Sei sulla pagina 1di 12

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 95-104 NOV.

2007

DA LIBERTAÇÃO À HEGEMONIA:
FREIRE E GRAMSCI NO PROCESSO DE
DEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL

Giovanni Semeraro

RESUMO

As lutas populares que se desencadearam no Brasil desde os anos 1960 até hoje podem ser caracterizadas
por dois grandes paradigmas: “libertação” e “hegemonia”. A “libertação” foi a tônica predominante nos
anos 1960 e 1970. A “hegemonia” tem sido a palavra de ordem ao longo dos anos 1980 e 1990. A primeira,
representada particularmente por Paulo Freire, e a segunda, tendo em Antonio Gramsci sua referência
maior, foram se entrelaçando e tornaram-se inseparáveis no desenho de um projeto alternativo de socieda-
de. Neste artigo, apresenta-se uma análise crítica de seus significados em decorrência dos dez anos da
morte de Paulo Freire e dos 70 da morte de Gramsci. O texto que segue, além de percorrer os significados,
as diferenças e o entrelaçamento de “libertação” e “hegemonia” em seu contexto histórico e social, apre-
senta uma reinterpretação dos dois paradigmas ante as mudanças políticas e culturais atualmente em curso
no Brasil e na América Latina.
PALAVRAS-CHAVE: hegemonia; libertação; política.

I. INTRODUÇÃO A partir dos anos 1990, no entanto, intensas


mudanças na política, na economia e na cultura
Para retratar a história política dos movimen-
vêm provocando uma ressignificação dos
tos populares brasileiros na segunda metade do
paradigmas de “libertação” e “hegemonia”, sinali-
século passado, pode-se partir da análise de dois
zando um novo ciclo da história das lutas popula-
grandes conceitos: “libertação” e ‘hegemonia”.
res. Nas páginas que se seguem, queremos mos-
A “libertação” foi a tônica predominante nos trar como Paulo Freire (1921-1997) e Antonio
anos 1960 e 1970. A “hegemonia” tem sido a pa- Gramsci (1891-1937) aparecem juntos não ape-
lavra de ordem ao longo dos anos 1980 e 1990. A nas nas datas comemorativas de nascimento e
primeira, representada particularmente pelo pen- morte, mas continuam associados na inspiração
samento de Paulo Freire, expressava os anseios e das atuais lutas dos “oprimidos” e dos “subalter-
as lutas dos que queriam se libertar da ditadura nos” do Brasil e do mundo.
(1964-1984) e da história de colonialismo impos-
II. A LIBERTAÇÃO
to ao Brasil. A segunda, tendo Antonio Gramsci
como referência, passou a significar o projeto das II.1. A busca da própria identidade
forças populares que com o fim da ditadura ori-
Não foi por acaso que o conceito de “liberta-
entavam seus esforços para a construção de uma
ção” veio a permear progressivamente o ideário e
democracia social e para a conquista da direção
as atividades políticas de diversos segmentos so-
política.
ciais durante a ditadura militar (1964-1984). Esta,
As duas, entre os anos 1960 e 1990, foram se de fato, tornara-se a expressão mais palpável do
entrelaçando e acabaram influenciando fortemen- que havia sido em grande parte a história do Bra-
te movimentos sociais, organizações políticas e sil.
educadores populares brasileiros, imprimindo uma
Mais uma vez, de fora e pelo alto, um modelo
unidade de fundo às suas práticas político-peda-
arbitrário de sociedade era imposto ao Brasil, su-
gógicas e conferindo uma sintonia peculiar de lin-
focando com brutalidade a maior mobilização po-
guagem, de formulações teóricas e de projetos
pular de sua história. A repressão que se seguiu ao
sociopolíticos.

Recebido em 15 de agosto de 2007.


Aprovado em 25 de agosto de 2007.
Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 29, p. 95-104, nov. 2007
95
DA LIBERTAÇÃO À HEGEMONIA

golpe de 1964 desmantelou e dispersou organiza- No segundo momento, entretanto, eu ainda pen-
ções políticas, mobilizações estudantis, sindica- sava que a educação não era política, mas que só
tos dos trabalhadores, movimentos sociais, cír- tinha um aspecto político. Hoje, no terceiro mo-
culos de cultura e toda a efervescência política mento, para mim, a educação é política. Hoje, digo
que entre final de 50 e início de 60 vinha que a educação tem a qualidade de ser política, o
“conscientizando” e organizando crescentes seg- que modela o processo de aprendizagem. A edu-
mentos da sociedade brasileira (SEMERARO, cação é política e a política tem educabilidade”
1994, p. 23-33). (FREIRE & SHOR, 1987, p. 75-76).
Portanto, na segunda metade dos anos 1960, Nesses anos, na medida em que se tomava
quando no Brasil se levanta o apelo à “libertação”, cada vez mais consciência da magnitude da do-
não se tratava apenas de uma reação imediata à minação e das imensas carências do Brasil e se
ditadura. Seu grito se estendia contra todas as percebia que não se tratava de aspectos circuns-
versões de “Casa grande e senzala”, aqui implan- tanciais mas de um fenômeno sistemático e es-
tadas pelas sucessivas invasões e pelas diversas trutural, o papel dos intelectuais e dos educadores
formas que a dominação veio assumindo no tem- passou a ser profundamente questionado. Postos
po com as capitanias hereditárias, as oligarquias diante de problemas tão dramáticos, muitos des-
fundiárias, a aristocracia industrial, as corporações tes se associaram às lutas populares e acabaram
transnacionais e as diversas ditaduras militares, redirecionando seus estudos e pesquisas. Torna-
políticas e culturais. va-se cada vez mais claro que a educação não
podia deixar de ser “ato político” e que “é tão im-
Mas, diversamente dos numerosos e desarti-
possível negar a natureza política do processo
culados levantes libertários que nunca haviam dei-
educativo quanto negar o caráter educativo do ato
xado de existir ao longo de sua história, as mobi-
político” (FREIRE, 1982, p. 23).
lizações que “sacudiram” o Brasil antes de 1964
apresentavam condições mais favoráveis para Não é de se admirar, portanto, se, em plena
mudar os rumos do país. Suas intensas atividades ditadura, assistimos a um florescimento espanto-
não apenas desvendavam as contradições estru- so de práticas político-pedagógicas inovadoras e
turais e faziam compreender as raízes profundas de criações teóricas em diversos campos que ti-
da dominação, mas com sua força organizativa e veram na “libertação” sua temática aglutinadora.
suas articulações políticas esboçavam um projeto Sem que houvesse um “centro” organizador ou
alternativo de sociedade. um único pólo de irradiação, entre o final dos anos
1960 e início de 1970, ocorre uma convergência
Junto com as manifestações de resistência, de
de idéias e uma simultaneidade de inspirações em
fato, vinha se delineando um processo de “liber-
torno da nova episteme promovida pelo paradigma
tação” que visava a se livrar da coerção militar e
da libertação.
das ingerências externas nela implícitas, mas tam-
bém do dominador invisível veiculado pela ideo- No espaço restrito deste artigo, limitamo-nos
logia dominante e alojado nas relações sociais a mencionar só alguns escritos e eventos mais
(FREIRE, 1980, p. 58-61; 1992, p. 56). Parado- significativos:
xalmente, portanto, o autoritarismo acabou incen-
1. em 1967, P. Freire publica Educação como
tivando a valorização das raízes populares, a “edu-
prática da liberdade e, em seguida, Peda-
cação para a autonomia”, a luta contra as diversas
gogia do oprimido (1968). Particularmente
formas de dominação disseminadas nas desigual-
nesse livro, apresenta a grande virada na
dades, no preconceito, no racismo, no machismo,
concepção de educação ao fazer do “opri-
na educação, na linguagem, na cultura. Aos pou-
mido” um surpreendente ator político de-
cos, como Paulo Freire relata, a educação popu-
tentor de um revolucionário método peda-
lar foi se tornando “ato político”: “Houve um
gógico;
momento na minha vida de educador em que eu
não falava sobre política e educação. Foi meu 2. em 1967, sai Dependencia, cambio social y
momento mais ingênuo. Houve outro momento urbanización latinoamericana, um texto fun-
em que comecei a falar sobre os aspectos políti- damental de A. Quijano sobre a “teoria da
cos da educação. Esse foi o momento menos in- dependência”. Outros escritos seguem-se
gênuo, quando escrevi a Pedagogia do oprimido. nessa mesma linha, tal como o de F. H. Car-

96
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 95-104 NOV. 2007

doso e E. Faletto, Dependencia y desarrollo de ameaça e uma alternativa para todo o sistema
en América Latina (1967), e o de Teotônio da violência capitalista e todo tipo de organiza-
dos Santos, Crise de la teoria del desarrollo ções autoritárias.
y las relaciones de dependencia en América
A repercussão e a força que esse movimento
Latina (1969);
foi assumindo levaram alguns analistas a falar de
3. em 1968, A. Salazar Bondy publica o livro um fenômeno histórico comparável com a Refor-
Existe una filosofia de nuestra América?, ma Protestante ocorrida na Europa no século XVI
questionando a importação e a imitação me- (ASSMANN, 1974, p. 199) e a relacioná-lo com
cânica da filosofia européia pelos latino-ame- a formação da filosofia da práxis que, no século
ricanos. Em contraposição ao espírito de XIX, se delineou a partir de uma síntese original
submissão e de dependência disseminado na das correntes mais avançadas na política, na eco-
América Latina, aponta a saída para uma nomia e na filosofia (GUTIERREZ, 1981, p. 296).
“consciência libertadora”;
O entrelaçamento das aspirações libertárias com
4. em 1968, em Medellín, a II Conferência do o ideário marxista mostrava como o Brasil e o
Episcopado da América Latina (Cepal) ofi- Terceiro Mundo, em sua chocante situação de
cializa a “opção pelos pobres”, entendidos desumanização, eram o resultado histórico da vi-
no sentido mais concreto de explorados eco- olência perpetrada pela “civilização ocidental” e
nômica e socialmente, e condena abertamen- pela exploração capitalista, não um fenômeno na-
te o sistema capitalista; tural, fruto do atraso e da inferioridade inerentes a
seus habitantes. Como Marx havia já apontado,
5. nesse mesmo ano de 1968, G. Gutierrez es-
parecia realmente claro que é nas colônias que a
creve o artigo “Rumo a uma teologia da li-
profunda hipocrisia, a barbárie intrínseca da civi-
bertação”, no qual começa a reinterpretar a
lização burguesa se manifestam mais abertamente
tradição do pensamento cristão à luz das
(MARX, 1998, p. 863-874).
condições materiais de vida do povo latino-
americano e lança as bases de seu livro mais Tornava-se evidente que, no período de longa
conhecido, Teologia da libertação (1970), dominação por que passaram, o Brasil e os países
seminal para inúmeros cristãos e teólogos latino-americanos haviam sido transformados em
que se engajam ao lado dos “oprimidos”; “associados e dependentes”. E que as teorias que
defendiam o desenvolvimento nos moldes capita-
6. entre os diversos eventos de grande irradia-
listas ignoravam que o subdesenvolvimento era
ção da temática da “libertação” nesse perío-
principalmente o subproduto das políticas econô-
do na América Latina, aqui lembramos ape-
micas e comerciais impostas pelos países cen-
nas: a) o II Congresso Nacional de Filoso-
trais. Portanto, essa condição de dependência nun-
fia, Buenos Aires, 1970 e b) o I Encontro
ca iria ser vencida pela implantação de processos
continental dos “cristãos para o socialismo”,
de modernização e pela imitação dos modelos dos
Santiago del Chile, 1972.
dominadores. Se a pobreza e o atraso dos países
Salta aos olhos de todos o fato de que nesse latino-americanos eram funcionais à riqueza dos
período o marxismo de coloração latino-america- países centrais, a ideologia “desenvolvimentista”,
na e o cristianismo renovado pelo Concílio Vaticano por trás de suas aparências humanitárias, só re-
II confluem para a elaboração da concepção de produzia e aprofundava as desigualdades, fortale-
libertação que vinha fermentando nos diversos cendo assim o próprio sistema capitalista.
movimentos políticos populares brasileiros e lati-
II.2. O novo ponto de partida
no-americanos.
Mas, ao mesmo tempo que elaboravam críti-
Em uma operação inédita e ousada de
cas radicais e contundentes ao capitalismo, as te-
interlocução entre esquerda latino-americana e
orias da libertação apontavam para um novo pon-
igreja popular – duas formas “heréticas” de políti-
to de partida. Indicavam no próprio “oprimido” o
ca e de religião –, começava a fermentar uma nova
sujeito para superar a opressão. Mostravam que
concepção de mundo que questionava não apenas
as transformações e a revolução dependiam subs-
os velhos modelos de partidos e de Igreja, mas
tancialmente de sua capacidade de tornar-se pro-
que se constituía principalmente como uma gran-
tagonista de sua própria história.

97
DA LIBERTAÇÃO À HEGEMONIA

Mais do que o “trabalhador” e o “proletariado” contas da espantosa “mais-valia” mundialmente


– classes sociais consideradas a partir das fábri- acumulada. O “oprimido”, além da mão-de-obra
cas e das cidades industrializadas –, as reflexões barata, evocava a invasão, o genocídio, o comér-
que foram surgindo em torno do conceito de “opri- cio dos escravos, a desapropriação, o apartheid,
mido” evocavam toda a carga de “desumanização” o preconceito, a tortura, a migração, o exílio.
e de “alienação” geradas pelo capitalismo no Começava a ser narrada a história dos horrores
devassado território do Terceiro Mundo. Neste, do capitalismo nos países colonizados, até então
emergia não apenas a “mais-valia” extraída das ocultada e naturalizada. O que se descobria no
mãos do operário, mas eram desmascarados os Terceiro Mundo não era só o operário que ainda
imensos campos de trabalho forçado em que ha- podia contar com alguma organização ou a prote-
viam sido transformadas regiões inteiras do pla- ção de uma certa legislação, mas o ser humano
neta. As seqüelas dessa moderna escravidão eram sem história, totalmente vulnerável, sem nenhuma
visíveis não só no saque e na transferência gigan- importância, espoliado, destituído dos direitos mais
tesca de riquezas, mas principalmente nas altas elementares de vida, destinado a desaparecer sem
taxas de mortalidade infantil, no analfabetismo deixar rastro. O “oprimido” – como o analisa Enri-
invencível, nos mocambos, na explosão das fa- que Dussel – era o “sujeito negado”, o sujeitado, a
velas, na violência urbana, na mão-de-obra bara- “vítima que não pode viver” (2002, p. 520).
ta, na interdição do conhecimento científico e
E, paradoxalmente, esse “ser anulado” era visto
tecnológico.
como novo ponto de partida, como um novo su-
Do recinto das fábricas e das lutas partidárias, jeito capaz de construir um outro mundo. Trata-
as reflexões em torno do “oprimido” faziam le- va-se, portanto, de lutar não apenas por melhores
vantar o olhar para as imensas regiões do planeta condições de trabalho, pela ordem e pelo progres-
onde as desigualdades, as injustiças, os horrores so, mas por um outro projeto de civilização. O
da exploração atingiam mais de 2/3 da população resgate da própria vida e da dignidade da humani-
mundial. É exatamente nos anos 1960 e 1970 que dade não dependia então só de disciplina econô-
explode no mundo inteiro a onda de reflexões so- mica, de ajustes e modernização. Era necessário
bre o desastre do assim chamado Terceiro Mun- que “o outro”, desfigurado em sua humanidade
do. Para além da relação patrão-operário ou da pelo sistema de apartheid instituído pela “comu-
linha Leste-Oeste, a visão se estendia agora para nidade dos senhores” e pelo círculo fechado dos
um outro grande eixo: a relação de desigualdade “povos livres” (LOSURDO, 2006, p. 212-216)
entre Norte e Sul, entre países centrais e regiões aprendesse a se libertar da opressão com as pró-
periféricas. O que emergia dessa visão não eram prias mãos e a mostrar que para alcançar a liber-
abstratos “cidadãos” nem macrossujeitos como o dade e a prosperidade não há necessidade de es-
“povo” e a “nação”, mas eram seres humanos cravizar os outros.
muito concretos. Eram os “esfarrapados”, aos
Sem cair na comiseração e em sentimentos de
quais Freire dedicava a Pedagogia do oprimido,
vitimismo, era necessário aprender a construir o
eram os “que conhecemos em nossas experiên-
próprio projeto de vida, a narrar a própria história
cias educativas, esses homens, mulheres, meni-
e a afirmar a própria “alteridade”. Sem recorrer à
nos desesperançados, mortos em vida, sobras de
violência como fazia o opressor, era preciso pro-
gente” (FREIRE, 1970, p. 29). Eram os “conde-
mover a conscientização e as organizações que
nados da terra”, a “subespécie”, os submersos
podiam socializar a riqueza e o poder. Portanto, o
com os quais muitos educadores, intelectuais, re-
marginalizado nas periferias não devia ser objeto
ligiosos e políticos passavam a compartilhar a con-
de piedade e de caridade, mas reconhecido como
dição de vida e cujas dores assumiam.
sujeito capaz de se resgatar e libertar o próprio
O favelado, o negro, a empregada doméstica, mundo de sua história de alienação (LÖWY, 1991,
o bóia-fria, o índio, o “peão”, o professor/leigo, o p. 95-97).
sem-terra, o sem-teto, o mestiço saíam da som-
Pela aproximação entre cristãos progressistas
bra e entravam nas análises sociais e das pesqui-
e marxistas, era possível ver como “libertação” e
sas acadêmicas, mostrando as tantas faces desfi-
“oprimido” traziam a forte carga que derivava dos
guradas do trabalhador nas colônias. Ampliava-
conceitos de “pobre” e de “explorado”. O primei-
se, assim, o conceito de classe e se refaziam as
ro remetia a um referencial bíblico-cristão funda-

98
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 95-104 NOV. 2007

mental e o segundo expressava a condição do tra- tia-se que não era suficiente “libertar-se da” opres-
balhador no sistema capitalista desvendado pelo são e contentar-se com a liberdade negativa. Era
marxismo. Os dois, cada um a seu modo, contri- necessário desenvolver a liberdade positiva, “li-
buíam na construção da proposta de “libertação” bertar-se para” reconstruir a sociedade, democra-
tanto com suas aspirações redentoras como por tizar direitos e assumir a direção política: “a
seu ímpeto revolucionário. Nas reflexões e nas mobilização, que implica a organização para a luta,
práticas das organizações populares libertadoras é algo fundamental à conscientização, é algo mais
desse período, portanto, ocorria um entrelaçamen- profundo que uma pura tomada de consciência”
to que resultava em fórmulas como “socialismo (FREIRE & SHOR, 1986, p. 115). Em suma, além
cristão”, “marxismo fenomenológico”, de romper com o passado colonial e alcançar a
“existencialismo revolucionário”, tentativas de sín- autonomia, precisava se preparar para criar, con-
tese que procuravam amalgamar espírito de co- trolar e conduzir o complexo processo da nova
munidade e autoconsciência com as análises eco- formação político-partidária e das instituições de-
nômicas e a intervenção política apontadas pelas mocráticas necessárias para o país.
teorias marxistas.
Nos anos de resistência, apesar de tudo, o
III. A CONSTRUÇÃO DA HEGEMONIA oprimido havia gerado um processo de libertação,
lançando as premissas para passar da condição de
III.1. A insuficiência da libertação
“subjugação” à de “subjetivação”. Um fenômeno
Como se sabe, a práxis libertadora e as cres- parecido é delineado por Gramsci quando descre-
centes pressões de movimentos populares junta- ve o processo da “catarse”: a transformação do
mente com outras forças sociopolíticas concor- indivíduo passivo e dominado pelas estruturas
reram para minar e derrubar o regime militar. No econômicas em sujeito ativo e socializado capaz
início dos anos 1980, de fato, encerrava-se no de tomar iniciativa e se impor com um projeto
Brasil um ciclo histórico e com ele se esgotavam próprio de sociedade. “O amadurecimento do
também muitas concepções e práticas político- momento ‘catártico’” – observava o autor dos
pedagógicas originadas em seu seio. Cadernos do cárcere – torna-se o ponto de partida
para toda a filosofia da práxis” (Q 10, § 6, p.
O próprio Freire já sinalizava o perigo de per-
1244,). E a “catarse da libertação” no Brasil da-
manecer só nos horizontes da conscientização:
queles anos, poderíamos dizer, promoveu não
“Assim como o ciclo gnosiológico não termina na
apenas a “consciência das contradições” do siste-
etapa da aquisição do conhecimento já existente,
ma capitalista e a transformação das relações
pois que se prolonga até a fase da criação do novo
intersubjetivas, mas, para voltarmos às palavras
conhecimento, a conscientização não pode parar
de Gramsci, criava as premissas para tornar-se
na etapa do desvelamento da realidade. Sua au-
“a expressão das classes subalternas que desejam
tenticidade se dá quando a prática do desvelamento
educar-se a si mesmas na arte de governar”
da realidade constitui uma unidade dinâmica e
(Q 10, § 41, p. 1320,).
dialética com a prática da transformação da reali-
dade” (1992, p. 103). Os círculos de cultura, “as Além de se “libertar” era necessário, portanto,
comunidades de base”, as práticas educacionais e conquistar a “hegemonia”. Para chegar a isso não
as associações populares de bairro surgidas du- era suficiente se contrapor e derrubar o Estado
rante a ditadura haviam cumprido seu papel de autoritário, era preciso conquistar espaços na com-
resistência e de reivindicações. plexa rede da sociedade civil e se organizar como
sociedade política. Era urgente ganhar o consen-
Estava na hora de sair do casulo das associa-
so ativo da população no imenso campo da cultu-
ções-comunidades, das posições defensivas e pe-
ra, na elaboração da ideologia, nas organizações
riféricas. A crítica e a contraposição ao Estado
sociais, na formação de partidos, na orientação da
autoritário e ao sistema capitalista não eram mais
produção, na condução da economia e da admi-
suficientes. Era preciso avançar em direção à ela-
nistração pública. Percebia-se, de fato, que as clas-
boração de propostas alternativas, desenvolver a
ses dominantes eram hegemônicas porque além
capacidade de constituir novas organizações polí-
do domínio na esfera econômica possuíam o con-
ticas na sociedade civil, conquistar espaços sufi-
trole de setores estratégicos como a mídia e a pro-
cientes para preparar a formação de um Estado
dução do conhecimento. Era o que as análises de
democrático-popular. Por isso, nos anos 80 repe-
Gramsci mostravam quando alertava que, nos

99
DA LIBERTAÇÃO À HEGEMONIA

países “ocidentais”, “o Estado era apenas uma trin- que a “de movimento”, precisava valorizar a “guer-
cheira avançada por trás da qual existia uma sóli- ra de posição”, quer dizer, desenvolver a forma-
da cadeia de fortalezas e casamatas” constituída ção para uma política especializada, para criar or-
pelo complexo sistema de organizações da socie- ganizações que pudessem aglutinar forças e pre-
dade civil (Q13, § 7, p. 1567). E, aqui, de fato, parar enfrentamentos sofisticados com os gru-
encontrava-se a linha de defesa mais sólida da pos dominantes afirmados há séculos no poder.
burguesia no Brasil. Precisava passar do âmbito da “comunidade” para
o de “partido”, sair da visão periférica para alcan-
Entende-se por que entre o final dos anos 1970
çar a visão de totalidade, superar a vida de sobre-
e início dos anos 1980 começam a se popularizar
vivência para pensar na produção de massa.
conceitos provenientes do vocabulário de Gramsci
tanto na política e no mundo acadêmico como Gramsci, de fato, havia percebido que a per-
nos movimentos populares. “A leitura crítica da petuação da burguesia no poder, mais do que pela
realidade – alertava atentamente P. Freire –, asso- violência, ocorria pela capacidade de ser “orgâni-
ciada a certas práticas claramente políticas de ca” aos centros vitais de um país e pelo consenso
mobilização e organização, pode constituir-se num que, embora passivo, sabia criar nas massas. Daí,
instrumento para o que Gramsci chama de ação para Gramsci, a necessidade de elaborar “uma
contra-hegemônica” (1982, p. 21) e, em seguida, teoria da hegemonia como complemento da teoria
emendava: “Para mim o caminho gramsciano é do Estado-força e como forma atual da doutrina
fascinante. É nessa perspectiva que me coloco” da revolução permanente” (Q 10, §12, p. 1235).
(FREIRE, GADOTTI & GUIMARÃES, 1986, p. Parafraseando Gramsci, quando analisa o perío-
68). Não exagera, portanto, Glória M. Gohn quan- do posterior ao ano de 1870 na Europa, onde
do observa que “Gramsci é o autor que mais con- mostra que “[...] as relações organizacionais in-
tribuiu para as análises e as dinâmicas das lutas e ternas e internacionais do Estado se tornam mais
dos movimentos populares urbanos na América complexas e sólidas, e a fórmula de 1848 de ‘re-
Latina nos anos [19]70 e [19]80” (1997, p. 188). volução permanente’ é superada na ciência políti-
ca com a fórmula de ‘hegemonia civil’” (Q 13, §
Assim, aos poucos, a mística e a “radicalidade
7, p. 1566), poder-se-ia dizer que também no Bra-
utópica” provenientes da paixão “libertadora” pas-
sil depois de 1984 as formulações referenciadas
saram a dar lugar mais ao “realismo político” e à
na “libertação” deixam de ter sua força
racionalidade estratégica de organizações sociais
aglutinadora, enquanto ganha impulso a concen-
e partidárias. E Gramsci simbolizava perfeitamente
tração de forças para a conquista da “hegemonia”
essa luta: era o “oprimido” que havia vencido o
na árdua construção da democracia social. No
fascismo na prisão e havia apontado em seus es-
lugar de pensar a política só como ímpeto liberta-
critos os caminhos para a conquista da hegemonia
dor, precisava pensá-la como se realizando no
das classes populares nas complexas sociedades
mesmo campo da burguesia, como sendo um “as-
contemporâneas.
sédio recíproco”, uma “guerra de posição”. E
Entre outras reflexões, a importância de Gramsci apontava exatamente que “a guerra de
Gramsci consistia no fato de que havia analisado posição, na política, é o conceito de hegemonia,
como poucos a fenomenologia do poder e a cons- que pode nascer só depois de algumas premissas,
trução do partido moderno para chegar à ou seja: as grandes organizações populares de tipo
hegemonia. Havia mostrado que a revolução não moderno” (Q 8, § 52, p. 972-973).
ocorria apenas com a tomada do aparelho estatal
Quando começa a se colocar no centro da
e o ataque frontal às classes dominantes. E, neste
práxis político-pedagógica o projeto de hegemonia,
sentido, os “movimentos” da “libertação”, funda-
além de formar pessoas críticas, “libertas” e éti-
mentalmente, apresentavam-se ainda com uma
cas, incentiva-se a desencadear “o movimento real
certa dose de “romantismo” ao combater de fora
que supera o estado atual das coisas” (MARX &
o sistema existente. Precisava, agora, entrar no
ENGELS, 1998, p. 32) e preparar “dirigentes”.
mesmo terreno da burguesia para conhecer por
Mais do que preocupada em se livrar da domina-
dentro os complexos mecanismos institucionais
ção e resgatar a própria dignidade, a conquista da
que fazem funcionar um país, para ter acesso ao
hegemonia mobiliza para construir um projeto al-
sistema financeiro, à mídia, ao conhecimento ci-
ternativo de sociedade, para se habilitar na dire-
entífico e à tecnologia mais avançada. Mais do
ção de processos políticos e culturais capazes de

100
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 95-104 NOV. 2007

expandir para toda a sociedade a democracia po- dos grupos subalternos fragmentados nas inúme-
pular. ras lutas sociopolíticas e observava que “as clas-
ses subalternas, por definição, não são unificadas
Esse deslocamento é particularmente visível
e não podem se unificar até se tornarem ‘Esta-
na mudança de foco que ocorre nas práticas polí-
do’” (Q 25, § 4, p. 2288-2289). Era o que come-
tico-pedagógicas, nas elaborações teóricas e na
çavam a perceber alguns movimentos populares
linguagem das organizações populares. Nesse pe-
brasileiros no novo contexto histórico pós-dita-
ríodo, nota-se um entrelaçamento e depois um
dura militar: embora houvesse muita euforia de-
progressivo deslizamento de vocabulário que vai
mocrática, corriam o risco da pulverização e da
da “opressão” para a “hegemonia”, da “liberta-
dispersão.
ção” para a “direção”, da “identidade” para o “pro-
jeto”, de “movimentos” para “partidos”, de “povo” Portanto, se as classes populares até então
para “classe”, de “diálogo” para “poder”, de “mís- haviam encontrado sua aglutinação no combate
tica” para “estratégia”. ao Estado autoritário, o desafio agora consistia
em se articular para criar um Estado democráti-
III.2. A difícil construção da hegemonia
co. E este não se construía apenas nas lutas par-
Em 1984, de fato, ampliava-se no Brasil não lamentares em torno da elaboração da Constitui-
apenas o espaço da “sociedade civil”, mas rea- ção, mas principalmente nos embates pela con-
bria-se principalmente o campo de atuação no quista da hegemonia, pela direção político-cultu-
âmbito da “sociedade política”. Duas esferas que, ral na complexa e contraditória trama da socieda-
para Gramsci, faziam parte da “superestrutura”, de civil que vinha se ampliando no Brasil.
cuja importância precisava aprender a valorizar
Ao longo dos anos 1980, portanto, viu-se logo
em contrapeso à infra-estrutura econômica e ao
que para enfrentar e superar a hegemonia burgue-
“desenvolvimentismo” promovidos no período da
sa a linha de confronto não era mais sociedade
ditadura militar. Embora distintas, as duas manti-
civil X Estado, mas, principalmente, a disputa entre
nham uma estreita relação e constituíam o com-
projetos emanados da sociedade civil burguesa X
plexo sistema do Estado moderno (Q 6, § 88, p.
os que fermentavam na sociedade civil popular. A
764).
burguesia, em conformidade com sua ideologia
Dos escritos de Gramsci, portanto, aprendia- liberal, entendia a sociedade civil como esfera dos
se que o Estado não podia ser entendido apenas negócios econômicos e visava a separar a política
como “sociedade política (ou ditadura ou aparato da economia, o público do privado. As organiza-
de coerção)”. Na verdade, no “ocidente” o Esta- ções populares, ao contrário, entendiam-na como
do apresentava-se como “um equilíbrio entre so- espaço de socialização dos direitos e de expansão
ciedade política e sociedade civil”, cuja hegemonia da participação política para formar os cidadãos
era exercida por meio de organizações considera- na construção do público e do Estado democráti-
das privadas, como a igreja, os sindicatos, as es- co. A hegemonia que deve ser construída pelas
colas, as organizações de cultura etc (Q 25, § 4, classes populares – alertava Gramsci – “não é o
p. 2287). Inspirado em Hegel e Lênin, Gramsci instrumento de governo de grupos dominantes que
resgatava as dimensões ético-políticas do Estado procuram o consenso e impõem a hegemonia so-
e destacava o momento da hegemonia como es- bre as classes subalternas”. Essas, ao contrário,
sencial na concepção do Estado (Q 7, § 33, p. “têm interesse em conhecer todas as verdades,
881-882). inclusive as desagradáveis” (Q 10, § 41, p. 1320)
e buscam estabelecer uma “relação pedagógica”
Sim, no Brasil as idéias de “libertação” haviam
(Q 11§ 67, p. 1505; Q 13, § 36, p. 1635) entre os
fermentado nos movimentos, na igreja, nos sindi-
governantes e os governados, de tal modo que se
catos, nas periferias, no campo, na educação e na
possa superar a concepção de poder como domi-
cultura popular. Mas ainda não haviam enfrenta-
nação e possam ser dadas as condições para que
do o problema do Estado e, conseqüentemente,
todos venham a “tornar-se dirigentes”. Não se tra-
da organização da “sociedade política” e da con-
tava, portanto, de uma estratégia para tornar o
quista da hegemonia na “sociedade civil”. Ao ana-
poder vertical mais aceitável e humanizado, mas
lisar a realidade “muito complexa” e contraditória
de novas relações sociais, de um novo modo de
na Europa de seu tempo, Gramsci oferecia indi-
entender a política, de um novo modo de organi-
cações metodológicas para delinear uma história
zar a produção, cujos objetivos eram a democra-

101
DA LIBERTAÇÃO À HEGEMONIA

tização efetiva da sociedade, ou seja, a elevação pulares tanto na sociedade civil como no âmbito
intelectual e moral das massas, a passagem des- da sociedade política se multiplicaram e diversifi-
sas da posição de dirigidos à condição de dirigen- caram, por outro lado, não se deve esquecer que
tes (Q 8, § 191, p. 1056). durante essas décadas as classes burguesas bra-
sileiras conseguiram impor o neoliberalismo na
Diversas organizações populares se orientaram
economia, o pragmatismo na política e o pós-
nessa direção e conseguiram realizar experiências
modernismo na cultura, quebrando muitas tenta-
inovadoras na política e na educação. No entanto,
tivas de construção da hegemonia popular e sedu-
ao longo dessas últimas duas décadas, as preocu-
zindo diversos intelectuais.
pações eleitorais e a concentração nos partidos, a
profissionalização da política e o dispêndio de ener- Sem dúvida, as lutas para a conquista do po-
gias na conquista do poder governamental acaba- der governamental e as experiências administrati-
ram esvaziando os espaços voltados para a vas têm valor inestimável na construção da
mobilização popular e a construção da hegemonia hegemonia. Mas as ambigüidades ideológicas e as
nos diversos campos da cultura e da sociedade armadilhas nas quais as esquerdas se deixaram
civil. As perspectivas desenhadas pela “libertação” enredar ao longo desse processo, muitas vezes,
foram sendo consideradas “utópicas” e vistas têm levado ao abandono de valores delineados pela
como uma transição para se chegar à etapa supe- práxis libertadora, ao “esquecimento” de seus
rior da política partidária e das vitórias eleitorais compromissos de classe, a uma compreensão
com as quais a hegemonia acabou sendo confun- redutiva do sentido da hegemonia apontada por
dida e identificada. Em seguida, a Gramsci. Hoje, como este sugere particularmente
parlamentarização da política e as preocupações nos “critérios metódicos” do Caderno 25, § 5,
administrativas foram cavando um abismo ainda seria necessário promover um estudo crítico das
maior em relação aos movimentos populares cada tentativas realizadas pelas “forças inovadoras” que
vez mais entregues a si mesmos. Em analogia com procuraram passar “de grupos subalternos a gru-
Max Weber quando descreve o desencantamento pos dirigentes”, com o intuito de “identificar as
que ocorreu no processo de formação da fases por meio das quais elas adquiriram a auto-
racionalidade moderna, é possível dizer que as nomia diante dos inimigos a serem vencidos e a
preocupações jurídico-administrativas e os “jo- adesão dos grupos que os ajudaram ativa e passi-
gos” políticos “pelo alto” na história recente das vamente [...]” a conquistar espaços de hegemonia
esquerdas brasileiras foram se impondo em detri- e a “se unificar em Estado”.
mento do projeto popular de sociedade, da força
Mas essa é uma história para ser analisada em
arrebatadora da revolução e da mística da
outro momento. Aqui, por enquanto, nos limita-
militância. Ao resgatar o “romantismo” político e
mos a mostrar como os paradigmas de “liberta-
as raízes do comunismo indígena de J. C.
ção” e “hegemonia”, representados por P. Freire e
Mariátegui, M. Löwy ressalta “a dimensão espiri-
A. Gramsci, desempenharam papel decisivo na
tual e ética do combate revolucionário: a fé (“mís-
elaboração de uma práxis político-pedagógica ori-
tica”), a solidariedade, a indignação moral, o com-
ginal no Brasil ao longo da segunda metade do
promisso total (“heróico”), comportando o risco
século, promovendo conquistas consideráveis na
e o perigo para a própria vida” (LÖWY, 2006, p.
democracia, na política e na educação.
17). A especificidade da política e da educação so-
cialista no Brasil, portanto, não pode voltar as cos- Em 2007, quando se comemoram os dez anos
tas e prescindir da riquíssima experiência de gene- da morte de Freire e os 70 do desaparecimento de
rosidade e de “encantamento” promovidos por sua Gramsci, sinalizamos apenas a inseparabilidade
práxis libertadora. Esta, mesmo envolta em seu “ro- desses dois grandes educadores e militantes polí-
mantismo”, havia feito a “opção” pelos “oprimi- ticos nas lutas populares brasileiras em vista de
dos” e manifestado a ruptura com a exploração do sua “libertação” e “hegemonia”.
trabalho e a acumulação privada do capital.
Sem concluir, indicamos alguns pontos para
Se este horizonte de interpretação tiver algum possíveis desdobramentos de um processo políti-
acerto, é possível dizer que as décadas de 1980 e co-pedagógico criativo que está longe de ter es-
1990 têm sido um dos períodos mais intensos e gotado todas as suas potencialidades:
contraditórios de aprendizado político e pedagó-
gico no Brasil. Se, por um lado, organizações po-

102
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 95-104 NOV. 2007

1. A “libertação” e a “hegemonia” são para- devem ter suas peculiaridades respeitadas e


digmas fundamentais não só para entender valorizadas: o primeiro porque aprofunda
a história das idéias e o processo político- mais os horizontes da libertação, a utopia,
pedagógico da segunda metade do século os movimentos, a ética, a afetividade, o diá-
XX no Brasil e na América Latina. As con- logo, a intersubjetividade, as relações peda-
cepções que elas expressam continuam gógicas, a pluralidade, a periferia, os “opri-
atuais e fecundas, porque os problemas di- midos”; o segundo, por dar maior ênfase à
ante dos quais surgiram persistem e se agra- estratégia política, ao enfrentamento ideoló-
varam; gico, à classe, à organização do partido, à
dialética, à conquista da hegemonia, à for-
2. A osmose entre o pensamento de P. Freie e
mação de ‘dirigentes’, à criação do Estado
A. Gramsci representa uma das maiores con-
democrático-popular;
tribuições para a educação e a filosofia polí-
tica brasileira e latino-americana. Eles não 5. A árdua conquista da hegemonia popular no
se excluem, pelo contrário, se Brasil passa pelo aprofundamento do pro-
complementam e se enriquecem; cesso de libertação e esta se completa na
conquista da hegemonia. O entrelaçamento
3. No Brasil, a utilização de muitos conceitos
das duas evita a adoção de idéias mesqui-
de Gramsci e sua “tradutibilidade” não po-
nhas de política e de partido e torna-se uma
dem prescindir da filosofia, da economia,
arma poderosa para superar a concepção de
da teologia e da pedagogia da libertação aqui
poder como dominação e entendê-lo como
elaboradas;
“relação pedagógica” entre pessoas livres e
4. Não se deve contrapor nem confundir “li- socializadas que rompem com o capitalis-
bertação” e “hegemonia”, assim como não mo, com as modernas formas de coloniza-
se deve contrapor Freire a Gramsci e vice- ção, com o paradigma governante/governa-
versa. Os dois, profundamente entrelaçados, do, Norte/Sul, centro/periferia.

Giovanni Semeraro (gsemeraro@globo.com) é Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio


de Janeiro (UFRJ), Professor de Filosofia da Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF),
pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e coordena-
dor do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia Política e Educação da UFF (Nufipe).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSMANN, H. 1974. Teologia della prassi di _____. 1980. Conscientização. São Paulo :
liberazione. Assisi : Cittadella. Moraes.
BONDY, A. S. 1968. Existe una filosofia de _____. 1982. A importância do ato de ler. São
nuestra América? México : Siglo XXI. Paulo : Cortez.
CARDOSO, F. H. & FALETTO, E. 1967. _____. 1992. Pedagogia da esperança. Rio de
Dependencia y desarrollo en América Latina. Janeiro : Zahar.
México : Siglo XXI.
FREIRE, P. & SHOR, I. 1987. Medo e ousadia :
DUSSEL, E. 2002. Ética da libertação na idade o cotidiano do professor. Rio de Janeiro : Paz
da globalização e da exclusão. Petrópolis : e Terra.
Vozes.
FREIRE, P.; GADOTTI, M. & GUIMARÃES,
FREIRE, P. 1967. Educação como prática da li- S. 1986. Pedagogia : diálogo e conflito. São
berdade. São Paulo : Cortez. Paulo : Cortez.
_____. 1970. Pedagogia do oprimido. Rio de Ja- GOHN, M. G. 1997. Teorias dos movimentos so-
neiro : Zahar. ciais. Paradigmas clássicos e contemporâ-
neos. São Paulo : Loyola.

103
DA LIBERTAÇÃO À HEGEMONIA

GUTIERREZ, G. 1972. Teologia de la Liberación. MARX, K. & ENGELS, F. 1998. A ideologia


Salamanca : Sígueme. alemã. São Paulo : Martins Fontes.
_____. 1981. A força histórica dos pobres. QUIJANO, A. 1967. Dependencia, cambio soci-
Petrópolis : Vozes. al y urbanización latinoamericana. Revista
Mexicana de Sociologia, Ciudad de México,
GRAMSCI, A. 1975. Quaderni del carcere. 4 v.
n. 30, p. 505-510.
Torino : Einaudi.
SANTOS, T. 1969. Crise de la teoria del desarrollo
LOSURDO, D. 2005. Controstoria del liberalis-
y las relaciones de dependencia en América
mo. Roma : Laterza.
Latina. Ciudad de México : Siglo XXI.
LÖWY, M. 1991. Marxismo e Teologia da Li-
SEMERARO, G. 1994. A primavera dos anos 60.
bertação. São Paulo : Cortez.
São Paulo : Loyola.
_____. 2006. Introdução. In : MARIÁTEGUI,
_____. 2001. Gramsci e a sociedade civil. 2ª ed.
J. C. Por um socialismo indo-americano. Rio
Petrópolis : Vozes.
de Janeiro : UFRJ.
_____. 2006. Gramsci e os novos embates da fi-
MARX, K. 1998. O Capital. Rio de Janeiro : Ci-
losofia da práxis. Aparecida : Idéias e Letras.
vilização Brasileira.

104
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 227-230 NOV. 2007
ABSTRACTS

* * *
FROM LIBERATION TO HEGEMONY: FREIRE AND GRAMSCI IN DEMOCRATIZATION
PROCESSES IN BRAZIL
Giovanni Semeraro
The popular struggles that have been unleashed in Brazil from the 1960s until today can be
characterized by two major paradigms: “liberation” and “hegemony”. “Liberation” was the dominant
theme throughout the 1960s and 1970s. “Hegemony” was the word of order throughout the 1980s
and 1990s. The first, represented primarily by Paulo Freire, and the second, associated fundamentally
with Antonio Gramsci, became inseparably linked in the designing of an alternative project for society.
This article presents a critical analysis of their meanings on the occasion of the 10th anniversary of
Freire’s death and the 70th since Gramsci’s passing. The following text, in addition to perusing the
meanings, differences and interconnections between “liberation” and “hegemony” in their historical
context, presents a reinterpretation of the two paradigms in the face of the political and cultural
changes that are currently underway in Brazil and Latin America.
KEYWORDS: Paulo Freire; Antonio Gramsci; liberation; hegemony; politics.
* * *

227
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 29: 233-236 NOV. 2007
RÉSUMÉS

* * *
DE LA LIBÉRATION A L’HÉGÉMONIE: FREIRE ET GRAMSCI DANS LE PROCESSUS
DE DÉMOCRATISATION DU BRÉSIL
Giovanni Semeraro
Les luttes populaires qui ont eu lieu au Brésil depuis les années 1960 jusqu’à nos jours peuvent être
caractérisées au moyen de deux paradigmes: « libération » et « hégémonie ». La « libération » donna
le ton des années 1960 et 1970. L’« hégémonie » fut le mot d’ordre au long des années 1980 et 1990.
Le premier, réprésenté principalement par Paulo Freire, et le second, ayant chez Antonio Gramsci sa
référence la plus importante, se sont croisés et sont devenus inséparables sur un dessin d’un projet
alternatif de société. Cet article présente une analyse critique de leurs sens compte tenu des dix ans
de la mort de Paulo Freire et des 70 ans de la mort de Gramsci. Parallèlement aux signifiés, le texte
qui suit aussi les différences et l’entrecroisement de « libération » et d’« hégémonie » dans leur
contexte hitorique et social, présente une réinterprétation des deux paradigmes face aux changements
politiques et culturels actuellement en cours au Brésil et en Amérique Latine.
MOTS-CLÉS: Paulo Freire; Antonio Gramsci; libération; hégémonie; politique.
* * *

233

Potrebbero piacerti anche