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Conhecimento,
Género e
Cidadania no
Ensino Secundário
Cristina C. Vieira (Coord.), Conceição Nogueira,
Fernanda Henriques, Fernando M. Marques, Filipa Lowndes
Vicente, Filomena Teixeira, Lina Coelho, Madalena Duarte,
Maria Helena Dias Loureiro, Paula Silva, Rosa Monteiro,
Teresa-Cláudia Tavares,Teresa Pinto, Teresa Toldy, Virgínia Ferreira
GUIÃO DE EDUcAÇÃO
conhecimento,
Género e
cidadania no
Ensino Secundário
Cristina C. Vieira (Coord.), Conceição Nogueira,
Fernanda Henriques, Fernando M. Marques, Filipa Lowndes
Vicente, Filomena Teixeira, Lina Coelho, Madalena Duarte,
Maria Helena Dias Loureiro, Paula Silva, Rosa Monteiro,
Teresa-Cláudia Tavares,Teresa Pinto, Teresa Toldy, Virgínia Ferreira
Lisboa, 2017
Podem ser reproduzidos excertos desta publicação, sem necessidade de autorização,
desde que se indique a respetiva fonte.
O conteúdo apresentado não exprime necessariamente a opinião da Comissão para a
Cidadania e a Igualdade de Género.
A conceção desta obra foi financiada pelo POPH através do Eixo 7 – Igualdade de Género.
Ficha Técnica
Título:
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
Autoria:
Cristina C. Vieira (coord.), Conceição Nogueira, Fernanda
Henriques, Fernando M. Marques, Filipa Lowndes Vicente,
Filomena Teixeira, Lina Coelho, Madalena Duarte, Maria
Helena Loureiro, Paula Silva, Rosa Monteiro, Teresa-Cláudia
Tavares, Teresa Pinto, Teresa Toldy e Virgínia Ferreira.
Consultoria Científica:
Ângela Rodrigues e Teresa Joaquim
Edição:
Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género
1.ª ed., 2017
ISBN:
978-972-597-416-2 (PDF)
Disponível em:
https://www.cig.gov.pt/documentacao-de-referencia/doc/cidadania-e-igualdade-de-genero/
guioes-de-educacao-genero-e-cidadania/
conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
Indíce
Nota prévia 7
Introdução 9
1. Género e Cidadania 15
1.1. Introdução 17
1.2. De que falamos quando falamos de género? 20
1.3. O género como categoria social 29
1.4. A formação da identidade de género 32
1.5. Estereótipos de género 35
1.6. De que falamos quando falamos em cidadania? 42
1.7. Que relações entre género e cidadania? 46
1.8. De que falamos quando falamos em cidadania e educação? 49
1.9. Construindo práticas de cidadania 54
referências bibiográficas 56
2. Género e Currículo 61
2.1. Introdução 63
2.2. O que se ensina e o que não se ensina na escola 68
2.3. Possíveis omissões do currículo ligadas a problemáticas de género 77
2.4. Introduzir questões de género no currículo: um ato de política das e dos docentes? 82
2.5. Conclusão 87
referências bibiográficas 88
3. Género e Conhecimento 91
3.1. Introdução 93
3.2. Para uma progressiva leitura crítica da realidade na adolescência 97
3.3. O poder da linguagem e o uso correto dos conceitos 101
3.4. Contributos para uma utilização ainda mais inclusiva da terminologia 103
3.5. Género e construção do conhecimento 105
3.6. Promover o pensamento crítico sobre as desigualdades
entre mulheres e homens 110
3.7. Conclusão 113
referências bibiográficas 115
003
03
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
004
04 CIG
conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
Recursos 247
referências bibliográficas 248
005
05
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
Glossário 504
Notas Biobibliográficas 510
006
06 CIG
conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
Nota Prévia
Conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário é o quinto Guião de
Educação produzido pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG)
no âmbito de um projeto, iniciado em 2008, de produção e edição de materiais
científico-pedagógicos destinados à integração da igualdade de género nos currículos
dos diferentes ciclos dos ensinos básico e secundário. À semelhança dos Guiões
anteriores, a presente publicação, cuja conceção teve início em 2014 e contou com
o apoio do POPH através do Eixo 7 – Igualdade de Género, foi acompanhada pela
Direção Geral da Educação.
Com este Guião, tal como com os anteriores, a CIG dá cumprimento ao artigo
5º da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as
Mulheres, das Nações Unidas, segundo o qual é obrigação do Estado tomar medidas
que tenham como objetivo “modificar os esquemas e modelos de comportamento
sociocultural dos homens e das mulheres com vista a alcançar a eliminação dos
preconceitos e das práticas costumeiras, ou de qualquer outro tipo, que se fundem
na ideia de inferioridade ou de superioridade de um ou de outro sexo ou de um papel
estereotipado dos homens e das mulheres”. Nesse sentido, a CIG optou por privilegiar
neste Guião a vertente científica e disciplinar, considerando que um conhecimento,
sobre o mundo e a humanidade, representativo da vida e das relações sociais de
homens e mulheres, tem uma função emancipadora, insubstituível, junto de raparigas
e de rapazes, nomeadamente face a preconceitos e costumes sexistas. Aquela função
é condição para a incorporação dos direitos de cidadania e da sua prática, bem como
para uma maior liberdade de escolha de percursos académicos e profissionais e de
projetos de vida por parte de rapazes e de raparigas.
O presente Guião tem, pois, duas finalidades. A primeira, comum à dos Guiões
anteriores, consiste na integração da dimensão de género nas práticas educativas
em contexto escolar e nas dinâmicas coletivas e organizacionais das instituições de
educação formal, alicerçada numa conscientização e numa atuação crítica face aos
estereótipos sexistas, socialmente dominantes, e que predefinem o que é suposto
ser e fazer uma rapariga e um rapaz, legitimando a desigualdade nas relações entre
umas e outros. Neste sentido, pretende-se contribuir para a efetivação de uma
educação formal e, nesta, de uma educação para a cidadania, que se configure
e se estruture em torno, entre outros, do eixo da igualdade social entre mulheres
007
07
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
008
08 CIG
conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário l INTRODUÇÃO
INTRoDução
A
elaboração do Guião de Educação Conhecimento, Género e Cidadania no
Ensino Secundário para apoio a docentes deste ciclo de ensino resultou
de uma adjudicação feita pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade
de Género (CIG) à Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres
(APEM), em setembro de 2014, após abertura de um período de auscultação pública a
diversas entidades para apresentação de propostas.
A APEM convidou para a elaboração desta obra uma equipa alargada de pessoas,
todas docentes dos ensinos secundário e/ou superior em Portugal, com formação
inicial e contínua nas áreas curriculares incluídas, com experiência na formação de
docentes, com trabalhos científicos publicados no país e no estrangeiro, e com
orientação de teses de mestrado e de doutoramento nos domínios científicos
abrangidos, incluindo as áreas interdisciplinares dos estudos sobre as mulheres e
dos estudos de género. Muitos outros e muitas outras reconhecidas especialistas
portuguesas ficaram de fora, quer nas áreas curriculares selecionadas, quer em
outras integrantes dos conhecimentos nucleares abrangidos pelo ensino secundário,
igualmente importantes, mas seria inexequível num trabalho deste âmbito pretender
apresentá-lo como um retrato exaustivo da excelência científica e pedagógica de
autores e autoras de referência no nosso país.
A lógica que presidiu à organização desta obra teve como eixo de referência o modo
como o ensino secundário se encontrava organizado no ano letivo de 2014-20151,
contemplando os cursos científico-humanísticos, os cursos científico-tecnológicos
(cursos com planos próprios), os cursos artísticos especializados, os cursos
profissionais, os cursos na modalidade de ensino recorrente e os cursos vocacionais2.
Dadas as possibilidades, que o ensino secundário oferece, de prosseguimento de
estudos ou de passagem direta da escola para o mundo do trabalho, o presente Guião
abrange uma diversidade de conteúdos, quer ligados às componentes de formação
geral, quer relativos a áreas de formação específica, e ainda assuntos considerados
1 Decreto-Lei n.º 139/2012 de 5 de julho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 91/2013, de 10 de julho, e pelo Decreto-Lei n.º 176/2014,
de 12 de dezembro.
2 Consultar informação sobre cada uma destas ofertas formativas no sitio oficial da Direção-Geral da Educação (DGE), em http://
www.dge.mec.pt/oferta-formativa (consulta a 10 de agosto de 2016).
009
09
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
Foi seguida em todos os capítulos uma estrutura comum, que reúne em cada
contributo uma primeira parte mais de natureza teórica e de enquadramento
das temáticas específicas nos conteúdos previstos para o programa das áreas
curriculares ao longo dos três anos do ensino secundário; numa segunda parte são
apresentadas propostas de integração do conhecimento, partindo dos conteúdos
dos curricula em vigor para cada ano, que poderão guiar as/os docentes na gestão
dos seus programas disciplinares. Estas propostas consistem em sugestões práticas
de integração da investigação científica, produzida dentro e fora do nosso país,
na área dos estudos sobre as mulheres e dos estudos de género nos programas
disciplinares e na prática educativa, que poderão servir de complemento aos
conteúdos previstos para cada área.
Tendo em conta que o ensino secundário prepara os/as jovens para a continuidade
dos estudos de nível superior, confere formação profissional e precede, para muitas
e muitos adolescentes, a entrada no mercado de trabalho, uma leitura da realidade
com a indispensável contribuição das ‘lentes de género’ afigura-se-nos de toda a
pertinência, já que estão em causa decisões presentes e futuras deles e delas, seja
em matéria de vida pessoal, seja em questões relativas a trajetórias académicas e
profissionais. Todos os assuntos abordados visam contribuir para a preparação de
quem aprende, qualquer que seja a sua idade, para o exercício de uma cidadania
efetiva, enquanto cidadãos e cidadãs ativos/as e críticos/as, membros de pleno
direito de uma sociedade democrática e plural. A introdução do eixo estruturante
da igualdade de género nas práticas educativas formais (e não formais), e nas
dinâmicas organizacionais das instituições educativas, afigura-se pois como o
passo incontornável para dotar docentes, discentes e profissionais não docentes
de conhecimentos e de competências de desocultação de estereotipias e de
010 CIG
conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário l INTRODUÇÃO
011
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
A APEM espera que esta obra possa cumprir, de alguma forma, o seu
desígnio maior, que é o de usar o conhecimento científico como forma de
capacitação de docentes, discentes e de outros profissionais, fomentando por
esta via uma atuação mais atenta na organização de atividades educativas
e de projectos pedagógicos, que visem contrariar conceções, atitudes e
comportamentos estereotipados relativamente a aprendizagens de género,
que trazem consigo a quase invisibilidade das mulheres numas áreas, mas
também a dos homens em outras. Ao disponibilizar exemplos de propostas
específicas por áreas do saber, esta obra pretende constituir-se como um
recurso de apoio à promoção de uma efetiva educação de raparigas e de
rapazes para o exercício da cidadania, nas suas diferentes dimensões, sem
as habituais barreiras impostas por falsas dicotomias e visões distorcidas
– nem sempre necessariamente conscientes – da organização social.
20 de dezembro de 2017
Cristina C. Vieira
012 CIG
1ª Parte
ENQUADRAMENTO TEÓRICO
013
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
014 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
1.
género e Cidadania*
016 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
1.1.
Introdução
U
ma leitura desatenta das necessário fazer para que elas se encontrem
estatísticas atuais relativas à igualmente representadas e todos os seus
situação das mulheres e dos talentos sejam de igual forma valorizados.
homens ocidentais faz crer que
a igualdade entre homens e mulheres está Embora as mulheres sejam, efetivamente,
praticamente conseguida. Porém, a aparente a face legitimamente mais visível da batalha
igualdade quantitativa em alguns sectores pela igualdade de direitos e oportunidades, é
escamoteia a real desigualdade qualitativa: indubitável que um tratamento efetivo desta
elas já são mais numerosas do que eles na problemática deve incluir também a consciência
escola, mas ensino misto e coeducação do impacto que estas desigualdades acarretam
estão longe de ser conceitos sinónimos; no para o sexo masculino.
018 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
1.2.
O
sexo de uma criança é sem dúvida cores diferentes e criam um espaço físico de tal
um fator importante para o seu forma distintivo que é fácil para um observador
desenvolvimento. Não é por acaso externo adivinhar se o/a bebé em questão
que uma das primeiras perguntas é do sexo masculino ou do sexo feminino.
que se faz às mães e aos pais quando uma Assim sendo, podemos afirmar que o sexo,
criança acaba de nascer é se é menina ou para além de ser um fator biológico, é também
menino. O próprio nome que se escolhe um fator social e cultural, uma vez que as
para o/a bebé deixa antever o seu sexo e a pessoas tendem a reagir de maneira diferente
presença de um bebé ou de uma criança em perante uma criança do sexo masculino ou
do sexo feminino. Reações
essas diferentes não só ao
“ Acredita-se que os brinquedos oferecidos às meninas (conjuntos de
panelas e tachos, bonecas e bonecos, electrodomésticos em miniatura,
nível de aspetos concretos,
como a oferta de brinquedos,
estojos de cabeleireira, kits de maquilhagem, etc.), uma vez que têm uma
mas também ao nível da
finalidade habitualmente prevista, fomentam nelas uma menor criati-
formação de expectativas de
vidade do que os brinquedos oferecidos aos rapazes (pistas de carros,
legos, construções, bolas, transportes em miniatura, etc.). Os segundos,
desempenho, da expressão
pelo facto de não terem uma utilidade tão pré-definida, tendem a ser de elogios e encorajamentos,
mais fomentadores da criatividade e inclusive de uma maior ocupação do estabelecimento de
do espaço circundante. Esta desigualdade na estimulação cognitiva interações verbais e não-verbais
despoletada pelos brinquedos poderá reflectir-se, mais tarde, de forma e da linguagem utilizada.
diferente em ambos os sexos, em aspectos tão diversos como a capaci-
dade de resolução de problemas, a apetência para enfrentar desafios, a
Esta caracterização (que
auto-confiança para a exploração autónoma do espaço, etc. ” podemos apelidar de quase
Jeanne Block, 1984. “automática”) dos homens
e das mulheres em termos
pessoais e sociais, a partir do
relação à qual se desconhece o sexo suscita conhecimento da sua categoria biológica de
sentimentos de desconforto naqueles que a pertença, abriu caminho a raciocínios simplistas
rodeiam. Ainda que nos primeiros meses de de explicação dos comportamentos individuais,
vida as crianças de ambos os sexos tenham à crença na estabilidade dos atributos individuais
características físicas semelhantes, a mãe e e à ideia de que seria “normal” que os seres
o pai começam logo a construir um mundo masculinos tivessem certas características
permeado por aprendizagens de género para psicológicas e os seres femininos evidenciassem
o/a bebé: dão-lhe um nome, vestem-no/a de outras, distintas. Para além desta visão dicotómica
020 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
não ter qualquer fundamento científico – sendo sim de desigualdade, de hierarquia e de posse
por isso de toda a conveniência examinar dissemelhante de poder e de estatuto social.
e refletir em torno da origem das eventuais Neste enquadramento, e tendo presentes os
diferenças entre homens e mulheres – a objetivos que norteiam este Guião, parece-nos
discussão desta problemática ganha ainda extremamente pertinente e útil, para uma
maior relevância se pensarmos que a diferença atuação pedagógica que contrarie preconceitos
não tem sido sinónimo de diversidade, mas e discriminações, a distinção entre sexo e género.
Feminino Masculino
Brinquedo nº de vezes Brinquedo nº de vezes
Boneca bebé 24 Motorizada 3
Banheira para bebé 3 Figuras espaciais 2
Alcofa para bebé 5 Nave espacial 1
Cadeira para bebé 1 Robots 5
Carro para bebé 6 Heróis de BD e cinema 21
Casa das bonecas 2 Avião de guerra 2
Baloiço para boneca 1 Viaturas de heróis 2
Boneca adulta - tipo “Barbie” 10 Hidrojet 1
Casa da Boneca 5 Submarino 1
Automóveis para boneca adulta 2 Porta aviões 1
Boneco adulto - tipo “Ken” 1 Pista de carros 4
Parque infantil para boneca 2 Garagem 5
Escola e enfremaria 1 Conjunto de carrinhos 3
Consultório de pediatria 1 Jeep 1
Castelo encantado/ palácio 4 Helicóptero 2
Acessórios de toilette 3 Carro teleguiado 24
Cozinha/equipamento de cozinha 5 Gruas 2
Supermecado/produtos 2 Comboio eléctrico 2
Bonecos Disney 2
Maleta de teatro 1
Secretária 1
Patins 2
Permite-nos detectar dois perfis distintos: um encaminha as crianças para a maternidade, para as
tarefas domésticas e para a estética do corpo; outro aponta claramente para a tecnologia, incluindo
alguns elementos de violência ou, pelo menos, de conflituosidade. ”
Isabel Margarisa André, 1999: 98-99.
022 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
1 Para a compreensão desta distinção, recomenda-se a consulta do artigo de Rachel T. Hare-Mustin e Jeanne Marecek (1988).
2 Ver, a este propósito, as revisões de estudos específicos que foram efetuadas por Janet Hyde (1981) e por esta autora e seus
colegas (1990).
3 A revisão de estudos publicada por Alain Feingold (1994) e a investigação de doutoramento de Cristina C. Vieira (2003; 2006)
retratam claramente estas distinções que é possível observar entre homens e mulheres, no que concerne às suas auto-descri-
ções individuais.
024 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
No entender da autora atrás integram o género podem com o género que cada pessoa
citada, os aspetos que apresentar graus e tipos de é susceptível de manifestar nas
contribuem para a diferenciação associação variados entre si. diferentes situações que tiver de
de cada factor integrante do O comportamento exibido enfrentar. É ainda fundamental
género possuem histórias de (por homens e mulheres) resulta salientar, como referiram Susan
desenvolvimento idiossincráticas da interação complexa das Egan e David Perry (2001),
sempre distintas de pessoa suas diversas componentes que a consistência com que
para pessoa e são influenciados de género. Por este motivo, os homens e as mulheres
por uma multiplicidade de é possível observar uma apresentam comportamentos
variáveis não necessariamente considerável variabilidade típicos de género, em diferentes
relacionadas com o género. – intra-sexo e entre o sexo dimensões (por exemplo: papéis
Para além disso, durante os feminino e o masculino – de género, orientação sexual),
diferentes períodos da vida de quanto à constelação de poderá ser apenas modesta.
cada sujeito, os fatores que características congruentes Mas esta visão psicológica
6 Para um desenvolvimento suplementar deste assunto, ver os trabalhos de Judith Butler (1990; 2002; 2006).
7 Segundo Chris Beasley (1999), trata-se de uma visão influenciada pelo chamado construcionismo social, o qual apareceu
como resposta alternativa à epistemologia positivista, que defendia a existência de uma verdade fundamental na explicação de
todos os fenómenos, a qual era possível apurar através da razão. Contrariando esta posição, para os construcionistas sociais
são defensáveis, como escreveram Sara Davies e Mary Gergen (1997), os seguintes pressupostos: 1) O conhecimento é so-
cialmente construído; 2) Não existe uma versão única da verdade; 3) Os significados são constituídos através do discurso; 4)
Os indivíduos são vistos como passíveis de expressões múltiplas.
026 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
028 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
1.3.
O género como
categoria social
O
género é uma das primeiras longo dos anos subsequentes são múltiplas as
categorias que a criança aprende, influências que podem ocorrer suscetíveis de
facto que exerce uma influência afetar quer o desenvolvimento posterior das
marcante na organização do seu várias componentes do género, quer as suas
mundo social e na forma como se avalia a si manifestações situacionais. Por esse motivo,
própria e como perceciona as pessoas que a numa situação particular uma rapariga pode
rodeiam. Para corresponder às normas sociais, exibir um comportamento habitualmente mais
e como parte integrante do processo de comum nos rapazes e vice-versa.
socialização, a criança aprende a comportar-se
de acordo com os modelos dominantes de A análise da composição sexual dos grupos
masculinidade e de feminilidade. Este processo de crianças formados por iniciativa própria em
é movido por uma complexa interacção entre os situações lúdicas fornece dados que destacam
fatores individuais e contextuais, neles incluindo a importância do género enquanto categoria
a relação com o pai e a mãe, os/as amigos/as, social, especialmente durante a primeira década
os/as educadores/as e os/as professores/as de vida. Sobrepondo-se a outras características
e outras pessoas significativas. individuais como a etnia ou a raça, o sexo surge
como um dos principais critérios na escolha de
Algumas investigações no domínio da psicologia um/a potencial companheiro/a de brincadeiras,
têm mostrado que as crianças iniciam o por parte da criança9. Assim, por exemplo,
processo de desenvolvimento respeitante ao um rapaz branco de quatro anos brinca mais
género (e a categorização de si e dos outros prontamente com um rapaz negro do que com
daí decorrente) muito antes de tomarem uma rapariga branca da mesma idade.
consciência do seu sexo, ou seja, dos seus É importante referir que durante a infância
órgãos genitais8. Janet Spence (1985) defende a distinção entre os sexos remete para a
mesmo que o núcleo central da identidade de prevalência, no pensamento da criança, de duas
género começa a consolidar-se, em crianças categorias básicas (binárias): a dos homens e
de ambos os sexos, ainda numa fase pré- a das mulheres, categorias essas diretamente
verbal do desenvolvimento, ou seja, antes ligadas a um processo prévio de categorização
de a criança ter capacidade de expressar social que teve como fundamento as diferenças
por palavras o seu pensamento. Todavia, ao físicas aparentes entre os sexos.
8 Ver, a este respeito, os trabalhos de Diana Poulin-Dubois e colegas (1994), de Teresa Alário Trigueiros e outros/as autores/as
(1999) e de Ana da Silva e outros/as autores/as (1999), tendo estes dois últimos livros sido publicados pela Comissão para a
Igualdade e para os Direitos das Mulheres, no âmbito dos Cadernos Coeducação.
9 Ver os estudos citados por Carole Beal (1994) que se debruçaram sobre este comportamento sexista das crianças.
10 Consultar, por exemplo, Eleanor Maccoby (1998) para uma visão abrangente dos resultados destes estudos.
030 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
1.4.
A formação da
identidade de género
F
oram várias as posições teóricas e alunas que se encontram sobretudo já nos
desenvolvidas durante o séc. XX que anos intermédios da adolescência, importa
tentaram esclarecer o processo de compreender o processo de formação da
formação da identidade de género. identidade de género logo desde os primeiros
Com o intuito de dar uma certa organização anos da infância. Por essa razão, optámos
teórica e conceptual às mesmas Susan por apresentar nesta secção do capítulo
Freedman (1993) reúne-as em duas classes uma visão psicológica sobre a formação da
distintas. A primeira (onde inclui, por exemplo, identidade de género, que a perspetiva como
as ideias psicanalíticas e evolucionistas) agrega intrinsecamente ligada ao desenvolvimento
teorias que tentam explicar as possíveis causas humano em outros domínios (cognitivo,
das diferenças entre os sexos. Trata-se de saber emocional e social). Esta opção não significa,
por que é que os sexos podem apresentar contudo, que outras abordagens mais críticas e
diferenças. A segunda categoria agrupa as reflexivas – como aquelas que são influenciadas
teorias (como as da aprendizagem social, pelo construcionismo social ou determinados
teorias cognitivo-desenvolvimentistas e teorias posicionamentos feministas, cuja análise tende
da interação social) que abordam os processos a centrar-se na compreensão das múltiplas
conducentes à observação das diferenças entre determinantes dos comportamentos dos
homens e mulheres. Neste caso, a preocupação homens e das mulheres na vida adulta – sejam
dos/as respetivos/as autores/as gira em torno vistas como menos interessantes ou com menor
de como é que os sexos enveredam por formas valor heurístico. Apenas por uma questão
distintas de comportamento. prática não serão aqui referenciadas.
032 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
venham a sofrer modificações, o sexo biológico família, na escola, na comunicação social, que
e a identidade de género do indivíduo são funcionam como modelos. Nesta sequência,
caraterísticas que tendem a permanecer estáveis. a criança imita os modelos do mesmo
Pelo facto de não ser capaz de alcançar, sexo que o seu e exibe, preferencialmente,
antes de determinada idade, a permanência comportamentos típicos de género, já que
do objeto (noção piagetiana segundo a qual esses mesmos desempenhos são considerados
existe constância nas características físicas os mais adequados (e os mais aprovados
dos objetos) não é de prever que com três pelas outras pessoas) e estão em consonância
anos apenas a criança consiga, por exemplo, com o seu autoconceito, enquanto rapaz ou
desenvolver uma identidade de género rapariga, e com a sua identidade de género
permanente. Ilustremos esta afirmação com em formação. Na linha do pensamento
uma referência aos trabalhos de Jean Piaget kolhbergiano, a vontade da criança de agir em
(1932) sobre a compreensão da conservação: conformidade com as normas adequadas ao
pode aplicar-se ao modo como as crianças seu sexo precede o próprio comportamento,
compreendem o género a explicação para a em virtude da sua compreensão da realidade.
incapacidade das crianças, até determinada Ela envereda pela adoção de comportamentos
idade, de acreditarem que o número de objetos típicos de género, movida pela sua necessidade
numa torre se mantém, ainda que a disposição de coerência interna e de desenvolvimento de
física dos mesmos se altere. Enquanto não uma sólida autoestima.
atingem aquilo a que Kolhberg (1966) chamou
estabilidade de género, as crianças tendem Todo o processo de categorização cognitiva
a pensar que, tal como mudam de corte de que parece, então, ser indispensável, numa
cabelo ou de vestuário, as pessoas podem primeira fase, para a progressiva consolidação
mudar de sexo, ou podem pertencer a um ou a da identidade de género nos primeiros anos
outro grupo de género. Segundo este nível de de vida da criança abre, no entanto, caminho
pensamento infantil, como escreveu Margaret à apropriação de normas comportamentais
Matlin (1996), "uma mulher pode tornar-se rígidas, ou de estereotipias, as quais
homem se cortar o cabelo muito curto e um poderão ter uma influência perversa na
homem pode tornar-se mulher se decidir usar autenticidade da trajetória de desenvolvimento
uma mala de mão" (p. 99). individual, subsequente, dos rapazes e das
raparigas. Torna-se, por isso, fundamental o
À medida que vão compreendendo, dos 2 aos 7 desenvolvimento de uma atuação pedagógica
anos aproximadamente, a imutabilidade do facto adequada e concertada – entre as várias
de serem do sexo masculino ou do feminino fontes de influência, como seja a escola, a
– isto é, à medida que vão consolidando a família, os media – que corrija as mensagens
estabilidade do género – as crianças sentem-se estereotipadas sobre o género que a criança
motivadas a procurar informação sobre os vai aprendendo e solidificando nas suas redes
comportamentos considerados adequados cognitivas de informação.
ao seu sexo, pela observação dos outros na
034 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
1.5.
Estereótipos de género
O
s estereótipos constituem internamente homogéneas. Deste ajuizamento
conjuntos bem organizados resulta, como é óbvio, uma clara omissão da
de crenças acerca das variabilidade que é possível observar no seio
características das pessoas que de cada grupo específico. Daí que seja baixo o
pertencem a um grupo particular. Se bem que poder preditivo destas crenças generalizadas,
a tendência seja para encarar os estereótipos correndo-se o risco de se efetuarem
como expedientes negativos de perceção julgamentos inadequados sobre uma pessoa
das outras pessoas, dada a facilidade com particular, a partir dos estereótipos que se sabe
que, a partir deles, se envereda por juízos servirem para caracterizar o grupo a que ela
discriminatórios, pode ser-lhes atribuído, pertence. Acresce o facto de se apresentarem,
no entanto, um papel positivo no modo com frequência, de tal maneira consolidados
como o indivíduo lida com a multiplicidade nos esquemas mentais das pessoas, que a
de estímulos com que é confrontado no sua propensão a alterações é reduzida, mesmo
dia a dia. Daqui ser possível asseverar que os na presença de informação contrária, como
estereótipos assumem, para o ser humano, advertiu John Santrock (1998).
uma função adaptativa, na medida em que lhe
permitem a organização da complexidade do No caso particular do género, os estereótipos
comportamento em categorias operacionais, a ele associados têm a ver com as crenças
facilmente manejáveis. Não obstante, também amplamente partilhadas pela sociedade sobre
é verdade que os estereótipos podem ser o que significa ser homem ou ser mulher. Mais
bastante prejudiciais, em virtude do risco do que qualquer outro tipo de estereótipos, os
de consubstanciarem uma leitura distorcida de género apresentam, como nos disse Susan
e redutora da realidade, porque facilmente Basow (1992), um forte poder normativo, na
legitimam categorizações irrefletidamente medida em que assumem não apenas uma
generalizáveis, na sua maioria mais negativas função descritiva das supostas características
do que positivas. dos homens e das mulheres, mas também
consubstanciam uma visão prescritiva, se
De facto, com base nos estereótipos, todos bem que não uniforme, dos comportamentos
os membros de um dado grupo social tendem (papéis de género) que ambos os sexos
a ser avaliados da mesma maneira, como deverão exibir, porque veiculam, ainda
se os indivíduos pertencessem a categorias que implicitamente, normas de conduta15.
15 Para uma compreensão alargada sobre o poder dos estereótipos de género no comportamento dos homens e das mulheres,
ver os trabalhos de Madeline Heilman (2001) e de Conceição Nogueira e Luísa Saavedra (2007).
036 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
18 Refiram-se, a título de exemplo, os trabalhos de Michelle Perrot (1998), Joan W. Scott (1994), Maria Victoria Lopez-Cordon
Cortezo (2006), Annette F. Timm e Joshua A. Sanborn (2007).
19 Entre estas investigações encontram-se as de Susan Basow (1992), de Kay Deaux e Melissa Kite (1993) e de Kay Deaux (1995).
20 Numa pesquisa conduzida por Kay Deaux e Laurie Lewis (1984) com crianças e adolescentes verificou-se que as pessoas
descritas como tendo uma voz mais grossa e ombros mais largos eram percecionadas como possuindo mais características
masculinas e como mais capazes de desempenhar papéis típicos dos homens, do que as pessoas que se sabia possuírem
uma voz mais aguda ou uma constituição física mais franzina. Diversas investigações subsequentes (ver a revisão de Kay
Deauxe Marianne LaFrance, publicada em 1998, onde é possível tomar conhecimento destas pesquisas) vieram oferecer
suporte empírico a esta convicção de que na avaliação dos indivíduos as características físicas parecem assumir um predomínio
sobre todas as outras informações relativas ao género. Foi observado, por exemplo, que, sobretudo entre os homens, a altura
destes estava positivamente correlacionada com as avaliações de outros sujeitos acerca do seu estatuto profissional ou mesmo
da sua adequação pessoal, enquanto membros do sexo masculino.
e discriminatórias, a este nível, coloca-se ainda quer em Portugal22, quer a nível transnacional23,
com mais premência, se atendermos ao facto põe em destaque a grande coincidência de
de ser a aparência física – o corpo – o aspeto resultados quanto à forma como costumam
mais difícil de mudar, de todos os que se ser descritos o homem e a mulher, por
relacionam com o género21. pessoas de diferentes idades em momentos
distintos. De um modo geral, os homens
Para além dos estereótipos relacionados tendem a ser vistos como sendo mais fortes,
com a aparência corporal, outros relativos às ativos, competitivos e agressivos do que as
características de personalidade, aos papéis mulheres, tendo ainda maiores necessidades
desempenhados e às ocupações profissionais de realização, de dominação e de autonomia
preferidas por cada um dos sexos tendem, do que elas. As mulheres, por seu turno, surgem
igualmente, a persistir nas imagens que são caracterizadas como necessitando, sobretudo,
traçadas do homem e da mulher. Ainda que de estabelecer ligações afetivas com as outras
tenha vindo a sofrer variações em função dos pessoas, como sendo mais carinhosas e aptas
contextos socioculturais, a dicotomia atrás a prestar cuidados, como possuindo uma
referida – “expressividade feminina” versus autoestima mais baixa e como sendo mais
“instrumentalidade masculina” – parece propensas a prestar auxílio em situações difíceis.
continuar a ser usada para manter uma certa
ordem social e para distinguir os seres que No estudo realizado em Portugal por Lígia
nasceram do sexo feminino daqueles que Amâncio (1994), foi verificado ainda que os
nasceram do sexo masculino. estereótipos masculinos mostraram englobar
um maior número de características do que os
Uma síntese muito geral das principais femininos e evidenciaram mais aspetos positivos
conclusões dos estudos efetuados, sobretudo do que estes. Além disso, os traços avaliados
ao longo das últimas décadas do séc. XX, como positivos nas mulheres envolviam,
sobretudo, o seu relacionamento
com as outras pessoas, como o
“ Os papéis sociais de género apresentam, no plano normativo, a mes-
ma assimetria veiculada pelos estereótipos de masculinidade e de fe-
ser afetuosa, meiga, ou sensível,
características estas que
minilidade, a nível dos conteúdos. Enquanto os traços definidos como
habitualmente integram a visão
masculinos se traduzem em competências, associando-se directamente
à esfera do trabalho e do domínio sobre os outros e sobre as situações,
estereotipada de feminilidade.
os conteúdos que caracterizam o feminino correspondem a sentimentos Nos homens eram mais
e restringem-se à esfera do relacionamento social e afectivo. Isto conduz valorizados aspetos como o ser
a uma distinção na definição das áreas de intervenção dos dois sexos: audacioso, independente ou
o masculino, definindo-se a partir da multiplicidade de competências e empreendedor, os quais
de funções, integra, como próprias, esferas de intervenção diversificadas caracterizam a visão estereoti-
que abrangem a multiplicidade e complexidade social do espaço públi- pada de masculinidade. Tanto
co, enquanto o feminino, centrado em funções específicas, é configura-
num caso como no outro, o
do no âmbito restrito do privado e do familiar. ” conceito de sexismo volta a ser
Teresa Alvarez Nunes, 2007: 43-44. importante para compreender as
respostas dos/as participantes,
21 Ver a este propósito o capítulo do Guião dedicado à disciplina de Educação Física, da autoria de Paula Silva.
22 Consultar, por exemplo, o livro de Lígia Amâncio (1994) ou o artigo de Félix Neto (1990).
23 Merecem especial destaque, neste âmbito, o trabalho, pioneiro na Europa, de Anne-Marie Rocheblave-Spenlé (1964) e a inves-
tigação transnacional de John Williams e Deborah Best (1990).
038 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
24 Vejam-se, a este respeito, por exemplo, as investigações levadas a cabo por Félix Neto (1990; 1997) e por Deborah Best e John
Williams (1990) e a revisão teórica de estudos efetuada por Diane Ruble e Carol Martin (1998).
25 Como pode ler-se em Cristina C. Vieira (2004), uma meta-análise consiste num procedimento quantitativo de revisão de inves-
tigações originais que se dedicaram ao estudo da mesma hipótese, no âmbito do qual se recorre a indicadores estatísticos,
como a magnitude do efeito (neste caso, o tamanho das diferenças entre os sexos), para a apresentação das conclusões.
26 Veja-se a obra de Susan Golombock e Robyn Fivush (1994) para uma compreensão mais alargada do modo como as crianças
aprendem e utilizam os estereótipos de género.
27 Consultar Diane Ruble e Carol Martin (1998).
040 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
1.6.
O
termo ‘cidadania’ no âmbito da sua A sua teoria de cidadania assenta num conjunto
aplicação ao ensino e à educação de três tipos de direitos – os direitos civis, direitos
começou a ser expressão corrente políticos e direitos sociais. Aqueles e aquelas que
nos últimos anos. No entanto, possuem o estatuto de cidadãos ou cidadãs são
surgiu sem uma clara apresentação dos seus – no que respeita aos direitos e responsabilidades
múltiplos significados. Por isso, é importante a esse estatuto associados – iguais. É aspiração
questionarmo-nos sobre o que é realmente dos cidadãos e cidadãs implementar a plena
a cidadania. Na realidade, este conceito igualdade, lutando pela progressiva concessão
é problemático, ambíguo, e a história tem de direitos que aumente o número de pessoas a
mostrado que ao longo dos tempos lhe estão quem é conferido o estatuto de cidadania.
associadas diferentes conceções, que vão
sendo retomadas, reformuladas ou mesmo A preocupação de Thomas Marshall (1964)
criticadas enquanto outras novas vão surgindo. relativamente à cidadania implicava procurar
A cidadania é um estado no qual (ou com o formas de (re)conciliar a democracia política
qual) a pessoa (ou ‘o/a cidadão/ã’) tem os formal com a continuidade da divisão da
direitos e/ou obrigações associados à pertença sociedade capitalista em classes sociais.
a uma comunidade alargada, especialmente a A resposta que avançou para esta reconciliação
um Estado. residia na hipótese de existência e promoção
do chamado Welfare State – Estado de Bem-
Uma referência chave na literatura sobre Estar Social ou Estado-Providência. Marshall
cidadania é Thomas Marshall (1893-1981), argumentava que o Estado-Providência poderia
um professor de sociologia na Universidade de limitar os impactos negativos das diferenças de
Londres, considerado um clássico no estudo classe nas oportunidades de vida de todas as
do tema. Numa série de conferências realizadas pessoas, ao mesmo tempo que permitia um
na Universidade de Cambridge nos anos 50 do comprometimento delas próprias com o sistema.
século XX conceptualizou a cidadania como um
tipo específico de estatuto legal de identidade Apesar de Thomas Marshall conceber a
oficial; juntamente, desenvolveu a noção de possibilidade de expansão dos direitos de
membro pleno de uma comunidade soberana cidadania através do conflito no seio da
que se auto-governa. Nos seus termos, a sociedade civil, o desenvolvimento histórico não
cidadania é um estatuto conferido àqueles deve ser entendido como um processo linear e
e àquelas que são membros plenos de uma evolutivo, segundo o qual se dá uma acumulação
determinada comunidade. Tal como um estatuto de direitos que passam a ser aceites como
legal, a cidadania confere o direito a ter direitos. garantidos. Pelo contrário, os direitos alcançados
042 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
29 As feministas criticam fortemente esta teoria já que nesta evolução histórica dos direitos de cidadania não revêem os direitos
das mulheres. O facto de a teoria assumir que desde a sua implementação estes direitos foram universais – i e, abrangeram
todas as pessoas – ainda aumenta mais o argumento crítico. Como é possível pensar em todas as pessoas se metade da
população (as mulheres) estava excluída da cidadania política?
044 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
1.7.
S
ob a influência do pensamento Falar de pluralismo e diversidade mesmo entre o
pós-moderno, o estudo das grupo de mulheres e ao mesmo tempo assumir a
questões de género e da cidadania desigualdade persistente, leva-nos de imediato à
tem-se desenvolvido através de uma questão fundamental do feminismo contemporâneo,
série de fases diferentes, centrando-se grande central nos debates sobre cidadania: o debate entre
parte da dinâmica do debate na controvérsia a igualdade e a diferença.
igualdade/diferença. Inicialmente, as críticas
baseavam-se no carácter excludente da No cerne deste impasse prevalecem duas
evolução de direitos (conforme preconizada por questões: (1) será que a diversidade implica
Thomas Marshall, por exemplo), criticando-se uma cidadania diferenciada, já não universal?
a pretensa universalidade de direitos e (2) a reivindicação de políticas de diferença é
referindo-se a existência de desigualdades emancipatória (i. e., libertadora)?
(ainda no presente) entre homens e mulheres Na sua forma liberal, o conceito de cidadania apela
no que diz respeito a direitos de cidadania. à incorporação do ideal do universalismo. Neste
Esta constatação da exclusão das mulheres âmbito, é suposto que todos os indivíduos que
da cidadania tem sido abordada por duas podem legitimamente assumir-se como sendo
vias distintas: uma que reclama a inclusão cidadãos de um Estado partilhem uma igualdade
nos mesmos termos que os homens estão de direitos e responsabilidades de cidadania.
incluídos e outra que reclama que a cidadania No entanto, este universalismo gera graves
deve ter em conta os interesses particulares situações de exclusão, pois há pessoas que, pelo
das mulheres. No primeiro caso, as teóricas da facto de partilharem determinadas características,
igualdade reclamam uma cidadania neutra em são continuamente vítimas de exclusão. É o caso,
termos de género, na qual as mulheres estejam por exemplo, da desigualdade associada ao
incluídas e possam participar com os homens sexo, à etnia, a emigrantes, a pessoas de classes
como cidadãs iguais, especialmente na esfera sociais economicamente desfavorecidas ou de
pública. No segundo caso, para as teóricas orientações sexuais minoritárias. É importante
da diferença, o objetivo é uma cidadania assegurar que pessoas e grupos não sejam
diferenciada, onde as responsabilidades e excluídos dos benefícios da cidadania devido a
as competências da esfera privada – esfera qualquer aspeto (global, particular ou singular)
habitualmente associada às mulheres – sejam da sua identidade. Por isso, há quem reclame para
reconhecidas, valorizadas e recompensadas. as mulheres uma política de identidade e uma
Falam por exemplo da valorização do espaço cidadania diferenciada, isto é, de reivindicação
privado e das competências associados ao de direitos especiais e construída sobre direitos
cuidado. grupais.
046 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
mulheres, entendidas como são assuntos altamente biologia (ou a socialização) como
um grupo que partilha de desafiadores que estão estabelecendo uma diferença
forma imutável características na ordem do dia de todos essencial?
próprias – que devem ser quantos se preocupam com
valorizadas – não acabará as questões de género, da Mas esta oposição entre
por aumentar os problemas cidadania e, essencialmente, igualdade e diferença também
da desigualdade? Reificar de desigualdade social. pode ser vista como um produto
as diferenças justificando- do individualismo abstrato;
as através de mecanismos O feminismo contemporâneo não parece haver razão para
essencializadores pode ter demonstra uma tensão supor que a igualdade e a
como efeito perverso manter contínua, quer a nível do diferença estão inerentemente
a lógica grupal e a assimetria pensamento e da teoria, quer em oposição. A escolha entre a
simbólica a ela associada. a nível da ação, relativamente igualdade e a diferença pode ser
Resumindo, o essencialismo à ideia de, por um lado, ter um falso problema. A igualdade
e mesmo a legitimação da de construir a identidade e a diferença constituem outra
existência dos próprios grupos mulher/es dando-lhe um falsa dicotomia que devemos
surgem como fortes problemas significado político sólido e, procurar dissolver. A maneira de
para a adoção desta visão por outro, sentir a necessidade isso começar a ser conseguido é
alternativa de cidadania. de desconstruir a categoria através da adoção de uma teoria
mulher. No que respeita ao de cidadania não atomista, mas
As políticas da diferença, exercício pleno da cidadania, relacional.
assim como o debate entre as mulheres querem ser iguais
a igualdade e a diferença, aos homens, ou assumir a Pretender a emancipação e
uma cidadania inclusiva das
diversas identidades deve
implicar a manutenção pela
“ A promoção da igualdade de oportunidades e de resultados faz-se
essencialmente através de programas de acção positiva. Repousa sobre
busca de igualdade de direitos
e oportunidades como um
medidas flexíveis e selectivas segundo objectivos e prioridades previa-
objetivo essencial, sendo a
mente determinados e escolhidos.
Verifica-se igualmente uma modificação das técnicas de implementação metodologia a procura de áreas
utilizadas pelas autoridades e pelos mecanismos institucionais encar- de compromisso, de criação
regados de promover a igualdade. Procura-se mais frequentemente de interesses comuns e de
persuadir, influenciar a opinião e propor fórmulas voluntárias de reali- sistemas de governação capazes
zação dos objectivos fixados e recorre-se menos a meios coercivos. (…) de acomodar as diferenças de
É ilusório pensar que a lei só por si possa ultrapassar a discriminação. forma pacífica.
Quando a discriminação legal desaparece formalmente, a discriminação
social permanece e instala-se sob novas formas, às vezes muito mais
Esta aspiração política face à
subtis. Daí a necessidade de a lei conter princípios de acção positiva.
igualdade não necessita negar a
A acção positiva necessita de uma conjugação de actores, forças,
constrangimentos e incentivos. Deve conseguir atingir todos quantos diferença, já que uma ambição
possam tornar-se culpados de discriminação; associa métodos decor- de igualdade pressupõe as
rentes da auto-assistência colectiva e da intervenção do Estado. A acção diferenças iniciais. A igualdade
positiva necessita igualmente da criação de mecanismos institucionais de direitos e oportunidades
de um novo tipo, que não sejam apenas estruturas de protecção, mas inclui precisamente respeitar
que estejam incumbidos de resolver os problemas da discriminação. ” os direitos de todos os seres
Eliane Vogel-Polsky, 1991: 11. humanos, independentemente
das suas características, crenças
ou identidades.
048 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
1.8.
N
a atualidade fala-se cada vez • Pressupõem um processo
mais de uma cidadania ativa, de aprendizagem que pode
emancipadora e múltipla. Esta desenrolar-se ao longo da vida,
conceção de cidadania implica
o qual destaca valores como
um conjunto de práticas a ser implementadas
nos diferentes espaços sociais de educação e
a participação, a parceria, a
formação, as quais poderão envolver pessoas coesão social, a equidade e a
de todas as idades, no sentido de as dotar de solidariedade.
competências de participação nos vários domínios
de vida. De acordo com Karen O’Shea (2003) Para a concretização desta educação para a
estas práticas de educação para a cidadania: cidadania há ainda que reflectir sobre o modelo
universalista da escola, já questionado por
• Têm como objetivo fundamental
Raul Itúrra (1990), dado que este não tem em
a promoção de uma cultura de
conta as especificidades culturais – as múltiplas
democracia e direitos humanos.
pertenças – dos seus alunos e alunas, os quais
• Procuram fortalecer a coesão já trazem consigo, à chegada à instituição
social, a compreensão mútua e escolar, uma bagagem de conhecimentos que
a solidariedade. modelaram o seu entendimento do mundo e
prepararam terreno para a incorporação de
• Põem em relevo a experiência
novos saberes. Logo, no âmbito da educação
individual e a busca de boas
para a cidadania, espera-se que a escola seja
práticas, para o desenvolvimento um espaço de respeito pela diversidade de
de comunidades empenhadas quem a frequenta, não se correndo o risco
no estabelecimento de relações de culturas dominantes submergirem as
humanas autênticas. idiossincrasias culturais de grupos minoritários.
• Ocupam-se da pessoa e das
suas relações com os outros, Nesta era de globalização económica
da construção de identidades (e infelizmente ainda não de uma globalização
pessoais e coletivas e das da solidariedade), as desigualdades sociais
aumentam de dia para dia ameaçando direitos
condições de vida em conjunto.
humanos fundamentais. Só a valorização da
• Dirigem-se a todas as pessoas, justiça social e da solidariedade poderão ajudar
seja qual for a sua idade e na construção de uma sociedade solidária.
o seu papel na sociedade. Esta solidariedade é, nesta perspetiva, assumida
30 Não havendo aqui lugar para a descrição de todas as competências apresentadas nos eixos da postura cívica individual, do re-
lacionamento interpessoal e do relacionamento social e cultural, recomenda-se vivamente a consulta e utilização do documento
em questão, pois trata-se de um recurso valioso para todos os agentes educativos, no âmbito da educação e formação para
a cidadania. Este documento integra e sintetiza as principais conclusões saídas dos debates realizados no âmbito do Fórum
Educação para a Cidadania (constituído, no outono de 2006, por várias personalidades convidadas pela Ministra da Educação
e pelo Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros) e enquadra e sistematiza em medidas de política e de
intervenção social, o que se considerou serem os objectivos estratégicos da Educação para a Cidadania. O documento com o
título Objectivos Estratégicos e Recomendações para um Plano de Acção de Educação e de Formação para a Cidadania está
disponível em: https://www.cig.gov.pt/wp-content/uploads/2017/02/Obj_estrat_plano_educ_cidadania.pdf
050 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
31 Ao equacionarmos a possibilidade de qualquer projeto de educação para a cidadania na escola, pensamos também nos con-
tributos da perspetiva da pedagogia crítica, profundamente influenciada pelos trabalhos de Paulo Freire. Para a promoção da
democracia valoriza-se de forma fundamental o objetivo da justiça social, isto é, que a educação possa “provocar mudanças
na sala de aula mas também identificar e ensaiar estratégias que consciencializem os discentes a envolver-se em mudanças
sociais para além da sala de aula”, como escreveram Luísa Saavedra e Conceição Nogueira (1999: 132).
Refletindo sobre a miríade de competências formar para a cidadania, tendo por base valores
e de saberes cognitivos e relacionais que societais comuns e promovendo a participação
é suposto os/as alunos/as aprenderem a individual, seria importante para a formação
mobilizar, coloca-se a questão central: como de cidadãos e cidadãs independentes,
ensinar e praticar a cidadania nos diferentes autónomo/as, que participam nas instituições
espaços educativos e formativos? democráticas e são atores dos seus próprios
destinos. Salvaguardar os interesses individuais,
A resposta a esta questão apela a uma ênfase conhecer e exercer os seus direitos, parece ser
na ação, apela ao ensaio de comportamentos um projeto louvável e frequentemente exequível.
em espaços protegidos, como sejam a turma, Mas não é suficiente para ensinar/formar na e
o recreio, a família, o grupo de pares, as para a cidadania.
associações recreativas, etc., espaços esses
cuja organização implícita e explícita espelhe Por essa razão, a defesa da educação para
também ela exemplos de cidadania. Referimo- a cidadania, tendo por suporte o garante
-nos, em concreto, à existência de uma boa da defesa dos interesses individuais, tem
gestão/liderança quer ela diga respeito ao sido criticada por enfatizar os direitos dos
estabelecimento de regras de funcionamento cidadãos e das cidadãs em detrimento das
desses mesmos grupos, quer ela se relacione suas responsabilidades no âmbito de uma
com a participação democrática de todos os convivência coletiva. Neste sentido, poderia
seus membros na tomada de decisões e na ser perspetivada como educação para uma
partilha de deveres e responsabilidades. cidadania consumista, como lhe chamou Paulo
Freire (1995), na medida em
que se enfatiza a exigência
“ Sabe-se que a cidadania não se aprende por via de um ensino exposi-
tivo ou com base numa pedagogia da autoridade, ainda que a posse de
dos direitos para garantir
os interesses individuais.
conhecimentos seja fundamental. Para que os valores inerentes ao que
é ser cidadão ou cidadã sejam aprendidos por crianças e jovens, torna-se Consideramos importante
importante que eles e elas observem, ensaiem, debatam e reflitam em que a população infantil e
torno de práticas positivas de cidadania, em espaços ‘emocionalmente juvenil esteja consciente dos
protegidos’ e com recurso a modelos positivos e alcançáveis. Pais, mães, seus direitos mas também
professores e professoras – e todos os restantes agentes educativos – das suas responsabilidades,
”
deverão constituir esses modelos.
enquanto cidadãos e
Cristina C. Vieira, 2009. cidadãs. Educar para e na
cidadania implica educar
para a consciencialização
É fundamental, todavia, ter em conta que a da relação recíproca entre direitos e deveres.
conceção de educação para/na cidadania varia Direitos e deveres não são pólos de uma
em função da orientação adotada relativamente dicotomia, mutuamente exclusivos, mas
à educação. Pode-se colocar a ênfase numa sim complementares. Numa orientação de
educação orientada para os indivíduos, cidadania mais ativa e plural pretende-se a
enquanto sujeitos que partilham características dissolução de dicotomias frequentemente
comuns, ou para o interesse público e coletivo paralisadoras de projetos verdadeiramente
e estes dois posicionamentos representam igualitários. A liberdade individual e os direitos
opções distintas e, mesmo, antagónicas. que lhe são inerentes só podem ser garantidos
Frequentemente confunde-se a educação para tendo por base as instituições democráticas de
a cidadania com desenvolvimento pessoal dos suporte, sem as quais a própria liberdade fica
alunos e alunas, o que representa enfatizar comprometida. As responsabilidades para com
a primeira vertente do problema. Ensinar ou todas as instituições que mantêm a sociedade e
052 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
32 Claro que existe também a possibilidade de construção de redes de cidadania a nível global que são de valorizar e incentivar.
1.9.
Construindo
práticas de cidadania
A
educação formal deve ser vista ativo/a nos seus grupos de pertença, como
apenas como uma das componentes defenderam Rolf Gollob e Peter Krapf (2007).
de um conjunto de políticas sociais Em suma, deverá ser responsável na forma como
e de programas que deverão ser exerce a sua cidadania, quer no desempenho
assumidos oficialmente e postos em prática de papéis privados (por exemplo, filha, esposa,
(com o devido acompanhamento e monitorização) marido, pai, filho, mãe), quer no desempenho
para a promoção de um sentido pleno de de papéis sociais e profissionais (por exemplo,
cidadania global em todas as pessoas. E para professor/a, educador/a, formador/a).
que tal ultrapasse uma mera declaração de
intenções, é indispensável não só a elaboração
Sendo indispensável a abordagem
de recursos pedagógicos e didáticos, mas
também o reequacionamento da formação inicial
da igualdade de género no âmbito
e contínua de quem tem responsabilidades da educação para a cidadania,
educativas e formativas. Ensinar, orientar e revela-se fundamental a formação
promover ações no âmbito da educação para e a consciencialização de todos os
a cidadania implica, antes de tudo, ser-se
agentes educativos para a importância
genuinamente cidadão ou cidadã. E isso apela
ao desenvolvimento de uma consciência crítica
do género na modelação dos
em torno do papel individual na manutenção das comportamentos desde os primeiros
desigualdades, devendo levar cada pessoa, nessa anos de vida das crianças. A atuação
sequência, à assunção de responsabilidades, das estereotipias de género tende a
ao respeito por si e pelos outros, à adoção de
ser sub-reptícia, os danos causados
valores de cariz universal e à promoção de uma
cultura de justiça, paz e solidariedade.
à autenticidade do desenvolvimento
individual tendem a ser equivalentes
Um cidadão ou uma cidadã informado/a, ativo/a para crianças de ambos os sexos e
e responsável deverá estar consciente dos seus a tomada de consciência deste facto
direitos e responsabilidades enquanto membro
por parte dos homens e das mulheres
da sociedade; deverá conhecer o mundo social
e político; deverá preocupar-se com o seu
pode nunca acontecer.
bem-estar e com o das outras pessoas; deverá
mostrar-se congruente em termos de opiniões A escola, dado o seu protagonismo não só
e práticas; deverá ser capaz de exercer algum na transmissão de conteúdos disciplinares,
tipo de influência sobre o mundo; e deverá ser mas também na formação do ser humano
054 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Cidadania
33 Cf.Fórum Educação para a Cidadania. Objectivos estratégicos e Recomendações para um Plano de Acção de Educação e de
Formação para a Cidadania (2008: 18).
futuro dos e das estudantes enquanto cidadãos É verdade que a educação para a cidadania
e cidadãs, assim como o de toda a sociedade – assim como a educação de uma forma
civil, estará comprometido se eles e elas não geral – por si só não resolverá os problemas
receberem uma educação que lhes permita que as pessoas enfrentam no seu quotidiano.
desenvolver o seu potencial e participarem No entanto, pode chamar a atenção para as
ativamente na construção de uma sociedade responsabilidades individuais e para o exercício
que – sendo a democracia uma condição do das mesmas e assegurar que as pessoas estão
desenvolvimento e não uma causa – se pretende capazes de viver as suas vidas baseadas nos
cada vez mais democrática. A democracia princípios da paz, da harmonia, do respeito e da
requer, tanto o suporte efetivo das instituições tolerância e que saberão identificar a potencial
do Estado, como uma sociedade civil forte. violação desses modos de ser e de estar com
Não é suficiente que o Estado legisle de forma os outros cidadãos e cidadãs. Neste âmbito, a
a assegurar que as condições mínimas da educação para a cidadania deve perspetivar-se
democracia sejam conseguidas, nem é suficiente como um local privilegiado para a construção de
que se iniciem apenas discussões de questões uma educação emancipatória numa sociedade
controversas para tentar encontrar consensos. verdadeiramente democrática para mulheres
É também vital que, quer crianças e jovens, e homens, independentemente das suas
quer docentes participem nas discussões pertenças identitárias.
políticas, que sejam capazes de aprender
através dos erros e que construam de forma
ativa e empenhada um mundo que é o seu.
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ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
2.
género e Currículo
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 061
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
062 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
2.1.
Introdução
A importância do ensino
secundário pode justificar-se “ Enquanto processo educativo, a educação para a
cidadania visa contribuir para a formação de pessoas
com recurso a uma diversidade responsáveis, autónomas, solidárias, que conhecem e
de argumentos, mas talvez o exercem os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito
principal resida no facto de pelos outros, com espírito democrático, pluralista, crítico e
criativo. A escola constitui um importante contexto para a
constituir uma etapa fundamental aprendizagem e o exercício da cidadania e nela se refletem
na transição de alunas e alunos preocupações transversais à sociedade, que envolvem
para o início da vida adulta, diferentes dimensões da educação para a cidadania. ”
o que acarreta desafios e Fonte: Educação para a Cidadania - Linhas Orientadoras,
disponível em: http://www.dge.mec.pt/educacao-para-
responsabilidades. cidadania-linhas-orientadoras-0
D
urante esta última fase da
escolaridade obrigatória em cânones da ciência, e que a escola ensina,
Portugal, na sequência da tem, por isso, não apenas a função de
publicação da Lei n.º 85/2009, enriquecimento de saberes em quem aprende,
de 27 de agosto, é-lhes traçado um cenário mas também a tarefa de desenvolvimento da
ainda mais complexo de um mundo de que reflexividade dos e das adolescentes, neste
eles e elas fazem parte, trazendo-se para a caso alunas e alunos do ensino secundário,
discussão assuntos que requerem um grau ampliando as lentes com que olham à
de sofisticação epistemológica crescente, sua volta, com que perscrutam as suas
que se espera que elas e eles acompanhem, experiências e identificam nelas e em redor
e também lhes é exigido que desenvolvam preconceitos, desigualdades e diferentes
competências de gestão do conhecimento formas de opressão e de dominação.
e de tomada de decisão. Ao mesmo tempo,
pede-se-lhes que façam escolhas vocacionais Pondo de parte qualquer visão tradicional
ligadas, ou não, ao prosseguimento de da escola, enquanto mero veículo de
estudos pós-secundários, que terão conhecimentos dominantes e estáticos,
necessariamente impacto nas respetivas inscritos numa matriz curricular que teria sido
trajetórias individuais futuras. pensada para um modelo de aluno abstrato,
e dos e das discentes, como meros/as
O conhecimento historicamente construído recetores/as de informação, que aprenderiam
e em constante atualização, alicerçado nos numa lógica de ensino transmissivo, importa
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 063
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
064 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
1 A taxa de ‘abandono precoce de educação e formação’ (nova designação adotada, para substituir a expressão ‘abandono
escolar precoce’) refere-se à percentagem de indivíduos dos 18 anos aos 24 anos sem o ensino secundário completo, que não
estão a frequentar nem ofertas da educação nem outras ofertas equivalentes de formação qualificantes. Embora os números tenham
vindo a diminuir desde 2006, Portugal era, em 2014, o terceiro país da União Europeia com maior taxa de abandono precoce de
educação e formação para os rapazes (20.7%) ficando em quarto lugar neste indicador no caso das raparigas (14.1%), segundo
informações do Eurostat, disponíveis em http://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Early_leavers_from_educa-
tion_and_training#Analysis_by_sex (consultado a 17 de maio de 2015).
2 Dados disponíveis em: http://www.pordata.pt/Portugal/Taxa+de+abandono+precoce+de+educa%C3%A7%C3%A3o+e+form
a%C3%A7%C3%A3o+total+e+por+sexo-433 (consultado a 18 de março de 2017).
3 Para uma leitura mais precisa dos indicadores e para uma visão comparativa entre os países da OCDE, consultar o Relatório
Education at Glance 2015 – Interim Report. Update of employment and educational attainments, segundo o qual em algumas
nações, incluindo Portugal, a diferença entre homens e mulheres jovens com baixas qualificações pós-secundárias é superior a
quatro pontos percentuais, com prejuízo para o sexo masculino. Disponível em: http://www.oecd.org/edu/EAG-Interim-report.
pdf. Ver também o Relatório relativo a 2016, disponível em: http://www.oecd.org/edu/education-at-a-glance-19991487.htm
(consultado a 20 de abril de 2015).
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 065
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
particular dos adolescentes do mesma que permita, por um até certo ponto o insucesso
sexo masculino4 (a chamada lado, desenvolver modos detetado e estarem
“crise dos rapazes”). de educar que deem, na base de diferentes
àqueles e àquelas que mais escolhas (vocacionais)
Nos países da oCDE dificuldades sentem na e de comportamentos
os rapazes são duas escola, iguais possibilidades evidenciados por alunas
de sucesso (tanto escolar e alunos nesta etapa
vezes mais propensos
como educativo), não só nos da escolaridade, com
do que as raparigas a termos comummente aceites repercussões inegáveis para
considerar que a escola pelas instituições de ensino, o futuro, quer continuem ou
é uma perda de tempo e mas também de acordo com não a estudar.
diferem delas em cinco novos padrões de referência
e de avaliação. Este olhar As mudanças trazidas com
pontos percentuais
atento não pode deixar de a transversalização da
mais elevados, ao nos alertar, por outro lado, educação para a cidadania5,
‘concordarem’ ou para o facto de o Decreto-lei aliadas à produção de
‘concordarem muito’ referido, embora mencione materiais e documentos de
com a afirmação de que finalidades, princípios e referência e à organização
a escola tem contribuído objetivos para o ensino de oficinas de formação
secundário, nunca se referir de docentes, são um sinal
pouco para os preparar
explicitamente às questões de positivo de que há espaço
para a vida adulta género inerentes às diferenças na escola e abertura por
quando deixarem o entre os sexos, que se sabe parte da tutela para a
ensino formal poderem também explicar lecionação de conteúdos não
(oCDE, 2015b: 36).
Perante os números “ Não obstante a distância que medeia entre os discursos e as prácticas,
as escolas começaram a ser progressivamente entendidas como organi-
apresentados e trazendo para zações dotadas de margens de autonomia, como espaços onde educa-
o debate o poder desigual dores e educandos devem assumir uma postura crítica e interventora,
outorgado a mulheres e traduzida na definição e implementação de projectos que lhes interes-
homens pelas convenções sem e que sejam localmente significativos. Estamos a reportar-nos a uma
sociais de género para concepção de professor[a] que, enquanto profissional, se assume como
perscrutar o currículo do agente de inovação e mudança, nomeadamente em termos de inter-
venção curricular, e de escolas entendidas como unidades organizacio-
ensino secundário, a questão
nais de decisão que reconhecem o[/a] aluno[/a] como co-construtor[/a]
que devemos colocar enquanto
profissionais da educação
do seu percurso de aprendizagem. ”
é a de como construir uma Jorge Adelino Costa e colegas, 2004: 6.
teoria e uma prática da
4 Esta relação dos rapazes com a escola, que traz para a discussão o seu menor envolvimento, o seu mais rendimento e o seu
mais problemático comportamento em comparação com as raparigas, é amplamente debatida no documento de Michael
Kimmell (2010), disponível em: http://menengage.org/wp-content/uploads/2014/06/Boys_and_School_A_Background_Paper_
on_the_Boys_Crisis.pdf. Veja-se ainda o estudo com o título O papel dos homens na igualdade de género: estratégias e insights
europeus, publicado em 2013 e disponível em: http://ec.europa.eu/justice/gender-equality/files/gender_pay_gap/130424_fi-
nal_report_role_of_men_en.pdf (consultado a 10 de março de 2015).
5 Consultar o site da Direção-Geral da Educação, para mais informação sobre o trabalho desenvolvido na área da Educação para
a Cidadania, em: http://www.dge.mec.pt/educacao-para-cidadania (consultado em 17 de março de 2017).
066 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 067
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
2.2.
O que se ensina e o
que não se ensina na escola
N
ão havendo aqui lugar para nos vigentes, havendo diretivas definidas pela
determos nas várias aceções tutela quanto à forma de operacionalização
de currículo, concordamos do currículo, em termos de conteúdos,
com a ideia básica de que metodologias e avaliação das aprendizagens.
ele deve traduzir uma teoria e uma prática
que seja útil para a vida de quem aprende, Numa lógica de equidade, para usar as
que represente um cenário da realidade e palavras de Maria Ivone Gaspar e de Maria
que não deixe de fora assuntos que são do Céu Roldão (2007), o currículo deverá
fundamentais para a vida de todos os dias. visar sempre a aquisição de saberes e o
Mais do que perspetivá-lo como o plano de desenvolvimento de competências em alunos
estudos oficial ou o leque dos programas e alunas, qualquer que seja o seu ponto de
das disciplinas oferecidas pela escola (visão partida, de forma a garantir-lhes o acesso a
restrita), entendemos, tal como Maria da trajetórias sociais que são certificadas pela
Piedade Ramos e Jorge Adelino Costa (2004), escola. No entanto, a sua aplicação terá
que ele traduz, num entendimento mais lato, necessariamente de abandonar a defesa de um
“o conjunto de aprendizagens ou experiências modelo de currículo uniforme, pronto-a-vestir
formativas realmente acontecidas” (p. 81). e de tamanho único, seguindo a expressão
cunhada em 1987 por João Formosinho,
Como afirmam os especialistas portugueses porque as distintas pertenças identitárias das
Joaquim Machado e João Formosinho crianças e jovens que convivem no mesmo
(2012), ao definir o currículo escolar o Estado espaço escolar apelam a uma atuação
determina de maneira uniforme para todo pedagógica diferenciada que esbata eventuais
o território nacional, e para os alunos de diferenças condicionadoras de desempenhos e
ambos os sexos, o que estes e estas devem crie condições de sucesso para todas e todos.
aprender e que, por conseguinte, lhes deve
ser ensinado, traduzindo isso opções de Sabe-se que o “sexo afigura-se como
fundo quanto às finalidades e conceções de o primeiro e mais estruturante fator de
educação defendidas centralmente. Ainda desigualdade. Sempre que se colocam em
na linha dos mesmos autores, a definição do evidência as várias situações e privações que
corpus curricular acaba por outorgar à escola configuram uma situação de exclusão social
a responsabilidade de ser não apenas um local e os grupos a esta associados, verifica-se
de educação formal, mas também um espaço que, neles, as mulheres se encontram em
por excelência de formação de cidadãs e de particular desvantagem. (…) A exclusão social
cidadãos, de acordo com os valores sociais e a pobreza, bem como a desigualdade de
068 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 069
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
070 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 071
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
5 Ver a este respeito o artigo de David Flinders e colaboradores (1986), no qual estes autores parecem defender a ideia de que a
dimensão afetiva é a mais importante, pois sem ela as restantes duas ficam esvaziadas de sentido em termos de aprendizagem.
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6 Fonte: http://spartacus-educational.com/Fbritishladies.htm (consultado a 12 de março de 2015).
072 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 073
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
9 Para uma consulta atenta dos resultados disponíveis para Portugal da comparação internacional PISA 2015, consultar: http://
gpseducation.oecd.org/CountryProfile?plotter=h5&primaryCountry=PRT&treshold=10&topic=PI
10 A referida publicação, com o título Women, Science and Globalisation: What´s UP?, encontra-se disponível em: http://www.
qrandgo.com/AMONET_ebook.html (consultado a 12 de agosto de 2015).
11 Segundo o I Relatório sobre Diferenciações Salariais por Ramos de Atividade, relativo à situação portuguesa e publicado em
2014, “no que respeita aos níveis de qualificação, constata-se que o diferencial salarial entre mulheres e homens, desfavorável
às mulheres, é diretamente proporcional aos níveis de qualificação, ou seja, quanto mais elevado é o nível de qualificação
maior é o diferencial salarial, sendo, portanto, particularmente elevado entre os quadros superiores” (p. 13). Disponível em:
http://www.cite.gov.pt/pt/destaques/complementosDestqs/I_Rel_Dif_Sal.pdf (consultado a 20 de março de 2015).
074 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
12 Em Portugal, em 2015, os números divulgados pelo Conselho Nacional de Educação, no Relatório Estado da Educação, re-
velavam que 99,1% dos docentes eram mulheres, diminuindo a percentagem à medida que se avançava nos níveis de ensino.
Nos ciclos seguintes, havia 86,6% de mulheres no 1º CEB, 72,3% no 2º CEB e 71,6% no 3º CEB e secundário. Fonte: http://
www.cnedu.pt/content/noticias/CNE/Estado_da_Educacao_2015_versao_digital.pdf (consultado a 17 de março de 2017).
13 Em 2009, segundo estatísticas oficiais, a percentagem de homens diplomados ou licenciados em Serviço Social em Portugal
representava apenas 9% da totalidade de profissionais, tendo este indicador crescido apenas cinco pontos em treze anos
(desde 1996). Ver a este propósito a publicação de Francisco Branco (2009), com o título A profissão de assistente social em
Portugal, disponível em: http://snas.pt/artigos/aprofiss%C3%A3odeassistentesocialemportugal (consultado a 20 de março de
2015).
14 Documentos disponíveis em: http://www.coe.int/t/DGHL/STANDARDSETTING/EQUALITY/03themes/gender%20
stereotypes%20and%20sexism/Report%202%20NFP%20Conference%20Helsinki%20-%20Education.pdf (consultados a 20
de março de 2015).
15 Documento com o título Combating gender stereotypes in and through education, disponível em: https://rm.coe.int/
CoERMPublicCommonSearchServices/DisplayDCTMContent?documentId=0900001680590fe5 (consultados a 22 de março
de 2015).
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 075
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
076 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
2.3.
N
uma tentativa de elencar as no mercado de trabalho, associadas aos
razões da existência (quase estereótipos de género, os quais influenciam
um paradoxo) de um currículo a escolha das profissões em ambos os sexos,
nulo no ensino secundário, na no ensino da economia.
sequência do pensamento de George Posher
• currículo nulo por exuberância
(2004) e dos contributos de autores como
Neste caso dedica-se uma importância
Beatriz Meza e Rafael Cepeda (s/d), aos quais
excessiva a determinados assuntos,
juntamos reflexões nossas – ‘que conduzem
eclipsando-se por detrás dessa ‘profusão
a uma associação entre o tipo de omissões
de conhecimentos’ determinadas temáticas
identificadas e as problemáticas de género que
profundamente relevantes e inerentes ao tema
estão na base das desigualdades sociais entre
principal abordado, as quais têm implicações
mulheres e homens’ –, propomos a seguinte
diretas na compreensão da realidade por parte
adaptação por categorias, não mutuamente
de quem aprende. Apresentamos aqui, como
exclusivas, nem exaustivas (i.e., as categorias
exemplo, a relevância dada ao tema geral do
podem sobrepor-se, ser concomitantes e a lista
acesso das mulheres à escolarização durante
não está fechada, nem esgotámos o que foi
o último século, fazendo crer que isso foi
proposto nas fontes consultadas):
uma realidade em todos os países – mesmo
• currículo nulo considerando apenas os da parte ocidental
por omissão completa do mundo –, que se fez da mesma forma em
Acontece quando estão totalmente ausentes todos eles e sempre com progressos, e que
dos conteúdos curriculares temáticas com os efeitos sociais para o sexo feminino dessa
importância para a vida coletiva, seja a nível suposta ‘entrada em massa’ para a escola
individual, seja a nível profissional. Aqui foram equivalentes. Ora, como sabemos,
poderíamos dar o exemplo da omissão das estas assunções são profundamente erróneas,
questões da orientação sexual no ensino da uma vez que ainda há hoje elevadas taxas
biologia ou o não tratamento da problemática de analfabetismo entre as mulheres idosas
das segregações (horizontal e vertical) mesmo no nosso país17 – os números ganham
17 Segundo o Censos de 2011 na região do Alentejo, por exemplo, a taxa de analfabetismo dos homens era de 7.1% e as das
mulheres era de 11.8%. Na faixa etária das pessoas com mais de 75 anos, esses números sobem para 33.2% para o sexo
masculino e para 46.5 para o sexo feminino. Ou seja, ainda há regiões no nosso país onde cerca de metade da população
idosa feminina não sabe ler nem escrever, o que lhes retira direitos inalienáveis e lhes traz enormes prejuízos no exercício da
cidadania.
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 077
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
18 As quinze áreas temáticas da educação para a cidadania adotadas pela Direção-Geral da Educação do Ministério da Educação
e Ciência podem ser consultadas em: http://www.dge.mec.pt/areas-tematicas (consultado a 22 de março de 2015).
078 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
e deixa de fora do debate – e mesmas, primeiro para a sua quando se usa terminologia
do retrato da sociedade que formação enquanto cidadãos demasiado hermética, sem
é feito na sala de aula (ou na e cidadãs e para o exercício a necessária definição dos
disciplina em causa) – uma da cidadania, e depois para conceitos (consultar, a este
parcela da população adulta a formação global de quem propósito, o Glossário no
(ou seja, as pessoas que não ensinam. final deste Guião). É possível
são heterossexuais). que os e as discentes até
• currículo nulo por
estejam familiarizados/as
• currículo nulo por falta desfasamento do
com alguns termos (ex: gap
de preparação de quem conhecimento
salarial; mainstreaming de
ensina Neste caso, pode-se tentar
ensinar os discentes e género; tetos de vidro; assédio
Este tipo de omissão acontece
abordar temáticas relevantes sexual), mas tenham feito uma
quando se espera que os/as
para a vida de mulheres e apropriação incorreta dos
docentes abordem temáticas
de homens, mas de modo mesmos, resultando por isso a
para as quais não estão
desfasado da realidade. sua aprendizagem em parcelas
despertos/as ou nem sequer
Isto é, pode apresentar-se de informação erroneamente
cientificamente preparados/as
dados obsoletos, estatísticas organizadas nas suas redes
para o fazer. Logo, não se
desatualizadas, evidências mentais de conhecimentos.
pode esperar a introdução
de assuntos ligados às empíricas refutadas por novos • currículo nulo por
problemáticas de género estudos científicos, entre falhas na metodologia
nas diversas disciplinas, se outros exemplos. Tal poderá de ensino
os/as próprios/as docentes acontecer se, por exemplo, Esta omissão pode
não tiverem uma leitura na discussão em torno da acontecer nos curricula,
sensível sob esta ótica da participação das mulheres independentemente das áreas,
realidade. Isto não significa na vida política ou mesmo no quando os temas em debate
que haja sempre da sua parte mercado de trabalho, a ou o exigem uma participação
alguma intencionalidade ao docente for buscar indicadores ativa e calorosa de alunos
evitarem fazê-lo. O problema relativos aos países do norte da e de alunas e os métodos
reside no facto de talvez Europa e não usar estatísticas pedagógicos adotados por
nunca lhes ter sido dada a portuguesas para o efeito, quem ensina obrigam a uma
oportunidade, em termos dado que há fatores políticos e atitude de passividade em
formativos (formação inicial culturais que pesam na leitura e quem aprende. No debate de
e contínua), de aprenderem interpretação dos números19. assuntos relevantes para a vida
a usar ‘as lentes de género’ • currículo nulo por de alunos e de alunas, como
para ler e interpretar situações falta de preparação sejam os seus projetos futuros
e indicadores que traduzam prévia da/o discente em termos da conciliação da
desigualdades sociais entre para assimilar família com a carreira – ou
mulheres e homens. Neste informação nova mesmo as suas perspetivas
caso específico, as temáticas Este tipo de omissão pode de vida a nível cultural, social
não são abordadas, porque ocorrer quando não se leva em e político –, que arrastam
não existe em docentes conta aquilo que a e o discente consigo outras problemáticas,
consciência crítica individual da supostamente já sabem como o desempenho de
importância da discussão das acerca das temáticas, ou ainda papéis parentais e conjugais,
19 Ver a este propósito o capítulo 2.3. da segunda parte deste Guião, relativo à área de Economia.
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 079
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
é de esperar que haja entusiasmo (e, às diversas em que este tipo de violência pode
vezes, desdém, se considerarem tais decisões traduzir-se, não se falar em concreto na
longínquas no tempo…) no esgrimir de violência no namoro, na violência nas relações
pontos de vista, e tal não se coaduna com de intimidade, no assédio sexual, no tráfico
metodologias sobretudo expositivas e com de seres humanos para fins de exploração
atitudes docentes que Paulo Freire (2002) sexual, entre outras, e nas formas que as
caraterizou como ambíguas, contraditórias20 mesmas costumam assumir, poderá deixar-
ou mesmo incoerentes. se passar a ideia comum de que ‘aquela
• currículo nulo por excesso de violência’ se refere apenas a situações de
recursos audiovisuais agressão física e psicológica entre marido e
Neste caso poderá falar-se da omissão de mulher, sendo ele o agressor e ela a vítima. Um
conteúdos fundamentais para a tomada de procedimento desta natureza poderá inclusive
consciência crítica sobre as razões que estão a deixar passar ao lado situações reais de alunos
montante das desigualdades e discriminações e de alunas, presentes no referido debate, e
sociais entre homens e mulheres, e das sem consciência de que eles e elas próprias
respetivas implicações para ambos os sexos, poderão estar a desempenhar os ditos
se os e as docentes optarem por usar uma papéis e que teriam ganhos incontornáveis se
panóplia de materiais numa mesma aula, como tivessem consciência disso.
cartazes, vídeos, textos, etc., sem dar tempo • currículo nulo por falta de
aos e às discentes de aprofundarem a sua articulação de conteúdos
análise para os fins previstos. Neste caso, há A não articulação de conteúdos entre as
como que um efeito de inebriamento (ou de diferentes disciplinas que compõem o
êxtase) que é provocado pelos efeitos da cor, currículo do ensino secundário pode também
luz, som, movimento, etc., que poderá ser constituir um exemplo de currículo nulo, pois
contraproducente em relação à necessidade os e as discentes poderão não conseguir,
de descodificação e de desocultação da por essa razão, compreender o valor dessas
informação, que poderia ter eventualmente aprendizagens para a sua vida presente e
para eles e para elas valor emancipatório. futura enquanto seres humanos. A apropriação
• currículo nulo por superficialidade do conhecimento como algo parcelar, sem
A omissão aqui em causa poderá ter a ver valor prático para a condição de se ser
com a ligeireza do tratamento de certos humano, e apenas para fins de avaliação e
assuntos, com importância para a vida de sucesso escolar, pode transmitir a ideia de
individual e coletiva. Refira-se, a este propósito, que a escola é um contexto afastado da vida
a problemática da violência de género, que real, de que o conhecimento cientificamente
tende a ser legitimada por diversas fontes construído – enquadrado em contextos sociais
de influência, como se disse atrás, como e históricos – é mais importante (e quase anula)
a publicidade, os videoclips, os modelos do que o conhecimento experiencial, resultante
valorizados nos media, entre outras. Se, num da vida concreta de cada qual, e que haverá
possível debate em torno das manifestações inclusive determinados assuntos que não
20 Na sua visão crítica acerca do papel dos/as educadores/as na promoção de um conhecimento que tenha valor emancipatório,
resultando isso quer da coerência do comportamento pedagógico (do docente) com os conteúdos ensinados (currículo),
quer da valorização do saber popular dos discentes, adquirido a partir do vivido, Paulo Freire (2002) defende a prática do
“desnudamento do contraditório” (p. 210). Nas suas palavras, “o cinismo não é a arma indicada para a reconstrução do mundo”
(idem, ibidem), pelo que quem exerce a autoridade de ensinar deve pautar-se pela coerência, pela humildade e pela crença
genuína naquilo que faz.
080 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
interessa tratar na escola, pois não têm a ver dos e das docentes, enquanto modelos
diretamente com os conteúdos específicos das de cidadania para alunas e alunos, poderá
disciplinas. reforçar conceções estereotipadas assentes
• currículo nulo por falta de um nas desigualdades de género ou, pelo
trabalho colaborativo entre docentes contrário, poderá ser um bom mote para as
A inexistência de uma atitude de cooperação contrariar junto dos e das discentes, que são
entre docentes, no tratamento de temáticas até observadores/as atentos/as e participantes
consideradas transversais, como a promoção da realidade. O que se afirma neste caso a
da igualdade social entre mulheres e homens propósito da importância dos modelos que as
e o combate a todas as formas de dominação e os docentes representam pode estender-se,
sexista, é também ilustrativa das omissões de no espaço escolar e fora dele, a todas as outras
que a escola pode padecer. O comportamento pessoas com responsabilidades educativas.
“ É o caso de uma professora que, lutando contra a discriminação machista, tem, contudo, uma
prática pedagógica opressiva. Na sua tarefa académica de orientar estudantes (…) se comporta
de tal maneira autoritariamente que pouco espaço para criar e para se aventurar intelectualmente
lhes resta. Esta professora hipotética, mas muito fácil de ser encontrada, é a um tempo oprimida
e a outro opressora. É uma incoerente. A sua luta contra a violência machista perde a força e vira
um blablablá inconsequente. Para a autenticidade de sua luta ela necessita superar a incoerência
e, assim, ultrapassando o blá-blá-blá, diminuir a distância entre o que diz e o que faz.
Na medida em que a professora de nosso exemplo reflita criticamente sobre a sua prática é possível
perceber que, em última análise, na relação entre sua autoridade de professora e as liberdades
de seus alunos [e alunas], ela os vem oprimindo, e isto contradiz o seu discurso e a sua prática
antimachista. Desta forma, das duas, uma: ou assume cinicamente seu autoritarismo e continua
falsamente sua luta feminista ou, rejeitando-o, revê suas relações com os [os/as] estudantes para
que, assim, possa continuar a sua luta antimachista. ”
Paulo Freire, 2002: 209-210 (adaptado para uso da linguagem inclusiva).
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 081
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
2.4.
O
trazer para dentro da sala de Segundo José Augusto Pacheco
aula assuntos e temas vistos “Pelo espaço que ocupa na sociedade,
muitas vezes como políticos
com a predominância da formação
pode desencadear junto de quem
como aprendizagem ao longo da vida,
aprende, das famílias e da própria instituição
escolar, no seu todo, uma certa sensação de o currículo é uma destacada arena
estranheza ou mesmo de suspeição sobre da política cultural que se converte,
as reais intenções de quem ensina. Mas, a de forma explícita e/ou implícita, num
política pode e deve ser entendida como capital simbólico institucionalizado e
o envolvimento das pessoas na vida da num campo com interesses e inves-
polis, da comunidade, traduzindo a própria
timentos proporcionais aos espaços
dinâmica das sociedades, a forma como estão
constituídos por posições sociais
organizadas e o papel de cada um e de cada
uma na administração da vida comum. Além face ao conhecimento.” (2002:119)
disso, como nos relembra Guacira Lopes
Partindo deste pressuposto, importa
Louro (2000), numa alusão a um princípio
fazer as seguintes questões:
básico dos movimentos feministas, “o pessoal
é político” (p. 43), sendo indispensável trazer • Para além dos conteúdos programáticos, que
esses – outros – assuntos para a escola, ‘outros assuntos’ poderão levar-se para a
para que alunos e alunas possam aprender sala de aula? Que temas específicos correrão
a problematizá-los e ousem cooperar para o risco de ser vistos como ‘políticos’?
transformar arranjos perversos e desiguais, • Que temas/materiais serão apropriados?
parafraseando a referida autora (ibidem), em • Como incorporá-los nos temas ‘oficiais’?
alicerces sólidos do bem comum.
• Como articulá-los com o manual adotado?
É indispensável, por isso, promover a • Que tipo de aula, que práticas e rotinas da sala de
consciência crítica, que é o garante do pleno aula promoverão ou facilitarão a introdução de ‘outros
exercício da cidadania, e essa também é assuntos’, de temas e práticas diferentes, como,
por exemplo, o género, a equidade, a justiça?
uma função da escola e das e dos docentes,
dada a sua posição privilegiada – pelo lugar • Serão precisos, realmente, ‘outros
simbólico que ocupam na sociedade – de assuntos’ ou bastará olhar para os ‘velhos
luta a favor da transformação de todas as temas’ com um olhar ‘novo’?
condições de opressão e de dominação. • Não será o próprio currículo também político?
082 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 083
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
21 Ver a este propósito o estudo de Teresa Alvarez Nunes (2007), publicado pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Géne-
ro, com o título Género e Cidadania nas Imagens de História, no âmbito do qual a autora fez uma análise de manuais escolares
e de software educativo de História, do 12º ano, cobrindo a época contemporânea.
084 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
em caixa), mas também por uma visão da escola aos diferentes países membros (ver texto em
como um corpo dinâmico, com responsabilidades caixa), tendo como objetivo usar a educação
educativas e sociais, de combate a todas as formal e todas as restantes dinâmicas que
formas de subordinação que atentem à liberdade ocorrem na escola, como meios de prevenção
de rapazes e de raparigas, ao longo da sua vida. das diversas formas de discriminação que
E esta atenção estende-se, como não poderia possam colocar mulheres e homens em
deixar de ser, à formação inicial e contínua de patamares desiguais de mobilidade social.
profissionais de educação de todos os níveis
de ensino, de forma a integrar a temática da A Recomendação Rec (2007)
igualdade entre homens e mulheres como 13 do Comité de ministros aos
elemento estruturante das orientações educativas
Estados-membros do Conselho
e do funcionamento e organização da escola.
da Europa, sobre a integração da
Esta reflexão pode assentar nos mesmos dois perspetiva da igualdade de género
eixos de leitura que Teresa Alvarez Nunes (2009) na educação, adotada a 10 de
propôs para a análise dos Manuais Escolares. outubro de 2007, deixa indicações
Na esteira da proposta desta autora, abordar o claras quanto aos programas
currículo na ótica do género poderá alicerçar-se de ensino, currículos escolares,
em dois aspetos:
matérias ensinadas e exames:
1) a visibilidade dada a homens e a mulheres em
diferentes áreas; 24. conceber especial atenção à
2) as conceções sobre o feminino e o masculino
dimensão de género no conteúdo
(que podem transmitir, ou não, associações dos programas de ensino e no
estereotipadas entre traços/competências/ desenvolvimento dos currículos em
valores/interesses e pessoas de cada um dos geral (especialmente nas matérias
sexos). científicas e tecnológicas), e rever os
programas sempre que necessário;
Estas preocupações não são recentes e
as diversas instâncias internacionais22 têm 25. analisar o lugar dado às mulheres
estabelecido medidas e feito recomendações nos programas de ensino e nas
22 Consultar para o efeito o documento com o título Estratégias internacionais para a Igualdade de Género – A Plataforma de Ação
de Pequim (1995-2005), publicado pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 085
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
23 Ver a este respeito a obra de Francisco Sousa (2010), como o título Diferenciação curricular e deliberação docente, publicada
pela Porto Editora, e inserida na Coleção Currículo, Políticas e Práticas (nº 34).
086 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
2.5.
Conclusão
F
alar do currículo do ensino secundário cada disciplina em si, mas também do significado
na perspetiva da sua necessária que esta etapa da escolaridade tem para a vida
sensibilidade para as implicações de alunos e de alunas, confrontados/as com
que a ordem social de género tem a necessidade de uma tomada de decisão
trazido à vida de mulheres e homens, ao longo – prosseguimento de estudos ou passagem
dos tempos e em diferentes áreas e sociedades, para o mundo do trabalho – que nem sempre
não é uma tarefa simples. E a dificuldade de tal estão preparados/as para fazer numa fase
desafio deriva não apenas da complexidade de tão precoce das suas vidas (ver caixa).
“ De facto, no caso dos/as adolescentes que prosseguem os estudos e que, por isso, são obri-
gados institucionalmente a escolher uma opção vocacional à entrada do secundário, as deci-
sões tomadas podem confrontar-se com dúvidas, incertezas e questionamentos. A temporali-
dade biográfica, mais densa e potencialmente complexa, assente num processo subjetivo de
exploração visando a busca (normativamente obrigatória) da plena realização de si pode colidir
com a temporalidade institucional imposta no momento preciso da escolha. Adicionalmente
há que contabilizar a volatilidade dos contextos sociais, económicos e políticos que, mesmo
marginalmente, não deixam de interferir na avaliação pelos sujeitos daquilo que é uma esco-
lha boa e/ou uma escolha certa, uma vez que não estão ausentes, como verificámos, preocupa-
ções com os aspetos mais instrumentais da escolha. A partir do reconhecimento das potenciais
tensões associadas às duas temporalidades, explorámos então um modelo de percurso escolar
no secundário que permite dar conta das formas de acomodação, mas também de eventuais
“disritmias” de tempos e modalidades (institucionais e subjetivas) de sucesso, plasmadas em
quatro itinerários-tipo, entendidos numa perspetiva dinâmica — as “carreiras focadas”, as “carrei-
ras atrasadas”, os “itinerários exploratórios” e os “itinerários erráticos”. (…).
Para lá dos percursos, fomos ainda perscrutar os sentidos que os/as protagonistas lhes confe-
rem — para entender, assim, a avaliação subjetiva dos mesmos. À afirmação da livre escolha
dos seus (per)cursos, que celebra os valores da autonomia individual e da realização de si a que
estes/as alunos/as tão fortemente aderem, pelo menos narrativamente, contrapõem-se refe-
rências a alguns constrangimentos institucionais presentes (opções e cursos não disponíveis na
escola frequentada) ou futuros (antecipação das diferentes oportunidades profissionais que cada
opção oferece) que afetam a plena realização de sonhos e justificam, pelo menos em parte, o
sentido dos percursos trilhados. Mais do que uma narrativa unívoca, é de uma composição de
referências normativas (mais expressivas, umas, mais instrumentais, outras) que as escolhas e os
percursos escolares tendem a ser fabricados. ”
Adaptado de Maria Manuel Vieira, Lia Pappámikail, Cátia Nunes, 2012: 66-67.
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 087
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS
088 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo
por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 089
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário
RAMOS, Maria da Piedade (2004), “Os professores e a Antónia F. Conde, Aitana M., García, Alberto M.
(re)construção do currículo na escola: a construção García, Conceição Nogueira, Cristina C. Vieira, Luísa
de projectos curriculares de escola e de turma”, in Saavedra, Paula Silva e Olga Magalhães, Guião de
Jorge Adelino Costa, Ana Isabel Trindade, António Educação Género e Cidadania – 2º Ciclo, Lisboa,
Neto-Mendes, Nilza Costa (Orgs.), Gestão Curricular. Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género,
Percursos de investigação, Aveiro, Universidade de pp. 49-66.
Aveiro, pp. 79-97.
SILVA, Tomás T, (2000), Teorias do Currículo – Uma
SAAVEDRA, Luísa (2005), Aprender a ser rapariga, introdução crítica, Porto, Porto Editora.
aprender a ser rapaz. Teorias e práticas da escola,
Coimbra, Almedina. SOUSA, Francisco (2010), Diferenciação curricular e
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SAAVEDRA, Luísa et al. (2011), “(A)Simetrias de género
no acesso às Engenharias e Ciências Ensino VIEIRA, Maria M., PAPPáMIKAIL, Lia, e NUNES,
Superior Público”, ex aequo, 23, pp. 163-177. Cátia (2012), “Escolhas escolares e modalidades
de sucesso no ensino secundário”, Sociologia,
SILVA, Paula e SAAVEDRA, Luísa (2012), “Género e Problemas e Práticas, 70, pp. 45-70.
currículo”, in Clarinda Pomar (Coord.), Angêla Balça,
090 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Conhecimento
3.
Género e Conhecimento
* A autora agradece o convite que lhe foi endereçado, em finais de 2014, para participar
nesta obra, tendo finalizado este texto e respetivas propostas em agosto de 2015.
092 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Conhecimento
3.1.
Introdução
O
conhecimento científico tem uma entidade externa – como a ou o docente
regras próprias, amplamente ou a escola enquanto comunidade educativa
aceites e conhecidas, e ele não – tornar credível informação aparentemente
pretende anular outras formas incongruente com os ‘saberes’ tácitos já
de apropriação da realidade, como as que adquiridos.
derivam das experiências concretas vividas por
pessoas e grupos. No entanto, quando esse Mesmo quando aceitamos
conhecimento ‘dito’ experiencial constitui um intelectualmente os preceitos
óbice à liberdade do ser humano e aos direitos
da ciência, agarramo-nos
humanos fundamentais de cada pessoa,
independentemente da sua cor de pele, do subconscientemente às nossas
local onde nasceu, do seu sexo biológico, da intuições ou àquilo a que os e
sua pertença étnica, da sua crença religiosa, as investigadores/as chamam as
etc., importa debater o seu papel na educação nossas crenças ingénuas. (…)
e formação das cidadãs e dos cidadãos,
reprimimos as nossas crenças
dentro e fora da escola.
ingénuas à medida que a nossa
Independentemente da idade cronológica de cultura científica aumenta, mas
alunos e alunas, a posse de informações sobre nunca as eliminamos por completo.
Ficam escondidas
nos nossos cérebros, A coincidência entre o que se considera
socialmente desejável para qualquer ser humano
chilreando-nos ao
e muitos dos traços atribuídos à masculinidade
ouvido. (…) A ciência
explica que a humanidade continue a ser pensada,
apela ao nosso cérebro nomeada e organizada a partir de uma conceção
racional, mas as nossas masculina de indivíduo e de cidadão.
crenças são, em grande
Joan Scott, 2006
parte, motivadas pela
emoção e a maior
motivação de todas é ciência (Adaptado de Joel incluindo a gestão das relações
Achenbach, 2015: 26 e 31). interpessoais, o respeito pelo
mantermo-nos ao lado corpo e a vivência da intimidade.
dos nossos pares. (…) Falando das desigualdades
Muitos conhecimentos tácitos
Todas as pessoas sentem de poder associadas à ordem
constituem, não raramente,
a necessidade social de género, ao predomínio
obstáculos à autodeterminação
de ser aceites e essa de uma ciência de ‘tamanho
e à tomada de decisão de
único’, construída tendo por
vontade é tão forte alunos e de alunas, porque
base o modelo masculino
que os valores e as interferem nas suas escolhas
como referência, e à omissão
– supostamente livres e em
opiniões sociais estão velada da diversidade individual
consonância com as respetivas
sempre a sobrepor-se à capacidades e apetências – que é possível observar na
ciência. E continuarão a sejam elas relativas a percursos categoria ‘homens’ e na
sobrepor-se à ciência, escolares e profissionais, sejam categoria ‘mulheres’, torna-se
indispensável refletir sobre o
sobretudo quando não elas respeitantes a opções
diretamente relacionadas modo como o conhecimento no
existe uma desvantagem ensino secundário é transmitido,
com a vida privada, nela
evidente em ignorar a construído e permeado, ou não,
por conceções deterministas e
estereotipadas de género, de
“ Persiste, portanto, a representação de que o modelo é o homem e que
as mulheres só têm direito aos direitos porque conseguiram atingir os
docentes e discentes.
níveis dos homens. Os homens continuam a marcar a altura da fasquia e Como refere Paula Silva,
se quisermos ou nos treinamos para a atingir ou então não se justifica a
“existe uma efetiva
‘igualdade’. (…) A obtenção da igualdade é assim vista como uma corri-
da de obstáculos que as mulheres vão tendo que sucessivamente ultra- igualdade de acesso à
passar a fim de poder reclamar os ‘mesmos’ direitos. Temos sempre que educação escolar para
provar que merecemos aqueles direitos. Ou seja, e é este um ponto mui- os dois sexos criando a
to importante a realçar: os direitos das mulheres são maioritariamente
vistos, quer por mulheres quer por homens, como uma conquista que
ilusão de uma igualdade
se merece e não como inerentes ao ser e estar, à dignidade intrínseca do de oportunidades.
ser humano, não tendo que apresentar mais do que essa humanidade No trajeto escolar são
como justificativo de direitos. Portanto, o valor da igualdade é entendi-
ainda identificáveis
do como um adquirido merecido, não como um direito humano. ” discriminações em
Ana Vicente, 1998: 15-16.
função do sexo, diríamos
microdiscriminações,
094 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Conhecimento
adaptando o termo
de Luís Bonino de “ Se o conhecimento sobre o mundo e a humanidade for integrador e
igualmente valorizador de homens e de mulheres, dos seus saberes e
micromachismos.
dos seus afazeres, dos traços de personalidade e das condições de vida
São discriminações de uns e de outras, bem como do modo como se constroem e se re-
não percebidas, quase constroem as relações entre os sexos e no interior de cada uma das ca-
imperceptíveis, no limiar tegorias formadas com base na pertença biológica, esse conhecimento
torna-se mais abrangente, mais próximo da realidade e mais integrador
da evidência. Atuam da diversidade de modelos de pessoas (homens e mulheres). Esta é uma
discretamente mas de condição essencial para que tanto raparigas como rapazes se revejam
forma indelével, valendo nas inúmeras possibilidades de vida futura e incorporem o mesmo direi-
to à escolha do seu percurso escolar, da sua profissão e do seu projeto
pelo seu conjunto,
moldando formas de ser
de vida.”
Teresa Alvarez Nunes e Cristina C. Vieira, 2014: 14.
e de estar tão enraizadas
que direcionam
pensamentos, de refletir sobre si próprios/as informadas, constituem razões
opções, ações e e acerca do que existe à sua mais do que suficientes para
volta. Na escola não devem que se justifique a introdução
julgamentos.(…) Estas
reforçar-se conhecimentos do eixo estruturante da
microdiscriminações são
potencialmente penalizadores igualdade de género na
efetivas discriminações, para eles e para elas, mas, formação de docentes e nas
porque têm sempre forte pelo contrário, deverão ser práticas educativas. Esta é,
impacte na vida das evidenciadas como legítimas pois, uma tarefa transversal
pessoas que as sofrem, outras formas de ser e de estar, às diferentes áreas do saber
por menos percebidas a partir da problematização abrangidas pelo ensino
do status quo instalado, que secundário e exige um trabalho
que sejam”. (2014:13)
traduzam a efetiva igualdade sistemático e concertado
social entre os sexos e que de todos/as quantos/as têm
O recurso às chamadas
tornem visíveis uns e outras em responsabilidades educativas.
‘lentes de género’ – aqueles
todas as esferas da vida. A transversalidade das
óculos que devemos usar para
identificar formas implícitas diferentes temáticas passíveis
e explícitas de discriminação O valor do conhecimento de análise nesta matéria – a
social com base no sexo (ser cientificamente alicerçado, promoção da igualdade
homem ou ser mulher) – para associado ao desenvolvimento entre mulheres e homens
analisar o modo como o de competências de análise – não pode escamotear a
conhecimento é apresentado crítica da realidade por parte importância que lhe deve ser
e apreendido no ensino dos e das adolescentes, que dada na formação de alunos e
secundário afigura-se como os e as habilitem a saber alunas, dado tratar-se de um
fundamental, se o objetivo apropriar-se e a lidar com assunto estruturante, por isso,
da escola for efetivamente o a informação, a identificar vital, da organização social,
de também contribuir para a situações de manifesta política e cultural
abolição de todas as formas desigualdade social, a A preocupação de não
de desigualdade social entre desconstruir estereotipias separar o conhecimento
homens e mulheres, tornando sexistas em discursos e que é transmitido na escola
os alunos e alunas capazes narrativas e a tomar decisões daquele que é necessário para
a vivência diária da cidadania, seja quais forem do Conselho Nacional de Educação, relativa à
as escolhas de alunos e alunas, em termos Educação para a Cidadania, que foi publicada
de percursos futuros, ficou bem expresso há no Diário da República, 2ª série, nº 17, de 24 de
alguns anos atrás na Recomendação nº1/2012, janeiro de 2012 (ver caixa).
“ Não é, também por isso, justificável continuar a manter preocupações diferenciadas (por vezes,
até antagónicas) que resultam da separação artificial entre o que é transmissão e aquisição do
conhecimento (considerado escolarmente digno) e o que é cidadania (ou o que são as diferen-
tes cidadanias). Os saberes eruditos e profanos, pluricontinentais, multiculturais e pós-coloniais,
portugueses, europeus e universais, técnicos, científicos e humanísticos, devem dar sentido
a uma ecologia de saberes e ao confronto crítico com a complexidade cognitiva presente no
mundo contemporâneo. Nessa ecologia de saberes está naturalmente incluído o saber escolar,
cuja centralidade não pode ser posta em questão. Não se trata, por isso, de recusar a excelência,
necessariamente também académica, mas de abrir as portas a uma pluralidade das formas de
excelência, não separável de uma conceção ampliada de cidadania (…). Construir uma escola
com qualidade científica e pedagógica, sem subordinar o conhecimento a lógicas meramente
instrumentais ou adaptativas, é também promover a escola democrática e a cidadania, uma vez
que as desigualdades e as exclusões — que resultam frequentemente do desrespeito pelos direi-
tos humanos, do abandono, do insucesso e da mera gestão conjuntural das diferenças (de classe,
género, raça, etnia, religião…) —, podem ser evitadas ou atenuadas quando é contrariada a
função de reprodução social e cultural da Escola e se promove o acesso e sucesso (emancipatório)
de todas e todos ao conhecimento e à aprendizagem. Dito de outro modo, a qualidade científica,
a qualidade pedagógica e a qualidade democrática não são, nem devem ser, separáveis. ”
Recomendação sobre Educação para a Cidadania, Diário da República,
2.ª série, n.º 17, de 24 de Janeiro de 2012: 2823.
096 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Conhecimento
3.2.
O
período da adolescência que idade cronológica, mas estar num patamar
corresponde aos anos do ensino inferior de maturidade no que diz respeito à sua
secundário, sensivelmente dos 15 cognição social, sendo, por exemplo, incapaz de
aos 18 anos de idade, é marcado participar, de forma assertiva, numa assunção
por uma complexificação das capacidades mútua de perspetivas, quando se trata de
cognitivas e das competências sociais debater problemas sociais – isto é, de considerar
dos e das adolescentes, que nesta fase da vida efetivamente que as outras pessoas podem ter
já são mais capazes do que anteriormente de ideias e posturas diferentes das suas, também
lidar, de maneira progressiva, com conceitos elas válidas, seja em problemas de natureza
abstratos (pensamento formal), de pensar moral, legal ou social.
sobre o próprio pensamento (metacognição),
de estabelecer relações com quem os rodeia Ora, estas especificidades do funcionamento
pautadas pela empatia e também de fazer uso cognitivo e social dos e das jovens, à medida
de um pensamento em perspetiva, quando se que avançam no ensino secundário, não
trata de esgrimir pontos de vista e de tomar devem ser desconsideradas, quando as
decisões. Como é óbvio, existem enormes tarefas de aprendizagem e de apropriação de
diferenças interindividuais (diversidade de conhecimentos envolvem assuntos concretos
características das pessoas entre si) e mesmo e abstratos do seu dia a dia, que lhes dizem
intraindividuais (assincronia do desenvolvimento diretamente respeito enquanto mulheres e
de cada pessoa), pelo que a idade cronológica homens, membros de uma dada sociedade, que
pode ser um fraco indicador do grau de se sabe pautada por regras implícitas e explícitas
maturidade dos e das adolescentes para nem sempre condizentes com um exercício
lidarem com a informação e para a usarem efetivo de cidadania assente na liberdade de
como guia de leitura do mundo à sua volta. escolha e no respeito pela alteridade.
Pelo exposto anteriormente, não se pode esperar Diversos estudos realizados no âmbito da
que raparigas e rapazes da mesma idade psicologia do desenvolvimento durante a
sejam capazes, de forma equivalente, de lidar adolescência, que são citados na obra de
criticamente com o que aprendem e mesmo de Norman Sprinthall e W. Andrew Collins (2011),
confrontar essas aprendizagens com o manancial revelaram que a complexidade crescente do
de coisas que supostamente já sabem. Além raciocínio implicado na compreensão do mundo
disso, um/a dado/a adolescente pode apresentar diário dos e das adolescentes tornam-nos/as
um nível de funcionamento intelectual condizente progressivamente capazes de lidar com
com o que seria de esperar atendendo à sua conceitos relativos a grandes categoriais sociais,
Os conhecimentos científicos que acabámos de O recurso a metáforas pode ser também uma
mencionar trazem-nos implicações importantes estratégia eficaz, pois a necessidade de ler para
para a prática educativa, pois nesta fase da além do imediato e de descodificar a informação
adolescência é possível ir mais além com os/as que traduz sentidos figurados por meio de
discentes, do que a mera identificação das comparações implícitas é uma tarefa desafiante.
situações, na desconstrução das estereotipias Sê-lo-á ainda mais se os materiais usados forem
sexistas veiculadas, por exemplo, pelos pares, visualmente apelativos, se provocarem alguma
media ou manuais escolares. A capacidade de reatividade inicial (logo de seguida esbatida)
compreensão crescente das diferenças entre ou ainda se usarem personagens próximas
o real e o possível (pensamento formal), atrás das e dos discentes (em termos de idade, cor
referida, abre às e aos docentes inúmeras da pele, origem étnica, desempenho escolar,
possibilidades de trabalho, partindo de sexo, artefactos culturais, etc.), tendo em vista
exemplos reais da vida do dia a dia de alunos facilitar o processo psicológico de identificação,
e alunas. A análise de dados factuais relativos que é fundamental para a apropriação correta
a problemáticas sociais, como as estatísticas do significado das mensagens. O exemplo
relativas à violência de género, o diferencial de apresentado na Figura 1, que foi disponibilizado
salários entre mulheres e homens, a segregação pela Comissão Europeia1, pode constituir um
horizontal e vertical no mercado de trabalho, bom ponto de partida, com algum recurso ao
098 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Conhecimento
2 A hierarquia de necessidades em formato de pirâmide foi introduzida pelo psicólogo americano Abraham Maslow na década
de 50 do século XX e a sua teoria assenta numa divisão hierárquica das necessidades humanas. Na base da pirâmide estão
as necessidades de nível mais baixo, sendo que cada pessoa apenas poderá avançar para as necessidades de nível seguinte
quando estas estão satisfeitas. O movimento é, por isso, ascendente, até se atingir o patamar mais elevado, que é o da auto-
realização. Ainda de acordo com este modelo explicativo do comportamento humano, as necessidades progridem das mais
primárias e imaturas (atendendo ao tipo de resposta que exigem para serem satisfeitas) até às mais civilizadas, complexas
e maduras. Segundo a metáfora traduzida na imagem, uma interpretação possível (nossa) seria a de que as mulheres terão
menos necessidades de nível superior de que os homens, razão pela qual desaparecem à medida que se sobe na hierarquia
social representada.
3 Segundo dados da Comissão Europeia apresentados num comunicado à imprensa feito em 14 de abril de 2014, as mulheres
continuam a ter de suportar a maior parte das tarefas não remuneradas relativas ao lar e à família, pois elas dedicam, em
média, 26 horas por semana às atividades domésticas e os homens apenas 9 horas. Informação completa disponível em:
http://europa.eu/rapid/press-release_IP-14-423_pt.htm (consultado a 15 de abril de 2015).
4 Para uma reflexão em torno do desrespeito profundo do corpo feminino e do tratamento da mulher como um objeto de diversão
e de calúnia, veja-se, por exemplo (as possibilidades de escolha deste tipo de recursos são incontáveis…), o videoclipe de
Robin Thicke – Blurred Lines ft. T.I., Pharrell, disponível no Youtube.
5 Disponível em: http://www.drealg.min-edu.pt/upload/docs/dsapoe_FECidadaniaSP.pdf (consultado a 15 de abril de 2015).
0100
100 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Conhecimento
3.3.
O poder da linguagem
e o uso correto dos conceitos
A
linguagem é um veículo A Recomendação atrás referida sublinhava, já
poderoso de transmissão de há cerca de 25 anos atrás, que “o sexismo de
saberes sobre o mundo e as que está impregnada a linguagem em uso na
leis que o regem, e a escola, maior parte dos Estados-membros do Conselho
enquanto território educativo por excelência, da Europa – que faz prevalecer o masculino
deve fazer uso de uma linguagem inclusiva6 sobre o feminino – constitui um entrave
que impeça qualquer forma de sexismo ao processo de instauração da igualdade
velado ou explícito. Foi este o objetivo da entre mulheres e homens, visto que oculta a
Recomendação n.º R (90) 4, do Comité existência das mulheres que são a maioria da
de Ministros aos Estados-membros do população e nega a igualdade [social] da mulher
Conselho da Europa, já adotada a 21 de e do homem”7.
fevereiro de 1990. A utilização do masculino
neutro, que arrasta consigo conceitos como “Recomenda[-se] aos Governos dos
Homem para falar de humanidade e de Estados-membros que promovam
Homens para falar de homens e mulheres (e
a utilização de uma linguagem que
nem sempre com o H maiúsculo), ainda hoje
encontrados em alguns manuais escolares, reflita o princípio da igualdade entre
invisibiliza e subalterniza em geral um dos as mulheres e os homens e que,
sexos (as mulheres) e mantém a ideia de para isso, tomem todas as medidas
que o modelo de pensamento e de ação é que julguem úteis a fim de:
o masculino.
1. incentivar a utilização, na
Esta questão é tratada em todos os medida do possível, de uma
capítulos da segunda parte deste Guião. linguagem não sexista que tenha
Para a compreensão do modelo de
em consideração a presença, o
pensamento androcêntrico, veja-se o
estatuto e o papel das mulheres
capítulo “A Filosofia no Secundário
lida numa Ótica de Género”. na sociedade, tal como acontece
6 Recomenda-se vivamente sobre este assunto a obra de Graça Abranches, intitulada “Guia para a utilização de uma linguagem
promotora da igualdade entre homens e mulheres na administração pública”, a qual foi editada em 2009 e pode ser consultada
no link: https://www.cig.gov.pt/wp-content/uploads/2015/11/Guia_ling_mulhe_homens_Admin_Publica.pdf (consultado a 5 de
abril de 2015).
7 Este documento foi publicado pela CIG.
“ É a partir da linguagem que se organizam, sob a forma de códigos sociais, a criação simbólica in-
dividual, a subjetividade da pessoa, que se estruturam representações coletivas. A linguagem é um
território de legitimação de autoridades, de silenciamentos e dominação simbólica, de definição de
alteridade, mas é também um território de desafio e mudança. ”
Sofia M. Silva e Helena C. Araújo, 2007: 101.
0102
102 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Conhecimento
3.4.
A
s sugestões a seguir apresentadas • Se, por exemplo, o objetivo for descrever
têm como objetivo promover a um grupo de pessoas de ambos os sexos,
reflexão e a desconstrução de referi-las enquanto seres ou grupos separados,
eventuais estereotipias no discurso ou analisar estatísticas desagregadas
e nas práticas pedagógicas, muitas delas correspondentes, deverá falar-se de “sexo
usadas de forma não consciente ou intencional masculino” e de “sexo feminino” ou apenas
na abordagem de diferentes problemáticas, de “sexo” ou “sexos”, deixando claro que
quer nas componentes de formação geral do se trata de uma pertença a uma categoria
currículo do ensino secundário, quer nas diversas sexual determinada pela biologia. Falar, por
áreas de formação específica, consoante as exemplo, do “género dos sujeitos” ou das
escolhas vocacionais de alunos e alunas: diferenças entre os “géneros feminino e
masculino” está conceptualmente errado e
• Referindo-se o género a uma ordem social e contribui negativamente para a tomada de
não sendo sinónimo de pertenças biológicas, o consciência do que está realmente em causa.
termo deve ser usado apenas no singular. Isto Reforça-se aqui mais uma vez a ideia de que
clarifica a natureza socialmente construída do o termo género não deve aparecer no plural.
género e evita a permanência nos discursos
de visões essencialistas do ser humano. • Falando-se em mulheres e homens (em
Nascer de um sexo ou de outro não pressupõe vez de homem e mulher) respeitam-se as
maneiras de ser ou de estar específicas e não diferentes maneiras de ser e de estar em
deve prescrever auto e heteroavaliações. cada um dos sexos e evita-se a ideia da
existência de ‘modelos’ de masculinidade e
• Falar de género sem explicar que os de feminilidade, que se sabem pantanosos e
assuntos envolvidos têm a ver com a vida de penalizadores para uns e outras em diferentes
raparigas/mulheres e de rapazes/homens é áreas da vida. Há, pois, muitas formas
desaconselhável, pois o conceito banalizou-se de ser e de estar que são independentes
e a tradução direta de documentos oficiais do sexo biológico ou da sensação de
escritos noutras línguas levou a que se pertença a um determinado grupo.
instalasse uma certa confusão no uso da
terminologia, mesmo entre as pessoas que se • A diversidade de características individuais de
têm dedicado à investigação e à intervenção. homens e de mulheres autoriza a falar não só
Tendo isto em mente, talvez seja preferível de diferenças entre os grupos, mas também
falar em igualdade entre homens e mulheres de diferenças intragrupo, sendo que estas
do que falar em igualdade de género. últimas são maiores do que as primeiras: as
“ A questão central de que nos ocuparemos será a eliminação do uso do masculino genérico
(o genérico androcêntrico ou, na designação cunhada por Maria Isabel Barreno, o falso
neutro (…) [em 1985], e a sua substituição por formas não discriminatórias que respeitem o
direito de homens e mulheres à representação linguística da sua identidade e impliquem o
reconhecimento de que nenhum dos dois sexos tem o exclusivo da representação geral da
humanidade ou da cidadania. Mais do que uma simples re-nomeação, uma substituição de
umas formas por outras formas, o que está em causa é uma redefinição do universo de utentes
– um universo composto por cidadãos e por cidadãs. ”
Graça Abranches, 2009: 13-14.
0104
104 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Conhecimento
3.5.
Género e construção
do conhecimento
A
ntes de avançarmos convém independentemente da sua idade, não costuma
apenas clarificar aqui a utilização ser uma mera recetora de informações, mas
de alguns termos, que embora tende a transformá-las em conhecimentos,
possam parecer sinónimos e, por numa atitude pró-ativa de construção do
vezes, sejam usados como tal, não o são, de seu mundo. Essa apropriação de parcelas
facto. Possuir conhecimento e ter informações de informação e a transformação delas em
significam habitualmente coisas diferentes, pois conhecimento são processos claramente
o primeiro conceito implica uma intencionalidade, influenciados pelos contextos de vida,
que vai para além da mera acumulação desde os microssistemas, como as relações
mnésica de dados. Logo, possuir conhecimento interpessoais e a esfera privada da família,
significa que a pessoa foi capaz de lidar com aos macrossistemas, como a organização
uma série de dados e de informações e se escolar, os regimes políticos vigentes e a
apropriou deles, conferindo-lhes alguma própria sociedade enquanto detentora de um
utilidade. No conhecimento podemos distinguir saber cultural. O conhecimento pode, por
a pessoa ‘cognoscente’ do objeto que é isso, ser ainda entendido como o conjunto das
‘cognoscível’. Falar de conhecimento implica diferentes versões que cada pessoa constrói
também aludir a processos e a produtos. do mundo social em que vive, na linha do
Os processos referem-se à aprendizagem em que afirmou Mieczyslaw Malewski (2010),
si e aos diferentes modos pela qual ela pode nele incluindo a perceção dos seus direitos
ser realizada. Os produtos
são as coisas aprendidas,
que podem ser de natureza
concreta ou abstrata, “ Etimologicamente, aprender vem do verbo latino apprehendere, que
significa agarrar, apoderar-se de. Derivados do mesmo verbo, que entra
tangível ou não tangível.
na composição de apprehendere, ou seja de prehendere (ad+prehendere),
são os vocábulos apreender (também de apprehendere) e compreender
Sabe-se que as aprendizagens
(de com+prehendere = agarrar com, prender juntamente). Neste senti-
podem conduzir a mudanças do, aprender é agarrar um conteúdo proposto, por exemplo, uma infor-
mais ou menos permanentes mação: aprender é apreender (ad+prehedere), ou seja, apoderar-se de
do comportamento em alguma coisa, de um determinado conteúdo. Aprender, ainda segundo
resultado das experiências, a etimologia, não implica, necessariamente, compreender, pois que,
segundo as palavras de neste caso, se trata de ligar os elementos de uma atividade cognitiva, de
Richard Lerner e colaboradores estabelecer uma relação entre eles.”
(1986). É também consensual António Simões, 2007: 33.
que a pessoa que aprende,
10 Ver a este respeito a obra de Maria Teresa Alvarez Nunes, publicada em 2009, com o título O feminino e o masculino nos
materiais pedagógicos. (in)Visibilidades e (des)Equilíbrios. Disponível em versão integral no link: https://www.cig.gov.pt/siic/
pdf/2014/Miolo_Feminino_e_o_Masculino.pdf (consultado a 26 de abril de 2015).
0106
106 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Conhecimento
género?
11 De entre as alterações na vida das famílias associadas ao envelhecimento da população encontramos a mudança de uma
estrutura vertical para uma estrutura mais horizontal, com mais gerações a coexistirem ao mesmo tempo (muitas vezes podem
coexistir cinco gerações), mas com menos elementos em cada uma das gerações (em virtude da maior longevidade da
população e da menor taxa de natalidade). Para uma consulta dos dados demográficos ver www.ine.pt ou www.pordata.pt.
Intencionalidade
aprendizagem formal; da aprendizagem Consciência
não formal; da aprendizagem informal. do processo
Independentemente da tipologia adotada, (no momento
defende-se que a aprendizagem é um Forma da experiência de
processo que ocorre ao longo da vida, de aprendizagem)
forma contínua e interativa.
“ Um formando contou que teve de comprar a chupeta para a sua filha, uma vez que esta se tinha
perdido. Disse que na farmácia apenas havia chupetas azuis, e que perante isso a farmacêutica
respondeu: “isso só seria grave se nós só tivéssemos chupetas cor-de-rosa e o senhor tivesse um
filho”. O formando comentou que concordou com a argumentação e “lá comprou a chupeta. ”
Relato de uma docente no decurso de uma ação de formação sobre género
e cidadania para pessoas adultas num curso EFA noturno (2015).
12 Documento com o título Making a European Area of Lifelong Learning a Reality (2001) disponível em: http://eur-lex.europa.eu/
LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2001:0678:FIN:EN:PDF (consultado a 27 de abril de 2015).
0108
108 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Conhecimento
3.6.
O
desenvolvimento do pensamento Também já se referiu que falar de género não
crítico em alunos e alunas durante é a mesma coisa que falar de sexo, no sentido
o período da adolescência (e não da pertença biológica de cada indivíduo a uma
só) exige, como se disse atrás neste categoria determinada pelos cromossomas
capítulo e também no anterior, que os materiais e sexuais. Também não é o mesmo que falar
as informações a trabalhar em sala de aula sejam de números/estatísticas que envolvam a
significativos para eles e para elas, que se usem representatividade de homens e de mulheres
modelos que facilitem algum tipo de identificação em diferentes esferas de ação. Os indicadores
deles e delas com situações da vida real e que os numéricos disponíveis podem ser um bom
conteúdos trabalhados partam daquilo que as e mote para iniciar os debates, mas é preciso ir
os jovens já sabem ou que surjam na sequência mais além. É preciso enquadrar devidamente
de debates anteriores que façam sentido para as temáticas e desconstruir as razões – que
para umas e para outros. Logo, os assuntos se situam a montante – pelas quais a situação
ditos ‘normais’ são certamente um bom recurso se apresenta dessa forma. Logo, uma análise
para discussões em sala de aula que possam meramente descritiva da realidade, apenas
ajudar, por um lado, a desconstruir falsas exige dos alunos e alunas uma abordagem
conceções sobre o mundo e as pessoas, e, superficial, eventualmente comparativa e, muitas
por outro, a construir conhecimento e a adquirir vezes, reforçadora daquilo que já conhecem.
saberes emancipatórios e mobilizadores de uma Como também se disse atrás, ficar pela leitura
leitura crítica da realidade. transversal das estatísticas pode inclusive
apelar a uma certa atitude
conformista: “é a vida!’.
“ Educar para a mudança social, de forma a ajudar as gerações futuras a
serem melhores do que as que lhe antecederam, não poderá repousar ape- Tendo em vista uma
nas na criação de momentos de sensibilização pontuais ou na abordagem,
intervenção eficaz com alunas
desgarrada da vida real de quem se educa, de temas da actualidade, de
um modo passivo e transmissivo, como se aqueles assuntos fossem sobre
e alunos, levando uma e outros
os/as outros/as, os/as vizinhos, os/as estranhos/as, os/as de outra classe so- a ler a realidade através das
cial, de outra família, ou de outra origem étnica. Efectivamente, a mudança lentes de género – os tais
almejada impõe o uso de estratégias educativas activas que envolvam – da óculos que ajudam a identificar
parte de quem educa e de quem assume o papel de educando/a – a cogni- situações de desigualdade
ção e os afectos, exemplos da vida comum, modelos positivos para análise
social entre mulheres e homens
e a comprovação de boas práticas. ” – e a refletir sobre ela, deixam-
Cristina C. Vieira, 2014: 9. se aqui algumas inquietações
e sugestões, que resultam de
0110
110 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Conhecimento
“ Aprender a pensar de forma crítica requer que se esgrimam argumentos, que se ouçam pontos
de vista divergentes, que se avaliem respostas, que se reflicta sobre as causas e consequências
de uma determinada decisão, que se ponderem valores e atitudes, que se formem consensos e
que se tentem encontrar soluções para problemas partilhados. Ora, todas estas estratégias são
primordiais para fomentar desde muito cedo o questionamento das estereotipas em rapazes e
raparigas, através de actividades educativas que eles e elas consigam acompanhar em função da
sua crescente maturidade física e intelectual. Além disso, como se disse atrás, assume particular
relevância a abordagem de temas com os quais os/as educandos/as se identifiquem, para que
se envolvam mais genuinamente na discussão dos mesmos e façam uso dessa reflexão conjunta
para a tomada de consciência individual.
É esta atitude transformadora que traduz o tal poder emancipatório da educação, pois desta for-
ma é possível cooperar para a formação cívica e ética de cidadãos e de cidadãs mais reflexivos,
mais tolerantes, mais autónomos ao lidar criticamente com a informação, mais capazes de tomar
boas decisões, mais abertos à diversidade e mais sensatos na sua relação com os outros. A educa-
ção constitui, por isso, o tesouro mais valioso de que dispomos para a construção de um mundo
melhor. ”
Cristina C. Vieira, 2014: 9.
• As eventuais diferenças e as
possíveis dissemelhanças de cada sociedade, podem constituir
modos de ser e de estar não devem fatores de discriminação silenciosa
pressupor uma hierarquização para homens e mulheres.
entre homens e mulheres, não
• As formas de discriminação social
devem obedecer a um pensamento
são, talvez, muito mais subtis hoje
dicotómico e não devem ser
em dia que o eram antigamente,
o mote para a desigualdade
mas não serão muito menos
de oportunidades entre os
poderosas. veja-se, por exemplo,
sexos. Além disso, não devem
o caso da publicidade a diversos
sobrepor-se à enorme semelhança
produtos ou mesmo os videoclipes
ao nível de características (físicas
e as letras de algumas das canções
e psicológicas) e de interesses que
mais populares entre a camada
é possível observar entre os dois
mais jovem.
sexos.
• A crença generalizada de que está
• As premissas e práticas associadas
tudo conseguido, em termos da
ao género, e à ordem social que a
promoção da igualdade entre os
ideologia subjacente legitima em
sexos, é talvez a maior barreira
à criação de uma
atitude crítica face
“contrariar e eliminar os preconceitos de género implica passar a con-
siderar mulheres e homens na sua diversidade física, psicológica e social às disparidades que
assumindo que umas e outros integram o que nos habituámos a desig- continuam a penalizar
nar por feminino e masculino. Implica também reconhecer que estas
dimensões não são imutáveis nem de origem biológica, antes decorrem mulheres e homens em
de complexos processos de socialização, (re)construindo-se e (re)fazen- diferentes esferas de
do-se ao longo do tempo e do percurso de vida de cada indivíduo.” ação.
Teresa Alvarez Nunes, 2009: 14.
0112
112 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Conhecimento
3.7.
Conclusão
P
ara concluir este capítulo e passar valores e convicções tende a assumir um papel
à segunda parte deste Guião, normativo na modelação dos comportamentos
aludimos aqui às palavras de Paulo individuais de rapazes e de raparigas, e de
Freire, na sua obra autobiográfica mulheres e homens, turvando inclusive as lentes
intitulada Cartas a Cristina (2002): com que as pessoas em todos os momentos
se avaliam, decidem sobre si próprias e ajuízam
“Faz parte do sonho da libertação, quem as rodeia em prol do bem comum.
da busca permanente da liberdade, O papel silencioso e a atuação subliminar – falamos
da vida, a superação processual de apenas desta forma velada, pois a discriminação
todas as formas de discriminação. explícita é proibida pela Constituição da Repú-
blica Portuguesa – de discursos e narrativas
A educação crítica, desocultadora, joga
veiculadores de diferentes formas de tratamento
um papel indiscutível neste processo. desigual de mulheres e homens – quer estejamos
E será tanto mais eficaz quanto na a falar das questões de género, de outras formas
experiência cotidiana da sociedade de estereotipia ou do cruzamento das primeiras
diminua a força dos processos com a diversidade de pertenças individuais –
discriminatórios” (p. 228). contamina a capacidade de decisão individual,
a autonomia crítica e a própria racionalidade.
Mas, não é possível educar para promover a
mudança social sem que essa mudança ocorra Tal como Ana Vicente defendeu em 1998,
primeiro em quem educa. Depois, há que ter “em Portugal, as representações de género e
presente que não é fácil pôr em causa as crenças os relacionamentos entre mulheres e homens
sexistas das sociedades e de grupos particulares, são vividos de uma forma não reflexiva nem
pois elas fazem parte de uma herança cultural problematizada, ou seja, são sentidos como
fortemente arreigada, historicamente construída ‘naturais’, seja qual for essa ‘naturalidade’.
e promotora de um certo status quo, o qual é Muito poucas/poucos os questionam ou os
dificilmente criticável por quem nele se sente trabalham” (p. 65). Os indicadores estatísticos
confortável. Este ‘espólio’ de conhecimentos, disponíveis no nosso país14, em diferentes áreas,
14 Para uma análise dos dados desagregada por sexo, ver, por exemplo, o Relatório do Banco Mundial, relativo a 2014, disponível
em: http://reports.weforum.org/global-gender-gap-report-2014/ ; ver ainda o I Relatório sobre as diferenciações salariais por ra-
mos de atividade em Portugal, 2014, disponível em: http://www.cite.gov.pt/pt/destaques/complementosDestqs/I_Rel_Dif_Sal.
pdf ; ver também o Relatório da Comissão Europeia sobre o progresso dos países na promoção da Igualdade entre Mulheres e
Homens 2015, disponível em http://ec.europa.eu/justice/gender-equality/files/annual_reports/2016_annual_report_2015_web_
en.pdf (consultado a 15 de abril de 2015).
e uma atenta análise qualitativa das vidas da No caso das raparigas adolescentes é urgente
grande maioria das mulheres e dos homens promover o seu empoderamento, para que as
portuguesas/es fazem-nos conferir ainda gerações futuras possam usufruir de um maior
atualidade a tal afirmação, apesar das quase equilíbrio na representatividade de ambos os
três décadas que nos separam da publicação da sexos na tomada de decisão, por exemplo,
referida autora. A educação continua a ter, pois, ou ainda na sua presença em profissões
a responsabilidade de alavancar as mudanças melhor remuneradas e diretamente ligadas ao
necessárias à alteração de crenças e de atitudes desenvolvimento científico e tecnológico, nas
nas pessoas de todas as idades, devendo quais elas continuam a estar em clara minoria.
começar-se desde os primeiros anos de No caso dos rapazes da mesma idade torna-se
escolaridade a debater-se estas problemáticas imperioso o desenvolvimento neles da dimensão
no sistema educativo, de forma a gerar-se do cuidado: cuidar de si e das outras pessoas.
conhecimento com valor emancipatório. Esta capacidade de cuidar terá certamente
implicações positivas não só na
respetiva autonomia individual,
“ O conhecimento emancipatório decorre do interesse que visa, essen-
cialmente, a liberdade e autonomia do ser humano (António Simões,
mas também na possível
escolha não estereotipada
2000), estando directamente relacionado com a necessidade de nos
de profissões ou ainda na
transcendermos e desenvolvermos. Este desenvolvimento requer a
libertação de diversos constrangimentos, sejam eles auto ou hetero-
gestão de eventuais dilemas
impostos, pelas diversas condições e factores sociais em que se inscre- ‘família versus carreira’,
veu a nossa vida. Parte-se do princípio de que as pessoas têm potencial neles incluindo as questões
para agirem, racionalmente, para se autodeterminarem e para serem da conciliação e dos usos
auto-reflexivas, sendo a liberdade alcançada, na medida em que esse do tempo. A valorização do
”
potencial se realiza. cuidado – de si e de outros
Adaptado de Albertina L. Oliveira, 2005: 94 – é ainda fundamental para a
existência humana e para um
desenvolvimento sustentável,
É importante conhecer para ousar pensar. como nos lembra o Relatório
Disse-se atrás que a apresentação de de Desenvolvimento Humano de 2014,
modelos, de dilemas, de dados contraditórios publicado pelo Fundo das Nações Unidas para
em relação ao que se sabe podem ser boas a População (PNUD, 2014)15, onde é defendida
estratégias de atuação, tendo em vista uma abordagem centrada na pessoa e uma
promover em alunos e alunas adolescentes o política do cuidado, para que se possam
questionamento dos seus saberes relativos ao reverter as disparidades entre países e no
que mulheres e homens são capazes de ser interior dos mesmos.
e de fazer. Este procedimento alarga o leque
de possibilidades de escolha que cada uma e Estas foram também algumas das
cada um tem ao seu dispor, quer para o ensaio recomendações expressas numa publicação
de comportamentos individuais, quer para a de 2015 do Conselho da Europa, com o título:
idealização de projetos de vida futuros, seja a Combating gender stereotypes and sexism
nível pessoal, profissional ou social. in and through education16. Os 47 países
0114
114 CIG
ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Conhecimento
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0116
116 CIG
2ª Parte
CONHECIMENTO E
INTERVENÇÃO EDUCATIVA:
SUGESTÕES PRáTICAS
0117
117
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
0118
118 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
4.
* A autora agradece o convite que lhe foi endereçado, em finais de 2014, para participar
nesta obra, tendo finalizado este texto e respetivas propostas em agosto de 2015.
0120
120 CIG
ConheCimento e intervenção eduCativa: sugestões prátiCas ll
Cânone Literário e igualdade entre mulheres e homens l
4.1.
C
questões que transcendem o
onsequentemente, embora
‘aqui e agora’, do momento de desejavelmente excedam
leitura destas páginas, ou seja, o âmbito da sua aplicação
aplicam-se a qualquer programa de restrita ao referido programa, as
reflexões das páginas que se seguem devem
Português para o Ensino Secundário;
ler-se como tomando em conta as referidas
e uma perspectiva que apresenta “opções fundamentais” do Programa; da
propostas de interesse imediato mesma forma, as sugestões de exploração
para a docência de um Programa pedagógica que finalizam este texto incidem
quase em exclusividade no domínio da
específico, o Programa e Metas
“educação Literária”, de forma a acompanhar a
Curriculares de Português – Ensino “valorização do texto complexo” e “valorização
Secundário, da autoria de Helena C. do literário” em que o Programa assenta.
1 Cita-se a introdução do referido Programa e Metas Curriculares de Português – Ensino Secundário, Janeiro de 2014 (atuali-
zado), da autoria de helena C. Buescu, Luís C. maia, maria graciete silva e maria regina rocha, p. 5. note-se desde já que
no âmbito deste capítulo do guião todas as referências / citações ao Programa de Português devem aplicar-se ao referido
documento.
4.2.
Considerações prévias e
conceitos fundamentais
E
ste capítulo procura comentar a As e os estudantes do ensino secundário
partir da Teoria Literária Feminista poderão, dentro do quadro da reflexão
conceitos estruturantes do sobre os usos de língua que é transversal
atual programa – a noção de aos domínios da Oralidade, Leitura e Escrita
género/genre e o texto complexo (aqui, trabalhar tópicos focados no capítulo
o literário) e apresentar uma reflexão sobre o ensino da Filosofia, como as da
de nível necessariamente introdutório emergência da linguagem inclusiva, a
sobre as questões do cânone. retórica do insulto sexuado ou a pretensa
neutralidade do emprego do masculino...
A última parte, necessariamente uma Remetemos para o texto de Graça Abranches
simplificação, destina-se a exemplificar e Eduarda Carvalho atrás citado para a
como a aplicação da reflexão sobre o explicitação destas e doutras formas de
cânone contribui para uma visão mais exploração da relação entre a linguagem e
complexa, mais ‘ampla’, da história da as desigualdades de poder genderizadas.
literatura portuguesa. Evidentemente,
muito mais haveria a apontar noutras áreas.
0122
122 CIG
ConheCimento e intervenção eduCativa: sugestões prátiCas ll
Cânone Literário e igualdade entre mulheres e homens l
4.2.1.
Género /Genre
U
.
m dos conceitos fundamentais Programa também usa na acepção
deste programa é o de de “género discursivo”), em língua
“género”. antes de mais, e
inglesa corresponde à palavra
para evitar confusões, há que
sublinhar que o conceito de “género” utilizado
genre. neste Programa e nos programas de
português em geral (assim como na maioria
frequentemente neste Guião é completamente
dos textos de Linguística e de estudos
distinto do conceito de “género” que, como
Literários) é uma unidade classificatória: um
vimos pelo excerto do programa já referido
género textual é um conjunto de textos que
(ver texto em caixa), integra as “opções
têm as mesmas marcas de organização
fundamentais” deste programa de português.
textual ou de situação de produção. grosso
modo, quando se fala do género/genre X (a
são dois conceitos totalmente distintos que na
anedota) isso significa que se considera que
língua portuguesa recebem a mesma designação:
existe um conjunto de textos orais e escritos
1. O conceito de “género” que X (o conjunto das anedotas) que se diferencia
ocorre noutros capítulos do Guião dos conjuntos de textos orais e escritos Y
(os convites de casamento) ou Z (as receitas
(conceito que em língua inglesa
de cozinha) pelo facto de todos os textos
corresponde à palavra gender) do conjunto X, as anedotas, manifestarem
– corresponde, como neles já foi repetidamente determinadas marcas de organização
explicitado, à específica dimensão identitária textual e/ou de situação de produção que
que consubstancia o impacto das expetativas não estão presentes nos textos Y ou Z.
(histórico-ideologicamente diferenciadas em temos assim que a situação discursiva X
função do sexo) aplicadas pela sociedade (ou: a situação de produção de textos X)
em que cada indivíduo vive a qualquer origina a forma de funcionamento da língua
indivíduo sexuado. estas expetativas sociais, correspondente, que por sua vez marca todos
que se articulam com outras expetativas os textos (X1, X2, X3, Xn) produzidos no
relativas a outras dimensões identitárias contexto da situação discursiva X – o género/
contextualmente relevantes (a idade, a genre X agrupa os textos X1, X2, X3, Xn.
etnicidade, a cor, a classe…) são constituintes
do eu pessoal e social de cada qual.
Ver a este propósito, o capítulo
2. Quanto ao conceito de “género” “Género e Cidadania” deste Guião.
4.2.2.
U
m dos contributos que a
disciplina que, como veremos Ressalve-se que, apesar de
adiante, se chama agora as empregarmos aqui para
Teoria Literária Feminista deu facilidade de exposição, não
para a Linguística e para as Ciências da é nem produtivo nem factual
Literatura foi possibilitar a investigação considerar como homogéneas as
da articulação entre a utilização da categorias “mulher” e “homem”,
comunicação de textos de vários géneros como se verá adiante.
(literários e textuais-discursivos)/genres
e a promoção, manutenção ou declínio
de contextos relacionais de género/ os códigos mais igualitários ou mais
gender marcados pela igualdade ou
sexistas que determinam o que se
desigualdade de oportunidades.
espera de homens e de mulheres
Conseguiu isso demonstrando que
moldam as situações de produção
tanto os textos complexos como
de textos e consequentemente
os não complexos, tanto os textos
também essas situações de
literários como os não literários,
produção genderizam (marcam
transportam com eles as marcas
quanto à igualdade ou desigualdade
das suas circunstâncias de
de género) os diferentes géneros/
produção, ou seja, não são textos
genres que lhes estão associados.
produzidos em vazio social. Para além disto há que considerar que,
Sendo cada sociedade uma realidade numa sociedade desigualitária em que tudo
atravessada ou determinada por relações é ‘para homens’ ou ‘para mulheres’, os
que são, entre outras, relações de género/ próprios géneros como genre são facilmente
gender promotoras de igualdade de genderizados, isto é, relacionados com o
oportunidades ou pelo contrário sexistas masculino ou com o feminino – por exemplo,
em diversos graus, os textos expressam as numa sociedade declaradamente sexista,
relações de poder entre homens e mulheres a canção amorosa é um genre feminino e
existentes; de facto, é um truísmo escrever o discurso político um genre masculino;
que a posição de qualquer texto sobre as consequentemente, tanto os cantores
relações de género reenvia para a sociedade românticos como as ativistas políticas são nessa
que o produziu. Esse reenvio existe porque sociedade julgados, quanto à observância dos
0124
124 CIG
CONHECIMENTO E INTERVENÇÃO EDUCATIVA: SUGESTÕES PRáTICAS ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
4.2.3.
O
conceito de género/ genre mesmo tempo que inegavelmente potencia
integra-se num Programa que a estruturação das aprendizagens, esta
divide os textos em duas classes, abordagem conjura transgressões de hierarquias
complexos e não-complexos2, ou de potenciais ‘diluições de fronteiras’
privilegiando o domínio dos primeiros. Por sua nas atribuições de níveis de complexidade
vez, a classe dos textos complexos abrange (e valor) a textos concretos. Ou seja: aquando
textos complexos literários e não-literários.3 da focalização no trabalho nos três domínios
Para a classe dos textos complexos, (Oralidade, Leitura, Escrita) sempre que cada
o Programa propõe uma abordagem estudante reconheça complexidade a um
individualizada, que reconheça a cada texto determinado texto que não é designado como
a sua complexidade e, no caso dos textos complexo pelo programa, a obrigatoriedade de
complexos literários, também o seu valor o incluir num conjunto de textos (o conjunto de
estético-patrimonial. Não deixa de considerar textos que corresponde ao seu género/genre)
que esses textos pertencem a géneros/ e de o submeter a uma análise não-singular
genre; mas nunca propõe trabalhar os textos salvaguarda que para essa ou esse estudante
complexos enquanto representantes de um o reconhecimento da eventual complexidade
género/ genre específico. A atitude sugerida desse texto se complete pelo reconhecimento
em relação aos textos não complexos/de nível da sua generalidade. Ao invés, aquando da
de complexidade “básico” é a oposta, já que análise de um texto literário, ser-lhe-á sempre
devem ser trabalhados segundo uma fórmula recomendado respeito pela sua singularidade.
de análise única: longe de olhar para o texto na De facto, embora o Programa admita que nem
sua unicidade, cada estudante deve identificar e todo o texto complexo é um texto literário4, o
reproduzir as marcas do respetivo género/genre. Programa “valoriza o texto literário no ensino do
Português dada a forma diversificada como nele
Não se insinua que a ênfase no conceito de se oferece a complexidade textual”; ou seja,
género/genre sirva apenas para demarcar o Programa parece considerar o texto literário
metodologias de análise; mas é crível que, ao como singular e apenas secundariamente como
2 Embora, na introdução do Programa, se considere igualmente que todos os textos têm à partida pelo menos um primeiro nível
de complexidade.
3 De acordo com o Programa, todos os textos literários são complexos – aliás é neles que se manifesta plenamente a com-
plexidade – mas nem todos os textos complexos são literários. O Programa pugna por uma adaptação progressiva das/os
estudantes a textos com um grau crescente de complexidade – quiçá “cada vez mais” literários?
4 O Programa (p. 6) ressalva que a complexidade textual “pode manifestar-se por exemplo em textos de dominância informativa,
expositiva ou argumentativa (...) portuguesa Ososade do sade social dependente de relaçide de obras can encontram ainda
vest tanto literários como não literários”.
0126
126 CIG
ConheCimento e intervenção eduCativa: sugestões prátiCas ll
Cânone Literário e igualdade entre mulheres e homens l
5 introdução do Programa, p. 5.
4.3.
Coincidência de propósitos
entre o Guião e a disciplina de
Português
E
mbora este Guião se centre em
tornar visíveis e tentar remediar
As inibições e
as assimetrias de poder ligadas
condicionamentos da tomada
ao género/gender (doravante
da palavra são, como todas/
empregar-se-á neste capítulo o conceito
“género” nesta acepção, excepto quando
os as/os docentes deste
expressamente assinalado) pode-se escrever nível de ensino sabem, de
que os seus objetivos partilham uma ordem não só cognitiva, mas
concordância de fundo com os objetivos frequentemente também de
de qualquer programa de Português6, não ordem simbólica e muitas
importa o nível de ensino. Com efeito, tanto vezes ligados a “posições de
o programa como este Guião visam em género”: caricaturando – quem
primeiro lugar fomentar nas e nos estudantes não conheceu um estudante do
a expressão estruturada de um pensamento Ensino Secundário que apenas
autónomo, capaz de questionar a facilidade diz/escreve “larachas” porque
das ideias recebidas, sejam essas ideias um discurso mais articulado o
recebidas sobre as relações de género ou
poderia fazer passar por macho
sobre outros temas; e, em seguida, auxiliar
Beta face aos e às colegas?
alunos a alunas no processo de expressão
desse pensamento, ao ajudar umas e outros
a tomar a palavra (oral ou escrita) de forma
“correta, fluente e adequada a diversas mais necessário se torna enfatizar
situações de comunicação”7 desmontando a importância de capacitar
por aí as inibições e condicionamentos que as e os estudantes para um
regem a tomada de palavra.
aprofundamento das suas
competências de interpretação e
No caso de um programa de Português para
o Ensino Secundário, assim como no caso de compreensão crítica das estruturas
um Guião ou de outra ferramenta pedagógica de poder veiculadas pelos textos
de apoio a docentes deste nível de ensino, circundantes – orais e escritos, literários
6 Estes considerandos sobre a partilha de propósitos aplicam-se igualmente à disciplina de Filosofia, claro está.
7 Cita-se o objetivo número 2 dos Objetivos Gerais, p. 11.
0128
128 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
.
8 Adiante indicar-se-ão formas de exploração textual que implicam o recurso a uma metalinguagem.
9 As Metas Curriculares associadas ao programa em vigor no momento em que estas linhas são escritas são claras a este res-
peito: no 10º ano, por exemplo, encontra-se para o domínio Leitura o objetivo 9 “Ler para apreciar criticamente textos variados”
que tem associado o descritor de desempenho “Exprimir pontos de vista suscitados por leituras diversas, fundamentando”
e para o domínio Educação Literária o objetivo 15 “Apreciar textos literários” que por sua vez tem associados os descritores
de desempenho “Reconhecer valores culturais, éticos e estéticos manifestados nos textos” (…) e “Expressar pontos de vista
suscitados pelos textos lidos, fundamentando.“ No 11º ano, no domínio Oralidade, ao objetivo 1 “Interpretar textos orais de
diferentes géneros” encontram-se associados os descritores de desempenho “Distinguir informação subjetiva de informação
objetiva”, “Fazer inferências” e “Reconhecer diferentes intenções comunicativas.”
4.4.
A
relação estreita entre as práticas
de reflexão sobre as desigualdades Independentemente do que
de género e as práticas de reflexão adiante se escreverá, as razões
sobre os textos é de longa data; da oposição a um cânone
melhor dizendo, trata-se de uma relação
estático apoiado na “Grande
congénita – com efeito, a Filosofia e os Estudos
Tradição” e argumentos a favor
Literários foram as disciplinas-berço da
de um cânone revisto que não
disciplina que se debruça sobre a construção
social da diferença sexual (disciplina que, como represente apenas sobretudo
foi detalhado noutros capítulos, será segundo os valores do grupo dominante
os contextos, Estudos Feministas, Estudos apresentam-se na entrada
sobre as Mulheres ou Estudos de Género) “Cânone” do Dicionário da
porque, grosso modo, a Filosofia se debruça Crítica Feminista, organizado
sobre o problemada “essência” – a natureza por Ana Gabriela Macedo e Ana
do imutável e do construído – e os Estudos Luísa Amaral (2005:13-14).
Literários se debruçam sobre o cânone. Igualmente esclarecedor é o
artigo de Graça Abranches
O cânone é, como sabemos, “As mulheres e o cânone”, que
o conjunto das “obras-primas da
integra a obra organizada por
literatura”, o conjunto dos “clássicos”;
Isabel Caldeira sobre o Cânone
o cânone alberga os textos que (1994:219-224).
os agentes influentes do campo
literário de uma dada sociedade
– quem nessa sociedade realiza à Literatura – uma disciplina que se chamou
crítica literária, quem estuda e primeiro Crítica Feminista (“Feminist Criticism”) e
ensina a literatura – consideram posteriormente, com o desenvolvimento do seu
representativos do passado dessa campo de estudos, Teoria Literária Feminista
(“Feminist Literary Theory”) – é que o cânone
sociedade e dignos de transmissão às
esteja aberto a discussão e revisão;
gerações vindouras pela via escolar. e uma das suas maiores tarefas é resgatar
do esquecimento obras de autoria feminina e
Ora como se verá adiante, uma exigência demonstrar que devem integrar o cânone.
fundamental dos Estudos de Género ligados Desde que, por finais dos anos sessenta,
0130
130 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
10 Citamos aqui o artigo sobre este tema daquela que, juntamente com Isabel Allegro de Magalhães, foi, no campo dos Estudos
Literários, a pioneira dos Estudos de Género em Portugal: Maria Irene Ramalçho: Ramalho, Maria Irene (2001) “Os estudos
sobre as mulheres e o saber: onde se conclui que o poético é feminista”, ex aequo, 5, Oeiras, Celta, p. 107.
4.4.1.
Cânone:
neutro ou enviesado?
A
análise da Crítica Feminista / excluídos do cânone, já que os agentes
Teoria Literária Feminista sobre a relevantes do sistema literário (os/as
forma como os textos canónicos críticos/as literários/as, os/as académicos/as)
constroem e veiculam identidades de independentemente do seu sexo biológico
género (como nos mostra, por exemplo, Graça privilegiariam, inconscientemente ou
Abranches (2001)), produziu algumas perguntas: conscientemente, formas de representar
o mundo ligadas a experiências de
Poderia dar-se que alguns ou a maioria dos vida historicamente masculinas e,
textos canónicos, pela sua autoridade, pelo consequentemente, desvalorizariam obras
valor de exemplaridade que lhes é concedido apresentando um outro ponto de vista?
(valor manifestado pela sua integração
no sistema educativo), caucionassem Poderia dar-se que a crítica literária produzida
relações de poder assimétricas por esses agentes fosse não neutra, não
entre homens e mulheres? objetiva, mas, ao invés, uma crítica
masculinisticamente enviesada?
Poderia dar-se que muitos desses mesmos
textos caucionassem a manutenção de uma Finalmente, e admitindo a existência de uma
visão do mundo desvalorizadora ou resposta afirmativa a todas as perguntas
invisibilizadora das experiências de anteriores: um cânone composto
vida historicamente femininas? por obras selecionadas por uma
crítica literária enviesada seria
Poderia dar-se que, dado essas verdadeiramente representativo?
experiências de vida historicamente
femininas influenciarem a escrita, A relação entre cânone, ciência
os textos escritos por mulheres e androcentrismo constituem
fossem na sua maioria um dos eixos deste Guião.
substancialmente diferentes Sugere-se, em especial, a consulta dos
dos textos escritos por homens capítulos “Filosofia e Género. Em torno
quanto à temática e ao estilo? do Programa de Filosofia do Ensino
Secundário do ponto de vista de Género”
0132
132 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
4.4.2.
O
s pressupostos que subjazem às
perguntas já referidas explicitam- Como se escreveu antes, Isabel
-se no texto que há vinte anos Allegro de Magalhães inaugurou
atrás, em 1995, Isabel Allegro em Portugal, juntamente
de Magalhães escreveu sobre as relações com Maria Irene Ramalho, a
entre a linguagem e a visão social sobre as interpretação de textos informada
diferenças de sexo (ver texto em caixa).
pelos Estudos de Género. É de
1987 (INCM) a publicação da sua
“ Poder-se-á dizer que os textos têm sexo? E se
o têm, o que dizem sobre a identidade dos seus
tese de doutoramento, que tem
o significativo título O Tempo
autores?
das Mulheres – A Dimensão
Aparentemente, só os autores têm sexo, não os Temporal na Escrita Feminina
textos. No entanto, se repararmos, os textos são
tecidos linguísticos e a matéria da língua (…) é Contemporânea.
toda ela sexuada. Artigos, pronomes, (…) pos-
suem uma forma para o feminino e outra para o
masculino. (…) Para além do tecido linguístico
em si mesmo, a utilização que da língua se faz
– a linguagem escolhida, recriada por cada fa- Na obra de Isabel Allegro de
lante e por cada escritor/a – manifesta também Magalhães (1995) O Sexo dos
ela, preferências diversas, a nível fonológico, Textos, o capítulo intitulado
fonéticas (…) preferências essas que podem ser
“A violência nas palavras: notas
olhadas como espelhos (…) dos universos de
sobre o masculino e o feminino
experiência de homens e de mulheres. ” na linguagem” (pp. 113-120)
Isabel Allegro de Magalhães, 1995: 9.
apresenta um brevíssimo
comentário a um romance de
Poder-se-á questionar se a apresentação Teolinda Gersão utilizável em
dos grupos feita por Isabel Magalhães, contexto de aula como introdução
formados com base na divisão binária por à análise textual de género.
sexo biológico, como entidades homogéneas
é produtiva e conforme à realidade. Mas,
independentemente da questão de saber de diferença, passados vinte anos após as
se os universos de experiência masculina e palavras de Allegro de Magalhães, a inquietação
feminina em Portugal se aproximaram, se se permanece. Mesmo que estes universos
distanciaram ou se mantêm o mesmo grau sejam ainda estanques, se a justificação para
11 Como se verá adiante, é uma perspetiva que vê o indivíduo como composto por um feixe de traços identitários –o género, a
idade, a classe social… – que se articulam entre si.
12 A leitura e interpretação como texto científico do excerto de Allegro de Magalhães “apreciando criticamente o seu conteúdo
e desenvolvendo a consciência reflexiva das suas
funcionalidades”, seguida de debate leva os/as estudantes do Ensino
Secundário a refletirem sobre a construção social das desigualdades de género.
0134
134 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
4.4.3.
M
ais do que respostas, essencial da memória de uma comunidade,
estas questões podem um inestimável património que deve ser
suscitar muitas outras, conhecido e estudado” (Programa, 2014:8)
diretamente ligadas às .Pelo contrário: à prática frequente de debate
realidades sociais próprias de cada em aula sobre a sacralização/reificação do
contexto educativo. E como também as literário, sobre os processos de criação
perceções da atitude a ter face à Educação de valor histórico-cultural e patrimonial ou
Literária podem ser distintas consoante sobre a articulação entre canonicidade,
a quantidade de capital cultural possuída representatividade e popularidade (ver
por estudantes e docentes, convém texto em caixa) segue-se, como seu
relembrar que a Teoria Literária Feminista reflexo imediato, a maior disponibilidade de
ao analisar criticamente os textos literários estudantes e docentes para o conhecimento
está a ‘levar a sério a literatura/o cânone/a histórico aplicado à análise das obras
língua’. A Teoria Literária Feminista não literárias propostas e para a reanimação (ou:
nega ser a literatura um “repositório des-reificação) dos textos literários em geral.
0136
136 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
0138
138 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
4.4.4.
(Vantagens da)
Análise Interseccional
O
utro dos riscos da prática de presente no contexto escolar porque deriva de
análise de textos atendendo algo apontado acima: o próprio processo de
às questões de género em constituição do cânone português que tende a
contexto escolar é que caso excluir ou a invisibilizar a autoria feminina, como
o desvelamento das assimetrias de poder o demonstrou, por todos para o século XX,
ligadas ao género seja efetuado de forma Chatarine Eldfelt (2006). Assim, não é de
binária (i. e., numa posição avaliativa que estranhar que os/as estudantes fiquem com
apenas considere os pólos ‘texto sexista’ a ideia de que ‘todos os textos’ são sexistas,
vs ‘texto não-sexista’, texto após texto) quando, por exemplo, a maioria dos textos que
leve docentes e estudantes à conclusão lhes são apresentados como representativos
que ‘todos os textos são sexistas’ e se da literatura portuguesa são textos de autores
desinteressem de uma ferramenta de análise pouco igualitários, até pelos condicionalismos
aparentemente redutora. Este é um risco muito das épocas em que viveram.13
13 A respeito das condicionantes da atribuição de valor literário, veja-se a obra de Cláudia Pazos-Alonso Imagens do Eu na Poesia
de Florbela Espanca (1997, Imprensa Nacional, Lisboa) e para a relação entre o Orpheu e a autoria feminina o texto de Anna
Klobucka “A mulher que nunca foi: para um retrato bio-gráfico de Violante de Cysneiros.” Colóquio/Letras, 117/118 (1990), pp.
103-114, ou, num registo diverso mas não menos informative, Klobucka, Anna; Sabine, Mark (eds.) (2010) O Corpo em Pessoa.
Corporalidade, Género, Sexualidade. Lisboa: Assírio & Alvim, [2007 para a edição norte-americana]
Para não exceder os propósitos deste Guião, não é possível aqui fazer mais
do que lembrar a que ponto a obra Novas Cartas Portuguesas ela própria,
escrita em vésperas do 25 de Abril numa altura em que algumas portuguesas
(e portugueses) já ambicionavam uma mudança central nas relações de
género, é, para além da sua qualidade estética, um documento de crítica
social. Apesar de não constar das obras recomendadas pelo Programa não
é de mais recomendá-la como peça nuclear para análises de texto à luz
das “lentes de género” - visto compor-se de pequenos trechos dotados de
semi-autonomia (cartas que parodiam e recriam diferentes estilos e épocas),
torna-se mais fácil do que possa parecer confrontar em aula algumas destas
cartas com excertos de obras recomendadas no programa, mormente as
obras anteriores ao século XIX e levar os/as estudantes a emular as três
autoras realizando também eles exercícios de recriações literárias de época.
0140
140 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
4.4.5.
Leitor/a e Leitura
“Resistente” e, de novo, o cânone
N
este âmbito, será talvez útil A partir dessa ideia de “leitor/a
relembrar parte do contexto de resistente”, a difusão da ideia de Fetterley
produção da pespetiva binária. levou a que se relessem quer textos
canónicos, quer textos contemporâneos;
Uma das contribuições iniciais dos Estudos textos literários e não literários.
de Género para os Estudos Literários foi a Esta nova forma de observação, avaliação
redefinição da figura da leitora: numa obra de e classificação dos textos pôs em questão
1977 hoje clássica – O/A Leitor/a Resistente os critérios de constituição e validação do
– Judith Fetterley escreveu que visto as “cânone”, definido como o conjunto dos
obras literárias veicularem e ‘naturalizarem’ “clássicos”. Até aos anos oitenta do século
uma ordem social desvalorizadora das vinte o cânone foi quase unanimemente
mulheres, a leitura feminina deveria realizar-se considerado como sendo ‘naturalmente’
‘a contra pelo’; isto é, a mulher que lia, representativo dos valores de toda a
a leitora, deveria forçar-se a si mesma comunidade, homens e mulheres. Com
a resistir à implícita ideologia sexista do efeito, um dos critérios admitidos para a
texto; só com esse esforço consciente integração da obra X ou Z no cânone é a
se furtaria a ser ‘manipulada’ por ele. sua representatividade face ao conjunto
das obras produzidas numa determinada
Mas... que quantidade de resistência comunidade. As teóricas dos estudos
precisava uma leitora de empregar para de género questionaram as falhas dessa
não se deixar ‘manipular’? Consoante representatividade – a pergunta era: se
os textos, variava a resistência de que uma obra representa apenas o ponto
necessitava: podia ser maior ou menor. E de vista genderizado de uma parte da
independentemente da sua produção estar comunidade, não é representativa da
mais próxima ou mais remota em relação comunidade como um todo; e não fazem
ao presente, o texto A manipula mais ou as mulheres parte do todo comunitário?
menos intensamente do que o texto B, tem
ou não um sexismo mais intenso do que Um segundo momento dos estudos de
o texto B, à perceção dos textos, épocas género aplicados aos estudos literários levou
e movimentos literários como encerrando então à tentativa de alargamento do cânone,
sexismo em distintas intensidades. e à proposta de criação de um cânone
paralelo, o cânone das obras produzidas por
mulheres que necessariamente espelhariam
o universo de experiência feminino.
0142
142 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
14 Excede os propósitos deste Guião debruçarmos-nos sobre este tópico. Recomenda-se a leitura do já citado livro de
Chatarina Edfelt Uma História na História, ou um artigo de Anna M. Klobucka (2008) disponível em linha em: https://www.
academia.edu/8516686/Sobre_a_hipótese_de_uma_herstory_da_literatura_portuguesa (acedido a 01.06.2015).
4.4.6.
Q
ualquer uma das correntes O mesmo espírito de resgate anima a
mencionadas fala em “redescoberta”, pesquisa em Portugal. Uma ferramenta
isto é, advoga o resgate do indispensável, já citada no capítulo deste
esquecimento de autoras e obras. Guião consagrada à História, apareceu em
O processo de resgate – busca de 2005 – tratou-se do Dicionário do Feminino
(séculos XIX e XX), depois continuado em
autoras e obras de autoria feminina
2013 por um volume chamado Feminae.
que ficaram na obscuridade devido Dicionário Contemporâneo, ambos dirigidas
ao sexo das autoras – implicou por Zília Osório de Castro e João Esteves.
uma tentativa de reescrita da
história literária dos vários países de Dada a proximidade de universos e
metodologias, sugere-se que a leitura
forma a incluir autoras e temáticas
deste capítulo seja completado com a dos
associadas ao feminino. capítulos “Reposicionando Mulheres e
Homens na História Ensinada” e “Filosofia
A contracapa da obra brasileira de Zahide Muzart e Género. Em torno do Programa de
(2000) Escritoras Brasileiras do Século XIX. Filosofia do Ensino Secundário do ponto
Antologia (2000) mostra o processo em ação de vista de Génro”, deste Guião.
e define-lhe os objetivos (ver texto em caixa).
“ Antologias, dicionários, histórias da literatura (...) são também produtos sociais que carregam as
marcas do seu tempo. Com os surgimentos da crítica literária feminista, na segunda metade do século
XX, verificou-se que grande parte da produção literária de autoria feminina havia sido apagada ou “es-
quecida” e que mesmo nomes importantes em épocas passadas se encontravam ausentes de obras
críticas e de coletâneas atuais. Para quebrar esse ciclo de esquecimento e de silêncio forçado, iniciou-
se um longo trabalho de resgate (...) com o intuito de reverter tal situação, contextualizar, criticar e
fazer circular uma produção que permanece desconhecida (...) Com a publicação da presente obra (...)
atinge-se plenamente o objetivo maior da pesquisa (...) mostrar que apesar da ausência de seus no-
mes nas histórias literárias do século XX, essas escritoras foram com efeito atuantes em sua época (...)
Com seus textos agora restituídos aos leitores, elas poderão novamente ter suas vozes ouvidas. ”
Zahidé Lupinacci Muzart, (org.) (2000) Escritoras Brasileiras do Século XIX. Antologia. Vol I. pp. ??
0144
144 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
Nesta perspetiva, algo a ter em conta Quanto aos textos resgatados, podem ser
aquando da exploração do programa postos em confronto com os canónicos,
é que independentemente do cânone propostos pelo programa. além de tal prática
nele apresentado (consubstanciado na promover as capacidades de avaliação
lista de obras, autores e autoras que crítica, de exposição e argumentação
menciona) é sempre vantajoso contrastar lógica, ao exigir reflexão sobre os critérios
os textos a trabalhar com esta nova de integração no cânone – reflexão essa
informação. E considerar igualmente que que pode ser realizada coletivamente em
dar a conhecer aos/às estudantes aula por meio de debate ou pela escrita
pelos/as estudantes de textos de opinião
que, para além do cânone,
– a cumprir-se o proposto pelo programa
existem obras a ser resgatadas para os três anos (ver texto em caixa).
– re-descobertas e avaliadas
– agora e que a re-descoberta Uma revisão necessariamente lacunar do
dessas obras pode vir a mudar que tem sido resgatado mostra que qualquer
docente que queira trabalhar o confronto entre
a perceção hoje existente sobre
os textos do cânone e os textos resgatados
a literatura portuguesa faz-lhes tem à sua disposição textos cobrindo todas ou
sentir que também elas e eles, quase todas as épocas da História da Literatura
mais tarde, podem ter voz na Portuguesa mencionadas no Programa.
4.5.
O resgate e a História da
Literatura Portuguesa
M
erecem todos os textos Por outro lado, se, como sugere Paulo
resgatados até agora integrar de Medeiros, caso se vise uma “história
o cânone e a história da literária mais ampla, mais abrangente,
literatura portuguesa? com uma diversidade de pontos de vista,
aberta a géneros considerados menores,
Certamente que não, que nem todos o incluindo o para-literário e outros artefactos
merecem, muito menos se mantivermos uma culturais” (2010:218), que procure
visão monumental da história literária, ou seja, esclarecer os processos de formação
se pensarmos nessa história como uma versão da nossa memória cultural, então todos
expandida e sofisticada dos ‘dez mais’ nacionais os textos resgatados podem dar um
unanimemente plebiscitados pela crítica, contributo importante para a apresentação
academia e público; mas também talvez já não e explicitação desses processos.
seja possível, como atrás se tentou explicitar,
legitimar cabalmente uma visão monumental.
0146
146 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
4.5.1.
I
ndependentemente de continuar a
ser verdadeiro ou de se ter alterado Silvina Rodrigues Lopes escreveu em 1995:
o que Sílvina Rodrigues escreveu
em 1995 sobre os estudos literários “ os estudos literários têm-se mantido à mar-
gem das problemáticas que visam a diferença
(ver texto em caixa), que razões temos para sexual como elemento estruturante dos tex-
supor que o conhecimento do contexto tos literários.”
psicossocial de produção/receção literária Silvina Rodrigues Lopes, 1996: 323.
portuguesa de autoria feminina e dos textos de
autoria feminina possa modelar uma história
da literatura portuguesa “mais ampla, mais
abrangente, com uma diversidade de pontos Dito de outra forma: se é possível, como
de vista, aberta a géneros considerados refere William Blake num verso famoso,
menores”? E por que é importante para “ver o mundo num grão de areia”, quanto
docentes e estudantes da disciplina de mais desconhecido for o grão de areia mais
Português que a história literária a que original pode parecer a visão do mundo
acedem seja “mais ampla, mais abrangente, que oferece; ou seja, os aspetos revelados
com uma diversidade de pontos de vista, pela análise serão tanto mais anteriormente
aberta a géneros considerados menores”? desconhecidos quanto a ‘amostra’ for obscura.
Quanto a saber se o conhecimento das obras Note-se ainda que está implícita a adoção de
e dos respetivos contextos de produção/ uma perspetiva analítica – aquela que prioriza a
receção poderá modelar essa história da ‘amostra’, e lê o todo a partir dela – não exclui
literatura portuguesa ‘mais ampla’, o que uma simultânea perspetiva sistémica – uma
se pode esperar é que, dado que se muda perspetiva que interpreta a ‘amostra’ a partir
a parte do sistema literário em análise – ou do todo; uma qualquer análise diacrónica
seja, porque se muda a ‘amostra’ analisada, de um qualquer sistema dinâmico (sendo
neste caso constituída por textos de autoria que o sistema dinâmico aqui em causa
feminina e respetivos contextos de produção compreende quer a sociedade portuguesa,
e receção – o resultado da dita análise quer o respetivo campo literário) revela que
revele aspetos desconhecidos da ‘amostra’ causas micro podem originar impactos macro
e da totalidade do sistema literário.15 e vice-versa: pode relacionar-se uma obra
15 Por conveniência de escrita, empregam-se aqui indiferentemente as expressões “campo literário” e “sistema literário”, assim
como as expressões “história literária” e “história da literatura”.
esquecida de uma autora esquecida com a Quanto a saber como se liga esta re-escrita
dinâmica maior do campo literário e de toda da história da literatura portuguesa aqui
a estrutura social portuguesa e sustentar preconizada à questão mais vasta da educação
a existência de influências recíprocas. para a cidadania de jovens estudantes de
ambos os sexos da disciplina de Português
Assim, há razões para esperar que, sendo do Ensino Secundário, a resposta é
as obras destas autoras um universo de aparentemente simples: como o Programa
análise marginal ou pouco trabalhado, a afirma na sua introdução, “um dos seus
sua utilização como ‘amostra’ ao serviço pressupostos essenciais [é]: o direito de
de uma observação virada para a perceção acesso a um capital cultural comum, que é
de redes causa-efeito 16 de dimensão função do sistema educativo” (2014:5).
micro e macro renove a perceção do
campo literário na sua totalidade; e, Integrar as obras das autoras
em suma, pode especular-se que tentando ver nelas o mundo (o campo
quando se analisarem sistemica literário da época e a sociedade
e analiticamente para todas as que gerou esse campo literário)
épocas um conjunto de obras e conhecer o mundo a partir das
portuguesas de autoria feminina, obras das autoras é importante
a história literária portuguesa para que a história da literatura
previsivelmente se reescreverá portuguesa, repositório de um
de forma a ser, repetindo a capital cultural comum, se renove.
fórmula de Paulo de Medeiros
O texto que se segue, necessariamente
acima citada, “mais ampla, mais
redutor, tenta mostrar como uma reflexão
abrangente, com uma diversidade sobre o cânone contribui para uma visão
de pontos de vista, aberta a “mais ampla” da literatura portuguesa.
géneros considerados menores”.
16 Redes essas que se estabelecem entre os fatos sociais e os fatos literários, ou no interior do campo literário.
0148
148 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
4.5.2.
U
m paradoxo digno de nota é que Uma perspetiva panorâmica sobre o campo
quanto mais atenção é dada literário português que se inicie antes do século
à história literária portuguesa XIX e que deliberadamente situe esse século
anterior ao século XIX mais a como um momento nem mais nem menos
contribuição das mulheres é realçada. importante na estruturação do referido campo
ajuda à relativização dos referidos paradigmas
Ana Hatherly inicia na década de oitenta do e categorias de avaliação. Para além do que
século vinte a divulgação das obras das freiras se explanará adiante, um alargamento do
do século XVII (Madalena da Glória, Violante do enfoque periodológico ajuda nomeadamente a
Céu, Maria do Céu...) mas é com os estudos alterar uma visão do campo literário português
de Isabel Morujão, já na primeira década do quiçá redutora e anacrónica, segundo a qual
século XXI, que esta produção literária mostra o referido campo literário é um espaço desde
a sua importância. Quanto ao século XVIII, os trovadores dominado pela dinâmica de
várias vozes 17 têm clamado que o estudo profissionalização competitiva dos agentes...
da sua literatura merece mais atenção.
Ora uma das razões – mas não Iniciar a análise do campo literário
português tomando o século XVIII – para
de longe a única – porque é
não falar do século XVII – como ponto
importante recuar pelo menos ao de partida para uma apreciação sobre as
século XVIII é que esse estudo exigências sociais colocadas aos textos
permite compreender algumas e seus autores e autoras ajuda a
das razões da desvalorização da lembrar que os critérios de
produção de autoria feminina. excelência que regem o campo
17 Refiram-se apenas, para exemplo, Vanda Anastácio, Luísa Borralho ou Teresa Almeida.
0150
150 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
4.5.3.
A desqualificação da edificação
e das obras de autoria feminina
O
lhar para a literatura portuguesa feminina continuará a privilegiar o Utile. Por quê?
anterior ao século XIX leva Até ao vinte e cinco de Abril de 1974, do
a compreender como as código de género das portuguesas constava
modificações profundas (pode um imperativo de silêncio que só aceitava duas
dizer-se, a quase inversão) das motivações exceções: era lícito às portuguesas falar/escrever
para a escrita e dos respetivos critérios em defesa da ordem social, se a considerassem
de validação que ocorrem no último ameaçada, e/ou falar/escrever em louvor dos
quartel de oitocentos arrastam com elas a representantes divinos e terrestres dessa
desqualificação das obras de autoria feminina, mesma ordem social (ver textos em caixa).
e colocam as mulheres perante
o dilema de serem reprovadas As mulheres “decentes”
como artistas – se obedecessem deveriam fugir de qualquer
às convenções sociais – ou como possibilidade, mesmo a mais
pessoas – se acompanhassem remota, de serem nomeadas.
Nos termos do código de género
o movimento artístico. português até 1974, um homem
“falado” é uma celebridade,
Antecipando: no último quartel de oitocentos
uma mulher “falada” é
os ingredientes da máxima latina que
uma transgressora sexual
dita as caraterísticas da obra ideal – o
merecedora de ostracismo.
ser ela Utile et Dulce – trocam de peso:
antes, a utilidade social de uma obra é
Alegadamente as
mais valorizada do que a sua qualidade “bem-formadas” deveriam
estética18. Depois, dá-se o contrário. expressar uma relutância
íntima – o pudor – proveniente
Esta mudança afecta a valorização da escrita da consciência da sua condição
de homens e mulheres, mas tem um impacto de alheias à res publica
muito superior nas obras de autoria feminina e da consciência da sua
portuguesa.Com efeito, como se verá, desadequação a interferir nela.
enquanto os homens se movem na direção
do Dulce, o conjunto das obras de autoria
18 Sendo que a qualidade estética é sinalizada pelo seu poder de atração, que a torna Dulce a quem lê.
19 Margarida Vieira Mendes (1980) falou-nos das “convenções da sociedade de então ou (...) as da literatura romântica (princípios
que nem sempre coincidiram entre si)” (p. 66).
20 Veja-se por todas as obras de devoção as de Violante do Céu, já mencionadas, e pelas novelas românticas as de Maria Pere-
grina de Sousa.
21 Manifestado como o grau de invenção linguística e a capacidade de “estranhamento” produzida por uma obra.
22 Como, evidentemente, Florbela. Mas esse novo e muito relativo “descaro” é socialmente punido – o caso mais visível é o de
Judite Teixeira, claro está.
0152
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
23 Pense-se na apologia da sinceridade que “justifica” a exibição do eu dividido nas obras de Florbela Espanca. Neste contexto,
claro, Fernando Pessoa fingidor é o anti-Florbela, assim como Florbela é o anti-poeta.
Sugestões de atividades
a desenvolver em aula e
pistas de leitura de obras
mencionadas no Programa
A
s propostas que se seguem 2. A reflexão sobre as relações de
tomam explicitamente em conta género/gender expressas na língua
os objetivos gerais, as metas pode e deve realizar-se de maneira
curriculares e os conteúdos orgânica e de forma a implementar
programáticos de cada ano de escolaridade. os saberes ligados aos conteúdos
programáticos de cada ano.
Duas notas aplicáveis aos três anos: Nomeadamente:
• Pode e deve servir para exercitar os
1. O Programa insiste na necessidade de: géneros/genres a trabalhar em cada
cada estudantes realizar inferências, isto é, ano: exposição sobre um tema,
de serem capazes de ultrapassar o sentido construção de texto argumentativo,
manifesto de um texto oral ou escrito. A apreciação crítica, debate;
existência de perspetivas genderizadas em
todos os produtos culturais é uma realidade • Pode e deve integrar-se na análise e
que não é manifesta, tem de ser inferida; e produção de textos literários ou não
que cada estudante de Português adquira literários;
a capacidade de realizar essa inferência é • Pode e deve exercitar as aprendiza-
algo da responsabilidade da e do docente. gens gramaticais em curso.
0154
154 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
4.6.1 Propostas
EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Propostas
3. Será que os diferenciais de poder ligados das crianças por amas, vínculos maternos
às diferentes etnicidades, por exemplo, frágeis devido à alta mortalidade infantil...
poderiam substituir os diferenciais ligados
à dicotomia rural-urbano e determinar 3. Antecipando discussões futuras sobre Os
igualmente as relações de género? Maias, a turma poderá discutir ainda em que
medida a experiência precoce familiar dos
c) Rimas, Luís de Camões escritores influencia a sua visão das mulheres;
O enquadramento histórico da obra camoniana e verificar se, em relação ao tempo de Camões,
na sociedade manuelina – nomeadamente, o mudou a perceção do que é a feminilidade,
muito relativo, mas real, aumento de visibilidade isto é, mudou o estereótipo do feminino.
das mulheres relacionado com a expansão
da vida de corte e com a criação de uma elite 4. Seguidamente, poderá confrontar-se a
de jovens educadas (o grupo da infanta D. representação nas Rimas da mulher em geral,
Maria) que, porque são educadas o suficiente com a representação da mulher ideal, ou do
para serem companheiras intelectuais, tipo de mulher “merecedor” de amor também
necessitam de ver contidas as aspirações nas Rimas. O ideal descrito é o da mulher
à participação na vida pública – pode ser “mansa”, que se opõe à “fera humana”.
usado para debater as razões que levam a
que a representação da mulher nas Rimas Perguntas possíveis:
de Camões concretize um estereótipo de
• Em que medida essa ‘mulher ideal’ é
feminilidade que tem como caraterística a
um ideal masculino? Em que medida
relativa desvalorização da racionalidade.
esse ideal de mulher estava já presente
na poesia trovadoresca? E em relação
1. A turma poderá ser levada a verificar
ao tempo de Camões, mudou a
o quanto a mulher das Rimas combina
perceção do tipo de mulher ideal?
a formosura e “gentileza” (traço em que
confluem a boa disposição e a doçura – veja- • E, para o Camões das Rimas, que tipo de
se a “leda mansidão” de Bárbara a escrava) homem é o que merece ser amado? Qual é o
com o “rigor/crueza” (recusa voluntária de amante ideal? Como se liga o estereótipo do
concretização do desejo masculino); e como amante ao estereótipo da masculinidade?
a prova de capacidades cognitivas da mulher • Em que medida persistem os estereótipos
é, sobretudo, a capacidade de dissimular. de homem e mulher das Rimas nos
dias de hoje, nas representações
2. A turma poderá ainda ser levada a sociais de homens e mulheres?
questionar o quanto a representação da
mulher enquanto mãe mostra a intensificação d) Os Lusíadas, Luís de Camões
de uma ambivalência – a figura materna que Na sequência do escrito acima, aconselha-se a
o autor descreve na famosíssima Canção reflexão em turma sobre o facto de, enquanto
X é uma entidade infra e supra-humana, nas Rimas a representação da mulher ideal
uma “humana fera tão formosa, suave (ou, seja, o estereótipo da mulher amada)
e venenosa”” que “excedia o poder da coincide com o estereótipo associado ao `ser
Natureza” – e a tentar explicar isso em mulher´, a representação do homem amante,
termos histórico-sociológicos: aleitamento nas Rimas, diverge do estereótipo associado
0156
156 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
Propostas
ao `ser homem´, viver a masculinidade, • Listam caraterísticas atribuídas a esse homem
no tempo de Camões. O estereótipo da e caraterísticas atribuídas a essa mulher.
masculinidade é expresso em Os Lusíadas Comparam essa lista com a lista anterior.
pela valentia, agressividade e determinação. • Supõem uma relação de enamoramento entre
as personagens dos anúncios. Descrevem
1. A representação da masculinidade associada essa relação do ponto de vista do quotidiano
ao género épico é diferente da representação – quem cozinha? Quem vai ao banco?
da masculinidade associada ao género lírico.
Terá isso a ver com a dicotomia público/privado, 2. Propõe-se em seguida uma mudança:
havendo uma dualidade/oposição associada à as personagens empobreceram.
vivência da masculinidade nas duas esferas? Continuam juntas, porém. A relação
Sugere-se um debate sobre o tema. altera-se? Quem faz agora o quê?
A relação vai persistir?
2. A leitura intersecional das relações de
poder em Os Lusíadas poderá igualmente 3. Alunas e alunos visionam o vídeo em linha,
revelar diferentes vivências da masculinidade, disponível no youtube em múltiplos endereços
mais ou menos positivas consoante a – da canção “Eduardo e Mónica” (de Renato
etnicidade das personagens: por exemplo, Russo para os Legião Urbana) e a letra da
a capacidade de mentira, atribuída às canção. Realizam uma apreciação crítica do
mulheres, é ‘deslocada’ para personagens vídeo. Contrastam as caraterísticas atribuídas
do sexo masculino não portuguesas. à mulher e ao homem (Mónica e Eduardo)
com as caraterísticas da mulher e homem
Outras perguntas possíveis: estereotipados dos anúncios de perfume.
• a
representação das mulheres em Os Lusíadas Contrastam a relação de Eduardo e Mónica com
como objeto de desejo é dominante ou não? a relação imaginada para as duas personagens.
Que tipo de relação resiste mais ao tempo? Que
• Como se relaciona com a representação
tipo de relação preferiam os/as estudantes ter?
das mulheres nas Rimas?
1. As e os estudantes:
• Listam, oralmente, as caraterísticas da mulher
ideal e do homem ideal.
• Visionam dois anúncios publicitários
– os mais recentes que se encontrarem –
de perfumes: um perfume masculino e
um perfume feminino, contendo cada um
respetivamente um homem e uma mulher.
4.6.2. Propostas
24 Recorde-se que uma das obras da lista do Projeto de Leitura para este ano é A Torre da Barbela, de Ruben A. que trata do
desfecho violento para uma relação amorosa não aprovada pela sociedade e da punição de uma mulher que desobedece aos
estereótipos de género e é punida com a fogueira. Visto que é possível a obra não ser escolhida, não é mencionada como
núcleo de uma atividade. No caso de ser escolhida, sugere-se uma atividade de contraste do par Madeleine /Cavaleiro com o
par da canção Eduardo e Mónica mencionada na atividade sugerida para o 10º ano. Lembrar, se vier a propósito, que o nome
Madeleine corresponde a Madalena, a pecadora /prostituta do Novo Testamento e que a prima Madeleine vem de Paris, a
cidade das “Fleurs du Mal”.
0158
158 CIG
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Propostas
Ouguet (caraterizado pelo pânico e gula) d) Amor de Perdição, Camilo
com o autocontrolo extremo de Domingues Castelo Branco
(caraterizado pela coragem e abstinência total). Propõe-se uma reflexão conjunta sobre o
estereótipo do masculino. Tópicos possíveis:
3. A recusa de comida e bebida por • Que representação do masculino
Domingues durante três dias comunica propõem Simão e João da Cruz?
simbolicamente a sua negação da própria
• Como estão os conceitos de virilidade e honra
fragilidade física (neste caso, negação da
masculina ligados à violência física e, no caso
velhice, já que a cegueira é inegável); o
de Simão, ao impulso auto-destrutivo?
facto da recusa de comida e bebida ocorrer
debaixo da abóboda tem um significado • De que forma é o homicídio cometido por
diferente - nega a sua falta de inserção na Simão o resultado de uma cultura que valoriza
arquitetura do seu tempo. Vivendo em círculos a violência como prova de masculinidade?
masculinos em que o valor ou é medido • Em que medidas são as relações dos pais
pelas proezas físicas (caso do mundo dos de Simão e de Teresa estereotipadamente
cavaleiros, a que pertenceu) ou é já medido masculinas, enquanto tentativas de
pela frequência de escolas e mestres (caso controle do destino dos filhos?
do mundo dos letrados e arquitetos, em • De que forma é este romance uma
transformação) e perdendo credenciais crítica à figura do pater famílias?
em ambos, Domingues oferece-se num
sacrifício – inútil para o desenvolvimento da e) Os Maias, Eça de Queirós
arquitetura portuguesa que disse defender. Analisar a que ponto as relações familiares
Ainda que o autor obstasse a um desenlace expressam visões sobre relações de género:
em que Domingues e Ouguet trabalhassem por exemplo, se num romance sobre os laços
a par, aprendendo um com o outro, poderia familiares é mencionado que Pedro, o pai de
não apresentar a ação pró-suicida de Carlos e Maria Eduarda, teve “um bastardinho”
Domingues como exemplar. O/a docente e nunca mais o romance se interessa pela sorte
poderá recordar que, por exemplo, a atração desse bastardo (meio-irmão de Carlos), isso
pela abstinência como protesto levou, nos não poderá indicar que a conceção do autor
nossos dias, a comportamentos danosos do que seja uma família é determinada pelo
para a saúde pública, como a anorexia. que pensa sobre a contenção sexual feminina?
O “bastardinho” não pertence à família Maia
c) Viagens na Minha Terra, porque a mãe dele nunca se casou com o
Almeida Garrett pai... Maria Eduarda pertence, porque a mãe
Realçar o aspecto simbólico dos múltiplos e o pai casaram. Ligar esta problemática a,
interesses romanescos de Carlos: uma freira, por exemplo, o que acontece em Frei Luís de
as três irmãs, a sua prima. Que representações Sousa: Garret luta contra a injustiça de uma
do feminino propõem? Comparar os seus sociedade que divide os indivíduos em legítimos
destinos com o de Carlos, que prosperou e ilegítimos por causa da conduta sexual
e se tornou barão. Em que medida esse das mães. Eça, ele próprio um filho ilegítimo,
contraste é revelador das possibilidades de adere aos valores sexistas dessa sociedade
agência das mulheres oitocentistas? Que quando exclui o “bastardinho” do romance.
outros destinos seriam hoje possíveis? Posterirmente, sugere-se um debate entre os
Propostas
modelos de parentalidade e os estereótipos a ociosidade forçada de mulheres como a
de género. Lendo a descrição da relação Gouvarinho, inteligentes e educadas mas
entre Afonso da Maia e Pedro em criança, impedidas de exercer uma profissão?
parece Afonso um pai que aceita o filho tal
como é, ou quer moldá-lo a um estereótipo ORALIDADE E ESCRITA
de masculinidade caraterizado pela recusa da
expressão da vulnerabilidade de qualquer tipo? É pedido às/aos estudantes que pesquisem
Que significa em termos de representação material promocional de jogos vídeo em
das relações de género o facto de todas as diversos suportes – impresso, digital, etc.
mães mencionadas no romance serem, além
de pouco inteligentes, mães abandónicas/ Esse material é apresentado oralmente em aula,
rejeitantes (caso das mães dos principais e submetido a uma análise “de género”:
protagonistas, Carlos e Maria Eduarda e João • É dirigido a homens e mulheres?
da Ega) ou pelo contrário superpossessivas
• Que representações do masculino e do
à excepção de Maria Eduarda, que
feminino apresenta?
aparece, pelo contrário, idealizada?
• Que tipo de relações de género promove?
Que dizer do papel que ocupa a prostituição e
o adultério na sociedade descrita no romance? Os/as estudantes escrevem um texto de opinião
Como se articula o adultério feminino com sobre os jogos vídeo.
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4.6.3 Propostas
a) Fernando Pessoa
Verificar em turma a invisibilidade de todos os A leitura desses poemas deve realizar-se após
aspetos relacionados com a materialidade do os poemas terem sido expurgados das marcas
feminino, nomeadamente o corpo feminino. gramaticais de género, de forma a que as/os
Questionar a representação das mulheres estudantes não saibam se foi escrito por um
como grupo subalterno e como seres homem ou por uma mulher.
determinados apenas pela emoção. Dadas
a conhecer na turma as opiniões expressas Pedir-lhes que atribuam a cada poema
pelos/as estudantes, comentando citações uma autoria, masculina ou feminina, e que
de Fernando Pessoa como “As três classes apresentem as razões para essa atribuição.
mais profundamente viciadas, na sua missão Segue-se a leitura do excerto de Isabel Allegro
social, pelo influxo das ideias modernas são as de Magalhães acima referido.
mulheres, o povo e os políticos. A mulher, na
nossa época, supõe-se com direito a ter uma Colocar questões – como por exemplo: a
personalidade; o que pode parecer “justo”, diferença de sexo é suficiente para determinar
“lógico” e outras coisas parecidas; mas que em todos os tempos e espaços – a diferença
infelizmente foi de outro modo disposto pela substantiva de experiência de vida e de escrita?
natureza. A abusiva libertação do espírito Por outras palavras, o género exerce o mesmo
naturalmente servo da mulher e do plebeu dá grau de determinação sobre a experiência de
sempre resultados desastrosos para a moral vida e a escrita em sociedades (ou grupos
e para a ordem social. Espíritos nativamente sociais) estritamente segregacionistas – em
fracos, e incapazes de inibição íntima, a mulher que mulheres e homens vivem separados,
e a plebe – como a criança – não podem ser têm tarefas exclusivas e desempenham papéis
disciplinadas senão de fora” (Fernando Pessoa, sociais completamente diferentes – e em
citado por José Barreto, 2011, p. 51). sociedades como a portuguesa de hoje? As
experiências de cada qual são tão determinadas
b) Poetas Contemporâneos pelo respetivo sexo que o que quer que alguém
Comparação de quaisquer poemas de duas
escreva vai refletir o sexo de quem o escreveu,
autoras e dois autores – Ana Luísa Amaral, Luiza
mais do que, por exemplo, a respetiva idade,
Neto Jorge, Ruy Belo e Manuel Alegre:
ou o estatuto social, ou o nível de educação?
Propostas
Em que medida a própria experiência de vida poetas) do que entre os textos de um poeta e
de cada qual determina a resposta que essa uma poetisa, o que nos pode isso indicar?
pessoa dá à pergunta anterior? Responderia
essa pessoa de maneira diferente caso vivesse A/o docente poderá solicitar seguidamente
numa sociedade mais/menos segregacionista aos/às estudantes que escrevam um curto texto
quanto ao sexo? E caso vivesse numa de opinião sobre a temática “Determinantes na
sociedade racialmente segregacionista? escrita de texto literário”.
Mesmo vivendo numa sociedade
segregacionista, uma adulta sudanesa pobre c) O Ano da Morte de Ricardo Reis,
partilha mais experiências com uma aluna José Saramago
do Ensino Secundário português ou com um Debater a conduta moral de Ricardo em relação
adulto sudanês da mesma classe social? a Lídia: é-lhe possível casar com ela mas
recusa porque Lídia é de uma “classe inferior”;
A partir das perguntas sugeridas, criar um engana ambas as mulheres com quem tem uma
debate – até que ponto é o género/gender relação. Se o romance fosse protagonizado
determinante para a criação de uma persona por uma personagem feminina, o que mudaria?
poética? Visto que não é inevitável a existência E o que mudaria se o romance descrevesse a
de uma maior semelhança entre os textos sociedade portuguesa de hoje?
de duas poetisas (ou entre os textos de dois
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4.7.
Sugestões de leituras
O
que se segue é uma 3. Para o século XVIII a dissertação
‘micro-biblioteca’ sobre autoras de Luísa Malato Borralho sobre Catarina de
e obras resgatadas, que se Lencastre, a de Raquel Bello-Vásquez sobre
sugerem como complementares Teresa de Mello Breyner.
às dos autores do cânone. Esta lista inclui:
• Luísa Malato Borralho (2008), "Por Acazo
Hum Viajante..." A Vida e Obra de Catarina
1. Para o conhecimento da
de Lencastre – 1ª Viscondessa de Balsemão
poesia trovadoresca, o já referido (1749-1824) Lisboa, INCM;
livro de Maria do Amparo Maleval;
• Uma introdução acessível mas rigorosa à vida
e obra de Teresa de Mello Breyner é a obra de
2. Para o século XVI, além do livro
Raquel Bello-Vásquez (2006) Mulheres do Século
A Dona do Tempo Antigo,a antologia
XVIII. A condessa do Vimieiro. Lisboa, Ela por Ela.
organizada por Vanda Anastácio que cobre a
escrita feminina dos séculos XVI, XVII e XVIII
4. Para o século XIX e XX as leituras
e a dissertação de doutoramento de Isabel
obrigatórias não se focam no resgate de textos;
Morujão que resgata a poesia conventual
mas são, de qualquer forma, estimulantes – sobre
de autoria feminina do mesmo período:
as oitocentistas, a obra de referência é de Ana
• Roberto López-Iglésias Samartin (2003), Maria Costa Lopes, enquanto para o século XX
A Dona do Tempo Antigo. Mulher e campo é incontornável a leitura de Anna Klobucka 25:
literário no Renascimento Português (1495-
• Ana Maria Costa Lopes (2005), Imagens da
1557) Santiago de Compostela, Laiovento.
Mulher na Imprensa Feminina de Oitocentos.
• Isabel Morujão, (2013), Por trás da Grade. Percursos de Modernidade, Lisboa, Quimera.
Poesia conventual feminina em Portugal
• Igualmente fundamental é o artigo de
(séculos XVI – XVIII) Lisboa, INCM;
Ana Maria Costa Lopes “Sexo e Género:
• Vanda Anastácio (org.) (2013), Uma Antologia algumas notas epistemológicas para a
Improvável. A Escrita das Mulheres (séculos análise da mentalidade no século XIX”,
XVI a XVIII) Lisboa, Relógio de Água. Revista ex aequo,1,1999, pp. 45-60 26
25 Além do livro, já referido, que co-organizou sobre o corpo em Fernando Pessoa, Klobucka co-organizou (com Helena* Kaufman)
o importante After the Revolution: Twenty Years of Portuguese Literature 1974-1994 (Bucknell, 1997) portuguesa no prelo).
26 Este artigo foi publicado na Revista ex aequo, publicada pela editora Celta (Oeiras) e revista-voz da Associação Portuguesa de
Estudos sobre as Mulheres – APEM; diga-se desde já que as publicações e atividades da APEM são um recurso para quem
quer que deseje aprofundar este campo de conhecimento. No que especificamente respeita ao número da ex aequo em que
o supra citado artigo de Ana Maria da Costa Lopes se inclui, o tema deste número – Representações sobre o Feminino – leva
a que nele existam outros artigos de conteúdo relevante para docentes de Português. Tal como a ex aequo, é de leitura indis-
pensável a revista Faces de Eva – publicada pela editora Colibri, Lisboa. É editada pelo Faces de Eva. Centro de Estudos sobre
a Mulher, uma unidade de investigação criada na Universidade Nova de Lisboa cujas atividades e publicações também são
recursos imperdíveis: como exemplo, veja-se o Dicionário do Feminino, já mencionado.
• Finalmente, ainda sobre o século XIX, um texto • Anna Klobucka, Anna (2009), O Formato
de Teresa-Cláudia Tavares (2004), “Portugal, Mulher. A Emergência da Autoria Feminina na
1874. A política sexual e literária portuguesa Poesia Portuguesa. Coimbra, Angelus Novus.
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Cânone Literário e Igualdade entre Mulheres e Homens l
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Imprensa Nacional.
0166
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Ensino de Inglês, Género e Cidadania l
5.
Ensino de Inglês,
Género e Cidadania
por: Maria Helena Dias Loureiro*
* A autora agradece o convite que lhe foi endereçado, em finais de 2014, para participar
nesta obra, tendo finalizado este texto e respetivas propostas em agosto de 2015.
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Ensino de Inglês, Género e Cidadania l
5.1.
O
s contributos desta abordagem da Uma coisa parece ser certa: a
educação obrigam, segundo Henry impossibilidade de ensinar “just the
Giroux (1991), a que façamos três language”, tal como sublinhado na
perguntas fundamentais: epígrafe inicial e que se apresenta
1 TAlastair Pennycoo (1994), The Cultural Politics of English as an International Language, London, Routledge, p.295.
2 Traduzido do inglês: “I cannot be a teacher if I do not perceive with ever greater clarity that my practice demands of me a defi-
nition about where I stand. A break with what is not right ethically. I must choose between one thing and another thing. I cannot
be a teacher and be in favor of everyone and everything” (Freire, 1998: 93).
3 “Pff! Inglês, quem precisa dele? Eu nunca hei-de ir a Inglaterra!” Comentário de Homer Simpson, enquanto jovem, questionando
a necessidade e utilidade do que ele considerava uma “língua estranha”, cuja aprendizagem iria perturbar o seu paroquialismo
monolingue. [em linha], disponível em http://www.tvfanatic.com/quotes/hey-homer-youre-late-for-english-pff-english-who-nee-
ds-th/ (consultado em 12.03.2015).
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Ensino de Inglês, Género e Cidadania l
A propósito de uma campanha denominada Let Girls Be Girls (a venda, em 2010, de bikinis acol-
choados para meninas na cadeia Primark, no Reino Unido, desencadeou inúmeros e veementes
protestos), a jornalista e feminista Laurie Penny escreveu o seguinte:
“ The notion of ‘sexualisation’ deserves serious critical unpacking. The term envisions girl chil-
dren as blank erotic slates upon which sexuality can only ever be violently imposed. This narrow
vision of sexuality leaves no room for young girls to explore authentic desire at their own pace,
insisting instead that girls need to be protected from erotic influence, while boys, presumably,
are free to fiddle with themselves to their hearts’ content. Far from protecting young girls, the
“anti-sexualisation” agenda actually serves a culture that shames girls if they have sexual feelings
of their own while fetishising them as objects of erotic capital: the pornographic and advertising
industries routinely infantilise adult women in an erotic context. [...] Padded bras for preteens
are not the problem. The problem is a culture of prosthetic, commodified female sexual perfor-
mance, a culture which morally posturing politicians appear to deem perfectly acceptable as long
as it is not ‘premature’. By assuming that sexuality can only ever be imposed upon girl children,
campaigns to ‘let girls be girls’ ignore the fact that late capitalism refuses to let women be women
– at any age. ”
Traduzindo,
representação dos dois sexos, se “odeia amar” mas que, O que valerá a pena questionar,
bem como na construção e juntamente com a língua nestas circunstâncias e na
disseminação da ‘realidade’, materna, com a história e com senda do que já foi feito
e das notícias que sobre ela se a geografia, pode constituir um noutros países relativamente a
fazem, através de grandes redes núcleo forte de disciplinas com outras línguas estrangeiras, não
televisivas por cabo e satélite, enorme potencial educativo, deverá ser o valor educativo da
como a CNN, e radiofónicas, entendendo-se aqui o termo disciplina que será, em termos
como o BBC World Service. educação no sentido que Eric gerais, o de poder oferecer
Hawkins (1981) lhe atribui, ou às alunas e aos alunos uma
Em qualquer dos casos, seja, uma prática que contribui experiência diferente da que
trata-se da presença ubíqua decisivamente na luta contra é dada pela língua materna
desta língua, a língua dos (ver caixa em cima). e, assim, contribuir para a
filmes, das séries de televisão compreensão do mundo
e das canções, da internet Mas, acontece que, apesar poliglota e emancipar as alunas
e dos jogos de computador, de ser o inglês um território e os alunos do paroquialismo,
dos media e da publicidade, ganho à partida porque, para mas antes a visão de inglês e
da política internacional e do muitas e muitos jovens, lugar de mundo que selecionamos,
ensino globalizado, da ciência de afetos e de expetativas preparamos e apresentamos
e dos transportes e das lutas positivas, é, também ele, às alunas e aos alunos e
locais e globais, que, às vezes, enquanto disciplina escolar, se ela está a resultar.
“ O insucesso a Inglês e a outras disciplinas pode ser visto como, também, uma questão de
linguagem, já que “a linguagem [dessas disciplinas] está, sem dúvida, mais próxima de uma
língua estrangeira do que de uma língua nativa. Uma disciplina é construída por um vocabulá-
rio específico e por regras de articulação específicas. Aprender um assunto é uma questão de
aprender a falar a sua linguagem, aprender a usar os seus termos e a ser capaz de os agrupar de
acordo com uma gramática própria. […] Não se trata de uma simples questão de imitação ou
de conseguir fazer uns exercícios, mas sim, e […] nas palavras de Hockett, ‘da capacidade de, es-
pontaneamente, dizer coisas novas’ – seja em Português ou em Inglês, em História, Matemática
ou Biologia. ”
Martin Kayman, Graça Abranches e Maria Helena Loureiro, 1991: pp.
4 “As ameaças mais subtis à liberdade: a ignorância, o preconceito, a influência da(s) moda(s) em mentes imaturas, a persuasão
velada dos media sobre quem não está armada para a reconhecer, por pura falta de capacidade para atuar sobre o meio e
todos os constrangimentos sobre a capacidade de ajuizar, sobre o gosto e o discernimento.” (Eric Hawkins, 1981: 29-30).
Tradução da autora.
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Ensino de Inglês, Género e Cidadania l
A reverência que segue o lema “teacher and text – and test must know best” é analisada e criti-
cada por Catherine Wallace que particulariza a situação das alunas de EFL (English as a Foreign
Language) como claramente marginalizadas enquanto leitoras, até porque o seu papel é, priori-
tariamente, o de alunas “só” de língua.
“ EFL students are often marginalised as readers […] they are perceived to be primarily […] lan-
guage learners. What is missing is: 1. An attempt to place reading activity and written texts in a
social context; 2. The use of texts which are provocative; 3. A methodology for interpreting texts
which addresses ideological assumptions as well as propositional meaning. ”
Traduzindo,
“ As/Os alunas/os de Inglês Língua Estrangeira são frequentemente marginalizadas/os […] são
vistas/os em primeira instância como alunas/os de língua. O que falta é: 1. Uma tentativa de colo-
car a leitura e os textos num contexto social; 2. O uso de textos desafiadores; 3. Uma metodologia
de interpretação de textos que trate dos pressupostos ideológicos bem como dos significados
proposicionais.”
Catherine Wallace (1986) citada por Norman Fairclough, 1992: 62. Tradução da autora.
Dessa reflexão deverá constar um olhar crítica, a fim de que as alunas e os alunos
atento quanto ao instrumento de ensino mais possam decidir ‘por si’. Mas não estará o
comum, o manual escolar. É decisivo que, por discurso da sala de aula inevitavelmente, full
um lado, se escrutine criticamente os textos of invisible quotes?, usando a expressão de
provenientes dos media, das enciclopédias, Claire Kramsch (1993: 48). Será que a idade e a
dos dicionários e das revistas “especializadas” maturidade das alunas e dos alunos permitem
para que não sejam tomados at face value, que, ‘por si’, se apercebam das questões,
numa atitude de reverência que se deverá muitas delas de índole moral, que os programas
evitar em contexto educativo, por outro lado, se das disciplinas levam para a sala de aula? Será
aproveite a oportunidade de, ao fazer a análise que o hiperindividualismo permite às alunas
desses textos, educar as alunas e os alunos na e aos alunos ver que a experiência pessoal,
compreensão de como a linguagem pode ser por mais rica que seja, não é suficiente para
anular um padrão social? Aperceber-se-ão,
usada para influenciar, persuadir, controlar e
por si, que esse hiperindividualismo desperdiça
silenciar, na sequência do que propôs Catherine
as generalizações produtivas, mas naturaliza
Wallace (1986), citada por Norman Fairclough
as generalizações abusivas? Este ethos está,
(1992) (ver texto em caixa). Esse exercício
igualmente, presente na ênfase dada às
será, para as alunas e os alunos, uma forma
exceções, aos indivíduos excecionais, seja no
pedagógica e educativa de descortinar outras
sentido da emulação, seja no da condenação.
vozes credíveis e tentar encontrar voz autêntica.
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174 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Ensino de Inglês, Género e Cidadania l
5.2.
Programa da disciplina e
oportunidades educativas
“ It used to be so simple. Men paid, drove and made the first move. Women dressed up, preten-
ded they liked the restaurant, got the bubbles up their nose and said ‘Really – how interesting!’ a
lot … Dinner was never spoilt by women saying, as you hit the foyer, ‘Well, damn me, but that was
the worst bit of cinematography I’ve seen in a long time’. Women didn’t say that. Women said,
‘What did you think of the film? 7 ”
Michael Bywater (1992, citado por Deborah Cameron, 1995: 175)
A
atenção e sensibilidade à cultura, vistos como adquiridos e consensuais, porque
e mais recentemente à cidadania, ‘tudo era tão simples’.
que o Programa Oficial de
Ensino de Inglês para o Ensino
Da professora e do professor de
Secundário datado de 2001 (10º e 11º Anos)
e de 2003 (12º Ano) apresenta, desde os Inglês espera-se que as suas opções
anos 80, quando ela começou a ser divulgada e ações de índole sociopsicológica de
nos círculos pedagógicos e no ensino da
motivação, metodológica e linguística,
literatura como ‘o quinto skill’, acompanha um
processo iniciado pelas instituições privadas de sejam enquadradas por um espírito
línguas, nomeadamente o British Council, de sensível, preocupado e tolerante
investimento nos chamados “British Studies” relativamente ao que se considera
e a aquiescência a um ethos de abertura ao
ser ‘os interesses, as preocupações e
mundo e às coisas dele para além das paredes
da escola, numa visão de cultura que vai para [as] necessidades [dos jovens] neste
além da estritamente histórica. É por via deste contexto de transição e mutabilidade’.
7 “Dantes era tudo tão simples. Os homens pagavam, conduziam e tomavam a iniciativa. As mulheres enfeitavam-se, fingiam que
gostavam do restaurante, deixavam o champanhe fazer efeito e diziam ‘Ah, sim?’ – Ah, mas que interessante!’ muitas vezes…
O jantar nunca acabava mal, com as mulheres a dizer, quando se saía para o ‘foyer’ ‘Raios me partam se este não é o pior
filme que eu vi nos últimos tempos.’ As mulheres não diziam estas coisas. As mulheres diziam, ‘O que é que você achou do
filme?’” Tradução de E. Carvalho, H. Loureiro e L. Oliveira. Bywater, Michael, Cosmopolitan, março 1992 (ed. Britânica) cit. por
Cameron, Deborah (1995: 175).
8 Variante da expressão cunhada por James Carville, em 1992, na campanha de Bill Clinton: “It’s the economy, stupid”.
Esta atenção às coisas do mundo é, contudo, Linda Gordon (1986). O caráter político do
ainda limitada no caso das mulheres. É feminismo, o lidar com a crítica, a subversão
necessário que a disciplina de Inglês atente e a incerteza que sempre o acompanham, é
nas questões de género, em tudo o que, por uma eleição árdua para quem o usa como
enquanto, é obstáculo a uma efetiva igualdade instrumento de teoria e ação para a sala
entre mulheres e homens. Ao contrário de aula. É uma tarefa difícil, que depara
do que acontece com a “raça”, a etnia, a com resistência e desconfiança, mas não é
capacidade física e/ou mental e, aos poucos, uma missão impossível: num certo sentido,
muito lentamente, com a orientação sexual, elementar, trata-se de recuperar e relembrar
é possível ou ignorar, ou desvalorizar estas o velho slogan norte-americano que
preocupações e quem as manifesta. Que mais simplesmente dizia que “feminism is the radical
não seja, por um processo complexo de auto e notion that women are people”.10
heterocensura, quase ninguém hoje já se atreve
a ser ‘incorreto/a’ naquelas áreas sensíveis. E, no entanto, urge confrontar
No entanto, quanto às do género e da linguagem o facto de não haver escritoras,
a situação é bem diferente: estas transformaram- filósofas, economistas, historiadoras,
-se nos últimos bastiões da ‘incorreção’ e ser geógrafas, arquitetas, políticas,
conservador e sexista não merece, em geral,
teólogas, pintoras, escultoras,
opróbrio social, esses traços são socialmente
aceites e, em algumas circunstâncias, serão até
compositoras, fotógrafas,
positivamente valorizados. desportistas a entrar oficialmente
nas salas de aula e de os materiais
A acrescentar a tudo isto, há a disseminação de ensino continuarem a manter
transversal de uma série de mitos e estereótipos estereótipos e a transmitir uma
relativamente ao que é o feminismo, a realidade social dicotómica em
equivalência entre feminismo e machismo e a
termos de género que já não
entranhada noção de que estas preocupações
serão ‘modas’ mais ou menos passageiras e de corresponde à situação social
somenos importância quando confrontadas com vivida pela maioria das pessoas.
as outras questões do mundo contemporâneo Apesar de alguns esforços de
consideradas ‘verdadeiramente importantes’. melhoria e atualização, a disciplina
de Inglês continua a ser habitada por
Não surpreende, portanto, que a escola em
“brancos, machos e mortos”.
geral não tenha, para já, visto como prioritária
ou justificada a opção por uma abordagem Mesmo quando, em termos de representação,
dos conteúdos da disciplina através das aumentam as pessoas não caucasianas,
“lentes do género”9. Ser mulher não significa, as mulheres são maioritárias e a vida é
de modo algum, ser feminista e o feminismo celebrada, elas são as habituais exceções
não é um corolário lógico e ‘natural’ de ser virtuosas – pretos, desportistas e entertainers
mulher, antes “uma luta e uma interpretação e mulheres, celebridades ou vítimas, num
política controversa que não é, de modo mundo global de comunicação instantânea,
algum, universal às mulheres”, como relembra mobilidade, consumo, fama e divertimento.
9 Não há, tanto quanto sei, qualquer estudo sobre esta matéria
10 Esta afirmação, que se tornou famosa, foi cunhada por Marie Shear, numa recensão da obra de Kramarae e Treichler: A Femi-
nist Dictionary, publicada na revista New Directions for Women, em 1986. “Dead White Men”, Wikipedia, the free encyclopedia,
10 março de 2015, [em linha], disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Dead_white_men (consultado em março de 2015).
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11 “Dead White Men”, Wikipedia, the free encyclopedia, 10 março de 2015, [em linha], disponível em https://en.wikipedia.org/
wiki/Dead_white_men (consultado em março de 2015).
12 “A matéria da educação: não só o meio em que está/é representada a maior parte do saber, mas igualmente o meio através
do qual as pessoas aprendem e ensinam, numa interação linguística entre si e com os textos. Ser educado/a na nossa
sociedade, e talvez em todas as sociedades, é ter acesso aos recursos linguísticos de uma cultura; é sentir-se à vontade com
eles, é ter consciência do seu potencial, é, num certo sentido, controlá-los para os fins que a própria pessoa escolher… Uma
educação que não reflita sobre a nossa relação com ela, dificilmente merecerá o nome de educação” (Deborah Cameron,
1989: 5). Tradução de Graça Abranches e Eduarda Carvalho.
priorities, creating opportunities adopting última análise, por atingir mais as mulheres,
life styles e rising to challenges, que ecoam todas, do que os destinatários do insulto,
uma visão empreendedorista da educação ainda que ritualizado.
em que a língua estrangeira fica reduzida a
uma mais valia no mercado de trabalho e as Este trabalho é, por um lado, de higiene verbal,
dificuldades e os problemas das alunas e dos como lhe chama a sociolinguista britânica
alunos, da escola e da sociedade, desviados Deborah Cameron, ou, mais simplesmente,
dos seus contextos, obscurecidas as causas de reforma linguística, particularmente difícil
e as responsabilidades, ficam a aguardar porque colide com convicções fortíssimas
soluções avulsas e, eventualmente, irrealistas das pessoas sobre o que imaginam ser a
(Claire Kramsch, 1993: 21-22). linguagem e as suas regras, associadas
a um grande conservadorismo linguístico,
A linguagem é um tema recorrente neste transversal ao espetro político e, por outro
Guião. Ver em especial o subcapítulo lado, de consciencialização da natureza
“O poder da linguagem e o uso correto cultural dos discursos e das implicações
dos conceitos”, do capítulo “Género e sociais e políticas das escolhas linguísticas
Currículo”, e os capítulos “Género e Filosofia”
individuais. Tal como Claire Kramsch
e “”Biologia e Género: outros Olhares”.
propõe, advoga-se aqui que a sala de aula
de língua estrangeira seja um espaço em
Teremos também de avaliar o modo como é
que docentes e discentes deixem de ser
dada voz, como se fazem ouvir na sala de aula
“falantes imperfeitos” de inglês, que assumam,
as alunas e os alunos, como se processa a
simultaneamente, “papéis de participantes
interação, como se comportam linguisticamente
e observadores de diálogos interculturais na
professoras e professores, alunas e
língua estrangeira, atravessando exercícios
alunos e assistentes operacionais e, assim gramaticais, atividades comunicativas e a
procedendo, aumentar a consciencialização análise e discussão de textos” (1993:28-29).
de possíveis comportamentos diferenciados e Deste modo, as professoras e os professores
discriminatórios de professoras e professores terão “novos objetivos – poéticos, psicológicos
em relação a alunas e alunos, mas também e políticos – que não serão comensuráveis em
de docentes para docentes, o que levará a testes de proficiência nem atingíveis através
questionar o papel que a diferença sexual de um método de aplicação fácil.” Mais do
desempenha na distribuição de tarefas, na que uma matriz a seguir para se ensinar inglês,
designação de porta-vozes e delegadas e o que é proposto “é uma maneira diferente
delegados de turma, na diferenciação da de se ser professora ou professor de Inglês”
atenção e expetativas das professoras e dos (1993:31).
professores relativamente ao desempenho das
alunas e dos alunos conforme os temas ou
tópicos, na aceitabilidade da interrupção ou “Alguns dos meus melhores
do falar por cima de outrem, na paciência ou amigos são mulheres…”
falta dela quanto a infrações disciplinares, na
escolha de chefias, de convidadas e convidados No Programa de Inglês – 10º, 11º e 12º
da escola, mais uma vez em função de tópicos anos (nível de continuação), as mulheres
diferenciados, a lista continua, não devendo são referidas a propósito de dois “domínios
ficar sem atenção a indisciplina, a rebelião vácua de referência” do 12º ano: “Culturas, Artes
dos desmotivados, cujos palavrões, ouvidos nas e Sociedade” em que se postula que: “será
salas, nos corredores ou no pátio, acabam, em importante abordar questões relacionadas
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13 “Os homens agem e as mulheres aparecem. Os homens olham para as mulheres. As mulheres veem-se a ser olhadas. Isto de-
termina não só a maioria das relações entre os homens e as mulheres, mas também a relação das mulheres consigo próprias.
O observador que cada mulher tem em si é macho: a observada [é] fêmea. E assim ela transforma-se/transmuta-se num objeto
visual: uma vista” (John Berger, 1972: 47). Tradução de E. Carvalho, H. Loureiro e L. Oliveira.
14 Há, neste momento, uma atitude generalizada de desconfiança e de desvalorização das disciplinas da área das ciências sociais
e das humanidades, ainda que sejam elas que olham mais criticamente para os mecanismos que geram e reproduzem as
desigualdades e as discriminações. A desvalorização destas áreas em prol das ciências naturais e matemáticas e/ou das tec-
nologias é um corolário a que a organização escolar e as alunas e os alunos não ficam imunes. Este facto leva, por um lado, a
uma razoável instabilidade do número de alunas e alunos que optam pelo Inglês como disciplina de 12º ano, por outro lado, que
seja limitado o universo de alunas e alunos que assim contactam com os referidos vislumbres de agência e empowerment.
aleatórias, são historicamente determinadas, Português, Man, Men, Menkind sirvam para
não são estáticas, mudam em conjunto e em homens e mulheres e que dizer ou escrever
função de outros processos estruturantes como Person/People, Individuals, Human Beings
a classe social e a “raça”, entre outros. ou Humankind, seja uma mera ortodoxia
politicamente correta. Compreende-se que
É ilusório pensar-se que se poderá a maioria das alunas e dos alunos, perante
ensinar numa perspetiva “cega” ao material em que surja a palavra feminism, a
defina como o antónimo de machismo, apenas
género em que as pessoas sejam
mais um ‘ismo’ a juntar, de um modo ligeiro,
todos diferentes, todos iguais. à lista de ‘ismos maus’, mais uma vez todos
Ignorar as relações de género e o diferentes, todos iguais. E, no entanto, quando
sexismo não os faz desaparecer se vai para além das “frases desidratadas dos
nem da vida lá fora, nem da escola manuais” (Claire Kramsch, 1993: 15) quando
se usa, natural e consistentemente, linguagem
(“Sala de Professores”, gabinete do
inclusiva, se adota nos exemplos gramaticais o
diretor ou da diretora, corredores,
pronome pessoal de terceira pessoa feminino
pátios e salas de aula). O género em situações de agência e não de passividade,
estará lá sempre e determina muito em que o sujeito ‘faz coisas’ em vez de as
do que lá acontece. sofrer, se questiona as interrupções e as
intervenções não solicitadas de um modo geral
Sistematicamente, as alunas e os alunos, fortemente marcadas pelo género, se leva para
mesmo quando o texto tem (e é bem frequente a sala de aula citações, textos, imagens de
isso não acontecer) a autoria especificada e se meninas, raparigas e mulheres, anónimas, mas
trata de uma she, usem o pronome pessoal de também vozes reconhecidas e de autoridade, se
terceira pessoa masculino, he. Compreende-se desafia estereótipos e preconceitos nas alunas
que pensem que, tal como na disciplina de e nos alunos, mas também em si próprias e
“ must the curriculum remain static simply to avoid challenging narrower home horizons? No
conscientious language teacher would deny that vigilance is needed to avoid unfairness to pu-
pils whose home values conflict with those taught in the school … [e.g.] the pupil who is being
indoctrinated at home … in bigotry and hatred. ”
Traduzindo,
“ terá o currículo de permanecer estático, simplesmente para evitar confrontar horizontes mais
estreitos [que os/as alunos/as trazem] de casa? Nenhum/a professor/a de língua, atento/a, pode-
rá negar que é preciso estar vigilante para evitar injustiças para com os/as alunos/as cujos valores
familiares estão em conflito com os que são ensinados na escola … [por exemplo] o/a aluno/a
que, em casa, está a ser indoutrinado em preconceito e ódio. ”
Eric Hawkins, 1981: 28.. Tradução da autora.
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em si próprios, de um modo inteligente e não sempre a atenção para esse facto, tornando
de confronto, então verificar-se-á que, com evidente a ‘estranheza’, o caráter excecional
avanços e retrocessos, com hesitações e da situação.
dúvidas, um número crescente de alunas e
alunos, nem que seja, de início, por imitação Madeleine Arnot (1982) refere, a este
interessada, começará a, verdadeiramente, propósito, a dificuldade de “alinhavar”
prestar mais atenção ao que dizem, o que satisfatoriamente retalhos de imagens
parece ser um bom princípio geral. contraditórias que, em princípio, se
excluem mutuamente como, por exemplo,
Entretanto, das páginas dos manuais as de raparigas/mulheres independentes
centenas de rostos femininos olham-nos e dependentes, sedutoras e virtuosas,
sorridentes, quiçá, como sugere Claire maternais e infantis, consumidoras críticas e
Kramsch (1993), “in pursuit of communicative acríticas, politicamente atentas e desatentas,
happiness” (p. 12). e conclui que também os estereótipos têm
de ser analisados, não só em termos da
São, maioritariamente, caras sua persistência e coerência, mas também
descaraterizadas dos bancos de das suas contradições num processo de
construção de identidade que poderá ser, em
fotografias, umas loiras, outras
última análise, de “teeth gritting harmony”,
morenas, todas jovens, todas fazendo uso das palavras de Madeleine Arnot
magras, quase todas brancas. (1982, citada por Lynda Stone, 1994: 98).
Há, generalizadamente, uma
obsessão com a aparência física Estas figuras femininas decoram todos os
das raparigas, muitas vezes em temas sem exceção, acompanhadas em
alguns deles por celebridades: Britney Spears
poses de modelo de revistas para
e Madonna, por exemplo, quando o assunto é
adolescentes que, por sua vez, leve, inevitavelmente Angelina Jolie quando o
imitam as poses dos modelos assunto é sério. Pontualmente, como exemplo
glamorosos das revistas de moda da estratégia que Claire Kramsch sagazmente
que, cada vez mais, imitam as apelida de “a little bit of this, a little bit of
that” (1993: 12), em desfasamento com as
poses de outros modelos, de outras
restantes e umas com as outras, podem
áreas como, por exemplo, a da aparecer, num leque ainda assim reduzido,
pornografia, ainda que em versão Betty Friedan e Margaret Thatcher, Maya
pornochic.15 Angelou e Sophie Kinsella, Malala Yousafzai
e Madre Teresa de Calcutá, apresentadas
Quando, eventualmente, as raparigas ou como expoentes de mulheres exemplares,
mulheres jovens são representadas em muitas vezes sem contexto, sempre sem
papel de relevo ou liderança, as perguntas contraditório, todas diferentes, todas iguais,
que acompanham essas imagens chamam todas ‘vistas’.
15 Bindel, Julie (2010, 10 de julho), “The truth about the porn industry”, The Guardian, [em linha], disponível em http://www.
theguardian.com/lifeandstyle/2010/jul/02/gail-dines-pornography (consultado a 26.01.2015).
O
que se segue são exemplos e todos já aplicados em turmas destes anos
propostas adicionais, nunca de escolaridade, de um modo complementar
alternativas, de trabalho, de traduzir e ilustrar os temas programáticos,
centradas nos temas “Os dando visibilidade e agência às raparigas e às
Jovens na Era Global”, “O Jovem e o mulheres, numa perspetiva crítica e feminista,
Consumo” e “Cidadania e Multiculturalismo”, porque “feminist can be a label, a practice
respetivamente do 10º, 11º e 12º anos, em and a lens by which we view the world”
que serão apresentados exemplos concretos, (Jessica Valenti, 2014).18
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Propostas
Propostas
Nestas propostas não se afirma que: “My feminism ser influenciados pelo género
‘essencializa’ o género, não will be intersectional, or it enquanto sistema de relações
se descuram outras variáveis will be bullshit – and I’m sociais e práticas discursivas,
(ver Figura 1) como a classe not interested in bullshit” mas não se esquece,
e a “raça”, a idade e a etnia, (citada por Jessica Valenti igualmente, que a aula de
a nacionalidade, a orientação em 2014)19. Não se ignora Inglês pode apresentar às
sexual e a capacidade, já que que as alunas e os alunos alunas e aos alunos ‘outros
se parte do mesmo princípio estão na aula de Inglês mundos’ mais livres e iguais.
que Flavia Dzodan resume com opções, motivações e O que se propõe é uma
eloquentemente quando investimentos que podem abordagem gender sensitive,
19 “O meu feminismo há de ser interseccional, ou será uma treta – e eu não estou interessada em tretas” (Flavia Dodzan, s/d,
citada por Jessica Valenti, 2014). Disponível em http://www.theguardian.com/commentisfree/2014/nov/24/when-everyone-is-
a-feminist [consultado em 10.01.2015). Tradução da autora.
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Propostas
20 “O que distingue uma estratégia sensível ao género de uma isenta de género é que a estratégia sensível ao género permite-
nos reconhecer que, em momentos e circunstâncias diferentes, poderemos ter de adotar medidas opostas a fim de eliminar
os preconceitos de género” (Barbara Houston, 1985: 131). Tradução da autora.
21 “A capacidade de assegurar um entendimento comum entre pessoas de diferentes entidades sociais e a capacidade destas
de interagir com terceiros, seres humanos complexos, com múltiplas identidades e individualidade própria”, “relações entre
a cultura própria e as alheias, […] a ganhar interesse e curiosidade sobre ‘o outro’ e uma consciência de si próprias e de si
próprios e respetivas culturas, vistas pelas perspetivas de terceiros” (Michael Byram, 2002: 10). Tradução da autora.
Propostas
22 “O glamour não existirá sem que o sentimento pessoal de inveja social seja uma emoção comum e disseminada” (John Berger,
1972: 148). Tradução da autora.
23 Título de um texto de um manual de 11º ano, ilustrativo do tema “O Jovem e o Consumo”.
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Propostas
“ [An] undesirable effect of acting like children is that when it comes to looking after them, women
are inadvertently putting themselves at the front of the queue. Feminism fail. Our foremothers
were farmers, warriors, weavers and builders. They had wrinkles and pubic hair and opinions. It’s
time to stop rewarding women for looking and behaving like toddlers. It’s time to grow up. 24 ”
Kate Smurthwaite, 2014.
24 “[Um] efeito indesejável de se comportarem como crianças é que quando toca a ter de tomar conta delas, as mulheres se estão
a pôr, inadvertidamente, na frente da fila. Feminism fail. As nossas antepassadas eram lavradoras, guerreiras, tecelãs e cons-
trutoras. Tinham rugas e pelos púbicos e opiniões. É tempo de parar de louvar as mulheres por se parecerem e comportarem
como bebés. É tempo de crescer” (Kate Smurthwaite, 2014). Disponível em http://newint.org/columns/2014/07/01/women-media/
(consultado em 30 de janeiro de 2015). Tradução da autora.
25 “This is what a feminist looks like” é o slogan estampado em t-shirts produzidas por iniciativa da “Fawcett Society” numa campa-
nha de 2014 pela igualdade de direitos, dinamizada com enorme sucesso (nomeadamente institucional, já que, quer o primeiro
ministro britânico, quer o líder da oposição as usaram em público) e que veio, mais tarde, a causar acesa discussão quando
foram denunciadas as condições de vida e de trabalho das mulheres da Mauritânia que as fabricavam.
Propostas
“ when I ask […] folks about the feminist books or magazines they read, when I ask about the
feminist talks they have heard, about the feminist activists they know, they respond by letting me
know that everything they know about feminism has come into their lives thirdhand, that they
really have not come close enough to the feminist movement to know what really happens, what
”
it’s really about. 27
26 “É-se feminista se se vai a um concerto do Jay-Z e da Beyoncé e não se ’tá numa de ‘eu cá acho que a Beyoncé devia ganhar
menos 23% do que o Jay-Z” (Rebeca Zamon, 2014). Disponível em http://www.huffingtonpost.ca/2014/12/16/feminism-2014-
_n_6328010.html (consultado em 30.01.2015). Tradução da autora.
27 “Quando faço perguntas […] às pessoas sobre os livros ou as revistas feministas que leram, quando lhes faço perguntas sobre
as palestras feministas que ouviram, sobre as ativistas feministas que conhecem, respondem-me informando-me de que tudo o
que sabem sobre o feminismo entrou nas suas vidas em terceira mão, que, na verdade, nunca tiveram um contacto suficiente-
mente próximo com movimento feminista para saber o que, de facto, se passa e sobre o que é” (bell hooks, 2000: vii). Tradução
da autora.
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Propostas
Para cativar as alunas e os alunos há muitos e de trabalho incluem: paráfrase, inícios e finais
variados caminhos que se poderão trilhar. Rob alternativos, prelúdios, interlúdios e poslúdios,
Pope propõe um, a que chama critical-creative intervenção na narrativa, adaptação de texto
re-writing, que é particularmente útil para narrativo a texto dramático e vice-versa e
as professoras e os professores atentos às hibridização, entre outras, como sugere Rob
questões de género. Este termo ‘guarda-chuva’ Pope (1999).
refere-se, basicamente, a formas de intervenção
textual a que outras e outros têm chamado Os textos que se apresentam no fim deste
desde “semiotic guerilla warfare” (Umberto capítulo são, em alguns casos, exemplos
Eco) a “re-visioning” (Adrienne Rich) e destas ‘revisitações’ mas, noutros, propostas
“re-membering” (Toni Morrison), passando por que permitem olhar ‘de novo’ para o que,
“travestying” (Mikhail Bakhtin). As atividades de frequentemente, as alunas e os alunos
critical-creative re-writing podem tomar várias entendem como óbvio, consensual e previsível,
formas, mas assumem, habitualmente, a forma logo muito menos interessante e educativo: a
de velhas práticas textuais, hoje rotuladas de juventude, a família, a maternidade, o corpo, o
“pós-modernas”, como a imitação, a paródia, outro, a cidade, a cultura…
o pastiche e a adaptação. Outras hipóteses
5.4.
“And so it is...”
“Change means growth, and growth can be painful.”28
Audre Lorde.
S
er professora ou professor de inglês, crescer-se mulher condicionará,
hoje, é, como já dito anteriormente, dos mais ínvios modos, o acesso
uma tarefa árdua que, tal como nas
outras disciplinas, mas com algumas
à liberdade, à mobilidade, à
especificidades próprias, obriga a fazer escolhas saúde, à felicidade e ao poder.
que são sempre de natureza política.
Mas, há igualmente que lhes dar conta de
Usar as “lentes do género” será mais árduo que o caminho terá de passar por aprender
e trabalhoso, porque implicará, para além com o passado, com as experiências das que
da “re-visão” de materiais de ensino mais viveram e lutaram antes de nós e por nós,
convencionais, a pesquisa, a seleção e a reagir às circunstâncias do presente e preparar
preparação de materiais extra, verdadeiramente um futuro em que nos empenhemos em criar
autênticos,29 o que, com a atual organização “something else to be” (Tony Morrison, 1983:
da escola e com a compreensível sedução que 51-52).
o manual ‘tudo-em-um’ exerce, dificultará esta
escolha. Na última de uma série de aulas com alunas
e alunos de 11º ano, em que se discutiram
Trata-se, verdadeiramente, de tentar não questões como os estereótipos de género,
perder de vista o princípio anteriormente a desumanização, a objetificação e a violência
referido, citando Eric Hawkins, e que identifica sobre as mulheres, uma professora de Inglês
wisdom como o que de mais importante se contou, expectante, a história que se pode ler
pode ensinar, de certo modo, mais importante a seguir:
ainda do que o -s da 3ª pessoa do singular do
presente do indicativo dos verbos, ou os plurais
irregulares. A man was driving with his son,
when the car was struck by another
Nesse processo para tornar as vehicle. The man was killed instantly,
alunas e os alunos a little wiser, há but his son, injured, was rushed
que lhes ensinar que nascer-se e to hospital. The surgeon came
28 Mudança significa crescimento e o crescimento pode ser doloroso” (Audre Lorde, 1984: 114). Tradução da autora.
29 Como Claire Kramsch (1993: 180) sublinha, citando dois educadores da antiga República Democrática Alemã que criticavam o
modo como o seu pais era representado nos manuais americanos: “authenticity is always socially determined; it always means
‘authentic of…’” Traduzindo, “a autenticidade é sempre socialmente determinada: significa sempre ‘autêntico para…’” Tradu-
ção da autora.
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Ensino de Inglês, Género e Cidadania l
A deodorized American man with apologetic genitals and no pubic hair holds up a banana-like
right hand in Indian greeting, at his side a woman, smaller, and also with no pubic hair is not allo-
wed to hold up her hand, stands with one leg off centre, and is obviously an inferior sort of the
same species. However, the male chauvinist pig has a sullen expression, and the woman is faintly
smiling, so interplanetary intelligences may still have homework. ”
Traduzindo,
“ Um americano desodorizado de genitais tímidos e sem pelos púbicos levanta uma mão abana-
nada em saudação à índio, ao lado dele uma mulher, mais pequena, também sem pelos púbicos,
e sem licença para levantar a mão, está de pé, com um pé fora do alinhamento, e é, claramente,
uma forma inferior da mesma espécie. Contudo, o porco chauvinista está com cara de amuado e
a mulher a sorrir, ao de leve, logo os seres inteligentes interplanetários ainda hão de ter trabalho
de casa.”
Excerto do poema de Edwin Morgan (1972), “Translunar Space March”. Tradução da autora.
into the operating theatre, gasped Olharam para ela a olhar para elas e para eles.
and said: “But this is my son! Estupefactos. Como podia isto ser? E, claro,
Traduzindo, ou não fossem adolescentes, choveram as
hipóteses, qual delas a mais bizarra e criativa.
Um homem ia no carro com o Nenhuma delas a correta. A explicação para
filho, quando foi abalroado por um esta afirmação é a de que a cirurgiã reconheceu
outro veículo. O homem morreu o filho.
de imediato, mas o filho foi levado
Enquanto isto acontecer, enquanto a resposta
para o hospital. O cirurgião entrou
a este enigma não for, de imediato, óbvia,
na sala de operações e exclamou: tal como os alienígenas do poema de Edwin
“Mas este é o meu filho!” Morgan (1972) (ver caixa de texto), “[we] still
Tradução da autora. have homework.”
Notas:
Este texto está “full of invisible quotes”. De quem me ensinou (quase) tudo sobre ser professora de Inglês. Do John
Havelda. Da Lina Oliveira e da Eduarda Carvalho. Das minhas alunas e dos meus alunos na Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra e na “Brotero”.
Documentos de Apoio
Texto A
Lynn Peters (1992, citado por Rob Pope, 1998: 340)
WHY DOROTHY WORDSWORTH IS NOT AS FAMOUS AS HER BROTHER (1992)
0192
192 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Ensino de Inglês, Género e Cidadania l
documentos de Apoio
Texto B
Wieden + Kennedy London e Vagenda,
SOD THE STEREOTYPES (2013)
Disponível em linha em http://www.creativereview.co.uk/cr-blog/2013/september/elle-feminism
documentos de Apoio
Texto C
Dorothy Byrne, NICE MEN (2011)
Disponível em linha em http://littlered2.livejournal.com/53718.html
I know a nice man who is kind to his wife and Another nice thing is that some men are
always lets her do what she wants. sympathetic when their wives feel unhappy.
I heard of another nice man who killed his I’ve often heard men say, ‘Don’t worry about
girlfriend. It was an accident. He pushed her everything so much, dear.’
in a quarrel and she split open her skull on the You hear stories of men who are far more than
dining-room table. He was such a guiltridden nice – putting women in lifeboats first, etc.
sight in court that the jury felt sorry for him. Sometimes when a man has not been nice, he
My friend Aiden is nice. He thinks women are apologises and trusts you with intimate details
really equal. of the pressures in his life. This just shows how
There are lots of nice men who help their wives nice he is, underneath.
with the shopping and the housework. I think that is all I can say on the subject of nice
And many men, when you are alone with men. Thank you.
them, say, ‘I prefer women. They are so
understanding.’ This is another example of men
being nice.
Some men, when you make
a mistake at work, just laugh.
They don’t go on about it or
shout. That’s nice.
At times, the most surprising
men will say at parties, ‘There’s
a lot to this Women’s Lib.’
Here again, is a case of men
behaving in a nice way.
0194
194 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Ensino de Inglês, Género e Cidadania l
documentos de Apoio
Texto D
Tom Leonard, PLACENTA (1965)
documentos de Apoio
Texto E
Toilets opened in Indian village where girls were killed in fields after dark
Disponível em linha em http://www.theguardian.com/world/2014/sep/01/toilets-unveiled-indian-
village-girls-killed-fields-after-dark
Decorated with marigolds and ribbons, 108 often taboo subject during his Independence
toilets have been opened in the Indian village Day speech in August, saying India should strive
where two schoolgirls were found hanging from to ensure every household had a toilet within the
a tree in May. next four years.
The girls are thought to have gone out into the “We are in the 21st century and yet there is still
fields after dark because their home, like most in no dignity for women as they have to go out
their district, lacked a toilet. in the open to defecate. Can you imagine the
The toilets were donated on Sunday to the number of problems they have to face because
village of Katra Shahadatganj in northern Uttar of this?” Modi asked.
Pradesh state, where women had long been Mother-of-three Dhanwati Devi, one of the
forced to trek into the fields at night to relieve villagers to receive a new toilet, said she could
themselves. finally relieve herself without fear of being
“I believe no woman must lose her life just attacked in the dark.
because she has to go out to defecate,” said “I used to dream my house will have a toilet one
Bindeshwar Pathak, founder of the sanitation day. Now that I have one, I feel so proud and
charity Sulabh, which built the toilets. liberated,” the 48-year-old said, standing next to
“Our aim is to provide a toilet to every household the blue and pink painted cubicle adorned with
in the country in the not too distant future,” strings of flowers outside her home.
Pathak told AFP* in Katra. “I used to be so scared when going out in the
Police are still investigating the deaths and deserted fields in the dark, because I could be
suspected gang rape of the girls, cousins aged attacked any time by depraved criminals,” she
12 and 14, but no one has been charged and said.
five men initially accused are set to be released. The uncle of the girls who were hanged said
The incident sparked uproar, but the that for his family, the village’s new toilets were
circumstances which led the schoolgirls to trek symbols of both “hope and despair”.
outside at night are not unusual in India. “Each time we see the toilets, we are reminded
Unicef estimates that almost 594 million people, that our girls died because we didn’t have one
nearly 50% of India’s population, defecate in earlier,” said the uncle, who cannot be named
the open, with the situation acute in poor rural for legal reasons.
areas. “But it also gives hope that our women will
Some 300 million women and girls are forced be safer now because they no longer have to
to defecate outside, exposed not only to the venture out in darkness.”
risks of disease and bacterial infection, but also
harassment and assault by men. *Agence France-Presse (AFP) is an international news
agency headquartered in Paris. It is the oldest news agency in
The prime minister, Narendra Modi, raised the the world and one of the largest.
0196
196 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Ensino de Inglês, Género e Cidadania l
documentos de Apoio
Texto F
Teen spirit: young feminist heroes
Disponível em linha em http://www.theguardian.com/lifeandstyle/2014/mar/29/fifth-wave-feminists-
young-activists
Three years ago, a group of girls at a youth relationships, Sodki says, “because you probably
centre in London started talking regularly about won’t be living together, and won’t have kids or a
the issues they faced. One problem that always joint bank account”. They have used storyboards
came up, says Sana Sodki, was the way boys to show the kind of coercion, threats and
spoke to them – which was often intimidating, controlling behaviour young people should be
or disrespectful. “You’d be walking home from wary of. Their aim, Sodki says, is to give girls “the
school, and boys would come up to you, and knowledge that they don’t have to be spoken to
say, ‘Oh, can I have your number?’ They wouldn’t like that. They don’t have to take a naked picture
ask your name, or say, ‘Hi, how are you?’ for their boyfriend to be happy with them.”
And if you said no, they’d say, ‘Oh, you’re ugly (…)
anyway.’ “ It was when he started university, at King’s
The girls decided to set up a website, backed College London (KCL), that Jamie Sweeney first
by Big Lottery funding and the Peabody encountered feminism, and “had a conversion
Organisation, to improve interactions between from lad culture”, he says. His girlfriend attended
boys and girls. It’s called Oii My Size, a phrase a talk by Laura Bates and “she was very
boys often shout at girls they fancy. They have emotional afterwards. Some of the facts she was
since presented talks about the site to 4,500 delivering were really hard-hitting.” It made him
young people. question aspects of his own behaviour, and think
One feature, Rate My Churpz!, has video of boys about the fact that he had never heard feminism
trying chat-up lines on girls. Visitors to the site mentioned at school. Growing up among teenage
can then rate the chat-up line. “We didn’t want to boys, there had always been a lot of sexist jokes,
make it seem like we were shouting at boys, or and “I still find, within groups of blokes, that
telling them off,” Sodki says. “We wanted them they bond over sexism and objectifying women.”
to be able to see that if they actually want to get He set up the KCL London Feminist Club.
somewhere with a girl, they need to reconsider “We now have a team of people who go into
what they’re saying.” schools, deliver talks on the basics of feminism,
They also address sexting on the site, says try to dispel some of the myths surrounding the
Savannah Ali, another of the project’s leaders. movement, and encourage pupils to set up their
“People didn’t know it was illegal to send pictures own feminist organisations.” At the beginning of
of a minor, or to receive them and send them on.” a session, they ask who identifies as a feminist,
The group is currently working with the NSPCC, then give a talk about women’s rights, and ask
to develop an app on sexting, and they’re the same question at the end. Their first talk was
also addressing domestic violence in teenage to a group of 180 12- and 13-year-olds, almost all
relationships on the site. This can sometimes look of whom changed their view during the session.
quite different from domestic violence in adult
documentos de Apoio
Texto G
Margaret Atwood, THE FEMALE BODY, 1990
Disponível em linha em http://web.stanford.edu/~jonahw/AOE-SM10/Readings/Atwood-FemaleBody.pdf
0198
198 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Ensino de Inglês, Género e Cidadania l
documentos de Apoio
Texto H
Viv Groskop, SEX & THE CITY, 2008
Disponível em linha em http://www.theguardian.com/lifeandstyle/2008/sep/19/women.planning
documentos de Apoio
6ft 6in man’s bottom. By and large things are women restrict their lives. You choose where you
designed to accommodate men’s bodies. They go and where you don’t go and you come to
don’t take account of all the issues around the find that acceptable.”
fact that we’re the ones who menstruate, get This chills me slightly as I remember the times I
pregnant, need to breastfeed.” have excluded myself from shops, offices, public
Which brings us neatly to the subject of transport options, arts events and restaurants
toilets. Almost all public spaces still accord the because I have a buggy with me, because I am
same number of square metres to male and carrying a baby who will need breastfeeding or
female toilets, and because women can’t use have various children in tow who won’t make it
urinals, they end up with half as many toilets up all the steps. When I first had a baby I noticed
in the allocated space. So why not double the this and found it annoying. Now, like a Stepford
allocation? “If you want to know the true position Wife automaton, I accept it. And I never sit on
of women in society look at the queue for the those sloping shelves at bus stops or stations
ladies’ loo,” says Clara Greed, professor of because they are at a weird height.
inclusive urban planning at the University of the But how can we change all these things? Above
West of England. all, it is about architects, whether male or female,
The urban planning concepts that affect women being open to these issues. More women in
most are predictable: creches, housing design, the industry would help too, because at least
parks, pavements, safety and transport. Burgess some of them would design in their own image.
points out that 75% of bus journeys are taken “Designers see themselves at the end of their
by women and only 30% of women have access pencil - or their mouse,” says Davis. “Until about
to a car during the day, but urban schemes are 15 years ago most architects and planners were
designed around car drivers and commuters. men. They saw themselves moving through
Many of the problems of urban planning simply this environment. Because they were men and
reflect women’s domestic inequality: the fact that they were car drivers, they were interested in
women still do the bulk of childcare, looking after keeping commuters moving. It’s the same issue
the elderly, shopping and cleaning. “Women as with disability. They didn’t understand how
are less likely to have a simple journey to work a 15mm lip on a kerb could upset a buggy or a
like men,” says Greed, “They break up their wheelchair. Not that they were being sexist – it
journey, stop off at the childminder, school and just didn’t occur to them.”
then work and maybe the shops and school on Burgess argues that, despite the failings
the way back. Public transport favours the male revealed in her report, there has been some
commute in and out of the city centre.” significant progress. “There are massive new
It is disturbing, when you start to think about developments planned for the next decade and
it, that women simply accept the physical there is a lot of potential for getting things right,”
and geographical limitations placed on them she says. Others are more sceptical. “Most of
in everyday life. “You are used to it being the planners and urban decision-makers are still
uncomfortable,” says Eeva Berglund, a social men,” says Greed, “Do they care? Is anything
anthropologist and author of Doing Things happening? Not a lot. Gender has a low
Differently, a history of the Women’s Design priority, but what is good for women is good for
Service. “One of the major issues is the way that everyone. It will create better cities for all.”
0200
200 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Ensino de Inglês, Género e Cidadania l
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0202
202 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
6.
A Filosofia no Secundário
lida numa Ótica de Género
por: Fernanda Henriques*
* A autora agradece o convite que lhe foi endereçado, em finais de 2014, para participar
nesta obra, tendo finalizado este texto e respetivas propostas em agosto de 2015.
0204
204 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
6.1.
N
o entanto, talvez seja útil Este ponto de vista pode ser apoiado através
questionar tal óbvio e refletir-se da perspetiva Hermenêutica, nomeadamente
a sério nas palavras da filósofa a de Hans-Georg Gadamer, quando fala de
espanhola Amelia Valcárcel que, “consciência histórica”, chamando a atenção
exatamente, aponta numa direção oposta, para a eficácia do trabalho da história em
ao afirmar que: “Na maior parte do mundo nós, ou, a de Paul Ricoeur, quando põe
ocidental, a filosofia, a mais alta, difícil e em evidência a relação entre a história e
abstrata reflexão das humanidades, é um dos a nossa memória coletiva. Deste modo, a
veículos concetuais da sexualização, talvez o Hermenêutica opõe-se, claramente, a uma
principal.” (1997:74) visão assética e pretensamente neutral do
conhecimento, realçando a importância
Como se pode compreender esta afirmação de do nosso enraizamento histórico na sua
Amelia Valcácer? constituição e transmissão.
1 Poulain de la Barre, De l’egalité des deux sexes. Os textos de Poulain de la Barre podem ser consultados on line, em fac-simile,
na Biblioteca Nacional de França. . A obra está em linha, disponível em http://blog.le-miklos.eu/wp-content/Poullain-EgaliteDes-
DeuxSexes.pdf (acedido em 13.11.2017).
0206
206 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
universal neutro; por outro, há um ruído de sugestões de trabalho que possibilitem uma
fundo também incorporado na memória abordagem dos temas programáticos que tenha
coletiva e ensinada de que o feminino se define em consideração o facto de a humanidade ser
por derivação do masculino e em relação a ele constituída por Mulheres e por Homens.
e, portanto, antropologicamente, as mulheres
são seres definidos pela falta, pela carência – Para além da presente introdução, esta
seja na posição aristotélica, seja na de Freud, proposta integrará mais 2 momentos:
para referir apenas os dois exemplos mais
1) um mais geral que desenvolverá um conjunto
paradigmáticos – tendo-se transformado o
de reflexões em torno da forma como se
constructo vencedor em norma, originando, ao
poderá abordar um programa de filosofia
mesmo tempo, uma espécie de naturalização
com preocupações críticas em relação à
daquilo que é, apenas, uma perspetiva. Ou
discriminação de género;
seja, é imperioso ensinar antropologia de outra
maneira, de uma maneira que permita construir 2) outro mais específico onde se proporão
uma memória individual e coletiva simétrica abordagens numa ótica feminista de alguns
para o masculino e para o feminino. temas do Programa. Essa proposta será feita
em duas dimensões: por um lado, propor-se-á
Assente neste quadro teórico, esta proposta uma forma de tratar todas as rubricas do
de exploração no Programa de Filosofia do 10º ano, segundo a perspetiva de género;
Ensino Secundário (PFES), a partir do ponto de por outro, apresentar-se-ão sugestões para a
vista do género, pretende apresentar algumas última rubrica do 11º ano.
6.2.
M
ais do que introduzir o mães ou esposas e, pelo contrário,
tema do sexismo ou do quando falam dos homens os
feminismo num determinado
procurem mostrar nesses papéis.
momento programático ou
numa circunstância específica, importa ter • Há, também, que tomar em linha
uma perspetiva crítica e não discriminadora de conta que os textos ou a
sobre a abordagem global dos conteúdos
documentação audiovisual a utilizar
programáticos, o que implica tomar sempre
uma distância crítica atenta aos temas, aos sejam diversificados quer quanto
materiais utilizados e à linguagem. Convém não à autoria quer quanto ao modo de
esquecer que a linguagem é o ‘meio’ através abordar as problemáticas.
do qual tudo acontece e, por outro lado, que
os recursos de aprendizagem são o que vai • Finalmente, há que cuidar a
permanecer na relação que alunas e alunos maneira como se abordam os
estabelecerão com as diferentes temáticas. temas e os materiais de trabalho
Nesse sentido: que deverá sempre assentar numa
hermenêutica da suspeita em
• Há que ter cuidado, por exemplo, relação ao modo como a questão
em não se dizer sempre homem de género aí está tratada, pondo-a
para designar a humanidade se se
de manifesto.
pretende desconstruir a ocultação
do feminino na história e na O organigrama seguinte procura dar algumas
cultura. respostas a essas interrogações, sendo em
torno do seu comentário que se desenrolará
• Há que atender aos exemplos que este momento da proposta.
se escolhem para ilustrar os temas
e as problemáticas, prestando Tal como está concebido, o organigrama
atenção, sobretudo, a que eles deixa-se comentar a partir de um tema
cruzado que se poderá designar por: a
não representem estereótipos
unilateralidade da análise dos problemas pela
e não reforcem preconceitos e, História da Filosofia, o pretenso universal
assim, quando falam de mulheres neutro e a necessidade de criar uma memória
não as apresentem só como do passado mais objetiva. Na verdade,
0208
208 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
FILOSOFIA
e GÉNERO
Corrigir assimetrias na
representação de si de Explorar textos da História da
Mulheres e Homens Filosofia sobre o tema
uma das razões que torna necessário e temas e das problemáticas e, através dessa
útil abordar o ensino da Filosofia tendo renovação, introduzir atitudes intrinsecamente
em conta as dimensões teóricas impostas problemáticas. Porventura, o caso do universal
pela perspetiva de género é o facto de esta é um exemplo paradigmático.
obrigar a uma renovação na abordagem dos
6.2.1.
A problemática
do universal
N
a verdade, a universalidade é o para o facto de que, à partida, quando os
horizonte de sentido do filosofar, instrumentos conceptuais da filosofia se
mas, de facto, o que significa afinavam, o modo como foi instituído o
hoje falar de universal e de universal implicou uma dupla exclusão do
universalidade? feminino: da visibilidade e da pensabilidade.
Realmente, o facto de se ter escamoteado
São de duas dimensões as questões que que o que era tomado como universal
se podem colocar a este nível: (1) a relação representava apenas a generalização do
com o universal neutro e a discriminação das masculino, ignorou a existência do feminino
mulheres e (2) a relação do universal neutro na conceção do humano. Por outro lado,
com uma perspetiva eurocêntrica e branca. esse mesmo processo exclui o feminino dos
quadros do pensado e do pensável.
1. O universal neutro e a
discriminação das mulheres Se nos ativermos à importância
que esta situação pode ter nas
Entremos no tema, através das palavras de
representações sociais sobre as
Celia Amorós na Introdução a uma obra sobre
mulheres, pode-se, certamente,
a concetualização do feminino na filosofia
antiga (ver texto em caixa).
dizer que o universal, como
genérico humano, representa uma
Sendo uma obra sobre a origem da filosofia discriminação fundadora, algo
na Grécia, a autora quer chamar a atenção como um estereótipo arquetípico,
“ […] aquilo que é pensado como o genérico humano apresenta-se num plano de abstração
que neutraliza os opostos sexuais […]. Contudo, não de tal maneira que aquilo que é proposto
ao nível da abstração do neutro possa ser comunicável no masculino ou no feminino: consti-
tuir-se-á como o masculino, que assumirá, deste modo, o neutro, e assim não se porá a si mesmo
como o masculino, e sim como o próprio genérico humano. ”
“ Ao ficar do lado do diferente, do outro‑diferente‑do‑neutro, e sendo o neutro o pensado
enquanto neutro – e vice‑versa, na medida em que se tornara neutro enquanto pensado –, o
feminino tornar-se-á não‑pensado. ”
Celia Amorós in Eulalia Perez Sedeño, 1994:vii.
0210
210 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
“ A divisão é tal que «o outro lado da linha» desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente,
e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de
ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de
forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão
considera como sendo o Outro. A característica fundamental do pensamento abissal é a impos-
sibilidade da co-presença dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em
que esgota o campo da realidade relevante. Para além dela há apenas inexistência, invisibilidade
e ausência não-dialéctica.”
Boaventura Sousa Santos, 2007: 3-4.
0212
212 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
6.2.2.
A necessidade de resgatar
outras memórias filosóficas
T
.
ornando-se como boas as outros textos e outras interpretações. Este
considerações acima desenvolvidas, resgate pode ser feito em duas direções:
urge perguntar qual o viés que o ponto
de vista do universal tomado como • Por um lado, explicitando o papel
neutro introduziu na leitura da tradição filosófica e da filosofia nas representações
dos seus temas centrais e procurar revertê-lo. do feminino herdadas da tradição,
procurando, nos textos analisados,
Na sua obra Parcours de la reconnaissance,
Paul Ricoeur considera que os movimentos
o subtexto de género, ou seja,
feministas contribuíram para popularizar o nunca deixando de questionar
tema do reconhecimento, acrescentando que num texto que fale, por exemplo,
eles fizeram uma reivindicação sobre uma de natureza humana ou de
identidade específica que queria ser reconhecida desenvolvimento moral, qual é
como coletiva para poder permitir que os seus o lugar que tal texto reserva às
membros individuais atingissem a estima de si
mulheres, mesmo quando não se
mesmos necessária ao assumir da dignidade e
da possibilidade de uma equilibrada construção
refere explicitamente a elas ou,
da identidade pessoal. Nesse quadro, o autor sobretudo, quando não se refere
sublinha a importância do reconhecimento explicitamente a elas.
para a formação da identidade, dizendo duas
coisas essenciais para o que aqui é o caso: • Por outro, interrogando alguns
• que a identidade dos grupos historicamente adquiridos que há séculos
discriminados integra uma dimensão temporal são tomados como a única
«que engloba as discriminações exercidas interpretação possível de um
contra esses grupos num passado que pode estado de coisas. Pode ser
ser secular» (2004: 311);
importante recordar a este respeito
• que é necessário fazer uma discriminação o que foi dito antes sobre a
inversa em relação a esses grupos.
consciência histórica, sobretudo, as
palavras de Gadamer chamando a
Fazendo a aplicação desta perspetiva ao caso
da discriminação das mulheres para a qual as atenção de que perante a tradição
conceções filosóficas deram um contributo devemos ter um comportamento
essencial, como já se explicitou, importa, então, reflexivo ou interpretativo e não
resgatar outras memórias – no assunto vertente, uma aceitação passiva e acrítica.
0214
214 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
T
.
al como vem a ser dito desde Os conteúdos programáticos do Programa de
o início do presente capítulo, 10º ano estão organizados em duas partes: uma
considera-se mais importante iniciação à atividade filosófica e o desenvolvimento
que haja um olhar transversal a da articulação entre a ação humana e os valores.
todos os conteúdos, com intencionalidade Esta segunda parte compreende quatro tópicos:
não discriminadora, do que se analise um 1) análise e compreensão do agir;
ou outro tema segundo uma perspetiva
2) a problemática dos valores e da valoração;
de género. Assim, propor-se-á a seguir
um percurso possível para os conteúdos 3) as diferentes dimensões da ação
programáticos do 10º ano que decorram de humana e a sua articulação valorativa;
um olhar não discriminador em relação ao 4) o desenvolvimento de uma temática que,
sistema sexo-género e, ao mesmo tempo, simultaneamente, permita concretizar e dar
não obriguem o corpo docente a romper corpo às diferentes problemáticas analisadas
com os seus hábitos e com os seus recursos e possibilitar que alunas e alunos façam um
habituais de trabalho. A opção por se fazer pequeno percurso de pesquisa pessoal.
uma proposta global de abordagem não Sendo este o conteúdo programático para
discriminadora para o 10º ano deve-se, o 10º ano, poder-se-ia dizer que todo ele,
essencialmente, ao facto de ele representar sem qualquer acréscimo de conteúdos
a ‘entrada’ na Filosofia e, por isso, poder ser ou esforço adicional, pode ser abordado
determinante de uma relação futura com ela. segundo uma perspetiva de género.
6.3.1. Propostas
Abordagem introdutória
à Filosofia e ao filosofar
Programa de Filosofia
S
eja qual for o hábito e o gosto da e 10º ano
do docente na abordagem inicial da 1. Abordagem introdutória
Filosofia, pode ‘acrescentar-lhe’ o olhar à Filosofia e ao filosofar
de género se, entre outras coisas: 1.1. O que é a Filosofia?
– uma resposta inicial
• Escolher textos de filósofas.
1.2. Quais são as questões da
• Organizar um debate para discutir, Filosofia? – alguns exemplos
com argumentos, por exemplo, 1.3. A dimensão discursiva
se a diferença dos sexos tem ou do trabalho filosófico
não alguma influência no modo de
pensar, de agir ou de escrever.
O interesse da utilização deste documento
• Apresentar uma galeria de mulheres radica em vários aspetos:
que filosofaram, ao longo do tempo,
• Inscrever-se no âmbito da arte e, nesse
para desfazer a ideia de que não há
sentido, abrir um caminho possível para uma
mulheres filósofas. exploração posterior no quadro dos valores
estéticos;
Estas hipóteses que parecem uma brincadeira
insignificante podem representar uma porta • Situar-se na década de 70 e, por isso,
de entrada para a relação temática entre as possibilitar uma informação cultural geral, útil
mulheres e a Filosofia que poderá acompanhar para a compreensão de muitas problemáticas
todo o ano letivo e, por exemplo, ser uma contemporâneas;
determinante fundamental na abordagem do
• Poder evocar uma série de símbolos clássicos
tema do Programa a tratar no ponto 4. E não
da nossa cultura;
quer dizer que se escolha necessariamente um
tema diretamente ligado às problemáticas de • Ser desenvolvido no quadro do slogan ‘a nossa
género, mas, antes, que se transversalize esta herança é o nosso poder’, perspetiva que faz
dimensão seja qual for o tema escolhido. ressaltar a importância de se encontrarem
modelos de mulheres e de feminino ao
O ponto de partida documental para esta longo da nossa tradição para que haja uma
abordagem poderá ser a exploração do conceção mais simétrica da humanidade.
conteúdo e do significado do projeto de Judy
Chicago, The Dinner Party: (Ver os Recursos A) Por outro lado, ele possibilita uma série de
deste capítulo). reflexões importantes no seio da nossa cultura.
0216
216 CIG
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Propostas
13 lugares de
A questão do número 13 e da mesa da última Ceia.
cada lado do
triângulo
Paralelismos e contrastes
equilátero
2 Acedido a 03/10/2015.
6.3.2. Propostas
A ação humana
e os valores
Programa de Filosofia
N
10º ano
a caraterização do agir,
qualquer que seja a perspetiva 1. A Ação Humana – Análise
adotada, é muito importante e compreensão do agir
continuar a questionar em que 1.1. A rede conceptual da ação
medida o sexo é uma variável influente. 1.2. Determinismo e liberdade
na ação humana
Tal questionamento levará, certamente,
a duas linhas de problematização:
num quadro relacional. Estas duas notas
• A diferença e a articulação teóricas serão importantes, por exemplo, para
entre sexo e género tratar do tema “Determinismo e liberdade na
ação humana”.
• A ligação entre o agir e os seus
contextos culturais e psicológicos A consolidação do que está em jogo neste tema
pode ser feita através de um texto de Simone
Em ambos os casos ficará claro que o agir: de Beauvoir, da sua obra, Para uma Moral da
(1) diz respeito aos indivíduos específicos, com ambiguidade, porque ela permitirá não só uma
uma história e uma situação cultural própria, abordagem clássica da questão Determinismo/
e não a seres ideais que são apenas puras Liberdade – a visão existencialista – mas
abstrações racionais; (2) implica sempre um também analisar a posição própria de Beauvoir
‘padecer’, dado que a ação humana se inscreve que é diferente da de Sartre.
0218
218 CIG
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Propostas
Propostas
3 Num texto muito interessante e, ao mesmo tempo, muito acessível sobre este assunto: (Ana Isabel Borges, e Marildo José
Nercolini, A (im) possibilidade da tradução cultural. In Proceedings of the 2. Congresso Brasileiro de Hispanistas, 2002, São
Paulo (SP). Em linha, disponível em http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000012002
000300006&lng=en&nrm=iso, acedido a 04.04.2015) diz-se a determinada altura: A tarefa do tradutor cultural ao tentar fazer
com que uma cultura não somente seja aceita, mas entendida por outra, acaba por criar um terceiro espaço, ou melhor, ocupar
um espaço entre as duas culturas em questão, um entrelugar possibilitador do diálogo entre elas.
0220
220 CIG
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Propostas
Propostas
que se ouvem e apenas se repetem: (1) educar Num texto com o título significativo de As
as mulheres é apostar num ganho cultural mulheres muçulmanas precisam realmente
exponencial; (2) as mulheres são sempre os de salvação?, a autora, Lila Abu-Lughod,
indivíduos mais pobres de entre os pobres. da Universidade de Columbia, denuncia
o fundo estereotipado que preside ao
Nesse sentido, há que ultrapassar a visão olhar sobre a questão das mulheres
eurocêntrica e branca do feminismo e trazer muçulmanas, ao explicar como ocorreu
para o debate posições de dentro das culturas o convite que lhe foi feito pela autora do
analisadas. No quadro da questão do Islamismo programa News Hour (ver texto em caixa).
é, sobretudo, necessário ter em conta que
uma perspetiva feminista forte nasce de O texto põe claramente de manifesto que
dentro da própria religião, como analisa, por aquilo que está subjacente à nossa busca de
exemplo, Margot Badran (ver texto em caixa). conhecimento sobre a situação das mulheres
0222
222 CIG
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Propostas
6.3.3. Propostas
Dimensões da
ação humana
e dos valores Programa de Filosofia
10º ano
E
ste ponto programático, de análise
3.1. A dimensão ético-política
obrigatória, representa – tal como os - Análise e compreensão da
dois seguintes –, simultaneamente, experiência convivencial
um aprofundamento e uma 3.1.1. Intenção ética e norma moral
concretização da análise do binómio ação
3.1.2. A dimensão pessoal e
humana-valores, supondo, por isso, alguns
social da ética – o si mesmo,
adquiridos de base. o outro e as instituições
3.1.3. A necessidade de
Nesse sentido, e numa ideia clássica na fundamentação da moral
reflexão pedagógica, sobre a importância dos – análise comparativa de duas
organizadores de progresso no processo de perspetivas filosóficas
aprendizagem, propõe-se que este 3.1.4. Ética, direito e política
núcleo temático seja apresentado a partir da – liberdade e justiça social; igualdade
exploração inicial da tragédia de Sófocles, e diferenças; justiça e equidade
Antígona, escrita por volta de 442 AC.
A proposta de Ausubel prende-se com a na medida em que, por um lado, ela exige
ideia, particularmente útil em filosofia, de uma determinada interiorização do saber
aprendizagens significativas, porventura e, por outro, supõe a reflexividade que faz
as únicas a que se poderá chamar, da aprendizagem da filosofia um processo
verdadeiramente, aprendizagens. Para aquele recíproco de assimilação, de incorporação
autor, o mais importante num processo e de crítica.
de aprendizagem é aquilo que já se sabe,
pelo que, descobri-lo e desenvolvê-lo, Nesse quadro, a utilização de um texto literário
deva ser a prioridade de qualquer processo oferecendo uma estrutura narrativa capaz
de transmissão de saber. Ou seja, só se de ‘dar a ver’ situações e experiências que
aprende algo novo a partir de um saber levem alunas e alunos a examinar questões-
prévio porque a aprendizagem comporta uma -limite de maneira objetivada, sem que tenham
dialética complexa entre o saber constituído, de se sentir pessoalmente em questão e,
a apropriação pessoal e o processo de portanto, possam tomar efetivas decisões
revitalização dessa apropriação pessoal. críticas. A estrutura de uma intriga pode
oferecer todos os elementos necessários
Para a aprendizagem da filosofia, esta para a real clarificação de uma problemática,
perspetiva é particularmente importante, e, nesse sentido, serem “organizadores de
0224
224 CIG
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Propostas
5 Para antecipar algumas objeções ao alheamento das jovens e dos jovens a um texto do sec. V AC, esclareça-se que há,
entre nós, experiências bem-sucedidas com este texto, aproveitando-se a oportunidade para agradecer à Doutora Maria
Adelaide Pacheco, cujo testemunho sobre este assunto foi muito importante para a decisão de recorrer a Antígona nesta
proposta.
Propostas
nossa cultura em geral e, ao mesmo tempo, são, igualmente, muito variadas as razões que
a importância que também tem no interior da legitimam esta proposta.
cultura filosófica. Ou seja, há uma permanência
• Antígona representa um mundo de homens
no nosso mundo intelectual daquilo a que a
e de mulheres que têm relações familiares –
tragédia de Sófocles deu corpo e figura que
irmão, irmã, marido, filho – que interagem com
pode facilitar a sua apropriação como ponto de
autonomia e valor próprio, que têm pontos de
partida para uma teorização filosófica.
vista diferentes sobre as coisas e as situações,
que mantêm ligações afetivas fortes e cuja
Por outro lado, e seguindo ainda Steiner, a
ação tem consequências no espaço público.
‘intriga’ de Antígona pode representar as
Ou seja, está em questão uma humanidade no
questões radicais da condição humana. Steiner
masculino e no feminino, seres humanos que
mostra como o conflito entre Creonte e Antígona têm relações familiares importantes nas suas
pode ser analisado do ponto de vista de vidas pessoais, quer sejam homens quer sejam
múltiplos indicadores: homem/mulher, individuo/ mulheres, e, portanto, ao contrário daquilo
estado, vivos/mortos, velhice/juventude, que é habitual, mostrar, não só que as ações
seres humanos/deuses. Mas Antígona é significativas são praticadas por mulheres e
atravessada, ainda, por outros conflitos, como, por homens, como também que os afetos
por exemplo entre as duas irmãs, Antígona influenciam a vida dos homens e das mulheres.
e Ismene, que representam dois modos de
pensar diferentes, ou mesmo, entre o mundo • Por outro lado, a despeito da interpretação de
privado da família e o da vida pública da cidade. Hegel que quer manter as mulheres ligadas à
Tudo isto indica que a tragédia de Sófocles natureza, enquanto os homens teriam dado o
pode oferecer uma imensidade de recursos salto para a civilização, há que reconhecer que
todos adaptados aos tópicos programáticos o conflito central de Antígona opõe entre si um
e aos gostos específicos de cada docente. homem e uma mulher e, se se pode falar em
ganhos e perdas, certamente que é a mulher
Antígona tem ainda uma outra vantagem que é quem ganha, evidenciando uma força e uma
a de poder servir também como recurso para coragem que desmentem qualquer conceção de
os pontos programáticos: “3.2. A dimensão feminino ligado a fragilidade e medo. Para além
estética – Análise e compreensão da experiência disso, há uma consistência em Antígona que
estética” e “3.3. A dimensão religiosa – Análise Creonte não revela, na medida em que, quando
e compreensão da experiência religiosa”, perde o dogmatismo e a prepotência, ligados ao
poder de ser chefe, o seu carácter se desmorona.
possibilitando uma exploração em continuidade.
No caso da dimensão religiosa da ação, a • Finalmente, Antígona pode ser veículo para
exploração da peça poderá ser feita pelo interrogar uma vez mais a ideia liminar que a
próprio núcleo temático. No que diz respeito subordinação das mulheres foi sempre universal
à experiência estética, para além de uma e pacificamente aceite e, pelo menos, levantar
exploração direta da tragédia como género algumas questões em relação à nossa herança
literário, poder-se-á recorrer, por exemplo, grega. Por exemplo, que significado pode ter o
às imensas manifestações pictóricas a que facto de que uma grande parte das tragédias que
Antígona deu origem na nossa cultura. chegaram até nós ter nomes de mulheres e, além
Especificamente do ponto de vista feminista, disso, um imenso protagonismo feminino? Ou,
0226
226 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
Propostas
6 Sirva como exemplo, o visionamento de uma montagem feita por jovens do Brasil e que pode ajudar a despertar a curiosidade
e contextualizar com alguma informação útil: https://www.youtube.com/watch?v=nf3ovl_e1fg: Antígona.
Propostas
A dimensão estética
– Análise e compreensão
da experiência estética
P
or exemplo, se a escolha recair
sobre os valores estéticos pode Programa de Filosofia
recuperar-se The Dinner Party, 10º ano
de Judy Chicago e explorar as
3.2. A dimensão estética
três sub-rubricas apontadas no Programa, – Análise e compreensão
na medida em que a construção da obra, a da experiência estética
sua receção, a sua manutenção e exposição
3.2.1. A experiência e o juízo estéticos
oferecem elementos suficientes para
uma análise muito interessante e para o 3.2.2. A criação artística e a obra de arte
aprofundamento daquilo que está em causa 3.2.3. A Arte – produção e consumo,
nessas sub-rubricas. comunicação e conhecimento
0228
228 CIG
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Propostas
S
e se escolher a dimensão religiosa
do agir, também o percurso Programa de Filosofia
anterior oferece dois recursos 10º ano
fundamentais: (1) a exploração 3.3. A dimensão religiosa
da situação das mulheres no que se refere – Análise e compreensão
à relação cultura-religião, (2) a Antígona, de da experiência religiosa
Sófocles, recursos que, aliás, poderão ser 3.3.1. A Religião e o sentido da
analisados em termos de complementaridade. existência - a experiência da finitude
e a abertura à transcendência
Refira-se, como possibilidades, algumas 3.3.2. As dimensões pessoal
interrogações desencadeadoras de e social das religiões
um trabalho teórico posterior: 3.3.3. Religião, razão e fé - tarefas
1. De que maneira a Antígona ajuda a pensar e desafios da tolerância
o tema programático “A Religião e o
sentido da existência”? De que maneira
a escolha feita por Antígona, na tragédia Ver, a este propósito, o subcapítulo
de Sófocles, é exemplar do papel da “A religião tem futuro para as mulheres?”
experiência religiosa na vida humana? do capítulo “Temas e Problemas do Mundo
2. Será possível estabelecer alguma Atual: quotidianos e problemáticas de
comparação entre a escolha feita por mulheres e de homens”, deste Guião.
6.3.4. Propostas
Temas/Problemas do
mundo contemporâneo
A
última rubrica programática, como
Programa de Filosofia
já se disse, permite, por um lado,
concretizar as problemáticas 10º ano
analisadas ao longo das aulas e, 4. Temas/Problemas do
por outro, possibilita um maior envolvimento mundo contemporâneo
pessoal de alunas e alunos. Como se
sabe, o Programa aqui é absolutamente
aberto, embora faça algumas sugestões, 1. A questão da linguagem
nomeadamente, proponha um tema
diretamente ligado às questões de género: Antes de tudo é necessário ter cuidado com
“Os direitos das mulheres como direitos a linguagem utilizada em todas as situações,
humanos”. De um certo ponto de vista, a seja com o uso sistemático de homem como
escolha e análise desse tema seria facilitador humanidade, por exemplo, ou seja com a utilização
de uma construção textual em que o feminino
de um certo acabamento do percurso
está sempre escondido. Esta é, certamente, uma
proposto até aqui. No entanto, embora
das tarefas mais difíceis de realizar – para além de
pareça menos evidente e, porventura, menos
outras coisas porque a gramática está construída
imediato, seria preferível escolher qualquer
de maneira a tomar o feminino como derivado –,
outro tema e desenvolvê-lo tendo em conta
mas é, ao mesmo tempo, uma das mais fecundas.
a perspetiva de género, na medida em que o
Dar-se-ão, em seguida, apenas dois exemplos
esforço de introduzir tal perspetiva na análise
que destroem a ideia feita de que ‘evidentemente
de qualquer problemática será, certamente, a
que as mulheres estão incluídas!’. São eles, o
forma mais profunda de consolidar adquiridos lema da Revolução Francesa e a sua expressão
e avaliar aprendizagens efetivas. em Os Direitos do Homem e do Cidadão e o caso
histórico português da primeira mulher que votou,
Repetir-se-á aqui alguns dos cuidados que Carolina Beatriz Ângelo, por causa de uma questão
foram referidos anteriormente como sendo de linguagem.
condições basilares para uma qualquer
abordagem temática, de maneira a que ela não a) Os direitos do Homem e do Cidadão
seja enviesada do ponto de vista do sistema Elisabeth Sledziewski considera a Revolução
sexo/género, aproveitando, ao mesmo tempo, Francesa “como uma mutação decisiva na
para se fazer algumas referências teóricas história das mulheres” (1994) porque valoriza o
ou históricas que poderão ser utilizadas em facto – decisivo – do debate sobre a natureza dos
outros contextos, servindo como recurso e sexos ter adquirido aí uma dimensão pública. Na
fundamento. verdade, que o tema da igualdade e da diferença
0230
230 CIG
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Propostas
entre os sexos tenha adquirido Ganhou Rousseau contra Um dos momentos mais
contornos públicos e tenha outras vozes, mas elas ilustrativos, simultaneamente,
vindo à ribalta da discussão existiram e mostraram que da força das mulheres da
representa um ponto sem pelo menos havia argumentos Revolução e das armadilhas
retorno na representação tão válidos para sustentar a da linguagem e do suposto
do feminino e do estatuto igualdade entre os sexos como universal neutro é a atividade
das mulheres na dinâmica para sustentar a sua diferença. de Olympe de Gouges, nascida
societal da nossa cultura. Se Do ponto de vista das ideias, Marie Gouze e tornando-se
bem que as mulheres tenham a mudança foi, realmente, Marie Aubry depois de casada.
acabado por ser remetidas qualitativa. Particularmente, Olympe de Gouges, partindo
para o espaço privado do lar nos anos entre 1789 e do princípio de que Os Direitos
e da família, e não tenham 1793 – anos da morte de do Homem e do Cidadão
conseguido ganhar a batalha Olympe de Gouges e da (ou desconfiando disso)
de uma educação digna, perseguição a Condorcet, diziam respeito à humanidade,
foi, contudo, necessário que morreria no ano seguinte propôs, em 1791, A Declaração
construir uma teoria que – a batalha foi renhida, tendo dos Direitos da Mulher e da
legitimasse esse estado de as mulheres participado na Cidadã que representa um
coisas, não deixando, essa rua, enquanto povo, e no momento experimental ou
linha teórica vencedora, debate, enquanto mulheres, a prova de fogo de que a
de ter de se debater com na configuração de um modo Declaração dos Direitos do
posições antagónicas. novo de viver em comum 7. Homem e do Cidadão não era
efetivamente universal porque
excluía alguns homens e todas
Ou seja, a Declaração dos Direitos da Mulher e da as mulheres. O que tem de
Cidadã é uma espécie de espelho da Declaração significativo a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, não lhe dos Direitos da Mulher e
acrescentando nada de substantivo, a não ser, a da Cidadã é o facto de ela
demonstrar o reducionismo
especificação de ‘homem e mulher’ e, portanto,
do documento-bandeira da
ao ser liminarmente rejeitada, deixa claro que,
Revolução, porque, os seus XVII
efetivamente, as mulheres não estavam incluídas
artigos acompanham a redação
na designação ‘homem’ nem na de ‘cidadão’.
do texto de 27 de Agosto de
Estava-se, afinal, ao nível de uma perspetiva
1789, explicitando sempre
abstrata de universalidade, concebida no horizonte homem e mulher na redação de
aristotélico do homem proprietário, aquilo que cada artigo ou fazendo alguma
Seyla Benhabib designa como um universal clarificação que lhe pareceu
substituivista, como se disse anteriormente.8 necessária para defender a
igualdade entre os sexos.
7 Em 2003 é posta em linha uma perspetiva sobre a relação entre as mulheres e a república francesa que, embora em termos
de divulgação, oferece uma visão muito pormenorizada dos avanços e recuos da posição das mulheres na sociedade francesa
desde a Revolução, valendo a pena ser consultada: http://www.thucydide.com/realisations/comprendre/femmes/intro.htm
8 Olympe de Gouges foi condenada à morte, tendo sido a segunda mulher a ser decapitada, sendo a primeira a Rainha Maria
Antonieta. Não se conhecem ecos da receção feita à Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã; contudo, a razão política
da sua condenação ao cadafalso terá sido a sua defesa do federalismo e a sua oposição a Robespierre.
Propostas
0232
232 CIG
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Propostas
Propostas
Propostas
0234
234 CIG
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Propostas Propostas
Estes e muitos outros exemplos velhos textos podem ter novas leituras e
fundamentam a definição de economia motivar novas questões. É nesse âmbito que
inteligente, como sendo aquela que aposta se enquadra a coleção dirigida por Nancy
na igualdade de género porque ela não Tuana, Re-reading the Canon, cujo objetivo é
só aumenta a produtividade e melhora uma releitura do cânone filosófico à procura
os resultados do desenvolvimento, como de um subtexto de género que tal cânone,
tem efeitos nas gerações seguintes e afinal, sempre incorporou, muitas vezes sem
na qualidade das políticas públicas. o explicitar. Esse trabalho de releitura dos
textos clássicos da Filosofia não só mostra
b) Prática de uma hermenêutica da a profunda responsabilidade da Filosofia nas
suspeita na leitura dos textos representações sociais do feminino e das
Num âmbito de trabalho totalmente diferente, mulheres, como também põe em evidência que
“a interpretação dos textos”, convém as posições filosóficas não são neutras e que
procurar, igualmente, onde se encontram o seu pretenso universal não teve em linha de
as mulheres e que tipo de conceção sobre conta, pelo menos, metade da humanidade.
elas subentende qualquer texto. Essa atitude
desconstrói a leitura corrente e dá a ver Sobre a análise crítica do Cânone, ver o
que as mulheres estão sempre supostas e capítulo “Cânone Literário e Igualdade
essa suposição assenta numa determinada entre Homens e Mulheres”, deste Guião.
representação do feminino. Nesse sentido,
6.4.
PropostasPropostas
Q
uando se chega a este ponto do
Programa já se fez muito caminho Programa de Filosofia
na relação das turmas com a
11º ano
Filosofia. Já se ganharam e já
se perderam muitas pessoas. Para algumas V – Unidade final – Desafios e
e alguns jovens, as aulas de Filosofia serão Horizontes da Filosofia
uma referência básica das suas vidas e para
1. A Filosofia e os
outro grupo, uma matéria de que nunca mais
outros saberes
quererão ouvir falar.
1.1. Realidade e verdade - a
plurivocidade da verdade
Em qualquer caso, o modo como se
1.2. Necessidade contemporânea
terminam os conteúdos programáticos pode de uma racionalidade prática
aprofundar a boa relação havida com a pluridisciplinar
Filosofia ou, quem sabe, resgatar algumas
pessoas que até aqui não conseguiram ser 2. A Filosofia na cidade
motivadas. Neste quadro, provavelmente, 2.1. Espaço público e espaço privado
não são indiferentes nem a maneira como 2.2. Convicção, tolerância e diálogo
se começa a lecionar a Filosofia, nem aquela – a construção da cidadania
com se encerra as aulas da disciplina. Daí
que se tenha optado por intervir com uma 3. A Filosofia e o sentido
proposta de abordagem neste último tema. 3.1. Finitude e temporalidade
– a tarefa de se ser no mundo
Qualquer das 3 sub-rubricas do último ponto 3.2. Pensamento e memória
– responsabilidade pelo futuro
do Programa poderá originar uma abordagem
fácil e interessante, do ponto de vista do
género. De facto, todos os tópicos enunciados
se prendem com questões prementes dentro “responsabilidade pelo futuro”. Em função desta
dos Estudos de Género, desde a “Necessidade convergência de interesses entre os conteúdos
contemporânea de uma racionalidade prática programáticos e os Estudos de Género,
pluridisciplinar”, até ao “Espaço público e propor-se-á a seguir um conjunto de reflexões
espaço privado” ou “Convicção, tolerância e temáticas que as docentes e os docentes
diálogo – a construção da cidadania”, passando poderão utilizar de acordo com a escolha da
pela “tarefa de se ser no mundo” e pela sub-rubrica que fizerem.
0236
236 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
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6.4.1. Propostas
N
. o início da terceira parte da
1. Memória coletiva
sua obra La mémoire, l’histoire, e esquecimento 9
l’oubli, dedicada, exatamente, à
questão da Condição Histórica, Paul Ricoeur parte da análise da memória
Paul Ricoeur faz a seguinte interrogação: individual e, por uma série de mediações
“O que é compreender sob o modo em que dialoga com autores e obras
histórico?” (2002: 373). Trata-se de uma de referência, utiliza o mesmo tipo de
interrogação essencial, porque ela remete análise para a memória coletiva.
para o facto de que, fora da possibilidade
de realizar uma reflexão total, o ser Do seu percurso, é importante
humano se vê condenado a um modo de destacar a relação que faz entre o
conhecimento de si e do mundo, no quadro que chama memória exercida e o
da sua “condição histórica”, ou seja, “uma
esquecimento, falando de abuso de
situação na qual cada um está já implicado”
memória e abuso do esquecimento,
(2002:374). É esta perspetiva que nos conduz
diretamente ao papel incontornável jogado
como dois extremos indesejáveis,
pela memória porque, diz o mesmo autor: para realçar a dimensão ético-
-política do dever de uma justa
“[…] a memória coletiva […] memória. Nesse sentido, Ricoeur
constitui o solo de enraizamento dirá que tanto o trop como trop
da historiografia”(2002:83). peu de memória revelam e relevam
de um deficit de crítica 10.
No quadro das teses defendidas por
Paul Ricoeur nesta obra, importa Paul Ricoeur explora a posição freudiana sobre
ressaltar três temas: (1) Memória o recalcamento de recordações traumáticas
coletiva e esquecimento, (2) Memória, que são substituídas por comportamentos de
história e identidade e (3) A complexa repetição. Este comportamento concretiza-
relação entre presente passado e futuro. -se na recusa de olhar para a ferida e para
9 É importante ter em linha de conta que, sendo o fio do livro La mémoire, l’histoire, l’oubli a natureza da nossa representação do
passado, o quoi da memória, a sua dimensão objetal, ligada à intencionalidade da consciência, é absolutamente fulcral.
10 É a Freud – nomeadamente as suas obras de 1914 e 1915, respetivamente, Rememoração, Repetição, Perlaboração e Luto e
Melancolia – que Paul Ricoeur vai pedir de empréstimo os conceitos-chave para a abordagem prática da memória, isto é, da
memória exercida.
Propostas
0238
238 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
Propostas
Propostas
0240
240 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
6.4.2.
Racionalidade e verdade
O
s temas programáticos da Se nos centrarmos num Hermeneuta, Paul
“plurivocidade da verdade” e da Ricoeur, ele recorrerá a uma dupla metáfora para
“Necessidade contemporânea caracterizar a sua conceção de verdade: a de
de uma racionalidade prática “elemento” (milieu) e a da “luz”.
pluridisciplinar” podem ter múltiplas leituras.
Uma delas pode advir do debate hermenêutico A metáfora da “luz” coloca clara e decididamente
sobre a questão da verdade e outra do debate a questão da verdade no interior do jogo racional
contemporâneo acerca da fragmentação da luz-sombra ou transparência-opacidade, ficando
razão. Ambas poderão proporcionar aberturas claro que a questão da verdade se dá num jogo
para as questões de género. entre saber e não-saber.
“ A verdade hermenêutica toma sempre a forma de uma resposta, resposta à questão que trabalha o
intérprete e que o conduz a interpretar um texto. (...) Há um investimento constitutivo do intérprete
no que quer ser compreendido. Não existe verdade em si se se tomar por isso uma verdade indepen-
dente das questões e das expectativas do ser humano. A luz transportada pela verdade desenha-se,
necessariamente, sobre um fundo de obscuridade, a da finitude à procura de orientação. ”
Jean Grondin, 1993: 200.
Propostas
isso, essa exterioridade da verdade, é uma das A pesquisa da verdade é, então, como já se
determinações que Paul Ricoeur quer afastar disse, trabalho e risco ou, dito de outra forma,
totalmente, na medida em que, pela mediação uma tarefa comprometida com a humanidade
dessa recusa, ele pode eliminar, ao mesmo e com a realidade. E, além disso, a pesquisa
tempo, a conceção de verdade como unidade da verdade fica vinculada ao sistema dinâmico
realizada. teoria-prática que, por um lado, coloca o
conceito de verdade na encruzilhada de duas
Por outro lado, para Paul Ricoeur, a questão da direções – o campo da objetividade do saber
verdade, como aventura humana, oscilará entre o e o campo ético da ação – e, por outro, o
pessoal e o universal (ver texto em caixa). condena à figura processual de ‘tensão’ entre a
unidade e a multiplicidade.
0242
242 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
Propostas
chapéu designado como um lugar outro relativamente a Uma racionalidade que, para
pós-modernidade e tem, uma determinação específica além de tudo, se determinava
certamente, como um clássico e tomada como referencial como promessa, na medida
de referência Jean-François de sentido seguro que é a em que as utopias eram esses
Lyotard (1979). Para a modernidade, assumindo-se, mundos possíveis de vir a ser,
perspetiva pós-moderna, a por isso, de certa forma, como mas sempre num topos outro,
racionalidade perdeu o poder um não-lugar ou uma utopia. diferente, diferido. Promessa,
de crítica e de emancipação A pós-modernidade é, assim, contudo, ou seja, horizonte
que as Luzes lhe haviam um lugar-tempo descentrado, possível de se tornar existente
reconhecido, questionando, deslocado de um outro – a e que, por essa razão, podia
no mesmo gesto, os conceitos modernidade – cujo tonus configurar dinâmicas de
clássicos de verdade e de denuncia e que não quer transformação.
transformação ou progresso ocupar nem ser.
da humanidade, cuja A este nível, a pós-moder-
compreensão fica condenada Tal é, também, o sentido nidade, como símbolo
a mover-se numa errância tradicional na nossa cultura da deslocação e da
contínua em que cada suposto das obras-utopia, que foram não-centralidade, pode
novo é, no fundo, apenas a emergindo nos seus diferentes funcionar fecundamente,
repetição da mesmidade do momentos históricos. Cada dando visibilidade a todos
sistema. uma à sua maneira, todas os lugares do espaço e
essas obras assumiram a dupla pela força da descentração,
A que fica, então, reduzido o característica de denúncia e de retirar ao poder, sob todas
pensar neste quadro? recusa de uma situação cultural as formas, o lugar central
específica e de busca de um de discurso dominante e
Se nos ativermos ao ‘pós’ de outro modo de ser. Eram, por verdadeiro. O estilhaçar do
pós-modernidade, ficaremos esse motivo, alimentadas por centro, transportado pelo pós
perante uma designação cujo uma racionalidade prospetiva, da pós-modernidade, pode
locus é referência a um outro aberta à possibilidade ser o anúncio da possibilidade
de si, uma vez que se classifica da reconstrução e da do diálogo entre as diferenças
a si próprio de pós. É, portanto, transformação da realidade. de todos os tipos.
Propostas
3. Aproximações possíveis poderá ser suporte da nossa vida social
a abordagens não se for pluridisciplinar e se for integradora
discriminadoras das muitas diferenças que constituem o
tecido social, desde os valores culturais às
As considerações teóricas feitas no ponto diferenças de religião. A ideia da verdade
anterior poderão ser utilizadas numa como ‘tensão’ entre saber e não saber e
perspetiva em que se tenha em consideração como ‘projeto humano’ pode ser explorada
a variável sexo/género. no mesmo sentido anterior, obrigando ao
reconhecimento da ideia de ‘tolerância’
Exemplos possíveis: não como um mal que temos de aceitar,
• Articulação das ideias de ‘memória crítica e para sermos caridosos, mas sim como algo
dimensão ética da verdade’ para convocar próprio da nossa finitude e do fundo de
a necessidade apresentar interpretações ignorância em que sempre nos movemos.
diferentes sobre os temas, mesmo Há que ter em atenção que se, afinal, falo
que essas interpretações não sejam as o meu dialeto num mundo de dialetos,
canónicas. Nomeadamente, fazer aparecer estarei também consciente de que ele não
aqui perspetivas teóricas sobre as mulheres é a única língua, mas antes um dialeto entre
e o feminino que desconstruam ideias muitos outros. Se professo o meu sistema
estereotipadas. Mas, sobretudo, criar a de valores – religiosos, estéticos, políticos,
consciência de que tem de se ler e trabalhar étnicos – neste mundo de culturas plurais,
textos novos, textos com perspetivas terei também uma consciência aguda da
diferenciadas e textos de áreas teóricas historicidade, contingência, limitação de
diferentes sobre as temáticas, no sentido todos estes sistemas, começando pelo
de evidenciar que uma racionalidade só meu, como sublinhou Gianni Vattimo (1994).
0244
244 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
Propostas
Se se criar a ideia de que a abertura ao entretecer com a ação para poder sustentar
diferente, à alteridade, é dimensão de e legitimar a transformação como possível.
cidadania, poderá ter-se como referência, Transformação, também, ao nível do próprio
por exemplo, a questão das mulheres pensar denunciando as suas raízes muitas
migrantes e dos conflitos sofridos por elas vezes discriminadoras, como, por exemplo,
na necessidade de se incorporarem numa quando toma o neutro, o objetivo e o universal
cultura diferente e que, à partida, mantém abstrato como normas do saber e do ser e
um olhar de superioridade em relação à exclui, como marcado ou particular, todo o
sua. Será importante erradicar a ideia da contextual e toda a diferenciação, alimentando
separação entre a busca da verdade como a formação de campos ou perspetivas
um processo meramente teórico e perceber teóricas marginais.
a exigência que o pensar tem de se
6.5.
Notas Finais
O
s diferentes percursos teóricos Por outro lado, tais percursos resultam
e pedagógicos que foram de uma já longa experiência de docência
sendo apontados ao longo do da filosofia, não sendo, portanto, meros
presente texto são sugestões esquemas teóricos pensados de uma
de trabalho possíveis e, sobretudo, abertas, forma desligada da sua viabilidade de
para que cada docente se possa sentir capaz uma prática letiva.
de as protagonizar a partir da sua formação
específica e dos seus hábitos de trabalho.
0246
246 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l
A Filosofia no Secundário lida numa Ótica de Género l
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0248
248 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
7.
Biologia e Género:
outros olhares
por: Filomena Teixeira e Fernando M. Marques*
* A autora e o autor agradecem o convite que lhes foi endereçado, em finais de 2014,
para participar nesta obra, tendo finalizado este texto e respetivas propostas em 2016.
0250
250 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
7.1.
A
s expressões deste amplo movimento instituir um entendimento contextual, valorativo
sociopolítico são diversas e e comprometido da prática científica. Este
têm crescido à medida que se novo paradigma contribuiu para a renovação
multiplicam os indicadores de da crítica feminista (María José Barral Morán
(des)igualdade de género nas várias dimensões et al., 1999) aos pilares tradicionais do sistema
da vida social a nível local, regional e global. científico e tecnológico (ver texto em caixa).
1 Adotada na IV Conferência Mundial sobre a Mulher: Ação para Igualdade, Desenvolvimento e Paz http://www.cite.gov.pt/pt/
acite/documentosunivers001.html (acedido em 22/7/2017).
2 ONU – UNRIC: https://www.unric.org/pt/objectivos-de-desenvolvimento-do-milenio-actualidade. Ver ainda a Agenda 2030 de
Desenvolvimento Sustentável: https://unric.org/pt/component/content/article/32350-17-objetivos-de-desenvolvimento-sus-
tentavel (acedido em 22/7/2017).
3 Rio+20 O Futuro que Queremos: http://www.apambiente.pt/_zdata/Politicas/DesenvolvimentoSustentavel/2012_Declaracao_
Rio.pdf (acedido em 22/7/2017).
4 Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação – https://ec.europa.eu/programmes/horizon2020/en/h2020-sec-
tion/promoting-gender-equality-research-and-innovation (acedido em 22/7/2017).
5 Desde 1999, com a comunicação “Mulheres e Ciência: mobilizar as mulheres para enriquecer investigação europeia”, a Comis-
são Europeia também assumiu protagonismo nesse sentido. https://cordis.europa.eu/pub/improving/docs/g_wo_co_pt.doc.
Ver ainda a Resolução do Parlamento Europeu, de 21 de Maio de 2008, sobre as mulheres e a ciência: http://cite.gov.pt/
asstscite/downloads/legislacao/Resoluc40.pdf (acedido em 22/7/2017).
A dinâmica das relações entre Ciência, a análise de género contribui para uma
Tecnologia e Género é percebida com nova inteligibilidade das dinâmicas que
intensidade em diversos campos disciplinares. perpassam o sistema científico-tecnológico,
Na Biologia, as teorias da diferenciação dando um outro significado aos
sexual, os desafios da reprodução assistida dispositivos de exclusão e segregação
ou as questões do desenvolvimento que aí ocorrem (ver texto em caixa).
sustentável, são disso exemplo. Ao integrarem
o currículo escolar do ensino secundário, Apesar da sua diversidade, os estudos de
estas problemáticas abrem o espaço Ciência, Tecnologia e Género partilham
pedagógico para o debate sobre o fazer da o objetivo comum de desocultar as
ciência, a sua história e as suas implicações formas de sexismo e androcentrismo que
sociais, a partir da análise de género. se refletem nas práticas científicas.
A consciência desta
“ Dispositivo é, em primeiro lugar, um conjunto decididamente hetero-
géneo que compreende discursos, instituições, instalações arquitetóni-
diferença – mapeada
não apenas no número
cas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados e posição das mulheres
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, em síntese, os cientistas, mas também no
elementos do dispositivo pertencem tanto ao dito como ao não dito. O seu estatuto epistémico
dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. ” – emergiu nos debates
Michel Foucault, 1985:128. filosóficos e sociopolíticos
contemporâneos e
6 Sobre este assunto, muitos investigadores e investigadoras têm procurado evidenciar o contributo destas ideias para a constru-
ção de barreiras à participação equitativa das mulheres no sistema científico (Elena Hernández Corrochano, 2010; Hilary Rose e
Steven Rose, 2010; Carolina Martínez Pulido, 2006a; 2006b; Steve Jones, 2004; Londa Schiebinger, 2001; Pascal Acot, 2001;
Pierre Thuiller, 1984).
0252
252 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
7 Refira-se que, atualmente, nas sete secções da Classe de Ciências da Academia de Ciências de Lisboa existem 30 Académi-
cos efetivos e apenas 2 Académicas (1 em Ciências Biológicas e 1 em Ciências da Engenharia e Outras Ciências Aplicadas),
bem como 52 Académicos correspondentes nacionais e apenas 12 Académicas (1 em matemática; 2 em Ciências da Terra
e do Espaço; 6 em Ciências Biológicas; 2 em Ciências Médicas; 1 em Ciências da Engenharia e outras Ciências Aplicadas) –
http://www.acad-ciencias.pt (acedido em 22/7/2017).
8 Ver a propósito Enrique Díez Gutiérrez (2004) http://educar.unileon.es/Antigua/Public21.htm , bem como o Estudo realizado em
2007, no âmbito do projeto e-igualdade, elaborado pela Fundación Directa, E-Mujeres e Universidad Complutense de Madrid:
Claves no sexistas para el desarrollo de software disponível em http://www.cdd.emakumeak.org/recursos/439 (acedido em
22/7/2017). Ver ainda Diéz Gutiérrez, 2004a e 2004b.
9 Ver nota de imprensa da Organização Internacional do trabalho (OIT) de 7 de janeiro de 2013 “Gender gap – Women and
technology – the attitude gap” disponível em http://www.ilo.org/global/about-the-ilo/newsroom/features/WCMS_195857/lang-
-en/index.htm (acedido em 22/7/2017). Consultar a brochura da OIT intitulada “Competências e empreendedorismo: Reduzir
o fosso tecnológico e a desigualdade de género”, elaborada no âmbito da campanha de sensibilização “Igualdade de Género
no Coração do Trabalho Digno”, cuja tradução portuguesa teve o apoio da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no
Emprego (CITE), disponível em http://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/pdf/gender_november.pdf (acedido em
22/7/2017). Ver ainda os seguintes documentos publicados pela Comissão Europeia (acedidos em 22/7/2017):
Women and men in leadership positions in the European Union 2013. A review of the situation and recent progress – http://
www.cig.gov.pt/siic/2014/10/women-and-men-in-leadership-positions-in-the-european-union-2013/ ;
Tackling the gender pay gap in the European Union – http://ec.europa.eu/justice/gender-equality/files/gender_pay_gap/140227_
gpg_brochure_web_en.pdf ;
She Figures 2012 Gender in Research and Innovation. Statistics and Indicators – http://ec.europa.eu/research/science-society/
document_library/pdf_06/she-figures-2012_en.pdf .
10 Acrescem as Licenciaturas em Serviços Pessoais, Segurança e Serviços de Transporte. Ver Instituto Nacional de Estatística –
Alunas/os matriculadas/os no ensino superior (Licenciatura – N.º) por Sexo e Área de educação e formação em 2011; Direção-
Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, 31 de outubro de 2012 – https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_
perfgenero (acedido em 22/7/2017).
do Instituto de Estatísticas da
UNESCO Women in Science11
Género e tecnociência são campos
revelam que, em Portugal, as
mutuamente constitutivos.
mulheres representam apenas
Por isso, as tecnologias estão frequentemente
32% do total de cientistas
codificadas com significados de género
em Engenharia e Tecnologia.
Também o relatório da
que conformam o seu desenho e usos.
Comissão Europeia She Figures Daí a atenção que se deve prestar ao seu
2015 Gender in Research papel na configuração da vida social.
and Innovation Statistics and
Indicators mostra que a evolução
da proporção de mulheres investigadoras no com o processo de mecanização da era
ensino superior no campo da Engenharia e industrial controlado por mão-de-obra
Tecnologia diminuiu, entre 2005 e 2012, de qualificada saída das universidades, às quais
33% para 31%12. Esta distribuição desigual na as mulheres não tinham acesso. Devido a
educação superior e nos contextos da prática diversos dispositivos de segregação, elas
tecnocientífica tem fundamentos socioculturais. estiveram durante muito tempo ausentes
dos cenários de inovação, desenvolvimento
Os discursos dominantes têm procurado e implementação das tecnologias, com
explicar a relação das mulheres com o exceção do âmbito doméstico. Laura Tremosa
desenvolvimento tecnológico com base (1986) fala a este propósito da dupla divisão
numa narrativa em que, quer a constituição do trabalho que relegou as mulheres para a
biológica quer a predisposição psicológica periferia do desenvolvimento tecnológico: a
justificam a inaptidão perante a sofisticação divisão sexual do trabalho e a divisão entre
técnica. Este significado simbólico acelerou-se trabalho manual e trabalho intelectual.
0254
254 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
7.1.1.
A perspetiva de género
R
etomando as questões teóricas sua vez, ‘género’ “é uma construção social
abordadas na primeira parte que diferencia os papéis, responsabilidades,
deste Guião, relembremos que condicionalismos, oportunidades e
o ponto de partida da perspetiva necessidades de homens e mulheres num
de género é a distinção entre os conceitos determinado contexto” (ver texto em caixa).
de sexo e género. Como alude Maria Caprile,
(2012) ‘Sexo’ “refere-se às diferenças A este propósito, ver o capítulo
biológicas entre homens e mulheres”; por “Género e Cidadania”, deste Guião.
“ O sexo biológico é atribuído em função das caraterísticas sexuais secundárias, as gónadas e os cromosso-
mas sexuais As categorias sexuais incluem mulher, homem, intersexual (pessoa que nasce com características
sexuais tanto femininas como masculinas) e transexual (pessoa que recorre a intervenções cirúrgicas ou hor-
monais para mudar de sexo). ”
Nancy Krieger, 2001:695.
“ Género – um processo sociocultural – refere-se às atitudes culturais e sociais que configuram e condicio-
nam os comportamentos ‘feminino’ e ‘masculino’, produtos, tecnologias, ambientes e conhecimentos. ‘Femi-
nino’ e ‘masculino’ descrevem atitudes e comportamentos num continuum de identidades de género. Género
não coincide necessariamente com sexo.
O termo género foi introduzido no final dos anos 60 para rejeitar o determinismo biológico que associava
a biologia a expectativas e papéis sexuais rígidos. Género é usado para distinguir fatores socioculturais que
moldam comportamentos e atitudes com base em fatores biológicos relacionados com o sexo. Os compor-
tamentos e atitudes de género são aprendidos. Não são fixos nem universais. As normas de género, relações
de género e identidades de género estão em fluxo constante. Mudam em função da época histórica, cultura
e lugar […] Género também difere em contextos sociais específicos […] As Identidades de género interagem
com outras identidades, tais como etnicidade ou classe.”
Londa Schiebinger, 2013:45.
“ Quando falamos de género referimo-nos a um sistema de relações sociais que estabelece normas e práticas
sociais para os homens e as mulheres e a um sistema de relações simbólicas que proporciona ideias e repre-
sentações. ”
Maria Caprile, 2012:6.
“ Nancy Krieger e Sally Zierler13 sugerem dois conceitos complementa- 3. O terceiro, que
res para clarificar a relação interdependente das expressões de género abarca o âmbito
na biologia e na sociologia. A expressão de género da biologia refere-se do conhecimento,
a como a biologia influencia o género – por exemplo, a capacidade das
mulheres ficarem grávidas tem sido usada para restringir a sua empre-
centra-se na integração
gabilidade. A expressão biológica do género refere-se a como o género da dimensão de
imprime a sua marca diretamente no corpo de carne-e-osso por proces- género nos próprios
sos que podem não estar associados com o sexo biológico – os corpos conteúdos científicos
formados por ideias culturais de magreza, pés deformados por saltos
e tecnológicos.
altos ou, há cem anos, costelas partidas por corpetes. ” Quer isto dizer, que
Londa Schiebinger, 2005:45. os métodos, técnicas
e epistemologias não
13 Ver o artigo “Accounting for Health of Women” publicado na revista Current Issues in Public Health, 1995, vol. 1, pp. 251-256.
0256
256 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
ficam à margem de
valores e ideologias, na “ O viés de género na investigação limita a criatividade, a excelência
sua busca incessante e os benefícios para a sociedade. Daí ser preciso questionar, de forma
de conhecimento sistemática, em que medida e de que maneira o sexo e o género são
relevantes para os próprios conteúdos da investigação, do desenvolvi-
objetivo, neutral e
universal. A produção
mento e da inovação. ”
Maria Caprile, 2012:3.
de conhecimento
científico e o
desenvolvimento seja elas de natureza
tecnológico são biológica ou socialmente As implicações da abordagem
condicionados pelas construídas. Estas de género no questionamento
desigualdades sociais posturas, ao reafirmarem do pensamento e das práticas
que atravessam os estereótipos de científicas atravessam
a sociedade e as sexo e género, acabam este Guião e os capítulos
por validar hipóteses e relativos às diferentes
instituições.
desenhos de investigação áreas disciplinares. Para
enviesados, indicadores uma abordagem global,
O viés de género legitima
inadequados, ensaios ver o capítulo “Género e
os estereótipos como
inapropriados e interpretação Conhecimento”.
pressupostos científicos.
incorreta dos resultados
Este modo de equacionar
(ver texto em caixa).
os problemas é frequente no
campo biomédico e baseia-se A perspetiva de
Tanto no campo da
em duas suposições erróneas: género tem um
investigação como no
• a primeira acontece quando da formação e educação caráter holístico.
se assume incorretamente científica, a perspetiva de A sua integração nas
a igualdade ou paridade género permite desenvolver práticas de gestão e
entre homens e mulheres. diversas ferramentas ação curricular requer
Com este pressuposto, metodológicas destinadas a: olhares transversais
conhecido pela expressão
1) repensar prioridades, sobre os processos
gender blindness (cegueira
teorias e conceitos, padrões de construção do
de género), aceita-se
e modelos de referência; conhecimento científico
o masculino como
2) apoiar a formulação e sobre a linguagem
representativo do humano,
em geral, invisibilizando de novas questões e utilizada para os
as mulheres e a sua cruzamentos das análises elaborar e divulgar,
experiência social; de sexo e género com de modo a evitar a
outros fatores relevantes; naturalização de uma
• A segunda suposição de
género ocorre quando se 3) desconstruir pressupostos visão androcêntrica da
exacerbam as diferenças de género e impulsionar a ciência e da tecnologia.
entre homens e mulheres, investigação participativa14.
14 O projeto Gendered Innovations promovido pela Comissão Europeia e pela Stanford University, liderado por Londa Schiebinger,
apresenta ferramentas teóricas e estudos de casos em várias áreas científicas e tecnológicas (ciência, medicina e saúde,
engenharia e ambiente) ilustrativos da aplicação da perspetiva de género – Londa Schiebinger e Ineke Klinge (2013) e site
https://genderedinnovations.stanford.edu/ (acedido em 22/7/2017). Ver, ainda Teresa Freixes, 2013 e o Manual publicado por
Comissão Europeia em 2011.
7.1.2.
Androcentrismo
O androcentrismo constitui-se
como uma visão do mundo
“ A teoria androcêntrica é o ponto de vista segundo o
onde os homens são o centro e qual o sexo masculino é essencial e o sexo feminino secun-
dário no plano orgânico, que tudo está centrado, por assim
a medida de todas as coisas.
dizer, no macho, e que a fêmea, embora necessária à rea-
Esta visão pressupõe a lização do plano, é apenas o meio de perpetuar a vida do
experiência masculina como Planeta; não é mais do que um acessório sem importância
universal, como referência e um elemento contingente no resultado geral. ”
ou representação da Lester Frank Ward, 1903:292.
O
sociólogo Lester Frank Ward, no da investigação ou ainda no seu uso social.
seu livro Pure Sociology: A treatise Daí que as pretensões de objetividade,
on the Origin and Spontaneous neutralidade e desprendimento da praxis
Development of Society usa científica sejam uma forma de ocultação
a expressão teoria androcêntrica para das relações de poder que afetam esse
descrever uma teoria social predominante conjunto de práticas sociais significativas,
onde as mulheres são consideradas seres onde a ordem de género tem lugar
inferiores por determinação biológica e – como também o têm outras hierarquias
comprovação histórica (ver texto em caixa). ideológicas (ver texto em caixa).
0258
258 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
“ As observações estão carregadas de teoria, as teorias estão marcadas pelos paradigmas e estes
dependem da cultura e, em consequência, não existem descrições dos factos objetivas e neutras
”
com referência a valores.
7.2.
O
currículo do ensino secundário inclui Assume-se no programa que o ensino da
a disciplina de Biologia do 12º ano Biologia é essencial para o desenvolvimento da
e a disciplina bienal de Biologia e literacia científica e, como tal, uma componente
Geologia dos 10º e 11º anos. Nesta imprescindível da Educação para a Cidadania
última, os temas da componente de Biologia e da participação ativa, crítica e responsável
são intercalados nos dois anos curriculares. numa sociedade democrática. Pretende
fornecer quadros conceptuais integradores
O programa de Biologia dos 10º e 11º anos que facilitem a abordagem de temas atuais
(Alcina Mendes et al., 2001) enfatiza, no seu que põem em destaque a biodiversidade e
esquema conceptual, a dualidade unidade as relações entre as comunidades humanas
versus diversidade dos seres vivos, permitindo e o ambiente. As unidades temáticas têm
apreender e valorizar a vida como um todo. por base situações problema ou questões
Essa diversidade, segundo as autoras e os centrais que se desejam articuladas num
autores, exprime o carácter integrador do fio condutor ao longo do programa.
programa e evidencia a caraterística mais
abrangente da vida – a evolução. As quatro Das inter-relações entre sexo, ambiente e
primeiras unidades dizem respeito à obtenção de biodiversidade, aos processos científicos
matéria (unidade 1) e à sua distribuição (unidade de classificação dos seres vivos, o campo
2), à transformação e utilização de energia de aplicação da perspetiva de género é
pelos seres vivos (unidade 3) e à regulação nos alargado. Neste sentido, é importante
seres vivos (unidade 4). As quatro restantes, a evidenciar o trabalho de mulheres cientistas
desenvolver no 11º ano, focam o crescimento que participaram – e participam cada vez
e renovação celular (unidade 5), a reprodução mais – na construção do conhecimento e
(unidade 6), a evolução biológica (unidade 7) que têm expressão nos campos científicos
e a sistemática dos seres vivos (unidade 8). dos diversos módulos do programa.
0260
260 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
7.2.1.
A
questão “Como melhorar a qualidade
de vida dos seres humanos?” que
delimita a situação-problema e “ Optar por uma definição ampla de conteúdos de
aprendizagem, não restrita aos conteúdos discipli-
contextualiza o programa de Biologia nares, permite que o designado currículo oculto se
do 12º ano (Alcina Mendes, et al., 2004) requer possa evidenciar e que se possa valorizar a sua per-
uma definição do conceito de qualidade de tinência como conteúdo expresso de aprendizagem
vida, sem a qual se torna difícil clarificar, à e de ensino. ”
partida, a dialética de inclusão/exclusão a que Antoni Zabala, 2000:28.
está associado. Sabemos que as expectativas
de qualidade de vida não são uniformes, antes
variam em função dos contextos sociopolíticos A proposta de exploração do programa
em que se vive, da classe social, da identidade estrutura os conteúdos de aprendizagem
de género, da orientação sexual, etnia, em conceptuais, procedimentais e
idade, nacionalidade, entre outros fatores. atitudinais, opção curricular que, do
ponto de vista teórico, permite ultrapassar
As áreas da Biologia selecionadas para a a organização tradicional da ‘matéria
abordagem da situação-problema são as a ensinar’ (ver texto em caixa).
que se encontram implicadas nos processos
reprodutivos, na genética, no controlo de Esta conceptualização dá oportunidade a
doenças, na alimentação e no ambiente. que a perspetiva de género se evidencie
O eixo dominante proposto para a integração no discurso curricular da Biologia.
dos temas estudados é a Biotecnologia, o que
Como nos conteúdos atitudinais do
leva a clarificar o seu contributo para a resolução
dos diversos problemas apresentados, ao nível programa se apela à reflexão crítica
da manipulação da fertilidade, da engenharia sobre aspetos biológicos, éticos e
genética, da saúde e da produção alimentar. sociais e a atitudes de respeito pela
Tratando-se de áreas com forte visibilidade diversidade, a análise das interações
mediática e impacte social que têm suscitado
entre ciência, tecnologia e género
várias análises a partir dos estudos de
género, faz sentido que estes conhecimentos
proporcionará o enquadramento
sejam mobilizados para a compreensão das apropriado ao desenvolvimento
problemáticas e soluções postas em jogo. das competências requeridas.
7.2.2.
Metáforas e Linguagem
O
s discursos produzidos no do espermatozoide com a representação
campo da ciência, educação e viril do macho, assim como do oócito com a
divulgação científica incorporam, representação passiva e recetiva da fêmea
frequentemente, estereótipos é uma constante. O oócito é grande e
de masculinidade e feminilidade enraizados passivo, não se move, ‘desliza’ pela trompa
no substrato sociocultural. No campo da de Falópio. O espermatozoide é pequeno,
Biologia também se encontram este tipo de dinâmico, ativo, competitivo, a sua cauda é
manifestações nas descrições e explicações do “forte”. Exemplos semelhantes são recorrentes
mundo natural. Alguns estereótipos atribuem em textos de divulgação científica sobre a
valores desiguais aos processos biológicos reprodução humana (ver texto em caixa).
femininos e masculinos, o que em certos casos
induz uma representação social em que as
mulheres valem menos do que os homens. “ É como se o ovo fosse a Bela Adormecida e o
Dar visibilidade aos estereótipos de género espermatozoide fosse o príncipe. O ovo está a dormir,
incorporados na linguagem científica e didática num sono que pode ser mesmo muito longo […], e
tudo o que o seu palácio encerra está a dormir com
da Biologia e descobrir nas explicações do
ele. Mas, assim que é tocado pelo espermatozoide,
funcionamento do corpo humano conexões com o ovo acorda. E as coisas desatam a acontecer
crenças e práticas culturais é uma oportunidade numa vertigem louca, dezenas de coisas ao mesmo
para refletir sobre as implicações sociais das tempo, todas elas já programadas para acontecerem
metáforas sexistas (ver texto em caixa). guardadas em hibernação no citoplasma do ovo, à
espera do despertador que só o espermatozoide sabe
fazer tocar como deve ser. […]
0262
262 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
Como se vê, os papéis de científica tradicional exaltar a com base numa conceção
género são projetados na verdade e objetividade dos construtivista do conhecimento
Biologia reprodutiva humana seus modelos explicativos. e da aprendizagem. Esta
através da personificação abertura conceptual permite
dos gâmetas. Aquando da Em outros textos, a fisiologia que a perspetiva de género se
fecundação, a descrição da reprodutiva feminina é evidencie nas problemáticas
entrada do espermatozoide frequentemente apresentada do desenvolvimento humano
na zona pelúcida do oócito, como destrutiva. Expressões e da qualidade de vida que
surge como uma metáfora da como ruína da parede do constituem o seu eixo central.
relação heterossexual onde há útero, morte do tecido, Assim, a incorporação de uma
penetração do pénis na vagina desintegração caótica, linguagem inclusiva, permitirá
(Filomena Teixeira, 2000). interrupção, morte, perda, superar uma tradição discursiva
Contrariamente privação, expulsão, dão a formalmente androcêntrica,
às imagens que ideia da menstruação como aproximando-a da proposta
proliferam nos textos falha, desperdício, mau conceptualmente inovadora
funcionamento de um sistema do programa. Nesse sentido,
pedagógicos, em que o
que gera produtos inúteis. há que ter atenção ao uso do
espermatozoide penetra
Contrariamente, a fisiologia termo “Homem” (por vezes
no oócito e se dirige reprodutiva masculina é vista também em minúsculas) com
ao seu núcleo para como produtiva, porque o sentido de norma universal
que da fusão dos dois cria continuamente células ou dos termos cientista,
pronúcleos resulte o ovo, germinativas novas. Daí a ideia cidadão, professor, aluno,
sabe-se há décadas que de que ‘fabrica’ algo valioso. autor, leitor, conceptualmente
os dois gâmetas são Enquanto a produção de
pensados e significados com
espermatozoides é celebrada
igualmente ativos e que base no masculino genérico.
porque decorre continuamente
ambos os núcleos se A realidade dos contextos do
da puberdade até ao fim da
deslocam e interagem fazer da ciência e da educação
vida, a produção de óvulos
é constituída por homens e
para formar o zigoto é vista como inferior porque
mulheres a que importa dar
(Gerald Schatten e Helen está terminada no nascimento.
nome, isto é, tornar visível,
Schatten, 1983; The Biology Daí a metáfora da fêmea
respeitando as identidades e
and Gender Study Group, improdutiva e desperdiçadora
os papéis que desempenham.
198815; Emily Martin, 1991; e da degeneração como
Palavras ou expressões mais
Londa Schiebinger, 2001; Lisa inferioridade feminina, que
Campo-Engelstein e Nadia abrangentes e inclusivas como
Emily Martin (2006) e Eulalia
Johnson, 2014). Esta ‘nova’ ‘pessoas’ ou ‘ser humano’
Pérez Sedeño (2011) tão
explicação que reformula são também desejáveis, uma vez
bem demonstraram.
os “papéis” atribuídos aos que ultrapassam as relações de
gâmetas na fecundação foi poder instituídas pelo discurso.
O programa de Biologia
frequentemente esquecida do 12º ano apela a uma
por força dos ‘efeitos de abordagem CTS – Ciência, A linguagem androcên-
género’, apesar da norma Tecnologia, Sociedade – trica é hoje considerada
15 The Biology and Gender Study Group: Athena Beldecos, Sarah Bailey, Scott Gilbert, Karen Hicks Lori Kenschaft, Nancy Nie-
mczyk, Rebecca Rosenberg Stephanie Schaertel, and Andrew Wedel.
16 Disponível em http://www.cig.gov.pt/siic/2012/12/guia-para-uma-linguagem-promotora-da-igualdade-entre-mulheres-e-ho-
mens-na-administracao-publica/ (acedido em 22/7/2017).
0264
264 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
7.2.3.
Reprodução e manipulação
da fertilidade
D
urante a abordagem da unidade hereditariedade. Refere a possibilidade de fatores
1 do Programa de Biologia pessoais e/ou ambientais afetarem os processos
do 12º ano – Reprodução e reprodutivos e propõe a problematização
Manipulação da fertilidade – os e análise crítica de situações relacionadas.
conceitos de sexo, género, sexualidade, relação Poder-se-á incluir, explicitamente, nesses fatores,
sexual, identidade sexual, identidade de género a problemática de género, bem como outros
e orientação sexual são essenciais, tanto determinantes associados a processos de
mais que se articulam com o desenvolvimento exclusão e desigualdade, como a pertença social,
dos projetos transversais de Educação as identidades étnicas ou a orientação sexual.
Sexual previstos no enquadramento legal
que configura o currículo17. Deste modo, A reprodução humana tem de ser
a diversidade sexual humana e a contextualizada para ganhar inteligibilidade.
compreensão das expectativas A sua compreensão global aconselha a um
diálogo permanente entre as dimensões
das pessoas LGBTIQ (lésbicas,
biológica, psicológica e sociocultural.
gays, bissexuais, transexuais,
A relação entre papéis de género
transgénero, intersexuais e queer)
e conceções de maternidade e
relativamente aos direitos sexuais
paternidade ajudarão a problematizar
e reprodutivos poderá ser melhor
o impacto diferencial da gravidez,
compreendida e refletida.
Como o problema central do programa
parto e amamentação na qualidade
é a melhoria da qualidade de vida dos de vida de mulheres e homens.
seres humanos, faz todo o sentido O caráter situado e provisório do conhecimento
considerar estas situações que também científico sobre esta temática pode muito
podem encontrar conforto e resposta nos bem ser ilustrado por conceções sobre
avanços científicos e tecnológicos. a reprodução veiculadas pelas teorias
preformistas que dominaram o pensamento
O programa foca os aspetos morfológicos científico até ao século XIX e que ainda
e fisiológicos dos sistemas reprodutores, hoje se encontram vertidas em crenças e
o ‘encontro dos gâmetas’, as fases estereótipos (André Giordan 1987; Clara Pinto
do desenvolvimento embrionário e a Correia, 1998; Filomena Teixeira, 2000).
17 Lei 60/2009 de 6 de agosto e Portaria 196-A/2010 de 9 abril. Sobre sexualidade e educação sexual ver as obras de Filomena
Teixeira et al. (2008; 2010; 2012; 2014), Nuno Pereira(2014) e Fernando Marques (2014).
Os temas da reprodução e
manipulação da fertilidade
constituem ainda oportunidades
curriculares para debate das
teorias e práticas eugénicas.
O aborto induzido ou o
infanticídio, tanto quanto
as práticas de seleção do
sexo ou de escolha de
dadores na reprodução
assistida põem em jogo os
padrões de masculinidade
e feminilidade considerados
socialmente vantajosos.
18 Clara Pinto Correia (1998) descreve o desenho desta forma: “A figura mostra-nos uma longa cauda e um núcleo volumoso.
Dentro deste núcleo, um homenzinho está enroscado em posição fetal, representando a pessoa da geração seguinte, esperan-
do o seu momento para se desenroscar e começar a viver”, p. 317.
0266
266 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
19 Sobre campanhas de prevenção do VIH/Sida, ver Ana Frias e Filomena Teixeira, 2013.
0268
268 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
7.2.4.
A
problemática da Mutilação Genital Desde 2007, o Estado Português desenvolve
Feminina (MGF), tradicionalmente programas de ação para a prevenção e
associada a rituais de dominação eliminação da MGF no quadro das políticas
sexual e a crenças sobre a públicas de igualdade de género. A Comissão
fertilidade, assume especial relevância em para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG)
termos pedagógicos (ver texto em caixa). é a entidade responsável pela coordenação do
III PAPEMGF, enquadrado na área estratégica
“Prevenir, Sensibilizar, Educar” do V Plano
“ A Mutilação Genital Feminina compreende todos os
procedimentos que envolvam a remoção parcial ou to-
Nacional de Prevenção e Combate à Violência
tal dos órgãos genitais externos da mulher ou que neles Doméstica e de Género 21 (ver texto em caixa).
provoquem lesões, por razões culturais ou outras não
terapêuticas.”
WHO - World Health Organization, 1997:320 “ A Mutilação Genital Feminina (MGF) confi-
gura uma violação grave dos direitos huma-
nos, continuando, no entanto, a ser praticada
O elevado número de mulheres vítimas desta ao abrigo de crenças que a fomentam com
prática a nível mundial e as ocorrências base em alegados benefícios de saúde e hi-
reportadas em território nacional, não giene, e em motivos religiosos ou de tradição.
deixam dúvidas sobre a sua pertinência no Tal como outras práticas tradicionais nocivas,
currículo de Biologia (ver texto em caixa). a MGF afeta mulheres de todas as idades, cul-
turas e religiões, prejudicando o seu direito à
integridade física e à saúde, incluindo a sexual
“ Estima-se que entre 100 e 140 milhões de meninas e
mulheres em todo o mundo tenham sido submetidas a
e reprodutiva, e constituindo um obstáculo ao
pleno exercício da cidadania e à realização da
estes processos e que, anualmente, 3 milhões de meni-
nas corram o risco de sofrer uma mutilação genital. ”
igualdade entre as mulheres e os homens. ”
III PAPEMGF 2014-201722.
OMS - Organização Mundial de Saúde, 2008:1
20 Female Genital Mutilation: a joint WHO/UNICEF/UNFPA statement. Geneva: WHO, 1997. Em 2008, esta definição foi reiterada
num documento da Organização Mundial de Saúde amplamente subscrito, intitulado Eliminating female genital mutilation: an
interagency statement OHCHR, UNAIDS,UNDP, UNECA, UNESCO, UNFPA, UNHCR, UNICEF, UNIFEM, WHO. Ver edição
portuguesa em http://www.who.int/eportuguese/publications/mutilacao.pdf
21 III Programa de Ação para a Prevenção e eliminação da Mutilação Genital Feminina 2014-2017 – Resolução do Conselho de
Ministros nº 102/2013 que aprova o V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género (DR, 1ª sé-
rie, nº 253, 31 de dezembro de 2013). A documentação sobre os diversos Programas de Ação pode ser consultada em http://
www.cig.gov.pt/planos-nacionais-areas/mutilacao-genital-feminina/
22 Anexo à Resolução do Conselho de Ministros nº 102/2013 que aprova o V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência
Doméstica e de Género – DR, 1ª série, nº 253, 31 de dezembro de 2013, p. 7028.
7.2.5.
Património Genético
a
unidade 2 do programa de Biologia responsável pela descoberta dos
do 12º ano – Património genético cromossomas sexuais. Como sabemos,
– equaciona os desafios que se o processo da determinação biológica do
colocam à genética na melhoria sexo teve claras implicações nas teorias,
da qualidade de vida dos seres humanos. práticas e resultados da ciência. Outro caso
Tanto aqui, como nos outros temas, a referência interessante a ser abordado, ilustrativo
a homens e mulheres cientistas permite uma da influência das questões de género na
visão mais humanizada e integrada da ciência. A produção e utilização do conhecimento
tendência para o silenciamento ou invisibilidade científico, é o que se relaciona com o sistema
das mulheres na História da Ciência reproduz um taxonómico de Carl Linnæus quando adotou
sistema onde a desigualdade tem sido marcante. a designação Mammalia para os mamíferos
O programa tem diversas possibilidades para ou quando usou metáforas derivadas do
inverter esta situação e refletir sobre as relações casamento heterossexual para a classificação
entre género e ciência. A título de exemplo, dos seres vivos23 (ver texto em caixa).
nesta unidade didática, podem evidenciar-se os
contributos da bióloga norte-americana Nettie As teorias e os modelos científicos não são
Marie Stevens (1861-1912), contemporânea neutros nem objetivos, mas resultam tanto
de Thomas Morgan e com quem trabalhou, da intersubjetividade de quem os produz
quanto dos fatores políticos,
económicos e culturais
“ Pelo menos desde o século XVIII, os biólogos usaram o casamento
como uma importante heurística para a compreensão de acoplamen-
que os contextualizam.
A ciência é uma
tos e reprodução em plantas e animais. O grande naturalista sueco Carl
Linnaeus, o celebrado ‘pai’ das modernas taxonomias e nomenclaturas, construção
fez do ‘casamento das plantas’ a base para seu célebre sistema de ta- sociohistórica, portanto
xonomia botânica, conhecido como o ‘Sistema Sexual’. Linnaeus não determinada temporal
apenas identificou as partes macho e fêmea das plantas, mas também
as transformou em parceiros de casamento, configurando os estames e espacialmente.
como ‘maridos’(andria) e os pistilos como ‘esposas’(gynia). ” Por isso, numa
Londa Schiebinger, 2001:276. perspetiva de género,
não basta salientar a
0270
270 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
modelos na construção do
Na enfatização do conteúdo “o cariótipo
conhecimento científico”, humano e a determinação genética do sexo”
mas também desconstruir os (tema 1.2, unidade 2) é importante fazer uma
processos da sua produção. incursão pela história da ciência sobre as
teorias da determinação do sexo e da sua
O programa inclui como conteúdo de relação com as questões de género24.
aprendizagem o “Desenvolvimento de
atitudes que promovam o respeito pela Também no programa de Biologia do 11º
diversidade fenotípica dos indivíduos” ano, o facto da unidade 7 ter como questão
(tema 1.1, unidade 2), o que permite suscitar central “Como é que a ciência e a sociedade
o debate sobre as ideologias de exclusão têm interpretado a grande diversidade dos
(racistas, eugénicas, sexistas) que determinam seres vivos?”, os conteúdos a abordar sobre
formas de subordinação e estigma. Neste os mecanismos de evolução permitem
contexto, com vista a desenvolver a desenvolver a reflexão crítica sobre a evolução
capacidade de reflexão, o sentido crítico e humana com perspetiva de género25.
a participação na cidadania de estudantes As controvérsias geradas pela teoria da
e docentes, será pertinente promover o seleção sexual de Darwin (2009) relativamente
debate sobre preconceitos, estereótipos aos argumentos usados para justificar a
e ideologias que excluem a diversidade inferioridade evolutiva das mulheres constituem
dos seres humanos. A este propósito, o um bom exemplo de como a ciência não
desenvolvimento de processos de observação está isenta de implicações sociopolíticas26.
focada da realidade permitirá dar visibilidade
24 Sobre o assunto ver Carolina Martínez Pulido, (2004), Isabel Delgado Echeverría (2000; 2007).
25 Ver a este propósito Maria Ángeles Querol Fernandez, 2003.
26 Sobre o assunto ver Elena Hernández Corrochano, 2010; Hilary Rose e Steven Rose, 2010; Carolina Martínez Pulido, 2006a;
2006b; Steve Jones, 2004; Londa Schiebinger, 2001; Pascal Acot, 2001; Pierre Thuiller, 1984; Stephen Jay Gould, 1991.
7.2.6.
Imunidade e controlo
de doenças
a
unidade 3 do programa de Também o VIH/Sida – infeção sexualmente
Biologia do 12º ano equaciona transmissível que causa imunodeficiência
os desafios que se colocam ao adquirida, isoladamente ou por coinfecção
controlo de doenças para melhorar – tem uma distribuição mundial que não é
a qualidade de vida dos seres humanos. alheia à geografia da pobreza, designadamente
nos continentes africano e asiático, com
É consensual que uma das dimensões situações estruturais de desigualdade de
estruturantes da qualidade de vida é a saúde. género. A falta de acesso a preservativos,
Consequentemente, o acesso a serviços e medicação adequada de elevados custos e
recursos em saúde constitui um indicador da generalização de vacinas como a do Vírus
fundamental para a sua avaliação. Para além dos do Papiloma Humano (HPV), são exemplos
riscos que acarretam, os efeitos da doença não de como os recursos e as tecnologias de
são insensíveis às diferenças e vulnerabilidades saúde não estão equitativamente ao alcance
sociais. Saúde e doença interagem com as de parte significativa da população mundial.
expectativas que as diversas sociedades possuem
sobre os papéis de género, nomeadamente Nestes contextos, fatores como exposição
sobre quem deve ter a responsabilidade do a violência e exploração sexual, casamento
cuidado das pessoas doentes ou vulneráveis forçado, gravidez na adolescência e tradições
(crianças, pessoas idosas, pessoas com de poligamia, aumentam os riscos de infeção
deficiência…) no espaço familiar e comunitário. por VIH na população feminina. A transmissão
Ignorar que nestes casos – que são muitos – vertical do VIH é ainda uma situação
o impacto pessoal, familiar e social da doença agravante para a mãe, pela responsabilidade
tende a acentuar a desigualdade de género, sociocultural que lhe é atribuída no cuidado
é recusar uma visão holística do problema da criança. O ciclo de vulnerabilidades
e, deste modo, descartar a possibilidade de tende a reproduzir-se nas crianças órfãs do
incorporar soluções equitativas e transformadoras sexo feminino, afastando-as, muitas vezes,
nas respostas científicas e tecnológicas. irremediavelmente, do sistema educativo.
0272
272 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
27 Consultar a propósito PNUD (2014), Relatório do Desenvolvimento Humano 2014, Sustentar o Progresso Humano: Reduzir as
Vulnerabilidades e Reforçar a Resiliência disponível em http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr2014_pt_web.pdf (acedido em
22/7/2017).
7.2.7.
Alimentação e
sustentabilidade
a
unidade 4 do programa de Biologia didática), suscitando o sentido crítico na
do 12º ano – Produção de alimentos procura de soluções equitativas para os
e sustentabilidade – centra-se problemas atuais das sociedades humanas.
na resolução de problemas de
alimentação da população humana com base Os diferentes conteúdos propostos suscitam
na biotecnologia. A proposta programática a problematização da relação entre género e
proporciona que se evidenciem as relações sustentabilidade. Desta forma, as iniquidades
entre os processos de produção e distribuição no acesso à propriedade, aos recursos
de alimentos e as formas de pobreza e económicos e energéticos, às tecnologias
desigualdade existentes à escala global. e à educação são equacionadas nas
Como a carência de alimentos está muito suas implicações. No mesmo sentido,
associada a assimetrias no desenvolvimento a criação de condições
e no acesso a recursos, importa esclarecer os sociocognitivas favoráveis à
fatores que transformam mulheres e crianças
mudança de atitudes que valorizem
em grupos populacionais mais vulneráveis.
a participação de mulheres no
Como as políticas de aumento das reservas desenvolvimento sustentável implica
alimentares no mundo desenvolvido têm considerar a relevância do seu
muitas vezes o efeito contrário de acentuar papel na produção, conservação
a pobreza e a desigualdade de género
e gestão de recursos alimentares,
em outros países, torna-se necessário
suscitar o debate sobre o papel da
seja no contexto da economia
ciência e tecnologia neste processo. familiar ou no da economia local.
28 Ver a propósito o Relatório Brundtland, Our Common Future, ONU, 1987. Uma edição em língua portuguesa está referenciada
na bibliografia. (Comissão Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento, 1991).
0274
274 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
29 Considerada uma dos vultos mais relevantes da democracia portuguesa, Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004) foi uma das
primeiras mulheres a desempenhar funções de Primeira-Ministra na Europa e a primeira no nosso país (e até agora, única).
Engenheira Química de profissão, a sua ação carismática estendeu-se da política ao ambiente, da democracia à igualdade, da
educação à investigação, da cultura à dinamização de movimentos sociais, cívicos e religiosos. Desempenhou vários cargos
e funções, a nível nacional e internacional, tendo sido membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida entre
1991 e 2002. Autora de livros, relatórios, artigos e conferências, o seu pensamento inovador e implicado com as causas do de-
senvolvimento humano e da participação das mulheres ultrapassou fronteiras. A partir de 2001, foi presidente da Fundação Cui-
dar o Futuro onde o seu espólio documental pode ser consultado – http://www.arquivopintasilgo.pt/ (acedido em 22/7/2017).
30 Sobre esta perspetiva ecológica ver Maria Mies e Vandana Shiva (1998), Ecofeminismo e Alicia H. Puleo (2011), Ecofeminism:
para otro mundo posible.
31 O programa da RTP2 O Tempo e o Modo apresentou, em 2012, uma entrevista com Vandana Shiva, que pode ser visualizada
em https://vimeo.com/45069821 (acedido em 22/7/2017). O programa tem a duração de 30 minutos e pode ser um recurso
valioso para a compreensão desta temática.
0276
276 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
Mulheres Programa
de Biologia e
Geologia
e Ciência 10º e 11º anos
Programa de
Biologia
do 12º ano
D
urante séculos, a ciência foi este obsoleto em qualquer
considerada uma atividade processo de unidade, tema
intelectual e profissional pouco silenciamento e conteúdo
apropriada para mulheres. não pode
Diversas teorias procuraram justificar essa encontrar no
inaptidão pelo determinismo biológico e currículo escolar um
pelos papéis sociais adequados à sua terreno fértil para se continuar a reproduzir.
suposta natureza32. Alguns discursos Valorizar os contributos ‘esquecidos’
contemporâneos ainda intentam ocultar que das mulheres para a ciência e
essas teorias se baseiam no androcentrismo
tecnologia, permite promover a
e nas suas correspondentes relações de
mudança de atitudes a respeito da
poder e formas de dominação. É o que nos
mostram os estudos de Amparo Gómez equidade de género e estimular o
Rodríguez (2004), Carolina Martínez Pulido interesse pelas atividades científicas
(2004; 2006a) e Purificación Escribano López entre jovens estudantes.
(2010), para quem, por vezes, ainda impera
o velho preconceito que recai sobre o sexo A participação ativa na construção de
feminino, julgado incapaz de operar com um “conhecimento prudente para uma
o raciocínio lógico, dada a sua natureza vida decente”, na expressão do sociólogo
predominantemente emocional ou irracional. Boaventura de Sousa Santos (2004), convoca
a reflexão sobre as políticas sexuais do
Apesar de todas as barreiras educacionais, conhecimento que advêm das interações
institucionais e culturais que foram limitando o entre género e currículo e do papel atribuído à
seu acesso ao conhecimento, muitas mulheres ciência e tecnologia na melhoria da qualidade
conseguiram ter um papel determinante em de vida das comunidades humanas.
diversos campos científicos. No entanto,
o desconhecimento dos contributos das De acordo com as investigações realizados
mulheres cientistas ao longo da história nas últimas décadas no campo dos estudos
continua a impedir a sua valorização e de género e dos estudos sociais da ciência,
reconhecimento. Num tempo de novos continuam a manifestar-se visões distorcidas
desafios ao desenvolvimento humano, sobre o papel das mulheres no desenvolvimento
32 Apesar destas conceções e das limitações impostas à sua participação na produção do conhecimento científico, sempre houve
mulheres que fizeram ciência. Sobre o assunto ver outros textos deste guião.
Propostas
científico. As crenças de que impregnar. Mas numa masculina ao nível de estudos
se mantiveram à margem da sociedade democrática universitários em diversas
construção do conhecimento licenciaturas, quanto mais
que assume a igualdade
ao longo da história ou avançamos no sistema
de que o seu contributo é entre mulheres e científico e consideramos os
apenas recente e resultado homens como princípio lugares de melhor remuneração
das grandes mudanças da essencial, o currículo e responsabilidade ou os
contemporaneidade ainda escolar deve (des)fazer- cargos de direção e decisão,
povoa o imaginário coletivo. menor é a percentagens de
-se em conformidade
Historicamente, os sistemas mulheres que os ocupam. O
educativos não estão com essa perspetiva. relatório internacional Science,
isentos de responsabilidade Technology and Gender
nesta evolução, já que Se olharmos para a publicado pela UNESCO,
deixaram marcas de composição das Academias em 2007, já evidenciava esta
androcentrismo no currículo Científicas ou para as listas realidade (ver texto em caixa).
– explícito e oculto – nos de cientistas que obtiveram
manuais escolares, nos reconhecimento pela atribuição Historicamente, as mulheres
materiais didáticos e no de prémios com prestígio não têm sido bem recebidas
discurso pedagógico. internacional, como o Prémio nas instituições oficiais da
Nobel, o Prémio Turing33, ou ciência, tendo apenas sido
Desconstruir o
os ERC Advanced Grants34 formalmente admitidas nas
percurso genealógico facilmente verificamos universidades europeias e
que alimentou que a grande maioria é americanas nos finais do
durante séculos os constituída por homens. século XIX. Purificación
preconceitos de Escribano López (2010:162),
género na educação Apesar de nos países referindo-se ao caso espanhol,
ocidentais desenvolvidos ter cita que apesar do crescente
científica não é
aumentado exponencialmente aumento numérico, as
tarefa fácil, devido às o nível de escolarização da mulheres não têm estado
diferentes camadas população feminina, em suficientemente representadas
que conseguiu alguns casos já superior à nos espaços onde se definem:
33 O A.M. Turing Award foi instituído em 1966 pela Association for Computing Machinery (ACM) em homenagem a Alan Mathison
Turing (1912-1954), matemático britânico responsável por avanços fundamentais nas ciências da computação e inteligência arti-
ficial. O AM. Turing Award é o prémio mais prestigiado da ACM. Conhecido como o “Prémio Nobel” da Computação, é atribuído
anualmente às principais contribuições científicas de importância duradoura para a computação – http://amturing.acm.org/ (ace-
dido em 22/7/2017).
O papel crucial de A. M. Turing na decifração dos códigos da máquina Enigma usada nas comunicações militares pela Alemanha
Nazi durante a segunda guerra mundial foi objeto de uma produção cinematográfica: O Jogo da Imitação (2014), de Morten
Tyldum. O filme alia a importância histórica dos resultados do projeto Ultra liderado por Turing para a vitória dos Aliados e con-
sequente poupança de vidas humanas, à descoberta pública da sua homossexualidade, pela qual haveria de ser condenado e
sujeito a castração química. Pelas questões históricas, sociais, científicas, sexuais e bioéticas que suscita, o filme é um valioso
recurso educativo.
34 Ver a propósito http://erc.europa.eu/sites/default/files/document/file/erc_2014_adg_statistics.pdf e http://elpais.com/
elpais/2015/07/05/ciencia/1436092114_408581.html?ref=rss&format=simple&link=link .
O European Research Council (ERC) foi criado pela Comissão Europeia, em 2007, para estimular a excelência científica na Europa,
através do apoio e incentivo à investigação avançada – http://erc.europa.eu/ (acedidos em 22/7/2017).
0278
278 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
Propostas
UNESCO, 2007:14.
1) os modos reconhecidos de fazer ciência; participação das mulheres na ciência, não nos
2) as linhas prioritárias de investigação faltarão razões para reconhecer que muitos
e as suas posteriores aplicações; dos pressupostos do fazer científico foram
enviesados para justificar desígnios ideológicos
3) a estrutura e metodologia das
de diversas formas de subordinação e exclusão.
disciplinas; iv) os modelos educativos.
7.3.1. Propostas
O teto de vidro
(glass ceiling)
P
ara além dos obstáculos de primeira conservação e bom funcionamento;
linha, mais facilmente identificáveis,
• A natureza física, psicológica
como são as restrições no acesso
à educação superior, as limitações e intelectual das mulheres
na entrada e progressão no sistema científico, impede-as de fazer ciência tão
as desfavoráveis condições de trabalho e as bem como os homens. Por isso,
baixas remunerações, as mulheres cientistas são-lhes atribuídos trabalhos
têm de enfrentar mecanismos mais subtis de de rotina associados a papéis
diferenciação. No seu artigo Mujeres en, por y
de género como catalogação
para la Ciencia (2010), Purificación Escribano
e processamento de dados;
López35 explicita alguns dos preconceitos,
estereótipos e estratégias de poder que têm • Restrição a postos de
contribuído para a discriminação das mulheres assistentes científicas para
no campo da ciência, que a seguir resumimos: conter as suas capacidades
• Ser cientista é fazer parte de quando são brilhantes;
uma profissão masculina; • Acantonamento em áreas e
• As mulheres só são eficientes atividades científicas evitadas
em funções técnicas e recolha pelos homens devido ao
de dados, já que o trabalho grande investimento de tempo
realmente original, criativo e requerido para sua realização;
inovador é produzido por homens; • Maior dificuldade no acesso
• A posição das mulheres nos a fontes de financiamento;
laboratórios é similar da que • Necessidade de recorrer a um
têm na família tradicional, onde investigador com prestígio para
desempenham, sobretudo, funções poder integrar laboratórios e
de apoio e de cuidado com vista à equipas de investigação.
35 Falecida em 24 de novembro de 2011, Purificación Escribano López foi Catedrática de Química inorgânica da Universitat Jaume
I de Castellón (Comunidad Valenciana). Fundadora do Seminário de Investigação Feminista originou o Instituto Universitário de
Estudos Feministas e de Género Purificación Escribano. Inspirou a criação da Fonte das Mulheres Cientistas na entrada da
Escola Superior de Tecnologia e Ciências Experimentais (Font de les Dones Científiques de la ESTCE) onde foi colocada uma
placa em sua homenagem.
0280
280 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
Propostas
A autora refere ainda os estudos
que assinalam a correlação
entre o reduzido número de “
As instituições científicas estão estruturadas com base no pressupos-
to de que um cientista está equipado com uma esposa que cuidará dos
mulheres no campo científico seus filhos, não o contrário, e isto supõe uma barreira para as mulheres,
e fatores como o casamento,
a mobilidade geográfica e
já que nestes campos não é possível realizar a investigação em casa. ”
Purificación Escribano López, 2010:163.
o cuidado das crianças, já
que afetam negativamente a
produtividade académica e o
desenvolvimento profissional. Todavia, alerta masculinos nessas posições. Possíveis
que não é suficiente o aumento do número de explicações podem encontrar-se no facto de
mulheres cientistas, há também que mudar os os cientistas dominarem os campos onde a
modos de fazer ciência (ver texto em caixa). pesquisa é mais dispendiosa e também as
áreas de experimentação; acederem a um
A este propósito, ver os capítulos maior número de fontes de financiamento e
“A Economia e a Vida de Homens e de contarem com mais pessoas nos laboratórios.
Mulheres” e “Temas do Mundo Atual” Estas condições tornam mais fácil a produção
e, neste, os subcapítulos “Conciliação e publicação de resultados de investigação.
trabalho-família” e “Segregação sexual Por outro lado, as cientistas dedicam mais
dos mercados de trabalho”, deste Guião. tempo ao ensino e a grupos de trabalho
e, consequentemente, dispõem de menos
Num artigo publicado na revista Nature 36 tempo para atividades de investigação.
uma equipa de investigação de universidades Este desnível de género no estatuto científico
norte-americanas (Estados Unidos e Canadá) é maioritariamente estranho à vontade das
apresentou os resultados de uma análise mulheres, constituindo causas externas que
bibliométrica de citações que confirma a limitam o seu potencial científico. Partindo dos
persistência de desequilíbrios de género na resultados e das disparidades verificadas, a
produção e avaliação de pesquisas científicas equipa de investigação chama a atenção para
em todo o mundo37. Uma das principais a necessidade de desenvolvimento de novas
conclusões do estudo foi que as mulheres políticas científicas e de ensino superior.
cientistas publicam menos e são menos
citadas que os seus colegas masculinos. A aventura do conhecimento científico tem
Outra, foi a de que as mulheres têm menos sido mais complexa e participada do que
colaborações internacionais e quando os se tem feito crer. O sucesso da ciência não
seus nomes como autoras aparecem em depende apenas do trabalho de laboratório,
primeiro ou último lugar, são menos citadas nem unicamente da excecionalidade.
do que os artigos que possuem nomes A sinergia de esforços de muitas pessoas no
36 Nature, nº 7479, 12 dezembro de 2013. Sobre as publicações em ciências ver Vicent Lariviere, et al., 2013.
37 Este estudo sobre género e pesquisa científica baseou-se numa análise bibliométrica global e interdisciplinar de todos os artigos
publicados entre 2008 e 2012 e indexados na base de dados Thomson Reuters Web of Science. Foram analisados documentos
de 5.483.841 pesquisas e artigos de revisão com 27.329.915 autorias. Os indicadores foram: autoria, co-autoria, citações e
impacto científico.
Propostas
desenho dos problemas de investigação, na Commitment que se realizou em Budapest,
recolha de dados, na partilha de informação, em 1999, sob os auspícios da UNESCO38.
na divulgação, na ilustração, na tradução No documento adotado como texto final –
– para só falarmos de alguns aspetos – Declaração sobre a ciência e o uso do saber
é essencial nos resultados da ciência. científico – é mencionada a necessidade de
Substituir abordagens dogmáticas e plena participação de homens e mulheres
enviesadas das práticas científicas em todas as atividades relacionadas com a
ciência. Especificamente, no artigo 42, são
no que respeita às questões de
explicitados os termos do compromisso
género é o caminho para uma visão mundial a este respeito (ver texto em caixa).
integral e inclusiva dos processos de
construção da ciência e tecnologia. É neste contexto que se propõe como sugestão
de abordagem ao currículo a utilização de
Todas estas problemáticas foram objeto de biografias de mulheres cientistas com contributos
reflexão na Conferência Mundial Science relevantes nos conteúdos que integram os
for the Twenty-First Century, A New programas de Biologia do ensino secundário.
“ A igualdade no acesso à ciência não é apenas uma exigência social e ética para o desenvolvimen-
to humano, mas também uma necessidade para a realização do pleno potencial das comunidades
científicas e para orientar o progresso científico para todas as necessidades da humanidade. As
dificuldades que encontram as mulheres, que constituem metade da população mundial, para ace-
der e progredir nas carreiras científicas e participar na tomada de decisões em ciência e tecnologia,
devem ser abordadas com urgência. ”
UNESCO, 1999, item 42.
0282
282 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
7.3.2.
Propostas Propostas
O recurso às biografias
P
ara M. Dolores Sánchez González pessoas no sistema científico
(1999) o recurso às biografias de e este tem sido historicamente
mulheres cientistas deve ter por base
dominado por homens;
os seguintes pressupostos teóricos:
• Construir uma genealogia de
• A ciência como um processo
mulheres cientistas é uma tarefa
humano de construção do
imprescindível que permite
conhecimento. Esta generalização
tornar visíveis os seus esforços e
do termo ‘humano’ será
contributos em vários campos da
inadequada se não incluir a
atividade científica e tecnológica,
participação e experiência das
bem como mostrar a importância
mulheres no fazer da ciência;
excecional de algumas delas.
• O sujeito que faz a ciência não
é um sujeito neutro. Assumir Como refere a autora, veicular uma
a atividade científica como visão realista e complexa da ciência,
objetiva, neutra e desinteressada incorporando nela homens e mulheres,
implica considerar a atividade científica como
é uma mistificação;
uma empresa humana de conhecimento,
• A atividade científica é própria questionando a conceção tradicional de
de homens e mulheres situadas um território de hegemonia masculina.
num determinado contexto
histórico e cultural. O mito Entendemos, tal como Purificación Escribano
López (2010), que deve evitar-se centrar os
da ciência como inerente à
estudos biográficos apenas no caráter excecional
natureza masculina representa das mulheres cientistas, para não se reproduzir a
uma visão androcêntrica; norma masculina do ‘génio’ como medida. Nesse
• As mulheres, tal como os sentido, sugerimos uma proposta pedagógica
homens, contribuem para as que contextualize os seus contributos,
evidencie as dificuldades sentidas, desoculte
diversas ciências em diferentes
os dispositivos dominantes de regulação das
graus e responsabilidades. práticas científico-tecnológicas e saliente as
São as relações de poder que estratégias e circunstâncias que tornaram
determinam a posição das possível o reconhecimento da sua atividade.
Propostas
Introduzir novos olhares no currículo escolar participação mais equitativa nas atividades
sobre o papel de mulheres e homens na ciência científicas e tecnológicas, são objetivos
e na tecnologia é construir novas oportunidades relevantes a ter em consideração.
de reflexão e de participação na cidadania.
Este processo é inseparável do desejo de A incorporação desta temática nos programas
mudança de atitudes sobre a equidade de deve coincidir com a abordagem dos
género, do estímulo para o desenvolvimento conteúdos científicos onde o contributo das
de aptidões científicas entre alunas e mulheres se revelou importante e decisivo.
alunos, da experienciação das vantagens da Muitas são as oportunidades curriculares
multidisciplinariedade e do trabalho cooperativo para que esta abordagem se realize.
ou do debate sobre as expectativas de género
no ensino e aprendizagem das ciências. Para começar
Durante o século XX, diversas mulheres Apresentam-se, no fim deste capítulo, alguns
tiveram um importante papel na Biologia, materiais de apoio (Anexos II, III e IV) com
designadamente nos campos da genética exemplos de mulheres cientistas, evidenciando
e embriologia. Importa que os planos de o seu especial contributo para os campos da
estudos e os manuais escolares do ensino Biologia, com diversas referências à realidade
secundário lhes deem o destaque adequado. portuguesa. Pretende-se que constituam ponto
Os programas de Biologia e Geologia dos de partida para uma pesquisa biográfica que
10º e 11º anos e de Biologia do 12º ano, pela pode seguir os tópicos do guião proposto
sua abertura aos desafios das sociedades no anexo I que elaborámos para o efeito39.
contemporâneas, constituem oportunidades
pedagógicas para se aprofundar os No sentido de alargar a pesquisa biográfica para
contributos das mulheres cientistas para incorporar em diversas unidades previstas nos
a evolução científica e tecnológica. programas de Biologia e Geologia dos 10º e 11º
anos e de Biologia do 12º ano, apresentam-se
A este propósito, ver o capítulo no Anexo II sugestões de breves biografias;
“A Filosofia no Secundário lida no Anexo III uma lista de mulheres cientistas
numa Ótica de Género” e, neste, o que se destacaram nos campos da genética,
subcapítulo “Temas/Problemas do embriologia, imunologia e relações ciência-
Mundo Contemporâneo”, deste Guião. -género (epistemologia e história da ciência)
e no Anexo IV alguns exemplos de mulheres
cientistas portuguesas premiadas com projetos
Sensibilizar para os mecanismos de ocultação
de investigação nas seguintes áreas: Biologia,
das mulheres na história da Biologia,
Saúde, Ambiente e Comunicação de Ciência.
divulgar e valorizar as suas pesquisas e
promover modelos de referência para uma
39 Diversos dados sobre a biografia e a produção científica de mulheres cientistas podem ser encontrados em autoras como Anne
Fausto-Sterling, 1987; 2000; 2002; 2006; Donna J. Haraway, 1995; Teresa Levy e Clara Queiroz, 2005; Londa Schiebinger,
2004; Elizabeth Oakes, 2007; Tiffany K. Wayne, 2011.
0284
284 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
7.4.
Propostas Propostas
Reprodução e Programa
de Biologia
Fertilidade Unidade 1
Reprodução e
Património Genético
Tema 2
Manipulação da
“ As Tecnologias de Reprodução podem situar-se num amplo conjun-
to de questionamentos que analisam as relações entre ciência e socie- Fertilidade
dade, em geral, e o papel especial da genética e da ciência e tecnologia
reprodutiva na sociedade contemporânea, em particular. ”
Charis Thompson, 2005:31.
a
reprodução assistida40 integra o as limitações e as incertezas. Por estas razões,
tema 2 - Manipulação da fertilidade a reprodução assistida é um
– da primeira unidade do programa
assunto atual, de grande investimento
de Biologia do 12º ano. A sua
importância curricular é evidente, dado tratar-se
político, científico e mediático,
de um campo científico e tecnológico de em que as interações entre
constituição recente que alcançou notoriedade ciência-tecnologia-sociedade se
nas últimas quatro décadas. As transformações fazem sentir com grande acuidade
introduzidas nos processos reprodutivos e nos
e onde as questões de género são
sistemas jurídico-legais põem em jogo novas
perspetivas sobre a sexualidade, a família, a transversais e incontornáveis.
maternidade e a paternidade que confrontam
valores tradicionais. As questões que algumas Para que se proporcione um nível desejável
Técnicas de Reprodução Assistida (TRA) têm de compreensão holística da problemática
suscitado convocam desafios socioéticos em causa, a abordagem científico-didática da
que apelam a uma maior literacia científica e reprodução assistida deve ir, tal como previsto
participação cívica. Por outro lado, a aceleração no programa, para além da explicitação das
do desenvolvimento científico e tecnológico técnicas usadas e dos seus fundamentos
associado à manipulação da fertilidade biológicos. Ao invés do que por vezes se
pressiona o campo de ação da biomedicina, pretende fazer crer, a reprodução assistida não
tornando difícil o equilíbrio entre as esperanças, se resume a um conjunto de técnicas e práticas
40 O sistema legislativo português utiliza a expressão Procriação Medicamente Assistida (PMA). A entidade que regula o sistema
tem a designação de Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) – www.cnpma.org.pt (acedido em
22/7/2017). Por este facto, a designação PMA surge no texto a par da expressão Reprodução Assistida que foi a terminologia
adotada no Programa de Biologia.
Propostas
clínicas com elevado grau de sofisticação 2. As mulheres como principais
tecnológica e altos padrões de realização destinatárias da reprodução
e controle. Por isso, no debate sobre as
assistida.
questões bioéticas, podem ser consideradas
as controvérsias de género que a reprodução 3. O confronto entre as expectativas
assistida tem suscitado, nomeadamente, e as incertezas vivenciado por
como refere Susana Silva (2014)41: quem recorre às TRA. Daí que seja
1. As limitações no acesso às TRA importante não considerar apenas as
que advêm da sua definição e conquistas avançadas da tecnologia
do tipo de regulamentação que e da medicina, mas também
se adota na sua aplicação42. ponderar os seus riscos e limitações.
41 Sobre outras questões bioéticas ver Henri Atlan, 2007, e Joaquim Closet e José Goldim, 2004.
42 O acesso à reprodução assistida tem também sido condicionado por diversos fatores de ordem económica, criando assimetrias
entre grupos e populações – existe um elevado número de casais em lista de espera e o número de ciclos que se realiza em
Portugal é um dos menores da Europa, apesar de muitos casais que recorrem às TRA sofrerem de doenças graves ou risco
de transmissão de doenças. Sobre estas questões ver as comunicações apresentadas no Seminário PMA: presente e futuro
promovido pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), em 9-10 de janeiro de 2012, disponíveis
em http://www.cnpma.org.pt/cidadaos_coloquioPMA.aspx (acedido em 22/7/2017).
Sobre as restrições ao acesso de tratamentos de PMA face às necessidades identificadas, ver ainda o preâmbulo do Despacho
n.º 14788/2008; o ponto 9 da Resolução da Assembleia da República nº 46/2010 – Direito à informação e acesso aos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres ao longo do seu ciclo de vida; o texto de apresentação do CNPMA “PMA em Portugal” em
http://www.cnpma.org.pt/cidadaos_pma.aspx (acedido em 22/7/2017).
Sobre os dados comparativos dos tratamentos realizados no âmbito da Reprodução Assistida em 31 países europeus, incluin-
do Portugal, no ano de 2010, ver M.S. Kupka et al. (2014).
0286
286 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
7.4.1.
Propostas Propostas
Acesso à
Reprodução Assistida
N
a última década, a regulamentação com transferência de embriões, a transferência
do acesso à reprodução assistida intratubária de gâmetas, a transferência
tem sido intensa em diversos intratubária de zigotos, a transferência
países do mundo e Portugal não foi intratubária de embriões, a criopreservação
exceção. A sua implementação tem levantado de gâmetas e embriões, a doação de oócitos
uma diversidade de questões que obrigam a e embriões e a cedência temporária de útero.
um olhar novo sobre as implicações sociais As TRA não incluem a inseminação assistida
do desenvolvimento científico-tecnológico (inseminação artificial) utilizando espermatozoides,
numa perspetiva de género. sejam do parceiro da mulher ou de dador”
(F. Zegers-Hochschild, 2009:2685).
A globalização do conhecimento e a
consolidação de redes internacionais sobre Procedendo a uma simbiose destes dois
reprodução assistida têm suscitado a adoção conceitos, Susana Silva (2014:29) propõe
de uma definição comum. Nesse sentido, as como definição de Procriação Medicamente
sociedades científicas e médicas de genética, Assistida (PMA) “todos os tratamentos
reprodução humana e embriologia partilham o ou procedimentos que envolvam uma
glossário proposto pelo Comité Internacional conceção medicamente assistida, ou seja,
para Monitorização da Tecnologia Reprodutiva um encontro entre óvulos e espermatozoides
Assistida (ICMART) e pela Organização proporcionado por uma intervenção médica
Mundial da Saúde (ver texto em caixa). com vista a estabelecer uma gravidez”.
Segundo o glossário, estas técnicas incluem Ao contrário do que sucede em outros países
– embora não se limitem – “a fertilização in vitro como a Grécia, o Reino Unido, o Canadá e
“ Reprodução obtida por meio da indução da ovulação, estimulação ovariana controlada, desen-
cadeamento da ovulação, procedimentos de Tecnologias de Reprodução Assistida, inseminação
intrauterina, intracervical e intravaginal com sémen do marido/companheiro ou dador”.
Tecnologias de Reprodução Assistida (TRA)
Propostas
Refira-se a propósito que em
A lei portuguesa aprovada em 2006 valida as 2006, num contributo para
seguintes técnicas de PMA: inseminação artificial; discussão pública da Lei da
fertilização in vitro; injeção intracitoplasmática Procriação Medicamente
de espermatozoides; transferência de embriões, Assistida, então em debate na
gâmetas ou zigotos; diagnóstico genético Assembleia da República, Mário
pré-implantação; outras técnicas laboratoriais de Sousa (médico especialista no
manipulação gamética ou embrionária equivalentes tratamento da infertilidade) e
ou subsidiárias (Lei 32/2006, artigo 2º). Rosália Sá (investigadora do
Laboratório de Biologia Celular,
ICBAS-UP) já defendiam a
alguns Estados federados dos Estados Unidos inclusão desta possibilidade em situações
da América43, em Portugal, só recentemente se específicas: “ponto 14. Empréstimo benévolo
legislou sobre a maternidade de substituição44. de útero - Destina-se à mulher sem útero por
As questões sócio-éticas sobre este assunto têm histerectomia (remoção cirúrgica do útero) ou
suscitado acesso debate na opinião pública45. com defeitos congénitos do útero de correção
O Tribunal Constitucional reconhecia, em 2009, impossível e que não permite uma gestação ou
a controvérsia e referia que “há quem entre uma gestação sem riscos para a mãe e o feto.
nós chegue a admitir, de jure condendo46, a Por estas situações, não é legítimo discriminar
possibilidade da maternidade de substituição a mulher. O empréstimo deve ser benévolo
gratuita” e que “é necessário ter em conta que e assessorado por contrato legal específico,
a maternidade de substituição gratuita tende a com acompanhamento especializado, mesmo
ser vista como menos censurável, por revelar quando a emprestadora é familiar”48.
altruísmo e solidariedade da mãe gestadora
em relação à mulher infértil, e por não haver, da A natureza ideológica desta exclusão pode
parte desta, um desrespeito pela dignidade da agora ser ultrapassada na lei portuguesa.
mãe gestadora, por não ocorrer aqui nenhuma Contudo, a solução encontrada baseia-se
tentativa de instrumentalização de uma pessoa em critérios de saúde e não de liberdade
economicamente carenciada, por meio da fixação de escolha, ao mesmo tempo que exclui
de um ‘preço’, como sucede nas situações os casais homossexuais masculinos do
de maternidade de substituição onerosa”47. acesso à gestação de substituição.
43 Para mais informação, consultar Vera Lúcia Raposo, De mãe para mãe: Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade
de substituição, Coimbra, 2005, págs. 101-108 e Tribunal Constitucional – Acórdão n.º 101/2009, Diário da República, 2.ª série,
nº 64, de 1 de Abril.
44 Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto – Regula o acesso à gestação de substituição, procedendo à terceira alteração à Lei n.º
32/2006, de 26 de julho (procriação medicamente assistida).
45 A propósito das questões em jogo, ver o programa Prós e Contras, da RTP1, sobre Mães de aluguer, dia 17 de março de 2015,
episódio 8: http://www.rtp.pt/programa/episodios/tv/p31412/3 . Mais recente, ver o episódio 5, do Prós e Contras, de 6 de
julho de 2017, sobre Procriação Medicamente Assistida: https://www.rtp.pt/play/p3033/e272403/pros-e-contras (acedido em
22/7/2017).
46 Segundo a Enciclopédia Jurídica & Dicionário de Direito online, esta expressão latina significa “do direito a constituir; nos moldes
do direito que deve ser estabelecido/constituído. (...) é o propósito de matérias ou situações jurídicas não previstas em leis
vigentes, mas que podem ou poderão, com o tempo, constituir normas de direito objetivo”. Ver em http://www.enciclopedia-
juridica.biz14.com/pt/d/de-jure-condendo-constituendo/de-jure-condendo-constituendo.htm (acedido em 22/7/2017).
47 Tribunal Constitucional – Acórdão n.º 101/2009, Diário da República, 2.ª série, n.º 64, de 1 de Abril, p. 12469.
48 “Em defesa da mulher e do casal inférteis: proposta de legislação sobre Procriação Medicamente Assistida”, Ciência Hoje, 17
de maio de 2015.
0288
288 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
Propostas
Até agora, no nosso país, as TRA eram Também esta limitação foi objeto de recente
entendidas como um método subsidiário, e alteração parlamentar, alargando o acesso
não alternativo, de procriação, dependente de às técnicas de PMA a todas as mulheres,
diagnóstico de infertilidade, do tratamento de independentemente da sua orientação sexual,
doença grave ou do risco de transmissão de estado civil ou diagnóstico de infertilidade 50.
doenças, apenas disponíveis para “as pessoas
casadas que não se encontrem separadas No último relatório disponível sobre a situação
judicialmente de pessoas e bens ou separadas da Reprodução Assistida no conjunto dos
de facto ou as que, sendo de sexo diferente, 27 países da União Europeia elaborado
vivam em condições análogas às dos cônjuges pela ESHRE – Comparative Analysis of
há pelo menos dois anos”49. Em consequência, Medically Assisted Reproduction in the EU:
os únicos destinatários da reprodução assistida Regulation and Technologies (2008)51 – não
em Portugal, eram casais heterossexuais existia acesso às TRA a mulheres solteiras
com relação estável há pelo menos dois e a lésbicas na Áustria, República Checa,
anos e diagnóstico médico de infertilidade. França, Itália, Portugal e Eslovénia52.
Propostas
atrás, do espaço europeu.
Refira-se, a título de exemplo,
“ Estas especificidades reproduzem as expectativas e as crenças cul-
turais dominantes no que concerne às fronteiras da normalidade dos que em Espanha, o acesso
comportamentos sociais esperados no âmbito da maternidade e da pa- à reprodução assistida
ternidade e enunciam as instituições e os atores sociais passíveis de os não é restritivo a casais
enquadrar, justificando as intervenções médicas em casais que não con- heterossexuais, existindo
seguem conceber e/ou gerar uma criança saudável com a qual mantêm filiais de Centros privados
ligações biogenéticas.” referenciados que fazem o
Susana Silva, 2014:27-28. acompanhamento médico, no
nosso país, às pessoas que
recorrem a essas técnicas em
Em termos globais, a Numa perspetiva de género território espanhol, onde esses
exclusão do acesso aos e de não discriminação, Centros estão sedeados.
benefícios das TRA a esta é uma problemática
determinados grupos de essencial nas relações No documento acima referido,
pessoas, como mulheres e entre ciência, tecnologia e posto à discussão pública
homens sem vínculo conjugal sociedade. Questão tanto por Mário Sousa e Rosália Sá
e casais homossexuais, mais controversa quanto (2006) propunha-se, como
não constitui um problema os diferentes sistemas exceções no acesso às TRA,
biomédico, antes uma de regulação legal, criam as situações monoparentais e
questão ético-política inerente fronteiras fluidas e facilmente de casais homossexuais, desde
ao debate sobre a qualidade ultrapassáveis, como que assumissem os custos
de vida (ver texto em caixa). é o caso, como vimos inerentes (ver texto em caixa).
Os estudos atuais mostram que as crianças educadas por famílias monoparentais apresentam um
desenvolvimento físico e psicológico normal, com bom nível de educação, de instrução e de afetos.
Destina-se à mulher que, após os 35 anos de idade, não conseguiu encontrar o companheiro da sua
vida (doação de espermatozoides). O mesmo se aplica ao homem, pois não deve ser discriminado
em relação ao sexo feminino (doação de ovócitos e empréstimo de útero). Considera-se que estes
casos devem ser financiados pelos próprios.
Casais homossexuais
Os estudos atuais mostram que as crianças educadas por famílias homossexuais apresentam um
desenvolvimento físico e psicológico normal, com bom nível de educação, de instrução e de afetos,
sem aparentarem desvios de comportamento ou disfunções de preferência sexual. […]
Os casais homossexuais não devem, por isso, ser discriminados, embora se compreenda que devem
comportar os custos dos tratamentos. ”
Ciência Hoje, 17 de maio de 2015.
0290
290 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
Propostas
Como refere Susana Silva (2014:30), Apesar dos avanços da ciência
as TRA alargaram a possibilidade de se e da tecnologia possibilitarem
concretizarem projetos de reprodução humana
nunca antes alcançados, possibilitando a
respostas às expectativas
“mulheres e homens sós, assim como a reprodutivas de diferentes pessoas
casais heterossexuais ou homossexuais, – alargando o número de quem
recorrerem à IIU com sémen de dador, à as poderá utilizar – na prática,
FIV com gâmetas de dadores ou embriões
o seu acesso é muitas vezes
doados ou à maternidade de substituição,
pela oportunidade de inseminação ou FIV condicionado e estratificado
post mortem ou ainda pelas hipóteses de em função de valores morais e
protelar uma eventual gravidez através da ideológicos, até aqui associados
criopreservação de embriões e/ou gâmetas”. a uma visão de família assente
Mas estas potencialidades não resultam apenas
em critérios biogenéticos,
do desenvolvimento científico e tecnológico,
já que também se interrelacionam com novas característicos de uma matriz
dinâmicas socioculturais que têm ocorrido ao patriarcal.
nível da família e que afetam as representações
tradicionais associadas ao parentesco,
maternidade, paternidade e sexualidade.
7.4.2. Propostas
Mulheres, as principais
destinatárias
A
s mulheres são o alvo privilegiado jovem, maiores possibilidades de sucesso.
da avaliação e intervenção médica Importa salientar que não é possível garantir
nos casos de infertilidade conjugal o êxito das TRA. A taxa média de partos
uma vez que a maior parte dos ronda os 24%, sendo variável em função
procedimentos e tratamentos incide sobre o das técnicas e da realidade clínica do casal.
seu corpo. A vivência destas situações suscita Assim, a intervenção recai preferencialmente
diferentes estratégias de adaptação nos membros na mulher, sendo-lhe imposto um limite legal
do casal55 que importa compreender e minimizar, de idade em função do tipo de tratamentos.
designadamente nos casos em que as assimetrias Em 2010, o Ministério da Saúde fixou,
de género dão um tom negativo à partilha das através da Circular Normativa nº 18/2011/
responsabilidades e dos efeitos tanto psicológicos UOFC de 22/07/2011 da ACSS, os seguintes
como socioculturais (ver texto em caixa). critérios de acesso à reprodução assistida:
• Qualquer mulher,
Em termos biomédicos, a garantia de sucesso
da reprodução assistida aparece associada à
independentemente da sua idade,
idade da mulher. É esta medida de resposta desde que referenciada pelo
biológica que é tida em conta. Quanto mais Médico de Família, pode aceder a
55 Referimo-nos aqui aos casais heterossexuais, uma vez que, como vimos atrás, até 2016, a lei portuguesa limitou o benefício
das TRA a outros casais ou pessoas sem vínculo conjugal.
0292
292 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
Propostas
7.4.3. Propostas
Incertezas, limitações
e expetativas
O
utra controvérsia que pode ser corpos das mulheres56 mesmo quando há
abordada é a que diz respeito às suspeita de infertilidade masculina, como
incertezas implicadas na utilização por exemplo no teste pós-coital57.
das TRA. Para evitar a adesão
acrítica ao pretenso carácter neutral, objetivo As TRA incluem alguns procedimentos
e inócuo da tecnociência, importa não apenas invasivos que são quase exclusivamente
referir os seus contributos para a melhoria da aplicados às mulheres e que podem ter diversas
qualidade de vida, mas também equacionar, consequências. É o caso da síndrome de
prudentemente, os seus riscos e limitações. hiperestimulação ovárica provocada por uma
resposta excessiva dos ovários ao processo
Um dos problemas frequentemente referidos de estimulação, controle e monitorização dos
é o que pode originar sobretratamentos folículos e desencadeamento da ovulação; a
desnecessários com maior impacto nas técnica cirúrgica de punção e colheita dos
mulheres, após um falso-positivo diagnóstico de óvulos e o processo de transferência de
infertilidade, determinado pelo período de tempo embriões para o útero através da técnica do
em que é suposto os casais conceberem. Ora, Diagnóstico Genético pré-Implantação.
este período tem sido cada vez mais reduzido
na definição médica de fertilidade, passando Por outro lado, a gravidez múltipla pode implicar
de dois anos para um ano e, em alguns casos, riscos de saúde materno-infantil bem como
para seis meses. Contudo, um critério clínico impactos emocionais e socioeconómicos.
desta natureza pode ser incerto, ambíguo e Para obviar o surgimento destes problemas
enganador, tendo em conta diversos estudos tem-se procurado reduzir as taxas de
epidemiológicos (Habbema et al., 2004). gravidez múltipla pela diminuição do número
de embriões a transferir para o útero.
Outro aspeto problemático, como se
referiu acima, relaciona-se com o facto A questão da linguagem e das significações
de a maior parte dos exames e testes de que gera nos atores sociais deve também
fertilidade serem feitos principalmente nos ser tida em conta. No seu estudo, Susana
56 Alguns exemplos: exames às condições útero-tubáricas e ovários; análises hormonais, exames ao sangue, exames pélvi-
cos, ecografias, laparoscopia, histeroscopia, histerosalpingosonografia e histerosalpingografia.
57 No caso de suspeita de infertilidade masculina, o teste pós-coital ou de Hübner “permite avaliar a quantidade, a vitalidade e
a morfologia dos espermatozoides ejaculados aquando de uma relação sexual” e consiste na “observação ao microscópio
do muco cervical colhido por aspiração, oito a doze horas após uma relação sexual, com abstinência prévia de 3-4 dias e
no decurso da fase pré-ovulatória do ciclo menstrual” (Teresa Santos e Mariana Ramos, 2010:58-59). Segundo as autoras,
a utilização do teste não é consensual.
0294
294 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
Propostas
Silva (2014) apresenta vários
exemplos de efeitos de género
nos discursos médicos. As “ Termos como falência da ovulação, disfunção ovulatória, obstrução
das trompas, anomalias do útero ou muco cervical desfavorável, incom‑
causas de infertilidade são petente ou hostil refletem a forma como as causas associadas às mulhe-
frequentemente descritas de res são construídas como uma afeção física descrita de modo mais forte
modo diferenciado, conforme e negativo do que a dos homens, uma vez que os termos usados para
se apliquem a mulheres ou classificar as causas masculinas recorrem a conceitos menos conclusivos
a homens, embora sejam de como sejam a diminuição do número de espermatozoides, espermatozoi‑
percentagem quase idêntica.
des com mobilidade reduzida ou motilidade lenta. ”
Os homens são descritos Susana Silva, 2014:40-41
abaixo da média. As mulheres
têm problemas e/ou anomalias,
falham e são inadequadas, infertilidade, considerando-os das famílias e das mulheres,
representações que dão “inexplicados” ou de homens e crianças, permanece
prevalência à sua função “causa desconhecida”. uma questão a exigir olhares
Raramente se atribui
reprodutiva (ver texto em caixa). atentos, devido à sua
relevância ao facto de complexidade e aos múltiplos
Nos casos em que pode haver fatores envolvidos. O facto de
fatores psicológicos,
necessidade de cancelar o as TRA serem percecionadas
ciclo de tratamentos por falta sociais e culturais como “tecnologias da
ou excesso de resposta dos estarem implicados esperança” tende a diminuir
ovários, a linguagem geralmente com causas biológicas. a reflexibilidade sobre os
usada para descrever estas O excesso de mediação seus potenciais efeitos não
situações associa a “falha” desejáveis, sendo certo que
tecnológica tende
dos tratamentos à qualidade é a partir da problematização
a fechar o campo que podem emergir soluções
dos óvulos e do útero. Por
outro lado, a infertilidade problemático e capazes de minimizar possíveis
masculina é muitas vezes epistemológico. danos. Nesse sentido, o
percecionada como consenso que se tem vindo
dependente das propriedades As intervenções biomédicas a desenvolver quanto aos
do corpo da mulher. no casal são, na prática, princípios de segurança,
Atendendo ao lugar central transferidas para o corpo da eficácia e qualidade que
que a mulher ocupa nestes mulher, o que, em caso de devem nortear a avaliação
tratamentos, os discursos insucesso das TRA, pode gerar das TRA, aconselha maior
produzidos podem reforçar sentimentos de culpabilização escrutínio e participação
o sentido de inadequação e e de subjetivação da cidadã. Em consequência, a
culpabilização pela situação responsabilidade, para além adoção de uma perspetiva
vivida de infertilidade. do desapontamento no casal. de género na investigação
científica e nas práticas clínicas
Em cerca de 10% dos casos Devido a este conjunto de e laboratoriais utilizadas na
que recorrem à reprodução incertezas e resultados, a reprodução assistida, incentiva
assistida não se identifica uma avaliação rigorosa do sucesso a opção por tecnologias
explicação biológica para a e impacto das TRA na vida amigas das e dos pacientes.
Propostas
Os estudos feministas têm alertado para dos significados que lhe atribuem. Diversos
os efeitos negativos que o diagnóstico de estudos (Susana Silva, 2014; Charis
infertilidade e o recurso às TRA podem ter na Thompson, 2005), alertaram ainda para
autoperceção das mulheres. A medicalização a tensão ético-política emergente entre
da fertilidade – que pode ou não ser bem- os direitos das mulheres que desejam
sucedida – afeta a relação com o corpo, a ser mães e os direitos de embriões e
sexualidade e a conjugalidade. Por outro lado, potenciais fetos (ver texto em caixa).
os discursos e as expectativas sociais põem
em jogo representações sobre a maternidade Transpor estas controvérsias exige equacionar
e a parentalidade que são frequentemente as múltiplas influências que se geram entre o
normativas. Todo este processo tem vindo campo científico e tecnológico e as dinâmicas
a suscitar a importância das experiências sociais, procurando soluções que respeitem
subjetivas das mulheres e homens implicados a diversidade de projetos de vida e se
na reprodução assistida e a compreensão comprometam com a equidade de género.
0296
296 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
Documentos de Apoio
Anexo 1
Guião de Pesquisa
Materiais de Apoio
Anexo 2
0298
298 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
Materiais de Apoio
58 Maria do Mar Gago (2009:210) refere que Mathilde Bensaúde foi a primeira cientista portuguesa a publicar um trabalho “original”
em genética. Uma biografia mais extensa pode ser consultada no site da Associação Portuguesa das Mulheres Cientistas –
http://www.amonet.pt/ (acedido em 22/7/2017).
59 Ver biografia mais completa em Guida Carvalho (1998), in António Nóvoa [dir.] Dicionário de Educadores Portugueses, Porto,
Asa, pp. 1120-1123.
Materiais de Apoio
Anexo 3
Algumas mulheres cientistas que se destacaram em
Biologia e História da Ciência (séculos XIX a XXI)
0300
300 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
Materiais de Apoio
Anexo 4
Alguns exemplos de mulheres cientistas portuguesas
premiadas e com projetos de investigação em áreas da
Biologia, Saúde, Ambiente e Comunicação de Ciência
Prémio FLAD
Ana Cristina Rego
Life Science
Centro de Neurociências e
2020 – Fundação Doença neurodegenerativa de Huntington.
Biologia Celular da Universidade
Luso-Americana para o
de Coimbra
Desenvolvimento, 2015
Medalhas de Honra
Raquel Ferreira Novas vias de tratamento
L’Oréal Portugal
Centro de Investigação do AVC e outras doenças
para as Mulheres na
das Ciências da Saúde da vasculares com nanopartículas
Ciência, 11ª Edição,
Universidade da Beira Interior contendo ácido retinóico.
2015
Materiais de Apoio
Prémio Terre de
Milene Matos
Femmes, Biodiversidade para todos,
Departamento de Biologia da
Fundação Yves Mata Nacional do Buçaco.
Universidade de Aveiro
Rocher, 2015
“Award of
International
Excellence” no
International Film
Festival Environment,
Health and Culture
(Indonesia), 2015 Comunicação de ciência
XV Concurso “A História de um erro”, documentário
Joana Barros
Internacional Ciencia sobre a Paramiloidose, 2013, 61’ –
Associação Viver a Ciência
en Acción http://ahistoriadeumerro.pt/ (acedido
1.º Prémio para em 22/7/2017)
Trabalhos de
Divulgação
Científica – Meios de
Comunicação (Prémio
UGR, Universidade de
Granada), 2014
OBS: Dados recolhidos nas páginas web da Associação Portuguesa das Mulheres Cientistas - http://www.amonet.
pt/ ; da publicação online Ciência Hoje, do Prémio Pessoa - http://expresso.sapo.pt/cultura/2015-12-11-Lista-de-
vencedores-do-Premio-Pessoa e https://pt.wikipedia.org/wiki/Prémio_Pessoa ; da Sociedade das Ciências Médicas de
Lisboa – http://scmed.pt/index.php/premios-da-scml e jornal Público (acedidos em 22/7/2017).
0302
302 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
Recursos
Mulheres e Ciência 60
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60 Acedidos em 22/7/2017.
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Reprodução e Manipulação
da Fertilidade 61
Medicamente Assistida
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61 Acedidos em 22/7/2017.
0304
304 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
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308 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
0310
310 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reflexões sobre a Educação Física na ótica de Género l
8.
* A autora agradece o convite que lhe foi endereçado, em finais de 2014, para participar
nesta obra, tendo finalizado este texto e respetivas propostas em agosto de 2015.
0312
312 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reflexões sobre a Educação Física na ótica de Género l
8.1.
A
disciplina de EF permanentemente luta
pela afirmação da sua legitimidade, Ver, a este propósito, o subcapítulo “De que
sendo consensual o valor falamos quando falamos de género?” do
educativo do desporto, expressão capítulo “Género e Cidadania”, deste Guião.
cultural relevante na nossa sociedade com
impacte diverso na vida de cada pessoa. Se o corpo é personagem no desporto de
Caracteriza-se por ser uma disciplina na qual algum modo interferirá na produção de género,
se educa pelo corpo. As práticas corporais são facto que remete para a teorização e discussão
as atividades, exclusivas destas aulas, através construcionista1 (Becky Francis, 2012), ancorada
das quais se supõe ensinar e fazer aprender nas ciências sociais, de corpos sexuados e
valores, conhecimentos e competências. comportamentos de género.
1 O conceito de construcionismo amplia o de construtivismo. Embora não nos afigure relevante aqui a diferenciação na utilização
destes dois conceitos, de notar que o construcionismo dá particular destaque a construções particulares do indivíduo que são
externas e partilhadas. “We understand ‘constructionism’ as including, but going beyond, what Piaget would call ‘constructivism’.
(...) This leads us to a model using a cycle of internalization of what is outside, then externalization of what is inside and so on”
(Papert, 1990: 3)
0314
314 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reflexões sobre a Educação Física na ótica de Género l
2 Considerando a flexibilização do currículo e as orientações metodológicas expressas no atual programa de EF para os cursos
do ensino secundário.
0316
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reflexões sobre a Educação Física na ótica de Género l
0318
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reflexões sobre a Educação Física na ótica de Género l
8.2.
O programa e as
decisões curriculares
O
programa da disciplina de dimensões técnica, organizativa e ecológica),
EF para o 10º, 11º e 12º ano e (4) os jogos tradicionais e populares.
(cursos científico-humanísticos
e tecnológicos), homologado Na definição da extensão da EF são
em 2001, persegue um plano curricular apresentadas as subáreas em cada tipo de
baseado numa conceção de EF centrada atividade e as matérias. As primeiras, atividades
no “valor educativo da atividade física físicas desportivas, incluem os jogos desportivos
eclética, pedagogicamente orientada para o coletivos (com 8 modalidades), a ginástica (com
desenvolvimento multilateral e harmonioso do 4 modalidades), o atletismo (com 3 modalidades),
aluno” (p.6), e concretizada na apropriação as raquetas (com 3 modalidades), as de
de habilidades e conhecimentos, na elevação combate (com 2 modalidades), a patinagem
de capacidades e na formação das aptidões, (com 3 modalidades) e a natação. As atividades
atitudes e valores, por uma “atividade física rítmicas e expressivas apresentam a dança
adequada – intensa, saudável, gratificante e moderna, as danças tradicionais portuguesas,
culturalmente significativa” (p.6) as danças sociais e a aeróbica. Nas atividades
de exploração da natureza são exemplos a
As finalidades do programa, para além da orientação, o montanhismo/escalada, a vela e
valorização da aptidão física e da compreensão a canoagem. Os jogos tradicionais e populares
da cultura desportiva, pretende “reforçar incluem os infantis e outros.
o gosto pela prática regular das atividades
físicas” e “assegurar o aperfeiçoamento Se o programa para o 10º ano propõe uma
dos jovens nas actividades físicas da sua “revisão” de matérias3, para o 11º e 12º admite
preferência, (…) considerando nesse conjunto um regime condicionado de opções que tem
[de matérias] os diferentes tipos de actividades que contemplar duas modalidades de Jogos
físicas” p.10. Os ‘tipos’ de atividades que o Desportivos Coletivos, uma da Ginástica ou uma
programa considera são as atividades físicas do Atletismo, a Dança e duas das restantes
(1) desportivas (considerando as dimensões (raquetas, combate, natação patinagem,
técnica, táctica, regulamentar e organizativa), atividades dos exploração da natureza, etc…).
(2) as expressivas, dança (com as dimensões Assim, são designadas de matérias nucleares os
técnica, de composição e interpretação), jogos desportivos coletivos, a dança, a ginástica
(3) as de exploração da natureza (nas e o atletismo (sendo obrigatória só uma destas
3 No sentido de dar “oportunidades acrescentadas de recuperação, redescoberta e/ou aperfeiçoamento em matérias em que,
anteriormente, os alunos tenham revelado mais dificuldades (devidas à sua motivação, crescimento, etc.) ou que as escolas dos
2º e 3º ciclos não tenham podido desenvolver”.
0320
320 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reflexões sobre a Educação Física na ótica de Género l
8.3.
A
investigação vem demonstrando Qualquer plano deve ter como ponto de partida
que ao incluir as vozes de alunas uma avaliação de onde alunas e alunos estão,
e alunos em reformas escolares e não onde se espera que estejam por analogia
e em adaptações curriculares às iguais oportunidades e ao igual tratamento
aumenta o envolvimento, a capacitação e a proporcionado nas aulas para alunos e alunas.
aprendizagem de estudantes. Aqui pretende-se Só desta forma será possível promover a
uma centralização na/o aluna/o, a vontade adoção de hábitos para uma vida ativa dentro
e complacência de saber ouvi-los/as, e fora da escola, a uma prática para além do
particularmente saber ouvir as raparigas, e seu tempo escolar de AFD de modo relevante
intencionalmente procurar saber de que modo e significativo.
as práticas pedagógicas estão a influenciar as
suas habilidades motoras e o seu envolvimento A focalização na/o aluna/o releva
de forma prazenteira com as práticas físicas que não há uma só forma de se ser
e desportivas (Programa de Educação Física,
fisicamente ativa/o, tal como não
ver pontos 2.4.1. Condições de aplicação dos
programas e de desenvolvimento da educação falamos em ‘aluno’ mas em alunas e
física e 2.4.3.1. Princípios de elaboração do alunos, pelo que é preciso considerar
plano de turma). a diversidade de atividades que vão
ao encontro das necessidades e dos
desejos de cada uma e de cada um.
Programa de Educação Física
10º, 11º e 12º anos E as escolhas poderão ser contrastantes,
dado que, por exemplo, umas alunas podem
2.4.3.1. Princípios de elaboração
escolher AFD convencionalmente entendidas
do plano de turma
de enaltecimento da sua feminilidade e outras
preferirem práticas de AFD que, numa visão
“O professor deverá explicitar os patriarcal, são desadequadas para as raparigas
objetivos aos seus alunos, negociando e colocam em risco a sua feminilidade.
com eles níveis de desempenho para
determinados prazos, na interpretação Não podemos como docentes ter expectativas
prática das competências prioritárias.” marcadas pelo género, considerando que
atividades que solicitem mais a cooperação,
João Jacinto 2001: 27
com menos competição e com grupos
segregados por sexo facilitarão o envolvimento
4 Sobre este assunto consultar: Pfister G, Fasting K, Scraton S, . (1999) “Women and football – a contradiction? The beginnings
of women’s football in four European countries” in The European Sports History Review 1: 1–26.
5 Consultar sobre este assunto o artigo sobre os Manuais Escolares de Educação Física:
http://erte.dge.mec.pt/files/@crie/1220024709_10_SACAUSEF_III_83a91.pdf e os Recursos Educativos Digitais: http://erte.
dge.mec.pt/files/@crie/1331136327_Sacausef8_desporto.pdf
6 Para mais informação consultar o livro publicado pela CIG, “Desporto na Escola. Educando para a Igualdade”,(APMD, 2009).
Disponível em http://www.igualdade.gov.pt/IMAGES/STORIES/DOCUMENTOS/DOCUMENTACAO/PUBLICACOES/MIO-
LO_DESPORTO_NA_ESCOLA.PDF
0322
322 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reflexões sobre a Educação Física na ótica de Género l
“Esta indicação deve ser entendida como uma medida operacional, deliberada
pelo Departamento de Educação Física, numa perspetiva estratégica
de aumento da quantidade de prática qualitativamente adequada às
características dos alunos, pelo reforço do ensino em equipa e formação
recíproca, e, principalmente, para promover a realização de objetivos
do domínio social, pela novidade introduzida na mudança de parceiros
ou adversários e consequente adaptação do comportamento individual,
quando for julgado oportuno e conveniente pelos professores.”
8.4.
O caso particular
das raparigas na EF
A
s questões de género no âmbito a escola deve possibilitar às crianças, desde
das práticas físicas e desportivas os seus primeiros anos de escolaridade, uma
continuam a ser um problema prática física e desportiva pedagogicamente
complexo e multifacetado. orientada não subordinada a padrões culturais
A situação particular da menor participação que empobrecem os seus reportórios motores.
das raparigas nas aulas de EF e nas práticas Correr, saltar, pontapear uma bola e dançar são,
desportivas tem sido objeto de estudo e de entre outras, habilidades motoras fundamentais
múltiplas intervenções por programas de no desenvolvimento de qualquer criança, não
ação. Considerando a nossa possibilidade de podendo o atributo sexual determinar o que
decisão e atuação como docentes, destacamos a criança deve ou não deve fazer. As meninas
alguns fatores que têm de ser considerados se podem e devem jogar com bola e os meninos
pretendemos que as raparigas usufruam em podem e devem dançar. Só preconceitos
pleno dos benefícios de uma prática física e de cariz cultural inviabilizam as crianças de
desportiva: desenvolverem o gosto por tais práticas motoras.
0324
324 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reflexões sobre a Educação Física na ótica de Género l
• As raparigas, enquanto
grupo, apresentam
experiências diversas
“ Vimos que, na antiga Grécia, havia a tradição das mulheres praticarem
luta. Pois bem, apenas nos Jogos Olímpicos de 2004 (Atenas) a Luta Livre
relativamente a situações foi disciplina olímpica feminina; ou seja, foram precisos qualquer coisa
de desigualdade e como 3.000 anos para que isto acontecesse. ”
de discriminação. Isabel Cruz et al., 2013: 83.
As perceções de
desigualdade em
relação ao grupo de raparigas se envolvam nas e sentem os seus corpos e
rapazes são de vários atividades da EF. É crucial dar como vêm os corpos dos
níveis pelo que as iniciativas oportunidade às raparigas para outros, em que elas possam
a propor não podem partir analisarem os seus processos identificar e criticar itens da
de uma generalização de incorporação e de como cultura física e desportiva
para determinado grupo, estes se relacionam com o que condicionaram as formas
mas respeitar as diferentes prazer de participar em AFD, como os corpos femininos
perspetivas de desigualdade para que a EF se constitua e feminizados foram sendo
no plano de atuação de de sentido para as raparigas, construídos segundo a ordem
modo a promover efetivas e como referem as autoras de género. Estas oportunidades
sustentáveis mudanças em Jennifer Fisette (2012) e Paula permitirão simultaneamente
cada uma das raparigas. Silva e colegas (2008). Desta que as raparigas identifiquem
forma é preciso criar situações e descrevam os fatores que as
• Os projetos curriculares que permitam às raparigas impedem de fruir das práticas
de EF, que tendem para analisarem como pensam de AFD, de nelas participarem
uma centralização na
aquisição de competências
desportivas, sustentados Programa de Educação Física
no modelo tradicional de 10º, 11º e 12º anos
ensino de múltiplas atividades 2.2.
desportivas num curto período Objetivos Gerais, objetivo das áreas obrigatórias
de tempo, expressam uma
abordagem curricular “Interpretar crítica e corretamente os
para “o aluno médio” acontecimentos no universo das atividades
frequentemente físicas, interpretando a sua prática e respetivas
condições como fatores de elevação cultural
criticada, ‘de tamanho
dos praticantes e da comunidade em geral.”
único’, frequentemente
criticada e percebida como João Jacinto, 2001: 14
sexista, o que, só por si,
constitui uma barreira à
participação das raparigas.
Vários estudos, como os “ Não é o desporto em si que cria constrangimentos às experiências de
muitas raparigas e também de rapazes, mas sim a matriz tradicional do
de Laura Azzarito e Melinda
Solmon (2006) e Robyne desporto, conotada com um tipo (único) de masculinidade, que limita
experiências, desmotiva, não responde a necessidades e a expectativas
Garrett (2004), reforçam a ideia
de que uma AFD significativa
diversas. ”
é condição necessária, mas Paula Botelho-Gomes et al., 2008: 117.
não suficiente, para que as
7 Consultar o Projeto “Despertar para a Igualdade, Mais Desporto na Escola” que apresenta atividades diversas realizadas em
escolas nacionais: http://www.mulheresdesporto.org.pt/web/images/stories/pdf/publicacoes/Manual_Despertar_para_a_Igual-
dade_Mais_Desporto_na_Escola.pdf e o projetoespanhol “Guia PAFIC para la promoción de la Actividad Física en Chicas”:
http://www.csd.gob.es/csd/estaticos/myd/CarreraMujer/GUIA_PAFiC.pdf
8 Ver a este respeito os objetivos e resultados do Projeto Treinadoras: dirigir outros desafios: http://www.mulheresdesporto.org.
pt/web/images/stories/pdf/publicacoes/APMD_2010_Treinadoras_dirigir_outros_desafios.pdf
0326
326 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reflexões sobre a Educação Física na ótica de Género l
8.5.
Contrariar o ambiente
homofóbico nas AFD
A
mais importante que a própria orientação sexual
sistemática ausência deste tema
da pessoa, como salientam, entre outras/
afigura-se como uma censura
os, Laura Grindstaff e Emily West (2011).
implícita, por referir-se a operações
subentendidas de poder que
Nas práticas desportivas na escola a homofobia
determinam de forma tácita o que será omisso, está bem presente e constitui uma forte
como sublinham Judith Butler (1997) e Guacira L. ferramenta para que jovens aprendam a como
Louro (2002). Com efeito, constitui uma forma de desenvolver e continuamente evidenciar a sua
poder pelo discurso circunscrevendo o que pode masculinidade e a sua feminilidade. Subjazem
ser dito, silenciando a diversidade sexual, repleto entendimentos binários – masculinidade e
de significação na legitimação da norma e da feminilidade –, a masculinidade associada ao
atribuição do desviante e indesejado. racional, à força e à ação, e a feminilidade
relacionada com a emoção, o frágil e o passivo.
Numa cultura escolar regida pela A prática desportiva sempre integrou, numa visão
heteronormatividade9, num típico ambiente de masculinidade hegemónica, a listagem de
homofóbico, a heterossexualidade nunca é comportamentos imprescindíveis no processo de
questionada, pelo que, por exemplo, a simples construção do ‘ser homem’, mas não a prática
suspeita da sua ausência em algum rapaz de qualquer modalidade desportiva. Deve ser a
despromove esse jovem na hierarquia masculina. prática de um desporto que fortaleça os corpos,
No entanto é preciso reconhecer, conforme desenvolva a coragem e a audácia, desperte a
nos sugerem vários estudos, como os de Eric agressividade e enalteça as concretizações e
Anderson (2008) e Mark MacCormack (2011), a vitória. Traços ambíguos destas construções
9 O conceito de heteronormatividade foi concebido no início da na década de 90 por Michael Warner para descrever a norma
universal relativa à sexualidade como a heterossexual colocando todos os outros discursos relativos à orientação sexual como
desviantes.
10 Partindo do pressuposto que as pessoas que desenvolvem gestos corporais socialmente impostos como adequados ao seu
sexo cumprem a norma social de ser heterossexual, pelo que as pessoas que apresentam outros padrões de movimentos e
formas corporais, entendidas socialmente como não adequadas ao seu sexo, recai um julgamento social sobre a sua suposta
orientação sexual.
0328
328 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reflexões sobre a Educação Física na ótica de Género l
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0330
330 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
9.
* A autora agradece o convite que lhe foi endereçado, em finais de 2014, para participar
nesta obra, tendo finalizado este texto e respetivas propostas em agosto de 2015.
0332
332 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
9.1.
Consideraçõe Prévias
C
omo é que um objeto de estudo passem a ter consciência destas questões nos
foi abordado num determinado modos como apreendem e analisam o mundo
tempo e espaço? Como é que o que os rodeia e, neste caso específico, a história
critério da "qualidade" serviu, tantas da cultura e das artes. No discurso que fez na
vezes, para desclassificar ou ignorar a obra de homenagem que lhe foi feita no Congresso da
mulheres artistas, escritoras, músicas e autoras, Associação de história de arte norte-americana
em geral? Como é que a forma como se olha (CAA), em 2007, a historiadora da arte norte-
e se escreve sobre algo é indissociável do seu americana Linda Nochlin, afirmou que a história
contexto histórico? Como é que uma área das não é aquilo que se passa num outro lugar e num
ciências sociais e humanas – a história da arte outro tempo, mas também aquilo que vivemos
e a história da cultura, em geral – estudou, todos os dias. Nesta fase da educação, o corpo
pensou e abordou as mulheres, quer no sentido docente pode ter um papel especialmente
alargado, quer na sua individualidade, enquanto relevante na formação de uma consciência de
produtoras e criadoras de cultura? Fazer cidadania: a consciência de que todas e todos
perguntas, questionar, interrogar aquilo que nos podem ser agentes de mudança e participar, com
rodeia e que, tantas vezes, nos é apresentado os seus gestos, pensamentos e decisões numa
como "natural" ou inquestionável, é um cidadania ativa.
0334
334 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
9.1.1
F
oi no século XIX que se consolidou 1992 e 1982), Katy Deepwell (1995), Gen Doy
a história da arte enquanto área do (1988), Amelia Jones (2002), Marsha Meskimmon
saber que estuda as manifestações (2003), Griselda Pollock (1996), Roszsika Parker
artísticas do passado, definindo e Griselda Pollock (1981) e Gill Perry (1999).
aquilo que se considera digno de ser valorizado.
Desta formação de uma história da arte europeia, Até ao século XVIII, antes do desenvolvimento da
com raízes em textos como o de Giorgio Vasari vertente de ensino no interior das academias de
no século XVI com as suas Vidas de Artistas, arte, a aprendizagem artística era levada a cabo em
é indissociável a consolidação de uma série ateliers de artistas, mais ou menos organizados,
de conceitos que se tornaram intrínsecos à numa conjuntura onde os laços familiares e
própria disciplina: a qualidade, a originalidade, a as relações pessoais eram determinantes na
genialidade, a sucessão cronológica de estilos formação. Mesmo num período de redefinição
e movimentos, as hierarquias de formatos do estatuto do artista em direção a uma maior
e materiais ou as geografias artísticas. individualização, a relação com o mestre ou os
mestres era parte intrínseca do seu percurso.
A estes conceitos, poderíamos acrescentar aquele
que estava implícito em todos eles – tão presente
Tendo em conta as limitações aos
que nem precisava de ser nomeado –, o da
masculinidade da criação artística. As mulheres
movimentos físicos das mulheres e
que criavam constituíam a exceção à norma. à sua educação, era necessária uma
conjuntura muito favorável para que
As questões que se começaram a colocar a um os seus eventuais talentos fossem
grupo, restrito, de historiadoras da arte, sobretudo identificados. Assim, não é por acaso
norte-americanas e britânicas na década de que a maioria das mulheres artistas
1970, devem ser vistas num contexto mais dos séculos XVI a XVIII, fossem filhas
alargado de crítica aos saberes estabelecidos. de artistas ou de pais especialmente
Esta crítica – reflexo de profundas mutações empenhados na sua educação.
sociais e políticas onde o feminismo passou a
ocupar um lugar central – obrigou a um repensar
irreversível da formulação do conhecimento Foi assim com Josefa de Óbidos, mas também
e implicou a sua transformação nas últimas já no século XX com Helena Almeida, filha do
décadas (Pollock, 1996; 1988). Diversos escultor Leopoldo de Almeida, tal como com
estudos têm abordado esta problemática, Paula Rego, não filha de artista, mas com um pai
salientando-se os de Rosemary Bettencourt empenhado na sua educação e na sua ida para a
(1996), Norma Broude e Mary Garrard (2005, Slade School of Arts, em Londres.
0336
336 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
9.1.2
Bolonha, Itália:
cidade de mulheres
L
avinia Fontana (1552-1614) surge
como um dos principais nomes na
genealogia de mulheres artistas
bolonhesas, quase um século antes
do nascimento da pintora portuguesa Josefa
de Óbidos. Mais uma filha de artista, tal como
Josefa, que constrói uma carreira profissional
de grande sucesso e produtividade (além
de ter tido onze filhos). Prospero Fontana
detetou desde cedo o “grande génio para
a pintura” demonstrado pela filha e, em vez
de a incentivar aos “exercícios humildes aos
quais, quase sempre, e desde a mais tenra
idade, é condenado aquele sexo”, fez com
que ela “se dedicasse ao estudo do desenho,
no qual teve tal proveito que se tornou numa
excelente pintora, rica de aplausos e de fama”
(BALDINUCCI, 1846, vol. III: 369).
“ Mas eu sei que, não só não é algo impossível, nem algo realmente novo, que o talento de uma
mulher, se bem cultivado, se torne maravilhoso em qualquer faculdade [desde que] seja posto
em liberdade e se aplique aos bons estudos [livre das] exigências humildes [a que as mulheres
”
estão sujeitas]. (1681-1728)
0338
338 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
É necessário ter em conta que, no interior das como também as definia enquanto objeto
hierarquias de géneros artísticos, o retrato privilegiado de si próprias. O espaço da
ocupava um lugar inferior em relação, por arte no feminino via assim as suas fronteiras
exemplo, à pintura religiosa ou de história. codificadas, reproduzindo os outros limites
sociais e culturais que faziam parte do
No século XIV, Giovanni Boccaccio, apesar facto de se ser mulher. Lavinia Fontana e,
de considerar que a arte era algo alheio sobretudo, Sofonisba Anguissola poderiam
à mente de uma mulher e que o talento ser exemplificativas desta tendência para
necessário para a prática artística era muito o retrato no feminino, tendência esta que
raro entre elas, recomendou às artistas que era reforçada pelas próprias encomendas
se dedicassem sobretudo a retratarem-se de mecenas no contexto do colecionismo
a si próprias e a outras mulheres. pictórico. Interessados em possuírem o seu
retrato pintado por uma mulher ou o auto-
A sua recomendação não só remetia as retrato da própria artista, os colecionadores
mulheres para um espaço privado, alheio a também favoreciam esta especialização.
um contexto artístico mais alargado e público,
9.1.3.
E
m 1971, foi publicado o muito citado No seu entender, tal como tudo aquilo que é
artigo de Linda Nochlin, “Why have comum é considerado natural, a sujeição das
there been no great women artists?” mulheres, enquanto costume universal, também
"Porque é que não existiram grandes era “naturalizada”. Qualquer alteração a esta
mulheres artistas?", o primeiro sobre um tema norma surgia, assim, como pouco natural.
que marcará o longo e profícuo percurso Para o político e ensaísta, uma ordem social
académico da historiadora da arte norte- só seria possível quando se pusesse fim aos
-americana. Foi publicado pela primeira vez na privilégios do domínio masculino, algo de que
revista ARTnews, em janeiro de 1971. A viver num dificilmente os homens quereriam abdicar.
período de grande atividade e debate feminista Ao transportar as palavras de Stuart Mill para
no âmbito social e político, Nochlin propôs que a história da arte, Nochlin deparou-se com a
esta perspetiva fosse também usada para força da categoria de “génio masculino” na
construção da disciplina, criada a partir do
repensar as bases intelectuais e ideológicas das
ponto de vista do homem branco ocidental
várias disciplinas intelectuais ou académicas.
(Penelope Davies et.al., 2010)..
Este apelo à autorreflexão e à autoconsciência
À pergunta “Porque é que não existiram
deve ser inserido no contexto histórico
grandes mulheres artistas?”, Nochlin começou
daquela década, onde muitas outras vozes
por apresentar as respostas possíveis: uma
levaram a um repensar das estruturas de
possível reação feminista seria contrariar a
pensamento e da própria linguagem das pergunta apresentando uma sucessão de casos
ciências sociais e humanas. A teoria feminista de “grandes mulheres artistas”, ou seja, um
contribuiu decisivamente para este processo exercício semelhante ao realizado por qualquer
de desconstrução disciplinar, quer de forma historiador empenhado em defender o interesse
direta, inserindo a perspetiva das mulheres e a centralidade do objeto escolhido, por muito
em todas as vertentes do pensamento, secundário que possa parecer. Porém, como
quer de forma indireta, ao fornecer a outras alerta Linda Nochlin, este tipo de resposta não
disciplinas exemplos das perguntas possíveis. só não responde à pergunta, como reforça os
seus pressupostos.
Em 1869, no seu ensaio The Subjection
Uma outra resposta possível, que a historiadora
of Women, John Stuart Mill já chamara
da arte também critica, seria defender um
a atenção para a necessidade de estilo feminino que, sendo diferente, não
questionar aquilo que é natural e, deveria ser analisado segundo os mesmos
portanto, tende a ser inquestionável. critérios do masculino. Utilizando inúmeros
0340
340 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
mulheres nas escolas ou De facto, não é por acaso acerca das condições de
ateliers, quer por aqueles que, desde o século XIII e produção do próprio objeto
que consideravam que o até recentemente, a tipologia artístico. Uma das propostas
desenvolvimento artístico das de mulher-artista-filha-de- da historiadora da arte britânica
mulheres, assim como a sua pai-artista, ou então filha Griselda Pollock consistiu em
profissionalização, estavam de um pai especialmente reescrever as perguntas que
dependentes do acesso ao empenhado na sua educação, a história da arte faz ao seu
estudo do nu. Foram várias tenha assumido um padrão objeto de estudo. Se a história
as escolas de belas-artes que tão persistente, como é aliás da arte soube construir uma
citaram a questão do nu como visível em vários exemplos contradição entre ser mulher
razão para não aceitarem portugueses, de Josefa de e ser artista, a partir de que
mulheres entre os seus alunos, Óbidos, de Helena Almeida instrumentos teóricos é que a
enquanto outras escolas ou de Paula Rego. Como força desta dicotomia poderia
privadas, como a Académie também não é por acaso, ser desafiada? Descobrir e
Julian parisiense, fizeram sempre segundo Nochlin, revelar mulheres artistas do
do modelo desnudo para que, ao longo dos séculos, passado não era suficiente.
mulheres artistas precisamente existam tão poucos artistas, Havia que questionar as próprias
a sua mais-valia em relação à mulheres ou homens, entre a categorias de pensamento sobre
principal escola de belas-artes aristocracia, embora tenham as quais assentava a disciplina.
da cidade. sido tantos os aristocratas A definição de categorias como
que desempenharam a qualidade, a originalidade ou a
Além de apontar os entraves papéis fundamentais sucessão cronológica de génios
à criatividade feminina, Nochlin no encorajamento e na deveria ser posta em causa.
também chama a atenção para concretização da prática
a inexistência de condições artística. Outro dos obstáculos A indiana Gayatri Chakrabarty
favoráveis à descoberta discutidos por Nochlin é o da Spivak afirmou algo parecido
da vocação artística das identificação da mulher pintora a propósito das mulheres
mulheres. A análise do com a pintora-amadora, indianas “subalternas”. Existe,
papel da educação artística que tem no desenho ou na hoje, um projeto histórico para
no desenvolvimento do pintura, uma das marcas “recuperar as histórias daqueles
talento e na identificação da sua distinção social. que, tradicionalmente, foram
dos fatores que levam a que ignorados – mulheres, operários,
um objeto seja considerado Todas estas questões resultam camponeses, e minorias”, e
“arte” e uma pessoa seja de uma mudança do ponto Spivak não questiona que esta
considerada “artista” vêm de partida onde habitualmente recuperação não deva ser feita
desmentir a ideia de que o se situava a história da arte (1985). As suas vozes devem
talento vem sempre ao de – das interrogações ao objeto ser recuperadas. O problema
cima, independentemente artístico, às interrogações é que o próprio projeto de
das condições que o possam
favorecer. Se é certo que
uma enorme percentagem “ Se era essencial que o feminismo reinscrevesse as mulheres artistas
na história, também era necessário ter atenção ao usar aqueles mesmos
de homens artistas provém
de famílias de artistas ou do instrumentos de análise que tinham contribuído para a omissão e a
meio artístico, em relação às
negação das mulheres. ”
mulheres artistas isto é quase Deborah Cherry, 1993: 5
uma regra.
0342
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
0344
344 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
9.1.4.
Afirmação profissional e
identitária das mulheres artistas
O
s jornais e livros publicados As mulheres artistas tiveram que produzir o seu
no século XIX revelam como trabalho no contexto da ideologia hegemónica
as questões relacionadas com no século XIX, uma ideologia que, à partida,
a identidade das mulheres tornava incompatíveis as categorias de artista
artistas foram centrais aos debates de e de mulher.
temática artística, sobretudo durante as
últimas décadas do século XIX, primeiras
do XX. Durante este período, em alguns Mas, como demonstra a
países europeus e não só, dão-se diversidade de casos e trajetórias
grandes transformações no estatuto e nas durante este período, existiam
oportunidades profissionais das mulheres. muitas formas de negociar as
Isto acontece em múltiplas áreas mas também identidades artísticas das mulheres
no campo da produção literária, jornalística e e subverter as normas vigentes e
artística.Pela primeira vez, em países distintos,
em muitos países, nomeadamente
mas sobretudo em França e no Reino Unido,
em Portugal, foi cada vez maior
surgem grupos organizados de mulheres a
o número de mulheres a estudar
empreender um ativismo politizado no mundo
das artes – com meios legais ou subversivos,
pintura, e a expor publicamente
em textos escritos individualmente ou através o seu trabalho e, em geral, a
de núcleos associativos – e a tentar alterar sair da esfera privada onde já
as limitações institucionais com as quais se se praticavam várias “artes” de
deparavam por serem mulheres. Paralela modo legítimo e até encorajado.
a esta estratégia, destinada a modificar as
regras das instituições de educação artística
ou expositivas já existentes – para defender o Assim, existiam tensões entre a categoria
acesso às escolas de belas-artes, por exemplo de “pintora-amadora”, ou seja, da mulher
–, encontrava-se uma estratégia separatista que praticava as artes, no espaço privado e
– a de criar espaços alternativos só para doméstico (Figura 4, 5 e 6), sem ser artista e
mulheres. Fossem eles espaços de exposição, sem obter benefícios materiais e visibilidade
associações ou publicações. pública; e a "pintora-profissional", que pretendia
fazer da pintura uma forma de afirmação pública
Inseparáveis das inúmeras ações de afirmação e mesmo de subsistência, com tudo o que isso
das mulheres nos campos artísticos, implicava de exposição pública, da crítica de
foram as redefinições da sua identidade. arte aos espaços artísticos.
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Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
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Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
9.1.5.
O mérito da qualidade:
os “tetos de vidro” da criatividade
S
e no passado as exclusões eram
mais fáceis de identificar, no Sobre a expressão “teto de vidro”,
presente elas são mais subtis. ver o capítulo “Temas do Mundo Atual”, em
E, mesmo quando uma análise especial o sub-capítulo “Segregação sexual
as torna evidentes, é mais difícil explicá-las dos mercados de trabalho”, deste Guião.
ou encontrar razões objetivas para a sua
existência. Quais são as questões colocadas
pela contemporaneidade de um mundo onde os
artístico pode ser tão “tradicional”, ou seja,
obstáculos às práticas de desenvolvimento da
tão patriarcal, como muitas outras áreas da
produção cultural feminina são de natureza mais
sociedade.
impercetível e inconsciente? O caso de Sarah
Affonso, mulher do artista Almada Negreiros,
é paradigmático destas outras barreiras – mais Um dos principais e, muitas vezes,
invisíveis – à prática artística das mulheres. mais perversos argumentos para
A pintora pôde frequentar a Escola de justificar a desproporção persistente
Belas-Artes de Lisboa porque nenhuma
regra escrita impedia as mulheres de o fazer.
entre mulheres e homens no
Mas, nas suas memórias publicadas, descreveu mundo das artes e da literatura,
o estigma social de se ser uma rapariga a é o da qualidade.
estudar pintura. De igual modo, seguindo Maria
José Negreiros (1989), Sarah Affonso casou Indissociável desta questão é a da globalização
com um homem artista mas, já no fim da dos feminismos e da arte. Uma das transfor-
vida, admitiu como perante a impossibilidade mações do feminismo teórico, tal como foi
de ambos conjugarem as suas respetivas enunciado na década de 1970 (ou mesmo
carreiras artísticas com a vida familiar, foi ela na segunda metade do século XIX em países
que cedeu e abandonou a prática da pintura. como o Reino Unido, onde o feminismo já
teve um grande desenvolvimento teórico), é
Para contrariar uma certa tendência para que deixou de ser produzido apenas por uma
considerar o campo artístico ou literário como elite de mulheres brancas, cultas, privilegiadas
um mundo-à-parte, senão mesmo transgressivo e ocidentais para multiplicar as suas vozes e
e questionador das normas socialmente os seus discursos: do feminismo negro norte-
vigentes, as/os docentes poderão fazer americano, misturado com a luta contra as
comparações com outros contextos, do político discriminações raciais, ao feminismo académico
ao religioso. No que se refere ao lugar das indiano, indissociável dos desafios do pós-
mulheres e aos equilíbrios de género, o campo colonialismo e das desigualdades sociais,
ou aos feminismos teóricos com outros lugares do mundo, Como já Virgínia Woolf
e ativistas enunciados por mesmo que o façam no afirmou na conferência
mulheres provenientes de contexto de uma assimetria que proferiu, em 1928, no
múltiplos contextos nacionais de poderes, como no caso Girton College (primeira
e religiosos, também daqueles das relações coloniais entre universidade para mulheres,
países mais pobres e com mais Portugal e o Brasil no século criada em Cambridge, na
desigualdades ao nível dos XVIII, ou Portugal e a Índia, a altura em que estas eram
direitos humanos. partir do século XVI. impedidas de estudar na
tradicional universidade
Este fenómeno, que começou A produção artística e criativa da cidade), quantas
por afetar o feminismo não pode ser compreendida “irmãs de Shakespeare”
enquanto instrumento de fora do seu contexto histórico- não terão existido ao
reflexão sobre o passado -cultural. Tão importante longo da história que, não
ou o presente, também tem como analisar a componente tendo tido as mesmas
influenciado as abordagens de género na produção de oportunidades educativas
da história da cultura e das um trabalho artístico – por que os seus irmãos, não
artes, hoje muito mais atenta exemplo, como é que o puderam desenvolver a sua
àquilo que se passa para lá das percurso e a obra de uma criatividade, o seu trabalho e
fronteiras onde foram definidas pintora do século XVII foram o seu talento?
as “belas-artes” e a "cultura" determinados pelo facto de
europeias. Embora o programa ela ser mulher – é fazê-lo em Uma perspetiva de género
do ensino secundário se relação à forma como esse em relação à história cultural
centre numa cultura europeia, trabalho foi avaliado quer no não implica, no entanto,
alguns dos seus temas incluem momento da sua produção, considerar que o trabalho
relações culturais e artísticas quer pela historiografia produzido por mulheres
0350
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
tenha características próprias, como tem sido de caso do programa), tal como alguns homens
muito discutido também na teoria da literatura. utilizam a sua experiência enquanto homens
Embora existam diferentes posições, pensamos (Julião Sarmento, por exemplo). Outros artistas,
que faz mais sentido inverter a questão: não pelo contrário, de ambos os sexos, não fazem da
se trata de identificar uma “arte feminina” ou sua identidade sexual matéria do seu trabalho.
uma “escrita feminina”, até porque, como o tem Em Vieira da Silva, por exemplo, como em
demonstrado uma história crítica, das artes e muitos outros artistas, essa experiência não se
da literatura, isso serviu, quase sempre, para traduz explicitamente na obra de arte final.
menorizar a produção de mulheres frente a uma
“arte” ou a uma “escrita” que não precisava de Dos estudos sobre artistas portuguesas
afirmar o seu género porque tinha implícita a sua salientam-se os de Idalina Conde (2001 e 1996),
masculinidade. de Emilia Ferreira (2010), de Memory Holloway
(2003), de Sandra Leandro (2011) e Raquel Silva
É um facto que muitas mulheres utilizam a sua (2013; 2016), de Maria Manuel Lisboa (2003),
experiência enquanto mulheres na sua produção de Ana Gabriela Macedo (2010), de Maria João
artística (Paula Rego ou Helena Almeida, por Oliveira (2016) et al. (2006), de Ruth Rosengarfen
exemplo, como é proposto em dois estudos (2009) e de Filipa Vicente (2015; 2012).
E
m 1550, Giorgio Vasari refere mais períodos históricos, o campo artístico e a escrita
mulheres artistas do que Janson, sobre arte e cultura continuam a estar marcados
na sua história da arte publicada por discriminações sexuais. Assim, nem o
em 1979. Saiu, entretanto, nova passado é feito apenas de ausências e limites
edição revista por vários autores, em 2010, à prática artística feminina, nem o presente do
onde foram acrescentadas algumas mulheres mundo ocidental, supostamente o mais igualitário,
artistas. Este pequeno exemplo, serve também está isento de inúmeros entraves à participação
para demonstrar que esta não é uma história plena das mulheres no mundo artístico e cultural
necessariamente linear – de um passado onde e ao seu reconhecimento. Uma das principais
as mulheres não faziam parte de uma cultura diferenças é que, se até aos inícios do século
artística, para um presente, o nosso presente, XX estes entraves eram objetivos, nomeáveis,
onde esta já seria uma questão inexistente. escritos, legalizados, depois disso passaram a
estar invisibilizados por fatores mais subjetivos,
A perceção de uma sequência cronológica inconscientes, não-escritos e, muitas vezes,
é determinante para um entendimento do também não-ditos.
tempo e de uma ideia de história inscrita
temporalmente. No entanto, em relação à • Observar/contar a desproporção
história das mulheres no espaço público entre mulheres e homens em diversos
da cultura é necessário ter em conta que
campos artísticos (mas também nos
nem sempre se tratou de um movimento
progressivo de um maior fechamento para espaços de opinião da comunicação
uma maior abertura: ou seja, existem avanços social, no mundo empresarial e
e recuos num caminho em direção a uma financeiro, na política partidária ou
maior visibilidade e profissionalização das entre os dirigentes religiosos).
mulheres em várias áreas da cultura, tal como
existem – nos mesmos tempos cronológicos • Observar/discernir a ausência de
– lugares e países com muitas diferenças. mulheres nas narrativas históricas a
Ou seja, esta nem sempre é a história de um que estamos expostos: ao longo da
“progresso”, de uma crescente participação das
nossa educação formal; nas narrativas
mulheres no mundo artístico e cultural até um
presente onde imperaria a igualdade. Embora
históricas que nos são transmitidas
em muitos países a participação das mulheres de outros modos (em museus,
nas práticas e nos percursos artísticos seja livros infantis ou comemorações
hoje incomparavelmente maior do que noutros históricas).
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352 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
Propostas de actividades
A palavra “Homem”:
questionar a linguagem
T
endo em conta que a palavra
"homem" está presente ao longo do
programa de História da Cultura e
das Artes, um exercício pertinente
seria o de confrontar os próprios alunos/as
com a banalização e naturalização da palavra
"homem" e o modo como ela é utilizada
para designar o "homem" e a "mulher".
possibilidades e da Cultura
e das Arte
P
ara além dos ateliers artísticos, genealogia artística feminina foi reforçada
um espaço propício a uma prática com outros livros especialmente dedicados
artística por parte das mulheres era às mulheres artistas ou intelectuais da cidade,
o convento. De facto, a tipologia da como é caso dos de Jordana Pomeroy (2007),
freira-artista, sobretudo nos países católicos Fredrika Jacobs (1997), Vera Fortunati (2007),
europeus, apresenta indícios de vitalidade Angela Ghirardi (1998), Ann Harris (2007; 1976)
desde o século X, com iluminadoras e músicas e Raymond Bissell (1999).
como Hildegarda de Bingen (1098-1179), e
prolonga-se até ao século XVIII. Tendo em conta Além de artista, Caterina Vigri também se
que o analfabetismo feminino era generalizado, notabilizou como escritora e música; porém,
os conventos funcionavam muitas vezes como o que fez com que os seus talentos fossem
o único espaço onde as mulheres podiam descritos e a sua obra preservada foi o seu
receber uma educação básica. A tarefa de estatuto de santa. Ou seja, aquilo que ela
copiar manuscritos e, por vezes, decorá-los fez produziu funcionou muito mais como relíquia do
com que a aprendizagem elementar do desenho que como obra de arte. Neste, como noutros
e da pintura, que será divulgada ao longo do casos, a identidade religiosa sobrepôs-se a
século XVI pelo modelo educativo proposto todas as outras: canonizada em 1712, Santa
por Castiglione, estivesse já presente em Catarina de Bolonha fora objeto de um quadro
muitos conventos femininos durante o período de Marcantonio Franceschini, em finais do
medieval. século XVII, onde a sua faceta de pintora faz
parte da construção da sua iconografia como
Ainda no século XV, Bolonha conhecerá o santa – um anjo segura a tela onde surge o
caso de Caterina Vigri (1413-1463), muitas esboço de um Menino Jesus da autoria de
vezes citado como o primeiro exemplo de uma Santa Catarina vestida de freira, a molhar
uma genealogia de mulheres artistas que um pincel na paleta.
distinguirá a cidade italiana durante um longo
período. De facto, logo no século XVII, a obra No entanto, se um convento podia significar
de Carlo Cesare Malvasia (1678) contribuiu uma maior liberdade para uma mulher
para identificar Bolonha como uma cidade desenvolver os talentos que as exigências
especialmente rica de exemplos de mulheres familiares não permitiam, era também
artistas, sendo que, no século XIX, esta um espaço fechado, pouco propício à
0354
354 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
Propostas
“ A propósito da freira Plautilla Nelli (1524-1588), que vivia no convento da Piazza San Marco,
em Florença, Vasari considerou que o seu melhor trabalho era o copiado de outros, “o que de-
monstra que ela teria feito coisas maravilhosas se, tal como os homens, tivesse tido possibilidade
de estudar e praticar, devotando-se ao desenho e a retratar coisas vivas e naturais”. Como prova
desta constatação, Vasari escreveu que “os rostos e as feições das mulheres” pintadas por Nelli,
“por ter podido observá-los à vontade”, eram “muito melhores e mais próximos da verdade do
”
que as cabeças dos homens”. (1550)
Propostas
T
omar conhecimento das muitas nunca ouviram do Palácio
mulheres que se dedicaram falar nelas? (1ª metade do
profissionalmente à pintura entre século XV-1618)
• Explorar os
1500 e 1700 – Sofonisba Anguissola, problemas e Módulo 6
Lavinia Fontana, Artemisia Gentileschi ou as questões
A cultura
Elisabetta Sirani – mas sobretudo desafiar as/os do Palco
que a história
alunos a questionarem o facto de conhecerem (1618-1714)
da arte tem
tão poucas ou nenhuma: debatido desde
• Conhecem alguma mulher pintora neste que “descobriu”
período? uma série de nomes e obra de mulheres
• Ficam surpreendidos por elas existirem? pintoras, nas últimas décadas do século XX.
• Depois de saberem que existiram e de saber • Como é que estas e outras pintoras
os seus nomes, porque é que acham que conseguiram empreender percursos artísticos
de sucesso numa época em que a educação
artística não era acessível às mulheres?
• Como é que as limitações à formação, à
mobilidade ou à integração nos circuitos de
mecenato religioso afetaram os temas pintados
por mulheres ou a dimensão das suas telas?
• Como é que a escrita sobre a arte, sua
contemporânea ou nossa contemporânea,
analisou os seus trabalhos?
• Porque é que elas, nos séculos XVI e XVII,
ultrapassaram as limitações práticas, culturais
e sociais do seu sexo, mas os seus nomes não
ultrapassaram as limitações da disciplina do
saber que analisa a arte do passado, ou seja,
a história da arte?
• Porque é que apenas na década de 1970,
Figura 9. Artemisia Gentileschi, Judite e a sua
quando a teoria feminista veio influenciar
criada com a cabeça de Holofernes (pormenor)
também a história da arte, é que elas foram
c. 1613-14, óleo sobre tela, Galleria Palatina, Palazzo Pitti,
Florença, Itália. “descobertas”?
0356
356 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
Propostas
E
sperar-se-ia que as transformações não-privados do Salão
políticas que se deram na França ligados às artes, (1714-1815)
do século XVIII – a passagem à consolidação
revolucionária de uma monarquia de uma escrita
para uma república que se apresentava crítica sobre exposições e sobre arte, muitas
como mais aberta à diversidade social e à vezes divulgada através dos jornais, e, em
representatividade – beneficiassem as mulheres geral, à transferência do domínio artístico de um
artistas, abrindo-lhes portas institucionais espaço privado para um espaço mais público.
e reconhecimento paritário. Mas não foi Neste contexto de crescente visibilidade,
assim. Algumas instituições artísticas que as mulheres artistas impunham-se ao olhar de
antes aceitavam mulheres aproveitaram as um público que também alargava o espectro
reformas próprias da conjuntura política para dos seus membros.
introduzirem novas regras que excluíssem
a sua participação. Assim, quando o Entre as três artistas mais citadas para este
número de mulheres artistas começou a período, encontramos a veneziana Rosalba
aumentar, deixando de ser consideradas uma Carriera (1675-1757), a suíça Angelika
“excepção”, houve necessidade, por parte Kauffmann (1741-1807), que realizou um
de algumas instituições, de proceder à sua esboço do pintor português Francisco Vieira,
“exclusão”. O Portuense, e a francesa Elizabeth Vigée
Le Brun (1755-1842) que pintou a famosa
É preciso também ter em conta cantora de ópera portuguesa, Luísa Todi, as
três notabilizadas pelos seus exímios retratos,
que as próprias transformações
pelas suas brilhantes e profícuas carreiras
do mundo da arte que se deram internacionais e pelo seu prestígio entre
ao longo do século XVIII tornaram diferentes comunidades artísticas (Sherif, 1996).
mais visível a existência de mulheres
Em 1768, Angelica Kauffman é uma das duas
artistas, com isso provocando
mulheres que integram o grupo de artistas
reações que, anteriormente, teriam fundadores da Royal Academy of Art londrina,
permanecido no foro privado. presidida por Joshua Reynolds. Em 1772,
Johan Zoffany pinta o famoso retrato de
Referimo-nos à sempre crescente importância grupo de todos os membros fundadores da
das exposições temporárias abertas Royal Academy of Arts no ato de pintar o
ao público, à multiplicação de espaços nu masculino. Como já tem sido notado por
Propostas
várias autoras a propósito
deste quadro, as duas
mulheres que compunham
o grupo – Kauffman e Mary
Moser (1744-1819) – são
“desumanizadas” para
serem representadas como
dois quadros pintados
entre as muitas obras
de arte que adornavam
a sala. Impossibilitadas
de assumirem o papel
de observadoras de um
nu, são transformadas
em obras de arte, na
representação possível de
si próprias. Num processo
Figura 10. Elizabeth Vigée Figura 11. Capa do de dupla exclusão – da
LeBrun, Auto-retrato. Catálogo da Exposição da sala onde se expunha um
Postal com reprodução fotográfica Sociedade Nacional de Belas modelo nu e do quadro
do auto-retrato da artista que existe Artes, Lisboa, 1902. que a representava –,
na Galeria dos Uffizi, Florença, Itália,
c. 1910, col. particular. tornam-se objetos artísticos
em vez de artistas.
0358
358 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
Propostas
Mulheres enquanto
Programa
de História
da Cultura
observadoras dos novos e das Arte
U
m tema central das abordagens e, mais tarde, da Gare
feministas da história da arte tem as coloniais, os
(1814-1905)
sido do olhar, o olhar sobre as museus públicos,
mulheres e o olhar das mulheres: os jardins botânicos e
por um lado, o das mulheres enquanto zoológicos criaram novos tipos de observadores
objeto de observação e criação masculino, e espectadores onde as mulheres se
uma das tipologias mais persistentes da encontravam. As mulheres europeias de meios
representação artística ao longo da história sociais mais privilegiados também ocuparam
da arte ocidental, mas também global; por estes espaços públicos, tal como passaram a
outro, o das mulheres enquanto observadoras, fazer parte dos passageiros dos comboios, o
criadoras, elas próprias, de representações novo meio de comunicação que transformou as
da realidade. A mulher observadora não foi noções vigentes de espaço e de tempo.
necessariamente artista ou escritora, mas
também a consumidora da multiplicidade de
imagens que o século XIX providenciava de
forma sempre crescente, ou a leitora de livros
e, sobretudo, dos jornais que se multiplicaram
com o desenvolvimento das tecnologias de
reprodução oitocentista, nomeadamente a
litografia. No entanto, a identidade sexual
determinava, e determina ainda, o acesso
à visualidade, à cultura como à educação.
Assim, ao lado de outros determinantes como
a origem social ou étnica, o género deve ser
tido em conta para compreender a relação
entre o ser humano e a produção artística e
cultural.
As transformações dos espaços urbanos, os Figura 12. Estudantes femininas numa aula de
efeitos da industrialização, a multiplicação de desenho com modelo ao vivo.
espaços de consumo e de circulação global Fotografia de c. 1900, Herkomer Art School, Bushey,
Hertfordshire, Reino Unido.
de objetos e pessoas tiveram efeitos centrais
na construção de uma visualidade moderna: a
litografia, a fotografia, as exposições universais
Propostas
U
ma figura importante neste injustiças legais, da Gare
contexto foi John Stuart Mill que, sociais, políticas (1814-1905)
entre muitas ações a favor dos ou culturais que
direitos das mulheres, também afetavam as mulheres,
solicitou que, numa lei acerca da representação as formas de o alcançar eram, por vezes, muito
do povo, a palavra “homem” fosse substituída distintas e até contraditórias. Isto é visível em
pela palavra “pessoa”. Ao fazê-lo, demonstrava alguns casos específicos que tiveram lugar em
já uma consciência da relevância das palavras Londres e em Paris, mas também em Lisboa
em questões de representatividade e de política ou no Porto, na segunda metade do século XIX
e de como as palavras eram indissociáveis dos e que, certamente, exemplificam alguns dos
seus usos sociais e culturais. Precisamente por problemas com que se deparavam as mulheres
ser homem, estava imbuído de uma autoridade artistas de qualquer país, ao terem que escolher
política e intelectual que se revelou muito útil entre os diversos caminhos possíveis para a sua
no diálogo estabelecido entre as mulheres que afirmação. A questão da educação artística é
reivindicavam o alargamento da noção restrita central para compreender as reivindicações de
de sufrágio universal, por um lado, e os políticos tantas artistas, conscientes de que apenas uma
que lhes negavam o acesso ao voto e à esfera formação equivalente àquela que era fornecida
política, por outro. aos seus congéneres masculinos lhes poderia
garantir as condições mínimas para acederem
Em 1866, Mill apresentou ao Parlamento inglês à profissionalização.
a petição assinada por 1499 mulheres, entre
várias mulheres artistas. Apesar de a proposta Os inúmeros textos oitocentistas e novecentistas
de alargamento do sufrágio universal, de modo que contribuíram para este debate estão
a incluir as mulheres, ter sido chumbada pela impregnados de ideias acerca das diferentes
maioria de 196 votos, os 73 votos a favor foram expectativas em relação à aprendizagem
considerados como um sinal encorajador. artística por parte de homens e mulheres.
Poderíamos comparar esta petição com a A diferença entre este período histórico e
assinada pelas mulheres artistas e dirigida à momentos anteriores era que, agora, havia
Royal Academy, uns anos antes. Ambas eram cada vez mais vozes a manifestarem-se contra
gestos que constituíam formas de pressão e aquilo que consideravam uma injustiça, e estas
que, mesmo quando não concretizadas, tinham vozes tanto tomavam a forma de associações
uma força simbólica muito poderosa. organizadas e coletivas, como assumiam a sua
individualidade. Bashkirtseff, caso exemplar
Embora, muitas vezes, o objetivo principal de uma voz individual, denunciava o desprezo
fosse o mesmo – eliminar as profundas generalizado que subsistia em relação às
0360
360 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
Propostas
mulheres, e.questionava-se sobre quais seriam
as objeções à entrada das mulheres na escola
de belas-artes parisiense. Perante a inexistência
de razões, a pintora denunciava aqueles que
considerava serem os principais entraves:
“ Oh! Como eu gostaria de ser um homem para poder pintar ali. Quando eu vi todos os cavaletes dos
estudantes espalhados na sala – muitas telas e cavaletes encostados à parede e, aqui e ali, quadros de
“grandes mestres”, uma atmosfera de inspiração perfeita, e depois passei para a segunda sala onde
estavam pendurados os quadros de estreia dos académicos, uma pessoa parecia transportada para
um mundo artístico mais livre, maior e mais sério – um mundo, infelizmente, de que não podemos
desfrutar devido à nossa condição de mulher – Oh, senti-me verdadeiramente triste – todas as nossas
tentativas e lutas pareceram tão patéticas e em vão – (…) Senti-me muito zangada por ser uma mulher,
pareceu-me um erro tal, mas a Eliza Fox, mil vezes pior do que eu, disse “Nah, mais vale ficarmos zangadas
com os homens por não permitirem que as mulheres gozem dos prazeres deste mundo, e, em vez de
nos lamentarmos por sermos mulheres, vamos esforçar-nos seriamente por alcançar um estádio mais
nobre, vamos empenhar-nos em estar entre aquelas mulheres que serão as primeiras a abrir as portas da
academia às aspirantes suas colegas – essa seria uma missão nobre, não seria? ”
Anna Mary Howitt in Pamela Nunn, 1986: 56.
Propostas
Representações
Programa
de História
da Cultura
de mulheres e das Arte
12º ano
Módulo 9
Cultura
A
s representações de mulheres Ou seja, apesar do Cinema
dominam a cultura da publicidade do enorme (1905-1960)
do século XX, tal como a cultura desenvolvimento de
Módulo 10
do espaço virtual , do século XXI. um discurso crítico
A cultura do
A objetificação e sexualização do corpo da mulher em relação às mais
Espaço Virtual
persistiu para lá das várias mudanças de meios tradicionais formas
(1960-
e tecnologias – do papel e da tipografia, das de representação actualidade)
imagens de jornais e revistas, ao espaço digital. das mulheres,
elas subsistem
de muitos modos na cultura juvenil e
contemporânea, dos videojogos aos vídeos
musicais disponíveis em canais televisivos
ou no youtube. Tendo em conta que os
alunos/as do 10.º, 11.º e 12.º cresceram num
contexto de proliferação, e naturalização, do
virtual/digital importa contribuir para a sua
consciência crítica e questionadora.
0362
362 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Género e Mulheres na História da Cultura e das Artes l
Propostas
uma das vertentes de uma abordagem feminista as plataformas digitais, a banda desenhada
às formas de produção cultural, nas últimas ou a ilustração. Outra questão passível de ser
décadas. Num exercício de desconstrução do analisada é a forma como, a partir dos anos
binómio homem-observador/mulher-observada 60, muitas mulheres artistas vieram redefinir e
– tão hegemónico na arte elitista e minoritária reapropriar-se de domínios tradicionalmente
como na cultura visual popular e maioritária –, masculinos, como o eram as abordagens
esta crítica veio demonstrar como, no que se visuais, artísticas e literárias às mulheres, da
refere às representações de mulheres, existem pintura, à escultura, ao teatro, ou à música ,
muitos paralelismos entre a arte e outras como evidenciaram Lynda Nead (1992) e Linda
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0366
366 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada l
10.
Reposicionando
Mulheres e Homens
na História Ensinada
por: Teresa Pinto*
* A autora agradece o convite que lhe foi endereçado, em finais de 2014, para participar
nesta obra, tendo finalizado este texto e respetivas propostas em agosto de 2015.
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada l
10.1.
S
das famílias, transmitem igualmente
abemos que a História é, para
uma estereotipia que enfatiza a força e a
as e os discentes, uma fonte de
dominância como atributos do sexo masculino,
modelos individuais e/ou coletivos condicionando opções escolares, profissionais
de identificação. No entanto, como e de vida e desmotivando os rapazes para
alerta Annie Rouquie, no final do secundário, áreas associadas, por exemplo, ao cuidado,
alunos e alunas "ignoram praticamente o como educação de infância ou educação
lugar e o papel das mulheres nas sociedades em geral, enfermagem, medicina (cada vez
passadas e respondem às questões mais feminizada), bailado, entre outras.
colocadas com um estereótipo uniforme:
«elas estavam em casa e tomavam conta dos
filhos»" (2000:1). Que imagens de mulheres,
Face a um público misto, teremos
enquanto sujeitos históricos, se transmitem de ensinar o passado de sociedades
à juventude? Que modelos interiorizam as mistas. Não se pretende acrescentar
1 Programa da disciplina trienal de História lecionada no Curso Científico-Humanístico de Línguas e Humanidades, homologado
em 2001 e 2002. A equipa autora foi coordenada por Clarisse Mendes (ver bibliografia).
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ou de dossiês e materiais
complementares (mulheres
filósofas iluministas, mulheres “ A abordagem do protagonismo feminino pode permanecer discrimi-
na revolução francesa, Marie natório para as mulheres se este surgir como complementar ou como
Curie, entre outras), embora um apêndice da história geral, a “história importante”, aquela que se
reflitam sinais de mudança, desenvolve ao longo da obra, na qual a inexistente ou a escassa atenção
dada às mulheres, individualmente ou como coletivos, revela que conti-
não alteram, porém, uma
nua a não se lhes reconhecer relevância histórica ou, o que é o mesmo,
perspetiva da história que não
que a sua existência, enquanto indivíduos e enquanto coletivo, não dei-
contempla a sua dimensão
relacional. As mulheres,
xou marcas que mereçam ser referidas na história dos povos. ”
como os homens, devem ser Antonia Fernández 2005:11.
consideradas como sujeitos
2 Entende-se aqui o conceito de género como conceito relacional, ou seja, referente às relações sociais entre mulheres e homens
e à sua (re)construção sócio-histórica. Cf. SCOTT, Joan Wallach (2008); BOCK, Gisela (1989).
10.2.
A
História é, como qualquer ou realidade «fora» das nossas relações sociais
ciência, uma construção social e da nossa atividade" (1987: 642) 3.
e, como tal, situa-se e ressitua-
se historicamente. A renovação Consonantemente, Vitorino Magalhães
historiográfica, operada na década de 1970 Godinho definiu a ciência como "um
e enunciada na trilogia Fazer História – novos complexo de cultura em situação em
problemas, novos contributos, novos objetos –, certas sociedades" que integra de modo
editada em França em 1974 sob a coordenação interligado e estruturado "uma forma de
de Jacques Le Goff e Pierre Nora (1977-1987), mentalidade, uma atividade intelectual, um
traduziu-se num alargamento do "território conjunto de resultados, uma linguagem,
do historiador", expressão que intitulou a um processus social, desenrolando-se
obra de Emmanuel Le Roy Ladurie (1973), no tempo dos homens"(1971:177 e 195).
favorável ao desenvolvimento da História das
Resulta, então, que cada
presente
Mulheres. Foi reiterado o princípio de que o
conhecimento histórico é sempre tributário
configura a reconstrução do
do presente, do presente de cada época e passado a partir dos quadros sociais
sociedade, e que, consequentemente, a pessoa de que dispõe e, por isso, cada
que investiga é um sujeito situado, ou seja, época fabrica mentalmente a sua
alguém com uma pertença de género, social,
representação do passado histórico.
étnica e outras. A separação entre o sujeito
cognoscente (e as condições do saber) e o
objeto de conhecimento, um dos fundamentos Está-se perante um processo interativo
da ciência positivista, foi profundamente entre memória(s) e história, pelo qual
abalado ao questionar-se o pressuposto a(s) primeira(s) incorpora(m) o produto
de que o/a investigador/a é um elemento historiográfico ensinado e divulgado, mas
passivo face a uma realidade que se lhe vai também influem, como sublinha Luís Reis
desvelando mediante a aplicação rigorosa Torgal (1996), na produção historiográfica
dos procedimentos metodológicos da sua e no respetivo ensino e divulgação.
disciplina. Não há uma realidade pré-existente
cuja estrutura possa ser apreendida ou, Uma primeira alteração do conceito positivista
nas palavras de Jane Flax, "não há força de documento foi operada desde os primeiros
3 Tradução da autora.
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Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada l
tempos do movimento dos Annales, com seja, nas palavras do autor, "a construção de
a conversão de todos os vestígios que uma representação e a formação de um objeto
detivessem a marca humana, ou seja, de todos histórico no tempo" (1998:22) 4.
os monumentos, em potenciais documentos.
Contudo, a explosão do documento, na Os lugares de memória são, como
expressão de Jacques Le Goff (1984:99), só
a memória, seletivos e, por isso, os
se produziria a partir dos anos 1960, com a
dilatação do seu campo, designadamente elementos que integram são fruto
pelo recurso aos testemunhos orais e à de uma escolha que, de entre vários
documentação de massa, cujo tratamento possíveis, elegeu e eliminou.
informático gerou novos tipos de documentos. Tal é o processo que determina,
A efetiva rutura conceptual, porém, foi
por exemplo, a maior ou menor
introduzida, na década seguinte, pelo conceito
Foucaultiano de documento/monumento.
percentagem de mulheres
Este enfatiza a operação que transforma celebrizadas na nomeação de
todos os documentos em monumentos, ruas, nos Panteões nacionais, nos
ou seja, sustenta que qualquer documento Prémios Nobel, nos funerais de
só pode ser cientificamente utilizado se for
Estado, para citar alguns exemplos.
criticado enquanto monumento, o que implica
determinar as condições históricas da sua
produção e proceder à sua desmontagem e Os manuais de história, lugares funcionais
desmistificação. Estes novos procedimentos da de memória, expressam, como afirma Sérgio
ciência histórica traduziram-se num alargamento Campos Matos, uma "estratégia de construção
do conhecimento histórico sobre a ação das e reprodução de tradições" (1990:50) através de
mulheres nos processos sociais e sobre o seu uma integração coerentemente estruturada de
protagonismo ao longo da história. traços memoriais mitificados e de conhecimentos
historiográficos desmitificadores. Oferecendo
O conceito operatório de lugares de memória um saber acabado, os manuais resistem, na
(lieux de mémoire), desenvolvido por Pierre sua própria elaboração, à historicidade inerente
Nora (1999), revelou-se outra ferramenta ao conhecimento sobre o passado, veiculando
proficiente na análise das práticas sociais. Este imagens que contrariam, com frequência, os
conceito permite considerar uma gama infinita contributos da investigação histórica.
de objetos que vão de um local – Aljubarrota
– a uma pessoa-memória – a padeira –, de Teresa Alvarez Nunes (2007a), ao analisar a
uma noção – geração – a um emblema – o iconografia figurativa de manuais escolares de
Zé Povinho –, com tudo o que significam história contemporânea, identificou uma vincada
simbolicamente no contexto nacional. O seu estereotipia na representação de homens e de
aspeto inovador consiste em ter deslocado a mulheres, que conduz a que estas sejam omitidas
focagem do passado para a sua reutilização, ou secundarizadas como sujeitos do processo
para os rastos dos acontecimentos e das histórico, não só na esfera político-militar,
ações, para a sua manipulação, para os modos predominante nos temas programáticos de
como se reelaboraram e se transmitiram, para aprofundamento relativos ao século XX, mas
as ressignificações a que foram sujeitos, ou também na esfera económico-social.
4 Tradução da autora.
O que é dito exclui quer a mulher como entidade mulheres, através da sua
sempre uma infinidade coletiva e abstrata, quer inscrição no tempo, mas de
de não-ditos, os quais, casos isolados ou específicos questionar os mecanismos
ao permanecerem de protagonismo feminino. que perpetuam a prevalência
omissos, se tornam Na primeira situação, as de modos androcêntricos de
inexistentes. mulheres são representadas fazer ciência, sabendo que,
como portadoras de como sustenta Fernando
A coerência do discurso, características que lhes são Catroga, "no campo da
porém, mantém-se, pois atribuídas por convenção, anamnese e do olvido
as lacunas e as omissões como, por exemplo, nada está definitivamente
são compensadas por um cuidadoras do espaço privado, petrificado" (2001:31).
uso excessivo daquilo que da ‘casa’, seja ela dos entes
se rememora através de vivos ou dos mortos, como se Ver, a este propósito,
um efeito de "sugestões a sua vida se esgotasse no o capítulo “Filosofia e
repetidas", na expressão de cuidado da prole, do marido, Género”deste Guião.
José Manuel Sobral (1998:40). de familiares doentes ou
José-Augusto França refere- idosos/as e na manutenção As periodizações,
-se a diferentes "jogos de dos túmulos. Na segunda questionadas por diversos/as
perspetivas" (1996:16) situação, a seleção de casos historiadores/as, são um bom
que, por um efeito de luz e isolados de protagonismo exemplo da exclusão das
de sombra, deformam os feminino, pode conduzir a mulheres da inteligibilidade
eventos e atribuem-lhes extrapolações abusivas ou histórica. Esta operação, que
centralidade ou perificidade. ao reforço da ideia de que as implica definir períodos a partir
Este processo assume
mulheres estão, salvo casos da identificação de pontos de
particular pertinência para a
excecionais, nas margens da rutura que marquem etapas
história das mulheres, pois os
ação histórica (pense-se em num processo evolutivo,
fenómenos de esquecimento,
Margaret Thatcher ou nos realiza-se a partir de uma
de exclusão ou de silêncio
movimentos feministas, por cronologia. Esta é, por sua
subestimam as mulheres
exemplo). vez, uma seleção organizada
enquanto sujeitos e agentes
históricos, relegando-as para de acontecimentos.
os «avessos» da história, A problemática da memória Ambas são sustentadas
na imagem elucidativa que é central na análise dos por acontecimentos que
intitula um artigo de Frédérique processos de invisibilização se afiguram, ao olhar do/a
Langue (2006). das mulheres na história e historiador/a, como marca
de construção das relações de mudança, em função
Em contrapartida, como sociais de género. Não se trata de critérios de escolha
previne Michelle Perrot (1987), apenas de conferir identidades definidos pela comunidade
a evocação tende a sublinhar, às mulheres, ou a grupos de científica. Esses critérios são
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374 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada l
10.3.
Da História produzida
à História ensinada
O
s programas e os manuais escolares Verifica-se, assim, que o conhecimento histórico
são um dos principais meios de trans- transmitido reforça uma perspetiva cristalizada
missão de valores à juventude e os do saber, um saber acumulativo, inquestionável
discursos que veiculam não são neutros. e imbuído de ilusões positivistas. Nesta
consonância compreende‑se, por exemplo,
Sabemos que a história produzida atravessa que, apesar da renovação historiográfica e dos
diversos filtros (um deles o da própria contributos da história das mulheres e do género,
historiografia dominante) até se tornar história
a história política e, em geral, a que incide nas
transmitida. Este desfasamento é particularmente
esferas do exercício do poder continuem, na
visível na história ensinada, em geral menos
atualidade, a dominar o topo da hierarquia dos
sintonizada com os resultados da investigação
mais recente, como salientou Luís Reis Torgal saberes históricos e marquem, ainda mais, os
(1996). conteúdos da história ensinada. Teresa Alvarez
Nunes (2007a) comprovou que os temas
e acontecimentos políticos e militares
favorecem a visibilidade conferida ao
“ A sua influência [dos programas escolares e dos manuais]
não é despicienda na formação mental dos jovens, na repro- protagonismo masculino o que se
dução das tradições culturais e ideológicas, na difusão de objetiva na reprodução abundante
sistemas de valores e de representações míticas do passado, de imagens figurativas masculinas
ajudando a construir esse vasto património que é a memória em detrimento das femininas e das
coletiva de todos nós.” mistas nos manuais escolares.
Irene Vaquinhas, 2000:185.
A problemática das mulheres na história
ensinada, colocada na década de
1980 numa perspetiva de história
contributiva numa interessante obra
“ Os contributos da produção historiográfica em estudos
sobre as mulheres e do género dificilmente têm integrado o coletiva publicada em Bruxelas e
ensino da História, como o demonstram as incongruências en- coordenada por Brigitte Crabbé (1885),
tre a História-conhecimento que a ciência preconiza, a História tem sido retomada em trabalhos
‑conhecimento que o currículo enuncia e que os Programas que questionam os mecanismos
de História selecionam e a História ensinada/aprendida que as de produção e de transmissão da
práticas pedagógicas de diferentes gerações de docentes im-
memória, podendo destacar-se, em
plementam e que os manuais escolares apoiam. ” Espanha, Antonia Fernández (2001,
Teresa Pinto e Teresa Alvarez, 2014:15. 2005, 2010) e, em Portugal, Teresa
Alvarez Nunes (2007a, 2007b, 2009).
0376
376 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada l
“ Integrar o protagonismo social das mulheres nas aulas de História deveria ser extremamente
simples: bastaria perguntar pelas mulheres nos diferentes aspetos da vida social que selecionarmos
como objeto de ensino-aprendizagem - a organização social, o governo dos Estados, as atividades
económicas e a organização do trabalho, a educação e a formação profissional, as mentalidades
coletivas, a criação cultural… (Que funções sociais tinham as mulheres? Que papel tiveram
nos governos? Que pensavam em relação a esta ou aquela questão social? Como viveram as
guerras? Quais os seus contributos para a ciência e a cultura? Como responderam a determinados
momentos importantes para a comunidade? Como e em que áreas se formavam? Qual foi o seu
envolvimento na produção económica e na distribuição de bens? Etc.) e comparar as suas funções,
os seus direitos e deveres, as suas produções, as suas opções de vida, as suas visões do mundo…
com as que tiveram os homens dos mesmos grupos de pertença (…).
As relações pessoais e institucionais entre homens e mulheres (afetos, desejos, conflitos, consensos,
casamento, etc.) e todo o universo de pensamento e realidades que se move à sua volta, assim como
os seus efeitos na vida de homens e de mulheres (para a sua unidade familiar de pertença, para o
universo simbólico cultural do seu tempo e as produções que nele se configuram) constituem um
outro mundo a recuperar nas aulas de História, com importantes efeitos na educação de alunas e
alunos, a muitos níveis. (…) ”
Antonia Fernández, 2005: 12.
“ Uma perspetiva docente integradora do protagonismo das mulheres poderia levar à reflexão
sobre os seguintes aspetos:
1. Rejeitar posições ou discursos essencialistas: não existe a mulher mas sim mulheres de
condições e posições sociais muito diversas (…) Nas aulas podem ser criadas situações didáticas
que permitam detetar essas diferenças de posição social, entre mulheres de diferentes origens,
classes, crenças ou culturas.
2. As condições de vida e as possibilidades das mulheres não se generalizam no tempo nem no
espaço (…)
3. Ter em conta que as linhas de ação seguidas pelas mulheres para melhorar a sua posição
social nem sempre são coincidentes. Diversos fatores podem situar as mulheres em posições
ideológicas e em linhas de ação política distintas (…)
4. Não esquecer que nem todas as mulheres desejam integrar-se no sistema ou desejam fazê-lo
da mesma maneira – que alternativas tiveram no sistema e que alternativas procuraram… ”
Antonia Fernández, 2005: 16.
5 Ver, no fim deste capítulo, a referência a algumas obras que poderão constituir um acervo interessante nas bibliotecas escolares.
Desconstruir a intemporalidade
da dicotomia privado/público e
das representações estereotipadas
de mulheres e homens do
ensino da História
É
necessário conferir particular O paradigma da complementaridade
atenção à (des)construção das entre os sexos, afirmado no
dicotomias que conformam o
século XIX, reciclou o princípio
pensamento e a cultura ocidentais,
como cultura/natureza, público/privado, da inferioridade feminina
produção/reprodução, trabalho/família, legitimando, como realidade
dominação/sujeição, entre outras, e que opõem universal e atemporal, o princípio
simbolicamente universalidade, autonomia da domesticidade. A representação
e agência a especificidade, dependência e desta categoria identitária, ancorada
passividade. A perceção do primeiro termo de
na diferença entre os sexos, é
cada um destes binómios como dominante e
a sua associação ao masculino fundam, a nível com frequência transposta para
simbólico, as relações de poder assimétricas, contextos culturais e históricos
historicamente construídas, entre mulheres e onde não tem aplicação.
homens. A ciência moderna reforçou, segundo Como sustenta Maria Victoria Lopez-Cordon
Boaventura Sousa Santos (2000), a eficácia (2006), na Europa, até à época contem
destes dualismos ao atribuir à dominância porânea, o discurso que impera sobre as
um carácter universal. O autor sustenta que a mulheres é o da inferioridade e não o da
ciência moderna é sexista, porque transforma domesticidade 6. O poder da ideologia das
experiências dominantes, neste caso de um esferas separadas residiu, sobretudo, na
sexo, em experiências universais, ou seja, em capacidade de impor a normalização das
verdades objetivas. mulheres, enquanto categoria, como entes
do privado, com base numa equivalência
O modelo ideológico de esferas separadas, binária estabelecida entre as esferas e
nas quais se inscreveram dicotomicamente os sexos, a qual conforma o masculino
espaços (público/privado), funções (produção/ ao público e o feminino ao privado.
reprodução) e sexos (homens/mulheres) foi-se Com o desenvolvimento da biologia e da
desenvolvendo ao longo da época moderna medicina no século XVIII, a representação
e a partir do século XIX consolidou-se como da diferença sexual mudou, como refere
forma de racionalização da sociedade. Françoise Thébaud, "de um modelo unissexo
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378 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada l
Propostas
10.4.1. Propostas
As mulheres e o
exercício do poder
O
o que confere às relações de poder um
poder instaura-se a partir da
carácter reversível. A restrição da noção de
capacidade de legitimar como
poder à sua conotação política inscreve-se,
verdadeiros os seus pressupostos,
como sublinha Irene Vaquinhas, num dualismo
ou seja, de os validar como
"que assenta na repartição de espaços que
realidades em si, independentes da ação ou do
a cada sexo foi atribuído – aos homens os
conhecimento humanos, convertendo-os, desse
espaços públicos e exteriores, às mulheres
modo, em ‘verdades objetivas’ e, como tal,
os espaços privados e domésticos – (…)
socialmente partilhadas.
um modelo que tendo surgido como uma
componente da ideologia da burguesia
O século XIX mostra bem a eficácia do poder
vitoriana, viria a ganhar grande vigor ao longo
persuasivo. A divisão sexual dos papéis e dos
do século XIX (…)." (2000: 36).
espaços sociais foi acentuada como nunca
o fora até então, mercê de um complexo e Cingindo-se o poder à esfera
sustentado sistema de validação inscrito, por política e esta ao domínio público,
exemplo, no discurso científico (biomédico, em estabelece-se uma triangulação
particular, mas também histórico, antropológico conceptual que tem contribuído para
e sociológico), no discurso da economia política,
associar as mulheres à ausência
na organização institucionalizada da vida social
(escolas, fábricas, hospitais, asilos, prisões, de poder apesar de estas sempre
ministérios, sindicatos, etc.) e na multiplicação terem exercido poderes civis,
e consolidação de meios e iniciativas públicas familiares e, também, políticos.
de comunicação e de difusão
de conhecimento (periódicos,
panfletos, livros, conferências, A problemática dos poderes torna-se um tópico
congressos, teatro,
central das relações humanas e, em particular,
comemorações, exposições
das relações entre homens e mulheres, dado que
industriais, etc.).
está presente, como sublinham Luc Courtois,
O poder não é um sistema Jean Pirotte e Françoise Rosart, “em todos
unívoco nem coerentemente os mecanismos de produção dos sistemas de
opressivo, mas, pelo contrário, pensamento e de representação” (1992: 14).
assume formas e estratégias
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada l
Propostas
A área do poder, designadamente do poder numa inovação da contemporaneidade. Esta
político, mantém um lugar de relevo nos visão deve-se mais ao desenvolvimento dos
conteúdos programáticos da disciplina de conteúdos sugerido pelos manuais escolares
história e a história ensinada continua a do que ao enunciado dos mesmos nos
perpetuar a ideia de que a esfera política programas ministeriais, que apenas definem
foi, ao longo da história, um domínio quase aspetos orientadores do desenvolvimento de
exclusivamente masculino. Esta representação cada tema. Os manuais escolares, por sua vez,
é reforçada pela enfatização do papel dos remetem para uma produção historiográfica
movimentos feministas e sufragistas na que até às últimas décadas tornou a história
viragem do século XIX para o XX, convertendo política um campo paradigmático de exclusão
o acesso das mulheres ao poder político feminina.
2. As mulheres e o exercício
Programa de História do poder político nas
10º ano origens da nacionalidade.
Módulo 2
Unidade 2 A proposta que se apresenta incide,
O espaço português intencionalmente, sobre o período medieval.
. a consolidação de um reino cristão ibérico Em primeiro lugar, a Idade Média, durante a qual
a gestão dos mecanismos reguladores da paz e
2.1. A fixação do território – do termo da guerra assumiram uma importância capital, é
da Reconquista ao estabelecimento por vezes encarada como um período histórico
e fortalecimento de fronteiras.
monolítico, ao qual se associam características
2.3. O país rural e senhorial – o obscuras, distantes e, mesmo, bárbaras.
exercício do poder senhorial: privilégios e Todavia, será apenas no final deste período
imunidades; a exploração económica do
ou na Alta Idade Moderna que, como sublinha
senhorio; a situação social e económica
Ángela Muñoz Fernández, "se radicalizaram
das comunidades rurais dependentes.
os modos de concetualização excludente
2.4. O poder régio, fator estruturante dos tipos humanos" (2006:123). A mesma
da coesão interna do reino
. A centralização do poder – justiça, autora salienta que não
são aplicáveis ao
fiscalidade e defesa; a reestruturação período medieval as representações
da administração central e local – o oitocentistas sobre, por exemplo, a
reforço dos poderes da chancelaria e
a institucionalização das Cortes.
domesticidade e a maternidade.
. O combate à expansão senhorial e a Em segundo lugar, a historiografia medievalista
promoção política das elites urbanas. portuguesa tem registado uma ampla produção,
. A afirmação de Portugal no quadro nomeadamente no domínio da ação política,
político ibérico. quer aprofundando o papel das diversas
redes políticas, particularmente relevantes em
sociedades assentes em vínculos interpessoais,
Propostas
quer através de estudos
centrados em figuras da Não se pretende um desenvolvimento exaustivo de
monarquia, incluindo rainhas, conteúdos, mas sugerir formas de abordagem dos
regentes e infantas. mesmos que permitam conferir importância à ação
de mulheres e de homens, evidenciando o caráter
De entre os conteúdos de sexuado de todas as esferas da vida social e humana.
aprofundamento da unidade
2 do módulo 2 inserem-se
a fixação do território e • a fixação do Aceitemos como ponto de
o país rural e senhorial. território português partida o desafio contido na
Nestes, são relevantes as (ponto 2.1. do programa) seguinte afirmação de Manuel
aprendizagens relativas à Dias Duarte: "Devemos pois a
definição e à autonomia • o exercício do poder independência nacional a uma
do espaço português e ao senhorial: privilégios mulher: a rainha D. Teresa,
estabelecimento das suas e imunidades galaico-leonesa por nascimento"
fronteiras no contexto ibérico (ponto 2.2.2. do programa) (2004:53) 7. Este autor atribui,
da Reconquista, bem como também, a independência
a caracterização do poder • o poder régio de Portugal à política levada
senhorial e do poder régio. nos tempos da a cabo por D. Teresa, filha
Sugere-se que a abordagem monarquia feudal bastarda do rei de Leão, para
dos conteúdos acima (ponto 2.4.1 do programa) consolidar o seu poder.
mencionados parta da ação
política de D. Teresa no Tendo em conta a Em finais do século XIX, Francisco
processo de independência gestão programática e da Fonseca Benevides, na sua
do reino de Portugal, cuja respetiva planificação, de obra clássica sobre as Rainhas
notoriedade é inegável e acordo com os tempos de Portugal (2007, 18781),
sobre a qual existe produção letivos disponíveis para destaca igualmente D. Teresa
historiográfica de relevo. a subunidade no seu como uma das rainhas mais
A proposta é, também, a conjunto, a abordagem influentes na política em Portugal,
de uma abordagem mais destes conteúdos atribuindo-lhe o lançamento
complexa das raízes do não permite grande das bases da independência
Estado Português. desenvolvimento, pelo de Portugal durante os catorze
que apenas se introduzem anos em que assumiu as rédeas
A ação política de algumas informações que do poder, após a morte do
D. Teresa permite permitam conferir o justo Conde D. Henrique. Este autor
trabalhar os destaque ao papel de considerou-a, mesmo, a primeira
seguintes conteúdos D. Teresa nos três domínios rainha de Portugal, alegando
programáticos: acima enunciados. que lhe foi atribuído esse título
7 Esta obra é sobretudo um exercício de perspetivação da História de Portugal (que o autor designa por Portucália) a partir das
mulheres. Embora se baseie em ampla bibliografia, é uma obra de divulgação, acessível a um público não necessariamente
especializado, aligeirando, assim, a forma de comunicação da informação, num registo nem sempre sustentado. Apresenta,
todavia, uma abordagem estimulante e que pode servir de ponto de partida para o confronto com outras produções historio-
gráficas mais académicas.
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada l
Propostas
em muitos documentos coevos. Este facto O facto de a Galiza não ter perdido a categoria
é confirmado por José Mattoso que refere o de reino, nem quando o imperador Afonso VI a
uso do título de rainha por D. Teresa, a partir anexou ao trono de Leão e Castela, nem quando
de 1117, "sinal de que reivindicava, assim, os o rei Garcia morreu e passou a ser governada
direitos que lhe cabiam como filha de Afonso VI, pelo conde Raimundo de Borgonha, justifica as
entre eles, possivelmente, o de governar como pretensões de D. Teresa à plena soberania sobre
soberana uma parte dos Estados por ele aquele território.
deixados" (1993b:49), o que coincide com o
reconhecimento por parte do Papa Pascoal II, A proteção do imperador Afonso VI a cavaleiros,
que se lhe dirigira nos termos de «rainha Teresa» monges e clérigos de origem francesa favoreceu
em carta datada do ano anterior, de acordo a afirmação em território hispânico da Reforma
com o investigador Marsilio Cassotti (2008). Gregoriana e do princípio da sucessão agnática,
O reconhecimento explícito da diferença de ou seja, da sucessão reservada a descendentes
estatuto entre a mãe, Rainha Teresa, e o pai, do sexo masculino (e sancionada pela Lei
Conde Henrique por D. Afonso Henriques está Sálica). A primeira, como refere José Mattoso
também inequivocamente documentado, como (2011), ao censurar o divórcio, a bigamia e o
atesta a "Confirmação por D. Afonso Henriques incesto, conflituou com hábitos comportamentais
da Carta de Couto outorgada à Sé de Braga herdados de épocas anteriores, o que se refletiu
por Afonso VII de Leão e sua mãe D. Urraca", no modo como alguns acontecimentos foram
de 1128, de que se reproduz um excerto relatados em algumas fontes 8. Acresce que a
exemplificativo (ver Documento de apoio A), no proclamação da superioridade do poder espiritual
fim deste capítulo). sobre o poder temporal proveniente de além-
“ (…) na primeira metade do século XII peninsular, havia lugar para a representação historiográfica do poder como
atributo e prerrogativa de uma mulher que o detinha por direito e o exercia em seu nome pessoal1 – mesmo que
essa representação pudesse ser, na sua substância, negativa. Se, por um lado, as crónicas manifestam as maiores
reservas quanto à capacidade feminina para um tal desempenho, é evidente, por outro, que de forma alguma con-
testam a sua legitimidade. O que, aliás, em nada colidia com o costume autóctone, enraizado nas tradições de certas
regiões do norte peninsular, que – em épocas mais ou menos remotas mas com reflexos na organização social das
populações ainda nos finais da Alta Idade Média – parece ter feito incidir nas mulheres e na ascendência feminina
as condições propiciatórias do uso do poder soberano. Nos primeiros séculos da Baixa Idade Média, contudo, estava
já em curso a assimilação, entre a nobreza, do modelo de supremacia masculina fundada num estrito princípio de
patrilinearidade, importado de além-Pirenéus. E em breve a hegemonia da nova estrutura familiar iria sancionar o
triunfo da androcracia.
1
Por contraposição a um poder delegado, registado em todas as épocas, exercido por uma rainha-mãe ou rainha-
consorte em nome de uma personagem masculina circunstancialmente impedida de desempenhar a função régia que
legitimamente lhe cabia. ”
Maria do Rosário Ferreira, 2010:13.
8 A polémica em torno do casamento de D. Teresa com Fernão Peres de Trava é exemplo dos pontos de vista opostos assumi-
dos pelas fontes sobre o divórcio e a possibilidade de recasamento em vida do cônjuge anterior. Sobre este assunto consultar
José Mattoso (2011:44-46).
Propostas
Pirenéus foi decisiva na recomposição dos Ferreira (2010) sistematiza (ver texto em caixa
poderes aristocráticos e eclesiásticos regionais na página anterior) e Marsilio Cassotti (2008)
e na emergência de interesses políticos ilustra com a referência ao protagonismo político
divergentes, como as rivalidades entre Braga e e militar das antepassadas de D. Teresa (ver
Compostela e entre nobres galegos e barões texto em caixa). Distinta era a tradição francesa
portucalenses, que contextualizaram a ação seguida pelo Conde D. Henrique e, por isso,
de D. Teresa. No respeitante à questão dos este, ainda em vida do imperador D. Afonso VI,
direitos sucessórios, as tradições no norte o conde D. Henrique tinha-se recusado, com
peninsular legitimavam as pretensões de D. base nos princípios sucessórios vigentes no seu
Urraca e de D. Teresa como Maria do Rosário país de origem, a aceitar D. Urraca como rainha
“ Por uma original mistura de factores étnicos, religiosos, políticos e jurídicos, que se deram na Península Ibé-
rica durante a Idade Média, duas mulheres (…) alcanç[aram] importantes quotas de poder: as rainhas Urraca
de Leão e Castela e Teresa de Portugal, filhas do rei Afonso VI de Leão e Castela (1040-1109).
Mas se de Urraca se pode dizer que estava predestinada a herdar uma coroa, enquanto filha primogénita e le-
gítima de um rei que teve só um filho varão que morreu na adolescência, no caso da rainha Teresa de Portugal
nada no seu nascimento parecia chamá-la a tão alto destino (…).
Foi a segunda filha de uma nobre a quem o rei não pôde tomar por esposa por já ter uma. Casaram-na durante
a infância com um príncipe sem herança, sexto filho de uma linhagem estrangeira. Ficou viúva antes de fazer
vinte e cinco anos, com três filhos pequenos. E uma parte dos barões portucalenses tornou-a objecto da sua
desconfiança, pois viam-na como um cavalo de Tróia dos interesses «galegos». Tudo isto no meio de constan-
tes guerras civis entre potentados que tentavam utilizá-la para os seus próprios fins.
Pois bem, Teresa de Portugal sairia airosamente de quase todos esses desafios.
Contudo, não parece ter recebido em troca o merecido reconhecimento da posteridade. (…)
Os historiadores preferiram centrar-se na figura do marido, o conde Henrique de Borgonha, em relação a
quem a documentação portuguesa é mais escassa. Era um homem lúcido e com notáveis dotes militares
que, dadas as circunstâncias, não se mostraria determinado a estabelecer um principado autónomo nas terras
portucalenses até três anos antes de morrer. Algo muito diferente, segundo os documentos da chancelaria
condal (uma das fontes principais desta obra), daquilo que se pode constatar no caso de Teresa, desde o mo-
mento em que, assim que ficou viúva, se responsabilizou pelo governo dessas terras, uma vez que centrou a
maior parte das suas acções políticas na franja ocidental da Península.
(…) Teresa não foi uma princesa estranha instalada em terras que nada tinham a ver com as suas origens,
descendente apenas de infantas navarras, «rainhas proprietárias» leonesas e, evidentemente, da mãe, a «mui
nobre», enigmática, e «mui amada pelo rei», Jimena Muñiz, mas provinha também de uma antiga estirpe de
mulheres originárias das terras a sul do rio Minho, rainhas bracarenses, povoadoras coimbrãs, fundadoras vi-
maranenses, condessas portucalenses, que ali tinham habitado desde o século VIII. Antepassadas directas que
exerceram a sua influência em territórios que ela elevaria à sua mais alta expressão do ponto de vista político.
Um regnum até então inexistente, em que pela primeira vez governaria uma mulher. ”
Marsilio Cassotti, 2008:14-17.
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Propostas
e sucessora do trono de Leão, desafiando a palavras que, segundo a Primeira
decisão tomada pelo imperador. Esta atitude, Crónica Portuguesa, proferiu e que
segundo José Matoso, valeu-lhe “a «ira d’el- traduzem a conceção do direito
rei», isto é, a rutura do vínculo de fidelidade
sucessório em que se baseava: "Minha
para com Afonso VI, por ocasião das Cortes de
Toledo no Verão de 1108, em que o velho rei,
é a terra e minha será porque meu pai
já doente, anunciou a sua decisão” (2011:31). el rei dom Afonso ma deixou" (2011:63).
Prosseguindo a política de independência,
Este preâmbulo mostra a pertinência de encetada por D. Henrique após a morte do
associar D. Teresa à independência de Portugal. rei Afonso VI, cerca de três anos antes da sua
É refutável atribuir-se exclusivamente a D. própria morte, disputou e repartiu poder e
Afonso Henriques a conversão do condado territórios com a irmã, D. Urraca. Como afirma
portucalense em reino autónomo, como se lê Marsilio Cassotti, "chegado o momento, Teresa
em alguns manuais, mercê de uma simplificação não veria inconveniente em tomar as armas,
enviesada da realidade. A fundação do reino demonstrando que tinha herdado a destreza
militar de algumas antepassadas, mas por
de Portugal foi, aliás, como adverte Maria do
enquanto considerava mais útil usar meios
Rosário Ferreira, "um processo político que se
não menos poderosos, com a concessão de
desenrolou no tempo e não um acontecimento
valiosas terras" (2008: 131). Nessa consonância,
que tivesse tido lugar numa data precisa"
manteve as fidelidades do marido através de
(2013:21).
favorecimentos, ganhou novas lealdades por meio
D. Teresa permite também de doações de bens e concessão de privilégios,
exemplificar as formas de exercício alargando o seu círculo de apoio de nobres
do poder senhorial e do poder régio galegos a uma nova elite oriunda das suas terras.
medievos no contexto ibérico, pela
sua integração nos complexos Este círculo de apoio, porém, encerrava dois
projetos antagónicos que D. Teresa foi obrigada
jogos de poder que se travavam
a gerir: a autonomia de Portugal face à Galiza,
no noroeste peninsular, refletindo propósito dos barões portucalenses, ou a
avanços e recuos do poder régio e reunificação entre Galiza e Portugal, defendida
dos processos de feudalização. por famílias da alta nobreza galega, como os
Travas. Já antes da morte de D. Afonso VI,
Após a morte do Conde D. Henrique, em D. Raimundo e D. Henrique tinham estabelecido
1112, D. Teresa assumiu o poder e praticou um pacto pelo qual D. Henrique, em troca do
os atos próprios da sua função: concessão reconhecimento de D. Raimundo como sucessor
de cartas de foral e de povoamento do Reino de Leão e Castela, receberia o reino
quer a mosteiros, quer a concelhos, e da Galiza. A alteração das circunstâncias de
comparência na Cúria Régia de Leão. sucessão de D. Afonso VI fez desvanecer o pacto,
mas as duas irmãs, ambicionando, ambas, o
Como comenta Maria do Rosário
domínio sobre a Galiza e Portugal, rivalizaram
Ferreira, "D. Teresa apoia-se numa pelos territórios a sul e a norte do rio Minho.
sucessão genealógica que não As disputas eclesiásticas foram outra das
excluiria as mulheres" e cita as facetas de tensão política entre as duas irmãs,
Propostas
centradas na autonomia ou a sul e a norte do rio Minho. não são coincidentes na data,
dependência eclesiástica de Procurando fazer coincidir como sublinha Maria do Rosário
Braga face ao arcebispo de a divisão eclesiástica com Ferreira (2013) –, a
rainha
Santiago de Compostela. a divisão territorial, como de Portugal e o rei de
Em 1114, D. Urraca consegue, era usual na época, o Papa
através do arcebispo de Leão e Castela assinam
confirmava, na prática, o
Toledo, que o arcebispo de a paz de Ricovado,
domínio de D. Teresa sobre
Santiago tornasse pública uma as terras que esta tomara pela qual D. Teresa, em
bula papal que suspendia o pelas armas em 1121. troca da cedência das
arcebispo da arquidiocese de terras conquistadas
Braga, D. Maurício, monge
A par das disputas políticas no sul da Galiza, teria
cluniacense anteriormente
no palco galego-leonês,
bispo da diocese de Coimbra.
D. Teresa manteve a
D. Teresa, aproveitando o facto
frente de guerra a sul,
de este último se encontrar em
contra os muçulmanos,
Roma, iniciou uma negociação
que, além de ameaçarem
direta com o Papa Pascoal II e
permanentemente a linha do
conseguiu que este levantasse
Tejo, avançaram em 1116
a suspensão. A autonomia do
arcebispado de Braga viria a e 1117 para norte, com a
ser ainda abalada em 1118 e nova ofensiva almorávida,
1119 com os problemas que obrigando à defesa de
envolveram a sagração do novo Coimbra, dentro de cujas
arcebispo de Braga e a morte muralhas a própria rainha
do Papa Pascoal II no contexto foi obrigada a refugiar-se.
da querela das investiduras.
No entanto, o Papa Calisto Em 1126 D. Urraca morre e o
II, em 1122, apesar de ter seu filho Afonso Raimundo é
colocado a maior parte das coroado rei de Leão e Castela
sedes da Península Ibérica sob como Afonso VII. O exército Figura 2. Miniatura medieval.
a primazia do arcebispo de de D. Teresa volta a invadir Representa Teresa de Portugal (ao centro),
Toledo, manteve a autonomia os territórios a norte do rio sua filha Urraca Henriques (à direita) e
Bermudo Peres de Trava (à esquerda).
de Braga e a respetiva tutela Minho, mas, no mesmo ano Manuscrito do mosteiro de Toxos Outos
sobre um conjunto de igrejas ou no seguinte – as crónicas (Ramón Yzquierdo, 2012: 121).
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386 CIG
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Propostas
Propostas
confirmação de D. Afonso Henriques, pelo que de fidelidade, do que ajudar sua tia que
até àquela data, de acordo com o mesmo autor, reclamava parte dos seus Estados" (2011:63).
não há indícios de conflito entre mãe e filho.
Em junho do mesmo ano, na
Foi a partir do Cerco de Guimarães, em 1127,
Batalha de S. Mamede, as tropas
que D. Afonso Henriques se aliou claramente à
nobreza de Entre Douro e Minho, que se tinha
de D. Teresa e do Conde Fernão
vindo a revelar desejosa de inviabilizar o projeto Peres de Trava foram derrotadas
de D. Teresa de um reino que englobasse a pelas forças da nobreza do norte de
Galiza e Portugal. Um grupo significativo de Portugal encabeçadas por D. Afonso
poderosos ricos-homens de Entre Douro e Henriques e este, nas palavras de
Minho e da região do Douro tinha deixado de
José Mattoso, "apoderou-se da
figurar, desde 1122, como confirmante dos
diplomas da rainha D. Teresa, o que revela herança de D. Teresa pela força"
que tinham abandonado a corte, e em 1125 (2011:66). D. Teresa e o Conde de
verificou-se uma segunda vaga de deserções, Trava retiraram-se para a Galiza e a
ou seja, de quebras de homenagem, como rainha morreu dois anos depois.
descreve José Mattoso (2011:51-53). Face à
revolta de D. Afonso Henriques e dos barões D. Afonso VII não se preocupou com
portucalenses, D. Teresa terá tentado obter o o desenlace de S. Mamede. D. Afonso
apoio de D. Afonso VII, encontrando-se com Henriques circunscrevia a sua autoridade
este em Zamora, em março de 1128. Afonso ao Condado Portucalense, não mostrava
VII, todavia, percebendo que D. Teresa perdera vontade de reclamar, como sua mãe, uma
capacidade para lutar pela soberania da Galiza parte da herança de D. Afonso VII, prestara
e de Portugal e contando com a homenagem homenagem a este em 1127 e, até 1139, não
que lhe fora prestada por D. Afonso Henriques usou o título de rei, mas tão-só o de príncipe
após o Cerco de Guimarães, terá considerado, ou o de infante 10. A estratégia seguida pelo
segundo José Mattoso, que "era preferível não rei de Leão foi a de avançar para uma política
hostilizar o primo, de quem já tinha o juramento imperial, à semelhança de seu pai, procurando,
10 O título de rei surge pela primeira vez num documento autêntico em 1140, de acordo com José Mattoso (2011:168).
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Propostas
dessa forma, manter sob sua O papel político de enviuvar, colocou ao serviço dos
influência os reinos que se D. Teresa não deve meandros políticos. Propiciou
foram libertando da monarquia o casamento de seu sobrinho
ser visto como um
leonesa. Em 1135 foi coroado D. Fernando Sanches com
Imperador da Hispânia. caso isolado ou D. Joana, herdeira da Flandres,
D. Afonso Henriques, por seu excecional na época. e de sua sobrinha D. Berengária
lado, consolidou a partir dessa D. Mafalda/Teresa/ com o rei da Dinamarca. Interveio
data e, sobretudo, a partir de decisivamente na política da
Matilde Afonso 11, filha
1147 a sua independência e Flandres e, consequentemente,
a autonomia de Portugal face
de D. Afonso Henriques
na rivalidade entre a França e a
ao renovado contexto político e de D. Matilde de
Inglaterra que marcava a trama
imperial. Mouriana, desempenhou político-militar daquele território.
um papel primordial
A pretensão pela posse
na política nacional Na geração seguinte,
de terras do sul da Galiza
continuaria a ser reivindicada
e internacional das filhas de D. Sancho I,
pelos seus descendentes, do seu tempo. encontramos também
a par do alargamento das A nível interno destacou-se uma figura de grande
fronteiras para sul na guerra no povoamento do território, relevo, D. Teresa
contra os muçulmanos, ação fundamental no contexto
Sanches, a mulher mais
com base no facto de terem da reconquista, e quando
sido domínios de D. Teresa. D. Afonso Henriques foi ferido poderosa do reino de
Em diversos momentos, e aprisionado em Badajoz, por Portugal na primeira
D. Afonso Henriques tentou Fernando II de Leão, ela era a metade do século XIII.
integrar os condados de segunda na linha de sucessão Após a anulação do seu
Toroño (entre a ria de Vigo e o ao trono português. Maria casamento com D. Afonso IX
rio Minho) e de Límia (Ourense) Alegria Fernandes Marques de Leão, voltou a Portugal e
no reino de Portugal. Em assinala que "é no reverso tornou-se uma das figuras mais
1162, D. Afonso Henriques do seu selo que se conhece ativas na oposição à afirmação
exercia soberania sobre a mais antiga representação do poder régio no contexto
Límia e Toroño, situação que das cinco quinas de Portugal, medieval. Encabeçou a aliança
se manteve até 1165 com com os respetivos dinheiros, com suas irmãs no litígio com o
a negociação do tratado na disposição que hoje seu irmão D. Afonso II sobre os
de paz com o rei de Leão, ostentam" (2011:23). Casada bens patrimoniais doados por
Fernando II, por ocasião da com o conde da Flandres, testamento por D. Sancho I a
promessa de casamento entre D. Matilde Afonso tornou-se suas filhas mais velhas. Estas,
aquele rei e Urraca Afonso, detentora de uma imensa advogando um poder senhorial
filha do rei de Portugal. fortuna que, depois de forte, sustentavam a detenção de
11 Segundo Maria Alegria Fernandes Marques (2011), D. Mafalda mudou o nome para Teresa após gorado o seu casamento com
Raimundo de Barcelona. Tendo posteriormente casado com Filipe, conde da Flandres, alterou novamente o seu nome e tornou-
se condessa-rainha Matilde da Flandres.
Propostas
plenos poderes jurisdicionais a título perpétuo foi perdendo força, mas a paz só foi firmada no
sobre os bens patrimoniais herdados. O rei, reinado de D. Sancho II.
porém, pretendia reforçar os seus direitos
soberanos, mantendo inalienável a jurisdição Sugere-se que sejam propostas aos e às
sobre aqueles bens e reclamando que seu pai discentes pequenas pesquisas sobre estas
apenas concedera a suas irmãs o usufruto e outras infantas e rainhas portuguesas
vitalício dos mesmos. A contenda traduziu- que proporcionem o enriquecimento do
se em ações diplomáticas, que envolveram o conhecimento comum sobre o papel das
clero e o Papado, e em confrontos militares. mulheres na vida política do Portugal medievo,
À medida que os anos foram passando, a através de apresentações orais, exposições ou
causa de D. Teresa Sanches e de suas irmãs outras vias de divulgação.
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10.4.2. Propostas
Quotidianos
de trabalho
1. Linha concetual
O
trabalho atravessa o quotidiano acrescida das marcas próprias
das populações ao longo dos dos grupos profissionais de
séculos. O dia-a-dia da grande
pertença, do sexo e da idade dos
maioria das mulheres, dos
homens e das crianças (desde tenra idade)
indivíduos, entre outras variáveis.
Insiste-se muito em clarificar a
foi (e continua a ser) marcado por duras
heterogeneidade das classes médias,
jornadas de trabalho de cujos resultados
a cuja ascensão se assiste ao longo do
dependia (e depende) a sua sobrevivência.
século XIX nos países mais industrializados,
sublinhando o papel congregador
O protagonismo conferido pelos conteúdos
desempenhado pela ideologia burguesa,
programáticos à esfera política e grandes
mas o povo miúdo continua a ser uma
empreendimentos expansionistas (em
noção cómoda para designar como um
particular do ocidente europeu) determina
todo a população grosso modo assalariada
uma perspetiva não só eurocêntrica, como
e desfavorecida, das cidades e dos
centrada nas elites e personalidades de
campos, ou seja, a maioria da população.
destaque. Esquecidas as massas, salvo em
momentos fortuitos e, por isso, descontínuos,
O trabalho e o modo como moldava o
a informação que sobre elas se disponibiliza é
quotidiano das populações ao longo
escassa e simplificada.
do tempo, caracterizando, nas suas
Desta simplificação resulta a diferenças e similitudes, a vida de
transposição para sociedades homens, mulheres e crianças, permite
passadas de modelos oitocentistas que as e os jovens apreendam, de uma
ou novecentistas, veiculando forma mais concreta, as sociedades
caracterizações anacrónicas, e a passadas, tomando maior consciência da
diversidade que caracteriza as sociedades
homogeneização das camadas
humanas no espaço e no tempo 12.
populares, em detrimento da
diversidade intra e inter-regional,
12 Os registos inconográficos para esta proposta, bem como para qualquer ponto do Programa, estão disponíveis em linha. Ver
as referências constantes dos Recursos, no final deste capítulo.
Propostas
2. A transversalização da
perspetiva de género na Programa de História
abordagem da organização 11º ano
social e do trabalho.
Módulo 4
A proposta que se apresenta é a de aplicar Unidade 1
aos conteúdos que versam a população, a População da Europa nos séculos
organização social e o trabalho, ao longo XVII e XVIII: crises e crescimento
dos três módulos do programa de 11º ano, Unidade 2
uma perspetiva de género. Sugere-se que na
A Europa dos Estados absolutos
abordagem de cada um desses conteúdos e a Europa dos parlamentos
sejam desconstruídas ideias preconcebidas 2. 1. Estratificação social (…) nas
sobre o funcionamento das sociedades nos sociedades de Antigo Regime.
séculos XVII, XVIII e XIX. Unidade 3
Triunfo dos Estados e dinâmicas
Um dos anacronismos mais económicas nos séculos XVII e XVIII
frequentes com que nos deparamos 3.1. Reforço das economias nacionais (…)
na análise das sociedades Módulo 5
pré-industriais é o da domesticidade Unidade 2
feminina, modelo legitimado no A revolução francesa – paradigma
século XIX a partir da incorporação das revoluções liberais e burguesas
ideológica da conceção de mulher 2.1. A França nas vésperas da revolução.
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392 CIG
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Propostas
como sustentam diversas
investigações na senda de
Elisabeth Badinter (1980). “ No único aposento da casa, coberta de colmo esburacado ou telha vã,
de rudes paredes de pedra sobreposta, por cujas fendas entra o frio e o
Lembremos, neste contexto, vento, nasce, sem assistência de parteira, no mesmo catre bárbaro de
os trabalhos de Philippe noivado, a criança minhota. Uma hora antes de dar à luz, a mãe pôs ao
Ariès (1973), entre outras fogo do lar a trempe de ferro com água para o banho. (…) No dia seguinte
investigações da demografia é o batizado. Quatro dias depois, a mãe aparece na eira com o filho ao
histórica, que evidenciam que colo. Passada uma semana, leva-o consigo para o campo ou para o monte.
Durante dois anos, — às vezes mais, — lhe dá o seio. Já o pequeno come
o próprio conceito de infância
broa e ainda mama. Exposta às intempéries, ao calor e ao frio, ao sol e à
e de criança é historicamente chuva, como um animalzinho bravio nascido no monte, sob uma lapa, a
recente (ver texto de Neves criança ou sucumbe ou fortalece. As mais das vezes cria-se, resistente e
Pereira, em caixa). Nos forte, n’esse severo regime de seleção natural. Apartada do leite, é então
vários setores das classes invariavelmente abandonada à educação do próprio instinto. Aos cinco
trabalhadoras as crianças de anos ensinam-lhe rezar. Aos sete anos confiam-lhe a guarda dos bois. A
ambos os sexos começavam a criança passa já os dias no monte, solitária, pastoreando o gado. O monte
trabalhar em idades precoces,
é a sua primeira escola e quase sempre a única. ”
mas os cuidados maternos F. Neves Pereira, 1909:283.
também não estavam
presentes nos grupos sociais
privilegiados. A aristocracia modelos de Antigo determina, também, que
entregava as crianças a Regime persistiram se represente o trabalho
amas-de-leite e a burguesia até bem entrado o das mulheres ao longo da
endinheirada adotou o mesmo história ligado, exclusiva
século XX, sobretudo
procedimento nos séculos ou predominantemente, a
no mundo rural, mais
XVII e XVIII. Este costume viria tarefas do foro doméstico,
a ser contrariado no século
sujeito às longas mesmo quando se reconhece
XIX, quando o amor materno invariabilidades, o que ‘as mulheres sempre
é instituído como uma virtude que permite trabalhar trabalharam’, para usar
inerente à natureza feminina. as características da o título de uma obra de
economia pré-industrial Sylvie Schweitzer (2002).
A história da construção e as suas permanências A produção historiográfica,
do amor maternal pode ao longo do processo resultante de inúmeros
ser integrada facilmente na de industrialização e que trabalhos monográficos
análise da passagem do constituem objeto de estudo locais e regionais, tem
modelo demográfico de do Módulo 4, Unidade 1.e 3.1. revelado que o trabalho das
Antigo Regime para o novo e do Módulo 6, Unidade 1.1. mulheres nas sociedades
modelo demográfico a partir de Antigo Regime, por
Para além das informações
de meados de setecentos,
que se disponibilizam exemplo, implicava
articulando com a problemática
seguidamente, as descrições mobilidades geográficas,
da estratificação social
disponibilizadas em caixa muitas vezes definitivas e
(Módulo 4, Unidades 1 e 2.1).
ilustram essas situações. de longas distâncias, ou
Em Portugal, devido ao migrações sazonais, entre
tardio e lento processo A associação anacrónica das outras situações que em
de industrialização, os mulheres à domesticidade nada correspondem ao
Propostas
“ Família – é o grupo de pessoas, parentes ou não, que residem usualmente na mesma habitação,
vivendo em comum, na dependência de um mesmo chefe. Os serviçais são, pois, considerados
como fazendo parte da Família. Uma pessoa vivendo só, em habitação separada, é considerada
como uma Família. ”
Censo da População do Reino de Portugal no 1º de Dezembro
de 1890, Lisboa, Imprensa Nacional, 1896.
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394 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
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Propostas
Na sociedade
pré-industrial não era As mulheres cavavam, sachavam, mondavam,
a remuneração ou o ceifavam, conduziam juntas de bois, limpavam
local de realização caminhos, carregavam à cabeça água, leite, fruta,
que determinava se peixe, lenha, roupa, cestas da vindima... elas eram
salineiras, sargaceiras, estivadoras, lavadeiras...
o trabalho era ou não
produtivo. Qualquer
atividade efetuada por era valorizada numa sociedade feminino permanece pesado
cada elemento da família na qual a divisão sexual exigindo aptidões físicas
e que revertesse para das atividades laborais adequadas, como mostram o
não dependia da respetiva excerto do poema de Cesário
a sua subsistência era
rudeza. Em finais do século Verde, de 1880, e os textos
considerada trabalho. XIX, em muitos países, a de Ana de Castro Osório
Existia divisão sexual do mulher que não concorria (1905), reproduzidos em caixa,
trabalho, que variava em função para o orçamento familiar respetivamente, na página
das regiões e dos contextos continuava a ser malvista nos anterior e na seguinte, e de
socioprofissionais, mas as meios operários e pequeno- Amílcar Sousa (1906) (ver
atividades realizadas por cada burgueses, que contrapunham Documento de apoio B), no fim
um dos sexos eram valorizadas a mulher ativa à mulher deste capítulo).
como produtivas. O trabalho preguiçosa. As tarefas de
de todos os elementos da produção e de manutenção O número de elementos
família era imprescindível desempenhadas pelas de cada família tinha de
para a sobrevivência desta mulheres não correspondem garantir um equilíbrio entre
num contexto de incipiente à associação estereotipada as necessidades e os
tecnologia e de baixa das mulheres à fragilidade. condicionalismos produtivos
produtividade. A elevada Seja no mundo urbano, seja da unidade (por exemplo,
percentagem de recasamentos no mundo rural, o trabalho a dimensão da oficina, da
por morte do ou da cônjuge
ao longo da idade moderna
evidencia a impossibilidade “ É tão raro ficar um lavrador ou lavradeira sem casar como haver moço
que não lute tenazmente, com as energias do desespero, para se furtar
de um homem ou uma mulher
ao tributo do sangue. O casamento é no Minho a base essencial da in-
sobreviverem sozinhos,
dependência. Moço ou moça que não case fica condenado a servir toda
sobretudo com filhos a cargo a vida ou a trabalhar a jornais. Toda a economia social desta vasta pro-
(ver texto de Neves Pereira víncia portuguesa assenta sobre a constituição da família. (…) Desde o
em caixa). nascer do dia até noite fechada trabalham ambos no campo ou na eira.
À noite, até altas horas, a mulher fia, junto da lareira apagada, a teia com
Ser boa trabalhadora era um que há de fazer as primeiras camisas e os primeiros lençóis. O homem
requisito essencial nas escolhas descansa da labuta do dia, ajudando a mulher a dobar o fiado. ”
matrimoniais das classes F. Neves Pereira, 1909:283.
populares. A compleição
robusta e sadia das mulheres
Propostas
propriedade agrícola ou dos postos de trabalho aprendizas ou como criadas domésticas. O filme
assalariado disponíveis). Quando havia excesso A rapariga com Brinco de Pérola permite explorar
de elementos, as ou os filhos eram enviados esta questão, ao mesmo tempo que proporciona
para outras unidades familiares, por vezes uma boa reconstituição do ambiente de Vermeer
de parentes residentes noutras regiões, por e o contacto com a sua obra (ver Documento de
vezes vizinhos ou companheiros de profissão apoio C), no fim deste capítulo).
dos progenitores. Inversamente, quando o
número de elementos da família era ou se No último quartel do século XIX e em inícios do
tornava inferior às necessidades da mesma, século XX, ainda persistiam em Portugal mulheres
esta acolhia jovens que pudessem reequilibrar almocreves que empreendiam, sozinhas, longas
a mão-de-obra familiar. Como salienta viagens. As rendas de bilros de Peniche, por
Guilhermina Mota (1986), uma parte significativa exemplo, eram comercializadas por vendedores
da população dos séculos XVII e XVIII podia e vendedoras ambulantes que percorriam
inserir-se em diferentes unidades económicas quilómetros até às praias da Figueira, Nazaré
familiares e/ou integrar-se em distintos sectores ou Foz do Douro, às termas das Caldas, entre
de atividade económica. Muitas mulheres outras, e às casas particulares de Lisboa e Porto,
jovens empreendiam longas deslocações para para fazer chegar aquele produto a uma clientela
trabalhar como jornaleiras agrícolas, como mais motivada e abonada para o consumo de
“ Quantas vezes não ouvimos dizer: — que tal ou tal oficio não serve para a mulher, porque
é pesado para a sua força, demasiado violento para a sua fraqueza orgânica?… E, no entanto,
percorrendo as províncias do norte ao sul de Portugal, visitando as oficinas e as fábricas, não
vemos que a seleção se dê pela força mas sim pelo salário.
Vimos no Porto, não há muitos meses, as mulheres carregarem com pesadíssimos materiais numa
fábrica de cerâmica, enquanto ao lado, numa oficina alegre e arejada, alguns homens, muito
comodamente sentados, ganhavam o seu jornal pincelando pratos no trabalho leve e material da
estampilha, que sem dúvida caberia melhor às mãos delicadas da mulher. E à discreta manifestação
da nossa invencível estranheza, percebemos que alguns murmuravam, num entredentes invejoso:
— era o que faltava, mais essa concorrência!...
Logo, o homem não afasta a mulher da luta e do trabalho para a poupar a fadigas com que não
possa, visto que a deixa carregar fardos, esfregar casas, trabalhar a qualquer hora da noite em que
chegam os barcos de pesca, nas fábricas de conserva de peixe, quer de verão quer de inverno,
molhada em salmoiras, com as mãos geladas, de pé, horas e horas consecutivas; que a deixa
mondar, ceifar, fazer muitos outros serviços do campo, qualquer que seja o tempo, de ardente
calor ou de frigido inverno... A mulher desempenha, em muitas terras das nossas províncias do
norte, o serviço de estafeta, percorrendo a pé muitas léguas, carregada com pesos que o homem,
certamente, não aguentaria sobre a cabeça. (…)
O homem vê isso e não se sobressalta nem indigna, porque são trabalhos que ele não quer para
si, por mal remunerados. ”
Ana de Castro Osório, 1905:246-248.
0396
396 CIG
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Propostas
produtos de luxo. Os ranchos de trabalhadores que alterem costumes ancestrais ou que
e trabalhadoras, que migravam sazonalmente reduzam os poderes de estruturas locais ou
para trabalhar nas fainas agrícolas, estão profissionais. A mobilização rural, espontânea
documentados desde, pelo menos, o século e contagiante que caracterizou a Maria da
XV aos nossos dias 13. Este contexto afigura- Fonte, enquadra-se nesse registo, mesmo
se importante para conferir historicidade aos que tenha sido seguidamente enquadrada
movimentos migratórios abordados na Unidade politicamente 14. O que é significativo no nome,
2.1. do Módulo 6. corresponda ou não a uma mulher concreta,
é que ele evoca simbolicamente um dos
"Agitadoras notórias", nas espaços dominados pelas mulheres, porque
palavras de Arlette Farge (1994:553), associados às suas tarefas quotidianas.
Elas dominam os espaços da água, as fontes,
as mulheres estiveram no centro das
os lavadouros, os rios... elas transportam e
revoltas populares que abalaram
lavam.
a Europa entre os séculos XVI e
XVIII. Este contexto é importante para se O mundo dos ofícios pré‑industriais
compreender a participação das mulheres não era exclusivamente masculino.
nos acontecimentos da Revolução Francesa
As mulheres desempenhavam um
de 1789, a sua presença massiva nas ruas,
papel central no funcionamento
a Marcha das Mulheres a Versalhes, as suas
reivindicações nos Cahiers de Doléances e a
dos ofícios, cuja manutenção
Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã assumiam em caso de viuvez.
de Olympe de Gouges (Módulo 5, Unidade Integradas desde a infância nas atividades
2.1.). O assunto pode ser retomado quando produtivas do ofício, este continuava a
se abordar a Maria da Fonte (Unidade 4.3. marcar a sua vida depois do casamento
do mesmo módulo). As mulheres estiveram devido à endogamia socioprofissional, o que
presentes em quase todas as revoltas da época lhes proporcionava o saber especializado
moderna e dos períodos das revoluções e, necessário para poderem gerir e dirigir as
embora tivessem sido maioritárias nas rebeliões oficinas (ver texto de Catherine Hall em caixa).
alimentares, participaram ativamente
em motins religiosos, antifiscais e
políticos. Elas aparecem na primeira “
Só as pessoas ricas podiam permitir-se não fazer trabalhar a
mulher. A mulher do rendeiro tinha a seu cargo a leitaria; a mulher
fila, ou instigam e arrastam os
homens, numa reação imediata a do negociante ocupava-se do estabelecimento ou da contabilidade;
a viúva de um fabricante podia retomar a empresa por morte do
situações que colidem com o normal
funcionamento do quotidiano, seja o
marido. ”
aumento de preços ou de impostos, Catherine Hall, 1990: 62-63.
seja a introdução de novas leis
13 O trabalho de António Oliveira (1995) apresenta informação desagregada por sexo sobre os movimentos migratórios internos
entre 1500 e 1900 em Portugal.
14 A interpretação dos factos associados à Maria da Fonte e ao alargamento regional do movimento tem suscitado muitas polé-
micas que não se considerou oportuno discutir neste contexto.
Propostas
Durante o processo de
industrialização as mulheres A multiplicidade dos trabalhos realizados pelas
continuaram integradas mulheres, que podem conciliar atividades de
nas diversas atividades produção e de prestação de serviços, tal como
produtivas. No último quartel trabalhar, no mesmo dia, fora e dentro de casa são
de oitocentos, a legislação
outras características reveladas pelas pesquisas,
portuguesa, por exemplo, não
o que levou a historiadora Pat Hudson (1997) a
excluía as mulheres, incluindo
as casadas, da propriedade
comentar as semelhanças entre o tipo de economia
e da atividade comerciais. familiar pré-industrial e os modelos atuais.
Lopes Praça, baseando-
se no Código Comercial,
afirmava que "quando uma registava cerca de 60% da economia informal e esta, quer
mulher, proprietária de um população ativa no setor gerando novas atividades,
estabelecimento comercial primário e em 1940 ainda quer integrando outras mais
contrair matrimónio, o registava uma percentagem tradicionais, perdurou como
facto do casamento não próxima dos 50%. elemento constitutivo do
altera os seus direitos e próprio sistema capitalista.
obrigações relativamente ao É preciso não esquecer Em vários países, como a
comércio e gestão que dele que a industrialização Grã‑Bretanha, a Alemanha,
depende" (2005, 1872: 266). a França, a Espanha e
assentou, desde o seu
Analisando os dados de uma Portugal, determinadas
contribuição extraordinária início, numa pluralidade indústrias feminizaram-se,
aplicada em Portugal, em de mercados de particularmente as têxteis, do
1808, José Amado Mendes trabalho. Aumentavam vestuário, da alimentação e
(1986) verificou que, no termo as manufaturas e fábricas, do tabaco. Teresa Salgado
de Coimbra, as mulheres persistia uma multiplicidade (1982) salientou, aliás, que
representavam 32,7% dos de estabelecimentos nas três indústrias de ponta
contribuintes e que, das produtivos oficinais, a em Portugal na segunda
mulheres registadas, 30% produção ao domicílio foi metade do século XIX, têxtil,
dedicava‑se ao comércio incrementada e surgiram tabaco e papel, predominava a
e 70% à indústria. inúmeros serviços exigidos mão‑de‑obra feminina, a qual
pelas novas formas de era proveniente do Norte e
Apesar do progressivo organização social e do Beiras interiores.
dinamismo do mundo trabalho. Estas duas últimas
urbano, sobretudo no século modalidades estavam As migrações (internas e
XIX, com o processo de sobretudo a cargo das externas), muitas vezes
industrialização, a maior parte mulheres e representavam apresentadas como fenómenos
da população permanece uma percentagem muito predominantemente
rural até finais do século significativa dos proventos masculinos, também
XIX em muitos países ou familiares. As mulheres envolveram as mulheres
regiões da Europa. É o caso inseriram-se, massivamente, e estas foram maioritárias
de Portugal, que em 1890 em inúmeros ramos da em determinadas zonas e
0398
398 CIG
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Propostas
O retrato feito por Alfredo Mesquita (ver Documento de apoio D), no fim
deste capítulo) da importância da designada zona saloia, que sustentava em
alimentos e serviços a cidade de Lisboa, ilustra claramente a multiplicidade
de atividades femininas nos alvores do século XX.
10.4.3. Propostas
O século XX:
entre a emancipação feminina e
a legitimação das desigualdades
1. Linha concetual para consumo de massa, provenientes, em
grande parte, dos Estados Unidos da América
C
om frequência se define o através, nomeadamente, das vedetas de
século XX como o século cinema. A publicidade, utilizando estereótipos,
da emancipação feminina. também contribuiu para definir imagens visuais
Sustentam esta representação as de feminidade. As
imagens de um novo
figuras da flapper ou da garçonne de inícios tipo de mulher, ligada ao consumo,
do século XX, cujos corpos, libertados do foram associadas a (e confundidas
espartilho, exibem uma moda de silhuetas com) conquistas emancipatórias.
fluidas e elásticas, de cabelos mais curtos,
os conhecidos Cabelos à Joãozinho. Andar
As reivindicações pelo acesso à educação e
de bicicleta, praticar ténis e outros desportos
a determinadas profissões, bem como pelo
tornaram-se atividades regulares das
exercício do sufrágio e de cargos políticos
raparigas das classes médias urbanas ávidas
constituem outros percursos emancipatórios
de liberdade e independência. das mulheres na viragem do século XIX
para XX. A crença nas possibilidades de
O universo doméstico das famílias registou mudança marcou o início do século XX até
profundas alterações com a ligação à 1.ª Guerra Mundial. Este conflito (tal como,
progressiva das habitações às redes posteriormente, a 2.ª Guerra Mundial) tem
públicas de água, saneamento, gás e sido frequentemente apresentado como um
eletricidade com a consequente suavização fator relevante da emancipação feminina no
das tarefas de abastecimento de água, século XX. No entanto a historiografia não é
lenha ou carvão e de despejo de águas consensual sobre este assunto. A
própria
sujas e excrementos, quotidianamente noção de emancipação feminina
asseguradas nas maior parte dos casos por tem sido problematizada numa
mulheres. A energia elétrica proporcionou
perspetiva de história relacional, pois
a entrada dos eletrodomésticos nos lares
a melhoria das condições de vida
dos países ocidentais, suavizando as tarefas
de manutenção doméstica e taylorizando-
das mulheres deverá ser analisada
as, sobretudo a partir da década de vinte. em comparação com a melhoria,
Os ganhos em tempos de ócio e lazer também registada, das condições
propiciaram o incremento dos divertimentos. de vida dos homens. É nessa base que
Veicularam-se modelos de aparência feminina historiadoras como Anne-Marie Sohn (1995)
0400
400 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
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Propostas
“ O século XX define-se mais pela longa e lenta legitimação dos princípios de divisão sexual do mundo
social, perpetuando ou reinventando formas subtis de segregação (...). E, no entanto, este século pro-
clamou incessantemente a igualdade dos sexos, inscrevendo-a em letras de ouro nas leis, de tal modo
que um bom número de observadores se inclinam para o classificar como libertador. (…)
Agora as mulheres têm por si todas as leis, todas as escolas lhes estão abertas, estão integradas em
toda a parte. Convencidas pela sua própria vitória, lutam pouco contra as formas larvares de desigual-
dade e contra o sexismo rasteiro, tanto mais legitimado a reproduzir-se quanto o faz a coberto dos
discursos que proclamam a igualdade entre os sexos. ”
Rose-Marie Lagrave, 1995: 505 e 541.
2. Ruturas e permanências
Programa de História
na vida dos homens e das
12º ano mulheres nas primeiras
Módulo 7 décadas do século XX.
Unidade 1
As transformações das primeiras "Um novo equilíbrio global" é um título sugestivo
décadas do século XX para a abordagem da primeira unidade do
módulo 7 sobre "As transformações das
1.1. Um novo equilíbrio global
. A difícil recuperação económica primeiras décadas do século XX". O título
da Europa e a dependência em reporta-se à geografia política e à nova
relação aos Estados Unidos. ordem internacional após a 1.ª guerra
Mundial, incluindo a Sociedade das Nações,
1.4. Mutações nos
comportamentos e na cultura e aos problemas económicos de uma
. As transformações da vida urbana e a Europa arruinada pela guerra e dependente
nova sociabilidade; a crise dos valores dos EUA. E no que respeita às relações
tradicionais; os movimentos feministas. entre mulheres e homens? Poderemos
1.5. Portugal no primeiro pós-guerra falar também de um novo equilíbrio nas
. As dificuldades económicas e relações entre mulheres e homens, nas
a instabilidade política e social; esferas política e económica, que sustentem
a falência da 1ª República. novos comportamentos e sociabilidades,
conteúdos a abordar na subunidade 1.4.?
Propostas
Sugere-se uma abordagem dos A Grande Guerra tem sido apontada como
conteúdos relativos às primeiras um fator da emancipação feminina com base
no acesso das mulheres, durante o conflito,
décadas do século XX que evidencie
aos trabalhos deixados vagos pelos milhões
ruturas e permanências e distinga de homens mobilizados para a guerra, à maior
os seus efeitos na vida dos homens liberdade e responsabilidade alcançadas e à
e das mulheres, cruzando, sempre obtenção de direitos políticos no pós-guerra.
que possível, com outras variáveis A historiografia tradicional associou o processo
(classe social, etnia, ideologia de industrialização a uma quebra acentuada
do trabalho feminino, com base nos dados
política, …). Uma renovação do
fornecidos pelas estatísticas coevas, e
olhar sobre a Primeira Guerra perspetivou a 1.ª Guerra Mundial como um
Mundial permitirá (re)dimensionar acelerador da entrada das mulheres no
os percursos emancipatórios das mercado do trabalho e, consequentemente,
mulheres sem necessidade de como um fator de emancipação feminina.
acrescentar conteúdos aos previstos A investigação mais recente, todavia, tem
evidenciado a inconsistência daquela
na Unidade 1. A participação de
argumentação e tem revelado o efeito
Portugal na 1.ª Guerra Mundial
harmonizador daquele conflito sobre as
permitirá alargar a análise à relações entre os dois sexos (ver texto de
1.ª República Portuguesa. Françoise Thébaud em caixa).
“ Julho de 1914: está um lindo Verão e ninguém suspeita da iminência do drama. (…) A União Francesa para o Sufrágio
das Mulheres (UFSF), com a força das suas 9000 aderentes, desejando convencer e proceder por etapas, lança nesse Verão
uma petição nacional a favor da proposta Dussaussoy--Buisson, que permitiria que as mulheres francesas participassem
nas eleições municipais de 1916. A CGT* prepara o seu congresso do Outono, em cujo programa, após o grande debate
suscitado pelo caso Emma Couriau, verdadeira interdição profissional do meio livreiro às mulheres, está inscrita a questão
do trabalho feminino.
Do outro lado da Mancha o lugar da mulher mudou igualmente sob o impulso de um movimento feminista mais radical
que contesta a ideologia vitoriana das esferas separadas e da dupla moral sexual. Nos anos conturbados que precedem a
guerra, a questão feminina surge no primeiro plano da discussão pública, antes do problema irlandês ou da agitação so-
cial. Fundada em 1903, no Lancashire, a Women's Social and Political Union (WSPU), que, adoptando a estratégia e o tipo
de propaganda dos socialistas, conseguiu fazer do voto uma questão maior, em Inglaterra e noutros países, desagregou-
se sob o efeito conjugado do ciclo violência-repressão e do autoritarismo das Pankhursts. No Verão de 1914, Christabel
refugiou-se em França para escapar à prisão, mas a federação sufragista de Mrs. Fawcett, a National Union of Women's
Suffrage Societies (NUWSS), apoiada por numerosos liberais e trabalhistas, revela a força das suas 480 sociedades e dos
seus 53000 membros num imenso desfile nas ruas de Londres. 1914 teria podido ser o ano das mulheres, mas foi o ano
da guerra, que veio repor cada sexo no seu lugar. (…) Estranho Verão, o de 1914, que separa radicalmente os dois sexos
”
e ressuscita, após as lutas anteriores à guerra, uma certa harmonia sexual.
0402
402 CIG
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Propostas
15 Nem todas as atividades humanas que produzem bens ou serviços e/ou satisfazem as necessidades de uma comunidade ou
garantem a uma pessoa determinados meios de sobrevivência são contabilizados para o Produto Nacional.
Propostas
para as atividades económicas
afetadas pela mobilização de
Os empregos não são apenas uma fonte de
milhões de homens para o
remuneração. Funcionam como instituições
combate. Na Alemanha, as
sociais, conferindo uma determinada identidade mulheres foram deslocadas
social a que corresponde um estatuto preciso. para os setores da metalurgia,
Michelle Perrot (1998) salientou que as eletricidade, química,
chamadas profissões de colarinho branco material bélico e outras
evidenciaram, globalmente, uma segregação indústrias de apoio à guerra
sexual do trabalho superior à verificada nas em detrimento dos setores
profissões de trabalho manual, dando lugar a femininos de produção.
novas codificações das diferenças entre os sexos
com manifestas consequências discriminatórias. Em Portugal, cuja participação
na guerra foi tardia, distanciada
geograficamente das zonas
Historiadoras, como Katherine Blunden (1982), de combate e, comparativamente, parca nos
Jane Lewis (1984) e Françoise Thébaud recursos humanos mobilizados, não houve
(1995), revelaram que não houve um aumento necessidade de deslocar mão-de-obra feminina
significativo do emprego feminino durante a para os setores profissionais masculinizados.
1.ª Guerra Mundial, mas uma reconversão É interessante, todavia, analisar os
profissional. EmFrança, o recrutamento efeitos da guerra num dos setores
massivo de mulheres para a indústria fortemente feminizados da indústria
pesada durante a guerra incorporou, portuguesa, o setor da indústria
essencialmente, empregadas conserveira de peixe, no qual as
domésticas, desempregadas de mulheres mantiveram um peso
sectores de atividade afetados pela de 70% a 80% da mão-de-obra
guerra e jovens em idade escolar. até à 2.ª Guerra Mundial.
A entrada de donas-de-casa
Na primeira década do século XX, as conservas
no mercado de trabalho não foi
de peixe eram o único produto com peso
significativa. Neste país, logo após o início significativo nas exportações no setor industrial.
do conflito, em 1914, o desemprego feminino A dinâmica deste sector na viragem do
foi elevadíssimo em setores como o têxtil, a século deveu‑se ao investimento de capitais
confeção a as indústrias de luxo e atingiu, no estrangeiros, ligados ao mesmo ramo no país
conjunto da indústria e do comércio, cerca de de origem, com destaque para a França. Face
60% dos postos de trabalho existentes antes à escassez de sardinha nas costas daquele
da guerra, segundo Françoise Thébaud (1995). país, a sua abundância em águas portuguesas
Os níveis de emprego feminino antes da guerra e os baixos salários praticados neste país
apenas voltariam a ser atingidos em finais de afiguraram--se fatores bastante atrativos.
1916 e inícios de 1917 por efeito da deslocação Como sublinha Luisa Muñoz Abeledo (2012),
das mulheres para as indústrias de guerra e procurava-se mão-de-obra feminina barata,
0404
404 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
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Propostas
Propostas
3 do módulo 9, quando se
analisam os desafios atuais do A Grande Guerra passou a ser interpretada pela
desenvolvimento económico historiografia como um período durante o qual as
nacional.
diversas forças sociopolíticas, sindicais, patronais
e governamentais foram consensuais em alterar
Nos países beligerantes, o
os parâmetros que estabeleciam os trabalhos
esbatimento da dicotomia
próprios para cada sexo.
entre trabalhos femininos
e masculinos durante o
conflito e a valorização do donas-de-casa na gestão suas reivindicações de acesso
trabalho feminino, entendido dos gastos domésticos eram a empregos remunerados,
como ato patriótico, equiparadas, no discurso que lhes conferiam uma certa
garantiu o funcionamento da dominante, a rendimentos, autonomia económica e as
economia e da máquina de escamoteando a efetiva libertavam da pressão da
guerra. Finda a guerra, dependência económica das domesticidade imposta às
muitas mulheres mulheres face aos homens. mulheres da sua classe social.
foram impelidas a
Apesar do quadro traçado, Este é o contexto da lenta e
regressar aos seus difícil recuperação económica
as mulheres passaram a
setores profissionais da Europa (unidade 1.1.) e
integrar alguns setores
anteriores ou, mesmo, da indústria moderna que dos novos comportamentos
ao lar. A ideologia da (unidade 1.4.) marcados pelas
tinham sido mecanizados
novas sociabilidades urbanas
domesticidade feminina durante o período da
que refletem e escamoteiam,
foi retomada com ardor guerra e cujas tarefas se
simultaneamente, os traumas
tinham tornado repetitivas e
e os paradigmas da sociopsicológicos provocados
simples, podendo continuar
mulher dona-de-casa e pela guerra, o enfraquecimento
a ser asseguradas por uma
dos movimentos feministas
do homem ganha-pão mão-de-obra mais barata.
e o advento de formas mais
sustentaram discursos Foram os casos da metalurgia subtis de legitimação das
e políticas. Face ao ligeira e da indústria elétrica, desigualdades.
declínio da natalidade, sobretudo em trabalhos não
qualificados e repetitivos. A segregação sexual do
a maternidade
O desenvolvimento do setor trabalho manteve-se ancorada
transformou-se no terciário, comércio e serviços na ideologia das esferas
novo ato patriótico das públicos, por exemplo, abriu separadas, atrás referida 17, e
mulheres. Valorizou-se novas oportunidades de numa conceção de feminidade
o trabalho doméstico, emprego para as mulheres indissociável da função
multiplicaram-se as escolas mais qualificadas. As filhas maternal das mulheres, como
de economia doméstica e as da burguesia foram as que sublinha João Esteves (2010)
poupanças efetuadas pelas mais viram concretizadas as (ver texto em caixa). Françoise
0406
406 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
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Propostas
“ Com a Guerra, o trabalho feminino foi incrementado e valorizado, mas sem alterações no plano remune-
ratório. As mulheres trabalhavam na agricultura, artesanato, indústria, comércio, eram criadas, era possível
serem professoras e médicas, tendo sido a 1.ª República a abrir-lhe as portas do ensino superior, do funcio-
nalismo, da advocacia e do notariado. Regina Quintanilha formou-se em 1913 e Aurora de Castro Gouveia
abriu escritório de advocacia, em 1917, na Rua do Ouro, 101, 2.º esquerdo, acabando por fazer carreira como
notária. Como consequência do conflito bélico, foi permitida, por intermédio de Norton de Matos, às mulhe-
res a profissão de enfermeira de guerra mediante a frequência de um curso.
Embora se procurasse valorizar o trabalho feminino ao reivindicar-se a igualdade de instrução, de emprego
e de salário, ou ao sublinhar a importância das tarefas desempenhadas, relacionando-as com o país e a Pá-
tria, também é verdade que se veiculava a defesa de trabalhos e profissões que se pensava estarem mais de
acordo com o seu sexo, como a enfermagem e o professorado, em nada incompatíveis com as tradicionais
obrigações familiares e domésticas que as mulheres tinham de continuar a cumprir. ”
João Esteves, 2010:25-26.
Propostas
ser o Estado Novo a conceder, por
De acordo com João Esteves, a Cruzada iniciativa e interesse de Salazar, o voto
das Mulheres Portuguesas, pelo seu cunho às mulheres portuguesas. O lento
nacionalista, “contribuiu para atenuar o acesso das mulheres portuguesas ao
papel das feministas como grupo de pressão, voto, fruto de uma «tíbia concessão»,
esvaziando as suas reivindicações no contexto na expressão de Maria Reynolds de
Sousa (2006), pode ser retomado
«patriótico» (2010a:39).
nas unidades 2.5. do módulo 7 e
2.1. do módulo 8, sobre o Estado
objetivo de apoiar com agasalhos os soldados Novo, e complementada na unidade 2.2. deste
dos aliados. Em 1916, ano da entrada de último módulo com o acesso pleno das mulheres
Portugal na guerra, foi fundada a Cruzada das ao sufrágio após a revolução de abril de 1974.
Mulheres Portuguesas (CMP), presidida por
Elzira Dantas Machado, mulher do Presidente Em França, o país da Revolução setecentista
da República. A CMP angariou fundos para pela Liberdade, Igualdade e Fraternidade, o
o Corpo Expedicionário Português, enviou exercício do direito ao voto pelas mulheres apenas
agasalhos, cartas das madrinhas de guerra se concretizaria em 1945. Um dos efeitos da
e outros bens aos soldados na frente de guerra, segundo Françoise Thébaud, foi que o
combate, obteve autorização do governo feminismo se tornou mais unívoco, reclamando-
para fundar uma escola para a formação de se "da diferença e da complementaridade
enfermeiras destinadas ao apoio na retaguarda dos sexos, exaltando com moralismo a
das zonas de combate, apoiou as mulheres maternidade, argumentando não com os direitos
e viúvas dos mobilizados, acolheu órfãos, das mulheres, mas com as necessidades
implementou o Instituto de Reeducação das mães, exigindo uma proteção específica
dos Mutilados de Guerra, criou creches e para as trabalhadoras" (1995:87). Esta linha
casas de trabalho, entre outras iniciativas. reivindicativa foi ao encontro das pretensões
dos sindicatos, que pretendiam a devolução dos
Em 1918, A Liga Republicana das Mulheres empregos aos homens regressados da guerra.
Portuguesas tentou, através de uma petição
ao poder político, obter de Sidónio Pais o Em 1905, Ana de Castro Osório denunciava
acesso das mulheres ao sufrágio, mas sem já, com grande lucidez, o modo como as
êxito. Negado explicitamente o direito ao voto associações sindicais apoiavam e usavam as leis
feminino pela lei eleitoral de 1913, em reação de proteção do trabalho destinadas às mulheres
ao voto de Carolina Beatriz Ângelo nas eleições para as banirem dos setores profissionais onde
de 1911 para a Assembleia Constituinte, viria a predominava a mão-de-obra masculina (ver caixa).
“ Na luta pela vida o homem é impiedoso para a mulher, que não é a sua. A operária raro tem no
operário um colega e um amigo; tem apenas um homem que a desmoraliza e que a despreza se os
trabalhos são diferentes, que a odeia, se é o mesmo, valendo-se de tudo, até das leis protecionistas,
como os tipógrafos franceses — que apelaram para a lei que proíbe o trabalho da mulher feito de
noite, para as expulsar das tipografias em que se compõem os jornais matutinos. ”
Ana de Castro Osório (1905:249).
0408
408 CIG
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Propostas
A segregação sexual do trabalho tornou-se Uma grelha de leitura semelhante poderá
mais codificada e acentuar-se-ia com a tónica ser aplicada à 2.ª Guerra Mundial e período
protecionista do Estado Providência. A noção subsequente.
de empregos de mulheres, associados a
atividades, quer repetitivas, quer sedentárias, Pode ainda ser interessante retomar a
define os empregos que os homens não devem problemática da segregação sexual no
querer para si ou devem abandonar por não se mercado de trabalho nos módulos:
coadunarem com os traços da masculinidade. • 8. "Portugal e o Mundo da Segunda Guerra
Mundial ao início da Década de 80 –
Sugerem-se alguns temas para opções internas e contexto internacional",
trabalhos de pesquisa a realizar por ponto 1.3. "A afirmação de novas
potências";
discentes:
••As organizações de mulheres e feministas em • 9. "Alterações Geoestratégicas, Tensões
Portugal antes e depois da 1.ª Guerra Mundial; Políticas e Transformações Socioculturais
no Mundo Atual", pontos 1.2. "Os pólos
••Portugueses e Portuguesas na 1.ª Guerra
do desenvolvimento económico" e 2.1.
Mundial;
"Mutações sociopolíticas e novo modelo
••Do pesadelo da guerra aos Loucos Anos 20; económico", recorrendo ao subcapítulo
••Desemprego, inflação e miséria: famílias em "Segregação sexual dos mercados de
dificuldade na Europa do pós-guerra; trabalho", no qual se apresentam modelos
••Automóveis e eletrodomésticos: produção e diferentes de segregação em função de
consumo de massa nos «felizes anos 20»; distintos contextos geoculturais.
10.5
Desafios lançados…
efeitos esperados
A
curiosidade intelectual é uma atitude historiográficas, relativamente
própria da profissão docente. Não há à história das mulheres na sua
docente que não tenha adquirido
relação com a história dos homens.
uma predisposição especial para
uma contínua atualização de conhecimentos e Procurou-se, em suma, problematizar
problematização do saber adquirido. Escasseia, uma história que se mostra cega
todavia, o tempo de pesquisa para acompanhar perante metade do seu objeto de
a vastíssima produção historiográfica que resulta estudo e que, por isso, não se
do trabalho de investigação de milhares de
limita a ficar incompleta, pois, como
especialistas que trabalham em cada uma das
áreas de especialidade da ciência histórica.
declara José Mattoso, "não só se
escreveu só a metade, como esta
As e os docentes de história do ensino metade não tem sentido algum sem
secundário são docentes generalistas. o resto" (1993a:56).
Espera-se que dominem a história mundial, em
especial a da Europa e a do contexto do mundo A progressiva redução do desfasamento entre
ocidental, expressão que recobre também os o conhecimento histórico produzido (que
EUA e outras regiões que partilham de forma se encontra em permanente renovação) e o
mais acentuada as respetivas características conhecimento histórico ensinado só é possível
civilizacionais; que dominem a história nacional, com o profissionalismo da classe docente,
regional e local; que dominem todas as épocas mas todo o empenho será insuficiente se não
históricas, da Antiguidade aos nossos dias; que lhe forem disponibilizados recursos. Não cabia
dominem todas as suas dimensões (política, neste projeto proporcionar uma abordagem
institucional, económica, demográfica, social, de todos os conteúdos programáticos numa
cultural, da arte, das mentalidades…). perspetiva de género, mas tão-só apresentar
alguns temas de reflexão, acompanhados de
Procurou-se neste Guião introduzir um conjunto de informações. Ao assumir um
um exercício de problematização olhar mais sensível às formas de ocultação
do saber adquirido (na formação ou de deturpação do papel das mulheres
na história, cada docente será impelida/o a
inicial e quiçá na formação contínua)
procurar informação sobre a participação das
e transmitido por manuais e outros mulheres em qualquer processo histórico e a
materiais pedagógicos de apoio, analisar o impacto dos acontecimentos sobre
bem como por variadas obras cada um dos sexos.
0410
410 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada l
(…) os jovens, na fase de desenvolvimento em que se encontram durante a frequência deste nível de en-
sino, necessitam de referentes seguros que lhes permitam interpretar as realidades sociais que com eles
interagem; que proporcionem fios de inteligibilidade entre as grandes questões nacionais e os proble-
mas decorrentes de uma globalização cada vez mais envolvente; que se constituam como apoio para as
escolhas que inevitavelmente terão de realizar Importa, portanto, circunscrever áreas do conhecimento
historiográfico que patenteiem aspetos significativos da evolução da humanidade e que integrem linhas
de reflexão problematizadoras das relações entre o passado e o presente. Importa, além disso, mobilizar a
diversidade de campos de observação, para tornar consciente a relatividade das escolhas efetuadas pela
humanidade, fortemente inseridas num tempo e num espaço determinados. ”
Clarisse Mendes (coord.), 2001-2002: 4.
Documentos de Apoio
Documento A
Confirmação por D. Afonso Henriques da Carta de Couto outorgada
à Sé de Braga por Afonso VII de Leão e sua mãe D. Urraca, 1128
Em nome do Pai e do Filho e do Espirito Santo, se possa construir a Fábrica da Igreja. […] E na
Ámen. Eu Afonso filho do Egrégio Conde tua Cidade de Braga que eu não tenha nenhum
Henrique e da Egrégia Rainha Teresa, neto do poder com tanto que essa seja a tua vontade e
Rei Afonso Magno, a Santa Maria Bracarense a dos teus sucessores. E quando eu tiver terra
e a ti Arcebispo Dom Paio e a teus sucessores portuguesa conquistada, [dou e concedo] a ti
que perpetuamente vierem sendo eleitos e aos teus sucessores a tua cidade e a tua Sé
bem como aos clérigos que aí residem dou e e aquilo que a ela pertence – legando-te em
concedo o couto que o Rei Afonso meu parente paz sem controvérsia alguma. E dos bens da
e a Rainha Urraca sua mãe e eu confirmamos Igreja Santa Maria Bracarense e dos teus bens
em presença do Arcebispo Compostelano ou dos bens dos teus sucessores nada jamais
Dom Diogo e do Conde Dom Gomizones e exigirei ou por mim ou pelos meus mandatários
do Conde Dom Rodrigo e de outros próceres sem a tua vontade ou sem a vontade dos teus
a saber Paio Soares, Egrégio Moniones, sucessores. E esta doação faço-a a Santa
Ermígio Moniones, Mendo Moniones, Rodrigo Maria Bracarense e a ti e aos teus sucessores
Bermudes. Efetivamente dou e concedo o couto e aos teus clérigos por alma de meu Pai e pela
assim limitado com a Vila que se chama Lapela salvação da minha alma e para que tu sejas o
como consta do registo do couto. […] Mais meu auxiliar. […] Foi este instrumento feito no
ainda: dou e concedo a Santa Maria Bracarense sexto dia antes das Calendas de Junho (27
a ti e a teus sucessores o Castelo que chamam de Maio). Era MCLXVI [1128 da era cristã]. Eu
Penafiel com os seus limites antigos e o Afonso Infante esta doação pela minha mão
Mosteiro de Arentim (?) e do mesmo modo o corroboro. […]
lugar [onde o Mosteiro está implantado]. […] E
todas as herdades de Santa Maria Bracarense
aonde quer que sejam coutadas estejam com Fonte:
Arquivo Distrital de Braga - Archeevo |Universidade
servos ou com juniores ou com homens livres do Minho, PT/UM-ADB/DIO/MAB/043/000001,
que ao Rei pertencem. E como o Rei Afonso reprodução facsimilada e transcrição e tradução em
meu Avô deu ajuda para a construção da Igreja ficheiro pdf disponível em linha em: http://pesquisa.
de Santiago do mesmo modo dou e concedo adb.uminho.pt/viewer?id=1532397
0412
412 CIG
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Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada l
Documentos de Apoio
Documento B
A Mulher Duriense
“ (…) A casa onde vivem é mísera. Uma porta As mulheres do Douro vão lavar aos ribeiros
só. A cabeça toca no telhado baixo, que ou aos tanques as roupas que a barrela, feita
abriga pobres enxergas onde somente pousa a à noite com cinzas e água quente no «cortiço»
mancha de um lençol remendado. A um canto, branqueia e desinfeta deixando-a como a neve.
uns potes de ferro constituem a lareira… da (…)
fome. (…) É na maior ansiedade que a mulher As mulheres das «ranchadas» — as
do Douro pensa no que há de dar de comer «montanheiras» colhem de dia, pelo sol de fogo,
aos filhos (…). É a mulher que «estremadeira» as uvas, favos de açúcar, e de noite, coristas no
a vinha desenlaçando-a dos paus onde se grande palco do lagar, de saias arregaçadas,
ostentam no outono as parras estioladas. É ela «sovam» o vinho que lhes tinge as pernas nuas
que faz os «capões» das vides podadas e os e roliças. (…)
leva à cabeça para as «casas da lenha» onde
no inverno alimentam as «braseiras» antigas Quando chega o Natal com as geadas e as
quando o frio aperta e o vento sopra. neves, [a mulher do Douro] vai apanhar os
bagos negros
Mais tarde, é a mulher que aplica contra o da azeitona que os homens com varas
maldoso «oidium» o enxofre salvador e o sulfato expulsam barbaramente das pobres oliveiras
de cobre contra o «míldio» que atormenta as prateadas, que circundam cariciosas as vinhas
uvas ao nascerem. Era a mulher que acarretava esplendidas...”
a pedra para as paredes das plantações que
talvez mais ninguém fará. Amílcar Sousa, “A Mulher do Douro”,
Ilustração Portuguesa, 1906:171-174.
São as mulheres que levam à cabeça, em
cestos, os estrumes fertilizantes para a velha
terra empobrecida. São elas que decapitam as
videiras, deitando nas cestas os cachos, quer
doirados, quer negros, na grande e magnânima
«Festa Vindimal». Tudo isto fazem trabalhando
de sol a sol (…).
Documentos de Apoio
Documento C
Rapariga Com Brinco de Pérola.
Título original: Girl With a Pearl Earring), Peter Webber, 2003, baseado
no romance com o mesmo título de Tracy Chavalier. Sinopse:
0414
414 CIG
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Reposicionando Mulheres e Homens na História Ensinada l
Documentos de Apoio
Documento D
Os Saloios
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0422
422 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
A Economia e a Vida de Homens e de Mulheres l
11.
A Economia e a Vida
de Homens e de Mulheres
por: Lina Coelho*
* A autora agradece o convite que lhe foi endereçado, em finais de 2014, para participar
nesta obra, tendo finalizado este texto e respetivas propostas em agosto de 2015.
0424
424 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
A Economia e a Vida de Homens e de Mulheres l
11.1.
O
s programas de Economia do perpassam transversalmente as nossas
Ensino Secundário apresentam sociedades, determinando uma clara
a especificidade, relativamente diferenciação no acesso, no controle e no
à maioria dos restantes uso dos recursos (materiais, financeiros
programas disciplinares, de proporem a e institucionais) em função do sexo.
iniciação a uma nova perspetiva científica.
O objetivo fundamental é proporcionar às Um obstáculo maior à integração da
e aos estudantes conhecimentos básicos problemática da igualdade de género nas
A Economia como
ciência ética
“ As desigualdades económicas, ainda que não constituam a única
determinante, desempenham habitualmente um papel crucial na estru- O pensamento económico de
turação das relações de poder, ao conferirem maior autoridade em maté- matriz feminista denuncia o
ria de definições e interpretações a algumas pessoas do que a outras. discurso científico da Economia
É por isso que podemos relacionar o menor controlo das mulheres sobre como sendo, ele próprio, uma
a propriedade com a formulação de normas que as desfavorecem. ” construção social que, porque
Bina Agarwal, 1997: 32. omite a realidade específica
das mulheres, aborda as
realidades económicas de forma
truncada e parcial. Esta área
de estudo tem, assim, vindo a
“ A Economia Feminista inclui o estudo dos papéis de género na econo-
mia, numa perspetiva emancipatória, e a análise crítica aos enviesa- contribuir significativamente para
mentos de que a disciplina enferma. Ela desafia as análises económicas ampliar os temas abordados
que tratam as mulheres como invisíveis, ou que servem para reforçar as pela Ciência Económica,
situações que as oprimem, e desenvolve pesquisas inovadoras vocacio- aproximando-a das realidades
nadas para superar essas limitações da disciplina. Revela também como
concretas dos homens e das
a confiabilidade da investigação económica tem ficado comprometida
devido a vieses de natureza subjetiva na definição do que é (ou não) mulheres e dos problemas
temática ‘económica’ e a métodos de análise limitados por critérios de que enfrentamos em conjunto,
aceitabilidade impropriamente definidos. Os tópicos abordados incluem enquanto parte de sociedades
a economia da família, os mercados de trabalho, o cuidado às pessoas, complexas, desiguais e em
o desenvolvimento, a macroeconomia, os orçamentos nacionais, e a permanente (re)construção.
”
história, a filosofia, a metodologia e o ensino da Economia.
Julie Nelson, 2005: 282. Nesse sentido, incluir a
desigualdade de género nos
0426
426 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
A Economia e a Vida de Homens e de Mulheres l
programas de Economia moral”, como reafirma Amartya da vida são omitidas no discurso
significa potenciar a Sen (1999), prémio Nobel da económico, patenteando o viés
capacidade de compreensão Economia em 1998. Ensinar androcêntrico desta ciência
integral dos fenómenos e aprender Economia significa uma vez que, tratando-se de
sociais, promover uma ética perceber que há uma finalidade trabalho esmagadoramente
assente nos direitos humanos primeira nesta ciência, que desempenhado pelas mulheres,
e contribuir para o reforço da é a promoção do bem‑estar a sua sonegação ao objeto de
consciência cidadã das e dos humano, o qual depende de estudo da Economia determina
estudantes, ao proporcionar- bens com preço monetário, a desconsideração económica
-lhes leituras mais abrangentes adquiríveis no mercado, mas das próprias mulheres.
e universais, através da não apenas, porque algumas
explicitação dos papéis produções não têm substitutos Introduzir a desigualdade de
económicos das mulheres e no mercado e, nessa medida, género nos programas de
dos homens, dentro e fora são insuscetíveis de preço. ensino da Economia significa
da família, e das diferentes Ora, o discurso económico então explicitar o valor do
condicionantes que uns e tende a ignorar todas as trabalho não remunerado no
outras enfrentam enquanto produções que, sendo embora seio da família, ou as normas,
agentes económicos. Porque, cruciais para a sobrevivência os valores e as instituições que
como bem mostra Nancy e o bem-estar das pessoas, condicionam, moldam e limitam
Folbre (1994a), as escolhas não são valoradas através a participação dos homens e
individuais de cada pessoa do mercado. É o caso, das mulheres na economia e na
são sempre condicionadas, destacado por Nancy Folbre sociedade. As formas desiguais
de modo complexamente (1994), do chamado trabalho de acesso a (e controle sobre)
articulado, pelos seus múltiplos reprodutivo, “provavelmente recursos económicos, daí
sistemas de pertença (sexo, o mais importante trabalho resultantes, desembocam em
idade, orientação sexual, que desempenhamos” porque soluções economicamente
nacionalidade, raça e classe). dele depende a sobrevivência ineficientes porque limitadoras
da própria espécie. De facto, do contributo das mulheres para
Julie Nelson (1996) chama as questões atinentes à o crescimento das economias
também a atenção para o reprodução e resultantes e o aumento de bem-estar,
facto de as pessoas não da total dependência das na medida ajustada às suas
serem seres anódinos e crianças nas primeiras fases capacidades e competências.
desenraizados, autónomos
e autodeterminados, mas
seres‑em‑relação que, “ A igualdade de género é uma questão de eficácia do desenvolvi-
como tal, dependem ou são mento e não apenas uma questão de correção política ou bondade para
responsáveis por outros/as. com mulheres. Evidência recente demonstra que, quando mulheres e
Como tal, sendo a economia1 homens são relativamente iguais, as economias tendem a crescer mais
depressa, os pobres saem mais rapidamente da pobreza e o bem‑estar
para as pessoas (e não o
contrário), a Ciência Económica
dos homens, das mulheres e das crianças é melhorado. ”
não é conhecimento positivista Banco Mundial, 2002: 1.
e amoral mas sim “uma ciência
1 Não dispondo a língua portuguesa da fácil distinção, através de uma só palavra, entre a Economia enquanto ciência (Eco-
nomics, em inglês) e a economia enquanto esfera da ação humana (economy, no inglês), optamos neste texto por usar letra
maiúscula e minúscula para nos referimos, respetivamente, à primeira e à segunda daquelas aceções.
2 A maioria destas organizações disponibiliza informação em várias línguas, ainda que nem sempre em português.
3 Todos os sítios web de instituições nacionais e internacionais referidos neste texto foram consultados em fevereiro de 2017.
4 Vejam-se, a título de exemplo dos recursos disponibilizados pela OCDE, os seguintes:
OECD (2015), “The ABC of Gender Equality in Education: Aptitude, Behaviour, Confidence”, PISA, OECD Publishing, em http://
www.oecd.org/pisa/pisaproducts/pisainfocus/PIF-49%20%28por%29.pdf; e o vídeo, para fins educacionais, intitulado “Gender
Equality”, em https://www.youtube.com/watch?v=j85fGU3PeeY.
0428
428 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
A Economia e a Vida de Homens e de Mulheres l
A desigual participação das mulheres e dos As propostas que se seguem, com o propósito
homens na economia apresenta amplitude de sugerir pistas para a integração da temática
e intensidade variáveis em diferentes países da (des)igualdade de género na lecionação do
e culturas. No quadro dos países com Programa de Economia, procuram ser diversas
desenvolvimento humano muito elevado e abrangentes. Assim, começa-se por abordar
(segundo a classificação do Programa das os enviesamentos androcêntricos de que
Nações Unidas para o Desenvolvimento enfermam algumas das categorias analíticas
– PNUD), ao qual pertencemos, básicas da ortodoxia científica prevalecente.
relevam especialmente as seguintes Abordam-se depois algumas questões relativas
manifestações de desigualdade às desigualdades no mercado de trabalho,
económica baseadas no sexo: baseadas no sexo. Finalmente, atende-se às
limitações que a desigualdade de género impõe
• nas participações dos homens ao potencial de crescimento das economias
e das mulheres no mercado de e suas implicações para o desenvolvimento
trabalho; humano, as quais atingem proporções
desmesuradas nalguns países, onde os direitos
• nas remunerações do trabalho humanos mais básicos das mulheres (incluindo
recebidas por homens e o próprio direito à vida) estão seriamente
mulheres; comprometidos por sistemas de crenças e
valores de matriz fortemente patriarcal.
• na segmentação horizontal e
vertical do emprego;
O androcentrismo da ciência é um eixo
• nos tempos de trabalho, estruturante deste Guião, abordado em
remunerado e não remunerado, todos os capítulos. Sobre o pensamento
androcêntrico, sugere-se em especial
e de lazer de homens e
a consulta do capítulo “A Filosofia no
mulheres; Secundário lida numa Ótica de Género”.
• na participação nas instâncias
de decisão política e económica.
Desconstruir Programa
de ECONOMIA
O
s enviesamentos de género do Bruto (PIB) ou o Produto Nacional Bruto (PNB),
discurso económico podem que contabilizam apenas bens e serviços com
aperceber-se, desde logo, na preço monetário. As “violentas” contradições
própria definição de alguns dos inerentes a este método foram muito
conceitos, classificações e categorias analíticas expressivamente equacionadas por Arthur Pigou
fundamentais para abordar as problemáticas aquando dos seus esforços para a delimitação
económicas. Assim é, por exemplo, no que do conteúdo ‘mensurável’ do produto económico
respeita aos indicadores da riqueza agregada de um país, na origem dos indicadores que hoje
criada num país, como sejam o Produto Interno utilizamos (ver texto em caixa).
“ Os tipos [de bens] comprados e não comprados não diferem uns dos outros em nenhum
aspeto fundamental e, frequentemente, um bem não comprado é transformado num comprado
e vice-versa. Isto conduz a um certo número de paradoxos violentos. […] Também os serviços
prestados por mulheres entram no produto quando são prestados em troca de salários, seja na
fábrica ou no lar, mas não entram nele quando são prestados por mães e esposas gratuitamente
para suas próprias famílias. Assim, se um homem se casa com a sua empregada ou com a sua
cozinheira, o dividendo [produto] nacional é diminuído. ”
Arthur Pigou, 1932: 32.
0430
430 CIG
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A Economia e a Vida de Homens e de Mulheres l
Propostas
Propostas
na sua página web, obtém-se a definição das para a produção de bens e serviços que entram
categorias usadas para quantificar as pessoas no circuito económico” e as que têm um
em “condições para trabalhar”, as “disponíveis “trabalho remunerado”, ou seja, um emprego.
População ativa
Conjunto de indivíduos com idade mínima de 15 anos que, no período de
referência, constituíam a mão-de-obra disponível para a produção de bens e
serviços que entram no circuito económico (empregados e desempregados).
População inativa
Conjunto de indivíduos, qualquer que seja a sua idade, que, no
período de referência, não podiam ser considerados economicamente
ativos, isto é, não estavam empregados, nem desempregados.
Empregado
Indivíduo com idade mínima de 15 anos que, no período de referência, se encontrava
numa das seguintes situações: a) tinha efetuado trabalho de pelo menos uma hora,
mediante pagamento de uma remuneração ou com vista a um benefício ou ganho
familiar em dinheiro ou em géneros; b) tinha um emprego, não estava ao serviço,
mas tinha uma ligação formal com o seu emprego; c) tinha uma empresa, mas
não estava temporariamente ao trabalho por uma razão específica; d) estava em
situação de pré-reforma, mas encontrava-se a trabalhar no período de referência.
Desempregado
Indivíduo, com idade mínima de 15 anos que, no período de referência, se
encontrava simultaneamente nas situações seguintes: a) não tinha trabalho
remunerado nem qualquer outro; b) estava disponível para trabalhar num
trabalho remunerado ou não; c) tinha procurado um trabalho, isto é, tinha
feito diligências no período especificado (período de referência ou nas três
semanas anteriores) para encontrar um emprego remunerado ou não.
Doméstico
Indivíduo que, não tendo um emprego nem estando desempregado, se ocupa
principalmente das tarefas domésticas no seu próprio lar.
INE, http: http://smi.ine.pt/
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Propostas
Propostas
0434
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
A Economia e a Vida de Homens e de Mulheres l
11.2.1. Propostas
E
m Economia, usa-se a expressão O gráfico da página seguinte confirma como a
“disparidades de género” taxa de emprego das mulheres europeias (63%)
(gender gaps, em inglês) para referir é inferior à dos homens (75%), situação esta
as diferenças sistemáticas entre os partilhada por todos os países da UE, ainda que
homens e as mulheres no mercado de trabalho. com intensidades variáveis. Verifica-se também,
Estas diferenças verificam-se em vários domínios, por outro lado, que o regime de trabalho a tempo
como a participação na força de trabalho, os tipos parcial é muito mais comum para as mulheres
de ocupações ou a remuneração recebida por do que para os homens: no conjunto da UE. Em
cada hora de trabalho. Não admira pois que estes 2010, 34,9% das mulheres trabalhavam neste
sejam temas dominantes nos manuais académicos regime, contra apenas 8,6% dos homens.
de Economia que abordam esta problemática
(vejam‑se, a este propósito, as obras de Mukesh Quais as principais implicações desta
Eswaran, 2015; Francine Blau, Anne Winkler e desigual participação de mulheres e homens no
Marianne Ferber 2013; Deborah Figart e Tonia mercado de trabalho?
Warnecke, 2013; Joyce Jacobsen, 2007). E quais os fatores que a explicam?
5 Vejam-se também, a propósito, as prioridades da Estratégia Europa 2020, nomeadamente no que respeita à prioridade “Cres-
cimento Inclusivo”, em http://ec.europa.eu/eurostat/tgm/table.do?tab=table&init=1&language=en&pcode=t2020_10
Propostas
Taxa de emprego das mulheres Parcela de emprego a tempo parcial das mulheres 16,3% dos homens,7 ao que
Taxa de emprego dos homens Parcela de emprego a tempo parcial dos homens não era alheio o facto de elas
90 receberem um montante médio
80
de pensão 38,5% menor do
que os homens.
70
0436
436 CIG
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A Economia e a Vida de Homens e de Mulheres l
Propostas
Quadro 1
Impacto da parentalidade no emprego:
diferença entre as taxas de emprego das A exceção portuguesa
pessoas com e sem filhos até 6 anos, no
A maternidade é claramente penalizadora do emprego
grupo etário 20-49 anos, em 2012, em
pontos percentuais 8. feminino. Os números não deixam dúvidas: as mães
com filhos até aos 6 anos de idade apresentam taxas de
Mulheres Homens emprego quase 10 pontos percentuais abaixo das outras
EU-27 -9,7 11,4 mulheres na União Europeia. O contrário acontece com
Bélgica -0,3 12,3 os pais, cuja taxa de emprego é claramente superior à dos
homens em geral.
Bulgária -16,0 9,0
Rep. Checa -35,7 9,6 Mas também é verdade que as realidades são diferentes,
Dinamarca -2,0 10,7 de país para país. Na república Checa, na Hungria e na
Eslováquia os valores excedem mais de 30 pontos de dife-
Alemanha -18,2 8,0
rença negativa para as mães, mais do triplo da média euro-
Estónia -24,4 14,4 peia. Pelo contrário, na Eslovénia, na Suécia e, sobretudo,
Irlanda -10,8 10,3 em Portugal, as mães de filhos pequenos apresentam taxas
Grécia -1,0 17,1 de emprego superiores às outras mulheres.
Espanha -1,5 14,2 Estas diferenças entre países significam que a maternidade
França -6,3 11,8 e a paternidade não implicam necessariamente que as mães
tenham que sacrificar a sua participação no emprego.
Itália -2,0 15,7
Chipre -3,7 13,0 Os valores culturais, as normas sociais, a legislação de prote-
Letónia -9,6 12,6 ção da família (existência e duração de licenças de materni-
dade e paternidade, por exemplo) e a disponibilidade de
Lituânia -0,7 15,4
serviços públicos de apoio (creches, jardins de infância,
Luxemburgo -0,8 12,3 centros de ocupação de tempos livres), com qualidade,
Hungria -32,6 9,8 horários e preços adequados e acessíveis às famílias, são
Malta -6,3 11,3 determinantes para a possibilidade de conciliar a materni-
dade (e a paternidade) com a carreira.
Holanda -2,5 10,0
Áustria -9,8 6,4 Em Portugal, a cobertura de creches e escolas pré-primá-
Polónia -9,8 15,2 rias é das maiores da União Europeia e os pais têm vindo a
assumir cada vez mais um papel ativo no cuidado aos seus
Portugal 3,4 13,4
filhos pequenos. Ainda assim, estamos longe da situação
Roménia -3,1 8,2 desejável. Muitas mães são obrigadas a fazer um grande
Eslovénia 1,6 15,2 esforço para manterem a sua carreira, o que as obriga a
Eslováquia -31,8 12,2 trabalhar mais horas do que os seus companheiros, em
média, quando se somam as horas de trabalho remune-
Finlândia -17,4 11,8
rado com o trabalho doméstico. Em contrapartida, alguns
Suécia 0,8 13,9 pais (homens) gostariam de partilhar mais tempo com os
Reino Unido -18,3 8,2 seus filhos.
Fonte: Eurostat, Inquérito ao Emprego, retirado de European
Comission, 2013, adaptado.
Propostas
Já as mães apresentam
menores taxas de emprego do
que as outras mulheres, em
conformidade com os papéis
de cuidadoras e criadoras dos
filhos que tradicionalmente lhes
são atribuídos.
Conciliar o trabalho e as
responsabilidades familiares
não é tarefa fácil, sobretudo
quando se tem filhos
pequenos. A sociedade atribui Figura 1. A partilha equilibrada do trabalho doméstico
esse tipo de responsabilidade facilita a conciliação entre as várias esferas da vida
às mulheres, o que conduz a Fonte: Yadid Levy – norden.org
que elas dediquem mais tempo
do que os homens à realização número de horas de trabalho, Não admira pois que os
das tarefas domésticas e remunerado e não remunerado, inquéritos à vivência subjetiva
familiares. Poucos homens realizado pelas mulheres é do tempo revelem que as
gozam a licença parental a significativamente maior do mulheres sentem com maior
que têm direito ou trabalham a que o dos homens. Por outro ansiedade os problemas da
tempo parcial para cuidar dos lado, as oportunidades de falta de tempo. Mas, como
filhos9. progressão na carreira e de sublinha Maria Angeles
Embora, no local de trabalho, acesso a remunerações mais Durán (2007), tal não tem
os homens trabalhem, em elevadas também são afetadas nada a ver com genética ou
média, mais horas do que pelas responsabilidades peculiares idiossincrasias
as mulheres, o total do familiares das mulheres. femininas. Deve-se, isso sim,
à acumulação de papéis e
expectativas que atualmente
“ No âmbito de um projeto de investigação realizado no Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra foram inquiridos, em
recaem sobre as mulheres.
E nada obriga a que assim
2014, 1001 casais portugueses com filhos, acerca dos tempos dedica-
seja, a não ser as convenções
dos a trabalho doméstico e parental pela mãe e pelo pai. Os resultados
sociais, os valores culturais e a
revelam que, nos casais em que ambos os cônjuges estavam emprega-
dos, as mães dedicavam em média, nos dias da semana, mais 2 horas tradição.
diárias àquele tipo de tarefas do que os pais. A desigualdade aumentava
nos fins de semana, já que o valor daquela diferença se aproximava de Na verdade os diferentes
”
3 horas diárias. países da UE apresentam
Raquel Ribeiro, Lina Coelho e Alexandra Ferreira Valente, 2015:76. situações muito variadas de
participação das mulheres
no emprego e nas diferenças
0438
438 CIG
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A Economia e a Vida de Homens e de Mulheres l
Propostas
100%
Só a mulher aufere
remuneração
90%
80%
A remuneração da mulher
70% é superior à do homem
60%
Remunerações iguais
50%
20%
A mulher não aufere
remuneração
10%
0%
MT
NL
AT
LU
IT
DC
CZ
CL
CS
DE
UK
IS
NO
PL
SK
RO
FR
PT
CC
I
SC
IU
GB
LV
DK
SI
LT
Gráfico 2. Casais, por contribuição do homem e da mulher para o rendimento da família, 2009.
Fonte: EU-SILC, 2010, cálculos ENEGE, retirado de European Comission, 2013, adaptado.
de participação dos homens e das mulheres. fazendo. Enquanto crianças, espera-se, por
Senão, vejamos. A taxa de participação feminina exemplo, que os meninos brinquem com
na Grécia era de apenas 59%, em 2014, carros ou bolas e encara-se mal que brinquem
enquanto a da Suécia atingia 79,3%10. O que com bebés chorões ou trens de cozinha. Já
pode justificar uma diferença tão expressiva? das raparigas, aceita-se melhor que usem
As sociedades nórdicas têm desenvolvido estes brinquedos e não os “dos rapazes”.
processos coletivos de consciencialização, As meninas que querem jogar futebol tendem
alteração de valores, normas sociais e a ser desencorajadas, o mesmo acontecendo
legislativas, que conduziram a mudanças na com os meninos que gostam de dança
divisão sexual do trabalho mais pronunciadas clássica. Estes processos de socialização,
do que as ocorridas noutros países, como a decorrentes de valores e crenças tradicio
Grécia ou a Itália. Contudo, mesmo nos países nalmente associados ao género, também
mais avançados em matéria de igualdade de influenciam percursos escolares e vocacionais.
género, a participação feminina na formação Assim, os rapazes tendem a optar mais por
do rendimento familiar é menor do que a formações de natureza técnica (engenheiro,
masculina (como evidencia o gráfico em cima, mecânico, eletricista) e as raparigas por
comparando a parte azul das barras com a profissões mais ligadas ao cuidado das
parte em tons de rosa e vermelho). pessoas (educadora de infância, enfermeira,
assistente social)11. Esta tendência para a
As tradições e os papéis sociais em função do segregação no emprego tem implicações
sexo determinam desde cedo os percursos e também em termos de disparidades salariais,
escolhas que as mulheres e os homens vão como veremos de seguida.
11.2.2. Propostas
A
A situação
s disparidades salariais entre em 2013, na
em Portugal
mulheres e homens correspondem União Europeia
e na União
às diferenças sistematicamente as mulheres
Europeia
observáveis na remuneração média ganhavam, em
por hora de trabalho. Embora tais diferenças, média, menos
em desfavor das mulheres, constituam uma 16,4% do que
regularidade universal, o seu valor varia de os homens e, embora este valor tenha vindo
país para país. Segundo dados do Eurostat, a decrescer em geral, nalguns países as
0440
440 CIG
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Propostas
Propostas
16 Exemplos dos dois tipos de discriminação podem encontrar-se em CITE (2012), página 23, em:
http://www.act.gov.pt/%28pt-PT%29/crc/PublicacoesElectronicas/Documents/Instrumentos_apoio_a%C3%A7ao_inspetiva_
combate_discrimina%C3%A7ao.pdf.
0442
442 CIG
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A Economia e a Vida de Homens e de Mulheres l
Propostas
Propostas
por mulheres. Assim, por exemplo, uma Supremos (apenas 5% de juízes eram mulheres
empregada de caixa de um supermercado quando a média da UE era 34%)17.
ganha menos do que um homem que trabalha
no armazém. Entre outros fatores que podem determinar
As capacidades das mulheres são muitas remunerações mais baixas para as mulheres do
vezes subvalorizadas por serem consideradas que para os homens incluem-se as sequelas
um reflexo das características ‘femininas’, mais da violência de género e doméstica, da qual as
do que aptidões e competências adquiridas, mulheres são a esmagadora maioria das vítimas.
através de esforço, empenho ou estudo. Este Num artigo recente, Jeni Klugman (2015) chama
tipo de preconceito sexual pode refletir-se na a atenção para a redução da produtividade do
fixação dos salários e na avaliação do trabalho trabalho e o aumento do absentismo por parte
realizado pelas mulheres. de mulheres vítimas de violência, daí resultando
inevitáveis perdas de remuneração. Os efeitos
• As mulheres estão muito da violência reduzem a capacidade de trabalho
sub-representadas nos cargos das vítimas, quer direta quer indiretamente,
de decisão política e económica, porque induzem o desenvolvimento de
que são mais bem remunerados. várias doenças do foro físico e psicológico
Isto acontece mesmo nos setores em que as (como lesões agudas, dor crónica, doenças
mulheres estão em grande maioria. Em 2013, gastrointestinais e ginecológicas, depressão)18.
nos conselhos de administração das maiores A violência de género constitui um fator de
empresas cotadas em bolsa na UE apenas grande sofrimento humano e uma violação
17,6% dos membros e 4,8% dos presidentes grave de direitos humanos, mas também origina
eram mulheres. A proporção de diretoras prejuízos económicos, pelos custos que impõe à
executivas era ainda mais baixa – apenas sociedade (através da redução da produção mas
2,8%. Portugal apresentava uma das piores também pela necessidade de recurso a serviços
posições no conjunto dos 28 países membros, de saúde, jurídicos e outros), às famílias e às
não apenas nos lugares de decisão das próprias vítimas. Embora escasseiem estatísticas
empresas mas também de instituições públicas fiáveis sobre a incidência deste tipo de violência,
importantes como o Banco Central (sendo a Agência dos Direitos Fundamentais da União
um dos 5 países sem mulheres no respetivo Europeia (FRA, 2014) estimou que, entre as
Conselho de Administração), o Governo mulheres com idade superior a 15 anos, 33% já
(apenas 15% de ministros eram mulheres foram vítimas de violência na UE, sendo 24% o
quando a média da UE era 27%), nos Tribunais valor para Portugal 19.
17 Informação adicional e atualização de dados pode encontrar-se em European Commission – Directorate-General for Justice:
http://ec.europa.eu/justice/gender-equality/tools/statistics-indicators/index_en.htm
18 Ver, a propósito, Klugman, Jeni et. al. (2014) e Beydoun, Hind A. et. al. (2012).
19 Consultar em http://fra.europa.eu/en/theme/gender
0444
444 CIG
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11.2.3. Propostas
Desenvolvimento Programa
de ECONOMIA
O
crescimento económico a igualdade de género torna-se
sustentado é uma condição preocupação central na medida em
necessária mas não suficiente
que, um pouco por todo o mundo,
para alicerçar processos de
desenvolvimento, entendidos como processos ainda que com intensidades variáveis
de mudança económica, social, cultural e em diferentes países e regiões,
institucional que ampliam as possibilidades as mulheres são discriminadas na
de realização plena de todas as pessoas. saúde, na educação e no mercado
A perspetiva do Desenvolvimento Humano,
de trabalho, o que restringe as
consagrada nos Relatórios do Desenvolvimento
Humano, anualmente publicados pelo Programa suas liberdades e limita as suas
das Nações Unidas para o Desenvolvimento possibilidades de realização humana.
(PNUD), reflete esta conceção de
desenvolvimento20. O Relatório do Desenvolvimento Humano inclui
um indicador especificamente vocacionado para
A equidade no acesso a rendimentos, mas aperceber esta dimensão do Desenvolvimento:
também a recursos e oportunidades, é o Índice de Desigualdade de Género (IDG).
parte essencial de qualquer processo de Este tem como objetivo medir a perda de
Desenvolvimento Humano. Nesse sentido, desenvolvimento humano potencial que se deve
20 Na página WEB do PNUD dedicada aos Índices de Desenvolvimento Humano (hdr.undp.org) podem encontrar-se diversos
recursos com interesse pedagógico, nomeadamente nas opções ‘Countries’ e ‘HDialogue’. Podem também encontrar-se aí os
sucessivos relatórios anuais.
Propostas
0446
446 CIG
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Propostas
Propostas
Nos últimos anos, este problema foi ainda O Relatório do Desenvolvimento Humano de
agravado pela disseminação e uso indevido 2013 conclui que a melhoria da equidade de
de tecnologias de ultrassons que permitem género naqueles países supõe reformas políticas
aos pais exercer mais facilmente as suas e sociais profundas, capazes de melhorar
preferências pelos rapazes, através de aborto os direitos humanos das mulheres, incluindo
seletivo. a liberdade, a dignidade, a participação, a
autonomia e a ação coletiva.
0448
448 CIG
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11.3.
Conclusão
A
corrente que dominou o as problemáticas de género no programa de
pensamento (e o ensino) da Economia do ensino secundário. As propostas
Economia ao longo do último feitas revelam os enviesamentos de género
século – a chamada teoria de que enfermam algumas das principais
neoclássica – constitui uma teoria axiológica categorias analíticas construídas pelo discurso
do comportamento humano, centrada no Económico, como as usadas para mensurar o
conceito de homo economicus, ou seja, numa bem-estar e o trabalho. Evidenciam também
abstração de ser humano, entendido como como os diferentes papéis socialmente atribuídos
indivíduo autónomo e autossuficiente, dotado determinam desigualdades (de participação e
de plenas capacidades físicas e intelectuais, remuneração) no mercado de trabalho entre os
desapegado dos demais e dominado por uma homens e as mulheres. Destacam ainda que o
racionalidade egoística. Esta abstração de desenvolvimento económico entendido como
pessoa humana não deixa espaço às questões desenvolvimento humano implica a eliminação
atinentes à reprodução e ao cuidado devido às das diferenças, de liberdade de escolha e
pessoas dependentes, em geral, que assim são de oportunidades de vida, entre os homens
omitidas na narrativa Económica prevalecente. e as mulheres. O recurso a indicadores de
Introduzir a problemática das desigualdades desenvolvimento humano ‘sensíveis ao género’,
de género no ensino da Economia significa, como o índice de desigualdade de género
sobretudo, desocultar a importância do desenvolvido pelo PNUD, permite evidenciar
trabalho de “criar e cuidar” para a satisfação de os resultados desiguais (nalgumas sociedades,
necessidades humanas essenciais e fundamenta mesmo radicalmente desiguais) da atividade
a necessidade de valorizar este tipo de trabalho económica para os homens e as mulheres,
e de compreender e agir sobre as normas bem assim como as limitações ao potencial
e valores que sustentam as desigualdades de crescimento económico que decorrem do
de escolha e comando sobre os recursos desaproveitamento das competências, talentos e
económicos entre os homens e as mulheres. criatividade da metade feminina da humanidade.
Trata-se pois, inequivocamente, de transformar
a Economia numa ciência dedicada ao estudo Os contributos deste capítulo constituem
mais realista das condições materiais da sobretudo tópicos de referência, apresentados
existência humana e à melhoria das condições de forma necessariamente sucinta, que docentes
de vida, em geral, para todos e todas. e estudantes poderão aprofundar e desenvolver
com recurso às fontes bibliográficas e aos
Neste capítulo procurámos exemplificar, através recursos que fomos explicitando ao longo do
de alguns tópicos fundamentais, como introduzir capítulo.
Porque a primeira condição para transformar concorrendo para suprir “visões economicistas,
a realidade é conhecê-la, esperamos insuficientes face à unidade da realidade
assim contribuir para um ensino e uma social”, em conformidade com os objetivos do
aprendizagem mais realista da Economia, programa da disciplina, a que fizemos referência
com homens e mulheres lá dentro, na introdução.
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0452
452 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
12.
* As autoras agradecem o convite que lhes foi endereçado, em finais de 2014, para participar nesta
obra, e finalizaram este texto em agosto de 2015 tendo feito atualizações pontuais em 2016 e 2017.
0454
454 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
12.1.
Introdução
O
s objetivos prosseguidos deverá organizar-se anualmente em dois
no processo de ensino/ módulos de 36 horas, constituídos por três
aprendizagem são de natureza Temas-problema. Cada um destes módulos
cognitiva, fundamentalmente. deverá incluir Temas-problema das três
Consideramos, no entanto, igualmente Áreas propostas. No final de três anos (ou da
importantes, ou mais até, os objetivos que se organização temporal respetiva) deverão ter
reportam à mudança de atitude e valores e à sido lecionados 6 módulos que abordarão 18
capacidade de adaptação das pessoas aos Temas-problema.
contextos espacial e temporalmente definidos, Para abrir o mais possível o leque de escolhas
na medida em que a Área de Integração se da e do docente da disciplina, incluímos neste
inclui no quadro da componente sociocultural guião novas abordagens a seis dos temas-
do currículo de formação dos cursos -problema incluídos no programa, distribuindo
profissionais. A transversalidade intrínseca dois por cada uma das três grandes áreas. As
aos sistemas de valores transposta para o várias combinatórias possíveis podem seguir
programa procura potenciar essa capacidade diversas lógicas – ou uma lógica de coerência
de adaptação a um mundo laboral, mas não interna, tal como é sugerido no programa
só, em constante e diríamos mesmo em proposto oficialmente, ou uma lógica de
turbulenta mudança. complementaridade pela diversidade.
1 Cf. Direcção-Geral de Formação Vocacional, Programa da Componente de Formação Sociocultural – Disciplina de Área de
Integração (Cursos Profissionais), 2004/2005, [em linha] disponível em http://www.catalogo.anqep.gov.pt/programascp/CP_
FSC_Area_Integracao.pdf, (consultado em novembro de 2014).
encontram da realidade
do mercado de
Vejam-se, por exemplo, as frases:
trabalho ou naqueles
para os quais as alunas “Investigar sobre o conceito de Inteligência:
e os alunos possuem será o homem o único ser inteligente?” (pág. 12);
já alguma familiaridade “Compreender como todo o comportamento é
pelo facto de serem comunicação (“ninguém pode não comunicar”,
recorrentemente ou o destino social do homem)” (pág. 16);
referidos nos meios de “Compreender o trabalho como suporte de
comunicação social. sobrevivência pessoal e das sociedades, do homem
Enquadram-se no recolector à produção e troca de recursos de
primeiro critério temas subsistência, ao esclavagismo e servilismo, em vários
como a segregação momentos da História do Ocidente” (pág.51);
das estruturas do “Identificar a Lei como produto da relação do
mercado de trabalho homem com o divino (as teocracias) e as instituições
em razão do sexo, sociais (a normatividade sufragada)” (pág.80).
a conciliação entre
Programa da Componente de Formação Sociocultural
esferas da vida ou o - Disciplina de Área de Integração, 2004/2005.
empreendedorismo
feminino.
0456
456 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
Feita esta nota prévia, apresentamos em seguida as várias secções que compõem este capítulo:
, O assédio sexual e os direitos humanos, , Tráfico de seres humanos,
abordagem sugerida para: abordagem sugerida para:
2.3. A construção da democracia 7.1. Cultura Global ou
2.2. A construção do social; Globalização das Culturas
, Conciliação trabalho-família, proposta para: 8.1. Das Economias-mundo
2.1. Estrutura familiar e dinâmica familiar à Economia Global;
6.3. As organizações do trabalho; , Género e religião, proposta para:
, Segregação sexual dos mercados de 9.3. A experiência religiosa como afirmação
trabalho, sugestão para: do espaço espiritual no mundo
6.1. O trabalho, a sua evolução 9.1. Os fins e os meios: que
e estatuto no Ocidente Ética para a vida humana?
6.3. As organizações do trabalho;
, Empreendedorismo feminino, Segue-se o desenvolvimento dos temas,
proposta para: pela ordem apresentada. Em cada um deles,
6.2. O desenvolvimento de novas atitudes no é feita uma breve introdução de sugestão
trabalho e no emprego: o empreendedorismo; para a respetiva abordagem ao programa.
12.2. ÁREA I
A PESSOA
Unidade Temática
O Assédio Sexual: O sujeito
lógico-
violência contra psicologico
de trabalho democracia
O
assédio sexual foi definido em Mulheres e a Violência Doméstica, vulgarmente
1992, pela Comissão Europeia (CE), designada Convenção de Istambul, reiterou,
como um atentado à dignidade das mais recentemente (2011), a necessidade
mulheres e dos homens no trabalho de combater o assédio sexual, entre outras
(ver definição na caixa). formas de violência estrutural. Com efeito,
estabelece no seu artigo 40.º que devem ser
A Convenção do Conselho da Europa para a adotadas as “medidas legislativas ou outras
Prevenção e o Combate à Violência Contra as que se revelem necessárias para assegurar que
qualquer conduta indesejada
verbal, não-verbal ou física, de
carácter sexual, tendo como
Definições de assédio sexual (Comissão Europeia)
objectivo violar a dignidade
“ O assédio sexual significa um comportamento indesejado de carác-
ter sexual ou outros comportamentos em razão do sexo que afectem a
de uma pessoa, em particular
quando esta conduta cria um
dignidade das mulheres e dos homens no trabalho. Esta definição pode ambiente intimidante, hostil,
incluir quaisquer outros comportamentos indesejados do tipo físico,
degradante, humilhante ou
verbal ou não verbal.” ofensivo, seja objecto de
Recomendação da Comissão Europeia sanções penais ou outras
(92/ 131 /CEE) (CE, 1992) (CE, 1992).
sanções legais”.
0458
458 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
e/ou
"o assédio sexual está
intimamente associado c) Tais comportamentos criarem um ambiente intimidador, hostil ou
humilhante para a pessoa a quem se dirigem, e de que tais comporta-
com o poder e tem
mentos podem, em determinadas circunstâncias, ser contrários ao prin-
lugar em sociedades cípio da igualdade de tratamento, na acepção dos artigos 3.º, 4.º e 5.º da
que frequentemente Directiva 76/207/CEE. ”
tratam as mulheres Recomendação (92/ 131 /CEE) (CE, 1992).
como objetos sexuais
e cidadãos de segunda
classe" (OIT, 1992).
respeito pelos direitos humanos, Caracterização
Em síntese, constitui, a par sem a procura da justiça e da do assédio sexual
de outras violências, um igualdade, pelo que faz todo
mecanismo através do qual o sentido que a Declaração Os estudos indicam que
“as mulheres são mantidas Universal dos Direitos Humanos o assédio é degradante,
numa posição de subordinação seja um dos “documentos assustador e às vezes
em relação aos homens” (COE, considerados fundamentais fisicamente violento,
2011: 3). É, por isso, também para a construção da estendendo-se frequentemente
que é considerado uma forma democracia a nível planetário” por um período considerável de
de discriminação sexual. e seja proposta a sua análise tempo. Dele resultam graves
no âmbito do programa da consequências relacionadas
Na Área I, dedicada à Pessoa, Área de Integração. O assédio com o emprego, a atividade
na Unidade Temática O Sujeito sexual é, de facto, uma profissional e a saúde das
Lógico-Psicológico, o tema forma grave de violência vítimas. Porém, as repercussões
problema 2.3, relativo à que constitui “uma violação não se fazem sentir
“Construção da Democracia”, grave dos direitos humanos apenas nos alvos. Toda a
parece ser aquele que de das mulheres e raparigas organização é afetada.
forma mais pertinente acolhe a e um obstáculo grande à
abordagem do assédio sexual realização da igualdade entre Os principais aspetos a
numa ótica de género. Não as mulheres e os homens” tomar em conta relativamente
pode haver democracia sem (COE, 2011: 3). ao assédio sexual
2 A secção que se segue é retirada do Manual de Formação de Formadores/as em Igualdade entre Mulheres e Homens, editado
pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, da autoria de várias autoras, entre as quais a autora deste módulo
sobre assédio sexual (cf. CITE, 2003: 117-120).
0460
460 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
3 Este estudo foi conduzido por Anália Torres, no Centro de Investigação e Estudos de Género, apoiado pela Comissão para a
Cidadania e Igualdade de Género e pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, com financiamento do progra-
ma EEAGrants. Os resultados definitivos estão disponíveis em Anália Torres et al., 2016.
0462
462 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
Isabel Dias sublinha que nas profissões mais • que acedem pela primeira
feminizadas, como enfermagem, prestação vez a sectores ou categorias
de cuidados ao domicílio, guarda de crianças
profissionais tradicionalmente
ao domicílio e empregadas domésticas, o
masculinos e em que as mulheres
risco de assédio sexual é maior. Faz, porém,
também uma referência a um tipo de mulher estão sub-representadas;
especial – ativa, “emancipada e autónoma” – • jovens que acabam de conseguir
que muitas vezes é interpretada pelos homens o seu primeiro emprego, em geral
como sendo sexualmente disponível. Também
de caráter temporário e precário;
as organizações que promovem políticas
de género discriminatórias tendem a criar • imigrantes;
“ambientes hostis” que potenciam o assédio
• jovens homossexuais;
sexual e a hostilidade contra as mulheres.
• que trabalham nos sectores
A autora inclui nesse tipo de organizações as de atividade de maior risco:
“ocupações profissionais que comercial e hospitalar.
têm como implícito que a
As mulheres que chegam a denunciar o
masculinidade é um requisito para
assédio, que a mesma autora estima em
a empregabilidade, (….) como é apenas 1% das vítimas, apresentam um perfil
o caso das profissões ligadas às totalmente diferente marcado pela sindicalização
forças de segurança, à indústria e pela segurança da sua situação profissional
automóvel, à justiça, entre outras” em empresas de grande dimensão (2001: 16).
(2008: 14). Deirdre McCann, por seu turno, indica que
alguns grupos de homens também estão
mais expostos ao assédio, especialmente
Alexandra Marques Serqueira está entre
os muito jovens, gays, pertencentes a
as/os autoras/es que apelidam esta
minorias étnicas e que trabalham em locais
modalidade como assédio de intimidação,
de trabalho muito feminizados (2005: 5)
que, ao contrário do assédio por chantagem
(do tipo do qui pro quo), não implica
necessariamente dolo, contudo, para que o Políticas de combate ao
alvo possa invocá-lo basta que o resultado assédio sexual
se tenha produzido, independentemente da
intenção de quem assediou (2014: 79). Donde se compreende que várias instâncias
intergovernamentais, como a Comissão
Ana García et al. identificam os Europeia e a Organização Internacional do
seguintes grupos de mulheres Trabalho, já referidas, desenvolvam iniciativas
como alvos mais frequentes: no sentido de incentivar os governos a tomar
• mais dependentes medidas legislativas de combate e prevenção
do assédio sexual e de convencer as entidades
economicamente, sós e com
empregadoras e sindicais a desenvolverem
responsabilidades familiares esforços no sentido de erradicarem esta forma
(mães solteiras, viúvas, de violência que tantos impactos negativos
separadas, divorciadas). tem na vida das pessoas e das organizações
4 O Código do Trabalho foi aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, alterada pela Lei n,º 105/2009, de 14 de setembro,
pela Lei n,º 53/2011, de 14 de outubro, e pela Lei n.º 23/2012, de 25 de junho. No caso de se ter interesse em aprofundar o
enquadramento jurídico deste problema, há duas publicações recentes que facilitam essa tarefa: as autoras Tatiana Morais et al.
fizeram um estudo comparativo do enquadramento legal português em comparação com o de outros países - Brasil, Canadá,
Espanha e França (2014). João Pena dos Reis coordenou para o Centro de Estudos Judiciários um caderno de formação inicial
também dedicada ao Assédio no Trabalho, um e-book do qual constam mais de 20 acórdãos de tribunais que compõem o
essencial da jurisprudência nacional (2014).
0464
464 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
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0466
466 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
12.3. ÁREA I
A PESSOA
Unidade Temática 1
Conciliação O sujeito lógico-
trabalho-família psicologico
Tema-problema 2.1
A estrutura familiar
e dinâmica familiar
ÁREA II
E
m contextos de acentuada As dificuldades A SOCIEDADE
imprevisibilidade e desregulação das de conciliação
condições de vida e de trabalho das acarretam diversos Unidade Temática 6
pessoas, a articulação das várias problemas para O mundo do
esferas de vida, em especial da profissional e os indivíduos, para trabalho
familiar, emerge como preocupação crescente as organizações e Tema-problema 6.3
As organizações
por parte de governos, organizações e para a sociedade
do trabalho
indivíduos. Fala-se em conciliação, como o em geral.
processo complexo de relação entre as esferas
familiar e profissional dos sujeitos; uma relação
que é variável, porque sujeita a diversos fatores Consequências das
de natureza individual (os recursos dos sujeitos, dificuldades de conciliação
os seus papéis atribuídos e assumidos,
etc.); de natureza organizacional (práticas Promover as condições de conciliação e a
de gestão, políticas organizacionais,…) e de redução da tensão entre as várias esferas
natureza societal e política (políticas públicas é uma forma de promover a igualdade de
facilitadoras da conciliação, por exemplo)5. oportunidades e de resultados de homens e
Com efeito, a combinação de um mercado mulheres, para que uns e outras possam fazer as
de trabalho extremamente exigente, com suas opções de vida de forma mais equilibrada,
a falta de suporte e de flexibilidade no com menos penalizações no trabalho, na sua
local de trabalho, assente numa lógica de carreira, na vida familiar e pessoal. Contribui
“presentismo” e de longas horas de trabalho, também para maior eficácia e eficiência das
de imprevisibilidade e atipicidade horária, com organizações de trabalho, estimando-se os seus
a incapacidade das famílias para dar apoio impactos em termos de melhoria dos níveis de
nos cuidados intergeracionais a dependentes, satisfação, motivação e de produtividade.
resultam em grandes sobrecargas de trabalho,
de responsabilidades e na falta de tempo A questão que se coloca é como podem as
para a família, experimentadas por muitas famílias assegurar o cuidado das crianças e/ou
trabalhadoras e trabalhadores. de pessoas dependentes, os cuidados da
5 As questões da articulação entre a atividade profissional e as restantes atividades em que cada pessoa se envolve são hoje
extremamente importantes. Consideramos, no entanto, que os dois tipos de atividade que oferecem maior dificuldade de com-
patibilização são precisamente as que são desenvolvidas no campo profissional e familiar, por isso, não usamos a convencional
tríade do trabalho, da família e da esfera pessoal.
por:
por: Virgínia
Rosa Monteiro
Ferreira 467
0467
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
0468
468 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
diferencial semanal de trabalho semanal total numa influência clara do modelo familiar de tipo
(pago e não pago) de mais de 13 horas, uma “ganha-pão masculino”, em que o homem é o
vez que os homens afetavam apenas mais 2 “provedor do lar” e a mulher a cuidadora.
horas e 24 minutos ao trabalho que é pago6.
Sobre a emergência, afirmação e
É por ação das próprias pessoas, das generalização deste modelo na sociedade
organizações, instituições e sociedade em ocidental, ver o capítulo “Reposicionando
geral que as assimetrias na distribuição das Mulheres Homens na História Ensinada”,
responsabilidades e tarefas se vai reproduzindo, deste Guião, em especial o sub-capítulo
com penalização para as mulheres porque as “Quotidianos de trabalho”.
expectativas de dedicação à esfera privada as
impedem de uma maior e melhor participação É fundamental alterar esta conceção e esta
no domínio público do trabalho e da participação ideologia, que influencia os indivíduos, as
cívica, e para os homens porque as expectativas organizações e as próprias políticas públicas e
de dedicação exclusiva ao domínio público do
impõe barreiras à conciliação de esferas.
trabalho, os impede, muitas vezes, de assumir,
por exemplo, uma paternidade mais ativa.
Obstáculos à conciliação
Joan Acker (1992) e Arlie Hochschild (1997)
entendem que as entidades empregadoras se Os obstáculos à conciliação podem provir de
têm regido por conceções de “trabalhador ideal”, variadas fontes, entre as quais:
que trabalha a tempo inteiro e continuamente,
pressupondo-se que tem o apoio de retaguarda • das exigências e necessidades pro-
de alguém que assume o trabalho familiar, fissionais em termos de horários,
6 Cálculos da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, com base no 4º Inquérito Europeu às Condições de Traba-
lho de 2005 (CITE, 2012).
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
“ A licença de paternidade foi estabelecida em 1995 (Lei 17/95 – segundo a qual os pais podem
“faltar até dois dias úteis, seguidos ou interpolados, por ocasião do nascimento do filho”… sem
perda de remuneração e considerados prestação efetiva de serviço.
Apenas em 1999 (Lei 142/99) se introduziu pela primeira vez a “licença por paternidade” exclusiva
do pai obrigatória (5 dias úteis no 1º mês após o parto, paga a 100%), a par de outros benefícios
que aumentaram os direitos das mulheres e dos homens. Esta inovação legislativa fez subir o
número de homens que gozaram o seu direito a licenças, ao que não foi alheio o facto de serem
remuneradas. A mudança legislativa decisiva deu-se com o Código do Trabalho de 2009 que
passou a usar o conceito de direitos de parentalidade. A nova legislação ampliou de forma muito
significativa os direitos dos pais e das mães que trabalham por conta de outrem ou mesmo por
conta própria. Entre outras medidas, criou uma licença exclusiva do pai de 20 dias úteis a gozar no
período de licença da mãe (10 de gozo obrigatório no primeiro mês), induziu a partilha da licença
dando o bónus de mais um mês de licença ao casal no caso de partilha pelos cônjuges (o pai ou a
mãe deverão gozar em exclusivo pelo menos um mês de licença parental inicial).
Em Setembro de 2015, a licença exclusiva do pai foi alargada para 15 dias úteis obrigatórios, dos
quais 5 dias seguidos a gozar depois do nascimento da criança e os restantes 10 dias, seguidos ou
não, nos 30 dias seguintes ao nascimento. Foi ainda mantida a licença facultativa exclusiva do pai
de 10 dias úteis, seguidos ou não, desde que gozados depois do período de 10 dias obrigatórios e
durante o período em que é atribuído o subsídio parental inicial da mãe. No caso de nascimento
de gémeos cada um destes períodos é acrescido de 2 dias por cada criança nascida com vida, além
”
da primeira. (Cf. Lei Lei nº 120/2015, de 1 de setembro).
Fonte: http://www.cite.gov.pt/asstscite/downloads/Relat_Lei10_2014.pdf
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7 Disponível em http://www.cite.gov.pt/pt/acite/iGen.html
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
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APPSO. e-Working Paper 93/2010, CIES, pp. 1–55.
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por: Virgínia
Rosa Monteiro
Ferreira 473
0473
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
12.4. ÁREA II
A SOCIEDADE
Unidade Temática 6
Segregação sexual O mundo do
trabalho
dos mercados Tema-problema 6.1
O trabalho, a sua
de trabalho evolução e estatuto
no Ocidente
Tema-problema 6.3
As organizações
do trabalho
Conceito de segregação:
O
notável aumento da participação as mulheres são nele integradas,
das mulheres no trabalho remu mas em posições de inferioridade
nerado nas sociedades atuais
relativamente aos homens.
contrasta claramente com a
relativa continuidade observada nos padrões
De excluídas, as mulheres
da divisão sexual do trabalho. Por um lado, ao passaram a incluídas, mas
nível da composição sexual das estruturas do separadas, segregadas.
emprego, a esmagadora maioria das profissões
continua sem alcançar uma distribuição Para uma abordagem histórica da
equilibrada entre os sexos. Por outro lado, ao segregação sexual no mercado de trabalho,
nível do trabalho não-remunerado (familiar, ver o capítulo “Reposicionando Mulheres
doméstico e solidário), as mulheres dedicam-lhe e Homens na História Ensinada”, deste
cada vez menos tempo, mas os homens não Guião, em especial o subcapítulo
têm intensificado na mesma medida a sua “O século XX: entre a emancipação
participação em especial nas tarefas domés feminina e a legitimação
ticas e na prestação de cuidados à família. das desigualdades”.
As referências à exclusão
A noção de segregação impõe-se para
das mulheres do mercado de expressar o facto de homens e mulheres
trabalho foram substituídas ocuparem posições diferentes nas estruturas
pelo reconhecimento de que da divisão sexual do emprego (ver texto
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Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
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9 O índice de segregação por profissões e por sectores de atividade é resultado da soma das diferenças absolutas entre o peso
do emprego masculino e o do feminino em cada profissão/sector de atividade; é expresso em percentagem do emprego total.
Para a tabela acima foi usada a classificação internacional de profissões (ISCO classification) e a dos sectores de atividade
económica (NACE classification).
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
curso das sociedades contemporâneas, influência islâmica, nos quais o emprego das
têm mostrado que o que se pensa serem mulheres nos serviços coletivos ou pessoais não
limitações biológicas, diferenças de gostos tem condições de expansão, já que a maioria
ou falta de qualificações das mulheres resulta dos postos de trabalho exigem contacto com o
mormente dos estereótipos e normas sociais público, o que é culturalmente vedado ao sexo
e culturais que informam o que se pensa ser feminino. Podemos, apesar disso, concordar
próprio das mulheres e próprio dos homens. com a existência de uma tendência para certos
Com efeito, o confronto com a variabilidade trabalhos serem feitos quase exclusivamente
dessas normas através do espaço e do tempo por mulheres ‘em quase todo o mundo’:
obriga-nos a concluir pelo seu carácter social enfermagem, primeiros ciclos do ensino,
e não natural. Esta conclusão é reforçada pela limpeza, dactilografia e costura à máquina.
constatação da determinação e qualidade
com que as mulheres gozam as oportunidades É, contudo, inegável que existe um processo de
que lhe têm vindo a ser abertas quer na tipificação das profissões em função do sexo
educação quer no mercado de trabalho. Se que resulta em padrões que apresentam maior
não chegam a outras posições, é porque se transversalidade nas sociedades ocidentais
confrontam com barreiras à entrada dessas do que os de segregação, porque são menos
posições ou com modelos de organização sensíveis às situações concretas. São, se
incompatíveis com outras esferas da vida. quisermos, mais ideológicos. Assim, muito
embora se possa afirmar que os níveis de
Nunca é demais, todavia, frisar bem que os feminização de cada ocupação são variáveis
padrões de segregação sexual das profissões de sociedade para sociedade, no que respeita
não são universais. No Nepal, as mulheres às construções ideológicas do que é ou
constroem estradas e, na Índia, fazem não trabalho apropriado para mulheres não
trabalho indiferenciado na construção civil e encontramos uma tal dissonância de opinião.
programação de computadores, enquanto Tanto assim é que certas autoras têm ensaiado
os homens são maioritários nos empregos a construção de uma tipologia dos estereótipos
de escritório, ocupações que se encontram do trabalho masculino e feminino (ver Quadro 2).
extremamente feminizadas na maioria
dos países ocidentais, como mostraram Neste quadro, de acordo com as supostas
Barbara Reskin e Irene Padavic (1994: 57). aptidões naturais das mulheres e com as
Nas ex-colónias portuguesas, durante a supostas constrições que devem presidir à sua
ocupação colonial, eram os elementos do sexo atividade laboral, ou seja, com a prioridade que
masculino das populações autóctones que devem dar à família, espera-se que as tarefas
eram empregados no trabalho doméstico das das mulheres sejam fortemente contrastantes
casas dos colonos e atualmente, pelo menos com as dos homens. Sobre estes recaem
na Guiné-Bissau, continuam a ser os homens igualmente imperativos normativos de que
que são costureiros. Esta mesma tendência devem ser fortes e realizar as tarefas mais
de os homens serem empregados domésticos duras, que exigem maior tecnicidade e…
observa-se na generalidade dos países de que são melhor remuneradas no mercado.
0480
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS
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Sexo e Segregação do Emprego: Uma Análise
da Feminização dos Escritórios em Portugal,
Universidade de Coimbra, Faculdade de Economia.
12.5. ÁREA I I
A SOCIEDADE
Unidade Temática 6
O empreendedorismo O mundo do
trabalho
tem sexo? Tema-problema 6.2
O desenvolvimento
de novas atitudes
no trabalho e
no emprego
No caso desta criação de valor estar associada a uma lógica de provisão de soluções inovadoras
para problemas sociais e de mera sustentabilidade, e não de maximização de lucro, falamos de
empreendedorismo social. O foco fundamental da empresa social é contribuir para o bem-estar da
comunidade que deve também ter algum envolvimento nas atividades desenvolvidas e na respe-
tiva gestão.
Cristina Parente et al., 2011
O
empreendedorismo (ver texto em Assim, tem crescido uma retórica pública
caixa) tem emergido nas décadas que faz do empreendedorismo a solução
recentes como uma estratégia de e enaltece o desenvolvimento de uma
ativação em resposta ao crescente cultura de iniciativa empresarial. A título de
desemprego e incapacidade de os mercados exemplo, a União Europeia, em 1997, deu
criarem oportunidades de trabalho e de
inserção profissional para várias categorias de
O empreendedorismo
pessoas, em especial para as mais atingidas
pelo desemprego – jovens e mulheres.
associado à criação de uma
empresa, geradora de auto ou
hétero-emprego, é indissociável
Não se pense, porém, que o
empreendedorismo é uma realidade
do problema do capital, ou
recente. seja, dos recursos financeiros
Veja-se, a este propósito, o capítulo necessários; é nesse sentido
“Reposicionando Mulheres e Homens que se podem compreender
na História Ensinada”, deste as medidas de ação positiva
Guião, em especial o sub‑capítulo no apoio financeiro ao
"Quotidianos de Trabalho". empreendedorismo feminino.
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
A título de exemplo, só em 2012, participaram em ações apoiadas pelo Fundo Social Europeu,
na área de intervenção Apoio ao empreendedorismo e transição para a vida ativa, 41.187 pessoas,
das quais 67% eram mulheres. ”
Virgínia Ferreira et al., 2013: 125
a indicação aos seus Estados Membros de Os apoios têm tido formatos variados:
que eles deveriam desenvolver planos para o incentivos financeiros; majorações; isenções
empreendedorismo e para o desenvolvimento fiscais e contributivas; linhas de crédito,
do espírito empresarial, apoiando especialmente microcrédito; incubadoras ou ninhos de
o empreendedorismo feminino, como se empresas; centros tecnológicos; espaços de
pode constatar no estudo de Cláudia Nogueira coworking, consultoria financiada; promoção de
(2009). redes de empreendedorismo e de negócios.
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11 Conforme é possível constatar nas publicações, de Niels Bosma e Jonathan Levie (2009), assim como nos dados publicados
pelo Global Entrepreneurship Monitor (GEM, 2010) e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico
(2004).
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tanto no âmbito do trabalho remunerado como empregadoras eram maioritárias nas atividades
no não-remunerado. Por isso, alguns estudos associadas a Serviços domésticos (96,6%),
concluem que as mulheres tendem a ver o Educação e Saúde (67,7%) e apoio social
empreendedorismo como uma solução alternativa (65,6%). Um dado interessante e que pode
e articulável com as suas responsabilidades suscitar alguma reflexão refere-se ao facto de,
familiares e domésticas, fazendo escolhas de ao contrário do que se passa nos restantes
tipos de negócios menos exigentes e com menor estados civis, ser a categoria das pessoas
probabilidade de sucesso. viúvas aquela em que o número de mulheres
empreendedoras (63,5%) supera a dos homens.
Ainda em termos de caraterísticas dos Poderá isto significar que após o falecimento
negócios, sabe-se que as mulheres tendem dos companheiros as mulheres assumem a
a ter negócios de dimensão mais reduzida e titularidade das empresas de família? Ou que
com menos possibilidade de expansão. Por a situação de viuvez e de manutenção dos
outro lado, verifica-se também a tendência rendimentos familiares as leva a empreender?
para que desenvolvam negócios em sectores
de atividade tradicionais, essencialmente nos Não obstante estas tendências
serviços ou comércio que apresentam menor
valor económico, menos ligados às tecnologias e
gerais, tem-se chamado criticamente
com investimento inicial mais baixo (GEM, 2010). a atenção para a variabilidade de
Porque começam com menos recursos, entram situações, motivações e objetivos
em negócios menos exigentes em termos de das mulheres que criam o seu próprio
investimento, mas onde as taxas de crescimento
também são menores. Assim, as características
negócio, alertando-se para o facto
das mulheres empregadoras em Portugal, de elas não constituírem um grupo
segundo os Censos de 2011, eram: as mulheres homogéneo, mas antes diverso.
TOTAL (H e M) Mulheres %
N.º de empregadoras/es 459.123 162.055 35,3
% de empregadoras/es 10,5 7,1
Taxa de feminização 54,6
Idade média 44,9 43,1
Estado Civil
Solteira/o 92.850 36.720 39,5
Casada/o 321.456 104.573 32,5
Divorciada/o 37.290 15.983 42,9
Viúva/o 7.527 4.779 63,5
Nível de Escolaridade
Até ao 9.º ano 271.985 83.995 30,9
Secundário 88.985 33.006 37,1
Superior 98.153 45.054 45,9
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Exemplo de programas:
- “Dia de formação em engenharia”: dois dias em que alunos e
alunas acompanham engenheiras e engenheiros no seu trabalho,
de forma a promover o gosto pela ciência e engenharia.
- Mini-empresas: estudantes são responsáveis por uma mini-empresa ao
longo de um ano lectivo, tendo um ou uma docente a monitorizar.
- Campus de inovação: um dia em que estudantes se reúnem para criar
soluções para um problema colocado por um grupo de empresas.
- Dia do trabalho sombra: um dia em que um grupo selecionado de
estudantes tem a possibilidade de ser ‘sombra’ de um empresário
ou uma empresária ou dirigente de uma empresa.
É importante que na seleção de pessoas empreendedoras e de
estudantes, sejam escolhidas pessoas de ambos os sexos.
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488 CIG
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por:
por: Virgínia
Rosa Monteiro
Ferreira 489
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GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
Unidade Temática 7
Tráfico de A Globalização
das Aldeias
Seres Humanos Tema-problema 7.1
Cultura Global
ou Globalização
das Culturas?
Estimativas da OIT Unidade Temática 8
A Internacio
“ Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2012),
existem 20,9 milhões de vítimas de trabalho forçado no mundo, em nalização da
dado momento entre o período de 2002-2011. Entre estas vítimas, Economia, do
9,1 milhões foram movidas interna ou internacionalmente, enquanto Conhecimento e
11,8 milhões foram sujeitas a trabalho forçado no seu local de origem da Informação
ou residência. A OIT apresenta um novo esquema para pensar os tipos
de trabalho forçado, englobando os destinados à exploração laboral, Tema-problema 8.1
à exploração sexual e ao trabalho forçado imposto pelo Estado. ” Das Economias-
mundo à Economia
United Nation Office on Drugs and Crime, 2012: 68.
C
om as diversas modalidades da uma grave violação dos direitos humanos.
globalização, o tráfico de seres Estima-se que por ano sejam traficados milhões
humanos para fins sexuais e laborais de pessoas em todo o mundo. Segundo
conheceu um desenvolvimento o relatório do Departamento das Nações
acentuado que a Convenção para a Supressão Unidas contra a Droga e o Crime – UNODC
do Tráfico de Pessoas e da Exploração da (2012), mulheres, homens e crianças são
Prostituição de Outrem de 1949, bem como traficadas através de centenas de redes dentro
outros instrumentos relevantes, não têm dos países e entre países. Mas, para lá da
conseguido travar. Com efeito, como reconhece reconhecida abrangência do fenómeno, são
a Plataforma de Ação de Pequim, a utilização identificados grupos que apresentam uma maior
de mulheres em redes internacionais de vulnerabilidade à situação de tráfico tais como
prostituição e tráfico tem vindo a tornar-se numa as mulheres e as crianças. Para tal contribui a
das principais atividades do crime organizado crescente feminização da pobreza que propicia
internacionalmente (CIG, 1997: 86). Faz por situações de exploração.
isso todo o sentido, abordar o tema do tráfico
de pessoas quando se abordam processos e Na última década, as diversas estimativas
fenómenos associados à globalização. apresentadas não têm reunido consenso sobre
a metodologia de cálculo mais apropriada,
O tráfico de seres humanos é uma realidade oferecendo, portanto, números frequentemente
com um impacto económico comparável ao do descoincidentes. Trata-se, afinal, de um
tráfico de armas e de droga e consubstancia fenómeno com grande opacidade e muito
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Madalena
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Duarte 491
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Ambos os tipos de
De acordo com a definição legal apresentada, o tráfico são extremamente
tráfico pressupõe sempre ação – de recrutamento, rentáveis. Num certo
transporte, transferência e receção de pessoas sentido, pode até
– meios – ameaça ou uso da força, coerção, dizer-se que o tráfico
fraude, engano, abuso de poder e vulnerabilidade, de seres humanos é
pagamento a uma terceira pessoa para controlar mais rentável do que
a vítima – e objetivo de exploração. A coerção ou
o tráfico de armas ou
engano e a obtenção de lucro através da exploração
drogas porque os seres
e da perda da autodeterminação da pessoa são,
humanos, contrariamente
pois, aqui fundamentais. As formas mais comuns de
tráfico são o tráfico para fins de exploração sexual e
às drogas, são vendidos
o tráfico para exploração laboral. e revendidos várias
vezes. A propagação do
tráfico deve-se, também,
A atenção dos Estados ao sobre a Supressão de Tráfico à relação entre risco/
tráfico para fins de exploração de Pessoas e da Explora- lucro. Os riscos para os
sexual não é recente. Vários ção de Outrem, aprovada traficantes de pessoas
fatores ajudam a explicá-lo, pela Resolução 317(IV) da parecem ser muito mais
sendo importante destacar Assembleia-Geral das Nações baixos do que aqueles
o universo moral, associado Unidas, em 2 de Dezembro
que surgem no tráfico de
à prática da prostituição – de 1949, e concluída em Lake
armas ou de drogas, uma
cujo enquadramento legal Success, em Nova Iorque, em
varia consoante o país –, 21 de Março de 1950. vez que a investigação
que começou logo em finais policial é mais difícil,
do século XIX, princípios do O tráfico laboral encontra o que é notório nas
século XX, com as ansieda- a sua linhagem histórica reduzidas condenações
des acerca das migrações na escravatura e obedece em todo o mundo
individuais de mulheres para a esquemas de captação, ocidental.
o exterior e sobre a captura e circulação e rentabilização
escravatura de mulheres para do trabalho que, apesar
prostituição, segundo a sínte- de multiformes (tanto em Origens e destinos
se histórica feita por Madalena matéria de setor de atividade
Duarte (2012). A intensificação – agricultura, construção O tráfico de seres humanos
das migrações das mulheres, civil, indústria –, como na afeta praticamente todos os
como estratégias autónomas, intensidade e violência países e constitui um sistema
levantou, no século XIX, um exercidas), encontraram na agressivo de controlo, de
certo receio com a imorali- política pública uma motivação obtenção (abusiva) de vantagem
dade que estas arrastavam reativa que combina um e de exercício de poder sobre
consigo para os países discurso reivindicativo dos pessoas. Contudo, tal como
ocidentais, designadamente direitos humanos com a as migrações transnacionais,
o facto de irem trabalhar para pressão económica contra o também os fluxos do
a prostituição. Estas preo- dumping que esta força de tráfico estão desigualmente
cupações levaram à criação trabalho pode provocar no distribuídos entre os centros e
da Convenção Internacional mercado. as periferias do mundo global: a
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
por:
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Madalena
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GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
13 A Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) é uma organização de países ocidentais voltada para a
promoção da democracia e do liberalismo económico na Europa. Veja-se o seu importante relatório Human trafficking for labour
exploitation/forced and bonded labour: identification – prevention – prosecution; and prosecution of offenders, justice for victims
(OSCE, 2008).
0494
494 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
nos tempos recentes, assumindo-se como de crime no Código Pena, tornando o seu
um dos temas centrais na agenda política escopo mais abrangente. O Governo lançou,
de vários governos e organizações de ainda, o I Plano Nacional contra o Tráfico de
âmbito regional e internacional. Nos últimos Seres Humanos (2007-2010), incluindo, assim,
anos, Portugal, acompanhando a crescente Portugal no conjunto de países com um plano
preocupação das instituições internacionais de ação específico sobre esta matéria. Neste
e europeias, desenvolveu e implementou um âmbito foi criado o Observatório do Tráfico de
conjunto de instrumentos políticos destinados Seres Humanos que não só criou um sistema
à prevenção, ao combate e à repressão desta de monitorização dos casos sinalizados em
realidade que consubstancia uma grave Portugal de tráfico de pessoas, como participa
violação dos direitos humanos. Tal foi evidente nas campanhas e medidas anti tráfico.
em 2007, na mudança legislativa deste tipo
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por:
por:
Madalena
Virgínia Ferreira
Duarte 495
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GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
Unidade Temática 9
A religião tem futuro A Descoberta da
Crítica: O Universo
A
s projeções relativas às religiões até mulheres? Que voz(es) têm as mulheres dentro
2050 apontam para um aumento do das religiões e das comunidades religiosas?
número de crentes no mundo. Com
efeito, se em 1970, a percentagem Este sub-capítulo referir-se-á sobretudo ao
de crentes era de 80.8%, estima-se que, em Cristianismo. Esta opção deve-se ao facto
2050, ela seja de 91%, de acordo com Todd de o Cristianismo (na sua confissão Católica)
Johnson e Brian Grim, (2013). Em 2015, o constituir a religião com a qual, de acordo com
Centro de Estudos Longitudinais do Instituto de o último censo realizado em Portugal, de que
Educação da Universidade de Londres publicou nos dá conta Alfredo Teixeira (2012), 79,5%
os resultados de uma investigação realizada por dos/as inquiridos/as afirma identificar-se, o
David Voas (2015) na Grã-Bretanha segundo que, por paradoxal que pareça, não significa,
a qual as mulheres são muito mais firmes nas necessariamente, que exista um conhecimento
suas crenças religiosas do que os homens. aprofundado de aspetos relevantes da discussão
sobre os papéis das mulheres na religião.
As relações entre as religiões e as mulheres Pretende-se, assim, contribuir para facilitar
têm sido marcadas por encontros e o acesso a subsídios sobre esta discussão.
desencontros e a análise destes continua Incluem-se também menções ao Judaísmo
a constituir um pomo de discórdia entre e ao Islão que poderão ser exploradas e
investigadoras/es e pensadoras/es. Será a aprofundadas através dos websites indicados,
religião boa ou má para as mulheres? Terão no fim deste sub-capítulo, e textos de autores e
as religiões futuro para as mulheres? Quais autoras cristãs e muçulmanas. Restringimo-nos,
os principais debates em torno dos papéis da assim, por opção, às religiões monoteístas,
religião na submissão ou emancipação das ainda que alguns dos websites referidos incluam
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
informações sobre outras religiões. Esta escolha masculinas, desenvolvida acriticamente pelas
prende-se ainda com a decisão de apresentar teologias ao longo de séculos, levou Mary
informação mais aprofundada sobre religiões com Daly (reputada teóloga católica recentemente
aspetos comuns, procurando fugir à tentação de falecida) a afirmar que “se Deus é masculino,
uma apresentação de tal forma lata e genérica então, o masculino é Deus” (1973).
sobre as religiões que acabaria por se tornar
• Ainda no Cristianismo, Deus encontra-se no
vaga e imprecisa. Todas as autoras citadas no
topo da pirâmide de uma ordem social na qual
texto são crentes das religiões a que pertencem,
a sua autoridade erradia descendentemente
optando-se, portanto, por uma apresentação de
para as entidades com autoridade na
leituras a partir do interior das próprias religiões,
sociedade, quer ao nível do poder político,
bem como de autoras consagradas nos estudos
quer ao nível do poder paternal na família,
sobre as mulheres e as religiões monoteístas.
Neste sentido, este sub-capítulo assume-se o que leva Elisabeth Schüssler Fiorenza (a
como uma apresentação de ‘clássicos’ desta exegeta feminista católica mais conhecida
área de estudo. a nível mundial) a falar de uma ordem social
“kyriárquica” (baseada na reprodução de uma
autoridade supostamente emanada de Deus
rELAção EntrE rELIGIão, como “o Senhor” – em grego: “Kyrios”).14
MuLHErES E ordEM SoCIAL • A teologia cristã, ao longo dos séculos,
associou frequentemente as mulheres ao
Ao longo da história, sempre existiu uma relação impuro, ao pecado e ao demoníaco. Teresa
estreita entre as religiões e a ordem social Toldy (2010) sugere-nos que pensemos nas
estabelecida. Os estudos sobre
as religiões e as mulheres
procedem a uma análise da
relação entre os discursos “
A cabeça da mulher é o homem…não é justo que o corpo comande a
cabeça.” (1 Cor 14,34-35)
religiosos, as teologias e o
“Esse sexo envenenou o nosso primeiro pai, que era também o seu
papel atribuído às mulheres. marido e o seu pai, decapitou João Baptista, entregou o corajoso Sansão
Essa análise debruça-se à morte. De certa maneira, também matou o Salvador, porque, se a
muito particularmente sobre sua falta não o tivesse exigido, o nosso Salvador não precisava de ter
as formas de teologia que, morrido. Maldito seja esse sexo no qual não existe nem temor, nem
conotando as mulheres com bondade, nem amizade e que deve ser mais temido quando é amado do
algo negativo e o masculino que quando é odiado. ”
com algo positivo, tiveram Geoffroy de Vendôme , PL 157, col.168.
impactos negativos sobre
as mulheres (incluindo,
sobre as mulheres crentes). “
Não deixo à minha comunidade tentação mais nociva para os homens
por: Teresa
por: Virgínia
Martinho Ferreira
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GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
15 Ver a referência à existência de uma aliança entre o Vaticano e alguns países islâmicos em fóruns mundiais de discussão sobre
os direitos reprodutivos das mulheres nesta notícia do New York Times, aquando da Conferência do Cairo, em: http://www.
nytimes.com/1994/08/18/world/vatican-seeks-islamic-allies-in-un-population-dispute.html (consultado em abril de 2015).
16 Para ler a mensagem do Concílio Vaticano II às Mulheres na sua versão completa, ver: https://w2.vatican.va/content/paul-vi/pt/
speeches/1965/documents/hf_p-vi_spe_19651208_epilogo-concilio-donne.html
17 Ver João Paulo II, Mulieris dignitatem, n.10: http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_letters/1988/documents/hf_jp-ii_
apl_19880815_mulieris-dignitatem.html). E ainda: Sacra Congregatio Pro Doctrina Fidei; Declaratio De abortu procurato, n. 15,
in: AAS 66 (1974) 740. Cf. ainda: Pio XI, Casti connubii, in: AAS 22 (1930) 549, 567-568; Pio XII., Ad Delegatas Unionis interna-
tionalis Sodalitatum mulierum catholicarum ob communem Conventum Romae coadunatas, in: AAS 39 (1947) 480-488; Mulie-
ribus peregrinationis causa ad sanctuarium lauretanum B. Mariae Virginis e tota Italia coadunatis, ad fausta anniversaria Summi
Pontificis Pii XII pie celebranda, in: AAS 48 (1956) 779-786; Paulo VI, Octogesima Adveniens, n.13, in: AAS 63 (1971) 410; João
Paulo II, Laborem Exercens, n.19, in: AAS 73 (1981) 627-628; Christifideles laici, n.50, in: AAS 81 (1989) 490; Ad episcopos
Civitatum Foederatarum Americae Septemtrionalis missus, in: AAS 81 (1989) 1165; Ad eos qui conventui consociationum “Pro
vita” ab omnibus nationibus interfuerunt coram admissos, in: AAS 84 (1992) 1061-1065; Mulieris dignitatem, n.10, in: AAS 80
(1988) 1674-1677; Joseph Ratzinger, Apertura del Consistoro Straordinario, in: Osservatore Romano, 5/04/1991.
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
18 Para a leitura do documento completo consultar “Declaração Inter insigniores sobre a questão da admissão das mulheres ao
sacerdócio ministerial”, da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/
cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19761015_inter-insigniores_po.html), consultado em janeiro de 2015.
19 É possível consultar a história da primeira mulher rabi – Regina Jonas – em:
http://jwa.org/encyclopedia/article/jonas-regina), consultada em janeiro de 2015.
20 Encontramos aqui a identificação da fonte bíblica para esta regra: http://www.chabad.org/library/article_cdo/aid/543104/jewish/
Why-Are-Ten-Men-Needed-for-a-Minyan.htm, (consultada em janeiro de 2015).
21 A Jewish Virtual Library disponibiliza informação sobre rituais e práticas judaicas, (disponível em: https://www.jewishvirtuallibrary.
org/bar-bat-mitzvah-and-confirmation, consultado em janeiro de 2015
22 Hadith refere-se ao registo das tradições e discursos do profeta Muhammad (consulte-se a Enciclopédia Britânica para uma
explicação completa, em Bhttp://www.britannica.com/topic/Hadith, consultada em janeiro de 2015).
23 Figh refere-se à jurisprudência muçulmana (consulte-se a Enciclopédia Britânica para uma explicação complete em: http://www.
britannica.com/topic/fiqh, consultada em janeiro de 2015).
24 Cf. gesto polémico de Amina Wadud, autora de referência na área do feminismo e o Islão, ao conduzir uma oração numa comu-
nidade mista (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=E_flQbtI1U4), consultado em janeiro de 2015).
25 Consultar a secção Women & Gender Studies no website da Association of College & Research Libraries, já referida.
por: Teresa
por: Virgínia
Martinho Ferreira
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GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
26 Cf. o documentário “Exclusive: Pink Smoke Over the Vatican”, de 2010, debruça-se sobre o papel das mulheres na Igreja
Católica, e como mulheres e homens têm lutado pela ordenação das mulheres, apesar da punição de excomunhão a que se
arriscam, (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=GGij4nobQ18, consultado em abril de 2015.
27 Para um panorama geral destas temáticas, abordadas nas perspetivas feministas crentes de diversas religiões, recomenda-se
a consulta da secção Women & Gender Studies no site da Association of College & Research Libraries, disponível em
http://www.libr.org/wgss/wgsslinks/theology.html, consultado em janeiro de 2015.
28 Cf., por exemplo:
https://www.youtube.com/watch?v=PlYXTlHnAtw; http://www.academia.edu/253007/Shaikh_S._2004._Knowledge_Women_
and_Gender_in_the_Hadith_._Islam_and_Christian-_Muslim_Relations_15_1_99-108, consultado em abril de 2015.
29 Cf. http://www.womenpriests.org/classic/fiorenza.asp; http://www.myjewishlearning.com/article/reshaping-jewish-memory/
30 Encontra-se aqui informação sobre estas formas de religiosidade:
https://sites.google.com/site/templeofkemeticwicca/theology.
0500
500 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
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TEIXEIRA, Alfredo (2012), “Identidades religiosas em disponível em www.musawah.org/sites/default/files/
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resumo do relatório apresentado na assembleia
por: Teresa
por: Virgínia
Martinho Ferreira
Toldy 501
0501
GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
RECuRSoS
Centro de Acolhimento e Proteção (CAP) para Princeton University Library – Women and
Homens vítimas de Tráfico de Seres Humanos e seus Gender Studies Resources: Religion, [em linha]
filhos menores: 961039169; 961 674 745 (24h), da disponível em: http://libguides.princeton.edu/c.
Saúde em Português /cap@saudeportugues.org php?g=84063&p=541501
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502 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Temas do Mundo Atual: quotidianos e problemáticas de mulheres e de homens l
RECuRSoS
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linha] disponível em: http://www.waterwomensalliance. Oxford, Oxford University Press (4.ª ed.)
org/feminist-theology-101/
Um bom manual genérico, com 3 partes: 1 sobre
Women’s Islamic Initiative in Spirituality and teorias sobre o género; outra sobre aspetos
Equality, [em linha] disponível em: http://www. estruturais (família, trabalho e educação) e a terceira
wisemuslimwomen.org/muslimwomen/bio/amina_ sobre interações (violência, media, romance e
wadud/ amizade).
Women’s Ordination Conference, [em linha] disponível Virgínia Ferreira (org.) (2010) A Igualdade de Mulheres
em: http://www.womensordination.org/ e Homens no Trabalho e no Emprego em Portugal,
Lisboa, Comissão para a Igualdade no Trabalho e no
Emprego.
f) Alguns recursos gerais Faz o balanço da evolução ao longo de 3 décadas
(de 1980 a 2010) no enquadramento jurídico, no
Capitolina Díaz Martínez e Sandra Dema Moreno (ed.), emprego, nos salários e na educação, para além de
(2013) Sociología y Género, Madrid, Tecnos. um bom capítulo teórico, [em linha], disponível em:
Uma coletânea também genérica em Espanhol, com http://www.cite.gov.pt/asstscite/downloads/publics/
12 capítulos sobre os mais variados temas. Igualdade_CITE_NET.pdf
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504 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas ll
Biologia e Género: outros olhares l
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Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l l
conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
Biologia e Género: olhares l
glossário
l outros
homens. As relações de género estruturam, e muitos contextos, negativo para os homens, tal
são construídas por, diversas instituições como como o é para as mulheres. A sua
a família, o sistema legislativo ou o mercado de mudança exige o envolvimento de mulheres e de
trabalho. As relações de género traduzem-se em homens e o reconhecimento de que a igualdade
relações de poder hierárquicas entre mulheres entre os sexos só é possível se houver uma
e homens, em desfavor das primeiras. Essas mudança nas atitudes e nos comportamentos
hierarquias de poder são geralmente aceites dos homens.(I)
como “naturais” ainda que sejam socialmente
construídas, culturalmente determinadas e, como Tráfico de Seres Humanos – É o recrutamento,
tal, sujeitas a alterações no tempo. ( A e D). o transporte, a transferência, o alojamento ou o
acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça
Segregação do emprego/trabalho em função ou ao uso da força ou a outras formas de coação,
do sexo – A segregação sexual no trabalho ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de
pode ser considerada em termos absolutos – ou autoridade ou de situação de vulnerabilidade
seja, a predominância efetiva de um sexo em ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou
determinada ocupação em particular – ou em benefícios para obter o consentimento de uma
termos relativos, quer dizer, uma proporção pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins
maior de um sexo em relação ao esperado. de exploração. A exploração deverá incluir, pelo
A principal razão pela qual as mulheres tendem menos, a exploração da prostituição de outrem
a contar menos de 50% da força de trabalho é ou outras formas de exploração sexual, o trabalho
o trabalho doméstico e a carga desproporcional ou serviços forçados, a escravatura ou práticas
assumida por elas na prestação de cuidados não similares à escravatura, a servidão ou a extração
remunerados e de trabalho doméstico. (L) de órgãos. - Protocolo Adicional à Convenção
das Nações Unidas contra a Criminalidade
Segregação horizontal do trabalho/emprego Organizada Transnacional Relativo à Prevenção,
– Refere-se à concentração de mulheres e de à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas,
homens em diferentes ocupações e setores em especial de Mulheres e Crianças, Artigo 3.º,
profissionais, não ordenados segundo qualquer a), adotado pela resolução A/RES/55/25 da
critério (L) Assembleia Geral das Nações Unidas, de 15 de
Novembro de 2000. (M)
Segregação vertical do trabalho/emprego
– A segregação vertical refere-se à concentração Teologias feministas – As teologias feministas
de mulheres e de homens em diferentes escalões, (pois existem várias correntes nas mesmas)
níveis de responsabilidade ou posições. Traduz consistem em teologias que partem da
a representação deficitária ou excessiva de experiência de fé das mulheres, exprimindo-a
mulheres e de homens em ocupações ou setores, através de categorias não androcêntricas
partindo de uma ordenação baseada em atributos e emancipatórias. Constitui um exercício
“desejáveis” (salário, prestígio, estabilidade do hermenêutico de desconstrução de discursos
posto laboral, etc.), independentemente do setor de subalternização das mulheres no contexto
de atividade. (L) da religião e de (re)construção de discursos
que procuram utilizar linguagens inclusivas na
Sistema de Género – Sistema social que produção teológica. (N)
determina o que é esperado, permitido e
valorizado nas mulheres e nos homens,
nas raparigas e nos rapazes, nos diferentes
contextos socioculturais. O sistema de género é
institucionalizado através dos sistemas educativo,
político e económico, da legislação, da cultura e
das tradições. O sistema de género é baseado na
desigualdade entre mulheres e homens e é, em
0508
508 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l l
conhecimento, Género e Cidadania no Ensino Secundário
Biologia e Género: olhares l
glossário
l outros
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disponível em http://rfrost.people.si.umich.edu/courses/SI110/readings/DigiDivide/Bimber_on_DigiDivide.pdf,
consultado em Dezembro de 2009.
L – Gender Equality and Thesaurus from EIGE, em linha, disponível em http://eige.europa.eu/rdc/thesaurus
M – United Nations Office on Drugs and Crime, em linha, disponível em https://www.unodc.org/unodc/en/
organized-crime/intro/UNTOC.html
n – WATER- Women’s Alliance for Theology, Ethics and Ritual, em linha, disponível em: http://www.
waterwomensalliance.org/feminist-theology-101/; Women & Gender Studies Section – Women and Theology, em
linha, disponível em: https://www.libr.org/wgss/wgsslinks/theology.html
o – Gender Equality Glossary, UN Women Training Center, em linha, disponível em https://trainingcentre.
unwomen.org/mod/glossary/view.php?id=36&mode=letter&hook=P&sortkey=&sortorder=asc, consultado em
dezembro de 2017.
P – Encyclopedia of Critical Psychology, Thomas Teo (Ed.), em linha disponível em https://link.springer.com/
referenceworkentry/10.1007%2F978-1-4614-5583-7_16, consultado em dezembro de 2017.
Q – Definição constante do sítio web da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, em linha,
disponível em http://www.cite.gov.pt/pt/acite/dirdevtrab005.html
r – OCDE - A Framework for Addressing and Measuring Entrepreneurship, 2007, em linha, disponível em http://
search.oecd.org/std/business-stats/39629644.pdf
0510
510 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l l
conhecimento, Género e Cidadania no Ensino SecundárioBiologia
l NOTAS outros olhares l
e Género:BIOGRÁFICAS
0512
512 CIG
Conhecimento e intervenção educativa: sugestões práticas l l
conhecimento, Género e Cidadania no Ensino
Cânone Secundário
Literário e Igualdade entre MulheresBIOGRÁFICAS
l NOTAS e Homens l
0514
514 CIG
O presente Guião destina-se a docentes do ensino secundário e visa contribuir para
a integração da investigação científica em Estudos sobre as Mulheres e de Género
realizada nas diferentes áreas do saber, em especial no âmbito das Línguas e Literaturas,
Ciências Experimentais e Ciências Sociais, na gestão dos programas disciplinares e na
abordagem dos seus conteúdos.
A equipa que concebeu este Guião partilha a crença na função profundamente emanci-
padora de um conhecimento sobre a humanidade que seja igualmente representativo de
mulheres e de homens, bem como das relações sociais que foram sendo (re)construídas
entre si, pois tal conhecimento facilitará o desenvolvimento de uma atitude crítica em
raparigas e rapazes face aos condicionalismos ditados pelos preconceitos e costumes
sexistas, permitindo-lhes ter uma maior liberdade de escolha nos seus percursos
académicos e profissionais e nos seus projetos de vida.
Reúnem-se, assim, nesta obra reflexões sobre a ciência que se ensina na escola e propos-
tas de abordagem curricular dos programas de nove disciplinas do ensino secundário.
Norteia essas propostas a necessidade de haver, por parte das e dos docentes de todas
as áreas do saber, um olhar crítico sobre o conhecimento científico mobilizado pelos
currículos e pelos recursos pedagógicos e a subsequente secundarização ou silen-
ciamento das mulheres, e das dimensões da vida consideradas femininas, na ciência
produzida e ensinada.
Espera-se que este Guião possa facilitar o trabalho docente e contribuir para que a
educação para a cidadania se faça também através do saber específico das diferentes
áreas disciplinares.