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CENTRO DE ARTES
CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS
Banca Examinadora:
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Às visitas feitas por carta, carne ou satélite nessa distância de dois anos.
Em memória à Elisa, por me conduzir e ser presença nesse mundo sensível.
Aos noninhos e suas lindas cartas em italiano. À Paulinha, Nina e Fritz pelas
bergamotas cruzadoras de oceano. À Helenize, Dieizon, Bode e Esther, grata
pelo endereço disponível e troca de postais. À Valéria, Maria Amália, Cassol
e Leandro, pelo alento revigorante do encontro. À Dona Lúcia e às irmãs
Dall Ross, por me resguardarem em seus lares portugueses.
abstract
This text is the result of reflections that permeate the artistic creation of an
object made to experience the world. This is understood as a shell that is
(re)invented and carries seizures of a life on the road. Carries observation
tools and equipments used to the covered space research, such as small
objects that roam its existence as celestial bodies in orbit of a planet. These
objects, in turn, are born after the (re)construction of the shell and
constitute themselves as artist's books, so contributing for meetings and
exchanges of this (re)invented world. After after its creation, the artistic
object gains another dimension when inhabits the everyday places and
develops poetic and educational actions in the city of Pelotas, Rio Grande do
Sul. Its insertion in space proposes a metalugar as opposed to daily não-
lugares, to the incessant flow. Thus, the actions aimed at their continuing
(re)invention, understanding the experience as education, and thus
sustaining the power of other places to learn, to travel. The research raises
questions about travel, urban wanderings and experiences present in the
endless journey of the building of the Compartimento de estar e partir.
Este não é um livro sobre viagem, embora una-se a elas. Seria antes
sobre devaneios, manchas, metamorfoses imaginadas, transfigurações
experimentadas, nódoas de imagem, festejos de linguagem. Aqui,
constituem-se reinvenções sucessivas de uma aurora de vida, de
fragmentados trajetos que se iniciam com despertares e adormeceres. E a
Terra, que viaja pelo Cosmos dentro da Via Láctea com as galáxias
mergulhadas no universo, é só mais um exemplo de que viagem é sempre
percurso, transformação. Eu sei que poderia falar sobre outros assuntos,
coisas que me inquietam, como por exemplo a especulação imobiliária ou a
paralisação da linha de ônibus, e de fato, essas coisas me importunam, só
que elas não me movem. O que move é o deslocamento mutante, o decurso
entre uma coisa e outra, e é justamente por isso que faço um convite de
leitura, dando ênfase àquilo que esta pesquisa ainda pode vir a alterar-se a
partir da sua interpretação.
1
A noção de dobra de Gilles Deleuze é aqui entendida como uma visão de mundo, pois o
mundo inteiro se encontra dobrado. Essa noção é interpretada na presente pesquisa por meio
da entrevista do seu Abecedário (1888-1889) e junto ao artigo A dobra deleuziana: o mundo
como potência de invenção de Rosane Neves da Silva (2004).
Tendo conhecido o que precisava de humano para ser entendida como
tal, manifesto-me aqui por outro lado, pelo que é necessário de inumano2
para desconcertar-me e reconstruir-me. É dessa maneira que conduzo a
pesquisa, acreditando ter sofrido o processo de metamorfose de diferentes
espécies animais, desiguais espaços e distintos mundos. Só que esse tipo de
metamorfose não se explica, é coisa vivida, não feita. Essa mutação talvez
possa ser equiparada à canção Metamorfose Ambulante (1973) de Raulzito
(1945-1989)3 e tudo aquilo “sobre o que eu nem sei quem sou”, preferindo
viver em constante mudança do que ser o mesmo todos os dias. Ela ainda
pode ser aludida através da célebre novela literária de Franz Kafka (1883-
1924) Metamorfose (1915) na qual enfatiza a condição grotesca e cruel da
humanidade que estranha uma nova forma, que rejeita e esconde do mundo
aquilo que sofreu transformação. À vista dessa inexplicável mudança, é que
anuncio o caráter visceral do estado aberto e ilimitado daquilo que sou,
daquilo que verdadeiramente todos somos, pois, a metamorfose é a gente
quem faz.
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Se procuro essa situação inumana, acho conveniente esclarecer que ela não tem definição a
partir do estado atroz, sádico. Aquilo que é inumano parte da concepção de quem não sabe ou
não pode ser humano. E não, ao que rapidamente associa-se, tal como, o que é inumano é o
que não apresenta comportamento ou sentimento considerado normal no ser humano;
antihumano, desumano. Mas, o que será de fato, o estado normal humano?
3
Raulzito refere-se ao apelido comum do cantor e compositor brasileiro Raul Seixas.
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Termo definido por Ricardo Basbaum, tendo sua significação dentro do subtítulo “superfície
entrópica: chão”.
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ansiava habitar os lugares, sonhava em transformar os não-lugares em
lugares cheios de experiência presente. Foi então que determinei essa forma
de vida: ocupar espaços com uma espécie de presença não condizente a que
presenciamos hoje. Afinal, como afirma o filósofo tcheco Vilém Flusser
(2011, p. 51) “Exilados são pessoas desenraizadas que buscam desenraizar
tudo a sua volta para criar raízes”. E era isso que eu estava arriscando: estar
junto dos outros, habitar o passadiço, criar raízes na correnteza.
5
Conceito inventado que implica a descoberta, nas transformações dos lugares praticados.
19
devoradora do corpo, das sensações apropriadoras de mundos, e é dessa
forma que também proponho pensar a experiência em relação ao trabalho,
aos desdobramentos e as metamorfoses possíveis.
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Francesco Carero (2013) apresenta a dimensão de espaços e suas dualidades: Enquanto Milton
Santos (1996) chama espaços indeterminados como espaços opacos, considerados como
abertos do aproximativo e da criatividade, em oposição aos luminosos, considerados como
espaços fechados da exatidão, racionalizados e racionalizadores. Deleuze e Guattari diferenciam
o espaço estriado e liso, em que, por sua vez, os nômades estão ligados ao espaço liso, espaço
vetor de desterritorializações, em oposição ao estriado, espaço sedentário territorializado. O
caminhar transurbante seria, então, buscar esses espaços nômades, opacos, lisos, dentro da
própria cidade luminosa – espaço estriado por excelência, ou como Careri (2013, p.13) diz, o
jogo do limite espacial seria buscar a “cidade nômade que vive dentro da cidade sedentária”.
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que se pretende tomar se dá sem distanciamento, já que a experiência está
imersa em todo meio, e assim, a investigação abordará questões relevantes
no que se entende por valor qualitativo de uma pesquisa poético-educativa,
relacionando-se ao fazer artístico e à possível capacidade de invenção e
reinvenção de mundos. Dela brotarão três etapas entrelaçadas: o
desenvolvimento de uma base teórica, a construção prática do objeto
artístico e a instalação deste no espaço urbano.
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ao objeto envolvidos no contexto. Esse bloco é literalmente a casca espessa
de um caracol. É o corpo denso e conceitual da pesquisa. Nele propõem-se
andanças, passagens e intervalos para entender a noção de viagem,
questionando e refletindo os lugares da cidade, a mobilidade e a prática de
espaço. Porém, é aqui que, sobretudo, concentro-me em entender que viajar
é preciso, mas sonhar também o é. É possível viajar sem se deslocar, ir ao
mundo afora e explorar nosso interior. É assim que faço desse primeiro
capítulo o início de uma leitura enquanto viagem de descoberta, de outras
verdades possíveis, pois é através dela que somos transportados, trocamos
de ambientes, partimos para o desigual. Por isso, deixo um recado: o melhor
das viagens é esperar por elas.
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cartografia, que propõe uma prática de territórios ordinários, de recintos
intermediários.
Portanto, previno desde já, que nessa escrita você encontrará mais
transbundâncias do que problematizações, mais imprecisões do que
respostas, mais correspondências do que diferenças, mais movimento do
que estabilidade. E talvez, no fim, será menos importante saber do que
sonhar, ver do que tatear no invisível.
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compêndio para uso de bichos
IMPORTÂNCIA DO ÍNFIMO
Portanto,
como conhecer as coisas senão sendo-as?
Jorge de Lima
Tenho absoluta certeza de que essa ação foi responsável por tudo. Ela
registra o resíduo de demoradas erosões que é simultaneamente o elemento
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A palavra animal deriva do latim anima, no sentido de fôlego vital.
último e multiforme da minha aparência. Ali, apanhei minha vida triturada
num bocado de grãos, composta por uma substância arenosa de todas as
coisas. E só agora sei que peguei isso na areia, esse querer de ser um animal
tão mutante, com tantas divisões possíveis. Essa possibilidade de solicitar
um todo incontestável, pois a primeira coisa que um animal tem é um
mundo. É curioso, como afirma Deleuze (1988, p. 3), pois muita gente,
muitos humanos não têm mundo. Vivem a vida de todo mundo, de
qualquer um, de qualquer coisa. Já os animais, os animais têm mundo, eles
solicitam um todo. Certamente, você já tenha se deparado com a fabulosa
aptidão dos animais de marcar território. Seu canto, seus excrementos, suas
posturas. E como esses animais são verdadeiramente extraordinários por
conter a capacidade de arquitetá-lo, de invocar seu mundo e assim construir
esse território é quase o nascimento da arte. O território é, portanto, o
domínio do ter, mas ele só é válido em relação ao momento em que existe a
saída deste. Quando o animal sai desse território, ele desterritorializa-se,
experimenta outros lugares, aventura-se.
Quando transfiro-me por simples evolução, para uma vida que toma
uma nova atitude fecunda e liberta, chego àquilo que talvez no fundo me
pertence e estou destinada: uma maestrina simuladora das espécies. Acho
que só posso explicar essa circunstância de metamorfismo, com o que Alice
submersa ao País das Maravilhas respondeu à lagarta, que sentada sobre o
cogumelo e fumando seu narguilé perguntou (CARROLL, 2002, p. 41):
“Quem é você?” Alice respondeu: “Sei quem eu era quando acordei hoje de
manhã, mas acho que me transformei várias vezes desde então”.
De tal forma, acredito que antes de mais nada, preciso admitir que esta é
uma proposição. Uma proposta de criar um território, um mundo, de
“lançar mundos no mundo”8, como lindamente canta Caetano Veloso.
8
Trecho da canção Livros de Caetano Veloso, lançada no álbum Livro de 1997.
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Sou um caramujo pregado no muro. V a g a r o s a m e n t e tenho
costurado viagens, antecipações de lugares, retornos, que desdobrados
fazem nascer um abrigo móvel. Por vezes, tenho um comportamento de
eternidade, como por exemplo, quando me proponho a subir um barranco
de um rio, percorro-o o dia inteiro até chegar amanhã. Quando me desafio a
existir, rastejo em círculos para esquivar do sal, caracoleio toda minha vida
para encontrar a(s) origem(ns), a(s) definição(ões) e tudo aquilo que
envolve a minha forma de pensamento sinuoso.
eu sou um molusco
Viajo para conhecer minha geografia.
Marcel Reja
Os percursos são importantes aqui, e para além dos que pratiquei com
minha família e a mudança que fiz de uma cidade interiorana para Pelotas
em 2011, pude perceber que nomeadamente a oportunidade de participar de
um intercâmbio sanduíche do ano de 2012 a 2014 através da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a partir do
Programa de Licenciaturas Internacionais (PLI) entre a Universidade
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Federal de Pelotas e a Universidade de Coimbra, cultivou o entendimento
do período de dois anos consecutivos em Portugal como um lugar
intervalar, de cruzamento, onde se revelava a descontinuidade e a diferença
no decorrer de uma (re)escrita pessoal. É assim que acredito que esse
intervalo pode ser aprofundado pela etimologia da própria palavra, que
resulta da conjunção do latim inter: entre e vallum: parede, muro. E, então,
uma moradia nesse lugar seria literalmente “entre paredes”, porém, confio
profundamente que isso sugere muito além de um ambiente entre muros ou
um labirinto, podendo ser interpretado como um lugar de perambulação no
mundo, e em mim mesma. Esse período foi construído como um espaço
entre contornos, o lugar onde os limites se tocaram, escorrendo pelos
interstícios e dissolvendo tudo aquilo que antes era constante.
Foi só no retorno que consegui absorver tudo (ou quase) do que vivi.
Mas, pensar no que se vivencia, é preciso transpor, contestar a tradição
local, seguir por caminhos que desconstroem deslocamentos passados.
Percebo então que a experiência de habitar pressupõe afastamento,
formando um panorama com a bagagem recolhida9 e sobretudo na certeza
9
A bagagem recolhida durante o período de 2012 a 2014 converteu-se em um acúmulo de
culturas das desiguais sutilezas dos 14 países percorridos em forma palpável, como mapas,
postais, folhas de árvores em diferentes estações, pedras, areias, terras, águas. Assim, a
necessidade de guardar porções materiais desses itinerários, amadureceram a compreensão de
que o deslocamento é o ponto de relação das minhas inquietações, e as memórias espaciais são
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de que a distância verdadeiramente abre buracos. Aberturas para uma
percepção sobre o novo e fissuras profundas acerca das experiências já
vividas, pois essas fendas ampliaram e prosseguem dilatando a ativação
experiencial da minha trajetória.
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contrário, ela aspira ir além dos outros eus semelhantes, das transfigurações
vividas, ela busca sentir o que ainda não inventou sentido, ouvir o que ainda
não descobriu ruído, dizer o que ainda não encontrou palavra.
Talvez você já tenha percebido que o presente estudo traz uma possível
ligação ficcional que extrapola para além da construção da concha, das
metamorfoses da animália, e a verdade é que esse fazer permeia sutilmente
entre memória e vida, ele é aliado à noção de rememoração, traduzido a
partir daquilo que Benjamin (1940, apud: GAGNEBIN, 2006, p. 40) chama
de eingedenken e implica repetir aquilo que se lembra, “apoiar-se de uma
lembrança, tal como ela cintila num instante de perigo”, porque, afinal, “nós
articulamos o passado, não o descrevemos, como se pode transcrever um
objeto físico”. É, então, que a noção de rememorar aparece de forma
imprescindível quando se propõe memória como construção, pois o dever
do presente, é justamente rememorar o passado, ressignificá-lo.
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Figura 1: América invertida (1943) Joaquin Torres-Garcia.
10
O linguajar Manoelês refere-se ao poeta brasileiro Manoel de Barros (1916-2014).
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espaço reservado para rabiscos
de pensamento
ou recortes
o mundo como labirinto curvo
Benjamin (1987, p. 70) certa vez discorreu: “não saber orientar-se numa
cidade não quer dizer muito, mas extraviar-se nela, como se extravia numa
floresta, é algo que se deve aprender completamente”. O perder-se, torna-se
assim, uma relação que se tem com o espaço, mas sobretudo, o que o espaço
pode ter sobre nós. Não existe somente o domínio controlado pelo sujeito,
mas a possibilidade de que o espaço nos comande, fazendo-nos modificar
ambientes, confrontar alteridades, recriar novos pontos de referência para
assim, sofrermos transformações produzidas pelos lugares. É então, que
confio ser indispensável percorrer o mundo como um labirinto11. É preciso
perder-se para encontrar-se.
11
A palavra labirinto vem do latim labrum, labirinto, confusão. Em termos genéticos, qualquer
construção intrincada, com corredores e passagens em meandros. Na mitologia grega, era o
nome do conjunto de muros traçados deliberadamente confuso, construído por Dédalos, em
Creta, para aprisionar o Minotauro. Confinado nesses corredores e sem poder achar saída, o
Minotauro era alimentado com a carne humana. O herói Teseu, com ajuda da princesa Ariadne
(que lhe deu um fio para guia-lo), penetrou no labirinto, matou a fera e encontrou a saída.
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experiência sensível. Por isso, o objeto de estudo Compartimento de estar e
partir é uma concha rememorada, construída e (re)inventada
continuamente, e é por meio dela, que trago os desassossegos que abraçam a
pesquisa: eles aspiram explorar os movimentos de sua criação e construção
na condição de prática de espaço, regida pela lógica da mobilidade. Para
além da possibilidade de (re)invenção do lugar, a concha colocada no
espaço, aspira sobretudo questionar o cotidiano acerca do olhar flutuante
contemporâneo, sobre como realmente experimentamos o tempo presente.
Pois sinceramente acredito que estamos fadados à uma condição de
imersão, concentrada em informações difusas e descartáveis do mundo, e
assim, esquecemos de nos comunicar com ele próprio.
Uma forma só tem sentido por sua estreita ligação com seu espaço
interior (vazio pleno), a percepção do que chamo vazio pleno me veio no
momento em que abrindo uma cesta compreendi bruscamente a relação
de totalidade que unia o interior à forma externa. (CLARK, 1960, p. 2)
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navegando o disco furado
Para tomar partida, gostaria de aumentar a dimensão daquilo que é por
vezes insignificante, evidenciando assim o indivíduo mínimo, para só então
expandir à visão macro a qual está mergulhado. É preciso falar primeiro do
habitante e depois de sua morada. É assim que me aprochego aqui como um
demorado ser invertebrado e viscoso, feito do que a poeta luso-carioca
Matilde Campilho (1982-) chama de matéria escorregadia, isto é, de
manteiga, azeite, geleia e espanto. Nessa natureza, tenho a habilidade de
absorver, sugar o ambiente circundante para realizar a condição da minha
existência: a incessante recolha. Porém, prefiro acreditar que existe algo
além do estado de sobrevivência que me faz agir assim, algo que possa ser
entendido como uma postura de construção de vida, uma escolha que se dá
através da maneira que umedeço a atmosfera para nela ser passagem, de
como apresento a dimensão líquida, suada, lacrimejada e babada, porque cá,
toda essa chuva nasce de mim.
12
Texto escrito em 1973 em uma experiência fora do Brasil. Uma das referências marcantes
para a criação do Mundo-Abrigo foi a música dos Rollings Stones Gimme Shelter. Mundo-
Abrigo leva esta pergunta a sério “a storm is threat'ning my very life today?”, acreditando não
estar ameaçando uma vida, mas a vida em geral, a vida coletiva. É diante dessas situações que se
mantém, por hora, a distância, pede-se abrigo.
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ocupação deste só acontece com quem vive em esfera cósmica,
estabelecendo-se como um ser multitransformável.
13
Foi um dos críticos mais atuantes da produção artística brasileira moderna e um dos grandes
responsáveis por sua atualização. Preocupou-se com os aspectos educativos da arte e da crítica,
assim, fica evidente sua crença na capacidade da arte transformar o mundo cabendo à atividade
crítica ampliar a compreensão desta promovendo novas formas de pensar, sentir, julgar e agir.
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Junto a esse instinto de que fala o professor brasileiro de física e
astronomia Marcelo Gleiser, que considero importante discorrer sobre esse
querer, sobre essa necessidade que nasce bem antes da ação, bem antes do
gesto, de toda iniciativa e toda a vontade libertadora da viagem. Meu corpo
trabalha sob a ação do sol que evidencia elementos, fazendo com que eu me
mexa, dilate, estenda, distenda, modifique meus volumes e perca águas
tépidas. Afinal, a viagem começa antes dela própria, ela nasce
essencialmente em nós, se baseia na capacidade que temos que imaginar e
acima de tudo, sonhar.
Ser um etnólogo, neste caso, segue a mesma lógica de ser viajante, de ser
mundivagante, pois o desenraizar parte de uma descentralização de mundo
e de si, para assumir o difícil lugar do estrangeiro. É na viagem que se
descobre apenas aquilo que se é portador. É essencialmente um viajar fora
de si mesmo, olhar para dentro, ao invés de para fora, criar inventários de
experiências com registros e resquícios, alargar a reflexão e se inscrever na
continuidade do seu próprio percurso. O cerne da experiência de viagem,
está em viajar sempre, mesmo quando não exista possibilidade de
deslocamento espacial.
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de ser uma experimentação14 de nós mesmos. Desse modo, trago as lindas
palavras do filósofo francês Michel Onfray (2009) como se fossem minhas:
viajar é estar
Para imergir no pensamento de viagem enquanto dicotomia, utilizo o
raciocínio e os consequentes embates que são resgatados a partir dos
significados primeiros de sair em busca ao desconhecido, recordando junto
a Onfray (2009) e Francesco Careri (2002) a história de Caim (agricultor,
sedentário) e Abel (pastor, nômade)15. Esses dois estabelecem dois pontos
pelos quais oscilamos e não rigidamente optamos: nomadismo versus
sedentarismo, amor ao movimento versus paixão pelo imobilismo, pelo
enraizamento.
14
Essa experimentação talvez possa ser relacionada ao exercício costumeiro dos filósofos
antigos: O que posso saber sobre mim? O que posso aprender e descobrir a meu respeito se
mudo de lugares habituais e modifico minhas referências?
15
De acordo com Careri (2002) as raízes etimológicas dos nomes dos dois irmãos, Caim é
identificável como Homo faber, o homem que trabalha e que constrói um novo universo
material e artificial, ao passo que Abel realiza um trabalho menos fatigoso e poderia ser
considerado um Homo ludens, homem que brinca e que constrói um efêmero sistema de
relações entre a natureza e a vida. Os dois nomes são opostos complementares, Abel deriva do
hebraico hebel e significa “hálito” ou “vapor”, tudo que é transeunte, já a raiz de Caim pertence
ao verbo kanah que quer dizer “adquirir”, “possuir”, “obter”.
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afirma Deleuze e Guattari (1980, p. 34) ele “distribui os homens (ou os
animais) num espaço aberto, indefinido, não comunicante”. E esse espaço
aberto é justamente o que abraça o devaneio do mundivagante, porque toda
viagem pede uma predisposição lúdica e supõe recusar o emprego do tempo
laborioso da civilização, em proveito do lazer inventivo.
Porém, muitas vezes é o sistema quem obriga que sejamos árvores, e não
rios, para que dependamos do sedentarismo, pois ele acarreta uma ordem de
espaço e tempo, onde é preciso estar sempre num determinado lugar em
tempo preciso. Porque afinal, se ganha a vida assim, se compartilha, se
integra a esse princípio assim. Pelo menos é o que dizem na sociedade que
inventamos. Ser rio, é ir contra essa dependência, é ser viajante e não turista,
é experimentar a vida sem amarras, recusar muitas vezes o tempo social, em
favor de um tempo singular, feito de durações subjetivas e de instantes
incomuns.
Meu propósito não é entender o ser árvore como imutável, até porque
imobilidade não quer dizer não-fluidez. Se trago esses contrários
pertencentes, é justamente por acreditar na possibilidade de movimentação,
de mundivagancia, mesmo para aqueles que em primeiro momento não
parecem carecer. Penso que não escolhemos viver de acordo com um modo
de vida, optando por ser árvore ou rio. Acho que simultaneamente somos os
dois seres. Somos fluxo, somos raiz. Somos resistência, somos voo.
Eternidade e contingência. Porque a partir do instante em que deixamos de
ser um pouco de um, acrescentamos um tanto do outro. Nessas ocasiões,
eventualmente, nosso abandono será parte de nossa permanência.
45
Essa classe contesta o bem-estar, no que diz respeito a casas dotadas de
conforto, segurança e boa localização. Assim também o artista polonês
Krzysztof Wodiczko (1943-) denuncia, na década de 80, o funcionamento
perverso da lógica espacial das metrópoles através da sua obra Homeless
Vehicle Project (1988-89). O artista (WODISZKO apud MILTON, 2003, p.
332) denomina essa genealogia migrante como “nômades urbanos
despejados da economia atual” e ao mesmo tempo em que sua obra serve
como meio de sustento e sobrevivência (transporte e armazenamento para
coletas), ela é projetada como abrigo pessoal (para dormir, circular,
higienizar-se, guardar pertences), ou seja, ela é lar e ocupação movente. É
assim, uma espécie de equipamento para ocupar e habitar os espaços
marginais, indeferidos da paisagem urbana. Esse dirigível projetado ainda
tira partido da visibilidade do design como meio de expressão, semeando
inquietação, incômodo para os observadores e desestabilizando, de certo
modo, a cadeia industrial, pois o consumidor da mercadoria é um não
consumidor.
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produção desse espaço efêmero, que escapa ao esforço da massificação
dominante e testemunha a diversidade enquanto tempos e velocidades,
práticas e relações interpessoais. É por meio desses parâmetros que se
fundamenta a publicação Atlas Ambulante: geografia portátil (2011), pois
evidencia a cidade dinâmica que se desenha com os movimentos dos
habitantes, dos nômades urbanos responsáveis pela construção dessa
geografia transeunte, concebendo toda vez um espaço outro. O livro
contempla uma reunião de experiência em Belo Horizonte (MG) a partir do
ponto de vista de seis ambulantes: um vendedor de pirulitos, um vendedor
de algodão doce, um vendedor de biju, um amolador de facas e dois
empalhadores e restauradores de cadeiras. Nele, funde-se a estratégia do
retrato como cartografia, pois é precisamente ela que caracteriza
conhecimentos espaciais únicos de cada ambulante, e a cidade, vista assim, é
apropriada todos os dias.
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nomadismo aqui está enquadrado no contexto da mobilidade atual, aquele
que exprime os movimentos de uma população, tal como: imigração,
turismo, mobilidade profissional, comunicação instantânea, circulação de
produtos. É sob essa condição que corresponde o paradoxo de um mundo
onde podemos teoricamente tudo fazer sem deslocarmo-nos e, no entanto,
deslocamo-nos da experiência presente. Contudo, será que o conceito de
viagem ainda faz sentido em uma realidade globalizada, online e
impregnada de presenças inexistentes? Será que os nômades
contemporâneos perderam todo sentido transformador do deslocamento?
16
A entrevista foi feita no canal 3 na televisão de Cataluña S.A em 23 de maio de 2011, e pode
ser vista através deste link: https://www.youtube.com/watch?v=ICsnSAyJABY
17
Refiro valores antigos, à concepção grega e romana de civilização. Para eles, o ócio era
valoroso, era tempo de concentrar-se nas potencialidades próprias mentais, e a ocupação
profissional era física e portanto, secundária.
18
O desafio ético do trabalho é o desafio da conciliação da felicidade com a eficácia. O Professor
brasileiro Clóvis de Barros Filho fala em uma entrevista do trabalhador perseguidor de
cenouras, e dentro dessa lógica, a partir do momento em que a cenoura é alcançada o
trabalhador não come a cenoura, paradoxalmente ela desaparece na mão do trabalhador e uma
nova cenoura é colocada para continuar perseguindo. Logo, se existe um tipo de pensamento
acerca do trabalho, ele deve ser pensando por meio de possibilidades no transcurso, para que
durante as metas o trabalhador possa ser feliz, prazedoro nele mesmo.
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especializados e acreditamos na sociedade industrial como nosso hábitat
natural. Assim surge a insatisfação do autor com o modelo elaborado pelo
Ocidente e sobretudo pelos Estados Unidos da América, concentrado na
idolatria do trabalho, do mercado e da competitividade. Ele declara a
importância do tempo livre, da criatividade em tempo de globalização. “O
homem que trabalha perde tempo precioso”, pois é preciso libertar-se da
ideia habitual do trabalho como obrigação e dever, e transformar sua
“função” com tempo livre, mesclando estudo e jogo. Em suma, em todas as
ações deve existir a criação, divertimento e formação, pois é exatamente isso
que é o ócio criativo. É chegado tempo de mergulhar na civilização baseada
no ócio.
19
Johan Huizinga (2000, p. 3) acredita que: “Em época mais otimista que a atual, nossa espécie
recebeu a designação de Homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender
que afinal de contas não somos tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do século
XVIII nos fizeram supor, e passou a ser moda designar nossa espécie como Homo faber.
Embora faber não seja uma definição do ser humano tão inadequada como sapiens, ela é,
contudo, ainda menos apropriada do que esta(...) Mas existe uma terceira função, que se
verifica tanto na vida humana, como do animal, e é tão importante como o raciocínio e o
fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nível de Homo
sapiens, a expressão Homo ludens merece um lugar em nossa nomenclatura.”
49
inconstâncias sobre tudo que isso abarca. Aqui, não precisamente se opta
por um modo de vida, pois como caracol que carrega uma carapaça
desgrudada e viva, posso ser viajante, mas também habitante. Acredito que
ambas as posições precisam ser portadoras da estadia, da presença, porque
viajar é estar presente, não ausente, caso contrário, que tipo de experiência
dispersa se terá?
carapaça adentro
Para prosseguir averiguando a dimensão do ser caracol, passo à morada,
à carapaça, que tem seu valor carregado até o fim, quando percebo que o
projeto de (re)invenção justamente se dá pela necessidade de emaná-la de
mim. É essencial então, falar sobre a sua imensurável importância, mas para
que isso aconteça, é indispensável desprender a imaginação e aproximar-se
do que o filósofo francês Gaston Bachelard (1993, p. 268) propõe, pois
“quem aceita os pequenos espantos, prepara-se para imaginar os grandes” e,
na ordem imaginária, torna-se completamente normal que um rinoceronte
tão imenso possa sair de uma concha de caracol.
É desse modo que Válery (2011, p. 109) reflete sobre esse processo
fundamental de emanação, acreditando que emanar é o único termo
próximo à realidade de um molusco, visto significar propriamente deixar
perder. Pode um molusco emanar sua concha, ou a concha emanar um
molusco, tal como uma gruta emana suas estalactites20. O ser viscoso é
movimento, enquanto a carapaça é reservatório paralisado. Sem o ser
viajante, a casca que o retém não encontraria percurso ambulatório.
Mas, antes que haja qualquer confusão referente a essa metade atrofiada
que possuo e me proponho a (re)construir, acredito que seja pertinente
distinguir o termo emanar. Em primeiro sentido e comum fazer caracoles,
refere-se à origem da concha, aquilo que advém de algo, deixa fluir, nasce,
está por vir ou vindo, já a segunda interpretação deriva da primeira,
tornando-se semelhante a uma máquina aceleradora de partículas, e
denotando o momento em que a criação se desprende do organismo, solta,
descola, difunde, dissemina, deixa sair além da formação, segmentando em
um momento propício o sujeito mole do objeto firme. É nessa condição que
ocorre uma reformulação da posição de ambos em relação ao mundo, a
divisão dois corpos, de duas estruturas experimentais.
20
Estalactites são formações rochosas sedimentares que se originam no teto de uma gruta,
crescendo do teto para baixo, em direção ao chão. Isso acontece pela deposição de carbonato de
cálcio arrastado pela água que goteja do teto.
51
lazer e prazer, pelo desinteresse e espontaneidade capazes de liberar o poder
do criador. É um lazer-prazer-fazer que assimila a atividade criativa ao devir
das vivências, absorvendo a ideia do suprassensorial e de projeto,
integrando-as numa relação de vida-arte:
52
apenas realizá-lo” Oiticica (1969, p. 33, apud FAVARETTO, 2000, p. 133,
134). Logo, realizar o jogo é chave de uma proposta livre, de intensidades
móveis, de forças de desejo: prazer. “Isso sim é importante, a obra é prazer, e
como tal só pode ser livre”.
53
(2014) um atelier móvel, que busca desenvolver um espaço educativo
demonstrando ao público como funciona a técnica da xilogravura em todas
suas etapas: área de gravação da matriz, área onde a matriz é impressa, a
parte da secagem da gravura e no final, a galeria, onde as gravuras aparecem
penduras e emolduras.
proposta de metalugar
Para dar seguimento ao devaneio da concha que se transforma em
objeto descolado, em estrutura globular desprendida no mundo, gostaria de
propor uma metamorfose conjunta para indicar esse devir. Agora, imagine
um planeta onde todos os humanos fossem na verdade moluscos. Todos
viveriam em processo de emanação nos duplos sentidos e por vezes,
trocariam de conchas, adentrariam as carapaças alheias para descobrir
novos mundos. Toda gente tentaria sair da sua concha, mas nem sempre
conseguiria, pois é muito comum que alguém fique aprisionado quando está
no procedimento da emanação original. Mas, quando despregasse de fato e
o molusco tivesse a oportunidade de experimentar a existência viajante para
decidir sua postura de mundo, ele é bloqueado devido à pressa da vida
contemporânea e não consegue ganhar uma forma definida. O que me
preocupa é que muitos desses moluscos acreditam nessa fugacidade, nessa
insuficiência de tempo vital, em que basta simplesmente estar para habitar
qualquer concha. Certamente, o ser que entra nela hoje, prepara sua saída
amanhã e habita-a em um estar ausente. Para ser sincera, confio ser essa a
condição mais inquietante que tenho, pois o estar não condiz apenas em
“estar presente fisicamente”, é preciso uma outra forma de estar na concha e
no mundo.
55
Incorporada no mundo repleto de presenças-ausentes, trago como
alicerce sociológico Bauman (2004) e seu pensamento crítico sobre a pós-
modernidade-líquida. Ele estabelece a lógica da liquidez, pois percebe o
forte caráter do fluxo, em que tudo escorre facilmente, sem peso. É um
ininterrupto movimento frenético que faz sentido quando se observa alguns
pontos identificadores atuais, tais como a individualidade, o tempo e o
espaço, que carregam em si acúmulos de eventos simultâneos de uma vida
regida pela lógica instantânea.
56
evaporar, faz esquecer o instante experiencial, que é só vivido
posteriormente, quando se “revê”, se “revive”.
Nessa situação, será que existem lugares hoje em dia? Será que talvez
tudo tenha se transformado em não-lugares? O que hoje não é passagem?
Que lugar não se torna um não-lugar devido à tecnologia móvel,
correspondendo as presenças ausentes? Será que a proximidade nos escapa?
É por conta disso que começo a aceitar a condição de que talvez exista um
descentramento do mundo, das cidades, das moradas, das conchas, onde
assistimos a metrópole criar ideais de lugares melhores e emergentes a
qualquer situação, e enquanto isso, nosso lar é tomado pela televisão, pelo
computador. Tornamo-nos indivíduos equipados por instrumentos de
comunicação, fones de ouvido, telefone celular, que nos mantêm em relação
permanente com o exterior, ausentes do agora, e por assim dizer, fora de
nós mesmos.
58
globular, globo-lar
Mesmo que a globalização se mostre uma cidade-país maravilhosa,
disponibilizando todas as culturas, trejeitos, várias formas de morar, de
estar, de trocar, no entanto, é ela quem nos torna indivíduos sem lar. Um
cidadão do mundo inteiro deixa de ter seu suporte enquanto matriz. Deixa
de ter costumes, crenças tradicionais para assumir um estilo de vida próprio
e escolhido em uma vasta gama de possibilidades. Você se torna o molusco
que quiser, transitando somente entre o que tiver agrado e muitas vezes
sentido-se não permanente em nada, mas habitante de um globo-lar. Você
pode deixar de viajar muitos quilômetros para conhecer novas culturas,
porque tudo que precisa nesse globo-lar é andar algumas esquinas e
encontrar culturas produzidas em grande escala. Hoje se encontra todo o
mundo em uma só metrópole. Mas, será válido querer habitar esse globo-
lar? Ser cidadão global? Será que os seres mais puros não são os
desabrigados (que não têm casa) e os prisioneiros (que não querem o lugar
que lhes foi destinado)?
Será ainda que esse globo-lar faz alguma relação com o mundo-abrigo
de Oiticica? Não sei explicar o por quê, mas estou convencida disso. De
alguma maneira vejo o globo-lar responsável por nos fazer perder
características raras, e em contrapartida, o mundo-abrigo apresenta uma
proposição de que o dia a dia é experimentação, dirigindo-nos o que de fato
é arte e vida. Acho que somente assim, cada ser enxergará seu próprio
micromundo, criando a grandeza do universo através do ínfimo.
Porém, o globo-lar volta nosso olhar ao presente que não tem mais
tempo, mesmo que a cidade e os sistemas de comunicação e transporte
59
pressupõem ganhá-lo. Andar depressa é esquecer rápido, reter informações
momentaneamente úteis, pois o ritmo das coisas provam a sobreposição dos
andamentos. Será que isso seria uma espécie de amnésia da aceleração? É
assim que o professor brasileiro Nelson Brissac Peixoto (1996) evidencia o
olhar opaco contemporâneo, em que permanecemos guiados pela ditadura
da visão imediata. O problema é que tudo se tornou visível demais, o olhar
perdeu abrangência panorâmica, deixou de apalpar as coisas, tudo passou a
ser instantaneamente mapeado e a imagem midiática é a única descrição
verossímil. Mesmo aquilo que é visível, escapa a visão e para Deleuze (1996,
p. 162) a grande questão está na “crença capaz de nos devolver o mundo e o
corpo a partir do que significa sua ausência”.
60
Figura 5: Detector de ausências (1994) Rubens Mano.
Noto então que existe uma diferença crucial na ideia que permeia
presenças e ausências. Hoje ainda se encontra presença-presente e ausência-
ausente, mas acho raro, porque existem meios de atravessar esses estados
selados e atribulados ao frenesi diário, pois não achamos espaços para
61
constituir uma circunstância tão condensada, porque estamos distraídos,
vivendo situações paralelas. Nesse caso, entendo ser pertinente distinguir a
ausência-presente da presença-ausente, mesmo que já saiba que isso
provavelmente irá gerar confusão e ambiguidade, no que diz respeito à
utilização e possível diferenciação de termos tão similares. Logo, penso que
uma ausência-presente alude à noção de insuficiência vivida, é quando o
indivíduo vive o momento, mas em simultâneo, sofre o fenômeno de estar
viajando dentro de si, agregando o momento real ao imaginado e vice-versa.
Mesmo ausente a situações concretas, esse ser divagante está no presente de
forma a incorporar a sua existência. Mas por vezes, uma ausência-presente
pode se manifestar como uma harmoniosa ligação com alguém que não está
presente fisicamente, mas por algum motivo de potência vivida, continua
presente no embalo cósmico. Esse último, pode ser definido como
lembrança ou saudade.
62
visível e se transformou em contornos da cidade, e é propriamente dessa
maneira que aparece o trabalho da artista norte americana Jennifer Allora
(1974-) e do cubano Guillermo Calzadilla (1971-), intitulado Landmarks
(2002). Ele consiste em gravar mensagens de protesto em solas de plástico,
que são acopladas aos sapatos dos participantes de uma manifestação contra
o exército militar em Vieques21, Porto Rico. Ao pisar, os manifestantes
deixavam fortes mensagens no chão, e o ato do movimento deixava a marca
de presença. E é justamente isso que interessa, o registro das pegadas no
chão, a ação que determinou um tempo e espaço, desenvolvendo um
acúmulo de presenças.
21
O local foi base militar dos Estados Unidos da América entre 1941 e 2003, sendo
frequentemente utilizado para testes de armas. Essas operações resultavam em uma série de
degradações ambientais, expropriações de terra e conflitos.
63
(re)inventá-lo? Diante disso, trago o filósofo francês Michel De Certeau
(2002, p. 178), pois é precisamente isso que ele preconiza. Sua pesquisa
nasce por meio da interrogação sobre as práticas do espaço cotidiano por
sujeitos passivos, cegos, entregues à disciplina, aos meios operacionais
prontos, assim, procura extrair “modos de ação” e sobretudo a relação entre
o sujeito e o espaço, em que práticas comuns como falar, ler, circular,
comprar, cozinhar são maneiras de fazer com que conduzem a ideia de uma
trajetória própria. Para inventar o cotidiano, precisamos criar nossa própria
prática de espaço enquanto construção visual, poética e mítica, é preciso
apropriar-se dele, habitá-lo.
Figura 7: Yo paso por la ciudad y la ciudad pasa por mi (2005) Ariel Orozco.
Aos poucos percebi que todo molusco vive para construir sua concha,
mas não a constrói para viver nela, pois, a partir do momento em que destila
sua cobertura, confronta-se diante da formação como sujeito viajante, lento
65
e contínuo, podendo ser presença, fazer habitação em outras conchas, em
tantos outros universos. É exatamente aí que se acentua a importância desse
trânsito de caramujos que trocam de conchas, que praticam os espaços
internos e externos do globo-lar. Para uma concha habitada, quantas
existem vazias? Quantos espaços desocupados? Não vistos, não praticados?
Acredito que cada vazio existente sugere um devaneio de refúgio, um
pedido de ação, de experiência, porque toda morada não quer ser tapera, ela
quer ser espessura, solidez corpórea para as coisas.
66
Os insetos agitam-me em processo de reinvenção. Movimentam e
acionam o fazer preciso, por isso, formigo para construir um habitar
provisório, um querer incessante.
eu sou um inseto
69
adorar projetar mobiliários que reinventam suas memórias, seu cotidiano. O
projeto da concha lembra minha casa feita de terra e de depósitos
sedimentares empilhados manualmente em processo demorado. É a partir
daí que começo a recolher ininterruptamente porções de vida triturada,
substância terrosa de todas as coisas para estruturar silenciosamente a
existência do caracol.
Acho que ainda não assimilamos que existe uma diferença entre carne e
aço, entre ossos e parafusos. Desse jeito desenvolvemos um planeta baseado
na noção de que somos separados, porque cada um é uma peça específica da
máquina e quando aparece outra peça com a mesma função, ela é adversária
fatal. Construímos cidades aprimoradas no isolamento, casas de caixa de
70
fósforo, estabelecimentos com repartição individual, salas cerradas.
Produzimos educação moldada nessa noção e então honramos a
independência e competição. Nesse reino a ordem é informacional, os
fluxos são acelerados, as verticalidades produzem isolamento, segregação. É
isso que isola você e eu, é isso que faz com que fiquemos apáticos em relação
ao sistema político e ativos ao consumo. Só que essa realidade contradiz
minha espécie, eu sou uma formiga agora e necessito de grupo, preciso de
união para existir. Sou do reino da liberdade, onde existe ordem próxima
comunicacional, lentidão, horizontalidade, presença e fazer solidário.
Essa circunstância pode ainda ser chamada daquilo que Foucault (1999)
identifica como “sociedade disciplinar”. Nela, cria-se indivíduos aptos a
serem manipulados como um corpo dócil junto a prática de dois valores: o
espacial e o temporal. No que diz respeito ao valor espacial, percebe-se que
ele acontece nomeadamente nos espaços de confinamento como escolas,
fábricas, igrejas e prisões, nos quais se produzem as noções de fronteira
entre o dentro e o fora, entre o sucesso e o fracasso, e o sucesso é estar
dentro. Uma vez disciplinado, o indivíduo não cessa passar de um meio
fechado (escola) para outro meio fechado (fábrica, prisão), e é justamente
isso que o valor temporal produz: um automatismo dos corpos, uma
imposição do ritmo cadenciado, tal como uma linha de montagem de
fábrica, em que cada sujeito reproduz sua função incansavelmente. Quer
dizer, o espaço confinado e o tempo cadenciado são responsáveis por
fabricar indivíduos disciplinados de acordo com a necessidade do sistema.
O corpo torna-se apenas uma superfície de inscrição de normas e valores
dessa sociedade que programa gestos, retira todos os vestígios de vontade
própria, desqualificando a expressão.
71
mas voltada ao cotidiano. Sua idealização parte da noção de que a escola
desenvolva um currículo utilizando a casa como laboratório, construindo
tudo o que se precisa para viver em primeira estância. Isso talvez seja
semelhante ao fazer que tenho aqui, a reconstrução da concha sustenta a
existência do molusco e resguarda a do inseto, é próximo aos dois como se
fosse o orbe que os circundassem. É como se o sujeito fosse colocado no
centro de uma cebola e para abranger sua exterioridade, primeiro necessita
conhecer todos os seus anéis, tudo que lhe está próximo.
22
Surge na cidade do Porto, em Portugal em 1976 junto ao pedagogo José Pacheco com a
intenção de respeitar as diferenças individuais dos alunos. A escola adota a lógica de projeto e
equipe em torno de um único exemplo acabado de seus princípios: “uma escola democrática,
para todos, em que dá o protagonismo ao aluno”, seguindo o pensamento do educador
brasileiro Paulo Freire.
72
determinismo”. Sendo assim, a Escola da Ponte é um projeto para a vida,
uma ponte para o mundo, e mesmo que seja incomum, por meio dela é
possível enxergar que existem iniciativas contradizendo a sociedade
disciplinada de que fala Foucault.
23
Chamo de sonhadores os seres que parecem pertencer a outros mundos, não só aparentam,
mas de fato têm seu próprio universo e a incrível aptidão de permanecer em mim. Tem viajante
que fica nas pessoas, tem pessoas que ficam nos viajantes.
74
espaço reservado para suspiros
de pensamento
ou efervescências
fabuloso é o perceber de quem olha de fora, de um dentro profundamente
diferente do meu. Tudo é questão de percepção, é ela quem faz o(s)
mundo(s). Ela pede, requer e genuinamente segue o leitmotiv24 que o artista
espanhol Antoni Muntadas (1942-) utiliza em seus trabalhos artísticos:
“Atenção: Percepção requer envolvimento”.
Serres (2013, p. 87) articula que é preciso que o “objeto se torne sujeito”,
deixando de ser passivo, inerte, para transformar-se através da percepção,
em um objeto-sujeito cheio de pensamento. É dessa maneira que a concha
(re)inventada aparece, como um espaço a ser criado que assume uma
postura singular na cidade. Ela comprova o que já referido anteriormente
por Oiticica, a noção de transobjeto e crelazer, tornando-se uma estrutura
24
Leitmotiv (do alemão motivo condutor ou motivo de ligação) é termo composto, expressão
idiomática utilizada para significar genericamente qualquer causa lógica conexiva.
75
com princípios próprios, que não cabem mais ao sujeito criador e sim o
orbe. A carapaça descolada do caracol é um objeto-sujeito que oferece
espaço interno e externo de percepção, e, para mergulhar nela, é apenas
preciso querer habitá-la, para então, observar todas as coisas situadas ao seu
entorno. Porém, sem mais demora, antes de devanear sobre sua
disseminação, primeiro preciso aprontar o terreno de sua criação-
construção, evidenciando momentos em que estabeleci habitação no
pensamento, enquanto sua matéria ainda não havia tomado forma.
25
Sonhador Miguelângelo Corteze.
77
um dia. Eu necessitava digerir, carecia ebulir minhas experiências para
elaborar algo. Algo que verdadeiramente fizesse sentido para mim.
26
No ensaio “¿Que és un dispositivo?” Deleuze considera dispositivo como um conceito
operatório multilinear, alicerçado em três grandes eixos que, na verdade, referem-se as três
dimensões que Foucault distingue sucessivamente: saber, poder e (produção de modos de)
subjetivação. Essas linhas não são curvas e regimes que demarcam limites rígidos de um de um
sistema ou de um objeto; pelo contrário, elas os desestabilizam (tanto como sistema, quanto
objeto), os fazem tornarem-se suscetíveis a movimentos de contínua acomodação quanto às
tentativas de efetivar “processos singulares de unificação, de totalização, de verificação, de
objetivação e subjetivação” (DELEUZE, 1900, p. 158)
78
apta de derivar e transformar tal visualidade. Essas linhas de forças traçam
tangentes, envolvem trajetos, operam idas e vindas entre o ver e o dizer.
Elas criam o poder de relação do saber, não como causa e consequência, mas
por meio de uma relação de mútua dependência, de articulação recíproca,
de entrecruzamento entre o visível e enunciável que concede a condição de
existência do dispositivo.
Portanto, assim como uma rede é composta pelos nós que conectam
suas linhas, igualmente a arte contemporânea propõe uma união com aquilo
que de fato experimentamos, uma arte próxima ao cotidiano, aos não-
lugares, que vai ao encontro do público, com presença, determinada a
provocar novas formas de fazer, de pensar e estar, como também novos
jeitos de receber, entender, participar e enunciar. É essa condição
heterogênea da arte, a qual as fronteiras de linguagens aparentam a cada dia
mais se diluir, que pede por artistas também mestiços, variegados, artistas
que se propõem a assumir papéis múltiplos. Por isso, torna-se valioso o
termo que o artista, professor e crítico brasileiro Ricardo Basbaum (2013)
criou, o conceito do artista-etc:
79
pisoteando o mundo como quem tropeça
Para relatar o processo de (re)invenção do dispositivo móvel, acredito
ser crucial enfatizar que este nem sempre teve forma e pensamento de
concha. A carapaça surge como uma união de distintas proposições
urbanas, quando me sentia estrangeira, sem território. Ela perpassa
solicitações de pausa urbana, procura de lugar, e o descobrimento de uma
identidade construída por percursos.
80
os homens, é que quando viajamos parece não termos saído do mesmo lugar
donde estávamos.
82
Figura 10: Área de pessoas perdidas (2014) Mariana Corteze. Coimbra (PT).
83
(2014-), mapeando modos de estar, gerando uma relação irredutível com os
espaços, os percursos, e por meio disso, buscando uma certa identidade
pessoal que se apoia nos constantes movimentos de perda e encontro.
84
Figura 12: Mergulhando em mil sujeitos (2014-2015) Mariana Corteze. Porto; Coimbra (PT),
Atenas (GRE), Dubin (IRL), Paris (FRA), Porto Alegre; de Maio; Pelotas (BR/RS), São Bento
do Sul; Rio Negrinho; Balneário Camburiú (BR/SC).
Era uma engenhoca que desfilava pela rua e sua presença subitamente
me fez sentir semelhante. Talvez seja pela desvergonha e audácia do sujeito
que a orientava ou pelo desafio de sua construção improvável. Não sei. O
fato é que ela me fez lançar questões sobre a necessidade de impulsionar um
projeto que revelasse uma verdade profunda sobre minha existência, sobre
85
aquilo que me move e atravessa. É, eu não poderia mais me esconder
daquilo que me movia, penso que tinha chegado o momento espontâneo em
que me daria conta do que devia fazer.
Foi então que esse encontro fez reviver de alguma forma minhas
memórias, me fez sentir o quanto eu carecia sustentar meu pequeno próprio
mundo onde os espaços percorridos fossem potência, e assim, poderia
singelamente assumir a certeza da tentativa na construção do meu espaço
móvel. Essa situação desdobrou viagens sobre minha história, fez-me
entender que não poderia fazer outra coisa, senão a concha. Precisava
novamente desconstruir um espaço, para (re)fazer outro (mapa-memória
Eu sou um inseto) e na feitura da concha, já sabia que também me
reconstruiria.
diário de (re)invenção
“O mundo só é possível porque a gente inventa”, é isso que uma
sonhadora27 me disse quando estava prestes a deixar tudo de lado, não só os
desenhos, idealizações e esquemas, mas o próprio promotor desse trabalho.
O fato é que o que menos está fazendo esse projeto de conclusão de curso é
concluir, porque na verdade ele está questionando tudo o que já fui, o que
sou e o que caminha comigo depois dessa reflexão. Ele está introduzindo
um furacão em mim. Para já, não sei dizer porque permaneci, não encontro
significado explicativo que possa acalentar qualquer dúvida. Porque antes de
tudo, eu já sabia que esta proposição era desafiante, geraria medo,
ansiedade, vontade de que tudo se pulverize a pó. Entretanto, só sei que
agora começo a relatar o processo da minha (re)invenção e, nesse processo,
27
Sonhadora Helene Sacco.
86
tudo se deu por meio de recolhas. A recolha de cada objeto, cada detalhe do
dispositivo é também algo perdido em mim. Foi encontrando fragmentos de
vida que senti o formigamento tomar conta do meu ser, mesmo tendo plena
consciência de que muito daqui é baseado em utopias. Acho que sinto
coceira por utopias, e para acalmá-las preciso injetar algumas doses de vez
em quando. É por isso que a (re)invenção da concha poderia ser apenas uma
proposta, mas não é.
28
Compensado naval de virola de 12mm e outro de 3mm flexível para fazer a abertura curva.
29
Movimento diz respeito à duas rodinhas de aro 16 de uma antiga bicicleta do meu padrinho,
que formam o reboque e sustenta a concha. O encaixe do reboque é feito na bicicleta Brisa pelo
aro traseiro, com um pivô de direção.
87
Figura14: processo de (re)invenção (2015) Mariana Corteze. São Bento do Sul (SC), Três de
Maio (RS).
88
É tão extraordinário perceber que aos poucos a carapaça estava
existindo fora do meu pensamento. Seus desenhos começavam a orientar os
caminhos, as projeções, a forma. Durante sua estruturação surgiram
numerosos questionamentos vindos daqueles que me acompanharam,
como: “Ainda não entendi para que serve isso, pode me dizer?”, “Por que
você está construindo?”, “Um curso de artes não se detêm a estudar obras
renomadas?”, “Você precisa inventar algo para escrever a monografia? Não
é melhor fazer um estudo de caso?”, “Qual a utilidade disso que você
constrói? Ou melhor, a arte tem utilidade?”, “Como isso se chama?”, “Esse
invento faz o quê?”, “Você não pode apenas fazer uns desenhos, umas
pinturas para concluir a universidade?”, “Por que você não pensa em um
projeto mais simples, menos trabalhoso?”, “Vai fazer tudo isso somente para
a graduação? Sério?”, “Quer um conselho? É sempre melhor ir pelo caminho
mais fácil, viu?”. Foi um verdadeiro redemoinho de estranhamentos
causados pela corporeidade da concha. E é aqui, portanto, que retomo
Valéry (2011, p. 108) para pensar um pouco mais sobre o fazer do artista, ou
como ele indaga: “por que foi feito esse objeto?” e “para que serve, digo,
aquilo que os artistas produzem?”
89
olhos subjetivos o que realmente lhe toca. É assim que concordo com Valéry
(2011, p. 108) quando afirma que aquilo que os artistas fazem pertence a
uma espécie singular de existência, pois “nada o exige, nada de vital o
prescreve”, e a ideia de colocarmos tudo enquadrado na concepção do útil
faz não enxergarmos além dessa noção, que não abarca sentido algum fora
do homem e de sua pequena esfera intelectual.
Para que serve a arte? Para começar, podemos dizer que ela provoca,
instiga e estimula nossos sentidos, descondicionando-os, isto é,
retirando-os de uma ordem preestabelecida e sugerindo ampliadas
possibilidades de viver e de se organizar no mundo. (CANTON, 2009, p.
12)
Para dar luz sobre o que deve ser entendido por (re)invenção da concha,
trago Kastrup (2007, p. 27) quando se refere à etimologia da palavra latina
invenire: sendo aquela que indica encontrar relíquias, restos arqueológicos.
Esses fragmentos encontrados apontam para um caminho que não é
facilmente enxergado, pois (re)invenção implica duração, recomposição
incessante. “É uma prática de tateio, de experimentação, e nessa
experimentação que se dá o choque, mais ou menos inesperado, com a
matéria”. Assim, acredito que esse fazer carrega consigo (re)descobertas,
problematização de estruturas ativas e proliferantes, que trazem consigo um
buraco negro capaz de demonstrar a infinitude do ser, mas não sobre o que
é, mas aquilo que irá devir, dissipar.
30
Esse projeto lhe rendeu o Prêmio Turner de 2005, o mais prestigiado prêmio de artes visuais
da Grã-Bretanha.
91
margens do rio Reno, o desconstruiu, fez um barco com partes da madeira,
em seguida usou a embarcação para se transportar rio abaixo para Basileia
(Suíça) junto com as peças restantes. Lá, desmontou o barco e reconstruiu o
galpão na sua forma original dentro de um museu. Logo, era possível andar
em seu espaço sombrio, perceber a luz verter pelas fendas inábeis e
gradualmente atribuir sua aparência estilhaçada à essa dupla metamorfose.
92
é na verdade uma remontagem própria, capaz de carregar interesses
moventes e responsáveis pelo fazer sensível, concentrando-se entre janela,
teto, correio, porta-retratos e um dirigível (consultar mapa-memória Eu sou
um molusco).
Figura 16: Pó repleto de impulsos criadores (2015) Mariana Corteze. São Bento do Sul (SC).
93
Para além do procedimento que envolve sua construção, confio ser
preciso atentar o olhar para o deslocamento espacial tão fortemente
presente no trabalho de Starling, quanto no Pequeno Experimento de
Mundo #1. A dimensão do percurso é enfatizada, a partir do instante em
que durante as viagens de locomoção do Compartimento de Estar e Partir,
muito da reinvenção se fazia. Portanto, o trajeto é parte essencial do projeto.
Foram longas viagens, muitos quilômetros percorridos, numerosos
pensamentos vagantes. Afinal, ela foi inicialmente construída na cidade de
São Bento do Sul, Santa Catarina, depois transportada e novamente
reinventada em Três de Maio, Rio Grande do Sul (770 km) e, por fim, em
Pelotas (550 km). No trajeto ela se fazia nova, agregava um novo sentido à
saída, ao caminho e à chegada. Era como se fosse uma mochila de um
viajante, ora está cheia de experiência, iguarias e subsistência, outrora está
esvaziada por conta da rota e da experiência de viagem.
94
Essa obra é vista como uma casa feita em apenas uma mochila que se
carrega nas costas, criando assim, uma espécie de próprio microcosmos
daquele que se desloca com ela. Ela pode ser percebida a partir da presença
real ou ilusória do mundo, que cria as noções de fronteira. Quem propõem-
se a viajar ou mundivagar, desafia consequentemente as linhas divisórias da
política, da ideologia, religião, cultura, bem como os limites que se
inventam.
95
habitação e mostrando-se como um lugar aberto para o mundo em
movimento, indicando que é possível fazer estadia, mesmo no percurso.
31
É o maior festival de arte e livre expressão radical do mundo, que reúne no deserto mais de
23 mil anarquistas, poetas, alternativos e sonhadores. Acontece anualmente no deserto de
Nevada desde de 1986. Burning Man quer ser uma alternativa para a cultura de massas e a
sociedade consumista.
96
O artista viveu uma semana dentro dessa pequena unidade móvel que
comporta uma cama dobrável, mesa, lotes de armazenagem, cozinha,
sistema de ventilação, banheiro e uma janela bolha que adiciona espaço
extra para ver as estrelas. Ele transitou na aldeia do Festival com sua casa
engatada, dirigindo sua bicicleta-acampamento ao mesmo tempo em que a
habitava. O artista é pulsão movente da própria casa.
Sei que talvez seja difícil de compreender esse diário de devaneios que
constitui sua (re)invenção, mas proponho que pense nele como um
conteúdo capaz de ser fatiado, para assim, avistar camadas, blocos de
construção repletos de infindáveis caminhos. Acredito que todo processo de
criação é único, e tal como diz Calvino (1990, p. 25) “discutir arte sob o
ponto de vista de seu movimento criador é acreditar que a obra consiste em
uma cadeia infinita de agregações de ideias, isto é, uma série infinita de
aproximações para atingi-la.” Portanto, de que maneira eu apresentaria uma
criação que é infinita? O Compartimento de estar e partir é cheio de um
longo processo de ajustes, dúvidas, aproximações e metamorfoses em um
mundo dobrado. É uma casca feita de um percurso que jamais é resultado,
porque em nenhum momento estará acabado, com uma forma final e
definitiva. Então, é importante que saiba que você está diante de uma
realidade em mutação constante. O que ela foi no parágrafo anterior, pode
deixar de ser no próximo.
eu sou um pássaro
Viajante é quem empina o infinito dentro da gente,
só que antes de empinar o infinito nos outros,
o viajante tem que fazer isso dentro dele mesmo.
Depois, aí sim ele pode botar as pessoas no ar.
Márcio Vassallo
32
Gonçalves Dias escreveu a Canção do Exílio na mesma posição em que me encontrei no
período do intercâmbio, na Universidade de Coimbra, em Portugal. Ele se sentia saudoso do
seu território, e talvez, tenha se sentindo sem território em Portugal também.
101
esquecida de mim, compreendi que eu era esse vento, um pouco dessa força
na qual se flutua.
suspender em experiência
Desde o momento em que a concha (re)inventada toma seu lugar no
mundo percorrendo espaços, habitando, compartilhando, experimentando e
tentando fundar um metalugar na cidade, ela propõe pensar educação em
arte como viagem. Se no capítulo Caracolar dediquei-me a refletir seus
semblantes contraditórios e confrontantes, agora eles entram em cena como
potência máxima e transformadora, porque viagem aqui é entendida como
aquela que modifica, que agrega experiências sensíveis. Somente quando
assumimos a posição de viajantes disponíveis à experiência, atingimos o
sentido essencial da aprendizagem.
102
espaço reservado para movimento
de pensamento
ou transfiguração
nada nos acontece. É precisamente isso que Benjamin aponta em seu ensaio
Experiência e Pobreza, em que já observava essa escassa forma de sentir que
nos envolvia.
Já é sabido que tudo isso ocorre por conta do ágil tempo globalizado que
busca cada vez mais informações instantâneas, opiniões superficiais e
trabalho mecanizado. Mesmo que tudo isso, de alguma forma, já tenha sido
abordado na presente escrita, aqui é o exato momento em que tudo se
conecta. Esses fatores são responsáveis por tornar a experiência cada vez
mais rara, pois somos impedidos por nós mesmos de nos relacionarmos
significativamente com os acontecimentos. Somos cada vez mais cheios de
uma presença-ausente, e é isso que reflete a falta de experiência. Portanto, é
evidente que a educação está vinculada a esse processo volátil, pois estamos
nos formando sujeitos fabricados e manipulados por informações e opiniões
alheias, incapazes de experienciar. Por não pararmos, não digerimos
experiência.
É incapaz de experiência aquele que nada lhe passa, nada lhe acontece,
nada lhe toca, lhe chega, afeta e nada o ameaça. Por isso, é preciso alterar
esse panorama apático, e essa mudança só pode acontecer junto à educação.
O sujeito a ser libertado é o sujeito da experiência, e não o da informação, da
opinião, do trabalho, do poder, do querer ou do julgar. Uma vez sujeito da
experiência, torna-se uma espécie de território de passagem, um lugar de
chegada ou um espaço do acontecer, sendo distinguido pela sua recepção,
disponibilidade e abertura.
104
provém uma sociedade emancipada, onde o mundo é então
responsabilidade de todos.
105
O que torna o corpo afetado é o contato. O estar na experiência é o
encontro, é o que toca, o que converte os seres, os meios e os lugares. Essas
trocas provocam não um estado de estabilidade, mas uma relação em
constante movimento. Posso dizer que, sob essa perspectiva, o que deixo
como vestígio desses encontros proporcionados pela concha (re)inventada
são resquícios sensíveis daquilo que me afetou no mundo e os apresento
aqui em forma de relato, acreditando no que Espinosa (Apud DELEUZE,
2002, p. 56) indica, pois, a potência de sentir é também a capacidade de
pensar e existir. “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua
potência de agir é aumentada e diminuída”.
Esses afetos talvez possam ser apreendidos como o que acontece durante
um entrelace de dois corpos, seja um abraço, um aperto de mão, um olhar,
um sorriso, um diálogo, um silêncio, um respiro. Quando algo é
compartilhado, os dois corpos descobrem juntos um novo reconhecimento,
um instante singular de aprendizado recíproco. E é por essa via que a
educação em arte tem que se mostrar ativa, partilhando este sensível nos
espaços em que transita, pois, como organismos vivos, nos transformamo-
nos, nos sobrepomo-nos a cada nova relação.
Esses espaços só são vivos porque são ativados pela presença. Eles
podem ser incitados por estratégias, tal como a dos caramujos camelôs. De
acordo com a artista, estes também são uma espécie de espaço imantado, no
sentido de chegar numa esquina qualquer, abrir a maleta e começar a falar,
criando de repente uma imantação, fazendo as pessoas se aproximarem,
ligando-se àquele discurso irregular, e quando por ventura fecha a caixa, o
espaço se desfaz.
107
Foi então, que percebi que eu criava um espaço imantado, semelhante
aos caramujos camelôs. Penso que, no momento em que parava e abria as
portas da concha, fundava esse campo de atração e repulsão. Fazia-me
junto ao Compartimento, o próprio meio de experimentação. Eu sentava
ao lado de sua abertura e procurava criar um ambiente afetivo para com
aqueles que transitavam. Buscava entrecruzar trajetos. Tocar presença.
108
Acredito que proposições assim procuram dia a dia criar mudança de
percepção, olhando para o mundo de forma diferente. Elas mostram o
quanto é importante a experiência, o momento de pausa ao fluxo cotidiano,
o tempo lúdico, de ócio, de encontros. É propriamente isso que venho
plantando ao longo do Pequeno Experimento de Mundo #1, e assim,
expando a noção de viagem a todos esses parâmetros que permeiam o
estágio aberto e liberto do experimentar. Quando ele de fato acontece, os
passantes se tornam viajantes, e de repente, cria-se um tempo extraordinário
de troca. É ali que se cria o instante mais importante de toda a pesquisa,
quando a experiência vem à tona e gera interpretações valorosas que
continuam a (re)construir a carapaça nunca acabada.
abrigo-alado
Tudo começou quando percebi a incrível correspondência entre
conchas, formigueiros e ninhos. Eles são refúgio das três espécies de
viajantes: da água, da terra e do ar. Logo, se eles se contêm, podem
eventualmente receber visitantes de outras naturezas, como por exemplo,
uma carapaça deve sem dúvida abrigar passarinhos, um formigueiro deve
hospedar moluscos e o ninho acolher insetos. Essa troca de residência é
fundamental para experimentar o mundo. É o estar estrangeiro que pede
licença para habitar.
109
Assim, pensa-se que é preciso habitar espaços inabitáveis, como sonhos,
imagens e prateleiras. Ir além das situações vividas para descobrir as
inventadas. E um livro consegue fazer isso, ele descobre a natureza e a
cidade inteira, faz com que atravessemos espaços, ruas, rios, olhares e
risos. Mergulhar na escrita é habitar um livro, habitar de passagem ou de
permanência. Mas tome cuidado: habitar não é habituar-se. Talvez,
quando você encontrar seu livro-ninho, perceba que esse abrigo alado se
integra ao vento, aspira leveza aérea e leva o habitante a viagens
distantes. (CORTEZE, 2015, p. 1)
110
Figura 25: Cartaz ação (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS).
111
Foi proposto instigar cada viajante a passareiar pela livraria, a extraviar
as estantes e encontrar seu ninho, que era constituído pela colagem de
etiquetas douradas retiradas do próprio mapa de viagem espaçandante.
Todos aqueles que estabeleciam um ninho, eram compreendidos segundo o
trecho do poema Cantigas por um passarinho à toa, do poeta brasileiro
Manoel de Barros (2013, p. 464) “sou um construtor menor, os raminhos
com que arrumo as escoras do meu ninho são mais firmes do que as paredes
dos grandes prédios do mundo”.
Figura 26: Ação descubra seu livro-ninho (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS).
112
plena certeza de que era um pássaro feito de areia. Isso tocou fundo em
mim, porque penso que compartilho com ela essa sensação. Somos pó,
levados pelo vento, flutuantes de frestas iluminadas. Somos um pouco
daquilo que recolhi no deserto. Fragmentadas, esfaceladas em milhares de
migalhas que se espalham entre os cantos do universo.
113
Essa ação desencadeou algo completamente inesperado. De repente,
começaram a aparecer pessoas de vários lugares, pedindo para que eu
enviasse o mapa de viagem espaçandante por correspondência, para que
mesmo de longe, elas pudessem de algum modo, encontrar seu livro-ninho.
Não sei se elas pensavam que eu havia criado um “manual de como
encontrar sua morada alada” em qualquer estante. O fato é que mesmo o
mapa sendo um reflexo poético do espaço específico do Casarão 8 de
Pelotas, ele pode desenvolver pensamento acerca desse tipo de habitação,
fazendo um convite de visitação à livraria para além das fronteiras.
114
outros. Acho que me tornei um pouquinho dos outros. Eles aproximavam
suas memórias ínfimas, realidades desprezadas e, assim, faziam viver um
instante único dentro do trânsito urbano. Foi assim que de repente, fizeram
mudar a visão sobre meu trabalho, que antes era focado na experiência de
viagem sobre a concha, mas agora é ressaltado a partir das trocas, do
ambiente constituído e dedicado à poesia de cada mundo singularmente
experienciado.
Figura 28: Delicadezas vão além da visualidade (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS)
115
cada não-lugar frequentado. A concha poderia, assim, não fazer sentido e
não encontrar viajantes. Seria vista tal como a condição de viagem em meio
ao turismo, apenas expositiva. Seria um espaço vazio e um projeto fechado
só às minhas experiências. Mas ainda bem que não o foi. Suas portas abertas
provocaram reinvenções, deslocamentos e relações encantadoramente
correspondentes.
Figura 29: Delicadezas vão além da visualidade (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS)
116
Estacionei a carapaça em diferentes não-lugares da cidade de Pelotas,
sendo eles a praça Coronel Pedro Osório, o calçadão e Mercado Público.
Nessas localidades, deparei-me com comuns questionamentos curiosos
sobre o que os passantes acreditavam que eu fazia: vendia rapadurinhas,
tirava fotografias, alugava o espaço, que eu era uma loja ambulante e vendia
os objetos que carregava, escrevia cartas para quem já perdeu a caligrafia por
conta da tecnologia, oferecia petiscos, decorava bicicletas, observava as
nuvens, ensinava a desenhar, vendia passagem de viagens. De certo modo,
acredito que minha intenção se assemelhava a essa última interpretação. Eu
estava instalada no espaço para vender passagens, mas essas passagens não
faziam referência ao turismo e sim a rememoração, a transformação
singular.
Figura 30: Estacionamento da concha (re)inventada (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS).
117
fotográficos de viagens; Coleção Postal: é isso que faz um mundo (2014); e,
por fim, os mapas-memórias que envolvem a presente pesquisa.
Figura 33: Tempo outro do experimentar (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS).
Quando ele mergulhava seu interior, disse: “Tudo aqui se trata de lugar,
de encontro, e quer saber de uma coisa? Nesse compartimento a gente se
esquece do chão, o céu vira nosso ponto de viagem, e eu realmente não vi o
tempo passar, até perdi o horário do trabalho. Minha vontade é me
encontrar sempre por aqui”. Enquanto experimentava meu mundo
inventado e criava o seu próprio, o estudante declarou: “É como se a gente
encontrasse o céu nas mínimas coisas, o meu céu, por exemplo, hoje foi
aqui” (remetendo a definição de céu33 do Glossário-inventado).
Após essa declaração tenho até vontade de terminar a pesquisa por aqui,
em silêncio, porque estas concepções experienciais dizem muito de tudo.
33
Céu: lado oposto da terra. É entendido como lugar pulverizador da cor que é mãe das estrelas
luminosas. (CORTEZE, CORTEZE, 2014, p. 24)
121
Tudo que procurei tatear até aqui. Porém, decidi continuar relatando mais
algumas experiências e fascinantes percepções que o Compartimento de
estar e partir encontrou. Tal como a presença de um repórter que utilizou
do espaço da carapaça em meio ao calçadão. Ele sentou-se, organizou seu
cronograma de entrevista, e ao ter contato com alguns de seus ativadores de
espacialidades temporárias, refletiu: “Sabe, na comunicação a gente
incrementa a informação, de modo a torná-la clara. Sentado aqui, lendo o
Glossário-inventado, percebo que ele faz muito mais sentido que o
dicionário real, do qual tiro minhas palavras para enfeitar as entrevistas que
faço”.
122
Nessas andanças e estadias encontrei três mochileiras: do Texas, da
Argentina e do Chile. As três encontraram-se em percurso, sendo que as
duas primeiras se descobriram no Uruguai e a terceira em Pelotas. Sem
querer se acharam, e assim seguiram juntas o percurso, modificando-se.
Parece que de certa maneira, essas três viajantes são tudo que a carapaça
propõem-se a ser desde o início de seu pensamento. Elas instalam-se nos
lugares sem planos predeterminados, deixam-se afetar pelas experiências e
encontros. É desse jeito que atingem seu verdadeiro ser em viagem:
aprendendo com elas, porque afinal, viagem somos nós.
Foi então, que achei preciso dedicar este parágrafo para um espaço
imaginado. Proponho um suspiro. Tranco minha respiração para d e m o r a
d a m e n t e s o l i c i t a r p a u s a. E esse intervalo é a tentativa de criar
essa imagem de percurso cadente, essas palavras que fortemente
desaguaram na minha imaginação. Quem sabe, essa interrupção no texto de
relato, possa expandir a ideia de lugar, propagando assim, em dobra, a
noção de infinito.
123
Para além da presença das mochileiras, despontaram na carapaça três
antropólogos. A primeira antropóloga encontrei no largo do Mercado
Público: “É isso que eu preciso ultimamente”, “eu penso como você, a
expansão do corpo no espaço”, “acho linda toda essa ideia de
desterritorializar seu próprio ser”, “expandir aqui e ali um pouco daquilo
que foi e daquilo que agora é”. Sem demora, ela apropriou-se da carapaça
por longo tempo e no final da tarde, ao compartilharmos pensamentos e
silêncios, ela me disse: “Entrei em catarse aqui, por mim, eu ficava aqui para
além dessa tarde”.
126
reviravolta no concluir
POEMA DE MUNDO
Este final não propõe um saber acabado. Até porque tudo está
demasiadamente condicionado ao resultado, à efetividade, ao acerto. Se eu
encontrasse de fato uma descoberta no término dessa monografia, não sei o
que faria, talvez a jogasse fora para continuar procurando e caminhando.
Quem sabe seja por isso que desde o início identifiquei-me como caracol
cartógrafo, pois quem cartografa sempre está em processo, nunca no fim. E
o fim nunca é na realidade “o” fim, pois o que chamamos de final é sempre
fim de algo que continua de outra maneira.
Esses gestos locais talvez um dia possam ser percebidos como efeito
global. Nesse caso, será que o local é somente o lugar em que se está? Será
que existe um lugar ao qual verdadeiramente pertencemos? E no que diz
respeito a qualquer prática cultural, que tipo de ação é associada a
experiência a ser construída, inventada e incorporada? A concepção que se
tem aqui acerca do fenômeno da globalização está relacionada a uma região
habitada por padrões, porém, a única coisa que se enxerga é que esse
pensamento necessita ser redesenhado, carece de práticas locais que revivam
a independência subjetiva. É justamente isso que Basbaum (2013, p. 60)
aponta, afirmando que o ser global é dotado de uma “batalha simbólica, em
que a cada segundo são negociados sentido e representação”, sendo papel da
arte sensibilizar e conceituar, estabelecendo condições para um campo
experimental.
Quem sabe, por conta do planeta Terra ser movente, entendo isso como
um convite de viver em viagem. Mas essa concepção não indica viajantes
necessariamente em movimento, pois há viagens no lugar, viagens em
intensidade, e essas são as mais urgentes. A viagem de que falo não se
refere a maneira de que se deslocam os migrantes, mas, ao contrário, declara
um raciocínio de que movimento é tal como Deleuze (Apud WHITE, 2008,
p. 48) declara “pôr-se a nomadizar para permanecer no mesmo lugar
escapando aos códigos”. Porventura, a fase além, do exílio em Portugal,
tenha iniciado a se tornar fecunda. Antes parecia que mal podia me manter
em pé, já agora, começo a me equilibrar em movimento. E esse equilíbrio é
essencial para descobrir alteridades no lugar em que estou, entender que a
cada nova experiência nasce um novo mundo. Por esse motivo, tenho
acreditado que territórios não são mais linhas limites da terra, mas são
localidades vivas e móveis, são carne, ossos e nervuras.
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está
aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando
juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a
maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto
de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e
aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio
do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. (CALVINO,
2003, p. 158)
130
Se argumentei sobre pontos delicados e até mesmo contraditórios, é
justamente por confiar que exercer liberdade e resistência é questioná-la,
pensá-la e repensá-la continuamente. Ao caminhar por tantas interrogações,
sinto-me de repente, como se estivesse percorrendo extensões em busca de
território, de lugares meus, só que esses espaços estão desertos. Agora, já
não tenho mais certeza se estou cruzando espaços desertos ou algum deserto
em mim. Enfim.
Me desloquei de mim.
131
Eu escolho ir. (estando)
Figura 34: Casa 879 (1999) Mariana Corteze. Três de Maio (RS).
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente, porque todas as coisas são, em verdade,
excessivas. E toda a realidade é um excesso, uma violência, uma alucinação
extraordinariamente nítida que vivemos todos em comum com a fúria das
almas, o centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas que são as
psiques humanas no seu acordo de sentidos.
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, quanto
mais personalidade eu tiver, quanto mais intensamente, estridentemente as
tiver, quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, quanto mais
unificadamente diverso, dispersadamente atento, estiver, sentir, viver, for,
mais possuirei a existência total do universo,
mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Fernando Pessoa
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Este livro foi composto em Minion Pro
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