali havia um
estático alguns minutos, antes de ter certeza varal. Assumira sempre que a área de serviço
que, de fato, vira alguém ou alguma coisa acabava naquela falsa parede branca, construída
_118
Aproximou-se. Suas retinas demoraram havia sido executado com o mesmo rigor da
para se acostumar à luz cada vez mais escassa. encomenda. O cheiro de concreto emanava
Apoiando-se nas laterais, esgueirou-se e do imenso muro de tijolo, fresco como uma
viu que o buraco abria-se para um cubículo primavera em construção. O homem o sorvia
mínimo. Era escuro no interior da gruta, e o ar a plenos pulmões, deliciando-se. Amanhã
não circulava direito, impregnado de mofo. As mandaria que pintassem. Era como se tivesse
paredes estavam manchadas como hematomas, acabado de se mudar – a mesma euforia que
_119
DEPOIMENTO
CRÓNICAS DE UN EMOTIVO
ENCUENTRO ENTRE
RÍO BRANCO
E ISEN
Por Silvina Aguirre,
Sebastián Coronel e
M. Florencia Segura (ISEN)
_120
A sí como en 1985, cuando nuestros
presidentes Sarney y Alfonsín se reunieron
Luego de las Cataratas, y con pocos
minutos libres antes de proseguir con la
en Foz de Iguazú un 30 de Noviembre, intensa agenda programada, algunos de
simbolizando en aquel encuentro histórico, “nosotros” (léase grupo binacional), pudimos
los sentimientos mutuos de amistad, lealtad, compartir un momento de diversión en
visión estratégica y cooperación a largo la pileta del hotel. Hubo un denominador
plazo entre ambos países, nosotros tuvimos común... el de disfrutar aquello que se había
la oportunidad de concretar lo que nuestros obtenido luego de tanto esfuerzo por los
presidentes soñaron. exámenes de ingreso!
Esta vez, en el 2007 los protagonistas de la En nuestra visita a Itaipú, pudimos
historia fuimos los 101 integrantes de 1° año comprobar el fruto de la grandeza de la
de la Academia Diplomática de Río Branco cooperación y el buen trabajo conjunto de
y los 35 becarios de 1° Año del Instituto del dos países.
Servicio Exterior Argentino. Sin duda, el momento más emotivo, fue
Sentimos la generosidad brasilera, desde la para muchos, el de los discursos pronunciados
puesta a disposición de su avión de la Fuerza por los distinguidos funcionarios a cargo
Aérea en Ezeiza, durante todo el viaje por su de sendas academias. En particular, nuestro
tripulación y hasta el momento de nuestra Director, Embajador Horacio Basabe nos
cálida despedida. hizo dimensionar la importancia histórica del
Una vez que aterrizamos en Foz, sentimos encuentro que estábamos viviendo.
la calidez humana, en persona del Embajador Coronamos un día inolvidable con una
Fernando Reis quien nos dio una afectuosa noche en la que la música fue una excusa
bienvenida. más para conocernos. Además de haber
Nuestra primera sorpresa, ya en las sido agasajados en una fiesta caracterizada
Cataratas, fue quizás la gran cantidad de por la buena organización y la típica buena
ómnibus con colegas que no paraban de bajar onda brasilera, también hubo lugar para la
de ellos, y que venían muy sonrientes hacia improvisación de una “guitarreada” en la que
nosotros. se hizo presente el federalismo a través de las
Tuvimos allí la impresión de que la diferentes melodías regionales, símbolo de la
heterogeneidad en la composición de su integración de culturas.
grupo tenía su correlato en la nuestra. Todas Al día siguiente, con pocas horas de sueño,
las regiones de ambos países tenían su y sin querer partir, pero con la satisfacción
representación en Foz de Iguazú. de haber sembrado la semilla de una amistad
De forma espontánea, y en pequeños duradera y sincera, comenzó nuestra
“grupos binacionales” emprendimos la despedida. En ese momento, se produjo un
visita a ese maravilloso Patrimonio de la intercambio incesante de tarjetas personales
Humanidad que también nos hermana: Las e e-mails para continuar con los vínculos
Cataratas del Iguazú. Fue el momento ideal logrados.
para intercambiar opiniones, impresiones, y Como corolario de estos recuerdos
darnos cuenta que en nuestra vida diaria, hay imborrables, queremos agradecer
más cosas que nos unen que aquellas que sinceramente a todas las autoridades que
nos separan: el fútbol, las clases, las pasantías lo hicieron posible, y no podemos más que
y los exámenes de idiomas. Era por ello, que retribuir tanta amabilidad abriendo las puertas
los argentinos nos esforzábamos por tratar de nuestra casa a la espera del reencuentro
de comunicarnos en portugués, mientras con nuestros colegas de Itamaraty.
que los brasileros lo hacían en español. Fue Como servidores públicos, sentimos el
entonces, que mitad en español y mitad en deber de profundizar y afianzar esta relación
portugués, comenzamos a tomar conciencia para el bienestar de nuestros pueblos,
que compartíamos las mismas pasiones, materializando así aquella visión iniciada 22
ambiciones, miedos e incertidumbres. años atrás...
_121
NOTA O quadro é da minha primeira fase de
diletantismo pictórico em Londres, em
1968, e dele não tinha lembrança alguma.
SOBRE
Essa fixação minha em ambientes zonais
começou na minha infância, quando
conheci o Mangue, levado por um digno
educador que era irmão Marista.
_122