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PUC-SP
De Oyó-Ilé a “Ilé-Yo”:
Xangô e o patrimônio civilizatório nagô
na identidade de um rapper afrodescendente
São Paulo
2007
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
De Oyó-Ilé a “Ilé-Yo”:
Xangô e o patrimônio civilizatório nagô
na identidade de um rapper afrodescendente
São Paulo
2007
Banca Examinadora
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Dedico este trabalho...
... A dona Jeraci. Mulher negra que criou seus filhos e filhas como catadora de
papel – a exemplo de Carolina de Jesus – e que agora ajuda a criar os netos e
as netas. Que a luta da avó pela sua emancipação inspire suas netas a
buscarem suas próprias emancipações.
...Às crianças da Vila Primavera, periferia da zona leste paulistana – onde nasci
e cresci e onde esta dissertação foi concebida, onde se estabeleceram meu
avô mineiro e minha avó baiana, após algumas migrações. Onde meu pai e
minha mãe constituíram família. O som da rua, das crianças brincando,
alimentou esta pesquisa: crianças negras-brancas-pardas misturadas, crianças
que moram em cortiços, em casas pequenas, médias e grandes, mas que têm
a rua por quintal.
BRAGA, Liliane Pereira. From the Oyó-Ilé to the “Ilé-Yo": Xangô and the
civilizatory nagô patrimony in the identity of an afrodescendent rapper. São
Paulo, 213 p. (Master's degree thesis). Pontifícia Universidade Católica at São
Paulo.
This research tried to understand how the civilizatory patrimony of the yorubas -
known as "nagôs" in Brazil – make it possible to constitute the afrodescendent
identities with an emancipatory sense as they respect the freedom of the
differences with the valorization of the social equality.
The respect to diverseness is a fundamental value among the nagôs and the
candomblé, one of the main receivers of its tradition, disseminates that value
mainly through the yoruba mythology. This mythology is portrayed here as part
of that civilizatory patrimony and encompasses, in persona of the orixás, the
search for a society in which there is space for the diversity of human types, in
an equalitarian way.
O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco?
Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto,
atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não
seleciona ninguem.
1
Molho que se usa em várias partes do continente americano e cujo principal ingrediente é a pimenta.
Como produto de arte culinária, é universal: é o cozido da Espanha, o “pot pourri” francês, o
“minestrone” italiano... Caracteriza-se pelo uso das hortaliças próprias de cada território. Fernando Ortiz
usou o termo como metáfora para a “síntese” das diferentes etnias que formam o povo cubano (Cf.
ORTIZ, 1990).
1
fazer, que saiu mais ou menos assim: “Na matéria publicada na revista Raça1
deste mês, consta que Tata Amaral buscou em uma deusa grega o arquétipo
dos povos que vieram escravizados para o Brasil, eu queria saber de quem
encerra uma trilogia de Tata Amaral sobre a mulher. Mas fui cortada pelo
cultuado) não eram aquilo que eu ouvia dizer, que a “religião” da qual essas
1
Neusa Barbosa, Revista Raça, Ano 11, nº 106.
2
Divindades do panteão iorubá, grupo étnico que vive na costa ocidental da África, e de cujo império
Oyó foi o maior e mais poderoso dos reinos. A cidade de Oyó, ou Oyó-Ilé, foi a maior cidade dessa parte
do continente africano e seu apogeu foi no século XVIII (Cf. Adékóyà, 1999, p. 30).
3
Especialização lato lensu em Jornalismo Cultural (Cogeae-Puc/SP), concluída em 2000.
2
ofensivos que eu já havia ouvido tanto contra pessoas de minha família como
análoga à deusa grega citada por ela na entrevista... Talvez sim, talvez não.
Fiquei sem saber, porque ela não fez comentário algum a respeito. Um ou
outro detalhe me levaram a pensar que a menção à Iansã no filme havia sido
sentido de mostrar que o hip-hop valoriza essa herança, tanto por conviver com
estão espalhados pelas periferias das cidades do Brasil) como por combater o
é relativo a esse ponto que a pergunta que eu fiz no debate vem se relacionar
4
Segundo XAVIER (2000), o termo não está no dicionário. Porém, como prefixo, “afro” exige hífen
somente na constituição de adjetivos pátrios. Não há hífen nos demais casos compostos (p. 5, nota de
3
minha pergunta. Primeiro, Quelinah, a qual pontuou que a referência aos orixás
vinha depois da referência a Deus, mas que era, sim, uma forma de falar da
escolhido por ela mesma, mas quando o fez não sabia da relação da santa
com a orixá do candomblé. Uma das duas cantoras afirmou que mencionar
orixás naquele rap havia sido idéia delas, que escreveram todos os raps
cantados no filme sem interferência da diretora. Em terceiro, Cindy, cuja fala foi
umbanda, esses folclores todos. Mas eu sou evangélica. Queria pontuar isso
grupo cantou no filme) falou de orixá, mas falou de Deus em primeiro lugar.
tem sido considerado até como construtor de cultura, mesmo vista como
rodapé).
4
essa razão, cabe a pergunta: por que um afrodescendente (ou alguém que
Cindy é negra de pele preta. Negra Li talvez seja um pouco mais clara.
Quelinah e Leilah Moreno têm pele parda, como a autora desta pesquisa.
na série homônima a ele exibida na TV, elas – assim como esta pesquisadora
que, antes do filme, não era familiarizada com o estilo, e sim com o “primo”
70. Música, dança e arte visual são suas expressões, surgidas das “block
5
Carl G. Jung designou esse termo para denominar as “imagens primordiais”, instância psíquica
composta de imagens muito antigas; conceito psicossomático que une instinto e imagens; representação
simbólica coletiva e histórica que aguarda o momento de se expressar na personalidade. (Cf. José Jorge
de Morais ZACHARIAS, 1998, p. 69)
5
Cerca de 30 anos depois, o rap que predomina nos Estados Unidos não
é mais o rap de protesto e, sim, a música comercial que fala de e/ou feita por
falar de uma história que foi diminuída, ocultada e, quando dita, foi,
propositadamente, distorcida.
apenas que trazem como foco questões relacionadas à “cultura negra” e uma
qual figura um estudo de caso a partir da história de vida de Ilícito – que não
6
Divindades do povo bantu, complexo étnico africano que será melhor referenciado mais adiante.
7
Como exemplos temos nomes como os rappers Mos Def e Talib Kweli e o grupo Dead Prez.
8
Levantamento realizado no portal da Capes - a fundação do Ministério da Educação que investe no
desenvolvimento de pós-graduação no Brasil - com resumos de teses e dissertações defendidas de 1987 a
2004. De 1987 a 1995 não há registros de pesquisas sobre o tema em questão. Endereço:
http://www.capes.gov.br/
6
Ilícito não é preto e nem a pele parda tem. A mãe descende de italianos,
9
Do iorubá, “casa” (Nei LOPES, 2004, p. 337).
10
Usando as palavras de Ilícito.
11
Ribeiro (1996) nos informa que a denominação pela qual os iorubás ficaram conhecidos no Brasil
provém da forma adotada pela França para chamar essa parte da população da República do Benin,
colônia francesa de onde veio a maior parte dos iorubás para o País (p. 245).
7
2 Metodologia
nos diz Queiroz (1983), trata-se de um termo usado nas ciências sociais para
trabalho orientado pela práxis (e não por normas ou valores ideais), pela ação
mencionadas.
nas letras. A questão racial é uma constante nessa pertença, ao lado do lugar
de origem – que pode ser expresso pelo nome do bairro, da cidade, do estado
rappers que não são protestantes, há os que falam de Jesus, há os que falam
letras que procuram retratar uma parte da história que não costumava ser
12
Micael HERSCHMANN, 2000, p. 192.
13
Ibid., p. 188.
14
A Lei nº 10639, de 2003, que altera a Lei de Diretrizes Básicas da Educação, deve mudar esse quadro,
com a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira no País.
9
Bastide, essa técnica “revela muito mais a realidade, mesmo que sob a
2004), autor da referida teoria, que será melhor explicada no próximo capítulo.
maneira profunda o modo de pensar do informante e, por meio dele, sua visão
partir de uma ótica específica”, como já disseram Burrel & Morgan (1979, p.
desse rapper que se relacionem com o seu contato com a cultura nagô e com o
15
No caso brasileiro, a questão volta-se para a auto-estima rebaixada existente entre a parcela negra da
população, que auxilia na manutenção do status quo, à medida que, “a nível individual, oferece suporte a
toda a mecânica sócio-econômica que garante privilégios (por parte dos brancos) e prejuízos (por parte
dos negros)” (Ribeiro, 1998, p. 244).
11
candomblé de matriz iorubá, aqui visto não apenas como religião, mas como
identidades são, cada uma, constituídas por ela (Ciampa, 1987-2004, p. 127).
uma identidade pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida (...) Uma
sociais que define cada indivíduo - objeto da Psicologia Social” (2004, pp. 15-
16).
naquilo que lhe é específico como naquilo em que ele é manifestação grupal e
hop, a música “falada” (em inglês) era chamada de hip-hop. Diante dos meus
contato com o hip-hop se fez mais intenso a partir 2001, como espectadora de
16
Ao lado da cientista social e educadora Cristiane Moscou.
13
contato com o tema havia se iniciado alguns anos antes, quando do meu
alguém com quem o primeiro contato se fez a partir de janeiro de 2004, por
para cá, o contato foi preservado. Shows de rap e de estilos musicais variados
andanças e das idéias de Ilícito, que poderão ser melhor conhecidas por meio
17
O contato desta pesquisadora com o hip-hop cubano serviu de ponto de partida para a elaboração do
problema desta pesquisa, pela constatação de que a presença da religiosidade afro-cubana em letras de
rap naquele país provinha da vivência dos jovens cubanos junto a esse universo. O meu questionamento
sobre essa questão no Brasil acabou por me trazer ao tema presente.
18
Revista Super Interessante; jornais Brasil de Fato e Estação Hip-hop; sites das revistas Caros Amigos e
Revista Raiz entre os veículos brasileiros. Entre os estrangeiros, a revista alemã Matices e o site norte-
americano Bet.com.
14
3 Identidade
3.1 Identidade-metamorfose
teoricamente, seria feito com mais “autenticidade” por pretos. Ele poderia estar
querendo dizer algo como “pra fazer rap, não precisa ser preto” ou “se eu sinto
‘na alma’ o que o preto sente, eu posso fazer rap também”. Por que tirar a cor
pensam?
identidades. Desta perspectiva, não é a “alma” o que nos faz humanos, uma
15
vez que podemos entender “alma” como construída pela socialização e pela
individuação.
vivida, no emaranhado das relações sociais. Uma identidade concretiza uma política,
mesmo tempo em que são constituídas, cada uma por ela. A questão da identidade,
assim, deve ser vista não como questão apenas científica, nem meramente
Essas idéias serão elucidadas para que seja possível prosseguir nesse
intuito.
alguém que pode afirmar ‘eu’ de si mesmo. Esse ‘eu’, constitutivo da identidade
material, na sua atividade, com sua consciência, não como três coisas justapostas
como uma unidade. Com isto, o que se está querendo afirmar é a materialidade da
identidade.
(Ibid., p.151)
Ser rapper e ter tom de pele, cabelo e olhos que denotam ascendência
européia trazem para Ilícito implicações relativas à ambigüidade vivida por ele
ao transitar entre esses “dois mundos”, como poderá ser verificado na fala do
(1864-1931).
1990, p. 187).
que tales procesos se han llevado a cabo. Esto rige también para otras fases de la
organización humana.”
e emancipado.
visão dos indivíduos atingidos por ele, exige-se dele tanto a autonomia como
o que torna possível medir o que ele chama de “uma individuação crescente”.
como não há história (ao menos história humana) sem personagens” (Ibid., p.
indivíduo.
(Ibid., p. 198)
19
Há traduções de textos de Habermas em que o termo usado é “individualizado” no lugar de
“individuado”. Preferimos o uso de “individuação” à “individualização”, para distinguir o conceito
trabalhado nesta pesquisa do uso “individualizar” relacionado a práticas egocêntricas. Na passagem em
questão, no entanto, procurou-se respeitar o termo utilizado na citação transcrita.
20
‘sociedade’ precisa ser manipulada individualmente como uma variável sob condições
número cada vez maior de sistemas de funções não significa, para ele, um
Esse novo tipo de ligação social teria que ser pensado como realização própria
dos indivíduos [grifos do autor]. Mead já mostrou, no entanto, que para isso não basta
liberado e só, não dispõe, para a elaboração racional de uma necessidade crescente
20
U. BECK, Sociedade de risco. A caminho de uma outra modernidade, Ffm., 2001, p. 216.
22
mesmo”, como expõe Habermas (1990, pp. 226-227). Para o filósofo alemão,
indivíduo constrói suas referências de mundo, incluindo aquelas através das quais ele
apontam para uma questão que convém mencionar. Para eles, as teorias
socialização secundária21.
classe/cor22.
Segundo Ribeiro,
21
Socialização primária é definida pelos autores como a primeira socialização que o indivíduo
experimenta na infância, em virtude da qual se torna membro da sociedade. Socialização secundária seria
qualquer processo subseqüente que introduz um indivíduo já socializado em novos setores do mundo
objetivo de sua sociedade (Berger & Luckman, 2005, p. 175).
22
Cf. Ronilda RIBEIRO, 2004, p. 155.
26
nariz largo, tom de pele preto ou pardo) quanto nas práticas culturais/religiosas
descendentes para serem reconhecidos como gente25. Dentro dessa luta, está
anos.
23
Neusa SOUZA. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social.
Rio de Janeiro: Graal, 1983.
24
A opção, neste trabalho, pelo uso de “identidade afrodescendente” em lugar de “identidade negra”
decorre do ponto de vista de que o termo afrodescendente “tem a dimensão política de um projeto de
identidade para um ‘segmento excluído’ do bem-estar social e que reivindica o exercício da cidadania”
(Xavier, 2000, p. 9) e também diz respeito ao reconhecimento de uma etnia de descendência africana
(Cunha Jr. apud Xavier, 2000, p. 10), em detrimento do termo “negro” que “homogeneíza” uma
população de culturas diversas ao referir-se a ela pelo termo criado por europeus para referir-se à sua cor
de pele.
25
Segundo o dicionário Houaiss, uma das significações para o termo “gente” é “o gênero humano”. Da
perspectiva dos portugueses, foi necessário criar uma palavra diferente para humanos considerados
“pagãos” por não seguirem os dogmas do catolicismo cristão - também chamados de “gentios”
(HOUAISS, 2006). “Gentílico” é a palavra da língua portuguesa para denominar o que é próprio de
27
brasileiro.
“gentio” e também para dizer-se do nome que designa a nação à qual se pertence. Outros povos possuem
como “gentílicos” palavras que significam “ser humano”, como apontado mais adiante.
26
Cf. NÚCLEO DE EDUCAÇÃO DO MUSEU AFRO BRASIL, Roteiro de visita ao acervo, As
religiões afro-brasileiras.
28
presente no candomblé?
Pertencer, assim, pode aqui ser entendido como fazer parte. “Bantu”, no uso de
Mukuna, diz respeito ao “conjunto das tribos que ocupavam o vale do rio Congo
(2004) define “banto” (com variação na grafia) como sendo “cada um dos
foram trazidos como escravos ao Brasil. E a distinção entre eles, para Mukuna,
27
No livro, a expressão em português usada é “o sentido de posse” e, entre aspas, aparece o original em
inglês (“the sense of belonging”). Optei por traduzir o verbo “to belong” como “pertencer”, por entender
o termo como sendo mais adequado ao intuito desta pesquisa, após assistir à palestra de Kazadi wa
Mukuna na Semana da Consciência Negra da PUC-SP, em novembro de 2006, e notar que ele também o
utiliza.
29
desses espaços29. Mukuna nos diz que, “para o africano, o ser é concebido
como um elemento constitutivo do cosmo criado por sua comunidade, sua tribo,
seu clã, sua família e pelo conjunto de normas e valores próprios dessas
30
instituições” . Em outras palavras, o “eu” africano só existe quando está
completa pela socialização e pela individuação, uma vez que, como aponta
Entre tais idéias, está “o conceito de ‘feiticeiro’, que não é mais do que o
28
Designação dada aos povos africanos localizados a oeste, entre o Saara e Camarões (Nei LOPES, 2004,
p. 634). Mais detalhes em nota constante do capítulo 4.
29
Kazadi wa MUKUNA, 2006, pp. 17-18.
30
Ibid., p. 167
31
Ibid., p. 168.
30
quer distanciar-se de uma herança cultural tida como inferior e ligada a práticas
Como nos alerta Ronilda Iyakemi Ribeiro, um olhar “africano” para essa
[africano] questionou a imagem de uma África bárbara e inculta, sem história e sem
formulada por Ciampa, para a “tradição” afrodescendente é ela que faz com
32
Termo usado para designar todas as práticas de magia popular e tradicional, com ou sem cerimônias
religiosas (Ronilda RIBEIRO, 2004, p. 151).
33
Dessas, a escravidão trouxe para o Brasil as culturas iorubás e a haussa.
34
Termo multilinguístico banto cujo significado é “ser humano” (mu-ntu, plural ba-ntu). Nei LOPES,
2004, p. 459.
31
aprende, desde muito cedo, que sem a comunidade ele não existe. O singular
viver, de um convívio social que pode ser visto hoje nas periferias de diferentes
partes do Brasil. Essa identidade passa por uma sociabilidade voltada para o
dessa identidade:
danças, os cultos (...). Os lugares criados pelo ritmo eram pequenos espaços de
por uma apropriação polimorfa do espaço social (ou seja, aproveitar por mil ‘jeitinhos’
uma identidade, em suma. O carnaval, o futebol, as festas religiosas foram jogos que
social.
32
negra, segundo Sodré, quando, em seu livro, ele nos fala dos “lugares da
intuição de mundo negra é que o jogo, mesmo fora do poder, tem a força de
relacionar-se35.
35
Sodré chama de “jogo” o conceito “de uma outra perspectiva quanto à consciência de si, em que viver e
morrer, alegria e dor não estão radicalmente separados, pois fazem parte de uma mesma força de
engendramento, de um mesmo poder de realização (...). O culto aos deuses, com seus rituais – onde
33
(...) felicidade [para os iorubás] é ser forte. Ser forte é estar carregado de axé, a
força vital. Ser forte é ser saudável e isso inclui estar bem fisicamente, ou seja, com
Ribeiro, 2005, p. 187). O uso das folhas está entre esses recursos naturais,
realizados por meio de rituais, uma vez que certas substâncias naturais
188).
vigora a linguagem não-conceitual dos gestos, imagens, movimentos corporais, cânticos – é a matriz de
34
lhe possibilita perceber-se novo num mundo igualmente novo” (Ribeiro, 1998,
pp. 242-243).
que nos sugere a pergunta de Munanga: “qual seria o método científico capaz
essa ascendência.
como o conhecemos hoje, surge na África, por volta de 150.000 a.C. O primeiro
ser humano era, portanto, negro. Na Europa, o homem só foi aparecer por volta
de 40.000 a.C, por motivo das correntes migratórias desde o centro sul da
África em direção ao norte até o mar Mediterrâneo (Cf. Luz, 2000, p. 25).
África, a civilização negra era muito mais avançada em valores e tecnologias que a
37
Ribeiro (1996, p. 213), citando Bastide, utiliza os termos “candomblé” e “xangô” para as religiões de
nações do grupo sudanês (iorubá e jeje) e “candomblé de caboclo” e “candomblé de angola” para as de
nação bantu.
36
que, mesmo tendo passado por transformações, não tiveram alterada em sua
continuidade transatlântica.
separam.
abrangente.
38
“Os cultos negros são, de fato, reservatórios de ritmos e jogos, suscetíveis de confluência para o âmbito
da sociedade global. No rito nagô, a palavra xirê designa a ordem em que são entoadas nas festas as
cantigas para os orixás, mas também a própria festividade, o ludismo. Os ritmos que chegam à sociedade
global são, no fundo, expansões da atmosfera do xirê” (Sodré, 1988, p. 128).
37
linha mística com pontos e desafios, de onde se deriva o samba de partido alto),
samba39.
iorubá); Jexá ou Ijexá (iorubá); Jeje (fon); Angola (banto); Angola-Congo [ou
39
Foi a partir das festas da mãe-de-santo conhecida como Tia Ciata, no Rio de Janeiro, que o mercado
fonográfico conhece o primeiro samba de que se tem registro, “Pelo telefone”, de Donga. Os músicos que
participaram dessa gravação foram “recrutados” entre os freqüentadores da casa: Donga, João da Baiana,
Pixinguinha, Sinhô, Caninha, Heitor dos Prazeres e outros (Sodré, 1988 p. 136-137). A gravação data do
ano de 1916 (Para mais detalhes, ver Enciclopédia da música brasileira, 1998, p. 616).
40
O uso do termo “nação” faz alusão ao fato de que os terreiros, além de tentarem reproduzir os padrões
africanos de culto, possuíam uma identidade grupal (étnica) como nos reinos da África (Cf. Gonçalves da
Silva, 2005, p.65)
38
41
Raul LODY. candomblé . Religião e resistência cultural. São Paulo, Editora Ática, 1987.
42
Apesar de considerar as religiões africanas como politeístas (diferente da perspectiva desta pesquisa) e
de se referir genericamente por “religiões afro-brasileiras” às religiões de matriz africana e as formadas
com referências culturais adquiridas no Brasil, a obra de Vagner Gonçalves da Silva (2005) é uma das
referências indicadas para os que quiserem mais informações sobre o processo histórico das religiões
formadas do encontro entre tradições africanas, catolicismo português e crenças indígenas brasileiras.
43
“Sudaneses” é a denominação dos grupos originários da África Ocidental e que viviam em territórios
hoje denominados de Nigéria, Benin (ex-Daomé) e Togo. Incluem os povos iorubás ou nagôs
(subdivididos em keto, ijexá, egbá, etc.), os jejes (ewe ou fon), os fanti-achantis e nações islamizadas
como os haussás, tapas, peuls, fulas e mandingas. Por “bantos” são chamadas as populações com origem
no atual Congo, Angola e Moçambique e incluem os povos angolas, caçanjes e bengalas, entre outros.
Estima-se que o maior número de escravizados seja proveniente do grupo banto, que também foi o que
exerceu maior influência sobre a cultura brasileira, deixando marcas na música, na língua, na culinária,
etc. (Gonçalves da Silva, 2005, p. 27-28). Xavier (2000, p. 89) diz que os bantos “foram os povoadores do
país, na fase mais ‘hard’ da escravidão brasileira”, trazidos ao Brasil durante os cerca de três séculos e
meio em que aqui perdurou o tráfico negreiro.
39
aos búzios, ele teve contato com quais seriam, possivelmente, os seus orixás
temas:
44
Zambi é como ficou conhecida no Brasil a divindade suprema dos cultos de origem banto e da
umbanda. O nome provém do termo multilinguístico banto “Nzambi”, que significa “Ser supremo”.
Zambi corresponde à divindade iorubana Olorum e ao Deus católico (Lopes, 2004, p. 693).
45
Já os Pretos-Velhos são entidades da umbanda, tidos como “espíritos purificados de antigos escravos.
São sempre exemplos de bondade, carinho e sabedoria, agindo como ancestrais protetores, aconselhando
e admoestando, quando necessário” (Lopes, 2004, p. 543).
40
patrimônio civilizatório.
Oyó, a capital política, e Ilé Ifé47, a cidade sagrada. Esta, a cidade mais
antiga48. Na mesma região em que ela está situada, esteve também o povo nok
Para Xavier (2000), a cultura desenvolvida pelo povo nok atesta o grau
cultura teria sido entre 900 a.C e os séculos II ou III da era atual. Ainda
46
Cada cidade do império nagô se caracteriza tradicionalmente pelo culto ao seu orixá patrono. Xangô é o
patrono de Oyó; Oxóssi, de Ketu; Oxum, de Oshogbo; Odudua, de Ilé Ifé e assim por diante (Luz, 2000,
p. 104). Segundo Adékoyà (1999), entre os reinos que se desenvolveram nas terras dos iorubás até 1800
estão Owu, Ijebu, Ijexá, Pópó, Egba, Sabé, Dassa, Egbado, Igbomina, Ekiti e Ondó. Esse autor informa
ainda que houve povoamentos iorubanos que não se desenvolveram em reinos (1999, p. 28-40).
47
“Ilé-Ifé é considerada a cidade onde ocorreu a criação do mundo. (...) Talvez Ifé não seja o local de
origem da humanidade, mas bem pode ser um desses locais, uma vez que as descobertas feitas em Asselar
– esqueletos de tipo negróide de várias épocas, alguns extremamente antigos – sugerem que o foco
original desse tipo humano foi precisamente entre o Saara e a África Meridional” (Ribeiro, 1996, p. 84-
85).
48
Segundo Hofbauer (2006), métodos de radiocarbono usados por arqueólogos fizeram com que
estipulassem o seu surgimento entre os séculos IX e XII (“ou até antes”), por ser o período em que teriam
registros da presença de povoado nessa região (p. 295). Para Adékoyà (1999), Ilé-Ifé era habitada
possivelmente desde o século VI d.C, “a data mais antiga fornecida pelo método de radiocarbono a
materiais recolhidos em escavações na cidade” (p. 20).
41
sua cultura. Com ela, eles puderam produzir lâminas, pontas de lanças e
conexão existente entre a arte nok e a arte da fase clássica de Ifé, a cidade
sagrada iorubana. Apesar de não haver estudos que assegurem essa relação,
povo nok, como o historiador Alberto da Costa e Silva, onde hoje se localiza a
Nigéria (Ibid.).
Segundo Bertaux50 (apud Xavier, 2000), o povo iorubá foi o único povo
49
Alguns autores falam na presença de iorubanos na região desde o ano 1000 (ver XAVIER, 2000, p.
106).
50
P. BERTEAUX. África desde la prehistoria hasta los estados actuales. História Universal Siglo XXI, 3
ed., 1974.
42
Os laços familiares são as ligas que atam toda a estrutura política, social,
cultural e religiosa desse povo. No seio da família e nas suas múltiplas inter-relações
iorubá.
p.92).
ocorreu ao indivíduo: somos porque sou e por sermos sou” (Ibid., p. 92).
comunitário. Luz (2000, p. 93), citando Fadipe52, diz que a ancianidade é “que
liderança”.
verifica nos cultos dos diferentes grupos e sociedades secretas iorubás, entre
mulheres não façam parte do segredo, elas possuem títulos e postos de grande
2000, p. 40).
com que brasileiros sejam vistos como um povo caloroso, acolhedor, as rodas
51
“Serão os filhos que representarão os pais depois da morte, e os cultuarão como ancestrais, mantendo
continuamente presente a sua existência” (Luz, 2000, p. 40).
52
Apud Vivaldo da Costa LIMA. A família de santo nos candomblés jeje-nagôs da Bahia: um estudo de
relações intergrupais. Salvador-BA: UFBA. (Tese de MS em Ciências Sociais), 1977, 208 p.
53
“A Sociedade Gelede, integrada por homens e mulheres, cultua as Iya-agba, também chamadas Yami,
que simbolizam aspectos coletivos do poder ancestral feminino. Dirigidas pelas erelu, mulheres
detentoras dos segredos e poderes de Iyami, (...) o culto tem por finalidade apaziguar seu furor; propiciar
os poderes místicos femininos; favorecer a fertilidade e a fecundidade e reiterar normas sociais de
conduta. Seu festival é realizado anualmente, por ocasião da colheita do inhame, e dura sete dias. No
Brasil, a festa de Gelede, realizada no candomblé do Engenho Velho, era comemorada no dia 8 de
dezembro, em Boa Viagem (Bahia), sob a condução da ialorixá Maria Júlia Figueiredo, que recebia o
nobre título de Iyalode-erelu (Ribeiro, 1996, p. 159).
44
viola, ladainha e outras cantorias) que, vindo aos dias de hoje, chegam ao rap
– conexão que é feita por Ilícito, como será visto mais adiante.
individualizada nos seres do aiyê [terra]”. Todos os seres possuem força, axé, e
animais aos seres humanos (Luz, 2000, p. 454). Sodré também nos fala a esse
respeito:
pressupõe hálito – logo, vida e história do emissor. Não têm aí vigência, no entanto,
palavras – em que o corpo do indivíduo tem papel fundamental. A língua deixa de ser
regida pelo sentido finalístico (isto é, por seu valor de troca semântico), para atingir a
(1988, p. 96)
45
que preserva a importância do contato pessoal com os mais velhos como forma
velho, que por mais tempo recebeu outros ensinamentos de alguém também
africanos que foram vistas como inferiores pelos europeus e usadas entre os
sobre ele o golpe inusitado. O vazio está onde não se espera” (Luz, 2000, p.
489-490).
(Ibid., p. 458).
espirituais da vida humana” (Campbell & Moyers, 1990, p. 6). O autor também
mitos humanos têm florescido” (1997, p. 15). Entre o povo iorubá, ao contrário
Segundo Prandi (2001), os mitos dos orixás fazem parte dos poemas
sociedade:
presente
Esse corpo mítico é transmitido oralmente, uma vez que esse é um dos
uma desmitificação (p. 67). Para ele, os povos iorubás têm no mito muito de
e amor pelo Divino, o mito favorece que o grupo firme e reafirme sua sociabilidade e
identidade.
(Ibid., p. 66)
54
Os babalaôs, ou “pais do segredo”, são os sacerdotes do oráculo de Ifá (Orunmilá), a quem é
transmitido “todo o conhecimento necessário para o desvendamento dos mistérios sobre a origem e o
governo do mundo dos homens e da natureza” (Prandi, 2001, p. 17)
48
vejamos o mito iorubano que fala de como os seres humanos são autores de
seu destino.
Oxalá e Ijalá são as divindades modeladoras do ori55. Cada ser criado escolhe
livremente o próprio ori e o próprio Odu – signo regente de seu destino. Ijalá, embora
notável em sua habilidade, não é muito responsável e, por isso, muitas vezes modela
necessários, como pode, ao levá-los ao forno para queimar, deixá-las por tempo
destinado a fracassar na vida. Durante sua jornada para a terra, a cabeça que
permaneceu por tempo insuficiente ou demasiado no forno poderá não resistir à ação
de uma chuva forte e chegará mais danificada ainda. Todo o esforço empreendido
para obter sucesso na vida terrena terá grande parte de seus efeitos desviada para
reparar tais estragos. Pelo contrário, se um homem tem a sorte de escolher uma das
cabeças realmente boas, tornar-se-á próspero e bem-sucedido na terra, uma vez que
sua cabeça chega intacta e seus esforços redundam em construção real de tudo
sua escolha excelentes resultados, já que nada é necessário despender para reparar a
própria cabeça. Assim, para usufruir o sucesso potencial que a escolha de um bom ori
49
um mau ori têm poucas esperanças de progresso, ainda que passem o tempo todo se
esforçando.
decisões tomadas para que possa viver melhor. E essas decisões podem ser
democrática.
(Houaiss, 2006).
que foi e continua sendo, no contexto mundial atual, uma questão que nos
custa caro. No Brasil, o não-respeito à alteridade tem início com a chegada dos
55
Na tradição dos orixás, denominação da cabeça humana como sede do conhecimento e do espírito.
Também, forma de consciência presente em toda a natureza, inclusive em animais e plantas, guiada por
uma força específica que é o orixá (Nei LOPES, 2004, p. 498).
50
desigualdade”.
Esta forma de lidar com a alteridade, por outro lado, realça a identidade própria do
comunitário: “são poderes sutis, que implicam energias poderosas, umas mais
89).
51
Quem tem autoridade, nas sociedades iorubás, é o mais velho. Não pelo
(grifo nosso) em axé, pois saber é ser atravessado pela força – a absorção do
91).
mundo. Através dele, os negros [ou os que partilhem, por identificação, desse
56
Iniciação, para os iorubás e os nagôs, está relacionado ao conceito de que o conhecimento é “prático”.
Conhecer, saber, é experimentar, sentir, vivenciar. O conhecimento “alcança planos de elaboração e de
poder inerente à lida com forças que dinamizam o mundo que são, de certa forma, indizíveis ou inefáveis;
a palavra escrita é, portanto, incapaz de relatar” (Luz, 2000, p. 458). No Brasil, “iniciar-se” pode referir-
se ao ciclo relativo à raspagem da cabeça por parte de um filho-de-santo de uma casa de candomblé. Este
termo é mais usado entre antropólogos. Entre o povo-de-santo, usa-se “fazer o santo”, como referido por
Vanda Machado durante palestra no IV Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, em Salvador
(BA), em novembro de 2006. Esse uso possivelmente se deva ao fato de que, ao fazer parte de um egbé, o
período iniciático de um filho-de-santo compreende estágios anteriores e posteriores à feitura do santo e o
conjunto dessas etapas é que integra o período total da iniciação.
52
àse/axé) não apenas podiam servir [no pós-abolição] aos desprivilegiados de base de
interpretação de sua realidade social, mas podiam também orientar e incentivar ações
visto como religião étnica57 como reverso do racismo do qual foi e ainda é
diferenças é essencial.
57
Ou pela denominação homogeneizante que os europeus atribuíram aos descendentes de africanos no
Brasil, religião “de negros”.
53
Para Max Weber, a crença na (e não o fato da) origem comum constitui
identity, not a group with concrete social action, like the latter”58 (Weber, 1968,
p. 389).
58
“Pertença étnica se diferencia dos grupos de parentesco exatamente por ser uma identidade presumida,
não um grupo com ação social concreta, como este último” (tradução nossa).
59
No texto em inglês, o termo usado é “membership”, qualidade ou estado de membro ou sócio, aqui
traduzido como “pertença”.
54
que nos faz refletir nessa direção: a filiação, portanto, não bastaria para definir
ser mais útil ou menos útil para “determinar a pertença”, afirmam Poutignat &
manifestada. “Na maioria dos casos, a exibição de certos atributos que são
levadas em conta para definir o grupo étnico que, da perspectiva dos autores
55
posição para serem nisso utilizados, nenhum pode merecer o crédito de uma validade
universal e essencial para a identificação étnica. Nem o fato de falarem uma mesma
por si próprios atributos étnicos. Apenas se tornam isso quando utilizados como
problemática social brasileira. “[No Brasil há] O lance de não saber respeitar as
etnias, muito mais que a [questão da] pigmentação e a cor da pele. As etnias
respeitar isso. E o mais loco disso é que já se misturaram de uma forma que eu
vejo que foi tão agressiva quanto a norte-americana, e talvez até muito mais,
por isso, o utiliza entre aspas – mas entende que, para além da popularidade e
da indeterminação que ele tem no País, raça é uma das muitas maneiras de
cordialidade transracial nas horas de lazer, entre as classes mais baixas, por
autor, os negros, e às vezes, os índios, não são vistos e tendem a não ver a si
tornaram mais críticos (1) quanto ao sistema de relações raciais dos países da
região, (2) em relação aos mitos raciais nacionais (as “identidades nacionais”
60
Para Bacelar, professor da Universidade Federal da Bahia, há uma “confusão conceitual” na ponte feita
entre raça e etnia por Sansone. Bacelar pontua que o que pode ser assinalado aí é que “a identidade
cultural (negra) não estabelece uma relação causal com as formulações coletivas da identidade racial da
militância negra”. Para ele, o indivíduo pode ser rastafari, membro de um grupo cultural negro ou do
candomblé, o que não quer dizer que ele problematize a questão racial ou se envolva necessariamente
com os “movimentos negros” (Jeferson BACELAR, 2004).
58
com sua enorme população negra –, passou a ser visto como um inferno racial.
racismo é implantado nas leis e foi jogado pro povo, como lidar [com] e
tem procurado fazer-se cada vez mais presente na cena política brasileira
visto como “negro”, é mais pela atitude (fazer música de preto, manifestar
Pra mim, o mais difícil, foi me assumir como branco, tá ligado? (...) O
lance tá na ligação da pigmentação, né? Vai muito mais além dos traços e... se
falar ‘sou afro-descendente’, eu sou, entendeu? Agora, é visível que eu sou
branco, entendeu? Isso aí, pra mim, foi difícil de assumir.
por Ilícito que, ao ter pele branca, é branco. Mas, pelos “traços”, é mestiço de
julgarem superior”.
Ilícito se identifica com uma identidade “mestiça”? Será que, para ele,
neutraliza o racismo? “Sou branco”, ele diz. Mas também diz: “sou
60
situação de pobreza? “Não sou esse branco que cê tá falando”. Não ser “esse
colônia até os dias de hoje. Diz, também, respeito à situação de classe. Mas,
nas palavras dele, “o branco continua superior em tudo”. “Tudo”, aí, extrapola a
quando fala que perguntava ao meu pai e aos amigos negros sobre a origem
dos povos negros presentes no Brasil e ouvia como resposta que vinham da
onde vieram parte dos negros para a capital do estado), enquanto o que ele
(Cf. Sansone, 2004, p. 24). O autor aponta para o fato de que, para o povo, não
cultural que aqui se construiu a partir de matrizes africanas não combinava com
atributos físicos. Por esse viés, as manifestações culturais dos negros eram
Esta última, talvez, a mais presente entre os que reinvidicam uma identidade
reflexão.
cultura negra como uma subcultura da cultura ocidental, muitas vezes quase
fato de que “as culturas em diáspora têm de contar apenas com aqueles que
... a partir de peculiaridades do seu grupo: seu passado histórico como herdeiro
com seu trabalho gratuito, como membros de grupos étnico-racial que teve sua
humanidade negada e a cultura inferiorizada. Essa identificação passa por sua cor, ou
das múltiplas experiências vividas por ele aqui, neste solo brasileiro, e quais os
num mito de eleição, ou quando ela é substituída por um código legal distintivo,
daime, na opinião dele, está neste último “não ser tão fechado assim”. E em
sendo ele um hip-hopper, sinônimo de ser universal, é preciso “não ser tão
65
demais povos ao entenderem que os grupos humanos são diversos e por isso
têm diferentes culturas, mas elas podem ser compartilhadas e merecem estar
hop é a escola do “cara que é universal”. “Não é tão fechado. O hip-hop agrega
o mundo inteiro, tá ligado? Mas passa por esse processo, que vai desde o
negro, do indígena, passa por todo esse processo das situações do País, dos
caras que tão morrendo na rua, fala sobre o mundo da droga, sobre
ioruba-nagô. Nesse sentido, assim como há um Ilê Ayê que é uma escola, há
diferentes seja um valor a ser buscado. Por ter uma dimensão universal, por
religiosidade.
convive. Na sua luta contra todas as formas de discriminação, ele entende que
seria discriminado por ser latino. Além de ser discriminado entre os negros, por
sinônimo de preto. A sua condição de classe não lhe dá uma identidade étnica
diferente do que a sua cor de pele lhe impinge. A “elite branca” cobra de Ilícito
o fato de ele estar “do lado de lá”. Os “pretos”, quando o vêem falando de
memória – das culturas negras o seu “núcleo pesado61”. Mas é o pai que é
De acordo com as situações nas quais ele se localiza e com as pessoas com
quem interage, um indivíduo poderá assumir uma ou outra das identidades que lhe
(Ibid., p. 166)
sexo, etc. Uma identidade étnica nunca é auto-explicativa: não podemos dar
conta do fato de dizermos de alguém que ele é X (ou do fato de alguém dizer
“eu sou X”) porque ele é X. Não se trata de saber quem é X, mas saber
ser “esse branco”, como diz Ilícito, ser afrodescendente (a filiação paterna e
61
Termo de Muniz SODRÉ (2000).
69
alguns dos traços herdados atestam isso) são identificações que Ilícito carrega
uma distância subjetiva entre eles mesmos e seu jogo de cena (Ibid., p. 167).
É o caso dos negros de pele preta e de mulatos no Brasil. Não parece ser, no
ou ‘branco pobre é preto’“. Por essa razão”, diz ele, “é que Oracy Nogueira63
62
Munanga utiliza três estudos do autor, citados na referencia bibliográfica de seu livro. São eles:
“Town and country in Brazil”. Nova York: University Press Columbia, 1956; “Padrões raciais nas
Américas”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. “Patterns of race in the Américas”. Nova York:
Walker, 1964.
63
Oracy NOGUEIRA. “Tanto preto quanto branco: Estudos de relações raciais”. São Paulo: T.A.
Queiroz Editora, 1985.
70
ironia e cujo sentido mais exato seria: ‘o dinheiro compra tudo, até status para
o negro’”, o que, segundo ele, está longe de ser uma negação do preconceito
identidade étnica. Mas uma vez que essa identidade não se impõe como dado
índices da pertença étnica, poderia ajudar para que Ilícito diminuísse a sua
que a questão da cor da pele. Ele propõe, nas suas letras de rap, o uso dos
esse forjado num contexto que foi sempre altamente discriminador, tanto de
tiveram seus atributos corporais e seus modos de ser e viver avaliados por
Embora tenha havido uma resistência cultural dos povos indígenas e dos
negros que para cá foram trazidos à força, suas identidades foram inibidas de
social”.
é em meio a uma fala sobre o atual momento do grupo, ao qual ele se refere
como “época das colheitas”. Pergunto a ele o que quer dizer com a expressão,
e ele responde que significa ser beneficiado com o fruto do próprio esforço.
região em que vive está a festa anual do time da região em que mora e para o
explícita do conteúdo de sua fala com a questão do capitalismo. “... são várias
coisas que eu vejo que hoje o capitalismo condiciona (...) Essa coisa de
gira em torno do bem material, entendeu? E que é um bem material que o cara
64
A respeito da importância das diferentes formas associativas comunitárias para a redução da pobreza,
ver Spink, 1999.
74
acha que vai tê, vai tê, vai tê. E o pobre fica querendo tê e quando tem, se
Ilícito não procura a felicidade junto a bens materiais, mas entende que,
termo usado entre aspas por motivo da perspectiva adotada nesta pesquisa, de
65
não “individualizar” a pobreza na figura do “pobre” . Ilícito fala em poder dar
Tenho uma véinha de 86 ano (referindo-se à avó), minha mãe, meu pai,
meu irmão, tano doente, a gente tem que ir nos postos do governo, entendeu?
Eu queria ter um plano de saúde. Coisas que eu posso acreditar que eu posso
mudar pra minha vida e pra minha família, ter um plano de saúde, poder pagá
as conta... São coisas bestas, supérfluas, que, pra quem tem qualidade de
vida, são detalhes. Poder se alimentá beeem... umas parada assim, sabe?
propõe que a pobreza seja vista como privação de capacidades básicas que
65
Nessa perspectiva, reduzir a pobreza ao “pobre” significa vê-lo como culpado e incompetente (Cf.
Spink, 1999).
75
vida de sua família. Ilícito falou em “coisas supérfluas” quando se referiu a itens
algum contato com o cotidiano dele e de sua família, bem como da sua
grupo. De algum tempo pra cá, a família de Ilícito pode contar com os frutos do
trabalho dele com o rap para ajudar a pagar as contas de casa. Ainda assim,
nem sempre é possível pagá-las em dia. Os frutos colhidos até hoje permitem
aos cidadãos poderiam variar segundo a faixa de renda dos proprietários dos
das classes altas são os que possibilitaram ao grupo a gravação de seu novo
ser ‘pobre’. Pra mudar isso aí na vida é um grande dilema (...) Cada um tem
sua ética, faz o que acredita, eu caminho pelo certo, já não sei mais o que é
errado também, acho que sabe o que é certo é quem tá passando pela
77
dificuldade. (...) Agora... Sou do hip-hop, eu não sou pop. O meu som é pra
todos, entendeu? Pra pobre, rico, boy, preto, branco, girl... , tá ligado?”. Pobre-
raças, gêneros. Ser hip-hop, para ele, é fazer som para todos,
democraticamente.
A gente nasceu pra ser pobre. (...) Pra quem é pobre, precisa se levantar
(...) na maioria das vezes, acaba seguindo a hierarquia, de criar monopólio, e
fica sempre em torno de uma parada só e os rico... se comunicam entre si e
ficam cada vez mais rico, e aí tem quem se segura dentro do universo que tem,
e o outro fica mais pobre.
mudanças que são favoráveis à problemática social apontada por ele e seus
aprendizado autodidata.
que são vistos como “favelados de espírito”66. A favela positiva é a favela das
vista pelo conceito formulado pelo intelectual brasileiro Milton Santos, que se
possibilidades de minimizá-la(s).
66
A expressão foi retirada do livro do MC e escritor do Jardim Colombo (São Paulo), Dugueto Shabazz.
Ver Dugueto SHABAZZ (2006).
67
Milton Santos, 1979.
79
pescoço, por exemplo, diz respeito à forma como ele enxerga o mundo. “Vem
caso desse acesso vir a aproximá-lo das classes mais altas, sua postura,
estilo das roupas, a maneira de se portar (ele veste marcas das grifes que
de falar dos jovens de periferia (“até pra falar errado tem que saber”, ele diz),
68
Gangsta Rap é um subgênero dentro do hip-hop (conhecido também como G-funk) com letras
violentas. Geralmente, os autores têm problemas com a lei, alguns inclusive têm ou já tiveram
envolvimento com gangues. (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Gangsta_Rap)
80
nordestino. Que, para o mundo, são agregados sob o epíteto de “latinos”. Para
teria um recorte racial69 que precisa ser observado e que é prejudicado pela
a gente às vezes vai numas festas aí, nuns casarão, e os caras põem os
preto pra tocar no fundo, reprodução da senzala, sabe? Da época dos casarão
antigo. Cê pára no farol, o cara te dá um panfleto daquele que, pra você
comprar o apartamento, cê vê lá um quarto de empregada, reprodução da
época dos escravocrata.
por que lhe dizem respeito, e que o obrigam a repensar cotidianamente sobre o
desigualdades raciais brasileiras. A pele branca de Ilícito faz com que ele sofra
69
A esse respeito, ver Cidinha da SILVA, 2000, p. 133.
70
Ver, a esse respeito, capítulo 5 desta dissertação. Ver também Kabenguele MUNANGA (2004) e Iray
CARONE & Maria Aparecida BENTO (2002).
81
de nordestino, mas é discriminado por brancos “não pobres”, que lhe dizem:
“cê é loco, cê podia tá aqui”. Utilizando-se de sua cor de pele, Ilícito poderia
estar do lado dos “privilegiados” mencionados por Bento & Carone. Há uma
“identidade ambígua” que lhe causa conflito. Mas ele não se nega a enxergá-la,
tem para essa questão implica atenção: trata-se de refletir sobre o fenômeno
qual derivam.
racista. Antonio Sérgio Guimarães72, autor do artigo que respondia pelo “sim”,
claras em quase todos os âmbitos da vida social que resultam em poder ou riqueza.
71
A esse respeito, ver José Murilo de CARVALHO (2001).
72
A outra acadêmica consultada, autora do artigo justificando o “não” à pergunta feita pelo jornal, não é
pesquisadora do assunto.
82
nesse lugar durante esses mais de 500 anos de história. Em outro momento do
educação etc. entre brancos, de um lado, e pretos e pardos, de outro, são gritantes e
estão muito bem documentados. A julgar pelos resultados, portanto, somos racistas. E
definem o racismo. Não é pelas intenções, pelas doutrinas ou pela consciência racial,
(Ibid., p. A3)
73
Sobre como o racismo se estrutura e se manifesta no Brasil, ver também Cidinha da SILVA, 2002.
83
(Munanga, 2004, p.96). Mas não o impede de ser “barrado” ao tentar entrar em
ou mesmo de ser morto por um tiro de policiais ao dirigir um veículo que o torne
psíquicas, como pontua Munanga76. Faz pouco mais de 20 anos que foi dado
74
Acerca de mortalidade, acesso à educação, desemprego e violência entre afro-brasileiros ver Darien
DAVIS (2000).
75
Luiz Felipe de ALENCASTRO In STRECKER, 9.7.2006, Caderno Mais!, p. 5
76
Ver Iray CARONE & Maria Aparecida BENTO, 2002, pp. 9-11.
77
Luiz Felipe de Alencastro In STRECKER, 9.7.2006, Caderno Mais!, p. 5
78
Outros autores que pensam a pobreza como fenômeno heterogêneo: Alinsky (1965), Castel (2000),
Friedmann (1992) e Spink (1999)
84
Brasil (Bento, 2002, p. 27) – fato que começou a ser questionado com os
processo identitário não tem respostas rápidas, prontas, ele lhe permitiu olhar
correlata82.
79
A esse respeito, ver Gomes & Paixão, 2006, pp. 31-40.
80
Iray Carone, 2002, pp. 13-23.
81
Formado por membros da sociedade civil e de Ministérios de diferentes países.
82
III Conferencia Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância
correlata (2001), p. 30
83
Conceito reintroduzido pela Teoria da Justiça de Rawls (1997) e mencionado no documento de Durban.
85
sociedade.
86
responde à primeira parte da pergunta que lhe fiz: “Quem é você?”. Ele sai à
estante.
Este texto é de 1859. Na verdade, ele já [o] tinha escrito em [18]56 e foi
publicado acho que em [18]59, e ele foi um dos maiores da luta abolicionista. E
a mãe dele também, era Luiza Mahin, que lutou na Inconfidência dos Malês em
1835 na Bahia. E ele foi vendido pelo pai que era branco, fazendeiro, feudal,
que perdeu toda a riqueza em jogos, ele era viciado em jogos e vendeu o filho
como escravo, porque a mãe dele era negra. Depois ele veio pra cá, pro
interior de São Paulo e venceu, tá ligado84?
texto que ele escolhe para iniciar a resposta a essa pergunta é, antes,
84
Natural de Salvador, onde nasceu em 1830, Luiz Gama foi vendido como escravo pelo pai em 1840,
levado ao Rio de Janeiro e posteriormente a São Paulo, após atravessar a pé a Serra do Mar. Aos 17 anos,
aprende a ler e a escrever. Doze anos depois, ele publica a primeira edição de seu único livro, “As
primeiras trovas burlescas de Getulino”. Para a professora Ligia Ferreira, autora do texto de apresentação
de Luiz Gama na publicação “Luiz Gama: poeta e cidadão – memória da luta negra em São Paulo” (Silva
et al., [2004], p. 7-10), “Quem sou eu”, poema mais célebre de Luiz Gama, “zomba da pretensa brancura
racial dos que, ‘embranquecidos’ socialmente, renegavam sua descendência africana”. Como advogado,
Luiz Gama teria contribuído para a libertação de mais de 500 escravos. Foi, talvez, o único intelectual
autodidata brasileiro a passar pela experiência da escravidão.
87
(1830/1882) ter sido alguém que foi escravizado, mas que lutou contra o
a origem desse poeta, advogado e jornalista, filho de pai branco e mãe negra,
Trovador: s.m. 1. designação dos poetas líricos dos séculos XII e XIII do
portugueses que, nos últimos séculos da Idade Média, seguiam o estilo dos
Luiz Gama usa para abrir o seu poema “Quem sou eu?”85, também conhecido
85
De autoria de A.E. ZALUAR, do livro “Dores e Flores”.
88
homem negro pelo branco, a luta pela liberdade virá acompanhada da sua irmã
Portanto, a questão de Luiz Gama levantada no seu famoso ‘Bodarrada’ parte dos
negros para os brancos, fazendo-nos pensar que a partir de Quem sou eu? é que
vezes. Quer no que se refere ao País, no que se refere à cidade de São Paulo,
86
Herdeiro das buscas culturais de negros que, no início do século XX, iniciaram a reavaliação da
situação do elemento afro-brasileiro e partiram para uma tentativa de inseri-lo social e culturalmente,
tendo como armas sobretudo agremiações de cultura, jornais alternativos para a coletividade, teatro negro,
a Literatura, sobretudo escrita por poetas de temática afro-brasileira, como Lino Guedes e Solano
Trindade. É autor dos livros “O carro do êxito” e “O negro escrito – apontamentos sobre a presença de
negros e mulatos na literatura brasileira” (Santos; Galas; Tavares, 2005).
87
Sobre os problemas relativos aos negros brasileiros, nesta pesquisa, não serem tratados como
problemas dos negros exclusivamente, ver comentário de Munanga nas próximas páginas.
89
que inclui negros, latinos e jamaicanos moradores das periferias de Nova York.
último do boteco”. Ser desterrado, destituído de sua terra, de seu país. Essa
questão está presente quando ele fala sobre não sabermos de que povos
indígenas (desterrados) eram as terras por nós hoje habitadas, não sabermos
qualidade de vida, como ele nos diz a seguir. Esse reconhecimento viria dos
frutos colhidos com o trabalho junto aos que são as questões da sua vida.
A gente plantou, agora tem que colher né? E é o ciclo natural do ser
humano que trabalha. Ser beneficiado com o fruto do esforço dele, né? É
natural. Agora pra muitos, é o que tô falando, entendeu, vitória é qualidade de
vida. Dar tranqüilidade pra minha família, poder continuar transformando o que
tá à sua volta, entendeu, porque não adianta mudar pra você sendo que a sua
volta tá a mesma merda, entendeu? Então pra mim essa situação continua a
mesma, só que eu sou um ponto de ligação que posso transcender e levar
muito mais coisas. E pras pessoas podê acreditar que eu posso levar isso a
eles, eu tenho que tá bem. Só que o momento não tá bom pra ninguém. E aí
que tá o mundo ilusório, da arte, da fama, de você achar que é antes de ser.
Mudar, mudar para melhor. Para Ilícito, não faz sentido mudar
ao que está ao redor. E essa mudança diz respeito a conhecer e, assim, ter
E tem meu trabalho, que é a minha obra, [obra] da minha vida. Hoje
como tudo é imediato, é só pesquisar. Minha vida é uma pesquisa. Uma
alquimia, né? Que nem fazer um rango, adoro misturar os ingredientes. É isso.
Minha vida tá em torno da minha obra. E minha obra não tá nem na metade, tá
ligado?
Tudo que é feito tem uma força superior agindo sempre, responde.
A obra é a que Deus mandou pra ele, mas ainda não sei de que deus ele
fala. Logo em seguida, ele informa que não gosta de seguir dogmas e que sua
religião é o Corinthians.
Eu tenho o meu estilo de vida rasta, minha filosofia de vida rasta. Não
como carne, sô vegetariano, não tão radical assim. Mas eu acho que na
filosofia rasta cê alcança uma elevação espiritual e uma vida de conquista em
várias outras coisas. Você se torna um rasta com o tempo, então o importante
é partir de algum momento.(...) Convivo hoje muito com os irmãos islâmicos, tô
88
Filosofia religiosa surgida como movimento político na Jamaica, na década de 1930. Sua denominação
homenageia o ras (príncipe) Tafari Makonen, sagrado imperador da Etiópia, com o título dinástico de
Hailé Selassié I. O rastafarianismo propagou-se pelos guetos de Kingston, a capital jamaicana, e, em
1940, o líder Leonard Howell fundava na paróquia de Saint Thomas uma comunidade religiosa chamada
The Pinnacle, destruída pela polícia em 1954, quando grande número de jovens, convertidos a essa
filosofia, são julgados subversivos. Estreitamente ligado ao reggae, gênero musical surgido em seu
contexto, o rastafarianismo deve a ele a sua difusão em escala planetária. Para os rastas, a ganja
(maconha) tem status de erva santa e meio de comunicação com Jasrah, o Deus Supremo (Nei LOPES,
2004, p. 560).
91
ali com o Corão, com bastante presságios do Islão89, que eu acho que é uma
religião de resistência... Ir prum templo, vô, sem nenhum problema; leio, pra
mim, tudo é informação. Acho que a religião educa o povo, tá ligado? Muitos
tão esperando Jesus voltar, pra mim ele já veio e tá voltando de novo, tá
ligado? Minha família aqui é espírita, altas famílias são protestantes, outras, a
maioria são católicos, eu tenho orixá no meu corpo, acredito nos primeiros
habitantes da terra, na ligação forte com o candomblé. Gosto de tomar bebida
de poder, tá ligado?
89
O Aurélio traz “islã” ou “islame” para o conjunto dos mulçumanos, sua religião, cultura e civilização.
Para a religião monoteísta fundada por Maomé, o dicionário traz o termo “islamismo” (AURÉLIO, 2006,
p. 492)
90
A expressão se refere ao movimento religiosa que teve início entre as décadas de 20 e 40 no estado do
Acre e, a partir de 80, expandiu-se por todo o Brasil e para o exterior. Santo Daime também é o nome que
os participantes deste movimento religioso dão à bebida que, consumida durante os rituais, teria poder de
cura e de transmissão de conhecimento (ROSE, 2005).
92
quando o caminho inteiro se faz. Por essa razão, nascemos para começar. O início é
como uma semente que, num certo sentido, oculta um segredo, o segredo da vida.
Talvez por isso na tradição do Oriente se diz que é próprio dos sábios conhecer os
segredos das sementes. Valendo-se dessa imagem, pode-se dizer que o segredo que
(Ibid.)
recusa do que está para além de uma doutrina. E o que o ajudou a descobrir o
91
Conjunto de crenças e práticas associadas às atividades dos xamãs, espécie de sacerdote que recorre a
forças ou entidades sobrenaturais para realizar curas, adivinhação, exorcismo, encantamentos, etc.
(AURÉLIO, 2006, p. 826)
93
entendida como busca do entendimento comum – inviabiliza-se como tal, a menos que
sempre esse outro seja desqualificado como portador de qualquer verdade e que, por
(Ciampa, 2004[b])
única verdade. Outros povos tiveram e têm atitudes semelhantes a essa, com
verdade” que foge Ilícito e que ao mesmo tempo em que afirma que é um
suas falas.
não é suficiente; porém é necessário, pois esse é o combate que pode unir
94
tradições é que cada uma delas “pode nos libertar do etnocentrismo de nossos
não há diálogo; há tão-só o eco do que se repete como mesmice e que nada
cria” (Ibid.).
desenvolvida por Ilícito é, para ele, um referencial de grande valor: “minha vida
é minha obra. Minha obra é Deus quem manda. Só estou psicografando”. Para
ele, há uma força superior que age em tudo, que está em tudo.
fumaça do cigarro). Por isso que eu não tenho religião. Por causa disso. Minha
religião é o Corinthians.
O hip-hop acaba sendo essa escola, do cara que é universal hoje, não é
tão fechado por grupos, como o Movimento Negro ou uma entidade africana, o
candomblé92... não é tão fechado. O hip-hop agrega o mundo inteiro, tá ligado?
tradição que lhe chega pela via indireta, por consulta já realizada aos búzios,
por idas a toques para orixás, por conversa com uma e outra pessoa e leitura
de textos a respeito...
fundamentalista, para quem “é dele a última palavra, pois, dele, quem fala
Identidade que hoje é possível somente sob a forma reflexiva. Por isso, nega a
conteúdos fixos, o que não significa não ter conteúdos, mas sim dispor de sistemas de
92
Sobre o significa do candomblé enquanto sistema religioso e da forma como foi conceituado nesta
pesquisa, ver capítulo 4.
96
(Ciampa, s/d)
vida.
cada vez mais amplia a colonização do mundo da vida, através de uma ação
ideológica que afirma ser a busca de sentido uma questão sem sentido, pois
hip-hop. É o que ele traz quando fala sobre a diferença entre ser do hip-hop e
ser hip-hop.
[Ainda que] as colônias de cada país que não perderam as suas origens
[aqui no Brasil]. E o mais loco disso é que já se misturaram de uma forma que
eu vejo que foi tão agressiva quanto à norte-americana e talvez até muito mais,
porque trabalhou no inconsciente do povo, tá ligado?
Mas que é loco, que [aqui] é o caldeirão das raças, caldeirão do mundo,
e eu luto contra o racismo, acredito nisso, luto contra as diferenças, as
indiferenças, minha luta é baseada no lance étnico, tá ligado?, de como a
sociedade brasileira, onde o racismo é implantado nas leis e foi jogado pro
povo, como lidar e respeitar as etnias. É problema étnico. Assim como o negro
teve várias definições, eu fazendo música de preto também tem várias
definições quando eu ando pelo Brasil, tá ligado? Me chamam de várias
formas, tá ligado. O último foi “africano de pele clara”. Eu acho que é um lance
que vai além da cor da pele, é um lance de uma poesia que fala “que a pele
negra não seja escudo para os que habitam na senzala do silêncio, porque
nascer negro é conseqüência, ser é consciência”. É isso. O conhecimento, que
é a definição do quinto elemento, né?, dos cinco elementos que o hip-hop
contém.
93
A respeito da análise conceitual de etnia nesta pesquisa, ver capítulo dedicado à análise da entrevista da
perspectiva étnica.
99
A mistura de que fala Ilícito faz parte da crença que sustenta a ideologia
Ilícito também fala o que pensa sobre o que é ser negro quando se
refere à poesia que cita. Ser negro, para ele, depende menos da cor da pele e
do qual se partilha. Mas não é como “negro” que Ilícito se classifica. “Negro” é
uma concepção associada à cor da pele. É por essa razão que ele diz que se
afrodescendente, eu sou”.
“contrárias”.
139) dialoga com o conceito de identidade que “se faz dentro de um exercício
indivíduo.
semelhantes podem unir-se e mobilizar-se com muito mais consistência para causas
(Ibid., p. 140)
(2002), nos diz que grupos sociais lutam pela afirmação e pelo
adiante, ele traz como exemplo o estudo de Neuza Guareschi94 sobre Políticas
sociais e culturais têm lutado para afirmar suas identidades (Guareschi apud
assim, nóis é preto”, Ilícito está falando do fato de o Brasil, sendo um país de
94
Neuza GUARESCHI. Políticas de identidade: novos enfoques e novos desafios para a psicologia
social – in Psicologia & Sociedade, 12 (1/2): 110/124; jan/dez. 2000.
95
A explicação sobre a opção pelo uso de identidade afrodescendente nesta pesquisa está no subcapítulo
3.2.
102
institucional.
brancos. Epa, só tem branco na TV. Epa, não sei quem são meus ancestrais
negros. E ninguém sabe me dizer quem foram, de onde vieram”. Ilícito não
96
Darcy Ribeiro (2006, p.176) fala na chegada de 7 milhões de europeus que vêm ao Brasil por causa da
crise do desemprego em seu continente de origem. Desses, 4 milhões e meio teriam se estabelecido
definitivamente no país, principalmente em São Paulo.
97
Na denominação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), para o qual a população
negra brasileira é constituída por pessoas de pele preta e de pele parda.
98
“Com o primeiro disco do grupo, o objetivo era traçar o caminho da origem do povo brasileiro. De
onde que veio essa galera? Eu perguntava pro meu pai, perguntava pros meninos do grupo, só sei que
veio da Cafelândia, da Cafelândia, num sei... Mas que etnia africana? Então começamo a traçar a nossa
história, do que é a periferia, a partir dos quilombos. Nós somo da rua, hip-hop é da rua, e aí [viemos]
misturando essa parada, essa parada étnica do povo brasileiro” (Ilícito, em uma das entrevistas para a
pesquisa).
103
63).
formam o País, então, não faz sentido dizer que haja divisão de grupos
Para o autor de “Casa Grande & Senzala”99, as relações sociais entre negros e
cultural. Foi assim que, sob influência do antropólogo Franz Boas, Freyre
99
1933 é o ano da publicação do livro, tido como original à época por “considerar a contribuição africana
como um fator cultural importante, embora secundário, à formação de nossa nacionalidade”. Nessa
sociedade “culturalmente sincrética” de Freyre, as diferentes “etnias” que a formavam teriam
contribuições diferentes qualitativamente. “Uma diferença que se basearia na centralidade do português
104
O que Ilícito faz com sua obra é buscar uma convivência igualitária entre
racismo.
igualitária das diferenças. Segundo esse raciocínio, não é a raça o que cria
56).
como responsável pela adaptação da civilização européia aos trópicos, através da assimilação da cultura
indígena e da africana na formação nacional” (Muryatan BARBOSA, [2007]).
100
Alguns dias após a realização dessa entrevista, em uma atividade coletiva em que nos encontramos,
ele veio até mim para me dizer que a música “Olhos Coloridos”, de Sandra de Sá, foi o que despertou
nele esse pensamento, no verso que diz “todo brasileiro tem sangue crioulo” (Cf. Olhos Coloridos. Sandra
de Sá. Sandra Sá. Faixa 5, n. 103.0689 RCA-Victor. 1986).
101
Para o historiador Alberto da Costa e Silva ([2007], p. 67), estabeleceram-se padrões culturais comuns
nas “duas margens do Atlântico”, cidades e vilarejos costeiros ligados pelo tráfico de escravos. Entre eles,
padrões relacionados a habitação, cozinha, vestimentas, festas, ou seja, “em quase todos os modos de
vida”.
105
Então assim, eu não tô mais pra provar porra nenhuma pra ninguém,
sabe?, não quero saber se as pessoas acham se eu sou branco, se sou preto,
tá ligado?, e foda-se, eu sou universal, a raça é humana, quem vim bater de
frente comigo, eu tô preparado pra qualquer fita... Eu sou positivo, não sou
esse lado negativo. E o rap, o dia-a-dia dos monstros, o mundo capitalista, me
deixou um monstro, tá ligado?
quando ele diz que “o que importa é o que eu sinto”, próximo à fala sobre a
parece exercer papel fundamental na luta de Ilícito pelo fim das diferenças
o une ao que foi visto como diferente, pela luta do reconhecimento da sua
diferença de forma não hierarquizada, mas igual. Afinal, somos todos humanos,
O autor nos fala que nós, brasileiros, nos encontramos diante de um processo
106
pesado”.
distintas gerando produtos novos e sofisticados – como foi o caso, por exemplo, do
lugar para a maioria negra e mestiça excluída da “cultura”. Nos anos 70, com a
brancos, mas isso só funciona como tática – digamos assim – de luta organizada
freqüentemente, muito desiguais. Democracia racial nunca passou aqui de atroz ironia.
brancos fica sendo entre nós, portanto, uma espécie de esquizofrenia – a divisão de
mente com a subseqüente rejeição de uma das partes e substituição da visão realista
Quando Ilícito nos diz que “o Brasil é uma África que não se vê”, ele se
culturas dos portugueses e dos indígenas nasceu esse produto sofisticado que
102
Aplicando o termo usado por Xavier (2000).
107
Não dá pra você falar que cê é preto, simplesmente, ou que você é índio
simplesmente, ou se você é branco, ou se você é nordestino, porque é tanta
influência, e tanta contribuição que a gente teve... É diferente por exemplo em
Kingstom, que... 100% da favela é preta, se aparece um branco é uma vez na
vida, então cê entende que ali é um contingente, entendeu?, africano, mesmo,
entendeu?, aí cê define. Mas São Paulo? O que cê define em São Paulo? Não
tem mais [o que definir]. O que que é a sua família? Já ficou branco e preto, o
que que você é, entendeu? Que nem já foi falado num debate do Movimento
Negro, aí um cara falou que era preto, o outro falou que era branco, “minha
mãe é branca o meu pai é preto”, um negócio assim. Então alguém perguntou
“e eu sou o quê? Cor de ...103? Então eu vou embora dessa .... Vão todo mundo
se ..., que eu vou embora”. Entendeu? “Então minha cor é de ...?”. Racista tem
que se .... Vai se ..., mano. Racista, não importa se é branco, se é preto, índio,
da onde ele saiu, tá ligado?, é racista, tem que se ..., mano, e eu não fiquei lá
porque não concordo com isso aí, sou ser humano, entendeu?
103
Reticências foi a forma escolhida por Ilícito para ocuparem, no corpo da dissertação, o lugar de
palavras utilizadas por ele como xingamentos.
104
Para uma explicação mais detalhada a respeito, ver Xavier, 2000.
108
debate.
o negro não cria – como nunca criou – problemas para a sociedade. Pelo contrário, ele
cultura e a identidade do País. A própria sociedade brasileira é que tem uma enorme
dívida histórica com o negro. Há problemas, sim, mas devemos entendê-los como
racial, sexual e religiosa” (Ciampa & Munanga, 2000, p. 9-10). Nesse sentido,
Quando Ilícito traz seu ponto de vista sobre a discriminação que sofrem
e brasileiras. As diferenças estão aí. Diferenças que, para ele, deveriam ser
mais pela diversidade cultural dos diferentes grupos que formam este país;
105
Ilícito aqui se refere ao coletivo da Bahia de nome “Blackitude”, que entende o hip-hop como
desdobramento do movimento negro. “Da sua forma, a Blackitude concebe a arte como forma de luta
contra o racismo que vitima o povo africano onde quer que ele se encontre. Por isso Blackitude: blacks +
atitutde, blacks com atitude” (Maca, 2005).
110
têm de abordar assuntos raciais; a raça não é vista como diferença, mas como
Brasil como “um problema do negro” e que o seu raciocínio se alinha com a
Brasil como problema “do outro” está relacionada à noção de que o humano
106
Na Psicologia Social, “branquitude” é o conceito relacionado aos traços da identidade racial do branco
brasileiro a partir das idéias sobre branqueamento. Alguns pontos da branquitude são a não-percepção da
discriminação e o desconforto por parte dos brancos quando têm de abordar assuntos raciais; a raça não é
vista como diferença, mas como hierarquia e as fronteiras entre negros e brancos são sempre elaboradas e
contraditórias (Bento, 2002).
107
Discussão também presente no capítulo sobre etnia.
111
“Ó véio, eu sou branco sim, mas não sou esse branco que tu tá falando
não, véio”. Com essa frase usada por Ilícito em uma discussão em que ele foi
dizem “você é branco” e, do outro lado, dos que dizem “você é louco, poderia
indivíduos demonstram introjeção do ideário racista pelo qual ser negro é estar
étnica são negativos, os brancos inseridos nesse mesmo meio social também
terão esse ideário tatuado em seu imaginário. A “identificação étnica que passa
branco, mas e que não se identifica com o grupo de pertença que lhe é
108
Apud Bento (2002)
112
109
Dia Nacional da Consciência Negra, decretado por lei feriado em algumas cidades brasileiras. A data é
celebrada em lembrança à morte de Zumbi dos Palmares, ocorrida em 1695. Segundo Lopes (2004), sua
criação foi resultado do trabalho da militância negra, a partir da campanha deflagrada em 1971, no Rio
Grande do Sul, pelo Grupo Palmares, sob a liderança do poeta Oliveira Silveira. A data foi estabelecida
por assembléia nacional do Movimento Negro Unificado (MNU) realizada em Salvador (BA), em 4 de
novembro de 1975 (p. 235).
113
ser destinadas políticas reparativas pelos danos causados pelos cerca de três
objetivamente, com sua história, suas tradições, suas normas, seus interesses,
etc.” (Ciampa, 2004[a], p. 64). O autor nos alerta que um grupo pode existir
chamado de “branco”, dizendo não ser “esse branco” de que se está falando. E
o grupo racial branco, ao vê-lo com sua identidade visual, com sua fala ao lado
dos negros, lhe diz “você é louco, você poderia estar do lado de cá”.
64).
estabelecem entre si e com o meio onde vivem; em outras palavras, pela sua
prática (Ibid.). “...Nós somos nossas ações, nós nos fazemos pela prática”. Isso
Pra mim, o processo mais difícil da coisa foi me assumir como branco. O
lance tá na ligação muito da pigmentação né? Vai muito mais além dos traços
e... se falar “sou afro-descendente”, eu sou, entendeu? Agora, é visível que eu
sou branco, entendeu? Agora, isso aí, pra mim, foi difícil de assumir. Até fiz um
refrão esses dias que eu vou usar que é, é... “não tenha medo em dizer que tu
é preto/ não tem espanto em dizer que tu é branco/ não seja omisso em dizer
que tu é índio/ nos toca-disco corre sangue nordestino / não tenha medo em
dizer que tu é preto/ não tenha espanto em dizer que tu é branco/ não seja
omisso em dizer que tu é índio/ nos toca disco-disco corre sangue nordestino”
(ele rapeia, percutindo na mesa). É... que é bem isso, pra mim foi um processo.
Porque um lance que eu não aceitava dessa coisa do branco que, que... que
era esse lance de todos caras que... essa dominação, toda essas... sistema
hereditário. A visão que ainda foi implantada pros dias de hoje, entendeu? E
ainda... o branco continua sendo superior em tudo né?
sua pertença identitária – é o que ele sente. Isolar essa fala neste momento
(2005-2006)).
Assim, tipo, o lance que eu faço assim... é o lance de... um ofício, sabe?
Uns nasce pra ser comerciante, outros... eu nasci pra fazer essa parada
entendeu? E vou usar, tipo, do lado da arte, desde a poesia, chegando no
ritmo, o que eu puder pra mim viver disso. Aí eu, o lance que eu falo que é
coletivo, é terceira pessoa porque, no lance da arte no caso, que é o ofício que
eu escolhi, é uma parada que eu posso fazer trezentas mil idéias, sabe? E de
diversas formas. Pode passar todas, todos os universos, eu tu ele nós vós eles,
tá ligado? Mas é o público que decide. Por isso que eu falo que é coletivo.
(...)
E a parada que me, que eu sempre propus, da forma que eu vim, desde
que eu era pivete, foi sempre o trabalho coletivo, eu acho que nada se faz
sozinho, entendeu? E eu sempre fiz trabalho em grupo, hoje eu chego num
momento em que eu também tenho que fazer alguma coisa minha pra mostrar
o meu “eu” pras pessoas também, entendeu? Mas eu só vou conseguir fazer
isso quando essa parada coletiva estiver bem estabelecida, entendeu? Vai ser
dessa vitória coletiva, entendeu, que eu também talvez vou poder mostrar mais
meu “eu”.
(...)
Tudo é um processo, da hora que Deus quer, que jah quer, dessa força
quer. Ou quando a gente consegue abrir todos os caminhos, entendeu? É
sempre assim, muito loco.
“Estar cada vez melhor” diz respeito, antes de tudo, à sua preocupação
com o coletivo. Apesar de considerar que “pra nóis nunca foi fácil” (em
referência aos que vivem nas grandes periferias), é possível agir para “abrir os
espiritual – o que nos leva a inferir que tal afirmação possa ser interpretada
estava inserido, a história que não lhe havia sido contada e que o hip-hop o
ajudou a “desvendar”.
Então assim, eu acho que foi tudo isso assim, a história de Palmares110
é... depois chegou na... eu já escrevia bastante as coisas e... e o rap, crescer
no Capão e escutar rap... Aí já tem o lance do canto falado, que eu peguei do
forró do meu pai, né, samba e forró, então pra mim é tudo uma coisa só assim.
110
Clóvis Moura (2004) definiu Palmares como “a maior manifestação de rebeldia e organização política,
militar e econômica contra o escravismo na América Latina”. Palmares teria perdurado por quase cem
anos e, nesse período, teria sido responsável pela desestabilização do sistema escravista na região (p.
347).
117
Hoje eu vejo isso como uma coisa só, mas o rap foi o que abriu a mente, eu
comecei a entender a parada, entendeu? É foda, é mó responsa fazer rap.
luta seja pela identidade negra, seja pela identidade afrodescente, não é a da
momento de nossas duas primeiras entrevistas Ilícito usou o nome pelo qual é
conhecido no rap ou o nome com o qual foi registrado por seus pais para falar
sobre quem era ele. Em nossa terceira e última entrevista foi que eu perguntei
E eu jogava bem futebol, era pra mim ser profissional se eu tivesse tido
um acompanhamento assim desde pivete, e não tivesse interferido os
problema que a gente teve, familiar tal, não tivesse interferido no meu ciclo, eu
tinha certeza que eu ia ser profissional, jogava muita bola. Aí depois com as
frustração, jogar em tanto lugar, comecei a cantar rap e desliguei do futebol.
Ele detalha a trajetória que não lhe permitiu prosseguir no futebol. Nela,
um ano... Um ano, o meu pai ficou um ano. Eu nem lembro, que eu era
pequeno. E aí quando eu voltei foi mais duro ainda, porque a gente não voltou
pra cá, né? Hoje nóis tem paiz aqui porque eu e meu irmão crescemos
entendeu? E porque tem a sintonia da quebrada e ninguém mais mexe, mas
antes o meu pai já comeu o diabo que o pão amassou aqui. E a gente voltou
pra cá depois de ficar perambulando. Que a gente resolveu as coisas que
tinham problemas. Teve uma época mais sofrida assim. Porque meu pai
passou por vários probl..., a gente arrendou um bar, pagava aluguel, e
trabalhava que nem um cachorro, sabe?, e lá era moleque, assim, lá eu sofri
pra caramba. O meu pai foi preso, e eu estudava de manhã e trabalhava no
boteco até às duas da manhã, eu estudava das 7h às 11h, então foi a época
que eu fui largando mesmo a parada [referindo-se ao futebol]... Nóis morava
numa casa em oito, com dois cômodos, foi uma época bem difícil, eu acho que
isso que foi me afastando do futebol. Ainda tentei jogar, depois fui pra várzea, ó
meu... Ó como que é meu, minha perna... porque na várzea é roçadeira, né? Aí
eu falei “não, não güento isso aqui não”. Então eu parei de jogar. Mas é... eu
gostava muito, tinha mó potencial. Tem um cunhado meu né, que minha irmã
teve uma filha com ele, minha sobrinha, e ele trabalha com isso aí, com futebol,
né, de empresariar jogador tal, e ele sempre fala, “se você não tivesse viajado
nas idéias, não tivesse parado tinha conseguido”. Ele me levou também em
vários lugar, me ajudou bastante. Mas eu acho que o tava escrito, né, porque
na época em que o meu pai me fez era a época em que ele era novão, ficava
nas cantoria fazendo forró, né, minha mãe ficava em casa ele ia pros forró e
tal, acho que isso aí já tava no sangue também, o lance da música, e calhou de
nossa vida ser um pouco conturbada, aí veio o sofrimento, e o sofrimento gerou
essas parada aí, né, essa forma de ser. Hoje a gente não tem muita grana,
mas vive em paz, entendeu? Isso é que é importante.
herança paterna. Mas ele também entende a sua chegada até a música como
fruto de sua trajetória pessoal, da consciência crítica que foi adquirindo com
por ele e por sua família. Ele começou com o rap. Que abriu sua consciência e
lhe fez ver a “árvore musical” que poderia ser explorada. Mas para fazer rap
paterna:
Tem a ver com o meu pai sim. Porque sempre quando eu era pequeno
ele tocava, né? Sempre ele tocou, fez forró, fez... e eu ia nos forró aqui quase
todos com ele. Então eu lembro muito disso... Lembro das Diretas Já, 84/85,
meu pai tocava nas campanhas do PSDB, a sanfona que meu pai tem é do
Serra, o Serra é que deu pra ele. Eu lembro tudo disso. Das Diretas Já, dessas
paradas. Eu era pequeno, mas eu lembro. E ia nos todo os forró com meu pai.
Só que jogava bola, né? Jogava futebol. Depois nem o futebol, era uma
ilusão... aí comecei a fazer, já escrevia umas letras...
Minha família, meu pai é sanfoneiro, eu cresci no forró, conheço
bastante forró, Bezerra da Silva, mas foi do Rap, fazendo uma coisa norte-
americana-jamaicana, que eu fui voltando às origens. Hoje eu posso cantar um
forrozinho. É loco.
Foi muito nessa ligação, que a gente sempre tá fazendo e dizendo, da
ligação nordestina, porque é isso que..., principalmente pra mim, né, me deu
mais identidade dentro do hip-hop, pra mim falar da coisa nordestina, e um dia
o Museu da Pessoa tava fazendo um seminário e convidou eu pra participar da
mesa, pra falar sobre a questão indígena, a questão negra quilombola, e sobre
o lance da periferia. Aí eu toquei no que fala da questão indígena eu fui falar
sobre periferia. Lá, a gente, o grupo tocou e eles convidaram o Verdelins e
Pardal e o Sebastião Marinho. E isso aí resultou em muitas outras coisas
assim, uma visibilidade importante também nessa ligação do hip-hop e o rap
com a embolada e o repente, né, o cordel, todo esse universo, porque eu faço
o que o meu pai fazia antes, só que agora com a tecnologia, mas é o mesmo
canto-falado, é isso que eu to fazendo. Se o cara tocar um pandeiro, eu faço
uma embolada em forma de rap, se tocar a sanfona, eu canto e se o DJ soltar
uma batida de bumbo-e-caixa, eu rimo, se o cara soltar um drum’n’bass111 eu
rimo, se o cara tocar um grime eu rimo, se vim um tambor do Espírito de Zumbi
eu faço um som, tá ligado? Fui no Maranhão, fiz um som ao vivo com os cara,
fui em Teresina também fiz, então... na Bahia, dá pra fazer com o Olodum. É
infinito, é um universo...
Minha vida era regrada tudo pelo inverso. Era tudo o ”contrapunto” de
tudo. Desde o som que eu faço é o inverso. Os caras quer fazer um som mais
pesado, gangsta, o meu é “cangsta”, do cangaço. Eu “inverto” tudo. Né, essa
idéia de não fazer a mesmice do que já existe, que era tudo era cópia duma
cópia, então eu mesmo não ser uma cópia duma cópia. Com essas idéia, tá
ligado?, inverter todas as parada. E confundir a mente. A mesmice é tipo você
vê um pensamento radical e não querer abrir o leque, tá ligado? E ficar vivendo
num universo fechado, numa mesmice, num ego, tal, sendo que a parada não
é desse jeito. Tem muita coisa lá acontecendo e você tá fechado num canto
achando que é o dono, que tem o dom da razão, aí depois morre na dúvida, tá
111
Drum´n´Bass (também abreviado como D&B ou DNB) é um estilo de música eletrônica que
surgiu na metade dos anos 90 na Inglaterra. O gênero é caracterizado por batidas rápidas,
próximas a 170 BPM (http://pt.wikipedia.org/wiki/Drum_and_Bass, acesso em 17 de agosto de
2007).
121
ligado? É abrir o leque, sabe?, assumir os erro, não ter medo, não ter
vergonha, medo de pedir perdão, nem dó. Tem muita gente numa mesmice,
fechado.
Ao falar de sua fuga da “mesmice”, Ilícito nos remete ao uso que Ciampa
(Ibid., p. 86)
novos valores no nível individual. A cada vez que um deles conquiste esse
É isso que é o rap, entendeu, que eu falo pros moleque. O rap não é
uma musiquinha prucê... não é uma musiquinha, cara. Rap é revolução, é
transformação, entendeu? E... Não tem como, pelo menos, você, na minha
concepção, né?, é não tem como o cara querer fazer rap se ele não foi
oprimido. Só quem sofreu alguma opressão que vai pegar essa indignação e
transformá-la. Eu costumo falar assim “mano, cê não sofreu, não tem como
você cantar rap. Vai cantar reggae então, tá ligado? Mesmo que o reggae seja
uma música de resistência, entendeu? Só que o reggae teve uma característica
que dentro dessa música de resistência eles plantaram o amor. E hoje o
reggae é paz, entendeu? O rap não, ficou tachado como uma música
marginalizada, e pesada que bate contra as regras universais em termos de
sociedade no mundo, então o rap é a quebra da sociedade, entendeu? Então
quem faz rap é esses excluídos, cara que sofreu, que já foi preso, pobres,
então assim, é... quando eu conheci o rap, foi nesse processo de
transformação, e de injustiças que a minha família sofreu e... se não eu teria
cantado o forró do meu pai, entendeu? Tem muitas letras de conteúdo [no
forró], entendeu? Mas o rap foi o que abriu o portal, entendeu? Foi quando eu
entendi toda a manipulação governamental, a história que não era contada, os
heróis que não eram nossos, entendeu?
devolve para o hip-hop aquilo que ele lhe tem proporcionado, com suas
112
Não me refiro, aqui, exclusivamente à dança original de rua e todos os seus estilos, mas a algo
relacionado ao hip-hop na sua integridade, relacionado a todos os seus cinco elementos – DJ, MC, grafite,
break dancing e conhecimento.
123
decide ser ou não ser filho-de-santo de uma casa. Pelo menos no que diz
respeito a fazer o santo116, é preciso que haja uma necessidade para isso,
respeito.
que ele sente uma vibração maior – que, no candomblé, poderia ser explicada
de muitas formas que não necessariamente ser filho desse orixá ou ter a sua
113
Ver capítulo referente aos patrimônios civilizatórios dos povos iorubás e candomblé.
114
A definição de axé para os iorubás e para o povo-de-santo também pode ser encontrada no capítulo já
mencionado.
115
Utilizando a definição da professora Josildeth Gomes Consorte por ocasião do exame de qualificação
desta pesquisa, realizado no dia 08 de abril de 2007.
116
Alguém que queira fazer parte de uma família-de-santo, mesmo que não tenha necessidade de raspar a
cabeça para o orixá, tem espaço para essa “negociação” com o sacerdote da casa, o que significa dizer que
isso varia de terreiro para terreiro.
117
Ogbon é “sabedoria” para os iorubás, a sabedoria que não se adquire junto aos livros, mas “da
experiência estética (valores, mitos, liturgia, conhecimentos práticos e aforísticos) que se insere no quadro
da antiguidade e da tradição”. Repetindo o que já está registrado no capítulo referente ao candomblé,
“essa sabedoria implica sempre em axé, pois saber é ser atravessado pela força – a absorção do axé é
requisito indispensável à aquisição do conhecimento do real” (Sodré, 1988, p. 90).
124
cara que estudou pra produzir no computador, fazer as bases, escrever a letra,
videoclip, é o rapper. Agora, o MC, ele além de ser um rapper, é o cara que se
aprofundou nas técnicas base, nos trabalhos de respiração, nas métricas, nas
orações, nos motes, nas formas dobradas e desdobradas de rimar, aprendeu
sextilha, decassílabo, passou por vários universos. Eu tô falando da coisa
regional. São vários ritmos, tá ligado? Que se for pegar um lundu, jongo, é, o
coco, é... o maracatu, a própria mandinga da capoeira, é infinito. Se você for
pegar só os toques de capoeira, são bento grande, tá ligado?, são bento
pequeno, angola, cavalaria, é uma infinidade de ritmos, entendeu?
Nós faiz música, mano, e é universal. Faz [música] num tambor, o que
você me der a gente [ele e os demais MC´s de rap] desempenha, chegô num
nível musical que a gente é universal, mano. Uma ladainha, um berimbau, um
tambor, uma batida do nagô118, no congado, sei lá, vam´bora, entendeu? Isso
que é você chegar num nível musical num lance raiz e saber contar história,
tipo o lance do griot119 de reproduzir os antepassados, coisa que foi passada
de pai pra filho, entendeu? Só que o mundo muda, a tecnologia muda, é
sempre uma nova roupagem pra se manter na parada, entendeu? E dentro
dessa nova roupagem, por exemplo, bumbo e caixa universal120 hoje, que é
essa parada do hip-hop. Então esse que é o grande lance de fazê arte, de fazê
música, de podê levá um conforto e entretenimento pras pessoas, só que o hip-
hop fala sério. É um movimento nacionalista-político-social-cultural-
educacional, mais do que nunca, tá ligado?, e a coisa vai indo dessa forma.
Viajo nessa parada, o canto falado universal e da batida universal, que
tipo, é o universo da batida quebrada e o universo do canto falado. Então pra
mim vai do coco à embolada, do rojão ao ragga, tá ligado? É o universo do
canto falado. Se eu falar só da cantoria do repentista, é mais de cem
modalidade, tá ligado? Eu não sou roqueiro e depois faço rap e depois viro rap-
hip-hop no samba, tá ligado? Tem uma linha de como você fazer uma
embolada, um repente na viola, um... é tudo uma linha, tipo tem que ser
respeitada essa linha.
118
Entre os ritmos nagôs disseminados na música brasileira estão o afoxé e o ijexá. Ver Lopes, 2004.
119
“Termo do vocabulário franco-africano, criado na época colonial, para designar o narrador, cantor,
cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias importantes
às quais, em geral, está a serviço. Presente sobretudo na África Ocidental, notadamente onde se
desenvolveram os faustosos impérios medievais africanos (Gana, Mali, Songai, etc.), recebe
denominações variadas: dyéli ou diali, entre os bambaras e mandingas; guéssére, entre os saracolês;
wambabé, entre os peúles; aouloubé, entre os tucolores; e guéwel (do árabe qawwal), entre os uolofes”
(LOPES, 2004, p. 310). A cultura dos griots tem aparecido nos trabalhos de diferentes rappers
brasileiros. Um exemplo está em BRAGA (2006).
120
A explicação para o termo está na Entrevista III, nos Anexos.
125
(Ibid., p. 469)
121
Espécie de cântico de louvor da tradição iorubá geralmente declamado ao ritmo de um tambor. É
usado para ressaltar atributos e realizações de um orixá, um indivíduo, uma família ou uma cidade (Cf.
Lopes, 2004, p. 499).
126
viver”, é o que Ilícito não quer mais. Para isso, “controla a loucura” na qual a
aprisioná-lo.
Quando eu saio pra rua, [tudo] gira em torno de muitas coisas que
perante a lei e a sociedade não é legal, entendeu? Eu já sou um cara ilegal. No
rap, eu assusto, tá ligado?, aí chego na elite, eu assusto, tá ligado?, assusto
meus parcero, sabe?, eu já sou um cara problemático por natureza e hoje eu
tenho que controlar a loucura sabe?, sabe? Mas eu acho que a minha
ilegalidade me leva a não entrar nesse... eu não quero falar sistema, porque
sistema não existe, mas nesse esquema, tá ligado? Nessa coisinha podre que
gira em torno da vaidade, do dinheiro, da fama, sabe? O trabalho que a gente
desenvolveu dentro da cultura hip-hop, entendeu?
[Com o anonimato] num causa problema. Mas todo o problema fosse o
ilícito, tava bão, tá ligado? Que pelo menos o ilícito tá tentando ser um cara
legal. Pelo menos o Ilícito tá tentando ser um cara legal. Agora tem outros
ilícitos que... Já perdeu as esperança...Tô me referindo ao ilícito geral. O ilícito
é um personagem que vai servir pra muita gente. O Brasil é ilegal. O mundo é
ilegal. A legalidade e a ilegalidade corre junto, tá ligado? Hoje, quantos,
quantos num vivem refugiados, o problema dos refugiados no mundo, imagina,
os caras que tão tentando se firmar num, nos paises, Aí, é... 50% da
corporação policial é ilegal. 50% dos políticos do país é ilegal. Tá ligado? Qual
a empresa no país hoje que tá totalmente legal? É... os nossos recursos
naturais tá ilegal, tá ligado. Então, tem isso, começa o Brasil é ilegal.
das forças que não são vistas como contrárias, mas como complementares.
É isso que eu falo, assim, pra mim, as duas energias correm juntos
memo, não tem o mal, o negativo, o positivo, a legalidade e a ilegalidade... o
brasileiro tem essa origem, todo brasileiro é contraditório e ilegal.
127
“quem nasce pra dar certo, progride; quem não nasce, só afunda”. O
expõe o seu referencial cultural identificatório. E a sua escolha foi fazer “música
de preto”. Percebeu que para lidar com as diferenças, é preciso falar do branco
128
(afinal, ele não é o “padrão de homem universal, invisível” que a ideologia racial
racista tenta nos fazer crer que é). Para que sejam respeitadas as diferenças, o
prossegue, até que todos se saibam humanos e não seja mais preciso “se
apegar a detalhes”...
nas entrevistas. Nas letras das músicas de seu grupo, o orixá patrono de Oyó
também é referência constante. A ligação de Ilícito com esse orixá será fruto de
que ele fale a partir das referências a eles feitas nas letras dos raps do grupo:
Os orixás na minha vida, acho que vem de pequeno mesmo. Nas festas
de São Cosme e Damião122, eu não perdia uma. Porque tinha um terreiro aqui
que era da família123 e hoje eles são da igreja dessas aí dos crente aí. E aqui
tinha dois times, um deles tinha o terreiro no fundo. E a festa de São Cosme e
Damião era todo ano né?, então essa foi a que eu acho que eu mais lembro
assim, a referência de tá participando bastante das festas que tinham lá. E aí
depois quando eu conheci a história de Palmares que começou isso aí, 94, 95,
a gente fundou o grupo, né?, e aí ele [o grupo] que mostrou esse caminho. E aí
que chego em Xangô, e chego em Ogum e Oxóssi. Aí vem falando, em
122
Santos gêmeos católicos que, no Brasil, foram associados aos Ibejis – orixás “menores” da tradição
nagô, protetores dos gêmeos. São comemorados a 27 de setembro (Cf. Lopes, 2004).
123
As festas eram realizadas na casa do tio de Ilícito, irmão da mãe dele, casado com uma mãe-de-santo.
129
Zambi... É pra se entender, pra mim entender o lance de Palmares, dos reis, eu
tive que entender os orixás, porque era regido pelos orixás, entendeu?
Quando Ilícito afirma “eu sou o meu templo”, ele está dialogando com
124
Ver capítulo sobre patrimônios civilizatórios dos iorubás no candomblé.
125
A narrativa está na transcrição das entrevistas na íntegra, em “Anexos”.
130
estabelecida.
ser animado, de toda coisa (Maupoil apud Elbein dos Santos, 1986)127. No
humanos são constituídos dos elementos ara (corpo físico), ojiji (“sombra”,
essência real do ser. Falamos resumidamente dos quatro primeiros, para nos
interior (“ori inu”). “Orise” é a palavra usada para se referir a Deus como “fonte
126
A respeito do papel da igreja católica no Brasil colonial, ver RIBEIRO, 2006.
127
Juana ELBEIN DOS SANTOS. Os nagô e a morte: Pàdè, Àsèsè e o Culto de Égun na Bahia.
Petrópolis, Vozes, 1986.
131
no limite, a teologia fica invertida, o ser humano é que cria e sustenta a divindade. Na
crente para existir, mas o candomblé é a única religião cujos rituais admitem isso
abertamente.
saber lidar. E que nem eu vi lá no Museu Afro Brasil128 que... como que era a
frase do, de Exu... É... É... “Eu não sou santo, eu não sou deus, eu também
não sou o mal, não sou o diabo, eu sou Exu”129, tá ligado? Eu queria até saber,
lembrar a frase, “eu sou exu, abro os caminhos. [Para o que ] tiver na minha
frente, bem e o mal...”, entendeu? E... Os orixás me encantam.
agradecimento particular.
natureza”, ele se refere ao fato de a natureza ser morada dos orixás. “Se a
natureza é um lugar sagrado, tudo passa a ser sagrado, uma vez que tudo é
natureza, seja da forma mineral, vegetal, animal ou seus processos, como a doença e
a cura. Além disso, como cada ser humano é criado a partir de um elemento da
(Ibid., p. 204)
128
Localizado no Parque do Ibirapuera (São Paulo – SP).
129
“Não sou preto, branco ou vermelho. Tenho as cores e formas que quiser. Não sou diabo nem santo,
sou exu!”. Mario Cravo Neto, “Saudação a Exu” (São Paulo, 2006, p. 117). Para os iorubás, Exu é o
responsável pela dinamização das duas polaridades (masculino e feminino) que torna a individualização
possível, ao movimentar o sistema, transportar a fala, propiciar os contatos, acelerar as trocas (Muniz
SODRÉ, 2000, p. 456).
133
130
Ancestrais do complexo cultural banto.
131
Ainda segundo Carmos (2006, p. 25), o limite desse princípio do candomblé é a injustiça. “Um
indivíduo pode ser esperto, mas não pode ser injusto. Pode ser sensual, amante de várias mulheres, mas
não pode tomar a mulher do seu amigo, porque isso lhe traria a ira daquele, e, naturalmente, do orixá que
preside a vida do amigo”.
132
Além dessa, ele tem outras quatro tatuagens. Segundo ele, para cada vitória, uma tatuagem é feita.
134
chamas se elevam. Os iniciados não devem ser afetados por isso. Essa prova
demonstra que o transe não é simulado e é completada por outra, denominada akara,
(Ibid.)
Verger, quando vivo, tinha o poder de fazer o raio cair quando bem entendesse
(Ibid.) .
ancestral divinizado.
altivez. Mais tarde, o ritmo acelera-se e, por gestos, o deus parece tirar de uma
Com Xangô que eu não sei explicar, entende? Porque eu gosto muito
assim, eu não sei explicar o lance com Xangô. Eu acho que ele rege sobre mim
sim. E... Assim, quando eu fui jogar os búzios com o pai de um amigo meu há
muito tempo, ele falava que eu sou Iansã e Oxóssi, que é a mata. E Iansã, e
135
tal. Mas eu tenho uma ligação muito forte com Xangô. Eu gosto de todos os
orixás, mas pra mim, comecei a entender a partir de gostar memo, né? E como
é resquícios, aos poucos vai, né?, eu vou me reeducando, porque isso aí eu já
sei tudo, só preciso vim trazendo as lembranças, tal.
Xangô serviu muito mais ao povo negro do que a figura pacificadora de Oxalá.
Xangô, sem dúvida, figura como o intenso fogo que alimentou a resistência escrava,
(Ibid., 69)
homem de nome Xangô, antes que ele fosse divinizado, como nos conta a
lenda133 a seguir:
133
A autoria da história, segundo Verger (2000), é de Martiniano do Bonfim, natural da Bahia, mas que
havia vivido na Nigéria. Martiniano do BONFIM. “Os ministros de Xangô”. In: O Negro no Brasil. Rio
de Janeiro, 1940.
136
Ebiri, vão aprender com ele a tática da guerra. Voltam-se em seguida contra Xangô,
que não os pode vencer. Xangô, sem que ninguém soubesse como, desaparece em
meio às tribos estupefatas. Houve grande clamor na terra e, mal Xangô desapareceu,
tornou-se rei”.
o culto do Orixá, atribuindo-lhe no céu as mesmas preferências que ele tivera na terra
por certos animais como o carneiro, e por certos comestíveis como o quiabo etc.
manter seu culto. Esse conselho foi organizado com os doze ministros que, na terra, o
do herói na memória das gerações. É por este motivo que, num terreiro da Bahia,
consagrado a Xangô Afonjá, doze ogãs, protetores do templo, têm o título de ministros
de Xangô.134
134
Tavares (2000) informa que a criação do corpo dos obás de Xangô na Bahia é atribuída a Mãe Aninha,
do Ilê Axé Opô Afonjá, em 1935. Segundo o autor, os obás de Xangô têm funções litúrgicas,
principalmente no ciclo de festas dedicado a Xangô, mas também as exercem em todas as festas e
cerimônias por sua “preeminência hierárquica”. Os obas têm ascendência sobre os ogãs, que são ministros
dos outros orixás. Os obás seriam “ministros mais graduados”, reis de uma corte mítica de 12 reis iorubás
sob a hegemonia do rei de Oyó, o “super-rei”, orixá, Xangô. Por ocasião do lançamento do livro de
Tavares, entre os que ocupavam o cargo de obás de Xangô no Opô Afonjá estavam o escritor Jorge
Amado, o pesquisador e escritor Muniz Sodré e o músico Dorival Caymmi (p.53-57).
137
de Xangô:
seguindo o seu odu, caminho, que é uma lenda, que é uma canção.
(Ibid., p. 70-71)
135
“As cores simbólicas ou heráldicas de Xangô são a vermelha, sua cor característica, representando o
fogo, mais a branca, indicando sua origem em Oxalá, a marca da paternidade que não é renegada mas
incorporada” (Tavares, 2002, 71).
138
x feminino, inocente x culpado, bem x mal, e o oriental yin x yang” (p. 104-105).
qualidades que, a rigor, são outros orixás. Xangô possui doze qualidades
interagem: além do orixá principal, uma pessoa tem ainda o “adjuntó” (terceiro
orixá) e pode ter outros orixás disputando a sua cabeça. Isso faz com que os
humana:
136
Como as classifica Zacharias (1998, p. 84), em contraposição às religiões de pluralidade, em que cada
uma das divindades coexiste com “personificação própria”.
139
Iansã e Oxum:
Eles haviam acendido um fogo atrás do lugar onde seria a luta, pois queriam
mas eles o empurravam para o fogo, porque eram três contra um.
Oxum.
Não será possível, nesta pesquisa, dar real atenção a esse aspecto na
comportamento humano estão presentes nas ações dos orixás, fazendo com
140
que seus filhos tenham uma idéia aproximada do destino ao qual estão
No contexto desta pesquisa, cabe registrar que, ao saber que Xangô tem
uma vida amorosa agitada, intensa, a figura de Xangô se fortaleceu como uma
(Campbell & Moyers, 1988), para quem todos os mitos lidam com a
guerreiros e nos orixás de fundamento de sua vida, cultura, raiz e coesão, pois
culturais entre escravos que, às vezes, nem tinham esse culto em África, mas
Ser um homem livre é a preocupação de Ilícito. Por isso ele entende que
terreiro por se sentirem bem naquele ambiente, são bem-vindos. Essa forma de
fato de que
137
Para o espiritismo kardecista, trata-se do “laço” que une matéria e espírito. Envoltório sutil e perene da
alma, que possibilita sua interação com os meios espiritual e físico. Empregada pela primeira vez por
Allan Kardec, no item 93 de “O Livro dos Espíritos”. Alma e perispírito constituem o espírito (Fonte:
guia de estudos e pesquisas a respeito do Homem, Espírito e Universo:
http://www.guia.heu.nom.br/perispirito.htm. Acesso em 17/08/2007).
138
Em situação relatada após essa entrevista, mas que ele próprio associou a esse momento da pesquisa,
ele chegou à casa de um rapper em Salvador, Bahia, e sentiu que já havia estado ali antes. Ao comentar
isso com o rapper que estava visitando, o comentário dele, que é filho-de-santo, teria sido: “é que somos
filhos de orixás que chegam antes. Nossos espíritos chegam antes”.
143
É estilo de vida, é uma forma de ser, entendeu? E... que nem, os caras lêem o
Antigo Testamente, lêem a Bíblia Sagrada.
O que Ilícito não quer para si é também o que a tradição iorubana não
são definidas pelos contextos específicos e não podem ser entendidas como princípios
(Ibid., p.316)
da palavra escrita para existir. É por meio deles que pode haver uma
Uma parada que a gente viaja no daime é isso. Passar várias entidades,
de ter vários leques abertos, de ter várias linhagens, desde o mestre Irineu,
139
Jacky GOODY, “A lógica da escrita e a organização da sociedade. Lisboa, Edições 70, 1987.
144
O Adoniran Barbosa fala ‘eu fiquei a vida inteira cantando errado e todo
mundo ria de mim’. Um dia um descobriu, estorou, ‘e agora todo mundo tenta
falar errado’. Até pra falar errado tem que saber entendeu? Uma das coisas
que a sociedade tem preconceito com o rap é isso, que a gente fala muito na
gíria, tem vários dialetos que... O (Geraldo) Alckmin lá acabou de inaugurar a
biblioteca de língua portuguesa, tá ligado? Em 2006 eles conseguiram acabar
de vez com o iorubá, o tupi guarani, cortar cada vez mais os dialetos e impor o
português que é a quarta, quinta língua mais falada no mundo. Isso aí vem
sendo feito desde o início do século 18, 19... Até 1900 e pouco, a gente falava
vários dialetos que é uma parada que depois os tropicalistas vieram falando
que a gente falava brasileiro e tal. Se um país fala tupi-guarani com mais de
cem dialetos, pegando todas as etnias indígenas, pegando também todos os
povos africanos que veio. Uma grande parte falava ioruba, porque foi a língua
que tiveram que se adaptar, né?, pra que tivessem uma informação e mais
comunicação entre os negros do Brasil, porque vieram de toda parte da África,
145
livre é o que luta contra a doença e o seu papel é combatê-la. No combate, não
140
A esse respeito ver CASTRO (2001).
141
A respeito da relação entre saberes africanos no Brasil e novas pedagogias para a produção de
conhecimento, sugiro a leitura de Vanda MACHADO, “Ilê Axé: vivências e invenção pedagógica – as
crianças do Opô Afonjá”, Salvador (BA): EDUFBA, 2002; e Nelson PRETTO & SERPA Luiz Felipe,
“Expressões de sabedoria: educação, vida e saberes – Mãe Stella de Oxóssi e Juvany Viana”, Salvador
(BA): EDUFBA, 2002.
146
O hip-hop, como uma rede, uma matriz, viabiliza esse contato com o
Ilícito foi escolhido para esta pesquisa por ser considerado um sujeito
caminho escolhido por outros, uma vez que o aumento gradativo dos que
que vão para assistir à festa) e para consultas aos búzios têm aumentado
verifica143.
142
Fazendo uso da proposta do professor Juarez Xavier, por ocasião do exame de qualificação desta
pesquisa realizado em 08 de abril de 2007.
148
necessária a metamorfose.
A semana que vem você vai vim falar comigo e eu vou tá diferente, meu.
Cada dia eu sou uma pessoa. Tento empilhar os livros no lugar e vejo que no
final da noite as coisas que eu tentei concluir durante o dia estão... pelo menos,
concluídas. No outro dia, mais um dia. E uma coisa de cada vez. Um tijolo de
cada vez, entendeu?
143
Informação de Juarez Xavier. Vide nota anterior.
149
144
Para palavras inteligíveis e grafia correta dos versos, a partir da declamação de Ilícito houve
conferência junto à versão do poema que consta do livro “O negro em versos: antologia da poesia negra
brasileira” (SANTOS; GALAS; TAVARES, 2005).
151
8 Considerações finais
normatividade social coercitiva, por uma única verdade dogmática, mas pelo
Américas...
tratar e ser tratado como igual. Se há uma dimensão que pode ser
formas de fundamentalismo.
afrodescendente. Ele busca jogar luz sobre essas culturas para que possam
figurar ao lado das demais, nenhuma delas à sombra, todas expostas à luz.
“Quem é periferia, diga yo! Quem é centro, diga yo! Quem é branco,
negro, indígena, diga yo-yo-yo”, ele diz para a platéia nos shows. O “yo” do
que, como foi explicitado nesta pesquisa, é o plural de “muntu”, ser humano.
Ilícito é uma pessoa que, como ele mesmo diz, a cada dia está
permite afirmar como ele vai ser: a direção que ele nos apontou no percurso
145
João Cabral de Melo Neto apud Antonio da Costa CIAMPA, 1987-2004, p. 36.
154
9 Bibliografia
BARBOSA, Neusa. Brasilândia: periferia zona norte. Revista Raça, São Paulo.
Ano 11, nº 106. P. 76-78.
CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos no Brasil. Rio de Janeiro, Top
Books e Academia Brasileira de Letras, 2001.
LODY, Raul. Cabelos de Axé. Rio de Janeiro: Ed. Senac Nacional, 2004.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SALAMI, Siriku (Prof. King). Ogum: dor e júbilo nos rituais de morte. São Paulo:
Oduduwa, 1997.
SILVA, E. et al. Luiz Gama: poeta e cidadão – memória da luta negra em São
Paulo. São Paulo: s.ed. [2004]
VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2000.
1 Anexos
Anexo 1: transcrição das entrevistas com o sujeito da pesquisa
Entrevista I
Sexta-feira, 27 de outubro de 2006.
Zona sul de São Paulo.
Ilícito, 28 anos.
Ilícito: “na hora em que o boteco está fechando eu sou um dos últimos, tá
ligado? Tipo, eu não tô preocupado com... (acende um cigarro) tô preocupado
de viver, sabe? Os caras... por isso que o mundo tá... o pessoal almeja
sucesso, almeja fama, ibope, dinheiro, pá, acredito só num lance que é
qualidade de vida, minha religião é o Corinthians e Deus é fiel.
(silêncio enquanto ele sopra a fumaça do cigarro, que sopra e não diz nada)
Ilícito: e tem meu trabalho, que é a minha obra, da minha vida. As pessoas só...
hoje como tudo é imediato, é só pesquisar. Minha vida é uma pesquisa. Uma
162
alquimia, né? Que nem fazer um rango, adoro misturar os ingredientes assim.
É isso. Minha vida tá em torno da minha obra. E minha obra não tá nem na
metade, tá ligado?
(silêncio)
Liliane: e o que é a tua obra? (o celular dele toca, interrompemos pra ele
atender. Ele desliga o aparelho. Voltamos à entrevista. Ele fica parado,
esperando que eu recomece).
Ilícito: oi?
Liliane: sua vida gira em torno da sua obra e sua obra não tá nem na metade, é
isso? O que é a sua obra?
Liliane: eu queria pedir pra você falar mais dessa coisa do não ter religião.
Ilícito: minha religião é o Corinthians. Eu não tenho essa religião dogma, né?
Essa coisa... eu tenho o meu estilo de vida rasta, minha filosofia de vida rasta.
Não como carne, sô vegetariano não tão radical assim. Mas eu acho que a...
rasta cê alcança uma elevação espiritual e na vida de conquista em várias
outras coisas que você se torna um rasta com o tempo, então o importante é
partir de algum momento. Minha filosofia que eu, que eu me aproximo é o lance
rasta. Convivo hoje muito com os irmãos islâmicos, tô ali com o Corão ali
assim, com bastante presságios do islão, que eu acho que é uma religião de
resistência, ir prum templo, vô, sem nenhum problema, leio, pra mim tudo é
163
informação. Acho que a religião educa o povo, tá ligado?, muitos tão esperando
Jesus voltar pra mim ele já veio e tá voltando de novo, tá ligado? Minha família
aqui é espírita, altas famílias são protestantes, outras, a maioria são católicos,
eu tenho orixá no meu corpo, acredito nos primeiros habitantes da terra, na
ligação forte com o candomblé. Gosto de tomar bebida de poder, tá ligado?
Liliane: e você pode falar um pouco mais dessa parte em que você falou de ter
um orixá no seu corpo. Morando no seu corpo?
Ilícito: não, tenho tatuado. Tenho tatuado Xangô. Eu cultivo muito os orixás.
Tenho o maior respeito com o sincretismo religioso africano e também pra mim
é um processo de trabalho espiritual. Você chega numa evolução e eu tô nesse
processo. (sopra a fumaça e faz silêncio)
tribo dos Kaxinawá. Tem cada tribo indígena mais no norte da Amazônia que
usam planta de poder, cada um tem o seu ritual. Eu tive a satisfação de
conhecer um jovem que veio estudar aqui, lá da tribo..., príncipe da tribo, né?,
filho de um grande pajé, que ele tinha o ritual do “unipai”, eu gosto dessa
parada de planta e poder. Tinha um bruxo, um amigo meu que já faleceu, que
era paraplégico, ele viajava muito nesse lance de transcender. É loco. Hoje a
gente vive na quebrada que é um lance quimical, eu na verdade curto mais um
lance das plantas de poder. (Silêncio). Mais pra abrir a percepção, a
consciência, entendeu?, pra lidar com as coisas do mundão, que hoje pra sair
pro mundão, nossa, tem que ter mó mente mil grau, agir na pura calma (rapeia)
‘o processo é lento, o barato é loco’. Que nem eu tava ouvindo um repentista
tem uma música que ele fala isso, né?, ‘o processo é lento, tô desarmado’. Mas
a gente fala que é época das colheitas, né?, reparação, época das colheitas.
É... Época das colheitas.
Ilícito: É isso, entendeu? Como assim?! A gente plantou, agora tem que colher,
né? E é o ciclo natural do ser humano que trabalha. Ser beneficiado com o
fruto do esforço dele, né? É natural. Agora pra muitos, (é o que) tô falando
entendeu?, vitória é qualidade de vida, dar tranquilidade pra minha família,
poder continuar transformando o que tá a sua volta, entendeu?, porque não
adianta mudar pra você sendo que a sua volta tá a mesma merda, entendeu?,
então pra mim essa situação continua a mesma só que eu sou um ponto de
ligação que posso transcender e levar muito mais coisas. E pras pessoas podê
acreditar que eu posso levar isso a eles, eu tenho que tá bem. Só que o
momento não tá bom pra ninguém. E aí que tá o mundo ilusório, da arte, da
fama, de você achar que é antes de ser. Por isso que eu acho que a parada
gira em torno da obra, do que você constrói. Tava ouvindo... eu fico ouvindo
aqui uns tiozinhos... o Adoniran Barbosa fala ‘eu fiquei a vida inteira cantando
errado e todo mundo ria de mim. Um dia um descobriu, estorou, e agora todo
mundo tenta falar errado’. Não consegue, porque até pra falar errado tem que
saber, entendeu? Uma das coisas que a sociedade tem preconceito com o rap
é isso, que a gente fala muito na gíria, tem vários dialetos que... O Alckmin lá
acabou de inaugurar a biblioteca de língua portuguesa, tá ligado?, em 2006
eles conseguiram acabar de vez com o iorubá, o tupi-guarani, cortar cada vez
mais cortar os dialetos e impor o português que é a quarta, quinta língua mais
falada no mundo. Isso aí vem sendo feito desde o início do século 18, 19 que
os... (não completa a frase). Até 1900 e pouco, a gente falava vários dialetos
que é uma parada que depois os tropicalistas vieram falando que a gente
falava brasileiro e tal mas até ins...(não termina) se um país fala tupi-guarani
com mais de cem dialetos, pegando todas as etnias indígenas, pegando
também todos os povos africanos que veio que era (não termina), basicamente,
uma grande parte falava iorubá porque foi a língua que tiveram que se adaptar,
né?, pra que tivessem uma informação e mais comunicação entre os negros do
Brasil, porque vieram de toda parte da África, entendeu? Então a gente falava
iorubá, também. Vieram cortando com o lance do português. Então o lance do
brasileiro é de falar brasileiro, porque a gente mistura aqui todos esses
costumes que foram cortados pela sociedade, pelo grande centro. E a elite não
tem conhecimento. A gente às vezes vai numas festas aí, nuns casarão, e os
165
Ilícito: não sei se sou tudo isso. Nóis somos né. Faço parte dessa, desse...
minúsculo grão de areia onde você é um ponto de ligação que brilha tá ligado?,
às vezes cê tá na praia cê vê um grão de areia que brilha mais que os outro,
entendeu, é um ponto de ligação que pode fazê com que a galera que tá
passando olhe praquele tanto de areia, entendeu? (traga o cigarro e sopra.
Longo silêncio). Cê num acha?
Liliane: Eu gostei dessa história do grão de areia que brilha e que faz com que
as pessoas olhem, aquele grão de areia que brilha faz com que as pessoas
olhem praquele monte de areia, é isso?
166
Ilícito: é. (ri e sopra a fumaça do cigarro). O problema que rola é quando esse
grão de areia acha que ele é uma estrela (dá risada).
Liliane: hmmmmm...
Ilícito: quer brilhar demais. Por isso que tem uma música do Varal, que é uma
banda de reggae aqui da quebrada, que ele fala (cantando) “desapegando do
plano material seguindo os meus passos sei que vou chegar, raggamuffin style
the roots, raggamuffin black and blues, quero ver a queda da Babilônia,
conquistar a paz para caminhar desapegando do plano material seguindo os
meus passos sei que vou chegar”.
Liliane: “desapegando do plano material, seguindo os meus passos sei que vou
chegar”... (cantarola, em ritmo de reggae)
Ilícito. É (pequeno silêncio). Enquanto os cara usa ouro, a gente usa a arte dos
mestres que entorta arame (mostra os braços, cheio de pulseirinhas). “Cada
um no seu skate”, que nem diz o Bocão (silêncio). Né não? (sorri e faz silêncio)
Liliane: então me fala desse “não pára de se transformar”. Como é que é isso?
Ilícito diz algo incompreensível, resmungando baixinho. “Sei lá, é que nem o
hip-hop meu. O hip-hop não cresce o tempo inteiro? Os cara acha que é só
música. Não é só música. Tem muita coisa acontecendo. Mutante memo”.
(silêncio)
Ilícito: é ser universal, mano. Todos os lugares do mundo que eu já fui, tem um
irmão que é que nem eu (assopra a fumaça do cigarro). Iss´é da hora.
Independente da etnia dele. O problema do Brasil é étnico, tá ligado? O lance
de não saber respeitar as etnias. Muito mais que a pigmentação e a cor da
pele, é respeitar as etnias, entendeu? As etnias indígenas, africanas,
européias, árabes, toda a influência mundial, que a raça do planeta tá aqui.
Todas. Os orientais... tudo. É saber respeitar isso. (ainda que) as colônias de
cada país que não perderam as suas origens. E o mais loco disso é que já se
misturaram de uma forma que eu vejo que foi tão agressiva quanto a norte-
americana e talvez até muito mais porque trabalhou no inconsciente do povo,
tá ligado?, mas que é loco, que é o caldeirão das raças, caldeirão do mundo, e
eu luto contra o racismo, acredito nisso, luto contra as diferenças, as
indiferenças, minha luta é baseada no lance étnico, tá ligado?, de como a
sociedade brasileira, onde o racismo é implantado nas leis e foi jogado pro
povo, como lidar e respeitar as etnias, é problema étnico. Assim como o negro
teve várias definições, eu fazendo música de preto também, tem várias
definições quando eu ando pelo Brasil, tá ligado?, me chamam de várias
formas, tá ligado. O último foi “africano de pele clara”. Eu acho que é um lance
que vai além da cor da pele, é um lance da poesia de uma poesia que fala “que
a pele negra não seja escudo para os que habitam na senzala do silêncio
porque nascer negro é conseqüência, ser é consciência”. É isso. (Ele mexe a
cadeira e o barulho não me deixa entender as duas primeiras palavras d frase
seguinte). ... o conhecimento, que é a definição do quinto elemento, né?, dos
cinco elementos que o hip-hop contém, tem uma música do [norte-americano]
KRS-ONE que é “Nine Elements”, tem uma música que fala de 12 elementos,
outra que fala que tem 20, então, com tantos elementos, elementos que
queriam transformar em elementos, o [Áfrika] Bambaataa1, os caras falaram
“não, é quatro elementos da forma original – o MC, o DJ, o b-boy, poping,
locking, dança original, dança de rua; grafiteiro, e o conhecimento”. Cinco
elementos. Pronto. E o conhecimento engloba tudo. Engloba tudo não: adiciona
todas essas paradas que as pessoas acham que faz parte do hip-hop, tá
ligado? Por isso que eu falo que é mutante, porque tô ouvindo bastante “crunk”
do Lil John. Os muleques ainda não sabe o que é crunk. Mas é uma batida que
os caras faz lá fora e eu acho bem loco... é do hip-hop. Lá fora tão fazendo
“grime”, na Inglaterra. É hip-hop entendeu? Então tem coisa rolano... ouço
muito break beat, eletro funk, viajo nuns crônico, que a gente faz aqui, crônico.
Liliane: crônico?
Ilícito: é. Viajo nesse lance de Luiz Gonzaga, sabe?, de criar um ritmo, sabe? A
gente viaja, eu viajo nesse naipe. Criar um ritmo é da hora. Criar um ritmo, tá
ligado? Em meia hora os cara tão criando umas parada. Tô ouvindo “double
step”, é uma parada da Inglaterra também. Ragga-core é de fudê. Então tem
muita coisa. Hoje os cara denominaro tudo black, né? Os muleque não sabe
definir cada ritmo musical. Não sabe o que é um R&B, um Soul, um Funk ou o
próprio funk do Rio de Janeiro, um volt mix, ouvir um tamborzão... os meleque
1
DJ do Bronx (Nova York) fundador do hip-hop. Maiores informações em:
http://www.zulunation.com/afrika.html.
168
não define, é tudo black, tá ligado? Porque a mídia faz que nem fizeram com o
break dance, é original funk, b-boy, b-girl, popping, locking. Original dança de
rua. Aí vem um cara e fala “ah, é break dance”. Porque eles dançam no break
da música, né? A mídia sempre fez isso. E fizeram com o black agora.
Antigamente, o cara tinha que subir o morro para ouvir samba de verdade,
partido alto, tinha que ir pras favelas ou prumas festa de 1000 grau pra ouvir
show de rap. Agora inverteu. Tem que ir pra Vila Olímpia, mano (fala rindo). Só
que a gente faz uma festa nem que seja uma vez por ano, mas a gente faz as
nossas festas. E isso é mais importante, quando cê vê, várias quebradas tem a
sua festa uma vez por ano e tá chegando num nível que em cada fim de
semana tem uma festa em cada quebrada. Isso pra nóis é o mais importante.
São Paulo é grande, o Brasil é grande (acende o cigarro). Aqui não é uma festa
que é só pra intertê não, o bagulho é sério. A batida pode ser black, mas é
verdade e traumatismo, a idéia é mil grau. E existe esse rap norte-americano
que hoje é ostentação, e existe esse rap América Latina, o rap feito no mundo
que... de resistência, não tanto europeu, mas da América Latina em si, tá
ligado?, que a consciência dos hip-hoppers lá na Itália, na França tem essa
consciência latina, não todos lá que eu acho que é outra dimensão, os caras
tem as infra-estruturas, tem todo outro acesso. Mas existe um rap feito em
Cuba, um rap feito na Argentina, no Chile, muito cabuloso, entendeu? Esse rap
“undegrund” (sic), né?, por baixo da terra, isso que é louco meu. Poucos caras
vivem essa cultura, em São Paulo memo não tá tendo muito CD de grupo aqui,
difícil ouvi tudo assim, eu gosto de tá ouvindo coisa nova, ouvindo rima nova,
idéias diferentes, é mais um lance de entrar nas favela e conhecer os moleque
de perto, tá ligado?, é outro mundo do que o de quem só ouve 105, entendeu?
Muitos caras que não teve acesso não conseguem gravar, existe um mundo do
submundo além do terceiro mundo, do quarto mundo, sei lá. É loco. Por isso
que eu... , o lance do rapper da França parceiro nosso, que ele fala “som
universal, universal, universal” que é isso, cada pessoa é um universo,
entendeu, difícil se tirar uma conclusão de uma cidade porque aquela cidade
faz vinho, tá ligado?, e achar que as pessoas, todo mundo lá, fa vinho,
entendeu? Que ali, aquela cidade é..., é Cubatão é poluída, cê tá... tipo assim,
cada pessoa é um universo, entendeu?, você é uma cidade, um país inteiro,
um universo, entendeu? O mais loco é como você consegue fazê uma parada
universal que consiga chegar em cada universo que é o ser de cada pessoa,
entendeu? E hoje com essa parada tecnológica, esse bagulho que você tem
acesso a tudo, mas se você não saber procurar nesse... (não completa a frase)
nessa informação rápida, cê não vai achar o grupo. E não vai entender a
mensgem, entendeu? Isso que é loco. Tem cara que, pô, fala que ouve, que
pesquisa pra caralho, mas não conhece Dead Prez2. Então tipo... Agora um
moleque vai chegar de um, de outro, vai correr, dentro desses milhões de
informação, que vai correndo bem divagarzinho (fala devagar) bilhões e bilhões
de dados que vão sendo acionados até chegar nesse um que vai fazer o cara
brilhar. Então são pontos de ligações, entendeu? E o Grupo, nosso som
caminha nisso, até que esses pontos de ligação vai aumentando, vai
aumentando, até que chega num nível de Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Leci
Brandão, que são pessoas que já contesto, e que hoje, o povo já gosta e já é.
Ninguém vai mudá mais isso, não é uma propaganda de cerveja vai mudá a
2
Grupo de rap “underground” dos Estados Unidos, representante do rap norte-americano que não se
vendeu à mídia e que atua na luta anti-racismo e pró-direitos civis de negros e latinos nos EUA.
169
Ilícito: não. A compreensão é lenta né? cê tem que ter uma reciclagem, tem
que ir prum mar, tem que saber canalizá as paradas que é todo um processo.
cê recita a letra dez vezes, sai andando, depois de duas horas cê pega ela
recita mais duas veiz e esquece. No outro dia cê já aprende, já acorda
recitando ela, tá ligado. Depois de uma semana cê já quase aprendeu, na outra
cê já tá decorando, cê fica ouvindo, vai cadenciando, vai ficando melhor, cê vai
fazendo show, vai melhorando, aparece novas melodias, é tudo um proc... é
tudo sempr... vai evoluindo, né?, o lance é a evolução, né? Tem que pensar
primeiro na evolução, pra depois poder revolucionar, tá ligado?
Liliane: e você?
Ilícito: o quê? Eu penso dessa forma também, são pensamentos coletivos. Que
vença a maioria, e a maioria é o povo oprimido. Tá ali ó (aponta para o pôster),
Glauber Rocha: “sou um artista, não me exijam coerência”. Só que eu não sou
um artista eu sou um arteiro.
Ilícito: é. Sou artista pros autistas. Arteiro pros artistas. Sou arteiro pros
artistas... rapeia: “arteiro pra artista, frio e calculista. Altista, ativista, lê a capa
de revista” (ri)
Liliane: tua?
Ilícito: é.
Ilícito: não, ele tá em outra elevação cósmica. É uns cara de sangue verde, tá
ligado?
Ilícito: é, é. Só que numa outra parada, num outro reino. Não é bem lá nesse.
Lá até a polícia é diferente, lá tem o capitão Djamba. Aqui é a estrela do xerife,
lá é a planta da erva. A erva natural, que é de Gênesis, só não sei os capítulos
e os versículos. Se não eu te falava e cê pesquisava. Mas é Gênesis. Primeira
passagem. Naquele mais resumido cê vai entender. (ri). É esso o lance. Eu
viajo nesse lance de reproduzir umas paradas que tá feita. Mas de reproduzir
não de uma forma de você pegar catá e passá assim, sabe?, lê o que tá
escrito, borrinhá e fazê, não, eu não faço isso. Tiro minha conclusão daquilo
que existe. Por exemplo, qual que era o objetivo com o primeiro disco, era
traçar o caminho da origem do povo brasileiro. Da onde que veio essa galera?
Eu perguntava pro meu pai, perguntava pra outros parceiros, só sei que veio da
Cafelândia, da Cafelândia, num sei. Mas que etnia africana? Um parceiro meu
que se islamizou agora, irmão, servo de Alá, ele tá se transformando, tem a
mesma idade que eu e pô, africano que quando veio do interior de são Paulo
não sabe de nada e agora tá buscando suas origens. É loco. Então começamo
a traçar a nossa história do que é a periferia a partir dos quilombos. E é isso.
Eu tô toda hora pegando dos estudo, das coisas da rua, misturando as parada
que é..., eu sou da rua, nós somo da rua, hip-hop é da rua. E aí [vamos]
misturando essa parada da onde traçá, essa parada étnica do povo brasileiro.
Sempre traçando a história do povo. A mudança é aqui, né?, o rap é aqui. É
mundial, pro cara lá fora quando ouvir uma faixa do novo CD do grupo, “pô,
isso é feito no Brasil”, não é a reprodução de uma base norte-americana, tá
ligado?, que é o que a maioria faz. Não que isso seja ruim, mas primeiro a
gente tem que mostrar a nossa cara. Que eles sabem que aqui no Brasil (não
completa a frase). Aí cê ouve os caras lá pegando a nossa parada, vai lá e faz
do jeito deles, meu. Por que é que a gente não faz? Os caras sabe que aqui, o
celeiro musical nosso é nervoso, meu. E é isso assim... sempre tirando
conclusões daquilo que cê pesquiso, do que cê tá vendo, do que cê vive, e é
isso. Por exemplo, eu não fiquei satisfeito com o disco anterior, no disco novo
tem a música que fala que dos quilombos, porque os quilombos ainda existem
no Brasil, muitos não-titulados, outros ainda que não são reconhecidos e o
Brasil é um quilombo. Fora isso ainda tem o lance das tribos indígenas, que
hoje também é um grande problema de como se firmar dentro da sociedade,
porque a maioria são órgãos do governo que tão sempre interferindo, a maioria
deles quer a terra, os proprietário, sempre um cara vai lá e quer tirar a tribo
indígena e fazer como fez o... o... Dom Pedro I e seus amigos quando
171
descobriram (ri) é... a Bahia e fizeram um “resort” onde tinha uma tribo, tá
ligado? É isso que os caras querem fazer o tempo inteiro. E a gente vem
falando tipo... também da construção que não pára, entendeu, que aqui... já
ouviu falar dos bate-laje? É uma parada do sul da Itália, lá dos sicilianos, dos
calabreses, que é... minha família tem descendência lá daquela ponta da bota
da Itália e lá tinha os bate-laje que na Itália, nesse lado mais pobre da Itália, pra
fugir do imposto, então as pessoas, na Itália tinha uma lei que, não sei se
existe ainda, que você só termina a casa quando você põe o telhado. Então
eles nunca terminavam a casa, iam batendo laje, batendo laje, morava a
família, tinha três andar, e ele falava “não, a casa não acabou ainda”, era uma
das forma de não pagar imposto. Se você olhar agora na casa, a casa dos
meus pais, é a mesma coisa (pronuncia esta palavra rindo), então isso te dá
um pouco da origem, dessa trajetória e isso é uma viagem, tá ligado?, aqui a
gente tá em terra indígena, tá ligado? (rindo). É isso. E o hip-hop que deu essa
mente, tá ligado? Minha família, meu pai é sanfoneiro, eu cresci no forró,
conheço bastante forró, Bezerra da Silva, mas foi do rap, fazendo uma coisa
norte-americana-jamaicana, que eu fui voltando às origens. Hoje eu posso
cantar um forrozinho. É loco. Fiz um retrocesso do processo, que é o
“reprocesso”, que é o novo disco do Zé de Riba.
Liliane: ah é?
Liliane: e você?
172
Ilícito: ãh? Por que eu? Tira essa primeira pessoa, mano. Eu não acredito
nessa parada primeira pessoa. Eu sô terceira pessoa. É nóis, mano. Sei lá...
acho bem loco assim, até escrevo umas letras na primeira pessoa, às vezes cê
fala um pouco da sua opinião, eu não sou esse rapper primeira pessoa que só
fala dele. Eu sempre jogo uma idéia pra gente questionar. E a gente... Cada um
vai tirando as suas conclusões. Mas eu não sou esse rapper primeira pessoa,
eu não sô... minha parada é coletiva, eu escrevo pensano... como se um loco
poderia pôr no meu lugar um personagem que entrar num personagem e viajar,
entendeu? Ser o personagem... a que opinião serve pra todos. Que vai bateno
em cada um de alguma forma. Quem tem meno (não termina). Quem tiver m...
quem não tiver dor no coração vai se diverti, tá ligado? Os rancoroso vão sofrer
um pouco, e as criança num pode ouvir, por exemplo. Tem coisas que as
crianças não pode ouvir. Mas as crianças crescem e elas vão se preparar pra
ouvir essa parada (ri). É isso. O lance de poder é... tá criando o tempo inteiro.
Lance que, a periferia, tem muita coisa pra mostrá porque é isso, sabe?,
demora tanto pra poder mostrar as parada, que eles vão criando, vão criando,
e depois vem a enxurrada... enxurrada (diz, sussurrando).
Ilícito: eu penso que... a minha infância assim, hammm... foi ligada... ao futebol,
assim. Eu jogava bola, ia pros clube, eu gostava de jogá bola, e como acabou o
futebol, acabou a infância e aí fui trabalhar e eu depois eu lembro disso como a
rua só, trabalho, rua... fui muito cedo pra rua trabalhar assim... e aí eu... como a
rua... a gente chega na rua tipo aí ó... eu curti a minha infância mas trampando,
fazendo uns corre, sempre fazendo uns corre, inventando coisa. Aí com uns
13, 14 já tava fazendo um..., já tinha uns grupo de rap assim já e já tava (não
termina), a mente já tava mudando já. Trampava de boy já. Eu lembro que com
uns 11, 12 já entregava lanche na Paulista. Entregava lanche na Paulista...
Trabalhava num baguio na... na Galeria 2001 que chamava “Porto Mamão”. Aí
a gente fazia os lanche e ia entregá os lanche de bandeja, tá ligado?, na
Paulista, nos escritório. (foi) o primeiro trampo meu. Depois fui trampá de boy...
Na Brigantonio Luiz Andero (sic), sabe? Ali na Avenida Brigantonio Luiz Andero
(ri). Trampei de boy, de boy, depois de auxiliar de escritório p´a caralho, depois
trabalhei numa fábrica de... (não completa), trabalhei na feira, fábrica de não
sei o quê, lance de vidraçaria, ajudar na oficina, não sei o quê, vários bagulho,
hmmm. Depois trabalhei uns anos de escravo dentro de um shopping, nu´as
lojas de estoque, até que um dia assisti o “spock”, aí deu um “se toque” e saí
de lá, foi quando a gente foi pra Itália, quando eu voltei da Itália se decidi que
não ia ser mais escravo, e... tô em 2006 tentando ainda ser liberto (longo
silêncio). É isso.
O irmão dele interrompe pra dizer que chegaram dois colegas à procura dele.
Ilícito: a semana que vem você vai vim falar comigo e eu vou tá diferente, meu
(ri). Cada dia eu sou uma pessoa. Tento empilhar os livros no lugar e vejo que
no final da noite as coisas que eu tentei concluir durante o dia estão... pelo
menos, concluídas. No outro dia, mais um dia. E uma coisa de cada vez. Um
tijolo de cada vez, entendeu? Semana que vem você vai vim falá comigo e eu
vo tá outra pessoa. Essa coisa, eu acho que, o lance mutante que (não
completa; busca o texto do Luiz Gama de novo e recita). É... “quem sou eu”,
Luiz Gama, mais conhecido como “Bodarrada” (gargalha). Loco, né?
Ilícito: fácil, né? Mas se o cara não souber quem é ele, nunca vai chegar.
Ilícito: tem tudo. Conta a vida dele... fala um pouco do que é as palavras
difíceis.
Ilícito: imagina os cara “olha o que esse cara tá falando, mano?”. Um texto de
1859, é da hora3...
Entrevista II
Terça-feira, 7 de novembro de 2006.
Na vez passada você tava falando dessa coisa da terceira pessoa4, do coletivo,
e da questão da sua vida ser em torno da sua obra. Não é isso?
Ilícito: ahã.
Liliane: então pra além da obra, tem alguma coisa que você entende que faz
parte dessa terceira pessoa, disso que é você na terceira pessoa?
Ilícito: assim, tipo, o lance que eu faço assim... é o lance de... um ofício, sabe?
Uns nasce pra ser comerciante, outros... eu nasci pra fazer essa parada,
entendeu? E vou usar, tipo, do lado da arte, desde a poesia, chegando no
ritmo, o que eu puder pra mim viver disso. Aí eu, o lance que eu falo que é
coletivo, é terceira pessoa porque, no lance da arte no caso, que é o ofício que
3
O poema foi transcrito no fim do capítulo 7.
4
Ele havia chamado de “terceira pessoa” o que corresponde gramaticalmente à primeira pessoa do plural.
Usei o termo dele.
174
eu escolhi, é uma parada que eu posso fazer trezentas mil idéias, sabe?, e de
diversas formas. Pode passar todas, todos os universos, eu tu ele nós vós eles,
tá ligado? Mas é o público que decide. Por isso que eu falo que é coletivo. E a
parada..., quando eu falo que gira em torno da obra, porque, por exemplo, eu
acho que foi no ano passado que comemorou 100 anos, ou foi nesse ano, de
Pixinguinha, então assim demorou muito pra o Brasil entender o que é
Pixinguinha, depois de 100 anos, sei lá, da existência dele, as pessoas
começam a entender um pouco essa parada. Então o lance de fazer arte é
bem loco, como um cara que faz um carro, projeta um prédio, que fica por
muito tempo, entendeu?, e é isso que eu quero fazer. Agora se eu acho que a
parada hoje [e muito... , gira em torno do material, do dinheiro, da vaidade e do
poder, tá ligado? E a parada que me, que eu sempre propus, da forma que eu
vim, desde que eu era pivete, foi sempre o trabalho coletivo, eu acho que nada
se faz sozinho, entendeu? E eu sempre fiz trabalho em grupo, hoje eu chego
num momento em que eu também tenho que fazer alguma coisa minha pra
mostrar o meu “eu” pras pessoas também, entendeu? Mas eu só vou conseguir
fazer isso quando essa parada coletiva estiver bem estabelecida, entendeu?
Acho que é uma coisa que ainda está em processo, tá em andamento. Muitas
coisas tão acontecendo e tá tudo em torno de um desdobramento. Vai ser
dessa vitória coletiva, entendeu, que eu também talvez vou poder mostrar mais
meu “eu”, eu acho. Agora, a parada não gira em torno de uma pessoa só,
sabe? São várias pessoas pra concluir uma parada que ainda é muito pouco do
tamanho que é isso aqui, entendeu?
L: agora, quando você vier a fazer o seu trabalho solo, pessoal, o que que você
acha que vai ter de diferente desse trabalho que é coletivo?
dinheiro, da fama, sabe? Minha parada...,sei lá, o grupo legal, um grupo que eu
projetei, vejo como um grupo que é feito pra tomar dimensão a nível de Brasil,
se precisar ir lá beijar na boca da Hebe eu vou, já falei, tá ligado. Chego lá e
beijo na boca dela, porque o grupo é pro Brasil ouvir, que nem outros rappers
importantes precisam ser ouvidos, então a gente precisa saber quem são
esses caras, entendeu? E o grupo, dentro dessa legalidade, eu tô pro que der e
vier, tô preparado, tô pronto. Agora, pra não virar esse cocozinho que o Skank
virou, tá ligado?, eu vou fazer um bagulho ao contrário, tá ligado?, os caras
quer pop de quatro minutos, eu vou fazer uma depois de 15. Pra quem não tem
saco de ouvir música de quatro, música pop. Só não quero entrar no
esqueminha, de ser coadjuvante de outro artista, tá ligado? Eu faço uma
história, que gira em torno do hip-hop, do grupo, de todos os grupos que a
gente fez de base, de todas as entidades que a gente passou, aí depois vem o
time de futebol, seis anos da....(não completa). Todos os países que a gente foi
da Europa, o trabalho com outros grupos (ele fala dos grupos formados por
rapazes de classe média)... O trabalho que a gente desenvolveu dentro da
cultura hip-hop, entendeu? Então não é “pipoca”, não é um bando de moleque,
sabe?, e as pessoas na maioria das vezes, vê a gente sangue bom, não vê a
gente fazendo cara de mau, que nem os monstros do rap faz, e a gente sabe
que a gente é bom do coração, a gente às vezes perde muito com essas fitas,
tá ligado? Então assim, eu não tô mais pra provar porra nenhuma pra ninguém,
sabe?, não quero saber se as pessoas acham se eu sou branco, se sou preto,
tá ligado?, e foda-se, eu sou universal, a raça é humana, quem vim bater de
frente comigo, eu tô preparado pra qualquer fita, e... sabe?, eu sou positivo,
não sou esse lado negativo. E o rap, o dia-a-dia dos monstros, o mundo
capitalista, me deixou um monstro, tá ligado? De chegar até a interferir dentro
da minha família. Então eu não deixo mais, cara, desencano, tá ligado? A
ilusão é uma ilusão. Só você ir pros bailes black à noite cê vê como que é a
ilusão. Que é a reprodução norte-americana. E po, cada um no seu skate. Às
vezes eu vou pro salão, lá, pra reprodução norte-americana, fumar maconha,
catar umas minas, beijar na boca, tá ligado... o lance que eu encaro hoje é isso
assim, fazer as paradas mais sérias, acumular as experiências que a gente
acumulou em diversas oportunidades que a gente teve na vida e tentar ser um
cara positivo a cada dia, agora... o meu trampo mesmo assim é pra pirar, é pra
deixar... que nem o Raul Seixas falava “eu vim pra pirar a mente de voces”, tá
ligado? Eu vejo muito os cara entrando no esqueminha, porque há necessidade
no nosso mundo, a gente nasceu pra ser pobre, pra mudar isso aí na vida é um
grande dilema. E muitos encaram isso como um trabalho, e é isso. E vai
embora, e vai indo. Cada um tem sua ética, faz o que acredita, eu caminho
pelo certo, já não sei mais o que é errado também, acho que sabe o que é
certo é quem tá passando pela dificuldade. É isso que eu falo, assim, pra mim,
as duas energias correm juntos memo, não tem o mal, o negativo, o positivo, a
legalidade e a ilegalidade... o brasileiro tem essa origem, todo brasileiro é
contraditório e ilegal, é isso. Agora... num sou pop, sou popular. Sou do hip-
hop, eu não sou pop. O único pop que eu gosto é dos popping, quando tão
dançando depois dos locking... agora, o rap no Brasil caminha pro reggaton,
pop, tá ligado? Caminha pras parada “crunk”, pop, sem letra, e é disso que...
vixi... tô pra pirar a mente dos caras porque tô em outra pegada.
música pop que é vendida, que a gente vê no Multishow, que a gente vê nas
TVs tal, mas o hip-hop de verdade, feito na militância, que é essa parada desde
a criação, de todos os seus quarteirões, sempre em algum lugar do mundo tem
alguém se organizando e isso não mostra, mas a gente sabe que tem. E é
nesse trabalho de base que vai aparecendo os artistas que a gente tem hoje de
qualidade entendeu?, se não existisse isso, se não existisse esse trabalho de
base, se não tivesse enraizado que nem, a visão que eles têm, dos norte-
americanos, é que não tem mais isso, como se o hip-hop não tivesse mais a
sua forma original, grafiteiro, tal, mas continua do mesmo jeito só que o que tá
sendo vendido pro mundo é essa parada “business”, imitadora, de grana.
L: mas é a família da sua mãe, por parte de mãe? E por parte de pai?
Ilícito: também mora na região. Meu pai foi o primeiro e trouxe todos eles, né?
L: e você acha que o seu lado artista tem a ver com ele?
Ilícito: tem a ver com o meu pai sim. Porque sempre quando eu era pequeno
ele tocava, né? Sempre ele tocou, fez forró, fez... e eu ia nos forró aqui quase
todos com ele. Então eu lembro muito disso... Lembro das Diretas Já, 84/85,
meu pai tocava nas campanhas do PSDB, a sanfona que meu pai tem é do
Serra, o Serra é que deu pra ele.
filho do meu padrinho. Aí ele não podia sair... meu padrinho é negro, minha
madrinha, meus primo, tudo... e a gente cresceu junto aqui né? Só que... Eu
vejo assim né (gagueja um pouco), não sei se eles gosta que eu falo isso, os
moleque, não deixava ir pra rua, eles tinham muita disciplina com os muleque ir
pro mundão, pra rua. Eu eu já era do mundão. E a gente fazia rap junto,
começou a escrever junto, aí como eu comecei a sair pra rua pra cantar, eles
não deixavam acho que ele sair assim pra cantar, pra fazer as doideira que
eu... e eu sempre fui da rua. E o moleque tinha mó talento. Se ele tivesse
corrido comigo até hoje, ele tava mil graus... só que, ele se adap... os
muleque... os muleque manja computação, faz site, esses bagulho. Os
muleque já entrou num outro universo e eu fui pra rua. Fiz o inverso. Minha
vida era regrada tudo pelo inverso. Era tudo o contrapunto (sic) de tudo. Desdo
som que eu faço é o inverso. Os caras quer fazer um som mais pesado,
gangsta, o meu é “cangsta”, do cangaço. Eu invért..., eu inverto tudo. Né?,
essa idéia de não fazer a mesmice do que já existe, que era tudo era cópia
duma cópia, então eu mesmo não ser uma cópia duma cópia. Com essas
idéia, tá ligado?, inverter todas as parada. E confundir a mente.
L: mesmice?
Ilícito: é...
L: envelhecer?
Ilícito: hum?
179
L: pensa em envelhecer?
Ilícito: só se for a carne só, que eu quero ficar vivo. (silêncio de alguns
segundos). Pra não ser um morto-vivo. Prefiro ser um vivo-morto. Não, um
morto-vivo... um Zumbi na verdade. Zumbi de todas as formas, entendeu?
(silêncio) Ah, acho que essa parada é atemporal também, toda essa parada,
tipo, cu’a, cu’a... a carne vai e o espírito tá aí meu. E o lance da arte tá ligado
nisso, tem coisa que você pode imortalizar, entendeu? Agora que existe um
outro plano, existe sim, né, meu? É que nem o moleque quando enfia o anel do
“Senhor dos Anel” (sic) que ele entra naquele baguio meio vultuoso assim,
acredito que tem um outro plano sim... com certeza... uma coisa que, sei lá...
não vou contrariar a vontade de Deus, mas eu não vim pra ficar muito tempo
nessa parada não... vim pra fazer uma parada bem loca e camba. Eu sinto
isso, no coração assim... mas se também ficar veinho, não vou reclama não...
(silêncio)
L: eu tinha perguntado....
Ilícito: sobre isso... pra mim, o processo mais difícil da coisa foi isso, me
assumir como branco.
L: e você é branco?
Ilícito: sou. Porque... o lance tá na ligação muito da pigmentação, né? Vai muito
mais além dos traços e... se falar “sou afrodescendente”, eu sou, entendeu?
Agora, é visível que eu sou branco, entendeu? Agora, isso aí, pra mim, foi difícil
de assumir. Até fiz um refrão esses dias que eu vou usar. É... que é bem isso,
pra mim foi um processo. Porque um lance que eu não aceitava dessa coisa do
branco que, que... que era esse lance de todos caras que... essa dominação,
toda essas... sistema hereditário. A visão que ainda foi implantada pros dias de
hoje, entendeu? E ainda... o branco continua sendo superior em tudo, né? Até
tava na Ba... Tava na Bahia lá um cara veio discriminar assim, “ah, ceis...”, na
hora que eu falei assim que o Ecad5 era lavagem de dinheiro, a mulher
levantou! A mulher do Ecad, né?, Lógico, reacionária até umas hora, a mulher
levantou. Ela atravessou no meio da minha palestra, aí um muleque falou
assim “ah, ceis são branco, que se entendem!”, né? Aí eu falei pra ele “ó véio,
eu sou branco sim, mas não sou esse branco que tu tá falando não , véio”. tá
ligado? Aí depois ele falou assim “não tenha medo de dizer que t.. é.. não
tenha.. não precisa ter vergonha de dizer que tu é branco que eu não tenho
vergonha de dizer que eu sou negro, tá ligado?”, ele falou pra mim. Aí eu não
quis estender a história que não valia a pena. Mas ele discriminou. E é isso que
é um bagulho que é louco no Brasil, tipo, se o negro é discriminado, o racismo
tá implantado, e é institucional, que é verídico, isso acontece diariamente no
5
Escritório Central de Arrecadação e Distribuição - sociedade civil, de natureza privada, instituída pela
Lei Federal nº 5.988/73 e mantida pela atual Lei de Direitos Autorais brasileira – 9.610/98 para recolher
direitos autorais da execução de músicas em veículos de comunicação no Brasil . (Fonte:
www.ecad.org.br)
180
L: e família sua? Da outra vez você falou alguma coisa sobre constituir família...
Ilícito: eu também que... sempre fui... sei lá, sabe? Mas a rua me deixou um
pouco meio sequelado, e agora eu tô mais nesse momento família mesmo. E
eu acho que na vida cê só é... (serra). Artista é o caralho, que faz filho. Esse é
um verdadeiro artista, tá ligado? Então, a vida só... só... só leva aquilo que cê
deixa aí, né? Várias sementes de Abrahão, de Adão (ri). Várias sementes que
vão ficando e... e... o lance de família que também é isso, sabe?, que chega
uma época da vida que você tá descobrindo umas parada, tem um monte de
gente ao seu redor, depois as coisas vão se subtraindo cada vez mais que a
sua vida se subtrai em sentidos principalmente materiais, porque o espiritual
não força, tá ligado?, e aí que cê vai ver que é a família mesmo que resta, tá
ligado?, isso é natural da montanha, cê só monta aonde cê tem que descer, é
natural... e a vida é assim mesmo, sabe? Ciclos e mudanças. Só que tem gente
que não vê isso, só quer ir por cima da montanha. E pra ir por cima da
montanha, cê tem que passar por cima daqueles que tavam... tá ligado? Essa é
a lei do egoísta materialista... passar por cima com um rolo compressor. É o
que os caras fazem... o que é muito mais é,... quando você passa por cima e
não pensa em nada disso, é muito mais fácil do que ficar pagando, pagando de
idéia, passar com o seu carrão, não sei o quê, mostra tudo o que cê ganhou
materialmente mas... espiritualmente é um bosta, sabe? Como pessoa, não
contribui em nada, né?, só que ostentar. Eu acho ridículo isso aí. Quero ter tipo
um barato pra ir pra cachuera, tá ligado?, pra mim acampar em Paranapiacaba,
tá ligado? Minha família nunca passou um final de ano na praia, sabe?, uns
baguio besta. E é um baguio que é mais... espiritual, sabe. A galera é muito...
eu conheço cara que compra até bolinha de beiseball, taco, tá ligado?, a luva...
182
(ri) é muito... sei lá... acho que é cada um no seu skate, entendeu?, mas tipo
enquanto os norte-americanos ficam mostrando lá os brilhantes, lá, tá ligado?,
os ouros, tal tipo... eu dou mais valor pro tiozinho que passa aí direto e entorta
os arames, que vende os bagulho artesanal, assim, acho da hora...
que eu..., tipo agora é o momento é tecno com b... com batida de rap, aí os
caras vai fazer um tecno com b... (não completa) tá ligado? “faz um pancadão
rimado” (como quem pede), aí os caras fazem um pancadão rimado. Não, não
é assim, peraí... é todum... sabe...é... tem uma linha de como se fazer um
tamborzão, um voltmix, os caras do Rio (de Janeiro). Tem uma linha de como
você fazer uma embolada, um repente na viola, um... é tudo uma linha, tipo tem
que ser respeitada essa linha, não é sair...(não completa). Tá ligado?
L: e voltmix é o quê?
Ilícito: é um ritmo do Rio, que nem aqueles tamborzão, pancadão voltmix. É...
tem vários nomes. (vai procurar pelo cd e não encontra). Acho que emprestei
esse CD... Acho que tá lá em cima, o do Teo Azevedo, que eu tava
pesquisando outro dia, que ele fala de diversas paradas.
L: ele é mineiro?
Ilícito: boa pergunta... Ele é do Nordeste, não sei bem de que cidade. Mas só
que ele é um grande produtor, né? E também cordelista. Já produziu muita
gente desse..., da música nordestina, da cantoria, do repente, da embolada, e
tem bastante projetos também é, em São Paulo, assim. Tem história, assim,
tem historia, ele vive em São Paulo. Ele é bem conhecido. Há uma ligação
entre hip-hop e o rap com a embolada e o repente, né?, o cordel, todo esse
universo, porque eu faço o que o meu pai fazia antes, só que agora com a
tecnologia, mas é o mesmo canto-falado, é isso que eu tô fazendo. Se o cara
tocar um pandeiro, eu faço uma embolada em forma de rap, se tocar a
sanfona, eu canto e se o DJ do grupo soltar uma batida de bumbo-e-caixa eu
rimo, se o cara soltar um drum’n’bass eu rimo, se o cara tocar um grime eu
rimo, se vim um tambor, eu faço um som, tá ligado. Fui no Maranhão, fiz um
som ao vivo com os cara, fui em Teresina, também fiz, então... na Bahia, dá
pra fazer com o Olodum. Viajei muito já acompanhando cortejo afro e rimando,
nas batida do Quilombo Vivo6. Então é infinito, é um universo... O MC é uma
evolução do canto falado, por isso que o rapper é o erudito, como que é o
repentista que toca viola, entendeu? É o erudito, aquele cara que estudou pra
produzir no computador, fazer as bases, escrever a letra, videoclip, é o rapper.
Agora, o MC, ele além de ser um rapper, é o cara que se aprofundou nas
técnicas base, nos trabalhos de respiração, nas métricas, nas orações, nos
motes, nas formas dobradas e desdobradas de rimar, aprendeu sextilha,
decassílabo, é... sabe?, passou por vários universos. Eu tô falando da coisa
regional. Tipo, vai lá fora, por exemplo, eu gosto muito de ragga-core, grime
muito me agrada, sabe?, que é essa batida feita pelos ingleses, o “dub step” eu
tô ouvindo, o crunck que é a batida do Lil John que eu sempre falo, o próprio
reggaton, que cê trouxe aqui, e esse rap feito na América Latina, a própria
batida dos franceis, por exemplo, é outro tempo. Então são vários ritmos, meu,
tá ligado? que se for pegar um lundu, jongo, é, o coco, é... sei lá, o maracatu, a
própria mandinga da capoeira, é infinito. Se você for pegar só os toques de
capoeira, são bento grande, tá ligado?, são bento pequeno, angola, não sei o
que, cavalaria, é uma infinidade, entendeu?, de ritmos. Tem cara que ainda
não consegue respirar esse universo. Então é ainda um, um, é um garimpo
muito grande. É um espaço numa área muito ampla que você tem que tá
6
Grupo de rap de Salvador (BA).
184
explorando o tempo inteiro, entendeu? Sabe? E tem cara que tá muito fechado.
E o papel do MC, hoje, no mundo, não é só pro tiozinho da antiga reproduzir
coisa nova, que o hip-hop é tão loco que eles pega uma sanfona e reproduz
uma parada antiga, mas é pra abrir o leque, memo. O cara poder viajar o
mundo, fazer conexão com outros caras, de chegar em qualquer ritmo regional
e mostrar que isso tá coligado porque é canto falado, entendeu? E cê chegar
no ragga, cê chega num jungle, consegue rimar, é loco, entendeu? Então é
infinito, é nisso que eu viajo. Eu rimo em tecno, tá ligado? Em house, em trance
[estilos musicais estrangeiros], tá ligado? Tem uma parada que é, que é, que
eu faço com as minhas músicas, que eu dobro e desdobro todas elas, se a
batida é dobrada, eu desdobro o verso. Se a batida é desdobrada, eu dobro o
meu verso. Então eu me adequo pra qualquer batida, não é aquele músico que
fica pedindo o tom, “ah, que tom?”. Não, eu que dou o tom, de acordo com o
tom que me deram, tá ligado? E você adapta qualquer coisa. Fora isso, se der
algum problema que não der pra adaptar, sai fazendo um free-style, que é
improvisando, tá ligado? Embolano... vai fazendo o que a alma manda, que é
outro processo, tá ligado? O baguio é loco... eu viajo mesmo... e o foda que
isso, pro hip-hop, pro MC, é natural, entendeu? Tem um moleque de 22 anos,
ele é uma das promessas do rap brasileiro assim, muito bom na embolada e no
emproviso, a gente conversa bastante. E é um moleque, não usa nada,
moleque careta, novo, com uma puta base que trampa com um rapper de fora
de São Paulo. E eu falei pra ele [o rapper com quem o MC citado trabalha]
assim “vou levar o moleque pra São Paulo”. Aí ele falou “tu é doido, de levar o
meu moleque pra São Paulo, ele vai voltar que nem você, mano”. Eu falei “é,
pode crê, cê acha que eu vou deixar o seu moleque sequelado, mano? Já
basta eu já. Se eu tivesse uma base sua, eu não taria assim, tá ligado?”. Ele
dava risada. Porque... eu fiquei sequelado, tive que ir pro mundão. Isso que eu
falo pra ele, não precisa ir pro mundão, ficar sequelado. Aqui cê tem toda base,
é só você trabalhar e esperar a sua cota, entendeu?
L: essa idéia do mutante que tem numa música do grupo. É essa mesma idéia?
É o mutante...?
Ilícito: é o mutante também, sabe?, só que tem umas pessoas que tem uma
mutação de construção e outros é uma mutação de destruição, entendeu? E...
isso é constante também. Tipo um filhinho de papai burguês não é preso
porque tem dez pra ir no lugar dele, entendeu? Então é, é... aí ele cresce
mutante. Aí ele cai na cadeia, aí ele vira aquele monstro, sempre naquele
universo, sei lá, simpatiza, e... tá ligado? Não conseguiram me transformar
nisso, que não me conseguiram me transformar nisso (sic), ó o que eu tô
v..virando. e isso, fiz isso, tô fazendo isso, até uma hora que a parada já tá por
igual, entendeu? que nem o chamado “crime organizado” tá por igual hoje.
Entendeu? São várias mutações... e o hip-hop é mutante. Por isso que não dá
pra falar só de um elemento. Então o conhecimento agrega todos os elementos
e todos que tão por vir, tá ligado. Outro dia eu trombei uns moleque dançando
esse “streat dance”, que é essas danças do Shaft (o filme), esses filmes novos
que saiu da nova dança desses pop... cê num conhece, mas nos baile black
hoje..., principalmente esses pancadão da quebrada, que agrega o funk com os
telão, com esses ãaa...é... esses novos pops desses dançarinos de hip-hop,
essas coisas pop que tem na mídia, então hoje tem vários grupos que dança
igual Beyoncé, então isso é uma cultura, tamém. Os b-boys da original dança
de rua é uma outra forma, porque era as lagartixas antigamente, mas também
não pode .... lagartixa, os cara tirava os pé de barro, mas os pé de barro era os
cara que não tinha..., que dançavam muito na..., os b-boys no chão, mas não
tinha o estilo porque não tinha o dinheiro pra comprar uma roupa, uma calça,
porque b-boy tinha, usava adidas, os baguio da hora, tá ligado. Então era os
chamado pé de barro, mas era os cara que dançavam mais. Então sempre teve
lagartixa, sempre teve vários...
L: lagartixa é o quê?
Ilícito: lagartixa é os cara que dançava os passinho, da época dos passinho,
depois que evoluiu. Antes quando chegou era balanço, né?, depois foi virando
rap... e todo mundo dançava o balanço, que era uns passinho. E isso era
lagartixa, porque já tava chegando os b-boys, com a dança de rua original,
então aqueles caras eram os lagartixas, entendeu? E sempre foi assim...
186
Ilícito: e sempre foi assim. E aí os moleque vem falar com você, cê vai o que,
pa, entendeu? É uma cultura, porque as vezes tô chegando num, nuns baile
desse tá tocando o seu som, tá ligado. É loco mano. cê vai critica, cê vai...
entao cê tem que saber lidar com cada universo, cada..., cada lugar, cada lugar
tem um jeito, sabe? Muito loco. E se você faz um som pra ser bairrista, então
faz, agora o meu som é pra todos, entendeu? Pra pobre, rico, boy, preto,
branco, girl... , tá ligado? E é isso que é loco.
L: e começou quando?
Ilícito: ah, iss’aí começou quando eu tinha tinha 24 anos, meu. Tá ligado? Eu
tava num momento de ligação espiritual muito forte e depois de lá eu não parei
mais. A primeira que eu risquei foi... na Ilha do Mel. Risquei com uns caras
“metal”. Na praia. Depois não parei mais.
L: e sobre a questão negra? você começa a entender mais sobre isso quando?
Ilícito: não, eu já tinha ligação, porque desde que eu comecei no hip-hop, não
tem como, você não bater com a questão negra. Desde quando eu comecei
fazer hip-hop eu entendo essa questão negra porque o hip-hop quem cai de
cabeça na raiz, sabe?, que também tem um ligação das músicas, né?, que som
que não é negro? Entendeu? Que cachaça que não é negra? Assim, né?, do
negro, cachaça do Brasil, aqui é a comida, aí o samba, tudo, tudo tem uma
ligação com... isso, sabe? E acho que também foi uma das formas que eu pude
também expressar e ser diferente dentro do hip-hop que eu vejo, sabe? De eu
ter assumido fortemente a questão da africanidade, enquanto muitos outros
ficavam vivendo muito do submundo, aí, da rua, depois dentro da africanidade
eu trouxe a questão indígena e a questão do branco também, né? Que a coisa
que Cuba assume muito facilmente essa parada do branco europeu. Ele era...
É loco, né?, tá ligado?, até imagino que é um problema pra afirmar isso.
L: entendi.
Ilícito: a partir do momento que não interfere a mim, que não a..., que não
atinge a mim, tá suave, mano. O convívio é natural. Só não atravessa. Só não
testa.
L: como é isso?
Ilícito: só ficar, viver a Babilônia de São Paulo direto assim, não precisa um
ano, mas três meses de babilônia de São Paulo direto, já te consome e você
fica joselito sem noção sabe?
7
Gíria para “otário”
188
L: hmmm, entendi.
Ilícito: basta a Babilônia, já te deixa... Por isso que precisa às vezes ir prum
fundo do salão assim, acender uma... ver umas fumaças, ouvir um som
pesado, sabe?, fazer uns hip-hop, sabe?, mexer os quadris, sabe?, essa
parada? Por isso que as vezes tem que ter uns m..., umas paradas que tire a
gente dessa babilônia. Por isso que é necessário um mar, é necessário ir pra
cachoeira, mata, ir pro fundo do salão, dançar com uma africana, massagem
tailandesa (ri). Alguma coisa que te leva, que te eleva pruma parada além do
que a babilonia te corrói, te consome, tá ligado? Que em São Paulo é a
babilônia. São Paulo é um puteiro, o Brasil é uma zona, estão estrupando (sic)
a Amazônia tá ligado? E o ilícito é preso por causa da maconha sem amônia
(fala em voz baixa). (ri)
L: Musicologia...
Ilícito: hã?
L: Musicologia.
Ilícito: é. E é... Uso muito dialeto nesse trampo, tá ligado? Muita coisa que
muita gente não vai entender nada. É.
(ele rapeia os versos: “da sete galo não restou nem o cabrito / na neurose do
camelo, o zóio de lula ficou esquisito, obsessivo / na piolhagem rateando o
mundão / mas se trombá a cobra criada, não foge não/ seu tromba de elefante /
tamanduá bandeira / puga de gigante / vira lata de feira / salamandra de
malandro / pombo correio / burro de carga / tartaruga que arrasta / urubu que
gosta de carcaça / príncipe que virou sapo / vive de lagoa em lagoa / ave de
rapina, rei do quinto dia útil pra fazer a boa/ fita dada é bodarrada / “cocoricó,
cocoricó”, fui roubada / a sirene toca / a selva se agita / agiota, rato cinza de
laboratório que é isca / a procura do lagarto que arrasta / na lei da fauna, um
salve / a selva mata / rasta num arrasta / é lagarto que arrasta / um salve da
fauna a selva mata / nativo por natureza / cachoeira não é cascata / rasta não
arrasta / é lagarto que arrasta / rasta não arrasta, é lagarto que arrasta / um
salve da fauna, a selva mata / nativo por natureza / cachoeira não é cascata /
rasta não arrasta, é lagarto que arrasta”).
Ilícito: entendeu?
L: acho que sim... os animais todos também são do dialeto então? Salamandra
é o quê?
Ilícito: tudo é a linguagem de rua. Só que... é, é, é usando a fauna.
L: tá...
Ilícito: é porque hip-hop é essa coisa muito norte-americana, né?, então a coisa
mais ligada à mata, Jamaica, hippie, essa coisa..., mais, tá ligado?, mas o outro
universo, que é essa coisa rasta, então eu tô mais hippie do que pra hop,
entendeu? Mas na verdade é hip-hop, mano. Né?, essa é a parada, sou hip-
hop mesmo. Não tô muito pra esse universo do gangsta, 50 Cent... mais pro..
tô mais pra... pra... pro outro universo. Clapton, Sisla, Damian Marley que eu
gosto demais.
L: em relação a quem?
Ilícito: ninguém não. A nível mundial. Fazem música pro mundo, né? O lance
que... , a Jamaica pra cima lá, os caras não faiz música pro bairro dele. Música
pra vender mil CDs, tá ligado? Os cara faiz música pro mundo. É outra visão. O
mundo inteiro consome o som dos cara. Isso que é loco. Mesmo do mais pop
ao undergrund, os cara já tem essa visão. Falo muito pela experiência com o
selo francês que é parceiro nosso, os cara tem uma conexão mundial nervosa.
Nova Iorque, Brasil, com a Europa, África, muito loco. (silêncio longo). Uma
hora a gente tem que aprender, né?, com esses caras. Acho que já tá no meio
do processo do aprendizado, sabe? E ... também da evolução musical, sabe?
tá vindo um agora, ess... uma... uma nova geração bem pop memo, reprodução
norte-americana, mas que vai ajudar a impulsionar o rap, entendeu? Vai ajudar
pra caramba.
L: usar o vulgo?
Ilícito: é, Ilícito. (silêncio) É, porque aí... num causa problema. Mas é... se todo
o problema fosse... o ilícito, tava bão, tá ligado? que pelo menos o ilícito tá
tentando ser um cara legal. (ri)
190
L: é.
Ilícito: então. Pelo menos ele tá tentando ser um cara legal. (pausa).Agora tem
outros ilícitos que... (ri) já perdeu as esperança...
L: queria que você falasse da história de como é ou como que se deu o seu
contato com o candomblé .
Ilícito: ah, eu acho que foi de pequeno. Quando a gente ia nas festas de São
Cosme e Damião na casa da... do meu tio... tio Nelson, ele era casado com a
tia Creuzinha e tal, e lá eles tinham um candomblé . Eu acho que foi lá. E a
gente ia tudo lá na festa de São Cosme e Damião desde criança e eles tinham
um terreiro lá. Hoje eles num tem mais o terreiro, morreu vários primos meus,
eles tiveram vários problemas, hoje eles tão acho que até crente (ensaia uma
risada). Loco isso. E... E acabou o terreiro, mas é a... a primeira referência que
eu tenho que eu lembro é isso. Desde criança, festa de São Cosme e Damião
todo ano a gente ......, ia comer bolo, doce, e acabava pegando todo o rito, né?
Da festa... por ser Cosme e Damião, ele colocava as crianças como linha de
frente no terreiro, as crianças da festa, aí eu fui ficando ali. E adorava. Acho
que é isso.
L: e o seu padrinho, que você se referiu a ele, ele não é parente, não é seu tio?
Ilícito: não, ele é amigo do meu pai, desde que... eles mudaram juntos pra cá,
cresceu junto e meio... acho que é Joinville, Santa Catarina, né?, Santa
Catarina?
L: mas você acha que você tem características que possam realmente se
identificar com esses orixás, Iansã e Oxóssi?
Ilícito: ah, acho que sim, tem essa ligação dos astros, Iansã, né?
L: ela que leva os Eguns por Orum, os espíritos pro mundo dos mortos.
Ilícito: E Olorum é Deus né?
Ilícito: acho que é gostar. E tem essa ligação das mulheres, memo, que Xangô
exerceu um poder, tal.
L: Ahã. É, mas Iansã tem isso também. É que deve ser curioso se o seu
primeiro orixá for uma orixá feminina, né?
Ilícito: (mostrando a tatuagem do oxé, o machado de Xangô, no antebraço). É,
e quando eu fiz isso aqui, Xangô, né?, com esses raios assim, né?, o cara veio,
e eu “queria o machado, a pedra, e tal, tal tal”. Depois eu tava com um amigo e
ele falou “nossa, cê fez a Oxum no meio do machado?”. Eu falei: como assim?
É... É... Oxum não aquela do, dos rios. Então, é... ele falou “cê fez os rios,
cara”. Eu falei “puta, que loco, é mesmo”.
L: é. Uma pedreira.
Ilícito: uma pedreira tem ali ó, embaixo disso (e aponta pra trás). Minha casa é
feita em cima de uma pedra. E ela mina água aqui, isso é uma pedreira. Deu
muito trabalho pra quebrar. A casa é feita em cima de uma pedra. que vai até o
outro quarteirão lá de cima.
L: você já passou com algum, pra ser consultado, pra trocar idéia?
Ilícito: ah, acho que já uma vez. Acho que foi na casa de um amigo. Mas eu
precisava passar mais. tô com um contato de um menino lá... um grafiteiro lá
da Bahia, que ele é de uma... uma linhagem do candomblé do Recôncavo
Baiano bem importante lá na Bahia e eu tô loco pra ir pra lá, tô trabalhando pra
ir pra lá, vou la ficar uns dias com ele, participar de alguns rituais... também vai
ter um essa semana, que, de... Que dia é hoje? Terça?
L: terça, 7.
Ilícito: hoje mesmo tem um ritual do... do santo daime. Precisava ligar lá pra
mim saber se vai ter... à noite.
193
reproduzem a miséria. Muitos, muitos. A miséria não tem que ser reproduzida,
ela tem que ser banida. Os cara depende da miséria pra fazer as parada.
(silêncio longo)
L: quer parar?
Ilícito: eu? “Quer parar, se quer” (cantando). Cê que sabe?, mano, eu falo pra
caramba. (silêncio). (Me oferece algo pra comer).
Entrevista III
Sexta-feira, 22 de junho de 2007.
Ilícito completou 29 anos.
“vou agarrar nas minhas oficina, e vou plantar os meu moleque, entendeu, e
abrir a mente deles e já é, é isso que eu tô fazendo na praça Luiz Gonzaga lá,
que é isso assim, só tem o espaço lá, não tem grana, não tem nada. Então a
gente junta os moleque, e tá fazendo. E se não fizer isso vai vim uma geração
funk, entendeu? Que eu gosto pra caramba também, sou um eterno defensor
do funk carioca, por exemplo, e lá é oficina de MC, tem cara que canta funk,
tem cara que faz embolada, e eu mostro pros moleque que é uma árvore onde
a gente tem que explorar esses universo tudo e fazer música. Agora, cada um
no seu skate, né? Cê tá fazendo rap, cê tem que saber dosar o bumbo-e-caixa,
entendeu? Tamém se você for lá pro Nordeste, cê já foi pro Recife, chega lá
falando “hip-hop”, “MC” (fazendo pronúncia estadunidense), cê tá numa terra
dos embolador, do coco, entendeu, então se tem que... é isso que a gente
viaja, entendeu?, de saber que a nossa riqueza cultural ela veio do mundo, a
gente veio do mundo, todos os ritmos que vieram de fora a gente conhece até
mais que os ritmos regionais.
tempo forte no “um”, que é o “The one”, que ele chama de “The one”. Falando
do “The one” e do lance dos BPM, que... que os tambores africanos eles
variam muito, eles não ficam “um dois três quatro”, tambor afric..., o samba é
“um dois, um dois, um dois” então os BPM´s, assim como na música jazz, no
tambor africano, ele varia muito, né?, então, é... às vezes a gente tá no “um
dois três quatro, um dois três quatro, um dois, um dois três, um”, sabe?, a
variação de BPM, de compasso, que ele não fica no compasso 4 por 4, o
tambor africano varia muito. Então cê tá ouvindo o som de bumbo-e-caixa do
Faso e quebra umas hora e cê fala “pô, mas que tempo é esse?” é porque eles
colocam, pegam o tambor africano, do..., que é tocado o coro na mão, e põe o
bumbo-e-caixa, no compasso que é a música deles, que é isso que é trabalhar
o cérebro muito mais entendeu, que o rap, a música rap dentro do compasso
“um dois três quatro” ...... , entendeu. Tem uns caras do rap que usam muito
variações de jazz eu lembro do Buckshot le Funk, que é como se fosse é... é....
um decassílabo do rep...do repente, da embolada. Do repente. E ele, aquela
música “Music, evolution and change”, cê já ouviu falar?
L: não.
I: e “Music Evolution” o nome da música. Buckshot le funk. E a música é “Music
Evolution Change” (cantarola). Então em vez de ser... ele repete no refrão oito
quatro por quatro, mas é cinco. Cinco que somando mais cinco vira dez. então
é como se fosse dois compassos a mais, mas dentro, como o compasso da
embolada que é uma coisa que eu não sei explicar mais sei cantar, né?, que dá
trabalho, tipo “de repente veio visão, energia iluminante, pra estremecer o
chão, iludir a multidão, combater o feudal, o terror do capital, combater a
doença, com amor e consciência, na luta contra o mal”. Aí cê vê que é cinco e
vira dez. Se fosse só cinco seria quebrado, mas como é soma os dois, é par, aí
completa. Então são variações que tem tanto na métrica, na oração que é o
tema, principalmente na métrica, e no compasso, que variam, né? Então a
música ela é infinita, né? Por isso o lance de você aprender a música... nós do
rap tá no quatro por quatro ainda, a gente precisa escutar mais blues, jazz
principalmente, tambor africano, pra começar a entender, sair desse “um dois
um dois” e “um dois três quatro” também trabalhar outras formas de, de
compasso né?
L: que é o que você pratica qdo você faz rap com outras bases, com música
eletrônica.
I: justamente. Por exemplo, na música eletrônica eu descobri um..., uma forma
de eu cantar minhas letras de rap... o que q muda pro... pro .... perguntei pro
moleque onde nasceu o funk, ele falou que no Rio de Janeiro. Aí eu falei o que
diferenciava o rap do funk, né?, aí os moleque falou, “ah, a letra”. Aí falaram
tanta coisa. Mas a única coisa que diferencia o funk carioca do rap é o BPM,
entendeu? O Funk é acima de 120 BPM, batidas por minuto, e o rap ele pode
ser rápido e a batida muda um pouco mas se você for ver, tem rap que também
fala merda pra caramba, entendeu? Tem letra de rap “bunda”, já tem dança da
garrafa no rap, entendeu? Já tem essa cultura blin blin [voltada para o dinheiro
e a ostentação]. É a música. O rap o que diferencia é isso, é o BPM, pq o resto
é igual. O funk tem letras fudidas no rap também, como tem letra que fala só de
menininhas, como que a gente vê por aí...Que fala só... de uma coisa bem
machista, sexista, contra os boys, contra as minas. Tem uns boy que é
197
guetofóbico e canta rap, então é um bagulho..., cada um faz hoje a parada que
quiser, entendeu?, o problema é você ter legitimidade, que é... quem dá isso é
o público, entendeu?, e ter história e bastante conteúdo pra respeitar a origem
de cada coisa, entendeu?, tô falando de música eletrônica, hoje os elitizados, a
elite, por exemplo, os caras pegaram tiraram do gueto o jungle, o drum´n´bass,
e levaram pras festas fechadas deles e viraram grana, hoje tem um... cê vê lá
no prêmio Multishow tem até a categoria Música Eletrônica, porque os caras
queriam uma nova música, entendeu?, mundial, mas a origem é do gueto. Aí
cê chega na periferia, os caras têm um preconceito porque acha que a música
é dos boys, que é do playboy, da elite, e é uma música que veio da nossa
origem, os caras pegaram, viram que tinha futuro, aplicaram grana e fizeram
pra eles, entendeu? E é o seguinte, faço música eletrônica porque eu sou
chato, tá ligado? Paro, DJ de música eletrônica brasileiro pra dizer “enquanto
cê não tiver dez minutos pra me ouvir, cara, eu vou ficar aqui veio, no Brasil
tem MC, tá ligado?, não é só gringo nessa porra, tá ligado?, tem um disco de
música eletrônica, e tem MC que rima pra caralho. Conheço os caras, os MC´s
com quem você faz coisa, tá ligado?, e é o seguinte, véio, tem que reconhecer
os caras daqui. Já ia ver o Julião em 92 lá na Zona Leste, a gente cresceu com
o breakbeat, porque os b.boys não conseguiu acompanhar, é a mesma batida
dos b.boys, a gente não conseguiu acompanhar mas a gente não tá de chapéu
não, véio. Então... é... o que eu acho é que o lance é cada vez mais que cê não
tem conteúdo e se limita a modinha do mundão, você fecha as porteira pras
coisas que tá aí, entendeu?, por exemplo, ce... eu tô ouvindo grime e crunck, a
galera não sabe o que é isso, entendeu? Então assim existem vários beats
sendo criados e eu criei o crônico, tá ligado?, tenho um disco que chama “Ilícito
Crônico”, é, nessa idéia dos beats que eu quero chegar dentro dessa forma da
música eletrônica, que aí eu ia pra festa de música eletrônica, a gente sempre
vai, eu faço MC [pra quem faz música eletrônica], o beat é dobrado, e como eu
canto rap no grupo com os beats desdobrados aí eu ficava me matando pra
cantar minhas letras na batida acelerada, entendeu? Aí tipo, letra que não
casava, mas aí eu saquei um jeito. Se eu canto numa batida desdobrada, né?,
é... Se eu canto numa batida desdobrada, geralmente o meu verso é dobrado,
o meu canto é dobrado, entendeu? Tipo... é, se é um batidão de funk, né (ele
faz a batida com a boca), como é uma levada rápida, fica muito foda, aí eu
desdobro o verso, coloco mais melodia na levada, tipo (canta) “é guerra
declarada”, entendeu?, no beat desdobrado, que é rápido, aí eu desdobro o
verso. Aí quando a batida é lenta, eu dobro o verso, entendeu? Aí, por
exemplo, entra um beat (faz com a boca) “os palhaços dos bandeirantes
saíram a caça dos .... marginais desencadeando vários processos criminais”. Aí
eu comecei a fazer isso com as letras, por exemplo, a letra do Dexter,
“acharam que eu estava derrotado...”, eu canto ela “acharam... que... eu...
estava... derrotado” (com espaço entre as palavras) ou “acharam que eu estava
derrotado” (comendo o espaço entre as palavras), depende da situação, eu
dobro e desdobro o verso, entende?, dependendo do beat, com toda letra dá
pra fazer isso. Se o beat é acelerado cê desdobra o verso, entendeu, e aí se a
batida é lenta cê dobra o verso. Isso é automático. Aí eu fiz com todas as letras
minhas pra tudo quanto é base. Então cê chega num barato de freestyle,
música eletrônica, ou fazer uma jam, o que seja, não importa o beat, é o jeito
que você interpreta. Essa forma, música de rapper que eu acho bem loco que
músico tem que parar e ensaiar e tirar o tom, o rap não. “Toca aí mano, que a
198
gente vê o que faz”. Então isso é que é legal, então não tem... Essa coisa de o
rapper poder adaptar a letra pra qualquer coisa, entendeu?, eu posso cantar a
letra num samba rápido, num samba devagar... Ou sei lá, se pega uma métrica
de ragga com baião, sei lá, depende da situação, entendeu? Isso é que é a
forma de não só pensar em rap ou ser hip-hop ou ser só forró, é pensar na
música no todo e usar o universo do canto falado. Eu vou ficar falando isso um
bom tempo, que é o universo do canto falado. O cara que ouve, por exemplo o
cara que faz sucesso com o grime, que é a batida do rap feita em Londres, tá
ligado?, os caras pegam o drum´n´bass, que foram os jamaicanos que foram
morar em Brixton, entendeu, e é batida eletrônica quebrada mas é o rap deles,
entendeu?, daquele jeito londrino, entendeu?, a mesma coisa é o crunk, que é
a mesma coisa da concepção que é o Lil John, que é o rap nosso, mas com
músico eletrônico, entendeu?, anfetaminado e muito eletrônico, então é aquela
coisa intensa, sabe? Então é... pra quem não entende o universo da batida
quebrada e das formas de canto, que eu falo, tudo é “black” (ri). Tudo é black,
né? (rindo) Agora, saber diferenciar cada ritmo no black é que é... E é isso que
é minha viagem, estudar os ritmos, entendeu?, se o James Brown criou o funk
e o Luiz Gonzaga criou o baião, entendeu?, eu posso criar um crônico (ri). O
Crônico por exemplo é isso, né?, o refrão é dobrado, o beat do refrão é
dobrado e o canto é desdobrado e o verso que rima é na batida desdobrada
com o verso dobrado. Esse é Crônico. E é... é artefato bélicos e barulho de
caos, entendeu? Então o ximbau é uma metralhadora, triiiiiiiiiii, tá ligado?, o
bumbo é uma explosão. É Crônico, entendeu? Aí eu chamo de Crônico. Aí eu
fico dobrando e desdobrando, a música tem a batida dobrada. Depois eu te
mostro ali, já tenho uma música gravada. Essa é a idéia, de criar alguma coisa,
entendeu? Que é isso que eu acho bem loco, tem ragga-core que eu gosto,
tem o uglyfunk, que é o ritmo eletrônico feito em Brixton, tem muito coisa
assim... Tem... é dubstep, uma parada... é, um dub eletrônico, mas com batida
é, breakbeat... Tem muita variação de beat assim. Toda hora aparece uma
parada assim. E é isso que é gostoso, tá ligado? Então acho que, os moleque,
tão muito limitado, nesse sentido de ficar só num mundo, só... Então... minha
viagem é essa assim de... e trabalhar a poesia também, né? A poesia mesmo...
que não adianta ce... a poesia também pro baguio ficar... o rap ainda tá pobre
de poesia. cê vai depois pesquisar esse negócio que eu falei cê vai curtir
bastante depois. Só esse lance dos beats, rapidinho, na net se acha. No
youtube. Coloca lá “grime” já aparece uns caras. Eu tava vendo uma dança
jamaicana chamada “hot wuk”. As minas dançam individual, era pra ser “hot
fuck”. Mas é “hot wuk”. É... os dancehall jamaicano. E as minas fica “ai ai” (e
faz o gesto da dança). Já viu essa dança? Depois eu te mostro. Então tem
várias coisas pipocando que a gente tem que tá ligeiro assim. Lógico que pra....
pra mim por exemplo tive a oportunidade de ir pra lá, aí tá de perto dos bagulho
e pã, então eu não perdi, não fiquei panguando, entendeu?
L: eu quero te perguntar sobre uma outra questão que tem a ver com as letras.
Pelo que eu prestei atenção, nas suas letras tem uma referência maior a um
orixá que é Xangô. Mas também aparece referência a Ogum e também
aparece referência a Zambi. Queria que você falasse um pouco disso.
I: uma que acho que é o seguinte assim... os orixás na minha vida, acho que
vem de pequeno mesmo. Nas festas de São Cosme e Damião, eu não perdia
199
uma. Porque tinha um terreiro aqui e hoje eles são da igreja dessas aí dos
crente aí. É loco, né?, como as coisas acontecem. Aqui tinha dois times, um
deles tinha o terreiro, e os caras morreu tudo né?, que é uma luta difícil aqui, e
morreu muitos caras. E a festa de São Cosme e Damião era todo ano, né?,
então essa foi a que eu acho que eu mais lembro assim, a referência de tá
participando bastante das festas que tinham lá. E aí depois quando eu conheci
a história de Palmares que começou isso aí, 94, 95, a gente fundou o grupo,
né?, eu e o Zulu, que era um cara que era DJ da Chic Show, né?, ele tocou em
vários..., e aí ele que mostrou esse caminho. E aí que chego em Xangô, e
chego em Ogum e Oxóssi. E... Aí vem falando, em Zambi, que é pra se
entender, pra mim entender o lance de Palmares, dos reis, eu tive que
entender os Orixás, porque era regido pelos Orixás, entendeu? Então é.... é... a
primeira rainha era feiticeira da mata, provavelmente Oxóssi, que é Acotirene,
entendeu? Então assim ela era uma feiticeira da mata, que é uma história que
tem, né?, e aí Xangô declarou Gangazumba, que foi o segundo rei, entendeu?,
e aí tinha todo um cerimonial de troca de reis do Conselho Negro Ultramarino lá
em Palmares e dentro dessa transição quem avisava era os Orixás. Então
Xangô declarou Gangazumba e aí depois que Zumbi nasceu na terra dos
Palmares, toda aquela história do padre, que ele virou coroinha e depois fugiu
e voltou pra terra dos Palmares, por isso que é Zumbi dos Palmares, que ele
nasceu na terra dos Palmares, ele voltou pra tribo com aquela fome de buscar
as suas origens, de, de resgatar e criar seu quilombo e ser um líder,
entendeu?, então Zumbi já veio com esse poder de ter nascido na terra dos
Palmares, ter aprendido a falar em latim e tal, aprender a falar bem o
português, ler a bíblia, conhecer várias guerras que teve, então Zumbi tinha
essa consciência estratégica de conhecimento do mundo, porque ele leu
muitos livros com o padre e aí quando ele chegou lá, pra ser um guerreiro dono
de um quilombo cê tem que fazer um quilombo, entendeu, então Zumbi fez o
quilombo de Zumbi, entendeu?, ele fez o quilombo dele e aos poucos ele foi se
tornando um grande líder, foi quando ele bateu de frente com ganga zumba
quando foi dividir a terra do Cucaú, que era uma terra improdutiva que o
governo queria a terra dos Palmares, queria tirar os caras de lá, né?, e
Gangazumba já tava negociando com os portugueses, então Gangazumba foi
junto com Gangazona que era irmão dele, que era chefe da guarda na época
de Gangazumba, foram negociar e fizeram um acordo com os portugueses que
ele tinha que trazer o povo palmarino pra, pro Vale do Cucaú. Só que o Vale do
Cucaú era próximo da capitania de Pernambuco e também era uma terra
improdutiva, entendeu? E mesmo que eles quisessem ter paz lá sempre ia ter
guardas ao redor e eles não iam conseguir fazer o esquema de defesa e não ia
ter paz mesmo e teve um outro problema também que os pessoais... que... os
que viviam nas ruas do centro das capitanias foi tudo pra Palmares, entendeu?,
os mendigo, os que eram livres e conseguiam comprar sua..., e viviam na rua,
né?, todos foram pra lá, os índios... fugia um pouco do controle, mas nessa
treta metade ficou com Zumbi em Palmares, que ele, com o padrinho dele que
era Gangazumba, e a outra metade foi pro Vale do Cucaú. Aí quando eles
descobriram que aquilo era uma grande jogada do governo de Portugal, né?,
que era... os caras que mandavam na época, e aí os caras envenenaram
Gangazumba e o povo voltou correndo de volta pra Palmares, que tinha
abraçado a idéia de Gangazumba. E essa é a história. E aí foi a época que
200
trazer a mulher de volta e depois de um tempo a mulher não queria mais ir pro
casarão, queria ficar em Palmares. E aí também começou os lances da
miscigenação dentro de Palmares, né?, a maioria, lógico, 80% negros, uns
10% de indígena, e essa minoria de brancos que foram pra lá. E começou
primeiro com as putas, tem até na história de Palmares a Ana de Ferro, que é
feita pela, pela aquela mulher lá,... a Vera Fisher, tal, no filme de Cacá Diegues
tal, então começou com isso, com as mulheres indo pra lá e depois... Tem até
uma parte no filme que eram os brancos que é que nem eu assim, que não
aceita a lei, não pagava imposto, e nem pagava dízimo pra igreja católica,
então essas pessoas, que não seguiam as regras da sociedade eram os
marginais de hoje, né?, e não importa se é branco, se é índio ou é preto, tinha
que servir ao rei e se dobrar ao catolicismo, porque quem não pagava os
dízimos, e o rei de Portugal, os caras tirava tudo, não ficava no centro. Então
assim começou a periferia, de muitos caras... é lógico que o que eles queriam
eram os quilombos, que era a única forma de se organizar, do lado das tribos
indígenas, aqui é tudo terra indígena. Eu lembro que os caras tomavam banho
nesse rio (apontando pra uma direção próxima à casa dele). Aqui é terra
indígena. E... E os quilombolas conviviam com os indígenas. Depois, Palmares,
quando começou a guerra, vieram lá do Cariri, do, do, acho que Rio Grande do
Norte, os canindés ajudar Palmares na renovação contra os reis de Portugal,
os Canindés que ajudou Palmares, por exemplo, que eu falo na letra. Então na
mata tinha essa segregação de guerreiro e os brancos que não pagavam esses
impostos eram excluídos e à margem da sociedade então era comum cê
passar no meio de um... uma mata e ver uma casinha lá sozinha, um cara
branco com a sua indígena, um monte de filho, entendeu?, e esses caras, todo
vez que os policiais, capitão do mato ou um rei de Portugal descobria, esse
cara que não pagava os impostos, ia lá, queimava a casa, zoava ele, e aí ele
tinha que ir mais longe, entendeu? Aí um dia ele cansou de correr, cansou de
correr, ele foi “sabe o que eu vou fazer? Vou pedir ajuda a Zumbi”, tá ligado?
“Chega, não vou ficar fugindo a vida inteira”. É o caso de um branco, que
vivia... nordestino, sei lá. Vivia fugindo porque não pagava as leis, não pagava
imposto. Porque Brasil é ilegal. 50% da frota que anda na rua é ilegal. O
brasileiro é ilegal. O Brasil é contraditório. Tem uma música em que eu falo que
o Brasil é contraditório. O Brasil foi feito na ilegalidade. Os piores europeus eles
mandaram pra cá, os piores portugueses, os bandidos, as puta, a... tudo que
tinha em Portugal eles mandaram pra cá, no “Povo Brasileiro”, do Darcy
Ribeiro, ele fala que a partir de 1200 que eles fizeram a primeira faculdade da
língua portuguesa, eles adotaram o catolicismo, que adotaram a igreja católica,
a... O capitalismo e as técnica..., como em Portugal era forte a navegação,
entendeu?, aí eles adotaram isso como estratégia do País de 1200 pra cá, eles
pegaram ditos 40% puros de portuguêis, tá ligado?, e juntaram aos outros 60%
do País que eram ditos, que tinha muita é..., presença africana, principalmente
mulçumana, mais pra esse lado do povo mouro mesmo, tinha muita presença...
por exemplo, Portugal herdou a aritmética, a matemática, é... muita coisa o... a
influência moura, que tinha de fora, do norte da África, muito mulçumano que
tinha. Então, os caras que vieram de outros países os cara limpou, mandou
embora até os descendentes, limpou, e ficou esses dito 40% puro de
português, que adotaram o catolicismo e a igreja católica, as técnicas de
navegação e vieram navegando.
202
frente pra retardar a tropa, entendeu? Eu sei que os caras retardou os caras
uns 15 dias na mata, entendeu? Só com, com,... técnicas de guerrilha assim,
por exemplo... esse ju... como é... tô querendo lembrar o nome dele. E, e... ele
falou assim “ó, tá vendo que eles tão vindo, eles não.... a... a tropa de Portugal,
eles tinham que vim todo mundo emparelhado um atrás do outro, né?, então
qual que era a técnica dos caras, “vamo matar sempre o linha de frente,
entendeu? Então, pô, o linha de frente, numa guarda, é o cara de respeito,
então os caras na árvore, no meio da mata, pegavam uma flecha e matava o
primeiro, pááá. Entendeu? Aí, tipo, matou o primeiro linha de frente. Aí o, a
loucura, conseguiram mais um linha de frente, aí o segundo já tava ligeiro. Aí
isso aí foi retardando o pessoal, até procurar na mata aquela trilha, ia
retardando. Eu sei que depois lá pro décimo, ninguém mais queria ser linha de
frente, entendeu? Isso na mata, ó, dias... pra retardar pra chegar lá. Aí foi
quando, os caras via qualquer barulho, já todo mundo ia pro chão assim, já
tava em choque, imagina, né?, aí depois, o chefe lá da..., o cara que tava
comandando o exército falou assim, “pô, chega disso, vai se fudê, vai morrendo
todo mundo”, aí ele falou “vamo abrir e avançar aberto”, aí que morreu mais da
metade, porque era tudo fosso, tudo buraco aberto no meio das mata, aí
quando os caras avançaram e que morreu mais da metade, aí eles ficaram
fraco, aí Palmares veio e caiu de cima aí... Então era umas coisas assim muito
foda que eu acho que perdeu, sabe? Essas riquezas que eu acho que tinha
que chegar e não chega, aí a minha viagem, eu pego esses resquícios e conto
a história, monto as histórias, entendeu?, nas letras, no texto no “O tesouro”,
né?, aí eu fico fazendo esse imaginário popular com a realidade que a gente
vive, né? Pra não ficar só falando de tiro e arma, entendeu?
L: entendi.
I: e é isso, cê olha pro lado, e só fala disso. Mas entender Palmares é muito
complicado, que é... Mas eu acho que é preciso, meu... porque não foi
simplesmente um quilombo, né?, que tava lá, os cara realmente causaro...
L: mas você falou que então você também esse contato com as histórias dos
orixás pra entender Palmares, mas e pessoalmente, pra você?
I: então, aí foi transformando a minha vida, né? E... que, que é um lance que foi
transformando a minha vida. E que, por exemplo, minha religião é o Corinthians
e Deus é Fiel, entendeu? Mas assim, eu não tenho religião e eu sou a minha
religião, eu sou o meu templo. Eu sou religioso, entende? Então eu gosto de
todas as religiões, eu gosto. Agora, eu não tenho essa coisa de ser doutrinado
e não aceito alguém ficar me falando as coisas, entendeu?, falando que eu
tenho que fazer isso e aquilo, aí quando entra o lance do dízimo e da grana,
essa coisa que as igrejas pegam, eu já não gosto, e aí depois que eu comecei
a... eu fui batizado, fiz catolicism... é... catecismo, essas parada, igreja católica,
que vem de família, o Brasil é católico e tal, mas depois que... eu comecei a
estudar... a escravidão no Brasil, não tem como gostar da igreja católica (ri). Aí
vem esse papa alemão, não porque ele seja alemão, né?, não tem nada a ver
porque... porque ele é alemão, mas vem com essa hierarquia que, que, que
não dá, meu. E aí, pô, não gosto da igreja católica. Então eu não tenho saco.
Na missa de sétimo dia do meu tio, aí eu e meu pai lá na igreja católica, o
padre, tinha umas crianças brincando, o padre parou a missa, falou pras mães
204
pegar as crianças, que não podia ficar correndo na igreja. Se a criança não
pode correr na casa do pai, brincar, vai brincar aonde? Eu olhei pro meu pai e
fomo embora. Eu não voltei mais. E... e é isso assim, é... minha bíblia, minha
bíblia é os... os álbuns do Corinthians, tá ligado?, e aí eu acendo a minha vela
pra Preto Véio e Exu ali, e... agradeço aos Orixás, porque são energias da
terra, é tudo energia, entendeu? São energias da natureza e.... E essa coisa de
materializar mesmo né?, e de te elevar prum plano espiritual, de saber que aqui
é uma das passagens e é isso que eu gosto do candomblé , do lance dos
orixás, que aqui é só uma passagem, que existe sim uma outra vida e que
também a gente tem que aprender a lidar com as forças da natureza e os
orixás são simplesmente isso. É, lá, Zambi com Olorum deu um poder pra cada
um, tá ligado?, e cada um tem um poder que esses irmãos juntos ninguém
segura, isso é os orixás, entendeu? São vários irmãos, cada um o pai deu um
poder e eles junto é uma família que... invencível. E esse lance também que a
igreja católica e as igrejas convencionais, não todas, as igrejas modernas,
separam o bem e o mal, o céu e a terra, tá ligado?, e... os orixás é tudo isso e
mais um pouco, entendeu?, os caras tão separando e o bem e o mal, né?, são
duas forças, são duas energias que tem que saber lidar. No, no candomblé
ninguém separa o bem e o mal, são duas energias que tem que saber lidar e
que nem eu vi lá no Museu Afro Brasil que... como que era a frase do, de Exu...
É... É... Eu não sou santo, eu não sou deus, eu também não sou o mal, não
sou o diabo, eu sou Exu, tá ligado? Cê já viu essa parada lá?
L: eu queria que você falasse melhor sobre essa frase, é... Você disse assim,
sobre os orixás, que você já sabe?, você só precisa se lembrar... Como é isso?
I: é isso assim, já tá no DNA, né? Tá no inconsciente, já tá no nosso perispírito,
já tá no meu...
L: perispírito?
I: é, tá no meu ectoplasma. Perispírito é a transição entre a alma e o espírito,
entendeu? Já tá no meu ectoplasma, já tá entendeu?, agora só precisa trazer
as lembranças. Isso aí já veio um preto-velho e falou, já tá no meu sangue, eu
nasci pra ser isso mesmo, eu só venho trazendo através do conhecimento, da
tradição oral, você vem trazendo mas isso aí já tá em mim8. A não ser que eu
não me preocupe com isso e não vá atrás, entendeu?, me preocupe mais com
o MP3. Aí eu não vou trazer isso. Agora se você naturalmente deixar o seu
corpo fluir, as coisas vêm, entendeu? E pra mim foi assim, entendeu? É
justamente, eu não gosto de ser doutrinado numa religião, num papel que tá
escrito e você tem que fazer aquilo se não cê não serve, que nem os maçon,
sabe? Você é do mundo dele, tá lá na moeda dele ou se você não tá na moeda
dele, cê não ta. Ou é matemática ou... não é nada, entendeu? Então e... e o
rasta é isso, não é religião, rastafarismo. É estilo de vida, é uma forma de ser,
entendeu? E... que nem, os caras lêem o Antigo Testamente, lêem a Bíblia
Sagrada, lêem o.... o... o... Islão, né?, é, então tem entendimento geral dessa
linhagem, né?, de Içá, de Noé a Issá, entendeu?
L: Issá?
I: é, Issá é Jesus que eu acho que é em árabe ou é em... em hebraico, não sei.
Eu tenho uma linhagem ali escrito, até... Maomé, entendeu? Que aí que é esse
lance, Içá a Maomé, né?, que aí o Islão parou ali, no profeta Messias no, no
Mohamed, né?, no Maomé. E o... a igreja católica, o resto do mundo, parou em
Içá, né?, em Jesus. E o rastafári não. Mil anos da linhagem salomânica de Davi
vieram... era pra ter 300 imperadores, entendeu? E o último foi Hali Salissié
Rás Tafari Makonen, entendeu? E essa linhagem é que vem esse lance do
tronco familiar, entendeu? Que começou lá filho de Davi, Salomão, Rei de
Jerusalém, teve um caso com a etíope rainha de Sabá, aí nasceu Menelek,
Menelek I, e ... entendeu?
I: é isso que é o rap, entendeu?, que eu falo pros moleque. O rap não é uma
musiquinha prucê... não é uma musiquinha, cara. rap é revolução, é
transformação, entendeu? E... Não tem como, pelo menos, você, na minha
concepção, né?, é não tem como o cara querer fazer rap se ele não foi
8
Em situação relatada após essa entrevista, mas que ele próprio associou a esse momento da pesquisa, ele
chegou à casa de um rapper em Salvador, Bahia, e sentiu que já havia estado ali antes. Ao comentar isso
com o rapper que estava visitando, o comentário dele, que é filho-de-santo, teria sido: “é que somos
filhos de orixás que chegam antes. Nossos espíritos chegam antes”.
206
oprimido. Só os... Só quem sofreu alguma opressão que vai pegar essa
indignação e transformá-la. Só quem... eu costumo falar assim “mano, cê não
sofreu, não tem como você cantar rap. Vai cantar reggae então, tá ligado?
Mesmo que o reggae seja uma música de resistência, entendeu? Só que o
reggae teve uma característica que dentro dessa música de resistência eles
plantaram o amor, e hoje o reggae é paz, entendeu? O rap não, ficou tachado
como uma música marginalizada, e pesada que bate contra as regras
universais em termos de sociedade no mundo, então o rap é a quebra da
sociedade, entendeu? Então quem faz rap é esses excluídos, cara que sofreu,
que já foi preso, pobres, então assim, é... quando eu conheci o rap, foi nesse
processo de transformação, e de injustiças que a minha família sofreu e... se
não eu teria cantado o forró do meu pai, entendeu? Mesmo que as letras de
forró tem muitas letras de conteúdo, entendeu? Mas o rap foi o que abriu o
portal, entendeu? Foi quando eu entendi toda a manipulação governamental, a
história que não era contada, os heróis que não eram nossos, entendeu? Então
o rap vem fazendo a... tem até uma música, um filme, que eu falo pros moleque
“você tem que assistir”, que eu sei que no Brasil eles chama “Esquadrão da
mente”, não sei se ele é do Spike Lee, mas é, tem um nome, é... “Não sei o
quê” mas “Esquadrão da mente”. Que é um... Esse filme mudou a minha vida,
que eles são uns “Black Panthers”, que, que, que pega os caras que são
negros e brancos que trabalham pra indústria, né?, para essa grande
“business”, no caso do filme, essas indústrias de propagandas que eram ne....,
eles contrataram brancos, contrataram negros pra fazer propaganda de
produtos pra negros, entendeu? Então ele... aí tipo os caras faziam perfume
pra negros, que é de baixa qualidade e não sei o que, e os caras tinham que
criar a propaganda pra alcançar essa.... essa... esse povo negro. Então na
visão do branco, o próprio branco fazendo um fast-food bem tosco pro negro e
pegando os negros pra saber como eles pensam pra vender esses produtos
feitos pra negro. Esse filme, esse pessoal que é o “Esquadrão da Mente”, né?,
que é tipo “Black Panther”, os caras ficam num QG no fundo do porão só
estudando história da África, história do povo afro-brasileiro, e o lance da
escravidão e pegava esses brancos vendidos que trabalhava na, lá na na... na
propaganda lá pra fazer..., na agência de propaganda e davam uma lavagem
cerebral neles, entendeu? Pra ver se eles pegavam do povo dele e não fazia
isso, então cada propaganda que saía, os cara seqüestrava, deixava o cara
acordado três dias lendo Malcom X, “sabe quem foi Mandela?”, aí quando o
cara não consegue mais dá um murro na cara e joga água, “acorda, agora eu
vou falar pra você quem...”, aí eles revezavam, entendeu? E o cara ficava lá
dois, três dias aí jogava o cara na rua, aí depois em cima do cara pra ver como
que ele tava, se ele tava mudando, se ele ia ajudar o povo dele, entendeu? E...
a trilha do filme é foda também, não sei se é do Spike Lee esse filme9.
Doente tem em todo lugar, independente da etnia e da raça, né? E infelizmente
nascem pessoas livres... Tem três tipos de pessoas no mundo: o livre, o
inconsciente e o doente, entendeu? O livre é o homem livre que é aquele que
eu falei, o rasta que... que nada atinge ele. E o papel desse rasta é não se
acomodar, pra combater a doença. E... o... inconsciente é aquele cara que é
doente e não sabe?, porque ele segue simplesmente a hierarquia, as regras da
9
O filme é produzido por Spike Lee, que também atua na película. Em pesquisa na internet foi
encontrado que o diretor é D Clark Johnson e o título do filme é “Drop Squad – O Esquadrão da
Reforma” (fonte: http://www.vervideo.com.br/filme.cfm?cod=5558, acesso em 29 de junho de 2007).
207
abre sua mente pra essas parada, você... E as influências com o sagrado, né?,
com o encantado. E é isso. E eu falo assim, os caras vão demorar pra entender
a minha mente, entendeu? Talvez eu morra e não vão entender as parada que
eu tô fazendo, tá ligado? Às vezes o que eu queria era que tivesse mais
confiança, sabe? Que as pessoas acreditassem mais naquilo que a gente tá
fazendo, entende? E... Hoje eu chego no auge da minha vida que... Agora os
meus projetos, os baguio, tá cada vez mais difícil e... E o bagulho girou tudo
em grana, grana, a gente tá vivo até hoje porque a gente batalhou mesmo, o
grupo já era pra ter acabado, o integrante que saiu, quase que a gente não faz
o disco novo, quase que num... Se não fosse o grupo da Europa, pra dar essa
revitalizada (com o CD gravado enquanto o grupo esteve lá, em 2005), com o
lance da França, só eu sei o que eu passei na Europa, só eu sei. Perder trem,
sabe?, segurar todas as pontas, tudo, tudo, tudo. Só eu... Fiquei doente,
cheguei de Londres doente, com dor no peito, um caroço no peito, se eu
ficasse lá mais uns quinze dias, eu morria. Só eu sei o que eu passei, assim.
E... hoje em dia eu quero ficar na paz, com a família, sem arrumar problema,
porque... a rua tava me deixando monstro demais, meu, e... fazer rap não é
fácil, mano, acontece mil fitas, num show, os irmãos que chega, os alma-
escura, os energia pura... É... tem que ter um equilíbrio fudido, sabe? E... hoje
eu não consigo mais sair pro mundo se a gente não tiver formado assim, todo
mundo irmão, sabendo que todo mundo tá ali e vai morrer por você e que a
causa que a gente tá fazendo é um baguio muito cabuloso. Fora isso fica difícil,
entendeu?, porque cada lugar que cê vai é um tipo de situação. Num show de
rap, um cara duma facção falou assim “os moleque tirou os ladrão, nóis vai
matar eles, e como cê é linha de frente no baguio, nóis veio avisar você. E nóis
pilota a quebrada e os moleque vai morrer”. Eu falei “cê tá vendo o que cê tá
falando, irmão? Quem sou eu pra falar alguma coisa? Se você chegou até mim,
a única coisa que eu posso te falar é que... as mesmas palavras que você me
falou, que são moleques e se são vocês que pilota a quebrada, é moleque,
chega no moleque e fala, meu. Eu já sei como saber chegar, porque tô fazendo
isso há dez anos. “Os cara é moleque, cê vai ver a idade dele lá, os caras não
tem nem 17 anos, véio. Moleque véio. Às vezes ele fez uma letra e cê
entendeu errado, entendeu? Se você pilota cê não vai matar o cara, chega e
conversa, cara. Entendeu?” Agora quem é eu pra falar pros cara isso,
entendeu? Cinco cara, e eu descendo do palco, nem limpei o rosto, tirando a
camiseta, assim, baguio loco. Então acontece de tudo, entende?, então cê tem
que ter um puta de um equilíbrio, tem que nascer, meu, pra parada mesmo, e...
E hoje tem ainda uns parceiro que fecha com nóis, uns meninos que realmente
tão por amor, mas eu tô o tempo inteiro policiando nesse sentido assim de “não
cresce os olho no baguio”, entendeu?, “aqui é sincero, velho, o que eu tenho
que te falar, eu vou te falar, não guarda rancor”. No projeto que a gente toca na
quebrada, todo mundo apresenta. Os cara acham que eu tô lá e quero... Então
tem que equilibrar tudo, véio. Sabe? Ó, cê não pode dar tudo, mas tem que dar
um pouquinho, sabe? De trampo, a base: “ó, eu tenho dez base, eu vou te dar
uma só. Cê canta nessa base aí”. Porque, senão, aí fica pior, entendeu? E... e
é isso assim, eu acredito ainda assim. Eu tô fazendo essas coletânea, aí,
porque Jah falou pra mim fazer, porque tudo, eu tenho uma obra, e eu acho
que tudo gira em torno da obra, e aí depois que essa obra começar a tomar
forma, que eu acho que vai abrir as porteira pra gente ser reconhecido a nível
mundial, tá ligado?, e ser reconhecido memo, pra poder viver do barato,
209
entendeu?, e ter mais tranqüilidade pra criar outros monstros que nem nóis,
entendeu? Que, tipo... Racionais... Tem vinte anos de Racionais, depois de 10
anos veio o nosso grupo, agora vai vim outro só daqui mais vinte. Tá ligado? E
isso é real, porque cada vez que eu dou mais volta, a gente volta pro início,
entendeu? E eu nunca vi agora essa peneira maior no rap que nem teve. Lá
nos Estados Unidos tem uma música do NAS, que ele fala “Rap is dead”, né?,
“o rap tá morto”. E é verdade, um amigo meu até fala, “morreu o ano passado”.
E, e, e, e... Muitos caras pararam, muuuiiitos caras pararam. Vô falar pra você,
muitos... E nóis taí porque é Deus. Dentro dessa, do rap em São Paulo ter
passado por essa dificuldade e muitos grupos ter parado, muitos grupos não
sabiam que tinham que registrar o nome, tinha que registrar o logo, editar as
músicas, e hoje, tem cara com selo aí sobrevivendo em cima desde grupo dos
primeiro, que gravou em 84, os cara relança e lança, tem coletânea aí de, de
rádio, que vende do um ao vigésimo, e continua vendendo, e vendendo e o
grupo parou, não editou os baguio, e a rádio editou e continua vendendo. Então
isso aí é triste, por quê?, nos Estados Unidos o cara tira 5% de todo o dinheiro
que foi do hip-hop, 5% vai pro hip-hop, entendeu?, vai pras rádios, é, é, aqui,
não tem nada que reverta pra gente, entendeu? E a única coisa que eu posso
falar pros moleque é isso, “cê quer ver o contrato?”, eu faço o meu contrato.
Comecei a ter o meu selo, é um selo editora, eu faço os meus contratos e
mando pro Ecad, sabe?, tem que fazer carteirinha de músico, tem que fazer
isso, mas isso ninguém ensinou, foi a experiência, não foi ninguém que chegou
e falou “ó”, entendeu? Então eu passo, eu passo, tem cara que não passa, por
quê?, porque o moleque tem potencial e pode quebrar eu, então em tudo tem
monopólio, no rap não é diferente, então se aquele moleque crescer, ele vai
tomar a minha ponta, entendeu? E aí os caras não..., “se vira”, e se quebra,
entendeu? Comigo que eu digo “cê quer saber? É isso. Vai lá e faz, véio”. Tá
ligado? O que eu puder te ajudar, só não tenho dinheiro. E... Porque... Nada vai
ficar... Se a gente tivesse cada um ajudando o outro, as coisas seriam bem
diferente, tava que nem o funk, tá ligado?, que é uma batida que veio de fora,
mas canta na língua deles. O único que canta funk em inglês é a MIA. O resto
é tudo funk na nossa língua. Agora cê vai num baile de rap, num baile black, só
toca gringo, véio. O cara entra perdido e sai sem entender nada. O que mais
tem em São Paulo é matinê em Nova York. Entendeu? O cara tá.... (ri), sai na
Henrique Schaumman, entra numa matinê, tá em Nova York. Tá ligado? E eu
não vou ficar reproduzindo a porra duma cultura norte-americana. Por quê? O
rap foi o que revolucionou o mundo. Ó o que eles viraram. Se o rap não fez
nada por nóis, que virou aquela cultura blin blin, entendeu?, quem que vai fazer
mais? Como que aqui é a terra do canto falado, Jackson do Pandeiro já era o
rei do ritmo, na década de 50, entendeu?, então eu não vou falar..., ficar num
mundinho só.Vários universos, entendeu? E... e é isso que os caras [do hip-
hop daqui] têm que entender. O cara vai ficar limitado, vai ficar ali, ó. Conheço
grupo que tem 12 ano de carreira e é doze anos que ele não canta na batida,
porque ele não parou pra estudar o “The One” do James Brown, entendeu?
Então, fica ali, tá ligado. Fica aí. Entendeu? Agora quem é nóis... pô, eu gosto
de todos os grupos, porque cada um tem sua história, tá ligado? Quem sou eu
pra falar, eu tenho a minha história, entendeu?, não tenho que falar mal de
grupo, eu já falei, ontem até um moleque comentou “cê falou um bagulho”, eu
falei “mano, a gente muda, eu errei, me perdoa, já pedi perdão pros cara, não
faço mais isso, cara. E essa música que cê cantou aí eu gosto hoje, eu vi o
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show, e é bem loco”. Então porque é foda, muito loco meu. E hoje o que eu
tenho mais é... lance de palestra, debate, se quiser, eu vou recitar uma poesia
e faço um workshop, tá ligado. Agora, ficar na teoria, eu não vou não. E aqui eu
tô falando pra você porque acredito em você, entendeu? Que até jornalista eu
já desencantei. Tá ligado? Perueiro, polícia e jornalista, esses perueiro de
lotação assassino, que te traz lá do Largo da Batata até aqui à noite, confia
nessa raça não. Polícia, mesma coisa, e jornalista, entendeu? Que é um povo
estranho, muda de uma hora pra outra, entendeu? Cê sabe do que eu tô
falando, né? Então é..., eu tomo cuidado com esses barato aí, e outra, falo com
muito conteúdo memo, pra deixar a cabeça dele confusa, tá entendendo, pra
ele não vim sacanear comigo, entendeu? Que nem, uma matéria de um
jornalista que viu uns embolador no busão, aí tentando achar os embolador, ele
acha na internet, mas não acha os caras, entendeu?, os cara toca com todo
mundo na rua, mas pra achar o número deles, os caras tão na rua. Aí ele me
ligou aqui, “eu tô precisando achar fulano e sicrano”. Aí eu falei “véio, vai ter
que ir pra rua, eles tão lá na Praça da Sé e no Largo da Batata”. Ele falou “não,
eu precisava do telefone deles, cê conhece esses caras”. Eu falei “me liga
daqui a trinta minutos que é nóis”. Aí eu achei os telefones dos embolador tudo,
ele ficou dois dias andando na cidade com os caras e fez uma matéria. E... E...
Eu falei com ele “ó, não coloca meu nome no baguio”, eu falei “não precisa,
véio, fala o nome do grupo e já é. Então a próxima vez, eu não..., já não vai tê
idéia, entendeu?, porque fui legal com ele e ele não foi legal comigo, ele quis...
pensou que ia me agradar mas me deixou puto, tá ligado?, porque eu falei pra
ele “véio, tô te falando tudo isso, vai lá, fala com fulano, beltrano, sicrano, tem a
UCRAN, tem os moleque que canta rap, falei, tudo. Ele fez uma puta matéria,
mas ele... Então é isso assim, eu acho que, por isso que eu gosto dos
Racionais, eles seguiram uma linha e vão até o final, entendeu?, e o [Mano]
Brown tá certo, tem que falar com esses caras não, meu, tá ligado?, tem que
dar boi pra esses cara não, esses cara é tudo estranho, esses cara... O
bagulho é muito sinistro assim, que rola, entendeu?, então eu já fiquei muito
monstro, seqüelado, e agora eu tô tentando fazer a coisa direito pra ver se a
coisa vem direito, entendeu? Minha família nunca... Minha família vive bem,
assim, mas nunca teve um “boom”, sabe? A gente só tem aquilo que Deus deu,
entendeu. Agora a gente precisa ter um “boom”. Precisa ter um bagulho que
possa favorecer muito mais gente. Jah sabe?, que se chegar pra nóis dessa
vez, que se chegar pra mim, não vai ficar na individualidade, como alguns,
entendeu?, que... Tem cara que consegue comprar até bolinha de beisebol e o
taquinho, tá ligado?, mas não consegue vim aqui no projeto fazer um beatbox
(ri). Tá ligado? Eu fico viajando nuns baguio que é loco, então assim, eu não
quero nada não, não quero nada, não quero que cê me dê carro, me dê
carona, não quero nada, quero que cê faça o bagulho como tem que ser feito,
né? E... é muito difícil. Muito, muito, muito... Então a rua te deixa monstro. Te
deixa mooooooooonstroooooooo. E aí eu quase que virei um monstro... Quase
que fiquei anjo caído.
malfeitora do mal, quem será que pensa que controla sua loucura, sagaz
energia pura versus a saga da alma escura versus... Pra não ser capturado
pelo malfeitor, versus...”. É... (rapeando) “Será que pensa que controla sua
loucura, sagaz energia pura versus... o verdadeiro vencedor versus o guerreiro
sofredor, versos pra não ser capturado pelo malfeitor. Proteja sua alma, a
escuridão, versus libertário contra a escravidão. Energia, Deus é pai, a fé não
costuma faiá, e .... O bem nasceu pra brilhar, é a paz no ar, veio pra encantar,
luta contra a dor, e livre pra voar, energia pura, chama com o poder do amor”.
Aí, o mal é... “O mal cresceu pra matar, só pra aterrorizar, não quer perdoar,
convive com o terror, não consegue escapar, arma é pra eliminar, alma escura,
escravo do malfeitor”. Entendeu? É a energia pura versus a alma escura, que é
a energia pura tenta tirar a alma escura das garras do malfeitor, entendeu?
L: entendi. E tá no Crônico?
I: não. É, eu tô fazendo dois discos, tá ligado? Mas é isso assim, e... Eu quero
aos poucos ir fazendo assim... Que eu não sei fazer 300 coisas ao mesmo
tempo, né? Eu estipulo metas pra cada coisa. Minha meta e minha parada é o
grupo, entendeu? (pausa). Enquanto os caras tiverem nessa entendeu? Porque
no dia em que eles não tiver, eu não vou levar essa parada, entendeu? Sabe...
Já falei. Enquanto os caras tiver a fim, é nóis que tá. E enquanto isso, eu não
vou ficar em contato só com uma parada, porque eu não sou limitado, e tenho
que ir pensando outras coisas. E o Ilícito foi por uma necessidade, não foi
porque “eu vou fazer minha produção”. Porque o grupo hoje tem um “know
how” dentro da parada que não dá pra chegar tocando de qualquer jeito,
entendeu? E com o Ilícito eu toco de qualquer jeito (rindo). Tem uma festa ali
que o cachê nosso é tanto, aí os caras oferecem 300 real. “Ô, traz o grupo aí?”.
“Ô não dá, pô, cê tá ligado, né, mano? Tem estrutura? Eu vou!”. Entendeu? (ri).
É ilegal memo... Agora, não dá pra tocar em todo lugar. Ou seja, o Ilícito é
pro... Pra ilegalidade, pro mundo proibido, é pra ilegalidade, o grupo é pro
Brasil, é pra todos. É um bagulho que tem respeito com a palavra, com o que
eu escrevo, de como falar com a mulher, de como falar com a tiazinha,
entendeu?, agora o Ilícito não, é o inverso, é o contraponto, contramão disso
tudo, e é o momento que eu vivo, eu tô ilegal total. E toda vez que eu saio eu
faço a oração do invisível, entendeu?, que é a... o... a oração que abre o Ilícito.
E o Ilícito é isso: ilícito, proibido pela lei, musicologia não autorizada, contra-
indicado para as crianças. Entendeu? E se esse disco der alguma coisa, eu
vencer, ganhar grana, comprar um computador que seja, eu vou fazer o “legal”,
autorizado pela lei (ri). “Agora venci, não tenho mais que ficar reclamando dos
problemas que eu reclamei”. Agora... Tem uma música que é “um problema,
imposto pago não, inativo, dois problemas, nome limpo e o CPF ativo ....O
telefone, o DJ, eu fui contar quantos problemas, já são seis, sete dias por
semana, querem pôr algema, pela relatividade... Sem problema, matemática de
somar, eliminar subtração, todo problema tem uma solução, de ler mais, de lei
mais, DJ mais, sem problema. Se veio ao mundo, é pra criar frutos, dilema,
sem problemas financeiros, falha no sistema, de zero a cem inteiro, sem
problema, sem esquema, e por dinheiro viro as costas, não tem acordo e com
família sem negócios, mil fitas pra resolver, pode crer, esse é o dilema, gráfico
sobre controle, muita calma, cem problemas”. Que é... cem problemas pra
solucionar, certo. Cem problemas. Eu acordo só com problemas. E é isso. E o
Ilícito tá aí. Depois se o disco for legal, o “Lícito”, aí eu vou, é, é “sem
212
problemas, imposto pago (ri)”. Aí eu mudo a mesma letra, mudo a capa e falo
“Lícito”. Entendeu?
L: entendi.
I: mas eu também só falo o que é lícito. Nem tudo pode ser falado. Já falei,
“ilícito”... “Ilícito”. “Ilícito, proibido pela lei ou excluído, só diz o que é lícito”, né?,
“... vício, tem poder aquisitivo, pra que bater, mesmo sendo ilícito, pra que
prender”, né?, porque eu falo da erva. “Com a herança do rei burguês
escravista, polícia, está sedento por injustiça, ousaram matar os indígenas,
capitalizaram, pela igreja catequizados. Chegam os capitalistas, escravatura,
Casa Grande & Senzala, cana-de-açúcar. Djamba sem..., maconha sem
amônia, Santa Maria pura, por que não?, quando ainda se extraía pau-brasil, já
existia mensalão, e no passado era num navio abarrotado e o presente num
camburão sendo esculachado, toma porrada, interrogado, pela lei ser fichado,
ilícito é a prova, não assina nem perante advogado, senhor juiz, sociedade é
pra domesticar selvagem, me lembra a... uma anedota do Bocage, Babilônia.
São Paulo é um puteiro, o Brasil é uma zona, estão estuprando (sic) a
Amazônia, e o Ilícito é preso por causa da maconha sem amônia”. Aí eu falo
“ilícito, proibido pela lei ou excluído”. Só diz o que é lícito. No mundo do vício
sem poder aquisitivo, pra que batê, mesmo sendo ilícito, por que prendê?
Entendeu?, porque é isso que eu falo, da planta, a gente poderia pelo menos
ter o pé em casa, porque não tinha esse tráfico, a gente não teria que fumar
planta com amônia, morta, porque é planta de poder, sai lá dos pés ilegais,
passa num caminhão prensado, por dez blitz policial, aí os cara quebra, divide
os quilos nas favela, pra depois o cara cortar, pôr numa buchinha, pra ir ligeiro
com tudo pra passar pro consumidor, a planta chega morta. É uma planta de
poder, gente, tem que saber lidar com planta de poder. E nessa música eu falo
justamente isso, “tem .....sal milagroso, imagens de santa, e o ilícito é preso por
causa da maconha sem amônia, porque se tivesse amônia, eles controlavam,
as que têm amônia, eles controlam, agora apareceu uma pura, que era aquela
da lata que apareceu no porto de Santos, há muitos anos atrás, que pegaram o
DNA dela e fizeram uma nova semente, uma nova planta pura, sem amônia, aí
os polícia vêm em cima do ilícito, entendeu?, querendo prendê ele. “Quem é
esse ilícito que apareceu com a planta sem amônia?”. Muita doideira. (ri). Mas
é isso aí. A oração do invisível é uma oração que eu fiz, porque ilícito é o nome
do meu carro, porque ele tá todo ilegal, ele tem os documentos há dois ano
atrasado, todo ilegal, e toda vez que eu saio com o carro ilegal eu faço a
oração do invisível, né?, “proteja, deus pai...”, “salve deus pai me proteja do
perigo, me leve são e salvo e me traga invisível, pra que os bons fluídos
possam enfim chegar e que você proteja os caminhos por onde eu passar,
abençoe, abençoe deus pai a nossa longa caminhada”, aí eu vou falando. Que
é... Que eu faço a oração pra mim não tomar enquadro. E... que eu vá e volte
invisível, por isso que é a oração do invisível, que é esse cara que rege por
nós, que a gente sabe que ele tá mas ninguém vê.
Essa grana vai pra cá, tem outra que vai pra cá, e a gente só vai pegar a
subsistência. Cada um pegou sua grana e fez sua parada, ninguém plantou. Aí
quando eu acordei no meio do caminho que eu tinha que investir. Tô até
trampando numa música nova que chama “Perdas e Ganhos”. Que é...
investimento. Tudo na vida é investimento. Entendeu? E... É... eu falo é “é
preciso perder pra aprender a vencer e contabilizar os ganhos”, entendeu? E
ainda o tempo... Que senão não tinha nem isso que cê tá vendo. E pra mim
chegar nesse nível, aí eu tive que... Por exemplo, pra mim ter o escritoriozinho,
abrir o selo, comprar as master, que tá na mão. Igual por exemplo o primeiro
disco que a gente lançou aqui é nosso, tá remasterizado, tamo relançando,
remasterizado, com nova capa, tudo. Editado por nós mesmo, entendeu?
Reeditei o álbum, também. Então foram conquistas assim, se não tivesse feito
esse corre, eu, eu falo eu principalmente, né?, não tinha rolado não, porque os
cara não tinha se preocupado com isso. E... E... de ter armado essa viagem pra
Europa também, várias vezes. Então assim... Agora eu sei que tudo é
investimento, tudo é a grana que, por exemplo, o CD novo, ninguém põe a
mão. A grana de CD, só pego o direito autoral porque eu que escrevi a obra,
entendeu? E... dinheiro de show. Dinheiro do disco eu nem ponho a mão. Eu
não quero. Vai pra... Faz vinil. Entendeu? Faz não sei o quê. Vamos fazê um
lambe-lambe? Eu não quero. Só por causa da forma que não foi respeitada a
história dele, entendeu? Não foi respeitado, não foi respeitado o processo,
entendeu? Do disco. Foi feito... Daquele jeito, entendeu? Isso aí foi difícil
assim. Agora taí, graças a Deus, o mais difícil, tá aí, o ano passado e entrou
esse ano tentando pôr os baguio na rua, agora tá aí, tamo relançando o
bagulho, taí, nessas perdas e ganhos a única coisa que eu posso dizer é que
eu acertei, tá ligado?, por isso que eu acertei. A gente já nasce morrendo e
errando, né? Mas quem não vai atrás, não acerta. E.... É isso, eu não fico
parado não. Fiz mesmo a parada. Tem cara que fica, tem cara que não..., tem
caracol que não sai da casca, entendeu?, só vive de ibope, tá ligado? Certo, e
se não tem dinheiro, não tem conversa, então eu acho que nem tudo isso, nem
é tudo isso na vida, eu acho que na rua tá o sustento, tem que sair da casca,
caracol memo, e ir, tem até a música fala, né? Por isso tem que organizar essa
situação, se o marisco não sai da casca. Se não sair da casca, o lucro não vem
na mão, né? Então tem que sair da casca, caracol, e ir... E hoje, rap no Brasil,
não tem como chegar num estado do Nordeste só pra... vestido nos pano, e
fazer show, os caras vão falar “esse artista aí...”. Não vai lá falar, não vai lá,
fazê um workshop, encontrá a galera, faz uma interação, vai no bairro onde
tem que ir, não faz essa interação não pucê ver se os moleque não te quebra
no show, eu já vi, cara. Entendeu? Tem cara aí que é pop aí ó, esses “qualé
neguinho” aí, ó, que morre em Teresina. Entendeu?