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NEGRO TEMA E NEGRO VIDA: DIÁLOGOS COM O GENOCÍDIO DO NEGRO

BRASILEIRO DE ABDIAS NASCIMENTO1

Jefferson Cavalcanti Lima2

Na introdução da obra O genocídio do negro brasileiro, Abdias Nascimento acena que não
tem como mote a construção de um compêndio acadêmico sobre a situação do negro. Mas sim, uma
negação ao construto do pensamento social brasileiro e em paralelo, a afirmação de uma nova forma
de interpretação. Neste sentido, há no autor a reverberação do que já fora sugerido por seu
interlocutor, sociólogo, também ativista do movimento negro, Alberto Guerreiro Ramos.
Em 1955, no texto A patologia social do branco brasileiro, presente na obra: Introdução
crítica à Sociologia brasileira, Guerreiro Ramos expõe os dois aspectos nevrálgicos acerca das
relações entre o negro brasileiro e a sua representação.
O primeiro aspecto relaciona-se ao conceito de negro tema. Definido pelo autor como: “uma
coisa examinada, olhada, vista; ora como ser mumificado, ora como ser curioso, ou de qualquer
modo como um risco, um traço da realidade nacional que chama a atenção”. (RAMOS, 1995,
p.215). O segundo aspecto seria o de negro vida, este “[…] é entretanto, algo que não se deixa
imobilizar, é despistador, multiforme, do qual, na verdade, não se pode dar versão definitiva, pois é
hoje o que não era ontem e será amanhã o que não é hoje”. (p.215).
Ainda na introdução de Abdias Nascimento, pode-se acessar passagens que nos fornecem a
impressão de que a obra em questão traz este duplo tema. A crítica da construção do arquétipo negro
(negro tema) e a presunção nascimentista em desconstruí-la a partir do (negro vida):

O ensaio que desenvolverei nas páginas a seguir não se molda nas fórmulas
convencionalmente prescritas para os trabalhos acadêmicos e/ou contribuições científicas.
Nem está o autor deste interessado no exercício de qualquer tipo de ginástica teórica,
imparcial e descomprometida. […] Quanto a mim, considero-me parte da matéria
investigada. Somente da minha própria experiência e situação no grupo étnico cultural a
que pertenço, interagindo no contexto global da sociedade brasileira, é que posso
surpreender a realidade que condiciona o meu ser e o define. Situação que me envolve qual
um cinturão histórico de onde não posso escapar conscientemente sem praticar a mentira, a
traição, ou a distorção da minha personalidade. (NASCIMENTO, 2016, p.47)

Ao considerar-se como ‘tema’ de sua pesquisa, Abdias Nascimento, toma para si a


responsabilidade e a efetivação de seu local de fala. Assim, justapondo-se na qualidade de intérprete
do negro vida. Aproximando Nascimento, mesmo que de forma hipotética, em relação a alguns

1 Este trabalho é dedicado ao amigo Rafael Bessa, Pan-africanista, rapper e entusiasta do legado de Abdias
Nascimento.
2 Mestre em Antropologia Social (UFPR). Professor na Faculdade Guarapuava.
autores pós-colonialistas, poderíamos pressupor que da sugestão da autorrepresentação, o autor se
insere nas discussões sobre subalternidade e representação subalterna.
O palestino Edward Said em seu texto A representação do colonizado: Os interlocutores da
Antropologia (2003) adverte que a crise de representação na antropologia, oriunda dos processos de
libertação na África e Ásia, contribuíram de forma profícua para que a noção de sujeito fosse
transmutada. Sob essa ótica, inclusive, a escrita deveria, a partir de então, considerar que os sujeitos
não são ontologicamente dados, mas sim, constituídos por contextos históricos complexos e
multiformes. Essa tese de Said, em muito nos recorda a definição de Guerreiro Ramos acerca do
negro vida, e por consequência, enaltece a peculiaridade da obra nascimentista, análoga à discussão
em foco.
Se tanto para Said, quanto para Guerreiro Ramos, a superação das formas de representação
objetivantes deveria ser parte do trabalho destes novos intérpretes, ao que parece Nascimento
corrobora para esta gestação.
Apesar de corroborar com tal transmutação, Abdias Nascimento viu-se em constante conflito
com os representantes da velha ordem científica e política. Inclusive, a obra em questão, foi fruto de
uma interdição ao texto do autor, Racial democracy” in Brazil: Myth or reality?, submetido à
Festac-1977 (Festival of arts and culture – World black and Africa) evento que ocorreria em Lagos,
Nigéria. O motivo da interdição, sob o aspecto formal, nunca fora justificado ao autor. No entanto, o
mesmo pronuncia-se mencionando que o motivo principal da interdição seria a sua proposta em
revelar o mito da democracia racial. Nos termos emprestados de Guerreiro Ramos, revelar o negro
tema produzido pelo pensamento social brasileiro.
As velhas formas de representação do negro, ou a construção do negro tema foi durante
décadas enfoque do pensamento social brasileiro. Fruto de um campo acadêmico, segundo Luciano
Martins (1986), baseado em uma crença messiânica e moralista, aquém de um diálogo histórico
com a sociedade brasileira, os intérpretes nacionais, ou a intelligentsia, reproduziram durante
décadas os seus privilégios de classe e raça, optando em configurar justificativas para o fracasso da
nação, não se prontificando em supor qualquer teoria da ação.
Grosso modo, ciente desse conservadorismo nacional, Abdias Nascimento e o seu
Genocídio do negro brasileiro de forma direta trazem ao debate estes valores de uma intelligentsia
cuja deontologia é limitada à negação e a interdição da representação subalterna.
As formas de interdição e representação do negro brasileiro nem sempre foram as mesmas,
assim como qualquer processo de objetificação do outro, a interdição também é histórica, logo,
manifesta-se e transmuta-se de acordo com o contexto. Neste trabalho de identificação e resistência,
baseia-se parte do legado nascimentista.
Um dos temas identificados por Abdias Nascimento é concernente ao racismo científico.
Como é sabido, tais teses baseavam-se em epistemologias forâneas, no entanto, com grande
repercussão na intelligentsia brasileira. Entre o período da pré-abolição, aproximadamente, na
década de 1870 aos anos de 1930, esta tendência racialista circulou com grande efetividade pelo
pensamento social brasileiro. Durante o genocídio3, Nascimento rememora o impacto destas teses e
articula mesmo que de forma sintética, determinadas críticas aos impactos deste mote teórico à
situação do negro brasileiro.
Expor em pormenores as teorias racialistas e os discursos de cada autor, em certa medida,
demandaria um esforço no qual o espaço reservado para este trabalho não seria o adequado.
Contudo, de forma breve apresentarei certos temas-chave, tomando sempre o prisma de Nascimento
enquanto oposição ao tema em questão.
No genocídio é perceptível a noção de que o tema do negro no Brasil, em específico no
contexto da primeira república e da incerteza de sua efetivação, era não apenas um problema
político, mas também, um problema epistemológico. O autor deixa claro em determinados excertos
da obra que crenças exógenas eram validadas de forma acrítica em solo brasileiro. Quando o mesmo
se refere a Raymundo Nina Rodrigues, esta situação evidencia-se. Vejamos:

Nina Rodrigues, o psiquiatra da Bahia, no fim do século XIX, iniciou o que veio a ser
conhecido como “estudos científicos” sobre o africano no Brasil, sendo considerado o
pioneiro dos estudos afro-brasileiros. Ele próprio mulato, Nina Rodrigues beatamente
assumiu os postulados de certa ciência europeia. (NASCIMENTO, 2016, p.82 - grifo
nosso)

Esta perspectiva apenas citada por Abdias Nascimento, correlaciona-se ao escopo


gnosiológico do pensamento de Nina Rodrigues. Em síntese, tornou-se objeto de Nina Rodrigues,
segundo Correa (1982) uma gama de temas envoltos na medicina, no entanto, agrupados em dois
grandes blocos. O primeiro vinculava-se com a medicina social, e por consequência com os temas
da higienização, do controle das práticas e da regulamentação das atividades cotidianas em
ambientes urbanos. O negro enquanto tema rodrigueano dá-se na subversão dos mesmos aos
processos de saúde física e mental. Fosse pela expressão religiosa, através de cultos mediúnicos ou
até mesmo pela variante dos cuidados com o corpo, o negro tema, foi na teoria rodrigueana um
paradigma. Em paralelo, áreas como a medicina experimental, a antropologia criminal, a tipologia
criminal vinculada ao arquétipo pigmentocrático desvelavam as relações de Nina Rodrigues com o
positivismo jurídico de Cesare Lombroso e o evolucionismo spenceriano, estes contextualizados ao
cenário nacional.

3 A partir deste momento me referirei a obra apenas como genocídio.


Para além de Raymundo Nina Rodrigues, Abdias Nascimento também dialoga com os
intelectuais brasileiros Sílvio Romero e Oliveira Viana, ambos conotados como agentes que
trafegavam pelos mesmos espaços que Raymundo Nina Rodrigues. Em Sílvio Romero, ao que
parece, Nascimento não o menciona diretamente, mas sim através de citações de segunda mão,
emprestadas do historiador estadunidense e brasilianista, Thomas Skidmore. Já com Oliveira
Vianna, creio que por sua maior proeminência na política e na intelectualidade nacional,
Nascimento estipulou um diálogo mais constante.

Em Oliveira Vianna, Nascimento recobra as noções de arianismo estipuladas pelo autor. A


noção de arianismo, em voga no século XIX foi de vital importância para a primeira sistematização
dos tipos raciais. Este conceito, concebido enquanto crença na superioridade do homem branco
indo-europeu, colaborou para a fomentação de uma esquematização dos valores morais e
intelectuais de cada tipo étnico.

Desta elucubração arianista, inclusive, teremos uma ampliação tripartida do racismo


científico à brasileira. Ao pensamento social brasileiro deste período, a salvação nacional se daria
através da possibilidade de controle dos tipos disgênicos, ou seja, dos grupos raciais considerados
inferiores, na conscientização e estímulo para a procriação dos tipos considerados aptos (brancos ou
gerações em processo de branqueamento) e por fim, na interdição e controle dos tipos inaptos,
considerados pela variante cor.

No caso de Oliveira Vianna, o que se percebe é um movimento pendular entre um


determinismo capaz de condenar o comportamento das matrizes étnicas “não arianas” e o
branqueamento enquanto saída para os grupos considerados inferiores. Isto é, há espaço para o
possibilismo na construção do autor. Em Populações Meridionais do Brasil o tipo sertanejo
caracterizado pelo autor, como mestiço e com raízes na horda negra, estaria em processo de
evolução, dado o seu contato com grupos étnicos superiores, em outros termos, os grandes
proprietários e brancos.

O genocídio ao rememorar esta busca pelo branqueamento, não leva em consideração


apenas os traços gnosiológicos da intelligentsia nacional. Nascimento, inclusive alimentará as
discussões através da coleta e análise de dados estatísticos. Considerando dados de 1600, 1798,
1822 e 1950, Abdias anuncia que o que fora proposto pela intelligentsia já estaria em trânsito, em
outras palavras, o branqueamento enquanto estratégia de genocídio.

O branqueamento enquanto aspecto do genocídio denunciado por Nascimento, receberá, a


partir da transição da Primeira República ao Estado Novo, um acréscimo substancial. Refiro-me ao
construto da representação nacional. Assim como em outros contextos de estabelecimento do
Estado burguês, a cultura nacional brasileira surgiu durante os anos de 1930 como um “espírito” de
unicidade entre narrativas possíveis, tornando-as através de revestimentos e invenções, parte de uma
história única.

Este processo mencionado, ao que parece, seria procedente da perpetuação de velhas formas
de discriminação, no entanto, reagrupadas de forma mais acessível aos setores ordinários à cultura
de massas, rompendo o estanque discurso da elite letrada. Um interlocutor de Nascimento, o
martinicano Frantz Fanon, em seu texto Racismo y cultura (1956) já advertira sobre este processo.
Em uma passagem, Fanon evidencia o que acredito ter simetria com o contexto em questão. Nos
termos do autor: “Estas posiciones sectarias tienden, em todo caso, a desaparecer. Este racismo que
se quiere racional, individual. Determinado, genótipo y fenótipo, se transforma em racismo
cultural”. (1956, p.39). Essa impressão fanoniana acerca das formas de adequação do racismo aos
novos contextos também é temática nascimentista. No genocídio, essa forma de adequação, ou seja,
a passagem da interdição individual à condenação de uma cultura, é analisada no transcurso da
obra. Eis o segundo momento do negro tema.

Há uma expressão de Charles Baudelaire que afirma que a maior façanha do diabo é nos
convencer de que ele não existe. Nesta mesma logicidade, a maior façanha da segunda etapa do
negro tema é nos convencer que ela não age de forma perversa.

A segunda fase do negro tema, é comumente verbalizada sob o signo da democracia racial.
Seria impossível estipular uma data exata para o surgimento desta forma de representação, porém,
segundo Bernardino (2002) ao que parece, tal concepção já circulava por países com lutas
abolicionistas desde o século XIX. Grosso modo, tal concepção partia da premissa que dada a
situação colonial sui generis, o Brasil gozaria de uma construção histórica ausente de conflitos de
raça, exclusão por ordenação pigmentocrática e racismo institucional.

Apesar do caráter fundacional imemorável, ao menos do ponto de vista da história oficial,


perdura o consenso de que esta concepção “antirracista” do Brasil foi sistematizada pela primeira
vez, pelo pernambucano Gilberto Freyre. Em 1933, com a publicação de Casa Grande & Senzala:
formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. A partir dessa obra, ao menos
em tese, o mito da democracia racial, teria angariado para si uma ordenação. Supostamente, a visão
harmoniosa sobre a construção brasileira ganharia projeção, e em pouco tempo seria absorvida na
proporção de narrativa nacional. Ao levarmos em consideração que a proposição freyreana não
inaugura um discurso, mas sim, o examina e o reforça, inclusive de forma particular, seria relevante
a percepção de que tal construto já circulara nas estruturas discursivas do país. Logo, a sua
sistematização a partir da obra freyreana, apenas o enaltecera enquanto evento.4

4 Os termos estrutura e evento foram colocados em itálico, pois representam dois conceitos do antropólogo
estadunidense, Marshall Sahlins. Em específico, em sua obra Ilhas de História. Ver a referência completa ao final
do artigo.
No genocídio, o tema da democracia racial ou, em sentido mais amplo, o tema da obra
freyreana, é recorrente. Abdias Nascimento não percorre apenas por um conceito em específico,
mas sim, situa historicamente a obra de Freyre, bem como os seus vínculos políticos. Na
transcursão da obra, observa-se um diálogo com terminologias como lusotropicalismo,
benevolência lusa, sociedade híbrida e bicontinentalidade, estes termos, marcantes na escrita de
Gilberto Freyre. Para além de um mero conhecimento da obra, Nascimento estipula diálogos, já nos
anos 70 sobre estes impactos da obra freyreana sobre o salazarismo português e a sua incidência em
África.

Em certo ponto, manifesta-se o diálogo entre Nascimento e Florestan Fernandes, e com os


resultados do Projeto Unesco. No ano de publicação do genocídio, 1978, é possível supor que a
obra de Florestan Fernandes já estivesse consolidada. Não obstante, que também as críticas ao
modelo de representação freyreano já tivessem sido afetadas por uma série de suposições postas
pela Escola Paulista de Sociologia. Ademais, a própria escola se efetivara no campo da sociologia
brasileira através da relevância do Projeto Unesco, e por consequência, da negação ao modelo
antirracista da democracia racial5.

Apesar da possível aproximação de Nascimento aos pressupostos de Florestan Fernandes e


da Escola Paulista de Sociologia, seria equivocado colocar a crítica nascimentista sob o mesmo
prisma. Embora utilize os dados coletados por tais estudos e em certa medida, baseie a sua crítica ao
modelo freyreano infletindo sobre eles, a proposta elaborada no genocídio transcende o espaço de
discussão acadêmica e a traz para uma esfera militante e transepistêmica. Grosso modo, a crítica da
escola paulista, bem como do legado de Florestan Fernandes assenta-se na esfera universitária,
enquanto que a obra nascimentista, seja pelo seu engajamento ou pelo seu próprio local de fala,
ecoou por espaços do movimento negro e demais movimentos sociais.

O conceito de arenas transepistêmicas foi cunhado pela australiana Karin Knorr Cetina
(1982). Trazendo um diálogo com outros autores da sociologia da ciência, em específico da linha
construtivista, a autora parte da premissa que os modelos quase econômicos acerca da produção de
conhecimento, acabam por impossibilitar o diálogo entre o laboratório ou o espaço acadêmico e os
agentes instigadores da prática científica. Em paralelo, este modelo criticado por Knorr Cetina torna
as formas de representação como fatos dados, e, não construídos por uma teia de relações e
significados atribuídos socialmente. Sob essa ótica, a construção nascimentista traz como marco
este pertencimento ao tema que adjaz ao genocídio. Nos termos do antropólogo estadunidense, Roy
Wagner, em A invenção da cultura (2010), poderíamos situar o genocídio enquanto uma obra cuja
narrativa elabora-se sob uma “objetividade relativa”.

5 Cf. o artigo de Marcos Chor Maio (1999).


Este parâmetro de objetividade, diferenciada quando comparada à tendência academicista,
cuja pretensão é realizar pesquisas sob uma base de objetividade absoluta, traz ao genocídio a
possibilidade da transição paradigmática, isto é, a passagem do negro tema ao negro vida,
assinalada por Guerreiro Ramos.

Abdias Nascimento, como já apresentado, dialoga com os autores do pensamento social


brasileiro responsáveis pela caracterização e objetivação do negro, o negro tema. No entanto, a
partir deste diálogo desvela-se a possível propedêutica para a emersão do negro vida.

Primeiramente, no que tange à democracia racial, Nascimento rememora os discursos que


compõem o mito nacional. Desenvolvendo em paralelo os temas da miscigenação, da colonização
lusa e da religião católica no Brasil, Nascimento faz uma releitura, mesmo que de forma lacônica,
sobre os seus construtos e seus desdobramentos.

Sobre a miscigenação, Nascimento revela o seu descontentamento com o entusiasmo de


Gilberto Freyre acerca das relações sexuais interétnicas e os seus subprodutos. Se para a Freyre a
apresentação destas relações seria a superação ao pensamento eugenista, no genocídio há a
clarividência em considerar que tal miscigenação dera-se em contexto de violência e exploração
sexual da mulher africana.

Baseando-se em documentos, Nascimento afere que o afluxo feminino e africano ao Brasil,


dentre outros motivos, era com vistas à prostituição. Pela própria especificidade demográfica da
colonização brasileira, e a chegada de grande contingente masculino, a mulher negra, retirada de
outros contextos societários, acabava introduzida em um ambiente perverso. A perversidade referida
é relativa às relações sexuais advindas da violência do processo colonial.

Nascimento, ao rememorar este tema caro ao construto freyreano, não se limita em analisá-
lo apenas no contexto colonial; pelo contrário, o retoma em seu tempo. Baseando-se em pesquisas
de Octávio Ianni, realizadas em 1972, apreende que o dito popular, citado em Freyre; “branca é pra
casar, negra é pra trabalhar e mulata é pra foder”, ainda é um artefato no repositório imagético
nacional. Em passagem de Nascimento (2016, p.75): “O mito da democracia racial enfatiza a
popularidade da mulata como prova de abertura e saúde das relações raciais no Brasil.”

No decorrer do capítulo, utilizando-se de dados do período colonial e contemporâneo,


Nascimento dá ao tema da sexualidade um olhar interseccional entre gênero, racialidade e
colonização.6 Além do que, traz factualidade ao que se expressava como discurso. A relevância
deste olhar interseccional e factual de Nascimento alicerça-se, dentre outros motivos na sua
percepção de que as análises objetivantes, pautadas sobre grupos focais (negro e mulher)

6 O tema da interseccionalidade é aprofundada pela autora alemã Ina Kerner (2012). Consideramos a posição de
Nascimento em consonância ao que Kerner propõe em seu texto: Tudo é inteseccional. Sobre a relação entre
racismo e sexismo.
impossibilitaram quaisquer formas de agenciamento ou alteridade, percepção esta, inclusive, não
comum para as discussões em 1978.

Outros dois temas manifestos no construto da democracia racial e reconsiderados por


Nascimento, são respectivamente: a benevolência do português colonizador e o catolicismo
tolerante aos cultos africanos. Estes dois temas, também expostos na obra freyreana, são
reconsiderados no genocídio. Utilizando-se de fontes variadas, como jornais, documentos da
administração colonial e obras de africanistas estrangeiros, a tratativa nascimentista elabora em
determinados momentos o exercício de uma história comparada. Tanto em relação ao contexto
neocolonial luso em África, quanto ao colonialismo estadunidense. O diálogo com a experiência
colonial estadunidense já fora temática em vários intelectuais brasileiros, inclusive no próprio
Freyre. No entanto, o genocídio oferece a quebra de uma mistificação. Ao retomar as possíveis
simetrias entre os processos coloniais, baseando-se na questão das experiências interétnicas no
contexto estadunidense e também na própria vivência do autor nos EUA, é correto afirmar que o
esforço de Nascimento reside em questionar a fantasiosa oposição entre a colonização anglo-saxã,
calvinista e por consequência, segregacionista, e a lusa, católica, supostamente congregacionista.
Para o autor, embora certas idiossincrasias sejam mapeadas, no plano estrutural ambas se
equivaleriam em seus métodos de segregação.

Já na comparação com a colonização em África, como citado, Nascimento elenca


principalmente as regiões de colonização lusa. Articulando um diálogo sul-sul, a escrita
nascimentista coloca em xeque a benevolência lusa, explicitando dentre vários exemplos, os
nuances do continuísmo luso nos trópicos, como a construção do código de indigenato, a agregação
de regiões além-mar sob o domínio político luso, as ações católicas associadas ao Estado Colonial e
os impactos do salazarismo sobre tais regiões no decorrer do século XX. Na mesma esteira de
Nascimento, o moçambicano José Luís Cabaço em seu Moçambique: identidade, colonialismo e
libertação (2009) acena para estes possíveis diálogos sul-sul, em outros termos, as simetrias entre a
colonização lusa no Brasil e em África. Através de uma obra mais robusta e com proposta textual
diferente ao genocídio, Cabaço identifica um modus operandi luso, e a menção feita aqui ao seu
trabalho, vincula-se à proximidade do autor à percepção nascimentista sobre o peso da obra
freyreana para a legitimação do discurso colonial luso. Em síntese, a crítica nascimentista, embora
presente no contexto dos anos de 1970, ou seja, no ápice da luta anticolonial contra Portugal, já
evidenciara aspectos que seriam aprofundados a posteriori.

O suposto catolicismo tolerante aos cultos africanos, mencionado por muitos intelectuais
enquanto propício ao sincretismo, é questionado por Nascimento no transcurso do genocídio.
Diferentemente do que seria endossado por intelectuais brasileiros, a plasticidade do catolicismo
europeu não se dera de forma simétrica, mas sim através de uma tolerância repressiva que continha,
dentre outras características, a justaposição entre o Estado Nacional e o catolicismo para a
formulação de práticas divisórias. O tema da religiosidade afro-brasileira, presente no pensamento
social brasileiro desde o período de Raymundo Nina Rodrigues e suas observações sobre a “religião
dos negros animistas” transitava não só pela academia, mas também pela política.

Como já exposto por Yvone Maggie em Medo do feitiço: relações entre magia e poder no
Brasil, as relações entre o Estado Nacional e o catolicismo em relação aos cultos africanos são
marcadas pela incidência de práticas restritivas. Apesar da temática supostamente abarcar
concepções cosmogônicas e teológicas, as restrições, em via de regra firmadas pelo poder judiciário
apenas expunham a máxima de que a laicidade nunca estivera consolidada no Estado Nacional.
Nascimento, durante o genocídio, reitera essa ação conjunta entre Estado e Catolicismo, advertindo
inclusive que não há como falar em sincretismo religioso em um contexto marcado pela presença de
um Estado Católico e crenças africanas de humanos em condição de escravidão, ademais trataria de
uma forma de associação desigual, nos termos de George Balandier (1993).

O posicionamento de Nascimento frente aos cultos religiosos de matriz africana deve ser
compreendido através de uma díade. Primeiramente, Nascimento posiciona-se a partir de seu local
de fala, ou seja, enquanto candomblecista, e deste modo não alicerça uma análise acadêmica sobre o
tema. Porém, por outro lado, é manifesto o diálogo com os que o fizeram. Roger Bastide,
antropólogo francês, brasilianista e um dos cânones sobre o tema dos cultos africanos e afro
brasileiros é um dos interlocutores de Nascimento. Parte das produções brasileiras sobre o tema se
não fazem menção direta à Bastide, ao menos dialoga com os seus orientandos brasileiros, e em
Abdias não é diferente. Novamente, nesta altura encontramos os dois aspectos mencionados
outrora, a objetividade relativa provinda de um pensamento rigoroso, bem como a qualidade do
negro vida e a sua busca por uma representação multiforme, transepistêmica e desvalida de
verdades inexoráveis.

Para além, o genocídio traz consigo a impressão extraída por Nascimento de um excerto de
Frantz Fanon em torno do processo colonial não apenas enquanto processo de interdição física, pois
se assim o fosse, provavelmente as suas formas de dominação seriam menos eficazes. Dito de outra
forma, Nascimento atém-se a analisar os processos de dominação simbólica, e os resultados desta
dominação na intimidade dos então colonizados e assimilados. De forma hipotética, a argumentação
de Nascimento nos conecta às suposições de alguns autores como o tunisiano Albert Memmi em seu
livro Retrato de colonizado precedido de retrato de colonizador, e o Indiano Ashis Nandy em seu
livro The intimate enemy. Loss and recovery of the self under colonialism.

Essa conexão diz respeito à compreensão de que a experiência colonial e os seus


subprodutos, como por exemplo a escravidão, mesmo após a abolição formal, acabam por fomentar
a construção de um ethos cindido. Trata-se da noção de incompletude, estimulada pela
impossibilidade de reaver uma tradição inexistente e ao mesmo passo não poder concretizar o que
fora prometido pelo construto hodierno do colonizador.

Neste impasse, Nascimento percebe a folclorização das formas expressivas do negro


brasileiro. Destituídas de uma validade e de uma conjuntura de realização, a religiosidade, as
técnicas do corpo e as elucubrações se tornam um apêndice do projeto de nação, tornando-se apenas
um elemento exótico em meio ao cenário construído pelas leis, pelas convenções, língua e outras
formas de racionalidade, em síntese o third, na acepção do antropólogo estadunidense Vincent
Crapanzano (1988).

Isto posto, o third enquanto forma de cerceamento, apresenta ao negro brasileiro um cenário
de exclusão pelo seu englobamento, ou seja, pelo construto de uma hierarquia que folcloriza as suas
expressões, considerando-as primitivas, exóticas e destituídas de uma validade ao universal. Enfim,
abstrai-se do negro brasileiro o seu particular e nega-se a sua integração.

Abdias Nascimento, em sua biografia carregou um diálogo com as artes cênicas e plásticas.
A menção a tal fato, aliás, é necessária para apresentarmos a temática final do genocídio. No
entanto, antes da apresentação do epílogo nascimentista, optarei por situar o leitor em alguns
aspectos já apresentados.

Os temas discutidos até o momento (racismo científico, democracia racial e representação


negra) estão fluidos no decorrer da leitura. Deste modo, as formas que encontramos para a
apresentar a obra até o presente momento basearam-se em um trabalho etnográfico. Utilizo este
termo devido aos meandros do estudo realizado. Para além da leitura da obra, optamos por dar uma
conformação aos argumentos, até certo ponto, buscando através de menções aleatórias a
sistematização de um material que não pretendia organizar-se como um compêndio. Outro aspecto
relevante é a dialogia com autores outros, considerando desta forma o material de Nascimento na
proporção de uma fonte para novas inflexões.

Situadas tais circunstâncias, neste momento a atenção será dada ao epílogo do genocídio. O
primeiro tema do epílogo é o TEN (Teatro Experimental Negro). Em síntese, o TEN foi fundado em
1944, surgindo como projeto a partir do contato de Nascimento com outros artistas latino-
americanos e a sua participação em um ambiente das artes cênicas e plásticas. Os objetivos do
projeto foram múltiplos, no entanto, vale ressaltar que tal projeto já estivera desmobilizado desde o
ano de 1968, ano da saída de Nascimento do Brasil, fruto da perseguição da ditadura civil-militar e
o AI-5.

Apesar dos dez anos entre o fim do TEN e a publicação do genocídio, Nascimento traz em
sua memória a acepção da relevância deste projeto para o agenciamento negro. De forma sintética,
durante o genocídio Nascimento afirma que o TEN teve como objetivos básicos: a) resgatar os
valores da cultura africana, marginalizados por preconceito à mera condição folclórica, pitoresca ou
insignificante; b) curar a classe dominante “branca” do mal etnocêntrico; c) erradicar a presença do
artista branco com o rosto pintado de negro (black face); d) problematizar o ator negro
estrategicamente colocado em papéis subalternos e estereotipados e e) criticar o cientificismo que
torna o negro um objeto de pesquisa.

Além do capítulo destinado ao TEN, nos anexos da obra nos deparamos com o tema da arte
enquanto fonte de libertação do negro brasileiro. Apesar do diálogo de Nascimento com a arte partir
da sua própria experiência pessoal, é compreensível também identificarmos o seu diálogo com o
movimento da negritude, em específico com Aimé Cesaire e Leopold Senghor. Desta influência,
aliás se faz possível extrairmos um possível essencialismo nascimentista, assim como Senghor em
Ce que l’homme noir apporte (1939). Ao que parece, Nascimento também crê em uma exegese
negra eclipsada pelo racionalismo branco, e a superação para tal problema estaria na arte e nas
demais formas expressivas. Nesse sentido, nos caberia a inflexão do que viria a ser a concepção de
gnosiologia em Nascimento. Algo não explicitado no genocídio, contudo infletido sobre os seus
demais escritos. De forma breviária, a crítica de Nascimento ao racionalismo academicista, em certa
medida, perpassa pelo silenciamento promovido por tais instituições aos meandros da situação do
negro, e a insistência em lidar com tal tema a partir do negro tema. Em detrimento, a arte enquanto
expressão fomentada por outras formas de consagração – ao menos no sentido bourdieusiano –
poderia proporcionar aos sujeitos formas de agenciamento alternativos.

No que tange ao capítulo conclusivo da obra, o que se percebe é um manifesto, cujo


destinatário seria não somente os “censores” da Festac 1977, mas também o governo brasileiro. Até
mesmo a redação da conclusão dá esta impressão. Através de 17 parágrafos enumerados e concisos,
Nascimento discorre sobre as demandas que ele crê serem vitais para a superação da democracia
racial no Brasil. Transitando sobre temas da política partidária, da educação formal, das artes, das
relações sul-sul e do empoderamento negro através de sua absorção nos quadros públicos, o
genocídio encerra-se reafirmando a sua busca radical (radix) pela superação do negro tema, o
desvelamento do negro drama e a busca pelo negro vida, algo ainda em trânsito no atual contexto
brasileiro, tanto na academia, quanto fora dela.

Por último, é necessário expor que de forma alguma os temas do genocídio se esgotam com
esta análise. Tampouco se sugere que tal interpretação firmada no trabalho seja tomada como
referência para a leitura do mesmo. Ao contrário, sugere-se a discussão e a reconsideração do
legado nascimentista através do genocídio e também pelas demais obras.
Referências bibliográficas

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