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Faculdade de Letras
Departamento de Estudos Clássicos
A demanda do amor e o amor da demanda:
leituras de Hero e Leandro de Museu
Maria Madalena Fernandes Simões
Mestrado em Estudos Clássicos – Literatura Grega
2006
Universidade de Lisboa
Faculdade de Letras
Departamento de Estudos Clássicos
A demanda do amor e o amor da demanda:
leituras de Hero e Leandro de Museu
Professor Doutor Manuel Alexandre Jr.
Maria Madalena Fernandes Simões
Mestrado em Estudos Clássicos – Literatura Grega
2006
na capa
Reverso de moeda de Abido: Hero com a lâmpada, no cimo da torre, Leandro
nada e Eros segura uma tocha.
No verso consta o busto de Cómodo. 177‐9 d.C. (British Museum)
A meus pais
σόν δι’ ἔρωτα
M. 203
Índice
Resumo XIII
Summary XIII
Introdução 1
I. Os séculos V e VI no Oriente. O autor.
1. C ON T EXT O S . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
1.1. RELIGIOSO 6
1.2. CULTURAL 9
2.2. REMINISCÊNCIAS DE MUSEU 16
2.3. AS CARTAS DE PROCÓPIO DE GAZA 22
2.4. EVENTUAL FILIAÇÃO CRISTÃ E/OU NEOPLATÓNICA 24
3. C ON C LUS ÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 7
II. O Manual do Amor
1. PR OÉM IO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 9
2. GÉN ESE E DES ENVOLV IMENTO D O AMO R . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 2
2.1. CAUSAS PRÓXIMAS 32
2.1.1. A ACÇÃO DE EROS 32
2.1.2. A BELEZA 33
2.2. SINTOMATOLOGIA DA PAIXÃO 36
2.3. SEDUÇÃO 38
2.3.1. MÍMICA DO DESEJO 38
2.3.2. PROXIMIDADE FÍSICA 40
2.3.3. ABORDAGEM VERBAL E MÍMICA DA PERSUASÃO 42
ix
2.4. CONSUMAÇÃO DO AMOR: O CASAMENTO 44
2.4.1. A PRIMEIRA NOITE 44
2.4.2. COMUNHÃO DE SENTIMENTOS E EXPERIÊNCIAS 48
2.5. CONCLUSÃO: PROFUSÃO ISOTÓPICA 52
3. AM AN TE S E OUTRAS P ER S ONA G ENS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 2
4. TEMPO E ES PA ÇO: S ÍS T OL E‐D I ÁS TO LE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 4
5. ES TRU TUR A F OR M AL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5 9
6. ΑΡΕΤ Η Τ ΗΣ ΛΕΞ ΕΩ Σ . L IN GU AG EM E E ST I LO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 1
6.1. LINGUAGEM ARCAIZANTE E HOMÉRICA 61
6.2. O MODELO ALEXANDRINO 63
6.3. A EPOPEIA DE QUINTO DE ESMIRNA 64
6.4. A POESIA DA ANTIGUIDADE TARDIA 65
6.5. ESPECIFICIDADES DE MUSEU 66
6.6. RECURSOS DE ESTILO 67
6.7. CONCLUSÃO 68
III. A demanda do amor
1.2. TEORIA DOS GÉNEROS 77
2.2. FORZA/FRODA 81
2.3. VERTICALIDADE 83
2.4. CONCLUSÃO 89
IV. Demanda genológica: do hibridismo ao romance
1.2. APOLÓNIO DE RODES 95
1.3. NONO DE PANÓPOLIS 99
x
2. HE RO E L EA ND R O, ROMA N CE D EPU RAD O . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 0 0
2.1. A SIMETRIA DA PAIXÃO E OUTROS MOTIVOS TÍPICOS 101
2.2. ESTRUTURAS ROMANESCAS 110
2.2.1. PERSONAGENS 110
2.2.2. TEMPO E ESPAÇO 113
2.2.3. PROCEDIMENTOS RETÓRICOS 114
2.3. FACTORES (NA APARÊNCIA) DISSONANTES 117
Conclusão 125
Anexos
Anexo I: Hero e Leandro texto, tradução e notas 127
Anexo II: Hero e Leandro no repositório mítico ocidental 157
1. A TORRE: R A PUNZE L . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 5 8
2. AM OR SECR ETO E UN IÃO POS T‐MO R TEM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159
2.1. PÍRAMO E TISBE 160
2.2. TRISTÃO E ISOLDA 160
2.3. ROMEU E JULIETA 161
2.4. PEDRO E INÊS 163
2.5. CONCLUSÃO 163
Anexo III: O mito na literatura antiga e moderna 165
Bibliografia 173
xi
Resumo
Este trabalho consiste num estudo da obra Hero e Leandro de Museu, que
situamos do ponto de vista cronológico na transição do século V para o século VI d.C.,
no Egipto e em particular na zona de Panópolis, à época o centro cultural do império
no oriente. A primeira obra que a Antiguidade legou aos nossos dias dedicada na
íntegra ao mito dos dois apaixonados tem sido classificada quanto ao género literário
como epílio, isto é, uma epopeia em miniatura cuja tradição foi iniciada por Calímaco,
em Hécale, e com alguma voga na antiguidade tardia.
Através dos contributos da teoria do romance por Northrop Frye e da crítica do
romance grego, pretendemos evidenciar os traços compositivos que a obra partilha
com o romance e provar que são eles os factores determinantes para a classificação
genológica da obra, romance poético depurado. Só essa classificação de género, que
resulta de uma demanda intencional de Museu e se reflecte num certo hibridismo
genológico em que a Odisseia desempenha papel relevante, explica que a trama
narrativa seja definida pela demanda do amor.
Palavras‐chave: Hero e Leandro, Museu, epílio, romance grego, Northrop Frye.
Summary
This work consists on a study of Musaios’ Hero and Leander. We situate the
work on the transition from the Vth to the VIth century AD, in Panopolis (Egypt), the
cultural centre of the oriental empire at the time. The work by Musaios is the earliest
extant work to deal alone with the two lovers’ myth. According to genre it has been
considered an epyllion, i.e., a miniature epic, common in the Late Antiquity and
whose tradition Callimachus’ Hecale began.
Through the contribution of Northrop Frye’s theory of romance and of the
critics of the Greek novel, we will highlight the patterns the work shares with this
genre and show that they are decisive to prove the genological classification of
Musaios’ work as a poetic and purified romance, in the sense that it displays more
briefly all the traces of the genre. This genological classification, intentionally sought
by Musaios, is the most convenient to explain why the quest for love defines the
narrative. The author’s quest patents itself on the genological hybridism, among which
Odyssey’s influence is proeminent.
Key‐words: Hero and Leander, Musaios, epyllion, Greek novel, Northrop Frye.
xiii
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Introdução
Aos apaixonados pela mitologia grega e aos estudiosos da literatura antiga a
história de Hero e Leandro não é desconhecida. Os dois jovens, de cujo primeiro
encontro nasce a paixão, habitam ele Abido e ela, Sesto, cidades fronteiras na margem
do Helesponto. Apesar da previsível discordância dos pais dela e de as funções de
Hero como sacerdotisa de Afrodite exigirem a virgindade, em conversa os dois
encontram o estratagema que viabilizará o encontro secreto: ao anoitecer Leandro
atravessará o mar a nado, de Abido até à torre onde Hero vive, guiado por uma
lâmpada que ela vigia. Passarão a noite juntos, após o que Leandro, agora orientado
pelas estrelas, regressará em sentido inverso a casa. Assim acontece até à chegada do
inverno: numa noite de tempestade a lâmpada na torre de Hero acende‐se e Leandro
aventura‐se à travessia. Ao identificar o cadáver dele entre as ondas, na manhã
seguinte, Hero atira‐se da torre e morre abraçada a ele.
Estes são os traços fundamentais do mito, que Virgílio (Geórgicas 3.257‐263) é o
primeiro a atestar na literatura, mas tanto quanto sabemos é Museu Gramático que
pela primeira vez lhe dedica uma obra completa. Na transmissão do mito importa
referir as duas cartas que, nas Heroides (18 e 19), Ovídio atribui a cada um dos amantes:
sendo muito discutido, e duvidado, o conhecimento de Ovídio por Museu, certas
afinidades entre as duas obras têm sido atribuídas a uma fonte helenística comum,
hoje perdida.
Hero e Leandro de Museu, que em termos cronológicos é possível situar no fim
do século V e no início do século VI d.C., antes de Justiniano, foi já considerada the last
rose of the fading garden of Greek literature 1 . A obra ocupa pois uma posição charneira na
transição da antiguidade tardia para o império bizantino, que o jogo quiástico com o
texto modelar de Homero, ao nível da acção narrativa e dos seus motivos, tal como da
linguagem, mais intensifica e esclarece. Esse jogo intencional com o arquétipo
homérico manifesta‐se ainda do ponto de vista genológico, mas não é exclusivo:
1 (Koechly 1881: VII apud Gelzer 1989: 325). Também the last pure rose of Greek summer por John A.
Symonds, Studies of the Greek poets II (London, 1893), p.345.
1
Museu combina traços da epopeia (homérica, mas também de Apolónio de Rodes e de
Nono de Panópolis) com marcas do romance, género muito mais recente do que o
épico, porém à data já desenvolvido em todas as obras que a Antiguidade nos legou
na íntegra. Hero e Leandro é uma obra profundamente marcada pelo hibridismo
genológico. Pela confluência de géneros, de motivos e de traços de linguagem, o texto
de Museu reproduz as características que definem a produção literária da Antiguidade
tardia.
Também do ponto de vista da recepção posterior a obra de Museu desperta
interesse. A grande fortuna de Hero e Leandro começa por ser patente no elevado
número de manuscritos que dela existem e estende‐se às diversas edições, traduções e
reformulações de que foi objecto na época do Renascimento e do Romantismo. A sua
editio princeps foi nada mais nada menos do que o primeiro (ou segundo) trabalho da
Imprensa Aldina, cerca de 1494.
Perante um texto que se apresenta tão rico de elementos merecedores de
análise e dada a situação marginal da obra no que diz respeito à época e,
provavelmente, ao género, começaremos por apresentar em traços largos o contexto
político, religioso e cultural em que Museu terá escrito, procurando por meio de
evidências internas e externas situar a composição poética com o maior rigor possível
(capítulo I). Num segundo momento procederemos à análise semântica de Hero e
Leandro, identificando as suas linhas isotópicas fundamentais. A prioridade do tema
do amor fornecer‐nos‐á a matriz segundo a qual entender os vectores narratológicos
da obra (capítulo II). A leitura do texto de Museu segundo o sistema arquetípico de
Northrop Frye (capítulo III) permitir‐nos‐á esclarecer certos motivos de carácter
simbólico, fundamentais na obra, e conduzir‐nos‐á à sua classificação genológica como
romance, que em seguida desenvolveremos de acordo com os traços compositivos do
romance grego, sem deixarmos de avaliar a dependência da obra face ao género épico
(capítulo IV).
Os anexos apresentam o texto grego e respectiva tradução acompanhada de
notas (anexo I), um estudo do mito relacionando‐o com outras histórias de amor e
morte da cultura ocidental (anexo II) e o elenco das ocorrências literárias do mito de
Hero e Leandro desde a Antiguidade até aos nossos dias (anexo III).
2
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Antes de passarmos à exposição do trabalho acabado de anunciar, algumas
palavras de agradecimento. Em primeiro lugar, sem dúvida, ao Professor Doutor
Manuel Alexandre Jr. pela cedência de recursos de carácter informático, fundamentais
no nosso estudo, e pelo apoio constante, disponível e paciente. Ao Professor Doutor
Aires do Nascimento, que possibilitou a investigação realizada no Warburg Institute e
no Institute of Classical Studies da Universidade de Londres. Também ao Instituto
Camões, na pessoa da senhora Dr.ª Madalena Arroja, pela sensibilidade ao necessário
prolongamento da estadia em Portugal para efeito de redacção da tese. Ainda aos
familiares e amigos que, presentes no incentivo e na confiança, apesar das minhas
ausências, por vários meios muito carinhosos contribuíram para o resultado final que
agora se apresenta: a discussão de ideias e sugestões de vária ordem, nomeadamente
bibliográficas e respeitantes à tradução, o apoio na reunião da bibliografia, a
disponibilidade repetida, a libertação de certos encargos, a leitura das provas, a
formatação final e até a oferta de papel. Da prestimosa colaboração de todos resulta
este trabalho, que é por isso também deles.
3
4
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
1. CONTEXTOS
Desde 395 que o império está dividido em império oriental e ocidental, ano em
que a religião do estado já era a cristã.
Ao longo do séc. V o império do oriente enfrenta sérios problemas: a defesa dos
ataques de diferentes povos bárbaros 2 e a gestão dos conflitos, não raro violentos,
entre pagãos 3 e cristãos. Mas, apesar das divergências internas, permanece unido sob o
imperador. Para tal concorrem uma administração imperial eficiente 4 , a mobilidade
social e um contacto entre iguais da elite governativa com as classes mais baixas, a
liberdade de movimentação geográfica no império e o prestígio do imperador, que
centraliza a resolução dos problemas, incluindo os religiosos (Brown 1989: 141; 147).
O império oriental não se submete a qualquer outro mas também não recorre à
violência 5 . Em afirmação expressa do imperador 6 , procura‐se uma fórmula que
permita a coexistência da rica variedade de crenças dos súbditos. Sob a aparente
divergência, o império é estável e unido, especializado no consenso e agarrado ao
ideal de “paz da Igreja” (Brown 1989: 148).
Nestas circunstâncias, norteado pela “miragem da renovação do império
romano” (Brown 1989: 153), embora desafiado por circunstâncias adversas 7 , Justiniano
2 A variedade de povos bárbaros (Godos, Isáuricos, Alanos, Hunos, Eslavos, Búlgaros...) e a defesa
urgente do território imperial são geridas através de políticas diversificadas e incoerentes (alianças
matrimoniais e execuções mútuas, pagamento de subsídios anuais, ameaças de guerra), que impõem por
vezes a concessão de territórios. O exemplo mais flagrante terá sido a cedência do governo de Itália a
Teodorico, chefe dos Godos, perante a iminência de este conquistar Constantinopla em 483 (Cameron
1993: 31).
3 Para o emprego do termo paganismo, surgido no séc. IV, e a sua distinção de helenismo vd. Bowerstock
1999: 9‐10 (cf. Jaeger 2002: 17).
4 Um mercador de Alexandria pode trocar cheques por dinheiro em Constantinopla (Brown 1989: 145).
5 A prioridade concedida à diplomacia resulta sem dúvida da consciência viva da existência de outros
impérios a seu lado (e.g. império nómada de Átila 434‐53, império sassânida – Brown 1989: 139‐40). Até os
missionários cristãos virão a ser dotados de missões diplomáticas imperiais.
6 Anastácio (491‐518) a legados romanos.
7 As dificuldades são numerosas e de vária ordem: em 532, os seus opositores despoletam a revolta de
Nika, “a mais grave explosão de violência na história da Roma oriental” (Brown 1989: 150); decorre a
guerra defensiva contra os persas (540‐61) e, em simultâneo, um tipo de peste bubónica aflige o império
5
(527‐65) desempenha um papel notável de expansão territorial 8 , consolidação
administrativa 9 , solidez financeira 10 e conciliação religiosa 11 , que não dispensa a
propaganda autocrática 12 .
Com este imperador o centro de gravidade do mundo cristão permanece no
mediterrâneo oriental (Brown 1989: 158), mas o esplendor do reinado anuncia a
mudança: é a partir de Justiniano que se assinala a civilização propriamente bizantina
(Lemerle 1965: 63).
1.1. RELIGIOSO
As divisões doutrinais no seio do cristianismo e a resistência dos cultos do
helenismo dão forma a conflitos religiosos, principal fonte de preocupação dos
imperadores dos séculos V e VI 13 .
(541‐70), provocando elevado número de vítimas. A expedição vitoriosa contra a África vândala (533) e a
instalação da nova administração, seguida da luta local contra tribos berberes e nómadas, a guerra em
Itália (534‐54) e o pesado tributo em ouro a pagar anualmente ao rei Cósroas I da Pérsia contribuem ainda
para o enfraquecimento do governo oriental e o depauperamento do império (Cameron 1993: 104).
8 Logra‐se a submissão da resistência ostrogoda (552), o domínio de grande parte de Espanha (554), a
pacificação de África, com fronteiras mais alargadas do que com Trajano (560), e a protecção da fronteira
do Danúbio por meio de alianças (Brown 1989: 156). O norte de África até Gibraltar, o sul de Espanha e
toda a Itália passam a constituir território do mesmo império.
9 E.g. as codificações jurídicas Digesta (533) e Codex Justinianus (534)
10 O equilíbrio financeiro atinge‐se pelo pagamento efectivo dos impostos, aumentando o número de
oficiais cobradores (Cameron 1993: 165), e pela criação desde 541 da manufactura de seda, cujo monopólio
o governo mantém. Por volta de 560, a Palestina e a Síria prosperam e a moeda do império oriental
espalha‐se bastante para além das suas fronteiras (Brown 1989: 155‐6). Em finais do século, a paz e a
prosperidade no Egipto produzem trigo e azeite em abundância (Cameron 1993: 117)
11 Não é por acaso “o imperador mais cristão” (Brown 1989: 152): defende o cristianismo, sem deixar de
acautelar as minorias, nomeadamente as pagãs; empreende a construção de igrejas cristãs de estilo
uniforme por todo o império e também em territórios há pouco conquistados, aliando a expansão
territorial e religiosa à demonstração de poder (Cameron 1993: 118). Tendo favorecido os monofisitas por
influência da imperatriz Teodora (Lemerle 1965: 59), procura conciliar as diferentes facções cristãs,
nomeadamente no Concílio Ecuménico de Constantinopla (553‐4).
12 Intensifica‐se a vida e a pompa da corte imperial; investe‐se na magnificência das construções imperiais,
cujo arquétipo é a monumental reconstrução da Igreja de Santa Sofia. A defesa da moralidade pública
processa‐se pela legislação contra o jogo e a blasfémia. (Cameron 1993: 118)
13 Apesar de os Padres Capadócios (séc. IV) terem alimentado os traços comuns entre o cristianismo e a
paideia filosófica grega, criando uma nova cultura cristã assumidamente herdeira da tradição grega.
Instaura‐se uma relação positiva e produtiva entre cristianismo e helenismo, apoiada em alocuções como
a de Basílio de Cesareia sobre o estudo da literatura grega e o valor dela para a educação da juventude
cristã, rejeitando o seu conteúdo moral e religioso mas exaltando‐lhe a forma. No helenismo como no
cristianismo, entende‐se a vida como processo de aperfeiçoamento individual (do filósofo grego ou do
cristão), pela contemplação do divino, com vista a uma união cada vez mais perfeita com ele (Jaeger 2002:
115). Ambos reconhecem ainda a importância da leitura na formação do indivíduo, diferindo embora na
6
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
obra seleccionada como fonte de crescimento, que é para os cristãos a Bíblia. Sobre este assunto vd. Jaeger
2002: 100 sqq.
14 Doutrina que nega a divindade de Cristo por este, diferentemente do Pai, ter sido criado no tempo e
portanto ter princípio e não ser eterno. Foi condenada em 321 por um Sínodo de Alexandria e pelo
primeiro concílio ecuménico, de Niceia (325). Ressurgiu posteriormente e desapareceu só depois de 589. O
arianismo surgiu como reacção contra o Monarquianismo, que negava a distinção pessoal do Filho em
relação ao Pai.
15 Doutrina segundo a qual Cristo só tem natureza divina. A exclusão da natureza humana de Cristo
processa‐se pela convicção de que Jesus tem alma sensitiva (psyche) mas não alma intelectual (nous) ou,
em versão radical, que o Logos substitui por completo a alma de Cristo. Nega‐se pois a kenosis do Verbo na
incarnação. Os defensores da ortodoxia, cuja figura de proa foi Gregório de Nazianzo, opõem ao
monofisismo o difisismo da ortodoxia: o Verbo tem uma dupla natureza humana e divina (cf. Fil 2, 7). O
monofisismo foi sem dúvida a heresia mais importante desta época.
16 Doutrina criada por Nestório, patriarca de Constantinopla (381‐c.451), segundo a qual a natureza
humana de Cristo é preponderante. Recusa a união hipostática e o título de “Mãe de Deus” aplicado a
Maria e defende como própria apenas a forma “Mãe de Cristo”. Na sequência do Concílio de Éfeso (431),
Nestório foi deposto, excomungado e condenado ao exílio, mas a sua doutrina permanece ainda na
actualidade entre os católicos caldeus.
17 Movimento herético do norte de África, surgido depois da sagração de Ceciliano como bispo de Cartago
(311), que Donato de Casa Nigra considerou inválida por ter sido ministrada por Félix, bispo “traditor”.
Donato chefiou um partido de oposição, cujo favorito veio a ser eleito. O fenómeno foi condenado pelo
Papa Milcíades, em Roma (313), e em Arles (314), mas a heresia manteve‐se até à conquista do norte de
África pelos árabes, no séc. VII.
18 A interferência das esferas política e religiosa é mútua: também o patriarca de Constantinopla está
envolvido na política do estado e é próximo do imperador (Cameron 1993: 62).
7
Nos primeiros três quartos do séc. V, sob Plutarco (m. 423), Siriano e Proclo
(411‐85), Atenas é o centro dos estudos filosóficos 19 . Na escola de Atenas ensinam sete
professores, todos pagãos, a maioria dos quais platonistas, que gozam de uma aura de
glamour e se movimentam com à vontade nos domínios da magia e da teurgia 20
(Cameron 1985: 9). São, segundo Agátias, a fina‐flor dos filósofos do seu tempo. A lei
geral de Justiniano 21 (529) que proíbe os pagãos de ensinarem, a não ser que se
baptizem ou sob pena de serem exilados e os seus bens confiscados, diz‐lhes também
respeito, mas esses professores não deixam de exercer 22 .
Depois da morte de Proclo, Alexandria cresce ao mesmo tempo que Atenas
decresce: todos os grandes nomes da geração seguinte (Damáscio, Simplício, Asclépio,
Filopono, Olimpiodoro), mesmo que pelo menos o primeiro ensine depois em Atenas,
estudam em Alexandria com Amónio (Cameron 1985: 27).
O Egipto é a região do império onde a resistência ao cristianismo é mais
persistente. Em 400 a nova religião é sem dúvida maioritária e, no século V, ¾ do
Egipto é cristão (Bowerstock 1999: 57). Os pagãos estão contudo bem organizados e
capazes de acções ofensivas durante mais de meio século 23 . O móbil para tal
resistência é o nacionalismo egípcio e a nostalgia da religião dos antepassados:
investigam e recuperam elementos do seu passado, interessando‐se por ou compondo
obras de carácter histórico acerca do seu país (patria) 24 .
19 Aí estudam todos os grandes professores de Alexandria: Hiérocles, Hermias, Amónio.
20 Damáscio, διάδοχος em 529, escreve uma obra sobre paradoxografia oculta que não sobreviveu mas
horrorizou Fótio, bem como uma Vida de Isidoro em que retratava os mais destacados pagãos da época,
assemelhando‐se a obra a uma espécie de hagiografia pagã.
21 Vd. em Cameron 1985: 8‐9 a discussão sobre a referência de João Malalas a um edito especial de
Justiniano que proibia o ensino de filosofia ou direito em Atenas. Cod. Just. 1.5.18.4; 1.11.10.2.
22 Tal como a maior parte das leis da Antiguidade tardia, esta lei de Justiniano mostra que os abusos a
erradicar são do conhecimento do governo central, mas dela não deve ser inferido o seu cumprimento.
Olimpiodoro, professor de filosofia em Alexandria reconhecidamente pagão, ensinava ainda depois de
565 (Cameron 1985: 9). Do mesmo modo, entre esses sete filósofos, depois da viagem que empreendem
em 532 para a corte persa de Cósroas I e de o mesmo Justiniano autorizar o regresso deles (Agátias Hist.
2.30‐1), pelo menos Simplício parece ter voltado a Atenas e continuado a ensinar na escola, com o que
restava da confiscação aos bens dela (Cameron 1985: 11 sqq).
23 Acções violentas entre ambas as facções são frequentes fora das cidades, entre 400 e 450; Panópolis é um
centro pagão cujos templos atraem multidões (Rémondon 1952: 69, 71); na Vida de Severo de Antioquia, por
Zacarias, todos os alunos cristãos são estrangeiros (Maspéro 1914: 184). Mas no séc. VI o filósofo mais
importante é já um cristão, João Filopono.
24 Horápolon o Jovem (n. 2ª metade do séc. V) pode ser considerado representativo da época: compõe um
tratado em dois volumes, em língua grega, sobre a interpretação da escrita hieroglífica, numa altura em
que já poucos a conheciam e ele próprio também a não dominava. “Hieroglyphica é claramente a obra de
um egípcio helenizado que procura recuperar e compreender as suas tradições nativas” (Bowerstock 1999:
8
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Não obstante a prolongada resistência dos cultos helenistas, no Egipto surgem
também manifestações que atestam a vitalidade da nova religião. O cristianismo copta,
representado pelo patriarca de Alexandria, apoia no Concílio de Éfeso (431) a
declaração de Maria como Theotokos (Brown 1989: 143). No Egipto nascem a arte copta
e o ícone. Perto do fim do séc. V é o cristianismo egípcio que vem a ser adoptado em
Constantinopla: Zenão tolera o monofisismo copto‐sírio e Anastácio é dele partidário
declarado (Maspéro 1914: 188). Tendo vencido embora tão intensa resistência à sua
implantação, o cristianismo egípcio está condenado: a invasão persa e, depois, a árabe
fá‐lo‐ão desaparecer (Rémondon 1952: 76).
1.2. CULTURAL
56). Horápolon é também autor de um patria e, com Pampréprio, o mais aguerrido militante pagão
(Cameron 1985: 220). Mais tarde converte‐se ao cristianismo (Maspéro 1914: 191 sqq).
25 A abolição dos Jogos Olímpicos por Teodósio I em 394 é sintomática do desaparecimento, à época, do
interesse pelo atletismo e pelo desporto.
9
Contudo, o grego ganha supremacia com a ascensão ao poder de imperadores de
origem não militar: Anastácio (491‐518) e Justiniano (527‐65) (Brown 1989: 138). Ainda
que o latim continue a ser usado para fins literários (Cameron 1993: 127) e as línguas
de cultura na Antiguidade Tardia sejam de facto o latim e o grego, o conhecimento do
latim no império oriental vem a tornar‐se cada vez mais invulgar. 26
Entre a linguagem literária e o grego falado há uma divergência profunda.
Utilizam‐se versões fossilizadas da linguagem literária apropriada ao género em
causa, num esforço de aproximação aos antigos modelos: até à queda de
Constantinopla, continua‐se a escrever em dialecto ático e homérico e a imitar as
formas clássicas da literatura (Hopkinson 1994a: 10). O recurso à língua literária exige
treino especializado de autores e de públicos, mas só deixará de ser acessível para a
maioria com o declínio das cidades, a partir do século VII.
No entanto, o sistema cultural que produz e mantém essa literatura muito
elitista encontra‐se em rápida mudança. Desenvolve‐se um conhecimento típico
cristão, que nasce com as comunidades monásticas do ocidente e conduz aos grandes
centros de conhecimento medievais do séc. V tardio. A produção literária cristã não
despreza, mas antes se fundamenta em géneros clássicos, em especial na retórica. O
conhecimento secular é por sua vez combinado com a expressão cristã, por exemplo
no género epistolar, que florescerá entre os cristãos mais educados do princípio do
século V.
O cristianismo apela consciente e directamente a todas as classes sociais,
incluindo de modo explícito as classes mais ignoradas até então: escravos e mulheres
(Cameron 1993: 138). A literatura teológica tanto adopta um tom claramente misógino
como dá uma atenção inusitada às mulheres, que passamos a conhecer 27 e a quem é
concedida muito mais liberdade e igual acesso à santidade. Na mesma linha, o culto
da Virgem Maria, símbolo de pureza, virgindade e obediência, ganha destaque
(Cameron 1993: 149). Como meio de educação dos iletrados, aumentam no séc. VI as
26 Refira‐se ainda que, com a deslocação para o império oriental de alguma população de origem geórgia,
arménia, copta e síria, devido à prosperidade do séc. V, a importância dessas línguas locais aumenta e
passam a ser usadas em versão escrita e, no caso do sírio, também traduzida. Geram‐se assim importações
linguísticas numerosas entre o grego e o sírio (Cameron 1993: 140).
27 Melânia a Jovem, Paula e as suas irmãs, amigas de Jerónimo, ou a diaconisa Olímpia, amiga de João
Crisóstomo, são senhoras cristãs da classe alta.
10
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
imagens religiosas, nomeadamente o ícone bizantino. A cultura nova é mais universal
e baseia‐se no visual e no oral, em detrimento da palavra escrita.
A nova ênfase do cristianismo no individual, por via do alargamento das
práticas ascéticas e do monacado, conduz à valorização da vida e dos valores privados
(Cameron 1993: 150) e ao desenvolvimento do interesse da sociedade em geral pelos
textos de carácter biográfico. Do mesmo modo, nas condições de recepção literária há
a acrescentar a leitura, cada vez mais alargada em contexto individual (Said 1990: 4).
A persistência de práticas ligadas à oralidade e ao colectivo permanece
sobretudo no que diz respeito à poesia, presente, embora em progressivo decréscimo,
em ocasiões cívicas, recitações públicas, competições, epitáfios e dedicatórias
(Hopkinson 1994a: 10). É altamente valorizada a composição em verso, em grego, em
particular o panegírico. Sob Justiniano o epigrama de estilo clássico sofre um
florescimento assinalável 28 (Trypanis 1981: 404). Mantém‐se sem dúvida o lugar de
relevo da poesia na cultura geral.
Com a continuidade do sistema de ensino, se se mantêm as formas poéticas
cultivadas, esbatem‐se as divisões tradicionais entre épica, lírica e drama, na sequência
do que vinha a acontecer desde o período helenístico (Trypanis 1981: 384). Tomando o
exemplo da epopeia, de longe o género literário mais importante da época, ela é
cultivada de forma mesclada, seja enquanto epopeia mitológica, seja didáctica,
histórico‐encomiástica ou ecfrástica 29 .
Na senda de Posthomerica de Quinto de Esmirna, a epopeia mitológica de
grandes dimensões renasce pela mão de Nono de Panópolis e da sua escola 30 . Os
28 Com os epigramatistas do círculo de Agátias de Mirina, como Paulo Silenciário, Juliano o Egípcio,
Macedónio Cônsul e Leôncio Escolástico. A esta época atribuem‐se também hinos religioso‐filosóficos,
como os do neoplatónico Proclo (410‐85), e a composição de anacreontea – colecção de 59 pequenos poemas
muito afastados do brilho dos de Anacreonte (Trypanis 1981: 406‐7).
29 A epopeia ecfrástica, no conteúdo, afim do género encomiástico, é versada por Cristodoro de Copto,
Paulo Silenciário e João de Gaza. A epopeia didáctica, que se desenvolve sobretudo no séc. IV, apresenta
nos dois séculos posteriores apenas uma obra digna de menção, os Oráculos Sibilinos, que atingem a sua
forma final no séc. V e revelam influências cristãs (Trypanis 1981: 397).
30 Nono compõe o mais longo poema em grego (48 cantos) que a Antiguidade nos legou e Quinto de
Esmirna o segundo mais longo: Posthomerica. Ἡρωϊκαὶ Θεογαμίαι de Pisandro de Laranda, que não
chegou aos nossos dias, foi “a mais longa epopeia mitológica jamais escrita em grego” (Trypanis 1981:
367). Não há dúvida de que o género era popular.
11
temas homéricos são substituídos pela centralidade da figura de Dioniso, que “adquire
o valor simbólico de salvador da Humanidade e réplica de Cristo” (Alsina 1972: 161). 31
Embora relativamente poucos textos tenham chegado aos nossos dias, é no
âmbito da epopeia histórica e encomiástica (Cristodoro de Copto, Ciro de Panópolis
ou Pamprépio de Panópolis) que o período dos séculos V e VI é mais fértil,
influenciada pela Segunda Sofística e na sequência da longa tradição de poesia
elogiosa que remonta a Simónides e a Píndaro. Nestes poemas como em todos os
outros géneros então cultivados reconhecem‐se as marcas da escola de Nono 32 .
A poesia de carácter cristão desenvolve‐se sobretudo no séc. IV, com o intuito
de entreter e edificar um reduzido número de pessoas letradas (Trypanis 1981: 408).
Ao séc. V pertencem duas figuras com as quais chega ao fim a antiga tradição da
himnografia: Sinésio de Cirene (c.370‐c.414) e Proclo. 33
O dinamismo cultural e literário da Antiguidade Tardia concentra‐se no
Egipto, i.e. no Alto Egipto e na zona de Tebas, que se tornam no séc. V uma das mais
produtivas fontes criadoras de poetas gregos em todo o Império. De acordo com
Eunápio de Sardis (Vit. Soph. 493), que escreveu por volta de 400, os Egípcios são
“loucos por poesia” (ἐπὶ ποιητικήι μὲν σφόδρα μαίνονται). Todos os poetas dos
séculos V e VI nascem no Egipto ou aí são educados, procedendo a maioria de
Panópolis, o grande centro cultural.
A vitalidade literário‐cultural egípcia alimenta dois conjuntos distintos de
produção poética. Aí se desenvolve uma escola de poetas itinerantes: nascidos e
educados no Egipto, viajam por todo o império de cidade em cidade, em busca de
31 O destaque concedido à figura de Dioniso não é criação de Nono, que o escolhe para protagonista de
Dionisíacas, mas revela uma tendência geral na época: uma série de papiros atestam interesse pela figura
do deus, bem como as obras de Neoptólemo de Paros e de Sotérico de Oasis (Bassarica ou Dionysiaca), de
datação incerta (Alsina 1972: 159).
32 Depois de Mariano Cônsul, que empreendeu a tarefa gigantesca de verter para trímetros iâmbicos
vários poemas alexandrinos elegíacos ou em hexâmetro (e.g. de Teócrito, Calímaco, Apolónio), que não
chegaram até nós, viveu no séc. VII o maior representante do encómio épico, Jorge o Pisídio, que no
emprego do hexâmetro é o último representante dos seguidores de Nono (Trypanis 1981: 400‐1).
33 Na produção de hinos com fins litúrgicos, a partir do séc. IV decorre um tempo de preparação para a
época de ouro da himnografia bizantina, entre os sécs. VI e VIII. Raramente escritas depois de Adriano,
desaparecem de modo progressivo a tragédia e a comédia, e é no tempo de Justiniano que acaba por
largos séculos a representação teatral. Nos sécs. V e VI só o mimo e a pantomima despertam interesse,
face às escassas representações de teatro antigo. Depois da lei proibitiva de 524, nenhuma obra em verso
ou em prosa parece ter sido composta para ser apresentada em palco – a representação é substituída pela
leitura em público (Trypanis 1981: 387).
12
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
fama e fortuna junto de protectores e mecenas, não raro entre o poder político. São
quase todos pagãos professos, grammaticoi, conhecedores minuciosos da poesia grega
anterior e muitos sabem latim. Escrevem sempre sobre temas contemporâneos
(Cameron 1985: 470‐1). Compõem por encomenda e dela recebem honorários, como
João da Lídia, Dióscoro, Sinésio, Paládio, Sozómeno, Claudiano e Pamprépio (Alsina
1972: 144‐7).
A diferença fundamental entre esta escola e os outros poetas reside no facto de
estes não tratarem temas contemporâneos mas sobretudo mitológicos, que não
incluem quaisquer referências contemporâneas nem alusões históricas. Da escola de
poetas errantes chegaram aos nossos dias pouquíssimos textos, e em regra em mau
estado de conservação, à excepção de Claudiano 34 , enquanto que as obras dos poetas
mitológicos (e.g. Museu, Coluto) nos são hoje com facilidade acessíveis (Cameron
1985: 471, 477).
Dada a posição charneira dos séculos V e VI na história dos povos e na
literatura grega, entre a Antiguidade Tardia e a época bizantina, estes são dois séculos
férteis em transformações, que põem fim a processos que se estendiam desde os
alvores da cultura grega e dão início a outros de longa vida. É neste mundo marcado
pela mudança que vive Museu, autor de Hero e Leandro.
2. MUS EU GRAMÁTICO
34 O poeta “errante” Claudiano de Alexandria (talvez 2ª metade séc. IV) escreveu sobretudo em latim e
comparativamente pouquíssimo em grego (Cameron 1985: 471).
35 A sugestão de pseudonímia do autor de Hero e Leandro, hipótese aliciante que pressupõe afinidade
deliberada com um dos míticos fundadores da poesia grega, remonta pelo menos ao séc. XVI (Guil.
Canter, Nouarum lectionum libri VIII, Antuérpia, 1571, p.55 sqq) e é admitida entre outros por Gelzer (1989:
318) com base numa deliberada afinidade com Platão, por este mencionar várias vezes Orfeu nos
diálogos. C. von Barth, em 1624, foi mais longe e chegou a defender que Museu seria pseudónimo de
Nono. Nessa linha de pensamento, Vilarrubia (2000: 366) sugere que “también podría atisbarse la
correspondencia del viejo Orfeu con el poeta Nono de Panópolis y del viejo Museo con el poeta Museo”.
Kost (1971: 16) recusa a conjectura com desassombro e essa é a tendência actual dos investigadores. Pelo
menos no Egipto, o nome era comum nos sécs. V e VI (Hopkinson 1994a: 137).
13
grupo de poetas que, no Egipto dos séculos V e VI d.C., concentrava à época a mais
intensa actividade artística e literária na zona do Mediterrâneo.
A única informação segura de que dispomos sobre Museu é a de que em
alguns dos manuscritos mais antigos é chamado ὁ γραμματικός 36 , i.e., o professor que
acompanhava as crianças entre os catorze e os dezoito anos (Hopkinson 1994a: 4), após
o γραμματιστής e antes do ῥήτωρ.
A função do γραμματικός consiste em “ensinar a falar com correcção” e em
“explicar os poetas”, transmitindo para tal as devidas noções linguísticas e
hermenêuticas, a que estão associados princípios éticos e conhecimentos de história
(Kaster 1988: 11‐2). Pela anterioridade cronológica na educação dos alunos, como pelo
maior destaque público do retor, que se prestava a funções cívico‐políticas, o
γραμματικός goza da notoriedade de uma figura intelectual de segundo plano 37 . Do
ponto de vista financeiro, porém, disporia de um rendimento superior à média quer
enquanto funcionário municipal ou imperial, quer remunerado só pelas propinas dos
alunos. A acumulação com a actividade poética estende‐se a dezasseis γραμματικοί,
entre os séculos IV e VI 38 . Produzem por norma epigramas e carmina.
A Suda não fornece dados pertinentes ao nosso estudo, na medida em que
identifica quatro escritores de nome Museu, mas não menciona nem Hero e Leandro
nem o título de Gramático e situa‐os em época muito anterior aos séculos V e VI.
Constituindo pois o epíteto γραμματικός e a composição de Hero e Leandro 39 os
únicos dados seguros sobre Museu e inexistindo no poema qualquer alusão histórica
36 Em Bodl. Bar 50 (séc. X), Paris. gr. 2600 (séc. XV) e Vat. gr. 915 (séc. XIII), que se encontram entre os
mais antigos e constituem manuscritos de referência (Livrea 1982: 1). Sobre a relação semântica com
φιλόλογος e o emprego muitas vezes indistinto de γραμματιστής e γραμματικός vd. Kaster 1988: 447‐
53.
37 “An appropriate ornament in the public or private retinue of the powerful: honorably placed in a
proximity few could enjoy, but clearly subordinate, a peripheral figure” (Kaster 1988: 123).
38 A esses dezasseis, 6% do total, é possível acrescentar no máximo outros seis professores, cuja
combinação das duas actividades oferece algumas dúvidas, o que corresponderia a um total de vinte e
dois (8%) – Kaster 1988: 231‐440.
39 Também a Museu foi atribuído o poema em hexâmetros Junto ao rio Alfeu (Εἰς Ἀλφειόν ποταμόν ‐ AG
9.362), centrado no episódio amoroso entre o rio Alfeu e a fonte Aretusa, mas a maior parte dos
especialistas atribui a obra antes a um imitador, dado o menor rigor formal em comparação com Hero e
Leandro (Keydell 1933: 767, Orsini 2003: VII; Gelzer 1989: 301). A afinidade entre os dois poemas foi
alimentada ainda por Procópio de Gaza (vd. infra I.2.2.4) se referir, tal como implicitamente nesse poema
(φοίνιος ἀνήρ 24), às forças de Alárico e de Estílicon, respectivamente chefe dos godos e imperador
regente do império do Ocidente, e à vitória do primeiro. A data da morte de Alárico, 410 d.C., é o único
dado seguro que contribui para a datação do poema. Brioso Sánchez (260–1) comprova, através de análise
14
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
precisa, a crítica literária tem alimentado algumas conjecturas em torno de uma
cronologia relativa de autores da mesma época e de uma eventual filiação cristã e
neoplatónica.
2.1. O MESTRE: NONO DE PANÓPOLIS
Tem sido unânime entre os especialistas a dependência de Museu face a Nono,
poeta cimeiro da escola egípcia de epopeia mitológica, no século V.
Nono nasceu pois no Egipto, em Panópolis 40 , e terá vivido em meados do séc.
V, porventura em Alexandria (Hopkinson 1994b: 8 n.1). Este poeta, a quem também
chamaram nouus Homerus, é responsável pela composição de uma epopeia com a
mesma extensão da Ilíada e da Odisseia juntas, Dionisíacas. A obra aparenta carecer de
revisão.
Pelo contrário, a outra obra de Nono, uma paráfrase em hexâmetros 41 do
Evangelho de S. João, apresenta‐se completa. A cronologia das duas obras é duvidosa.
A tese segundo a qual Nono escreveu Dionisíacas enquanto pagão 42 e a Paráfrase depois
de se ter convertido ao cristianismo é contrariada pela análise estilística das duas
obras, que sugere anterioridade da Paráfrase (Hopkinson 1994a: 121). Tal coincidiria
com a composição posterior de uma obra de maior fôlego e não revista. Há ainda
quem defenda a composição simultânea das duas obras, como Vian (1976: XI) e
Fornaro (2000: 997), partindo do princípio que Nono pretendia contrabalançar aos
sobretudo métrica, a não coincidência do autor anónimo de Junto ao rio Alfeu com Museu, o que reforça a
convicção já antiga de que se tratará de um seu imitador (Keydell 1933: 767).
40 Hoje A̯hmīm.
41 Em Dionisíacas, como na Paráfrase, Nono aplica um sistema métrico que consiste na sua maior
contribuição para a poesia grega. Essa reforma poética situa‐se no culminar de um paulatino processo
evolutivo com raízes em Calímaco, em Trifiodoro no metro e vocabulário, Pamprépio e Claudiano (Alsina
1972: 161). Completado, por volta de 400, o desaparecimento gradual da distinção entre vogais longas e
breves, desenvolve‐se em simultâneo um novo sistema rítmico, com base no acento tónico e no número de
sílabas, que na época de Justiniano já está perfeitamente definido. Nono acrescenta‐lhe a mais estrita
forma de hexâmetro, que virá a desaparecer em benefício do já frequente trímetro iâmbico, mas entretanto
se revela a marca distintiva dos poetas seus seguidores (Trypanis 1981: 385 sqq). O metro é o
denominador comum dos membros da chamada escola de Nono. Para uma apresentação clara e sintética
da reforma métrica de Nono, vd. Madden 1995: 284‐94.
42 Bogner 1934: 320 sqq, Keydell 1936: 915, Cameron 1985: 476, Trypanis 1981: 392. Razões apontadas são
os indícios de polémica contra o cristianismo (“nunca vi nem ouvi que uma virgem tivesse filhos” οὐκ
ἶδον, οὐ πυθόμην ὅτι παρθένος υἷα λοχεύει 48.834) e as referências frequentes à prática de cultos de
mistério em Dionisíacas: e.g. 4.31, 12.142, 12.171, 46.363. No entanto, a possibilidade de Dionisíacas ter sido
escrita por um cristão é também defendida (K.Thraede, RAC 5 (1962) 1001 apud Cameron 1985: 476 n.38).
15
olhos da maioria cristã o paganismo de uma obra com o cristianismo da outra. Fornaro
(2000: 997) aponta para tal o período de 444 ‐50 e Vian (1976: XVII), de 450‐70.
Por razões teológicas que se prendem com a Maternidade Divina da Virgem
Maria, a Paráfrase é de certeza posterior a 431 e talvez a 451. A obra atribui três vezes 43
à Virgem o epíteto Θεοτόκος, definido no Concílio Ecuménico de Éfeso (431). Gelzer
(1989: 298) coloca a hipótese, sem a explicar, de a composição desta obra ter acontecido
ainda depois do concílio de Calcedónia (451), que funda verdadeiramente a ortodoxia
ao condenar em definitivo o monofisismo 44 e devolver importância à natureza humana
de Cristo e daí ao papel de Maria.
Para além da forte dependência de Museu face à obra de Nono 45 , Gelzer afirma
que o poeta cita ainda a Paráfrase dos Salmos de Ps.‐Apolinário, que por razões teológicas
terá sido escrita em 460‐470. Esta obra cita muitos autores que coincidem com os
citados por Museu. Outros poetas citam a Paráfrase e também Museu, como Coluto,
Cristodoro e João de Gaza (Gelzer 1989: 299).
O lapso de tempo entre 444 e 470, que colhemos das obras de Nono, bem como
o intervalo de 460‐470 de Ps.‐Apolinário, afinal coincidentes, podem pois servir de
referência para uma datação post quem da obra de Museu. Só o cotejo de Hero e Leandro
com os textos posteriores fornecerá o outro limite para a produção poética de Museu.
2.2. REMINISCÊNCIAS DE MUSEU
Afirma Gelzer (1967: 139) com clareza que Museu é figura de destaque no seu
tempo e que influencia, sob Anastácio I (491‐518), Coluto e Cristodoro de Copto e, sob
Justiniano (527‐65), João de Gaza, Paulo Silenciário e Agátias de Mirina 46 . Com estes
nomes se inicia, pois, a longa repercussão da obra de Museu. 47
43 No.P.2.9, 2.66, 19.135.
44 Para o conceito de monofisismo vd. supra n.15.
45 Museu adopta tanto das Dionisíacas como da Paráfrase versos inteiros ou partes de verso, palavras,
construções sintácticas antes não empregues, mesmo que dele divirja no ornamento retórico ou na menor
rigidez métrica. Vd. infra II.6.4. e notas ad loc à tradução.
46 Gelzer refere‐se também a Macedónio Cônsul, poeta que pertenceu à geração anterior a Agátias
(Cameron 1970: 8) e terá sido próximo de Paulo Silenciário (Madden 1995: 9). É o terceiro mais importante
epigramatista do Ciclo, para o qual contribuiu com 41 epigramas. As semelhanças que a sua obra
apresenta face à de Museu são poucas e passam, regra geral, pela influência maior de Nono (οὐ τρομέω
início de verso em AG 11.63.7, N. e.g. 39.19, M. 205; ῥοδέου em AG 5.247.6., M. 265 e 27 vezes em Nono;
16
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
O rapto de Helena (Ἁρπαγή τῆς Ἑλένης), da autoria de Coluto de Licópolis (na
Tebaida), apresenta vários passos idênticos a Hero e Leandro 48 . Kost e Gelzer 49
defendem a dependência poética de Coluto face a Museu, que também adopta com
menor rigor as regras métricas de Nono. 50
Cristodoro de Copto 51 foi igualmente poeta épico, mas bem mais prolífico do
que Museu ou Coluto. Sobreviveram apenas dois epigramas fúnebres e, relevante para
a sua datação, uma longa écfrase, que ocupa todo o livro II da Antologia Grega: em 416
hexâmetros, descreve oitenta estátuas de deuses, heróis e homens famosos que
decoravam as termas 52 de Zeuxipo em Constantinopla, destruídas pelo fogo em 532.
Cristodoro, que segundo a Suda terá vivido sob Anastácio I e escrito por volta
do ano 500 (Beckby 1957: 67), revela sob ponto de vista métrico influência de Nono
ἀμείλιχον no mesmo lugar do verso em AG 11.63.7, M. 245 e dezasseis vezes em Nono, e.g. 4.188), pelo
que não lhe dedicamos mais atenção neste trabalho.
47 Encontra‐se já desactualizada a afirmação de Orsini (2003: VII) segundo a qual Trifiodoro, Coluto, Paulo
Silenciário e João de Gaza são poetas da mesma época e discípulos de Nono. A investigação actual integra
Trifiodoro no séc. III‐IV da nossa era (Hopkinson 1994a: 136; Kaster 1988: 370‐1). Poeta e γραμματικός,
nasceu em Panópolis e influenciou Nono no tratamento do hexâmetro. De Trifiodoro apenas um poema
subsiste: A tomada de Ílion (Ἅλωσις Ἰλίου). Não se verificando, pois, a imitação de Museu por Trifiodoro,
prevista por Gelzer (1989: 300 n.b), é provável que Trifiodoro tenha sido uma das fontes utilizadas por
Museu. De Pamprépio, aventureiro político (Bowerstock 1999: 61), fala‐se também como possível
influência de Museu por causa de um epílio ecfrástico, com influências nonianas, que apenas nos chegou
em fragmentos. O recurso ao motivo da luz é comum, mas outras semelhanças são ínfimas: e.g. Frag.3.14
~ M. 310. Muitos autores duvidam da atribuição de textos a Pampréprio (e.g. Kaster 1988: 332).
48 i) Cena de recepção de Helena: C.255 ~ M. 260‐3, 257 ~ 78, 265‐6 ~ 172‐3; ii) segunda parte do discurso de
Páris: 293 ~ 83, 295 ~ 203, 296 ~ 142, 297 ~ 157; iii) transição: 303‐5 ~ 160‐172 (Kost 1971: 16; cf. Minniti
Colonna 1976: 65 e Keydell 1933: 767). A semelhança mais flagrante consiste no segundo hemistíquio de
C. 305 e M. 160, respectivamente, ἐπὶ χθονὶ πῆξεν ὀπωπήν e ἐπὶ χθόνα πῆξεν ὀπωπήν, e surge, noutros
termos, também em C.259 ~ M. 78 (κόρον δ’οὐκ [...] ὀπωπῆς) e 170, 267, 307 e 331 ~ 172 (ἀνενείκατο
φωνήν). Outros passos apresentam afinidades do ponto de vista do conteúdo, descrevendo a beleza
feminina, e da situação invocada, de natureza amorosa, sendo complementadas por outras de teor lexical:
C.8 e 187 ~ M. 249 (ἀγνώσσω), C. 60 ~ M. 164 (προάγγελος), C.179 ~ M. 139 (λοχεύω), C.214 ~ M. 267
(φιλήνωρ)48, C.340 ~ M. 77, C.375 ~ M. 125 (γενετήρ).
49 “Bei Kolluthos alles einfacher, oft auch gröber und unbeholfener ist.” Kost (1971: 16) exemplifica pela
comparação de C.257 com M. 78. Também Orsini 2003: VII, Gelzer 1989: 300, Kotseleni 1990: 52–3, Alsina
1972: 163. Diferentemente, Colonna não avança com a prioridade de nenhum, limitando‐se a afirmar a
contemporaneidade de ambos (Minniti Colonna 1976: 65).
50 Mesmo assim, a inserção epocal de Coluto tem sido objecto de ligeiras divergências: tanto é considerado
contemporâneo do imperador Anastácio (Gelzer 1989: 300; Kost 1971: 15), como informa a Suda, como se
defende que Coluto e Museu “furono quasi certamente contemporanei” (Minniti Colonna 1976: 65) e há
ainda quem opte por o integrar no séc. VI (Hopkinson 1994a: 136).
51 Gelzer (1989: 300‐301) identifica‐o como cristão e neoplatónico. Embora o nome indicie afinidade com o
cristianismo, ela não é imputável ao próprio poeta mas aos seus pais (cf. Wipszycka 1986: 173 sqq). Sobre
a onomástica como indicador do grau de implantação do cristianismo vd. Bagnall e Wipszycka.
52 Beckby (1957: 166) explica tratarem‐se de termas e não de um ginásio, apesar de essa designação constar
do título: Ἔκφρασις τῶν ἀγαλμάτων εἰς τὸ δημόσιον γυμνάσιον τοῦ ἐπικαλουμένου Ζευξίππου.
17
(Trypanis 1981: 401). No entanto, apesar da afirmação de Gelzer (1967: 139) de acordo
com a qual Cristodoro citaria explicitamente Museu, não se encontram entre as obras
de ambos mais do que ligeiras semelhanças textuais 53 .
Com João de Gaza, o primeiro dos poetas referidos que viveu sob Justiniano,
avança‐se no tempo e ganha‐se em segurança cronológica. Este poeta e γραμματικός é
responsável pela longa descrição do fresco que ornamenta as termas de inverno de
Gaza. São 703 hexâmetros ao estilo de Nono e que terão sido compostos a partir de
526/536 (Kaster 1988: 300) 54 .
Friedländer (1912: 110) assegura que João de Gaza é discípulo de Nono 55 . De
facto, a relação com a obra do mestre de Panópolis é muito mais forte do que com a de
Museu. Embora a écfrase do cosmos não seja parca em situações descritivas comuns a
Hero e Leandro, palavras como Afrodite, λύχνος, κρυπτός ou γάμος são empregues de
modo totalmente independente em relação ao texto de Museu. As coincidências entre
ambos são irrelevantes, por constituírem expressões correntes 56 ou decorrerem da
influência maior de Nono 57 . Só há um indício da dependência de João face a Museu, o
emprego comum e exclusivo, na literatura grega que conhecemos, de ἠνεμόφωνος
(Écf. 2.164 e M. 193).
Dada a ausência de provas fornecidas pela restante obra deste Gazeano, não
dispomos de dados suficientes, quer biográficos quer textuais, para provar a
53 M. 77 ~ AG 2.1.103, M. 273 ~ AG 2.1.357 (uso comum de ἀριστόνοος, palavra rara na literatura grega; e
M. 224 ~ AG 7.698. A primeira e a terceira remissões são indicadas por Ludwich 1912: ad loc.
54 Kaster (1988: 300), dada a aposição ao texto da expressão ἢ ἐν Ἀντιοχείαι, que Friedländer (1912: 111
n.2) considera irrelevante, sugere que João de Gaza tenha descrito não as termas, mas um mosaico em
Antioquia com idêntica representação do universo e modelo para a pintura realizada nas termas de Gaza.
Embora elas datem de 536, não é de estranhar como terminus post quem para a composição da écfrase o
período 526/536.
55 A sua écfrase consiste quase na totalidade em construções lexicais e partes de verso nonianas
(Friedländer 1912: 112‐116), numa tentativa mal sucedida de reproduzir as qualidades do estilo que toma
como modelar. E.g. emprego excessivo do prefixo αὐτό‐, até o desprover de significado (1.273, 1.284,
2.125, 2.96 cf. No. D.5.599), ou do comparativo –τερος, ao qual recorre por pura conveniência métrica
(2.89, 2.298, 2.314, 2.320). Do ponto de vista semântico, destaca Friedländer a utilização de σοφός (e.g.
fénix 2.208), ἔμφρων (1.88, 1.259) e νοερός (1.41, 1.310, fénix 2.220, sol 2.235 cf. No.P.1.20, éter 2.317) com
uma carga significativa demasiado alargada. O emprego do assíndeto entre orações subordinantes
(1.252s, 2.146s) é uma entre várias marcas da escola de Nono (D.38.170s, 39.284). No que diz respeito às
regras métricas, João e Paulo Silenciário seguem com a mais estrita observância as preceituadas por Nono
(vd. Friedländer 1912: 117 sqq).
56 E.g. Écfrase 2.191 ἀκτῖνα ἀέξων e 2.153 βλεφάρων ἀκτῖνες ~ M. 90 βλεφάρων δ’ἀκτῖσιν ἀέξων; 1.32
φιλότητος ἀνάγκη ~ 289 φιλότητος ἀνάγκην; 2.204 ἀστερόεις ἀνέτειλεν ~ 111 ἀνέτελλε ἀστήρ.
57 Museu emprega três vezes ῥόδεος, adjectivo raro na literatura grega, João de Gaza duas (Anac. 4.3, 5.26)
e Nono vinte e sete vezes, muitas das quais determinando παρειά (Ecf. 5.26 e M. 194).
18
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
posterioridade de João de Gaza face a Museu 58 . Todavia, a afirmação de Friedländer
(1912: 111) segundo a qual não dispõe de dados para afirmar a anterioridade ou não
de João face ao Silenciário vem apoiar a intuição de que João é posterior a Museu. A
datação de Paulo é bastante mais escorreita e sem dúvida posterior à composição de
Hero e Leandro.
Paulo Silenciário não só menciona a história de Hero e Leandro como cita
Museu de modo explícito e emprega léxico que alude sem dúvida à obra dele: em
apenas dois versos de AG 5.293.7‐8, quatro palavras são comuns ao texto de Museu,
bem como a expressão que define Leandro, νηχόμενος Λείανδρος 59 . Processo idêntico
é patente nas afinidades textuais entre a Descrição da Igreja de Santa Sofia e Hero e
Leandro 60 . O poeta recitou a Descrição em 6 de Janeiro de 563, na segunda inauguração
da Igreja. 61
A obra e o apelido 62 deste autor situam‐no em Constantinopla. À semelhança
de João de Gaza, não parece haver informações de estadias ou contactos deste poeta
com o Egipto.
Afirma Hopkinson (1994a: 85) que Paulo Silenciário terá sido talvez
companheiro mais velho de Agátias, por ser aquele poeta o que está representado com
maior número de poemas na antologia de Agátias e por os estilos de ambos se
assemelharem em proximidade à dicção e discurso em geral de Nono. Com efeito, a
época de produção literária de Agátias de Mirina (c.530‐c.582) coincide pelo menos em
parte com a de Paulo Silenciário, que seria possivelmente mais jovem (Cameron 1970:
6) 63 .
58 Ao contrário do afirmado por Gelzer 1967: 139.
59 Cf. νηχόμενος Λείανδρος 7 ~ M. 5; κράτος 7 ~ M. 250; ἐννυχίου 8 ~ M. 9, 285; κύματος 8 ~ M. 224, 314,
324, 334; ἀλέγων 8 ~ M. 155, 248.
60 P.S. 897 ~ M. 213, 49 ~ 315, 320 ~ 335 e, talvez, 275 ~ 325 (Kost 1971: 70).
61 Paulo Silenciário refere‐se à obra de Nono de forma bastante mais livre do que João de Gaza.
Neologismos forjados por Nono, como a constituição de adjectivos a partir dos substantivos em ‐άς, άδος
(e.g. ἐπεμβας), são uma das várias características de estilo que reproduz (Friedländer 1912: 113). Só a
imitação métrica é ainda mais estrita, sem contrariar todavia a impressão geral de uma obra de arte feliz
na representação poética de uma realidade na aparência despoetizada, a arquitectura. A obra de Paulo
Silenciário, em particular a Descrição, é devedora da de Nono quanto ao metro e ao estilo, mas apresenta
também afinidades com, para além de Museu, Calímaco e Coluto (Trypanis 1981: 402).
62 Silentiarius, “que goza de silêncio respeitoso na presença do imperador”, ou seja, oficial de justiça
(Hopkinson 1994a: 85).
63 Também conhecido como Agátias Escolástico, foi o segundo mais importante epigramatista da época
(Hopkinson 1994a: 83).
19
Agátias publicou cem epigramas da sua autoria com outros de poetas
contemporâneos em sete livros, sob o título de Ciclo, no início do reinado de Justino II,
cerca de 567 (Cameron 1970: 15). 64
Que Agátias conhece o poema de Museu é indubitável em cinco epigramas: AG
5.263, 5.267 65 , 5.297 66 , 7.572 e 11.64 67 . O jogo intertextual é indisfarçado em 5.263, que
apresenta, para além da citação expressa do nome dοs heróis (3‐4), a apóstrofe à
lâmpada (λύχνε 1) e a referência ao protagonista como νυμφίον (2) 68 , revelando
Agátias pleno domínio das circunstâncias do mito tal como Museu o apresenta. AG
7.572 refere, a propósito da morte de dois amantes, que “jazem num abraço que nunca
acaba” (5‐6), remissão clara para a conclusão de Hero e Leandro (M.342‐3).
Na História do reino de Justiniano 69 , Agátias refere‐se‐lhes de novo, recordando a
morte do jovem quando descreve uma batalha no Helesponto (Kost 1971: 70) e
menciona “a cidade de Sesto, famosa na poesia, sem dúvida por causa das suas
associações com a história da lâmpada de Hero e com a morte do seu amante
Leandro” 70 .
64 Referências ou alusões ou a Justino II ou à imperatriz Sofia (565‐78) permitem precisar a época da
composição de pelo menos três poemas do Ciclo: AG 9.657, 658 e 659 (Cameron 1993: 70‐75). Mais
elementos conducentes à datação do Ciclo de Agátias apresentados por Cameron 1970: 12 sqq.
65 Consiste num breve diálogo sobre o verdadeiro amor e a diferença entre ἐρωμανέω e λογίζω. O
interrogado, calculista, prefere um amor escondido (ὑποκλέπτω 6, vd. M. 85, 161, 182, 289).
66 Apresenta, em tom de queixa feminina, o contraste entre a vida dos rapazes e das raparigas na
juventude: os primeiros conotados com o espaço exterior, a luz, o movimento, enquanto que as segundas
estão por tradição limitadas ao interior doméstico. Como veremos, o texto de Museu joga também com
estes pressupostos. Não é de estranhar que a afinidade temática conduza a um léxico absolutamente
idêntico do epigrama de Agátias, face a Hero e Leandro: e.g. παρέασιν ὁμήλικες (5.297.3) e ἔασιν
ὁμήλικες (M. 191).
67 Retoma o tópico do efeito de uma mulher “de beleza radiosa” (μαρμαρυγῆς κάλλους) sobre os seus
admiradores, ocupando todos os pensamentos deles, em particular nos versos 8 e 12, embora só o
primeiro recorde Hero e Leandro de forma textual: μαρμαρυγῆς também em M. 56, na mesma posição
inicial no verso, e κάλλους, em M. 54, 85, 92, 95 e 168. Para o verso 12, cf. esp. M. 69s.
68 cf. M. 261, 267, 268, 268, 269, 283, 335.
69 Agátias pretendia dar continuidade às Guerras de Justiniano de Procópio, mas deixou incompleta a sua
obra, cuja redacção foi por sua vez prosseguida por Menandro Protector. Agátias trata apenas do período
entre 552 e 559 (Brodka 2004: 153) e terá escrito a partir da década de 570 (Cameron 1970: 9‐10).
70 Σηστός γέ ἐστι πόλις ἡ περιλάλητος τῇ ποιήσει καὶ ὀνομαστοτάτη, οὐκ ἄλλου τοῦ ἕνεκα, οἶμαι, ἢ
μόνον ἐπὶ τῷ λύχνῳ τῆς Ἡροῦς ἐκείνης τῆς Σηστιάδος καὶ τῷ Λεάνδρου ἔρωτι καὶ θανάτῳ (A. Hist.
5.12).
20
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
A dependência de Agátias face a Nono, do ponto de vista de linguagem e de
metro, está não obstante provada 71 , pelo que certas coincidências do texto de Hero e
Leandro com os epigramas de Agátias podem não significar mais do que dependência
de ambos em relação ao mesmo modelo 72 .
Agátias, embora o pai fosse originário de Mirina, na Ásia Menor, exerceu
advocacia em Constantinopla e estudou em Alexandria (Cameron 1970: 1 sqq). Entre
os poetas acabados de mencionar, quase todos apresentam uma ligação mais ou
menos duradoura com o Egipto: Coluto é originário da região egípcia da Tebaida,
Cristodoro apresenta o epíteto de Copto (embora a sua história pareça mais próxima
de Constantinopla) e Agátias estudou em Alexandria. Paulo Silenciário e João de
Gaza, pelo contrário, desenvolvem a sua actividade na costa oriental do Mediterrâneo.
No entanto, se atendermos a que em termos epocais os mais próximos de Nono terão
sido, de facto, Coluto e Cristodoro, tal como Nono de Panópolis, parece consolidar‐se
a suposição de que Museu faria parte do grupo de poetas egípcios. Esta conjectura é
apoiada por Cameron, que inclui Museu entre os poetas‐gramáticos em actividade no
Egipto dos séculos IV e V (Cameron 1985: 492), apresentada também por Hopkinson
(1994a: 137) e formulada pelo menos desde 1912 (Keydell: 910‐911).
Tanto quanto uma datação aproximada da produção poética de Museu é
possível, ela situar‐se‐á portanto entre 470 e os anos 30 do séc. VI. O ano de 470 é a
data em que coincidem os termini post quem para a composição das duas obras de
Nono e da Paráfrase de Ps.‐Apolinário. Entretanto publicou Museu a sua obra. Em 532
foram destruídas pelo fogo as termas de Zeuxipo em Constantinopla, objecto da
écfrase de Cristodoro de Copto (que, é lícito admiti‐lo, pode ter sido redigida in
absentia, mas nesse caso num prazo curto de tempo); a partir de 526/536 João de Gaza
71 “It would be hard for Agathias’ epigrams to be more Nonnian than they in fact are” (Cameron 1970: 24).
Vd. apresentação pormenorizada da dependência de Agátias face a Nono em termos de linguagem
(léxico, fraseologia, estilo) e de metro em Mattsson 1942: 112 sqq.
72 Expressões como ζῆλον ὑποκλέπτων, em início de verso em Nono (e.g. 1.71) e Agátias (AG.269), ou
ἐπάξιον ἐννέα Μοῦσαι, no segundo hemistíquio (A.7.612.5, cf. No.D.5.103 e 13.354), são reduzidas por
M. respectivamente a ὑποκλέπτων 85 e ἐπάξιον 66, embora na posição exacta no verso que Nono
emprega e Agátias vem a reproduzir. Do mesmo modo, o termo παστός, que parece remontar ao séc. II
a.C., ocorre em M. 280 e Agátias 7.568.3, tendo sido empregue por Nono quarenta e seis vezes. Maior
liberdade face ao seu modelo revela Museu no uso da expressão Κυπριδίον ὀάρον, que ocupa nos três
idêntica posição inicial de verso, sendo que Museu não emprega o acusativo (A. 10.68, No.D.33.237,
48.480) mas o genitivo (M. 132).
21
compõe a sua descrição do cosmos, Paulo Silenciário lê na inauguração de Santa Sofia
em 563 e Agátias publica o Ciclo cerca de 567 e as Histórias depois de 570 – todas estas
obras revelam algum conhecimento de Hero e Leandro e por vezes jogam de forma
propositada com esse intertexto.
As propostas de Ludwich e Orsini, que apontavam os meados do séc. V, são
pois ultrapassadas e consegue‐se uma maior precisão relativamente às restantes 73 . De
acordo com a nossa conclusão, Museu terá composto Hero e Leandro quando Basilisco
(475‐6), Zenão (474‐5 e 476‐91), Anastásio I (491‐518) e/ou Justino I eram imperadores e
só muito improvavelmente sob Leão I (457‐74) ou Justiniano (527‐65).
2.3. AS CARTAS DE PROCÓPIO DE GAZA
No âmbito da datação de Museu usa mencionar‐se a possível coincidência do
autor de Hero e Leandro com o destinatário homónimo de duas cartas do retor Procópio
de Gaza (c.465‐c.528), que depois de ter estudado em Alexandria regressou à sua terra
natal, na Palestina. Esta hipótese é admitida pela generalidade dos autores 74 .
Epistula 48 {Μουσαίωι} 75
73 Segunda metade do séc. V (Keydell 1933: 767), sobretudo fim do reino de Anastácio I (Kost 1971: 16), a
partir do último terço do séc. V (Gelzer 1967: 137), entre a 2ª metade do séc. V e a primeira década do séc.
VI (Minniti Colonna 1976: 65), entre o fim do séc. V e os meados do séc. VI (Martindale 1980: 768).
74 Rohde 1914: 503, Keydell 1933: 768; Färber 1961: 93; Kost 1971: 7; Minniti Colonna 1976: 67; Gelzer 1989:
301; Orsini 2003: V. Com dados bibliográficos Färber e Minitti Colonna.
75 Referências tomadas da edição de Hercher (1873), cartas 48 e 60, respectivamente 165 e 147 na edição de
Garzya‐Loenertz. A tradução é da minha responsabilidade.
22
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
O muito douto Paládio chegou com a vossa preciosa carta. Mesmo que me trouxesse todo o dinheiro de Creso,
não o veria com olhos tão satisfeitos. É que cada um valoriza sua coisa: o lídio, o ouro; o espartano, o dardo;
Aríon, as cordas e as notas musicais. A mim, o teu texto solene, as tuas cartas divinas e tudo o que de vosso eu
puder gozar. Assim também nós devemos uma recompensa justa ao jovem. Não lhe retribuir devidamente
envergonhar‐nos‐ia. Mas a recompensa não é ouro, por Zeus, nem algumas pedras indianas (pois nem eu as
tenho nem o rapaz veio em busca delas), nem sequer a beleza das palavras (não sou filho das Musas, nem me
vanglorio das palavras da Ática, nas quais são bem sucedidos os filhos dos deuses bem‐aventurados); se quiseres
ver o meu dom, tal como ele é, trata‐se de boa vontade e diligência: delas sou senhor, diz Demóstenes. Entre
todos, o acaso e as Musas atribuem o dom conforme entendem.
Epistula 60 {Μουσαίωι}
Dessas cartas se depreende que o destinatário Museu se dedica às letras, pois
numa (c.60) Procópio acusa a recepção de um livro dele e noutra (c.48) a entrega de
uma carta, que Museu lhe enviou por intermédio de Paládio. Procópio dirige‐se‐lhe
em termos altamente laudatórios, não isentos de carácter hiperbólico (χρυσὸν ὅλον
c.48), que dão a entender uma relação de emulação porventura mútua entre dois
literatos, mas sobretudo a homenagem de Procópio a Museu, de qualidade poética
superior (ll.2‐3 e 3‐5, c.48). Museu é elogiado em particular pela comunhão com as
Musas (τι καὶ μουσικὸν c.60), pelo pensamento agudo (ὀξυτέρας... τῆς διανοίας id.) e
pela inspiração divina (θειοτέρας ἀεὶ τῆς ἐπιπνοίας id.). 76
A referência ao λογιώτατος Παλλάδιος (não confundir com Παλλαδᾶς, autor de epigramas da 2ª
76
metade do séc. IV) na c. 48 não deve ser desprezada, mas não coincide com nenhum dos dois que a
história recorda: Rutilius T.A. Palladius, autor de um tratado sobre agricultura no séc. V d.C. e
proprietário de terras perto de Roma e na Sardenha, e o Paládio nascido na Galácia, em 364, que viveu em
Alexandria e era contemporâneo de João Crisóstomo (354‐407). O jovem Paládio (ὁ νέος c. 48, ll. 5 e 8)
será pois um desconhecido, uma vez que os dados destes dois Paládios são incompatíveis, pelo menos,
com a época em que Procópio viveu.
23
Vilarrubia (2000: 366) assinala com justeza dificuldades na suposição de que
Procópio de Gaza e Museu Gramático se conheceriam, pois tal exige que tenham
travado conhecimento em Alexandria, quando Procópio aí estuda na juventude (c.
485) e Museu aí eventualmente se desloca. Reconheça‐se pelo menos que esta data
coincide com o período de tempo que identificámos como aquele em que a obra de
Museu terá sido composta.
2.4. EVENTUAL FILIAÇÃO CRISTÃ E/OU NEOPLATÓNICA
Identificamo‐nos com a declaração desassombrada de Kost (1971: 17) segundo
a qual não é possível a partir da obra de Museu comprovar que o seu autor é cristão. 77
A convicção do cristianismo de Museu tem sido alimentada em particular pelo
μακαρισμός (138‐9), semelhante a Lc 11, 27 mas também tópico da tradição clássica 78 .
O mesmo com ἐν δὲ σιωπῇ / ἔργον ὅ περ τελέει τις, ἐνὶ τριόδοισιν ἀκούει (183‐4),
próxima de Mt 10, 26, mas cuja antinomia faz parte da literatura grega desde Sólon 79
(Kost 1971: 17 e ad loc.). A obra parece apresentar ainda citações dos Salmos, dos
Evangelhos, da Epístola aos Romanos, de poemas de Gregório de Nazianzo 80 e de
duas paráfrases da Bíblia, a de Nono e a de Ps.‐Apolinário (Gelzer 1989: 299). O
conhecimento profundo da Paráfrase do Evangelho de S.João é manifesto em frequentes
citações mais ou menos próximas 81 e numa dependência lexical superior à das
Dionisíacas 82 .
Numa época em que o cristianismo está já bastante implantado e em que o
Egipto é um país cristão, o conhecimento dos textos bíblicos, a par dos da antiguidade
grega, impõe‐se a qualquer intelectual, poeta ou γραμματικός. No caso concreto de
77 A tese de Gelzer (1967: 136) segundo a qual se encontra em M.178 uma referência a uma proibição
canónica da Igreja, relativa ao casamento entre diferentes classes sociais (Constantino Porfirogénito, De
administrando imperio, ed. G. Moravcsik/R.J.H. Jenkins, Magyar‐Görög Tanulmányok 29, Budapest 1949,
c.13, 11.103s; cf. R.J.H. Jenkins, Commentary II, Londres, 1962), parece‐me pouco provável, dado o carácter
tradicional do tópico, a sua perfeita integração no passo em causa e a inexistência de semelhança lexical
entre ambos os textos: μετὰ ἀπίστων γαμικὰς κοινῶνιας ποιεῖν... κανόνος τοῦτο κωλύοντος.
78 Vd. ainda M.138 ~ Lc 1, 42. Cf. e.g. Od. 6.159s, Ov. Met. 4.324.
79 Mc 4, 22, Lc 8, 17 e Jo 18, 20; cf. No.P.18.97. Cf. Sólon fr.1.27.
80 M. 228 ~ Rom 4, 11; M. 17 ~ G.N.carm.1.2.2.408; 20 ~ 2.1.51.1; 173 ~ 2.2.6.77; 274 ~ 1.1.2.62 sqq.
81 M. 19 ~ P. 1.15; 42 ~ 7.7; 138‐9 ~ 8.27; 223 ~ 5.135s; 242 ~ 3.43; 255 ~ 6.83; 293 ~ 10.81; 295 ~ 4.17.
82 É o caso de ἀμώμητος (92), quatro vezes na Paráfrase (1.48, 19.20, 19.187) e uma em Dionisíacas (21.165),
βαθυκρήπις (229), atestada apenas nas duas ocorrências de Museu e da Paráfrase (6.180), ou ἀριστόνοος
(273), que surge apenas mais cinco vezes, uma das quais em Paráfrase 19.18. Cf. notas ad loc.
24
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Museu, não nos surpreende que conheça bem a obra do mestre, partilhando ou não as
convicções religiosas dele.
É certo que a zona da Tebaida e, em particular, a região de Panópolis se
mantinham como centro da cultura helénica e a maior parte dos poetas aí formados
era pagã. No entanto, entre os intelectuais deste período não era considerado
contraditório um cristão escrever obras de elevado pendor classicizante nem o
tratamento dos mitos tradicionais era exclusivo dos autores pagãos (Hopkinson 1994a:
121), tal como a simpatia pela cultura clássica não implicava simpatia pelo paganismo:
“não há necessidade de ver ‘conflito’ nem sequer ‘tensão’ entre os dois mundos. (...)
Antes como depois da vitória do cristianismo, era perfeitamente possível viver nos
dois mundos ao mesmo tempo sem desconforto” (Cameron 1985: 146). À época era tão
frequente intelectuais cristãos explorarem do ponto de vista literário temas e mitos
pagãos tradicionais (Hopkinson 1994a: 121) como partes da Bíblia serem reescritas em
verso clássico. Talvez a obra de Nono e a Paráfrase, em especial, exemplifiquem em que
medida na Alexandria do séc. V paganismo e cristianismo coexistem e se
interpenetram (Vian 1976: XV).
No que diz respeito a Museu, portanto, se a sua obra indicia um conhecimento
significativo dos textos bíblicos e de filiação cristã, não implica tal a sua condição de
cristão. Por outro lado, é também viável que enquanto cristão Museu escrevesse uma
obra que se integra nas últimas manifestações do espírito pagão na literatura (Bowra
apud Cameron 1985: 477). Se de mais informações não dispomos, mais nada podemos
concluir.
A conjectura relativa à filiação neoplatónica de Museu talvez seja mais fácil de
dilucidar e encontra em Gelzer o seu mais activo e único paladino. Gelzer (1967: 137)
não duvida do cristianismo de Museu e defende ainda, apoiado no conhecimento por
Museu dos Hinos 83 de Proclo (c.410‐85) e de Platão 84 , que o poeta era um cristão
neoplatónico. Mais uma vez, o conhecimento destes textos faz parte da educação da
época e não se concebe um poeta ou professor que os não domine.
Gelzer (1967: 136) defende ainda que a apresentação do amor entre os dois
jovens pretende veicular uma alegoria cristã‐neoplatónica, que sustenta a partir de
M. 56 ~ Proclo Hinos 7.31, e, menos relevantes, M. 275 ~ P.1.26; 330 ~ 7.34.
83
M. 94‐98 ~ Pl.Fedro 250d/251b ‐ 255c; M.40 ~ P.Banq.180d sqq e 56 ~ P.Rep. 515c, 518a.
84
25
dois factos: i) a longa tradição de recurso a uma história de amor para representar de
forma simbólica verdades transcendentais, cujo exemplo literário recente tinham sido
as Etiópicas de Heliodoro; ii) a coeva e abundante interpretação neoplatónica de
Homero e Platão, modelos importantes na composição de Hero e Leandro, como o
comentário à República e ao Fedro, respectivamente por Proclo e Hermias de
Alexandria.
O poema representaria pois a vida de uma alma filosófica, Leandro, de acordo
com o padrão tripartido encontrado pelos neoplatónicos no Fedro: i) a vida da alma no
céu antes do nascimento (28‐231); ii) a vida na terra, que inclui união mística com o seu
deus (232‐288) e iii) a sua libertação das cadeias do corpo e a antevisão da recompensa
post‐mortem, a união com Deus (289‐343) (Gelzer 1989: 319). Cada uma destas fases
implica outros momentos processuais e o emprego de diversos símbolos, como a luz, a
multidão, os outros jovens, o casamento, a torre.
Gelzer não indica todavia o que no texto dá a entender a existência de um
segundo nível de leitura. Toma como elemento único de prova textual as supostas
deficiências estruturais da obra 85 , fundamento pobre e muito próximo da falácia da
tradição interpretativa antiga segundo a qual um nível de superfície contraditório ou
enigmático implica um sentido alegórico para além dele (Lamberton 1986: 159).
Gelzer (1967: 137) reforça a sua argumentação indicando afinidades estilísticas
de Museu com Procópio (c.465‐c.528) e os seus seguidores na escola de Gaza, que eram
cristãos, neoplatónicos e, aqueles que se dedicaram à escrita, seguidores de Nono:
Procópio, Timóteo e João 86 . Embora estes dados estejam documentados de forma
profusa e até impressionante, eles não parecem específicos da escola de Nono e de
Gaza, mas próprios da língua grega dos séculos V e VI d.C. 87 . Por outro lado, de
85 “The logical schematism of the arrangement, the disproportion of the parts, the total lack of vividness in
the presentation and the frequent repetitions and variations of the same motivs are probably to be
explained as technical requirements for the conveyance of a «higher» meaning” (Gelzer 1989: 316).
86 Por isso não duvida que Museu seja o destinatário das cartas de Procópio de Gaza (Gelzer 1989: 302).
87 “Seine Sinn‐, Wort‐ und Klangfiguren sind denjenigen Prokops und der Gazäern sehr ähnlich, und die
mythologische Sprache seiner erotischen Topik zeigt in spezifischen Einzelheiten überraschende Über‐
einstimmung mit Prokops Deklamationen” (Gelzer 1968: 46). Gelzer enuncia por exemplo uma
construção frequente em Museu e Nono, a de um caso cuja preposição é empregue como prefixo verbal:
μοι μέλποντι συνάειδε τελευτήν (14). Outros exemplos (e.g. 14, 34, 241), evidenciam uma preferência
por construções frequentes, também na prosa, entre os Gazeanos: e.g. συκκαταδύντα τοῖς θρέμμασι
(Proc. Decl. 4. 22s). Gelzer (1967: 147, 1968: 11‐29) acrescenta outras características de língua e estilo que o
texto de Museu partilha com Nono e com os elementos da escola de Gaza, como o uso dos tempos e
26
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
acordo com o estudo já apresentado sobre os poetas e obras que apresentam relações
intertextuais com a de Museu, verifica‐se a muito maior probabilidade de serem os
Gazeanos a depender da obra de Museu do que o inverso: mesmo que Procópio e
Museu tenham sido contemporâneos, Timóteo e João pertencem sem dúvida a uma
geração posterior.
Os eventuais laços entre Museu e a escola de Gaza não são, de certeza, tão
estreitos quanto Gelzer defende. Nem a análise estilística no‐lo comprova, nem o
carácter de Hero e Leandro como alegoria neoplatónica e cristã é seguro. Aliás, a
possibilidade de consistir numa alegoria neoplatónica pagã foi já colocada. Nesse caso,
Hero e Leandro seria a única obra na antiguidade que, talvez originária de um meio
cristão, exprimia de modo alegórico os conceitos centrais do neoplatonismo pagão
(Lamberton 1986: 157). Já Cameron (1985: 477) afirmou que, tendo os poetas
mitológicos do Egipto, e entre eles Museu, sido ou não pagãos professos, a obra deles
era inteiramente secular.
3. CONCLUSÃO
modos verbais, nomeadamente o uso indistinto do conjuntivo e optativo aoristo e do futuro, a confusão
entre as negativas οὑ e μή, o emprego de μέν e δέ como antíteses e o gosto da repetição e do
homeoteleuto.
27
concepção e execução e, por outro, a conformidade com a tradição literária anterior,
produzindo os diferentes autores obras cujo estilo e carácter não indiciam a sua
origem espácio‐temporal. O texto de Museu assim no‐lo mostrará.
28
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
superest praeter amare nihil
OVÍDIO, Her. 19.16 [Hero]
Estruturamos o presente capítulo com base nas partes retóricas pertinentes no
estudo de uma obra literária: inventio, dispositio, elocutio. A artificialidade desta
subdivisão, embora útil do ponto de vista metodológico, é visível no nosso estudo da
inventio, ao longo do qual não raro chamamos a atenção para procedimentos de
carácter estilístico. Por nos parecer adequado ao teor semântico da obra, recorremos à
imagem de um Manual do Amor, respectivos preceitos, fases e intervenientes, que
sujeitamos a análise.
Adoptando pois os fundamentos da Retórica clássica, fazemos uso também de
contributos da Semântica Estrutural e da Narratologia, a devido tempo apresentados.
No chamado proémio da obra que nos cabe estudar, considerado já “um dos
mais perfeitos da poesia grega” (Vilarrubia 2000: 370), concentram‐se não só as linhas
de leitura da obra, como também os seus vectores semânticos fundamentais: com mais
proeminência 1) o poder do amor e, num segundo plano, 2) a luz, 3) o mar, 4) o vento
e 5) a morte. A análise da isotopia do amor, bem como das linhas semânticas que a
constituem, será articulada com a das demais isotopias.88
O poeta invoca a Μusa à maneira épica (Εἰπέ, θεά 1), enunciando quatro
objectos do canto poético: λύχνον (1), πλωτῆρα (2), γάμος (3) e Σηστὸν καὶ Ἄβυδον
(4). Os quatro primeiros versos apresentam‐nos pois, de imediato, os locais de
desenvolvimento da narrativa (4), o nome da heroína, a referência a um mareante que
atravessa o oceano (θαλασσοπόρων 2), ao casamento entre ambos e a uma lâmpada.
Para esclarecimento relativo às lições adoptadas, ambiguidades textuais ou comentários mais
88
pormenorizados, recomenda‐se o confronto com a nossa tradução e respectivas notas (Anexo I).
29
O leitor já sabe, agora, que a acção, de carácter secreto (κρυφίων 1), decorre sobretudo
durante a noite (νύχιον 2, ἔννυχος 4), perante o testemunho (ἐπιμάρτυρα 1) da
lâmpada.
O verso subsequente, nomeando o herói antes referido, precisa o modo como o
mar é atravessado, a nado (νηχόμενόν 5) 89 , e designa de novo a lâmpada, cujas
funções narrativas os versos seguintes esclarecem. À lâmpada como testemunha de
amores nocturnos e secretos acrescenta‐se o carácter de adjuvante (διακτορίην 6),
adiante reiterado através do termo συνέριθος (11), desses amores nocturnos que ela
também anuncia. A lâmpada exerce pois a função de mensageira, desta feita nomeada
não duas, mas três vezes: ἀπαγγέλοντα 6, ἀγγελιώτην 7 e γαμοστόλον 7. O objecto
da mensagem transmitida é claro: o casamento ou união amorosa entre Hero e
Leandro, união que depende da travessia do mar a nado pelo jovem, guiado pela
lâmpada acesa. A estas funções aduz‐se ainda uma quarta, a de confidente fiel, que
ἀγγελίην δ’ ἐφύλαξεν... ὑμεναίων (12). Os seus serviços em prol do Amor mereciam
até de Zeus a elevação da lâmpada à condição de estrela (9‐10). Não há dúvidas de
que, ocupando a lâmpada (λύχνος) oito versos completos dos treze até agora
apresentados, embora não consagrada pela tradição como tema – nem sequer
vocábulo – épico (Braden 1978: 59), ela constituirá um Leitmotiv central da presente
narrativa. Acresce para tal o carácter nocturno dos encontros amorosos,
sucessivamente reiterado ao longo do proémio: νύχιον πλωτῆρα 2, γάμον
ἀχλυόεντα, τὸν οὐκ ἴδεν ἄφθιτος Ἠώς 3, γάμος ἔννυχος 4, νυκτιγάμοιο 7, ἄεθλον
ἐννύχιον 9. No tratamento da lâmpada reside grande parte da originalidade de
Museu e do carácter distintivo da história face à de outros pares famosos da mitologia.
A letra do texto esclareceu já o leitor também quanto à dimensão dos
sentimentos de Hero e Leandro, amantes loucos de paixão (ἐρωμανέων ὀδυνάων 11)
que passam juntos noites em claro (ἀκοιμήτων ὑμεναίων 12) 90 .
89
A imagem de Leandro como batel do amor, implícita já em πλωτῆρα (2), é explicitada pelo próprio
jovem, que se identifica como ὁλκὰς Ἔρωτος (212) e pela voz do narrador (αὐτὸς ἐὼν ἐρέτης,
αὐτόστολος, αὐτόματος νηῦς 255). A metáfora, que coloca em intersecção as isotopias do amor e da
água, é aludida ainda em ναύλοχον (259). Leandro concentra em si próprio a condição de barco e de
marinheiro (cf. 313), situação excepcional que o exemplum de 297‐9 sublinha.
90 Sobre a metáfora do combate do amor vd. infra 2.4.1., sobre a loucura de amor, 2.4.2.
30
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Os três versos seguintes, os últimos do proémio, dão a entender com clareza o
fim (τελεύτην 14) da relação amorosa. Por acção do vento inimigo (ἐχθρὸν ἀήτην 13),
a lâmpada apaga‐se e Leandro morre (λύχνου σβεννυμένοιο καὶ ὀλλυμένοιο
Λεάνδρου 15). O desenlace será apresentado com idêntico poder de síntese. 91
Formulado à maneira épica, o proémio não só invoca a Μusa na linha
inaugural como se lhe dirige na conclusão, incitando‐a a celebrar com o poeta (Ἀλλ’
ἄγε μοι μέλποντι μίαν συνάειδε 14) a história de Hero e Leandro. A isotopia da
palavra, dita ou cantada, delimita o proémio não só nas invocações directas, inicial e
final, à Musa (1, 14), como quando o poeta se apresenta na primeira pessoa (ἀκούω
“ouço falar” 5). A mensagem que a lâmpada fielmente transmitiu entre os amantes,
mas da qual guardou segredo para estranhos, é agora celebrada e dada a conhecer
pelo poeta. Desse modo, a obra é também, à semelhança da lâmpada, ἀπαγγέλοντα
διακτορίην Ἀφροδίτης (6) e γαμοστόλον ἀγγελιώτην (7), enfim, uma celebração
perene do amor (ἔρωτος ἄγαλμα 8).
Por a ouvirmos no Proémio, merece‐nos uma referência a voz do narrador 92 . A
instância narrativa faz‐se ouvir em duas ocasiões, ἀκούω (5) e μοι μέλποντι (14), após
o que desaparece e a narração passa para a terceira pessoa do singular 93 . Esta
circunstância, que corresponde à invocação à Musa, na segunda pessoa do singular (1,
14), faz parte dos procedimentos típicos da epopeia desde Homero e não retira ao
narrador a condição tanto de extradiegético como de heterodiegético.
O narrador procede ao que apresenta como o relato factual da história de dois
amantes, que é, naturalmente, posterior aos acontecimentos e dos quais é possível
encontrar ainda uma prova física, a torre de Hero (e.g. 24). É neste contexto que os
investigadores têm apontado origem etiológica 94 para a obra mas também que o
narrador se dirige a um tu, leitor/ouvinte, a quem incita a procurar a dita torre, se
passar pelo Helesponto e for a Sesto e a Abido (Σὺ... περήσεις/ δίζεο… 23‐4; δίζεο 26).
91 A linha semântica da morte/fim aproxima quase sempre Leandro e a lâmpada (e por conseguinte as
isotopias do amor e da luz), em relação de coexistência (306‐8, 329‐30, 332, 337‐9, 342‐3) ou causalidade
(217‐8). A morte como consequência do amor de Hero é aludida no discurso pressagiante do admirador
(79).
92 Terminologia de análise de acordo com a definida por G. Genette em Figures‐III (1972), que adoptamos a
partir da tradução portuguesa O discurso da narrativa (31995).
93 Ocorre em 24 μοι, que na qualidade de dativo ético não consideramos relevante integrar neste conjunto
(cf. Alexandre Jr. 2003: 207‐8).
94 Vd. notas 30 e 35 à tradução.
31
À semelhança do eu narrador, o narratário também não tem posterior existência
textual: a sua ocorrência assinala todavia uma particularidade da obra de Museu face
ao arquitexto homérico. Ainda ao arrepio dos procedimentos homéricos, Hero e
Leandro apresentará constante focalização zero.
Assegura‐se, pois, plena sobriedade ao nível da instância narrativa, que adopta
nos seus traços gerais o modelo de Homero, mesmo que em aspectos pontuais dele se
demarque.
2.1. CAUSAS PRÓXIMAS
2.1.1. A ACÇÃO DE EROS
Na genealogia amorosa, duas causas concorrem para o surgimento do amor: a
acção de Eros, lançando as suas setas, e a beleza dos intervenientes. Em regra, a paixão
só se desenvolve entre pessoas de beleza igualmente perfeita, sobre as quais Eros
tenha exercido as suas funções de caçador.
Bem assim em Hero e Leandro. Eros 95 , representado com os seus atributos
tradicionais, o arco (τόξα 17), a seta (ὀιστός 18, 41, 88, 93, βέλος 149, 198) e respectiva
aljava (φαρέτρην 40), é a causa directa da paixão entre Hero e Leandro (17‐19), como o
próprio jovem reconhece (149).
O deus do amor vem a ser responsabilizado pela morte de Leandro. Tal como
os outros deuses, mas com a responsabilidade acrescida de ter sido o causador directo
da paixão, não atendeu às invocações de Leandro, que lutava pela vida contra a
tempestade, e não impediu a acção das Moiras (323). A inoperância de Eros não deve,
todavia, ser considerada uma negligência a lamentar. O deus patrocinou deste modo o
desfecho mais conveniente ao amor de Hero e Leandro.
95 M.17, 39, 149, 198, 240, 245, 323.
32
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
2.1.2. A BELEZA
A funcionalidade do tópico da beleza consiste em Hero e Leandro na explicitação
da génese do amor, razão pela qual deixa de ter expressão textual a partir do verso
220. O papel da beleza dos dois protagonistas na causalidade da paixão é apresentado
pela primeira vez logo a seguir ao proémio. Vivendo cada um em Sesto e Abido,
cidades fronteiras junto ao mar (16), são atacados por uma única seta de Eros (18). A
construção quiástica (ἀμφοτέρων πολίων περικαλλέες ἀστέρες ἄμφω 22) acentua a
beleza extraordinária de Hero e Leandro, περικαλλέες (em posição nuclear no verso e
em si já na forma superlativa), cada um o mais belo na sua cidade (cf. 89) 96 .
Com efeito, se o corpo do texto continua a exaltar a beleza dos dois jovens,
concedendo embora muito mais destaque à de Hero, ela é em ambas as direcções
considerada causa directa do amor. A beleza de Leandro é para Hero motivo de
alegria (χαῖρεν ἐπ’ ἀγλαΐησιν 104), quando pela primeira vez repara nele, e também
de excitação apaixonada (κάλλεϊ δ’ ἰμερόεντος ἀνεπτοίητο Λεάνδρου 168), que a
anima a permitir o aprazar dos encontros nocturnos. Note‐se que duas vezes o
adjectivo ἱμερόεις (“bem‐parecido” 20, 168) é aplicado a Leandro, também uma vez
atribuído a Hero (105).
Como se processa, em rigor, o apaixonar‐se? Ele decorre em exclusivo do
poder da beleza.
92 Κάλλος γὰρ περίπυστον ἀμωμήτοιο γυναικὸς
ὀξύτερον μερόπεσσι πέλει πτερόεντος ὀιστοῦ·
ὀφθαλμὸς δ’ ὁδός ἐστιν· ἀπ’ ὀφθαλμοῖο βολάων
95 κάλλος ὀλισθαίνει καὶ ἐπὶ φρένας ἀνδρὸς ὀδεύει.
Pois a beleza célebre da mulher irrepreensível
é para os homens mais acutilante que a seta alada.
O olhar é o caminho: depois de ferir com o olhar,
a beleza desliza e caminha para o coração do homem.
96 Sobre a expressividade da comparação com um astro e seus antecedentes literários, vd. n.28 à tradução.
33
255c 97 ) e é também característica do romance grego. Em Hero e Leandro, como
veremos 98 , o poeta desenvolve a imagística do olhar, concedendo‐lhe um peso
assinalável no âmbito da relação amorosa.
É de realçar, todavia, o processo comparativo entre o poder da beleza e das
setas de Eros, que introduz na descrição quase exclusivamente física uma nota de
carácter moral: a beleza da mulher irrepreensível, sem falta (ἀμώμητος 92), entra no
coração do homem de forma mais penetrante do que a seta lançada pelo deus do amor
(92‐3). Assinale‐se o carácter distintivo de uma descrição feminina que acentua a maior
intensidade da paixão, quando a beleza que a provoca é física e espiritual. De facto,
Hero rege a sua conduta por princípios de σαοφροσύνη e αἰδώς (33), afasta‐se das
outras mulheres para fugir à inveja delas (34‐6) e sacrifica com frequência a Eros e a
Afrodite, bem como a Atena (38‐40), de tal modo que não só a beleza a torna famosa,
mas também o seu carácter moral irrepreensível (εὐκλέα 86, ἀμώμητος 92).
Por a contemplação da beleza feminina, física e moral, ser mais intensa do que
o trabalho de Eros (92‐3) é que tantos homens são inflamados ao contemplarem Hero,
“Afrodite depois de Afrodite, Atena depois de Atena” (135). A sacerdotisa de Afrodite
é motivo de admiração generalizada entre os olhares masculinos, representados nos
jovens apreciadores de mulheres (τις ἠιθέων φιλοπάρθενος 51) que acorrem ao
festival e que sem excepção a desejam intensamente para mulher: ἄλλοθεν ἄλλος/
ἕλκος ὑποκλέπτων ἑπεμήνατο κάλλεϊ κούρης (84‐5). Nenhum é imune aos encantos
da sacerdotisa (69‐70), a mais bela rapariga que já viram (76). Entre os admiradores de
Hero no festival encontra‐se Leandro, que aí a vê pela primeira vez.
A descrição das qualidades de Hero faz jus à máxima do poeta. É precisamente
no desempenho das suas funções, no dia do festival da deusa, que se procede à sua
descrição mais detalhada:
55 Ἡ δὲ θεῆς ἀνὰ νηὸν ἐπῴχετο παρθένος Ἡρώ,
μαρμαρυγὴν χαρίεσσαν ἀπαστράπτουσα προσῶπου
οἷά τε λευκοπάρῃος ἐπαντέλλουσα σελήνη.
Ἄκρα δὲ χιονέων φοινίσσετο κύκλα παρειῶν,
ὡς ῥόδον ἐκ καλύκων διδυμόχροον· ἦ τάχα φαίης
97 Note‐se que, embora a obra de Museu celebre o amor entre um homem e uma mulher, Sócrates aplica a
teorização amorosa ao contexto homossexual. Este “Manual do Amor” será em qualquer dos casos válido.
98 Infra II.2.3.
34
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
60 Ἡροῦς ἐν μελέεσσι ῥόδων λειμῶνα φανῆναι·
χροιὴ γὰρ μελέων ἐρυθαίνετο· νισσομένης δὲ
καὶ ῥόδα λευκοχίτωνος ὑπὸ σφυρὰ λάμπετο κούρης.
55 Lidava a virgem Hero pelo templo da deusa,
refulgindo o rosto um brilho encantador,
qual lua erguendo a face branca.
Mais, o cimo das maçãs do rosto branco como neve avermelhava‐se,
como rosa de dois tons a sair do botão. Dir‐se‐ia que de repente
60 nos membros de Hero surgia um campo de rosas!
É que a pele do corpo ruborescia. Ao andar
rosas brilhavam sob a veste branca, em volta dos tornozelos da jovem.
99 Note‐se a posição central do adjectivo no verso, antes da pausa.
100 Referências não desenvolvidas a outras partes do corpo de Hero: εὐστεφάνου Ἡρους (220), ἐμοῖς...
κόλποις (271).
35
mesmo tempo, contesta e reformula o saber dos Antigos. Hero é “de longe superior a
todas as mulheres” (67), o que a observação de um dos seus admiradores, segundo a
qual nem nos concursos de beleza de Esparta tinha encontrado jovem mais bela (74‐6),
há‐de reiterar.
A equiparação à divindade é imediata. Destacada de todas as suas pares, Hero
gera centenas de novas Graças quando se ri (ὀφθαλμὸς γελόων 65) e/ou se
movimenta (63) – noutro lugar, é ela a mais jovem das Graças, i.e., um ser divino (77).
Hero não só reúne, portanto, todas as qualidades para ser uma digna sacerdotisa de
Afrodite (66), como é no aspecto físico parecida com a deusa. Hero é uma νέη Κύπρις
(68). A comparação hiperbólica com Afrodite, embora processo corrente aplicado às
heroínas da epopeia e do romance, é particularmente adequada no caso da donzela de
Sesto, que para além de sacerdotisa da deusa partilha com ela a afinidade com o mar,
de cuja espuma Afrodite nasceu e no meio do qual se situa a torre onde Hero vive.
Pela sua pertinência e poder enfático é a comparação reiterada com insistência, tanto
pelo poeta (ἄλλη Κύπρις ἄνασσα 33) como por Leandro (Κύπρι φίλη μετὰ Κύπριν
135).
Se a contemplação da beleza física e moral provoca uma paixão mais intensa
do que a seta do Amor, ela é apresentada na obra como uma contemplação
unidireccional, de todos os jovens relativamente à sacerdotisa da Cípria. Com uma
única excepção: Leandro é o único entre eles cuja beleza Hero também admira. Esse
facto, que distingue Leandro entre os outros jovens, resulta sem dúvida da acção e do
poder de Eros.
2.2. SINTOMATOLOGIA DA PAIXÃO
36
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
ἔτρεμε μὲν κραδίην, αἰδὼς δέ μιν εἶχεν ἁλῶναι·
θάμβεε δ’ εἶδος ἄριστον, ἔρως δ’ ἀπενόσφισεν αἰδῶ·
O fogo do amor fortaleceu‐se com o brilho dos olhos dela
e o coração fervia com a fúria de um fogo sem tréguas.
...
Então tomou‐o o espanto, o atrevimento, o medo, o respeito:
tremia‐lhe o coração, tinha vergonha de ter sido apanhado.
Enquanto admirava a beleza perfeita, o amor roubava‐lhe a vergonha.
O amor tem, de acordo com o poeta, manifestações físicas óbvias que se
concentram na sede das paixões: o coração incendeia‐se (κραδίη πάφλαζεν 91) e
treme (ἔτρεμε 96). 101 Leandro reconhece dentro de si um fogo em fúria (πυρὸς ὁρμῇ
91), de ímpeto (πυρσὸς 90) invencível (ἀνικήτου 91). Κατατρύχειν φρένα (“esgotar o
coração” 87) e πόθου... οἴστρῳ (“ímpeto da paixão” 134; cf. 129), bem como outras
imagens associadas a ἀνάγκη (140, 226, 289), são mais formas de ilustrar, na aventura
de Hero e Leandro, a violência que esse fogo interior (19, 240, 241, 246) pode atingir.
A metáfora do fogo do amor será reiterada em especial no momento em que
Leandro se prepara para atravessar o Helesponto. Elaborando do ponto de vista
estilístico um contraste cromático e térmico entre o fogo e a água, de efeitos
magníficos, o poeta insiste no incêndio interior do apaixonado: θυμὸν Ἔρως
ἔφλεξεν... Λεάνδρου (240), συνεκαίετο (241), Ἔρωτος ἐμὲ φλέγει ἐνδόμυχον πῦρ
(246). Esse fogo interior é ainda relacionado de perto com o atear da lâmpada (239‐40).
Uma vez tocado pela paixão, Leandro submete‐se inteiramente a esse poder
invencível, que suplanta qualquer outro e o domina de repente (δαμεὶς ἀδόμητον
88) 102 . Assim era com os muitos admiradores de Hero, cujos pensamento, olhar e
coração sempre a seguiam, onde quer que estivesse: ἑσπόμενον νόον εἶχε καὶ
ὄμματα καὶ φρένας ἀνδρῶν (70). O amor preenche as instâncias emocionais,
intelectuais e sensoriais.
Sob o poder de Eros, como da beleza perfeita da mulher (98), Leandro é
invadido por emoções diversas e até contraditórias: θάμβος, ἀναιδείη, τρόμος, αἰδώς
101 A sintomatologia do amor na pessoa de Hero é referida de forma mais breve, mas no quadro da mesma
imagística. Θέρμετο δὲ κραδίην γλυκερῷ πυρὶ παρθένος Ἡρώ,/ κάλλεϊ δ’ ἱμερόεντος ἀνεπτοίητο
Λεάνδρου (167‐8): o amor como fogo doce, que faz tremer o coração, excitado também pela beleza do
amado. Sobre o emprego dos termos relativos a “coração” vd. n.66 à tradução. Vd. em IV.2.2.2. relação
com o romance grego e o “fragmento do ciúme” de Safo.
102 Hero rende‐se‐lhe também: manifestação textual em forma de hipálage (χαλίφρονα νεύματα 117). Cf.
πανδαμάτωρ e δαμάζει (198) aplicados a Eros, veiculando o domínio do ser apaixonado pelo amor.
37
(96). A admiração (θάμβος) decorre sem dúvida da contemplação de Hero (θάμβεε δ’
εἶδος ἄριστον 98), como da novidade dos seus sentimentos e reacções, a que não é
alheio o medo (τρόμος) 103 . Ele próprio tem vergonha de ter sido apanhado pelas setas
do amor (97). Leandro revela‐se tão inexperiente no amor como a própria sacerdotisa
(31). O poeta apresenta como antónimos o atrevimento e o respeito, derivados de
αἰδώς, que como sabemos norteia os comportamentos de Hero. Mas em Leandro
vence pela acção de Eros o primeiro: “o amor roubava‐lhe a vergonha” (ἔρως δ’
ἀπενόσφισεν αἰδῶ 98).
A loucura de amor e a decorrente perda de controlo sobre as acções humanas
está também implícita na ousadia do apaixonado. De facto, veremos como a ousadia
amorosa, fundamental no processo de sedução, ultrapassa os limites do convencional.
2.3. SEDUÇÃO
2.3.1. MÍMICA DO DESEJO
103 Veja‐se o medo de se apaixonar também da parte de Hero, em 40 (cf. 120).
38
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
e de novo virava o olhar. Ele via aquecido o seu coração,
porque a jovem percebia o seu desejo e não o tinha repelido.
O atrevimento e a desvergonha (θαρσαλέως... ἀναιδείην 99; vd. 113, 118, 214)
de Leandro anunciam a partida para a acção, com vista a agir sobre Hero. Começa por
adoptar uma atitude provocatória, que pretende chamar a atenção da jovem, mas que
só em pequena medida implica o movimento que mais tarde o caracterizará: avança e
coloca‐se à frente dela (ἔβαινε καὶ ἀντίος ἵστατο 100) 104 . Daí, lança‐lhe olhares
manhosos, de viés (101), imperceptíveis para um estranho (νεύμασιν ἀφθόγγοισι 102)
mas suficientemente explícitos para a destinatária. O objectivo, cuja concretização a
letra do texto prenuncia (παραπλάζων φρένα κούρης “desviar o coração da jovem”
102), dá voz ao carácter traiçoeiro da empresa de Leandro (cf. 175, 198, 202), também
em Λοξὰ... δολερὰς (101) e δολόεντα (103). 105
Hero repara (συνέηκε 103) no estratagema do apaixonado e, por causa da
beleza dele (104), entra no jogo: ela própria, mantendo o silêncio (ἐν ἡσυχίῃ 104), lhe
lança discreta (λαθριδίοισιν 106) e frequentemente olhares sedutores (ἱμερόεσσαν...
ὀπωπὴν 105), após o que vira de novo o olhar (πάλιν ἀντέκλινεν 107).
A cumplicidade de ambos é evidente (ἐπαγγέλλουσα 106) e o domínio do
código amoroso, inquestionável, cuja natureza o texto acentua através da redundância
(o olhar 101 bis, 105, a discrição 102, 106) 106 . O silêncio, em posição central na linha e
no relato da sedução mútua (104), pervade a cena.
Perante a atitude compactuante de Hero, Leandro rejubila (108). A forma
verbal que explicita acção intelectual, συνέηκε, é pela segunda vez atribuída a Hero
104 O desenvolvimento ritual não permitiria decerto mais do que Leandro deslocar‐se para um local onde
o olhar de Hero se dirigisse a direito para o lugar que ele ocupava.
105 A manha da empresa amorosa estende‐se a Eros, ὁ πανδαμάτωρ βουληφόρος (200), que auxilia
Leandro (χραίσμησε 201) na busca de uma solução que permita a consumação do amor: a travessia do
Helesponto a nado. É essa saída habilidosa que merece a Eros o epíteto de “ardiloso” (αἰολόμητις 198) e,
noutro lugar, de terrível (δεινός 245), exemplificativa do seu patrocínio do recurso a estratagemas (πόθον
δολόεντα 103), manha (πολυμήχανον μῦθον 202) e comportamentos velados (ὑπυκλέπτων 85, νεύμασι
λαθριδίοισι 106, cf.109), a que a condição secreta do amor mais obrigará.
106 Note‐se o paralelismo de construção dos versos 102 e 106, que reproduz ao nível do texto a
reciprocidade do desejo (Hopkinson 1994a: 154) e o comportamento cúmplice dos dois: os acenos que
trocam, em dativo e início de verso (νεύμασιν ἀφθόγγοισι 102, νεύμασι λαθριδίοισιν 106), o particípio,
masculino e depois feminino, acentuando a comunicação entre ambos (παραπλάζων 102, ἐπαγγέλλουσα
106), e o destinatário dos gestos (φρένα κούρης 102, Λεάνδρῳ 106). A nomeação dos intervenientes é
corrente em final de verso (100, 102, 103, 104, 106, 108) – o nome de Hero, respondendo pela obsessão de
Leandro (Hopkinson 1994a: 154), ocorre o dobro das vezes do que o dele.
39
(103, 108) e nunca ao jovem, como se essa faculdade fosse característica apenas do lado
feminino e ao homem coubesse a acção pragmática (cf. ἐδίζετο 109). A reacção de
Hero admite a continuação da empresa de Leandro: o cumprimento do seu objectivo,
seduzi‐la, está bem encaminhado.
2.3.2. PROXIMIDADE FÍSICA
A segunda fase do processo de sedução revela o grau de ousadia a que a
paixão conduz, por oposição ao pudor e submissão femininas, e põe ainda mais em
evidência a distinção entre os códigos de comportamento feminino e masculino
vigentes. Com efeito, pelo menos numa primeira fase, o homem representa um papel
activo e a mulher apresenta‐se submissa, mesmo que as atitudes dela se desenvolvam
numa dialéctica codificada de submissão‐resistência.
Dando continuidade ao princípio da discrição, que as condicionantes dos
amores entre ambos conduzirão ao extremo do secretismo, Leandro procura uma
“hora secreta” (λάθριον ὥρην 109), em que possa aproximar‐se e falar com a
sacerdotisa de Afrodite, longe dos olhares alheios. Assim que a noite chega, Leandro
aproxima‐se de imediato, pega‐lhe na mão (θλίβων... δάκτυλα 114) e suspira
(ἐστενάχιζεν 115), ao que Hero reage retirando‐a (ἐξέσπασε 116). O gesto de Hero
dá‐lhe a entender o desejo dela (117), pelo que agora a conduz “ao interior mais
escondido do templo” (119).
Mais do que nas acções propriamente ditas, vale a pena determo‐nos na sua
modalização. Até ao momento, os gestos de Leandro são caracterizados pela
suavidade (ἠρέμα em início de verso 100, 114) e o silêncio continua a dominar a cena
(ἀθέσφατον· ἡ δὲ σιωπῇ 115), mas a dimensão dos sentimentos dele perpassa em
βυσσόθεν (mais uma vez em início de verso 115), na profundidade do suspiro que o
toma.
A codificação dos comportamentos amorosos fornece mais um preceito: a
donzela reage à iniciativa de aproximação física do jovem, retirando a mão (mas não
fugindo, nem adoptando qualquer atitude violenta) e fingindo‐se zangada (οἶά τε
χωομένη 116). Esse é o sinal do interesse de Hero, de imediato identificada como
ἐρατῆς... κούρης (117).
40
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
“Também quando as mulheres ameaçam os jovens/ as ameaças são elas próprias transmissoras das
107
falas de Cípris”. Tanto os termos relativos ao feminino como à ameaça são objecto de repetição insistente,
no curto espaço de seis versos: respectivamente, sempre em início ou final de verso, θηλυτέροις (repare‐
‐se na expressividade do duplo comparativo intensivo 122, 129), παρθενικῇσι 128, γυναῖκες 131 e
ἀπειλῆς (129, 132), também na variante verbal (122, 128, 131).
41
passiva, a sujeição do jovem a um poder maior, exterior a ele: a força da paixão
(πόθου βεβολημένος οἴστρῳ 134). Nestas condições avança para a terceira fase do
processo de sedução: o seu discurso.
2.3.3. ABORDAGEM VERBAL E MÍMICA DA PERSUASÃO
O elaborado discurso de Leandro (135‐57), destinado a persuadir uma donzela
já persuadida, tem os efeitos pretendidos. Hero reage de acordo com o código
amoroso, mantendo‐se a personificação das dicotomias ousadia/pudor e
activo/passivo nos elementos masculino e feminino do par, e à conclusão do diálogo é
marcado o encontro para consumação do amor.
Leandro começa com uma elogiosa captatio beneuolentiae 108 , que consiste numa
comparação de Hero com as deusas filhas de Zeus, em especial Afrodite e Atena,
muito favorável à donzela (135‐7), a que se segue um makarismos que exalta a mãe da
jovem (138‐9), nos termos tradicionais, concluindo com uma súplica e declaração
aberta da sua paixão: λιτάων/ ἡμετέρων ἐπάκουε, πόθου δ’ οἴκτειρον ἀνάγκην (139‐
40). Atente‐se na opção mais enfática pelo termo πόθος, reforçado por ἀνάγκη,
ladeado pelo verbo οἰκτείρω. O mesmo Leandro pede adiante para ser recebido por
Hero como ἱκέτης (148), insistindo na alusão ao ritual da súplica.
O jovem apaixonado continua, para exortar Hero ao amor, em cinco
momentos. Assinala com demora a incongruência de uma sacerdotisa de Afrodite não
conhecer o amor e defende que, para desempenhar convenientemente as suas funções,
ela deve iniciar‐se (μυστιπόλευε 142) nas leis do amor. Leandro apresenta‐se, nestas
circunstâncias, como enviado da deusa (148‐9), atacado que foi pela seta de Eros, e
pede‐lhe que o aceite como suplicante ou marido (assim virá a acontecer! cf. 337, 342).
A persuasão é buscada ainda por meio de dois exempla. Ο primeiro (150‐2), de
carácter emulatório, apela à comparação entre Leandro e Héracles com vantagem para
Hero, privilegiada em relação à rainha Ônfale por ter sido a própria Afrodite, e não
Hermes, a enviá‐lo como despoletador da paixão. O outro exemplum (163‐6) apresenta
a situação inversa: se Hero pretende recusar o amor em benefício da castidade,
A captatio beneuolentiae de Leandro perante Hero é reminiscente da de Ulisses perante Nausícaa:
108
Od.6.149‐55, 160, 175. Cf. infra IV.2.2.3.
42
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Afrodite castigá‐la‐á com o próprio amor, à semelhança do que aconteceu com
Atalanta. A conclusão é, pois, clara: de nada vale incorrer no desagrado de Cípris,
recusando o amor, pois tal equivale a ter de se lhe submeter. Leandro aconselha a
sacerdotisa a evitar a ira (μῆνιν 157) da deusa, contrapondo‐a à ameaçada μῆνις dos
pais de Hero (125).
O discurso do jovem apaixonado é digno de admiração pelo equilíbrio e
variedade de argumentos que congrega, sem dispensar um pendor adulatório que
agradaria por certo à donzela, bem como o tom das suas palavras “carregadas de
desejo” (ἐρωτοτόκοισι... ἐνί μύθοις 159). 109 Leandro conclui solicitando a sua
persuasão (πείθεο 157), que ele próprio adivinhara já nos gestos dela e que o poeta
tinha comparado ao das “donzelas persuadidas” (130). O poeta não deixa de a reiterar:
παρέπεισεν (158), θυμὸν... παραπλάγξας (159, cf. 102).
Qual é a mímica da persuasão? Mostram‐no‐la as atitudes de Hero, que se
sucedem às palavras do jovem.
160 Παρθενικὴ δ’ ἄφθογγος ἐπὶ χθόνα πῆξεν ὀπωπήν
αἰδοῖ ἐρευθιόωσαν ὑποκλέπτουσα παρειὴν
καὶ χθονὸς ἔξεεν ἄκρον ὑπ’ ἴχνεσιν, αἰδομένη δὲ
πολλάκις ἀμφ’ ὤμοισιν ἑὸν συνέεργε χιτῶνα.
Πειθοῦς γὰρ τάδε πάντα προάγγελα, παρθενικῆς δὲ
165 πειθομένης ποτὶ λέκτρον ὑπόσχεσίς ἐστι σιωπή.
Sem fala, a donzela fixou o olhar no chão,
dissimulando o rosto corado de vergonha,
e alisava a superfície da terra com os pés. Muitas vezes,
envergonhada, apertava a túnica à volta dos ombros.
Pois são estes todos os indícios da persuasão: uma vez convencida
a virgem a entregar‐se no leito, o silêncio é a promessa.
São parte integrante da persuasão feminina o pudor, o esconder do olhar e/ou
do rosto, a ruborização, o desvio das atenções pela concentração em algo irrelevante e,
de novo, o silêncio. O próprio poeta o afirma, à laia de conclusão: Πειθοῦς γὰρ τάδε
πάντα προάγγελα (164). Senão vejamos.
O espírito envergonhado da donzela surge no discurso de par com a sua
persuasão explícita (παρέπεισεν ἀναινομένης φρένα κούρης 158) e obtém
significativa enunciação discursiva (αἰδομένη 162), o que dá a entender que constitui o
109 Μεγάλους ὁ Ἔρως ποιεῖ σοφιστὰς (Longo, Dáfnis e Cloe 4.18.1.).
43
motivo sob o qual todos os outros comportamentos se justificam. Por isso cora (αἰδοῖ
ἐρευθιόωσαν 161), esconde o olhar (160; cf.169) e o rosto (161; cf.194), guarda
silêncio 110 . Mesmo depois de se dirigir verbalmente a Leandro, o comportamento
envergonhado mantém‐se (ἔμπαλιν αἰδομένη 195), o que não nos deve surpreender,
se aliarmos a codificação dos comportamentos amorosos à natureza da própria
jovem 111 .
De todos estes recursos, o texto destaca o silêncio da donzela, ἄφθογγος (160),
como sinal por excelência da sua persuasão ao amor, mais uma vez por meio de uma
máxima generalizante, que explicita outro dos preceitos do Manual do Amor: “uma
vez convencida/ a virgem a entregar‐se no leito, o silêncio é a promessa” (164‐5).
A mímica da persuasão é expressiva e não se presta a dúvidas, o que por certo
anima Leandro a não levar a sério um certo tom atacante (176‐8), em algumas das
palavras da amada. Hero apresenta como impedimento o carácter público de uma
relação entre ambos, forma hábil de manifestar o seu desejo de concretização do amor
e, ao mesmo tempo, dar a entender uma condição para que se realize: o secretismo.
Em seguida apresenta‐se, bem como às circunstâncias insólitas em que vive: sozinha,
com uma única escrava (188), numa torre no meio do mar (187, 190). Hero reitera, em
tom de queixa, o isolamento diário (190‐3) a que está votada, também em relação às
pessoas da sua idade (do que Leandro parecer vir a ser a única excepção).
Leandro dispõe agora de todos os dados para encontrar a solução e fazer a
proposta decisiva e radical (203‐20). Os seguintes preceitos do Manual do Amor
decorrem das circunstâncias excepcionais vividas por Hero e Leandro e são, por isso,
menos aplicáveis por inteiro aos outros apaixonados.
2.4. CONSUMAÇÃO DO AMOR: O CASAMENTO
2.4.1. A PRIMEIRA NOITE
Na sequência da proposta de Leandro e da sua travessia corajosa do
Helesponto, Hero e Leandro passam juntos a primeira de várias noites, na torre onde
110 Alisar a superfície do chão com os pés (162) e ajeitar a túnica à volta dos ombros (163) servem o mesmo
fim de disfarçar o pudor.
111 Vd. supra II.2.1.2.
44
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Hero vive. O esforço físico exigido a Leandro para a travessia a nado faz com que
chegue “completamente exausto” (259) e merece‐lhe, da parte da noiva, as mais
delicadas atenções. A jovem sobe Leandro até à torre (260), abraça‐o em silêncio (261),
condu‐lo aos aposentos dela (263) e dá‐lhe banho (264‐5), seguido da tradicional unção
com azeite perfumado. É notório que a dicotomia activo/passivo identificada na fase
de sedução se inverte: por força das excepcionais circunstâncias, Hero assume agora o
papel activo e o “ofegante noivo” (261, 266) o passivo.
266 Εἰσέτι δ’ ἀσθμαίνοντα βαθυστρώποις ἐνὶ λέκτροις
νυμφίον ἀμφιχυθεῖσα φιλήνορας ἴαχε μύθους·
“Νυμφίε, πολλὰ μογήσας, ἃ μὴ πάθε νυμφίος ἄλλος,
νυμφίε, πολλά μογήσας, ἅλις νύ τοι ἁλμυρὸν ὕδωρ,
270 ὀδμή τ’ ἰχθυόεσσα βαρυγδούποιο θαλάσσης·
δεῦρο, τεοὺς ἱδρῶτας ἐμοῖς ἐνικάτθεο κόλποις.”
Ὥς ἡ μὲν παρέπεισεν· ὁ δ’ αὐτίκα λύσατο μίτρην
καὶ θεσμῶν ἐπέβεησαν ἀριστονόου Κυθερείης.
Ainda estava o noivo ofegante, na cama de pesadas mantas,
e ela abraçando‐o pronunciou palavras apaixonadas:
“Noivo, muito te esforçaste! Tanto nenhum outro noivo suportou!
Noivo, muito te esforçaste! Agora basta de água salgada,
270 de cheiro a peixe do mar que muito brama!
Vamos, depõe as tuas fadigas no meu colo!”
Assim o convenceu ela. De imediato, ele libertou‐a da faixa de virgem
e os dois acederam aos calores da sábia Citereia.
A propósito de νυμφίον (267, 268 bis, 269), uma referência às formas de tratamento dos amantes.
112
Leandro é referido indistintamente ao longo da obra como νυμφίον (também em 261, 283, 335),
παρακοίτης (148, 337, 342), ἀκοίτης (207, 339) e πόσις (220), apesar de o primeiro termo equivaler a
“noivo” e os outros três a “cônjuge”. Leandro nunca se dirige à amada por meio dos termos femininos
correspondentes (mas por φίλη 157, 216), que vemos aplicados por um admirador que a deseja para
esposa (παρακοίτις 81, 83) e pelo narrador (νύμφη referido a Hero 312, a Atalanta 151 e à noiva de Bóreas
322). A distinção é muito clara no emprego de παρθένος e de construções alusivas à virgindade:
παρθένος (19, 20, 55, 120, 123 e em compostos 51, 54) é empregue pela última vez no verso 123, i.e. no fim
da primeira fala de Leandro, antes da consumação do amor (λύσατο μίτρην 272), após a qual Hero é uma
45
próprio (270), que teriam com certeza incomodado muito Leandro. Conclui com um
convite directo: “Vamos, depõe as tuas fadigas no meu colo!” (271) 113 . O poeta remata
com Ὥς ἡ μὲν παρέπεισεν (272), forma verbal antes aplicada a Leandro (158), no
processo de convencer Hero a acolhê‐lo como marido. Hero desempenha
manifestamente o papel dinamizador nesta cena, atestando a inversão de funções que
já verificámos e se estende também ao objecto a persuadir: já não Hero, mas Leandro.
Libertada a faixa de virgem (272), o par amoroso acede “aos calores da sábia
Citereia” (273), i.e., consuma a sua união. Idêntico processo metafórico ocorrerá
adiante, em 290, ao afirmar‐se que ambos “se deliciam numa clandestina Citereia”. 114
A nomeação de Afrodite é apenas uma das várias imagens a que o poeta recorre para
enunciar a relação sexual. Outras metáforas advêm de um elemento obrigatório na
cena amorosa, a cama 115 , ou do emprego de termos como ὑμεναίος e γάμος, imagens
do encontro nocturno de carácter amoroso‐sexual 116 . Noutras ocasiões, ὑμεναίος é
metáfora de iniciação sexual 117 . A relação amorosa e, em especial, o encontro nocturno
são ainda referidos por meio de metáfora como um combate de elevada exigência
física (ἄεθλος 9, 230), que implica luta (ἔρωτος ἀεθλεύσειεν ἀγῶνα 197). O texto dos
amores de Hero e Leandro está repleto de referências, mais ou menos simbólicas e
bastante variadas, aos encontros nocturnos dos amantes, que representam a
consumação do amor e consistem no núcleo semântico da narração.
Nas condições de secretismo impostas à união e na impossibilidade de uma
cerimónia pública de núpcias, o primeiro encontro nocturno de ambos recebe o
vez designada como γύνη (287; cf. 67, 92, 131). Note‐se contudo que παρθένος é termo indicador de
estatuto social mais do que da ausência de uma experiência física específica, pelo que significará
“donzela” antes de “virgem” (Konstan 1994: 156).
113 O incitamento ao amor inclui sem surpresa a referência a uma parte ainda não nomeada do corpo de
Hero, κόλποις (271), numa construção paralelística de pronome possessivo e substantivo, relativos aos
dois intervenientes, nas formas de “tu” e “eu” (τεοὺς ἱδρῶτας ἐμοῖς... κόλποις), cuja expressividade a
interjeição inicial intensifica (δεῦρο).
114 Afrodite é referida a maior parte das vezes na qualidade de deusa servida pela sacerdotisa Hero, mas
algumas como, mãe de Eros, também ela deusa do amor. Logo no proémio, a lâmpada serve Afrodite
(διακτορίην Ἀφροδίτης 6), o que, como a narrativa mostrará, significa que está ao serviço do amor e da
paixão. Mais adiante, afirma Leandro que “Cípris governa o mar e as nossas paixões” (250), ao reunir
coragem para a travessia a nado.
115 Μειλανίωνος... φύγεν εὐνήν 154, ἔην λέχος, ἀλλ’ ἄτερ ὕμνων· 274, ἀστέρα λέκτρων 306.
116 Com ὑμεναίος, a partir do proémio (πλωτῆρα... θαλασσοπόρων ὑμεναίων 2), tal como em 12, 235,
285, 292 e 302. Com γάμος: γάμων δ’ ἀδίδακτος 31 (e 142, através da variante adjectival, γαμήλια).
117 E.g. ἀγγελίην ὑμεναίων (222; cf. 225), pela primeira vez em que Hero acende a lâmpada.
46
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
tratamento literário de um casamento (274‐81). Há nesta cerimónia três elementos
fundamentais: o canto, a dança e o leito.
O verso 274 reúne em síntese os primeiros dois, que serão logo a seguir
desenvolvidos e anunciam um processo descritivo constituído por oposição: Ἦν
γάμος, ἀλλ’ ἀχόρευτος· ἔην λέχος, ἀλλ’ ἄτερ ὕμνων. De facto, a partícula negativa
introduz os quatro versos seguintes, esclarecendo os elementos rituais que não fizeram
parte do casamento: o canto dos himeneus 118 e a dança das jovens (274, 277). Por fim, o
processo de fazer a cama (279) foi assegurado pelo Silêncio e a Escuridão vestiu a
noiva: Σιγὴ παστὸν ἔπηξεν, ἐνυμφοκόμησε δ’ Ὀμίχλη (280). A caracterização
positiva do casamento de Hero e de Leandro, contrapartida directa do verso 274,
baseia‐se num processo quiástico, em que as entidades simbólicas iniciam e concluem
o verso, mediadas pelas respectivas funções na cerimónia. O teor da cena presente
justifica plenamente as referências insistentes ao leito 119 , por meio de todos os termos
empregues na obra.
Atentemos no papel da Escuridão e do Silêncio. Não é de certeza por acaso que
Ὀμίχλη ocupa sempre o final do verso, nas suas ocorrências na obra (113, 232, 238,
280), nem que o seu papel é em regra o de, associada à noite, propiciar todos os
encontros dos apaixonados. O Silêncio, já o sabemos, acompanha a relação desde os
seus primeiros momentos. Não é todavia excessivo entender a função do Silêncio na
118 A importância deste elemento do rito é tanta que o verbo surge três vezes (ἀείδων 275, ἄειδε 278,
ἀειδομένων 281) e a cena conclui com nova referência aos hinos do casamento, metonímia dos ritos
ausentes: Καὶ γάμος ἦν ἀπάνευθεν ἀειδομένων ὑμεναίων (281). Aqui se esclarece a relação semântica
γάμος/ὑμεναίος, através das únicas duas ocasiões em que ὑμεναίος apresenta o sentido original de hino
nupcial (278, 281), reiterado em ὕμνων (274), que a omnipresença metafórica torna por vezes indistinta.
Γάμος, “casamento, boda”, ocorre tanto isoladamente (3, 4, 31, 146, 179, 221, 274, 281) como em
composição (e.g. τελεσσιγάμοισιν 279; cf.7 bis, 282) e, como sabemos, assume também conotações
metafóricas. O excerto oferece‐nos ainda o termo θαλαμηπόλον (“aia do tálamo” 276), que o texto
também apresenta noutro lugar (231), únicas circunstâncias de emprego de θάλαμος, “aposentos de
mulher”, cujo sentido consta em παρθενεῶνος (263).
119 Λέχος (274, 279; cf. 79), εὐνήν (276; cf. 205), παστὸν (280) e, no passo antes analisado, λέκτροις (266; cf.
127, 165, 283). A cama é nomeada catorze vezes na obra, a maior parte delas em sentido literal. Os
admiradores de Hero desejam partilhar com ela “o mesmo leito” (ὁμοδέμνιον 70), ocorrendo também, em
palavras de Leandro, a referência metafórica ao leito da donzela pela própria Hero, cujo acesso ele quer
ganhar: τεὴν μετανεύμενος εὐνήν (205). As interpelações de Leandro, incitando‐a a conhecer o amor,
vêm todas a verificar‐se, nomeadamente aquela em que ele lhe recomendava para tal γάμος καὶ λέκτρα
(146) – a relação sintáctica de coordenação coloca em pé de igualdade dois elementos distintos, o segundo
por metonímia parte integrante do primeiro, no sentido metafórico de união sexual. A especificação de
λέκτρα, em que se concentram de forma elaborada processos semântico‐estilísticos, contrasta com a
simplicidade da expressão sintáctica e enfatiza o referente – o processo é comum no texto de Museu.
47
cena como metáfora da natureza secreta do casamento, do qual nem os protagonistas
podiam falar a outrem, nem a notícia podia ser divulgada nem tornada pública. Σιγὴ e
Ὀμίχλη são dois adjuvantes fundamentais do nosso par de apaixonados.
Como se compreende, e é seu apanágio, o poeta não pretende expor de modo
exaustivo os elementos rituais do casamento 120 , mas recorrer àqueles que se prestam a
tratamento literário, no contexto da sua obra. Daí que outras cerimónias, que
decorriam fora de casa ou mesmo do quarto dos noivos, não sejam mencionadas. No
entanto, o relato da noite de núpcias torna muito claras as circunstâncias excepcionais
deste casamento e essa é sem dúvida a sua função primordial.
2.4.2. COMUNHÃO DE SENTIMENTOS E EXPERIÊNCIAS
Diz o admirador de Hero dando voz à sua experiência: παπταίνω ἐμόγησα,
κόρον δ’ οὐχ εὗρον ὀπωπῆς (“Sofro ao vê‐la, mas sem encontrar cansaço na vista” 78).
Tais são os sentimentos contraditórios do amor, em que o prazer e o sofrimento se
conjugam, e deles dá conta o breve relato dos encontros regulares dos amantes.
282 Νὺξ μὲν ἔην κείνοισι γαμοστόλος, οὐδέ ποτ’ Ἠὼς
νυμφίον εἶδε Λέανδρον ἀριγνώτοις ἐνὶ λέκτροις·
νήχετο δ’ ἀντιπόροιο πάλιν ποτὶ δῆμον Ἀβυδου
285 νυχίων ἀκόρητος ἔτι πνείων ὑμεναίων.
Ἡρὼ δ’ ἑλκεσίπεπλος ἑοὺς λήθουσα τοκῆας,
παρθένος ἠματίη, νυχίη γυνή. Ἀμφότεροι δὲ
πολλάκις ἠρήσαντο κατελθέμεν εἰς δύσιν Ἠῶ.
Ὥς οἱ μὲν φιλότητος ὑποκλέπτοντες ἀνάγκην
290 κρυπταδίῃ τέρποντο μετ’ ἀλλήλων Κυθερείῃ.
Ἀλλ’ ὀλίγον ζώεσκον ἐπὶ χρόνον, οὐδ’ ἐπὶ δηρὸν
ἀγρύπνων ἀπόναντο πολυπλάγκτων ὑμεναίων.
Era a noite que lhes trazia os esponsais, sem que nunca a Aurora visse
o noivo, Leandro, no leito bem seu conhecido.
Navegava de novo para a povoação fronteira de Abido,
Ritual ático do casamento: 1) banho em água transportada em loutrophoroi de uma nascente ou rio
120
particular, 2) cerimónia de vestir os noivos e de os adornar, em especial a noiva, 3) banquete em casa do
pai da noiva, durante o qual decorre a anakalypteria: desvelamento da jovem perante o noivo, que a seguir
lhe entrega presentes, após o que um παῖς ἀμφιθαλής (i.e., com pai e mãe vivos) diz, transportando um
cesto cheio de pão, “Escapei ao mau, encontrei melhor”, 4) procissão, ao fim da tarde, de casa da noiva
para a do noivo, enquanto a mãe dele transporta tochas e várias pessoas gritam makarismoi ao casal, 5)
katachysmata: incorporação da noiva na nova casa – frutos secos atirados sobre os noivos, junto à lareira, e
consumação do casamento nos aposentos deles, ao mesmo tempo que no exterior os amigos cantam
epitalâmios, 6) recepção de presentes (epaulia) pelo casal, no dia seguinte (Sourvinou‐Inwood 1996: 927‐8).
48
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
285 emanando ainda, insaciado, o odor dos himeneus nocturnos.
Hero de longa túnica, passando despercebida aos pais, era
virgem de dia, à noite mulher. Ambos pediam
amiúde aos deuses que o sol descesse para o ocaso.
Assim, dissimulando o ímpeto do amor,
290 deliciavam‐se entre si numa clandestina Citereia.
Mas viveram‐na por pouco tempo, não demasiado
gozaram os muito viajados himeneus em claro.
O passo apresenta todas as isotopias fundamentais na obra, destacando o amor
e a luz, mas concedendo lugar de relevo também ao mar e à morte. Todas se articulam
para destacar a afinidade e comunhão de sentimentos entre os amantes.
Comecemos pelas que têm manifestação sintáctica mais reduzida, o mar e a
morte, que convocam a isotopia do tempo. Leandro nada (νήχετο 284) todos os dias
entre Abido e Sesto, travessia cuja frequência o texto acentua sobretudo ao nível dos
adjectivos (também πάλιν 294): são muito viajados amores (πολυπλάγκτων 292), que
conduzem Leandro ao leito “bem conhecido” (ἀριγνώτοις 121 283). A semântica da
frequência dos encontros nocturnos não é alheia à duração do tempo, explicitado em
χρόνον (291), termo ladeado pela antítese ὀλίγον/δηρὸν (291). O poeta quer reforçar o
curto período (cronológico e/ou psicológico?) em que Hero e Leandro gozaram o seu
amor, afirmando de novo pela lítotes (οὐδ’ ἐπὶ δηρὸν), em frase que, para maior
ênfase, a adversativa introduz: Ἀλλ’ ὀλίγον ζώεσκον ἐπὶ χρόνον, οὐδ’ ἐπὶ δηρὸν/...
ἀπόναντο (291‐2). A forma verbal ζώεσκον convoca em antítese subentendida a
morte como desenlace dos amores, em processo idêntico ao do proémio, que já a
anunciava (15).
Naturalmente que a frequência das visitas nocturnas de Leandro decorre da
intensidade da paixão. A chegada da noite, que ambos anseiam do mesmo modo
(πολλάκις ἠρήσαντο 288), traz‐lhes a oportunidade de demonstrarem a força do amor
que os preenche (φιλότητος... ἀνάγκην 289), de cuja consumação nunca se saciam
(ἀκόρητος 285) e que tanto prazer lhes proporciona (ἀπόναντο 292). A letra do texto
insiste nas delícias do amor (τέρποντο μετ’ ἀλλήλων Κυθερείῃ 290), cujo gozo
acarretava a ausência de sono (ἀγρύπνων... ὑμεναίων 292, ἀριγνώτοις ἐνὶ λέκτροις
283).
121 Vd. em nota ad loc à tradução justificação para a tradução do plural pelo singular.
49
Φιλότητος (289), que aqui exprime o ímpeto do sentimento, alterna no texto
com ἔρως, mas a palavra preferida por Museu é sem dúvida πόθος 122 , que na forma
de particípio vem a acumular os traços significativos de “ansioso” e
“apaixonado/amante” (201, 230, 233). A noção de ansiedade associada ao encontro
nocturno (ἠρήσαντο 288, vd. 231) repete‐se em ἐπειγομένοιο (240), aplicado a
Leandro antes da primeira noite. O desejo e a paixão são tópicos afins à loucura de
amor, que, como sabemos, não raras vezes ataca os dois amantes 123 .
Contíguos na expressão do texto, o prazer e o sofrimento pervadem a obra.
Este sofrimento faz parte integrante do estar apaixonado, independentemente do
desfecho da relação, e tem a sua contrapartida nas delícias, também decorrentes do
amor. Já o admirador de Hero dava voz à natureza dúplice do amor, que a letra do
texto não deixa esquecer, logo depois de a donzela se mostrar disponível ao amor,
γλυκύπικρον (166). O sofrimento está presente no início da relação, na dor (ὀδυνάων
11) provocada pela ferida de Eros 124 , como no seu decurso e término. Mesmo antes da
morte indesejada de Leandro (κλαίοντα μόρον καὶ ἔρωτα Λεάνδρου 27), o esforço
físico que a aventura marítima lhe exige, αἰνοπαθές (86, 319) e πολυτλήτοιο (330), é
como vimos reconhecido por Hero (268‐9). Refira‐se de passagem que já em 217
Leandro temia de forma premonitória pela sua vida e que o poeta não deixava de
lembrar as lágrimas que a morte dele provocaria (e.g. πολυκλαύτοιο 236).
Se a semântica do sofrimento pervade a obra, é certo que referências, esparsas
mas estrategicamente colocadas em toda a sua extensão, às delícias do amor lhes
concedem uma importância equivalente. É no processo de sedução que três alusões
explícitas acentuam a delícia de amar, associada a sensações suaves (por contraste com
122 Φιλότητος cf. 178, 222, 248; πόθος 29 bis, 103, 108, 134, 140, 196, 307.
123 A força da paixão e a violência do desejo dominam por completo o ser humano, limitando‐o no
exercício das suas faculdades e aproximando‐o da loucura. Assim se encontra Leandro, enlouquecido
(ἀλαστήσας 202) pela paixão; assim cada um dos admiradores de Hero no festival (ἐπεμήνατο 85). Do
mesmo modo, o jovem admirador de Hero, no festival, dá voz à aspiração masculina de partilhar o leito
de Hero (79), tão obsidiante que ganha foros de loucura (μενέαινεν 70). Idêntica imagem é também
aplicada aos dois amantes “loucos de paixão”: ἐρωμανέων 11, ἐρωμανέεσσι 170.
124 A metáfora da ferida (ἕλκος 85, 199, βολάων 94) do amor é reforçada pela caracterização das setas
lançadas por Eros, pontiagudas (93) e afogueantes (88), ou figuradas como “dardo agudo” (196; cf.
87,166). Eros é também responsável por curar as feridas que provoca (ἕλκος ἀκέσσεται 199), na medida
em que colabora com o apaixonado para tornar viável a consumação do amor (200 sqq).
50
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
θυμὸν ἰάνθη (“deliciar‐se com” 107), μελίφρονα θεσμὸν Ἐρῶτων 147, θέρμετο δὲ κραδίην γλυκερῷ
125
πυρὶ 167.
51
por sinal ambas em posição inicial de verso, em quiasmo na última com ἄμφω (22)
que qualifica ἀστέρες, metáfora dos dois jovens. A vizinhança (γείτονές 17) das duas
cidades, fronteiras (ἐναντίον 16; cf. ἀντιπόροιο 284), marca a simetria geográfica das
cidades e o equilíbrio emocional entre os amantes. A letra do texto expressa esse
entendimento perfeito ainda no emprego do plural, respeitante aos dois, em 230‐1.
A afinidade de ambos não se limita contudo aos sentimentos nem à beleza. Ela
passa pela preocupação com o outro, que o texto destaca na figura de Hero. O amante
enfrenta o medo e os perigos do mar, ela vigia com cuidado a lâmpada e atende ao
mar, até que Leandro chegue (256‐9; cf. 331‐8).
2.5. CONCLUSÃO: PROFUSÃO ISOTÓPICA
Os preceitos do Manual do Amor e as suas fases de desenvolvimento, que
reconhecemos em Hero e Leandro, conduziram‐nos à exploração alongada da isotopia
do amor, de par com as isotopias da luz, da água, da beleza, do vento e da morte,
incluindo as várias linhas semânticas que percorriam cada uma delas, intersectando‐
‐se 126 . Temos matéria para concluir, pois, ainda que com predomínio claro da isotopia
do amor sobre as outras, pela notável sobreposição isotópica a que se assiste na obra
de Museu, factor indiscutível de enriquecimento semântico.
Consideremos em síntese as personagens da obra em estudo. Tornou‐se já
notório o carácter concentrado da narrativa, uma vez que há nela apenas duas
personagens que conhecemos bem e cujas acções vemos serem desenvolvidas: Hero e
Leandro. Os jovens que acorrem ao festival, cujos pensamentos e desejos são
enunciados a título representativo por um deles, não passam de figurantes cuja função
é a de reiterar a beleza extraordinária de Hero e justificar a paixão de Leandro.
Referidos são a escrava que vive com Hero e os pais dela. Quanto à primeira,
não conhecemos mais do que a sua existência, aludida por Hero uma única vez. Como
Fica ainda por esclarecer a profunda interpenetração do ciclo da vida humana, que analisámos, com o
126
da natureza, que se revela também ao nível isotópico (infra III.2.1).
52
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
aponta Vilarrubia (2000: 388), no caso de esta serva desconhecer o relacionamento dos
dois amantes, chegaria o carácter clandestino dos amores ao seu extremo máximo. O
romance grego e a comédia fariam dela com certeza confidente de Hero. Mas se
Museu quis deixar em aberto a questão é porque nem a sua função de adjuvante nem
de oponente eram necessárias à estrutura narrativa.
Os pais da jovem sacerdotisa são objecto de referências mais numerosas, em
regra no contexto do isolamento em que Hero vive, “afastada da família” (ἀπὸ
προγόνων 32), pela “decisão abominável” dos pais (στυγεραῖς βουλῆισι 190). O
sacerdócio de Afrodite não é, nesta conformidade, um desejo de Hero mas uma
imposição familiar. Ao conversar com Leandro apresenta ela explicitamente como
obstáculo ao casamento a desaprovação dos pais dela (180).
Ora tanto a desaprovação dos pais como a condição de sacerdotisa de Afrodite,
que implicava virgindade, são apresentados por Hero como impedimentos perante
Leandro, mas nenhum deles vem a constituir obstáculo funcional ao amor dos dois
apaixonados (cf. 286). Esses factores condicionam a concretização dos encontros dos
amantes, remetendo‐os ao secretismo e ao espaço nocturno, mas não impedem a sua
realização. Têm pois uma função muito precisa, a de tornar inevitável a solução
encontrada e de, assim, conduzir o desenvolvimento da acção às suas condições
máximas de expressividade e de simbolismo. 127
Uma vez identificadas todas as figuras humanas mencionadas em Hero e
Leandro, atentemos nas figuras divinas. Eros é sem dúvida a divindade mais activa,
dado que atinge com a seta os dois jovens (17‐20) e determina o posterior decorrer da
acção. Nenhuma outra divindade referida ou invocada 128 , nem mesmo Afrodite 129 ,
127 É por isso irrelevante, do ponto de vista da funcionalidade narrativa, discutir a existência de um culto a
Afrodite que exige a virgindade da sacerdotisa. Pirenne‐Delforge (1994: 399) não identifica qualquer lugar
de culto de Afrodite onde tal seja exigido, mas Pausânias 2.10.4 refere‐se a um templo da deusa em Sícion
em que só tinham entrada uma mulher, com o ofício de velar pelo templo, que após a designação para
essas funções não podia manter relações sexuais, e uma virgem; por a referência à segunda ser
acompanhada pela duração das suas funções, um ano, fica implícito que o ofício da primeira seria
perpétuo. Aos demais fiéis e visitantes é vedada a entrada no templo. Cf. Pausânias 1.27.3 (tempo
limitado do serviço das sacerdotisas de Afrodite em Atenas) e 9.27.6 (sacerdotisa de Héracles em Téspia
obrigada a castidade perpétua). Sobre um entendimento mais desenvolvido da função da virgindade na
obra, vd. infra III.2.3.
128 Adónis 43; Atena 38, 135; Hermes 150; Poseídon 321; Zeus 8, 30, 137.
129 6, 31, 33, 38, 42, 43, 66, 68, 77, 83, 126, 132, 135, 141, 143, 144, 146, 152, 155, 157, 183, 249, 320, 273, 290
(algumas prendem‐se com a comparação de Hero com a deusa). Afrodite é nomeada também através de
outras designações e epítetos: vd. nota 37 à tradução.
53
intervém nos acontecimentos nem desempenha, por isso, qualquer função na
narrativa.
Temos portanto, até ao momento, ocupadas as funções actanciais de sujeito,
objecto, destinador, destinatário e oponente. Leandro coincide com precisão, no
sistema de mythos de Frye, como veremos, com o herói da aventura de demanda, que
procura o amor de Hero e sobre quem reverterá o benefício da busca. Leandro e Hero
são, pois, respectivamente, sujeito‐destinatário e objecto. Eros desempenha a função de
destinador e os elementos naturais (mar e vento), o de oponentes.
Quem ou o quê apoia a concretização dos encontros nocturnos? Essa é a função
da lâmpada (λύχνος), vigiada por Hero no cimo da torre, e por ele nesse sentido
solicitada (210‐5): guiar Leandro no percurso a nado, durante a noite 130 .
Fig.1 Modelo actancial (Greimas 1987: 276) aplicado a Hero e Leandro.
Importa agora esclarecer o âmbito temporal da acção. Com efeito, situa‐se no
dia de festival (42) o início propriamente dito dos acontecimentos narrados, que inclui
o momento em que Hero e Leandro se vêem pela primeira vez e, é lícito inferi‐lo, a
seta de Eros os ataca (18), dando lugar a um diálogo furtivo assim que anoitece (109‐
231). É na noite seguinte (232‐81) que acontece o primeiro encontro na torre de Hero, o
primeiro de uma sequência que se alonga até ao inverno (282‐92). A noite derradeira e
o amanhecer são relatados entre os versos 293 e 343.
Veja‐se supra II.1 o esclarecimento exaustivo das funções da lâmpada.
130
54
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Podemos pois apontar em traços gerais para um tempo da história de alguns
meses, do verão 131 ao início do inverno, e um tempo da narrativa correspondente a três
unidades distintas: um dia completo, a primeira noite e o conjunto da noite e
amanhecer derradeiros, entre os quais dois sumários (o primeiro correspondente a um
dia e o segundo, a alguns meses) estabelecem a ponte. Cá está o movimento sístole‐
‐diástole anunciado pelo título. Entende‐se sístole como a contracção do tempo da
narrativa, na redução de um dia completo a apenas uma noite, e diástole, ou processo
inverso, na dilatação desta a uma noite alargada, que inclui o amanhecer.
Assinale‐se, contudo, um demorar da narrativa nos acontecimentos do
primeiro dia (42‐231), que ocupam 67% da extensão do texto, face às outras sequências
temporais: estas distribuem‐se, de forma muito simétrica, pelos cerca de 50 versos da
primeira noite (232‐81) e da última (293‐343), mediados pelo sumário relativo aos
meses de encontros nocturnos clandestinos (282‐92). Composição tão cuidada não é,
como veremos, fruto do acaso. Notemos desde já, porém, que nestas circunstâncias o
fenómeno de sístole se estende pela franca maioria do texto e que à diástole,
discursivamente breve, corresponderá o intenso desenlace.
A sequência temporal de sístole‐diástole encontra um paralelo nítido na
distribuição dos acontecimentos no espaço: aqui, todavia, o movimento de
concentração e alargamento não é único, mas triplo, ou se quisermos quádruplo.
Começa com o espaço público e amplo de “toda a cidade de Sesto” (43), para onde o
festival congrega habitantes de todas as cidades vizinhas (49), e que sofre uma
concentração progressiva, restringido ao templo de Afrodite (νηὸν 55) e daí ao
“interior mais escondido do templo” (κεύθεα νηοῦ 119). O regresso nocturno de
Leandro a Abido reconduz a acção ao amplo espaço marítimo (227‐9) e aí decorre
também na noite seguinte, que a lâmpada de Hero ilumina (239), orientando a
131 É um facto que o texto não disponibiliza informações claras nem quanto à data do festival, nem quanto
à duração dos encontros secretos do par. A referência explícita da chegada do inverno, tanto quanto a
prontidão de Leandro em fazer tal percurso a nado fazem pressupor uma estação quente, capaz de secar
um corpo molhado sem o deixar enregelar (o que seria, claro, mais importante em Abido do que em
Sesto). Por outro lado, é de supor que um festival tão concorrido como aparenta o de Adónis e Afrodite
em Sesto, de cuja existência efectiva não há aliás quaisquer provas, decorresse numa estação cujo clima
oferecesse menos obstáculos a viagens por terra ou mar (44‐51), como seria o verão. Assim sendo, o tempo
da história, no seu limite máximo, decorreria entre Maio/Junho e Dezembro, ou seja, durante sete meses.
55
travessia empreendida por Leandro. Os quatro graus de sístole antecedem um único
momento, embora discursivamente longo, de diástole.
A partir de agora assistimos à segunda unidade de sucessiva redução espacial,
a mais detalhada, que conclui em rápido alargamento. O jovem chega a nado à cidade
de Sesto (259), desloca‐se para o “cabo próprio para naus” (ἀκτήν 259) onde fica a
torre (πύργον 260) e aí sobe com a amada até aos aposentos dela (νυμφοκόμοιο
μυχοὺς 263), onde acaba por ocupar a cama (λέκτροις 266). A celebração simbólica do
casamento (274‐281) demora a ênfase no leito. Antes do surgir da Aurora, Leandro
atravessa novamente o Helesponto. Repete‐se pois o fenómeno já observado no
domínio temporal, nesta sequência como na anterior, que o processo de sístole é muito
mais pormenorizado (mar‐Sesto‐cabo‐torre‐quarto‐cama), e por isso mais demorado,
que o de diástole.
No mar (θαλάσσης 300) reencontramos Leandro, na noite de tempestade; aí o
vemos morrer por afogamento (300‐30). A imagem seguinte é a de Hero, no cimo da
torre, estendendo a vista por toda a área circundante à procura do amado (πάντοθι
336). Encontra‐o junto à base da torre (κρηπῖδα δὲ πύργου 338) e para aí se atira,
reencontrando‐se com Leandro no mar (342‐3). Há pois, nesta sequência conclusiva e
quiástica θαλάσσης‐(πύργος)‐πάντοθι‐πύργου‐(θαλάσσης), de apenas quarenta e
três versos, um duplo movimento espacial de sístole e diástole. Este movimento, no
qual pela primeira vez a sístole e a diástole ocupam idênticos grau de pormenor e peso
discursivo (tomando como ponto de partida os versos 329‐30), parece reflectir o
crescendo de intensidade dramática.
Para maior clareza apresentam‐se em quadro os dados que temos vindo a
expor.
56
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Unidades
Tempo Espaço
discursivas
Sístole: cidades‐Sesto‐templo‐recanto 42‐224
Dia completo 42‐231
Sístole Diástole: recanto no templo‐mar 117‐231
[293‐330]
Sístole: θαλάσσης‐(πύργος)
329‐31
Diástole Última noite (e
293‐343 Diástole: (πύργος)‐πάντοθι 331‐36
amanhecer)
Sístole: πάντοθι‐πύργου 336‐38
Diástole: πύργου‐(θαλάσσης) 338‐42
Fig. 2 Sístoles e diástoles temporais e espaciais – síntese.
57
conjunto (266‐81) é assinalada pelo excurso que se lhe segue e faz referência à
repetição frequente desses encontros nocturnos (282‐92).
Atendamos por fim à terceira unidade discursiva. Salta à vista um franco
desequilíbrio quanto à extensão da primeira sístole, que ocupa quase quarenta versos
(293‐331), ou seja, essa terceira unidade quase por completo. Como justificar tal
desproporção? Repare‐se antes de mais que os movimentos de sístole‐diástole,
θαλάσσης‐(πύργος)‐πάντοθι‐πύργου‐(θαλάσσης), identificam as duas figuras em
causa: Leandro nada, Hero espera‐o na torre e procura‐o por todo o lado, da torre vê‐o
e lança‐se para o mar, ao encontro de Leandro. Cada elemento destas sístole‐diástole
identifica os lugares onde eles se encontram, ou são procurados. No último θαλάσσης
estão já unidos no mesmo espaço; o primeiro apresenta‐os também unidos não
fisicamente mas em espírito e temores: Leandro luta pela vida contra a tempestade e
por chegar junto de Hero, que acendera a lâmpada por causa do desejo de ambos de
realizar o encontro. A tempestade, como as invocações aos deuses e o sofrimento físico
de Leandro, são o elemento despoletador do desenlace: a morte de Leandro, daí
decorrente, acarreta a morte de Hero e a união final de ambos. Por isso o tratamento
discursivo da luta de Leandro contra o mar é tão extenso. As três partes seguintes são
tão breves quanto incisivas.
Dos motivos escolhidos, da extensão discursiva a eles dedicada e da sua
articulação ao nível macro e micro‐estrutural, consoante se trate das categorias de
tempo e de espaço na obra, colhemos mais uma impressão sobre o labor poético na
composição de Hero e Leandro. A acção do poema estrutura‐se a partir de elementos
fundamentais, como a deslocação no espaço, através do mar, com destino à torre de
Hero e, nela, ao lugar específico do leito, tanto como sobre a alternância dos dias e das
noites, sublinhando com maior ênfase o encontro dos amantes. 132
Uma outra circunstância distingue a terceira unidade discursiva: o emprego do discurso directo e
132
indirecto. Falam no discurso directo o jovem admirador de Hero (74‐83), os dois apaixonados quando se
encontram no templo (123‐27; 135‐57; 174‐93; 203‐20), Leandro arranjando coragem para a travessia (245‐
50) e Hero ao incitar Leandro ao amor (268‐71). Na terceira unidade discursiva o discurso indirecto, antes
completamente ausente, substitui por inteiro o directo: os dois jovens pedem aos deuses a chegada mais
rápida do anoitecer (288), Leandro em perigo de vida invoca os deuses (320‐22) e Hero repreende o vento
por provocar a tempestade (331). Cada tipo de discurso tem recursos de ênfase próprios: o discurso
directo é por norma longo e de vários modos amplificado e o discurso indirecto é sucinto, mas reforçado
por meio dο advérbio πολλάκις (288, 320, 321) e/ou pela enumeração e paralelismo formal (320‐22). Os
conteúdos do Manual do Amor, apresentados em Hero e Leandro, tornam patente a função dos discursos
58
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Decorre do exposto a seguinte dispositio 133 :
1‐41 a. INTRODUÇÃO
1‐15 Proémio
16‐28 Apresentação da situação
29‐41 Apresentação de Hero
42‐231 b. NO FESTIVAL DE AFRODITE
42‐55 Apresentação do festival
55‐73 Hero, sacerdotisa de Afrodite
74‐85 Exemplum não seguido: o discurso de um apaixonado
86‐123 Actuação de Leandro
86‐98 1. atraído por Hero
99‐110 2. sedução
111‐22 3. abordagem de Leandro e reacção de Hero
123‐27 Hero 1
123‐4 1. resistência ao toque
125‐7 2. argumentos desfavoráveis
128‐134 O código da ameaça; ousadia crescente de Leandro
135‐157 Leandro 1
135‐40 1. captatio beneuolentiae
135‐7 1.1. comparação com as deusas
138‐9 1.2. makarismos
140 1.3. súplica e declaração de amor
141‐57 2. exortação ao amor
141‐7 2.1. incongruência: uma sacerdotisa de Afrodite que não conhece o amor
148‐8 2.2. Leandro como enviado de Afrodite
150‐2 2.3. exemplum emulatório: Héracles e Ônfale
directos, em geral mais expressivos ao nível da caracterização dos jovens e da sintomatologia amorosa e a
recompensa ao auto‐incentivo de Leandro à travessia, pelo convite de Hero. O discurso indirecto da
terceira parte patenteia a unidade de sentimentos dos dois jovens e anuncia, pelo seu carácter
concentrado, o desenlace iminente.
133 Outras propostas de divisão formal do texto e.g. em Kost 1971: 115‐17, Schönberger 1978: 255‐59,
Hopkinson 1994a: 140‐85, Vilarrubia 2000: 369‐97.
59
153‐6 2.4. exemplum contrário: Atalanta
157 2.5. conclusão: evita a ira de Afrodite
158‐73 Persuasão e perturbação codificadas de Hero
174‐93 Hero 2
174‐6 1. elogio da capacidade retórica de Leandro
177‐8 2. ataque pessoal a Leandro
179‐84 3. impedimento: perigo do conhecimento público
185 4. identidade de Leandro inquirida
186‐93 5. auto‐apresentação
194‐202 Reacções codificadas: Hero envergonhada, Leandro audaz
203‐220 Leandro 2
203‐8 1. a solução: travessia por mar
208‐9 2. auto‐apresentação (1): de Abido
210‐5 3. um pedido: lâmpada como guia
216‐9 4. um aviso: a lâmpada não se pode apagar
219‐20 5. auto‐apresentação (2): o nome
221‐31 Últimos ajustes e separação
232‐292 c. A PRIMEIRA NOITE
232‐59 Travessia de Leandro, cuidados de Hero
260‐82 Na torre
260‐63 1. chegada de Leandro
264‐65 2. banho
266‐72 3. convite ao amor
272‐82 4. casamento
282‐92 Encontros regulares
293‐343 d. O INVERNO
293‐9 Chegada da estação
293‐7 Condições climáticas
297‐9 Exemplum não seguido: um marinheiro
300‐43 A última noite, até ao amanhecer
300‐9 1. atitudes de Leandro e de Hero
309‐18 2. a tempestade
319‐30 3. Leandro no mar; morte
60
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
331‐38 4. Hero procura Leandro
338‐9 5. Hero encontra Leandro
340‐2 6. Hero atira‐se
343 7. Hero morre junto de Leandro
O texto de Museu apresenta clara dependência do texto homérico no conteúdo,
na linguagem e na disposição métrica, para além da remissão intertextual, mas
patenteia também evidências de outros modelos poéticos, nomeadamente
alexandrinos, que documentam a erudição de Museu Gramático e a sua integração na
escola de Nono. É neste conjunto diversificado de modelos literários que é lícito
considerar, acerca de Museu, como Hopkinson acerca de Calímaco (1994c: 8), que a
erudição e a alusão são sem dúvida parte integrante do significado de Hero e Leandro.
6.1. LINGUAGEM ARCAIZANTE E HOMÉRICA
A obra que o Renascimento atribuiu a Museu, companheiro de Orfeu, emprega
traços da língua e da linguagem homéricas bem como o metro que a tradição
consolidou como o metro da epopeia, o hexâmetro dactílico 135 .
O tecido discursivo de Hero e Leandro é na sua grande maioria constituído por
vocabulário épico de origem homérica 136 . As características dialectais da língua
homérica são também reproduzidas ao nível da palavra e das desinências de caso 137 ,
como é notório pelas tendências iónicas, que atravessam o texto, de verter o ᾱ da
primeira declinação em η e de omitir contracções vocálicas 138 . Radicais de formas
134 Aristóteles, Retórica 1414a 23; cf. 1404b 1.
135 Sobre a liberdade com que Museu adopta os preceitos métricos da coeva escola de Nono veja‐se Gelzer
1968: 38‐40 e supra n.41.
136 Verbos e.g. πέλω 11, ἄημι 13, τιταίνω 17, ἀλεείνω 41,γελόω 65, ἐλελίζω 101, μετακιάθω 112,
στεναχίζω 115, χώομαι 116, συνεέργω 163, ὀρίνω 179; substantivos e.g. πνοίη 13, πτολίεθρον 21,
ἐπιχθόνιος 136, βιότος 218; pronomes e.g. τεός 82; advérbios e.g. ἀπάνευθε 281 e partículas várias e.g.
ὅττι 11, ἧι ”onde” 75, ὄφρα 109, ποτί 165, πάρ 241.
137 Com clara preferência de Museu pelo dialecto iónico sobre o eólico, do qual apresenta reduzido
número de características: o já citado pronome τεός e os infinitivos ἀήμεναι 13 e κατελθέμεν 288.
138 E.g. ἀγλαΐη 37, ἀναιδείη 96, ἡσυχίη 104. Contracções e.g. ἄεθλον 8, ἔην 16, οὔνομα 19, ἐοῦσα 31,
σαοφροσύνῃ 33, παρηγορέεσκε 39, περικαλλέος 89, πόληες 17 e demais declinação, αἰδοῖ 33 e restante
61
verbais, típicas da epopeia 139 alternam com procedimentos que Homero consagrou,
como a da eliminação do aumento na epopeia ou de certas regências verbais 140 .
A clara relação entre os intertextos de Homero e de Museu, ao nível da
morfologia, do léxico e da sintaxe, é sublinhada pelo jogo intencional com situações e
cenas consagradas no arquitexto, como a cena típica do banho (264‐5) ou a descrição
de Hero 141 . Ἄνασσα 33 é atributo de deusas na Odisseia (3.380), onde ἀγλαΐη 37 é
aplicado à própria Penélope (Od.18.180). Termos nucleares da descrição da
sacerdotisa, como ἀμώμητος 92, αἰδώς 98, κλυτός 186, οὐρανομήκης 187, e do efeito
da sua beleza sobre Leandro (θάμβος 96, ἀναίδεια 96 142 ) têm contrapartidas nos textos
homéricos e, não raro, em Ulisses e Penélope ou Nausícaa.
A obra apresenta ainda vocabulário ou fórmulas através das quais, não sendo
homéricas, se pretende dar cunho a uma linguagem arcaizante. É o que acontece, de
modo significativo, com os nomes dos heróis. Indica Vilarrubia (2000: 367) que Hero
(Ἡρώ) era o nome de duas princesas pouco conhecidas (uma, filha de Dánao, rei de
Argos, e outra, filha de Príamo, rei de Tróia) e que o nome de Leandro (Λέανδρος ou
Λείανδρος) poderia resultar de uma composição sobre λαός (ión. ληός, át. λεώς) e
ἀνήρ, sendo Λήανδρος a forma documentada nas moedas da época do imperador
Severo Alexandro (r. 222‐235 d.C. 143 ), ou de λεῖος (suave ao toque, sem barba) e ἀνήρ.
Ao mesmo tempo que se empregam terminações de verso tipicamente
homéricas 144 , noutras ocasiões a linguagem não apresenta mais do que um ar de
família, que aparenta mas não cita Homero: caso, por exemplo, das descrições do
anoitecer (110‐1, 113, 232‐3) 145 ou de ἄφθιτος Ἠώς 3, que não é fórmula homérica.
declinação, νυκτιγάμοιο 7 e mais vinte e uma ocorrências desta desinência de genitivo, εὐκλέα 86 e mais
nove ocorrências desta forma de caso, δίζεο 24 e sete outras terminações verbais e nominais idênticas,
ἐπέεσσι 122, demais declinação e mais sete ocorrências desta forma de dativo.
139 E.g. aoristo ὤφελoν, forma épica de ὤφελλον 8; ao. εἷλον 96; ao. συνέηκα 103; impf. κατήϊεν de
κάτειμι 110; ao. ión. ἀνήνεικα 172; part. ao. ἀνέσαντες de ἀνίημι 226.
140 Respectivamente e.g. φύλαξε 12, ἔχεν 169 e ἀριστεύω com genitivo 67 (Hopkinson 1994a: 152).
141 A cena típica da tempestade será tratada infra, no capítulo IV.
142 Respectivamente Il.12.109, Od.8.172, Od.6.36, Od.5.239, Od.3.372, Od.17.449 (cf. θαρσαλέως...
ἀναιδείην M.99 e θαρσαλέος καὶ ἀναιδής Od.17.449). Também πολυδαίδαλος 118 (Od.6.15), ἐρατός 117
(Od.3.64).
143 Sobre as moedas que reproduzem imagens do mito de Hero e Leandro vd. Kost 1971: 585 n.246.
144 E.g. δώματα ναίων 28, φάτο μῦθον 73, πατὴρ καὶ πότνια μήτηρ 278.
145 Vd. n.105 à tradução.
62
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
6.2. O MODELO ALEXANDRINO
As afinidades do texto de Museu com a literatura alexandrina colocam‐se a um
nível mais amplo do que o decalque lexical ou de verso e é patente num elenco das
características gerais das obras helenísticas 146 , entre as quais Hero e Leandro cabe com
naturalidade.
Museu, que partilha com a figura cimeira da escola alexandrina a acumulação
das funções de poeta e de estudioso, conhecia muito bem a obra de Calímaco,
nomeadamente os Aetia, que sobreviveram intactos pelo menos até ao século VII
(Easterling 1985: 553) e que foi, para contemporâneos e vindouros, a obra mais
apreciada a seguir aos poemas homéricos. Calímaco instituiu um novo estilo, cuja
palavra‐chave era λέπτος (por oposição a παχύς), fino e leve, rigoroso, claro e de
técnica disciplinada (Easterling 1985: 561), adoptado pelos poetas seus
contemporâneos: Teócrito e Apolónio de Rodes, mas também Arato 147 e Nicandro 148 .
Assim, νήχυτος 247 é comum a Calímaco e Apolónio (AR 3.530, 4.1367, Cal.
Fr.313), πολύσκαρθμος 277 a Calímaco e Nicandro, συναείδω 14 a Teócrito (10.24) e
Arato, ὑψόθι 256 a Apolónio de Rodes, Arato e Teócrito 149 , εὔοδμος a Teócrito (3.23,
17.29), Calímaco (Aetia 43.13) e Teofrasto, que o emprega oito vezes. Nicandro é dos
poucos poetas para além de Museu que usam ῥόδεος 265, Arato, dos poucos que
conhece ἀπαστράπτω 56.
Apenas de Calímaco acolhe Museu e.g. ἀγγελιώτης 7, λόξος 101, τοκεών 180,
ἀμφιβόητος 187, ἐνδόμυχος 246, e as partes de verso αἰδοῖ ἐρευθιόωσαν... παρειὴν
160 (Cal. fr.80.10Pf) e μάτην ἐφθέγξαο 177 (Cal.Del.107). De Teócrito os segmentos
métricos ἀριστεύσασα γυναικῶν 67, idêntico em 17.45, tal como μοι... συνάειδε 14 e
146 Segundo Hopkinson (1994c: 10‐11): 1) grande interesse no poder de Eros e seus trabalhos, 2) escolha de
tema invulgar ou de aspectos originais de um assunto bem conhecido, 3) concentração pseudo‐naive na
pequenez, pobreza e na simplicidade, com paralelo num tipo de poesia em menor escala, menos
“pretensiosa”, 4) fusões novas de metro, dialecto e género, 5) variedade de tom dentro de poemas
individuais ou variedade de metro, dialecto e tema dentro das obras de cada autor.
147 Arato (fim séc. IV ‐ m. III a.C.) compôs Phaenomena, obra muito apreciada sobre constelações e sinais
me‐teorológicos, cuja originalidade reside na transmissão de assuntos técnicos e precisos em linguagem
poética, a partir de uma obra científica. Os alexandrinos, e a cultura grega depois deles, consideram
Phaenomena uma obra‐prima de elegância pela versificação, expressão e soluções para problemas de
apresentação difícil. A obra suscitou numerosos comentários e teve fortuna também entre os latinos
(Hopkinson 1994c: 136‐8).
148 Nicandro (séc. II a.C.) é, como Arato, um metafrasta com considerável influência nas letras latinas, que
nas duas obras que nos restam trata de criaturas venenosas e de remédios ou antídotos para a mordedura.
149 Empregam‐no respectivamente doze, quatro e três vezes.
63
17.45. De Apolónio, περίπυστος 92, ἀρήτειρα 68 (1.312, 2.252), σκοτόεις 183 (2.1105) e
ζύγιος 275 (4.96), bem como οὐδ’ ἐπὶ δηρὸν 291 (1.1072) e πάντοθι δ’ ἀγρομένοιο 324
(2.756).
Museu e Apolónio de Rodes (1.306) apresentam as duas únicas ocorrências de
ἐξῶρτο, aoristo de ἐξόρνυμι, cujo verbo simples era de uso corrente desde a Odisseia.
Eἰσόκε, sobretudo com conjuntivo desde a Ilíada, passa na épica tardia a reger tempos
do passado do indicativo, como acontece em Museu 258, à semelhança de Arg. 1.820.
No autor de Argonáuticas encontra Museu o modelo para κατεναντία λύχνου (254), a
partir de κατεναντία νήσου 2.1116, que emprega a palavra pela primeira vez, a partir
da qual é atestada mais onze vezes 150 .
A alguns termos homéricos atribui‐se nesta época novo significado, adoptado
por Museu. Assim acontece por exemplo com ἀήτης 13, que passa a significar “vento”
e não apenas “rajada”, ou ἀναφέρω 121, verbo ao qual os poetas alexandrinos
acrescentam a regência de φωνήν, para significar “falar”.
6.3. A EPOPEIA DE QUINTO DE ESMIRNA
O facto de Posthomerica ter sido composta, talvez no século IV, em hexâmetros
dactílicos segundo as regras alexandrinas (Rocha Pereira 1988: 1604) justifica, pelo
menos em parte, que a obra de Museu partilhe com a de Quinto de Esmirna certos
segmentos métricos. É o que acontece, sempre no mesmo lugar do verso em ambos os
textos, com κατ’ Ὄλυμπον 80 (3.134), ἡμετέρην παράκοιτιν 81 (13.368), ἀμωμήτοιο
γυναικός 92 (14.58, de Helena) e νείκεε... ἐπεσβολίῃσι 331 (1.748). A propósito de ἐπὶ
φρένας ἀνδρὸς ὁδεύει 95, diz‐se da esperança, em Posthomerica 1.72, ἐς φρένας
ἀνδρὸς ἵκηται.
As duas epopeias partilham ainda alguns vocábulos imunes à influência de
Nono, como a forma raríssima ἀπόναντο (M. 292 e 343, Q.7.611); ἐρισμαράγοιο
θαλάσσης 318 em Q.12.456 e só ἐρισμαράγοιο em 13.362; πολύτλητος 330 treze vezes
em Quinto; πολυκλαύστος (236, 334) quatro (e.g. Q.3.380); κατεναντία 254 tem uma
das suas doze ocorrências em Q.1.552 e βαρύγδουπος 270 apresenta no poeta de
Sobre influência temática de Apolónio de Rodes vd. infra IV.1.2.
150
64
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Esmirna quatro das suas quinze ocorrências na literatura grega (e, inclusivamente,
βαρυγδούποιο θαλάσσης no mesmo lugar do verso ‐ 1.320).
Museu emprega ainda ἄμμορος 89 no mesmo sentido cunhado por Quinto.
6.4. A POESIA DA ANTIGUIDADE TARDIA
Mesmo que a Antiguidade tardia e os poetas da escola de Nono apreciem o
léxico de Homero, a sua obra reflecte os contributos de vários séculos de uso da
língua 151 . Do ponto de vista sintáctico desenvolvem‐se também novos hábitos: ἄλλη
equivale a ἑτέρη (33), segundo Blakeney (1935: ad loc); o homérico μαργαίνω (123)
passa a ter uso absoluto em Coluto 198; as duas partículas de negação οὐ e μή (268)
perdem carácter distintivo e tornam‐se comutáveis (Gelzer 1968: 19), fenómeno
idêntico ao que acontece com a diferenciação entre genitivo (2) e dativo, em relação a
cujo emprego se adoptam grandes liberdades 152 ; do mesmo modo, os tempos verbais
alternam com facilidade, nomeadamente o infinitivo presente e aoristo (8), o aoristo e
o imperfeito (163), o presente optativo e o futuro do indicativo (204), o presente e o
perfeito (216). Este emprego dos tempos verbais desprovido dos constrangimentos da
época clássica é um traço específico da obra de Nono e da sua escola 153 .
A epopeia tardia, à semelhança de outros géneros e épocas, oferece ainda
novas formas à linguagem 154 e é tão determinada pela figura de Nono e da sua obra
que os traços característicos de ambas se confundem. 155
A linguagem de Nono resulta do estudo e selecção de traços estilísticos
anteriores, nomeadamente de Mosco, Opiano, Quinto de Esmirna e Trifiodoro, mas “a
sua realização distintiva foi a criação de um molde métrico, e por isso linguístico,
151 E.g. συναείδω 14; a vulgarização do verbo simples ὄλλυμι 15, cujo sentido a comédia e a prosa
clássicas encontravam em ἀπόλλυμι; συνομιλέω 34; φιλοπάρθενος 51; θελξινοός 147; ἐπισκέπω 258;
χιόνεος 58; προάγγελος 163; ἄβροχος 214; φιλήνωρ 266; βαρύγδουπος 270; ὑποκλέπτω 85, 161, 289;
ἕλκω 286. Do ponto de vista semântico: ἄμμορος (90) passa a significar “sem”, λείμων ganha frequente
qualidade metafórica (60). Vd. notas à tradução.
152 Para explicação pormenorizada da insegurança no emprego do caso, em particular do dativo, com
exemplos alargados ao emprego e colocação de preposições, colocação de pronomes e emprego do caso
da preposição que consta no prefixo verbal, vd. Gelzer 1967: 143‐8.
153 Kost 1971: 144. Tema desenvolvido em Gelzer 1968: 11‐14.
154 E.g. ao. ἐπικλῆσαι 10 de ἐπικαλέω, ou ἕσπομαι 72 de ἕπομαι.
155 Deixamos aqui omissa a questão já tratada em capítulo anterior (vd. I.2.3) da alegada influência dos
poetas de Gaza sobre Museu, tese basilar de Gelzer (1967 e 1968 passim) com a qual não nos
identificamos.
65
muitíssimo restritivo, dentro do qual expor infinita energia, engenho e verve em
variação e inovação” (Whitby 1994: 123). A dicção e o metro de Nono manifestam as
mesmas técnicas de emulação e rivalidade que caracterizam a sua epopeia: o metro é
homérico, mas no som e ritmo o verso é completamente diferente; muito do
vocabulário, alguma fraseologia e não poucos versos ou hemistíquios são homéricos,
mas o efeito geral do poema é diferente de qualquer outro (Hopkinson 1994b: 14).
Vocábulos não homéricos como ἐνδόμυχος, ἀστράπτω, παστός 280, γενετήρ
125, ὑποκλέπτω 182, ἐπισκιρτάω 277 e ἐπεσκίρτησε, ὑψόθι 256 ou ἁλιστεφής 45 são
empregues com frequência pelo mestre de Panópolis. Outros termos, atestados em
Museu e considerados raros, encontram em Nono o poeta que ao longo da literatura
grega mais os apreciou 156 . A sua obra apresenta ainda particularidades sintácticas 157 .
São reveladoras quanto ao grau de dependência de Museu face ao mestre os
casos em que há indícios de preferências lexicais ou sintácticas comuns, que a restante
produção literária ignora 158 .
6.5. ESPECIFICIDADES DE MUSEU
Face a tão elevado grau de mudanças, não surpreende que também o contexto
semântico de aplicação homérica de algumas palavras sofra ampliação. O emprego
homérico de ἱμερόεις sempre para pessoas é respeitado por Museu, mas em uma
ocasião através de hipálage (105). De forma idêntica, Museu aplica εἰνάλιος 46 a uma
ilha, que Homero sempre usara para pessoas ou animais, κατατρύχω 87 a Leandro,
que os poemas homéricos apresentam em todas as ocorrências com sentido
económico, ἀπονοσφίζω 98 no mesmo sentido em que Homero usara apenas o verbo
simples (e.g. Il.2.81), ἠλίβατος 210 qualificando torre, que em Homero qualifica
156 E.g. βαθύστρωτος 266, duas vezes em Nono, num total de seis ocorrências na literatura grega; ἄπλοος
204 empregue três vezes por Nono, o que só outro autor do século XII faz também, Eustácio, embora a
palavra remonte a Hecateu (séc. VI a.C.); βαθυκύμων 189, cinco vezes em Nono num total de nove
ocorrências na literatura grega; ἀχόρευτος 274 nove vezes; πυρίβλητος 83 dez vezes, num total de
dezoito; παρθενεών 263 doze vezes; ἀγνώσσω 249 vinte e quatro vezes; θαλαμηπόλος 276 vinte e seis
vezes; ἐνδόμυχος 246 trinta e seis vezes.
157 E.g. ὄφρα 211 com o optativo, o que na restante literatura coeva é raro (Hopkinson 1994a: ad loc);
ἐρυθαίνω 61 passa a reger genitivo.
158 Assim acontece com e.g. as seguintes formas de Hero e Leandro: τελεσσίγαμος 279, λύσατο 272,
ἐρωτοτόκος 159, ὀκναλέος 120, ἀπόσπορος 249, ἀφρόκομος 262, βαθυκρήπις 229, διδυμόχροος 59,
πολυστρόφαλιγξ 294, ἀχρήϊστος 328.
66
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
sempre pedra; εὐρύς 229 atributo de localidade geográfica, uso inusitado face ao de
Homero, que o aplicava sobretudo ao mar e ao céu. Alterações de número ocorrem
ainda, optando pelo singular, face ao plural constante em Homero: παρειά 58 e
κάρηνον 252.
Museu apresenta ainda neologismos que lhe são exclusivos, ou são atestados
apenas depois dele 159 . Também acontece que Museu empregue formas desconhecidas
por Nono, como é o caso de χαλίφρων 117. De um termo sobretudo apreciado na
Antiguidade tardia, como σφίγγω 252, Museu faz depender dativo pela primeira vez.
Não concluímos a análise da linguagem de Museu sem salientar a erudição do
autor, que honra o título de Gramático, destacando para tal algum do léxico originário
na tragédia e sem ocorrências em Nono: ὁμοδέμνιος 70 (Ésq.Ag.1108), πτεγύρεσσι 48
(Eur.IA120) 160 , θάρσος ἀείρας 243 (Eur.IA1598), νυμφοκομέω 280 (E.Med.985) 161 .
6.6. RECURSOS DE ESTILO
Que o texto de Hero e Leandro é abundante em recursos de estilo como a
antítese, o assíndeto 162 , a repetição (em forma de anáfora, poliptoto, quiasmo e
homeoteleuto 163 ), a hipérbole 164 , a metáfora 165 , a hipálage, a sinédoque 166 e a
aliteração 167 tem sido sublinhado pela crítica (Gelzer 1968: 24‐30, Kost 1971: 49‐53,
Hopkinson 1994a: 140‐185) e pode ser complementado tanto nas nossas notas à
tradução como em II.2. supra. Apercebemo‐nos já de como a antítese, a metáfora e a
sinédoque são procedimentos estilísticos que enformam o texto de modo decisivo ao
159 De νυκτίγαμος 7, ἁλιηχής 26, πυριπνείων 41 (a forma épica constitui hápax, a não épica, πυριπνέων,
é atestada uma vez nos textos órficos e outra nos Magica), καλλιθέμεθλος 71, ἀντέκλινεν 107 (hápax da
forma verbal e do verbo), πολύφοιτος 181, βαρυπνείων (216 e 309), συνεκαίετο 241, ἁλίπνοος 265 e
ἀντέπνεεν 316 não se conhece na literatura grega que chegou aos nossos dias outros usos para além dos
de Museu. Ἠνεμόφωνος 193 é atestado apenas em Museu e João de Gaza Écfrase 2.164. Cf. levantamento
com algumas imprecisões e lacunas em Kost (1971: 46) e Gelzer (1967: 142 n.82).
160 Esta referência e a seguinte de Gelzer 1967: 135 n.38.
161 Nono usa bastante o substantivo, também com ocorrências em Eurípides, mas ignora a forma verbal.
162 Antítese e.g. 18 ἀμφοτέραις… ἕνα. Assíndeto e.g. 66.
163 E.g. respectivamente καὶ... καὶ... καὶ 2‐4; Χάριτες... Χάριτας... Χαρίτεσσι 63‐5; ἱμερόεις τε Λέανδρος
ἔην καὶ παρθένος Ἡρώ/ ἡ μὲν Σηστὸν ἔναιεν, ὁ δέ πτολίεθρον Ἀβύδου 20‐1; πύργος δ’ ἀμφιβόητος
ἐμὸς δόμος 187.
164 E.g. Ὥς ἡ μὲν, περὶπολλὸν ἀριστεύσασα γυναικῶν,/ ... νέη διεφαίνετο Κύπρις (Hero) 67‐8.
165 E.g. αὐτὸς ἐὼν ἐρέτης, αὐτόστολος, αὐτόματος νηῦς (Leandro) 255.
166 Hipálage e.g. ὀκναλέοις δὲ πόδεσσιν (Hero) 120. Sinédoque e.g. ὑμεναίων 2.
167 E.g. ἤδη κύματι κῦμα κυλίνδετο, σύγχυτο δ’ ὕδωρ 314.
67
nível do conteúdo, cuja análise manifesta elevado domínio literário da língua pelo
poeta e põe a nu o requinte estilístico da obra, uma verdadeira ἀρετὴ τῆς λέξεως.
6.7. CONCLUSÃO
Deixamos ainda para o capítulo IV a aferição das influências linguísticas e formais do romance grego.
168
68
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Este capítulo apresenta duas partes. Pretendemos na primeira, através da teoria
crítica de Northrop Frye, reconhecer em Hero e Leandro uma trama narrativa que
consiste na “demanda do amor”. A partir da teoria dos mythoi e dos géneros
reconheceremos na obra de Museu os traços definidores do romance. Essa classificação
genológica, alimentada pelo estudo que Frye (1976) dedicou em exclusivo ao texto
romanesco, não decorre da aplicação a Hero e Leandro de todos os traços característicos
do romance tal como Frye o define, nem tal seria viável, mas do recurso àqueles que
contribuem para esclarecer ou enriquecer a nossa leitura do texto de Museu.
Na segunda parte, o estudo individualizado de alguns dos motivos do
romance conduzir‐nos‐á à análise de excertos que não incluímos nos preceitos do
Manual do Amor, posteriores ao casamento alegórico, bem como a desenvolver, a
partir de Frye, outros topoi de carácter simbólico que o texto de Museu inclui.
O crítico canadiano Northrop Frye não se enquadra em qualquer tendência
pré‐existente de crítica literária, mas cria o seu próprio movimento, em parte como
reacção ao New Criticism norte‐americano, complementando e suplantando as outras
linguagens críticas dos anos 50 (Hamilton 1990: 123) 169 . Acolhemos no âmbito deste
trabalho os contributos da teoria de Frye por ela, embora lamentavelmente
desconhecida pela grande maioria da crítica do romance grego, constituir para o
género romanesco o que a teoria de Aristóteles é para a tragédia 170 . Frye mostra como
o romance sempre tem sido e deve permanecer central no nosso entendimento da
169 Sobre a integração de Frye na teoria crítica dos anos 50, carácter revolucionário da sua obra, filiação e
heranças à teoria da literatura, vd. Asensi 2003:180‐1.
170 Parece‐nos que apenas Reardon (1991) se lhe refere. “If we were to value Frye’s writings for nothing
else, it would be his penetrating analysis of the nature of romance that would perhaps most powerfully
claim our attention.” (A. Fletcher apud Hamilton 1990: 140)
69
literatura, mesmo que a tradição por norma desconsidere a qualidade literária do
género. Conforme a epígrafe, para Frye o romance é o núcleo estrutural de toda a
ficção. 171
No que diz respeito à obra de Museu, o sistema teórico de Frye aplica‐se na
perfeição, ao que não é alheio o facto de um como outro assentarem em pressupostos
simbólicos universais, veiculados pelo conto popular.
1.1. TEORIA DOS MITOS
No âmbito da teoria literária de Frye, explanada pela primeira vez em toda a
sua abrangência na obra Anatomy of Criticism (1957) 172 , mythoi são as categorias
narrativas da literatura, mais amplas do que, ou logicamente anteriores, aos géneros
literários (Frye 1958: 162). Estes “elementos pré‐genológicos da literatura” (163), que
incluem todas as obras literárias, são quatro: o romanesco, o trágico, o cómico e o
irónico ou satírico. 173
171 Vd. infra pág. 72. A obra de Frye parte do pressuposto que a Bíblia forneceu à literatura europeia o
esboço de um universo mitológico ou imaginativo, a partir do qual é lícito interpretar a literatura secular
(1976: VII) – daí o título do estudo que dedica ao romance, The secular Scripture. No entanto, o mito do
romance é anterior ao mito cristão (Frye 1976: 88), por causa do desenvolvimento do género romanesco a
partir do conto popular (a este respeito vd. n.1 ao Anexo II), mas sobretudo por a literatura secular
constituir uma revelação humana à parte da revelação de Deus. Consideradas em conjunto, a escritura
criada e a escritura revelada constituem um único universo imaginativo e a ordem verbal total (vd. infra
p.73).
172 Citações a partir da tradução brasileira (1958), cuja expressão adaptamos livremente às normas do
Português Europeu. Apesar de a tradução verter mythos of romance por “mythos da estória romanesca”,
substituímos sempre “estória romanesca” por “romance”.
173 “A teoria dos modos e dos géneros literários de Northrop Frye (...) é fecundamente renovadora
sobretudo no domínio da caracterização dos modos arquetípicos da literatura, dos mythoi.”(Aguiar e Silva
1994: 80)
70
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Fig.1 Os quatro mythoi (Aguiar e Silva 1994: 378).
Cf. modo romântico do Ensaio 1: Frye 1958: 37 sqq.
174
71
ser favoráveis ou contrárias à demanda; uma noiva surge muitas vezes como motivo
ou recompensa (Frye 1958: 189‐93).
A forma perfeita do romance é a procura bem sucedida, cuja versão completa
apresenta quatro estádios 175 (Frye 1958: 190): 1) agon ou conflito: jornada perigosa e
aventuras menores preliminares; 2) pathos ou luta de morte: luta crucial, por norma
algum tipo de batalha na qual o herói, o adversário, ou ambos têm de morrer; 3)
anagnorisis ou reconhecimento: exaltação do herói, que prova com clareza ser um
herói, mesmo se não sobrevive ao conflito; 4) desaparecimento do herói, com
frequência em forma de sparagmos ou despedaçamento.
Ao identificar cada uma destas fases com o tema arquetípico de um mythos 176 ,
Frye elege o mythos romanesco como modo ficcional essencial (1958: 190‐1). O mythos
do romance abrange todo o ciclo de mythoi: a comédia tende para ele, a tragédia cai a
partir dele e a ironia parodia‐o (Hamilton 1990: 140). Em consequência, o mito central
da literatura, no seu aspecto narrativo, é o mito de demanda (Frye 1991: 18).
Ora cada mythos desenvolve‐se em seis fases cíclicas. No caso do romance, as
fases formam uma sequência cíclica na vida do herói (Frye 1958: 196‐200). A primeira
apresenta o mito do nascimento, em regra misterioso e divino, do herói. Da segunda
fase consta a juventude inocente num nível elevado da natureza, um mundo pastoral
ou arcádico – motivos como o paraíso‐prisão ou a barreira sexual são tematizados. A
terceira fase é a da realização da demanda do herói: a acção decorre ou diz respeito ao
nosso mundo, caracterizado pelo movimento cíclico da natureza. Na fase seguinte, a
quarta, o tema central é a manutenção da integridade do mundo inocente contra o
ataque da experiência. Na quinta fase, o herói revela uma visão idílica e reflexiva da
experiência e procede a uma retirada contemplativa da acção. Na sexta fase regressa‐
‐se ao mito: o herói procede a um movimento de retirada do mundo, para um
isolamento contemplativo.
As primeiras três fases do romance correspondem às primeiras três fases da
comédia e as últimas três correspondem às últimas três fases da tragédia. A existência
175 Inicialmente, três (1958: 186), tornados quatro (1958: 190).
176 Respectivamente o romance como sequência de aventuras maravilhosas, a tragédia como catástrofe no
triunfo ou na derrota, a comédia, subida em triunfo de uma sociedade recém‐nascida em torno do herói, e
a ironia e sátira como ausência ou derrota do heroísmo, num mundo em que reinam a confusão e a
anarquia.
72
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
de traços comuns de cada mythos com outros dois mythoi faz com que eles se
distribuam do seguinte modo:
comédia
Romance
tragédia
Ironia e sátira
comédia
Tragédia
romance
Comédia
ironia e sátira
Fig. 2 Os quatro mythoi e distribuição das suas fases.
O romance move‐se entre os dois pólos do mito e da ironia, do ideal e do real,
contendo‐os sempre a ambos 177 . Embora as suas seis fases se desenrolem da tragédia
para a comédia, o romance vai para além da comédia: se o herói age num ambiente
idêntico ao nosso, ele tende a ser integrado finalmente num nível mais elevado da
natureza. Nos termos da cosmologia tradicional, o movimento do romance mostra um
herói divino que desce de um dos mundos superiores, através da realidade comum
para o mundo demoníaco e depois regressa. As aventuras tornam‐se uma busca da
identidade (sexual, social e individual), que culmina numa cena de reconhecimento
final. (Hamilton 1991: 140‐1)
A teoria de Frye sobre o mythos romanesco considera ainda um ponto de
epifania, apresentação simbólica do ponto em que o mundo apocalíptico não
deslocado e o mundo cíclico da natureza se alinham, reencenando a ligação original
entre o céu, ou o sol, e a terra, que povoa contos populares e mitologias e que a haste
do pé de feijão ou o cabelo de Rapunzel simbolizam. No quadro da perspectiva
vertical sobre a vida do herói na sua descida e subsequente subida pelos estados da
existência oferecida pelo romance, os ambientes mais comuns em que o ponto de
epifania se realiza são o topo da montanha, a ilha, a torre, o farol, a escada ou
escadaria. (Frye 1958: 200‐1)
Cf. os modos ficcionais do Ensaio 1: mito, romance, modo mimético superior (epopeia, tragédia,
177
drama), modo mimético inferior (comédia e ficção realista) e modo irónico.
73
O ponto de epifania permite o reconhecimento da literatura secular como um
todo, uma visão única e integrada do mundo (Frye 1976: 15), revelação humana à
parte da revelação de Deus, um romance humano respondendo a uma comédia
divina. A escritura criada e a escritura revelada constituem uma ordem verbal total,
que é a literatura e o seu universo imaginativo (Hamilton 1991: 144).
1.1.1. O MYTHOS ROMANESCO EM HERO E LEANDRO
Estamos pois em condições de, perante o exposto, reconhecer em Hero e Leandro
os traços do mythos romanesco de Frye.
O elemento narrativo essencial da obra, e responsável pela perenidade do mito
que relata, é a travessia marítima de Leandro. Tratando‐se de um encontro nocturno
secreto, a empresa reúne exigências específicas que envolvem factores de risco, como a
de Hero manter uma vida dupla (παρθένος ἠματίη, νυχίη γυνή 287), e de Leandro
enfrentar o mar e eventuais alterações climáticas, com todo o esforço físico, quase
sobre‐humano, associado não apenas a uma, mas a duas travessias por noite. Hero e
Leandro vivem sem dúvida uma aventura comum, incorrendo ambos em diferentes
tipos de perigo, sujeitos a contingências várias.
A aventura que partilham radica‐se na procura do amor. É esse ritmo de
demanda mútua que o texto nos apresenta, desde o momento em que a seta de Eros os
fere (17‐9) e os olhares de ambos se encontram (101‐7) até ao seu reencontro final e
definitivo, no mar (343). É essa a motivação de Leandro que procura Hero no templo
da Citereia, de Leandro que atravessa o Helesponto para passar a noite com ela. A
demanda encontra a sua primeira manifestação textual explícita na acção de Leandro
em “procurar” um momento em que pudesse falar a sós com aquela por quem se
apaixonou: Λείανδρος ἐδίζετο λάθριον ὤρην (109) 178 . Reveladora é também a
exortação de Leandro para que Hero “procure” (μετέρχομαι) os trabalhos de Afrodite
(141). Nestas duas instâncias concentram‐se os sentidos da demanda mútua dos
apaixonados, que o texto desenvolve em torno da concretização do amor.
O mesmo verbo, na forma do imperativo, fora já empregue duas vezes no contexto das exortações ao
178
leitor para procurar a torre de Sesto, ao passar por Dardanelos (24, 26).
74
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Primeiro, como vimos, através do cumprimento dos preceitos de sedução, que
se estendem à procura no diálogo: os movimentos iniciais do olhar e do corpo (101‐2,
105‐7) vêm a ser complementados pela comunicação verbal. Sabemos já como o
emprego hábil da palavra, tanto por Leandro como por Hero, revela interesse mútuo e
um progresso claro no sentido da criação de condições para a consumação de eros. Ao
incitar Hero a iniciar‐se nas leis de Afrodite (142), Leandro dá voz aos desejos íntimos
dela. Hero revela‐os ao dar a conhecer ao pretendente as circunstâncias em que vive e
a imposição do secretismo, limitadoras das possibilidades de encontro (174‐93), que
conduzem Leandro a decidir‐se pela travessia nocturna do Helesponto (203‐20).
Embora na aparência resistente, pelos signos verbais e não verbais a que recorre, Hero
também procura Leandro.
Depois, a demanda tem manifestação física e exigente na viagem a nado que
Leandro empreende por amor (σὸν δι’ ἔρωτα 203). O jovem nada até à torre de Sesto,
procurando a luz da lâmpada que Hero, a pedido dele (210‐8), acendeu para o guiar.
Hero procura proteger a chama do vento, junta‐se‐lhe na base da torre para se
dirigirem ambos aos aposentos dela. Aí tem lugar a atribuição de recompensa a
Leandro, cuja expectativa ele já explicitara sem pejo: οὐ τρομέω βαρὺ χεῖμα, τεὴν
μετανεύμενος εὐνήν (“não temo a corrente forte, porque ganho o teu leito” 205). De
acordo com o previsto por Frye 179 , o prémio pelos sofrimentos e aventuras de Leandro
é a consumação do amor que o une a Hero.
A demanda mútua reflecte‐se ainda na ansiedade de ambos pelo anoitecer que
propicia o encontro (230, 289), reveladora do desejo e da paixão que os anima e que
tem expressão particular na noite derradeira. Leandro procura a ajuda dos deuses
(320‐2), Hero procura o marido no mar (336‐7), até que ao vê‐lo se atira para junto dele
(341). A obra encena pois uma demanda bem sucedida, não apenas na medida em que
os encontros nocturnos têm lugar, mas sobretudo no encontro final (343).
Identificado que está o elemento essencial do enredo no romance, a aventura
de demanda, prossigamos para a identificação do conflito dialéctico entre herói e
antagonista. É evidente que Leandro luta todos os dias contra o mar e a escuridão
nocturna, aos quais a última noite acrescenta os ventos invernosos – Leandro, como
Vd. supra p.71.
179
75
Hero, sujeita‐se ao movimento cíclico dos dias e das noites e acaba por ser vítima do
ciclo das estações. Não há dúvida que Leandro é um herói jovem e vigoroso, em
conflito com as trevas nocturnas e, mais tarde, com o inverno, mas acima de tudo com
o mar, o seu antagonista por excelência 180 . Coincidindo com a teoria de Frye, a obra de
Museu, tal como o romance de demanda, encena ainda a vitória da fertilidade,
simbolizada nomeadamente na união do macho e da fêmea sobre a terra estéril (Frye
1958: 192).
O conflito (agon) encenado na obra é, pois, a luta pelo amor de Hero, que inclui
tanto a iniciativa de chegar à fala com uma sacerdotisa de Afrodite, como o enfrentar e
vencer do medo, perante o mar que era preciso atravessar. Estas são as aventuras
perigosas empreendidas pelo herói. A luta de morte (pathos) atinge‐o por meio da
tempestade, que também proporciona o momento de exaltação plena do herói
(anagnorisis): não há qualquer enfraquecimento da vontade ou tentação de desistência
da parte de Leandro, que respondeu ao chamamento da lâmpada acesa e invoca até ao
fim o auxílio dos deuses. O estádio final é aquele em que Hero identifica o amante
“esfolado contra as pedras” (339), variação clara do sparagmos, e, transtornada pelo
desgosto e incapaz de conceber o futuro sem o amado, se lhe junta na morte. A
narrativa apresenta pois os quatro estádios que compõem a forma perfeita do romance
e ilustram a procura bem sucedida (Frye 1958: 185‐91), por meio de um processo
iniciático a que o herói é sujeito. 181
A morte do herói romanesco está prevista no âmbito da teoria arquetípica: “Se
o leviatã é a morte e o herói tem de entrar no corpo da morte, o herói tem de morrer.
Se a sua demanda está completa, o estádio final dela é ciclicamente o renascimento e
dialecticamente a ressurreição” (Frye 1958: 190). A morte de Leandro (e de Hero) no
180 Vd. supra III.1.1.1 exposição do conflito teorizado por Frye entre o herói e o mar, que em Museu
assume a sua forma mais pura. Repare‐se ainda que, segundo Frye, as metáforas originais do mito, que
estabelecem as bases da identidade, como o leviatã ser identificado com – e por isso ser – o mar e o mundo
da morte, encontram‐se no romance, em regra, na forma de analogias ou deslocações do mito original
(Frye 1958: 187, Hamilton 1991: 142). O facto de em Hero e Leandro o mar constituir o antagonista isenta o
romance da deslocação e aproxima‐o do mito. Deslocação (displacement) é definida pelo próprio Frye
(1958: 359) como “adaptação do mito e da metáfora aos cânones da moralidade e da plausibilidade”. Para
uma explicação mais desenvolvida deste conceito central no sistema de Frye, cf. e.g. 1991: 21‐38.
181 Vd. em Futre Pinheiro (1993) estudo contrastivo de A Demanda do Santo Graal e de As Etiópicas de
Heliodoro. Avançaremos adiante (III.2) do forte pendor masculino da teorização genológica de Frye para
um equilíbrio entre os dois protagonistas.
76
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
mar não consiste pois num final trágico e infeliz, nem é sinal de impotência perante os
elementos da natureza. Na qualidade de herói típico do romance, o jovem é superior
em grau aos outros homens e ao seu meio‐ambiente e nessa qualidade vence os
obstáculos que as duas instâncias lhe proporcionam. A aparente sujeição de Leandro
ao poder mais forte da natureza em tempestade decorre da completude da sua
demanda e do cumprimento dos seus objectivos. O renascimento cíclico e a
ressurreição dialéctica a que Frye faz referência não significam mais do que a
integração do par amoroso na ciclicidade da vida humana, através da qual gozarão
uma nova vida de comunhão permanente.
1.2. TEORIA DOS GÉNEROS
Na teoria dos géneros de Frye, o romance e a história romanesca 182 são duas
das formas de prosa 183 ficcional, a par da confissão e da anatomia 184 . O romance
consiste num género em que as figuras são estilizadas, tomadas nas suas personae ou
máscaras sociais. O interesse principal do romance reside na pessoa humana tal como
ela se manifesta em sociedade.
Pelo contrário, a história romanesca ocupa‐se de “gente real, com libido e
anima”, personagens heróicas imperscrutáveis e complexas e é, por isso, dotada de
intensidade subjectiva inexistente no romance. “A história romanesca, que trata de
heróis, é intermediária entre o romance, que trata de homens, e o mito, que trata de
deuses.” Enquanto desdobramento recente da mitologia clássica e do romance, tende a
expandir‐se numa abordagem ficcional da história 185 . O crítico tem o cuidado de
assinalar que é difícil encontrarem‐se exemplos puros tanto de um género como do
outro 186 . (Frye 1958: 299‐301)
182 Respectivamente novel e romance no original.
183 Sobre a relevância a atribuir à composição de Hero e Leandro em verso, vd. infra IV.2.3.
184 A confissão é uma forma de autobiografia, ao mesmo tempo intelectual e individual, e a anatomia (ou
sátira menipeia) caracteriza‐se por uma grande variedade temática e um forte interesse em ideias, que a
tornam num género intelectual. As obras de Petrónio e de Apuleio são anatomias. Vd. Frye 1958: 302‐9.
185 E por isso os romances históricos tendem a ser histórias romanescas. Para a relação do romance com a
historiografia, vd. infra IV.1.
186 Em particular se criados na actualidade. De facto, a exigência popular é a de uma forma mista, para o
leitor projectar a sua libido no herói e sua anima na heroína e para manter essas projecções num mundo
familiar (Frye 1958: 300). A interpenetração de géneros é extensível à confissão e à anatomia.
77
Hero e Leandro será, do nosso ponto de vista, uma história romanesca, na
medida em que os seus protagonistas estão ausentes do contexto social e vivem em
exclusivo para os seus sentimentos, mesmo que não apresentem elevada
complexidade interior.
2.1. PRINCÍPIOS ESTRUTURAIS DA FICÇÃO
Segundo Frye (1976: 53), o romance 187 apresenta um contraste entre dois
mundos, um acima do nível da experiência normal e outro abaixo dela. O mundo
idílico é associado à felicidade, segurança e paz, colocando ênfase na infância ou num
período “inocente” ou pré‐genital da juventude, ilustrado com imagens da primavera
e do verão, flores e sol. O “mundo demoníaco ou nocturno” é um mundo de aventuras
excitantes, mas que envolvem separação, solidão, humilhação, sofrimento e a ameaça
de mais sofrimento. Na sua poderosa tendência polarizante, o romance leva‐nos
directamente de um para outro.
A este princípio estrutural da ficção, a polarização dos mundos idílico e
demoníaco, acrescenta‐se o segundo princípio, o do ciclo da natureza, solar e das
estações, cuja imagística é associada ao ciclo da vida humana (Frye 1976: 79‐80).
Vejamos como se relacionam os dois grandes princípios estruturadores da ficção em
Hero e Leandro.
A polaridade contrastiva mundo idílico/demoníaco tem duas aplicações em
Hero e Leandro: uma ao nível da trama discursiva global, correspondente à vida
humana, e outra ao nível do quotidiano das personagens. Comecemos por esta: para
os dois apaixonados, as “aventuras excitantes”, envolvendo embora separação e
sofrimento, fazem parte do quotidiano do seu amor e do ritmo do dia e da noite.
Vivendo a realização amorosa durante a noite, dependente da aventura e da imediata
separação, com a luz do sol regressam ambos à amenidade da juventude inocente,
Sem esquecer que considerámos Hero e Leandro uma história romanesca (romance), mantemos a partir
187
de agora a designação, geral em português, de “romance”.
78
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
para todos os que os conhecem e face às regras sociais em vigor. A alternância do dia e
da noite corresponde portanto à alternância cíclica do idílico e do demoníaco.
Naturalmente que esta bipolaridade pode ser levada mais longe. Se tivermos
em conta que para os dois amantes é o encontro nocturno a parte mais importante das
suas vidas, a noite há‐de identificar‐se com o mundo idílico e a separação diurna, com
o mundo nocturno/ demoníaco. A inversão dos sentidos da polaridade, sem anular a
legitimidade da anterior, documenta a afirmação de Frye (1976: 53) segundo a qual os
mundos idílico e demoníaco são uma mistura dos dois.
A noção de verticalidade, que aduziremos adiante à análise, apontar‐nos‐ia
aqui mais uma instância de sobreposição inversa da bipolaridade. Associando o
mundo nocturno a um nível vertical inferior, por oposição à elevação do mundo
idílico, Leandro e Hero parecem pertencer a mundos opostos. A travessia do mar
aproxima Leandro do mundo demoníaco, enquanto Hero, na torre, está situada no
mundo idílico.
Em síntese, embora para a sociedade os dois jovens pertençam em exclusivo ao
mundo idílico, eles conduzem uma vida dupla pela qual o espaço nocturno lhes
confere não só o idílico do amor, como o demoníaco da aventura e do sofrimento,
causado pela separação imediata e pelo esforço físico. A fase de transição entre os dois
mundos, a travessia nocturna de Leandro, coloca Hero no mundo verticalmente idílico
da torre e Leandro no mundo demoníaco das profundezas marítimas.
Por outro lado, atendendo à globalidade da narração, Hero e Leandro avançam
do mundo idílico para o mundo nocturno. A relação entre os dois apaixonados é
integrada, como sabemos, na juventude de ambos, inexperientes no amor, que
evoluem para a maturidade sexual e para o casamento. Na teoria de Frye (1976: 78,
80), o ciclo da vida humana é o que decorre até ao casamento, sendo o motivo central a
virgindade da heroína, noiva potencial, associada às complicações e dificuldades antes
de casar. Mesmo que Museu não desenvolva tanto como os autores de romance nem
as dificuldades na manutenção da virgindade nem o desejo da heroína de a manter, é
um facto que tanto a virgindade como o casamento são motivos fundamentais na sua
obra 188 .
Sobre o motivo da virgindade vd. infra p.103.
188
79
O casamento e a recuperação da sua identidade representam um dos pólos de
prestação da heroína, que assinalam o seu triunfo final. Museu, mais uma vez,
combina no mesmo acto uma polaridade, fazendo coincidir com o momento do
desenlace e da união definitiva, o outro pólo, que inclui a morte. Aquele que seria o
ponto mais baixo da sua sorte, o momento em que é oferecida como vítima
sacrificial 189 , ameaçada com violação ou morte (Frye 1976: 80), representa em Hero e
Leandro a forma de concretizar o triunfo definitivo.
A consideração da vida humana, tal como a obra de Museu a representa,
conduz‐nos à noção de identidade de Frye, já mencionada na definição do triunfo
final: aquele estado de existência em que não há nada sobre o qual escrever. Antes do
início e depois do fim do romance, o silêncio da narrativa representa a libertação da
tirania das circunstâncias externas e das aventuras. É por isso que “a maior parte dos
romances acaba em felicidade, com o regresso ao estado da identidade, e começa com
o afastamento em relação a ela”, isto é, a maior parte mostra um movimento cíclico de
descida para um mundo nocturno e um regresso ao mundo idílico, ou a algum
símbolo dele, como o casamento (Frye 1976: 54). Também com Hero e Leandro, antes e
depois dos limites da narrativa não há nada mais a dizer: “os felizes não têm história”.
A polarização dos mundos idílico e demoníaco prende‐se de perto, como
vimos, com o ciclo da natureza. O ciclo natural da sucessão dos dias e das noites
desempenha papel basilar na felicidade dos dois jovens e, mais do que isso,
acompanha‐os de forma empática nos sentimentos deles. Não raro aplica Museu aos
elementos da natureza, em particular ao mar, atributos que noutros lugares
caracterizam um ou os dois protagonistas: μαινομένων ῥοθίων 243 (“ondas
enlouquecidas”) ou μαινομένης... θαλάσσης 303 (“mar enlouquecido” cf.
ἐρωμανέεσσι προσώποις 170), ἀγρομένοιο δυσάντεϊ κύματος 324 (“funesto
rompante das vagas” cf. ἀγρομένῃσι… γυναιξὶν 34) 190 . As ameaças de Hero e as do
vento à vida de Leandro são objecto de idêntica concretização textual, derivada de
ἀπειλή (122, 129, 131, 132, 317). O mesmo jogo semântico, embora in absentia, ocorre
com o verbo παφλάζω, que exprime o fogo interior de Leandro (91, 204) mas qualifica
Vd. supra p.70 n. 170.
189
Ainda πόντος ἀμείλιχος “oceano implacável” 245, ἄγριον οἶδμα “ondas selvagens” 203, βρόμον
190
ἠχήεντα... θαλάσσης “fúria ruidosa do mar” 206.
80
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
na Ilíada apenas o mar, ou o verbo aplicado à acção do vento, δονέω (294), que serve a
Safo para exprimir as agitações do amor (Frag.130.1). O autor joga claramente ou com
a identificação explícita entre elementos da natureza e os seres humanos, ou com a
polissemia dos termos empregues, que alimentam essa dupla aplicação.
Também o ciclo das estações vem a ser determinante na história destes
amantes. É a passagem do verão para o inverno que traz a fúria dos elementos da
natureza e provoca a morte de ambos. Se numa primeira leitura a identificação
verão/mundo idílico e inverno/mundo demoníaco seria imediata, e ela de facto se
aplica ao momento particular da tempestade, a verdade é que a chegada do inverno
propicia afinal a reunião definitiva dos apaixonados. Eles encontram‐se portanto,
agora sim, num mundo verdadeiramente idílico, onde não há lugar ao sofrimento da
travessia incerta ou da separação posterior, nem da vida dupla que a luz do sol exigia.
A interdependência em Hero e Leandro do ciclo da vida humana e do ciclo da
natureza resulta da trama narrativa e apresenta extraordinária polissemia, quando
articulado com o binómio mundo idílico/demoníaco. A interpenetração dos dois ciclos
passa pela semântica global do texto e pela escolha lexical que caracteriza os elementos
da natureza e as figuras humanas.
2.2. FORZA/FRODA
Frye considera ainda que forza é o princípio base da tragédia e froda, o da comédia. Termos em italiano,
191
por serem retirados do Inferno de Dante.
81
forças que lhe são concedidas, como força invulgar, sangue nobre ou destino
profetizado por um oráculo.
Leandro encarna de facto este herói aventureiro que se submete a provas físicas
muito exigentes, a dupla travessia do Helesponto a nado, que exige a sua coragem e
parece atestar a sua invulnerabilidade. A primeira viagem para Sesto mostra que
Leandro não é imune ao medo: ele também precisa de arranjar coragem (243) e de se
auto‐incentivar. A corrente de energia que o anima tem origem apenas no próprio
Leandro, não em forças que lhe sejam exteriores, e vem a conduzi‐lo à libertação pela
morte. Como é que tal acontece? Frye (1976: 67) admite duas possibilidades para a
perda de sorte do herói: a sua qualidade auto‐destrutiva, como dissimulação ou hybris,
ou com mais frequência, uma espécie de froda. Neste caso, um poder mágico ou outro,
forte em áreas que o herói não controla, por exemplo, uma mulher involuntariamente
traiçoeira. Se nos recordarmos que Leandro se aventura ao mar, na noite derradeira,
incitado pela luz que vê acesa na torre de Hero (301‐4), reconheceremos em acção o
princípio da froda, mais do que a hybris do apaixonado. Mas o texto de Museu não
culpabiliza a donzela, “enfeitiçada pela paixão e pelo destino” (πόθος καὶ μοῖρα
βιήσατο. Θελγομένη 307). Em Hero, que de modo involuntário provoca a morte do
marido, age o princípio da froda.
Froda é, aliás, apanágio das mulheres desde o mundo homérico onde, dada a
fraqueza física delas, as suas armas principais são a astúcia e a malícia. O exemplo de
Penélope e da sua teia funciona a par do de Medeia, ou seja, daquelas que quando são
violentas, operam por magia ou através de homens próximos (Frye 1976: 69). Hero
encarna este princípio ainda pela capacidade persuasiva de que dá mostras. Na
primeira conversa com Leandro, de acordo com os preceitos de sedução, Hero dá azo
à concretização dos encontros com Leandro: articulando segundo as conveniências a
reserva e a palavra, a jovem não só colabora com o sedutor como lhe apresenta as
condições do encontro 192 . Nesta virgem sacerdotisa aplicam‐se perfeitamente os
binómios coy/quaint, do latim quietus/cognitus (Frye 1976: 74): a ruborização, o baixar
do olhar e o silêncio (quietus), tal como palavras ameaçadoras, caracterizam a donzela
tímida (coy) na aparência e de comportamento invulgar (quaint), mas muito consciente
Vd. supra II.2.3.3.
192
82
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
das suas acções e capaz de conduzir os acontecimentos de acordo com os seus
interesses (cognitus).
Ora não teremos dúvidas em reconhecer em Leandro idêntica capacidade
persuasiva à de Hero e, nessa medida, a acção também nele do princípio da froda. Na
conversa no templo concorrem os desejos de ambos no sentido de propiciar a
concretização do amor. Exercem pois, ele como ela, as suas qualidades persuasoras
com tanta convicção como sucesso, de acordo com os desejos de ambos.
Tal como Leandro e Hero partilham o exercício de froda também forza é
apanágio de ambos, pese embora certa diferença de grau. Em Hero, esse princípio age
na sua capacidade dinamizadora, correspondente ao que já identificámos como a
segunda parte da obra. Aí, o princípio activo é assegurado pela jovem, ao ajudá‐lo a
subir as escadas da torre (260), ao tomar a iniciativa de lhe dar banho (264‐5) e,
sobretudo, ao convidá‐lo de modo explícito ao amor (268‐71).
Na personagem de Hero revela‐se portanto não só a convenção segundo a qual
a heroína exerce as suas tácticas em low profile, comportando‐se com o devido recato,
como o carácter realista e iconoclasta de um papel mais activo dela (Frye 1976: 79).
Assistimos na obra de Museu aos princípios forza e froda em acção, não
concentrados em exclusivo nas figuras masculina e feminina, mas operantes em
ambas. Respeitando os princípios compositivos do romance, de acordo com a teoria de
Frye, Museu actualiza‐os de modo mais complexo e, em consequência, mais rico do
ponto de vista semântico.
2.3. VERTICALIDADE
Já nos referimos ao princípio da verticalidade, que resulta directamente do
binómio mundo ideal/demoníaco, desenvolvido por Frye nos temas de ascensão e
mitos de descida. Segundo o crítico, considerando que “a imaginação poética habita
uma terra média”, há na literatura quatro movimentos narrativos básicos: 1) a descida
do mundo superior; 2) a descida para o mundo inferior, 3) a subida do mundo inferior
e 4) a subida para o mundo superior. Todas as histórias na literatura são complicações
ou desvios metafóricos destes quatro radicais narrativos (Frye 1976: 97).
83
Comecemos por aplicar, de relance, estes quatro movimentos à obra de Museu,
pertencentes à dimensão vertical, em que, como afirma Chevalier (1994: 687), reside o
valor semântico da tomada de consciência. Leandro tanto desce para o mar como sobe
dele para terra e daí para a torre, após o que efectua o movimento inverso, no regresso
a Abido. As acções narradas levam o leitor a crer que Hero se desloca entre o templo e
a torre, o que implica viagens nos dois sentidos, mas o texto não lhes dá concretização
discursiva. Os únicos movimentos verticais de Hero retratados no texto são o da
descida da torre para acompanhar Leandro e, no desenlace, o lançar‐se da torre para o
mar. Em que medida a teoria de Frye contribui para compreendermos o alcance destas
deslocações?
Frye entende a descida do mundo superior como o momento do nascimento do
herói, de origem divina (que nessa qualidade não tem aplicação em Hero e Leandro), e a
descida para o mundo inferior, subterrâneo ou submarino, por norma como o da
morte, mesmo que temporária ou simbólica. O movimento de descida, em qualquer
dos casos, significa perda individual de identidade e inclui muitas vezes o motivo da
metamorfose e da imagem no espelho, seguida de eventual afogamento (Frye 1976:
104‐5).
O movimento de descida para o mar acompanha de modo regular, da parte de
Leandro, o anoitecer. A chegada à margem de Sesto é objecto de tratamento algo
pormenorizado: ele atinge o promontório (259) e daí avança até à torre com a ajuda de
Hero (260). Note‐se que o verbo (ἀνάγω) aplicado a Hero, nesta ocasião, acolhe os
sentidos de subir de um nível inferior a um nível superior, de levantar os olhos ou a
voz, cantando, mas também o de erguer, em especial a partir da morte para a vida.
Esse sentido é comum à literatura grega desde Hesíodo (Teog.626) e joga com a noção
do mar como mundo da morte ou de contacto com ela, que conhecemos da teorização
de Frye, como das νέκυιαι de Ulisses (Od.11.14s) ou de Eneias (En.6.898‐901). A água
pertence tradicionalmente a um reino da existência abaixo da vida humana, o estado
de caos ou dissolução que segue a morte comum, ou a redução ao inorgânico, razão
pela qual a alma com frequência atravessa a água ou se afunda nela ao morrer (Frye
1958: 147‐8).
84
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
A morte como símbolo da perda de identidade, ou oportunidade privilegiada
de a reencontrar, tem contrapartida precisamente nos temas de ascensão: o auge do
movimento ascensional é o auto‐reconhecimento, i.e., o atingir da identidade (Frye
1976: 152).
Esta simbologia não é nova: vem ao encontro daquela nossa conclusão segundo
a qual a trama narrativa de Hero e Leandro, assumindo a forma de uma aventura,
representa a demanda da identidade e culmina numa cena de reconhecimento final
(Hamilton 1991: 140‐1). Essa identidade individual, sexual e social passa
necessariamente pelo amor e é encontrada por Leandro no cimo da torre. Neste
sentido, a travessia marítima, embora meio para chegar a Hero, simboliza o
afastamento completo dessa identidade na figura do jovem, quando está longe da
amada.
O próprio Frye (1976: 151) reconhece que “o romance acaba sempre por nos
conduzir ao grande tema do Amor”, adiantando que no desenvolvimento dessa
temática um amante é conduzido pelo outro a subir a um mundo superior e que essa
ascensão é cheia de imagens de escalada, subida ou voo 193 . O crítico toca no âmago da
obra de Museu. No papel de alguém que conduz outro num movimento ascensional,
reconhecemos de imediato certo passo que inclui a imagem da subida associada à
torre e à mulher: καὶ μιν ἑὸν ποτὶ πύργον ἀνήγαγεν (“Hero até o subiu para a torre
dela” 260). Com efeito, desenvolve Frye noutro lugar, “a heroína partilha com o herói
ascensões e descidas, mas a sua função mais frequente é a de conduzir à ascensão e de
assegurar a obtenção dos objectivos mais queridos: o amante é conduzido a um
mundo superior pela amante” (1976: 90). Através da colaboração, dos desvelos e do
amor de Hero, Leandro encontra‐se a si próprio e à sua felicidade.
Importa demorarmo‐nos na simbologia desta “torre que toca o céu” 194 (187),
referência tanto ao isolamento da jovem como à plenitude da anagnórise de Leandro.
Com efeito, a torre representa desde o zigurate mesopotâmico, que inclui a torre de
Babel, a busca de uma relação entre o céu e a terra. Subir à torre, imagem que traduz
uma energia solar geradora, transmitida à superfície terrestre, corresponde a uma
193 Subida de montanhas, torres, escadas de madeira e/ou em espiral, lançamento de setas ou sair do mar
chegando a uma ilha. O exemplo paradigmático é a subida de uma montanha por Dante, no Purgatório.
194 Cf. torre de Babel em Gen 11, 4 (“edifiquemos uma torre que chegue até ao céu”).
85
purificação espiritual gradual, até se atingir a luz pura de um espaço interior
(Chevalier 1994: 649‐50, 708) 195 . Na aproximação das noções de torre e de luz,
frequente na simbologia, reconhecemos também a prática do texto de Museu: a luz
acesa por Hero é meio de orientação para Leandro, por ele nessa qualidade solicitada
(210‐5), e signo da felicidade que a chegada e estadia naquele espaço permitem atingir.
A associação de Hero à luz pode ainda ser entendida como sinal do conhecimento
mais desenvolvido do amor que, pelo relacionamento de ambos, virá a ser acessível a
Leandro 196 . Esse sentido é afim ao da linguagem e ritos maçónicos, em que “receber a
luz” significa ser admitido à iniciação (Chevalier 1994: 425) – a luz de Hero dirige‐se a
Leandro mas simboliza a iniciação de ambos no amor 197 , no espaço da torre, lugar do
erotismo.
O erotismo patente na imagem fálica da torre é ainda desenvolvido por Frye
(1976: 153), ao assinalar que a torre de O Romance da Rosa resulta da transformação de
um jardim paradisíaco 198 , que é por sua vez imagem tradicional da demanda sexual 199 .
Pois também na obra de Museu não só a identificação entre a torre e Hero é óbvia,
como Hero é de modo explícito comparada a um jardim. Recordamos com certeza a
descrição tópica da jovem (55‐62), que apela várias vezes à imagem da rosa e
assemelha o corpo dela a um “campo de rosas” (ῥόδων λειμῶνα 60). A comparação
195 Não pretendemos forçar o texto a admitir uma leitura cristã da simbologia conjunta da torre e da luz,
que conduziria a ênfase numa anagnórise que incluísse a identidade de carácter religioso e tendente à
aproximação mística à divindade. Gostaríamos todavia de manter em aberto a possibilidade de ao sentido
da felicidade e realização pessoal pelo amor, que passam pela definição da identidade, explicitado
claramente no texto, não ser alheia uma componente religiosa, que afinal é intrínseca ao ser humano,
indissociável do Amor e consta já da simbologia ancestral do zigurate e da torre de Babel.
196 A associação de Hero à luz é tomada por Solimano (1966: 260) na qualidade de indício da
representação de Hero como sacerdotisa de Ἕλλα, antiga divindade da luz na região do Helesponto. Esse
dado constaria do mito na sua origem, mas a elaboração literária posterior vem a substituir Ella por
Afrodite. Esta hipótese coincide, do nosso ponto de vista, com a associação de Ulisses a fontes de luz na
Odisseia (esp. c.18‐20), muitas vezes na presença de Atena, que consistiria em vestígios de uma tradição
pré‐homérica segundo a qual Ulisses seria um deus. Leia‐se a propósito Frye (1958: 146): o simbolismo
poético normalmente coloca o fogo exactamente acima da vida do homem neste mundo e a água
exactamente abaixo dela; o fogo é associado a um mundo espiritual ou angélico, a meio termo entre o
humano e o divino.
197 A lâmpada é ainda uma representação do homem, que entre os berberes é acesa perto da cabeça do
recém‐nascido e arde durante toda a noite de núpcias (Chevalier 1994: 399). A assimilação simbólica da
lâmpada ao homem corrobora o tratamento poético dado por Museu à lâmpada que se extingue devido à
tempestade e causa a morte de Leandro (330). Sobre a eventualidade de a torre onde Hero segura uma
lâmpada anteceder a existência de um farol em Sesto, vd. nota ao v.20 da tradução.
198 O romance da rosa, cap. 3, p. 65.
199 Frye (1976: 153) considera que a simbologia tradicional da demanda sexual (sublimada no Purgatório de
Dante) e da imagística da mulher como jardim remonta ao Cântico dos Cânticos (e.g. Cant 4, 12‐16).
86
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
da jovem com a rosa, símbolo do amor, remete para duas das cores do espectro
cromático: o branco e o vermelho, símbolos de pureza e de paixão (Chevalier 1994:
576) 200 . São essas as cores que caracterizam Hero, donzela de branco, de tez nívea e
maçãs do rosto de dois tons, por vezes ruborescidas. Esse jardim simbólico cheio de
rosas, que a sacerdotisa constitui, é desejado por muitos mas só conhecido por
Leandro, precisamente no espaço da torre. Hero acumula pois simbologias sobretudo
de carácter sexual, que convergem no amor.
Apelando à definição já apresentada de ponto de epifania 201 , encontramos sem
dúvida no espaço da torre, por causa da concretização de eros, aquele em que os
mundos apocalíptico e natural se aproximam: estão juntos, na torre, aquele cujo
elemento característico é o mar e aquela que vela a luz. O plano verticalmente elevado
é ainda lugar de excelência para o desenvolvimento do percurso iniciático dos heróis.
Mas se é verdade que a torre oferece a Leandro a sua libertação e anagnórise,
esse espaço tem para Hero significado muito diferente. Como ela própria diz, a torre é
o lugar onde passa os seus dias, como numa prisão, afastada de família, amigos ou
pessoas da sua idade (187‐92) 202 . Encontramos aqui uma inversão da simbologia
paradigmática, na medida em que são os temas de ascensão de Frye a fornecerem‐
‐nos o enquadramento necessário para compreender o significado da acção última de
Hero, a queda a partir da torre para o mar. Os temas de ascensão implicam para Frye
(1976: 133, 136) o escapar do herói ou heroína de uma prisão através do triunfo da
froda ou astúcia, que os transporta das trevas para a luz. O recurso padrão para
escapar é a mudança de identidade, base normal para a cena de anagnórise, e é
seguida em regra pelo casamento. Esta é, em síntese, a função desempenhada pelo
desenlace para a figura de Hero.
De facto, a trama narrativa apresentada por Museu conclui‐se com a saída
definitiva de Hero da torre, ao lançar‐se para junto de Leandro. Por meio do amor, e
sem deixar de, como veremos adiante, recorrer à froda em conversa com Leandro, Hero
realiza duas finalidades: por um lado, a libertação do espaço que a limitava e
200 Afrodite é “the presiding deity of the red and white world of sexual love” (Frye 1976: 154). Vd. II.2.1.2.
201 Vd. supra III.1.1. p.73.
202 “More often [than a Polyphemus figure threatening to devour or pollute the heroine] the displaced
imprisoning giant is a jealous father, who locks up the heroine” (Frye 1976: 133). Sobre a leitura do
aprisionamento no conto de fadas, vd. Anexo II (2.1).
87
aprisionava e, por outro, a reunião permanente com o amante. Este facto ocorre nada
mais nada menos do que ao amanhecer, trazendo para a luz do dia um casamento até
então secreto. Hero escapa pois da torre que a prende e da condição de sacerdotisa
virgem para a de mulher casada, no espaço público. A coincidência com o esquema
teórico de Frye é tal que ela não só escapa da prisão por si própria 203 , como a sua
mudança de identidade e anagnórise pública incluem o casamento (1976: 133, 136). A
evolução faz‐se pois da condição de virgem para a de maturidade sexual, que o
casamento simboliza. Neste aspecto, é indispensável que a heroína seja virgem:
idealização do estado pré‐sexual e imagem adequada da identidade original (Frye
1976: 153). Do mesmo modo o casamento, na conclusão, simboliza a identidade
atingida 204 e a conclusão do circuito iniciático.
Justifica‐se neste âmbito relacionar a maturação individual de Hero (e Leandro)
com a metamorfose, que Frye considera imagem central dos temas de descida, e o
afogamento (1976: 105). A metamorfose, ou seja, o encontro de ambos no espaço
marítimo, é o culminar da acção narrativa e resulta, de facto, do afogamento
involuntário de Leandro e do propositado de Hero. Em que sentido há metamorfose?
Os dois apaixonados evoluíram da inexperiência para a maturidade sexual,
simbolizada no casamento, o que corresponde à redefinição da sua identidade e à
conquista do mundo idílico, por oposição ao mundo nocturno em que se moviam:
Hero liberta‐se da torre‐prisão, Leandro, da necessidade da travessia marítima; o
relacionamento evolui do secretismo nocturno para o conhecimento público e para a
luz do dia e, do isolamento de ambos, à união definitiva. Hero e Leandro, os dois
jovens a quem o amor transformou, sofrem sem dúvida uma transformação radical,
uma verdadeira metamorfose 205 . O lugar final dessa metamorfose é o mar, que não por
acaso acumula a simbologia da vida e da morte, lugar por excelência de nascimentos,
transformações e renascimentos (Chevalier 1994: 439).
203 Um pouco à semelhança de Rapunzel, que encontra forma de escapar à falta de liberdade no seu
próprio corpo, no caso, nas suas tranças (Bettelheim 1995: 27).
204 Frye afirma ainda de passagem que a virgindade simbolizada em Diana/Ártemis “means only the
elusiveness of a nature that remains unreconciled to man” e conduz à realização de Eros em Thanatos
(1976: 154). Note‐se que a virgindade e a maturidade sexual são temas muito glosados não só no romance
grego e por Museu, como nos contos de fadas e contos populares. A esse respeito vd. e.g. Bettelheim
(1995: 350 sqq).
205 “A luz sucede às trevas, tanto na ordem da manifestação cósmica como na da iluminação interior.”
(Chevalier 1994: 423)
88
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
A noção de verticalidade de Frye assume particular pertinência na obra de
Museu, que acumula as imagens do mar e da torre, pontos opostos da descida e
ascensão dos protagonistas. Leandro é aquele que apresenta uma movimentação mais
ampla, tanto de descida para a água e subida para a torre, quando chega para Sesto,
como no sentido inverso, de regresso a Abido. Pela sua travessia marítima, a figura de
Leandro chega a ser desenvolvida num “batel do amor” 206 (212). Hero, por seu lado,
está ligada à torre e à luz que a partir dela a sua lâmpada emana. Em termos de
sentido ascendente ou descendente, os movimentos de Hero limitam‐se, na conclusão
da obra, ao salto do cimo da torre para o mar. É um movimento equivalente ao que
Leandro repete no fim de cada noite, mas desta vez, por Hero, mais célere, animado
pelo sofrimento causado pela perda de Leandro (331‐40). Disso depende a união de
ambos.
2.4. CONCLUSÃO
Vd. p.30 n.89.
206
Vd. supra II.3.
207
89
90
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Em linha de colisão com todos os estudos que conhecemos sobre o romance,
aos quais a obra de Museu não merece qualquer referência 208 , este capítulo pretende
demonstrar que Hero e Leandro consiste num romance, a integrar de pleno direito o
grupo dos outros cinco que a antiguidade nos legou na íntegra 209 . Essa demonstração,
que a nossa análise já deu a entender, parte da amálgama de géneros que desde a
origem constitui o género romanesco e cuja evidência a obra apresenta, passa pelos
traços temáticos e estruturais do romance, que ela partilha, e conclui com a integração
da obra no panorama do género, até aos últimos séculos do império bizantino.
O romance absorve para si próprio várias formas da literatura precedente, di‐lo
Reardon (1989: 8): da historiografia toma a forma da prosa narrativa e a “moldura
histórica” dos primeiros romances (Silva 1996: XVI), referência legitimadora num
género novo; do drama adopta a acção e conteúdo emocional, a partir de Eurípides e
da Comédia Nova, em especial de Menandro (Reardon 1991: 130). Socorre‐se também
208 À excepção da obra inaugural e incontornável de E. Rohde (1876), que reconhece Hero e Leandro como
“pequeno romance”, um dos “mais antigos romances gregos de amor”, a par de Acôncio e Cidipe, Píramo
e Tisbe e Ífis e Anaxárete (Rohde 1960: 153‐4).
209 De Cáriton, Xenofonte, Aquiles Tácio, Longo e Heliodoro. Para a exposição e refutação da teoria do
epítome a respeito de As Efesíacas, vd. Ruas 2000: XXXIV‐XXXIX, XLV‐LX. Fragmentos e resumos de
outros romances gregos que não nos chegaram completos compilados por Reardon (1989). Embora
possível do ponto de vista cronológico o conhecimento do Satyricon de Petrónio e de As Metamorfoses de
Apuleio, a obra de Museu não apresenta quaisquer evidências disso. O nosso estudo relaciona pois em
exclusivo Hero e Leandro com o romance grego, pelo qual deve ser sempre entendida a expressão
abreviada “romance”.
91
da epopeia, da tragédia e da poesia amorosa, num complexo processo de influências,
nem sempre de filiação directa, mas inequívoca 210 .
Desta manta de retalhos não está ausente o movimento da Segunda Sofística,
posterior aos primeiros romances mas contemporâneo ou anterior aos de técnica mais
sofisticada. Aquiles Tácio será o autor que melhor representa o comprazimento na
exibição de exercícios e artifícios retóricos, nem sempre com a desejável pertinência
textual 211 . Sem se exceder, Museu apresenta também a sua panóplia de recursos
retóricos.
Antes de nos determos na relação da Odisseia com os reconhecidos romances e
com a obra em apreço, indique‐se desde já um factor de integração de Hero e Leandro
no género romanesco, no que diz respeito à sua ascendência historiográfica. À
semelhança de Quéreas e Calírroe (1.1.1), também esta obra situa a acção a ser narrada
no passado e cuja veracidade a torre de Hero (24), em Sesto, permite comprovar. O
carácter etiológico de Hero e Leandro, que a letra do texto destaca pela incitação
repetida ao leitor para procurar a dita torre (23‐6), tal como pelas referências mais ou
menos subliminares ao conhecido desenlace (e.g. 27, 236), integra‐a no conjunto dos
romances gregos com traços explícitos de uma constituição genológica que passa pela
escrita da história 212 .
1.1. HOMERO
A condição da Odisseia como fons et origo do romance (Reardon 1991: 15) é
ponto assente entre os estudiosos e assaz reiterada. Atestam‐na o teor narrativo e a
natureza imaginativa e aventureira da epopeia de Ulisses. É na Odisseia que jaz a
intriga modelar do romance, em que reside o poder do género: abundantes viagens em
numerosos episódios que contam com a longa separação do casal 213 , rodeado por um
conjunto de figuras que ajudam ou se opõem ao reencontro, mas conduzido à reunião
210 Sobre a múltipla constituição genológica do romance, “the most open and heterogenous genre in
Western literature” (Fusillo 1988: 17), vd. esp. Perry e Reardon (1991). Anderson (1984) comprova as
raízes orientais do género, na tematização do amor pela tradição literária suméria.
211 Vd. infra IV.2.2.3.
212 Vd. também notas 30 e 33 à tradução.
213 Tal como Ulisses, o par de apaixonados procura sem cessar o “caminho do regresso” (Silva 1999: 9). Vd.
em Fusillo (1988: 20‐25) a identificação de alguns processos de emulação do texto homérico no romance.
92
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
final, oferecendo inevitavelmente ao leitor/ouvinte o ansiado happy end. Como nota
Reardon (1991: 16), a sombra da Odisseia será ubíqua.
Também sobre Hero e Leandro. O jogo intertextual com Homero processa‐se em
Museu sobretudo por três meios: a forma épica (proposição 1‐15 e invocação 1), as
cenas típicas do banho (264‐5) e da tempestade e, interdependente desta, a
aproximação de Leandro a Ulisses. A relação entre estes dois heróis processa‐se em
vários momentos da narrativa: na alusão à súplica de Ulisses perante Nausícaa e
resposta dela, no primeiro encontro de Leandro e Hero (135‐57, 174‐93); na
reminiscência das palavras de Ulisses à partida da ilha de Calipso, quando Leandro
planeia perante Hero a primeira travessia (213‐4), bem como a forma como o jovem de
Abido (251‐2), à semelhança de Ulisses numa história cretense que conta a Eumeu, ata
as roupas à cabeça antes de nadar (Hopkinson 1994a: 138) 214 . Na alusão a Homero,
Museu privilegia os cantos V e VI: a tempestade que enfrenta, depois de Calipso o ter
autorizado a partir 215 , e o subsequente encontro com Nausícaa, quando acosta
precisamente à foz do rio, na ilha dos Feaces, aonde a filha de Alcínoo se dirigirá com
as servas para lavar a roupa.
Analisamos a cena da tempestade (309‐30), por apresentar o jogo intertextual
mais flagrante com o texto homérico. Remetendo para a tempestade que Ulisses
enfrenta sozinho, Museu adequa mais uma vez o intertexto às circunstâncias da sua
obra, de escala bastante mais reduzida. Por isso, para além de discursivamente muito
mais breve, a cena de Museu decorre durante algumas horas, numa noite de
tempestade, enquanto Ulisses enfrenta vários dias a adversidade da natureza. Se
ambos contam com a oposição de Poseídon e, por consequência, dos elementos
marinhos e eólicos, o marido de Penélope recebe o apoio de Atena e da deusa marinha
Leucótea, mas Leandro invoca debalde os deuses. O amado de Hero sucumbe à
tempestade, que se situa quase no remate da obra; aquela que atinge Ulisses,
marcando o reinício das suas aventuras marítimas, permite‐lhe sobreviver. Essa
214 Vd. desenvolvimento destas alusões em notas ad loc. à tradução. Sobre o discurso de Leandro e a sua
análise do ponto de vista retórico, vd. infra IV.2.2.3.
215 Os poemas homéricos apresentam três cenas de tempestade, todas na Odisseia (5.282‐465, 10.1‐55, 12.
260‐430), a primeira das quais envolve Ulisses sozinho, após ter saído de Ogígia, e as duas outras, Ulisses
e os seus companheiros. A relação intertextual a partir de Museu processa‐se com a primeira dessas cenas,
colocando em evidência a luta individual pela sobrevivência entre um homem e o mar. Note‐se a
comparação óbvia entre Ulisses sobre a jangada e Leandro só, ele próprio “batel do amor” (212).
93
diferença no plano da diegese implica, porém, como que recompensando Leandro, que
a reunião final com a amada seja bem mais célere para ele do que para Ulisses.
A cena da tempestade, em Museu, divide‐se numa apresentação geral da
revolta dos elementos da natureza (309‐18) e na inserção de Leandro nessa
tempestade, até morrer (319‐30). O poeta tematiza a mistura de água e ar, por acção de
todos os ventos, em linguagem homérica. Assim, todos os termos empregues para
nomear o vento e o mar 216 são tomados dos Poemas Homéricos e, se bem que aí nem
sempre ocorram no contexto da tempestade 217 , em Hero e Leandro reproduzem‐se
expressões 218 e a posição final de verso, preferida pelo arquétipo 219 .
O ar de família que resulta da descrição na sua generalidade decorre ainda de a
grande maioria do restante vocabulário empregue ser homérico 220 e do recurso
frequente ao epíteto, mesmo que não decalcado do modelo: βαρυπνείοντες ἀῆται 309,
epíteto criado por Nono; ἐρισμαράγοιο θαλάσσης 318, adjectivo desconhecido de
Homero; αἰνοπαθής Λέανδρος 319, epíteto uma vez de Penélope (Od.18.201);
ἀκηλήτοις... δίναις 319, adjectivo aplicado a Ulisses uma vez (Od.10.329) e
substantivo também conhecido de Homero, mas nunca imediatamente justapostos 221 .
A descrição da tempestade, tanto na parte geral como na particular, decalca
partes da cena homérica para maior identificação entre os destinos de Ulisses e de
Leandro: recordam‐se nos mesmos termos as ondas que se enrolam (314, cf. Od.5.296);
num cliché típico das cenas de tempestade, a mistura de todos os ventos (316‐7; cf.
5.295‐6) e a ingestão de água através do nariz e da boca (327‐8; cf.5.455‐6, 5.322‐3).
216 O vento: ἀῆται 309 e 329, ἀέλλας 310, πνοιῇσιν 310, αἰθέρι 315, ἀνέμων 316, Ζεφύρῳ 316, εὖρος 316,
νότος 317, βορέην 317, δίναις 319. O mar: θαλάσσης 311, 318 e 321, κῦμα 314 bis e 324, πόντος 315, ἠχή
315, ὕδατος 314, 327, ἅλμης 328.
217 Não empregues em cenas de tempestade, nos Poemas Homéricos: ἀῆται 309 e 329, ἀέλλας 310, αἰθέρι
315, δίναις 319, ἠχή 315.
218 ῥήγμινι θαλάσσης 311, catorze vezes também terminação de verso homérica; θαλασσαίων ἐπὶ νώτων
313 idêntico a ἐπ’ εὐρέα νωτὰ θαλάσσης, dez vezes terminação de verso homérica; κῦμα κυλίνδετο 314
semelhante a κῦμα κυλίνδων Od.5.296.
219 Em final de verso também nos Poemas Homéricos: ἀῆται quatro vezes, ἀέλλας 16 vezes; θαλάσσης
quase 70 vezes, ἅλμης uma vez.
220 ἀθρόον 311, σύγκυτο 314, κτύπος 318, ἀλίαστος 318, αἰνοπαθὴς 319, ἀκηλήτοις 319, λιτάνευε 320,
ἄρηγεν 323, ἀγρομένοιο 324, τυπτόμενος 325, ὁρμὴ 325, παλαμάων 326, χύσις 327, ἔρρεε 327, λαιμῷ
327, ποτὸν 328, ἀμαιμακέτου 328, πίεν 328, πικρὸς 329. Καὶ σθένος 326 consta também, na mesma
posição inicial de verso, em Il.18.420.
221 Outros exemplos de adjectivação simples: ἀκοντίζοντες ἀέλλας 310, μαρναμένων ἀνέμων 316,
μεγάλας... ἀπειλάς 317, ἀγρομένοιο δύσαντεϊ κύματος ὁλκῷ 324, ἀκοιμήτων παλαμάων 326,
αὐτόματος χύσις 327, ποτὸν ἀχρήιστον 328, πικρὸς ἀήτης 329.
94
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Leandro solicita ajuda a vários deuses (320‐2), tal como Ulisses apela ao deus do rio
(5.444‐50). A conclusão da cena, que refere a morte de Leandro, alude à identificação
explícita com Ulisses ao atribuir a Leandro epíteto que recorda de imediato o
dessoutro herói: πολυτλήτοιο 330, embora nunca atribuído ao filho de Laertes,
convoca πολύτλας, quarenta e quatro vezes epíteto dele, duas das quais no intertexto
desta cena de tempestade (5.354, 5.486).
Leandro e Ulisses partilham os efeitos da ira de Poseídon (321), a quem se
alude no mesmo lugar do verso em Od.5.339, 5.366, 5.446. A inoperância dos deuses,
que não protegem o náufrago de Abido face à omnipotência da natureza em fúria
(323), recorda verso idêntico na Ilíada (6.16) e a terminação formular de verso em
13.371 e 13.397 222 .
Mais do que proceder à citação explícita de Homero, Museu emprega
linguagem homérica que nem sempre é adoptada no contexto da tempestade e remete
para a situação de Ulisses e as suas atitudes, idênticas às de Leandro em contexto
similar. 223
1.2. APOLÓNIO DE RODES
No âmbito da influência da poesia helenística sobre Museu 224 desempenha
papel de relevo a epopeia que pretendeu emular a homérica, sem deixar de ser
sensível aos preceitos ditados por Calímaco e às mudanças de gosto da época.
Falamos, naturalmente, de As Argonáuticas.
A compreensão da obra épica de Apolónio de Rodes depende da noção de
epílio, isto é, de uma epopeia em miniatura, preceituada por Calímaco e adoptada em
geral pelos alexandrinos 225 . O epílio é na origem uma composição em hexâmetros
dactílicos, em grego, que se populariza no século III a.C. como alternativa à epopeia de
222 ἀλλά οἱ οὔ τις ἄρηγεν, Ἔρως δ’ οὐκ ἤρκεσε Μοίρας 323 cf. ἀλλά οἱ οὔ τις τῶν γε τότ’ ἤρκεσε
λυγρὸν ὄλεθρον Il.6.16 e οὐδ’ ἤρκεσε θώρηξ Il.13.371, 397. Os versos da Ilíada referem‐se todos à morte
em batalha e à falta de protecção prestada seja por companheiros, seja pela armadura (a couraça de
bronze).
223 Vd. supra II.6.1. para comentário global à linguagem homérica em Hero e Leandro.
224 Já notada por nós, ao nível da linguagem e dos decalques de partes de verso (supra II.6.2).
225 Que continuam a nutrir uma admiração profunda por Homero, poeta incomparável e inaproximável, e
a preferir acima de qualquer outro o género épico, apesar da pobre produção épica desde Homero e
Hesíodo e do auge da tragédia no século V a.C. (Trypanis 1981: 278‐9).
95
longas dimensões, de tradição homérica. São suas características definidoras: 1)
extensão limitada, 2) perfeito domínio da linguagem e do metro, 3) tema não tomado
dos mitos pan‐helénicos já muito tratados, mas de partes da vida do herói épico, 4)
coesão reduzida do texto, de carácter episódico, 5) pendor realista (ou inteiramente
narrativo, ou decorado com passagens descritivas, ou em forma dramática), 6)
inclusão de uma digressão ou segunda história, dentro da principal, em regra pouco
relacionada com ela no tema mas tão importante como a primeira. (Trypanis 1981: 279)
O modelo para este novo estilo épico foi apresentado por Calímaco em Hécale,
poema muito admirado por contemporâneos e vindouros como obra‐prima de
linguagem, técnica e composição. Descreve a vitória de Teseu sobre o touro de
Maratona, mas a ênfase do poema não é colocada no feito de Teseu e antes na pobreza
nobre de Hécale, a velha que lhe oferece hospitalidade numa cabana humilde, quando
o herói é apanhado pela tempestade a caminho de Maratona. Também Hécale, e não só
Aetia, apresenta origem etiológica: explicar o nome e o culto do demo ático Hécale,
instituído por Teseu no regresso de Maratona. Hécale, nada convencional na época, é o
manifesto das ideias de Calímaco sobre a poesia (Trypanis 1981: 272), mas exemplifica
na perfeição como o poeta trabalha material tradicional num modo de expressão
contemporânea e estabelece um novo realismo (Easterling 1985: 551, 564). Chegou‐nos
apenas em fragmentos.
Conhecemos epílios na íntegra de Teócrito (13, 22, 24 e, espúrio, 25) e de Mosco
(Europa). Os quatro epílios de Teócrito tratam temas mitológicos de forma resumida e
original, dois dos quais a partir de episódios de Argonáuticas (13 e 22) 226 . A partir deles
conclui‐se que a forma do epílio tende a subestimar a acção em favor da digressão e a
privilegiar a descrição em detrimento da caracterização e evolução das personagens 227 .
226 O facto de os Idílios 13 e 22 de Teócrito, Aetia de Calímaco e Argonáuticas terem sido escritos ao mesmo
tempo e de os dois últimos terem mesmo circulado como “obras em curso” aproxima‐os em termos de
remissão interna e acentua as afinidades entre eles. A variatio é característica fundamental de toda a
poesia alexandrina (Easterling 1985: 587).
227 Um epílio mais antigo lidaria com material erótico e histórias de amor extraordinárias, demorando‐se
em descrições psicológicas detalhadas, mas dele nada de substancial resta (Trypanis 1981: 280‐1). Na
literatura latina, por influência do epílio grego, foram compostos “O casamento de Peleu e Tétis” por
Catulo (64), Moretum e Ciris, e como epílios têm também sido considerados o episódio de Orfeu e Aristeu
nas Geórgicas de Virgílio (4.315‐558) e de Báucis e Filémon nas Metamorfoses de Ovídio (8.611‐724) –
Hopkinson 1994c: 200. Na literatura latina o género termina com um episódio dedicado a Andrómeda, no
final do quarto canto de Astronomica de Marco Manílio, poema composto entre 5 e 22 da nossa era
(Trypanis 1981: 280; Costa Ramalho 1988: 1303). Nos epílios latinos parece predominar a história de amor
96
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
A obra de Museu, composta cerca de quatro séculos mais tarde, tem sido
considerada um epílio, à semelhança dos poemas de Coluto e Trifiodoro, cuja
elaboração é situada na mesma época 228 . A classificação de Hero e Leandro como epílio
resulta sem dúvida mais da reduzida extensão da obra do que do seu conteúdo, na
medida em que ele se distingue, com radicalidade, das características desta forma. Ao
contrário de Hécale, a obra não subestima a acção em favor da digressão nem privilegia
a descrição. Pelo contrário: o texto de Museu não apresenta uma digressão sequer,
constando apenas de uma acção, e o poeta não se alonga nunca na descrição. Não há a
identificar na obra nem o tratamento pictórico, ecfrástico e pseudo‐naive de um tema
épico, nem recursos “novos, espirituosos e surpreendentes” (Hopkinson 1994c: 202).
No entanto, tendo em conta que Hero e Leandro coincide com a definição do
epílio como narrativa curta e perfeitamente acabada, em hexâmetros (Trypanis 1981:
279), de perfeito domínio da linguagem e do metro, em dicção homérica, e que a
variedade de epílios de que dispomos faz com que a forma resista a definição,
mantenhamos pois, enquanto não encontramos classificação mais adequada, a de
epílio para a obra de Museu.
O facto de a epopeia de Apolónio de Rodes se estender apenas por quatro
cantos, por oposição aos vinte e quatro de cada um dos Poemas Homéricos, decorre da
influência de Calímaco e do respeito pelas novas normas do género épico. Apesar da
semelhança verbal com Homero e de o âmbito e o tema serem épicos, pela ironia e
alusão intrincada e também pela etiologia de lugares e costumes, Argonáuticas é um
poema conscientemente “à maneira de Calímaco” (Hopkinson 1994c: 182, Easterling
1985: 589).
A novidade de Argonáuticas estende‐se ao tratamento da temática amorosa.
Pela primeira vez em grande plano na epopeia, Eros é o motivo principal do canto III
de Argonáuticas, o mais antigo exemplo que nos resta de uma análise da patologia do
amor em poesia narrativa (Easterling 1985: 591). 229 O amor como linha narrativa
fundamental, em interligação com o motivo da viagem, é sem dúvida o traço de união
infeliz, as descrições sensacionais, as cenas de terror e o estudo da psicologia mórbida. Pune‐se o mal e
recompensa‐se o bem, em tom moral todavia baixo. (Trypanis 1981: 283)
228 Vd. supra p.17 e n.47.
229 No canto IV, Medeia transforma‐se numa feiticeira apaixonada, selvagem, temível, fria, calculista e
abertamente ameaçadora, o que revela falta de unidade no tratamento da heroína (Trypanis 1981: 287).
97
mais forte entre a obra de Museu e a epopeia de Apolónio de Rodes. Museu consegue
todavia maior interdependência entre as duas linhas narrativas 230 , que se desenvolvem
em paralelo.
No aspecto estrutural há ainda a assinalar que Argonáuticas e Hero e Leandro
partilham com o modelo homérico de Nausícaa o motivo, originário do conto popular,
da mulher que se apaixona (de forma inesperada) por um estrangeiro. Note‐se porém
que, ao invés do modelo de Homero e Apolónio, esse sentimento é em Museu
plenamente correspondido 231 .
As duas obras têm em comum ainda uma linguagem, dicção e fraseologia
muito próximas de Homero, em que quase todos os versos contêm palavras e
expressões citadas ou adaptadas da Ilíada ou da Odisseia. Museu beneficia da bem
sucedida adaptação da linguagem homérica, por Apolónio, à descrição do sentimento
romântico e dos efeitos do amor (Trypanis 1981: 288). Apolónio é também, segundo
Kost (1971: 356) o criador do motivo da ruborização e do esconder do olhar como sinal
de vergonha, na poesia amorosa (1.790, 3.422) e apresenta, como Museu, o binómio
silêncio‐manipulação, entre Jasão e Medeia (3.967‐74) 232 . Os empréstimos de aspectos
da linguagem não deixam dúvidas quanto ao conhecimento da epopeia de Apolónio
por Museu. No entanto, as duas obras são também radicalmente diferentes. 233
230 Em Argonáuticas, os cantos I e II são dedicados quase em exclusivo ao tema da viagem, o canto III ao
amor e o IV ao amor e à viagem, uma vez que Medeia acompanha Jasão e os seus companheiros.
231 Vd. n. 147 à tradução. O crescente individualismo, que da sociedade contagia a literatura, tem uma
contrapartida clara no papel de menor relevo desempenhado pelos deuses na obra de Apolónio. Também
os protagonistas humanos são apresentados a uma luz menos idealista (Hopkinson 1994c: 182). Não há
dúvida de que Museu representa, neste aspecto, o ponto de evolução máxima de um processo que parte
dos Poemas Homéricos e em Argonáuticas se revela numa fase intermédia.
232 Vd. infra p.107 n.269 outros traços comuns a Museu e Apolónio.
233 O poder do amor e do desejo na poesia alexandrina não decorre apenas da obra de Apolónio de Rodes
nem da de Calímaco, mas também de Bíon (fl.c.100 a.C.) e em particular de Teócrito (Id. 2, 9, 10, 11), cujos
poemas e fragmentos tratam sem excepção o tema de Eros (Hopkinson 1994c: 215). A poesia de Teócrito,
tão cuidadosamente trabalhada como a de Calímaco, é dedicada ao domínio dos sentimentos. Teócrito é o
poeta do amor, mais do que qualquer outro autor helenístico, mas do amor como sofrimento e não como
experiência lírica. É um mestre em forjar ilusão de realidade, seja de uma cena, conjunto de emoções ou
do mundo real – essa ilusão depende do equilíbrio exacto entre realidade e fantasia, que nenhum outro
escritor depois dele conseguiu (Easterling 1985: 570, 585). Como sabemos, Museu conhece também a obra
deste poeta.
98
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
1.3. NONO DE PANÓPOLIS
De Homero a Nono de Panópolis, passando por Apolónio de Rodes, a epopeia
sofre uma mutação de 180 graus. Dionisíacas é uma obra fundada na alusão
intertextual com Homero e com a poesia helenística, nomeadamente a pastoral,
remetendo ainda, em menor grau, para o romance e as técnicas retóricas e
encomiásticas.
No entanto, “embora o poema seja influenciado por muitas formas de alusão
literária, digressão, erotismo, o grotesco e erudição científica e mitológica, norteia‐o
acima de tudo o desejo de reformular Homero, e a ambição, abertamente professada,
de o superar” (Hopkinson 1994b: 9). É o que acontece, do ponto de vista textual, pela
nomeação do poeta (sete vezes, incluindo os dois proémios), a comparação e
amplificação de várias cenas homéricas 234 e, enfim, a composição da obra em 48 cantos.
A superação de Homero por Nono passa também pela apresentação da sua própria
versão do ciclo mitológico, um novo e globalizante ciclo de Dioniso que inclui e
através do qual se relata toda a mitologia grega, desde a criação do mundo até ao fim
da idade dos heróis (Shorrock 2001: 27, 108), o que consiste num alargamento face ao
âmbito da Ilíada ou da Odisseia, que se mantêm contudo como intertextos
privilegiados 235 . Nono cria tanto uma história universal como específica do mundo 236 ,
uma epopeia cósmica e universal protagonizada por Dioniso (Shorrock 2001: 109‐10).
Para esse efeito, a alusão mitológica extensa e sustentada é indispensável 237 .
234 E.g. o tear de Afrodite (24.242‐326), o escudo de Dioniso (25.384‐567), catálogos (13.43‐568, 14.15‐227,
26.38‐365), jogos (10.339‐430, 19.59‐348, 37.103‐778) – Hopkinson 1994b: 14.
235 No relato da guerra da Índia (cantos 13‐40), Dionisíacas remete alusivamente não apenas para o último
ano da guerra de Tróia (da Ilíada), mas para a totalidade da guerra, desde o seu início ao desfecho
(Shorrock 2001: 26). Depois do canto 40, o intertexto homérico adoptado passa a ser a Odisseia.
236 O intuito de ir além dos modelos estende‐se ainda a Pisandro de Laranda, autor de uma história
universal. O conhecimento por Nono de Ovídio, nomeadamente de As Metamorfoses (e da literatura latina
em geral), é motivo de sempre renovado debate.
237 Longe do uso caótico e até fortuito de citações, referências e alusões de que tem sido acusado e cuja
discussão, de par com aparente falta de unidade lógico‐estrutural, inconsistências e lacunas (e.g. canto 39
incompleto), alimenta as fileiras de analistas e unitários. Também aqui, qual filho perante o pai poético,
Nono restabelece e actualiza o modelo homérico. De forma hábil, Shorrock (2001) defende uma leitura da
obra partindo da imagem do texto como uma máscara de Dioniso e da sua leitura como análoga à da
experiência de beber vinho. O texto resulta num sistema de alusão em que todas as personagens, míticas
ou históricas, são versões mascaradas de Dioniso e em que todas as formas e géneros poéticos nascem de
Dioniso. A experiência dionisíaca do leitor da epopeia é a de uma percepção alterada, que dá a ver por
meio da alusão provocada pelo vinho uma perspectiva simultânea sobre coisas normalmente distintas: os
dois níveis da superfície textual e do mundo de alusão constituem ambos a realidade. Para compreender a
obra e ver além da máscara do texto, dando‐lhe substância e profundidade, o leitor de Dionisíacas tem de
99
Esta apresentação sucinta da obra épica de Nono mostra que, do ponto de vista
da concepção, muito pouco haverá em comum entre a obra de Museu e a do mestre,
que em momento algum da sua obra se refere à história de Hero e Leandro. Ainda
assim, de acordo com a tese de D’Ippolito, a coerência da narrativa em Dionisíacas,
episódica na forma e altamente erótica no conteúdo, adviria de uma dicotomia
epopeia/epílio, alimentadora de uma sequência de episódios ao estilo do epílio. Essa
teoria, contudo, não oferece um enquadramento conceptual adequado para o
entendimento da epopeia noniana (Shorrock 2001: 16‐7).
Sabemos já que as dependências face a Nono são enormes, sim, no que diz
respeito à linguagem e ao metro adoptado 238 . Em tudo o resto Museu parece
demarcar‐ ‐se a título voluntário do mestre.
Da consideração ampla do género épico na literatura grega e da sua eventual
contaminatio sobre Hero e Leandro, concluímos da função matricial da Odisseia, muito
mais abrangente do que certas afinidades da obra com Argonáuticas. Na ausência de
classificação mais adequada e apesar da sua insuficiência, consideramos com o
conjunto da crítica que, do ponto de vista genológico, Museu compôs um epílio.
A constatação da interdependência dos temas do amor e da aventura como
motores da acção romanesca, com prioridade embora para o primeiro, “ao qual está
subordinado todo o organismo narrativo” (Fusillo 1990: 202) 239 , é consensual entre os
críticos e com ela se identifica em pleno a obra que estudamos. Pela análise semântica
de Hero e Leandro, na qual identificámos como isotopia dominante a do amor 240 , tal
como pelo reconhecimento na obra do tema nuclear da demanda aventureira, e da
se tornar um leitor dionisíaco. A obra de Nono é um poema dionisíaco sobre Dioniso. (Shorrock 2001: 211‐
2)
238 Vd. supra II.6.4.
239 Também Silva (1996: XIX): “Esta personagem [o herói do romance], acima de tudo apaixonada, vive em
exclusivo para a sua individualidade e sentimentos”.
240 Vd. supra esp. II.1 e II.2.
100
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
2.1. A SIMETRIA DA PAIXÃO E OUTROS MOTIVOS TÍPICOS
A partir da tese de Konstan (1994), segundo a qual o romance é o primeiro
género literário que apresenta o amor apaixonado como comum aos dois elementos do
par, passamos a identificar em Hero e Leandro os motivos compositivos, decisivos para
a classificação genológica, que a obra partilha com o romance. 242
O género romanesco, com efeito, resulta de uma “matriz de narrativas eróticas
baseada em relações assimétricas” (Konstan 1994: 185). Na poesia elegíaca, lírica e
pastoral, tal como na Comédia Nova, o amor apaixonado é um motivo masculino,
Vd. supra III.1.1.1.
241
Consideramos que o reconhecimento na obra de uma trama amorosa de teor aventureiro, que implica
242
separação dos amantes, de tal maneira claro e explicitado, dispensa mais demora.
101
enquanto no padrão heróico ou épico de relações eróticas são as mulheres sede de eros.
Em todos estes casos, o desenvolvimento da paixão é alheio ou mesmo exterior ao
casamento, cuja função sócio‐económica não admitia perturbações de ordem
sentimental 243 . Ora o romance apresenta uma tripla novidade, que se reflecte ao nível
temático e estrutural: 1) é o único género literário a representar um laço de natureza
erótica plenamente recíproco e simétrico entre homem e mulher, 2) abole a tensão
entre eros e gamos, fazendo‐os coincidir, e 3) elege o carácter mútuo do sentimento
amoroso como princípio estruturante fundamental da narrativa (Konstan 1994: 186). 244
O que se passa em Hero e Leandro? Como tivemos já oportunidade de constatar,
os dois protagonistas partilham uma paixão igualmente forte um pelo outro, ao longo
de toda a narrativa, que os conduz a partilharem também a morte. A história do amor
de ambos inclui a cerimónia do casamento, celebrado de acordo com as conveniências
no seu primeiro encontro de carácter sexual. Desde a invocação à Musa até ao
desenlace mortal, o Leitmotiv da obra é a apresentação do amor entre os apaixonados,
nas suas facetas individualizantes (a lâmpada, a travessia marítima, a torre) e também
naquelas que os aproximam dos outros pares de amantes (a idêntica intensidade da
paixão, o casamento, a aventura, a separação). Portanto, se a simetria de sentimentos
amorosos, que conduz ao casamento, é o princípio estruturante da narrativa de Museu
e é apanágio exclusivo do género romanesco, Hero e Leandro parece integrar‐se sem
dúvida no conjunto dos romances gregos.
A elevação ao mesmo nível do homem e da mulher tem ainda outra
consequência de índole social, que se reflecte em parte no conteúdo do romance.
Muitas das heroínas romanescas, à semelhança por exemplo da jovem da Comédia
Nova, dependem da aprovação paterna para a celebração de núpcias. Essa tradição,
encenada por Cáriton (1.1.8‐14) e cujo extremo é representado por Caricleia, revela
uma tendência mais conservadora do romance do que a prática familiar e social coeva
à época da sua composição (Egger 1988: 57‐8): do ponto de vista jurídico e familiar, a
243 Também é patente no romance, embora em menor grau, essa tradição segundo a qual uma relação
entre homem e mulher (de filia, eros ou casamento) implica por força assimetria, já que a inferioridade da
mulher face ao homem tem implicações ao nível do afecto. Só as relações entre o mesmo sexo implicariam
simetria. A este propósito vd. Konstan 1997: 117‐133.
244 Konstan 1994: 173, 186. A simetria do homem e da mulher na intensidade da paixão amorosa distingue
o romance grego do latino.
102
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
mulher não depende da aprovação de outrem para se casar. Em rigor, diríamos que o
romance apresenta uma solução intermédia: Caricleia procura a aprovação do pai para
o marido que ela escolheu, tal como o pai de Calírroe é obrigado pela assembleia do
povo a preterir um pretendente já seleccionado em favor de Quéreas, de acordo com
os desejos dos apaixonados (1.1.11‐13) 245 . Por seu lado, posterior a qualquer dos outros
romancistas, Museu não apresenta como eles uma solução de compromisso mas o caso
mais extremo de independência feminina: Hero decide, sem intervenção familiar mas
com a colaboração do amado, as circunstâncias de realização da sua união amorosa, à
qual a condição secreta dos amores impõe uma cerimónia nupcial simbólica.
Consideremos em pormenor outros factores comuns ao romance. Na afirmação
de Reardon (1991: 106), no texto romanesco o amor é constantemente justificado pela
beleza. Museu, que como sabemos não destitui Hero de qualidades intelectuais nem
de virtudes, não dispensa a sua heroína dos procedimentos típicos do romance, no que
diz respeito à beleza da protagonista: a comparação hiperbólica com as deusas, em
particular Afrodite 246 , de particular pertinência, variedade e iteração no caso de Hero;
a descrição comparativa associada às flores 247 ; os efeitos provocados pela beleza dela
em homens e mulheres; a distinção superlativa como “a mais bela”.
Mesmo que em Hero e Leandro não se conceda particular destaque ao aspecto
físico de Leandro, não obstante assinalado como o mais belo rapaz de Abido (22), e o
texto se demore na descrição de Hero, a paridade entre os protagonistas é reforçada
por meio de recursos vários, nomeadamente o paralelismo, considerado por Fusillo
(1990: 203) a figura narrativa dominante do romance 248 . Para além da intensidade da
paixão e da elevada beleza, a ansiedade com que ambos desejam o encontro nocturno
é mais um dos indícios da paridade entre os elementos do par amoroso e constitui
traço de identificação da obra com o género romanesco.
245 A doença de amor de Ântia e Habrócomes condu‐los, por meio de um oráculo e com a sanção da
cidade, um ao outro (1.5.5‐1.7.4), Cloé casa com Dáfnis, a quem ama, depois de a sua verdadeira filiação
ser devidamente reconhecida na alta sociedade de Mitilene (4.35‐7).
246 Vd. supra II.2.1.2. Sobretudo em Cáriton, e.g. 1.1.2, mas também X.Éf.1.1.3 e Hel.1.2.3.
247 E.g. Aq.T.1.19, 1.4.3.
248 Vd. supra II.2.4.2.
103
Do seu estatuto social, em regra elevado, sabemos que o texto o esclarece sem
margem para dúvidas a respeito de Hero, mas é omisso no caso de Leandro 249 .
Encontram‐se no festival de Afrodite, exactamente como Quéreas e Calírroe (1.1.5) 250 .
O contexto religioso, habitual no romance, estende‐se às funções de sacerdotisa
desempenhadas por Hero (Afrodite) e Caricleia (Ártemis) 251 .
Responsável pelo incendiar da paixão é sem dúvida o deus do amor, a quem o
romance atribui com unanimidade carácter todo‐poderoso, que não dispensa
“enganos e ciladas” 252 . Tal representação de Eros não pode deixar de ser, como vimos,
comum ao texto de Museu 253 , como o é o τόπος fundamental do amor à primeira
vista 254 , que envolve necessariamente a metáfora da ferida 255 ou do fogo do amor, ou
ambas juntas 256 . Bem assim em Hero e Leandro. A ferida do amor, provocada pela
beleza, que passa pelos olhos direita ao coração é um dos recursos decalcados de
Aquiles Tácio por Museu para descrever o coup de foudre.
92 Κάλλος γὰρ περίπυστον ἀμωμήτοιο γυναικὸς
ὀξύτερον μερόπεσσι πέλει πτερόεντος ὀιστοῦ·
ὀφθαλμὸς δ’ ὁδός ἐστιν· ἀπ’ ὀφθαλμοῖο βολάων
κάλλος ὀλισθαίνει καὶ ἐπὶ φρένας ἀνδρὸς ὀδεύει.
92 Pois a beleza célebre da mulher irrepreensível
é para os homens mais acutilante que a seta alada.
O olhar é o caminho: depois de ferir com o olhar,
a beleza desliza e caminha para o coração do homem.
Κάλλος γὰρ ὀξύτερον τιτρώσκει βέλους καὶ διὰ τῶν ὀφθαλμῶν εἰς τὴν
φυχὴν καταρρεῖ· ὀφθαλμὸς γὰρ ὁδὸς ἐρωτικῷ τραύματι. (Aq.T.1.4.4).
É que a beleza fere, mais pontiaguda do que setas, e escorre pelos olhos para o coração! É o olhar que
dá passagem à ferida amorosa. 257
249 E.g. Cár.1.1.1‐4, tal como sabemos da ascendência socialmente elevada de Dáfnis e Cloé, que vem a
descobrir‐se. Sobre o estatuto social de Hero, vd. supra II.3.
250 E à semelhança de Ântia e Habrócomes, que se conhecem no festival de Ártemis (2.2).
251 Do mesmo modo que Ântia presta culto regular a Ártemis (5.1).
252 Respectivamente Cár.6.3.2, 4.2.3, Aq.T.1.2.1 e Cár.4.4.5.
253 200 e 245 respectivamente.
254 E.g. Cár.1.1.6, Xen.1.3.1‐2, Aq.T.1.4.4. Para a representação de Eros em Museu vd. supra II.2.1.1. e II.2.2.
para o amor à primeira vista, em 90‐97.
255 Respectivamente Cár.2.4.1, 4.1.9; Aq.T.4.7.3‐4 e Cár.2.4.5.
256 Aq.T.1.6.4, M. 90‐8 (vd. supra II.2.2.). As metáforas do amor como ferida (Cal.Epigr.43 Pf=AP 12.134) e
como fogo (AP 12.48) são adoptadas pelo romance a partir da poesia helenística e da Antologia Grega,
que as tomaram de Eurípides (respectivamente Hip. 392s e 525s) – Maehler 1990: 4.
257 Tradução minha, a não ser que de outro modo indicado.
104
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
A contaminatio do texto de Leucipe e Clitofonte passa mais uma vez por idêntica
formulação em situação correspondente nas duas obras: Clitofonte apaixona‐se,
impressionado pela beleza de Leucipe, do mesmo modo que Leandro, ao ver Hero no
templo. Os dois textos procedem à comparação entre os efeitos da beleza e da seta,
mais agudos aqueles do que estes. A novidade de Museu consiste em acrescentar a um
tópico de origem platónica e profundamente enraizado na cultura grega (Lourenço
2004: 220), o da beleza física como causa de eros, o carácter espiritual. Clitofonte
apaixonou‐se por causa da beleza física de Leucipe, Leandro, devido às qualidades
físicas e morais de Hero 258 .
Hero e Leandro partilham ainda a fidelidade absoluta, qualidade que recebe no
romance tratamento diversificado. Anderson (1984: 108) sintetiza‐o bem: “o padrão da
castidade depende de cada autor: para Xenofonte e Heliodoro a castidade da heroína é
virtuosa, assumindo mesmo forma agressiva; a da heroína de Aquiles, negociável e a
de Longo, acidental”. Sendo a fidelidade (e a castidade) traços tornados constantes
mais pela reiteração do texto do que pela prática dos heróis, pelo menos em Calírroe e
na generalidade das figuras masculinas 259 , a virgindade é sempre apanágio inicial da
jovem e, por vezes, do rapaz. Hero abdica da virgindade a que a condição de
sacerdotisa a obriga em nome dos seus sentimentos e mantém‐se, como Leandro, fiel
ao seu primeiro amor. O texto do romance não costuma neste aspecto exigir
paralelismo aos protagonistas, mas Museu não abdica nem da fidelidade absoluta nem
da paridade de ambos na consumação do amor, primeira vez que é para ambos
experiência iniciática 260 .
A figura do rival, de tanta fortuna na trama romanesca típica, encontra também
a sua representação em Hero e Leandro, embora funcionalidade algo diferente. Melite
em Aquiles Tácio ou Cino e Manto em Xenofonte são, tal como os jovens admiradores
de Hero, antes de mais um recurso literário que serve a intensificação do valor da
personagem desejada, mesmo que ela o lamente. Para que a essa função, sempre
258 Vd. supra II.2.1.2.
259 Sobre a prática da castidade no romance, vd. Egger 1988: 52‐55. Para uma leitura da caracterização de
Calírroe como mais plausível e verosímil, por não respeitar o modelo de castidade absoluta das heroínas
romanescas, vd. Wiersma 1990: 117‐9.
260 Vd. supra II.2.2 para fundamentação no texto da inexperiência de ambos no amor e III.2.1 sobre o
processo iniciático.
105
preenchida, se siga a de rival efectivo e oponente à união do par protagonista, é
necessário ou certo interesse e cedência por parte da pessoa cobiçada, ou posição de
subordinação e impotência absoluta face ao rival. A Hero todos os admiradores,
excepto Leandro, passam despercebidos. No quadro da organização narrativa, o
destaque concedido aos seus pretendentes, visível em particular no discurso
representativo de um deles (74‐85), desempenha ainda outra função: a de, reunindo os
tópicos da beleza extraordinária da jovem e da paixão que por causa dela os homens
sofrem (85), sintetizar as linhas semânticas da obra para, qual omen 261 , anunciar a
morte por amor de Leandro. A expressão da disposição a morrer, pelo admirador,
após ter partilhado o leito de Hero (79), não é mais do que um prenúncio do destino
de Leandro, que encarna os desejos de todos os jovens e é o único a poder concretizá‐
‐los. O rival transforma‐se pois, pela habilidade do artista que escreve, numa imagem
projectada do herói.
Não são apenas as condições físicas e morais que destacam os protagonistas
face aos seus pares, nem ainda a fidelidade que guardam um ao outro, mas também o
isolamento social e afectivo em que ambos se encontram. De facto, o procedimento
típico do romance é tematizar o isolamento da heroína, face à integração plena do
herói 262 .
Museu parece respeitar este princípio. De Leandro não é feita qualquer menção
a familiares, amigos nem actividades empreendidas; de Hero, pelo contrário, o
isolamento é reiterado tanto pelo poeta como pela boca da própria heroína: uma
solidão completa, de quem se afasta por sensatez das pessoas da sua idade (32‐7), do
que vem a queixar‐se (191‐3), longe dos pais que lhe impõem o sacerdócio (190), sua
única família, entregue a uma escrava, só uma vez referida (188). Kost nota,
significativamente, que é o vento a substituir junto de Hero o canto humano (1971:
388). A ausência de indicadores acerca de Leandro e a univocidade daqueles que
respeitam a Hero reforçam o isolamento de ambos do ponto de vista social e a
Sobre o presságio vd. infra IV.2.2.2.
261
A solidão da mulher é representada face ao sexo feminino, já que sistematicamente a mãe (e qualquer
262
relação familiar) é tratada de modo sumário e tópico ou de modo negativo e prejudicial para a heroína; as
confidentes, quando existem, são escravas e constituem o único elemento de solidariedade ou amizade
entre mulheres. Assim, contactos e sentimentos das figuras femininas dizem respeito quase sempre aos
homens dos romances: positivos, em relação aos amados ou maridos, negativos, aos perseguidores da sua
virtude. (Egger 1998: 47‐8)
106
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
dependência exclusiva um do outro, no aspecto afectivo. A economia de meios do
texto resulta em que o mundo de Hero e Leandro seja por inteiro ocupado pelo amor,
sua única motivação e interesse, em que intervêm apenas os elementos da natureza.
Leandro atravessa o mar e luta contra o vento (241‐3), Hero protege a lâmpada das
rajadas (257‐8) e espera Leandro na torre que toca o céu (187), onde vem a decorrer o
mais importante das suas vidas. Nesta linha narrativa e estilística depurada acentua‐se
o carácter individualizado da acção romanesca, típico da literatura pós‐clássica, em
contraste com as preocupações colectivas suscitadas pela polis e patentes na produção
literária clássica 263 .
Analisados que estão os vários indicadores da comunhão de sentimentos entre
Hero e Leandro, bem como os mecanismos pelos quais a letra do texto os reforça,
passemos a relacionar os recursos de desenvolvimento da paixão no poema com os do
romance. Aos sintomas do amor e do desejo preceituados por Safo (fr.31 LP) muito
pouco se acrescenta.
O exemplo mais flagrante é o de Aquiles Tácio, apresentando a reacção de
Clitofonte ao ver Leucipe, com paralelos evidentes na de Leandro, tomado pelo desejo
perante Hero, que se desloca no templo à vista de todos.
96 Εἷλε δέ μιν τότε θάμβος, ἀναιδείη, τρόμος, αἰδώς·
ἔτρεμε μὲν κραδίην, αἰδὼς δέ μιν εἶχεν ἁλῶναι·
θάμβεε δ’ εἶδος ἄριστον, ἔρως δ’ ἀπενόσφισεν αἰδῶ·
96 Então tomou‐o o espanto, o atrevimento, o medo, o respeito:
tremia‐lhe o coração, tinha vergonha de ter sido apanhado.
Enquanto admirava a beleza perfeita, o amor roubava‐lhe a vergonha.
Πάντα δέ με εἶχεν ὁμοῦ, ἔπαινος, ἔκπληξις, τρόμος, αἰδώς, ἀναίδεια.
Ἐπῄνουν τὸ μέγεθος, ἐκπεπλήγμην τὸ κάλλος, ἔτρεμον τὴν καρδίαν,
ἔβλεπον ἀναιδῶς, ἠδούμην ἁλῶναις. (Aq.T. 1.4.5)
Todos os sentimentos me tomaram de uma vez: admiração, pasmo, medo, vergonha, desvergonha.
Admirava a estatura dela, pasmava com a beleza, tremia‐me o coração, olhava‐a com ousadia,
envergonhava‐me de ter sido apanhado.
“A narrativa [romanesca] expressa um mito social e pessoal do indivíduo isolado e inseguro num
263
mundo grande demais para ele, que encontra a sua segurança e identidade no amor.” Reardon (1991: 28‐
9)
107
O recurso óbvio a Aquiles Tácio por Museu passa por aplicar a Leandro, em
circunstância idêntica à do outro protagonista, a reacção dele, na repetição e
contiguidade lexical, que assinalámos, e no decalque semântico: M. θάμβεε δ’ εἶδος
ἄριστον, Aq.T. ἐκπεπλήγμην τὸ κάλλος, (...) ἔβλεπον ἀναιδῶς. Se o autor imitado
recorre a mais pormenores nesta descrição dos efeitos físicos do desejo, inaugurada
por Safo (fr.31 LP), Museu supera‐o em concentração e intensidade 264 .
Comparemos um exemplo magnífico do artístico poder de síntese do poeta
com Heliodoro, o autor que mais aprecia a demora na expressão.
173 αἰδοῦς ὑγρὸν ἔρευθος ἀποστάζουσα προσώπου·
Pingava[‐lhe] da face um rubor húmido de vergonha.
Ἱδρῶτι πολλῷ διερρεῖτο τούτων εἰρημένων, ὦ Κνήμων, καὶ δήλη παντοίως
ἦν χαίρουσα μὲν ἐφ’ οἷς ἤκουεν, ἀγωνιῶσα δὲ ἐφ’ οἷς ἤλπιζεν, ἐρυθριῶσα
δὲ ἐφ’ οἷς ἑάλωκεν· (Hel.4.11.1)
Caricleia, ó Cnémon, estava coberta de suor enquanto eu dizia tudo aquilo e bem via que ela era
agitada por vários sentimentos: alegre com o que escutava, ansiosa pelo que a esperava e corando por
ter sido apanhada.
Aqui, os tópicos da ruborização e do suor são comuns às duas heroínas e a
restante formulação, seja por Museu, seja por Heliodoro, conviria à outra 265 .
Em Hero e Leandro não faltam também exemplos da “poética do pasmo”,
constante em todo o romance grego (Fusillo 1990: 206). Pela violência dos sentimentos,
noutras ocasiões pela angústia, os que se apaixonam sofrem da incapacidade de falar,
de exprimir por palavras o que sentem 266 . Assim acontece com Leandro (115) e com
264 Em ambos, é basilar, e frequente no recurso ao τόπος, a antítese associada à enumeração assindética,
que noutros casos atinge o paradoxo ou a forma quiástica. Também a iniciativa de Leandro ao chegar à
fala com Hero (esp. 114 e 133) parece inspirar‐se em Aquiles Tácio 2.4.4, passo em que Clitofonte recebe
conselhos sobre como seduzir alguém (Hopkinson 1994a: 156). Outras situações em que Museu
eventualmente alude a Aquiles Tácio nas notas ad loc. aos versos 59, 115, 133, 151 e 170. Vd. II.2.2. para
análise mais desenvolvida e contextualizada.
265 Enquanto a reacção de Hero precede a fala em que é clara a sua anuência aos encontros com Leandro,
as atitudes de Caricleia são apresentadas pela boca de alguém que as relata a Cnémon, depois de a elas ter
assistido.
266 Cár.2.5.4. Para a explicitação de sentimentos de massas e individuais, incluindo recursos característicos
de cada autor romanesco, vd. Fusillo 1990: 201‐221. Em Maehler 1990: 1‐12, os sintomas do amor tal como
o romance os apresenta, a partir de clichés criados pela poesia helenística e reproduzidos na Antologia
Grega.
108
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Hero (160), traço que na mulher se associa em regra ao pudor e à ruborização e que
consta no código de preceitos amorosos como sinal de aquiescência feminina (165). 267
Ainda uma breve referência ao narrador. Apresentando o romance diferentes
graus de elaboração ao nível da instância narrativa 268 , como sabemos o texto de Museu
opta pela sobriedade máxima, equivalente à de Xenofonte de Éfeso. A focalização zero
é o recurso mais frequente (Fusillo 1988: 26). 269
Com o passar dos séculos, os tópicos dos sintomas e efeitos do amor mantêm‐
‐se inalteráveis, mas os romancistas desenvolvem gradualmente maior sensibilidade e
demora na sua apresentação. Aquiles Tácio é o primeiro a tentar justificar os sintomas
que aponta, Heliodoro analisa sentimentos com absoluta mestria (Maehler 1990: 8‐10).
A variedade de peripécias a que os heróis romanescos estão sujeitos, no decurso de
uma trama narrativa alongada e até labiríntica, reclama dos protagonistas maior
diversidade de reacções e sentimentos do que no caso de uma acção única: Hero e
Leandro, identificando o que sentem, dão‐lhe cumprimento numa acção iterativa, a da
travessia do Helesponto por Leandro e noite subsequente. Os protagonistas da obra de
Museu, apresentando embora certa divisão interior, não se debatem em sentimentos
contraditórios nem são conduzidos às lágrimas – após o momento em que a seta de
Eros produz o seu efeito, não há quaisquer dúvidas sobre a intenção de cada um de
concretizar o amor, nas circunstâncias que a realidade lhes impõe. Do mesmo modo,
recursos como os da morte aparente (Scheintod), sonhos premonitórios ou tentativas
goradas de suicídio não são tão pouco necessários à narrativa, mais breve, de Museu.
Há ainda a assinalar, como factor distintivo de Hero e Leandro face ao género
romanesco, que a relação amorosa dos protagonistas decorre na ignorância da família
e da sociedade a que pertencem até ao desenlace: por este processo elimina o autor
uma série de factores alheios ao casal e perturbadores da sua ventura que, nos outros
romances, condicionam e sempre adiam a felicidade.
267 Sobre as outras funções do silêncio na obra que analisamos vd. supra II.2.3.3.
268 Para análise demorada da representação do narrador no romance grego, incluindo fragmentos e textos
de carácter romanesco, leia‐se Brandão (1999).
269 Em Xenofonte, Cáriton e Museu há narrador omnisciente e extradiegético (embora o de Cáriton seja na
primeira pessoa). A focalização zero dos três contrasta com a focalização interna das personagens
frequente em As Etiópicas. Vd. infra em IV.2.2.2. o recurso ao omen como manifestação da omnisciência
narrativa.
109
Os apaixonados não enfrentam contrariedades impostas por pais, por rivais,
pelos deuses, que não sejam capazes de resolver, nem separação mais demorada que a
do tempo em que o sol brilha. Havendo portanto em Hero e Leandro uma trama
narrativa que se divide entre primeiro encontro, em que o amor desperta, e a
consumação dos sentimentos que unem os protagonistas, Museu opta por elaborar a
enunciação da sintomatologia amorosa e por compensar a menor variedade de
situações, e de sentimentos por elas provocados, com a delicadeza da sua
apresentação.
O texto demora‐se bastante mais na enunciação alongada dos preceitos do
código amoroso do que nos efeitos da paixão, quando o amor já se concretiza, ao ritmo
das noites na torre. Aquilo em que Museu insiste, reiterando, na fase de sedução,
passa a ser enunciado com brevidade após o casamento simbólico. A sintomatologia
amorosa e a verbalização da luta interior entre sentimentos diversos é sem dúvida
frequente no romance e não alheia a Hero e Leandro, onde de modo consciente se joga
com esses antecedentes literários. 270
2.2. ESTRUTURAS ROMANESCAS
2.2.1. PERSONAGENS
No romance o par amoroso partilha o protagonismo, que o título sem excepção
patenteia ao nomear os dois amantes 271 . A obra que analisamos, cujo título é
naturalmente Hero e Leandro, apresenta também como personagens de maior destaque
270 A expressão dos efeitos físicos do amor e das atitudes dos apaixonados revela com certeza
conhecimento do c. III de As Argonáuticas, onde é longa e repetidamente apresentada a propósito de
Medeia e Jasão: admirar a beleza do par (443‐58), deliciar‐se com a beleza ou palavras dele (1140‐1),
ruborizar‐se por alegria e/ou desejo (724‐5, 962‐3), olhar para o chão (1022, 1063), manter o silêncio (968,
1011), oscilar entre a vergonha e o desejo (653), ceder à αἰδώς (361‐2, 649), sentir no coração uma
multiplicidade de efeitos (tremer de desejo 638, aquecer 1020, derreter‐se 290, 954, 1131). Estas imagens
surgem com frequência sobrepostas, com efeitos magníficos: e.g. γλυκερῇ δὲ κατείβετο θυμὸν ὰνὶῃ (a
alma derreteu‐se‐lhe no doce cuidado 290), σῖγα ποδῶν πάρος ὄσσε βαλοῦσα (lançou os olhos aos pés,
em silêncio 1063), ἡ δ’ ἐγκλιδὸν ὄσσε βαλοῦσα/ νεκτάρεον μείδησε, χύθη δέ οἱ ἔνδοθι θυμός/ αἴνῳ
ἀειρομένης· καὶ ἀνέδρακεν ὄμμασιν ἄντην,/ οὐδ’ ἔχεν ὅττι πάροιθεν ἔπος προτιμυθήσαιτο (ela
baixou os olhos e sorriu de um modo divino. No seu íntimo enternecia‐se‐lhe a alma, exaltada pelo elogio
recebido. Então olhou‐o de frente. Não sabia que palavras havia de lhe dizer primeiro. 1008‐11).
271 Nos casos de Cáriton e Heliodoro, defende‐se não obstante, por vezes, um título em que conste apenas
o nome da heroína. Vd. Silva 1996: XX e Reardon 1989: 15. Os títulos podem incluir ainda, por norma em
coexistência com o nome dos protagonistas, o cenário geográfico da acção.
110
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
os dois apaixonados. Ora no estudo do romance, como por exemplo no de Cáriton, os
críticos reconhecem sinais do protagonismo da figura feminina. Aliando timidez e
determinação nos seus comportamentos, Calírroe (ou Caricleia, ou Cloé) é em muitos
momentos a personalidade mais forte do par (Wiersma 1990: 119).
Como considerar esta questão no âmbito do texto que analisamos? O esquema
conceptual de Frye, profundamente masculino, conduziu‐nos à identificação de
Leandro como figura central, aquela que encarna o princípio activo dentro do par na
fase de sedução e travessia marítima. No entanto, identificámos já a inversão dos
princípios activo e passivo após a chegada de Leandro à torre, altura em que Hero
assume, até ao desenlace, a atitude dominante 272 . Essa liderança justifica‐se pelo
cansaço extremo de Leandro à chegada, mas estende‐se à noite derradeira, em que
Hero não resiste a acender a lâmpada e portanto a incitá‐lo à travessia (308). Desta vez
é ele que lhe obedece.
Recordemos ainda que a incarnação do princípio activo por Leandro, na fase
de sedução da jovem, foi por nós integrada no processo de cumprimento do código
amoroso, no âmbito do qual deve também ser considerada a reserva de Hero. Ambos
desempenharam o papel que naquele contexto cabia a cada um – aqui a dicotomia
activo/passivo não representa tanto o dinamismo ou a timidez respectiva dos
apaixonados, mas antes o respeito integral pelo código que os rege.
Não nos surpreenderá pois chamar aqui à colação o facto já várias vezes
reiterado de o texto privilegiar a apresentação de dados individualizantes de Hero,
mas não de Leandro. Dela possuímos informações pessoais e familiares, descrição
física e de carácter, que a letra do texto desenvolve e reitera de várias formas. De
Leandro nada sabemos, para além da caracterização tópica de “bem‐parecido” 273 .
Museu está pois em consonância com o que Reardon (1991: 174) considera o
procedimento típico do romance: maior desenvolvimento da protagonista face ao
homem, simples consorte.
Reconhecer a preferência de Museu pela figura de Hero não significa
necessariamente que haja no tratamento da personagem, ou em Leandro, evolução
Sobre Leandro como elemento dominante vd. II.2.3; para a inversão de papéis a favor de Hero, II.2.4.1.
272
A prioridade de Hero face a Leandro parece ser indiciada pelo texto também na precedência do
273
elemento feminino, em relação ao masculino (ἡ μὲν... ὁ δέ 21, 224), em passos todavia que acentuam a
paridade e a simetria dos dois apaixonados.
111
psicológica. Tal como noutros romances e de modo particular em Dáfnis e Cloé, a obra
de Museu apresenta de modo explícito a relação amorosa de ambos como uma
experiência de iniciação ao amor, ou seja, um processo que conduz da imaturidade à
idade adulta. Essa é uma consequência inevitável do tema que Reardon em tempos
(1971: 400) considerou o fundamental no romance: o da virgindade 274 .
À falta de outros indicadores, o teor iniciático de Hero e Leandro não basta para
fazer dela, e menos ainda dele, personagens modeladas. A determinação de Leandro
em seduzi‐la, a sua habilidade retórica e os exempla que invocou, tal como a
disponibilidade em enfrentar a ritmo diário o perigo e o cansaço extremo são prévias
ao acto de iniciação sexual mas já características da maturidade. Do mesmo modo, da
parte de Hero, a sensatez responsável, o conhecimento do código amoroso e de
sedução, as atitudes que a regra impõe reservadas, mas que com habilidade concorrem
para concretizar os seus desejos, e o domínio não menos consciente da palavra são
apanágio da jovem, desde o início. Exposto com brevidade, o desenlace não altera este
quadro: Hero e Leandro morrem por amor, pese embora a imprudência à qual a
amada incitou o jovem, com a naturalidade daqueles para quem o amor é tudo. Tal
como Futre Pinheiro (1987: 518) já reconheceu a propósito de As Etiópicas, não há de
facto evolução na psicologia das personagens, que se mantêm lineares, sem dramas
psicológicos nem mutação interior.
Atingindo quase o paradoxo compositivo, portanto, Hero e Leandro tematiza a
iniciação amorosa e sexual dos protagonistas, entre os quais se destaca a figura
feminina, mas não apresenta uma evolução psicológica deles, que eram dotados de
maturidade desde o início. A reduzida modelização das personagens, marcada pelo
carácter iniciático da trama narrativa, é um factor que aproxima esta obra das origens
populares do mito que ela ilustra e da formulação primeva da acção narrada como
conto popular.
Essa insistência na manutenção da virgindade tem segundo Frye (1976: 73) uma justificação social:
274
“virginity is to a woman what honor is to a man, the symbol of the fact that she is not a slave”.
112
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
2.2.2. TEMPO E ESPAÇO
No tratamento do aspecto temporal, Museu alinha de preferência com os
autores romanescos, dos quais na maior parte dos casos Heliodoro se distingue. Daí a
sucessão linear de acontecimentos narrados em Hero e Leandro, numa cronologia que
só estimativa muito genérica permite avaliar 275 . O conteúdo da acção mítica é do
conhecimento geral (pelo menos desde o tempo de Virgílio, no caso de Hero e
Leandro); do mesmo modo, o presente impõe‐se de forma absoluta e subordinante. 276
Com Homero e Heliodoro o texto de Museu acolhe a referência negativa a
χρόνος, desperdiçado ou que interrompe o curso dos acontecimentos 277 e a ausência
de indícios explícitos de tempo histórico ou marcas evidentes de época, elemento
definidor, na expressão de Fränkel, de uma “arte pura” (rein Kunst) (Futre Pinheiro
1987: 517‐20).
De Heliodoro 278 , mas não de Homero, o texto em análise adopta o hábito de
antecipar no discurso o que virá a acontecer na diegese (Futre Pinheiro 1987: 522;
Anderson 1984: 129). Esse procedimento repousa em Hero e Leandro sobretudo no
emprego do adjectivo e apela sempre à morte dos protagonistas, que o desenlace
apresentará: λύχνοιο πολυκλαύτοιο 236, ἄπιστον... ἅλα 299, νηλειὴς καὶ ἄπιστος
[λύχνος]... δύσμορος Ἡρώ 304, λύχνον ἄπιστον 329. A concentração progressiva do
omen em forma de adjectivo, à aproximação do desenlace, tem contrapartida no
anúncio reiterado dele, no proémio (15, 27). Referindo‐se também ao mar e a Hero, diz
respeito principalmente à lâmpada, “não fiável”, “impiedosa” e “a muito deplorar”.
Idêntica função pressagiante é desempenhada pelo discurso do admirador de Hero 279 .
Quanto à categoria do espaço, se a dinâmica da aventura costuma arrastar os
heróis para lugares diversos e longínquos, podemos aproximar o texto de Museu ao de
Longo na sua limitação espacial. Tal como Dáfnis e Cloé não saem da ilha de Lesbos,
275 Mas que não apresenta decerto a concentração bem delimitada dos 45 dias de As Etiópicas.
276 Ao contrário da contiguidade funcional entre passado e presente, iluminando este o anterior, de
Heliodoro (Futre Pinheiro 1987: 511‐2).
277 Recordemos a referência ao reduzido tempo (χρόνον 291) em que os protagonistas viveram a sua
felicidade, por força das condições climáticas impostas pela mudança das estações.
278 E de Aquiles Tácio e de Cáriton (2.2.8 e 8.1.5).
279 Vd. supra IV.2.1.
113
onde decorre a totalidade da acção narrada, o amor de Hero e Leandro acontece no
espaço de Sesto, com as variantes que tivemos já oportunidade de mencionar 280 .
No recurso às categorias de tempo e de espaço, portanto, o texto de Museu
respeita em absoluto precedentes inaugurados, e em alguns casos empregues com
frequência, pelos outros romances gregos.
2.2.3. PROCEDIMENTOS RETÓRICOS
“Foram os perfeitamente educados pela retórica que tornaram o romance algo
mais do que apenas uma história de amor” (Anderson 1993: 170): nesse conjunto se
insere sem dúvida Museu, a quem a brevidade do texto não impede de patentear
conhecimentos retóricos. À boa maneira sofística, Hero e Leandro abunda em antíteses e
paradoxos, em paralelismos e quiasmos, homeoteleutos e poliptotos, metáforas e
hipérboles – não desprezando as figuras de carácter semântico, privilegia as de teor
morfológico‐sintáctico. O proémio é um lídimo exemplo do labor poético de Museu e
do ornamento preceitual do tema e do estilo (Anderson 1993: 161).
De resto, como temos vindo a notar, o aparato erudito de citações e jogo
intertextual, destinado à identificação pelo leitor, com a poesia alexandrina, a epopeia,
a tragédia de Eurípides e o texto romanesco não deixa Museu, em proporção, atrás de
qualquer outro autor de romance. Não acontece em Hero e Leandro, todavia, o desajuste
entre contexto original da citação e aquele em que é reintroduzido, como em qualquer
dos romances, excepto talvez em Heliodoro 281 . Museu preza a coerência textual.
Não nos surpreende que um poeta Gramático revele conhecer os
progymnasmata 282 . Os exercícios preliminares (Anderson 1993: 47) que mais se
280 Vd. supra II.4.
281 Exemplos de Anderson 1984: 47: “When Chaereas assembles his army for the siege of Tyre he
announces to his Greeks that the Tyrians are καταφρονήσειμετ’ ἀλαζονείας, οὐ φρονήματι μετ’
εὐβουλιας χρώμενοι. Here we have an Alexander‐cum‐Xenophon adapting the quotation par excellence of
Pericles – before an essentially amorous expedition (Char.7.3.9; cf. Tuc.2.10.1‐11.1). When Longus’ Philetas
is telling the lovers the cure for love, he naturally alludes to Theocritus’ idyll of Polyphemus on the
subject. But this time it is anything but song: it is kissing, embracing and lying together on the ground, the
very remedies the spurned Polyphemus knows are beyond hope (Long.2.7.7; cf. Teóc.11.1s). And when
Achilles’ Clitophon sets out to woo Leucippe, even the sublime and idyllic décor of the Phaedrus and the
discourses on the psychology of the soul take on a distinctly amorous flavour (Ach.1.15‐19; cf. Phaedrus
229a‐257b).
282 O termo surgiu pela primeira vez na Retórica de Alexandre 1436a25 (séc. III ou IV). “The progymnasmata
were assigned by Greek grammarians to students after they had learned to read and write as preparation
114
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
destacam são a écfrase e o encómio. Analisámos já a écfrase de Hero (55‐66), quando se
movimenta no templo aos olhos de todos, exercício que, de acordo com o preceituado
por Aftónio (Kennedy 2003: 117) e a prática de Museu, se processa no sentido vertical,
da cabeça para os pés 283 . Ao descrever o festival religioso (42‐54), o autor produz outra
écfrase simples, apresentando a movimentação das pessoas que acorrem a Sesto e as
suas motivações. Esta écfrase assenta numa enumeração paralelística e anafórica (45‐
51), destinada a reforçar por acumulação a presença em massa das populações das
redondezas neste festival e, de modo subentendido, o superior poder de Eros, que faz
nascer o amor entre a sacerdotisa de Afrodite e um dos muitos jovens visitantes.
Os dois encómios da obra visam ambos a donzela (30‐41, 74‐83), mas o poeta
responsabiliza por um o narrador e pelo outro um dos jovens presentes no festival.
Téon 284 preceitua que o encómio inclua sobre a pessoa em causa os seus méritos
exteriores (origem nobre, familiar e política; educação; amigos; funções) e físicos,
intelectuais e morais (virtudes várias, acções no interesse alheio), cuja apresentação
deve evoluir para as acções e prática das virtudes. No primeiro encómio, os três versos
iniciais (30‐2) apresentam com brevidade a donzela, atribuindo‐lhe ascendência
divina, indicando o ofício que desempenha e o lugar onde vive. Antes do epílogo (41),
que funciona também como transição para o momento seguinte, interliga‐se a
caracterização da jovem do ponto de vista físico e intelectual: acentuada noutros
lugares, a beleza física é referida com brevidade por meio de metáfora hiperbólica (33)
e de máxima (37), enquanto se desenvolvem as qualidades de sensatez, pudor e
reserva de Hero, manifestas nas suas atitudes.
O discurso encomiástico do admirador, por seu lado, celebra a beleza de Hero
por meio do elogio e da comparação, de novo hiperbólica. Este discurso liberta‐se dos
princípios de composição retórica, a que não obedece fielmente, mas apresenta‐se com
o maior equilíbrio e força expressiva 285 .
for declamation and were continued in rhetorical schools as written exercises even after declamations had
begun” (Kennedy 2003: X‐XI). Consideramos nesta análise os progymnasmata de Téon, o mais antigo
tratado de que dispomos (séc.I d.C.), e os de Aftónio (séc.IV‐V), o que se revelou mais influente (Kennedy
2003: XII).
283 Vd. supra II.2.1.1.
284 109.19‐112.21; teorização do encómio por Aftónio em Kennedy 2003: 108‐11.
285 Vd. supra IV.2.1. para indicação exaustiva das funções narrativas deste discurso.
115
A primeira fala de Leandro, cuja elaboração já foi por nós apreciada 286 , pode ser
considerada um exemplo de tese, isto é, o exame lógico de uma questão, de acordo
com o que é justo, legal, vantajoso e possível, incluindo a respectiva antítese e solução
(Kennedy 2003: 121) 287 . A tese de Leandro, que como sabemos ele fundamenta de
modo brilhante, é de carácter prático: consiste em persuadir Hero a iniciar‐se nas leis
de Afrodite. Após a longa captatio benevolentiae (135‐40), Leandro elabora, em forma de
exortação à jovem, a incongruência de uma sacerdotisa de Afrodite que não conhece o
amor (141‐7). Apresenta‐se como enviado da deusa para esse fim (148‐9) e reforça a
argumentação com o exemplum de Héracles (150‐2). A antítese é apresentada por meio
de novo exemplum (153‐6) e a solução ou conclusão argumentativa consiste em apelar à
persuasão da jovem (157). Conhecer o amor é pois, de acordo com a argumentação de
Leandro, vantajoso, justo e legal, pois a deusa assim o pretende, e possível, dada a
oferta audaz deste pretendente. A anuência de Hero, já o sabemos, não se deve apenas
nem sobretudo às qualidades oratórias do seu pretendente, mas tamanha destreza
argumentativa leva a crer que elas teriam sido suficientes para a persuadir 288 .
Embora não explicitado no quadro dos exercícios retóricos, o exemplum, ao qual
temos vindo a aludir (74‐85, 150‐2, 153‐6, 297‐9), tal como a interrogativa retórica (29‐
30, 30) 289 , são de pleno direito procedimentos de índole retórica, de que o texto em
análise faz uso para maior expressividade. A afirmação gnómica, todavia, consta no
elenco dos progymnasmata de Aftónio e é particularmente apreciada pelo nosso autor
(37, 92‐3, 94‐5, 164‐5, 183‐4) 290 .
A identificação dos procedimentos retóricos mais acentuados, a par da prática
dos progymnasmata na obra de Museu, não é decerto tão impressionante como
286 Vd. supra II.2.3.3.
287 Cf. Téon 120.12‐128.24.
288 “One feels, and is meant to feel, that he [the hero] is a product of a sophistic academy, whose resources
he has committed with gusto to the service of love and seduction” (Anderson 1993: 164).
289 Comum a Apolónio de Rodes (450‐1).
290 As máximas, que dizem respeito sobretudo à beleza ou ao amor, são declarativas e verosímeis (“As
mulheres são invejosas perto da beleza” 37; “uma vez convencida/ a virgem a entregar‐se no leito, o
silêncio é a promessa” 164‐5) ou hiperbólicas (“A beleza afamada da mulher irrepreensível/ é para os
homens mais acutilante do que a seta alada” 92‐3), a maior parte simples, mas duas compostas (“O olhar é
o caminho: depois de ferir com o olhar/ a beleza escorrega e caminha para o coração do homem” 94‐5; “A
língua dos homens gosta da zombaria. Aquilo que cada um/ faz em silêncio, ouve‐o nas encruzilhadas”
183‐4.) – Kennedy 2003: 99‐100.
116
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
2.3. FACTORES (NA APARÊNCIA) DISSONANTES
São pelo menos dois os traços compositivos de Hero e Leandro que podem
suscitar a dúvida sobre a legitimidade da classificação da obra de Museu como
romance: a composição em verso e o desenlace, que apresenta a morte dos
protagonistas, em contraste com a esperada composição em prosa e um happy end. 294
Comecemos pelo final feliz, requisito fundamental na trama romanesca e
decerto responsável pela fortuna do género, desde a Antiguidade ao presente. Um
desfecho feliz implica a reunião definitiva dos apaixonados e o casamento entre
ambos, se ele não tiver ainda ocorrido, ponto de partida de uma ventura não mais
perturbada nem por homens nem por deuses. Não é outro o nosso entendimento do
desenlace apresentado em Hero e Leandro.
Com efeito, a aventura e decorrente separação deste par de apaixonados
decorre ao ritmo diário da travessia do Helesponto por Leandro, cuja realização dupla
precede e remata a única possibilidade de se encontrarem. A condição de Hero como
sacerdotisa e a oposição dos pais dela remetem o amor de ambos ao secretismo. A
solução encontrada pelos amantes não podia do ponto de vista da verosimilhança
291 Para uma apreciação do tratamento retórico mais ou menos inibido (pré‐sofístico ou não sofístico vs.
sofístico), no romance grego, influenciado pela Segunda Sofística, vd. Perry 1967: 109‐11, 177, Reardon
1989: 9 (que acrescenta a categoria de sub‐sofístico) e sobretudo Anderson 1993: 156‐70. Desta avaliação
Longo é por regra valorizado, em contraste com o excesso virtuosista de Aquiles Tácio.
292 Só em Aquiles Tácio: paisagens (Sídon 1.1.1, Alexandria 5.1), fenómenos naturais (tempestade 3.1.1‐
3.4.3, o Nilo e suas cheias 4.11.3‐4.12.4), animais diversos (cavalo de Cáricles 1.14.2, pavão 1.16.1‐3, fénix
3.25.1‐3, hipopótamo 4.2.1‐4.3.5, elefante 4.4.1‐7, crocodilo 4.19.1‐6), batalhas (4.14.1‐7), obras de arte
(jardim da casa de Clitofonte 1.15, colar e vestido de noiva de Calígone 2.11.2‐4, estátua de Zeus 3.6.1,
quadros de: Europa 1.1.2‐13, Prometeu e Andrómeda 3.6‐8, Tereu, Filomela e Procne 5.3.4‐8.
293 Expressão de Anderson (1984: 43 n.3) cunhada a partir de Aquiles Tácio 5.27.4.
294 Factor dissonante, efectivamente, entre Hero e Leandro e os demais romances é a sua extensão. Os 343
versos do nosso texto não são de todo equivalentes à extensão do romance grego, latino nem bizantino. A
brevidade de Museu não nos deve impedir, porém, de dar o devido relevo à sua estrutura e traços
compositivos, sem dúvida de carácter romanesco.
117
prolongar‐se ad aeternum. Entre resolver de modo definitivo a situação, insustentável a
longo prazo, e apresentar um obstáculo a ser vencido, Museu opta de modo consciente
por encurtar a narrativa, impedindo‐a de se assemelhar, demasiado, diria eu, aos
romances precedentes.
Vale a pena recordar o último verso da obra: ἀλλήλων δ’ ἀπόναντο καὶ ἐν
πυμάτῳ περ ὀλέθρῳ (343). Após a morte de Leandro e do suicídio de Hero, para se
lhe reunir, a conclusão do poema consiste neste único verso, em que não por acaso se
reúnem, enfatizadas, as ideias da morte (ἐν πυμάτῳ περ ὀλέθρῳ) e do prazer, este
provocado pelo facto de os amantes estarem juntos (ἀλλήλων δ’ ἀπόναντο).
Recordemos que ἀλλήλων é frequente no texto para acentuar a paridade e simetria
dos protagonistas, e que ἀπόναντο surge ainda noutro contexto (343), o dos encontros
regulares na torre, e do breve desfrutrar desse prazer 295 . O remate da narrativa deixa
bem claro que para Hero e Leandro a morte é um desfecho feliz, equiparado aos
momentos de felicidade das suas vidas, os encontros nocturnos de amor. A morte
permite aliás, mais do que a evocação limitada de um encontro venturoso, a reunião
definitiva dos amantes. 296
A particularidade deste encontro dos protagonistas reside não só no seu
carácter definitivo, mas também por decorrer num espaço e num tempo inusitados, no
quadro da acção narrada: no mar, ao amanhecer. A escolha do mar para o lugar do
encontro é notável, pois fá‐lo decorrer num espaço entre Sesto e Abido, acentuando o
equilíbrio definitivo da relação, precisamente aquele que permitia o encontro regular
dos amantes, ao ser atravessado por Leandro. A mudança da área limitada da torre e
dos aposentos de Hero para o espaço amplo do mar tem uma contrapartida ao nível
temporal: desaparece o carácter furtivo dos encontros, que os limitava à noite, e são
tornados públicos. Pela primeira vez, Hero e Leandro estão juntos à luz do dia. A
vantagem deste par face aos demais é que, coincidindo a morte com a revelação da
relação à sociedade, agora, quaisquer iniciativas no sentido de os separar já não
produzem efeitos. Anula‐se pois o eventual antagonismo dos homens, que mesmo
Para cada uma das formas vd. supra II.2.4.2.
295
Só os sécs. XIV e XV introduzirão no desenlace a morte de um dos amantes: da heroína, por doença em
296
A História de Aquiles e do herói Aquiles, à traição, em A história de Tróia (Beaton 1996: 110, 116).
118
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
assim já desempenhara a sua função, para assegurar a união definitiva de Hero e
Leandro.
Nestas circunstâncias, não há dúvidas de que o desenlace de Hero e Leandro
constitui, de acordo com os requisitos do romance, um final feliz.
Passemos a tratar da composição em verso. O romance tem sido de modo
consensual definido como “narrativa ficcional em prosa” (Reardon 1991: 46),
repousando a novidade do género no facto de a prosa transmitir um discurso ficcional
(até então associado ao verso), por oposição ao seu uso até à época como veículo de
alguma forma de discurso verdadeiro, nomeadamente a historiografia. Com efeito,
todos os romances gregos de que dispomos, incluindo os fragmentos ou aqueles textos
em que se identifica carácter romanesco, sem serem propriamente romances,
partilham a expressão em prosa. A narrativa ficcional em verso, tal como a apresenta
Hero e Leandro, estava há séculos consagrada como epopeia ou drama.
A opção de Museu pelo verso pode explicar‐se por duas vias. A primeira é
considerar que a forma do hexâmetro não é alheia a um jogo intertextual propositado
com a Odisseia, cuja função arquetípica resulta, como vimos, não só na estrutura de
discursos persuasivos e na formulação discursiva, como no processo constante de
aproximação entre ambos os heróis, Ulisses e Leandro.
O romance não se esgota todavia com Heliodoro. O que nos reservam os
séculos vindouros, no género romanesco? Até ao séc. XII da nossa era, embora não
haja produção literária de romance, a hagiografia e outra literatura cristã apócrifa
apropriam‐se dos temas preferidos do romance, bem como dos seus procedimentos
retóricos 297 (Beaton 1996: 30‐1). O declínio da hagiografia no séc. XI explica para
alguns a ascensão da literatura secular no séc. XII, época do renascimento de Coménio,
que produz quatro romances 298 , nos séculos XIII e XIV acrescentados com mais
297 Desenvolve‐se, em paralelo, uma subcorrente de narrativa ficcional, mas que não chega a estabelecer‐se
como género literário consciente.
298 São eles Rodante e Dosicles (1143‐9?) de Teodoro Prodomo, em nove livros, Drusila e Cáricles (1157?
1170?) de Nicetas Eugeniano, em nove livros, Aristandro e Caliteia (c.1160) de Constantino Manassés, que
nos chegou em fragmentos, e Hismine e Hismínias (c.1180) de Eustácio Macrembolites [editados em Erotici
scriptores Graeci por R. Hercher. Leipzig: Teubner, 1859, tomo 2]. Não se inclui neste grupo Dígenes Acrites
(séc. XII), em verso, cuja classificação genológica oscila entre a epopeia e o proto‐romance, na mesma
linha de Chanson de Roland, Nibelungenlied e Poema del Mio Cid, e é considerada a primeira obra em grego
moderno. (Beaton 1996: 32)
119
cinco 299 . Integram‐se as quatro obras romanescas do século XII no “renascimento
letrado do género” (MacAlister 1993: 308), remetendo claramente para os romances
gregos dos séculos I a IV, ao passo que os dos séculos XIV e XV são compostos em
língua vernácula e contêm elementos mais fortes do conto popular (Reardon 1989: 13).
Ora, destas nove obras romanescas geradas no império bizantino, oito são em
verso 300 e apenas uma em prosa (Hismine e Hismínias). E não há que duvidar da
afinidade entre o romance dos primeiros séculos da era cristã e o do séc. XII: “os
romances dos dois períodos partilham o tema do amor entre um casal jovem que
enfrenta uma série prolongada de tribulações e aventuras e cuja história tem
invariavelmente um final feliz. (...) Os romances do renascimento bizantino tomam
dos romances antigos episódios inteiros”, passagens ou expressões e ecoam as
descrições deles. 301 (MacAlister 1993: 309)
Os autores bizantinos não vêem, portanto, qualquer contradição entre os temas
e convenções do romance antigo e a forma do verso, que adoptam como formato
privilegiado do género 302 . Do mesmo modo na literatura secundária: a Reardon (1991:
76) não repugna que a forma em prosa do romance seja substituída pelo verso.
Algum leitor nosso mais céptico perguntar‐se‐á por que não classificamos
como romance avant la lettre as Argonáuticas de Apolónio de Rodes, se são também em
verso e do ponto de vista temático privilegiam os contornos da relação amorosa entre
Jasão e Medeia. Ou se não será de incluir no género romanesco a obra de Coluto, O
299 Todos anónimos, excepto um: A história de Aquiles (três versões com diferente extensão), Calímaco e
Crisórroe de Andrónico Comeno Paleólogo (2607 versos), Beltrando e Crisantza (1348 versos), Libistro e
Rodamne (cinco versões com diferente extensão) e A história de Tróia (1166 versos). A cronologia relativa
deste conjunto de romances, aos quais haveria muitos outros a acrescentar se não se tivessem perdido, é
incerta (Beaton 1996: 108). No mesmo âmbito temático, o período dos sécs. XIV e XV dá origem a cinco
traduções e adaptações de romances ocidentais, que incluem (excepto um) elementos dos romances de
cavalaria e vários textos adaptados a partir do ciclo arturiano; estas obras são todas traduzidas em verso
(Beaton 1996: 135‐145). Sobre os romances e as traduções e adaptações vd. também Beck 1971: 115‐153.
300 Rodante e Dosicles e Drusila e Cáricles são em metro bizantino dodecassílabo tónico e Aristandro e Caliteia,
tal como os romances em vernáculo, em verso “político” popular de quinze sílabas (MacAlister 1993: 320
n.5). Também os romances do ocidente medieval, de temática amorosa (e.g. Roman de la rose) ou de
cavalaria (e.g. Chanson de Roland, Amadis de Gaula), são escritos em verso.
301 “Dada a renovada popularidade do romance antigo, os romances do séc. XII encontram leitores
familiares com as obras do género original e que reconhecem de imediato a apropriação”, mesmo que
com ela se pretenda por vezes uma inversão semântica do original. O romance de Nicetas remete para o
mito de Hero e Leandro (vd. Anexo II).
302 Se bem que não tenhamos quaisquer indícios do conhecimento de Petrónio por Museu, convém
lembrar que Satyricon apresenta uma solução mista, combinando a prosa e o verso.
120
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
rapto de Helena, que tal como a de Museu apresenta temática amorosa em verso.
Porventura ocorrer‐lhe‐ão exemplos de hibridismo, na literatura grega ou noutras, em
que ao carácter romanesco tem sido dada menos importância do que ao épico, lírico ou
dramático, e cuja leitura possa ser alterada. Não devemos de facto excluir a hipótese
de novas classificações de obras já conhecidas, como não devemos pôr de parte a
possibilidade de variações ou desenvolvimentos temático‐formais em romances cuja
descoberta ainda nos está reservada (Anderson 1984: 39). Mas a obra de Apolónio de
Rodes, mesmo que contribua de modo relevante para a tradição do romance, define‐se
pelas convenções épicas preceituadas por Homero. Para além de o tema amoroso estar
ausente quase por completo de metade da obra (os cantos 1 e 2), lançar a narrativa in
medias res, as invocações à Musa, o catálogo de naus são procedimentos pelos quais
Apolónio faz integrar a sua obra na tradição e na prática da epopeia. Do mesmo modo,
O rapto de Helena não só parece de facto inserir‐se na tradição do epílio, segundo a qual
se opta por desenvolver um episódio de cariz épico, como não apresenta, ao contrário
de Hero e Leandro, o esquema narrativo e o tratamento consciente dos motivos
romanescos.
É certo que Museu não resiste a, e até acentua, todos os mecanismos de que
dispõe para aproximar Leandro de Ulisses e Hero e Leandro da Odisseia. A epopeia era
sem dúvida o género mais apreciado, numa época em que, na senda de Nono de
Panópolis, os poemas homéricos inspiravam a imitação generalizada. É incontestável
que a epopeia, na sequência de Calímaco e de Apolónio de Rodes, sofreu uma
evolução no sentido da miniatura de temática amorosa, a que alguns chamam epílio, e
a obra de Museu, não sem algum fundamento, tem sido incluída nessa categoria. Sob o
magistério de Homero, um pouco à maneira dos contemporâneos de Museu, a crítica
tem negligenciado, porém, todas as evidências de um jogo intertextual consciente e
propositado da parte de Museu para fazer integrar a sua obra no romance grego.
Como vimos, desde o título (característico do romance pelo menos até ao século XV),
passando pela estrutura narrativa e pelos topoi da caracterização das personagens ou
da sintomatologia amorosa, até ao necessário final feliz, Hero e Leandro apresenta todos
os traços compositivos que fazem de Quéreas e Calírroe ou de As Efesíacas romances. O
género do romance, aliás, admite diversidade suficiente para que Museu, não fazendo,
121
por exemplo, os seus protagonistas vaguearem ao sabor do destino por múltiplas
paragens no mundo mediterrânico, encontrasse para a reduzida variedade espacial da
narrativa um precedente na obra de Longo.
É lícito pois concluir que a obra de Museu, reproduzindo com fidelidade os
temas e motivos do romance grego e dele se distinguindo apenas na forma em verso,
ocupa perante o romance bizantino e medieval uma posição axial. A forma em verso,
que muita da Odisseia já dedicava ao tema romanesco, será retomada depois do século
XI na quase totalidade da produção de romance. Neste conjunto, a obra de Museu é já
um romance em verso, isto é, uma obra que respeita os princípios compositivos da
tradição em que se insere conscientemente, a do romance grego, ao mesmo tempo que,
integrando a produção literária do fim do império romano do oriente e do início do
império bizantino, anuncia já um dos traços predilectos do romance vindouro: o verso.
Neste contexto é particularmente esclarecedor que, não reconhecendo embora
o texto de Museu como romance, a crítica lhe tenha dado tratamento semelhante, ao
procurar fazer dele uma leitura alegórica 303 . Foi Gelzer (1989: 316‐22) que se esforçou
por reconhecer em Hero e Leandro uma alegoria neoplatónica, processo de alegorização
semelhante ao sofrido pela primeira vez por Heliodoro no século V (Shorrock 2001: 23
n.48) e, posteriormente, pelos demais romances, de natureza neoplatónica e/ou cristã:
as descrições da luta e sofrimento dos amantes pelo seu objectivo são entendidas como
descrições alegóricas da aspiração da alma pela salvação (MacAlister 1993: 309 n.13).
De modo idêntico, tal como a obra de Heliodoro foi considerada perigosa rival
por Cervantes, foi citada por Shakespeare e Racine a sabia de cor 304 , também Hero e
Leandro foi muito apreciado durante e a partir do Renascimento. Aliás, ao contrário de
alguns romances, não faltam manuscritos da obra de Museu 305 . Reveste‐se de
particular significado que tenha sido a obra de Museu o primeiro ou segundo trabalho
da Imprensa Aldina. A editio princeps, do original com tradução para latim, data de
303 “It is hardly an exaggeration to say that the late Antique‐world was obsessed by hidden meanings and
allegorical interpretations to an unparalleled degree.” (Shorrock 2001: 23 n.48)
304 (Maillon 1960: XXIII). Também Xenofonte de Éfeso é apreciado e.g. por Ângelo Policiano (Ruas 2000:
LXXV). Como cultor da pastoral, Longo é muito bem acolhido no Renascimento, incluindo nas artes
plásticas (vd. Vieillefont 1987: LXXXVII sqq).
305 Trinta e seis, segundo Ludwich (apud Orsini 2003: XXXII), a que não será alheia a dimensão reduzida
da obra. Dispõem de escassos manuscritos e.g. os textos de Cáriton e de Xenofonte de Éfeso, este com um
codex unicus do século XIII (Ruas 2000: XIX n.1). Ao invés, Aquiles Tácio tem vinte e três (Garnaud 1991:
XX).
122
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
cerca de 1494, altura em que também a oficina de Janus Lascaris em Florença editou o
texto grego (Braden 1978: 81‐6) 306 . A partir de então, Hero e Leandro foi objecto de
numerosas traduções para latim ou vernáculo e, desde logo, objecto de tratamento
literário, pontual ou alongado, de poetas em que vieram a incluir‐se Shakespeare,
Boscán, Francisco de Quevedo, Marlowe, Schiller, Lord Byron e, na literatura
portuguesa, Bocage 307 . A presença do mito de Hero e Leandro na literatura não pode
ser alheia à obra de Museu, a primeira que, com elevada qualidade artística, se lhe
dedicou na íntegra.
Depois de todo o exposto, defender o carácter fortuito ou irrelevante destas
duas evidências, a leitura alegórica e a fortuna literária da obra, que lhe são externas
mas atestam tratamento idêntico entre a obra de Museu e dos demais romancistas
gregos, seria desprezar mais um recurso de integração rigorosa de Hero e Leandro no
género a que pertence por direito.
306 Antes de Heliodoro 1534 (Maillon 1960: XXIII), Longo 1598 (Vieillefont 1987: LIX), Aquiles Tácio 1601
(Gaselee 1947:XV), Xenofonte 1726 (Ruas 2000: LXXV), Cáriton 1750 (Molinié 1989: 43).
307 Vd. elenco de traduções e referências literárias ao mito, com indicações bibliográficas (Anexo II).
123
124
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
Conclusão
Tanto a leitura de Hero e Leandro de acordo com o modelo teórico de Frye como
a defesa da classificação da obra como romance foram, tanto quanto sabemos,
iniciativas até ao momento desconhecidas no estudo crítico da obra de Museu.
O recurso à teoria de Frye permitiu‐nos alargar o entendimento da obra como
Manual de preceitos amorosos a uma simbologia mais alargada e universal que
depende das imagens da demanda, do mar, da luz, da torre e do jardim, bem como da
conotação simbólica das cores. Concluímos a partir dessa simbologia intersectada que
Hero e Leandro são Sujeito de uma demanda cujo Objecto é Eros – atingir o Amor só é
possível na união definitiva dos dois apaixonados. A demanda e o desfrutar do Amor
coincidem com a realização plena da identidade individual e dependem, para a sua
concretização, do completamento de um percurso iniciático representado na passagem
da condição de virgem para a maturidade sexual. O casamento alegórico simboliza
precisamente essa maturidade sexual, mas o desenlace acrescenta‐lhe o elemento
decisivo que caracteriza o Amor: o carácter definitivo da união 308 . A história de Hero e
Leandro encontra assim um final feliz.
Importa reiterar que no texto de Museu a maturidade sexual não implica
mutação interior das personagens. Através de critérios de análise originários da teoria
crítica do romance grego, percebemos que à semelhança dos outros textos do género, a
psicologia dos protagonistas não apresenta evolução. No caso presente concluímos até
pela efectiva maturidade interior de Hero e de Leandro desde o início da acção, a que
o apaixonamento acrescenta a realização sexual e a definição da identidade.
Hero e Leandro coincide no tema, nos motivos e nos tópicos com os traços
característicos do texto romanesco. Antes de mais, a paridade entre os protagonistas,
discursivamente expressa no paralelismo, aplica‐se à beleza extraordinária de ambos,
Refira‐se que a estrutura narrativa e simbólica de Hero e Leandro, pela apologia de valores como a
308
castidade, a fidelidade e a perseverança face às contrariedades e fazendo coincidir a iniciação sexual com
o casamento (embora simbólico), reproduz os princípios evangélicos do credo cristão. A concordância da
axiologia de Museu com a cristã, apesar da roupagem pagã, pode, essa sim, constituir prova do efectivo
cristianismo do autor (vd. supra I.2.4).
125
à intensidade da paixão e à ansiedade pelo encontro, ao isolamento social e afectivo, à
comunhão da experiência iniciática de carácter sexual, à fidelidade, ao grau de risco e
envolvimento na aventura. É a beleza que justifica o amor, à primeira vista, na
sequência do trabalho do terrível (δεινός) deus Eros, cujo desenrolar há‐de conduzir
ao casamento. O amor é metaforizado em ferida, fogo e loucura, responsável pelo
“pasmo” que impede o uso da palavra e leva ao pudor e à ruborização femininos.
Motivos típicos como o contexto religioso, estatuto social elevado e a apresentação do
rival combinam com o tratamento da instância narrativa, do tempo, do espaço, da
modelização das personagens, com indícios do protagonismo feminino, e os
procedimentos retóricos usuais no romance, cujo representante máximo é o próprio
título. O texto de Museu acumula pois os recursos semânticos, estruturais e
discursivos tradicionais do romance, ou encontra pelo menos, em todos os que
chegaram na íntegra aos nossos dias, precedente para as suas opções.
Nem a brevidade discursiva, nem a coincidência da morte com o desenlace,
nem a composição em verso contrariam a classificação genológica de Hero e Leandro
como romance e obra axial na evolução do género grego para o bizantino. Provas
externas como a tentativa de leitura alegórica ou a fortuna do texto e do mito a partir
do Renascimento corroboram a nossa conclusão.
A demanda do amor é define o texto romanesco em geral e Hero e Leandro de
Museu em particular. O autor da obra encarna o amor da demanda: a demanda de
uma estrutura, de uma expressão e, no limite, de um género literário adequado aos
seus intentos artísticos. A recompensa de Museu é não só a eternização do mito que
celebrou, mas sobretudo a profusão semântica que a sua obra encerra e lhe continua a
assegurar novas leituras.
126
HERO E LEANDRO DE MUSEU
Adopta‐se a edição mais recente do texto de Museu:
MUSEE. Héro et Léandre. Texte établi et traduit par Pierre Orsini. Paris: Les
Belles Lettres, 2003.
A tradução do texto pretende ser fiel à forma em verso do original. Os
parágrafos são definidos por instinto, sem pretender delinear uma estrutura
formal (a esse respeito veja‐se supra II.5).
Procede‐se a comentário ao texto do ponto de vista do conteúdo, da linguagem
análise métrica.
Alterações à lição de Orsini indicadas em nota ao texto grego.
Conclusões apoiadas no recurso a Workplace 10 TLG 32 (2004).
127
HERO E LEANDRO DE MUSEU
Hero e Leandro de Museu 1
e o nocturno mareante 5 , que pelo himeneu sulca as ondas 6 ,
e o casamento às escuras, invisível à Aurora imortal 7 ,
e Sesto e Abido 8 , onde se deu o casamento nocturno de Hero 9 .
1 Título nomeando os dois protagonistas é característico do romance (sobre os traços que a obra
partilha com o romance grego vd. supra IV.2).
2 [1‐41] Introdução. É possível que o início εἰπέ, θεά, κρ‐ seja uma afirmação da pertença de M.
à escola de Nono (Hopkinson 1994a ad loc). O verso apresenta ainda a mesma estrutura
gramatical e idêntica referência à luz, embora Sémele seja fulminada por um raio (εἰπέ, θέα,
Κρονιδάο διάκτορον αἴθοπος εὐνῆς), procedimento inovador na epopeia mas corrente na
poesia helenística (Teóc.22.116, Cal.Dian.186). Invocação à deusa, como na Ilíada, e não na
Odisseia, embora θεά conste em Od.1.10 (Kost ad loc). Sobre o decalque intencional da
linguagem homérica vd. supra II.6.1, para uma síntese dos traços estilísticos e lexicais tomados
de Nono, II.6.4.
3 A lâmpada como testemunha é um tópico reiterado por M. (223, 236) e específico da poesia
amorosa helenística (Kost 124), mas a relação com amores clandestinos é anterior: e.g.
Aristf.Ecl.1s, AP 5.4 (Filodemo). Vd. “A lâmpada na poesia amorosa” Kost 126‐132. Λύχνος
denota uma vulgar lamparina de barro, cuja chama se alimentava de azeite; traduzimos
“lâmpada”, tendo em conta a tradição de transmissão do texto e da lenda de Hero e Leandro.
4 Os amores secretos de Hero e Leandro constituem‐se como Leitmotiv, à semelhança de Nono
em Dionisíacas (Zeus e Sémele 8.331, Hermes e Iftime 14.114, Dioniso e Nicaia 16.350, Dioniso e
Aura 48.783) e na sequência da elegia jónica (Mimnermo fr.1.3) – Kost 123. De assinalar que o
canto 6 da Odisseia, arquitexto com o qual M. joga com frequência, tematiza, pelo contrário, o
amor matrimonial (e.g. 6.160).
5 Apesar de todas as traduções verterem πλωτῆρα por “nadador”, preserva‐se o sentido mais
frequente (“navegante”, “navegador”), que Kost 132 também defende, mantendo certa
ambiguidade. A ideia da viagem a nado é indicada sem margem para dúvidas no verso 5.
6 ὑμεναίων é desde a tragédia sinédoque de ”casamento” Kost 135 (sobre a semântica do
casamento vd. supra p.46 n.118). θαλασσοπόρων ὑμεναίων ”influenciados pelos desen‐
volvimentos linguísticos contemporâneos, os poetas gregos tardios, embora de tendência
classicizante, tomavam grandes liberdades no emprego do genitivo e dativo. Dificilmente é
possível definir aqui a sintaxe com rigor.” (Hopkinson 1994a ad loc) Sobre características da
linguagem da Antiguidade tardia patentes em Hero e Leandro vd. supra II.6.4.
7 ἄφθιτος Ἡως “Aurora imortal (φθίνω), que nasce todos os dias” (Hopkinson 1994a ad loc);
não é fórmula homérica, mas reflecte as intenções arcaizantes de Museu. O adjectivo é raro em
Homero e, desde Hesíodo, aplicado aos deuses. Antítese escuridão/claridade (ἀχλυόεντα/
ἄφθιτος Ἠώς).
8 Sesto e Abido são cidades fronteiras no Helesponto (actual estreito de Dardanelos). Sesto, do
lado europeu, é cidade do Quersoneso da Trácia, hoje Zéménik, onde há agora apenas um
mosteiro turco (Oberhummer 1892). Foi colónia de Atenas e escala importante na rota do mar
Egeu para o Ponto Euxino. Estrabão 13.1.22 chama‐lhe ἀρίστη τῶν ἐν Χεροννήσῳ πόλεων.
Abido, do lado asiático, é uma cidade da Mísia, perto da actual Nagara (Orsini ad loc). Foi de
128
HERO E LEANDRO DE MUSEU
5 Ouço falar de Leandro nadador tanto como 10 da lâmpada 11 :
a lâmpada mensageira ao serviço de Afrodite,
a lâmpada, imagem do amor. Oxalá Zeus etéreo a tivesse levado 14
Porque a lâmpada serviu 19 os amantes loucos de paixão 20
Abido que Xerxes atravessou para a Europa em 480 a.C. (Hdt. 7.34‐36) e também de onde os
Turcos avançaram no séc. XV para atacar Constantinopla (Blakeney ad loc). Καὶ Σεστὸν καὶ
Ἄβυδον cita Il.2.836, onde as duas cidades fazem parte do contingente troiano. Kost 157
apresenta medições diferentes na Antiguidade relativas à distância entre Sesto e Abido, que
será de cerca de sete estádios áticos, ou seja, 1295 metros (Vilarrubia 373 e Oberhummer 1892)
ou 1350m (Gelzer ad loc e Färber 101). Percurso, a nado ou de barco, é dificultado pelas
correntes no sentido Abido‐Sesto (Estrabão 13.1.22, Políbio 16.29).
9 Sobre o tom arcaizante dos nomes de Hero e Leandro vd. supra II.6.1.
10 ὁμοῦ καὶ acompanha dois substantivos (“ambos” LSJ) e equivale a καὶ reforçado, e.g.
No.D.12.236 (Wifstrand 194).
11 Repetição tripla de λύχνον consiste numa epanalepse (Kost 141), fundida com anáfora. De 6
a 13 “encómio à luz” (Kost 119).
12 ἀγγελιώτης Cal.H., No.D.13.36. Termo alexandrino e da tradição em que M. se filia (para
síntese dessa influência vd. supra II.6.2). γαμοστόλον “que prepara um casamento” LSJ,
epíteto antigo de Hera e Afrodite.
13 Tentativa na tradução de reproduzir a composição do elemento γαμ‐, a repetição dos sons t,
g, m e do o fechado. νυκτίγαμος hápax.
14 ἄγειν e ἐπλικῆσαι não denotam tipos diferentes de acção: “mudança de tempo não é de todo
rara em Nono e nos nonianos” Kost 144.
15 Catasterismo: Zeus devia ter recompensado o ministério fiel da lâmpada, transformando‐a
numa estrela, à semelhança de muitas estrelas e constelações formadas pela comemoração de
acontecimentos notáveis, normalmente no passado distante. Alusão eventual a Cal.fr.110Pf.
(traduzido em Cat.66): Cónon, astrónomo real, assinalou um novo conjunto de estrelas e
afirmou representarem uma madeixa de cabelo dedicada por Berenice contra o regresso do
marido, Ptolomeu I, da guerra (Hopkinson 1994a ad loc). Expressão idêntica a ἐς ὁμήγυριν
ἄστρων (Ésq.Ag.4).
16 M. alimenta a ambiguidade em ἄεθλον: combate da lâmpada, sentido mais favorável ao
catasterismo, é o mais lógico do ponto de vista sintáctico, mas a ideia aplica‐se também aos
amantes. Cf. Agátias, AP 5.294.18 e Cat 66.13 dulcia nocturnae portans vestigia rixae, AR 3.942 ἥ
τοι συνέριθος ἀέθλων ἔσσεται. Para a metáfora do combate do amor (também 230) vd. supra
II.2.4.1.
17 A identificação da lâmpada com a estrela ou os astros é recorrente na obra (212, 306) e segue
o exemplo de poesia lírica anterior, pelo menos desde o intesse dos alexandrinos pelas
constelações: e.g. Cal.epig. 55, No.P.18.18, No.D.2.324 (Kost 147).
18 νυμφοστόλον ἄστρον ἐρώτων é decalcado de No.D.16.59: Αἰετὸν ὄρνεον ἄλλο γαμοσ‐
τόλον ἄστρον Ἐρώτων. O aparecimento acima de γαμοστόλον determina a escolha de um
outro adjectivo por Museu, a que Nono recorre quatro vezes: e.g. D.8.250 (Kost 147).
129
HERO E LEANDRO DE MUSEU
e guardou segredo 21 dos himeneus em claro 22 ,
até o vento 23 inimigo e irado soprar em rajadas.
Mas, vamos, celebra 24 comigo, que canto, o mesmo fim
15 da lâmpada extinguindo‐se e de Leandro perecendo 25 .
Sesto ficava 26 em frente de Abido, junto ao mar:
são cidades vizinhas. Ora Eros, retesando 27 o arco,
fez as cidades partilharem uma única seta,
ao inflamar um jovem e uma virgem. O nome deles:
20 o bem‐parecido era Leandro e a virgem, Hero.
Ela vivia em Sesto, ele na cidadela de Abido,
ambos as mais belas estrelas das cidades ambas 28 ,
parecidos um com o outro 29 . Tu, se alguma vez lá passares,
procura‐me uma certa torre 30 , onde outrora Hero de Sesto
19 Kost ad loc insiste em “ajuda” como significado básico e fundamental (“Grundbedeutung”)
de συνέριθος, mas pretere‐se “ajudou” para evitar assonância com “guardou”.
20 ὁδυνάων plurale tantum Kost 149. ἐρωμανέω No.1.136, AP 5.266.10 (Agátias). Sobre o tópico
da loucura de amor vd. supra p.49 n.123.
21 ἀγγελίην τε φύλαξεν ὑμεναίων nova variação do tema da lâmpada como mensageira (Kost
150). ἀγγελίην ὑμεναίων repete‐se três vezes em M., por vezes interpolada (vd. 222, 235).
22 ἀκοίμητος desde Aristófanes (mar, ninfas...). Cf. v.12 com 225 e nota ad loc.
23 ἀήτης “vento” desde a poesia alexandrina (Kost ad loc). Antecipação do desfecho trágico
(vd. supra pp. 103 e 110‐11).
24 συναείδω , verbo poético originário em Arato e Teócrito (Teoc.10.24). “Há aqui uma típica
construção noniana, a figura de simultaneidade: μοι μέλποντι συνάειδε ist idem quod
ἀείδοντί μοι συνάειδε” Kost ad loc. Aliteração em m.
25 Verso em disposição quiástica, reforçada pelo homeoteleuto dos adjectivos. Cf. 329‐30.
“Procedimentos retóricos comuns ao longo do poema são aqui particularmente proeminentes
[1‐15]: aliteração e assonância, anáfora e repetição, rima no final do verso, jogos de palavras,
paralelismo, variação” Hopkinson 1994a: 153. Análise do proémio supra, II.1.
26 Imperfeito (ἔην) e presente (εἰσι) difíceis de conciliar; Kost 155 propõe solução engenhosa e
desnecessária.
27 τόξα plural frequente pelo singular.
28 Reproduzida a colocação de “ambos”, que acentua a semelhança entre os dois jovens. A
crítica insiste no eco de Cal.fr.67.8 (Acôncio e Cidipe), mas M. é bem mais expressivo e
hiperbólico. Cf. comparação de Astíanax com um astro (Il.6.401), Polideuces (AR 2.40), Quéreas
(Cár. 1.1.5) e um παῖς (AP 6.156.3 Teodóridas).
29 Lugar comum do romance antigo: apaixonamento de dois jovens extraordinária e igualmente
belos (e.g. Cár.5.1.1, Xen.1.2.7).
130
HERO E LEANDRO DE MUSEU
25 de pé, segurando a lâmpada, guiava Leandro;
chorando ainda 33 o destino e o amor de Leandro.
Mas como é que Leandro, tendo a sua morada em Abido 34 ,
se apaixonou por Hero? Por que meio a atraiu 35 ?
30 Hero era encantadora, de estirpe acarinhada por Zeus 36 ,
30 O termo farol (φάρος) não ocorre no texto, mas a tradição tem relacionado a torre (πύπγος)
onde Hero habita com o farol da mesma cidade, construído depois do de Alexandria (c.280
a.C.) e, enquanto parte integrante da trágica história amorosa de Hero e Leandro, corrente na
literatura (e.g. Agátias de Esmirna Hist.5.12). O texto de M. não permite dúvidas quanto à sua
intenção etiológica (23‐7), mas a existência de um farol em Sesto deve ser distinguida do fundo
histórico da lenda. Como aponta Hopkinson 1994a ad loc, a história relatada não depende da
existência de um farol, mas apenas de uma torre (Gelzer 1975: 303 coloca a origem da história
em tempo posterior à destruição do farol; pelo contrário, Solimano 262‐3 sustenta que a torre
serviria para sinalização ocasional aos navios, como era usual nos tempos homéricos, tornada
permanente na época romana, e que Hero seria a responsável pela guarda da luz). Quanto à
aparente historicidade do relato, fica por explicar como é que a mais antiga referência à lenda é
de Virgílio (G.3.257‐263 – vd. Anexo III) e só em 177‐9 d.C. a cidade de Abido emite moedas
alusivas ao caso (vd. imagem da capa). O carácter etiológico da obra manifesta a influência
alexandrina e os interesses geográficos dos poetas, que procuravam apresentar, seguindo o
preceito de Calímaco (οὐδέν ἀμάρτυρον ἀείδω fr.612Pf), apenas material cuja autenticidade
pudesse ser provada. A obra modelar é sem dúvida o mais famoso poema de Calímaco na
antiguidade, Aetia, pela fusão perfeita de erudição e poesia (Hopkinson 1994c: 85‐6) na
apresentação de um grande tema como fio condutor de episódios variadíssimos. Esses
princípios são imitados por Símias de Rodes (fl.c.290‐270 a.C.), Fanocles (da primeira geração
de alexandrinos), Apolónio de Rodes em Argonáuticas e mesmo nas Metamorfoses de Ovídio.
31 Helesponto, hoje Dardanelos.
32 ἁλιηχής hápax.
33 Na poesia helenística, ἔτι e εἰσέτι apontam com frequência uma etiologia: e.g. Cal.H.3.77‐8
(Hopkinson 1994a ad loc).
34 Ἀβυδόθι οἰκία ναίων em Il.17.584; a alteração de M. justifica‐se pela métrica mais estrita,
optando pelo que também é uma terminação de verso tipicamente homérica: δώματα ναίων
(Od.9.18, 15.227).
35 Pergunta que atrai a atenção e a curiosidade do leitor, influência de conhecimentos retóricos.
Jogo de palavras ποθ_, sem que se trate de poliptoto (Hopkinson 1994a ad loc). Vilarrubia 374
classifica os versos 28 e 29 como “transição do proémio para o relato”, equiparando a técnica à
de Nono nas Dionisíacas e, em particular, à função aí do verso 45.
36 διοτρεφής aplicado por Homero a nobres e reis, sempre figuras masculinas.
37 Cípris e Citereia (38) são títulos de Afrodite já presentes em Homero (e.g.Il.5.422, Od.18.193),
tomados dos centros de culto em Pafos, na ilha de Chipre (46), e na ilha de Citera (47), ao largo
da costa da Lacónia; Hesíodo justifica estes locais com a história da deusa (Teog.188sqq) –
131
HERO E LEANDRO DE MUSEU
Habitava uma torre longe da família 39 , na vizinhança do mar 40 .
Era uma outra 41 deusa Cípris! Com sensatez e pudor,
nunca conversava com as senhoras suas compatriotas
35 nem acompanhava a dança graciosa das jovens da mesma idade 42 ,
evitando 43 a censura invejosa das mulheres.
É que as mulheres são invejosas perto da beleza 44 .
Hero, que apaziguava sempre a Citereia, depois de Atena,
costumava habitualmente celebrar o Amor
Mas nem assim evitou as setas incendiadas 47 !
Ora chegou o dia do festival público 48 de Cípria,
Gelzer 1989 ad loc e Tallet‐Bonvalot ad loc. Outros títulos de Afrodite em notas aos vv. 40, 183
e 320.
38 Sobre a castidade imposta à sacerdotisa de Afrodite vd. supra p.53 n.127.
39 O segundo sentido de ἀπό em LSJ é “of Position: away from, far from”, opção também de
Blakeney e defendida por Vilarrubia (embora recusada por Kost 183). A tentativa de
Hopkinson 1994a ad loc de justificar “torre de família”, que ainda assim resiste à explicação, é
pois desnecessária. Cf. 187‐93.
40 Aliteração em p. Antítese longe/perto, respeitante a elementos favoráveis ao desenrolar da
acção.
41 ἄλλη=ἑτέρη (Blakeney ad loc). Ἄλλη Κύπρις é expressão de Nono e da Antologia Palatina,
sendo a comparação com outras deusas (e.g. Θέτις ἄλλη) processo também empregue em
Nono e Cáriton (Kost 185). Sobre a pertinência da comparação de Hero com Afrodite, vd. supra
pp. 35‐6.
42 Antítese ἥβης/γυναιξίν. Aliteração em χ_ρ e η.
43 Que a beleza extraordinária atrai inveja e bisbilhotice é um lugar comum na literatura antiga
(Hopkinson 1994a ad loc).
44 ἀγλαΐη Od.18.180 (Penélope). Nos versos 36 e 37, aliteração em η.
45 οὐρανίη título frequente no culto de Afrodite, relacionado por Platão com o Ἔρως celeste
(Banq.180d sqq) em contraste com Afrodite Πάνδημος e o amor terreno, epíteto a que o verso
42 alude (Gelzer 1989 ad loc). Outros títulos de Afrodite em notas aos vv. 31, 183 e 320.
46 Repetição de φ e ρ reproduzida em t e m na tradução.
47 ἀλλ’ οὐδ’ ὥς em Od.1.6 aplicado também a uma tentativa frustada, a de Ulisses salvar os
seus companheiros (Hopkinson 1994a ad loc). πυριπνείων hápax (vd. p.66 n.158).
48 [42‐231] No festival de Afrodite (estrutura formal mais detalhada em II.5). πανδήμιος não
limitado a iniciados. Alusão ao epíteto de Afrodite, Πάνδημος (vd. supra n.45).
49 ἀνά Σηστόν acusativo de extensão espacial (Alexandre Jr. 218).
132
HERO E LEANDRO DE MUSEU
No dia sagrado apressavam‐se a ir, ansiosos,
os oriundos de Hemónia 52 , os de Chipre marítima 53 .
Nem uma mulher ficava nas cidades de Citera,
nem um homem dançando no cimo do perfumado monte Líbano. 54
Nem um dos vizinhos faltava ao festival,
50 nem o habitante frígio, nem o da vizinha Abido,
nem qualquer apreciador de donzelas 55 , entre os jovens. De facto, uns quantos
frequentadores de sempre, onde há voz de festival,
não anseiam tanto a realização de sacrifícios para os imortais
como a beleza das virgens reunidas.
50 O culto de Adónis em Sesto não tem outra referência senão neste passo (Kost 207), o que
permite concluir pela liberdade poética do autor. M. escolheu talvez os Adonia em vez de outro
festival de Afrodite pelas suas conexões com o amor trágico: protegido por Afrodite após o
nascimento e amante dela, Adónis morreu jovem, numa caçada, depois de atacado por um
javali. A brevidade da vida de Adónis e da sua beleza era celebrada todos os anos em muitas
cidades gregas. O festival conjunto de Adónis e Afrodite em Alexandria é descrito no Idílio 15
de Teócrito e nesse contexto se situa o Lamento de Adónis, narrativa erótica de Bíon (Hopkinson
1994c: 217). A afinidade entre a história de Adónis e dos amantes de Hero e Leandro é clara.
51 ναιετάω o imperfeito ép. costuma ser ναιετάασκον, mas a variante _άεσκεν é ocasional em
Homero e frequente em Quinto de Esmirna (Hopkinson 1994a ad loc). Para uma síntese das
características estilísticas de Quinto adoptadas por M. vd. supra II.6.3. Também σφυρόν e
ἁλιστεφής são termos raros, empregue o segundo por Nono.
52 Começa o catálogo (Kost 209) de famosos lugares de culto de Afrodite. Hemónia é o nome
literário da Tessália, a partir do nome do rei mítico Hémon, pai de Téssalo, onde em vários
lugares era antigo o culto de Afrodite.
53 εἰνάλιος em Homero apenas em Od.4.443, 15.479, mas aplicado a pessoas ou animais. Outros
exemplos de diferente contexto semântico em que se empregam termos homéricos, bem como
demais especificidades da linguagem de M. supra II.6.5.
54 πτερύγεσσι ép.dat.pl. (também Eur.IA120, sem ocorrências em Nono); alguns manuscritos
propõem πτυχέεσιν (“vale, garganta”), que não resolve o problema. θυόεις (Il.15.143) tendo
em conta que o monte Líbano não possui incenso e é famoso, antes, pelos cedros aromáticos,
verte‐se o termo desprezando o traço semântico relativo ao incenso, na convicção de que o
poeta não dispunha de outra palavra com ela comutável, em termos métricos, para a ideia de
“perfumado”. “O mito de Adónis localizava‐se perto do Mt. Líbano na Síria e um famoso
santuário de Afrodite estava situado perto, no rio Adónis” Hopkinson 1994a ad loc. Texto
pouco claro, que exige interpretação retorcida e discutível. Tentativa de versão literal:
“nenhum homem dançando nos cumes, visíveis aos pássaros, do perfumado monte Líbano
(subentende‐se ὄρους)”.
55 φιλοπάρθενος Aquiles Tácio, Nono.
133
HERO E LEANDRO DE MUSEU
55 Lidava a virgem Hero pelo templo da deusa,
refulgindo o rosto um brilho encantador 56 ,
qual lua erguendo a face branca.
Mais, o cimo das maçãs do rosto branco como neve avermelhava‐se 57 ,
como rosa de dois tons a sair do botão 58 . Dir‐se‐ia que de repente
É que a pele do corpo ruborescia 60 . Ao andar 61
rosas brilhavam sob a veste branca, em volta dos tornozelos 62 da jovem.
Muitas Graças 63 lhe fluíam dos membros. Os antigos enganaram‐se
ao identificarem três Graças: bastava um único olhar
65 de Hero, rindo, e uma centena de Graças nascia.
Cípris encontrou sem dúvida uma sacerdotisa digna de si.
De facto, de longe superior 64 a todas as mulheres,
de Cípris sacerdotisa 65 , parecia ela uma nova Cípris.
56 ἀπαστράπτω Aratο, Opiano III a.C. A beleza é com frequência descrita como um brilho
radioso na literatura grega (Hopkinson 1994a ad loc). χαρίεσσα epíteto de μαρμαρυγή pela
primeira vez (Kost 229). Lugares comuns da descrição de Hero: beleza como brilho luminoso
(Od.6.237, Pl.Fedro 254b, Cár.4.1.8), comparação com a lua (Safo 96.6‐9) – Hopkinson 1994a ad
loc.
57 χιόνεος Bíon. παρειά em Homero sempre no plural. Sobre o uso desde Homero da cor na
descrição das personagens, em particular o contraste branco‐vermelho como topos da beleza
vd. Kost 236‐40. Lit.: “as curvas altas das faces níveas tornavam‐se vermelhas”.
58 Descrição de Hero inspirada na de Leucipe, quando Clitofonte a vê pela primeira vez
(Aq.T.1.4.2‐3).
59 Museu rivaliza com o pintor: é um retrato de pé que em sentido descendente opera um
movimento que roda (...) e sublinha a mobilidade da personagem (Tallet‐Bonvalot ad loc).
Sobre o significado erótico de μέλος associado a ῥόδον vd. pp. 85‐6. Sobre o cumprimento da
teorização da écfrase vd. IV.2.2.3.
60 ἐρυθαίνω termo tardio para ἐρυθραίνω, ἐρεύθω, + gen. Nono.
61 νίσσομαι associado a preposições, esp. ép. e lír. Eur.
62 σφυρὰ ou acusativo de relação, uma vez que limita o raio da acção expressa pelo verbo
intransitivo (Alexandre Jr. 197), ou c.d. do verbo (“rosas iluminavam os tornozelos da jovem”),
o que parece ter pouco nexo.
63 As Χάριτες, Cárites ou Graças (designação latina, mais conhecida em português e por isso
adoptada), são divindades da Beleza, filhas de Zeus e Eurínome (ou Hera), que moram no
Olimpo na companhia das Musas, com quem formam coros. Fazem também parte do séquito
de Apolo e acompanham, entre outros deuses, Afrodite e Eros. São representadas com o
número de três: Eufrósina, Talia e Aglaia.
64 ἀριστεύω + gen. construção homérica (Hopkinson 1994a ad loc). περιπολλόν adv.ép. πολύς.
134
HERO E LEANDRO DE MUSEU
Deslizou para o coração 66 tenro dos jovens: não havia um entre eles
Onde quer que vagueasse no templo de belas fundações 68 ,
De tal maneira que um dos jovens que a admirava disse o seguinte 71 :
“Até a Esparta 72 fui, vi a cidade de Lacedemónio,
75 onde ouvimos falar de lutas de animais e de concursos de beleza.
Nem aí alguma vez vi rapariga tão bela 73 e delicada!
Cípris tem mesmo nela a mais jovem das Graças!
Sofro a vê‐la, mas sem encontrar 74 cansaço na vista.
De imediato morreria, depois de subir aos leitos 75 de Hero!
80 Eu cá não desejava ser deus no Olimpo,
tendo Hero em minha casa, como minha 76 mulher.
Mas se não me cabe tocar 77 na tua sacerdotisa
que me concedas uma jovem esposa 78 que se lhe assemelhe, Citereia!”
65 ἀρήτειρα usado e.g. por Calímaco e AR.
66 φρήν (69, 72, 87, 95, 102) partilha com θυμός (240) e κραδίη (91, 97, 156, 167) a referência ao
coração como sede da paixão e do sofrimento, bem como de sede intelectual (θυμός 107, 159;
φρήν 158) e, por hipálage, à pessoa humana (θυμός 217, φρήν 244, κραδίη 247). Vd. supra
II.2.2.2.
67 ὁμοδέμνιος Ésq. Reacção idêntica à dos pretendentes ao aparecimento de Penélope
(Od.1.366, 18.213). Sobre o emprego dos termos relativos a “leito” vd. supra p.47 n.119.
68 καλλιθέμεθλος hápax.
69 ἕσπομαι forma ép. tardia de ἕπομαι.
70 φρένας vd. n.66.
71 Imprecisão de Hopkinson 1994a ao afirmar que καὶ φάτο μῦθον é terminação de verso
comum em Homero: φάτο μῦθον ocorre efectivamente sempre em final de verso, mas apenas
sete vezes na Ilíada e na Odisseia (Il.21.393, 21.471, 23.491, 24.598; Od 2.384, 6.148, 15.171). Καὶ
consecutivo.
72 Esparta era famosa pela beleza das mulheres (Od.13.412), que Helena representava, mas os
concursos de beleza (Καλλιστεῖα) mencionados não estão atestados nessa cidade (Gelzer 1989
e Hopkinson 1994a ad loc).
73 ἱδανός Cal.Fr.535 (Graças); “ἰδανήν para εἴδω, como ἱκανός para ἵκω, πίθανος para πείθω”
(Kost 263).
74 μογέω + gen. desde e.g. Il.11.636, 9.492. Cf. uso intransitivo em 268‐9.
75 Sobre o emprego dos termos relativos a “leito” vd. supra p.47 n.119.
76 ἐφιμείρω reforço de ἰμείρω Nono. ἡμέτερος pelo singular (também 140 e 250) atestado em
Homero e Nono (Gelzer 1967: 144). Sobre os termos que designam Hero vd. supra p.45 n.112.
77 ἀφάσσω ión.ép. e prosa tardia.
135
HERO E LEANDRO DE MUSEU
Tais coisas disse um dos jovens. Num lado e noutro,
Tu, Leandro sofrido 81 , quando viste a jovem de excelente fama,
mas, uma vez dominado sem o esperares pelas setas afogueantes 84 ,
não quiseste a vida sem 85 a partilhares com a belíssima Hero.
90 O fogo do amor fortaleceu‐se com o brilho dos olhos dela
Pois a beleza célebre da mulher irrepreensível 88
é para os homens mais acutilante que a seta alada.
O olhar é o caminho: depois de ferir com o olhar 89 ,
Então tomou‐o o espanto, o atrevimento 92 , o medo, o respeito:
tremia‐lhe o coração 93 , tinha vergonha de ter sido apanhado. 94
78 τοίη...νέη cf. 76. Pedido semelhante, em relação a marido, por Nausícaa 6.244 sqq.
79 ὑποκλέπτω o primeiro uso do termo é de Sófocles (El.114). Só após o séc. II d.C. passa a
surgir com alguma recorrência: no séc. IV Cirilo Teólogo, Pseudo Macário e João Crisóstomo
recorrem‐lhe vinte, dezoito e dez vezes, respectivamente. Nono apresenta o verbo trinta e cinco
vezes (e.g. D.1.21) e M., mais três (161, 182, 289).
80 Sobre o tópico da loucura de amor vd. supra p.49 n.123.
81 αἰνοπαθής vd. n.307.
82 κατατρύχω na Ilíada e Odisseia com sentido económico “depauperar, arruinar”.
83 φρένα vd. n.66.
84 δαμάζω, part.ép. δαμείς Il.22.40. ἀδόκητος Nono. πυρίβλητος No.D.8.355.
85 ἄμμορος poét. de ἄμοιρος “sem” Quinto Esm.
86 κραδίη vd. n.66.
87 παφλάζω (mar) Il. πυρὸς ὁρμῆς ”o ímpeto do fogo” Il.11.157.
88 περίπυστος AR. ἀμώμητος Il.12.109, empregue por Nono cinco vezes (e.g. D.21.165), único
elemento moral numa descrição predominantemente física.
89 βολή ὀφθαλμῶν “olhadelas rápidas” Od.4.150. Lit.: “depois das feridas do/produzidas pelo
olhar”.
90 φρένας vd. n.66.
91 ἐπὶ νῆας ὁδεύω Il.11.569. Vd. p.102 para relação deste passo com Aquiles Tácio 1.4.4.
92 A palavra αἰδώς repete‐se cinco vezes a partir deste ponto e nos quatro versos seguintes, na
forma simples ou em composição (ἀναιδείης). A opção por não reproduzir na tradução esse
facto pretende tornar o texto em português mais fluente. ἀναίδεια em Homero (Il.1.149, 9.372,
Od.22.424) e surpreendentemente apenas uma em Nono: D.42.361.
136
HERO E LEANDRO DE MUSEU
Enquanto admirava a beleza perfeita, o amor roubava 95 ‐lhe a vergonha:
atrevido e desavergonhado, sob o efeito do amor 96 ,
100 dirigia devagar os pés e punha‐se à frente da jovem.
Espiando de esguelha, lançava‐lhe olhadelas manhosas 97 ,
por meio de acenos imperceptíveis desviando o coração 98 da jovem.
Mas ela, quando reparou no estratagema apaixonado 99 de Leandro,
alegrou‐se com a beleza dele. Em silêncio, também
Então, enquanto Leandro procurava uma hora secreta,
A estrela Vésper que traz a escuridão surgiu do horizonte 106 .
Quando viu descer a escuridão vestida de preto 107 ,
logo ele com ousadia chegou perto da jovem,
apertou‐lhe com suavidade os dedos róseos e
93 κραδίη vd. n.66.
94 Vd. supra p.105 para confronto textual de 96‐8 com Aquiles Tácio 1.4.5.
95 ἀπονοσφίζω é usado por Homero apenas na forma simples (e.g. Il.2.81).
96 θαρσαλέος καὶ ἀναιδής Od.17.449. ἀγαπάζω ép. e lír. de ἀγάπω.
97 λόξος Cal.
98 φρένα vd. n.66.
99 Sobre a semântica do amor e da paixão vd. supra p.49.
100 ἐπικύπτω Hopkinson 1994a ad loc nota o uso transitivo não registado por LSJ.
101 λαθρίδιος “secreto” raro.
102 ἀντέκλινεν hápax da forma verbal e do verbo.
103 θυμόν vd. n.66.
104 Sobre a semântica do amor e da paixão vd. supra p.49.
105 A fórmula não é mais do que aparentemente homérica, ao contrário do que afirma
Hopkinson (“traditional epic description of nightfall” 1994a: 156): em 110‐1 a maior parte dos
termos não é homérica; em 112 sim, mas não surgem em Homero enquanto fórmula. Uma
situação mista ocorre em 232‐3 e 288.
106 πέρατος em contraste com oriente Od.23.243, AR.
107 “A noite vestida de preto é uma imagem poética habitual” e.g. Eur.Ion 1150 (Hopkinson
1994a ad loc), que M. repete em 232.
137
HERO E LEANDRO DE MUSEU
Assim que ele percebeu os acenos rendidos da jovem apaixonada,
conduzindo‐a para o interior mais escondido do templo sagrado.
Vai dar ordens a outra! E larga a minha túnica.
que não te fica bem tocar a sacerdotisa da deusa Cípris!
Hero ameaçou com tais palavras, adequadas às donzelas.
Quando Leandro ouviu a fúria da muito feminina ameaça,
130 reconheceu os sinais das donzelas persuadidas.
Também quando as mulheres ameaçam os jovens
108 Os versos 114‐5 evidenciam influência de Aquiles Tácio, num passo em que Clitofonte é
aconselhado a pegar na mão e apertar os dedos da jovem que pretende seduzir, suspirando
logo a seguir (2.4.4). O beijo do pescoço, passo seguinte, consta em 133.
109 οἷά τε “como se” Hopkinson 1994a ad loc.
110 ῥόδεος empregue três vezes por M. (194, 265), termo raro na literatura grega (cerca de
sessenta ocorrências no total) e mais frequente antes do que depois de Museu. As duas
primeiras surgem com Íbico 5 e uma parte lírica da Medeia de Eurípides (841). Dos quarenta e
dois usos do adjectivo seguramente antes de Museu, dezassete são da responsabilidade de
Nono. Dezasseis ocorrências são‐lhe posteriores e onze de datação duvidosa. As ocorrências
anteriores a Museu são na grande maioria de textos poéticos: líricos (Íbico, Eur., Íon,
Anacreontea), épicos (Asclepíades, Nicandro, Trifiodoro, Nono) ou epigramáticos (AG).
111 Adopta‐se na tradução, para maior expressividade estilística, a leitura θαρσαλέῃ de alguns
manuscritos.
112 ὀκναλέος poét. para ὀκνηρός Nono. ἐφέπω na voz média em poetas tardios: ἐφέσπομαι.
113 ἀναφέρω nos poetas alexandrinos, rege φωνήν “falar” (AR).
114 ἀπειλείω ép. Nono.
115 μαργαίνω uso absoluto Col. 198.
116 Sobre os termos que designam Hero vd. supra p.49 n.123.
117 γενετήρ Col., Nono. πολυκτέανος Pínd., Cal.
118 Sobre o emprego dos termos relativos a “leito” vd. supra p.47 n.119.
138
HERO E LEANDRO DE MUSEU
as ameaças são elas próprias transmissoras das falas de Cípris.
135 “Querida Cípris depois de Cípris, Atena depois de Atena,
não te digo igual às mulheres terrenas
mas comparo‐te às filhas de Zeus Crónida!
Feliz aquele que te gerou e feliz aquela que te deu à luz,
Como sacerdotisa de Afrodite, procura os trabalhos de Afrodite.
Vá lá, inicia‐te na divina lei nupcial!
Cípris não é calorosa com as virgens! Se quiseres
145 aprender as leis amorosas da deusa e os ritos que ela acarinha,
acolhe a doce lei do amor que encanta o espírito 125 !
a quem Eros apanhou ao atingir‐me com as suas setas.
150 Assim foi com o ágil Hermes de bastão dourado, que levou
119 Sobre a semântica do amor e da paixão vd. supra p.49.
120 “Perfumado e formoso” numa tentativa de reproduzir, com aliteração em f, aquela em som c,
do original. Sobre o beijo no pescoço como momento do ritual de sedução (tomado de Aquiles
Tácio), vd. supra n.108.
121 γαστὴρ ἥ ς’ ἐλόχευσε de AP 9.126, também Órfica e Coluto.
122 A captatio beneuolentiae (135‐40) de Leandro perante Hero alude em termos muito próximos à
súplica de Ulisses a Nausícaa, em todos os momentos: a comparação hiperbólica com as deusas
(Od.6.149‐52), os μακαρισμόι (153‐5) e a súplica explícita (175). Sobre a semântica do amor e da
paixão vd. supra p.49.
123 ὑποδρήσσω unicamente aqui e em AR 3.274.
124 Sobre a semântica do casamento vd. supra p.46 n.118. Sobre o emprego dos termos relativos
a “leito”, p.47 n.119.
125 θελξινοός Antífanes Macedo I d.C., Paulo Silenciário.
126 κομίζω “receber” Hopkinson 1994a ad loc.
127 O amante como ἱκέτης: Aq.Tácio 5.27.1, Paulο Sil. AP 5.256.6; Ulisses perante Nausícaa
(Od.6.193) e Jasão perante Medeia (AR 3.987 sqq) – Kost 339.
128 Sobre o emprego de παρακοίτης e sinónimos vd. supra p.49 n.123.
139
HERO E LEANDRO DE MUSEU
Héracles corajoso para servir a outrora filha de Iárdano 129 .
A ti me enviou Cípris, não foi o sábio Hermes quem veio.
Sabes da virgem Atalanta da Arcádia 130 ,
aquele que ela antes não desejara, fê‐lo ela amar de todo o coração 133 .
160 Sem fala, a donzela fixou o olhar no chão,
envergonhada, apertava a túnica à volta dos ombros.
129 Ônfale, rainha da Lídia, a quem Héracles serviu como escravo na sequência de um oráculo
da Pitonisa de Delfos, que determinara a sua venda e serviço de três anos como escravo para
expiação do assassinato de Ífito. Hermes encontra o comprador, Ônfale, e fecha o negócio. Em
qualquer das duas versões da lenda, Ônfale apaixona‐se por Héracles (Grimal 218‐9; 224; 337‐
8). Aquiles Tácio (2.6.2) refere‐se também ao mito.
130 Lit.: “a virgem Atalanta da Arcádia não te esquece/Não te esqueces do exemplo da
virgem...”.
131 Sobre o emprego dos termos relativos a “leito” vd. supra p.47 n.119.
132 Tradução na forma interrogativa para maior expressividade; do ponto de vista sintáctico,
uma pergunta em grego não exige partícula nem qualquer outro elemento interrogativo
(Alexandre Jr. 325).
133 Tendo Ártemis como patrona e sabendo que, casando‐se, seria transformada em animal,
Atalanta recusa com persistência o casamento, colocando como condição para ceder a vitória
do pretendente na corrida. Muito veloz, sai vitoriosa sobre todos eles, até que Melânion a vence
a ela ao recorrer durante a corrida a maçãs de ouro que Afrodite lhe dera (Grimal 51).
Aparentemente, Afrodite ter‐se‐á enfurecido pela castidade inabalável da jovem e provocado a
sua paixão, mas fica por explicar a “fuga da cama”. M. alude a uma história não atestada em
todos os seus pormenores (Hopkinson 1994a ad loc).
134 Sobre os termos que designam Hero vd. supra p.49 n.123.
135 φρένα vd. n.66.
136 θυμὸν vd. n.66.
137 ἐρωτοτόκος Nono onze vezes (e.g. D.4.129), mais do que as restantes seis ocorrências do
vocábulo.
138 ὑποκλέπτω vd. n.79.
139 ἴχνος (poét.) pé. ξέω, impf. ἔξεον (Od.23.199) emprego do imperfeito em oração
coordenada, da qual o primeiro membro apresenta aoristo. Mais uma manifestação, portanto,
da liberdade de M. no emprego dos tempos verbais.
140
HERO E LEANDRO DE MUSEU
Já tinha aceitado o aguilhão agridoce do amor.
À virgem Hero um doce fogo aquecia‐a por dentro 142 ,
excitada pela beleza do bem‐parecido Leandro.
Tinha ela o olhar inclinado para a terra 143 ,
não se cansava de dirigir o olhar para o pescoço macio da jovem.
Por fim, ergueu ela a voz doce para Leandro,
suando um rubor húmido de vergonha na face: 145
“Estrangeiro, com as tuas palavras bem depressa moverias até uma pedra.
Mais, quem te acompanhou à minha terra pátria?
Tudo isto em vão o disseste! Como é que tu, estrangeiro
140 προάγγελος + gen. Coluto.
141 ποτί λέκτρον com πειθομένης, Hopkinson 1994a ad loc. Sobre o emprego dos termos
relativos a “leito” vd. supra p.47 n.119.
142 κραδίην vd. n.66.
143 ἔχω com particípio exprime a duração: “enquanto ela mantinha o olhar no chão” (Kost 365).
144 Verso idêntico a Aq.T. 1.5.3 (ὅλοις ἔβλεπον τὴν κόρην τοῖς προσώποις).
145 Confronto deste verso com Heliodoro 4.11.1 supra pp.105‐6.
146 πολυπλανής Eur., Nono.
147 À semelhança de Nausícaa (Od.6.276‐9) e Medeia (AR.3.891‐2), Hero desconfia do
estrangeiro que lhe apresenta súplicas. O motivo do amor entre uma jovem e um estrangeiro,
em que ela vem a ser enganada (Jasão e Medeia, Teseu e Ariadne, Eneias e Dido), é oriundo do
conto popular e explica as cautelas de Hero, que no entanto não terá razões de queixa. Cf.
supra pp.95‐6.
148 Sobre a semântica do amor e da paixão vd. supra p.49.
149 Sobre a semântica do casamento vd. supra p.46 n.118.
150 ἐφανδάνω, aor.ép. ἐπεύαδε – o aoristo não implica anúncio anterior da intenção de
casamento aos pais (Hopkinson 1994a ad loc); aoristo futurista ou proléptico (Alexandre Jr.
275), em discurso que reflecte sobre a viabilidade de uma relação futura. Outra alusão ao
episódio de Nausícaa, que dá voz às palavras de quem a veja com Ulisses em termos idênticos
aos de Hero (179‐80, cf. Od.6.287‐8).
141
HERO E LEANDRO DE MUSEU
permanecer na minha pátria como estrangeiro muito errante 151 ,
faz em silêncio, ouve‐o nas encruzilhadas.
185 Diz‐me, não o escondas, o teu nome e o do teu pai.
O meu não o desconheces: sou a famosa Hero.
onde habito com uma única escrava,
Nem os da mesma idade se aproximam de mim, nem as danças
dos jovens acontecem perto. Sempre, noite e dia,
151 πολύφοιτος hápax.
152 ὑποκλέπτω vd. n.79.
153 σκοτόεις Hes.Op.555, AR 2.1105, uma única vez em Nono (D.2.393), à semelhança de vários
outros autores; maior número de ocorrências (seis) nos Oracula Sibyllina (s.II a.C.). Epíteto
invulgar de Afrodite, traço da originalidade de Museu em relação a Nono em expressão
equivalente a “amor clandestino” (Vilarrubia 387). Outros títulos de Afrodite em notas aos vv.
40, 309 e 320.
154 A constatação da tendência humana à crítica e zombaria é comum a Nausícaa (Od.6.276‐84).
155 ἀμφιβόητος termo raro, cujo uso se limita a Cal.In Delum 303, No.D.26.141, 45.44, AP 9.579.3
e 16.278.5, e mais oito vezes em autores quase desconhecidos.
156 Sobre a simbologia da torre associada a Hero e a Leandro vd. supra III.2.3.
157 ὄχθη dezoito vezes em Homero, trinta e uma em Nono.
158 βαθυκύμων nove ocorrências na literatura grega: Dioniso Periegeta (s.II d.C), Sinésio Phil
(s.IV d.C.), uma em Museu, cinco em Nono e outra em Ana Comnena (s.XI d.C.). Hopkinson
1994a ad loc indica a construção com acusativo como própria do grego tardio, mas LSJ
identifica‐a já como frequente em Homero: Il.5.16, 851.
159 βουλῇσι dat.pl.ión. comum em Homero, Heródoto e até ático antigo (Good.188.6).
Aparentemente τοκήων Il.3.140 gen. ión. e ép., como τοκέων Il.15.660, segundo Bailly (cf. 180).
Cf. versão diferente para o afastamento em relação aos pais em 30‐41.
160 ἠνεμόφωνος não atestado em LSJ, “freigebildetes Kompositum” segundo Kost 388, que
avança a interpretação, acertada, de que o vento substitui junto de Hero o canto humano. Sobre
o isolamento da protagonista vd. supra p.104.
161 ῥόδεος vd. n.110.
142
HERO E LEANDRO DE MUSEU
ponderava como lutaria no combate do amor.
O ardiloso Eros, dominando o homem por meio das setas,
200 mortais a quem ele próprio, dominador supremo, aconselha e
também valeu ele então a Leandro apaixonado 165 .
“Virgem, por causa do teu amor até as ondas selvagens atravessarei,
nem recearei a fúria ruidosa do mar.
pois, defronte da tua cidade, habito a cidadela de Abido 171 .
162 σφετέροις originalmente “deles”, emprega‐se por “próprio” desde muito cedo (cf.Hes.Op.2)
– Hopkinson 1994a.
163 Sobre a semântica do amor e da paixão vd. supra p.49.
164 Futuro gnómico. Cf. idêntico poder de Eros em Aetia 1‐4.
165 A acção de Eros, que inclui ferida e conselho, é um tema comum em histórias eróticas e
presente em Acôncio e Cidipe (Cal.fr.67.1‐3) – Hopkinson 1994a: 165. Sobre ποθέοντι (também
230 e 233) e a loucura de amor vd. supra II.2.4.2.
166 ἀλαστέω Il., Cal. “Termo raro de significado muito discutido: veementemente,
distraidamente” Hopkinson 1994a ad loc; “gemo, lamentor” Bo. Sobre o tópico da loucura de
amor vd. supra p.49 n.123.
167 παφλάζω do mar Il.13.798; cf. M.91 (paixão). Εἰ parece estar por καὶ εἰ, “mesmo se”; a crase
κεἰ é proibida pela prática de M. A variação entre optativo presente e futuro do indicativo
deve‐se a conveniência métrica – cf.212‐3 (Hopkinson 1994a ad loc).
168 μετανέομαι No.D.14.89. Sobre o emprego dos termos relativos a “leito” vd. p.47 n.119.
169 Sobre formas de tratamento relativas a Leandro vd. p.45 n.112.
170 ἀγάρροος (ἀγα‐ prefixo intensivo ”muito”) aplicado ao Helesponto Il.2.845,12.30.
171 ἔχω c.acc.loci “habitar” desde Ilíada.
172 ἠλίβατος em Homero sempre epíteto de πέτρη.
173 ἐκ περάτης “do [i.e. no] horizonte” Hopkinson 1994a ad loc.
174 ὄφρα part. final épica e lírica, aqui com futuro do indicativo e optativo aoristo, variação mais
uma vez devida a conveniências métricas (203‐4, 205‐6) ‐ Hopkinson 1994a ad loc. A opção pelo
futuro (ἔσσομαι) com ὄφρα é rara e quase exclusiva da poesia, e.g. Il.20.301, Od.1.56, 4.163
143
HERO E LEANDRO DE MUSEU
e contemplando‐a, não o Boieiro que desce tarde no horizonte,
não Oríon audaz nem o trilho não molhado do Carro 177 ,
não a apaguem e de imediato perca eu a vida 181 ,
não apaguem a lâmpada, guia que transporta a luz do meu viver
Se tu queres mesmo ouvir o meu verdadeiro nome
dos himeneus à guarda da lâmpada 186 :
(Good. §1366). A construção com o optativo depois de tempos primários, sendo também rara, é
bastante comum em Nono (Hopkinson 1994a ad loc).
175 Para a imagem do “batel do amor” cf. 255 e notas 177 e 228 (vd. supra p.30 n.89).
176 Imagem da lâmpada como estrela também em 10 e 306.
177 Leandro refere‐se à sua travessia (213‐4) em termos idênticos à descrição da partida de
Ulisses de Ogígia, que, acordado, observa as estrelas para melhor conduzir a jangada (5.271‐5).
A comparação entre Leandro, metaforizado no próprio barco do amor, e Ulisses na jangada
acentua a vulnerabilidade do apaixonado de Hero. ὀψέ δύοντα Βοώτην Od.5.272. θρασὺν
Ὠρίωνα e ἄβροχον ὁλκὸν Ἁμάξης são expressões nonianas (D.20.83, 38.336, 23.295). θρασὺν
pela tentativa de Oríon contra a castidade de Ártemis. ἄβροχος (Eur. mas sobretudo autores
tardios) ὁλκὸν ”trilho não molhado” porque o Carro nunca poisa no mar (Hopkinson 1994a ad
loc).
178 Leandro toma Sesto como a sua pátria, do mesmo modo que se diz marido de Hero (220 et
al). Ligeira reprodução da aliteração em p.
179 φίλη uso absoluto como um outro por Homero (Od.8.292, no episódio de Ares e Afrodite),
por norma qualifica substantivo (e.g.Od. 20.129, 4.743).
180 βαρυπνείων não se conhece outro uso do termo senão o de Museu, aqui e em 309.
πεφύλαξο perfeito verbal empregue por conveniência métrica, não difere do presente em
sentido (Hopkinson 1994a ad loc).
181 θυμόν vd. n.66.
182 ἐυστέφανος epíteto de Ártemis Il.21.511 e Afrodite Od.8.267. Leandro começa por comparar
explicitamente Hero com a deusa que ela serve (135) e conclui com uma comparação idêntica,
embora menos directa (Hopkinson 1994a ad loc). Sobre formas de tratamento relativas a
Leandro vd. p.45 n.112.
183 Sobre a semântica do casamento vd. supra p.46 n.118.
184 Sobre a semântica do amor e da paixão vd. supra p.49.
185 ἀγγελίην ὑμεναίων vd. n.21.
186 Sobre o tópico da lâmpada como testemunha vd. n.3.
144
HERO E LEANDRO DE MUSEU
a lâmpada espalharia a luz, ela atravessaria as grandes ondas.
foram forçados a separar‐se um do outro, contra‐vontade 189 ,
ela em direcção à sua torre, ele, para não se desviar da rota
muitas vezes rezaram para que chegasse a noite, aia do tálamo 196 .
ele, pelo contrário, junto às praias do mar marulhante 199
187 ἀνίημι part.aor. ἀνέσαντες muito comum desde Homero; Hopkinson 1994a sugere que
Museu, influenciado pela leitura dos escólios, atribuiu à única ocorrência em Homero um
sentido mais lato (ἀναθέντες) do que o que a palavra efectivamente tinha. Partindo do
princípio que Museu optou de facto por este termo e não por outro, como defende Hopkinson,
não fará então sentido emendá‐lo (como propõem Rohde ou Ludwich).
188 O motivo do amor como celebração que dura toda a noite é comum nos textos eróticos
(Hopkinson 1994a ad loc); cf. 12, 230, 285.
189 ἀνάγκῃ desde Homero com sentido adverbial “à força”.
190 ὀρφναῖος epíteto da noite desde Homero, em fórmula sempre em início de verso (νύκτα δι’
ὀρφναίην e.g. Il.10.83, Od.9.143).
191 πλῶε nauigauit (Vilarrubia). Discute‐se o entendimento da forma como referente à viagem
por barco (“navegou”) ou a nado (“nadou”): o verbo diz respeito a viagens de barco, mas a
metáfora aplicada a Leandro remonta ao v.2. Quis o jovem testar‐se a si próprio para ver se
resistiria ao trajecto a nado (como sugere Kenney 1998: 61 n.25; cf. Kost 429‐31 e Schönberg
1978: 255‐9)? Enquanto certas traduções optam por preservar a ambiguidade, Gelzer (1989: 312
n.) defende sozinho “nadou” como “conscious Homerism”, tendo em conta o uso homérico de
πλώειν sempre com o sentido “nadar” e πλέειν, “navegar”. A nossa opção decorre de 1) em
243, os receios de Leandro darem a entender claramente que se trata de uma primeira viagem a
nado e de 2) o sentido do verbo ser nos autores tardios “navegar”, conforme revela Gelzer (id.).
192 εὐρύς Homero aplica o adjectivo sobretudo ao mar (πόντος) e ao céu (οὔρανος), mas nunca
a localidades geográficas concretas. Aliteração em p, de Museu, transformada na tradução em
aliteração em v.
193 βαθυκρήπις única outra ocorrência, na forma βαθυκρήπιδι, em No.P. 6.180.
194 ἀέθλους vd. n.16 e supra p.46. Sobre ποθέοντες vd. n.165.
195 ὀάρων (também 132) conversa de namorados em poetas tardios. παννύχιος cf. 225.
196 θαλαμηπόλον ὄρφνην é expressão de Nono (D.7.307). Os versos 231 e 288 aludem a Il.9.240
(Hopkinson 1994a).
197 [232‐92] A primeira noite (estrutura formal mais detalhada em II.5). ὀμίχλη vd. n.107.
198 ποθέοντι vd. n.165.
145
HERO E LEANDRO DE MUSEU
Hero acendeu a lâmpada: ateada a lâmpada,
ouvindo o estrondo muito sonante das ondas quebrando enlouquecidas 211 ,
245 “Eros é terrível e o oceano, implacável! Mas a água
do mar é um estreito e o fogo do amor incendeia‐me por dentro 215 .
199 πολυφλοίσβοιο θαλάσσης é expressão formular corrente nos Poemas Homéricos (e.g.
Il.1.34, Od.13.85), que M. aplica interpolada.
200 ἀγγελίην ὑμεναίων vd. n.21.
201 δοκεύω nos poetas tardios “observar, ver” No.D.1.530.
202 Sobre o tópico da lâmpada como testemunha vd. n.3.
203 πολυκλαύστος “muito lamentada” Hom.Epigr.3.5, “que muito lamenta” Emp.62, Mosco
3.73, “que causa muita lamentação” Quinto Esm.
204 τηλεσκόπος/ κρυφίης paradoxo. ἀγγελιώτης vd. n.12.
205 Sobre o emprego dos termos relativos a “leito” vd. supra p.47 n.119.
206 λιποφεγγής Maneto 1.65 s.IV d.C. Sobre a expressão do anoitecer, vd. n.105.
207 θυμόν vd. n.66.
208 Paralelismo formal ἀναπτομένοιο δὲ λύχνου e ἐπειγομένοιο Λεάνδρου (ambos em final de
verso) reforça a afinidade luz‐Leandro. Cf. Il.23.437, 23.497.
209 Poliptoto de λύχνον: quatro ocorrências, sempre com terminações diferentes, em 236, 239 e
241.
210 συνεκαίετο hápax. Ambiguidade no emprego de termos qualificativos da lâmpada e dos
sentimentos ou movimentos interiores de Leandro, que recorrem sempre à simbologia do fogo:
vd. n.318.
211 μαίνομαι mais um jogo de palavras em que os qualificativos (de teor personificante), agora
atribuídos ao mar, o poderiam ser também a Leandro. A tradução por “enraivecidas” ou
“enfurecidas” não preservaria esse jogo.
212 θάρσος αἶρε Eur.IA.1598.
213 Debatia‐se na Antiguidade se προσέλεκτο derivava de προσλέχομαι “deitar‐se ao lado” ou
προσλέγω ”dirigir‐se a”. M. usa aqui a última interpretação, por sinal incorrecta (Hopkinson
1994a ad loc).
214 φρένα vd. n.66.
215 ἐνδόμυχος Cal.In Cer.87, trinta e seis vezes em Nono (e.g. D.2.487).
146
HERO E LEANDRO DE MUSEU
250 e governa o mar e as nossas paixões?”
Enquanto dizia as palavras apaixonadas, despiu o manto
216 κραδίη vd. n.66.
217 νήχυτος AR 3.530, 4.1367, Cal.fr. 313.
218 Sobre a semântica do amor e da paixão vd. supra p.49.
219 ἀλεγίζω em Homero sempre com negativa e genitivo, aqui sem negativa mas com genitivo:
ῥοθίων.
220 ἀγνώσσω Sim.1.13, Coluto 8 e 187. Verbo raríssimo mas apresentado vinte e quatro vezes
por Nono (D.1.425), de longe o autor que mais vezes o emprega.
221 ἀπόσπορος Ocorrência exclusiva de Museu e Nono: única em Museu, mas doze vezes em
Dionisíacas, sempre em contexto idêntico. O verso 249 é, aliás, à excepção da primeira palavra,
em tudo idêntico a No.D.35.191.
222 παλάμη poét. “mão” Od.1.104.
223 σφίγγω desde Ésq. e Teócrito, muito frequente nos autores tardios (AG, LXX, Nono). O
complemento em dativo de meio consta apenas em M..
224 κάρηνον em Homero sempre no plural. Mais uma passagem em que Leandro é comparado
com Ulisses, que também nadou nu, com as roupas atadas à cabeça, segundo o relato que faz a
Eumeu de pretensas aventuras em Creta (Od.14.349‐52).
225 ἐξόρνυμι, aor. ἐξῶρτο. As únicas duas ocorrências da forma ἐξῶρτο, na literatura grega,
devem‐se ao presente passo e a Apolónio de Rodes, que separa a preposição do verbo simples,
ainda que justapostos (1.306). O verbo simples (“agitar, incitar; mover‐se”) é de uso corrente
desde a Odisseia.
226 δέμας “corpo vivo” desde Homero.
227 κατεναντία νήσου AR 2.1116. κατεναντία é palavra de uso restrito, atestada doze vezes a
partir de AR 2.1116 sobretudo em textos de carácter épico (Dioniso Periegeta, Quinto Esm.,
Pâncrates, Eustácio) ou a ele afim (Maneto), na sequência do exemplo de Apolónio de Rodes.
228 αὐτός ἐών ἐρέτης, αὐτόστολος, αὐτόματος νηῦς. Este é o verso de M. textualmente mais
próximo de Ovídio (idem nauigium nauita uector ero Her.18.148) e que tem alimentado a
expeculação sobre uma fonte helenística comum a ambos e/ou sobre o conhecimento do texto
ovidiano por Museu.
229 φαεσφόρος em 218 e 302 qualificativo da lâmpada, agora de Hero.
230 As imposições métricas do pé dáctilo justificam a preferência de Nono por ὑψόθι (setenta e
nove vezes em Dyonisiaca) face a ὑψοῦ, privilegiado por Homero. Apolónio de Rodes usa‐o
147
HERO E LEANDRO DE MUSEU
onde o vento em suaves brisas soprava,
doze vezes, sem que o termo apresente outras ocorrências relevantes a não ser, no s.IV a.C.,
quatro em Arato e três em Teócrito.
231 ἐπισκέπω Apolodoro, Longo.
232 εἰσόκε a epopeia tardia substitui o conjuntivo por tempos do passado do indicativo: AR
1.820 como aqui M.
233 ἀκτή equivale exactamente a “promontório”, que evitamos pela assonância que causaria
com “próprio”.
234 ναύλοχος M. pretende ao mesmo tempo caracterizar Sesto enquanto porto seguro e
intensificar a relação Leandro‐barco.
235 ἀνάγω vd. supra pp.83‐4.
236 ἐκ... θυράων tradução sugerida por Hopkinson 1994a ad loc.
237 Sobre formas de tratamento relativas a Leandro vd. supra p.49 n.123.
238 ἀφρόκομος usado unicamente por Museu, aqui, e por Nono cinco vezes (e.g. D.2.618).
239 μυχός “a parte mais interior da casa”. Representação física do ἐνδόμυχον πῦρ (246) de
Leandro (Hopkinson 1994a ad loc). Sobreposição metafórica Leandro‐luz: vd. n.318.
240 νυμφοκόμος Eur.IA1087 (lír.), muito usado por Nono. Cf. 280 (verbo).
241 παρθενεών “aposentos da donzela”. Nono é o autor que em toda a literatura grega mais
vezes usa o termo, doze (e.g. D.4.70). De resto, para além da de M., uma vez na época de
Augusto (AG 9.790.1 Antípatro de Tessalonica) e mais quatro ocorrências tardias. Oxímoro que
repete o contraste habitual nos últimos versos.
242 264‐5 cena típica do banho, não menor que algumas das dezasseis de Homero (e.g. Il.5.905,
10.572‐7, Od.4.48‐50, 252). Dependência clara do texto homérico no conteúdo, na linguagem e
na disposição métrica, para além da remissão intertextual, patenteando ainda evidências de
outros modelos poéticos, nomedamente alexandrinos, que documentam tanto a erudição de M.
como a sua integração na escola de Nono. χρόα πάντα Il.19.27, Od.5.455. πάντα κάθηρε na
mesma posição métrica Il.14.171. O segundo hemistíquio é constituído por termos atestados à
saciedade em Homero.
243 ῥόδεος vd. n.110.
244 ἁλίπνοον ἔσβεσεν ὀδμήν cf. ἁλός πολυβενθέος ὀδμήν (Od.4.406), também no segundo
hemistíquio. ἔσβεσεν no tema do aoristo, o verbo é cinquenta e sete vezes empregue nas
Catenas (Novo Testamento) e também apreciado por Nono, mais do que por qualquer outro
autor coevo.
148
HERO E LEANDRO DE MUSEU
e ela abraçando‐o pronunciou palavras apaixonadas 247 :
Vamos, depõe as tuas fadigas no meu colo!”
245 Jogo de palavras e quiasmo: εὐόδμῳ/ὀδμήν (vd. início 270). εὐόδμῳ, originário de Píndaro,
encontra fortuna entre os alexandrinos (Teóc.2.23,17.29, Cal.Aet.43.13, oito vezes em Teofrasto),
uma vez em Coluto e trinta e uma em Nono. ὀδμήν também em final de verso: Od.4.406, 4.446.
Apelo ao sentido do olfacto reforçado por ἁλίπνοον (hápax), exactamente em posição central
de verso, depois de o verso anterior apelar ao do tacto (enxugar, ungir, pele, corpo). O cheiro a
mar era desde sempre desagradável para os gregos (Kost 473).
246 βαθύστρωτος para além de M., cinco ocorrências: Babr.32.7 (s.II d.C.), duas em Nono
(D.15.111, 20.26), duas na Suda Lexicon beta 40.1 (s.X). Sobre o emprego dos termos relativos a
“leito” vd. p.47 n.119.
247 φιλήνωρ só na epopeia tardia, sete vezes: e.g. Coluto 214 (e não 213, como em LSJ), No.D.
34.95. A variante dórica φιλάνωρ não é muito mais frequente. Segundo Kost 474, o termo foi
desde a origem aplicado a objectos concretos, sendo neste passo, pela primeira vez, atributo de
um substantivo abstracto (μῦθος).
248 μή M. segue o hábito corrente na época de comutar as duas negativas (Hopkinson 1994a:
134).
249 ἅλις (sc. ἐστί) “basta, é suficiente” por vezes com particípio (Sóf.OT.1061).
250 ἁλμυρός em Homero, apenas na Od. e sempre qualificativo de ὕδωρ: 4.511 (oito vezes no
total, sempre em final de verso), exactamente como M. e Nono (D.31.57, 42.397, 43.159)
apresentam a expressão.
251 βαρύγδουπος termo raríssimo e não homérico, com apenas quinze ocorrências em toda a
literatura grega. Destacamos, desde Pind.O.6.81, 8.44, P.4.210, Quinto Esm. 1.320, 3.391, 7.369,
11.309 e Nono D.29.224. O termo δοῦπος (ou γδοῦπος, na sua variante poética) é, todavia,
frequente em Homero, também aplicado ao ruído do mar (e.g. Od.5.401, Il.4.455).
252 λύσατο em sentido activo, empregue por Nono e imitado por M. (Kost 480)
253 μίτρη peça de armadura que protege a cintura; nos poetas tardios, cinta de donzela.
254 Cf. 142‐7, onde a mesma palavra é aplicada a casamento, em linguagem que alude a
iniciação e a mistérios (Hopkinson 1994a ad loc).
255 ἀριστόνοος aparentemente apenas com mais quatro ocorrências na literatura grega:
No.P.19.183, Cristodoro (s.V d.C.) Epigr.2.1.357, AG 2.1.357 (Cristodoro de Tebas), 9.213.2
(Anónimo). Não confundir com Aristónoo, citarista coríntio de meados do s.IV a.C.. “Implica
não tanto que Afrodite sabia o que era melhor para estes dois amantes, mas antes que em geral
ela é muito sensata nos mistérios do amor” Hopkinson 1994a ad loc.
149
HERO E LEANDRO DE MUSEU
Mas fazendo a cama no momento da consumação do casamento 267 ,
256 ἀχόρευτος termo raro apreciado por Nono, que o emprega nove vezes, mais do que
qualquer autor na literatura grega (e.g. D.4.323). Só Fílon de Alexandria (s.I a.C.) se lhe
aproxima, apresentando dele cinco ocorrências (e.g. Migr.72.5).
257 λέχος sinédoque frequente por casamento. Sobre o emprego dos termos relativos a “leito”
vd. supra p.47 n.119.
258 Este verso esclarece a relação semântica γάμος/ὑμεναίος, que a omnipresença metafórica ao
longo do texto torna por vezes indistinta. Para esclarecimento sobre a semântica do casamento
vd. p.46 n.118.
259 ζύγιος epíteto de Hera como patrocinadora do casamento AR 4.96. Neste verso consta a
única referência na obra à deusa grega do casamento.
260 ἀστράπτω termo homérico mas só a partir do século I a.C. vulgarizado (sobretudo em
composição) e com fortuna até ao s.XV (Miguel Critobolo). Nono é, mais uma vez, o campeão,
com trinta e seis usos do termo (tema do presente e do aoristo); João Crisóstomo apresenta
trinta e dois (s.IV d.C) e, nos Comentários a Homero, Eustácio (s.XII) emprega o verbo trinta
vezes. Vd. n.295.
261 θαλαμηπόλος empregue vinte e seis vezes por Nono, de longe o autor que mais emprega o
termo, a que Homero recorre apenas duas vezes (Od.7.8, 23.293). Sobre o emprego dos termos
relativos a “leito” vd. supra p.47 n.119, sobre a semântica do casamento, p.46 n.118.
262 ἐπισκιρτάω vinte e duas vezes em Nono, das quais dezoito são a forma ἐπεσκίρτησε (e.g.
D.1.189), exactamente aquela a que M. recorre. No séc. IV d.C. fora usada oito vezes e, antes
disso, apenas por Plutarco (Dem.22), Rufino (data incerta) em AP 5.103.3 (e não 102, como em
LSJ) e Heliodoro 10.17.3.5. Posteriormente a Museu e depois de uma ocorrência em Paulo
Silenciário (com a forma verbal preferida de Nono em Descriptio 670), o termo reaparece quinze
vezes a partir do séc. IX.
263 πολύσκαρθμος totaliza trinta e uma ocorrências na literatura grega, a partir de Homero
(Il.2.814): uma em Nic.Th.350 (s.III a.C.), Calímaco, Apolónio (s.I d.C.), Élio Herodiano (s.II
d.C.), Porfírio (s.III d.C.), Quinto Esm. 5.657, João Galeno (s.XII), três em Estrabão, cinco em
Nono e Eustácio (s.XII); em textos de datação incerta, uma vez nos Scholia ad Nicandrum et
Licophronem e sete vezes nos Scholia in Homerum. O verbo simples, σκαίρω ”saltar”, ocorre duas
vezes em Homero e no contexto da dança (Il.18.572, Od.10.412) e é empregue seis vezes por
Nono.
264 ἄειδε sujeito plural (composto) mas predicado singular, que concorda com o elemento mais
próximo do sujeito, conforme Alexandre Jr. 3.3. 4).
265 πατὴρ καὶ πότνια μήτηρ é expressão usada doze vezes em posição final de verso por
Homero (e.g. Il 6.413, Od 6.30).
266 Sobre os ritos do casamento e o tratamento literário de M. vd. supra II.2.4.1.
267 τελεσσίγαμος na literatura grega neste passo e em quinze ocorrências de Nono (e.g.
D.2.220). Sobre a semântica do casamento vd. supra p.46 n.118.
150
HERO E LEANDRO DE MUSEU
E o casamento acontecia longe dos himeneus cantados.
Navegava de novo para a povoação fronteira de Abido,
amiúde aos deuses que o sol descesse para o ocaso 276 .
290 deliciavam‐se entre si numa clandestina Citereia.
Mas viveram‐na por pouco tempo, não demasiado 279
268 παστός a palavra parece remontar ao século II a.C, empregue quarenta e seis vezes por
Nono (e.g. D. 2.329) e cinco na AG (e.g. 7.568.3 Agátias). Sobre o emprego dos termos relativos
a “leito” vd. supra p.47 n.119.
269 νυμφοκομέω Eur.Med.985 (lír.), muito usado por Nono.
270 γαμοστόλον vd. n.12.
271 λέκτρον emprego do plural pelo singular, à semelhança de Homero, em ordem a evitar a
assonância de duas vogais juntas e a inevitável crase, com consequências métricas, que o
singular ἀρίγνωτος ἐνί provocaria: liberdade pois para traduzir pelo singular. Sobre o
emprego dos termos relativos a “leito” vd. supra p.47 n.119.
272 ἀρίγνωτος prefixo αρι‐ reforça a ideia transmitida pelo raiz a que se liga.
273 ἀκόρητος não homérico mas trágico.
274 ἑλκεσίπεπλος acompanha com parcimónia toda a história da literatura grega, desde
Homero (Il.6.442, 7.297, 22.105) ao s.XIII (Pseudo‐Zonaras Lexicon epsilon 688.1, 688.5),
apresentando trinta e três ocorrências. Curiosamente, a maior parte, vinte, é sem dúvida
posterior a Museu.
275 Quiasmo hábil, que sintetiza o papel de Hero na história (Hopkinson 1994a ad loc) e
reproduz uma antítese célebre, talvez inspirada por [Teóc.] 27.65 (Orsini ad loc). Sobre os
termos que designam Hero vd. supra p.45 n.112.
276 Sobre a expressão do anoitecer, vd. n.105.
277 ὑποκλέπτω vd. n.79.
278 Sobre a semântica do amor e da paixão vd. supra p.49. Para a construção de ἀνάγκη com
gen. cf. 140.
279 ἐπὶ δηρόν Il. 9.415; frequente com negativa: Il.10.371, 2.435. οὐδ’ ἐπὶ δηρόν também em AR
1.1072.
280 ἀπονίναμαι aor.tardio ἀπωνάμην (+ gen. e.g. Il.17.25). A forma ἀπόναντο é em si
raríssima: para além das duas ocorrências em M. (292 e 343), apenas Quinto Esm. 7.611.
281 πολύπλαγκτος Od.17.425, 511.
151
HERO E LEANDRO DE MUSEU
Quando chegou de repente a estação do inverno gelado 282 ,
295 as rajadas invernosas atingiam as profundezas instáveis
e as fundações húmidas do mar, soprando sempre com força,
300 Mas a ti o medo do pélago invernoso não te reteve,
a luz dos himeneus, incitava‐te a negligenciar 290
o pélago enlouquecido. Devia Hero desafortunada
284 πολυστρόφαλιγξ No.D.23.263.
285 ἀλυσκάζω Il.5.253, Od.17.581, muito usado por Nono.
286 ἐφέλκυσε reconhecido por LSJ mas não atestado em Bailly, que admite apenas o aor.
ἐφείλκυσα e formas com ditongo.
287 διχθάς, άδος “partilhado em dois, em dois, duplo” (não traduzido por incapacidade de lhe
atribuir sentido).
288 καρτερόθυμος Il.5.277, Il.13.350, Il.14.512, Od.21.25.
289 ἄπιστος aplicado ao mar em 299, a Leandro em 178 e aqui e em 329 à lâmpada (Hopkinson
1994a ad loc).
290 ἀφειδέω + gen.
291 χείματος ἱσταμένοιο ”no início do inverno” cf. Od.19.519.
292 μινυώριον “de vida curta”. Sobre o emprego dos termos relativos a “leito” vd. p.47 n.119.
293 Sobre a semântica do amor e da paixão vd. supra p.49.
294 θέλγω Il.12.255 ”sc. por πόθος e μοῖρα” Hopkinson 1994a ad loc.
152
HERO E LEANDRO DE MUSEU
Era noite quando as rajadas particularmente enfurecidas 296 ,
315 o pélago mistura‐se com o ar. Levantou‐se por todos os lados a voz
e o Noto ao Bóreas lançou grandes ameaças 306
e o estrondo do mar pavoroso não parava de aumentar.
Mas Leandro em terrível sofrimento nos remoinhos implacáveis 307
muitas vezes invocou o próprio Poseídon, senhor do mar,
295 Este verso (tal como 276) é uma variação sobre o tema, frequente em epitáfios de mulheres
jovens, de que a morte teve lugar tão cedo que as mesmas tochas serviram para o casamento e
para o funeral: e.g. AP 7.182 (Hopkinson 1994a ad loc).
296 βαρυπνείων vd. n.180. Vd. supra IV.1.1 para análise da cena da tempestade, aquela em que
Museu com mais insistência alude a Homero e aproxima Leandro de Ulisses, que sofre a fúria
dos ventos e das ondas por iniciativa de Poseídon, após deixar a ilha de Calipso. Para 319‐13,
cf. ainda AR 1.1201‐4.
297 ἀκοντίζοντες ventos como dardos, ideia de Nono (D.13.389‐90, 39.112) – Hopkinson 1994a
ad loc.
298 Articulação invulgar de tempos verbais, mais uma vez.
299 ἐπί ῥηγμῖνι θαλάσσης expressão homérica sempre em final de verso: e.g. Il 1.437.
300 δὴ τότε, δή Il.1.146, 13.719 “então, portanto”.
301 ἐθήμων + dat. M., + gen. No.D.36.464. Sobre os termos que designam Hero vd. p.45 n.112.
302 θαλασσαίων ἐπί νώτων cf. ἐπ’ εὐρέα νῶτα θαλάσσης dez vezes terminação de verso
homérica (e.g. Il 2.159).
303 τρόφι κῦμα κυλίνδεται Od.11.598.
304 Verso fortemente aliterante: c, d, u.
305 ἀντέπνεεν hápax.
306 A enumeração dos ventos em conflito é cliché das cenas de tempestade (Hopkinson 1994a ad
loc) e envolve quase todos os pontos cardeais: o Bóreas, o norte; o Noto, o sul; o Euro, o sudeste
e o Zéfiro, o Oeste (Orsini ad loc). Cf. Od.5.295‐6 e 5.331‐2.
307 αἰνοπαθής Od.18.201, AR 4.1078, também aplicado a Leandro em 86 : para ele tanto o desejo
como a sua recompensa exigem labuta e sofrimento (Hopkinson 1994a ad loc).
308 Cf. πολλάκις ἠρήσαντο em 231 e 288, oração de ambos então pelo encontro dos amantes.
309 Afrodite era de facto invocada por marinheiros e tinha títulos de culto tais como Εὔπλοια,
Κατασκοπία, Λιμενία and Ποντία (Hopkinson 1994a ad loc). Outros títulos de Afrodite em
notas aos vv. 31, 40 e 183. Cf. 250.
153
HERO E LEANDRO DE MUSEU
e não deixou Bóreas esquecer‐se da sua noiva ática 310 .
dos pés e a força das mãos incansáveis era vã.
Uma enorme profusão de água, incontrolada, corria‐lhe na garganta 315
e Leandro ingeria uma bebida molesta de insuportável salmoura.
<Hero> ....
repreendeu com insultos o vento selvagem. É que
estava morto. Com olhos sem sono,
de pé, alvoroçavam‐na pesadas inquietações. 320
310 Bóreas, deus do vento do norte, raptou Oritia, filha do rei de Atenas, Erecteu, enquanto ela
brincava com as companheiras nas margens do rio Ilisso (Grimal 62). Lit.: “deixou Bóreas não
esquecido da sua noiva ática”. Passagem reminiscente de Od.5.444‐50, onde também Ulisses,
exausto, roga ao deus do rio por piedade.
311 ἀρήγω + dat. Il.2.363. οὔτις poét.
312 Por trás repousa o pensamento homérico de que os deuses não podem ajudar os seus
protegidos, porque eles próprios estão vinculados à μοῖρα (Kost 528).
313 δυσάντες κύματα No.D.6.310.
314 Segundo Hopkinson 1994a ad loc, ὁρμή aqui e o verso seguinte, 326, aludem a Od.5.416.
Sobre o jogo intertextual com a Odisseia vd. também Gelzer 1968: 29.
315 Verso que descreve algo habitual para quem sofre tempestade: cf. Ulisses (Od.5.455‐6) e
Alcíone (Ov.Met.11.665‐6).
316 ἀποσβέννυμι não homérico. Cf. verbo simples em 265.
317 Verso quiástico e aliterante (Hopkinson 1994a ad loc).
318 πολύτλητος Od.11.38, Quinto Esm.1.135, 2.341, 11.25. Sobre a identificação explícita com
Ulisses vd. pp.91‐3. Sobreposição metafórica Leandro‐lâmpada (vd. notas 208, 210 e 239): a
lâmpada é uma representação do homem, que é acendida perto da cabeça do recém‐nascido e
arde durante toda a noite de núpcias, entre os berberes (Chevalier 399).
319 O ς duplo em θέσπισσεν consiste em mais um dos homerismos apreciados por M., pois em
Homero tal acontece por vezes depois de vogal breve, no futuro e no aoristo (Good. §777.7).
320 κυμαίνω o espírito dela é comparado ao do mar revoltoso (Hopkinson 1994a ad loc). Para
πολύκλαυ(ς)τος vd.236.
154
HERO E LEANDRO DE MUSEU
esfolado contra as pedras, viu morto o marido, 328
e, com ruído, cabeça para a frente, caiu do cimo da torre. 330
321 ἠριγένεια epíteto de ἠώς Od.4.195, abs. 22.197, 23.347.
322 Sobre formas de tratamento relativas a Leandro vd. p.45 n.112.
323 ὄμμα τίταινεν expressão muito comum em Nono (Hopkinson 1994a ad loc).
324 ἐπ’ εὐρέα νῶτα θαλάσσης hemistíquio frequente de Homero Il.2.159 at al (Hopkinson
1994a ad loc). Cf.313.
325 ἀλωόμενος forma não homérica: Quinto Esm. 14.63.
326 Sobre formas de tratamento relativas a Leandro vd. p.45 n.112.
327 Eco de 15 e 342, vd. n.318.
328 σπιλάς AG, AR. Sobre formas de tratamento relativas a Leandro vd. p.45 n.112.
329 δαιδάλεος em Homero sempre para metal ou madeira Il.4.135, 8.195.
330 O verso ecoa a morte de Enone na Alexandra de Lícofron v.65‐6 (Hopkinson 1994a ad loc).
331 Sobre formas de tratamento relativas a Leandro vd. p.45 n.112.
332 ὀλλυμένος vd.15.
333 ἀπόναντο vd. n.280.
334 Sobre a simetria e paridade dos amantes como componente fundamental da expressão do
seu relacionamento vd. supra II.2.4.2 e IV.2.1.
335 περ enclítica enfática. Conclusão em tom homérico (ὄλεθρος, πύματος).
155
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
R.BARTHES (2001: 52‐3)
Tendo em conta a dependência dos enredos do romance grego em relação ao
conto popular 1 e a clara afinidade entre o mito de Hero e Leandro e outras histórias de
amor que povoam o imaginário ocidental, pretendemos apontar traços em comum e
eventuais dependências entre eles. Essas linhas de continuidade contribuem para
explicar a fortuna do mito de Hero e Leandro na literatura e nos outros domínios
artísticos 2 .
Rohde (1960: 147‐8 n.2) é com certeza o primeiro a relacionar com Hero e
Leandro uma saga e um conto de motivos comuns: o amor entre jovens originários de
margens opostas do rio ou do mar, que termina na morte de ambos. A saga local persa
explica a construção de uma ponte, a ponte das virgens, mandada construir por uma
princesa que vive no Palácio das Virgens, à beira‐rio. O seu objectivo é que o pastor da
outra margem, que ela ama, se lhe possa juntar sem ter de transpor o rio a nado, mas
depois da ponte construída ele deixa de a procurar.
1 “A maior parte da ficção greco‐romana tem os ingredientes básicos de transmissibilidade como contos
populares e a maioria das versões que temos deles apontam para uma transmissão em fase inicial”
(Anderson 1984: 171; vd. 160‐71). Também Frye explicita a relação entre o romance (em que se inclui o
romance grego) e o conto popular e o conto de fadas, designados respectivamente como romance
sentimental e romance naive: “By naive romance I mean the kind of story that is found in collections of
folk tales and Märchen, like Grimms’ fairy tales. By sentimental romance I mean a more extended and
literary development of the formulas of naive romance” (1976: 3; vd. epígrafe ao capítulo 3). As afinidades
entre o romance e o conto de fadas estendem‐se a uma possível leitura alegórica: “One instinctively
conceives of the princess [Sleeping Beauty] as an image for the human spirit: the story portrays the
endowment, peril, paralysis and, redemption not of just one girl, but of all mankind” (Lüthi 1976: 24).
2 Vd. Moormann 1995: 351‐52 e Reid 1993: 573‐77. Para referências arqueológicas ao mito, em moedas,
relevos de mármore, frescos e jóias, vd. Keydell 1912: 912‐15, Roscher 1965: 1920, Kost 1971 : 585 n.246,
LIMC 1981: 619‐23.
157
O conto sírio refere um apaixonado que nada através do mar até à amada que,
na margem, em cima de uma pedra, ergue uma lanterna. A mãe dela faz com que a
lanterna se apague e os apaixonados morrem juntos, por acção de um marinheiro. O
conteúdo deste conto é muito idêntico ao da canção popular alemã Zweikönigskinder 3 ,
registada pelo menos desde 1563 (Färber 1961: 89) e, no mesmo lugar, também referida
por Rohde.
O motivo da travessia marítima justifica o grande interesse pelo mito de Hero e
Leandro, de tal modo que pelo menos Lord Byron e J.M.W. Turner procuram imitar o
jovem 4 .
1. A TORRE: RAPUNZEL
“The incarceration of a young woman in a tower (often to protect her chastity
during puberty) was a common motif in various European myths 5 and became part of
the standard repertoire of medieval tales, lais and romances throughout Europe,
Africa and the Orient” (Zipes 2001: 474). Para o imaginário ocidental, o motivo da
torre recorda de imediato o conto de Rapunzel, que, embora na aparência originário
dos países mediterrânicos 6 , existe em inúmeras versões não só na Europa (França,
Grécia, Itália e Sicília, Alemanha, Inglaterra), mas também no Egipto e nos Estados
Unidos 7 .
3 Texto em Färber 1961: 88‐9. Uma balada húngara, um conto alemão, uma canção alemã e duas francesas
são reproduzidas e, quando necessário, traduzidas para francês por Sandre (1924: 200‐9).
4 O primeiro, no sentido Abido‐Sesto, é bem sucedido e vem a relatar o seu feito (vd. Anexo III). Já o
pintor, que se aventura no outro sentido, mais difícil, é obrigado a desistir devido à força das correntes
(Kost 1971: 591 n.291), que já Estrabão conhecia (13.1.22, vd. n.8 à tradução). Turner dedica um quadro ao
mito, “The parting of Hero and Leander” (1837).
5 Também na lenda cristã de Santa Bárbara, jovem donzela belíssima, aprisionada pelo pai numa torre por
desobediência. Decapitada pelo pai c. 235 em Nicomédia, por se ter convertido ao cristianismo.
6 A versão dos irmãos Grimm apoia‐se noutra composta, em 1698, por uma dama de companhia,
Charlotte‐Rose de la Force, a partir de um conto de fadas popular francês (Lüthi 1976: 111, 118), mas em
Itália havia já outra redigida por Giambatista Basile.
7 Vd. www.surlalunefairytales.com/rapunzel/other.html, com indicações bibliográficas. Zipes (2001)
transcreve quatro: “Petrosinella” de Giambatista Basile (1634), “Persinette” de Charlotte‐Rose de la Force
(1698), “Rapunzel” de Friedrich Schulz (1790) e “Rapunzel” de Jacob e Wilhelm Grimm (1857). As
variantes da história de Rapunzel estão disponíveis em português apenas na obra de Italo Calvino (2000),
números 18, 36, 86 e 181.
158
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
É pois numa torre que a jovem adolescente é presa por uma bruxa, espécie de
mãe adoptiva; aí recebe visitas, que sobem pelas escadas formadas pelas tranças dela e
entre as quais se conta o príncipe. Da torre vem Rapunzel a escapar com o príncipe.
A história de Rapunzel apresenta não apenas o motivo da torre em comum
com o mito de Hero e Leandro, mas também o do aprisionamento imposto por uma
figura parental e o da torre como espaço de encontro com o amado, que vem a
permitir‐lhe libertar‐se. Tal como com Hero, a torre simboliza a protecção da
virgindade de Rapunzel e o desejo das figuras paternas de evitar que as jovens
adolescentes atinjam a maturidade (Bettelheim 1995: 26). Trata‐se da representação de
processos essenciais na vida, própria dos contos de fadas 8 , e que envolvem as três
fases típicas de perigo, privação e medo (Lüthi 1976: 112, 115). 9
Ao referir as fontes de Shakespeare em Romeu e Julieta, Houghton nomeia os
mitos de Hero e Leandro e Tristão e Isolda. O crítico desconhecia com certeza que já
em Píramo e Tisbe Ovídio tinha celebrizado uma história de amor com os mesmos
traços fundamentais e que na história de Portugal existe uma outra que se lhe
assemelha, a lenda de Pedro e Inês.
8 Não nos preocupamos aqui com a distinção entre conto popular e conto de fadas, que à semelhança de
Frye tomamos como uma unidade.
9 A história de Hero e Leandro apresenta outras semelhanças com o conto de fadas, de que apresentamos
três: 1) o papel activo do homem face à passividade feminina; tal como em Branca de Neve e Cinderela, e
num primeiro momento com Hero e Leandro, os jovens têm de se tornar activos e mostrar que merecem a
mulher que amam, enquanto a heroína aceita passivamente ser amada (“Os contos de fadas parecem
implicar que apaixonar‐se é algo que acontece; estar apaixonado exige muito mais”), 2) a simbologia do
medo, cuja percepção individual, no conto de fadas, é condição necessária para se casar, pois assinala a
idade adulta (cf. M.243): “um herói pode sobreviver a aventuras de pôr os cabelos em pé sem qualquer
angústia, mas só pode encontrar satisfação na vida quando lhe for restituída a possibilidade de sentir
medo” e 3) a morte entendida como transformação/maturação, à semelhança e.g. da história do
Capuchinho Vermelho. (Bettelheim 1995: 350‐1, 354‐5, 227)
159
2.1. PÍRAMO E TISBE
Embora a história destes dois apaixonados tenha duas versões 10 e a de Ovídio
(Met.4.55‐166) seja provavelmente a mais recente (Grimal 2004: 375), é esta a que
apresenta pontos de contacto com o mito de Hero e Leandro. São eles o amor, apesar
da oposição paterna, os encontros secretos (aqui, através de uma fenda no muro que
separa as casas das duas famílias), e a morte de ambos, que permite a união definitiva
dos amantes. Na sequência de um encontro marcado em local não costumado, à
semelhança do que acontece com Romeu e Julieta, Píramo mata‐se por acreditar que
Tisbe tinha sido morta por um animal selvagem e, ao encontrá‐lo, Tisbe suicida‐se com
a mesma espada que Píramo usara. A morte deles tem efeitos na natureza,
transformando a cor do fruto da amoreira, que de branca passa a vermelha. A união
na morte é simbolizada pela colocação das cinzas dos dois amantes na mesma urna.
2.2. TRISTÃO E ISOLDA
O mito de Tristão e Isolda, a loura, tem origem céltica (decorre entre a Irlanda e
a Cornualha) e ganhou autonomia em relação ao núcleo inicial de lendas arturianas
através de numerosas versões poéticas e em prosa, nos séculos XII e XIII, até receber o
seu tratamento mais famoso por Wagner, em 1865 (Buescu 1983: 93).
Desta feita o amor entre Tristão e Isolda é impedido pelo facto de a jovem estar
prometida ao tio de Tristão, o rei Marcos da Cornualha. A lenda desenvolve‐se em
vários episódios particularizantes, como a paixão resultante da ingestão do filtro do
amor destinado ao futuro casal e o casamento de cada um deles com outra pessoa, mas
a morte reúne‐os. O reencontro é provocado pelo pedido de Tristão para ser tratado
por Isolda, pois só ela o curaria, mas a mulher dele engana‐o, ao afirmar‐lhe que Isolda
não vem no barco, e Tristão morre de desespero. O mesmo acontece com Isolda, ao
chegar e vê‐lo morto.
A sepultura de ambos lado a lado, produzindo vegetação que se enlaça, dá a
conhecer um amor que se prolonga e perpetua além da morte (Buescu 1983: 93). O
10 A mais antiga parece ser de origem italiana, Ovídio atribui ao par origem babilónica (Grimal 2004: 375).
160
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
motivo da “natureza denunciante” é comum a Píramo e Tisbe. Embora conste de
versões anteriores da história de Romeu e Julieta, Shakespeare não o incluiu.
2.3. ROMEU E JULIETA
A história das influências da tragédia de Shakespeare é longa, mas tem sido
localizada sobretudo em espaço italiano e numa eventual história verídica. Com efeito,
a primeira versão moderna do mito é da responsabilidade de Masuccio Salernitano
(c.1410‐80). Nesta fase os protagonistas chamam‐se Mariotto e Gian‐Gianozza. Aos
amores e casamento secreto segue‐se fuga dele, devido a uma acusação de assassinato.
Ela continua em casa dos pais e, para evitar o casamento imposto pelo pai, toma uma
poção 11 que a faz passar por morta. Foge disfarçada de frade, para ir ao encontro de
Mariotto, mas ele, tendo sabido da morte dela, regressa para a chorar e é detido e
decapitado. Em consequência ela vai para um convento e morre.
É Luigi da Porto (1485‐1529) que desloca a acção de Siena para Verona, nomeia
os protagonistas Romeo Montecchi e Juliet Cappelletti 12 e dá um tratamento literário
ao relato de Salernitano, desenvolvendo‐o e acrescentando‐lhe motivos mais
dramáticos. Apesar de as famílias serem inimigas, Romeu e Julieta encontram‐se com
frequência, em segredo, estando ela à varanda e ele no exterior. Ele é forçado a fugir,
por ter assassinado um elemento da família dela, e os pais de Julieta decidem o
casamento dela, que ela evita fingindo‐se morta. Por a julgar falecida, Romeu toma um
veneno e vai ao encontro dela. Depois de o veneno fazer efeito, Julieta morre sobre
Romeu. Por efeito da reconciliação das famílias, os dois são sepultados lado a lado 13 .
Embora Matteo Bandello (1485‐1561) tenha composto uma versão muito
próxima da de Luigi da Porto, aparentemente Shakespeare só conhecia esta terceira
variante da história, que terá usado em articulação com o poema narrativo de Arthur
11 Têm sido encontradas no recurso a uma poção que dá aparência de morto influências do mesmo motivo
em Xenofonte de Éfeso, que a faz ingerir por Ântia (Gibbons 1980: 33).
12 Dando origem à convicção de que a lenda tem fundo histórico. Duas famílias com esses nomes existiam
no século XIII, mas só os Montecchi viviam em Verona. Os Capelletti eram de Cremona. Antes de
Shakespeare, apenas um verso de Dante (Purgatorio VI.106) une as duas famílias como exemplos de
dissenção civil. “The legend has long since ceased to be treated as historical truth” (Gibbons 1980: 34).
13 E sobre a terra crescem entrelaçadas uma videira e uma rosa.
161
Brooke, The tragical history of Romeus and Juliet (1562), também derivado de Bandello
(Caso 1992: 13).
Quais são então os traços comuns à versão do mito celebrizada por
Shakespeare e a história de Hero e Leandro? Refira‐se que o conhecimento dos mitos
de Hero e Leandro e de Píramo e Tisbe é atestado não só pela citação dos nomes das
heroínas 14 , como por ecos verbais da obra Hero and Leander de Christopher Marlowe,
que data de 1593 15 (Gibbons 1980: 37). Partilhando um amor secreto, por causa da
oposição paterna, os amantes são forçados a encontros furtivos, que incluem o tópico
da jovem num plano verticalmente mais elevado 16 , em contraste com o elemento
masculino, ao nível do chão – imagem muito idêntica à celebrizada pelas moedas de
Abido, em que Hero alumia do cimo da torre o percurso de Leandro no mar 17 . Nas
obras de Museu e de Shakespeare, ao invés do que acontece nos outros mitos, os
protagonistas celebram um casamento, simbólico no primeiro (M.272‐81), real no
segundo (Shak.2.6; cf. 3.2.97) 18 .
Os dois apaixonados, forçados à separação, são conduzidos à morte, que o
veneno tomado por Julieta despoleta. Romeu e Julieta morrem ao lado um do outro,
ambos convictos da morte anterior do outro, um pelo veneno (Shak.5.3.120) e outra
pela espada (Shak.5.3.170). Como Hero e Leandro, permanecem unidos após a morte
(M.342‐3), em sepulturas lado a lado (Shak.5.3.303). Na história dos amantes da torre
de Sesto, Hero morre, como Julieta, abraçada a Leandro, juntos no mar que lhes dá
sepultura.
14 Também, no mesmo passo, Laura, Dido, Cleópatra e Helena (Shak.2.4.34‐6). Remissões à edição de
Callaghan. Para outras referências a Hero e Leandro em Shakespeare, vd. Apêndice III.
15 A publicação da obra é autorizada em 1593, o que só vem a acontecer em 1598 (Gill 1987: 186). A
tragédia de Romeu e Julieta terá sido composta o mais tardar em 1596. Gill defende o conhecimento
directo de Museu por Marlowe, que terá lido o original grego e composto “a truly rare achievement – a
work that is of uncommon excellence or merit” (1987: 177‐8).
16 As didascálias indicam diferentemente above (Gibbons 1980: 127), at the window (Callaghan 2003: 70) ou
at the balcony. O texto e a descrição dos movimentos de Julieta não exigem mais do que uma janela.
17 Vd. imagem da capa deste trabalho.
18 Este é um dos três elementos de heroização identificados por Somville (2000: 242‐4) na história de Hero
e Leandro: 1) a coincidência de θάλαμος e θάνατος, 2) a prova (ordalie) de carácter iniciático que supõe
uma confrontação com a morte e 3) a relação dos elementos da água e do fogo, que remonta pelo menos
ao confronto de Hefestos e Escamandro, no canto 21 da Ilíada.
162
A DEMANDA DO AMOR E O AMOR DA DEMANDA
2.4. PEDRO E INÊS
Ao contrário das outras três histórias, a lenda de Pedro e Inês tem um fundo
histórico indubitável e resulta de um contexto cristão. Decorre no século XIV em
Portugal, entre o futuro rei e uma dama oriunda de Castela. Por os traços daquele que
já pode ser considerado um mito serem sobejamente conhecidos não importa aqui
mais do que assinalar os comuns à história de Hero e Leandro. Também Pedro e Inês
vivem um amor impossibilitado pela sociedade e pelas suas circunstâncias pessoais,
que ainda assim é concretizado, porventura até ao casamento. Os dois apaixonados
não morrem ao mesmo tempo nem imediatamente a seguir um ao outro, mas não há
visitante do Mosteiro de Alcobaça a quem não seja relatado o motivo pelo qual as
sepulturas de ambos se encontram frente a frente: no momento da ressurreição, o que
verão em primeiro lugar ao levantarem‐se será o amado.
2.5. CONCLUSÃO
Face a estes quatro mitos de amor e morte, pese embora a diversidade de
motivos que o sucessivo tratamento literário lhes foi concedendo, identificam‐se
alguns traços comuns à história de Hero e Leandro.
Todos estes pares amorosos vivem uma paixão avassaladora, que algum tipo
de obstáculo obriga ao secretismo dos encontros e à separação. O desenlace inclui a
morte, que surge sempre como acção em cadeia, isto é, a morte de um dos elementos
do par provoca a morte consecutiva do outro, motivada pelo desespero. A história de
ambos conclui‐se por uma sepultura em que permanecem juntos, exprimindo em
público a união definitiva do casal.
A perenidade do mito de Hero e Leandro é assegurada pelos motivos comuns a
outras histórias de amor fundamentais no imaginário ocidental da paixão amorosa,
que Shakespeare reuniu em Romeu e Julieta, mesmo não conhecendo todas as suas
actualizações: o desenvolvimento de um amor secreto e a morte como momento de
união por excelência. São os traços afins ao conto de fadas, a simbologia da torre e o
motivo da separação provocada por rio ou mar, que conferem à história de Hero e
Leandro carácter distintivo.
163
Anexo III: O mito na literatura antiga e moderna 1
Informação colhida
Data Autor, obra e passo Notas
em
[70‐19 Neue Pauly 1998: vd. comentário de
Virgílio, Geórgicas 3.257‐263
a.C.] 2 455; Roscher 1965: Sérvio, talvez séc.
1919; LIMC 1981: V d.C.
620; Färber 1961: 32‐3
[64 a.C.‐19 Neue Pauly 1998:
Estrabão 13.1.22; 13.591
d.C] 455; Roscher 1965:
1919; Färber 1961: 30‐1
[43 a.C. – Neue Pauly 1998:
Ovídio, Heroides 18 e 19, Ars Amatoria 2.249‐50,
c.18 d.C.] 455; Keydell 1912:
Tristia 3.10.29‐42, Ibis 589‐90, Amores 2.16.31‐2 911; LIMC 1981: 620
[séc.I d.C] Keydell 1912: 911;
Fragmento de 10 versos de papiro 3
Färber 1961: 30‐1
[séc.I d.C.] Keydell 1912: 911;
Pompónio Mela 1.97; 2.26
Färber 1961: 62‐3
[35‐65 d.C.] Keydell 1912: 911;
Lucano BC 9.954‐6
Färber 1961: 64‐5
[25‐101 Keydell 1912: 911;
Sílio Itálico 8.619‐21
d.C.] Färber 1961: 64‐5
[c.40‐102 Roscher 1965: 1920;
Marcial Spectaculorum Liber 25a, 25b, Epig.
d.C.] Keydell 1912: 911;
14.181 LIMC 1981: 620;
Färber 1961: 66‐7
[m.c.96 Roscher 1965: 1919;
Estácio, Tebaida 6.540‐7; 6. 525; Silv.1.3.27‐8,
d.C.] Keydell 1912: 911;
1.2.87‐90 LIMC 1981: 620
[m. antes Keydell 1912: 912; carta a Marco
Fronto 3.13‐14
de 169] Färber 1961: 66‐7 Aurélio
250‐235 Keydell 1912: 912,
Hipólito Romano, Ref.om.haer. 5.14
Färber 1961: 66‐7
[séc. IV] Keydell 1912: 912;
Ausónio, Mosella 10.287‐8; Cupido cruciatur 8.22‐
Färber 1961: 68‐9
3
[c. 433‐483] Keydell 1912: 912;
Apollinário Sid. Carm. 11.70‐1
Färber 1961: 68‐9
[c. 480‐550] Keydell 1912: 912;
Fulgêncio 1.598, 1.613, 3.710
Färber 1961: 68‐9
Keydell 1912: 912;
Antologia Latina 48 [Luxório s.VI d.C] e 199. 89.
Färber 1961: 72‐3
[séc.I a.C ‐ Keydell 1912: 912; Refere‐se a “este
Antípater de Tessalonica AP 7.666, 9.215
séc.I d.C.] Roscher 1965: 1919; túmulo” de Hero e
Färber 1961: 72‐3 Leandro
1 Indicam‐se as ocorrências que são do nosso conhecimento, sem pretensões de um levantamento
exaustivo.
2 Entre parênteses rectos a data de vida do autor; a data indicada sem parênteses corresponde à data de
composição ou publicação do texto. Procura‐se sempre indicar a data mais próxima da composição.
3 Papyrus Rylands Library 486; Ch. Roberts, Cat. of the Greek and Latin Papyr in Manchester III [1938] Nr.486
p.98‐100 quadro 6; B. Snell, Gnomon 15 (1939) 540‐2; Schott 58; Kost 20; Suppl.Hell nr.951.
165
c.470‐c.530
Museu, Hero e Leandro 4
Anastácio I Vilarrubia 2000: 398 vd. p.17.
Coluto, O rapto de Helena
(r.491‐518)
Vilarrubia 2000: 398 vd. p.14 n.39.
Anónimo, Ao rio Alfeu (AG 9.362)
Roscher 1965: 1919;
AG 5.231 de Macedónio Cônsul; 9.387 de
Grimal 2004
[Adriano]
c.520‐575 Vilarrubia 2000: 398; vd. p.19.
Paulo Silenciário AG 5.232 e 5.293
Keydell 1912: 912;
Färber 1961: 70‐1
c. 536‐582 Vilarrubia 2000: 398; vd. p.19‐21.
Agátias de Mirina AG 5.263; Hist.5.12
Keydell 1912: 912;
Färber 1961: 70‐1
séc. IX Vilarrubia 2000: 398
João Geómetra
Vilarrubia 2000: 398; Outrora atribuído
Centão homérico anónimo sobre Hero e
Keydell 1912: 912 a Leão o Filósofo, à
Leandro Cf. AP 9.381 volta do ano 900
entre 1099 e Färber 1961: 76‐83
Baldérico de Burgos, Fragmentum mythologicum
1102
261.954‐1053.
séc.XII Färber 1961: 82‐5
Marco Valério, Carmen Apollinis. Bucolica 4.56‐
67
2ª met. Keydell 1912: 912; romance
Nicetas Eugeniano, Drusila e Cáricles 6.471‐489
séc.XII Färber 1961: 84‐5
início Frenzel 2005: 267
Poema em Mittelhochdeutsch
séc.XIV
c.1314? Reid 1993: 573
Dante Alighieri, Purgatorio 28.73‐4
c.1316‐1328 Reid 1993: 573 tradução alegórica
Anónimo, Ovide moralisé 4.3150‐3731
das Metamorfoses e
outras obras de
Ovídio
1340‐1344 Reid 1993: 573
Francesco Petrarca, Il trionfo dell’ Amore, parte 3
1409 Moormann 1995: 351; mittelnieder‐
Dirk Potter, Der Minnen Loep
Frenzel 2005: 267 ländische; Leandro
transformado em
Adónis
c. 1400 Reid 1993: 573 romance didáctico
Christine de Pizan, L’epistre d’ Othéa à Hector,
em prosa
cap.42
Início séc. Reid 1993: 573; compêndio di‐
Christine de Pizan, Livre de la cité des dames, 2.58
XV Moormann 1995: 351 dáctico em prosa a
partir de De
mulieribus claris,
Boccaccio (1405)
1494 Keydell 1912: 912; cretense; poema de
Markos Musuros (sem título)
Färber 1961: 86‐7 11 versos em grego
c. 1494 Braden 1978: 81 original grego com
Edição de Aldo Manuzio
tradução para latim;
editio princeps
4 A negrito as obras que se dedicam exclusivamente ao mito, e não aquelas que apenas lhes fazem
referência, nem simples sonetos ou poemas de dimensão equivalente.
166
ca. 1494 Braden 1978: 85‐6 texto grego
Janus Lascaris, em Florença
1514 Braden 1978: 92 tradução para
Delamare
latim
1514 Keydell 1912: 912; cretense; poema em
Demetrios Dukas (sem título)
Färber 1961: 86‐7 3 dísticos em grego.
1536 Reid 1993: 573; poema, imitação
Garcilaso de la Vega, “Pasando el mar Leandro
Menéndez y Pelayo de Marcial; também
el animoso” 1908: 361 atribuído a Boscán
1537 Braden 1978: 94; Reid “nem tradução
Bernardo Tasso, Favola di Leandro et d’Hero
1993: 573 nem um trabalho
substancialmente
novo”, 679 versos
1541 Braden 1978: 108; tradução para
Clément Marot, Histoire de Léandre et Héro
Reid 1993: 573; cf. francês dependente
Somville 2000: 244‐5 de Tasso
1541 Braden 1978: 93; Reid tradução mt livre
Hans Sachs, Die unglückhaft Lieb Leandri mit
1993: 573
Frau Ehron
1543 Braden 1978: 100; escrito, pelo
Juan Boscán, Historia de Leandro y Hero
póstumo Reid 1993: 573, menos em parte,
Menéndez y Pelayo depois de 1537
1908: 361
1551 Menéndez y Pelayo a partir de Boscán
Stevan G. de Nágera, Romance de Leandro y
1908: 362
Hero, y como murió
1554 Menéndez y Pelayo soneto
Juan Coloma, “En el soberbío mar se vía
1908: 362
metido”
1554 Menéndez y Pelayo soneto
Jorge de Montemor, “Leandro en amoroso
1908: 362, Nunes
fuego ardia” 1952: 35‐6
Antes de Nunes 1952: 36‐7, dois sonetos;
Luís de Camões, “Seguia aquelle fogo, que o
1557 Menéndez y Pelayo números da edição
guiava” (nº 61), “De um tão felice engenho 1908: 365 de Pimpão (1994).
produzido” (nº 151)
1557 Menéndez y Pelayo interlocutores:
Luis Hurtado de Toledo, “Coloquio de la
1908: 363 Hero e Leandro;
prueva de leales” em prosa
[m.1558] Menéndez y Pelayo soneto
Sá de Miranda, „Entre Sesto y Abido, el mar
1908: 362, Nunes
estrecho“ 1952: 34
1562 Menéndez y Pelayo quatro sonetos
Diego Ramírez Pagán, “Leandro, no te
1908: 364
muestres atrevido”, “Hacia Sesto Leandro
navegava”, “Hero con alaridos rompe el cielo”,
“Oh tú que vás tu vía caminando”
1564 Menéndez y Pelayo glosa a um soneto
Alonso Pérez, “Sobre las raudas aguas del
1908: 365
estrecho”
1566 Braden 1978: 85‐6 texto grego
Estienne
1573 Menéndez y Pelayo dois romances 5
Anónimo, “Por el brazo del Esponto”,
1908: 364 compilados por
“Aguardando estaba Hero” Juan de Linares; a
partir de Boscán
5 O emprego do termo romance, a partir de agora, designa uma composição poética de teor narrativo em
língua vernácula.
167
1580 Menéndez y Pelayo romance, tradução
Hernando de Herrera, “Cuando el osado
1908: 365 do epigrama de
Leandro” Marcial
1580 Menéndez y Pelayo romance
Pedro de Padilla, “En la gran torre de Sesto”
1908: 365
1583 Reid 1993: 573 drama
Jehan Baptista Houwaert, „Leander und Hero“
6 Menéndez y Pelayo soneto; governa‐
Marquês de Alenquer e conde de Salinas,
1908: 367 dor de Portugal
Diogo da Silva de Mendonça, „Ya rendido nos reinados de
Leandro agua bebia” Filipe I e II
6 Sem ser possível apurar data exacta, também três sonetos de Juan de Arguijo, Mateo Vászquez de Leca e
Hipólita de Narváez, que Menéndez y Pelayo coloca imediatamente antes do do Marquês de Alenquer
(1908: 366‐7).
168
1611 Menéndez y Pelayo soneto
Juán Suárez de Alarcón, “Lo mar en médio,
1908: 369
Amor medianero”
1612 Frenzel 2005: 267 epopeia latina em
K. Barth, Leandris
hexâmetros
1614 Reid 1993: 573
Ben Jonson, Bartholomew Fair 5.4.
[m. 1616] Somville 2000: 244‐5 poema
Cervantes, “El marinero de amor”
1616 Corballis 1984: IV tradução
George Chapman, The divine poem of Musaeus
Braden 1978: 114 completamento do
George Chapman, Hero and Leander
sqq ; Reid 1993: 573; poema de
Somville 2000: 244‐5 Marlowe
1618 Menéndez y Pelayo soneto e epigrama
Alonso Jerónimo de Salas Barbadillo, “Quando
1908: 369
por la inclemencia de los hados”, “Hero y
Leandro notados”
1619 Menéndez y Pelayo soneto
Francisco López de Zárate, “Ya quando el Sol
1908: 369
en sombra se volvía”
1622 Menéndez y Pelayo tradução de
Tomás Tamayo de Vargas, “Cuando temerario
1908: 379 Marcial
va”
1622 Menéndez y Pelayo canção
Manuel Quintano de Vasconcellos, “Soltava a
1908: 371
noite oscura”
1623 Menéndez y Pelayo dois sonetos
Pedro Soto de Rojas, “Leandro, el culto del
1908: 370
galán vestido”, “Quiso Amor navegar por el
estrecho”
1627 Menéndez y Pelayo romance
Luis de Góngora, “Aunque entiendo poco
1908: 370‐1
griego”
1627 Reid 1993: 574; poema
Gabriel Bocángel y Unzueta, “Fábula de
Menéndez y Pelayo
Leandro y Hero” 1908: 371
1627 Menéndez y Pelayo soneto
García de Salcedo Coronel, “Las vastas ondas
1908: 371
del estrecho ayrado”
1630 Reid 1993: 574 fábula
Francesco Bracciolini dall’ Api, Ero e Leandro
[1571‐1631] Somville 2000: 244‐5 epigrama
John Donne
1631 Menéndez y Pelayo história burlesca
García de Medrano y Barrionuevo, “Erro y
1908: 372
Leandro”
1633 Reid 1993: 574¸ tragicomédia. 1633
Le sieur de La Selve, Les amours infortunées
Frenzel 2005: 268 ou 1663 ?
d’Héron
1635 Somville 2000: 244‐5; soneto
Lope de Veja, “Por ver si queda en su furor
Frenzel 2005: 268;
deshecho” Moya 1966: esp.71‐6
[m. 1644] Reid 1993: 574; Frenzel comédia perdida
Antonio Mira de Amescua, Hero y Leandro
2005: 268; Menéndez y
Pelayo 1908: 368
1645 Reid 1993: 574; romance
Francisco de Quevedo, Ero y Leandro
Menéndez y Pelayo
1908: 372‐3
1647 Reid 1993: 574 plagiado, romance
Robert Baron, Erotopaignion or The Cyprian
169
Academy em verso e prosa
170
c. 1767? Reid 1993: 574 balada
Daniel Schiebeler, “Hero”
1769 Reid 1993: 574 atribuído a;
Thomas Horde, Leander and Hero
tragédia
1770 Menéndez y Pelayo idílio anacreôntico
Ignacio de Luzán, Leandro y Hero
1908: 376
1774 Menéndez y Pelayo romance, tradução
Juan de Iriarte, « Quando el mar pasó
1908: 377 de Marcial
Leandro »
c. 1783? Reid 1993: 574 poema
Jean François de la Harpe, « Hero »
1785 Reid 1993: 574 tragédia
Johann Baptist von Alxinger, Hero
1786 Reid 1993: 574‐5 monólogo
Jean‐Pierre Clovis de Florian, « Héro et
dramático
Léandre »
1788 Reid 1993: 575 poema
Friedrich Hölderlin, « Hero »
1797 Menéndez y Pelayo tradução em verso
Jose Antonio Conde, Poema de Museo. Amores
1908: 377‐8 solto
de Leandro y Hero
1798? Reid 1993: 575 romance musical
Gottlob Bachmann, Hero und Leander
1801 Reid 1993: 575; balada
Friedrich von Schiller, „Hero und Leander“
Moormann 1995: 351;
Frenzel 2005: 267‐8
1802 Reid 1993: 575 poema
Fortunata Fastàstici Sulgher, Ero e Leandro
[m. 1805] Menéndez y Pelayo cantata
Bocage, “À morte de Hero e Leandro” 7
1908: 377, Nunes
1952: 46‐8
9 Maio Reid 1993: 575 poema
Lord Byron, “Written after swimming from
1810
Sestos to Abydos”
1813 Reid 1993: 575 poema
Lord Byron, The Bride of Abydos: A Turkish Tale
2.1.
1816‐7 Reid 1993: 575 soneto
John Keats, “On a Leander Which Miss
Reynolds, My Kind Friend, Gave Me”
1819 Reid 1993: 575; poema narrativo
Leigh Hunt, “Hero and Leander”
Moormann 1995: 352
1822 Moormann 1995: 352
W. Bilderdijk. Krekelzangen
1822 Reid 1993: 575 epopeia lírica
A.J. Brüssel, Hero
1827 Reid 1993: 575; poema
Thomas Hood, “Hero and Leander”
Moormann 1995: 352;
Frenzel 2005: 268
1828 Reid 1993: 575 poema
Thomas Moore, “Hero and Leander”
1820‐9 Reid 1993: 575; tragédia em verso,
F. Grillparzer, Des Meeres und der Liebe
Moormann 1995: 352; representada pela
Wellen cf. Somville 2000: primeira vez em
244‐5; Frenzel 2005: 1831
268
1830 tradução em
José Fortuna, Fábula de Hero e Leandro 8
quadras
Fernando Pinto do AMARAL (org.). Bocage. Antologia de poesia erótica. Lisboa: Dom Quixote, 2003.
7
Vd. referência completa na Bibliografia.
8
171
1830 Reid 1993: 575; monólogo
Lord Alfred Tennyson, “Hero to Leander”
Moormann 1995: 352 dramático
1838 Menéndez y Pelayo tradução de
Graciliano Afonso, Los Amores de Leandro y Hero
1908: 378 Museu
1859 Reid 1993: 575 tragédia em verso
Louis Gustave Ratisbonne, Héro et Léandre
1868 Menéndez y Pelayo composição festiva
Antonio de Trueba, Hero y Leandro
1908: 378 em redondilhas
1870 Reid 1993: 576 poema
Francis Reginald Statham, “Hero”
1881 Reid 1993: 576 soneto
Dante Gabriel Rossetti, “Hero’s Lamp”
1889 Reid 1993: 576 poema
Madison Cawein, “Leander to Hero”
1891 Reid 1993: 576 drama
Anónimo, Hero and Leander
1893 Reid 1993: 576 poema dramático
Edmond Haraucourt, Héro et Léandre
1897 edição bilingue;
João Ignacio Patrocinio da Costa, Hero e
tradução em hende‐
Leandro de Museu 9 cassílabo solto
1906 Reid 1993: 576 poema
John Drinkwater, “The death of Leander”
1926 Reid 1993: 576 poema
Brookes More, Hero and Leander
1926 Reid 1993: 576 poema
Frank Morgan, “Hero and Leander”
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James Urquhart, “Hero and Leander”
1929 Reid 1993: 576 poema
Malcom Cowley, “Leander”
1936 Reid 1993: 576 poema
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1973 Reid 1993: 577 poema norueguês
Stein Mehren, “Hero og Leander”
2006 referência a Byron,
Michelle Lovric. Carnaval em Veneza. Ed. Saída
que imita Leandro
de emergência. Vol.II, p.13 10 a atravessar o
Helesponto
Vd. referência completa na Bibliografia. Agradeço esta indicação ao Prof. Doutor Frederico Lourenço.
9
Agradeço esta indicação à Dr.ª Elsa Furtado.
10
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