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Neuza Mana de Oliveira

TÍTULOS 1 994
n Português Arcaico: Morfologia e Sintaxe
Rosa Virgínia Mattos e Sirva
[Co-edição com Editora Contexto)
n Galegos na Paraíso Racial
DAMAS DE [MIB
0 JOGO ABERTO DOS TRÁ \zESTIS
Jeferson Bacelar
n Impariamo L'italiano, v.4 NO ESPELHO DA MULHER
Eugenia Mana Galeffi e Mauro Porru
n Inglês Instrumental: Leitura e
Compreensão de Texto - doba P.n\enat
de Carvalho Silva, Mana Lha M. M
Garrido e Ténia Pedrosa Barreto
n Dança em Processo: a Linguagem do
/ndü/l/e/ - Lia Robatto
n Diversidade do Português do Brasil
Estudos de Díalectologia Rural e Outros
í2' edição)
n Incompreensível e Bárbaro inimigo
José Augusto Cabras Barreto Bastas
n A Filosofia de Durkheim
Jogo Carlos Saltes Pires da Silva
n fsü'afég/'as do Z)rama - Cleise F. tendes
B Retratos de uma Tribo Urbana: Rock
Bras#eã'o - Almerinda Sales Guerreiro
n Determinações Históricas na Crise da
Economia Soviética
Vector Augusto Meyêr Nascimento
n Marxismo, Cultura e Intelectuais no Brasi}
Antonio Albino Canelas Rubim
n Por Oue Res/'sf/ â Prisão - Cardos Marighella
n Orientação Educacional: Também uma
Questão de Corpo - Margarida Serrão e
Mana Clarice Baleeiro
n Caderno de Exercícios de Topografia
Luis Carlos A. de A. Fontes e Aria Regina
T. F. Teles

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nivcrsidaclc }cdcral da 13a
n'n'
CENTRO EDITORIAL
E DIDATI(O
t
EDUFBA LIVRARIA l ' CANELA

Rua AugUSto V araras na Reitoria da URRA

ISBN 85-232-0099-1 EOUTBA uvRARiA 2 costaCampus de ondin;


Capa: Aloísio M. Filho Tel: (71) 3283-6165 <
\

praça in uvnAniAj ' CEDO Largo Dois de )olho }


Tel: t71) 3322-6742 l

Dedico este estudo às ' 'moras''i da Casa Amarela


que, por razões diversas, trcinsjormciram seus cor-
pos duma ''metamorfose-clítlbulatlte'' em busca
l da imclgem ideal de tema mulher que não existe.
Aíé hoje pagam por isso.
}

048 Oliveira, Neuza Mana de


Damas de paus: o jogo aberto dos travestis
espelho da mulher / Neuza Mana de Oliveiraa. Sal
dor: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1994
158 P

Originalmente apresentado como tese.


1 . Prostituição masculina - Salvador. 2. Travestis
mo - Salvador. 1. Universidade Federal da Bahia. Cen
tro Editorial e Didático. 11. 'Htulo.
CDU 392.65-055.3

Nota: ''h.,lona''. N]enina, mocin]la. Tempo usado por inOuência ango]ense. F. do kumbi: ''monadenge
menina.(Dicionário de Cultos Africanos Brasileiros, de Olha Gudolle Cacciatore, Rio de Janeiro
Biblioteca Central da UFBA Forense Universitária, 1977).
AGRADECIMENTOS
Os caminhos que me conduziram às pistas da "metamorfose-ambulante'',
coram partilhados com presença e guias amigas. Amigos, professores, orienta-
dores, colegas que repartiram somaram e multipl içaram junto comigo reflexões
sobre as Damas de Paus. Entre estes os travestis foram cumplices e generosos
São portanto personagens insubstituíveis nas principais cenas. Agradeço às
''monas'' do Pelourinho pelo crédito tributado ao estudo, pela disponibilidade
de infomtação e ainda pela confiança no propósito fundamental deste estudo,
qual seja, transfomlá-lo em mais em instrumento de apoio na luta das minorias
sexuais discriminadas em nossa sociedade. Agradeço em especial a Wander-
léia, Maninha e Antonieta pelo empenho pessoal dispensado durante toda a
pesquisa de campo; à Morcela, que com sua imagem de cantora baiana, Mana
Betânia, me fez compreender a dimensão artística, a metamorfose do seu corpo
nos palcos. Sou-lhes muito grata.
A Prosa. Ana Alice Costa, Prosa. Ama Motta e Prosa. Sílvia Reis,
orientadoras deste estudo, com competência e aquiescência acadêmica condu-
ziram o processo de elaboração da tese para os oljetivos gerais do estudo,
contribuindo sobremaneira nas discussões bibliográficas, metodológicas e na
concepção geral do trabalho. Vale ressaltar que as críticas e sugestões levanta-
das no processo dc orientação foralla as bases da revisão, refomiulação dos
capítulos originais e sua rcdação final
E imcnsurável a colaboração do professor Luiz de B. Mott. Militante e
íultropólogo estudioso da homossexualidade , sexualidade, etc., muito contri-
buiu indicando fontes bibliográficas e discutindo e refletindo sobre a concep-
ção geral do trabalho, além dc incentivar para que este estudo chegasse a seu
ténBino

Desde seu início este estudo enriqueceu-se com as leituras críticas e


sugestões do proHcssor Jogo José Reis, da UFBA. Os professores Vigente
Dcocleciano Morara e Hcnrique B. Lyra, ambos da UEFS, discutiram comigo
as primeiras idéias e abordagens sobre o tema. Estendo estes agradecimentos
ao Professor Vivaldo da Costa Lima e à Professora Svetlana Vasconcelos da
Faculdade dc Medicina da UFBA, pelo apreço com que indicaram bibliografia
e discutiraun os capítulos originais.
As primeiras imagens e reflexões sobre os travestis do Pelourinho foram
também discutidas com o Proücssor Henriquc Lyra, da UEFS, a quem agradeço ÍNDICE
pelo interesse e estímulo durante todas as etapas deste estudo. Sou grata, em
particular, pelo seu trabalho dc registro fotográfico. Relembro, ainda, a natural
disponibilidade e entusiasmo do antropólogo Aroldo Assumpção; companhei-
ro nos primeiros contados com os travestis do Pelourinho. Agradeço-lhe suges- APRESENTAÇÃO 11

tões na elaboração dos roteiros de entrevistas e na aplicação dos mesmosjunto


aos travestis da área.
INTRODUÇÃO 15

CAPITULO 1 - A Inversão Masculina 25


Sou especialmente grata a Verá Resina de Oliveira, pela paciente e A mulher representada 38
fiindamental colaboração no levantamento nos principaisjomais da cidade. O Erro da natureza. 39
material coletado foi uma matriz pemlanente de inspiração, constituiu-se numa Encanto do disfarce ............... 42
fonte de consulta imprescindível.
A divindade andrógina 44
A Tuta e Lia Reis, agradeço pelas corrcçõcs ortográficas e o carinho com
CAPITULO ll - Geografia do Objeto ou O Travestismo no Brasil 5]
que olharam as primeiras versões do texto da tese. Camaval - na passarcla, ncm elc nem ela 52
Agnaldo Oliveira revelou as primeiras instantâneas das Damas de Paus. A androginia e o sagrado 55
Agradeço-lhe pelo apoio técnico e material na revelação da ambiguidade destas Kabukis, máscaras, atores, personagens: o ''estrela' 59
Dunas.
CAPITULO 111 - Ritos de Passagem 69
Amplia fez a revisão geral dos textos da tese, obletivando esta publicação CAPITULO IV
em fonna de livro. A Solange Fonsêca, Jady Castro e Sara Cristina, sou grata 79
O Negócio do Corpo: Uma Análise Crítica da Prostituição...
pelo carinho e sensibilidade com que fizeram a revisão de linguagem e A prostituição masculina. 91
datilografla do texto cm sua versão final. 97
Mercado de corpos reformulados....
Agradeço ainda a todos os colegas e funcionários do Mestrado em CAPITULO V - Os Travestis do Pelourinho 103
Ciências Sociais, em especial a Ana Mana Afro, pelo seu carinho e apoio.
A transfomlação 107
A rua é o meu escritório 117

CAPITULO VI - O Programa 121


Práticas c preços. 125
Os custos da tmnsfomlação 128
O cliente ... 135

CAPITULO Vll - Cona'onto e Alianças 143


O corpo a corpo com a lei e a ordem 143
Alianças políticas e solidárias ... 149
CONCLUSÃO 152

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 155


APRESENTAÇÃO
Desde a retomada dos movimentos de mulheres e dos estudos feministas
em meados dos anos sessenta, a observação de Simone De Beauvoir, ''não se
nasce, toma-se mulher'', vem deixando de ser novidade. Pelo menos, nos meios
científico-académicos, não se questiona mais a proposição de que masca/ina e
Jemí/fino e, por extensão, as identidades sexuais sejam construções sociais,
culturalmente específicas, ao invés de fatos inerentes às diferenças estéticas e
biológicas entre os sexos.
Isso se toma evidente ao se comparar as noções sobre homens e mulheres
numa dimensão transcultural. Verifica-se, assim, que a tendência em transfor-
mar as diferenças biológicas entre os sexos e suas diferentes funções procria-
tivas em significação social manifesta-se como um fenómeno de dimensões
universais, sendo que em todas as sociedades de que se tem notícia, masculino
e feminino figuram como categorias e domínios opostos, a partir dos quais se
organiza e legitima uma divisão sexual do trabalho. No entanto, as elaborações
culturais em torno dessas categorias e domínios e as fomlas em que são
apropriados na prática social, divergem consideravelmente de uma sociedade
para outra, e muitas vezes de forma radical. Não raro, aliás, atividades,
comportamentos ou traços que em uma detemlinada sociedade ou época são
considerados na/lira/men/e masculinos, podem serjustamente o que em outras
se configura como sendo do domínio feminino por excelência. O que leva a se
concluir - e com segurança - que nenhum desses comportamentos, tempera-
mentos ou traços possa ser de fato algo natural ou inerente a biologia dos sexos.
Para melhor identificar e analisar esse fenómeno e, ao mesmo tempo,
enfatizar o caráter social das relações entre os sexos, feministas inglesas e
americanas, nos idos dos anos 70, passaram a empregar o tempo género, em
oposição à sexo, tal como se expressa na clássica definição de Ann Oakley
1.\ 91'}. tõà. ' 'Selo é um termo que se refere às diferenças entre machos eBemeas:
as diferenças visíveis da genitãlia e cis respectivcts ».lições procriativas.
Gêrtero, porém, é uma questão de culttlra: diz respeito à clcissi.Rcação facial
em masculino e .feminino

Desde então género tem sido objeto de pemtanentes teorizações, toman-


do-se conceito chave para os estudos sobre as identidades sexuais e relações
entre homens e mulheres. Mas se esse estudos e reflexões levaram o detemii-

11
nisso biológico a sc tomar Hlnalmcnte uma postura 'fora de moda', é certo que e como sc descortinou e sc descortina, no cotidiano dos indivíduos estudados
a questão pcmlalccc bastaltc polémica. Enquanto, de um modo geral, há um o processo da /nver ão. Relata e descreve, assim, com sensibilidade e objeti-
consenso dc que género se rcferc ao sexo socialmente construído, as conside- vidadc analítica, não apenas como a experiência de vida dos indivíduos
rações acerca de como se processa a construção social das identidades sexuais entrevistador desembocou no 'fazer a vida como travesti', mas também como
têm divergido significativíunentc (Butlcr 1990, Saffioti 1992, Scott 1988). o 'tomar-sc travesti ' é sempre uma aventura inacabada, que requer constantes
Embora não caiba resenha-los aqui, cumpre ressaltar que apesar do debate reparos e adequações, estéticos e homlonais - e.g. depilações, injeções de
silicose, ingestão dc homlonios, confecção de penteados e aplicação de ma-
que hoje sc trava no plano teórico se mostrar intenso e profícuo, ainda poucos
quiagcm, etc -, para assegurar a transmutação do 'macho biológico' na imagem
são os estudos nos quais sc tem procurado delinear, com maior transparência,
culturalmente cspcciHica do rravesrf, o homem (tra)vestido de mulher
como sc processa de fato a construção social das Idem/idades de género. E,
menos ainda, são aqueles que se debruçam sobre a construção daquelas Mas para além de uma etnografia dos /ral,es/is do Pe/ó, o que já se
identidades que sc esboçam entre um extremo e outro do difuso conífnzzz/m de constituiria numa relevante contribuição aos estudos sobre as identidades e
tipos entre masculino c feminino. relações de género, ol ivro de Ncuza Mariade Oliveira traz tam bém importantes
Se não se nasce homcni ou mulhcr, tampouco se nasce 'bicha', 'sapatona',
contribuições teóricas que, scm dúvida, não deixam dc scr polêmicas. No
particular, as considerações nele esboçadas contrapõem-sc - e com a devida
à gay', ou à travesti'. Cabe, portanto, perguntar: Como sc constroem essas
identidades sociais/sexuais'? Como se verifica, navida de di fe rentes indivíduos, consistência etnográfica c analítica - às explicações psicologizantes, ainda tão
cm voga hoje, c que se limitam apenas a procurar na psicologia da família,
o processo do /ornar-se óic'Aa, safa/ona, gay oz/ /ravesâ2 E, por fim, mas não
menos inlportalte, o que é ser z/ ?a ó/c/za, sopa/o#za, gay oz/ /ravesff na principalmente na Freudiana, as razões e fatorcs que contribuem para o
tomar-sc um(a) invertido(ay. Confomlc se verifica no caso dos /Favas/is do
sociedade brasileira contemporânea?
p'e/ó, tão ricamente documentado neste livro, esse 'tomar-se' resulta menos de
E sobre essas questões que Ncuza Mana de Oliveira trata em l)amas de fatorcs psicológicos do que dc sociais, políticos e económicos. E como bem
Paus: Ojogo aberto dos travestis no espelho dci mulher. E, vüe Wm ewfanzm, argumenta a autora, a génese c reprodução da identidade do oral,esü - poden-
ela o faz com una sensibilidade e profüldidade analítica raiamentc encontradas em do-se daí deduzir, também as de outras identidades sexuais - se delineiam e se
trabalhos sobre esse tema 'maldito' , cercado de toda sorte de preconceitos e, por isso dcsdobran no jogo das relações dc poder, ou sda, das relações de domina-
mesmo, prenhe da possibilidade dc ser tratado com sensacionalismo. ção/subordinação entre as classes, sexos c raças, características de uma socie-
Valendo-sc da perspectiva etnológica, comparativa que o tema requer, a dade profundíullcntc hierarquizada como a nossa. Por isso mesmo se prestam
autora demonstra, com ampla utilização dc exemplos pautados na etnograHla também como elementos constitutivos e, simultiuleancnte, constituídos no
dc diÊercntes sociedades, das ditas 'mais primitivas' às 'modemas'(e 'pós-mo- processo de mcrcantilização das sexualidadcs, próprios dc uma sociedade
dcmãs'), que cnqualto a biologia dos sexos se presta, igualmente, para a capitalista, na qual o sexo, nas suas múltiplas dimensões; toma-sc objcto de
construção de uma miríade dc identidades e de papéis de gene/o diferentes bem compra c venda e, assim, de bargalha, tacto como bcm simbólico no jogo da
como para a sua /aversão - isto é, para que homens assumam identidades e sedução, quanto como mercadoria c serviço a ser prestado.
papéis femininos c vice-versa - o que é ser bon?em ou ser mzí/ber e, portanto, No plano mais amplo dos estudos sobre género, este livro, ao oferecer
um(a) /nver//do(aJ, é sempre algo culturalmente específico, resultante de exemplos concretos do cotidiano dos /rnvesüs travestindo-sc no esse/óo dn
determinações históricas, e passível de verificação empírica. Voltando-se, n7z{//ze/", se coloca no centro do debate atual sobre o género como 'pcúorman-
destine, para a análise do /naves/i na sociedade brasileira contemporânea e ce'. Scm se rcÊrir diretamcnte a esse debate, Z)a/77a.ç de /'az/.s sugere a
valendo-se, para tanto, dc observações, depoimentos e relatos de histórias de descontinuidade quc pcrmcira a relação ente corpo, sexo e gênero, demons-
vida obtidos através dc pesquisa dc campo realizada entre os /ravesüs que por trando que, dc fato, a ':..aparênc'/a é z//?za //zn'ão '' (Newton apud Butler
taro tempo 'Hizcran a vida' no Pelourinho - certamente antes da 'restauração' 1 99 1 : 137). O./ogo dos /pape.s//s no eópe//zo dn nzz//7le/" - seus fitos, seus gestos
do Centro Histórico de Salvador -, o trabalho dc Neuza Mana de Oliveira c tudo fetais de que sc valem na produção de um suposto 'feminino' num corpo
delineia os processos e fatorcs quc subjazcm à construção social dos Invertidos. de sexo masculino - dá mostras de que esses aros, gestos, e tudo que engloba

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o 'se produzir' são sempre eventos 2í:(órmáliçíu ''... no senffdo de qz/e a
essência otl identidade que eles pretendem e:apressar são .ÊlbliçÍlçÕel mcinu-
.jhturaclcis e suslerltadas através de sinais corpóreos e outros meios discursi-
vos ': (Butler 1991:136). O que implica em dizer que o corpo de gênero
(''gcndercd body'') ''... nâo /em um s/aftas on/o/ógico lso/ado dos vários aros INTRODUÇÃO
que corlstiluem a sua realidade '' (Ibid).
O prazer, a aproximação erótica entre os corpos, ocupa um lugar signifi-
Através dos relatos contidos neste livro, percebe-se que o tmvesti não se cativo e modelador na organização da cultura e na fomlação da identidade dos
travesti propriamente de mulher ncm pretende fazê-lo. Ele se espelha, outros- sulcitos. As marcas deste prazer inscritas no corpo social tal qual tatuagens,
sim, num e.vereórlpo de ozz//ber, numa ítibíicação do feminino que só existe expressam os registros culturais da sexualidade.
enquanto uma fabricação. Tnlb-se, portanto, de uma imagem, ou sda, de uma paródia
(Jamcson 1993) dc um ideal que ninguém nalmente incorporou pode incoipom. A prostituição de travestis (homens que se travestem de mulheres), tema
central deste estudo, antes de representar uma cena falsa é parte histórica
Tudo isso pode ser vislumbrado neste trabalho de Neuza Mana de específica das pcmautas aüetivas mercantis entre os seres humanos. Esta trde-
Oliveira. Pela relevância do tema, pela densa etnografia utilizada e as análises tória sc conHigurou a partir da troca entre uma medida monetária e o prazer
ali realizadas. este livro há de deixar sua marca como uma valiosa contribuição obtido de um corpo focado. Constata-se hoje a constante tirania da dupla
aos estudos sobre género c sexualidade no Brasil. mensagem : a parafemália erótica que excita os prazeres mais lúdicos, castra-os
E, para mim, que compartilha não apenas das preocupações de Neusa, para depois recupera-los, não mais no exercício da sexualidade, mas no circuito
mas também de um espaço de trabalho e ação no Núcleo de Estudos Interdis- do lucro
ciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Faculdade de Filosofia e Ciências Nas sociedades ocidentais, o prazer, a lubricidade, a volúpia e as trocas
Humulas da UFBA - onde este traballlo foi originalmente elaborado como
amorosas vêm se realizando num jogo dc claro e escuro, de interdição e
dissertação de mestrado - é um prazer imenso tcr a honra de apresenta-lo ao divulgação, no qual o emergente e diversificado mercado dos serviços sexuais,
público leitor. na medida que amplia suas ofertas, atende a uma demanda incessante pelo
Cecília Sardenbeíg prazer negociado, pelo erotismo monetarizado.
Salvador, janeiro de 1 994. No mercado erótico, com suas leis económicas e códigos sociais que
incitam a atividadc sexual, os travestis têm um relato particular a fazer. Neste,
o roteiro elaborado não só buscara o sentido atual da fantasia andrógina
Re/erência Bibliográ$ca encenada por eles, mas especialmente, desvcndará porque td fantasia de
BUTLER, Judith, 990. Gen(/c/. rlozíb/e. Fenifln:çnl an(/ l/ie suZ)ve/'sio/l o/ Idena01. London:
1
mulher tem a sua procura ampliada. O rótulo, a embalagem da mercadoria
Routlcdge, 1990.
vendida pelos travestis, é a figura de uma mulher que não existe, mas que o
JAMESON, Frcdric, 993. O pós--modcmisnto e a wciedade de consumo. In: KAPLAN, E. Aiut
1
imaginário social teima em reinventar.
(Org.), O mla/-es/«I' lio pós-nialef7tfsnlo. Teorias e Práticas. Rio de Janeiro: Zahar, 1 993.
OAKLEY. Aiut. Se.t, gen(/el' aia/ soc'/ep. New York: Harpcr, 1972. Para chegar mais além da superfície desse erotismo mercantilizado, dos
SAFFIOTI, FlclcieUi, 1 992. Rearticulando gênero e classe. In:COSTA, A. O., BRUSCHINI,.C. portos clandestinos visíveis do prazer, tcm-se que observar o travesti e sua
(orgs.), Unia qííes/27o (/e gane/o. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1 992. atividadc na ti4ctória dramática e secreta da sexualidade ocidental. História
SCOTT, Joan, 1988. Gene/el'alia //le Po/f/fcs i2/'Hfsroly New York: Columbia University Press, dc crescente interdição, principalmente quanto às práticas sexuais não inseridas
1988 no contrato genital que regula a relação do homem e da mulher.
Se se acredita que a sexualidade é um comportamento cultural e não uma
regra universal ditada pela natureza física-biológica que diferencia os dois
sexos, encontraremos com certeza diferentes graus de aceitação, diÊerentcs

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lógicas internas quc justificam ou aprovam detemlinados comportamentos E neste cenário quc a sociedade moderna define a polarização entre o
sexuais. Estas diferenças dcscnharan uma trajetória histórica, que inicia-se corpo masculino c feminino, estabelece seu acordo genital, produzindo tam-
com os significados dcnotativos dos ritos sexuais nas sociedades primitivas e bém a sua inversão. Ser homem significa ser dominante, por ocupar a posição
axila-sc numa moral sexual conotativa e cognoscitiva das sociedades moder- de ativo (inerente à sua gcnitália), pcnetrador, durante o ato sexual. A mulher
nas: um movimento que passou do erotismo mítico ritual, da libertinagem tcvc scu corpo atravessado por um erotismo passivo. Sua especialidade é ser
opressora dos ricos, dos celibatários, dos libertinos, para a prática social receptora do falo c dominada por seu portador. Através da supremacia atribuída
burguesa onde, no dizer dc Foucault (1982), a sexualidade '' é tomada simul- culturalmente à performance sexual masculina, a sociedade se assume enquan-
talcancnte como objcto dc análise c alvo de intervenção controlada''.' to "ser macho'', dcsvialdo para o lado do corpo feminino outras pulsões, outros
A moral sexual burguesa estabeleceu-se no terreno de uma economia da desejos,quc não prcssupo-em o imperativo da demonstração da força penetra-
líbido, apoiada por conceitos científicos, por leis jurídicas e por proscrições dora reservada ao llontcm c a sua gcnitália no exercício da sexualidade.
calânicas quc aprovun ou punem o c.omportunento sexual do indivíduo. Recusar o cumprimento deste imperativo é desejar ser mulher.
Foucault rcgistra ainda o ''discurso interdito'' presente "no silêncio das insti- Guaurri(198 1) analisando a sexualidade masculina na sociedade atual,
tuições públicas'' tais como a escola, a igreja, a fan alia, a clinica e o consultório. conclui quc o prolctarido e a imagem feminina se equivalem. Se para reprodu-
Discurso acompanhado de um pesado murmúrio que a noite, escutamos em zir-sc cnqualto classe a burgcsia não pode prescindir do proletariado, os
surdina sob nossos cobertores. Mumlúrio da arquitetura distribuindo o espaço, homens não podem prescindir da imagem de uma mulher irreal, passiva, para
criando a interdição, dcliniitmldo dormitórios, isolando a intimidade, e vigian- cumprirem sua missão dc instituintes do falo, como fala da ordem érotica e
do o pudor. No contexto da disciplinarização da sexualidade ocidental, várias afirmar unia coreografia sexual onde não cabe o incomensurável
fomlas dc atividadcs eróticas, como a sexualidade das crianças; dos velhos; a
homossexualidade; a sexualidade feminina; tivcraln negadas sua existência, e Esta dança dc homens relegou para o corpo feminino qualquer pulsão que
não possa conter no intervalo fulgás, entre a ascensão de uma ereção e a queda
filtradas pela teoria do casal familiar: tudo passa a acontecer '' naturalmente'
na cíuna do casal, santuário da sexualidade oficial. Tudo posto fora disto é vertiginosa da descarga cspcrnlática. Tudo posto fora desta métrica é imedia-
tamente colado à imagem da mulher.
ilegítimo. Sc tem que ocorrer, quc sqa produzido e estabelecido noutro lugar.
Fora do convívio afctivo da família. Num lugar dc altemativa ao reprimido. Seria corrcto supor quc o travesti expressa uma recusa da opressão
inerente à atribuição cultural do falo'? O imaginário social quando atualiza o
Paralelamente a produção c nonnatização do ''interdito'', a sociedade
mito da aldrogcnia na figura do travesti não está exatuncnte querendo repro-
aludi inaugura os primeiros Shopping-Eros. A pomograHia negocia o sexo
duzir a imagem passiva da mulher, mas sim, buscar na ambiguidade a imagem
explicito, instala-sc a tónica consumista homossexual a prostituição amplia-se,
perdida de mitos arquctipicos, cujas narrativas referem-se a superação da
sofística-se, alarga-se, nela inserindo-se outros elementos, fazendo com que o
dicotomia masculino feminino num mesmo corpo
coito da mulher não mais detenha a característica exclusiva da vcnalidade.
Avivam-sc as urinas dc prazer, num jogo de visibilidade e disfarce, estímulo e Delimitar os sinais que campo--em sua identidade não é tarefa das mais
repressão, produção e ''interdito", silêncio e fala. O desço cai num circuito de fáceis, sobretudo quando se dedicam a prostituição. Dificuldade ampliada pela
trocas inccssantcs c intermináveis, começa com a sua trans6onnação em constatação dc que, dentro do próprio grupo, as identidades são definidas num
mercadoria, e acaba numa cana de motel, morto, aquietado pela fiilgacidade universo de critérios ambíguos, reversíveis e recambiáveis. A ''metamorfose
fulminante de sua incitação no exercício da prostituição. Guido Mantega ambulante'' não se presta a rígidas dcniniçõcs. Pode-se dormir João, acordar
(1980) vê a proliferação das perversões na sociedade modema como uma Joala e, numa iiwersão da inversão, assassina-la para dar lugar a um João agora
ampliação de mercado, na qual ''bonecas de plástico, vibradores de pilha e cm definitivo transfomlado. Neste sentido, há um colação das mais diversas
outros engenhos, ilustram bem a solidão c a alienação da sexualidade''.' percepções entre os travestis, do que sdan eles próprios enquanto sujeitos no
Alienação scmclhaltc, a reservada ao corpo enquanto mercadoria, enquanto scu confronto e aliíulças com outras identidades que rompo-em o complexo
força de trabalho. prostitucional masculino. Grutde parte dos travestis entrevistados não se sente
mulher, embora deseje assemelhar-sc cada vez mais a ela. A definição mais

16 17
usual entre eles do que significa ser travesti tcm como centro a mulher. Ser delinquentes são originários dos setores mais empobrecidos da sociedade
travesti é cultivar cotidialamcnte a imagem feminina. Alisados do mercado formal de trabalho, não são reconhecidos como cidadãos,
tem acesso apenas à participação na ilegitimidade produzida, na qual as
Embo ra a sua prática prostitutiva, como veremos adiante, negue a imagem
atividadcs sexuais tornadas pervertidas pela interdição são rccupcradas numa
do travesti apenas como passivo. No imaginário lúbrico a troca faz referência economia lucrativa
a identidade feminina c scu fantasma passivo para nega-la quíuldo o cliente
paga para scr penetrado. Ainda quc a moral scxual dominaltc conceba a prostituição dos travestis
como perversão, anormalidade; doença, ainda que sejam tratados pela policia
E o quc procura o homem comprador dos serviços sexuais dos travestis?
como criminosos em potencial - uma vcz quc esta concebe o disfarce para
Superar a dicotomia macho c Rcmea através dc sua imagem invertida'? O que
assaltar homens dcsavizados - a atividade ampliou-se, especialmente na década
o atrai no jogo sedutor das Damas de Paus'? Talvez não sda prematuro dizer
de 80. Transformou-se numa cena corriqucira, visível nas ruas das grandes
quc cstc homem deseja confundir-se, cmbaralhar a sua idcntidade sexual cidades. Como conscqüência emergiu um mercado clandestino de serviços da
fazendo amor ao mesmo tempo com uma mulher irreal e com o reflexo do seu
falo, colocado numa operação invertida. inversão corporal, realizados scm nenhum critério médico e por pessoal não
especializado. Os hormânios femininos (sobretudo os importados) e o silicone
E curioso ainda perceber quc esta demanda, invertida pelo simulacro, pelo líquido transformariun-sc num produto dc clevada cotação nos negócios da
falso, pela realidade disfarçada, não é típico da prostituição dos travestis. Na atividadc prostitutiva.
nossa sociedade estes aspectos possuem raizes culturais e históricas muito
profundas. Passam pelo camaval, pela construção da grande imprensa quc se
A trdctória do corpo ilwcrtido dos travestis começa com uma homosse-
xualidade próxima da feminização, intolerável para a família c para o ambiente
afirmou contauldo um país irreal, apenas para assegurar a hegemonia dos grupos
dc trabalho. Ainda sem a aparência transfomlada dc mulher. procuram na
políticos dominaltcs. Passam ainda pelo exercício de poder político das elites
prostitução masculina uma alternativa dc sobrevivência. Na rua, descobrem
que pintarant uni Brasil dc futuro grandioso, disfarçado no tamanho de seus
quc para um tipo particular dc cliente é mais rentável oferecer seus serviços
latifúndios. Por sua vez, o imaginário cultural formado por diferentes grupos
travcstido dc mulher. Galho-sc mais dinheiro investindo na novidade, no artigo
étnicos, sc dissimulava como forma de resistência à dominação cultural das
exótico de luxo quc se tomou o travesti para a economia erótica
elites. Na Bahia, por exemplo, lansã é Salta Bárbara travestida de santa
católica, como dc resto são as diversas figuras do sincretismo religioso. Seria lícito supor que são as leis intimas do mercado prostitutivo que
modelam o corpo dos travestis prostitutos'?
A consolidação desta tendência sc flmlou a tal ponto na nossa sociedade,
quc não é exagero afirmar que vivemos num império de imagens, onde tudo é A resposta implica cm considerar que, tanto a inversão masculina, quanto
cspctáculo, onde os fatos reais são constaltcmcnte maquiados c devolvidos a sua face mcrcaltilizada,não foram ainda suficientemente exploradas pela
como notícias pelos meios dc comunicação de massas. literatura antropológica e sociológica. Por isso mesmo este estudo não tem a
pretensão dc esgotar as reflexões pertinentes ao tema, mas suscitar questões
Sc o travesti é uma invenção da imagem feminina já incorporada no
que contribuam para estudos posteriores acerca da construção da inversão dos
imaginário social, isto não retira o grau dc discrintinação e desprezo a que estão
papéis sexuais no imaginário da sociedade brasileira. Em Salvador, particular-
submetidos. Como se apeou fossem eles os disfarçados, os invertidos, os que
mente nos anos 80, o crescimento da prostituição de travestis, sua visibilidade
estão fora do lugar.
nm avenidas c sua pcrfomt:ulcc nas noites do tráfego, provocaram polémicas
A despeito portanto da invcrsão latente, da compulsão ao simulacro da de ordem pública e judicial, ainda que o travcstimento não sda proibido por
nossa sociedade, e a despeito ainda da demanda do cliente, se instauram lei e nem tampouco a prostituição. Mesmo que, à primeira impressão, a cidade
mecanismos restritivos e punitivos à prostituição dos travestis, tendo como alvo apresente uma configuração cultural favorável à desobediência erótica em
apenas o seu corpo de homem metamorfoseado. Restrição e punição que relação a uma pudicia cristã (carnaval, candomblé, etc.); mesmo que a con-
garantem as marcas das orgiulizações sociais e os limites da divisão de classes. juntura do final da década de 70 no Brasil tenha sido marcada culturalmente
Pois os travestis quc aparecem nas miulchetcs dos jornais como criminosos e pelos nlovimcntos políticos das minororias sexuais - e sua palavra de ordem

18 19
a radicalidadc na metamorfose da identidade sexual masculina em feminina
pulscxual; mesmo com a baldcira da feminização da sociedade e o incitamento
à recusa dos poderes e deveres das atribuições culturais do macho e da Remea, Procura ainda entender como esta metamoúose não é destituída de diferença
os travestis foram tratados pela polícia de Salvador, e ainda são, com requintes e sutilezas, expressas nas diâcrcntcs identidades que qualificam os travestis, os
de crueldade que não ficam nada a dever ao ''tratamento recebido pelos triulsexuais c os transformistas
homossexuais sodomitas durante os longíquos anos da Santa Inquisição''.3 O Capítulo ll aborda a inversão particularizada no caso da sociedade
Diante da evidência da imagem da mulher produzida pelos travestis, se brasileira. O fato da crise de identidade politica, social e económica constituir
fez necessário unia reflexão teórica, ainda que não exaustiva, acerca das uma marca histórica do nosso pais, faz das discussões aqui levantadas, o
significações sociais dc scr homem e ser mulher e a produção social desses principal clo entre a prostituição dos travestis e as características peculiares da
papéis. Trata-sc de idcntiHlcá-la numa trajetória histórico-cultural aliada ao cultura brasileira. Aqui se articulam os traços gerais da fomlação histórico
contra efeito da inversão e os mccalismos sociais que a viabilizam. cultural que explicam porque na década dc oitenta, Roberta Close, famoso
transcxual, sc consolidou enquanto imagem ideal da estética feminina. Conhe-
A compreensão da atividade prostitutiva enquanto negócio do sexo, cida cm outros países, como uma marca de exportação de brasilidade, tal qual
inaplica num afastamento da construção ideológica que a concebe apenas sob Pclé, o café c o futebol.
o ponto dc vista do corpo quc sc vende. Significa afastar-se do equívoco teórico
que, além dc imprimir uma noção cstigmatizadora à figura do prostituto, não Através da moderna atualização do mito, na Hgura do famoso transexual
foi capaz dc relacionar a atividadc com uma lógica de mercado organizada para Robcrta Clone, cnlprccndc-sc a aventura de desvendar os elementos culturais,
atender a uma dcmalda social por prazeres monetarizados. A prostituição mali6estos c latentes, acionados pela imagética da sociedade pam construir os
como um complexo dc operações que envolve outros suticitos (pois não há cadinhos que levam a inversão dc identidades sexuais. E curioso identificar
oferta sem dcmalda), implica em compreender o comércio dos travestis e a os recursos simbó]icos uti]izados para transformar a C]ose numa imagem ideal
mulher irreal quc oferecem no mercado, como uma operação consequente das da estética feminina e malta nacional. O mito insurgente, veiculado insisten-
leis intimas quc ordenam a prostituição masculina. temente pela mídia, parecia atender ao manifesto desço da nossa sociedade
pela ambiguidade, pelo enSaIo, pelo lugar nenhum, prestou-sc para expressar,
A compreensão das características e leis internas da prostituição dos como metáfora, toda a crise de identidade política, económica e social que o
travestis cm Salvador, teve como rcfcrência principal as informações dos que país atravessava naquela década.
habitavala no Pclourinllo, região do Centro Histórico da cidade. O Pela por
muito tempo foi reconhecido socialmente como zona moral na qual a desobe- A imagcnt da mulher veiculada pelos travestis, a ambiguidade por eles
diência erótica gulhou espaço. Os relatos foram inseridos num conjunto dc cultivada c a sua incorporação c reinvenção pelos mecanismos reprodutivos da
reflexões teórico-mctodológicm a respeito do exercício da prostituição em cultura bruilcira remetem à arqueologia da liminaridade constante e respectiva
geral, da inversão masculina e da sua construção histórica em nossa sociedade. demanda erótica dc desejo quc a sua imagem instaura no olhar do homem(eles
se travcstcm para os homens). Estes aspectos certamente estão nas origens da
As referências teóricas pertinentes à temática, tais como a sexualidade e nossa fomaação cultural, desde a colonização. Embora reconhecendo a impor-
sua história no ocidcnte, o conceito e a identidade do homossexual, bem como tância da reconstituição histórica da inversão masculina para o entendimento
as lutas políticas dc organização das minorias sexuais, especialmente aquelas da sua versão atual, não se coloca como propósito deste capítulo esgotar esta
levadas às ruas nas décadas de sessenta e oitenta, foram sem dúvidas orienta- arqueologia, Rias tão sonlcntc resgatar elementos que primitivamente influen-
doras na busca dc uma coêrcncia intima no texto, scm contudo aparecerem ciaram c continuam a influenciar a atualização do mito androgino expressado
tratados de forma particular ao longo da narrativa. n& figura do travesti. O camaval, o candomblé, o teatro caricato, são expressões

O Capítulo l é um exercício teórico preliminar acerca da inversão mascu- culturais indicativas de que a sociedade brasileira vem criando e recriando a
lina e a produção científica empenhada cm explica-la. Pretendeu-se iniciar a inversão ao longo da sua história.
inserção da prostituição dos travestis num contexto quc define os papéis sexuais A comprccnsão dos processos dc transformação a que os travestis se
atribuídos ao corpo do homem e da mulher, c na produção social da inversão submetem para se aproximarem de uma imagem corporal feminina é o objeto
destes papéis, dcstacuido os processos sócias quc viabilizam a inversão levada

20 21
O confronto e a cbopcração estabelecidos entre os travestis e os diferentes
do Capítulo 111. A alteração da imagem corporal do homem em mulheré obtida
agentes sociais quc atuíun ''na noite'' é a temática explorada no Capítulo VII.
via operações, que guardadas as diferenças, equivalem aos ritos de passagem
A compreensão dc quc a atividadc prostitutiva dos travestis do Pela se dá num
produzidos pelas sociedades primitivas para marcar mudanças. Tanto lá, quan-
circuito espacial da ilegitimidade, tomou ncccsário destacar como estes se
to aqui, é o corpo alvo da intervenção, tomado como principal objeto do confrontam com a lei e a ordem social. Não raro esta lei é exercida com
processo ritual. Neste capitulo também se verifica como estes processos são
violência policial c num total desrespeito aos direitos do cidadão
produzidos socialmente, para proporcionar, através do rito, a atualização do
mito da androginia. Na pista dc prostituição, contudo, não sc vive só de confrontos. São
estabelecidos laços de solidariedade que os tomam participantes de uma
No Capítulo IV é resgatado o quadro inicial de referências teóricas, com
o objetivo de entender o exercício da prostituição sob o ponto de vista de sua conlunidadc com valores c símbolos quc os inserem numa rede de trocas
activas c sociais
inserção numa estratégia mais ampla que orienta o desde de nossa sociedade.
Aproxima-se da particularidade da prostituição dos travestis, para insere-la na A escolha dos travestis do Pclõ enquanto grupo referencial deste estudo,
prostituição masculina pois, ainda qua representem mulheres, são homens que foi orientado por critérios oriundos dc informações da imprensa local, por
através do scu erotismo estabelecem relação dc mercado com outros homens. estudos anteriormente elaborados e por observações diretas e in6omtais, as
A caracterização deste tipo dc prostituição foi dificultda pela reduzida literatura quais indicaram o bairro como unl ponto de concentração. Fomlam um grande
sobre a prostituição masculina, sobre a concepção do corpo masculino que se grupo, com intensa rotatividade migratória, com estilos dc vida e atividades
vende, e, ainda sobre o cliente, entidade totalmente encoberta do universo senlclhaitcs. Dentre os travestis que sc prostituem cm Salvador, os que moram
prostitutivo dos travestis; no Pelourinho constituem um grupo social homogêneo.
O Capítulo V caracteriza os travestis do Pela, sua ambiência, e trajetória O grupo foi abordado através dc entrevistas orais e observação panici-
de inversão e suas vidas cotidianas. De agora em diante se privilegia a fala dos palte. Estabeleceu-sc contado com cerca de 40 travestis nos nulos de 1982, 1 983
nossos principais protagonistas. Consta ainda desta seção informações básicas G 1984
sobre o Pelourinho, e a intervenção do Estado na área e sobre o tipo de
As entrevistas realizadas nos locais de moradia e de trabalho (a rua), foram
economia ai desenvolvida. Situar o local é fundamental, uma vez que, a
orientadas por um roteiro elaborado a partir dc leituras e da observação direta
prostiuição em dctenninado período chegou a scr atividade principal de sua
da vida cotidiana dos travestis do Pclõ e das ruas dc prostituição. Utilizou-sc
população, sda a oferta direta dc serviços sexuais sda nas atividades deriva-
como principal instrunlcnto o registro oral das entrevistas que, transfomlado
das, tais como a caÊctinagcm, especulação imobiliária do local do desço, e
cm leitura escrita, foi analisado com base nas referências teóricas e empíricas
ainda atividadcs marginais quc estão presentes nos pontos caracterizados como
abordadas. Utilizou-sc também o registro.fotográfico como flagrante de deter-
zonas de prostituição.
minados traços da vida dos travestis e da sua atividadc
O capítulo VI constói uma concepção do programa sexual realizado pelo
travesti e o cliente como uma unidade elementar da atividade prostitutiva. Nas Além das entrevistas com o grupo de travestis, foram realizadas entrevis-
tas com os homossexuais. Estes cm geral militares e estudiosos de temas afins,
avenidas do tráfego realiza-se um negócio. O travesti entra com a matéria
donos e gerentes dc estabelecimentos soturnos de lazer e diversões cuja
prima, os custos da produção, e o cliente com o dinheiro e um prazer a ser
clientela é gay, e ainda, com os frequentadores destes locais
aplacado. A nia é o local dc trabalho, por isso mesmo não é palco da anarquia
sexual. Aqui se fez necessário confrontar as reflexões dos entrevistados acerca A pesquisa dircta em arquivos e outros centros de documentação tomou-
de sua atividade com as reflexões teóricas apresentadas anteriomlente. O sc indispensável, considerando scr o tema até então pouco explorado. Entre as
programa, a ''transe'', o ''michê'', unidade elementar do complexo prostitutivo principais fontes consultadas, o arquivo do ''Grupo Gay da Bahia" (GGB)
são inseridos num contexto de troca, na qual a atividade atende a uma demanda forneceu um graidc número dc informações retiradas dos jomais, seja da
do cliente. imprensa convencional, seja da altemativa, ou das revistas dc costumes e da
literatura produzida por diversos grupos homossexuais do Brasil e do exterior.

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Vde registrar que nem todas as infomtações catalogadas nos arquivos do GGB,
sobretudo as oriundas de revistas e jomais, possuem indicação completa da
fonte. Entretanto. muitas destas referências foram utilizadas no corpo do
trabalho por representarem valiosas reflexões acerca do tema.
CAPITULO l
As in6omaações básicas sobre o Pelourinho e seus habitantes, bem como
os raros registros dos travestis da área foram levantados junto a biblioteca e A INVERSÃO MASCULINA
arquivo do Instituto do Património Histórico e Cultural (IPHC). A consulta
aos arquivos dos Jornais ''A rude", ''Correio da Balia'', ''Tribuna da Bahia' As mulllercs enganadas pelos travestis no palco ou na rua nos remetem
e ''Jomal da Bahia" contribuiu sobremaneira para a configuração do tema, para os espaços sociais da construção de identidades sexuais desenvolvidas ao
oferecendo uma gama de registros sobre a vida e o cotidiano dos travestis. longo da história cultural da humanidade. A diferença entre o homem e a
mulher é uma filndamenta] condição sobre a qual falam construídas as
O acervo dos arquivos e bibliotecas pessoais dos professores Luiz de B. variadas culturas. Elemento estruturador das diversas organizações sociais, ao
Mott e Vivaldo Costa Lima, do Departamento de Antropologia da UFBA, da
fundar a ordem cultural, faz do corpo e do seu uso o instrumento principal de
professora Svetlana Pereira de Vasconcelos, da Escola de Medicina da mesma diferenciação sexual
Universidade e ainda do Professor Vigente Moreira Deocleciano, da UEFS, foi
de fundamental importância para ampliar as referências teóricas . E sobre o corpo que recai o manto das nomias sociais, cobrindo-o e
descobrindo-o de acordo com as leis intemas de cada cultura. O corpo e seus
A experiência da olbservação participante foi deflagradora das imagens distintos usos desde há muito desencadeiam o processo de diferenciação entre
mais intensas e reais do cotidiano dos travestis. Nos anos de 1982, 1 983 e 1984,
os diversos segmentos da reprodução social humana. A divisão sexual do
foram realizadas pesquisas de observações participantes, em bares, saunas, trabalho, foi, e ainda o é, para muitas sociedades (principalmente as tribais), a
praças e ''boites". Não raro guetos sexuais cuja clientela é de homossexuais. relação detemlinante pam o desenvolvimento da reprodução económica e
Foi igualmente intensa a aventura nas pistas, local de trabalho dos travestis. social. As sociedades construíram o homem e a mulher, acrescentando à
Pude observar sem artifícios as suas imagens invertidas serem demanda- distinção anatõinica de seus corpos um sistema de símbolos culturais que os
das por uma galeria de homens. Certos de sua imunidade enquanto clientes, idcntiHlcam como se fossem extensão da pele. O corpo e suas vestes são
procuram numa mulher que não existe, aquilo que não calsíun de cultivar: a impressões significantes, distinguem o ser masculino do ser feminino. São
porção viril desta mulher. Pude observar aindaquc tal negócio é realizado numa impressões culturalmente determinadas que indicam um sexo desde o nasci-
mento do indivíduo.
claldcstinidade visível onde apenas o travesti é chamado a retirar sua máscara.
Os estereótipos culturais ou as categorias mentais da sociedade consti-
NOTAS tuem as reprcsentaões ideológicas dos vários tipos, estilos de vida e concepção
1 . FOUCAUI.T. Michel. História ch sexualidade 1. Rio de Janeiro, Graal, 1 982, p. 28. de existência. Estes elemento)s, intemalizados socialmente, pemlitem a convi-
2. MANTEGA, Guião. Sexo e Poder. São Paulo, Brasiliense, 1 980. vência entre os diferentes indivíduos e segmentos sociais. Nesta medida, os
3. MOTT, L.B. Revista Civilização Bmsileim. estereótipos'' sexuais expressam o consenso generalizado a respeito das
imagens atribuídas ao homem e à mulher. Cada cultura delimita um sistema de
signos simbólicos que vão, desde a roupa, gestos, atributos atividades, adere-
ços, até os nomes de genêros gramaticais. Esse sistema é diverso para cada tipo
de sociedade c acompanha os processos histórico-culturais de mudanças so-
ciais. Assim, até mesmo qualquer gesto é culturalmente determinado. A
gramática erótica ordena o corpo social, põe suas vestes diáfanas sobre o sexo.
diuldo-lhes caracteres simbólicos exteriores à diferença anatómica. A indu-
mentária cai sobre o indivíduo, falando por ele, dando-lhe a sua definição

24 25
Nas diversas culturas, os elementos quc ordenam e disciplinam o exercí- te equipados para uma definição genital do seu sexo mas não Rara uma
cio da sexualidade instituem como fundamento social a relação de oposição e identidade sexual particular. ' '' "'' "-- r-u "---"
complcmcntariedade entre o comportamento e a perfomaance masculina e
feminina. A despeito do aparato de poder consubstanciado nesta lógica. é i=-,...T\lcker e Money ( 198 1) compreendem que os processos de aquisição da
forçoso rcconllccer que o modelo ideal dos géneros não se realiza de fomla linguagem e de diferenciação da identidade sexual, além de serem semelhantes.
absoluta na experiência hunaana. Por isso mesmo, os individuos e grupos ocorrem num mesmo período da existênciado indivíduo. E na primeira inBmcia
sociais, no scu longo processo de criação e reinvenção do erotismo, desenvol- que se dá a interação entre uma ''predisposição inata", oriunda do sexo
vem práticas diversas que dão lugar à criação de também diversas repre- biólogico, e os sinais de linguagem que introduzem e conduzem o indivíduo
sentações destas mesmas práticas que, historicamente são incorporadas, para nonnas sociais, para nomeação gramatical dos sêres e coisas e para
legitimados, discrintinadas ou postas definitivamente na clandestinidade. aquisição de uma identidade de Género que Ihe confere o senso de ser homem
ou mulher
Emergem daí diferentes conceitos e representações do masculino e do femi-
nino, correspondentes a determinadas épocas e conjunturas políticas e sociais. E flagríulte a existência de uma dcfasagcm entre as representações mentais
A despeito ainda do sexo do indivíduo, quando do seu nascimento, ser c as praticas eróticas reais. Defasagem esta resultante das. vivências eróticas
anunciado c registrado com base no sexo genital, este registro é modulado, ....que contnldizem as representações culturais de ser homem e ser mulher e que,

confirmado ou alterado. Contorne assinalam Tucker e Money (1981), o muitas vezes situam-se no território da inversão, da negação de atributos de
conjunto fomlado por cromossomas, homlõnios c órgãos genitais, não se umjexo que por ''natureza'' Ihe caberia, em favor de certos traços do outro
compra às prcssõcs culturais imprimidos no corpo quando se trata de diferen-
ciar a idcntiHicação sexual. Neste sentido, o conceito dc identidade sexual
perde scu primado biológico para sc dcHinir enquanto categoria socialmente
construída c historicamente determinada. Guimarães (1977), no seu estudo
sobre o exercício da homossexualidade na cidade do Rio de Janeiro, conclui indivíduo (nome, indumentária, atividades, vida amorosaetc.), o fazem mani-
que as identidades sexuais são categorias mentais tecidas pelo imaginário pulando os conceitos de scxo biológico (genital ou anatómico), identidade de
cultural de detcmlinada sociedade e se assumem enquanto ideologia. genêro e/ou papel sexual e identidade sexual

Embora hda a expectativa por parte da sociedade de que o sexo genital


estala dc acordo com o comportamento que se atribui aos diferentes corpos do
nlacllo e da ÍEmea, as identidades sexuais altcmativas se instituem enquanto
desobediência erótica, divergindo dos fundamentos biológicos da distinção
sexual . É a possibilidade dc não coincidência entre o psiquismo e o genital que sociais, culturais, simbólicos, aâetivos, etc. ' '
explica as diversas construções dc identidades sexuais e sua inversão, como no
caso dos travestis. Stoller(1 973)? definha identidade sexual como identidade de gênero que,
airerente do sexo biológico é um conceito fundamental pam entender a perso-
Este acordo entre o psiquismo e o genital, tão cobrado e esperado
socialmente, está na raiz dos processos de desenvolvimento do indivíduo,
relativo à sua primeira apropriação da existência enquanto dimensão simbólica.
Enquanto universo cultural que precisa scr apreendido, apropriado e codificado
numa existência prática e real, o proceso de diferenciação e aquisição da
identidade sexual, scmclhalte ao processo de aprendizado da linguagem,
demonstra quc assim como os indivíduos são aparelhados para a linguagem,
mas não espccificauente para uma língua determinada, são também flsicamen-

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para pararem pedras cerimonialmente.3 Nesta situação, o processo de inversão
mais variadas sociedades, esse papel pode responder de forma inversa aos
valores sociais dominantes. é objeto de um sofisticado ritual de passagem, no qual o tipo mais neqüente é
a do homem em mulher.
E a possibilidade de inversão do papel sexual masculino para o feminino
que aqui nos interessa mais particulamlente. A inversão da oposição da Macireu ( 1 974), num interessante estudo sobre os ritos sexuais, relata que
identidade masculina em feminina é uma fantasia muito antiga do homem e entre os índios da Ainérica do Norte a inversão do xamã era parte das suas
atribiçõcs de mágico. Este tinha o dever de usar as vestes femininas, exercer
está presente nas diferentes épocas e diferentes culturas . A inversão aqui tratada
consiste numa dupla perspectiva: de um lado, a capacidade particular do as suas atividadcs e , principalmente, deixar crescer os cabelos. O processo de
indivíduo em recalnbiar, alterar e de recriar com sua prática sexual, outras mudança começava pelo abandono dos artefatos masculinos (da lança, do arco,
e do laço). Passavam a usar os instrumentos de trabalho feminino e a conviver
identidades e, de outro, a inegável plasticidade cultural em nomear, produzir,
no espaço reservado as mulheres. O seu corpo ia se modificando, tomando-se
vigiar, incorporar (não scm interditos) e classificar as alterações dos indivíduos
nas suas vivências sexuais reais. mais próximo da imagem feminina. Ao cabo desta metamorfose era-lhe con-
ferido o direito dc casar com outro homem
A troca de papéis sexuais é um traço cultural presente em diversas
sociedades. Conforme demonstra Mead (197 1) nos seus estudos em comuni- Se a inversão ligada ao xamanismo era tolerada e institucionalizada, se
dades primitivas, quer da Oceania, quer da América do Norte, a inversão dos os ''budaches'' obtinllan reconhecimento social, não se pode dizer que a
accitação e tolcràlcia se constituíam em regra geral entre os primitivos. Em
papéis verifica-se enqunto possibilidade cultural, para aqueles que visivelmen-
te se encontram em desacordo com sua identidade sexual. A autora vê o Angola, Hmnbly (1975) identificou o rechaço social em relação a inversão
invertido nestas sociedades como conseqilência da insegurança de alguns Relata que presenciou um invertido '' ser ridicularizado e espancado pelo pai
e pelos irmãos, mas não abandonou os trajes nem os hábitos femininos''.4
indivíduos em alcançarem o padrão ideal do papel sexual, ou seja , de não ser
capaz de dcsempenllar os atributos sociais de masculinidade ou de feminilida- Pierre Clastres ( 1978), num artigo intitulado ''O arco e o Cesto'', mostra
de. Mead relata que a condição invertida dos papéis sexuais é previsível nestas como os paacmas (denominação dos guaiaquis para os homossexuais) convi-
sociedades. Os ''bardachcs'', designação primitiva dos homens que se vestem vem na estrutura dos papéis. Estes são cobrados na sua atribuição económica
e vivem como mulllcres, são "reconhecidos como instituição social, contra- e não na sua definição de desço. Na divisão sexual do trabalho entre os
pondo-se à ênfase excessiva da bravura e rudeza dos homens".2 No Pacífico guaiaquis os Itomens caçam e as mulheres coletain. ''Homem-arco''. ''Mulher-
Sul, a antropólogo identificou ainda a existência de cerimónias religiosas ccsto''. E este o quadro de oposição alterado pela inversão, pois ''se o indivíduo
relacionadas com o xamanismo, na qual se celebrava mudanças rituais de sexo não consegue realizar-sc como caçador, ele deixa ao mesmo tempo de ser
homem: passuldo do arco para o cesto, metaforicamente se toma uma mu-
Tal inversão presente nestas sociedades conduziu Mead a elaborar uma
série de inferências a respeito do desenvolvimento cultural das sociedades lher''.S Mas esta alteração também pode scr alvo de interdição. Nas leis de
controle social dos guaiaquis, os mecanismos dc diviasão sexual estão intima-
humanas, nas quais a troca de papéis estariam diretamente relacionadas à mente relacionados com a ordem económica e social
oposição e exclusão quc as sociedades inevitavelmente elaboram entre as
identidades masculina e feminina. Na maioria das sociedades, o ser masculino A este respeito Clastre conta a história de dois panemas de uma mesma
está relacionado a um exagero fHico, a uma exacerbação da força ''inerente tribo. Unl deles, Chachutawachugi, depois de revelada sua incapacidade téc-
do homem". centralizada numa única região corporal: o falo. Enquanto o ser nica com o arco, passou a acompanhar as mulheres na extração de frutas e como
feminino estaria disperso em todo o corpo da mulher, sem uma nítida visibili- estas, carregava um cesto. Era motivo de risos e ''gozação'' por parte dos outros
dade, afastando qualquer possibilidade de concentrar numa Única região, a índios. O outro, Krcmbegi, era propietário de um cesto, sua inversão foi
genital, a marca do ser Rcntea. confirmada, pois vivia com as mulheres e como uma delas. Às vezes, certos
O xamanismo é a instituição, por excelência, tenitório da inversão e locus caçadores faziam dele scu parceiro sexual. Não havia por parte dos outros
índios ncm chacota ncm desprezo. O autor interpreta a diferença de tratamento
da ambiguidade. Entre os índios Mohave, na ocasião de cerimónias religiosas
os xamãs ''fazem mímica de gravidez e parto, abandonando o acampamento que a sociedade guaiaqui reserva a dois sujeitos equivalente, através do grau

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dc radicalidadc da inversão operada por ambos. Enquanto Krembegi levou seu andrógina, cnqualto m ito, é anterior as narrativas gregas. No período neolítico
processo dc inversão à cabo c foi viver no mundo das mulheres e como elas, era sina bolizada por '' uma pedra erguida(menir), símbolo do orgão masculino
ocupando um lugar social dc nítida visibilidade, Chachutawachugi, embora acompanhada dc uma pedra redonda, símbolo do oigão feminino''.S
fora do espaço masculino por carregar o cesto, não levou a cabo sua inversão,
coloculdo-se cm lugar nenhum. Sua invisibilidade social constituía o que As dcidades andrógina do paltcão Grego-Romano pareciam prever uma
Clastrcs dcnonlinou ''escandalo lógico", não se situando cm nenhum lugar futura desordem quando reservaram apenas aos deuses a possibilidade de
nitidancnte identificável, escapava do sistema, introduzindo nele um fator de inversão. Scr mortal era vivcnciar a diferenciação sexual. Acredita-se ser tal
desordem . O anomlal não cra Krembcgi. A sua posição no grupo era percebida diferenciação a base sobre a qual erigiu-sc a civilização humana. Foucault
como nomaal. ''mesmo que essa nova nonlla fosse a das mulheres''.Ó O lugar (1984) no ''Uso dos Prazeres'', refere-se a uma dificuldade histórica da
social dos diÊercntes "pancmas" expressa que na sociedade guaiaqui os sujei- civilização ocidental cm integrar a inversão dos papéis sexuais como parte de
tos constrcm suas identidades, aliando a visibilidadde de géneros com uma sua cu l tura. Já nos textos da Grécia aluga, registra uma descrição estigmatizado
ordem económica produtiva, sqian estes homens, mulheres ou invertido. E do invertido masculino e uma ''repugnância à renúncia voluntária dos prestí-
inlpcrativo quc cada um sc defina entre o mundo do trabalho masculino e gios e da marca do papel viril".io Na mesma obra, o autor transcreve uma
fentinino. Estar fora desta definição provoca um fatos de desordem na estrutura narrativa do filósofo grego Sêncca, na qual este demonstra toda sua indignação
produtiva. Desta forma a inversão é reconhecida, em contraposião a uma para com os eÊcminados: ''a paixão doentia de faltar c dançar enche a alma
intoleràicia com a ambiguidade, quc não sc toma visível no espaço produtivo dos nossos cfcminados. Ondular os cabelos, tomara voz suficientemente tênue
das mulheres e ncm no dos homens. para igualar a carícia das vozes femininas, rivalizar com as mulheres através
da lassidão dc atitudes, estudar-se cm perquiriçõcs muito obscenas. eis o ideal
Em quc pese os nlccanismos e instrumentos de poder que a cultura lança dc nossos adolescentes''.i l
mão para ordenar, regular c vigiar o exercício da sexualidade nas sociedades
ocidentais, estas têm o mito da inversão na sua origem. No transcurso da sua A despeito da indignação dc Sêncca, a altiguidadc não desconhecia a
história construiu uma significativa produção mítica sobre a oposição mascu- possiblidade dc alteração radical dos papéis sexuais. Marcireu (1974) relata
lino e feminino e sua respectiva inversão. O mito da androginia, por exemplo, que no mesmo período houve cm "Crcta uma mulher chíunada Arcscusa que
exprcsa bcm a recusa do hontcm ocidental em aceitar tão rigorosa frontaria se casou. Depois nasceram a barba e as partes viris. Abandonou o marido
entre os dois sexos c seus inerentes comportamentos sexuais. As divindades mudou o nome para Arcscão c casou-sc com uma nova mulher''.t2 O autor
grego-romanas, base da mitologia ocidental, tinham padrões culturais bcm relata quc em Romã Antiga no alto dc 58 1 ''umajovem foi trans6omlada cm
opostos ao dos mortais. Apossibilidadc da iuldroginia lhes era reservada rapaz, cni Casino, sendo transportada, por ordem dos Aruspices, para uma ilha
.cscrta
C
enquanto atributo sagrado. Mito muito alugo, referente a um suposto período
quc precede a separação dos sexos. De acordo com Macireu (1974) nas Assim como em algumas sociedades tribais a inversão esteve usualmente
narrativas míticas gregas, os aldróginos eram seres ao mesmo tempo homem relacionada com o xanlalismo e as ccrimânias religiosas, a tradição cristã
e mulllcr. ''Vênus habitualmente é considerada como sendo uma deusa. Na também recorreu a troca dc papéis, para simbolizar a castração do celibato
realidade trata-sc dc uma divindade andrógina''.' Marcireu ( 1 974) descreve um& série de tradições e ritos sacerdotais do catoli-
A indefinição c a inversão sexual, bcm como a composição dos dois sexos cismo alugo quc dizem respeito à troca de roupas, ou sda, à transfomlação
num mesmo corpo são falas míticas da civilização ocidental que acompanham supcrncial dos sacerdotes - por moo dc indunlcntárías femininas - em mulhe-
a própria lenda de criação da espécie. Na tradição judaico- cristã Eva nasceu res. O voto dc castidade exigia uma castração mesmo quc fosse simbólica. Para
da costela dc Adio c os mijas eram destituídos de sexo. Algumas divindades evitar a castração real, vestiam-se de mulheres na lógica de que o castrado não
possuian todas as possibiidades eróticas no mesmo corpo. A cosmogonia é homem, é mulher. Em vcz da castração real, por que não representa-la
vestindo-se dc mulher'?
babilónica nos lega uma referência aos hemlafroditas: ''havia homem com duas
caras, com apenas um corpo, mas com duas cabeças, uma masculina e uma A faltaria androgina é portanto, um traço cultural muito profundo, de
feminina, seres estes quc reuniam os orgãos dos dois sexos''.8 A divindade raizes muito antiga, quc até hoje o homem não se cansa de reconstruir e

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elaborar. Haja vista, atualmcntG a moda unisscx, da nossa contemporaneidade; papéis dc gcnêro, sobre os quias a sociedade cobra a coerência entre o sexo
as notumas fantasias fcmininas das drag-quccns, a crescente aparição dos anatómico e o comportamento social
travestis nas avenidas, nos palcos e na m adia; o discurso sobre a transexual idade
c a ambiguidade de género; a pcdomaançe cultivada por algumas estrelas do A delimitação das fronteiras simbólicas entre as relações de gênero se
''Rock and Rola'' c do universo cinematográfico. reproduz nas atividades socializadoras do cotidiano e impõe limites muito
rígidos a nível de espaço destinado aos homens e às mulheres. A definição dos
Elaborações teóricas c estudos empíricos vêem construindo lmla aventura papéis é uma fronteira quc se estabelece principalmente entre os corpos,
interpretativa para conaprccndcrcm diversos aspectos que constituem o Heno- envolvendo a moda, atividadcs sexuais, até as regiões espaciais de homens e
mcno na sociedade dc hoje. Para a psicanálise, está relacionado à personifica- mulheres.
ção da composição do papel dc gêncro, não constituindo necessariamente uma
O quc define o masculino croticamente diante da nossa sociedade é ser
distorção no desenvolvimento do indivíduo, mas um obyeto que merece estudo,
por scr um fLnõnlcnto dramático, na medida cm que a desobediência erótica o 'pcnetrador", ''comedor'', ''atino'', em suma, a ponta dominante do erotismo
leva a unia ruptura das bilhas divisórias, nitidamente visíveis, para arriscar-se A mulher, pelo contrário, é penetrada, ''doadora" e ''passiva'', coerente com
na aventura dc não ocupar lugar nenhum, mesmo à despeito de severas o projcto dc submissão dado a scu corpo. O papel sexual aqui se define pela
negação do oposto. Não ser ativo, comedor e dominador é ser mulher. E isto o
punições. Nesta perspectiva a pcrsoniHicação traduz a ultrapassagem daquela
linha perigosa onde o indivíduo escama um personagem ambíguo e passa a indivíduo aprende muito cedo. É na inHancia que estes signos são colados ao
vivê-lo cotidiananente c em público. Personificar o papel do sexo oposto, é corpo da menina e ao do menino, induzindo desdos, isolando intimidades,
separando os espaços. E o quc é mais importaltc, erigindo impérios excluden-
colocar-sc fora da nomeação, da gramática dos genêros, da identidade jurídica
tcs, de sentidos, desejos e erotismo. Na nossa cultura o corpo do homem é tido
quc regula o ir e o vir social dc homens e mulheres. Romper com a identidade
dc gcnêro é instalar a dúvida permanente, pois esta é a marca quc aordem social como a ponta dominante do erotismo sobre o qual a sociedade desenha sua
garante ao indivíduo uma visibilidade especial: ser homem ou scr mulher. estratégia dc desejo. O que é invertido na realidade é o quadro de oposição de
poderes. Dcsdar ser penetrado ao invés ao invés de desfrutar a benesse do
Que mccíulismos conduzem o individuo à aventura da inversão? Que pcnetrador é também desejar ser mulher. É esta a lógica do imaginário social
retomo compensa o risco'? quando produz a figura da ''bicha'', do travesti e as colocam na mesma escala
A psicanálise freudiana nos diz que não se nasce homem ou mulher. Até de submissão da mulher pelo homem
a primeira inGalcia a distinção sexual por parte da criança é bcm difiisa. Ser Cabe aqui uma pergunm: porque a sociedade modematem produzido com
masculino ou feminino é um aprendizado social realizado por diversas insti- mais frequência a inversão masculina? Embora ocorra tanto com a mulher
tuições através dc mccalismos de internalização que constituem os sujeitos q uanto com o homem . E neste entretanto, quc a cultura modema tem focalizada
granaticalizados c polarizados cm géneros masculino e feminino, cada qual a sua atenção. Seria lícito afimlar, como fazem Tucker e Money (1981) que
com seus seus ritos e signos. O mesmo ocorre com a sexualidade infantil, tida dos homens por suaatribuição cu]tura] de macho, lhes é exigido uma disciplina
como ambígua, diferenciada, difusa e polimorf& cabendo a instituições como espartíula, quc os tomam mais vulneráveis a todo tipo de inconfomlidade
família, escola, igreja, etc, delimitar as fronteiras destas idefiniçõcs, para psicosexual'? Onde residiria as vantagens de ser o penetrador?
garantir-lhes um fiituro granaticalizado reconhecerem-se enquanto homens e
mulheres Stollcr (]973) acredita quc originalmente todos os dois sexos se femini-
zam em busca dc uma identificação primitiva com a mãe originária. A identi-
A literatura psicanalítica situa a percepção da diferenciação social entre dade sexual se constrói na passagem desse sexo Remeo para a definição de
os sexos depois dos três primeiros anos de vida. Embora esta diferenciação não menino ou menina. Transição complexa e delicada, na qual qualquer código,
se defina apenas pelo sexo alatõmico -não se é llomem ou mulher apenas pela qualquer sinal indicativo de que a situação posterior a esta passagem não se
evidência do pénis ou vagina, porém é inevitável a evidência de que a diferen- mostrará tão confortável, tão segura quanto a identificação com a mãe origi-
ciação anatânlica é o desencadcador do processo de construção social de nária, poderia significar uma fixação do individuo neste período, provocando
uma recusa a nova identidade. Oposta a essa concepção, é clássica a tese

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freudiana de que primitivamente os dois sexos são macho, para atender aos está mais próxima do desejo da mulher e do seu corpo sexuada.Uma vez que,
desejos da mãe que atende ao imperativo do fdo como fala da lei. na sociedade capitalista o corpo social erótico é o decalque do gozo mascul ino,
Pomnlier( 1985) psicanalista da linha lacaniana, discutindo sobre a cons- a sociedade se constitui enquanto masculinidade, através da alienação sexual
trução da identidade feminina, a relaciona com uma falta. Com a falta do falo de outras pulsações eróticas e de outras performances do corpo. O corpo
Neste sentido, tanto o menino quanto a menina, identificam-sc com um falo masculino é o sul)strato da produção e o corpo feminino foi transfigurado em
mercadoria libidinal
simbólico, detido por uma suposta mulller: por uma ''Mulller Que Não Existe'',
pois é puro imaginário. O momento da castração é a descoberta simbólica da Mesmo quando sc trata de rigidez entre a dicotomia macho e nemea,
di6ercnça entre pênis c falo. Afimaa o psicanalista, que a primeira repre' percebemos quc a moderna sociedade ocidental não desenvolveu a repressão
scntação da mulher para o scr humano é a ''representação da mulher fHica, da como uma lci que sempre diz não, como negação pura, mas sim como
mãe fálica.i4 quc simboliza o falo ausente, cm contraposição a instituição positividade controlada, quc ordena, seleciona e disciplina o conjunto de
patcma enquanto fala da lei. As mulheres, hermafroditas de corpo e alma, corpos num coplexo erótico social. É através desta positividade controlada que
tiveram seu sexo marcado pela ausência de investimento fálico a sociedade atual produz a inversão das perfomaances de gêneros e as recupe-
rada nas franjas de uma ilegitimidade. Produz o scu duplo erótico, a parir da
Escapíuldo das teias psicanalistas que concentram parte do entendimento
teórico explicativo da inversão dos papéis sexuais na trajetória édipica do incorporação controlada dos ''escândalos lógicos'' . observados nas práticas
sexuais reais dos indivíduos
individuo, é curioso obsevar como a inversão masculina tem sido levada a cabo
na nossa sociedade. A sua recente aparição pública tcm sido objçto de polémi- Dos fins dos aios 60 até hoje, as malifcstações das chamadas minorias
ca, cscàldalos, fada e glamour. A própria tecnologia modema vem desenvol- sexuais ocorridas no ocidente constituíram-sc em importante luta política. A
vendo sofisticados métodos para viabilizar a reconversão. Esta incidência da explosão da sexualidade; a publicidade da cama; a alteração do binómio
inversão masculina pode ser explicada pela posição de dominação dada à público/privado; o desejo tomado político; a alteração da ordem sexual como
mulllcr na estrutura social subversão; Hi zcram emergir e consolidar as fomlas dc inversão masculina como
Na sociedade ocidental, o que vale para o homem vale para qualquer ser uma resistência dos homens à atribuição cultural, dada a seu falo. Queriam,
naquele momento cm especial, se desvincilharem da missão histórica do fão.
humano em geral. O corpo scxualizado, dotado de erotismo é o corpo viril, a
questionando c duvidando inclusive das "vantagens e poderes" a ele atribuí-
mulher é receptora do falo. Nesta lógica de atribuição de poderes, o desejo do
homem aparentemente viril, se exerce naturalmente em relação à mulher ou, dos. Os homens homossexuais aliaram-se às mulheres para exigirem uma
na sua falta, sobre um homem feminizado capaz de representar uma mulher redefinição do estatuto dc macho c a dcscentral ização do seu poder no cotidiano
e no imaginário social
que não existe. Os homens são solicitados a todo momento a exercerem sua
masculinidade, através dc um exercício erótico, potente, frequente. O amor do Neste período os homossexuais e as mulheres provocaram uma pertuba-
macho é o amor que nunca diz não. Foi atribuído a scu corpo o papel mecânico dora e instigaltc redefinição nos comportamentos sexuais. ModiHicaranl as leis
da líbido, no qual, qualquer falha do mecanismo significa a morte do desejo. interpessoais, a moda, o comportamento, o discurso amoroso, introduzindo
Sc há dominação, as mulheres, os homossexuais e travestis são escravos de forças políticas sedutoras. O primeiro manifesto do GLF* dizia o seguinte:
outros escravos. A escravidão dos homens reside na servidão voluntária aos
E.l GLF, es um grupo revolucionário homose-
dcsignos do falo. E possível inferir que essa servidão produz uma rigidez no
)tucll comptlesto por mujeres y hombres concientes
corpo masculino tão opressora quíulto a histeria que se evidencia no corpo de que para cttctlquiera lci completa liberctcion se-
6cminino interditado.

Guatarri( 198 1) a respeito da análise da sexualidade na sociedade atüal,


Nota - GLF (Gay Libcration Front),grupo dc nlililantes homossexuais da ciciado dc Nova porque nos
tenta resgatar o crotisnlo feminino para o território de desejos altemativos. Na Estados Unidos, criado enl 1969, no auge da violência policial u lericana ao gueto homossexual
sua interpretação sôbre os movimentos sociais empreendidos pelas minorias novaiorcluiito.

sexuais franceses, na década de 70, analisa que qualquer ''líbido dissidente''

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xuci! solo puede realízarse con la demolicion de próxima às famosas e ricas donas de bordéis na Nova Orleans dos tempos
mtestra naluraleza. porque herrms rcnuriciados a dourados. Foi a musa dos amcricatos no começo da década de 80. O seu filme
bichos papeles a los mitos, simptistcts de la socie- 'Pink Flamingos" ficou três anos em cartaz na cidade de New York e a colocou
dad. Qtlerettlos ser o que to somos. is no pedestal das graldcs divas do cinema. Tal como um personagem de Genet,
Divino é liricamcnte expressada pelo quc de grotesco e de pastiche há na sua
E neste bojo político c no exercício das práticas sociosexuais reais que o imagem . E o excesso da fcminilização com seios enomles e muita maquilagem.
fenómeno da inversão Bulha corpo, conHimlando mais uma vez que a aventura Feminilização politicíuncnte explicada pelos mais radicais, quando reservam
erótica cotidiula dos indivíduos supera as representações sexuais ideais. Há atributos subversivos à recusa da pcrfomtance fálica operada pela figura do
neste processo, resistência e rebeldia. Veios são os indicadores de que a recusa invertido masculino.
ante a rigidez dos papéis sexuais e sua absorção pela cultura é um fenómeno
particular do cotidiano sexual do indivído, orientado porém por mecanismos Da fusão entre as práticas sexuais reais e os movimentos políticos das
de incitação, imprimindo-lhe um caráter de atitude socialmente construída. A minorias sexuais, emergem várias figuras da inversão masculina que numjogo
modificação da noção dc minoria sexual, da per6omtance do corpo masculino, dc incitação e desvalorização são assimilados pela cultura. . E a sociedade
a apologia da bisscxualidadc (dc inspiração psicanalítica), a moda unissem e produzindo o scu duplo, scu clone e suas diferenças. Os meios de comunicação,
etc. confirmam quc as inversões e suas representações são produto da praxis a nl adia, a arte c o mercado dos serviços sexuais fazem do andrógino um obU eto
erótica social, absorvida pela cultura e devolvida como simulacro. de luxo quc acomoda cm scu corpo todas as possibilidades eróticas. E claro
quc a inversão não sc radicaliza apenas na transfomtação de machos em
A disciplina dgs sentidos no mundo anual é exercida por um império de travestis, ''Há toda uma gradação entre a 'bicha' ligeimmente efeminada até o
imagens sedutoras. E o processo dc traduzir e recriar o real de fomaa espetacu-
travesti, como há uma mesma gradação entre o 'sapatão' vagamente masculi-
lar, apagando as diferenças entre o cotidiano e o imaginário, criando uma
nizado e a mulher macho mesmo''.ió Porém é cada vez mais frequente o rito
hipcr-realidade instantânea. A média televisiva é um bom exemplo desta do homem no espelho cultural das mulheres. No palco, na telinha da W, no
recriação. O hipcr-real busca no passado dos mitos, dos ícones e arquétipos carnaval, na pista de prostituuição e até nas narrativas teóricas do discurso
primitivos, ovais para tornarem suas narrativas invertidas imagens naturais. A
médico, antropológico, sociológico, jurídico e psicoanalítico.
sociedade pós-moderna é uma oficina dessa produção. Produzem a imagem
invertida dos papéis sexuais, dotada de brevidade c velocidade a qual atravessa As estrelas deste rito são sem dúuvida nenhuma os transexuais, os
os nossos sentidos do mesmo modo, adcntrando em nossas casas cotidiana- tralsfomlisus e os travestis que, guardadas as diferenças entre as suas respec-
mente pelo aparelho de TV. tivas conccituaçõcs(discutidas mais adiante), têm como elo unificador de suas
identidades sexossociais, serem anatomicamentc homens que se vestem, se
Mais do quc nunca, nesta perspectiva, se reedita o mito da androginia. No comportam ou pensam como mulheres. Levam o fenómeno da inversão até as
meio musical as divindades do rock da música pop conservam uma aura últimas consequências. Hoje o travesti habita com desenvultum a imprensa de
unbígua contornando os seus corpos, gestos c vozes. E a dúvida sobre a sucesso, o transexual como inversão é cientificamente tolerado como problema
identidade de gêncro que o veterano Mick Jagger deseja instalar aos nossos médico e o traisfomlista festejado no seu talento artístico em reconstruir e
olhos. A chinesa Boy Gcorgc e o sensual David Bowie perseguem a mesma
representar personagens femininos. Esta altcridadejá Êoi totalmente absorvida
imagem. E a ambiguidade, a dúvida quc estampa no visual reconstruído de
pela máquina de íbzer mito. Os travestis, os transfomlistas e os transexuais,
Michel Jackson. Incitíunos à interrogação é homem ou é mulher?. Ney Mato-
nas suas dublagcns, imitam mulheres cuja imagem ideal elaborada cultural-
grosso, cultor pop brasileiro, se apresenta enquanto uma ''metamorfose am-
mente, é a personificação onírica da ''mulher quc não existe'', só alcançada
bulante'' assentada num corpo peludo de macho. O nítido aspecto difiiso da
pelo mito e pela divindade. Neste sentido, assumem características divinas,
sua pcrformalcc dc gênero é acentuada pelo seu canto que parece vir de uma
pois só aos deuses foi reservado ter dois sexos. Atualizam o mito do reencontro
profunda e doce voz feminina. A apoteose da ambivalência colocada nos
entre os diferentes sexos construindo versão modema da androginia. O elo
palcos, nas telas e nos cenários notumos das ruas, tem como personagens
perdido quc unificava ser macho e o ser Remea. A matriz desta versão modema
princiapais os travestis. Divino, um famoso travesti novaiorquino, um monu- do androgino, é a clonogcm, a cópia e o decalque das divas do cinema, das
mento de banhas tunalha sua gordura, é um talento de expressões dúbias,

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estrelas do mundo, musical, das mulheres belas e glamourosas, só encontrado interpretar um& série de classificações e nominações da inversão masculina,
no universo da fada e do sucesso. elaboradas tanto pelo próprio gueto sexual, quanto pela literatura empenhada
em explica-la. O que não significa toma-las como classificações acabadas e
A mulher representada explicativas da rica sutileza conceitual emergente no universo da inversão
masculina
Genericamente os travestis são definidos como indivíduos que, através
de aítificios variados, conseguem obter a aparência do sexo oposto. Como já Erro da natureza
foi dito, são presenças incorporadas à mitologia dos ritos sexuais, estando
presentes em quase todas as sociedades. Os transexuais sentem-se mulher. Mulher na pele dc homem. Segundo as
explicações médicas, psiquiátricas e psicanalistas, o transexual é o indivíduo
Não é demais reafirmar, que o reconhecimento social do travesti distin- cm que o sexo íulatõmico está cm contradição com o ''papel de genêro'' sexual.
gue-se a partir das diferentes estruturas sociais c dos seus respectivos discursos
O seu prazer é a busca incessante da identidade absoluta com o sexo oposto
intemos, que sacralizar ou profalizam uma prática social qualquer. Toda O transexualismo é a forma mais radical da androginia. Significa uma recusa
cultura se funda com c6eito, sobre uma representação do que é o indivíduo, dos total do papel sexual a um ponto limite no qual a auto mutilação da genitália
seus relacionamentos com o mundo. Aquele que não identifica-se a essa torna-se um deseJO recorrente.. Marcel considera a atitude transexual uma
representação é problematizado e tomado objeto de tratamento especial. Con- ''manifestação mais ou menos dcliralte que entra no quadro da alta patolo-
siderando a presença particular da metamorfose homem-mulher em quase gia''.i7 Esta visão da medicina psiquiátrica é confrontada por algumas concep-
todas as sociedades, é possível arriscar que o homem sempre procurou des- ções da teoria psicanalista divergentes, quanto ao enquadramento do
prender-se das amarras legais, nonnativas culturais e simbólicas, reguladoras tralsexualismo no ''quadro de alta patologia". Ainda que o problematize num
da sexualidade c do padrão da atividade erótica dos indivíduos. Os travestis, discurso medicalizado que procura identificar as origens e causas que tomaram
com sua fantasia rebelde, subvertem uma ordem cultural inspirada na diferença o sujeito transcxual irreconciliável com sua genitália, reconhecem porém a
anatómica entre os dois sexos que os aprisionam os sujeitos em dois grandes possibilidade da discordância entre a identidade sexual e o sexo biológico
reinos - o masculino e o feminino.
Neste sentido, o indivíduo quc vive este desacordo não é necessariamente
Ainda que no sentido nlodemo qualquer homem que expresse uma doente. O que causa a neurose é a recusa social em aceitar esta diferença.
performance visual de mulher sda chamado dc travesti, é necessário salientar O transexual quando se veste de mulher está de acordo com sua identida-
que no interior dc zonas sócio-culturais, mas quais se exercita indefinição sexo de, não está travestido e sim vestido. Apresenta um desinteresse pelos orgãos
gramatical é possível distinguir três diferentes nomeações para a metamorfose
genitais que lhes dá impressão definitiva dc discordante, íàzendo com que seu
homem-mulher: os transexuais, os travestis e os transfomlistas. Ainda que sexo anatómico sda desinvcstido de erotismo. O transexualismo não constitui
manipulem igualmente a imagem da mulher consevam sutis diferenças e se uma identidade cuja origem sc encontra num desarranjo físico. Até o momento,
reconhecem como identidades distintas, cada uma com sua problemática e com as pesquisas médico científicas não conseguiram estabelecer tal relação. É
sua legitimidade social. bastante curioso constatar na literatura médica a evidência de um grande
Considerando que a inversão masculina não se reduz apenas à polaridade número de transcxuais que não portam disfunções físicas. O traço mais comum
machão - invertido, há quc se considerar uma complexa escala gradativa que e scmelhiulte catre estes indivíduos é um profundo desinteresse erótico pelo
extrenam estas duas identidades. Nesta escala, os diferentes sinais constitutivos pénis. Tuckcr c Money admitem apenas fatores psico-sociais na constituição
das categorias mentais usadas para nomear distintamente os transexuais, os do transexualismo. Nos seus estudos e pesquisas sobre a inversão sexual, não
tralsformistas e os travestis, são excessivamente tênues, temporais, mutantes registram Calores genéticos, homaonais, pré ou pós natal, que justifiquem o
e recambiáveis. Possuem conteúdos tão dúbios e tão ambivalentes, tal qual transexualismo. Para os autores se existem fatores desta ordem na origem do
aqueles que sinalizam as diferentes etapas do processo material da inversão. 6cnâmeno, a ciência ainda está por identiHicá-]os. Condessa, transexua] paulis-
Antes de reunir na categoria de travesti(conceito unificador das várias repre- ta, 24 anos, morena de olhos de índia, diz que muito cedo teve a convicção de
sentações do disfarce do homem em mulher) toma-se necessário analisar e scr mu]her. ]dentifica com precisão o período da sua história na qual tomou

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consciência do sentimento discordante provocado pelo desacordo entre a sua reconllecer a terapêutica da intervenção já que, ''levando-se em considemção
anatomia e a sua identidade sexual. ''Aos 12 anos era revoltado por me sentir o dcsal uste psíquico do examinado, antes de ser realizada a mudança cirúrgica
uma mulher. Não sabia como explicar isso''.t8 do sexo, acreditamos ter sido a intervenção terapêutica necessária, se não de
cura radical, talvez no sentido da melhora.''.23 Assim pronunciaram-se os
O transexual se serve do travestismo por uma necessidade intima, como
médicos do Instituto Oscar Freira dc São Paulo e do Instituto Médico Legal do
terapêutica para sua auto-imagem discordante. Não se sente um homossexual
Estado. Argumentaram ainda que ''em outros países a questão é inclusive
quando se relaciona com homens. Não seduz pelo disíàrce de mulher, mas por
se sentir realmente uma delas. Sofre muito por sua condição discordante, quer aprovada pelos seus governos e aos transexuais é prestada toda a possível
assistência médica, social, psiquiátrica e jurídica''.24
corrigir a injustiça genética lavrando-se deülnitivamente do pênis. Matar toda
a expressão do homem que Ihe restou. A ablação radical dos orgãos genitais é uma complexa questão pois o
caminho não tem volta. A decisão em fazê-la exige mecanismos seguros e
A auto biografia de Jcannc, transexual francês, contém um relato pungen- precisos capazes de identificar o grau de certeza deste hermafroditismo da
te do que ela considera o assassinato da porção restante do seu personagem
masculino: ''esse Jean por uma intervenção cirúrgica füi eu mesma quem alma. Há dúvidas quanto a veracidade do sujeito discordante que enuncia seu
desacordo e há mais dúvidas ainda quiulto aos critérios utilizados pela equipe
matei". i9 Jean precisava morrer pois estava fora do seu lugar. A operação para
médica (psiquiatra, psicanalista, endocrinologista, geneticista, embriologista)
retirar o pênis é o grande sonho dc muitos transexuais e polêmica pam outros.
para auferir tal grau já quc o transcxual não apresenta disfunção física visível
E uma reversão cirúrgica que ''suprime testículos, o pênis, reconstrói os lábios
e sim subjetiva. Toda a discordância se constrói na organização discursiva do
e uma vagina artificial, que o cirurgião modela utilizando-se da pele do pênis
sujeito. Millot ( 1985) vai mais além, quando pergunta se a recusa se constrói
que se reveste sobre ele mesmo''.20 A possibilidade cirúrgica da reversão sexual
em relação ao falo ou em relação ao pênis. Se for em relação ao falo, expressão
é um assunto quc tem gerado controvérsias. A reversão sexual feminina é simbólica dominante da constituição das identidades masculina e feminina. as
muito nICHos frequente que seu contrário. Porém mesmo que uma cirurgia para
dúvidas sobre a opção radical como terapêutica se ampliam. Relata casos de
masculinizar o corpo feminino sda ainda mais longa e dolorosa, e prometa
resultados bem menos satisfatórios, muitos transexuais femininos são igual- indivíduos que depois de operados "apresentavam dificuldades em viver
socialmente e que não impediu a eclosão de psicoses e suicídios''.2s
mente decididos a fazê-la.

No Brasil, a operação transexual é feita na clandestinidade. Na década de A questão jurídica após a cirurgia toma-se o problema fiindamental para
os tralscxuais brasileiros. Na medidaem quc a concepçãojurídica do indivíduo
70, o cirurgião Dr. Farina foi processado e condenado por trans6omlar Waldir está definitivamente atrelada à ordem anatómica do masculino e feminino e a
em Valdirene através de ablação dos orgãos genitais masculinos e sua remode-
fomla de controle administrativo da burocracia do Estado, exerça um severo
lagem numa pseudo-genitália feminina. É proibida pelo Código Penal, artigo controle na identidade do sujeito é previsível e certa a negação e a recusa social
129, "como prática de lesões corporais gravíssimas das quais tem como
em aceitar a ideia de que um Jogo qualquer possua um registro de nascimento
resultado a inutilização dos órgãos genitais e de suas respectivas funções''.''
que o classifica como pertencente ao sexo masculino e depois de adulto se
O processo movido contra o Dr. Farina durou alguns anos e mobilizou apresente portaldo unl nome e uma aparência feminina. Tuta-se então. de
especialistas não só do país como do exterior. Os profissionais do setorjurídico pensar legalmente neste tipo de reversão principalmente na questão dos papéis
foram unàlimes na acusação. Consideram o transexualismo como um proble- que identificam este ou aquele como masculino e feminino. Esta é a principal
ma médico-legal e os indivíduos que disto ''sofrem'' como ''doentes mentais''. crítica dos transexuais e travestis sobre a possibilidade de se submeter a
Na ótica dos juristas, o Dr. Farina provocou uma cimrgia reversiva num reversão e continuar morando no país. Depois da operação ganham uma
indivíduo sem representaçãoj urídica diante dos seus atos, pois está classificado neovagina e continuam com os documentos de homem. ''Continuam sendo o
como doente mental. Portanto, cometeu um duplo crime. E foi por isso Sr. flilaao de tal e não as nladanes que gostariam de ser".26 Recentemente foi
condenado ''a pena corporal privativa de liberdade por dois anos de reclusão, preso em Recite por falsidade ideólogica, Vilmar Francisco de 28 anos. Após
porque incurso o acusado nas sanções do artigo ] 29 # 2', inciso 111 do .Código a operação para reversão sexual realizada fora do país, voltou ao Bmsil e ''se
Penal Brasileiro''.22 No entanto, os profissionais médicos foram unânimes em

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la capacidade de ser mulher o tempo todo. Já tem 19 anos, barba na cara e
apresentou na alnaldega com uni passaporte em nome de Sanclra Régia da faltam-lhe condições para fazer elctrólise. Sente medo e desabafa: "Já pensou?
Silvo: uma pessoa com cara de homem e com buceta? Verdadeiro ETI Excesso de
loucura''.J'
Os triulsfomlisLas cultivam o encanto do disfarce: de dia se é homem, e à
noite é aquela m ulher dos sonhos, produzida com arte num ritual de horas diante
do espelho, no qual a maquilagcm é o principal instnimento. O prazer é a
pintura de uma mulller num rosto que após lavado conservais os traços
m asculinos .

O trasns6omlista, dentre as três identidades, é quem se encontra mais


próximo do disfarce, da caricatura e da personificação. Cultiva na realidade
personagens, que podem durar um instante, uma noite de estrelas, um sonho
dc camával, nlcscs, anos ou a vida inteira. Não querem porém perder a
condição dc llomcnt. Esta é parte do seu cotidiano. Muitos transfomlistas se
vestem dc mulher apenas à noite, outros cm ocasiões esporádicas como nos
bailes e concursos de ''Miss Gay", ou de ano em ano, durante o carnaval. Não
sc reconhecem como transexuais e muito menos gostam de ser identiHlcados
com os travestis. Reivindicam para si a identidade de ator transfomüsta
pertencente à classe teatral.
O travesti tralsfomlista foi considerado no teatro grego, no romano e no
oriental (o Kabuki), como uma das mais significativas expressões artísticas. A
mulher, impedida de representar a cena era substituída por este que não a
incitava, mas a significava, no gesto, no símbolo, no signo de mulher. Na cena
do palco, o tralsEomlista coloca o desço no gesto, na extensão material e
plástica da pele feminina. E a rainha de ''pomo de adio'' do teatro oriental,
mais próxima da-caricatura e do personagem. Barthcs (1973) à respeito dos
Encanto do disfarce atorcs transformistas insinua que estes não copiam a mulher e sim imprimem
significados fem hinos a personagens mulheres. O autor concebe a personagem
como uma construção que não se destina a ser vista, mas lida como um texto
fuso, que não se propõe a traduzir o real, pois este sempre escapa aos olhos do
leitor. O homem que se esconde atrás da pintura de Magnólia sabe-se denun-
ciado pela evidência do disfarce. Quando os transfomiistas reinvidicam para
si o estatuto de arte, o fazem por consider que a transfonnação de homens em
comprometa a volta à sua condição masculina. nlullleres ideais, util izando-se apenas de gestos, de poses, de muita maquilagem
e de adereços, requer mais talento do que a imagem feminina construída através
do uso de mecanismos técnicos operadores de uma transfomlação âisica e
anatómica do corpo virial

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Nédia Kcndal, transfoml isto paulista, explica sua imagem através da arte: Ao travesti de agora, emergente nas avenidas em fomta de desço, e de
''isso sim é arte - homem dc dia e mulllcr à noite, sou um transfomlista''. praticas eróticas exóticas negociáveis foi acrescentado algo mais que os distin-
Recorre também a explicações de reencarnação espírita para elaborar sua guem radicalmente dos tralsfomlistas e dos transexuais
inversão: ''Tenho certeza de quc já vim aqui como mulher. Agora voltei para
No sentido moderno e cmcigente do tempo, travestis são aqueles indiví-
pagar meus pecados''." duos que, diferentemente dos transfomlistas ampliam os limites da alteração
Fry c MacRac (1984), rclacioniun a cena da mulher no palco estrelado corporal. Modificam os quadris, as nádegas c o rosto através de homtânios e
pelo travesti transfomlista como um deboche crítico à artificialidade e rigidez silicose num processo dc tralsüomlação contínuo e cotidiano, pam alcançarem
cultural dos papéis sexuais."Não estão necessariamente manifestando um o mais próximo a fomla anatómica da mulher. Modelam seus corpos via um
desejo dc realnlcnte virarem nlulhercs fúteis e sim ridicularizando os papéis" ." exercicto pennancnte e disciplinar de novos gestos e linguagem. Querem
contudo conservar a ambivalência, a estranheza que provocam nos outros,
O ator transfo mlista c sua caricatura fem mina, assim como pode expressar
principalmente nos homens: a visão de uma mulher bonita de corpo, com
o ideal de uma mulllcr conservadora, pode também ridiculariza-la através da peitos, quadris femininos, usando blusas insinuantes e batons de cores chocan-
acentuação exagerada dc determinados traços do seu comportamento típico. tes c exibindo um pénis entre as pcnlas
Por outro lado, a marca do personagem secreto, o homem, é constantemente
rcssaltada. Enquanto arte tal caricatura é produto dc um atar, que estando oculto Os tmvcstis, notadíunentc aqueles quc sobrevivem da prostituição, mes-
pela mulher que representa, ressalta o homem que a construiu. Quer a peúeição mo altcraldo a anatomia dos seus corpos com a mais variada parafemália
de mulher ali rcprcscntada reconhecida colmo mérito seu. Quer seu tempo de química e técnica não dcsdan a castração. Castração e prostituição não
homem e dc mulllcr bcm demarcados para quc enquanto ator receber as glórias comi)ina)l. O falo é parte fundamental de scu erotismo negociado nas pistas
da perfeição feminina encenada. notumas das gruidcs cidades. É o mistério que taro pertuba os homens,
principalmente os clientes. O valor dc mercado deste mistério é nitidamente
Mcsmo assim, esse mérito artístico reivindicado pelos transformistas é
revelado na fala dc Luala, travesti paulista quc vive de prostituição: ''o meu
visto pelos transexuais e pelos travestis como uma covardia de levar adiante o membro está como a picareta para o operário. Sem ele não abro buracos sem
seu desejo de inversão. No Pclõ, local dc concentração e moradia da maioria abrir buracos não galho dinheiro''.37
dos travestis de Salvador, tal tipo dc inverção é tratado com certo deboche pelos
transcxuais e travestis ditos verdadeiros. Antonieta, travesti e moradora do Não existe engulo. A noite, nas relações comerciais do desejo não existe
local. refere-se aos transüomlistas como bichas não assumidas Para ela, as a mentira da mulher, o erro de pessoa. Segundo Verá, travesti pemanbucano, a
bicllas que colocam roupa dc mulher dc forma esporádica já são travestis certeza por paigc do cliente, quc a imagem da mulher o6erccida no mercado de
Incisiva, insiste ''que assumam não parem, porque desde quando uma bicha trocas scxuas, é portadora de um pênis, garante o sucesso da operação
sc veste três meses de mulher e para, aí já não é travesti, é uma safàdeza. Ser comercial prostitutiva. Por csh razão, Verá afimla que: '.jamais vou querer
travesti é andar dc mulher diariamente''." cortar mcu pau. Assim vou morrer de fome, porque os homens gostam de
sacalagcnl. Acho que o que é mais intcrcssalte entre a gente, é o homem ver
A divindade andrógena a gente toda, agora com aquele pau no meio''.3s

A rigor, no universo da inversão masculina, o travesti relaciona-se com a Apesar da modelagem corporal, do baton vennelllo, dos cabelos longos
alteração dos caracteres culturais, físicos e sexuais. Ou sela é o indivíduo que doirados, o orgão viril dos travestis não é desinvestido eroticamcnte como nos
inverte o uso de roupas, o tipo dc gestos, o timbre de voz, os valores, etc, transexuais. A parte homem que emerge do disfarce possui uma intensa
atribuídos socialmente ao scu papel sexual, em favor dos atributos do sexo significação fálica. Significação que, segundo a teoria psicanalista lacaniana,
oposto. Atualmente esta definição dc travesti sofreu uma redução para o tempo cola conto adesivo à representação primitiva da mulher que não existe, por
trans6ormista. simbolizar o orgão ausente: o falo. Simone, travesti baiano diz que: 'ljamais
pensou pela minha cabeça tirar o mcu pau, eu ganho muito bcm, assim mesmo
porque, os homens gostam de pinto. Sem o pinto, eles não ficam com a gente.

44 45
Mulher por mulller, eles tcm ai, a toda hora''.39 Assim, se explica o sucesso
comercial de unl certo travesti bem dotado. A crescente ampliação da prostituição de travestis nas grandes cidades
brasileiras é acompanhada de unl intenso processo de marginalização social
E nesta perspectiva que os travestis encamam a divindade, por representar desta categoria. A figura clássica do travesti prostituto aparece nos meios de
o impossível. As mulheres inventadas, criadas c recriadas por eles nunca se comunicação, como marginal e delinquente. O conjunto de fatores restritivos
aproximam do modelo da mulher real quc come, domle e respira. Diferente- à sua principal atividade, explica porque a identidade sexual do travesti se
mente dos tralscxuais que encaman mulheres mais simples, mais próximas tomou uma categoria negada c estigmatizada até mesmo no próprio universo
do real, os travestis encarnam caricaturas dc mitos inatingíveis pela sua beleza da inversão masculina.
c áurea de divindade . Mulllcres-mitos extraídas das telas de cinema, do univer-
Os travestis bem sucedidos em outras btvidades tais como os atorcs
so da fada e do ''glamour". Vão buscar seus nomes no blondie de Madonna,
trans6omlistas, os esteticistas e os estilistas rejeitam a identidade. Rogéria,
no glamour dc Raquel Welch, ou na irrealidade das socialights. assume sua profissão como identidade: ''eu sou um artista e não um idiota
O travesti não ilustra a mulher, não quer representa-la, mas sim causar vestido de mulher''(42) Outros porém preferem dcHinirem-se como transexual
uma pertubação com a insistência de sua ambivalência. São homens que se O fato desta categoria scr concebida socialmente como um fenómeno médico
faltasian] de mulheres fálicas. Para eles o pênis não é um drama, não é um e científico, Q qual a genética, a psiquiatria, a psicanálise, direito, etc., procuram
constrangimento social ou motivo dc revolta. A ''maioria considera um absur- desvenda-lo, ainda quc pese a relação de subordinação social quando são
do submeter-se a uma operação castradora que irá suprimir o prazer de tratador como objcto de estudo, este rótulo é preferível ao estigma de marginal
daculação, substituindo por unl prazer dcpendcntc e apenas mental da posse imprimido à massa crescente de travestis que peralnbulam pelas ruas a caça de
pela introdução do pénis numa vagina simulada''.40 Além da perda do gozo omcm que lhes pague. Roberta Cioso e Nadia Lipp por exemplo, se
genital, os travestis consideram o pénis um elemento fundamental do seu auto-idcntifican como transexuais. Livre do estigma da prisão mas não da
erotismo: ''Eu heml, sc eu nle operar vou perder aquele algo mais que é o doença. A doença é apenas curada e tolerada. Embom, as sutis distinções entre
segredo do mGU sucesso''41 dcc]ara Cristine, 2] anos, travesti paulista que os trans6ormistas, transcxuais e travestis, soam consideradas neste estudo. de
merca scu erotismo nas avenidas da ''paulicéia desvairada''. Os travestis agora em diante a categoria travesti, será usada para genericamente nomear o
querem ser mulheres com algo mais, com algo quc falta às mulheres reais. indivíduo do sexo masculino quc se travesti cm mulher. Pois o que distingue
Querem ser mulheres fálicas. O travesti não reinvindicaria mais do que ser o tralsexual dos demais é um traço subjetivo - desejo de ser mulher e de
objcto dc consumo, mercadoria exótica: as misses do ano 2000. castração. Distição que se confunde numa variedade de situações na medida
em que ambos altcrana seus corpos com homtânios e silicone. e no Pela
Através dc vários mecanismos modelam seus corpos, alterando a fomla
participam das mesmas atividades, especialmente da prostituição.
masculina a flnl de se asscnlelllarem as mulheres belas e glamourosas, sem no
entanto desejarem virar uma delas definitivamente. Usando todos os recurso Se pode inâcrir entre as três identidades uma unificação metodológica,
da para6emália tecnológica atual, principalmente no ramo da estética, desde pois tanto os transexuais qua)to os transfomlistas e travestis convivem com a
cedo vão se preparando para encamarcm futuras mulheres. Elaboram seus ambivalência, com a metamorfose sexual desordenando uma lei gramatical
corpos e gestos, próximos dos padrões consum iscas da beleza feminina. E como quc toda a sociedade conserva cm nome das diferenças alatõmicas entre o sexo
a maioria se prostitui, encimam prostitutas de luxo. Mas nem tudo é mito e masculino e o feminino. Não se colocíun entre os gays, entre as mulheres e.
beleza na vida destes invertidos. Enfrentam um grau de rechaço social que muito mcnos entre os homens. Rccriíun as divindades andróginas, que habita-
começa no próprio gueto homossexual. Transfomlistas, transexuais e homos- ram as narrativas míticas da antiga civilização grego-romana, aproximam os
sexuais os concebem enquiuato identidade a ser negada. O fato de grande parte berdachcs primitivos 'das estrelas ambíguas do universo pop, constituem os
dos travestis do Pela realizar a prostituição de rua, os colocam em situações signos, quc pemlitem a construção do simulacro pela hiperealidade pós-mo-
diversas de confronto com a lei, com a ordem, com os maus clientes e com a ema
exposição pública do rcchaço social, gerando situações de violência. Desta O reconhecimento social da distinção entre as três identidades invertidas
fomla aparecem mais frequentemente n3s páginas policiais, do que na crónica
de variedades e costumes. pemlite aHimlar mais uma vez, que as práticas sexuais reais supemm a repre-
sentação ideal produzida pela cultura para ordenar o exercício da sexualidade.

46
47
Supera a ideia dc que ''homem com homem da lobisomem'', através do artifício 1 2. MARCIREU, op. cit., p. 1 1

da m ulltcr fálica. As fronteiras que limitam a di6c rcnciação entre as categorias 1 3. 1dcnt, ibdcm
de inversão masculina apontadas aqui, não significam uma classificação a ser POMMIER, Gerara, "A Identidade Fcminhia" üi O Tnavestismo e a Identidade Feminina
tratada separadamente, isto porque a "noite todos os gatos são pardos''.Além Vol. 1. Salvador. Encontros da Clhtica Freudiana, 1 985. p.28.
do quc os arralyos destas idcntiHlcações sexuais estão baseados em critérios tão Revista Elviejo Topo, n 12, Bucelona, 1980, p. 12.
difusos quc sc forem tratadas isoladamente certamente nos afastariam em FRY. Peter, e MacRAE, Edward. O que é a Homossexuali(hde. São Paulo. Brasiliense. 1 983
demasia do tema nuclear scm cncontramlos respostas, lá onde os limites P.4
distintivos sexuais são tênucs, rccanbiávcis e negociáveis. 1 7. ECK, Marcel. Sodomia, um cnwio sobre a Homossexualidade. Lisboa, Ed. Moral, 1 97, p.
8. Joríml A FoUta dc São Paulo, 04.03.84
O poder produz os tipos c personagens proibidos, através de uma clan-
1

9. RIOHOT, Catherine, e NOVALIS, Jwiute. História de Jorna, O Transcxual. Rio de Janeiro


destinidade visível c dc uma intolerância dc vistas grossas. Por pe,rto há sempre
1

Nórdica, 1980, p.146


a possibilidade de pecar. O pecado tcm seus preços e entre os mais caros estão
20. 1dent, p.147.
aquelas perversões mais ilegítimas e por isso mesmo mais poderosas. A
21 . REYS, Otávio e SAI.OME, Lúcio. Um cao de Transexualisnto Prhnário ou Essencial. São
distribuição ordenada do erotismo tcm como fator dctemlinante não só o grau Paulo, Nova Lunla, 1978, p. 14
dc ilegitimidade da perversão sexual, porém fundamentalmente, a natureza do 22. 1dent, p. 14.
grupo que a pratica. Para os travestis dos guetos urbanos e das concentrações 23. lbdcm, idem
pobres esu distribuição chega dccodificada em violência didática. A violência
24. lbdcm, idcin
sc dá ncm tanto pelo grau dc pre] uízo social causado no ato de descumprimento
da lei cm si, mas como exemplo didático de moral sexual. 25. MILLOT, CaUterine, ''O Tranwxtulismo e Identidade Femhlhla". Vol 1, Salvador. Encon-
tros da Clhlica Frcdiana, 1 985, p. 1 3.
Os travestis, os homossexuais, as minorias sexuais dos guetos marginali- 26. Jonml Lampião da Exluhla, Abril dc 1 980.
zados são solicitados pelos aparelhos coercitivos a dar a lição cotidiana da 27. Jonml Tribuna da Batia, Salvador, l0.03.84
moralidade sexual, de '' anomlalidadc'' individual e seu consequente castigo 28. OLIVElltA, NeuzaMaria, Falo detTrês atitudes diante do Falo in Jomal Mana Macia
por assina serem: criminosos, imorais, anomlais e contra a natureza. Salvador, Jul/Ago 1 984, p.3
29. Idem
NOTAS 30. Idem
31. Idem
l FltY. I'ctcr. Cunliiütos cruzados. Rio dc Janeiro, Zalur, 982, p.
1

32. .Idem
2 MEAD, Margarct. Macho e Fónica. Petrópolis, Vozes, 1971 , p.1 10.
33. 1clem
3 Idcnt, p. 1 1 1
4 FIAMBLY. Will'rid Dyson, Afncanos vida Sexual ht Enciclopédia do Comportamento 34. Revista Ele e Ela. Rio de Janeiro. Abril de 1984
Sexual, p. 142. 35. FRY. Pctcr c MacRAE, Edward, op. cit , p. 1 1 1
5. CLASTRES, Pierre, O Arco c o Cesto in A Sociedade Contra o Estado. Rio de Janeiro: 36. OLIVEIRA, Neuza Mana, op. cit., p.3
Franciso Alvos Editora, 1 974, p. 1 34 37. Jomal Lampião du Exluina. Abril de 1 981
6 Idcnl, p.1 1 1 38. OLIVElliA, Neuzu Mana, op. cit., p.3
7. MARClltEU, Jacclucs. l lislória dos ritos wxtuis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 39. Idem
1 971, P. 12 .
40. Jonml Lampião da Esquina. Abril de 1980. 1)
8. Idcnt, p. 12.
41. 1ievisU Manchete,Rio de Janeiro, 14.05.82.
9. Ibidem, idem
42. Jonml Ultima Hora, Rio de Janeiro (apud arquivo do GGB).
10 FOUCAUl;r, Michel. l história da Sexualidade ll - O Uso dos Prazeres. Rio de Janeiro, Graal,
1 984,P 2 1

11 Idem, ibdem. (apud)

48 49
CAPITULO ll
GEOGRAFIA DO OBJETO OU O
TRÁVESTISMO NO BRASIL
O início da década de 80 no Brasil foi marcado pela ambiguidade: Roberta
Close, famoso transexual, é o mito erótico do imaginário brasileiro. A ambi-
guidade sexual se instala, os travestis ocupam espaços em jomais, revistas, e
televisão. A trajetória do mito Clone é semelhante à dos produtos descartáveis:
rapidamente produzido e vorazmente consumido. A Clone, num piscar de
flashes, da noite para o dia, virou manequim, atriz e jurada de programas
televisivos. Apropriada pelo ')ct-set'' como um objeto exótico e requintado,
substituiu a pele da onça abatida no último safari. Musa de balada de rock,
explodiu vcndagcns de revistas eróticas e se consagrou definitivamente como
a ''namoradinha do Brasil''. O sucesso do travesti parecia indicar que a
sociedade brasileira teria optado pelo fd se . Nesta década, o simulacro orientou
a performance da elite dominíulte e sua rapsodia de carte, ao tempo que os
mercados ambulantes dm gra)dcs cidades do país, foram invadidos por uma
gana de falsos produtos eletrânicos oriundos da Koreia, Twaland e Hong
anDO

O sucesso do transcxual provocou a ira das atrozes e manequins. Estas


protcstariun veementemente contra a inserção de um transexual no universo da
fama, disputando glórias e glamour com beldades femininas. Em sinal de
protesto, a veterana atriz brasileira Dcrcy Gonçalves exibiu seus seios de
verdade diante das câmaras de W, sugo rindo ao telespectador não trocar o falso
pelo verdadeiro.
Os homens, quando sc transfonnan em mulheres, modelam seus corpos
em função do estereótipo da mulller bela, onírica, imaginada pela fantasia do
erotismo masculino. Altura de miss, pemas fortes, busto avantajado, quadril
largo, nádegas abundantes e cabeleiras doiradas. O perfil das mulheres encar-
nadas pelos travestis ameaçava colocar em desvantagens muitas mulheres que
não precnclliam aqueles atributos exigidos pelo universo da fama, do palco, da
tela e das passarclas
Se o m ito Robcrta Clone se ülxou como mania nacional é por que refletiu,
como num espelho, a ambiguidade do imaginário cultural brasileiro. Neste

51
período en] especial, o mito coube como metáfora para expressar a crise de Alvos, maior local de concentração de foliões durante o camaval. Durante os
identidade política produzida nestes últimos anos. Na própria fãa do mito se quatro dias de festa o local sagrado do vaivém e do sobe-desce de dezenas de
denuncia a crise: '' é um país tão miserável, cheio de preconceitos. Não só travestis já se transfomlou numa tradição momesca, no qual imitando os
contra os travestis, mas contra os índios, os negros e os pobres. Um país tão grandes bailes exibem sua feminilidade, luxo e fantasia, para uma galem que
atrasado que nele sou notícia''. ' os aplaudem incessantemente.
A crise traduz um traço marcante e obsessivo dos mass mídia no Brasil. O camaval revela-se como festa profana ritualesca e palco das mais
Qualquer faltaria, qualquer mentira veiculadas com alguma insistência pelos variadas inversões: não só os sexuais, mas principalmente aquelas negadas pelo
meios dc comunicação pode se tomar verdade. A mitomania instala-se numa cotidiano. Da Mata o define, como um espaço onde as regras do ''pudor'' e da
6
sociedade de olhos e ouvidos analfabetos. Substitui a veracidade do aconteci- decência" são temporariamente arquivadas, ou invertidas.
mento real pela sua visão maquiada tmnsfomaando-o nuitas das vezes numa Os homens que se vestem de mulheres durante o reinado do Momo
notícia invertida.
recusam e rompem metaforicamente com seu dia a dia de chefes de família e
A Clone expressou que beleza ainda é fundamental para o homem brasi- portadores de falo.
leiro, porém scr mulher ncm tanto. Isto porque Roberta Close não é um Na pândega camavalesca, o rito da inversão, através da fantasia permite
efeminado. E Êcminino e possui um falo. Falar que a sua imagem causa impacto visualizar tudo aquilo que é ténue, de difícil classificação, mas que será mantido
e constraagimcnto social é no mínimo um exagero. Numa sociedade onde os
homens durante o Camaval aderem ao baton. seios artificiais e caem na farra. no sigilo da rotina diária. Está cada vez mais caracterizado como um ritual de
inversão masculina. Neste período, na maioria das cidades bmsileiras, são
o mito não se aHimla como novidade alienígena.
figuras presentes e crescentes as caricaturas de mulheres encamadas por
homens: grávidas, stars, prostitutas, noivas, enfemleiras, baianas e melindro-
Carnaval - Na passarela nem ele nem ela sas. A grande inversão da maioria dos homens é vestir-se de suas mães, imiãs
O camaval se constitui num dos traços mais evidentes de nossa ambigui- e esposas.
dade latente. Em Pclotas, cidade do Rio Grande do Sul, Estado Guio traço No que diz respeito à rc]ação entre identidade scxua] e o camava] como
marcante é o machismo, durante o camaval uma fileira de 23 mil homens ritual do cotidiano invertido, este se presta ainda para entender a reação ao
travestidos em mulheres mostram o que as gaúchas têm. Apesar deste volume pudor imposto à mulher e à virilidade exigida do homem. Diante desta
nuntérico, os organizadores do l)loco apressam-se em dizer que o ''travestis- exigência rotineira, ela fica nua e ele se veste dela.
mo no canlaval do município é apenas umaa fonna de brincar e não tem nada
a ver com a integridade moral dos homens''. ' Nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, os festdos camavalescos se
centralizam nas escolas de samba, nos grandes bailes notumos e raros ''blocos
Em Salvador, durante o camaval, as fãsas baianas* fazem uma imitação de sujos''.+ Em todos eles, a mulher encamadapor homens é o grande destaque.
ritual da lavagem dos espaços sagrados, ponto alto do ciclo de festas profanas
religiosas. As lavagens acontecem durante o verão e são realizadas por inicia- Nas escolas de samba por exemplo, os travestis têm conquistado espaços,
das dos cultos abro baianos que utilizam água de cheiro e flores num ritual de principalmente nas alegorias de imitação. O travesti Andréa Casparelli, em
purificação destes espaços. Os travestis, ou as falsas baianas, copiando as 1982, imitando a cantoraGal Costa num destaque da Escolade Samba Império
iniciadas, gritam palavras mágicas, berram e rolam no chão, utilizando inúme- Serrano, mereceu críticas elogiosas da grande imprensa. A Gal carbono, um
ros baldes d'agua, fazendo abundantes espumas com sabão em pó e vassouras, profissional na arte da imitação, Rez uma cópia mais peüeita que a matriz.
lavam verdadciranlente as escadarias de um prédio antigo da pinça Castão A presença constante dos travestis em alegorias tipicamente femininas

Homens travestidos em iaõs iniciadas, filhas de santo no candomblé. ' Bloco de rua, organizado por viziiülos e amigos

52 53
tem gerado polêmicas no interior das escolas. As mulheres sambistas reagem, a queixas de pés enomles, até a ''star", altamente peüeita pam ser real. Figuras
sobretudo quando se tratam de premiações. São contra a inscrição de travestis que fariam invda a qualquer adolescente '' punk" no que diz respeito à
em categorias femininas. Sugerem a criação de uma premiação especial para radicalização da marca corporal .
estes, já que instalaram-se como figuras indissociadas do camaval visual.
A tão proclamada e prometida abertura política do final dos anos 70
Mesmo em outras capitais, onde o carnaval não se limita apenas ao seu coincide com a constatação de que nossa sociedade já pode ter proletos
aspecto visual (desfile de alegorias), nas poucas escolas de samba existentes, económicos com matéria prima homossexual, sem que seu consumo atente e
todos os anos a presença de travestis reedita uma polêmica tão antiga quanto a desordena a lógica sexual hegemónica. O ''desbunde'' é a versão gay da
própria constituição do homem e da mulher: as barreiras linguísticas, visuais abertura
e gramaticalizadas entre os dois sexos. Em Pemambuco, o travesti Consuelo
No carnaval de 1 984, a cidade do Rio de Janeiro conheceu a explosão dos
arrebatou o prêmio de melhor poça-estandarte, ''tendo total apoio da comissão
bailes gays. O Gala Gay, mais famoso deles, era realizado consecutivamente
julgadora que resolveu vê-la como mulller''.3 As cambistas pemambucanas
no clube Scala, paraíso erótico reservado às elites libemdas.
reagiram contra a premiação alegando que a ''porta bandeira comia com o
mestre sala um casal. Pelo que se sabe, o casal é fomlado de um homem e uma Entender o camavel como festa ritualesca da inversão sexual (sobretudo
mulher''.4 Para os travestis, a reação das mulheres expressa apenas um precon- da masculina) é mais um elo para a compreensão ampliada do processo de
ceito quanto às fomlas de arte: ''arte é arte, se ele nasceu com este dom, não é construção e reconstrução das diferentes identidades sexuais em nossa socie-
por ser homem que vai deixar de mostrar o seu talento para o povo. Estamos dade. Como foi visto anteriomlente, as diferentes identidades sexuais são
em tempo de igualdade de condições''.S Consuelo, a porta-estandarte em fundadas e erigidas na concepção dualista e complementar do homem e da
questão, é um bonito moreno que, ao travestir-se, transfomla-se num linda mulher. A sociedade exerce uma cobrança intima para que o sexo genital estes a
mulata e ''dá um show de síunba, apresentando-se como bailarina de raro de acordo com a identidade sexo-social atribuída pelo conjunto de leis cultu-
talento".Ó
] rais, morais, religiosas, que ordenam a atividade erótica do indivíduo
O cai"naval, com seus vários graus de paródias, disfarces e fantasias, Toda a sociedade produz seus mecanismos de desobediência erótica. Seria
consagra-sc como território do falso, expressando a pressão da imaginação lícito supor que o carnaval constituiria a versão institucionalizada dessa deso-
sobre o cotidiano, pressão esta que atingiu o auge do luxo e requinte nos grandes bediência em nossa sociedade? O certo é que o camaval se confinna como mais
bailes gays da decida de 80, nos quais a figura do travesti era o atrativo um espaço onde a dúvida sexual pode bailar. A sua tónica erótica está cada vez
comercial. A partir dos anos 70, os bailes camavalescos ganharam uma mais caracterizada enquanto ruptura do acordo entre o sexo genital e identidade
temática homossexual compulsiva em função da perspectiva de um mercado sexo-social hegemónica. Vale lembrar que não é só a pressão latente do
de consumo. Constatou-se a possibilidade de lucros com a exibição da limina- desacordo que o toma manifesto durante o carnaval. Mesmo porque, não tão
ddade, da dúvida visível. da mulher falsa. Antes escondidos e destinados a uma latente, o desacordo é produzido historicamente
clientela particular, restrita ao gueto, estes bailes conquistaram um estatuto de
pós-modernidade, que tomaram imperativo a perfomiance do travesti como A androginia e o sagrado
garantia de público.
O travesti, o transexual e o transfomlista não são figuras emergentes
O Baile dos Enxutos, em São Paulo é o mais antigo deles. Existe desde apenas no camaval. Não sc constituem portanto num elemento novo ou
1949 e, ao longo destes anos, só teve problemas com a polícia federal no temporário. A origem e o lugar que ocupam podem ser entendidos e buscados
período de 72 a 78, quando a conjuntura política se revelava mais opressiva, na própria formação cultural brasileira e seu conjunto diverso de variantes
Át.. ; ,.-. . ,.1 ; .;....
exercendo uma crítica e scvem vigilância aos costumes e à expressão das \f bAlA\fC4Ü \f A vAl=lAVDC&a

minorias estigmatizadas, principalmente daquelas que faziam da noite seu


Mott ( 1982) nas suas pesquisas históricas sobre a homossexualidade no
horário de trabalho e lazer. Neste baile, há mais de 20 anos desfila uma galeria
Brasil colonial, identifica relatos nos quais a presença do travestismo tanto
de figuras refomauladas, de deusas construídas, de entidades oníricas que vão
podia ser uma prática exercida e incorporada por grupos minoritários, como
desde odaliscas com exagerados seios de silicone, rainhas de ''pomo-de-adão

54 55
alvo de controle e vigilância exercidas pelo direito canónico. Segundo ele, um tal da cosmogonia yorubá, Sr. do Bonfim no sincretismo baiano) como uma
certo capitão Carduleja, em 1 68 1, teria feito alusão em seus relatos ao fato de divindade que é "masculino seis meses do ano e nos outros seis meses é
que havia entre os negros ''muito sodomita tendo uns com os outros suas feminino. Não bissexual, mas inteiramente masculino e feminino, reproduzin-
imundices e sujidades, vestindo como mulheres''. ' Aponta ainda que, entre os do uma unidade dos dois elenaentos genitores''.io Oxalá enquanto ser duplo foi
negros do Brasil colonial, haviam aqueles que se travestiam e recebiam a ainda registrado por La Porá ( 1979) nas casas de culto afro na cidade do lüo
denominação de ''quimbaldas'' e eram identificados por rasparem a barba e de Janeiro. Nestes locais o orixá é constituído de uma certa androginia,
usarem um pano em redor da cintura. mostrando-se como uma figura geradora combinada.
A referencia explicita do direito canónico punindo o travestismo, ''ho- lansã, a dona da tempestade e dos raios, caracteriza-se como uma mulher
mem que se vestir de mulher pagará 100 cruzados e será degredado para fora forte, temível, fálica, guerreira. Símbolo da inversão fem mina. Oxum-maré tem
do Arcebispado da Bahia''s, é analisada por Mott enquanto reconhecimento, uma natureza ambivalente. E transformista semestral: nos primeiros seis mese
por parte da lgrda, da existência de diversas formas de expressão do desacordo do ano é mulher, e habita na água e, nos restantes é homem e mora na terra. A
entre o sexo biológico e a identidade sexosocial. Situação identificada entre figura do homem fcminilizado, desvirilizado é representada por Logum Edé
grupos não- católicos, oriundos principalmente de duas raças escravizadas - (filho mais moço dc Oxum). Este sc coloca em oposição à fortaleza e liderança
índios e negros que, por possuírem uma lógica de costumes diferente da cristã, guerreira de Ogum. Diz a crença que "quando um desses santos cai na cabeça
exerceram uma autonomia erótica, vista pela ética cristã enquanto perigo de um ser humano, este se revela gay''.1 1

intimo ameaçadora daerótica católica.


As zonas de transição, de liminaridade, de difícil classificação, locus
A pcdcrastia nas aldeias e sanzalas foi assunto largamente relatado pelos preferencial da dubiedade sexual, tem seus domínios pertencentes a Nana
cronistas da época: ''são os Tupinanbás tão luxuriosos que não há pecado de Buruku. Nana é um orixá gcnitor, de esquerda (feminino). Está relacionado à
luxúria quc não cometam. São muito afeiçoados ao pecado nefando entre os zonas de transição entre mar e terra, tais como lagoas, estuários, mangue e lama.
quais não se tem por afronta".9 0 pecado nefando tanto podia ser a sodomia Elbcin, a descreve como um orixá mutante ''são dois em um, Remea e macho
como a inversão sexual.
Fry ( 1982) esclarece a correlação tão popularmente difundida entre um
Os relatos históricos apresentados pemlitem acumular referências pam a pai dc santo e certa dose de feminilização. O culto religioso do candomblé
compreensão das construções ideológicas elaboradas pela nossa cultura para com sua organização matriarcal, tem suas lideranças religiosas fundadas na
expressar o erotismo e suas respectivas identidades sexuais. Fora da noção de autoridade feminina. A mãe de Santo atende à uma lóogica ancestral que toma
pecado, (grande fantasma punidor e instrumento eülcaz da erótica cristã) grupos a feminilidade zeladora dos deuses. Isto porque o exercício de estabelecer a
sociais, segmentos étnicos religiosos produziram ao longo da história, uma comunicaçào entre os deuses e os mortais, toma o sujeito desvirilizado. Além
desobediência erótica, a despeito do intenso conservadorismo e do caráter disso as narrativas míticas da liturgia yorubá, reserva anterioridade às divinda-
patriarcal das instituições sociais. des Êmininas em relação aos deuses masculinos, que aparecem inicialmente
Fry ( 1982), analisando o candomblé sob o ponto de vista da construção como filhos da grande Deusa Mãe, o princípio de tudo. O que implica numa
de identidades sexuais, o concebe enquanto espaço produtor da inversão, situação particular da mulher para comunicar-se com os deuses. Desta fomla,
principalmente para os segmentos mais populares. No próprio universo sim- Fry explica uma certa dose de feminização dos Pais de Santo. Uma vez que só
bólico dos rituais religiosos, a ambivalência e o paradoxo são encamados pelos as mulheres intemlediam a conversa com os deuses, ''os únicos homens que
deuses, isentando os indivíduos da noção pesada do pecado. poderiam ter acesso ao culto como médiuns eram femininos''.lz

Elbein ( 1984) faz referencia a narrativas míticas do panteão yorubá, nos Através da leitura e percepção dos mitos religiosos constitutivos do
quais os relatos míticos que explicam a origem do mundo e das espécies há panteão religioso abro-baiano, pode-se compreender porque em detemlinadas
uma luta travada entre o princípio feminino e o masculino, pam decidir quem sociedades o modelo dualista homem/mulher e a desordem que dele escapa,
comandaria a supremacia do destino do mundo. Relata que nas casas de santo constituem um ''escandalo lógico'' que ameaçam os mecanismos de controle
da Bahia, é comum a imagem simbólica de Orisalá, ou Oxalá (orixá fündamen- e a visibilidade social. E necessário que todos os indivíduos éstdam posicio-

56 57
blé não podem botar um Suei pra fora porque está botando Oxumaré pra
nados numa ordem, nem que sela a da mãe-de-santo. cora''
Em grande parte das sociedades tribais, os travestis seriam sem dúvida
considerados mulheres. TH identificação é para estas sociedades o meio mais
O reconhecimento da inversão e sua legitimidade foi levada às últimas
conscqucncias num terreiro de Umbaida, no qual foi realizando uma cerimónia
eficiente de evitar a desordem, a invisibilidade social provocadas por aqueles
curiosa: em 1 977, na cidade Paulistana, "...um babalorixá uniu pelo matrimo-
sujeitos que não se colocam nem entre os homossexuais, nem entre as mulheres nio José Geraldo Gomos e José Luzia Gomos que se casaram num templo de
e. muito menos, entre os homens. Apoiar da nitidez dos disfarces, da máscara umbanda do ltaim Paulista''.iÓ O ato cerimonioso virou manchete. Reuniram-
cosmética denunciar claramente um sexo oposto ao do representado, as ima-
se psiquiatras, juristas, sociólogos e a igreja para explicar o matrimónio. A
gens dos travestis ainda causam certa perplexidade nas trocas simbólicas entre igrda passou das explicações à concreção do resultado de suas análises:
as identidades sexuais
condenou e denunciou o fato às autoridades, apontando o babalorixá como um
A identificação de sujeitos com entidades divinas do sexo oposto previ' criminoso, não autorizado a unir pelo matrimónio um homem e uma mulher e
muito menos um homem com outro. O babalorixá, porém , recusou-se a
entender como crime o ato que praticou, mesmo porque simplesmente ''não
pediu para verificar se o sexo da noiva era real ou não, aparentemente ela
cação e codificação do corpo em transe como elemento primordial dos rituais parecia mulher''' ' e maliciosamente pergunta ''sc os padres costumam pedir
''sendo enfeitado, pintado, vestido e desvestido no seu importante papel de esta verificação a suas nubentes?''i8 Observar estes aspectos nos rituais afro
ponte com os deuses''.' religiosos nos pemlite entender com mais clareza porque, a despeito de todo o
conservadorismo cristão e o caráter machista de nossa sociedade. está se
Não se trata aqui de tomar a correlação entre o referente (corpo em transe)
tomando constante e frequente a recusa dos homens brasileiros aos atributos
do falo. Compreender o mito Close, apenas como uma inteligente criação
publicitária, é uma leitura fácil, que não desvenda os mecanismos históricos,
estreitas relações de causa e efeito. culturais e simbólicos, produzidos pela nossa sociedade que de resto pode
explicar também como o transexual tomou-sc na década de 80 uma mania
Na verdade, pode-se soincnte afirmar como já o fez Fry, que o candomblé nacional. O mito não significa apenas um golpe acertado da média, mas antes
difercntenlcnte da erótica cristã, estabelece restrições precisas e explícitas, de tudo expressa que, latente e insidiosamente, a própria cultura produz seus
mcculismos de desobediência erótica. Neste sentido é que o lugar da inversão
masculina não pode ser reduzido apenu ao estaço camavalesco, aos rituais
adros ou às pistas de prostituição

Kabukis, máscaras, atores, personagens: o ''estrela


A presença dos travestis no palco é tão remota quanto a criação do próprio
teatro brasileiro e confunde-se ainda com a história da colonização européia.
séculos, na regulação social do comportamento erótico. Os padresjesuítas costumavam encenar histórias de religiosos e religiosas
As religiões afro-brasileiras, em que pese as complexidades das suas como fomla de pregação e doutrinação. As raras personagens femininas que
dúvida, habitavam essas representações eram encenadas por homens numa clara res-
sfomlações ocrridas ao longo da história da. colonização, sem

ê
trição a expressão da mulher no palco. Trevisan ( 1986), atribuía aausência da
mulher cm cena durante este período, ao cumprimento das regras constantes
no ''Ratio Studiorum", livro de nomlas comportamentais promulgado pela

59
58
Em 1830 a mesma especialização foi encontrada nos teatros de Porto
Companhia de Jesus em 1 599, o qual proibia papéis femininos nos teatros de Alegre , no Maranhão em 1 854, e no Rio dc Janeiro neste mesmo período. Na
seus colégios, com eReCção dos personagens das Santas Virgens, e mesmo Bahia, a figura histórica do Visconde de Rio Branco, nos meados do século
estas, só podiam scr encenadas por homem. E preciso lembrar que isto não era XIX, "ganllou fama representando papéis de dama-galão no conjunto 'Rege-
muito
um privilégio apenas da erótica cristã. No kabuki, género. de teatro neração Dramática', fundado cm 1 854".2i
popular no Japão, as mulheres são proibidas de subir ao palco, sendo repre'
sentadas por amores tmvestidos, que ostentam um rosto de porcelana, constniído A presença da mulher na atividade de representar não significou a retirada
através de uma sofisticada máscara cosmética de gueixa tom de marfim
>
de cena dos travestis. O ator tralsformista foi se perfilando, se transformando
definitivamente sedutora. e se multiplicando juntamente com o teatro

Os travestis do teatro Kabuki, são descritos no romance Cobm de Sarduy O surgimento do teatro dc revista e do teatro de gênero musical, depois
da década de 30 foi um porto seguro pam travestis e atores transformistas. Os
(1977) como deusas reduzidas. Sínteses de sucessivas operaçõesfemininos.
redutoras,
altemalKlo subtração dos sinais masculinos com adição de sinais gêneros consistiam em humor crítico sobre as idéias e costumes da época, e na
Buscam a perfeição que sabem não encontrar nem numa máscara precisa de sátira política. Até os finais dos anos 50, este estilo de teatro permanecem
alegrando as noites das grandes cidades, porém seus profissionais continuaram
porcelana. E por isso que Cobra, personagem wntial da História exclama: "Oh
discriminados. Os shows dc travestis não eram divulgados pelagrande impren-
Deusa por quc me fizeste nascer para não ser peúeital''''
sa e muito menos os amores tralsfomlistas apareciam na televisão. Com
Vale lembrar que além das punições religiosas, a sociedade brasileira dos algumas excessõcs, apesar do talento, este tipo de ator não obteve as vantagens
séculos XVll l e XIX, mantinha um severo estigma contra as atrozes da mesma de se integrar no processo de crescimento económico e político do setor de
ordem e do mesmo grau reservado as cortesãs. A presença da mulher no palco televisão no Brasil
era de imediato associado a venalidade intrínseca do seu corpo, e?tigma que de
resto se estendia a todos os profissionais de teatro, independente do sexo. 'lidos Rogéria, famoso atar.tralsformista é a excessão. Durante todo este
como devassos, vagabundos e promíscuos sexuais. Trevisan (1986) infomta período, Asdtolpho (referente de Rogéria) enquanto cidadão, ocupou os diver-
sos palcos. Com sua imagem de exagerado recato e gestos eufóricos, satirizou
que a identificação do corpo da atroz ao corpo venal pemlaneceu por multo
a política e os políticos da época. Através da nitidez do seu disfarce denunciou
H"po. No princípio do século XX ainda se cometia o exagero de exigir das
atnzes um atestado de saúde pública, comprovando a inexistência de doenças a hipocrisia da rigidez dos costumes opressores da sociedade brasileira. Em
sexualmente truasmissíveis. No entanto, neste mesmo autor admite que a meados dc ]960 é sucesso absoluto no Rio de Janeiro. Com o golpe e o
Hcchamento político cultural do final da década de 60, Rogéria foi proibida de
despeito da púdica cristã e das restrições morais, neste mesmo período, se ''tem
notícias'' de elencos organizados - no Rio de Janeiro e em São Paulo - os quais aparecer na televisão, seus shows não mais eram divulgados pela grande
excepcionalmente incluíam mullleres. imprensa. Em 1969 é finalnlcntc ''caçada'', em nome do pudor, da moral e da
família, seus shows foram dcfinitivancnte proibidos. Com a transição da
hbe-se qtle num elenco criado no Rio de Janeiro abertura política iniciada em meados de 70, Rogéria volta aos palcos, uma volta
por ordem do Vice-rei, entre 1779 e 1790, havia gloriosa. Em 1980 ganha do actor estatal um prémio de teatro. O INACEM
várias atrozes, entre elcts Joaquina da Inpa ('galgo
(Instituo Nacional de Artes Cénicas) elege a sua atuação no âlme ''O Desem-
Lapinhct) e Marina Jacinto (vulgo Malucas) - e bestado'' de Ariovaldo Matos, como a melhor construção do personagem do
pelos apelidos pode-se imaginar não apenas sua ano. E a consagração deHi nitiva da figura do travesti enquanto arte. A premiação
populciridctde com certa ciPttidade com cl vulgarida- possibilitou a Rogaria poder de barganha para reconquistar os palcos brasileiros
de. 20
e espaços de encenação dos cspetáculos dos travestis e dos atores transfomlis-
Mesnlo com a inclusão das mulheres no palco, com a evolução da arte tas. O quc se assistiu foi a explosão de um boom deste tipo de espetáculo.
dramática, a cultura brasileira não abandonou a cena transfomlista. Os atires Segundo Trevisan, "em 1980, das seis revistas em cartaz no Rio de Janeiro,
transfonllistas continuaram paripassu disputando os papéis femininos com as quatro eram shows de travestis''."
atnzes.

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60
O teatro é o espaço sonhado, o palco a porção artística reivindicada. socialmente enquanto evento artíistico. Desta época em diante se assiste a um
Rogaria canta, dança e representa. Tem uma visão objetiva de sua condição verdadeiro ''boom'' nas noites cariocas e paulistas. O espetáculo ''Gay Fanta-
' Tenho corpo de homem, alma de mulher e consciência de atar".23 Não se sy", dirigido pela veterana Bibi Ferreiro, fica um ano em cartaz no Rio de
identifica completamente com seu personagem construído, uma vez que As- Janeiro e é recomendado pela crítica especializada como evento de primeira
tolfo (sua marca masculina) não morreu para dar lugar a Rogéria. Não havendo categoria. Depois vieram o ''Rio Gay'', Travestis S/A", espetáculos caros e
a negação , ''Rogaria está para Astolfo assim como Carlitos está para Charles luxuosos que tinham como estratégia de lucro a figura ambígua do travesti
Chaplin''.24 A criatividade e o talento dc Rogéria imprimiram a estes espetá- como peça fundamental de consumo.
culos a marca de obra de arte socialmente reconhecida. A essência da arte não Rogaria, Georgia Bengston, Mana Leopoldina, Andrea Casparelli, Patrí-
consiste apenas ein vestir-se de mulher mas de imita-la, estuda-la nos seus dio Bispo, Eloina e outros, são as estrelas da noite. Cantando, dançando ou
mínimos gestos, assimilar com as devidas inflexões o timbre de voz feminina fazendo humor crítico dos costumes brasileiros, contribuíram para uma nova
Arte que hoje pode ser mais facilmente elaborada e apeúeiçoada com a acuda leitura social da inversão masculina agora já relacionada com a ausência de
de sofisticados recursos tecnológicos, inimagináveis há duas décadas atrás, o identidade social e económica da sociedade brasileira. A despeito da censura,
que exigia uma dose de talento igual ou superior à dos atores consagrados como das brigadas cristãs e, do preconceito social que as colocavam nos braços do
grandes divas do teatro ou do cinema. crime e da n\arginalidade, é cada vez mais flagrante o aumento de público
Nédia Kendal, há mais de vinte anos fazendo teatro de revista, é um dos nesses espetáculos. A miragem, arte da ambiguidade, se constitui numa fonte
mais antigos travestis de palco. Consagrou-se como ator-transfomlista numa de atrativos e conftisõcs gramaticais, uma vez que o elemento definidor da
época em que a censura dos costumes só pemlitia ao travesti circular à noite identidade sexual no palco, é manipulado com a finalidade de instalar uma
Confinados em guetos, boites e ''infeminhos'', não viam a luz do sol". Mesmo dúvida constante, principal amua deste género de teatro. No famoso espetáculo
assim, o seu mais famoso espetáculo fez sucesso na década de 60. ''Les Giras'' ''A Noite do Avesso'', Andrea Casparelli prova definitivamente que o certo é
ficou um ano êm cartaz no Rio. Na mesma cidade, no Final de 70, Jorge o avesso. Entra no palco vestida de Shirley Bassy e dublando ''This is my lide
Bcngston, atar transfomlista ''concentrado, como um verdadeiro artista, com vai tirando a maquiagem, adereços, roupas de mulher, bica nu e então se
pincel e tintas, ele vai aos poucos se traasfomlando numa loura chamiosa, com transfomla em Paul Anka dublando ''My Way''.28
ares de cinema mudo''.2S E a Geoigia Bengston que invade o palco e, numa Será a caricatura porta-voz de uma fãa que significa a expressão obUeto
rara expressão de talento, mostra sua arte: a dublagem ou ''micagem' no da atividade erótica? Será o travesti espelho da mulher brasileira hoje, ou
espetáculo ''Mimosas Até Certo Ponto: reedita um tipo de mulherjá enterrada pelas lutas políticas sexuais? Ou ainda
Os transfomaistas e travestis que profissionalmente sobem aos palcos para um humor crítico em relação a este tipo? Se, no palco, o travesti quer conservar
dublar mulheres de sonhos, são registrados cm suas carteiras profissionais a ambiguidade, esta se presta mesmo a denunciar um sexo diferente do
como atores trans6omlistas. representado. A mulher encamada pode ser considerada também, como uma
crítica à cobrança social da polarização entre os sexos. Quando os tmvestis
Embora espctáculos deste gênero sqaln tradicionais, especialmente em rceditam um modelo de mulher que, mesmo as mulheres a recusam enquanto
cidades como Rio e São Paulo, e possuam uma larga margem dc público e identidade feminina, pode-se supor que tanto poderá estar fazendo um humor
lucro. só obtiveram reconhecimento social enquanto obra de arte nos fins da critico sobre este tipo, ou reafimlando o caráter machista da nossa sociedade
década de 70. Em 1971, a "censura proibia claramente os espetáculos de que ainda não reconheceu um novo modelo de mulher.
travestis em ''cinema, teatro e TV".'o
A presença do travesti no teatro não pode ser entendida apenas como uma
Neste período, Rogaria, sob as luzes de scu palco, brigava pela ampliação herança da restrição histórica às mulheres no palco. Curiosamente, no Brasil
do mercado de trabalho e a extensão do rcconhecimenteo de sua arte para outros
os shows caricatos de travestis chegariun ao reconhecimento social enquanto
travestis: ''Precisamos trabalhar na televisão; nós somos proibidos com a arte, no mesmo período em que os movimentos sociais das minorias sexuais
alegação de que atentados contra o pudor e os bons costumes''.'' clleganam a seu grau máximo de confronto e crítica aos valores sexuais da nossa
E no final de 70 quc estes espctáculos se consolidam e são reconhecidos sociedade.

62 63
Fora do teatro de revista e rebolado, onde a simples presença do tmvesti e encanta com sua recém-descoberta porção mulher. A música Super Homem
no palco era sinónimo de público garantido, a ambiguidade perfilou nas cenas textualmente se refere a ''uma porção mulher que trago em mim agora'' como
mais intelectualizadas do teatro brasileiro. Andrca de Maio, travesti carioca, uma qualidade positiva, capaz de fazer face a ''mazelas'' que o ''reino do
interpretou a Jenny, no musical ''A Opera do Malandro''. O famoso compositor macho'' estaria trazendo à humanidade
e tcatrólogo brasileiro, Checo Buarque de Holanda, diretor do espetáculo, fez
de Jenny uma réplica dramática do travesti brasileiro. Tanto o autor como o
A partir da década dc 60, toda inversão desta época 6oi fiindamenta nas
teses elaboradas pelos movimentos das minorias sexuais concebiam a ''socie-
personagem podem falar sem cometer uma inverdade que a ''sociedade que
dade do falo'', da ''penetração do capital'', como a responsável pela neurose e
me aponta na rua de dia, deita-se comigo à noite''."
desamor reinantes. Trata-se então de 6eminilizar toda a sociedade e. em
Os ''Dzi Croquetes'', grupo teatral de revista musical composta só de especial, os homens. Neste contexto, o travesti tende a ser o deus andrógino,
homens, durante muito tempo encenou situações que levaram a uma reflexão revolucionário, simplismentc, passando por mulheres, levavam às últimas
crítica da ambiguidade e dos critérios arbitrários de diferenciação sexual. consequências a fêminilização da sociedade. Como a sociedade de consumo
Satiricamcnte tentam provocar uma ruptura de gêneros, superpondo num recupera também seus interditos e a própria crítica sobre si, a presença de
mesmo corpo, marcas tanto de feminilidade quanto de virilidade. No final dos travestis em programas de televisão ou em eventos culturais dá altos índices
anos 70, realizaram espetáculos no qual os homens apareciam em cena de de audiência e tcm frcqucncia garantida.
''bigode e barba, com vestes femininas e cílios postiços, !sando meias de
futebol com sapatos de salto alto c sutiãs em peitos peludos''." Em meio a uma O programa dc TV dirigido por Gugu Libcrato (rede SBT), num concurso
das mais belas pcmas, premiou um travesti que ''após revelar sua verdadeira
profusão de luzes próprias para teatro de revista e muita maquiagem, cultiva-
va-se uma atmosfera dcsconccrtalte dc dúvida constante, onde o disfarce se identidade, acabou recebendo o prémio de cem mil cruzeiros, pois o concurso
não estabelecia quc as pemas deveriam ser Êcmininas''.3t
prestava muito mais para expressar que as linhas divisórias entre os sexos são
um traço cultural e inteiramente descolado do sexo genital. Em este o principio Embora o travesti, enquanto categoria, estivesse sumariamente proibido
que o disfarce e o pastiche tentavam aHimlar. Numa com untura onde as minorias nas rádios durante um certo tempo, sua representação nunca esteve ausente,
sexuais iniciavam um movimento social no sentido de questionar os valores sobretudo nos quadros de humor. As caricaturas de mulheres apresentadas nos
opressivos e morais da sociedade, estas expressões da arte ambígua, da cena programas humorísticos chegam perto da imitação do aparente da inversão.
dúbia, se prestaram a instrumentos ou questionamentos da rigidez e hipocrisia "Painho'' o mais famoso personagem do humorista Chico Anysio é a constru-
dos valores morais, principalmente daqueles referidos ao prazer e ao erotismo. ção nítida de uma babalorixá do candomblé. Painho é exageradamente 6emi-
A feminilização da sociedade, a bissexualidade, a homossexualidade e a nilizado, nos gestos, nos adereços e maquiagem e ainda entoando uma voz
dolente copiada da fala das mães de Santo dos terreiros de candomblé da Bahia.
androginia não escaparam do universo musical. Na década de 70, em plena
ditadur% o conjunto musical "Secos e Molhados'' estourou nas paradas de O famoso humorista JÕ Soarem pen.dura no cabide de seu camarim um
sucesso. Ney Matogrosso desconcertava: sua voz feminina era um contraste, elenco dc personagens femininos, encenados pelo próprio. Dois de seus
vinda de um corpo visivelmente viril. Ele proclamou ''a metamorfose ambu- personagens, Capitão Gay e seu secretário travesti, Carlos Suely, criaram
lante'', o corpo colho desinvestimento opressivo através da ambiguidade, identidades que foram motivo de pesadas críticas dos militantes homossexuais
rebololando como uma sambista, com maquiagem exagerada, batom de tom que os acusavam de reforçar o preconceito social contra a minoria.
mais rubro e exóticas fantasias onde seu corpo aparecia sob a representação.de
homem desnudo do primitivismo. A demanda tornou-se tão intensa que a boato paulista ''Beco'' ofereceu
nesse período um serviço destinado especiHlcamente a clientela de travestis.
Neste mesmo período, Caetano Veloso, compositor e cantor baiano Um verdadeiro curso que consistia em tralsfomlar homens em mulheres de
encamou a ''chiquita baiana''. Seduziu ajuvcntude a ''transar todas'', inclusive classe. As aulas abrangiam boas maneiras, técnica de desfile maquiagem,
seu lado feminino. Nas suas apresentações musicais beija a boca de seus moda, culto, impostação de voz e dança. Os travestis inventaram sua SOCl-
músicos e num histórico show em 1973 canta com indumentária feminina, LA.+ Restava então copiar a festa da beleza máxima feminina. Saúdam as
brincos enormes e boca pintada. Gil, cantor e compositor tam bém baiano, canta promessas de abertura política dos anos 80,. elegendo sua rainha, ''Soraya

64 65
9. 1dcnt
Jordão, Miss Boneca Pop, mineira dc Juiz de Fora, 22 anos, 1,70m de altura,
1

morena, cabelos e olhos castanhos".32 Sou) a recebeu a faixa, o metro e a coroa 20. SAliDUY. Severo.'Cobra". Rio de Janeiro, Perspectiva, 1 977
com lágrimas nos olhos, surpresa e visivelmente emocionada como cabia se 2 1. TliEVISAN, op. cit., p.142

comportar unia verdadeira Miss Brasil da década de cinquenta. Concursos e 22. Idem, p.143
prcmiação do género sç multiplicaram e ousaram na perfomlance das candi- 23. Idem, p. 147
datas. A maioria das fantasias abusava das plumas e paetêi e muitos deixavam 24. Revista Fatos c Fotos, apud arquivo do GGB (scm indicação completa de fonte)
o corpo quase quc totahncntc despido, mostrando muito silicone e fomlas 25. 1clcm
peúcitas. 26. Jonul Lampião da Esquina,juieiro de 1 978
Na guerra do mais belo entre os travestis, elegia-se muitas vezes a 27. Jomal O EsUdo de São Paulo, 07.01 .71
exacerbação dc certos atributos fentininos. Quanto mais silicone, quanto mais 28. Revista Manchete, apud ar(ruivo do GGB (wm indicação completa cle tente)
adiposas as bundas, maiores as notas. 29. Jomal Lampião da Esquhui,jalcirode 1978
30. TREVISAN. OP. cit., p.148
NO'1AS 31. lbdcni, idem

l . "Robcrki Cioso c a Bela Esllngc". In l;olha de São Paulo, São Pauta, 3 1 .05.84 32. Jonml Folha de São Paaulo, 15.02.83
33. Revista Isto É. 03.01.83
2. Jornal de Porto Alegre, apud Arquivo do GGB (scnl htdicação
3. çonlplcu de lbntc). Scção Travestis variedades
4. Revista Contigo, Rio de Janeiro, ILvcrciro de 985, p.20.
1

5. 1dcnt
6. 1dent
7. Jornal O Dia, Rio dc Jmteiro, 08.0 .84, 1

8. MOl"l', L. B. lickiçõcs Sociais entre os [lomoswnuis no Brasi] Co]onia]. Comunicação


aprcwnudu no Instituto Universitário dc Pcscluius, Rio de Juieiro, set, 1 982. p. 16. mimeo.
9. lbdcnl, idem
10. MO'l'r, L. B. A hontossexualiclade, uma variável esquecida pela demognalla histórica; os
sodomiLas no Brusil Colonial. Conlunicaçiio apresentada no 3 Encontro Nacioiml da Asso-
ciação Brasileira dc Estudos I'opulucionais. Vitória, out. 982, p.8, miineo
1

1 . Elbcin, Juanita, Os Nagõs e a Morte. I'etrópolis, Vozes, 1 986.


1

12. TREVISAN, Jogo Silvério. DcvasH)s no Puraíw. São Paulo, Max Lhnonad, 1 986, p. 286.
13. FRY. Peter. Para inglês ver. io de Janeiro, Zahar, 1982, p.60
14. TREVISAN, J. S., op. cit., p.284
1 5. FRY, Pctcr, op. cit., p.6o
16. TREVISAN, J. S., op. cit., p.280
1 7. Jonlal Noticias I'opularcs, Rio dc Jíutciro, 08.0 1 .86
1 8. 1clcnl

*'p Centro de estética lbnlinina que nas décadas de 50, 60 e 70 1'oi uma das mais famosas casas do gênero
bastante procurada por beldades milionúias, ''stars''. manequins e misses

66 67
r

CAPITULO 111
RITOS DE PASSAGEM
Ela chega ao camarim, acende as luzes, vai para frente do espelho
De dentro da maleta retira uma sacola cor de rosa
e desta uma pinça, imediatamente utilizada para
depilar alguns fios (praticamente ittüsheis) que
resistiram à lâmina, logo ctcima do lábio superior.
Feito isto, penteia os cabelos cilourados para trás e
passa por todo o rosto uma espécie de creme que
Ihe dá um tom rosado uniforme. Espera secar com
a ajudade uma esponja, cobre o rosto com umpó
de cor um pouco maisjorte e, imediatamente deli-
neia o contorno dos olhos com um pirtcet e finta
pretos. Observa atentamente o resultado e com um
pincel e tinta marrons alonga as palpebras em sen-
tido horizontal. Um pente Pno nas sobrancelhas,
dctndo-lhes o aspecto desejado. Os cílios são endu-
recidos com uma escovinha esfregado de forma
circular, recebendo por cima enormes cílios negros
ondejaiscam pequeninas lantejoulas. Mais um pin-
cel é retirado desta mágica sctcola cor de rosa -
cheia de potes, caixinhas, titbos, cílios. Um batam
vermelho torna a boca de Astolpho carnuda e bri-
lhante.'

Esta é a operação cotidiana da reconstrução de Rogaria, personagem


cultivado por Astolpho, dentro e Êom do palco. Através deste rito feminino, ele
reflete no espelho um gênero que durante anos aperfeiçoou e se dedicou a
conceber. O gênero feminino, construído com seu ritual, denuncia o rompimen-
to de barreiras sexo- linguísticas. Lá onde os dois sexos estão aprisionados em
reinos tão excludentes e polaizados, nomiatizados em gestos, gostos e desdos,
os travestis, os transexuais, e transfomlistas exacerbar radicalmente a fantasia
andrógina, recorrendo a diferentes artifícios tais como a imitação da indumen-
tária feminina e recursos médico-científicos (homtõnio, silicone, etc.) para a
peúeita transmutação. A transfomiação é um intenso trabalho sobre o corpo.

69
Traballlo de subtração e adição, num total investimento modelar e gestual. O O período traisitalte é constante no caso da metamorfose - homem e
proceso de inversão masculina levado às últimas consequências procura apa' mulher, uma vcz que alguns processos de alteração corporal, como os hormõ-
gar, borrar, tomar dúbias as marcas viris e adicionar atributos e adereços ao nios, as maquilagens, a eliminação dc pelos, não conferem aos travestis, depois
corpo de temlinado o ciclo, uma aparência definitiva de mulher. Pelo contrário,
exigem intervenção sistemática e cotidiana. Este período reveste-se de singu-
Se se coloca como hipótese que o rito atualiza o m ito, e aqui especialmente
lar importàacia, uma vcz que muitos travestis, longe de desejarem se transfor-
os mitos da androginia e da mulher fálica, os processos dc transfomlação a que
mar dcfinitivaucnte em uma mulher, desejam antes de tudo conservar sua
os tmvestis, transexuais e transfomlistas sc submetem, podem ser caracteriza-
ambiguidade, ou seja pemlalecer na margem ou em constante liminaridade
dos enquanto ritos de passagem. Estes ritos, muito analisados e estudados por
antropólogos, são cerimónias quc acompanllam as passagens sucessivas de um
Scr liminar, é ter marcas ambíguas, que escapam às redes taxiânomicas,
dcHinidoras de estados e localizações no espaço cultural. O etemo transitante,
indivíduo ou grupo de uma situação à outra. VAN GENEPE (1978), estudou não se encontra aqui ncm lá. A respeito da liminaridade, o autor revela ser esta
os ritos de passagem nas sociedades tribais, conclui que, ''toda a alteração na
uma situação do sujeito em tràlsito associada frequentemente à morte, ''ao
situação de um indivíduo implica em ações e reações entre o profano e o
estar no útero, à invisibilidade, à escuridão, à bissexualidade, às regiões
sagrado, açõcs e reações quc devem ser regulamentadas e vigiadas, a fim de selvagens e a um eclipse do sol ou da lua''.'
que a sociedade geral não sofra nenhum constrangimento ou dano".'
O terceiro rito de passagem caracteriza-se pela consumação da mudança
Considerando que o processo de inversão do homem em mulher não se
à uma situação estável e dc nítida visibilidade social. Se os travestis desçam a
propõe traasfomlar ele definitivamente nela, a metamorfose dos travestis é um
ambiguidade c atualizan, com suas tnlulsfomlações o mito da androginia,
rito que atualiza o mito da androginia, da mulher fálica, primitivamente
contudo, não se espera que sc transformem em mulheres de fato, anatómica e
colocada no espaço sagrado por encimar características de divindade. Os
mentalmente. A passagem está consutnada com a figura visível dos travestis
processos elaborados socialmente pelos travestis e sua metamorfose, colocam-
nas ruas, com a operação transcxual, com o camaval, teatro dos travestis, etc.,
se também na categoria dc rito de passagcin do sagrado para o profano, com a expressão moderna do mito.
semelhulte aos ritos tribais.
Os ritos de passagem quc caraterizam a trajetória de transfomtação dos
TURNER ( 974) considerando a importância e regularidade social dos
1
travestis, transcxuais e tnansÊormistas, na nossa sociedade, além de comporem
ritos de passagem, nas comunidades primitivas para analisa-los, elaborou uma
processos simbólicos, são viabilizados por uma tecnologia médica e estética
decomposição classificiuldo-os em ritos de separação, ritos de margem e ritos
que racionalmente opera a transmutação num total investimento físico no
de agregação. Para o autor o rito de separação, significa o afastamento simbó-
corpo. Em suma, a faltaria andrógina não é apenas produzida pelo travesti,
lico de um ponto anterior, nítido e de visibilidade social, para uma outra
mas faz parte de uma economia sexual, a mesma quc fabrica os anticoncepcio-
configuração social. Ou ainda ritos que incorporam aspirações humanas cm
nais, e ao mesmo tempo que estimula a maternidade como geração de força de
sua forma imaginária. Ritos como incorporação mítica destas aspirações.
trabalho, ou esteriliza mulheres do terceiro mundo. É a mesma que concebe o
No caso do processo de inversão masculina, o rito de separação significa casal, o corpo prostituído, etc.. Ou sda, uma economia sexual que tem como
a recusa do homem em sc identificar com os atributos designados à sua alvo o coq)o do indivíduo e agua com duplas t)lcnsagens.
identidade de género masculino. Se afastar do mundo viril, abandonar suas
vestes, seus gestos, e suas preferências sexuais, significaria o processo inicial
O corpo e suas vestes são portanto importantes sinais de identidade.
de metamorfose. Constituem o primeiro instrumento de diferenciação social. As sociedades
tribais ágrafas escreviam sobre o corpo, um conjunto de cores e sinais, fazendo
Segundo o mesmo autor citado, os ritos de margem é definido como um da pintura corporal veículo de infonnação expressada em verdadeiros ideogra-
período no qual a imagem do ''sujeito transitante'' é ambígua, não dada a mas. Os travestis, transexuais e transformistas, através de operações transfor-
classificação, scm vestígios dos atributos passados e apenas com poucos sinais madoras, expressam nos seus corpos uma ]inguagem a partir da qual a
de percepção de si no futuro. sociedade pode tcr sua androginia. E não o Êaz diferente do restante das outras
culturas. Tacto nas sociedades modernas quanto nas tribais o corpo expressa

70 71
Os homlõnios femininos, antes do advento do silicone, eram um dos
uma fala de afimaação ou rebeldia à rede de classificação gramatical. As poucos recursos médicos que dispunham os invertidos para modelarem seus
expressões gestuais, a escrita inscrita no corpo, são importantes na medida em corpos. Dosagens regulares, ingeridas quase que cotidianamente produzem no
que refomiula, explicita, questões que a fala não dá conta. corpo do homem, a emêrgencia de fortes seios, arredondamento da face,
Na nossa sociedade, por exemplo, certos ideias de beleza corporal são inflação dos quadris e a6inamento da voz. A injeção de hormânios chega a
adquiridos e conquistados aravés da alteração de regiões do corpo, via ginãsica, resultados semelhantes ao silicone, porém com o agravante de desordenar o
dietas alimentares e práticas irreversíveis e radicais, tais quais as diversas metabolismo orgânico, comprometendo algumas funções físicas. É voz cor-
fomias de cirurgia plástica estética que, muitas das vezes, significam mutila- rente entre os travestis que a consequência mais drástica é a redução da
çoes capacidade de ereção, além de provocar, em alguns, a formação de glândulas
e caroços, principalmente na região genital. REGINA ERDMAN ( 1985), relata
O assumir a identidade de outro sexo é acompanahado de uma série de
nos seus estudos sobre a prostituição masculina infantil em Florianópolis,
ritos que guardam ainda semelhança com a construção de um personagem de registra a insegurança diante desse processo de transição física: "como tomei
teatro. Pressupõe o domínio de uma série de saberes que compõem o.universo muito homlõnio feminino, não consigo muito scr homem em algumas ocasiões.
feminino. A modelagem do corpo viril em corpo feminino é alcançada basica-
Nãosou mulher. Sou uma coisa diferente, tenho mamas e nádegas feitas''.S
mente através dos processos de aplicação de silicone, homtânios, eletrólise de
pelos, implantes, etc., e ainda a radical operação transexua], que consiste na- O processo de transfonnação não cessa. É preciso ser alimentado cotidia-
eliminação da genitália masculina e na sua remodelagem numa neo- genitália namente num rito de ampliação etema até a peúeição. No mesmo estudo, outro
aproximadamente feminina, pelo menos a nível estético. travesti conta como começou cedo sua metamorfose e que esta ainda se
prolongará: ''com dezesscis anos resolvi ser mulher, âz tratamento de hormõ-
O processo de modelagem do corpo siliconizado é um dos mais sofisti- nios, então a voz afinou, os pelos sumiram, tenho bustinho, agora quero bombar
cados e caros. Este é aplicado em fomla líquida ou gelatinosa nas regiões dos
silicose nas nádegas''.o
seios, maçãs do rosto, quadris, queixo, testa e pemas. Eloina, famoso travesti
carioca, diz que a fomla mais usual do implante de seios é a prótese: "consiste A depilação de todos os pêlos é um processo de eliminação que tenta
numa bolsa que eles (os cirurgiões) colocam intimamente nos seios e inyetam apagar as marcas do homem no filturo corpo. E uma operação dolorosa que, a
o soro de silicone e é feito em quinze e vinte aplicações, não tem espécie depender do método, pode ser regular ou temporária. O processo de depilação
nenhuma de reação e não é proibido''.+ por eletrólise é o mais eficiente porém o mais caro com a vantagem de seu
efeito durar pouco mais de dois anos. A depilação com cêra ou com gilete exige
O uso do silicone médico é recente e data da década de 40. A partir de 70,
um trabalho quase que cotidiano mas, em compensação, é um pouco menos
porém, seu uso se consolidou especialmente no setor de cirurgia plástica p:lra doloroso e mais acessível à maioria dos travestis
produzir efeitos estéticos. Começou a ser usado em mulheres dos Estados
Unidos e do Brasil para resolver casos de seios diminutos ou ausência ü)tal de A roupa, o tule, a vestimenta, constituem elementos importantes desta
seios. Com seus efeitos revelados no uso da cirurgia plástica e estética feminina, transfomlação. A indumentária é sobre o corpo um investimento simbólico. Se
o silicone passa a ser o líquido sagrado para o processo de inversão masculina. as sociedades primitivas cunhavam no corpo dos sujeitos seus signos e sua
E o material mais eficiente na transformação e no que dela se espera. O escrita, a nossa não abandonou semelhante fomla de linguagem. A sociedade
personagem feminino ganha contomo de realidade pelo trabalho de alteração e a cultura modema tal qual as primitivas também desenham nos corpos as leis
de um corpo que discretamente indefinido, que vai ganhando formas feminina, e os costumes sociais. O conjunto de gínais, tais como, corte de cabelo para
com seios inalados, quadriz ampliados, evidências de cintura e aumento das diferentes sexos e idades, aliança nos dedos para os casados, maquiagem,
maças do rosto. depilação dos pêlos da pena e axilas para as mulheres, a barba cultivada por
alguns homens, denunciam uma organização sexo-gramatical com seus ritos
O líquido mágico começou a ser usado abusivamente entre os travestis, de passagem e iniciação.
sem contr61e de qualidade e pureza, e sem prescrição médica. Em 1983, na
cidade de São Paulo, o uso indiscriminado do silicone causou a morte de nove
travestis, além de cinquenta e oito sofreram lesões físicas.

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72
O corpo e seu uso é um poderoso instrumento de diferenciação sexo social c muitos anos de trabalho na modelagem e disciplina corporal. Semelhante a
e se estrutura enquanto linguagem . E o centro do mito do silêncio, exp.restando um laboratório dc experimentação cênica, os travestis , transexuais e transfor-
a ft)nna de ordenar o exercício da sexualidade. Em nossa sociedade este mistas realizam um ritual no espelho feminino. Sua ambiguidade nos palcos,
exercício subordina o corpo da mulher e do homem numa relação. dualista nos camarins, no carnaval, nas casas notumas de prostituição; sua ''metamor-
centralizadora e ao mesmo tempo produz o fantasma da inversão. As diferenças fose anbulantc'' cria uma desordem linguística que não os colocam nem entre
sexo-sociais contidas na imagem do corpo e suas vestimentas fazem deste uma as mulheres, ncm entre os homosscxuais e, muito menos, entre os homens.
linguagem que expressa as diversas identidades sexuais, ao tempo que reflete Depois dc transformados, o pénis é um dos poucos resquícios do que
uma interdição ordenada. visualmente Ainda resta de homem. Este é puxado, colocado entre as pemas e
Os travestis e transcxuais no scu processo de inversão operam muitas das colado atrás com um esparadrapo. Está completa a cena. O homem, o perso-
vezes verdadeiras mutilações no corpo, e diversas tecnologias de.intervenções nagem secreto, aquilo que se procura ocultar no disfarce, se não emerge no
físicas ao corpo. Mott e Assunção colocam no rol das mutilações ''as operações próprio corpo, escapa na fala, pois não é verdadeiramente apagado ou assassi-
nado. Sc pode observar facilmente que, os travestis quando narram suas vidas,
cujo objetivo é modificar, transformar, ou suprimir certas partes do corpo por
o fazem encarnando altcmadanlcnte as suas identidades masculina e feminina.
razões rituais ou estéticas
O personagcnl masculino é mais frequente na narrativa do passado. O homem
Neste sentido, cstarian na mesma série de ablações, as marcas corporais que escapa da fala, emerge como um fantasma indicando a provável revers-
e flagelos dos rituais religiosos, as cirurgias plásticas com objetivo estético, as ibilidade da operação transfonlladora. Será quc o Jogo assassinado para dar
operações quc adequam o corpo físico à identidade sexual e as práticas eróticas lugar à Janta pode um dia ressucitar?
sado-masoquistas exercidas nos guetos homossexuais mais radicais
Lira ( 1985), escritora c doutora em Comunicação e Artes pela USP, num
Quando os travestis, transexuais e transfomlistas se submetem a apeia' comentário crítico a respeito do texto autobiográfico de Loris Adreon, transe-
redutoras e transfomladoras, não realizam apenas uma intervenção fisga xual brasileiro quc se submeteu a intervenção cirúrgica de reversão sexual,
no corpo, pois o m esmo adquire outro significado simbólico . Empreendem uma aponta quc a principal inversão identificada na pcr6omaance do transexual, é a
aventuraao mundo feminino. O processo de aprendizado pressupõe a apropria' do texto pois ''a palavra do texto resulta contraditória na medida em que, se
çao de recursos estilísticos e gestuais, de um domínio do comportamento da fazendo passar pela fala da fêmea, é uin jogo de inverso, uma fala de ma-
mulher. e não uma aberração, um "dragão". É necessário saber usar as roupas, cho...Não causa cspalto o fato dc a narração ocorrer toda no gênero masculi-
os adereços e gestos que cobrem e descobrem o corpo feminino, toma-se 110
8

fiindainental se apropriaram das leis e signos que definem o comportamento


feminino para não cair no pastiche grotesco. A ótica da construção idcólogica que a sociedade já produziu sobre os
travestis e sua vida, vê no artifício do pastiche e na proliferação da prostituição
O ritual de troca de identidade sexual, através do uso da indumentária do travesti uma 6o rma falsa dc scr feminina e pretexto para o homossexualismo.
feminina é um jogo infantil muito regula, sobretudo entre os meninos, o que Contrariando esta construção flicil, o certo é qye os travestis atraem pela
corTesponde para a psicanálise freudiana a uma identificação primitiva (pre- possibilidade do homem emergir sob a fantasia da mulher. A prostituição prova
sente no inconsciente de qualquer indivíduo) com o falo ausente da mãe. O isto. Nas ruas, quando os travestis encarnam mulheres, é como homem que
processo de transfomlação pode significar aquilo, que .alguns psicanalistas atraem. Não há dúvidas, enganos, o travesti é como uma máscara de cosméticos
denominam de perigosa aventura do homem para esculpir, em seu prõpno quc evidencia o disfarce e revela a nitidez do artifício. O personagem homem,
corpo, o símbolo de uma mulher, cqa materialidade está no abismo do a identidade secreta, escapa como código ausente da imagem feminina, para
impossível. marcar dcfinitivíunente a ambiguidade. No palco a reversão da inversão do
As síars de cinema, quando conquistam o status de mito, se colocam na corpo transfomlado. Um travesti, que incoQora uma identidade feminina no
beira deste abismo. E são nelas que a maioria dos travestis costuma buscar seus cotidiano e outra no palco, miulipula sem dificuldade os signos das três
nomes . Um travesti, quando chega mais pe rto da representação de um tipo ideal identidades: sua marca e especialidade artística, sua identidade cotidiana
e ímtástico, tem aplicado no seu corpo um investimento emocional, material cnqualto travesti e scu duplo, o escondido e emergente homem. Os travestis

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74
que se dedicam à arte de imitar mulheres famosas e conhecidas do universo do 6. Idem, p.59.
cinema e da música ou televisão (especialidade que se denomina dublagem ou 7.
MOTT L. B. e ASSUNÇÃO, ArDIdo. Ginete na Bame: eulogmnia dasautomutilações
miragem), são identificadas tanto pelo seu nome de travesti quanto pelo nome corporais entre os homoswxuais do Pelouriiüio,Salvador, Balia, 1981 , p.2.
da estrela famosa que imita. E assim que Mana Betânia, especialidade artística 8.
ADREON, Lona. Mcu corpo minha prisão; autobiografia de umtnansexual. Rio de Janeiro,
de Martela (travesti paulista), ''desce'' e incorpora-se em Anastácio. No palco
da boite Tropical Night Club canta ''Adeus Santo Amaro''. É Martela, 9.
Revista Fatos e Fotos. Rio de Janeiro, 1 2/1 2/1 983
''montada" de Betânia, ou Anastácio ''montado" em Martela, que "faz'' 10
Jomal Ülthua l lera. Rio de Janeiro, S.D.
Betânia - um rito que não dispensa vela, incensos e o ponto de lansã.
Pam alguns travestis, os ritos de passagem que compõe a tmgetória da
trans6omiação, guardam semelhança com o transe, com a passagem de um
estado profano para o sagrado. Alguns deles vão buscar no misticismo e no
espiritismo a gênese e a arqueologia do processo de transfomlação. Muitos
acreditam quejá fo r&m mullie res em vidas passadas e voltaram nesta vida como
travestis para pagarem os pecados. Jacqueline, depois de cultivar o travestismo
durante muitos anos marcou numa grandiosa festa sua última aparição como
mulher. A partir daquela data, voltaria a ser Jaques. Lembra sem saudade de
Jacquelinc Welch: ''acho que ela foi a alma que veio à terra para cumprir sua
missão e se foi linda e maravilhosa''.'
As inversões internas no universo dos travestis, a exemplo da união
amorosa entre este e uma mulher, provocam uma desordem na concepção dos
gêneros gramaticais, expressando mesmo aí que a rebeldia é também ordena-
da. A mulher, personagem de fato ausente, quando aparece provoca uma
inversão da inversão. No Rio de Janeiro, um travesti se casou com uma mulher
homossexual. Da união nasceu um filho que, no dizer da língua debochada dos
travestis foi ''alimentado com o silicone do pai". A esposa assim define seu
marido: ''AnSeIa é um marido ideal, além de excelente companheira''.to
Imagine-se a dificuldade que não teria qualquer narrador pam relatar
contornos da vida em família dos três personagens. Uma nanativa onde os
gêneros gramaticais estariam confundidos e embaralhados de tal maneira, que
seria impossível falar dela sem citar ele

NOTAS
l Revista "0 Cinzeiro", Rio de Janeiro, 1 0/07/1969
2 VAN GENEPE, Amaud. Os ritos de passagem. Petrópolis,Vozes,1 978, pág.26
3 TURNER, Vector. O processo ritual. Petrópolis, Vozes, 1974,p.117.
4 Jornal o Lampião da Esquhta, fev. 1980, p.S.
5 ERDMAN, R. Mana. Reis e rainhas do desterro. Florianópolis,UniversidadeFederal de
Salta Catarina. Mímico, 1985, p.58.Dissertação de Mestmdo.

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77
CAPITULO IV
O NEGOCIO DO CORPO - UMA ANALISE
r r

CRITICA DA PROSTITUIÇÃO
O complexo simbólico da sociedade brasileira deslocou para o corpo
refomtulado do travesti o carátcr venal, antes exclusividade do corpo feminino
Embora grande número de travestis exerça atividades diversas, a identidade
entre prostituição e travesti, acaba atribuindo-lhe a cama como seu local de
trabalho. En{ Salvador, particulamacnte, o comércio do corpo é a sua principal
atividade de sobrevivência e a tónica de suas histórias de vida

A análise da prostiuição cm geral, bem como suas diâercntes conceitua-


ções no contexto deste estudo, cnccrran dificuldades metodológicas e bibliog-
ráficas, uma vcz que os conceitos e explicações quc dão conta do exercício da
prostituição na sociedade são elaborados em sua grande maioria, tendo como
base a prostituição apenas da mulher.
Em quc pese a especificidade da prostituição dos travestis, o presente
trablho é um esforço de analisar o tema no contexto das detemlinações
sócio-culturais que explicam a atividade prostitutiva em geral. Significa inse-
ri-la numa rede de relações sociais, nas quais o poder, o exercício da sexuali-
dade, as distinções entre os papéis sexuais na nossa sociedade, etc., são
elementos quc mcdiatizam a prática da prostituição. No entanto, não se preten-
de esgotar todas as questões teóricas c metodológicas que envolvem o estudo
desta atividadc tão antiga quanto a própria civilização. A maioria dos estudos
até então elaborados, embora não desconhecendo a existência da prostituição
infantil e de llomcns, por exemplo, não trata o assunto de fomla aproflindada,
fomlulando por isso, a maior parte das reflexões com base apenas na prostitui-
ção adulta feminina.
A prostituição dos travestis guarda intimidade com a feminina, pois, nas
ruas, idcntifican-se como mulheres. A imagem feminina negociada por eles
aproxima-se dc uma mulher irreal, oposta à da mãe, que usualmente é deno-
minadade dc ''puta", quando sc trata de ofcnder a origem dc outrem
O fato dos travestis vestirem-se de mulher, não de general ou de zorro, é
um dado que deve ser levado em conta, uma vez que, no imaginário social, a

79
negociata erótica acontece entre um homem e uma mulher significada. bordéis como empresa erótica, na qual a atividade da prostituta era adminis-
A prostituição masculina e feminina é tão antiga quanto a instituição trada por um terceiro que, em troca de local e serviços derivados, retiravam
casamento. Sua sombra sobre a alcova do casal expressa uma faceta da parte de seus ganhos
disciplinarização do erotismo, que escapando da liturgia cristã, não pode fugir LIMA ( 962) pesquisando os documentos histórico da época, encontrou
1
das mãos do Estado, altemativa mercantilizada dos prazeres exilados do corpo.
registro de que Henrique 11, designou o ''Lord mayor de Londres, William
Na G récia e Romã Antiga a prostituição esteve presente legitimada ofícilamen- Walworth, para superintender o monopólio da exploração govemamental da
te pelo Estado, proibida ou tolerada simplesmente. prostituição, ein forma de concessões e arrendamento de locais'' 3 Mesmo com
Lima ( 1 962) vai buscar a antiguidade da instituição prostitutiva na Grécia sua regularidade cm quase todas as sociedads e em diferentes épocas, o
Já no século VI a.c., o filósofo Solon a concebeu como um mal necessário a exercício da prostituição traz consigo um grau de estigmatização social (çom
sociedade, que o Estado deveria nomiatizar. Lima acrescenta que o discurso raras exceções). Ainda que esta tenha sido legalizada pelo Estado, como na
de Solon justificaria os negócios do corpo como uma '' necessidade de Antiga Grécia ou durante o século XIX na Inglaterra de Henrique 11; nunca
resguardar a moral da família, a essa altura dirigida pela filosofia bipolar de conseguiu livrar-se do menosprezo social que a diferencia do trabalho ou do
uma diferença de direitos a vida social entre o homem e a mulher casamento. A prostituição 6oi, e ainda é, considerada socialmente uma ativida-
de marginal, mesmo não sendo proibida legalmente em muitas sociedades.
E nessa época que efetivamente, pela primeira vez na história ocidental,
a prostituição se define como negócio de Estado, sendo criado um corpo de A maioria da literatura sociológica, antropológica, ou mesmo a literatura
leis e tabela de preços, além de um espaço característico para marcar a de flcçiio concebe a prostituição como atividade transgressora em relação a
segregação social da prostituta. conduta sexua] dita moral, elaborada e produzida pelo imaginário social.
Nas leis romanas no mesmo período, a prostituição já se encontra clam- O discurso do poder (jurídico legal), da ciência e do imaginário social a
mente definida como o ' 'oficio da mulher que se entrega por dinheiro a qualquer concebem como uma conduta desviante em relação a um conjunto de nomias
um".2 Pode se dizer que, na Antiguidade, a prostituição era um negócio de e leis sociais que as sociedades produziram para ordenar o exercício da
Estado que foi-se modificando com a evolução histórica, sem, porém, deixar sexualidade humana. Espinheira ( 1 975) num estudo sobre divergência e pros-
de ter existido nas mais variadas sociedades. tituição, assinala que durante muito tempo, se atribuía a existência da prosti-
tuição aos imperativos dos impulsos biológicos do macho, que se instauram no
Ao longo da história ocidental a prostituição pemlanece e se amplia num seio de uma luta constante entre sua natureza erótica e as estruturas nomiativas
jogo de claro e escuro, de sombra e de luz, ora legitimada, ora prescrita. Em
da sociedade. Postura que favoreceu o entendimento alargado da prostituição
quase toda a Europa no período que se segue às Revoluções Francesa e apenas do ponto de vista do corpo da mulher que se vende, desconhecendo que
Industrial, a prostituição se consolida e se instala como negócio lucrativo. historicamente sendo os homens os grandes compradores de sexo, estes não se
LAMA ( 1962) assinala que em Pauis, nos últimos anos do século XIX, assistiu-
furtaram tiunbém de negociar seu corpo. Ao homem era concedido pagar para
se a uma espantosa proliferação dos bordéis e a introdução da prostituição de
fazer valer sua natureza diante das condutas nomlativas. No corpo da mulher
rua, ou a caça ao cliente pelo /rof/oir. A palavra /roffoir é de origem francesa 6oi carimbado o desvio
e etimologicamente significa calçada. O seu uso, no contexto do universo
simbólico da prostituição, se presta a designar uma forma específica da Não existe portanto, contradição entre o corpo dito transgressor e as leis
atividade realizada nas ruas, avenidas e calçadas. Adiante, este tipo de prosti- intimas que ordenam a sociedade. E mais ainda, em algumas delas, em virtude
tuição será referida com maior profundidade, por se tratar da forma mais da característica de duas contradição intimas observa-se uma ''pressão sobre
populamaente exercida pelos travestis. detcmlinadas pessoas da sociedade para que sigam condutas não confomiis-
tas''", pressão que não as impedem porém de serem socialmente punidas e
Na Inglaterra da segunda metade do século passado, a despeito da moml sancionadas.
vitoriana da época, a prostituição assume uma essência mercantil, bem com
patível com as mutações económicas ocorridas na Europa. AÍ proliferam os A teoria sociólogica mais recente sobre a produção social da divergência
avança no sentido de retirar o indivíduo do centro de explicações das causas

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da prostiuição, contudo não avança no sentido de entendê-la na sua concretude centralização da sexualidade na instituição casamento
e através dela desvendar o carátcr venal de diversas instituições sociais
Historiciunente, o fato de ser a mulher obleto de troca, equivalência de
Morara ( 1982), num estudo sobre os menores ladrões, salienta que a um dote nas sociedades primitivas, produtora de filhos legítimos, principal
suposta dicotomia ''desvio-não-desvio" tem limites obscuros que representa viabilizadora da instituição família na sociedade ocidental, conHigurou uma
uma construção ideológica do poder, na medida que "não existem desviantes divisão sexual do erotismo. A prostituição mais uma vez se justiHlcou como
cm si mesmos, mas um confronto entre acusadores e acusados, no contexto dos mecanismo de protcção das mulheres preparadas para a reprodução social em
valores de uma dada situação sócio-cultural''.' relação a fúria instintiva do macho, que precisava ser liberda. O erotismo para
a mulher significava reprodução humana e apenas se dava no seio do casamen-
Todo o grau de estigmatização social ao qual a atividade prostitutiva está 10
submetida pode ser entendido com base na produção de um exercício de poder
quc ordena, controla, vigia e disciplina o erotismo em nossa sociedade. Sela que as coisas se passaram realmente assim? E o que buscaria um
homem alforriado sexualmente no corpo invertido e prostituido? O espetáculo
A prostituição é assim largamente entendida e explicada como um con- do seu gozo, assistido por ele mesmo em troca de uma quantia de dinheiro.
tra-efeito da histórica repressão à sexualidade humana que atravessa a consti- Buscaria numa mesma identidade, scr ator-espectador do seu próprio gozo.
tuição das civilizações. E mais especíüicainente, à repressão da sexualidade
feminina ao desconhecer o carater do scu erotismo tornou clássico conceber o Bruckner e Finkielkant ( 1 982) idcntiHlcam o mecanismo homossexual de
corpo prostituido como o corpo de mulher. qualquer tipo de prostituição, sda masculina ou feminina. Através do erotismo
mcrcantilizado a ejaculação, redução simbólica do seu gozo, tem seu equiva-
A prostituição, nesta lógica, sc insere num conjunto de decisões políticas lente (dinlleiro). Equivalente que iguala qualquer corpo a um erotismo viril. O
sexuais quc define a condição da mulher. O que teria de diferente no gozo homem paga para comtemplar à redução do seu erotismo, a uma ereção genital
feminino que o transforma em moeda, em objeto de intervenção de todas as e sua consequente descarga
fomlas'? A combinação entre a sexual idade feminina e a prostituição existe para
liberar a sexualidade do homem, legitimar o seu domínio. A mulher foi imposta Embora não sqa raro mulheres pagarem por alguns momentos de prazer,
uma monogamia na qual somente dela se exige o cumprimento ao contrato pode-se dizer scm medo de erra quc ser cliente da atividade prostitutiva é quase
conjugal. Aos homens, a liberdade sexual. Pagando para aplacar os impulsos que uma especialidade masculina, tanto é assim, que a duração do amor
eróticos, impostos por sua natureza. negociado e sua finalidade são dadas pelo tempo de cada ejaculação de cada
cliente. São verdadeiras produções em série dc ''descargas''. A respeito desta
Espinheira ( 1 975) diz ainda que a existência da prostituição se relaciona métrica autores quiuldo analisam a prostituição feminina desnudam o fascínio
ein primeira instância com ''um estado,generalizado da mulher na sociedade e do homem por uma relação ''sexual codificada, numa ordem onde o cálculo
não apenas dc um grupo minoritário''.ó Nesta ética, o acordo sexual implícito pode scr enfim efctuado, porque diz respeito a quantidades finitas, um contento
no casamento não foge a regra do contrato prostitutivo contra o terror que representa para un} homem os desdos de uma mulher''.*
Sc as prostitutas são acusadas de venalidade, o que dizer das outras E preciso lembrar ainda que o exercício das sexualidades altemativas não
mulheres que eram trocadas por dotes nas sociedades primitivas ou as que consiste simplesmente no ''contrato genital'' fora do passamento, nem apenas
convenientemente se refugiam na segurança do casamento'? O autor considera no exercício heterossexual da prostituição. E os homens que desejam outros
ainda que ''o casamento é um vender-se socialmente legitimado da mulher ao homens e as mulheres que desdém outras mulheres, como aliviam suas
homem que adquire os direitos de uso sexualmente''7, o que significa usá-la tensões'? A sociedade explodiu por isto'? Também não. Foucault ( 1982) aponta
apenas para a reprodução, para dar filhos legítimos. Fora do casamento o o quão ingénua é a conccpção da prostituição como válvula de escape para o
erotismo masculino se realizaria em forma de libertinagem, produzida, pemii-
erotismo macho, sufocado no contrato genital. O mais irónico é que quem
tida, porém controlada. Assim, a prostituição seria uma etema ''válvula de explodiu, acionado pelos mecanismos de poder foi um discurso sobre a
escape'' e alívio de tensões eróticas, adotadas pelo princípio da monogamia sexualidade, no qual, o exercício erótico periférico ao contrato genital no
patriarcal, cujo objetivo é neutralizar as tensões acumuladas por uma rigorosa casamento foi identificado, classificado, ganhou visibilidade e o estatuto de

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problema que só a ciência seria capaz de resolver e indicar-lhe um lugar social. cafetina e até o próprio Estado. Estes elementos compõem uma atividade
Com isso, ao invés da negação pura e simples em fomla de proibido, o erotismo lucrativa que está evoluindo para expressar que, na sociedade atual são indis-
proscrito se instituiu como anarquia a ser ordenada, controlada, vigiada e, sociáveis o erotismo e a economia, o valor e o mercado.
principalmente produzida. O corpo prostituido é força de trabalho. E capital mobilizado num corpo
Neste século assiste-se a ''explosão da perversão'' e sua face lucrativa. A que seduz. Tem a rentabilidade da repetição e a eficácia de um complexo
partir do final dos anos 50, os movimentos sociais de libemção sexual não só produtivo. O corpo que se vende desça apenas o valor do proginma. Quem
fazem seu trabalho dc chegar a sociedade e seus valores sexuais, como também paga, outorga uma quantia de dinheiro pam saciar seu desde. Foucault ( 1982)
de oganizar as minorias sexuais para o exercício livre de sue prazer, e o que é aponta para uma ética curiosa, que se aplica à análise da relação entre "corpo
mais importante provocar uma explosão da comercialização do erotismo. prostituido'' e corpo-trabalho: o poder que mediatiza a relação entre corpo,
Aríies ( 1 985) registra que no bojo desta militância, emerge uma "multiplicação trabalho e capital, longe de ser apenas negados, em si mesmo produtor. Rompe
de bares, cinemas e saunas, observou-se o desenvolvimento da imprensa desta fomla com a idéia de há muito conhecida, de que o poder no capital teria
homossexual, da pornografia e de uma industria de aparatos e acessórios negado a realidade física do corpo em proveito da alma, da consciência de
sexuais".P O primeiro efeito da emergência deste comércio ampliado e diver- classe e da idealidade. Como se o operário quando fosse ao local de trabalho,
sificado dos serviços eróticos na atividade prostitutiva é que a mulher perde o só levasse consigo a entidade subi etiva corça de trabalho. Mas o corpo vai junto,
estatuto ideológico dc único corpo prostituído. Na verdade, deve-se reconhecer como parte indissolúvel dessa capacidade e se converte em força de trabalho
que os estudos e pesquisas disponíveis sobre a prostituição, ainda não nos quando "tratado pelo sistema de dominação ou mais precisamente pela disci-
pemlitem alInHar com graus de certeza, se a prostituição masculina sempre plina se toma útil (no sentido da rentabilidade máxima) e dócil (no sentido de
existiu na mesma escala da feminina. Se ambas existiram, por que a prostitui- se extrair o máximo dessa utilidades'.io
ção masculina não se tomou alvo das investigações e teorizações como as que, A docilidade e utilidade do corpo prostituido provocam um ciclo de
ao longo da história, vêm colocando o oficio da prostituição como uma desgaste tal qual o corpo do operário na oficina. O corpo prostituido é um corpo
atividade exclusiva da mulher? que é explicado pela situação de pressão desta que trabalha. Na sua atividade não é atravessado de frêmitos, de emoções e
na sociedade.
prazer. Faz amor com a mesma competência de quem trabalha.
O certo é que hqe, como profissionais, as mulheres perderam um pouco Se no terreno da economia política é possível a concepção do trabalho em
da hegemonia e dc especialização do comércio erótico. A introdução sistemá- geral e indiferenciado como atividade criadora de riqueza, cremos ser possível
tica de outros sujeitos como a criança, o homem, o travesti, até mesmo animais, pensar o corpo em geral no capitalismo como corpo trabalho, primeiro meio
prova que não é uma capacidade intrínseca da mulher usar o seu corpo como de comunicação e instrumento fundamental de produção social
mercadoria. A proposito da afimlativa acima, pode-se concluir que a prostitui-
ção existe sempre quando os serviços sexuais do corpo de um indivíduo são A teoria marxista demonstra muito bem que o trabalho no capitalismo não
colocados no mercado, não importando se este corpo é de mulher ou de homem . significa mais o reconhecimento da atividade individual capaz de criar produ-
tos de uso social, mas a doação imposta que avalia a rentabilidade segundo a
A análise mais próxima do entendimento da prostituição e sua relação docilidade do comportamento e a eficácia produtiva do corpo. Bruckner e
com as sociedade, parece ser aquela que a insere num conjunto de referências
Finkielkant ( 1 982) alargando a noção de corpo mercadoria e sua indistinção
económicas, no qual, o prostituto é parte da composição da força de trabalho constatam que a existência de um mercado de trabalho ''pressupõe que o corpo
social, cujo corpo é atravessado pelo exercício racional e produtivo da sexua- ganhe a qualidade de mercadoria e que a maioria dos individous nada tenha
lidade. Em última análise, significa perceber o sentido da venalidade do corpo para trocar além dessa mesma mercadoria''.ii
para o mercado erótico na sociedade capitalista. Bruckner e Finkielkant ( 1982)
deste modo concebem a prostituição como uin mecanismo formado por um Assim, se revela o caráter prostitutivo da sociedade capitalista, demons-
"corpoclicnte'' que paga (gerahnente os homens), por um programa consti- trando a equivalência entre todos os gêneros de trabalho. O capital relega a
tuído de uma atividade erótica rápida e seu equivalente em dinheiro e, final- vocação profissional para estabelecer uma indiferença entre os géneros de
mente, por um intermediário que tanto pode ser um gigolâ, um cafetão ou uma trabalho, criando o conceito de trabalho em geral como produtor da riqueza

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social. O corpo prostituido realiza um trabalho durante o programa amoroso, complexo que vai além da relação de troca entre uma prática sexual e uma
na mesma lógica em que somos, enquanto corpo social, prostituídos. quantia de dinheiro. Limo ( 1 978) identifica modificação no comportamento da
A noção de trabalho na sua conceituação teórica e ideológica perdeu a sua prostituição no Brasil, refletindo a face erótica do poder cada vez mais
diferenciação valorativa em relação aos diferentes gêneros de trabalho, para especializada no corpo prostituido. Muda-se no país a imagem da prostituição
e vários setorcs são introduzidos na sua economia intima. Não mais a caricatura
significar todo trabalhador indistintamente. Nesse sentido os prostíbulos, as
zonas, o bordel ou os /ro//o/r de ruas são verdadeiras fábricas de erotismo, nas da prostituta extravagante confinada em zonas marginais ou ''castelos'' na
quais este é exercido com base nos valores de troca, bem definidos. Porém, perifeha urbana, longe dos olhos da censura. O froffoir a ''pegação'', ganham
nem por esse intrínseco comércio de corpos no capital, a prostituição, na sua as ruas e fazem do centro urbano o seu escritório. Há investimento de capital:
definição conceptual, se assume enquanto trabalho. A intimidade e repetição casas de massagem, saunas, meteis e extensão dos serviços de cama e mesa.
do ato sexual negociado num quarto de bordel equivale à fineza e monotonia A prostituição toma-se um negócio lucrativo e como tal exige um expressivo
do ríüno de trabalho nas fábricas e oficinas. Tudo se equivale. Na fábrica se requinte. O corpo prostituído, pelo menos no imaginário capitalista, já está
prostitui, num quarto de bordel se trabalha. A penalidade, o grau de estigma- inscrito como profissional do sexo.
tização, repressão, e cocrção social acabam transfomlando a prostituição Se a prostituição se explicasse apenas pela centralização genital do
lucrativa para todos que nela se envolvem de uma fomta ou de outra, menos casamento ou pela situação dc exploração a 'que o corpo da mulher está
para as próprias prostitutas. Gabriela, carioca, prostituta e ativista política, submetido historicamente, todo o discurso da liberalização sexual e a movi-
conta que ''nos seus cinco anos de calçada consolidou a convicção de que a mentação politica das minorias sexuais (mulheres e homossexuais especiÊica-
prostituta sofre como qualquer trabalhador que sela obrigado a colocar seus mcnte) apontíuianl no sentido lógico do seu Hlm ou da sua inutilidade social
desejos em segundo plano para sobreviver".': Esperava-se que, com a mulher liberta e scu orgasmo público, com a homos-
Ulla, prostituta francesa e também ativista política na década de 70 sexualidade pública e assumida, a sociedade resgatasse o erotismo da institui-
ção prostitutiva e o colocasse no cotidiano do indivíduo. Porém ocorreu o
apontou o equívoco da participação da esquerda no movimento das prostitutas
em Pauis. Enquiulto a retórica militante da esquerda chamava a prostituta para contrário: a prostituição alarga-se, amplia-se. Toma-se efetivamente um negó-
combater sua própria profissão, acusando-a de mazela do capitalismo e nega- cio lucrativo. Os fatores que hoje explicam esta ampliação, têm a ver com a
ção da sexualidade sadia, que cabeça ao movimento revolucionário libertar, as multiplicação do lazer na vida urbana, a transfomlação da sexualidade em
6cticlle lucrativo onde a prostituição, lado a lado com todas as outras fomtas
prostitutas, dcnunciavain o regime de mansões e penalidades a que estavam
submetidas. Em suma, elas queriam antes de tudo questionar as mazelas e não de trabalho, é uma profissão como outra qualquer. O desempenho erótico que
acabar com a atividade: ''Há gente demais querendo nos protqer, mas poucas oferece é também trabalho em abstrato, tem seu equivalente em dinheiro e
pessoas decididas a ouvir aquilo que nós queremos''.i3 Tal retórica militante ainda uma economia interna c leis específicas de mercado; mercado este que
relacionava o fim da prostituição aos bons efeitos da revolução. absorve um contingente enonllc da população, que muitas vezes é impedido
dc colocar scu corpo no mercado oficial de trabalho (na oficina ou no canteiro
Pode se arriscar, porém, mesmo com insuficiente base empírica, que as dc obras, por exemplo) ou ainda que tenha a convicção de que o salário
prostitutas, os travestis prostitutos não querem em pnmeira instância eliminar brasileiro é unl instrumento que não viabiliza a reprodução da sobrevivência.
a sua atividade, mesmo que sc qucixem dela c desejem abandona-la. Segundo
Marize, prostituta carioca, ncm os clientes querem o üm da prostituição: ''só A prostituição institucionaliza-se e, tal qual o sexo do casal ganha suas
os intelectuais, as donas dc casa querem acabar com.o nosso trabalho, os nomlas e seus mecanismos dc controle. E permitida,já que não existe contm-
homens não querem e muito menos a policia, apesar dc nos perseguir''.'' vcnção penal, mas mantida sob controle e um grau de estigmatização social
que a lança no mundo da deliqucncia. Vale observar ainda que a medida da
Explicou-se durante muito tempo a prostituição apenas pela presença do perseguição social é baseada no sistema dc diferenciação no interior do
corpo prostituido, como se este pudesse existi r isolado e como se fosse possível complexo prostitutivo pois hdc não existe só a clássica história da ''puta" de
o exercício da prostituição sem o cliente, o cafetão e sem locais específicos vida miserável, da falta de emprego, do pouco salário, como justinjcativa que
onde fosse realizada a produção do programa sexual. A prostituição é um durante muito tempo redimiu a prostituição aos olhos da lei e da ciência. Moças

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por motéis de quinta categoria, bares e noites . É um espaço de prostituição ativa
e rapazes da classe média, com perfomlances muito diferentes das ''decaídas
existente cm quase todas as cidades brasileiras. Significa um lugar designado
clássicas", com ocupações no mercado oficial, tem recorrido a prostituição
socialmente para o exercício da prostituição. Toda cidade, assim como tem seu
como trabalho extra e complemento de mesada ou salário.
comércio, sua área residencial, seu cemitério, suas praças, tem também sua
A alta prostituição organizada muitas vezes em modelos tipicamente zona, vulgarmente chamada dc ''putciro'' ou mangue. Na zona as prostitutas
empresariais, esconde-se sob rótulos de casas de massagens, agendas de pagam a quantia fixa por tumo, para usarem o comido, o quarto,etc., e ficam
modelos e profissionais da estética e beleza. O contato é feito por telefone, quase nuas, expostas, com o objetivo de exibirem a mercadoria ao cliente. AÍ
através de um intemlediário, nomtalmente o gerente ou o dono do negócio. O se verifica também uma alta rotatividade de clientes(normalmente homens das
programa corre na casa do cliente ou num quarto de motel. Este tipo de cariadas mais empobrecidas da população) e o preço é fixado pela prostituta.
prostituição ainda que conserve uma imagem social marcada, é exercido com O dono do cómodo na zona ou cobra o aluguel do quarto ou um percentual em
estrito sigilo, não sofre perseguição da polícia e não é diretamente explorado cada relação sexual. Neste caso, o programa deve acontecer no menor espaço
por esta. A exploração direta é do dono do negócio que em geral, recebe uma de tempo possível.
participação maior-no preço do programa. O castelo, segundo alguns autores,
A perseguição policial ao bordel e à zona se reveste de contradições. Uma
e uma empresa prostitutiva quase em extinção. É uma grande casa situalda vcz que, pelo Código Penal Brasileiro este tipo prostituição caracteriza-se
nomialmente nos arrabaldes da cidade e caracteriza-se por sua organização
como lenocínio - que é definido no artigo 230 como "prática de tirar proveito
matriarcal, aproximando-o de uma grande família ou de uma empresa domés-
da prostituição alheia participando diretamente de seus lucros'' ou, como no
tica. Nele, o poder, a autoridade e os lucros se concentram na mão da ''cafeti-
na''. dona e adm inistrdora da casa. AÍ se criam relações estreitas e afetivas onde artigo 229, ''proporcionando condições pam o seu exercício'' - a repressão
a caÊetina é mais mãe, tia, que dona da casa, do que dona do negócio. As policial é mesclada por um mecanismo de distinção baseado em acordos tácitos
mulheres moram e trabalham no castelo, dão o preço e recebem a gratificação estabelecidos entre a polícia e a direção da organização prostitutiva. Tanto a
do ciente. A cafetina cobra o alugel do quarto e os custos da alimentação, zona colho o bordel possuem seus instrumentos de proteção que, a depender
bebida e conservaç:b do ambiente. AÍ não existe alta rotatividade de cliente de su& força económica, envolvem políticos, marginais e policiais. Porém a
nem exploração direta do corpo prostituído. Pode-se dizer que o castelo se quebra de acordos, uma mudança na hierarquia dos estratos policiais ou o
identifica com a fase pré-capita]ista da atua] empresa prostitutiva. declínio económico do cafetão podem desencadear uma fomta de repressão
policial, com requintes de violência onde o alvo mais atingido é o corpo
O bordel, por sua vez, está mais próximo a um estabelecimento comercial prostituído
onde o corpo prostituido aparece nitidamente como assalariado. A relação
sexual tem o preço tabelado pelo dono do negócio, as prostitutas cumprem
O /ro//o/r é a prostituição do tráfego, do transeunte, do automóvel e
horário fixo e têm como trabalho extra induzir o cliente a consumir as bebidas transitiva como tudo no trânsito. Algumas ruas e pinças de qualquer cidade
brasileira são reconhecidas por este tipo de prostituição. Os clientes, passantes
e serviços em troca da participação nos lucros deste consumo. Nestes estabe-
lecimentos verifica-se uma alta rotatividade de clientes que pagam ao dono do do local, são recrutados através da abordagem direta. Fazem o programa no
bíulco de trás do carro do próprio cliente ou em hotéis baratos nas imediações
bordel um percentual pelo programa c pelo aluguel do quarto conforme o tempo
do local. O /ro//o/r é , sem dúvida, o tipo de prostituição mais autónoma. É o
de uso. As prostitutas do bordel, na sua maioria, não moram no local de trabalho
/alssez:#n/r do erotismo. O corpo prostituido não está submetido ao caÊetão ou
e estão submetidas a uma exploração direta do dono. Espinheira ( 1975), pode
administrador do hotel. Diferentemente do bordel, sua marca é a liberdade de
concluir desta fomta que no bordel a disciplina se assemelha à da fábrica, na
qual o corpo é alienado na sua capacidade erótica por " vender sua capacidade comércio. Sem o relativo esquema de proteção deste, o /ro//o/r é alvo principal
da repressão policial, apesar de não ser considerado ilegal pelas leis brasileiras.
de trabalho por uin preço estabelecido previamente por um consenso geral entre
os que dispõem dos meios para.comprar essa força de trabalho, ou agentes que E evidente que são múltiplas as 6omlas de prostituição e diferentes seus
possuem os equipamentos materiais,. .sociais e vocacionais necessários ao mecanismos e suas leis intimas. A vasta ambiência da prostituição não encerra
exercício da atividade prostitucional ''.is A zona se constitui de alguns quartei- apenas os tipos descritos acima. Pode- se citar ainda a ' 'casa de cómodos' (onde
rões ocupados por grandes estabelecimentos divididos em vários cómodos ou sc conjuga local de trabalho e moradia), a prostituição agendada por donos ou

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corpo prostituído, nem de decretar sua morte num prometo pureza, mas sim de
ouvir a sua reivindicação sem flcamtos chocados com a escandalosa defesa da
profissão. Se íõsscmos concordar com sua natureza venal todos nós seríamos
prostitutos. O corpo prostituido quer antes de mais nada, retirar sua marca do
terreno penal e ter todos os direitos do corpo que trabalha.

Prostituição masculina
Muitos dos estudos sobre a prostituição, ao tentar definí-la, conceituá-la
e buscar suas origens estruturais, debatem-se com o fantasma da mulher
enquanto corpo prostituido por excelência, e o fazem em grande parte dos casos
por negligcnciarem a existência de tal atividade exercida por parte dos homens,
sejam adolescentes ou adultos.
A emergência da discussão sobre os homens prostitutos traz elementos
novos no sentido de clarear a confissão teórica reinante na análise da prostitui-
ção. A introdução de outros personagens nesta análise requer uma novR
configuração onde o corpo venal apareça como profissional do sexo. Mas será
que todos os corpos prostituídos têm significado a mulher? A imagem fixa o
erotismo. E quanto ao corpo prostituído que altera a gramática sexual no
pela duração do gozo do cliente mercado do desço'? E quanto à sedução da Damas de Paus?
Não sc trata aqui de pretender esgotar tão complexas questões. Conside-
rando as limitações já apontadas anterionnente, o que se pretende é traçar em
linhas gerais, o universo da prostituição masculina na qual se insere grande
parte dos travestis brasileiros.
A rigor, a prostituição é dita masculina quando o corpo que se prostitui é
o do homem. A sua ampliação e emergência enquanto problematização social,
provocou uma correção sugerida pela ONU na definição de prostituição em
geral, a qual se baseava apenas na prostituição feminina. A partir da década de
50 passa então a ser definida ''como o uso do corpo em troca de dinheiro, sda
este corpo de homem ou de mulher".iõ
Embora não tão analisada, pesquisada e estudada quanto a prostituição
feminina, a mascul ina é tão antiga quanto esta. Paul Vayne ( 1 982), pesquisando
ma, cessa qualquer atividade. a homossexualidade na Romã Antiga, indica a existência de uma prostituição
masculina que, à primeira vista parece ter sido na época uma instituição
oficializada pois ''no calendário do estado romano chamado Factos de Prenes-
to, o dia 25 de abril é a festa dos prostitutos masculinos - no dia seguinte à festa
das cortesãs".i '

Antonio Duarte e Hermínio Clemente ( 1982), estudando a prostituição

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masculina anual na cidade de Lisboa, indicam que seria na ''promiscuidade das dispõem de um cómodo reservado no próprio local para eventuais programas,
atendendo a um número reduzido de clientes
hostes de Júlio Cesar que viriam a nascer os futuros prostitutos da Romã
decadente''.i8 CARDOSO (1 982), indica que na Grécia ''o número de rapazes Na prostituição do tipo /rorrofr, a palavra michê, de origem francesa, tem
prostitutos continuou grande até o domínio de Domiciano, que proibiu a o significado de devasso, se presta para nomear a atividade sexual entre o
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piittiçit cliente e o prostituto, como sinónimo de programa; se presta ainda pam definir
Na China, a prostituição masculina Gra tão numerosa quanto a feminina. a própria atividade de prostituição, que é substituída pela expressão ''fazer
Em Pequim, por exemplo, realizava-se em lupanares, que só chegou a seu fím michê". E finalmente, identificar o rapaz de aparência viril que se dedica à
com a revolução comunista. prostiuição. Assim, a noção de michê define também um tipo de prostituto no
universo da prostituição masculina, tipo este que será melhor estudado mais
Na Bahia, a prostituição masculina é bastante antiga e data dos primórdios adiante
do período colonial. Mott (1982) identifica em 1591, nos relatos do Santo
Oficio da Inquisição, a confissão de um jovem de 1 7 anos: ''e por eles âcarem A clientela da prostituição de rua é essencialmente masculina, ' 'na maioria
a sós, lhes disse o dito vigário que fizessem como das outras vezes e que ele, das vezes quando pinta mulher funciona como programa grupal, sempre tem
Jerõnimo, respondeu que não queria e então o sacerdote Ihe deu um vintém e um llomem najogadae ele tá mesmo a fim do garoto''.24 Mais frequentemente,
por ele não se contentar com um vintém, Ihe deu mais )outro vintém, então é uma atividade real izada durante a noite c o contato se dá através da abordagem
ambos tiraram os calções e se deitaram em cima da cama direta. Os prostitutos se expõem nas calçadas, deixando visíveis alguns atribu-
tos corporais tidos como fudamentais no mercado erótico. Os michês, por
Segundo Trevisan ( 1986), nos fins do século XIX sabe-se da existência exemplo, usam como artifício para atrair o cliente, colocar as mãos sobre os
no Rio de Janeiro de ''um único bordel masculino dirigido por Traviatta, orgãos genitais ou exibir claramente estados de creção, ou ainda, aumentar
fanosíssima bicha da época''.2i O mais conhecido bordel masculino, nos dias artiHicialmentc a proporção do pênis, enrolando-o com gazes e panos.
de hoje, existiu nos arredores da cidade de Porto Alegre. Fechou bem recente-
mente quuldo o dono do negócio, Luiza Felpuda (apelido de uma famosa A prostituição de rua envolve uma gama de profissionais e clientes. Suas
''bicha gaúcha''), foi vítima de um assassinato, praticado por dois rapazes leis intimas, práticas e preços são dependentes tanto do tipo de profissional
prostitutos. que oferece quanto da capacidade de pagar do cliente

O tipo de prostituição masculina mais corrente hoje no Brasil é o /lof/oir Um famoso ator baiano transFomlista e estilista de modas. define em
tempos práticos a oscilação do ntercado: ''um surfista da Barra você leva ao
ou prostituição de rua, embora exista em menor escala, organizada enquanto
empresa nas casas de massagem e, em menor ainda, nos bordéis. lguatemi, dá uma roupa de cinco mil cruzeiros, um garoto de Brutas aqui na
esquina ganha um pastel e uma cerveja e bica satisfeito''.2s
Os bordeis masculinos, tal qual seus congêneres femininos, constituem-se
numa empresa prostitutiva onde o cliente é essencialmente homem. Mesmo com a oscilação e relatividade da remuneração dos serviços da
prostituição masculina, via de regra existe uma tabela intemalizada pelo
As casas de massagens como empresas de prostituição prolifera.ram a ambiente, baseada num consenso que avalia o valor do uso do profissional
partir dos anos 60 e tiveram seu auge entre o final da década de 70 e meados (aparência, idade, saúde e grau de permissividade erótica), e a capacidade
dos 80. Apesar de oferecerem serviços sexuais para ambos os sexos, estimula- aquisitiva do cliente, sua identidade sexual, preço e consumo. Avalia ainda, a
se a prostituição homossexual. É níitida a especialização do perfil do consu- força física despendida e o tempo gasto para cada prática sexual. A própria
midor. Segundo o depoimento de um prostituto destas casas ''as mulheres que ecologia do ambiente, a própria l inguagem aí produzida encarrega-se de marcar
telefonam pam a casa são raras, quando acontece são desquitadas, separadas as diferenças e forçar com isto identidades. Assim, na rua se encontra de tudo,
com problema de solidão''.22 Para ele é unânime entre os profissionais mas- mas tudo nomeado, identificado e no seu devido lugar. Não há enganos. E cada
ssagistas a preferêcia pelo cliente homem: "pagam melhor, são mais rápidos e qual na sua esquina, vendendo fantasia aos passantes do trânsito.
não querem resolver seus problemas afetivos trepando com a gente''."
Traça uma tipologia dos diversos tipos de profissionais para o conjunto
Há ainda alguns bares e boites, reconhecidos pela sua clientela gay, que

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da prostituição masculina não se constitui tarefa das mais simples. A princípio, O gigolõ do travesti não aceita a identidade de homossexual, uma vez que
este, quando o reconhece como marido, identifica-o como homem viril e ativo.
a primeira dificuldade reside na insuficiência bilbliográfica e na carência de
registro de dados; cm seguida, a própria auto-identificação dos agentes envol- Ser talhado dc ''bicha" significa para este profissional insulto e motivo de
vidos é cambiávcl, variando dc cidade para cidade e, muitas vezes, na própria briga violenta.
cidade, diferenciando-se em função de detemlinados locais, tipos de práticas b) O Prostituto Massagista - nomlalmcntc é um jovem rapaz de aparên-
exercidas e ainda o tipo de clientela. Neste contexto pressupõe ainda, conceber cia viril quc exerce a prostituição através dc empresas prostitucionais sob o
o travesti no scu confronto e aliança com os agentes aí envolvidos, bem como rótulo dc casas de massagem. Nestes casos, o contato com o cliente é fe ito pelo
sua identidade e diferença em relação a outros profssionais do sexo masculino gerente ou dono da casa, que Hlxa o preço do programa, cobrando por isso um
quc sc dedicam ao exercício da prostituição. percentual de cada ''massagem'' efetuada. Em geral, o programa ocorre num
A ti pologia aqui esboçada, longe de pretender expressar uma classificação motel ou na casa do cliente, com garantia de sigilo e serviços variados. Como
de todos os tipos envolvidos na prostituição masculina, busca na verdade, com já foi visto antcriomaentc, hoje o grosso da clientela de massagens, constitui-se
base cm estudos pioneiros como os de Petcr Fry (1984,86), Luiz Mota de homens homossexuais das classes mais altas. Como este tipo de cliente tem
( 1982,84), Edward Macro ( 1984,86) e com in6omlações extraídas das entre- condições dc pagar, exige quc os prostitutos selan belos, fortes, saudáveis e
vistas c observações dc campo, contribuir para uma futura classificação que façam dc tudo. E por isso quc a maioria dos massagistas é dc jovens oriundos
porventura estudiosos desQcm realizar. Para efeito mctodólogico, no entanto, da classe média, estudares universitários, quc vêem no exercício da prostitui-
toma-se fundamental uma referência tipológica dos prostitutos masculinos já ção um complemento dc salário ou mesada. Em alguns casos, vivem exclusi-
que os travestis são parte desse conjunto. Podem ser identiHlcados quatro tipos vancntc disto por considerar mais rentável quc um emprego qualquer. Um
a saber: gigolâs, prostitutos massagistas, michês ou bofes e travestis. massagista entrevistado por Ircdc Cardoso, revelou que a profissão reúne
vantagens materiais que outras não proporcionariam. Em 1 982, o entrevistado
a) Gigolâs - o gigolõ é uma figura clássica na prostituição e Ecrã dela. A dizia-se bcm economicamente ''ganhando entre 100 e 150 mil cruzeiros
sua definição não está vinculada diretamente com a prostituição masculina. A mensais, com um saldo de 700 mil cruzeiros e 600 mil cruzeiros em jóias''.28
rigor, o gigolõ se define como um homem que vive às custas de uma mulher, Segundo cle, remuneração muito justa à medida em que é uma atividade que
sda ela prostituta ou não. Contudo, é na zona, no bordel ou nas ruas de paquera despende muita força física, pois ''não é qualquer um que aguenta deitar com
que a figura do gigolõ se define como profisional. Seu papel no aparato uma 'tia' velha''.2P Essa é talvez o quc se challa de alta prostituição masculina.
prostitutivo é ambíguo: assiste os profissionais do sexo sexualmente (muitas Enquanto não rcconltecidos ou descobertos como prostitutos, estes profissio-
vezes moram juntos) c oferece protcção contra as ameaças da polida e dos nais são idcntiHicados em primeira instàlcia pelas suas atividades oficiais e
maus pagadores, arranja clientes e, cm troca recebe algum dinheiro ou parte muitos não se sentem homossexuais, embora alguns admitam ser bisexuais,
do lucro ou ainda tem gariuatido casa, comida e roupa. O que se toma comun principalmcnte porque rcconhcccm que, em matéria dc negócio, se faz de tudo
nesta relação é o gigolõ se tmnsfomlar no explorador direto das prostitutas,
aproveitando-se da maior parte dos lucros auferidos por esta, de fomta violenta c) Michê ou Bote - é a figura mais controvertida e problcmatizada no
e cruel. Eles nomtalmcnte têm a aparência viril e são temidos pela capacidade universo da prostituição masculina. É um tipo de prostituto cuja clientela é, em
de violência. maior escala, dc bichas ou travestis. Pela sua aparente fiinção de ativo durante
a relação do programa, recusa a identidade homossexual. Embora no universo
Mott( 1981) revela que no caso específico da prostituição dos travestis o ideológico homossexual o nlichê sqa visto como o parceiro masculino da
gigolõ não está ausente. Assim, "do mesmo modo que as meretrizes, muitos bicha, como ativo e, por causa disto rejeite esta identidade, muitas vezes na
travestis têm o seu gigolâ".2Ó Semelhante ao que acontece na relação com a intimidade real do programa a prática é outra. Na maioria das vezes se deixa
prostituta, são sustentados por estes, muitas vczcs coabitam e, quando isto
sodomizar em troca dc dinlleiro, visando um uso racional do desgaste físico do
acontece o travesti o chama de ''marido''. O gigolâ é pago pelo travesti para scu corpo, uma vcz quc fazer muitos programas n& noite, tendo que filncionar
quc o satisfaça scxualnlente e funcione como ''uma espécie de guarda costa ou como ativo, tcm scu limite na não capacidade dc ereção infinita e na dificuldade
leão dc chácara, defendendo seus amantes contra algum eventual cliente metido dc simular o gozo como faz a prostituta. Este limite, segundo um michê carioca,
a valente ou mau pagador''.''

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iluda a entender o porque as mulheres não são aceitas como clientes deste tipo
de profissional : ''porque eu vou com um cara às sete, com outro às oito da noite Por muito tempo as bichas e ''mariconas", os ''veados'' foram apedreja-
e tratso com eles; ai , cu prefiro ser passivo, porque se pintar um cara à meia dos por machões públicos que hoje são reencontrados nas pistas como homos-
-sexuais e vistos com uma tolerância repressiva e uma compreensão intolerante .
noite c me oferecer uma nota, eu posso ir com ele também, não me esgotei da
outra vcz. Com a nlulhcr não, eu fico no prq uízo porque só dá para ser ativo''.30 d) Travesti Prostituto - reune todos aqueles que anunciam a imagem da
Demonstra também uma visão limitada do gozo da mulher, para justificar mulher como seu negócio amoroso (incluindo os transformistas e transexuais)
talvez a eleição do scu tipo de cliente. alterando sua figura corporal de acordo com a feminina. Grande parte dos
Pam Mott ( 1982), grande parte desses rapazes adotam performances de travestis que exercem a prostituição, o fazem na rua, sendo especialistas no
machão "reduzindo scu desempenho sexual a serem chupados e emrabarem fro//oir. Isto não quer dizer que não exista travesti que não trabalhe em casa.
seus parceiros sem carinho, nem beijos e abraços''.3i Ressalva porém que Monique, travesti carioca, com passagem pelo Bois de Boa/ogne em Pauis,
muitos ''desses rapazes, dependendo quanto se lhes pagar a mais, íbzem de recebe os clientes em casa. "Não preciso viver dc pista, tenho mcu apartamento
tudo na cana: Êclação, cunilingua, deixam-se sodomizar, etc''.32 Para alguns muito amplo e bem confortável, onde recebo meus clientes, gente Huna, da alta,
que paga o conforto e não se recruta na rua".35
michês, a prostituição é a principal fonte de renda, enquanto para outros
significa apenas um complemento ou se presta a escamotear sua homofllia. Há Em Salvador, eventualmente os travestis prostitutos combinam casa e
michês que, além de exercerem o /ro//oir, fazem caso com um travesti ou local de trabalho, raros são aqueles que durante o dia são procurados por
homossexual mais velllo e são sustentados por este; ''tenho um caso com um clientes nos seus quartos. Alguns travestis, atores trans6omiistas conjugam os
travesti, moro com ele, mas a noite cada qual vai para sua esquina''." palcos das boites e teatros com a atividade de prostituição. Neste caso, o
Os bofes ou michês, assim como os travestis, são especialistas no troa/oir contato entre o travesti e o cliente é realizado pelo dono ou gerente do
ou prostituição dc rua. Começam a trabalhar a partir das 20 horas, param em estabelecimento que muitas vezes ganha um percentual na negociata, ou o faz
pontos de õnibus, portas dc cinema, ou andam pelas ruas e praças. O contato é para cultivar um cliente rico, influente ou poderoso. Segundo Martela, trans-
Eomtista paulista, de passagem por Salvador em 1 984, "esse mesmo público,
cito pela abordagem direta entre cliente e michê, num diálogo rápido. O
depois do espetáculo convida um de nós para uma noitada no motel mais
programa é realizado no carro mesmo, em hóteis e meteis das imediações e, proxima''."
não muito raro, na casa do próprio cliente.
No universo da homossexualidade o michê é tido como o mais problemá- ERDMAN ( 1 98 1) nos seus estudos sobre a prostituição de garotos pobres,
tico dos homossexuais. Fomla um tipo agressivo, violento. São frequentes, nos da cidade de Florianópolis, explicita muito bem o quanto os travestis percebem
o disfarce social, tal qual Jenny, personagem travesti da peça de teatro ''Opera
jomais, as manchetes de homossexuais assassinados por michês. Na maioria
das vezes estes crimes não são denunciados àjustiça e, quando o são, esbarram do Malandro'' de Chibo Buarque, quando diz que ''deixam a gente reinar a
no argumento moral de ''legítima defesa da honra", no qual o culpado é sempre noite, mas de dia pisam na gente, fazem de conta que não nos vêem, nos
a vítinaa por scr homossexual. Este clima de impunidade é traduzido na confinam em detemlinados bares e segregam a gente em poucas profissões''.37
constatação feita por Mota de que ''a quase totalidade dos 43 homossexuais Isto porque entre os prostitutos, é o travesti de pista ou prostituto de rua
assassinados no Brasil nos últimos anos foram vítimas de michês''.34 o mais segregado socialmente e alvo constante da repressão e violência da
No meio homossexual o michê é visto colho uma bicha não assumida, polícia de costumes
uma vez que já se encontra bastante aceito que a relação homossexual se dá
entre dois homens, mesmo quc um deles só fiincione como ativo e tenha a Mercado de corpos reformulados
aparência viril. A recusa desesperada dos michês ou bofes em aceitarem a Não só de plumas, paetês e sonhos glamourosos vivem os tnvestis
identidade homossexual e o culto exagerado de suas aparentes evidências viris brasileiros. Nos grandes centros urbanos não pisam apenas no palco ou emer-
os transfomlam em ''bonecas'' travcstidas de machos. Na língua debochada gem magicamente durante o camaval. Após as primeiras luzes da noite,
dos travestis o ''bote'' de hoje é a bofoneca de amanhã. habitam as ruas e avenidas exercendo o antigo oficio da ''mercância'' do uso

96
97
do coco e do erotismo. Um comércio de mulheres encamadas por homens, a corte . Tornei-me vaidoso chegando ao,ponto dejulgar-momulher,jádepilava
cujo universo da atividade é composto por outros: o cliente, o cafetão, o miçhê, as sobrancelhas, empoava-me píissava baton nos lábios e saia à cata de homens
o policial. Um produto exótico no mercado, aos olhos da multiplicada fileira que logo me seguiam''.40 Até meados de 60 a prostituição de travestis era
de clientes adeptos dos encantos das ''deusas do pomo de adio'' e do jogo escondida e se dava nos bares mais especializados das galerias Metrópole e
erótico das damas de paus. Alaska no Rio , do largo do Arouche em São Paulo e do Pelourinho em
Salvador. Aos poucos foram se espalhando e disputando as ruas com as
Nas últimas décadas, a sociedade brasileira assistiu a velocidade em que mulheres, imprimindo à noite um ar de disfarce e negociatas de fantasia. A
este tipo de prostituição tem se ampliado. Levantamentos realizados em ampliação da prostituição dos travestis, no seu contingente e na sua ocupação
delegadas revelam que é crescente o número de travestis que se prostituem. de espaços na rua das grandes cidades brasileiras é, por sintomatologia.
Um delegado paulista afimla que: ''só em São Paulo estima-se cerca de três coincidente com a intcnsiHicação das lutas das minorias sexuais, com o consu-
mil o número de travestis que estão no exercício da prostituição atava''.38 Se a mo alargado da tónica homossexual e da crescente repressão policial que
oferta cresce é porque se supõe também que aumentou a preferência masculina
caracterizou o auge da crise económica e política no país
poreste tipo de prostituição. Crescimento que pode serentendido num processo
mais amp]o de todo um investimento consumista na ]ibemção sexual, especial- A partir do final dos anos 70, os travestis acuados pelo clima de violência
mente no que se refere ao exercício da homossexualidade. e pela atração mítica das praças européias emigraram em grande quantidade
para a Fiança. Paria era a meta: o melhor mercado europeu e o grande ''sonho
Por outro lado é sabiddo que as principais cidades brasileira caracteri- de viver uma vida tranquila e financeiramente mais folgada''.4i Inaugura-se o
zam-se por uma alta densidade demográfica e um alto índice de desemprego. 'Võo da Beleza'', orgulizado especialmente para transportar os travestis do
A prostituição é de há muito uma altemativa de trabalho. Locais como o Brasil até a Europa. Segundo Trevisan( 1986), no final da década de 70, calcula-
Mangue, a Boca do Lixo, a Cinelândia no Rio de Janeiro, a Boca do Lixo e o se que "dos 700 travestis trabalhando na França. 500 seriam brasileiros''.42 A
Largo do Arouche em São Paulo, a Ladeira da Montanha, o Pelourinho e o corrida a Paria se deveu em primeiro lugar ao tramento dispensado pela polícia
Maciel em Salvador, são espaços onde se desenrola o clássico enredo do corpo francesa aos travestis, sem arbitrariedade e sem violência; e em segundo à fama
prostituído e sua causalidade económica, uma vez que milhões de brasileiros de bom pagador do homem francês quando se trata de um consumo conside-
foram jogados ao desemprego, fome, péssimas condições de vida e um forte rado exótico. ''Dc fato, Priscila foi a Paria, viu, 'deu' e venceu em quatro meses
esquema de repressão policial. A tónica consumista gay tem um efeito multi- de viração, comprou jóias, trouxe presentes - glória das glórias''.4'
pl icador para a prostituição dc travestis num Brasil que cada vez mais se assume
no que se refere à inversão, prática de um camaval cotidiano. Porém, atrás dessa A presença numerosa de travestis brasileiros em Pauis levou o govemo
aparente desordem existe uma crise social muito séria, uma exaustão de um francês a incluí-los numa ''categoria de explicação sociológica das medidas
mercado de trabalho, principalmente para a força de trabalho não qualificada. repressivas contra a imigração tomadas pelo Govemo socialista de Miterrand
em 1982".44
Embora não se trate aqui de levantar a arqueologia da prostituição de
travestis, vale a pena apontar para relatos que indicam que este tipo de Na Fiança são marcas de brasilidade o café, Pelo, camaval e travestis
prostituição, apesar de muito antiga, só recentemente emergiu publicamente Dennis Altman( 1979), sociólogo austríaco e militante gay, entende a multipli
como um questão social a scr discutida e polemizada. cação de shows de travestis no país como uma marca da cultura brasileira
;Para mim é uma coisa muito ligada ao machismo. E muito brasileira também
(cuido Fonseca ( 1982) apresenta relatos históricos no século XVll, indi- Os shows de travestis são famosos em todo o mundo''.4S
cando que, no ano de 1628 passaram pela Paulicéia ''homens em tmyçs de
mulheres minando para as minas. Eram nossos primeiros travestis".39 Diz Mana Leolpoldina (1981), travesti carioca, diz que, com tudo isto, na
ainda que nas primeiras décadas do século atual, a Praça da República em São Brasil ainda, ''o travesti, a bicha, é visto por muita gente como um obyeto de
Paulo já era local de prostituição de travesti. É de 1 936 o mais antigo relato da consumo, de deboche''.4Ó A despeito do camaval, do teatro de Revista, do
prisão de um travesti prostituto nesta cidade. O preso, no seu depoimento, diz candomblé e da fama no exterior, o reconhecimento da ambiguidade latente na
ao delegado que: ''comecei a prostituir-me com todos os homens que me faziam nossa cultura não é ainda o suficiente para livrar os travestis da arbitrariedade

98 99
penal, nem do rechaço e restrição sociais à sua fomta de sobrevivência. 25. Jonul Correio da Bahia, 06.05.80.
26. M0'H', op.cit., p.14.
O que se pode inferir do exposto até o momento é que a inversão é um 27. Idem, ibdein
componente fadado na nossa cultura e que, de certa forma, esta nos pemlite
28. Follletim, 24.01.82
compreender o tipo particular de prostituição de travestis. 29. Idcin

NOTAS 30. Jornal Lampião da Esquina,janeiro de 1980.


31. MOTT, op. cit., p.15
l LIMA, Cláudio de Amuo. Amor e Capitalismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 32. Idem, p.15
1 962, P.15.
2 33. Jornal Lantpião da Esquina,janeiro de 1980.
Idem, p. 14
3 34. MOTT,op. cit., p.16.
Idem, ibdem.
4 35. Revista Fatos e Fotos, Rio de Janeiro, 22.03.82
ESPINliEIRA, Gey. Divergência e Prostituição. Rio de Janeiro/Salvador, Tempo Brasileiro;
Fun(lição Cultural do Estado (h Bahia,1 984 36. Entrevista de campo com Marcela, travesti paulista, 1 984.
5 MOREIRA, Vigente Diocleciano. Jovens Ladrões; caso Pelourinho e Maçiel. Salvador, 37. ERDMAN, Resina Ma. Reis e rainhas do desterro. Florianópolis, Universidade Federal de
UFBA, 1 982, miniiogr.(disserhção de Mestrado) Síulta Catarina,1 98 1, p.47. Dissertação de Mestrado.
6 Ident, op. cit., p.39. 38. Jonul O Globo, apud arquivo do GGB(sem.indicação completa de fonte.
7 Idem, ibidem. 39. Fonseca, Guido. História da prostituição em São Paulo. São Paulo. Resenha, 1982, p. 21 9.
8 BRUCKNER, Pascal & FINKIELKANT. Alain. Nova desordem amorosa. São Paulo, 40. Idem, ibdan
Brasiliense, 1982, p.79. 41 . Revista Manchete, janeiro de 1 982
9 ARMES, Phi]ippe. ]n: Sexua]i(jades Ocidentais. ão Pau]o, Brasi]iense, 1 985 (co]etânea vários 42. TREVISAN, J.S., OP. cit., p.247.
autores). 43. Revista Ele e Ela, apud arquivo do GGB(sem indicação de conte).
10. FOUCAUI.T, Michel. Micro6isica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1 981 , p.23. 44. Jomal Folh de São Paulo, S/D.
1 1. BRUCKNER, Pascal & FINKIELKANT, Alaüt, op. cit., p.160.
45. Revista Isto É, 29.08.79, p.55
12. Revista Isto É, 05.01.83 46. Jonml Lantpião da Esquina. Rio de Janeiro, 1 981
1 3. BliUCKNER, P. & FINKIELKANT, A., OP. cil, P.174

14. Revista Fatos e Fotos, 05.03.81.


1 5. ESPINHEIRA, Gey, op. cit., p.52
16. Jonml O Globo, s.d
17. VEYNE, Paul. In: Sexualidades Ocidentais. São Paulo, Brasilienw, 1 985(coletânea de
varas autores).
18. DUAR.IE A. & CLEMENTE, H. Prostituição masculina em Lisboa. Lisboa, Editora Contm
Regra,1982
19. Follietiin, 24.01.82
20. MO'H', Luiz. Dez vindos em questão; tipologia dos homossexuais da Cidade do Salvador;
Bahia. Contunicação apresentada à 13a. reunião da ABA, São Paulo, 5-7 abril 1 982, p.l
(minteo).
21. 'rREVISAN, Jogo Silvério. Devassa no Pamíso. São Paulo, Limonad,1986, p.244.
22. Folhetün, 24.01.82
23. Jomal O Estado de São Paulo, 12.04.86
24. Jonml Lampião da Esquina,janeiro de 1980

100 101
CAPITULO V
OS TRAVESTIS DO PELOURINHO
Este e os demais capítulos referem-se à pesquisa de campo. Constituem
o resultado da elaboração e tratamento dos dados e informações coletados à
luz das principais discussões enunciadas anteriormente. Inevitavelmente a sua
linguagem acompanha a fãa ambígua dos travestis. Procura retratar com
nitidez a dúvida constante que emerge do texto quando estes elaboram a
percepção de sua auto imagem metamorfoseada.
Os travestis moradores do Pela são originários em grande parte da capital
e do interior da Bahia e de outros estados do Nordeste. Em sua maioria
dedicam-se à prostituição de rua ou !m!!aii, atividade que tem registro na
cidade desde a década de 50. Florípides, travesti lendário das ruas do centro
lembra que quando começou ainda havia bonde e muita repressão. Relata que
nenhuma bicha tinha coragem de 'se assumir' e eu me transformei na rainha
da cidade''. '

Hoje a situação é outra. Em Salvador, Recite, bem como em outras


capitais do Nordeste, constata-se unia ampliação da prostituição de travestis.
Salvador se tlansfomtou no entreposto da rota Norte/Nordeste/São Paulo/Rio
de Janeiro/ Brasília, que são as metas finais dos sonhos dos travestis nordesti-
nos

Confomle explicita Antonieta, travesti baiano, morador do Pela, a cidade


de Salvador é tolerante em relação a inversão sexual:
Scilvctdor é um barato e a popuLctção não ridiculari-
zatanto cis bichas. Aqui no Pelourinho nós somos
bem {ratctdos , andamos à vontade de mulher, de
noite e também de dia quando vou comprar alguma
coisa, um sapato, um mantimento, na Baila do Sa-
pateiro, no Tereiro de Jesus, os moleques dão em
cima, mas é coisct à toa, a gente não liga e passa rlcl
da gente, como se não tivesse acontecendo nada.'
O Pela, zona central da cidade, é o território livre pam o travesti. É a
certeza de encontrar moradia (mesmo que em péssimas condições e caríssima)

103
no, museus, fiindações, sedes de blocos e afoxés, e por pequenos comerciantes
e uma certa tolerância que lhes permite a vida social. Além de algumas outras de artesanato regional, e ainda por serviços extensivos da rede turística.
regiões do centro como Lago Dois de JulhR2.Ajuda e rua Child, e alguns
caríssimos bairros, é no Pela que visivelménté se expressa a presença do A atuação do Estado na área deslocou, a princípio, a zona prostitucional
travesti. Apesar de explorados e estigmatizados, possuem liberdade de ir e vlr do Lago do Pela para outras zonas da cidade ou para outra.s áreas próximas
travestidos Suas figuras já aderiram à paisagem turística local, fazem pane !e mas que ainda não tinham sido recuperadas. com o Baixo' Maciel, o que
muitos cartões postais registrados pelas maquinas ávidas dos turistas. Conã- provocou nestes locais, uma rápida especulação imobiliária. A refomla dos
nados aí durante o dia, os travestis compõem mais um elemento na história prédios, as empresas turísticas que aí foram se instalando e um início de
prostitutiva que marca definitivamente o local . saneamento da área, implicou sobretudo em afastar a prostituição da sua ána
central.
O Pelourinho caracteriza-se por sua ambiência histórica. Suas casas
situadas ao longo de Rias estreitas, formam um conjunto arquitetõnico de A prostituição de travestis no Pela não é tão antiga quanto a das mulheres,
velhos casarões coloniais, desvalorizados e em alto estado de desgastes desde mas esteve presente já em meados dos anos 50. Conforme o dono de uma casa
meados do século passado, quando a elite se deslocou do centro da cidade e foi de encontros homossexuais que não quis ser identificado, no local: ''tinha
habitar em baixos elegantes mais próximos da orla marítima. A partir de 1 960 muita gente incubada, que na calada da noite ia fazer o seu michezinho vestido
é visto publicamente como zona perigosa, local de concentração. de ladrões e de mulher. Mas isso só a noite, porque de dja nenhuma bicha ousava sair por
mais. A tónica da recente história social da área é a prostituição e sua aí rebolando de boca pintada. A tumba esfolava".a
circunscrição como ZOHâ de meretricio. Se a ação do Estado se orientou no sentido de aíàstar a prostituição das
Ainda na década de 60 sua configuração económica consistia na explora- áreas mais próximas à restaurada, só teve êxito no que se refere a prostituição
ção habitacional da prostituição, num pequeno comércio local, além de ativi- feminina. Na verdade, grande parte das prostitutas recuou pam as ruas mais
dades sqeitas a contravenção penal como tráfico.de drogas e pequenos roubos afastadas do centro e se concentrou no Baixo Maciel. Contudo, na rua Alftedo
A grade maioria dos velhos casarões do local foi subdividido em quartos de Bruto, porta de entrada do Pelourinho, local que concentra muitos dos prédios
cómodos e transformada em moradia coletiva. A proliferação de altemativas restaurados, nos casarões que ainda não o foram, mom o contingente mais
de moradias atraiu grande número de prostitutas que passaram a subloçar os expressivo dos travestis da área. O tipo de prostituição que exerce é tido no
quartos transfomlando-os em ]oca] de trabalho e residência. Esta comia de local como a que resulta em maiores rendimentos. A sua clientela tem reco-
utilização do espaço caracterizou durante muito tempo o Pela e o Maciel como nhecidamente um maior poder aquisitivo que o tipo de cliente das prostitutas
locais socialmente reconhecidos pelo exercíco da prostituição. Mas a vida não é fácil. A estranheza que sua aparência causa é um fão
Atolerância da comunidade com os travestis é, antes de tudo uma que limita as altemativa de moradia. Tudo isto contribui para que o. travesti
tolerância para com a sua atividade e, talvez menos para com a imagem que pague um dos aluguéis mais caros da região. Essa situação de exploração
eles representam. AÍ não só se tolera o travestismo mas também a prostituta habitacional, faz com que a prostituição do travesti seja mais rentável para
decadente, o traficante de drogas, os cafetões e cafetinas, os assaltantes, etc., outros do que para ele mesmo. O certo é que todos gão unânimes em aHimtar
toda uma camada da população que sobrevive e se reproduz nos limites da que seus serviços sexuais são mais caros que o das prostitutaas. Nomlalmente
ilegalidade. são efetuados fora da moradia. Não combinar trabalho e moradia é a estratégia
para assegurar ao travesti sua pemlanêqcia na área, uma vez que suas opções
Dada a sua arquitetura colonial e a sua transfomlação em patrimõntço
de moradia são limitadas. E assim que Wamburga combina o Pela com o
histórico mundial, a partir do final dos anos 60,já evidencia-se uma intervenção
imUaii: ''aqui não dá para ser no quarto porque muito poucos clientes que
do Estado na área no sentido de conserva-la e restaura-la, visando principal-
pagam melhorzinho vem aqui, além de que cliente no 'pedaço' sempre dá
mente a exploração de seu potencial turístico.
problemas e não posso soar o lugar que dumio. Fom daqui é raro ter lugar que
A maioria do casarões antigos que foram reformados e restaurados, queira tavesti''.'
conserva os traços coloniais. São ocupados por instituições ligadas ao Gover-

105
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O quarto, a casa no Pela, significa um lugar seguro para a transformação.
São pequenos cubículos que mal cabem um cama, um mesinha que funciona
como penteadcira, onde encontram-sc espalhados batons, sombras, lápis cryon,
pós-compacto, cremes, esmaltes, elementos indispensáveis para o ritual coti-
dialo que precede a ida ao trabalho. Não dispõem de serviços sanitários
individuais, banheiros, lavandarias e cozinhas são coletivos. E aí que se
ref\agiam durante o dia, para descançar da batalha que é a caça ao cliente, ao
seu gozo e ao seu dinheiro. O Pela é uma prisão de circulação livre, sempre
que a policia não esteja por perto. Os travestis mesmo que aí confinados
percebem o local com positividade, à medida que os casarões do Pela são uma
das poucas altcmativas de moradia. Por moraram na rua principal do bairro,
sua aparição durante o dia nem sempre é pemlitida pela polícia.
Mott ( 1984) identificou, no ano de 1982, 40 a 60 travestis residindo na
área. Fomlan um grupo homogêneo entre os travestis da cidade que se dedicam
à prostituição de rua e estão numa taxa dc 18 a 28 anos, sendo a maioria
alfabctizados. Alguns, mean\o que se identifiquem enquanto prostitutos, têm
como atividade complementar a realização de shows em boites gays da cidade
e, muito raramente, praticam pequenos roubos. Entre estes, o tipo mais fre-
quente é o ''suadouro"(*), expediente de uso alargado na prostituição pobre
em geral.
Valesca confirma que, intimamente, a comunidade local não tem tanto
preconceito com o travesti. A intoleiâlcia em geral vem de fora, da polícia em
especial. O Pela (abreviatura popular do Pelourinho) é a casa. A rua são as
cercanias do bairrro.

De dia a gente não sai, Pca trancada aqui no Pelou-


rinho. SÓ no domingo que a gente tem vontade
A transformação

H
de sair, de brincar. Dia de semana as bichas.Rcam
aquijazendo dose. os PMs chegam , batem, e mari-
dctm subir. SÓ cites domingos que a gente pode$car
ctl na rua brincando, quando dá 19 horas tem que
subir. Você vê que no Maciel as mulheres tem mais
liberdade de fcar de dia e nós não temos.S
O afastamento da família, dos atritos com os homens da cua, podem ser
Cadete, liderança local entre os travestis, é da mesma opinião. Explica
considerados ritos de separação, ou início do rito de passagem, no qual o sujeito
que a tolerância ao travesti é uma tolerância característica do meio marginal,
de identidades equivalentes, que os diferenciam sobremaneim do restante da
sociedade. Assim, o Pela é o melhor lugar de reconhecimento e aceitação de
': .
Ü

suas identidades. ''E por isso que gosto do meio margianl, do podre, porque ."Suadouro'' é uma modalidade de roubo derivada da atividade prostitutiva Consiste no flirt- -'- .
quç pertence ao cliente, realizado por outro elemento, enquanto dura o programa. -ui w uo ulnnelro
aqui não sou 'pilhado' de anomlal, marginal, sou uma pessoa mesmo".ó

106
107
transitante afasta-se do ]oca] para recusar os atributos de sua condição anterior
de homem. Outros entendem ainda que sair de casa significa ter a liberdade pam fazer
o que quer sem comprometer o respeito da íàmília, abalado por um homem
Verá, 22 anos, originária de Fortaleza-Cealá, quando conta sua vida, vestido de mulher dentro de casa. ' '' '
relaciona o início de seu processo de trans6omlação a um atrito com seu pai: Sair da família é virar à procura da mega dos travestis, uma cidade onde
O que me levou a ser traxlsti joi um pequeno proble- poderiam ser livres para serem peúeitas. Longe dos olhos da fmília da
ma que eu tinha com meu pai. Eu tinha cabelo gran- censura, da lei viril familiar poderiam elabora sua metamorfose durante o dia
de, meu pai cortou quando eu estava pam esburá-la à noite na magia do neom das grandes cidades. Sair da família
dormindo. Duas vezes ete cortou: numa das vezes. e ser livre para o sucesso, .f afastar a possibilidade de baixa estima provocada
ele cortou a faca. A Última vez que ete cotou, eu por olhares que o vê tão diferente. Sairde casa para "arrasar", gastar e d miga
sua pintura.
!wa' com }5 anos. AÍ eu disse: olhe minha mãe.
meu pai jez isso comigo pensando que não vou ser
o que quero, agora vou ser mesmo. Então comecei a com a d egadaià pernanbucana, marca bem seu processo de trans6omlação
tomar harmónio, a me transformar e usar roupas de
mulher. Eu não usava roupa de mulher, deste tempo ) meu começo de travestijoi aqui na Bacia. Por-
para cá, assumi minha vida, sai de casa y que em Recjfe eu não podia botar peito, jazer som
5rancelhas, que eu morava com minha
O rechaço dos homens da casa é a postüm definitiva pam o aíàstamento família. Então se eu fosse colocar um peito, ja
do travesti do núcleo familiar. Muitas das vezes este rechaço pode chegar à !er sombrancelhas, andar pintado como uma mu-
violência, ao drama, ao desejo de morte do transitante. Foi o que ocornu entre :her dentro da minha casa, ia ser uma coisa
Antonieta e a família. ''Meu pai e meus imiões foram contra mim. Disseram iíjerente, meu pai dão ia aceitar. Longe dajamilia
que qualquer coisa que fizessem comigo eles não eram contm, podiam até me ;luto mais liberdade, mais à .!ontade. Faço o que
matar. Então eu me aborreci e saí de dentro de casa, e vivo até hoje fom de quero e eles não estão vendo. ll
casa' ' .lo
Há, porém, exceções. Situações em que o travesti tem o reconhecimento
Alguns travestis confessam que necessitaram não só sair de casa como
de toda a família, sem a marginalização c/ou rompimento. Neste caso, afastas-
também do Estado. Mariza, travesti de Fortaleza, conta que a ira do pai 6oi tão se de casa significa apenas a independênccia. E o que aconteceu com Colete.
violenta a ponto de tentar mata-lo, caso o avistasse vestido de mulher. É este o baiana da capital, que convive bem com a família a ajuda nnmcenamente.
resumo da sua história. Marize por Marize :
sendo..!nda um consultor dos problemas aÉetivos dos fmiliares e amigos de
Sentia que não era homem porque não senha nada in6ancia. Conta como Êoi a reação dos seus parentes quando descobriram a sua
por mulher. Então, com a idade de 13 anos, já anda- mversâo: ''o meu pai, mãe e meus innãos quando souberam que eu levava esta
va com a molecada. minha mãe percebia tudo. Co- vida ficaram muito chocados, depois me receberam maravilhosamente, e ainda
nheci uma bicha, por nome Quincas. lá em me recebem, nunca se meteram na minha vida particular. Nunca me reepren-
Fortaleza; ela quem me deu a dica. Ela era arldró- deram, não me vêem mais como homem e nem acham que sou mulher. me
gina. Meu pai descobriu,.Pcou Muito revoltado. Dis- chamam de bicha e pronto''.i3
se que não ia dar para morar com eles e se me As mulheres da família são indiscutivelmente mais compreensivas e
encontrasse na rua com vecidosjurou que me tnata- tolerantes com o processo de trans6omiação. Os travestis quando conservam
ria, como de fato já tentou uma vez. Fiquei tão os laços afetivos e de correspondência, mantêm-os com as tias, mães e nuas.
revoltado quelüipra Brasilia, São Pauta, vivo assim E na inmancia que estes laços são tecidos. São estas as cúmplices históricas do
andando.t '
nosso pequeno invertido. Segundo teorias apresentadas anteriormente. os
homens estariam mais predispostos que às mulheres à inversão sexual. Estas

108
109
parecem mais tolerantes a diversidade das identidades sexuais. Desta forma, a tomar anticoncepcional, homaõnios femininos, füi desenvolvendo os seios e
Mera vê na figura do pai o signo de toda rdeição familiar, só atenuada pela enfrentei uma barra pesada entre minha família''.t8
intervenção da ntãe. ''Geralmente os pais nunca são assim a favor da gente; já Esta convicção de inversão parece ser uma constante entre os travestis do
a mãe da gente não. Ela aceita agente do jeito que a gente é. Não quer saber Pela. Convicção que, contraditoriíunente, para muitos independe da homosse-
que sela ladrão, quc seja veado. Os pais sempre ignoram:
xualidade. Mas é entendida como algo transcendente, algo já preescrito no
Mesmo esta compreensão das mulheres da família não é exercida com espelho. Apenas a descoberta da imagem da sua identidade sexual perdida no
tranquilidade. Mariza fala do sofrimento de sua mãe quando esta o surpreendeu labirinto da gramática erótica, que llle devolve apenas visões de desacordo
travcstido de mulher: ''Minha mãe sentiu desgosto. Sentia'desgosto e chorava. entre o seu ser biológico, sua imagem de homem e sua íàntasia de mulher de
sonho
Tinham desgosto mais por causa dos peitos e de tirar sombrancelhas. Agora, o
fato de eu ''ser"(homossexual) ela nunca foi contra. Que fosse bicha, que fosse Índia, na frente do espelho, muito cedo descobre sua inversão: "foi com
machuda, não dcsse na pinta. Mas meu destino era esse, seguir esta vida".''
a idade de 1 1 anos,já quis pâr vestido. Me olhei no espelho e disse assim: Hoje
Há experiências de extrema cumplicidade entre o travesti e sua mãe. vou mudará Pus uma saia, peguei uma bolsa, uma sandália alta, arrumei meu
Passado o momento da descobcRa, uma vez superado o impacto da revelação, cabelo " . ' '
vem a aceitação e geralmente um reconhecimento da nova identidade através
Walderléia indica também o travestimento na inBancia e o explica como
de trocas de signos do universo feminino. Índia na sua metamorfose foi
uma sina ou um dom que Ihe foi predestinado a cumprir: ''foi um problema
pemlancntemcnte assessorada pela mãe que a ajudava em diferentes tarefas: que Já trouxe nas costas, foi dc inHancia. Não porque eu queria ser uma coisa
minha mãe costura meus vestidos, borda, me ajuda a escolher os sapatos e me
obrigada. Acho que é um dom que eu tenho que assumir e acho que tem que
maquiar, principalmente quando vou fazer show nas boates de Belém. No ser isto mesmo que tenho que scr: travesti".20
quarto dela, tçm na parede fotagraülas minhas de artista''.''
Há travestis entretanto que, conciliados com suas identidades, não procu-
Em geral, para os travestis o processo de transformação não resume-se
ram causas para o seu tmvestismo, a não ser um ''se assumir'', atitude que
apenas a uma dimensão física dc alteridade corporal, mas ganha também um
significa se comportar como mulher o tempo inteiro e não apenas quando vai
significado subjctivo de sinais de uma certa homossexualidade identiHlcada na
para as ruas de prostituição. Não atribuem seu travestismo a uma estratégia
inHalcia. Nesta lógica, cla é um sinal deflagrador de um processo de troca ritual
homossexual. Acham apenas que foi um designo do nascimento.
de identidade sexual. Um processo que se aprimora com o passar dos anos,
torna- se infinito, pois a imagem que procuram está num horizonte impossível Danielli, por exemplo, não tece nenhum questionamento acerca das
e as características viris tcimain cm reaparecer. causas de sua identidade: ''eu acho que já nasci para ser travesti. Eu não me
sentia bem de homem. Então resolvi sair de casa e ficar mulher''.2i
Meu processo vem desde criança. Desde a idade de
10 árias eu jó era travesh e nem sabia o que era tra- Indiferente a sua suposta tmyetória edípica, Cadete não faz nenhuma
vesti. De repente eu sentia mais atração por homens, relação entre o scu travestismo e uma duvidosa fala de liberdade para a
$quei naquela, nunca tive {rcinsação com mulheres, homossexualidade . Segundo ela, a sua opção sexual por homens não foi motivo
sempre lfiii aje minada, me criei assim e assimjoi meu dc seu tmvestimento, pois antes de ser ''assumido'' enquanto travesti, quando
ritmo. Foi assim porque eu simpatizava com os ho- ainda cultuava a imagem dc homem, se relacionava com outros homens. Para
mens e dedicava-me mais a tendênciajeminina efili ela ser travesti 6oi uma questão estética. ''Sempre gostei de um 'pintinho'. Fui
me transjormarido rapidamente.' ' ser travesti por vontade. Acho um travesti bonito, a pessoa se assume mais, sou
ntais assumido como travesti''.22
Maninha também remonta seu processo de travestismo à inBancia e o
relacionamento com uma certa dose de homossexualidade: "sei lá eu com a Parte dos tmvcstis entrevistados no Pela começou relativamente cedo seu
idade de 5 anos, 6 anos, já sentia vontade, já sentia tendência de ser homosse- processo de transfomlação corporal. A maioria utiliza homtõnios femininos
xual até uma idade dc 1 1 anos, mas senti que faltava algo. AÍ prontos comecei para desenvolver os seios, afinar a voz e arredondar o fomlato do rosto. Para

110 111
uns o uso dos hormõnios somente acentuou uma constituição levemente Em geral o processo de transfomlação do travesti e sua inserção no
feminilizada. E apenas um retoque oo que a natureza desenhou. A construção universo da prostituição são acompanhados de um travesti mais velho e mais
mais complexa é se apropriar da performance feminina, seus gestos e língua experiente, ou por um grupo que dá acolhida ao recém-chegado ou ao
gem. Para isto, muitos acreditam ser necessário já ter nascido com o jeito de iniciantc. Influem no tipo geral da mulher imaginada, contribuindo para a
mulher. escolha do nome, tipo de homlânio mais indicado, tipo de roupa, cor de
Este jeito de moça é uma coisa que já vinha de nas cabelos, ctc. Dão ''dicas'' a respeito do universo prostitutivo, os pontos
indicados, bem como das características gerais dos clientes.
;ença. Sempre .fni assim, com este aspecto femini-
no.Desde criançajoi desenvolvendo, com harmónio Tudo parece nos levar a estabelecer uma analogia entre o tmvesti iniciador
desenvolveu mais, e .fiquei ape#eiçoada. O hormâ- e o xamã das comunidades primitivas, e as mães-de-santo no candomblé, ou
nio ajudou bastante a gente. Eu jã tinha aquele mesmo os sacerdotes no seminário. A escolha do nome feminino da persona-
jeitinho de mulher. agora co.p harmónio.füi desen- gem constitui-se num verdadeiro rito de incorporação. O tempo ''fazer o
volver quadril. peito, perna." travesti", muito usado em Salvador, faz alusão às expressões ''fazer a cabeça.
Valesca se define como trans6onnista, apesar de andar diariamente de 'fazer o santo", usadas nas casas do Candomblé da Bahia. referindo-se ao
mulher e ter aparência bastante feminina, diz que não fez nada para obtê-la processo principal de iniciação na liturgia nagõ-iorubá. Fazer a cabeça é
anunciar o nome do orixá quc o iniciado incorpora. Fazer o travesti é anunciar
''Foi uma coisa que aconteceu pela natureza, porque, até hoje nunca tomei
homtânio. Sempre tive estas feições. Sempre garanti minha vida pra mim o personagem fcminino, dando-lhc nome c imagem para serem incorporadas
pelo iniciado
mesmo. Foi sorte minha, foi a natureza
O processo de transfomlação de Wãldir em Wanderléia foi um processo Mirinha, uma representação de moça tímida do interior, relata a aguda
de construção de uma nova identidade, que a ingestão sistemática de homiânios
descisiva que recebeu de um outro travesti mais velho no seu processo de
inversão.
contribuiu pam finalizar. Esta é pemianente, o que parece nunca consolidar o
rito de transfomlação, uma vez que seu efeito é temporário. Cassada a ingestão h4eu travesti Jt)i Jeito por C.arlete. Foi .feito no Pe-
apagam-se do corpo masculino os sinais da mulher inventada. lottririho, na casa dela. Tinha JiLgido de casa,
Primeiro .@i tomando hormõnios e l@i modi$can- . meus irmãos querictm me bater. 'l'ava na pior. Uma
rtoile ela lava saindo prá pista. ai eu disse assim
do, cresci peito, $quei mais bonito, modi$quei o ros-
volt com você, poli ganhar o meu também. Ela disse
to. Porque antigamente eu era um andrógino,
então pra mim: ' Calmct Mora. dão é só assim, não:
um rcipazirtho. Hoje em dia estou com ojormato nem
de homem nem de mulher. Estou um travesti. Agora, este rteg(ócio precisa de muito o que aprender, não é
para ser um travesti com harmónio tem que tomar só botar um vestido, um salto alto e ir pra aveni-
da. Depois então, no outro dia. arrilmamos um ves-
sempre, senão tudo volta a ser como antes. Eu volto
a ser aquele androginozinho, só que mais a$nado, tido certo pra mim, ele me colocot{ este nome, por
mais mulherzinha.ó' causa do meu dome de homem - Argemiro, me disse
que se eu quisese me assumir mais, o harmónio certo
Durante os trabalhos de campo e nas pesquisas nos arquivos de jamais, era o ''Ginecoside''. mas que et{ tinha que tomar
não se verificou a presença de pessoas que dispusessem do silicone ou que sempre, se eu quisesse ter os peitos no ponto."
possuíssem a técnica de aplicação, mesmo que sem controle médico, como
ocorre no Rio de Janeiro e São Paulo. Os poucos travestis baianos que são Wanburga é baiana, embora seu referente Louriva] seja alogoano Nasceu
na Bahia, mais precisamente no Pclõ
siliconizados não moram no Pela, o que já denuncia um poder aquisitivo mais
elevado, vez que o custo da aplicação é alto. Eu sot{ da Boca dci Mata, estado de Alagoas. mas
sou bciiano. Sou daqui porque meu travesti joi jei-

112 113
to aqui. Agora minha pessoct, Lourival, é cihgoctno. homem".30 Walquíria passa por crises idênticas e sente o pavor da reversibi-
Como já falei uincls vezes, não tinha condições lidade: ''acho que não tenho mais peito de voltar ao 'playboy' que eu era''.si
de sobreviver. Por ser homosselattl. por ninguém Os travestis pre6crcm não se dcâinirem ncm se auto-classificarem. Prefe-
querer que eu trabalhcissse. Jiz o trctvesti. Cheguei rem scr o fator desordem nas trocas simbólicas entre identidades sexuais
clqui no meio das bichcls. Já me Pzeram o travesti. E Dcsdam abarcar as várias imagens que o espelho lhes devolve e, principalmen-
hoje sou tlm travesti.' ' te, pemtacer dcHlnitivamentc nas zonas de transição, em estado pemlanente de
A iniciação de um travesti por outro mais antigo na prática da inversão, liminaridade. ''Eu acho mil e um barato. Homem vestido de mulher. outras
faz deste uma espécie de "mãc-de-santo". No Pela significa que este papel é vezes homem com aparência dc mulher, uma mulher cóm aparência de homem.
exercido por aqueles travestis moradores mais antigos e conhecedores do Então, quando cu me acho com unl toque dc mulher eu procuro retocar mais
segredo da prostituição. Por cxcrcê-la há muito tempo constituem-se numa ainda. No fundo não é vontade dc ser mullhcr. mas se ser uma coisa diÊeren-
32
te
espécie de guia para homossexuais recém- cllegados ao local e iniciantes tanto
no travcstimcnto quanto na prostitução. Na aventura de não sc colocarem em nenhum lugar social visível, os
Conforme apontou Mota (1982), os travestis do Pelourinho, como em travestis não querem scr mulher, apesar de muitos se sentirem uma delas, não
outros lugares, costumam se tratar entre si dc "mora'', expressão que significa querem scr homossexuais e, muito menos, homens. Querem ser a diferença.
menina, mocinha cm nagâ- }orubá. 'Quero scr cu mesmo. Ser bcm apresentado, bcm visto onde chegar. Todo
travesti é uma pessoa tchanl Onde chega, todo mundo só se apercebe daquilo.
Falando de si nlcsmo, scr travesti, para muito deles, mesmo com todo o E uma novidade".J'
estigma social c a represão - quando se trata especialmente de travesti prostituto
- se reveste de positividade. Positividade construída em tomo de suas ambigui- Pelo quc se pode observar através de suas falas, os travestis possuem a
dades. ''O travesti pra mim é uma arte. Afinal, não é todo mundo que sabe pisar convicção dc serem os únicos homossexuais assumidos. Os outros. as ''bichas
num sapatinho alto. Nem 28 honlcm nem mulher. Muitas mulheres não sabem machudas'', são todos enrustidos, ou sÜa não assumidos. Para eles, assumir
pisar num sapatinho alto signiÊlca levar o processo de inversão até as últimas consequências, passar para
o mundo feminino, sem no entanto desejarem transfomlar-se numa mulher.
Indagados sobre a autopcrccpção de sua imagem, sobre como se viam Muitas vezes a tralsÊormação atinge um grau dc aprimoramento tal, que o pênis
diante do espelho, os travestis entrevistados devolveram como resposta um é a única coisa quc lhes resta dc virilidade. É esta marca masculina o grande
mosaico de signos, no qual as identidades sexuais ser travesti, homem-mulher, obj eto de valor iia sua atividade prostitutivac atestado de estranheza e dize rença
bicha ou homossexual,veado sc embaraçam em épocas e circunstâncias tão quc o caracteriza como versão modema do mito da androginia.
variadas que tornam difusa qualquer definição. Se colocam enquanto esnlnges
a serem decifradas, a despeito da visibilidade de sua ambivalência. Verá sente Neste contexto, entende-sc porque a inversão levada a sua radicalidade
diante do espelho pura ambiguidade: ''...uma mulher com um 'peru' entre as com a operação tratsexual, é um processo transformador desprezado entre os
pemas. Acho isto legal. Geralmente me sinto uma mulher. A única coisa que travestis, quc a considera loucura c anomlalidade. Submeter-se à operação é
tenho de homem dentro dc mim é este 'pinto'. Cortando, sou uma mulher pra querer sentir-sc mulher deflnitiviunente: ''acho o seguinte: jamais passaria na
qualquer efeito''." minha cabeça fazer uma operação desta, porque eu ganho muito bem é assim
mesmo: Porque os homens gostam de pinto, scin o pinto eles não ficam com a
A presença do pénis não é para Danielli, um empecilho na sua identifica- gente''.34 Consideram que, além da cirurgia não transfomlá-los numa mulher
ção com a imagem da mulher. E nem tampouco motivo de recalque. Maninha, de verdade, capaz inclusive dc procriar e obter os documentos legais, conti-
no entanto, quando se reflcte num espelho, diante da diversidade de identidades nuam sendo homens e tem como cónsequencia física a eliminação do prazer
sexuais possíveis dç conter a sua imagem, revela sua própria dúvida e dificul- erótico genital. ''Eu me sinto muito bem sendo travesti ou transfomlista. A
dade de se auto- definir. Índia-revela ter crises constantes de identidade, ''as noite sou mulher, de dia sou aquela coisa que todo mundo tá vendo. Mas me
vezes me sinto como algo quc não se aceita. Me olho e sei que não sou mulher
de verdade, fixas não penso mais como homemm, não sei mais me passar como

114 115
sinto muito bem do jeito quc sou. Querer ser mulher, acho que é uma psicose, economia prostitutiva. A inversão está estreitamente relacionada à batalha pelo
um doença...'''' dinheiro, na qual vende com sua imagem uma fantasia andrógina.

Mesmo quc sc reconheça a identidade transexua] por demais complexa Wamburga considera sua imagem estritamente ligada à sua atividade - a
entre os travestis, que até se duvide de sua existência e, mais ainda, sabendo prostituição. Na sua lógica, vende apenas uma imagem de mulher, mas não
que não se dcüinein apenas pelo desejo de serem castrados e se sentirem e esquece que é homem. E sente isto diante do espelho: ''me sinto um homem,
pensarem como mulheres, os poucos travestis que desejam fazer a operação um homossexual. Não me sinto mulher. nem sou assim como se diz. feminino
transexua] identificam-se com o mundo feminino a ponto de se sentirem uma Sou um homem que sei que daqui a pouco vou pra frente do espelho fazer
delas. Marise é do Ceará, afirma que toda a inversão é querer ser mulher, ''todas aquela maquiagcm, botar aquela peruca, põr aquele vestido e ir pra avenida
são mulheres. Pela maneira de pensar, todo travesti tem aquela intuição de ser batalhar. Batalhar o meu dinllciro''.39
mulher. Mesmo sabendo que são homens, eles querem ser mulher. E o meu
caso. mcu caso é querer scr mulher:
36
A rua é o meu escrito rio
Areferência acima não se coloca enquanto aüimlação da identidade A rua cm oposição à casa (quarto no Pela) é o trabalho e escritório de sua
transexual entre os entrevistados, mas enquanto evidência do quão arriscado é atividade. A rua é também o perigo, é estar alerta a todos os sinais do cliente,
o estabelecimento de uma tipologia rigorosa, principalmente num universo que da polícia e dos ''plalboys'' de classe média alta que cultivam como lazer
se caracteriza como uma metamorfose de identidade recambiáveis submeter os travestis prostitutos da rua a rituais de violência e maltratou
Para alguns, scr mulher não significa apenas ter vagina natural ou artifi- A rua é a porta da fábrica, palco dos acordos c negociações preliminares
cial, significa assumir totalmemte a imagem desta na estrutura de papéis. ''Eu do programa. A rua é fundamentalmente a caça ao cliente. E o local de trabalho
me sinto mulher. Sou casada, vivo quatro anos casada com o homem que moro. no qual a caça espreita o espreitador de amores venais. "Fazer rua, avenida,
Vou pra qualquer lugar com elc e ninguém deboche porque não ando sozinha, esquina'', descreve a prostituição entre os travestis. Para Simone, ''fazer ave-
tudo bem l ''' 7 nida" ou "viver de pista'' é um trabalho perigoso e arriscado. A rua, a instância
do público é ao mesmo tempo local de trabalho. E imprevisível por um lado,
Para Verá, no entanto, scr mulher significa fulgir do estigma ao qual o
mas por outro é totalmente mapeada e delimitada por códigos subterrâneos. E
travesti está subordinado:
o imprevisível da rua que encanta Cadete: "E maravilhosas Nós tomamos ovo
Eu queria ser mtlther , porque a gente sofre mui- podre na cara, bombas, ao mimo tempo ganhamos o dinheiro que nós quere-
to. Acho que mulher sofre menos porque o travesti é dos
l
40

uma classe ctindct muito ignorada. Geralmettte não


Para alguns travestis, a aventura da ''pista'' não deixa de ser exciünte,
dão valor. Por onde ando, tenho que me passar por
porém têm suas crises dc desespero e angústia, relacionadas especialmente com
mulher porque se pensarem que sou travesti sou
o malogro na rua. A rua é também uma diversão, mas ser travesti é uma opção
encurrctlctda e clpedrejcida. Mulher não, é normal. sofrida
Pctssci por qulquer lugar, rtirtguém olha. Foi um vea-
do, todo mundo quer mamclr." tenho como diversão. Se me pagar bem , não me
diz nada. Vou vivendo a minha vida feliz. Eu acho
Para alguns travestis, a identidade se define pela trànsfomlação corporal. legal ser travesti, ao mesmo tempo tem muito sofri-
Assim, scr travestir é submeter um corpo já leventemente feminino a um mento. Tem dia que não dá nem pra comer ui chega
processo de alteração que lhes dê a imagem da mulher escolhida para encamá- aquela dor e pergurttcl: pra que esta vida? Outros
la no cotidiuio . Desta fo rnla nasce Wanderléia, enquanto identidade de travesti .
dias, quando tenho dinheiro. Pco mima boa. Me
Há no entanto, alguns, quc através de uma lógica inudtada, associam o sinto bem. Quando estou dura me sinto outro tipo de
seu travcstimcnto a um fator puramente de mercado, dcmandado por uma pessoa. ' '

116 117
Os travestis prostitutos do Pelõexercem a prostituição em ruas e locais 14 Entrevista de campo ('gira)
diversos na cidade. Chamam' de ''ponto" o local escolhido para caçar os 15 Entrevista de campo (Marize)
clientes. Este é negociado com outros prostitutos. Os locais mais frequentes 16 Ident
são rua Child, Ajuda, Cristo da Barra, Ondina ( na região dos hotéis), Pituba e 17 Enhevista de campo (Simone)
Parque da Cidade. Saem para a batalha de ânibus depois das 20 horas, 1 8. Enrtrevista de campo(Maninha)
retomando depois da zero hora. Alguns têm pontos fixos, outros percorrem 19 Enkevista de campo (Índia)
vários, fazendo o que se chama entre eles de "roteiro". E assim o roteiro de 20 Entrevista de campo(Wanderléia)
trabalho de Valesca: "vou primeiro no Parque da Cidade. De lápego um ânibus 21 Entrevista de cantpo(Danielli)
pra Pituba, da Pituba pra Ondina, e de lá pego um ânibus e vou pra casa''.42 22. Entrevista de campo (Cadete)

A grande maioria dos entrevistadosjá esteve em bom número de capitais 23 Entrevista de campo(Valesca)
do país, exercendo a prostituição. Pelo que se pode depreender da pesquisa de 24 Idem
campo e das fontes de jornais, a prostituição dos travestis no Brasil caracteri- 25 Entrevista de campo(Wanderléia)
za-se por um grande fluxo migratório. Salvador é o entreposto da rota Nordes- 26 Entrevista de campo(Mirilüla)
te/Sul do país, e o Pela significa pouso certo. 27 Entrevista de campo(Wambtuga)
A movimentação dos travestis no pais de Norte a Sul, imprime a atividade 28 Enhevista de campo(Marthlha)
traços culturais homogéneos, e umalinguagem unifomte. Foi identiHlcado tanto 29 Entrevista de campo (Vc-ra)
nas grandes cidades do Sul, quanto em Salvador o uso de expressões de origem 30 EntrevisU de cantpo (Índia)
nagõ, usados como códigos cifrados na estratégia de defesa contra grupos 31 Entrevista dc cantpo(Valquíría)
hostis as suas per6omtances públicas. E comum tempos como "mona'' pam se 32 Entrevista de campo(Wnderléia)
referirem uns aos outros; ''Okó'', para significar homem, cliente, caso, rapaz 33
viril e ainda ''Okondé'', para designar a zona, uma região particular da cidade, 34 Entrevista de campo(Mirilüta)
Aliban" para denominar a repressão, a policia, etc. Chamam esta linguagem 35 Entrevista de campo (Valesca)
de o "Dicionário Negro das Bichas' 36 Entrevista de campo(Danielli)
37 Enü'avista de campo(Dyana Gil)
NOTAS 38 Enkevista de campo (Verá)
l Jonml a Tarde, apud Arquivo GGB(sem especificação completa da fonte). 39 Entrevista de campo(Wamburga)
2. Entrevisata de Campo(Antonieta) 40 Entrevista de campo (Cadete)
3. Entrevista de campo(sem identificação, a pedido). 41 Entrevista de campo (Valesca)
4. Entrevista de cantpo(wamburga) 42 Ident
5 Entrevista de campo (Valesca)
6. Entrevista de campo(Cadete)
7. Entrevista de cíunpo(Wanderléia)
8. Entrevista de campo(Simone 11)
9. Enb-avista de campo (Mera)
10 Entrevista de campo(Antonieta)
11 Entrevista de campo(Simone 11)
12 Entrevista de campo(Wanderléia)
13 Enhevista de campo (Cadete)

118 L19
CAPITULO VI
r

O PROGRAMA
A visibilidade da prostituição dos travestis, vem se tomando tão contro-
vertida a ponto de se observar, pelo menos na imprensa e na lei, uma tendência
a identificar e colocar no mesmo rol, prostituição, homossexualidade e tmves-
tismo. A atividade exercida pelos travestis, como qualquer tipo de prostituição,
possui leis e mecanismos próprios que viabilizam os acordos entre práticas,
clientes, policia e prostituto. Este conjunto de leis e mecanismos nos pemiite
relacionar a prostituição com a dinâmica social global em épocas e situações
detemlinadas. Neste contexto é que os mecanismos tácitos facilitam o consen-
so entre as leis de mercado e oferecem sinais para o processo de construção de
identidades sexuais no interior do complexo prostitutivo, distinguem e no-
meiam a homossexualidade, o travestimento e o transexualismo, etc.
O programa ou transa é a unidade produtiva da prostituição em geral
Esta atividade é um todo fomaado por um corpo que se prostitui, por um cliente
que paga, pelos serviços ofertados e por locais e um preço equivalente em
dinheiro. Durante o "programa'' não acontece nada fora do acordo anterior-
mente estabelecido. O imprevisto é motivo para uma nova negociação. Nada
dc arrebatamentos no programa não cabe nenhuma pulsão emotiva, a figura da
troca amorosa não faz parte do negócio
Mirinha, indagava sobre os seus sentimentos durante o programa, deixa
claro a qualidade de seu erotismo. ''Eu não gosto de ninguém. SÓ quero
somente o meu dinheiro, nada de amor com os homens. Não tenho amor por
homem. Qual é o homem que vai ter amor por um veado? Nenhum".i A
fãsidade de seu programa resulta menos da sua imagem invertida, do que da
sua expressão do gozo mentira . A máscara é o simulacro do prazer.
Não apenas o disfarce em mulher, mas também do próprio gozo só se
realiza mediante uma certa quantia de dinheiro
Bem, pro homem sou homem sou muitojalsci. Quan-
do ele tá me dando alguma coisa tou gostando
dele. Se ele não me dá nada eu largo. E com os
homens da rua sou da mesrnaforma. Faço aquilo
maraüithoscimente, sorrindo e feliz, mas sei que es-

121
!oü ganhando o meu. Se vejo que não volt ganhar imposição social, imposição a um determinado tipo de trabalho que os coloca
nada, jà desço do carro, largo ele. Não pe.rco tempo, inevitavelmente na marginalidade. O fato da inversão de sua imagem não ser
to' mais de ganhar meu dinheiro. de procurar aceita em outros ambientes de trabalho, haja visto ser raro encontrar um
homem. de dar a homem, de jeito nenhum. Não saio travesti trabalhando como office-boy ou operário, ou mesmo em repartiões
públicas, tomam suas figuras indissociadas da prostituição masculina. Mirinha
de graça com h ?mem, volto pra casa dura, mas não
curto rtingltem.' acredita ser esta uma situação particular do país
Aqui no Brasit, a prostituição é um tipo de traba-
lho pra gente. Nós não temos um campo de trabalho
aqui rio Brasil. No Brasil, travesti é enjeitado mes-
tensões eróticas. mo, nem todo mundo aceita pra trabalhar num es-
critório, numa repartição pública.. Nenhuma
repartição pública aceita travesti. Aceita um homo-
sexaul de paletó e gravata, que .Ênge ser um homem,
mas na realidade é pior que a gente '
Para muitos, esta condição ainda se constitui numa altemativa ao roubo,
ao assalto, à marginalização definitiva

Não acho que o travesti tenha só esta condição


de viver de pista. Deveriam dar mais oportunida-
de. A sociedade não permite um travesti trabctlhar
bem. Ajuntar o dinheiro e comprar o que quero de peito. Acham que aquilo é ridictllo. Nunca dão

:.:B
uma chance. Ai o travesti vai se tornando

de sonho.
=BUã=;g iRI mctis ntargirtctlizcido. Se ci gente quer um, quer mes-
mo, vai pra rua e traz aquele dinheiro. Não é assal-
to, porque assalto é qtlcindo você tá com uma arma
rla mão e diz me dá com a próprict mão, não é.Õ
Wamburga atribui como causa de sua prostituição uma sucessão de
tentativas em várias.outras profissões. Considera que o insucesso se deve a sua
identidade homossexual evidente e sua condição financeira precária. Na sua
percepção é esta a rota do seu travcstismo, da sua profissão atual:
Trabalhei de tratorista, de polidos de peças etétri-
ccis. Trabctlhei em.fabricas de vidro, trabalhei como
não subsiste sem uma demanda especiÊlca vendedor de ''Baía da Felicidade''. Trabalhei. em
hotel, trabalhei em restaurante. Fui dono de tema
pensão em Fortaleza, na rua Tristão Gonçalves, tra-
balhei em São Paulo e Alcigoas na Urina Triur\fo, e
na fábrica de mctterial elêtrico, na liAMME e na
Multividro, nci Sl!:MER(fZibrica dejogão). Nestes lu-
antecedem a p gares todos teve muita humilhação dos homens.

122 123
Eles queriam me elplarar. queriam me bater, uns mas quando acontece de parar carro. você pode se
me cercavam na porta dajàbrica(cl liAMME), que- dar muito bem. Depende dci bicha, é ctarol Qt&em vai
rendo me bater, outros não deixavam e eu ia sempre logo sujando, perde logo tocicts cis entradas. \o
me sctindo. Aquela vida socadci, aquela coisa. Ai,
Neste caso, a atividade prostitutiva , mesmo com. toda a sua discriminação
muito sacado, mt+ito pisado, resolvi vir pra Bacia,
social é uma escolha entre as que se apresentam como passívies de possibilitar
pra casa de uma bicha de Fortcilezci que tava moran-
maiores rendimentos para um homossexual pobre e já marginalizado social-
do ncl época ctqui no Pelourinho. Eu vendo aquelct mente por estas condição
jacilidcide com que elcts Irazicim dinheiro, falei: Vou
me põr um travesti. Jã as bichas me Pzeram um Wanburga tem uma.visão particular sobre a atividade que exerce. No seu
7
travesti, qtle sou ctté hoje. discurso exige quc a sociedade os reconheçam e que a tutela do Estado retire
a penalidade e conceda direitos como a qualquer outro trabalhador. Nos seus
Sua fala confimla a tese de Trevisan (1986) de que o contingente de
planos de regulamentação, a prostituição funcionaria da seguinte fomla:
travestis é fomlado de homossexuais discriminados, vindos geralmente das
camadas populares, ''são rapazes quc não encontram muitas opções diante da Fer o seu horário de chegar na clvertida. ter uma ave-
família e da sociedade para viverem sua homossexualidade''.s O relógio de nida adequada par cada travesti. ter o seu horário
ponto não rcgistra sua duvidosa identidade. Vão procurar uma atividade que de sair. ter o seu preço marcado. cada coisa que a
não exija carteira assinada, tem po dc experiência e prova aparente de virilidade: genteDzer terseu preço. Na arrecadação do dia, na
arrecadclção do mês, a gente vcti e deposita aquela
O travesti é uma armctdilha de ganhctr dinheiro tctxa do direito que a gente vcü ter. Eu, por exemplo,
maisJEicil, cotnojã expliquei antes. O homem não se
hoje. ganho 1000,00 cruzeiros. tiro daquele tanto e
sente em condições de trabalhar. são homossel, é
dou de lcua. pago meus direitos, pago INPS. No$rtal
a queda coisa todct vcü ser travesti pra ganhar dinhei- do mês ci gente pode ter um premio, ter tlm pagamen-
ro. Pela sobrevivência, porque se ele jor homos-
sel, cijerninado. e não souber a leitura ninguém to, prc! qtlando adoecer ter tlm ]NPS, um seguro de
vida. ' '
quer ele trabalhclndo. Ninguém quer que ele faça
nada: se ele .ficar no meio da rua ele vcü ser um E relevante considerar que, curiosamente, paralelo ao m ito da prostituição
peregrino ot{ vcti se tornar um marginal, um assal- de travesti scr dc luxo e, apesar deste aflmlar que ganha muito dinheiro,
tante. tra$ccirtte.uttla coisa assim. O travesti torna- continua morando cm péssimas condições, cm quartos infcctos e sombrios, em
se um proflssioncil do saco. O travesti não é um condições sanitárias precárias, scm assistência médica, etc. O que se pode
cissciltcinte, não é marginal. não é um pelegrirto. Ele desconfiar desde já é que, sc a prostituição de travesti é rentável, não o é para
é um prol\ssioncll do scxov este. O travesti pode scr um artigo de luxo, porém sua vida, scm dúvida, não
é luxuosa.
Se a prostituição significa um apanágio da homossexualidade, não é na
rua, na avenida, que esta sc realiza enquanto desço para o travesti. O grande
prazer com o cliente é o de ganhar o seu dinheiro. A prostituição do travesti, o
Práticas e Preços
erotismo ali mercado é, pois, uma atividade que tem crescido em função da Os travestis do Pclõ que fazcm fro//o/r usam a abordagem direta para
retração do mercado de traballlo e dos baixos salários: acertar o programa com o cliente. Não deixa de existir. entretanto. a iniciativa
Faço pista pague se gctnha mais do que em qual- de abordagem por parte deste. O diálogo é curto e objetivo.: ''O que faz?
Quanto? Onde'?'' O quc interessa é o tipo de progrma, o preço e o local. Este é
quer outro emprego pro$ssioncil. Eu era ajudante
de escritório lá na minha terra, não dctva prajazer o proposito do diálogo e do estabelecimento do acordo sem o qual não se realiza
o erotismo entre um corpo prostituído e o corpo que paga.
a barriga. Na pistct é arriscctdo, é aventura,

124 125
Nas ruas específicas de prostituição dc travestis são oferecidos aos clien- liquidação dos estabelecimentos comerciais
tes em tràisito diversas modalidades de exercícios eróticos e serviços sexuais.
Mott (1982) observou que, quando o cliente demanda ser sodomizado
O copo que paga, por sua vez, tcm suas demandas e pulsões para serem pelo travesti, ou aplicar-lhe fêlação (o que os travestis dizem ser usual), o
aplacadas com o dinheiro.
programa dobra dc preço. Acreditam os travestis que atender esta demanda,
A prostituição dos travestis encontra-se submetida a um con)unto de leis requer maior cs6orço físico e uma capacidade ampliada de ercção pam realizar
de mercado, baseadas num consenso às vezes buscado em outras praças fora vamos programas numa mesma noite.
do Estado, que nomeia o tipo de prática, seu conteúdo e preço, de acordo com Quando sc inverteila as rcprcsentações ideológicas das identidades sexuais
o tipo do prostituto e a capacidade dc compra do cliente.
durante o programa, quando o cliente quer scr pcnetràdi) ão invés de penetrar,
Os travestis do Pelourinho, nos seus relatos, dizem que na atividade é motivo de renegociação económica de todo o acordo erótico Himlado ante-
prostitutiva fazem qualquer tipo dc prática sexual. "Ahl agente faz tantacoisa: riomlentc ou então é motivo dc atrito. A inversão da inversão é o imprevisível
chupa, dá a bunda,come. A gente come a bunda dos homens, eles comem a
gente, tocam punhcta na gente. Eles chupam a gente, a gente chupa eles''.i2
A quebra do acordo existe quando o cliente demanda outras práticas e se
recusa a negociar novo preço ou quando o travesti combina um preço e, depois
As práticas críticas cxc rodas pc los travestis durante o programa possuem de realizado o programa, pede um outro bem acima da tabela, usando como
várias denominações e dcfiniçõcs; assim, a ''chupctinha'' e a ''chupadinha' amua o escândalo para intimidar o cliente. Ou ainda quando o cliente não
consiste cm o travesti fazer sexo oral com o cliente; ''69" é a mesma prática, cumpre o trato de deixa-lo no scu ponto de origem. Todas estas situações são
mas o cliente fazendo sexo oral com o travesti; a ''punhetinha" é a prática em os grançles motivos de violência, crimes e agressões de parte a parte na
quc o tra\csti se obriga a masturbar o cliente; "bundinha'' é a prática de se prostituição dos travestis
deixar sodomizar pelo cliente; finalmente. há o ''programa completo'', ''saca-
Segundo Índia, a quebra do acordo por parte do cliente é tão frequente
nagem completa'' ou "troca-troca", no qual o travesti atende inteimmente a
quiulto por parte do travesti. Quando o cliente não cumpre o acordo, os travestis
demutda do cliente: ''a sacanagcm completa é o mais caro e costuma ir pro põem em ação uma operação denominada retetê
motel; lá a gente faz o que o homem topar. Se ele quiser que a gente coma ele,
a gente come. Sc ele quiser comer a gente, a gente deixa.Pra ganhar meu ltetetê é qtlando você erltrct ritlm carro e pergunta.
dinllciro eu faço tudo".'' Qtlcil é o seu preço''. eu digo CrS 1500,00. Você
entra no carro por aqttete preço. Quando acaba. que
O dinheiro é o indutor do ''prazer": maior preço, maior volúpia que digo: Não meu calor você erltendel{ mal, eujalei Cr$
disfarça uma polimorfia erótica ausente e aülmia o asilo do prazer avaliado 7500.00, você se/re de cltldiçãol Ai a gente .faz um
numa quantia de dinheiro. As práticas distribuídas ao longo do corpo, têm sua bcibcido. joga um enxerto em cima, enrola ele e ele
tabela e atendem a uma variação de mercado.
tem qtle dá. ]'em homem qtle não gosta de se ver
Mott ( 1982) identificou uma tabela de preços e práticas oferecidos pelos envolvido com travesti. Mas é milita arriscado, por-
travestis prostitutos da cidade, na qual a relação custava de Cr$ 500,00 a Cr$ que hoje é o dia rlosso, cimcwlhã pode ser o dele.t4
1000,00. Sodomização scm indumentária de Cr$ 1000,00 a Cr$ 2000,00, com
Para os travestis do Pelourinho o cliente sabe que quem está na avenida
indulncntária o dobro desta quantia e o ''serviço completo" (passar a noite no
é um homem travestido e não uma mulher, por isso não aceitam o ''engano''
motel) variava de Cr$ 3000,00 a Cr$ 5000,00.
do cliente: ''Eles sabem que não somos mulher, quando chegam no carro que
Nas observações dc campo e nas entrevistas com os travestis observou-se descobrem quc somos travestis fazem cara de surpresa: 'Ahl pensei que fosse
que , no ano de 1 983, uma ''chupctinha'' era o programa mais barato e custava uma mulherl ' Mas o pau não baixa, tá lá durmo pra meter na gente. Por isto que
Cr$ 5000,00. Depois dc determinada hora da noite, quando a procura é escassa, não tcm esta, tcm que pagar o preço combinado".is
as práticas oferecidas têm seus preços rebaixadas, num expediente por eles Para cada região de prostituição existem variadas tabelas e diversos tipos
denominado ''sexo popular'' ou "varelão'', que guarda semelhança com a
de acordos e seus ronapimentos. Wamburga assim negocia seu programa:

126 127
Pra jazer uma chttpetinha é CrS 3000,00. Por um conhecimento acerca da indumentâia feminina, maquiagem, atuação
menos eu digo: Ah beml não há condições, não gestual, etc. Todos estes elementos compõem o custo da produção do corpo do
benzinho. Acha que vou perder tempo pra ganhar travesti. Entre estes, os custos de alteração física talvez sela o mais caro. Para
menos de CrS 3000.00 com você? Outro cclrro pode o travesti o quc está cm jogo é o corpo e sua representação de mulher.
nte levctr pro motel, me dar dois mil, mit e quinhen- No auge do sucesso da sua imagem de mulher, o travesti representa e
tos. E eil tou aqui pra gctrthar mais. Não bem, tchatt, expressa um custo do aprimoranento corporal que precisa ser recuperado, sela
pegue outra mais na lfrente, você pode encontrar na pista ou no palco. O corpo aparece então como um recurso negociável a um
ltnla mais bGFQtiHhQ.'ü
preço que cubra, pelo menos, este custo. Confomle Índia, ''se a gente não tem
Como já foi visto o preço do programa é uma medida definida pela seio, não tcm patinho, não atrai o homem na rua''.' '
composição e estado geral do prostituto, principalmente da condição e tipo Pode-se inferir daí quc as exigências do mercado, são fatores que amuam
físico dc certas regiões do corpo tais como pénis e nádegas, pelas práticas na modelagem do corpo do travesti. Nesta lógica, este tem seu corpo adequado
eróticas dcmandadas pelo cliente c sua capacidade de compra, pelo tempo de ao gosto do c]icntc através do mecanismo de discip]ina corporal, que propor-
duração e o local da atividadc. E, mais ainda, o preço é uma variável que oscila ciona uma sexualidade política e economicamente conservadora. E o corpo
em função da posição do corpo prostituído durante o programa, principalmente dócil e útil das ruas de prostituição, tal qual o da rotina fabril . Um corpo produto
no que se refere às construções ideológicas oponentes da atividade e da mercadoria
passividade
Apesar de, entre os vinte travestis entrevistados, não se encontrar nenhum
A
maioria dos travestis do Pela, segundo os infomlantes, realiza o
com corpo transfomlado pelo silicone, a técnica é motivo de grande polémica
programa no carro do cliente, o quc viabiliza um número maior de programas Grande parte deles tcm como maior desCI o se submeter a este processo. Alguns
e um maior lucro num menor tempo. economizam recursos para, no futuro, se submctercm aos implantes de silicone
Na prostituição o tempo é uma variável importante: ''não se perde tempo, realizados no sul do país por indivíduos que não possuem qualificação médica
é jogo rápido''. Na pista gozar é também um jogo rápido. Gozando o cliente e ncm controle sobre a qualidade do produto.
ou gozando o corpo prostituído, para o cliente acabou o programa. Morreu o Para Valesca, o silicose, além de seu valor estético é um investimento:
desejo. .o silicone é muito bonito, sabe? Já chegou um tempo de ter ficado com muita
Quando o programa não acontece no carro do cliente, vão para motéis e vontade de botar um silicone, porque siliconc dá muito dinheiro, influi muito
hotéis das imediações da rua ou avenida onde ''fazem ponto". Este desloca- no homem, elc olha assim aquele peito enomle, ele para. Eles saem com muitas
mento implica num preço maior. Se o acordo ocorreu nas avenidas da orla e se amigas minhas por causa disto''.'*
deslocam para a zona de motéis do Aeroporto e lupuã, o preço praticamente Antonieta faz a mesma relação entre a atração do cliente e o corpo
dobra e, em geral o cliente tem que deixar o travesti no ponto original. siliconado: "E unia operação quc já influi cm alguma coisa. As bichas ficam
O local do programa, não é como se imagina, palco de espetáculos com uns pcitõcsl Tcm muitas bichas devassas, que põem os peitos pra rua. E
picantes, mas um laboratório, onde a principal operação realizada é transfomlar aí já influi no freguês, na rua o silicone é isto''.i'
o corpo do cliente num vazio dc pulmões eróticas. O valor do silicone é dado pelo mercado e significa a indissociabilidade
do corpo prostituído e as demandas do cliente. Wamburga define o significado
Os custos da transformação do silicose para a atividade prostitutiva do travesti
Pelo que se pede depreender até aqui o corpo de um travesti, quando se Um meio de ganhar dirlheiro na pista. Fica mais bo-
encontra mais próximo da imagem idealizada da mulher, tcm embutido nele nita, mais .jàcil. E uma jerrmental Pra ganhar di-
anos de traba]ho c de uma sistemática intervenção corporal. Esta inclui desde nheiro na nia, não precisa faca. navctlha, revólver.
os processos dc transâomlação física da anatomia do corpo até o domínio de Tem que ter urna coisabonita, uma atrcição. Ganhct

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dinheiro com perttcão bonito. uma banhada rio ros- alteração corporal
to e nos quadris. Urtl bottt silicorte, tlm bom quadril, Wamburga não põc silicone parando comprometer a volta a sua condição
urllc] boa cintura, é isto que afaz a gente ganhar de homem, apesar de reconhecer scu valor no mercado: "Ciosto de ser travesti
dinheiro nci rua. Unto boca simpatia. uma boca educa-
ao natural porque o dia cm quc quiser desviar do travesti, a qualquer momento
ção. utna sirtlplesdês. urtl negócio natural, alma coisa arrumar um serviço, já não vai ser aquele problema: é mcu silicone e meu
ctlrctcrue. ltu cacho quc o silicose é uma armadilha. tralsplantcl c mais o mcu treêal ''."
tim nteio tttclhor de se gcilllacir dinheiro. Os homens
olhcitlt. atrai. I'ode-se cobrar tlm pouquinho mais. Grande parte dos travestis entrevistados altera seu corpo através da
Porque a.jlrial tà com uma coisa que custot{ um pou- ingestão sistemática de homlõnios femininos. E um método imcompamvel-
co mais em cimct do corpo. mcntc mais barato que o siliconc c reversível. Porém dcsorganiza o metabo-
lismo do corpo, modificando inclusive a capacidade deereção do pênis. Eles
Antonicta define o processo dc aplicar o silicone da seguinte maneira: sabem disso. "E que o hormõnio tcm um problema quando você não se dá bem,
E itm corte e uma injeção. No peito é um corte dá dor de cabeça, cnjâo. Se começar a insistir é pior, pode dar um ataque de
em baixo. C.ortct abaixo do peito. tira as glândulcts, coração e morrer. Então, pra evita dc ter um problema comigo, eu parei. Tem
limpcl tudo lã por dentro. Ai vem com aquela pasta, pessoas que não se dá bcm, sai tumor, caroço''."
tulha espécie cle geleia, coloca riaqttele buraco, .fhz Segundo Antonieta, o homlânio também pode ser inyctado no peito em
a costttrct e o peito fica grande. Muitas vezes o 6omla dc coquetcl, o quc proporciona resultados mais eficientes
peito rejeita, cii tem aquele problemct. tem que ti-
rar aquele silicorte. colocar outro. também não é O coquetel de hormânios também pode ser injetci-
ultl negócio seguro não, nem toda pessoa que vai do pelo bico do peito: é mais gostoso. a gente
agllentar aquele sil.icorie. Ele.rejeita, ele qtler estou- J\ca mais boriitci. E quando ci gente está bem hormo-
rar. não quer sctrar. não tire. rtizado, os peitos dct gente estão bem grandes de
hormõnios, o tesão da gente não é no pinto da gente.
Quando sc trata da modelagem do busto, o silicone liquido é injetável E rlo peito. E quando o hortlem vem com ci mão
diretancnte no bico do seio, ou dirctanente na região do corpo a ser alterada. acctriciando o peito da gettte, a gente sente aquele
Este tipo dc proccso tcm scu uso mais alargado entre os travestis e, evidente negócio gostoso. Então quando scü o harmónio do
mente, é mais barato, por scr colocados por pessoas não capacitadas. Isto resulta peito da gente, a gente sente lesão no pinto. E qtlart-
muitas vezes cm lesões físicas, tumores cancerígenos e, em muitos casos, em do ci gente tá com horrnõrtio a tesão do pinto sobe
morte. Segundo pesquisas cm arquivos c jamais e declaração de infomlantes, pro peito. A ia gente se sente omo sejosse tina moça.
o siliconc liquido é negociado cna pequenas doses e na clandestinamente. Um sente aqtlele negócio gostoso como se fosse uma
travesti infomla quc ''Para fazer o peito é Cr$ 190.000,00, o rosto CrS bola delbgo 16
300.000,00 e o quadril Cr$ 200.000,00".22
Pode-se concluir quc a inacção de homlõnios compromete a ereção, fator
Embora não desconhecendo os riscos de tal intervenção e sabendo que o
hndanental dc marcado da prostituição masculina. Uma vez que é unânime a
seu custo representa uma quantia razoável, muitos dos travestis de Salvador afirmação entre os travestis quando cliente que demanda ser sodomizado.
manifestou desejo de realiza-la c alguns têm planos concretos: ''A gente com Nestas condições a capacidade dc ercção e de daculação do corpo prostituído
silicone gallla mais dinheiro na rua porque o peito chama mais atenção. Quero tem um alto valor. Por outro lado, ainda que não use hormõnios encontra um
botar igual ao de Fará de Belém. Vou scr Carlctc Peitão''.23 limite claro na não possibilidade da repetição infinita da ereção no caso do
Há no entanto, uma minoria que não deseja realiza-la; uns porque prefe- travesti homlonizado, esta possibilidade é menor ainda. É por Isso que a
rem a reversibilidade dos hormõnios, outros porque ainda definem-se como ejaculação do travesti, o seu exercício erótico dito atino, numa noite de
transfomlistas, não usando para fomlar sua pcr6omaance de mulher nenhuma trabalho, é negociado en} doses homcopáticas. É um esforço economizado e só

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dispcndido na certeza de obter um bom preço. Segundo Índia, a demanda invertida do cliente é o imprevisível, e a
Em suma, inverte-sc a construção ideológica que define a atividade e possibilidade de aumentar o preço do programa. THvez por isso a prostituição
de rua do travesti sda mais rentável que a das mulheres: "Numa parte ganha
altera-se os tcmlos do acordo que previa um certo dispêndio do corpo do
travesti. Ou, dito de outra fomla, a atividade quando demandada pelo cliente melhor, porque às vezes pinta uma coisa diferente na hora H e a gente quer
desordena dc imediato a construção de identidades estabelecidas no complexo mais dinheiro e tem que dar MCSHO''.JU
prostitutivo e é motivo para novos acertos relativos ao preço do progmma. MacRae ( 1 985), ao sc referir à prostituição homossexual, confirma o uso
Paguldo é possível qualquer inversão, ''se querem pau, dou pau, se querem racional da capacidade de ereção e o custo da inversão dos papéis. AÍ os papéis
bunda dou bunda. Eles pagam. Mas exploro mesmo quando eles sujam meu se alteram de acordo com o preço e a capacidade de pagar do cliente. Este
pau; aí vai pagar em dobro''.' ' movimento, diz o autor, é bastante característico na prostituição do michê,
Para Antonieta, sodomizar o cliente é o serviço mais pesado, pois se rapaz de aparência viril que frequentemente ''adota o comportamento 'passivo
em troca de algum dinheiro a mais''.''
despende mais força física e mobiliza um recurso mais escasso, por isso
mesmo, mais caro: A procura invertida do cliente , a atualização do mito da mulher fãica
Outrcts vezes, eles gostam de alterar. querem que cessa com a operação transexual. E o fim da sedução pela estranheza das
imagens. Castração e prostituição masculina não combinam ou, até mesmo, se
a gente coma eles. Este ai jã sai mais caro. As
excluem . Para Sintone, a operação tiansexual não atende à demanda do cliente,
vezes, a gerlte sai, pensando que é um homem, ai a
pois este, quando vai para a rua, está procurando algo diferente: ''De qualquer
gente jã pega uma coisa mais pesciclci em cima dci
cclma. Aia gente vai querer o dobro, você não acha? fomtmmma não quero ter vagina. O homem quando sai com o tmvesti, ele não
sai à procura dc mulher. Ele sai à procura de uma coisa diferente. Saem a fím
Pensa que está com um homem, quando vai ver está
do pera, para satisfazer eles também''."
com uma bicha, e aijazemos o serviço pior."
Walderléia não só administra sua capacidade de ereção, como também a Para Antonieta e grande parte dos travestis entrevistados, a operação
visão especulativa de seu gozo. Segundo ela: tralsexual significa uma identidade fHsa de mulher que, além de ser inútil na
pista, compromete o prazer, podendo levar à loucura:
Muitos homens querem que eu saia com eles e goze.
Eu não vou gozar com qualquer homem na rua. Eu 'lkm muitos travestis e transexuciis que botam buce-
ta mas eu não me iluda praJazer, porque eu pre.Pro
gozo com o homem com qtle resido, que et{ gosto e
sinto prazer com ele. Na rua não, é tlm negócio ser como ett sou. Daqui, se muito jor. et{ prefiro
assim: a vidct da gente é tlm palco. Na rua a gente lã dar umas bombadcts de siticone. Mas esse negócio
jazendo tlm papel. 'l'ájazendo uma cena, umajlma- de botar bucetct pra .Rcar maluca, não quero saber.
gem. Não éjazer severamente e acontecer não. Mui- Fica complexada dique sou mulherl Termina Pcari-
tos se incomodam quando eu não gozo, não querem
do lelé dci cuco. Afim que acontece com os que
botctm buceta. 'Fem mtlitos que se inltuem. Bcttalham
pagar. mas eu não vou gozar, sou hormortizcldo, se
o aria inteiro pra Jtizer operação de não sei quantos
vou gozclr com todos vou enfraquecer. Dá uma mo-
lezct. Já tenho hofmõnio há quatro altos. Então se eu
milhões. Eu que não vou Jazer isto. Se é de botar
jor gozar com os hometts ria rua. daqui tlris dias tot{ buceta, vou guarar o meu dinheiro pra na hora que
estiver na recaída, com o rosto cheio de pé-de-gali-
sem peito rterthum. tira o efeito do harmónio is
nha e o cü de rugas, voujazer uma plástica prá tirar
Se é verdade que a maioria dos clientes deseja ser sodomizada e que a cis pregas do cú e os pés-de-galinha da cara. Quem
capacidade de ercção possui um alto valor de mercado, o serviço do corpo bota buceta, não goza. SÓ tem prazer de ter um
prostituído siliconizado detém mai s valor de troca do que o corpo hormonizado. buraqtlinho pra jazer cosquinhci. Não sente sensa-

132 133
ção nem Fiada. Prefiro comer ci{ que é mais gosto. O cliente
XO.33
;Elc é casado e eu sou o travesti da vida dele
Como foi assinalado antcrionnente, na prostituição o estado geral do
corpo é uma variável importante para compor o preço e o tipo do progmma. O Deve estar claro para o leitor que a clientela da prostituição dos travestis
constitui-se essencialmente dc homens. E raro se encontrar nas ruas a mulher
que se exige é um corpo aparentemente são ecom força física suficiente para
acionar o mecanismo do programa. enquanto cliente deste tipo de negócio Quando aparece para solicitar um
programa, é considerado o máximo do exotismo e o cúmulo da inversão. Nunca
De acordo com os travestis entrevistados a vida útil do corpo tem a ver está sozinha, em geral é acompanhada de um homem, e compõe a demanda
com a idade, em quc o travesti iniciou a atividade. Em média, a vida útil do deste por uma "suruba", tipo dc programa que, pelo scu alto grau de inversão
corpo do travesti na prostituição vai dos dczcsscis aos trinta anos.34 Depois e raridade, é considerado um dos mais caros: ''Suruba, bem, o programa mais
desta faixa vcm a ''recaída'' ou a velhice precoce provocada por diversos caro, eu nunca fiz suruba. Mas se cu for fazer um suruba agora mesmo, por
fatores, tais como: os hormõnios, o silicone, as cletrólises sucessivas,etc. Além menos dc 10.000 cruzeiros eu não faço".3Ó
disto, tcm o dcsgute do corpo, quc se realiza de acordo com o tipo de
prostituição exercida. Na baixa prostituição, tanto de travestis quanto de Segundo Wandcrléia, este tipo de ''programa'' que envolve mulher nem
mulheres, é maior a exposição a doenças em consequência das péssimas sempre é aceito pelos travestis e, quando isto acontece, é feito sob um acordo
condições de higiene. Ou ainda, a própria rotatividade da prostituição pobre cm que são estabelecidos limites claros a participação dela. Segundo alguns
impõe ao prostituto um uso abusivo do corpo, tal qual a força de trabalho na travestis estas mulheres são também prostitutas
super exploração do capital Este negócio que tem rtutther no meio não sinto rea-
O desgaste do corpo é a denúncia de uma velhice muitas vezes precoce, ção nenhuma. Fica um negócio neutro pra mim.
num tipo dc atividadc onde ser jovem e atraente possui um grande valor de Se jor dois homens eu vou, porque ai vai ser ou-
mercado, a recaída corporal constitui uin verdadeiro pavor. Para Valesca, seu tra coisa. Mas tendo mulher no meio. jã dão topo o
grande pavor é a velhice: progrclma. E se topo, já é explicattdo o qtlejaço e
o que eu não topo, pra não chegar lá e quererem
E uma coisa que não gosto riem de pensar. Tenho me Colocar alma racha na CQFQ.s '
metia de pensar este tipo de coisa. Acho que não é
somente eu, são todos. Hoje tenho dezenove anos, Não sc negocia a imagem feminina inventada com outra mulher. Este
até chegar aos trinta árias. ctinda dá pra ganhctr talvez seja o custo mais alto da inversão no complexo prostitutivo dos travestis,
dinheiro. Depois, eil sei que não vou conseguir. Ai é quem sabe maior quc o da penetração do travesti num cliente do sexo mascu-
lino
cie onde vem a lotlcura, ir prct pista e não consegtlir
sair com carro nenhum, já pararem para outra mais O homem, cliente cm potencial dos diversos tipos de prostituição, é aqui
moderna do que ett. poque eles gostant de belezct, de o personagem misterioso. Segundo os entrevistados e as observações diretas,
presença. Sei que depois vou ter ttm trauma. Por os clientes aparentam ser originários da classe média, vão consumir o erotismo
isso, qttctndo claegar a esta idade volt ter qtle procu- motorizados, e têm poder aquisitivo para pagar a diária do quarto de um hotel
rar um trabalho. E por isso mesmo que nem'laço ou motel.
questão de tentar horrnõrüos; mesmo que não tivesse
problemas ei{ não tomaria hormõnios por causa dis- No imaginário social, a lei e a própria ciência, quando questionam a
to mesmo. Quando tiver de largar, largo numa boa, prostituição e llle atribui o estigma do ''mal necessário'', o corpo prostituído é
e tenho competênclci de arrumar um emprego e não o objcto a scr explicado, punido ou estigmatizado. A prostituição seria então
lenho peguiça de trcibcilhar.SS uma expressão clandestina da virilidade do homem. O usuário, o cliente, é um
'cidadão acima de qualquer suspeita" e, em qualquer circunstância cumpre

134 135
sua missão cultural enquanto portador do fdo. Ainda que, na prostituição de polaridade na realização do programa é o motivo maior do conflito latente
travestis, o programa se realize na verdade entre dois homens, o cliente nunca existente entre as partes. Assim, para Dyana Gil, ''quem come e quem dá
é visto como homossexual, "bicha'' ou ''veado''. E mesmo que ocorra a quebra
depende do tipo de cliente''.41 O corpo que paga tem papel fiindamental.
do acordo no desempenho dos papéis sexuais durante o programa, não se
duvida da virilidade do cliente. O cliente é o pcisonagcm repnscntante de uma sociedade da qual o travesti
é alojado cnqualto "nomlalidadc". Pam os travestis do Pela, ele é sempn um
Nos estudos sobre a prostituição, feminina e masculina, a problemática homem quc encima todos os valores da figura do macho, portador de fão e
em tomo do cliente é menos elaborada e raros são os seus depoimentos. Neste
organizador da família e da moral . Constatação também deita por Mott ( 1982), que
estudo, por exemplo, a imagem e identidade do cliente foram reconstruídas dc6ine o tipo de cl lente do tmvesi como ".. .um tipo executivo, casado, que voltando
tendo como centro as categorias teóricas de estudiosos da prostituição e da pam suas casas, ou saindo com este tipo de objetivo explícito, convida esses
imagem que os travestis têm dele. O cliente é um tipo de difícil abordagem, rapazes de peito pam íàzerem un programa no carro ou no motel".42
dissimulado, sempre travcstido de transeunte. E aquele senhor que passa
lenmnente, avaliando o programa da noite. Na pista então, o clandestino é o Numa tentativa de, atravé do cliente, devolver a sociedade o estigma e as
cliente
ie ii mazelas impingidas a seu corpo e à sua atividade, os travestis pintam o cliente
como individos que, tal como eles, possuem vida dupla. São ''homens de
Pode-se afimlar, sem exagero, que na maioria das grandes cidades brasi- fallília" que, clandestinamente, junto com o travesti, acionam, na sombra, o
leiras existem locais determinados, já frequentados por um tipo específico de
complexo prostitucional. Neste sentido, tanto o corpo cliente como o corpo
clientela da prostituição travestida. Será a prostituição do travesti um álibi para venal terão que ser tratados com a mesma equivalência pois compõem o núcleo
a homossexualidade do cliente? Como isto pode acontecer se, na pista, não há fundamental da atividade prostitutiva
enganos e o travesti denuncia um sexo diferente do representado? "Tudo que
faço é atender suas fantasias. Os clientes quando me procuram, já sabem que Alguns travestis dizem que sua clientela é composta de homens bem
não sou mulher, sou um argumento especial: sucedidos economicamente. Há toda um fantasia em relação a um mecenas, tal
qual os sonhos das mocinhas com o príncipe encantado. O cliente idealizado é
Confomle declaração de algumas prostitutas moradoras do Pela, ''os rico, elegante e generoso. É desta fomla que Antonieta define seus clientes:
hábitos da clientela vêm mudando muito e os travestis vêm ganhando cada vez ''engenheiros, pessoas que trabalham em departamentos de bancos, donos de
mais a preferência''." algumas lojas, homens que moram na Pituba, muitos homens finos. Muitos
O que o corpo do cliente busca na prostituição de travestis? Não busca o travestis têm mais estrelas do que muitas mulheres. Tem mulher que não pega
corpo da mulher; talvez uma equivalência entre os sinais do seu próprio corpo homem bem, como travesti pega''.43
e a imagem da mulher que não existe. Daquela que possui um falo simbólico Na pista inexiste a distinção de clientes por fixa etária, cor, idiossincra-
Porém, o pênis do travesti não é de plástico ou siliconizado, apesar do seu sias sexuais. Walcsca topa tudo:
aspecto simbólico, ele é real e exerce inOuência nas características intimas do
mercado prostitutivo. .Jovens e coroas. Tem até velho Baga, que não
goza mais e quer sair com ci gente, só por sadismo
Os travestis representam um personagem particular de uma história mesmo. ou então por ctlriosidade. 'l'em homens que
escrita pelo cliente . Cada atributo do seu corpo é acionado atender a demanda saem com a gente, às vezes nem queremjazer sexo,
do cliente. "olha eu acho uma boa ter busto, apesar de que todos sabem que é é só por curiosidade de ver aquela beleza, as vezes
de silicone, tudo o que acontece com o travesti, ele (o cliente) sobe, e que a mais bonitos do qtle quctlqtter mulher. Maridamjazer
xoxota de operação não é igual à da mulher. Ninguém é otário"." ttm programinha rápido e mandam embora, pa-
A prostituição de rua dos travestis não é polêinica somente pelo tipo da gam direitinho. Tem homem que não gosta que a
atividade, mas também pelo tipo de cliente. E ele quem define o programa e as gente fale que não ê mulher. Fazem o programa e a
negociações entre o que supostamente sela atividade ou passividade. Esta gente não pode falar que é bicha. E ai voujazertdo
meus programinhas e gctnhando meu dinheiro.44

136 137
Verá dc6inc seus clicntcs como homens que gostam de algo diferente em
matéria dc sexo. Dcselíun um prazer quc teoricamente não se realizaria no
interior do acordo erótico genital. "A maioria são homens que a gente pega pra
fazer sacalagcm . São honlcns quc gostiun de tralsas. Gostam de bicha, gostam
de putaria, gostam dc sacalagcm; gostam dc procurar na rua aquilo que não
têm em casa''."
Para Antonicta, o homem da rua é o cliente e o de casa é o marido, com
Segundo alguns travestis, é o cliente quem toma a iniciativa da aborda- quem recupera parte do seu prazer, gasto no mercado de trocas prazerosas:
gem. Nomlalmcntc chega de carro e, antes dc mais nada, avalia o estado geral rua, eu transe coral homem e #Jço a vontade
do travesti e vai logo pcrguntaldo o scu preço e sua habilidade. A cobrança do dele por causa do dinheiro. Em casa. nào, eu traí.
acordo entre os papéis sexuais antes de se constittuir num acordo ideológico, :o totalmente diferente com meu marido. Faço quem.
constitui-se num acordo económico. ão de !er alma relação totalrnertte diferente da da
Como já foi assinalado antcriomlcntc, a inversão da inversão não só uci. Nct rua não vou ter prazer. SÓ vou scttislazer a
pressupõe um novo acordo em relação ao programa, como também perfila um ?ontcide dos homens.Não lrartso por artlor. trcirtso
detemlinado tipo de cliente. Como o mito do homem negociado neste tipo de )or causa do dinheiro. né) Dentro de casa transo
através do amor, clarol4X
prostuição é aquele ativo, quc não quer scr penetrado, o cliente que demanda
a inversão, além de pagar pelo programa um preço além da tabela, constitui-se
em objcto de desprezo dos travestis. A ''maricona", como é denominado este
tipo dc cliente, é também scu principal confrontante. E com ele que ocorre a
maioria das brigas , agressões. E através deles que o travesti problematiza o
restante da sociedade. E sobre o cliente que devolvem menosprezo e o rechaço
social quc a sociedade lhes reserva.
Para muitos, as ''mariconas'' utilizam a prostituição de travestis para
assunlircm sua homossexualidade. São ''bichas machudas'' e ''enrustidas''.
prcconccituosas, não assumem gostar dc homem, são medrosas, possuem pavor
de escândalos, condição explorada pelo travesti na hora de aumentar exagera-
damente o preço do programa. ''O preconceito deles é entrar no motel com
outro homem. Eles cntraldo com o travesti, o porteiro, aquelas pessoas que
vêem, pcnsan quc a bicha é quem está vestida de mulher. No fiando, no fundo,
eles são mais veados quc HÓS''.'o
A "maricona'' é a ''decepção'' do travesti na pista. E o tipo de cliente que
paga para abdicar de sua virilidade, para retirar do seu erotismo o caráter ativo
atribuído ao seu gozo. Neste sentido, através de uma imagem de mulher, recusa
o atributo cultural do falo scm romper com suas instituições no cotidiano.
O perfil da ''maricona'' se presta ainda para desenhar a imagem de um
outro tipo dc personagem, quc é o seu contraponto, no universo da prostituição
dos travestis. E o homem de ''casa'', tido pelo travesti como o homem com que
exercem o seu o erotismo com amor, c por prazer, embora muitas vezes pague
por isto. O homem dc casa é a antítese da ''maricona". ''Tenho um rapaz que

138
139
22 Entrevista com Wan(brléia
recusa de ser sodomizado: "Ahl mas acho que ele não dá pra mim. Ele deve 23 Entrcvisui com Carlcte
dar pra outro cara que dê pinta de homem. Devo ser muito feminina, que eles 24 Entrevista com Wamburga
não querem dar pra mim''.'' 25 EnkcvisLa com Valera
Fry (1982) na análise que faz sobre as identidades sexuais no Brasil, 26 Entrevista com Antonicta
identifica nas ruas dc prostituição uma equivalência entre o michê e o tmvesti 27 Entrevista com Ltuna
Se este é o disfarce da imagem da mulher, o primeiro é a caricatura do mais 28 Entrevista com Antonicta
másculo dos homens. 29 Entrevista com Wandérleia
Como o michê recusa sua homossexual idade encoberta com o argumento 30 Entrevista com Índia
técnico de que ''come e dá'' por dinheiro, para provar sua virilidade cultiva o 31 MacRae, Edward. Tese de Doutoramento São Paulo, USP, 1 985, p 188
corpo modelando-o pelo padrão atlético, fazendo o tipo agressivo e violento 32 Entrevista com Simone.
Os travestis, assim como outras categorias de homossexuais, apesar de deseja- 33 Entrevista com Antonicta
rem o michê como tipo ideal, o criticam com desprezo a sua recusa de não 34 Entrevista com Valcwa
assumirem a sua evidente llomossexualidade. Para eles o michê, o bote de hoje 35 Enu'cvisU com Wümburga
é a ''bofoncca'' de analhã. 36 Enhcvibta com Wan(brléia
37 Entrevista com Wundcrlca
NOTAS 38 Jornal A Tarde, dezembro dc 1982
1 . Entrevista com Mirinlta. 39 Euhcvish com prostituta anõninta
2. Entrevista com Valcsca. 40 Entrevista com Dyana Gil
3. Entrevista com Mera. 41 Dyana Gil
4. Entrevista com Dyana Gil. 42 h40TT, L.B-, op. cit
5. Entrevista com Marinha. 43 llntrcvista com Antonicta
6. Enb-avista con\ Índia 44 Entrevista com Valcska
7. Entrevista com Wanlburga. 45 Entrevista com \hra
8. TREVISAN, J.S.. Devassos no paraíso São Paulo Max Limonad 1 986 46 Entrevista com Mera
9. Entrcvisu com Wamburga. 47 Entrevista com Antonicta
10. Entrevista com Simone. 48 Enhevista com AnLonicta
11. Entrevista com Wamburga. 49 Entrevista com \bra
12. Entrevista com Maninha. 50 Entrevista com Valcsça
1 3. Entrevista com Mera. SI Entrevista com Mera
14. Entrevista com Índia.
15. Entrevista com Cadete.
16. Entrevista com Wamburga
17. Entrevista com Índia
1 8. Entrevista com Valcsca
1 9. Entrevista com AutonieU
20. Entrevista com Wamburga
21 . Entrevista com Antonieta.

141
140
CAPITULO Vll
r

CONFRONTO EALIANÇAS
A prostituição de travestis como qualquer negócio obedece as determina-
ções de mercado que influenciam sobremaneira o caráter do programa amoro-
so, perfila um tipo de clientela e estabelece confrontos e alianças com os
agentes quc dircta ou indirctamente se relacionam com a atividade

O corpo a corpo com a lei e a ordem


A lógica policial concebe o travesti como um disfarce para "assalto a
homens desprevenidos'', tornando-os vulneráveis a violência policial de cos-
tumes. A prostituição não é proibida pelo Código Penal, muito menos o
travestismo, porém esta regulaçãojurídica positiva não tcm impedido a policia
a agir, inclusive dc 6omla arbitrária, na repressão do /xo//o/F ou prostituição de
rua. Esta prostituição pobre, vem sendo nos últimos quinze anos duramente
atingida pelo clima dc abuso legal rcinaltc no país. Nos estados do Sul, mais
cspccíficamcnte Rio e São Paulo, a violência desencadeada pela polícia teve
seu auge nos primórdios dos anos 80, período no qual registrou-se em toda a
imprensa os enfrentamcntos entre esta e os travestis que, amuados de ginetes,
navalhas, vidros cortados, ctc., viveram uma situação de verdadeira resistência
civil
Sc a repressão policial cultivou uma relação contraditória e já tradicional
com a prostituição pobre - reprime c ao mesmo tempo é conivente quando se
trata dc auferir galhos en] troca dc protcção c tratamentos diferenciados - com
a prostituição de travestis cm especial, este duplo comportamento chega a
exarccrbação. Da década de 70 até meados de 80 ela é reprimida por um aparato
policial requintado cm matéria dc viõlencia; coagindo com omissão e arbitra-
riedade cm relação às suas próprias leis. Os travestis se queixam que a maior
parte de seus ganhos Rica nas mãos da policia. A exploração, segundo eles, é
maior do que com a prostituição feminina. Para Shcila Vough, 23 anos, travesti
carioca, ''no Brasil, além dc sermos alvo prc6ercncial da polícia de jogos e
costumes, somos ainda obrigados a pagar-lhc para não sermos violentados''.i
O delegado Fleurl', em meados da década de 70, quando foi Secretário de
Scguralça dc São Paulo, dcu à prostituição dc travestis o mesmo tratamento

143
dispensado aos presos políticos da época. Comandou pessoalmente uma caça ruas sob a acusação de vadiagem, atentado ao pudor público (atividades ilícitas,
sistemática. Indiciou ''mais de dois mil travestis''2 e exigia que estes arranjas- segundo o Código Penal) ou quando denunciados por eventuais clientes, por
sem emprego, caso contrário obrigava-os a deixarem a cidade e, na reincidência crime de roubo. O delegado Mattos, em 1 980, admitiu à imprensa que a prisão
de prisão, autuava-os assim em flagrante de vadiagem".' de travestis, mesmo não sendo um ato ]ega], é uma ação preventiva

E no final da mesma década que São Paulo assiste à mais violenta Os travestis frequentemente denunciam que são presos sem o flagrante
investida de repressão policial aos travesti, prostitutas e andarilhos das noites delito, sem os direitos constitucionais, num total desconhecimento da sua
paulistas. A pretexto de ''limpar a cidade de vagabundos, anormais (também identidade enquanto cidadãos.
conhecidos por travestis), decaídos ou mundanas, marginais e desocupados o Se a sociedade naturalizou o travesti bem sucedido no mundo da fama, se
delegado Ricjlettc criou a ''Operação Rondão''4 que se notabilizou por requin- o reproduziu como fomla de atualização do mito andrógino, como produto
tes de crueldade, violência e arbitrariedade, denunciada na época pelos maiores cultural exótico, o mesmo não se pode dizer dos travestis que vivem de
veículos da imprensa. A operação foi realizada em nome da família e da moral prostituição. Para estes a sociedade reservou a violência didática.
paulistana. Nos bares do largo do Arouche, os investigadores entravam gritan-
do, de ancas em punho: "quem for veado pode ir entrando no camburão''.' Para os travestis do Pclõ a polícia é um dos principais responsáveis pelo
grau de marginalidade e estigmatização social que pesa sobre a maioria. Não
A repressão desencadeada pela policia nos anos 80 e 81 nesta cidade aceitam a tese ''disfarce'' para o assalto, apesar de afimtarem existir, entre eles
resultou num protesto politico onde as minorias sexuais organizadas (grupos ''ladrões e criminosos, como em qualquer outro grupo social . Cadete denuncia
gays, ücministas, etc.) aliados ao conjunto de bichas, travestis e prostitutas que a amtadilha destas construções fáceis:
circulam à noite no centro da cidade, em passeata, invadiram o largo do
Arouche reivindicando maior liberdade pam os perfomláticos da noite paulis- E preciso ci sociedade saber quem é o travesti na
tana
l rua. O trctvesti não é um ladrão, o travesti não é uma
assaltante. O travesti, mesmo se ele se veste de mu-
Em Cuiabá, no ano de 1983, os travetis fizeram uma passeata no centro lher, é por que ele quer ser o que ele qtler. o que tem
da cidade contra a violêcia policial . Segundo Maristela, travesti local, ''aumen- vontade. Ele asstlme. Porque mesmo dentro da poli-
ta assustadoramente o número de aios de violência contra os travestis em
cia e na alta sociedade o qtle mclis tem é bicha. SÓ
Cuiabá e na maioria dos casos os autores nunca são presos e nem punidos na que eles se mostram diferentes. Se mostram de ho-
fomla da lci''.'
mem, vestidos de paletó e gravata. Porque existe tra-
vesti? Por causa deles. Por causa da sociedade 9
No naesmo ano, em Belo Horizonte, registrou-se um conflito "envolven-
do 9 travcsts e 1 5 guamiçõcs da PM ''.7 Da escaramuça, quatro policiais saíram Ela denucia ainda a ambiguidade da polícia quando a obriga a manter
6cridos e três travestis presos relações sexuais sob coação. Tomam de graça aquilo que ela mesmo reprime
Não satisfeitos com a violência policial nos anos 80, se assistiu a uma quando o travesti põe a venda.
matança indiscriminadas dc travestis, com sadismo e crueldade. São crimes em Segundo infomlam os travestis, a polícia quando quer prender por vadia-
que a polícia quase nunca leva a cabo as investigações, imprimindo um estado gem ou vagabundagem, não importa muito o que este possua ou não documen-
de impunidade, onde o cliente, o ca6etão, o machão anta-gay, o michê, nunca tos. A carteira de trabalho assinada é o documento mais exigido pela polícia,
são suspeitos e a culpada é sempre a vítima. pois só esta livra os aventureiros da noite do código de vadiagem. Uma vez
Em Pcmambuco, Paloma, um travsti, é "morta e o suspeito é o filho de indiciado, o indivíduo tem trinta dias pam arranjar um emprego sob pena de
um empresário''.8 Na sequência de elucidação do crime mais três travestis ser pego numa segunda vez, e enquadrado numa reincidência, permitindo a lei
e o julgamento em prisão
foram assassinados em apenas seis dias.
Em Salvador, como em qualquer cidade brasileira, a polícia, mais espe- Wam burga acusa o inusitado da penalidade e seu casuísmo, num país onde
cificamente a dclegacia de Jogos e Costumes, reprime a prostituição pobre nas nos últimos vinte anos, o aumento dos índices de desemprego transfomlou-se

144 145
na principal explicação para a violência reinante nas grandes cidades. Exigir lado do cliente é a clássica alegação dc engano de pessoa ou de ter sido roubado
que unl homem travcstido de mulher, com suas formas físicas visivelmente durante o programa. Para os travestis estas denúncias são falsas,. pois, na
alteradas, scm qualificação profissional, tenha sua carteira assinada em trinta maioria das vezes, o quc ocorre é a quebra do acordo por parte daquele: se
dias, é, no nlinimo, unl artifício para sumariamente e, sem defesa, condena-lo recusa a pagar o preço combinado ou nada paga, ou ainda demanda uma prática
sexual que não estava incluída no acordo do programa
Esta exigência da lei, é entre os travestis motivo de revolta e deboche:
Desde quando eles queiram o documento registrado eu falo: tinha meu Desta fomla, diante da recusa do cliente em pagar ou aceitar um nova
documento rcgistrado, mas atualmcnte estou sem elc registrado por não traba- negociação, os travestis dispensam a feminilidade e fazem emergir sua identi-
lhar. Anima um serviço pra mim l Comojá frei pra vários policiais, caso eles dade secreta - o homem - para pressionarem, através de diversos meios, como
arrumei um emprego pra mim, registro nacu documento''.'' força física, escàldalo e chantagens, o cliente mal pagador a fim de que este
Gabricl li, travesti lendário, antigo morador do Pela, que morreu há poucos cumpra o estabelecido. Para os travestis este é mais um dos tipos de risco que
correm, porque, muitas vezes, sc confrontam com detemlinados clientes que
anos de uma "over-dose dc Algafal na veia, na sua radicalidade dizia que: ''Eu
são agressivos e andam armados. Além disso, quando a polícia é chamada, já
já fui presa mais dc duas mil vezes...Quando a policia me pede documento, se tcm a certeza da impunidade do usuário
abro a bolsa c mostro o papel higiénico".''
Dyana Gil aHimla que, na hora do pagamento, é que sugo a maioria dos
O corpo, na dcliqucncia, cria uma ilusão social de que não trabalha. conflitos entre o travesti c o cliente:
Quando se trata então de um corpo, cqa imagem de mulher contrasta com os
nomes masculinos registrados nas suas carteiras de identidade, é fácil para a Se ele não me pctgar. vou chiar porque não vou
polícia arquitetar e provar a suspeita do disfarce para o assalto, eno de pessoa ficar no prejuízo, estou aqui pra quem Perco noite
ou falsidade ideológica. Os travestis entrevistados, com justeza refutam a tese todos os dias, tenho que comprar maquiagem. tem
da policia. E, mais, o disfarce para o assalto é uma tese falsa à medida que todos que nte rttontcir em geral: compro brincos, sapcttos,
sabem quc não são muhcrcs. A policia sabe, o cliente sabe, a sociedade sabe. sandálias, tenho que me ciLimenlar, então pião vou
Assim para Wanburga, o travesti tcm que ser tratado pela polícia com toda a passar a noite aqui na rua para chupar pau. dar a
relatividade social reservada a outros segmentos da sociedade. bundct ou comer ele de graça. Ai, ett digo pra ele:
Não volt contar mais de três pra você me pagar,
Hã o policial que gosta de tomar o dinheiro do tra-
senão eu vou te prejudicar. Você vcü ter que pagar o
vesti, tem policial que não gosta. Em todo meio tem
istol Quer dizer que todo mundo da sociedade bebe, preço que combincinlos, aconteça o que acorltecer,
!odo mundo da sociedade roubct? Todo mundo da so- meu amor. Eu estou nestcl vidct é pra mejoder. Vou
ciedade mala? Um homem dci sociedade matou, ser obrigada a te agredir. "s
mas será que todos vão matar'? E como eles encaram Em muitos casos, o cliente temeroso de scr envolvido num escâdalo.
um travesti: se ILm travesti roubou, se um traves- estando armado, não hesita em eliminar o travesti. Em geral, estes crimes não
ti matou. praticou o tóxico. acham que todos são sequer rcgistrados e, quando o são, é raro se procesar o inquérito. A
são iguais, onde estão erradissimos. Isto no meio imprensa, quando o coloca cm manchete, trata a questão de forma preconcei-
cle todo mundo, não é sõ rio meio de travesti. tuosa, onde a tónica é transfomlar a vitima em criminoso
dão. Existe uma mulher que é prostittitci, será que
Em Salvador, os ''boys" (gíria para designar rapazes de classe média alta)
todas as mtttheres são prostitutas? '' cultivam uma sádica fomla de lazer e divertimento. Saem à noite. nos seus
Os travestis, quando são presos sob alegação de assalto, a denúncia em carros, amuados ou não, numa demonstração de machismo e homofobia exar-
geral é feita pelo cliente. Este, depois da polícia, é o elemento com quem o cerbada, para agredir, curral e tomar o dinheiro do travesti. Depois da polícia
tmvcsti mais sc confronta de fomla violenta, agressiva. É sem dúvida um e do cliente mal pagador, esses são os elementos mais temidos à noite nas
confronto repleto dc disfarces, anbiguidadcdes c mentiras de parte a parte. Do avenidas de prostituição. Segundo os travestis entrevistados, é inútil nestes

146 147
casos dar queixa à polícia. Assim na pista, é necessário um estado de alerta Eu mesmajájoguei sangue na cam dos policiais. Vieram três viaturas pra me
pemianente; uin olho na polícia e outro nos carros incrementados dos plyboys levar, eu falei que não ia. Cortei o meu braço e joguei sangue na cara deles".ió
da cidade. A rua, o espaço da batalha, é território perigoso.
Para Antonieta, tal qual o /zaóeas corpus judicial, a auto agressão nem
Fem muitos perigos. Tem muitcts chantagens nas sempre livra o travesti da prisão. Afimla que logo no início, sua prática
mias. Como os boys que jogam ovo podre na gente, generalizada entre os travestis, foi um mecanismo que deu certo. Segundo ela,
é extintor, é isso , é ctquilo. Vãricis pertubações a hoje, não funciona mais; a políciajá não fica tão assustada, nem o cliente tão
gente encontra na rua, muita parada dura na nervoso. Por isso acha díÊicil se auto-agredir:
vida noturtlci. A gente leva despartido, quer dizer: +
Tem muitas colegas minhas que se cortctm. Mas
eles metem uma zorra na gente, a gente despreocu- cacho isso besleirct. Porque se cortclr não resulta,
pctda, despercebida, ai ctcontece de levar ovada na nada, sabe? Então acho besteira cis colegas minhas
=cira. E eles só na gctrgalhada.t4 se cortctrem por causei de coça dct policia. Porque se
Acusados pela polícia, acuados e perseguidos pelos boys e se amscando ci pollcici chega e elas se cortam, vão prescts, dormir
a qualquer tipo de freguês, os travestis do Pela já recorreram à Justiça. Em lá mesmo. Agora, se elas se cortarem antes que ci
1980, treze travestis, vestidos de mulher, foram até o Forum, à 1 3' Vam, pedir policia pegue, tá certo, que ainda tem oportunidade.
segurançajudicial, principalmente contra as Delegadas de Jogos e Costumes Não éjazer como muitcisjazem: vão presas, chegam
e de Economia Popular. Márcia, participante da comitiva, foi também buscar lá na detegacia e se cortam, vão pro Ponto-Socorro
na justiça explicações para o tratamento discriminatório e arbitrário que a e voltam pro mesmo lugar. Não me corto de /or-
polícia baiana dispensa aos travestis prostitutos: "Porque temos que ser trata- mci alguma. Pode ser qualquer dinheiro. não me
das assim? Presas quase toda noite? A prostituição está aí, não somos ladrões corto por pessoa nenhuma. E mais fácil jazer nos
e precisamos viver. Afinal sou um cidadão em dias com minhs obrigações ejá outros mais em mim não.' '
não há lugar para discriminação num mundo em que cada dia todos são mais
Mota & Assunção (1981) consideram que o conjunto de cicatrizes das
entendidos ,, 15

automutilações no corpo do travesti pode ser classificado no rol da tatuagem,


Semelhante ao que acontece em outros estados, nem a Justiça impede a definida na antropologia como ''conjunto de cicatrizes e defomiações cultu-
violência e a aplicação arbitrária da lei; mesmo com baóeas corpus, os travestis ralmente provocadas''.i8 Concluem que as ''várias cicatrizes de épocas diver-
continuam sendo presos ilegalmente, acusados, sem direito à defesa. sas se entrecruzam, fazendo do braço dessas pobres criaturas verdadeiros
quebra- cabeças, cuja solução contém ingredientes os mais díspares: erotismo,
Sem acesso a seus direitos como cidadãos, os travestis se automutilam
violência, chantagem, desespero e dor''.i'
para escapar da prisão ou pressionar o cliente quando da recusa ao pagamento
devido. Para Mott & Assunção ( 1 98 1 ), as mutilações constituem-se quase que Mais uma vez, a sociedade marca no corpo suas leis e nomias sociais. A
no único instrumento de defesa para os travestis que se dedicam a prostituição; cicatriz é no corpo do travesti a marca do /zaóeas corpus que a Jusatiça não Ihe
alinham ser esta uma prática generalizada entre eles no Brasil, um verdadeiro concedeu. E a marca do lugar social que Ihe é reservado, tal qual a marca do
traço cu]tura] de norte a sul do país. Trevisan ( 1 986) aponta o caso de São Paulo, chicote no corpo do escravo.
onde as automutilações são, às vezes, praticadas coletivamente, dentro das
celas das delegadas, com cortes nos pulsos, braços, pescoços e até oigãos Alianças políticas e solidárias
genitais, usando pedaços de gilete, colcados cuidadosamente sob a lín-
Na prostituição o corpo que se vende é alvo frequente de intervnção: da
gua. Grande parte dos travestis entrevistados apresentava um infinidade de
lei, da justiça e do poder científico empenhado em explica-lo. O corpo que
cicatrizes nos braços, pescoço, antebraço e pemas. Conflmiando a tese de Mott
compra é limpo e recuperado, enquanto virilidade, pelo dinheiro. Nem os
& Assunção, Simone admite que se corta ''.. .quando fico presa três, quatro dias
movimentos de esquerda nem os das minorias foram capazes de reconhecer o
sem fazer nada; aí, os cortes, o sangue, eles mandam a gente pro Pronto-Socoro.

148 149
caráter de trabalho do corpo que se vende, nem de perceber que a atividade Se eles-estiúetem dispostos ci colaborar com o tra-
prostitutiva não é apenas um problema social que denuncia a vileza deste ato vesti e se os travestis quiserem colaborar com este
de venda, do prazer vendido por parcelas da população pobre, como única movimento, vai ser bom. é ttmalorça.zu
altemativa de sobrevivência. Se é um problema social, o é também porque
Mesmo com todo o otimismo dos travestis e a convicção do GGB de ser
existe o corpo que paga. E, sintomaticamente, tanto na prostituição masculina possível orgiulizá-los, na prática a situação não mudou substancialmente para
quanto na feminina, este corpo é o do homem. eles
A ampliação da prostituição de travestis no país coincidiu com a intensi- Apesar de não rivalizarem com as prostitutas, de atuarem em zonas bem
ficação da repcssão policial à prostituição em geral e com o pique dos movi- delimitadas, possuírem clientela distinta, os tmvcstis reivindicam a procissão
mentos sociais das minorias sexuais discriminadas .
só para sua categoria. Wamburga vê com desprezo e machismo a presença da
No que se rc6cre ao movimento dos homossexuais, foram poucas as mulher nas ruas de prostituição:
tentativas de aproximação do universo da prostituição dos travestis e quando,
A nttilher que vai pra beirct de uma pista é porque
de raro, aconteceu, se revelaram infmtífcras. MacRae ( 1986), estudioso das
é puta é sem vergonha. A gente vcti pra beirct das
atividades políticas das minorias sexuais, afirma que nem o avanço e sofisti- pistas porque não temos trabalho. Nós não temos
cação dos métodos científicos que viabilizam a metamorfose homem/mulher;
emprego. Ninguém quer a gerlte trabctlhando. Uma
nem o arbítrio policial a que estavam submetidos os travestis; motivaram os
mulher todo mundo quer. Por menos ela vai passar.
grupos militantes a qualquer movimento de aglutinação. Afastamento que
Lavar. 'rodo mundo quer anta mulher lavcirtdo, pas-
expressava uma total imcomprcensão em relação às características cambiáveis
sando eslregarido. Um trclvesti ninguém quer.: '
da inversão e ainda um certo preconceito quanto ao exagero de suas imagens.
Essa falta de clareza sobre o assunto extrapola a militância e faz do travesti Com semelhante visão elajustifica o fato de que nas ruas de prostituição
uma espécie discriminada, mesmo entre os homossexuais assumidos e cons- a mulher é denominada de puta e não o travesti. Muitos acreditam que na
cientes. competição de mercado com a mulher prostituta fazem o melhor negócio.Eles
próprios acreditam ser mercadoria dc luxo: ''Travesti é luxo. CÚ é luxo. come
Em Salvador porém, o GGB (grupo Gay da Bahia) foi a excessão.
quem pode."" Contudo este tipo de postura não impede a aliança dente à
Realizou uma das poucas tentativas bem sucedidas junto aos travestis. Na
ameaças comuns. Se estabelecem laços de solidariedade entre prostitutas e
década de 80, o grupo, com o apoio dc algumas entidades comunitárias do Pela,
travestis quando do confronto com a polícia e playboys, de denúncias de abusos
organizou uma campanha dc assistência médico sanitária, identificando aque- do poder de polícia, ou ainda, em casos de ferimentos e cuidados médicos
les que neccssitavanl atendimento de urgência, esclarecendo sobre doenças
sexualmente transmissíveis e uso dc drogas. Além disso, fizeram um levanta- Fora da pista, nas relações de vizinhança, a mulher é a amiga, com quem
mento dos diâercntes tipos dc travestis, suas origens, seus destinos e o pernil da os travestis podem trocar elementos simbólicos do universo feminino.
sua clientela.
Se é no espelho da mulher que os travestis vão buscar a nomeação dos
Grande parte dos travestis do Pela acredita que este tipo de movimento seus personagens femininos, esta mulher não inclui a prostituta. A mulher que
vem contribuindo para que a sociedade tenha uma idéia fenos estigmatizada o travesti ohrcce na calçada, longe de ser a outra, é ela a própria imagem de
do travesti e, com isto, diminuir o grau de violência social a que estão uma mulher dcidade, acima da ambiência do cortiço que marca o seu cotidiano
submetidos. Valcsca, por exemplo, apoia o movimento e atribui a ele o no Pelourinho
abmndanento da ação policial bcm como a união da categoria.
Jade Leclery abordada por um policial, choca pela simplicidade de sua
Acho um trctbalho muito bem.feita. SÓ assim a gen- auto imagem
te pode Jtilar. se conhecer mais. trocar idéias. por- Quem es tú'? Pergunta o policial
que ci gente é uma classe tão desclcissiDcada. a
gente precisa se ttttir mais; é alma força pra gente. Uma sublime

150 151
identidade, a sua imagem nos meios de comunicação e seus serviços sexuais
NOTAS são cada vez mais requisitados por uma clientela ampliada.
Revista Mancllete, janeiro dc 1 982.
Jonul o Estado de São Paulo, 28.03.80. A despeito ainda da procura alargada do cliente ou da indiscutível audiên-
Ideia.
cia na W, mesmo com a proliferação das ruas sobre o erotismo naturalizando
qualquer tipo de sexo ou atvidade sexual, a sociedadade conserva sua face
Jonul Lunpião da Esquhla,julho, p.16, s.d. repressiva. Principalmente quando certos exercícios eróticos altera os limites
Idem da identidade masculina e feminina.
Jorna[ a Tar(]e, Sa]vador, 26.0 1.82.
Jomal O Globo, 30.12.82. Quando se percebe quem é o travesti prostituto na estrutura social,
Jontal O Diário de Pemambuco, 25.1 1.84. (9) Entrevista com Cadete. compreende-se também que a repressão tem um forte componente de classe.
Numa verdadeira política do corpo, o tratamento dispensado a atividade
Entrevista con\ Waniburga.
prostitutiv4 como um todo, obedece as marcas das desigualdades económicas.

'UiE=EÜi:;.Hã=mBRBW A prostituição de luxo ainda que possua seu grau de menosprezo social,
está longe de experimentar a violência policial e o gmu de segregação social
que estão submetidos uma legião de mercadoeres de sexo, que exercem suas
Entrevista comi Wantburga.
atividades nas ruas, calçadas, guetos, zonas e prostíbulos existentes em qual-
Entrevista com Dyana Gil.
quer cidade brasileira.
Entrevista com Valesca.
Entrevista com Cadete. Ninguém como o travesti tem alnarca da sociedade inscrita no seu próprio
Entrevista com Simone. corpo. Ninguém tem uma econom ia corporal tão sobredetemlinada por deman-
das e expectativas extemas. No caso específico a atividade prostitutiva exerce
Entrevista com Antonieta.
uma influência relevante na própria modelagem dos seus corpos.
MOTT, L. B. e ASSUNÇÃO,H. OP. cit., P.2.
Idem. Posto assim, pode-se inferir que a sociedade atualiza os mitos primitivos
Entrevista com Martinlla. da androgcnia, ao mesmo tempo numa espécie de expiação cristã, cobra um
Entrevista çom Wanlburga. custo muito alto ao corpo que atende a demanda e se transfomla. Pois os
Entrevista com Wamburga. travestis, quando transfomlam seus corpos e os colocam no mercado de trocas
eróticas, o fazem na perspectiva de que, na própria sociedade existe uma
demanda erótica invertida. Assim, o cliente, o corpo prostituido alterado
Coitclusão
juntamente com seus processos de transfonnação, o quarto do motel ou o banco
O conceito de minoria sexual, visto pelo ângulo da política do cotidiano, traseiro do carro, a ação da polícia, fomlam uma complexa atividade, na qual
se presta a identificar grupos sociais postos cora das leis instituídas pam regular o mito da androginia, da mulher fálica, se expressa com .maior nitidez e
as trocas entre os sexos. Fora do acordo genital, principal regulador destas transparência.
trocas, as minorias sexuais exercitam a desobediência erótica e pagam o custo
Se a sociedade traçou tão rigorosamente os limites da polarização entre
da rebeldia.
os sexos, tratou também de produzir sua negação. Neste sentido, a inversão
Os travestis prostitutos enquanto insurgentes do acordo, é uma das cate- do camaval, a mulher do teatro caricato, as entidades andrógenas no candom-
gorias mais castigadas. Asilados em prostíbulos decadentes (muitos nem vêm blé, a moda unissex, as perfomiances ambíguas de algumas estrelas da música
a luz do dia) achincalhados nas ruas, perseguidos pelos homens da famíilia, popular, a emergência de alguns travestis no cenário da fama artística, o mito
seus corpos são tatuados pela violência social. São marcas que denunciam que Roberta Clone, a ampliação da prostituição de travestis, etc., são indícios que
a ambiguidade social é insidiosa, pois a despeito de todo o estigma posto na pemiitem afimtaar que a nossa sociedade vem historicamente tecendo o mito

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da inversão, em contraposição à rigidez das definições dualistas e excludentes,
reservadas às identidades masculina e feminina.

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