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TERRITÓRIO
+ GASTRONOMIA
+ DESIGN:
uma introdução
Lia Krucken
Ágata Morena de Britto Oliveira
Carlo Franzato
Paulo Belo Reyes
Existe uma estreita conexão entre gastronomia e design: ambos são
processos de criação. Pode-se explorar esta conexão combinando esses
processos. Nesse sentido, podem-se usar métodos cocriativos, tendo
como referência o território, para aproximar produtores, consumidores,
designers, cozinheiros, outros profissionais, gourmets e degustadores.
Até porque são ações compartilhadas, dentro de um espaço singular,
que geram a gastronomia local.
TERRITÓRIO + GASTRONOMIA + DESIGN:
uma introdução
Este capítulo tem como objetivo promover uma breve introdução acerca da valorização da
gastronomia regional e do território pelo design. O tema vem sendo investigado pelos autores
ao longo da última década, sob perspectivas diversas, e o ponto de partida para a discussão
está relacionado à algumas considerações:
A discussão construiu-se como um debate, em torno de três questões: Quais são os princi-
pais desafios relacionados à valorização da gastronomia regional no contexto Brasileiro?;
Quais são as oportunidades potenciais de combinar essas duas áreas de conhecimento
(design e gastronomia) em projetos que tem como foco a valorização do território?; e Quais
são as ferramentas de design que podem ser aplicadas em projetos que visam valorizar a
gastronomia regional?
A gastronomia, conforme destaca Oliveira (2013) é uma forma de expressão cultural que
se constrói diferentemente em cada território. Ela representa as identidades de cada comu-
nidade, a relação com a terra e os seus insumos a partir dos alimentos produzidos e pela
comensalidade construída em torno da mesa. Essa relação entre sociedade, cultura e espaço
expressada na gastronomia é exclusiva á região onde ela foi construída. De acordo com
Simon (1981:29) “um artefato pode ser como um ponto de encontro entre um ambiente
interno, a substância e organização do próprio artefato, e um ambiente externo, as condições
em que o artefato funciona”. Assim é a gastronomia para uma região, como um artefato, o
ponto de encontro entre a cultura de um povo e o seu meio natural. Ela funciona como um
elo de articulação entre o natural e o cultural.
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e que traz muitas histórias em si — histórias relacionadas à matéria-prima, ao seu cultivo e colheita,
portanto, à ligação com a terra; a quem produz e às práticas de produção; à forma como a comida
é conservada e comercializada; o modo como é consumida e a ocasião; etc. Esses vários aspectos
relacionados à gastronomia regional são ricos de significados, símbolos e valores.
Considerando a importância da gastronomia regional para a cultura e a economia das diversas regiões,
bem como desenvolver ações para protegê-la, a Comunidade Européia desenvolveu um documento
legal sobre os aspectos culturais e educativos do “patrimônio gastronômico” (União Européia, 2014)1.
O texto, que pode ser aplicado a diversos contextos, apresenta várias considerações interessantes,
evidenciando, por exemplo, o fato da gastronomia constituir “o conjunto de conhecimentos, experiências,
artes e artesanato que permitem comer de forma saudável e com prazer”. Destaca também três pilares
fundamentais da gastronomia: a saúde, os hábitos alimentares e o prazer. Especialmente relevante é o
reconhecimento do papel das “artes da mesa” como “vetor de convívio” e “momento de sociabilidade”.
Esse documento é importante devido à sua visão sistêmica sobre o tema e por destacar a necessidade
de promover estratégias para proteger e valorizar o patrimônio gastronômico, incluindo a proposta de
ações educativas e relacionadas à saúde, bem como à cultura. Dentre as questões pontuadas no estudo
citado destacamos algumas:
Por meio das questões apontadas pode-se observar a miríade de aspectos e dimensões que a
gastronomia encerra, envolvendo outras áreas e tipos de conhecimento e atores. Por fim, é oportuno
citar a noção de patrimônio gastronômico, definida como “conjunto de elementos materiais e imateriais
(...) também constituído pela zona e pela paisagem de onde provêm os produtos para consumo” (ibidem),
que vem ao encontro do escopo desse ensaio em abordar aproximações e relações entre território,
gastronomia e design.
(1) Resolução 2013/2181(INI) do Parlamento Europeu, de 12 de março de 2014, sobre o património gastronómico europeu: aspectos culturais e educativos.
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[1] PRINCIPAIS DESAFIOS RELACIONADOS À GASTRONOMIA REGIONAL
Por um longo período na vida humana, alimentar-se era uma questão de sobrevivência. O consumo do
alimento estava relacionado com a sua acessibilidade em termos geográficos, culturais e econômicos.
Mudanças significativas dessa relação ao longo do tempo estão relacionadas à industrialização e à pro-
dução em massa dos bens de consumo, dentre eles o alimento, como destaca Oliveira (2013) em amplo
estudo sobre o tema. A produção da indústria alimentícia, aliada à modificação da estrutura social e
econômica vigente, estabelece uma nova relação com o alimento: a comida.
A comida pode ser considerada como o alimento ingerido em um contexto de bem-estar, de prazer.
Dessa forma, pode-se também evidenciar a dimensão do comer como além do simples ato vital, condi-
cional para a manutenção da vida. Assim, essa nova relação com se caracterizou como uma busca cada
vez maior pelo prazer com o alimento, possibilitado pelas novas organizações sociais surgidas com o
desenvolvimento da sociedade moderna. As cozinhas começam a sair do ambiente doméstico e entram
no comércio, surgindo os restaurantes. Esse fato leva a busca pelo aperfeiçoamento nas artes da mesa,
desenvolvendo uma nova área de estudos, a gastronomia.
A palavra “gastronomia” tem sua origem no grego: gaster ou gastros, quer dizer estômago e gnomos,
conhecimento, significando “estudo do estômago”. Levando-se em consideração que o prazer gerado
pela comida é, de uma forma física, no estômago, é possível afirmar que a gastronomia estuda e lida com
os alimentos de forma a transmitir, através da comida, as identidades, cultura, história e outras repre-
sentações que mediam a busca por esse prazer.
Ao mesmo tempo em que as cozinhas saíram do uso doméstico e se tornaram comerciais, os indivíduos
que migraram da realidade rural para as cidades procuram pontos de referência nas suas antigas raízes.
Nessa procura por pontos de referência às suas identidades locais, surgem as cozinhas regionais.
Mas o que são as cozinhas regionais? São uma forma de expressão de um grupo de indivíduos que se
identificam com determinada região. Essa forma de expressão se torna um símbolo daquele grupo e
uma forma de ser reconhecido e distinguido. Para que o processo de reconhecimento e distinção ocorra,
é preciso que a comida da cozinha regional possa ser reproduzida, o que torna necessário o uso de
códigos, assegurando a reprodução. A codificação permite o delineamento de fronteiras geográficas,
sociais e culturais.
As cozinhas regionais brasileiras surgiram da relação do meio natural, onde os povos habitavam, e suas
identidades culturais como a solução de um problema de subsistência. Subsistência essa que ao longo do
tempo tornou-se a busca pelo bem-estar e pelas marcas identitárias locais. Porém, com a modernidade,
essas cozinhas regionais começaram a sofrer um processo de modificação. Esse tema é discutido por
Oliveira (2013). Os ingredientes vendidos e consumidos em uma determinada localidade não são
mais produzidos localmente. A globalização e a industrialização da alimentação afastaram a produção
dos insumos alimentares do local de consumo, além de abrirem as fronteiras culturais para novas e
diferentes influências gastronômicas. As novas tecnologias proporcionaram uma mudança muito grande
na alimentação. Hoje em dia, a agricultura possibilita que o alimento consumido no Brasil seja originário
de vários outros países e regiões. Com isso, em diversas regiões, percebe-se o desaparecimento de
tradições gastronômicas.
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Isso acarreta principalmente em perdas nas cozinhas regionais, pois os ingredientes e preparações locais
perdem sua “identidade”. A identidade gastronômica é resultante da construção da relação do meio local
com as culturas presentes nesse território. Por isso, um dos principais desafios da gastronomia brasileira
é construir uma reflexão para que se redescubra os sabores e as gastronomias regionais, e que ela seja
feita antes de seu desaparecimento.
Portanto, a gastronomia torna-se um campo em que se concentram questões que ultrapassam o ali-
mentar. Conforme destaca Fumey (2007), o alimentar exprime a nova cadeia de valores que permeia a
sociedade atual, o desejo de respeitar a diversidade biológica, cultural, geográfica e religiosa, formando
o mosaico de identidades que resulta na experiência contemporânea.
O novo contexto gastronômico modifica a relação com o alimento. Os profissionais da cozinha abrem
seus olhares e pesquisas para todo o sistema que envolve o preparo de um prato; desde a construção da
porcelana na qual ele será servido, a experiência que envolve o comer, o consumidor e os ingredientes
que compõem o seu menu. Os ingredientes são portadores de significado e auxiliam a construir as
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narrativas de valor expressadas por cada prato.
Se é verdade que a gastronomia pode valorizar uma região, é verdade também que isso não ocorre de
maneira espontânea, conforme os estudos mostrados por Oliveira (2013). É necessário criar estratégias
para a efetiva valorização. E é nesse sentido que o design pode contribuir na relação entre território e
gastronomia.
Esse conceito, desenvolvido pela escola territorialista italiana e francesa, permite delimitar os territórios
geográfica e historicamente (FRANZATO, 2009).
Porém, a lógica da rede, que guia o cenário sociotécnico contemporâneo, desafia tais delimitações. Esse
complexo sistema de relações desenvolvido nas interações entre uma comunidade e a porção de meio
ambiente que ocupa é desafiado por outro tipo de sistema de relações também complexo, a rede, que
ultrapassa as dimensões geográfica e histórica. Ao território se sobrepõe o espaço de fluxos (CASTELLS,
2009) de informações (antes que o de insumos materiais como as mercadorias). O trabalho projetual
sobre o território deve hoje considerar esses fluxos. Neles pode até encontrar novas oportunidades
para o projeto.
O território pode ser também considerado como uma obra coletiva, que é produzida socialmente e
expressa em narrativas (REYES, 2014). Carrega consigo as histórias de grupos sociais, suas conquistas
e suas disputas, expressas em diversos segmentos urbanos. O território expõe os conflitos entre os
valores de uso e os valores de troca, sendo os valores de uso aqueles que garantem a diversidade e a
vitalidade social. “O urbano se torna aquilo que sempre foi: lugar do desejo, desequilíbrio permanente,
sede da dissolução das normalidades e coações, momento do lúdico e do imprevisível” (LEFEBVRE,
1969, p.76). Para Guattari, atualmente vive-se um período em que essas diversas formas de expressão
são produzidas por agenciamentos que se tornam potentes atos de conhecimento e de acontecimento.
(2) “il territorio non esiste in natura: esso è un esisto dinamico, stratificato, complesso di successivi cicli di civilizzazione; è un complesso sistema di relazioni fra
comunità insediate (e loro culture) e ambiente” (Magnaghi, 2000, p. 61).
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É preciso esclarecer a noção de “agenciamento”, para Deleuze e Guattari. Para eles, o agenciamento põe
em relação máquinas de conteúdo e máquinas de expressão. Em relação ao conteúdo, está-se frente ao
que nomeiam de “agenciamento maquínico do desejo”. Ou seja, a maneira como os corpos ao interagirem
produzem acontecimentos. Em relação à expressão, é o que se pode nomear “agenciamento coletivo
de enunciação”. Ou seja, a maneira como ocorre a expressão, como se anuncia, o que se expressa.
Nessa perspectiva, o design como atuação pelo projeto pode produzir agenciamentos expressivos, como
apontam Reyes e Giorgi (2014), que valorizem e construam novas subjetividades territoriais.
O design, como área de conhecimento transversal, pode ser capaz de contextualizar e globalizar, desen-
volvendo soluções que relacionem favoravelmente esses dois pólos. Dessa forma, ele pode contribuir
(3) C.f.: FRANZATO; KRUCKEN; REYES, 2013.
(4) Workshop realizado junto ao curso de Especialização em Design Estratégico da Unisinos por Krucken, Brito e Franzato em 2012. A experiência foi apresentada
pelos autores no 2nd Agrindustrial Design International Conference em Izmir, Turquia, em 2013.
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para favorecer os recursos e as potencialidades locais, atendendo necessidades de usuários situados em
contextos específicos e, simultaneamente, promover a integração das comunidades e das diversidades,
incorporando os benefícios dos avanços tecnológicos e ativando diálogos e redes locais e globais. O
desenvolvimento de alianças e redes bem como a integração de ações no território são essenciais para
fortalecer a competitividade local e promover a valorização de produtos e serviços.
No caso de projetos de valorização da gastronomia local, pode-se afirmar que o valor agregado da
comida é a sua função não nutricional, incluindo sonhos, símbolos, potenciais de sociabilização e valor
da conveniência que ela carrega (MERONI, 2005, p. 214). Esse valor é superior ao valor nutricional
tanto em termos de percepção quanto de custos e preço de venda, pois a escolha alimentar de cada
indivíduo esta relacionada com a sua experiência e não necessariamente a outros fatores como, por
exemplo, com a quantidade de calorias de um alimento. A gastronomia local é permeada por um capital
simbólico que não está presente em outros produtos. Esses valores podem definir a identidade de uma
solução de acordo com o seu contexto sociocultural (MERONI, 2006). Portanto, a ação projetual sobre a
gastronomia de determinado território deve ser construída em torno do desenvolvimento de estratégias
de valorização desse capital simbólico.
Assim, o desenvolvimento de projetos voltados para o território e para o alimento possui características
particulares. São projetos que devem levar em consideração: os atores, que possuem competências
específicas; a estrutura social na qual os atores baseiam suas ações e um ambiente que estimula tanto
cultural, social, como fisicamente determinadas ações. Até por que são essas ações, dentro desse espaço
singular, que geram a gastronomia local.
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Design é, também, uma atividade integrativa que, em um sentido amplo, combina
conhecimento de múltiplos campos e disciplinas para obter resultados específicos.
Possui, simultaneamente, uma dimensão semântica e uma dimensão técnica e
operativa (MARGOLIN, 2000, p. 17).
Assim, observa-se que existem várias possibilidades e potencialidades de aplicar o pensamento do design
na valorização de recursos gastronômicos de uma região. Outras ações possíveis estão relacionadas ao
desenvolvimento de estratégias de intermediação e comunicação (KRUCKEN; MERONI, 2006) entre quem
produz e quem consome, e de formas de “contar” as histórias relacionadas aos produtos. Como destaca
Manzini (2008), é necessário se tornarem visíveis as comunidades de produtores, consumidores e
produtores-consumidores. É preciso desenvolver plataformas e infraestruturas que possibilitem a efetiva
realização de contatos, a apresentação das ofertas gastronômicas e a construção de relacionamentos
que não são apenas econômicos, mas também estão ligados à sociabilidade e, quando apropriado,
solidariedade nas vizinhanças em torno da produção.
Por fim – de modo ainda mais geral, além das fronteiras do conhecimento acadêmico – pode-se apontar
o desafio de promover formas alternativas de entender o conhecimento no seu contexto (como, por
exemplo, o know-how de uma comunidade acerca de um produto ou um modo de fazer), e promover a
sua visualização e valorização.
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