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G.

Manzoni

Leão Dehon e a sua mensagem

1
Este livro foi traduzido do italiano pelo Pe. António Tomás Correia, SCJ, da Província
portuguesa que projecta fazer a sua edição tipográfica.
2
INTRODUÇÃO HISTÓRICA
O P. DEHON E O SEU TEMPO

A influência da grande revolução – Um século espiritualmente rico – Da perseguição à veneração – Uma aliança prejudicial (1814-1830) – Do desprezo ao idílio
católico-burguês (1830-1848). A longa festa imperial (1852-1870) – O anticlericalismo (1870-1914). Apóstolo do Coração de Jesus – O decénio decisivo (1870-
1880) – O triunfo dos republicanos e a maçonaria – A reforma escolástica e a dispersão das congregações – O custoso caminho do diálogo e da reconciliação –
“Queremos esperar com o Papa”.

A história sócio-religiosa em oitocentos e nos primeiros anos do novecentos desenvolve-se sob a


influência da grande revolução e dos seus imortais princípios. Ela procurou apagar o cristianismo da
consciência dos franceses, tentando destruir a Igreja desde os seus fundamentos. Uma empresa titânica em
parte conseguida também com a colaboração do positivismo científico.

A INFLUÊNCIA DA GRANDE REVOLUÇÃO: UMA DIFÍCIL COLABORAÇÃO

No decurso do oitocentos desvanecem muitas ilusões de progresso indefinido e de bem estar


universal, fruto das descobertas técnicas e científicas. O mal-estar social cresce desmesuradamente. O
proletariado, vítima de tantas injustiças e explorações, rebela-se. A burguesia recorre à Igreja à procura da
paz social. “O século envelhecido, reconhece os seus muitos desmandos. Sente nostalgia da fé”.1
A crise dos ideais revolucionários aflora já nas desordens de 1848; torna-se em anarquia e ainda
pior nas anárquicas violências da Comuna (1871). Os espíritos mais iluminados de entre os republicanos
admitem o fracasso. São tantas as experiências falhadas, tantas as esperanças frustadas, enquanto uma triste
desconfiança oprime o espírito dos jovens e dos velhos.
A busca de uma reconciliação estável entre o Estado e a Igreja na França, tentada por Leão XIII,
corresponde a uma exigência sócio-religiosa difusa. Será atrasada durante dois decénios pela oposição
intolerante do clericalismo protestatório, isolacionista, e pelo sectarismo anticatólico e anticlerical que,
chegando ao máximo durante o Combismo, manifestará os últimos e mais violentos estertores do
agonizante espírito revolucionário. A reconciliação com a República francesa, que fracassou com Pio X,
consegue-se com Beto XV e Pio XI. A Igreja e o Estado são amigavelmente separados. A Igreja aceita a sã
laicidade do Estado e este respeita a Igreja.
Nesta complexa situação e evolução histórica viveu Leão Dehon, participando sobretudo nos
momentos mais difíceis, em incompreensões e lutas entre o entre Estado e Igreja sob Pio IX, em trabalho e
esperança sob Leão XIII, de ruptura e de perseguição com Pio X.
A França esta, no oitocentos, cultural e sociologicamente no centro da Europa. As correntes do
humanismo ateu e anticristão, expressas sobretudo pelo volterianismo e pelo positivismo, são as
predominantes.
As classes mais contagiadas por estas correntes são a burguesia e a classe operária. A primeira é
agnóstica, não praticante e, frequentemente, anticlerical. Vítima desta situação tinha sido o pai de Leão
Dehon, Júlio Alexandre Dehon, bom e honrado, mas, depois de ter estudado num colégio de S. Quintino e
num instituto de paris, tinha abandonado toda a prática religiosa.2
No Instituto Barbet, onde Leão Dehon, com dezasseis anos, passou os primeiros meses em Paris,
havia muitos estudantes embebidos de volterianismo e de espírito materialista e antireligioso.
1
(* Nota do editor: Quem dispuser de pouco tempo ou se interessar somente pela vida e virtudes do servo de Deus P. Leão
Dehon, pode omitir sem problema esta introdução histórica. Mas para um biógrafo, a reconstituição do ambiente geográfico,
histórico, político, religioso e social, em cujo fundo enquadrar em primeiro plano o personagem, era simplesmente um dever. O
leitor que tiver a paciência de ler esta síntese de dois terços de um século, não se vai arrepender. )
OS III, 150
2
Cfr. NHV I, 4v.

3
A classe operária adere ao socialismo ateu e materialista, vislumbrando a possibilidade de uma
realização concreta das suas justas reivindicações sociais. O afastamento dos operários da religião é
favorecido pela insensibilidade da maior parte do clero pelos problemas da justiça social.
O humanismo ateu acusa o cristianismo e recusa-o.
Grande parte da vida do P. Dehon foi dedicada à recuperação da burguesia (colégio S. João,
iniciativas sociais para os estudantes do Liceu e os patrões de S. Quintino) e da classe operária (Patronato
de S. José, Obra dos Círculos, apostolado social, Democracia cristã).
Numa visão mais global, revela-se frágil a reacção católica dos apologistas, dos filósofos e
escritores românticos que se inclinam para o sentimento religiosos, à linguagem do coração e à beleza dos
símbolos cristãos. O cristianismo do sentimento de Chateaubriand, de De Maistre, de Lamennais, embora
tendo certa eficácia, apresentando e fazendo amar a beleza das realidades cristãs, podia apenas beliscar a
exegese da ironia tão grata a Voltaire e a exegese científica de D. Strauss e de E. Renan. Ambos tinham
publicado uma vida de Jersus. Strauss, em 1855, reduzindo Cristo a um mito; e Renan, em 1863, exaltando
Jesus como o maior dos homens.
Relevemos que o humanismo católico romântico atraiu também o P. Dehon durante toda a sua vida,
não por razões literárias, mas de fé e de arte, que o tornam entusiasta da cristandade medieval.
Será preciso esperar pelos últimos decénios do oitocentos para que se afirme um número de
estudiosos católicos que defenda com paridade de amas os valores cristãos no plano da crítica científica.
Entretanto, a Igreja da França deve adaptar-se à política danosa, porém inevitável, do silêncio frente
às teses destrutivas do protestantismo liberal e do racionalismo.

UM SÉCULO ESPIRITUALMENTE RICO

O oitocentos francês não foi, como muito superficialmente se qualifica, um século de estupidez e de
desespero. Para o catolicismo é um dos séculos mais ricos espiritualmente na milenária história da Igreja.
Se, por um lado, é um século volteriano, materialista e anticlerical, por outro é um século de místicos e de
santos, como nos melhores tempos do cristianismo. É uma mística e uma santidade muito mais realizadas
nas obras e na vida do que nos escritos.
A grande revolução e também a Terceira República maçónica e anticlerical planearam, como já
dissemos, arrancar todo o vestígio de cristianismo da sociedade e da consciência dos franceses. Para a
Igreja foi uma questão de sobrevivência.
O problema da descristianização apresenta-se como urgente, obsessivo, sob diversos aspectos, por
vários motivos em todos os campos e em todos os extractos sociais. Mais que escrever, é preciso agir. Já
insinuámos, e vê-lo-emos melhor na biografia, que o P. Dehon se empenhou pessoalmente e com a sua
Congregação nos mais diversos campos de apostolado: desde a cultura à imprensa, às missões populares, à
acção social.
A re-cristianização da França no oitocentos é obra principalmente da base e do clero. O Episcopado,
embora afastando-se progressivamente do galicanismo está ainda muito ligado à política, principalmente
sob a restauração e o Segundo Império. São raras as personalidades independentes. Na base, ao contrário,
há uma efervescência de iniciativas religiosas e espirituais que causam admiração. É bonito constatar como
o simples cristão e o humilde sacerdote se sentem responsáveis pela salvação dos irmãos e ajudam os mais
fracos e marginalizados. As iniciativas abarcam os campos mais diversos, todos necessitados da presença
de Cristo. Por isso surgem tantas congregações e associações religiosas.
Quanto aos religiosos, recordemos que são ignorados na Concordata. Napoleão, com um decreto de
1804, tinha criado uma distinção, mantida durante todo o oitocentos, entre “congregações autorizadas”, que
podiam possuir bens, e “congregações toleradas”. Dos institutos masculinos, só cinco eram autorizados:
entre eles os Lazaristas, as Missões estrangeiras de Paris, os Padres do Espírito Santo. Eram institutos
missionários, muito úteis para os interesses dos franceses na Ásia, África e América. Muito mais
numerosas eram as congregações femininas autorizadas, dedicadas ao ensino e à assistência pública.
Muitíssimas são as fundações religiosas em França que assistem, no oitocentos, as necessidades
mais urgentes da sociedade: desde a evangelização do povo até o apostolado da educação, do serviço dos
pobres e dos doentes até às missões estrangeiras e a vida contemplativa. Em 1877, ano da fundação do

4
Instituto do P. Dehon, há na França 32.000 religiosos e 127.000 religiosas. A sua influência em Roma é
poderosa, especialmente sendo grandes ordens; é muito superior à dos bispos, de quem dependem só no
exercício externo do ministério.
Finalmente, o povo, para o qual trabalham o clero e os religiosos, é na imensa maioria católico, no
sentido de que recebeu o baptismo, fez a primeira comunhão, o matrimónio religioso e deseja uma
sepultura cristã. Vai à igreja pelo Natal, Páscoa e em alguma outra festa. Os “fiéis” que comungam pela
Páscoa e vão à missa aos domingos são muitos em algumas regiões, poucos ou quase nenhuns, noutras. Na
diocese de Soissons, onde trabalhou o P. Dehon, a prática religiosa é geralmente escassa.
Depois de 1848, a burguesia, temendo uma revolução socialista, aproxima-se gradualmente da
Igreja, enquanto o proletariado, que cada vez aumenta mais com o progresso da industrialização, afasta-se
em massa da religião..
Este é o mundo onde o P. Dehon vive e exerce o seu apostolado.
A fisionomia espiritual e apostólica do oitocentos francês está ainda em fase de descoberta.
Demasiadas memórias, diários, epistolários e documentos espirituais encontram-se sepultados na escuridão
dos arquivos. É o caso, em parte, dos manuscritos do P. Dehon. Com a multiplicação das publicações de
obras originais, resulta cada vez mais evidente que o oitocentos francês é um tempo espiritualmente
fecundo, com inumeráveis exemplos de autêntica santidade.
Podemos afirmar que cada manifestação espiritual, cada campo de apostolado despertou o interesse
do P. Dehon, ao qual trouxe amiúde uma contribuição mais ou menos intensa. Esta constatação é objectiva
e de nenhum modo panegírica. Descobrimos um homem, um sacerdote, um fundado com uma
personalidade riquíssima, uma santidade, a nosso ver não comum, que actuou principalmente num século, o
oitocentos, desvalorizado por muitos porque desconhecido. Se a vida da Igreja, no princípio do oitocentos é
como um riacho oculto na areia, chega a ser, com o decorrer dos anos, um rio cada vez mais largo e
caudaloso.
Uma prova convincente deste movimento espiritual, especialmente na segunda metade do
oitocentos francês, de 1880 em diante, são as numerosas conversões e, de modo mais geral, a formação
cristã das gerações de 1870 a 1914. É o tempo da maior actividade apostólica do P. Dehon.
O rico movimento espiritual do século XIX insinua-se também no campo da cultura. Os estudos nos
seminários enriquecem-se e aprofundam-se. Fundam-se as Universidades católicas a partir de 1875. Os
leigos católicos dão um vivo testemunho da sua fé com a sua presença no mundo universitário, no campo
da filosofia (Ollé-Laprune, Blondel, Boutroux, G. Marcel e toda a corrente do espiritualismo), da ciência
(Pasteur, Ampère), da literatura (Huysmans, Pèguy, Bloy, Rivière, Retté, du Bos, Jacob, Claudel e muitos
outros).
É um cristianismo combativo em alguns, finamente psicológico noutros; em todos, a fé
esplendorosa e a profundidade do pensamento ou a beleza da arte deram às realidades religiosas e cristãs
uma ressonância que, saltando as fronteiras da França, se difundiu no mundo inteiro. Tudo menos um
catolicismo de mortos o do oitocentos! Neste século, nem “estúpido” nem “desesperado”, mas
espiritualmente rico, como os melhores séculos da Igreja, viveu e actuou principal e apostolicamente o P.
Dehon.

DE PERSEGUIÇÃO À VENERAÇÃO

A partir de uma visão sintética do oitocentos francês, descemos agora para a análise dos principais
períodos em que se divide e que dizem respeito à história religiosa de França e à figura de Leão Dehon.
Sem uma detalhada visão do contexto sócio-religioso em que viveu o P. Dehon, em que se
desenvolveu a sua formação e o seu apostolado; sem uma análise da sociedade e da Igreja de França no
oitocentos, Leão Dehon pareceria uma mónada sem portas nem janelas sobre o mundo que o rodeia como
se não tivesse vivido num tempo determinado, com as suas típicas características, e não tivesse sentido ele
e a sua família os influxos de uma específica situação social.
Como já apontamos, a crise mais grave que teve que enfrentar a Igreja de França na sua
plurissecular história foi, sem dúvida, a desencadeada pela grande revolução de 1789.

5
Na base do conflito entre a Igreja e a cultura originada pela grande revolução está a diferente
concepção do destino do homem. Para a Igreja, o homem é uma realidade terrena e um mistério eterno. A
sua grandeza estriba-se no reconhecimento de Deus e na aceitação da vida de Deus. O homem é um
absoluto que tende para o Absoluto e transcende toda a instituição terrena.
O laicismo do oitocentos, herdeiro da revolução e do iluminismo, encerra o homem nos horizontes
da aventura terrena. Exalta o seu poder mediante a ciência e a técnica até à conquista exclusiva de uma
felicidade temporal, num progresso indefinido, no qual possa desenvolver todas as suas faculdades. Para o
campo religioso, basta um vago deísmo ou o panteísmo e as vazias religiões naturais, todas miseravelmente
falidas. Afirma-se a religião da humanidade, da razão, da ciência, da matéria, da natureza. O inimigo
comum que há que combater é o catolicismo.
O laicismo anticlerical, imperante no oitocentos, prolongará com métodos mais refinados e falazes a
luta contra a Igreja e contra o clero como tinha já dado um exemplo feroz a grande revolução, reduzindo a
França a uma terra de missão.
Bonaparte conseguiu os dois fins que se tinha proposto: restabelecer a paz religiosa e submeter a
Igreja ao Estado.
Sobrevem, porém, uma evolução muito importante: a Igreja sujeita ao Estado, afasta-se cada vez
mais do Estado e aproxima-se de Roma. O galicanismo vai convertendo-se cada vez mais numa sombra,
uma recordação afastada. O ultramontanismo começa o seu avanço. O papado, para os católicos franceses,
já não é uma abstracção ou pouco mais, mas incarna-se em homens que foram vistos prisioneiros (Pio VI e
Pio VII), foram aclamados, cujas peripécias, dores e perseguições foram seguidas com ânsia. Pouco a
pouco os católicos franceses tornar-se-ão “adoradores” do Papa...
A veneração das multidões pelo Papa crescerá sempre mais durante quase um século. Alcançará o
seu vértice, com entusiastas manifestações a Pio IX pelas suas penosas vicissitudes, pelo espólio do estado
pontifício, pelo seu cativeiro. Leão Dehon será um ultramontano convencido. Demonstrará um amor e uma
veneração ilimitada para com Pio IX e uma condenação sem atenuantes para com os piemonteses e a sua
arrogância na conquista de Roma. A proclamação de uma cruzada para restituir ao Papa o estado pontifício
teria encontrado nele a mais completa adesão.

UMA ALIANÇA PREJUDICIAL

A restauração do Estado católico sob Luís XVIII e Carlos X (Abril de 1814 – Julho de 1830) é uma
tentativa efémera que permite a reorganização da Igreja, o funcionamento dos seminários, o aumento do
clero; porém torna a burguesia, já Volteriana na sua maioria, ainda mais incrédula. É a “elite” que
constituirá a nervura da monarquia de Julho (1830).
A irreligiosidade expande-se entre os jovens em formas blasfemas e dessacralizantes que
impressionam. As escolas são “seminários de ateísmo e antecâmaras do inferno”, segundo Lamennais.3
Durante a restauração, política (legitimismo) e religião apresentam-se solidárias e são detestadas; liberdade
e incredulidade parecem concordes e são exaltadas.
No povo humilde, as famílias querem que os seus filhos façam a primeira comunhão. Assim
termina a infância e, frequentemente, acaba também a religião. Os homens, a partir da adolescência,
desertam da Igreja.
Esta situação mantém-se durante anos e encontra-se ainda em 1870-1880. Da cidade de S. Quintino,
afirma Leão Dehon em 1871, que a grande maioria da população “vive no paganismo”.4 Os homens que
frequentam a igreja são bem poucos. Os operários nem se vêem. “É uma sociedade podre”.5
Idêntica, se não pior, é a situação na diocese de Soissons.6 O P. Dehon verifica-o quando, em 1874,
como secretário da secretaria diocesana das Obras de Soissons, organiza um inquérito entre todos os
párocos da diocese. Só responde uma terça parte, e as respostas são desoladoras. Em toda a parte se afirma
“a indiferença ou a irreligiosidade dos homens”.7 Examinadas cada uma das desoladoras situações
3
A. Dansette, Histoire religieuse, 206.
4
NHV IX, 94.
5
NHV IX, 92.
6
VPR 79-80. 180. 200-203. 212-215, etc.; NHV X, 153-166. 177-187.
7
NHV X, 155.

6
religiosas, Leão Dehon escreve: “ao menos 25 dioceses da nossa pobre França (por volta de um terço) estão
nesta situação”.8
As intervenções da autoridade civil na vida religiosa durante a restauração, com mandatos e
proibições, pioraram a situação. O balanço da pressão clerical e da feroz reacção anticlerical que provocou,
não se conclui certamente a favor da Igreja.
O único aspecto positivo é o aumento do clero secular que passa de 36.000 unidades para 40.500 e é
recrutado naquele meio rural onde a fé religiosa conserva uma sua vitalidade. Em suma, a restauração deixa
mais pastores e menos ovelhas, especialmente nas cidades.
O verdadeiro problema é o da liberdade religiosa ou, ao menos, o da tolerância: valores adquiridos
por nós modernamente, porém estranhos à mentalidade daqueles tempos, não só entre os “ultras” católicos,
mas também entre os anticlericais.

DO DESPREZO AO IDÍLIO CATÓLICO-BURGUÊS (1830-1848).

A explosão burguesa e popular de Julho de 1830 derruba a monarquia da restauração e condena a


Igreja que era sua aliada. Acontecem violências e desordens, mas não são comparáveis aos terríveis
excessos da grande revolução. Uma borrasca comparada com um ciclone.
A Igreja não é atacada nem nas pessoas nem nos seus bens. Já não se tem medo dela. Sobre o clero
impende mais desprezo do que ódio. A burguesia volteriana e descrente está já no poder com Luís Filipe de
Orléans, rei dos franceses, a 9 de Agosto de 1830.
Os intelectuais professam um desdenhoso respeito pela religião enquanto difundem entre o povo a
incredulidade que a mesma burguesia ostenta e em que se compraz. O rei Luís Filipe é demasiado céptico e
amante do quieto viver para armar-se em perseguidor. Guarda-se bem de meter o nariz nos assuntos da
Igreja; arriscar-se-ia a não poder mais retirá-lo ou a perdê-lo.
Todavia impera o anticlericalismo administrativo: o orçamento dos cultos diminui constantemente;
os cartuxos, os trapistas e os capuchinhos são expulsos; o ensino eclesiástico é sistematicamente
hostilizado; os capelães militares são suprimidos.
Neste contexto sócio-religioso destacam-se na Igreja de França, eclesiásticos e leigos de valor.
Basta recordar Lacordaire, Dupanloup, Pie, entre o clero; Montalembert, Veuillot, Ozanam, entre os leigos;
mas, acima de todos emerge Félix Lamennais, um genial e infeliz profeta. Lamennais, no campo religioso,
pode ser comparado a Marx no campo social: são dois grandes vates do século XIX. Pode-se discordar das
suas ideias, mas não se pode negar a sua clarividência.
Lamennais preanunciou a infalibilidade pontifícia, a queda do poder temporal do Papa, a liberdade
religiosa e de ensino, a separação entre a Igreja e os Estado, o triunfo da democracia, o seu acordo com a
Igreja, a abertura à classe operária e, até, sob outra denominação, a acção católica.
Leão Dehon partilhou muitas das ideias de Lamennais, sem ser lamenniano.
Passamos por alto toda a aventura, às vezes ardente e heróica, mais frequentemente desconcertante
e triste, do infeliz profeta bretão, que junta à clarividência do génio a cegueira do doente. “Que espantosa
ingenuidade!” exclama Mons. Frayssinous, sem se dar conta de que pronuncia a sentença mais exacta sobre
o infeliz Lamennais.9
A jerarquia excluiu-o da comunidade católica, mas ele próprio acaba por arrancar o catolicismo da
sua vida como se fosse um ramo seco. Catolicismo e liberdade excluem-se, conclui Lamennais.
O seu periódico “L’Avenir” aparecera muito cedo, numa catolicidade cuja parte mais sensível e
aberta era constituída pelo clero jovem e por uma “elite” de leigos católicos. Lamennais queria, através de
uma revolução incruenta, levar a Igreja a fazer uma evolução que começará só 50 anos mais tarde com
Leão XIII com muitas dúvidas, atrasos e arrependimentos!
A tentativa de “L’Avenir” de harmonizar a Igreja com a cultura moderna exerceu uma poderosa
atracção sobre os intelectuais e sobre os burgueses volterianos e incrédulos. A sua condenação fez desabar
as últimas simpatias pela Igreja. O catolicismo liberal é derrotado: triunfa o reaccionário e legitimista.

8
NHV X, 185.
9
A. Dansette, Histoire religieuse, 228.

7
Leão Dehon nasce a 14 de Março de 1843 numa abastada família da burguesia rural, em La Capelle
(Aisne).
Pois bem, exactamente naqueles anos, a burguesia, inquieta pelas crescentes agitações de
trabalhadores, pelo perigo de uma revolução socialista, vai-se convencendo de que é necessário manter a
religião como um elemento de ordem social, impedindo a difusão da incredulidade no povo. É o raciocínio
interessado de Voltaire que queria que a sua mulher e os seus empregados fossem devotos e praticantes
para que não o roubassem e enganassem. Por amor da bolsa e pela tranquilidade da ordem estabelecida, a
máscara de “tartufo” é mais que aceitável para a cínica burguesia volteriana.
É o momento oportuno para os católicos de pedir a liberdade de ensino, para salvar a juventude da
irreligiosidade e da imoralidade, que dominam nas escolas do Estado. Montalembert une os católicos numa
reivindicação habilmente escolhida: a da liberdade. Ao mesmo tempo, Luís Veuillot vai-se afirmando com
o jornal “L’Univers”.
Até ao final da Monarquia de Julho, católicos liberais e conservadores cerram fileiras, unidas:
Montalembert, no parlamento; Lacordaire, em Notre Dame; Ozanam, na Sorbona; Veuillot, na imprensa.
Todos defendem a liberdade de ensino e de associação.
Pouco a pouco vai-se conquistando especialmente a geração jovem.
Uma vez alcançadas estas liberdades, a Igreja tê-las-ia partilhado com os outros ou tê-las-ia
monopolizado em nome da verdade? Devemos reconhecer que a verdadeira liberdade, especialmente a
religiosa, era ainda desconhecida... e ninguém se importava com isso.
Em 1846, acontece um facto extraordinário que espanta o próprio Metternich: “Tudo foi previsto,
menos a eventualidade de um papa liberal”.10 Este Papa é Pio IX que, a juízo de Guizot, reconciliaria a
Igreja com a sociedade moderna e reivindicado para o cristianismo os imortais princípios de liberdade,
igualdade e fraternidade.
A ilusão é grande! Mas intervém para acabar com ela uma realidade brutal e desumana: a qustão
social e a miséria do proletariado.
Os católicos dividem-se numa exígua minoria que se agrupa em volta do jornal “L’Ère Nouvelle”,
fundado por Lacordaire, Maret e Ozanam (Abril de 1848) e que defendia uma decisiva mudança das
estruturas sociais, e numa maioria a que aderiram também os católicos liberais (Montalembert, Falloux)
que pensam na iniludível miséria proletária e propõem soluções caritativas e paternalistas. Para a maioria
católica, a reconciliação entre a Igreja e a sociedade burguesa moderna é já tão difícil que não vale a pena
complicá-la ainda mais com “revolucionárias” reestruturações sociais.
O idílio católico-burguês acabará em sangue com a revolução de Junho de 1848.
A reacção domina, por fim, no catolicismo francês até no campo político.
Monárquicos de toda a espécie, unidos aos católicos, levam ao poder Napoleão Bonaparte, que se
converte em Presidente da República a 10 de Dezembro de 1848. A Igreja vê-se aí arrastada para uma
aliança com a burguesia, mais prejudicial em relação às massas populares que a aliança política sob a
restauração. Os católicos serão sobre tudo conservadores e monárquicos para a defesa da ordem, da família
e da propriedade.
Na margem oposta está o proletariado, a maré vermelha socialista. Se a doutrina do socialismo e os
seu método de luta são recusáveis, a sua análise das injustas estruturas sociais é exacta. O clero, alinhando-
se com a burguesia e conservando a ordem estabelecida, defende os seus interesse e a injusta exploração
da classe operária.
“Corramos a lançar-nos aos pés dos bispos, só eles nos podem salvar” afirma V. Cousin; e o
volteriano Thiers acrescenta: “O inimigo é a demagogia (entende: socialismo) e eu não lhes entregarei o
último baluarte da ordem social”.11 “Os sacerdotes em cura de almas representam a ordem social também
para os descrentes...” afirma Montalembert; e Mons. Pie exorta assim os poderosos da sua diocese:
“Chamai em vossa ajuda a religião, precisais dela”.12 Assim, excluindo uma pequena minoria, os burgueses
incrédulos fazem o papel de volterianos arrependidos. Uma conversão que, sem ter nada de religiosa, chega
a um pacto com os católicos acerca da educação da juventude de quem depende o futuro da sociedade

10
A. Dansette, Histoire religieuse, 263.
11
A. Dansette, Histoire religieuse, 281.
12
A. Dansette, Histoire religieuse, 280.

8
francesa. É a famosa lei Falloux, que outorga à Igreja a liberdade de ensino nas escolas secundárias
(15.3.1850). É uma grande vitória, que possibilita a gradual conquista para o catolicismo de boa parte da
juventude burguesa.

A LONGA FESTA IMPERIAL (1852-1870).

Sempre por medo do socialismo e com o pretexto de salvar a França da ruína total, Luís Bonaparte
chega ao Império (8.12.1852). Ele está afastado da fé e de toda a problemática religiosa; porém os “homens
negros” ajudam-no e ele favorece-os. Começa assim a lua de mel entre o Segundo Império e a Igreja. A
festa será até muito longa; durará quase 2o anos.
A guerra da Crimeia é apresentada como uma cruzada e Napoleão III é elevado ao papel de um
ressuscitado Luís IX; é o monarca “mais devoto da Igreja e da sua obra de civilização e de progresso”.13
São panegíricos episcopais.
Montalembert, que se comprometeu com a vitória de Bonaparte, dá-se conta demasiado tarde da
“vergonhosa comédia” dos bispos, da “coligação entre polícias e sacristães”, do estranho casamento entre a
Igreja e o Império corrompido e materialista.
É de justiça admitir que alguns bispos católicos mais clarividentes afastam-se de todo o servilismo e
fazem sua a preocupação de Mons. Dupanloup: “Durante quantos anos terá ainda a Igreja de suportar com
tristeza as funestas consequências de uma situação falsa e de uma protecção equívoca?”14
Vai-se acentuando entretanto a ruptura entre católicos liberais e católicos intransigentes. Os
primeiros consideram a liberdade como um direito de todos, e daí deduzem a necessidade de um acordo
entre a Igreja e o mundo moderno, admitindo os direitos da boa fé. Os intransigentes sustentam que a
liberdade é privilégio da verdade e defendem que a Igreja deve servir-se do poder para combater os erros
do mundo moderno. Paladino da intransigência é L. Veuillot que, a partir de “L’Univers”, ataca a todos,
incluindo bispos. Com a encíclica “Inter multiplices” (1853) Pio IX é agora conservador com a mesma
paixão com que em 1846 fora liberal.
Prepara-se pois, uma nova derrota do catolicismo liberal, cuja doutrina é descrita com clareza por
Montalembert no congresso de Malines de 1863: Que a democracia progrida na liberdade; a Igreja se
desligue de qualquer aliança com o poder; a liberdade seja concedida a todos, reconhecendo a boa fé de
quem crê estar na verdade, mesmo sustentando o erro. O discurso valeu-lhe uma secreta desaprovação do
secretário de Estado, o cardeal Antonelli.
Mons. Dupanloup e o P. Félix intervêm, apoiando com prudência as ideias de Montalembert e
trazem o exemplo do progresso do catolicismo em Inglaterra e especialmente nos Estados Unidos. Porém é
um modo de pensar demasiado alheio à mentalidade da Igreja oficial do tempo.
Disso temos uma prova na encíclica “Quanta cura” (1864) de Pio IX, acompanhada da lista dos
principais erros do tempo moderno, tornada célebre sob o nome de “Syllabus”. É uma condenação
intransigente dos erros e dos desvios práticos do liberalismo que, pelo tom, deixa a todos desanimados,
eclesiásticos e políticos, excepto os católicos intransigentes.
É necessária toda a habilidade de Mons. Dupanloup para tornar aceitável a doutrina papal. No
opúsculo “a convenção de 15 de Setembro e a encíclica do 8 de Dezembro de 1864”, o bispo de Orleáns
condena a convenção e, quanto à encíclica, lança mão da distinção entre a “tese” (ou seja a doutrina da
Igreja) e a “hipótese” ( a sua aplicação prática, que exige adaptações e também compromissos aceitando o
mal menor). São 863 os bispos de todo o mundo os que aprovam a interpretação de Dupanloup e até o Papa
se congratula com ele.
Neste tempo, L. Dehon está a concluir os seus estudos universitários em Paris. Sabemos pelas suas
Memórias que, participando na vida do Círculo Católico da capital, se interessa pela vida cultural do seu
tempo: “Frequentava muito o Círculo Católico... O que me atraía eram os jornais e as revistas, as
conferências sobre literatura e direito... Comecei a interessar-me pelo movimento político, literário e
religioso”.15

13
A. Dansette, Histoire religieuse, 294.
14
A. Dansette, Histoire religieus, 296.
15
NHV I, 41v.

9
Leão Dehon não alude nas suas Memórias à leitura do opúsculo de Dupanloup; porém depois da
aprovação de Pio IX era lógico que aceitasse o seu conteúdo.
Certamente a grande maioria das afirmações do liberalismo teórico no campo religioso, filosófico e
também político são falsas e contrárias à doutrina católica. Todavia caracterizam a cultura do mundo
moderno. O Syllabus apresenta o abismo que separa a Igreja da cultura moderna e a enorme dificuldade de
uma conciliação. Entretanto o influxo da autoridade papal vai crescendo, especialmente entre o baixo clero,
o que reforça o ultramontanismo e prepara a apoteose do papado com a definição da infalibilidade
pontifícia no Concílio Vaticano I (1870).
Os católicos liberais temem que a vitória do ultramontanismo signifique a vitória dos católicos
intransigentes, com um afastamento mais radical da sociedade em relação à Igreja.
Montalembert morre, cheio de amargura, a 13 de Março de 1870, constatando o triunfo da
“teocracia” na Igreja e da ditadura no Império; ou seja, o absolutismo sufocando a liberdade.
Leão Dehon gostava de Veuillot, não certamente pela violência do seu estilo nem da sua polémica,
mas pela coragem com que ele, sob a Monarquia de Julho, tinha mantido com Montalembert a liberdade de
ensino nas escolas e tinha defendido a jerarquia eclesiástica e os jesuítas.16 Como Montalembert, também
Veuillot tinha-se alinhado no princípio em favor de Napoleão III como restaurador da ordem; porém, mais
adiante, tinha-se oposto ao Imperador pela sua política italiana. Napoleão III suprimiu “L’Univers”, porém
Veuillot continuou a sua luta contra a incredulidade, o ateísmo, os livre pensadores, contra o galicanismo,
contra os católicos liberais (Montalembert, Falloux, Mons. Duopanloup, Mons. Sibour) com abundante
publicação de livros sem interrupção, livros convincentes, vigorosos, `s vezes até agressivos e demolidores
como golpes de aríete.
Leão Dehon conheceu Mons. Dupanloup e o P. Gratry. Admirava-os pela sua doutrina e piedade.
Não os aprovava nas suas tendências galicanas ou nas suas “ilusões liberais”. Do P. Gratry leu com
admiração “Les Sources”, as fontes da verdade e da moral, onde demonstrava ter compreendido as mais
profundas exigências da juventude do seu tempo. Pediu-lhes conselho sobre os seus estudos eclesiásticos.
Era normal que lhe aconselhassem S. Sulpício, dada a sua alergia a Roma.17
Durante a sua estada em Paris (1859-1865), Leão Dehon ouviu as conferências em Notre Dame do
Jesuíta P. Félix (1810-1891), que tinha recebido, em 1853, o convite de Mons. Sibour para dar, sobre o
púlpito de Notre Dame, as célebres conferências iniciadas por Lacordaire em 1836 e continuadas pelo
jesuíta Ravignan. Nas suas conferências, revelava o P. Félix a sua fidelidade a Roma, a possibilidade de um
autêntico progresso social, cultural e humano mediante o cristianismo.
Em 1856, começou a série de conferências sobre “o progresso do cristianismo”, reunidas em 15
volumes. A estas conferências se refere o P. Dehon nas suas Memórias: “A minha fé robustecia-se. Sentia-
me feliz por pertencer ao grande povo cristão. Tinha como uma palpitação de fé e de amor à Igreja que se
comunicava às almas”.18 Leão Dehon encontrava-se a gosto quando ouvia exaltar o valor único e
necessário do magistério de Roma e o contributo insubstituível do cristianismo para o progresso do homem
e da sociedade humana.
Estes encontros e os interesses culturais do jovem universitário demonstram-nos como se
interessava vivamente pelas questões que agitavam a vida católica do seu tempo, naquele centro
excepcional que era Paris durante o Segundo Império. Todavia, o olhar e o coração de Leão Dehon
estavam já, desde então, voltados para Roma.
Entretanto, fomo-nos aproximando à catástrofe da França com a derrota de Sedan (1870). As
consequências para a Igreja e os católicos, aliados do Império, não deixarão de ser desastrosas.

O ANTICLERICALISMO (1870-1914)

16
Cf. NHV I, 41v.
17
Cf. NHV I, 60r-61r.
18
NHV I, 33v-34r.

10
A oposição republicana, hostil ao catolicismo e anticlerical, alcança proporções ameaçadoras. Sob o
Império, os republicanos viveram oprimidos e a Igreja esteve do lado do opressor. Império e Igreja estarão
agora unidos no mesmo ódio.
Os republicanos apoiam-se no protestantismo liberal, no positivismo, na exegese “científica” que dá
o seu fruto característico na Vida de Jesus de Renan, uma deliciosa “novela teológica” que tem muita
procura (100.000 exemplares em dois anos).
O clero é impotente para se defender, porque ignora as novas doutrinas científicas, exegéticas e
históricas. Leão Dehon acusará este vazio de cultura como uma ferida ensanguentada durante mais de 10
anos e aspirará a ser um apóstolo dos estudos superiores do clero: “Depois da era dos mártires (sob a
revolução) há de surgir a era dos doutos”.19
Os erros que se devem combater são o materialismo, o positivismo, o liberalismo e o galicanismo
sempre a renascer. Os campos de estudo mais urgentes: a história, as ciências, a exegese, a economia, a
política, a hagiografia.
Os caminhos de Deus porém eram diferentes. “Temos as universidades livres – escreve o P. Dehon
nas Memórias - ... o meu contributo foi o de animar o P. D’Alzon na sua propaganda e Mons. Hautcoeur na
sua fundação (Universidade de Lille). Não tive nada mais a fazer nesta missão”.20
Nunca esquecerá esta sua primeira vocação, algo semelhante ao primeiro amor, sempre recordado
com saudade.21
Entretanto, reforçou-se ameaçadoramente o grande poder da maçonaria. Ao velho anticlericalismo,
pintado de espiritualismo, substitui-se uma religiosidade permeada de positivismo, materialismo, ateísmo.
A nova geração incrédula fornece os membros às lojas maçónicas, que alcançam um extraordinário
poder, sempre ameaçador, na história político-religiosa de França.
Quanto mais autoritário e intransigente se apresenta a Igreja, tanto mais furioso chega a ser o rancor
e o ódio dos republicanos radicais.
O clero e os religiosos dar-se-ão conta quando os republicanos, preparados nas lojas maçónicas,
alcançarem o poder em 1879 e em 1888; mas já será tarde demais.

APÓSTOLO DO CORAÇÃO DE JESUS

Analisaremos agora, com uma atenção particular, o contexto sócio-político-religioso do decénio


decisivo para o P. Dehon (1870-1880) em que funda os Oblatos do Coração de Jesus( 1877-1878)
transformados em 1884 em Sacerdotes do Coração de Jesus.
Na sociedade francesa de oitocentos há desequilíbrios, discriminações, injustiças cada vez mais
graves, que suscitam complexos problemas religiosos, culturais e humanos; o primeiro de todos, a questão
social, de que a Igreja não se pode desinteressar sem faltar à sua missão.
Referindo-nos a Leão Dehon, podemos afirmar que toda a sua actividade no campo cultural e
eclesiástico, no apostolado paroquial, social, missionário, na sua actividade de escritor, no seu
compromisso de difundir o reino do Coração de Jesus nas almas e na sociedade, brotam de uma clara visão
dos males da Igreja e da sociedade do seu tempo, convencido de que “a causa mais profunda” destes males
está “na recusa do amor de Cristo”.22
Daí a sua intensíssima exigência de ser apóstolo do amor do Coração de Cristo e da reparação até a
entrega da sua vida.
Nos misteriosos desígnios da Providência, ao incremento da incredulidade, do anticlericalismo e do
ódio contra a Igreja no oitocentos, corresponde um crescimento e aprofundamento do espírito de amor e de
imolação. Algumas almas são atraídas, pela graça, a completar com os seus sofrimentos o que falta à
paixão de Cristo em favor do seu corpo que é a Igreja. Não só são impelidas à reparação pelos pecadores;
mas, considerando a sua grande miséria moral e espiritual, oferecem-se a Deus como “vítimas”. É um acto

19
NHV I, 120..
20
NHV I, 117.
21
Cf. NQ IV, 1r: 12.11.1887.
22
Cst. (1982), n. 4.

11
heróico de caridade pelos irmãos mais necessitados espiritualmente. Muitas almas fazem reparação e
oferecem-se como vítimas pela santidade da Igreja e do “povo escolhido”. O espírito de reparação e de
vítima recebeu um forte impulso pelas aparições da Virgem em La Salette (1846) e em Lourdes (1858), nas
quais predominam os convites à oração e à penitência pelos “pecadores”.
Nesta corrente espiritual de oblação e de reparação vive e actua Leão Dehon.

O DECÉNIO DECISIVO

Em 1877-1878 o P. Dehon funda os Oblatos do Coração de Jesus.


O decénio 1870-1880 caracteriza-se durante os seus primeiros cinco anos por um esforço de
restauração cristã inteiramente falido, tanto na projectada restauração do poder temporal do Papa, na
igualmente projectada restauração d Monarquia em França, como também na solução paternalista da
questão social. O carácter clerical desta tentada restauração é inegável. O segundo quinquénio é marcado
pelo progressivo reforço do partido republicano e do seu visceral anticlericalismo, até à vitória política de
1879.
A grande prova do desastre de Sedan, na guerra franco-prussiana (1870) e a sangrenta experiência
da Comuna parisiense, com 35 eclesiásticos fuzilados, entre eles o arcebispo de Paris, Mons. Darboy,
provocam entre os católicos franceses um exame de consciência fervoroso, sincero e humilde,
acompanhado por uma certa aceitação de responsabilidade.
A “prolongada festa imperial” (1852-1870), caracterizada pela frivolidade, junto com a
incredulidade, tem uma inescusável responsabilidade na derrota francesa de 1870. Os católicos foram os
complacentes espectadores e até os favorecedores daquela prolongada “festa”.
Os raciocínios dos católicos, depois de Sedan, são quase exclusivamente de ordem religiosa: a
França pecou. Não há dúvida de que as suas desgraças constituem um justo castigo de Deus e exigem uma
devota expiação. A Assembleia Nacional decreta orações públicas para atrair sobre a França a bênção
divina.
Estes exames de consciência, com a consequente exigência de reparação, superabundam nas
Memórias (“Notes sur l’histoire de ma vie”) de Leão Dehon, especialmente de 1870 a 1875. Sob este
aspecto, são características, enquanto são contemporâneas, as cartas dos sacerdotes Demiselle e Boute e de
outros corresponsáveis de Leão Dehon, que aludem frequentemente ao merecido castigo de França e à
necessidade da sua conversão e do seu regresso a Deus.23
As manifestações de carácter expiatório ou reparador daquele tempo são sintomas de uma sincera
religiosidade e constituem uma manifestação da vitalidade do catolicismo francês.
Tais manifestações, muitas vezes espectaculares e de massa, tiveram uma preparação relativamente
próxima no declínio da árida religiosidade jansenista, substituída, por volta de 1840, sob a influência do
ultramontanismo, por uma religiosidade mais humana, às vezes um pouco superficial mas mais expontânea
e mais popular, e que se expressava com manifestações externas, com uma maior frequência dos
sacramentos e com numerosas práticas de piedade. Uma religiosidade que, apesar dos seus defeitos, marca,
no seu conjunto, uma evolução positiva na Igreja.
Este clima de religiosidade mais viva e mais afectiva favoreceu muito a difusão do culto ao Coração
de Cristo e a espiritualidade reparadora, tanto que Mons. D’Hust qualifica o oitocentos: “O século do
Sagrado Coração”.
Imensas multidões de fiéis, com a imagem do Coração de Jesus ao peito e com o rosário ao
pescoço, dirigem-se a Lourdes, a La Salette, a Pontmain, a Mont-Saint-Michel e mais ainda a Chartres e a
Paray-le-Monial. Os infatigáveis organizadores destas peregrinações são os Assumpcionistas.
A 29 de Junho de 1873, 50 membros da Assembleia Nacional chegam a Paray-le-Monial com a
imagem do Coração de Jesus ao peito e comungam durante a missa solene. No momento da acção de
graças, o deputado Jean-Baptiste de Belcastel faz a sua consagração e a de seus amigos ao Coração de
Jesus.. Para Mons. Leséleuc, que toma nota em nome da Igreja, da consagração dos 50 parlamentares
presentes e dos outros 150 que enviaram a sua adesão, aquilo constitui um acto de expiação das culpas e
das ingratidões da França para com Deus nos últimos 80 anos da sua história..
23
Cf. NHV VIII, 117-118. 124-138; IX, 151-156; X, 61-63, etc.

12
A consagração de Paray-le-Monial é prelúdio do cumprimento do desejo de Santa Margarida Maria
de construir um templo, onde estivesse entronizada a imagem do Coração de Jesus. Por iniciativa de Mons.
Guibert, arcebispo de Paris, será levantado em Montmartre o santuário nacional ao Coração de Jesus pela
“França arrependida”.
Em 1875, por ocasião do segundo centenário da grande aparição a Santa Margarida Maria, Pio IX
convida todos os fiéis a consagrarem-se ao Sagrado Coração de Jesus. Leão Dehon consagra-se a si próprio
e ao Patronato S. José.
A partir de 1875, a história político-religiosa da França será dominada pela progressiva afirmação
política dos republicanos anticlericais e da prepotência das lojas maçónicas.

O TRIUNFO DOS REPUBLICANOS E DA MAÇONARIA

Nas Memórias, o P. Dehon alude ao progresso contínuo dos republicanos em França. Estamos em
1874: “O povo queria a República. Demonstrou-o em todas as eleições que se seguiram. O clero e os
conservadores, opondo-se às tendências republicanas do povo, afastaram-no da religião e esta não demorou
a perder todo o terreno ganho depois das provações de 1870.24
De facto, a restauração cristã tentada no decénio 1870-1880, está já fundamentalmente fracassada.
O diálogo com os republicanos vê-se reduzido a um balbucio com os católicos liberais, enquanto com os
católicos conservadores, mais numerosos e mais fortes, se acentuam as incompreensões, o rancor e as
escaramuças. O que os católicos condenam como mal, os republicanos enaltecem como bem e vice-versa.
O clericalismo é o grande inimigo que é preciso derrotar.
A actividade mais importante para conquistar a opinião pública para o anticlericalismo activo é
levada a efeito, neste tempo, pelas lojas maçónicas.
A maçonaria é um tema tratado pelo P. Dehon no “Manual social cristão”, no capítulo IV da
primeira parte: “Os dois factores poderosos do mal-estar social: a franco-maçonaria e o judaísmo”.25 A isso
alude no “Catecismo social”. Dedica alguns artigos da sua revista “Le Règne”...” à maçonaria como “O
exército do anticristo” (1895), “A grande inimiga” (1899) e o seu último livro: “O plano da franco-
maçonaria na Itália e na França...” que teremos oportunidade de comentar à parte.26
São páginas que ainda conservam um certo interesse. Naquele tempo era inevitável o espírito de
cruzada. Os ânimos estavam tão acalorados em ambos os campos, clerical e anticlerical, que se caía num
fácil apologismo, católico e laico, tornando impossível a serenidade para um juízo objectivo.
Desde havia cerca de 10 anos (estamos em 1875-77) a maçonaria encontra-se invadida pelos
republicanos. Nas lojas estabelecem os seus contactos e confrontam as suas ideias.
Sob o influxo do positivismo triunfa, em 1877, a proposta de excluir do credo maçónico a fé na
existência de Deus. A maçonaria conserva um vago espiritualismo, honrando entidades abstractas: a
Humanidade, a Ciência, a Razão.
Os seus chefes são, a seu modo, homens conscientes da importância da sua missão, de educar uma
França moderna, encaminhando-a pelo caminho da civilização e do progresso mediante a luta contra as
superstições e as trevas de uma fé, cuja cabeça é um estrangeiro (o Papa) e cujos princípios são
incompatíveis com a sociedade moderna. Os governos franceses, antes do triunfo dos republicanos (1879),
são contrários à maçonaria. Proíbem que as lojas intervenham na política. Precisamente por esta hostilidade
governamental, a maçonaria recruta largamente os seus membros entre a média burguesia (médicos,
advogados, funcionários) que formarão os quadros dirigentes da “república dos republicanos”. Assim,
mediante a maçonaria, os republicanos preparam a sua grande batalha anticlerical e anticatólica.
A maçonaria, professando uma moral sem Deus, é a força capaz (assim se espera) de fundar na
França uma sociedade inspirada nos princípios do laicismo e do optimismo positivista.
É uma realidade de facto que, dentro de poucos anos, as leis propostas ao Parlamento dos governos
republicanos, serão primeiro discutidas nas lojas, como agora se faz nas sedes dos partidos. Por isso, um
grande mestre da maçonaria poderá proclamar triunfalmente em público: "Não existe questão religiosa,

24
NHV XI, 85.
25
Cf. OS II, 71-86.
26
Cf. OS III, 379-432.

13
política ou social, de que os nossos laboratórios (= Lojas) não tenham preparado a solução”. 27 Veremos
também o porquê.
O P. Dehon no seu opúsculo “O plano da maçonaria na Itália e em França” afirma que a franco-
maçonaria começou a intervir no governa de França em 1876. O seu programa no Parlamento é já claro
desde 1877: laicizar as escolas, suprimir as congregações religiosas, introduzir o divórcio, chegar à
separação entre a Igreja e o Estado, com a consequente denúncia da Concordata e a submissão da Igreja
mediante as associações cultuais.28 Este programa será realizado em parte, com inexorável determinação, e
chegará a ser impiedosa perseguição contra as congregações religiosas com E. Combes (1902-1905).29
Os católicos, por seu lado, e também o P. Dehon, nas pegadas de Mons. Dupanloup, falarão de
misteriosas conjuras da maçonaria contra a Igreja. Na realidade não havia nenhum mistério. O complot
laicista, anticatólico, era muito claro, acontecia em plena luz do sol. A maçonaria é uma anti-igreja, centro
do pensamento e da acção de quase todos os republicanos, e presta-se a desencadear a luta para o renascer
laico da França, procurando descristianizar a sociedade francesa.
Deve ter-se presente que os partidos daqueles tempos não tinham uma organização central nem
periférica, com a imprensa diária e periódica, como os partidos modernos. Será o partido socialista o
primeiro a dar-se a estrutura dos partidos actuais.
Os republicanos dispõem da organização bem estruturada da maçonaria. Têm a mesma doutrina e,
muitas vezes, os mesmos homens e os mesmos ideais. Não nos são estranhas as afirmações: “Maçonaria e
República são uma e mesma coisa”; e mais “a República é fiel ao Grande Oriente”.30
A maçonaria teve os seus apologistas e os seus detractores. A verdade não se encontra em nenhuma
destas posturas; é muito mais complexa.
Não basta a verificação de que em 1780 a maçonaria é deísta, monárquica, aristocrática e, um
século mais tarde, em 1880, é ateia, científica, republicana, burguesa. A maioria dos chefes republicanos
está filiada à maçonaria. Em 1896 contam-se 364 lojas com 24.000 membros.
Como acabamos de indicar, pode-se assegurara que todas as leis importantes discutidas e aprovadas
no Parlamento foram cuidadosamente estudadas pela maçonaria, como as leis sobre o exército, a escola, as
congregações religiosas, etc. Afirmar a total subordinação do partido republicano à maçonaria, dizendo que
as leis mais importantes se forjam nas lojas e que o partido não faz mais do que realizá-las, é uma asserção
um pouco simples e superficial. Existe, antes, uma contínua relação de osmose, de colaboração, porém sem
uma rigidez hierárquica.
Também se deve recordar que o aumento do número de membros da maçonaria rebaixa o nível
intelectual tanto que, em 1880, as lojas, mais do que um crisol de pensamento, são um centro de militantes
para a conquista do povo francês para a República. São profissionais, professores, pequenos funcionários e
empregados os que fazem uma incansável propaganda do partido republicano entre os seus amigos e
conhecidos. O fruto das suas canseiras, nas várias eleições, é cada vez mais rico.
Os mações não estariam tão seguros na sua luta se não se sentissem apoiados pelo país.
Ordinariamente a questão religiosa ocupa o centro de toda a campanha eleitoral. O partido
republicano está dividido em duas correntes: moderada e oportunista uma, radical e extremista a outra.
Denominador comum: o anticlericalismo.
Em Fevereiro de 1876, os republicanos conseguiram na Câmara a maioria de 360 lugares contra os
160 dos seus adversários.
Gambetta, chefe reconhecido dos radicais, sente-se perto da vitória definitiva e do poder, mas
emprega uma linguagem moderada. Para ele, a França votou contra a restauração, repudiou o espírito
clerical, tanto o nacional como o estrangeiro.
O P. Dehon escreve nas Memórias: “A influência da esquerda crescia na Câmara, crescia no país.
As eleições de Fevereiro (1876) tinham dado na Câmara uma maioria republicana... Infelizmente, os
católicos achavam-se divididos e tinham deixado conquistar a Câmara, ou seja a cidadela do Estado, pelos
seus adversários. Mac-Mahon governou dificilmente com o gabinete de Dufaure (um dos poucos

27
A. Dansette, Histoire religieuse, 363.
28
Cf. OS III, 406.
29
OS III, 409 ss.
30
A. Dansette, Histoire religieuse, 411.

14
republicanos católicos), apoiando-se sobre tudo no Senado; porém no fim do ano, 12 de Dezembro de
1876, Dufaure teve que passar o cargo a Júlio Simon (um republicano espiritualista unido à maçonaria) que
chegou a ser presidente do Conselho”.31
Mais adiante, escreve ainda: “Uma falsa táctica dos conservadores e dos católicos aumentou muito
a força do partido anti-religioso. Os católicos e os conservadores estavam ligados aos antigos partidos
políticos, embora fosse evidente que não havia nenhuma esperança séria do regresso da Monarquia. Era
colocar a Igreja contra as massas populares, que queriam a República. A Câmara inclinava-se cada vez
mais para as ideias republicanas. Cada uma das eleições parciais era um crescimento para a esquerda”.32
Estamos em 1878. São juízos e críticas muito exactos que o P. Dehon faz mesmo a si mesmo.
Tenhamos presente que estes juízos foram escritos pelo menos 25 anos depois dos acontecimentos.
Naquele tempo (1870-1880), Leão Dehon também era conservador e legitimista; ainda não se tinha
convertido à Democracia e à República.
1878 é o ano dos primeiros votos religiosos do P. Dehon (28.6.1878). É a data da fundação religiosa
da Congregação. Evocando o contexto sócio-político-religioso daquela época, constatamos que,
humanamente falando, era o tempo menos oportuno para fundar um instituto religioso; porém as obras do
Espírito estão por cima das dificuldades humanas.
Os republicanos, na embriaguez do triunfo, não abusaram da vitória, ao menos até à conquista da
maioria no Senado e a consequente presidência da República em 1879.
Então será o momento de pôr em marcha a sua política religiosa: dissolução das congregações
religiosas, laicização de todo o ensino em todos os graus, inclusão da Igreja no direito comum,
especialmente pela obrigação do serviço militar dos religiosos...; e isto será só o princípio.
A 30 de Junho de 1879, Mac-Mahon, isolado e impotente, apresenta a demissão de presidente da
República. Sucede-lhe Júlio Grévy. Todo o poder está nas mãos dos republicanos: “Desde ontem a França
é uma República... a República dos republicanos”.33
O P. Dehon, evocando nas Memórias estes acontecimentos, escreve: “Os católicos não perceberam
as aspirações populares, obstinaram-se nas suas esperanças e nas suas intrigas monárquicas...; começou um
verdadeiro “Kulturkampf” (é a luta pela civilização contra as trevas da superstição), que duraria muitos
anos. O Parlamento começou a eliminar todas as boas leis votadas nos últimos seis anos. Foram reduzidos
os privilégios das universidades livres, trabalhou-se na laicização do ensino primário, enquanto Júlio Ferry
atacava o ensino secundário com o famoso artigo 7”.34 Praticamente já não há diálogo com os católicos; é o
combate directo.
Os principais representantes do catolicismo liberal já morreram; o último, Mons. Dupanloup, em
1878. Dentro de pouco desaparecerão também os representantes do catolicismo intransigente, o Cardeal Pie
em 1881 e Luís Veuillot em 1883. Porém o acontecimento mais importante é a morte de Pio IX (7.2.1878)
depois de 32 anos de pontificado.
Antes de morrer, segundo o Cardeal Ferrata, o Papa deu-se conta de ter sobrevivido a uma época já
passada: “Tudo mudou à minha volta: o meu sistema e a minha política já fizeram o seu tempo; mas agora
estou demasiado velho para mudar a orientação; esta será a tarefa do meu sucessor”.35
Em Fevereiro de 1878, é eleito Leão XIII. Ironia da sorte; o papa da conciliação terá de enfrentar os
anticlericais mais intransigentes e menos dispostos a um diálogo conciliador.
Escreve o P. Dehon nas Memórias: “Amava muitíssimo a Pio IX, que tinha conhecido de perto e de
quem tinha podido apreciar as grandes qualidade de espírito e de coração. Tinha também conhecido,
durante o Concílio, o grande carácter e a ciência de Leão XIII. Esperava dele um grande pontificado”.36

A REFORMA ESCOLAR E A DISPERSÃO DAS CONGREGAÇÕES

31
NHV XII, 7-8.
32
NHV XIII, 105.
33
A. Dansette, Histoire religieuse, 367-368.
34
NHV XIII, 147. Kulturkampf = luta da cultura: é a luta de Bismarck contra a Igreja católica na Alemanha.
35
A. Dansette, Histoire religieuse, 368.
36
NHV XIII, 103.

15
Os anos 1878-1879 são decisivos. Como em Roma, assim também na França fechou-se uma época
e começa outra; é um novo capítulo de história e não só religiosa.
No contexto social, a Igreja de França reforçou a sua estrutura e as suas relações com Roma. Porém,
a sua influência sobre a sociedade debilitou-se; o povo levou ao poder os republicanos que desencadearam
contra a Igreja assaltos de inaudita violência durante longos anos, até quase a véspera da primeira guerra
mundial.
O P. Dehon, evocando aqueles tempos, escreve nas Memórias: “As leis malvadas multiplicam-se. A
francomaçonaria reina soberana... Oxalá que os sofrimentos dos justos alcancem o perdão dos tiranos”. 37
Neste desejo-oração manifesta-se o espírito do P. Dehon.
A primeira “lei malvada” dos republicanos refere-se à reforma do ensino e à dispersão das
congregações religiosas. A este factos já nos referimos; porém não é demais aprofundá-los para entender os
tempos.
A 15 de Março de 1879, Ferry publica a primeira reforma escolar que trata da composição das
comissões de exame nas universidades livres. Sem nenhuma relação com esta reforma, há um artigo, o
sétimo, que afirma: “Ninguém pode orientar escolas nem públicas nem privadas de qualquer grau, nem
ensinar nelas se pertencer a uma congregação não autorizada”. As congregações masculinas autorizadas só
eram cinco: Irmãos das Escolas Cristãs, Lazaristas, Sulpicianos, Missões estrangeiras de Paris e Padres do
Espírito Santo. As outras eram só toleradas. O artigo 7 atinge sobre tudo os Jesuítas, que “toda a nossa
história nos proíbe de tolerar”, declara Ferry.38 O artigo 7 é vivamente contestado mesmo por alguns
republicanos como contrário à liberdade; porém, por causa da esmagadora maioria republicana, é aprovado
na câmara a 9 de Julho de 1879. A reacção católica é vigorosa. Os bispos intervêm com cartas pastorais,
moderadas no tom, porque o Papa não quer que se comprometa uma possível pacificação futura.
Também no Senado, o artigo 7 é fortemente combatido pelos próprios republicanos, sempre em
nome da liberdade... “Vós tendes um só direito – afirma G. Simon -, o de amar a liberdade, propagá-la e
viver para ela”.39 De facto, no Senado, o artigo 7 não passa. Imediatamente levanta-se a reacção da Câmara
exigindo a aplicação das antigas leis sobre as congregações não autorizadas. O Governo obedece e, a 28 de
Março de 1880, emite dois decretos. Com o primeiro suprime os Jesuítas que, no prazo de três meses têm
de evacuar as suas casas; com o segundo ordena que, em três meses, cada congregação solicite a
autorização sob pena de dissolução.
Desta furiosa tempestade anti-religiosa, o P. Dehon esperará, como veremos, a “preanunciada”
realização do “Consumatum est”, ou seja, a supressão da sua Congregação ainda de cueiros.
A reacção dos católicos contra os dois decretos foi vigorosa. A Câmara viu-se inundada de petições,
interpelações, opúsculos... Os republicanos reagiram com sarcasmo e com soezes libelos. Nobre foi
também a reacção de numerosos magistrados, recordados com admiração pelo P. Dehon nas suas
Memórias: “Preferiram apresentar a sua demissão a prestar-se às expulsões”.40
Em resposta aos decretos governamentais, as congregações religiosas concordaram em não solicitar,
como um favor, o que lhes pertencia por direito, pelo que a imensa maioria não pediu nenhuma
autorização...
A furiosa tempestade antireligiosa leva, ao cabo de três meses (29 de Junho de 1880), à expulsão
dos Jesuítas e, em relação às outras congregações, ao fechamento de 261 conventos e à expulsão de 5.643
religiosos. As congregações femininas não são atingidas.
O empenho laicista de G. Ferry continuará implacável durante quase trinta anos, não só no terreno
do ensino, mas também em toda a vida social de França, para fazer dos franceses um povo moderno,
compenetrado pelos imortais princípios da revolução. As orações públicas são abolidas pela lei (1884); a
tropa não pode participar em cerimónias religiosas (1883); a obrigação do descanso dominical é abolida
(1884); os capelães militares são eliminados (1880); os seminaristas são obrigados a dois anos de serviço
militar (1880 e 1885); as freiras são pouco a pouco substituídas nos hospitais por enfermeiras seculares
(1880 e 1907); introduziu-se o divórcio (1884), etc. etc. etc.. É uma furiosa mania legislativa que destrói

37
NHV XIV, 13. 58.
38
A. Dansette, Histoire religieuse, 415.
39
A. Dansette, Histoire religieuse, 416.
40
NHV XIV, 13.

16
muitas das conquistas católicas dos três primeiros quartos de século, mas não é ainda o paroxismo da
perseguição, que se desencadeará com E. Combes (1902-1905).

O CUSTOSO CAMINHO DO DIÁLOGO E DA RECONCILIAÇÃO

A primeira causa desta fúria persecutória é, sem dúvida alguma, o ódio anti-religioso; porém, sobre
a agudeza deste ódio influíram muito os 30 anos de intransigência do Pontificado de Pio IX, ao qual se
deve acrescentar a intransigência de grande parte do clero e do laicado católico, agrupado à volta de
“L’Univers” de Luís Veuillot. Era uma intransigência caracterizada por uma inflexível hostilidade contra a
sociedade moderna, até uma absoluta impossibilidade de diálogo.
Agora Leão XIII está disposto ao diálogo; porém, infelizmente, os detentores do poder na França
respondem às clarividentes e pacientes aproximações do Papa com a mais cega intransigência e com a
perseguição. Neste contexto furiosamente anticlerical e anticatólico, a política de aproximação do grande
Papa à República parece uma quimera.
Para os próprios republicanos moderados, Igreja e República são incompatíveis por causa da
discordância que existe entre a Igreja e a sociedade moderna. Ambas põem o homem diante de duas
concepções opostas. São duas “fé” irredutíveis uma à outra. A ideia é de Taine. Mas também o católico
Alberto de Mun pensa o mesmo; não há possibilidade de convivência entre a revolução e a Igreja; é preciso
que a Igreja mate a revolução, se não quiser que a revolução mate a Igreja. Sobre um único ponto podem
estar de acordo republicanos e católicos, precisamente sobre a impossibilidade de reconciliação entre a
Igreja e a revolução.
Mas Leão Dehon não partilha desta opinião e tenazmente mantém a sua política de aproximação à
terceira República, até à adesão e à colaboração.
É clara a predilecção do grande Papa pela França. Se Pio IX representa a rígida “tese”, Leão XIII
quer ser a conciliadora “hipótese”. As preferências pessoais do Papa (como as do P. Dehon) são pela
monarquia; mas as exigências concretas levam-nos a procurar um acordo com os republicanos franceses,
cada vez mais frenéticos em cozinhar leis antireligiosas. Eles pretendem suprimir a Concordata e o balanço
doa cultos, cortar as relações com a Santa Sé, perseverar no seu objectivo de descristianizar a França e de
arrancar a religião do coração dos franceses.
A medida está mesmo cheia e parece inevitável a condenação. Mas, para que serviria? Para
enfurecer ainda mais os republicanos nos seus vexames. Esta é a convicção de Leão XIII. Por isso, a todo o
custo, entre a Santa Sé e o Governo francês não deve acontecer nada de irreparável. O Papa evita toda e
qualquer intervenção pública de condenação.
Os católicos, especialmente os intransigentes, passam do espanto a ira, ao lamento, à acusação de
fraqueza. Leão XIII, em segredo, está bem informado dos problemas franceses e, com paciência e
tenacidade, quer chegar a um aceitável compromisso.
Algum resultado positivo foi alcançado: salvaram-se as congregações femininas, ameaçadas de
supressão e expulsão segundo a lei de G. Ferry.
A 8 de Fevereiro de 1884, Leão XIII endereçara à França a encíclica “Nobilissima Gallorum gens”
em que expunha as orientações da sua política. Condenava a perseguição contra a Igreja, mas recomendava
ao clero e aos fiéis que estivessem unidos para favorecer todos os meios de diálogo com as autoridades
públicas e para não contaminar a religião com a política.
O P. Dehon escreve nas Memórias a propósito desta encíclica: “Que vistas elevadas sobre a França
e a sua missão providencial! A religião deu à França os seus belos séculos de civilização e de influência no
mundo. As recentes leis contra o ensino religioso e contra os religiosos levam-na à ruína”. O Papa
insinuava já as suas orientações políticas, que irá acentuando mais adiante. “Mostrai, dizia aos bispos, que
as leis antireligiosas são danosas para o próprio Estado. Ninguém poderá por isso acusar-vos de serdes
hostis ao Governo estabelecido...” “Se tivéssemos seguido esta orientação de aproximação desde 1884 não
estaríamos na situação em que hoje nos encontramos” (nos tempos do combismo). 41 Infelizmente, o
Episcopado francês e mais ainda o intransigente “L’Univers” impossibilitam a política conciliadora de
Leão XIII. Mais ainda, o arcebispo de Paris, o Cardeal Guibert, escreve, com estilo bem diferente do do
41
NHV XV, 24-25.

17
Papa, uma lista de queixas da Igreja de França contra o governo republicano. Mas, no momento oportuno,
o Papa intervém e desaprova o tom polémico das publicações católicas, especialmente de “L’Univers”. “As
suas acaloradas polémicas, os seus ataques pessoais, as suas incessantes acusações e recriminações,
alimentam todos os dias novas discussões e tornam mais difícil a pacificação e a concórdia fraterna”. 42
“L’Univers” compreende a antífona e suprime toda a polémica.
Mas a corrente intransigente é forte no Vaticano. Muitos são ainda os defensores da política de Pio
IX; e mais ainda, exalta-se a grandeza do seu pontificado, ao que sucedeu, segundo eles, uma clara
decadência. Leão XIII é atingido naquilo que lhe é mais caro: a sua paciente obra de reconciliação.
Aproveita então uma amável cata que lhe envia o Cardeal Guibert, com que o arcebispo de Paris se alinha à
política papal, para condenar com firmeza aqueles católicos que se permitem criticar a acção do Papa;
preferem o seu acanhado ponto de vista ao olhar muito mais amplo que o Santo Padre tem sobre a situação
da Igreja, escolhendo os meios mais idóneos segundo as circunstâncias; entregam-se a tristes comparações
entre um pontificado e outro; vivem voltados para o passado e não atendem aos problemas do presente.
Leão XIII não desperdiça nenhuma ocasião para promover a sua política de conciliação. Em
Setembro de 1885, Alberto de Mun tenta fundar um partido católico antirepublicano. O Papa condena a
iniciativa. Alberto de Mun obedece e renuncia.
Após as eleições de Outubro de 1885, em que os republicanos moderados perderam cerca de 100
lugares em favor dos radicais e dos conservadores, cria-se uma situação mais favorável à pacificação e ao
entendimento entre a Igreja e o Estado. Os republicanos moderados devem aliar-se aos deputados católicos
para governar. Também os monárquicos e os católicos intransigentes perderam lugares nas eleições de
1885. Depois da morte do pretendente ao trono de França, o conde de Chambord (1883), apresentam sinais
de evidente declínio.
Leão XIII decide então passar a uma acção mais incisiva para conseguir, não só um compromisso,
mas um acordo com a República francesa.
Todavia a realização do projecto do Papa deve ser prorrogada por três anos (1886-1889). É preciso
que passe a enorme farsa do boulangismo. O general Boulanger, medíocre, porém astuto ministro da
guerra, catalisou à sua volta um estranho conluio de radicais, de católicos e de monárquicos. É um pequeno
Napoleão levado, através de eleições triunfais, a um passo da Ditadura.
Leão XIII trabalha com extrema cautela e, embora empurrado, não se compromete. É uma atitude
prudente que logo dará bons frutos.
De facto, depois de uns anos de experiência no Governo, a exaltação jacobina dos republicanos
tornou-se moderada. Muitos são os que pensam numa “política aberta e tolerante” para com a Igreja, menos
perigosa, embora sempre poderosa.
Nesta árdua empresa, Leão XIII encontrou providencialmente válidos colaboradores. Recordamos
só a dois, grandes amigos do P. Dehon: o famoso cardeal Rampolla, secretário de estado, e Mons. Ferrata,
depois cardeal e secretário de estado de Bento XV.
Mons. Domingos Ferrata é um verdadeiro diplomata, dúctil, de palavra brilhante, hábil a enfrentar
os temas mais escabrosos e em evitá-los se o momento não é oportuno; flexível, sabe esperar sem renunciar
a um objectivo imediato; paciente e tenaz até alcançar a meta final. É o intermediário ideal de Leão XIII
porque sabe interpretar perfeitamente as ideias e as intenções do Papa, conseguindo tudo o que é possível
conseguir do Governo e do Episcopado francês, percorrendo os caminhos mais discretos, sem comprometer
ninguém,
O Papa intervém pessoalmente só quando os ânimos estão dispostos a aceitar as suas orientações.
Trata-se agora de convencer os católicos franceses da necessidade de colaborar com a República.
Trata-se de uma iniciativa importante confiada pelo Papa, não a um diplomático, mas a um homem de
acção, ao Cardeal Lavigerie, arcebispo de Argel. Deixou-lhe a escolha do tempo e do modo de realizá-la.
Acontece assim o famoso brinde de Argel (12-11-1890). O Cardeal oferece à esquadra naval
francesa, composta em grande parte por oficiais monárquicos, um banquete, e faz que seja recebidos com o
canta da “Marselhesa”, o hino da revolução, esperando a adesão sincera de todos os católicos franceses ao
novo Governo legítimo, o republicano.

42
A. Dansette, Histoire religieuse, 438-439.

18
O escândalo é enorme. O Episcopado francês é, na sua imensa maioria, hostil às declarações do
Cardeal Lavigerie. Este reage com irónica dureza: “Os bispos franceses são coelhos com mitra”. 43 Só dois
bispos se congratularam publicamente com ele; outros fazem-no privadamente. Também o Papa, diante da
tormenta, não vai mais além de uma aprovação privada; mas quando os ânimos serenaram, encarrega o
Cardeal Rampolla de expressar em carta a Mons. Baduel, bispo de Saint-Flour, que a Igreja aceita todas as
formas de governo, e os católicos de França são convidados a descobrir a situação real do seu país e a
aceitar a República. Era um claro convite, embora em termos bem discretos, a renunciar aos quiméricos
sonhos de uma restauração monárquica, aceitando a realidade política actual, ou seja, a República”.
Entretanto, a maioria do Episcopado francês, manifesta através de uma carta ao arcebispo de Paris,
o cardeal Richard, o seu estado de crise; não diz “sim” à política de aproximação promovida por Leão XIII,
mas também não diz “não”; é neutral.
Só uma dúzia de bispos é resolutamente pela adesão querida pelo Papa. Um grupo mais numeroso é
claramente hostil por motivos de consciência: como aceitar uma república ateia, perseguidora da Igreja?
Os obstáculos à política de entendimento do Papa são ainda muitos; todavia já se criou uma opinião
pública favorável à política de Leão XIII. Completamente contrários são apenas os extremistas
monárquicos de direita e os extremistas radicais de esquerda. Chegou portanto o momento de uma
intervenção directa do Papa.
Com efeito, em 1892, Leão XIII acaba com mais delongas e publica, a 20 de Fevereiro, a carta “Au
millieu des sollicitudes”. O Papa não fez mais que repetir a doutrina católica: A Igreja não está vinculada a
nenhum regime político. Aceita os governos legalmente constituídos, monárquicos ou republicanos, e isto
para contribuir para o bem comum.
Leão XIII responde às dúvidas de consciência dos bispos e dos católicos franceses sobre o carácter
antireligioso da sua República, distinguindo entre poder legalmente constituído e legislação. Mesmo sob
um excelente regimen, a legislação pode ser detestável e vice versa. É tarefa de todos os homens de boa
vontade lutar de forma legal contra as leis injustas.
Leão XIII insiste ainda mais claramente na carta de Maio de 1892 aos cardeais de França: quem
prefere o triunfo do seu partido, mesmo se mais favorável à defesa da religião (clara referência aos
monárquicos), dá mostras de estar mais apegado à política da divisão do que à união verdadeiramente útil à
religião.
Na carta de 3 de Agosto de 1893 ao cardeal Lecot, o Papa afirma que a aliança dos católicos com os
que querem a restauração monárquica é prejudicial à Igreja; na prática é servir-se da religião para combater
o poder constituído.
Leão XIII não nega aos católicos o direito de trabalhar pela restauração monárquica; porém
censura-os no uso deste direito porque, na realidade política concreta, actuam contra o bem comum e os
interesses superiores da religião.
Aceitem, pois, a República e provisoriamente, como mal menor, também a legislação antireligiosa,
trabalhando e criando condições favoráveis para a sua abrogação. Porém esta possibilidade reconciliadora
do Papa em relação às leis antireligiosas não é partilhada nem compreendida pela maioria dos católicos
franceses, nem sequer pelo clero e pelo episcopado. Em geral, chegam até a aceitar a República, mas são
agressivos na defesa dos direitos da Igreja. Não compreendem o espírito de moderação e de conciliação
que anima as orientações do Papa.
O ideal de Leão XIII é que todos os franceses de boa vontade, crentes ou não, unam as suas forças
para conseguir um governo que se preocupe do verdadeiro bem do povo e a que a religião possa dar o seu
válido contributo. Leão XIII é contra a fundação de um partido confessional ou de um governo clerical.
Concretamente, o Papa desejaria para a França uma situação semelhante à dos Estados Unidos: “Ali
a liberdade é verdadeiramente a base das relações entre o poder civil e a consciência religiosa...”.44
Com a sua política conciliadora, o Papa abalou realmente, desde os fundamentos, o mundo católico
francês; levou até à solução o conflito entre a Igreja e a República e, portanto, entre a Igreja e a sociedade
moderna, de que a República francesa é a mais característica realização política.

43
A. Dansette, Histoire religieuse, 453.
44
A. Dansette, Histoire religieuse, 463.

19
“QUEREMOS ESPERAR COM O PAPA”

Embora com inevitável lentidão e transitórias involuções, devidas a uma tenaz mentalidade
legitimista, muito espalhada entre os católicos franceses do oitocentos e à política persecutória dos
republicanos, também o P. Dehon, com Leão XIII, mostra-se conciliador sem nostalgias e sem reservas.
“Leão XIII é clarividente, escreve o P. Dehon na sua revista (Julho de 1892), quando assegura que o futuro
é o da democracia. É preciso ir ao povo para conservar os benefícios da fé às nações modernas”.45
O Papa “recomenda antes de mais a união dos católicos na adesão ao Governo estabelecido (a
terceira República). É a condição indispensável para a reforma das leis que nos regem”.46
É um sonho quimérico e perigoso o da Monarquia absoluta, pior ainda que Ditadura; sonho inútil
(para a França republicana) o da monarquia constitucional: “A democracia já não abdicará mais”.47 “Não
nos faltam homens (cita entre outros o cardeal Lavigerie)... a nós resta segui-los”.48 “Há em França duas
correntes de opinião entre os católicos – escreve o P. Dehon -; por um lado os intransigentes da direita, os
que são mais católicos do que o Papa e que recusam qualquer acordo com os homens de hoje (os
republicanos no poder), considerando-os incorrigíveis. Por outro, os que seguem os conselhos do Papa. O
que se chama a sua política. São os católicos que acreditam na possibilidade de conseguir do nosso mundo
oficial uma certa equidade e uma suficiente liberdade. Tanto uns como outros agem de boa fé, têm boas
intenções e desejam o triunfo da Igreja”. Cita, continuando, um parágrafo do periódico intransigente “La
Verité” e comenta: “Há qualificativos muito duros para os partidários da política pontifícia”. Cita depois o
“L’Osservatore Romano”, com o convite ao cessar do estado de guerra entre o Governo e os católicos. É o
que tem de acontecer em França desde que os católicos aceitarem as instituições republicanas. Duas
posições opostas: “Quem tem razão? – pergunta o P. Dehon -. Sem dúvida, o Papa e os que o seguem...
Nós queremos esperar com o Papa”.49
O P. Dehon recorda quais são as directrizes do Papa através de uma carta do Cardeal Rampolla,
Secretário de Estado: “O Santo Padre, ao pedir aos católicos franceses que se coloquem no terreno
constitucional e aceitem lealmente o Governo constituído, entendeu que desse modo os católicos agissem
de acordo para melhorar o governo. Quanto mais crescer a sua influência na direcção da coisa pública,
tanto mais conseguirão impedir novos agravos à religião e corrigir progressivamente as leis existentes,
injustas e hostis”.
Conclui o P. Dehon: “Não comerciemos mais os ensinamentos pontifícios. Sente-se nisso o cheiro a
heresia. Deixemos a Lutero e aos seus émulos a honra de apelar a um Papa mal informado ou a um Papa
mais bem informado”.50
A política conciliadora do Papa, se é difícil de ser compreendida e aceite, ainda o é mais de ser
posta em prática.
Os conciliadores seculares mais conhecidos: S. Lamy, G. Piou e A. de Mun são detestados pelos
católicos intransigentes. Também é condenado o cardeal Rampolla e o núncio Mons. Ferrata, que com a
sua “maquiavélica” diplomacia (segundo os intransigentes), feita de argúcias e de pactos, enganaram o
Papa. Há inclusive conventos de piedosas religiosas que rezam pela conversão ou a morte de sua Santidade.
Por outro lado, as relações com os republicanos são tudo menos fáceis. A. de Mun pode dizer-lhes
com sinceridade: “Entre vós e nós, senhores, nada há em comum...”. 51 Para muitos conciliadores, “adesão à
República” significa apenas aceitá-la, enquanto durar, e abandoná-la logo que começar a decair. Muito
desejam que a nave republicana encalhe em algum cabo das tormentas e se afunde para regressar à nunca
esquecida e sempre querida velha nave da restauração monárquica.

45
RCJ (1892), 386
46
RCJ (1892), 32.
47
RCJ (Janeiro de 1893), 35.
48
RCJ (Janeiro de 1893), 35.
49
RCJ (Maio de 1894), 248-249..
50
RCJ (Maio de 1895), 137-138; cf. RCJ (1897), 281-192. 313-317. 385-386. 417-429. 469-474. 521-526. 573-583. Estes artigos
foram publicados pelo P. Dehon em 1897, num opúsculo: Les Directions politiques et sociales. Cf. RCJ (Março de 1902), 122-
126.
51
A. Dansette, Histoire religieuse, 480-481.

20
Para os republicanos radicais, a conciliação não é mais que um engano dos padres para assassinar a
República.
Com o andar do tempo, a desconfiança dos republicanos moderados para com os católicos
conciliadores vai-se atenuando, seja porque decaem os ideais revolucionários, que desembocam na
anarquia libertária, ou porque se vão afirmando os socialistas.
Finalmente, nas eleições de Agosto-Setembro de 1893, republicanos moderados e conciliadores
católicos concorrem juntos. Os resultados das eleições são bons para os republicanos moderados. Os
deputados conciliadores católicos só são 35. Grandes são as perdas dos monárquicos e dos radicais. A
novidade é o avanço dos socialistas que de doze passam a 48 lugares. Estes são agora para os republicanos
moderados e proprietários burgueses, os novos inimigos que há que combater.
Repete-se assim a mesma necessidade de defender a ordem estabelecida contra a maré vermelha,
que tinha originado em 1848 a aliança entre a burguesia volteriana e a Igreja. Além disso, para os
republicanos moderados, a Igreja embora renovada democraticamente por Leão XIII, é sempre uma grande
força conservadora; portanto um sólido baluarte contra o socialismo.
Vêm assim os governos dos republicanos moderados, aliados não com os radicais, mas com os
católicos conciliadores; uma maioria com “espírito novo”, que se propõe uma política de conservadorismo
social e de pacificação religiosa, que encontra a sua melhor expressão no ministério de Méline, que
permanece no cargo mais de dois anos (29.4.1896-14.6.1898).
Não é que faltem nestes anos as escaramuças levantadas geralmente pelos próprios católicos;
bispos, sacerdotes, religiosos e leigos instrumentalizados inconscientemente pelos que continuam
sabotando a política de Leão XIII de aproximação à República; os monárquicos, sobre tudo. São algazarras
por coisas sem importância ou por mesquinhos interesses económicos como os impostos, mais que justos
sobre os bens das congregações.
Deu-se também o parêntesis anticlerical do governo de L. Bourgeois, apoiado pelos radicais
(Setembro de 1895- Abril de 1896) com oito ministros maçons; entre eles, E. Combes, que logo se tornará
tristemente famoso pela sua furiosa política anticatólica e a consequente perseguição religiosa.
Os católicos intransigentes alegram-se: “Melhor são os inimigos furibundos que os amigos
hipócritas” (“La Veritè française”); Só da desgraça pode vir a salvação; a perseguição revelou-se sempre
como semente fecunda” (“La Croix”).52
Em resumo, a política de aproximação de Leão XIII feriu de morte os monárquicos; porém não
promoveu aquele grande partido da gente honesta, desejado pelo Papa; Só há “gente honesta” que quer
apoiar os governos favoráveis à paz social e religiosa. E já é alguma coisa.
Todos os esforços do grande Papa para favorecer, a partir de 1895, a formação de um grande
partido não confessional, fracassam, não por falta de condições políticas, mas por falta de homens
adequados e pela mesquinhez dos católicos intransigentes, que sabotam sistematicamente as directrizes de
Leão XIII.
Agora a maioria parlamentar terá que ser diferente. Será necessária uma política mais de esquerda
que conte especialmente com os republicanos radicais.
O caso Dreyfus, com a sua baforada de aceso nacionalismo, mas também com o triste
comportamento antiDreyfus da maioria dos católicos (embora não de Leão XIII), da burguesia bem
pensante, dos partidos conservadores e, naturalmente do exército, contrários todos à revisão do processo de
Alfredo Dreyfus, judeu, capitão de estado maior, condenado à prisão, depois reconhecido inocente,
contribuirá para o fracasso da política de aproximação de Leão XIII e destruirá as frágeis conquistas de dez
anos de paz religiosa.
De facto, no campo favorável a Dreyfus e à revisão do seu processo, militam quase todos os
inimigos da Igreja, desde os livre pensadores (republicanos moderados e radicais, socialistas, anarquistas)
até a maioria dos professores e estudantes universitários, os protestantes e os judeus.53
Renasce portanto a discórdia que a política de Leão XIII parecia ter resolvido. Em 1899 celebra-se a
revisão do processo Dreyfus. Em 1906 o preso é indultado e reintegrado no exército com o grau de major.

52
A. Dansette, Histoire religieuse, 535.
53
P. Dehon era pessoalmente favorável à revisão do processo Dreyfus, cf. RCJ (1903), 165-166.

21
Entretanto, os republicanos moderados, ajudados pelos radicais, dão vida, a 28 de Junho de 1899, ao
governo Waldeck-Rousseau.
Todavia a política progressista de Leão XIII não será estéril. Depois de um fracasso passageiro,
dará bons frutos no dia seguinte da primeira guerra mundial.
Precisamente por culpa dos católicos intransigentes, dos republicanos radicais e pela nefasta
influência das lojas maçónicas, são criadas dificuldades ao diálogo que é finalmente interrompido
(combismo).
Chega-se assim à ruptura total sob o pontificado de S. Pio X (1903-1914).
Acontecerá depois a dolorosa experiência da primeira guerra mundial (1914-1918) e as sua graves
consequências, que permitirão que se abra de novo o diálogo entre a Igreja e a sociedade moderna e,
particularmente, favorecerá a aproximação de França à Santa Sé sob os pontificados de Bento XV (1914-
1922) e de Pio XI (1922-1939).
Com a condenação da “Action Française” por parte de Pio XI em 1926, acaba na França um período
de progressiva transformação da mentalidade e dos espíritos. Passa-se assim do visceral anticlericalismo,
do laicismo do oitocentos e inícios do novecentos, do fecho intolerante do clericalismo isolacionista, para
uma mais razoável distinção entre os valores da consciência e os da política, entre a esfera de Deus e a de
César. A Igreja aceita a laicidade do Estado e este, se não assina uma Concordata, evita violências e
hostilidades contra a Igreja.
Mas já a vida do P. Dehon termina santamente em Bruxelas, aos 82 anos, a 12 de Agosto de 1925.

22
CAPÍTULO 1

Infância em La Capelle

A entrada na vida – “A bela alma de minha mãe” – Infância em La Capelle – Os “Dehon” – “História heróica de La Capelle” – O internato –
Primeiras relações sociais – Luzes e sombras, lamentações e graças.

A ENTRADA NA VIDA

A 24 de Março de 1843, na pequena e desadornada igreja da La Capelle (Departamento de Aisne,


França) um velho sacerdote, P. Próspero Hécart baptizava, com os nomes de Leão Gustavo, uma criança de
10 dias, um menino Dehon.
“Nasci – escreve o P. Dehon na primeira página das suas Memórias – a 14 de Março de 1843... Fui
baptizado a 24 de Março... Eram as primeiras vésperas da festa da Anunciação. Mais tarde senti-me feliz
unindo a recordação do meu baptismo ao “Ecce venio” do Coração de Jesus. Hauri grande confiança desta
aproximação. O “Ecce venio “ do Coração de Jesus protegeu e abençoou a minha entrada na vida cristã.
Não desagradará a Nosso Senhor se vir nesta circunstância uma particular atenção da Providência em vista
da minha actual vocação de sacerdote-hóstia do Coração de Jesus”.54
Nesta passagem temos um exemplo de como o P. Dehon apresenta nas suas Memórias a história da
sua vida. Se lhe interessam os factos, mais o impressiona a sua interpretação espiritual.
O P. Dehon celebrava sempre com grande devoção o aniversário do seu baptismo. Durante as férias,
ia em peregrinação à fonte baptismal.
Quando se destruiu a antiga igreja de La Capelle para construir a nova, a fonte baptismal ficou
incorporada num altar e depois desapareceu, com grande pena do P. Dehon.
Os nomes de baptismo, como dissemos, foram: Leão e Gustavo. Com o nome de Leão, a mãe queria
lembrar o seu primogénito, falecido aos quatro anos e honrar o santo papa da sua infância, Leão XII, de
quem conservava, com devoção, um rosário por ele benzido.
Gustavo era, ao contrário, o nome do tio e padrinho: Eduardo Gustavo Dehon. Madrinha foi a sua
tia materna: Julieta Agostinha Vandelet.

“A BELA ALMA DE MINHA MÃE”

O pai, Júlio Alexandre Dehon era um homem honrado, de bom carácter, respeitoso para com a
religião, embora não fosse praticante.
A mãe de Leão Dehon, Adèle Estefânia Vandelet, familiarmente chamada Fanny, era uma mulher
de carácter doce e muito piedosa. Tinha recebido uma óptima educação no internato de Charleville
(Ardenas) por parte das Damas da Providência, que depois se uniram às do Sagrado Coração de Santa Sofia
Barat. O seu livro de orações preferido era o Manuel du Sacré Coeur (Manual do Sagrado Coração). As
suas educadoras provinham da aristocracia belga.
Durante algum tempo pensou em abraçar a vida religiosa; mas a doença e a morte da sua mãe
impuseram-lhe outros deveres. Depois do casamento da sua irmã mais velha, a direcção da casa paterna
passou inteiramente para as suas mãos até se unir em matrimónio com Júlio Alexandre Dehon a 24 de
Outubro de 1836, em Nouvion-en-Thiérache, terra de nascimento da esposa. Júlio tinha um pouco mais de
22 anos e Fanny quase 24. Três filhos alegraram o seu matrimónio: Leão que, como dissemos, morreu aos
4 anos; Henrique, nascido a 15 de Setembro de 1839 e o nosso Leão Gustavo.
Em La Capelle, a senhora Dehon era a alma das obras de beneficência. Tinha fundado e mantido,
durante 30 anos, a Obra de S. José, uma organização de caridade para as senhoras de La Capelle.

54
NHV I, 1r-1v.

23
O P. Dehon, evocando a sua morte, que foi a 19 de Março de 1883, escreve nas Memórias: “A sua
vida foi uma vida de trabalho, de piedade e de virtude. Verdadeira mulher forte, era a primeira a levantar-se
e governava maravilhosamente a casa. Sempre foi doce e paciente. Mostrava uma grande dignidade. Era
uma verdadeira matrona cristã... Era de uma admirável fidelidade às suas práticas de piedade”.55
“A minha mãe, continua escrevendo Leão Dehon, destaca-se nas minhas longínquas recordações.
Não me separava nunca dela. Enquanto o meu irmão Henrique ia e vinha com meu pai e participava dos
seus gostos pelo cultivo dos campos e pelos cavalos, eu ficava em casa e seguia, passo a passo, a minha
mãe”.56

INFÂNCIA EM LA CAPELLE

No seu Diário, e com data de 19-20 de Setembro de 1914, o P. Dehon escreve: “Aniversário de La
Salette... É a data a que se reportam as minhas mais longínquas recordações. Era muito pequeno: três anos
e meio”57. Leão ouvia a sua mãe falar com as tias sobre as aparições de La Salette, ocorridas a 19 de
Setembro de 1846. Recordava as lágrimas da Virgem e os castigos anunciados para a França. “Os castigos
vieram várias vezes; mas as lágrimas da Virgem suscitaram toda um florescimento de obras de penitência e
de reparação... Também o nosso Instituto foi inspirado, ao menos em parte, por elas”.58
Aos quatro anos, Leão caiu gravemente doente de febre cerebral, A sua mãe temeu perdê-lo, como
tinha perdido o primeiro filho. Leão curou-se. Única consequência: uma predisposição para o cansaço
mental e uma dor de cabeça que o acompanhou ao longo de toda a sua vida. Também sofria muito com
uma urticária. A sua mãe sofria com ele, rezava e animava-o. Uma vez restabelecido, a senhora Dehon,
ficou mais próxima do seu filho mais novo, de saúde delicada. Era o seu preferido.
Entre as primeiras recordações de Leão destaca-se a antiga igreja de La Capelle. Leão Dehon
recorda o banco da sua mãe: “Rezava com ela ou melhor ela rezava por mim. Ainda não sabia bem o que
significava rezar. Levava-me às funções de domingo e, algumas vezes, à bênção eucarística durante a
semana.
Tinha cerca de sete anos quando Mons. de Garsignies (bispo de Soissons: 1848-1860), veio para
administrar a confirmação. Atravessou a igreja abençoando as crianças. Fez-me pegar na cruz peitoral ,
dizendo-me: “É a cruz do meu predecessor, Mons. de Simony”. Ficou-me gravada esta lembrança. A
minha mãe recordava-ma por vezes. Via aí uma grande graça”.59
Já desde pequeno, portanto antes do uso da razão, Leão percebia e vivia instintivamente os
profundos sentimentos do coração da sua mãe. Respirava a piedade, a virtude, a intimidade com Deus, que
animavam a sua existência.
Leão herdou da sua mãe o gosto pelas coisas sagradas: Construía pequenos altares, adornava-os
com estatuetas, com estampas, relíquias e flores.. Os objectos de piedade foram para ele os presentes mais
queridos da sua infância: “A atracção pelos objectos de piedade é considerada às vezes como o primeiro
gérmen de uma vocação” – escreve nas Memórias. “Disseram-me isso, algumas vezes, na minha infância.
Não pensava então que um dia seria realidade”.60
A mãe ensinou-o a rezar e a cultivar a devoção ao Coração de Jesus, à Virgem, a S. José... “Estas
devoções nasceram em mim com o uso da razão. A bela alma da minha mãe passava um pouco para a
minha..., todavia não tão perfeitamente, por causa da minha leviandade”.61
A influência de uma mãe é, na verdade, única e profunda. A religião, o amor a Deus, a piedade, não
precisam de demonstrações racionais para uma criança; comunicam-se com a vida.
Na família, a mãe é uma presença que providencialmente abre a alma dos filhos ao que é bom e
belo, a Deus e aos homens.

55
NHV XIV, 148.
56
NHV I, 6r.
57
NQ XXXV, 93-94.
58
NQ XXXV, 93-94 (19.-20.9.1914).
59
NHV I, 7v-8r.
60
NHV I, 6v.
61
NHV I, 6v-7r.

24
O pequeno Leão viveu a presença da sua mãe: “Saboreava amiúde, escreve nas Memórias, o fruto
dos seus piedosos propósitos. A minha mãe comunicava-me os seus pensamentos, fazia-me rezar com
ela”.62

OS “DEHON”

Na sua juventude e na maturidade, Leão Dehon investigou as origens da sua família.


Escreve nas Memórias: “Uma visita aos parentes de Dorengt, no cantão de Nouvion, desperta em
mim o desejo de fazer algumas investigações sobre a origem da minha família. A igreja de Dorengt tem
belas lápides sepulcrais que recordam a piedade e a caridade dos meus antepassados dos séculos XVII e
XVIII. Examinei os arquivos de Dorengt. Remontam até ao século XVII. Estão cheios de notícias sobre a
minha família.
Ela pertencia com certeza ao “terceiro estado” (burguesia) embora o nome se escrevesse
habitualmente de Hon e alguma vez d’Ehon, antes da revolução. Era uma família de proprietários rurais e
de agricultores. Em Dorengt, os de Hon habitavam na propriedade senhoril de Ribeaufontaine. Eram os
administradores”.63
Talvez a origem da família deveria ser procurada na terra ou senhorio de Hon (Norte de França).
De facto, em Julho de 1896, o P. Dehon (tem 53 anos) vai a Hon, como escreve no seu Diário:
“Desejava desde há muito tempo ir rezar à terra de onde provém a minha família”.64
“Os nossos antepassados não são, porventura, os nossos amigos e intercessores diante de Deus?”.65
“Aproveitei uma ocasião. Hon está perto de Bavay... a antiga cidade dos Nervos, da qual irradiam
tantos caminhos romanos. O superior do colégio de Bavay leva-me a Hon e a Taismières-sur-Hon”.66
Hon é um nome celta que significa curso de água. Hon é ainda agora o nome de um riacho, afluente
do Schelda.
O P. Dehon descobre que a povoação de Hon tem já uma certa notoriedade nos tempos dos
Carolíngios, com Lotário II. O seu filho Hugo chega a ser abade da abadia de Lobbes e as terras de Hon
são doadas a esta abadia em 862.
Todavia Hon tem os seus pequenos senhores, frequentemente mencionados nos documentos
medievais com o nome de Huoi (1150), de Hum (1185), de Hon (1186).67
Nos séculos XII e XIII recordam-se os senhores de Hon como benfeitores da abadia de Lobbes,
enquanto que em séculos posteriores encontrámo-los em Mons como juizes da cidade.
O seu escudo tem, em campo de ouro, três melros, sem bico e sem pés. Às vezes o escudo heráldico
é sustentado por um selvagem ajoelhado, ou é coroado por um elmo com cimeira ou contém uma estrela
com cinco raios. Tudo isto significa que os de Hon participaram nas batalhas de ultramar contra os infiéis,
sofreram feridas e comportaram-se valorosamente.
No século XVII, o Heinault meridional foi conquistado por Luís XIV.68 Foi cedido à França com a
paz dos Pirinéus de 1659.
Assim os de Hon, talvez arruinados pela guerra, tornaram-se franceses e estabeleceram-se em
Dorengt (Aisne – França) perto de Guise, reduzidos a “simples administradores da propriedade dos
senhores de Ribeaufontaine”, como escreve o P. Dehon nas Memórias.69
Dos de Hon de Dorengt provêm os Dehon de La Capelle. O primeiro de Hon, mencionado nos
registos de La Capelle é João de Hon, casado com Isabel Bouquet.
O seu filho Adriano José (1730-1823), casado com Maria Catarina Gricourt, vê-se obrigado a
democratizar, durante a revolução, o nome de Hon para Dehon.

62
NHV I, 7v. (Cf. Note e studi, n. 1. P. 533).
63
NHV I, 92v-93r. (Cf. Note e studi, n. 2. p. 534s).
64
NQ XI, 64r-64v.
65
NQ XI, 65r.
66
NQ XI, 64r-65v.
67
Cf. NQ XI, 64v-65r.
68
O Heinault era a província sul-ocidental de Flandres, governada pelos espanhóis, com capital em Mons. Agora pertence à
Bélgica e à França.
69
NHV I, 92v-93r.

25
O seu filho é Hipólito Luís (1781-1862) casado com Henriqueta Ester Gricourt (+ 1874), a “mamã”
Dehon das cartas juvenis de Leão Dehon. Deles, com outros cinco filhos, nasceu Júlio Alexandre Dehon
(1814-1892) marido de Adèle Estefânia Vandelet (1812-1883), pais de Leão Dehon.
Os Dehon tinham em L Capelle um certo ascendente social. Hipólito Luís, avô do P. Dehon, tinha
sido vice-presidente e presidente de La Capelle de 1840 até 1848. Os mesmo cargos exerceu o pai de Leão
Dehon, Júlio Alexandre, vice-presidente de 1848 a 1857, e depois presidente de 1858 a 1861. Presidente foi
também o irmão do P. Dehon, Henrique, de 1891 a 1919. Em 1886 Henrique tinha sido eleito Conselheiro
geral do departamento de Aisne.

“HISTÓRIA HERÓICA DE LA CAPELLE”

A terra natal de Leão Dehon tem uma história gloriosa.


A sua origem remonta à época galo-romana. Era talvez uma daquelas estações (mansiones) que
hospedavam os soldados romanos nas suas marchas70 na estrada Reims-Bavay,71 na zona fronteiriça com os
bárbaros.
Nos séculos IV-V os hunos e os vândalos arrasaram tudo. Este é o tempo em que ocorreu o martírio
de Santa Grimónia (Germana). Virgem irlandesa, fugitiva de sua casa com a irmã Proba. Grimónia
refugiou-se nos bosques de Thiérache, mas foi encontrada, por causa da sua fama de santidade, pelos
enviados de seus pais e, não querendo voltar para casa, foi decapitada. O seu corpo, lançado numa fossa
profunda, chamada “Buraco de Ondino”, foi encontrado milagrosamente, segundo a lenda. Houve
milagres. Construiu-se uma capela. Acudiram os peregrinos; construíram-se casas e o lugar chamou-se “La
Capelle”.72
Francisco I no século XVI construiu aí um castelo, e assim La Capelle teve também a glória militar
de vários assédios; porém Luís XIV, depois da paz dos Pirinéus, mandou demolir o castelo.
Ficou só a igrejinha que se converteu em igreja paroquial, onde Leão recebeu o baptismo e onde ia
rezar com sua mãe. “Não tinha nenhum atractivo para mim – escreve o P. Dehon nas suas Memórias - ...
parecia um tugúrio. Era triste e sem adornos”.73
Nos tempos da revolução francesa, La Capelle conta com 1.800 habitantes, na sua maioria
lavradores. As colheitas são escassas por causa do clima frio e húmido. Precisamente durante a revolução
encontramo-nos com o primeiro Dehon, Adriano José, chefe do correio de La Capelle.74 Estamos na noite
de 4 para 5 de Junho de 1791, no tempo das emigrações clandestinas dos nobres e do clero. Diante da porta
do chefe de correios estão paradas três carroças suspeitas. Intervêm os polícias municipais, examinam os
documentos de dois sacerdotes, duas senhoras, suas filhas e camareiras. Não estão em regra e são enviados
para Laon, de onde procediam.
Outro episódio, muito importante, acontece a 21 de Junho de 1891: o encontro da senhora Dehon
(Maria Catarina Gricourt) com o irmão de Luís XVI, Luís Estanislau Xavier de Borbón, o futuro Luís
XVIII, disfarçado de turista inglês. Há uma disputa pelo aluguer de uns cavalos; mas tudo acaba felizmente
graças à generosidade do príncipe.75

70
C.J. César, De Bello Gallico, 1.2, c. 15. Também hoje , perto de La Capelle, há a última povoação de Aisne: A Flamengrie,
cujo nome parece formado por duas palavras holandesas: “Vlamen” “greens” isto é fronteira dos flamengos. São as mesmas
fronteiras que separam o país dos Remos do dos Nervos nos tempos dos romanos; a França das províncias de Flandres nos
tempos de Luís XIV e que hoje separam o departamento do Aisne do do Norte (cf. A. Piètte, Itineraires Gallo-Romains dans le
département de l’Aisne, 1862, p. 67; AD, B 48/3-b).
71
Bavay ou Bavai, antiga capital dos Nervos, encontra-se a uns 40 quilómetros de La Capelle. Enriquecida pelos romanos com
aquedutos , termas, praças, templos, estátuas, foi saqueada pelos Hunos em 387 e arrasada depois pelos Vândalos em 406. (cf. A.
Piètte, Apêndice IV, p. 3 a M. Sars, Histoire héroïque, º c.).
72
Cf. M. Sars, Comte de, Histoire héroïque, 87-89.
73
NHV I, 7v. Cf. M. Sars, Comte de, Histoire héroïque, 87-89.
74
Adriano José Dehon é o bisavô de Leão Dehon, nascido de João de Hon e de Isabel Bouquet em 1730 e morto em 1823. É
mencionado como chefe de correio “Maître de poste” em La Capelle em Inventaire Sommaire des Archives départementales
antérieures à 1790, Département de l’Aisne, Canton de La Capelle, Laon 1929, Tomo VI, pag. 309.
75
Cf. M. Sars, Comte de, Histoire héroïque, 107-109.

26
No fim da revolução e do primeiro império, La Capelle experimenta a miséria mais negra. 76
Conhece um pouco de bem estar somente por volta de 1820 e a sua população aumenta de 1.199 habitantes
em 1821, para 1.532 em 1841 e 2.403 em 1881.
La Capelle está em boa situação geográfica, na encruzilhada de três caminhos importantes, entre os
quais o caminho real: Paris-Maubeuge. A verdadeira riqueza de La Capelle consiste no comércio de cereais
e na criação de gado. Os agricultores de La Capelle vão renunciando pouco a pouco ao cultivo de cereais
para dedicar-se à criação de gado vacum e cavalar. Ao mesmo tempo surge alguma indústria e
estabelecem-se fábricas de chicória e de cerveja. La Capelle torna-se famosa pela criação e corridas de
cavalos.77

O INTERNATO

Já lembrámos o ambiente social da família de Leão Dehon e dos seus primeiros anos.
A família Dehon era abastada, pertencia à acomodada burguesia rural. Júlio Alexandre Dehon, pai
de Leão, era fabricante e distribuidor de cerveja; um comércio que lhe trazia bons rendimentos. Era
também proprietário de terrenos, apaixonado pelo cultivo dos campos, pela criação de gado e pelas corridas
de cavalos.78
Nesta pequena terra do departamento nordeste francês de Aisne, Leão Dehon passa, em família, os
doze primeiros anos da sua vida, frequentando as aulas do internato da terra. Foi o primeiro encontro com
os coetâneos. Uma experiência delicada para Leão, que começou a escola como semi-interno. O horário era
duro: das seis da manhã até tarde da noite.
Uma noite de inverno, durante um forte nevão, correu o risco de ser esmagado pelo rodado de um
carro. Sofreu uma pancada na cabeça dada pelo casco ferrado de um cavalo. A sequela foi uma ligeira
surdez que durou toda a sua vida.
O P. Dehon não conservou boas recordações daqueles anos. “Pouca era a fé, pouca a virtude e mal
feita a oração. O director era um homem honrado e prudente, com um certo sentido cristão”.79
O P. Dehon não fornece mais detalhes nas suas Memórias. Sabemos que em 1837 foi aberto em La
Capelle um internato primário privado, dirigido sucessivamente pelos senhores Pelserf, Courtebotte,
Emmery e Parmentier e outro internato secundário dirigido pelo senhor Béguin.. Estas escolas deixaram de
existir, como internatos, em 1861.80
Leão teve de frequentar durante 5 anos o internato primário e, durante dois, o secundário. De facto,
no colégio de Hazebrouck foi admitido à quarta classe do curso superior. Tinha doze anos e meio
(1.10.1855).
Não faltavam os bons companheiros, porém dominavam as maus e Leão, embora sendo
habitualmente o primeiro da classe, afirma que não era melhor que os outros: “Os meus defeitos naturais
cresceram com facilidade. Frequentemente era vaidoso, colérico, indolente, preguiçoso... Não podia
suportar as humilhações”.81
Todavia no colégio de La Capelle, começou a gostar também da palavra de Deus: “Gostava de ler
as epístolas e os evangelhos do domingo... Nosso Senhor abençoava claramente aquela leitura”.82
A única recordação verdadeiramente bela e sem sombras daquele tempo, foi a primeira comunhão,
feita aos 11 anos, a 4 de Junho de 1854.
76
Cf. M. Sars, Comte de, Histoire héroïque, 109-130.
77
Cf. M. Sars, Comte de, Histoire héroïque, 132-136.
78
Numa carta de Roma , de 26 de Julho de 1866, Leão Dehon, já seminarista, escreve aos seus pais: “Preciso de descanso, não
trabalharei nestas férias (em La Capelle). O pai vai encontrar-me sempre disponível para acompanhá-lo nas suas propriedades.
Também gostaria de fazer alguns passeios a cavalo com Henrique se tiver um cavalo manso para me emprestar”. Noutra carta de
20 de Abril de 1868 escreve aos pais que se tiverem dificuldade em lhe enviar o dinheiro “por causa da compra de bois”, que lhe
mandem só uma parte (cf. AD , B 18/9). Durante a viagem pelo sul de França com os pais e os tios de Vervins, em Setembro de
1873, Leão Dehon anota nas suas Memórias que o seu pai e seu tio param algumas horas em Tarbes, para ver os famosos cavalos
dos Pirinéus (cf. NHV X, 88).
79
NHV I, 8v.
80
Cf. M. Sars, Comte de, Histoire héroïque, 134.
81
NHV I, 8r-8v.
82
NHV I, 8r.

27
Durante três anos tinha frequentado a catequese paroquial, mas sem proveito algum, já que o
pároco, D. Próspero Hécart, era débil e bonacheirão. A catequese era uma algazarra contínua. Foi a mãe
que o preparou bem com o estudo, a oração e os bons conselhos: “Recebi fortes impressões de graça”.83
Leão foi escolhido para ler uma fórmula de renovação das promessas do baptismo. Fez também a
consagração a Nossa Senhora.
Depois deste breve tempo de paz e de graça, a situação piorou. O P. Dehon fala da primeira crise da
sua vida: “Começou para mim a idade crítica. Estava demasiado abandonado a mim próprio. Segundo o
costume da terra, comungava raramente, quando precisaria da comunhão frequente. O ano foi mau. Era
preguiçoso e, pior ainda ... A minha mãe sofria, vendo-me assim. Também meu pai estava desgostoso”.84
Leão procurava dissimular os seus defeitos, tinha uma curiosidade morbosa pelo mal, sentia
atracção pelas reuniões mundanas, pelo baile,... era vaidoso. “Já não tinha confiança em minha mãe e era,
com frequência, repreendido em casa”.85
Pensando em certas experiências, em alguns maus amigos, o P. Dehon escreve nas suas Memórias
sobre o colégio de La Capelle: “Como deveria amaldiçoar aquela casa se, depois, Nosso Senhor não me
tivesse concedido a graça de reparar, celebrando nela o santo sacrifício, quando se converteu num hospício
com capela!”.86
Apesar dos maus resultados do último ano académico, seu pai levou-o, em Agosto de 1855, a visitar
a exposição universal de Paris. Era a primeira das muitas viagens de Leão Dehon. Deixou-lhe poucas
recordações.

PRIMEIRAS RELAÇÕES SOCIAIS

Além da família e do colégio, Leão estabeleceu outras relações, apesar do ambiente limitado de La
Capelle.
Conservou boas recordações. Foram dádivas da Providência e motivo de agradecimento.
Recorda nas Memórias as piedosas meninas Dureux, que cuidavam da igreja, visitavam os pobres e
se ocupavam da biblioteca paroquial. Comunicaram-lhe o gosto pelas flores, pelas plantas, pelo jardim,
gosto que conservou durante toda a vida.
A família Méret recebia-o com frequência num clima de cordial bondade, com inocentes
passatempos, acompanhados de muitos conselhos que a senhora Méret lhe dava muito amavelmente.
O mesmo acontecia na casa das senhoras de Vaupré, que colaboravam com a mãe de Leão na obra
de caridade de S. José.
Ocasião de grande edificação para Leão foram as três irmãs da sua mãe: Sofia Leonor, Julieta
Matilde e Julieta Agostinha, que tinham recebido a mesma educação.
Conservou uma viva recordação de um primo de Paris, Aimé, de 18 anos. Adoeceu de febres
tifóides, veio para La Capelle, pensando estar em vias de cura; encaminhava-se porém, lentamente, para a
morte. “Tinha fé, era uma alma simples e recta, possuía um grande carácter. Tinham-no impressionado as
minhas notas escolares. Não compreendia como podia ser preguiçoso e dissipado. Tinha mais medo das
suas observações do que das de meus pais. Foi-se extinguindo pouco a pouco. Era a primeira morte que me
tocava de perto. Fiquei muito impressionado”.87
Quase ao mesmo tempo aconteceu a morte de outro familiar jovem, Armando de Vervins. A irmã
de Armando, Luísa, pouco depois fez-se religiosa das Irmãs da Caridade. “Todos estes acontecimentos
deixaram-me profundas impressões na alma”.88

LUZES E SOMBRAS, LAMENTAÇÕES E GRAÇAS

83
NHV I, 9v.
84
NHV I, 10r.
85
NHV I, 10r.
86
NHV I, 12v.
87
NHV I, 12r.
88
NHV I, 12r-12v.

28
Leão não podia continuar, por mais tempo, os seus estudos no Colégio de La Capelle. Ter-se-ia
perdido para sempre. “Estava pois para abandonar o internato de La Capelle. Como lamento que a
necessidade me tenha obrigado a frequentá-lo! Lamentá-lo-ei sempre. Porque não teve a minha boa mãe a
possibilidade de me educar ela própria, até poder confiar-me a um ambiente verdadeiramente cristão?
Quantas culpas irreparáveis teria podido evitar!”89
O pai de Leão pensava em mandá-lo para um liceu de Paris. Teria ido, talvez, de mal a pior.
A Providência vigiava e serviu-se de uma humilde mulher, empregada na casa Dehon, para orientar
Leão para o colégio de Hazebrouck. Esta criada, Maria Jouniaux, viúva de Debouzy (1810-1887), que era
de Wignehies (departamento do Norte), pôs os pais de Leão em contacto com o ex-pároco daquela terra, P.
Carlos Boute, que tinha sido transferido, como professor, para o colégio de Hazebrouck (Norte) dirigido
por Tiago Dehaene
O P. Boute, quando voltava a Wignehies, parava em La Capelle e hospedava-se na casa Dehon.
Assim se afirmou uma relação amistosa entre Júlio Dehon e o P. Boute.
Falaram da seriedade dos estudos no colégio de Hazebrouck.
Tratava-se de fazer continuar os estudos não só de Leão, mas também do seu irmão mais velho,
Henrique.
O desejo de confiar os filhos a mãos seguras, a modicidade das despesas da pensão, os desejos e
pedidos da senhora Dehon, levaram à decisão de escolher o colégio de Hazebrouck.
“Entrei nele a 1 de Outubro de 1855, dia para sempre abençoado! Aqui recebi tantas graças que não
posso recordá-las sem emocionar-me de reconhecimento. Nosso Senhor ia, verdadeiramente, apoderar-se
de mim e encher-me das ternuras do seu coração”.90

89
NHV I, 12v.
90
NHV I, 13r.

29
CAPÍTULO 2

Anos de graça

A situação da escola em França na primeira metade do século XIX – O rev. Dehaene e o colégio de Hazebrouck – Vida austera – Os estudos – O “pai
da minha alma” – Pessoas e recordações – A primeira grande experiência de Deus – Férias e despedida de Hazebrouck.

A SITUAÇÃO DA ESCOLA EM FRANÇA


NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX

“Confiai-me a instrução durante um quarto de século – tinha escrito Leibniz – e eu mudarei o


mundo”.91
A burguesia francesa, sempre volteriana, depois da funesta colaboração entre o Estado e a Igreja
durante a restauração, tinha tido bastante mais de um quarto de século para forjar uma escola à sua imagem
e semelhança.
Já a própria universidade imperial – afirmava Chateaubriand – tinha ensinado aos jovens franceses,
a tocar de caixa, a dissolução e a irreligiosidade.92
Estamos nos anos anteriores a 1830. “A nossos olhos, afirmava o convertido P. Gratry, A Igreja era
só uma forja de mentiras, aliada à tirania dos príncipes para embrutecer os povos”.93
Lacordaire refere que só o 7-8% dos alunos de retórica e filosofia dos colégios reais cumprem com
o preceito pascal e que só 1% conservam a fé.
Na escola militar de Saint-Cyr, os alunos que se atrevem a comungar em uniforme correm o risco
de serem desafiados para um duelo porque desonram a escola.
Lamennais cita factos mais escandalosos ainda. Os colégios são “horríveis refúgios de vícios e de
irreligiosidade”94 e as escolas, “viveiros de ateísmo e antecâmaras do inferno”.95
Apesar de tudo, o senhor Frayssionous, grande professor de universidade, comentava com amarga
ironia: “Lamennais é severíssimo contra a universidade (e a escola laica que dela depende), e não está ao
corrente de tudo!”96
A explosão burguesa e popular de Julho de 1830 tinha destruído a monarquia legitimista e ferido a
Igreja sua aliada. A triunfante burguesia volteriana de Julho já não teme nem odeia a Igreja, simplesmente
a despreza.
Na opinião de Haine, “a antiga religião está já cpmpletamente morta, e mais, está em
decomposição. A maioria dos franceses já não quer ouvir falar deste cadáver e coloca o lenço no nariz...”.97
Entretanto os intelectuais burgueses claramente volterianos e incrédulos, embora professando
externamente um desdenhoso respeito pela religião, trabalham sem descanso para conduzir o povo,
mediante as leis, a imprensa, a escola, até `mesma incredulidade que eles ostentam.
Neste contexto sócio cultural, tão irreligioso, o problema mais urgente para os católicos franceses é
o da liberdade e, especialmente, a liberdade de ensino na escola secundária para salvar a juventude do
volterianismo, da irreligiosidade e da imoralidade.
Mas, como será possível conseguir esta liberdade, quando a Câmara dos deputados é eleita por
200.000 burgueses, quase todos eles volterianos? Assim, segundo a linguagem eclesiástica do tempo, a
escola, monopólio do Estado, continua empestando o país; é um “antro de vícios”, transforma os jovens em

91
A. Dansette, Histoire religieuse, 203.
92
A. Dansette, Histoire religieuse, 204.
93
A. Dansette, Histoire religieuse, 204.
94
A. Dansette, Histoire religieuse, 205.
95
A. Dansette, Histoire religieuse, 206.
96
A. Dansette, Histoire religieuse, 207.
97
A. Dansette, Histoire religieuse, 224.

30
“animais imundos e bestas ferozes” e favorece a “voluptuosidade mais infame”. 98 Esta é a escola onde teria
ido parar o jovem Dehon aos seus doze anos sem a providencial escolha do colégio de Hazebrouck.
Às acusações eclesiásticas, a opinião pública burguesa reage com o sarcasmo típico de Voltaire com
a irrisão e o desprezo.
Seria uma interminável guerra de palavras, se Montalembert não tivesse tido a feliz ideia de unir os
católicos num partido que defendesse os interesses da religião e reivindicasse as liberdades fundamentais.
É a fórmula perigosa do partido confessional; porém menos daninha que a aliança com uma monarquia ou
com um império.
A maioria dos bispos é contrária. Segundo eles. Montalembert é um revolucionário, um laicista que
se intromete nos assuntos da Igreja...; todavia, pouco a pouco, sob a influência de Mons. Parisis e de Mons.
Dupanloup os pareceres mudam. O partido católico ficará como simples tentativa, porém no parlamento
haverá um grupo político que sustentará as reivindicações dos católicos.
Esta campanha pela liberdade (liberdade de ensino e de associação) interessa a opinião pública e
suscita simpatias nas gerações jovens. Os princípios imortais da grande revolução – liberdade, igualdade,
fraternidade – estão agora baptizados.
De improviso, em 1848, a Igreja chega em França a ser uma potência política graças à nova lei
eleitoral, aprovada em Março daquele ano, que faz com que os votantes passem de 240.000 a 9.000.000,
concedendo o voto às massas rurais, sobre as quais o clero exerce a sua enorme influência. Entre os
deputados são eleitos quinze eclesiásticos, entre eles três bispos.
Entretanto, impôs-se a questão social. Avança o socialismo revolucionário, que sustenta as
reivindicações do proletariado operário.
No plano dos interesses sócio económicos, a França está dividida em dois blocos de desigual
importância: por um lado os trabalhadores das grandes cidades e a combativa minoria republicana da
burguesia; por outro lado, a imensa maioria da burguesia, das massas rurais e da Igreja.
O jogo já está feito. A 15 de Março de 1850, a burguesia descrente concede à Igreja, tutelar da
ordem social, a liberdade de ensino nas escolas secundárias. Na famosa lei Falloux: uma grande vitória
para a Igreja, que irá conquistando gradualmente para o catolicismo os filhos da burguesia.99 Será um
trabalho lento, perseverante, de decénios, que bem dificilmente teria influído na educação de Leão Dehon,
dos 12 aos 16 anos. Por isso a escolha e a formação no colégio de Hazebrouck de 1855 a 1859 foi, para
Leão, providencial.

TIAGO DEHAENE E O COLÉGIO DE HAZEBROUCK

Hazebrouck é uma pequena cidade, capital de cantão no departamento do Norte, na Flandres


francesa, importante em agricultura e indústria. Está na fronteira com a Bélgica.
O colégio municipal tinha decaído muito; contava só com 15 alunos quando foi confiado ao P.
Dehaene. Este, em muito pouco tempo, tornou-o muito próspero.100
Várias circunstâncias favoreceram o êxito de Tiago Dehaene: o seu carácter expansivo que irradiava
simpatia; a sua facilidade de palavra que o dava a conhecer aos párocos e à população de Flandres; a
profunda religiosidade dos flamengos, que preferiam como educadores os sacerdotes; a generosidade de
Dehaene em reduzir a mensalidade, quando se tratava de alunos pobres ou inclinados para o sacerdócio.
O colégio municipal de Hazebrouck era, além disso, quase o único da zona. Tinha a vantagem de
unir a organização estatal à direcção eclesiástica.
Devemos acrescentar que Dehaene saber fazer uma óptima propaganda do seu colégio.

98
A. Dansette, Histoire religieuse, 248.
99
Cf. A. Dansette, Histoire religieuse, 195-287: A. Latreille – R. Remond, Histoire du catholicisme, 325-341.
100
Pedro, Tiago, cornélio Dehaene tinha nascido em Wormhoudt )perto de Dunquerque) em 1809. Tinha estudado no colégio de
Hazebrouck, depois no seminário menor e maior de Cambrai, onde foi ordenado sacerdote em 1834. Depois de alguns anos de
apostolado paroquial em Douai, recebeu o convite para dirigir o colégio municipal de Hazebrouck em 1837. Sob a direcção de
Tiago Dehaene no princípio do ano 1838-1839, só os alunos internos eram já 31; em 1840 eram 60 e em 1860, mais de 120. (cf.
J. Lemire, L’abbé Dehaene, 86. O P. Tiago Dehaene era cónego honorário da igreja metropolitana de Cambrai (cf. J. Lemire,
L’abbé Dehaene, pp. 576-577).

31
Muito modesto em relação à sua pessoa, tinha grande imaginação em chamar à atenção da opinião
pública sobre a sua obra, com múltiplas iniciativas, como a excursão anual pela festa de S. Tiago (o seu
onomástico) em grandes carros cobertos de toldos brancos, puxados por imponentes cavalos flamengos,
acompanhados pela imprescindível banda musical. Dehaene queria a festa de distribuição dos prémios
muito solene, com discurso de circunstância, numerosos convidados, presença completa das autoridades,
representações teatrais, coros de canto, fanfarra, etc. Esta festa ponha em movimento toda a cidade de
Hazebrouck . Não se encontrava no colégio um local capaz de conter toda a gente. Reunia-se então debaixo
de um amplo toldo colocado no meio do pátio. Depois da representação de um drama, com sumptuosos
trajes, que suscitava entusiasmo, emoções e arrancava lágrimas, o P. Dehaene proferia um caloroso
discurso que subjugava todos os presentes.101
De todas estas iniciativas aprenderá Leão Dehon para a direcção do Patronato de S. José e
especialmente do colégio S. João, de S, Quintino.
Os pedidos de admissão ao colégio de Hazebrouck eram tantas que o P. Dehaene devia recusar
bastantes por falta de espaço.
Quando entrou Leão Dehon em 1855, não sendo suficientes os dormitórios, mais de 30 alunos
tiveram de ser alojados fora do colégio.102
O P. Dehon escreve nas suas Memórias: “O colégio de Hazebrouck era verdadeiramente uma casa
abençoada por Deus”. Sem ter o nome, era também um pequeno seminário, já que Dehaene acolhia a
muitos rapazes que pagavam pouco ou nada de mensalidade com a esperança de que se tornassem
sacerdotes. Dehaene era “um homem da raça dos santos” e quase todos os professores pertenciam “àquele
clero do Norte, cheio de fé e de amor às almas”.103

VIDA AUSTERA

“A vida era austera... Uma parte do imóvel estava em mau estado. Comia-se sempre pão preto... A
regra era espartana: madrugar pela manhã, pouco fogo para aquecimento, muito trabalho e poucas férias.
Os estudos eram muito sérios”.104
Que a vida em Hazebrouck era austera deduzimo-lo do programa educativo que o Rev. Dehaene
apresentava aos pais dos alunos.
O educador, além de pedir aos alunos o exercício das virtudes morais cristãs, exige o trabalho
constante, obstinado, infatigável. Não há que permitir que se durma contentando-se com um medíocre
saber . Com o trabalho tornam-se fecundas as terras mais ingratas e, sem trabalho, a melhor terra não dá
mais do que cardos.
O educador vigia o aluno. Afasta do colégio tudo o que poderia corrompê-lo. Tem medo de tudo: de
um livro, de um almanaque, de um jornal. O educador é como o anjo do paraíso, armado com espada de
fogo para a defesa da virtude. (Uma alusão bíblica e bem escolhida para representar o fogoso director do
colégio de Hazebrouck).
O educador luta contra a vontade do aluno para discipliná-la, para aplicá-la energicamente na
prática do bem. A firmeza, especialmente hoje, é rara. “Vi pessoas de 50 anos – dizia D. Dehaene – tremer
diante de alunos de 10 anos. Consultam-se os deus desejos, os seus gostos, a sua aprovação, como se se
tratasse de homens maduros”.105 É uma abdicação fatal e culpável da autoridade que vem de Deus, embora
seja preciso paciência, mão suave e firme.
Como veremos, nos tempos de Leão Dehon, a disciplina em, Hazebrouck era rigorosa e não
faltavam os castigos. Isto não impedia que D. Dehaene fosse um verdadeiro pai para os seus alunos, os
amasse e os defendesse com todas as suas forças.

101
J. Lemire, L’abbé Dehaene, 91-99.
102
J. Lemire, L’abbé Dehaene, 84-85.
103
NHV I, 13v. A pensão anual nos tempos do P. Dehon era de 380 francos. Eram poucos os alunos que pagavam a pensão
completa. Para muitos oscilava entre 200 e 300 francos; enquanto os mais pobres não pagavam mesmo nada (cf. J. Lemire,
L’abbé Dehaene, 86). De tudo isto se recordará muito bem o P. Dehon na direcção do colégio S. João.
104
NHV I, 13v.
105
Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 117.

32
Na sua luta contra o mal e os seus sustentadores, revelava-se o seu carácter fogoso e emotivo.
Facilmente se exaltava e se deprimia.
Com a morte do seu irmão Luís (1863), também sacerdote, manifestou-se em Dehaene uma doença
de nervos que, agravando-se com os anos, o levaria à morte. Completamente esgotado, foi tomado por um
grande terror da morte. Recuperou depois de algumas semanas de absoluto descanso em Dunquerque e
viveu mais 20 anos.106

OS ESTUDOS

Leão Dehon, depois da escola materno-infantil, tinha começado os estudos no colégio de La


Capelle. Foi admitido ao colégio de Hazebrouck na quarta classe.
A Dehaene, como responsável do colégio, não agradavam as novidades. Conhecia só o programa
antigo, que indicava como finalidade essencial do segundo ensino o estudo comparativo das línguas: latim,
grego, francês. Era o programa que a universidade napoleónica (1806) tinha herdado dos jesuítas e estes,
por sua vez, dos humanistas do Renascimento.107
Os estudos clássicos ou de humanidades terminavam com o bacharelado em letras. Ordinariamente
às classes de humanidades seguia um ano de filosofia. Leão teve como professor de filosofia o P. Dehaene,
certamente durante o ano de retórica, visto que os melhores alunos de retórica estavam dispensados do ano
de filosofia.108
Aceitando o testemunho de Júlio Lemire, os estudos no colégio de Hazebrouck eram sérios e os
professores bem preparados. P. Boute era um bom helenista, P. Dehaene um consumado latinista,
apaixonado por Virgílio. Além dos clássicos pagãos, traduziam-se passagens dos santos padres (Agostinho,
Tertuliano) e trechos da Bíblia. Dehaene era “muito prudente com os autores contemporâneos. Citava-os
com sobriedade e reserva...” Costumava dizer: “Se eles impressionam o leitor, é muitas vezes pela sua
actualidade, coisa efémera e fugaz. Não se formam as gerações com coisas fugazes, mas com as estáveis,
firmes e seguras...”.109
No colégio de Hazebrouck, ocupam o lugar de honra a redacção e o discurso em latim, não só nos
exercícios escolares, mas também nas festas e nas cerimónias oficiais. Triunfa assim o florido discurso e
estilo de Cícero sobre o descarnado e conciso discurso francês. É exactamente o francês, a matéria em que
Leão é mais fraco.110
Os temas tratados são, geralmente, grandiosos e comoventes. Enaltece-se a inocência e a virtude,
defende-se o direito e a liberdade. É tudo um sincero entusiasmo, ingénuo e retórico, em favor das causas
mais nobres pelas quais morreram os mártires cristãos, lutaram os antigos heróis e os cavaleiros medievais.
P.Dehaene alimenta este entusiasmo entre os seus alunos, especialmente quando encontra almas
nobres e sensíveis. Trata-se de sentimentos fundados sobre conteúdos válidos. Dehaene preocupa-se em
formar os seus alunos para a vida mais do que para os exames. Porém é precisamente neste seu exclusivo
entusiasmo pelos temas religiosos e patrióticos do passado, descuidando quase totalmente os problemas e a
cultura contemporânea, onde encontramos a principal carência formativa do sistema escolástico de
Hazebrouck. É um ensino um pouco “decrépito” comum a toda a escola católica daqueles tempos; uma
cultura pontualmente atrasada de quase um século.
Embora Leão Dehon tenha como professor de retórica o P. Boute, outro enamorado do classicismo,
sobre tudo grego, a influência de Dehaene sobre os estudos do colégio de Hazebrouck mantém-se total,
tanto mais que dá os cursos de religião nos três primeiros anos de latim e as conferências de filosofia aos
alunos de retórica (de 1854 a 1864).

106
Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 342-344.
107
Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 120. Os estudos clássicos e de humanidades, nos tempos de Leão Dehon estavam distribuídos
por sete anos, subdivididos nas classes inferiores de humanidades: 4 anos (7ª = preparatória; 6ª = início do latim; 5ª = início do
grego; 4ª = continuação do estudo das línguas clássicas) e nas classes superiores de humanidades: 3 anos (3ª = continuação dos
estudos das línguas clássicas; 2ª = poesia, por ex. estudo de Horácio, de Virgílio; 1ª = retórica, por ex. estudo de Cícero de
Demóstenes).
108
Cf. NHV I, 14r-14v. O P. Dehaene começou as aulas de filosofia (lógica) em 1854 (Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 85).
109
Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 120-148.
110
Cf. H. Dorrestejn scj, Vita e personalità di P. Dehon: Dehon e la letteratura, 815-820.

33
Os alunos entusiasmavam-se com o seu apaixonado ensinamento. “As suas aulas passavam como
um relâmpago”. Aos alunos parece-lhes voar como passarinhos, em lugar de se arrastarem penosamente
como patos sobre um texto impresso.111
As características e as carências do P. Dehon, como orador e como escritor, têm a sua primeira
origem na formação escolar que recebeu em Hazebrouck. Com frequência, admite o P. Dehon nas suas
Memórias, a sua defeituosa formação literária agravada pelos estudos jurídico-filosófico-teológicos e o seu
escasso interesse pela literatura.112
Reconhece o prejuízo que isto lhe causou e a utilidade que seria para os seus discursos e os seus
escritos, enriquecendo com a fantasia e com o sentimento os conceitos que muitas vezes exprime de um
modo demasiado descarnado.113

O “PAI DA MINHA ALMA”

Tiago Dehaene, director e professor do colégio de Hazebrouck, é também durante quatro anos o
confessor de Leão. Por isso, nas Memórias, o chama “pai da minha alma”, e acrescenta: “Dá-me a
impressão de ter conseguido de Deus que algo da sua alma passasse para a minha... Era de uma natureza
escolhida, adente como um meridional, correcto e digno como um homem do Norte. Não era suficiente o
colégio para o seu zelo, mas evangelizava a Flandres”.114 Era a alma de toda a vida religiosa e espiritual do
colégio.
Dehaene atraía os jovens. Tratava de fazer deles bons cristãos e de orientá-los para o sacerdócio se
visse neles sinais de vocação. “É preciso, dizia, que um bom mestre dê aos seus alunos o seu tempo, as suas
forças, a sua inteligência, o seu coração; sobre tudo o seu coração, para envolver de amor e compaixão
todas as fraquezas da idade jovem à imitação do Mestre perfeito”.115
Em Tiago Dehaene, a ternura natural transforma-se em caridade sobrenatural. Por isso sonhou
durante toda a sua vida ser religioso e missionário e, na realidade, é missionário da juventude no seu
colégio. Afervora com a sua palavra os seus alunos e ouve-os em confissão. Tem para eles, especialmente
para com os mais pequenos, ternuras paternas; muitas vezes, no recreio vai ter com eles pondo-lhe os
braços ao pescoço; fala em flamengo quando algum sente saudade da sua língua materna e aperta-o contra
o seu coração se está triste. È o costume que o P. Dehon terá com os alunos do colégio S. João. Com toda a
razão afirma o P. Dehon nas suas Memórias que alguma coisa da alma de T. Dehaene tinha passado para a
sua.116
Dehaene quer que a vida de colégio se pareça o mais possível com a vida de família. Para quebrar a
monotonia do regulamento e dar um justo desafogo à exuberância dos jovens, Dehaene organiza festas
religiosas e literárias ou tardes recreativas.
Mas apesar de tudo, não faltam maus alunos no colégio de Hazebrouck, corruptos e corruptores,
apesar da severa disciplina. Os culpados de escândalos são submetidos ao juízo público de todo o corpo de
professores, são isolados e expulso. A acusação pública é defendida apaixonadamente por Dehaene.
Os castigos para quem for indisciplinado, desobediente, ou para quem falar em flamengo ou andar
com as mãos nos bolsos, são muito duros e fonte de inconvenientes morais, como mentiras, litígios,
acusações falsas, etc. O estilo do P. Dehon no colégio S. João será completamente diferente.
Nos primeiros anos, especialmente com o reflorescimento do colégio, o Rev. Dehaene teve de
enfrentar notáveis dificuldades. Devendo ausentar-se com frequência para curtas viagens, teria necessidade
de um vice director prudente e firme e de um vigilante exacto e atento como o teve mais tarde na pessoa de
P. Baron e de P. Lacroix..
Sentimos o eco destas dificuldades em algumas cartas que Dehaene escreve a uma religiosa de
clausura em que pede orações: “Quantos pecados e quantas tentações nestas pobres e pequenas almas! Que
111
Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 120-139.
112
Cf. NHV IV, 160; V, 45; VI, 14; etc.
113
Cf. NHV I, 62r-63v; VI, 142; IX, 98.
114
NHV I, 16v e 14r. Recordemos entre outras coisas que o P. Dehaene era apaixonado por viagens, que era um “ultramontano”,
“devoto do Papa”, como o será Leão Dehon. (cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 149-180.
115
Discurso na entrega de prémios de 1866 (cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 99).
116
Cf. NHV I, 16v.

34
malvado é o demónio! Que astuto! Quantas infidelidades diárias, penas desconhecidas, chagas não visíveis!
Tudo isto faz com que me lamente apesar do êxito. Por isso peço a ajuda das suas orações”.117
Dehaene tem grande confiança na eficácia educadora da oração.: “Tudo se pode esperar de um
rapaz que reza. Um rapaz que reza mal, tornar-se-á mau se não o for já”. 118 Na oração e na prática dos
sacramentos tinha formado a Leão Dehon e a ele ficou profundamente afeiçoado. Esteve em
correspondência com ele até à morte (15.7.1882), com uma ou duas cartas por ano.

PESSOAS E RECORDAÇÕES

Diversas pessoas, eclesiásticas e seculares, colaboram com Dehaene no colégio de Hazebrouck.


O pessoal, especialmente alguns professores, são bastante estáveis, assegurando assim, com a sua
experiência e cultura, uma boa tradição e uma óptima fama para o colégio.
Como é natural, o P. Dehaene tem preferência pelo pessoal eclesiástico, já que lhe assegura, para
além do ensino, a assistência aos internos. Além disso está mais seguro das suas ideias. Todavia também
está contente com os professores seculares porque reflectem melhor a sociedade em que os alunos terão de
viver.
Dehaene tinha muita confiança nos seus colaboradores. Foi acusado de ser demasiado
compreensivo e acolhedor (como também o será um dia o P. Dehon no colégio S. João), de ter “o seio de
Abraão” para colaboradores que se apresentavam preparados para tudo, enquanto não valiam nada.
Encontrou-se, por vezes, na dolorosa situação de ter que prescindir de pessoal inapto para não prejudicar os
alunos.
As relações entre Dehaene e o pessoal do colégio eram sempre muito francas e cordiais. O seu
carácter forte, alheio a compromissos e aos mesmo tempo expansivo, obrigava naturalmente os seus
colaboradores a declarar-se por ele ou contra ele e, segundo a escolha, a contrair laços com ele ou a rompê-
los. Isto favoreceu a unidade formativa do colégio de Hazebrouck.119
Ao lado de Tiago Dehaene encontramos o P. Carlos Boute, o intermediário provincial para a
entrada de Leão no colégio de Hazebrouck. “O P. Dehaene foi para mim um pai – escreve Dehon nas
Memórias -: o P. Boute foi um mestre, um bom e verdadeiro mestre em todo o sentido da palavra”.120
Para Leão foi sempre um conselheiro escutado e um amigo para toda a vida.
Carlos Boute nascera em Armentières no ano 1803. Estudara no colégio de Hazebrouck e no
seminário de Cambrai. Ordenado sacerdote, esteve como pároco em Wignehies, onde foi objecto de
calúnias. Então o arcebispo de Cambrai, Mons. Régnier, mandou-o como professor para o colégio de
Hazebrouck.
Homem de grande erudição, foi professor de retórica no colégio de Hazebrouck de 1850 a 1872,
depois administrador do Instituto S. Francisco de Assis de 1865 a 1872. Era chamado “o bispo do colégio”,
pela sua alta estatura, o seu andar majestoso e a sua digna e solene maneira de oficiar a liturgia. Era um dos
melhores colaboradores de Dehaene. Apaixonado pela cultura grega, sabia incutir nos seus alunos o gosto
pela beleza, colhida dos textos e autores clássicos. Estava convencido de que se devia entregar
completamente aos seus alunos de dia e de noite. Depois da oração da noite, lia-lhes a doutrina cristã, a
história sagrada, a História da Igreja de Llormond. Eram obras modestas, porém claras, sensatas,
recomendadas por Mons. Dupanloup para uma boa educação cristã das crianças.121
Foi grande amigo da família Dehon e, de modo especial, de Leão, com quem permaneceu em
contacto epistolar durante toda a vida.
Aprovou os seus planos de estudo, o seu desejo de se preparar para o sacerdócio em Roma;
manifestou-lhe a sua preocupação em relação às longas viagens pelo perigo de perder a vocação.
Quando Leão se tornou seminarista em Roma, pediu-lhe para não o chamar “mestre” mas “amigo”.
Carlos Boute, atingido por nevralgias dolorosas e por reumatismos, que o fizeram sofrer muito nos
três últimos anos de vida, morreu a 2 de Março de 1872. “o P. Boute foi o instrumento da Providência para
117
Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 112.
118
Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 112.
119
Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 305-311.
120
Cf. NHV I, 17r.
121
Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 329-330.

35
a minha educação cristã e para a minha vocação. Teve, juntamente com o Rev. Dehaene, uma decisiva
influência na minha adolescência”.122
Também dos outros professores conservou Leão uma óptima recordação.
O P. Lacroix era o encarregado da vigilância geral. “Bom sacerdote, excelente coração, carácter
militar, uma das colunas do colégio pela admirável disciplina que fazia reinar”.123 Tinha para com Leão
muitas pequenas atenções e um grande carinho que, porém, não ousava manifestar. Leão sabia-o pelo P.
Boute.
Lacroix foi o colaborador mais popular de Dehaene. Chegou ao colégio de Hazebrouck em 1850.
Antes dele, a vigilância e, por conseguinte, a disciplina deixavam muito a desejar. Com Lacroix chegou a
ser de uma regularidade militar. Era um vigilante nato, mas também um homem de coração e muito
sensível. Tinha uma particular veneração por P. Dehaene, amava os alunos e vivia para eles. Foi professor
da sexta classe durante vários anos. Celebrava o seu triunfo na escola durante a explicação das fábulas de
Fedro, feita mais com a mímica do que com as palavras, que eram um pouco forçadas. Como vigilante
estava com o alunos noite e dia: no recreio, no passeio, no refeitório, no dormitório, na capela (onde
celebrava a missa com eles), no estudo. Com eles partia para férias e voltava com eles. Mantinha a fé no
seu princípio: os soldados nunca devem esperar pelo seu capitão.. Assim prevenia qualquer desordem
segundo o sábio conselho: “melhor prevenir do que remediar”. Durante o ano escolar não aceitava nenhum
convite para refeições. Tudo ficava adiado para as férias.
Dehaene fez todo o possível para lhe conseguir do Governo uma cruz de mérito, porém não a
obteve. A Providência deu-lhe uma cruz muito melhor: a de Cristo. Era de uma extrema pobreza. Quando
Dehaene, em 1865, foi exonerado do seu cargo de director do colégio de Hazebrouck, o P. Lacroix seguiu-
o imediatamente. Colocou numa pasta preta o pouco que tinha e foi-se embora com o breviário debaixo do
braço: “Je suis mon principale” (Sigo o meu patrão). Os alunos recordarão o axioma filosófico:
“Accessorium sequitur principale” (o acessório acompanha o principal).124
O sr. Vallée, professor da quarta, era um pai de família. Leão não descobria nele nenhum defeito,
enquanto ficava edificado pela sua digna conduta. Foi o primeiro professor de Leão em Hazebrouck.
Assim o descrevia J. Lemire, que o conheceu pessoalmente: os alunos olham para ele de longe, com
temeroso respeito. Tinha a barba preta e esgrimia a tarefa da semana suspensa sobre as suas cabeças como
uma espada de Damocles. Era visto só no exercício das suas funções escolares e mesmo então não se podia
olhá-lo de frente. Por muito interessantes que fossem as suas explicações, havia que escutá-las de cabeça
baixa e de olhos fitos no livro.
À parte este singular comportamento e este seu “terrorismo inimitável e não imitado, o sr. Vallée
era um professor excelente. Considerava a quarta classe como muito importante porque introduzia nas
classes superiores de humanidades. No aluno, dava-se a passagem da infância para a adolescência, uma
idade difícil e perigosa.
Apesar do seu aparente rigor, ensinava com amor e dava testemunho de uma fé profunda. Todos os
dias detinha-se na capela antes de entrar na aula e, segundo os tempos litúrgicos, comentava aos alunos as
orações da igreja. Sendo um leigo, a sua palavra possuía uma particular eficácia.125
O P. Evrard, professor de Leão na terceira, era um sacerdote jovem, muito inteligente e muito
interessante nas aulas. Também nele encontrou Leão simpatia e edificação.
Evrard chegou a ser decano de Notre Dame de Roubaix. Amava o P. Dehaene como a um pai. Para
lhe agradar atrasou o início do seu ministério paroquial, para que se sentia chamado, inclusive pelos seus
dotes oratórios.126
Havia, finalmente, o P. Dekeister, vice-reitor. Era o homem bom por excelência. Não tinha
autoridade, mas tinha toda a sorte de atenções com os alunos. Mimava-os um pouco e procurava dissipar-
lhes os pequenos dissabores da vida do colégio.
Era muito sensível aos cumprimentos. Bastava que os alunos, conhecedores do seu lado fraco, se
lhe dirigissem com todo o respeito, chamando-o “senhor director”, para conseguirem todas as licenças.
122
NHV I, 23v.
123
NHV I, 23v.
124
Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 330-334.
125
NHV I, 23v; Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 317, 318.
126
NHV I, 23v; Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 327, nota 2.

36
Esquecia que a desconfiança é a mãe da prudência. Pela sua condescendência facilmente se encontrava em
contraste com o inexorável Lacroix, contrário à licença fácil e a qualquer excepção.127
Em relação aos condiscípulos, no primeiro ano, na quarta classe, (1855-1856), Leão teve bons
companheiros, simples e piedosos. Estabeleceu amizade com um tal Filémon Vasseur, um bom rapaz,
piedoso e cheio de bons conselhos.
Diferente foi, ao contrário, o segundo ano do colégio, na terceira classe (1856-1857). Leão tinha
cumprido 13 anos e estava na idade crítica. “A luta foi terrível. Era tentado de orgulho, vaidade e sobre
tudo de sensualidade. Às vezes caía na gula. Tornei-me, por vezes, insuportável... Dei ouvidos a maus
companheiros, e também o fui para muitos outros. Deixei-me levar por amizades particulares, pela moleza
do coração. Todavia permaneci fiel às minhas práticas de piedade. Era a luta. Suportava-a às vezes com
coragem. Dormia sobre uma tábua, impunha mortificações ao meu paladar, açoitava-me até ao sangue. Às
vezes era ignominiosamente débil. Para me ajudar fazia com frequência voto de castidade por algumas
semanas.
Esta luta prolongou-se durante a segunda classe (1857-1858) com alguma pausa. Tive um grande
capricho no início da segunda. Queria saltar a classe. Era pura vaidade. Fiz sofrer bastante o P. Boute.
Finalmente o capricho passou”.128

A PRIMEIRA GRANDE EXPERIÊNCIA DE DEUS

O que chama a atenção na descrição desta crise de adolescência é a fidelidade de Leão à oração e
mais ainda a generosidade extraordinária num adolescente, na mortificação. Tudo isto supõe uma boa
formação e uma boa direcção espiritual, coisas que não havia no colégio de La Capelle, mas que estavam
presentes e eficientes no de Hazebrouck.
“Senti-me apanhado pela graça desde os primeiros exercícios espirituais (de três dias)... Causaram-
me uma impressão verdadeiramente extraordinária... Desde a primeira noite senti-me profundamente
emocionado. Corri ter com o pregador (era um jesuíta) que me acolheu amigavelmente e deixou a
confissão para o dia seguinte. Nestes exercícios recebi graças espirituais pouco comuns e todo o primeiro
ano (1855-1856) decorreu sem sombras. Nosso Senhor fez-me apreciar o espírito de oração, de pureza, a
união com Ele...; a sua graça impulsionava-me e sustentava-me.
Comungava a princípio de 15 em 15 dias, depois de oito em oito e finalmente duas vezes por
semana”.129
Leão encontrou também uma grande ajuda na congregação mariana, da que se tornou membro,
depois secretário e finalmente presidente. “O Rev. Dehaene presidia geralmente às reuniões, formava à
piedade e ao zelo, encorajava à comunhão frequente”.130
Inscreveu-se também nas conferências de S. Vicente de Paulo. Durante muito tempo foi o
tesoureiro. As associações serviram de grande ajuda para a piedade e a perseverança de Leão.131
Também os exercícios espirituais do segundo ano do colégio (1856-1967) o impressionaram
vivamente. Pregou-os um Padre capuchinho. O P. Dehon comenta nas suas Memórias, recordando também
o pregador jesuíta do primeiro ano (1855-1856): “S. Inácio e S. Francisco forma os meus mestres desde o
princípio. Reconheço em tudo isto os desígnios de Nosso Senhor que me ia preparando pouco a pouco a
minha missão”.132
O momento culminante da experiência de fé de Leão teve lugar na missa da meia noite do Natal de
1856. Tem treze anos. Também Teresa de Lisieux afirmava ter-se convertido totalmente a Deus aos 14

127
Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 334-335.
128
NHV I, 26v.
129
NHV I, 24r-24v.
130
NHV I, 25r.
131
O Rev. Dehaene favoreceu também muito no colégio as obras da Propagação da Fé e da Santa Infância. As conferências de
S, Vicente de Paulo eram particularmente queridas já que educavam os alunos das classes altas para a caridade. Comprometiam-
se a dar todas as semanas 15 cêntimos. Todas as segundas-feiras o tesoureiro passava a recolhê-los. Visitavam os pobres durante
os recreios do meio dia, acompanhados pelos professores ou pelo próprio Dehaene. (Cf. J. Lemire, L’abbé Dehaene, 112-115).
De tudo isto se recordará Leão Dehon tanto no Patronato S. José de S. Quintino, como no colégio de S. João.
132
NHV I, 25v.

37
anos na noite de Natal de 1886. Nosso Senhor operou nela, num instante, o que ela não tinha conseguido
em vários anos. Assim Nosso Senhor atraiu a si a Leão Dehon e lhe pediu que se entregasse totalmente a
Ele.
A acção da graça foi muito intensa. Leão pensou sempre que a sua conversão total ao amor de Deus
e a sua chamada ao sacerdócio vinham daquele momento. A fortaleza que demonstrou em seguida na
fidelidade à sua vocação, superando todas as dificuldades, não vem certamente do seu temperamento, mais
permissivo, mas é um dom do Espírito.
Uma excursão-peregrinação à Trapa de Mont-des.Cats revelou a Leão pela primeira vez a grandeza
misteriosa da vida monástica. Ficou impressionado.
“A graça operava no meu coração, enquanto a idade crítica me preparava tantas lutas”. 133 A
profunda vida espiritual do colégio de Hazebrouck tinha-o preparado para a luta e também para a vitória.
A experiência de Leão no colégio de Hazebouck foi determinante para o resto da sua vida.134
Podem-se comprar com ela outras duas experiências de igual importância: a do ambiente familiar,
iluminado pelo exemplo de virtude de sua mãe e a experiência do seminário Santa Clara em Roma,
animado pelo exemplo e a formação espiritual do P. Freyd.
Leão Dehon, nas Memórias, louva a Providência porque, na sua vida, preparou o terreno e
multiplicou os meios para cultivar o gérmen da sua vocação sacerdotal: “O colégio, o confessor, os
exercícios espirituais, os condiscípulos, os costumes da região, a simplicidade de vida, a entrega ao estudo:
Quid retribuam Domino?”.135
Em Junho de 1857 recebeu o sacramento da confirmação no colégio de Poperinge (Bélgica) das
mãos do bispo de Bruges, Mons. Malou. Não foi porém um dia límpido, como o da primeira comunhão.
O P. Dehon, nas Memórias, manifesta um amargo lamento e pede perdão ao Senhor pela sua
medíocre preparação por causa da crise de adolescência, das lutas e dos pecados.
Acima de tudo, mesmo das infidelidades, vencia o amor de Deus: “Desejava entregar-me sem
reserva, até desejar o martírio”.136
O pensamento dirige-se espontaneamente para a jovem Teresa de Ávila, para o jovem capitão
espanhol Inácio de Loyola, que se entusiasmavam ao ler as vidas de santos e aspiravam a ser mártires por
Cristo. Leão Dehon, como Teresa e como Inácio, bebia com abundância das inesgotáveis riquezas do
Coração de Cristo, dos sacramentos, especialmente da confissão e comunhão frequentes, da oração, da
prática das virtudes, da penitência, da direcção espiritual..

FÉRIAS E DESPEDIDA DE HAZEBROUCK

As férias de verão de Leão eram muito diversificadas. “Gostava da ,minha velha igreja de La
Capelle. Visitava-a com gosto. A minha mãe fazia-me um grande bem, encorajava-me à oração.
Conversávamos juntos sobre piedade. Os companheiros da terra prejudicavam-me. Faziam-me perder, em
parte, o que tinha ganho durante o ano”.137
Nas férias do primeiro ano (1855) fez uma interessante viagem com o novo pároco de La Capelle, o
P. João Demiselle, que sucedeu ao venerando Próspero Hécart, decano de La Capelle de 1830 a 1855.
Demiselle ficará em La Capelle de 1855 a 1863. Nomeado cónego de Soissons, será sempre um
grande amigo de Leão Dehon. Ajudá-lo-á até economicamente para as suas obras sociais de S. Quintino. À
sua morte (7.2.1888), o P. Dehon escreve no Diário: “Foi um dos meus confessores, directores e
amigos”.138
Nas férias de verão de 1856, Leão e Demiselle vão a Mosa em Mézières. Visitam as cidades de
Colónia e de Liège. Leão manifesta uma verdadeira paixão pelas viagens. “Tudo era novo para mim...

133
NHV I, 26r.
134
(Cf. Note e studi, n. 4, p. 537ss.)
135
NHV I, 28r.
136
NHV I,, 29r.
137
NHV I, 29v.
138
NHV I, 21r.

38
Passava de maravilha em maravilha, observava e anotava (no diário de viagem). Preanunciava-se assim a
minha vida de viajante”.139
No ano seguinte (1857), vai com a família em peregrinação a Nossa Senhora de Lièsse. É o
santuário mariano mais célebre do Aisne e sempre foi muito caro ao P. Dehon.
Lièsse é uma palavra antiga que quer dizer alegria. Em 1115 os cónegos de Laon levantaram uma
capela em honra de Maria.
Segundo a lenda, três cruzados prisioneiros, libertados prodigiosamente pela Virgem, tinham
chegado, acompanhados pela convertida filha do sultão, ao seu castelo de Laon, trazendo com eles a
imagem da Virgem negra, que se venera no santuário.
O único elemento histórico é que no princípio do século XIII, um certo Gervásio, senhor de
Marchais, foi cognominado Sarraceno por ser filho de Roberto de Eppes e de uma sarracena, sua esposa.
A capela da Virgem negra chegou a ser meta de frequentes peregrinações. Em 1384 reconstruiu-se
um santuário visitado até por reis e rainhas.
Durante a evolução de 1789 a imagem foi queimada. O culto continuou no oitocentos e a nova
imagem de ébano foi coroada em 1847 por decreto de Pio IX.
No verão de 1857, Leão visitou também com a família o castelo de Marchais.
Durante as férias de 1858, Leão foi com seu pai ao castelo e parque de Chimay, na Bélgica. Porém
o que mais o impressionou foi a Trapa. “Tudo me pareceu grande e maravilhoso... Aquela visitou causou a
mim e a meu pai uma impressão profunda. Nosso Senhor servia-se de todas as circunstâncias para me
ajudar”.140
No verão de 1859, e precisamente a 17 de Agosto, como resulta de documento original, Leão
enfrentou com sucesso o exame de bacharelado em letras na faculdade de Douai. Era o exame de
maturidade em clássicas, com o que terminava os seus estudos humanísticos.
Tinha 16 anos. Nas suas Memórias recorda a pena de ter de deixar o colégio de Hazebrouck e, ao
mesmo tempo, a alegria por tantas graças recebidas. “Estava para deixar aquela terra de fé. Levava comigo
os mais preciosos tesouros: o gosto e o hábito da piedade, o zelo pelas obras de caridade, uma fé bastante
esclarecida, amizades fiéis, recordações muito agradáveis e uma consciência clara da minha vocação. No
mês de Julho de 1859 inscrevi-me na confraria do Sagrado Coração. Nosso Senhor tinha conquistado para
sempre o meu coração”.141
A experiência do colégio de Hazebrouck, como vimos, assinala uma volta decisiva na vida de Leão
Dehon.
Depois da infeliz experiência do internato de La Capelle, onde mais que as virtudes tinham
triunfado as pequenas paixões de Leão, teria sido fácil agravar a situação se tivesse ido para um dos
inumeráveis colégios ou institutos em que imperava a irreligiosidade, a corrupção ou, pelo menos, a
indiferença religiosa.

139
NHV I, 29r.
140
NHV I, 30r-30v.
141
NHV I, 30v.

39
CAPÍTULO 3

Universitário em Paris

As ambições de um pai – O instituto Barbet – O Círculo católico – Primeiras experiências de apostolado - Doutor em Direito – Relações sociais –
Um grande amigo: Leão Palustre – As primeiras longas viagens - Entre monges e cavaleiros – A viagem ao Centro e Norte da Europa – “Os meus gostos
estavam noutro lugar”.

AS AMBIÇÕES DE UM PAI

“O meu pai estava feliz, contente pelo meu êxito; porém logo cairá em grande tristeza que não o
abandonará mais até à morte”. Leão era inamovível em querer seguir a sua vocação ao sacerdócio. “O meu
pai não era ambicioso para si; era-o para mim. Queria que eu alcançasse uma grande posição social.
Durante um ano acarinhou o sonho do politécnico; depois o da magistratura e diplomacia, e finalmente o
das dignidades eclesiásticas”.142
Para compreender esta última ambição de Júlio Dehon tenhamos em conta que, como sacerdote
secular em S. Quintino, Leão Dehon chegou logo a ser famosos pelas suas obras e iniciativas sociais. Com
apenas 33 anos, já era cónego honorário e falava-se em torná-lo vigário geral da diocese de Soissons na
primeira ocasião. Estava, portanto, a um passo do Episcopado.
E eis que tudo se esfuma com a decisão de Leão de abraçar a vida religiosa, dando um definitivo
adeus às dignidades eclesiásticas. Para Júlio Dehon, que já tinha voltado à prática da vida cristã, a decisão
de Leão é uma última e dolorosa desilusão. Acabaram os seus sonhos paternos.
A alegria pelo triunfo do seu filho nos exames de bacharelato durará pouco. Leão estava decidido a
seguir o caminho do sacerdócio.
Não tardou em falar disso com os seus pais. De facto, “depois de alguns dias de férias – escreve o P.
Dehon nas suas Memórias – revelei a minha vocação a meu pai e a minha mãe. Apesar de que talvez já o
suspeitassem, a notícia caí-lhes como um raio. Meu pai prevê todo o futuro. Desde então travou-se nele
uma luta entre a esperança e o medo. Queria pensar que eu mudaria de opinião e não se atrevia a esperá-lo.
Consequentemente afastou o meu projecto para longe. Eu pedia-lhe que me deixasse ir para S. Sulpício.
Respondeu que não mo permitiria nunca.
Desde esta primeira conversa fi-lo claramente entender que pensava que a minha vocação era
verdadeira e que a seguiria, mesmo que tivesse de esperar que a maioridade me tornasse livre”.143

O INSTITUTO BARBET

Em Outubro de 1859, Leão Dehon começa, em Pais, os seus cinco anos de estudos universitários.
Tivera muito medo da vida na capital da França; porém foi um tempo de maturação e
enriquecimento, tanto a nível intelectual como espiritual. Foi um tempo de graça: “Aí recebi muitas graças.
Consegui um grande desenvolvimento intelectual. Aprendi a conhecer o mundo sem me conspurcar”.144
O primeiro impacto com a vida estudantil parisiense no instituto Barbet foi amargo e delusório. No
plano moral era o oposto ao do colégio de Hazebrouck.
O Sr. Barbet, ajudado por dois filhos, é um bom dono de pensão, correcto, sério, não desprovido de
virtudes naturais. O instituto Barbet dá acolhimento a 300 alunos que preparam os seus exames de
admissão às escolas do Estado. Leão terá que frequentar o Politécnico, para o que necessita do bacharelado
em ciências.
142
NHV I, 31v.
143
NHV I, 31r.
144
NHV I, 31v.

40
O seu curso conta com 80 alunos. Os professores são excelentes. Sob o ponto de vista material
como intelectual, não há nenhuma queixa a fazer. Todavia Leão fica aí como interno apenas dois meses.
“Sofria muito. A atmosfera moral era muito diferente da de Hazebrouck. Os estudantes pareciam não ter fé.
As blasfémias de alguns eram nauseabundas. Muitos eram clara e grosseiramente imorais. Rezava-se, mas
que oração! Tínhamos missa aos domingos de manhã. A capela estava no sótão e servia de aulas de
desenho durante a semana. O altar fechava-se atrás de um biombo. Procurava ler o meu missal, mas
deitavam os bonés sobre o livro e sussurravam-me chistes aos ouvidos”.145
A desespero de Leão é tão grande que escreve a seu pai cartas muito enérgicas e consegue
frequentar o instituto Barbet só como externo. A 1 de Dezembro de 1859 vai viver com seu irmão
Henrique, que começou os estudos de Direito. Frequenta o instituto Barbet até Junho de 1860 e depois,
sentindo-se fraco em algumas matérias, especialmente em física, segue algumas aulas no Instituto
Momenheim. A 12 de Julho de 1860, Leão é bacharel em ciências.

O CÍRCULO CATÓLICO

Vivendo com seu irmão, Leão tinha retomado todos os bons costumes do colégio de Hazebrouck.
Participava todos os dias na missa, confessava-se todas as semanas com D. Prével, capelão de S. Sulpício.
Foi o seu segundo director espiritual: “Compreendeu-me e ganhou a minha confiança... Falei-lhe da
minha vocação. Falou-me muito de Roma...”.146
Todos os domingos encontrava Leão na porta da igreja de S. Sulpício a “Semaine religieuse” que o
informava das funções religiosas e dos principais acontecimentos religiosos de Paris. Assim pôde ouvir em
Notre-Dame as conferências quaresmais do Jesuíta P. Félix sobre o cristianismo, motor do progresso
moderno. “Sentia uma grande alegria e uma verdadeira graça. Aquele grande auditório de homens atentos e
visivelmente comovidos impressionava-me como também aquela exposição ampla, elevada, não carente de
beleza literária. A minha fé fortalecia-se. Sentia-me feliz por pertencer o grande povo cristão”.147
Prével leva Leão a frequentar as diversas obras católicas de Paris. A 26 de Dezembro de 1859 é
admitido no Círculo católico.
Este Círculo nasceu em 1825 da fusão de duas organizações estudantis católicas. Em 1852 as
iniciativas culturais do Círculo católico completaram-se com conferências sobre direito, medicina, letras e
história, sob a direcção de Noirot que, com Mons. Ségur, assegurava o serviço religioso. Para os serviços
litúrgicos, os membros do Círculo reuniam-se na capela da torre de S. Sulpício.
Leão Dehon reconhece que o Círculo católico lhe fez um grande bem.148Aí conheceu jovens da
burguesia e da aristocracia, com alguns dos quais travou relações de amizade duradoura. Passava alegres
aprazíveis tardes jogando ao “whist”, um jogo de cartas de origem inglesa, tomando o chá e ouvindo boa
música.
No Círculo encontrava jornais e revistas e ouvia conferências sobre os mais variados temas. Leão
começou a interessar-se pelos mais diversos movimentos culturais, políticos, literários, religiosos e
artísticos. “A palpitante questão do liberalismo católico converteu-se para mim um problema de que só
mais tarde em Roma encontraria a solução definitiva. Tendia à verdade total, em direcção ao
reconhecimento completo dos direitos de Deus”.149

PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS DE APOSTOLADO

Apresentado ainda por D. Prével, Leão inscreveu-se nas conferências de S. Vicente de Paulo na
Paróquia de S. Nicolau de Chardonnet, que se ocupava dos pobres no sórdido bairro de Mouffetard.

145
NHV I, 32r-32v.
146
NHV I, 34v.
147
NHV I, 33v-34r.
148
NHV I, 35v.
149
NHV I, 41v.

41
As conferências de S. Vicente de Paulo tinham começado em Maio de 1833 por iniciativa de
Frederico Ozanam e de Manuel Bailly com estudantes parisienses. Tinham-se proposto o fim da
santificação pessoal mediante a prática da caridade, especialmente com a ajuda às famílias necessitadas.
Em muito pouco tempo difundiram-se fora de França: Quando Leão Dehon se encontrava em Paris, as
conferências eram 1.300 com cerca de 30.000 membros.
A Leão foram confiados dois anciãos com os quais estabeleceu óptimas relações. Desprovidos de
tudo, habitavam num sótão, um pardieiro, onde Leão, de elevada estatura, não podia estar direito.
“Consegui despertar neles sentimentos cristãos e chegaram a me edificar. O ódio social imperava no bairro.
Uma operária cobriu-me de muitas injúrias e ameaças, só porque lhe parecia que eu pertencia a uma classe
social mais elevada que a sua”.150
Prével tinha começado em S. Sulpício a obra da doutrina cristã, imitando “a companhia da doutrina
cristã, fundada em Roma, após o Concílio de Trento por um leigo milanês, Marcos de Sadis Cusano.
Propunha-se ensinar o catecismo às crianças nas paróquias, nas escolas e até nas ruas. Paulo V, em 1607
tinha-a elevado a confraria na basílica de S. Pedro. Sob Pio X, em 1905, organizou-se uma confraria da
doutrina cristã em cada paróquia, comprometendo os leigos no ensino do catecismo.
Assim tinha feiro D. Prével na paróquia de S. Sulpício. Reunia duas vezes por mês todos os pobres
do bairro numa capela debaixo das torres. Sempre havia de 200 a 300. Alguns estudantes jovens, sob a
direcção de Prével, explicavam o catecismo e contavam a história sagrada. As reuniões terminavam com
uma lotaria.
Leão Dehon tornou-se um dos catequistas. “Ali fiz as minhas primeiras tentativas de falar em
público. Era maior a boa vontade que o talento. A iniciativa teve logo um segundo centro na igreja de
Notre-Dame-des-Champs”.151
Infelizmente, após três anos, Leão teve a tristeza de perder o seu excelente padre espiritual. O
arcebispo de Paris, o cardeal Morlot, encarregara-o da fundação e do serviço de uma capela subsidiária nos
arrabaldes de Paris. A sua saúde não era tão forte como o seu zelo. Morreu poucos meses depois de ter
assumido esse encargo. Felizmente Leão encontrou um novo director espiritual no sulpiciano La
Foulhouze, um piedoso sacerdote dedicado à pastoral juvenil, edificante pelo seu espírito de pobreza.

DOUTOR EM DIREITO

Leão tinha-se preparado no Politécnico, porém, provavelmente, as ciências não eram o seu forte e
naõ sentia atracção para se tornar matemático, nem cientista, nem engenheiro, nem arquitecto. Foi assim
que já no primeiro ano (1859-1860), enquanto preparava o bacharelato em ciências, tinha-se inscrito na
faculdade de direito, sem frequentar os cursos.
No segundo ano (1860-1861) empenhou-se inteiramente nos estudos jurídicos. Devia estudar a
matéria dos dois primeiros anos em seis meses, também para poder ter a possibilidade de alguma grande
viagem durante o verão. “A vida de estudante deixou em mim uma lembrança genuína e gozosa. Ia do meu
quarto à escola, passando por S. Sulpício... Nada me afastava da piedade nem do estudo. O que via
alargava-me a alma e elevava-a para Deus”.152
Durante o inverno, passava as horas a estudar junto da lareira: nos dias de sol gostava de ir estudar e
rezar no parque de Luxemburgo: Nos intervalos das aulas frequentava também a biblioteca de Santa
Genoveva, com mais de 40.000 volumes de teologia, fruto de latrocínios em vários conventos. Apraz-lhe
também passar um pouco de tempo no Panteão, o bonito templo construído por Soufflot, onde se misturam
o sagrado e o profano, e Voltaire faz companhia a Fénelon. Aí estão as relíquias de santa Genoveva e os
grandes afrescos de Puvis de Chavannes, que representam as grandes gestas da França cristã e que
despertavam em Leão tantas emoções.

150
NHV I, 36v.
151
NHV I, 34v-35r.
152
NHV I, 37r.

42
A escola de Direito deixa em Leão boas impressões e boas recordações. É uma escola séria e,
“julgando pelas aparências, deve haver ainda um bom número de filhos de Deus entre aqueles jovens, que
estão para se tornar os magistrados, os advogados, os homens de lei da nossa França”.153
Os professores eram dignos de respeito e de estima. “Dominava entre eles a conotação religiosa.
Alguns deles eram bons paroquianos”. Todavia Leão não criou laços de amizade com nenhum deles.
“Sentia muito que o estudo do direito era para mim só um passo. As minhas aspirações eram outras”.154
Leão Dehon apresenta-se ao seu primeiro exame em Dezembro de 1860; ao segundo exame de
direito romano em Março de 1861 e, em Julho de 1862, supera facilmente o terceiro exame. Já é bacharel
em Direito. “Agora compreendo porquê a Providência me fez passar pelo estudo do direito. Para onde teria
ido aos 16 anos? Era muito cedo para estudar em Roma. Além disso não teria aproveitado muito a minha
estada ali, sendo tão jovem e não teria participado no grande acontecimento do concílio Vaticano I. Nosso
Senhor queria-me primeiro em Paris, onde se encarregava de velar pela minha alma. Além disso esse
período de cinco anos devia ser-me extremamente precioso para os estudos, para as relações, o
conhecimento do mundo e as viagens”. 155
Ao terminar o terceiro ano de Direito, defende com êxito a tese de licenciatura;. Tema: “A tutela”.
“Misturei alguma flor retórica, copiei muito como todos faziam... Tinha só 19 anos. Fui muito louvado e
cumprimentado... com algum rombo para a humildade”.156
Durante o quarto ano (1862-1863), Leão inscreve-se na ordem dos advogados e trabalha algumas
horas por dia no gabinete do procurador Maza. Presta o juramento de advogado a 22 de Novembro de 1862
numa solene cerimónia que o impressiona muito. Deve agora ir periodicamente ao Palácio da Justiça, vestir
a toga e assinar a sua presença.
Raramente assiste à conferência regulamentar dos advogados jovens. Nunca toma a palavra por
falta de iniciativa e de coragem e “por isso não mereço certamente louvor”. 157 Exercita-se, pelo contrário,
na eloquência forense na “Conferência Rossi”, fundada por estudantes, onde se exercitam com bastante
seriedade nos papéis de advogado e de juiz.
O direito agrada a Leão Dehon. Só ao fim do quinto ano experimenta uma certa sensação de
cansaço. Agora já se sente próximo da realização da sua verdadeira vocação, o sacerdócio.
Ofereceram-lhe várias causas, porém recusou-as todas. Por outro lado, a preparação do
doutoramento em Direito absorvia todo o seu tempo. “Os meus gostos eram outros. Acabava o Direito para
agradar a meu pai e conseguir a sua autorização para ir para Roma”.158
Com tais disposições Leão começa o seu quinto ano de universidade(1863-1864). “Não tinha já
nenhum atractivo pelo direito. Tinha pressa de acabar. O ano escolar devia ser, de resto, muito curto para
mim. Começou a 15 de Novembro (1863) para acabar com a defesa da minha tese de láurea a 2 de Abril
(1864)”.159
Assistia só a algumas aulas. A preparação da tese de doutoramento sobre a “caução” absorvia-o
completamente. O importante é “acabar depressa”.160
No mês de Março (1864), Leão enfrenta a discussão da sua tese de doutoramento; porém tendo
“combatido” as opiniões de um jurista, Duranton, cujo filho é um dos examinadores, é chumbado. A
família Dehon nem soube de nada e nem sequer Leão se preocupou demasiado. Foi o único chumbo ao
longo dos seus estudos. Defendeu a tese de doutoramento um mês mais tarde, a 2 de abril de 1864 e foi
aprovado. Já era doutor em Direito. Acabava de fazer, pouco antes, os 21 anos. “Era uma etapa importante
na minha vida. Tinha prometido a meu pai chegar até aqui. Agora podia esperar que me permitiria seguir a
minha vocação”.161

153
NHV I, 39v.
154
NHV I, 39r-39v.
155
NHV I, 40r.
156
NHV I, 92v.
157
NHV II, 20r.
158
NHV II, 20r.
159
NHV II, 62r.
160
NHV II, 62r.
161
NHV II, 66r.

43
RELAÇÕES SOCIAIS

Já falámos das relações de Leão Dehon com as organizações católicas de Paris e das inerentes aos
estudos.
Leão pensou completar a sua instrução recebendo lições de piano e de desenho. “Nunca fui artista.
Dedicava bastante tempo, porém sem grande proveito”.162
Estabelece-se uma relação especial entre >Leão e os eu irmão Henrique, companheiro de estudos e
de pensão. “Tenho de fazer justiça ao meu irmão. Sempre me animou, edificou e protegeu. Estou-lhe muito
agradecido. Tanto em Paris como em Hazebrouck foi para mim um mentor ou melhor uma espécie de S.
Rafael arcanjo. Menos atraído que eu para a piedade e obras de caridade, não tendo a mesma vocação,
gostava de me ver piedoso e dava-me úteis conselhos para o trabalho e a educação. Condescendia às vezes
com os seus gostos, porém sem perigo para a minha alma. Fizemos alguns passeios aos “Champs-Elysées”,
fomos às corridas de cavalos e assistimos a alguma escolhida representação teatral. Víamos pouca gente se
exceptuarmos o nosso tio que vivia antes no “Quai-des-Orfévres” e depois em “Montmartre”. O nosso tio
era profundamente religioso. Sempre foi praticante e dele recebemos bons conselhos”.163
Durante o terceiro ano de direito (1861-1862), Quis Leão pedir conselho sobre os seus futuros
estudos sagrados aos eclesiásticos de maior prestígio entre os jovens. Dirigiu-se a Mons. Dupanloup e ao P.
Gratry. Falou-lhes da sua intenção de estudar Teologia em Roma. Manifestaram-lhe as suas reservas para
com as universidades romanas e aconselharam-lhe S. Sulpício. Era também o conselho que lhe dava o seu
director espiritual, o sulpiciano Foulhouze. “Apesar de tudo decidi-me por Roma... A água seria mais pura
na fonte do que ao longo da ribeira”.164
A este período da vida de Leão Dehon (1861-1862)se liga o núcleo de um projecto de apostolado de
estudos superiores para o clero, que o empenharia durante mais de dez anos: “Compreendi a necessidade de
que o clero cultivasse estudos superiores. O clero francês perdeu a direcção intelectual do país; deve
reconquistá-la”.165
Leão foi obcecado por este projecto até à fundação das universidades católicas (1875). P. Gratry
animava-o no seu projecto.
“Em Roma uni este projecto ao meu desejo de me consagrar à vida religiosa”. 166 Pensou na
fundação de um instituto religioso para o apostolado cultural. Dele falou longamente com o P. D’Alzon,
com Mons. Mermillod, com Luís Veuillot... “Nosso Senhor não queria de mim esta obra...”167
Depois da fundação das universidades católicas, o projecto de Leão Dehon deixou de ser actual.
“Nosso Senhor deveria inclinar-me para outra obra, a da reparação ao Sagrado Coração”.168

UM GRANDE AMIGO: LEÃO PALUSTRE

Durante o terceiro ano de direito, Leão conhece um sacerdote de Chartres, D. Poissons. Pertence a
uma família de grandes matemáticos e é rico. Tendo relações tensas com o seu bispo Mons. Regnault,
estabeleceu-se em Paris. Gloria-se de literato, enquanto em Teologia é arcigalicano e liberal. Frequenta
habitualmente o Círculo católico e gosta muito dos jovens, particularmente de Leão Dehon. Com eles
organiza vigílias e joga a whist. Leão Dehon conta-se sempre entre os primeiros convidados.
Por meio de D. Poisson conhece LeãoPlustre, que terá sobre Leão Dehon uma notável influência
durante vários anos, favorecendo o seu gosto pelas viagens e pelas belas artes.
O encontro teve lugar durante a segunda viagem de Leão Dehon a Inglaterra (Abril-Julho de 1862),
da que já falaremos. Visitando Westminster com D. Posson encontraram-se com Leão Palustre. Este
manifestou-lhes o desejo de viajar por toda a Inglaterra. Fê-lo com tanto entusiasmo que conquistou Leão
Dehon para o seu projecto. Começou assim uma bela e profunda amizade. Leão Palustre “tinha um carácter
162
NHV I, 43r.
163
NHV I, 42v-43r.
164
NHV II, 66v.
165
NHV II, 61r.
166
NHV I, 61r.
167
NHV I,61r.
168
NHV I, 61v.

44
difícil, uma vontade de ferro e uma natureza altaneira. Mas nós ligámo-nos um ao outro e sempre tivemos
uma grande e mútua simpatia”.169 “Tinha gostos e maneiras de grande senhor”.170
Descendia de uma aristocrática família de Poitou, onde tinha nascido em 1838. O seu pai pertencia
à guarda de corpo de Carlos X. Órfão de mãe tinha sido criado por uma tia, que o fez estudar nos colégios
dos jesuítas de Poitiers e Bordéus. Amante das letras e das artes e, especialmente, da arqueologia, incutiu a
paixão arqueológica também em Leão Dehon. Esteve tentado a ser domincano; porém era uma vocação
imaginária. Inclinado à piedade, tinha uma grande devoção à Virgem. Durante o quarto ano de Direito,
Leão Dehon acolheu-o como companheiro de alojamento; mas foi necessário secundar as suas exigências
estéticas. Escolheram um apartamento mais elegante, mobilado com fino gosto artístico.
Levantavam-se às 5 da manhã e começavam o seu dia com meia hora de leitura da Bíblia, com
ocomentário de D. Calmet.
Leão Dehon que até então “não tinha lido quase nada de literatura e de filosofia”171, empurrado pelo
amigo, tomou gostou pelos clássicos e contemporâneos.
Palustre foi o seu douto guia não só na Inglaterra, mas também na Escócia e na Irlanda e na
descoberta de Paris antigo, medieval, renascentista e moderno. Foram companheiros de viagem na visita ao
centro-norte da Europa e na grande viagem a Oriente.
Leão Palustre era membro da sociedade francesa de arqueologia, fundada por Caumont. Também
Leão Dehon, apresentado por Palustre, fez-se membro da mesma sociedade em Setembro de 1862.
“Conservei um acentuado gosto pela arqueologia e pelas belas artes... Devo ter pena disso? Não creio. S
artes elevam a alma, deleitam-na e elevam-na para Deus”.172
Palustre tornou-se depois presidente da Sociedade francesa de arqueologia. Escreveu várias obras
entre as quais sobressai a sua Arquitectura do Renascimento(1892).
Morrerá, com apenas 55 anos, em 1894. No seu Diário o P. Dehon escreve a 26 de Outubro de
1894: “Raramente uma morte me impressionou tanto”.173 Para Leão Dehon, Palustre era como um irmão.
Recorda o que viveram juntos, as longas viagens, a sua fama de arqueólogo: “e o que vale mais, o ter sido
um homem de fé e ter morrido cristãmente”.174
Leão Dehon faz os seus estudos universitários em Paris durante o segundo império; mas em vão se
procuraria nas suas Memórias um aceno a Napoleão III e à sua corte nos tempos da sua glória. Recorda-o
na derrota. Recorda o seu desterro: “Que lição tão grande sobre a instabilidade das coisas humanas!”.175
Leão Dehon nunca foi bonapartista. Foi legitimista e partidário do Conde de Chambord.
Mencionaremos o seu caloroso encontro com o pretendente ao tono de França, Henrique V em Frohsdorf
(Áustria) em 1863. Só para obedecer a Leão XIII se tornará um republicano convencido e partidário da
Democracia cristã.176
Sabemos porém pelas suas Memórias que, desde que era estudante universitário em Paris, Leão
Dehon admirava L. Veuillot, que mais tarde trataria com bastante familiaridade em Roma.177 “Começava a
interessar-me pelo movimento político, literário e religioso. Apreciava Veuillot...”.178
L. Veuillot é um católico intransigente, partidário do império enquanto garante da ordem social e
dos direitos da religião, até quando a política externa de Napoleão III não puser em perigo os estados
pontifícios e a pertença da própria Roma ao Papa. Então a dura crítica de Veuillot não se faz esperar.
Prefere ver o seu jornal “L’Univers” suprimido (Janeiro de 1860) antes que ficar calado.
O jovem Leão Dehon participava das mesmas ideias de L.Veuillot, todavia o seu interesse é
sobretudo sócio-cultural-religioso. Além dos seus estudos universitários, interessam-lhe os problemas
religiosos, as associações católicas e a situação dos mais popbres e marginados, conhecidos através das

169
NHV I, 64v.
170
NHV II, 2r.
171
NHV I, 2v.
172
NHV II, 1r.
173
NQ X, 151.
174
NQ X, 151-152.
175
NHV I, 54v-55r.
176
Cf. NHV II, 59r-60r.
177
Cf. NHV I, 41v; VIII, 59
178
NHV I, 41v.

45
Conferências de S, Vicente de Paulo, conferências que em 1861 o ministro do interior de Napoleão III,
Persigny, tem em mira. De facto muitos dos seus membros são legitimistas e Persigny pretende que seja
excluídos das conferências os mais hostis ao regime imperial e que aceitem um presidente nomeado pelo
governo. Diante da recusa de tais pretensões, forma dissolvidas centenas de conferências de todo o
território nacional.
Durante o tempo dos estudos eclesiásticos em Roma (1865-1971), os ecos da política francesa são
colhidos mais frequentemente nas Memórias e nas suas cartas, especialmente sobre a situação criada em
França em relação ao Estado pontifício e à defesa de Roma. A leão Dehon não interessa a unificação da
Itália com Roma como capital. Roma está bem sob o governo do Papa. É a cidade santa do catolicismo;
não se lhe deve tocar. Para ele os piemonteses são invasores, os garibaldinos bandos de malfeitores; os
zuavos, que ele conhece bem, são jovens íntegros e heróicos e são-no na realidade. Uma cruzada para a
defesa do estado pontifício ou ao menos para a conservação de Roma pelo Papa Pio IX, pelo qual tem uma
veneração ilimitada, o jovem Leão Dehon tê-la-ia sustentado e até teria nela participado.

AS PRIMEIRAS LONGAS VIAGENS

Leão Dehon é universitário em Paris de 1859 a 1864, quando, sobre a longa “festa imperial” se
começam a abater as primeiras sombras.
Já fizemos alusão na introdução a esta “festa” e ao estranho casamento entre espada e báculo, ou
seja ao apoio do clero e da Igreja em geral, ao Segundo Império.179
Vamos agora conhecer melhor o nosso protagonista, primeiro, em jovem inexperto, como viajante,
e em homem maduro, como periodista e escritor.
O P. Dehon fala difusamente nas suas Memórias das suas viagens juvenis.
Tendo em conta que ele as escreveu de 1886 em diante, ou seja 25 ou 30 anos depois, à idade de 50
anos, já sacerdote e religioso, podemos só aceitar, como implicitamente autênticos, os juízos e as reflexões
contidas nas Memórias. Na substância são verdadeiros, mesmo se nos modos e no estilo em que são
relatados, sofrem a influência da idade madura do P. Dehon.
Encontramos uma confirmação de quanto estamos a dizer ao comparar o longo diário Palustre-
Dehon e as cartas escritas a seus pais (contemporâneas das viagens) com a ampla relação da mesma viagem
nas Memórias, escritas uns 25 anos depois. Nestas, a narrativa assume uma riqueza de significados
religiosos explícitos, que se vislumbram só implicitamente autênticos no modo de pensar do jovem jurista
Leão Dehon, já certa da sua vocação sacerdotal e resolvido a realizá-la.
Em 1861, Leão Dehon passa três meses em Londres (de Abril a Junho) para aprender inglês. Está
acompanhado por um jovem primo. Leôncio Wateau, e estão hospedados em casa de uma boa família
católica.
Leão aprecia muito os costumes ingleses: “Agradava-me a seriedade de conduta, a simplicidade de
vida. Tudo me parecia sério e marcado pelo bom senso. Este é um povo verdadeiramente sensato, prático,
prudente... e muito democrático”.180
“Toda a maravilhosa actividade deste povo pára desde o sábado até a segunda-feira. É o costume e
também a lei... Toda a gente toma parte nos ofícios religiosos”.181 Há todavia uma boa dose de puritanismo;
se alguém tocar o piano na cidade, intervém a polícia. A violação exterior do descanso dominical é
castigada com uma multa. Não falta o farisaísmo. Um bom número de ingleses foge ao rigor da cidade,
indo para o campo e para lugares de prazer, onde a aguardente e a cerveja correm a rodos.
Nota-se que o povo inglês conta com as simpatias de Leão Dehon e, segundo ele, os franceses
teriam muito que aprender das tradições e costumes ingleses.
Em Abril de 1862, Leão Dehon volta à Inglaterra para aperfeiçoar-se na língua inglesa; porém o
encontro com Leão Palustre, na abadia de Westminster, persuade-o a fazer uma viagem mais longa para
visitar não só a Inglaterra, mas também a Escócia e a Irlanda. São quatro turistas. Além de Leão Palustre e
Leão Dehon estão oprimo deste Leôncio Wateau e D. Poisson.

179
Cf. Introdução histórica, pp. 17 ss.
180
NHV I, 33v-45r.
181
NHV I, 49r.

46
Embora indo como turista, Leão não descuida a vida de piedade; ajuda à missa a D. Poisson e
confessas-se com sacerdotes ingleses.
Naquela viagem fez uma descoberta consoladora, constatando dia a dia “o regresso da Inglaterra à
fé católica. Todos os sacerdotes com quem falamos confirmaram-nos que o movimento de conversões era
constante e rápido. Em todas as cidades, inclusive na Escócia, há paróquias católicas. Algumas cidades
industriais, como Birmingham e Glasgow, contam já, graças àq imigração irlandesa, com quase 100.000
católicos”.182
Resulta impossível seguir Leão em todos os particulares, por muito interessantes que sejam, da
longa viagem. Sabemos que tomou todos os dias rápidas notas. As suas recordações são, por isso, bastante
vivas e precisas, e resume-as com segurança nas Memórias. O seu juízo sobre a Reforma é particularmente
severo, típico de uma mentalidade bastante apologética, embora exacto em muitos aspectos. É uma
avaliação que já faz durante a primeira viagem e que repetirá durante a viagem ao Centro-Norte da Europa,
falando dos monumentos, das nobres recordações deixadas pelo catolicismo nos países protestantes,
especialmente nas cidades de Oxford, de Canterbury e nas grandes abadias em ruínas da Escócia.
O problema da divisão das igrejas cristãs, para Leão Dehon, resolve-se simplesmente com o seu
regresso à Igreja católica.
A cidade que mais o impressionou foi Oxford com os seus 24 colégios, os grandes parques e
jardins. Apresentou-se-lhe como modelo de harmonia entre a vida de estudo e de oração. Assim devia sr a
vida nas universidades medievais. Não faltam os excessos de puritanismo.183
Nas grandes cidades industriais: Birmingham, Leeds, Wolverhampton, Manchester, Liverpool, Leão
fica vivamente impressionado pelo contraste entre a grande riqueza de poucos e a miséria da classe
operária. “Se as massas populares não tivessem a religião tradicional... aqueles cidades tornar-se-iam bem
depressa num inferno”.184
Recordemos que só em 1850, entre duros confrontos, os trabalhadores tinham conseguido a jornada
de trabalho de 10 horas. Começavam a organizar-se os sindicatos, mas serão legalmente reconhecidos só
em 1871. A história económica do tempo caracteriza-se por intervalos de cerca de 10 anos de crise,
falências, desemprego (1825-1826; 1836-1837; 1846-1847; 1866...). Até nos anos de prosperidade os
salários são insuficientes e as condições de trabalho desumanas.
Há que reconhecer em honra da Inglaterra que a avidez dos novos patrões é travada pelos
inspectores de fábrica, homens expertos e imparciais, louvados também por Marx, que contribuem para
melhorar as condições de trabalho dos operários, travando a insaciável avareza dos novos ricos industriais,
rudes, ignorantes e prepotentes, muito diferentes dos senhores da antiga burguesia que, ao menos, têm
cultura e que são paternalistas.
Leão, como em todas as suas viagens, desfruta muito das belezas naturais: “O distrito dos lagos de
Cumberland é uma pequena Suíça... É uma região alegre, pitoresca e também romântica que oferece
abundância de paisagens, às vezes graciosas, às vezes agrestes, onde não faltam antigos castelos nem ruínas
imponentes”.185 De facto, o primeiro romanticismo dos “laguistas” (Wordswort, Coleridge) floresceu em
Cumberland.
A paisagem escocesa impressiona grandemente a Leão: “A Escócia fala muito mais à imaginação
do que a Inglaterra. É de veras a terra clássica da poesia. A Walter Scott foi suficiente pôr em cena as suas
recordações, as ruínas, os castelos, os lagos da sua terra para interessar a Europa e tornar-se imortal. Duas
coisas há especialmente neste fascinante país que falam de Deus e elevam a alma a Deus: as abadias em
ruínas, que recordam os santos de outros tempos e as belezas naturais que tão maravilhosamente
proclamam a glória do Criador”.186
Visitando as ilhas Ébridas e vendo os antigos castelos dos reis de Morven, os de Fingal e de Osian,
“compreende-se melhor a poesia espontânea e entusiasta dos Bardos. A natureza tem um particular encanto
apesar do nevoeiro. A gruta de Fingal é melodiosa, alta e profunda como uma basílica. Aqui, a natureza

182
NHV I, 65r.
183
NHV I, 67r.
184
NHV I, 68v.
185
NHV I, 70r.
186
NHV I, 72v.

47
não tem nada que invejar à arte. Tais maravilhas falam melhor que os monumentos feitos pela mão do
homem, já que são directamente obra do Criador”.187
No regresso da ilha de Jona, consagrada à memória de S. Columbano, apóstolo da Escócia,
correram o risco de naufragar. Dirigiam-se para Oban numa pequena embarcação. A chuva era torrencial, o
mar estava agitado, a noite muito escura. Só Leão e os dois barqueiros se podiam alternar nos remos e no
timão; os outros estavam enjoados. Foi uma noite medonha. Finalmente, às quatro da manhã,
desembarcaram num escolho a uma milha de distância de Oban e depois de duas horas de marcha
chegaram, sem desagradáveis consequências, à estalagem.
Os últimos dias de viagem foram dedicados a visitar a Irlanda: “Não é sem emoção que coloco o pé
em solo da Irlanda, da pobre Irlanda, da Irlanda católica, fiel à sua fé, nação verdadeiramente mártir,
esmagada, oprimida e humilhada pela herética Inglaterra”.188
Dublin é uma bela cidade; porém já na própria capital, Leão se impressiona com a miséria dos
irlandeses. Prospera o mercado de vestuário usado. Depois de servirem aos ricos ingleses e de serem
revendidos pelos judeus aos trabalhadores de Londres, acabam oferecendo os seus últimos serviços aos
pobres párias irlandeses”.189
Leão e os seus companheiros atravessaram a Irlanda desde Lublin a Limerick. No interior, a miséria
alcança quotas extremas. É inútil descer a pormenores. Leão passa por alta as causas e recorda toda uma
história de perseguição, de opressão, desde Henrique VIII e Isabel até Guilherme de Orange. “A Irlanda
permaneceu ligada à sua fé católica com a tenacidade dos celtas e a força dos mártires. É sua glória ter
dado à Igreja quase toda a população católica dos Estados Unidos e da Austrália”.190
Para além da riqueza da fé, A Irlanda possui muitas riquezas naturais. Tem a sua pequena Suíça; “é
a zona dos lagos de Killarney... Fomos lá e aquela excursão fascinou-nos, embora tendo já visto a Escócia.
Que maravilhoso conjunto de lagos, de montanhas, de gargantas, de cascatas, de ruínas de castelos e de
abadias, de lugares às vezes graciosos como os da Itália, às vezes austeros como os dos Alpes”.191
Este é o juízo desta segunda viagem a Inglaterra, Escócia e Irlanda: “viagem de um turista, viagem
de um jovem, viagem demasiado rápida e pouco preparada. Todavia, dela retirei muitos conhecimentos e
avaliações úteis. Agradeço a Providência que me permitiu realizá-la”.192

ENTRE MONGES E CAVALEIROS

Leão Dehon e Leão Palustre são amigos inseparáveis. Leão deixa-se guiar pelo seu amigo mais
entendido na cultura e na arte.
Durante o quarto ano de Direito (1862-1863), aproveitam os domingos e as festas para conhecer a
fundo Paris em toda a sua história, desde a época dos Galos até ao presente.
Leão é um entusiasta da Idade Média, da sua arte, da sua vida social. A cristandade medieval será
sempre a sua sociedade ideal: “Ficará sendo um dos mais ardentes entusiasmos da minha vida”. 193 É uma
atitude tipicamente cristã e não simplesmente romântica. Leão Dehon encontra-se a seu gosto com os
monges e cavaleiros da Idade Média.
O juízo de Leão Dehon sobre o renascimento é dominantemente negativo. É uma época “pagã
baptizada, que conserva muito marcado o cunho do pecado de origem”.194
Falando do “Grand-Siècle” e do Rei Sol, Luís XIV, Leão não pode esconder a sua admiração;
porém as suas preferências vão para S. Luís IX e para a época medieval. “O Grand-Siècle parece-me tão
pequeno em comparação com o de S. Luís! Tudo era então tão religioso, tão puro e tão grande! A catedral
ocupava o primeiro lugar, enquanto que não aparece entre as construções de Luís XIV. Sob Luís XIV tudo
exprimia a oração, o trabalho e a cuidado dos pobres. As igrejas e as abadias multiplicavam-se, as
187
NHV I, 81r-82r.
188
NHV I, 85r.
189
NHV I, 86r.
190
NHV I, 88r.
191
NHV I, 89r.
192
NHV I, 92r.
193
NHV II, 4r.
194
NHV II, 5r-5v.

48
corporações floresciam, levantavam-se hospitais... Concluindo: amo Luís XIV, porém Luís IX era mais
francês e mais cristão”.195
O juízo sobre a grande revolução de 1789 é claramente negativo. Indubitavelmente os excessos, os
horrores, os estragos, as destruições indiscriminadas da revolução francesa são condenáveis. Compreende-
se que Leão Dehon, como homem e como cristão, participe na cruzada anti-revolucionária, anti-volteriana,
anti-iluminista do ambiente católico donde provém.
Leão não releva os aspectos positivos da grande revolução inspirados pelo iluminismo: a abolição
dos privilégios injustos, a chegada da democracia, a queda do absolutismo, a afirmação dos direitos
nacionais, o melhoramento progressivo do nível de vida, o começo da luta pela conquista dos direitos do
quarto estado, ou seja da massa do proletariado em nome da liberdade e da igualdade.
O juízo sobre a restauração é bastante positivo. Há até entusiasmo quando Leão releva o
renascimento da fé e o ressurgir do espírito nacional. Não denuncia nenhuma das taras incuráveis daquele
período, do real anacronismo, das absurdas nostalgias do “ancien régime”.
Nestas páginas das Memórias vemos Leão Dehon diante da história e da arte. Os seus juízos nesta
matéria têm o mérito da sinceridade e da franqueza. É um católico do seu tempo, com as feridas ainda
frescas e sanguinolentas por causa da revolução francesa e do mais soez volterianismo. É normal que as
apreciações do P. Dehon, fiel intérprete do jovem Leão Dehon, sejam propensas ao apologeticismo e, às
vezes, clericais e ingenuamente triunfalistas.

A VIAGEM AO CENTRO-NORTE DA EUROPA

Em 1863, Leão Dehon e Leão Palustre preparam-se para visitar a Alemanha sem prever que a
paixão turística os ia levar também à Dinamarca, Noruega e Suécia.
A 12 de Agosto de 1863 estão em Estrasburgo.
O P. Dehon, nas Memórias, dá-nos uma síntese desta viagem e do proveito que dela retirou.
“Dispunha-me, pois, a empregar três meses na visita ao centro e norte da Europa, dos países germânicos e
escandinavos. A Providência viciava-me. Quantos frutos teria colhido desta viagem! Quantas observações
teria recolhido! Que cúmulo de conhecimentos estéticos, históricos, geográficos e também morais! Podia
comparar a piedade e a honestidade profundas das populações católicas de Rhin e da Baviera com a
religião demasiado oficial, impregnada de cesarismo da Áustria, com a corrupção e o latrocínio da Prússia
e dos Ducados, com as virtudes naturais, ainda impregnadas de Evangelho da Noruega, com os rudes
costumes e o abuso do álcool da Suécia.
“Ia visitar e comparar entre si importantes capitais... A natureza também ia oferecer-me alguns dos
seus mais fascinantes espectáculos... Encontraria emocionantes recordações em Austerlitz, em Wagram, em
Schoenbrunn, em Spielberg. Os castelos... iam recordar-me toda a aristocracia feudal e moderna... Os
museus... iam revelar-me toda a arte antiga e contemporânea. Aquela viagem realizei-a como turista sério e
estudioso ao mesmo tempo. Porque não pus eu mais fé, mais olhar sobrenatural? (é uma típica reflexão do
P. Dehon como religioso). Consegui um certo conhecimento da língua alemã, que embora muito imperfeito
e rudimental, ia servir-me muito para as confissões das nossas piedosas irmãs alsacianas (as Servas do
Coração de Jesus de S. Quintino). Tomei todos os dias apontamentos da minha viagem juntamente com os
meus companheiros. São apontamentos meramente descritivos e arqueológicos. Não escrevi as minhas
impressões. Ser-me-á útil reavivá-las, resumindo-as aqui (nas Memórias) segundo a ordem da viagem”.196
Esta última nota “não escrevi as minhas impressões...” é muito preciosa e confirma-nos na
convicção, já expressa, de que as Memórias, mesmo sendo escritas cerca de 25-30 anos depois das viagens
de Leão Dehon, são essencialmente de se aceitar como historicamente atendíveis na referência, não só aos
acontecimentos externos, mas também ao núcleo essencial dos sentimentos, da mentalidade e do espírito
com que foram vividos pelo jovem Leão Dehon.

195
NHV II, 8v-9r.
196
NHV II, 21v-22v.

49
No arquivo dehoniano conservam-se dois volumosos cadernos de 204 e 209 páginas
respectivamente. São as notas copiadas e algo corrigidas da sua viagem pela Alemanha, Escandinávia e
Áustria. O seu título é: “Alemanha 1863- Notas escritas em grande parte por Leão Palustre”. O texto das
Memótias inspira-se neste diário, mas também se afasta bastante do original pelo acrescento de reflexões
sobre tudo de tipo religioso. Graças aos apontamentos de Leão Palustre é possível reconstruir com muita
exactidão esta longa viagem de três meses.
Sobre muitos pormenores interessantes não nos podemos deter. Recomendamos ao leitor as
Memórias do P. Dehon. Mencionaremos somente o encontro dos dois turistas com o Conde de Chambord,
Henrique de Borbon (Henrique V), pretendente ao trono de França e cabeça dos “legitimistas”. O encontro
teve lugar a 4 de Novembro de 1863 em Frohsdorf, perto de Viena, na Áustria. O conde mandou a sua
carroça buscar à estação os dois visitantes e convidou-os para o almoço. “O Príncipe recebeu-nos
afectuosamente e apresentou-nos à condessa”.197 Falámos principalmente de viagens. “O ambiente religioso
da mansão e a naturalidade do príncipe encantaram-nos. No momento da despedida... ofereceu-nos um
retrato e disse-nos com lágrimas nos olhos: “até à vista em França”. Agora alegro-me – anota o P. Dehon –
por ter conhecido um verdadeiro francês, tão bom, tão nobre, tão cristão e tão santamente intencionado
para o ressurgimento da nossa pátria”.198
A grande viagem concluiu-se a 11 de Novembro de 1863. Os dois amigos despediram-se em Metz.

OS MEUS GOSTOS ESTAVAM NOUTRO LADO

Durante o ano de 1863-1864, Leão visita com particular interesse os arredores de Paris.
O mais comovente para ele foi a visita à abadia de St-Denis. Para Leão é o “santuário nacional por
excelência”: “Uma nação não teria que ter nada mais querido que o sepulcro do seu primeiro apóstolo e os
túmulos dos seus reis... Nós não temos mais que o Panteão profanado e os sepulcros vazios de St-Denis.
Pobre nação que se empenha em destruir com ímpio furor aquilo que tem de mais sagrado!... Os vândalos
de 1798 não respeitaram nada”.199
Leão já está no quinto e último ano de universidade (1863-1864). Tem pressa em acabar: “Não
sentia já gosto pelo Direito...; os meus gostos estavam noutro lado”.200

197
NHV II, 59v.
198
NHV II, 59v-60r.
199
NHV II, 62v-63r.
200
NHV II, 62r-62v.

50
CAPÍTULO 4

Do Oriente a Roma

O Problema da vocação – Seu irmão Henrique – A viagem ao Oriente – Comparação entre os dois manuscritos – Dalmácia, Albânia, Grécia – No país
das pirâmides – A Cidade Santa - Os arredores de Jerusalém – Os grandes dias –O caminho de regresso – Até Roma.

O PROBLEMA DA VOCAÇÃO

Leão Dehon é doutor em Direito a 22 de Abril de 1864. A alegria de Júlio Dehon foi tão grande que
o deixou fazer uma viagem pela Bélgica e Holanda com o amigo Palustre.
Todavia, o verdadeiro interesse de Leão nestes momentos já não eram as viagens, mas a sua
vocação.
“Ao meu regresso a La Capelle devia tratar com a minha família do grande problema da vocação.
Era difícil. O meu pai tinha-me prometido que, uma vez alcançado o doutoramento, me deixaria livre; mas,
chegado o momento, não queria render-se. A Divina Providência serviu-se destas disposições de meu pai
para me levar aos Lugares Santos, onde a minha fé e a minha vocação tanto se deviam fortalecer. Palustre
propôs-me essa viagem. Falei disso a meu pai. Para ganhar tempo, e esperando que tão grande
acontecimento mudaria as minhas ideias, deixou-ma fazer... Comecei os preparativos para aquela bela
viagem que considero uma das grandes graças da minha vida”.201

SEU IRMÃO HENRIQUE

Entretanto, a 30 de Maio de 1864, o seu irmão Henrique tinha casado com Laura Longuet e Leão
acompanhou-os na viagem de núpcias a Lyon, Genebra, Montblanc e Lucerna.
Como dissemos, Henrique era o irmão mais velho de Leão. Os seus gostos coincidiam
perfeitamente com os de seu pai, tanto na comercialização da cerveja como no cultivo das terras e a criação
de cavalos.
Henrique e Laura Longuet tiveram duas filhas. A mais nova, Laura Amália Henriqueta, nascida em
1868, casada em 1889, morreu em 1896 sem deixar filhos. A mais velha Marta Maria Luísa, nascida em
1865, casada em primeiras núpcias com Desidério Malézieux e em segundas com o conde Roberto de
Bourboulon, teve três filhos varões. Morreu em 1951. Os Malézieux conseguiram do Estado acrescentar ao
seu apelido o de Dehon.
As relações do P. Dehon com o seu irmão Henrique, como consta na correspondência, nas
Memórias e no Diário, foram cordiais. Por S. Henrique, o P. Dehon vai a La Capelle para festejar o
onomástico do seu irmão. É seu hóspede quando, depois da morte dos pais (1882, 1883), vais rezar ao seu
túmulo. Voltando de Roma para a França, se a família de Henrique está na praia em Cannes, o P. Dehon
passa algum dia em sua companhia.
Henrique Dehon, alcaide de La Capelle durante uns 30 anos e deputado de l’Aisne, trabalhou
sempre pelo triunfo da causa católica. Recordando a sua morte, que teve lugar em Fevereiro de 1922, o P.
Dehon escreve no seu Diário: “Era um justo. A sua vida foi muito digna e cheia de boas obras, Estivemos
sempre muito unidos... Meu irmão foi sempre um apóstolo com o exemplo de «uma vida séria e cristã”.202

A VIAGEM A ORIENTE

201
NHV II, 70r-70v.
202
NQ XLIV, 42.

51
Tudo está preparado para a viagem ao Oriente. Leão Dehon e o seu amigo Leão Palustre iniciaram-
na partindo de Estrasburgo a 23 de Agosto de 1864.
Através da Floresta Negra, depois de visitar Friburgo de Brisgóvia, chegam à Suíça. “Devia voltar a
ver frequentemente a Suíça, porém a primeira visita a este país de maravilhas naturais é a que mais
impressiona... Deus fez deste país algo parecido com um jardim de fantasia para a Europa”.203 Entrando
pelo vale de Rhin, os dois turistas visitam de 24 a 31 de Agosto Zurique, vão em peregrinação a Einsiedeln,
contemplam de Rigi um esplêndido panorama, visitam Lucerna, navegam no lago dos Quatro Cantões e,
através do S. Gotardo, chegam a Itália.
Leão Dehon recorda com entusiasmo a sua primeira visita à Itália: “O país das letras e das artes..., o
país da glória militar e da política..., o centro do império mais poderosamente organizado..., o país da
legislação tão perfeita que pôde chamar-se “a razão escrita”. É a terra dos santos..., dos mártires, dos
pontífices, dos religiosos... Itália é o centro da mesma Igreja e, por conseguinte, fonte de civilização e de
vida cristã. Devia ver muitas vezes a Itália e aí viver alguns anos, mas aquela primeira visita é a que mais
profundas impressões deixou em mim”.204
Da Itália só visitaram uma parte da Lombardia (o lago Maior, o lago de Como, Varese, Milão), a
Emília e a Romanha (Piacenza, Parma, Modena, Bolonha, S. Marino, Ravenna, Ferrara) e uma parte do
Véneto (Pádua, Veneza, Trieste).
Precisamente depois de Ferrara chegaram as primeiras aventuras, entre as muitas que poderiam ter
resultado fatais para os turistas. “Duas vezes vi a morte de perto neste trajecto e atribuí a minha salvação à
santíssima Virgem que invoquei com confiança. A primeira for ao chegar ao rio Pó. O cocheiro deixou
imprudentemente os cavalos. A carruagem parou à beira da margem. Não sei como não caiu ao rio. Poucas
horas depois outro cocheiro deixou que os cavalos arrastassem a carruagem a todo o galope, fazendo-a
chocar com um pilar. Dois parentes meus mais tarde, perderam a vida num acidente semelhante. A
Providência velou sobre mim”.205 Nesta perigosa circunstância, Leão atribui a salvação à invocação da
Virgem. No monte Carmelo pedirá à Virgem que o cure de uma chaga que o atormentava num pé. No dia
seguinte a chaga desapareceu inesperadamente. Em Troas ataca-o uma forte febre que o faz perder
completamente as forças: “Recorri ao meu grande médico, a santíssima Virgem. Estou certo que a sua
intercessão me curou”.206
No fim da viagem, Leão cita os medos, as angústias da sua mãe, que temia não voltar a vê-lo.
Recorda ter-se enfrentado com todos os perigos daquela longa viagem com a irresponsabilidade dos vinte
nos: “Escapei de muitos perigos. A verdade é que tinha uma confiança verdadeiramente filial em Maria.
Estou convencido de que, mais de uma vez nesta viagem, ela me salvou milagrosamente”.207
A permanência na Itália durou desde 31 de Agosto até 27 de Setembro de 1864.

COMPARAÇÃO ENTRE DOIS MANUSCRITOS.

Antes de continuar a narração parece-nos útil fazer algumas considerações.


A longa e minuciosa narração da viagem ao Oriente nas Memórias é retomada totalmente do diário
da mesma viagem escrito por Leão Palustre e copiado por Leão Dehon em seis grossos cadernos. São 1067
páginas.
Estas notas reflectem bem a mentalidade de dois jovens turistas burgueses, que não fazem só uma
viagem de prazer mas também de estudo. Predominam as reflexões sobre a arte que é o que mais interessa
a Leão Palustre e à arqueologia. Leão Dehon também estava afeiçoado à arte e partilha os gostos do amigo;
porém no coração alimenta mais profundas aspirações provenientes da sua vocação sacerdotal. “O meu
companheiro fazia só uma viagem turística e arqueológica. Exteriormente condescendia com os seus
203
NHV II, 72r; cf. Voyage d’Orient, c. I, 9ss; AD, B 13/2 a-g.
204
NHV II, 75r-75v; Voyage d’Orient, c. I, 36 v, ss.
205
NHV II, 91-92. O facto não é contado no “Diário da viagem a Oriente”, cf, Voyage d’Orient, c. II, 36v ss.
206
NHV IV, 63. Do facto do Carmelo, nenhuma alusão n “Diário da viagem a Oriente”, cf, Voyage d’Orient, c. VI, 57v. Da febre
que teve antes de visitar Troia, Leão Palustre fala de uma noite terrível com febre e pulgas; todavia; às 4 estavam já a cavalo. Cf.
Voyage d’Orient, c. VII, 43 ss.
207
NHV IV, 99-100.

52
desejos, porém, na realidade, uma aspiração mais séria dominava o meu espírito. A minha vocação não
tinha dúvidas. Eu fazia a peregrinação à Terra Santa antes de deixar o mundo e, no meu caminho, sobre
tudo na Itália, em todos os santuários de Maria e sobre os sepulcros dos mártires e dos santos, rezava para
conseguir a graça de chegar à desejada meta do sacerdócio”. Assim escreve o P. Dehon nas Memórias,
evocando a peregrinação ao sagrado Monte de Varese.208
Nos sete cadernos originais de notas de viagem dominam as descrições de obras de arte, a seguir as
da natureza com as suas paisagens, depois os costumes dos diversos países e, por fim, a narração de
algumas aventuras mais ou menos perigosas.
Nos cadernos das Memórias domina, ao invés, o elemento religioso. Este elemento religioso é
autêntico; foi realmente experimentado, ao menos no seu núcleo essencial, pelo jovem Leão Dehon.
Na sua visita a Atenas recorda, juntamente com os grandes filósofos, poetas e artistas, S. Paulo e S.
Dionísio, e faz esta observação certamente sincera: “Tinha já o sentido bastante cristão para ficar mais
impressionado pelas recordações do Areópago que pelos jardins de Academo, de Stoa e do Liceu”.209
Como nas notas sobre a viagem ao Centro-Norte da Europa, Leão Dehon não pode exprimir as suas
impressões pessoais e religiosas mais profundas, porque é um diário escrito pelos dois. Por outro lado,
Leão Palustre, para além de ser, como Leão Dehon, um viajante, é sobre tudo um artista e, com o seu
enérgico carácter, sabe marcar a sua influência em tudo, em cada pessoa e também no influenciável Leão
Dehon.
Uma confirmação, mesmo se limitada, da autenticidade dos sentimentos religiosos de Leão Dehon
na sua viagem ao Oriente, temo-la nas cartas que escreve à família. Já na primeira carta a seus pais de
Estrasburgo (23.8.1864), diz: “Espero que a dor da nossa separação tenha passado e que tenhais aceite de
bom coração esta viagem, da qual espero grandes resultados”. Evidentemente Leão pensa na decisão mais
importante da sua vida: como realizar a sua vocação sacerdotal.
Todavia, a mãe e a avó (mamã Dehon: Ester Gricourt) não se resignam. Ficam muito preocupadas.
Na carta que escreve de Bolonha a 6 de Setembro de 1864 dirige-se pessoalmente à avó: “Não sabe
que, chorando, iniciei esta viagem, enfrentada como um dever?”. Não é uma ordem imposta desde o
exterior, evidentemente; mas um dever de consciência para tomar as necessárias decisões em relação ao
futuro da sua vida. Na mesma carta, recordando que em Milão rezou sobre os sepulcros de S. Carlos e de S.
Ambrósio, escreve: “Não me censureis por me ter afastado de vós; estou trabalhando pela vossa e minha
felicidade”. Nesta “felicidade” é claro, embora implícito, o compromisso de realizar a sua vocação ao
sacerdócio.210
No último caderno do Diário, o 45º, o P. Dehon, já octogenário, evoca assim a sua viagem à Terra
Santa: “A peregrinação por excelência é a da Palestina. Fi-la em 1865 e as impressões que recebi
contribuíram para a orientação da minha vida. Voltei a fazê-la em 1911. Belém, Nazaré, Jerusalém;
encontro lá os principais mistérios de Nosso Senhor... Ás peregrinações à Terra Santa ligam-se as do
Egipto e Ásia Menor, que fiz ao mesmo tempo...”211

DALMÁCIA, ALBÂNIA, GRÉCIA

A 27 de Setembro de 1864. Os dois turistas embarcam em Trieste. Costeiam Ístria e Dalmácia, onde
“Veneza deixou em todo o lado vestígios do seu domínio, no estilo das igrejas, dos palácios, dos
campanários”.212
Na Albânia, que então pertencia ao império otomano, começa um mundo completamente diferente.
“Com a Turquia começam os minaretes, de pitoresco aspecto, porém também a sujidade e mil outros sinais
208
NHV II, 773-77v cf. Voyage d’Orient, c. I, 44v,ss.
209
NHV III, 14-15. No diário de viagem a Oriente há uma alusão à igreja de S. Dionísio no Areópago e à gruta de S. Paulo em
Corinto, para além da igreja de S. André em Patras, com os corpos de S. Lucas e de S. Timóteo. Cf. Voyage d’Orient, c. IV,
15.31.66v-67.
210
AD, B 18/9.
211
NQ XLV, 19-20: Janeiro de 1925.
212
NHV III, 1; cf. Voyage d’Orient, c. III, 74v.

53
de semi-barbárie. Todos estão armados. As mulheres são uma mercadoria. A cultura encontra-se em estado
primitivo. Não há estradas nem portos. A superioridade moral e intelectual da civilização cristã resplandece
nesta comparação.213
Em Corfù são amavelmente recebidos pelo cônsul francês, o sr. Grasset. “Mostrou-nos uma
esplêndida colecção de moedas gregas e ouro e deu-nos conselhos úteis para a viagem à Grécia. Era um
verdadeiro francês do nosso tempo, amável, alegre, de modos distintos, porém sem princípios
religiosos”.214
Desembarcaram no Pireu a 13 de Outubro de 1864. A visita à Grécia prolonga-se por quase 8
semanas em busca de gestas heróicas da época clássica e dos séculos cristãos.215
Depois de apresentar o aspecto da natureza da Grécia, a sua situação política, os seus habitantes,
Leão detém-se sobre a religião dos gregos ortodoxos que “parece consistir principalmente nas práticas
exteriores. Fazem sinais da cruz sem fim e abraçam todas as imagens de santos que enchem as igrejas. O
seu clero apresenta-se sujo, grosseiro, ignorante. Os monges têm grandes mosteiros, belos armazéns, mas
poucos livros. Dão a impressão de serem eminentemente preguiçosos. Mantêm rapazes que empregam em
trabalhos manuais, em lugar de os instruir. Os católicos são ainda poucos, mas o seu clero é bem diferente
do da Igreja greco-ortodoxa”.216
Os dois jovens turistas começas a visitar a Grécia como estudantes conscienciosos. “Na história e
literatura da Grécia, os nosso estudos clássicos levaram-nos a procurar o modelo do belo e do bom... Hoje
só dois países me atrairiam: Terra Santa e Roma, as pegadas de Nosso Senhor e o centro da Igreja.217
As Memórias são ricas em detalhes interessantes que devemos sobrevoar. Não faltam as aventuras.
Junto do monte Taigete, onde os antigos espartanos atiravam as crianças frágeis, votando-os à morte, os
lugares estão infestados de bandidos. A pequena caravana de só seis cavalgaduras, os dois jovens turistas,
um cozinheiro, um carregador, um intérprete e um bom magistrado que se juntou à viagem, encontra-se
com montanheses, gente feroz, armada até aos dentes. É impressionante. O bom magistrado, de nome
Frangoras, pernoita no mesmo quarto dos dois jovens. "“À noite faz uma longa oração que consiste em
duzentos ou trezentos sinais da cruz entre profundas inclinações. Escandaliza-se por nós nos contentarmos
com dois ou três sinais da cruz somente quando rezamos as nossas orações”.218
Em Megaspillon visitam o principal mosteiro da Grécia dedicado à Virgem. “Os monges são
numerosos como em todos os lados da Grécia. Sujos e ociosos. Usam longas cabeleiras, com os pés nus
dentro do seu calçado. Rapazes não menos sujos, com longos cabelos, estão a seu serviço. Sem dúvida
trata-se de um seminário... Os monges mostram-nos com orgulho as suas adegas onde em grandes tonéis
conservam o vinho do mosteiro”.219
Em Patras, durante a noite, passam por momentos de pânico por causa de um tremor de terra.
Depois de Lepanto, como consequência de chuvas torrenciais, os caminhos tornam-se impraticáveis, não se
podem atravessar as correntes e, além disso, a população é selvagem, inóspita, de tal modo que os dois
turistas, com a sua pequena caravana, se vêem obrigados a recorrer à protecção das autoridades.
No monte Parnaso, o cavalo de Leão resvala sobre um precipício. O jovem tem apenas o tempo de
saltar para a margem da vereda, enquanto ao longe se ouvem tiros entre guardas e bandidos.
Perto de Maratona os dois turistas são assaltados por parasitas que infestam as pouco asseadas casas
gregas. Um exército mais numerosos que o de Xerxes. Chegados a Atenas, o único remédio para
desembaraçar-se de tão molestos inquilinos é queimar é queimar os vestidos.220
“A nossa viagem através da Grécia tinha terminado. Tinha visto com gosto, com curiosidade e com
interesse tudo o que diz respeito à arte e à história profana; porém tinha-me comovido profundamente ao

213
NHV III, 6-7; cf. Voyage d’Orient, c. III, 98v, ss.
214
NHV III, 8; cf. Voyage d’Orient, c. IV, 2v.
215
NHV III, 10; cf, Voyage d’Orient, c. IV, 11-11v.
216
NHV III, 13; cf. Voyage d’Orient, c. IV, 123-123v; texto quase idêntico de Leão Palustre.
217
NHV III, 14.
218
NHV III, 35.
219
NHV III, 40; cf. Voyage d’Orient, c. IV, 63-63v.
220
cf. NHV III, 51; cf. Voyage d’Orient, c. IV, 91.

54
encontrar-me com alguma lembrança cristã, como as de S. Dionísio em Atenas, de S. Paulo no Areópago e
em Corinto, de S. André em Patras. Assim em toda a viagem Nosso Senhor me dava a graça”.221
Numa carta escrita em Patras, datada de 7 de Novembro de 1864, Leão reage vivamente contra o
parecer de sua tia Julieta, que teria preferiria que a viagem a Oriente tivesse sido feita mais tarde: “Dizei-
lhe que não tem razão ao considerá-la só uma viagem de jovens (turistas). Se fizesse antes os estudos
teológicos, teria renunciado a ela e, portanto, (esta viagem) é essencial para mim. Para mim será de grande
proveito, estou certo, e vós deveis estar felizes por isso”.
Como já sabemos , Leão Dehon, aos 16 anos tinha pedido a seu pai para começar os estudos
seminarísticos em Paris (S. Sulpício). Perante a rotunda negativa de seu pai, Leão respondera
resolutamente que, chegado à maioridade, seguiria a sua vocação. A vantagem da viagem ao Oriente era
que tinha decidido começar os estudos seminarísticos em Roma.
De facto, na mesma carta de Novembro escreve a seus pais: “Provavelmente voltarei depois de
passar por Roma, a fim de decidir sobre os meus estudos...”222
O mau tempo obriga os jovens a permanecer cinco dias em Syra, uma ilha do Egeu, onde puseram
em dia o seu diário de viagem e a correspondência. Finalmente a 3 de Dezembro de 1864 partiram de Syra
para chegar no dia 4 a Esmirna e no dia 8 a Alexandria do Egipto.

NO PAÍS DAS PIRÂMIDES

A permanência no Egipto prolongou-se mais tempo do previsto: de 8 de Dezembro de 1864 a 22 de


Março de 1865.
“Não foi sem emoção que enfrentamos aquela terra do Egipto para onde nos atraíam tantas
recordações sagradas e profanas, tantos monumentos e uma natureza tropical, completamente nova para
nós”.223
Uma série de contratempos bloqueia em Alexandria os dois amigos durante quase um mês.
Começam por não encontrar hospedagem. A razão é simples: já não há. Alojam-se temporariamente no
hotel Europa. “Nunca os viajantes forma tratados de modos tão incultos e com tanta grossaria. O preço é de
20 francos diários, excluído o vinho e sem descontar as refeições que não se fazem. Os quartos são sujos e
mal cheirosos. O serviço é nulo. Resolvemos ir no dia seguinte procurar hospedagem noutro lugar”.224
A estada dos jovens prolonga-se mais do que o previsto, porque esperam de França uma letra de
câmbio. Vão procurá-la naturalmente no correio francês, enquanto a suspirada letra está no correio
austríaco.
“A espera é o maior dos males”, anota o impetuoso Palustre, que de paciência tem muito pouca;
“nunca como neste caso experimentei a amarga verdade desta frase de La Fontaine”.225
Os dois jovens correm o perigo de ficar sem dinheiro a milhares de quilómetros de França.
Sabemos por uma carta enviada por Leão a seus pais de Patras a 7 de Novembro de 1864 que os
dois jovens turistas esperavam em Alexandria do Egipto, entre 1 e 5 de Dezembro uma carta de crédito no
valor de 14.000 francos, que o banqueiro Fleury-Hérard devia mandar de Paris em nome de Leão Palustre.
De facto, os gastos da viagem de quase oito semanas na Grécia (13 de Outubro - 3 de Dezembro) tinham
sido maiores do previsto. Tiveram que levar tudo consigo, já que, fora de Atenas, só se encontravam
quartos de aluguer não mobilados. Por isso, além do guia e do cozinheiro, os dois jovens tiveram que
contratar dois criados, com três cavalos e três mulas. (Carta de Argos de 20.10.1864).
Além disso, o serviço postal era muito deficiente naqueles tempos. Numa carta mandada por Leão
Dehon a 15 de Dezembro de Alexandria do Egipto, lemos que a última carta de seus pais foi recebida a 21
de Outubro. Desde então tinha enviado sete cartas que ficaram sem resposta.
O certa é que a famosa carta de crédito foi mandada por um banqueiro de Paris “via Áustria”.
Chegou a 11 de Dezembro ao correio austríaco e ali ficou à espera de ser levantada. Aos dois jovens

221
NHV III, 53.
222
AD, B 18/9.
223
NHV III, 59.
224
Voyage d’Orient, c. V, 2: texto de Leão Palustre.
225
Voyage d’Orient, c. V, 9v: texto de Leão Palustre.

55
turistas, pelo contrário, parecia perdida. A 27 de Dezembro telegrafaram ao banqueiro em Paris Fleury-
Hérard e a 30 de Dezembro recebem telegraficamente o tão suspirado documento de crédito.226
A próxima carta de crédito de 10.000 francos tê-la-iam de esperar no consulado francês de
Jerusalém (carta do Cairo de 10.1.1865).227
Os dois turistas têm todo o tempo para se aborrecerem nas visitas de Alexandria e seus arredores.
Em troca fazem descobertas curiosas. Notam que os cães se dividem em dois bandos: os que habitam na
cidade não ladram nas estradas, enquanto o fazem quando se convertem em cães do campo.
Admiram os burros egípcios, tão ágeis, tão inteligentes, tão dóceis. Em comparação com eles, os
seus irmãos do ocidente são uns estúpidos.228
Com grande pena, no dia de Natal de 1864, Leão Dehon não pode assistir à Missa da meia noite que
lhe recorda a grande graça da vocação ao sacerdócio, que recebeu no Natal de 1856 na igreja dos
capuchinhos de Hazebrouck. A 31 de Dezembro partem de combóio para o Cairo.
A viagem do Cairo a Assuão faz-se pelo Nilo num barco à vela, com dois intérpretes (drogmans) e
seis remadores. A barca, comprida e estreita (uma canga), quando para o vento, avança a remos e às vezes
os remadores a arrastam com cordas pela margem. Quando a barca fica encalhada na areia do Nilo, outra
barca acode a desencalhá-la.
Aos nossos dois jovens juntam-se outros dois turistas, ambos protestantes: um russo (Böhtlingk) e
um alemão (de Maltzam) que recebeu uma refinada educação, demonstra grande finura de modos e gosta
de falar de religião.
Não podemos deter-nos nos detalhes desta viagem ao longo do Nilo. Muitas vezes são interessantes
e podem ler-se nas Memórias do P. Dehon. Descobrimos que os nossos jovens são às vezes caçadores.
Apanham calhandras, piscos, gaios, etc. São também fumadores de “chibouk”, cachimbo turco de tubo
comprido, para não faltar aos deveres da hospitalidade.
Mesmo admirando os monumentos do Egipto (carta de 1.3.1865), as suas belezas naturais e
delicioso clima (carta de 22.1.1865), o grande desejo de Leão é chegar a Jerusalém. Di-lo pelo menos em
cinco cartas escritas do Egipto. “Estaremos em Jerusalém até terça-feira de Páscoa. Faremos a nossa
peregrinação em plena regra. Rezarei com fervor pela minha família. Levar-vos-ei, como recordação,
muitos objectos de piedade”. (Carta do Cairo 7.3.1865). Até um pouco de água do Jordão que servirá para
baptizar o primeiro filho do seu irmão Henrique (carta de 28.12.1864, de Alexandria do Egipto).229
Pelas cartas de Leão Dehon, escritas durante a viagem a oriente, descobre-se, até à evidência, que os
pensamentos e sentimentos religiosos superabundam na sua alma, segundo pode ver-se nas Memórias,
escritas 25 ou 30 anos depois, enquanto não se descobrem, como é natural, por espontânea reserva nos
cadernos da viagem a Oriente, redigidos em colaboração com Leão Palustre.
A viagem no Nilo dura quase dois meses (de 12 de Janeiro a 3 de Março de 1865). Partiram do
Cairo e voltaram ao Cairo. Daqui os nossos turistas vão a Suez de combóio; aí organizam uma pequena
caravana para atravessar o deserto de Sinai. São três camelos de sela, cinco de transporte, um intérprete,
um cozinheiro egípcio, dois cameleiros e um rapaz sírio. S noites são passadas em tendas.
Na fronteira entre o Egipto e o Império Otomano, as coisas correram o risco de se estragarem de
modo irreparável. Chegados à alfândega de El-Arich a 22 de Março de 1865, Leão Palustre, que tantas
vezes tinha já perdido a paciência pela molesta inoportunidade dos mendigos, usando com facilidade do
seu bordão, utilizou-o também contra um soldado das fronteiras da Sublime Porta. Este aproximou-se dos
dois turistas pedindo, com certa arrogância, o certificado sanitário: “Patenta”. Palustre, sem compreender,
tomou-o por um dos tantos pedintes e, sem mais cumprimentos, fá-lo experimentar o seu bastão. Golpeou,
assim, um soldado do Sultão. Um feito de excepcional gravidade. O oficial do posto ameaça encarcerar os
dois turistas e mandá-los para Constantinopla. “A um certo momento acreditei que em vez de passar as
festas da Páscoa nos Lugares Santos, teríamos de passá-los em Istambul”.230 Então interpõe-se Leão Dehon
e trata de resolver a situação oferecendo uma compensação em dinheiro. Nunca o tivesse feito! Tentou
226
Cf. Voyage d’Orient, c. V, 13v. 15: texto de Leão Palustre e de Leão Dehon.
227
AD B, 18/9.
228
Cf. Voyage d’Orient, c. V, 10 ss: texto de Leão Palustre.
229
AD, B 18/9.
230
NHV 144; cf. Voyage d’Orient, c. V, 132-135v. A narração é muito mais dramática nas “Memórias” do P. Dehon que nas
notas do “Diário da viagem de Oriente”: Texto de Leão Dehon.

56
corromper um soldado otomano. Finalmente a situação é resolvida quando Leão faz notar que o soldado
não vestia nenhum uniforme e não apresentava nenhum sinal que o distinguisse dos ordinários e
importunos pedintes.
Resolvido o desagradável incidente, os dois jovens chegam finalmente à Palestina, onde
permanecem desde 22 de Março 25 de Abril de 1865.

A CIDADE SANTA

Depois de passar por Gaza e a sua fértil planície, e de escapar em Eleuterópolis de um grupo de
beduínos mal encarados e mal u«intencionados, chegam às proximidades de Jerusalém, suspirada meta da
sua longa viagem.
“Quisemos fazer a pé o último dia de caminho para chegar à cidade como verdadeiros peregrinos...
Estávamos profundamente emocionados ao pensar que logo veríamos Jerusalém.. Passado o convento
grego de Santa Cruz, apresentou-se-nos Jerusalém com as suas cúpulas e o seu cinturão de muralhas com
ameias. Caímos de joelhos e rezamos durante uns momentos. É o lugar da nossa redenção, o lugar onde
Nosso Senhor manifestou o seu grande amor dando a sua vida por nós. Jerusalém senta-se sobre várias
colinas e por três lados está rodeada de profundas e pitorescas ravinas... No interior, as ruas conservaram o
seu aspecto medieval; muitas estão cobertas por abóbadas ogivais... Hospedámo-nos no convento latino “A
Casa Nova”, onde os bons franciscanos nos deram quinze dias de hospitalidade.
O nosso primeiro dia (26 de Março) foi para o Caminho Doloroso e o Santo Sepulcro. “Eu dava
demasiada importância à arqueologia. Todavia, por graça de Deus ,, visitava rezando e era mais peregrino
do que turista”.231
Escreve a seus pais a partir de Jerusalém a 26 de Março de 1865: “Chegámos à meta da nossa
peregrinação, felizes e de óptima saúde. Preciso de toda a atracção dos lugares santos para não sentir
demasiado as saudades de uma tão longa ausência da nossa querida terra”. Sente uma forte saudade de La
Capelle. Fala depois do fascínio e da dura vida do deserto para concluir: “Tudo isto leva a esquecer o
mundo e os seus cómodos costumes, que escravizam; a aproximarmo-nos de Deus, a prepararmo-nos para
o recolhimento espiritual e para a oração”. Certamente que estas reflexões não são as de um simples
turista.232
Leão Dehon considera os dias passados em Jerusalém como muito importantes para a sua vida; a
sua fé se fortalece, a sua esperança cresce, a sua piedade se aprofunda. Quantas inesquecíveis recordações!
A 26 de Março de 1865, depois de ouvir missa na capela da flagelação, os dois amigos percorrem
devotamente o Caminho da Cruz até ao Gólgota. “Senhor Jesus, escrevendo estas recordações - afirma o P.
Dehon nas Memórias – percorro em espírito o caminho da cruz, ofereço-te de novo todos os méritos da tua
paixão para expiar os meus pecados... O Santo Sepulcro! Que construção oferece no mundo maiores
recordações? Ali, sobre aquela rocha foi crucificado Cristo e aqui em baixo foi sepultado... Não é na
primeira visita que se pode meditar com calma estes mistérios. Primeiro experimenta-se uma profunda
emoção, um misterioso tremor que tomam posse do humilde peregrino. Terá de voltar com frequência,
rezar, reflectir, comungar, participar no santo sacrifício para saborear as graças deste santuário, e a
recordação dos lugares santos o ajudará por toda a vida na contemplação dos mistérios da nossa
salvação”.233
São fortes experiências religiosas, não contaminadas pelos inevitáveis contrastes que ressaltam as
divisões das diversas igrejas cristãs, até no santo Sepulcro, o lugar mais santo do cristianismo.
A grande cúpula que cobre este santuário está tão deteriorada que chove dentro como na rua, Os
latinos católicos e os gregos ortodoxos não se põem de acordo para restaurá-la. Estes possuem a parte
maior da igreja do santo Sepulcro, porém também outros ritos e outras raças têm a sua parte. É um pobre
santuário dividido e disputado. E, para colmo da ironia, a manutenção da ordem está confiada à polícia

231
NHV III, 148-149: cf. Voyage d’Orient, c. V, 132-135v. A narração do “Diário da viagem do Oriente” é muito mais
detalhada. Texto de Leão Dehon e de Leão Palustre.
232
AD, B 18/9.
233
NHV III, 150-151; cf. Voyage d’Orient, c. V, 133-135v: Texto de Leão Palustre.

57
turca. “Que impressão tão dolorosa se sente vendo o sepulcro de Cristo devastado por estas lutas!... Ali se
compreende verdadeiramente que Deus tem paciência e também os seus tempos”.234
Resulta impossível seguir os dois jovens peregrinos por todos os dias da sua estada em Jerusalém.
Recordam a visita ao Horto e ao Templo. “O Horto de Getsémani conta com nove oliveiras seculares que,
segundo a tradição, remontam ao tempo de Nosso Senhor. Os franciscanos têm um especial cuidado por
estas árvores tão venerandas. No jardim vêem-se as pedras sobre as quais dormiram os apóstolos. Uma
coluna assinala o lugar do beijo de Judas e a ampla gruta da agonia. Lugares santos que se pisam tremendo.
Faz bem a oração e a reflexão naqueles lugares, especialmente na solidão da manhã ou da noite. A
imaginação revive facilmente os sagrados mistérios da paixão. A alma pode abandonar-se às suas
impressões e manifestar ao seu Salvador todo o seu amor e todo o seu agradecimento”.235
Os dois jovens conseguem a licença para visitar o templo. Tem de se ir às seis da manhã por
precaução. O fanatismo dos muçulmanos não tolera que os infiéis entrem nas suas sagradas mesquitas. De
facto, apesar da licença do paxá, da hora serôdia e da presença de soldados com armas, há fanáticos que
atiram pedras contra o grupo de visitantes.

OS ARREDORES DE JERUSALÉM

De 30 de Março a 1 de Abril, em três dias, os jovens visitam o Mar Morto, o Jordão, Jericó e
Betânia.
A caravana é composta por um jovem maronita chamado Jorge, uns medíocres cavalos que, porém,
galopam quando são obrigados, um mulo com a tenda e as provisões, e uma escolta de beduínos, armados
com carabinas. O caminho não é mais que uma vereda mal traçada; o leito da corrente está seco; as colinas
são argilosas e áridas. Depressa o vale se transforma numa profunda garganta, estreita e selvagem, um
barranco deserto, silencioso, solene...”Este lugares austeros falam à imaginação e são adequados ao retiro e
à oração. Os ascetas dos primeiros séculos escolheram a solidão nas grutas desta garganta. Mais tarde
agruparam-se para levar uma vida monástica. Daí surgiu aquele imponente mosteiro que de repente se nos
apresenta à saída da desfiladeiro”.236 É o mosteiro ortodoxo de S. Sabas, uma verdadeira fortaleza que,
porém não foi sempre capaz de proteger os seus habitantes da rapacidade dos árabes. São bons monges,
que todavia não abrem a sua pequena porta de ferro ao primeiro que chega. Descem do alto do muro um
cesto em que os hóspedes colocam as suas cartas de recomendação. Os nosso dois jovens trazem uma carta
do seu patriarca. São acolhidos com amabilidade e oferecem-lhes um refresco.
No dia seguinte visitam o Mar Morto e o Jordão. Depois de hora e meia de marcha sobre colinas
áridas, aparece o Mar Morto, com o seu cordão de montanhas escuras e escabrosas; mas a decida é ainda
longa, por uma passagem estreita e selvagem. São necessárias ainda quatro horas para chegar à margem.
Ao longe divisa-se o monte Nebo, consagrado pela morte de Moisés. Aparece também um grupo a cavalo.
Os quatro beduínos da escolta vêem-nos, pensam que são ladrões e querem fugir. Os dois jovens
conseguem dissuadi-los, mostrando maior coragem do que a sua escolta armada; no fim encontram-se...
com dois turistas como eles.
“As margens do Mar Morto estão todas impregnadas de sal. Todavia ainda se encontra alguma
planta. A água é clara, transparente, enganadora. Pode-se tomar banho facilmente. A densidade da água
impede que se afunde. Sai-se completamente coberto de sal. Aquela água tem um sabor a Sodoma e
Gomorra”.237 Depois de ter comido sobre a areia, dirigem-se para o Jordão. O rio corre entre margens
cobertas de vegetação. “O vau onde se detêm os peregrinos é um dos lugares mais fascinantes da Palestina.

234
NHV III, 152.
235
NHV III, 157-158; cf. . Voyage d’Orient, c. V, 139v-140: O texto é de Leão Palustre e acerca das nove oliveiras conta-nos
alguns detalhes interessantes... “O jardim de Getsémani contém oito velhas oliveiras. De uma só resta metade, e o tronco está
rachado até à base; outra está dividida em três ou quatro partes, todas ocas e só com pequenos ramos. Outra oliveira, a nona, tem
um recinto à parte... Estas árvores encontram-se agora no meio de um belo jardim. O Padre guardião quis apanhar para nós dois
pequenos raminhos. Não podia fazer-nos um dom mais precioso”.
236
NHV III, 166-167; cf . Voyage d’Orient, c. V, 145v-147v: O texto é de Leão Dehon. Neste texto se inspiram as Memórias,
com alguma imprecisão.
237
NHV III, 169; cf . Voyage d’Orient, c. V, 147v-149; o texto é de Leão Palustre.

58
S. João Baptista era também artista e escolhia bem os lugares onde queria atrair as pessoas... Imergem-se
com fé na água para renovar as graças do baptismo”.238
Durante a noite acampam junto à fonte de Eliseu, de onde saem dois riachos que vão irrigar a fértil
planície de Jericó.
Subindo no dia seguinte para Jerusalém, encontram-se com uma pitoresca caravana de um milhar
de peregrinos gregos e russos que vão banhar-se no Jordão.
Depois de horas de marcha por montes e vales, chegam a Betânia “a amável pátria dos amigos do
Salvador”.239 É uma risonha colina, bem cultivada, com uma pequena aldeia muçulmana. Por baixo da
aldeia, na pendente da colina, está o túmulo de Lázaro. “Nada é tão comovente como as lembranças de
Betânia. Parámos no alto da aldeia, ao longo do caminho da Galileia, para ler o capítulo XI de S. João e
evocar a cena tão dramática que ali teve lugar quando Marta e Maria foram, uma a seguir à outra, ao
encontro do Salvador; quando Jesus as viu chorar e, pensando no seu amigo Lázaro, também ele se pôs a
chorar... Compreendemos bem naquele sítio a ternura do Coração de Jesus. À tarde voltamos para
Jerusalém pelo caminho que tantas vezes o Senhor percorreu”.240

OS GRANDES DIAS

Não nos é possível seguir os dois jovens em toda a sua visita , atenta e minuciosa, a Jerusalém, a
Belém, a Hébron, a S. João do deserto, etc... Todos os detalhes podem ser lidos nas Memórias do P. Dehon.
Deter-nos-emos agora no momento religioso culminante da estada de Leão Dehon e do seu amigo
em Jerusalém: a Semana Santa.
“Os grandes dias da Semana Santa em Jerusalém são mais emocionantes do que se possa dizer.
Com temor seguem-se todos os passos da paixão e da ressurreição. A cada hora do dia, contemplando os
sagrados mistérios, pode-se dizer: aqui aconteceu, ali sofreu, acolá derramou o seu sangue. Tive impressões
tão profundas que me serviram de ajuda para a contemplação ao longo da minha vida”.241
A 9 de Abril, domingo de Ramos, os dois peregrinos assistem à benção dos ramos pelo patriarca
latino, Mons. Valerga; tomam parte na procissão, dando a volta ao Santo Sepulcro. Tropas turcas mantêm a
ordem bastante dignamente. À tarde peregrinam de nova até Betânia para lembrar a entrada triunfal de
Jesus em Jerusalém. Na tarde de quarta-feira santa, Leão Dehon, feliz e emocionado, venera a coluna da
flagelação. Quinta-feira santa comunga no Santo Sepulcro e à tarde assiste à cerimónia do Lava-pés e ao
ofício das Trevas. São ritos recolhidos e edificantes presididos pelo Patriarca.
Sexta-feira santa de manhã, na capela do Calvário, ouve o sermão da Paixão em várias línguas,
sermão perturbado pelo vaivém dos gregos, que preparam a solene cerimónia do fogo para o dia seguinte.
Ocupam a tarde fazendo uma devota Via sacra pelo Caminho da Cruz.
O sábado santo é dia agitado pela cerimónia do fogo sagrado dos gregos e dos arménios. “É um
penoso escândalo. Todos os anos dão-se rixas sangrentas. Os turcos revistam todas as pessoas que assistem
que neste dia entram no Santo Sepulcro a fim de confiscar possíveis armas. Os guardas asseguram-se de
que não levamos connosco facas. Os dois patriarcas cismáticos favorecem a superstição popular e deixam
que os seus compatriotas acreditem que o fogo sagrado desce do céu. Parece que é para eles uma boa
ocasião de vender círios. O fogo obtém-se do sílex. O povo quer acender um grande número de círios no
fogo sagrado para levá-los, como talismãs, para a Rússia e a Arménia. Assisto a esta cerimónia a partir de
uma das tribunas (do Santo Sepulcro). No momento solene soltam-se gritos de alegria, começa a desordem,
a chama rósea dos círios vacila no meio de uma densa fumarada. É um espectáculo sinistro que bem
poderia ter inspirado Dante a descrever o seu inferno”.242
238
NHV III, 170; cf . Voyage d’Orient, c. V, 149-149v. O texto é de Leão Palustre e especifica melhor: “Procuramos tomar
banho nas sagradas águas do Jordão, mas o rio era tão impetuoso que nos foi impossível nadar. Com dificuldade podíamos
segurar-nos de pé”.
239
NHV III, 172; cf . Voyage d’Orient, c. V, 152 - 152v; o texto é de Leão Dehon.
240
NHV III, 173; cf . Voyage d’Orient, c. V, 152v: o texto é de Leão Dehon.
241
NHV IV, 1; cf . Voyage d’Orient, c. VI, 9-23: o texto é em grande parte de Leão Dehon.
242
NHV IV, 4-5; cf . Voyage d’Orient, c. VI, 19-20: o texto é de Leão Palustre e é muito mais detalhado e exacto que a narração
das “Memórias”.

59
A 10 de Abril, Leão escreveu uma carta a seus pais: “Aqui, a nossa estada é um descanso; estamos
alojados num convento. Assistimos às cerimónias (da Semana santa). Enviamo-vos daqui uma caixa com
muitas preciosas lembranças... Na Palestina, todos os lugares estão cheios de santas lembranças”.243
Durante a sua viagem a Oriente, Leão envia várias caixas e pacotes à família: uma caixa do S.
Gotardo com minerais, uma caixa da Grécia, duas caixas e uma maleta do Cairo, duas caixas de Jerusalém
e duas de Beirut.
Na mesma carta de 10 de Abril, alonga-se falando de todos os lugares santos que visitou e, acerca
do Jordão afirma, como nas Memórias: “No lugar onde foi baptizado Nosso Senhor metemo-nos
piedosamente na água”. E acrescenta: “Envio-vos vários frascos desta água bendita”.244
No jovem Dehon adivinham-se já as características da piedade simples e sentida do P. Dehon; o seu
amor pelas relíquias, a veneração pelos santuários e pelos lugares e objectos sagrados.
No dia de Páscoa, Leão Dehon assiste ao pontifical de manhã e faz uma visita de despedida aos
lugares e santuários da cidade que mais o impressionaram, especialmente o vale de Josafá, tão cheio de
recordações e de poesia.

NO CAMINHO DO REGRESSO.

Já chegou o momento de tomar o caminho de regresso.


“Deixamos Jerusalém pela manhã (segunda-feira 17 de Abril), não sem tristeza. Os santos lugares
de Palestina, apesar do seu lamentável estado, são soberanamente fascinantes. Compreendo o entusiasmo e
os sacrifícios dos cruzados para libertar aqueles lugares, testemunhas dos mistérios de amor do Redentor.
Tomamos o caminho de Naplus e do alto do monte Scopos, fixamos longamente uma vez mais os nossos
olhos comovidos na cidade santa”.245
O momento alto da viagem ao Oriente já passou. A experiência religiosa foi intensa. Com o coração
Leão chegou já a outra cidade santa, Roma, meta final da sua longa viagem.
Numa carta de Patras de 17 de Novembro de 1864, a viagem a Roma vislumbra-se só como
provável. Depois dos dias passados em Jerusalém, a viagem a Roma é já para Leão uma certeza: “espero
passar oito dias em Roma, nos fins de Junho. Procurarei ver o Santo Padre. Para isso é preciso que me
mandeis a Roma um fato de cerimónia; casaco, calças, colete negro ou branco, gravata branca e camisa.
Esta é a direcção que deveis colocar na caixa: Ao sr. Palustre ou ao sr. Pizzocheri, Corso n. 391, 1º andar,
Roma”.246 Entretanto enviou a partir de Jerusalém à família muitas fotografias para que estejam certos de
que ele está bem e goza de boa saúde.247
Também nós iremos depressa no nosso relato, assinalando os acontecimentos mais significativos da
viagem de regresso. Abundância de detalhes e de notícias encontrá-los-á o leitor nas Memórias do P.
Dehon.
Os jovens param em Siquém. “Aos pés do Garizim está o poço da Samaritana... É bom descansar e
rezar onde Jesus descansou, onde tanta bondade demonstrou com a pobre pecadora da Samaria. Ali
voltamos a ler as páginas do Evangelho que narram este episódio da vida do Salvador”.248
Sobem ao monte Tabor. A subida, a princípio suave, torna-se íngreme e difícil, tanto que os dois
jovens se vêem obrigados a subir a pé levando os cavalos pelas rédeas: “É provavelmente o lugar da
transfiguração... O panorama que se divisa é certamente um dos mais belos da Palestina: estende-se desde
o mar de Tiberíades até ao Mediterrâneo”.249
Visitam com emoção o lago de Genesaré, de águas azuis, quietas durante o dia e agitadas à noite.
Cafarnaúm é uma amasso de informes ruínas. “Ali ficava Jesus com frequência. Quereríamos ler e meditar

243
AD, B 18/9.
244
AD, B 18/9.
245
NHV IV, 5-6; cf. Voyage d’Orient, c. VI, 23-24.
246
AD, B 18/9. Carta de Jerusalém de 10.4.1865.
247
cf. AD, B 18/9. Carta de Jerusalém de 10.4.1865.
248
NHV IV, o; cf. Voyage d’Orient, c. VI, 30-31.
249
NHV IV, 13; cf. Voyage d’Orient, c. VI, 41-44: o texto é de Leão Dehon.

60
longas páginas do Evangelho, porém o tempo premia. Cada passo naqueles sagrados lugares dá produz
uma nova emoção e suscita uma oração”.250
Finalmente, a 23 de Abril, os dois viajantes estão em Nazaré. Leão tem a alegria de comungar na
igreja da anunciação. “As impressões de Nazaré são diferentes das de Jerusalém: são mais suaves; são
graças de oração, de caridade, de pureza. Em Jerusalém são graças de perdão, de amor a Nosso Senhor, de
força para a alma... Gostaria de passar aqui um pouco mais de tempo para meditar a meu gosto a vida
oculta da Sagrada Família”.251 Dali seguem viagem pela Galileia até ao Líbano. Cavalgam de dia, de noite
dormem em tenda.
Visitam as ruínas de Tiro, a orgulhosa cidade castigada por Deus. “Ela é hoje o que Ezequiel
profetizou (cap. XXVI). A ilha rochosa sobre que a cidade estava assente é agora pedra nua. As colunas, os
mármores dos seus templos e dos seus palácios jazem debaixo das ondas do mar e as redes dos pescadores
estendem-se a enxugar sobre aquelas ruínas. Aquele espectáculo foi certamente um dos mais
impressionantes da minha viagem... Tiro não conserva do seu esplendor mais do que o belo panorama
sobre o mar e sobre as montanhas do Hermon e do Líbano”.252
Visitam Sídon, Beirut e no norte do Líbano encontram-se entre uma população cristã, muito mais
educada e hospitaleira que os muçulmanos: “O povo maronita parece profundamente piedoso, doce e
trabalhador. Enquanto vão buscar água, as mulheres rezam o terço. Homens e mulheres ajoelham-se ao
Angelus e rezam-no olhando para Oriente”.253
Numa carta que Leão escreve a seus pais de Sídon a 27 de Abril de 1865, descobrimos outras
facetas espirituais e religiosas que serão típicas do P. Dehon e que sobressaem nas Memórias: o seu amor à
Escritura e o seu espírito predisposto para a devoção. Sobre o Carmelo escreve: “Ali a Santíssima Virgem
deu aos homens o escapulário como hábito protector”. Em Nazaré recebeu a comunhão “na gruta, diante da
qual se encontrava a casa que agora se venera no Loreto”. Por devoção, banha-se no lago de Tiberíades.
Impressionam-no as ruínas das “cidade malditas e desaparecidas de Cafarnaúm e Betsaida” (cf. Lc 10, 13-
15; Mt 11, 20-24). O mesmo de Tiro e Sídon: “as antigas rainhas do mar não são mais que aldeias. Só o seu
nome ficou como o tinha anunciado a Escritura” (cf. Is 23; Ez 26-28; m 1, 9-10).254 Parecem observações
de um seminarista; e é um jovem de 22 anos que escreve, não num diário pessoal, em que poderia ter
manifestado com a máxima liberdade a sua vida íntima, mas em cartas para a família com a qual, embora
tendo confiança, também guarda uma certa reserva quando manifesta os seus sentimentos pessoais. As
cartas do Oriente revelam-nos que a sensibilidade religiosa do jovem Leão Dehon é intenção e talvez mais
profunda do que se pode intuir nas Memórias, escritas dezenas de anos depois, quando Leão já á sacerdote
e fundador de um Instituto religioso. As 28 cartas do Oriente são o primeiro e precioso documento
contemporâneo que se deve comparar com as Memórias, como prova da sua veracidade, não só em relação
aos factos, mas também às convicções, aos juízos,. Aos sentimentos religiosos de jovem Leão Dehon. A
comparação resulta positiva para além do que se poderia esperar. Provas convincentes, embora menos
confidenciais, colhem-se no diário da viagem a Oriente escrito com Leão Palustre.
Os dois jovens turistas deixam a costa do Mediterrâneo, sobem as montanhas do Líbano, admiram
enormes e antiquíssimos cedros. Chegam às ruínas romanas de Balbeck: “são grandiosas e pitorescas”.255
Sobem ao Líbano debaixo de chuva, batidos pelo vento e o frio: “Foi uma das mais duras jornadas da nossa
vigem”. Hospedados numa casa turca, descem no dia seguinte ao vale de Barada e chegam a Damasco.
Embora em festa, a cidade apresenta “uma aspecto triste e monótono”. Leão tem a alegria de assistir à
missa no bairro cristão e na capela que, segundo a tradição, era a casa de Ananias. “Pedi ao Senhor que
reforçasse a minha conversão e vocação pela intercessão de S. Paulo. Não tinha dúvidas sobre o caminho

250
NHV IV, 16-17; cf. Voyage d’Orient, c. VI, 48-52: o texto é de Leão Dehon que demonstra um bom conhecimento do
Evangelho.
251
NHV IV, 19; cf. Voyage d’Orient, c. VI, 53-56.
252
NHV IV, 29-30; cf. Voyage d’Orient, c. VI, 69-70. O texto é de Leão Dehon e inspira em parte o texto das Memórias.
253
NHV IV, 35; cf. Voyage d’Orient, c. VI, 85-87. O texto é de Leão Dehon e é igual ao do das Memórias relativamente ao juízo
sobre os cristãos maronitas de Botroum e, sobre tudo, de Trípoli.
254
AD , B 18/9.
255
NHV IV, 38; cf. Voyage d’Orient, c. VI, 85-101.

61
que tinha que seguir, porém tinha que vencer a oposição dos meus pais. A oração encorajava-me e
fortalecia-me”.256
A 10 de Maio de 1865, estão de novo em Beirut, onde embarcam a 12 para Larnaca (Chipre), Rodas
e Esmirna onde chegam a 18 de Maio. Aproveitam para fazer uma visita a Éfeso e para rezar nos lugares
santificados por Maria e pelo apostolado de S. João e de S. Paulo.
A 20 de Maio, partem de Esmirna e, pelos Dardanelos, chegam a 25 a Constantinopla. “É um
espectáculo fabuloso. Santa Sofia e a mesquita de Ahmed com as suas bandas brancas e rosadas, as suas
solenes cúpulas, uma selva de minaretes, o Serralo (palácio) e os seus maravilhosos jardins...; depois o
Corno de ouro com as suas numerosas embarcações paradas ou em movimento...; nada na Europa se pode
comparar com este esplêndido espectáculo”.257
Em Constantinopla ficam seis dias.

EM DIRECÇÃO A ROMA

Agora a vagem de Leão é rápida. O interesse pelos lugares, as cidades, os monumentos, vai
enfraquecendo. O seu coração e o seu desejo estão noutro ligar.
A 1 de Junho, os dois jovens amigos deixam Constantinopla; embarcam de novo, entram pelo
Bósforo no Mar Negro e chegam a Constança. Seguem o Danúbio até às Portas de Ferro. Desde aqui
dirigem-se de combóio para Budapeste e Viena. Em Salzburgo os dois amigos separam-se a 10 de Junho.
Leão Palustre toma o expresso para a França, chamado a casa pela morte de uma sobrinha, e Leão Dehon
dirige-se para Roma. As extensas notas turísticas acabam com uma certa sensação de cansaço: “No dia
seguinte (11 de Junho), partia para Roma com demasiada pressa para poder escrever as minhas
impressões”.258 Leão suspira por chegar à cidade eterna para ver e, se for possível, falar com o Papa. Já não
é a paixão turística o que o atrai. Tudo passou depressa. Em Viena Leão aborreceu-se.
Sente saudades de La Capelle. Bastariam “cinquenta horas de viagem” para voltar a abraçar os seus
entes queridos... “Parto amanhã de manhã; passarei em Florença de 15 a 18 e a 20 estarei em Roma durante
15 dias. Escrever-vos-ei ainda de Florença; escrevei-me também vós para Roma “a posta corrente”.
Hospedar-me-ei no hotel da Minerva. Terei cartas de recomendação de Mons. Dupanloup; escrevi-lhe
como também ao Rev. Demiselle”. Ia a Roma mais “por negócios” do que para “visitá-la”. Tinha escrito na
carta de Constantinopla de 30 de Maio de 1865. O negócio dos negócios é decidir como poderia realizar a
sua vocação sacerdotal, onde fazer os estudos eclesiásticos, etc. “Será o melhor dia da minha viagem”.259
A permanência em Florença é muito breve: “Não pude mais que deitar uma olhadela sobre as
inumeráveis obras primas que os Médicis acumularam nesta Atenas moderna”.260
Também em Lucca e em Pisa, uma visita de poucas horas. Com o desejo e com o coração, Leão já
está em Roma.
E, de facto, chega a 20 de Junho de 1865: “Terça-feira pela manhã cheguei aqui, tremendo de
involuntária emoção... Cada passo aqui evoca uma recordação, todo o solo é digno de veneração... Roma,
nobre e santa...”.261 Estava para realizar o ideal entrevisto na longínqua noite de Natal de 1856 em
Hazebrouck: ser sacerdote, religioso, missionário e também mártir! Pelas Memórias conhecemos as graças
que Leão recebeu nesta sua breve estada em Roma (20 de Junho – 1 de Julho de 1865); a primeira de todas,
a audiência privada de Pio IX e o seu conselho de fazer os estudos no seminário francês de Santa Clara. A
segunda graça, o encontro com o P. Melchior Freyd, um verdadeiro “homem de Deus, um santo”, que será
até a sua morte (1875) o grande director espiritual de Leão Dehon.262
Roma, desde aquele primeiro dia, impressionou-o vivamente: “Fiquei deslumbrado pelos grandes
santuários: S. Pedro, S. Paulo, Santa Maria Maior, S. João de Latrão. Era a nova Jerusalém, toda viva e

256
NHV IV, 39-42.44; cf. Voyage d’Orient, c. VI, 101-122. C. VII, 1-4; AD , B 18/9.
257
NHV IV, 65-66; cf. Voyage d’Orient, c. VII, 47-83.
258
Voyage d’Orient, c. VII, 112.
259
AD, B 18/9. Carta de Viena de 9.6.1865.
260
AD, B 18/9. Carta de Florença de 17.6.1865.
261
AD, B 18/9. Carta de Roma de 25.6.1865.
262
NHV IV, 99.

62
esplendorosa. É a ressurreição, enquanto que a antiga Jerusalém ficou imersa na tristeza da paixão e da
morte do Salvador”.263
Acrescentamos a óptima impressão que teve dos cursos de Teologia na Universidade Gregoriana.
Leão encontrou-se imediatamente à vontade. “Pareceu-me estar em casa... Já estava em paz... Tinha
realizado em Roma o que tinha proposto,. A minha vocação estava assegurada. Era a coroação das minhas
viagens”.264
Podia regressar a casa, à sua família, a La Capellle, onde sua mãe tinha passado um ano de medo e
de angústia interrogando-se se voltaria a ver a seu filho.
“Lancei-me nos braços de minha mãe. Que alegria experimentámos os dois !”265
Sabemos que a alegria depressa se viu ensombrada em seus pais pela irrevogável decisão de Leão
de iniciar , depois das férias de verão, os seus estudos seminarísticos em Roma. Disputas, prantos, cenas.
Uma simples constatação: Henrique constituiu a sua família; sem Leão, a casa ficará fria e vazia. Porém
Leão é já de maioridade e decidiu, contra o seu temperamento dócil e maleável, levar a cabo na Cidade
Eterna os estudos de preparação ao sacerdócio, mesmo contra a vontade dos seus pais.
Foi necessário ceder. O único apoio encontrou-o Leão na avó paterna, Henriqueta Ester Gricourt.
Numa carta datada em Roma a 6 de Dezembro de 1865 Leão escreve a seus pais: “Dizei a “Mamã Dehon”
(a avó paterna) que tinha razão quando dizia: será feliz, se é a sua vocação”.266
A 14 de Outubro de 1865, Leão sai de La Capelle e parte para Roma: “Os meus bons pais levaram-
me a Nossa Senhora de Liesse e acompanharam-me até à estação de St-Erme”. Aí se fizeram os últimos
adeus, “não sem amargas lágrimas. Meu pai e minha mãe choravam. Como poderia eu conter as
lágrimas?”. Estas despedidas confirmaram-lhe que certos sacrifícios não se fazem sem dilacerações,
“mesmo quando a parte superior da alma experimenta uma verdadeira alegria sobrenatural”.267 A 14 à noite
será hóspede do amigo Cónego Demiselle em Soissons. A 19 de Outubro, atravessa o Monte Cenis com
“diligências puxadas, cada uma, por dez ou doze mulas”.268 “Havia muita neve e fazia muito frio”.269 A 20
está em Turim e a 25 chega a Roma.

263
NHV IV, 96-97.
264
NHV IV, 98-99.
265
NHV IV, 99.
266
AD, B 18/9.
267
NHV IV, 102-103.
268
NHV IV, 116.
269
AD, B 18/9. Carta a seus pais de Turim de 20.10.1865.

63
CAPÍTULO 5

Seminarista em Roma

“Era feliz” – O seminário de Santa Clara e o P. Freyd – Os estudos na Gregoriana – “A água é mais pura na nascente” – Férias em família – Estudos
pessoais – Roa cristã – Retrato do jovem Leão Dehon.

ERA FELIZ

A 25 de Outubro de 1865, Leão passou pela porta do seminário francês, Santa Clara, de Roma.
“Estava finalmente no meu verdadeiro elemento; era feliz”.
O seminário é um vetusto edifício, estreito, todo projectado para o alto, escuro e triste no seu
interior... “Não importa, era feliz”.270 Deram-lhe um quarto no quinto andar. Mesmo não tendo nada de
atraente, Leão realizava finalmente a sua vocação: dar-se totalmente a Deus no sacerdócio; era feliz.271
Os motivos de alegria voltam várias vezes nas cartas que, de Roma, escreve Leão a seus pais:
“Espero que a saúde e a alegria reinem em La Capelle como aqui” /26.10.1865). Pela festa de Todos os
Santos (1865) veste pela primeira vez o hábito talar, assistindo ao ofício na Capela Sixtina. Está contente
porque o seu “novo hábito” foi assim benzido pelo Papa (3.11.1865). “Estou sem preocupações, a gosto e
na mais perfeita paz (12.11.1865). “Estai satisfeitos em saber que aqui sou feliz, contente e de saúde...”
(6.12.1865). “Sou cada dia mais feliz por me encontrar em Roma” (27.12.1865).
Outra expressões de alegria e de satisfação afloram em cartas posteriores, em que Leão fala das
delícias que experimenta no serviço de Deus (10.1.1866), da satisfação sempre crescente pela sua vocação
(5.3.1866); deseja encontrar-se durante as férias com os seus pais e falar-lhes da beleza da sua vocação e
comunicar-lhes a alegria e a confiança na Providência (22.5.1866).
Enquanto Leão escreve que a sua “alegria íntima é sempre a mesma” e que está cada vez mais
contente da chamada de Deus ao sacerdócio, em La Capelle havia preocupação pela sua saúde, além da
tristeza pelo efectivo vazio deixado pela sua ausência.
Leão assegura a seus pais que a regra do seminário favorece tanto a saúde como os estudos.
Levanta-se às cinco, deita-se às nove (oito horas de repouso). Às 7 pequeno almoço, almoço às 12,30: sopa,
dois pratos de carne, verdura e fruta. Jantar às 20,00: sopa, um prato de carne e doce. Toma-se vinho e o
pão é muito bom (26.10.1865). Além disso há a merenda, depois do passeio de uma hora todos os dias e de
três às quintas-feiras, domingos e festas (3.11.1865). Roma e os seus arredores reservam sempre alguma
surpresa. As festas religiosas alegram sempre alguma igreja. Não há aborrecimento. Além disso, duas vezes
por dia Leão vai à s aulas `Universidade Gregoriana (Colégio Romano). Movimento, comida abundante,
repouso, por que preocupar-se? “Se quiserdes farei que me fotografem de novo para que vejais que bom
aspecto tenho” (23.11.1865).
Eram também frequentes as excursões de vários dias às colinas romanas (20.2.1866), a Óstia
Antiga (22.5.1866).
Afastadas as preocupações pela saúde, mantinha-se incurável a tristeza pelo vazio afectivo, a
longinquidade de Leão: “A vossa carta – escreve aos pais – tem um fundo de tristeza que me inquieta.
Temo que vos falte confiança em Deus” (24.4.1866).
270
NHV IV, 123.
271
Assim escreve numa carta a seus pais: “O meu quarto é modesto, mas muito limpo e salubre. Está no alto, bem arejado,
voltado para o poente. Tenho uma cama, uma mesa, duas cadeiras, um armário, um guarda-roupa. É no quinto andar. Sobre a
casa estendem-se amplos terraços para o recreio com amplas vistas sobre Roma” (26.10.1865. E particulariza em carta de
12.11.1865: “O meu quarto está certamente no alto, porém é novo e portanto desconhecido para os insectos. É mais agradável
que os dos andares inferiores. De resto, morei porventura menos no alto em Paris?”, Em Maio ocupará um quarto mais fresco
para o verão no quarto andar (carta de 6.5.1866) e em Maio de 1868 no terceiro andar (carta de 17.7.1868). Para as cartas de
Roma de Leão Dehon, cf. AD, B 18/9.

64
Devia haver também preocupações económicas por algum negócio que não teve bom resultado já
que na carta de 1 de Novembro de 1866 Leão convida os seus pais a “oferecer a Deus o sacrifício” das
suas “últimas perdas de dinheiro e a pedir-lhe que não lhes envie grandes provas”, Especialmente as cartas
dos dois primeiros anos de seminário se caracterizam pela alegria de Leão e tristeza invencível de seus
pais: “A carta da mamã apresenta um ar de tristeza que gostaria que desaparecesse” (13.11.1866). Ai pai
escreve: “Tu lamentas as honras e riquezas para mim, e pensas que o meu amor por ti diminuiu. Estás
enganado...” (14.1.1867). “desejo que desapareça de ti essa tristeza a que te abandonas sem motivo”
(2.5.1867).
“Disse confidencialmente (o meu superior) que estava desolado por saber-vos tristes e doridos”
(carta de 12.2.1867”. “Frequentemente estou com o pensamento em vós e alegro-me por terdes Henrique, a
Laura e Marta como lenitivo da tristeza à qual sois um pouco inclinados” (20.11.1867).
É a última alusão à tristeza que durou dos anos.
Se queremos ser objectivos, o edifício do seminário de Santa Clara, também pela sua situação, não
era no tempo do P. Dehon muito salubre. É verdade que nas cartas aos pais afirma sempre que está
satisfeito; e era sincero. Este optimismo é um dos rasgos simpáticos do carácter de Leão. É a sua maneira
habitual de avaliar as pessoas e as coisas. Além disso sabe contentar-se com pouco. É sóbrio e moderado.
O próprio P. Dehon, falando um dia dos anos do seminário, afirma em tom humorístico que
“acampara num andar muito alto, porém não muito bonito. Agora desapareceu pelos trabalhos que, em
anos sucessivos, se levaram a cabo. Tínhamos quartos miseráveis, corredores tortuosos e escuros e uma
escada, tão empinada, que parecia escada de mão”. Era um ambiente frio e húmido, onde Leão, afectado
por certa forma de linfatismo, ganhava frieiras no inverno por semanas inteiras.
Todavia a felicidade no início é só para Leão, mas ao fim é também para os seus pais. Este
importante período da sua vida, que para o seu pai e a sua mãe começou na tristeza e no pranto, acabou na
alegria, especialmente para o pai Dehon, que voltou à prática da vida cristã por ocasião da ordenação
sacerdotal do seu filho.
Pouco depois da sua entrada, o jovem seminarista fez com grande fervor os exercícios espirituais
pregado pelo Jesuíta P. Rubillón, vivendo profundas impressões.
Todavia os exercícios espirituais de S. Inácio tinham algumas características que não estavam em
harmonia com as exigências mais íntimas de Leão. Deixavam passar demasiados dias antes de falar do
amor de Deus.
Aqui aparece um aspecto característico da sua espiritualidade, muito bem sintetizada por Cristiani:
“O P. Dehon só amou o coração”:272 o coração do homem e, sobre tudo, o coração de Cristo.

O SEMINÁRIO DE SANTA CLARA E O P. FREYD

O ambiente do seminário francês era excelente, sob todos os pontos de vista, tanto quanto aos
superiores como quanto aos alunos. Em Santa Clara renova-se para Leão, com mais maturidade, a
experiência espiritual de Hazebrouck.273
O seminário Francês desejado por Pio IX, juntamente com outros seminários como o Lombardo, o
Pio Latino-Americano (1858), o Norte-Americano (1859), assegurava a educação “romana” dos jovens
sacerdotes de língua francesa e fomentava neles a adesão ao Papa.
Tinha sido fundado pelo P. L. M. Barazer de Lannurien em 1853 e organizou-o o P. Melchior
Freyd, dos Padres do Espírito Santo. Pio IX aprovou-o a 14 de Maio de 1859 e também a 24 de Maio de
1867. Tinha como protector o Cardeal Vigário. Os seminaristas usavam uma veste talar com faixa negra e
um manto também preto.
Alma do seminário era o Reitor, p. Melchior Freyd, confessor e director espiritual de Leão: “Era um
verdadeiro religioso. Durante seis anos encontrei-o sempre igual na sua direcção, sempre piedoso, sempre
unido a Deus e animando a esta união com Deus... Recebia-me de quinze em quinze dias para a direcção...;
272
L. Cristiani, Le Père Dehon, 6.
273
Os alunos do seminário francês em 1865 são 70 “de toda as parte da França” (carta de 3.11.1865). Em 1866 reduzem-se para
45. Motivo: o medo de possíveis perturbações políticas (cartas de 1.11.1866 e 27.11.1866). Em 1867 são 48 (carta de
19.11.1867). Sobre os superiores e condiscípulos, a apreciação do P. Dehon é: “Os nossos superiores têm sempre para connosco
uma bondade verdadeiramente paterna e muitos dos meus condiscípulos são meus excelentes amigos” (carta de 19.11.1867).

65
ouvia-me de confissão todas as semanas, se o desejasse... A direcção do P. Freyd foi uma das grandes
graças da minha vida”.274
O P. Melchior Freyd nasceu em Geipolsheim (Baixo Reno) em 1819. Educado no seminário maior
de Estrasburgo, foi ordenado sacerdote em 1844. Em 1854, entrou na Congregação do Espírito Santo, da
qual foi Superior Geral, de 1848 a 1852, o Ven. Francisco Libermann (falecido a 2 de Fevereiro de 1852).
Em 1854, o P. Freyd foi nomeado superior do seminário francês, fundado apenas um ano antes. Em
1856, Pio IX deu ao seminário o convento e a igreja de Santa Clara em estado de ruínas. A igreja foi
reconstruída segundo o modelo de Nossa Senhora das Vitórias de Paris e ainda hoje pode ser admirada.
Em 1859, o P. Freyd demitiu-se e voltou para a França. Em 1863 assume de novo a
responsabilidade plena do seminário, especialmente em vista da formação dos estudantes cada vez mais
numerosos. Partidário convicto da infalibilidade pontifícia no tempo do Vaticano I, o P. Freyd teve uma
importância decisiva na orientação espiritual e sacerdotal de Leão. Morreu de pneumonia a 16 de Março de
1875.
O P. M. Freyd tinha bons colaboradores. Recordemos o P. Eschbach e o P. Daum “ambos
inteligentes e instruídos”.275 Encontrá-los-emos nos momentos mais delicados da vida do P. Dehon.
Também dos seus condiscípulos seminaristas, Leão afirma ter guardado “a melhor e mais edificante
recordação”.276 Descreve-os uma a um com as suas características, e de alguns recorda os cargos de grande
responsabilidade por eles desempenhados : “Por aquilo que chegaram a ser pode-se julgar o seu valor na
piedade e nos estudos. Aquele ambiente animava-me muito e edificava-me. Dou graças a Nosso Senhor”.277

OS ESTUDOS NA GREGORIANA

“Considero um grande favor da Providência o ter feito os meus estudos teológicos no Colégio
Romano”.278
O Colégio Romano, depois feito Pontifícia Universidade Gregoriana, foi fundado em 1551 por S.
Inácio de Loyola: Júlio III em 1552 concedeu-lhe a faculdade de conferir o doutoramento em Teologia e
Filosofia, com todos os privilégios das demais universidades. Mudou várias vezes de lugar, e cada sítio
revelou-se sempre insuficiente para conter os alunos que a ela acorriam de toda a Europa. Finalmente;
Gregório XIII encarregou a Ammanati a construção de um edifício apropriado. A inauguração teve lugar
em 1584. Em memória de Gregório XIII, o Colégio Romano toma o nome de Pontifícia Universidade
Gregorina. Depois de 1870 o edifício foi confiscado e converteu-se no actual Liceu Visconti com a anexa
ex-Biblioteca Nacional. Só em 1930 a Universidade Gregoriana teve uma nova sede na Praça della Pilotta.
O P. Dehon admirava, e com razão, a “Ratio Studiorum” dos Jesuítas que se seguia no Colégio
Romano. Tinha para os estudos a mesma importância que tem o livro dos exercícios de S. Inácio para a
vida espiritual.
Em 1875, ano em que começam as universidades católicas em França, Leão Dehon desejaria que os
seminários franceses se filiassem às universidades para que se elevasse o nível dos estudos seminarísticos e
os alunos pudessem aceder aos graus universitários. Faz, porém, esta amarga verificação: “Infelizmente, no
estado em que se encontra hoje a Igreja em França, não podemos esperar uma tal organização”.279
Os seminaristas franceses viviam sob o influxo do cartesianismo. Descartes tinha sido o grande
inimigo da Escolástica e, “modestamente”, tinha apresentado o seu sistema, não como uma filosofia , mas
como a filosofia por excelência. A sua dúvida metódica tinha-se tornado em escola de cepticismo. E o
antigo espírito cristão tinha-se secularizado. Era “o pecado do espírito”, observa o P. Dehon, “que ia
conduzir-nos ao laicismo moderno”.280

274
NHV IV, 138-139.
275
NHV IV, 140.
276
NHV IV, 143.
277
NHV IV, 148.
278
NHV IV, 148.
279
NHV IV, 150.
280
NHV IV, 159.

66
O P. Dehon é às vezes drástico nos seus juízos e nem sempre é totalmente objectivo. Todavia tinha
razão acerca do baixo nível dos estudos seminarísticos na França, estudos que deveria ter seguido ele
mesmo como preparação para o sacerdócio se tivesse escutado os conselhos de Mons. Dupanloup e do P.
Gratry, ambos desconfiados de Roma: “Aconselharam-me a estudar em S. Sulpício”.281
Como dissemos, foi durante o terceiro ano de universidade (1861-1862) aos 18 anos, que nasceu em
Leão Dehon o projecto de estudos superiores em favor do clero de França.282 Animaram-no neste sentido,
além do P. Gratry, o P. d’Alzon, Mons. Mermillot, Luís Veuillot e outras personagens famosas.
Porém da projectada obra de estudos de Leão Dehon e da sua vocação ao apostolado intelectual,
falaremos no momento da “grande decisão” de 1871.

“A ÁGUA É MAIS PURA NA NASCENTE”

Sabemos que Leão tinha escolhido fazer os estudos em Roma, rendendo-se a um raciocínio muito
simples: “A lógica do meu espírito dizia-me que a água é mais pura à nascente que no regato; a doutrina e a
piedade conseguem-se mais fácil e plenamente no centro da Igreja que noutro lugar”.283
Na realidade, as suas expectativas não o defraudaram. A tradição da seriedade nos estudos era
sólida na Universidade Gregoriana. Aí ensinava um grupo de eminentes professores: Perrone, Passaglia,
Schrader e, mais tarde, Franzelin, que tiveram um papel importante na preparação do dogma da Imaculada
Conceição e do Vaticano I.
Cada um tem uma característica diferente: mais escolástico e divulgador Perrone; mais profundos
Passaglia e Schrader. Apresentam uma eclesiologia que sublinha dois aspectos diferentes: por um Lado, a
acentuação da função do Papa na Igreja; por outro o aprofundamento da Igreja como corpo místico de
Cristo.
Alguém falou de uma eclesiologia estruturado sob o signo da autoridade, pressuposto teórico do
movimento ultramontano, porém estranho aos exageros dos ultramontanos, ou seja, dos que sustentam
teses exageradas sobre as prerrogativas do Papa, com exaltações barrocas do sumo Pontífice.
Leão Dehon é um entusiasta do P. Franzelin, que dominava maravilhosamente e de modo pessoal a
Tradição, a Escritura, os Padres, os dados da teologia especulativa e positiva. “As suas aulas – escreve o P.
Dehon – forma uma das maiores graças da minha vida”.284 De facto, João Baptista Franzelin foi um dos
mais prestigiosos teólogos do oitocentos. Nasceu em Aldino ou Aldein (Bolzano) em 1816 e morreu em
Roma em 1886. Entrado na Companhia de Jesus em 1850, foi chamado para a Gregoriana como ajudante
do P. Perrone. Ensinava também línguas orientais. Dominava-as perfeitamente, junto com o grego, o
alemão, o italiano, o francês, o polaco. De 1857 1 1876 teve a cátedra de dogmática. Fruto das suas doutas
lições foram vários tratados de Teologia que o tornaram célebre em toda a Igreja. Foi teólogo papal no
Concílio Vaticano I e Pio IX fê-lo cardeal em 1876. Alguns dos seus mais famosos tratados são do tempo
em que Leão Dehon era aluno da Gregoriana: “De Eucharistiae sacramento et sacrificio” (1868) (Leão
Dehon inspira-se nele para o discurso da primeira missa),285 “De Deo uno secundum naturam” (1870), “De
Verbo incarnato” (2870).
Escreve o P. Dehon: “Fazia-nos entrar na vida do dogma, mostrava-nos o seu desenvolvimento e os
seus progressos... O seu ensinamento profundo e poderoso subjugava-nos. Era querido pelos seus alunos.
Tinha o dom de entusiasmar. Sentia-se vibrar na sua palavra a alegria da verdade recebida do céu, a chama
santa da ciência de Deus. Venerávamo-lo não só como sábio, mas também como um santo... Formou-nos
no sentido teológico sobre a complexidade do dogma católico”.286

281
NHV I, 34r; Depois Mons. Dupanloup mudou de parecer. Em 1866, o seminarista Leão Dehon foi recebido por Mons.
Dupanloup em Orleáns com muita benevolência: “Recordavas-se de me ter aconselhado que começasse (os estudos) em S.
Sulpício; porém congratulou-se muito por fazê-los em Roma” (carta de 1.11.1866).
282
NHV I, 61r.
283
NHV II, 66r-66v.
284
NHV V, 54.
285
Cf. NHV VI, 145.
286
NHV VI, 54-57.

67
Quanto à teologia moral, ensinada na Gregoriana, o fenómeno mais notável foi o definitivo ocaso
do rigorismo jansenista, graças à difusão das doutrinas afonsianas.
“Em Teologia moral, - continua escrevendo o P. Dehon – foi uma graça ter como professor o P.
Ballerini”.287 De facto, António Ballerini foi um dos maiores moralistas do oitocentos. Nascido em
Medicina (Bolonha) em 1805, morreu em Roma em 1881. Passou quase toda a sua vida na Universidade
Gregoriana, primeiro como professor de História Eclesiástica, depois, de 1856 q«até à morte, como
professor de Teologia Moral. Neste campo publicou em 1866 o “Compendium Theologiae Moralis” de
Gury, famoso pelas preciosas notas com que Ballerini o enriqueceu, assegurando-lhe o êxito. O P. Dehon
escreve: “Fazia-nos seguir o manual de Gury, porém de longe...(!). Como sabia descer ao fundo das
coisas!”.288 Era habilíssimo em todos os problemas e situações humanas, em ligar-se aos princípios morais
e às leis psicológicas para deduzir com segurança soluções que tranquilizam a consciência. Não era
indulgente com o rigorismo jansenista nem caía no laxismo. Suas guias seguras eram a Suma de S. Tomás
e as obras de S. Afonso de Ligório. Tinha uma grande experiência pastoral. Depois de tão sérios estudos de
Teologia Moral, compreende-se porque o P. Dehon condena, tanto os pequenos manuais de Moral como a
casuística com as suas áridas listas de misérias humanas.289
No Direito Canónico, a Universidade Gregoriana não tem grandes professores. O P. Tarquini,
professor e depois cardeal, está ancorado na “Societas Christiana”; está convencido que os hereges, ao
menos no foro externo, devem ser considerados como de má fé e tratados como tais.
Leão Dehon faz os seus estudos de Direito Canónico, sobre tudo, no Apolinário, com o pausado
cónego De Sanctis e o eloquente cónego De Angelis. Doutora-se aí a 24 de Julho de 1871.
Em relação às ciências bíblicas, o ponto mais vulnerável no campo católico, no oitocentos, é a
exegese; é o sector mais atrasado dos estudos sagrados. Leão Dehon teve como professor um dos exegetas
mais bem preparados e abertos para aqueles tempos, o P. Patriggi. Enquanto à filosofia (um ano precedente
à teologia) no tempo dos estudos de Leão Dehon, ia-se fortalecendo o movimento neo-tomista com os
jesuítas Kleutgen, Taparelli d’Azeglio, Liberatore e os dominicanos Zigliara e Gonzales. Relevante a
acção do P. Taparelli, várias vezes recordado pelo P. Dehon nos seus artigos sociais como autor de doutrina
segura. Como professor na Gregoriana, este Jesuíta conquistou ao tomismo, então uma novidade na Itália, a
Joaquim Pecci, o futuro Leão XIII, que assegurou a esta filosofia o êxito com a encíclica “Aeterni Patris”
(1879), dando unidade ao ensinamento filosófico e prestando à teologia um válido instrumento para a
análise do dado revelado. Também contribuiu , embora de maneira indirecta e por razões mais psicológicas
que lógicas, para isolar a cultura católica em posições de desconfiança diante das conquistas do
pensamento moderno.
Dado o interesse de Leão Dehon e de se amigo Palustre, que o visitou nos seus anos de seminário,
pela arqueologia, destaquemos o desenvolvimento que naqueles anos teve a arqueologia cristã em Roma.
João Baptista de Rossi (1822-1894), continuando a obra do P. De Marchi, deu a esta matéria o valor de
ciência moderna. De Rossi recolheu e explicou as descobertas feitas, na “Roma subterrânea” (1863-1877) e
no “Boletim de arqueologia cristã”, conquistando a admiração dos estudiosos de toda a Europa.
O resultado dos estudos eclesiásticos de Leão Dehon está testemunhado por uma colecção
abundante de prémios e de menções honrosas. No segundo ano (1866-1867), consegue, entre 300
concorrentes, o primeiro prémio de Teologia Moral; o segundo prémio no curso matinal de Teologia
Dogmática ; o primeiro “accessit” em hebraico, (ou seja, o mais próximo ao primeiro). No terceiro ano
(1867-1868), recebe o primeiro prémio do curso matinal de Teologia Dogmática; o primeiro “accessit” do
da tarde e o primeiro prémio da academia de Moral. Sairá de Roma com três doutoramentos: em Filosofia
(25.7.1866), em Teologia (6.6.1871) e em Direito Canónico (24.7.1871). O balanço dos estudos resulta,
pois, mais do que positivo.
Os juízos sobre a Universidade Gregoriana que fomos recolhendo nas Memórias do P. Dehon são
confirmados pelos mais imediatos e contemporâneos que encontramos nas cartas a seus pais: “É uma
Universidade em que as aulas são públicas desde os elementos de gramática até a teologia, incluindo as
aulas de línguas, de ciências, de história, etc... É um género de ensino gratuito que não temos em França.

287
NHV V, 59.
288
NHV V, 59.
289
Cf. NHV V, 57-65.

68
Graças a um sistema de repetições e de argumentações quotidianas, semanais e mensais, quase todos os
estudantes acabam por conhecer o objecto do seu trabalho. O nosso curso de filosofia tem uma
particularidade curiosa: a metade dos alunos são seculares. Geralmente cursam dois anos de filosofia. É
exigido para as carreiras civis: Direito, Medicina, etc. Além disso há colégios de todas as nações: os
alemães vestem de vermelho, os órfãos (?) de branco, outros de azul, de roxo. Depois há os religiosos e os
noviços jesuítas. É uma babel (pelas cores). Não estranheis de que as aulas se façam em latim. É a língua
por todos conhecida. Nisto se vê um claro sinal da universalidade da Igreja. Esquecem-se as invejas das
nações e discute-se fraternalmente entre ingleses, alemães, espanhóis, americanos, irlandeses, belgas,
polacos, etc...”(5.3.1866).
S. Luís é o patrono da Universidade Gregoriana. Na sua festa cerca de 1500 estudantes comungam
na igreja de S. Inácio. Estes, na sua maioria, são seculares, que cursam profissões liberais; os teólogos são
quase 200. Leão conclui: “Que belas instituições são estas universidades romanas, todas gratuitas, com um
espírito tão religioso e uns estudos tão fortes! (21.6.1868). Os professores têm para connosco uma bondade
verdadeiramente paterna” (10.1.1866).
Em relação aos estudos de filosofia, Leão Dehon reconhece ter deles uma grande necessidade,
especialmente, como são feitos em Roma: “O bacharelato depois da retórica parte os estudos de maneira
deplorável” (10.1.1866). Leão, porém, está dispensado das matérias científicas, tendo apresentado o seu
diploma de bacharel em ciências. Preparando-se para os exames de filosofia escreve: “Conto
principalmente com a indulgência dos professores mais que com a minha preparação, que é muito
incompleta” (21.7.1866).
A 25 de Julho passa “convenientemente” o exame: “Levar-vos-ei um diploma de doutor em
filosofia” (26.7.1866). Um doutoramento obtido num ano é como um caminho de rosas!
Leão Dehon é de carácter optimista e muito benévolo, avaliando as pessoas e também os seus
professores de filosofia: o P. Palmieri, com as suas teses curtas, claras, trabalhadas com uma lógica
perfeita; o P. Tedeschini, que ensina aos alunos o método de trabalho e mostra, com o exemplo, como se
estuda a fundo uma tese; ama S. Tomás. O bom P. Carretti, professor de Filosofia Moral é um verdadeiro
romano: “caminha devagar”, sobre tudo no verão. Aos domingos evangeliza a campanha romana e à
segunda-feira comunica aos alunos as suas experiências entre tantas misérias encontradas.
Em relação à Teologia, eis aqui algumas impressões do jovem Dehon: “A teologia é a mais bela das
ciências. Fala ao mesmo tempo ao coração e ao espírito, elevando um e outro até Deus” (13.11.1866).
“Já estou habituado ao estudo da teologia. Para mim é um prazer e um trabalho. Agora nos
ocupamos dos tratados sobre a Incarnação e sobre a Penitência. Nada há de tão consolador, como a
consideração e a meditação de tão grandes dons de Deus... Todos os dias faço a leitura espiritual em
alemão e a minha leitura do Novo Testamento em grego. Estes anos de seminário serão, sem dúvida, os
mais felizes da minha vida” (26.11.1866). “Os nossos estudos são interessantíssimos e os mais belos de
todos os estudos sérios” (12.2.1868).
Contrariamente aos estudos civis, Leão Dehon nunca experimentará o aborrecimento, a saturação
nos estudos teológicos; antes teria querido aprofundá-los. Pessoalmente continuá-los-á ao longo de toda a
sua vida.290

FÉRIAS EM FAMÍLIA

Depois de uns estudos intensos, vinham providencialmente as férias. Em 1866 começaram com um
grande sacrifício. O pai de Leão não o queria ver de batina. Assim lhe tinha escrito através do amigo

290
Os juízos positivos que Leão Dehon formula sobre os seus estudos em Roma e, particularmente, sobre os seus professores de
teologia do colégio Romano (ou Universidade Gregoriana), são confirmados por R. Aubert, O Pontificado de Pio IX, in História
da Igreja, XXX/1, 207-209.

69
comum: o Rev. Demiselle. O P. Freyd aconselhou-o a condescender e Leão passou três meses de férias em
La Capelle sem o traje eclesiástico.291
“A missa, a comunhão diária, o ofício da santíssima Virgem e os outros exercícios de piedade me
sustentavam. Passava felizes momentos na nossa velha igreja. Disponha o meu passeio à tarde de modo a
poder fazer a minha visita ao Santíssimo Sacramento.
Via com frequência o meu bom arcipreste, o Rev. Demiselle. A minha mãe já estava conquistada
para a minha vocação e com ela passava bons momentos. Acompanhava-me `missa e com frequência
também à comunhão. Gostava do meu pequeno quarto na torre da casa. Ali estudava as antiguidades da
Diocese. Conservei uma agradável recordação das horas passadas no jardim, passeando, enquanto fazia os
meus exercícios de piedade”.292
Para um conhecimento mais completo do jovem seminarista, da família e da sua terra, são de grande
interesse as cartas que Leão envia (verão de 1867) ao seu director espiritual o P. Freyd.
Escreve assim a 21 de Agosto de 1867: “Viver um tempo no ambiente do mundo é bem penoso para
uma alma que saboreou a doçura do recolhimento; porém pode-se tirar uma útil lição, constatando o que é
o mundo. Quanta debilidade, ignorância e corrupção!”.
Começou... a rezar o breviário e, bem ou mal, não deixa de fazê-lo. (Leão só recebeu as ordens
menores; receberá o subdiaconado a 21 de Dezembro de 1967).
“Meu pai ficou um pouco emocionado (pela batina: estamos em 1867), mas deixou-o apenas
entrever e já desde o dia seguinte tomou partido, pedindo-me apenas que o meu modo de vestir eclesiástico
fosse cuidado” (21.8.1876).
Leão era um jovem belo, alto, como se lê no seu passaporte: m. 1,78, cabelos, sobrancelhas e olhos
castanhos, testa larga, nariz médio, boca regular, queixo redondo, cara oval, coloração clara. Nenhum sinal
particular.
“Desde que estou de férias acostumei a minha família e a minha terra a ver-me vestido de
eclesiástico. Assisto aos cultos da igreja com roquete. Meu pai já não se oporá a nada. E mais, até parece
feliz vendo-me seguir este caminho, não porque o compreenda, mas porque o seu amor próprio está
lisonjeado por aquilo que os charlatães da terra... lhe profetizam para seu filho quanto a honras brilhantes e
ao menos uma mitra. O mundo repugna-me cada vez mais quando me acontece ouvir estes ridículos
cumprimentos. Vivo bastante tranquilo pelos meus exercícios de piedade. Todavia estou necessariamente
mais distraído que no nosso querido seminário. Estou privado da suavidade que dá a devoção na calma e na
regularidade, porém é a vontade de Deus que esteja de férias e espero que, com a sua ajuda e o socorro das
suas orações, as passarei sem culpas graves” (21.8.1867). Aqui temos a conhecida e profunda característica
da sua vida espiritual: viver na vontade de Deus.
Também na carta de 20 de Setembro de 1867 assegura que vê “sem desgosto” como passam
velozmente as férias.
“Mas sinto como é difícil no mundo levar uma vida recolhida em Deus. Nunca falto à oração, ao
ofício, à leitura espiritual e sou bastante exacto com os outros exercícios de piedade; mas as distracções, a
frieza, a inquietação, assaltam-me muito mais que na vida tranquila e regular do seminário”.
O seu pai considera tudo com os olhos do mundo. Quer que traga de Roma muitos diplomas e
deseja para Leão muitas honras.

291
Leão Dehon escreve a seu pai a 11 de Abril de 1866: “Os meus companheiros receberão a tonsura na festa da Trindade,
Quanto a mim, estou à tua inteira disposição. Se me permitisses usar o hábito de clérigo, para mim seria uma fonte de graças,
uma salvaguarda e uma grande alegria, e tu mesmo estarias contente depois da emoção do primeiro dia, que é inútil atrasar.
Peço-te, pois, que me dês essa licença”. Todavia o pai não se resignava ver a seu filho com a batina. Então Leão escreve-lhe com
data de 6 de Março de 1866: “Tu sabes que o meu maior desejo é não trazer-te mágoas e já que (a batina) não é essencial à
minha vocação, ofereço-te com gosto este sacrifício, embora me custe muito. Só no mês de Outubro tomarei definitivamente o
hábito eclesiástico”. Para o mais, está disposto a satisfazer todos os desejos e gostos de seu pai “a acompanhá-lo nas suas
propriedades... a fazer algum passeio a cavalo com Henrique” (carta de 26.7.1866). Efectivamente, muitos mais tarde, o P. Jorge
Bertrand recolhia o testemunho de um venerando eclesiástico, que se recordava de ter visto, em criança, passar a cavalo os
irmãos Dehon, que iam visitar parentes em Le Nouvion (carta de 5.9.1932 do P. Bertrand ao P. L. Philippe, AD, B 17).
292
NHV V, 36. Durante as férias Leão mantinha correspondência com o P. Freyd (cf. AD, B 36/11). Exactamente em 1866, o
vigário de La Capelle era D. Clavel César Augusto, que, em 1863, sucedeu a Demiselle (cf. AD, B 63/17), nomeado cónego
titular da catedral de Soissons, onde faleceu em Fevereiro de 1888 (cf. NQ IV, 21r).

70
“A atmosfera de indiferença em que é preciso viver gela-me o coração. Reanimo-me um pouco
todos os dias lendo o Tratado do amor de Deus de S. Francisco de Sales com a sua espiritualidade toda de
amor, que faz bem ao meu coração e me ajuda muito a manter-me na doçura e alegria santa”, escrevia
noutra carta de 28 de Setembro de 1867. Não estou onde gostaria de estar e não me sinto feliz neste
ambiente. Se Deus me chamar a viver nele, será para mim uma contínua mortificação.
Também nas cartas das férias seguintes (verão de 1868) volta o mesmo descontentamento
relativamente à vida vivida no mundo. “Quase todos os dias tenho de tomar parte em alguma reunião de
parentes ou amigos, em casa ou fora. Este modo de vida adapta-se menos à minha maneira de ser que a
solidão e a calma do seminário. É uma preparação para a vida activa que certamente terei que enfrentar
depois dos meus estudos e em que estarei mais ou menos em contacto com o mundo já que é certo, como
pensava S. Francisco de Sales, que a parte de Marta, assumida por Deus, é mais conforme à vida presente e
a de Maria, mais excelente, convém melhor à vida do céu” (29.8.1868).
Na carta de 13 de Outubro de 1868, de Hazebrouck, onde está de visita aos seus antigos professores,
revela ao P. Freyd a sua pena por não poder tomar parte nos exercícios de princípio do ano no seminário já
que os seus pais querem passar o inverno em Roma, mas não podem partir imediatamente e desejam fazer a
viagem com Leão. Como fervoroso seminarista, Leão vai fazer um retiro de quatro dias no mosteiro
trapista de Mont-des-Cats, na Flandres, e termina-o com bons propósitos. Os mesmos desejos de vida
recolhida voltam nas cartas de 1869: “aqui o recolhimento é difícil e a vida do mundo não me agrada nada.
O senhor sabe quais são os meus gostos. Observo o clero secular da minha diocese e não encontro o meu
lugar... PO estado da minha alma não é o que gostaria. Sou tíbio e censuro-me com frequência. Creio que
preciso verdadeiramente de uma vida regulada. Aqui não conservo o que o P. Lebermann chama “o estado
de oração”, ou seja uma contínua união com Deus. As férias são para mim um pesado tributo que a alma
paga ao corpo. Consola-me ver que a minha presença contribui um pouco para a edificação desta minha
pobre terra” (30.7.1869).
Não experimentava a alegria da união com Deus. O ambiente não o favorecia. Todavia, mesmo só
pelo sofrimento que sentia e pela saudade do seminário, pode-se conjecturar que não lhe faltava o essencial
da união amorosa com Deus.
Agora Leão tem mais da metade do seu coração em Roma, como afirma numa carta de 30 de Julho
de 1869, acrescentando: “todos os alunos do Santa Clara são meus amigos”. Aí estão os seus directores, os
seus queridos estudos, a sua cidade de Roma, ambiente ideal para uma boa preparação para o sacerdócio.

ESTUDOS PESSOAIS

Apesar do intenso esforço a que o obrigam as aulas na Universidade Gregoriana. Leão encontrou o
tempo também para estudos pessoais.
Notemos já o seu interesse pelas obras dos pensadores e pelas de espiritualidade, o seu pouco
interesse pela história e nenhum pela literatura.
“Os estudos escolásticos fornecem uma doutrina segura e uma lógica rigorosa. Situam-nos nas
antípodas da retórica... Pessoalmente tinha terminado cedo os meus estudos humanísticos: com apenas 16
anos! “O direito, a filosofia escolástica, a teologia tinham conferido ao meu espírito hábitos de precisão, de
ordem, de clareza que eram preciosos. Porém faltava-me a literatura”. Por ocasião as primeira missa em La
Capelle (19.7.1869) afirma não ser um orador e não o é nem sequer quando escreve as Memórias (quase 30
anos mais tarde), embora tenha maior facilidade de palavra. “Sentia repugnância pelas obras modernas que
quase sempre têm fraco conteúdo, de lógica, de doutrina, não sendo mais que um culto da frase bonita, da
arte pela arte, do diletantismo: o “cymbalum tinniens” de S. Paulo. Só mais tarde sentiu um pouco mais de
gosto pela literatura. Compreendo, porém um pouco tarde, que com um pouco mais de preparação literária,
teria dado muitas vezes mais força à minha palavra”.293

293
NHV VI, 141-142.

71
Durante o ano de filosofia (1865-1866), lê obras culturais, 294 obras dos Padres,295 ama os estudos de
política, de economia social, de filosofia.296
As suas leituras espirituais reduzem-se, no ano 1865-1866, a S. Francisco de Sales, a sua vida e as
suas obras, o homem espiritual de Saint-Jure, as revelações de S. Gertrudes, as obras de D. Guéranger e a
vida de S. João Berchmans. Não são poucos livros nem pouco influentes para um jovem de 22 anos. Leão
não é um leitor superficial e apressado. Às vezes lê e torna a ler. Nas Memórias escreve: “Anotava
diariamente o que mais me chamava a atenção nas minhas leituras. Conservei este costume também mais
tarde. O meu caderno de trechos selectos é, para mim, um tesouro, onde venho conservando todos os
pensamentos mais elevados, mais justos e verdadeiros dos grandes pensadores com os quais me encontrei
na minha vida mediante a leitura”.297 De facto, nos arquivos dehonianos conserva-se uma grande colecção
intitulada: “Excerpta-Extraits de lectures-Notes diverses”. São 216 páginas ordenadas por anos desde 1865
a 1893.
Durante o segundo ano (o primeiro destinado aos estudos teológicos), Leão limita as suas leituras
aos grandes teólogos, o primeiro de todos S. Tomás, do qual lê a “Summa” e alguns opúsculos. Gosta
muito de Lugo, como filósofo, pela sua grande clareza. Lessius dá-lhe a impressão de ser um teólogo que
estuda e reza. “Devia ser um santo”.298
Está bem acompanhado com Suarez e Belarmino. “Mediante as minhas leituras formulava na minha
mente os mais claros juízos sobre uma multidão de questões importantes”.299 Assim escreve Leão
relativamente às leituras do primeiro ano de teologia. Agora precisa melhor: “Tornava-me, quanto à
formação espiritual, cada vez mais romano. Estava prevenido contra o liberalismo... Em política começava
a compreender que as formas de governo só têm uma importância secundária”.300 Mais adiante escreverá:
“Embora inimigo do liberalismo católico, agradavam-me as ideias de S. Agostinho sobre a prudência e a
tolerância da Igreja”.301
Leão é contra o liberalismo católico do “Correspondent) de Broglie e sequazes porque “não deixam
suficiente espaço ao sobrenatural e à acção do Espírito Santo nas almas e na sociedade”.302 Mencionam-se
aqui alguns grandes problemas sobre os quais voltaremos: o P. Dehon e o liberalismo católico; o P. Dehon
e o legitimismo monárquico; o P. Dehon, a Igreja e a sociedade moderna.
Quanto à leitura espiritual , durante o segundo ano de Roma (1866-1867), serve-se do Rodriguez
“verdadeiro catecismo de perfeição”, de Saint-Jure “que expõe tão bem os motivos para amar a Nosso
Senhor”. Saboreia S. Afonso Maria de Ligório “e as suas deliciosas meditações”, O caminho da paz
interior do P. Lehen “tão útil pata as almas agitadas e atormentadas”.303
As leituras do terceiro ano (1867-1868) dão conta de um notável amadurecimento no jovem Leão.
“As minhas leituras espirituais daquele ano – escreve nas Memórias – eram os opúsculos tão
ardentes e tão cheios de amor de S. Agostinho, as orações e os exercícios de Santa Gertrudes, a vida do P.
Libermann. Essas leituras revelaram-se conformes o meu gosto sempre mais acentuado pela vida interior e
pelo amor para com Nosso Senhor. Gostava do meu pequeno quarto e da vida tranquila do seminário. Às
vezes perguntava-me se não estaria feito para a vida contemplativa”.304
Sentia porém que, para a sua verdadeira vocação, deveria esperar as indicações da Providência.

294
No ano de filosofia lê “O Papa” e as “Vigílias de S. Petersburgo” de J. de Maistre: “O dever” de Oudot; “Filosofia e religião”
de Maret; “As fontes”, “Os sofistas e a Crítica”, “Pequeno manual de Crítica” de Gatry e o “Esboço de Roma antiga” de Mons.
Gerbet.
295
Dos Padres, interessam-no S. Agostinho de quem lê “A cidade de Deus” e várias “cartas”; S. João Crisóstomo: o “Tratado
sobre o sacerdócio” e várias “Homilias”; S. Jerónimo: assuas “Cartas” e S. Ambrósio: o “Tratado sobre a virgindade”.
296
Lê “A política...” de Bossuet; o “Tratado sobre a Igreja” de Belarmino; as “Considerações sobre França” de J. de Maistre; “A
potência eclesiástica” de Pertier e “A religião nacional” de Fauchet. Quanto aos Escolásticos, consulta as obras de S. Tomás, as
de Lugo, de Suarez. Lê também o “Systema theologicum” de Leibniz.
297
NHV IV, 161.
298
NHV V, 72.
299
NHV IV, 182.
300
NHV V, 72-73.
301
NHV VI, 29.
302
NHV V, 125.
303
NHV V, 74.
304
NHV VI, 24.

72
Gosta de ler algumas páginas de autores contemporâneos e vai-se interessando cada vez mais por
alguns problemas como o ensinamento, a pregação, as obras sociais, que mais tarde o teriam empenhado a
fundo. Saboreia também a Bíblia como um “tesouro de belezas literárias”.305
No quarto ano de seminário (1868-1869), tem pouco tempo para ler. Faz a leitura espiritual sobre os
Entretimentos espirituais de S. Francisco de Sales. Encontra a “sua doutrina tão consoladora e
confortante”.306 Lê a vida do P. Ratisbonne e famosa obra da senhora Graven (Paulina de la Ferronnays)
Le récit d’une soeur, que teve uma fama enorme. Contava a história de amor, verdadeira e comovente, de
Alberto de la Ferronnays pela sua esposa, Alexandrina d’Alopens, uma sueca luterana, convertida ao
catolicismo e completamente entregue, depois da morte de Alberto, a uma vida de intensa piedade. A obra
foi premiada pela Academia francesa. “Para corações religiosos é uma obra de incomparável emoção e
edificação”. O juízo é de Berbey d’Aurevilly e concorda perfeitamente com o de Leão. Não lê outros
livros, mas artigos de revistas e algum discurso. Copia os trechos relativos aos problemas que mais lhe
interessam: a obra dos estudos, a questão social e a educação.
Durante o ano do Concílio (1869-1870), volta a ler os Entretimentos espirituais de S. Francisco de
Sales e A vida de Santa Isabel por Montalembert. L’Enchiridion de S. Agostinho mostra-lhe, mais que
qualquer outra leitura, “a acção da graça em nós”.307 O estudo do Direito Canónico ajuda-o a resolver várias
questões sociais. “Infelizmente, a moral social e a política são estudadas de maneira muito incompleta nos
seminários”. Assim conclui depois de ler alguns artigos da “Civiltà Cattolica”.308
Seguindo ano após ano as leituras de Leão Dehon, constata-se o progressivo amadurecimento do
seu espírito e manifesta-se já uma das suas características. Não é o estudo pelo estudo que lhe interessa,
mas o estudo em relação com a vida, a solução dos grandes problemas que agitam a sociedade do seu
tempo: a cultura do clero, a questão social, a educação e a formação dos jovens, o ministério sacerdotal.

ROMA CRISTÃ

Leão Dehon, embora empenhado nos estudos eclesiásticos, não podia desinteressar-se da arte numa
cidade riquíssima de obras, de monumentos e tipicamente arqueológica como Roma.
Leão Palustre, o arqueólogo amigo de Leão Dehon, passa o inverno de 1866 em Roma. Juntos
visitam a cidade no aspecto artístico. Dois anos mais tarde Palustre publicou as suas impressões no volume
De Paris a Sibari, Estudos artísticos e literários sobre Roma e sobre a Itália meridional. “Neste livro
mostra-se demasiado severo e duro com Roma e os romanos”, anota o P. Dehon nas Memórias.309
Leão Dehon fala longamente da visita a Roma com Palustre, porém não achamos necessário
alongar-nos sobre isso. Estaríamos diante de novos monumentos e de novas obras; porém já conhecemos os
gostos e juízos dos dois amigos.
Na realidade, embora Roma seja tão rica em obras magistrais, Leão é atraído especialmente pela
beleza religiosa de Roma cristã. Também temos aqui um sinal da sua maturidade interior.
Mas nem por isso diminui em Leão a paixão do turista: “via nas viagens uma fonte inesgotável de
estudo”, afirma por ocasião da excursão ou peregrinação a Tivoli, Vicovaro, Subiaco, Palestrina, durante o
terceiro ano de seminário (1867-1868).310

305
NHV VI, 29.
306
NHV VI, 130.
307
NHV VIII, 55.
308
NHV VIII, 57.
309
NHV V, 75. Numa carta a seus pais de 5 de Maio de 1868, escreve Leão: Lede o capítulo de Palustre sobre Roma.
Encontrareis várias contradições e uma crítica exagerada. Escreveu estas páginas num momento de mau humor...”. Numa carta a
Palustre diz-lhe: “Ligo-me cada vez mais a Roma, sobretudo às suas belezas sobrenaturais. Saberei deixá-la quando o meu
ministério me chamar a outra parte. Tu ficarás contente de voltar e de contemplar sobretudo Roma religiosa, a cidade que tem
por fundamento os apóstolos; as colunas dos seus templos são os santos. Assim abrirás um pouco a tua alma a estes sentimentos
e fechá-la-ás à aridez da crítica sempre penosa, embora sendo justa, e assim encontrarás em Roma tesouros que quiçá agora te
estão escondidos” (AD, B 18/10).
310
NHV VI, 47. Destas excursões e peregrinações pelos arredores de Roma Leão fala largamente em várias das suas cartas aos
pais (cf. AD, B 18/9).

73
Agora já predomina a impressão religiosa. Recorda em Tivoli o martírio de Santa Sinfororsa e dos
seus dois filhos. Em Vicovaro atrai-o um milagroso santuário d Virgem. Também ele acredita de ver a
Virgem levantar os olhos para o céu e de baixá-los sobre ele e os seus companheiros: “Impressionou-me
vivamente, porém estes milagres não comprometem a fé cristã”.311 Em Subiaco subjuga-o a beleza silvestre
do lugar. Visita com veneração o mosteiro de Santa Escolástica e a sagrada gruta. Em Palestrina é viva a
recordação do jovem mártir S. Agapito.
Voltando a Roma cristã, depois de ter citado os grandes monumentos da Roma antiga. Afirma: “O
que mais me interessa no seu conjunto são os elementos que a arte cristã encontrou neles para os adaptar,
purificando-os, aos seus usos e ao seu fim sobrenatural”.312 E alarga-se falando das catacumbas e das
basílicas romanas.
Chegamos assim ao Renascimento. Excluídos os primeiros artistas daquele tempo, impregnados
ainda de espírito cristão, Rafael e Miguel Ângelo marcam o cume do renascimento, mas também o abrem,
segundo Leão, “o caminho à decadência do espírito cristão. Estão seduzidos pela beleza pagã”. 313 É um
juízo muito típico e pessoal do jovem e do P. Dehon. A Farnesina e a Fornarina de Rafael são “mundanas e
pagãs”. Os frescos de Miguel Ângelo, na abóbada da Capela Sixtina, são ainda cristãos “a fé e a
contemplação animam as figuras”; porém o Juízo Final é para Leão Dehon “mais um estudo de anatomia
que a expressão de um pensamento cristão. É uma obra prima, compreendo; mas para rezar, prefiro não vê-
la”.314 A Leão escapa uma circunstância fundamental em relação aos afrescos da Sixtina. Os da abóbada
pintou-os Miguel Ângelo em pleno Renascimento. O juízo final, em contrapartida, foi pintado 30 anos
depois e preanuncia, como poderoso “Dies irae” pictórico, a atormentada religiosidade da Reforma
católica.
Perspicazes são as observações de Leão sobre a basílica de S. Pedro. Realizada como a queria
Miguel Ângelo, coroada pela grandiosa cúpula, teria sido uma obra prima, de inaudita harmonia. Admira
porém a actual basílica: “é a mais bela igreja no seu estilo; mas prefiro a arte ogival, a arte verdadeiramente
cristã, com as suas maravilhosas obras primas em Reims, em Paris, em Amiens, em Chartres, em Bourges,
em Colónia”.315
Para Leão a arte gótica ocupa o primeiro lugar: “Eleva tanto as almas! Possui tanta harmonia; é
atrevida, grandiosa. As suas grandes voltas, as suas agulhas esbeltas, as estruturas dos seus portais, as
imagens transparentes das suas vidraças, tudo está inspirado no ascetismo cristão”. 316 Uma bela Virgem
gótica do século XIV fala à alma de Leão Dehon muito mais do que todas as estátuas da antiguidade.
Notemos só que todo o estilo tem as suas obras primas e a crítica da comparação é a pior das
críticas.
É evidente que os juízos artísticos de Leão Dehon estão em parte influenciados pelas ideias
românticas do seu tempo, mas mais intimamente nascem do seu espírito profundamente cristão. Dizemos
isto, não para justificar, mas para compreender a mentalidade de Leão. O único termo de comparação para
ele é o Evangelho, o cristianismo. Também “se deficiente em literatura”, a formação humana e artística de
Leão é ampla e profunda. Agora o jovem seminarista acolhe comovido a lei da incarnação e “baptiza” e
“cristifica” o humano.
Muito mais que a Roma artística, era Roma religiosa a que interessava a Leão. Desde o primeiro
ano (1865-1866) tinha participado com interesse nas festas religiosas, especialmente quando era o Papa que
as presidia: “Pio IX ternamente amada, rodeado pelo seu cortejo sacerdotal e real”. 317 Leão perdia nenhuma
ocasião. Participava com avidez, especialmente nas funções papais da capela Sixtina: “Era tão belo alegrar-
se pela vista de Po IX, durante uma hora inteira!”. 318 Em Roma havia uma festa religiosa contínua: a das
311
NHV VI, 49.
312
NHV VI, 84.
313
NHV V, 89.
314
NHV V, 90.
315
NHV V, 95.
316
NHV V, 92-93.
317
NHV V, 12.
318
NHV V, 15. Leão Dehon é entusiasta de Pio IX, venera-o como a um santo. “O Santo Padre concedeu muitas audiências –
escreve a seus pais – e entusiasmou a todos como sempre com a sua paterna amabilidade. Tem o privilégio de arrancar as
lágrimas e de suscitar calorosas aclamações” (20.4.1868). Lembrando a bênção papal no dia da Ascensão de 1868 da varanda da
fachada de S. João, Leão escreve: “Quando o Santo Padre se levanta majestosamente e pronuncia a bênção com a sua voz firme

74
Quarenta Horas. Exponha-se todos os dias o Santíssimo numa igreja diferente e esta era frequentemente a
meta dos passos de Leão e dos seus companheiros. “Que bons momentos aí passei e quantas graças
recebi!”.319 Na realidade, as festas religiosas em Roma, numa ou noutra igreja, eram contínuas ao longo do
ano. “Um ano passado em Roma é verdadeiramente santificante”.320
Numa carta de 6 de Dezembro de 1965, Leão escreve a seus pais: “Em Roma, mais que noutro
lugar, compreende-se que a perfeição não está na agitação e no tumulto. Excepto em algumas ocasiões, os
romanos levam uma vida maravilhosamente regular. Depois do trabalho, ao fim do dia, fazem, a hora fixa,
o seu passeio e, com frequência..., visitam a igreja onde se celebra a festa do dia. Têm pois, todos os dias
debaixo dos olhos, e exemplo e a história dos santos. Roma dá a ideia do que teria de ser um povo
verdadeiramente cristão. Os romanos preocupam-se pouco de política; só querem estar em paz...”.
E ainda a seus pais: “Cada dia sinto-me mais feliz por estar em Roma; aqui tudo fala à inteligência e
ao coração. As solenidades, os monumentos, as relíquias preciosas, a grande devoção; tudo isto se encontra
reunido só em Roma” (27.12.1865).
Depois de descrever as festas comemorativas do 18 centenário do martírio de S. Pedro. Leão
conclui: “Estas festas falam ao coração e têm uma conotação religiosa que só em Roma se encontra
(30.6.1867).
E eis como descreve a seus pais a particular fisionomia que tem a Quaresma em Roma: “Depois dos
primeiros séculos da Igreja, a cada dia da quaresma é assinalada uma das antigas basílicas e igrejas de
Roma, construídas sobre os túmulos dos mártires. Os romanos vão a elas devotamente ao cair da tarde, para
ganhar as indulgências. São as “estações da Quaresma”. Nós aproveitamos os nossos pequenos passeios
diários para fazer a nossa visita às igrejas estacionais. É uma das muitas vantagens que oferece à piedade a
vida em Roma “25.2.1868).
Recordando o seu terceiro ano (1867-1868), pensa nos passeios de igreja em igreja e escreve: “Já
não estava afeiçoado ao gosto do novo, nem à seduções da arte. Gostava de Roma, a Roma cristã, a que
fala à fé e à piedade. Respirava os seus perfumes suaves e reconfortantes. Bebia nas suas sagradas fontes.
Embebia-me no seu espírito, que é o espírito de fé, de apostolado, de caridade”.321
Evoca as igrejas dos apóstolos, onde sentiu animar-se de zelo; as relíquias e os túmulos dos
mártires, onde desejou dar a vida por amor do Salvador; os dos santos doutores, que o impulsionaram ao
amor da ciência sagrada; os das virgens, que lhe inspiraram pureza e inocência. Que cidade se pode
comparar a Roma pela sua influência santificadora? Verdadeiramente é a ante-sala do céu... Não se
saboreiam plenamente todas estas graças senão numa longa permanência, tranquila e recolhida. Cada
santuário de Roma tem os seus belos dias, os seus dias de festa. Seguindo o curso da liturgia vai-se, em
harmoniosa alternativa, de um apóstolo a um mártir, de um mártir a um confessor, de um confessor a uma
virgem. É um imenso jardim com mistura de flores e perfumes. Amava a Roma. É o meu lugar preferido e
se a terra fosse o nosso lugar de repouso, é aí, em Roma, que gostaria de viver”. 322 Estas últimas palavras
foram certamente escritas por Leão Dehon nos anos mais negros e mais dolorosos da sua vida, cerca de
1896.
A prolongada permanência em Roma deixou marca indelével em Leão Dehon. Considerou Roma
como um seu refúgio seguro, “um ângulo azul num céu nublado, um oásis no deserto “ entre as vicissitudes
borrascosas da sua longa vida.323 A 18 de Dezembro de 1896, escreve de Roma ao P. Falleur: “Dizei aos

e poderosa todos se ajoelham emocionados e recolhidos. Todos os corações estão unidos para pedir a Deus com o Santo Pare o
triunfo do bem e a salvação das almas. Como estes espectáculos são oportunos para reanimar a fé e fortalecer o zelo” (carta a
seus pais de 28.5.1868). “Sua Santidade (Pio IX) com as suas tristezas, a sua doçura, a sua majestade, conquistou todos os
corações” (carta a Leão Palustre de 12.5.1869). Em Novembro de 1869 Leão participa numa audiência com os outros
estenógrafos do Concílio e assim descreve a Pio IX: “É afável e alegre. A sua imensa confiança em Deus permite-lhe não estar
preocupado em vésperas de um acontecimento tão importante (o Concílio Vaticano I) e entre os afazeres que o acossam de todas
as partes” (carta a seus pais de 30.9.1869).
319
NHV V, 16.
320
NHV V, 34.
321
NHV VI, 30.
322
NHV VI, 32-33.
323
NQ XII, 10: 10.12.1896.

75
meus amigos que não se preocupem por minha causa; amo Roma e aqui vivo feliz. S. Quintino é para mim
o desterro e Roma a minha pátria”.324
Além disso todo o seu pensamento e o seu apostolado trazem uma marca indelével de
“romanidade”, uma romanidade católica, papal.
Acabados os estudos superiores, pensa fundar uma congregação dedicada ao apostolado da cultura
com os três votos religiosos e um quarto voto que obrigue os membros a defender as doutrinas de Roma,
também as que não são definidas.
Foi um motivo de grande alegria para o P. Dehon que Leão XIII o honrasse com a sua estima e o
considerasse um fiel intérprete das suas encíclicas sociais. De Pio X obteve a aprovação da sua
Congregação (1906). Laços de grande amizade uniram-no a Bento XV, a quem se deveu a libertação das
zonas de ocupação alemã durante a primeira guerra mundial.
De Pio XI, o P. Dehon obteve a aprovação definitiva das Constituições, a 5 de Dezembro de 1923.
Sem dúvida foi a sua melhor prenda para o seu 80º aniversário natalício celebrado a 14 de Março desse
ano.
O P. Dehon considerou Roma como a sua segunda pátria.325

RETRATO DO JOVEM LEÃO DEHON

Terminando este capítulo, temos os elementos necessários para apresentar um retrato psicológico do
jovem, Leão Dehon.
Possui um carácter bem equilibrado, com uma notável sensibilidade, fácil ao entusiasmo e à
emotividade, embora conservando exteriormente um aspecto tranquilo, muito distinto, tanto no modo de
falar como no trato, fruto da educação familiar, dos ambientes sociais e das pessoas com quem privou em
Paris.
Ama a ordem, a pontualidade, a limpeza. Como já demonstrou nas suas longas viagens juvenis,
possui um fino espírito de observação: observa e compara. É dotado de uma grande curiosidade intelectual.
Interessa-se por tudo: a natureza, as ciências, as artes. Dificilmente se encontra um ramo da cultura que o
deixe indiferente. É modesto. Não se cria ilusões acerca das deficiências dos seus estudos, da sua formação
intelectual. Confessa que o ano de filosofia, apesar do seu trabalho sério, foi muito incompleto. Reconhece
as suas deficiências literárias. Sabe que não é um orador brilhante, todavia os seus estudos jurídicos e
teológicos (filosofia e teologia escolástica) habituaram a sua mente à exactidão, à ordem, à clareza e à
lógica do raciocínio, dotes muito preciosas, às quais só faltam a beleza e o ardor da poesia.
Conserva sempre uma grande gratidão para com o amigo Palustre, cujo espírito era admiravelmente
aberto às belas artes, à história e à literatura, e lhe comunicou esse gosto, embora com um pouco de atraso.
Ficou em Leão sobre tudo o interesse pela arqueologia enquanto não teve de deixar tudo por causa das
suas muitas obras.
Leão é amável. Com o seu bom carácter conquista o carinho dos seus professores e colegas de
estudos. É uma constante na sua vida; soube amar muito e cultivar a amizade, e também foi muito querido.
Apresentámos apenas um retrato incompleto, um esboço do carácter de Leão. Servir-nos-á para
melhor compreender os acontecimentos da sua vida. Reservamo-nos todavia voltar a este argumento e
aprofundar o estudo da rica e simpática personalidade do P. Dehon na vida quotidiana.

324
AD, B 20/3.
325
Cf. NQ XLII: 1.1.1918.

76
CAPÍTULO 6

Sacerdote para sempre

A vida espiritual do seminarista Leão Dehon – Relações sociais – As ordens sagradas – O noviciado da minha vida religiosa – Diácono e sacerdote
para sempre – Até o Concílio –Missa solene em La Capelle.

A VIDA ESPIRITUAL DO SEMINARISTA LEÃO DEHON

Leão Dehon tem 22 anos ao entrar no Seminário de Roma. Vem directamente do mundo e da
dolorosa oposição dos seus pais, especialmente do pai, à sua vocação, oposição que foi providencial. De
facto, Leão desejou tanto aquela vida de preparação para o sacerdócio, que a começa com um compromisso
extraordinário, superior ao de qualquer aluno normal que, vindo do seminário Menor, já está acostumado às
exigências e ao modo de vida dos candidatos ao sacerdócio.
Como já dissemos, Leão Dehon encontra-se totalmente à vontade no seminário francês de Santa
Clara e muito contente de estar em Roma. Estamos nos anos que precedem 1870 e, segundo parece a Leão.
As pessoas são edificantes pela sua vida cristã. A grande distracção do povo romano é a de ir aos ofícios
religiosos e de participar nas festas nas diversas igrejas da cidade. Além das solenidades religiosas
abundam em Roma os monumentos sagrados, relíquias preciosas e tantas recordações piedosas. Numa
palavra, Roma fala muito à inteligência e ao coração de Leão. Encontra-se plenamente satisfeito nos seus
desejos humanos e especialmente cristãos de seminarista, que se prepara com seriedade para o sacerdócio.
A piedade de Leão não tem nada de cerebral, está longe de qualquer forma de estetismo espiritual
ou de doentio espiritualismo; é uma piedade simples, quase ingénua, muito próxima da religiosidade do são
povo cristão.
É esta fé e esta piedade que, no seu zelo juvenil, queria comunicar a todos, particularmente a seu
pai.
Um dos aspectos mais simpáticos da personalidade de Leão Dehon reside na simplicidade do seu
cristianismo vivido na candura da sua fé e na espontaneidade da sua oração.
Da fé simples e da oração ingénua de Leão, já citámos, como exemplo, a sua filial devoção a Maria.
Está convencido de que várias vezes, na sua longa viagem ao Oriente, o curou e salvou.
Grande é também o seu amor às relíquias, às romarias, aos santuários. Os feitos milagrosos enchem-
no de admiração e uma profunda simpatia o une a S. Francisco de Assis.
Numa carta aos seus pais, falando das suas duas sobrinhas Marta e Laura, assim os aconselha: “Se
tiverem doentes outra vez, usai um pedacinho da roupa do Santo Padre (Pio IX). Aplicai-a com confiança e
pedi a Nosso Senhor que glorifique o seu vigário na terra...”. (1.12.1869). É a simples fé do povo, que
tantas vezes alcança milagres. Agora detemo-nos mais detalhadamente sobre a vida espiritual de Leão nos
seus anos de seminário.
Do primeiro ano passado em Roma (1865-1866), o P. Dehon nos traça nas Memórias a história da
sua vida interior. “Nosso Senhor apoderou-se bem cedo da minha alma. Pôs nela as disposições que deviam
ser a nota dominante da minha vida, apesar das minhas faltas: a devoção ao seu Sagrado Coração, a
humildade, a conformidade com a sua vontade, a união com ele, a vida de amor. Este devia ser o meu ideal
e a minha vida para sempre.. Nosso Senhor mostrava-mo, conduzia-me ele sem descanso, e assim me ia
preparando para a missão a que me destinava para a Obra do seu Coração”.326
Começou a anotar todos os dias as suas impressões. De facto, os dois primeiros cadernos do Diário
(Notes Quotidiennes) do P. Dehon reproduzem as notas espirituais do seminário de 13 de Dezembro de
1867 a Fevereiro de 1870; mas tinha-as começado muito antes.

326
NHV IV, 183.

77
A 21 de Março de 1866, Leão começa o seu noviciado como terceiro franciscano. Recebeu-o o
Superior Geral dos Capuchinhos na capela interna do convento de Praça Barberini. Deu-se-lhe o nome de
Francisco.
Leão Dehon teve sempre muita devoção ao “Poverello” de Assis e escolheu-o como patrono da sua
Congregação. Fez a sua profissão na Terceira Ordem um ano mais tarde, a 21 de Março de 1867. “Devo
muitas graças de protecção e de reparação à Terceira Ordem”.327
Leão servia-se de todos os meios de santificação que pensava mais eficazes. Escreveu um
verdadeiro directório para a sua vida espiritual. Esforçava-se por cumpri-lo apesar das inevitáveis faltas de
cada dia.
Estes são os princípios que me pareciam mais proveitosos para o progresso espiritual:
1º. Fazer dia a dia a vontade de Deus como nos é dada a conhecer.
2º. Na oração unir-se ao Coração de Nosso Senhor;
3º. Nas orações vocais unir-se ao pensamento íntimo do autor da oração;
4º. Nas conversas não se abandonar nunca totalmente à natureza, à alegria, à dor, às paixões; ter
sempre mão no travão e ficar atento.
5º. Evitar estar preocupado por um futuro incerto: “non curare de futuris contingentibus”.328
Leão sabe que os santos têm geralmente um lema que os anima no combate espiritual. Pare ele
escolhe a frase: “Domine, quid me vis facere?”. Não encontrava um lema mais apropriado para consolidar
e conservar a união com Deus.329 É um lema que o P. Dehon repete toda a vida, especialmente nos
momentos mais difíceis e dolorosos, usando a simples expressão “fiat!”, que tão frequentemente lemos nos
seus manuscritos, especialmente no seu Diário. O “fiat” exprime o abandono total à vontade de Deus. É
viver a oblação de amor, valor fundamental na experiência de fé do P. Dehon.
“Ardia no desejo de chegar a ser um santo sacerdote”.330 Por isso rezava todos os dias aos santos,
modelos da perfeição sacerdotal: S. Inácio, S. Filipe de Néri, S. Francisco Xavier, S. Franco«isco de Sales,
S. Vicente de Paulo, S. Afonso. Meditava no Antigo e no Novo Testamento o que a palavra de Deus diz da
santidade dos sacerdotes.
Entregava-se à mortificação para alcançar para os pecadores a graça da conversão. Desenvolvia
assim uma componente típica da sua espiritualidade: a reparação, manifestada então no zelo da oração e do
sacrifício para levar o amor de Deus às almas afastadas.331

327
NHV IV, 189.
328
NHV IV, 1-2: Colhemos o eco destes princípios de vida espiritual nas primeiras páginas do “Diário” de Leão Dehon
seminarista. 13 de Dezembro de 1867: “Não me inquietar pelo futuro. Santificar-me no momento presente com a fidelidade à
minha regra, pedindo insistentemente a Deus os dons da prudência e da sabedoria. Fecundidade da “Via Crucis” e do amor de
Jesus”. 14 de Dezembro de 1867: “Tender à perfeição mediante o amor de Deus e em especial da santa humanidade de Jesus. O
silêncio é o meio mais fecundo de perfeição. A língua é um cavalo por domar a que é preciso pôr as rédeas com a razão, a
prudência e o silêncio”. 15 de Dezembro de 1867: “A santidade consiste na união com Deus e na conformidade com a sua
vontade. No futuro Deus fará de mim o que quiser... Regular o meu trabalho com prudência, moderá-lo com a temperança,
animá-lo com a força, dirigi-lo com a fé e a caridade” (NQ I, 1-2). “Procuremos no Coração de Jesus uma lição de amor e de
sacrifício” (NQ I, 7-8: 20.12.1867).
329
NHV V, 2. Escreve no seu “Diário”: “Que nada nos separe da conformidade com a vontade de Deus. É a fonte de toda a
santidade. Deus obtém maior honra e nós maior proveito do mais simples acto feito segundo a sua vontade do que de uma
grande obra que não nos pede” (NQ I, 31: 1.2.1868). “Peçamos a Deus para ser indiferentes a tudo o que não é cumprimento da
sua vontade” (NQ I, 46: 22.2.1868). Tudo o que o P. Dehon escreve nas “Memórias”, relativamente à sua vida espiritual de
seminário, é tirado do contemporâneo “Diário” (NQ) do seminarista Leão Dehon; inclusive, frequentemente, com as mesmas
palavras, como demonstrou criticamente o P. A. Vassena scj, no seu estudo: Sinossi comparativa dei primi due quaderni del
Diario di P. Dehon, CGS, Roma 1976, 202 pp. Esta sinopse comparativa é feita sobre os primeiros cadernos do “Diário” (NQ)
de Leão Dehon seminarista (de 13.12.1867 a 20.2.1870) e uma parte dos cadernos quinto, sexto e também oitavo das
“Memórias” (NHV) escritas quase trinta anos depois da vida no seminário (1865-1871).
330
NHV V, 3. Pensando na missão do sacerdote, escreve no “Diário”: “O sacerdote representa Nosso Senhor, trata familiarmente
com Ele, distribui-o aos fiéis. Que dignidade! Que méritos nestes actos de caridade divina se se realizarem com fé e piedade!”
(NQ I, 95: 22.4.1868). “A dignidade do sacerdote no santo sacrifício supera a dos anjos e a sua santidade deve ser eminente... Os
seus lábios pronunciam palavras que têm uma força divina. Para nos prepararmos para esta dignidade, deixemos que Nosso
Senhor viva em nós com a sua graça” (NQ I, 120-121: 2.6.1869). Já sacerdote escreve no seu “Diário” expressões de
encantadora admiração” (cf. NQ II, 11-35 passim, 47, 55, 57).
331
A reparação já está presente nas primeiras páginas do “diário”: “Permaneçamos perto do Coração de Jesus para adquirir a
pureza... Dêmos-lhe amor por amor. Que o nosso zelo pelas almas seja gratuito, generoso, magnífico (dimensão antropológica da

78
Para manter-se na presença de Deus, tinha o seu espírito aberto, a pleno sol, sob o olhar de Deus. A
intimidade entre Deus e a alma estava esplendidamente expressa na chamada bíblica ao amor conjugal, a
união do esposo à esposa, usado por S. Paulo.332
“Sentia, enfim, uma muito acentuada inclinação, uma verdadeira vocação para a vida religiosa.”.333
Tinha-o impressionado o que diz Belarmino: “Excluídos os mártires, são muito poucos os santos
canonizados que não tenham saído dos mosteiros”. “A santidade encontra-se, pois, maravilhosamente
facilitada na vida religiosa”.334
Encontrou a confirmação disto nos salões do Vaticano, observando os retratos dos cardeais
canonizados: quase todos tinham saído dos conventos. “Como gosto da lógica, concluí que entraria em
religião, não para ser canonizado, mas para fazer-me santo e para amar e servir melhor a Nosso Senhor”.335
Passaram mais de 10 anos antes de que a sua vocação religiosa, entre dúvidas e contradições, se realizasse
com a fundação de uma nova congregação.
Durante o primeiro ano de seminário, em 1865-1866, o P. Freyd deu a Leão os escritos inéditos do
Ven. Libermann como guia para a oração. Assim se deu o primeiro encontro com um mestre de vida
espiritual em sintonia com tantas experiências íntimas do jovem seminarista.
O Ven. Francisco Libermann, nascido em Saverne a 1802, filho de um rabino, converteu-se ao
catolicismo e foi baptizado no Natal de 1826. Em 1827 entrou no seminário de S. Sulpício, porém durante
vários anos não foi mais do que um simples acólito por causa das crises epilépticas que o impediam de
aceder ao sacerdócio. Curou-se numa peregrinação ao Loreto. Foi ordenado sacerdote em 1841. Fundou a
congregação dos escravos negros. Em 1848 a sua congregação fundiu-se com outra mais antiga, a do
Espírito Santo e foi eleito superior geral do novo instituto. Morreu em 1852. A sua causa de beatificação
foi introduzida em 1876, sob Pio IX. Em 1910 Pio X, reconheceu a heroicidade das virtudes do servo de
Deus. O Ven. Libermann teve um particular carisma para a direcção das almas. A sua doutrina espiritual
sintetiza-se em três pontos principais: abnegação e abandono total ao beneplácito de Deus; calma e paz,
apoiadas na humildade, na simplicidade, na confiança em Deus; união com Deus mediante a submissão da
alma às inspirações do Espírito Santo. O P. Libermann teve uma grande devoção ao Coração de Maria
(Nossa Senhora das Vitórias). Realizou na sua vida a sua doutrina espiritual. Todos ficavam
impressionados com a sua humildade, doçura e pobreza; com o seu espírito sobrenatural nos afazeres da
vida; com a sua constante paz de espírito apesar das constantes doenças e das numerosas provas com que
teve de confrontar-se. As suas últimas palavras foram: “Fervor, caridade, sacrifício...; sobre tudo caridade”.
Sem dúvida, Leão Dehon colheu nas obras do Ven. Libermann o espírito de abandono ao
beneplácito divino sob a acção do Espírito Santo. (Nos primeiros cadernos do Diário, sobre os anos do
seminário, nomeia com frequência o Espírito Santo, tanto quase como o Coração de Jesus: 40 vezes contra
46). É certo que dos escritos do Ven. Libermann, Leão Dehon tirou um grande proveito especialmente para
a oração.336 “Nunca tive entre mãos, mesmo mais tarde, um tratado sobre a oração mais claro, mais exacto
nem mais pratico”.337 Libermann apresenta três estados de oração: a meditação, a oração afectiva, a
contemplação.
reparação). Que Jesus seja o irmão da nossa alma! Seja toda para Ele, não ame nada que não n’Ele (A oblação de amor ou sim ao
amor é a mais eficaz reparação do pecado que é não ao amor) (NQ I, 6-7: 19.12.1867). “Sejamos uma vítima perene... Amemos
a Jesus como a nosso único amigo e, generosamente, amemos todos os homens n’Ele” (NQ I, 10-11: 25-27.12.1867). “Entremos
nos sentimentos com que Nosso Senhor se ofereceu ao Pai como vítima. São os sentimentos mais puros e mais sublimes”. “Hoc
sentite in vobis, quod et in Christo Jesu” (cf. Fil. 2,5)” (NQ II, 18: 28.11.1869).
332
Cf. Ef. 5,25-30; NHV V, 4-5: “Para viver em Deus sem interrupção, atenhamo-nos aos três princípios da união com Ele:
união de presença, união de vontade, abandono completo à graça que é a nossa única força” (NQ I, 41: 15.2.1868). Nosso
Senhor admite-nos todas as manhãs às suas castas núpcias. Considera como seu o nosso corpo, honrado pelo contacto com o seu
sagrado corpo. “Et erunt duo in carne una...” (Gn. 2,23)” (NQ II, 14: 18.11.1869). “Meu Deus aperta cada vez mais a minha
união cotigo, que chegou à intimidade no dia da minha tonsura, rubricada no subdiaconado, consumada no sacerdócio” (NQ II,
15: 21.11.1869).
333
NHV V, 5. “A perfeição requer o espírito de pobreza... de obediência... de castidade. É o espírito de todos os santos, estejam
ou não apoiados por uma regra para praticá-lo. Deve ser o espírito de todos os sacerdotes, porque é eminentemente o espírito de
Cristo de que nos alimentamos todos os dias” (NQ II, 26: 14.12.1869).
334
NHV V, 5.
335
NHV V, 5.
336
Cf. NHV V, 6.
337
NHV V, 6.

79
Como todos, Leão dedicou-se primeiro a fazer bem a meditação, seguindo o conselho do P. Freyd
de tender à união com Nosso Senhor. Para isso escolheu preferentemente a meditação dos mistérios da
vida de Cristo. Quando se propunha a meditação sobre uma virtude, considerava-a em Cristo. “Este
costume conduziu-me pouco a pouco à oração afectiva”.338
Leão experimentou-a como uma impressão sensível e suave, acompanhada de grande doçura e paz.
A sua alma sentia-se recolhida, próxima a Nosso Senhor, como um menino no regaço da sua mãe. Esta
experiência íntima continuava ao longo do dia. Trabalhava habitualmente na presença de Deus: Sentia no
seu comportamento externo a necessidade de ser doce e moderado.
Não desanimava na aridez. Era sabedor de que a perfeição e a santidade não consistiam naquela
doce paz, e não sentia nenhum motivo para se orgulhar dela.
Experimentava na oração uma viva impressão, especialmente, nas solenidades litúrgicas. Sentia na
alma uma predominante atracção para a contrição e amor. Eram impressões vivas e profundas, que davam
felicidade à alma.
Às vezes sofria penas interiores agudas, ao pensar nos pecados da vida passada. A intensidade da
dor crescia com a intensidade do amor e o acompanhava noite e dia durante muito tempo.
Finalmente havia a dor provocada em Leão Dehon pela contemplação do crucifixo, considerando
os sofrimentos do Senhor: “Os frutos destas dores são bem grandes e muito desejáveis: o partir do coração,
o dom das lágrimas, o ardor do espírito e da memória, a atracção para Deus. A alma enche-se do desejo de
agradar ao Senhor e de fazê-lo amar. Tudo atribui a Deus e despreza o mundo. Obedece suavemente ao seu
director espiritual e aos seus superiores. Sente grandes desejos de mortificação. Deseja cumprir em tudo a
vontade de Deus. Pratica com perfeição a caridade para com o próximo”.339
É evidente que a alma, ao viver a oração afectiva, se vai purificando, se desapega de tudo, se
robustece no desejo de unir-se a Deus, de lhe agradar em tudo e tende directamente para Ele. Deus leva
assim a alma à contemplação. “Descrevendo estas graças divinas – escreve o P. Dehon nas Memórias –
descrevi, se não sou vítima de uma ilusão, o que a infinita misericórdia de Deus (durante os anos de
seminário)realizou na minha alma gradualmente e com algumas deficiências provenientes das minhas
resistências e imperfeições.
“A graça de Deus levou-me bem depressa à oração afectiva que me consumiu de um grande amor a
Nosso Senhor e me infundiu no coração uma grande dor pelos meus pecados. A recordação de tais graças
confunde-me e humilha-me.
“Chorava às vezes, também pelo estado de indiferença religiosa do meu pai; porém esta dor duraria
ainda dois anos, antes de conseguir o seu regresso definitivo a Deus.
Ó meu Deus, recebe de novo aqui, o meu mais ardente agradecimento por todas estas graças e
perdoa-me todo o abuso que delas fiz”.340
A preocupação e a oração pela conversão de seu pai volta com frequência nas cartas do seminarista
Leão Dehon, especialmente na festa de S. Júlio (12 de Abril).
Escreve: “O tempo pascal acaba de começar, será preciso que o papá aproveite depressa de uma
ocasião para se pôr em regra...” (19.3.1866). E ainda em 1866 directamente e seu pai: “Quem sabe tenhas

338
NHV V, 7. O esquema da meditação de Leão Dehon seminarista pode-se apresentar assim: uma frase bíblica introduz na
consideração de um mistério de Cristo ou de Maria, proposto ordinariamente pela liturgia. Segue a consideração propriamente
dita, semeada ordinariamente de textos bíblicos, segundo o procedimento do Ven. Libermann. Conclui com a aplicação pessoal
do mistério. Esta contemplação leva cada vez mais o seminarista Leão Dehon à união com Jesus, sobre tudo na eucaristia (cf.
Vassena scj. Comentario a NQ. Vol. I, p. 168, n. 55). Leão Dehon dava uma grande importância à oração (meditação-oração
afectiva-contemplação): “As obras mais excelentes são: A oração com que a alma louva a Deus do modo mais sublime que é
dado ao homem para louvá-lo e o sacrifício de si mesmo, voluntário e aceite, com o qual nos unimos à morte do Salvador” (NQ
I, 38-39: 12.2.1868).
339
NHV, 10. Ao concluir o ano de 1869 escreve no seu “Diário”: “Meu Deus, está para acabar um ano que foi para mim
abundantíssimo de graças. Vo-las agradeço. Desejaria tê-lo passado na mais pura união contigo. Com demasiada frequência
permiti que renascesse a minha inextinguível concupiscência. Perdoa-me. Fortalece-me para o futuro. Tu conheces a minha
fragilidade. Dá-me as graças de que necessito. Ó Maria, minha mãe, conserva-me! Se cair, levanta-me!” (NQ II; #&_#/:
31.12.1869). Pouco depois anota com sabedoria: “Que pernicioso é o costume de preocupar-se com a reforma dos outros e não
com a própria!” (NQ II, 42: 7.1.1870). Deixemos de parte toda a inútil preocupação e façamos bem o que Deus quer de nós”
(NQ II, 42-43: 9.1.1870). “Façamos bem o que devemos fazer, sem sonhar no futuro” (NQ II, 45: 13-1-1870).
340
NHV V, 11. (Cf. Note e studi, n. 9, p. 545).

80
tido a feliz ideia de escolher esse dia (a festa de S. Júlio) para fazer a tua comunhão pascal. Estou certo de
que este ano não faltarás... Amanhã rezarei ao teu patrono por ti segundo esta intenção” (11.4.1866). Em
Janeiro de 1867 volta a escrever a seu pai esta comovedora carta: “O meu amor por ti não faz mais que
crescer e, como não posso oferecer-te nada mais que orações, não deixo de o fazer, por mais indignas que
sejam diante de Deus. Suponho que estarás em Paris e aproveito a ocasião para te recordar a consolação
que há três anos sentiste quando puseste em regra a tua consciência na casa dos PP. Dominicanos e
recebeste a sagrada comunhão. Poderias aproveitar mais uma vez a tua estada em Paris para voltar à graça
de Deus. Sugiro-te que te dirijas ao pároco de Nossa Senhora das Vitórias. É um santo e venerável ancião...
Isto não é para ti um grande sacrifício, já que tu só faltas ao preceito dominical. Basta que faças o bom
propósito de ir à missa todos os domingos, a menos que tenhas um sério impedimento” (27.1.1867). Noutra
carta à família volta a insistir: “Se o papá deseja dar-me alegria, que me escreva que vai à Missa todos os
domingos quando pode. Estou a fazer-me pregador, não é verdade?; porém, em resumo, o melhor sinal de
carinho que posso dar-vos é de interessar-me muito pela vossa salvação eterna” (11.3.1867).
A insistência de Leão sobre a comunhão pascal volta noutras cartas. Seu pai reconhece a
necessidade da oração, porém atrasa a Páscoa porque se sente indigno. “isto não te deve reter – escreve-lhe
Leão -. O sacramento da penitência é um remédio... mais para os enfermos que para os sãos” (2.5.1867).
“Peço que o papá diga somente todas as noites humildemente estas palavras: “ Meu Deus, dai-me a
força de me reconciliar inteiramente convosco...”. “Algumas vezes choro pensando em ti...”. São cartas a
seus pais em Novembro e Dezembro de 1867. Leão pedia a seu pai que cumprisse aqueles deveres
religiosos que ele mesmo lhe tinha incutido na sua infância. Assim o escreve numa carta de Abril de 1868.
Veremos como na primeira Missa do filho, em Dezembro de 1868, o senhor Dehon se aproximará
dos sacramentos. Porém já em Abril de 1869, Leão escreve a seu pai: “A tua carta está cheia de bondade,
porém esperava ainda mais. Esperava que tu me anunciasses a tua perseverança na graça de Deus e o
cumprimento do teu dever pascal. Vi-te tão feliz aqui (em Roma) que esperava que já não te exporias nem
um só momento da tua vida a estar fora deste estado de paz e de alegria. Não deixei de te ajudar nisto,
desde há três meses. Tu foste a primeira conquista do meu sacerdócio; pus todo o meu zelo e sempre o
porei para conservá-la. Muitas vezes ofereci o santo sacrifício, pensando nas dificuldades que
encontrarias... Depois de tudo isto, não te maravilharás se, lendo a tua carta, não pude conter as lágrimas”.
A mesma preocupação se manifesta noutra carta de Leão a seu pai em Maio de 1869.
O pai de Leão morrerá a 11 de Fevereiro de 1882. “A fé tinha-se ido robustecendo pouco a pouco
na sua alma – escreve o P. Dehon nas Memórias -. Nos últimos anos estava de bem com Deus e rezava com
gosto...; estava resignado, com admirável paciência e doçura, ele que antes tinha sido tão vivo e sensível
aos sofrimentos”. Morreu serenamente na paz do Senhor.341
Durante o segundo ano de seminário (1866-1867), Leão continua saboreando a oração afectiva,
enquanto Nosso Senhor o vai levando a uma união cada vez mais íntima e profunda. “O objecto habitual
dos meus afectos era Jesus crucificado. Fazia a Via Sacra todos os dias. Era o meu recreio da noite. O
crucifixo era o meu confidente e companheiro de cela. Guardava no meu coração uma tristeza contínua e
profunda pensando que o meu Jesus não é amado”.342
Entretanto, Nosso Senhor completava a purificação da alma de Leão, fazendo-lhe sentir a
necessidade de se mortificar habitualmente, de se confessar amiúde e com grande cuidado. A sua alma
avança na paz e recolhimento, disposta a receber as comunicações íntimas de Deus. Este progresso
reflecte-se também no seu diário de seminarista. Pouco a pouco os seus apontamentos espirituais vão
tomando a forma de oração: “Não perdia durante o dia a união com Nosso Senho; sofria às vezes, no
recreio, por causa do vazio das conversas e pelas faltas de caridade que tão facilmente se cometem”.343

341
NHV XIV, 93-95.
342
NHV V, 70. “Procuremos a nossa alegria e o nosso refúgio nas sagradas chagas de Jesus. Aí deve estar o nosso coração e o
nosso amor” (NQ I, 93: 18.4.1868).
343
NHV V, 71. “Meu Deus, não permitas que diminua a união contigo, para a qual com tanto amor me convidas todos os dias”
(NQ II, 19: 30.11.1869). “Meu Deus, faz que não me preocupe daquilo que me rodeia! Que adore a majestade invisível, ame o
maor infinito, presente, embora invisível! Que não esqueça que cada momento tem uma imensa importância para a eternidade”
(NQ II, 19-20: 1.12.1869). “Jesus é nosso rei de paz...o seu reino é doce, sem fastos, sem violência. Em relação às conversas
entretém-te muitas vezes com aqueles que edificam com os seus exemplos e as suas palavras. Guarda-te da companhia de quem
não é fervoroso; evita... aquele que se compraz em conversas frívolas, que tudo julga e critica, que é mundano nas suas palavras

81
Notemos que o P. Dehon, quando escrevia as suas memórias, não possuía ainda os elementos de
teologia espiritual necessários para avaliar com perspectiva, depois de quase 30 anos, o caminho da sua
vida espiritual e a verdadeira natureza da sua união com Deus. Só em 1913, ou seja aos 70 anos, se dá
conta, com admiração, ter tido durante os anos de seminário autênticas experiências de contemplação
mística.344

RELAÇÕES SOCIAIS

Uma vida interior tão intensa não isola nada o seminarista Leão Dehon. Está em contínuo contacto
com o mundo estudantil da universidade; participa, como dissemos, nas manifestações religiosas de Roma;
volta ocasionalmente a interessar-se pelas artes e, especialmente, pela arqueologia, como aconteceu quando
Leão Palustre esteve em Roma (inverno de 1866).
Conhece os zuavos pontifícios, em grande parte de origem francesa, todos “excelentes..., de coração
puro e ardente, com tradições de virtude, de nobreza, de piedade... A sua recordação ficou-me como uma
das melhores da minha visa, uma das mais eficazes para elevar a minha alma e enobrecê-la”.345
Recordando com saudade as obras de caridade em que tinha colaborado em Paris, Leão Dehon
organiza a favor dos pobres, com outros seminaristas, uma pequena obra de catecismo para as crianças. É
eleito como presidente. Os membros reúnem-se todas as semanas e, todos os dias, durante o recreio, há
crianças pobres, enviadas pelo pároco da Minerva, para serem instruídos na doutrina cristã. Tudo acaba
com festas, concursos e prémios.
A pequena associação, colocada sob o patrocínio de Santa Catarina de Sena, continuou a sua acção
benéfica muitos anos depois de Leão deixar Roma.
Também as festas para o 18 centenário da morte dos apóstolos Pedro e Paulo, celebradas em Junho
de 1867, constituíram uma ocasião única para entusiasmar Leão sobre a vitalidade da Igreja. Destas festas,
que duraram de 20 de Junho a 6 de Julho, fala Leão em várias das suas cartas a seus pais. O dia mais alto
foi o 29 de Junho, 18 centenário do martírio de S. Pedro. Na presença de centenas de bispos teve lugar a
canonização de 29 novos santos. “Os seus estandartes forma levados em procissão pela praça de S. Pedro;
depois, após a leitura do decreto de canonização, o Santo Padre entoou o “Te Deum” na basílica de S.
Pedro, esplendidamente adornada e iluminada, diante de uma incalculável multidão. O Santo Padre
presidiu à Missa e, no ofertório, 400 vozes, distribuídas em três coros, ressoavam na basílica cantando “Tu
es Petrus”... Estas festas falam ao coração e possuem um carácter religioso que só em Roma se encontra”.
(30.6.1867). “Era como o ensaio do Concílio”. 346 De facto, foi naquela ocasião que Pio IX anunciou a sua
intenção de convocar em breve um Concílio no qual Leão Dehon participaria como estenógrafo, ganhando
uma profunda experiência da vida da Igreja.

AS ORDENS SAGRADAS

e acções; é preciso que tu sejas anjo que gosta de conversar com os anjos... Passeia, diverte-te docemente, trabalha
tranquilamente... Procura ter sempre o espírito livre, alegre, aberto... Há que ser doces e simples com todos... Olha sempre para
Deus... Durante a conversa: moderação, paz e doçura. Com o esquecimento de ti mesmo, com a moderação e a paz diante de
Deus, avançarás na vida interior... A paz, a doçura, a alegria santa que moram no teu coração, irradiem na tua atitude, nas tuas
palavras e nas tuas acções” (NQ I, 75-77: 5.4.1868). “Tenhamos sempre acesa em nosso coração a lâmpada da caridade,
protegida do vento das distracções, dos afectos naturais” (NQ I, 89-90: 11.4.1868).
344
Cf. NQ XXXV, 3.6. (Cf. Note e studi, n. 10, pp. 546 ss.)
345
NHV V, 106-107. Numa excursão a Velletri, Leão Dehon come com oficiais dos zuavos pontifícios e escreve assim aos seus
pais: “É impressionante ver como estes jovens das melhores famílias francesas sacrificam os seus melhores anos ao serviço de
Santo Padre e levam nos quartéis uma vida religiosa e boa, que não se encontra em nenhum exército do mundo” (carta de
20.2.1866).
346
NHV V, 109.

82
Leão Dehon recebeu a tonsura a 22 de Dezembro de 1866 em S. João de Latrão das mãos do cardeal
vigário, Patrizi: “Desejava tanto realizar a minha separação do mundo e entregar-me a Nosso Senhor!”.347
Deveria tê-la recebido em Junho de 1866, porém tinha renunciado a ela pela contrariedade de seu
pai.
Regressado a Roma para o segundo ano do seminário (1866-1867), o P. Freyd acabou com a espera
e lhe disse que se preparasse para a tonsura e as ordens menores. “Passeio os exames no Vicariato. Li e
meditei com emoção os tratados de Olier sobre a tonsura e as ordens menores. Recebi demasiadas luzes e
graças para ter qualquer mínima dúvida sobre a minha vocação. Experimentava uma verdadeira sede de
pureza, de oração, de união com Deus. Ao receber a tonsura, deixei cair, com os meus cabelos, muitas
lágrimas na bandeja do bispo. Tinha esperado e lutado tanto para realizar a minhas vocação!”.348
Segundo o costume romano recebeu as ordens menores das mãos do arcebispo, vice-gerente do
cardeal vigário, na sua capela privada, em duas funções diferentes, a 23 e 26 de Dezembro de 1866: “Abri
com fé e com simplicidade a minha alma às especiais graças de cada ordem”.349
No mesmo 26 de Dezembro de 1866 envia uma carta a seus pais: “Escrevo-vos debaixo da
impressão da felicidade e da alegria que sinto nestes dias de graça e de bênção, nos quais o Senhor nos
enche dos seus benefícios. Como tenho pena de não vos ter tido por perto para fazer-vos participantes
destas deliciosas alegrias que o mundo não conhece! Rezei muito por vós e espero que Deus vos encha de
bênçãos. No sábado (22 de Dezembro), ao receber a tonsura das mãos do cardeal vigário, consagrei-me a
Deus e a seu serviço. Isto teve lugar durante a grande celebração em S. João de Latrão com uma pompa e
solenidade impressionantes. O Rev. Poisson e Palustre assistiram. Estavam muito comovidos e pensavam
nos sacrifícios que vós fazeis. No Domingo (23 de Dezembro), as primeiras ordens menores e, hoje (26 de
Dezembro), as outras duas. Bendizei a Deus comigo, por tantas graças, honras e bênçãos...”.
Na carta seguinte escreve: “Estou inteiramente feliz por ter-me consagrado a Deus e trabalho com
zelo. Tenho pena de não vos poder fazer participantes da minha felicidade para que a compartilheis”
(7.1.1867). Na carta de 14 de Janeiro de 1867, dirige-se particularmente ao pai, que era o menos resignado:
“Sabendo, querido pai, que o teu filho está feliz e com uma alegria mais pura e mais perfeita da que dão as
riquezas e as honras do mundo, tu também te sentirás feliz e já não lamentarás que o teu filho tenha
seguido este caminho, a que Deus lhe concedeu a graça de chamá-lo”. Detém-se longamente a demonstrar-
lhe a grandeza da dignidade sacerdotal. “se tivesses uma fé muito mais viva, como sentirias a grandeza
desta dignidade que os Padres da Igreja afirmam que é mais eminente e mais sublime que a dos próprios
anjos!”. E termina: “O meu afecto por ti é mais forte e mais verdadeiro do que nunca. Não terei nunca outra
família e serei mais completamente vosso”.350
A 21 de Dezembro de 1867, Leão é ordenado subdiácono. Desde o princípio daquele ano tinha
comprado o breviário “para aprender a rezá-lo bem”, como diz numa carta a seus pais (7.1.1867). “O meu
gostaria de ter diferido continuamente o meu compromisso definitivo. Para lhe fazer gosto teria esperado
alguns meses. Finalmente o P. Freyd pensou que era preciso cortar o nó górdio”.351 Certo das boas
disposições de Leão, levou-o a fazer os exercícios espirituais de 16 a 21 de Dezembro de 1867.
Recordando aqueles dias, o P. Dehon afirma nas Memórias: “Nosso Senhor ia-me conduzindo pouco a
pouco à união com o seu divino Coração, preparando-me assim para a vocação que mais tarde me daria.
Estas eram as minhas disposições ao terminar os exercícios espirituais”.352 Seguem pouco mais de duas
páginas onde se apresentam os elementos característicos da espiritualidade dehoniana: Jesus fonte e
modelo de toda a virtude, especialmente da pureza de intenção; procura só a glória do Pai, com a sua
oblação de amor e com a salvação das almas; repara coma sua imolação sem limites os nossos pecados,
para que nós reparemos e nos imolemos com Ele.353

347
NHV V, 65.
348
NHV V, 66-67.
349
NHV V, 68.
350
AD, B 18/9.
351
NHV V, 127.
352
NHV V, 129.
353
“Que Jesus seja o nosso conselheiro, amigo e esposo da nossa alma” (NQ I, 20: 11.1.1868). “Deixemos viver em nós o
Espírito Santo. Que nos dirija e vivifique todas as nossas acções. Obtenhamo-lo do Coração de Jesus” (NQ I, 62: 12.3.1868).
“Que a meditação da sua paixão seja o nosso alimento... Procuremos nas sagradas chagas de Jesus a nossa alegria e o nosso

83
Chegou o grande dia. “21 de Dezembro de 1867 foi um dos dias mais belos e melhores da minha
vida. Entregava-me a Nosso Senhor para sempre mediante os compromissos do subdiaconado. Descrevia o
estado da minha alma com estas palavras: dia de felicidade e pura alegria. Início de uma verdadeira
liberdade. Servir a Deus é reinar”.354
No mesmo 21 de Dezembro escreve Leão uma comovente carta a seus pais: “O meu coração
transborda de alegria. Gostaria de fazer-vos participantes da minha felicidade. Hoje é o dia mais belo da
minha vida. Já estou consagrado a Deus... Vós não estáveis presentes nesta bela cerimónia; porém recordei-
vos e rezei muito por vós... Choro às vezes pensando em vós. Porém não são lágrimas egoístas provocadas
pela pena, mas lágrimas generosas, derramadas diante de Deus, pedindo que vos abençoe, santifique e
conserve na paz do coração e que nos reuna na felicidade dos eleitos na eternidade, Não é isto amor
verdadeiro?”. Termina a carta com um pensamento de uma grande delicadeza: “Daí a Marta (sua sobrinha)
um caramelo de minha parte, para que não me esqueça”.

O NOVICIADO DA MINHA VIDA RELIGIOSA

Com o subdiaconado Leão aceitou, não como uma obrigação, mas como uma grande dádiva, a reza
do breviário: “Nosso Senhor me deu a graça de saborear e amar o breviário com uma santa paixão.
Empregava nele a parte melhor do meu tempo e rezava-o de joelhos. Os meus estudos não sofriam por isso.
Rezar em nome da Igreja, rezar com Jesus por todas as almas que lhe são queridas, é uma missão
verdadeiramente bela! Esta missão com Jesus na oração era com frequência o objecto dos meus propósitos.
Tinha a graça de faltar raramente”.355
Recordando o ano de 1867-1868, o P. Dehon, já religioso e fundador de um instituto, escreve nas
Memórias: “Aquele ano foi verdadeiramente um dos melhores da minha vida: Creio que Nosso Senhor me
fez fazer o noviciado para a vida religiosa. Ele foi o meu Mestre. Hoje penso compreender o motivo.
Naqueles mesmos dias começava na Alsácia aquela querida comunidade que tão unida ia estar connosco e
que devia ter para connosco uma função verdadeiramente materna. S nossas primeiras Madres receberam o
véu a 21 de Novembro de 1867. Também elas faziam o seu noviciado. Nosso Senhor tinha gosto
certamente, na sua bondade, em preparar as duas obras ao mesmo tempo”.356
Leão Dehon refere-se à Congregação das Servas do Sagrado Coração, fundadas em Estrasburgo
pela Madre Maria do Coração de Jesus (Oliva Uhlrich) e das quais temos de falar longamente mais adiante.
O P. Dehon continua nas Memórias: “As luzes que Jesus me dava em todas as meditações daquele
ano eram tão conformes com a nossa vocação de Sacerdotes-Oblatos do Coração de Jesus, que as minhas
próprias notas poderiam fornecer o material para um Directório Espiritual da Obra”.357
Disso nos dá um exemplo concreto em 80 páginas das Memórias, que tratam como tema a união
com Deus, a vida interior, a vida de Jesus em nós, a amabilidade de Jesus, a união ao Coração de Jesus, os
exercícios espirituais, a vocação e as ordens sacras, as virtudes, os mistérios de Nosso Senhor, os mistérios
da vida da Santíssima Virgem.358
Neste terceiro no de seminário (1867-1868) temos uma carta de Leão a seus pais que é muito
significativa em relação à sua vida espiritual: “Como os meus dias são maravilhosamente tranquilos, não
vos teria nada a dizer se não vos falasse um pouco de Deus, já que é a Ele que estão dirigidos todos os
meus pensamentos, estando o meu tempo dividido entre a oração e a teologia, ou seja a ciência de Deus”.

refúgio. Aí deve estar todo o nosso amor e todo o nosso coração” (NQ I, 87-93: 8.4/18.4.1868). “Entremos nos sentimentos com
que Nosso Senhor se ofereceu ao Pai como vítima. São os sentimentos mais puros e mais sublimes” (NQ II, 18: 28.11.1869; cf.
NQ I, 15.24-25).
354
NHV V, 131. No “Diário” escreve sobre a ordenação ao subdiaconado: “Dia de felicidade e de alegria pura. Princípio de uma
verdadeira liberdade. Servir a Deus é reinar, é ser livres” (NQ I, 8: 21.12.1867).
355
NHV V, 132. Escreve no “Diário”: “A recitação do breviário mais do que uma obrigação é uma graça, já que nos faz pedir ao
que disse: “Pedi e recebereis”. Se se pede a Ele de bom coração, sempre se é enriquecido” (NQ I, 96: 24.4.1868). “É preciso que
sejamos homens de oração” (NQ I, 115: 30.5.1868).
356
NHV V, 133. As numerosas citações que fizemos dos primeiros cadernos do “Diário” demonstram até à evidência a verdade
do que diz o P. Dehon. Para uma documentação mais ampla compare-se: A. Vassena scj, Sinossi comparativa dei primi due
quaderni del “Diario” de P. Dehon, CGS, Roma 1976, pp. 202.
357
NHV V, 133. Cf. A. Vassena scj, Sinossi comparativa, I-IV ss.
358
Cf. NHV V, 134-190; VI, 1-24. Cf. A. Vassena scj, Sinossi comparativa.

84
“Gostaria de fazer-vos compreender e participar das graças com que Deus nos enche quando nos
entregamos a Ele. Ele fortalece a nossa fé, tornando-nos a sua adorável presença mais certa que a nossa
própria presença. Que pouca desculpa têm os incrédulos! Se abrissem os olhos veriam a mão de Deus...
Estes efeitos (de Deus) são sensíveis. Todos os cristãos os experimentaram alguma vez, ao menos nos
momentos de fervor na sua infância... Deus nos ama, abre-nos os braços...”. E termina: “Não podia evitar
de comunicar-vos os pensamentos que me enchem o coração. Esta é a finalidade das cartas íntimas”
(19.1.1868).

DIÁCONO E SACERDOTE PARA SEMPRE

De 29 de Maio a 6 de Junho de 1868, Leão Dehon faz os seus exercícios espirituais de preparação
para o diaconado: “Dias deliciosos. É ainda para mim uma graça despertar aquelas recordações”.359
A 6 de Junho Leão é diácono: “Faço o propósito de apegar-me cada vez mais à vontade de Deus,
vivendo na sua presença, sem outro fim que a sua glória... Nosso Senhor leva-me cada dia mais a unir-me
ao Sagrado Coração..., seguindo com doçura, paciência e amor a providência de Deus e as inspirações do
Espírito Santo, como Nosso Senhor nos deu o mais sublime e perfeito exemplo na sua paixão: “oboediens
usque ad mortem”.360
São evidentes os valores fundamentais da espiritualidade de Leão Dehon: a entrega de amor no
abandono à vontade de Deus até a imolação na cruz.
A 21 de Maio de 1868 Leão tinha mandado a sua carta mais comprida a seus pais, descrevendo as
cerimónias da ordenação ao diaconado e traduzindo as orações: “Estas são as cerimónias, cuja descrição
certamente vos comoverá. Voltai a lê-las, à noite, em família e que vos sirvam de ocasião para amar ainda
mais a Igreja e o bom Deus. Gostaria que nos nove dias anteriores à ordenação, que será a 6 de Junho,
rezásseis todas as noites em família o “Veni Creator”.
Era uma grande festa para o seminário francês. Com Leão foram ordenados outros dois diáconos,
três subdiáconos e sete sacerdotes.
A 6 de Junho de 1868, já diácono, escreve assim a seus pais: “É muito justo que a minha primeira
ocupação, depois da grande graça que Deus me fez, seja fazer-vos participar da minha felicidade e alegria.
Que diferentes são estas graças que de Deus se recebem ao pé dos altares, das alegrias do mundo! Vós
experimentaste-las na vossa primeira comunhão e volta-se a experimentar cada vez que se recebe Nosso
Senhor na eucaristia com um coração puro e amante...”
Já estamos no fim do terceiro ano de seminário (1867-1869). Leão é bacharel em Teologia.
Passa as férias de verão de 1868 em La Capelle. Nosso Senhor reserva-lhe uma grande graça: os
seus pais acompanham-no a Roma. De facto, saem de La Capelle a 22 de Outubro. A viagem teve as suas
aventuras por causa de várias inundações. Em Lyon visitam o santuário de Nossa Senhora de Fourvière,
onde é muito viva a recordação dos mártires dos primeiros séculos: Fotino, Ireneu, Blandina e
companheiros. Em Turim veneram a sagrada síndone. Vão dormir a Arona e visitam as belíssimas ilhas de
S. Borromeu e depois chegam a Milão. É um dia límpido e do alto do Duomo gozam o maravilhoso
espectáculo dos Alpes: o Monte Branco, o Monte Rosa...; rezam sobre o túmulo de S. Carlos Borromeu e
na igreja de Santa Maria das Graças admiram a Ceia de Leonardo. Visitam depois Pádua com a basílica do
santo e Veneza, que não deixa de surpreendê-los com as suas maravilhas.
A 31 encontram-se em Loreto e ali passam o dia de Todos os Santos: “Que espectáculo é Loreto em
dia de festa! Havia milhares de peregrinos. Pudemos entrar na pequena casa e rezar um bocadinho.

359
NHV VI, 52.
360
NHV VI, 62-63. Escreve no “Diário”: “ Ordenação do diaconado: prometo ocupar-me cada vez mais em fazer a vontade de
Deus, na sua presença, sem outra intenção que a sua glória... “ (NQ I, 124: 6.6.1868). Durante os exercícios para o diaconado
tinha escrito: “Sejamos homens de oração com Nosso Senhor... queimemos o incenso de nossas orações no fogo do seu amor”
(NQ I, 119: 1.6.1868). “O ministério do diaconado no altar é bastante parecido ao de S. José em Nazaré. Aproxima-se de Nosso
Senhor, cobre e descobre o cálice, transporta a hóstia com as suas mãos. Este ministério exige uma pureza angélica sobre a qual
é preciso velar delicadamente e que se tem de conservar com uma verdadeira mortificação” (NQ I, 125: 8.6.1868).

85
Gostaria de viver em Loreto para meditar aqui com comodidade a vida da Sagrada Família. Não conheço
outro santuário mais digno de veneração no mundo”.361
Finalmente, a 3 de Novembro, por Ancona e Foligno, chegam a Roma. Leão deve continuar as suas
aulas e viver a sua vida de seminário. Os seus pais alojam-se num apartamento próximo da rua dos Cestari.
Quintas e Domingos podem sair juntos. Todos os dias encontram-se na sala de visitas. Leão fixa-lhes o
programa diário, de modo a seguirem a vida religiosa de Roma, as suas festas, chegando pouco a pouco a
saborear o seu encanto. Entre as breves notas que a mãe de Leão Dehon escreve durante a sua permanência
em Roma, encontramos também uma página com nove destes programas. Havia um amigo de Leão, D.
Desaire, capelão de S. Luís dos Franceses, que com frequência acompanhava os Dehon nas suas visitas à
cidade. O carácter de D. Desaire, franco e jovial, agradava muito a Júlio Dehon. “O meu pai estava
encantado pela sua permanência em Roma. A sua fé ia-se fortalecendo dia a dia”.362
Os pais de Leão pensavam ficar em Roma até Fevereiro (1869). A ordenação sacerdotal de seu filho
seria em Junho seguinte. O P. Freyd teve a ideia feliz de a fazer antecipar para que os pais de Leão
estivessem presentes. “Mina mãe aceitou a proposta com alegria. Meu pai, embora temendo profundas
emoções, também a aceitou”.363
Recebidos em audiência papal a 15 de Novembro de 1868, o Sr. Dehon entregou o pedido escrito a
Pio IX para que o filho fosse ordenado sacerdote antes de terminar os estudos teológicos. Foi um
verdadeiro triunfo da graça de Deus. Quem tinha sido mais hostil à vocação de Leão, pedia o seu
cumprimento. Chegaram os dois grandes dias: a ordenação sacerdotal a 19 de Dezembro de 1868 e a
primeira missa no dia seguinte: “Os melhores da minha vida”.364
São muitos estes dias “dias mais belos”, estes “os melhores dias” na vida de Leão Dehon, marcados
sempre por uma profunda experiência de Deus, dos seus dons, das maravilhas do seu amor.
Leão preparou-se com um bom curso de exercícios espirituais sob a direcção do P. Freyd. Leu
Olier, o P. Chaignon; porém precisa: “Nosso Senhor quis preparar-me Ele próprio, dando-me abundantes
graças. Ele tinha certamente em mente a minha actual missão. Hoje vejo-o claramente. Concedia-me muito
generosamente o espírito de amor e de reparação, que é a característica da minha vocação”.365
A 19 de Novembro de 1868 está em S. João de Latrão com outros duzentos ordenandos: religiosos e
clérigos seculares de todas as nações, destinados aos mais diversos campos de apostolado em todas as
partes do mundo.
Tudo falava da santidade e da catolicidade da Igreja. Quem fez a ordenação foi o Cardeal Patrizi,
vigário do Papa. “Os meus pais choravam por trás de mim. O meu pai não comeu naquele dia. As
impressões da ordenação não se podem exprimir. Levantei-me sacerdote, possuído por Jesus, todo cheio
d’Ele, do seu amor pelo Pai, do seu zelo pelas almas, do seu espírito de oração e de sacrifício”.366
“Depois da ordenação fui desparamentar-me e, voltando-me, encontrei minha mãe ajoelhada diante
de mim para receber a minha primeira bênção. Era demais. Estalei em soluços. Voltei ao seminário
acompanhado por meus pais, mas esgotado pelas emoções. Meu pai estava completamente conquistado.
Prometeu comungar no dia seguinte na minha primeira missa. Foi confessar-se ao bom Mons. Level,
superior dos capelães de S. Luís dos Franceses, um santo sacerdote, convertido do judaísmo. Nos anos
seguintes, o meu pai não falava nunca de Mons. Level sem uma profunda emoção e sem uma expressão de
agradecimento”.367

361
NHV VI, 74-75.
362
NHV VI, 77. Para as notas de viagem da mãe de Leão Dehon cf. AD, 17,1.
363
NHV VI, 77.
364
NHV VI, 78.
365
NHV VI, 78.
366
NHV VI, 81.
367
NHV VI, 81-82. Cf. NQ I, 130. Assim evoca Leão a sua ordenação sacerdotal ao amigo Palustre: “Faltavas tu a 19 de
Dezembro. És feliz nestes grandes dias , tendo próximo amigos que te ajudem a pedir as graças de Deus e que participem das
tuas alegrias. Para mim estavam pelo menos meu pai e minha mãe, o que nunca teria esperado. Para eles e para mim foi fonte de
emoção, como podes imaginar, a cerimónia tão importante da ordenação. O poder misterioso e sobrenatural de que Deus reveste
os seus sacerdotes, impressiona fortemente; mais ainda quando um pai e uma mãe tem o seu filho, que oferecem a Deus, para
receber tantas graças; o seu coração não pode bater friamente nem os seus olhos ficar secos. Não posso descrever-te as
consolações com que Deus acompanha as suas graças. Tu já as experimentaste alguma vez” (cf. AD, B 18/10).

86
A 20 de Dezembro, Leão cantou a sua primeira missa no seminário de Santa Clara, assistido pelo P.
Freyd e os seus melhores amigos: Dugas, Le Tallec, de Popiel e de Rivoyre. “A emoção era geral. Quando
o meu pai e a minha mãe se abeiraram para comungar, ninguém conseguiu conter as lágrimas.
Pessoalmente estava louco de mor para com Nosso Senhor e cheio de despreza para com a minha pobre,
pequena pessoa. Foi o melhor dia da minha vida”.368
Com a mesma emoção celebrou as primeiras missas, mais ainda, durante um ano não pôde celebrar
a missa sem derramar lágrimas. Não quis ouvir falar de estipêndios de missas: “Repugnava-me unir a
preocupação do dinheiro com uma acção tão santa. Nosso Senhor pedia-me aquelas missas... só para Ele
em espírito de amor e de reparação”.369
Depois de tantas emoções eram necessários alguns dias de férias. Leão e seus pais passaram-nos
visitando Nápoles, a cidade e arredores.
Uma semana depois regressam a Roma. Os Dehon ficarão ainda mais de um mês, acompanhando as
festas litúrgicas e visitando igrejas e palácios segundo um programa preparado pelo filho e tendo-o como
guia nas quintas e domingos.
A lembrança da ordenação e das primeiras missas volta nas cartas de Leão Dehon a seus pais. A 18
de Fevereiro de 1869 escreve: “Querido papá e querida mamã: Já passaram dois meses desde que
estávamos em S. João de Latrão para receber de Deus graças verdadeiramente maravilhosas. Não deixeis
de Lhe agradecer comigo todos os dias. Estes primeiros tempos do meu sacerdócio são para todos nós uma
fecunda fonte de que jorrarão sobre nós os favores de F»Deus já que, não tendo ainda a cura de almas,
posso aplicar de modo especial pelos meus entes queridos, pelo seu bem temporal e espiritual, o santo
sacrifício, que todos os dias ofereço ao Senhor”. A 5 de Maio de 1869 escreve ainda a seus pais:
“experimento cada dia mais a inigualável felicidade de poder celebrar a missa... segundo o espírito da
Igreja... O sacerdote oferece os frutos do santo sacrifício por três fins principais: pela Igreja, pelos seus
entes queridos, ou seja, seus pais, os amigos e por si mesmo. O meu sacerdócio é, pois, uma fonte de graça
para vós e para mim”.

ATÉ AO CONCÍLIO

Entretanto, Roma preparava-se para o Concílio Vaticano I. Com a congregação coordenadora, cinco
comissões deveriam preparar os decretos do Concílio. Juntou-se a comissão para as cerimónias. Além dos
cardeais e do secretário geral, 102 eclesiásticos participavam nos trabalhos preparatórios.
A maior parte dos teólogos franceses hospedaram-se no seminário Santa Clara. Leão estabeleceu
boas relações e também laços de amizade com alguns deles. Recordemos o P. Manuel d’Alzon, fundador
dos Assuncionistas, teólogo de Mons. Plantier, bispo de Nîmes. A sua actividade, fora do Concílio era
intensa no campo da imprensa e como coordenador da maioria. Recordemos também o Rev. João Baptista
Jacquenet, pároco de Saint Jacques de Reims e depois bispo de Amiens; o cónego Carlos Gay que chegará
a ser bispo auxiliar do cardeal Pie, bispo de Poitiers, e que será escritor famoso de obras teológicas e de
espiritualidade.
Para o concílio eram necessários estenógrafos. Foi escolhido um sacerdote de Turim, Virgíneo
Marchese, que antes tinha sido estenógrafo no Senado italiano, para ensinar estenografia a vários
seminaristas de diferentes nações. Entre os 23 jovens escolhidos, esteve Leão Dehon, com os seus
condiscípulos do seminário francês: Dugas, Bougouin, de Dartein.
Às aulas normais juntou-se uma hora diária de estenografia. V. Marchese aplicou ao latim o sistema
Taylor, utilizando a adaptação italiana de F. Delpino: sinais geométricos para as consoantes com a omissão
das vogais. Um sistema bastante complicado, muito deficiente, que dava resultados medíocres, inclusive
com estenógrafos inteligentes e activos.

368
NHV VI, 83.
369
NHV VI, 84.

87
Alternavam-se dois a dois, frase por frase, depois retiravam-se para transcrever o texto em
caracteres normais. Usavam, além disso, uma multidão de abreviaturas suplementares, invenção de V.
Marchese, que sobrecarregavam a memória e provocavam confusão.370
No fim do ano escolar de 1868-1869, Leão caiu doente. Tinha exigido demasiado das suas forças:
“As emoções da ordenação e das primeiras missas tinham-me excitado muito. As lições de estenografia,
somadas todos os dias às aulas normais, levaram-me a um excesso de trabalho. No princípio de Junho
(1869) tive de parar e ficar de cama. Tossia, estava sem forças, tinha todos os sintomas da tuberculose”.371
Todos esperavam uma ligeira melhoria para mandá-lo para La Capelle. Também Leão desejava-o e
dirigia-se em suas orações à santíssima Virgem e a S. José. O sinal providencial chegou. Leão recebeu por
correio, sem saber quem foi o remetente, um frasco de água de Lourdes e um cordão de S. José. Logo que
começou a beber da água de Lourdes, sentiu-se melhor e poucos dias depois pôde enfrentar o esforço da
viagem para La Capelle.372
Devia porém ter chegado muito maltratado, visto que os bons habitantes de La Capelle, assistindo à
sua primeira missa, diziam: “este pobre sacerdote dirá bem poucas missas!”.
“A Virgem santíssima, todavia, completou pouco a pouco a sua obra. As minhas forças foram
voltando lentamente e vivi com muito boa saúde durante 10 anos”.373
Numa carta de La Capelle a Leão Palustre, com data de 16 de Julho de 1869, Leão afirma: “Estou
completamente restabelecido e procuro fazer um pouco de ministério pastoral. Preguei já duas vezes na
pequena igreja de Sommeron e depois de amanhã atrever-me-ei a subir ao púlpito de La Capelle... A
pregação não terá um grande lugar no meu apostolado. Não tenho dotes de orador nem tão pouco os
pulmões necessários... Voltarei para Roma em princípios de Setembro para fazer dois meses de
estenografia”.374

MISSA SOLENE EM LA CAPELLE

“Os meus bons pais prepararam para o dia 19 de Julho (1869) a festa que se faz a todo o novel
sacerdote, em família, para a celebração da primeira missa”.375
O P. Dehon terá uma predilecção pelo dia 19 de cada mês: era o dia da sua ordenação, da sua
primeira missa solene, o dia de S. José e de S. Vicente de Paulo, o dia em que sua mãe deixou esta terra (19
de Março de 1883). Escolheu o dia 19 para as práticas das diversas confrarias a que se tinha inscrito e que
se fazem uma vez por mês.
A festa em La Capelle foi deveras bela e comovedora. Leão cantou a Missa e as Vésperas. Falou
duas vezes: de manhã sobre a eucaristia e de tarde sobre a santíssima Virgem. Foi também uma grande
reunião familiar, com muitos presentes: obras de Bossuet, Chateaubriand, Dupanloup, Pie, Ravignan,
Lacordaire, etc.
“As emoções de um dia como aquele não são fáceis de descrever. A minha família e os meus
conterrâneos estavam tão impressionados como eu. Todos choravam. Aquele dia creio que tenha deixado
nas almas um aumento de fé que terá contribuído para a salvação de muitos”.376
Faltavam só os bons professores de Hazebrouck. D. Dehaene e D. Boute, ocupados na atribuição
dos prémios. Prometeram fazer, com calma, juntamente com Leão, uma peregrinação a Nossa Senhora de
Liesse em Setembro.
370
Leão Dehon fala longamente sobre a preparação do Concílio Vaticano I e a sua preparação para o mesmo numa carta de 21 de
Março de 1869 ao amigo Palustre. Por essa carta sabemos que o curso de estenografia (uma hora por dia) tinha começado a
meados de Fevereiro (cf. AD, B 18/10).
371
NHV VI, 136-137.
372
Cf. NHV VI, 137.
373
NHV VI, 139
374
AD, B 18/10-
375
NHV VI, 140. Escreve no “Diário”: “Missa solene de família em La Capelle. Que recordações! Quantas emoções! Neste
santuário (a antiga igreja de La Capelle) do meu baptismo, da minha primeira comunhão e da minha infância. Prego com um
pouco de pose. Todavia os meus estão todos comovidos” (NQ II, 3: 19.7.1869).
376
NHV VI, 140-141.

88
“Aqueles belos dias transcorreram rapidamente, mas deixaram-me uma profunda impressão,
indelével, por muitos anos”.377
Para reforçar a sua saúde, depois da Assunção de 1869, Leão esteve durante 15 dias na praia de
Tréport, na Normandia, onde se encontrava um seu querido e santo amigo, gravemente enfermo, D. Perreau
de Chambéry.378 Passei dias magníficos. De manhã celebrava a Missa na paróquia. Tomava um banho
todos os dias. As nossas conversas reanimavam o meu espírito e fortaleciam-me”.379 A eles juntou-se um
amigo de universidade, um certo Tehellier, que depois seria deputado por Valenciennes. Juntos fizeram
grandes passeios e falaram de apostolado. Não faltaram as excursões para além de Trèport, a Dieppe, a
Arques, “sempre fiel à minha afeição pelas belezas naturais e pelas belas artes”.380
“Regressei daquela agradável viagem com forças e descansado”.381
Antes e depois da estada em Trèport, Leão fez um pouco de ministério, pregando várias vezes em
La Capelle e na pequena paróquia de Sommeron. Deu aulas de latim a alguns jovens. Dois deles chegaram
a ser sacerdotes. Ouviu as primeiras confissões: “Não saberia exprimir a impressão que senti dando as
primeiras absolvições. Estava tão emocionado como no dia da primeira missa. Parecia-me gerar almas para
a graça, como diz S. Paulo”.382
Entretanto, Leão cultivava intensamente a vida espiritual. De manhã e de tarde ia à antiga igreja de
La Capelle e passava horas felizes no jardim rezando o breviário, o rosário e fazendo boas leituras.
Frequentava também as melhores famílias de La Capelle onde se falava de Roma, do Oriente e dos
progressos da arqueologia. À tarde ouviam-se os cornos de caça nos bosques. Parecia estar a viver na Idade
Media. Fez também uma peregrinação a Nossa Senhora de Liesse com toda a família.
Depressa chegou a hora de deixar La Capelle e de voltar para Roma e fazer os exercícios espirituais
pregados “por Mons. Gibert, vigário geral de Moulin, um dos teólogos do Concílio. Conhecia-o sobre tudo
pelo seu espírito e a sua amabilidade. A sua pregação revelou-me uma profunda piedade e o seu espírito
sacerdotal”.383

377
NHV VI, 150.
378
Num primeiro projecto, Leão tinha que ir com os seus pais às águas de Forges-les-Eaux, na Normandia; mas depois mudou de
parecer: “Não estava tão doente para submeter-me a uma cura de águas minerais. Agradavam-me muito mais os banhos de mar.
Assim, quando soube que em Trèport encontraria alguns amigos, decidi-me logo por juntar-me a eles... Temos bom tempo e os
banhos de mar fazem-me muito bem” (carta a Leão Palustre de 2.8.1869; AD, B 18/10).
379
NHV VI, 152-153.
380
NHV VI, 153.
381
NHV VI, 156.
382
NHV VI, 156.
383
NHV VI, 171.

89
CAPÍTULO 7

O Concílio Vaticano I e os contrastes de uma época

O Concílio – Os inícios – Impressões e realidades – os trabalhos do Vaticano I – A definição da infalibilidade – Depois do Concílio – últimos
esplendores da Roma papal – Ultramontano convencido – Entre liberais e conservadores

O CONCÍLIO

A 9 de Outubro de 1869, Leão escreve, de Roma, a seus pais dizendo que encontrou toda a cidade
em ebulição pela preparação do Concílio. Como chegou à noite, procurou um quarto no hotel Minerva.
Tudo ocupado. “Que será dentro de dois meses?”. Também o seminário francês foi ampliado e
embelezado. Juntaram uma grande sala de estar, um refeitório, vários quartos. Durante o Concílio alojar-se-
ão 13 bispos e outros oito comerão ali.384
O P. Dehon fala abundantemente de tudo isto nas Memórias. Alude à sua preparação e estende-se
largamente sobre o seu desenvolvimento. É a parte mais interessante, já que relata factos de que foi
testemunha ocular e emite, às vezes, juízos inteligentes e também perspicazes, com a sua habitual
serenidade. Leão foge por temperamento a todo o espírito polémico. Julga com demasiado optimismo. “A
agenda dos trabalhos muito harmoniosa em si mesma”.385 São os esquemas elaborados pelas comissões
preparatórias e distribuídos também aos estenógrafos na congregação geral de 22 de Fevereiro de 1870
para lhes facilitar o trabalho. Bem diferente é o juízo, evidentemente severo e tendencioso do chefe dos
estenógrafos, Virgíneo Marchese: “De todos os esquemas (uns quarenta...) nem um tem importância, não
só para um concílio ecuménico, mas nem sequer para um concílio nacional...”.386 Realmente nem tudo é
brilhante.
Toda a luz humana tem as suas sombras. Segundo o seu carácter propenso ao optimismo, Leão via
as luzes e pouco as sombras. Depois de copiar os esquemas diz: “Era tudo um complemento e
desenvolvimento da dogmática cristã. Todos os erros modernos eram considerados. Que estupendo
trabalho se tivesse sido possível levá-lo a bom termo!”.387
Desde 1864, Pio IX tinha confiado ao colégio cardinalício a sua intenção de convocar um Concílio,
com o fim de completar a exposição doutrinal do “Syllabus” e tomar posição contra o racionalismo como o
concílio de Trento o tinha feito contra o protestantismo. O anúncio oficial deu-se nas festas centenárias do
martírio de S. Pedro e S. Paulo em 1867.
O espírito das comissões preparatórias, especialmente da doutrina, foi muito conservador e pouco
aberto aos problemas modernos. A imensa maioria dos 96 consultores eram ultramontanos.
O segredo que envolvia a preparação do Concílio aparecia como uma desconfiança em relação ao
episcopado. A Cúria romana fazia o Concílio antes do Concílio!388
Leão menciona também a luta que se desencadeou entre infalibilistas e anti-infalibilistas. “O eco
daquelas lutas chegava até nós (os estenógrafos). Era-nos fácil prever o resultado que ia dar”.389
As lutas recrudesceram em consequência de um artigo que apareceu na revista dos Jesuítas “La
civiltà catolica” (6.2.1869). Falava da Igreja de França dividida em católicos simplesmente
(=ultramontanos =conservadores) e católicos liberais. Segundo os católicos propriamente ditos, o Concílio
devia ter uma dupla finalidade: aperfeiçoar a doutrina do Syllabus e definir a infalibilidade do Papa.

384
Cartas de 9.10.1869 e de 16.10.1869. (AD, B 18/9).
385
NHV V, 175.
386
L. Dehon, Diário do concílio Vaticano I, 13, nota 2.
387
NHV VI, 179-180.
388
R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/2, 477-485.
389
NHV V, 186-187.

90
O artigo, aparecido como um manifesto dos católicos romanos, teve uma enorme ressonância e
colocou no primeiro plano das definições a infalibilidade do Papa que teria que ser por aclamação, sem
deixar aos bispos o tempo de precisar as condições e os limites. “Para o Espírito Santo não é mais difícil
preservar a Igreja de erros no clamor de uma aclamação que nas conclusões de um debate”, afirmava o
bispo de Nîmes, Mons. Plantier; enquanto que Montalembert observava: “Não é a infalibilidade do Papa
em matéria de fé o que me repugna, é só a sua omnipotência em temas de outro tipo: políticos, científicos,
etc., que alguns fanáticos tentam meter dentro da sua infalibilidade dogmática”.
A mais dura reacção teve lugar na Alemanha mediante os artigos de Doellinger, publicados com o
pseudónimo de Janus. Para ele o dogma da infalibilidade e do primado de jurisdição do Papa eram o fruto
de uma série de usurpações que remontavam à Idade Média: “Um tumor que desfigura a Igreja e a sufoca”.
Muitos, embora admitindo a infalibilidade do Papa, criam inoportuna a sua definição.
As mesmas reacções, embora mais discretas, na França. Mons. Maret publica o seu livro O concílio
geral e a paz religiosa, no qual se alinha contra a infalibilidade pessoal do Papa. Mons. Dupanloup publica
um opúsculo sobre a inoportunidade da definição.
Estes escritos conseguiram o efeito contrário. Tendo levantado uma grande polémica, fomentada
também pela imprensa, suscitaram a necessidade de o Concílio se pronunciar claramente sobre a
infalibilidade do Papa.390

OS INÍCIOS

Depois de uma audiência de Pio IX a 30 de Novembro de 2869, reservado aos estenógrafos para os
quais o Papa teve expressões de amabilidade, o Santo Padre convocou os padres conciliares para uma
reunião pré-sinodal na Capela Sixtina.391 Deu-lhes o regulamento dos trabalhos, designou os cinco cardeais
presidentes, recebeu o juramento dos secretários do Concílio de ser zelosos e de observar o segredo. Na
alocução o Papa apresentou os esquemas preparatórios à livre discussão dos padres. O Concílio teria que
eleger as grandes comissões da fé, da disciplina, dos religiosos, dos ritos orientais e das missões, compostas
cada uma por vinte e quatro padres e por um dos cinco presidentes nomeados pelo Papa. “Tudo era muito
liberal – observa Leão Dehon – porém havia entre os galicanos uma violenta prevenção contra os esquemas
preparados pelas comissões de teólogos ultramontanos. Havia, pois, muitas nuvens no horizonte desde o
primeiro dia”.392
Na realidade o regulamento do Concílio não era tão liberal; era imposto pelo Papa para evitar
excessos de independência e intermináveis discussões. Tinha um carácter centralista e limitava a liberdade
dos padres. Era, todavia, essencialmente obra de um teólogo não ultramontano, grande especialista da
história de concílios: C. G. Efele de Tubinga. A sua intenção era favorecer um trabalho rápido.
Um certo número de bispos propôs que se inspirassem nos trabalhos parlamentares com comissões
e subcomissões; porém Pio IX não quis mudar o regulamento, embora tenha dito que os bispos podiam
trabalhar em grupos, fora das sessões oficiais, e que eram plenamente livres para exporem os seus desejos e
as suas opiniões.393
No dia seguinte, a 3 de Dezembro, também os estenógrafos emitiram na capela de Mons. José
Fessler, bispo de Saint Polten (Áustria) e secretário geral do Concílio, o juramento de cumprirem bem o
seu trabalho e de serem fiéis ao segredo.
A 8 de Dezembro foi a primeira sessão: “Um espectáculo comovente!”. À volta do Vigário de
Cristo... todos os sucessores dos apóstolos, todos os pastores das dioceses se encontram reunidos para dar

390
R. Aubert, op. Cit., XXI, 485-495.
391
Quanto à audiência de 30 de Novembro de 1869, Leão Dehon expressa assim as suas impressões sobre o Papa: “É afável e
alegre como sempre. A sua imensa confiança em Deus permite-lhe não estar preocupado em vésperas de um acto tão importante
e entre de tantos compromissos que tem vindos de todos os lados. Sempre estamos contentes de nos encontrarmos com ele”
(carta aos pais de 30.11.1869; AD, B 18/9). Completa as suas impressões numa carta ao amigo Palustre de 1.12.1869: “(Pio IX)
viu com pena os esforços desesperados do galicanismo. Estas tentativas consideram-se como que abortadas e sem resultados.
Provavelmente dar-se-ão conta, em breve, da sua ilusão, tal como os defensores do liberalismo” (AD, B 18/10).
392
NHV VI, 191.
393
R. Aubert, Il Pontificato de Pio IX, XXI/2, 495-497.

91
testemunho da doutrina do Evangelho. É Pedro redivivo que fala do seu túmulo e à volta dele, sobre o
mesmo túmulo, toda a Igreja”.394 Desde as primeiras horas da manhã, uma imensa multidão invadiu a
basílica de S. Pedro. A vasta capela, sobre o átrio da basílica, está repleta de um milhar de prelados de todo
o mundo. Às oito chega Pio IX, entoa o “Veni Creator” e a procissão dos prelados, cantando, desfila
através da basílica até ao altar da Confissão. Sobre o altar mor está exposto o Santíssimo. À chegada do
Papa, a multidão não pode conter as aclamações. Por último vêm os estenógrafos “veste talari indulti”
(revestidos do hábito talar): “O meu coração batia fortemente – escreve Leão Dehon -. Rezava pela Igreja,
cheio de admiração por esta importante manifestação da sua unidade e santidade”.395
Naquele dia os estenógrafos não exerceram o seu ofício. Leão teve um bonito lugar na tribuna dos
teólogos do Santo Padre, e pôde seguir com comodidade a imponente cerimónia de abertura do Concílio
que se prolonga até às três horas da tarde.
No mesmo dia 8 de Dezembro, escreve Leão aos seus pais: “Depois de ter sido testemunha de tão
esplêndidas manifestações da Igreja, experimenta-se um novo e ardente desejo de trabalhar pelo céu, de
que a Igreja da terra é o vestíbulo”.396

IMPRESSÕES E REALIDADE

A aula conciliar, colocada no braço direito do cruzeiro da basílica vaticana, era demasiado vasta, e
foram necessárias várias modificações para remediar as dificuldades de acústica. No total participaram no
Concílio 750 padres, entre eles 49 cardeais, 10 patriarcas, 127 arcebispos, 529 bispos, 22 abades, 26 gerais
de ordens religiosas. Os 270 padres ausentes estavam impedidos pela idade, doença ou pelos seus
governos; por exemplo, a Rússia.
O grupo de bispos mais numeroso é o italiano com cerca de 200 padres. É uma anomalia. De facto,
os prelados italianos constituem, só eles, 40% do Episcopado europeu. Dois terços dos consultores, todos
os presidentes de comissões, todos os secretários, são italianos. De entre 48 pessoas que desempenham
cargos no Concílio, só 5 não são italianos. Felizmente o Papa nomeou como secretário do Concílio o
canonista austríaco, Mons. Fessler.
Estão presentes também 50 prelados de rito oriental, 40 bispos dos Estados Unidos, 9 do Canadá, 30
da América Latina e quase 100 bispos missionários.
A ecumenicidade do Concílio é manifesta.397
A língua do Concílio é naturalmente o latim com grande variedade de pronúncias, que submete a
dura prova a Leão e aos seus colegas estenógrafos. “Os ingleses são terríveis na sua pronúncia, os
espanhóis e os húngaros volúveis. Os franceses não brilham nem pela elegância nem pela correcção da sua
latinidade”.398
Os barbarismos estão na ordem do dia: “Columbus discooperuit Americam” ou então para mandar
“para aquele sítio” um esquema insatisfatório: “Abeat quo volebit”. Os únicos que sorriam, embora com
gravidade, eram os bispos e os cardeais italianos. Porém, pouco importa, entendíamo-nos”.399
Apesar dos defeitos humanos, Leão Dehon fica “impressionado dia a dia pela dignidade daquela
assembleia e do cúmulo de ciência e de virtude que representa. No mundo não há nada que se possa
comparar a estas assembleias conciliares”.400 Detém-se sobre os bispos mais representativos dos diversos
episcopados: Mons. Gastaldi, bispo de Saluzzo, douto, orador fluido e seguro, o melhor dos infalibilistas.
Pio IX agradeceu-lhe pessoalmente pelos serviços prestados à Igreja e ao Concílio. O episcopado espanhol
destaca-se pela doutrina e parece ultrapassar a todos os outros episcopados. Os bispos alemães, infectados
de germanismo ou galicanismo, são contra a infalibilidade. A eles se juntam os bispos húngaros, todos
habilíssimos a falar latim, língua oficial dos seus tribunais. Entre eles destaca-se, como valente tribuno da
394
NHV VII, 14.
395
NHV VII, 14.
396
Carta de 8.12.1869 (AD, B 18/9).
397
Cf. R. Aubert, IL Pontificato di Pio IX, XXI/2, 495-497.
398
NHV VII, 14.
399
NHV VII, 14.
400
NHV VII, 28-29.

92
oposição o bispo de Sirmio, Mons. Strossmayer: “Tinha fama de ser o prelado mais eloquente do
Concílio... As suas intervenções tinham a graça, a majestade e o ritmo musical de um cicerone”. 401 A
apreciação é de Mons. Gibbons. Leão Dehon observa: “É verdade que Mons. Strossmayer fala com
facilidade e também com eloquência, porém a custo de ferir às vezes os sentimentos da maioria do
Concílio, até ao ponto de merecer os qualificativos mais severos”.402
Entre os ingleses destaca-se Mons. Manning, feito cardeal em 1875; e entre os americanos
centraliza as atenções o jovem prelado Mons. Gibbons, que depois seria cardeal arcebispo de Baltimore.
Escreveu as suas memórias sobre o Concílio, assinalando, entre os bispos franceses, só a Mons. Darboy e a
Mons. Dupanloup. Leão Dehon faz notar que “falar do episcopado francês e do Concílio e não citar Mons.
Pie é cometer um grande erro de memória”.403
Em relação ao episcopado francês, Leão Dehon não é muito brando. “Evidentemente não estava
muito preparado em teologia e, neste aspecto, fomos bem humilhados”.404 Estas são as causas: a falta de
universidades católicas, os seminários só piedosos e de baixo nível cultural, dirigidos pelos Sulpicianos e
Lazaristas, que não enviam os seminaristas às grandes escolas de Roma. “Estamos atrasados em teologia –
continua Leão Dehon – e o Concílio revelou esta deficiência. Os estrangeiros diziam-nos: Tendes só um
bispo teólogo, o bispo de Poitiers. Mons. Pie não é só um teólogo seguro e profundo, mas também um
apologista, um orador e um escritor muito perspicaz. Ninguém como ele escrutinou a génese dos erros e o
desenvolvimento teológico do nosso século. Os seus escritos são como um comentário antecipado do
Concílio.405
Mons. Dupanloup é só um ardente polemista, um orador, um literato ... mestre de uma elite de
escritores eclesiásticos. Mons. Plantier é um apologista e um orador. Mons. Bertrand é um poeta. Não lhe
falta teologia: semeia esplêndidas visões. Canta como um poeta épico. Os seus discursos são como odes,
porém como poeta está fora da realidade. À sua morte encontrar-se-á um verdadeiro “stock” de cartas às
quais o bispo poeta não tinha respondido. Não se lembrava nem sequer de escovar-se, escreve
humoristicamente Leão Dehon, se o seu criado não o vigiasse. O seu segredo é a fé, o entusiasmo contínuo
pela bondade de Deus, pela sua misericórdia e pelas suas obras. É o representante do cristianismo do
coração, tão querido a um certo romantismo francês.
Mons. Freppel foi ordenado bispo durante o Concílio. Já se revelou como bom teólogo e orador. Há
depois um grupo de bispos, grandes senhores, de nobre família com toda a distinção aristocrática do
“antigo regime”, sem ter os defeitos. Enfim, um episcopado, segundo Leão, com muita aparência, porém
com uma cultura teológica medíocre.. Muita parra, pouca uva.406
A Bélgica pode estar orgulhosa do seu primaz Mond. Deschamps. Também a Suíça tem um bispo
muito simpático, Mons. Mermillod. “Com que encanto fala da Igreja! Tem para ela um coração de criança
e sabe arrancar lágrimas quando nos fala das provas da sua mãe”.407 Pede desculpa do seu latim: “A minha
voz é francesa, mas o meu coração é romano”.408
No Concílio foi-se formando uma maioria de infalibilistas e uma minoria de anti-infalibilistas.
Cabeça dos primeiros é Mons. Deschamps, arcebispo de Malines, conhecido pelas suas simpatias pelo
liberalismo católico. O grosso da maioria é constituída pelos bispos dos países tradicionalmente católicos:

401
NHV VII, 33.
402
NHV VII, 33.
403
NHV VII, 33.
404
NHV VII, 34.
405
NHV VII, 34-35.
406
Também Roger Aubert afirma que os franceses se distinguem pela sua brilhante conversa fora da aula conciliar, “nos salões,
nos púlpitos”, onde eram superiores a todos os outros bispos. É um fenómeno que não é sem importância, já que a aristocracia
italiana e também a europeia se interessavam pelo Concílio, especialmente as grandes senhoras, também elas infalibilistas e anti-
infalibilistas, chamadas pelos romanos “Madres da Igreja”; e por Luís Veuillot, “comadres do Concílio”. Os outros grupos são
caracterizados assim por Aubert: Os italianos e os espanhóis são hábeis no manejo dos conceitos escolásticos; os alemães têm
um valioso conhecimento da antiguidade cristã; os americanos têm uma mentalidade democrática; os belgas, tendências
conciliadoras, enquanto que alguns austrohúngaros são grandes senhores, com carroças, cavalos, corte de úsaros, contrastando
com os pobres bispos missionários que circulam a pé por Roma, inclusive debaixo de chuva, e são alojados a expensas do Papa.
(cf. Aubert. Il Pontificato di Pio IX, XXI/2, 498).
407
NHV VII, 55.
408
NHV VII, 14.

93
Itália, Espanha, Irlanda, América latina. O Propagandista mais incendiado da maioria é Mons. Manning,
arcebispo de Westminter que, com o zelo típico de um convertido, serve-se da língua tanto quanto Mons.
Dupanloup serve da pena, e fez voto juntamente com Mons. Senestrey de Ratisbona de defende
incondicionalmente a infalibilidade pontifícia. O grupo mais ardoroso é constituído por alguns bispos
franceses, como Berteaud, Plantier, Mabile, aos quais adere Mermillod, de Genebra.
A minoria anti-infalibilista é constituída pela maior parte dos bispos alemães e austrohúngaros sob a
batuta dos cardeais Schwarzemberg e Rauscher, tendo como grande orador e grande erudito a Mons.
Strossmayer, especialista na história dos concílios, e a Mons. Hefele. Junta-se a esta minoria um bom terço
do episcopado francês, animado por Mons. Dupançoup, porém sob a direcção, hábil e discreta de Mons.
Darboy.409 Leão Dehon é decididamente ultramontano e defensor da infalibilidade. O seu autor preferido é
Luís Veuillot. Este transferiu-se para Roma durante o Concílio, donde manda os artigos para o seu jornal
“L’Univers”. Estes artigos serão recolhidos em dois volumes: Rome pendant le Concile, publicados em
1872. Possuímos um exemplar desta obra, com notas do P. Dehon, da qual se serviu em parte no seu
“Diário do Concílio”. Leão Dehon é amigo e admirador de Luís Veuillot. Sai a passeio com ele, é recebido
em sua casa. “Era um gozo discutir com aquele grande escritor. A sua conversação correspondia ao seu
estilo: pensamentos de fé, vistas elevadas, espírito francês, juízo às vezes duro sobre as pessoas ...”410 Leão
Dehon partilha das suas ideias, da profunda devoção ao Papa e à Santa Sé, louva o zelo em sustentar a boa
causa da infalibilidade, a vivacidade e a perspicácia com que se debate contra a oposição e, sobre tudo,
contra o espírito galicano. Em Luís Veuillot desaprova a polémica contínua, que torna incendiária a tensão
entre infalibilistas e anti-infalibilistas; desaprova o seu deitar gasolina ao fogo, a sua maneira de tratar os
seus opositores como condenados, sem um mínimo de cortesia e de moderação: “Admiro Luís Veuillot,
porém saio de sua casa sempre um pouco perturbado. Fala-se dos opositores com uma aspereza de
linguagem que me surpreende”.411
Leão Dehon ama a verdade, dita porém com garbo. Foge de toda a violência de linguagem e não
suporta a polémica.
Os anti-infalibilistas estão infectados de espírito galicano, de liberalismo e de josefismo alemão.
Piscam o olho ao protestantismo com Doellinger, “o sobrinho de Lutero”, escreve Leão Dehon.412 Crítica
um pouco grave porém que tem muito de verdade. Como também está na verdade quando ressalta os erros
dos partidários da infalibilidade. A comissão preparatória do Concílio estava composta em demasia por
teólogos ultramontanos e tinha sido uma imprudência ter feito a mesma exclusiva escolha para a primeira
das grandes comissões conciliares, a de teologia..
Também os esquemas eram um pouco limitados, eram demasiado parecidos com opiniões de uma
escola. Mons. Dupanloup tinha mais que razão quando dizia: “Faz falta fazer um grande Concílio”, 413 um
Concílio mais sensível aos problemas da sociedade contemporânea, como com certeza teria feito Leão XIII
abrindo bem os braços às nações, às igrejas separadas, a todos os homens de boa vontade. “Se os mais
eminentes entre os opositores tivessem achado lugar nas comissões, teriam sem dúvida apoiado estas
exigências. Em lugar disso, começou-se com uma mentalidade acanhada como num curso de teologia”.414
Afirmações deste tipo num infalibilista convencido como Leão Dehon, dão prazer pela sua corajosa
objectividade.
Lamenta que Mons. Dupanloup, tendo com frequência grandes ideias, tivesse um “carácter fogoso,
duro e autoritário”.415 Vendo-se combatido e como posto fora do Concílio, converteu-se na alma da
oposição, Leão Dehon detém-se falando de todos os meios usados pelos anti-infalibilistas; porém,
honestamente reconhece que “para muitos era uma legítima posição de consciência. Temiam que a
definição da infalibilidade suscitasse alguma tentativa de cisma... Estes eram opositores corteses, educados,

409
Cf. R. Aubert Il Pontificato di Pio IX, XXXI/2, 500-506.
410
NHV vol. 4º, XI, n. 17.
411
NHV vol. 4º XI, n. 18. Leão Dehon escreve a L. Patustre: “Nem sempre aprovo o tom de Luís Veuillot, porém agradeço o seu
diário porque defende, na medida do possível, a boa causa. Preferia que o fizesse sempre com a cortesia e a moderação que tu e
eu admiramos nas cartas de Mons. Dechamps” (Carta de 5.2.1870, AD, B 18/10).
412
NHV VII, 37.
413
NHV VII, 37.
414
NHV VII, 38.
415
NHV VII, 38.

94
humildes. Tal foi por exemplo, Mons. Simor, arcebispo de Strigonia e primaz de Hungria. Não era
favorável à definição. Isto não o impediu de tomar parte activa e cheia de dedicação nos trabalhos do
Concílio: Foi recompensado com a púrpura cardinalícia”.416
Justamente Leão Dehon afirma que os verdadeiros ant-iifalibilistas se podiam contar pelos dedos da
mão (é também a opinião de Mons. Gibbons). Os oponentes eram contrários à definição da infalibilidade,
considerando-a improcedente, pela educação antiinfalibilista recebida, ou insustentável por motivos de fé
(no esquema não havia nenhuma alusão aos bispos) ou inoportuna para a cultura moderna.
Todavia Pio IX e a maioria dos padres conciliares pensavam que depois de tanta controvérsia, era
preciso chegar a uma definição; sem isso, o Concílio podia deixar a Igreja num perigoso estado de agitação
e de perturbação.
Apesar do manifesto contraste entre infalibilistas e anti-infalibilistas, “é absolutamente certo que o
Concílio, no seu conjunto, foi admirável pela piedade, dignidade e prudência. Apenas houve dois quartos
de hora de agitação nas sessões; menos num ano de Concílio do que numa jornada parlamentar”.417 A
afirmação de Leão Dehon é partilhada por Virgíneo Marchese que, embora tão cáustico nos seus juízos,
tinha às suas costas 15 anos de experiência de discussões parlamentares no Senado subalpino. Inclusive
durante a discussão da infalibilidade, a atmosfera da assembleia foi digna de um Concílio e certamente até
cortês.

OS TRABALHOS DO VATICANO I

Leão Dehon e outros três companheiros seus do seminário francês deviam tomar parte nas
congregações gerais quatro ou cinco vezes por semana. Depois da Missa conciliar `s 8,30, os estenógrafos
ocupavam os seus lugares diante da tribuna, dois a dois, durante 5 minutos. Depois de ter estenografado,
um par retirava-se e era substituído por outro. Faziam falta 20 ou 30 minutos para pôr em caracteres
romanos os hieroglíficos estenografados. Depois voltavam à aula conciliar para ouvir os discursos,
esperando pela sua vez. Com frequência, na sala dos estenógrafos apareciam bispos para informações sobre
alguma coisa que não tinham entendido. Outros bispos da oposição estavam incomodados pela sua
presença: “Saber-se-á como votamos por causa destes jovens”. “teriam algum escrúpulo de consciência
acerca da prudência dos seus votos?”, pergunta-se Leão Dehon.418
Pelo meio dia terminava a assembleia. Ainda meia hora de trabalho para sistematizar as
transcrições; depois a volta para o seminário sob o sol escaldante de Roma e, à tarde, os cursos de teologia.
A comissão de iniciativa ou “de postulatis”, que devia recolher as propostas dos padres conciliares
para os problemas que se tinham de tratar, foi escolhida pelo Papa. Eram 12 cardeais, 14 bispos, entre eles
4 anti-infalibilistas. Tinham sido excluídos vários bispos de grandes cidades como Paris, Viena, Londres,
Bruxelas, Turim, Colónia, Magúncia. Daí as críticas que, segundo Leão Dehon, se teriam podido evitar
com uma escolha mais acertada. Todavia a comissão, segundo o nosso comentarista, “estava composta
maravilhosamente. Compreendia alguns dos cardeais mais inteligentes da Cúria”.419
Ao invés a eleição da comissão dogmática, chamada “deputação da fé”, feita pelo Concílio, foi um
cheque para os anti-infalibilistas. Depois desta eleição Luís Veuillot podia escrever com alegria no seu
“L’Univers”: “Le Concile est fait”. “Era verdade. Tinha-se uma imensa maioria sobre a questão [a
infalibilidade] que podia agitar os espíritos”.420 E de facto produziu-se uma forte tensão. Responsável por
esta tensão era, sobre tudo, Mons. Manning, que inflexivelmente, com o zelo intempestivo dos convertidos,
não fazia mais do que repetir: “Os hereges vêm ao Concílio para serem ouvidos e condenados, não para
tomar parte na promulgação da doutrina”. Preparou uma lista de 24 padres infalibilistas que foi aprovada
pela assembleia. A exclusão dos anti-infalibilistas da comissão dogmática foi um grave erro. Primeiro
porque a competência de um Rauscher, de um Hefele, de um Ginoulhiac podia ser de grande utilidade;
segundo, porque se confirmava a impressão de que as eleições por parte da assembleia eram uma comédia;
416
NHV VII, 39-40.
417
NHV VII, 41.
418
NHV VII, 44.
419
NHV VII, 45.
420
NHV VII, 47.

95
tudo estava preparado pela Cúria, que instrumentalizava muitos bispos, especialmente italianos e
missionários, que docilmente votavam segundo as ordens..., e assim o jogo estava feito. O Concílio era
verdadeiramente livre? A continuação do Concilio demonstrará que esta liberdade de pensamento, de
palavra e de eleição era rela para todos, e isto, graças também a Pio IX que se absteve de qualquer
intervenção.421
Os oponentes organizaram-se para fazer parte, ao menos, das comissões para a disciplina e para os
religiosos, porém passaram de fracasso em fracasso. “Depois destas eleições podia-se dizer
verdadeiramente que o Concílio estava feito, mas podia-se prever toda a acção do partido de oposição,
organizado e bastante forte”.422
É interessante seguir Leão Dehon, de sessão em sessão, pelo inegável sentido de vida que aí coloca
como testemunha ocular. Dado o carácter do nosso trabalho, só nos podemos deter sobre alguns detalhes.
Leão fala no seu Diário das quatro sessões públicas das 86 congregações gerais, menos a oitava que
esqueceu transcrever dos apontamentos para as Memórias, e excluindo também as três primeiras que se
passaram em escrutínios e distribuição de esquemas.
Para cada sessão refere ordinariamente e com brevidade as diversas intervenções, o pensamento dos
oradores e até as palavras textuais. Por exemplo na sétima congregação geral (4.1.1870), Mons. David,
representante da oposição, propõe a inumação do esquema “de fide” que, realmente, se brilhava pela
ortodoxia, não resplandecia por claridade. “Ressuscitará (diz Mons. David); far-se-á outro e não será de pai
desconhecido (pater orbatum) como o primeiro”. “(Afirmação bem pouco respeitosa para com a comissão
pontifícia que tinha preparado os decretos e para com o Papa que os tinha mandado preparar)”.423
Na 11ª congregação geral (15.1.1870), discutiu-se o esquema dos bispos, e o santo bispo de Urgel,
Mons. Caixal e Estrade afirma que os bispos não têm tanta necessidade de reclamarem os seus direitos,
quando melhor seria convidá-los a fazer todos os dias uma hora de oração, meia hora de Sagrada Escritura
e um quarto de hora de exame de consciência.424
Sobre o mesmo tema dos bispos intervém na 12 congregação geral (19.1.1870) o arcebispo de Paris,
Mons. Darboy. A atenção é geral. “O esquema é criticado (il malmène le schéma) porque vazio e
informe”.425 Começa logo a defender os bispos galicanos do primeiro Império, afirmando que morreram
com o seu clero, pela fé e obediência à Santa Sé... (O ilustre prelado dará também a sua vida. Isto expiará o
seu galicanismo, porém não o desculpará, anota Leão Dehon).426 Pede desculpa de não se sentir no seu
lugar (“c’est vrai qu’il était mal placé”) e de se pider explicar só numa assembleia geral (tinha sido atingido
no mais íntimo por não ter sido eleito para a comissão “de fide”). 427 Um discurso mais parlamentar do que
episcopal, conclui Leão Dehon.428
“Mons. Parlatore, de S. Marcos (Calábria), justifica o seu nome, Fala muito sem grande utilidade. O
Presidente vê-se obrigado a reconduzi-lo ao tema”.429 Mons. Martin, de Paderborn “queria que os clérigos
usassem barba, e a proposta faz sorrir muitos padres conciliares”.430
Mons. Vérot, bispo de Savannah, fala “caça, dos exercícios espirituais, do breviário”. Não admite a
caça para os eclesiásticos, a não ser em alguma missão. Exigir os exercícios espirituais só cada três anos é
para ele um escândalo (“sou desse parecer”, comenta Leão Dehon). Gostaria que as distracções voluntárias
obrigassem a começar de novo o breviário (Que seria dos padres escrupulosos?). Pede que se reforme o

421
Cf. R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/2, 506-508.
422
NHV VII, 48.
423
NHV VII, 52. O esquema “de fide”, contra os erros do racionalismo moderno, redigido por Franzelin e Schrader, tinha sido
mal acolhido pela maioria dos bispos como demasiado profissional, escolástico e umas vezes obscuro, outras categórico e
agressivo; enquanto se queria uma linguagem pastoral, mais compreensível por parte dos fiéis. Assim, depois de seis sessões, o
esquema foi enviado à comissão dogmática para ser refundido. Era uma prova concreta e evidente da liberdade do Concílio. O
esquema foi refeito, apresentado na aula a 18 de Março de 1870, discutido e aprovado por unanimidade (667 votos) a 24 de Abril
de 1870. (cf. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/2, 508-509. 516-517).
424
Cf. NHV,VII, 59.
425
NHV,VII, 60.
426
NHV,VII, 61.
427
NHV,VII, 75.
428
NHV,VII, 61-62.
429
NHV,VII, 62.
430
NHV,VII, 68.

96
breviário e que se abrevie o ofício de Domingo (muitos dos que estão no ministério pensam o mesmo); que
se deixem certas leituras, como a de S. Agostinho na que prova que o número 38 é número de doença. O
presidente convida-o a falar com maior respeito dos Padres. “Eu respeito-os, diz o bispo, porém às vezes
também Homero adormece...” (inútil perguntar se todos sorriem). Acusa o breviário de conter lendas
apócrifas como a do baptismo de Constantino. Obrigado a voltar ao tema (a vida do clero), afasta-se de
novo dele. O presidente diz: “Se não fala do tema, o orador ceda o lugar a outro”. O bom prelado responde:
“Tenho mais coisas a dizer, mas para demonstrar o meu maior obséquio, cedo o lugar”.431
O momento da maior tormenta chega na 31ª congregação geral de 22 de Março de 1870. Intervém
Mons. Strossmayer sobre o novo esquema “de fide”, chamando a tenção para “a má impressão dos
protestantes ao ver que se lhes atribuíam todos os erros modernos. Alguns deles (Leibnitz e Guizot)
combateram-nos. O Cardeal De Angelis interrompe: “Pode-se acreditar na boa fé dos povos, porém não na
dos escritores”. O orador insiste. Intervém o cardeal Capalti: “As vossas palavras ofendem os ouvidos da
maioria”. Strossmayer replica que só aceita o juízo da unanimidade ou quase unanimidade. Replica o
cardeal Capalti que no texto os erros modernos atribuem-se ao livre exame... Os protestantes nem são
nomeados. Os oradores falam ao mesmo tempo. Strosssmayer continua gritando: “Protestor contra omnem
interruptionem”. Os presidentes levantam-se, vociferam e gritam ao orador que desça. Muitos padres se
levantam e gritam “satis, satis, descendas, etc.”. Um deles “Et nos omnes protestamur contra te...”; outro:
“É um homem pestífero este”. A emoção é geral, Esta sessão tempestuosa deixa em todos uma penosa
impressão. Na cidade fala-se dela veladamente pela tarde. È a má jornada do Concílio”.432
É impossível determo-nos sobre todos os episódios, importantes uns, curiosos outros, referidos por
Leão Dehon, acompanhados por subtis observações, juízos sensatos e serenos cheios de compreensão,
inclusive para com os anti-infalibilistas. Manifestam-nos as qualidades de Leão Dehon: “uma inteligência
clara e acutilante, profundo espírito de observação e fina argúcia”.433 São juízos imparciais, geralmente
comprovados pela crítica histórica.
Há, enfim, uma nota personalíssima no Diário do Concílio de Leão Dehon: a sua intensa
espiritualidade. São “reflexões e considerações que manifestam a piedade da sua alma.
Ele olha para os homens e para as coisas com olhos de viva fé. Isto não o impede de ressaltar algum
episódio ou algum acontecimento desagradável. Fá-lo porém, com delicadeza, com graça, com palavras
que demonstram segurança de princípios, firmeza de ideias; nunca manifestam aspereza, ressentimento
nem parcialidade. Escreve com sinceridade e serenidade de alma”.434

A DEFINIÇÃO DA INFALIBILIDADE

A divisão dos padres conciliares em dois grupos a propósito da definição da infalibilidade papal,
com a formação de um nutrido grupo de oposição, tinha impressionado a maioria dos bispos. “Era um
estorvo, a caridade sofria. As sessões eram menos edificantes do que deveriam ser. A divisão encontrava
eco na imprensa de todas as nações”.435 Segundo a maioria dos bispos, a situação de mal estar devia acabar
e por isso dirigiram uma carta a Pio IX com cerca de 400 assinaturas para que a questão da infalibilidade
fosse introduzida sem demora. Era o dia 12 de Janeiro de 1870. A iniciativa da recolha de assinaturas teve
como acesos promotores Senestrey e Manning, sob o patrocínio de Mons. Deschamps.

431
NHV,VII, 69-70. Certamente que as intervenções sobre os esquemas disciplinares não brilhavam pelo seu alto nível teológico.
Em contrapartida, estavam imbuídos de um vivo sentido pastoral. Depois de cinco semanas de intermináveis discursos, que
exigiam um contínuo esforço pela má acústica da aula conciliar e provocavam o sono, os padres começaram a dar sinais de
cansaço e de impaciência. Estavam desde havia três meses em Roma e não tinham concluído nada. Vários compromissos os
esperavam nas suas dioceses. Os trabalhos do Concílio suspenderam-se por um mês com o fim de melhorar a acústica da aula
conciliar e, ao mesmo tempo, também o regulamento foi modificado. (cf. R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/2, 513-515).
432
NHV,VII, 108-109.
433
L. Dehon Diario del concilio Vaticano I, XIX.
434
L. Dehon, Diario del concilio Vaticano I, XIX.
435
NHV VII, 71-72.

97
Então os anti-infalibilistas contra-atacaram e as suas cinco propostas recolheram 136 assinaturas.
Era só 20% dos padres; porém entre eles havia nomes famosos, titulares de sedes importantes. Esperava-se
que Pio IX fizesse como Pio IV, que tinha dado disposições aos seus legados, no Concílio de Trento, para
que não se tratassem questões que pudessem suscitar discussões irritantes.
Os anti-infalibilistas obtiveram o efeito contrário, inclusive pela intervenção da imprensa e dos
poderes políticos contra a infalibilidade. Precisamente porque era uma verdade combatida, a maioria dos
bispos, de acordo com Pio IX, tinha a obrigação moral de enfrentar imediatamente o esquema sobre o
Sumo Pontífice, para chegar à definição da infalibilidade. A oposição da minoria resultou providencial já
que se chegou a uma definição bem determinada e precisa.436
“Os opositores – observa Leão Dehon – deveriam ter compreendido desde então que era uma
verdade aprovada no espírito da maioria e teriam devido render-se. Isto não sucedeu. A luta continuou cada
vez mais renhida. Começaram a multiplicar-se os opúsculos. Felizmente Pio IX proibiu a publicação em
Roma de opúsculos sobre as controvérsias do Concílio, pois teria havido um concílio mediante os
opúsculos ao lado daquele que se celebrava em S. Pedro”.437
No fim de Fevereiro de 1870, as discussões conciliares esmoreciam em delongas inconcludentes
sobre um argumento secundário: o do pequeno catecismo.. “A maioria dos discursos são repetitivos –
escreve Leão Dehon -. É compreensível. Sendo um tema fácil, cada um deseja expressar a sua opinião. A
impressão geral do Concílio causa pena. Onde se chegará?”.438
Também Pio IX está preocupado e intervém com normas complementares para acelerar os
trabalhos. A oposição protesta com uma carta ao Papa assinada por 100 bispos, muitos dos quais (32) eram
franceses.
A 12 de Abril de 1870, depois de quatro meses de trabalho, o Concílio aprova a primeira
constituição: “De doctrina catholica”. Os votantes são 598: os placet 515, os placet juxta modum, 83. A
constituição é votada definitivamente a 24 de Abril de 1870 com o “placet” de todos os 667 padres.
Portanto é aprovada e promulgada pelo Papa.
Finalmente a 21 de Abril de 1870 anuncia-se, no fim da 47ª congregação geral que coloca na ordem
do dia a questão da infalibilidade “para restabelecer a paz e a tranquilidade das consciências”.439
Os padres da maioria mandam ao Papa duas cartas de agradecimento. Os da minoria escrevem uma
nota de protesto ao cardeal Bilio porque foi modificada a ordem do dia.
A constituição dogmática “De Ecclesia” foi apresentada a13 de Maio por Mons. Pie com um “longo
discurso cheio de autoridade e que agradou muito”.440 A discussão começa a 14 de Maio com atitudes
diversas: desde a oposição, à não oportunidade, à utilidade, à necessidade.
É interessante seguir as motivações dos diversos oradores que Leão Dehon sintetiza brevemente e,
às vezes, comenta com arguta observação.
Mons. Manning afirma ter sido protestante durante quarenta anos, vinte católico e de ter sempre
desejado que se afirmasse a infalibilidade do Papa.
Mons. Evilly, irlandês, assegura com energia a fé da Irlanda na infalibilidade do Papa.
Responde-lhe Mons. Verot: “A definição seria um sacrilégio! A fé dos irlandeses não prova nada.
Acreditam inclusive na infalibilidade dos seus párocos e desancariam quem a negasse. Os incrédulos riem-
se das suas práticas e crenças religiosas. A um que zombava das suas bênçãos aos burros, respondeu-se que
para compreender a sua eficácia era necessário meter-se no seu lugar (dos párocos irlandeses). O orador é
interrompido várias vezes por gritos generalizados. Finalmente intervém o Cardeal Capalti: “Si non habeas
nisi nugas (bagatelas, chocarrices) addendas, cedas locum alteri” e a palavra passa ao orador seguinte”.441
Mons. Verot é “l’enfant terrible” do Concílio, um bispo sério-fanfarrão, um orador agradabilíssimo,
que cativava durante horas o auditório, menos quando o ofende com as suas saídas sobre um argumento tão
delicado como a infalibilidade até fazer-se admoestar e retirar a palavra pelos presidentes. A 10 de Junho,
sempre em veia de fanfarrão, propõe o seguinte cânone: “Si quis dixerit Papam posse facere quid-quid vult,
436
Cf. R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/2, 510-511.
437
NHV VII, 72.
438
NHV VII, 97-98.
439
NHV VII, 171.
440
NHV VII, 173.
441
NHV VII, 185-186

98
anathema sit”. Intervém imediatamente o cardeal Capalti: “Non sumus hic in theatro inter scurras
(palhaços) sed in ecclesia sancta Dei. Parceat (perdoe) rever. orator si zelo correptus haec libere dicam:
doleo quod semper detineat patres ad facetias suas audiendas”.442 Totalmente diferente de Mons. Verot é
Mons. Magnasco, vigário capitular de Génova, que tem o mérito de aborrecer a todos alongando-se
mortalmente sobre coisas óbvias, elementares, como se os bispos fossem meninos da catequese.
Para complicar a já acesa e difícil discussão intervêm com notas diversos governos europeus:
França, Áustria, Baviera, Prússia, Portugal, Inglaterra, contrários à definição da infalibilidade pontifícia.
Um bispo diz a Luís Veuillot: “Creio que o Santo Padre, juntando todas essas notas, lhes dará a bênção do
incenso: “Ab illo benedicaris in cujus honore cremaberis (serás queimado)”.443 As notas não foram
queimadas, mas arquivadas em boa ordem.
A 3 de Junho intervém o antiinfalibilista Maret, que “opõe a teoria da monarquia constitucional à da
monarquia absoluta que o Concílio Vaticano quer introduzir. Os bispos fariam um acto de abdicação. É
uma nova e inaudita doutrina... Nunca se viu um Concílio propor uma definição contra a opinião de 150 ou
200 bispos tão piedosos e sábios como os outros. Não se começou ainda a estudar o que é um Concílio, os
seus direitos, etc. (ruídos crescentes). Que responderíeis a quem fizesse este raciocínio: o Concílio define o
poder do Papa, portanto é superior ao Papa? Admitis esta conclusão? (Não, não). O cardeal Bilio: “Não é
lícito exprimir-se desse modo... Quando o Concílio define a infalibilidade do Sumo Pontífice, não lhe
confere a infalibilidade, mas reconhece que lhe foi dada por Nosso Senhor Jesus Cristo...”444
As intervenções dos padres a favor e contra da definição da infalibilidade continuam até à 82ª
congregação geral de 4 de Julho de 1870.
Entretanto, chegaram os calores de Roma, cada vez mais intensos. Os padres parecem cansados
pelas frequentes e longas sessões. A discussão já não apresenta interesse pois o argumento já foi
considerado sob todos os seus aspectos. Já é muito difícil juntar algo de novo. Alguns bispos tinham
renunciado ao direito de falar, e persuadiu-se outros a renunciarem.445
A 4 de Julho, uns 55 bispos renunciaram a tomar a palavra. Uma vez que terminou a lista dos que
tinham que falar, a discussão sobre o artigo IV da constituição da Igreja, relativo à infalibilidade, deu-se
por encerrada.
A 13 de Julho, vota-se sobre toda a constituição com 451 placet, 88 non placet e 62 placet juxta
modum. “Espera-se, escreve Leão Dehon, que muitos se rendam, aceitando o juízo da maioria antes da
sessão” definitiva na presença do Papa e fixada para 18 de Julho.446
Era uma ilusão. Os anti-infalibilistas não se desmobilizaram. “A nossa alegria está misturada de
tristeza – escreve Leão Dehon, citando Luís Veuillot -. Há descontentes violentos, partidas apressadas,
conciliábulos febris”.447 A conclusão é um pedido ao Papa para marcar a definição do dogma. No Vaticano
responde-se com calma e confiança. Prepara-se a definição.
Chegou finalmente o dia 18 de Julho de 1870 e, na quarta sessão solene, Pio IX proclamou o dogma
da infalibilidade pontifícia. “Te Deus laudamus! – escreve Leão Dehon -. Terminou. Salvo duas vozes
dissidentes, o dogma alcançou a unanimidade. Com a sua abstenção os opositores tornaram possível a
unanimidade. “Quod inopportum dixerunt, necessarium fecerunt”. Cerca de 80 bispos não tomaram parte
na sessão”.448 Entre estes está também o bispo de Soissons, Mons. Dours, contra a convicção da maioria do
seu clero.
À solene proclamação do dogma estão presentes 535 padres. Os dois “non placet” são de Mons.
Luís Riccio, bispo de Caiazzo, e de Mons. E. Fitzgerald, bispo de Little Rock (USA). Logo depois da
442
NHV VIII, 11-12.
443
NHV VII, 190.
444
NHV VIII, 3-4.
445
Segundo R. Aubert, a discussão geral foi declarada encerrada a 3 de Junho de 1870 a pedido de 150 padres: (NHV VIII, 5).
Todavia os discursos continuaram durante todo o mês de Junho, já que havia que dar a palavra a 50 oradores inscritos (cf. NHV
VIII, 5-38 R. Aubert, Il Pontificato de Pio IX, XXI/2, 538). A 24 de Junho de 1870 Leão Dehon numa carta para os seus pais,
diz: “Todos os nossos bispos estão cansados. É de interesse para eles não entreter-nos aqui por muito tempo” (AD, B 18/9). A 2
de Julho Mons. Mermillot avisa os padres do Concílio: “Pondere caloris et eloqentiae obruimur... hora est non discussionis sed
definitionis” (NHV VIII, 38-39). Desde esse momento muitos padres renunciaram a tomar a palavra. (cf. NHV VIII, 39-41).
446
NHV VIII, 44.
447
NHV VIII, 44.
448
NHV VIII, 44-45.

99
definição, os bispos declararam a sua submissão à doutrina definida. Mons. Riccio ajoelha-se diante do
Papa e diz “credo”, pronto a defender inclusive com a vida o novo dogma; Mons. Titzgerald faz outro
tanto: “modo credo, sancte Pater”. Pelo contrário, 83 padres preferiram abandonar Roma ou não participar
na sessão.
A proclamação do dogma ocorreu entre trovões e relâmpagos durante uma espantosa tempestade
que tinha envolvido S. Pedro na obscuridade quase total. Comenta Luís Veuillot, citado por Leão Dehon:
“Estamos no Sinai... Parece-me que hoje saímos do Egipto e que o mundo já está desfaraonizado. Para
dizer a verdade... o caminho poderá ser longo, porém temos Moisés; ou melhor, mais que Moisés”.449

DEPOIS DO CONCÍLIO

A 1 de Julho de 1870, Pio IX recebe em audiência os 24 estenógrafos do Concílio para lhes


exprimir a sua satisfação. Recebe-os às 6 da tarde na sua biblioteca privada e, prescindindo de toda a
aparência de etiqueta, quer ter com eles uma festa de família: “Trabalhastes muito nestes dias. Quero
oferecer-vos uma hora de recreio”.450 Manda trazer um refresco à base de bebidas, gelados, doces e convida
a todos a que honrem o momento, dando ele próprio o exemplo. Organizou também uma lotaria com
prémios assegurados para todos. Leão Dehon recebe um breviário em quatro volumes. A festa é breve,
porém simples e encantadora. “Experimentamos uma das maiores alegrias da nossa vida”.451
Leão tinha sacrificado em parte os seus estudos escolásticos. Em contrapartida, a participação no
Concílio, embora só na qualidade de estenógrafo tinha constituído uma experiência de uma riqueza eclesial
única. O P. Freyd tinha pensado em Leão para a prestigiosa defesa da tese: “Ex universa theologia” que
exigia meses e meses de preparação; porém depois pensou na utilidade e maior experiência que teria
adquirido fazendo de estenógrafo no Concílio. Não se enganou porque na opinião de Leão: “O Concílio
ocupou-me naquele ano metade do meu tempo. Estava com atraso nos meus estudos, porém, por outro
lado, que preciosa colheita de conhecimentos!. Tinha tocado com mão a vida da Igreja e adquirido, num
ano, mais experiência do que em 10 anos de vida ordinária”.452 A defesa da tese “Ex universa theologia” foi
feita por um condiscípulo de Leão Dehon, Le Tallec, com uma preparação de dois anos.
Durante o Concílio teve Leão a ocasião de conhecer vários ilustres personalidades com que discutiu
sobre a necessidade de elevar os estudos do clero de França e de fundar universidades livres. Afeiçoou-se
muito a Mons. Gignoux, o piedoso bispo de Beauvais.
Apesar do tempo dado às obrigações do Concílio, Leão continuava regularmente à tarde os cursos
de teologia e alguma vez também os da manhã. Passou os exames de licenciatura em Teologia a 30 de
Novembro de 1869, o bacharelato em Direito Canónico a 19 de Julho de 1870.
Também a sua vida espiritual nada sofreu. “Apesar das minhas ocupações, encontrava todos os dias
algum momento para anotar as impressões da minha meditação, segundo o conselho de S. Luís de
Gonzaga: “Notabo affectiones et proposita”.453
Chegou por fim o dia da partida: 20 de Julho de 1870. Na estação não se viam senão bispos. Mons.
Darboy, arcebispo de Paris, a cidade imperial, estava acompanhado pelo embaixador da França e de uma
escolta de eclesiásticos, entre os quais estava o rude e belicoso Mons. De Merode, que teve o mau gosto de
ir ao quarto do Arcebispo de Reims, Mons. Landriot, para acusá-lo de traidor por ter votado “placet” à
infalibilidade pontifícia. Eram as últimas escaramuças da oposição.

449
NHV VIII, 45.
450
NHV VIII, 46.
451
NHV VIII, 47.
452
NHV VIII, 55.
453
NHV VIII, 62. Cf. NQ II, 23. O “Diário” interrompe-se a 20 de Fevereiro de 1870. Leão Dehon anota: “Interrompi aqui
mesmo as minhas notas quotidianas neste caderno. O Concílio absorvia-me inteiramente: Escrevi noutros dois cadernos as
minhas notas sobre o Concílio do ponto de vista doutrinal, histórico, ascético” (NQ II, 58). Ambos os cadernos conservam-se no
Arquivo Dehoniano (cf. AD, B 32/11 a-b).

100
Leão encontrou um lugarzito no compartimento de Mons. Pie. “Estava orgulhoso e feliz por fazer a
viagem de regresso com o grande bispo que tanta honra tinha dado à França durante o Concílio. Passamos
a noite em Turim. Deixei Mons. Pie em Lyon”,454
Entretanto, alguns bispos que ficaram em Roma continuaram os trabalhos para a prossecução do
Concílio. “Os teólogos tinham preparado magníficas constituições”.455 “Porém bem cedo os
acontecimentos (a guerra franco-prussiana e a conquista de Roma) vieram a demonstrar a impossibilidade
de continuar o Concílio, a não ser depois de muito tempo. Pio IX publicou o decreto de suspensão a 20 de
Outubro de 1870”.456
Leão Dehon termina: “O que não pôde fazer o Concílio, poderá fazê-lo a Santa Sé pouco a pouco,
seja com cartas papais, seja com decretos das congregações. Recolhendo estas decisões pontifícias, poder-
se-á dentro de alguns anos depois do Concílio escrever uma colecção com o título: “O Concílio sem o
Concílio”.457
Aos contemporâneos, o Concílio pôde parecer um fracasso apesar da definição da infalibilidade
pontifícia. Na realidade, em anos sucessivos recolheu-se o fruto do movimento de ideias suscitadas pelo
Vaticano I e o dos trabalhos das comissões, por exemplo para a preparação do novo Direito Canónico e
para as encíclicas de Leão XIII. Esclareceram-se as relações entre razão e fé, reforçou-se o movimento
ultramontano, foram eliminados os exageros perigosos dos neo-ultramontanos, sendo circunscritas de
forma muito precisa as prerrogativas da infalibilidade papal.
Todos os bispos anti-infalibilistas, forma aceitando, com mais ou menos rapidez, o dogma; e isto
sucedeu também com aqueles bispos franceses com mentalidade mais ou menos galicana. Pouco a pouco o
consenso unânime do Episcopado sobre a infalibilidade chegou a ser realidade. Além disso os bispos
tinham que ter em conta o fervoroso ultramontanismo do seu clero e da maioria dos fiéis.458

ÚLTIMOS ESPLENDORES DA ROMA PAPAL

Leão Dehon completou 27 anos de idade; é monárquico, legitimista, ultramontano e conservador.


Viveu em primeira pessoa os últimos anos do domínio temporal dos papas. Pio IX, depois das
tristes experiências de 1849, depois da fuga de Roma e do desterro em Gaeta, tinha-se convertido em
defensor do absolutismo, com a mesma paixão com que tinha actuado como liberal no início do seu
pontificado.
O seu absolutismo tinha porventura a marca mais odiosa para a opinião pública liberal do tempo;
era despotismo clerical e, para mais, mantido com armas estrangeiras: os franceses em Roma e os
austríacos nas legações pontifícias, tudo temperado de paternalismo.
Segundo a verdade histórica podemos afirmar que, para além de qualquer a mais optimista previsão,
os primeiros frutos do absolutismo de Pio IX foram positivos, especialmente no plano económico. Pio IX
preocupava-se muito com o bem estar dos seus súbditos, promovia a introdução de invenções modernas
(Gregório XIV tinha sido contrário à iluminação a gás e aos caminhos de ferro), tinha subido o nível de
vida do povo romano, que estava contente do bondoso paternalismo do Papa. Pio IX exercia fascínio sobre
o povo com a sua simples bondade e com a sua verdadeira piedade. Várias vezes, nas suas cartas de Roma
para os seus pais, Leão Dehon menciona este tranquilo bem estar do povo romano que se desinteressa da
política. Os ambientes frequentados pelo jovem Dehon eram os eclesiásticos e alguma familiaridade com a
aristocracia. É normal que os sentimentos do jovem seminarista fossem antipiemonteses, favoráveis à
conservação do poder temporal do Papa, como garantia da liberdade da Igreja.
Não pensava certamente na sabedoria encerrada no conselho do publicitário francês La Guérronière:
“Quanto mais pequeno for o seu território, maior será o Papa”.459
454
NHV VIII, 92.
455
NHV VIII, 93.
456
NHV VIII, 103. Faltava examinar 51 esquemas dos quais 28 eram disciplinares.
457
NHV VIII, 99.
458
Cf. R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/2, 553-561.
459
A. Dansette, Histoire religieuse, 304.

101
Estamos em 1859. Para Pio IX era uma questão de consciência; não podia ceder nem um metro do
Estado da Igreja. O motivo era muito simples: não era sua propriedade. Cederia só à violência.
Como o povo romano, também Leão Dehon não se interessava pela política; porém a questão de
Roma e do Estado Pontifício era sobretudo uma questão política, com reflexos psicológicos e religiosos,
que diziam respeito a todos os católicos e, infelizmente, t>ê-los-ia afastado por longos anos, especialmente
na França e na Itália, dos problemas especificamente religiosos muito mais importantes. Escreve muito
bem um contemporâneo de Leão Dehon, A. Cochin: “Esta deplorável questão da soberania temporal tem
sido a grande desgraça dos católicos franceses”.460
Se Leão tivesse frequentado, mesmo que fosse só um pouco, o ambiente liberal e burguês, ter-se-ia
dado conta da extensa insatisfação de um regime papal, que não deixava nenhuma relevante
responsabilidade pública aos leigos, tinha uma legislação inspirada no Direito Canónico medieval,
limitando a liberdade dos seculares. O mal estar agudizou-se pela imposta inferioridade dos leigos em
relação aos eclesiásticos na administração temporal do Estado Pontifício. Verdade é que o número de
empregados estatais leigos era superior; porém os postos de comando estavam nas mãos de eclesiásticos:
abades e monsenhores, alguns nem sequer sacerdotes, começando pelo enigmático Secretário de Estado de
Pio IX, o cardeal Antonelli, muito conservador, em cujas mãos estava concentrado todo o poder político.
(Foi aquele que mandou que o clero vestisse a “toga talaris” em lugar do fato civil dos abades do
setecentos-oitocentos). Estes abades e monsenhores tinham uma boa formação jurídica, eram hábeis
administradores, todavia, no seu conjunto, o governo pontifício, composto por romanos, funcionava à
romana, ou seja com lentidão e indolência: “Faltava-lhe energia, actividade, iniciativa e firmeza”.461
Sendo um governo de eclesiásticos, todas as culpas e responsabilidades recaíam sobre o clero. Era
um governo exasperante, tanto que um forte defensor do Papa, o general Lamoricière, exclamava: “Em
Roma não se poderá nunca fazer nada enquanto não forem enforcados quatro monsenhores nos quatro
ângulos da cidade”.462
Leão Dehon esteve em Roma desde 1865 até 1871 e terminou os seus estudos depois de os italianos
terem tomado Roma (20.9.1870). São os anos que se seguiram à famosa e hipócrita convenção de
Setembro de 1864. Napoleão III desejava, mais que resolver, libertar-se da questão romana. Queria retirar
as tropas francesas de Roma; porém tinha que contar com os católicos de França, com a influência da
Imperatriz e também com os seus sentimentos pessoais em relação a Pio IX.
O Estado Pontifício, depois da derrota de Castelfidardo em Setembro de 1860, tinha-se reduzido a
Roma e a um pequeno território à volta da cidade eterna.
Napoleão III queria que este pequeno estado fosse garantido ao Papa, pelo menos durante um certo
tempo. Assim se chegou à convenção de Setembro na qual a Itália se comprometia, entre outras coisas, a
transferir a capital de Turim para Florença como prova da sua renúncia a Roma. A França, por sua vez,
retiraria, dentro de dois anos, os seus soldados. Os que defendiam o poder temporal ficaram consternados.
Era uma triste comédia... à italiana.
Pio IX contava com a ajuda da Providência e a acção do tempo. “Efectivamente – comentava
sarcasticamente Lord Clarendon – a Providência pode fazer milagres e há dez anos que os vem fazendo,
porém todos a favor da Itália”.463
Relativamente à prova do tempo: o reino de Itália era um frágil recém nascido. Pensava-se que em
pouco tempo se desagregaria. Esta era também a esperança de Leão Dehon. Confiava-se, além disso, na
ajuda da Áustria; estava-se certos do apoio do clero e dos católicos franceses, que obrigariam o Imperador
a defender o Estado Pontifício apesar da convenção de Setembro.
Pio IX não era nenhum estúpido e tinha compreendido bem que a convenção de Setembro era uma
comédia: “Devereis voltar – dizia ao embaixador francês – já que quando fordes embora, não tardará a
estalar a revolução”.464
Para a ordem interna, bastava um pequeno exército pontifício patrocinado por mons. de Merode
(bem conhecido por Leão Dehon durante os seus estudos em Roma), ex-oficial belga, empreendedor,
460
R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/1, 134 n. 27.
461
R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/1, 137.
462
R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/1, 138. A. Dansette, Histoire religieuse, 302.
463
R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/1, 174, n.133.
464
A. Dansette, Histoire religieuse, 310.

102
desinteressado, amigo do Papa, honesto, franco, adversário do astuto e muito diplomático cardeal
Antonelli.
Os zuavos pontifícios estavam sob o comando do valoroso oficial francês, antibonapartista, o
general Lamoricière. Nada há a dizer sobre o valor pessoal dos zuavos. Faltava-lhes homogeneidade. Era
um exército improvisado, que não resistiria frente a um exército regular. Castelfidardo tinha-o
demonstrado.
Muitos zuavos provinham da aristocracia legitimista francesa do Oeste: de Bretanha a Vandea.
Assim fala deles Leão Dehon nas suas Memórias: “Os franceses tinham infelizmente abandonado o seu
lugar de honra, de guardiães e defensores da Santa Sé no mês de Novembro de 1866 (dois anos depois da
convenção de Setembro de 1864). O Santo Padre tinha tido de aumentar o seu pequeno exército. Os zuavos
tinham-se multiplicado. Jovens cheios de fé e de ardor tinham vindo de Flandres, de Vandea, de Popitiers,
da Bretanha, da Bélgica, da Holanda, do Canadá. Entre tantos, alguns eram defeituosos, porém a maior
parte eram jovens excelentes... traziam para o serviço da Igreja um nome honrado, um coração puro e
ardente, tradições de virtude, de nobreza, de piedade. Faziam-me lembrar os Macabeus. A sua recordação
ficou-me impressa como uma das melhores da minha vida...”.465
A saída dos últimos soldados franceses de Roma, em finais de 1866, tinha consternado os ambientes
romanos já deprimidos pela derrota da Áustria em Sadowa (3.7.1866) e pela cessão do Veneto à Itália
(3.10.1866). Para o Papa significava uma sentença de morte para Roma. Era só questão de tempo. A
conquista da cidade eterna pelos italianos era já inevitável.
Todavia os primeiros meses de 1877 passaram tranquilos. O general Kanzler tinha reorganizado o
exército pontifício; porém Garibaldi, escreve o P. Dehon nas Memórias (fazia então o segundo ano de
teologia), tinha organizado também ele um pequeno exército que o governo piemontês (do anticlerical
Ratazzi) favorecia. “O condottiero avança sobre Roma. As pequenas guarnições pontifícias fizeram
prodígios de valor e detiveram o inimigo durante um certo tempo. Combateu-se em Acquapendente, em
Bagnaia. Em Montelibretti 80 zuavos lutaram contra 1.200 garibaldinos. Aí morreu o valente e piedoso
capitão Guillemin. Em Monterottondo, a 26 de Outubro, os garibaldinos fugiram cobardemente diante dos
zuavos dez vezes menos numerosos. A 23 de Outubro o exército francês desembarcava em Civitavecchia.
Já era tempo”.466 De facto, Napoleão III, obrigado pelos católicos franceses e instigado pela Imperatriz
Eugénia de Montijo, muito devota e inimiga implacável da causa italiana e especialmente dos camisas
vermelhas, tivera de intervir. “A três de Novembro – continua o P. Dehon nas Memórias – os bandos de
Garibaldi que engrossavam continuamente, avançaram sobre Mentana. Eram 12.000 homens. Um corpo do
exército italiano seguia-os às ordens do general Cialdini”. A táctica e o pretexto eram sempre os mesmos,
tanto para o reino das Sicílias, para as Marcas, para Úmbria e para Roma: intervinham as tropas do rei para
que não dominassem os republicanos “anticlericais”. “O general Ranzler avançou contra os bandos de
camisas vermelhas com 3.000 pontifícios e 2.000 franceses. Os garibaldinos foram completamente
desfeitos em Mentana. Era o fim da campanha”.467
Espontânea foi a participação de Leão Dehon na alegria do mundo católico perante esta vitória.
Quase 15.000 opúsculos se imprimiram para celebrar as proezas de Deus, operadas pelos novos e redivivos
cruzados (os zuavos).
As aspirações nacionalistas da Itália eram de novo vencidas. Estas exigências não tocavam
minimamente os ultramontanos e muito menos a Leão Dehon.
Entretanto o ministro Rouher pronunciava no parlamento francês o seu famoso “Jamais! Nunca!”.
“Declaramos em nome do governo francês. A Itália não se apoderará nunca de Roma. Nunca a França
suportará esta violência à sua honra e ao seu catolicismo”.468 “Em política – fazia-lhe observar sabiamente
Napoleão III – nunca há que dizer nunca”.469 De momento, o Imperador teve de fazer-se garante do Estado
Pontifício. Assim a questão romana não avançou um passo até 1870.
A mentalidade de Leão Dehon reflecte o ultramontanismo do seu tempo. Escreve a seus pais a 19 de
Novembro de 1867: “Os nossos soldados forma recebidos aqui como libertadores, sobre tudo depois da
465
NHV V, 106-107.
466
NHV V, 113.
467
NHV V, 113-114.
468
R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/1, 179.
469
A. Dansette, Histoire religieuse, 310.

103
vitória de Mentana. A conduta do exército pontifício em todos estes acontecimentos foi admirável. Tudo
forma vitórias... Os zuavos perderam uma centena deles. São verdadeiros mártires. Morriam oferecendo a
vida pela Igreja...”.470 Não se pode duvidar da sinceridade destas afirmações nem das boas disposições dos
zuavos em servir a Igreja... impropriamente identificada com o Estado Pontifício. A Providência
contribuirá, com os acontecimentos históricos, para eliminar toda a danosa confusão, para libertar o papado
de modo a que se dedique completamente à sua missão espiritual.
A questão encontrará uma primeira solução violenta, quando, por ocasião da guerra franco-
prussiana, os italianos abrirem a brecha de Porta Pia e conquistarem Roma (20.9.1870).

ULTRAMONTANO CONVENCIDO

Leão Dehon será sempre um convencido ultramontano. Os educadores que orientara a sua vida
foram ultramontanos convencidos: O Rev. Dehane, o Rev. Boute, o Rev. Prével, o P. Freyd.
Em França eram chamados ultramontanos pelos galicanos e jansenistas os que aderiam às directivas
de Roma no campo doutrinal, litúrgico e também político, os que defendiam os direitos e privilégios do
papado. O adjectivo tinha um velado sentido depreciativo. Is ultramontanos eram contra as assim chamadas
“liberdades galicanas”, defendiam o Syllabus de Pio IX e a infalibilidade do Papa. Ultramontanos foram J.
de Maistre, Lamennais no princípio da sua actividade, Lacordaire, Luís Veuillot com o seu jornal
“L’Univers”.
A subida do ultramontanismo em França começou durante o primeiro Império e no oitocentos.
Napoleão admirava a Igreja como suporte indispensável da ordem social. Tinha procurado submetê-la ao
Estado, porém a Igreja de França, para obviar esta submissão. Tinha-se voltado para Roma com uma
confiança desconhecida anteriormente. Assim tinha-se fortalecido o ultramontanismo com o seu típico
amor ao Papa, que roçará a veneração, a devoção sob o pontificado de Pio IX com expressões às vezes
desconcertantes, exageradas, de verdadeiro culto entre os neo-ultramontanos.
De neo-ultramontanismo estava contaminado o “L’Univers”, que acusava de galicanismo a quem
não aceitasse como leis os desejos , inclusive tácitos, do Papa... Leão Dehon não aprovava este
ultramontanismo tão exagerado que acreditava na infalibilidade do Papa, não só no seu ensinamento
público, mas também na sua vida privada.471 As situações penosas de Pio IX, o espólio do Estado
Pontifício, o seu cativeiro vaticano, a sua grande bondade, o seu profundo espírito religioso, a sua piedade
sincera tinham-no aureolado de santidade e de martírio. Nasce assim uma verdadeira “devoção” ao Papa.
As intervenções dos católicos em favor do Papa assumiam caracteres de cruzada, animada por um
espírito de reparação. Também Leão Dehon respira esta atmosfera. Para ele os zuavos pontifícios são
cruzados, 472são mártires e confessores da fé.473 Com a notícia da conquista de Roma pelos italianos,
escreve nas Memórias: “Os italianos apoderam-se de Roma e penetram pela brecha sacrílega da Porta Pia...
Para mim é um duro pesar. Amava tanto Roma, a Roma papal! Tinha-me convertido em cidadão dela pelos
meus cinco anos de permanência. Era a minha segunda pátria, invadida como a primeira (pela guerra
franco-prussiana de 1870).474
Na realidade o seminarista Leão Dehon era refém de uma opinião pública muito generalizada entre
os católicos do seu tempo.
Mas para além das situações pessoais e dolorosas que aumentavam a atracção dos féis até ao Papa
Pio IX, devemos destacar que o Papa e a Cúria romana, na primeira metade do século XIX, tomaram em
mãos o movimento ultramontano e favoreceram-no decididamente.
Como todos os grandes movimentos na história da Igreja, a corrente ultramontana parte da base, de
uma exigência do povo cristão, às vezes exagerada, pouco feliz nas suas manifestações, porém sincera e
autêntica. Compreendemos a afirmação de Tocqueville: “Foram os fiéis que incitaram o Papa a ser senhor
470
AD, B 18/9.
471
Cf. NHV I, 60v-61r. R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/1, 464-467.
472
NHV V, 114.
473
NHV V, 115.
474
NHV V, 118.

104
absoluto da Igreja, mais do que o Papa a submetê-los ao seu domínio. A atitude de Roma for mais um
efeito do que uma causa”.475
Já Gregório XVI tinha favorecido este centralismo em volta do Papa que se tinha pouco a pouco
espalhado pelos vários continentes mediante o movimento missionário e o desenvolvimento dos meios de
comunicação.
Esta política foi acentuada por Pio IX depois de 1848 para reforçar os laços com o centro da
cristandade e consolidar a autoridade papal.
Roma, afirma Dom Guéranger na sua campanha em França para o regresso à liturgia romana, anima
a fundação de seminários nacionais, entre eles o seminário francês de Santa Clara; favorece o recurso de
bispos, de sacerdotes e de leigos à Cúria romana. Alguns sínodos episcopais provinciais começam com
propor à aprovação de Roma as questões de que vão tratar; todos submetem ao Papa as conclusões e
aceitam as alterações. Pio IX intervém cada vez mais livremente na eleição dos bispos. Os núncios são
cada vez mais eficazes em fazer que os bispos aceitem as decisões romanas.
Pio IX serve-se das Ordens religiosas e da imprensa, especialmente dos Jesuítas, embora não tenha
muita simpatia em relação a eles. Muitos sacerdotes, especialmente estrangeiros, devotos de Roma, são
criados por Pio IX prelados romanos; é uma transbordante inundação de monsenhores. Durante um
longuíssimo pontificado, Pio IX entrevista pessoalmente todos os bispos. Restabelece as periódicas visitas
“ad limina” que tinham caído em desuso. Dá muita importância às relações pessoais com os eclesiásticos.
Às vezes convoca-os ele próprio e, ordinariamente, a sua bondade paternal e o seu fascínio pessoal
triunfam. Muitos dos seus interlocutores convertem-se em convictos ultramontanos.
“De facto, o elemento determinante no rápido e definitivo auge do ultramontanismo foram a
personalidade de Pio IX e o imenso prestígio, muito superior ao dos seus predecessores, de que o Papa
gozou entre as massas católicas e o clero por mais de um quarto de século”.476
Leão Dehon cada vez que menciona, nas cartas a partir de Roma ou nas suas Memórias, audiências,
cerimónias, encontros com Pio IX, põe em relevo o seu fascínio extraordinário: “Tem o privilégio de
arrancar lágrimas de emoção e de suscitar calorosas aclamações”.477 “Nunca um conquistador dominou
com o medo a tantos homens, como Pio IX os domina com o amor e o respeito que inspira”.478 “A sua
santidade, as suas desventuras, a sua doçura, a sua majestade ganharam todos os corações ... um santo
frenesim”.479
Já lembrámos com que entusiasmo de seminarista, Leão Dehon “corria” a assistir nas capelas
papais, ou seja às missas celebradas com a assistência do Papa, no trono, rodeado por cardeais: “Era tão
bonito gozar da vista de Pio IX durante uma hora inteira!”.480 A alegria de passas alguns instantes aos pés
do Papa,481 o entusiasmo de unir-se na praça de S. Pedro a cem mil vozes emocionadas, que gritavam:
“Viva o Papa! Viva Pio IX!”. “Era uma santa embriaguez”.482
Diversamente de Gregório XVI, Pio IX amava a vida social, dedicava muitas horas às audiências,
gostava de passear familiarmente pelas ruas de Roma, apreciava as grandiosas cerimónias litúrgicas.
A proclamação do dogma da Imaculada Conceição a 8 de Dezembro de 1854, durante uma
grandiosa cerimónia, na presença de 200, entre cardeais, arcebispos e bispos, tinha impressionado
vivamente o mundo católico e contribuído de modo especial a pôr em evidência as prerrogativas do Papa, a
importância do seu serviço na Igreja no exercício prático da infalibilidade pontifícia.
O ensaio geral da infalibilidade pontifícia tinha tido lugar por ocasião do 18 centenário do martírio
dos apóstolos Pedro e Paulo. Realizaram-se as grandiosas solenidades de 20 de Junho até 6 Julho de 1867,
na presença de centenas de bispos, de milhares de sacerdotes e de 150.000 fiéis: “Não foi só festejado o
martírio de Pedro mas também o seu primado no mundo”.483 A cátedra de S. Pedro foi retirada do relicário

475
Cf. R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/1, 432 ss.
476
R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/1, 448.
477
Carta aos pais de 20.4.1868 (AD, B 18/9).
478
Carta ao pai de 1868 (AD, B 18/9).
479
Carta a Leão Palustre de 12.5.1869 (AD, B 18/10).
480
NHV V, 15.
481
Cf. NHV V, 24.
482
NHV V, 29.
483
Carta aos pais de 30.6.1869 (AD, B 18/9).

105
de Bernini e foi exposta à veneração dos fiéis. Era a exaltação do magistério do Papa e a autoridade da
cátedra de Pedro, preparação da definição da infalibilidade papal.
Destas festas espectaculares fala Leão em várias cartas dirigidas a seus pais.484
O triunfo do ultramontanismo coincidiu com a definição da infalibilidade pontifícia no Vaticano I.
Todavia o triunfo mais profundo e duradoiro do ultramontanismo foi a transformação interior da vida
católica nos países a norte dos Alpes, com uma piedade, como dissemos, de tipo italiano, mais indulgente,
às vezes um tanto superficial, porém também mais humana e popular que dava lugar ao sentimento, que se
expressava com manifestações exteriores, com a frequência dos sacramentos e com numerosos exercícios
de piedade. Foi uma religiosidade que teve os seus inconvenientes, porém que, no conjunto, demonstrou
ser uma evolução benéfica , afastando o catolicismo de um racionalismo e deísmo frios. Nesta calorosa
piedade, purificada dos seus defeitos, encontrou alimento Leão Dehon, tanto mais que o centro do
ultramontanismo francês era justamente o seminário de Santa Clara de Roma, o mesmo centro de altos
estudos eclesiásticos da Igreja de França, e isto por obra dos Padres do Espírito Santo que o dirigiam.
Assim, um número cada vez maior de sacerdotes franceses regressavam à pátria “com as ideias, os
costumes e até o hábito dos sacerdotes italianos”;485 e entre estes, Leão Dehon.

ENTRE LIBERAIS E CONSERVADORES

Leão Dehon não é só um ultramontano, é também um conservador.


As revoluções do oitocentos, especialmente a de 1848 com os seus inevitáveis distúrbios, tinha-se
apoiado nos princípios de 1789.. Quem, pelo contrário, estava preocupado com a ordem social, apelava ao
“princípio de autoridade”, que tinha orientado bem o mundo passado, e à “verdade”, representada pela
Igreja e a sua doutrina que deviam ser privilegiadas contra o erro, fonte de tantas desordens.
O direito e, portanto, a liberdade, valiam só para a “verdade” ou talvez para o erro de boa fé. Era
admissível a tolerância?
O problema, pois, era este: podiam os católicos aceitar as liberdades modernas: políticas, de
imprensa, de consciência e de culto?
Estas liberdades existiam na sociedade moderna; eram uma situação de facto. Era também um mal
que havia que combater sem contemplações?
Problema complexo e espinhoso especialmente no oitocentos. Fazia falta um trabalho de decantação
ou purificação do pensamento moderno para permitir que a Igreja admitisse as ideias de democracia, de
tolerância, de igualdade, de liberdade e a sua realização.
Não seria, pelo contrário, mais fácil e mais seguro inspirar-se aos modelos do passado (por exemplo
da Idade Média) adaptando-os, modelos impregnados de influências cristãs e nos quais a Igreja ocupava o
seu lugar no próprio coração da vida social?
Esta segunda solução, defendida por muitos católicos, entre eles Leão Dehon, foi a preferida pela
jerarquia no seu conjunto, como reacção às desordens revolucionárias de 1848, que tinham submergido a
Europa e obrigado o próprio Papa a fugir, exilado, para Gaeta. Os católicos eram chamados
“conservadores” e, depreciativamente, “reaccionários”.
A sua imprensa na Itália estava representada pela “La Civiltà Cattolica” e na França por
“L’Univers” de Luís Veuillot, com a violência da sua linguagem, que desagradava a Leão Dehon e que Pio
IX mesmo desaprovava, dando ao fogoso polemista conselhos de moderação, embora considerando-o como
seu filho predilecto. Devemos admitir que muitas críticas de L. Veuillot ao liberalismo do seu tempo eram
mais que fundadas. Tratava-se de erros perigosos. Pensemos na rejeição de toda a autoridade que
transcenda a consciência individual; daí a negação de Deus, da Revelação, da autoridade da Igreja.
Verdadeiro erro era também a admissão do liberalismo económico, que reduzia o trabalhador a uma
máquina ou a um animal de carga, enquanto que o seu trabalho se convertia em pura mercadoria.
Tendo presentes estes erros, compreendemos porque Leão Dehon rejeita as doutrinas liberais.

484
Cf. AD, B 18/9.
485
R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/1, 462.

106
É verdade que o liberalismo não continha só erros, tinha também princípios válidos dos quais
decorriam frutos positivos (entre tantos negativos) para a sociedade moderna.
Quanto a Leão Dehon, já o seu primeiro director espiritual de Paris, o Rev. Prével, o tinha colocado
em guarda contra o liberalismo, que se lhe havia apresentado, com urgência, frequentando o Círculo
Católico.486 “A verdadeira solução – escreve o P. Dehon nas Memórias – encontrá-la-ia em Roma”;
todavia, desde então, inclinava-me “para a aceitação da verdade total e para o reconhecimento dos direitos
de Deus”.487
É evidente a opção “conservadora” de Leão, quando alude às “ilusões liberais” de Mons.
Dupanloup e do P. Gratry.488É uma opção não política, mas religiosa, de fé: “Desconfiemos da escola
liberal do sr. De Broglie, do “Correspondant” e dos que neles se inspiram. Eles não dão suficiente espaço
ao sobrenatural...”.489 O liberalismo católico “é uma mistura de diversas doses de racionalismo e de fé, uma
redução da fé ao mínimo, uma diminuição da verdade”.490 O liberalismo, juntamente com o galicanismo,
enfraqueceram o clero e contaminaram não poucas personalidades católicas.491
Embora contrário ao “liberalismo católico”,492 Leão Dehon propõe aos liberais um catecismo de
erros modernos para meditar. Era a cópia entregue aos bispos em 1862 em preparação das 80 famosas
proposições do Syllabus, acrescentadas à encíclica “Quanta cura” (8.12.1864).493
Enquanto a encíclica, com o seu estilo solene, não tinha suscitado reacções, a mesma doutrina,
formulada nas proposições do Syllabus com frases breves e precisas, fáceis de entender, tinha
desencadeado uma imensa emoção na opinião pública.
Veio em auxílio a famosa distinção entre tese e hipótese, já usada pelo P. Curci em relação ao
discurso de Montalembert em Malines (20-21.8.1863). Esta vez foi o cardeal Antonelli quem a usou e, com
habilidade única, serviu-se dela Mons. Dupanloup num difusíssimo opúsculo louvado por Pio IX. Os
documentos da Igreja, afirmava o bispo de Orléans, apresentam o ideal: esta é a teoria, a tese; porém na
prática há que contentar-se com a hipótese, ou seja, ter em conta as circunstâncias e exigir o que é
realmente possível. Segundo a tese, o usurário Rothschild (banqueiro alemão) teria que ser estrangulado;
segundo a hipótese, aceitaria o seu convite para jantar.
O Syllabus, assim comentado, era o mais inofensivo dos documentos; as pontas mais aguçadas
estavam todas limadas.
Os anticlericais acusavam Dupanloup de ter “transfigurado” o Syllabus; os intransigentes, de o ter
mudado. “Trocastes o menino entregue à ama” dizia Montalembert, “Jacob roubou a bênção a Esaú”.
Pio IX confiava a um amigo do bispo de Orléans: “Fez compreender a encíclica (e o Syllabus) no
seu verdadeiro sentido”.494
Depois destas explicações do Syllabus, tanto os católicos intransigentes franceses que, num
primeiro momento, tinham cantado vitória, como os católicos liberais franceses que se tinham sentido
tratados como hereges e apóstatas, encontravam-se nas mesmas posições de partida. A incompreensão
entre a Igreja e o mundo moderno era total.
Com o decorrer do tempo ia crescendo em Pio IX a aversão pelas ideias liberais, causa de todas as
leis sectárias e de todas as manifestações anticlericais que infestavam o mundo, em especial na Itália.
Não tinha simpatia para com os católicos liberais. Não compreendia o seu meritório e trabalhoso
esforço para acolher os aspectos positivos da sociedade moderna e harmonizá-los com o cristianismo. Para
o Papa, os católicos liberais tinham “um pé na verdade e outro no erro, um pé na Igreja e outro no mundo,
um p«e comigo e outro com os meus inimigos”. A afirmação é de 1874.495
486
Cf. NHV I, 343
487
NHV I, 41v.
488
NHV I, 60v.
489
NHV V, 125.
490
NHV IV, 159.
491
Cf. NHV VI, 29.
492
NHV VI, 29.
493
Cf. NHV XIII, 108-115.
494
Cf. R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/1, 401.
495
Cf. R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/1, 407. Noto só de passagem que a diferença entre católicos liberais e liberalismo
é claríssima. Na sua origem, o liberalismo é um sistema naturalista e libertário, que postula uma liberdade sem limites para o
homem. Se o homem for forte, hábil, inteligente, pode instrumentalizar tudo e todos, especialmente os débeis, para o seu

107
Todas as preferências do velho Papa iam para os “cavaleiros do Absoluto”, que não tendo em conta
as profundas mudanças sociais acontecidas fora da Igreja e contra a Igreja, reclamavam-se em tudo e contra
tudo, com apaixonada nostalgia e com sincero amor aos homens do seu tempo, do “direito social cristão”.
De Roma chegavam os incentivos e estes “nobres cavaleiros do Absoluto” sentiam-se investidos
pelo Papa de uma verdadeira missão. Entre estes encontramos Leão Dehon nos primeiros anos do seu
ministério sacerdotal. É um ultramontano e um conservador convicto. De Roma vêm as orientações d sua
vida e do seu apostolado.
Ter-se-á que esperar por Leão XIII para ter directivas adequadas às profundas mudanças religiosas,
sociais e culturais ocorridas no oitocentos. Leão Dehon defenderá essas directivas com entusiasmo.
Entretanto, aparecem em primeiro plano os extremistas das correntes opostas: “Os liberais radicais e
os ultramontanos intransigentes, uns e outros intolerantes e desejosos de impor as suas próprias
ideologias”.496
Leão Dehon, por temperamento, sempre fugirá de qualquer extremismo e intolerância. O seu amor e
a sua saudade orientar-se-ão sempre para a cristandade medieval, mesmo quando realisticamente aceitará o
mundo moderno, a democracia, a república e trabalhará segundo as orientações de Leão XIII para o triunfo
do reino do Coração de Cristo “nas almas e nas sociedades”.

proveito. Caímos nos abusos do liberalismo e do capitalismo. Para os católicos liberais, a liberdade está condicionada, tanto no
campo intelectual como no prático, pelas exigências da fé e da moral cristã.
496
Cf. R. Aubert, Il Pontificato di Pio IX, XXI/1, 407.

108
CAPÍTULO 8

A grande renúncia

A guerra franco-prussiana – Um longo pesadelo – compromissos pessoais – Regresso a Roma – Um problema urgente – A cultura do clero em França
– As aspirações de Leão Dehon – Só para fazer a vontade de Deus

A GUERRA FRANCO-PRUSSIANA

Menos de cinco meses depois do referendo de 8 de Maio de 1870, que tinha consolidado o Segundo
Império (7.350.999 franceses tinham votado sim, contra 1.588.000), rebentava a guerra franco-prussiana.
Os motivos de discórdia entre França e Prússia eram muitos, sendo não último a hostilidade da
França à unificação política da Alemanha sob a casa dos Hohenzollern, depois de a Áustria ter sofrido a
derrota de Sadowa (3.7.1866).
O ponto crítico foi alcançado quando a coroa de Espanha, depois da queda da dinastia borbónica,
foi oferecida a Leopoldo de Hohenzollern, primo do rei da Prússia, Guilherme I. O Governo francês opôs-
se e a candidatura de Hohenzollern foi retirada. Era um bom êxito diplomático e Napoleão III podia e
de«via ficar contente.
Em lugar disso, para maior segurança, quis que o rei da Prússia se comprometesse a que esta
renúncia fosse definitiva também para o futuro.
Para isto, o embaixador francês em Berlim, conde Benedetti, pediu audiência ao rei da Prússia que
se encontrava a banhos em Sem. Na audiência, Guilherme I afirmou que não podia comprometer-se para o
futuro. No sai seguinte, o embaixador francês pediu uma segunda audiência; porém o rei respondeu que
não tinha nada a acrescentar, e enviou um telegrama aos seu primeiro ministro Otão de Bismarck, para
informá-lo das duas audiências. Este, que havia tempo procurava um pretexto para desencadear a guerra
contra a França, modificou o telegrama do rei, de modo que parecesse que Guilherme I tinha recusado de
modo ofensivo receber uma segunda vez ao embaixador francês e deu ao falsificado telegrama de Sem a
mais ampla difusão...
Uma onda de ofendido patriotismo sacudiu a França, ferida na sua honra. Votaram-se os fundos e
foi declarada a guerra à Prússia a 19 de Julho de 1870.
É um mistério como Napoleão III tenha podido dar o seu consentimento a uma guerra para a qual
não estava absolutamente preparado depois do fracasso da reforma militar de 1867-68.
A França estava diplomaticamente isolada. Dispunha de um exército de 370.000 homens, dos quais
60.000 estavam em Argel e 6.000 em Civitavecchia,. A isto há a acrescentar a mediocridade dos oficiais
superiores franceses, promovidos mais por motivos de fortuna pessoal do que por capacidade real, e a falta
de organização para fazer chegar rapidamente as tropas às fronteiras, tanto que, nos primeiros de Agosto,
Napoleão dispõe só de 235.000 homens... desorganizados.
Pelo contrário, Prússia alinha na primeira fila 500.000 homens aos quais não falta nem um botão
segundo a expressão do general em chefe Moltke, sustentados por 160.000 soldados na intendência e por
um exército territorial de 190.000 homens.
A guerra transformou-se rapidamente num grande desastre. As derrotas acumularam-se:
Wissembourg (4 de Agosto), Woerth-Froeschwiller (6 de Agosto). Mac-Mahon abandona a Alsácia,
enquanto Bazaine, em Lorena, se deixa encerrar com o grosso do exército francês (180.000 homens) na
fortaleza de Metz. O resto das tropas francesas, seguido mais que comandado pelo imperador, em precárias
condições de saúde, é cercado no vale de Sedan (1-2 de Setembro) e obrigado a render-se; Napoleão III,
depois de ter procurado em vão a morte no campo de batalha, cai prisioneiro e entrega a espada nas mãos
de Guilherme I. É o fim do Segundo Império. A 4 de Setembro de 1870 proclama-se a Terceira República.

109
A guerra prossegue. Leão Gambetta consegue formar um exército de 600.000 voluntários, porém
não consegue nem uma só vitória. A fortaleza de Metz rende-se a 25 de Outubro de 1870. Também Paris,
depois de alguns meses de sítio, capitula por fome (21 de Janeiro de 1871). A guerra termina com o
armistício de Versailles (28 de Janeiro de 1871).
Entretanto, mesmo em Versailles, a 18 de Janeiro, foi proclamado o império alemão.
A frança sofre também a triste experiência da guerra civil. Contra o Governo republicano presidido
por Thiers e residente em Versailles, os socialistas sublevam o povo de Paris e estabelecem um governo
provisório, chamado “la Comune”. O exército francês tem que assediar a capital e sufocar com sangue a
revolta. Estamos em Maio de 1871. A 10 de Maio assina-se a paz em Francfurt, em que a França cede à
Prússia a Alsácia com Estrasburgo, grande parte da Lorena com Metz e paga uma indemnização de cinco
mil milhões de francos.

UM LONGO PESADELO

Da guerra franco-prussiana fala muito o P. Dehon nas suas Memórias, já que em certo modo se viu
envolvido nela. “Devia durar 6 meses. Passou como um longo e terrível pesadelo, cheio de sofrimentos e
angústias”.497
Leão Dehon correu o risco de ser mobilizado por ordem do presidente de La Capelle que, na
confusão geral, achava-se omnipotente. Como sacerdote estava dispensado por lei. Teria ido com gosto
como capelão militar. Várias vezes o pediu ao seu bispo, Mons. Dours. O bispo respondia que logo se
veria; mas entretanto passava o tempo sem nenhuma resposta concreta. Leão ficou em La Capelle
esperando ter ocasião de fazer um pouco de apostolado entre os saldados de passagem. E a ocasião chegou
com a derrota de Sedan. “Que dias tão tristes e que impressões tão penosas me deixaram!”.498 A maior parte
dos fugitivos de Sedan atravessavam por La Capelle para se reunirem em Maubeuge: “Homens de todas as
armas passavam numa desordem inimaginável. Infantaria, artilharia, cavalaria aos montes, com os
uniformes em farrapos. Quase todos tinham deposto as armas... Os velhos diziam que era um espectáculo
parecido com a derrota de Waterloo. Os soldados espalhavam pelo caminho desânimo e desespero: “Tudo
está perdido, tudo está acabado (diziam). Os prussianos estão para chegar, etc.”499
À dor da derrota da França, juntou-se para Leão uma angústia ainda maior, a conquista de Roma
pelos italianos.500
É natural para Leão ver na derrota da França um castigo de Deus por não ter protegido o Papa em
Roma. A frança esqueceu os seus deveres de filha primogénita da Igreja e Deus abandonou-a. Além disso,
Deus tinha tolerado até demais a grande festa imperial, com a sua luxúria e a sua incredulidade,
especialmente das altas classes sociais. Tinha chegado o momento do castigo e da expiação.
Assim escreve ao amigo Leão Palustre a 7 de Outubro de 1870 a partir de La Capelle: “Todos se
afligem à vista das provas que Deus manda à Igreja e à França... França atribui todo o mal ao Governo
imperial. Prefiro ver as coisas de um ponto de vista um pouco mais elevado. Não me apaixono por nenhum
governo. Creio que os nossos sofrimentos são coisa de Deus, que quer castigar tanto o Governo como a
nação”.
Depois de ter posto em relevo as culpas dos franceses, que não se reparam “com uma velinha ou
acendendo um círio” afirma: “Eu não encontro descanso nem consolação, senão na submissão à vontade de
Deus; Deus nos castiga porque nos ama”.501
No mês de Novembro (1870), estacionou em la Capelle um regimento do exército do Norte. Leão
pôde exercer a seu gosto o seu zelo de capelão. Todas as tardes fazia uma função religiosa na igreja. Os

497
NHV VIII, 104. A guerra foi declarada a 19 de Julho de 1870 e não a 17, como escreve o P. Dehon nas Memórias (NHV VIII,
106).
498
NHV VIII, 114.
499
NHV VIII, 114.
500
Cf. NHV VIII, 118.
501
AD, B 18/10.

110
soldados acorriam e escutavam com gosto as palavras do jovem sacerdote. A maior parte confessava-se e
comungava. Muitos morreram nos combates do Norte.502
Depois da assinatura dos armistício (28.1.1871) e do “passeio” dos alemães até as Tuileries, ao
centro de Paris, Leão pensou que era tempo “de voltar a Roma, onde se tinham reorganizado os cursos de
estudo.503
Entretanto o bispo de Soissons, Mons. Dours, considerando a falta de clero na diocese e tantas
paróquias sem sacerdote, propunha a Leão que aceitasse um lugar de coadjutor. “Não podia aceitar
semelhante proposta. Não tinha terminados os meus estudos em Roma e, além disso, aspirava à vida
religiosa”.504
Também o P. Freyd o aconselhava a que voltasse para Roma através da Suíça ou por Chambery,
não pelo mar. Devia viajar vestido à civil.

COMPROMISSOS PESSOAIS

Os meses da guerra não tinham passado em vão para a cultura de Leão. Tinham-lhe servido muito
os livros que lhe ofereceram por ocasião da sua Missa Nova. “Tinha S. Agostinho e lia a sua Cidade de
Deus, o seu Enchiridion, as suas Cartas. Servia-me das meditações de Bossuet e dos colóquios de santa
Gertrudes”.505 Leu Bourdaloue, Mons. Pie, Poujoulat, Consalvi, Bougaud, Gaume, Perin, Moigno, Guizot.
Estudou De Maistre, Montalembert, Ozanam, Balmès, Lacordaire, “os espíritos guias do nosso século”.506
“Não é acaso uma das grandes alegrias possíveis na terra entreter-se com aqueles grandes espíritos que são
como a elite da grande família humana? Tinha sonhado gastar assim a minha vida, mas era um sonho um
pouco egoísta demais. Nosso Senhor decidiu outra coisa e me lançou na vida activa”.507
Muitas páginas das Memórias são dedicadas à transcrição daquilo que lhe chamou à atenção nestas
longas leituras. É interessante notar que, no fundo, Leão Dehon preferia na cultura, (fora do campo social)
as posições mais tradicionais. Recordemos que, segundo o P. Freyd, a Igreja de França padecia da “peste
liberal”.508
Encontrava-se em boa companhia com S. Agostinho que “não confia no sufrágio universal”; O
juízo dos homens... sobretudo o do povo, está obscurecido pelo erro, como a atmosfera pelo fumo”.509 O
grande santo não admite a liberdade total e sobretudo a completa liberdade de imprensa. Insiste muito
nisso. Parece-lhe uma libertinagem, que arrasta os homens para o erro e o vício. Todavia no campo da fé e
da religião condena os métodos violentos e coercivos. Desconfia de toda a protecção excessiva do Estado à
religião e à Igreja com os bem conhecidos abusos do cesaropapismo.
Leão Dehon lamenta que no Estado Pontifício não sejam introduzidas as reformas que o espírito
iluminado do cardeal Gonsalvi augurava. Infelizmente estas reformas não se fizeram em Roma “por causa
de um respeito exagerado pela sua veneranda antiguidade” 510 e também por inveterados interesses,
privilégios, abusos, que certa poderosa opinião pública defendia com unhas e dentes. Além disso, havia
uma congregação para as reformas que, segundo o cardeal Gonsalvi que também nisto não foi escutado,
não devia ser constituída só por eclesiásticos, mas também por leigos, ao menos para aquelas funções
políticas que eram pouca adequadas ao clero. Era esta uma linguagem indigesta para o imperante
clericalismo do Estado da Igreja. Não se cedia sobre a participação do povo no Governo.
Leão Dehon preocupava-se muito da questão social, da burguesia, do proletariado: “O tema do
socialismo preocupava-me já em 1870”.511
502
Destes soldados Leão Dehon fala numa carta ao amigo L. Palustre a 14 de Novembro de 1870 de La Capelle. Eram 600
excelentes e piedosos flamengos dos arredores de Dunkerque. Ficaram em La Capelle algumas semanas. (cf. AD, B 18!10).
503
NHV VIII, 124.
504
NHV VIII, 125.
505
NHV VIII, 138.
506
NHV VIII, 138.
507
NHV VIII, 138-139.
508
Cf. M. Denis scj. L’orientamento di Leone Dehon verso l’apostolato intellettuale (1861-1877) in “Dehoniana” 4 (1976), 244.
509
Cidade de Deus, I. 1, c. 22; NHV VIII, 139-140.
510
NHV VIII, 153.
511
NHV VIII, 167.

111
Certamente que a Providência queria prepará-lo para o apostolado social que tanto o ia
comprometer um dia, seja como coadjutor em S. Quintino seja no apostolado nacional e internacional no
último decénio do século.
Infelizmente, daquele tempo (inverno 1870-71) não nos restam mais que algumas notas espirituais
soltas transcritas nas Memórias. Isso confirma-nos a sua fervorosa vida interior. Humildemente acrescenta:
“estas eram as minhas piedosas resoluções; mas há sempre muita distância entre o propósito e a acção”.
Leão interessa-se também pelo apostolado das vocações sacerdotais e religiosas.512
Também o apostolado da pregação ocupa frequentemente a Leão Dehon seja em La Capelle, como
também em Sommeron, onde vai todos os domingos celebrar a missa. Habitualmente basta-lhe um
esquema.
Ficaram-nos algumas destas pregações: “A oração pela pátria e pela Igreja” (14 de Agosto de
1870); “França cristã: temores e esperanças” (15 de agosto de 1870); “O Papa e Roma” (20 de Outubro de
1870); “O amor do sofrimento” (9 de Outubro de 1870); “Dizia nos meus sermões o que diziam todos os
pregadores de França. Aludia às culpas do nosso país que tinham preparado as nossas derrotas. Alimentava,
todavia, a confiança, lembrando as “gesta Dei per Francos”... Estes pequenos sermões não eram nenhuma
maravilha. O estilo era muito simples. Faltava-lhes claramente retórica. Porém tinha-os meditado,
proclamava-os com fé e, certamente, causavam uma grande impressão”.
Precisamente nesta simplicidade convencida, cheia de fé e com falta de retórica, está o valor da
pregação do jovem Leão Dehon. A melhor prova é o compromisso de oração a que arrasta o auditório,
“pondo-o bem na presença de Deus e dos nossos santos padroeiros, como faço pessoalmente quando
rezo”.513

REGRESSO A ROMA

A partida de La Capelle foi nos primeiros dias de Março de 1871. Leão detém-se alguns dias em
Nîmes (10-15 de Março) para encontrar-se com o P. D’Alzon e com o P. Désaire. “A minha permanência
em Nîmes tinha uma grande importância para mim; queria ver o que era esta obra [a obra do P. D’Alzon e
dos assuncionistas]. Tinha veleidades de entrar nela. Uma actividade intensa ocorria no meu íntimo desde
havia dois anos. Por um lado queria ser religioso; por outro pensava que tinha chegado para a Igreja o
momento de se comprometer com renovado ardor nos estudos superiores para retomar o seu ascendente
sobre as inteligências. Juntava estes dois pensamentos . Parecia-me que a minha vocação era a de entrar
numa comunidade religiosa entregue ao estudo e ao ensino”.514
Sobre tudo isto Leão tinha falado longamente com o P. D’Alzon e com o amigo Désaire, que já
tinha entrado nos Assuncionistas. Voltaremos em breve a esta presunta vocação de Leão Dehon para o
apostolado da cultura e dos estudos superiores, porque será objecto da sua grande decisão e... renúncia.
Apesar dos insistentes convites do P. D’Alzon para que entrasse nos Assuncionistas, Leão
permanece firme na sua decisão de terminar primeiro os seus estudos em Roma.
A impressão que colheu da breve visita a Nîmes foi bastante favorável, mas não isenta de
preocupações. “O P. D’Alzon parecia compreender e apreciar os nossos projectos (de Leão Dehon e do P.
Désaire); porém, no fundo, era um homem de acção, quase diria, de agitação, no melhor sentido da palavra,
mais que um homem de estudo”.515 Era uma constatação que trazia dúvidas a Leão Dehon. Não faltavam as
dificuldades económicas. O P. D’Alzon não as dissimulava e estava preocupado.
Leão partiu de Nîmes a 15 de Março (1871) e chega a Roma a 18. No dia seguinte escreve aos seus
pais: “Roma está triste, como podeis imaginar. Os romanos consideram os italianos como nós
consideramos os prussianos em França... A ordem reina aqui o suficiente para viver sem sobressaltos”.516

512
Cf. NHV VIII, 175.
513
NHV VIII, 176-177.
514
NHV IX, 3.
515
NHV IX, 12-13.
516
NHV IX, 16.

112
A 22 de Março outra carta diz: “A permanência em Roma é mais ou menos tão segura como antes.
Sacerdotes e religiosos andam por todo o lado sem o menor inconveniente”.517 A 28 de Março: “Enquanto a
França está agitada pela revolução (a Comune), aqui estamos em completa calma. Seguimos regularmente
os cursos escolásticos e fazemos diariamente o nosso passeio”.518
O pior que Leão temia para Roma, felizmente não tinha acontecido. De facto tinha escrito de La
Capelle a Leão Palustre a 9 de Janeiro de 1871, antes de partir para Roma: “Não estás triste por ver a Itália
governada neste momento por homens tão perversos que não respeitam nem tratados, nem promessas, nem
religião, nem liberdade? Eles caminham para a perdição pelos seus excessos pessoais e o seu reinado não
será longo. Espero que não lhes seja possível ter tempo suficiente para fazer em Roma as profanações que
maquinam”.519
Porém já a Nîmes lhe tinha chegado uma carta tranquilizadora do ecónomo do Seminário de Santa
Clara, o P. Brichet: “A estada em Roma nem tem nenhum inconveniente para os eclesiásticos...: os jornais
exageram nos seus relatos sobre a desordem que houve em Roma”.520
Ao longo da viagem por Génova, Bolonha e Florença, Leão não tinha notado nenhuma agitação
política e não tinha tido nenhum aborrecimento.521
A mesma calma na Cidade Eterna, também se os italianos se tenham apoderado de 8 conventos
entre os mais bonitos, como a Minerva, Santo Agostinho, o Oratório; porém os cursos de Teologia e de
Direito Canónico continuam como antes no Colégio Romano, embora em grande parte ocupado pelos
piemonteses. Tem-se a esperança de ficar tranquilos.522 “Espero que Deus não conceda aos piemonteses o
tempo de arruinar a cidade com os seus maus jornais, com os seus livros ímpios e obscenos, com as
mulheres de má vida que arrastaram consigo e com a expulsão dos religiosos. Eles passarão como uma
inundação e varrer-se-á a lama que deixarem... Aqui estamos só oito”.523 Para além do mais faltava também
o P. Freyd, que só chegaria no princípio de Maio.524
“Roma continua completamente tranquila, apesar de todas as misérias do regime italiano... Os
vândalos modernos continuam a apoderar-se dos conventos de Roma, enquanto fazem leis para garantir a
liberdade da Igreja e do Papa. A estupidez casa-se com a brutalidade”.525
A 1 de Junho de 1871, Leão é doutor em Teologia, e a 24 de Junho, doutor em Direito Canónico:
“Ontem fiz com êxito o meu último exame. Hoje descanso e amanhã começarei um pequeno retiro de
alguns dias antes de deixar Roma”.526
“Os meus estudos estavam, pois, acabados. Gostaria de continuá-los ainda. Tinham sido um pouco
apressados. Mais um ano em Roma, com calma, sem exames à vista, ter-me-ia ajudado muito a organizar
os meus conhecimentos. Porém chegavam-me pressões de Nîmes, de Soissons e também de La Capelle,
onde os meus pais temiam que o clima de Roma me prejudicasse. Assim, cedi”.527
A 30 de Julho escreve aos seus pais: “Estou para deixar Roma com muita pena apesar da sua triste
situação. Passei aqui anos muito cheios, bem empregados, graças a Deus, e dos quais só no céu conhecerei
o valor. Consola-me levar comigo grandes tesouros como o sacerdócio, a ciência eclesiástica, bons hábitos
e agradáveis recordações”.528
UM PROBLEMA URGENTE

517
NHV IX, 16.
518
NHV IX, 3.
519
AD, B 18/10.
520
Carta aos pais, desde Nîmes a 15.3.1871 (AD, B 18/11).
521
Carta aos pais, desde Roma a 19.3.1871 (AD, B 18/11).
522
Carta aos pais de 22.3.1871 (AD, B 18/11).
523
Carta aos pais de 28.3.1871 (AD, B 18/11).
524
Cf. Carta aos pais de 6.5.1871 (AD, B 18/11).
525
Carta aos pais de 6.4.1871 (AD, B 18/11).
526
Carta aos pais de 25.7.1871 (AD, B 18/11).
527
NHV IX, 35-36.
528
AD, B 18/11.

113
Leão Dehon tinha 17-18 anos quando D. Prével, capelão de S. Sulpício e seu director espiritual,
conhecedor da sua vocação ao sacerdócio, o havia orientado para os estudos eclesiásticos nas universidades
romanas.529
Neste tempo nasceu em Leão Dehon a vocação para o apostolado da cultura e para os estudos
superiores. O clero francês precisava disso com extrema urgência.
Já sacerdote, o apostolado dos estudos superiores continua tendo uma poderosa atracção para Leão
Dehon. O P. D’Alzon procura, por todos os meios, atraí-lo para a sua Congregação (os Assuncionistas) e
Mons. Hautcoeur convida-o a comprometer-se na fundação ou, ao menos, em alguma cátedra da
universidade de Lille.
Leão Dehon, obedecendo ao P. Freyd, declina os dois convites. Todavia no Diário, como fundador
de uma Congregação, escreve: “Gostaria de ter uma casa de estudos em Paris para os doutoramentos
(literários e científicos) e uma em Roma para a Teologia. A ciência não é um dos principais meios de
apostolado? Os meus projectos de fundar uma obra de estudos em Roma podem muito bem conjugar-se
com a obra de reparação ao Sagrado Coração (ou seja a Congregação).530
O projecto de Leão Dehon se dedicar ao apostolado dos estudos superiores, especialmente para o
clero, é uma verdadeira necessidade do seu tempo.
Esta abertura às necessidades do seu tempo é uma nota característica na personalidade de Leão
Dehon. É uma atenção que passa a acção. Como seminarista em Roma tinha fundado com os seus
condiscípulos a obra de santa Catarina para o ensino de catecismo às crianças do povo. Jovem sacerdote em
S. Quintino fundará um patronato, um jornal, um círculo para jovens, um colégio e uma associação
sacerdotal para o clero.
Leão Dehon não é um homem que se embale nos sonhos. A inactividade e o desinteresse pelo reino
de Deus e o bem dos irmãos, considera-os um escândalo.
Tinha um coração grande e generoso. No seminário, como já dissemos, está tão seduzido pela
oração, pela vida de silêncio e de recolhimento que se interroga se não estará chamado a entrar numa
ordem contemplativa. O encontro prolongado com o P. D’Alzon, durante o Concílio, acentua em Leão
Dehon o desejo de se entregar ao apostolado dos estudos superiores eclesiásticos, ao constatar o baixo nível
cultural do clero francês.

A CULTURA DO CLERO EM FRANÇA

Depois do furacão da Revolução, que transtornou toda a organização da Igreja, diminuiu o número
de sacerdotes e dificultou o florescimento de novas vocações, o problema essencial da Igreja de França na
primeira metade do oitocentos não é a cultura, mas a sobrevivência. À queda do império napoleónico a
situação é dramática.
Durante a revolução, as ordenações sacerdotais foram pouquíssimas; os sacerdotes dispersos, as
crianças sem instrução religiosa, os ordenados de fome, os antigos seminários vendidos ou destruídos.
Utilizando donativos e subsídios, os bispos abriram alguns. A esses juntaram-se escolas eclesiásticas, que
logo se chamaram seminários menores, onde se procurava guiar os alunos para o sacerdócio e, ao mesmo
tempo, se lhes dava alguma instrução.
O colégio de Hazebrouck, onde Leão fez os seus primeiros estudos de humanidades, embora fosse
da autarquia, fazia também as vezes de “seminário menor” graças ao zelo de Tiago Dehaene. O mesmo
acontecerá com o colégio S. João, fundado pelo P. Dehon.
Em 1814 contam-se 52 seminários e 53 escolas-seminários menores, porém os resultados são
desanimadores. O clero diminui sem cessar. Centenas de paróquias não têm padre. O clero é ancião e em
parte comprometido com a revolução e, em geral, sem zelo apostólico. Ai dos sacerdotes que se mostram
demasiado zelosos e actuam fora da sua paróquia, que pregam missões e que suscitam conversões! São
duramente chamados à ordem pelos ex-jacobinos, que fazem parte do regime.

529
NHV I, 60v.
530
NQ IV, 1r. 12.11.1887.

114
Felizmente, a partir de 1821, aumenta o número de ordenações: de 714 em 1816 a 1.400 em 1821 e
a 2.350 em 1829. No mesmo lapso de tempo (1821-1829), o clero secular passa de 36.000 para 40.000
unidades. A melhoria económica é uma das causas, embora não a mais importante, desse aumento. Entre
1830 e 1848, o clero continua em aumento: de 40.000 a 47.000 unidades; porém cresceu só na rapidez em
que os sacerdotes são ordenados. Em 1876 o clero secular passa a 55.000 unidades.
O “baixo clero” é constituído pela maior parte dos priores ou párocos (à volta de 3.500 em 1880)
dos reitores e dos coadjutores ou capelães (40.000). Ao “alto clero” pertencem, além dos cardeais, dos
arcebispos e bispos, o pessoal das cúrias diocesanas, o clero que dirige obras pias e os titulares de algumas
paróquias importantes.
Cerca de 90% do clero secular é de origem rural; enquanto os filhos da burguesia preferem as
ordens religiosas.
Ordinariamente, é o sacerdote local que cultiva as vocações entre as crianças que se destacam pela
piedade, bondade, entrega ao estudo do catecismo. Manda-os para uma escola livre, que funciona também
como seminário menor. Se um rapaz, ao fim dos seus estudos, sente vocação sacerdotal, entra num dos
seminários maiores, dirigidos ou por sacerdotes seculares ou mais frequentemente por congregações que se
encarregam disso como os Maristas, os Padres de Picpus, os Sulpicianos, os Lazaristas. Em 1880, 22
seminários estão nas mãos de sacerdotes seculares e 24 são dirigidos por religiosos.
A intenção da formação é ter sacerdotes virtuosos mais do que instruídos. Tudo está orientado para
a perfeição espiritual. No famoso seminário de Issy, a maior parte do dia está dedicada a práticas
espirituais: cerimónias litúrgicas, adoração eucarística, leituras espirituais, rosário. Em geral o estudo só
ocupa o seminarista umas quatro horas.
São também preparados pastoralmente para o ministério paroquial: como celebrar a liturgia,
administrar os sacramentos, resolver casos de consciência. Os livros e as aulas são em latim, um latim mais
bárbaro, que impede o exercício da língua viva (falada e escrita) dos contemporâneos. Isto é, sem dúvida,
uma desvantagem. Na filosofia, Kant, os idealistas, os positivistas nem existem. O pensamento moderno e
contemporâneo nem se conhece. O estudo da Escritura está em função da teologia. Os textos sagrados
devem demonstrar a verdade das teses tradicionais. A História da Igreja é apresentada em sentido
apologético. A História civil fica parada em 1789. As ciências, as matemáticas, a arte não se estudam. É
um ensino muito incompleto e pouco crítico. O corpo docente, em geral, é medíocre e pouco especializado.
Limita-se a explicar os manuais.
Como o clero, assim em geral também os professores estão ancorados ao passado. Vivem debaixo
de uma campânula de vidro, sem contacto com a cultura do seu tempo.
Neste ambiente cultural, a revolução de 1789 é “o mal”; é ignorada sistematicamente como são
ignorados as consequentes e profundas mudanças sócio-político-culturais que dela derivam. Um professor
de filosofia de Issy afirma que não conhece o sistema cartesiano e que não tem nenhuma intenção de
estudá-lo.
Os estudos críticos sobre a Sagrada Escritura são considerados daninhos e escandalosos. Existe a
convicção de que os jovens estarão tanto mais bem preparados para o ministério e para a luta contra os
erros do tempo quanto mais os ignorarem. Parece incrível! Os seminaristas, demasiado inquietos e curiosos
intelectualmente, são considerados suspeitos e são mal vistos pelos superiores. Não falta razão a Stendahl,
no seu feroz anticlericalismo, quando apresentava o seu Julien Sorel em “Vermelho e Negro” como mal
visto no seminário de Besançon porque era o melhor da classe. O muito empenho pelos estudos, mesmo
que sejam sagrados, é “um pecado de orgulho”. É necessária a mortificação do espírito contra toda a
novidade!
É um ensino decrépito que forma os seminaristas para combater Voltaire e os enciclopedistas, que
já morreram há tempos, e não os vivos Renan, os positivistas e os idealistas. A cultura seminarística tem
um século de atraso; só pode lutar contra os mortos e as nefastas consequências que deixaram. Para os
contemporâneos está desarmada. O medo da contaminação transforma-se em prejudicial falta de
preparação, em alienante separação da cultura e dos intelectuais do tempo. E. M. de Vogüe escrevia com
subtileza: “O protesto teológico continua a combater os princípios que triunfaram em 89, mas persegue-os
em diligência, enquanto eles dispõem dos caminhos de ferro”.531 Mons. Meignan, um dos poucos bispos
531
A. Dansette, Histoire religieuse, 378.

115
abertos e previdentes do seu tempo, afirma: “Se a religião não fosse divina, já teria sido esmagada há
tempos pelo calcanhar da nossa ignorância”.532
Esta era a situação também no princípio do século, quando da restauração. Recordemos o duro
juízo de J. M. de Lamennais: “Nunca o clero, no seu conjunto, foi tão ignorante como é hoje e, por sua vez,
nunca a verdadeira ciência lhe foi tão necessária”.533
Temos o testemunho pessoal de Renan: “A educação que recebi [no colégio-seminário menor de
Trègnier depois de 1830] era a que se dava dois séculos antes nas mais austeras confrarias religiosas”.
Passando depois ao Seminário de S. Sulpício, o centro intelectual mais elevado do clero, pareceu-lhe
“separado do tempo, como se o rodeassem três mil léguas de silêncio”.534
Como no tempo da restauração, assim também durante a Terceira República nos últimos decénios
do século, os sacerdotes jovens são “admiráveis pelas suas virtudes” e boas qualidades. Renan podia
escrever como tinha feito nas suas Recordações: “Passei treze anos da minha vida nas mãos dos sacerdotes
e em todo esse tempo não vi sequer a sombra de um escândalo”.535
A falta de cultura é particularmente grave no baixo clero. O sacerdote da aldeia lê o breviário,
celebra os ofícios religiosos, prepara a pregação dominical, ensina o catecismo às crianças, visita os
doentes, cultiva a sua horta, o seu pequeno jardim e faz os seus exercícios espirituais. Os sacerdotes da
cidade ocupam-se principalmente da beneficência, levam uma vida espiritual elevada, porém também eles
não têm gosto pelo estudo e, no ministério paroquial, não tocam nos livros. Na realidade, os livros
apropriados são poucos excepto os espirituais e de oratória.
Com os fiéis, o sacerdote segue o método que empregaram com ele: faz que as crianças aprendam
de cor o catecismo. Mais difícil é falar e interessar aos adultos; quase impossível ou impossível mesmo
mover os indiferentes ou insinuar a dúvida nos incrédulos. A palavra do sacerdote não tem mordente para o
que ouve as vozes modernas da margem oposta.
O jovem sacerdote não está preparado para resolver o muito actual e velho contraste entre a Igreja e
a cultura-sociedade nascida da revolução. Está perdido, inerme, num mundo que não se sente preparado
para enfrentar; e constata com tristeza: “Os que vêm ouvir-nos à igreja são poucos e pouco inteligentes;
suportam-nos porque a ignorância não lhes permite julgar-nos”.536

AS ASPIRAÇÕES DE LEÃO DEHON

Que o nível cultural do clero francês fosse em geral decadente, ninguém podia negá-lo. Não eram
porém muitos a preocuparem-se com isso. Deste daninho vazio cultural preocupa-se e é plenamente
consciente Leão Dehon.
“O clero de França restabeleceu a sua organização depois da revolução. Providenciou às
necessidades do ministério. Chegou a hora de dedicar os seus melhores membros aos estudos. É urgente. A
Igreja não está preparada para o combate... Depois da era dos mártires (sob a revolução) deve chegar a hora
dos doutores”.537
Deste grave problema, Leão Dehon tinha discutido longamente com Mons. Dupanloup, com o P.
Gatry, com Mons. Mermillod, com o cardeal Simeonis, com o P. Sauvé e, especialmente, com o P.
D’Alzon, e depois com Mons. Hautcoeur. Os erros que havia que combater como novas heresias eram o
naturalismo, o liberalismo e o galicanismo sempre renascente.
Leão Dehon fazia suas as “Considerações do sistema filosófico de Lamennais” escritas por
Lacordaire. “Agora que a Igreja se organizou, deve restaurara as ciências religiosas se não quiser que
aumentem os gravíssimos perigos que já experimenta. Há uma multidão de espíritos flutuantes que não
sabem como levar a cabo a sua actividade. Estão inadaptados ao ministério porque Deus lhes deu outra
vocação. Procuram em vão um caloroso ambiente cultural onde o seu ardor se possa expressar, purificar e
532
A. Dansette, Histoire religieuse, 378.
533
A. Dansette, Histoire religieuse, 189.
534
A. Dansette, Histoire religieuse, 189.
535
A. Dansette, Histoire religieuse, 378.
536
A. Dansette, Histoire religieuse, 379.
537
NHV VI, 115-120.

116
empregar em tarefas de estudo segundo a visão católica; ao contrário elanguescem ou exaltam-se
isoladamente ou sentem-se morrer sem nenhum proveito para Deus”.538
São considerações que os homens mais abertos do clero francês ponderavam, seriamente
preocupados com o futuro do catolicismo na França.
Para o renascimento dos estudos eclesiásticos, Mons. Frayssinous (1763-1841), bispo de
Hermópolis, grande professor da universidade, e Mons. Quelen (1778-1839) tinham tentado fundar um
instituto de ciências sagradas e o cardeal Luís de Rohan (1778-1883), arcebispo de Besançon, tinha
destinado por testamento bens para este fim. Foram tentativas meritórias, porém sem um verdadeiro
sucesso.
Na Igreja de França havia uma profunda divisão especialmente sobre o ensino da filosofia. Além
disso faltava o culto das ciências.
Leão Dehon continua, citando Lacordaire: “Quem poderá dizer o prejuízo que sofremos? A nossa
vontade flutua entre os nossos bispos imóveis sentados nos seus tronos e os homens que se fascinam com a
magia da sua cultura pessoal. Estamos bamboleados entre a nossa necessidade de estudos profundos e o
desespero de não consegui-los. Desejamos a união, mas ela já está debilitada nos seus fundamentos.
Sentimos a necessidade de um bem e é impossível realizá-lo. Estamos dominados pela desconfiança, as
suspeitas, o desânimo e, entretanto, um século torna-se adulto a nosso lado, às vezes cheio de ameaças, às
vezes olhando para Deus com formidáveis esperanças... E nós, em lugar de instruí-lo, comportamo-nos
como proscritos, subjugados pelas disputas de que não sabemos de que nos admirar mais, se do seu
fascínio ou do seu anúncio de desgraças”.539
A citação tem o mérito de nos revelar o descontentamento espiritual e psicológico dos membros
mais importantes do clero francês sobre o urgente problema da cultura.
Leão Dehon conclui que os meios para resolver o problema são dois: fundar universidades católicas
em França e elevar o nível dos estudos nas ordens religiosas.
Para ele a sede segura dos estudos está em Roma. Cita o caso do P. Jacinto Loyson, de Mons.
Maret, do P. Gratry. Como bom ultramontano não tinha falta de razão.
Depois de apresentar uma lista de problemas de grande actualidade que tinham que ser
aprofundados, constata, enquanto escreve as Memórias de 1886 em diante, que as universidades católicas
foram fundadas (em Paris, Lille, Angers, Lyon, Toulouse, depois da lei de 12 de Julho de 1875 sobre a
liberdade do ensino superior), a filosofia e a teologia foram renovadas por Leão XIII com o relançamento
da Escolástica. O grande Papa criou aquele movimento de estudos nas grandes ordens que Leão Dehon
tinha desejado. Rejuvenesceu e organizou em Roma as grandes escolas teológicas de S. Tomás, de S.
Boaventura, de S. Anselmo. O movimento propaga-se também no estrangeiro. “Os congressos científicos
de católicos foram organizados por Mons. D’Hulst. Pode-se considerar realizada a obra dos estudos”.540
Tudo aquilo que Leão Dehon tinha desejado e projectado para o apostolado da cultura no campo
dos estudos superiores, chegou a ser uma realidade sem a sua colaboração. Será, sem dúvida, um
apostolado em que a sua Congregação terá de comprometer-se com amor.

SÓ PARA FAZER A VONTADE DE DEUS

Antes de sair de Roma a 1 de Agosto de 1871, Leão tinha feito, de 26 a 30 de Julho, um retiro para
a escolha da sua vocação sob a direcção do P. Mauron, Superior Geral dos Redentoristas. Pesando os prós e
os contra inclinava-se para a obra dos estudos superiores, porém o P. D’Alzon, como pessoa, deixava-o
inquieto. “Estava acostumado a mais calma, a maior vida interior . O meu ideal de vida interior era o P.
Freyd. Apesar de tudo decidi entrar nos Assuncionistas. Permaneciam porém algumas objecções. Via, com
efeito, que tanto o P. Mauron como o P. Freyd me davam o seu consentimento com certo pesar”.541

538
NHV VI, 122.
539
NHV VI, 123-124.
540
NHV VI, 117-118.
541
NHV IX, 42-43.

117
Tinha chegado o momento da decisão. Leão sentia atractiva a vida religiosa, via a necessidade para
o clero e os católicos de França de um ensino superior cristão. Conhecia os projectos do P. D’Alzon. Por
tudo isso orientou-se para os Asuncionistas.
Todavia interrogava-se: os projectos do P. D’Alzon tinham boa oportunidade de se realizarem?.
Teria a possibilidade de conservar a vida interior adquirida em Roma? Leão pedia conselho a muitos;
porém, para ele, decisivo só podia ser o parecer do P. Freyd. Este hesitava. Queria estar certo da vontade de
Deus.
O P. D’Alzon não acabava de insistir. “Bendito seja Deus que me manda uma ajuda como vós...;
vinde a Nîmes no mês de Outubro...”; “espero-vos para o início de Outubro...”. “Havia um abismo entre o
temperamento do P. Freyd e do P. D’Alzon”, anota o P. Dehon nas Memórias.542
Entretanto continuava a preparação para entrar nos Assuncionistas. Leão, durante as férias de verão,
tinha visitado a universidade católica de Lovaina. Tinha falado com vários responsáveis e professores para
se fazer uma ideia de como estavam organizadas as diferentes faculdades, como se desenvolviam os cursos,
os exames, quais eram as condições económicas, como estava organizada a vida dos estudantes internos,
como se fazia a selecção de professores...; um pequeno inquérito feito conscienciosamente para ficar
informado sobre a complexa organização de uma universidade. Escreve, de facto, ao P. Freyd que está a
sentir-se um pouco desanimado, que se sente só, sem conselho e sem director em circunstâncias penosas e
com novas hesitações sobre a sua partida para Nîmes.543
Voltou de Lovaina persuadido da necessidade das universidades católicas em França e mais
persuadido ainda de que a organização de uma universidade não pode ser obra de uma única congregação
religiosa, mas que exige a colaboração do Episcopado. Portanto, o P. D’Alzon e a sua Congregação só
poderão realizar uma obra de preparação. Deve intervir também a Santa Sé para os professores de teologia.
É um grande serviço à Igreja de França, sem dúvida, porém sempre e só algo de passageiro; depois
caminhará sem eles. “ É prudente então que, para ajudá-los nesta preparação... comprometa pessoalmente
toda a sua vida?
Leão sabe como é feito. Se vai para Nîmes, ser-lhe-á muito difícil afastar-se. Por outro lado, com o
P. D’Alzon, comprometeu-se a ir por volta de 5 de Outubro de 1871. Pode ainda voltar atrás, desde que o
P. Freyd lhe dê uma decisão quanto antes. Tenha em atenção que os Assuncionistas, embora devotos de
Roma, estão dedicados mais à acção e ao estudo e o P. D’Alzon quer que ele faça apenas dois meses de
Noviciado.
Considerando toda esta situação, compreende-se que Leão, no momento de partir, não encontre paz,
tanto mais que é a obra (dos estudos superiores) o que o atrai e não a Congregação. Ora também a obra
revela-se incerta. “Sentia terríveis angústias”.544
Além disso tinha recebido a 30 de Setembro de 1871, uma carta do P. Désaire bem pouco
estimulante, em que o amigo lhe dizia que “preparasse bem as batarias” para ter a coragem de assumir só
aqueles compromissos aos quais tinha decidido dedicar a sua vida, ou seja a obra dos estudos superiores.
Segundo o P. Désaire, o P. D’Alzon é certamente “um homem de Deus...; porém põe não sei que glória em
comprometer-se e a ser comprometedor, como ele diz. Tenho a impressão que vos assustareis... Vinde e
vede. Depois examinareis a situação antes de assumir compromissos...”545
O P. D’Alzon era um homem +profundamente sobrenatural, possuía o culto da verdade dita com
clareza e tinha desdém, quase depreciativo da prudência terrena. Era capaz de expressões “furibundas” e de
“ternuras excessivas”. É mais que compreensível o incómodo de Leão Dehon habituado ao sereno
equilíbrio do P. Freyd.
Os temores de Leão Dehon eram mais que fundados. Se tivesse entrado nos Assuncionistas, a sua
sorte talvez tivesse sido idêntica à do P. Désaire. A 1 de Março de 1873, escrevendo a seus pais, diz-lhes
que acolheu durante 3 dias o P. Désaire: “Abandonou a Congregação da Assunção, tendo constatado, como
eu, que não podia realizar o que esperávamos sobre os estudos superiores”.546

542
NHV IX, 64.
543
Carta ao P. Freyd, de La Capelle, a 25.11.1871 (AD, B 36/2).
544
NHV IX, 65.
545
NHV IX, 65.
546
NHV IX, 45.

118
Tinha-se colocado a serviço do Arcebispo de Paris, sem o P. D’Alzon o saber, não tendo a coragem
de enfrentar a sua forte personalidade.
Entretanto, a inquietação interior de Leão Dehon tinha-se tornado insuportável. Não podia partir em
tais condições de espírito. Convencido de que as suas angústias se deviam à acção da graça, telegrafou ao
P. Freyd, pedindo-lhe uma decisão definitiva.
“Recebi este telegrama que fixou a orientação de toda a minha vida”: “Roma, 1 de Outubro de
1871, hora 5,30. As vossas dúvidas são legítimas. Preferiria que abandonásseis o compromisso se for
possível. Segue carta. Freyd”.547
Leão já tinha recebido a autorização do seu bispo, Mons. Dours, para ir para Nîmes, não obstante a
grande necessidade de sacerdotes da Diocese de Soissons. Agora, seguindo o conselho do P. Freyd, Leão
escreveu a 3 de Outubro de 1871 a Mons. Dours, colocando-se à sua inteira disposição.
A 3 de Novembro recebe o seu destino: coadjutor em S. Quintino. Leão ia só para fazer “a vontade
de Deus... Era justamente o contrário do que tinha desejado desde havia anos: uma vida de recolhimento e
de estudo. Fiat!”.548
A decisão do P. Freyd tinha sido confirmada pelo P. Mauron, Superior Geral dos Redentoristas,
com quem Leão tinha feito os exercícios espirituais antes de sair definitivamente de Roma para conhecer
melhor a vontade de Deus. “Obedecia, portanto, aos meus directores. Que outra coisa podia fazer?”.549
A verdade é que o P. Freyd não acreditava no resultado das universidades católicas na França nem
as desejava, porque temia que se convertessem em focos de galicanismo. “Pensava que o seminário francês
de Roma era suficiente”.550Nisto equivocava-se e a história não lhe daria razão.
Para Leão Dehon os motivos que determinaram a grande renúncia foram:
1) a falta em Nîmes daquela direcção espiritual que tanto bem lhe tinha feito em Roma;
2) a dúvida sobre a perseverança do P. D’Alzon na organização de uma obra de estudos com o
provável fracasso;
3) a possibilidade de realizar a mesma obra no Norte, pelo empenho do Ver. Hautcoeur;
4) as grandes e angustiantes dúvidas experimentadas enquanto se preparava para ir par Nîmes.
A 16 de Novembro de 1871, Leão Dehon assumia as funções de sétimo coadjutor na basílica de S.
Quintino.

547
NHV IX, 66.
548
NHV IX, 70-71.
549
NHV IX, 68.
550
NHV IX, 68-69.

119
CAPÍTULO 9

Coadjutor em S. Quintino

Coadjutor em S. Quintino – Os colegas de vicariato – Vida de coadjutor – Situação sócio-religiosa de S. Quintino – O Patronato de S. José – “Le
conservateur de l’Aisne” – Importância do Patronato – A vida do Patronato – Um trabalhador audaz e incansável

COADJUTOR EM S. QUINTINO

A 7 de Novembro de 1871, Leão Dehon, na companhia do Rev. Petit, pároco de Buironfosse, seu
grande amigo, faz a primeira visita a S. Quintino.
O arcipreste da basílica, D. Luís Leonardo Gobaille, recebeu-o com bondade. Era um santo
sacerdote, um asceta, completamente incapaz de ser o pastor de uma cidade industrial como S. Quintino. O
seu lema era “Deus somente”. Dirigia muitas almas. Leão Dehon escolhê-lo-á como confessor. O jovem
coadjutor sentiu-se muito mais edificado pela santa vida do arcipreste que pela sua direcção espiritual. O
verdadeiro director espiritual de Leão Dehon será, até a sua morte (6.3.1875), o P. Freyd. Gobaille tinha 63
anos em 1871.
A 16 de Novembro de 1871, deu início Leão Dehon ao seu ministério na basílica de S. Quintino
como sétimo coadjutor. Era tudo o contrário do que por tantos anos tinha desejado: uma vida de estudo, de
recolhimento, de oração. Parecia inútil a sua longa preparação intelectual, inúteis os seus quatro
doutoramentos. Humanamente falando não era certamente uma valorização, mas até podia considerar-se
um fracasso. Tudo isto está bem expresso por um seu amigo de seminário, D. Guilhen: “Parece-me que nos
fazeis falta; não me habituo à ideia de que sejais coadjutor em qualquer lugar. Vós, coadjutor! Parece-me
ridículo. Mas, como, Senhor, Leão Dehon não merece algo de melhor?”.551
Além da surpresa, há um verdadeiro sofrimento. Experimentava-o Leão Dehon no coração e
exprime-o com o seu habitual pudor: “Era absolutamente o contrário do que tantos anos tinha desejado”.552
Colhemos um precioso eco deste desconforto e sofrimento interior numa carta que lhe escreve um
seu amigo, D. Bougouin: “S. Quintino estava longe das vossas previsões, como também a vida que aí
deveis levar, e eis, querido amigo, a aprendizagem que nosso Senhor vos faz começar. A uma primeira
leitura da vossa carta experimentei um sentimento de tristeza. Pensei nos vossos projectos para o futuro, no
vosso grande desejo de bem, de empenhar-vos numa nova obra, mas muito útil [o apostolado dos estudos
superiores] e acreditei poder medir um pouco, mediante o sentimento que eu próprio experimentava, a
profunda pena, ousarei quase dizer, a ferida do vosso coração... Conheço demasiado bem o vosso coração e
creio não vos entristecer se vos disser que participei no vosso sofrimento interior. Mas já que foi evidente
que a mão do Senhor não vos levava a Nîmes, tanto melhor que a primeira impressão em S. Quintino tenha
sido favorável”.553
“A mão do Senhor...” tinha guiado Leão para S. Quintino, segundo o amigo Bougouin; “só a
vontade de Deus...”. Segundo o P. Dehon: “Fui enviado para S. Quintino só pela vontade de Deus”. 554 D. J.
Dugas, seu amigo de seminário e de partida para o noviciado dos jesuítas, tinha-lhe escrito a 9.11.1871:
“Vós não fazeis a vossa vontade; porém congratulo-me convosco de que façais a vontade de Deus”.555
Com estas disposições interiores, centradas no “fiat” à vontade de Deus, Leão começa a sua vida de
coadjutor na basílica de S. Quintino. Uma renúncia dolorosa no plano humano é uma boa “aprendizagem
sob a guia de nosso Senhor”, seguundo o amigo Bougouin; mais ainda, é um amadurecimento no plano
551
Carta de 9.8.1877 (AD, B 17/6).
552
NHV IX, 71.
553
Carta de 19.11.1871 (AD, B 17/6).
554
NHV IX, 70.
555
AD, B 17/6.

120
espiritual, com aquela disponibilidade à vontade de Deus que constituirá o centro da personalidade
sacerdotal e religiosa do P. Dehon.
Leão vive em S. Quintino com os outros coadjutores numa casa velha. Têm um certo nível
espiritual e intelectual. O bispo favorece-o pela grande influência que a cidade de S. Quintino exerce sobre
diocese. S. Quitino é capital do departamento de Aisne. Antiga capital dos Gauleses Veromanduenses,
chamada pelos romanos “Augusta Veromanduorum”, ocupa uma posição de grande importância
estratégica, dominando uma estrada de acesso, em caso de guerra de invasão de França. Foi conquistada
em 1557 pelos espanhóis sob comando de Manuel Filiberto de Savoia, depois de um famoso assédio e uma
grande batalha, o mesmo que aconteceu por parte dos alemães na guerra de 1870 e durante a primeira
guerra mundial de Agosto de 1914 a Outubro de 1918. Durante Idade Média teve uma importância
religiosa notável pelos seus mosteiros, pela sua basílica de estilo gótico, começada pelo conde Raul, filho
de Hugo o Grande em 1114, com trabalhos que duraram três séculos e em especial pelas peregrinações ao
túmulo de S. Quintino, mártir do terceiro ou quarto século, que deu o nome à cidade a partir do século IX.
Deve a sua prosperidade económica principalmente à indústria manufactureira.556
Nesta cidade dá início ao seu apostolado Leão Dehon, alojado no sótão do vicariato, do qual
contempla o telhado da basílica. Fica aí só poucos meses até conseguir um quarto maior e mais cómodo, o
de D. Mignot, nomeado pároco de Beaurevoir.

OS COLEGAS DO VICARIATO

Apresentamos agora os colegas de vicariato de Leão Dehon.


O mais ilustre é, sem dúvida, Eudósio Mignot, de 29 anos, nascido em Brancourt (Aisne) em 1842.
Recebeu boa formação intelectual em S. Sulpício, onde A. Le Hir, mestre de Renan, o iniciou nos estudos
bíblicos, enquanto J. B. Hogan, irlandês, lhe deu a conhecer o pensamento de Newman. Ordenado
sacerdote em 1865, percorrerá toda a carreira eclesiástica: professor, coadjutor em S. Quintino, pároco,
decano, vigário geral de Soissons, arquidiácono de Laon em 1877, bispo de Frejus e Toulon em 1890,
arcebispo de Albi a 7 de Dezembro de 1899, onde morreu a 18 de Março de 1918.
Foi um dos prelados mais abertos do seu tempo, excepcional e discutido.
Homem de vasta cultura, sobre tudo no campo bíblico, foi amigo de Vigouroux e escreveu o
prefácio do seu célebre “Dictionnaire de la Bible”. Estava ao corrente da exegese protestante e
racionalista, embora as suas preferências fossem pela exegese anglicana.
Espírito aberto, acolhedor, moderado, era um intelectual “progressista” e “conservador”, segundo as
exigências da fé católica. Com frequência mostrou-se demasiado “atrevido” ou demasiado liberal para o
seu tempo, isolado e a contracorrente em relação ao que pensava e queria a grande maioria do Episcopado
francês do seu tempo.
Não foi um precursor do ecumenismo, porque lhe bastava o irenismo; procurava estar em paz com
todos. Por isso foi acusado de bispo “republicano”, não querendo conflitos com o Estado. Passou por bispo
“social”, interessando-se pelos problemas sindicais, embora desaprovando a violência e as lutas sociais.
Foi um dos melhores defensores de “Le Sillon” de M. Sagnier, sem poder impedir a sua condenação
em 1910 por Pio X. Foi amigo de Loisy, demonstrando o seu interesse pelo pensamento do exegeta
excomungado. Desejou a justa modernização da Igreja, mas sem cair no modernismo. Foi evidente o seu
mal estar diante de certas orientações de Pio X e a sua atitude de condenação dos “integristas”. As suas
últimas palavras foram: “Deus julgará”.
Conservou sempre a confiança no futuro da Igreja e da fé, alegrando-se pelas duas “exigências do
espírito científico”. Muitos intelectuais católicos consideraram-no o bispo do seu coração.
Se o mais célebre dos contemporâneos de vicariato de Leão Dehon é Eudósio Mignot, o mais
popular e o mais ancião dos coadjutores é Félix Genty (72 anos). Encontra-se em S. Quintino desde 1835 e
aí permanecerá até a morte em 1889. É um bretão. Tendo saído do seminário aos 20 anos, por uma
casmurrice, tinha abraçado a carreira militar. Depois de um duelo que teve, sendo oficial, temendo perder a
556
Cf. “Sur l’Histoire locale de Saint-Quentin”, discurso feito por Leão Dehon para a distribuição de prémios no colégio S. João
a 30 de Julho de 1887 (AD, B 7/14).

121
alma, tinha voltado à vocação sacerdotal. Simples, bom, generoso, gozava de grande popularidade,
especialmente entre os operários. Chamavam-no: papá Genty. Pelo Natal e pela Páscoa, o seu
confessionário era assediado, pois tinha fama de ser um confessor muito compreensivo. Assim acontecia
também com os doentes que tinham um duro passado para reparar. Os seus funerais foram um triunfo, com
mais de cem sacerdotes e uma imensa multidão que não cabia na basílica.
Adolfo Mathieu (47 anos) é o segundo coadjutor, cónego desde 1871, e o verdadeiro responsável
pelos coadjutores. Inteligente, distinto, culto, de estatura imponente, é o padre das famílias abastadas.
Mostrou-se carinhoso com Leão Dehon ao qual foi muito útil pela sua grande experiência no ministério. À
morte de D. Gobaille (29.3.1875), sucedeu-lhe como arcipreste de S. Quintino de 1875 a 1896 e fez nomear
como segundo coadjutor e responsável do vicariato a Leão Dehon.
Carlos Geispitz (32 anos) “era um artista, hábil pianista e dedicava muito tempo à música”.557 Era o
mestre de coro da basílica.
Carlos Chedaille (28 anos) e ó o grande amigo de E. Mignot. “Saídos ambos de S. Sulpício, eram
distintos, literatos e ... galicanos”.558 Carlos Chedaille será durante muitos anos director da “Semaine
Religieuse” de Soissons e Laon.
Francisco Leleu (26 anos), de carácter um pouco rude, mas de bem sólida virtude... Director de
almas piedosas, muito mortificado na sua vida privada, com frequentes veleidades de entrar para os
capuchinhos.559
Estes eram os coadjutores da basílica de S. Quintino, que Leão encontrou pela primeira vez a 7 de
Novembro de 1871.
“Tinha o coração oprimido. O meu sonho tinha sido a vida religiosa e uma dedicação ao estudo; em
vez disso caía na agitação de um vicariato de cidade. Era preciso obedecer à Providência”.560

VIDA DE COADJUTOR

Leão Dehon, como novo coadjutor, fez as visitas da praxe às autoridades civis de S. Quintino.
Encontrou-se à vontade com os membros da conferência de S. Vicente, todos entregues às obras de
caridade, em especial o Sr. Julien, director de pensão, um tipo ardente de convertido que desprezava todo o
respeito humano; o Sr. Guillaume, modesto, doce e simples, que fazia o bem sem espalhafato; o Sr. Black,
católico de uma só peça, que tinha mandado gravar sobre a fachada da sua casa: “Meu Deus, meu rei e meu
direito”; o Sr. Alfredo Santerre, droguista, um santo homem vítima da sua própria generosidade, de quem o
P. Rasset escreverá a biografia: “Os milhões de passos que deu pelos pequenos e pobres estão escritos no
céu”;561 e muitos outros que Leão Dehon cita nas suas Memórias.
Com eles discute Leão Dehon sobre a situação religiosa de S. Quintino e sobre as iniciativas mais
urgentes. “Reflectia acerca do estado das almas que o arcipreste publicava no fim de cada ano: 8.000
comunhões pascais para a cidade (a paróquia da basílica conta com 30.000 almas); 65.000 comunhões de
devoção; 700 mortos por ano, dos quais 140 sem sacramentos; 600 nascimentos dos quais 120 eram
ilegítimos. Desde 20 de Novembro (1871) escrevia no meu Diário: “Faltam em S. Quintino, como meios de
acção, um colégio eclesiástico, um patronato e um diário católico”.562
No princípio do seu apostolado paroquial Leão Dehon tinha feito para si um pequeno regulamento a
que procurava ater-se fielmente. “A força dos hábitos do seminário sustentava-me e a graça de Nosso
Senhor não me abandonou”.563
A vida do sétimo coadjutor da basílica era bem pesada. Devendo celebrar a primeira missa durante
a semana, levantava-se habitualmente às 4,30 para poder fazer a meditação. Eram próprias do último
coadjutor: as missas a hora tardia, os funerais de quinta classe, os casamentos de quarta classe, a missa do
557
NHV IX, 78.
558
NHV IX, 78.
559
NHV IX, 78.
560
NHV IX, 79.
561
NHV IX, 82.
562
NHV IX, 82.
563
NHV IX, 79.

122
meio-dia dos domingos. “Jejuava quase cada dois dias (não se podia tomar nem um gole de água desde a
meia noite até à celebração da missa – nota do tradutor). Apesar disto a minha saúde conservou-se
perfeitamente. Pude observar inteiramente a quaresma sem tomar nada antes do meio-dia”.564
Os dias eram muito cheios: funerais, catecismo na igreja e nas escolas, confissões, visitas aos
doentes, preparação das homilias, etc. “Éramos 7 para 30.000 almas. Teriam sido necessários 30. Fazíamos
muito, mas era ainda nada em comparação com o que se deveria fazer”.565 Leão Dehon sofria por não poder
dedicar tempo suficiente ao estudo. É assinante de várias revistas e, como jornal diário, lia “L’Univers”,
fundado por Migne em 1833 e que chegou a ter importância nacional como sustentáculo do catolicismo
intransigente e ultramontano, com Luís Veuillot, de 1841 em diante. Suspenso de 1860 a 1867 pela sua
oposição à política italiana de Napoleão III, voltou a publicar-se, defendendo acerrimamente a
infalibilidade pontifícia e, depois de 1870, o legitimismo em favor do conde de Chambord.
A vida em comum no vicariato é agradável. Não faltam as festas e as brincadeiras. As discussões
chegam às vezes a tornar-se fortes entre Mathieu e Dehon por um lado, ambos fiéis leitores de L’Univers, e
Mignot-Chedaille por outra, contaminados pelo galicanismo e leitores de “Le Français”, um diário político-
literário católico liberal. As discussões fazem-se também sobre o Concílio, e então Leão tem ocasião de
demonstrar que a sua aljava está abastecida com argumentos frescos e de primeira mão.
As preocupações de Leão Dehon estendem-se sobre tudo à imensa paróquia da basílica de S.
Quintino, que abarca praticamente toda a cidade. Excluídas algumas famílias, amigas dos sacerdotes, a
imensa maioria dos habitantes vê o sacerdote raramente ou nunca. Escreve Leão Dehon nas Memórias:
“Não se podem fazer cidades cristãs com paróquias de 30.000 almas; é contra o sentido comum”.566
Mais adiante insiste sobre a mesma ideia e acrescenta: “O clero faz o serviço da Igreja, ocupa-se das
almas que vêm ao seu encontro, o resto vive no paganismo”,567 ou seja, na indiferença religiosa, sem ter
nada contra os sacerdotes. “Embora a população de S. Quintino não seja muito religiosa – escreve Leão
Dehon aos seus pais -, a nossa relação com ela não é por nada penosa. Geralmente é benévola e respeitosa
connosco”.568
Progressivamente Leão Dehon vai substituindo o ministério puramente sacramental por uma
pastoral integral onde o elemento humano, social e espiritual se completam reciprocamente.

SITUAÇÃO SÓCIO-RELIGIOSA DE S. QUINTINO

Em S. Quintino não havia aristocracia. A riqueza está nas mãos da burguesia: industriais,
comerciantes, proprietários de terras, magistrados, professionais livres: “Bons ricos, sempre dispostos a
contribuir com subscrições para as obras”; mas nem sequer sonham, ao lado do patronato, com o contra-
poder de uma organização democrática.
Leão Dehon entra logo em contacto com a burguesia e com o povo e recolhe, especialmente deste
último, as suas legítimas exigências. Parece-nos por isso útil analisar mais profundamente a situação social
da cidade para compreender o apostolado social que empreenderá o jovem coadjutor.
Em 1835, S. Quintino conseguiu o desenvolvimento industrial que existia antes da revolução. Então
tecia-se o linho, agora substituído pela lã e pelo algodão.569
564
NHV IX, 87.
565
NHV IX, 87-88.
566
NHV IX, 89.
567
NHV IX, 94.
568
Carta de 6 de Fevereiro de 1872 (AD, B 18/11).
569
Cf. A. Baticle, “Etat de l’industrie dans le département de l’Aisne entre 1868 et 1880, comparé à l’état actuel” in Memoires
de la fédération des société savantes des départements de l’Aisne, Chauny 1958, in G. Pross scj, Léon Dehon, 94 ss. Muito
superficialmente, a meu ver, Prélot afirma que as condições sociais em S. Quintino depois de 1871, ou seja, nos anos em que
Leão Dehon exerceu o seu ministério paroquial, eram fundamentalmente idênticas às que descreve Villermé num inquérito feito
em S. Quintino entre os operários das manufactureiras em Outubro-Novembro de 1835, ou seja 40 anos antes. Certamente as
horas de trabalho tinham diminuído; os salários, em parte, tinham melhorado; não se empregavam crianças menores de 8 anos; o
trabalho da lã era melhor que o do algodão e, pouco a pouco, tinham aparecido associações e sindicatos operários. Apesar de
tudo isto, a situação dos assalariados era de grande miséria (cf. R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 45-52).

123
S. Quintino é o centro industrial do Aisne, com a maior concentração operária. Em particular, os
teares de algodão dão trabalho a mais de 100 pequenas aldeias em volta de S. Quintino. O trabalho faz-se
ordinariamente em locais insalubres, a temperaturas constantes para que o fio conserve a mesma tensão e
não se parta.
Os operários, muito mal pagos, preferem o trabalho mais bem remunerado da lã. Em S. Quintino há
também três fábricas de malhas e cinco de tule. Outras indústrias de S. Quintino, não têxteis e menos
importantes, são seis fundições, duas fábricas de óleos combustíveis, alguma destilaria, uma fábrica de
açúcar, uma de calçado, uma de ladrilhos, etc.
O horário de trabalho é duro. De 1871 e 1883 desencadeiam-se várias greves. As indústrias têxteis
aderem a elas só depois de 1878. A exigência é sempre a mesma: reduzir o horário de trabalho de 12 para
10 horas; aumento dos salários em proporção das horas de trabalho; estabilidade dos salários contra a
vontade dos patrões em reduzi-los; recusa do regulamento demasiado severo da fábrica.
Em geral, trata-se de greves breves e pouco violentas. Porém houve algumas muito longas; de 13
dias em 1879 entre os tecelões e fiadores pela redução do horário de trabalho de 12 para 10 horas, com o
mesmo salário; em 1883 de 32 dias e em 1884 de 89 dias, São greves que acabam em fracasso; porém que
obtêm um resultado positivo: obrigam os operários à solidariedade.
Nos anos seguintes houve outras greves, com manifestações violentas, levantamento de
barricadas, danos nos edifícios e intervenção da força pública. São greves que respeitam especialmente
os têxteis. Por exemplo, em 1886, organizou-se uma greve geral com o fim determinado de redução do
dia de trabalho para 8 horas, igualdade de salário em todas as fábricas de tecidos da cidade e a supressão
das multas. Depois de 12 dias de luta, os operários vêem-se obrigados a renderem-se, vencidos uma vez
mais, porém desejosos de retomar a luta. De facto, depois de um certo tempo, volta a greve. Dura 17
dias e alguns patrões vêm pactuar com os trabalhadores.
De 1883 a 1889, as greves são principalmente defensivas. Os operários obtiveram certas regalias
e querem conservá-las contra os patrões que querem aboli-las ou limitá-las.570
Todas estas greves requerem certa organização e portanto a presença de sindicatos e associações
operárias, impensáveis só alguns decénios antes. A primeira alusão à existência de um sindicato em S.
Quintino remonta a 1877. A sua finalidade é dar aos trabalhadores consciência da sua força social,
apoiar e coordenar acções de luta. Infelizmente, os documentos relacionados com a história sindical de
S. Quintino foram perdidos. Sabemos apenas que os sindicatos dos patrões são quatro, dos quais o
primeiro apareceu em 1873. São apolíticos. Os sindicatos dos trabalhadores são mais numerosos.
Desenvolvem a sua mais intensa actividade entre 1885 e 1895. Os sindicatos de matiz socialista são
hostis ao governo republicano e mostram grande actividade em tempo de eleições políticas. Outros
sindicatos operários não são políticos. O mais forte é o dos têxteis com 800 inscritos.571
Apesar de tudo isto, a situação social dos trabalhadores é de grande opressão e de miséria. O
trabalho das manufactureiras é pesado, deprimente por causa do calor que é tanto mais intenso quanto
mais fino é o fio que se fabrica. Passa-se dos 15-20 graus até aos 34, 37 e, inclusive até aos 40. As
ocasiões de imoralidade são evidentes pela promiscuidade dos sexos, das idades e do vestuário usado
por causa do calor. A saúde sofre. Muitas mulheres jovens resistem algum tempo mas depois vêem-se
obrigadas a deixar aquele trabalho demasiado duro e intenso, com a saúde arruinada.
As mulheres e as raparigas, que trabalham nas manufactureiras, vivem às vezes juntas, ocupando
em conjunto um pobre quarto na cidade, dormindo sobre miseráveis enxergas.
Não há nenhuma vigilância da polícia. Os costumes estão muito relaxados, muitos casais são
irregulares e entregues ao vício, especialmente entre os jovens. Há mulheres encarregadas de recrutar
raparigas para os bordéis de Paris.
A embriaguez é uma autêntica praga. Bebe-se Domingo e segunda-feira. As tabernas são
frequentadas por rapazes de 15 anos.

570
Cf. M. Taisne, Les grèves à Saint-Quentin (1871-1914), travail d’études et de recherches, Amiens 1976, in Pross, o.c. 113-
116.
571
Cf. Pross, o.c., 109-113.

124
No campo, com os têxteis a domicílio, a situação é melhor que em S. Quintino-cidade. Todavia,
se uma família não tiver mais entradas do que as dos têxteis, as condições são bastante miseráveis,
embora melhores do que em Lille e em Mulhouse.
Não é preciso pensar, depois destes impressionantes detalhes, que a situação de S. Quintino e
seus arredores seja excepcional; de outros estudos e outros inquéritos resulta que a situação da classe
operária era idêntica ou até pior no resto da França.
Completemos a situação social com a política nos últimos 70 anos do 800. Sabe-se que as
situações sociais só lentamente se modificam em conquistas políticas. Em S. Quintino passa-se do
domínio dos liberais, que detêm o poder sem oposição até 1870, à partilha do poder político com os
republicanos de esquerda, os boulangistas, os conservadores revisionistas e especialmente os socialistas
que, nos finais do século, avançam cada vez mais até uma vitória segura.572
Neste contexto sócio-político insere-se a situação religiosa que já conhecemos em parte. Leão
Dehon tem dela uma consciência cada vez mais viva. Numa carta a seus pais de 2 de Dezembro de 1872
escreve: “Vejo de perto a miséria da sociedade nas confissões, nas visitas aos doentes, nas escolas. Trato
de oferecer algum remédio, especialmente às misérias morais”. As estatísticas de 1872 dão para S.
Quintino uma população de 34.811 habitantes (em 1885 serão 45.836 e em 1900, 48.646). Dos 34.811
habitantes, 34.211 são católicos, 464 protestantes, 124 judeus, 15 sem religião. Os assalariados são cerca
de 30.000.573
Além da basílica, nos subúrbios há duas paróquias, a de S. João e a de S. Elísio.
A prática religiosa é escassa na árida linguagem das estatísticas citadas.
A quase totalidade dos patões não tem noção alguma dos seus deveres para com os
trabalhadores: na sua velhice, nas suas enfermidades e no caso de numerosa prole que reduz a família à
miséria e à fome. Os salários dos trabalhadores de S. Quintino sobem ou baixam segundo o mercado,
“como o preço de um escravo”. Nenhuma instituição protege o trabalhador.
Os operários têxteis não trabalham aos domingos. Os trabalhadores dedicam as manhãs de
domingo ao descanso ou às suas pequenas hortas; a tarde, a beber.
Na indústria da construção a situação é ainda mais penosa. Trabalha-se ao domingo e bebe-se à
segunda, terça e também à quarta-feira.
Os aprendizes têm que limpar as oficinas aos domingos de manhã.
As habitações são fétidas, verdadeiras barracas que ocupam vastos espaços da cidade.574
Há duas instituições de assistência. Há também uma Caixa de Poupança; mas os dinheiros
depositados pelos trabalhadores são escassos.
Durante o inverno uma terceira parte da cidade vive de beneficência.
Os trabalhadores, na igreja, não se os vê. Lêem “La Lanterne”, ou outros folhetos locais que
difundem o ódio à sociedade, aos patrões e, pelo menos, o descontentamento em relação ao clero que
não faz o suficiente por eles.
A conclusão de Leão Dehon é de dura condenação para uma sociedade “podre” e de
incondicional ajuda para “todas as revindicações operárias que têm fundamento justo”.575
Encarregado do sermão natalício na basílica, Leão Dehon fala corajosamente, sem se preocupar
das consequências, das muitas injustiças sociais, que Leão XIII denunciará depois nas suas encíclicas,
especialmente relacionadas com a “organização deplorável do mundo do trabalho e dos negócios”.576
Reflectindo 25 anos mais tarde sobre aquele sermão, quando escreve as Memórias, afirma:
“Penso hoje que não deveria ter feito aquele discurso ou, ao menos, usar aquele tom... Estava demasiado

572
Cf. R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 45-52.
573
NHV IX, 136; cf. R. Prélot o.c., 44.
574
No interior destas barracas há “algum trapo, uma esteira que serve para toda a família, duas ou três cadeiras mais ou menos
estragadas e uma mesa coxa” (NHV IX, 92). Uma descrição impressionante da vida diária numa sociedade industrial como S.
Quintino no 800, totalmente concordante com a que faz o P. Dehon nas suas Memórias, pode ler-se no livro de Pierre Pierrard,
La vie quotidienne dans le Nord au XIX siècle (Artois, Flandres, Hainaut, Picardie), Hachette, Paris 1976. S. Quintino faz parte
da Picardia.
575
NHV IX, 92.
576
NHV IX, 102.

125
influenciado pelo periódico “L’Univers”.577 São inconvenientes que acontecem quando um sacerdote
vive muito do seu jornal e não suficientemente do Evangelho.
O sermão foi, de facto, muito polémico. D. Gobaille repreendeu-o paternalmente; todavia
converteu pelo menos uma pessoa, provavelmente um patrão que todos os anos pelo Natal expressava o
seu agradecimento a Leão Dehon com um cabaz de ofertas e uma boa quantia para as suas obras.578

O PATRONATO DE S. JOSÉ

Como coadjutor, Leão Dehon devia dar o catecismo às crianças nas escolas locais. Ia terças e
sextas-feiras durante meia hora. “Punha nisto todo o meu zelo. Era um catecismo de perseverança com
exemplos e histórias. Escutavam-me... Teria sido necessários dar assistência às crianças depois da
escola, fazer patronatos, círculos”.579
Cada três meses as crianças confessavam-se. Leão Dehon convenceu alguns a fazerem-no com
mais frequência. Assim o orientava a Providência para a fundação da primeira das suas obras: o
Patronato de S. José.
Precisamente para estar perto dos meninos das escolas, para ajudá-los a perseverar na prática da
vida cristã, para instruí-los na religião, favorecer a sua piedade e a frequência dos sacramentos, após três
meses como coadjutor, começou a reunir alguns no seu quarto, ao domingo depois das Vésperas.
“Consultavam livros com desenhos e brincavam um pouco. O Patronato acaba de começar”.580 Todavia
o quarto de um coadjutor não era o lugar ideal. O Sr. Julien, director de um lar e presidente da
Conferência de S. Vicente, amigo do P. Dehon, colocou à sua disposição o pátio enquanto os alunos do
lar estavam a passeio. “A 23 de Junho (1872) começamos regularmente. É uma data na minha vida. Os
rapazes brincavam duas horas no pátio, depois fazia-lhes uma palestra numa sala de estudo sobre um
tema concreto: a história de um santo, recordações da Terra Santa, de Roma, etc.”.581
No mês de Agosto (1872), Leão Dehon aluga para os seus rapazes um campo da rua Des
Bouloirs, com direito de compra, por 20.000 francos, pagáveis em dez anos. O aluguer fez-se em nome
de D. Gobaille, o arcipreste. Leão Dehon começa depois um edifício para ter uma capela e algumas salas
de reunião.
Quanto aos princípios do Patronato é necessário acompanhar a correspondência de Leão Dehon
com os seus pais.582 É contemporânea e muito mais exacta que as Memórias. O custo da construção foi
orçamentado em 15.000 francos. Na realidade gastaram-se 19.000 e, em Março de 1874, estavam ainda
por pagar 6.000 francos.
O jovem coadjutor lançou mãos à obra, com colectas e rifas, ajudado por algumas senhoras de S.
Quintino. Em Junho de 1875 a construção está inteiramente paga, como também o mobiliário junto aos
gastos correntes por um total de 30.000 francos. Faltam ainda outros 20.000 francos para a aquisição do
terreno. Leão Dehon não tem rendimentos pessoais. Da correspondência com os seus pais, sabemos que
recebe deles cada ano uma ajuda de 4.000 francos, soma não indiferente, que numa carta de 1 de
Dezembro de 1873 propõe seja reduzida para 3.600 francos.
Entretanto os jovens aumentam. Em fins de Agosto de 1872 são já 75; um mês depois são 150.
As reuniões são frequentadas por 125 a 130 adolescentes e jovens. Pelo Natal de 1872 são já 200. A
grande sala já está pronta e pode enfrentar o inverno; está coberta e envidraçada; falta só o pavimento 19
de Janeiro de 1873, o Bispo de Soissons, Mons. Dours, é recebido nesta grande sala do Patronato já
quase acabada.
Os primeiros tempos do Patronato foram heróicos. Durante a semana Leão Dehon acompanhava
os trabalhos. Domingo, vários leigos ajudavam-no a entreter os rapazes, muitos dos quais já se tinham
confessado ao Sábado. “Nem todos os rapazes perseveraram, - anota o P. Dehon nas Memórias – porém
577
NHV IX, 102-103.
578
Cf. NHV IX, 102-109.
579
NHV IX, 96.
580
NHV IX, 128.
581
NHV IX, 129.
582
Cf. Ad, B 18/11.

126
a maior parte conservou um fundo de fé que será a sua salvação e alguns ficaram cristãos
convencidos”.583
O Patronato desenvolver-se-á com várias iniciativas. Será a obra que o P. Dehon legará a E.
Quintino, “enquanto todas as minhas atractivas me levavam para a vida religiosa... Temia perder a vida
interior na actividade do ministério e das obras”.584 O Patronato é bem visto na cidade. A 31 de Janeiro
de 1873 escreve aos seus pais: “Verifiquei que esta fundação continuará a dar-me uma certa influência
da qual me poderei servir para fazer o bem”.585 De facto quando o Patronato organiza festas com música
e canto ou récitas teatrais, o grande salão enche-se de gente de quem sempre se recebem ofertas. A 29 de
Abril de 1873 escreve aos seus pais que já pagou 2.000 francos para as construções.586
Entretanto chegam numerosas ofertas para a pequena capela, onde se celebrou a primeira missa a
16 de Março de 1873, o “mais belo dia do ano” para Leão Dehon.587 Tinha-se escolhido o domingo mais
próximo da festa de S. José. Tinha convidado alguns benfeitores. “Os rapazes comungaram. Estava
comovido até às lágrimas. Era o primeiro altar que elevava a Nosso Senhor”. Em seguida levantaria
muitos outros altares, “porém a impressão daquele dia marcou-me e figura como um dia grande na
minha vida”.588
“Organiza-se um Círculo para os mais velhos. O bilhar já está montado. É uma oferta de uma
senhora de S. Quintino. A sala de leitura já está acabada. Também o porteiro ocupa o seu lugar desde há
alguns dias. Criámos no nosso Patronato uma obra nova: a do soldado. Celebramos na nossa capela uma
missa para os militares ao domingo às 11 horas. Os soldados podem utilizar a casa até às três horas da
tarde.589
O Patronato já funciona normalmente. Todos os domingos, a missa é às 7; à tarde os jogos duram
até às 18; em seguida há a reunião com os novos e depois uma reunião geral para a bênção eucarística.
Na missa da manhã e na bênção da tarde, o P. Dehon fala aos seus rapazes de maneira familiar e
concreta. A noite é passada com os grandes que, pouco a pouco, vão formando um círculo operário. Sob
a direcção de D. Geispitz, o organista da basílica, forma-se uma escola de canto, que se reúne uma ou
duas noites por semana para os ensaios. Também há um professor que dá aulas de ginástica. Vão-se
preparando veladas de oração para os benfeitores do Patronato, com cânticos e representações.
A 3 de Junho de 1873, Leão Dehon escreve aos seus pais: “Agora encontro-me muito mais
tranquilo... Os trabalhos do Patronato estão terminados, menos a pintura que se fará só nos finais do
verão... O pequeno Círculo de jovens, anexo ao Patronato, funciona muito bem. São quase 25, todos
bons cristãos, e dão exemplo aos mais pequenos”.590 Em Janeiro de 1874, os jovens do Círculo já são 50
e os aprendizes que frequentam o pensionato mais de 200, tanto que Leão Dehon tem de alugar uma
casa próxima do Patronato.591
No mesmo mês, já está formado o comité protector. É composto por uns trinta senhores, os mais
influentes da cidade: o vice-prefeito, o procurador, vários magistrados e os principais industriais. O
número não é limitado, pode aumentar. Em Março (1874) são quarenta. Com eles reúne-se Leão Dehon
periodicamente para organizar melhor o Patronato e recolher fundos. Já desde a primeira reunião adianta
a proposta de encontrar sócios fundadores que Dêem 200 francos por ano; benfeitores que dêem 50 e
membros honorários que dêem 10 francos.
Fica o problema da aquisição do terreno sobre o qual está o Patronato. Leão Dehon pensa
comprá-lo, constituindo uma sociedade civil de quatro membros com as devidas garantias em caso de
morte de um deles.592

583
NHV IX, 134-135.
584
NHV IX, 135.
585
AD, B 18/11.
586
AD, B 18/11.
587
NHV IX, 185; Manual AD, 14/5, p. 2.
588
NHV IX, 185-186.
589
Carta de 29.4.1873 a seus pais (AD, B 18/11). A obra do soldado não tinha futuro. A guarnição não contava que só com 200
homens; tinha muito respeito humano e má conduta moral (cf. carta ao P. Freyd de 13.5.1873, AD, B 36/2).
590
AD, B 18/11.
591
Carta a seus pais de 14.1.1874 (AD, B 18/11).
592
Carta a seus pais de 1.10.1878 (AD, B 10/11).

127
“LE CONSERVATEUR DE L’AISNE”

Ainda há dívidas da construção do Patronato e já Leão fala a seus pais a 4 de Fevereiro de 1874
de uma nova e importante ideia: a fundação de um diário católico.593
Dos seis diários que circulam em S. Quintino, o melhor, como ideias, é “Le Journal de St.
Quentin”, de tendências liberais, “mas empedernido pelo respeito humano”.594 Não contribui em nada
para a renovação sócio-religiosa da cidade.
Desde o início do seu ministério, Leão Dehon intuiu a necessidade de um diário católico em S.
Quintino (além de um Patronato e de um Colégio). O Patronato é uma florescente realidade. Agora tem
de pensar no diário. Na carta a seus pais de 4 de Fevereiro de 1874, fala de um tal Sr. Lenain Royart,
interessado na fundação de um diário conservador e católico. Nas Memórias acrescenta: “e
monárquico”.595 Leão Dehon tinha crescido no ambiente da burguesia rural, fiel às tradições, à visão
hierárquica da sociedade. Requer-se, de quem possui e manda, uma responsabilidade moral em relação
aos seus dependentes. É um cristianismo sincero com preocupações sociais de tipo paternalista; um
mundo legitimista, uma mentalidade que visa a restauração e procura cancelar a obra da revolução,
considerada um pouco precipitadamente como uma empresa diabólica. Depois veremos, como sob as
influência do pensamento de Leão XIII, Leão Dehon já não será conservador nem monárquico.
Entretanto, para uma segura base económica do novo diário, o editor coloca à disposição metade
do capital: 25.000 francos. A outra metade será coberta com acções de 500 francos cada uma. O clero
anima a iniciativa, mas sem assumir responsabilidades directas. Leão Dehon pergunta aos seus pais se
podem fazer com que em La Capelle adquiram uma acção de 500 francos: “mais do que um
investimento seria uma boa acção”.596 “O projecto era atrevido num ambiente tão pouco favorável como
a região de S. Quintino... Fez apelo a toda a aristocracia do departamento. Em todo o lado encontrámos
confiança, muita boa vontade e uma ajuda bastante activa”.597
Leão Dehon, com os seus mais directos colaboradores, em especial com o seu amigo o sr. Julien,
comprometem-se a encontrar accionistas, tanto que a 14 de Março de 1874 pode escrever a seus pais: “A
questão do diário conservador avança. Faltam-nos ainda alguns milhares de francos. Espero que se
acabe por encontrá-los. Tenho pena que não tenhais podido colocar uma acção em La Capelle.”598
Finalmente numa carta a seus pais, de 14 de Novembro de 1874, pode anunciar-lhes, para o dia seguinte,
a publicação do novo diário: “Le Consevateur de l’Aisne”. 599 Pede a seus pais que lhe enviem nomes de
pessoas interessadas a ser assinantes às quais enviaria números de propaganda.600
O novo diário continuou a ser publicado durante dez anos e depois fundiu-se com “Le Journal de
Saint Quentin”. “Com esta nova obra, apanhei bastantes dores de cabeça” (como costuma acontecer no
ambiente periodista), com a tipografia, com os redactores, que às vezes tendem muito para a direita,
ofendendo a mentalidade predominante em S. Quintino, com os leitores e com as dificuldades
económicas.601 O importante para Leão Dehon era que o diário fizesse bem e que continuasse a fazê-lo
depois da sua fusão com “Le Journal de Saint Quentin”.602
IMPORTÂNCIA DO PATRONATO

Leão Dehon não pára nunca; demonstra o seu zelo e o seu temperamento inclinado para a acção;
é um vulcão de iniciativas, embora conservando no seu coração uma profunda nostalgia da vida interior
e um ardente desejo de fazer-se religioso.

593
AD, B 10/11.
594
NHV X, 187.
595
NHV X, 187.
596
Carta de 4.2.1874. AD, B 18/11.
597
NHV X, 187-188.
598
AD, B 10/11.
599
Cf. SRSL (1874), 692-693.
600
AD, B 10/11.
601
NHV X, 189.
602
Cf. NHV X, 189-190.

128
Precisa de um sacerdote que o ajude. O Patronato está cada dia mais florescente. “Agora é um
verdadeiro formigueiro – escreve numa carta a seus pais a 16 de Dezembro de 1874. O espaço é muito
pequeno, os recursos, sem ser abundantes, chegam pouco a pouco”.603 Mons. Dours promete-lhe um
ajudante para Páscoa de 1875.604 Só no fim do ano chegará D. Brochard.
A 13 de Junho de 1875, numa solene reunião no Patronato, presentes as autoridades civis e
religiosas, Leão Dehon exprime, entre outras coisas, a sua preocupação pela multiplicação dos jovens e
pela exiguidade dos locais recém construídos. Especialmente as salas do Círculo albergam só metade
dos inscritos . Durante o inverno não se poderá acolher a muitos. A sua confiança está na Providência e
no espírito de iniciativa dos bons. Cita o exemplo de D. Bosco.605 Os rapazes aumentam continuamente.
Chegam até 500. “A nossa acção penetrava em todos os lados, nas famílias, nas fábricas, nos escritórios.
Os rapazes gostavam de nós. As famílias vinham às nossas festas. Nós íamos visitá-las quando os
rapazes faltavam às reuniões... Os patrões apreciavam a nossa obra e manifestavam-nos simpatia”. 606
Toda a cidade estava já a favor do Patronato.
“As obras para os trabalhadores são necessárias – escreve o P. Dehon nas Memórias. Suprem um
pouco as corporações e as confrarias. Para os trabalhadores não há lugar nas nossas igrejas e não
recebem ... a instrução adaptada a eles. São ovelhas sem pastor. Eles encontram nos patronaton alguns
dos cuidados que a Igreja teria que ter para cada um deles”. 607 Leão queria que o clero fundasse um, não
só em cada cidade mas em cada povoação.
Pensemos que Leão Dehon referia-se à situação operária de 1873 quando não existia nenhuma
organização católica que defendesse os trabalhadores, criando-lhes consciência da sua força e dos seus
direitos. Os sindicatos legalmente reconhecidos estavam ainda no mundo dos sonhos. A acção dos
católicos era principalmente assistencial..., e não conseguia fazer frente às inumeráveis situações de
miséria e de fome.

A VIDA DO PATRONATO

Procuremos agora reconstruir um dia no Patronato S. José, especialmente num domingo. O


rapaz ao entrar, apresenta o seu cartão para o controlo de presença. Se tiver pequenas poupanças para
depositar pode fazê-lo na Caixa de aforro, onde são registados num livrete em seu nome.. Se quiser
jogar, passa ao pátio, onde outros rapazes brincam; pode fazer ginástica usando vários equipamentos
instalados sob os pórticos e sob a guia de um instrutor. Há veteranos de Argélia ou da Alsácia que, ao
fundo do pátio, fazem de instrutores paramilitares aos futuros recrutas. “É um prazer para estes rapazes,
condenados a uma certa imobilidade ou a movimentos automáticos, sempre os mesmos ao longo da
semana, poder distender um pouco os nervos. É todo um mundo que corre, salta, grita a plenos pulmões.
É verdadeiramente uma bonita invenção o descanso dominical!”608
Se o rapaz preferir ler ou um jogo tranquilo, por exemplo o bilhar, entra nos locais do rés-do-
chão. No fundo do salão, separado por uma divisória amovível, está o altar. É dia de festa e a lamparina
acesa indica a presença de Cristo na Eucaristia. Sempre há algum rapaz ou algum jovem que reza.
Se algum deseja falar com Leão Dehon, pode subir ao primeiro andar, onde há um gabinete ao
lado das salas reservadas ao círculo dos mais velhos.
Subindo depois por uma escada estreita chega-se ao sótão onde se encontra uma sala que serve
para pequenas reuniões ou para dar aulas a uma vintena de rapazes que não podem frequentar as escolas
nocturnas organizadas na cidade.
Alguns são assinantes de “as Pequenas Leituras” (48 números ilustrados por ano). Retiram o seu
exemplar para lê-lo durante a semana. Sabemos já que o Patronato tem um comité protector, formado
pelas personalidades mais importantes de S. Quintino. Interessam-nos as relações anuais sobre o
603
AD, B 10/11.
604
Carta a seus pais de 25.1.1875 (AD, B 10/11).
605
NHV XI, 137-138.
606
NHV X, 1.
607
NHV X, 3.
608
NHV X, 144-145.

129
Patronato e a sua actividade. Escolhemos o relatório de 1875 feito ao comité protector e que foi lido
pelo professor de filosofia do Liceu estatal, Pluzanzky. Em Janeiro de 1875, os rapazes eram 301 e 139
os inscritos no Círculo; um total de 440. Destes, 84 são estudantes, 324 são operários e aprendizes, 34
empregados. A média das presenças, aos domingos, é de 205. A Caixa de aforros recolheu 4.763 francos
divididos em 198 cadernetas. Todos os jovens do Patronato cumprem o preceito pascal. Antes da
organização do Patronato (1873) eram apenas uns 10 jovens operários os que cumpriam o preceito
pascal em S. Quintino. Pelo Natal (1874), houve 160 comunhões.
O Círculo dos mais velhos organizou uma conferência de S. Vicente . Contribuem com 50
cêntimos por mês e no segundo ano têm já um fundo de 150 francos. Leão Dehon quer que os seus
jovens, embora pobres, abram os olhos e ajudem os que ainda são mais pobres do que eles.
Para os operários e aprendizes que vivem longe ou são órfãos, seria necessário um ambiente de
família onde comer e dormir. Em 1875 estão disponíveis no sótão do Patronato alguns quartos para
dormir. É o início da “Casa de família”, que durante o ano 1875 será ampliada com um dormitório de 15
camas na casa Idée recém comprada. Durante algumas semanas, Leão Dehon dormirá num quartinho
contíguo ao dormitório por razões de vigilância. As refeições são preparadas pelos porteiros. Com a
chegada das Irmãs Servas, a “Casa de família” começará a funcionar bem. Em 1877, os hóspedes da
“Casa de família” serão 25; em 1878, serão 27.
O Círculo católico, organizado no Patronato a 23 de Outubro de 1873, une-se à grande Obra dos
Círculos Católicos fundada em 1871 por Alberto de Mun e por R. La Tour du Pin. A Obra dos Círculos
Católicos tinha como finalidade as associações de operários sob a guia de óptimos leigos católicos
pertencentes à burguesia. A inspiração era claramente paternalista, no melhor sentido da palavra. Os
círculos não se difundiram nem penetraram no proletariado precisamente porque os operários não eram
os responsáveis nem os protagonistas; todavia os círculos prepararam os católicos para a evolução do
corporativismo cristão e para a organização dos sindicatos.
A idade mínima de inscrição no Círculo era de 17 anos. O Círculo fundado por Leão Dehon é
gerido pelos próprios jovens que elegem os seus chefes e conselheiros.609 A 1 de Novembro (1873), o
arcipreste Gobaille abençoa o estandarte da nova obra.
Nesta época – escreve o P. Dehon nas Memórias – remontam “as minhas relações com a Obra
dos Círculos e os estudos sociais que marcariam uma etapa na minha vida”.610
O Patronato obriga Leão Dehon a continuar os contactos com trabalhadores e patrões. Se é
necessário evangelizar os primeiros, muito mais preciso é inculcar a prática do Evangelho nos segundos
pelas suas maiores e mais graves responsabilidades. Para isso Leão Dehon serve-se sobretudo do
púlpito. No segundo domingo da Epifania de 1874, comentando o milagre de Caná na missa do meio dia
na basílica, fala dos deveres das classes dirigentes: Não basta ser sensíveis aos sofrimentos físicos e à
miséria material; faz falta interessar-se pela degradação moral dos operários. Ao invés, nisto “reina uma
apatia, uma inércia que espantam. Tem-se medo de actuar... Nesta apatia está o incumprimento de um
grande dever. As classes dirigentes têm uma missão providencial. É preciso que orientem os fracos e os
pequenos, com o exemplo, com a acção e com as acções, se não quiserem cair na maldição de Deus; e a
sentença divina será severa com eles”.611 Conclui exortando as classes dirigentes a dar exemplo de uma
autêntica vida cristã e a ajudar os ministros da Igreja no seu benéfico trabalho.
A 11 de Abril de 1874, o comité protector decide a formação de uma comissão de estudos, de
que fazem parte vários membros do mesmo comité e que se reúne todos os meses até 1876.
Do relatório de Janeiro de 1875, sabemos que o Patronato se abre todas as tardes aos membros
do Círculo das 19 às 22 horas. Para eles foi organizado um curso de economia social cristã. As noites do
Círculo são muito variadas. Passam os meses e cada uma é diferente das outras. 612 Também a escola de
canto de D. Geispitz prospera; conta com cinquenta vozes e actua com agrado na basílica. Também se
formou uma banda de música que, depois de oito meses, pode actuar na igreja.

609
Cf. NHV XII, 95
610
NHV X, 8.
611
NHV X, 100-101.
612
Cf. NHV X, 150.

130
Além disso, os jovens do Círculo organizam três ou quatro vezes por ano festas abertas ao
público que acorre, especialmente, à representação de dramas, como por exemplo: “Jorge o operário”...
“Os zuavos pontifícios em Petay”. Leão Dehon prepara-os, faz de ponto, ocupa-se da parte mecânica:
“Isto exigia-me muito tempo e não pouca paciência”.613 “Aristóteles – escreve o P. Dehon nas Memórias
– teria ficado contente, já que a arte dramática nos serve para efectuar a sua famosa purificação de
sentimentos (catarsis)”,.614
Durante o verão, geralmente em Agosto, organiza-se uma grande reunião no Pátio do Patronato
com os pais dos rapazes e a presença das autoridades. Entre os cantos e as representações teatrais, dá-se
aos alunos, que mais se tenham distinguido, uns diplomas honoríficos que, inclusive, lhes podem servir
como cartas de recomendação.
A finalidade do Patronato – afirma Leão Dehon na solene reunião de 13 de Junho de 1875 -, não
é, como alguns imaginam superficialmente, “fazer que os rapazes brinquem honestamente ao
Domingo... A nossa finalidade é a salvação da sociedade, mediante a associação cristã. Por isso
convidamos a classe dirigente a cumprir com o operário o seu dever de protecção e de direcção que
tanto tem descuidado”.615 “Manifestastes às vezes a vossa tristeza ao ver como se propagam doutrinas
perversas e como se corrompem os costumes. As nossas obras pretendem pôr remédio a estes males,
inculcando o Evangelho e a prática da virtude, preocupando-nos do trabalhador, das suas necessidades
religiosas, intelectuais e materiais”. Para Leão Dehon o problema social. É antes de mais um problema
moral: “O mal estar social é principalmente um problema moral”.616
“Nos relatórios anuais do Patronato – escreve Leão Dehon – está a minha vida. Manifestam-se os
meus trabalhos, as minhas preocupações e as minhas alegrias”.617
“Ao Domingo tinha de me multiplicar. Durante a semana eram as visitas aos doentes, aos
amancebados, havia que preparar as festas, o apostolado diário do Círculo, as conferências, etc. etc.
Graças a Deus creio que esta vida, sobrecarregado de compromissos, não me afastava demasiado da
união com Deus. Todavia a minha alma ressentia-se um pouco”.618
Como se não bastassem tantos compromissos, em Dezembro de 1875, Leão Dehon organiza um
Círculo de estudos religiosos para os estudantes do liceu ou os que tinham acabado os seus estudos.
Cinco reuniões só no mês de Dezembro. Leão Dehon propõe aos jovens que estudem a organização do
trabalho em S. Quintino e as diversas instituições organizadas na cidade a favor dos operários. Cada um
deve documentar-se para redigir no fim uma informação sobre o tema.
Em cada reunião, Leão Dehon apresenta para discussão um tema religioso-filosófico-social;
depois aquele que já tem preparado o estudo sobre o tema designado, lê-o, discute-se e aprova-se. O
círculo de estudo J. de Maistre é também uma conferência de S. Vicente de Paulo, já que a reunião
acaba com a colecta para uma família pobre. Os participantes, no princípio, não são muitos: uma dezena
ou pouco mais; porém os temas são muito interessantes e o método activo, que implica todos, é muito
moderna.619 Em 1876, as reuniões semanais continuam ao longo de todo o ano. Os jovens são 34, na sua
maior parte ex-alunos do Liceu, das famílias mais abastadas de S. Quintino. A vida do Círculo de
estudos enriquece-se. Em cada mês há uma vigília musical. Também em cada mês um jovem do Círculo
faz uma conferência na reunião mensal do Círculo operário. Leão Dehon, em 1876, dá um curso de
economia política.620 Em 1877, as diversas informações sobre o mundo do trabalho e sobre as obras de
S. Quintino, são reunidas num opúsculo com o título: “L’Ouvrier et ses vrais intérêts”, editado por
Moureau. Em 1878, Leão Dehon deve dar um pequeno curso de direito natural. Em 1879, faz das
conferências apologéticas sociais.
Em 1876, começaram também as reuniões quinzenais para patrões, que se prolongarão até 1881.
Discutem juntos sobre os seus deveres: “Tinha uns doze. Muitos introduziram melhoramentos nas suas
613
NHV XI, 86.
614
NHV X, 150.
615
NHV XI, 124-125.
616
NHV XII, 86.
617
NHV XI, 139.
618
NHV XI, 152.
619
Cf. NHV XI, 156-161.
620
Cf. NHV XII, 22-26.

131
fábricas”.621 O sonho de Leão Dehon era reproduzir em S. Quintino a experiência da fábrica cristã de L.
Harmel, em Val-des-Bois.

UM TRABALHADOR AUDAZ E INCANSÁVEL

O interesse suscitado pelo Patronato para os operários deu origem a uma maravilhosa e
necessária iniciativa, se tivesse sido sustentada por uma adequada legislação social: a construção de
casas para os trabalhadores. Um patrão cristão, o Sr. Jourdain, tinha visitado com Leão Dehon os
casebres onde moravam em vários bairros operários de S. Quintino. Alguns currais de animais eram
melhores. Como poderiam os trabalhadores não alimentar uma justa cólera contra a sociedade?. Foi
assim que o Sr. Jourdain e o amigo de Leão Dehon, o Sr. Julien, organizaram uma sociedade de
accionistas e iniciaram a construção dos lotes de casas nos subúrbios de S. Quintino. Eram casas
salubres de que os operários se tornavam proprietários com o pagamento do aluguer. Infelizmente a
iniciativa mais que necessária, encontrou muitos obstáculos e não se desenvolveu por falta de uma
favorável legislação social.
Leão Dehon encorajou muito também a sociedade de socorros mútuos S. Francisco Xavier, que
tinha uma benéfica influência entre os seus 700 membros. Durante alguns anos foi o seu assistente.
Entretanto a vida do Patronato continuava sempre florescente. Já era “uma obra complexa”622 que
não deixava um momento livre ao seu director que, por outro lado, não estava dispensado das ocupações
ordinárias do ministério paroquial e que, além disso, em 1876, tinha vários cargos diocesanos de que
ainda não falámos.
Leão Dehon é um trabalhador incansável, um vulcão de iniciativas; é audaz, porém também
prudente. Em 1876, ainda não pagou o terreno sobre o qual está construído o Patronato, porém,
confiando na Providência, constituiu uma sociedade civil para a aquisição da casa Idée, do jardim
Cassier e do terreno Dollé, onde construiu um grande salão. Devia ser verdadeiramente grande, se,
durante a quaresma de 1878 o jesuíta P. Lecouture aí fez três conferências religioso-científicas a mais de
800 homens de todas as classes sociais.623
Leão Dehon recorda ao numeroso público de S. Quintino que acorreu ao Patronato para a festa
de 23 de Julho de 1876, o episódio de D. Bosco, já citado na relação de 1875. O santo encontrava-se em
Sampierdarena (Génova), e andava pelos caminhos preocupado, não sabendo como enfrentar a dívida
para com um credor. De repente, encontrou-se com um ancião pobremente vestido. O santo, pensando
que fosse um pobre, estava para lhe dar as últimas moedas que tinha; porém o velho adiantou-se e
entregou-lhe um envelope, recomendando-lhe que rezasse por ele e desapareceu. O envelope continha
19.000 liras. Pois bem, conclui Leão Dehon, dirigindo-se aos seus ouvintes: “as nossas previsões
realizaram-se. Vós substituístes o velho de Génova. O total das vossas dádivas é quase igual à sua
oferta”.624 Apesar das dívidas, o Patronato florescia.
Leão Dehon está convencido que o verdadeiro remédio para o mal estar social crescente é o
associativismo católico. O sacerdote deve “pegar na mão do patrão e colocá-la na do operário,
procurando, os três juntos, na caridade cristã, a realização das justas aspirações de todos para o tempo e
para a eternidade”.625 Cita o exemplo de Leão Harmel em Val-des-Bois, e outros exemplos menos
conhecidos na França. Deseja a formação de corporações cristãs, “não as do século passado, com os
seus bloqueios e abusos, mas corporações livres, o entendimento na união, o esforço comum para a
prosperidade temporal e a salvação das almas”.626
Leão Dehon tem grande confiança no empenhamento dos patrões cristãos para moralizar os
ambientes de trabalho para que o que se constrói ao Domingo no Patronato e no Círculo a preço de
enormes sacrifícios, não se destrua nos outros dias de semana. Cita os exemplos de Lião, com 1057
621
NHV XII, 27.
622
NHV XII, 85.
623
Cf. SRSL (1878), 165, 177-178.
624
NHV XII, 101.
625
NHV XII, 112.
626
NHV XII, 113-114.

132
membros inscritos na união dos patrões católicos e de outras numerosas cidades de França: Pede sobre
tudo, que os jovens tenham, nos ambientes laborais, a liberdade para fazer o bem, sem expor-se às
zombarias, aos insultos e a todo o tipo de violência: “Afirmo que em S. Quintino é quase impossível
encontrar uma oficina, um armazém, um escritório, onde um jovem de 12 a 25 anos tenha liberdade para
o bem... Por favor, senhores, dai liberdade a Deus e ao bem nos vossos ambientes de trabalho”.627
Assim fala aos patrões de S. Quintino a 2 de Janeiro de 1877 e, com a mesma paixão, volta sobre o
mesmo argumento no discurso da festa de S. Leão a 19 de Abril de 1877.
Os esforços de Leão Dehon são nobremente morais e, em campo social, «unem-se ao bom
paternalismo, dominante então entre os católicos mais sensíveis às miseráveis condições do mundo
operário. É o catolicismo social que se apoia na acção caritativa dos patrões, dos poderosos e que tem o
seu grande apoio em A. de Mun. Este é o ponto de partida que para Leão Dehon há de desembocar na
Democracia cristã, com uma concepção igualitária da sociedade, sustentando o operário como
protagonista das suas conquistas sociais.
Esta evolução não é uma negação, mas é um fruto, como veremos, da sua indestrutível fidelidade
aos ensinamentos papais.
Em Fevereiro de 1877, Leão Dehon acompanha a Roma o seu novo bispo de Soissons, Mons.
Thibaudier, que tinha sucedido ao demissionário Mons. Dours a 20 de Abril de 1876 e que tinha tomado
posse da diocese a 6 de Agosto daquele mesmo ano. Depois daquela viagem, Mons. Thibaudier destina
um bom sacerdote, o P. Parmentier, como ajudante de Leão Dehon no Patronato.
A 2 de Setembro de 1877, tem lugar no Patronato a primeira grande festa de S. Clemente, Leão
Dehon trouxe de Roma os ossos deste santo e colocou estas relíquias no gracioso corpo de cera. Da nova
grande sala das festas o corpo do santo é levado triunfalmente através do pátio e depositado sob o novo
altar da capela.
Em 1878, a vida do Patronato continua com a mesma intensidade. Em 1879, pelo contrário, Leão
Dehon, absorvido pela sua Congregação, os Oblatos do Coração de Jesus, e pelo colégio S. João, que
fundara em 1877, desliga-se pouco a pouco do Patronato. Substitui-o o P. Rasset. Todavia continua
ainda a presidir às reuniões semanais do conselho de direcção.
Depois de ter-se desligado, Leão Dehon faz esta constatação: o Círculo operário progride; mas o
Patronato perde terreno. “Teriam sido necessários dois diferentes sacerdotes”.628 Era um desejo
irrealizável. Com Leão Dehon o Patronato dos rapazes sempre tinha aumentado em número, nunca tinha
perdido terreno, também porque ele ia muitas vezes visitar as famílias dos ausentes, animava-os a voltar
e recomendava aos pais que mandassem os seus filhos: “Compreendia bem que a Igreja de França podia
levantar-se só mediante o apostolado operário”.629
Fundada a sua Congregação, o desejo do P. Dehon era que o Patronato ficasse confiado ao
Instituto. Pelo contrário, o futuro bispo de Soissons, Mons. Duval, disporá de outro modo. O P. Dehon,
como sempre, obedecerá. Escreve no seu Diário a 24 de Julho de 1896: “O bispo tomou uma decisão
muito penosa para mim. Confia o Patronato S. José a D. Mercier. Havia 25 anos que tinha fundado esta
obra. Tinha gastado nela somas importantes (ao menos 50.000 francos). Tinha-me comprometido com
todo o ardor juvenil do meu sacerdócio. Parecia-me que esta obra devesse ficar para sempre confiada à
nossa Congregação. A autoridade diocesana decidiu de outro modo. Fiat!...”.630

627
NHV XII, 123-125.
628
NHV XIII, 146.
629
NHV XIII, 146.
630
NQ XI, 66.

133
CAPÍTULO 10

Em direcção à vida religiosa

As Servas do Coração de Jesus – Situação sócio-religiosa da diocese de Soissons – Congressos e viagens – O Oratório diocesano – A Universidade de
Lille – Vida espiritual de Leão Dehon – A decisão pela vida religiosa

AS SERVAS DO CORAÇÃO DE JESUS

Detivemo-nos sobre a primeira obra importante de Leão Dehon, o Patronato, por ser uma “obra
complexa”,631 com tantas instituições e iniciativas que desperta um sentimento de admiração e também de
confusão.
Só o Patronato exigia a cooperação de ao menos dois sacerdotes. Leão Dehon esteve quase sempre
só e, além disso, tinha as obrigações paroquiais como coadjutor da basílica. Todavia a sua vida de apóstolo
não se limitou nem a S. Quintino nem à diocese de Soissons.
O Jesuíta P. Jenner tinha pregado a quaresma de 1873 na basílica. Era director espiritual da
fundadora das Servas do Coração de Jesus, a Madre Maria do Coração de Jesus (Oliva Uhlrich).
A Congregação nasceu em Estrasburgo em 1867. Para evitar os rigores da ocupação alemã de
Alsácia, depois da guerra franco-prussiana de 1870, as Servas tinham-se mudado, com a licença do Vigário
Geral e irmão do bispo da diocese de Soissons, D. João Hipólito Dours, para uma escola-internato de
Molain, uma perdida aldeia rural, onde escasseavam os meios de subsistência. O P. Jenner falou com o P.
Dehon e este propôs que as Servas se transferissem para S. Quintino, para um pequeno orfanato de que era
capelão.
O bispo de Soissons, Mons. Dours, deu o seu consentimento a 25 de Março de 1873, e a fundadora
das Servas, Madre Maria do Coração de Jesus, familiarmente chamada “Chère Mère”, encontrou-se pela
primeira vez com Leão Dehon na Vigararia. A Madre Maria tinha então 36 anos, tendo nascido a 25 de
Março de 1837, e Leão Dehon, 30. “Ela edificou-me pelo seu zelo ardente para o bem – escreve o P.
Dehon nas Memórias -. Ofereci-lhe a minha ajuda para a sua fundação de S. Quintino e tudo se resolveu
prontamente”.632
No orfanato da Rua S. Luís preparou-se uma pequena capela e a 2 de Julho de 1873 as Irmãs
tomaram posse da nova casa com uma cerimónia a que presidiu o arcipreste Gobaille.
Leão Dehon foi o confessor e director espiritual da nova comunidade: “Esta circunstância
providencial presidiu à orientação de toda a minha vida”.633
Recordando algumas irmãs da primeira hora afirma: “Era na verdade um grupo de almas escolhidas.
Mons. Thibaudier dizia: ‘É uma santa comunidade. Procuremos que se ignorem e vivam na humildade?. A
Providência divina encarregou-se de mantê-las na humildade e no sofrimento”.634
Algumas estavam encarregadas da humilde tarefa do peditório. O P. Dehon recorda a irmã Maria da
Providência, um tipo ardente, que colocava a sua coragem ao serviço da fé e a irmã Maria de santa Clara,
simples e doce, que se impenhava silenciosamente no seu humilde serviço. Ambas recolheram somas
consideráveis para a casa-mãe, para as outras fundações e também para as obras de Leão Dehon.
Além de confessar as Servas, Leão Dehon dava-lhes uma conferência todas as semanas, servindo-se
da “Prática da perfeição cristã” do P. Rodrigues e da obra de S. Afonso Maria de Ligório: “A perfeita
esposa de Jesus Cristo”. “Encontrava muitas vezes nesta direcção luzes e ajudas para a minha alma”,
escreve nas Memórias.635 “Edificavam-me e a sua direcção espiritual mantinha-me numa corrente de vida
631
NHV XII, 85.
632
NHV X, 20.
633
NHV XI, 21.
634
NHV X, 24.
635
NHV X, 24.

134
sobrenatural de que a minha alma estava sedenta”.636 Dava também catecismo às suas órfãs; interessava-se
pela sua administração e pelo seu desenvolvimento.
Em 1875, duas Irmãs assumiram a direcção da “Casa de família” que Leão Dehon tinha fundado
para os aprendizes órfãos ou forasteiros. Recorda em particular a irmã Verónica que sabia unir à entrega
maternal uma energia varonil. Tinha o dom da organização e do sentido comum. Sabia sofrer sem queixar-
se.637
Só fizemos alusão à colaboração entre Leão Dehon e as Servas. Em breve teremos de falar disto
amplamente quando tratarmos da fundação dos Oblatos do Coração de Jesus e do Colégio S. João.

SITUAÇÃO SÓCIO-RELIGIOSA DA DIOCESE DE SOISSONS

Por causa do Patronato, a actividade apostólica de Leão Dehon foi-se estendendo pouco a pouco
pela diocese de Soissons e para além dela. Descrevemos já a situação sócio-religiosa de S. Quintino; a
situação do resto da diocese de Soissons não era melhor.
Em Soissons, só 5% dos homens cumprem o preceito Pascal, e também as mulheres são uma
minoria.
Para as povoações e aldeias, basta ler a biografia do P. Afonso Rasset (1843-1905). Além de
Assistente geral do P. Dehon, o P. Afonso Rasset foi pároco, grande pregador e, como missionário,
percorreu em todos os sentidos a diocese de Soissons.
Das suas cartas para sua irmã Melânia, que entrou nas Irmãs de S. José de Cluny e foi missionária
no Haiti, se depreende uma situação religiosa difícil. O clero é escasso, isolado, sem iniciativa, cansado e
desanimado.
Há aqui e ali, na diocese, paróquias onde a prática religiosa é fervorosa , como Soize, Parpeville;
porém são pequenos oásis bem raros e que tiveram párocos santos.
Um testemunho precioso sobre a vitalidade efectiva da diocese de Soissons temo-lo nos resultados
de um vasto inquérito sobre o estado das obras e das associações da diocese, feito por Leão Dehon.
Em 1874, Mons. Dours fundou a secretaria diocesana das Obras. Leão Dehon foi o secretário; daí a
iniciativa do inquérito, com o envio, a 4 de Dezembro de 1874, a todos os párocos da diocese de um
questionário com 18 perguntas. “O conjunto das respostas foi desolador. Não havia quase nenhuma
associação e em todos os lados se assinalava a indiferença ou a irreligiosidade dos homens”.638
Baixando aos casos particulares, o P. Dehon observa que numa diocese muito disciplinada e activa
como a de Cambrai, ter-se-iam conseguido em 15 dias tantas respostas quantas as paróquias. Na diocese de
Soissons só chegaram um terço das respostas. Desculpáveis podiam ser os párocos velhos, mas havia
também os desanimados e distraídos.
A falta de respostas, pode significar – diz Leão Dehon na sua relação à assembleia geral das Obras
em Liesse (10-11.3.1875) – que não há associações de homens nas paróquias ou se têm muito poucas
esperanças de organizá-las. De umas quarenta paróquias (da terceira parte que respondeu), resulta uma
sensação de tristeza e, às vezes, de desânimo.
Escreve um pároco: “Não há mais seiva, nem vida religiosa nas pobres almas das nossas regiões tão
ricas no passado de associações como de monumentos religiosos...”. “Um outro: “Não temos senão dois
homens verdadeiramente cristãos, dos quais um é doente, velho e surdo... e o outro não pode tomar
iniciativas por causa d sua posição”. Um terceiro: “ Os poucos homens bons cristãos são demasiado velhos
para constituir uma associação” ou “os homens mais cristãos não cumprem o preceito pascal”, ou também:
“Os homens cristãos são três entre setecentos”. Noutro lugar: “Não se sabe nem sequer o que é o
domingo”, ou: “Não temos sequer um cristão” e ainda: “Se por cristãos se entende homens que se
aproximam dos sacramentos, na minha paróquia não há nenhum”.

636
NHV X, 156.
637
Cf. NHV X, 23.
638
NHV X, 155.

135
O P. Dehon escreve nas suas Memórias: “Estas desoladoras constatações feitas por quarenta
párocos tê-las-iam manifestado os outros 300 sacerdotes se a tristeza e o desânimo não os tivessem
impedido de escrever”.
Algumas respostas dão fé de um certo zelo naqueles pobres sacerdotes. Um pensa fundar a
associação de S. Antão abade (protector dos animais) porque na festa do santo todos vão à missa. Um
pároco organizou uma missão, porém os missionários foram expulsos. Receberam-nos numa paróquia
vizinha, porém o fruto das missões não se manifesta por respeito humano. Pela Páscoa, nenhum homem
comunga, só uma mulher! Comenta o P. Dehon: “Ao menos 25 dioceses da nossa pobre França estão nesta
situação”.
As causas: a má imprensa, a propaganda anti-religiosa e revolucionária, a falta de descanso
dominical, o alcoolismo e os maus exemplos de certos sacerdotes.
No campo, a indústria açucareira emprega homens e mulheres durante o inverno, enquanto que no
verão ocupam-se nos trabalhos agrícolas. As crianças começam a trabalhar nas fábricas a partir dos 12 anos
e trabalha-se também aos domingos. Depois da primeira comunhão já não entram na igreja; não podem,
mesmo que quisessem, por causa do trabalho, e acabem na indiferença religiosa mais absoluta. “Escrevo-
vos estas palavras com lágrimas nos olhos, com a mais amarga tristeza no coração”. Assim se exprime um
pároco.
Entre tanta desolação luz alguma esperança. “Uns quarenta párocos têm catecismos de
perseverança, mais ou menos concorridos...”. Soissons, Laon, S. Quintino têm obras bastante bem
organizadas. Dez paróquias rurais têm patronatos (oratórios) com maior ou menor vitalidade...
Leão Dehon sugere vários tipos de organizações e dá conselhos práticos para que funcionem.
No conjunto a situação é triste. “Estes são os amargos frutos não só da revolução, mas também do
galicanismo e do jansenismo – conclui o P. Dehon - . Excluindo a religião da vida social e política, foram-
se afastando primeiro os homens e depois quase toda a população”.639 Faz falta arregaçar as mangas,
lançar-se nas obras de apostolado e Leão Dehon deu o primeiro exemplo com a complexa obra do
Patronato de S. Quintino.
A secretaria diocesana das Obras teve uma actividade bastante intensa té 1878. Compunham-na na
prática três pessoas: Leão Dehon e os seus dois amigos da conferência de S. Vicente de S. Quintino: o sr.
Julien e o sr. Guillaume. “Durante 5 anos mantive uma correspondência bastante abundante (especialmente
com o clero da diocese), fiz propagar e publicar diversos documentos e relatórios..., organizei os
congressos se Nossa Senhora de Liesse, de S. Quintino e de Soissons”.640

CONGRESSOS E VIAGENS

Como já dissemos, no Patronato tinha-se constituído um Círculo operário, agregado à Obra dos
Círculos, fundada por Alberto de Mun. Como primeira manifestação pública, Leão Dehon e os seu rapazes
participaram na grande peregrinação dos Círculos católicos do Nordeste a Nossa Senhora de Liesse a 17 de
Agosto de 1873. “Uma jornada inesquecível... 1.500 marcaram encontro em Coucy à volta das suas
bandeiras e, bem organizados, dirigiram-se para o santuário de Liesse”. 641 Oficiais de uniforme e a cavalo
acompanhavam o cortejo. Homens que cantavam e rezavam. “Em Liesse: missas, comunhões, banquete,
brindes vibrantes e entusiastas... Os trabalhadores de Val-des-Bois estavam lá com a sua banda de música;
os mineiros ... com a sua lâmpada simbólica”.642 Havia com que entusiasmar os jovens do Patronato.
Durante três anos (1874-1875-1876), Leão Dehon participou na assembleia geral da Obra dos
Círculos Operários que se realizava em Paris. De 1877 em diante, já não pôde participar, embora tenha
enviado regularmente todos os anos, no mês de Abril, a sua relação até 1884.
Entretanto, desde o 25 até o 29 de Agosto de 1873, Leão Dehon tomou parte no congresso de
Nantes para os directores das obras em favor dos trabalhadores: 900 congressistas em representação de 600

639
Cf. NHV X, 153-156. 177-187; XI, 101-117.
640
NHV X, 155-156.
641
NHV X, 5.
642
NHV X, 5-6.

136
obras, com 40 delegados episcopais. A relação principal foi lida por Leão Harmel e trata da transformação
de Val-des-Bois, de ser uma zona descristianizada onde, em 1861, ninguém praticava a religião, excepto
alguma mulher, a se tornar uma zona intensamente religiosa por influência de um patrão profundamente
cristão que, mediante associações cristãs, transformou completamente o ambiente laboral.
O congresso de Nantes é abundantíssimo nas relações e discussões, com apresentação de exemplos
concretos. São jornadas que, segundo Leão Dehon, valem mais do que um curso de exercícios espirituais e
incendeiam de zelo os congressistas, preparando a fundação de muitas obras. “Fiz boa provisão de
ensinamentos e de documentos para as minhas obras de S. Quintino”.643
Em Nantes L. Dehon encontrou pela primeira vez o “Bon Père” Leão Harmel, com quem
colaboraria, em seguida, por muitos anos.
O congresso de Nantes terminou uma peregrinação de 400 congressistas, conduzidos pelo bispo
Mons. Fournier e por Mons. de Segur, ao santuário de Santa Ana de Auray. A 31 de Agosto, Leão Dehon
encontra-se em Nantes com os seus tios de Vervins, Félix Penant e Julieta Vandelet de Penant, para
fazerem juntos uma longa peregrinação aos santuários de Lourdes, de Fourvière (Lião), de Ars e de Paray.
A Lourdes tinham chegado também os pais de Leão e juntos passaram umas boas jornadas. “O meu pai,
particularmente, comoveu-se muito. Aproximou-se da comunhão seja em Lourdes como em Fourvière e
também em Ars”.644 “Passámos muito tempo na gruta, onde tão bem se reza... Tinha tantas graças a
pedir...”.645 Em Marselha, Leão celebrou a missa no santuário de Nossa Senhora da Guarda e todos rezaram
muito tempo, assim como em Fourvière, no santuário da Virgem em Lião, em Ars e em Paray. Em Paray
acabavam de terminar as grandes peregrinações. ”As bandeiras trazidas pelos peregrinos cobriam a capela
das aparições . Rezámos bem e ficámos com as mais doces emoções esta magnífica viagem de família, que
deixou nos meus pais tão belas e boas recordações, e que tanto contribuíram a confirmar na fé o meu
pai”.646
Em 1874, de 24 a 28 de Agosto, Leão Dehon toma parte no congresso de Lyon na qualidade de
delegado da diocese de Soissons. É outro novo triunfo de Leão Harmel. As suas exposições são as mais
escutadas. O trabalho do congresso foi subdividido em 10 comissões. Renova-se o entusiasmo do
congresso de Nantes. Leão Dehon toma apontamentos das relações de Leão Harmel para sintetizá-las aos
seus operários do Círculo e aos da sociedade de socorros mútuos de S. Francisco Xavier. Como dissemos,
durante o congresso, as conferências de Leão Harmel foram tão aplaudidas que o interessado teve que
intervir para travar o excessivo entusiasmo: “Senhores, meteis-me medo; organizei as minhas obras só nas
humilhações”.647 Parecia uma profecia. Na noite de 13 de Setembro de 1874, um incêndio reduzia a um
conjunto de ruínas a grande fábrica de Val-des-Bois. Três horas bastaram para destruir o que tanto dinheiro
e tantos anos de sacrifícios tinha costado.
A segunda-feira seguinte, 14 de Setembro, festa da Exaltação da Santa Cruz, às 7 da manhã, toda a
família Harmel aproximava-se da comunhão, seguida de mais de 200 pobres operários que vinham pedir ao
Coração de Jesus força e coragem.
A fé testemunhada por Leão Harmel neste desastre foi digna de um santo e o espírito de iniciativa
digno de um grande empresário. Mais que de si mesmo, a sua preocupação foi dar trabalho, segurança e
serenidade aos seus operários nos meses que se seguiram antes de reconstruir a fábrica. Para isso alugou
uma fábrica em Neuville, levando grande parte dos trabalhadores para o trabalho ao longo da semana e
trazendo-os para Val-des-Bois, para as suas famílias, ao domingo. O mesmo fez para as raparigas de
Bazancourt, fazendo que fossem assistidas pelas Irmãs da Caridade.
As subscrições de toda a França ajudaram a reconstruir a fábrica de Val-des-Bois.
Terminado o congresso de Lyon, Leão Dehon foi em peregrinação à grande Cartuxa e a La Salette.
“A Cartuxa apresenta uma dupla fascinação: a bela paisagem e a recordação de S. Bruno e de toda a
falange de grandes monges. S. Bruno tinha elegido bem esta solidão, bela e silvestre, que chamou
“Deserto”, e que se encontra entre o céu e a terra a mil metros de altitude, separada da agitação do mundo
por um círculo de montanhas... Gostaria da vida de cartuxo, com a sua modesta cela, os seus livros e o
643
NHV X, 70-71.
644
NHV X, 88. Carta ao P. Freyd de 30.5.1873. (AD, B 36/2).
645
NHV X, 88.
646
NHV X, 95.
647
NHV X, 171.

137
pequeno jardim. Desejei com frequência uma vida assim, porém a Providência levou-me para a vida activa,
onde estou muito menos certo de salvar a minha alma”.648
Passando por Grenoble, sobe a La Salette, onde passa um belo dia. Escuta dos lábios de Maximino,
um dos videntes, a história das aparições de 1846. Leão Dehon comove-se profundamente. “...
Experimenta-se uma sensação de tristeza e de penitência junto da estátua da Virgem em lágrimas”.649
A 10 e 11 de Março realiza-se em Nossa Senhora de Liesse a assembleia diocesana das Obras
católicas da diocese de Soissons. “Que belas jornadas! Foi o melhor momento do meu ministério na
diocese”.650 Com o consentimento do bispo Mons. Dours, Leão Dehon preparou durante seis meses este
congresso diocesano. Preside o vigário geral Legrand. Ouviram-se vários relatos, entre eles o de Leão
Harmel sobre as obras nas fábricas. Leão Dehon lê duas vezes a relação geral sobre o estado das Obras na
diocese de Soissons, de que já fizemos menção. A relação completa dos trabalhos da assembleia de Liesse
foi publicada num pequeno livro de 160 páginas, de que se imprimiram 1.500 exemplares.
Nesse mesmo ano de 1875, de 23 a 27 de Agosto, Leão Dehon toma parte no congresso da União
dos operários em Reims. Observa que há todo um despertar de vida social cristã na França. As
transformações sociais, como se sabe, não se fazem depressa. Há grandes manifestações de caridade,
porém não basta. “Havia injustiças latentes na vida social, de que nos dávamos perfeita conta. Era toda uma
consciência social a refazer e isto pedia tempo e sacrifício... Todas aquelas obras (de assistência) eram
frágeis e insuficientes já que não iam ao fundo das coisas. O direito natural era violado pela organização
económica geral. Um programa de reforma social começava a esboçar-se no comité de estudos da Obra dos
Círculos e nos primeiros escritos do grande bispo de Magúncia, Mons. Ketteler”. 651 É uma nota
interessante, um afastado convite de Leão Dehon a superar qualquer tipo de paternalismo, por muito nobre
que seja, na questão social.
Estão presentes em Reims 1.000 congressistas, dos quais 80 são da diocese de Soissons. O seu
apostolado social dava os primeiros frutos. Os trabalhos foram subdivididos em seis comissões. Leão
Dehon, relator da segunda comissão, trata das assembleias diocesanas, da sua utilidade, da maneira de
organizá-las, etc. Pode trazer a sua experiência pessoal, tendo acabado recentemente a assembleia de
Liesse.
O próprio arcebispo de Reims, Mons. Langenieux, preside a todas as reuniões gerais. O clima é de
grande entusiasmo e confiança, mas Leão Dehon faz esta reserva; “Com a penúria económica, o socialismo
vai-se robustecendo. Os católicos teriam que compreender que a caridade não bastava, que era preciso
estudar o tema da justiça social e fazer um programa de reformas”. 652 Seja pela citação introdutória ao
Congresso de Reims, seja por esta da clausura, o leitor deve recordar que as Memórias foram escritas ao
menos vinte anos depois dos factos recordados. O que é afirmado com tanta clareza, redigindo as
Memórias, agitava-se de modo mais incerto e confuso, embora real, na mente de Leão Dehon. Durante o
congresso de Reims, Leão Dehon reservou um dia para ir a Châlons, onde se realizava a reunião anual da
Sociedade de Arqueologia, sob a presidência de um seu amigo Leão Palustre. Continuava sendo membro
da Sociedade de Arqueologia, recebia a sua monumental revista, porém não podia dar-se ao luxo de
ocupar-se destas coisas.
Em 1876, de 25 a 30 de Agosto, Leão Dehon toma parte no congresso das Obras católicas para os
operários de Bordeaux, experimentando o mesmo entusiasmo, a boa vontade, o desejo de união dos
congressos de Nantes, Lyon, Reims: “Era a adolescência do nosso despertar social. Tudo era cor de rosa,
tudo era juvenil, tudo cheio de esperança; nenhuma divisão, nenhum desalento. Parecia que estávamos a
voltar a ganhar juventude, refazer as corporações e reanimar a vida social... Porém as obras de Deus não
avançam tão facilmente. Era preciso que as provas as sacudissem para consolidá-las”. 653 É um juízo dado
com grande clareza crítica, ao menos 20 anos depois.
Acabado o congresso de Bordeaux, Leão vai em peregrinação à humilde casa natal de S. Vicente de
Paulo, para uma boa jornada de oração.
648
NHV X, 166-168.
649
NHV X, 169-170.
650
NHV XI, 93.
651
NHV XI, 146-147.
652
NHV XI, 150.
653
NHV XII, 108.

138
Depois faz uma saída ao Norte de Espanha. Tem a surpresa de encontrar aí uma população robusta e
laboriosa e não meio cavalheiresca, meio frívola, como pensava. Em Burgos contempla maravilhado a
catedral, um verdadeiro relicário. À volta detém-se em Lourdes e reza muito para conhecer a vontade de
Deus sobre o seu futuro. Sente que se deve abandonar completamente à Providência divina.654
De 23 a 25 de Outubro de 1876, tem lugar o congresso de S. Quintino preparado pelo próprio Leão
Dehon. Na carta de convite dirigida aos sacerdotes e aos leigos cristãos da diocese em nome do novo bispo
Mons. Thibaudier, Leão Dehon recorda o entusiasmo de todos na assembleia das Obras Católicas de Liesse
de 10-11 de Março de 1875, da qual todos tinham saído convencidos de que era preciso agir, organizar a
acção católica!655 Aquela primeira assembleia tinha produzido os sus frutos: tinham surgido obras e
associações: “Bendigamos a Deus pelo que se fez. Estudaremos as causas da inactividade de tantos e
procuraremos os remédios que se possam apresentar”.656 Eram convidados não só os sacerdotes, mas os
leigos comprometidos e especialmente os industriais. Leão Harmel tinha assegurado a sua presença.
Embora não fosse mais do que um simples congresso diocesano, teve 250 adesões. Presidia o novo
bispo, Mons. Thibaudier. No primeiro dia Leão Dehon fez a relação sobre o secretariado diocesano das
Obras. Reconhecia que se tinha mantido vivo, porém que se não tinha feito tudo o que seria necessário pela
escassez de pessoal e por ter estado vacante a sede episcopal.657
Passa depois a falar das 58 obras existentes na diocese e examina algumas em particular. 658
Interessantes e muito concretos são também ao outros relatórios.659
Os dias do congresso coincidem com as festas solenes da peregrinação de S. Quintino. A clausura
como a abertura tiveram lugar na basílica com muita solenidade, na presença do Cardeal Régnier,
arcebispo de Cambrai, assistido por Mons. Gignoux, bispo de Beauveais e de Mons. Bataille, bispo de
Amiens, sendo orador Mons. Thibaudier.
Um belo congresso: “Foi o apogeu do despertar católico da diocese... Era um grande impulso para
as Obras, porém teria sido necessário continuar o movimento com um secretariado diocesano que
funcionasse bem em Soissons”.660
Durante o congresso enviou-se uma missiva ao Papa Pio IX que respondeu a 30 de Novembro com
um “breve”, cheio de paterna benevolência. O P. Dehon observaria anos mais tarde, quando escreve nas
Memórias: “O Papa tinha presentes só as obras para crianças e jovens. A Santa Sé ainda não estava
orientada para a acção social e democrática. O congresso (de S. Quintino) olhava muito mais para além das
obras destinadas à juventude, pois tratava dos círculos, das mútuas, da imprensa, etc.”.661
Na tarde do segundo dia do congresso, o 24 de Outubro de 1876, Mons. Thibaudier anuncia
publicamente a nomeação de Leão Dehon como cónego honorário da catedral de Soissons. Acaba de
completar 33 anos. Aclamações e felicitações chovem-lhe em cima, inclusive de onde menos esperava; por
exemplo, dos outros coadjutores, não desprovidos de mesquinhas invejas clericais.
Tenhamos em conta que, desde há mais de um ano, Leão Dehon é o segundo coadjutor da basílica e
director do vicariato. Com efeito, a 29 de Março de 1875 morreu D. Gobaille e a 3 de Março sucedeu-lhe
como arcipreste D. Mathieu, amigo de Leão Dehon. “Era uma temporada de êxitos – anota nas Memórias -:
depois virão as cruzes”.662
Em Fevereiro de 1877, Leão Dehon parte para a Itália em companhia de Mons. Thibaudier, de D.
Mathieu e de D.Mignot. A meta é Roma, onde Mons. Thibaudier deve ir para a visita “ad limina”.
Mons. Thibaudier é pequeno e magro, e desaparece entre Mathieu e Dehon. Nas sacristias Mathieu
é confundido com o bispo. Mons. Thibaudier diverte-se e quando algum mendigo pede esmola, orienta-o
para o “bispo”.
654
Cf. NHV XII, 109-110.
655
Cf. NHV XII, 43.
656
NHV XII, 44.
657
Cf. NHV XII, 53-54.
658
Cf. NHV XII, 58-59.
659
Cf. NHV XII, 59-79.
660
NHV XII, 47.80.
661
NHV XII, 82.
662
NHV XII, 82. O P. Dehon escreve nas Memórias que D. Gobaille morreu a 27 de Março de 1875, sábado santo (cf. NHV XI,
122); porém engana-se, pois morreu a 29 de Março de 1875, segunda-feira de Páscoa (cf, Paris-Vassena, Calendrier, 138; SRSL
([1875], 201).

139
Visitam Turim, Milão, Pádua, onde o povo gosta de rezar apoiando a cabeça no túmulo do santo.
Em Veneza admiram São Marcos, o Palácio dos Doges e até o famoso carnaval que Leão Dehon encontra
mais interessante e mais moral que o que se festeja em França.
Em Bolonha veneram o corpo de santa Catarina, que se conserva incorrupto e flexível desde há
séculos. Depois de Ravenna e Ancona é a vez do Loreto. Leão Dehon celebra a missa na santa casa. É o dia
14 de Fevereiro, quarta-feira de cinzas. Um dia escreverá ao P. Falleur: “Aqui (em 1877) nasceu a
Congregação”.663
A 15 de Fevereiro estão em Roma. Mons. Thibaudier e Leão Dehon são hóspedes no seminário
francês. D. Mathieu, um pouco contrariado, aloja-se na hospedaria em frente.
Mons. Thibaudier mostra-se extremamente bondoso. Faz de cicerone a D. Mathieu, leva-o a todos
os lados; porém este logo se aborrece mortalmente e lamenta o seu S. Quintino, “onde era rei e profeta”.664
No sábado 17 de Fevereiro, são recebidos em audiência por Pio IX. O Papa demonstra uma extrema
bondade. Leão Dehon encontra-o envelhecido. Fala calorosamente da tempestade levantada pela definição
da infalibilidade pontifícia, como se se devesse reconhecer no Papa o poder de depor os reis ou de
revolucionar a ordem civil. Mons. Thibaudier pede vários poderes e favores, mas o Papa não lhe concede
uma boa metade. Apresentados os dons, Pio IX expressa a sua admiração pela florida saúde de D. Mathieu,
definida “opulenta” por “corpulenta”.665
A breve permanência em Roma desperta em Leão Dehon o desejo de uma vida de estudo, de
recolhimento e de oração. Pede ao bispo para ficar no seminário francês para praticar o Direito Canónico,
mas o bispo não lhe concede a permissão..
Conseguidas as relíquias do mártir S. Clemente mediante uma oferta de 500 francos, partem para a
França. Leão Dehon, apenas chegado a S. Quintino, deve carregar as suas cadeias, que lhe parecem mais
pesadas que nunca: “Só sonhava libertar-me delas”.666
Em 1878, de 17 a 19 de Setembro, realiza-se em Soissons o congresso provincial das Obras, na
presença do arcebispo metropolitano de Reims, Mons. Langénieux e dos bispos das dioceses sufragâneas
de Châlons, Beauvais, Amiens, Soissons. Tinha sido Mons. Thibaudier a querer que o congresso
interessasse toda a província eclesiástica de Reims, de acordo com o metropolita e os bispos respectivos.
Organizador insubstituível, Leão Dehon que não apresentou nenhuma relação pelas muitas ocupações nas
suas novas fundações - a Congregação, o colégio S. João - e por estar muito mal de saúde. “Várias vezes,
durante as sessões, ia ao meu quarto vomitava sangue e enchia a bacia”. 667 Teve a coragem de tomar parte
nas discussões, embora moderadamente. As relações tratavam dos secretariados diocesanos das Obras, o
descanso dominical, as obras pias, a Obra dos Círculos, o ensino e a boa imprensa, as associações
patronais, a tarefa dos leigos nas obras, os patronatos na cidade e nas aldeias, a obra dos surdos-mudos de
S. Médard (Soissons): “Muitas destas relações eram pequena obras mestras ... Estas jornadas do congresso
despertaram o zelo entre os sacerdotes, muito mais que um curso de exercícios espirituais”.668

O ORATÓRIO DIOCESANO.

No mesmo ano (1874) em que Leão Dehon se tinha ocupado na fundação do diário católico “Le
Conservateur de l’Aisne”, tinha-se proposto fazer também algo para o clero, “já que a sua santificação é o
melhor dos apostolados”.669 Leão Dehon recebia uma pequena revista : “Etudes ecclésiastiques sur les
devoirs du sacerdoce et du ministère pastoral”, com que o Rev. Lebeurier animava as associações de
sacerdotes, surgidas em várias dioceses.
Leão Dehon falou disso ao seu piedoso amigo, D. Petit, pároco de Buironfosse. Decidiram pedir a
um sacerdote de prestígio que presidisse a associação sacerdotal e encontraram disponível D. Frion, decano
663
Carta do Loreto de 3.4.1894 (cf. AD, B 20/3).
664
NHV XII, 118.
665
NHV XII, 118.
666
NHV XII, 119.
667
NHV XIII, 66.
668
NHV XIII, 66.
669
NHV X, 174.

140
de Neuilly. Tratava-se de encontrar também sacerdotes que se lhes juntassem. Finalmente, a 28 de Julho de
1874, teve lugar a primeira reunião do Oratório diocesano durante um curso de exercícios espirituais
pregado pelo P. Dorr sj na casa dos jesuítas “St. Vincent”, de Laon. Mons. Dours encorajou a iniciativa. Os
primeiros membros foram só seis.
Adoptaram a regra do cónego Bartolomé Holzhauser (1613-1658) que em 1640 tinha fundado o
instituto dos clérigos seculares que viviam em comunidade, chamados em França “Barthélemites”. Eram
sacerdotes diocesanos sem votos públicos e que ficavam sob a jurisdição do bispo. Prometiam morar
juntos, excluindo, quando possível, todo o pessoal feminino das suas casas paroquiais e de pôr em comum
as entradas. Conservavam a liberdade de dispor dos seus bens patrimoniais, porém deviam dar conta do seu
uso ao seu superior. Comprometiam-se a não abandonar nunca o Instituto.
Floresceram no século XVII, depois decaíram e o Instituto desapareceu com a morte do último
superior geral, Christian Honold, em 1770. A meados de 800, numerosas tentativas tiveram lugar par
reconstitui-lo ou, ao menos, para dar ao clero secular as vantagens da vida comum. Surgiram assim os
Cónegos Regulares da Imaculada Conceição de D. Gréa, o Oratório diocesano de Mons. Dupanloup, etc.
Nos tempos de Leão Dehon, o animador em França dos oratórios diocesanos, segundo a inspiração de
Holzhauser, era o Rev. Lebeurier, do qual o novo oratório diocesano de Soissons adoptou a revista
“Estudos eclesiásticos...” e a regra, com a esperança de chegar a ter, no futuro, um centro na diocese para a
vida em comum.
D. Frion foi eleito presidente, D. Petit assistente e Leão Dehon secretário. Todos os membros
fizeram uma promessa que os vinculava ao Oratório diocesano de Soissons por um ano e começaram a
prestar as contas de consciência mensais ao presidente D. Frion. Em anos sucessivos o Oratório diocesano
desenvolveu-se. As reuniões eram feitas no seminário maior de Soissons durante os retiros pastorais. “O
Oratório diocesano – comenta o P. Dehon nas Memórias – fez sem dúvida um bem imenso, mantendo um
certo número de sacerdotes na fidelidade ao seu regulamento”.670
Com a fundação do colégio S. João (15 de Agosto de 1877), os sacerdotes membros do Oratório
diocesano pensaram que finalmente tinham a casa para a sua vida comunitária: “Pessoalmente, escreve
Leão Dehon nas Memórias, tinha outros projectos que não manifestei (a fundação da Congregação dos
Oblatos do Coração de Jesus). Estes projectos deviam levar-me a abandonar o Oratório diocesano, de que
tinha provocado a fundação”.671

A UNIVERSIDADE DE LILLE

A resposta do P. Freyd de 1 de Outubro de 1871 induziu o P. Dehon a renunciar à sua presumida


vocação ao apostolado da cultura e dos estudos superiores. Leão Dehon estava já imerso no apostolado,
quando lhe chegou uma carta de D. Hautcoeur que o convidava a colaborar na sua publicação periódica
“Revue des Sciences ecclésiastiques”.672
Eduardo Hautcoeur (1830-1915), nascido em Bruay.sur-Escaut (Norte), foi um dos primeiros
estudantes do seminário francês de Roma. Sacerdote em 1854, doutor em teologia em 1856, chegou a ser
professor no Seminário Maior de Cambrai. Em 1860 fundou a “Revue des Sciences Ecclésiastiques”.
Participou no Concílio Vaticano I na qualidade de teólogo de Mons. Régnier. Embora sendo apaixonado
estudioso da Idade Média, interessou-se muito pelos problemas do seu tempo. A sua grande obra é a
fundação, em 1877, da universidade católica de Lille, onde organizou cinco faculdades (Teologia, Direito,
Medicina, Letras, Ciências). Quis que a Universidade fosse muito romana, quase uma reprodução das
abadias medievais, como centros de oração, de estudo, de vida cristã, com um corpo de professores
homogéneo, de alto valor científico e religioso. Conhecedor dos dotes e inclinações de Leão Dehon,
parecia-lhe que a universidade ia ser o seu ambiente ideal.
Segundo o convite de Hautcoeur, Leão Dehon não devia abandonar o seu ministério, mas empregar
o seu tempo livre par escrever algum artigo para ser publicado na “Revue des Sciences Ecclésiastiques”.

670
NHV X, 177.
671
NHV XII, 134.
672
Carta de 13.2.1872 (AD, B 21/7).

141
Entraria assim a fazer parte do Collegium theologicum” composto por cinco membros encarregados da
redacção da revista... Com o tempo, poderia, inclusive, nascer uma “Escola Teológica”: “Vós tendes tudo
o que é necessário para fazer o bem neste campo”.673
D. Hautcoeur, então professor no Seminário Maior de Cambrai, não conhecia pessoalmente Leão
Dehon; tinha-lhe falado dele D. Bernard, condiscípulo de Leão Dehon no seminário francês, e que tinha
vindo visitar um seu tio, Vigário Geral da Cambrai.674
Leão Dehon sentiu que no seu coração despertava uma inconsciente saudade, nunca adormecida,
para o apostolado da cultura e pediu um encontro com D. Hautcoeur, que teve lugar em Douai 675 nos
princípios de Março de 1872. Não se chegou a nenhuma colaboração concreta. Passaram assim mais dois
anos. Em Agosto de 1874, é decidida a fundação da Universidade de Lille e Hautcoeur deve assegurar
professores de valia. A 6 de Agosto escreve a Leão Dehon propondo-lhe um curso de “Direito natural e das
pessoas, 4 ou 5 horas por semana, em francês...” ou, se preferir ensinar filosofia em francês aos futuros
estudantes de Direito, de Medicina, etc. ou em latim aos futuros estudantes de Teologia, ou então se
preferir qualquer outra cadeira..., não tem mais do que dizer...”.676 Leão Dehon escreve a Roma para pedir
conselho ao P. Freyd. Entretanto também respondeu a Hautcoeur, pedindo um pouco de tempo para
reflectir. A 23 de Agosto Hautcoeur volta à carga com argumentos persuasivos: As obras de S. Quintino
podem ser seguidas por qualquer sacerdote, enquanto para ser professor numa universidade são precisos
qualidades e títulos que poucos sacerdotes possuem. Leão Dehon está entre estes poucos. Aconselha-o que
reze e reflicta bem. Humanamente falando, Leão Dehon, em S. Quintino, era subaproveitado; em Lille,
pelo contrário, teria estado no seu verdadeiro lugar, valorizado.677
Um seu condiscípulo de seminário francês. O P. Guilhen, que se tornou jesuíta, tinha escrito a Leão
Dehon a 9 de Agosto de 1872: “Tu, coadjutor? Parece-me ridículo. Como será isso Senhor? Leão Dehon
não merecerá algo de melhor?”. Convidava-o a entrar na Companhia de Jesus.678
Leão Dehon responde a Hautcoeur com evasivas enquanto espera de Roma o conselho do P. Freyd.
Entretanto Hautcoeur insiste com outras duas cartas de 23 de Agosto e de 6 de Setembro. Espera uma
resposta afirmativa para apresentar, na reunião da comissão organizadora, o nome de Leão Dehon na lista
de professores.679
Este reza e pensa; está inclinado a aceitar. “Foram dias de angústia”.680 Para não se comprometer
antes de chegar o conselho do P. Freyd não tinha aceitado o convite de Hautcoeur para participar na
reunião da comissão organizadora. Finalmente, chega o parecer determinante do P. Freyd: ficar em S.
Quintino. “As vossas obras vos retêm e os outros motivos vo-los direi de viva voz...”681
Muitas eram as obras de Leão Dehon , iniciadas, não acabadas e com dívidas. Quem as pagaria?,
Leão Dehon, de volta do congresso da União das obras de Lyon (24-28 de Agosto de 1874) tinha passado
por Paris, onde tinha encontrado o p. Freyd e o tinha acompanhado a S. Quintino, depois a Cambrai para
uma audiência com o Cardeal Régnier, onde o tinha deixado.682
“O P. Freyd não acreditava no futuro das nossas universidades e, especialmente, na de Lille. Via
nela uma concorrência ao seu seminário (onde eram poucos os alunos). Enganava-se neste pormenor.
Porém era o meu director e obedeci”.683
O P. Freyd pensava que Leão Dehon, ficando entre o clero secular, chegaria a postos de grande
responsabilidade. O P. Désaire escrevia a Leão Dehon: “Para ti, o bom do P. Freyd não vê mais que uma
coisa: chegares a bispo de uma diocese... e aí farias um grandíssimo bem”. 684 Se tivesse de tornar-se

673
Carta de 13.2.1872 (AD, B 21/9).
674
Carta de D. Bernard a Leão Dehon de 9.3.1871 (AD, B 17/16).
675
NHV XI, 3.
676
Carta de 6.8.1874 (AD, B 21/7).
677
AD, B 21/7.
678
AD, B 17/6.
679
AD, B 21/7.
680
NHV XI, 8.
681
Carta de 28.8.1874 (AD, B 21/7); NHV XI, 8.
682
Carta de Leão Dehon a seus pais de 30.8.1874 (AD, B 18/11).
683
NHV XI, 9. Cf. Carta de P. Freyd de 6,10.1874: “Douai, não é um foco de jansenismo?” (AD, B 21/7).
684
Carta de 12.9.1874 (AD, B 17/6).

142
religioso, preferia que entrasse nos padres do Espírito Santo e chegasse a ser superior do seminário francês
de Roma. Essa é a razão pela qual Leão Dehon diz: “Respondi negativamente a Lille”.685
A 13 de Setembro de 1874, Hautcoeur manifesta-lhe por carta o seu desapontamento: “Rezai por
aquele que tivestes a crueldade de abandonar e pelo êxito da obra que se vê obrigado a empreender
sozinho; sim, absolutamente só...”.686Espera que a decisão de Leão Dehon possa mudar no ano seguinte.
Intervêm Mons. Monnier, Vigário geral de Cambrai, D. Proyart, Vigário geral de Arras, o amigo
Demiselle.687 Os senhores Feron-Vraun e Destombes, grandes industriais católicos do Norte, fazem uma
viagem a S. Quintino. Tudo inútil. “Mantive a minha decisão negativa”.688
As mesmas propostas foram renovadas em 1875 com idênticos resultados negativos.689 Se
avaliássemos o comportamento de Leão Dehon só desde o ponto de vista humano, psicológico, talvez nos
viesse a suspeita de imaturidade por parte do jovem sacerdote e também de manipulação por parte do P.
Freyd. Na realidade, como veremos melhor mais à frente, Leão Dehon actuou segundo as exigências do
espírito de fé com o seu director espiritual, uma atitude sobrenatural que raia o heroísmo. No plano
sobrenatural trabalhava a Providência divina, à qual Leão Dehon afirma repetidamente que se tinha
abandonado por completo quando recebeu o convite do seu bispo para ser o último coadjutor da basílica de
S. Quintino.
A Providência devia realizar um seu desígnio de amor. Não queria Leão Dehon como cooperador da
organização de uma universidade católica, mas fundador de uma congregação religiosa: os Oblatos do
Coração de Jesus.
A contrariedade é até agora, uma constante na vida de Leão Dehon e sê-lo-á ainda mais no futuro.
Depois dos seus estudos secundários, o seu desejo do sacerdócio confronta-se com a oposição de seu pai. É
uma proibição formal que o obriga a fazer estudos universitários em Paris. Todas as grandes iniciativas da
sua vida: sacerdócio, ensino superior, vida religiosa são contrariados de mil maneiras. Leão Dehon deverá
conquistar o que mais quer lutando para fazer a vontade de Deus. A luta forjará o seu carácter, obstinado
em conseguir a meta proposta, porém flexível na sua realização, adaptando-se às circunstâncias.
Quanto à proposta de Hautcoeur, é também legítimo perguntar-se: como poderia Leão Dehon
assumir um encargo de ensino universitário com uma vida tão apostolicamente intensa e com tantas obras?
Na realidade, os seus estudos durante os anos de coadjutor tinham-se reduzido a uma espécie de
manutenção intelectual. Queixa-se disso repetidamente nas Memórias.690 Se lê várias obras, fá-lo por
necessidade pessoal: meditação ou leitura espiritual; ou por imperativos do seu ministério: catecismo e
pregação. Os únicos estudos que aprofunda são os sociais, tanto por gosto pessoal como para as
conferências aos jovens estudantes do círculo de J. Maistre. Lê as obras de Frederico Le Play, as do P.
Taparelli d’Azeglio, de Blanc de St. Bonnet, de Mons. Freppel, de Leão Gautier e de outros.691
Em todos os contactos para a universidade de Lille não se tinha contado com o bispo de Soissons,
Mons. Dours, que podia dar ou negar autorização a Leão Dehon para deixar S. Quintino. Na realidade,
Mons. Dours e seu irmão Hipólito, que o ajudava na administração ordinária da diocese como Vigário
Geral, eram contrários à saída de Leão Dehon. “Ele (Mons. Dours) fará o que puder para manter-me na
685
NHV XI, 9. Carta de 7.9. 1874 e Leão Dehon a Hautcoeur (AD, B 21/7).
686
Carta de Hautcoeur a Leão Dehon (AD, B 21/7); cf. carta a seus pais de 16.9.1874 (AD, B 18/11).
687
Cf. carta de Demiselle a Leão Dehon de 14.9.1874 (AD, B 21/7).
688
NHV XI; cf. carta a Hautcoeur de 16.9.1874 (AD, B 21/7).
689
Carta de Hautcoeur a Leão Dehon de 25.71875 (AD, B 21/7) e de D. Mathieu Leão Dehon de 25.7.1875 (AD, B 21/7).
690
Cf. NHV IX, 165; X, 28; XI, 34. Entre outras coisas, desculpa-se da sua “pouca literatura” (NHV X, 30). Julgava a sua
preparação “bastante exacta e piedosa, porém um pouco fria e desprovida de retórica... Faltava-me formação. Em Roma não se
faziam sermões. Tinha feito no colégio uma retórica demasiado arcaica e dificultada pela preparação ao bacharelado. Não sabia
ler. Em tudo procurava a ideia de fundo. Tinha o sentido literário muito pouco desenvolvido. Não me faltava coração; mas tinha
uma imaginação muito pobre. O meu meio retórico melhor seria o sentimento, mas não o utilizei bastante” (NHV IX, 98). Por
outro lado não experimenta “a pura literatura, o romance... a arte pela arte” (NHV X, 28).
691
Cf. NHV XI, 36-40. O pensamento e a actividade social de Leão Dehon durante os seus anos de coadjutor inspiram-se muito
na doutrina social de F. Le Play, que defende a necessidade da intervenção do Estado e da Igreja nas empresas e nas famílias;
porém uma intervenção fundada no amor. Daí a responsabilidade da classe dirigente ou patronal para remediar as injustiças
sociais. É um “paternalismo” animado pelos melhores propósitos, e que deu bons frutos. Não tinha o significado pejorativo
actual. O mundo de Le Play é um mundo patriarcal, no qual as diferentes células sociais funcionam como numa família, olhando
mais para o bem estar dos homens como tais do que para a produção e para o proveito. As famílias felizes são as que vivem os
dez mandamentos, reunidas sob uma autoridade paterna. O melhor exemplo concreto é o de Leão Harmel em Val-des-Bois.

143
diocese”, escreve Leão Dehon a seus pais a 24 de Setembro de 1874. Indubitavelmente estes preferiam que
seu filho fosse professor na universidade de Lille, mais que humilde coadjutor em S. Quintino e, também
no conselho episcopal, D. Demiselle e D. Gujard, Vigário Geral, eram favoráveis à proposta de
Hautcoeur.692
Escrevendo-lhe, Leão Dehon prevê que a decisão será ficar em S. Quintino: “Nisto tinha que ver a
vontade de Deus manifestada através dos meus superiores” 693 A vontade de Deus! Inclusive quando lei de
1\2 de Junho de 1875 tornou possível a fundação de universidades católicas e Hautcoeur volta a convidar
Leão Dehon, este responde: “Não tenho mais que um desejo: o de fazer a vontade de Deus” que será
manifestada pela decisão do novo bispo de Soissons, Mons. Thibaudier.694
“Fazer a vontade de Deus” é o motivo final das decisões de Leão Dehon, também quando o
aconselha o P. Freyd. “Preferiria o ensino superior – escreve ao amigo Palustre – que deve ter uma
grandíssima influência na renovação do nosso país. Neste momento já não sou eu mesmo: sou o servo de
todos e todos se servem amplamente de mim”.695
Com o abandono à vontade de Deus, que com tenta frequência expressa Leão Dehon com o “fiat”,
põe-se em relevo uma segunda característica da sua espiritualidade: a disponibilidade para o serviço de
todos especialmente dos mais pobres e mais necessitados. A prática da caridade é nele completa, mesmo se
não perfeita.
Todavia sempre conservará a nostalgia do apostolado intelectual superior: “Tenho pena de não ter a
possibilidade de aproveitar os meus estudos passados. Porém faço tranquilamente o meu trabalho,
esperando que se manifeste a vontade de Deus. Com grande alegria soube que o P. Cochard tomou o meu
lugar em Lille. Creio que o ensino superior é o grande meio para refazer a sociedade cristã. Nas nossas
cidades nós salvamos alguma alma, porém não deixamos de estar dominados pela corrente e a educação
universitária faz mais mal todos os dias do que nós o bem”.696
A providência destinava Leão Dehon à missão de fundar uma congregação dedicada ao amor e à
reparação. Escrevia-lhe o P. Eschbach, sucessor do P. Freyd, como superior de Santa Clara: “Se a
Providência divina vai devagar, seria temerário da vossa parte querer adiantar-vos a ela. Onde nos levará?...
Confio que vos levará a bom porto. Enquanto esperamos, sejamos dóceis e trabalhemos com calma, sem
forçar nada”.697
O bom porto era a fundação dos Oblatos do Coração de Jesus.

VIDA ESPIRITUAL DE LEÃO DEHON

Leão Dehon conservou ao longo de toda a sua vida uma verdadeira saudade dos seus anos de
seminário, onde descobriu e viveu a união de amor com Deus, onde recebeu tanta luz e tanta força para o
conhecimento do seu íntimo e o aperfeiçoamento de si mesmo.
Naqueles anos cresceu deveras numa vida nova segundo o espírito. Esta maravilhosa experiência,
para Leão Dehon, está ligada a uma vida regular e a uma ascética exigente. Agora, esta regularidade é
desconcertada continuamente pelos imprevistos do apostolado paroquial com a penosa consequência do
enfraquecimento da vida interior. Daqui o seu desejo que pouco a pouco se vai transformando numa
dolorosa exigência espiritual, de refugiar-se na vida religiosa.
Todavia, para além das contínuas variantes de uma intensa vida de apostolado, fica, como
componente estável da alma de Leão Dehon, o núcleo essencial da sua vida espiritual: a atitude da
disponibilidade, da oblação a Deus e aos homens.
Durante os seus anos de seminário, Leão Dehon escolheu como lema da sua vida: “Domine, quid
me vis facere?”,698 sintetizado naquele simples “fiat!” que repetirá especialmente nos momentos mais
692
AD, B 18/11.
693
Carta de 16.9.1874 (AD, B 21/17).
694
Carta de 25.7.1875 (AD, B 21/7).
695
Carta de 19.1.1875 (AD, B 18/10).
696
Carta ao P. Freyd de 28.11.1874 (AD, B 36/2).
697
Carta de 26.9.1875 (AD, B 17/6).
698
NHV V, 2.

144
difíceis da sua vida. Também no início e durante os seus anos de ministério paroquial a sua única
preocupação espiritual é de fazer em tudo, como Cristo, a vontade do Pai. É uma vida de “oblato” ao amor
do Pai e dos irmãos, mesmo antes de fundar os Oblatos do Coração de Jesus.
Assim começa a sua humilde experiência de último capelão da basílica de S. Quintino, como já
referimos: “A 3 de Novembro (1871) fui enviado para S. Quintino só pela vontade de Deus”.699 É o dia em
que recebe a carta de destino da parte do seu bispo Mons. Dours: “Era absolutamente o contrário daquilo
que desejava desde há tantos anos: uma vida de recolhimento e de estudo. Fiat!. 700 Mesmo se as Memórias
foram escritas 20 anos mais tarde, não podemos duvidar da sua sinceridade em relação ao estado de alma
do jovem Leão Dehon: “Sentia a maior repugnância para tal género de ministério; porém não o manifestei
de maneira alguma”.701 É um silencioso sacrifício interior. “acredito que tenhais tomado a decisão que, de
momento, é a mais conforme com a vontade de Deus”. Assim lhe escreve o P. Freyd a 21 de Outubro de
1871, quando Leão renunciou definitivamente a Nîmes e se colocou à disposição do seu bispo. 702
“Obedecia... aos meus directores, que outra coisa podia fazer?”.703
Todavia aquele ministério, que Leão Dehon tinha abraçado sem entusiasmo, mas também sem
amargura, por puro amor de Deus, proporcionar-lhe-á bem cedo grandes alegrias. Encontra-se à vontade
com o arcipreste e com os companheiros do vicariato.
O ministério oferecia-lhe todos os dias alguma consolação, tanto que a 5 de Julho de 1872 pode
escrever ao P. Freyd: “Cumpro o meu ministério com um grande coração, como se não tivesse nunca
pensado noutra coisa”.704 Manifesta a sua satisfação também aos amigos, a Palustre, a D. Demiselle e a D.
Petit.705 Descobrimos assim um outro aspecto do carácter e da espiritualidade de Leão. Não é um teórico,
um homem dedicado só ao estudo. Não o será nunca na sua vida. Leão Dehon é um homem de acção. As
tristes situações sociais provocam-no a estudar, para encontrar soluções. Empenha-se no apostolado, com a
máxima disponibilidade para um melhor serviço dos irmãos, especialmente mais necessitados, como eram
naquele tempo os aprendizes e os operários. No fazer a vontade de Deus e na disponibilidade aos irmãos o
jovem coadjutor exprime concretamente o seu espírito de oblação.
Começando pela sua primeira obra, o Patronato, diz que foi “a Providência a conduzi-lo pela
mão”.706 É a lógica consequência do abandono à vontade de Deus: “Reconheço todos os dias que o bom
Deus me guiou sempre para o maior bem da minha alma e descanso completo na sua divina
Providência”.707
O P. Freyd, numa carta de 3 de Junho de 1874, depois de se alegrar com Leão pelas numerosas
obras que realizou em S. Quintino, confirma-lhe que está no seu lugar, está a fazer a vontade de Deus, à
espera “que a boa Providência vos tome pela mão e vos conduza para onde ela sabe... Permanecei nas mãos
do Senhor como dócil e fiel instrumento das suas obras e da sua adorável vontade”.708
Fazer a vontade de Deus, estar disponível para o serviço dos irmãos num estado de oferta de amor
ou oblação é o centro da vida espiritual do jovem coadjutor, como resulta das centenas de páginas das suas
Memórias e da copiosa correspondência relacionada com este período da sua vida.
Uma última prova são as insistentes propostas, para que aceite um cátedra na universidade de Lille,
das quais já falámos: “Inclinava-me fortemente a ceder”.709 Porém responde negativamente para obedecer à
vontade de Deus, manifestada primeiro pelo P. Freyd e, após a sua morte, pelo seu bispo.

699
NHV IX, 70.
700
NHV IX, 71.
701
NHV XII, 152.
702
AD, B 21/7.
703
NHV IX, 68.
704
AD, B 36/2.
705
Cf. Carta a Leão Palustre de 8.1.1872 (AD, B 18/10).
706
NHV IX, 97.
707
Carta ao P. Freyd de 9.3.1873 (AD, B 36/2). Como confirmação da predilecção que com ele teve a Providência, cita a
experiência negativa de Désaire em Nîmes: “Não ousando enfrentar a cólera do P. d’Alzon... fugiu simplesmente com um padre
de Savoia que se lhe tinha unido havia um ano. Previa eu tudo isto há algum tempo”.
708
AD, B 21/17; cf. NHV XI, 11-12.
709
NHV XI, 8.

145
A obediência de Leão Dehon é abandono, confiança nos seus directores e superiores, mas é ao
mesmo tempo uma visão clara da situação concreta, dos acontecimentos que são também uma
manifestação da vontade de Deus.
Quando o P. Freyd em 1874 lhe propõe a entrada na sua congregação (os padres do Espírito Santo)
para depois lhe suceder como superior em Santa Clara, Leão responde: “O que me propondes seria para
mim um paraíso. Estar em Roma, ter as vantagens da vida religiosa, estudar a bel-prazer, tudo isso me atrai
extraordinariamente. Mas é a vontade de Deus? Arrisco-me a comprometer tudo”. 710 E numa carta de 29 de
Janeiro de 1875, explica mais pormenorizadamente que o seu afastamento de S. Quintino implicaria
provavelmente a ruína do Patronato com os seus 400 membros e o mesmo aconteceria com “Le
Conservateur de l’Aisne”. Há as Servas que não só têm necessidade para a sua alma, mas também para a
sua situação económica, que exige muita vigilância. Há o secretariado diocesano das Obras, onde está
praticamente só. Há oposição à sua partida em Soissons (bispo), em S. Quintino, em La Capelle. Enfim, é
preciso contar com o clima de Roma.711 “Sei bem, continua Leão na sua carta de 11 de Dezembro de 1874,
que o seminário francês é uma obra capital. Penso que aqui (em S. Quintino) sou um soldado, em Lille
seria um oficial, em Roma um general do exército, encarregado da formação dos oficiais que virão para as
nossas universidades a instruir os soldados de Deus... Mas, é a vontade de Deus?”712
Concluindo, referimo-nos a uma carta de Leão ao P. Freyd, na qual fala do Patronato, cuja
organização está completa, está feito o que é necessário também no campo material, as reuniões são agora
regulares: “Quando o futuro desta obra estiver inteiramente assegurado, não perco a esperança de fundar
outras, se o bom Deus me der a graça”. 713 E numa carta anterior tinha escrito: “Não me preocupo: coloco
tudo nas mãos do bom Deus”.714
São duas citações significativas que nos apresentam Leão Dehon como um homem de acção,
vulcânico, sempre disposto a novas iniciativas de bem, a novas obras e, ao mesmo tempo, um homem
abandonado à vontade de Deus numa atitude contemplativa que caracteriza a sua vida.

A DECISÃO PELA VIDA RELIGIOSA.

Há ainda uma constante na vida espiritual de Leão Dehon, que remonta aos anos de seminário e
continua nos anos de ministério em S. Quintino: a aspiração à vida religiosa.715
Em Outubro de 1872 faz alguns dias de retiro em Liesse e escreve nas Memórias: “Conservava o
desejo ardente da vida religiosa. Temia perder a vida interior na actividade do ministério e das obras”.716
A 16 de Janeiro de 1873, Leão Dehon escreve esta nota espiritual: “Meu Deus, renovai na minha
alma a graça do sacerdócio. Que possa encontrar e conservar o fervor da minha ordenação!”. Comenta nas
Memórias: “Este grito demonstra que estava dominado pela actividade exterior, A vida interior começava a
sofrer. Não soube empenhar-me suficientemente nos meus deveres de vida interior”.717
Pensando no conselho do P. Freyd: “Mantende-vos bem unido ao Bom Mestre, consagrado
totalmente à boa Mãe Imaculada”,718 Leão comenta: “Infelizmente o conselho era mais fácil dá-lo que
segui-lo... Confrontando-se com as infinitas necessidades de uma grande cidade, era bonito dizer: “Não vos
deixeis absorver pelas vossas obras”. Os meus estudos sofriam e também a minha vida interior”.719
Compreendemos então o tom de reprovação com que Leão Dehon começa uma carta ao P. Freyd,
seu padre espiritual: “Devo dizer-vos que experimentei durante um pouco de tempo certo rancor para
convosco. Quiçá adivinhais o porquê. Sabeis quão grande era o meu desejo da vida religiosa para

710
Carta de 11.12.1874 (AD, B 36/2) em resposta à carta do P. Freyd de 2.12.1874 (AD, B 21/7).
711
AD, B 36/2.
712
AD, B 36/2.
713
Carta de 9.3.1873 (AD, B 36/2).
714
Carta ao P. Freyd de 5.7.1872 (AD, B 36/2).
715
Cf. NHV IX, 135.
716
NHV IX, 135.
717
NHV X, 28
718
Carta de 14.12.1872 (AD, B 21/7).
719
NHV X, 148.

146
completar o meu sacrifício e para praticar mais amplamente os conselhos de perfeição. Não tínheis mais
que me dizer uma palavra e eu teria ido para onde me tivésseis enviado. Em vez disso, deixastes-me no
mundo. Esse é o motivo do meu rancor”. 720 Porém, nos misteriosos desígnios de Deus, o P. Freyd tinha
razão. Numa carta tinha escrito quase profeticamente a Leão: “Mais tarde vereis como a divina Providência
conduz tudo a bom termo e sabe servir-se maravilhosamente das coisas mais pequenas, que nos parecem
insignificantes, para levar-nos finalmente para onde estamos chamados a realizar a sua obra...”.721 E a 6 de
Outubro de 1874, poucos meses antes da sua morte, (16.3.1875): “Estou de todo persuadido que Nosso
Senhor guiará os vossos passos e os levará para onde deveis servi-lo e glorificá-lo”.722
Entretanto era fiel à prática anual dos exercícios espirituais e é natural que naqueles dias de maior
recolhimento sentisse mais agudo o desejo de abraçar a vida religiosa. Também a fundação do Oratório
diocesano, com as suas estruturas que lembravam a vida religiosa, era para Leão Dehon um incitamento a
consagrar-se inteiramente a Deus. Disso fala com o Jesuíta P. Dorr durante os exercícios feitos em Laon de
27 a 31 de Julho de 1874. “A vocação é uma graça tão superior que merece ser desejada e pedida com
perseverança a custo de muitos sacrifícios” escreverá ele mais tarde ao P. Dorr.723 Nos exercícios espirituais
feitos em Soissons de 17 a 22 de Agosto de 1875, Leão confirma-se na decisão de mudar a sua situação:
“Estou demasiado ocupado em S. Quintino. Demasiadas obras. Tinha, no seminário, a atracção e o costume
da vida interior. Estou abafado por tanta actividade; não posso reservar para mim aqueles momentos de
recolhimento que me são necessários”.724
Agora Leão sente-se psicologicamente saturado e espiritualmente cansado. Deve encontrar uma
solução, segundo a vontade de Deus. Seguindo o conselho do jesuíta P. Pouplard, faz um curso de
exercícios espirituais de eleição de 21 a 27 de Março de 1876 na casa de S. Vicente de Laon, sob a direcção
do P. Dorr.725
A escolha de Leão Dehon não é, se bem se examina, entre a vida religiosa e a de sacerdote secular.
Desde há muitos anos sente a chamada para a vida religiosa. Não pode duvidar do desígnio de Deus para
com ele. Seguindo porém a lógica da alma que procura “só a Deus”, Leão não considera unicamente as
suas atracções por muito santas que sejam, mas considera também a situação concreta, os seus
compromissos práticos, pesados e desagradáveis, já que é nas circunstâncias concretas que se manifesta a
vontade de Deus. A escolha de Leão é relativa especialmente ao modo e ao tempo oportuno para realizar o
desígnio de Deus a seu respeito.
Faz um confronto entre razões que o impelem para a vida religiosa e as situações concretas que o
vinculam à vida secular e conclui: “Terei em vista a vida religiosa, que abraçarei de preferência à vida
secular... Todavia entrarei só quando puder abandonar as minhas obras sem escândalo e sem grave dano
para a salvação das almas”.726
Entretanto Leão Dehon viverá em estado de oblação, de abandono total à vontade de Deus: “Deus
pode eliminar os obstáculos e pôr à minha disposição os grandes bens da vida religiosa”.727
Onde se faria religioso? Nos Padres do Espírito Santo? Diante desta pergunta, o P. Eschbach, novo
superior do seminário francês nos finais de 1875, responde-lhe com prudência: “Pedirei a Deus que ilumine
a sua alma... Eu ficaria mais feliz se fôsseis dos nossos...; porém é Deus quem tem de chamar-vos.728
Far-se-á jesuíta? Responde-lhe o P. Pouplard: “A minha reserva é um sinal de quanto é importante
para mim que possais dizer que somente Deus, com o vosso concurso, realizou a sua obra”.729
E Leão Dehon, procurando só a vontade de Deus, não será jesuíta nem entrará nos Padres do
Espírito Santo, mas fundará os Oblatos do Coração de Jesus.

720
Carta de 30.9.1873 (AD, B 36/2).
721
Carta de 25.8.1872 (AD, B 21/7), Cf, NHV IX, 147.
722
AD, B 21/7. Cf. NHV XI, 13 bis.
723
Carta de 17.9.1876 (AD, B 17/6). Cf. NHV XI, 2.
724
VHV XI, 145.
725
Cf. Carta do P. Pouplard sj a Leão Dehon de 25.11.1875 (AD, B 17/6).
726
NHV XII, 2-3.
727
NHV XII, 3.
728
Carta de 24.11.1875 (AD, B 17/6); cf. NHV XII, 160.
729
Carta de 28.3.1876; cf. NHV XII, 160.

147
148
CAPÍTULO 11

Os Oblatos do Coração de Jesus

“A grande questão” – As Servas do Coração de Jesus – Atracção pelo Sagrado Coração e a reparação – Uma
co-fundadora? – Luzes e graças – O Colégio S. João e os Oblatos do Coração de Jesus – Noviço e Director.

“A GRANDE QUESTÃO”

“Chegara o momento providencial para a realização da minha vocação. Tomei uma resolução a 27
de Junho de 1877. Devia fazer os meus primeiros votos a 28 de Junho de 1878. Porém quero contar aqui
toda a preparação desta vocação e os seus motivos”.730
Assim começa o P. Dehon a falar nas suas Memórias, depois de anos de oração, de procura, de
hesitações e de dúvidas, sobre os últimos acontecimentos que o levaram à fundação dos Oblatos do
Coração de Jesus.
Sabemos que sentia grande repugnância pelo ministério paroquial e que a sua inclinação o levava ao
“recolhimento, à obediência religiosa, à pobreza, ao estudo”.731
Todavia, humanamente falando, era um afortunado, objecto de inveja de não poucos dos seus
companheiros de sacerdócio: “Tudo me sorria na vida sacerdotal. Era querido por todos. As minhas obras
prosperavam, era cónego honorário aos 33 anos. Falava-se em fazer-me Vigário Geral...”. O P. Freyd tinha-
o preconizado bispo... “Todavia não era feliz. Estava sobrecarregado de trabalho”. Ressentiam-se a sua
vida espiritual e a vida intelectual: “Queria a vida religiosa”.732
A 1 de Maio de 1877, escreve ao P. Daum: “O ministério que me absorve é para mim um sacrifício
contínuo já que, de certo modo, me obriga a viver no meio do mundo que aborreço e não me deixa
suficiente liberdade nem para a piedade nem para o estudo. Fiat voluntas Dei”.733
O peso da cruz de cada dia e o abandono à vontade de Deus! Nos fins de 1871 escrevia-lhe o P.
Freyd: “O futuro vos mostrará mais claramente o que Nosso Senhor pede definitivamente de vós”. E em
1872: “Permiti que a Providência guie a vossa barca”.734
Agora, aquele futuro era presente e a barca estava para entrar finalmente no porto. A Providência “
tomara-o pela mão” e levava-o a realizar “a obra que lhe destinara”.735
O grande obstáculo à realização da vocação religiosa de Leão Dehon eram as suas obras de S.
Quintino. “Fiz tentativas para procurar libertar-me delas... Escrevi aos Padres da Imaculada Conceição de
Rennes, aos Irmãos de S. Vicente de Paulo e a muitas outras congregações para ceder-lhes a direcção das
minhas obras em favor dos operários. De todos os lados recebi respostas negativas. Estava preso em S.
Quintino”.736
A resposta estava sendo preparada pela Providência: devia fazer-se religioso, como resultava claro
dos exercícios de eleição feitos em Laon, sob a direcção do P. Dorr de 21 a 27 de Março de 1876, porém
sem deixar S. Quintino.

730
NHV XII, 151. No arquivo dehoniano conserva-se um manuscrito (a escrita não é do P. Dehon) intitulado: Notes sur la
préparation de ma vocation” (1870-1877) (cf. B 36/1). Este manuscrito, segundo o P. Bourgeois, é anterior à redacção das
Memórias. Compreende-se então melhor a expressão do P. Dehon: “Quero contar aqui...” (cf. A. Bourgeois scj Le Père Dehon à
Saint-Quentin, 115).
731
NHV XII, 152.
732
NHV XII, 116.
733
AD, B 36/2.
734
Cartas de 21-10.1871 e de 16,5,1872 (AD, B 21/7).
735
A imagem é do P. Freyd numa carta de 3.6.1874 (AD, B 21/7).
736
NHV XII, 76.

149
Uma confirmação tinha vindo da recusa do seu bispo, Mons. Thibaudier, de lhe conceder um ano ou
dois de permanência em Roma. Queria aperfeiçoar-se nos estudos de Direito canónico praticando na
Chancelaria...; na realidade, o motivo verdadeiro era libertar-se das obras de S. Quintino e começar o
noviciado com os Padres do Espírito Santo.
Mons. Thibudier tinha oposto uma recusa clara. O Bispo de Soissons, muito sensível ao apostolado
no campo da escola, desde o tempo em que tinha sido auxiliar em Lião, desejava a fundação de um colégio
católico em S. Quintino, a cidade mais importante da diocese. Leão Dehon, com as suas obras, tinha dado
já uma excelente demonstração da sua habilidade e podia garantir também o sucesso deste difícil
empreendimento.
Todavia, a Leão Dehon, naquele momento, não lhe interessava uma nova obra, mesmo que fosse
um colégio católico. A breve estada em Roma e em Santa Clara, durante a viagem à Itália com Mons.
Thibaudier, D. Mathieu e D. Mignot, em Fevereiro de 1877, tinha despertado os seus mais vivos desejos.
Queria uma vida de estudo, de oração, de recolhimento.737
A hora de Deus estava próxima. “Nosso Senhor preparava tudo sem que suspeitasse dos seus
desígnios”, escreve o P. Dehon nas Memórias.738

AS SERVAS DO CORAÇÃO DE JESUS

Já dissemos como foi providencial para a vida religiosa de Leão Dehon o encontro com as Servas
do Coração de Jesus já desde 1873. Entre este jovem sacerdote e estas Irmãs estabeleceu-se uma verdadeira
comunhão de espírito. Atraía-o a finalidade do seu carisma: “Uma vida de amor puro e de imolação em
espírito de reparação ao Coração de Jesus, através de uma completa doação de todas as orações e acções ao
divino Coração e do zelo em fazê-lo amar e em consolá-lo”.739
Significativa é uma nota espiritual de Leão Dehon de 16 de Dezembro de 1872, citada nas
Memórias, que demonstra a afinidade espiritual com as Servas, ainda antes de as conhecer: “O espírito de
piedade consiste no filial amor a Deus. Devemos temer o que pode entristecer o seu Coração. Meu Deus,
sinto tristeza ao ver-vos ofendido e não poder impedi-lo. O meu desejo é cumprir em tudo a vossa santa
vontade. Apressar-me-ei a reparar, com todos os meios possíveis, os ultrajes que recebeis. Amo também
tudo aquilo que se relaciona convosco, a Igreja, os santos, as almas resgatadas com o vosso sangue”. “Esta
nota – escreve o P. Dehon – demonstra que Nosso Senhor me preparava para o espírito que tinha de ter a
Congregação que me ia levar a fundar”.740
A 16 de Junho de 1875, no segundo centenário da aparição do Coração de Jesus a Santa Margarida
Maria, a Madre Maria do Coração de Jesus, fundadora das Servas, e a irmã Maria de S. Inácio, que tanta
influência terá na vida religiosa do P. Dehon, emitiram o voto público de vítima. Quem as apoia
espiritualmente é o P. Dehon.
Uma prática de piedade essencial para as Servas é a adoração eucarística. A 1 de Novembro de
1878, começam a adoração perpétua diurna e, em 1900, também a nocturna, até 10 de Março de 1917
quando terão que deixar S. Quintino, evacuadas pelos alemães, durante a primeira guerra mundial.
Vivendo em comunhão de espírito com as Servas, Leão Dehon vive antecipadamente todos os
valores essenciais do seu carisma religioso, que será o carisma da sua Congregação.

ATRACÇÃO PELO SAGRADO CORAÇÃO E PELA REPARAÇÃO


737
Cf. NHV XII, 118-119
738
NHV XII, 162.
739
Notes sur la vie de la T.R.Mère Marie du Coeur de Jésus, 29-30. É interessante notar como todos estes elementos,
característicos do fim especial das Servas, estão presentes no acto de oblação atribuído a S. Cláudio de la Colombière, usado
durante muitos anos na Congregação do P. Dehon (cf. Thesaurus precum, ed. Italiana, Bolonha 1856, pp. 12-15). Cf. Cartas ao
P. Giraud de 21.5.1877 e a Madre Verónica de 8.6.1877 e de 22.6.1877, em A. Bourgeois, Le Père Dehon, 154-162.
740
NHV X, 26.

150
Por todas estas circunstâncias e por aquela que já recordámos relativamente à formação de Leão
Dehon, aos tempos em que viveu e à corrente de espiritualidade que o alimentou, não nos causa estranheza
ler nas suas Recordações: “Toda a minha atracção era para o Sagrado Coração e para a reparação...
Pesquisava e esperava... Em 1877 não podia resistir mais. Com cartas e viagens procurei saber se alguma
obra já iniciada podia satisfazer a minha atracção pelo Sagrado Coração e pela reparação... Não encontrei
nada bem aviado e, por outro lado, estava demasiado vinculado pelas minhas obras para poder partir... Que
fazer? Em S. Quintino, as Servas do Sagrado Coração tinham as mesmas aspirações que eu acerca da obra
sacerdotal. Cheguei a perguntar-me se a Providência não procurava induzir-me a iniciar, eu mesmo,
alguma coisa”.741

UMA CO-FUNDADORA?

Procuremos agora precisar detalhadamente esta exposição sintética do P. Dehon nas suas
Recordações.
Alguns têm insistido sobre o papel relevante que a Madre Maria do Coração de Jesus teve na
fundação dos Oblatos, até fazer dela uma co-fundadora. Examinando todos os documentos, deve-se
subscrever o que o P. Dehon afirma numa sua carta ao P. Paris: “A Chère Mère – assim era chamada
familiarmente a Madre Maria do Coração de Jesus – teve a sua missão de fundadora (das Servas) e para
nós uma missão de oração e de imolação”.742
A Madre Maria do Coração de Jesus e Leão Dehon viviam uma idêntica espiritualidade de amor e
de reparação. Ambos desejavam a fundação de uma obra reparadora sacerdotal. A Chère Mère não se
atrevia a pensar numa fundação de um novo instituto, mas desejava uma associação reparadora de
sacerdotes sob a direcção do seu primeiro director espiritual, o Jesuíta P. António Jenner. “Compreendia e
gostava dos pontos de vista da Chère Mère – escreve o P. Dehon nas suas Memórias – sem porém ver nisso
uma vocação para mim. Incitava as confidências da Chère Mère ... e esta, entretanto, rezava para que
Nosso Senhor suscitasse, a devido tempo, o apóstolo designado para esta difícil missão. “Penso que a hora
está a chegar – escrevia a fundadora das Servas a 25 de Maio de 1877 a Leão Dehon – e assim peço à sua
misericórdia”.743
A Madre Maria do Coração de Jesus não pensava então que esse apóstolo seria Leão Dehon.
Entretanto, a graça trabalhava na alma do jovem sacerdote que queria ser religioso e sentia uma
atracção poderosa para uma obra ideal de amor e de reparação que respondesse aos desejos manifestados
por Nosso Senhor em Paray-le-Monial e pela Virgem em La Salette. As Servas rezavam pela realização
desta obra.

LUZES E GRAÇAS

Houve também “graças pessoais e luzes”, escreve o P. Dehon no Diário,744 acerca do Instituto que
devia fundar; porém não quer falar disso. E pouco antes afirma: “Como o P. João Eudes foi ajudado pela
irmã Maria des Vallées e João Jacobo Olier por Maria Rousseau, também eu tive a ajuda da irmã Maria de

741
Lettere circolari, nn. 333-334, 338-339.
742
Carta de 20.12.1924 (AD, B 20/7,4).
743
NHV XII, 162-163. Carta de 25.2.1877 (AD, B 34/5) citada parcialmente nas Memórias (cf. NHV XII 163) e totalmente em
Paris-Vassena, Calendrier, 214-216. Desta carta, como da carta de 21.4.1877 e de outra sem data citada em Paris-Vassena,
Calendrier, 210-212. 217-218 resulta claramente que a Madre Maria do Coração de Jesus pensava noutra obra reparadora
sacerdotal pelas infidelidades e os pecados dos sacerdotes. Esta reparação desejava-a sempre o P. Dehon; mas não será o único
fim ou a única reparação do seu Instituto: Outubro de 1924.
744
NQ XLIV, 138.

151
Santo Inácio”.745 A referência às “luzes de oração” desta santa Irmã, das quais teremos de falar, é evidente.
Veremos que estas luzes de oração “não estiveram na origem do Instituto” e não devem ser consideradas
como seu fundamento mas, como sempre afirmou o P. Dehon, como um apoio, uma confirmação para a
nova Congregação.746 Ordinariamente o P. Dehon estende um véu de reserva sobre estas graças. Tentemos
levantá-lo, pelo menos, em parte.
A Fundadora das Servas, num relatório escrito a Mons. Thibaudier a 25 de Março de 1888, afirma
entre outras coisas: “A 21 de Novembro de 1876 manifestou-se-me claramente (se não foi uma ilusão) que
o Rev. Dehon tinha sido escolhido pelo Coração de Jesus para responder aos seus desejos e para dar a este
divino Coração a reparação e a consolação que pedia tanto a ele pessoalmente como a outros sacerdotes”.747
Não é de estranhar que a Chère Mère comunicasse a Leão Dehon estas suas luzes, embora, falando com
exactidão, se referissem à fundação de uma associação reparadora sacerdotal, da qual Leão Dehon
certamente faria parte, e não de um Instituto.
Numa carta de 3 de Abril de 1894, escrita de Loreto ao P. Falleur, e que já citámos, o P. Dehon
escreve: “Aqui nasceu a Congregação em 1877”.748 Recorda aquele 14 de Fevereiro quando com Mons.
Thibaudier, com D. Mathieu e D. Mignot celebrara a missa na Santa Casa. Teve, sem dúvida, luzes acerca
da sua vida religiosa e, portanto, sobre o Instituto que estava para fundar. Não conhecemos os detalhes...No
Diário, 15 de Setembro de 1900, o P. Dehon diz ter passado um bom dia em Pellevoisin (Indre), onde a
Virgem tinha aparecido a uma criada dos condes de Rochefoucauld, Estelle Faguette. Na última aparição, a
8 de Dezembro de 1876, a Virgem prometia graças especiais aos que usassem o escapulário do Sagrado
Coração. “Na mesma época, Dezembro de 1876 – escreve o P. Dehon – Nosso Senhor inspirava-me a
fundação da nossa obra e eu assumia como distintivo religioso o escapulário do Sagrado Coração sem
conhecer as revelações de Pellevoisin”.749
Quando lemos estas afirmações do P. Dehon, temos que considerar que as escreveu muitos anos
depois da fundação do seu Instituto. Não podemos pôr em dúvida a verdade, tanto da iluminação interior de
Loreto (14.2.1177), como da de Pellevoisin (18.12.1876).
Em 1876-1877, é certa a vontade de Leão Dehon de fazer-se religioso num Instituto consagrado ao
Coração de Jesus e à reparação. Quanto ao modo: se entrar numa congregação já existente ou fundar uma
nova, Leão continuava na incerteza, em fase de busca; rezava e fazia rezar. Não surpreende que chegasse a
ter inspirações da parte do Senhor.

O COLÉGIO S. JOÃO E OS OBLATOS DO CORAÇÃO DE JESUS

Uma vez consideradas todas estas circunstâncias, chegara o tempo de Leão Dehon tomar uma
decisão. Nosso Senhor não lhe pedia, porventura, para fundar um instituto religioso, caracterizado pelo
amor e reparação, em S. Quintino, conservando as suas obras?
Leão Dehon não podia consultar os Jesuítas, P. Pouplard e P. A. Jenner, com os quais se
aconselhara em anos anteriores. Alguns meses antes, estes religiosos tinham-se congratulado com ele pela
sua decisão de entrar na Companhia de Jesus.750 Apesar da sua virtude, podiam temer a sua parcialidade
afectiva pela Companhia.
Decidiu então abrir-se com o seu bispo, que tinha a autoridade para lhe manifestar a vontade de
Deus. Sabia que Mons. Thibaudier desejava um colégio dirigido por eclesiásticos em S. Quintino. Não
poderia iniciar uma Congregação reparadora à sombra daquele colégio? Leão Dehon expressa ao bispo as
suas atracções, os motivos a favor e contra a fundação do novo Instituto.
Tudo isto acontecia a 8 de Junho de 1877. Na Igreja universal era a festa do Coração de Jesus, para
a diocese de Soissons, a festa do padroeiro, S. Medardo. Mons. Thibaudier mostrou-se interessado na
745
NQ XLIV, 138: Outubro de 1924.
746
Cf. NQ III, 9: 1.3.1886.
747
“Relação apresentada pela Chère Mère a Mons. Thibaudier”: 25.3.1888 (AD, B 34/6). Este documento traz no fim a data de
20 de Abril de 1888.
748
AD, B 20/3.
749
NQ XVI, 30-34.
750
Cf. Carta do P. Pouplard de 28.3.1876 (AD, B 17/6) e crta do P. A. Jenner de 29-3-1976 (AD, B 17/6).

152
proposta; porém, prudente como era, tomou tempo para reflectir e, a 27 de Junho, encontrando-se em S.
Quintino para a celebração da Confirmação, deu de viva voz o seu assentimento. “Era o sinal da vontade
divina”, escreve o P. Dehon nas suas Memórias.751
Uma resposta tão decisiva e segura num tipo tímido, indeciso e contemporizador como era Mons.
Thibaudier, explica-se pelas circunstâncias externas que exigiam uma decisão urgente.752 Os religiosos de
Saint Bertin tinham decidido fechar, no fim do ano escolar, o colégio “Notre Dame” de Laon e retirar-se da
diocese. Era um perigoso vazio para o ensino religioso. Podia gerar desânimo nos bons. Daí a necessidade
de que, ao anúncio do encerramento do colégio de Laon, correspondesse a notícia da abertura de um novo
colégio católico em S. Quintino. A Mons. Thibaudier interessava o colégio, a Leão Dehon a Congregação,
à Providência, as duas obras ao mesmo tempo.
A 26 de Junho, Leão Dehon fala com a Chère Mère, comenta com ela as suas conversas com Mons.
Thibaudier e a sua anuência. A fundadora das Servas quase fica sem palavras... muito comovida e
impressionada pela pesada tarefa que a Providência confia ao jovem sacerdote. Todavia, no dia seguinte,
27 de Junho, escreve a Leão Dehon desculpando-se de ter-lhe parecido “fria e lacónica”, quando lhe tinha
comunicado o projecto de um instituto de sacerdotes reparadores.753
Como dissemos já, a fundadora das Servas e as almas à sua volta, desejavam uma associação de
sacerdotes reparadores, mas não pensavam num novo instituto, desejado porém por Leão Dehon para uma
maior estabilidade. A 13 de Julho de 1877, Mons. Thibaudier deu o seu consentimento por escrito: “O
projecto de (fundar) um instituto tem toda a minha simpatia... Desejo que sejais vós a realizá-lo”. “Esta
carta episcopal – escreve o P. Dehon nas Memórias – é na verdade a acta da fundação do nosso
Instituto”.754 É a data de fundação “jurídica” da Congregação dos Oblatos do Coração de Jesus. O bispo
autentica o carisma de fundador do P. Dehon.
Informados, o P. A. Jenner e o P. Pouplard participaram a Leão Dehon a sua alegria pela nova
fundação.755
“Além disso – escreve o P. Dehon em “Souvenirs – consultei o meu director habitual, um santo
Jesuíta, o P. Modeste. Ele próprio falou aos dois santos religiosos com os quais tinha feito os exercícios
espirituais, o P. Dorr e o P. Bertrand, depois disse-me: “Vá em frente”.756
A carta de Mons. Thibaudier chegou a S. Quintino a 14 de Julho. Nesse mesmo dia, Leão Dehon,
fazendo um grande acto de fé na Providência, já que tinha apenas 500 francos, aluga uma pensão para
estudantes: a casa Lecompte, com a promessa de comprá-la.
Assim começa Leão Dehon a sua Obra. Aquela casa, ampliada, converte-se no colégio S. João e é o
berço da nova Congregação dos Oblatos do Coração de Jesus.
Na realidade, o P. Dehon considera-a só como um “refúgio” da “Obra”. “Estaria ali como no
Egipto, entre a agitação e os estudos demasiado pagãos de um colégio; encontraria porém a sua Nazaré no
ano seguinte na Casa “Sagrado Coração”. 757 A “Obra” para o P. Dehon não é o colégio, que podia ser
também a casa comum para o Oratório diocesano, mas algo mas estável e essencial para ele: a
Congregação dos Oblatos do Coração de Jesus.
Entretanto, a fundadora das Servas tinha pedido a Deus, como sinal providencial, recursos
financeiros para ajudar a nova fundação. Justamente a 16 de Julho morria repentinamente um certo Sr.
Lombard, usufrutuário dos bens de uma irmã Serva, irmã Maria das Cinco Chagas. As rendas anuais eram
de 20.000 francos. A Chère Mère pôde assim, com grande desinteresse, ajudar financeiramente a Leão
Dehon.

751
NHV XII, 164. Cf. “Souvenirs” Lettere circolari I, 340; A. Bourgeois scj, Le Père Dehon à Saint-Quentin, 175-177; SRSL
(1877), 324.
752
C. Bernard, condiscípulo de Leão Dehon em Santa Clara e “secretário” na cúria do arcebispo de Lião, exprime-se assim numa
carta de 9 de Maio de 1876: “Mons. Thibaudier é desde há algum tempo um pai e um amigo para mim. Não tem nada de
brilhante, é simples, modesto, quase tímido”. Recordemos que antes de ser bispo de Soissons, Mons. Thibaudier tinha sido bispo
auxiliar de Mons. Ginouilhac, arcebispo de Lião.
753
Carta de 27.6.1877 (AD, B 34/5).
754
NHV XII, 165. Cf. Carta de Mons. Thibaudier de 13.7.1877 ao P. Dehon (AD,B 21/3).
755
AD, B 17/6. Para a carta do P. Pouplard, cf. NHV XII, 165
756
Lettere circolari, n. 341.
757
NHV XII, 173.

153
NOVIÇO E DIRECTOR

Na segunda metade de Julho, o neo-fundador fez um curso de exercícios espirituais na casa das
Servas para escrever as Regras e as Constituições do novo Instituto. “De 22 a 31 de Julho – escreve o P.
Dehon no Diário – escrevi as nossas Constituições em 1877 sob os auspícios de Santa Madalena e de S.
Inácio. Tomava por modelos Santa Madalena pelo espírito de reparação e S. Inácio, pelo amor a Nosso
Senhor e o espírito de apostolado”.758 Em linhas gerais, imitou as Constituições e as Regras de S. Inácio.
Estas Constituições de 1877, aperfeiçoadas em anos seguintes, foram aprovadas verbalmente em 1881 por
Mons. Thibaudier, e delas não temos mais do que o primeiro e mais importante capítulo.759
Entretanto, também existia o colégio. Era necessário organizá-lo e dar vida ao que fora a casa
Lecompte. Aproximava-se a distribuição dos prémios. Era uma boa ocasião para fazer publicidade do
colégio. O sr. Lecompte redigiu a circular com os convites. Entre outras coisas, participava que uma
sociedade de eclesiásticos, sob o patrocínio do bispo de Soissons, tinha fundado um novo colégio. A
cerimónia da atribuição dos prémios teria lugar a 14 de Agosto (1877) sob a presidência de D. Mathieu,
arcipreste de S. Quintino, enquanto Leão Dehon, cónego honorário e superior da nova obra, faria o discurso
de ocasião sobre o tema: “A educação cristã: a sua finalidade, os seus meios e os seus frutos”. 760 Assim
começava a dar-se a conhecer o colégio S. João.
Com a casa Lecompte, Leão Dehon tinha comprado um terreno adjacente, começando logo as novas
construções: uma capela, aulas, um muro de cerca. O custo, 25.000 francos. Humanamente falando era uma
imprudência. Pensemos que para a casa Lecompte tinha no bolso só 500 francos... Tanta era a confiança na
Providência e a certeza de cumprir a vontade de Deus. Só assim se explica o atrevimento do P. Dehon.
“Começava o futuro. Dava aos meus vizinhos grandes esperanças de venda dos seus imóveis, mas que
fazer? Para onde ir, para começar a Obra?”.761 É sempre a Congregação dos Oblatos que está no seu
pensamento!.
O P. Dehon transferiu o seu alojamento para o colégio S. João no dia da Assunção de 1877, também
com o fim de acompanhar os trabalhos.
A maior ajuda veio-lhe das Irmãs Servas. Duas delas, a irmã Maria Oliva e a irmã Maria Clara,
instalaram-se no S. João para os serviços domésticos. O P. Dehon fez adaptar para elas um oratório num
grande sótão. Especialmente com as suas orações e o seu espírito religioso, as Servas foram um grande
apoio para o jovem fundador nas inevitáveis dificuldades dos princípios.
Tenhamos presente que durante o primeiro ano (1877-1888), Leão Dehon foi o único religioso da
recém nascida Congregação. Tinha consigo dois aspirantes a irmãos cooperadores, Vinchon e Heymês, que
não perseveraram. Certamente que não lhe serviam de grande ajuda espiritual e não deviam brilhar muito
pelo seu bom carácter. O P. Rasset afirma que recordava bem que um deles repetia amiúde, a propósito do
novo Instituto: “Não entrará ninguém”.762
Felizmente, havia as duas Irmãs: “A sua conversação – escreve o P. Dehon nas suas Memórias –
ajudava-me a viver o espírito de fé”.763 Também as outras Irmãs Servas lhe eram de grande ajuda. “Nas
minhas conversas com as nossas Irmãs vivia o espírito da nossa Obra”.764
Falava também com frequência com a Chère Mère: “A nossa visão sobre a Obra coincidia. Assim
confirmava-me cada vez mais nos meus propósitos e na minha confiança na vontade de Deus para a
fundação da Obra. Pregando o espírito da nossa vocação às Irmãs, pregava-o a mim mesmo”.765
758
NQ XLIV, 110: Julho de 1924. Cf. também uma carta de 26 de Julho de 1924 escrita pelo P. Dehon à irmã Maria de S. Inácio:
“De 22 a 31 de Julho (1877), de Santa Maria Madalena a S. Inácio, escrevi as nossas Constituições” (AD, B 19/2).
759
Cf. Cahiers Falleur , 24; Cahiers Falleur, apêndice II, pp. 227-245 e o comentário do P. Dehon este primeiro capítulo em
Cahiers Falleur V, 81-91. Como é natural estas Constituições de 1877, aprovadas só verbalmente por Mons. Thibaudier, foram
reelaboradas várias vezes nos primeiros anos da Congregação. De facto, o P. Dehon escreve em seu Diário: “Os anos 1878-1881
foram aqueles em que escrevemos as Constituições, as Orações, o Directório”. (NQ XXXIV, 182: Dezembro de 1912).
760
NHV XII, 174.
761
NHV XII, 182.
762
Carta do P. Rasset de 22.6.1881 (AD, B 37/1h).
763
NHV XIII, 67.
764
NHV XIII, 66.
765
NHV XIII, 66-67.

154
Assim passa o P. Dehon o seu noviciado, embora com os prementes compromissos do novo
colégio. Tinha-o começado a 31 de Julho de 1877 e devia terminá-lo, com a emissão dos votos religiosos, a
28 de Junho de 1878.
Uma grande ajuda vinha-lhe também do Arcipreste de S. Quintino, D. Mathieu. Todos os dias havia
um lugar para ele à mesa. Frequentemente o convite era aceite. Ainda tinha o cargo de coadjutor, mas
estava dispensado de grande parte dos deveres paroquiais. Cuidava do Patronato e do ministério nas
Servas.
Entretanto chegavam as inscrições dos alunos ao novo colégio, também porque o colégio “Notre
Dame” de Laon tinha fechado as suas portas, com a vantagem de deixar disponíveis para o S. João
professores experientes, para além de um certo número de excelentes alunos que, junto com os estudantes
da casa Lecompte, deram um tom de qualidade à nova escola, especialmente às classes superiores. “A
Providência assistia-me”, afirma o P. Dehon nas suas Memórias.766
Também Mons. Thibaudier, embora encontrando-se numa situação difícil, pelas críticas que lhe
choviam tanto de Soissons como de Laon, e mostrando-se como sempre “um pouco tímido”, 767 estava cheio
de benevolência para com o P. Dehon. Ajudou-o a completar o pessoal com três sacerdotes e dois ou três
leigos.
Finalmente, a 8 de Setembro de 1877, o P. Dehon pôde celebrar com grande emoção, a primeira
missa no Colégio S. João: “Estava satisfeito por ter podido oferecer mais um altar a Nosso Senhor”.768
Com as primeiras alegrias, que aliviavam as constantes preocupações pela “Obra” que tinha que
desenvolver, e pelo Patronato que tinha que sustentar com as suas exigências sem fim, chegaram também
as primeiras sombras e as imprescindíveis cruzes.
Teve que sofrer muito por parte de seu pai, mais uma vez frustrado nos seus sonhos. O que
suspirava para Leão era o episcopado. As decisões do filho eram incompreensíveis para ele.
Além disso o trabalho oprimia-o: “o Patronato e as obras estavam em plena actividade”.769 Não
faltavam as preocupações financeiras; os recursos eram aleatórios; a herança das Servas podia ser
impugnada, como de facto o foi. Também a situação na cidade ia mudando. Até então, Leão Dehon tinha
sido o sacerdote de todos, com tantas amizades. Agora o colégio S. João tornava-se um temível rival do
liceu e das pensões locais. Assim Leão Dehon alienou uma boa metade das simpatias que tinha em S.
Quintino.
Como se não bastasse, também em Laon, em Chauny, em Vervins, não era “persona grata”, sempre
por causa da concorrência no campo da escola. Não faltavam as invejas e os ciúmes especialmente no
campo eclesiástico: “A tudo isto era muito sensível – escreve o P. Dehon nas Memórias -. Não tinha um
temperamento de lutador. A minha natureza levava-me a ser bom com todos e desejava que todos o fossem
também comigo”.770 Pouco a pouco as medidas se foram enchendo e, em breve, também se ressentirá a sua
saúde.
O P. Dehon encontra imediatamente a explicação para tais cruzes: “Tinha-me oferecido a Nosso
Senhor para uma obra de reparação e devia esperar que tomasse a sério a minha oferta. Devia agora muitas
vezes emprestar-me a sua cruz. Estas eram as suas bênçãos”.771
Mesmo sobrecarregado de trabalho por causa das construções, das matrículas dos alunos e da
organização do primeiro ano escolar, o P. Dehon quis iniciar o novo trabalho com uma mais intensa oração
fazendo alguns dias de exercícios espirituais com os seus professores, na sua maioria leigos. Pregou-os ele
mesmo. São 13 meditações, sintetizadas nas Memórias.772
Entre outras coisas, falou-lhes do ensino e da educação como de uma missão divina (3ª e 4ª
meditação), da santificação pessoal (5ª), da caridade recíproca (6ª), da eucaristia (7ª), do Coração de Jesus

766
NHV XII, 183v.
767
NHV XII, 185.
768
NHV XII, 185.
769
NHV XIII, 1.
770
NHV XIII, 23.
771
NHV XIII, 185.
772
Cf. NHV XIII, 2-20.

155
(8ª), da Cruz (9ª), de Maria (10ª): “Se tivesse de pregar a professores, não teria nada de mais prático para
dizer”.773
Eis uma opinião do P. Dehon sobre os primeiros anos do S. João. “Foram anos particularmente
belos, cheios de actividade, prósperos, alegres, fecundos para a formação cristã dos jovens”.774
O número de alunos superou todas as expectativas. O refeitório resultou insuficiente. Os
dormitórios estavam cheios. Era preciso ampliá-los. Tornava-se necessário utilizar as casas vizinhas.
Uma vez mais se mostraram valiosas as Irmãs Servas, juntamente com uma humilde e piedosa
mulher, Guilhermina Irlande: “Ocupavam-se da cozinha, da lavandaria e, especialmente, traziam à casa a
ordem, a limpeza e um ambiente de caridade e de doçura que a convertiam verdadeiramente numa casa
cristã, uma casa de Deus”775
A isso tendia o zelo do P. Dehon. No Natal (1877), tinha sido inaugurada a nova capela. Todas as
manhãs fazia aos seus rapazes uma breve meditação e à noite a leitura espiritual. A maior parte confessava-
se semanalmente. Todos os Domingos havia umas 50 comunhões.
O P. Dehon organizou uma conferência de S. Vicente de Paulo para ir formando os seus jovens ao
apostolado da caridade e uma congregação mariana, além das obras da Propagação da Fé e da Santa
Infância. Revivia assim os belos anos do colégio de Hazebrouck.
O S. João teve também a sua pequena revista semanal, manuscrita e poligrafada. Responsável, um
professor: o P. E. Glorian. O primeiro número de “L’Aigle de St. Jéan” (A águia do S. João) saiu a 24 de
Fevereiro de 1878. No princípio, os assinantes foram 100 (sobretudo alunos e pais). Com o número 140
(Julho de 1881) chegaram a 200. Desde então começou a ser impresso no “Conservateur de l’Aisne”.
O P. Dehon continuava a ser o secretário do Ofício diocesano das Obras, portanto o único
verdadeiro responsável. Tinha toda uma série de correspondência com os párocos da diocese. Animava-os
a fundar Patronatos. Facultava-lhes o material necessário.
Entretanto, os trabalhos e os gastos no S. João não acabavam nunca. O P. Dehon carregou-se de
dívidas. Serão uma das cruzes da sua vida. Cinquenta anos mais tarde, o cón. Dellone calculará em mais de
800.000 francos o dinheiro gasto pelo P. Dehon no S. João.
Tinha ainda trabalho de confissões e de ministério no vicariato. Era realmente muito.
Em Maio de 1878, chegou ao extremo das suas forças: cuspia sangue. Teve de dar as demissões de
capelão. “A minha saúde seria sempre frágil. Era um sacrifício que Deus me pedia”.776 Poucos meses
depois, como já indicámos, durante o Congresso das Obras diocesanas, organizado pelo P. Dehon em
Soissons, de 16 a 20 de Setembro de 1878, não apresentou nenhuma relação: “Estava muito ocupado e
doente. Ia várias vezes, durante as sessões, ao quarto e enchia a bacia de sangue”.777
Entretanto, a 28 de Junho de 1878, o P. Dehon emitiu os seus primeiros votos religiosos nas mãos
de D. Mathieu, arcipreste de S. Quintino, delegado de Mons. Thibaudier. A cerimónia teve lugar no
oratório do Colégio S. João, presente o P. Adriano Rasset, os dois irmãos Vinchon e Heymês, que não
perseveraram, duas irmãs Servas e, parece, ninguém mais segundo diz o P. Dehon nas Memórias.778 Era a
festa do Coração de Jesus e é a data da fundação “religiosa” da sua Congregação. Neste sentido escreve nas
Memórias: “Esta data... será, sem dúvida, considerada na Obra como a data da sua fundação”.779 Leão
Dehon, além dos três votos religiosos, fez voto privado de vítima: “Entreguei-me sem reserva ao Sagrado
Coração. A minha emoção foi muito profunda. Sentia que tomava a cruz sobre os ombros, dando-me a
nosso Senhor como reparador e fundador de um novo Instituto”.780

773
NHV XIII, 2.
774
NHV XIII, 21.
775
NHV XIII, 21.
776
NHV XIII, 65.
777
NHV XIII, 66.
778
Cf. NHV XIII, 100.
779
NHV XIII, 100. A fundação jurídica era de 13.7.1877.
780
NHV XIII, 100.

156
CAPÍTULO 12

Raízes longínquas

Recuperar as raízes – O carisma do P. Dehon: a oblação de amor – A Reparação – Pedro de Bérule e a Escola francesa
– S. João Eudes e Santa Margarida Maria – A espiritualidade vitimal na França do oitocentos: as Irmãs Vítimas do Sagrado
Coração de Marselha e o P. João do Sagrado Coração; S. Miguel Garicoïts; o P. Silvano Giraud; Madre Maria Verónica do
Coração de Jesus – Os Oblatos do Coração de Jesus.

RECUPERAR AS RAÍZES

Neste nosso mundo actual há um interesse especial pelo passado. Apreciam-se muito as biografias.
Porquê este interesse pela história?
Trata-se certamente de uma compensação pela insatisfação do presente. Nos tempos de crise, a
investigação do passado é uma tentativa para recuperar as raízes e o desejo de as descobrir traz consigo a
esperança de compreender melhor o mundo presente.
Sem raízes não há tronco de árvore, nem ramos, nem folhas, nem flores, nem frutos. Sem o passado
não há presente.
Descobrimos também outra esperança: a de encontrar no passado algum valor que nos ajude a
vencer a crise do presente e nos dê uma esperança de salvação. Além disso, numa sociedade onde tudo
corre o risco de ser nivelado e massificado e o homem pode perder a sua personalidade, serve de grande
incentivo conhecer como as personagens da história enfrentaram a vida, de que recursos se valeram na luta
para ter fé nos seus ideais e para vencer numa sociedade muitas vezes hostil.
Agora, à espontânea reacção da admiração e da solidariedade, junta-se facilmente a da imitação ou,
ao menos, recebe-se uma estimulante injecção de optimismo.
Tudo isto é bem verdade em relação ao P. Dehon, já que a experiência de fé na sua vida pode
chegar a ser um modelo de experiência para a nossa.
“A Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus foi fundada em 1878, em S. Quintino, pelo P.
João Leão Dehon, que recebeu a graça e a missão de enriquecer a Igreja com um Instituto religioso
apostólico, que vivesse da sua inspiração evangélica. É chamada a fazer frutificar esse carisma, segundo as
exigências da Igreja e do mundo.”.
Assim começam as novas Constituições dehonianas e continuam: “Este Instituto tem a sua origem
na experiência de fé do Padre Dehon” (n.2).
Sem dúvida, a Congregação foi suscitada e recebeu a sua missão do Espírito. Foi o Espírito que deu
o carisma de fundador ao P. Dehon. A Igreja confirmou-o.
Sem dúvida, a espiritualidade do P. Dehon não nasceu com ele, já existia na Igreja e tem longínquas
raízes. A história verdadeira de uma congregação religiosa é uma história espiritual. Penso que seja
necessário mergulhar na torrente de espiritualidade de que bebe o P. Dehon e que ele mesmo alimenta, para
conhecer a fundo os valores que caracterizam o carisma dehoniano.

O CARISMA DO P. DEHON: A OBLAÇÃO DE AMOR

Raimond Hostie, na sua obra Vie et mort des Ordres religieux, afirma que todos os institutos
religiosos, na sua múltipla variedade, têm em comum certos elementos essenciais: “Referem-se, através do
Evangelho, ao amor de Deus e do próximo... Nenhum instituto pretende esgotar ou monopolizar o
Evangelho”.781 Então, 90% dos valores religiosos é idêntico em todos os institutos. E 10% é constituído por

781
R.Hostie, Vie et morte des Ordres religieux, Bruges, 33. Para o capítulo 12, cf. G. Manzoni scj, Leão Dehon apóstolo do
Coração de Jesus, São Paulo 1984, 199-213.

157
aquela característica que os diferencia entre si. A característica da espiritualidade e do carisma dehoniano é
o amor oblativo.782
É necessário aprofundar o que entende o P. Dehon por oblação de amor ou vida de oblação.
Descobrimos que é sinónimo de vida de amor na imolação. Não se trata de fazer coisas extraordinárias, das
quais se deve desconfiar, segundo a exortação de Paulo: “não aspireis a coisas altas, mas acomodai-vos às
humildes”(Rm. 12,16), quotidianas. Viver de amor na imolação, em palavras simples é fazer e aceitar
aquilo que habitualmente acontece, fazer com amor e alegria as acções, aceitar as cruzes de cada dia com
amor, com serenidade e possivelmente com alegria.
No primeiro e único capítulo que nos ficou das Constituições dehonianas mais antigas, as de 1881,
lemos: “O seu nome de Oblatos foi escolhido para exprimir esta vida de imolação”.783
De maneira muito clara o P. Dehon esclarece o seu pensamento sobre este tema fundamental numa
carta ao P. Guillaume que, num artigo de “Le Règne du Sacré-Coeur...” de Lovaina tinha escrito: “O nosso
amantíssimo Fundador queria congregar consoladores mais do que reparadores”.784
O P. Dehon não excluiu nunca a consolação da sua espiritualidade; todavia, precisa com clareza o
seu pensamento, escrevendo nestes termos ao P. Guillaume a 18 de Fevereiro de 1913: “Não quis fazer
uma obra de consoladores sem reparação. Quis fazer uma obra de reparação e de vítimas. Não adoptei
nunca o nome de vítimas; tomei o nome de Oblatos que vinha a dizer a mesma coisa... Nós somos
sacerdotes vítimas. O nosso espírito próprio é “spiritus amoris et immolationis”... Vivei bem o nosso acto
de oblação e sereis um boa ... vítima do Sagrado Coração”.785
Sem dúvida, esta linguagem do P. Dehon pode resultar de difícil compreensão para a nossa
mentalidade moderna. Esforcemo-nos por superar a caducidade histórica do estilo e das palavras do
oitocentos e procuremos compreender a actualidade dos conteúdos.
A oblação de amor da espiritualidade dehoniana obriga a reviver o “Ecce venio” do Verbo
incarnado, realidade em cada um dos instantes da sua vida, fazendo a vontade do Pai, imolando-se para a
salvação dos homens até à morte e morte de cruz.
A vida de oblação e de imolação obriga a estar unidos a Cristo, sacerdote e vítima do seu
sacerdócio. Daí a importância, para o P. Dehon, do culto eucarístico e a sua insistência sobre o apostolado
da adoração reparadora.
Pensando bem, do mistério de Cristo de que todos os institutos participam, coube ao Instituto do P.
Dehon a parte mais vinculante: a que está no centro do mistério da Redenção: para a glória de Deus e a
salvação das almas. O P. Dehon estava consciente da grandeza e do compromisso que o seu carisma
suponham; mas, assim como várias vezes convida os primeiros noviços a não ser pusilânimes, 786 também
afirma que não se pode realizá-lo sem uma profunda união de amor a Cristo e sem ser santos.
Os conteúdos da vida de oblação e de imolação, que o P. Dehon expressou com a linguagem do seu
tempo, estão presentes na Regra de Vida dos Dehonianos de 1973 e na definitiva de 1986.
No n. 6 lemos:” Ao fundar a Congregação dos Oblatos, Sacerdotes do Coração de Jesus, o Padre
Dehon quis que os seus membros unissem, de forma explícita, a sua vida religiosa e apostólica à oblação
reparadora de Cristo ao Pai pelos homens. Esta foi a sua “intenção específica e originária” bem como “a
índole própria do Instituto”... Como dizia o próprio Padre Dehon: “Nestas palavras: Ecce venio... Ecce
ancilla... encerram-se toda a nossa vocação, toda a nossa finalidade, o nosso dever, as nossas promessas”
(Dir. Esp. I.3). No n. 22 diz-se: “queremos unir-nos a Cristo... e... oferecer-nos ao Pai, como oblação viva,
santa e agradável” (cf. Rom 12,1). A vida reparadora será, por vezes, vivida no sofrimento, no abandono,
na solidão, “como eminente e misteriosa comunhão com os sofrimentos e a morte de Cristo pela redenção
do mundo” (n. 24).

782
ª Vassena scj, Il primato dell’oblazione d’amore nel carisma di P. Dehon. “Dehoniana” 3 (1979), 143-156.
783
Texto A. cit. por M. Denis scj, Le Projet du P. Dhon, Roma, 1973, 10-13.
784
J. Guillaume scj, Une vie de Pr^tre-victime, in “Le Règne du Sacré Coeur en Belgique et au Congo” 1 (1913), 46. É a extensa
necrologia (desde p. 33 a p. 72) do P. Bernabé Charcosset scj, capelão nas fábricas de Val-des-Bois, assistente Geral do P.
Dehon, falecido em Nisa a 29.12.1912.
785
AD, B 44/7.
786
Cf. Cahiers Falleur II, 12,66.

158
“Para o Padre Dehon, o Ecce venio (Heb 10,7) define a atitude fundamental da nossa vida. Ele faz
da nossa obediência um acto de oblação; configura a nossa existência com a de Cristo, para a redenção do
mundo e para a glória do Pai” (n. 58; cf. nn. 14, 21, 53, 85).
Raimond Hostie, na obra que já citámos, põe em evidência como, a partir do século XI, os três
votos se convertem na trave-mestra de todo o tipo de vida religiosa. Perfila-se então a necessidade de
diversificação dos vários institutos, para que cada ordem ou congregação expresse a característica que lhe é
própria. Assim nasce o uso de emitir um quarto voto. Os exemplos históricos são mais do que muitos:
desde os Templários aos Mercedários, aos Camilianos, etc. Recordaremos só o quarto voto de obediência
ao Papa para qualquer missão confiada por ele, que emitem os Jesuítas.787
Este voto expressa a característica própria da Companhia de Jesus, como a liturgia para os
Beneditinos, a pobreza para os Franciscanos, a pregação para os Dominicanos, a solidão para os Cartuxos,
a formação religiosa de crianças e jovens para os Irmãos das Escolas Cristãs e para os Salesianos, etc.
Todos estes institutos especializam-se em viver determinados mistérios da vida de Cristo.
Também o P. Dehon queria que os seus religiosos emitissem, como quarto voto, o voto de vítima,
como tinha feito ele, com os três votos, a 28 de Junho de 1878. A Igreja, na sua prudência, quis que os
Oblatos, depois Sacerdotes do Coração de Jesus, se comprometessem a viver em espírito de vítima só
através de promessa.
Voto de vítima ou promessa de viver em espírito de vítima, confirmam que o elemento essencial do
carisma dehoniano está em viver, por amor, o mistério central da vida de Cristo, sacerdote e vítima para
glória do Pai e salvação do mundo. Este mistério vive-se com amor oblativo, que é reparação, apostolado,
imolação, tanto a nível pessoal como comunitário.
Isto está expresso na fórmula da profissão religiosa. O dehoniano oferece-se como “hóstia
consagrada ao amor” de Deus para seguir a Cristo mais de perto em toda a vida (Cst. 100); esta é a
promessa de todos os dias, recitando pessoal ou comunitariamente o acto de oblação e realizando em cada
acontecimento a doxologia da pequena elevação no final da oração eucarística: “Por Cristo, com Cristo e
em Cristo”. Na união com Cristo sacerdote e vítima, os discípulos do P. Dehon oferecem-se ao Pai, e
acolhendo o Espírito Santo, pedem para ser verdadeiros oblatos do Coração de Cristo. O que se celebra no
rito, é preciso vivê-lo na vida.

A REPARAÇÃO

Na minha exposição histórica, servir-me-ei da linguagem do P. Dehon, confiando na habilidade do


leitor para traduzi-la em linguagem moderna.
Começo com uma constatação: De todas as tentativas para fundar um instituto de sacerdotes-
vítimas (e não foram poucas no 800), uma só resultou: a do P. Dehon. Ele chamou-os de Oblatos do
Coração de Jesus. E explica o motivo ao P. Guillaume: “Não escolhi o nome de vítimas; adoptei o de
Oblatos que me dizia a mesma coisa. Poderíamos chamar-nos vítimas em Marselha (sul da França); em S.
Quintino (norte da França) teria sido o cúmulo da loucura”.788
Tudo na vida e na espiritualidade do P. Dehon e do seu instituto está orientado para o amor e para a
eliminação dos obstáculos ao amor, ou seja para a reparação, como está bem expresso nas novas
Constituições: “O P. Dehon é muito sensível ao pecado... Ele conhece os males da sociedade... O P. Dehon
espera que os seus religiosos sejam profetas do amor e servidores da reconciliação dos homens e do mundo
em Cristo (cf. 2 Cor 5, 18). Assim comprometidos com Ele, para reparar o pecado e a falta de amor na
Igreja e no mundo, prestarão, com toda a sua vida, com as orações, trabalhos, sofrimentos e alegrias, ‘o
culto de amor e de reparação que o seu Coração deseja’ “ (NQ XXV, 5) (nn. 4.7).
No P. Dehon a reparação, expressa, como conteúdo, pelas categorias bíblicas da expiação, da
reconciliação e da alegria, é um valor complexo. Implica o amor, a experiência da cruz e do Espírito,
manifestados pelo Coração trespassado de Cristo. Com grande profundidade as novas Constituições
afirmam: “É assim que entendemos a reparação: como acolhimento do Espírito (cf. 1 Tess 4,8), como
787
Cf. Hostie, Vie et mort, 35.
788
Carta de 18.2.1913 (AD, B 44/7).

159
resposta ao amor de Cristo por nós, comunhão no seu amor ao Pai e cooperação na sua obra redentora no
coração do mundo”( n. 23).
O Instituto do P. Dehon afunda as suas longínquas raízes no culto ao Coração de Cristo e também
no desenvolvimento secular da espiritualidade reparadora e vitimal, que atinge o seu apogeu na segunda
metade do 800.
É evidente que em todo o tempo houve almas que seguiram a Cristo segundo o seu explícito convite
de renunciar a si mesmos e tomar a sua cruz de cada dia (Lc. 9,23) com mansidão e humildade de coração
(cf. Mt. 11,29), participando como o apóstolo Paulo na paixão de Cristo para a salvação do mundo (cf. Col.
1,24).
Falando da reparação, da imolação e da espiritualidade vitimal, segundo a linguagem do P. Dehon,
falo necessariamente da oblação de amor. Sem a oblação de amor, nem sequer a cruz de Cristo tem valor
algum. “Nisto consiste o seu amor, escreve João, não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele, que nos
amou e enviou o Seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1 Jo 4,10) “Não amemos com
palavras, nem com a língua, mas por acções e em verdade” (1 Jo. 3,18). Não basta a experiência do amor, é
preciso a experiência da cruz
Só na Alta Idade Média, a oblação reparadora e, por conseguinte, a imolação, é aceite como uma
espiritualidade que caracteriza e informa toda a vida.
Recordemos Santa Lutgarda de Brabante (1182-1246) que, depois da sua conversão, consagrou a
sua vida a Jesus sofredor, orando pela Igreja e expiando pelos pecadores. Cristo crucificado, apertando-a a
seu Coração, convidava-a a partilhar os seus sofrimentos e a imolar-se pelos pecadores.
A experiência de santa Lutgarda continua em Matilde de Magdeburgo (1210-1282), em Santa
Matilde a jovem (1241-1299), em santa Gertrudes a grande (1256-1302): todas religiosas de Helfta
(Alemanha). As duas últimas, e especialmente S. Gertrudes, foram bem conhecidas, através dos seus
escritos, pelo P. Dehon. Fala delas nas suas Memórias e no seu Diário. Vislumbra-se a sua profunda
influência, especialmente em “L’année avec le Sacré-Coeur”.789
A beata Lutgarda de Wittchen (1291-1348), que viveu no tempo dos Papas de Avinhão, ofereceu-se
como vítima de expiação pela Igreja. Santa Catarina de Sena (1347-1380), depois de receber a graça da
permuta de corações, impulsionada pelo seu ardor apostólico para reparar as culpas dos cristãos e
especialmente dos eclesiásticos, ofereceu de novo a Deus o coração que tinha recebido, suplicando:
“Eterno Deus, acolhe a oferta da minha vida pelo teu corpo místico, a santa Igreja”. Nas pegadas de Santa
Catarina encontramos Santa Liduína de Schiedam (1380-1437) e santa Colecta de Corbie (1381-1447).
Antes que a palavra “reparação” chegue a ser usual e que a espiritualidade oblativa reparadora e de
imolação se afirme como uma corrente típica da piedade cristã com santa Margarida Maria, são já uma
realidade, na Igreja, em algumas almas privilegiadas.790

PEDRO DE BÉRULLE E A ESCOLA FRANCESA

A primeira elaboração clara e teológica da espiritualidade oblativa e vitimal dá-se na Escola


Francesa.
A espiritualidade da Escola Francesa, juntamente com a de Paray, teve uma grande influência sobre
a espiritualidade do P. Dehon e portanto do seu Instituto.
A Escola Francesa remonta ao pensamento do Cardeal de Bérulle (1575-1629) e ao Oratório,
fundado em Paris em 1611, para cooperar numa eficaz reforma do clero.
Os elementos da Escola Francesa são semelhantes aos da espiritualidade oblativa e vitimal que se
afirmou especialmente em França nos anos 1840-1880. É o tempo em que teve lugar a formação espiritual
do P. Dehon e a fundação dos Oblatos (1878).
Exactamente cerca de meados do 800 foram descobertas as obras do cardeal De Bérulle através da
re-impressão feita pelo Migne, em Paris, em 1856.

789
Para as Memórias, cf. NHV VIII, Index onomastique, 240; para L’année avec le Sacré Coeur, cf, Osp. IV, 425-488.
790
Cf. A. Tessarolo scj, Il culto del Cuore di Cristo, Turim-Bolonha 1957, 37-41.

160
Desde jovem, Pedro de Bérulle sentiu-se impressionado pelo mistério da “Kenosis” (esvaziamento)
do Verbo incarnado (cf. Fil 2,5-8) e pela vida interior de Cristo, que se centra no estado de oblação de amor
perene e perfeita ao Pai e aos homens.
Recordemos a importância que têm para Bérulle os mistérios ou acontecimentos da vida de Cristo e
os estados de alma com que os viveu; a importância de que se revestem também para o P. Dehon, desde a
origem do Instituto, para que os seus religiosos revivam na sua vida os mistérios da vida de Cristo, o seu
espírito de oblação, de reparação e de imolação.791
O cardeal De Bérulle emitiu o voto de oblação ou doação completa de si mesmo, que ele chamou de
servidão. É semelhante ao voto de vítima do P. Dehon.
Como o P. Dehon, o cardeal De Bérulle tem um vivo sentido do pecado. O P. Dehon está
consciente de que a recusa do amor de Cristo ou pecado é a causa profunda de todos os males da Igreja e da
sociedade; quer eliminar os obstáculos à difusão do amor de Cristo e funda um Instituto apostólico, cuja
alma é a oblação de amor, que é também reparação e imolação.792
A influência do cardeal De Bérulle foi enorme. Nele se inspiram e bebem um pouco todos os
autores que influenciaram o P. Dehon. A sua doutrina inspira-se em S. Paulo e em S. João, os apóstolos e
escritores sagrados predilectos do P. Dehon.
O laço entre a espiritualidade beruliana e o culto ao Coração de Cristo aperfeiçoa-se com S. João
Eudes. Este viveu vinte anos no Oratório (1623-1643), dos quais seis com o cardeal De Bérulle, falecido
em 1629.
De Bérulle exerceu uma grande influência sobre o P. Lallemant (+1635), sobre o P. Saint-Jure (+
1657), sobre o P. de Caussade (+ 1751), sobre o P. Grou (+ 1803). Profunda foi a sua influência sobre os
dois grandes: Pascal (+ 1662) e Bossuet (+ 1704); sobre S. Grignion de Monfort (+ 1706), sobre Dom
Guéranger (+ 1877), sobre P. Faber (+ 1863), sobre o venerável Libermann (+ 1852), sobre Mons. Gay (+
1892) e sobre o P. Giraud (+ 1885), todos autores que o P. Dehon leu e meditou com frequência.
O cardeal De Bérulle foi chamado “doutor de tantos doutores” já que muito grandes foram também
os seus discípulos. Deter-nos-emos brevemente no P. De Condren e em Olier, por causa de alguns
elementos que dizem respeito à espiritualidade e à vida do Instituto do P. Dehon.
O P. Ch. De Condren (1588-1641), Superior Geral do Oratório depois de Bérulle, pode dizer com
S. Paulo que conhece só “Jesus Cristo e este crucificado”(1 Cor 2,2).
Assim como Cristo cumpriu o sacrifício perfeito, oferecendo-se ao Pai como vítima digna d’Ele,
assim todos os homens devem oferecer-se como hóstias a Deus.
Não nos detemos sobre o nihilismo sacrificial do P. De Condren porque não inspira a
espiritualidade oblativa vitimal do P. Dehon, caracterizada mais pelo amor e pelo abandono, como em
Santa Teresa de Lisieux; tanto mais que, segundo Galy, alguns textos do P. De Condren apresentariam o
convite à “destruição” como uma forma de oblação total de amor do homem a Deus, na confiança de que o
homem, pelo poder da ressurreição do Senhor, viesse a viver só em Cristo e por Cristo.793
Esta interpretação está também confirmada pelo desejo com que o P. Condren inicia habitualmente
as suas cartas: “Jesus Cristo viva na perfeição dos seus caminhos e na santidade do seu Espírito...”. À luz
da espiritualidade oblativa-vitimal do P. De Condren significa: “Ser como Cristo, hóstia do Pai,
oferecendo-se a Jesus para que viva em nós a plenitude da sua vida”. É algo que o P. Dehon subscreveria
plenamente, fazendo-se eco da afirmação paulina: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”(Gal
2,20).
J.-J. Olier (1608-1657), pároco da maior paróquia de Paris, S. Sulpício, (mais de 150.000 almas),
como o P. De Condren e como o P. Dehon, tem um vivo sentido do pecado, especialmente como obstáculo
à difusão do amor de Deus no homem. A espiritualidade de Olier conduz espontaneamente à oblação
reparadora. Jesus é o verdadeiro e perfeito religioso do Pai, o primeiro e perfeito oblato-reparador. Nós
somos religiosos, oblatos-reparadores em religião e na oblação reparadora de Jesus.
Olier tem uma concepção grandiosa e, ao mesmo tempo, austera do sacerdote: é “um sacramento de
Jesus Cristo” para oferecer continuamente sacrifícios ao Pai.

791
Cf. Thesaurus precum, 80-89 (ed. It.lat., 1956).
792
Cf. Cosntitutiones scj, 1979, nn. 1.4-5.
793
Cf. J. Gly, Le sacrifice d’après l’ecole française de spiritualité, Paris 1951, 159 ss.

161
Como o cardeal De Bérulle e o P. Condren, Olier emitiu o voto de servidão ou de vítima para
participar no “estado” do “Ecce venio” de Cristo e do “Ecce ancilla” de Maria. É o espírito que anima o P.
Dehon quando emite o voto de vítima a 28 de Junho de 1878.
Com este voto Olier, como antes De Bérulle e o P. De Condren, e no oitocentos, o P. Giraud, a
Madre Verónica e o P. Dehon, pretendem viver num estado de transformação em Cristo, de comunhão com
Cristo oblato-vítima para louvor do Pai e para a edificação do corpo místico, como afirma S. Paulo:
“Alegro-me nos sofrimentos suportados por vossa causa e completo na minha carne o que falta aos
sofrimentos de Cristo pelo Seu Corpo, que é a Igreja” (Col 1,24).
Precisamente pela sua espiritualidade oblativo-vitimal, Olier foi um apóstolo da eucaristia. Aí
Cristo, embora glorioso, faz-se presente num estado de vítima de amor. Recordemos a centralidade do culto
eucarístico na espiritualidade do P. Dehon e do seu Instituto, e a centralidade daquilo que é mais íntimo em
Cristo: o seu Coração.
“Ter Jesus diante dos olhos – diz Olier – no coração e nas mãos”, ou seja seguir esta regra: “olhar e
adorar a Jesus, trabalhar em e com Jesus”. O P. Dehon faria seu este programa de vida.794

S. JOÃO EUDES E SANTA MARGARIDA MARIA

S. João Eudes (1601-1680). Como já afirmámos, é o santo que introduziu a espiritualidade da


escola francesa no culto do Coração de Cristo. Emitiu voto de vítima aos 36 anos, em vésperas do seu
intensíssimo apostolado nas missões populares e na fundação dos seminários.
Pelo voto de vítima e pela realização da sua espiritualidade no apostolado activo, o P. Dehon
assemelha-se a S. João Eudes. A fonte da sua espiritualidade é a oblação de amor. No P. Dehon acentua-se
mais a reparação. Semelhante é o esforço por viver os mistérios ou os “estados” da vida de Cristo,
especialmente o seu “estado” de sacerdote-vítima.
Chegamos assim a santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690). Com esta santa o culto ao
Coração de Cristo entra na piedade comum dos cristãos com aquela característica de oblação reparadora e
de imolação que até então estava reservada a algumas almas ou a alguns grupos privilegiados.
Antes de entrar na Visitação, já a graça tinha impelido Margarida Maria para a oblação reparadora e
a imolação. Quando entrou no mosteiro de Paray, realizou a missão que Deus lhe tinha confiado: difundir
em toda a Igreja o culto ao Coração de Cristo. A atenção dos fiéis era orientada para algumas verdades
contidas na Revelação: Deus é amor; o seu amor pelos homens, que se manifestou sensivelmente em Cristo
Jesus não é correspondido, antes é recusado pelo pecado. É necessário, em Cristo e por Cristo, expiar o
pecado e reconciliar os homens no amor com o Pai e entre eles. A espiritualidade de Santa Margarida é
profundamente eucarística.
Jesus Cristo, mediante a santa, pede toda uma série de práticas reparadoras recordadas também pelo
P. Dehon nas suas Constituições, destinadas a suscitar em muitas almas e durante muitos anos uma rica
corrente de oblação reparadora.795 O P. Dehon escreverá um dia no seu Diário: “Nascemos do espírito de
Santa Margarida Maria e aproximamo-nos do da irmã Teresa de Lisieux”.796 A pequena santa tinha-se
oferecido ao amor misericordioso de Deus na festa da Santíssima Trindade, a 9 de Junho de 1895.

A ESPIRITUALIDADE VITIMAL EM FRANÇA

A difusão desta espiritualidade em França tem raízes muito profundas e ramificadas.


Algumas explicações sócio-religiosas restritivas, segundo as quais tudo se explicaria como uma
reacção aos horrores da revolução francesa ou como consequência de uma ampla corrente expiatória depois
da derrota de Sedan (1870) são demasiado superficiais e só em parte verdadeiras.

794
Cf. G. Manzoni scj, La scuola francese e P. Dehon, in “Dehoniana” 1 (1979), 24-38; “Una Congregazione adoratrice” in
“Dehoniana” 1 (1983), 42-58.
795
Cf. Constitutiones Congregationis Sacerdotum a Sacro Corde Jesu, 1956, I, 3-6.
796
NQ XLV, 55: Abril 1925.

162
Recordemos as Irmãs Vítimas do Sagrado Coração de Marselha. A sua fundadora Julie-Adéle de
Gerin-Richard (1793-1865) vem de uma vida de intenso apostolado no meio de todo o tipo de misérias,
especialmente entre as jovens abandonadas e os atingidos pela cólera, em 1835, em Marselha. Em 1832,
oferecera-se como vítima ao Coração de Jesus, para se entregar totalmente a Ele no serviço das criaturas
mais abandonadas.
Quero relevar que num século descrente, volteriano, utilitarista e também materialista e positivista
como o oitocentos, especialmente em França, as numerosas almas que, como Adéle de Gerin-Richard, se
oferecem como vítimas, não são de maneira nenhuma pessoas psicopatas, intimistas: antes pelo contrário!...
Dão um maravilhoso exemplo de altruísmo ou, melhor dito, de amor a Deus, a Cristo, aos pobres, aos
marginalizados e aos homens feridos pela maior miséria: o pecado. Não são só religiosos ou religiosas, mas
também leigos como Leão Harmel, o pai de Santa Teresa de Lisieux, a mãe de Leão Dehon...
As Irmãs Vítimas conheceram o abade Louis Maulbon d’Arbaumont (1813-1882), que assumirá o
nome de P. João do Sagrado Coração. Então era secretário do bispo de Dijon, Mons. Rivet, e ajudou as
Irmãs Vítimas na redacção definitiva das suas Constituições.
Louis d’Arbaumont tinha estudado em S. Sulpício e, através dos escritos de Olier, tinha
experimentado a espiritualidade do P. De Condren, harmonizando-a com a espiritualidade de Paray-le-
Monial.
Estamos em 1848, num clima sócio-político-religioso de máxima tensão. A 25 de Junho, Mons.
Affre, arcebispo de Paris, é ferido de morte nas barricadas. Pio IX foge de Roma para Gaeta. Louis
d’Arbaumont oferece-se, por duas vezes, como vítima.
De 1850 até à sua morte (1882) será capelão das Irmãs Vítimas de Marselha. Aí fundará também
um instituto de Sacedotes-vítimas do Sagrado Coração. Terá somente 6 companheiros e morrerá após de 32
anos de vida religiosa muito austera e intensamente apostólica no campo da pregação.
Morrerá só, único e último sobrevivente da sua congregação.797
S. Miguel Garicoïts (1797-1863) começou reunindo um grupo de sacerdotes que estivessem
totalmente disponíveis para o bispo, como os Jesuítas para o Papa, querendo assim pôr cobro ao
relaxamento religioso e disciplinar de muitos membros do clero, abandonados a si próprios durante a
revolução. Mais tarde deu a este grupo de sacerdotes as características de um instituto religioso, chamando-
os: Sacerdotes do Sagrado Coração de Betharram.
Através dos escritos de Bossuet, S. Miguel Garicoïts entra em contacto com a espiritualidade da
escola francesa. Em relação à devoção ao Coração de Jesus inspira-se em S. João Eudes.
O seu ideal, como fundador, é a oblação vitimal de Cristo, que se consagra inteiramente à vontade
do Pai. O Ecce venio resume toda a espiritualidade de S. Miguel Garicoïts e do seu instituto.798
O P. Silvano Giraud (1830-1885) tem como mestres e directores no Seminário de Aix-en-Provence
os Sulpicianos. Nutre-se da doutrina de Olier e chega à convicção de que um sacerdote, na medida em que
é sacerdote, também é vítima.
Em 1855, encontra-se com a Madre Sainte Claire, abadessa das capuchinhas de Aix, que o ilumina
com grande equilíbrio sobre as práticas da imolação e da abnegação vitimal. Entra nos Padres de la Salette
e, meditando as dores de Maria aos pés da Cruz, vítima com a vítima divina, confirma-se na sua vocação
vitimal.
No seu apostolado dedica-se à pregação das missões populares; mas, já quase cego e com pouca
saúde, entre contrastes e incompreensões, deve abandonar a pregação.
Em 1865, é eleito superior de la Salette e Mestre de noviços. É neste tempo que começa a sua
actividade de escritor sobre a espiritualidade vitimal e em 1867-1870 escreve a sua primeira grande obra:
“De l’union à N.S.Jésus-Christ dans sa vie de victime”.
Em 1867, encontra a Madre Maria Verónica, fundadora das Irmãs Vítimas de Avenières e projecta a
fundação de um instituto de sacerdotes-vítimas; mas os seus directores espirituais dão uma opinião
negativa e, em 1870, o P. Giraud renuncia definitivamente ao instituto dos sacerdotes-vítimas. Em 1868
tinha feito o seu voto de vítima.

797
Cf. M. Denis scj, La spiritualité victimale en France, Roma, 1981: “Les Soeurs Victimes du Sacré Coeur de Marseille” 47-70.
798
Cf. M. Denis, La spiritualité, 70-80.

163
A derrota de Sedan (1870) e os horrores da Comuna (1870-1871) confirmam-no ainda mais na sua
vocação vitimal. A ela corresponde heroicamente. Por quatro vezes é reeleito superior. Dedica-se sem
reserva à pregação de exercícios espirituais a sacerdotes e a comunidades religiosas, mesmo estando quase
cego e atormentado por uma prostatite que o levará à morte.
Morrerá ao voltar de um curso de exercícios espirituais dado a sacerdotes, recolhido num hospício
de pobres, a 25 de Agosto de 1885, apenas com 55 anos, fiel ao seu voto de vítima e ao voto de fazer
sempre o que lhe parecesse mais perfeito.
Segundo H. Bremond, Silvano Giraud foi “um dos maiores mestres espirituais dos tempos
modernos”. A espiritualidade vitimal do P. Giraud difundiu-se por meio das suas obras em que demonstra
um grande conhecimento da Bíblia e um extraordinário domínio dos Padres. O P. Dehon aconselha todas
estas obras aos seus religiosos, como leitura espiritual: “Jesus Cristo sacerdote e vítima”, “Sacerdote e
hóstia”, “A vida de união a N.S. Jesus Cristo na sua vida de vítima”, “O espírito de vítima no estado
religioso”.799
A doutrina vitimal do P. Giraud, embora inspirando-se na escola francesa, tem uma verdadeira e
típica originalidade. Não vou tratá-la em detalhe; direi somente que desenvolve a teologia paulina do
baptismo e do corpo místico e a doutrina de S. João da videira e dos ramos. Toda a vítima tem de viver em
união com Cristo, a oblação (Incarnação), a imolação (Calvário), a transformação (Ressurreição), a
comunhão (Ascensão).800
A Madre Verónica do Coração de Jesus (1825-1883), no mundo Carolina Lioger, teve uma vida
muito atormentada por contínuas doenças, provas e contradições de toda a espécie. Soube aceitar tudo com
grande generosidade, tendo tido desde jovem uma forte atracção para a espiritualidade vitimal. Apesar de
tantos sofrimentos e contrariedades conservou sempre um carácter muito expansivo, alegre e vivo, firme e,
às vezes, autoritário.
O espírito de vítima para ela, como para o P. Giraud e para o P. Dehon “é o espírito do cristianismo,
é a vida do cristão perfeito”.
Depois de várias experiências apostólicas e religiosas, fundou em 1857 o Instituto das Irmãs
Vítimas do Sagrado Coração de Jesus. Era o dia 10 de Abril, Sexta-feira Santa. A 21 de Novembro de
1867, fez o voto de vítima, juntamente com o seu director espiritual, o sulpiciano Emílio Roux, formado na
escola de Olier.
Em 1867, por meio do P. Giraud, a Madre Verónica tentou formar um instituto de sacerdotes
vítimas, desejado e projectado desde havia muito tempo; mas renunciou definitivamente a tal, após a
fundação, pelo P. Dehon, dos Oblatos do Coração de Jesus.801
A história da espiritualidade vitimal no oitocentos francês continua com outras obras e outras
pessoas que o P. Dehon evoca nos Souvenirs.802
A história da espiritualidade vitimal é muito extensa e complexa. Evocámos somente aqueles
aspectos, pessoas e obras que estiveram mais relacionadas com a espiritualidade e a vida do P. Dehon e da
sua Congregação.803

OS OBLATOS DO CORAÇÃO DE JESUS

Nas Memórias, o P. Dehon volta a reflectir no início da sua Congregação e apresenta os motivos
pelos quais foi fundada. Estamos no final do décimo segundo caderno e, portanto, já passaram pelo menos
20 anos desde a fundação.804

799
Cf. DS, ed. 1908, 101-102.
800
Cf. Denis, La spiritualité, 80-120.
801
Cf. Denis, La spirirualité, 121-148.
802
Cf. Lettere circolari: Ricordi, nn. 357-362.
803
Cf. Denis, La spiritualité, 148-226.279-293.
804
NHV XII, 167-172.

164
Ele quis dar, sobretudo, uma resposta concreta ao pedido que Cristo dirigiu a Santa Margarida para
que houvesse almas consagradas ao amor e à reparação das “ofensas feitas ao seu Coração pelos pecados
dos homens”.805
O mesmo pedido tinha repetido a Virgem quando apareceu em La Salette: “Se se acredita no
segredo de Melânia, a Virgem pediu sobretudo a reparação mediante os sacerdotes e pelos sacerdotes”. 806
Este amor e esta reparação são as “aspirações de tantas almas santas... Muitas Congregações reparadoras
femininas foram fundadas nestes últimos tempos e todas desejam uma fundação masculina com a mesma
finalidade”.807 O P. Dehon recorda várias tentativas.
Mons. Fava, bispo de Grenoble, tentou uma fundação masculina de reparação, mas o intento não
resultou.
A obra das Vítimas do Sagrado Coração de Bordéus e de Murat para a santificação do clero não era
um instituto, mas uma simples associação. Desejava-se um instituto. Já existia a Guarda de honra de Bourg
que, no seu terceiro grau, promovia a união à vida de vítima do Coração de Jesus para a santificação dos
sacerdotes, dos religiosos e para a reparação; “mas também esta obra desejava uma congregação de
sacerdotes”.808
A mesma aspiração exprimiam várias almas privilegiadas, favorecidas com “luzes” a este respeito.
Finalmente, as Irmãs Servas, que tinham como espírito a oblação reparadora, “rezavam e
sacrificavam-se com este fim... Eu próprio – escreve o P. Dehon – tinha vivido neste espírito desde havia
muitos anos. Tinha-me compenetrado do espírito destas Irmãs para orientá-las, fazer-lhes pregações e
confessá-las”.809
Estes são os “motivos históricos”, diríamos nós, “os sinais dos tempos” pelos quais o P. Dehon
fundou os Oblatos do Coração de Jesus: “Esta ideia da reparação sopra na Igreja, mediante o Espírito de
Deus, de todos os lados”. Assim escrevia ao P. Dehon Mons. Fava, bispo de Grenoble.810
São motivos contigentes que nos podem deixar insatisfeitos, tão alérgicos que somos sobretudo a
visões e a revelações. Nós teríamos outros “sinais dos tempos”. Aqueles eram “os sinais” muito difundidos
e sentidos na segunda metade do oitocentos, nos tempos do P. Dehon. Além disso, as aparições de Paray-
le-Monial eram um “facto eclesial”. A Igreja tinha-as admitido nos seus documentos oficiais sem fazer
delas matéria de fé para os crentes.
Veremos, no seguimento da nossa história, como, na realidade, também para o P. Dehon o valor
mais profundo e mais válido do seu carisma, ou seja a oblação de amor que é reparação, apostolado e
imolação, se fundamenta na Bíblia e, particularmente, na vida de Cristo.

805
NHV XII, 167.
806
NHV XII, 168.
807
NHV XII, 167, 168-169.
808
NHV XII, 171.
809
NHV XII, 172.
810
NHV XII, 170.

165
CAPÍTULO 13

O fervor dos inícios

Madre Maria do Coração de Jesus – Irmã Maria de Jesus – Irmã Maria de S. Inácio – As preocupações de Mons.
Thibaudier – As razões de um equívoco – O P. Tadeu Captier – Os primeiros noviços – Cruzes e consolações – Vida espiritual
do jovem fundador – Do Coração de Jesus aceito a cruz e os espinhos.

MADRE MARIA DO CORAÇÃO DE JESUS

O P. Dehon é o único fundador dos Oblatos do Coração de Jesus. A seu lado, gabou-se do título de
“co-fundador” o extravagante P. Tadeu Captier, de quem falaremos mais adiante.
Outros, como dissemos, apresentaram a Madre Maria do Coração de Jesus (a Chère Mère) e
também a irmã Maria de S. Inácio como co-fundadoras dos Oblatos; porém a afirmação é historicamente
insustentável.811
Durante os primeiros anos, o P. Dehon e, por conseguinte, o seu Instituto, viram-se grandemente
influenciados pela Chère Mère com resultados positivos e negativos. Leão Dehon tinha uma personalidade
muito rica, mas também era muito condescendente. A Madre Maria do Coração de Jesus possuía grandes
virtudes, mas também um temperamento autoritário: “Pessoalmente – escreve o P. Dehon nas Memórias –
a Chère Mère era maravilhosamente dotada para ser superiora e fundadora. Tinha a fé dos santos e um
carácter absolutamente enérgico. A educação alsaciana, unida ao temperamento pessoal, tinham-lhe
conferido uma certa dureza no governo, pouco aceitável para as vocações francesas...”.812
À notícia da sua morte, a 17 de Março de 1917, o P. Dehon anota no seu Diário: “É uma alma santa
que do céu nos ajudará. Sempre teve uma fé pouco comum e um carácter de rara energia...”.813
Tinha directores espirituais, porém era impossível dirigi-la. Sentia-se dirigida por Nosso Senhor.
Dirigia os outros e fazia sermões inclusive aos seus confessores. Mons. Deramecourt, Bispo de Soissons
desde 1898 a 1906, chamava-a: “a matriarca”.814
Para além de ter um carácter conciliador e dócil, o P. Dehon, nos primeiros tempos da Congregação,
estava fisicamente muito debilitado pelas frequentes hemorragias, por tantas contrariedades dentro e fora
do Instituto, pelas frequentes intervenções do bispo de Soissons, pelas dificuldades financeiras, pelo
desenvolvimento do ainda frágil Instituto, pelas preocupações familiares: a paralisia da mãe, a morte do pai
(1882), depois da mãe (1883) e tantas outras cruzes só por Deus conhecidas.
Bem consideradas as coisas, era natural que o jovem Fundador dos Oblatos encontrasse uma válida
ajuda na enérgica Chère Mère, na sua vida de fé, na sua coragem e no seu zelo, às vezes intempestivos.
Um exemplo, apenas, significativo: as luzes de oração da irmã Maria de S. Inácio, das quais teremos de
falar, são para ela oráculos do Senhor e devem realizar-se a todo o custo, sem contemplações para
ninguém. Às vezes estavam implicadas pessoas (acolher vocações, corrigir religiosos, etc.) e, com as
melhores intenções do mundo, era fácil cometer injustiças.815
Pomos em relevo uma circunstância que explica melhor a situação. Precisamente nestes anos
“extraordinários”, o pregador habitual das Servas era o P. Augusto Modeste, um santo Jesuíta, director
espiritual do P. Dehon depois da morte do P. Freyd (6 de Março de 1875). Apreciava tanto o carisma
dehoniano que costumava dizer: “Se não fosse Jesuíta, tornar-me-ia Oblato do Coração de Jesus”. Ora, este
811
Cf. P.L. Wychens, L’origine historique de la Congrégation des Prêtres du Sacré-Coeur, 1962, 213 pp., dactilografadas; cf.
Note e studi, n. 11, p. 550.
812
NHV X, 21-22.
813
NQ XL, 109-110: Março de 1917.
814
Carta do P. Dehon ao P. J. Paris de 20.12.1924 (AD, B 20/7.4º).
815
Cf. H. Dorresteijn scj. Vita e personalità di P. Dehon, 603-613.

166
venerando religioso acreditava de maneira absoluta nas “comunicações celestiais” da irmã Maria de S.
Inácio e chegou a dizer à “Chère Mère” que podia usar moderadamente destas “comunicações” para a
“edificação” da comunidade. A Madre Maria de Jesus aceitou este convite como uma graça e, no seu
vigoroso zelo, superou os justos limites da prudência. Estava nas antípodas da sábia e prudente doutrina de
S. João da Cruz (desconhecida tanto pela Chère Mère como pelo P. Dehon e, em geral, pelos seus
directores espirituais) que aconselha, não só a desconfiança, mas a recusa total de semelhantes luzes de
oração, seja sob a forma de palavras “sucessivas” (grandes comunicações) como de palavras “formais”
(breves comunicações).816

IRMÃ MARIA DE JESUS

Estamos em Março de 1878. O P. Dehon fundou os Oblatos do Coração de Jesus há apenas oito
meses e está gravemente doente. Repetem-se constantemente violentas hemoptises. Os médicos não lhe
dão mais que 6 meses de vida.817 Uma jovem Serva do Sagrado Coração, a irmã Maria de Jesus, a 1 de
Março de 1878 tem a ideia de oferecer a sua vida a Deus pela vida do P. Dehon. A jovem Irmã, que ainda
não tinha feito 22 anos, tem a íntima convicção de que a sua oferta foi aceite. 818 Em Novembro de 1878
renova a sua oferta, já que em Outubro se tinha agravado o estado de saúde do P. Dehon; pede só a Deus 15
meses, para preparar-se para morrer em união com os mistérios do rosário, a partir de 15 de Novembro de
1878: “O seu desejo era, pois, morrer em Março de 1889, mês dedicado a S. José de que era muito devota.
Porém o seu cálculo – escreve o P. Dehon nas suas Memórias – não era lógico. Nosso Senhor não quis
deixá-la passar os mistérios gloriosos na terra. Levou-a em fins de Agosto (1879) no mistério da morte de
Jesus na Cruz. Tudo me leva a crer que a piedosa Irmã morreu por mim... Deus concedeu-me uma segunda
vida”.819
Depois da oferta definitiva da sua vida (Novembro de 1878), a ir. Maria de Jesus fez o voto de
vítima a 8 de Dezembro de 1878. No dia da sua primeira profissão tinha descrito a sua espiritualidade,
escrevendo uma poesia sobre o “Ecce venio”.820 É impressionante a semelhança entre a irmã Maria de Jesus
e Santa Teresa de Lisieux, tanto pelos dotes naturais de equilíbrio, de inteligência, de força e doçura de
carácter, de boa cultura e delicada educação, como pelas virtudes religiosas de caridade e de obediência, de
mortificação e de valorização das coisas pequenas, de disponibilidade para os mais humildes serviços a
todos, como também pela espiritualidade orientada para o abandono e o amor puro, pela oferta da vida com
o voto de vítima e pela morte em plena juventude.
O P. Dehon teve a ideia de escrever a vida da irmã Maria de Jesus na peregrinação que fez a Lisieux
a 20 de Agosto de 1912.821 Mais que uma biografia, é um retrato espiritual da jovem Irmã, tirado dos seus
escritos, como já insinua o título: “Uma vítima de amor ao Sagrado Coração de Jesus... segundo os seus
escritos e as suas cartas”.
A irmã Maria de Jesus era a irmã mais nova da fundadora das Servas do Sagrado Coração. No
mundo chamava-se Madalena Uhlrich, nascida em Barr (Alsácia), a 22 de Julho de 1856.
Inteligente, de carácter alegre, era dotada de um apurado espírito de observação, tinha uma
educação, também intelectual, muito esmerada. Tinha sido durante três anos preceptora numa família nobre
de Dresde e entrou no noviciado das Servas do Sagrado Coração de S. Quintino, a 16 de Março de 1877,
com 21 anos apenas.
816
Cf. Salita del Monte Carmelo 2, cap. 28-30. Deve-se fazer um raciocínio totalmente diferente para as “palavras substanciais
que interiormente são ditas ao espírito... uma dessas concede à alma um bem maior do que quanto a alma fez durante toda a
vida” (cap. 31, 218-219).
817
O doutor Demanchaux dizia, tanto no hospital como na cidade, que o P. Dehon não tinha mais de três meses de vida: a
tuberculose estava muito avançada (cf. carta de P. A. Rasset de 22.6.1881: AD, B 37 1h). “No mês de Abril de 1879 – continua o
P. Rasset na mesma carta – [o P. Dehon] parecia-me um homem perdido. Vi muitos doentes e estudei as doenças de pulmões,
para pronunciar-me com suficiente segurança”.
818
Cf. Soeur Marie de Jésus, 46-47; NQ XLV, 50: Março de 1925.
819
NHV XIII, 165-166.
820
NHV XIII, 161-164.
821
Cf. NQ XXXIV, 136-138.

167
O Senhor mostrou-lhe que tinha aceitado a sua vida em troca da do P. Dehon com provas dolorosas
de toda a espécie, tanto físicas como espirituais. Nem sequer faltaram as obsessões diabólicas. A irmã
Maria de Jesus aceitou tudo com humildade e abandono verdadeiramente heróicos.822
Nenhum médico conseguiu diagnosticar o mal que a levaria à morte. Várias vezes a irmã Maria
tinha dito: “Darão conta da minha doença já quando será demasiado tarde para remediá-la”.823 Numa carta
de Outubro de 1878 à sua superiora e irmã mais velha (a Chère Mère) lemos: “Um mal exterior esconderá
até ao último momento o meu verdadeiro mal. Dar-se-ão conta só quando for demasiado tarde para
remediá-lo. É o mesmo mal de que sofre o nosso Padre (o P. Dehon) e que me levará no momento em que
ele haveria de morrer”.824
As previsões da irmã Maria de Jesus cumpriram-se com impressionante exactidão. No dia 2 de
Julho de 1879, assistiu pela última vez à missa na capela. Subiu para a sua cela; chegou lá esgotada e não a
deixou mais. Só a 15 de Agosto, o médico conseguiu diagnosticar uma tuberculose aguda ou “tísis
galopante”, mortal naqueles tempos.
A 25 de Agosto de 1879, começando o mistério da crucifixão e morte de Cristo na cruz, entrou em
agonia. Conservou a mais completa lucidez mental, unindo-se a todas as orações pelos agonizantes. Na
quarta-feira, 27 de Agosto, dia consagrado a S. José, exalou o último suspiro, pronunciando as palavras de
Cristo na cruz: “Tudo está consumado”.
O P. Dehon conclui a biografia da irmã Maria de Jesus com esta afirmação: “Aquele que estava em
perigo de morte e vive com uma vida não sua, continua à frente da Congregação que fundou, com uma
actividade e um ardor que nunca nada conseguiu moderar”.825 A irmã Maria de Jesus, em vinte meses de
vida religiosa, realizou o dito do Senhor: “Se o grão de trigo não cair por terra e não morrer, não dá fruto;
mas se morrer dá muito fruto”.826

IRMÃ MARIA DE SANTO INÁCIO

Como na vida de tantos fundadores encontramos a presença providencial de uma mulher, assim na
vida do P. Dehon encontramos a irmã Maria de S. Inácio, no mundo Joana Wernert, nascida a 24 de Junho
de 1847 em Würtemberg, que entrou nas Servas em 1871 e professou em 1875. Em 1877, quando Leão
Dehon iniciou a sua Congregação, a irmã Maria de S. Inácio tem apenas 30 anos. Na opinião dos que a
conheceram, era uma mulher psicologicamente sã e equilibrada, com um grande bom senso e de uma
intensa e simples piedade. O seu comportamento espontâneo e modesto é fascinante. Destaca-se pela sua
obediência e pelo seu espírito de mortificação “mais para admirar do que para imitar”, escreve o P.
Dehon.827
A irmã Maria de S. Inácio tinha-se oferecido vítima pela sua comunidade em 1872, quando as
Servas tiveram que sair de Alsácia para refugiar-se em Moulain, na França. Tinha renovado publicamente o
voto de vítima a 16 de Junho de 1875.
Depois da oferta de 1872, foi assaltada por muitos sofrimentos, tanto espirituais como físicos. Estes
sofrimentos foram-se acentuando entre 1875 e 1878. “A boa Irmã enfraquecia e às vezes parecia em perigo
de morte. Em 1877, tinha frequentemente na capela uma espécie de síncope, seguida de um sono
prolongado. O Jesuíta (P. Jenner), que pregava os exercícios espirituais à comunidade no mês de Junho de
1877, era do parecer de que se tratava de um sono mais espiritual que natural”. A descrição é do P. Dehon.
Nos fins de Janeiro de 1878, a Irmã teve o pressentimento e como uma espécie de aviso
sobrenatural de estar próxima da morte. A 2 de Fevereiro sofreu uma síncope mais longa e parecia que ia
morrer. “foram procurar-me – continua o P. Dehon – porque era o confessor e o director espiritual da Irmã.
Cheguei com os Santos Óleos para lhe dar os últimos sacramentos. Mas a Irmã recuperou. Então abriu-se
822
Cf. Dorresteijn scj, Vita e personalità di P. Dehon, 637-645.
823
Soeur Marie de Jésus, 166.
824
Soeur Marie de Jésus, 47.
825
Soeur Marie de Jésus, 174.
826
Soeur Marie de Jésus, 175.
827
NHV XIII, 72.

168
com a Chère Mère sobre o seu estado interior e disse-lhe que ouvia a voz de Nosso Senhor. Assim, pelo
menos, pensava ela; parecia-lhe ouvir palavras. As suas angústias mortais tinham sido uma morte mística
que preparava estas comunicações. As graças destas luzes durariam vários anos até 1883”. 828 Assim conta o
P. Dehon nas suas Memórias.
A primeira comunicação, a de 2 de Fevereiro de 1878, referia-se precisamente ao P. Dehon:
“Quero, sim, quero sacerdotes vítimas, diz-lho (ao P. Dehon), é uma das obras mais queridas ao meu
coração. Farei tudo eu. Ele não tem que fazer nada mais do que abandonar-se completamente a mim e ser
muito dócil à minha voz e à minha graça... É vosso irmão”. 829 Tanto nas Memórias como no caderno
conservado no arquivo dehoniano, podem ler-se as “revelações” da irmã Maria de S. Inácio na totalidade.830
A irmã Maria de S. Inácio escrevia as suas comunicações em alemão e a irmã Maria de Jesus
traduzia-as rapidamente para o francês.

AS PREOCUPAÇÕES DE MONS. THIBAUDIER

“Tudo era bom, piedoso e de uma doutrina elevada e excepcional”. Assim escrevia o P. Dehon. “A
Chère Mère garantia-me que as “revelações” eram ditadas por Nosso Senhor, e também a irmã Maria de S.
Inácio acreditava nisso”.831 Além disso a tradutora (irmã Maria de Jesus) afirmava que o alemão da irmã
Maria de S. Inácio tinha expressões belas e elegantes, como autênticos trechos literários de que a Irmã, sem
cultura especial, era naturalmente incapaz. “Cometi o erro de acreditar em tudo isto – escreve o P. Dehon -.
Nosso Senhor não faz tão grandes discursos nas suas revelações (este juízo é dado quase vinte anos mais
tarde, quando escreveu as Memórias). Deveria ter aceitado aquelas piedosas páginas só pelo seu valor
teológico ou como luzes de oração. É o que decidirá em 1883 o Santo Ofício”. 832 “Deveria ter confiado
mais totalmente em Mons. Thibaudier, que mantinha uma grande reserva”. 833 Entre outras coisas o bispo
escrevia-lhe: “A vossa boa Irmã é para mim objecto de um interessante e respeitoso exame. O meu parecer
é que continue tendo-a sob observação com muito respeito, porém sem fazer caso das suas indicações
quando se prestem ao menor inconveniente. Há que evitar, com o máximo cuidado, apegar-se às suas
inspirações. Se vêm de Deus, Deus saberá bem como fazer-se conhecer... Uma ilusão do diabo não me
parece conciliável com tanta piedade, com tantas luzes justas e úteis, com uma candura tão modesta. Resta
a hipótese das ilusões de uma alma bela, casta, mas também frágil e com uma imaginação muito viva. O
bom Deus, não nos ordena que julguemos, mas pelo contrário, que sejamos circunspectos, até que nos
permita chegar à certeza moral”.834
Noutra carta: “Respeitarei profundamente a acção de Deus na boa Irmã enquanto a acção de Deus
me resultar provável. Porém até à luz de uma autêntica certeza moral, Deus não nos pede mais; pelo
contrário... Esperar, observar, não agir senão na medida manifestamente indicada ou manifestamente
inofensiva”.835
Mais adiante Mons. Thibaudier renovará os seus apelos à prudência, à reserva, ao silêncio em
relação às pretensas “revelações” da irmã Maria de S. Inácio.
Lemos numa carta enviada a D. Mathieu: “A minha intranquilidade aumenta de dia para dia vendo,
por um lado, uma verdadeira publicidade (esta não vinha do P. Dehon, que até com os seus noviços era
muito discreto) e o hábito adquirido de apoiar toda uma grande obra sobre fundamentos tão inseguros... É
preciso, durante um certo tempo, fechar-se numa grande reserva e num grande silêncio”. O bispo dá
algumas orientações: “Que o P. Dehon vá raramente ter com as Servas, ao máximo de 15 em 15 dias,
embora certamente lhe custe. O serviço religioso seja constantemente assegurado pelo próprio capelão e
confessor ordinário. Não se comunique nenhuma revelação ao capelão. Não são permitidas visitas à irmã
828
NHV XIII, 72-73.
829
“Vues d’oraison de la sr. Marie de St. Ignace sur l’Oeuvre des Victimes du S. Coeur, 1878 et suiv.” P. 3 (AD, B 34/9).
830
Cf. “Vues d’oraison...” cit.: NHV XIII, 85-99.
831
NHV XIII, 80.
832
NHV XIII, 82-83.
833
NHV XIII, 84.
834
Carta de Mons. Thibaudier ao P. Dehon de 4.11.1878 (AD, B 21/3q; cf. NHV XIII, 126-127).
835
Carta de Mons. Thibaudier ao P. Dehon de 15.11.1878 (AD, B 21/3q; cf. NHV XIII, 127).

169
Maria de S. Inácio”.836Enquanto não tivermos sinais muito mais claros, quero que se observem
rigorosamente as normas que sempre tracei: 1º o segredo; 2º a abstenção de qualquer recurso aos escritos e
às palavras da irmã Maria de S. Inácio para os negócios administrativos. Aliás sempre vi nos escritos da
Irmã coisas muito bonitas e uma doutrina irrepreensível”.837
Admiramos a prudência de Mons. Thibaudier e os seus conselhos tão semelhantes à doutrina de S.
João da Cruz; admiramos a humilde lealdade do P. Dehon em nos dar a conhecer esta correspondência,
copiando-a para as suas Memórias, admitindo os seus erros.

AS RAZÕES DE UM ERRO

Naquele tempo (1878-1883) o P. Dehon tinha aceitado as comunicações da irmã Maria de S. Inácio
como revelações. “Pode-se imaginar a impressão que eu experimentava. Foi, durante vários anos, uma vida
um tanto fictícia, feita de esperas, de desejos, de alegrias, de medos, sobretudo quando às piedosas luzes se
misturavam profecias”.838
Muitos factos o sustentavam na convicção de que fossem revelações. Além das virtudes da irmã e
da pureza da sua doutrina muito elevada e sustentada pela Sagrada Escritura, tinham-se verificado
obsessões diabólicas contra a copista, a ir. Maria de Jesus, ruídos nocturnos nas casas de S. Quintino e de
Fourdrain, havia a cura do sr. Genty, as leituras dos segredos dos corações por parte da irmã Maria de S.
Inácio, algumas profecias, por exemplo que o P. Dehon não assistiria à morte do seu pai, como de facto
aconteceu a 11 de Fevereiro de 1882 e a aprovação destas “revelações” da parte de eclesiásticos de valor,
como Mons. Gay, P. Wyart, P. Modeste, D. Didiot...839
Também era verdade que muitas previsões, relativas especialmente às vocações, não se tinham
verificado, como também a promessa de que se conservariam os recursos financeiros do testamento da
Irmã Maria das Cinco Chagas. “Resumindo – escreve o P. Dehon nas Memórias -, depois do juízo do Santo
Ofício, reconheço completamente que estas longas comunicações ditadas não eram revelações. Conservo a
impressão de que havia algo de divino, graças excepcionais e, particularmente, luzes de oração com uma
doutrina muito elevada”.840
Uma comissão instituída pelo arcebispo de Reims para examinar, entre outras coisas, os escritos da
ir. Maria de Santo Inácio, dará um juízo fundamentalmente positivo sobre a doutrina da Irmã. Esse será
também o parecer do Santo Ofício, proibindo apenas chamar “revelações divinas” a simples “luzes de
oração”.
Várias vezes o P. Dehon volta, nas Memórias e especialmente no Diário, às “luzes de oração” da
irmã Maria de S. Inácio, visto que lembram um pouco toda a sua espiritualidade: a oblação de amor, a
imolação, a reparação, o apostolado.
O P. Dehon, em Março de 1910, quase com setenta anos, lê as obras de S. João da Cruz: “A subida
do monte Carmelo” e “A noite escura” e, compreendendo melhor os factos extraordinários da mística,
afirma que poderia haver nas luzes de oração da irmã Maria de S. Inácio breves “locuções divinas”, as que
S. João da Cruz chama “palavras formais”. O P. Dehon sublinha sete breves expressões como prováveis
locuções divinas ou “palavras formais”; tudo o resto não são mais do que “luzes de oração” ou “palavras
sucessivas”, como as chama S. João da Cruz. Conclui o P. Dehon: “Se o tivesse lido em 1878, teria evitado
tantos erros ... O Santo ensina que não se se deve deter em visões, em palavras que parecem vir de Deus.
Tudo isto está muito exposto a erros. Deve-se procurar o crescimento do amor divino na humildade, no
desprendimento, no cumprimento do dever quotidiano. É preciso, sobretudo, evitar interrogar a Deus e
pedir-lhe uma orientação para todas as coisas... Em 1878 não sabia guiar a irmã Maria de S. Inácio. O bom
P. Modeste, que me orientava, também não soube destrinçar-se melhor do que eu. Deus permitiu isso e a
836
Carta de Mons. Thibaudier a D. Mathieu de 5.7.1881 (AD, B 21/3r; cf. NHV XIV, 67-68).
837
Carta de Mons. Thibaudier de 6.7.1881; NHV XIV, 68.
838
NHV XIII, 82.
839
Júlio Didiot (1840-1903) tinha estudado em Roma e tinha-se doutorado em teologia em 1864. Professor no Semináripo Maior
de Verdun e depois na Universidade livre de Lille, foi decano da mesma Universidade de 1877 a 1886 e de 1893 a 1896. Teve
relações de amizade com o P. Dehon e este consultou-o sobre as “revelações”.
840
NHV XIII, 84.

170
obra realizou-se na mesma, mas a preço de que sofrimentos!”.841 Na realidade, em 1878, nem o P. Dehon
nem o P. Modeste e nem sequer o P.Jenner eram experientes em factos místicos extraordinários.
Para explicar o erro do P. Dehon sobre “as luzes de oração” da irmã Maria de S. Inácio,
confundidas com “revelações divinas”, temos que ter em conta que Leão Dehon, em seminarista, não tinha
feito estudos de teologia espiritual, matéria desconhecida nos programas escolares do seu tempo. Além
disso, o P. Dehon era incline aos factos místicos extraordinários. Assim se explica o motivo pelo qual as
chamadas de precaução de Mons. Thibaudier e os prudentes conselhos que lhe vieram também do P. Daum
e do P. Eschbach, em conformidade com a doutrina de S. João da Cruz, não foram ouvidos. O P. Dehon
sentia-se muito apoiado espiritual e psicologicamente pelas “revelações” da irmã Maria de S. Inácio no
período difícil das origens. A seu modo de ver, eram uma confirmação divina da sua missão de fundador e
portanto um apoio de que não se queria privar.
O erro fundamental consistia em servir-se da irmã Maria de S. Inácio como de um oráculo para
saber o que estava ou não conforme com a vontade de Deus. Tomavam-se assim decisões que podiam
envolver também pessoas, com desagradáveis consequências.
Subjectivamente, tanto o P. Dehon como a Chère Mère tinham um grande desejo de fazer em tudo a
vontade de Deus; mas, ao mesmo tempo, abandonavam-se a formas de misticismo infectado de fideísmo. O
P. Dehon, como sabemos, de carácter bom, condescendente, (não tinha “um temperamento de lutador”),
desconfiava de si mesmo e facilmente se culpabilizava. Temia o perigo da ilusão e, ao mesmo tempo, não
queria desobedecer à vontade de Deus. Tendia a esconder-se para deixar à Providência o cuidado de guiar a
nascente Congregação. Esta tendência era favorecida pelo facto de que o Superior Geral era Mons.
Thibaudier842 e de que o arcipreste Mathieu se considerava superior delegado do bispo para todas as obras
de S. Quintino; havia a Chère Mère que fornecia as Irmãs para os serviços domésticos e também o P.
Modeste sj, director espiritual do P. Dehon, tinha o seu peso.
Boa parte dos exageros fideístas que relevamos devem ser atribuídos à enérgica Madre Maria do
Coração de Jesus. A sua era uma forma de “maternalismo” para com o recém nascido Instituto, para com o
Fundador e, particularmente, para com a irmã Maria de S. Inácio.
Esta irmã, pelo contrário, era muito reservada, simples, humilde e profundamente sobrenatural. É o
testemunho unânime de quantos a conheceram na sua longa vida até a sua morte, aos 87 anos, a 24 de Abril
de 1935.
Assim as pretensas revelações da irmã Maria de S. Inácio foram uma das causas da supressão dos
Oblatos pelo Santo Ofício em 1883, como se a Congregação do P. Dehon fosse fundada sobre revelações
privadas.843
O P. Dehon esteve, durante toda a sua vida, convencido da missão providencial da irmã Maria de S.
Inácio em relação ao seu Instituto: “Nosso Senhor quis dar-nos luzes, porém também quis que delas
fizéssemos sacrifício oficial... Nós vivemos efectivamente das luzes de oração da irmã Maria de S. Inácio...
Nos anos 1878-1881 escrevemos as Constituições. As orações e o Directório estão impregnados das luzes
de oração da irmã Maria de S. Inácio... e tudo com a aprovação de Roma. As Constituições estão
aprovadas, as orações e o Directório têm o imprimatur”.844

O P. TADEU CAPTIER

A difícil situação criada pelas pretensas “revelações” da irmã Maria de S. Inácio, agravou-se
irremediavelmente por causa das extravagâncias do P. Tadeu Captier (1831-1900). Afectado por uma
doença nervosa, o P. Captier tinha-se ordenado sacerdote nos Missionários do Coração de Jesus de
Issoudun aos 43 anos, com dispensa de Pio IX. Despedido por eles a 21 de Novembro de 1880, entrou nos
Oblatos e com eles permaneceu um pouco mais de três anos.
841
NQ XXV, 16-17: Março de 1910. “Table des vues d’oraison de la Soeur Ignace” (AD B, 34/7).
842
Nas Constituições de 1885-1886 (e portanto nas de 1881) lemos: “A Sociedade dos Sacerdotes do Sagrado Coração está
submetida à autoridade de Monsenhor, o bispo de Soissons. Ele exerce sobre ela a autoridade de Superior Geral... O P. Geral (o
P. Dehon) e os outros membros da sociedade devem-lhe obediência” (Cp. II, n. 28).
843
NQ III, 9: 1.3.1886.
844
NQ XXXIV, 178-183: Dezembro de 1912; cf. Dorresteijn scj, Vita e personalità di P. Dehon, 615-632.

171
Era homem de vasta cultura, tinha títulos académicos (coisa rara entre os sacerdotes daquele
tempo); mas, colocado em cargos de responsabilidade, carecia completamente de equilíbrio... e de bom
senso. De Novembro de 1882 a Janeiro de 1884, encontramos o P. Tadeu como director da escola S.
Clemente de Fayet. Foi em Maio de 1882, recorda o P. Dehon nas suas Memórias, que o P. Captier se
tornou estranho e intratável, presumindo ser favorecido por vozes angélicas845 “Começou a desobedecer e
afastava-nos da obediência humilde e simples ao bispo”.846 O P. Dehon, a princípio compreensivo, acabou
por repreendê-lo energicamente. A 8 de Maio de 1883, escreve-lhe: “Desconfiai do vosso juízo e obedecei.
Como podeis ter tanta confiança na vossa maneira de julgar, depois de tantas influências imaginárias e
diabólicas que tendes sofrido de há um ano para cá? Sede simples, humilde e sobretudo obediente”. 847 O P.
Captier “era um homem terrível, que tinha algumas ideias boas e muitas ilusões”.848
A Madre Maria Verónica (Catalina Lioger), fundadora das Irmãs Vítimas, numa carta ao P. Galley,
fala assim do P. Captier: “É de uma extrema exaltação. Desde algum tempo sente-se chamado a regenerar o
universo. Há-de subir à cátedra de Pedro, depois de ter vivido num mosteiro onde os religiosos seguem
uma regra vinda do céu, etc. etc... O nome de Captier não é para mim uma boa recomendação...; fez-me
uma penosa impressão e penso que se deva agir com prudência, com grandíssima prudência. O P. Captier
passou por todas as congregações e por todas as obras, mas não conseguiu ficar em nenhum lugar”.849
Tratava-se de um perigoso neurasténico, inclinado para o extraordinário e maravilhoso. Fora deste
ambiente e sem responsabilidades, era um tipo inócuo, e até serviçal e afável: o melhor do mundo.
“Porque o admiti?” perguntava-se angustiado o P. Dehon nas Memórias.850 O P. Captier chegou ao
“Sagrado Coração de S. Quintino com a auréola das suas relações com o santo cura de Ars, que no dia 8 de
Julho de 1852, encontrando-o pela primeira vez, lhe tinha dito à queima roupa: “Tu serás sacerdote e
religioso”851. O P. Dehon tinha-o recebido em Novembro de 1880 com quase 50 anos. Com a licença de
Mons. Thibaudier tinha feito só 7 meses de noviciado, e a 3 de Junho de 1881 tinha sido admitido aos
votos. Naquele tempo, o clima do noviciado, no campo da piedade, estava superaquecido. O P. Dehon,
mestre de noviços e muito atarefado como director do Colégio S. João, não pôde perceber a perigosa
neurastenia do P. Tadeu Captier, bom noviço e bom religioso; o seu comportamento era normal. Não
ocupado no ministério, orava, lia, escrevia, fazia de “contemplativo”. A seu favor havia os “excelentes
testemunhos” chegados ao Bispo de Soissons antes de admiti-lo à profissão e, além disso, havia uma
“revelação” da irmã Maria de S. Inácio. O P. Dehon escreve nas Memórias: “Tinha uma grandíssima
confiança nas “luzes” da irmã Maria de S. Inácio e ela era-lhe favorável. Tinha vindo visitar-nos e tinha
pedido à Irmã uma “luz” sobre a sua vocação. Desejava saber se a nossa Congregação era mesmo a ordem
do Sagrado Coração que tinha sonhado. As “vozes” de Nosso Senhor responderam-lhe com as palavras de
Jesus aos enviados por João Baptista: “Renuntiate Johanni quid vidistis” (Mt. 11,4). O nome de baptismo
do P. Captier era João Baptista. Ficava assim convencido de que a obra que tinha visto era verdadeiramente
a obra de Deus. Veio. Deus permitiu-o...”.852
A megalomania do P. Captier e as muitas extravagâncias dos seus escritos, como veremos, foram
indubitavelmente a causa principal da supressão dos Oblatos. O Santo Ofício não podia deixar de se
mostrar severo, encontrando tantas extravagâncias em quem se fazia passar por “co-fundador”.

OS PRIMEIROS NOVIÇOS

845
Cf. NHV XIV, 144.
846
NHV XIV, 60-61.
847
NHV XIV, 151. Também o P. Dehon tinha acreditado por algum tempo nas ilusões do P. Captier, cf. NQ V, 82v-83r: 11-
18.2.1891.
848
Carta do P. Dehon de 28.8.1908 a M. Marie Joseph (Marie Favre) das Irmãs Vítimas (AD B, 28/8.3º).
849
Carta da Madre Verónica ao P. Galley de 11.1.1883 (AD, B 35/7).
850
NHV XIV, 61.
851
Cf. Notas e estudos, n. 12, p.
852
NHV XIV, 61. Na realidade o nome de baptismo do P. Captier era João Pedro, como resulta do registo do pessoal, escrito
pelo P. Dehon, p. 2 e também do registo das profissões dos Missionários do Sagrado Coração de Issoudum. (cf. Denis, La
spiritualité p. 83).

172
Com a irmã Maria de S. Inácio e o P. Captier adiantámos um pouco os acontecimentos. Pareceu-nos
oportuno fazê-lo para apresentar personagens importantes para a nossa história e para descrever com maior
objectividade o clima dos primeiros tempos do Instituto do P. Dehon.
Entre os acontecimentos de 1878 temos que mencionar a entrada na recém nascida Congregação do
primeiro sacerdote (e pároco) Adriano Rasset (em religião P. Afonso) a 28 de Junho de 1878. A sua tomada
de hábito teve lugar a 12 de Agosto de 1878.853 Nesse mesmo mês as Servas tinham adquirido a casa Hibon
na rua Richelieu. Era maravilhosamente adequada para noviciado dos Oblatos, pelo silêncio e a paz, e tinha
a vantagem de estar perto do Colégio S. João. O P. Dehon podia governar facilmente tanto o colégio como
o noviciado. Com a sua habitual generosidade a Chère Mère cedeu o uso da casa ao P. Dehon. Converteu-
se na “Casa do Sagrado Coração”, a casa mãe, o verdadeiro berço da Congregação dos Oblatos. O P.
Dehon tomou posse dela a 14 de Setembro de 1878, celebrando aí a Santa Missa. Era a festa da Exaltação
da Santa Cruz: “Não era oportuno – escreve nas Memórias – que uma obra de reparação fosse fundada
sobre a cruz?”.854
A 4 de Outubro de 1878 chega outro noviço, José Paris, que se junta ao P. Afonso Rasset. A
Congregação cresce lentamente. O P. Rasset, faz os primeiros votos a 8 de Setembro de 1879. Em finais de
1879, os noviços são quatro. Um deles, que depois será ecónomo Geral, Estanislau Falleur, deixou-nos
cinco cadernos de notas sobre as conferências e sobre os discursos de circunstância do P. Dehon como
Mestre de noviços, desde Novembro de 1879 a Outubro de 1881. Estes cadernos constituem um
preciosíssimo documento, já que é quase o único daqueles anos.
Em Fevereiro de 1880, os noviços são 12.855 Em Janeiro de 1881, são 16.856 Quatro são já
sacerdotes. Os noviços são muito diferentes em idade: desde os 50 anos do P. Captier, aos 18 de um tal
Jorge Stemplet. O P. Dehon tem 38 anos.
Nas conferências aos noviços, o P. Dehon fala várias vezes de uma prova que aguarda a jovem
Congregação, a prova do “Consumatum est”, e alude algumas vezes, com muita discrição, às luzes de
oração ou “revelações” da irmã Maria de S. Inácio.857

CRUZES E CONSOLAÇÕES

Mas ainda antes do “Consumatum est” (1883), “cada ano terá já as suas pesadas cruzes”. 858 Há a
cruz da saúde débil do P. Dehon. Cospe sangue e uma dor contínua no ombro indica que tem uma lesão no
pulmão. Há a cruz das más línguas: “Nem todos são benévolos e caritativos, incluindo o clero. Criticava-se
muito: “Sacerdotes que querem fundar uma nova Congregação!... Sacerdotes que querem fazer de
reparadores!... Sacerdotes que dão crédito a visões de freiras!... etc. etc. A cruz é boa – conclui o P. Dehon
– expia os nossos pecados”.859
Em relação à sua vida interior, não tem tempo para escrever as suas impressões. Estão porém bem
interpretadas pelas luzes de oração da irmã Maria de S. Inácio.860
Também no Colégio S. João eram muitas as preocupações e os espinhos. Infelizmente, durante os
meses de férias, os rapazes perdiam os bons costumes religiosos, não se confessavam, não comungavam.
As causas encontravam-se, segundo o P. Dehon, nas famílias pouco cristãs e nos párocos que não sabiam
atrair os jovens. Que experiência tão penosa para o P. Dehon! Para quê manter com tanto esforço um
colégio católico? Era preciso pensar que havia também jovens escolhidos, bem fundamentados nas suas
convicções cristãs, embora fossem poucos. Nos outros ficaria um fundo de fé, uma certa facilidade em

853
RP 1.
854
NHV XIV, 101. Na conferência aos noviços de 16 de Julho de 1880, o P. Dehon diz que a casa Hibon (depois Casa do
Sagrado Coração) foi comprada a 16 de Julho de 1878 e não em Agosto como escreve nas Memórias (cf. Cahiers Falleur III, 35;
NHV XIII, 100).
855
Cf. Cahiers Falleur I, 61.
856
Cf. Cahiers Falleur V, 27.
857
Cf. Cahiers Falleur, Índice analítico das palavras “Consumatum est”, p. 251 e “revelações”, p. 261.
858
NHV XIII, 150.
859
NHV XIII, 150.
860
Cf. NHV XIII, 150.

173
relacionar-se com o sacerdote, o que os ajudaria a salvar a alma e a educar cristãmente os filhos. Com estas
perspectivas o P. Dehon continuava o seu esforço.861
O ano 1879-1880 foi um ano difícil por causa dos famosos decretos de Março de Júlio Ferry
(aprovados a 29 de Março de 1880), que imponham às congregações “não autorizadas” o pedido de
autorização no prazo de três meses sob pena de dissolução e de expulsão. “Não se preocuparam connosco e
deixaram-nos em paz – escreve o P. Dehon -. Éramos tão novos, tão pouco numerosos e tão pouco
conhecidos como religiosos! Todavia foram meses de angústia e de perturbação para nós e resolvemos
transferir o noviciado para o estrangeiro à primeira oportunidade”.862
Outra das grandes cruzes foi a morte em nove meses (de 27.8.1879 a 24.4.1880) de quatro jovens
irmãs Servas. É um facto que nos faz compreender melhor o clima espiritual e social daqueles anos.
As quatro jovens Irmãs tinham-se oferecido a Nosso Senhor como vítimas de reparação: “Era o seu
pensamento de todas as horas. Aceitaram os seus longos sofrimentos com este espírito. Morreram com esta
disposição, dando admiráveis exemplos de paciência, de sacrifício e de abandono à vontade de Deus”.863
Era uma grande dor. A opinião pública pedia uma explicação. As bisbilhotices grassavam. Falava-
se de envenenamentos para dissimular crimes. Pensava-se numa exumação. Jornalistas da imprensa
maçónica de Paris vieram a S. Quintino para montar um grande escândalo. “Passei vários meses nestas
angústias”, escreve o P. Dehon.864
Quando da morte da quarta jovem Irmã, o jornal “Le Conservateur de l’Aisne”, depois de descrever
os funerais, afirma: “Deram-se várias interpretações sobre estas mortes, mas uma só é verdadeira: as
humildes Servas do Coração de Jesus são vítimas voluntárias. Elas oferecem as suas orações, os seus
trabalhos, os seus sofrimentos e, sobretudo, a sua vida para a glória de Deus, para a perseverança dos justos
e a conversão dos pecadores. Deus leva a sério esta imolação diária e as humildes Irmãs convertem-se
assim em benfeitoras da Igreja e especialmente da cidade”.865 A campanha da imprensa adversária não teve
consequências, porque o médico das Servas, o Dr. Cordier, serenou a opinião pública, assegurando que as
jovens Irmãs tinham morrido de morte natural.
Não faltavam ao P. Dehon também as preocupações de família. No verão de 1879, a sua mãe sofreu
um ataque de paralisia. “Ficou numa situação aflitiva - escreve o P. Dehon -. Meu pai, entristecido,
contraiu uma doença de estômago que o predispôs para a morte”.866
No meio de tantas cruzes, não faltavam as consolações. Perto da Casa do Sagrado Coração havia
um jardim. Seria um espaço ideal para a comunidade do P. Dehon. Mas nem ele tinha o dinheiro nem o
proprietário o queria vender. Interveio um certo senhor Lecot disposto a comprar o precioso jardim para o
P. Dehon. O sr. Lecot partilhava a espiritualidade do P. Dehon, tanto que se tinha agregado à sua
Congregação com o nome de José de Arimateia. “Os agregados – escreve o P. Dehon – eram amigos do
Sagrado Coração. Uniam-se aos Oblatos com o vínculo da agregação. Recebiam uma Cruz adornada com o
Sagrado Coração e um nome de religião e, além disso, faziam um acto de oblação de si mesmos ao
Coração de Jesus em união com os Oblatos e com as Servas”.867
Na Sexta-feira Santa de 1880, o proprietário do jardim, um tal sr. Raffard, decidiu improvisamente
vendê-lo por 90.000 francos. O contrato devia ficar concluído imediatamente antes das três horas da tarde;
de outro modo, não o venderia. “Era o dia e a hora – comenta o P. Dehon – em que José de Arimateia tinha
dado o seu jardim para a sepultura de Cristo...”.868
861
Cf. NHV XIII, 177.
862
NHV XIV, 13-14.
863
NHV XIV, 18.
864
NHV XIV, 17.
865
NHV XIV, 19.
866
NHV XIV, 17.
867
NHV XIV, 61. Entre os primeiros agregados lemos o nome da senhora Lecot (Santa Chantal), mas não o do senhor Lecot.
(Cf. NHV HIV, 62).
868
NHV XIV, 20 cf. AD. B 21/3t. Em 1887 o sr. Lecot não cumpriu a sua palavra e o P. Dehon teve que pagar o jardim de José
de Arimateia, cedendo uma sua propriedade pelo valor de 72.000 francos. “Isto acarretou-me duras críticas por parte de meu
irmão” (NHV XV, 56). Pelo Diário sabemos que esta propriedade encontrava-se em Wignehies, e também no Diário o P. Dehon
recorda a dura carta do seu irmão Henrique, e termina: “Ofereço esta humilhação pelo Reino do Sagrado Coração (NQ III, 108:
27.6.1887). A escritura de permuta das duas propriedades foi assinada a 2 de Outubro de 1886. A propriedade chamada “de
Ranguillies”, que o P. Dehon permutava, era de mais de 20 hectares; o valor de 72.000 francos. O irmão Henrique Dehon podia

174
Outra consolação era o progressivo aumento das vocações, as contínuas luzes de oração da irmã
Maria de S. Inácio, o apoio e o conforto de Mons. Thibaudier.869

VIDA ESPIRITUAL DO JOVEM FUNDADOR

Em 1880, de 14 a 19 de Setembro, faz o P. Dehon os seus exercícios espirituais no santuário de


Liesse, com os Padres Jesuítas. Interessam-nos algumas notas suas, porque reflectem as tendências da sua
vida espiritual naqueles primeiros anos de religioso.
Para além das reflexões comuns nos exercícios espirituais daqueles tempos, reaparece com
insistência a exigência da reparação e do espírito de vítima. Estas notas estão escritas, parte em latim e
parte em francês.
Começa assim: “Erravi sicut ovis quae periit. Ovis, ovis electa et dilecta - sacerdos et victima!” –
“Como ovelha desgarrada vou errando” (Sal 119 [118], 176). Ovelha, ovelha escolhida e querida –
sacerdote e vítima”.870
“Nosso Senhor chama-me à reparação. Devo aceitar humilde, paciente e generosamente as cruzes
que a divina Providência me manda. A mortificação é a condição de todas as graças”.871
“Sendo a minha vocação especial a reparação, preferirei, segundo o beneplácito de Deus e o
proveito da sua Obra, que Ele me leve pelo caminho dos sofrimentos antes que pelo da saúde, na pobreza
mais do que nas riquezas, pelo caminho do desprezo mais que pelo das honras. Aut pati aut mori (ou
padecer ou morrer)”.872
“Attraxisti me et attrahis me ut cordi tuo amantissimo et moestissimo amorem et consolationem
exhibeam”: “Atraíste-me e atrais-me para que ofereça amor e consolação ao teu coração amantísssimo e
tristíssimo”.873
“Alguns dos teus ministros combatem com moleza e atraiçoam-te. Quero compensar-te e consolar-
te com o meu amor, com o meu zelo e com uma contínua reparação, com a ajuda da tua graça, sem a qual
nada posso. Ofereço-me completamente a ti. Tu abraçaste a pobreza e o desprezo, eu também quero
abraçá-los contigo”.874
“Ecce venio. Ecce ancilla: é a vocação dos Oblatos, das vítimas: oferecer-se por amor, reparar,
imolar-se; oferecer a própria vontade, o próprio coração, todo o próprio ser. Ecce venio, ecce servus
Domini”.875
“Maria volta a dizer o Ecce ancilla e une-se ao Cordeiro divino, à vítima divina que vai nascer. Ó
Maria, com a tua poderosa intercessão, alimenta com o leite da graça a Obra reparadora que está nascendo.
É Jesus que volta a nascer nas suas obras. A ti quer ser devedor do crescimento e dos maternais cuidados.
Aqui tens esta Obra que te estende avidamente as mãos. Ajuda-a, alimenta-a, ama-a”.876
“Se Jesus encontrasse ainda outros S. João, que regressam a Ele depois de um momento de sonho e
de fraqueza e que o seguem até ao Calvário, até à cruz! Fiat! Fiat!”.877
Esta é a vida espiritual do P. Dehon, unida harmoniosamente ao seu intenso apostolado. É um
contemplativo na acção.
Durante o ano escolar de 1880-1881, abandona quase completamente o Patronato e o Círculo à
direcção do P. Rasset. “O S. João e a Congregação absorviam o meu tempo (recordemos que até Junho de
1881 o P. Dehon é Mestre de noviços: deve ouvi-los e fazer-lhes as conferências três vezes por semana). Ia

substituir o sr. Lecot, entregando-lhe os 72.000 francos (AD, B 22/10c.).


869
Cf. NHV XIV, 21-27.
870
NHV XIV, 28.
871
NHV XIV, 31.
872
NHV XIV, 32.
873
NHV XIV, 35.
874
NHV XIV, 36.
875
NHV XIV, 37.
876
NHV XIV, 37-38.
877
NHV XIV, 39.

175
com mais frequência ao convento das Servas, onde a vida sobrenatural era intensa. Sentia-me muito atraído
e ir lá constituía para mim uma graça”.878
Ao lado das consolações não faltam as cruzes. Os recursos financeiros provenientes do testamento
da irmã Maria das Cinco Chagas esfumam-se. O herdeiro da Irmã interpôs recurso contra a Chère Mère e
ganhou-o em primeira instância e em apelo.
Às dificuldades financeiras juntam-se as dificuldades internas na pequena comunidade dos Oblatos:
“O diabo serve-se de dois caracteres fracos ... para suscitar muitos sofrimentos e dificuldades”.879
Fonte de consolação eram as novas vocações religiosas, além dos leigos que pediam para agregar-se
ao jovem Instituto, trazendo muitas orações, boas obras e até alguma ajuda material.
Já em 1881, Mons. Thibaudier compromete a jovem Congregação na obra de S. Medardo de
Soissons, em favor das crianças surdo-mudas. Três Oblatos (Lamour, Philippot e Falleur) ocupam-se neste
primeiro apostolado.
De 16 a 24 de Setembro de 1881, o P. Dehon faz os seus exercícios espirituais ainda no santuário de
Liesse. Está profundamente convencido da grande responsabilidade da sua missão: “Tenho que tornar-me
santo. O Coração de Jesus espera isso de mim. A minha missão exige-o”.880
Meditando sobre o nascimento de Cristo exclama: “A pobreza, os desprezos, os sofrimentos, eis o
ideal do Coração de Jesus vítima, eis a pedra preciosa, eis o tesouro! Enquanto não chegar a isto, não
compreenderei Jesus, nem a reparação nem a imolação. Quão diferente é o meu ideal do seu! Que afastado
estou do caminho, da verdade, da vida”. Estou ainda no a-b-c da verdadeira doutrina”.881
Depois da meditação sobre as duas bandeiras escreve: “O caminho está traçado: uma vida de amor,
de reparação, de imolação, de zelo pelo povo santo, pelo povo escolhido”. 882 E conclui: “Ó S. João, (o
discípulo predilecto de Jesus), que invejável era o vosso quinhão! Tudo gostaria de fazer para poder
participar dele. Trahe me post te, ut saltem fiam discipulus discipuli quem diligebat Jesus. Amén” “Atrai-
me em teu seguimento para que ao menos chegue a ser discípulo do discípulo que Jesus amava. Amen).883

DO CORAÇÃO DE JESUS ACEITO A CRUZ E OS ESPINHOS

Chegamos agora ao ano escolar 1881-1882. É o ano da grande prova, do incêndio de uma parte do
S. João: é o ano da morte do pai do P. Leão Dehon.
O incêndio deflagrou a 29 de Dezembro de 1881. Todos, professores e alunos, se encontravam no
Patronato para uma representação teatral da festa de S. João. Um jovem professor tinha deixado aceso um
braseiro no seu quarto do edifício novo. Às 10,30 viram-se chamas a saír do telhado. Os vizinhos avisaram
o P. Falleur e este o P. Dehon. Foi uma noite terrível. O segundo e o terceiro andar ficaram destruídos. Para
maior desgraça, o seguro era insuficiente e o prejuízo económico foi avultado. O P. Dehon sentiu naquela
trágica circunstância a solidariedade de Mons. Thibaudier, de Mathieu e de muitas pessoas do povo. Ficara
intacta a estátua do Coração de Jesus e a vidraça que estava por detrás dela, embora se encontrasse no
segundo piso, em cheio no incêndio. Um facto que causava admiração e cheirava a milagre. O Senhor
mostrava-se solidário com o P. Dehon, ainda que do seu coração lhe oferecesse a cruz e os espinhos. Outro
facto providencial que parece milagroso para quem conhece a inclemência do clima invernal do nordeste
da França: os alunos tiveram como dormitório o primeiro piso do edifício incendiado, coberto apenas pelo
telhado; pois bem, durante as obras de reconstrução, que duraram até à Páscoa, não caiu uma gota de chuva
nem um floco de neve.
Outra prova, mais íntima e dolorosa, foi a morte de seu pai, a 11 de Fevereiro de 1882. Estava
doente desde havia dois anos; o seu estado tinha-se agravado desde que a sua mulher Fanny ficara
paralisada. A sua fé tornava-se cada vez mais sólida e, nos últimos anos, convertido completamente a Deus,
rezava com gosto. Tinha sofrido muito pela decisão de Leão de fundar o Colégio S. João e a Congregação.
878
NHV XIV, 56.
879
NHV XIV, 59.
880
NHV XIV, 71.
881
NHV XIV, 77.
882
NHV XIV, 79.
883
NHV XIV, 89.

176
O incêndio também o impressionara dolorosamente. Leão visitava-o com frequência. Ficou junto dele nos
últimos dias: “rezava, estava resignado e mostrava uma admirável paciência e doçura”.884
O P. Dehon teve a dor de não assistir à sua morte. O médico assegurara-lhe que teria ainda ao
menos oito dias de vida. Partiu para Soissons. Devia encontrar-se com Mons. Thibaudier, que ia a Roma.
Quando, à noite voltou a La Capelle, seu pai tinha entregado a sua alma a Deus.
Para além destas duas grandes provas, o P. Dehon estava sempre acossado pelas dificuldades
financeiras. Todavia nos momentos mais “desesperados”, intervinha a Providência. Comprovam-nos os
numerosos ex-votos que tinha expostos na capela do S. João.
Mas o sofrimento mais contínuo e profundo vinha-lhe da parte do seu bispo Mons. Thibaudier que,
todavia, o amava. Estavam sempre de permeio as “revelações” da irmã Maria de S. Inácio. “Sentia-se
perturbado. Tinha receio de ter dificuldades por nossa culpa, como as tinha tido em Lião com a Madre
Verónica”.885 Durante a doença do arcebispo de Lião, Mons. Ginoulhiac, Mons. Thibaudier, bispo auxiliar,
mandara fechar a capela pública das irmãs Vítimas. Pessoas mal intencionadas tinham-no empurrado para
esta decisão. A Madre Verónica, segura do seu direito, tinha recorrido a Roma e, apoiada por Mons.
Mercurelli, tinha ganhado a causa.
Compreendemos assim a atitude psicológica de Mons. Thibaudier em relação à irmã Maria de S.
Inácio e ao P. Dehon.
É preciso ter em conta este estado de alma de Mons. Thibaudier, porque explica a sua atitude na
hora mais dramática do instituto do P. Dehon: o “Consumatum est”.

884
NHV XIV, 94-95.
885
NHV XIV, 97.

177
CAPÍTULO 14

Morte e ressurreição

Amigos e colaboradores dos Oblatos – As perplexidades de Mons. Thibaudier – Primeira intervenção de Roma –
Perplexidades e conselhos dos PP. Daum e Eschbach – As extravagâncias de um falso “co-fundador” – Um bispo cada vez mais
inquieto e severo – A comissão de Reims – Novo recurso a Roma – A espera do “Consumatum est” – A supressão dos Oblatos –
A humilde submissão do P. Dehon – A ressurreição: os Sacerdotes do Coração de Jesus – “Tudo é graça” – Outras provas e
consolações.

AMIGOS E COLABORADORES DOS OBLATOS

Antes de iniciar a narração dos acontecimentos que levaram ao “Consumatum est”, ou seja, à
supressão dos Oblatos do Coração de Jesus por parte da Santa Sé, queremos deter-nos sobre as muitas
simpatias que tinha em França o Instituto sacerdotal do P. Dehon, dedicado à reparação.
D. Bougouin de Poitiers, amigo de seminário do P. Dehon e futuro bispo de Périgneux (1906-1915),
tinha falado com seus conhecidos da obra do P. Dehon e suscitado um movimento que tinha acabado por
interessar Mons. C. Gay e alguns de seus penitentes. Desejavam conhecer o Instituto do P. Dehon e até
entrar nele.
O primeiro foi Vicente de Pascal, que deixando os Dominicanos entrou nos Oblatos como
coadjutor. Segui-lo-á o irmão Alexandre, depois Carlos de Montenon e M. Lhomet.
O P. Dehon foi convidado por Mons. Gay a fazer-lhe uma visita no castelo de Traforêt, onde
passava o verão: “A esperança de ver-vos aqui é-me muito agradável. Vós sois o amigo dos meus dois
amigos mais queridos: Bougouin e De Pascal; mas, sobretudo, sois o amigo e o servo devoto, até à
imolação, daquele que, a nós, os consagrados, disse: “Vos non dixi servos sed jam dixi amicos” e que, a
todos os títulos, é o amigo por excelência. Por isso tenho o pressentimento de que no nosso encontro as
graças serão maiores do que as alegrias”.886
O P. Dehon aceitou o convite e foi ter com Mons. Gay no mesmo mês de Agosto de 1882,
passando agradáveis dias no castelo de Traforêt.
Fez algumas viagens com D. Alexandre de Pascal. Visitou a casa mãe das Filhas do Salvador,
fundada pela Madre Maria de Jesus (Joséphine du Bourg), falecida em 1862, vítima pelos sacerdotes. Tinha
desejado tanto durante a sua vida fundar uma obra sacerdotal como a do P. Dehon!
Infelizmente, Vicente de Pascal deixou-se enfatiçar pelas luzes de oração da Ir. Maria de S. Inácio.
Para ele como para a Chère Mère eram “revelações”. “Sem querer, causou-nos dano, falando
demasiado”.887
Assim escrevia De Pascal ao P. Dehon depois de ter estado em S. Quintino: “Não saberia dizer-vos,
meu padre, como fiquei impressionado por tudo quanto vi, senti e quase toquei com a mão em S. Quintino.
Sim, ou Deus está aí ou não está em parte alguma. Rezai por mim, meu Padre. Sinto como é grande a graça
que recebi e é-me impossível expressar-vos quanto estou agradecido...”.888
O que aconteceu com Vicente de Pascal é característico, porque manifesta, de maneira viva, o clima
quase místico que se tinha criado em S. Quintino, como se se vivessem de novo os tempos das aparições do
Coração de Jesus a Santa Margarida Maria.
A nova santa era Ir. Maria de S. Inácio. Vicente de Pascal começou a falar a todos das revelações de
S. Quintino, seja em Turenna como na Provenza. Copiava estas revelações e mandava-as copiar. “Esta
difusão ultrapassava os limites da prudência”,889 aquela prudência tão recomendada por Mons. Thibaudier.

886
AD, B 21(3v. Carta de Mons. Gay de 11.8.1882; NHV XIV, 108.
887
NHV XIV, 110.
888
A cartade Vicente de Pascal é de 10 de Outubro de 1882 e não de 1881 como escreve o P. Dehon nas “Memórias”: NHV
XIV, 110-111.
889
NHV XIV, 111.

178
Entretanto também o irmão do P. Vicente de Pascal, Alexandre, entra nos Oblatos, em S. Quintino,
a 17 de Outubro de 1882 e toma o nome de Sacerdos. Fará os votos a 22 de Abril de 1883, mas depois
abandonará o Instituto em 1884. Ninguém do grupo de Poitiers perseverará na Congregação.
O ano 1882, por causa das numerosas relações que os irmãos De Pascal mantêm, caracteriza-se por
uma certa efervescência. O grupo de Poitiers entra na onda do P. Captier; nutre grandiosos projectos sobre
uma pretensa grande Obra do Sagrado Coração e pretende desviar o P. Dehon dos seus modestos projectos
e da prudente tutela de Mons. Thibaudier.
Precisamente neste tempo (12.11.1882), o P. Captier é nomeado superior da escola angélica de
Fayet. Já goza de maior liberdade que na Casa do Sagrado Coração para dar rédea solta às suas fantasias
pseudo-místicas e às suas relações epistolares, até à sua saída do Instituto a 11 de Janeiro de 1884.890
O P. Sebastião Wyart, que tinha sido zuavo pontifício e que agora era trapista, seguia com interesse
a obra do P. Dehon. As suas cartas estão cheias de entusiasmo, mas carecem de discrição e portanto de
prudência.
Assim escreve ao P. A. de Pascal (também ele tinha sido zuavo pontifício): “Recebi todos os vossos
documentos e agradeço-vos muito. O vosso “Directorium” (do P. Captier) agradou-me sem ter nada a
objectar(!) porém com algum espanto aqui e ali. Este “Directorium” alimentará a minha devoção ao
Sagrado Coração, é um delicioso alimento...”.891
O P. Wyart, atrevido nas suas propostas ao P. Dehon, foi-lhe sempre fiel, na sua simpatia e na sua
amizade, mesmo durante os dolorosos acontecimentos do “Consumatum est”.
Também Mons. Fava, bispo de Grenoble, exprimia a sua plena aprovação e comunhão de espírito
com a obra do P. Dehon sobre a reparação.892
Os mesmos sentimentos manifesta o P. Jourdan de la Passardière, que tinha sido hóspede do P.
Dehon em S. Quintino e desejava reunir todas as obras reparadoras, então existentes em França, num
movimento mais unificado.893
Entusiasmo pela obra do P. Dehon manifestavam a Irmã Maria do S. Coração da Visitação de
Bourg, fundadora da Guarda de honra, e a irmã Maria da Eucaristia (M.elle Prouvier), fundadora da Obra
do Coração Eucarístico de Jesus em Paris. Esta última tinha sido hóspede do P. Dehon em S. Quintino.894
O P. Dehon recorda ainda nas suas Memórias um jovem sacerdote de Paray-le-Monial, um pequeno
santo, Maurício Picard, que estava unido espiritualmente à sua obra e desejava entrar nos Oblatos, mas
morreu prematuramente a 13 de Agosto de 1882.895
Recorda ainda o encorajamento e o apoio de Madre Maria de S. Domingos, organizadora da
adoração perpétua em Montmartre (Paris), hóspede também ela do P. Dehon em S. Quintino em Novembro
de 1881, e do P. de Cissey, grande pregador do culto do Coração de Jesus em França e relacionado com
várias almas místicas.896
Começa também a relacionar-se com as irmãs Vítimas do Sagrado Coração, fundadas pela Madre
Verónica.897
O P. Dehon já tinha escrito à Madre Verónica duas cartas: a 8 e a 22 de Junho de 1877. Na primeira
pergunta-lhe: “Sabeis se em algum lugar há uma congregação masculina e, particularmente, de sacerdotes
dedicados à reparação?”.898 Na segunda, de 22 de Junho, o P. Dehon mostra “um grande interesse pela
sociedade de sacerdotes”, de que a Madre Verónica lhe terá certamente falado na resposta à carta de 8 de
890
Cf. RP, 2.
891
Carta sem data, porém provavelmente de 1882: NHV XIV, 111.
892
Cf. Carta de Mons. Fava de 13.5.1882 ao P. Dehon (AD, B 21/3h; NHV XIV, 112-113). Mons. Fava tinha em vista sobretudo
a reparação social. O P. Dehon não a excluía, mas com razão ou sem ela, via nela a missão dos Padres de Picpus (Congregação
dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria): “A sua reparação tem um carácter social” (NQ VI, 29v:12.5.1893).
893
Cf. Carta do P. Jourdan de la Passardière ao P. Dehon de 20.7.1882 (AD, B 21/3h; NHV XIV, 113-115).
894
Cf. Carta da irmã Maria do Sagrado Coração ao P. Dehon de 3.9.1881 e de 13.11.1882 (AD, B 21/3o; NHV XIV, 115-118).
Cf. Carta da irmã Maria da Eucaristia de 10.9.1882 (AD, B 21/3u; NHV XIV, 118-119).
895
Cf. Cartas de P. M. Picard ao P. Captier e ao P. Dehon de 1880-1881 (AD, B 21/7a.6; NHV XIV, 120-121). Carta de L.
François, vigário da catedral de Autun (Saône-et-Loire) (AD; B 21/7a.6; NHV XIV, 121-122).
896
Cf. Carta da Irmã Maria de S. Domingos ao P. Dehon de 17.1.1882 (AD, B 21/3v; NHV XIV, 122) e cartas de P. Cissey ao P.
Dehon de 15.6.1883 e de 20.6.1883 (AD, B 21/3u; NHV XIV, 123-126).
897
NHV XIV, 126.
898
Carta do P. Dehon a Madre M. Verónica de 18.6.1887 (AD, B 21/31).

179
Junho, resposta que não temos: “Estes sacerdotes estão já constituídos em Congregação religiosa? Qual é a
sua regra e quais são as suas obras?”899
A esta carta, a Madre Verónica respondeu a 17 de Julho seguinte dizendo: “A obra dos Sacerdotes
vítimas existe. Comuniquei a estes sacerdotes o vosso desejo de entrar em contacto com eles e um deles...
diz-me que seria preferível um encontro à troca de cartas, e que talvez este encontro entraria nos desígnios
de Deus”.900
Mais do que uma obra em andamento, tratava-se só de tentativas, seja de uma vida em comum por
parte dos sacerdotes que compartilhavam a espiritualidade de Madre Verónica, seja de formular umas
constituições para o projectado instituto por parte da Madre Verónica e do Jesuíta P. Laurençot. 901 Todas
foram tentativas fracassadas.
Foi neste tempo (1877) que Madre Verónica falou ao Padre Leão Prévot (o futuro P. André Prévot)
e lhe disse: “Pedi a Nosso Senhor que a obra comece noutro lugar e de um modo decisivo e regular”.
Alguns dias depois escrevia: “Fomos ouvidos!”. Estava convencida que a tão desejada obra sacerdotal era
já um facto consumado em S. Quintino902.
Os sacerdotes que partilhavam a espiritualidade de Madre Verónica orientaram-se para o Instituto
do p. Dehon. O que entrou primeiro foi o P. Mário Galley, a 15 de Agosto de 1884, seguido pelo P.
Charcosset e pelo Leão Prévot.903
Mário Galley teve que abandonar o Instituto em Março de 1885 por motivos de saúde; Carlos
Charcosset, tornado P. Barnabé, foi o capelão das fábricas Hamel de Val-des-Bois e assistente geral do P.
Dehon; Leão Prévot, depois P. André, foi assistente geral do P. Dehon e Mestre de noviços da
Congregação.
Entre tantas simpatias e consequentes alegrias não podiam faltar as cruzes.

AS PERPLEXIDADES DE MONS. THIBAUDIER

Em Agosto-Setembro de 1881 o P. Dehon tinha apresentado a Mons. Thibaudier o texto definitivo


das Constituições. O Bispo tinha julgado o texto “muito ponderado, belo e embebido de autêntico espírito
religioso”.904
Estava porém perplexo acerca do quarto voto: o de vítima. Como determinar-lhe a matéria? Não
bastava o propósito de praticar o espírito de vítima? O voto era demasiado vago e seria fonte de
inquietações para os superiores e para os outros religiosos. Aconselhava por isso o P. Dehon a consultar
Roma.
O P. Dehon desejava muito a aprovação dos Oblatos do Coração de Jesus pela Santa Sé, sobretudo
por motivos de fé. “Quando a ordem estiver reconhecida pela Igreja como Ordem Reparadora, então
poderemos falar em nome da Igreja”. 905 Todavia na recém nascida Congregação havia situações delicadas,
pouco claras e até ambíguas, que preocupavam a Mons. Thibaudier e tinham de ser esclarecidas: as
“revelações” da irmã Maria de S. Inácio, as extravagâncias do P. Captier, certa forma de piedade exaltada
na Escola Evangélica de Fayet; tudo isto agravado pela má-língua, calúnias e cartas anónimas.
O Bispo de Soissons tem uma grande estima pelo P. Dehon como pessoa. Está convencido da sua
missão de fundador. Quando vai a Roma a 28 de Fevereiro de 1882, para a visita ad limina, aceita
apresentar uma carta a Leão XIII, assinada pelo “Superior (P. Dehon) e a Comunidade dos Oblatos do
Coração de Jesus”, na qual se expressa o vivo desejo de uma aprovação pontifícia do Instituto.906
Em lugar da aprovação chegou a suspensão.
Sigamos detalhadamente os acontecimentos.
899
Carta do P. Dehon a Madre M. Verónica de 22.6.1887 (AD, B 21/31).
900
Carta d e Madre Verónica ao P. Dehon de 17.7.1887 (AD, B 21/31).
901
Cf. AD, B 21/3n.
902
AD, B 35/4.
903
Cf. RP, 9-10.
904
NHV XIV, 98.
905
Cahiers Falleur V, 82: 19.4.1881; Cf. Lettere circolari, n. 2.
906
Cf. Denis, Le projet du Père Dehon, 46-50; ed. It. 57-62.

180
PRIMEIRA INTERVENÇÃO DE ROMA

Como dissemos, Mons. Thibaudier estava inquieto em relação aos Oblatos; antes - escreve o P.
Dehon nas suas Memórias – “tornou-se severo, exigente, embora desejando mostrar-se benévolo”.907
Em Roma, recebido em audiência por Leão XIII a 10 de Março de 1882, tinha falado com o Papa
sobre os Oblatos. Leão XIII tinha-o enviado, para o efeito, ao Cardeal M. Ledochowski.
Numa primeira entrevista com o Cardeal, Mons. Thibaudier tinha-lhe entregado o caderno das
Cosntituições recém aprovadas, com a sua reserva acerca do quarto voto de vítima, e o caderno mais
recente das “luzes de oração” da irmã Maria de S. Inácio.
Numa segunda entrevista, o Cardeal Ledochowski diz a Mons. Thibaudier que não tinha lido
completamente os dois cadernos, mas que se tinha formado uma ideia clara sobre os pontos essenciais.
Na audiência de despedida, Leão XIII assegura a Mons. Thibaudier que o cardeal lhe escreveria,
logo que lhe fosse possível, comunicando-lhe as directrizes a seguir.
De facto, a 26 de Março de 1882, o Cardeal Ledochoski, depois de ter falado com o Papa, dava
estas directrizes ao Bispo de Soissons:
- Dada a situação política da França e as leis contra as congregações religiosas, é preferível deixar
para outros tempos o exame canónico das regras dos Oblatos e a eventual aprovação do Instituto.
- Em relação aos presumidos factos sobrenaturais referentes ao Instituto é preciso usar a máxima
reserva.
- A proibição do Bispo de servir-se deles para o governo do Instituto e para a escolha dos
candidatos é muito oportuna e deve ser mantida.908
O P. Dehon escreve nas Memórias: “Era preciso ser reservados, actuar com prudência e discrição,
observar as directrizes do Bispo de Soissons e do arcebispo de Reims”.909
Aqui aparece Mons. Langénieux, arcebispo metropolitano de Reims, que não é mencionado na carta
do Cardeal Ledochowski. É provável que o recurso ao arcebispo de Reims para todos os problemas
referentes aos Oblatos tenha sido sugerido por Roma e talvez pelo próprio Papa, na última audiência com
Mons. Thibaudier. De resto era a praxe normal. As dificuldades relativas aos Oblatos deviam ser resolvidas
possivelmente pela Igreja local, pelo Bispo ou pelo seu metropolita, e só em segunda ou terceira instância
pela Santa Sé.

PERPLEXIDADES E CONSELHOS DOS PADRES DAUM E ESCHBACH

Durante a sua estada em Roma, Mons. Thibaudier tinha dado a ler o caderno das Constituições do
P. Dehon e os cadernos das luzes de oração da irmã Maria de S. Inácio ao P. Daum, residente no seminário
francês, consultor da Congregação dos Bispos e religiosos e amigo do P. Dehon.
O P. Daum, consultado pelo P. Dehon em relação às constituições e às luzes de oração da irmã
Maria de S. Inácio, com a sua modéstia habitual, respondia deste modo:
“Confesso ter dado só uma rápida olhadela a estes cadernos, que só estiveram dia e meio à minha
disposição e, para mais, estava sobrecarregado de ocupações.
... As Constituições, de que não pude estudar os diversos detalhes, parecem-me ainda incompletas
em alguns aspectos. O tempo e a experiência encarregar-se-ão de corrigir estas imperfeições. Divisei uma
disposição que o Direito Canónico vigente bem dificilmente aprova: a emissão de um quarto voto.
Quanto às “comunicações” incluídas nos outros cadernos, esta é a minha impressão geral:
1º. Parece que para o governo da comunidade se têm em conta estas “comunicações”. Não temeis as
consequências que podem advir para o Instituto por causa de um tal estilo de governo?
2º. Encontram-se, às vezes, nos cadernos juízos e considerações sobre determinadas pessoas. É
coisa muito delicada e pode ter graves inconvenientes.

907
NHV, XIV, 129.
908
Cf. “Lettres relatives à l’oeuvre. Aux debuts”, 17-19: carta do Cardeal Dedochowski a Mons. Thibaudier de 26.3.1882 (AD, B
36/3).
909
NHV XIV, 102-103.

181
3º. Parece-me finalmente que há previsões que nem sempre apresentam um carácter de suficiente
seriedade: sobre as vocações, sobre o nome futuro de alguns rapazes...
Seria melhor para vós manter a reserva e deixar que Deus faça a sua obra... A muita prudência aqui
não causa dano...”.910
Não nos é possível controlar as afirmações do P. Daum, tendo os cadernos, examinados
rapidamente por ele, ficado no segredo do Santo Ofício.
Em relação aos juízos sobre determinadas pessoas, contidos nas luzes de oração da irmã Maria de S.
Inácio, como sobre as previsões sobre vocações e sobre o nome de cada um dos aspirantes, temos uma
confirmação indirecta, aqui e ali, nas conferências do P. Dehon aos primeiros noviços (Cahiers Falleur) e
directa nas cartas da Madre Maria do Coração de Jesus (a Chère Mère) enviadas ao P. Dehon nos anos
1882-1883.911
As perplexidades do P. Daum eram mais que justificadas, e os seus conselhos de reserva e de
prudência muito oportunos.
Para sermos completos devemos acrescentar que reservas e conselhos tão prudentes e ainda mais
detalhados tinham sido dados, alguns anos, antes pelo P. Eschbach, superior do Seminário francês de
Roma.
A 23 de Novembro de 1878, o P. Dehon tinha-lhe enviado uma cópia das primeiras comunicações
da irmã Maria de S. Inácio. Numa carta de 6 de Dezembro seguinte, o P. Eschbach responde-lhe que fez
examinar os escritos por dois religiosos. A seu juízo, as comunicações da irmã Maria de S. Inácio estão
impregnadas de uma piedade e de uma unção que pode harmonizar-se com a realidade de alguma
comunicação divina. Mas para chegar a um juízo prudente sobre a realidade destas comunicações seriam
precisos outros dados de que os dois religiosos não dispõem.
O P. Eschbach continua dando o seu juízo pessoal:
“Vivemos num tempo em que o sobrenatural e o preternatural abundam e superabundam. De todos
os lados contam-se factos maravilhosos, aparições, visões, estigmas, etc... Alguns destes factos passaram
pelo crivo da provação e do tempo, e foram declarados divinos ou rejeitados como provenientes de um
espírito mau. Há outros recentes como esses que me destes a conhecer.
A história dos primeiros deve servir-vos, evidentemente, para julgar os segundos. Ora, entre os
primeiros há alguns que, sem terem sido aprovados como divinos, apresentam porém características de
elevada piedade, como sucede com a alma por vós dirigida.
Por exemplo: a “extática” de Blain, perto de Nantes, diz coisas sublimes e maravilhosas; mas
também, com o tempo, mostrou sinais de um espírito bem diferente do Espírito de Deus e a autoridade
diocesana teve que proibir os sacerdotes de lhe administrarem os sacramentos.
Poderia citar outros casos já que tive que examinar pessoalmente e submeter a prova duas
“extáticas”. Parece-me portanto que no vosso caso é necessário:
1º. Esperar muito, antes de proferir um juízo definitivo;
2º. Evitar dizer ou fazer algo que possa, de algum modo, exaltar a imaginação ou a vaidade da alma
dirigida por vós;
3º. Não mandar-lhe escrever tudo o que pensa comunicado por Deus, ou então, depois de ter-lhe
dito que escreva, rasgar o escrito na sua presença;
4º. Levá-la à prática de sólidas virtudes, como a obediência, a humildade, etc.... Meu querido
amigo, o pecado fez da mulher um ser extraordinário, capaz das coisas mais contraditórias. Algo disso sei
por experiência pessoal...”.
A carta do P. Eschbach, é apreciável pelas claras e seguras directrizes que dava ao P. Dehon, que
tentava já de pô-las em prática. De facto, a 13 de Dezembro de 1878, o P. Dehon responde assim ao P.
Eschbach: “Recorri a diversas provas semelhantes às que me propondes... Trata-se de uma irmãzinha
cozinheira, que desde há dez anos vive na humildade e no sofrimento que, só com as suas dotes naturais,
não saberia escrever duas linhas daquelas que nos dá... É perfeita na obediência. Pessoalmente não deseja

910
NHV XIV, 103-104.
911
Cf. Cahiers Falleur, índice analítico, na palavra “Révelations” p. 261. Cf. Cartas da Chère Mère ao P. Dehon (AD, B 18/3)
por ex. de 12.5.1882; da 1ª sexta-feira do mês de Junho de 1882 e outras de 1882-1883.

182
estas luzes e com gosto queimaria tudo. Antes, pede a Nosso Senhor que dê estas graças gratuitas a
outros...”.912
Depois das dolorosas provas de 1883, o P. Dehon, repensando o passado, reconhecerá dois grandes
erros: primeiro, as luzes de oração tinham sido erradamente consideradas como “revelações”; segundo,
alguns (como, por exemplo, o P. Vicente de Pascal) tinham-na usado para uma imprudente publicidade e
ele próprio, com a Chère Mére, tinha-se servido delas para a direcção da Obra.

AS EXTRAVAGÂNCIAS DE UM FALSO “CONFUNDADOR”.

No mês de Maio de 1882, entra em cena o P. Tadeu Captier, o mais velho, em idade, dos Oblatos, já
que tinha nascido a 28 de Janeiro de 1831. Tinha pois 51 anos, enquanto o P. Dehon só contava 39.
Tenhamos, além disso, em conta que o P. Captier, depois da sua profissão a 3 de Junho de 1881
tinha provavelmente sido escolhido pelo P. Dehon como seu ajudante na formação dos noviços e tinha-lhes
feito conferências.
O P. Dehon screve nas Memórias: “Em Maio de 1882, o P. Captier começou a dizer-nos que ouvia
vozes angélicas”.913 A Madre Maria do Coração de Jesus, a fundadora das Servas, e a irmã Maria de S.
Inácio intervieram em defesa do P. Captier: “Este bom padre não vive que no sobrenatural”, escreve a
Chère Mère ao P. Dehon.914 Acredita, juntamente com a irmã Maria de S. Inácio, conhecer as palavras do
canto dos anjos sobre a gruta de Belém.
Para a Madre Maria do Coração de Jesus é uma grande consolação e apressa-se a comunicá-lo, por
carta, ao P. Dehon. Afirma ter derramado “lágrimas de agradecimento e de amor”, vê nisso mais um
milagre em favor da Obra e um “motivo de maior confiança”.915
O neurasténico P. Captier, exaltado por estas pretensas visões, apoiado pela fundadora das Servas e
pela irmã Maria de S. Inácio, acreditou ser possuído pelo carisma de “confundador” dos Oblatos e começou
a escrever orações, formulários de missas, constituições e um directório espiritual.
O P. Captier, na vida normal, apresentava-se como um homem inteligente, culto, cheio de aptidões
e de qualidades, embora de aspecto físico grosseiro, descuidado na sua pessoa e no vestuário; mas logo que
se lhe davam responsabilidades, ou se o tinha em grande consideração, tornava-se perigoso e manifestava
notáveis desequilíbrios.
Em relação ao directório espiritual do P. Captier, o P. Dehon escreve nas Memórias: “Tinha páginas
bonitas, estava todo incendiado de amor ao Coração de Jesus. Mas tinha passagens inaceitáveis”.916 O juízo
da comissão de Reims, de que falaremos,917 acerca do directório do P. Captier, afirma que contém “uma
doutrina insólita” afastada “da tradição e da linguagem da teologia católica”.
Escreveu também um projecto de Constituições no qual a Ordem do Sagrado Coração era dividida
em três ramos (masculinos): os contemplativos, os activos, os mistos e vários ramos de irmãs. Era um
projecto “irrealizável, digno de um megalómano”.918
Foi-se criando uma situação cada vez mais confusa. Elementos apreciáveis e belas ideias sobre o
Sagrado Coração misturavam-se com claras influências diabólicas, com doutrinas infectadas de quietismo.
O P. Dehon viveu dias de “angústia”, tanto mais que o pretenso confundador, P. Captier, gozava do apoio
incondicional da Chère Mère e da irmã Maria de S. Inácio. Sabemos que, por temperamento, o P. Dehon
era inclinado a “ser bom para todos”.919 É precisamente a bondade que constitui a grande força do P.

912
Para a carta do P. Eschbach aio P. Dehon de 6.12.1878, cf. AD, B 21/3u; Para a carta do P. Dehon ao P. Eschbach de
13.12.1878, cf. AD, B 36/2a.
913
NHV XIV, 149.
914
Carta da Chère Mère ao P. Dehon sem data, porém certamente de 1882 (AD, B 18/3, carta n. 6).
915
Carta da Chère Mère ao P. Dehon, sem data, porém certamente de 1882 (AD, B 18/3, carta n. 7; carta n. 8 de 19.5.1882; cf.
P.S. carta n. 10).
916
NHV XIV, 149.
917
A. Vassena scj,, Cronistoria del Consumatum est, Std 21, p. 68s.
918
NHV XIV, 149.
919
NHV XIV, 23.

183
Dehon; uma bondade que o tornava sobrenaturalmente paciente e tenaz; mas, às vezes, era demasiado bom
e podia desagradar a Deus.

UM BISPO CADA VEZ MAIS INQUIETO E SEVERO.

Quando o P. Dehon apresenta nas Memórias o ano escolar 1882-1883, ou seja do mês de Outubro
de 1882 ao mês de Agosto de 1883, escreve assim: “Foi verdadeiramente o ano da Via Crucis, um ano
penoso, intranquilo, doloroso. Mons. Thibaudier estava inquieto, tornava-se severo, exigente, embora
querendo mostrar-se benévolo. Perdi minha mãe, que era a pessoa que mais amava no mundo. O P. Captier
tornava-se difícil, estava sob influências diabólicas”, e queria impor ao P. Dehon e ao Instituto as suas
extravagâncias.920
Havia além disso, um sacerdote, que entrou na Congregação a 7 de Outubro de 1881 e saiu em
Agosto de 1882, Afonso Leclerq de Vauchel, “que começou a criar-nos dificuldades com uma campanha
de denúncias e de calúnias”.921
Desde Junho de 1882, Mons. Thibaudier, tomando conhecimento das “visões e vozes angélicas” do
P. Captier, avalizadas e apoiadas pela Chère Mère e irmã Maria de S. Inácio, decidira pôr em prática o
conselho do Cardeal Ledochowski: “Ser reservados e actuar com prudência e discrição”.922 De facto, a 11
de Junho de 1882 escrevera ao arcipreste de S. Quintino, P. Mathieu: “Foi-me recomendado o uso de
circunspecção e de firmeza. Dora avante desejo ser informado de tudo o que revista uma certa importância
e, se Deus não me conceder a graça de ver com clareza factos sobrenaturais, julgarei seguindo as regras da
prudência ordinária. Em cada caso particular direi a mim mesmo: Se um dia tivesse que dar contas à Santa
Sé da minha decisão, seria julgada prudente e solidamente motivada?... A docilidade do P. Dehon edifica-
me. Encontro-a muito digna dele, sou obrigado a reconhecê-lo...”.923
Os critérios do Bispo de Soissons eram indubitavelmente sábios; é evidente também a sua
preocupação de evitar qualquer reprimenda da Santa Sé. Estranha o facto de que não tenha nomeado uma
comissão episcopal de especialistas para examinar as “luzes de oração” da irmã Maria de S. Inácio e as
“visões e vozes angélicas” do P. Captier, os seus escritos, como fará depois Mons. Langénieux com a
comissão de Reims.
Talvez Mons. Thibaudier não queria levantar uma perigosa publicidade em volta do Instituto do P.
Dehon para não comprometer o S. João, que tanto o preocupava e que, segundo a lei Ferry, não podia ter
religiosos como directores nem como professores; talvez não tinha na diocese elementos competentes para
julgar os factos extraordinários da mística; talvez também não queria aumentar o número dos que se
opunham ao P. Dehon e à sua Obra entre o clero diocesano, com inevitáveis atritos e escândalos para os
fiéis ou talvez ainda outros motivos, por nós desconhecidos, o convenceram a não criar uma comissão
episcopal para o exame dos factos místicos referentes à irmã Maria de S. Inácio, ao P. Captier e aos seus
escritos.924
Um eco da intranquilidade de Mons. Thibaudier, descobrimo-lo numa carta sua ao arcipreste
Mathieu de 3 de Outubro de 1882: “Meu querido amigo, perdoe-me o senhor e o querido P. Dehon os meus
irritantes aborrecimentos. Sabeis quanto vos estimo e vos amo. Por isso vos deixo tão pouco em paz”.925
Exprime então as suas preocupações pelos danos que possam advir para o Colégio S. João, a obra a ele tão
querida. Parece-lhe que o P. Dehon se arrisque a descuidá-la, tomado como está pelos seus muitos
compromissos, e conclui: “Eu não olho para os factos sobrenaturais sobre os quais ele (o P. Dehon) se
apoia como se fossem suficientemente certos para permitir-lhe desfiar tanto a consagrada lei da experiência
que diz: quem muito abarca pouco aperta.. Pessoalmente não quero prescrever nada, mas suplico-lhe que

920
NHV XIV, 129.
921
Cf. RP, 5; NHV XIV, 129.
922
Carta do Crdeal Ledochowski de 26.1.1882 a Mons. Thibaudier (NHV XIV, 102).
923
NHV XIV, 105-106.
924
Cf. Vassena, Crnistoria, 51
925
NHV XIV, 130.

184
deixe completamente, se necessário, as boas Franciscanas (as Servas), o Sagrado Coração (o noviciado dos
Oblatos), Fayet (a Escola Angélica) e se dedique, este ano, exclusivamente ao S. João”.926
Entretanto, escreve o P. Dehon: “O P. Captier... queria, em nome dos anjos, impor-nos doutrinas
suspeitas de quietismo. Tivera, num princípio, muito bonitas ideias sobre o Sagrado Coração que nos
pareciam vindas de Deus. Onde começava o erro? Que havia de divino? Era tudo pura ilusão? É preciso ter
passado per estas angústias para compreender que desoladoras elas são”.927
Numa carta de 8 de Outubro de 1882 a Mathieu, Mons. Thibaudier, sempre preocupado, escreve:
“Pedi ao P. Captier que me escreva uma síntese da sua biografia espiritual sobre o que não seja matéria de
confissão sacramental e uma descrição, o melhor que puder, do modo comoacontecem as suas presuntas
comunicações angélicas”.928
Entretanto tinham vindo visitar o P. Dehon os irmão Alexandre e Vicente de Pascal. Já
mencionámos o estado de exaltação em que este último estava com as “revelações” da irmã Maria de S.
Inácio e a pouca prudência com que delas fazia uma grande propaganda.
Era normal que Mons. Thibaudier se tornasse ainda mais inquieto e severo.
Teme que todo este delicado assunto lhe escape das mãos e que Roma seja informada sem que ele o
saiba.
Julga inverosímil a origem angélica das comunicações do P. Captier. Desconfia das “luzes de
oração” da irmã Maria de S. Inácio. Proíbe que se dêem a conhecer às pessoas nelas mencionadas. Proíbe
que se tomem decisões em consequência das comunicações angélicas do P. Captier ou das “luzes de
oração” da Irmã. Decisões severas, mas prudentes.
Entretanto, a 29 de Novembro de 1882, abre-se a escola apostólica, ou seja o seminário menor de
Fayet. O director é o P. Captier, pelos seus títulos académicos reconhecidos pelo Estado. Para ele é a
“Escola angélica”; melhor: “Escolas Angélicas”. Os alunos são uns vinte e são educados num
espiritualismo exaltado e ridículo, acompanhado por uma piedade ainda mais ridícula e sentimental.
No princípio também o P. Dehon se mostra condescendente e entusiasta. De facto, escreve a Mons.
Gay a 30 de Janeiro de 1883: “A nossa primeira escola apostólica é particularmente abençoada. Monsenhor
(bispo) de Soissons veio nestes dias visitá-la para aperceber-se da poderosa acção da graça que ali se
manifesta”.929 Mas a atitude de Mons. Thibaudier continua caracterizada pela cautela e desconfiança, e não
sem razão, já que o P. Captier, com as suas pseudo visões angélicas, acrescenta preocupações às
preocupações. A própria Chère Mère, que no princípio lhe tinha sido favorável (em 1882), está cheia de
angústia em 1883. A falta de obediência, de espírito de pobreza e de penitência do desgraçado Captier está
à vista de todos. O P. Dehon está muito preocupado. A 8 de Maio (1883) escreve-lhe uma carta severa, que
já citámos, na qual o convida a obedecer, a não deixar-se levar por fantasias doentias ou por eventuais
“influências diabólicas” a ser “simples e humilde”: “Então tudo correrá bem. O próprio Nosso Senhor vos
iluminará se tiverdes espírito de docilidade com os vossos superiores. Peço ao Coração de Jesus que
coloque no vosso coração o verdadeiro amor por Ele e pelas almas, amor que está sempre unido à
humildade, à obediência, ao sacrifício”.930

A COMISSÃO DE REIMS

Mons. Thibaudier, pressionado pelos acontecimentos, desde Dezembro de 1882 tinha pensado
recorrer ao seu Metropolita, Mons. Langénieux, antes, tinha ficado satisfeito por o próprio P. Dehon ter
levado a Reims os documentos, dando as explicações necessárias.
Mons. Langénieux tinha nomeado para o exame dos escritos do P. Captier e da irmã Maria de S.
Inácio uma comissão composta pelo Jesuíta P. Modeste, pelo reitor do seminário e pelo capelão da
Visitação.

926
NHV XIV, 130-131.
927
NHV XIV, 1329.
928
NHV XIV, 132.
929
Carta do P. Dehon a Mons. Gay de 30.1.1883 (AD B 22/4).
930
NHV XIV, 150-151.

185
A comissão não deu um juízo propriamente dito: só manifestou um parecer. Limitamo-nos aos
escritos da irmã Maria de S. Inácio:
As “revelações” estão quase sempre em harmonia com os temas de oração que cada dia se dão num
convento. Há uma quinzena de “revelações” sobre a obra do P. Dehon e sobretudo sobre as provas que terá
de sofrer.
A doutrina não supera normalmente a ciência mística que uma religiosa pode alcançar depois de um
certo tempo, se for fiel aos seus exercícios de piedade.
Há capítulos de doutrina muito elevada, especialmente acerca da renúncia, do amor à cruz, do
sacrifício de si mesmo...
Algumas citações bíblicas estão incompletas; algumas afirmações são teologicamente discutíveis.
A prolixidade das palavras parece que se harmoniza pouco com a linguagem da Escritura. Não é já
um Deus que fala “tamquam potestatem habens”; mas antes um professor que defende uma tese sem omitir
nenhum argumento com o fim de persuadir.931
Notamos que os escritos da Irmã tinham sido, infelizmente, examinados como revelações e não
como “luzes de oração” e assim foram apresentadas a Roma. Além disso o P. Dehon não conheceu nunca o
parecer da comissão de Reims, visto que Mons. Thibaudier o mandou directamente para Roma com todos
os outros documentos que estavam em seu poder.
A afirmação que faz o P. Dehon nas Memórias sobre o parecer da comissão de Reims acerca dos
escritos da irmã Maria de S. Inácio no sentido de que “ultrapassassem como eminência de doutrina e como
santidade de vistas as forças humanas” é só parcialmente exacta.932
Nós temos mais sorte que o P. Dehon, porque Mons. Péchenard, então vigário geral de Reims, fez
uma cópia do juízo da Comissão de Reims para seu uso pessoal. Uma vez nomeado bispo, levou esta cópia
para Soissons (1907) onde ficou no arquivo da diocese.
Se os escritos da irmã Maria da S. Inácio exigiam reservas, o juízo sobre os escritos do P. Captier
era preocupante.
O próprio Mons. Langénieux, escrevendo ao P. Dehon sobre os escritos do P. Captier, dizia:
“Várias passagens nos surpreenderam e ... o conjunto mereceria um profundo exame”. 933 Mons.
Langénieux estimava muito o P. Dehon e tratava-o com familiaridade: “Sois um dos meus sacerdotes –
escreve-lhe na mesma carta – já que me permitistes penetrar até ao santuário dos vossos íntimos
pensamentos”.
As constituições do P. Captier estavam afectadas por evidente megalomania. A Ordem do Sagrado
Coração devia adaptar-se a todo o tipo de vocação religiosa: contemplativa, activa, mista: devia remediar a
todas as necessidades da Igreja. A própria organização do governo era tão complicada que resultava
irrealizável.
No directório espiritual do P. Captier encontrava-se uma doutrina estranha que, no seu conjunto, se
afastava da tradição e da linguagem da teologia católica. Na base desta doutrina encontrava-se a
substituição da pessoa divina pelo Coração de Jesus; as metáforas eram forçadas, os sentidos
acomodatícios exagerados até ao ponto de cair em vários erros doutrinais e práticos. Era evidente a
tendência para o quietismo: bastava o puro amor sem sacrifício, nem penitência, nem cruz e também sem a
vida comum: “Uma doutrina cheia de escolhos”.934

931
“Dossier de l’Evêché de Soissons sur le P. Dehon. Les Révelations... en resumé, 6-7 (AD, B 23/15.2).
932
NHV XIV, 136-137.
933
Carta de Mons. Langénieux ao P. Dehon de 17.1.1883 (AD, B 21/3z; cf. NHV XIV, 140).
934
Cf. “Dossier de l’Evêché de Soissons sur le. P. Dehon”. Les constitutions, 7-11. Directorium spirituale O. SS. C. Jesus, 11-14
(AD, B 24/15.2). A dar crédito a uma carta de Mons. Thibaudier ao P. Dehon de 12.1.1885, segundo o projecto do P. Captier,
todos os institutos religiosos (ordens e congregações) deviam ser englobados nos Oblatos do Sagrado Coração. Mons.
Thibaudier fala de um movimento semelhante ao franciscano do século XII. Pode-se imaginar a reacção dos consultores do S.
Ofício, todos religiosos de antigas ordens (cf. AD, B 21/3a.).

186
NOVO RECURSO A ROMA

Entre 17 de Janeiro e 17 de Fevereiro de 1883, Mons. Thibaudier decide dirigir-se a Roma e Mons.
Langénieux, mais ou menos convencido da oportunidade desta decisão, dá o seu consentimento. Explica o
P. Dehon nas Memórias: “Algumas recordações de Lião tinham-lhe voltado ao espírito. Em Lião tinha
recebido uma repreensão de Roma pela sua severidade para com as irmãs Vítimas do Sagrado Coração
(corava quando na sua presença se mencionava o nome da Madre Verónica). Temia algo de semelhante em
S. Quintino. Confessou-mo mais tarde. Ele mudou portanto as disposições do Mons. de Reims. Permitiu-o
o bom Deus. Aceito tudo isto, mas foi então, para mim, um motivo de grande sofrimento”.935
As “revelações” da irmã Maria de S. Inácio e as megalomanias e erros do P. Captier eram motivos
mais que suficientes para alarmar uma pessoa muito prudente, mas também fundamentalmente insegura e
tímida como Mons. Thibaudier.
Além disso, em Janeiro de 1883, em Fayet aconteceu o caso Bachelard. Afirmava-se que este aluno
da Escola Angélica tinha sido curado de uma angina de peito por Nossa Senhora, que tinha visões e que
manifestava fenómenos de clarividência sobre a presença de relíquias escondidas, etc. Quando Mons.
Thibaudier quis ver claro, tudo se dissipou como uma bola de sabão. Esta foi, quem sabe, a clássica gota
que fez transbordar o copo... O exame e a decisão tinham sido agora remetidas para Roma.
O “grande sofrimento” do P. Dehon é mais que compreensível: A sua Congregação era apresentada
em Roma com escritos (os do P. Captier) que, no mínimo, eram suspeitos.
Muito respeitador dos caminhos de Deus, o P. Dehon, como sabemos, desconfiava dos seus juízos
pessoais e desejava que os seus superiores imediatos exprimissem as suas avaliações. Deve-se notar que
além disso, na realidade o P. Dehon não era “o superior”, mas só um “subdelegado”. O verdadeiro superior
delegado de Mons. Thibaudier era “o rei e o profeta “ de S. Quintino, o arcipreste e vigário geral,
Mathieu.936 Era a ele que o bispo de Soissons transmitia as suas opiniões e decisões.
Por outro lado, o P. Dehon, por temperamento, estava desarmado para afrontar um homem como o
P. Captier e para fazê-lo entrar na razão.
Mons. Thibaudier, por seu lado, não intervinha com energia, pelas razões que já dissemos e pelo seu
carácter contemporizador, deixando assim o P. Dehon num penoso embaraço e remetendo toda a decisão
para Roma.
Mons. Langénieux escrevia ao P. Dehon: “A ideia do seu bispo é muito sábia. Na vossa obra há
diversos interesses, alguns dos quais tratam questões muito delicadas que só podem ser resolvidas pela
Santa Sé”.937
O P. Dehon então dirige-se a Mons. Thibaudier para obter informações sobre o andamento do caso.
O bispo de Soissons escreveu ao Cardeal Ledochowski, o qual, depois de consultar Leão XIII, responde
que se envie toda a documentação para o S. Ofício. Mons. Thibaudier quer receber de Roma “uma directiva
paternal e secreta”.938
Depois Mons. Thibaudier dá a conhecer ao P. Dehon os documentos que enviou para Roma: “1.
Aqueles que levastes a Reims, como também as conclusões da comissão; 2. Todas as comunicações da
irmã Maria de S. Inácio que me entregastes nos cadernos encadernados; 3. A relação do que aconteceu a
Leão Bachelard; 4. As cartas de algumas pessoas; 5. Uma minha exposição pessoal com o pedido de
orientações... Vós dareis as vossas explicações à Santa Sé, já que enviareis um vosso representante”.939
O representante era o P. Alexandre Pascal. O antigo zuavo pontifício, inexperiente nos
procedimentos da Cúria romana, não foi de nenhuma utilidade para a causa do P. Dehon. Regressou de

935
NHV XIV, 141. Mons. Thibaudier decide enviar toda a documentação para Roma depois da visita feita a Fayet pelo caso de
Leão Bachelard: visita que teve lugar depois de 17 de Janeiro de 1883 (cf. carta do P. Dehon a mons. Gay de 30.1.1883; AD, B
22/4).
936
Em Roma, durante a viagem realizada em Fevereiro de 1877 com Mons. Thibaudier e Leão Dehon, D. Mathieu aborrecia-se e
tinha saudades de “S. Quintino onde era rei e profeta” (NHV XII, 118).
937
Carta de Mons. Langénieux ao P. Dehon de 7.3.1883 (AD, B 21/3z). NHV XIV, 141-142.
938
NHV XIV, 137.
939
NHV XIV, 138.

187
Roma desanimado. Abandonou o Instituto em Abril de 1884, depois da supressão dos Oblatos,
desmoralizado e afectado no seu sistema nervoso. Morrerá numa casa de saúde em 1885.940
Entre os documentos enviados por Mons. Thibaudier para Roma havia uma lacuna grave: faltavam
as Constituições do P. Dehon, que o bispo tinha aprovado a 13 de Outubro de 1881, e também um relatório
do Fundador sobre o Instituto.
Estas lacunas esclarecem melhor as intenções de Mons. Thibaudier no seu recurso a Roma: não
queria um juízo sobre o Instituto do P. Dehon, mas umas orientações claras sobre as comunicações da irmã
Maria de S. Inácio, sobre os escritos do P. Captier e sobre o caso Bachelard.
Pelo contrário, a decisão do S. Ofício foi muito mais além das intenções de Mons. Thibaudier e
envolveu o Instituto do P. Dehon, com a supressão.

À ESPERA DO “CONSUMATUM EST”

Esta dolorosíssima prova é recordada na vida do P. Dehon e na história da sua Congregação como o
“Consumatum est”.
O uso desta expressão evangélica deriva certamente das “luzes de oração” da irmã Maria de S.
Inácio e remonta exactamente a 13 de Maio de 1878: “Também para esta Obra haverá um Consumatum
est”.941
O “Consumatum est”, como resulta de numerosas afirmações do P. Dehon nas suas conferências
aos primeiros noviços do Instituto, era considerado como uma profecia e como tal devia realizar-se
necessariamente.
Se a Obra dos Oblatos era Obra de Deus devia reproduzir a vida de Cristo e, como Cristo tinha
morrido e ressuscitado, assim a obra dos Oblatos teria de ser suprimida e depois ressuscitar. Só depois se
poderia esperar o Pentecostes, ou seja, o desenvolvimento da Congregação. Estava também determinado o
tempo de supressão: de três a seis meses. Realmente durou cerca de quatro meses.942
Todavia a circunstância mais dolorosa do “Consumatum est”, precisamente por inesperada, foi que
a supressão dos Oblatos não foi por obra do Estado como o P. Dehon esperava, mas por iniciativa da Santa
Sé, que o P. Dehon tanto amava e venerava e da qual esperava encorajamento e sobretudo a aprovação.
Segundo as previsões humanas era muito simples esperar a supressão dos Oblatos por parte do
Estado.
Estamos nos tempos da República “dos republicanos” para os quais o grande inimigo que teria de se
abater era o clericalismo, o governo dos padres, o ministério dos párocos e a lei de J. Ferry, de Março de
1880, atacava os Institutos religiosos não reconhecidos legalmente, obrigados a apresentar um pedido de
autorização, sob pena de dissolução e de expulsão.
Era a ocasião propícia para o “Consumatum est” esperado pelo P. Dehon e, em vez, o Estado não se
tinha preocupado com o seu pequeno instituto.
Também as Servas não estavam autorizadas. Alguns pais intervieram querendo retirar para a família
as suas filhas. Várias irmãs foram mandadas para Alsácia vestidas à secular. Uma irmã perdeu a cabeça e
fugiu do convento saltando os muros. Era um bocado demasiado saboroso, e a imprensa anticlerical não o
deixou fugir. Proclamou-se o escândalo. As irmãs eram mulheres injustamente privadas da sua liberdade,
sequestradas, maltratadas, etc. etc. e a culpa foi atribuída ao seu director espiritual, o P. Dehon.

940
CF. rp, p. 6.
941
Cf. “Tables des vues d’oraison de la soeurt Ignace”, 5 (AD, B 34/7). Num escrito da velhice (1924?) do P. Dehon lemos: «N.
S. disse: “quero mostrar-lhe por onde deve passar uma vítima” Sexta feira santa (19.4.1878) N. S. disse: “Também esta Obra terá
o seu Consumatum est”» (AD, B 36/6). Na correspondência do P. Dehon o “Consumatum est” aparece pela primeira vez numa
carta escrita à Chère Mère a 15.9.1879: “Ofereço este estado de sofrimento ao Coração de Jesus (vómitos de sangue). É uma
pequena parte do Consumatum est” (AD, B 19/1). Cf. Cahiers Falleur, índice analítico, sob o termo “Consumatum est”, p. 251.
Cf. Vassena, Cronistoria, 3-12.
942
Cf. Cahiers Falleur I, 84.

188
A SUPRESSÃO DOS OBLATOS

Recordando o ano escolar 1883-1884, o P. Dehon escreve nas Memórias: “É o ano do


“Consumatum est”, o ano terrível. Que angústias, que dilacerações! Tinha abandonado tudo, tudo tinha
sacrificado para fundar a obra da reparação ao Sagrado Coração: a minha carreira de sacerdote secular, os
meus bens, muitas amizades, as esperanças e a paz da minha família. Parecia que Deus tinha aceitado o
meu sacrifício com muitas graças e ainda com encorajamentos formais e palavras divinas (assim me
parecia). Tinha o apoio dos meus directores espirituais, de homens eminentes e de muitas almas santas. E
eis que a Igreja ponha tudo em questão. Era chamado ao Santo Ofício”.943
Em Junho de 1883, o P. Dehon é convocado a Roma para dar explicações ao Santo Ofício. Mas não
pode deixar o S. João mesmo no fim do ano escolar e, aconselhado pelo bispo, pede uma prorrogação.
Entretanto, a 18 de Julho, o Santo Ofício notifica a sua decisão sobre Leão Bachelard: o rapaz deve
ser transferido para outro colégio e deve ser acompanhado por um piedoso e sábio director.
Em Setembro seguinte, o P. Dehon está em Roma: “Queimado pelo sol e devorado pelos insectos,
porém isso não é nada. Fui muitas vezes ao comissário do Santo Ofício, Mons. Sallua, para responder às
suas questões. Jurei segredo e creio que ainda esteja obrigado a ele. Por isso não posso contar alguns
pormenores. Acreditava na verdade das revelações da irmã Maria de santo Inácio. Defendi esta minha
convicção. Em fins de Setembro fiquei livre para regressar a S. Quintino à espera da decisão.944
Durante os numerosos encontros com Mons. Sallua, o P. Dehon entregou-lhe as suas Constituições,
as de 1881, aprovadas por Mons. Thibaudier.
A 30 de Setembro está de regresso a S. Quintino. Escreve um relatório ao seu bispo, queixando-se
“docemente” da dureza que Mons. Thibaudier tinha tida para “connosco”, juntando aos documentos
enviados para Roma “algumas cartas que tinha recebido contra nós e que não eram por nada justas”.945
Mons. Thibaudier defende-se afirmando que sempre procurou salvaguardar o bem das pessoas; e
além disso “devia dar o meu parecer sobre as coisas que para mim foram desde há cinco anos motivo de
tantas dúvidas, perplexidades e reservas... Desejo, sobretudo, ter uma clara linha de conduta, pela qual
todos sejam encorajados para o bem”.946
Passaram dois intermináveis meses de penosa espera. Finalmente a 28 de Novembro de 1883, a
comissão cardinalícia do Santo Ofício reuniu-se em assembleia plenária e, com data de 3 de Dezembro,
emitiu o decreto de supressão dos Oblatos. Eis, em síntese, as disposições do decreto:
1. O conteúdo dos escritos da irmã Maria de Santo Inácio e do P. Captier não se devem considerar
como revelados por Deus.
2. Todos esses escritos devem ser depositados no Santo Ofício.
3. A Congregação dos Oblatos e a Escola Angélica não devem ser autorizadas.
4. Recomenda-se ao bispo de Soissons que proceda com prudência e circunspecção para evitar todo
o tipo de escândalo e salvar a reputação das pessoas. O mesmo se recomenda ao bispo de Roermond, onde
se encontra a casa de Sittard.
5. O P. Dehon deve desinteressar-se completamente da sua Congregação, seja removido da direcção
espiritual das Servas e não tenha nenhuma relação escrita ou oral com a irmã Maria de S. Inácio.
O director das Escola Apostólica, P. Captier, abandonará, se possível, a diocese de Soissons. A irmã
Maria de S. Inácio será transferida, se for possível, para outra casa. As Servas observarão a regra de S.
Francisco sem modificação nem acrescento algum.
6. Leão Bachelard, como já tinha sido decidido, passará para outro colégio (o pobre rapaz suicidar-
se-á alguns anos mais tarde).947
“Recebi esta sentença de morte – escreve o P. Dehon nas Memórias – na linda festa de 8 de
Dezembro (a Imaculada). Estava atirado por terra e triturado. Tinha-me, portanto, enganado. Como seria o
meu futuro? Ficava-me o Colégio; mas não era essa a minha atracção nem a minha vocação. Tinha-o
fundado para encobrir o resto ( a congregação). Não o podia manter sem o Instituto religioso; os
943
NHV XIV, 175
944
NHV XIV, 176.
945
NHV XIV, 177.
946
Carta de Mons. Thibaudier de 28.9.1883 a D. Mathieu (NHV XIV, 177).
947
Carta do S. Ofício a Mons. Thibaudier de 3.12.1883 (AD, B 24/14).

189
professores ter-me-iam custado muito e nem sequer os encontraria. Teria sido desacreditado. Estava
oprimido pelas dívidas e sem remédio. Como religioso podia pedir esmola, como director do Colégio, não.
Sabe Deus o que sofri naqueles dias de morte. Sem uma graça especial teria perdido a razão ou a vida”.948
Mons. Thibaudier esperava normas acerca das “revelações” da irmã Maria de S. Inácio e uma
desautorização do P. Captier pelas suas extravagâncias e pela sua doutrina, mas não a supressão da
Congregação. “Estava consternado como eu”, escreve o P. Dehon ... “tinha visto com terror o decreto de
Roma”.949

A HUMILDE SUBMISSÃO DO P. DEHON

Como tantos outros fundadores, o P. Dehon tinha experimentado e continuará a experimentar


sempre uma grande repugnância a impor-se. Por isso custara-lhe muito adoptar medidas radicais contra o
P. Captier, mais velho do que ele, e que se apoiava na autoridade do santo Cura de Ars. Além disso, o
verdadeiro superior geral dos Oblatos (então Congregação diocesana) era Mons. Thibaudier; mas também o
bispo de Soissons era arredio a adoptar medidas radicais. Reconhecerá um dia uma certa cobardia,
escrevendo a D. Mathieu: “Talvez em alguns casos não fui suficientemente firme”.950
Chegara-se assim a um caminho sem saída. Quem seria capaz de dominar o iluminismo fideístico
do Captier (que gozava da simpatia também de algum religioso), o maternalismo místico da Chère Mère e
modificar uma certa passividade do próprio Fundador, sem o duro decreto do Santo Ofício? Falo de uma
certa passividade do P. Dehon, que se remetia demais ao seu superior imediato, Mathieu, e ao seu director
espiritual o P. A. Modeste, homem de grandíssima piedade, mas também talvez algo ingénuo, fascinado
pelas eminentes virtudes das Irmãs Servas que o levavam a dar demasiada importância às “luzes de oração”
da irmã Maria de S. Inácio e a aceitar o audacioso zelo da Chère Mère.
Eis chegar, no momento oportuno, a severa decisão do Santo Ofício, providencial, embora baseada,
em parte, em dados pouco exactos. Consideradas bem todas as coisas, a decisão do Santo Ofício foi
benéfica para o Fundador e para a obra dos Oblatos. Tudo isto o reconhecerá um dia o próprio P. Dehon.
Uma profunda humilhação, aceitada docilmente, era a condição para que o grão de trigo lançado à terra
revivesse e produzisse fruto.951
São considerações exactas, mas que precisam de tempo para serem compreendidas e chegarem a
criar convicções.
Logo que recebeu a carta do Santo Ofício, o P. Dehon escreveu humildemente ao seu bispo:
“Monsenhor, vossa excelência sabe que fundei o Instituto dos Oblatos do Coração de Jesus com a única
intenção de fazer a vontade de Deus e de procurar a sua glória... Nosso Senhor pede-me agora para destruir
o que me pediu para construir. Não posso ter, por um instante sequer, a ideia de resistir. Seria mil vezes
insensato. Não posso dizer outra coisa que o meu fiat!. Vós sabeis quanto isto me é doloroso. A morte sê-
lo-ia cem vezes menos... Tudo ficou destruído e feito em pedaços: a honra, os recursos económicos
investidos, as esperanças e muitas outras coisas que não posso dizer. Mas que é tudo isto? O que mais me
atormenta é um pensamento de que não me posso abstrair: Nosso Senhor quis esta Obra, e eu fi-la fracassar
com as minhas infidelidades. Não quero ver nisto só a perda das maiores graças, mas, sobretudo, os
desígnios de Deus contrariados e a glória, que Ele esperava, não conseguida por causa das minhas culpas.
Este é o sofrimento que nada pode aliviar...”.
“Agora, Monsenhor, tudo coloco nas vossas mãos, pedindo-vos perdão pela imperfeição da minha
obediência no passado... Peço-vos que não olheis para a minha pessoa. Seria até muito feliz se pudesse,
com todas as minhas humilhações e destruições, reparar as minhas faltas passadas e oferecer a Nosso
Senhor alguma compensação. Farei tudo quanto vossa Excelência me mandar em nome da santa Igreja e na
hora em que entender”.952
948
NHV XIV, 182.
949
NHV XIV, 183.
950
Carta de 17.12.1883 em NHV XIV, 182.
951
Cf. Denis scj, Le P. Dehon (1871-1885), 46 (dactilografado).
952
Carta do P. Dehon a Mons. Thibaudier no Natal de 1883 (AD, B 36/3 pp. 83-86), e copiada pelo P. Dehon num caderno com
o título “Lettres relatives à l’Oeuvre. Aux debuts”.Em rodapé o P. Dehon escreve: “Mons. levou esta declaração para a Santa Sé,

190
Na extensa carta do P. Dehon não há nem uma só palavra de amargura para quem o compreendeu
mal ou julgou com demasiada severidade. A seus olhos, só ele é culpado.
É espontânea a comoção diante dos sentimentos de humildade, de dor e de fé, expressos pelo P.
Dehon com tanta sinceridade nesta circunstância tão dolorosa da sua vida.
A sua humilde submissão foi certamente agradável a Deus, pois a obra suprimida, voltou quase de
imediato à vida.
O P. Dehon expôs com simplicidade a Mons. Thibaudier todas as consequências que lhe parecia
iam resultar do decreto de Roma: “O escândalo, a desonra, a impossibilidade de continuar na direcção do S.
João”.953 O P. Dehon, evocando nas suas Memórias o “ano terrível” do “Consumatum est” escreve:
“Permanecemos no sepulcro, não três dias mas três meses. Depois chegou uma pequena ressurreição, uma
Belém; mas durante todo o ano manteve-se uma espécie de eco da sentença de morte que se repercutia
todos os dias. Era estranheza, desânimo em volta de mim, uma espécie de desilusão como a dos discípulos
de Emaús. Não saberia exprimir tudo o que sofri naquele ano, sobretudo durante os meses de inverno, antes
da humilde ressurreição de 26 de Março. Certamente que me foi necessária uma ajuda sobrenatural, para
não cair no desânimo nem encontrar a morte”.954
Já sabemos como o P. Dehon e também os seus directores espirituais não eram peritos acerca de
graças místicas extraordinárias. Os valiosos conselhos dos Padres Eschbach e Daum foram vozes dispersas
e infelizmente silenciadas no vasto coro das aprovações.
Quarenta anos mais tarde, falando com o P. Philippe deste seu erro, dizia: “Não tinha experiência
nesta matéria e o que se poderia explicar como luzes de oração, eu estultamente tomei e apresentei como
revelações”.955
Mons. Sallua dir-lhe-á um dia, dez anos após a supressão: “Se tivésseis apresentado tudo como
simples luzes de oração, não teríamos tido nada a dizer”.956 Relevamos equívocos, não culpas. Porém
também os erros se dissolvem diante da humildade e da obediência total do P. Dehon ao decreto de Roma
que destruía, num instante, a obra e o ideal da sua vida.

A RESSURREIÇÃO: OS SACERDOTES DO CORAÇÃO DE JESUS

O Santo Ofício tinha suprimido os Oblatos “non vitio personarum, não por culpa das pessoas, mas
por um defeito intrínseco da própria Congregação, tendo sido fundada, dirigida e governada por meio de
pretensas revelações, que de modo algum se deviam admitir”. Assim se exprime o decreto de
reconstituição do Instituto do P. Dehon, com data de 29 de Março de 1884957. O motivo mais grave era que
a Congregação dos Oblatos tinha tido origem em revelações privadas.. O P. Dehon nunca aceitou esta
motivação, porque era falsa. Defendeu sempre o seu carisma e direito de Fundador, anterior e independente
das “revelações” da irmã Maria de S. Inácio.
A 1 de Março de 1886 escreve no seu Diário: “Refiro-me ao juízo do Santo Ofício. Supõem que
fomos fundados sobre revelações. Não é exacto. Existíamos já havia um ano... temos uma base bastante
mais firme”958.
A base sólida para o P. Dehon é sobretudo “a aprovação autêntica da Igreja”, primeiro do bispo de
Soissons, depois de Roma e as provas dolorosas de todo o género em resposta ao seu voto de vítima.959
O facto do “Consumatum est” terá sequelas dolorosas para o P. Dehon, mesmo após muitos anos,
por causa de opositores malévolos e duros, especialmente em Roma, contrários à aprovação do Instituto –

que respondeu com o decreto de ressurreição de 29 de Março de 1884”.


953
NHV XIV, 182-183.
954
NHV XIV, 175-176.
955
L. Philippe scj. Ricordi, 282 (dactilografado).
956
«Notes sur ls fondaments divins de l’Ordre du Sacré-Coeur”, 10, escritas certamente depois de 1920 (AD, B 36/4). O P.
Dehon conclui: “Posso, portanto, pensar que eram luzes de oração. Elas inspiraram as nossas orações e o nosso Directório”».
957
Carta a Mons. Thibaudier de 29 de Março de 1884 (AD, B 24/14; NHV XIV, 183-185).
958
NQ III, 9-10: 1.3.1886.
959
Cf. NQ XLIV, 132 ss: outubro de 1924.

191
como escreve o P. Dehon ao cardeal Ferrata – “porque sustentam que vivemos ainda fundando-nos sobre as
revelações de 1878, etc. etc. Nós temos muitos defeitos, certamente, mas esta acusação é falsa”.960
A explicação do falso juízo do Santo Ofício de que o Instituto dos Oblatos tinha surgido em
consequência de revelações privadas, encontrámo-la em algumas confidências do P. Dehon. “Tinham-me
julgado de longe e sobre informações insuficientes”. Certamente não sabiam que a Congregação do P.
Dehon existia já seis meses antes das “revelações” da irmã Maria de S. Inácio; a aprovação de Mons.
Thibaudier era de 13 de Junho de 1877; certamente conheceram tarde demais as verdadeiras Constituições
dos Oblatos, as escritas pelo P. Dehon e aprovadas por Mons. Thibaudier a 13 de Outubro de 1881. Os
consultores do Santo Ofício, às vezes, tinham compreendido mal os textos franceses: “Eu talvez me tenha
explicado mal em italiano. Alguns textos do P. Captier tinham irritado os examinadores e tinham estragado
tudo...”.961
A severidade do Santo Ofício é compreensível para quem conhece o extenso e falso misticismo que
infectava a Igreja naqueles tempos. Roma estava cansada e decidida a eliminá-lo. Temos uma prova disso
no caso da falsa mística Catalina Filljung (1848-1915). Mons. Sallua, devolvendo a Mons. Dupont des
Loges, bispo de Metz, uma carta da Filljung de 7 de Dezembro de 1883, uma de tantas, acrescenta em
latim: “Nec audeat Romam petere unquam”(nem ouse mais vir a Roma).962
Mons. Thibaudier diante da severa decisão do Santo Ofício, que comprometia também a obra que
tanto lhe interessava, o colégio S. João, actuou com tacto e prudência. Primeiro ordenou a todos os
membros do Instituto (então já uns quarenta, contando com os noviços) que permanecessem em seus
lugares. A irmã Maria de S. Inácio foi transferida para Daundedorf (Alsácia), casa onde algum tempo
depois foi superiora. O P. Captier deixou a diocese e retirou-se para a sua família.
O próprio bispo deslocou-se a Roma entre 20 de Janeiro e 10 de Fevereiro de 1884. A 28 de Janeiro
foi recebido em audiência por Leão XIII. Falou longamente com o cardeal Ledochowski e entregou-lhe
uma série de pedidos para apresentar ao Santo Ofício: “Queria que fosse reconhecida a nossa boa fé e que
pudéssemos ressurgir como Congregação diocesana, assegurando-nos o futuro”963
Da resposta do Santo Ofício, deduz-se que os pedidos de Mons. Thibaudier foram cinco e parece-
nos podê-los formular assim:
1º. Por que motivos foram suprimidos os Oblatos, por algum defeito das Constituições ou por
algum delito cometido pelos seus membros?
2º. É possível constituir uma nova Congregação exclusivamente diocesana?
3º. Não é suficiente queimar os documentos ainda existentes, em lugar de enviá-los para Roma,
tanto mais que são um duplicado dos que Roma já tem?
4º. Pode-se conservar a escola de Fayet?
5º. Não se poderia reconsiderar a supressão do noviciado de Watersleyde-Sittard (Holanda)?
A ressurreição da Congregação do P. Dehon deu-se com o decreto do Santo Ofício de 29 de Março
de 1884 que, em parte, já conhecemos. Já nos detivemos sobre o primeiro ponto, o mais importante.
É importante destacar que o decreto do Santo Ofício nada diz acerca do fim específico dos Oblatos:
o espírito de amor e de imolação.
O segundo ponto, a que o Santo Ofício tinha respondido positivamente - organizar uma
Congregação exclusivamente diocesana – era de grande agrado de Mons. Thibaudier. Era um meio
providencial para fornecer professores ao colégio S. João.
Aos três últimos pontos foi respondido positivamente, confiando na prudência do bispo de Soissons,
de acordo com o bispo de Roermond, de quem dependia o noviciado de Watersleyde-Sittard.964
A ressuscitada Congregação teria de adoptar outro nome: não já Oblatos do Coração de Jesus, mas
Sacerdotes do Coração de Jesus.
Podia ter como superior o P. Dehon, desde que reconhecesse que se tinha enganado.
“A pequena Obra revivia – escreve o P. Dehon nas Memórias -. Era um novo Natal. Convertíamo-
nos numa Congregação diocesana. Segundo o direito, ainda não tínhamos sido outra coisa. Podíamos
960
NQ XX, 39-30: Abril de 1906. Cf. Carta do P. Dehon ao cardeal Ferrata de 6.4.1906 (AD, B 24/14).
961
NHV XV, 5.
962
Cf. Vassena, Cronistoria, 81.
963
NHV XIV, 183.
964
Cf. AD, B 24/14: NHV XIV, 183-185. Cf, Denis, Le P. Dehon (1871-1885), 47.

192
sempre no futuro, como todos os Institutos diocesanos, tornarmo-nos uma Congregação mais extensa. A
escola de Fayet estava salva, o noviciado de Sittard conseguia uma trégua que depois seria definitiva.”
“Aceitei com muita humildade e coloquei-me nas mãos de Monsenhor”, que mostrava a sua
admiração pelo comportamento “absoluta e magnanimamente sacerdotal” do P. Dehon.965
Houve todavia muitos sofrimentos: [a condenação de Roma] foi para os meus [religiosos] um
trauma, uma desilusão. Exageravam-se as coisas, perdia-se a esperança de ser, com o tempo, uma
Congregação mais extensa. Aqueles que não eram originais da diocese sentiam repugnância em agregar-se
a ela. Era uma vida de sofrimento, mas era a vida”.966

“TUDO É GRAÇA”

O Decreto do Santo Ofício não provocou somente grandes sofrimentos, mas foi também, ao mesmo
tempo, causa de uma grande graça para o P. Dehon e para a sua Congregação: voltou à pura simplicidade
das origens antes de ter sofrido o influxo do P. Captier e das suas megalomanias. Lembramos a grande
Ordem do Sagrado Coração que tinha que satisfazer todas as vocações e todas as necessidades do povo de
Deus. Era um enorme castelo de cartas que a intervenção de Roma derrubara, voltando a colocar a Obra do
P. Dehon no humilde sulco querido e fecundado desde o princípio pelo Espírito Santo: “Hoje estais no
caminho traçado por Deus – escrevia-lhe Mons. Thibaudier - ... Nem tudo era de Deus naqueles primeiros
encantamentos que vos sustentavam”.967
Uma intervenção hierárquica tinha confirmado a originária autenticidade do carisma do P. Dehon e
da sua Obra e tinha-a libertado do inconsciente ascendente do P. Captier e da obsessiva influência da Chère
Mère.
Acabou, portanto, definitivamente o nefasto sistema de dirigir e governar o Instituto baseando-se
em “pretensas revelações”. Para isso, também foi providencial o afastamento de S. Quintino da irmã Maria
de S. Inácio.
Nas comunicações desta humilde Irmã, com as luzes de oração, havia certamente autênticas
previsões relacionadas com o “Consumatum est” e breves locuções divinas (Mons. Sallua admitia-o); mas,
como ensina S. João da Cruz, não é preciso tê-las em conta, porque Deus consegue na mesma os fins bons
que se propõe.968
“A prova era uma graça. No momento não o vi com suficiente clareza... fiquei abatido por muito
tempo ... Hoje vejo tudo claramente...: a prova foi uma graça”.969

AINDA PROVAS E CONSOLAÇÕES

Em 1883, o ano do “Consumatum est”, o P. Dehon teve dolorosos lutos familiares. Num acidente
de carruagem perdeu a vida seu tio, Alfredo Dehon. Mas a perda mais dolorosa foi a da mãe, a 19 de Março
de 1883. Estava paralítica desde havia três anos. Tinha recuperado um pouco e preparava-se suavemente
para a morte. Era muito unida a Leão. Quando a ia visitar, três ou quatro vezes por ano, sempre lhe pedia
que lhe falasse da vida interior. Interessava-se pelas suas obras. “Acabou por agregar-se a nós com a
profissão de vítima do Sagrado Coração”.970
Como o P. Dehon estava longe, tinha-a confiado espiritualmente a um seu amigo íntimo, P. Petit,
pároco de Buironfosse. Este escrevia-lhe: “Estou feliz por ser útil a uma alma que vos é tão querida e que
encontro tão sedenta das coisas de Deus”.971 Quando lhe falava, com a devida delicadeza, das provas que o

965
NHV XIV, 185-186. Carta de Mons. Thibaudier ao P. Dehon, em parte em NHV XIV, 186.
966
NHV XIV, 186-187.
967
Carta de Mons. Thibaudier ao P. Dehon de 21.1.1886 (AD, B 21/39; NHV XV, 45).
968
Cf. NQ XXXIV, 181-182: Dezembro de 1912.
969
NQ XXXVII, 69-70: 15.4.1915.
970
NHV XIV, 144.
971
Carta de D. Petit ao P. Dehon de 10.4.1880 (AD, B 21/3v; NHV XIV, 145-146).

193
seu filho devia enfrentar, a senhora Dehon dizia: “Hoje não me vedes chorar... ou se me vêm as lágrimas, é
a alegria interior e a calma da resignação que as fazem nascer”.972
A 11 de Março de 1880, D. Petit escreve ao P. Dehon: “Voltei a ver a vossa mãe; estávamos sós e
conversámos longamente e com crescente edificação... Quando notei que se abria completamente ao
influxo da graça, pensei que chagara o momento favorável para lhe falar do voto de vítima. Expliquei-lhe o
assunto da maneira mais clara que me foi possível. Aceitou com alegria e júbilo caminhar à sombra do
vosso estandarte, que é o do Sagrado Coração. Entreguei-lhe a vossa fórmula. De hoje em diante considera-
se vossa noviça... Deve escrever-vos e pedir-vos licença para fazer o seu voto no dia da festa do Sagrado
Coração...”.973
Na carta de 5 de Janeiro de 1881, D. Petit diz: “Em cada minha visita creio constatar que Nosso
Senhor aperfeiçoa esta bela alma e a purifica para o céu. Eis quantas graças manam ainda do divino
Coração!”.974
“A 19 de Março de 1883, Nosso Senhor chamou a si minha mãe – escreve o P. Dehon nas
Memórias -. A 19 de Março! O lindo dia de S. José, padroeiro da boa morte. Minha mãe tinha tanto amado
e honrado a S. José! Tinha fundado e mantido por trinta anos a Obra de S. José, a associação de caridade
das senhoras de La Capelle. A sua tinha sido uma vida de trabalho, de piedade, de virtude”.975
Com as provas e os sofrimentos não faltavam as consolações.
No mês de Março (1883), o P. Dehon vai a Bois d’Haine (diocese de Tournai-Bélgica) e encontra-
se com Luisa Lateau, uma extática estigmatizada. Confirma-lhe, segundo a sua impressão, que a Obra dos
Oblatos é “verdadeiramente divina”.976 A mesma garantia lhe vem de D. Bosco, a quem o P. Dehon visita
em Paris em Maio (1883).
O encontro teve lugar na casa Sénislhac. Depois do P. Dehon ter falado, D. Bosco disse-lhe em tom
seguro: “A sua Obra é certamente de Deus”. O mesmo juízo foi confirmado ao seu secretário, D. Berto, que
teve ocasião de falar ainda com o P. Dehon, tornando-o assim duplamente feliz. A outro sacerdote que
tinha manifestado ao santo o projecto de fundar um instituto religioso, respondeu imediatamente: “Desista,
desista, o Senhor não quer de você esta obra”.977
Em Junho (1883) o P. Dehon tem a alegria de propor aos bispos e ao clero de França uma cruzada
de orações e de obras reparadoras.
O encontro com Mons. Gay, no verão de 1882, dava os seus primeiros frutos. Desde então tinham
voltado a escrever-se e o P. Dehon tinha recebido um novo convite, para o verão de 1883, para se
encontrarem no castelo de Traforêt: “Meu querido Padre, vinde se tiverdes possibilidade. Tornar-nos-eis
todos felizes e talvez, do nosso encontro, nascerá algum outro bem. Pelo menos teremos a preciosa
consolação de nos entretermos sobre Deus, sobre o Coração de Jesus, sobre a vossa Obra e sobre tudo o
que concerne a santa Igreja”.978
Através de Mons. Gay foi possível ao P. Dehon propor a sua cruzada reparadora aos bispos e
sacerdotes, “para o triunfo da Igreja e a salvação da França e do mundo”.979 Trinta e três bispos
responderam à proposta, enviando a circular de Mons. Gay e do P. Dehon ao seu clero, endereçando o
convite através da “Semaine Religieuse” ou mandando aos seus sacerdotes uma carta pastoral, como fez
Mons. Isoard, bispo de Annecy, sobre a “oração sacerdotal”.
A cruzada teve bom acolhimento por parte do clero, mas não surtiu efeitos duradoiros. “Teria sido
necessário um centro para alimentar o fogo... Infelizmente, éramos muito fracos em S. Quintino.
Pessoalmente estava muito absorvido pelo S. João e a nossa capela da Casa do Sagrado Coração não podia

972
Carta de D. Petit ao P. Dehon de 10.4.1880 (AD, B 21/3v; NHV XIV, 145-146).
973
AD, B 21/3u; NHV XIV, 145-146.
974
AD, B 21/3u; NHV XIV, 148.
975
NHV XIV, 148.
976
NHV XIV, 154.
977
AD, B 50/6; cf. NHV XIV, 154-155; Memorie biografiche di. S. Giovanni Bosco, vol. XIV, cap. V, p. 150. (ed. Não
comercial). Fontes desta informação são as Memórias (NHV), as Recordações (Souvenirs) do P. Dehon (cf. Lettere circolari n.
342) e o “Diário” (NQ XX, 127-128). Estes dados foram fornecidos aos Salesianos pelo P. L. Ceresoli.
978
Carta de Mons. Gay ao P. Dehon (AD; B 21/7a.7; NHV XIV, 161).
979
NHV XIV, 162. Em “Le Règne” o P. Dehon relata a história desta campanha para o Reino do Sagrado Coração e diz que
começou com uma carta de Mons. Gay de Outubro de 1882 a uma parte dos bispos franceses. (cf. RCJ [1892], 213-217).

194
converter-se no centro de uma associação, sendo de uso privado e pouco funcional. O bispo de Soissons
não nos autorizou nunca a ter uma capela pública”.980
A intenção do P. Dehon era promover uma associação sacerdotal reparadora e apostólica, animada
pela sua Congregação. Era uma vida de cruzes e de consolações: mas “era a vida”.981

980
NHV XIV, 162.
981
NHV XIV, 187.

195
CAPÍTULO 15

A vida continua

As Constituições de 1885-1886 – “Para os que amam a Deus...” – O Primeiro Capítulo Geral – O Decreto de Louvor – Homens novos –
Fundações na França e no estrangeiro – Preocupações e angústias – Uma condenação à morte – Situação jurídica da Congregação – A perda de
um grande amigo – Graças de vida.

Depois da “ressurreição”, o P. Dehon considera a sua Congregação como uma humilde e pequena
obra: “Era uma Belém”982, era como “um criança amparada pelas correias por causa das incertezas
quotidianas da sua vida. Antes da supressão, a vontade de Deus parecia manifestar-se milagrosamente;
agora é preciso procurá-la às apalpadelas, perguntando-nos sempre se por acaso nos vamos enganar”.983
O P. Dehon exprime com muita humildade a Mons. Thibaudier que cada vez se sente mais inapto e
incapaz frente ao duplo encargo de director do colégio S. João e de superior da Congregação. Gostaria que
o bispo o eximisse da dupla responsabilidade para poder reparar o seu passado em silêncio e em
esquecimento.984 Porém , segundo o bispo, a vontade de Deus era que o P. Dehon levasse por enquanto a
dupla cruz.985
De vez em quando desperta-se no coração do P. Dehon a saudade dos primeiros tempos da
Congregação, das “revelações” do passado e um certo mal estar pelo modo como se tinham passado as
coisas com o Santo Ofício. Confia-se então lealmente com o seu bispo e no fim pode dar este testemunho
de si mesmo, sobre a sua submissão às decisões da Igreja: “Creio ter obedecido com muita lealdade”.986
Também Mons. Thibaudier, sempre tão comedido, dar-lhe-á este belo testemunho dois anos mais tarde em
1886: “Tende confiança, vós estais agora no caminho querido por Deus. Não vos abandonará se
caminhardes com sabedoria, coragem e perseverança. Nem tudo era de Deus nos primeiros encantamentos
que vos sustentavam; aceitai de bom grado os desgostos fecundos... para não falar senão do S. João,
realizastes não só a obra mais bela, mas também a mais necessária da diocese...”.987
Entretanto, interviera o jesuíta P. Modeste para dar uma importante ajuda ao P. Dehon na revisão
das Constituições. Mons. Thibaudier, quando teve o texto nas mãos, qualificou-o de “um belo e santo
trabalho”, embora fizesse falta algum retoque.988
O P. Modeste, director espiritual do P. Dehon até à sua morte (1.10.1891), tinha tido sempre
confiança na obra do P. Dehon. Em Abril de 1884, logo depois da ressurreição da Congregação do P.
Dehon, tinha escrito ao P. Afonso Rasset, o primeiro sacerdote que se unira ao P. Dehon: “A obra do
Sagrado Coração, regressada à sua primeira inspiração e reduzida às primitivas proporções, seguirá adiante.
Estou plenamente convencido. É demasiado bela e demasiado necessária. Nosso Senhor não a
abandonará”.989
AS CONSTITUIÇÕES DE 1885-1886.
982
NHV XIV, 185.
983
NHV XV, 1.
984
Cf. Carta a Mons. Thibaudier de 10.12.1884, citada em NHV XV, 3-4.
985
Cf. NHV XIV XV, 4
986
NHV XV X, 9.
987
Carta de 21.1.1886 cit. em NHV XV, 45.
988
Carta de 19.3.1885 cit. em NHV XV, 9.
989
AD, B 37/3.

196
As Constituições são o texto fundamental de um Instituto religioso. É aí que se manifesta o carisma,
dom do Espírito ao fundador e aos seus religiosos. Das Constituições aparece com clareza a espiritualidade
de um Instituto.
Sabemos que o P. Dehon escreveu um primeiro texto das Constituições durante o longo retiro de 16
a 31 de Julho de 1877, depois de ter obtido, por escrito, a autorização do seu bispo, Mons. Thibaudier, a
começar o Instituto a 13 de Julho de 1877.990
Este primeiro texto das Constituições, progressivamente elaborado e completado, em 1881, foi
apresentado a Mons. Thibaudier, que o qualificou de “profundo, belo, cheio de autêntico espírito
religioso”, embora manifestando as suas reservas acerca do quarto voto, o de vítima.991
O texto completo das primeiras Constituições de 1881 ficou no segredo do Santo Ofício, porém
conhecemos o seu primeiro e mais importante capítulo sobre o “fim e espírito da Congregação”, capítulo
explicado pelo próprio P. Dehon nas conferências aos seus noviços, em Abril de 1881.992
Comparando os textos das Constituições de 1881 e de 1885, acerca do fim e espírito da
Congregação, apercebemo-nos de que não há diferença substancial.993
Ultrapassa a nossa intenção biográfica o estudo pormenorizado das primeiras Constituições
dehonianas, aprovadas por Mons. Thibaudier a 2 de Agosto de 1885 e de novo a 15 de Setembro de
1886.994
Fazemos só estas duas considerações: As Constituições de 1885, embora contendo as necessárias
prescrições e orientações, aproximam-se muito no seu conteúdo, na inspiração e no estilo a uma “regra de
vida”. Contêm, de facto, também o primeiro núcleo do “Directório espiritual” da Congregação.995
Segunda consideração: Sendo a Congregação do P. Dehon diocesana, o bispo de Soissons detém a
autoridade de Superior Geral e actua mediante um Padre Geral (o P. Dehon) que permanece no cargo
durante seis anos.996 Tudo isto terá as suas consequências, nem sempre “agradáveis”.

“PARA OS QUE AMAM A DEUS...”


Em 1885, Mons. Langénieux, arcebispo de Reims, faz uma viagem a Roma e a 13 de Março escreve
ao P. Dehon: “Não posso deixar Roma sem dizer-vos com que edificação acolheram as informações que
dei sobre o modo como aceitastes a mais dolorosa das provas... O Santo Padre... abençoou-vos
paternalmente, aos vossos ajudantes e ao vosso colégio com os seus alunos e famílias. É-me grato ser assim
o canal de uma graça donde conseguireis nova força para caminhar... Fareis a experiência daquelas
esplêndidas palavras: “Quam bonus Deus his qui recto sunt corde”.997
Para o P. Dehon foi muito preciosa esta palavra de consolação e de alento do Papa. É um traço da
sua fisionomia espiritual: a necessidade de expressões concretas e tangíveis por parte dos superiores, dos
directores espirituais, de acontecimentos sobrenaturais, que lhe dêem segurança sobre o caminho a seguir
para realizar o seu carisma.

990
Cf. NHV XV XII, 166.
991
Carta de Mons. Thibaudier, de 13.10.1881: AD, B 36/3; cit. em NHV XIV, 97-98.
992
Cf. Cahiers Falleur V, 81-91. Do capítulo 1º das Constituições de 1881 temos duas redacções substancialmente idênticas,
chamadas texto A e texto B, cf. StD 10, Apêndice II, pp. 225-245.
993
P- M. Denis apresenta os textos 1881-1885 e estuda-os comparando-os: cf. Debis, Le projet du P. Dehon, pp. 124-135.
994
Estas Constituições estão editadas em “Studia Dehoniana” 2. Pode-se ler um estudo detalhado em Denis, Le projet du P.
Dehon, pp. 124-155.
995
Cf. StD 2, p. 45ss. Quanto à “fidelidade dinâmica” da actual “Regra de vida” dehoniana (Constituições e Directório Geral) às
primitivas Constituições completas de 1885, compare-se a presente biografia nas pp. (505ss.).
996
Cf. StD 3, nn. 22-23.
997
Carta de Mons. Langénieux, de 13.3.1885: AD, B 16/2 cit em NHV XV, 10-11.

197
Neste mesmo ano, 1885, o P. Dehon prega com Mathieu a Quaresma na basílica de S. Quintino. Ao
P. Dehon cabe as quartas e as sextas-feiras, a Mathieu o Domingo. Os oito discursos do P. Dehon são uma
vasta apologia da Igreja e termina sempre com o dever claro e doce de viver a vida cristã, de acreditar, de
esperar, de amar. Faz também pregações práticas sobre a Virgem Maria, sobre a penitência, sobre a
eucaristia e sobre a paixão. O auditório é numeroso, muitos homens, e levanta um certo entusiasmo.
Largos resumos destas pregações são publicados na “Semaine Religieuse” enquanto os discursos do
arcipreste Mathieu são apenas mencionados.998 Começam assim as primeiras desavenças com o arcipreste
de S. Quintino.
Em Janeiro de 1886, o P. Dehon volta a escrever o seu Diário (Notes Quotidiennes) e continuará a
fazê-lo até Julho de 1925, um mês antes da sua morte. Assim poderemos colher ao vivo os acontecimentos
da vida do P. Dehon e não, de modo reflexo, através da “re-leitura” das Memórias (Notes sur l’Histoire da
ma vie) que continuam até 6 de Setembro de 1888.
A 16 de Fevereiro de 1886, escreve no Diário: “Sacerdote do Sagrado Coração, sacerdote vítima,
verdadeiro sacerdote é tudo a mesma coisa. Isso é o que devemos ser”.999
A 18 de Março de 1886, escreve: “A tibieza entre nós é um obstáculo ao desenvolvimento da
1000
Obra”. E a 28 do mesmo mês: “Um homem sobretudo (em nota: o P. Captier) foi o instrumento do
demónio para afastar-nos da verdadeira reparação mediante a cruz”.1001
Em 1886 imprime-se o primeiro “Thesaurus precum”. Já estava em uso uma edição litográfica de
orações, intitulada: “Nos prières des premières années”.

O PRIMEIRO CAPÍTULO GERAL

A 15 de Setembro de 1886 tem lugar no Colégio S. João o primeiro Capítulo Geral da Congregação.
Realiza-se muito simplesmente em oito sessões, sobre temas concretos que se referem ao
andamento interno do Instituto, por exemplo o problema dos estudos para os religiosos clérigos e para os
aspirantes ou “apostolinhos” de Fayet.
Insiste-se sobre a prestação de contas mensal ao superior, servindo-se também de módulos, mas
observa-se com inteligência que estes “meios administrativos não servirão para grande coisa sem o amor de
Deus e a piedade”. Deseja-se ardentemente que “a caridade recíproca seja uma das características
distintivas da Congregação”.
No primeiro dia do Capítulo, a 15 de Setembro, é reeleito, como Padre Geral, o P. Dehon; Mons.
Thibaudier louva-lhe “a humildade, a caridade e a fortaleza” demonstradas depois da fundação do Instituto.
É nesta ocasião que o bispo aprova o uso do escapulário do Sagrado Coração, o cordão de lã negra e, por
um ano, o uso de um grande manto branco, adornado “com um coração vermelho para tornar mais solene a
adoração eucarística”.1002
A 17 de Setembro (1886), o P. Dehon, com outros seis religiosos, emite os votos perpétuos nas
mãos do arcipreste de S. Quintino, o reverendo Mathieu, Vigário geral e delegado do Bispo de Soissons.
“Um grande dia para a Obra, anota o P. Dehon”.1003
Mons. Thibaudier, desde o mês de Abril, tinha já dado o seu consentimento para a emissão dos
votos perpétuos. “Perseguia-me o pensamento da brevidade da vida – escreve o P. Dehon no Diário -.

998
NHV XV, 13-15.
999
NQ III, 5.
1000
NQ III, 13.
1001
NQ III, 15.
1002
Cf. Denis, Le projet du P. Dehon, 156-159.
1003
NQ III, 55: 17.9.1886: cf. NHV XV, 53. Os seis religiosos que fizeram os votos perpétuos com o P. Dehon são P. A. Rasset,
P. J. Paris, P. S. Falleur, P. M. Legrand, P. F. X. Lamour. P. J. Herr (cf. RP. 1-2).

198
Oxalá que possa deixar na terra uma obra de sacerdotes reparadores e de vítimas do Sagrado Coração!
Teria reparado o meu passado e dado a Nosso Senhor uma grande consolação”.1004
Como preparação para os votos perpétuos, o P. Dehon começa os exercícios espirituais a 22 de
Agosto de 1886. No seu Diário escreve: “Nosso Senhor concede-me hoje uma união sensível bastante
persistente. Sinto-me impelido a dar-lhe alegria, a fazer dele o meu único amigo, procurando agradar-lhe
em tudo”.1005
E eis os seus propósitos: “A minha resolução é a de viver e morrer como uma verdadeira vítima do
Coração de Jesus. Para isto, permanecerei no abandono completo de todo o meu ser ao Coração de Cristo.
Terei nele uma confiança filial, entregando-me em tudo à sua vontade e ao seu beneplácito. Tudo farei por
amor, em espírito de reparação...”.1006
O ressuscitado Instituto mostra uma vitalidade notável. Basta ler os relatórios à Santa Sé de 1887 a
1897. Em 1887 as casas são 8, em quatro dioceses, com 87 membros, entre eles 20 noviços e 4 postulantes.
Em 1891 as casas são 12 em sete dioceses, com 110 membros. Em 1897 as casas são 14 com 195
membros, dos quais 62 são sacerdotes.

O DECRETO DE LOUVOR

Após o primeiro Capítulo Geral de Setembro de 1886 e as primeiras emissões de votos perpétuos
que, ao menos em parte, tinham consolidado a Obra, embora deixando ainda um pouco de inquietação, o P.
Dehon desejava ardentemente a aprovação da Santa Sé. Daria esperança e força aos seus religiosos. Em
Maio de 1887, escreve ao P. Eschbach, superior do seminário francês de Roma e muito estimado nos
ambientes da Cúria Romana: “Desejamos ir mais além da diocese”, ou seja, superar a situação de
Congregação diocesana. Os religiosos do P. Dehon provêm de 25 dioceses diferentes. O próprio fim da
Obra reclama uma difusão mais universal.1007
A 8 de Maio de 1887, o P. Eschbach responde, de Roma, que está totalmente de acordo com o P.
Dehon: “A experiência demonstrou muitas vezes que as Congregações de sacerdotes correm o risco de
vegetar, quando são exclusivamente diocesanas”.1008 Faz-lhe saber quais os documentos que tem de enviar
a Roma e o procedimento que tem de seguir, difícil para o P. Dehon por causa da sentença do Santo Ofício
de 1883. Faz falta o consentimento deste. Felizmente, o Cardeal Langénieux, arcebispo de Reims, apoia o
pedido do P. Dehon.
A 27 de Fevereiro de 1888, o P. Daum, confrade do P. Eschbach e consultor da Congregação dos
bispos e religiosos, anuncia ao P. Dehon a concessão do Decreto de Louvor: “Diligentibus Deum omnia
cooperantur in bonum”.1009
“Era um enorme resultado para a Obra. As cadeias eram retiradas das mãos. Nós saíamos do Santo
Ofício e recuperávamos a nossa inteira liberdade”. “O “Decretum Laudis” de 25 de Fevereiro de 1888
libertava a jovem Congregação da estreita tutela do Bispo de Soissons. Dificilmente se pode imaginar a

1004
NQ III, 17: 8.4.1886.
1005
NQ III, 38: 22.8.1886.
1006
NQ III, 27.8.1886.
1007
Cf. Carta do P. Dehon ao P. Eschbach de Maio de 1887 (AD, B 36/2). Numa carta de 26 de Maio de 1887 ao P. Eschbach, o
P. Dehon considera a aprovação de Roma como uma questão de vida ou de morte para o seu Instituto: “É para nós impossível
ficar como uma Congregação diocesana numa diocese tão pobre de vocações. Se se decidisse isso em Roma, equivaleria a uma
dissolução, com a ruína das nossas obras, já que não ficaria nem um só religioso. Ninguém se sentiria atraído para tentar uma
empresa impossível. Por outro lado, a Providência já se pronunciou com clareza. Metade dos membros são extra-diocesanos.
Pertencem a 25 dioceses diferentes” (AD, B 35/2).
1008
Carta do P. Eschbach ao P. Dehon de 8 de Maio de 1887 (AD, B 21/3u).
1009
Carta do P. Baum ao P. Dehon de 27.2.1888 (AD, B 21/3u).

199
grande alegria e a confiança que suscitou este dom da Santa Sé. “A jovem Congregação sentiu-se
renascer”.1010
O “Decretum Laudis” era acompanhado de 21 “animadversiones”, que se referiam a várias
mudanças que se tinham de introduzir nas Constituições. As “advertências” da Santa Sé determinavam a
impossibilidade do Bispo de Soissons ser o Superior Geral de uma Congregação que tinha casas em várias
dioceses. Isto desagradou muito a Mons. Thibaudier.

HOMENS NOVOS

Depois do renascimento da Congregação em Março de 1884, a Providência envia ao P. Dehon


novas e numerosas vocações. São homens espiritualmente ricos e profundos.
Recordamos, entre todos, ao padres André Prévot (1840-1913) e Barnabé Charcosset (1848-1912).
São já sacerdotes. Ambos provinham do círculo de Madre Verónica, fundadora das Irmãs-Vítimas de
Avenières. O seu ardente desejo tinha sido fundar uma Congregação de sacerdotes-vítimas. Ora bem, o
Instituto do P. Dehon realizava este seu desejo.1011
Leão Prévot (em religião André) entrou na Congregação do P. Dehon a 21 de Maio de 1885. Depois
de apenas quatro meses de noviciado fez a profissão religiosa a 22 de Setembro de 1885. Bem cedo tornou-
se o “santo” Mestre de noviços da Congregação. Foi também Conselheiro Geral e Superior Provincial. À
sua morte (26 de Novembro de 1913) o P. Dehon escreve assim no seu Diário: “Só há uma palavra sobre
ele: é um santo. Praticava todos os dias heroicamente os conselhos de perfeição. Vivia de fé, de sacrifícios,
de imolação. Não fazia nenhuma concessão à natureza... Foi-me oferecido pela Providência para formar os
meus religiosos. Foi Mestre de noviços durante 23 anos e os que o são agora continuam nas suas mesmas
tradições”.1012
O P. Dehon continua a recordar: “As suas virtudes foram claramente heróicas. O seu amor à
pobreza foi lendário, a sua delicada castidade, a sua total obediência. Que caridade tinha com todos! O seu
invariável sorriso manifestava a paz da sua alma. Escreveu o livro: Amor, paz e alegria. Para todos nós foi
o modelo do sacerdote-vítima do Sagrado Coração”.1013 A sua causa de beatificação está introduzida em
Roma.
O P. Barnabé Charcosset entrou no Instituto a 25 de Dezembro de 1884. Propenso para o
apostolado activo sofreu muito durante o noviciado. Parecia-lhe ser “como um pássaro numa gaiola
pequena e escura..; enquanto lhe tinham prometido espaço e luz...”.1014
Inclinava-se para grandes rigores corporais; mas o P. Dehon fez-lhe descobrir o caminho do amor,
da mortificação interior e do total abandono à vontade de Deus. Deixamos nas mãos de Deus o cabo das
disciplinas. Se quiser de nós sacrifícios extraordinários, será Ele a no-los enviar. Esta foi a grande lição que
o P. Barnabé aprendeu no noviciado: uma espiritualidade bem definida nestas suas palavras: “Gozar ou não
gozar, ver ou não ver, sentir ou não sentir, ter calor ou frio, segundo o que Jesus quiser ou não quiser: esta é
a vida de uma verdadeira vítima”. 1015 Uma vez feita a profissão (26.12.1885), foi pregador de missões
populares durante dois anos. Era um período de muita agitação social, de violentas greves, fomentadas
pelos socialistas, muito activos numa cidade industrial como era S. Quintino. Foi neste tempo que o P.
Charcosset e o P. Rasset decidiram fazer todas as sextas-feiras um sermão de simples presença no
submundo vermelho-escarlate da cidade. Passavam vestidos de batina pelas estradas. No princípio foram
1010
L. Philippe scj, Lettere circolari, n. 36, p. 222.
1011
A 3 de Dezembro de 1883 o P. Galley assim se exprimia numa carta ao P. Dehon: “Escrevi à Madre Priora de Villeneuve,
instando-a a renunciar à continuação dos projectos de Madre Verónica, visto que já se realizam em S. Quintino”. Cf. M. Denis
scj. Le p. Dehon (1871-1885), 49.
1012
NQ XXXV, 62-63: Novembro de 1913).
1013
NQ XXXV, 175: 28.11.1914.
1014
“Le Règne du Sacré Coeur en Belgique et au Congo” (1913), 45.
1015
“Le Régne du Sacré Coeur”, 60.

200
recebidos com gritos e insultos; mas os dois originais pregadores silenciosos não desanimaram. Tinham um
aspecto tão bom, tão humilde, tão débil, que ganharam a simpatia das pessoas que acabaram por
cumprimentá-los com respeito. Foi uma missão “sui generis”, que deu óptimos resultados.
Em 1887, o P. Barnabé chegou a ser capelão das fábricas de Leão Harmel em Val-des-Bois. Foi um
verdadeiro pai espiritual para os operários e suas famílias.
Morreu em Niza a 29 de Dezembro de 1912, depois de ter desempenhado vários cargos de
responsabilidade na Congregação.

FUNDAÇÕES EM FRANÇA E NO ESTRANGEIRO

Como já sabemos, a 21 de Novembro de 1882, o P. Dehon tinha aberto um Seminário Menor para a
sua Congregação em Fayet, uma aldeia que distava poucos quilómetros de S. Quintino. Chamou-a “Escola
Apostólica S. Clemente”, tendo transladado para ela as relíquias do santo mártir romano que se
encontravam no Patronato S. José de S. Quintino. O P. Captier chamou-a “Escola Angélica”. As vocações
não faltaram.
Eram tempos difíceis para as Congregações religiosas por causa dos governos anti-clericais. O
Instituto do P. Dehon, como já dissemos, salvou-se dos decretos contra as Congregações religiosas de
Março de 1880, porque tão recentemente fundado era quase desconhecido. Todavia, para fazer frente a
qualquer eventualidade, o P. Dehon abriu em Fevereiro de 1883 uma casa em Watersleyde-Sittard
(Holanda) para que servisse de refúgio para os seus religiosos em caso de expulsão. Entretanto organizou-
se ali o noviciado e uma escola apostólica.
Em Novembro de 1884, fundou uma casa de estudos em Lille para a filosofia e a teologia,
aproveitando da Universidade católica, fundada em 1875 por E. Hautcoeur.
A organização básica da Congregação podia considerar-se fundamentalmente completa.
A intenção do P. Dehon, desde o princípio, era dar à sua Congregação uma dimensão internacional,
convencido de que se ficasse limitada à diocese de Soissons cresceria raquítica e talvez acabasse por ficar
sufocada.
O maior obstáculo a esta expansão era o bispo de Soissons, Mons. Thibaudier. Em 1882, o P.
Dehon tenta fundar uma casa em Inglaterra. Para lá envia por dois meses o P. Rasset. Teve que renunciar
ao projecto por não ser do agrado de Mons. Thibaudier.1016Também a fundação de Sittard, embora mais que
motivada, não era bem aceite por Mons. Thibaudier. Para ele era um “problema grave que tinha que ser
bem estudado”. O P. Dehon estava sempre disposto a obedecer.
O mesmo sucedia em relação ao desejo de ir para as missões longínquas: “questão complexa –
respondia ainda em 1885 – não se deve precipitar nada”.1017 Mons. Thibaudier era, também pelo seu
carácter tímido, cauteloso e contemporizador, a antítese do P. Dehon, rico em iniciativas e decidido na sua
realização.
Entretanto os religiosos do P. Dehon estavam empenhados nas obras sociais de S. Quintino e na
pregação das missões populares. O P. Dehon, para além do apostolado social, ocupava-se da difusão do
culto ao Sagrado Coração de Jesus e da reparação.
Em Junho de 1887, o P. Dehon tinha aceitado a assistência religiosa das fábricas de Val-des-Bois,
enviando para lá o P. Charcosset e outros dois religiosos.

1016
Cf. Carta de Mons. Thibaudier ao P. Dehon de 10.4.1882, em NHV XIV, 104-105.
1017
Cf. Carta de Mons. Thibaufier ao P. Dehon de 21.12.1885, em NHV XV, 44. Da correspondência entre Mons. Thibaudier e
o P. Dehon aparece com clareza as suas diferentes atitudes. O P. Dehon faz propostas, apresenta iniciativas, Mons. Thibaudier
não desaprova, faz tempo. O P. Dehon carrega no acelerador, Mons. Thibaudier tem sempre o pé no travão.

201
No mesmo ano (1887), Mons. Thibaudier açambarca cada vez mais os religiosos do P. Dehon. Pede
alguns para a paróquia de Santo Elísio em S. Quintino e são-lhe concedidos. Quer que se abra um
noviciado na diocese de Soissons, primeiro em Beautroux (1887) e depois em Fourdrain (1888). O P.
Rasset é nomeado Mestre de noviços. Solicita o P. Grison para lhe confiar uma paróquia e o P. Dehon
consente.
Entretanto apresentou-se a possibilidade de mandar Padres para o Equador, também para um
empenho missionário entre os Índios dos Andes. Por mediação do Barão Aleixo de Sarachaga, um nobre
espanhol muito piedoso, que residia em Paray-le-Monial, o P. Matovelle, fundador dos Oblatos do divino
Amor, e o P. Dehon entraram em contacto.1018 Esta circunstância iniciou o processo de fusão dos dois
Institutos, de que o P. Dehon seria o Superior Geral. Na realidade a fusão não teve lugar e a missão do
Equador durou pouco tempo.
Como se vê, os compromissos da pequena Congregação do P. Dehon cresciam de dia para dia sem
o correspondente aumento de pessoal. Por um carta do P. Dehon de Maio de 1887 ao P. Eschbach, superior
do seminário francês de Roma, sabemos que os seus religiosos professos são 60, dos quais 25 são
sacerdotes.1019
Todos estavam sobrecarregados de trabalho. No mês de Dezembro de 1887, os nove escolásticos –
escreve o P. Rasset -, embora preparando-se para as ordens, estão ocupados em várias tarefas, o que não
favorece a sua formação.1020
Além disso o P. Dehon tinha enormes dificuldades financeiras. Remediou-as vendendo a seu irmão
Henrique a melhor das suas propriedades, para pagar, ao menos em parte, as dívidas da Congregação.
A 12 de Junho de 1889, funda-se uma nova escola apostólica em Clairefontaine, na fronteira entre o
Luxemburgo e a Bélgica.
Em Janeiro de 1892, o P. Dehon assume o serviço da igreja de Santa Maria do Sufrágio na Via Júlia
de Roma. Um certo número de escolásticos poderia assim frequentar as universidade romanas. Após um
ano apenas, foi deixado este serviço da igreja por várias dificuldades supervenientes, mas o P. Dehon
conservou para o seu Instituto uma residência em Roma, como procura junto da Santa Sé, com alguns
escolásticos. Foi escolhido um apartamento na Via Monte Tarpeo.
Em 1893, o P. Dehon envia alguns Padres como capelães para as fábricas de Camaragibe, no
Brasil do Norte (Pernambuco).
Em 1895, é aberta uma residência na cidade de Luxemburgo. Alojaria os escolásticos alemães,
matriculados no Seminário Maior diocesano, cujo reitor, D. Hengsch, é um grande amigo do P. Dehon.
Em 1896, os Sacerdotes do Coração de Jesus estabelecem-se em Bruxelas, onde lhes é confiada a
reitoria de uma capela.
1897 é o ano da grande missão no Congo Belga (actual Zaire).

PREOCUPAÇÕES E ANGÚSTIAS

1018
Cf. G. Grison scj. “Souvenirs de l’Ecuateur”, ed. It., pp-1-2: apresenta erradamente “Os Fastos eucarísticos” como uma
revista, enquanto era uma associação. O Barão Aleixo Sarachaga tinha fundado em 1882, em Paray-le-Monial a ”Associação do
Reino social de Jesus Cristo”. A 1 de Janeiro de 1883 iniciara a publicação da revista: “O Reino de Jesus Cristo”. Por iniciativa
do jesuíta P. Sanna Solaro a “Associação do Reino social de Jesus Cristo” torna-se a “Associação dos Fastos eucarísticos”, cujos
trabalhos são aprovados por Leão XIII com um breve de 10 de Abril de 1888. Cf. ª Hamon sj, Histoire de la dévotion au Sacré-
Coeur, V Royal triomphe, p. 275s.
1019
AD, B 36/2.
1020
Cf. Un prêtre du Sacré-Coeur. Vie édifiante du R. P. Rasset..., 226.

202
Depois do “Decreto de Louvor” de 25 de Fevereiro de 1888, tudo parecia proceder de vento em
poupa ... mas, pelo contrário, preparavam-se grandes provações que o P. Dehon qualificará de mais
dolorosas que o “Consumatum est”.1021
Os anos que se seguiram ao segundo Capítulo Geral de Agosto de 1888 foram para o P. Dehon anos
de angústias e de lutas, para ele pessoalmente e para a sobrevivência do Instituto.
O terceiro Capítulo Geral de Fourdrain (6-7 de Setembro de 1893) e o quarto de S. Quintino (31 de
Agosto-1 de Setembro de 1896) são provas evidentes de um grande descontentamento no seio da
Congregação. O próprio Fundador é contestado. Sobre o Instituto pesa primeiro a ameaça da fusão com
outro Instituto e depois a da divisão.
Uma verdadeira tempestade de críticas, de acusações, de calúnias se abatem sobre o P. Dehon e a
sua Obra. Fora, inimigos; dentro da Congregação, falsos irmãos. No Diário lemos algumas anotações
graves sobre os anos imediatamente anteriores: “O demónio não dorme... aproveita-se do desânimo e da
ilusão”;1022 “Alguns dos que me rodeiam deixaram-se seduzir pelo mau espírito. Querem ser instrumentos
do demónio e podem fazer um grande mal...”;1023 “Será que alguns não são mais que ramos secos no
Instituto? Onde estão o “Ecce Venio” e o “Sint unum” da nossa vocação?”. 1024 “O Senhor faz-me
compreender o estado desolador da sua Obra, onde reina tão pouco espírito de amor e de imolação. Se a
Obra não lhe der o que Ele espera dela, destruí-la-á”.1025 Numa carta à Chère Mère de 6 de Outubro de
1888 escreve: “É um trabalho hercúleo fazer que reine o espírito religioso na Obra”.1026
O P. Dehon recorda com saudade os primeiro anos (!878-1883): Éramos poucos; porém, quanto
fervor!.
Em 1889, Mons. Thibaudier é eleito arcebispo de Cambrai, mas continua a administrar também a
diocese de Soissons durante quase mais um ano, até a tomada de posse do seu sucessor, Mons. João
Baptista Duval (16.2.1890). Que Mons. Thibaudier tivesse um grande estima e amor pelo P. Dehon não se
pode pôr em dúvida, pelos muitos documentos que o demonstram.
Todavia, há um ambiente eclesiástico que condiciona o bispo de Soissons e que é constituído por
uma parte do clero mais importante da diocese. Aí estão difundidos o ciúme e a inveja em relação ao P.
Dehon. Mons. Thibaudier “sabia que nos invejavam”, escreve o P. Dehon nas Memórias.1027
Murmuravam contra o P. Dehon pelo tempo excessivo que dedicava à sua Congregação e às Servas,
descuidando o colégio S. João. Murmuravam também de Mons. Thibaudier porque o seu coração e a sua
confiança estavam em S. Quintino. As críticas contra o P. Dehon nos meios eclesiásticos são tão insistentes
que influenciam o espírito do bispo, fazendo-o titubear, ele que por temperamento já é indeciso e levado a
contemporizar, e tendo dificuldade em tomar posições claras e decididas.
A oposição contra o P. Dehon por parte de alguns do “alto clero” diocesano embaraça a Mons.
Thibaudier, torna-o tímido, impede-o de defender abertamente o P. Dehon, mesmo nas iniciativas tomadas
de comum acordo. Quando o clero de Laon acusa injustamente o P. Dehon de ter sido a causa do
encerramento do colégio da sua cidade, abrindo o S. João em S. Quintino, Mons. Thibaudier não toma
posição em sua defesa.
Quando da primeira profissão do P. Dehon (28.6.1878), Mons. Thibaudier está em S. Quintino; mas
não preside à cerimónia, delega no arcipreste Mathieu. Idêntico comportamento teve na profissão perpétua
do P. Dehon e dos primeiros Padres (17.9.1886); entretanto vem expressamente a S. Quintino para a
profissão das Servas ou apenas para a sua tomada de hábito. Porquê?

1021
NQ IV, 86v: 1-15 de Junho de 1889.
1022
NQ IV, 4v: 2.11.1887.
1023
NQ IV, 6r: 5.12.1887.
1024
NQ IV, 11r: 27.12.1887.
1025
NQ IV, 12r: 1.1.1888.
1026
AD, B 19/1.
1027
NHV XIII, 129.

203
Na campanha de calúnias que assola o P. Dehon por ocasião da morte das quatro jovens Servas
(1879-1880), Mons. Thibaudier faz só um “apelo à prudência”; não toma a defesa de um seu sacerdote
caluniado. Esta situação agravar-se-á nos últimos anos da vida de Mons. Thibaudier, depois de o P. Dehon
ter obtido de Roma o Decreto de Louvor (25.2.1888).
Desde o ano de 1885, o bispo de Soissons começa a sofrer de uma paralisia nervosa que se agravará
sendo arcebispo de Cambrai até levá-lo ao túmulo a 9 de Janeiro de 1892.
Entretanto, sobrevêm os primeiros contrastes entre o P. Dehon e o arcipreste de S. Quintino, mons.
Mathieu. Em 1885 o P. Dehon, como já mencionámos, tinha recebido do próprio arcipreste o convite para
pregar com ele a Quaresma na basílica, em dias diferentes. O P. Dehon, como pregador, atrai mais que o
arcipreste, e mais, os ouvintes propõem-se imprimir, às próprias custas, os sermões do P. Dehon. Pedem a
licença ao bispo. Este deixa a decisão para mons. Mathieu, que julga inoportuna a iniciativa. É claro: ele
ficaria muito na sombra.1028
D. Mathieu era certamente um sacerdote de valor. Em S. Quintino, onde passou os seus 48 anos de
ministério sacerdotal, era “rei e profeta”. Cioso das sua prerrogativas, ele devia ser o centro de tudo e
ninguém devia fazer-lhe sombra. O P. Dehon, que tão bem o conhecia, fez de tudo para lhe conseguir de
Roma o título de Proto-notário Apostólico e assim Mathieu se tornou Monsenhor (Abril de 1887).
Precisamente nesse ano faleceram os dois Vigários Gerais da diocese de Soissons: Guyart e
Vincent. Mons.Thibaudier pensa no P. Dehon; mas depois, para não o afastar da sua Obra, orienta-se para o
cónego Mignot e o cónego Cardon, que nunca serão benévolos com o P. Dehon.1029
Mons. Thibaudier é transferido, como já dissemos, para Cambrai, onde faz a sua entrada solene a 25
de Junho de 1889; Todavia continua também administrador apostólico da diocese de Soissons e governa-a
através dos dois Vigários Gerais, Mignot e Cardon, até que o seu sucessor, Mons. J. B. Duval, tome posse
da diocese a 16 de Fevereiro de 1890.
Os adversários do P. Dehon queriam, não só afastá-lo do S. João, dando crédito, como veremos, a
verdadeiras calúnias que atingiam o Fundador na sua moralidade, mas também suprimir a sua
Congregação, que tinha a pretensão de reparar os pecados dos sacerdotes, com grave escândalo dos bons.
Enquanto Mons. Thibaudier esteve em Soissons, os seus intentos não prevaleceram; mas agora que
estava em Cambrai, bastante preocupado com o governo daquela vastíssima diocese, e também debilitado
pela sua enfermidade nervosa, lograram impor as suas drásticas soluções. Não esqueçamos que Mons.
Thibaudier era um tímido e as reacções dos tímidos costumam ser violentas.
O P. Dehon reconhece que no S. João nem tudo é perfeito. Há assistentes e professores que se
comportam mal. Mal conhece factos desagradáveis toma as medidas oportunas, até despedindo os indignos.
Em relação ao Instituto não tinha havido, como acontece sempre nos começos, uma rigorosa selecção do
pessoal. Havia pois bons e menos bons. A expansão tinha sido muito rápida, com uma excessiva dispersão
dos religiosos e uma certa deficiência no campo formativo e escolar. Além disso acresciam dificuldades em
campo económico.
UMA CONDENAÇÃO À MORTE

Nos meses de Agosto e Setembro de 1889 rebenta a tempestade. Mons. Thibaudier, escreve o P.
Dehon no seu Diário, julgando de longe e baseando-se nas referências que recebe, “condena-nos à morte.
Eu tenho de deixar o S. João. A Obra deve fundir-se com qualquer outra Congregação mais antiga, como
os Padres do Espírito Santo ou os Missionários do Sagrado Coração de Issoudun. Depois das primeiras
emoções, pronuncio o meu “fiat”.1030
1028
“Tudo isto seria incómodo (un peu disgracieux) para ele que tinha pregado aos domingos. Teria ficado na sombra...” escreve
o P. Dehon nas Memórias (NHV XV, 15). É evidente a susceptibilidade do arcipreste de S. Quintino. Gostava do P. Dehon...mas
ele não devia deixá-lo na sombra.
1029
Cf. Note e studi, n. 13, p. 552.
1030
NQ IV, 95v: 29 de Agosto-7 de Setembro de 1889.

204
“Todos os dias chegam de Cambrai notícias de morte. Aceito com amor o martírio que me
purifica”.1031 A intenção de Mons. Thibaudier era de encontrar outra direcção para o colégio S. João, a obra
da diocese que mais lhe era querida, confiando-a a uma Congregação ou a um director mais experientes.
Certamente muitos religiosos do P. Dehon não aceitariam a fusão com outro Instituto e passariam
para o clero diocesano. O seu sucessor, Mons. Duval, ao entrar na diocese, encontraria resolvido um
problema difícil.
O P. Dehon, através de uma carta que comove pela simplicidade e serena humildade com que está
redigida, solicita a fusão com os Sacerdotes do Sagrado Coração de Bétharram.1032A sua resposta de 22 de
Setembro (1889) é amavelmente negativa. Mons. Thibaudier continua a insistir com firmeza: “É a
crucificação. De Cambrai chega uma ordem de marcha. É a ruína de tudo. Disponho-me a carregar com
alegria esta suprema cruz. Obrigado, meu Deus, pela graça tão grande que me ofereces de sofrer contigo e
por ti. Esta ordem ultrapassa todas as medidas. É tão implacável como dura na sua forma. Porém isso fá-la
preciosa. Obrigado, outra vez, ó meu Jesus”.1033
No dia 27 de Setembro seguinte, o P. Dehon escreve uma carta ao Superior Geral dos Padres do
Espírito Santo em que, com mais pormenores, revela as preferências de Mons. Thibaudier pela sua
Congregação, porque têm experiência de colégios e poderiam fazer crescer o S. João. Acrescenta que o
pessoal e também os seus religiosos (como resulta de uma segunda carta de 3 de Outubro) não sabem de
nada. E quanto a ele, fará a vontade de Deus: “Acreditei que fazia a vontade de Deus ao fundar esta Obra e
estou disposto a destruí-la se Nosso Senhor mo pedir”.1034
Estava a sofrer esta agonia de morte quase sozinho. Tinha-se confiado ao seu director espiritual, o
P. A. Modeste, e à Chère Mère, como resulta da correspondência desta com o P. Dehon (Agosto-Setembro
de 1889).1035
O P. Rasset, Assistente Geral nada sabe. Escreve a sua irmã freira a 6 de Novembro de 1889, que o
P. Dehon aparenta o aspecto de uma pessoa muito provada.1036
A carta de resposta dos Padres do Espírito Santo de 1 de Outubro de 1889 é dilatória. Uma fusão de
Congregações provoca problemas complexos para ambas as partes. Entretanto, deseja-se conhecer melhor a
consistência da Congregação do P. Dehon: o número de casas, o número de religiosos, a sua disposição
para fazer um ano de noviciado. É necessário proceder gradualmente. É impossível receber o S. João
dentro do ano.
O P. Dehon responde a 3 de Outubro de 1889, comunicando os dados pedidos. A Congregação
conta com uma centena de religiosos, dos quais trinta são sacerdotes. Ninguém está ao corrente da tentativa
de fusão. “Aceitá-la-ão? – pergunta-se angustiado o P. Dehon na carta -. A vocação é uma realidade muito
delicada e não tolera nenhuma imposição. Confesso-vos que temo um desalento geral quando falar de
alterar a Obra”.1037 A resposta de 22 de Novembro de 1889 é ainda dilatória, dada a ausência do Superior
Geral dos Padres do Espírito Santo e as graves dificuldades que implica a fusão de dois Institutos. Não se
fez nada.

SITUAÇÃO JURÍDICA DA CONGREGAÇÃO

Nós ficamos estupefactos e espantados perante o comportamento de Mons. Thibaudier e da cúria de


Soissons relativamente ao P. Dehon e à sua Congregação.
1031
NQ IV, 96r: 8-14 de Setembro de 1889.
1032
Carta de 19.9.1889 ao P. Etchécopar (AD, B 19/11), cf. Denis, Le projet du Père Dehon, 166-167.
1033
NQ IV, 96v-97r: 22 de Setembro de 1889.
1034
AD, B 19/10a.
1035
Cf. AD, B 18/3.
1036
Cf. Un pr^tre du Sacré Coeur. Vie édifiante du R.P. Rasset.
1037
AD, B 19/10.

205
Depois do Decreto de Louvor (25.2.1888) o Instituto do P. Dehon era de direito pontifício ou
continuava de direito diocesano?
Examinados todos os dados da situação, parece-nos ter de concluir que a Congregação do P. Dehon,
depois do Decreto de Louvor, tinha-se libertado da rígida tutela do bispo de Soissons; porém a “Semaine
Religieuse de Soissons et Laon”, o boletim semanal da diocese, apresenta ordinariamente o P. Dehon como
cónego honorário da catedral de Soissons e os seus religiosos como sacerdotes e missionários diocesanos,
mesmo se provêm de outras dioceses.
Como historiador, não como perito em Direito Canónico, sublinho a convicção dos religiosos
dehonianos de então: com o Decreto de Louvor, a Congregação dependia, não já do bispo de Soissons, mas
de Roma.
Em 1920, o P. Dehon publica a biografia do P. Afonso Rasset, o primeiro religioso da sua
Congregação e seu fiel Assistente Geral.
Nela, o P. Dehon insere uma carta do P. Rasset à sua irmã, Ir. Domingas do Santo Rosário,
missionária na ilha de Haiti, em que entre outras coisas diz: “Nós deixamos de ser Congregação diocesana
e passamos para a jurisdição da Congregação dos Bispos e Religiosos”.1038
A afirmação do P. Rasset é confirmada indirectamente pelo P. Dehon, autor da biografia e grande
perito em Direito Canónico e Civil como doutor que era em ambos.
É porém um dado seguro que a legislação canónica do tempo não era de facto nada clara. Sê-lo-á
somente com Leão XIII em 1900-1901. Além disso é também certo que os bispos de Soissons, tanto Mons.
Thibaudier como Mons. Duval, continuam a considerar o Instituto do P. Dehon como uma Congregação
diocesana.

A PERDA DE UM GRANDE AMIGO

No segundo Capítulo Geral, a 16 e a 24 de Agosto de 1888, o P. Dehon tinha sido eleito Superior
Geral vitalício e tinha presidido à cerimónia dos votos perpétuos.1039
Mons. Mathieu, que sempre tinha sido delegado pelo bispo de Soissons à profissão dos religiosos
do P. Dehon, sentiu-se ofendido e injustamente excluído.
Antes de continuar a nossa história interessa-nos clarificar a verdadeira atitude de Mathieu para com
o P. Dehon e a sua Congregação.
A perda da amizade de Mathieu, o omnipotente arcipreste de S. Quintino, que até 1885 tinha
vigorosamente defendido e protegido o P. Dehon como um seu pupilo, aumenta a fielira dos adversários do
P. Dehon.
Era uma série de coisas, umas vezes de mal entendidos, outras de inevitáveis situações que
aborreciam e contrariavam mons. Mathieu. Penso nas faltas de compreensão e nos atritos que acontecem
entre os pais e os filhos que crescem e se tornam adultos...
Era normal que o P. Dehon quisesse conservar, para a sua Congregação, o Patronato S. José e o
colégio S. João. Pelo primeiro fizera tantos sacrifícios, gastara tanto dinheiro e era-lhe muito querido como
a primeira obra do seu apostolado sacerdotal; o segundo era sua propriedade pessoal: tinha investido quase
800.000 francos. Procurava assegurar a direcção e a assistência de ambas as obras por meio dos seus

1038
Un prêtre du Sacré-Coeur. Vie édifiante du R.P. Rasser, p. 230, cf. a resposta à pergunta nº 13 na carta do P. Dehon a Mons.
Duval de 19 de Março de 1897.
1039
O P. Dehon pregou os exercícios espirituais aos seus religiosos no colégio S. João de 16 a 24 de Agosto. Os padres
capitulares eram só 6. No início dos exercícios (a 16 de Agosto) e no fim (a 24 de Agosto) realizaram-se as sessões do Capítulo.
Entre outras coisas votou-se por unanimidade (o P. Dehon absteve-se) o generalado vitalício (cf. Denis, Le projet du Père
Dehon, 160).

206
religiosos. Mas deste parecer não era a Cúria de Soissons e menos ainda mons. Mathieu, que via subtraídas
ao seu domínio as obras sociais mais importantes da cidade de S. Quintino e da diocese.
No espírito de mons. Mathieu alternavam-se as manifestações de inveja com as de ressentimento
em relação ao P. Dehon, sinal de um amor não totalmente esmorecido.
Pressentimos tudo isto a partir de uma carta da Chère Mère ao P. Dehon escrita a 19 de Março de
1891: “Mons. Mathieu veio, num dia destes, pedir-me uma irmã enfermeira para assistir de noite a senhora
Emília Legrand, que está muito doente. Aproveitei para lhe dizer uma boa palavra de confiança e de
intercessão pela Obra dos Padres. Recordei-lhe o que foi especialmente para si desde os inícios. O senhor
adivinha o resto. Ouviu-me com benevolência, mas fez-me entender, com palavras veladas de tristeza (mas
não de hostilidade), que se tinha faltado de confiança e de abertura para com ele. E é quanto penso ter
lamentado sempre: que não se o consultava e não se lhe comunicavam muitas coisas, já antes da grande
prova. Estou persuadida de que se o senhor se lhe dirigisse com confiança, o passado seria esquecido pouco
a pouco e ele tornar-se-ia bom e afectuoso consigo. Jesus também o escolheu como um dos instrumentos da
sua Obra. Procure reconquistá-lo. Tem bom coração e ama o colégio S. João”.1040 Estamos diante de um
filho adulto que não pode depender em tudo e por tudo de seus pais. A Obra do P. Dehon era já adulta.
Infelizmente os mal entendidos, as situações desagradáveis estavam no âmago das coisas e eram
inevitáveis. Lembro apenas um facto: em Março de 1891 morre a senhora Emília Legrand e deixa em
testamento 76.000 francos para as obras do P. Dehon. Daí, o compreensível desgosto de mons. Mathieu.
Assim se deterioraram as relações entre mons. Mathieu e o P. Dehon. Morrerá a 23 de Novembro de
1896. De amigo e protector do P. Dehon e da sua Obra, tinha-se transformado num amargurado adversário,
tanto nos últimos anos em que Mons. Thibaudier esteve em Soissons, como quando chegou Mons. Duval.
O P. Dehon era agora a estrela ascendente em S. Quintino, enquanto mons. Mathieu se dirigia para o ocaso
e tolerava mal esta subida do P. Dehon, como também as suas relações com pessoas abastadas que o
ajudavam financeiramente. Mons. Mathieu não era avarento; era sim muito centralizador.
Quando morreu mons. Mathieu, o P. Dehon estava no sul da França e não pôde participar nos
funerais. Todavia deixa-nos no Diário um elogio, onde realça a grandeza e nobreza da sua alma. Recorda
apenas o bem (a verdadeira história) e cala discretamente as faltas de compreensão, as invejas, as dores que
pessoalmente o afectavam. Mons, Mathieu morreu aos “72 anos. Desde há três anos vegetava, com as suas
faculdades alteradas por diversos ataques de apoplexia. Tinha sido para mim e para a Obra um amigo
carinhoso. Foi um pároco de grande valia. Tinha um comportamento muito digno e uma grande gentileza.
Sempre teve relações fáceis com a administração civil. Era prudente e diplomático. Amava as obras e sabia
encontrar os recursos para elas. Mas a sua verdadeira glória foi a restauração da basílica e o incremento do
culto em S. Quintino... Todos os anos as festas eram grandiosas, tornadas ainda mais solenes com a
presença de muitos bispos, que atraíam a S. Quintino numerosos peregrinos... Teria podido conseguir as
honras do episcopado; mas não as ambicionou. Tinha-se entregado totalmente à sua paróquia. Nela viveu
quase meio século como capelão e como arcipreste. Terá um bom lugar no céu. Conto também eu um
pouco com as suas orações”.1041

GRAÇAS DE VIDA

Como vimos, os homens queriam a morte da Congregação do P. Dehon. Deus queria a sua vida.
Precisamente nos dias em que Mons. Thibaudier pede ao P. Dehon que destrua a sua Congregação, este
escreve com segurança: “É um nascimento místico para a Obra. Jesus revela-nos os seus grandes desígnios
sobre a Obra ”.1042 Não era estranho a esta luminosa segurança um misterioso P. Inácio, que o P. Dehon no
seu Diário cita com as iniciais: P. Ig.1043
1040
AD, B 18/3.
1041
NQ XI, 71v-72v.
1042
NQ IV, 97r: 3.10.1889.
1043
Cf. NQ IV, 84v; V, 5r.

207
Entre o dia 6 e 19 de Março de 1889, são comunicadas ao P. Dehon “luzes de oração” sobre a sua
Obra. “Estas luzes suscitam em mim uma profunda comoção. Ajudar-me-ão muito para a direcção da obra.
É uma graça de ressurreição. Obrigado, ó Senhor!”.1044 As luzes de oração lembram-nos espontaneamente a
Irmã Maria de S. Inácio. Imediatamente depois, no Diário, o P. Dehon escreve: “Nosso Senhor quer
renovar em nós a vida de amor que nos animou verdadeiramente durante os primeiros anos”.1045
Pouco mais de um mês depois, o P. Dehon está em Dauendorf para encontrar-se com a Ir. Maria de
S. Inácio: “Em todo o lado sinais de ressurreição – escreve no Diário - ... Esta breve estada em Dauendorf
reaviva a minha fé na Obra, a minha confiança, a minha união a Jesus e a Maria. A nossa santa Irmã Ig.
(Ignace) é sempre como uma visão do céu pela sua candura, pela sua fé, pela sua caridade”1046 Um pouco
mais à frente o P. Dehon escreve: “Mons. Thibaudier autoriza o regresso a S. Quintino da nossa querida
Irmã Inácio”; e comenta; “A doutrina da vida de amor vem-nos apresentada em cada dia pelas luzes que o
p. Ig. (père Ignace) recebe de Nosso Senhor”.1047
Não nos parece estar enganados afirmando que este p. Ig. (p. Inácio, segundo a carta da Chère Mère
ao P. Dehon) é a irmã Maria de S. Inácio.
Onde quer que haja a vida, aí há uma mãe.
A ir. Maria de S. Inácio teve certamente uma missão providencial no nascimento e no crescimento
do Instituto dehoniano, mesmo se as suas “luzes de oração” foram tomadas por “revelações” e não foram
usadas com sabedoria.
Agora que a vida da Congregação do P. Dehon está em perigo, não temos de nos admirar se
encontramos ainda a ir. Maria de S. Inácio a amparar e confortar o P. Dehon na sua difícil missão de
Fundador. A humilde Irmã Maria de S. Inácio continua a repetir ao P. Dehon que a Congregação é uma
obra de Deus: a vida nasceu e a vida continua.1048

1044
NQ IV, 18r.
1045
NQ IV, 81r: 20-28.4.1889.
1046
NQ IV, 84v: 22-30.4.1889.
1047
NQ IV, 84v: 12-15.5.1889.
1048
Cf. Note e studi, n. 15, p. 555.

208
Capítulo 16

Anos obscuros e dolorosos

Obediência heróica – Entre compreensão e preconceitos – Denúncias, calúnias, dias de sofrimento – O terceiro Capítulo Geral em
Fourdrain (1983) – No retiro de Braisne - A renúncia ao S. João – Novas denúncias e calúnias – Mesquinhas invejas e oportunismos –
Contradições dentro da Congregação – o quarto Capítulo Geral (1896) – Uma tentativa fracassada de divisão – Vence a bondade.

Em Setembro de 1889, Mons. Thibaudier, tinha dado ordens, de Cambrai, ao P. Dehon para sair de
S. Quintino: uma ordem tão dura e inaplicável capaz de levar à ruína todas as obras do P. Dehon.1049 No seu
Diário, o P. Dehon fala de um “período de terríveis provações... um “Consumatum est”... Tudo aceito das
mãos de Jesus. As provas são graças. É uma reparação necessária. Abandono-me nos braços de Jesus:
Domine, salva nos: perimus”.1050

OBEDIÊNCIA HERÓICA

O P. Dehon multiplica os seus actos de abandono e de acção de graças pela cruz. Vai a La Capelle:
“A recordação de minha mãe e a oração sobre o seu túmulo fortificam-me, ainda que sinta o coração
destroçado”.1051 Não obstante o seu espírito de fé, a sua saúde ressente-se de maneira preocupante: “Os
sofrimentos morais alteraram muito a minha saúde”.1052 O que nos impressiona é a heróica obediência do P.
Dehon, que colabora na destruição da sua Obra, com um segundo “Consumatum est”, mais doloroso e
desolador que o primeiro, exactamente por parte do bispo que a tinha aprovado a 13 de Julho de 1877.1053
Dois dias depois, a 29 de Setembro (1889), a ordem de saída é suspensa; mais ainda, o P. Dehon é
confirmado de novo por Mons. Thibaudier como director do Colégio S. João; porém o director efectivo é
Mercier. O P. Dehon não estará presente no regresso dos alunos e terá de afastar-se durante três meses de
S. Quintino.1054 Talvez Mons. Thibaudier, mais bem informado, se tenha apercebido que as anteriores
informações eram caluniosas ou, mais provavelmente, tenha reflectido sobre as funestas consequências que
cairiam sobre o colégio. Na última sessão dos exames de maturidade os novos bacharéis tinham sido 22.
Um bom número. Além disso os alunos gostavam do P. Dehon. Gozava de grande ascendente sobre eles e
correspondiam com amor, respeito e confiança. “O bom espírito do colégio é para mim de grande consolo”,
escreve o P. Dehon no seu Diário.1055 A Providência facilitou a obediência do P. Dehon.
Tudo se fez sem comprometer nem o director nem o colégio. Com efeito, a 30 de Setembro de
1889, o P. Dehon tinha ido a Fourdrain, e tinha aí contraído um vírus que lhe tinha provocado um doloroso
antraz que o obrigara a permanecer um mês no quarto. Restabelecido, tinha visitado as casas da
Congregação de fora da diocese: Sittard, Clairefontaine, Lille. Assim tinham passado os três meses.
A 31 de Dezembro de 1889, num resumo do ano transcorrido, o P. Dehon escreve: “Que provações
tão terríveis tive que sofrer! (da parte de Mons. Thibaudier). Desistências (da parte dos seus religiosos),
escândalos (de auxiliares e de professores), uma grande confusão na opinião pública (não tanto por causa
do forte anticlericalismo e da poderosa maçonaria de S. Quintino, quanto pelas conversas de sacristia),
medos opressores... Grandes graças, luzes, promessas, feitos milagrosos que só na outra vida serão
conhecidos. Obrigado, Jesus, mil vezes obrigado!”.1056

1049
Cf. NQ IV, 96v.
1050
NQ IV, 95r-95v: 29.8.1889 – 7.9.1889.
1051
NQ IV, 96v: 22-26.9.1889.
1052
NQ IV, 97v: 5-15.10.1889.
1053
NQ IV, 95r: 29.8.1889 – 7.9.1889.
1054
Cf. Carta de Ir. Maria de S. Inácio ao P. Dehon de 21.1.1888 (AD, B 18/3).
1055
NQ IV, 97r bis: 25-29.12.1893.
1056
NQ IV, 97v bis: 31.12.1889.

209
ENTRE COMPREENSÃO E PRECONCEITOS

Em 1890, chega a Soissons Mons. Duval, sagrado bispo na catedral de Rouen a 24 de Fevereiro. É
um carácter autoritário, prevenido e mal disposto contra o P. Dehon e a sua Obra. Vigários gerais são ainda
os cónegos Mignot e Candon. É bastante provável que o primeiro a dar informações tenha sido mons.
Mathieu, que a 16 de Fevereiro acompanhou o recém nomeado bispo a Cambrai para visitar a Mons.
Thibaudier.
A 22 de Março de 1890, o P. Dehon anota no seu Diário: “Monsenhor Duval está cheio de
desconfiança. Ele mexe e remexe o ferro na chaga do meu coração. Fiat, fiat!”.1057
A 7-8 de Maio de 1890, escreve ainda: “Acabo de conhecer os preconceitos que no alto (em
Soissons) têm contra mim e contra a Obra. Nós não valemos muito, é verdade, mas como se se encarniça
sobre os nossos defeitos! Assim oferecem-nos a graça de expiar o passado e de sofrer alguma coisa pela
justiça”.1058
Durante as férias de 1890, os ataques contra o S. João recrudescem com tal violência que a 22 de
Agosto de 1890 o P. Rasset escreve a sua irmã, freira missionária: “O nosso ‘Très bon Père’ (o P. Dehon)
tem motivos de preocupação e desgostos que o esmagam”.1059
De facto a 19 e 27 de Agosto de 1890, o P. Dehon escreve no seu Diário: “Dias de provação, na
realidade de purificação e de graça. A Cúria episcopal e a opinião pública falam de partida próxima e
definitiva. A humilhação chega sob mil formas...”.1060
Informações malévolas e também caluniosas continuam a chegar a Mons. Duval. Há alguém que, a
todo o custo, pede a cabeça do P. Dehon. Em concreto, exige-se que a direcção do colégio S. João passe
para um sacerdote diocesano; pretende-se o afastamento do P. Dehon de S. Quintino e, não sendo possível
suprimir a Congregação sem grave detrimento para a diocese, querem, ao menos, a sua substituição como
Superior Geral. A esta pretensão prestar-se-ão, como veremos, os Padres da Casa do Sagrado Coração, a
casa mãe, com o seu superior o P. Germano Blancal.
Entretanto, o regresso dos estudantes para o ano 1890-1891 tem lugar normalmente a 6 de Outubro,
com 50 novos alunos.
A 17 de Novembro de 1890, o P. Dehon vê-se obrigado, com pena, a afastar um padre e um jovem
irmão do colégio, porque o seu comportamento é prejudicial para os estudantes. “O P. Eudes é sempre
imprudente nas suas relações e desobediente. Quero mudá-lo de casa. Resiste. Deixo-o voltar para a sua
terra. Estava desde há tempos em ruptura comigo. O jovem Irmão Timóteo mantém uma correspondência
que denota ligeireza e sensualidade. Despedimo-lo também. Almas como estas não podem consolar o
Coração de Jesus. Ofendem-no obstinadamente”.1061 A outros também já tinha afastado antes, em Agosto
de 1888 e em 1889, como aparece em frases idênticas, escritas no Diário, sem revelar nomes. A 18 de
Novembro dispõe-se a afastar-se ele também. “Com o coração despedaçado” parte para Roma a 24 de
Novembro de 1890.1062
Antes, a 5 de Novembro, escreveu a Mons. Duval uma carta muito respeitosa onde diz: “O desterro
é um grande sofrimento moral, porém aceito-o como um sofrimento merecido. Não quero queixar-me dos
outros, mas de mim mesmo”.1063
Mons. Duval aconselhou-o a ausentar-se por uns meses para experimentar provisoriamente a D.
Mercier como director do S. João. O P. Dehon, embora com pena, aceita, também para se dedicar mais à
Congregação.
A ausência do P. Dehon dura três meses. A 22 de Fevereiro de 1891 está de regresso a S. Quintino.
A 26 de Fevereiro de 1891, escreve uma carta a Mons. Duval, comovente pela sua humildade.
Lança-se aos pés do bispo para implorar a sua “bênção paterna. Passei estes três meses em Roma, em
recolhimento e oração. Espero que Nosso Senhor me dê a graça de conservar o espírito de contrição e de
1057
NQ IV, 104v: 22.3.1890.
1058
NQ IV, 4r: 7-8.5.1890.
1059
Un prêtre du Sacré Coeur. Vie edifiante du R.P. Rasset..., 272.
1060
NQ V, 11v: 19-27.8.1890.
1061
NQ V, 16v-17r: 17.11.1890.
1062
NQ V, 17r: 18-24.11.1890.
1063
Dossier de l’Evêché de Soisson, p. 14 (AD, B 24/15.2).

210
penitência por toda a minha vida. As minhas culpas são tais que uma vida inteira não as poderia expiar...
Contai com a minha humilde submissão e com a minha completa disponibilidade para tudo”.1064
Já sabemos como o P. Dehon se responsabilizava também pelas culpas dos seus colaboradores:
“Não me dava conta de que, sendo demasiado bom com os homens, não o era suficientemente com Nosso
Senhor que deixava ofender”.1065 Quanto a si mesmo, o P. Dehon tem um excessivo sentido de culpa. Ele
acredita que o Santo Ofício o castigou pelas suas culpas. Mons. Thibaudier rectifica: “São tudo faltas
veniais”.1066 No Diário fala de “escândalos”; depois, relendo, rectifica e escreve: “faltas e imprudências”,1067
erros e defeitos “mais ou menos exagerados” (pela cúria de Soissons).1068 Estas são as culpas que, segundo
o P. Dehon, uma vida inteira não basta para expiar. Em geral, as pessoas são muito hábeis em se desculpar
a si mesmas; o P. Dehon, pelo contrário, é quase impiedoso a acusar-se a si mesmo e, lendo o Diário,
somos levados a acreditar nele. Mas, mesmo que se tenha enganado..., como Pedro, pode ser igualmente
santo, tendo chorado tanto sobre o seu passado.
Ao seu regresso, o P. Dehon foi “acolhido com grandes demonstrações de filial afecto”.1069
Retomou a direcção efectiva do colégio e o ano escolar terminou com normalidade.
A experiência educativa de Mercier tinha sido um fracasso, também pelo seu temperamento severo,
arisco e nada “atraente” do interessado, infectado pela mentalidade severa e jansenista do tempo. Era um
pouco o contrário do P. Dehon e, por isso, tinha sido primeiro posto a seu lado e depois indicado como
sucessor.
A atitude de Mons. Duval é oposta ao P. Dehon. Ao contrário de Mons. Thibaudier, que na
correspondência manifestava às vezes o seu coração de pai, Mons. Duval é frio e autoritário, como é duro e
autoritário quando se trata do colégio S. João ou da Congregação do P. Dehon, enquanto se mostra paterno
e cheio de confiança quando lhe confia sacerdotes em dificuldades ou lhe pede que presida à “Comissão
diocesana de estudos sociais”. Da parte sua, o P. Dehon é respeitoso e submisso quando se trata da sua
pessoa, porém sabe ser enérgico e tenaz quando se trata da verdade ou dos direitos da Congregação. Na
realidade, Mons. Duval conservará sempre os seus preconceitos contra o P. Dehon e a sua Congregação.
Disso temos uma prova evidente num carta sua de 25 de Janeiro de 1892 respondendo ao Cardeal
Mónaco, Prefeito do Santo Ofício, que lhe pedia a sua opinião sobre o P. Dehon e a sua Obra.
Reproduzimos as passagens mais significativas. “O P. Dehon... é um homem inteligente e activo, algo
inclinado ao misticismo. O S. João é uma grande instituição que dá excelentes frutos de ciência e de
piedade. O P. Dehon fundou ao mesmo tempo uma sociedade de Sacerdotes do Sagrado Coração; depois,
por causa de uma reclamação dos Sacerdotes do Coração de Jesus de Issoudun, mudou de nome para o de
Oblatos de Sagrado Coração. (A verdade histórica é bem diferente).
“Vários sacerdotes vêm ter com ele de todos os lados e de todas as dioceses. Muitas vezes não
fazem mais que passar dois ou três anos nesta sociedade, depois abandonam-na, achando-a mal organizada
(Do livro das profissões resulta que até 1892, a perseverança dos religiosos do P. Dehon supera os 60%). O
P. Dehon quando tem algum elemento manda-o a fundar novas casas. Tem assim 8 ou 9 casas
disseminadas por França, Holanda e inclusive América. Esta dispersão prejudica a solidez da Obra.
Pessoalmente penso que esta Obra, apesar da real entrega do seu Fundador e de alguns membros, não
apresenta as condições de vitalidade necessárias para assegurar o seu futuro”.
Conclui o relatório declarando-se contrário a “uma aprovação antes de a Obra ter demonstrado o
que vale e as vantagens que pode trazer à Igreja... O breve de louvor de 1888 é mais que suficiente”.1070
Esta carta manifesta muito bem a atitude contraditória de Mons. Duval: estima o P. Dehon como
pessoa, porém critica-o como superior e tem bem pouca confiança na sua Congregação.
1064
Dossier de l’Evêché de Soissons, p. 15 (AD, B 24/15.3).
1065
NQ IV, 35v: 17.4.1888.
1066
Carta de Mons. Thibaudier ao P. Dehon de 12.2.1885 (AD, B 2/39; NHV XV, 8).
1067
NQ IV, 86v: 1-15.7.1889. Na margem esquerda da página, entre as duas datas 1-15 de Julho de 1889 e 16-18 de Julho, está
escrito verticalmente: “Exageravam-se das faltas e imprudências”.
1068
Cf. NQ IV, 95v. Escrito, verticalmente, na margem esquerda da página.
1069
NQ V, ((r: 22.2.1891 – 1.3.1891. “É festa no S. João a 22 (de Fevereiro), em S. Clemente (Fayet) a 25. As Irmãs estão cheias
de alegria. Amigos e conhecidos da cidade vêm cumprimentar-me. “Vivat Cor Jesu in corde nostro unice!”. Todavia a mirra não
falta neste ramalhete. Estou tão confuso, tão humilhado ao receber estes sinais de estima! Conheço bem as minhas fraquezas e
mil circunstâncias mas vão recordando! “Miserere nostri, Domine!” (NQ V, 88r).
1070
Dossier de l’Evêché de Soissons, pp. 21-22 (AD, B 24/15.2).

211
O Cardeal Mónaco perguntara a Mons. Duval se o P. Dehon tinha obedecido às disposições do
Santo Ofício de 1883-1884; se a sua Congregação era diocesana segundo o decreto de 1884; qual era a
opinião do bispo sobre ela e outras informações úteis; se seria bom retomar o nome de Oblatos do Coração
de Jesus; se as Irmãs Servas podiam continuar o seu serviço nas casas do P. Dehon..
A resposta de Mons. Duval é, pois, muito incompleta e reflecte os seus preconceitos de fundo.
Sobrepondo-se à estima do P. Dehon como pessoa e como sacerdote, afirma que a sua congregação é frágil,
mal governada, sem um futuro seguro. Não há uma palavra sobre a obediência do P. Dehon aos decretos do
Santo Ofício, sobre as relações com as Irmãs Servas, sobre a mudança de nome da Congregação.
Todavia um testemunho escrito da parte do bispo de Soissons era necessário e Mons. Duval deu-o,
depois de uma segunda carta do Santo Ofício de 17 de Maio de 1892 que recordava as prescrições e
proibições do decreto de supressão.1071
Na sua resposta ao Santo Ofício (ao Cardeal Mónaco) de 20 de Junho de 1892, Mons. Duval porá
em relevo “a docilidade mais completa” às disposições de Roma por parte do P. Dehon.1072

DENÚNCIA, CALÚNIAS, DIAS DE SOFRIMENTO.

O ano escolar 1891-1892 foi vivido com bastante normalidade, não obstante os atritos ocorridos,
durante as frequentes ausências do P. Dehon, entre os professores do clero secular e os religiosos
dehonianos que certamente tinham os seus defeitos: “Tenho filhos que me fazem sofrer – escreve o P.
Dehon no seu Diário - . Porém o que me é mais doloroso é que fazem sofrer também a Nosso Senhor,
escandalizam e paralisam a Obra. Senhor, perdoa-lhes. Não sabem verdadeiramente todo o mal que
fazem”.1073
A partir de Julho de 1893, uma tempestade de novas denúncias e de calúnias abate-se sobre o P.
Dehon. “Denúncias, calúnias, dias de sofrimento...’Domine, adjuva nos!’”.1074
A 26 de Julho de 1893, Mons. Duval escreve, de Racquefort, uma carta dura ao P. Dehon:” Tive de
tomar tempo para reflectir, informar-me e rezar. Sinto quanto me custa escrever esta carta, mas fazê-lo,
para mim é um dever e para vós é a salvação. Já não é possível a vossa permanência em S. Quintino. É
preciso organizar a todo o custo e imediatamente a vossa partida. Escolhei a Holanda ou a América como
lugar de permanência. Escondei a vossa vida. Os melhores dos vossos sacerdotes proverão às necessidades
do S. João e à direcção da vossa Congregação. Há já três anos que vos venho aconselhando a que vos
ausenteis por algum tempo. Hoje ordeno-vos a saída para evitar um espantoso escândalo que ameaça
rebentar ou que, infelizmente, já começa a rebentar. Eu sei. Falando-vos assim, é a vossa honra pessoal que
quero salvar e também a existência da vossa Congregação e do colégio S. João: Se não aceitardes a minha
decisão, remeterei o caso ao Santo Ofício de Roma. Duvido que o seu julgamento seja mais indulgente que
o meu, que ao menos vos garante o silêncio. Que Deus vos ilumine e vos proteja”.1075
O P. Dehon escreve no seu Diário, a 29 de Julho de 1893: “Seria hora de outro tomar a direcção do
S. João para deixar-me disponibilidade para dirigir a Obra (A Congregação) e para escrever. Nosso Senhor
sem dúvida manifestará em breve a sua vontade”.1076 Entretanto pendia sobre a sua cabeça a sentença
condenatória do seu bispo.
O que nos espanta é o comportamento de Mons. Duval, como também antes o de Mons. Thibaudier
quando ordenou a fusão com outra Congregação. São deliberações gravíssimas, tomadas em base a
relatórios que, em seguida, se revelaram caluniosos. O acusado (P. Dehon) nem sequer é consultado; não
tem nenhuma possibilidade de defesa.
Ouvimos da boca de um contemporâneo, o cónego Maurício Weppe, que naquele tempo estava no
S. João, o que tinha acontecido.

1071
Dossier de l’Evêché de Soissons, pp. 22-28 (AD, B 24/15.2).
1072
Carta de Mons. Duval ao Santo Ofício de 20.6.1892 (Cf. Dossier de l’Evêché de Soissons, pp. 29-31 (AD, B 24/15.2).
1073
NQ V, 107v: 26.3.1892.
1074
NQ VI, 32r-32v: 1-15.7.1883.
1075
Dossier de l’Evêché de Soissons, pp. 31-32 (AD, B 24/15.2).
1076
NQ VI, 32v.

212
No Colégio havia um vigilante muito severo, um certo Consuel ou Canoëld, que uma noite tinha
castigado no dormitório um rapaz de 13-14 anos, um certo Vincent, pondo-o de joelhos.
Este, apavorado pelo escuro, tinha fugido, em camisa da noite, para o escritório do P. Dehon, que
estava a escrever. O rapaz tinha-se sentado e adormeceu.
Não tinha ido ao escritório de D. Mercier, o temido prefeito de disciplina, mas ao do P. Dehon,
querido e estimado por todos os alunos. O escritório de D. Mercier estava perto do dormitório; o do P.
Dehon estava para além do pátio, no primeiro andar.
O P. Dehon, ocupado a escrever, esqueceu-se do rapaz. Quando se deu conta era já demasiado tarde
para levá-lo para o dormitório. Então colocou-o sobre a sua cama e também ele, vestido, estendeu-se na
cama. Uma solução que facilmente poderia ser acusada de imprudência, por causa de maliciosas suspeitas,
para quem não fosse simples de coração como era o P. Dehon e o próprio rapaz que, candidamente, se
gloriou de ter dormido com o “Très bon Père”; e disse-o com orgulho e simplicidade, sem qualquer assomo
de vergonha... porque nada havia de que se envergonhar, como sucede em família, quando um pai ou uma
mãe acolhem na sua cama um filho que tem medo.
Infelizmente o pai do rapaz tinha pedido, algum tempo antes, um empréstimo ao P. Dehon e este
tinha-lho recusado. Conhecido o facto, pensou em vingar-se e apresentou uma denúncia no tribunal. O juiz
interrogou o P. Dehon e compreendeu imediatamente que não tinha havido nenhuma malícia; chamou o pai
do rapaz e perguntou-lhe se estava disposto a retirar a denúncia se o P. Dehon lhe concedesse o empréstimo
do dinheiro. Ele respondeu imediatamente que sim. O juiz, depois de uma solene reprimenda, disse-lhe que
se afastasse imediatamente se não queria ser preso.
Certamente que um juiz malévolo teria podido desencadear um escândalo; ao contrário, não houve
nenhuma menção no “Glaneur de Saint Quentin”, o trimestral dos republicanos radicais, tão atento a
propalar todos os escândalos, mesmo os mais pequenos, verdadeiros ou supostos, que se referiam à Igreja e
particularmente aos sacerdotes.
Mons. Duval inteirou-se do caso provavelmente através do arcipreste de S. Quintino, D.
Mathieu.1077 Por isso a carta tão dura do bispo ao P. Dehon (26 de Julho de 1893).
Regressado a Soissons, Mons. Duval quis falar com Maurício Weppe, que lhe contou o caso como
se tinha passado. Falou-lhe da ingénua simplicidade com que o rapaz lhe falou do caso e da impressão nada
escandalosa que tinha produzido no Colégio. “Apercebi-me – afirma Weppe – que o bispo não punha em
dúvida o que eu lhe comunicava”.1078 De facto, a 2 de Setembro de 1893, o P. Dehon recebe outra carta de
Mons. Duval, que começa assim: “O estado da questão mudou muito em 15 dias. O que era possível ontem,
já não o é hoje sem prejuízo” Onde tinha ido parar o espantoso escândalo? Fica-se perplexos. Todavia o
bispo coloca condições pesadas , embora tendo reconhecido a inocência do P. Dehon:
1. O P. Dehon conservará o título de director do S. João e a responsabilidade financeira, mas
residirá na Casa do Sagrado Coração e deixará a direcção moral e intelectual a D. Mercier, assistido por
três conselheiros.
2. Quanto à Congregação, o P. Dehon conservará o título de Superior Geral por três anos. Os
poderes reais serão exercidos por um Assistente Geral, ajudado por um conselho de três padres. O bispo
será consultado previamente, antes de qualquer decisão importante, e receberá um relatório periódico sobre
o Instituto.
A carta de Mons. Duval, apesar de todas as bênçãos habituais com que a acabava, intercaladas pela
admonição: “É a salvação que Deus vos envia, aproveitai dela...”, dá a penosa impressão de ser um árido
esboço de contrato, sem o menor sinal, não digo de paternidade, mas de humanidade.
Recordamos a dureza de Mons. Thibaudier em exigir a fusão da Congregação do P. Dehon com
outro Instituto. Era uma sentença de morte que nos deixara perplexos e desanimados, como nos deixam
também estas duras decisões de Mons. Duval.

1077
Afirma um contemporâneo, o cón. C.M. Weppe: “Tudo se teria passado no mais absoluto silêncio; porém Mathieu, arcipreste
de S. Quintino, que tinha inveja do P. Dehon, tomou neste caso posição contra o P. Dehon e penso que terá sido ele a escrever a
Mons. Duval”. (AD, B 48/2d, doc. 60).
1078
AD, B 48/2d, doc. 60.

213
No plano subjectivo os dois bispos podiam confundir a dureza com energia: Mons. Thibaudier,
pelas reacções violentas típicas dos caracteres tímidos; Mons. Duval, pela sua severidade e por uma certa
rudeza de carácter.
As disposições de Mons. Duval são desconcertantes. Como prémio da inocência reconhecida do P.
Dehon, redu-lo a um fútil figurante: um director de Colégio e um Superior Geral completamente
desautorizados, mas com toda a responsabilidade financeira.
É evidente a táctica de Mons. Duval: retirar ao P. Dehon, tanto a direcção do colégio como a da
Congregação. Quanto ao colégio, tinha colocado D. Mercier; para a Congregação pensava no P. Germano
Blancal, amigo da cúria e do alto clero de Soissons.
O P. Blancal, a 17 de Julho de 1893, apresentara a Mons. Duval um relatório sobre os 39 sacerdotes
da Congregação, com uma breve e interessante avaliação de cada um. Dele resultava um Instituto vivo e
dinâmico apesar das limitações e defeitos humanos, o derrotismo de alguns e as críticas de uma parte do
clero diocesano. De facto, na exposição do P. Blancal lê-se: “Parece-me que vossa excelência, depois da
leitura destas simples notas, ficará convencido de ter à sua disposição um número de bons sacerdotes
inteiramente desejosos de ser úteis à diocese e à santa Igreja; por isso certamente não exitará, no perigo em
que se encontra o seu Instituto, em estender-lhes a mão em sua ajuda. Este é o voto daqueles que
compreendem a situação e sofrem em silêncio. Presentemente eles já não têm medo de manifestá-lo. A
acção enérgica que vossa excelência está preparando, aparece-lhes como...”.1079
Aqui se interrompe a exposição, tendo-se extraviado a última folha; mas é revelada até à evidência
a táctica de Mons. Duval. Depois de ter afastado o P. Dehon, substituindo-o pelo P. Blancal que aspirava
ao generalato, a Congregação passaria a estar completamente ao serviço da diocese de Soissons.
Porque é que o P. Dehon não recorreu a Roma? O recurso a Roma era longo e custoso. Se vencesse,
irritaria ainda mais a Mons. Duval com quem, apesar de tudo tinha de conviver, criaria divisões na
Congregação e uma animosidade ainda mais profunda no clero diocesano.
Inclinamo-nos a pensar que, tratando-se sobretudo da sua pessoa, preferiu calar e sofrer segundo o
voto de vítima que tinha feito.
A 20-30 de Agosto de 1893, o P. Dehon escreve no Diário: “Provas e inquietações. O demónio
levanta contra as nossas obras um furacão de críticas, de acusações e de calúnias. Alguns defeitos reais
deram ocasião para tal. Vou a Montmartre, a 22, para passar lá algumas horas. Ali recebo graças bem
sensíveis de luz, de força e de paz. O Coração de Jesus é sempre misericordioso”.1080
O P. Dehon pensa seriamente em abandonar a direcção do colégio S. João para dedicar-se
completamente à renovação da Congregação e promover um fervoroso regresso ao espírito das origens.

O TERCEIRO CAPÍTULO GERAL DEFOURDRAIN

Neste clima tem lugar o terceiro Capítulo Geral de Fourdrain (6-7 de Setembro de 1893) que se
prolongou com um curso de exercícios espirituais até 14 de Setembro.
O Capítulo fora imposto por Mons. Duval, sendo passados apenas cinco anos sobre o Capítulo
Geral de 1888 e não seis, como estabeleciam as Constituições. Provavelmente a intenção de Mons. Duval
era a de que o P. Germano Blancal substituísse o P. Afonso Rasset como Assistente Geral, preparando-o
assim para a sucessão ao P. Dehon como Superior Geral. “O demónio – escreve o P. Dehon – trata de
semear primeiro a divisão, depois sobrevem a calma e os exercícios espirituais são excelentes. O bom P.
André (Prévot) expõe-nos bem a prática da vida de amor”.1081
O Capítulo Geral desenvolve-se em três sessões. Trata-se de pôr em prática as disposições de Mons.
Duval, contidas na carta de 2 de Setembro de 1893 como já dissemos. O P. Dehon demitiu-se de Superior
Geral. Antes de proceder-se a uma nova eleição, o P. Rasset fez uma sábia proposta ao Capítulo para que

1079
Relatório apresentado a Mons. Duval a 17 de Julho de 1893 sobre os diversos Padres do Instituto do P. Dehon. A carta é de
P. Germano Blancal, porém, faltando a última folha, não conhecemos os assinantes do relatório (AD, B 48/4 a, n. 4).
1080
NQ VI, 36r.
1081
NQ VI, 37v: 6-14.9.1893.

214
votasse se era oportuno aceitar a demissão do P. Dehon e proceder a uma nova eleição. Com 11 votos a
favor e 6 contra a questão foi adiada para dentro de outros três anos, ou seja para 1896.
O P. Blancal e o seu grupo da casa mãe (Casa do Sagrado Coração de que era superior) votaram
contra. Tudo aconteceu porém como desejava o P. Dehon. O P. Rasset foi eleito primeiro assistente e
segundo assistente o P. Blancal, com o fim de contribuir para a união dos corações. Além disso o P. Dehon
obedeceu às disposições de Mons. Duval, mandando todos os religiosos, para as licenças, ao P. Rasset.
O Capítulo, que se tinha aberto num clima de tempestade, encerrou em paz. Era só uma bonança,
porque tempestades e contradições se irão desencadear ainda até ao quarto Capítulo Geral de 1896.
As causas destas dolorosas provações que atingem o P. Dehon e a Congregação reduzem-se
principalmente a três: a sua bondade para com os rapazes e os jovens, a oposição do clero diocesano por
motivos de inveja e de interesses e a oposição no seio da própria Congregação.
As obras do P. Dehon provocavam inveja entre o clero diocesano. Principalmente o colégio S. João,
o único colégio florescente de Aisne, estimado desde Lille até Paris, enquanto outras instituições escolares
da diocese bocejavam.
Veremos como em Novembro de 1893 o P. Dehon abandonará o colégio S. João perante as
repetidas insistências de Mons. Duval. Um contemporâneo do P. Dehon, o cónego C.M. Weppe afirma: “O
P. Dehon deixou o colégio S. João porque o bispo de Soissons (Mons. Duval) deu ouvidos a um complot
organizado por influência de alguns sacerdotes diocesanos que invejavam o P. Dehon devido ao seu
ascendente sobre a população de S. Quintino. Viam com maus olhos as ofertas que lhe faziam. Estes
sacerdotes tinham uma sua criatura, D. Mercier, que efectivamente dirigiu o Colégio durante alguns meses,
mas não quis continuar porque, embora tivesse todos os cargos, o dinheiro não chegava mais... Os
habitantes de S. Quintino eram favoráveis ao P. Dehon”.1082
Veremos como em Junho de 1896 enfrentará “negociações penosas” com Mons. Duval a propósito
do S. João. Conseguirá conservá-lo para a Congregação com “muitas humilhações e custos”, cedendo o
Patronato São José à diocese.1083

NO RETIRO DE BRAISNE

Antes de enfrentar estes acontecimentos tão dolorosos, queremos pôr em relevo como o P. Dehon
possui e vive a verdadeira ciência da cruz. É, verdadeiramente, um profeta do amor também na experiência
da dor. Não segue caminhos tortuosos, não se agarra a intermediários e, menos ainda, esvazia e esteriliza o
seu carisma na desobediência ou na revolta. Compreendeu a simples fé do Cura de Ars: “Quando chega
uma cruz, não procurar de que parte vem: vem directamente de Deus!”.
De 17 de Outubro a 15 de Novembro de 1893, faz um mês de exercícios espirituais com os jesuítas,
em Braisne, perto de Soissons. Escreve no Diário: “Este retiro assinala uma grande data na minha vida.
Deve ser decisivo para a minha obra e para a minha salvação. Fi-lo com coração grande e, creio, com
poucas negligências... Humilhei-me e em alguns dias sofri imenso. Tinha muito que expiar e a graça
regressou lentamente. Ó meu Deus, abençoa as minhas resoluções. Devoto-me ao teu amor todos os dias da
minha vida ... Ajuda-me, ó meu Salvador, a amar-te e a fazer-te amar...”.1084
As notas deste longo retiro revelam com toda a clareza a alma do P. Dehon. Conta já 50 anos. “É
um bom mês de S. Inácio. A primeira semana é dedicada à meditação sobre o fim do homem, o pecado, os
novíssimos e termina com a “Madalena aos pés de Jesus”.1085 De facto na tarde de 23 de Outubro faz a sua
confissão geral e assim termina a primeira semana dos exercícios. “Lanço-me aos pés do meu Salvador
com a Madalena. Confesso-lhe todas as minhas culpas e todas as minhas ingratidões. Três vezes
principalmente, na minha vida sacerdotal, fui débil como S. Pedro. Nosso Senhor quer ainda perdoar-me e
pôr no meu coração uma paz verdadeiramente sobrenatural. Sinto-me liberto de um imenso peso. É preciso
que agora seja fiel, humilde e agradecido”. “Sagrado Coração de Jesus, peço-vos, por intercessão de Maria,

1082
Cf. D, B 48/2d, doc. 60; cf. ibidem: doc. 82..
1083
Cf. NQ XI, 61v: 20-30 de Junho de 1896.
1084
NQ VI, 39v-40r: 17.11.1893.
1085
Cf. “Mémorial de ma retraite 1893”: 17 de Outubro-16 de Novembro, pp. 1-38 (AD, B 5/5).

215
a graça de não mais vos ofender voluntariamente, de perseverar no vosso amor e de viver daqui em diante
na união mais completa convosco: “Sume, o Sacratissime Cor Jesu, universam meam libertatem”.1086
Com esta experiência de perdão e de paz entra na segunda semana dos exercícios de S. Inácio, toda

centrada nos mistérios da vida de Cristo.

Foi a meio dos exercícios espirituais que se sentiu livre de uma forte dor de cabeça, provavelmente
uma dolorosa sinusite que sarou, sem operação, com um abundante fluxo nasal. Observa o P. Dehon: “Vi
nisto uma protecção de Maria e também um símbolo de purificação...”.1087
“Acabo aqui a segunda semana dos exercícios espirituais e resumo-a com esta resolução que será de
ora avante a regra da minha vida: “Conservarei habitualmente a minha alma tranquila e atenta à acção da
graça, sob o olhar de Nosso Senhor”.1088
A terceira semana decorreu na contemplação da última ceia e da paixão; enquanto os mistérios
gloriosos e a “a contemplatio ad amorem” ocupam a quarta e última semana.
Na última meditação sobre o “céu” escreve: “Ainda alguns anos, talvez uns 15, segundo o curso
ordinário das coisas e esta vida estará acabada... Que importância têm as vicissitudes e as provações destes
poucos anos? É bem pouca coisa! Passa logo! Não vale a pena inquietar-se. Conservemos só a união com
Deus e a esperança do céu”.1089
Numa folha à parte o P. Dehon confia-nos algumas das graças recebidas sensivelmente durante este
mês de exercícios. Além das graças de purificação, ressaltamos : “O desejo de dar-me por completo a
Nosso Senhor que expresso com um pacto escrito” (n.8); “Um renovado gosto pela oração e pela adoração”
(n.9), como também pela oblação de amor e pela reparação”.1090
Eis o “Pacto”: “Ofereço-me inteiramente a Nosso Senhor para servi-lo em tudo e fazer em tudo a
sua vontade. Estou disposto a fazer e a sofrer o que Ele quiser com a ajuda da sua graça. Tenho a minha
Regra e o meu Directório e os acontecimentos providenciais que me indicarão o que devo fazer.
“Suplico a Nosso Senhor que aceite esta oferta, esta doação que faço e que não permita jamais lha
volte a tirar. Rogo à Santíssima Virgem, ao meu bem anjo, aos meus santos patronos, que me ajudem a
cumprir este pacto até ao último instante da minha vida”.1091
Junta um compromisso de fervor para toda a sua Congregação: “É o que Nosso Senhor pede a nós
todos”.1092
E finalmente os seus propósitos:
1. Conservar a minha alma tranquila, recolhida e atenta à graça, sob o olhar de Nosso Senhor.
2. Procurar sempre a pureza do coração preferindo-a às graças que dela derivam.
3. Proibir-me toda a familiaridade, como também os olhares e os pensamentos consequentes.
4. Reservar-me-ei firmemente o tempo para a oração e para a vida interior: “Concha esto, non
canalis” (S. Bernardo).
5. Quanto aos meus deveres de superior e para a direcção dos outros, farei um exame preventivo
depois da acção de graças (da missa) e realizarei o que a graça de Deus me inspirar”.1093
Finalmente, anota algumas disposições que quer conservar depois dos exercícios espirituais:
“Dedico ao bom Mestre
- um amor penitente que se alimentará com a recordação dos meus pecados e da paixão do Senhor;
- um amor agradecido, que se alimentará da recordação de todos os benefícios divinos e
particularmente da sua misericórdia para comigo;
- um amor confiado que se nutrirá com o pensamento da extrema bondade do Salvador e da ternura
maternal de Maria:
1086
“Mémorial”, pp. 37-38
1087
“Mémorial”, sobre uma folha anexa: “Notas para este retiro”.
1088
“Mémorial”, p. 108.
1089
“Mémorial” p. 155.
1090
“Mémorial” sobre uma folha anexa: “De quelques grâces reçus sensiblement dans le cours de cette retraite”.
1091
“Ménorial” sobre uma folha anexada: “Pacte”.
1092
“Mémorial” sobre uma folha anexada.
1093
“Mémorial” sobre uma folha à parte: “Mes résolutions”.

216
- um amor devoto, que se manifestará mediante a fidelidade à minha regra, aos meus exercícios de
piedade, à minha vocação, aos deveres do meu estado e mediante o espírito de sacrifício e de abandono que
é próprio de uma pequena vítima do Coração de Jesus”.1094
Relendo as notas deste famoso retiro de Braisne, de um mês de duração, revivemos a experiência
de uma profunda paz; uma presença amorosa, tranquila, simples, atenta a Deus (era Ele que precedia no
amor), uma disposição a fazer em tudo a sua vontade, também na aceitação heróica da cruz.

A RENÚNCIA AO S. JOÃO

Ao sair dos exercícios de Braisne, o P. Dehon fez um dos sacrifícios mais duros da sua vida: deixou
em outras mãos o Colégio S. João, que tinha sido o objecto de tanto amor e de tantos desvelos. Obedecia às
repetidas exigências de Mons. Duval.
Escreve no seu Diário: “Dia de sacrifício. Deixo a instituição onde vivi 16 anos e passo a morar na
Casa do Sagrado Coração. Tenho o coração apertado e os olhos cheios de lágrimas. É uma etapa na minha
vida. Durante estes 16 anos, quantas graças, mas também quantas faltas cometidas! Assaltam-me tentações
de desânimo; mas votei ao Coração do bom Mestre um amor confiado. Lanço-me a seus pés e atrevo-me a
aproximar-me do seu Coração”.1095
Balanço dos 16 anos: “Um milhar de jovens receberam uma educação cristã, uns trinta seguiram a
carreira eclesiástica”.1096
Na direcção do S. João sucede-lhe temporariamente D. Mercier. Em 1896, é superior do colégio o
P. Paulino Delloue, mas falta-lhe autoridade e ascendente. Os anos de ouro do S. João serão sempre os que
foram passados sob a direcção do P. Dehon, como o próprio Delloue, já com mais de 60 anos, reconhecerá
num discurso de 20 de Julho de 1926.1097

NOVAS DENÚNCIAS E CALÚNIAS

O P. Dehon amava os rapazes e os jovens, e exprimia o seu afecto com manifestações de paterna
bondade: uma carícia, uma palmadinha na face, um aperto nos braços com as mãos ou então apertando-os
ao seu lado e, algumas vezes, beijava os rapazes na testa.
Estes gestos de bondade tinha-os instintivamente com todos os alunos, para que se abrissem à
confiança. Exercia sobre eles um grande ascendente, embora suscitando, à primeira vista, uma certa
sujeição.
Os jovens distinguem, por instinto, uma familiaridade morbosa de uma afectividade sã, simples,
expontânea e cordial. Os ex-alunos do S. João atestaram sempre e unânimemente a sua impressão de sentir-
se muito amados pelo P. Dehon. Se tinha predilecções era para aqueles que se orientavam para o
sacerdócio ou para a vida religiosa.
Po isso a sua unânime indignação quando conheceram as insinuações maliciosas que se vinham
fazendo sobre a honestidade do P. Dehon. Qualificaram-nas de verdadeiras calúnias.
Na origem destas maledicências caluniosas estão alguns ex-alunos do S. João, já corruptos, que o P.
Dehon teve que afastar do colégio e que, em adultos, se tornaram anti-clericais.
Parece-nos inútil deter-nos sobre estes caluniadores do P. Dehon. Baste citar o juízo de D. Rogério
Gratiot, aluno do S. João de 1885 a 1892: “Ouvi falar de maneira vaga e fugaz das acusações feitas ao P.
Dehon, mas nunca me citaram casos concretos. As “vozes” sempre foram vagas. Vinham de um ou de
outro dos ex-alunos do S. João. Sei que houve alunos precocemente corruptos e parece-me que era deles
que provinham estas acusações. Talvez o P. Dehon foi obrigado a tomar medidas contra um ou outro destes

1094
Mémorial” sobre uma folha à parte: “Dispositions à conserver après ma retraite”.
1095
NQ VI, 40r: 20.11.1893.
1096
NQ VI, 42v: 27.12.1893.
1097
Cf. AD, B 48/4, p. 2c.

217
alunos, que se vingaram vilmente, caluniando-o. Estas acusações são inverosímeis... São maldades, como
as que às vezes se contam entre os eclesiásticos”.1098
Tenha-se presente que o anti-clericalismo e a luta anti-religiosa eram violentos e viscerais nos
últimos decénios do século XIX até a primeira Guerra Mundial, fomentados pela poderosa maçonaria e
pelo socialismo ateu.
Para denegrir o clero, os inimigos da Igreja recorriam às calúnias mais grosseiras. Em S. Quintino,
cidade industrial, socialismo e maçonaria imperavam, irmanados no anti-clericalismo, especialmente
através da imprensa. Dos seis jornais de S. Quintino, um só era filo-católico e um neutral; os outros eram
de tendência radical, republicana, socialista.
O seu “menu” diário incluía sempre ou um escândalo ou um ataque ao clero.
Não podia subtrair-se a semelhantes ataques um sacerdote destacado como o P. Dehon, culpado de
ter fundado um colégio livre, que rivalizava com o liceu estatal e com os internatos laicos. A inveja era já
velha de anos.
A 4 de Outubro de 1887, o P. Dehon escreve no seu Diário: “Imponente regresso dos alunos no S.
João. Há ao menos 60 novos. A inveja do Liceu e dos seus sequazes está excitada. Os seus diários não
fazem mais que barulheira”1099.
Apareceram malignas insinuações contra o P. Dehon que, como confessor e director espiritual,
frequentava o convento das Servas.
Infelizmente o P. Dehon foi também objecto da animosidade de professores e vigilantes corruptos e
corruptores. Com o seu carácter bom e compreensivo, recto e honesto, era levado a pensar que também os
seus colaboradores eram rectos e honestos como ele e dava-lhes confiança. Alguns abusaram, com prejuízo
dos alunos, obrigando-o a soluções drásticas e dolorosas, enquanto grande parte da responsabilidade destes
colaboradores acabava por recair sobre ele.
Entre outras coisas, as calúnias forneciam bons ganhos. Num manuscrito do P. Dehon, intitulado
“Via Crucis”, lemos: “Alguns Padres deixaram-se conquistar por um patife, G.J. (Gaetano Juniet),
instrumento de Satanás, morto suicida, após dois divórcios, com uma grosseira calúnia contra mim”. 1100
Caetano Juniet tinha estudado na Escola Apostólica de Fayet e tinha sido recebido noviço; mas não
perseverara por causa do seu carácter instável. Estamos em 1896, no tempo do quarto Capítulo Geral. De
uma carta do P. Dehon ao P. Falleur, de 2 de Julho de 1897, sabemos que Juniet caluniava para aumentar o
preço das suas prestações junto dos seus equívocos financiadores.1101
Por algum tempo, o P. Dehon, sentindo-se atacado na sua honorabilidade, deixou de confessar os
alunos do S. João. Alguns pensaram numa censura eclesiástica, da qual não existe nenhuma prova. Foi, ao
contrário, uma decisão pessoal por motivos de prudência. Escreve no seu Diário, a 5 de Outubro de 1889:
“Os sofrimentos morais debilitaram bastante a minha saúde. Estas penas renovam-se cada dia por mil
circunstâncias diferentes. Renunciei a confessar os rapazes do S. João. Exercia este ministério desde havia
12 anos...”.1102 O tempo em que suspendeu as confissões dos rapazes foi de curta duração já que os rapazes
desses anos nem se deram conta. De facto, afirmam ter-se sempre confessado com o P. Dehon.
Depois de ter examinado em profundidade os testemunhos contemporâneos mais diversos, pensa-se
espontaneamente que a lama lançada contra o P. Dehon recai sobre os eus caluniadores.
MESQUINHAS INVEJAS E OPORTUNISMO

Outra causa das provações dolorosas que afectaram o P. Dehon entre 1889 e 1896, mais dolorosas
que o “Consumatum est”, devem ser atribuídas ao ciúme de uma parte do clero de Soissons e às suas vistas
interesseiras.
O P. Dehon era indubitavelmente o sacerdote mais dinâmico e mais prestigioso da diocese, e
distinguia-se especialmente em S. Quintino. Tinha fundado e feito florescer o Patronato S. José e o colégio
S. João, enfrentado enormes despesas, mas sabendo também recolher copiosas ajudas financeiras. Se não
1098
Cf. AD, B 48/4, p. 15. Para um conhecimento pessoal destes indivíduos, cf. AD, B 48/4, pp. 11-28 e também o estudo do P.
Vassena scj, Irapporti di P. Dehon com i vescovi do Soissons, StD 20, pp. 166ss.
1099
NQ III, 117.
1100
AD, B 36(6, p. 10.
1101
AD, B 20/3.
1102
NQ IV, 97v.

218
fosse religioso, Mons. Thibaudier “tê-lo-ia escolhido como seu vigário geral e, certamente, teria sido feito
bispo”. Ora, todo este prestígio e ascendente que o P. Dehon não procurava, mas que manava
espontaneamente da sua rica personalidade e das suas contínuas iniciativas, obscureciam e provocavam
ciúmes a uma parte do alto clero de Soissons. Como já dissemos, deixou-se contagiar também por estes
ciúmes o arcipreste da basílica de S. Quintino, D. Mathieu.1103
O mesmo sucedeu com Eudósio Mignot, feito depois bispo de Fréjus e arcebispo de Albi. Um
homem de valor, de grande cultura, de ideias abertas, como demonstrará nos tempos do modernismo, mas
de tendências galicanas, enquanto o P. Dehon era ultramontano.
O P. Rasset, numa carta a sua irmã Melânia, freira missionária, destaca expressamente a hostilidade
de Mignot acerca do P. Dehon e da sua Obra. 1104 As suas relações sempre foram corteses, impregnadas de
amizade por parte do P. Dehon e de uma fria e ambígua cortesia por parte de D. Mignot. Eis um exemplo: a
carta de 8 de Janeiro de 1889 ao P. Dehon, enviada por Mons. Mignot, já bispo de Fréjus, para recomendar
a Roma a aprovação da sua Congregação, parece sincera e objectiva, mas na realidade caracteriza-se pelo
oportunismo.1105 Existe uma carta de Março de 1889 de Mons. Mignot ao novo bispo de Soissons, Mons.
Deramecourt, em que recomenda diferir a concessão de cartas de recomendação para Roma em favor do P.
Dehon: “Fui bastante incomodado em relação ao P. Dehon e penso que vós o estejais ainda mais do que eu.
Escrevi uma carta favorável porque o P. Dehon me tinha prestado aquele serviço pessoal, de que vos falei.
Não a escrevi por ser de Soissons, mas apesar de ser de Soissons. Não somente as pessoas das vossas
relações lhe são desfavoráveis, mas também grande parte do clero. Parece-me que não seria mal se vossa
excelência se mantivesse expectante”. Alude a casos de imoralidade conhecidos pela maior parte do clero,
mas não os atribui ao P. Dehon e continua: “No vosso lugar responderia que os pareceres estão totalmente
divididos na diocese em relação a esta Obra que ainda não conseguiu todo o seu desenvolvimento, que
pensais ter de esperar um pouco antes de dar a aprovação”.1106
Entre os opositores do P. Dehon destaca-se D. Mercier. C. M. Weppe, falando dos sacerdotes
diocesanos que eram ciumentos do padre Dehon, afirma: “D. Mercier era a sua criatura...”.1107
Carlos Mercier tinha sido aluno do S. João e parece também noviço do Instituto do P. Dehon. Em
Outubro de 1888 é diácono e prefeito de disciplina no S. João. A 22 de Dezembro de 1888 é ordenado
sacerdote. Em Outubro de 1889, é imposto ao P. Dehon como substituto na direcção do Colégio e como tal
fica até Agosto de 1896.
É um tipo duro e severo, o oposto, como carácter, do P. Dehon. É significativa a recordação de um
aluno do S. João, o doutor L. A. Painetvin: O P. Dehon “era bom. Nunca o vi rir, mas muitas vezes sorrir
com bondade. Acolhia-nos com gentileza e era fácil para nós notar a diferença entre o seu acolhimento e o
de D. Mercier”.1108
Paulino Delloue, director do S. João de 1896 em diante, afirma de um modo um tanto matizado que
D. Mercier carecia um pouco de afabilidade e de doçura, pelo que os alunos preferiam dirigir-se ao P.
Dehon, “pois não tinham confiança em D. Mercier”.1109
Este não se faz amar e está em contínua discórdia com o pessoal religioso do colégio S. João (os
religiosos do P. Dehon, que tinham as suas culpas; o atrito era particularmente com o ecónomo P. Falleur,
de carácter um pouco difícil), tanto que várias vezes tem de intervir, e duramente, Mons. Duval.
A 12 de Março de 1894, Mons. Duval escreve uma carta ao P. Paulino Delloue, queixando-se dos
conflitos que têm lugar no S. João. O P. Dehon está em Roma desde Fevereiro até Abril de 1894. 1110
“Tenho de lembrar-vos que é D. Mercier o encarregado da direcção intelectual e moral do S. João. Assim
foi convencionado e aceite entre mim e o P. Dehon. Não convém portanto que a sua autoridade (do
Mercier) seja discutida e ainda menos estorvada. Não convém sobretudo que se favoreça a formação de

1103
Cf. NHV, 45-47.63. A 10 de Abril de 1887 Mons. Thibaudier escreve ao P. Dehon: “Recebi esta manhã o Breve que confere
a dignidade de protonotário a D. Mathieu. Expedi-lo-ei amanhã” (AD, B 21/3q). Agora era Mons. Mathieu.
1104
Cf. Un prêtre du Sacré-Coeur. Vie édifiante du R. P. Rasset..., 216.
1105
Cf. Dossier de l’Evêché de Soissons, pp. 55-56 (AD, B 24/15.2).
1106
Cf. Dossier de l’Evêché de Soissons, pp. 57-58 (AD, B 24/15.2).
1107
Cf. AD, B 48/2d, doc. 60.
1108
Cf. AD, B 48/2d, doc. 63.
1109
Cf. AD, B 48/2d, doc. 82.
1110
Cf. NQ VI, 45v; NQ X, 108.

219
dois partidos na casa: o dos religiosos e o dos padres diocesanos. É preciso, pelo contrário, ajudar com a
vossa acção e com a vossa influência a direcção de D. Mercier e colocar à sua disposição, todas as vezes
que precisar, a boa vontade e o trabalho do vosso pessoal religioso. Dizei isto sobre tudo ao P. Falleur (era
o administrador que devia preocupar-se em pagar as dívidas) que precisa, creio eu, de compreender melhor
as suas funções e de não limitar a acção de D. Mercier. Deveis convencer-vos de que, se nomeei em
Outubro (1893) a D. Mercier como director do Colégio, fi-lo por razões sérias, reconhecidas e aprovadas
pelo próprio P. Dehon. Que não me deva arrepender da benevolência demonstrada para com o S. João”.1111
Antes do início do novo ano escolar de 1894-95, Mons. Duval relembra a todo o pessoal do S. João,
os pontos estabelecidos que devem ser observados: “Há o director (o Mercier), que tem toda a autoridade.
É preciso fornecer-lhe os meios para governar o colégio e o pessoal de que tenha necessidade.
“Estas são as minhas decisões para o próximo regresso dos alunos:
- O P. Falleur terá que sair do colégio. Substituí-lo-á D. Herbemont. D. Regault será o prefeito de
estudos e o P. Delloue o responsável dos religiosos, particularmente de alguns escolásticos que devem
estudar teologia; terá, além disso, a animação espiritual do colégio.
- O P. Dehon multiplica as suas visitas ao S. João, fica aí de dia, recebe os alunos no seu escritório.
Tudo isto deve acabar...
- Exijo absolutamente que tudo entre na ordem que tinha indicado e imposto há dois anos; ou seja,
que D. Mercier é o director real e efectivo do S. João, com todos os meios intelectuais e materiais para
fazer funcionar o colégio. Raras aparições do P. Dehon. Deixar realmente a D. Mercier a direcção e o
governo”.1112
Não devia resultar fácil, nem sequer para o P. Dehon, tratar com Mercier, embora tenha sido seu
aluno no S. João. Numa carta dirigida ao Vigário Geral de Soissons a 13 de Janeiro de 1895, referente às
ordenações, a liturgia e o ordo particular concedido por Roma à Congregação, e que tinha de seguir-se nas
nossas capelas, e portanto também no S. João, o P. Dehon pede ao Vigário Geral que intervenha junto de
Mercier, para que se conforme com as disposições de Roma.1113
Numa carta de Mercier a Mons. Duval de 27 de Junho de 1896, temos uma amostra dos seus
sentimentos para com o P. Dehon. Sintetizamo-la fielmente. Mercier queixa-se de que o P. Dehon tenha
indicado como superior do S. João o P. Delloue.1114 Se o P. Delloue se tornasse superior, os religiosos
interpretariam tudo isto como o cumprimento de uma promessa e não estariam dispostos a obedecer a um
director diocesano (que era ele). “Apesar das ordens de vossa excelência e a influência do P. Blancal”, os
religiosos aplaram ao P. Dehon, que apoiará o Delloue, tornando vãos as ordens do bispo e o parecer do P.
Blancal. Mercier pede ao bispo que não pense nele como titular do S. João. Não quer ter nada a fazer com
as intrigas dos religiosos e, se o S. João for à ruína, não quer ser ele o responsável. “Nada melhor que a
anarquia para arruinar rapidamente uma casa”. Agora é o P. Dehon o hábil e intrigante organizador desta
anarquia. Apresenta um superior (o P. Delloue) que tem o nome, mas não o poder de superior, já que os
religiosos recorrem sempre ao Superior Geral, o P. Dehon, que será o patrão efectivo da situação, apesar
das declarações de submissão ao bispo. Nesta situação, Mercier pede que não se lhe dê nenhum cargo
directivo do S. João: não teria forças para tal e tudo terminaria em bancarrota.1115
Desde algum tempo Mons. Duval procura tirar do P. Dehon e da sua Congregação a direcção do S.
João. De facto, em Junho de 1896, o P. Dehon escreve assim no seu Diário: “Negociações penosas com a
cúria episcopal. Monsenhor (Duval) gostaria de colocar D. Mercier à frente do S. João. Insisto para
conservar a Obra nas nossas mãos. Ganho a causa, submetendo-me a muitas humilhações e desgostos”.1116
De facto, na distribuição de prémios de 29 de Julho de 1896, o P. Dehon pode apresentar o novo director

1111
AD, B 48/4a, n. 1.
1112
O escrito de Mons. Duval está sem data, porém é autógrafo (AD, B 48/4a, n. 1).
1113
Cf. Dossier de l’Evêché de Soissons, p. 169-171 (AD, B 24/15.2).
1114
Sabemospor outras fontes que Mercier estava descontente pela eleição do P. Paulino Delloue como superior do S. João (cf.
AD, B 48/2d, doc. 52).
1115
A longa carta, que procuramos resumir fielmente, foi expedida de S. Quintino q 27.6.1886. (cf. Dossier de l’Evêché de
Soissons, pp. 37-39; AD, B 24/15.2).
1116
NQ XI, 62v: 28-30.6.1896.

220
do Colégio na pessoa de um religioso seu, o P. Paulino Delloue. “Esta comunicação é recebida com agrado.
Deo gratias! Também esta Obra tinha corrido o risco de fugir-nos”.1117
O P. Dehon conseguiu salvar o colégio, mas, como já dissemos, teve que sacrificar o Patronato S.
José. A 24 de Julho, assim escreve no seu Diário: “A diocese toma uma decisão penosa para nós: Confia o
Patronato S. José a D. Mercier. Havia 25 anos que tinha fundado esta Obra. Tinha investido somas
importantes. Tinha-me entregado com todo o ardor do meu jovem sacerdócio. Parece-me que esta Obra
deveria ficar para sempre confiada à nossa Congregação. A autoridade diocesana decide de outra maneira.
Fiat!...”.1118.
A 3 de Agosto de 1896, recebe do Vigário Geral, Brancourt, uma verdadeira comunicação de
despejo, um despedimento sem a mínima sombra de agradecimento: “Monsenhor encarrega-me de adverti-
lo que decidiu confiar à Paróquia (da basílica) o cuidado do Círculo, do Patronato e dos Irmãos (das
Escolas Cristãs). Sua Excelência pensou que a chegada a S. Quintino de dois novos coadjutores, pode
tornar mais fácil neste momento a mudança. Queira aceitar, senhor superior, a nova confirmação dos meus
melhores cumprimentos”.1119A chegada dos dois novos coadjutores (Delorme e Siros) era só um pretexto.
Na realidade, tratava-se apenas de encontrar um lugar honroso para D. Mercier, que ali ficaria até 1908.
Depois do Patronato S. José, também o colégio S. João passará para a diocese no tempo da lei das
associações, votada a 1 de Julho de 1901, que afectou a maior parte das congregações religiosas.
Do S. João o P. Dehon ficou apenas proprietário.1120
Depois do afastamento do P. Dehon, o colégio foi perdendo progressivamente crédito. “A minha
saída do S. João deixou no público uma impressão desfavorável”. 1121 Em 19 anos (1877-1896), do colégio
saíram 221 bacharéis e uma trintena de sacerdotes e seminaristas. Dos 800.000 francos gastos pelo P.
Dehon ainda ficam por amortizar 273.000. Pagará estas dívidas lentamente e com muito trabalho. Em
1925, poucos meses antes de morrer, fará a doação da propriedade do S. João à associação dos ex-alunos.

CONTRADIÇÕES DENTRO DA CONGREGAÇÃO

Detenhamo-nos agora nas contradições no seio da Congregação. À frente dos contestatários está o
P. Germano Blancal. Já o encontrámos encabeçando a oposição ao P. Dehon no terceiro Capítulo Geral de
Fourdrain (6-7 de Setembro de 1893).
Bernardo Blancal, em religião Germano do Santíssimo Sacramento, nascera em Villemur-sur-Tarn,
no sul da França (Alto Garona), a 20 de Novembro de 1826. Entrara na Congregação dos Sacerdotes do
Coração de Jesus de Toulouse, onde professara em 1851 e fora por vários anos superior da casa de
Montauban. Em 1872 encontramo-lo em Roma para impugnar a eleição do P. Caussette como Superior
Geral, acusando-o de imoralidade. Não ganhou a causa, e então separa-se do Instituto com os 6 religiosos
da sua comunidade. Em 1878 é superior em Notre-Dame d’Alet na arquidiocese de Toulouse. Como
consequência da lei Ferry, a 4 de Novembro de 1880, o P. Blancal e os seus religiosos foram dispersos pela
força pública. Entra para os religiosos do P. Dehon a 12 de Maio de 1888 e não em Março de 1889 como o
P. Dehon anota no registo do pessoal.1122 Todos os opositores do P. Caussette tinham pedido para entrar na
Congregação do P. Dehon, mas este, felizmente, não os admitiu. Tinha admitido só o P. Blancal, com a
idade de 62 anos, seguindo o conselho do prudente P. Eschbach.1123

1117
NQ XI, 65v: 29.7.1896.
1118
NQ XI, 65v: 24.7.1896.
1119
AD, B 21/3.
1120
Cf. NQ XVII, 3-4: Julho de 1901.
1121
“Via Crucis”, p. 9: AD, B 36/6.
1122
Assim escreve o P. Dehon no seu Diário: “O P. Blancal vem e anuncia-mea próxima chegada de D. Theise. Serão, espero, os
primeiros elementos de uma fundação em Paris” (NQ IV, 40r-40v: 12.5.1888). No registo do pessoal, o P. Dehon tem datas
diferentes: entrada: Março de 1889; tomada de hábito: 25 de Março de 1889; profissão: 28 de Agosto de 1889 (RP, p. 18). No
Diário o P. Dehon escreve que o Blancal, de20-28 de Agosto de 1889, prega os exercícios espirituais à comunidade (as
meditações da manhã) enquanto o P. Dehon faz as conferências da tarde (cf. NQ IV, 95r). O P. Blancal faz a profissão perpétua a
6 de Setembro de 1890 (RP, p. 18) no fim dos exercícios espirituais de Fourdrain, de 31 de Agosto a 6 de Setembro de 1890 (cf.
NQ V, 12-r-12v).

221
Homem de vasta cultura e experiência, de porte distinto, solene e amável no trato, sabia granjear a
confiança das pessoas. Grande orador, cativava o auditório durante horas inteiras. Para pregar exercícios ao
clero era pedido com cinco ou seis anos de antecedência.
Superior da Casa do Sagrado Coração de S. Quintino, conseguiu ter um grande ascendente dentro e
fora da Congregação. Na cúria diocesana gozava de ilimitada confiança. Foi também confessor e director
espiritual das Servas e seu conselheiro, conseguindo que as Irmãs se distanciassem do P. Dehon durante
bastante tempo.
Juntamente com estes grandes dotes, Mons. Philippe, nos seus “Ricordi”, diz que o P. Blancal
carecia de “um justo equilíbrio interior... era ambicioso, enfatuado de si mesmo, litigioso. Ao ouvi-lo,
acreditava-se nele e ficava-se vencidos e convencidos”.1124
Segundo as informações recolhidas pelo Cón. Rouge, antigo noviço dos Sacerdotes do Coração de
Jesus de Toulouse, todos os que conheceram o P. Blancal, qualificam-no como “um oportunista, um
ambicioso, um invejoso, porém com certa diplomacia. Todos estavam convencidos de que tinha entrado
nos Sacerdotes do Coração de Jesus para chegar ao posto mais elevado possível”.1125
Quem mais tinha apoiado a entrada do P. Blancal na Congregação do P. Dehon era a Madre Ana de
S. Francisco de Sales, Superiora Geral da Adoração Reparadora de Paris (Rue d’Ulm). Parece que foi a
Madre Ana quem pôs o P. Blancal em contacto com o P. Dehon. Fez dele os maiores elogios: “É um santo
sacerdote, todo dedicado ao Coração de Nossos Senhor e tem a vocação reparadora”. 1126 Passado um mês,
Madre Ana escreve novamente ao P. Dehon depois do P. Blancal ter pregado o primeiro curso de
exercícios na casa de Paris: “Penso que vos interessa se vos dou alguma notícia do P. Blancal que acaba de
pregar os exercícios espirituais anuais com grande proveito para a nossa comunidade. Fiquei muito
edificada e muito satisfeita com a sua pregação enérgica e ao mesmo tempo animadora. Sente-se que é uma
alma muito unida a Deus, muito iluminada pela sua íntima luz e compenetrada pelo pensamento reparador
até ao ponto de ter uma verdadeira vocação. Cada vez estou mais convencida que Deus tem desígnios sobre
ele e que junto de vós... encontrará aquilo que procura há tanto tempo”.1127
Nenhuma surpresa; a M. Ana conhecia o P. Blancal só como pregador de exercícios espirituais e
estava entusiasmada; parecia-lhe um homem de Deus; os seus confrades conheciam-no melhor e mais a
fundo na vida de todos os dias. Os dotes e os defeitos do homem eram manifestos.
O P. Dehon, segundo o seu costume, não lhe faz nenhuma crítica negativa. Fê-lo superior da casa
mãe (Casa do Sagrado Coração) e o P. Blancal desempenhou o seu ofício com perfeição.
Era um homem inteligente e experimentado e não podiam passar-lhe despercebidas as deficiências
do novo Instituto. Relevou, por exemplo, vazios na formação, tanto espiritual como intelectual, dos jovens.
Sob pretexto de melhorar a situação e lançar o Instituto para um autêntico progresso, alguns religiosos
viram no P. Blancal o homem do futuro e polarizaram à volta dele a oposição ao P. Dehon.
O P: Dehon, pelo seu apostolado social, ausentava-se de S. Quintino. Procuraram formar à volta
dele o vazio completo. Para Mons. Duval, o P. Blancal era o homem ideal. Tê-lo-ia visto com gosto como
guia da Congregação e também como Vigário Geral da Diocese.
Recordamos a carta de recriminações que Mons. Duval mandara ao P. Dehon a 2 de Setembro de
1893, pouco antes de começar o terceiro Capítulo Geral de Fourdrain (6-7 de Setembro de 1893). Aquela
carta desautorizava completamente o P. Dehon e soava como um convite a eleger um novo Superior Geral
que, segundo os auspícios do bispo, deveria ser o P. Blancal 1128. A manobra falhou. O grupo do P. Blancal
resultou minoritário e o problema foi adiado para o quarto Capítulo Geral de 1896.
1123
O P. Eschbach numa carta de 22 de Outubro de 1887 manifestava, como seu humilde conselho, ser contrário à fusão com os
Padres de Toulouse. Ao máximo poderia receber um ou outro como noviço (AD, B 21/3u).
1124
L. Philippe (Mos.) scj “Ricordi” (dactilografado), 95-96.
1125
Carta do Cón. Rouge, párocoarcipreste de Villefranche Laurasais (Alto Garona) de 17 de Janeiro de 1849 ao P. Jacques (AD,
B 63/3).
1126
Carta de Madre Ana de S. Francisco de Sales ao P. Dehon de 2 de Agosto de 1887. Nesta carta convida o P. Dehon a visitar o
P. Blancal se passar perto de Lyon ou a encontrar-se com ele por ocasião de três cursos de exercícios espirituais que o P. Blancal
devia pregar nas casas das Irmãs da Adoração reparadora em Paris, Lille e Charlons-sur-Marne (AD, B 21/3u).
1127
Carta de M. Ana de S. Francisco de Sales ao P. Dehon de 21 de Setembro de 1887. Nesta carta a M. Ana avisa de modo
informal que, de Lille, o P. Blancal escreverá para se poder encontrar com o P. Dehon em S. Quintino de 30 de Setembro a 3 de
Outubro (AS, B 21/3u).
1128
Cf. p. (307s) da presente biografia.

222
O P. Blancal criticava muito, mas nem ele nem a sua comunidade (Casa do Sagrado Coração),
estavam isentos de críticas. Serpenteava um certo espírito, que certamente não era o ideal para se
apresentarem como modelos de uma fervorosa comunidade, dedicada ao amor e à reparação ao Sagrado
Coração!
Temos testemunhos disto em algumas cartas escritas por D. Cornevaux ao Vigário Geral de
Soissons entre Junho e Agosto de 1892. Cornevaux aparece como um bom sacerdote, que tem necessidade
de ajuda e deseja voltar para a América.
“Desde a minha chegada ao Sagrado Coração, a minha estatura, o meu modo de caminhar, as
minhas palavras, as minhas melhores intenções foram objecto das críticas de um reverendo, sempre
disposto a fazer uma boa ou uma má acção, desde que dela tire proveito... Agradecer-vos-ia que me
dissésseis se devo comprometer-me com pessoas que parece gloriarem-se de menosprezar o grande amor
do Sagrado Coração para comigo...”.1129
A 11 de Julho de 1892, o Ver. Cornevaux deixa S. Quintino, certamente muito desgostoso. A 20 de
Agosto escreve, de facto, ao Vigário Geral de Soissons e queixa-se das bisbilhotices dos Padres da Casa do
Sagrado Coração a seu respeito mesmo com pessoas estranhas, acabando nas bocas de todas as beatas de S.
Quintino.1130
Recorda, reconhecido, o P. Dehon porque escreveu uma boa informação sobre ele e pede que essa
informação seja confirmada pelo bispo (carta de 20 de Agosto de 1892). De facto, a 26 de Agosto, volta a
escrever ao Vigário Geral para que lhe devolva a carta do P. Dehon com o visto de Mons. Duval.1131
Sabemos que os Padres da Casa do Sagrado Coração dedicavam-se ao apostolado, especialmente ao
das missões paroquiais e à adoração quotidiana.
Numa carta de 3 de Abril de 1886 ao P. Dehon, Mons. Thibaudier manifesta-lhe a sua satisfação
pela pregação dos Padres.1132 Mas, noutra carta de 14 de Abril de 1886, o bispo escreve ao P. Dehon:
“Juntai aos regulamentos dos vossos missionários que devem ser discretos e falar só com caridade seja das
pessoas... seja das casas canónicas em que se tenham alojado”.1133 O P. Dehon aprova o bom senso do
conselho.
De todos estes elementos e das apreciações breves e subtis sobre os Padres da Congregação que o P.
Blancal expõe no relatório dirigido a Mons. Duval a 17 de Julho de 1893, já citado 1134, tem-se a impressão
de que na comunidade do Sagrado Coração se difundiu um certo pietismo ambíguo, tão mesquinho como
duro, carente de caridade e de calor humano, sempre disposto a cortar na casaca do próximo em todas as
direcções”.1135
Agora compreendemos como as observações sobre o mau espírito presente na Casa do Sagrado
Coração, que lemos no Diário e nas cartas do P. Dehon, não se refiram só à oposição à sua pessoa, mas
sejam um pouco uma característica da comunidade.1136

O QUARTO CAPÍTULO GERAL (1896)

1129
Carta do Rev. Cornevaux de 30.6.1892 (AD, B 48/4a, n. 8).
1130
Carta do Rev. Cornevaux de 20.8.1892 (AD, B 48/4a, n. 8).
1131
Carta do Rev. Cornevaux de 26.8.1892 (AD, B 48/4a, n. 8).
1132
Cf. NHV XV, 48-49.
1133
NHV XV, 49.
1134
Cf. p. (308s) da presente biografia.
1135
AD, B 48/4a, n. 4.
1136
Cf. NQ XII, 62: 29.5.1897. Em todos os lados há bom espírito menos no Sagrado Coração”: carta do P. Dehon ao P. Falleur
de 12.7.1897 (AD, B 20/3); cf. carta de 12.2.1887 (AD, B 20/1). De 24 a 27 de Agosto de 1896 teve lugar o famoso Congresso
eclesiástico de Reims, com a participação de “500 sacerdotes zelosos e ardentes... Um Congresso tão sábio, prudente e bem
dirigido, foi fortemente criticado. Falou-se de presbiterianismo, de sínodo sem bispos, etc. Muito ruído para nada!” (NQ XI, 68v-
69r). O P. Dehon fez o discurso de abertura e orientou os exames de consciência, pedindo que caíssem as barreiras dos
preconceitos para levar o Evangelho ao povo. As críticas ao Congresso de Reims atacavam também o P. Dehon e suscitavam
atitudes críticas e negativas em alguns dos seus religiosos que não viam com bons olhos o apostolado social do seu Fundador e o
seu abandono do legitimismo monárquico para aderir à Democracia cristã. O P. Blancal era conservador e legitimista
convencido. O apostolado social do P. Dehon era, segundo ele, “fazer política”

223
Neste clima, nada favorável ao P. Dehon, abria-se na Casa do Sagrado Coração de S. Quintino o
quarto Capítulo Geral (31 de Agosto – 1 de Setembro de 1896). Os seis Padres da Casa mãe, à frente dos
quais está o P. Blancal, eram os opositores do P. Dehon e desejavam uma desforra. Era necessário o apoio
e, possivelmente, a intervenção de Mons. Duval. É por isso que a 12 de Julho de 1896, o P. Paulo Delgoffe
escreve, em nome dos opositores do P. Dehon, uma carta ao bispo de Soissons. Adverte-o “das intrigas em
favor do P. Dehon”. O Assistente Geral, P. Rasset, no último triénio (1893-1896), foi só um joguete do P.
Dehon e continuará a sê-lo depois do Capítulo se for reeleito. Pede por isso a Mons. Duval que marque a
data do Capítulo e que assuma a presidência para garantir a liberdade de palavra e de eleição a todos...
“Penso que, na situação actual, só o P. Blancal nos pode salvar...”.1137 A 30 de Julho, o P. Delgoffe envia
uma segunda carta ainda mais grosseira a Mons. Duval. O P. Dehon é apresentado como um guerreiro que
entra no campo armado até aos dentes, decidido a defender até à última gota de sangue as suas posições.1138
Provavelmente o P. Dehon nunca soube destas cartas, todavia experimentou e sofreu-lhes as
consequências. A mais eficaz confutação e condenação veio da parte do próprio P. Delgoffe, 24 anos mais
tarde, a 6 de Janeiro de 1920, quando escreveu um comovente carta ao P. Dehon para pedir-lhe
humildemente perdão por todos os desgostos que, muitos anos antes, lhe tinha causado. “Foi um
desgraçado passado”. Lamenta sinceramente ter sido “o instrumento maléfico” do sofrimento do “Très bon
Père” (assim era familiarmente chamado o P. Dehon). “Houve ... caluniadores conscientes e caluniadores
inconscientes. Arrependo-me de os ter por vezes escutado”. A todos o P. Dehon perdoou.1139
E eis-nos na abertura do quarto Capítulo Geral, na Casa do Sagrado Coração de S. Quintino, a 31 de
Agosto de 1896. Respira-se uma atmosfera pesada, verdadeiramente “incandescente”, escreve o P. Philippe
nos seus “Ricordi”.1140 Há uma grande confusão entre os capitulares. “Sinto uma profunda mágoa – escreve
o P. Dehon no Diário -. Um Padre deu ouvidos a calúnias, acredita nelas, propaga-as e agita o Capítulo. No
fim, porém, tudo acaba bem. Fazemos uma revisão das nossas regras e tomamos úteis decisões”. 1141 Isto é
tudo para o P. Dehon. São as grosseiras calúnias de corrupção dos jovens, propaladas pelo desgraçado
Caetano Juniet.1142 Os Padres Capitulares são 26. prespectiva-se um Capítulo mais difícil que o de 1893. O
P. Dehon aparece no banco dos réus.
Depois do discurso de abertura, o P. Dehon apresenta, como de costume, as demissões. No conselho
de presidência é assistido pelo P. Rasset e pelo P. A. Prévot. Depois das demissões do P. Dehon, em lugar
de passar imediatamente a novas eleições, o P. Rasset, presidente do capítulo, propõe sabiamente que se
ponha à votação a aceitação ou recusa das demissões do P. Dehon. Levanta-se então o P. André Prévot e
diz: “Estejam as coisas como estiverem, o P. Dehon é o único capaz de dirigir a Obra”.1143
As demissões são rejeitadas com 16 votos contrários e 6 favoráveis.
Na terceira sessão, o P. Blancal, habilíssimo orador, profere uma autêntica requisitória contra as
carências do Instituto: recrutamento demasiado fácil e precipitado, formação incompleta, demasiadas obras
e, além disso, diferentes, etc. De tudo isto resulta dispersão de forças, apressada formação,
enfraquecimento da disciplina, etc.
Os factos eram verdadeiros, e remediá-los seria justo; mas levantar com eles uma polémica era, pelo
menos, inoportuno. O P. Blancal pedia ao Capítulo para “adoptar medidas eficazes para reconduzir a
Congregação ao projecto primitivo que lhe tinha dado origem”. Segundo o P. Blancal, não se tinha
realizado e não se vivia a Obra do Sagrado Coração como se tinha apresentado a ele e a outros padres
quando entraram na Congregação.
Era uma crítica de fundo que implicava a fidelidade do P. Dehon ao seu carisma de Fundador.
Observa o P. Philippe: “Alguns, não conhecendo exactamente os valores que tinham guiado os
inícios da Obra, afastavam-se do caminho certo, orientando a Congregação para uma vida exclusivamente
contemplativa ou restringindo a sua actividade à adoração reparadora e ao ofício divino”.1144
1137
Dossier de l’Evêché de Soissons, pp. 39-40 (AD, B 24/15.2).
1138
Dossier de l’Evêché de Soissons, pp. 41-42 (AD, B 24/15.2).
1139
AD, B 18/6.1, cit. também in Dossier de l’Evêché de Soissons, pp. 42-43 (AD, B 24/15.2).
1140
Philippe (mons.) scj, “Ricordi”, p. 96.
1141
NQ XI, 69r-69v: 31.8-1.9.1896.
1142
“Via Crucis” p. 9-10: AD, B 36/6.
1143
Philippe (mons.) scj “Ricordi”, p. 96.
1144
L. Philippe (mons.) scj, Lettere circolari, n. 8, n. 52, p. 235.

224
O quarto Capítulo Geral afirmou decididamente que também o compromisso apostólico era um
valor essencial da espiritualidade do Instituto. Ao mesmo tempo auspicava que, ao menos na casa mãe, a
Casa do Sagrado Coração, se fizesse a adoração perpétua, logo que fosse possível.
Este era também o mais vivo desejo do P. Dehon. Quantas vezes fala dele nos seus escritos! Mesmo
relativamente à Casa do Sagrado Coração, estando os padres empenhados no ministério, o P. Dehon tinha
proposto, desde 1893, que fosse organizada de modo que pudesse hospedar habitualmente noviços:
“Teríamos assim uma casa de adoração. É fundamental para o Instituto. Sem a adoração a nossa Obra não
cumpre a sua missão...”.1145
As decisões do Capítulo encontram-se resumidas na carta circular do P. Dehon de 29 de Setembro
de 1896.1146
A formação espiritual e intelectual, a administração e a disciplina são mais particularmente tratadas
na carta circular de 17 de Outubro de 1897, enquanto a carta circular de 13 de Março de 1898 é dedicada só
ao currículo dos estudos.1147
É importante referir como no Capítulo de 1896 se enfrentam duas concepções diferentes acerca da
Congregação: a do P. Blancal e a do P. Dehon. O P. Blancal tem uma concepção restrita, “diocesana” do
Instituto, partilhada evidentemente pelo bispo de Soissons. Para o P. Dehon, ainda antes de 1888 e, com
mais razão depois do “Decreto de louvor”, a Congregação deve ser internacional.
Será a salvação do Instituto, especialmente no tempo da perseguição de Combes (1902-1905) com a
confiscação dos bens das congregações em França e a expulsão dos religiosos.
Sublinhamos que na quarta sessão do Capítulo (1896) é eleito o novo Conselho Geral. O grupo
Blancal sai derrotado. É sintomático que o P. Blancal já não é reeleito assistente, mas só conselheiro. O
segundo assistente é o P. André Prévot, não obstante a sua residência habitual ser em Sittard. O primeiro
assistente, o P. A. Rasset, mantê-lo-á ao corrente de tudo.
Nos dois Capítulos de 1893 e 1896, é evidente como o P. Dehon valoriza muito as casas de Sittard
(fundada a 2.2.1883), a de Clairefontaine (fundada a 2.7.1889) e todas as casas (Roma, Limpertsberg-
Luxemburgo, etc.) situadas fora da diocese de Soissons e fora da França, que davam ao Instituto um claro
carácter internacional.

UMA FRACASSADA TENTATIVA DE DIVISÃO

Para uma visão completa destes anos obscuros (1889-1896) na vida do P. Dehon e da sua
Congregação, mais dolorosos que os anos do “Consumatum est”, devemos mencionar um último facto:
uma perigosa tentativa de divisão do Instituto.
Di-lo o P. Cláudio Lobbé, então Conselheiro Geral, numa carta de 21 de Agosto de 1897 ao Vigário
Geral de Soissons. O cabecilha é ainda o P. Germano Blancal com os religiosos da casa mãe (Casa do
Sagrado Coração de S. Quintino). O P. Blancal era um especialista nestas lides desde o tempo em que
pertencia aos Sacerdotes do Coração de Jesus de Toulouse.
O P. Lobbé manifesta numa carta o seu descontentamento e o de vários religiosos da Casa do
Sagrado Coração, até ao ponto de pensar numa separação.1148
A impressão que se retira da carta é que a crise pessoal do P. Lobbé reflicta a crise dos membros da
comunidade do Sagrado Coração, e seja indevidamente atribuída a toda a Congregação.

1145
NQ VI, 24r : 1.3.1893.
1146
Lettere circolari, nn. 83-90.
1147
Lettere circolari, nn. 91-102. 103-104.
1148
Dossier de l’Evêché de Soissons, pp. 44-45 (AD, B 24/15.2).

225
Também o P. Blancal queria ir-se embora, como resulta de uma carta do P. Dehon ao P. Falleur de
12 de Julho de 1897.1149 De facto, na casa mãe, preparava-se uma verdadeira cisão da Congregação.
Encontrámos um “Memorial da Casa do Sagrado Coração ao reverendo P. Dehon, Superior Geral”
– S. Quintino, 6 de Julho de 1897.
“Desde há uns anos – lê-se nele – um número bastante relevante de membros da Congregação não
deixaram, nos Capítulos, nos conselhos, nos encontros privados, de manifestar as suas inquietações sobre o
caminho que segue o Instituto de que sois o Superior Geral”. Motivos de descontentamento: a facilidade
em admitir elementos sem considerar suficientemente a sua idade, os seus estudos, os seus antecedentes; as
deficiências na formação; o excessivo número de obras relativamente ao pessoal que se esgota e sofre.
O mal estar dos espíritos, tomado superficialmente, pode ser atribuído, “seja a um partido de
oposição, seja a outros sentimentos de má vontade. É talvez aquilo que pensastes vós mesmo, meu
reverendo padre, e por conseguinte era natural que as relações entre nós se tornassem tensas e os nossos
encontros embaraçosos e incómodos.
“O mal estar tem a sua motivação profunda na questão da nossa vocação”. O P. Dehon, segundo o
P. Blancal, olha mais ao número dos membros do que à sua qualidade; multiplica as escolas apostólicas e
os escolasticados; quer que a Congregação esteja presente nas questões mais importantes do seu tempo e,
“deixando a outros o cuidado de exercer a sua caridade com as misérias morais que pululam à nossa volta”,
aspira a empenhar o Instituto nos países longínquos.
“Esta – afirma ainda o memorial – não é a Congregação que nos foi proposta quando entrámos e à
que estamos vinculados pelos mais sagrados laços”; não tem dela nem a finalidade, nem o espírito, nem a
forma. Entrando na Congregação pensávamos numa vida espiritual que tivesse como finalidade principal:
1) um culto especial de amor e de consolação ao Coração de Jesus, como um rápido e poderoso meio de
santificação (e cita uma passagem do Decreto de Louvor, errando a data: 25 de Fevereiro de 1897 em lugar
de 1888). 2) A reparação, o puro amor, a profissão de imolação. 3) As duas obras essenciais eram: a
adoração perpétua e a propagação do amor que brota da devoção ao Sagrado Coração de Jesus, através da
pregação às comunidades religiosas e às missões populares. Era aquilo que, ao menos em parte, se fazia na
Casa do Sagrado Coração.
As regras, as Constituições, os livros de piedade recomendam-nos tudo isto. “Quem não vê, à
primeira vista, a profunda diferença entre o género de vida que nos foi proposto e o que actualmente
devemos viver?”. Só depois de ter assegurado as obras essenciais, pode a Congregação entregar-se a outras
obras acessórias; o contrário, seria a morte.
Copiamos a conclusão: “Certamente, meu reverendo Padre, na Obra como vós a concebeis e que
vos esforçais de realizar, vós descobris a vossa vocação e a seguis. Nós, pelo contrário, não podemos ver
mais que a negação e o abandono da nossa.
“Como vedes, um abismo nos separa; as nossas maneiras de ver são totalmente opostas.
“Deixemos portanto de penalizarmo-nos uns aos outros, procurando impor-nos um jugo que não é
feito para nós. Fazei a vossa Congregação como a planeais. Vós já estais garantido, com um pessoal
numeroso. Deixai que, com o nosso pequeno grupo, façamos livremente a nossa (Congregação). Podemos
dizer um ao outro como os dois patriarcas: A mesma terra não pode conter-nos. Se tu fores para a direita,
eu escolherei a esquerda e vice-versa.
“A nossa separação pode fazer-se sem alvoroço nem injúrias, mas de comum acordo e com
amabilidade. Só a paterna autoridade do nosso bispo será chamada a intervir para a regulação dos
interesses espirituais e, em caso de litígio, para as questões temporais. Se preferirdes a autoridade da Santa
Sé, não a recusamos. Facilitaremos, por outro lado, os acordos... Embora feita amavelmente, a nossa
separação não se fará sem dor... Mas, quando se trata de obedecer a uma chamada de Deus e de
salvaguardar uma vocação, a ninguém é permitido fugir”.
Seguem as assinaturas: P. Blancal, I. Blanc, A. Lobbé, P. Delgoffe, S. Miquet, A. Deal, B. Blanc.
Dos que assinaram esta carta, três saíram da Congregação, mas não para fundar uma melhor: o P.
Bruno Blanc e o P. Sebastião Miquet em 1900 e o P. Ireneu Blanc em 1902 passaram para o clero secular.

1149
“O P. Blancal vendo que a aventura não triunfa, aborrece-se e fala em ir-se embora. Fiat!” De facto, aqueles que o apoiavam
começavam a abandoná-lo. Carta do P. Dehon ao P. Falleur de 12.7.1897 (AD, B 20/3).

226
VENCE A BONDADE

Penso que se não se chegou à ruptura, foi graças ao espírito de bondade e de infinita paciência do P.
Dehon e à intervenção da Providência de Deus com a doença e a morte de Mons. Duval (23 de Agosto de
1897).
Não se admire o leitor se nos referimos tão pouco aos bons e “santos” colaboradores do P. Dehon
nos princípios da sua Congregação, o primeiro dos quais o P. André Prévot, depois o P. Afonso Rasset, o P.
Barnabé Charcosset1150 e tantos outros; ao passo que concedemos amplo espaço aos opositores do P.
Dehon, o primeiro dos quais é o P. Germano Blancal, com o risco de criar uma visão um pouco distorcida
dos inícios da Congregação dehoniana.
Os colaboradores do P. Dehon cooperaram na verdadeira história do Instituto e de alguns deles,
como do P. André Prévot e do P. Afonso Rasset, existem também biografias. Não nos foi possível falar
mais detidamente deles para não alongar demasiado a presente biografia.
Sobre os opositores detivemo-nos bastante mais, não por motivos de curiosidade ou de bisbilhotice,
mas para pôr em evidência a virtude do P. Dehon em circunstâncias muito difíceis tanto para ele
pessoalmente como para a vida da Congregação.
O P. Dehon, liberto da direcção do colégio S. João e das obras de S. Quintino, pôde dedicar-se
ainda mais intensamente ao apostolado social e às outras casas da Congregação, onde a sua presença
representava uma verdadeira festa, graças ao seu carácter carinhoso e paterno. há uma única excepção: a
Casa do Sagrado Coração de S. Quintino.
Podemos ver como se vai apagando a oposição ao P. Dehon através das suas cartas escritas ao P.
Falleur. O P. Falleur era ecónomo geral e muito ligado ao P. Dehon, também espiritualmente. Era,
portanto, um seguro confidente.
A 12 de Fevereiro de 1897, o P. Dehon escreve-lhe a partir de Roma: “A Casa do Sagrado Coração
tem mau espírito; deixemos que se cozam no seu próprio caldo”.1151 Não quer criar motivos de mau humor
no P. Blancal, e aconselha o P. Falleur que lhe abone 700 francos: “Desejo muito a paz, mesmo que seja a
minhas expensas”.1152 É claro que em S. Quintino (Casa do Sagrado Coração) o P. Dehon é indesejável. Por
isso escreve outra vez ao P. Falleur, que só lá ficará 8 dias: “Não permanecerei muito tempo em S.
Quintino, este ano”.1153
Temos uma carta muito atenciosa do P. Blancal ao P. Dehon de 7 de Outubro de 1896 sobre
questões económicas em que diz que pede ao Sagrado Coração que proteja o P. Dehon nas suas viagens.
No verso, o P. Dehon escreve: “Gostaria de estabelecer um modus vivendi com a Casa do Sagrado Coração
para não ter discussões irritantes“ sobre questões económicas.1154
São só relações de boa educação: nada mais. De facto, a 29 de Maio de 1897, o P. Dehon volta a S.
Quintino e escreve no Diário: “Encontrei intrigas, divisões, mau espírito!. É inútil descer a pormenores.
Nosso Senhor permite-o e aceito-o como expiação das minhas culpas. Sofro um martírio por algum tempo,
depois melhora. Faça-se a vontade de Deus”.1155
A 10 de Julho de 1897, o P. Dehon escreve ao P. Falleur: “É preciso rezar muito. Só nos resta uma
esperança: que Nosso Senhor toque e humilhe o cabecilha das intrigas (P. Blancal)”.1156
Finalmente de Clairefontaine, a 12 de Julho, escreve: “Paulo Delgoffe, em Sittard, está convertido.
Escreveu-me para pedir desculpa: Tinha prestado ouvidos a um mentiroso; suponho que se trate do famoso
J. (Caetano Juniet) que me acusava para dar-se importância junto dos seus financiadores”.1157

1150
Cf. pp. (254s. 290s.) da presente biografia.
1151
AD, B 20/3.
1152
Carta do P. Dehon ao P. Falleur do 22.2.1897 (AD, B 20/3).
1153
Carta do P. Dehon ao P. Falleur d Roma a 6.3.1897 (AD, B 20/3).
1154
AD, B 18/6.1.
1155
NQ XII, 62: 29.5.1897.
1156
AD, B 20/3.
1157
AD, B 20/3. A suposição do P. Dehon sobre o famoso J. (Caetano Juniet) era errada, como resulta da carta do P. Dejgoffe de
6 de Janeiro de 1920: “Parece-me bem afirmar de passagem que o infeliz Juniet, criminoso em vida e na morte, não foi a causa
da minha deplorável conduta” (AD, B 18/6.1).

227
A 16 de Julho de 1897 o P. Dehon escreve, de Val-des-Bois, ao P. Falleur que outros seguirão o
exemplo do P. Delgoffe: “O P. Blancal está muito ressentido”.1158
De facto ao mesmo tempo outro dos opositores do P. Dehon, o P. Ireneu Blanc, converte-se
também. “Dentro de pouco só ficará um, e sabeis quem” (P. Blancal).1159
Não conhecemos estas cartas de retractação, com excepção da do P. Delgoffe, de 6 de Janeiro de
1920.
Pouco a pouco vão melhorando também as relações do P. Blancal com o P. Dehon.
A 15 de Outubro de 1900, o P. Dehon recomenda ao P. Falleur que “que não se critiquem nem os
ausentes nem as casas, nem sequer a do Sagrado Coração...”.1160
O P. Blancal morrerá nos braços do P. Dehon: “Apagou-se suavemente sem agonia. Era a primeira
sexta-feira do mês. É uma delicadeza da Providência”.1161
No seu Diário, o P. Dehon fala tão bem do P. A. Rasset, o seu colaborador, como do P. Blancal, seu
opositor: admira-o, sobretudo, como missionário incansável, como pregador, como director de almas.1162
Para o P. Dehon a verdadeira história é somente a do bem. As misérias humanas nem sequer as
menciona; parece antes que as esquece na medida abundante da misericórdia de Deus. De todos os
acontecimentos mais dolorosos que o “Consumatum est”, desde 1889 a 1896, o P. Dehon só fala no seu
Diário, de uma maneira velada e genérica.
É inerente à sua nobreza de alma não descer nunca a particulares escabrosos, não revelar quem lhe
causou danos ou quem lhe foi inimigo. Nunca manifesta juízos negativos sobre as pessoas ou as suas
intenções.
Manifesta a sua dor e, em vez de desculpar-se, como é natural, pede perdão a Deus, não só das suas
faltas, mas também das dos outros, porque em certo modo se sente também responsável delas.
Em tudo vê a vontade de Deus que, mediante a cruz, o purifica e realiza a vocação de vítima.
Termina sempre com o “Fiat!”.
Tinha-lhe feito muito bem a leitura da vida de S. João Baptista de la Salle, que tão dolorosas provas
sofreu dentro e fora da sua Congregação. O santo tinha-se abandonado totalmente em Deus: “Só se a uva
for espremida é que se obterá bom vinho”.1163
O que mais impressiona no P. Dehon, durante esta tempestade de anos e anos, é o seu equilíbrio, a
inalterabilidade do seu carácter, a fortaleza da sua alma: vê tudo a partir do ponto de vista sobrenatural e
vive a dolorosa bem-aventurança daquele que sofre pela justiça. Esta sua grande bondade revela uma
insuspeita energia.
Sabe defender a verdade, mas, embora fazendo-o quando se trata da Congregação, e não tanto da
sua pessoa, submete-se interiormente à “mão” que conduz todos os acontecimentos: reza, recolhe-se nos
exercícios espirituais.
Nunca está desanimado. Visita as casas da Congregação, projecta novas fundações, participa
intensamente no apostolado social, tem até a serenidade de alma para apreciar a arte, por exemplo, das
igrejas de Sens, de Troyes, etc. Parece um superior que está de férias, sem preocupações.
O segredo desta surpreendente e grande tranquilidade interior está no seu abandono à vontade de
Deus.
Quantas vezes no seu Diário escreve o seu “fiat” a tudo o que Deus quer ou permite! As provações
são graças, aproximam-no do Coração de Jesus, permitem-lhe viver aquele “puro amor”, que sempre foi a
mais profunda aspiração da sua alma.
Se no seio da Congregação, um ano após o contrastado Capítulo Geral do 31 de Agosto ao 1 de
Setembro de 1896, a oposição ao P. Dehon quase se apagou segundo uma carta sua de 18 de Julho de 1897
ao P. Falleur, a oposição de Mons. Duval e de parte do clero diocesano só se extinguirá com o
desaparecimento dos opositores. Vê-lo-emos ao falar da aprovação definitiva da Congregação: questão de
vida ou de morte.
1158
AD, B 20/3.
1159
Carta do P. Dehon ao P. Falleur de 18.7.1897 (AD, B 20/3).
1160
AD, B 20/3.
1161
NQ XIX, 126-127: Dezembro de 1905.
1162
NQ XL, 29-32: Abril de 1916.
1163
NQ IV, 45v-46v: 11-13.6.1888).

228
229
Capítulo 17

O P. Dehon e as Missões

O desejo das missões – Uma situação muito diferente – Missionário e mártir - A primeira missão: Equador (1888-1896) – A grande missão do
Congo (1897) – Aparecera uma grande luz – A missão da Finlândia – A missão dos Camarões (1912) – Na África do Sul e na Sumatra.

O DESEJO DAS MISSÕES

Desde os primeiros tempos dos Oblatos do Coração de Jesus, as missões apareceram ao P. Dehon
como um vastíssimo campo onde realizar o carisma do seu Instituto.
Queria enviar os seus religiosos aos “países longínquos”, às missões, com a condição de poderem
ter uma vida comum e não viverem “isolados”.1164
No princípio de 1882, o P. Dehon entrega ao seu bispo, Mons. Thibaudier, que ia a Roma, uma
carta para era apresentada a Leão XIII, onde, entre outras coisas, escreve: “haurindo do Coração de Jesus o
espírito de sacrifício, gostaríamos de estar presentes nas missões”.1165 Durante toda a vida o P. Dehon teve
as missões na mente e no coração. Chegarão a ser a obra mais importante do Instituto.
Numa carta aos estudantes de Lille, o P. Dehon fala dos fins da Congregação que se concentram no
Coração de Cristo. Para corresponder ao seu amor, é necessário, entre outras coisas, abraçar aquelas
“formas de apostolado que exijam maior sacrifício... como a assistência aos operários, o cuidado dos
pobres, as missões longínquas”.1166
Esta exigência de generosidade absoluta recorda o belo testemunho que o Vaticano II prestou aos
Institutos dedicados ao apostolado missionário: “Desde há muitos séculos, tais Institutos suportaram o peso
do dia e do calor... Muitas vezes a Santa Sé confiou à sua evangelização vastos territórios, nos quais
reuniram para Deus, um novo povo... A essas igrejas, fundadas à custa do seu suor e até do seu sangue,
prestarão serviço com zelo e experiência em fraterna cooperação...” 1167
A história da actividade missionária do P. Dehon e dos seus religiosos demonstra até à evidência a
verdade deste testemunho do Concílio.
Parece-nos útil recordar os esforços que o P. Dehon fez para conseguir, da Santa Sé, uma missão.
A Congregação acaba de sair do choque da supressão (Dezembro de 1883), ressurgindo em Março
de 1884. Já em Dezembro de 1885, o P. Dehon escreve a Mons. Thibaudier: “Entre nós sempre está
presente o desejo das missões... Poderia talvez comunicá-lo a Roma. De facto, em Roma são muito bem
vistas as Congregações que pedem missões”.1168
No “aceno histórico” sobre a Congregação, o P. Dehon escreve a 7 de Novembro de 1886: “Embora
as missões estrangeiras não constituam nosso fim específico, muitos de nós desejam levar o amor ao
Coração de Jesus às terras dos infiéis que a Santa Sé nos confiar”.1169 Antes da experiência do Equador
(1888-1896), o P. Dehon recebeu a oferta (Outubro de 1887) de uma missão na Nova Guiné Norte-
Oriental. É uma colónia alemã e são precisos missionários alemães. Infelizmente, o P. Dehon tem apenas
estudantes de nacionalidade alemã. A projectada fundação do Vicariato Apostólico de Port-de-Constantin
(Baía do Astrolábio) não pode realizar-se. Lemos no Diário: “Peço a S. Francisco Xavier que nos ajude em
todos os nossos projectos missionários”.1170
1164
Cf. Cahiers Falleur V, 88; Cst. (1881), VII.
1165
AD, B 37/4. A carta foi entregue a Leão XIII a 10.3.1882.
1166
Lettere circolari, n. 326.
1167
Ad gentes, n. 27: EV 1/1185.
1168
NHV XV, 43-44.
1169
Letere circolari, n. 429.
1170
NQ IV, 5v: 3.12.1887.

230
A 19 de Fevereiro de 1888, o P. Dehon escreve no seu Diário: “Hoje mandei para Roma o pedido
de uma missão no estrangeiro”.1171 Dois dias mais tarde chega a proposta do P. Júlio Matovelle, do
Equador, para a fusão dos dois Institutos, inclusive com a finalidade de evangelizar os Índios dos Andes. 1172
O P. Dehon aceita. Embora a missão do Equador tenha resultado em fracasso, dará, sem dúvida, início ao
apostolado dos religiosos do P. Dehon na América Latina.
Depois da expulsão dos seus religiosos do Equador (1896), o P. Dehon não descansou até que
obteve a missão do Alto Congo, no Zaire actual (25 de Março de 1897). No princípio de 1897 o Instituto do
P. Dehon conta com 14 casas e 129 religiosos dos quais 65 são sacerdotes e 9 irmãos cooperadores. Conta
também com 65 noviços estudantes e 5 cooperadores.1173
No quarto Capítulo Geral de 1896 tomou-se a decisão, entre outras coisas, “de dar aos missionários
uma formação apropriada segundo o seu destino”.1174
As que nomeamos não são as únicas missões aceites pelo P. Dehon durante a sua vida e nas quais
trabalham os Sacerdotes do Coração de Jesus. Por dever de exactidão devemos recordar a missão da
Finlândia (1907), a dos Camarões (1912), a dos Peles Vermelhas de Dakota do Sul (1923), a missão da
Indonésia (Sumatra, 1923) e a de Gariep (África do Sul, 1923). O P. Dehon morre a 12 de Agosto de 1925.

UMA SITUAÇÃO MUITO DIFERENTE

Certamente que a situação actual é muito diferente da do tempo do P. Dehon. O colonialismo, ao


menos o político, é agora uma recordação longínqua.
Os países de missão do terceiro mundo conseguiram a sua independência ao menos nominal, têm
consciência da sua cultura, que querem viver e valorizar, possuem a sua própria personalidade e exigem o
respeito pelos seus direitos; querem que se conte com eles e ter um peso crescente na história do mundo.
Também diante do cristianismo a sua atitude é muito variada: desde a oposição e a perseguição até
a tolerância, a convivência e a aceitação.
Noutros tempos iam para as missões somente os religiosos e religiosas, agora também leigos e
casais. Há alguns anos os missionários geriam tudo o que estava relacionado com a missão: não só a
catequese e os sacramentos, mas também as escolas, os dispensários, os hospitais e, às vezes, também as
plantações. Agora, não somente a parte material e administrativa (em parte, se não totalmente, passaram
para as mãos dos indígenas (clero e leigos), mas aumenta sempre mais a parte activa dos leigos indígenas
cristãos na própria evangelização do povo, na seu meio político, económico e social, salvaguardando os
seus valores culturais.
Pode-se, pois, imaginar como o problema da evangelização é, hoje, muito mais complicado do que
nos tempos do P. Dehon. Basta ler os documentos do Sínodo dos Bispos de 1974: “A evangelização do
mundo contemporâneo”, a esplêndida encíclica de Paulo VI que os completa, a “Evangelii Nuntiandi”
(8.12.1975) e os discursos de João Paulo II nas suas visitas aos países do terceiro mundo.
Apresentam-se sempre problemas novos que devem ser resolvidos por cada uma das igrejas locais.

MISSIONÁRIO E MÁRTIR

Com 81 anos cumpridos, o P. Dehon começa desta forma o 45º caderno do seu Diário: “É o último
caderno e talvez o último ano. Fiat!... A minha carreira acaba; é o crepúsculo da minha vida”. 1175 Estamos
em Janeiro de 1925. É de verdade o último ano da sua vida. Faz o balanço da sua longa existência,
começando mesmo pela sua vocação missionária: “O ideal da minha vida, o voto que formulava com
lágrimas na minha juventude, era o de ser missionário e mártir. Parece-me que este meu desejo se tenha

1171
NQ IV, 22v: 19.2.1888.
1172
Cf. NQ IV, 23r: 21.2.1888; NQ IV, 34r: 10.4.1888.
1173
Cf. Elenchus 1897.
1174
Actas do quarto Capítulo Geral.
1175
NQ XLV, 1: Janeiro de 1925.

231
realizado. Missionário sou-o com os mais de cem missionários que tenho em todas as partes do mundo”. 1176
Mártir foi-o pelas dolorosas provações, algumas até heróicas, da sua longa vida.
Embora se sinta “o mais pequeno e o mais indigno dos fundadores”,1177 todos os dias se une aos
grandes santos e especialmente aos fundadores de ordens e congregações religiosas, porque cooperou com
o seu grandioso ideal: “Conquistar o mundo para Jesus Cristo... Todos os dias uno-me a todas estas almas.
Desejaria elevar o meu ideal à altura do seu. Amo ardentemente a Nosso Senhor e gostaria de promover o
reino do Sagrado Coração”.1178
Recorda, de modo particular, o P. Vicente Jeanroy, falecido em Fevereiro de 1925, pelo seu
empenho em recolher ajudas em Bruxelas para as missões do Congo (Zaire): “A sua grande obra foi a
procuradoria das missões para o Congo. Com Mons. Grison fundou e desenvolveu esta pérola das nossas
obras... Nomeado procurador da missão de Stanley-Falls, foi para o seu confrade, Mons. Grison, Vigário
Apostólico de Stanleyville (a actual Kisangani), um colaborador muito apreciado. Encarregado de prover
as necessidades materiais da missão mediante o envio periódico de ajudas, cumpriu esta tarefa, às vezes tão
árdua, especialmente no princípio, com uma entrega incansável”.1179
Recorda tantos dos seus missionários que sacrificaram as suas vidas: “Alguns morreram
generosamente na missão: no Congo, no Brasil”.1180 Já em Março de 1912 escrevia: “Os nossos mortos do
Congo, do Brasil, do Equador! No Congo são 17 os que deram a vida pela conversão dos negros. Um santo
Cardeal dizia-me que só o facto de irem para lá, expondo-se ao perigo de uma morte iminente, mereceria
para eles a palma do martírio”.1181
Recordando as suas numerosas viagens, releva que a sua finalidade foi a do sábio louvado pela
Escritura. “Percorre terras de nações estranhas, para reconhecer o que há de bom e de mau entre os
homens” (Ecli. 39,4),1182 para favorecer o primeiro e remediar o segundo. Tudo isso se efectiva com o
envio de missionários que colaboram para a elevação humana dos povos em vias de desenvolvimento e dão
a conhecer o Evangelho de Cristo.
Durante a sua longa viagem à volta do mundo (1910-1911), o P. Dehon interessara-se de modo
especial das missões. Apresentara um longo relatório à Santa Sé e falara longamente com Pio X numa
audiência particular de 11 de Abril de 1911, discutindo com o Papa diversos problemas do apostolado
missionário como:
- a elevação espiritual do Oeste Canadiano e dos Estados Unidos, onde os caminheiros carecem de
sacerdotes e os colonos chineses e japoneses estão abandonados a si mesmos. Deixámo-nos já ultrapassar
“na evangelização dos negros americanos”;
- a dificuldade do apostolado no Japão “apesar dos missionários devotos e dos excelentes colégios”.
Seria necessário – diz – incrementar a formação do clero indígena;
- na China, “as missões progridem”, mas seria necessário chegar a um entendimento no apostolado,
reunindo “conferências episcopais”. Nem na Coreia, nem na China, nem na Manchúria existem delegados
apostólicos para convocar estas conferências...;
- assinala alarmantes dificuldades nas Filipinas, onde o catolicismo carece de sacerdotes e de
meios...;
- em Ceilão, “a diocese de Kandy está nas mãos de um Instituto religioso com muito poucos
elementos e os protestantes estão ganhando terreno...”;
- na Índia verificam-se consoladores progressos, porém “os operários evangélicos não são
suficientemente numerosos”. Destaca que “as estruturas civis portuguesas nas dioceses da Índia,
constituem um obstáculo...”.1183

1176
NQ XLV, 12: Janeiro de 1925.
1177
NQ XLV, 2: Janeiro de 1925.
1178
NQ XLV, 2-3: Janeiro de 1925.
1179
NQ XLV, 31: Fevereiro de 1925.
1180
NQ XLV, 41: Fevereiro de 1925.
1181
“Ricordi”,Lettere circolari, n. 381.
1182
NQ XLV, 49: Março de 1925.
1183
NQ XXXIV, 6-9: Abril de 1911.

232
No fim do último caderno do Diário, em Julho de 1925, encontramos ainda uma lembrança
missionária: “A 6 de Julho de 1897: primeira partida para a missão do Congo. Foi a obra mais importante
da Congregação, comparada com todas as nossas obras de apostolado.”.1184
O P. Dehon teve, desde a sua adolescência, uma verdadeira vocação missionária, que pessoalmente
não pôde cumprir, mas que realizou mediante os numerosos missionários da sua Congregação. Desde
adolescente lia com gosto os “Anais da Propagação da fé e da Santa Infância”.
Sentia-se atraído “pela união a Nosso Senhor e pelo zelo da salvação das almas... Desejava dar-me
completamente. Queria ser religioso e missionário... Nos meus momentos de generosidade aspirava ao
martírio”.1185
Na sua viagem ao Oriente como jovem turista de 21 anos, alegra-se de que estejam trabalhando na
construção do canal de Suez (estamos em 1865) porque facilitará o acesso às missões da Ásia.1186
Como fundador prefere o apostolado missionário especialmente nos “países mais incómodos” pelo
seu clima (por exemplo no Congo) para realizar melhor o espírito da vocação dehoniana: a “profissão de
imolação”. Levando a cruz de Jesus, salvam-se as almas.1187
“É evidente que o Sagrado Coração de Jesus será honrado melhor, se o zelo da sua glória se
exercitar em condições difíceis como nas missões longínquas. Então faz-se um acto de abnegação que
constitui uma grande prova de amor a Nosso Senhor”.1188
Duas formas de apostolado acabam por prevalecer na Congregação: as missões na pátria
(especialmente nos primeiros anos do Instituto, na diocese de Soissons) e no estrangeiro. O P. Dehon
aceita-as e apoia-as como uma indicação da Providência .1189
Daqui o desejo do Padre Dehon de cultivar muitas vocações missionárias. Escreve ao P. Adriano
Guillaume em Dezembro de 1910: “Poderíamos fazer muito pela glória de Nosso Senhor e pela Igreja se
tivéssemos mais missionários no Congo, no Canadá, etc... Procurai muitas vocações, fazei que os nossos
rapazes rezem muito para este fim”.1190
E um ano antes, em Setembro de 1909, pensando nas necessidades de pessoal para incrementar a
missão do Congo, escreve no seu Diário: “Fomos muito provados no Congo. O P. Farinelle morreu. Muitos
regressam. Onde encontrarei apóstolos para todas as almas que lá os esperam? A messe está pronta. Faria
falta que fossem mais uns vinte. Se tivéssemos sido mais fiéis, seríamos também mais abençoados”. 1191 Em
Julho de 1919, o P. Dehon publica um noticiário em que manifesta o seu grande sofrimento pela penúria de
vocações missionárias, devida à primeira Guerra Mundial. Todavia destaca que o desejo das missões está
muito vivo na Congregação: “Um bom número dos nossos deseja levar o amor do Divino Coração a terras
de infiéis” e faz todos os sacrifícios possíveis para enviar missionários para o Congo e para os
Camarões.1192
Numa carta de Junho de 1922, insiste na necessidade de pessoal qualificado para as missões. “Rezo
pelo nosso recrutamento. As nossas missões exigem muito pessoal. Não desejamos só o número, mas
sobretudo o fervor e a generosidade”;1193 e em Dezembro de 1923 voltava a repetir: ”Trabalhemos
corajosamente pelas nossas missões e recrutemos muitos missionários”.1194

A PRIMEIRA MISSÃO: EQUADOR (1888-1896)

A primeira missão aceite pelo P. Dehon é a do Equador. A oportunidade foi o projecto de fusão da
Congregação do P. Dehon com o Instituto dos “Oblatos do divino Amor” fundado pelo P. Júlio Matovelle.
Este Instituto definhava. O fim das duas Congregações era semelhante. A fusão parecia lógica e fácil.
1184
NQ XLV, 64: Julho de 1925.
1185
NHV I, 29r.
1186
Cf. NHV III, 138.
1187
NQ XVIII, 106: 14.9.1903.
1188
Lettere circolari, n. 162.
1189
Cf. Denis, Le projet du Père Dehon, 303.
1190
AD B 44: 3.12.1910.
1191
NQ XXIV, 123-124: Setembro de 1909.
1192
O primeiro noticiário é provavelmente de 1886.cf. Denis Le projet du Père Dehon, 295; ed. It. 394.
1193
Lettere circolari, n. 287.
1194
Lettere circolari, n. 295.

233
Assim zarparam para o Equador os dois primeiros missionários dehonianos: o P. Irineu Blanc e o P.
Gabriel Grison, um para tomar a direcção do Noviciado dos Oblatos do divino Amor e o outro para a
Escola Apostólica. Era sábado 10 de Novembro de 1888.
O P. Dehon acompanhara os dois padres a Saint-Lazare, para o embarque no navio “La France”.
Numa carta do mês de Novembro de 1888, escrita pelo P. Grison ao P. Dehon e também assinada pelo P.
Blanc, evoca-se a cena comovedora da saída dos dois primeiros missionários da Congregação: “Durante
muito tempo continuarei a ver-vos, de pé sobre o molhe de Saint-Lazare, avançando o mais possível,
seguindo-nos com o olhar e animando-nos com o sorriso. Um sentimento indefinível enchia-me a alma.
Aquele dia foi um dos melhores da minha vida. Desde havia muito tempo pensava nesse momento, mas a
realidade superou as minhas esperanças e compreendo que o agradecimento, especialmente à Santíssima
Virgem, deve prevalecer na minha oração. Nosso Senhor tratou-nos como filhos predilectos”.1195
Numa cerimónia íntima no colégio S. João, o P. Dehon dirigira aos primeiros missionários da
Congregação ardentes palavras de alento e de bons votos inspirando-se no texto de Isaías: “Enviarei os seus
sobreviventes às nações... às ilhas longínquas... e eles anunciarão a minha glória às gentes”(Is. 66,19).
Exattara a grandeza do sacrifício do P. Grison e do P. Blanc, o testemunho de fé e de coragem que eles
davam. Em seguida, ajoelhara-se para beijar os pés dos dois “missionários", imitado por todos os presentes,
recordando o belíssimo texto de Jesus (53,1) aplicado por S. Paulo aos pregadores do Evangelho: “Que
formosos são os pés dos que anunciam boas novas” (Rom. 10,15).”A toda a terra se propagou a sua voz e
até aos confins do mundo as suas palavras” (Sal.19,5; Rom. 10,18).
Desta primeira Missão ao Equador, humanamente encantador foi apenas a viagem de ida, já que,
chegados ao lugar, resultou impossível qualquer colaboração com o P. Mantovelle. Não só fracassou a
fusão das duas Congregações junto com a projectada evangelização dos índios dos Andes, mas também se
desvaneceu o projecto de construir uma basílica nacional em Quito, tendo por modelo a de Montmartre de
Paris, em estilo gótico e grande como a catedral de Colónia em memória da consagração da República do
Equador ao Coração de Jesus. Para este grandioso projecto, o P. Dehon enviara outros missionários, Padres
e Irmãos Cooperadores, entre os quais estava o P. Lux. Foi impossível qualquer acordo.
O P. Dehon então ordenou, por telegrama, aos seus missionários que se colocassem à disposição do
Bispo de Puerto Viejo, Mons. Schumacher, antigo e experimentado missionário Lazarista, homem de
grande valor, corajoso e inteligente.
O bispo confiou aos nossos padres a direcção do seminário diocesano, com grande alegria do P.
Dehon, a quem tanto interessava a formação do clero, e a direcção do colégio de Baía.
Mas a maçonaria era então poderosa no Equador e ferozmente anticlerical. O governador local,
Roberto Andrade, um dos responsáveis pelo assassinato do Presidente Garcia Moreno, dificultava a vida ao
bispo e aos Padres e espreitava um pretexto para os expulsar.
O motivo da expulsão pode parecer inverosímil. “O General Schumacher (ou seja, o bispo de Puerto
Viejo) está para invadir o Equador à frente de 30.000 colombianos”.1196 Bastou propalar a notícia entre as
crédulas massas. Aconteceram barulhentas manifestações de rua em que participaram também dois alunos
do colégio de Baía que o P. Grison expulsou imediatamente: “Quando se é tão estúpido para dar crédito a
tão absurda patranha, não se tem nem sequer cabeça suficiente para continuar os estudos. Comeis à mesa
do bispo, porque o colégio é dele, sois seus hóspedes e cuspis no prato”. 1197 Apesar dos pedidos dos pais
dos culpados, o P. Grison foi inflexível. A maldade tinha sido demasiado grave e pública; público e
exemplar devia ser também o castigo.
Três dias depois era assinado o decreto de expulsão do P. Grison e do P. Lux. A 12 de Junho, festa
do Sagrado Coração, o povo de Baía agrupava-se nos molhes do porto, cumprimentando com dor os dois
missionários que partiam.
Poucos meses antes (janeiro de 1896), o P. Dehon, prevendo o temporal, tinha escrito aos seus
religiosos do Equador: “Estamos nas mãos das divina Providência, deixemo-nos levar por ela. Atendei à
vossa missão de Baía enquanto Deus não indicar mais claramente a sua vontade. Vós dais um grande
exemplo. Sede sobrenaturais e trabalhai só por espírito de fé! Que importa se servimos a Deus num lugar

1195
RCJ (1889), 76.
1196
G. Grison (mons.) scj, Souvenirs de l’Ecuateur, 310.
1197
G. Grison (mons.) scj, Souvenirs de l’Ecuateur, 311.

234
ou noutro! O que conta é fazer a sua santa vontade. Não vos inquieteis. Cumpri com calma os vossos
exercícios de piedade para dar a Deus o tributo de amor e de reparação que Ele espera de nós”.1198
O P. Grison, de regresso à Europa, foi destinado para Leyenbrouck como professor de filosofia no
segundo ano de noviciado. O inverno é rigoroso na Holanda. O P. André Prévot, Mestre de noviços,
encontra todos os dias o P. Gabriel, que dá o seu passeios da tarde à capela de Santa Rosa com as mãos
metidas nas mangas da batina e batendo os pés.: “Padre, o senhor devia fumar!”. O P. Gabriel ficou
surpreendido de que semelhante proposta lhe viesse do P. André. Mas um dia o P. André bate à porta do
seu quarto e lhe entrega uma carteira de cigarros. Já como bispo, Mons. Grison dizia: “Se fumo foi o P.
André quem me fez fumar”.1199

A GRANDE MISSÃO DO CONGO (1897)

Em Janeiro de 1897, o P. Dehon encontra em Roma várias personalidades:


cardeais e superiores religiosos. O Cardeal Jacobini fala especialmente das “missões que nós poderíamos
pedir à Propaganda”. Recebe-o o Cardeal Ledochowski, prefeito da “Propaganda Fide” e pede-lhe uma
missão independente para a Congregação. O Cardeal responde-lhe que “já não se concedem missões
independentes”. Os religiosos do P. Dehon terão que “começar sob a jurisdição de um Vigário Apostólico”.
Não é precisamente o que o P. Dehon deseja. Todavia, como costuma fazer nas adversidades, pronuncia o
seu “fiat”, abandonando-se ao Senhor.1200
A 25 de Março daquele ano, por meio do P. Rafael, Procurador dos Franciscanos, o P. Dehon
recebe do Ministro dos Negócios Estrangeiros do Congo Belga (então Zaire), Barão van Eetvelde, que se
encontra em Roma, a proposta de aceitar uma missão na região de Stanley-Falls, no Alto Congo. Tudo se
conclui com rapidez, com o consentimento da Santa Sé. E o P. Dehon escreve no seu Diário: “Foi a
Santíssima Virgem que quis no dia da Anunciação, abrir-nos o grande continente negro. Espero que esta
missão seja abençoada”.1201
O augúrio do P. Dehon é uma feliz realidade também hoje. P. Dehon mostrou a audácia dos santos.
Todos os seus conselheiros eram contrários: “Não dispõe nem de homens nem de meios”, diziam ao P.
Dehon. Mas ele tinha a certeza de que a missão do Congo era obra de Deus. “Deus dá aos fundadores
graças que nega aos seus conselheiros”.1202 O P. Dehon vai a Bruxelas com o fim de preparar a missão do
Congo. Fala com o rei Leopoldo II que só confia nos missionários católicos, “porque os negros pagãos ou
muçulmanos atraiçoam e os negros protestantes simpatizam com os ingleses”.1203
O P. Dehon pensa imediatamente no P. Gabriel Grison. Ele, porém, prometera, pessoalmente, aos
habitantes da Bahia (Equador), voltar para o meio deles, logo que passasse a tempestade maçónica. O P.
Grison lembra este compromisso, mas diz que é como um soldado: vai a qualquer missão para que seja
enviado.
O P. Dehon sabe que a missão do Congo é muito difícil e pensou, num primeiro momento, fazer ele
próprio com o P. Grison, uma viagem de exploração. Depois renuncia à ideia por dificuldades internas do
Instituto: “Teria deixado a Obra em dificuldades de toda a ordem e ao meu regresso tê-la-ia encontrado
desfeita”.1204 Então foi a Bona para convencer o P. Lux a acompanhar o P. Grison ao Congo.
Para este último, missionário dos pés à cabeça, tratava-se não de uma viagem de exploração, mas
de fundar uma missão estável. O P. Dehon, comovido pela coragem do P. Grison, perguntou-lhe: “Não
tendes nada a objectar? A empresa a que vos comprometeis é bastante difícil”. O P. Grison respondeu com
uma simplicidade admirável: “Nada é difícil; vós nos mandais, nós obedecemos. Isto basta”.1205

1198
G. Grison (mons.) scj, Souvenirs de l’Ecuateur, 293.
1199
Philippe (mons,) scj, “Ricordi”, 112-113.
1200
NQ XII, 12: Janeiro de 1897.
1201
NQ XII, 41: 24-25.3.1897.
1202
Philippe (Mons.) scj, “Ricordi”, 111.
1203
NQ XII, 63: 2-12.6.1897.
1204
NQ XII, 64-64: 14.6.1897.
1205
Philippe (Mons.) scj, “Ricordi”, 113.

235
A 6 de Julho de 1897, o P. Grison e o P. Lux partiram do porto de Anversa no navio “Albertville”
para fundar uma missão com uma área pouco inferior à da Itália. Estavam acompanhados por Mons. van
Ronslé, missionário de Scheut, “bom... simples, sem pretensões”.1206
O P. Grison contava então 37 anos (tinha nascido em Verdun em 1860). Era de pequena estatura,
mas robusto, de temperamento nervoso, inteligente, com uma vontade tenaz e um coração generoso. Tinha
uma alma poética que se entusiasmava diante das belezas da natureza. Era um excelente professor,
especializado em Ciências Naturais.
As numerosas cartas por ele escritas, tanto do Equador como do Congo, lêem-se de um só fôlego
pela sua vivacidade, cheias de factos e de imagens.
Depois de quase três meses de cansativa navegação e viajando a pé através da selva virgem, os dois
padres chegaram, a 21 de Setembro, a Stanleyville (hoje Kinsangani), onde havia duas casas em betão e
umas vinte em barro, pedras e palha ou em madeira e terra amassada. Poucos dias depois, a 30 de Setembro
de 1897, morria Santa Teresa de Lisieux, oferecendo pelos missionários a sua jovem vida.

APARECERA UMA GRANDE LUZ

O P. Lux adoece de febre tropical e, após um mês, tem de voltar para a Europa.
O P. Grison fica só durante sete meses. Coloca as suas tendas nas margens do grande rio Congo e aí
inicia a missão de S. Gabriel. Contratou 120 trabalhadores negros para cortar uma porção de floresta e
construir uma casa-capela provisória em ramos e barro.
No país vivem ainda canibais. Finalmente, na noite de Natal de 1897, o P. Grison pode celebrar a
primeira missa na capela de S. Gabriel.
Na véspera daquele magnífico Natal equatorial de 1897, o P. Grison tinha descido em piroga o largo
e imenso rio Congo acompanhado por outras duas pirogas com todas as suas bagagens.
Chegado a S. Gabriel, chamara os trabalhadores negros para que o ajudassem a descarregar as
pirogas: “Meus amigos, de agora em diante, habitarei aqui ... faremos uma bonita festa nesta noite. É a
grande noite do bom Deus”. Os negros compreenderam apenas que haveria festa e responderam: “Padre,
nós faremos festa contigo. Nós construímos a tua casa e tu nos farás uma boa oferta...”.1207
Com panos de brocado e de seda adornou-se o altar, enquanto grinaldas de seda branca e azul, e
abundante pintura a vermelho no tecto, transformaram o interior da pobre capela num palácio de fábula aos
olhos dos negros, que de vez em quando comentavam à porta: “É muito bonito, Padre. Percebemos que és
o sacerdote de Deus, porque preparas uma bela casa”.1208
Cerca das nove da noite chegaram de Falls (cascatas do rio Congo) cinco europeus para passar com
o P. Grison a noite de Natal. Um deles trazia uma filarmónica. E o P. Grison tocava bem guitarra.
“A noite estava linda, mas o seu encanto não era típico europeu (campos silenciosos cobertos de
neve, casas com aquecimento, toques de sinos, eram só uma recordação longínqua). “O céu estava
estrelado; um Natal ao ar livre, uma morna noite de verão. Vermes resplandecentes faziam brilhar as ervas
com uma luz verde-esmeralda; os pirilampos traçavam linhas de ouro na escuridão da noite morna, os
grilos trilavam os seus intermináveis cantos, enquanto os macacos lançavam os seus gritos, com estridentes
notas, no silêncio da selva”.1209 Chegada a meia noite, um tiro de espingarda deu o aviso aos brancos e aos
operários que trabalhavam na missão de que ia começar a Missa. Todos se aproximaram com as suas
espingardas. Os brancos eram só cinco e, atentos e silenciosos recordavam durante aquela missa os natais
passados na pátria, enquanto o sr. Bure tocava com a sua filarmónica, velhas e nostálgicas canções
natalícias. Os negros arregalavam os seus grandes olhos: olhavam, escutavam, sem saber que pensar.
“Pensava eu por eles – escreve o P. Grison... O momento da elevação foi saudado por uma salva de
tiros”.1210

1206
NQ XII, 71: 20-30.6.1897.
1207
Le Règne du Sacré Coeur (1911), 366.
1208
Le Règne du Sacré Coeur (1911), 367.
1209
Le Règne du Sacré Coeur (1911), 368.
1210
Le Règne du Sacré Coeur (1911), 368.

236
Assim o Menino Jesus foi saudado pelos brancos e também por aqueles pobres indígenas que ainda
não o conheciam; mas sobre eles havia aparecido uma grande luz... Era a aurora que não conhece ocaso.
De manhã, o P. Grison ficara só, feliz pela sua solidão, com uma doçura imensa no coração:
“Penetrei na floresta virgem e, sentado numa árvore caída, admirei com a alma cheia do encanto da grande
festa, aquela natureza de fábula... Parecia-me ouvir, nas lonjuras do futuro, prolongados toques de sinos
chamando as pobres tribos negras à grande solenidade do Redentor, nascido para sua salvação”.1211
Era também o aniversário do seu baptismo já que tinha nascido na véspera de Natal de 1860. O seu
pai, proprietário de terras de Lorena, fora ter apressadamente com o pároco para lhe pedir, se no dia
seguinte, Natal, podia baptizar o seu primogénito. “Mas porquê tanta pressa, amigo? Está o menino em
perigo de vida?” perguntou o pároco. “Não, graças a Deus, - respondeu o bom homem -; mas, veja, o Natal
é um dia tão belo para o baptismo de um menino!”. E foi-lhe concedido.1212
Os primeiros catecúmenos foram órfãos, cujos pais tinham sido raptados ou mortos pelos negreiros.
Um dia o P. Gabriel encontrara na floresta uma criança que lhe tinha indicado a vereda que tinha de seguir.
No dia seguinte, o menino, que se chamava Ngeleza, chega à missão e quer ficar. É um pequeno escravo.
Os seus pais foram massacrados ou raptados pelos terríveis negreiros árabes. O patrão do rapaz chega
furioso e exige a restituição. O P. Gabriel acalma-o com uma oferta. Ngeleza aprende a doutrina cristã,
ajuda à missa e converte-se num dos melhores catequistas da missão. Pare estes pequenos órfãos escravos,
o P. Grison constrói uma casa. Em pouco tempo chegarão a ser 400.
Organizar a missão do Congo foi uma tarefa difícil e semeada de provações e sofrimentos. As
distâncias eram enormes. Não havia caminhos. Todas as viagens eram feitas a pé. De S. Gabriel a Beni, nas
faldas do Ruwenzori, eram precisos 42 dias de viagem. Vinte vezes fez o P. Grison este trajecto.
Costumava dizer: “Beni é a minha morte”.1213
Em 1901, o P. Grison escreve: “o clima é mortal. Em dois anos e meio, de 11 missionários que
chegaram, perdemos 7 (mortos ou regressados à Europa). Temos sempre doentes entre a vida e morte.
Assim o trabalha torna-se extenuante”.1214 A seu lado resistia o P. Reelick, um holandês de 50 anos, ex-
zuavo pontifício de Pio IX. Foi o braço direito do P. Grison, seu amigo, confidente e conselheiro durante
23 nos. Era um homem com um carácter de ouro.
O P. Dehon continuava a enviar missionários (Padres e irmãos) da Europa. De 1897 a 1903
sucederam-se nove expedições com um total de 25 missionários. Em 1901 chegaram as primeiras Irmãs
Franciscanas Missionárias de Maria para a educação das raparigas e o cuidado dos doentes.
Em 1904, de 28 missionários, só 15 conseguiram aclimatar-se. O trajecto de Matadi, no oceano
Atlântico, até Stanleyville (hoje Kinsangani), era então chamado “a estrada da morte”. Numa expedição de
seis missionários, só quatro chegaram à meta; os outros dois morreram pelo caminho e foram enterrados
nas margens do rio Congo.
Agora viaja-se de avião e os missionários contam com meios com que se proteger do mortífero
clima equatorial, especialmente da malária, da doença do sono e da lepra.
O P. Grison tinha que lutar também contra os canibais. De facto, uma noite deu-se conta de que lhe
faltava um dos seus rapazes. Depois de laboriosas buscas, encontrou o seu cadáver nas mãos de um grupo
de selvagens que tinham acendido já a fogueira para assá-lo.
As ajudas da Europa nem sempre eram fáceis. Em 1903 falta dinheiro para mandar auxílio e pessoal
para o Congo. O procurador das missões, o P. Vicente Jeanroy, escreve ao P. Dehon. Recebe em resposta
um simples bilhete: “Contai com a Providência e ide em frente”. E graças deve ter recebido muitas, já que
na capela de Bruxelas há muitos ex-votos sobre o mármore branco com caracteres de ouro à volta da
estátua de S. Gertrudes, padroeira do humilde e silencioso procurador da missão do Congo, para a qual
recolheu, segundo o P. Dehon, mais de um milhão de francos-ouro.1215
O P. Vicente Jeanroy era o homem da Providência. Abrira a casa de Bruxelas com 200 francos
emprestados pelo superior da casa de Clairefontaine, que, passados 15 dias, os pediu de volta.

1211
Le Règne du Sacré Coeur (1911), 369-370.
1212
Cf. Jeune église au Zaïre, in “Heimat und Mission” nov. 1972, p. 5.
1213
Philippe (Mons.) scj. “Ricordi”, 116.
1214
RCJ (1901), 307.
1215
Philippe (Mons.) scj. “Ricordi”, 112.

237
O quarto Capítulo Geral de 1896 tomara medidas enérgicas no sentido de consolidar internamente a
jovem Congregação. Entre outras, todas as novas fundações deviam ser previstas e realizadas com prazos
razoáveis, sem improvisações.
Enquanto o Capítulo está reunido em S. Quintino, chega inesperadamente o P. Jeanroy a pedir a
abertura de uma casa em Bruxelas. Trata-se de uma ocasião propícia. O P. Dehon compreende
imediatamente, mas o Capítulo é contrário. Não pode fazer mais do que convidar o P. Jeanroy para falar ao
Capítulo. Tranquilo, esquivo, modesto, o P Jeanroy apresenta as suas propostas e convence os capitulares.
O P. Dehon, prudentemente, submete o projecto a votação. Todos são favoráveis, menos três contrários,
entre os quais o maior futuro beneficiário da procura das missões que teria a sua sede na casa de Bruxelas:
o P. Gabriel Grison.
Com a bênção do P. Dehon e os famosos 200 francos emprestados, o P. Jeanroy iniciou a casa de
Bruxelas, na mais absoluta pobreza.
A Providência quis que a casa estivesse perto do grande convento das Agostinhas, as nobres
“Dames de Berlaymont”. A abadessa enviava um empregado a verificar que nada faltasse. Este voltava
dizendo: “Reverenda Madre, lá falta tudo”...”Assim fundais vós os conventos?” – perguntava a abadessa ao
P. Jeanroy. A resposta era um honrado silêncio.
Chegou a festa do Sagrado Coração. Um vendedor ambulante de peixe apresentou ao P. Jeanroy
todas as espécies que trazia, desde as melhores até as mais ordinárias, com os seus respectivos preços.
Calmo e pacato, o P. Jeanroy, conhecendo o estado do seu bolso, agradeceu-lhe e disse: “Traga-me três
sardinhas”. Eram três os Padres que, em casa, festejavam o Sagrado Coração.
Quando em 1908, por ocasião da consagração episcopal de Mons. Grison, também o P. Jeanroy,
Procurador das missões, foi recebido em audiência por Pio X, o Papa colocou-lhe a mão sobre a cabeça
dizendo: “Que a bolsa esteja sempre cheia!”. Para as missões nunca estava vazia.
P. Jeanroy tinha-se tornado o oráculo de Bruxelas. Ninguém pode contar quantas pessoas ele
consolou, animou ou converteu. O P. Jeanroy foi o mais precioso colaborador do P. Grison na Europa.1216
Morreu poucos meses antes do Fundador, a 1 de Fevereiro de 1925.
Em 1904, num opúsculo do P. Jeanroy, “Sete anos no Congo”, lemos que as estações missionárias
principais são de 25 a 30, os cristãos cerca de 2.500, mais de 3.500 catecúmenos, 20 missionários (14
sacerdotes, 1 irmão e 5 freiras); seis morreram e outros seis tiveram de regressar para a Europa.
Em 1908, a missão do Congo, já Prefeitura Apostólica desde 1904, torna-se Vicariato Apostólico, e
o P. Grison é sagrado bispo em Roma a 11 de Outubro de 1908. Em 1911 chegam os Irmãos Maristas e
abrem as escolas professionais e técnicas. As missões estão em plena expansão quando sobrevem a
dolorosa prova da primeira Guerra Mundial. Seis missionários são chamados às armas; da Europa já não
chegam nem pessoal nem meios. Foi preciso conservar as posições. Providencialmente durante a guerra
foram poucas as mortes; mas no final do conflito os missionários estavam extenuados; tinham necessidade
de descanso na Europa.
Em 1924, Mons. Grison pede a Roma um sucessor. Tinha sofrido muito. Roma responde que
aguente ainda alguns anos mais. Quatro anos mais tarde, depois de um grave acidente, renova o pedido e
recebe idêntica resposta. Finalmente em 1933, por ocasião do seu duplo jubileu: cinquenta anos de
sacerdócio e 25 de episcopado, obtém um sucessor. É Mons. Camilo Verfaille. Mons. Grison tem 73 anos.
Em 1938, tem a grande alegria de ordenar o primeiro sacerdote do Zaire na pessoa de João Agwala. Era o
remate de um imenso e heróico trabalho de 40 anos.
À morte de Mons. Grison em 1942, com a idade de 81 anos, já 52 missionários o tinham precedido
para melhor vida, mortos, em grande parte, em idade jovem.
Mons. Kinsch, nas suas “Recordações”, escreve que o velho bispo Grison tinha o costume de rezar
por cada um deles durante a adoração eucarística. Para si próprio, como lugar do seu último descanso,
escolheu o espaço que está diante da gruta de Lourdes, no lugar exacto onde tinha celebrado a primeira
missa de Natal em terra africana. Aí se ajoelhou, em oração, João Paulo II em 1980.
Os missionários brancos que continuavam o seu trabalho em 1942 eram 89, dos quais 68 eram
sacerdotes, 21 irmãos, além de 4 sacerdotes negros e 60 freiras; 21 eram as estações missionárias principais
e mais de mil as secundárias.
1216
Philippe (Mons.) scj. “Ricordi”, 102-104.124.

238
Segundo o censo de 1941-1942, os cristãos do vicariato eram 87.644, incluindo os 1.791 brancos,
52.018 os catecúmenos, 9.956 os baptismos anuais.1217
Eis a grande luz, cuja aurora despontara no longínquo Natal de 1897. A grande e difícil missão do
Congo demonstrou-se uma fonte de bênçãos para o Instituto. Mais uma vez o P. Dehon tinha visto certo.
“O Congo salvou a Congregação”. De facto, esta missão favoreceu a internacionalização do Instituto do P.
Dehon; fez que afluíssem muitas vocações, especialmente da Bélgica, Holanda e Luxemburgo, e aumentou
a simpatia de Roma para com os “dehonianos”. Às más línguas que acusavam os religiosos do P. Dehon de
insuficiente preparação canónica, pondo em dúvida a solidez dos seus votos, a Propaganda Fide a quem se
pediu o parecer, respondeu: “Não sabemos se os Sacerdotes do Coração de Jesus são bons ou maus
religiosos, mas sabemos que são excelentes missionários”. Com muita humildade afirmava o P. Dehon:
“Entre nós há fraquezas e mediocridade; então penso nos sacrifícios dos nossos missionários do Congo.
Isso tranquiliza-me”.1218
O P. Dehon falava sempre da missão do Congo com vivacidade e orgulho. “A nossa bela missão do
Congo!... Os Sacerdotes do Coração de Jesus devem ter missões difíceis, onde se sofre e se morre
jovens”.1219
O preço de sangue foi particularmente elevado durante a rebelião dos Simbas, estalada depois da
proclamação da independência do Zaire (30.6.1960).
Dos 144 missionários assassinados, 29 foram dehonianos. Agora a arquidiocese de Kisangani e a
diocese de Wamba são dirigidas por bispos negros e têm um clero indígena, além dos missionários brancos.
Uma surpreendente mudança em menos de um século, desde que o P. Grison construíra a primeira capela
no já longínquo 1897!.

A MISSÃO DA FINLÂNDIA

O P. Dehon, acompanhado pelo P. Goebels, iniciou uma grande viagem para visitar Finlândia,
Rússia e Polónia de 20 de Julho a 14 de Agosto de 1907.1220
O P. Dehon encontrara-se com “um jovem e simpático” pároco de Helsinki, Wilfried von
Christierson, que o convidara a visitar a Finlândia em vista de uma fundação. Assim teria ocasião, na
viagem de regresso, de visitar também a Rússia. A Igreja ortodoxa tinha-o interessado desde a sua
juventude. Fala dela também na sua viagem ao Médio Oriente, antes de entrar no seminário. Desde então
tinha começado a rezar pela conversão do povo russo.
Chegado a Helsinki, “uma cidade muito bonita”, que “tem todo o encanto dos novos bairros das
nossas grandes cidades”, encontra-se com a pequena comunidade católica composta por volta de 300
pessoas de várias nacionalidades, especialmente italianos e polacos. O jovem pároco Wilfried von
Chriestierson alimenta muitos projectos de apostolado. “Que ministério tão difícil!” comenta o P. Dehon no
seu Diário. “A Finlândia está para se abrir ao apostolado católico. Haverá que trabalhar muito tempo, como
se faz na Dinamarca e na Noruega!”.1221
Na viagem de regresso, visita S. Petersburgo e Moscovo, ficando sobretudo impressionado pela
profunda religiosidade do povo russo. Por todos os lados há ícones: nas estações, nos armazéns, nos
quartos de hotel. Todos ascveneram. Especialmente em Moscovo, as igrejas e os mosteiros são incontáveis.
O canto litúrgico tem o seu fascínio religioso, que recorda o velho canto gregoriano. Em nenhum outro
sítio viu o P. Dehon tantas demonstrações de religiosidade...
Chegado à Polónia, visitou apenas Varsóvia. A 14 de Agosto chega a Bruxelas. O Conselho Geral
decide aceitar a missão de Finlândia. Era um apostolado difícil e, por isso, preferido pelo P. Dehon para a
sua Congregação.

1217
Cf. Cinquante ans aux Stanley-Falls – Statistiques – CEM, Lovaino, n. 2, pp. 38-39.
1218
Philippe (Mons.) scj, Ricordi”, 111.
1219
Philippe (Mons.) scj, Ricordi”, 114.
1220
Cf. NQ XXIII, 110-148: Julho de 1907.
1221
NQ XXIII, 122, Julho de 1907.

239
Em finais de 1907, parte para a Finlândia o P. van Gijsel, seguido um ano mais tarde pelo P. Buckx,
ambos holandeses. Tiveram várias dificuldades com o governo russo, de tal modo que foram obrigados a
sair da Finlândia em 1911. Voltaram 10 anos mais tarde, quando aquele país se tornou independente.
O P. Buckx foi eleito Administrador Apostólico a 17 de Março de 1921. O P. Dehon participou,
embora não pessoalmente, na alegria da sua sagração episcopal que teve lugar em Helsinki a 25 de Maio de
1923 pelas mãos do Cardeal van Rossum.

A MISSÃO DOS CAMARÕES (1912)

A 25 de Abril de 1910, o P. Dehon pede uma missão nos Camarões para os padres alemães da
Congregação, e a 27 de Junho de 1911, a Propaganda Fide dá a sua resposta positiva.1222
No Diário do P. Dehon, em 5 de Novembro de 1912, lemos: “A 5, em Sittard, partida de seis
missionários para os Camarões. Boa festa de família. Recordo ao meu auditório a última página dos quatro
evangelhos: o envio dos apóstolos pelo Senhor a todas as nações. Em nome do Santo Padre envio os meus
missionários para os Camarões”.1223
A região confiada aos Sacerdotes do Coração de Jesus, toda montanhas e estepes, nunca tinha visto
um missionário. O chefe da tribo Banso, informado sobre os motivos da presença dos Padres, deu-lhes de
boa mente a licença de pregar o Evangelho à sua gente: mais ainda, ofereceu-lhes o terreno para construir a
nova missão em Kumbo.
Eram simples cabanas mais ou menos grandes.
A 1 de Janeiro de 1913, a missão começou a funcionar com a inauguração da pobre capela. As
dificuldades começaram quando se tratou de convencer os negros de que os missionários não eram como os
outros brancos (recordemos que os Camarões eram colónia alemã desde 1884), que tinham limitado as suas
liberdades, imposto as taxas, o trabalho obrigatório, etc.
O caminho escolhido pelos missionários para demonstrar o seu desinteresse foi a abertura de
escolas. As crianças ficavam na missão. Durante a semana estudavam e trabalhavam. Além disso os
missionários interessavam-se pelos doentes.
Foi a melhor maneira de ganhar a confiança dos negros, aproximar-se das famílias e anunciar o
Evangelho.
Não foram tão fáceis as relações com o sultão de Foumban que negou a autorização para a abertura
de uma missão central porque já existiam os protestantes no país havia 10 anos e porque temia que os
missionários fizessem trabalhar demasiado os seus súbditos. Negativo foi também o sultão de Njoya pelo
mesmo motivo.
A 28 de Abril de 1914, a missão dos Sacerdotes do Coração de Jesus torna-se a Prefeitura
Apostólica de Adamaua, e o P. Lennartz é o primeiro Prefeito Apostólico. Tudo pareceu perdido com a
primeira Guerra Mundial. Os missionários eram Padres alemães. De 17 Padres e Irmãos, cinco foram
mobilizados e dois alistaram-se como voluntários, um como médico e outro como enfermeiro. Os
missionários que ficaram foram feitos prisioneiros. Os que eram militares refugiaram-se com as tropas
coloniais alemãs na Guiné Espanhola e na ilha de Fernando Pó.
Dois deles, os PP. Schuster e Baumeister, ficaram em Fernando Pó até 1919, cuidando dos feridos e
doentes, catequizando os soldados internados e os civis refugiados, preparando assim cristãos que
voltariam depois para as suas povoações. ( Dali passaram a Espanha à espera que a guerra acabasse. O P.
Dehon aproveitou a estada dos Padres na Espanha para encarregar o P. Guilherme Zicke de tentar fundar
alguma casa, especialmente uma Escola Apostólica. Assim se fez, dando início desta forma à Província
espanhola. Ao P. Guilherme Zicke prestaram colaboração nesta fundação os PP. Schuster e Baumeister, a
que poucos anos mais tarde (1922) se agregou o P. Goebels. [N.B. este texto está na tradução espanhola e
não pertence ao original italiano] ).
Durante a guerra, as cristandades dos Camarões ficaram sem sacerdotes, as capelas foram fechadas
e os neófitos perseguidos e maltratados. Para permanecer fiéis à fé, completar a sua formação religiosa e
1222
Historique de notre mission “Kamerun” confiée a la Province Allemande, 1912-1919.
1223
NQ XXXIII 172: Julho de 1912.

240
receber o baptismo, muitos negros tiveram de abandonar as suas aldeias, bens e famílias: descer para
Douala ou emigrar para a Nigéria.
Em 1919, Roma pediu ao P. Dehon para retomar a missão dos Camarões. Aos padres alemães
sucederam os Padres franceses em Julho de 1920. À frente deles ia Mons. Plissonneau, Prefeito Apostólico
de Adamaua, com sede em Foumban, uma zona submetida à jurisdição francesa. Mons Lennartz tinha-se
demitido a 30 de Dezembro de 1919.
Todavia uma delegação dos primeiros cristãos Bansos de Kumbo, pediu a Mons. Plissonneau que
fosse visitar a sua cristandade, tão corajosa e tão provada. Mons. Plissonneau foi recebido triunfalmente.
Esta simpatia desgostou a administração inglesa, que desencadeou no distrito de Bamenda uma autêntica
perseguição contra os católicos, com incêndios, fechamentos de capelas, prisões, encarceramentos e
expulsão de catequistas e de fiéis. Isto durou uns dois anos.
Os missionários franceses tiveram que deixar Kumbo e retirar-se para Foumban. Mas também a
missão de Foumban teve de ser abandonada. Era preciso fazer uma escolha, mesmo dolorosa. Eram cinco
missionários, quatro sacerdotes e um irmão. “Devíamos escolher as regiões onde éramos mais desejados e
onde o nosso apostolado poderia ser mais eficaz. As missões foram fundadas ao longo do caminho de ferro
Douala-Nkongsamba na região de Mungo em plena expansão, entre a população Bamiléké e as tribos do
sul. Assim surgiram Bonabéri em 1923, Mbanga em 1927, Nkongsamba em 1928, que agora é sede
episcopal.
As dificuldades não terminaram. Muitos chefes e filhos de chefes tinham sido baptizados, com a
esperança de que favorecessem a conversão dos seus povos ao Evangelho. Mas a maior parte não
perseverou, voltaram à poligamia e, às vezes, converteram-se nos piores perseguidores da Igreja. Grandes
dificuldades houve também na instrução das raparigas que eram julgadas incapazes de frequentar uma
escola; dificuldade para a formação de famílias cristãs...
Esta era a situação da missão dos Camarões à morte do P. Dehon em 1925.
Em seguida, também nos Camarões, depois da proclamação da independência (1961), levantaram-
se bandos armados, não só anti-europeus, mas também anti-cristãos. A maior parte das missões foram
saqueadas e destruídas. Padres, irmãos, sacerdotes indígenas e catequistas foram feridos, sequestrados e
também assassinados, especialmente nos anos 1959 e 1960.
A situação melhorou depois pouco a pouco.
Agora a Igreja dos Camarões conta com a sua própria jerarquia, com um clero numeroso e válido,
que trabalha com a colaboração dos missionários europeus, olhando para o futuro com confiança e
serenidade.
Trazemos à colação o testemunho que o bispo de Nkongsamba, Mons. Tomás Nkiussi, tributou aos
Sacerdotes do Coração de Jesus, reunidos em Roma para o Capítulo Geral de 1973: “Vós trouxestes-nos a
mensagem do Evangelho, como o sangue de Cristo num vaso precioso. Nós recebemo-lo...; pedimos que os
nossos irmãos missionários sejam africanos com os africanos. A diocese de Nkongsamba reconhece e
proclama solenemente os direitos que os Padres e Irmãos adquiriram na nossa Igreja com o seu trabalho e o
seu sacrifício. Alguns, inclusive, na sua carne, tornaram-se propriedade do nosso solo, onde descansam à
espera da ressurreição. Os laços da fé e do amor são mais fortes que os do sangue... A Igreja de
Nkongsamba, embora tenha como primeiro responsável um filho de África, permanecerá sempre para
todos os religiosos do vosso Instituto “uma das igrejas fundadas com o seu suor e mais ainda com o seu
sangue” (Ad Gentes, 27).

ÁFRICA DO SUL E SUMATRA

As missões de Sumatra e de Gariep (na África do Sul) foram iniciadas pelo P. Dehon em 1923 e a
sua história pertence aos anos posteriores à sua morte.
Todavia podemos precisar que a missão de Gariep na África do Sul com a sua sede principal em
Aliwal-North, foi aceite pelo P. Dehon, para ocupar, num novo campo apostólico, os missionários alemães

241
que tinham sido obrigados a abandonar os Camarões e para manter vivo o espírito missionário na Província
alemã.1224
Quando o primeiro Prefeito Apostólico, Mons. Demont, chegou a 28 de Novembro de 1923 a
Aliwal-North com dois sacerdotes e um irmão, os católicos eram 400.
À difícil situação criada pelo típico racismo sul-africano, juntavam-se as dificuldades criadas por
uma infinidade de seitas religiosas, especialmente entre os nativos (Xosas e Basutos) e entre a gente
mestiça (nascidos de casamentos entre brancos e negros): uma verdadeira babel de crenças, contrárias ao
cristianismo, que favoreciam o indiferentismo religioso.
Os missionários não desanimaram por causa disso. Em 25 anos os católicos tinham aumentado de
400 para 9.000, com 28 sacerdotes, 6 irmãos, 100 religiosas, 30 catequistas, 15 estações principais e 42
secundárias.1225
Também neste árido terreno a semente semeada pelo P. Dehon tinha frutificado e tinha-se
multiplicado.
Quanta à missão de Sumatra, (Indonésia) é preciso recordar a famosa viagem à volta do mundo,
feita pelo P. Dehon em 1910-1911 com Mons. Thibergien, por ocasião do Congresso Eucarístico
Internacional de Montreal.
Quando os dois amigos chegaram à capital da ilha de Java, Batavia, encontraram-se com o bispo, o
Jesuíta Mons. Van der Verlzen. Espontaneamente a conversa incidiu sobre as missões. Java pertencia então
às Índias holandesas (agora Indonésia) e o P. Dehon pensou logo na Província holandesa, então em rápido
crescimento. O bispo Van der Verlzen, manifestou a sua intenção de pedir a divisão da sua diocese que
abrangia metade da ilha de Java, densamente povoada (quase 50 milhões de habitantes). Gostaria de ter,
como colaboradores, os religiosos do P. Dehon. Mas, como consequência de alguns mal entendidos, a
missão foi confiada aos Padres da Cruz (Crucígeros).1226
A 27 de Dezembro de 1923, a Propaganda Fide confiava aos Dehonianos a Prefeitura Apostólica de
Benkoelen na parte meridional da ilha de Sumatra.
Os primeiros missionários, os Padres Van Oort e Van Stekelenburg, com o Irmão Felix van
Lagenberg chegaram à nova missão em Setembro de 1924.
O Prefeito Apostólico, Mons. H.L. Smeets, chegou em 1925. Tinha trabalhado já 5 anos no Congo.
Começaram a explorar a região e decidiram fundar a missão principal em Palembang, uma cidade
de 100.000 habitantes. Os católicos só eram 200. A Prefeitura Apostólica de Benkoelen converteu-se em
1939 no Vicariato Apostólico de Palembang. O primeiro Vigário Apostólico foi Mons. H.M. Mekkelholt,
sagrado bispo a 29 de Outubro de 1939 com outros 11 bispos, por Pio XII, em S. Pedro.
No princípio da segunda Guerra Mundial, o Vicariato de Palembang contava com quase 4.500
católicos, 25 sacerdotes e 84 entre religiosas e irmãos professores.
Todos foram deportados pelos japoneses para os campos de concentração e a missão perdeu 9
sacerdotes, 2 seminaristas, 31 religiosas e 1 Irmão. Foram os leigos que mantiveram viva a fé católica na
sua comunidade. A 19 de Junho de 1952 foi criada a nova Prefeitura Apostólica de Tanjung Karang.
Também na Indonésia a semente espalhada pelo P. Dehon frutificou e multiplicou-se, até chegar a
ser uma das províncias mais florescentes da Congregação, com muitas vocações à vida religiosa que se
preparam ao sacerdócio no escolasticado de Jogyakarta.1227

1224
Philippe (Mons.) scj, “Ricordi”, 130.
1225
Cf. Silver Jubilée: Aliwal-North Vicariate: 1923-1948, 4-5.
1226
Philippe (Mons.) scj, “Ricordi”, 130.
1227
Cf. Histtoire se l’Église Lampung, 1978.

242
Capítulo 18

O Apostolado Social
(1888-1908)

Ir ao povo – O catolicismo social francês – A Obra dos Círculos – O grande amigo: Leão Harmel – A educação social do clero – A “Rerum
Novarum” – O P. Dehon e os sacerdotes democráticos – Apostolado social em França e em Itália – Entre tantos amigos, o grande amigo ... –
Desvanecem-se os sonhos sociais – Compromisso político do P. Dehon – A encíclica “Graves de communi” – O congresso sacerdotal de
Bourges – Adeus às reuniões de Val-des-Bois – Apostolado social sob Pio X.

IR AO POVO

Leão Dehon, jovem coadjutor na cidade industrial de S. Quintino, foi levado pela degradação social
e pelo seu zelo apostólico a interessar-se pelo mundo do trabalho: dos aprendizes, dos operários, dos
estudantes, dos empresários. Procurou, desde então, uma solução justa para a questão social. Esforçou-se
por consciencializar os sacerdotes em cura de almas e também os seminaristas sobre os problemas sociais,
para que saíssem das sacristias e fossem ter com o povo.
Iremos analisando como evoluiu o P. Dehon desde um claro paternalismo até uma clara exigência
de autonomia do mundo operário, protagonista das suas conquistas, segundo as normas da justiça social.
Apesar do seu compromisso com o mundo do trabalho, o P. Dehon não é um sociólogo, mas um
apóstolo da acção social, um precursor, um animador, um formador de consciências.
Das suas iniciativas e obras em S. Quintino, de 1871 a 1878, já falámos.
De 1878 a 1888, o P. Dehon está comprometido na direcção do Colégio S. João e, sobretudo, está
absorvido pelos acontecimentos do nascimento, morte, ressurreição e crescimento da Congregação, até
conseguir o Decreto de louvor a 25 de Fevereiro de 1888.
A 6 de Setembro de 1888, o P. Dehon está em Roma para agradecer Leão XIII, e o Papa convida-o
a tornar-se apóstolo das suas encíclicas: “Pregai as minhas encíclicas”.1228 Esta é a missão e o
compromisso que caracterizam o apostolado do P. Dehon até à morte de Leão XIII (1903).
A 25 de Janeiro de 1889, o P. Dehon começa a publicação da sua revista: “O Reino do Coração de
Jesus, nas almas e nas sociedades”.1229 É o ano centenário da Revolução Francesa. O P. Dehon recorda as
oportunas propostas dos estados gerais de 1789: restauração das liberdades populares, reforma da justiça,
moderação dos gastos, melhor repartição dos impostos, reorganização das ordens religiosas. Eram
propostas de “sábios revolucionários ou, melhor dito, de prudentes reformadores”, sistematicamente
marginalizadas pela Revolução e pelos seus herdeiros.1230 Passou um século desde aquelas justas
reclamações, e eis o desastroso balanço: a religião perseguida, a juventude corrompida, o comércio
paralisado, a agricultura arruinada, a sociedade em farrapos e a bancarrota iminente.1231 Com um estilo
muito polémico e apocalíptico, a revista do P. Dehon atinge as tristes realidades de que são vítimas o pobre
povo, os mais fracos e especialmente a classe operária.
O mote social do P. Dehon é “Ir ao povo”, para educá-lo sobre os seus direitos e sobre os seus
deveres.
Para realizar este mote, o P. Dehon suscita colaboradores seculares, mobiliza e sensibiliza as classes
dirigentes sobre os deveres cristãos do empresariado. Suscita entre os operários a necessidade de ser
apóstolos entre os seus companheiros de trabalho. Pensa que o Estado deva intervir com uma adequada

1228
NHV XV, 82.
1229
RCJ, 1.ere Année, n. 1, Janvier 1889; Cf. NQ IV, 76r-76v.
1230
Cf. OS IV, 419-421.517.
1231
Cf. C. Lambert scj, Haine et Amour, in RCJ 1889, 271.

243
legislação social. Defende inicialmente os sindicatos mistos e depois os sindicatos de trabalhadores. Quer
que os trabalhadores sejam os protagonistas das suas justas reivindicações e na conquista dos seus direitos.
Apesar da sua formação “aristocrática” e das suas simpatias monárquicas, o P. Dehon torna-se, na
idade madura, sincero democrata e republicano, abraçando o “ralliement” ou a adesão à Terceira República
desejada por Leão XIII.
Analisaremos melhor esta evolução do P. Dehon, estudando, em detalhe, o seu apostolado social.
O P. Dehon, ao recordar em 1903 o grande Papa, escreve, inconscientemente, também o seu
testamento social: “Leão XIII conservou até ao fim uma confiança inabalável... Este século (o século XX)
será democrático. Os povos querem uma grande liberdade civil, política e autárquica. Os trabalhadores
querem uma parte razoável do fruto dos seus trabalhos. Mas esta democracia será cristã ou não será
democracia. A natureza humana está totalmente impregnada de egoísmo. Todas as civilizações pagãs viram
os fracos oprimidos pela força. Só o Evangelho é capaz de fazer reinar a justiça e a caridade.
“Qualquer tentação de reforma social fora do cristianismo mergulhará no egoísmo e no domínio da
força. As nações oscilarão entre a tirania de um só e a de uma oligarquia (ler: partido)...
“Não há reforma social prática cujo gérmen não esteja contido no Evangelho. O século XX fará
tentativas desastrosas e voltará ao Evangelho para não perecer na anarquia”.1232
Assim escreve o P. Dehon no início do século XX, num tom muito integralista, explicável no
contexto anti-clerical da cultura e do poder do tempo. Pensando nas guerras, revoluções, ditaduras,
conquistas democráticas e na evolução do mundo do trabalho, podemos afirmar que o P. Dehon foi um
bom profeta.1233 Cremos que a história lhe dará total razão com o advento de um mundo mais justo, mais
humano, mais cristão, seguindo um caminho de solidariedade e de liberdade que não é marxista nem
capitalista, mas à medida e em função do homem, segundo o plano de Deus.
No campo social, o P. Dehon não tem pretensões de originalidade, embora não careça dela nos
detalhes, nas aplicações práticas e em algumas suas ideias pessoais. A característica do P. Dehon é a
fidelidade às orientações de Leão XIII. Sabe conjugar a audácia progressista com um justo equilíbrio,
estudando a fundo os problemas sociais à luz do Evangelho e do magistério da Igreja.
O P. Dehon é sobretudo um animador, um director seguro de consciências, sabe incitar e moderar,
animar e prever os perigos. Basta ter presente a ilimitada confiança que o grande Leão Harmel teve no P.
Dehon. Era o seu conselheiro de confiança, especialmente no campo doutrinal.
A 20 de Novembro de 1893, o P. Dehon tinha feito um dos sacrifícios mais dolorosos da sua vida
ao renunciar definitivamente à direcção do colégio S. João.1234 Assim ficava mais livre para se dedicar à sua
Congregação e ao apostolado social.
Já a 8 de Junho do mesmo ano, Mons. Duval tinha proposto ao P. Dehon a presidência da comissão
de estudos sociais da diocese de Soissons. O P. Dehon aceita e é eleito presidente a 28 de Junho.1235
A primeira tarefa que a Comissão se propõe é a de compilar, num manual, os princípios seguros da
doutrina social católica e as suas soluções práticas. Nasce assim o “Manual social cristão”, cuja primeira
edição foi publicada em Agosto de 1894 e a segunda em 1895.
Depois da publicação do “Manual...” a Comissão de estudos sociais perde a sua razão de ser. O P.
Dehon interessa-se então dos congressos sociais e especialmente da Democracia Cristã, que na França,
entre 1890 e 1900, é quase exclusivamente um movimento social. Nos finais do século XIX, converte-se
também num movimento político. A actividade social do P. Dehon, na sua fase mais intensa, acaba com a
morte de Leão XIII (20.7.1903).

O CATOLICISMO SOCIAL FRANCÊS


1232
RCJ 1903, 375-6.
1233
Considere-se o estudo do P Dehon sobre o socialismo no Manual social cristão (cf. OS II, pp. 87-101). Algumas das suas
previsões realizaram-se literalmente no socialismo soviético.
1234
Cf. NQ VI, 40r.
1235
Cf. NQ VI, 34r.

244
A firme actividade sócio-política de Leão XIII conseguira um resultado de importância
verdadeiramente histórica: o rejuvenescimento da Igreja de França, lançando o clero, especialmente os
sacerdotes jovens, no apostolado social.
Apesar das louváveis excepções, é um facto incontestável que em geral os católicos mais influentes
e mais abastados demonstraram durante decénios um estranho desinteresse para com as classes mais
deserdadas.
É, aliás, uma atitude difusa em toda a burguesia francesa do século XIX, católica ou não, a de
considerar os trabalhadores e o povo em geral como uma classe inferior, que é preciso manter nas suas
miseráveis condições e prevenir as possíveis revoltas.
É necessário - pensava-se - que as classes populares conservem as suas tradições de ordem, de
moderação, de simplicidade de costumes; bens que se esfumariam, elevando o seu nível de vida, com as
consequentes exigências.
É uma situação que não se diferencia muito da antiga escravatura. A fraternidade evangélica parece
uma mensagem desconhecida, inclusive nos burgueses católicos, que ignoram ou não têm em conta as
condições desumanas do trabalho, do alojamento e, em geral, das condições de vida em que se encontra a
classe trabalhadora.
A expressão “catolicismo social” teve sucesso em França à volta de 1890. Em 1896, Paulo Lapeyre
publica um livro intitulado ”Le catholicisme sociale”; Jorge Goyau em 1897, falando do “catolicismo
social”, acusa os burgueses católicos de farisaísmo, porque pregam a paciência e a resignação aos pobres,
mas não a justiça aos ricos.1236 Infelizmente, afirma La Tour du Pin, “a maior parte dos católicos não tem a
menor preparação para enfrentar a questão social”.1237
No século XIX, frente ao capitalismo liberal, ao menos uma parte dos católicos apercebe-se da
miséria e do abandono em que a grande indústria lança o operário, tornando-lhe impossível ou, pelo menos,
muito difícil mesmo a vida religiosa.
Primeiro foram pessoas isoladas, depois grupos cada vez mais numerosos a assumir uma postura
decididamente negativa contra o capitalismo. A estes católicos Leão XIII deu o seu autorizado apoio com a
“Rerum Novarum” (15.5.1891), que condenava a opressão do fraco pelo mais forte e proponha os remédios
mais oportunos.
Isto, muito sinteticamente, é para nós o “catolicismo social”. Tem um profundo respeito pela
dignidade da pessoa humana e dá grande importância ao núcleo familiar. Daí a necessidade de assegurar
aos trabalhadores e às suas famílias condições humanas de vida material e espiritual, usando todos os
meios, menos o ódio de classes.
O “catolicismo social” francês tem duas orientações fundamentais: uma aristocrática ou de direita ;
outra democrática ou de esquerda.
A primeira nasceu no tempo da restauração e terá adeptos durante todo o século XIX. Em geral,
trata-se de monárquicos legitimistas como Villeneuve, Bargemont, A. de Melun, o Conde de Chambord,
Alberto de Mun, La Tour du Pin, etc. São chamados também “católicos sociais”.
Cria-se assim uma corrente católico-social de direita, que resolve os problemas recorrendo às
instituições existentes e confiando-se ao paternalismo das classes superiores.1238

1236
J.-B. Duroselle, Le origini del cattolicesimo sociale in Francia, 13; A. Dansette, Histoire religieuse, 448-449. Para uma boa
apresentação do “catolicismo social”, da “democracia cristã” e da “política de Leão XIII, cf. A. Dansette, Histoire religieuse,
431-512, 642-669.
1237
A. Dansette, Histoire religieuse, 489. J.M. Mayeur na sua obra Catholicisme social et démocratie chrétienne, Paris 1986, p.
9, afirma que se pode recuar a 1820 para o início da acção dos católicos no campo social. Este período é estudado amplamente
por João Batista Duroselle na sua obra fundamental: Les debuts du catholicisme social en France(1822-1870), Paris 1951: Em
1871 a experiência da comuna de Paris obriga alguns católicos a procurar as causas do antagonismo das diferentes classes
sociais e a encontrar as soluções convenientes. E dissemos que no século XIX é diferente a atitude dos católicos liberais e a dos
católicos intransigentes à volta da questão social. Para os primeiros, a miserável condição do proletariado é um mal inevitável;
para os segundos, as soluções são do tipo caritativo e paternalista, como acontece com a Obra dos Círculos católicos operários de
A. de Mun e de R. de La Tour du Pin, onde os protagonistas não são os operários, mas os representantes das classes dirigentes e
o clero.

245
A corrente democrática, pelo contrário, surge na pequena burguesia e entre os intelectuais. É
sustentada pelo jornal “L’Avenir” (1830) e por “L’Ere nouvelle” (1848). Esta corrente do catolicismo
social de esquerda convergirá na Democracia Cristã, que luta pela liberdade e pela justiça da classe
trabalhadora, garantidas por instituições de carácter democrático. Vicissitudes complexas votaram ao
silêncio esta corrente até ao último decénio do 800.1239
Para evitar equívocos, as denominações “católicos sociais de direita” e “católicos sociais de
esquerda”, não têm significado político.

A OBRA DOS CÍRCULOS

As primeiras e mais importantes manifestações do catolicismo social francês são de origem


aristocrática. Depois de 1870 concretizam-se na Obra dos Círculos. O animador mais conhecido é Alberto
de Mun, entusiasta, como os seus colaboradores, da Idade Média cristã e das suas corporações. É o mesmo
entusiasmo de Leão Dehon. A sua intenção é realizar um acordo e uma colaboração entre o povo e as
classes mais ricas, para alcançar um bem estar comum.
Por convite de A. de Mun, Leão Dehon aceita a fundação de um Círculo no Patronato São José
(1873). Já tratamos disso amplamente.1240 Mais que um estudioso, A. de Mun é um grande realizador
social. Apela “ao sentido do dever e à abnegação da classe dirigente” para que se fundem círculos, ou seja,
“associações de trabalhadores”. O seu centro ideal é a capela. O seu assistente é um sacerdote. Os círculos
devem ser lugares sãos de encontro, onde patrões, sacerdotes, oficiais, participem nos honestos
entretinimentos das famílias operárias.1241
O paternalismo da Obra dos Círculos é manifesto. Mesmo se é humana e edificante a participação
das classes mais abastadas, o operário está sempre numa situação de inferioridade.
Depois de um período inicial mais prático, orientado para um vago corporativismo, a Obra dos
Círculos elabora também uma doutrina social católica. O grande teórico é um amigo de A. de Mun, o
aristocrata Marquês Renato de la Tour du Pin, que de 1877 a 1880 foi adido militar em Viena e fez suas as
ideias sociais do Bispo de Magúncia, Mons. Ketteler (sobre o salário vital, sobre a limitação das horas de
trabalho, sobre as cooperativas operárias de produção) e dos austríacos príncipe de Liechtenstein e barão de
Vogelsang, que aprofundaram o problema das corporações, apresentadas como remédio para a anarquia da
sociedade individualista nascida da Revolução francesa, exigindo a intervenção do Estado contra o
desenfreado individualismo capitalista, para impedir as injustas explorações do “deixar fazer, deixar
passar” do liberalismo.
La Tour du Pin é um monárquico, admirador do Conde de Chambord (Henrique V) e será sempre
um aristocrata legitimista. Quando se fizer sentir a influência do catolicismo social democrático, dirá a
Jorge Goyau: “querem que este movimento se desvie para a democracia, mas... é como vestir de seda a um
porco”.1242
De volta a França em 1881, La Tour du Pin publica uma série de artigos, que serão coligidos no
volume “Vers un ordre sociale chrétien”.
O modelo é sempre a sociedade medieval. A ordem social cristã inspira-se no ensinamento da Igreja
e terá como bases: a religião, a família, a fábrica.
São as teses defendidas e desenvolvidas pelo P. Dehon especialmente no Manual social cristão de
1894 (basta um olhar à bibliografia geral), no Catecismo social (1898) e nas outras suas obras, que se

1238
Cf. J.-B. Duroselle, Le origini del cattolicesimo sociale in Francia, parte I, c. 1 (pp. 33-97) sobre os percursores do
catolicismo social; parte I, c. 4 (pp. 242-294) sobre o catolicismo social nos ambientes conservadores antes de 1848; parte II, c. 3
(pp.506-603) sobre os católicos sociais do partido da ordem e toda a parte III sobre as tendências paternalistas do catolicismo
social sob Napoleão III.
1239
Cf. J.-B. Duroselle, Le origini del cattolicesimo sociale in Francia, parte II, c. 1 sobre a imprensa democrática cristã (pp.
357-437).
1240
Cf. Capítulo IX desta biografia. Recordamos o estudo completo sobre Alberto de Mun, de Philippe Levillain (École
Francaise de Roma, Palais Farnèse, 1896, pp. 1062).
1241
A. Dansette, Histoire religieuse, 491.
1242
A. Dansette, Histoire religieuse, 492.

246
ocupam de particulares problemas sociais. Disse: são as teses defendidas e desenvolvidas pelo P. Dehon,
porque, contrariamente a La Tour du Pin, o P. Dehon aceita inteiramente as directivas de LeãoXIII e passa
do catolicismo social aristocrático para o democrático.
Em todo o caso, para La Tour du Pin, como para o P. Dehon, à família deve ser assegurada a
indissolubilidade com a abolição do divórcio; o contrato de trabalho deve assegurar aos trabalhadores uma
habitação digna, os meios para manter decorosamente a sua própria família e a poupança para a velhice. Os
operários devem unir-se em corporações, legalmente reconhecidas.
La Tour du Pin resolve também os problemas particulares para se conseguir uma ordem social
cristã: trata da direcção das empresas, do capital, dos salários, dos preços, dos rendeiros, dos alugueres
agrícolas, dos seguros de doença e de acidentes, etc.
Todos estes problemas são amplamente tratados pelo P. Dehon especialmente na parte prática do
“Manual social cristão”.
Do paternalismo inicial passou-se a uma doutrina social e a propostas concretas que exigem a
prática da justiça social.
Infelizmente, a doutrina social da corrente “aristocrática”, com os seus inegáveis méritos, é
conhecida apenas por uma elite de estudiosos e não é divulgada entre os operários. Além disso, a atitude
contra-revolucionária é chocante; o sistema corporativo lembra demasiado a era dos privilégios do “Ancien
Régime”; assim a desconfiança no regime democrático, a exigência da monarquia... são tudo elementos
que, unidos à falta de divulgação entre os operários, causam a decadência da Obra dos Círculos.
Com o mesmo espírito contra-revolucionário o P. Dehon tinha começado, em 1889, a sua revista:
“O Reino do Sagrado Coração nas almas e nas sociedades”. Em seguida compreendera que não se podia
apresentar o movimento social católico como uma “contra-revolução”, primeiro, porque um enunciado
negativo não exprime nenhum dado positivo e presta-se a ambiguidades; segundo, porque dá a impressão
de um odioso regresso ao passado; terceiro, porque num século em que só a palavra “progresso” fascina, a
expressão “contra.-revolução” tem uma carga repulsiva, anti-psicológica e decididamente impopular.
Notemos, além disso, que até a “elite” intelectual não partilhava completamente a doutrina de La
Tour du Pin. Muitos, entre os quais, começando a 1891-1892, se encontra também o P. Dehon, preferem
seguir o economista Carlos Perin que aceita o regime democrático republicano.
As obras completas deste economista junto com as de Le Play, que não é um monárquico, estão
citadas na bibliografia geral do “Manual social cristão” do P. Dehon.
Porém o programa de C. Perin e dos seus seguidores limita-se à assistência e à previdência social.
Pedem a intervenção do Estado só para reprimir os abusos mais graves, como os desumanos horários de
trabalho das mulheres e das crianças. É um programa social miserável, adoptado em 1890 no congresso de
Angers, presidido por Mons. Freppel. Assim tem origem a escola de Angers.
No mesmo ano o bispo belga, Mons. Doutreloux, realiza um congresso em Liège e adopta a
doutrina social de La Tour du Pin. Assim começa a escola de Liège, contraposta à de Angers.
O grande defensor da doutrina social de La Tour du Pin será Alberto de Mun. Como deputado,
propô-la-á para que se mudem as leis, mesmo se o parlamento é em grande parte hostil ou indiferente.
A. de Mun é um homem só. A esquerda admite a verdade da sua denúncia social, mas não quer
colaborar com este “místico socialista cristão”. Os legitimistas de direita, grandes proprietários de terras,
reconhecem o fundamento das suas reformas sociais. Mais hostis são os orleanistas. Não querem pôr
entraves à grande indústria, nem com intervenções legais, nem com outras iniciativas.1243

O GRANDE AMIGO : LEÃO HARMEL

1243
Cf. G. Guitton as, Léon Harmel, I, 154-156.

247
Juntamente com La Tour du Pin, o teórico, e A. de Mun, o organizador, temos de citar Leão
Harmel, apóstolo, organizador, homem de acção e realizador no terreno concreto das suas fábricas de Val-
des-Bois. É um homem cheio de vigor, simples, sincero, atrevido nas suas iniciativas, sem complexos, sem
temores inúteis. O grande amigo e conselheiro de Leão Harmel é Leão Dehon. O filho de Leão Harmel,
também ele Leão, diz que seu pai tinha uma grande confiança no P. Dehon. Apresentava-lhe os pontos
doutrinais dos seus discursos; acolhia os seus conselhos para uma acção social cada vez mais enérgica e
perseverante.
Os conselhos do P. Dehon tinham o cunho da sabedoria, de uma moderada audácia e da caridade.
Procurava a objectividade e defendia com serenidade aquilo que acreditava ser verdadeiro e justo.
Quando Leão Harmel teve o desgosto de enfrentar uma tempestade de acusações que vinha,
inclusivamente, de alguns bispos, o P. Dehon confortou-o com o seu conselho e com a sua serenidade. O
seu ascendente e a sua autoridade moral, enquanto davam segurança a Leão Harmel, sustentavam-no no
prosseguimento do seu apostolado social que a muitos parecia inútil, utópico e destinado ao fracasso.
Bastava a Leão Harmel ver a cara do P. Dehon para sentir-se em paz, num clima de recolhimento, de
elevação espiritual.
Quando Leão Harmel foi atacado pelo bispo de Nancy, o turbulento Mons. Turinaz, os filhos do
grande industrial queriam instaurar um processo por difamação contra o prelado; masLeão Harmel,
seguindo os conselhos do P. Dehon, preferiu aceitar em silêncio as injustas acusações para não apresentar
um espectáculo escandaloso de divisão das forças católicas.1244
Sabemos, por uma testemunha ocular, que em S. Quintino, no ambiente operário, quando se
nomeava Leão Dehon, falava-se como de um amigo. Leão Dehon encontrava-se de boa mente com os
empresários cristãos, mas era também o sacerdote dos operários, defendia os seus direitos: “O primeiro
dever do patrão – afirmava – é o de assegurar ao operário e à sua família o necessário para viver
convenientemente, antes de pensar em melhorar a sua condição com iniciativas de caridade”.1245
Dizia ao rev. Bruyelle, decano de Sissonne (Aisne): “São necessários santos, para resolver a questão
social. Sem santidade o homem é lobo para o homem”.1246
Leão Harmel revela, ao contrário de La Tour du Pin e de A. de Mun, a sua origem popular. Os seus
antepassados eram carpinteiros. O avô de Leão, Tiago, de carpinteiro fizera-se afortunado fiador de lã,
secundado pelo seu filho mais velho, pai de Leão, Tiago José. 1247 Leão é um homem de grande fé, vive o
abandono absoluto e terno em Deus: é um verdadeiro místico. Um dia é surpreendido a falar só e em voz
alta na sala de espera de um médico e declara com simplicidade que estava a pedir conselho ao Coração de
Jesus sobre o modo de melhorar...de aumentar a sua fábrica.1248
Fundou a “Associação íntima” das vítimas voluntárias para a conversão do mundo operário. O seu
apostolado preferido são os doentes. Cresce o número dos membros da “associação íntima”. Mons.
Landriot, arcebispo de Reims, aprova-a em 1869. Um dia na Câmara dos deputados pergunta-se
ironicamente quanto custam as comunhões aos patrões de Val-des-Bois. Responde Leão Harmel: “Custam
os sacrifícios das nossas vítimas voluntárias. Semeai Cristo e recolhereis heroísmo”.1249
Assumiu a direcção da fábrica de fiar de Val-des-Bois aos 25 anos. Seu pai já aí tinha fundado
algumas obras de assistência. Leão cria outras novas para que os seus operários estejam assistidos desde o
nascimento até à morte.
Ajusta os salários segundo o número de membros da família; multiplica iniciativas e obras em favor
dos operários. Recordemos: a caixa escolar, o subsídio dotal, um curso de aprendizagem e de economia
doméstica, um pensionato de carácter familiar para as raparigas, um albergue para operários solteiros, um

1244
Cf. AD, B 48/2d, doc. 6.
1245
AD, B 48/2d, doc. 6.
1246
AD, B 48/2d, doc. 30. Leão Harmel estava plenamente de acordo com o P. Dehon. Um dia A. de Mun tinha usado uma
expressão muito exclusiva de Mons. Ketteler: “A questão social é questão de subsistência”. Harmel responde citando as palavras
do sucessor (nas ideias) de Ketteler, D. Moufang: “Não é questão de estômago, mas principalmente uma questão de coração e de
alma. A luta continuará enquanto o mundo estiver dominado pelo egoismo, enquanto a vida cristã não for restabelecida na
sociedade, na família e no trabalho”. Cf. G. Guitton sj, Léon Harme, I, 151.
1247
G. Guitton sj, Léon Harme, I, 3-7.
1248
G. Guitton sj, Léon Harme, I, 80.
1249
G. Guitton sj, Léon Harme, I, 69-70.

248
centro residencial operário, uma sociedade de socorros mútuos, uma caixa de previdência e de poupança,
uma cooperativa de consumo, uma consultadoria legal, um conselho para o aperfeiçoamento técnico, um
conselho de fábrica para a participação dos operários na direcção técnica e disciplinar, um sindicato misto,
conferências para os directores de fábricas, uma corporação de bombeiros e várias outras organizações
culturais, desportivas e religiosas. Leão Dehon fala largamente das iniciativas de Leão Harmel na fábrica
de Val-des-Bois, no capítulo XIX da segunda parte do “Manual social cristão”.
Se pensarmos no abandono e na miséria em que vivia o proletariado daquele tempo, explorado pelo
egoísmo dos patrões, devemos admirar a inteligência empreendedora, a tenaz generosidade de Leão
Harmel, que faz participar os operários na responsabilidade e na gestão da fábrica sua e deles, antecipando
os tempos de pelo menos meio século. “Tenho duas famílias: a que a Providência me deu e a que me impôs
a consciência: os meus operários”.1250 Um amor levado até ao heroísmo, acompanhado por uma grande
inteligência, explicam o êxito do “Bon Père” como era habitualmente chamado Leão Harmel. O P. Dehon
era o “Très bon Père”. Em relação a Leão Harmel não se pode falar de paternalismo no sentido polémico e
superficialmente pejorativo da palavra.
O motivo do prodigioso êxito da iniciativa social de Leão Harmel deve procurar-se na sua marca
genuinamente democrática. Como Leão Harmel, também o P. Dehon, de monárquico-legitimista
convencido, converteu-se, seguindo as directivas de Leão XIII, em democrático e republicano. Quando
pensamos no Diário católico e monárquico “Le Conservateur de l’Aisne”, que tinha fundado sendo jovem
coadjutor de S. Quintino em 1874, temos de reconhecer que Leão Dehon, percorreu um longo caminho em
poucos anos.
Leão Harmel, no seu “Manual da corporação cristã”, afastando-se da doutrina de La Tour du Pin,
escreve: “O bem do operário é necessário procurá-lo através da sua colaboração e de acordo com ele, nunca
sem ele e, com muito maior razão, nunca contra ele”.1251 De facto, todas as obras de Val-des-Bois, menos a
sociedade de socorros mútuos, são geridas pelos operários, que devem também adquirir uma cultura
económica e social.
Leão Harmel quereria espalhar a sua experiência por toda a França, através da Obra dos Círculos,
com a qual tem alguns contactos desde 1872. Porém, são muitas as diferenças entre L. Harmel, La Tour du
Pin e A. de Mun. Este últimos tendem prevalecentemente a uma acção social caritativa da classe dirigente;
não pensam numa acção autónoma da classe operária.
Durante seis nos, Leão Harmel percorre a França em todas as direcções, fala a empresários e
trabalhadores, a jovens estudantes, a sacerdotes e seminaristas. É um homem que inspira confiança porque
põe em prática o que diz. Mas, tendo em conta o conformismo dominante da burguesia, não só católica, a
sua propaganda é muitas vezes um escândalo, uma tentativa de subversão, porque ainda não existe uma
verdadeira questão social (a afirmação é do republicano Gambetta, certamente não afecto ao
clericalismo)1252 e depois é uma degradação do pensamento burguês interessar-se por problemas sociais, é
um rebaixar-se ao nível do proletariado.
Para estes burgueses, Leão Harmel tem falta de toda a prudência e de bom senso quando fala da
questão social a operários jovens, que devem aprender a submissão e não a subversão. O escândalo é ainda
maior quando se considera que um leigo se arroga a liberdade de arvorar-se em mestre do clero; mas
como? “O Espírito Santo – dizem ironicamente alguns eclesiásticos- sopra na direcção errada?”.1253

A EDUCAÇÃO SOCIAL DO CLERO

1250
A. Dansette, Histoire religieuse, 497.
1251
A. Dansette, Histoire religieuse, 497.
1252
A. Dansette, Histoire religieuse, 498.
1253
A. Dansette, Histoire religieuse, 498.

249
Colaboradores de Leão Harmel neste “escândalo” são o P. Dehon, os cónegos Perriot e Pottier, o P.
Gayraud, professor no Instituto católico de Toulouse, e o célebre Jesuíta P. Lehmkuhl. São os animadores
das reuniões de seminaristas e depois de jovens sacerdotes e de leigos em Val-des-Bois. A iniciativa
começou em 1887.
Já desde 1876 Leão Harmel tinha recebido o atrevido convite (para aqueles tempos) de P. Bieil,
superior do seminário de S. Sulpício, para falar aos seminaristas sobre os problemas sociais. O convite era
renovado todos os anos. Outros seminários tinham seguido o exemplo de S. Sulpício até que, em 1887, os
seminaristas mais sensíveis à questão social foram convidados, durante as férias, a Val-des-Bois, onde se
encontrava o reitor do Seminário de Langres, o cónego Perriot. Pouco a pouco estabeleceram-se certos dias
de estudo e de oração, que se renovaram ao longo de catorze anos.1254
Eis as impressões do P. Dehon sobre um destes encontros, o de 12 a 15 de Agosto de 1892. Escreve
no seu Diário: “Reunião encantadora. Participam 25 jovens piedosos e distintos, a elite dos nossos
seminários”.1255 É uma espécie de retiro espiritual com discussões sobre problemas sociais. As reuniões de
Val-des-Bois continuam até 1901.
O P. Dehon “foi uma das grandes figuras destas reuniões. Participou regularmente e desempenhou
um pouco o papel de P. Superior da comunidade”.1256
Em 1894, de 5 a 12 de Agosto, tem lugar em Val-des-Bois uma reunião de estudos sociais para
sacerdotes. São quase 60 sob a direcção do cónego Perriot. O P. Dehon faz “todos os dias uma meditação
na Missa sobre o apostolado e o zelo apostólico”.1257
Em 1895, os pedidos para participação nas reuniões de estudos sociais são tantos que é necessário
transferir-se de Val-des-Bois para o Colégio S. João em S. Quintino. De 9 a 14 de Setembro de 1895, tem
lugar um verdadeiro congresso com 200 eclesiásticos provenientes de mais de 30 dioceses: “São jornadas
memoráveis, ardentes, luminosas, que não se podem esquecer. É um pequeno concílio, um concílio de
jovens”.1258
Tratam-se temas sociais de grande actualidade, como a educação e a acção social do clero, a usura
moderna (tema preferido do P. Dehon), a Democracia cristã... Estão presentes os “sacerdotes
democráticos” mais famosos: “Lemire, Naudet, Gayraud, Glorieux, Garnier, além do cónego Pottier de
Liège e do P. Dehon. Estão também Leão Harmel e um grupo de jovens leigos democratas cristãos,
“inteligentes e cheios de zelo... Este pequeno congresso terá a sua influência no despertar da vida social
cristã na França”.1259
O semanário da Obra dos Círculos “A Corporação” qualifica este congresso eclesiástico do S. João
como “uma das mais importantes reuniões de estudos sociais tidas em França depois da “Rerum
Novarum”... O congressistas não quiseram limitar-se ao estudo teórico dos problemas; mas, seguindo o
conselho de Leão XIII, foram ao povo.1260
Apesar das polémicas e das acusações dos “bem pensantes”, Leão Harmel suscita grandes
entusiasmos. Muitos, especialmente entre os operários e o clero jovem, estão dispostos a colaborar sem
meias medidas. O povo acorre às suas conferências.
Com o tempo, Leão Harmel apercebe-se que é melhor dar a preferência aos círculos de estudo. Os
operários devem tomar consciência dos seus problemas. Nos círculos de estudo os operários podem discutir
livremente sobre questões sociais, embora assistidos por uma pessoa competente, ordinariamente um
capelão. Leão Harmel compreendeu que só com a instrução adequada se poderão formar os quadros
operários.
Preocupa-se também em organizar peregrinações a Roma. O contacto com o grande Papa da
“Rerum Novarum”, terá a sua benéfica influência no desenvolvimento do catolicismo social.

1254
G. Guitton sj, Léon Harmel, II, 100-101; R. Prélot, L’Oeuvre sociale du Chanoine Dehon, 125-126.
1255
NQ VI, 8v.
1256
R. Prélot, L’Oeuvre sociale du Chanoine Dehon, 130; cf. G. Guitton sj, Léon Harmel, II, 103-104.
1257
NQ X, 146.
1258
NQ XI, 33r-33v. Afável o acolhimento do P. Dehon; mas ficava a saudade do clima de fmília de Val-des-Bois e o desejo foi
de voltar para lá nos anos seguintes. ( cf. G. Guitton sj, Léon Harmel, II, 110).
1259
NQ XI, 33v-34v.
1260
R. Prélot, L’Oeuvre sociale du Chanoine Dehon, 138.

250
A maior incompreensão Leão Harmel encontra-a na maioria dos empresários. O P. Dehon também
faz esta constatação ao participar no congresso dos proprietários cristãos de Paris (9-11 de Junho de 1896):
“O ambiente parece-me muito reaccionário”.1261 Quanto ao congresso anual dos patrões do Norte (19-26 de
Outubro de 1896) escreve no Diário: “Há bons elementos... que caminhariam segundo as directivas
pontifícias” mas “os patrões do Norte são mais refractários. Assinamos uma trégua com eles segundo o
pacto entre L. Harmel e Féron-Vrau em Roma, mas ficará ainda letra morta. É preciso ter paciência e
esperar a acção do tempo e do Espírito Santo”.1262
Só 2 ou 3% dos industriais procuram imitar o exemplo de Val-des-Bois. Assim o apelo de Leão
Harmel não cai completamente no vazio. Os que mais conseguem aproximar-se das realizações de Leão
Harmel são Filiberto Vrau e o seu cunhado Féron-Vrau, na sua fiação de Lille.
Leão Dehon apresenta-os como exemplo na segunda parte do Manual social cristão. Dedica-lhes o
capítulo XVIII. Os resultados conseguidos pela incansável actividade de Leão Harmel são escassos.
Entretanto, Mons. Mermillod, bispo de Genève, tem a feliz ideia de confrontar os diversos estudos
sociais realizados nos países europeus e, de 1885 a 1891, organiza em Friburgo assembleias internacionais.
Leão XIII encoraja estes trabalhos que preparam o terreno para a “Rerum Novarum”. É a primeira e
importante tomada de posição oficial do catolicismo sobre os problemas que a revolução industrial suscitou
no mundo operário.

A “RERUM NOVARUM”

A famosa encíclica de Leão XIII de 15 de Maio de 1891 encerra um período do movimento social
católico e abre um novo.
Na sua redacção colaboraram o Jesuíta P. Liberatore e os cardeais Zigliara e Mazzella. O Papa
corrigiu e voltou a corrigir o texto para que fosse a expressão perfeita das suas ideias.
Os pontos essenciais da encíclica são quatro:
a) Contra o socialismo, o Papa afirma que a propriedade privada é de direito natural, mas tem
também uma função social. Os patrões e os operários têm direitos e deveres recíprocos.
b) O Estado deve promover a prosperidade pública e privada, deve salvaguardar os direitos dos
operários, mas as suas intervenções devem limitar-se à repressão dos abusos e à prevenção de perigos.
c) Os operários têm o direito, de estrita justiça, a um salário que lhes assegure um estilo de vida
humano.
d) A luta de classes é condenada; mas os operários têm o direito de reunir-se em sindicatos para
defender os seus direitos, servindo-se também da greve.
Lendo hoje a grande encíclica de Leão XIII não se pode evitar uma vaga sensação de incómodo por
causa de um certo tom solene, pela falta de afirmação explícita do direito ao salário familiar, pela
insuficiente condenação do lucro exagerado ou da “usura devoradora”, pelos fins mais morais que
económicos atribuídos às associações professionais, por uma certa timidez em tirar as conclusões práticas
derivadas dos princípios anunciados.
Muito diferente foi a impressão que a encíclica causou quando apareceu. Passou-se da frieza ao
entusiasmo. Teve um acolhimento frio por parte de muitos bispos e de um certo clero. Em muitas dioceses
nem sequer foi publicada. Nas cartas quaresmais é apresentada às dioceses apenas por 13 bispos sobre 89.
Espanta o silêncio dos bispos de grandes cidades industriais como Cambrai, Lyon, Rouen ... Sem dúvida,
para aqueles tempos, o documento papal continha uma doutrina social demasiado avançada para um certo
clero e para certos católicos. Entusiástico foi o acolhimento por parte dos sacerdotes mais sensíveis à
questão social – os “abbés démocratiques”, entre os quais G. Lemire e Leão Dehon – e pelos leigos que se
juntarão no movimento da “democracia cristã”.
Bernanos, na sua novela O diário de um pároco de aldeia, reproduziu maravilhosamente esta
reacção psicológica positiva e libertadora da “Rerum Novarum” nas palavras do pároco de Torcy, um são e
robusto padre flamengo: “A famosa encíclica de Leão XIII, “Rerum Novarum”, vós a ledes tranquilamente,
1261
NQ XI, 60r.
1262
NQ XI, 70v-71r.

251
com a cauda do olho, como uma qualquer pastoral de quaresma. Na sua época, meu menino, (fala ao jovem
pároco da aldeia) pareceu-nos que a terra tremia debaixo dos pés. Que entusiasmo!... Esta ideia tão simples,
que o trabalho não é uma mercadoria sujeita às leis da oferta e da procura, que não se pode especular sobre
os salários, sobre a vida dos homens como sobre o trigo, o açúcar ou o café, desassossegava as
consciências. Acreditas? Por tê-la explicado do púlpito à minha boa gente, passei por socialista...”.1263 O
mesmo aconteceu com o P. Dehon.
Os frutos da grande encíclica foram amadurecendo pouco a pouco, não sem resistência e reacções
conservadoras na base, e também com transitórias involuções nas cúpulas, especialmente sob Pio X.
A suprema autoridade eclesiástica tinha afastado de si a acusação de estar da parte dos ricos e de
defender o conservadorismo social. Deu uma unidade doutrinal aos católicos e, por conseguinte, às suas
iniciativas práticas. Levou-os a colaborarem para que os operários e os agricultores se organizassem na
defesa dos seus direitos e das suas justas reivindicações.
O catolicismo social passou decididamente do corporativismo e dos sindicatos mistos para os
sindicatos operários autónomos .
Foi precisamente na França, em 1791, durante a grande revolução, que se proibira toda a classe de
associação profissional e até as sociedades de socorros mútuos. Assim, os mais frágeis (operários e
agricultores) foram abandonados à discrição dos patrões: associações proibidas, intervenção estatal vetada,
liberdade económica absoluta, concorrência impiedosa, horários de trabalho desumanos, miséria negra e
condições de vida sub-humanas.
Os sindicatos multiplicaram-se em França: uma lei de 1884 tinha-os declarado legítimos. Era o
reconhecimento de uma situação de facto, visto que em 1881 já existiam, embora ilegais, 500 câmaras
sindicais operárias e 138 patronais.
Depois da “Rerum Novarum” já não havia razão para alinhar-se entre os “aristocráticos” (direita) ou
os “democráticos” (esquerda) no catolicismo social.
Sem dúvida, que os mais bem preparados para acolher as directivas da “Rerum Novarum” eram os
“democráticos” que se organizarão a “Democracia cristã”.
Os católicos e especialmente os jovens, tanto leigos como clérigos, e entre estes o P. Sehon, tinham
recebido em poucos meses um duplo apelo do Papa: o social da “Rerum Novarum” e o político do
“railliement” ou aproximação à Terceira República mediante a carta “Au millieu des sollicitudes”
(16.2.1892).
Na lúcida visão de Leão XIII, o regresso da classe operária à Igreja e a reconciliação com a
República eram dois aspectos de um único problema: o acordo entre o catolicismo e a sociedade moderna.
Em França, quem aceita a “Rerum Novarum”, em geral aceita também a “Au milieu des
sollicitudes”. São sobretudo o clero jovem e os jovens do laicado católico que renunciam a todo o sonho
monárquico e dão vida à Democracia cristã. O P. Dehon, apesar dos seus 50 anos, adere aos dois apelos do
Papa com o entusiasmo dos jovens e com a convicção da idade madura.
Esta adesão não foi indolor. O P. Dehon contava muitos amigos na corrente direitista do catolicismo
social: Leão Harmel sempre tinha sido um democrata, embora admirasse e venerasse o conde de Chambord
e tivesse sido discípulo de La Tour du Pin.1264 Também A. de Mun, depois de alguma exitação, acabou por
aceitar a República.
La Tour du Pin, pelo contrário, permaneceu inflexível nas suas convicções e nunca pensou que
devia, em consciência, obedecer ao Papa, aceitando a democracia e a República. Para o grande sociólogo, o
P. Dehon era um “granadeiro do Papa” e A. de Mun “um soldado flutuante”; ele, pelo contrário: um velho
“resmungão” que era preciso suportar.1265
Depois da publicação da “Rerum Novarum” (15,51891), os três grandes protagonistas do
catolicismo social francês vão-se distanciando cada vez mais entre si.

1263
Coll. Medusa, Mondadori, p. 66.
1264
Cf. G. Guitton sj, Léon Harmel, I, 330
1265
Cf. R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 210. São palavras de La Tour du Pin pronunciadas durante um brinde,
em 1893. Granadeiro do Papa era o P. du Lac que se sentava à direita de La Tour du Pin. Todavia a expressão adapta-se muito
bem também o P. Dehon.

252
La Tour du Pin, fiel ao seu ideal medieval, corporativo e monárquico, terminou a sua obra já em
1889, quando fracassa o movimento contra-revolucionário dos estados gerais. Assim, o representante do
catolicismo social aristocrático, sai de cena.
O representante democrático, Leão Harmel, com a sua maravilhosa intuição da realidade operária,
está em constante evolução, sem compromissos nem culturais nem político-sociais. É o chefe reconhecido
do movimento social: a Democracia cristã. De organizador do sindicato misto torna-se defensor do
sindicato autónomo. A. de Mun, espantado, afirma que a democracia de Harmel confina com a demagogia.
Sem ter em conta as críticas, L. Harmel prossegue atrevido e seguro, com o conselho do P. Dehon: “Não
percamos tempo a responder aos mortos: vamos à vida”.1266
O seu apostolado é operário e patronal, até que em 1901 deve renunciar à actividade pública por
causa de desgraças familiares e para dedicar-se totalmente à sua fiação.
Ao centro encontramos A. de Mun, propagandista das doutrinas da “Rerum Novarum” e deputado.
Desenvolve uma obra maravilhosa. A aprovação das primeiras leis sociais na Câmara, por exemplo a de
1898 sobre os acidentes, devem-se à sua perseverante combatividade e eloquência.
Quando no princípio do século A. de Mun deve retirar-se à vida privada por doença, cria-se um
grande vazio no palácio Borbon, onde até os republicanos mais incendiados são, no campo social,
arreigados reaccionários.
O P. Dehon é amigo dos três protagonistas do catolicismo social, mesmo se , com La Tour du Pin,
tem choques dolorosos. Em 1897, por exemplo, o P. Dehon faz com que se aplauda em público o P.
Gayraud, eleito deputado, depois da derrota do conde de Blois, candidato monárquico. La Tour du Pin fica
profundamente melindrado. Escreve uma carta de protesto ao P. Dehon, protesto que se estende também a
Leão Harmel; mas ambos continuam, decididamente, o seu caminho.
Quanto ao clero, as esperanças da democracia cristã são postas quase inteiramente nos sacerdotes
jovens e nos seminaristas.
Os párocos conservadores, educados à Veuillot, ou não renunciam aos seus propósitos belicosos
contra os republicanos, os judeus e os maçons, ou se refugiam na angústia e no desânimo por tantas
derrotas sofridas pela religião sob a República e pelo avançar da descristianização; lamentam os tristes
tempos em que estão obrigados a viver e refugiam-se nos deveres do seu ministério. Muitos deles são
desprovidos de qualquer sensibilidade para a questão social, não por egoísmo, mas por hábitos inatos.

O PADRE DEHON E OS SACERDOTES DEMOCRÁTICOS

O P. Dehon sofreu muito por causa da apatia e da incompreensão do clero do seu tempo.
Em 1895, fazendo a introdução à segunda parte do seu Manual social cristão, escreve: É preciso ir
ter com o povo!... é a máxima de Leão XIII”. Esta exortação é dirigida sobretudo aos sacerdotes. “Não
podem permanecer fechados nas suas igrejas e nas suas casas paroquiais... Não basta levar ao povo a
palavra que ensina e consola, é preciso ocupar-se dos seus interesses temporais e ajudá-lo a organizar
instituições que substituam as desaparecidas corporações... Deve-se actuar sem perder tempo com
discussões estéreis”. Infelizmente, os desanimados, os derrotistas entre os sacerdotes de certa idade, são
uma multidão. “Não há mais nada a fazer...; é impossível”. O P. Dehon analisa com mágoa e ironia um
manual de obras considerado “excelente” que apresenta os homens como irrecuperáveis e aconselha obras
para as mulheres, as raparigas e ao máximo patronatos para os rapazes; aconselha que se ocupem das
crianças e dos doentes: “Não resta outro caminho: é a regra, é a lei... Assim fez Nosso Senhor”.
“Eis até onde chegou a ilusão dos sacerdotes piedosos! Viram crescer o mal; assistiram à apostasia
de todo um povo e que fizeram?... Associações de raparigas”. O P: Dehon conclui amargamente: “Este é o
espírito que imperou em muitas das nossas dioceses desde 1825-1830 até aos nossos dias (1895)... E
admiramo-nos se o povo acaba por dizer que a religião é feita para as mulheres e as crianças?
Esta geração cobarde mudou-nos o Cristo. Já não é o Cristo dos trabalhadores, o Cristo que exercia
o seu incansável apostolado entre os pecadores, os publicanos, os homens do mundo... O leão de Judá
converteu-se num tímido cordeirinho. O nosso Cristo, cujo poderoso apostolado inspirou o de Paulo, o de
1266
G. Guitton sj, Léon Harmel, II, 23.

253
Xavier e o de todos os conquistadores de almas, converteu-se num homem medroso e fraco que só fala aos
doentes”. Estamos em 1895.1267
“Ir ao povo” significa para o P. Dehon: dar confiança aos trabalhadores, não substituí-los, mas
ajudá-los a tomar consciência dos seus direitos e deveres, sobretudo não privá-los da dignidade de serem
eles os protagonistas da sua história, principalmente com os sindicatos. Era a reprovação de toda a classe
de paternalismo e a exigência de justiça social.
Esta é a maneira de falar do P. Dehon aos sacerdotes jovens, aos seminaristas, aos participantes nas
reuniões de estudos sociais de Val-des-Bois.
O interesse dos jovens por tudo o que é novo e justo é favorecido também pelo próprio Leão XII,
que se lhes dirige com um linguagem bem pouco usual e, afirmando o primado do trabalho, exorta-os a
apoiar os fracos nos conflitos que dilaceram a sociedade, quer que aceitem o governo que a maioria do
povo elegeu: “Aconselhai os vossos sacerdotes – escreve a Mons. Germain, bispo de Coutances, em 1893 –
a não se fecharem nas paredes da igreja e da casa paroquial, mas de irem ao povo e se ocuparem de todo o
coração do operário, do pobre, dos homens das classes inferiores”.1268
O conselho é indirectamente para os bispos, embora com fraco resultado. Nenhum bispo francês
tem a audácia e a relevância social de um Ketteler ou de um Manning.
Como em geral o seu clero mais velho, os bispos sentem-se muito comprometidos, por exemplo na
luta política e não estão em condições de fazer próprias, vitalmente, as novas exigências sociais. Se as
encorajam, inspiram-se na escola de Angers de Mons. Freppel, de quem já conhecemos o frustrante
paternalismo. A sua aceitação das doutrinas papais está cheia de respeito, mas não encontram preparação
na sua cultura e correspondência profunda no seu coração e na sua acção pastoral.
Muitos jovens sacerdotes, pelo contrário, acolhem o convite do Papa para “ir ao povo” com um
entusiasmo sincero e desinteressado que comove pelo seu ardor apostólico e pela fé messiânica de que está
animado.
“Um novo vento de Pentecostes – escreve o P. Klein – passou sobre a Igreja de França, arrancando
os ramos velhos, dispersando os ramos secos, fazendo despontar os renovos jovens e verdes ao ar, ao sol, à
vida!”.1269 Este clero jovem, comprometido socialmente, passa à história com o nome de “abbés
démocrates”. Entre eles destaca-se, não já jovem em anos, mas jovem em espírito, como “uma figura
excepcional e incontestada”, Leão Dehon, pelo equilíbrio do seu pensamento, pela sua coragem ponderada,
pela sua inteligente fidelidade às directivas papais, pela segurança da sua doutrina, exposta com clareza e
com uma serenidade que evita toda a estéril polémica.1270
A convicção dos “sacerdotes democráticos” é de que a democracia é um facto irreversível na
evolução histórica e que os “imortais princípios” da liberdade, da igualdade e da fraternidade, antes de ser
pela revolução, foram difundidos pelo Evangelho.
Os “sacerdotes democráticos” são muitos. Entre eles, o mais conhecido, também pela sua actuação
política, é Júlio Lemire, um flamengo de aspecto rude e de olhos astutos. Até os socialistas e os radicais o
admiram e aplaudem. A seu lado, também ele deputado na Câmara, recordamos Hipólito Gayraud, P.
Garnier, um hercúleo normando, de voz forte e retumbante e de uma actividade imparável; o P. Naudet
que, tendo chegado em 1901 a Bordeaux para pregações Quaresmais, recusa falar a um auditório composto
exclusivamente por mulheres enquanto os operários se embrutecem nas tabernas do porto; o P. Dabry,
animador de “La Vie catholique” e que acabará fora da Igreja, amargurado por desilusões e desgostos.
Estes são alguns dos mais famosos “sacerdotes democráticos”.
Também são “sacerdotes democráticos” centenas de humildes sacerdotes que, embora dedicados às
suas paróquias, difundiram as ideias sociais de Leão XIII e foram os que tornaram possível o sucesso das
grandes iniciativas do movimento democrata-cristão, como os congressos operários e os congressos
eclesiásticos.

1267
OS II, 153-158 passim.
1268
A. Dansette, Histoire religieuse, 504.
1269
A. Dansette, Histoire religieuse, 504.
1270
Cf. J. Morienval, in Catholicisme Hier – Aujourd’hui – Demain, III, 588.

254
APOSTOLADO SOCIAL NA FRANÇA E NA ITÁLIA

Depois da “Rerum Novarum” nascem numerosos grupos de estudo, dirigidos por sacerdotes.
Primeiro difundem-se pela região de Reims e das Ardenas, onde é determinante a influência de Val-des-
Bois, depois no Norte, no Oeste, em Paris e em Lyon.
De 20 a 22 de Maio de 1893, realiza-se em Reims o primeiro congresso dos Círculos operários de
estudos, por iniciativa de Leão Harmel, com a aprovação de Leão XIII. O P. Dehon não participa nele.
Participa sim no segundo congresso dos Círculos de estudo de Reims de 12 a 15 de Maio de 1894. Os
participantes são 600 entre operários, empregados e capelães. “É um bonito espectáculo – escreve no seu
Diário - . Aqui está o embrião de uma democracia cristã. São homens pouco instruídos, mas que estudaram
as questões sociais e são dóceis às directivas do sacerdote. Querem elevar a classe operária, mas não
querem ir para além da lei cristã”.1271 Os dois congressos hesitam entre a escolha de sindicatos autónomos
ou de sindicatos mistos.
A actividade social do P. Dehon torna-se, pouco a pouco, vertiginosa. De 5 a 10 de Junho (1894)
está presente na reunião anual da Obra dos Círculos: “A reunião não é numerosa, mas é interessante. É um
grupo escolhido, o estado maior que permaneceu fiel à Obra. Há um grupo único de economistas
cristãos”.1272 Basta pensar em La Tour du Pin e em A. de Mun. O P. Dehon fala sobre a actividade das
reuniões de estudos sociais da diocese de Soissons. Estava para ser publicado o Manual social cristão. 1273
De 2 a 5 de Julho (1894) dirige com o cónego Perriot uma reunião de estudos sociais para
seminaristas em Val-des-Bois: “É um grupo escolhido de jovens eclesiásticos inteligentes e zelosos”.1274 De
10 a 12 de Julho preside, com o P. Delaporte, às reuniões da sociedade dos Faustos eucarísticos de Paray-
le-Monial: “A finalidade dos nossos trabalhos é tornar popular a ideia do reino social de Jesus Cristo e do
Sagrado Coração, para reconquistar a França”.1275 De 25 a 29 de Julho (1894) participa no congresso
eucarístico de Reims. Entre outros é desenvolvido o tema: A Eucaristia e o operário. “É um sinal dos
tempos. O movimento democrático entra também nos congressos eucarísticos”. 1276
De 5 a 12 de Agosto (1894), voltamos a encontrar o P. Dehon em Val-des-Bois, onde preside, com
o cónego Perriot, a uma reunião de sacerdotes. São reuniões organizadas por sacerdotes da democracia
cristã do Norte. Dirige os trabalhos P. Paulo Six, fundador em Lille da revista social mensal “La
Démocratie chrétienne”. “Os temas são tratados por homens muito competentes” (Vaudet, Harmel,
Villeneuve...). O P. Dehon fala todos os dias durante a missa e orienta todas as tardes uma discussão sobre
a reparação ao Sagrado Coração.1277 No domingo 12 de Agosto (1894) tomam parte no congresso operário
regional de Charleville. Nele participam operários que se tinham deixado seduzir pelas ideias socialistas,
mas que depois voltaram à sã doutrina do Evangelho.1278
A 20 de Agosto (1894), é publicado o Manual social cristão.1279
A 2 de Outubro, reunião anual das Obras diocesanas em Nossa Senhora de Liesse. O P. Dehon
apresenta o “Manual...” e pede-se-lhe que junte uma segunda parte prática.1280
À noite, detém-se em Couvron com La Tour du Pin: “Discutimos sobre obras e fazemos bons
projectos...”.1281
Todos os meses têm lugar reuniões da Comissão de estudos sociais e o P. Dehon nelas participa
fielmente.1282
Em 1895, o P. Dehon prega a Quaresma em Chauny. Procura atrair para o Evangelho os operários
das fábricas de S. Gobain. Tarefa árdua, embora haja toda a colaboração possível da parte da direcção, que
1271
NQ X, 109: 12-15.5.1894.
1272
NQ X, 120: 5-10.6.1894.
1273
Cf. NQ X, 122.
1274
NQ X, 127: 2-5.7.1894.
1275
NQ X, 129: 10-12.7.1894.
1276
NQ X, 144-145: 25-29.7.1894.
1277
NQ X, 146:6-11.8.1894
1278
Cf. NQ X, 147: 12.8.1894.
1279
Cf. NQ X, 148: 20.8.1894.
1280
Cf. NQ X, 149: 2.10.1894.
1281
NQ X, 150-151: 2.10.1894.
1282
Cf. NQ X, 152-153: 5.12.1894.

255
faz muito pelos operários: há uma capela, religiosas e irmãos das Escolas Cristãs. Quase nenhum operário
cumpre o preceito pascal. Falta o apostolado para os homens. O P. Dehon escreve no Diário: “As
quaresmas são como os discursos muito antigos. Não é com tais meios que se consegue refazer uma
sociedade cristã. São precisas missões que sacudam e obras sociais que conquistem os homens”.1283
Entretanto trabalha na redacção da segunda parte do “Manual social cristão”, dedicada às “obras
sociais”.
Em Abril está em Roma: “Vim procurar a confirmação de todos os meus estudos deste inverno
sobre a acção social cristã”.1284 É recebido em audiência por Leão XIII. O P. Dehon fala-lhe do S. João, de
Val-des-Bois: O Papa encoraja e abençoa. O P. Dehon assiste às conferências sociais de G. Lemire e ele
próprio faz uma no seminário francês sobre o dever social do sacerdote.1285
A actividade social do P. Dehon continua intensa em todos estes anos. Em parte já a apresentámos,
enquanto ligada às reuniões de estudo de Val-des-Bois. Mas agora o seu campo de acção torna-se nacional
e internacional. Mencionamos os acontecimentos mais importantes.
De 23 a 25 de Maio de 1896, participa m Reims no terceiro congresso dos Cículos operários de
estudos. São 600 os delegados. O P. Dehon assume uma atitude de prudente reserva, quando se discute
sobre a orientação da democracia cristã. O congresso decide a fundação de um partido democrático
republicano. O seu conselho nacional será composto só por assalariados. Nascia assim um partido classista
e caía-se, de forma inconsciente, no perigo da luta de classes de cariz socialista.
No congresso participa também A. de Mun, com alguma inquietação e muitas reservas, mas
lealmente, para não esmorecer os esforços dos trabalhadores cristãos e para testemunhar-lhes o apoio e a
simpatia que merecem.
O P. Dehon manifesta a sua admiração por aqueles trabalhadores. São homens de boa vontade, mas
falta-lhes cultura e experiência sócio-política para criar uma democracia esclarecida. “É todavia uma boa
coisa agrupar e cultivar estas almas leais, para que avancem cada vez mais para a democracia. Há que
temperá-la com o sal cristão”.1286 Convida todos a ter paciência e compreensão: “É a infância da
democracia cristã”.1287 Para o P. Dehon “a democracia cristã”, como já tivemos ocasião de dizer, não é um
partido político, mas uma organização de todas as forças sociais, sem distinção de classe, que se unem para
que se façam leis e se realizem obras em favor do povo, observando, sem excepções, as leis do Evangelho.
De 27 a 31 de Maio de 1896 participa, em Paris, no congresso da Obra dos Círculos.
Infelizmente, toda a Obra dos círculos está em decadência por motivos políticos. Alguns defendem
a restauração monárquica e não aprovam a orientação democrática. A Obra dos Círculos, conclui o P.
Dehon, “continua a fazer um pouco de bem, mas não pode mais entusiasmar nem conquistar a nação: falta-
lhe unidade”.1288
Chegamos assim ao famoso congresso eclesiástico de Reims de 24 a 27 de Agosto de 1896,
organizado por Júlio Lemire, com a colaboração, no plano doutrinal, do cónego Perriot e do P. Dehon. 1289
Mons. Péchenard, Vigário Geral de Reims, tinha aceitado a presidência, mas sem grande entusiasmo.
“Quantos sereis? Uns cinquenta?”.1290 Foram, ao invés, 700 sacerdotes. É o número mais provável; mais
dos 500 de que fala o P. Dehon no seu Diário.1291 Tinham vindo de todas as dioceses de França.
Foram dias de intenso trabalho. Discutiram-se todos os problemas sociais à luz das encíclicas. Cada
dia, ao fim da manhã, os congressistas reuniam-se para um exame particular, sob a guia do P. Dehon. Sua
foi também a alocução da primeira tarde: Faz falta derrubar as barreiras levantadas, entre o povo e os
sacerdotes, pelos preconceitos, para que não haja obstáculos ao anúncio do Evangelho.1292
1283
NQ XI, 2r: 23.3-15.4.1895.
1284
NQ XI, 4v: 16.4-3.5.1895.
1285
Cf. NQ XI,, 5r.73-8v.
1286
NQ XI, 58r: 23-25.5.1896.
1287
Ibi.
1288
NQ XI,, 58r: 27-31.5.1896.
1289
Cf. R. Rémond, Les deux congrès ecclésiastiques de Reims e de Bourges, 3-4.
1290
R. Rémond, Les deux congrès ecclésiastiques de Reims e de Bourges, 39, nota 4. O cardeal Lagénieux, num primeiro
momento, tinha dado o seu apoio ao congresso; porém depois da oposição de vários bispos, o de Nancy à frente, Mons. Turinaz,
tinha encarregado Mons. Péchenard de presidi-lo e controlá-lo.
1291
Nq. XI, 68v: 25-27.8.1896.
1292
R. Rémond, Les deux congrès ecclésiastiques de Reims e de Bourges, 46.51.61.

256
No último dia, Mons. Péchenard, “comovido e entusiasmado”, pode dizer ao Cardeal Lagénieux
que as directivas de Leão XIII foram perfeitamente seguidas e que não se disse uma palavra “que não fosse
marcada pelo mais profundo respeito pela autoridade dos bispos”.1293
Deste congresso o P. Dehon escreve assim no seu Diário: “Pode-se estudar nele a psicologia do
bom sacerdote francês, generoso, activo, comprometido com o seu ministério. O programa é imenso.
Compreende a acção, o estudo, a organização. G. Lemire assume um grande número de comunicações.
Nelas exprimem-se muitas boas ideias. Na refeição de clausura o entusiasmo é delirante... Este “pobre”
congresso, tão sábio, tão prudente, tão bem orientado, teve violentas contestações. Falou-se de
presbiterianismo, de sínodo sem bispo, etc. Muito barulho por nada...”.1294 De facto muitos jornalistas
tinham-se mostrado apreensivos perante estes “sacerdotes revolucionários... impacientes por libertar-se do
jugo da disciplina” até ao ponto de “fazer tremer pela base a jerarquia da Igreja”.1295
Neste mesmo mês de Agosto de 1896, de 17 a 22, o P. Dehon tinha participado no terceiro
congresso da Terceira Ordem Franciscana, celebrado em Reims.1296 Leão XIII, já em 1882, com a encíclica
“Auspicato concessum est”, tinha decidido a renovação da Terceira Ordem, reduzida a uma confraria,
“piedosa e inócua na qual nada mais há a fazer do que rezar bem doze Pai-nossos e ouvir uma prática sobre
a humildade ou sobre a tibieza”.1297
A terceira Ordem, segundo a vontade do Papa, deve comprometer-se , como durante a Idade média,
na acção e nas obras sociais. O convite de Leão XIII fica sem resposta durante 10 anos e inclusive é
contrariado pelos habituais católicos reaccionários.
Ao lado dos franciscanos franceses: P. Júlio, homem de acção e organizador; P. Ferdinando, homem
de estudo, encontramos inseparáveis Leão Harmel e o P. Dehon, imbuídos de espírito franciscano e
pertencentes à Terceira Ordem desde há muito tempo, mesmo se o P. Dehon, como religioso, já não o seja
juridicamente.
Para Leão Harmel, homem prático por excelência, a Terceira Ordem não deve contentar-se com
admirar os ensinamentos pontifícios, mas deve também pô-los em prática. Assim se chegara aos congressos
de Paray (1894) e de Limoges(1895).
O P. Dehon seguia esta corrente de ideias e compartilhava-a, de modo que na reunião eclesiástica de
S. Quintino (Setembro de 1895) tinha convidado Leão Harmel a falar da Terceira Ordem “como a quisera o
seu fundador e como a queria Leão XIII”.1298
O P. Dehon participa no terceiro congresso de Reims (1896) no qual faz uma conferência sobre a
usura, ou seja, sobre os ganhos excessivos dos capitalistas, dos bancos, da indústria, do comércio que
provocam nefastos efeitos de miséria no povo.
De 29 de Novembro a 1 de Dezembro de 1896 o P. Dehon toma parte no congresso da democracia
cristã de Lyon que “foi sucessivamente anti-maçónico, anti-semita e social. A presença de Drumont põe o
clero em agitação. Fala tão mal dos bispos! Todavia prestou imensos serviços à boa causa, suscitando a
questão semita (o anti-semitismo do P. Dehon era, infelizmente, exagerado, mesmo que de boa fé)...Fiz um
relatório sobre a situação actual e sobre as causas do mal estar social. É um trabalho que me servirá para as
minhas conferências em Roma”.1299
A 10 de Dezembro de 1896, o P. Dehon parte para Roma, onde fica quatro meses. Assim pode
informar-se “acerca das verdadeiras intenções do Papa”.1300 Aí profere, desde 4 de Janeiro até 11 de Março
de 1897, cinco conferências sobre a questão social na casa dos Assuncionistas. As conferências tinham sido
solicitadas e organizadas por Mons. Tiberghien, grande amigo de Leão Harmel.
Os que assistiam a cada conferência eram cerca de 500, com a presença de vários cardeais. Não
faltaram os aplausos e lisonjeiras crónicas nos jornais.1301 Estas cinco conferências, unidas a outras quatro

1293
R.Prélot. L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 142.
1294
NQ XI, 68v-69r: 25-27.8.1896.
1295
H. Dorresteijn scj, Vita e personalità di P. Dehon, 193.
1296
F. NQ XI, 66v-67r: 17-22-8-1896.
1297
R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 153.
1298
R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 155.
1299
NQ XII, 7-8: 25.11-1-12.1896.
1300
NQ XII, 10: 1.12.1896.
1301
Cf. NQ XII, 37-38: 14.1.1897.

257
(duas sobre a democracia cristã, uma sobre a acção social da Igreja e do sacerdote e uma sobre a missão
actual da Terceira Ordem) foram publicadas em 1900 no volume intitulado: La Rénovation sociale
crétienne.1302

ENTRE TANTOS AMIGOS, O GRANDE AMIGO...

Entre tantas personalidades conhecidas em Roma pelo P. Dehon neste tempo, recordamos Mons.
Radini Tedeschi, futuro bispo de Bérgamo. Dará autorização para a fundação da escola apostólica de
Albino (Bérgamo), favorecendo a difusão da Congregação do P. Dehon na Itália. Então era cónego da
basílica de S. Pedro: “eloquente, muito fino, em dia com os problemas actuais... Era muito querido por
Leão XIII e destinado a um grande futuro”.1303
Encontra também G. Toniolo, professor na universidade de Pisa, “filósofo e sociólogo notável, e
também de uma amabilidade e de uma graça encantadoras. As suas ideias são muito avançadas. Leão XIII
gosta muito dele e chama-o “mestre” em sociologia. Pela sua ciência e a sua doçura mereceu ser
comparado a S. Boaventura, o doutor seráfico”.1304
Mas o acontecimento mais importante de 1897 é audiência que Leão XIII concede ao P. Dehon
junto com Leão Harmel, com P. Júlio, franciscano e com o senhor de Palomera, um empresário de Cognac.
Desta audiência o P. Dehon fala longamente no seu Diário.1305
Apenas o viu o Santo Padre disse-lhe: “O senhor dá conferências em Roma, já começou?”. –
“Sim, ... faço uma de quinze em quinze dias”. – “Sobre a questão social?”. – “Sim, Santo Padre”- “Muito
bem!”.
Leão Harmel fala das obras sociais; o P. Dehon da Congregação... “Fazei apostolado popular,
ensinai os direitos de cada um: dos patrões e dos operários. Apartai o povo do socialismo...”.
Leão Harmel diz ao Santo Padre...: “o movimento democrático cristão, segundo as vossas
encíclicas, faz progressos em França. Tem revistas, como “La Démocratie Chrétienne” de Lille e jornais:
“La France libre”, “L’Univers”.
- O Santo Padre acrescenta: e “Le Peuple Français”. – Leão Harmel responde: “Tem também os
seus congressos que são muito vivos”.
- O Santo Padre volta-se então para mim e diz-me: “Vós estáveis no congresso de Lyon, não é
verdade?
- Respondo: “Sim, Santo Padre, e tudo se processou muito bem. As doutrinas papais foram muito
aplaudidas”.
- “E o arcebispo, Mons. Couillé, não estava com um pouco de medo?”.
- “Sim, responde Leão Harmel, porque em Lyon há poderosas influências refractárias...”.
Leão Harmel menciona então a actividade dos sacerdotes dedicados ao povo: como o P. Dehon,
Lemire, Gayraud, Garnier, Naudet...
O Santo Padre continua: “É preciso uma organização e chefes para a acção política e social. Para a
actividade social, temos Leão Harmel. Para a actividade política pensais que o sr. Lamy poderá
conseguir?...”
Outros temas foram tratados com muita familiaridade durante a audiência, e as palavras finais do
Papa foram: “Ide, é preciso salvar a França, esta nação que nos é muito querida”.
“Saímos muito emocionados e verdadeiramente satisfeitos depois de 35 minutos de audiência”.
Entretanto, o Cardeal Rampolla tinha solicitado ao P. Dehon a feitura de um opúsculo que
defendesse a utilidade dos congressos, muito contestados. Em 1897 o P. Dehon publica: “Os nossos
Congressos”.
Ainda o cardeal Rampolla quer mostrar ao P. Dehon a benevolência e a confiança do Santo Padre
pelo seu apostolado social, oferecendo-lhe uma prelatura. O P. Dehon observa que não pode aceitá-la já
1302
As conferências sobre a democrcia crist~(6ª e 7ª) tiveram lugar em Roma em Abril de 1898 (cf. NQ XII, 148: Abril de 1898).
A oitava conferência tida em Roma em 1898 foi publicada na revista do P. Dehon “Le Règne...”, como também a nona.
1303
NQ XII, 25-26: Janeiro de 1897.
1304
NQ XII, 26-27: Janeiro de 1897.
1305
NQ XII, 27-28: 22.1.1897; cf. G. Guitton sj, Léon Harmel, II, 140-142.

258
que é religioso. Fá-lo então nomear consultor da Congregação do Índice e envia-lhe a nomeação a 10 de
Abril, véspera do onomástico do P. Dehon: S. Leão.1306
Na viagem de regresso à França, o P. Dehon passa por Milão e por Bérgamo (8-11 de Maio de
1897) com a finalidade de conhecer as obras sociais do movimento católico. Em Milão encontra-se com D.
Albertario: “Vi-o no seu gabinete, no seu jornal, todo ocupado e absorvido no bem. É uma natureza
ardente, totalmente íntegro, sem compromissos e sem diplomacia. Eu chamá-lo-ia o Veuillot de Itália”.1307
No arcebispado de Milão dá uma conferência sobre o mal estar contemporâneo e os seus remédios.
Mas é, sobretudo, Bérgamo que suscita a admiração do P. Dehon: “Ali as obras sociais conseguiram a
organização mais perfeita de Itália graças à influência do conde Medolago... e ao zeloso professor Rezzara.
A província de Bérgamo é um feudo dos católicos. No conselho provincial têm 40 lugares sobre um total
de 60. O conde Medolago é o Presidente. Têm 92 Caixas rurais... O Prof. Rezzara concentrou numa casa de
obras em Bérgamo um diário, um círculo, uma caixa económica, um banco católico e uma cooperativa; faz
aí reuniões para jovens, para sacerdotes e conferências populares. No seminário de Bérgamo estuda-se a
história social da Igreja, o movimento social católico, o funcionamento das caixas rurais. Como estamos
atrasados em França! Os resultados deveriam abrir-nos os olhos”.1308

DESVANECEM-SE OS SONHOS SOCIAIS

De 23 a 26 de Agosto de 1897 encontramos o P. Dehon em Nîmes. Participa no quarto congresso da


Terceira Ordem franciscana: “muita animação, muito entusiasmo”.1309 A discussão sobre o problema da
riqueza tornou-se muito animada. Para precisar as suas ideias sobre este tema, o P. Dehon, com D. Tartelín,
escreve um opúsculo com o título: “Riqueza, justo bem estar ou pobreza”. Com os textos do Evangelho e
da “Rerum Novarum” demonstra como a alguns, que têm uma vocação especial, pode-se-lhes pedir a
prática da pobreza voluntária, mas à maioria só se pode pedir que evitem os abusos na administração dos
seus bens e que tenham um justo bem estar,
Está dado o empurrão... e a Terceira Ordem encarrega-se da questão social. Esta é a impressão que
o P. Dehon retira do congresso de Toulouse (agosto de 1899): “A Terceira Ordem rejuvenesce ao inserir-se
na corrente da vida social cristã. Era galicana sem dar-se conta. Agora revive. Será preciso tempo, mas o
movimento teve início e há muito a esperar. Falo aos terciários sobre a caridade cristã e sobre as suas
obras”.1310
No ano anterior, numa carta de 25 de Novembro de 1898, Leão XIII, como tinha dito aos
sacerdotes: “Saí das casas paroquiais e ide ao povo”, também tinha convidado os religiosos a sair dos
conventos e a comprometer-se com o povo, a exemplo de S. Francisco. “A terceira Ordem franciscana
pode certamente prestar assinaláveis serviços à sociedade”.1311
Para difundir as instruções do Papa, os promotores da nova orientação social da Terceira Ordem,
entre eles Leão Harmel e o P. Dehon, desejavam há muito tempo organizar um congresso internacional.
Realizou-se de facto em Roma de 23 a 27 de Setembro de 1900. Reuniram-se 15.000 congressistas dos
quais 9.000 eram italianos e 2.000 franceses. As assembleias gerais tiveram lugar na ampla igreja de Santo
André della Valle.
Escreve o P. Dehon no seu Diário: “Emergiram as duas correntes pastorais. Sobretudo os
capuchinhos são refractários. Pessoalmente passei aos olhos de alguns como revolucionário por ter dado ao
meu discurso (L’action nouvelle du tiers-Ordre”), uma marca democrática”.1312
Até queriam impedi-lo de citar a carta do Papa de 25 de Novembro de 1898, com o pretexto de que
Leão XIII a tinha retirado. Afirmação que fez cair das nuvens o cardeal Rampolla. 1313 A própria divisa do
1306
Cf. NQ XII, 42-43: 10.4.1897.
1307
NQ XII, 52: 8-11.5.1897.
1308
NQ XII, 52-53: 8-11.5.1897.
1309
NQ XII, 73: 23-25.8.1897.
1310
NQ XII, 174.
1311
R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 158-159.
1312
NQ XVI, 36; R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 160-164.
1313
NQ XVI, 36-37.

259
congresso proclamada por Leão Harmel: “Ser o homem do Papa” foi interpretada num sentido pouco
menos que subversivo. O Congresso de Roma foi uma derrota para os inovadores. Apesar dos esforços de
Leão Harmel e do P. Dehon, declarou-se expressamente que a Terceira Ordem não era “nem uma escola de
sociologia, nem uma organização para promover a economia política”.1314
Desvanecia-se assim o belo sonho, não só do P. Dehon e de Leão Harmel, mas de Leão XIII. O
mesmo aconteceria dentro em pouco com a democracia cristã.
Em 1897, de 8 a 12 de Dezembro, realizara-se em Lyon o congresso da democracia cristã. Foi
corrigida, ampliando-a, a tendência exclusivamente operária do congresso de Reims (23-25 de Maio de
1895). Constituiu-se um comité directivo dividido em três secções: operária, intelectual e eclesiástica,
composta esta última pelo P. Dehon e pelos PP.Lemire, Naudet, Garnier. Foi eleito Presidente do comité
Leão Harmel.1315
“Em 1897, a democracia cristã alcançara o seu maior esplendor; teve ainda alguns dias brilhantes,
mas encaminhou-se depois inexoravelmente para o declínio”.1316
Espanta que um movimento tão vital, sentido como uma necessidade, especialmente pelos operários
e pelo clero jovem, apoiado com grande entusiasmo, se esfume em dez anos e desapareça não
esquecimento.
Os motivos podemos encontrá-los no facto de a organização não corresponder ao entusiasmo; o
conselho nacional reúne-se só de vez em quando à volta de G. Lemire. Faltam os meios financeiros.
Nascem rivalidades e divisões, especialmente quando a democracia cristã pretende apresentar-se como
partido político. O único, grande organizador, Leão Harmel, que podia ser o chefe indiscutível, aceite por
todos e seguido, nunca quis interessar-se pela política.

COMPROMISSO POLÍTICO DO P. DEHON

Como acabámos de dizer, foi no campo político que surgiram na democracia cristã rivalidades e
divisões. Viu-se envolvida na crise que, de 1897 a 1900, dividiu cada vez mais os católicos entre
conciliadores, que seguiam o convite do Papa, e intransigentes. Estes, nas eleições de 1898, com a sua
política de abstenção quando se tratava de escolher entre um radical e um republicano moderado,
favoreceram a vitória dos radicais.
O P. Dehon, como Leão Harmel, evitava o compromisso político, todavia, nos anos 1897-1900, viu-
se obrigado a interessar-se pela actividade política da democracia cristã. O P. Dehon era um centro de
referência pois pertencia ao comité directivo da democracia cristã (secção eclesiástica), com boas relações
com os católicos conservadores, com os monárquicos e sobretudo com Roma. Teve assim que manter um
papel mais importante do que teria desejado. Aceitou-o para o triunfo das directivas de Leão XIII.
Sendo impossível um acordo entre os católicos sobre um programa comum, La Tour du Pin propôs
uma federação das forças católicas em vista das eleições gerais de 8-22 de Maio de 1898. 1317 Semelhante
proposta não entusiasmou nem a Leão Harmel nem ao P. Dehon. Pretendia-se que se pusessem de acordo
cães e gatos, lobos e cordeiros, galinhas e raposas. Revelaram a sua perplexidade a Leão XIII na audiência
de 22 de Janeiro de 1897. O Papa tinha inquirido Leão Harmel sobre o congresso democrático de Lyon,
depois voltando-se para o P. Dehon tinha proposto Estêvão Lamy como guia político dos católicos
franceses: “Pensais que conseguirá?”. Fiz observar – diz o P. Dehon – que apesar do seu talento como
escritor e das suas boas qualidades como homem de estado, Lamy não parecia gozar em todos os ambientes
católicos do prestígio e, talvez, nem sequer da autoridade suficiente para conseguir votos. Harmel atreveu-
se a dizer: “E de Mun, Santo Padre?”. Segundo o Papa era melhor deixá-lo de parte pelo seu passado
legitimista e pelo fracasso eleitoral de 1893. Estêvão Lamy, ao contrário, gozava de todas as simpatias do
Papa pelo seu constante compromisso como republicano e como católico.1318 Leão XIII não teve em conta o

1314
R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 160-161.
1315
Cf. NQ XII, 80: 1-8.12.1887; G. Guitton sj, Léon Harmel, II, 97, nota 1.
1316
R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 252.
1317
Cf. A. Dansette, Histoire religieuse, 509.
1318
G. Guiton sj, Léon Harmel, II, 141-142.

260
parecer de Leão Harmel e do P. Dehon e designou Estêvão Lamy como chefe da projectada federação
católica.
Estêvão Lamy não era um chefe ideal, pois era um pouco tímido e psicologicamente complexado.
Todavia as suas ideias sócio-político-religiosas eram seguras e em total harmonia com o pensamento de
Leão XIII. Além disso o Papa tinha enviado aos bispos franceses dois delegados seus: o P. Wyart, Abade
Geral dos Cistercienses e o P. Picard, Superior Geral dos Assuncionistas, para que ajudassem a Estêvão
Lamy na sua difícil tarefa.
O motivo desta missão extraordinária era a indiferença dos bispos, do clero e dos católicos
franceses em geral sobre as eleições políticas da primavera de 1898: “É uma ocasião providencial para
recomeçar”, dizia o Papa, dorido, sem poder conter as lágrimas.1319
Todavia a escolha de P. Picard foi particularmente desastrosa. Em lugar de favorecer, obstruiu a
difícil tarefa de Estêvão Lamy. O P. Picard era considerado como o homem de confiança do Papa. Devia
pôr em prática a sua política religiosa em França. Com o P. Picard alinharam-se os muito poderosos
assuncionistas, integristas intransigentes. O seu comité “Justiça e igualdade”, por si só, era muito mais
poderoso que todos os outros grupos católicos juntos.
No final de 1897, reuniu-se um congresso em Paris, onde os católicos se apresentaram em 7 grupos
oficialmente organizados: três de direita e quatro de esquerda, entre estes a democracia cristã. Chegaram a
um acordo; mas o entendimento durou pouco. Nas eleições gerais de 1898, a direita e a esquerda católicas
estorvaram-se mutuamente, favorecendo os radicais e os socialistas. Os católicos sofreram um desastroso
revés eleitoral. Meline, com só 12 deputados de vantagem, demitiu-se (15.6.1898).1320 “Por este Sedan
eleitoral dos católicos franceses”,... a mágoa de Leão XIII, foi profunda. A distensão que, de há seis anos,
tinha permitido uma boa floração das obras católicas em França, que tinha feito regressar aos seus
conventos, colégios, noviciados e capelas a tantos religiosos expulsos desde 1880, todas estas felizes
consequências da política de “adesão” à Terceira República, o Papa pressentia que acabariam em nada.1321
Cada grupo lançou a culpa sobre os outros. A federação dividiu-se em dois troncos. Interveio então
Leão XIII (Junho de 1898), convidando os grupos a trabalharem de comum acordo, conservando porém a
autonomia no seu respectivo campo de acção. Esta última disposição esvaziou de sentido e de conteúdo a
federação. A Estêvão Lamy pareceu-lhe ver uma desaprovação da sua política, apresentou a sua demissão e
a federação dissolveu-se. As maiores responsabilidades recaíam sobre os assuncionistas que tinham
defendido, a todo o custo, um partido confessional católico.
Em toda esta conjuntura, o P. Dehon apoiou com todas as suas forças o sr. Estêvão Lamy. Fez de
tudo para que Roma declarasse que o P. Picard não tinha o direito de proclamar-se o único intérprete do
Papa; mas nada conseguiu. Tinha-se medo de falar claramente, de desautorizar os poderosos
assuncionistas. O pobre Lamy encontrou-se sozinho contra um poderoso exército.
Renunciando ao seu cargo, disse aos assuncionistas: “Desejo-vos vivamente, meus reverendos
padres, que não tenhais de vos arrepender muito depressa da vossa fogosa intromissão na vida política”.1322
Foi profeta. Nem sequer um ano depois, a 24 de Janeiro de 1900, os prepotentes assuncionistas foram
dissolvidos por sentença da magistratura.

A ENCÍCLICA “GRAVES DE COMMUNI”

A 18 de Janeiro de 1901, Leão XIII dirigia à democracia cristã a encíclica “Graves de communi”.
Não faltavam as palavras de luz e de conforto; mas o Papa limitava o campo da democracia cristã à
actividade sócio-religiosa, orientada para melhorar as condições sociais e materiais do povo. Para isso era
preciso servir-se das antigas e novas instituições e admitir a intervenção de outras forças sociais,
especialmente das classes superiores.

1319
R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 243.
1320
Cf. R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 244-245.
1321
Cf. R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 245; G. Guiton sj, Léon Harmel, II, 146.
1322
Cf. R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 251-252.

261
A desilusão dos democratas cristãos e de muitos “sacerdotes democráticos” foi profunda. Eles já
entendiam a democracia cristã, não só como um movimento social, mas como um partido político que
levasse o povo ao governo. Leão XIII, pelo contrário, negava abertamente o carácter político da
democracia cristã. Não é lícito “dar à democracia cristã um sentido político” mesmo se a palavra
democracia serve e já tem servido para denominar “uma forma de governo popular”.
A função “privilegiada” atribuída às classes sociais mais elevadas era uma doutrina grata à corrente
aristocrática do catolicismo social e era, inclusivamente, sustentada pela “Rerum Novarum”. No
compromisso político da democracia cristã, o Papa vislumbrava um perigo para a religião. A contaminação
do passado com a monarquia não tinha ensinado o suficiente sobre os danos para a religião, para
comprometê-la com a democracia?
Agora compreendemos melhor o desinteresse de Leão Harmel e a reserva do P. Dehon para com a
democracia cristã como partido político. Para Leão Harmel era uma situação falsa e equívoca, condenada
ao fracasso. Tinha razão. Os partidos confessionais são sempre um perigo para a religião. Que se chamem
leigos, mesmo se de inspiração cristã.
Este é o entender do P. Dehon sobre a encíclica “Graves de communi”: “Ela confirma a ... “Rerum
Novarum” e consagra a expressão “democracia cristã”. Podia pressentir-se esta orientação da encíclica. Eu
estava para publicar as minhas conferências sobre a democracia cristã e o seu programa. Não tenho que
mudar uma vírgula. Esta orientação era necessária. A Igreja sempre foi amiga dos trabalhadores e dos
deserdados; mas nas circunstâncias actuais, diante da propaganda socialista, era bom que a Igreja
reafirmasse a sua solicitude para com os humildes e assinalou-a com uma expressão popular, a de
democracia cristã. É um detalhe de génio e de enrgia de Leão XIII”.1323
O convite de Leão XIII de “ir ao povo” não incluía necessariamente o compromisso político. Os
“sacerdotes democráticos” tinham-se comprometido demasiado com a política. A sua generosidade e o seu
amor pelos trabalhadores eram admiráveis; as suas análises sociais exactas; porém muitos dos meios
escolhidos por eles eram inoportunos ou até errados.
Fazendo, depois de dez anos, o balanço dos resultados da acção social promovida pela “Rerum
Novarum”, a primeira impressão superficial é a de pensar na semente do semeador do Evangelho caída
entre as pedras. Germinou logo; mas secou também logo. Os resultados verdadeiros do primeiro decénio,
nos mais diversos campos sociais, são, na realidade, modestos, mas vitais. O catolicismo social lutou contra
a apatia dos legisladores, mas não tem peças de substituição; a Obra dos Círculos agoniza, a democracia
cristã está esgotada. Também as iniciativas sociais com os artesãos e com os trabalhadores rurais estão em
estado germinal. Mais tarde desenvolver-se-ão a associação da juventude francesa, os secretariados sociais,
os sindicatos cristãos. Nos princípios do século apenas vegetam. Outras iniciativas sociais são modestas,
mas vitais, como os jardins operários, as caixas rurais, as mútuas. Dos “estudos sociais” nascerão as
“semanas sociais”. A própria democracia cristã ressurgirá pela iniciativa de um leigo activo e genial,
Marcos Sangnier.1324
Na perspectiva histórica mais exacta, a de largo raio e longa duração como era a visão de Leão XIII
e do P. Dehon, podemos afirmar, com serena objectividade, que o passado preparou vitalmente o futuro;
parecia que quase toda a semente tinha caído entre pedras; na realidade, caiu também em terra boa. Os
frutos seriam colhidos após a primeira guerra mundial (1914-1918).

O CONGRESSO SACERDOTAL DE BOURGES

Antes de terminar, devemos fazer referência ao congresso das Obras sacerdotais que se realizou em
Bourges de 10 a 13 de Setembro de 1900. A feliz experiência do congresso sacerdotal de Reims, 24-27 de
Agosto de 1896, devia repetir-se.
G. Lemire e os seus amigos encontraram um muito bom motivo, propondo o estudo da extensa carta
de Leão XIII “Depuis le jour”, de 8 de Setembro de 1899, sobre os deveres do clero francês nos tempos
actuais. Era necessário estudá-la juntos e juntos encontrar os melhores meios para pô-la em prática.
1323
NQ XVI, 54: Janeiro de 1901.
1324
Cf. A. Dansette, Histoire religieuse, 511-512.

262
De Roma, Mons. Tiberghien aconselhava Lemire a constituir um comité de preparação do
congresso com pessoas consideradas sérias, como o cónego Perriot, o P. Dehon, Mons. Péchenard, que
tinha , com aplauso, presidido ao congresso de Reims.
Mons. Servonnet, arcebispo de Bourges, tinha aceitado a realização do congresso no seu seminário.
Outros 50, entre bispos, arcebispos e cardeais davam o seu apoio; enquanto uma parte do episcopado era
abertamente contrária, capitaneada pelo bispo de Annecy, Isoard, pelo bispo de Nancy, Turinaz e
inesperadamente pelo arcebispo de Rouen, Fuzet.
Os sacerdotes presentes oscilaram entre os 600 e os 700, porém quase metade, 296, pertenciam à
diocese de Bourges. As outras dioceses de França estavam menos representadas que no congresso de
Reims.
Os religiosos não eram mais que uns 20. Os sacerdotes de mais de 40 anos constituíam a maioria.
Um evidente retrocesso que então não pareceu.1325
O P. Dehon escreve no seu Diário: “De 10 1 13 de Setembro de 1900 estou no congresso de
Bourges. Faço o discurso de abertura e apresento nos três dias os temas do exame particular. O congresso é
uma rápida resenha de uma infinidade de obras... No seu conjunto, o espírito do congresso é excelente, o
que não impede de ser caluniado e denegrido pelos refractários”.1326
O congresso começa a 10 de Setembro às 6 da tarde. O P. Dehon sobe ao púlpito da capela do
seminário menor de Bourges e fala aos congressistas. Retoma os grandes temas enunciados em Reims e
apresenta uma síntese dos temas a tratar nos três dias do congresso. A sua pessoa é um sinal de
continuidade. “É falso – diz – que já não haja nada a fazer. Todos concordam que hoje o ministério
ordinário já não basta. Há que ir ao povo... Imitemos o exemplo que nos dão os protestantes..., que nos dão
os nossos irmãos católicos estrangeiros... Escutemos o Papa e obedeçamos-lhe: ele ama a França. O clero e
o povo devem ajudar-se mutuamente. O povo é hoje o poder, é o futuro. O Papa, o clero e o povo
renovarão a França”.1327
“Desde o primeiro instante - observa R. Rémond – apresenta-se aquela mistura tão característica de
preocupações apostólicas e de considerações temporais sobre a evolução da sociedade”.1328
Um mérito do congresso de Bourges é que a habitual e vazia eloquência eclesiástica se reduziu
quase a zero. São raros os que tomam a palavra para não dizer nada de nada, como alguma vez aconteceu
no congresso de Reims em 1896.
Depois do jantar, Mons. Servonnet fala aos congressistas e afirma que não se ultrapassará o
conteúdo da carta do Papa “Depuis le jour”, numa linha, numa palavra, nem num pensamento sequer. O
congresso será sobrenatural, pontifício, patriótico. Ter-se-ão, por isso, presentes as orientações políticas do
Papa relativas à França.
Os trabalhos decorrem segundo as indicações de Mons. Servonnet. Os congressistas são quase todos
sacerdotes democráticos, decididos a apoiar as justas reivindicações dos trabalhadores. Além disso,
acolheram o convite do Papa para aceitar sinceramente a República.
Permanece a inexorável aversão ao congresso de uma parte do episcopado. No banquete de
conclusão, o P. Lacroix, em vésperas da sua eleição ao episcopado, convida todos os congressistas a
brindar à saúde dos bispos franceses... de todos os bispos franceses, (incluindo Isoard, Turinaz, Fuzet...,
etc.).1329
Apesar destas declarações, o congresso de Bourges desencadeou polémicas mais acerbas do que as
que suscitara o congresso de Reims de 1896.
Mons. Isoard foi tão violento nos seus ataques que foi repreendido por Roma. Mons. Turinaz
escreveu um opúsculo que causou alvoroço, em que convidava ironicamente a organizar congressos de
sacristães e de empregadas das casas paroquiais e polemizava com o P. Dehon a propósito de “seminaristas
sociais”.1330 Mons. Turinaz referia-se a um artigo publicado pelo P. Dehon em “La Cronique des Comités
du Sud-Est” (n. 10, Outubro de 1901) com o título “Largo aos jovens e à democracia cristã!”, artigo que
1325
Cf. R. Rémond, Les deux congrès ecclésiastiques de Reims et de Bourges, 118-142.
1326
NQ XVI, 20: 10-13.9.1900.
1327
R. Rémond, Les deux congrès ecclésiastiques de Reims et de Bourges, 148-149.
1328
R. Rémond, Les deux congrès ecclésiastiques de Reims et de Bourges, 149.
1329
R. Rémond, Les deux congrès ecclésiastiques de Reims et de Bourges, 192.
1330
R. Rémond, Les deux congrès ecclésiastiques de Reims et de Bourges, 203-221.

263
entre outras coisas continha este convite: “Não vos deixeis perturbar, queridos seminaristas, pelos medos
de dois ou três sacerdotes ou cónegos idosos. Estão atrasados três quartos de século e às vezes devaneiam
como boas e velhas mães. Tendes convosco o Papa e isso vos basta”.1331
As acusações de Mons. Turinaz atingiam tanto o P. Dehon como Leão Harmel. Ambos
responderam com o silêncio. Depois de Deus, a história deu-lhes razão.

ADEUS ÀS REUNIÕES DE VAL-DES-BOIS

Por causa das encarniçadas reacções que suscitam, os encontros de estudos sociais para jovens
sacerdotes e seminaristas em Val-des-Bois são suspensos em 1901. O último tem lugar de 18 a 25 de
Agosto de 1901.1332
O P. Dehon está presente. O curso é orientado pelo cónego Perriot “sábio, piedoso, douto”.
Encontra-se também Lemire “bom e amável como sempre: mas também, como sempre, pouco seguro
quanto à doutrina e um pouco sob a influência do ambiente parlamentar em que vive”. Também está
Marcos Sangnier: “é todo coração ... Temo que se canse demasiado e acabe esgotado em pouco tempo”.
Participam muitos jovens do Norte “que têm fé e ideias”. Muitos estão a preparar-se para entrar no
seminário. “São entusiastas da democracia cristã. Estas reuniões ... dão esperança para o futuro da França.
Há na França grupos de juventude católica ardorosa, que compreende as necessidades da nova sociedade,
devotada ao Vigário de Cristo. São os nossos Macabeus. A nossa esperança apoia-se neles. Têm os seus
jornais e os seus grupos locais. Mais tarde formarão na Câmara o núcleo do grupo democrata cristão”.1333
O P. Dehon é um dos seus formadores mais apreciados. Escreve Guitton sobre os encontros de Val-
des-Bois do verão de 1899: “O P. Dehon estava ali com o P. Glorieux e outros três sacerdotes dos mais
ardentes entre os que habitualmente frequentavam Val-des-Bois. Os jovens clérigos tinham vindo de uma
dúzia de dioceses. Os conferencistas não tinham anunciado mais do que dois amores: o do Papa e da Igreja,
o do povo e da França! Tinham despertado as grandes ambições de apostolado que, ao sair do seminário, os
encherão de entusiasmo”.1334
“O P. Dehon – continua o P. Guitton – é o Très Bon Pére, como o chamavam... e de que alguns se
atreviam a pensar: “seria ainda melhor, se não fosse tão bom”, fez-nos alguns dias antes da sua morte, esta
humilde confidência: “Dizia muitas vezes a estes jovens: é preciso seguir o Papa, segui-o com amor, com
obstinação”. É possível que tenha acrescentado: “mesmo que algum venerável cónego vos disser ao
contrário, não lhe deis ouvidos”.1335
A exortação “seguir o Papa” era então um convite imperdoável para certa gente em França, que não
se resignava a “entregar a um italiano a chave da sua consciência política”.1336 Quando Leão Harmel julgou
oportuno, por amor da paz, renunciar aos encontros de Val-des-Bois, retomando quase logo as “Semanas
sociais” da “Chronique du Sud-Est”, podia dar este testemunho: “Jesus Cristo e o seu Vigário foram
sempre servidos lealmente, sem reticêncis e com sinceridade absoluta”.1337
Os adversários podiam cantar vitória. Mas a verdadeira história é sempre a do bem: centenas de
jovens sacerdotes e seminaristas, sensibilizados para a questão social, abandonaram as sacristias para “ir ao
povo”, segundo o convite de Leão XIII.

APOSTOLADO SOCIAL SOB PIO X

Com a morte de Leão XIII (20 de Julho de 1903), o apostolado social do P. Dehon, sob o aspecto
mais activo, termina. Pio X abandona a política de Leão XIII. Ao novo Papa não interessa a aproximação à
Terceira República, mas a defesa dos interesses religiosos da Igreja. Os católicos, em todas as suas
1331
OS I. 547.
1332
Cf. NQ XVII, 9-11: 18-25.8.1901.
1333
NQ XVII, 9-11: 18-25.8.1901.
1334
G. Guitton sj, Léon Harmel, II, 112-113.
1335
G. Guitton sj, Léon Harmel, II, 114-115.
1336
G. Guitton sj, Léon Harmel, II, 115.
1337
G. Guitton sj, Léon Harmel, II, 117.

264
iniciativas, têm de depender da jerarquia. Não há espaço para uma saudável liberdade laica. Tudo leva o
carimbo clerical. No Vaticano a influência dos intransigentes é cada vez mais predominante. Pio X e o seu
jovem secretário de Estado, Merry del Val, são santos, mas inexperientes em política e pouco abertos ao
campo social.
Não há nenhuma prova de que o P. Dehon tenha suspendido o seu apostolado social por “alguma
ordem chegada do alto”, ou seja do Vaticano, segundo um testemunho dado pelo P. Luigi Sturzo no ano da
sua morte (1959) aos 88 anos de idade.1338
As relações entre Pio X e o P. Dehon foram sempre amistosas e cordiais. O interesse do P, Dehon
pelo movimento social católico continua também sob o Papa Santo. Continua a sua relação com os
sociólogos católicos de maior visibilidade. Em 1907 apresenta ao público Romano o famoso Marcos
Sangnier, genial continuador da democracia cristã com o movimento do “Sillon”.1339
Em 1908, publica o P. Dehon o seu último livro de tema político-social: “Os planos da maçonaria
em Itália e em França... ou a chave da história de quarenta anos”. Entre 1906 e 1908 escreve uma média de
três ou quatro artigos por ano sobre temas político-sociais. Em Junho de 1910 trabalha na reformulação do
“Manual social cristão”: “quero publicar uma nova edição, com as estatísticas actualizadas, segundo as
novas leis e as directivas de Pio X”.1340
Esta limitada actividade social e estas poucas publicações não existiriam se o P. Dehon tivesse
realmente recebido “uma ordem do alto”... para não se ocupar de questões sociais. Conhecemos muito bem
a total obediência do P. Dehon à Santa Sé: teria seguido não só as ordens mas até os simples desejos.
Embora concordando com P. Sturzo quanto ao espírito de obediência do P. Dehon, o certo é que,
não teve de exercitá-lo nesta circunstância.
O enfraquecimento da acção social do P. Dehon a partir de 1902 tem outros motivos muito válidos.
Excluímos logo que se tenha devido a um processo involutivo, de teor místico, centrado no Coração de
Jesus, na reparação e na imolação, como alguns insinuaram, como se a alma da sua mais intensa actividade
social não tivesse sido o Coração de Cristo, o triunfo do seu “reino nas almas e na sociedade”.
Em todo o caso, desta pretensa involução não há provaa, nem no Diário do P. Dehon nem na sua
abundante correspondência. O Coração de Jesus e o seu reino social, o amor e reparação estiveram sempre
na origem do apostolado social do P. Dehon.
Recordamos a feliz intuição de Cristiani: “O P. Dehon não amou mais do que o coração, quis ser
sempre e em todo o lugar o servidor do único e adorável Coração de Cristo”.1341
No Coração de Cristo pretendeu remediar as injustiças, os sofrimentos, as amarguras dos humildes,
dos pobres, dos explorados, dos oprimidos ou ao menos aliviá-los.
No Diário escreve: “A Providência levou-me a abrir vários sulcos, mas sobretudo dois deixarão
uma marca profunda: a acção social cristã e a vida de amor, de reparação e de imolação ao Sagrado
Coração de Jesus. Os meus livros, traduzidos em várias línguas, levam para todo o lado esta dupla corrente,
nascida do Coração de Jesus. Deo gratias”.1342
Há motivos mais plausíveis acerca do enfraquecimento da actividade social do P. Dehon.
1. A perseguição religiosa em França, com a lei sobre as associações de 1 de Julho de 1901, a
chegada de E. Combes ao poder (7.6.1902-18.1.1905), a lei da separação da Igreja do Estado, com a
consequente denúncia da Concordata (9.12.1905) e os contínuos conflitos causados. De 1901 1905 o P.
Dehon teve que lutar contra o Governo para salvar as casas da Congregação na França. Acabou por ter de
voltar a comprá-las todas, excepto a de Fourdrain.
2. Até 1906, o P. Dehon está ocupado, como veremos, na difícil e contrastada aprovação definitiva
da Congregação por parte da Santa Sé: questão de vida ou de morte. A notícia da aprovação chegou de
improviso a 11 de Junho de 1906.1343
3. Acrescente-se a crise da democracia cristã e a nova orientação dada por Pio X ao seu pontificado
para a renovação da Igreja a partir de dentro. Vinha assim a faltar a fonte em que o P. Dehon tomava as
1338
Cf. H. Dorresteijn, scj, Vita e personalità di P. Dehon, 757-765.
1339
Cf. H. Dorresteijn, scj, Vita e personalità di P. Dehon, 793-802.
1340
NQ XXV, 40: Junho de 1910.
1341
L. Cristiani, Le Père Dehon, 6.
1342
NQ XXV, 33: Abril de 1910.
1343
Cf. NQ XX, 50: Junho de 1906.

265
orientações e a segurança para o seu apostolado social. Conhecendo as divisões e lutas dos católicos de
França, especialmente no campo social e político, quando faltou a orientação segura do Papa neste terreno
ao P. Dehon faltou tudo.
4. Além disso, o “motu proprio” de Pio X, de 18 de Dezembro de 1903, que contém “o
ordenamento fundamental da acção popular cristã” ou democracia cristã, além de renovar para os
eclesiásticos a proibição de meter-se na política (n. XIII), obrigava-os a pedir a aprovação do Ordinário
para todo o tipo de publicações (n. XVII). Eram disposições severas que necessariamente limitavam as
publicações do clero.1344
5. Entretanto, a Congregação estendia-se sempre mais e exigia maiores cuidados e mais tempo da
parte do Fundador. Acrescente-se a idade do P. Dehon. Em 1906 tem 63 anos. Dos 63 aos 68 anos faz
longas viagens. À América latina (31.8.1906 – 11.1.1907); à Finlândia e à Russia (20.7.1907 – 14.8.1907)
e finalmente a volta ao mundo (10.8.1910 – 2.3.1911).
16. Às portas dos 70 anos, o P. Dehon faz o balanço da sua vida e a 14 de Março de 1912 escreve
aos seus religiosos uma longa carta, mais conhecida sob o título de “Souvenirs”. Fala do apostolado social:
“Quis contribuir para a elevação das classes populares com o advento da justiça e da caridade cristãs”.
Evoca as suas obras de S. Quintino, as suas publicações e conferências sociais, os numerosos congressos
em que participou, as suas longas viagens de ‘aggiornamento’. Agora a sua função activa já está concluída
(em 1914 rebenta a primeira Guerra Mundial). Continuarão os seu religiosos: “Também neste sector o
trabalho deve continuar. As massas ainda não estão convencidas de que só a Igreja possui as soluções
verdadeiras e práticas de todos os problemas sociais”.1345

1344
Cf. ASS. 36 (1903-4), 339-345.
1345
Lettere circolari, nn. 388; cf. n. 389.

266
Capítulo 19

Os escritos sociais

“Pregai as minhas encíclicas” – O “Manual social cristão” (1894) – Maçonaria, judaísmo, socialismo – Escritos sociais do P.
Dehon – “A usura no tempo presente” (1895) – “Os nossos Congressos” (1897) – “As orientações pontifícias políticas e sociais”
(1897) – O “Catecismo social” (1898) – “Riqueza, justo bem estar ou pobreza” (1899) – “A renovação social cristã” (1900) – “O
Reino do Coração de Jesus nas almas e nas sociedades” – A lei Briand e as “associações cultuais” – “O plano da maçonaria na
Itália e na França” (1908).

“PREGAI AS MINHAS ENCÍCLICAS”

O apostolado social de Leão Dehon, limitado no princípio à cidade de São Quintino, vai-se
estendendo pouco a pouco a toda a diocese de Soissons. É o animador de todas as iniciativas sociais como
secretário do departamento diocesano das obras, fundado em 1974.
Todas as iniciativas o interessam, mesmo que as suas preferências se orientem para as obras em
favor dos trabalhadores.
Com a “Rerum Novarum” de 15 de Maio de 1891, o apostolado social do P. Dehon recebe um novo
e forte impulso. De agora em diante, será o apóstolo do pensamento social de Leão XIII, segundo o
expresso convite do Papa: “Pregai as minhas encíclicas”.1346

O “MANUAL SOCIL CRISTÃO”

Como presidente da comissão de estudos sociais de diocese de Soissons, o P. Dehon orienta os


trabalhos de grupo no sentido da publicação de uma obra que torne acessível também aos trabalhadores a
famosa encíclica dedicada a eles e os seus problemas.
Nasce assim o Manual social cristão, publicado em Agosto de 1894, com 3.000 exemplares. É uma
obra colectiva. Colaboraram o marquês La Tour du Pin, D. Littière, o P. Rasset e o P. Dehon. São seus o
capítulo quarto sobre a maçonaria e o judaísmo, o capítulo quinto sobre o socialismo e a anarquia e o
apêndice sobre a Obra dos círculos.1347
Na sua carta de aprovação, o bispo de Soissons, Mons. Duval, manifestava o desejo de que os
conteúdos “teóricos e científicos” do livro fossem completados com um “pequeno manual prático, um
vade-mecum, uma espécie de pequeno catecismo, que pudesse servir para todos e informasse com clareza e
segurança sobre a método prático de fundar as obras sociais, particularmente nas nossas pequenas
paróquias rurais”.1348
O P. Dehon fez seu o desejo de Mons. Duval. De facto, a segunda parte do Manual social cristão,
editada em 1895, embora preparada pelos trabalhos da comissão de estudos sociais, especialmente no
tocante aos problemas rurais, foi completamente redigida pelo P. Dehon.
Escreve no Diário: “Passo o resto do mês (Janeiro de 1895) a redigir alguns capítulos práticos para
o Manual social”1349 e, pouco depois: “A redacção do Manual social absorve os tempos livres que a
correspondência e as minhas ocupações ordinárias me deixam”.1350
Na segunda edição, o Manual passou de 132 para mais de 300 páginas.

1346
NHV XV, 82.
1347
Cf. OS II, 71-102. 147-149.
1348
OS II, X.
1349
NQ XI: Janeiro de 1895.
1350
NA, XI: Fevereiro de 1895.

267
No capítulo preliminar da segunda parte, o P. Dehon põe em relevo a desoladora situação de tantas
paróquias de França, nas quais o sacerdote só se interessa das mulheres, das crianças e dos doentes. Não se
faz nada para os jovens e os homens. Os jovens aspirantes ao sacerdócio, infelizmente, só se formam no
seminário para o apostolado das mulheres e das crianças.1351 O Manual social cristão, na sua redacção
definitiva (2ª edição), é uma obra dirigida, não só aos trabalhadores, mas de modo especial aos sacerdotes e
aos patrões.
Está dividido em duas partes: a primeira trata da economia social; a segunda, das obras sociais. Na
primeira parte é evidente a colaboração, não pela diversidade do pensamento (de facto, todos os
colaboradores pertencem à escola de Liège), mas pela variedade de estilo.
Como presidente da comissão de estudos sociais da diocese de Soissons, o P. Dehon considera-se
responsável em primeira pessoa das teses defendidas pelo Manual; elas expressam a doutrina social da
Igreja e as orientações práticas que delas derivam. O P. Dehon assume-as plenamente. Podemos, pois,
considerar o Manual como sua obra pessoal.
É demasiado fácil para a economia liberal afirmar que as leis económicas são “boas” (utilitarismo) e
inelutáveis. Esta é a afirmação indolente e cómoda dos “beati possidentes”; mas não pode ser uma
justificação do regime económico capitalista, selvagem, injusto, antisocial, caracterizado por uma
concorrência desenfreada e uma liberdade sem regras. É desse modo que o homem chega a ser lobo para o
homem.
É o trabalho que é feito para o homem, não o homem para o trabalho. O trabalho não é uma
mercadoria qualquer e, na luta entre o mais fraco e o mais forte, é a liberdade ilimitada que oprime,
enquanto a lei justa redime.
O P. Dehon, assim como condena os exagerados ganhos do capital (ou seja a usura, de que tratará
em tantos dos seus escritos e conferências), assim também fica impressionado com a chaga da extrema
pobreza. Ele tinha-a comprovado pessoalmente durante os anos de coadjutor em São Quintino. Quantas
vezes tinha entrado nos tugúrios mal sãos dos operários! “Que a alma viva no corpo de um mineiro no
fundo de uma negra mina de carvão ou no corpo de um obeso financeiro, entre pomposos excessos de luxo,
pouco importa: na realidade ambas têm o mesmo valor”.1352
A chaga da pobreza é descrita pelo P. Dehon com o realismo de um documentário e ao mesmo
tempo com a dor de um apóstolo, tanto que “La Reforme sociale” escreve a propósito do “Manual”:
“Poder-se-ia censurar o autor (refere-se ao P. Dehon) por se emocionar com demasiada veemência diante
dos sofrimentos, por se indignar demasiado diante das injustiças e gostar-se-ia de censurá-lo por tal ou tal
página do seu livro manifestar mais coração do que espírito, mais emoção que razão”.1353 Não se podia
fazer melhor elogio ao P. Dehon.
O Manual social cristão reagia contra a doutrina individualista e pagã da economia liberal, que
redundava na exploração do débil e no desprezo da pobreza e reagia também contra a tendência teológica,
ao menos francesa, daquele tempo, que definia a propriedade segundo a noção individualista do “jus utendi
et abutendi”, sem avançar, como se fazia já no estrangeiro, para a justiça social, tendo em conta o bem
comum a respeito da propriedade. Esta era a sólida convicção que o marquês La Tour du Pin herdara dos
seus antepassados. O seu pai dizia-lhe durante os seus passeios na grande propriedade de Arrancy:
“Recorda-te que tu serás apenas o administrador para os habitantes desta terra”, não o senhor absoluto.1354
Na origem do mal estar social estão, segundo o P. Dehon, o judaísmo e a maçonaria. O socialismo e
a anarquia são falsos remédios. Os remédios verdadeiros devem esperar-se da acção da Igreja e do Estado
(e nisto, é evidente o distanciamento da escola de Angers de Mons. Freppel e a aceitação da escola de
Liège sustentada por Mons. Doutreloux), dos patrões e das associações profissionais. Deseja-se a criação
de comissões mistas de patrões e de operários para discutirem os interesses comuns e a constituição dos
conselhos do trabalho tanto regionais como nacionais.
A duração do dia de trabalho de oito horas, para os homens, era então considerada como uma utopia
socialista. Propõe-se o máximo de 11 horas. Para os jovens de menos de 14 anos e para as mulheres, são
1351
Cf. OS II, 153-161. Para a história detalhada do Manual social cristão, cf. R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon,
87-95.
1352
Cit. por Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 98.
1353
Cit. por Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 100.
1354
Cit. por Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 102.

268
precisas leis especiais que limitem os horários, para que as mulheres possam cuidar da família e não sejam
ocupadas no trabalho nocturno. Apresenta-se a exigência das reformas, dos seguros contra as doenças e os
acidentes de trabalho1355
O Manual social cristão contém também um bom catecismo sobre os deveres dos patrões;1356 mas o
P. Dehon podia afirmar com o realismo de Léon Harmel a propósito do seu Catecismo do patrão, definido
pelo P. Lehmkulm” um livro perfeito” e pelo P. Costa-Rossetti “uma obra prima”: “este catecismo está
bem feito, mais para os seminários, para os confessores, para os religiosos, do que para ser lido pelos
patrões, a maior parte dos quais o não quererá ler”.1357
Todavia, pensava o P. Dehon, através do clero podia-se influir sobre algum empresário mais bem
disposto e mais sensível aos problemas sociais e morais.
A primeira parte do Manual social cristão termina falando das associações professionais. O
capítulo é redigido por La Tour du Pin e trata especialmente das corporações. Os sindicatos, apenas
mencionados, são associações professionais espontâneas, ou seja, o ponto de partida, enquanto o ponto de
chegada para a reorganização social do país, deveriam ser as corporações; corporações que nunca foram
experimentadas na realidade moderna da sociedade francesa. São, por isso, projectos que permanecem em
estado de propostas.1358
À primeira parte o P. Dehon juntou o apêndice sobre o programa de reformas sociais adoptado pela
Obra dos círculos operários católicos.1359
Na segunda parte, ou manual das obras sociais, entendidas no sentido mais amplo, muito espaço é
reservado ao mundo rural e às instituições económicas que podem melhorar e tornar mais segura a vida
dos trabalhadores do campo, segundo o desejo de Mons. Duval. Nem por isso fica esquecido o mundo
industrial.
Para o P. Dehon a obra das obras é a boa imprensa. Depois vem o sindicato e, quando este funciona,
todas as obras sociais são possíveis. Ao fim da longa exposição sócio-clerical (no bom sentido) o P. Dehon,
convencido de que os exemplos concretos valem mais do que um longo discurso, apresenta, em cinco
monografias, outras tantas realizações de obras sociais: duas no campo industrial: as fábricas de fiar de M.
Vrau em Lille e a de Leão Harmel em Val-des-Bois, e três no mundo rural.1360
A segunda parte termina com dois apêndices relativos aos sindicatos.1361
Pelas breves considerações apresentadas é fácil imaginar como os conteúdos do Manual social
cristão resultam, para um certo público bem pensante, mais bem incandescentes. O P. Dehon foi acusado
em todos os tons de ser socialista. Não se importou. Estava bem acompanhado. Tinha consigo Leão XIII,
pela morte do qual rezavam, de boa fé, muitas boas irmãs de clausura. Com o Papa não podia faltar Cristo,
com o selo, também Ele, de socialista. Alguns patrões bem intencionados, mas pouco lúcidos, mostraram-
se incomodados porque o P. Dehon defendia decididamente os livres sindicatos como instrumentos de
justiça social e também de eficaz acção religiosa. Outros acusavam-no de fazer intervir indevidamente o
Estado nos problemas económicos, em contradição com os postulados do mais puro liberalismo. Segundo
eles, o P. Dehon fazia assim o jogo dos socialistas, embora não sendo socialista.1362
Sem dúvida nenhuma, no princípio, o Manual social cristão caiu como um raio, mas teve uma
influência benéfica e duradoira. Em França conseguiu cinco edições. José Toniolo apreciou-o de tal modo
que o fez traduzir para o italiano. Teve traduções em espanhol, em português, em húngaro e até em árabe.
Foi adoptado em muitos seminários. Mons. Doutreloux, o grande Bispo de Liège, ofereceu-o a todo o seu
clero: “O manual – escreve R. Prélot – tornou-se bem cedo um clássico para quem se queria empenhar na
acção social segundo as directivas papais”.1363

1355
Para uma boa síntese dos conteúdos do Manual social cristão (2ª edição) Cf. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon,
96-119.
1356
Cf. OS II, 129-135.
1357
G. Guitton sj, Léon Harmel, I, 234.
1358
Cf. OS II, 137-145.
1359
Cf. OS II, 147-149.
1360
Cf. OS II, 269-290.
1361
Cf. OS II, 291-296.
1362
Cf. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 117-118
1363
Cf. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 87.

269
Desde Julho de 1895, o Cardeal Rampolla tinha apresentado o “Manual social cristão” ao Papa.
Leão XIII tinha-o apreciado, enviando ao P. Dehon a sua bênção.1364
Muitos católicos entre 1895 e 1910, foram iniciados pelo “Manual” no conhecimento e na solução
da questão social.

“MAÇONARIA, JUDAÍSMO, SOCIALISMO”

Vamos agora deter-nos sobre três realidades que aparecem com frequência nos escritos sociais e nas
conferências do P. Dehon: a maçonaria, o judaísmo, o socialismo. Como dissemos, para o P. Dehon, a
maçonaria e o judaísmo são as duas poderosas causas do mal estar social;1365 enquanto o socialismo junto
com a anarquia são os falsos remédios.1366
É correcto o juízo de R. Prélot, quando sinteticamente afirma: Se certos juízos do P. Dehon sobre a
maçonaria conservam ainda um certo interesse, as páginas dedicadas à invasão do judaísmo perderam todo
o sabor. “Todavia em 1895, quando La France juive devant l’opinion de Drumont não tinha ainda dez anos
(foi publicada em 1886) e se estava ainda sob a impressão da condenação do capitão Dreyfus (1894), as
afirmações do P. Dehon tinham bem outro valor”.1367
Da sua atitude em relação à maçonaria já falei e terei ainda ocasião de falar; 1368 detenho-me agora
no seu anti-semitismo.
O jornalista A. Drumont (1844-1917), convertido, ainda jovem, da incredulidade por influência de
Henrique Lassere, tinha ficado impressionado pela violenta campanha anti-religiosa desencadeada no
começo da Terceira República. Tinha estudado as suas causas. As suas investigações e reflexões levaram-
no a publicar em 1886 um Ensaio de História contemporânea intitulado La France juive devant l’opinion.
A sensação deste livro sobre a opinião pública foi enorme e levantou uma onda de anti-semitismo. A obra
teve imensa procura. Venderam-se 200.000 exemplares. Apareceram refutações das teses defendidas por
Drumont, teses que não eram doutrinais mas fundadas sobre a concatenação de múltiplos factos que,
segundo o jornalista, demonstravam até à evidência a influência secreta e demolidora dos judeus nos
acontecimentos políticos contemporâneos. Atribuía-lhes uma parte preponderante no desenfreado anti-
clericalismo daqueles tempos.
O P. Dehon deixou-se levar por esta onda de anti-semitismo. “La France juive...” de Drumont é,
segundo o P. Dehon, uma boa obra de consulta. 1369 O anti-semitismo do P. Dehon não é doutrinal, mas
prático, de tipo sócio-político-económico.
Ele condena, sobretudo, a “usura feroz” dos judeus e lamenta a pobreza que comporta, com todas as
suas desumanas consequências. A causa principal dos seus abusos é o Talmud.1370
A sua emancipação por parte dos estados europeus provocou a “invasão judaica” e a consequente
opressão dos católicos mediante a grande imprensa, mediante o capital (os grandes bancos), mediante a
conquista do poder a todos os níveis, políticos e professionais.1371 O P. Dehon parece acreditar nos famosos
“Protocolos dos sábios de Sião”, cuja característica é a hegemonia universal de Israel.1372 A sua falsidade
está agora demonstrada com absoluta certeza.
O P. Dehon não suspeita que seja precisamente o anti-semitismo a tornar os judeus mais solidários
entre si e a comportarem-se como uma minoria perseguida, em luta contra os seus adversários, que
impedem a sua identificação social com o resto da população, para chegarem a amar um país como sua
pátria, onde sejam tratados segundo os direitos e os deveres de todos os outros cidadãos. Não pensa que

1364
Cf. OS II, IX.
1365
OS II, 71-86; Cf. OS I, 149-164; OS III, 217-241.383.432.
1366
Cf. OS II, 87-102; cf. OS I, 67-78; OS III, 243-275.
1367
Cf. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 102.
1368
Cf. pp. da presente biografia.
1369
OS II, 86.
1370
Cf. Os II, 84; III, 223-224.
1371
Cf. Os II, 79-86; III, 225-230.
1372
Cf. Os II, 83-84.195-196; III, 230-235.

270
uma inteligente política de assimilação podia enriquecer a França e qualquer outro país, com cidadãos
valiosos e empreendedores, como a história moderna demonstrou e continua a demonstrar.
Quanto ao socialismo, o P. Dehon escreve nas Memórias: “A questão do socialismo preocupava-me
já em 1870”.1373
O mundo operário afastou-se da Igreja muito antes de 1870. Já sob a monarquia de Julho os
trabalhadores das grandes cidades (Lião, Paris, Saint-Etienne...) não vão mais à missa nem frequentam os
sacramentos.
Numa memória dirigida a Mons. Sibour, arcebispo de Paris de 1848 a 1857, por um sacerdote que
vive nos ambientes populares da capital, diz-se que cerca de um milhão de trabalhadores e pequenos
comerciantes vivem habitualmente afastados da educação e da prática religiosa.
Fora dos grandes centros, a fé, nas massas trabalhadoras, não está morta mas adormecida.
Encontram-se ainda sentimentos religiosos e uma certa simpatia para com o clero; mas, depois da repressão
violenta de Junho-Agosto de 1848, o anti-clericalismo operário difunde-se como uma mancha de azeite.
Entre 1860 e 1870, incrementa-se a apostasia da classe operária. O volterianismo difunde-se também entre
os trabalhadores.
A indiferença da burguesia católica pelos problemas sociais ou o seu paternalismo, o envolvimento
do clero na manutenção do conservadorismo reaccionário, afastaram ainda mais os operários da fé
religiosa e orientaram-nos para a fé no progresso e na revolução social defendidos pelo socialismo.
Infelizmente, a maioria dos católicos, como também os responsáveis pelo poder, estão convencidos
da irremediável fatalidade da miséria do proletariado. Obrigação da Igreja é de atenuar esta dolorosa
situação, estando no tradicional campo da caridade. A caridade da Igreja não é avarenta; porém o
paternalismo dos católicos não deixa de ser um jugo. É preciso ter presente que o clero provém de todos os
extractos sociais, menos do operário. Por isso desconhece, em geral, a miséria em que se afoga o
proletariado.
Que fosse necessária uma mudança radical das estruturas sociais, como defendiam Marx e Saint-
Simon, uma verdadeira obra de justiça social, já a tinham intuído e pedido antes Lamennais e Carlos de
Coux no jornal “L’Avenir”, como também, depois, Ozanam e Buchez em “L’Ère nouvelle”, o jornal
fundado em 1848 por Lacordaire, Maret e Ozanam. O seu era uma espécie de “socialismo cristão”,
combatido pelos maiores expoentes católicos e pelos próprios católicos liberais que, trabalhando para a
difícil conciliação entre a Igreja e a sociedade moderna, não queriam complicar ainda mais as coisas com
proposições de novas estruturas sociais. Os católicos liberais eram muito mais sensíveis aos problemas
políticos. Por outro lado, as justas aspirações à justiça social dos “socialistas cristãos” tinham-se revelado
um sonho, terminado no sangue da revolução (Junho de 1848).
Desde então, e durante todo o Segundo Império, a França está dividida em dois blocos de desigual
consistência: por um lado, os trabalhadores das brandes cidades, apoiados pelos socialistas, aos quais se
junta uma minoria combativa da burguesia, constituída pelos republicanos; por outro, a grande maioria da
burguesia, dos agricultores e da Igreja, todos de acordo em condenar o socialismo e em descobrir as suas
origens em doutrinas contrárias à religião.
Luís Veuillot afirma de modo brutal: “É necessário que haja homens que trabalhem em más
condições e que vivam mal. A miséria é a lei de uma parte da sociedade. É a lei de Deus a que é necessário
submeter-se” e não hesita em continuar impiedosamente: “A sociedade tem necessidade de escravos”.1374
Fica-se pasmados diante de afirmações tão brutais e pagãs. Era verdadeiramente filho de um tanoeiro.
Compreendemos como “L’Ère nouvelle” era considerada por estes católicos como um jornal
revolucionário, demagógico, socialista.
Há porém católicos e também eclesiásticos que pensam diferentemente. Mons. Mermillod, Bispo
de Genebra, levanta um escândalo enorme quando, em 1869, do alto do púlpito de Santa Clotilde, fala dos
contrastes sociais produzidos pelo excesso de riqueza da burguesia capitalista, católica ou não católica, e
pelo excesso de miséria do proletariado. Como é possível que o operário se subtraia ao fascínio das
palavras mágicas: “justiça... fraternidade... solidariedade” e ao escuro fascínio do ódio e da ambição?

1373
NHV VIII, 167.
1374
A. Dansette, Histoire religieuse, 275.

271
Apesar da oratória persuasiva e patética do prelado e a afirmação de que as classes sociais altas
devem constituir “a guia da sociedade”, o elegante auditório afasta-se indignado. Ouviu “um bispo
revolucionário!...”.1375
Serpenteia todavia um sentimento de culpa e de remorso colectivos. Exprime-o com palavras
eficazes um homem de acção, Maurício Maignen, um religioso, organizador de um círculo de jovens
operários. Diante das Tuileries devoradas pelas chamas, pergunta-se: “Quem é o responsável?... Não é o
povo verdadeiro, o que trabalha, o que sofre... Os verdadeiros responsáveis sois vós: são os ricos, os
grandes, os privilegiados da vida, os que se divertiram dentro destas paredes desventradas, que passam
junto do povo sem conhecê-lo, que ignoram os seus sentimentos, a sua história, os seus sofrimentos”.1376
Movido por um autêntico complexo de culpa, Alberto de Mun, oficial de cavalaria couraçada em
1870, decide dedicar-se ao apostolado social, com o seu amigo o marquês Renato La Tour du Pin.
Leão Dehon cresceu com uma particular sensibilidade para os problemas do mundo operário, em
especial para o problema, não só da caridade, mas da justiça social.
Ouvimo-lo, no dia de Natal de 1871, pronunciar um explosivo discurso social na Basílica de S.
Quentin. Falou, particularmente, para a burguesia. “O meu discurso – escreve nas Memórias – era
conforme à verdade. Tudo o que dizia, especialmente sobre a deplorável organização do mundo dos
negócios e do trabalho, era o que (vinte anos mais tarde) escreveria Leão XIII nas suas encíclicas”.1377
“Cristo não dá só a caridade aos pobres, mas também a justiça, a estima, a honra”. 1378 “Basta de homens
que sacrificam a justiça ao dinheiro”.1379
Também Leão Dehon é para os “bem pensantes” um padre revolucionário e, depois da publicação
do Manual social cristão, um padre socialista ou, pelo menos, que faz o jogo dos socialistas.
Apesar destas acusações, temos de reconhecer que as páginas que o “Manual...” dedica ao
socialismo são mesmo frágeis.
O P. Dehon submete a diligente exame a doutrina socialista e as suas propostas concretas,
confronta-as com as contradições e as injustiças do capitalismo e aceita, em geral, as análises dos
socialistas sobre a miserável situação do proletariado: “Seria pueril refutar globalmente todos os factos
apresentados pelos estudiosos socialistas”.1380 Aceita também muitas das suas soluções práticas. 1381
“Reconhecemos que os remédios propostos pela escola socialista não estão todos impregnados de injustiça
ou de utopia”.1382
Do socialismo, o P. Dehon não aceita “os sonhos e as utopias” e menos ainda “ os excessos e a
violência”.1383 Do socialismo condena, sobretudo, o ateísmo, o materialismo, a luta e o ódio de classes, o
colectivismo de Estado. Escreve no Diário: “Discordamos desta doutrina do ponto de vista de partida (a
filosofia materialista) e do ponto de chagada (o colectivismo); mas (o socialismo) quer como nós uma
reacção contra o individualismo e o liberalismo revolucionário. Como nós quer a associação, que é natural
ao homem”.1384
Era uma atitude muito crítica e muito aberta se se pensar que os católicos conservadores recusavam
em bloco as teses socialistas sem um cuidado exame das obras e dos autores que as defendiam e das suas
razões. Era preciso defender o direito de propriedade e exortar os pobres à paciência e à resignação. Eram
as teses do conservadorismo social, que ressurgirá também depois de 1900, sob o pontificado de Pio X.
Nas conferências romanas o P. Dehon conclui com impiedosa clareza: “Pregar o socialismo é ...
embalar a miséria humana com uma canção nova e sem fundamento, já que o colectivismo deixará subsistir
e provavelmente fará crescer a injustiça, as lutas sociais e a miséria”. 1385 Pouco antes tinha afirmado: “Com
o colectivismo de Estado, em lugar de muitos patrões, mesmo poderosos, mas contra os quais se pode ao
1375
A. Dansette, Histoire religieuse, 256-357.
1376
A. Dansette, Histoire religieuse, 357.
1377
NHV IX, 102.
1378
NHV XI, 34.
1379
NHV XI, 35.
1380
OS III, 251.
1381
Cf. OS III, 250-254.
1382
OS III, 251.
1383
Cf. OS III, 254-265.
1384
NQ XVI, 77: Janeiro de 1901.
1385
OS III, 258.

272
menos protestar e fazer greves, ter-se-á um só patrão “omnipotente” que terá em sua mão todos os meios
políticos, económicos, sociais e culturais sem a possibilidade do mais pequeno protesto, para não acabar na
prisão ou num campo de trabalhos forçados. Os patrões actuais serão substituídos pelos funcionários do
Estado e o trabalho será como o dos presos ou dos condenados às galés”.1386 É a verdadeira descrição das
condições sociais nos estados onde chegou a triunfar a ditadura do socialismo real. O P. Dehon falava 20
anos antes de rebentar a revolução russa (1917).
Ele está convencido de que a classe operária, na sua imensa maioria, não quer nem a violência nem
o autoritarismo de um Estado que tenha um poder sem controlo, que se converta numa tirania intolerável,
submetendo aos interesses dos privilegiados (políticos, burocratas) e ao seu grande poder, as pessoas, as
famílias e toda a iniciativa privada e pública: “É destruir a liberdade, a dignidade humana. É a escravatura
universal...”.1387 O Estado tem de estar ao serviço do homem, não o homem do Estado.

ESCRITOS SOCIAIS DO P. DEHON

Demos uma visão de conjunto aos outros escritos sociais do P. Dehon.


É uma colecção imponente que ocupa vários volumes de “Opera omnia”. São escritos fundamentais
para conhecer o P. Dehon e os problemas do tempo em que viveu.
Como sempre, a sua finalidade é essencialmente prática: difundir a doutrina social da Igreja, colocá-
la ao alcance de todos, contribuir para a construção, dia a dia, da ordem social cristã.
São páginas cheias de dados, de citações, de exemplos que ainda podem interessar ao historiador e
ao sociólogo. São escritos que naturalmente têm as suas escórias e as suas repetições. Às vezes tropeçamos
em páginas de eloquência ou de apologética, porém mais frequentemente são páginas de sincero calor
apostólico; normalmente é a exposição, em estilo simples, da doutrina social da Igreja, das iniciativas e
realizações concretas e da situação social da época.
Só depois da fundação da sua Congregação (1887-1878), o P. Dehon inicia a sua actividade de
escritor. De 1875 a 1900 escreve discursos, relatórios, debates para os diversos congressos ou assembleias
em que participa e publica os discursos pronunciados em vários anos por ocasião da distribuição de
prémios no colégio S. João (1877-1893).
Em 1889 funda a revista: “O Reino do Coração de Jesus nas almas e nas sociedades”. Dá assim
início à sua actividade de publicista que dura até 1903 e continua com menor intensidade até 1808, com um
último, solitário artigo em 1922 sobre “Bento XV íntimo”. Colabora irregularmente nas revistas
“L’Association catholique” de Paris e “La Democratie chrétienne” de Lille, e noutras revistas, e
sistematicamente, de 1897 a 1908, na “Chronique du Sud-Est”, fundada em Lião por V. Berne e M. Gonin,
uma revista que continua até os nossos dias com o título “La Chronique sociale de France”.
Depois das edições, em 1894 e 1895, do “Manual social cristão”, publica em 1895 “A usura no
tempo presente”.
Seguem, por ordem cronológica, as seguintes obras de carácter social: “Os nossos congressos”
(1897), “Directrizes pontifícias políticas e sociais (1897), “Catecismo social” (1898), “Riqueza, justo bem
estar e pobreza” (1899), “A renovação social cristã” (1900), “O plano da maçonaria na Itália e na França ou
a chave da história de 40 anos” (1908).
A estas obras sociais em sentido estrito, devem juntar-se três diários de viagens: um género literário
muito em voga em 700 e em 800 para descrever certos ambientes sociais: “A Sicília, a África do Norte e a
Calábria” (1897), “Para além dos Pirineus” (1900) e “Mil léguas na América do Sul) (1908).

“A USURA NO TEMPO PRESENTE”

1386
OS III, 257.
1387
OS III, 256.

273
Em Setembro de 1895, o P. Dehon publica um opúsculo de 64 páginas: A usura no tempo presente.
Por usura entende o P. Dehon, não só o empréstimo de dinheiro com juros, especialmente se forem
superiores ao consentido por lei, mas também os enormes e injustos ganhos dos grandes monopólios (hoje
chamar-lhes-íamos multinacionais), da grande indústria, das finanças, dos banqueiros prepotentes; as
especulações, as fraudes, a agiotagem que provocam variações artificiais dos preços das mercadorias e das
cotizações das bolsas, a destruição das mercadorias para aumentar o seu preço e conseguir exagerados
ganhos, provocando um alargado pauperismo. O tema era candente e de enorme actualidade.
Leão Dehon já se tinha apaixonado por este tema enquanto estudava teologia moral na
Gregoriana.1388 Tinha tratado dele, de passagem, no Manual social cristã;1389 e dele se ocupará com
frequência em conferências e artigos.1390
O P. Dehon quer, também neste tema da usura, tornar-se no apóstolo do pensamento de Leão XIII
que, na “Rerum Novarum” tinha apresentado a usura como uma das causas do mal estar social. Era preciso
estudar as novas formas da usura moderna e apresentar as suas desastrosas consequências para que todo o
homem de boa vontade a evitasse e a combatesse.1391
O estudo da usura está dividido em duas partes. Na primeira, depois de ter definido a usura e as
diversas posições da Igreja sobre os empréstimos de dinheiro, segundo o mudar dos tempos e as diferentes
situações sociais, o P. Dehon toma posição contra os moralistas de fama como Bucceroni e Lehmkuhl,
porque admitem o empréstimo com juros mesmo quando é feito a um pobre. Neste caso, segundo o P.
Dehon, o empréstimo devia ser gratuito. Não se trata, ordinariamente, de grandes somas. Porque não fazer
o empréstimo exclusivamente a título de caridade?1392 Contra o parecer dos mesmos moralistas afirma ser
imoral todo o empréstimo com juros superiores aos legais.1393
Na segunda parte, o P. Dehon é ainda mais actual que o próprio pensamento de Leão XIII, falando
da “usura voraz”, da insaciável avidez do ganho, que se difundiu com o progresso do capitalismo, seja na
indústria, onde já não se distingue o homem da máquina, seja na alta finança, nos bancos em mão de
judeus, como nos monopólios comerciais. É uma concorrência desenfreada que conduz à queda contínua
dos salários médios, leva à ruína os pequenos e até os grandes empresários, em proveito da grande usura,
judia ou não, que hoje se converteu em rainha do mundo.1394
E aqui o P. Dehon passa em resenha uma quantidade impressionante de injustiças sociais, de
enganos, de imbróglios financeiros e comerciais, de abusos na indústria e também nas finanças públicas,
quando domina o interesse privado e o favoritismo.1395 Poderíamos perguntar se se trata de histórias de
ontem ou de crónicas de hoje, tão actual é a descrição do P. Dehon.
Numa sociedade capitalista como a nossa, na qual a febre do dinheiro e dos ganhos fáceis faz perder
a cabeça a todos, o P. Dehon pergunta, concluindo: que remédios sugerir?1396. O ideal seria uma sociedade
com empréstimos sem juros; mas se sonhar isso é uma utopia e se devem tolerar os empréstimo, que os
juros sejam moderados e os abusos sejam combatidos.
Infelizmente, o primeiro a dar mau exemplo é o Estado, com os seus empréstimos que acabam
esmagando, através de impostos e taxas, os contribuintes. É preciso que os economistas cristãos e o clero
consciencializem as pessoas; que com o seu peso se mobilize a opinião pública e obrigue o Estado a dar
remédio às suas injustiças. Para as injustiças das sociedades e dos privados há as leis: “Não há mais que
pedir um pouco de mais coragem à magistratura e um pouco de mais honra aos governantes”.1397 Não se
deve nunca cansar de condenar, sem paliativos, os enormes ganhos que tornam os ricos sempre mais ricos e
reduzem à fome e à miséria os pobres cada vez mais pobres.

1388
Cf. NHV V, 60-62.
1389
Cf. OS II, 62-64.117-118.
1390
Cf. OS I, 186.199-220; III, 217ss.
1391
Cf. OS II, 301.
1392
Cf. OS II, 316.
1393
Cf. OS II, 316-317.
1394
Cf. OS II, 323-324.
1395
Cf. OS II, 326-341.
1396
Cf. OS II, 343
1397
OS II, 348-349.

274
A actualidade deste discurso do P. Dehon é impressionante. Só que agora a realidade da exploração
se espalhou mais: é uma dramática realidade, não só nacional e europeia, mas mundial (problema norte-
sul).

“OS NOSSOS CONGRESSOS”

Depois das cinco primeiras conferências sociais que o P. Dehon fez em Roma (14.1.1897-
11.3.1987), o Cardeal Rampolla, Secretário de Estado de Leão XIII, pede ao P. Dehon que escreva um
opúsculo para defender a utilidade dos congressos católicos, fortemente contestados.1398 Pense-se no
congresso eclesiástico de Reims de Agosto de 1895, que desencadeou a desaprovação de uma parte do
Episcopado francês: a acusação era de presbiterianismo, de sínodo sem bispo, etc.1399
O P. Dehon pegou na pena e escreveu um opúsculo intitulado Os Nossos Congressos. Uma carta
do Cardeal Rampolla serve de introdução e expressa a “alegria particular” do Papa e o seu elogio pela
“feliz ideia” de fazer ressaltar a utilidade dos congressos e de propagar, através deles, os ensinamentos da
Santa Sé.1400
O texto começa com uma citação da “Rerum Novarum”: “Vemos muitas vezes reunirem-se
congressos, onde homens egrégios comunicam as ideias, unem as forças e se consultam sobre os melhores
expedientes” (n. 41).1401
O P. Dehon parte de um dado de facto: os numerosos congressos católicos que se realizaram em
França em 1895, especialmente em Reims (pelo décimo quarto centenário do Baptismo de Clodoveu). É
um facto excepcional, que chamou a atenção geral e causou um pouco de agitação, pois os católicos são de
per si calmos, “teria de dizer calmos em demasia”.1402
Cinco razões, segundo o P. Dehon, demonstram a necessidade dos congressos católicos: a irritação
dos adversários; a novidade da acção social que exige o concurso de todos; se os congressos são úteis para
as ciências, são-no também para a religião; se são úteis no estrangeiro, são também úteis em França;
finalmente, os congressos católicos servem para dar a conhecer os ensinamentos do Papa. E o P. Dehon
conclui com a sua experiência de 25 anos de congressos. Sempre foram para ele como exercícios
espirituais sobre o apostolado. Proibir os congressos seria atraiçoar a sagrada causa da Igreja.1403
Quanto à composição dos congressos, o P. Dehon é favorável àqueles compostos por leigos e
sacerdotes, ou também só de sacerdotes, desde que a direcção esteja efectivamente confiada a pessoas de
provada competência ou aos responsáveis das grandes organizações católicas, já que todo o congresso
católico deve manter-se numa real subordinação à jerarquia.1404
O P. Dehon termina citando o discurso feito por Mons. Radini Tedeschi no congresso de Fiesole:
um caloroso convite aos sacerdotes para que se comprometam no apostolado social e, para se prepararem
para este apostolado, os sacerdotes têm necessidade de congressos. Dirige-se, com palavras enérgicas, aos
que são contra os congressos: “Vós dizeis que nós, falando ao povo dos seus interesses, dos seus
sofrimentos e das desejáveis reformas, lhes inspiramos desejos que não tinha e favorecemos os socialistas.
Mas vivestes até agora em cartuxas, para não saberdes que os socialistas e os radicais, com cem vozes
diferentes... manifestando a este povo um interesse verdadeiro ou fingido, o entretêm sobre os seus
sofrimentos? Quereis deixá-los actuar e conquistar, sozinhos, as massas? É demasiado tarde para deixar o
povo numa doce ignorância. Se não lhe dissermos toda a verdade social e económica, outros conquistá-los-
ão para o erro. Será sempre necessário repetir a queixa de Leão XIII na sua encíclica aos bispos de Itália:
“Os inimigos da religião têm mais coragem para atacá-la que os seus amigos para defendê-la. Mas não há
alternativa na luta: ou perecer ou lutar com denodo. Se perecer é o vosso ideal na luta social, deixai-nos ao

1398
Cf. NQ XII, 42: 24.3.1987.
1399
Cf. NQ XI, 69r: 25-27.8.1895.
1400
Cf. OS II, 357.
1401
OS II, 359.
1402
OS II, 359.
1403
OS II, 359-370.
1404
OS II, 370-373.

275
menos combater. Queremos salvar a sociedade para devolvê-la a Cristo, seu rei, hoje dolorosamente
destronado”.1405

“AS DIRECTRIZES PONTIFÍCIAS POLÍTICAS E SOCIAIS”

Sabemos que, entre 1897 e 1990, o P. Dehon teve de interessar-se, a seu contragosto, pela
actividade política da Democracia Cristã.1406
Tudo está orientado para o bom resultado das importantes eleições gerais de 1898. Leão XIII deseja
a união dos católicos franceses e escolheu S. Lamy para presidente da comissão federal dos sete principais
grupos católicos.
É o momento em que a democracia cristã, tendo alcançado o seu máximo esplendor, quer fazer
sentir, não só a sua influência no campo social, mas também o seu peso no campo político...; pelo
contrário, acontecerá o seu rápido declínio.
As eleições de 1898, em lugar de ser um triunfo, são um descalabro como tinha previsto o
legitimista La Tour du Pin,1407 por culpa da divisão dos católicos e em especial pela intransigência dos
assuncionistas, como já acenámos.
Antes de chegar este “Sedan eleitoral dos católicos”, 1408 o P. Dehon fez-se de novo intérprete e
apóstolo do pensamento de Leão XIII, publicando, em Dezembro de 1897, As Directrizes pontifícias
políticas e sociais.1409 Tinha acabado de escrever esta obra em Outubro de 1897.1410 “As boas pessoas –
escreve no Diário – pensam conhecer as directrizes do Papa, porém conhecem-nas muito mal e os outros
não querem sequer ouvir falar delas”.1411
O P. Dehon trata de um problema que viveu e sofreu pessoalmente. Para seguir o convite do Papa,
de conservador e monárquico tornou-se republicano e democrata. Propõe a todos os católicos franceses de
ultrapassar as preferências pessoais e de acolher o convite de Leão XIII ao “ralliement” ou adesão à
terceira República. Para alguns é uma questão candente.
“Para favorecer a união e com uma finalidade inteiramente sobrenatural e patriótica – escreve o P.
Dehon no prefácio – assumimos este modesto trabalho. Respeitaremos todas as regras de cortesia. Não
queremos nem humilhar nem ofender os que se chamam refractários, (isto é, reaccionários e
conservadores). Queremos conquistá-los com a discussão e o raciocínio, mediante uma explicação leal e
demonstrativa das directivas pontifícias, conservando a medida imposta pela verdade e pela caridade”.1412
Palavras simples que manifestam a nobreza de alma de Leão Dehon.
A obra está dividida em duas partes: Na primeira, o P. Dehon detém-se nas directrizes políticas do
Papa e, na segunda, nas sócio-económicas.
Partindo das encíclicas de Leão XIII, especialmente da “Immortale Dei”, de 1885 sobre a
constituição cristã dos Estados e também da “Libertas praestantissimum” de 1888 sobre a liberdade
humana, da “Sapientiae christianae de 1890 sobre os deveres dos cidadãos cristãos e sobre as relações entre
a Igreja e o Estado, da “Rerum Novarum” de 1891 sobre a condição dos operários, etc. e referindo-se às
teses da teologia clássica, o P. Dehon expõe a doutrina católica sobre a sociedade civil, sobre a origem do
poder, sobre a missão do Estado, sobre as suas relações com a religião e com a Igreja, com as instituições e
com os cidadãos, sobre como se transmitem os poderes e sobre os governos de facto.
De toda esta ampla exposição doutrinal faz a aplicação à França, como fez Leão XIII na encíclica
“Au millieu des sollicitudes” sobre o “ralliement” (16.12.1892), Conta depois a história do “ralliement”,

1405
OS II, 377.
1406
Cf. pp. 370 ss desta biografia.
1407
Cf. R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 241.
1408
Cf. R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 245.
1409
Cf. NQ XII, 79.
1410
Cf. NQ XII, 76-77.
1411
NQ XII, 79: 1-25.12.1897.
1412
OS II, 383.

276
dos consensos e das discussões suscitados, das diversas intervenções do Papa junto dos católicos, com
paciente e perseverante diplomacia. Uma história que já conhecemos.1413
“A directiva dada era clara. A República tinha adquirido na França aquela legitimidade, ao menos
provisória, que exige respeito. O dever e o interesse obrigam-nos a aceitá-la ... Aceitai a República, ou seja
o poder constituído que existe entre vós, respeitai-a, submetei-vos a ela como representante do poder que
vem de Deus”.1414
É uma pena para o Papa que um grande número de católicos rejeitem os seus conselhos. 1415 São os
legitimistas que se embalam nas vãs ilusões de uma anacrónica restauração monárquica.. Afirma o P.
Dehon: “Obstinam-se nos seus erros como os jansenistas noutros tempos. Todavia o perigo acossa, o novo
período eleitoral aproxima-se (eleições gerais de 1898), o socialismo ameaça-nos, trata-se dos mais altos
interesses da França e da cristandade. Não se pode titubear mais”.1416
O P. Dehon justifica a intervenção de Leão XIII. Ao pedir aos católicos franceses a adesão à
República, não faz mais que aplicar à França a doutrina católica. Responde depois aos protestos e às
objecções dos que não querem aceitar os convites do Papa. “Submetida a exame, não há objecção que
resista. Toda esta oposição mistura-se em alguns casos com a boa fé; mas na maior parte dos casos e
especialmente nos jornalistas, trata-se geralmente de uma iniciativa de partido, um acto de má fé, uma obra
de sectários”.1417
Então apresenta-se o caso de consciência. “Há portanto pecado em mostrar-se refractários às
directrizes do Papa? Incontestavelmente... Há uma culpa clara e grave... Se isto não é pecar, então já não há
pecados”.1418
“Qual será o futuro da França? Dependerá da atitude e da união dos católicos”. 1419 A resposta à
desunião dos católicos dá-la-á a história religiosa da França no primeiro decénio do novo século: o
combismo e a perseguição.1420
A segunda parte da obra é dedicada às orientações sócio-económicas contidas na “Rerum
Novarum”. O P. Dehon limita-se a fazer um comentário, seguindo os conteúdos da encíclica. Entre a
economia liberal, particularmente opressora para os trabalhadores, e o jugo férreo do socialismo, o Papa
expõe uma economia cristã muito libertadora e proveitosa para os trabalhadores. Se esta economia cristã se
combinar com uma certa emancipação política, temos a democracia cristã.1421
“Democracia não quer dizer governo do povo francês através dos operários” ou das chamadas
classes inferiores; “democracia quer dizer governo da França mediante todo o povo francês... Ninguém
entre os cristãos quer a luta de classes, tanto menos os democráticos... A Democracia cristã ... só pede que
as classes (operárias) tenham a facilidade de fazer valer os seus direitos como os outros, seja mediante o
sufrágio universal organizado, seja mediante representantes dos seus interesses...”.1422 Alberto de Mun
baptizou “a economia cristã com o nome de Democracia Cristã”.1423
A predilecção do P. Dehon pela democracia cristã é evidente. É um movimento social que responde
às necessidades dos tempos e que, apesar das fraquezas e das imprudências de alguns dos seus membros,
incluindo sacerdotes, realiza as directivas do Papa.
Por muito que o P. Dehon fosse partidário da democracia cristã, sempre trabalhou para a unidade
dos católicos em França. Não excluía ninguém. Tinha fiéis amigos entre os seguidores do “ralliement”
(adesão à terceira república), entre os refractários e entre os republicanos, assim como entre os
conservadores ou os católicos sociais: o importante para ele era, segundo as orientações do Papa, o serviço
da unidade entre os católicos franceses.1424
1413
Cf. pp. desta biografia.
1414
OS II, 416-417.
1415
Cf. Carta de Leão XIII a Mons. Perraud, bispo de Autun, de 20.12.1893 (OS II, 418).
1416
OS II, 418.
1417
OS II, 430.
1418
OS II, 430-431.
1419
OS II, 437.
1420
Cf. pp. desta biografia.
1421
Cf. OS II, 442.
1422
OS II, 462-463.
1423
OS II, 463.
1424
Cf. Cf. R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 186.

277
“CATECISMO SOCIAL”

Depois da publicação do Manual social cristão, chegaram ao P. Dehon vários pedidos para que
escrevesse uma obra mais simples e mais acessível para todos, uma espécie de catecismo, que apresentasse
os ensinamentos essenciais das encíclicas de Leão XIII.
O P. Dehon, em 1895, não se sentiu capaz de escrever uma obra assim. Os seus amigos, pelo
contrário, estavam convencidos que estava à altura e conseguiram vencer a sua resistência. Assim foi
publicado, em Fevereiro de 1898, o Catecismo social como complemento do Manual social cristão. “Foi
bem acolhido – escreve o P. Dehon no seu Diário. Recebi boas cartas dos arcebispos de Aix, de Avinhão,
dos bispos de Fréjus, Viviers, St. Dié, Laval... Oxalá que este pequeno livro torne acessíveis ao povo os
ensinamentos de Leão XIII”.1425 Este é o desejo do P. Dehon: ser o apóstolo da doutrina papal não junto dos
moralistas e teólogos, mas junto do povo: “entre os cristãos de boa vontade, entre os jovens”. 1426 Por isso, a
escolha da forma catequética: perguntas e respostas.
O grande sociólogo, José Toniolo, apreciou tanto o Catecismo social, que mandou traduzi-lo em
italiano. Publicada a tradução em 1903, ele próprio escreveu o prefácio, dizendo entre outras coisas: É mais
difícil apresentar o pão da verdade de uma maneira acessível aos espíritos pouco instruídos, que expor aos
eruditos as teorias científicas. Tudo isso não deteve o cónego Dehon. Nas suas obras, a clareza do génio
francês aliada à coerência dos italianos, entre os quais o autor viveu muito tempo, contribui para dar a estas
páginas um carácter popular absolutamente original”.1427
A obra está dividida em quatro partes: os princípios cristãos na ordem política; os princípios
cristãos na ordem económica; o dever social; a apologética ou história social da Igreja.
O P. Dehon em cada uma das partes é suficientemente sintético para não esgotar o argumento de
que trata e é, ao mesmo tempo, muito hábil para despertar o interesse do leitor, para que sinta o desejo de
aprofundar pessoalmente as diversas questões. Por isso, no final da primeira e da segunda parte, apresenta
uma breve bibliografia, como também ao longo da quarta parte. E, precisamente esta parte apologética, que
no seu tempo foi considerada a mais original, 1428 é para nós muito criticável. Para a nossa sensibilidade é
muito mais actual e atractiva a terceira parte, a mais breve, a mais prática e concisa mesmo no estilo. O P.
Dehon apresenta as diferentes classes sociais, as diversas profissões, os vários ofícios e a todos lembra, não
os direitos, mas os deveres.
O estilo do P. Dehon nesta parte é tão sóbrio e conciso que, a certo ponto, esquece também as
pequenas perguntas típicas do catecismo, quase para apresentar, sem inúteis demoras, os deveres de cada
um.1429
O Catecismo social termina com os dois temas predilectos do P. Dehon: “A democracia cristã” e “O
reino do Sagrado Coração”.
Relativamente à democracia cristã afirma: “A Igreja e o povo estão feitos para se amarem ... A
Igreja é a única força que pode dizer com eficácia ao cesarismo: tu respeitarás a liberdade; ao capitalismo:
tu respeitarás a justiça; ao rico: tu praticarás a caridade... Leão XIII enunciou as condições da aliança da
Igreja e do povo na encíclica “Rerum Novarum” e deu um nome a este tratado de paz; chamou-o
democracia cristã”.1430
A respeito do Reino do Coração de Cristo: “Por três vezes na encíclica “Rerum Novarum”, Leão
XIII assinala como grande e único remédio para o mal estar social, a superabundante caridade do Coração
de Jesus”.1431

1425
NQ XII, 127.
1426
OS III, XV.
1427
Cit. por R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 186.
1428
Cf. R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 187-188 e também G. Toniolo in “Rivista internazionale di scienze
sociali e discipline ausiliari” LXXXV, (1899), pp. 481-484.
1429
Cf. OS III, 79-88.
1430
OS III, 156-157.
1431
OS III, 157.

278
“RIQUEZA, JUSTO BEM ESTAR OU POBREZA”

O P. Dehon, de 23 a 26 de Agosto de 1897, participa no congresso da Ordem Terceira franciscana


em Nîmes. O programa refere-se à caridade e à liberdade, com uma atenção especial à família.
Durante o congresso houve intervenções muito fortes do P. Lapeyre e, especialmente, de M. Chabry
contra o capitalismo. A relação deste último sobre “o açambarcamento monetário e a independência
económica” levanta grandes aplausos e a aprovação da maioria.1432 Mas uma parte dos congressistas não
está totalmente de acordo e dela se faz porta-voz um certo P. Venâncio, capuchinho, segundo o qual não se
deve desanimar o capital: “O capital é, por natureza, muito desconfiado. Se se o acossar, esconder-se-á,
deixará de sustentar as indústrias francesas e fugirá para o estrangeiro”.1433
O tema da riqueza e do seu uso, num congresso franciscano que tinha como ideal a pobreza, era
candente.
A discussão continuou, inclusive depois do congresso, e foi precisamente para contestar os ataques
do Padre capuchinho Próspero de Martigné, que defendia a mortificação cristã e a pobreza, que o P. Dehon
escreveu , com D. Tartelin, o opúsculo riqueza, justo bem estar ou pobreza. Enquanto a resposta de
Tartelin é especialmente longa e polémica, a do P. Dehon é breve e tranquila. Com esta moderação e
nobreza de linguagem, tinha caracterizado favoravelmente as suas intervenções no congresso.1434
O P. Dehon reconhece que a pobreza voluntária é um ideal sublime, porém é um conselho de
perfeição proposto às almas de boa vontade e não é impsto a ninguém. É preciso uma vocação especial.
Não pode ser uma regra para a vida cristã ordinária. Mais ainda, a pobreza, se não estiver animada por
motivos superiores, pode levar a más acções como o roubo, a fraude, a inveja, a cupidez... Por isso Leão
XIII escreve: “Faz falta, pelo menos, um moderado bem estar para evitar as tentações e os vícios da
pobreza”.1435 O P. Dehon, fundamentando-se na sabedoria bíblica, nos filósofos e teólogos, demonstra
como é louvável a procura de um justo bem estar.1436
Já o congresso de Nîmes se havia interrogado se o crescimento indefinido da riqueza era um bem ou
um mal. Tinha respondido: O açambarcamento dos bens por um só e para o seu interesse é certamente uma
maldição; a distribuição dos bens a todos os homens é digna de toda a bênção. Deve-se desdenhar a riqueza
individual (procura egoísta) e promovê-la socialmente.1437
Este é o serviço da riqueza que o P. Dehon subscreve. O povo deve chegar, na medida do possível,
“ao bem estar moral, intelectual e temporal”.1438

“A RENOVAÇÃO SOCIAL CRISTÔ

Em Janeiro de 1897, o P. Dehon está em Roma e encontra-se muitas vezes com Mons. Tiberghien,
um prelado belga, que estudou na academia dos nobres. Está muito ligado às directivas de Leão XIII e é
grande amigo de Leão Harmel. “Foi ele – escreve o P. Dehon no Diário – que me levou a fazer
conferências em Roma. Foi ele que as organizou”.1439
As primeiras conferências romanas sobre a questão social foram cinco e tiveram lugar nos
Assuncionistas de 14 de Janeiro a 11 de Março de 1897.1440 Os ouvintes eram cerca de 500, na sua maioria
1432
Cf. Actes du quatrième Congrès du tiers-Ordre Franciscain tenu à Nîmes, Grottes de Saint-Antoine Brive (Corrère), pp. 151-
164.
1433
Cf. Actes..., p. 169.
1434
Cf. Actes..., pp. 120-121.142-143.200.233-234.297.
1435
OS III, 167.
1436
Cf. OS III, 168-173.
1437
Cf. Actes..., p. 109.
1438
OS III, 175.
1439
NQ XII, 25: Janeiro de 1897
1440
Cf. NQ XII, 37. Prélot (cf. p. 229) seguido por Dorresteijn (cf. p. 199, ed. It.) alarga o tempo das primeiras conferências
romanas a Abril de 1897 e diz que foram sete (cf. R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 237, nota 1), incluindo as
duas conferências sobre a democracia cristã que o P. Dehon fez certamente em Roma em Abril de 1898. (cf. NQ XII, 148: Abril
de 1898).

279
eclesiásticos, com a participação de prelados e cardeais. Não faltaram os aplausos nem as crónicas
laudatórias dos jornais.
A 2 de Fevereiro, festa da Apresentação de Nossa Senhora, o P. Dehon leva o seu círio ao Papa.
Leão XIII reconhece-o e anima-o: “Continuai as vossas conferências, propagai as minhas encíclicas,
abençoo-vos de modo especial”.1441
Estas cinco conferências, juntamente com outras quatro feitas em 1898 (três) e em 1900 (uma),
foram publicadas num volume intitulado A renovação social cristã.
O conteúdo das primeiras cinco conferências sobre a crise social (1ª); sobre as causas e os remédios
do mal estar social (2ª); sobre o judaísmo, o capitalismo e a usura (3ª); sobre o socialismo e a anarquia (4ª);
sobre a missão social da Igreja (5ª) é tirado, ampliando-o e completando-o, da primeira parte do Manual
social cristão (cap. 1-6).
Interessantes e originais são as conferências sobre a democracia cristã (6ª e 7ª conferências).
Eis como começa: “Uma parte dos católicos, os mais fiéis às orientações pontifícias, os mais
zelosos na promoção da acção social cristã, assumiram o nome de democratas cristãos”.1442 “É uma
expressão bem escolhida?” – pergunta-se o P. Dehon. “Admitimos que precisa de explicações e que pode
prestar-se a alguns equívocos. A democracia cristã não é a democracia pura, a democracia absoluta. Não
queremos excluir toda a realeza e nem sequer toda a aristocracia que justifique os seus privilégios com
serviços prestados. Não pretendemos suprimir o patronato nem tão pouco o proletariado.
Fundamentalmente, a democracia cristã tem como programa a encíclica sobre as condições dos operários (a
“Rerum Novarum”). Ela exige, na vida social, leis e instituições favoráveis aos trabalhadores; na vida
política, uma subida progressiva do povo e a sua crescente participação na administração pública”.1443
Os democratas cristãos querem remediar as injustiças e a miséria que oprimem a classe operária,
com um programa de reformas realizadas pelos sindicatos (o P. Dehon diz corporações) e pelo Estado. Não
ignoram que há excelentes patrões, que se podem apresentar como modelos, tipo Leão Harmel, os Feron-
Vrau, etc; mas não são tão ingénuos de pensar que os patrões se tornem excelentes sem o concurso da lei e
sem a acção sindical.1444
“Na vida política a democracia pura é republicana. Ela exclui qualquer privilégio de classe. A
democracia cristã não vai tão longe. Ela será republicana onde a república estiver estabelecida e querida
pelo povo, como em França. Noutros sítios aceita a monarquia, moderada por instituições
democráticas”.1445
A este ponto, o P. Dehon vai buscar abundantes provas da história do passado e sobretudo das
situações sociais presentes. A democracia cristã, assim como condena as aberrações do capitalismo,
também refuta as ilusões do socialismo.
“Chegou o momento histórico para a democracia cristã entrar em acção. O povo procura e quer
reformas sociais... Por isso a oportunidade do programa “ir ao povo”, o programa da democracia cristã”.1446
Leão XIII, em 1892, dizia a Mons. Doutréloux, bispo de Liège: “Não se pode negar a existência de
um movimento democrático universal; é preciso torná-lo cristão, se não se quiser que se torne
socialista”.1447
Na segunda conferência sobre a democracia cristã, o P. Dehon apresenta o programa contido na
“Rerum Novarum” em três grandes teses; o direito de propriedade e as suas limitações; as relações capital-
trabalho; o grito de injustiça das novas formas de usura; e os dois grandes meios de reforma: as associações
professionais e as leis.1448
Se para realizar a “ordem social cristã” fosse necessário caminhar “mau grado nosso, só com o
povo, não duvidaríamos nem um instante: entre os fracos e os que sofrem por um lado; os fortes e os

1441
NQ XII, 39.
1442
OS III, 313.
1443
OS III, 315.
1444
Cf. OS III, 318.
1445
OS III, 318.
1446
OS III,327.
1447
OS III, 322.
1448
Cf. OS III, 331-333.

280
satisfeitos pelo outro. Mas sem poder esquecer nunca que a nossa aspiração final não é a guerra, mas a
paz...”.1449
O P. Dehon detém-se sobre a preparação e a génese da “Rerum Novarum” para fazer compreender
melhor o programa democrático da encíclica. Depois de uma alusão a “L’Avenir”, a Lamennais e a
Ozanam, detém-se em Ketteler, Manning, Vogelsang, de Mun, La Tour du Pin, nas reuniões de estudos
internacionais de Roma e de Friburgo, em Mons. Mermillod e a famosa União de Friburgo, nas iniciativas
do Cardeal Pecci (depois Leão XIII) em Perugia, nas peregrinações operárias para pedir a intervenção do
Papa, na delicada questão dos cavaleiros do trabalho nos Estados Unidos.1450
Depois da publicação da encíclica “Rerum Novarum” (15.5.1891), o P. Dehon apresenta as
realizações corporativas ou sindicais em diferentes países, com a oposição, por vezes, dos próprios patrões
“católicos”; mas também com propostas de uma vasta legislação social.1451
Só assim se realiza a justiça para o operário e, nisto, “Leão XIII é o primeiro democrata cristão”.1452
“Leão XIII – tinha o P. Dehon no início desta conferência – não é do parecer dos católicos
conservadores, que vêem como meio de salvação só duas virtudes pessoais: a beneficência cristã no patrão
(ao máximo organizam uma conferência de S. Vicente de Paulo) e a resignação cristã no operário. Sem
dúvida a encíclica proclama a eficácia da esmola e da resignação, mas coloca em primeiro lugar o
cumprimento da justiça. Desde o princípio da encíclica, Leão XIII assinala os males intoleráveis de que
sofrem os trabalhadores. Não os apresenta como misérias fatais, mas como injustiças sociais e privadas.
Não pede aos católicos que mascarem estas injustiças com a caridade; mas exige que as suprimam.
“A encíclica não é um simples convite à esmola; determina e delineia as linhas primordiais de um
direito operário, fundado sobre princípios cristãos”.1453

“O REINO DO CORAÇÃO DE JESUS NAS ALMAS E NAS SOCIEDADES”

Em 1900, o P. Dehon publica A renovação social cristã. Já passaram 11 anos desde que, em Janeiro
de 1889, deu início à revista mensal da sua Congregação: R Reino do Coração de Jesus nas almas e nas
sociedades. A revista, significativamente, tinha começado o seu caminho no primeiro centenário da
revolução francesa (1879-1889), com uma típica atitude antirevolucionária e, portanto, inevitavelmente em
contraste com o mundo moderno que tinha surgido da revolução. Era então necessária, inclusive para o P.
Dehon, uma conversão à democracia e à república, à aceitação da revolução nos seus aspectos positivos.
Como já dissemos, a conversão aconteceu, seguindo com docilidade as orientações de Leão XIII.
O programa da revista do P. Dehon está sintetizado no seu título: “O Reino do Coração de Jesus”
não só ”nas almas” mas também “nas sociedades”.
A mensagem do Coração de Jesus em Paray, para além dos profundos conteúdos espirituais e
religiosos, tinha-se carregado já desde o princípio, de conotações sócio-políticas.
Na aparição de 1689 o Coração de Jesus afirmava que reinaria sobre a França, se Luís XIV pusesse
a imagem do Coração de Jesus nos seus estandartes e levantasse um templo onde o Sagrado Coração fosse
exposto à veneração do rei e da sua corte.
Durante a revolução, o Sagrado Coração converteu-se no sinal de união dos contra-revolucionários.
Foi então o sinal escolhido pelos Vandeanos, como o escolheram em 1870 os heróicos combatentes de
Loigny. Luís XVI, prisioneiro no Templo, tinha feito o voto de consagrar a França ao Sagrado Coração se
recobrasse a liberdade e o trono.
Depois da derrota de Sedan (1870), a revolta da Comuna e a perda de Roma pelo Papa, uma difusa
crise de consciência nos católicos franceses empurrou-os a escolher como remédio para curar a sua pátria
(pessoas e sociedade) o culto ao Coração de Jesus.1454

1449
OS III, 334.
1450
Cf. OS III, 335-338.
1451
Cf. OS III, 338-350.
1452
OS III, 326.
1453
OS III, 332-333.
1454
Cf. A. Hamon in Dictionnaire de Spriritualité II, 1039-1042.

281
Especialmente para os católicos ultramontanos (e o P. Dehon é ultramontano: rejeita toda a forma
de galicanismo e é absolutamente fiel ao Papa) a desordem individual e social na França nasceu do
“pecado” da revolução, que destruiu a ordem social cristã e procurou arrancar a Deus do coração dos
franceses. Para os ultramontanos a sociedade ideal é do tipo piramidal e jerárquico. Cristo é a chave da
abóboda. A “teologia política” da restauração da realeza de Cristo tende, para os legitimistas, (e o P. Dehon
nesse tempo é monárqico-legitimista), para a restauração da Monarquia em França e do poder temporal do
Papa em Roma.
Os males caídos sobre a França eram amargos frutos do amoralismo imperial. Exigiam
arrependimento e reparação.
Meios eficazes para difundir no povo francês esta espiritualidade foram, para além das
peregrinações a Lourdes, a La Salette e a Paray-le-Monial, as consagrações individuais, familiares,
paroquiais e diocesanas ao Coração de Jesus.
Já durante o assédio de Paris (1871), várias personalidades tinham lançado o projecto de consagrar
a França ao Sagrado Coração e de erigir-lhe na capital um templo em reparação das culpas dos franceses.
Os legitimistas esperavam das reparações ao Sagrado Coração o regresso providencial do rei: o
conde de Chambord, futuro Henrique V, exilado na Áustria, esperado como o salvador da França. Nas
reuniões e nas peregrinações o povo cantava: “Salva Roma e a França em nome do teu Coração”. O
significado religioso-político era mais que evidente.
Depois da crise de 1870, fundaram-se associações para propagar a ideia do reino do Coração de
Jesus. Entre estas associações recordamos a dos “Fastos eucarísticos”, realizada em Paray-le-Monial por V.
Drevon sj, com a revista “O Reino de Jesus Cristo”, dirigida pelo Barão A. de Sarachaga. Aí o P. Dehon
tinha lido um extenso artigo do P. Júlio Matovelle sobre o reino social de Cristo e sobre a importância da
imprensa católica como meio de afirmação deste reino.1455 O P. Matovelle publicava no Equador uma
revista com o título: “A República do Sagrado Coração”.
Mas, seja em Júlio Matovelle como no Barão de Sarachaga, a ideia do reino social de Cristo era
muito limitada, reduzida mais a um simbolismo espiritualista do que à realidade.
O P. Dehon partilha em parte desta ideia, mas também a supera. Tinha-se comprometido muito a
fundo no campo social durante os anos de coadjutor em S. Qiuintino e não podia conceber um autêntico
reino de Cristo, sem as necessárias reformas sociais.
Tinha diante dos olhos o exemplo de Leão Harmel que, em Val-des-Bois, tinha criado uma espécie
de comunidade operária cristã com numerosas obras, geridas pelos próprios trabalhadores, destinadas a
tirá-los do isolamento e do pauperismo e a dar-lhes uma dignidade pessoal. Desde 1887, o P. Dehon tinha
assegurado a assistência religiosa à comunidade operária de Val-des-Bois, através dos seus padres. Era um
exemplo concreto de como se realiza o reino do Coração de Jesus entre os operários.
Em Setembro de 1887, o P. Dehon escreve : “Val-des-Bois, oásis no deserto da nossa pobre França.
A paz social reina neste mundo operário. Aqui encontro um verdadeiro espírito de fé e de caridade, o amor
ao sacrifício, o cuidado dos pobres e dos doentes. É para nós uma graça estar imersos nesta corrente de
vida de imolação e de caridade”.1456
Se a isto juntarmos o convite de Leão XIII ao P. Dehon para pregar as suas encíclicas na audiência
de 6 de Setembro de 1888, teremos presentes todas as circunstâncias que levaram o P. Dehon a fundar uma
revista que promovesse a ideia do reino social do Coração de Jesus e da reparação.1457
Assim em 1889, centenário da revolução, mas também segundo centenário da revelação do Coração
de Jesus em Paray, relativa ao seu reino social (1889), nasceu a revista: O Reino do Coração de Jesus nas
almas e nas sociedades.
Nos primeiro anos do “Règne...”, exactamente de 1889 a 1893-94, domina na revista uma
concepção mais espiritualista e moralista da vida e da sociedade. São aquelas exigências espirituais e
morais, justíssimas em si mesmas, mas não suficientemente integradas na realidade social, para poder
descrever com exactidão, interpretar, orientar os comportamentos sociais e políticos dos homens. É uma
visão muito esquemática e intelectual, muito pouco inserida no verdadeiro tecido social: o da gente

1455
Cf. RCJ (1889), 60-80.
1456
NHV XV, 68-69.
1457
Para a audiência de 6 de Novembro de 1888, cf. NHV, 81-83.

282
ordinária, com as suas aspirações, os seus trabalhos, as suas alegrias e os seus males quotidianos, onde o
bem e o mal se entrelaçam no coração de cada um e estão presentes em todas as instituições humanas.
Esta segunda visão, complexa e pluralista da realidade social, domina a partir de 1894 nos artigos
que o P. Dehon publica em “O Reino...” e noutras revistas (“La chronique du Sud-Est”; “La Democratie
Chrétienne”; “L’Association catholique”, etc.) e é favorecida pelas orientações de Leão XIII, pela
conversão do P. Dehon à democracia e à democracia cristã, pelo facto de, em 1893, Mons. Duval o chamar
para presidir e guiar os trabalhos da comissão de estudos sociais da diocese de Soissons. Desde então a
análise do P. Dehon concentra-se sobre os problemas mais importantes do tempo, torna-se cada vez mais
exacta e realista, especialmente sobre os meios concretos a empregar, segundo as diversas situações.
Temos um exemplo disso no Manual social cristão, especialmente na sua segunda parte, a parte prática,
escrita inteiramente pelo P. Dehon.1458
Ordinariamente, o P. Dehon servia-se dos artigos de “O Reino...” como ensaios, para retomar e
publicar em livro.1459 Assim foi com as Directrizes pontifícias políticas e sociais e com o Catecismo
social.
Com a morte de Leão XIII (20.7.1903), deixava de haver para o P. Dehon a fonte segura das
orientações sociais e políticas; além disso, na França, recrudescia a perseguição contra as congregações
religiosas. Em Novembro de 1903, o P. Dehon escreve no Diário: “Tomo a resolução de deixar a revista.
Seria necessário dar-lhe um tom mais popular e fazer propaganda em toda a França. Isto teria sido fácil
noutros tempos, mas agora estou prestes a ser expulso. Não poderia fazer nada a partir de Bruxelas. E há já
doze anos que faço esta revista todos os meses. Fez algum bem... Por causa das suas doutrinas em
consonância com as directivas de Leão XIII, perdeu algumas assinaturas. Tinha manuscritos preparados
para mais um ou dois anos. Faço sacrifício de tudo isto. Nosso Senhor tem os seus desígnios. Terei mais
tempo disponível para os meus exercícios de piedade”.1460
O P. Dehon colaborou com várias revistas sociais 1461 e também com um jornal diário de Lião, “La
France libre”; mas a colaboração mais longa foi com “La Chronique du Sud-Est”. Era a revista mensal dos
comités de difusão de “La Croix”, fundada em Lião em 1892 e dirigida por Victor Berne.
Depois de um primeiro artigo em Janeiro de 1897, a revista contou todos os meses, de 1898 a 1903,
com um artigo do P. Dehon e, de vez em quando, de 1904 a 1908. São artigos breves, muito vivos e, às
vezes, mordazes: “Lembram um facto, um congresso, fazem-se eco de uma orientação pontifícia, abrem os
olhos do leitor francês para aquilo que se faz na Itália ou na Bélgica; umas vezes dá segurança e coragem
diante dos ataques dos adversários, outras condena a indolência e a apatia (dos católicos)”.1462
Conservam-se três cartas de Victor Berne ao P. Dehon: uma muito carinhosa de 28 de Julho de
1924, na qual o velho lutador deita um olhar sobre o passado, elogiando o P. Dehon pela sua antiga
colaboração, e analisa a obra social e a situação política actual (1924). Outra carta de 22 de Março de 1925
é também muito familiar e cordial: “É um verdadeiro prazer para mim enviar-vos uma saudação muito
afectuosa e agradecida. Vós fostes tão bom comigo; vós nos ajudastes tanto na “Chronique...”.1463 Então era
uma pequena revisa, agora converteu-se na “Chronique sociale de France”. Detém-se depois sobre a
importância que tiveram as “Semanas sociais” e sobre a presente situação sócio-religiosa.
Numa terceira carta de 29 de Julho de 1925, recebida pelo P. Dehon poucos dias antes da morte
(12.8.1925), V. Berne recorda ainda com saudade a proveitosa colaboração na “Chronique”. “Obrigado
pela vossa contínua lembrança... da “nossa Chronique”. Este “nossa” dá-me muito prazer; recorda-me os
bons tempos, os muito anos em que preferistes, embora sobrecarregado de compromissos, fazer as
primeiras tentativas jornalísticas connosco. Era um sopro, a plenos pulmões, de zelo, de trabalho útil,
inteligente e já muito social”. Recorda que as “semanas sociais” conservam ainda um eco daquelas

1458
Cf. OS, 153-296. Convidamos o leitor a examinar os artigos reproduzidos no primeiro volume das Oeuvres sociales do P.
Dehon desde a p. 3 à p. 66, tirados de “O Reino” e os da página 67 em diante publicados também noutras revistas. Nos artigos
do segundo grupo, a imensa maioria dos escritos do P. Dehon, desapareceu já o tom apologético e domina um realismo social,
por vezes ainda actual nos dias de hoje.
1459
Cf. NQ XVIII, 122.
1460
NQ XVIII, 121-122.
1461
Cf. OS I, 684-686.
1462
R. Prélot, L’Oeuvre sociale du chanoine Dehon, 193.
1463
AD, B 21/2f.

283
“trombetadas”. Foi para mim uma graça do bom Deus ter-vos encontrado naquelas horas dos nossos
inícios, horas turbulentas, em que eram de temer veleidades generosas e erros podiam abundar e tudo
infectar de bons sonhos.. Eu confiava em vós, temendo um pouco as generosas, mas menos seguras
tentativas do nosso D. Lemire, de tão grande coração, às vezes inquietante...”.1464
Também Victor Berne rende homenagem ao equilíbrio do P. Dehon, à sua coragem ponderada, à
sua inteligente fidelidade às directivas pontifícias, à segurança da sua doutrina, apresentada com clareza e
com serenidade, evitando toda a polémica estéril.
No último caderno do seu Diário, nas últimas linhas escritas pouco antes da sua morte, o P. Dehon
recorda estas cartas recebidas de Victor Berne: “Recebo bonitas cartas de Victor Berene de Lião. Recorda-
me as minhas ardorosas campanhas na “democracia cristã” pela acção católica em França. Durante aqueles
anos eu escrevia o artigo de fundo naquela excelente revista. Era uma das formas da minha campanha
social abençoada por Leão XIII”.1465
São as últimas palavras do Diário do P. Dehon.

A LEI BRIAND E AS “ASSOCIAÇÕES CULTUAIS”

A lei Briand de 1908 forneceu ao P. Dehon a ocasião de escrever a sua última obra sócio-político-
religiosa: “O plano da maçonaria na Itália e na França... ou a chave da história nos últimos 40 anos”. São
acontecimentos que o P. Dehon viveu e sofreu, interpretando-os segundo uma sua visão particular da
história.
Para compreender o clima em que nasceu esta obra polémica do P. Dehon, é preciso reportar-se à
supressão da concordata em França, à completa separação entre a Igreja e o Estado e às famosas
“associações cultuais”.
Caído Combes (18.1.1905), retomou-se a questão da Concordata e da separação Igreja-Estado, sem
aquele espírito persecutório, de guerra civil-religiosa, que era típico do Combismo.
De facto, em Julho de 1905, a questão é discutida segundo o projecto da comissão Briand, que não é
inspirado no laicismo, mas na laicidade do Estado, que tende, como ideal, à separação, ao respeito e,
possivelmente, também à colaboração entre o Estado e a Igreja. Tanto M. Rouvier, primeiro ministro, como
A. Briand, não querem a destruição do catolicismo, mas só libertar o terreno, uma vez por todas, da questão
religiosa que polariza todas as energias políticas do Governo francês e dedicar-se a outros problemas
urgentes e, em primeiro lugar, ao social. As discussões prolongam-se durante três meses. A lei de supressão
da concordata e separação Estado-Igreja é promulgada a 9 de Dezembro de 1905.
A República não subvenciona nenhum culto. A Igreja de França ganha a sua plena liberdade e
depende só da Santa Sé. Para os bens móveis e imóveis, serão constituídas associações cultuais,
juridicamente reconhecidas, com um número variável de membros segundo a importância dos municípios.
Os artigos da lei implicavam problemas e consequências práticas muito complexas.
Num juízo sintético pode dizer-se que, para os católicos, a lei de separação tinha as suas vantagens
e os seus inconvenientes. O benefício mais importante era a liberdade: liberdade de reunião no plano
nacional, regional e diocesano; liberdade de escrever e de falar, observando a lei comum, sem intervenções
da autoridade civil ou ameaças de suspensão de ordenado; liberdade de escolha dos bispos pela Santa Sé;
liberdade de modificação das circunscrições eclesiásticas, de construção de igrejas e capelas sem
necessidade de licença especial do Estado.
Mas era uma liberdade paga por um preço muito elevado e não imediatamente preciada no seu
imenso valor. Recordo que estamos em 1905 e que a lei que suprimiu a concordata e separou a Igreja do
Estado não está conforme nem com a doutrina, nem com a práxis, nem com a vontade da Jerarquia. Os
parlamentares que a votaram são excomungados. O catolicismo já não é mais reconhecido como “a religião
da maioria dos franceses”; o clero perde todas as honras e prerrogativas oficiais; perde o contributo
financeiro do Estado (35 milhões de francos); as associações cultuais, com a maioria de membros leigos,

1464
AD, B 21/2f.
1465
NQ XLV, 66.

284
portanto subtraídos de facto à autoridade eclesiástica, são um perigo de contínuos conflitos, sem excluir as
tentativas cismáticas.
A situação é preocupante. Se a Igreja recusa as associações cultuais, perde, juntamente com o seu
património, calculado em 331 milhões de francos, também o direito de dispor dos edifícios de culto e de
habitação que o Estado pode destinar a outros usos.
Depois de decénios de aplicação da lei de separação, podemos afirmar que trouxe à Igreja de França
muito mais vantagens do que inconvenientes; mas em 1905 foi julgada pelos católicos como uma desgraça
e a Igreja negou-se a constituir as associações cultuais pelos perigos cismáticos que suponham, temores que
nós, hoje, julgamos exagerados; mas então, em 1905, na terra do galicanismo, se consideravam reais. A
perseguição combista era uma recente e crua realidade. A separação não aparecia como a última das acções
hostis, mas como o princípio de atropelos ainda maiores.
Mancomunados no seu pessimismo, equivocaram-se tanto os católicos intransigentes como os
liberais.
O espírito anti-religioso da revolução atinge o seu apogeu, como veremos, no combismo; agora os
governantes da Terceira República, resolvida a questão religiosa, querem que o clero exerça a sua missão e
que os católicos se tranquilizem. De facto, a este espírito de conciliação se inspira A. Briand, contrário a
qualquer medida de violência que se pareça, mesmo de longe, a perseguição.
A primeira reacção da santa Sé à supressão unilateral da concordata e à lei de separação é
duramente negativa. Esqueceram “um pormenor considerável” os vossos governos que “se gloriam de
conhecer os factos...: a existência de uma Igreja católica, da sua constituição e da sua cabeça, que agora
somos Nós”, assim diz Pio X a C. Ballaigue.1466 É um atropelo que outros Estados não devem imitar.
O pessimismo no Vaticano é alimentado por célebres religiosos expulsos de França: o assuncionista
P. Bailly, director de “La Croix”, o eudista Le Doré, o capuchinho Pio de Langogne, que alimentam a
política do tanto melhor quanto pior. São personagens com quem o P. Dehon tem uma certa
familiaridade.1467 Não faltam as pessoas afectadas por uma mal entendida francofobia, que se alegram pelas
dificuldades em que se debate a Igreja em França, agora pobre e humilhada na sua altiva “nobreza”
galicana, insidiada no seu primado missionário. Mesquinhices humanas, mas infelizmente reais. Também
os prelados mais abertos, como Mons. P. Gasparri e G. della Chiesa, temem que à lei de separação se
juntem artigos orgânicos piores que os napoleónicos. Há finalmente o pessimismo do Secretário de Estado,
Merry del Val, que em tudo vê trevas e ciladas: os bispos eleitos só pelo Papa poderão exercer o seu poder
pastoral? As associações cultuais não serão compostas por protestantes, mações, livres pensadores?
Inutilmente o arcebispo de Asbi, Mons. E. Mignot (o colega de vicariado de Leão Dehon) ressalta
com os inconvenientes, as inegáveis vantagens. É demasiado indulgente, segundo o Vaticano.
Para grandes males, grandes remédios, ainda que seja necessário também o heroísmo. Pio X está
muito decidido a dar ânimo aos pusilânimes bispos franceses, para que o Governo receba a lição que
merece... Bem vindos os tempos das catacumbas!
É claro que a situação está dramatizada. Ninguém pode duvidar da sincera coragem evangélica de
Pio X, mas nasce de uma errada avaliação dos homens do Governo francês (não são na sua maioria
fanáticos combistas) e de uma visão pessimista da situação religiosa.
Certamente que estamos nas antípodas da prudente e clara visão que Leão XIII teve dos difíceis
problemas político-religiosos do seu tempo, estamos longe da sua prudente expectativa, da sua
perseverante moderação.
O Episcopado francês está, na sua maioria, inclinado a aceitar, com o consentimento do Papa, a lei
de separação e as associações cultuais, contanto que não haja outras disposições que a piorem. Mas Pio X,
com a encíclica “Vehementer” de 11 de Fevereiro de 1906, condena o princípio da separação e reprova as
associações cultuais. É uma condenação doutrinal, que não prejudica, segundo a distinção da tese e da
hipótese (teoria e prática), a aceitação de facto da lei.
Antes de dar orientações práticas, Pio X espera informação do episcopado.
Depois das eleições de Maio de 1906, que reforçaram ainda mais os radicais e o seu anti-
clericalismo, mas sem fanatismos combistas, o Episcopado francês, com apenas dois votos contrários,
1466
A. Dansette, Histoire religieuse, 611.
1467
Cf. NQ XX, 26-27: Fevereiro de 1906; XXIII, 58: Abril de 1907.

285
adere à encíclica papal “Vehementer”, e condena a separação; porém, com 59 votos favoráveis e 15
contrários, aceita as associações cultuais na condição de nos seus estatutos se confiar a autoridade decisiva
ao pároco. São assim associações canónico-legais. A linha moderada que inspirou Leão XIII, prevaleceu,
tanto mais que a Santa Sé aceitou as associações cultuais, para a administração dos bens da Igreja, na
Alemanha.
Mas Pio X, diante da recusa da França de denunciar legalmente a concordata, promulga a encíclica
“Gravissimo” (10.8.1906), em que condena qualquer compromisso e também as associações cultuais.
O Episcopado francês encontra-se num embaraço angustiante: quer obedecer ao Papa e ao mesmo
tempo salvar os bens móveis e imóveis para as exigências do culto. A situação complica-se. Roma proíbe
até petição anual ao Estado, por parte do clero, para o uso dos lugares de culto: não se podem colocar os
párocos à mercê da autoridade civil!...
Então o episcopado francês pronuncia-se a favor de um contrato entre o Estado e a Igreja que
assegure ao clero o uso dos lugares se culto e o respeito da jerarquia. Briand procura com toda a sua
habilidade demonstrar que a separação não significa perseguição e que as associações cultuais existentes,
sem o consentimento dos bispos, não são fonte de cismas. Nos recursos dá sempre razão ao clero. Faz
aprovar uma lei (28 de Março de 1907) que autoriza as reuniões de culto nas igrejas sem a obrigação de
solicitá-las previamente. Os bens da Igreja são reunidos em sociedade mútuas eclesiásticas. Esta
proposição veio do deputado Don Lemire e, graças ao apoio de Briand e dos parlamentares católicos,
tornou-se lei a 13 de Abril de 1908. Os católicos intransigentes maliciam: “Grattez les mutuelles, vous
trouverez les cultuelles”1468 e Pio X, por seu lado, proíbe também as sociedades mútuas, instituídas por um
governo que legisla sobre questões religiosas e não tem em conta a Santa Sé e o Papa (17.5.1908).
Para Pio X, o bem superior de todos os bens é o de salvar a unidade, a jurisdição da jerarquia e,
sobretudo, o primado do Papa. Tudo isto é indiscutível; mas o uso dos meios intransigentes era mesmo o
melhor caminho? Roma não sacrificava demais a Igreja de França às exigências da Igreja Universal? Não
seria melhor atrasar as medidas extremas para conhecer mais a fundo as reais intenções do governo
francês? A expectativa, cheia de paciente prudência e de moderação tinha preservado Leão XIII de dar
passos errados, com inevitáveis incompreensões, conflitos, consequências dolorosas.
Entretanto, ao Conselho de Estado chegam contínuos recursos relativos aos actos de culto externo:
procissões, funerais, toque de sinos, etc. As respostas são muito equilibradas e, até, pouco a pouco, vão
constituindo uma legislação prática favorável ao clero.
Com o passar do tempo, em lugar da temida perseguição e destruição, o Episcopado, os párocos e o
clero em geral, podiam declarar-se satisfeitos e gozar plenamente da liberdade que a separação tinha dado à
Igreja.
Todavia, pela recusa das associações cultuais, a Igreja de França estava sem capacidade jurídica de
possuir bens. Por outro lado, a generosidade dos fiéis tendia a restabelecer um património para a Igreja. A
questão resolveu-se em 1924 com a instituição das associações diocesanas, legalmente reconhecidas.

“O PLANO DA MAÇONARIA NA ITÁLIA E NA FRANÇA”

Detivemo-nos largamente sobre esta complicada situação da Igreja de França porque o P. Dehon
viveu-a e sofreu-a, a tal ponto que sentiu a necessidade de dedicar-lhe um estudo: O plano da maçonaria
na Itália e na França... ou a chave da história de há quarenta anos.
O doloroso caso da separação Igreja-Estado e das consequentes associações cultuais, descrevemo-lo
com a maior clareza possível, segundo a intenção da nossa biografia que é apresentar, não só o P. Dehon,
mas também os tempos em que viveu. No prefácio da sua obra, escreve: “A oportunidade para este estudo é
um dos grandes factos da história contemporânea: a lei Briand e o cheque que lhe deu a firmeza de Pio X.
1468
A. Dansette, Histoire religieuse, 621.

286
“Acreditamos poder estabelecer, com factos e documentos seguros, que o plano da maçonaria é o
mesmo em França e na Itália; que a lei Briand era um dos resultados deste plano; que esta lei devia
preparar a ruína da Igreja mediante a destruição da jerarquia e com a divisão em grupos nacionais análogos
às igrejas protestantes...”.
Este trabalho tem a finalidade de “despertar a atenção dos católicos sobre o plano do inimigo. A
defesa não tem que regular-se sempre pelo ataque?...”.1469
Nós não fazemos comentários; observamos somente que o P. Dehon estava em plena sintonia com
Pio X que, com espírito guerreiro, certamente não favorável a uma serena visão da situação real, assim se
expressava a respeito dos católicos liberais: “Desejariam que tratássemos (os representantes do Governo
francês) com unguento, sabão e carícias... É preciso lutar com os punhos. Num duelo não se contam... os
golpes; golpeia-se como se pode, a guerra não se faz com a caridade... Como se Nosso Senhor não tivesse
sido terrível ou não tivesse dado o exemplo também nisto: Como tratou os fariseus, os semeadores de erros,
os lobos disfarçados de cordeiros, os comerciantes? Expulsou-os a golpes de látego”.1470 Pio X estava
animado por um sincero espírito bíblico, numa exagerada avaliação da realidade histórica!
A análise do P. Dehon começa, na primeira parte, pela Itália.
A famosa frase de Cavour: “Igreja livre em livre Estado” era, segundo o P. Dehon, um eufemismo
para subjugar ou submeter a Igreja ao Estado. Cavour defendia a inutilidade do poder temporal do Papa nos
tempos modernos, a liberdade de consciência, a liberdade de associação, o direito do Estado a dispor das
entidades religiosas e dos seus bens. A conclusão foi; a supressão do Estado Pontifício, a submissão das
entidades religiosas e a administração dos seus bens sob a vigilância dos Estado, como se gostaria de fazer
com as associações cultuais em França que levariam, segundo a intenção das lojas maçónicas, a uma
espécie de protestantismo, com igrejas nacionais dependentes do Estado.
O projecto das “associações cultuais” é já velho de quarenta anos; já tinha sido defendido pelo
mação Marcos Minghetti no parlamento de Turim em 1864 e teria tido como consequência a eleição dos
bispos e dos párocos por parte dos leigos; uma democratização da Igreja, contrária à sua instituição
divina...; tudo erros condenados pelo Syllabus de Pio IX: um raio que obrigou Minghetti a desistir das suas
“associações cultuais" que projectara.
A lei das garantias se 1871, que outorgava ao Papa a independência de qualquer Estado, inclusive
da Itália, é só uma medida temporal, necessária no plano internacional. Esta lei desaparecerá quando
existirem só igrejas nacionais.
Na Itália, como na França com a lei Briand, a finalidade é uma só: democratizar a Igreja,
“protestantizá-la”, dividindo-a em igrejas nacionais. Por isso fez bem Pio X ao condenar a lei Briand,
preparada pelos manejos da maçonaria europeia nos últimos quarenta anos. Nem todos os católicos viram
isto com clareza, tanto em Itália como em França; pelo contrário, algum católico francês julgou-se mais
iluminado que o Papa. O livro do P. Dehon tem a finalidade de levá-lo, amistosamente, a uma mais justa
avaliação dos factos.1471
A segunda parte do estudo do P. Dehon é dedicado à França. Apresenta a maçonaria como uma
contra-igreja universal, que quereria reduzir a verdadeira Igreja apenas a igrejas nacionais. O Grande
Oriente de França é uma diocese da maçonaria universal. O seu plano é a laicização das escolas, o divórcio,
a supressão dos conventos e, finalmente, a submissão da Igreja mediante as “associações cultuais”; mas
Briand perdeu a primeira “mão” (partida) graças à jogada de mestre de Pio X.
Aqui o P. Dehon apresenta todas as malfeitorias da maçonaria desde 1876 a 1905, maçonaria
secretamente guiada por uma potência ainda mais oculta, que quer a destruição do cristianismo, dos
organismos nacionais cristãos, começando pelas nações católicas; é a alta maçonaria judia que tem a sua
sede em Londres: “A França perdeu tudo ficando católica e tem tudo a ganhar tornando-se protestante; nós
confiamos no protestantismo” (Ives Guyot). A lei da separação proposta por Briand e aprovada a 9 de
Dezembro de 1905, as suas “associações cultuais”, aparentemente inofensivas, são etapas de uma evolução
que deve acontecer no interior da Igreja, independentemente da jerarquia. Tudo isto não foi compreendido

1469
OS III, 383.
1470
A. Dnsette, Histoire religieuse, 612.
1471
Cf. OS III, 387-402.

287
por muitos católicos e confiam em Briand e na sua lei. Briand tem um exemplo em Henrique VIII e
também a mesma finalidade: separar, de Roma, a Igreja da França.
Pio X não consentiu que os bispos, os párocos, o clero em geral, estivessem à mercê dos leigos
(“associações cultuais”) na disposição dos bens móveis e imóveis. “Virão outros atropelos; mas Pio X
salvou a nossa unidade moral e a nossa jerarquia divina e isto vale muito mais que os bens temporais”.1472
Admirável a doutrina e o espírito que a dita; mas a realidade e a evolução histórica foram bem
diferentes.

1472
Cf. OS III, 405-423.

288
Capítulo 20

Lutas pela vida

Ofensiva contra as Congregações religiosas - A lei sobre as associações – E. Combes: a perseguição religiosa – Casas embargadas e compradas
de novo – Novas fundações – Ruptura das relações diplomáticas com a Santa Sé – Questão de vida ou de morte – As acusações de Mons.
Duval – Um caminho longo e difícil – A intervenção de Pio X e a aprovação definitiva da Congregação – Os dehonianos na Itália – A divisão
em Províncias.

Em 1899, a situação política em França conhece uma mudança radical que acarretará anos de
sofrimentos e de lutas ao P. Dehon e à sua Congregação.
Os republicanos moderados, depois do fracasso dos católicos em constituir o grande partido da
“gente honrada” desejado por Leão XIII e depois das violentas disputas no caso Dreyfus, aliaram-se com
os radicais, dando origem a 21 de Junho de 1899 ao governo Waldeck-Rousseau.
Waldeck-Rousseau é um advogado. Tem a mentalidade do homem de leis; está dominado pela
grande e nobre responsabilidade de representar um Estado forte e justo para todos. Republicano moderado,
sempre se declarou respeitador da religião; todavia, ao estar no governo, é-lhe necessário o
anticlericalismo, para se assegurar do apoio dos radicais e dos socialistas.

OFENSIVA CONTRA AS CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS

Assim inicia a sua ofensiva contra as congregações, com consequências involuntariamente


desproporcionadas e tipicamente persecutórias. Ele mesmo reconhecerá ter feito “concessões de princípio”
das que se arrependeu amargamente, mesmo tratando de atrasar as suas aplicações práticas.
O seu objectivo não é a luta contra a Igreja, menos ainda a perseguição, mas o Estado forte,
juridicamente bem estruturado. Ora, para ele, as congregações têm um desproporcionado poder social;
possuem bens em abundância; são mais numerosas que em 1789; dependem de uma autoridade estrangeira,
o Papa; são politicamente poderosas e perigosas como se demonstrou nas consultas eleitorais;
despersonalizam, segundo ele, os seus membros com os três votos religiosos, contrários aos direitos do
homem e do cidadão; educam os jovens nos princípios da contra-revolução; quebram a unidade moral e
cultural do país; são como uma potência inimiga, incontrolável no Estado, nem sequer nomeadas na
Concordata. É, pois, necessário limitar a influência social das congregações: sairão favorecidos os bispos e
o clero secular.

A LEI SOBRE AS ASSOCIAÇÕES

Os primeiro a serem atingidos são os poderosíssimos Assuncionistas, dissolvidos por sentença da


magistratura a 24 de Janeiro de 1900. As outras congregações deverão pedir autorização no espaço de três
meses, sendo o Estado senhor da autorizá-las ou não (lei de 1.7.1901). Das 830 congregações, 615
apresentam o pedido, enquanto 215 não o pedem e vários religiosos, para subtrair-se às leis, secularizam-se
com o consentimento dos superiores.
E o P. Dehon e a sua Congregação foram directamente envolvidos ou, melhor dito, deixaram-se
envolver.
Depois dos agitados Capítulos Gerais de Fourdrain (1893) e de S. Quintino (1896), falecido já o
autoritário Mons. Duval a 23 de Agosto de 1897, a Congregação do P. Dehon gozava de um merecido

289
período de serenidade e de paz, tanto mais que o novo bispo de Soissons, Mons. Deramecourt, era de
carácter amável e equilibrado.1473
Em 1899, o quinto Capítulo Geral da Congregação, que se realizou em S. Quintino de 14 a 15 de
Setembro, tinha parecido uma tranquila reunião de estudos. Como em todos os Capítulos precedentes, o P.
Dehon, mesmo sendo Superior geral vitalício, apresentou as demissões, deixando livres os capitulares de
expressar secretamente o seu parecer ao primeiro Assistente Geral. As demissões foram recusadas.
A jovem Congregação tinha alcançado um notável desenvolvimento. Tinha casas e obras,
não só na França, mas também na Bélgica, na Alemanha, no Luxemburgo, na Holanda, na Itália (Roma) na
América latina (Brasil) e na África (Congo Belga).
O centro de gravidade já não era a França, providencialmente, dados os tempos borrascosos que se
anunciavam, dando razão ao P. Dehon, que tinha sempre lutado, para que o seu Instituto não ficasse
sufocado na pequena diocese de Soissons.
Dissemos que a jovem Congregação dehoniana se deixou envolver na campanha do governo
Waldeck-Rousseau contra as congregações.
Assim o diz o P. Dehon no seu Diário a 1 de Julho de 1901: “Desde há algumas semanas discutia-se
febrilmente no parlamento a lei das associações. A finalidade da maçonaria era atacar as congregações,
destruir um grande número delas e manter as outras debaixo da espada de Dámocles. De ambas as partes
(os favoráveis e os contrários à lei), fizeram-se grandes esforços de oratória. Os sectários acumularam as
acusações. A direita respondeu dignamente e o Parlamento conheceu um despertar de eloquência como não
se tinha visto mais desde o tempo das grandes discussões sobre a questão romana ou a liberdade de ensino.
A. de Mun foi superior a qualquer elogio; Gayraud esteve firme, documentado, persistente; Lemire pareceu
fraco. Outros católicos na Câmara e no Senado superaram-se a si mesmos. Alguns liberais, como Ribot,
deram um bom contributo. Viviani declarou guerra aberta à Igreja. Waldeck mostrou-se astuto advogado,
manifesto anticlerical na Câmara, legalista e galicano no Senado, onde dominavam os velhos
parlamentares.
Durante todo este tempo, em todas as casas religiosas, passavam-se as angústias da mais viva
inquietação, a angústia que precede a morte. Seremos autorizados a viver e a continuar o trabalho de
apostolado para a glória de Deus? Rezava-se e ofereciam-se todos os sacrifícios a Deus. Mas Deus queria
ou permitia a provação. A lei fatal foi votada a 1 de Julho (1901).
Nos conventos aumentava a desolação. As almas débeis desanimavam. Os tipos exaltados queriam
o protesto, a luta, uma posição que fizesse barulho. As almas sábias, em grande número, rezavam,
esperavam a regulamentação que deveria completar a lei e consultavam a Santa Sé.
Também entre nós dominava a angústia, a inquietação, uma série de projectos e de propostas
inconclusivas. Mas a cruz torna-se cada vez mais pesada. O P. Paulino (Delloue, que em 1896 sucedera a
P. Dehon como superior do Colégio S. João) julgou oportuno pedir a secularização para salvar o colégio.
Falou-me nisso a 5 de Julho, primeira sexta-feira do mês. Estava errado? Deus o sabe. Em todo o caso, para
mim, era ainda uma fase do “Consumatum est”. O Colégio S. João tinha sida o berço da Obra, eu tinha aí
vivido 20 anos, e depois de 24 anos o Colégio secularizava-se esperando o seu fecho! Era uma ferida que já
não sararia e que devia trazer-me muitas noites de insónia”.1474
A 8 de Setembro de 1901, o P. Dehon mandou ao presidente do Conselho, ministro do Interior e do
culto, o pedido de autorização para constituir-se em Congregação legalmente reconhecida.
Quiçá teria sido mais prudente diferir para outros tempos semelhante pedido. O P. Dehon, de facto,
não pedia a autorização legal da sua Congregação como se já estivesse constituída, mas como se estivesse
em vias de constituição. Podia fazê-lo, já que na lista das congregações da França que Waldeck-Rousseau
mandou fazer em 1900 e estava publicada em livro, os Sacerdotes do Coração de Jesus não apareciam,
como tão pouco figuravam no Ordo oficial da diocese de Soissons, onde eram considerados como simples
sacerdotes diocesanos.
A 17 de Dezembro de 1902, foi notificado ao P. Dehon o decreto de expulsão dos religiosos
estrangeiros, sendo a sua presença “um perigo para a segurança pública! Triste comédia! Também Nosso
Senhor era um perigo público nos tempos de Pilatos!... Muitos dos nossos mostraram pouca coragem. Isso
1473
Cf. NQ XXIII, 31: Junho de 1898.
1474
NQ XVII, 1-4: Julho de 1901.

290
causou-me tristeza. O seu ideal era a tranquilidade pessoal. Estão dispostos a pedir uma total secularização
antes que expor-se ao exílio. Temem a inactividade e o aborrecimento na Bélgica. A generosidade costuma
sempre ser rara”.1475 Muitos, de facto, pedem a secularização.
A deserção já havia começado alguns meses antes. Em Maio de 1902 o P. Dehon escreve no Diário:
“Muitos dos nossos vão-se embora. Alguns não fazem mais do que libertar-nos de um peso, a outros
lamento-os. A administração diocesana acolhe-os facilmente, quiçá demasiado facilmente... Entrego tudo
ao juízo de Deus”.1476
Alguns meses depois escreve: “Há ainda muitos pedidos de secularização entre os nossos. É bom
que a Obre se purifique das suas escórias. Porém, certamente, entre eles há alguns que tinham
verdadeiramente vocação. Perderam-na por sua negligência. Peço perdão a Nosso Senhor pela parte de
responsabilidade que posso ter nestas decisões. Não me ocupei bastante das suas almas, não os edifiquei
bastante”.1477

E. COMBES: A PERSEGUIÇÃO RELIGIOSA

Entretanto, a 3 de Junho de 1902, Waldeck-Rousseau, cansado e já minado pelo mal que o haveria
de levar ao túmulo em 1904, demite-se e designa como seu sucessor, equivocando-se completamente, a
Emílio Combes, que será um homem que atraiçoará todos os princípios de moderação.
Assim, do controlo de um Estado forte que se deve defender, inclusivamente de presumíveis
inimigos internos, passa-se ao Estado opressor. Trata-se de uma verdadeira ofensiva anti-católica que deixa
a França à mercê de laicistas fanáticos, que desencadeiam uma impiedosa perseguição religiosa, verdadeiro
frenesim paranóico de E. Combes.
Ele provém do catolicismo intransigente, estudou num seminário, perdeu a fé e chegou a ser médico
e presidente radical da câmara de Pons, a pequena cidade natal de sua mulher. Senador em 1885 e mação
desde há muito tempo, chega a ministro da educação no breve governo de L. Bourgeois (Novembro de
1895-Abril de 1896). Político astuto, embora medíocre, é um obstinado espiritualista e defende as suas
ideias com a paixão de um herege.
A sua é uma religião nacional de tipo roussoniano. Desta religião ele é o pontífice máximo. A quem
lhe faz observar que não pode reduzir toda a política de uma grande nação como a França à luta contra as
congregações, responde secamente: “Só para isto é que tomei o poder”.1478 O seu governo dura de 7 de
Junho de 1902 a 18 de Janeiro de 1905.
Segundo E. Combes, o ensino que dão as Congregações é nefasto para a França e deve desaparecer
totalmente. Mais de 2.500 escolas, dirigidas na sua maioria por religiosas, segundo a lei de 1886 sobre o
ensino primário e aplicado rigidamente por Combes, devem fechar as suas portas no prazo de 8 dias. Não
se admitem adiamentos. Em caso de resistência será a força pública que as fechará.
O P. Dehon escreve no Diário: “A 27 de Junho (de 1902), o ministro Combes emite o decreto de
expulsão contra as religiosas de 3.000 escolas que julgam estar em regra já que as suas casas mãe estão
autorizadas. É um brutal episódio da perseguição que grassa. As “lojas” declararam uma guerra sem quartel
ao ensino cristão”.1479
Em Julho de 1902, o P. Dehon vai a Paris com o fim de visitar algumas personalidades para saber o
que se pode esperar em semelhante situação: “Encontro a todos – escreve no Diário – sob a impressão de
uma penosa tristeza. Não se pode esperar nada de bom da parte dos sectários que nos governam. Irão até ao
fim”. A gente está como dividida em duas correntes: há quem cumprimenta o padre e quem o insulta.1480
Em Novembro de 1902, prepara-se para partir para Bruxelas. “Os meus colegas procurarão ficar
como sacerdotes diocesanos; pessoalmente estou demasiado comprometido como religioso. Empacoto os

1475
NQ XVIII, 36-37: 2-9.12.1902.
1476
NQ XVII, 142: maio de 1902.
1477
NQ XVIII, 29-30: Julho de 1902.
1478
ª Danstte, Histoire religieuse, 575.
1479
NQ XVII, 146: Junho de 1902.
1480
NQ XVIII, 28-29: Outubro de 1902.

291
meus papéis e alguns livros. Sinto um profundo desgosto pela vida presente... Fiat! Deus nos guia. Ofereço
o meu desterro ao Coração do bom Mestre”.1481 A 18 de Novembro parte para Bruxelas.
Entretanto, 11.000 escolas e hospitais não autorizados, pertencentes a congregações religiosas,
apresentaram o pedido de autorização. Combes consegue que o Conselho de Estado renuncie a examiná-
los; assim poderá ele recusá-los em bloco, ordenando o seu fecho dentro do ano 1903..
Existem também os pedidos de autorização, não já das escolas, mas das próprias congregações.
Combes recusa-os em bloco, menos a cinco, que se convertem em congregações toleradas.
Agora Combes age como um ditador: o que ele decide, as Câmaras ratificam. É claro que o
“pequeno padre” não teria tanto poder se não fosse sustentado pelos partidos e pela imprensa anti-clerical.
Foi inútil a intervenção de Waldck-Rousseau que, em Junho de 1903, acusa violentamente a
Combes de ter atraiçoado a sua política, entendida só como reforço do Estado, respeitando a liberdade e os
direitos de consciência da cada cidadão e também da Igreja quando ela respeita as leis do Estado.
A política persecutória de Combes obriga os religiosos a dispersarem-se. Os que ficam em França
secularizam-se e se procuram continuar a sua actividade, fazem-no evitando incorrer nos rigores da lei.
Os dramas íntimos de tantos religiosos e em especial das religiosas, de que nos ofereceu uma viva
evocação René Bazin na sua novela “Isolèe”, são muitas vezes angustiantes, dilacerantes e só conhecidos
por Deus. Combes, pelo contrário, exulta porque restituiu aos livres prazeres do mundo tantos frades e
freiras.
Estas são as primeiras impressões do P. Dehon quando em Dezembro de 1902 se estabelece em
Bruxelas depois de ter acompanhado a Bordéus dois padres que iam para o Brasil. “É o exílio. A minha
alma poderá encontrar a calma numa casa de observância regular. O projecto de lei que nos exclui de
França está depositado na Câmara (5 de Dezembro). Muitos dos nossos amigos: Gayraud, Grousseau, de
Mun oferecem-me a sua ajuda. Talvez possamos salvar um pequeno grupo de missionários diocesanos em
S. Quintino. Aceito a minha situação, mas não sem angústia. Parece-me de estar sem pátria, sem morada,
como o lendário hebreu errante. Não tenho nada à mão. Papéis e livros dispersos em Roma, em S.
Quintino, em Bruxelas. Fiat! Fiat! Nunca expiarei nunca bastante todas as minhas culpas, todas as minhas
fragilidades, todas as infidelidades à minha missão. Contanto que o céu não esteja fechado para mim”.1482
Na sua fúria de eliminar os religiosos e os seus conventos, o “pequeno padre” é surpreendido pela
escassa colaboração do clero secular. Inegáveis são as divergências entre o clero diocesano e os religiosos;
mas como se pode colaborar com um louco?
Todavia Combes não está ainda plenamente satisfeito. Para realizar todos os seus desejos seria
preciso desencadear uma guerra de religião e pôr a ferro e fogo toda a França. Particularmente delicada e
difícil é a exigência de fechar os grandes santuários marianos. O conselho radical dos Altos Pirinéus,
preocupado pelos danos financeiros, pede a Combes que não toque em Lourdes.
Os bens das Congregações dissolvidas são confiscados pelo Estado. O seu valor é estimado em
10.000 milhões de francos. Trata-se agora de comercializá-los, mesmo se há a excomunhão. A liquidação
reduz-se a uma venda ao desbarato e, às vezes, a um embuste. Em 1906 uma sexta parte dos bens tinha sido
vendida e tinha gerado só 32 milhões dos quais 17 foram absorvidos pelas despesas e honorários. Ficaram
só as migalhas. “Está a ser desonrada a minha obra” constata tristemente Combes.1483

CASAS EMBARGADAS E COMPRADAS DE NOVO

Muitas Congregações voltaram a comprar os seus bens e entre elas a Congregação do P. Dehon.
O P. Dehon recebera a notificação da recusa de autorização para o seu Instituto a 4 de Abril de
1903. “Com este mês – escreve o P. Dehon no Diário– começam os impropérios, as perseguições e as
comparências de tribunal em tribunal”.1484
O documento havia sido expedido pelo Ministério do Interior e do Culto a 1 de Abril de 1903.

1481
NQ XVIII, 31-32: Novembro de 1902.
1482
NQ XVIII, 34-35: Dezembro de 1902.
1483
A. Dansette, Histoire religieuse, 583.
1484
NQ XVIII, 50: Abril de 1903.

292
“Senhor:
em conformidade com as prescrições do artigo 18 da lei de 1 de Julho de 1901, vós fizestes o
pedido ao governo para obter para a vossa Congregação e para as obras que dela dependem, a autorização
prevista no artigo 13 da mesma lei.
Esta petição, examinada e apresentada à Câmara dos Deputados, foi recusada na sessão de 24 de
Março de 1903.
Tenho a honra, por isso, de notificá-lo desta denegação, recordando-lhe que, segundo o artigo 18
determinado pela lei de 1 de Julho de 1901, a sua Congregação fica dissolvida de pleno direito e todas as
casas têm de ser fechadas. Para a casa principal, são-vos concedidos 15 dias para proceder ao fecho e para
o abandono dos imóveis. As outras casas têm de ser fechadas e abandonadas no tempo fixado pelo Prefeito
do Departamento; tudo sob as sanções penais fixadas pelas leis do 1º de Julho e do 4 de Dezembro de 1902.
Receba, senhor, o protesto da minha mais elevada consideração”. Segue a assinatura de E. Combes,
presidente do Conselho, ministro do Interior e dos Cultos.1485
É evidente a falsidade. A Câmara era uma só pessoa: E. Combes.
O P. Dehon reage protestando energicamente. À falta de meios melhores, como bom advogado que
era, faz recurso a todos os meios que lhe oferece o procedimento legal: “Protesto e manterei o meu protesto
até à cadeia, se for necessário. O nosso Instituto está ainda em fase de preparação já que ainda não obteve
da Santa Sé o decreto de erecção (o P Dehon refere-se à aprovação do Instituto da parte da Santa Sé que
obterá em 1906). Pessoalmente não pedi ao Parlamento o reconhecimento de um instituto religioso já
existente, mas a autorização para fundar uma nova congregação, conforme a lei de 1 de Julho de 1901. A
denegação do Parlamento não pode comportar a dispersão e a confiscação dos bens. Nós não continuamos
os nossos projectos de organização na França. Isso é tudo”.1486
O P. Dehon pensou, num primeiro momento, pôr os seus religiosos ao dispor do bispo de Soissons,
como missionários diocesanos. Mas, por causa de uma circular de Combes, os párocos teriam tido
problemas. Foi então decidido que se refugiassem na Bélgica.
O P. Dehon ficou só na luta, em S. Quintino, com o P. Blancal, velho e doente, e com um irmão,
Martiniano Objois.
A 6 de Abril de 1903, o arcebispo de Malines, o cardeal Goossens, autorizava a mudança da casa
mãe de S. Quintino para Bruxelas.
De 6 a 8 de Abril de 1903, também as casas de Fayet, Lille e Fourdrain recebem a notificação de
clausura e expulsão.
É nomeado pelo tribunal um liquidador, na pessoa do Sr. Daulé. O P. Dehon enfrenta-se com ele e
declara-lhe, sem medir palavras, que “o seu trabalho, para além de ser um latrocínio, é também um
sacrilégio, que comporta a excomunhão. Daulé é um homem honrado e demite-se”.1487
É então substituído por um certo Lecouturier, um especialista em despojar conventos. É
acompanhado por um secretário “educado, sorridente, mesmo quando se lhe diz que o seu trabalho é um
latrocínio. É da raça dos franco maçons que, a sangue frio, fazem guerra a Deus e à Igreja. Calcula que terá
ainda 10 anos de trabalho nas liquidações, esquecendo-se de dizer: se Deus quiser”.1488
A 5 de Maio de 1903, o P. Dehon é citado pelo juiz de instrução Jourdan para ser interrogado sobre
o “delito de Congregação”. Dos dois o mais incomodado é o juiz. Os agentes de polícia animam
confidencialmente o P. Dehon: “Toda a cidade está consigo. Combes estica demasiado a corda, não pode
durar”.1489 O juiz parece convencido pelas razões do P. Dehon. Recorrerá ao procurador e este ao ministro.
É facilmente previsível a resposta. A 13 de Junho de 1903 o liquidador, acompanhado pelo juiz de
paz, apresenta-se na casa do Sagrado Coração, na ausência do P. Dehon, para fazer o inventário e colocar
os selos. Encontra o velho e doente P. Blancal. O comissário da polícia enfrenta-o de maus modos:
“Tínhamos dado 15 dias, porque é que estais ainda aqui? Pretendeis porventura o regresso da
juventude?”.1490
1485
Cf. A. Ducamp scj, Le Père Dehon et son Oeuvre, 423.
1486
NQ XVIII, 50-51: Abril de 1903.
1487
NQ XVIII, 53: Abril de 1903.
1488
NQ XIX, 97-98: Agosto de 1905.
1489
NQ XVIII, 54-55: Maio de 1903.
1490
NQ XVIII, 59: Junho de 1903.

293
A 16 de Junho, feito o inventário, colocam-se os selos e ficam confiados, com os móveis, à custódia
do P. Dehon. Tinha-o conseguido do tribunal para não se encontrar a todo o momento com gente estranha
em casa.
A 19 de Junho é a festa do Coração de Jesus e o P. Dehon celebra o seu 25º aniversário dos seus
primeiros votos (em 1878 a festa do Coração de Jesus tinha sido a 28 de Junho): “De há trinta anos para cá
não se teve uma festa tão pouco solene. Estou só em casa. Convido o P. Matias (Legrand) para o meio dia.
Com dificuldade consigo organizar uma função vespertina para 5 ou 6 pessoas... Não é um jubileu de
alegria, mas de penitência. Peço perdão a Nosso Senhor por tantas minhas infidelidades”.1491
Entretanto, dois juizes, Jourdan e Dorigny, procuram o corpo do delito: “Uma Congregação
organizada, que vive com bens comuns... mas não se encontra”.1492 A busca durou quase 20 meses.
Finalmente, a 24 de Outubro de 1904 chega inesperada a sentença: ordem para não proceder; a
Congregação não se pode encontrar...
O liquidador Lecouturier quer proceder a todo o custo: não quer deixar fugir o ganho; quer liquidar
uma congregação que legalmente não existe.
O processo tem lugar em Janeiro de 1905. O advogado do P. Dehon, Marechal, mantém a tese que
já conhecemos: “É uma Congregação que se está formando”. Não obteve ainda da Santa Sé “uma
aprovação definitiva. O pedido dirigido ao Estado refere-se só à fundação de um novo instituto religioso,
não ao reconhecimento de uma Congregação já formada...”.1493
É a verdade pura e simples. O advogado do liquidador, um certo Paulo Faure de Paris, apresenta
todos os lugares comuns contra as congregações religiosas e cita factos e circunstâncias para provar que a
do P. Dehon é uma Congregação cujos membros são verdadeiros religiosos. Da sua parte coloca-se
também o procurador na sua requisitória.
O juiz Vitry, mesmo se não é mação, está sob a influência das lojas. Estaria inclinado a dar razão ao
P. Dehon; mas teme as reacções negativas de uma certa opinião pública. Está velho, no final da sua
carreira, não quer deitar a perder um merecido descanso. Por isso faz a escolha de Pilatos. A 7 de Abril de
1905 pronuncia a sentença: o jardim, a capela, a cozinha e uma pequena casa ficam para o P. Dehon,
enquanto a Casa do Sagrado Coração, com a escola de Fayet, são adjudicadas ao liquidador.
O P. Dehon prepara um alojamento na húmida casota do jardineiro e espera que venham expulsá-lo
da casa do sagrado Coração onde se encontra, quase moribundo, o P. Blancal.
A 16 de Junho de 1905, apresenta-se um oficial judiciário da parte do liquidador e enfrenta-se com
o P. Dehon, censurando-o por não ter levado embora o P. Blancal. O P. Dehon responde-lhe no mesmo
tom: o P. Blancal não sairá da Casa do Sagrado Coração se não for com a expulsão notificada por escrito.
O oficial judiciário vai consultar o procurador legal e traz a ordem por escrito. Então o P. Dehon faz
transportar o pobre enfermo para Fayet. Agora o oficial judiciário pode tomar posse da casa.
“O diário de S. Quintino” publica um protesto do P. Dehon e do P. Lobbé, mencionado também por
“La Croix” e por “L’Univers”.
O P. Dehon retirou-se para o seu tugúrio para continuar a lutar. Um dia vê o liquidador, que
acompanhado por outras pessoas, tenta um passeio, entrando no jardim. “Vinde ver! – diz o P. Dehon a um
religioso que está com ele – Vou dar-lhe uma lição!”. Enfrenta sem mais preâmbulos o grupo e diz-lhes
secamente: “Senhores, com que direito vos permitis entrar no meu jardim?” –“Mas, reverendo...”. “Não há
reverendo nem meio reverendo! Estou em minha casa... Saí imediatamente... Não me obrigueis a fazer-vos
expulsar”. O incidente está encerrado. “Já não se repetirá mais” diz o P. Dehon já sereno.1494
Em Outubro (1905), os liquidadores preparam-se para a venda. “Cercam o pátio com um grande
muro. Cada um daqueles tijolos me pesa no coração. Os pobres operários sentem vergonha do que fazem;
mas não são eles os responsáveis. Decido colocar por cima do muro um tapume onde mando pintar este
letreiro: “Não roubarás os bens alheios”. É preciso despertar as consciências dos ladrões e afastar os

1491
NQ XVIII, 61: 17-19.6.1903.
1492
NQ XIX, 21: Outubro de 1904.
1493
NQ XIX, 50-51: Janeiro de 1905.
1494
Cf. A. Ducamp scj, Le Père Dehon et son Oeuvre, 432.

294
receptadores”.1495 “Assim – conclui o P. Dehon – estou certo que nenhuma pessoa do lugar se atreverá a
comprar a casa da qual o rev. Dehon foi expulso”.1496
A primeira hasta, marcada para 22 de Dezembro de 1905, ficou deserta. Aos anúncios dos
liquidadores colados nas paredes de S. Quintino, o P. Dehon respondeu com manifestos de protesto, muito
apreciados pela população, assinados Lobbé-Dehon-Legrand.
Uma nova hasta foi anunciada para 2 de Fevereiro de 1906. Baixou-se o preço para metade. O P.
Dehon encontra-se em Roma, mas segue de perto os acontecimentos e está sempre disposto à luta contra a
injustiça sofrida. Manda afixar um novo cartaz nas paredes de S. Quintino com um “apelo à consciência
pública”,1497 assinado: Lobbé-Dehon-Legrand.
Na tarde de 2 de Fevereiro de 1906, um telegrama anuncia-lhe que a Casa do Sagrado Coração foi
adjudicada ao P. Dehon por 10.050 francos, enquanto a escola de Fayet foi comprada por um amigo do P.
Legrand por 2.000 francos. Ao contrário, perdeu-se a bela propriedade de Fourdrain.

NOVAS FUNDAÇÕES

A perseguição e a expulsão tiveram as suas inegáveis vantagens. Como aconteceu na Igreja


primitiva, quando por uma “violenta perseguição” os crentes “se dispersaram nas regiões da Judeia e da
Samaria” (Act. 8,1) e difundiram o Evangelho, assim os religiosos do P. Dehon difundiram a Congregação
no estrangeiro.
Em 1903, têm lugar as fundações de Aulnois-Quévy (Bélgica), do noviciado de Fünfbrunnen
(Luxemburgo), da escola apostólica de Manage (Bélgica), para onde se transferiu a escola de S. Clemente
de Fayet; abre-se a missão de Santa Catarina no Sul do Brasil.
Em 1904, os religiosos do P. Dehon estabelecem-se na Checoslováquia e abrem, na Bélgica, a
escola apostólica de Tervuren. Em 1907, fundam a escola apostólica de Albino (Itália) e iniciam a missão
de Finlândia.
Assim a perseguição de Combes, em lugar de sufocar e aniquilar a Congregação, tinha-a
revitalizado, podando-a, mediante a secularização de muitos religiosos, de tantos ramos, uns sãos e outros
mais ou menos secos, libertando-a das estreitezas da diocese de Soissons e da França em geral, com a
internacionalização.

RUPTURA DAS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS COM A SANTA SÉ

O desprezo de Combes e do seu governo sectário pela Igreja manifesta-se também com a ruptura de
relações diplomáticas com a Santa Sé.
As disputas entre o Governo Francês e o novo Papa, Pio X, que detesta a política e certamente não é
tão diplomático como Leão XIII, multiplicam-se até à ruptura das relações diplomáticas a 20 de Julho de
1904.
Combes está satisfeito: Sonha celebrar a vitória completa com a supressão da Concordata e a
definitiva separação entre a Igreja e o Estado.
Porém o “pequeno padre” terá que sair de cena sem esta ambicionada coroa, demitindo-se a 18 de
Janeiro de 1905 após o escândalo dos “registos”. Tanto na administração civil como no exército, todos
estão secretamente referenciados em ficheiros segundo as suas ideias e práticas político-religiosas. Faz
carreira e recebe favores aquele que é favorável a Combes e ao seu Governo. Os católicos são franceses de
segunda categoria como “hilotas” que nada podem esperar.
É um escândalo que deixa enjoados os próprios partidários de Combes. Millerand classifica o
Governo do “pequeno padre” como “um regime abjecto, fundamentado sobre os voluntários da delação”;

1495
NQ XIX, 119-120: Outubro de 1905.
1496
Cf. A. Ducamp scj, Le Père Dehon et son Oeuvre, 433.
1497
NQ XX, 20: janeiro de 1906.

295
para Clemenceau é “um jesuitismo ao contrário, onde se dispara traiçoeiramente a partir dos esconderijos
de um bosque”.1498
Assim o fanatismo e a mania persecutória de Combes naufragam no nojo da sociedade e na
ignomínia da delação. Mas, poucos meses depois, a Concordata será suprimida pela França,
unilateralmente, a 9 de Dezembro de 1905.
Para os bens móveis e imóveis da Igreja, constituir-se-ão associações cultuais que Pio X acabará por
recusar, reduzindo assim a Igreja da França à pobreza mais absoluta; mas com um bem superior a qualquer
valor humano: a liberdade. Agora só depende da Santa Sé.
Já tratámos este problema falando do último escrito sócio-político do P. Dehon: O Plano da franco-
massonaria na Itália e na França... ou a chave da história nos últimos quarenta anos.

QUESTÃO DE VIDA OU DE MORTE

Terminada a luta com o governo de Combes para a sobrevivência da Congregação do P. Dehon em


França, temos de nos ocupar de outra luta, ainda mais importante, por se tratar da vida e estabilidade do
Instituto na Igreja.
Retrocedamos por isso com o leitor aos últimos anos do oitocentos. Era absolutamente necessária a
aprovação da Congregação por parte da Santa Sé. Era uma questão de vida ou de morte.
Não exagera Mons. Philippe nas suas “Memórias” quando diz: “Foi Pio X quem salvou a
Congregação”.1499
Em Janeiro de 1899 o P. Dehon tinha começado a recolher dos bispos cartas de recomendação para
a aprovação definitiva da Congregação. “Chegaram em grande número” escreve o P. Dehon no Diário.
“Algumas são de uma extrema benevolência. Porém não está tudo feito. A aprovação chegará quando Deus
quiser”.1500 Quando o P. Dehon introduz o seu pedido em Roma, levanta-se “uma espessa nuvem da parte
do Santo Ofício que se preocupa de novo das nossas dificuldades de 1884”.1501
O Santo Ofício, que tinha escassas informações sobre o P. Dehon e a sua Congregação, pensava que
o Fundador se baseava ainda, para a sua Obra, sobre as luzes de oração ou pretensas revelações da Ir. Maria
de Santo Inácio. O P. Dehon e os seus religiosos tinham observado as prescrições de não manter nenhum
contacto com as Servas do Sagrado Coração? Mons. Thibaudier tinha dado, de viva voz, amplas
informações ao Santo Ofício em Janeiro-Fevereiro de 1884 quando tinha ido a Roma para obter a
reconstituição da suprimida Congregação do P. Dehon.
Não havia nada de escrito. Daí as preocupações do Santo Ofício, as suas duras intervenções e a
consequente situação incómoda para o P. Dehon e a sua Obra. Esta situação ressalta com clareza de uma
carta do P. Dehon de 3 de Janeiro de 1892 em que solicita ao Santo Ofício de retomar o nome de Oblatos
do Coração de Jesus e de uma carta do Card. Monaco a Mons. Duval de 12 de Janeiro de 1892.1502
Em Roma não se está tranquilo. O P. Dehon pede a Mons. Duval, a 18 de Fevereiro, que certifique
com uma carta ao Santo Ofício que ele e os seus religiosos só mantêm com as Irmãs Servas aquelas
relações aprovadas por Mons. Thibaudier como necessárias para o bom funcionamento das obras e para
evitar conversas caluniosas ou inúteis escândalos.
Como o P. Dehon tem pouca esperança de que Mons. Duval escreva uma carta assim, sugere que a
escreva Mons. Mathieu, já vigário geral de Mons. Thibaudhier, à qual Mons. Duval acrescente algumas
linhas de confirmação. Todavia, “preferiria – acrescenta – uma pequena carta de vossa excelência. É
melhor prevenir um acontecimento do que ter de lhe dar remédio. O Santo Ofício é muito rigoroso.
Actualmente em Roma conta muito a opinião dos Bispos. Vossa Excelência pôde apreciar a piedade
autêntica das nossas Irmãs e o seu bom espírito. Espero que Vossa Excelência não lhes negará este
testemunho necessário para Roma”.1503
1498
A. Dansette, Histoire religieuse, 603.
1499
Philippe (Mons.) scj. “Ricordi”, 284.
1500
NQ XIII, 121: Janeiro de 1899.
1501
NQ XVII, 40: Novembro de 1901.
1502
Cf. Dossier de l’Evêché de Soissons, 17-19: AD, B 24/15.2.
1503
Dossier de l’Evêché de Soissons, 24: AD, B 24/15.2.

296
A carta escreveu-a, de facto, mons. Mathieu, arcipreste de S. Quintino e, no dia 24de Fevereiro de
1892, Mons. Duval acrescenta algumas linhas, tranquilizadoras para o P. Dehon: “Desde há dois anos
governo a Diocese de Soissons e não notei nada digno de reprovação nas relações entre as duas
comunidades. Visitei muitas vezes a comunidade das Irmãs por ocasião de tomadas de hábito ou de
profissões. Sempre fiquei grandemente edificado da sua piedade, dedicação e espírito de sacrifício. Proibir
qualquer relação entre as duas comunidades seria prejudicial para os Padres Oblatos do Coração de Jesus,
cujas casas não podem funcionar sem a colaboração das Irmãs. A proibição abriria a porta às mais odiosas
suspeições e provocaria um escândalo. Este é o meu parecer”.1504 O P. Dehon podia dar-se por satisfeito.
Mas satisfeito não estava o Santo Ofício que, a 17 de Maio de 1892, renova as disposições do
decreto de supressão dos Oblatos de 1883 e endurece-as.
O P. Dehon e a sua Congregação encontram-se de novo, de repente, no agitado mar de uma ameaça
de supressão.
Numa nobre carta de 16 de Junho de 1892 a Mons. Duval, o P. Dehon sublinha que, tanto as Servas,
como ele pessoalmente, obedeceram em tudo às disposições de Roma de 1883-84 e não tomaram nenhuma
iniciativa sem o consentimento de Mons. Thibaudier: “Estamos sempre totalmente dispostos a obedecer
com toda a docilidade como no passado”.1505
Mons. Duval faz suas as justas afirmações do P. Dehon e escreve a 20 de Junho de 1892 ao Cardeal
Mónaco, Prefeito do santo Ofício, uma carta em que solicita que se conserve o nome de “Sacerdotes do
Coração de Jesus”, informa-o acerca do que se fez a respeito do P. Captier e da Ir. Maria de Santo Inácio e
como se comportou o P. Dehon, depois das disposições de decreto de 1883. Pede que o P. Dehon possa ir
celebrar duas vezes por mês a missa às Servas, para evitar o escândalo de odiosos falatórios e que as Irmãs
continuem com o seu serviço nas casas dos Padres, já que em tudo isso não há nenhum motivo de
preocupação.1506

AS ACUSAÇÕES DE MONS. DUVAL

Estamos no início de 1897.


Como se não bastassem as dificuldades provenientes do Santo Ofício, Mons. Duval manifesta as
suas prevenções e acusações contra o P. Dehon e a sua obra, escrevendo-lhe uma longa carta de
recriminações.
É um autêntico processo, amadurecido ao longo de vários anos de desconfiança. Mons. Duval é
rude na sua franqueza; mas também o P. Dehon lhe responde com pontual e respeitosa franqueza.
Segundo Mons. Duval, a Congregação do P. Dehon não tem nada de sólido; não tem vida
comunitária, não tem formação religiosa, teológica, literária; é demasiado fácil em admitir vocações e em
despedi-las; motiva a intervenção do Santo Ofício; não cumpre o dever da adoração e da reparação, etc. etc.
O P. Dehon responde com calma, citando números e factos.
Nas acusações de Mons. Duval, revemos as acusações dos fracassados contestatários do Capítulo
Geral de 1896, capitaneados pelo P. Blancal.
Produziu-se sem dúvida uma desilusão nos ambientes eclesiásticos de Soissons ao constatar o
ascendente do P. Dehon sobre a imensa maioria dos seus religiosos e o progressivo desprestígio daquele
que, na Cúria, goza de um “prestígio ilimitado” (o P. Blancal).
Provavelmente o P. Dehon pediu a Mons. Duval uma carta de recomendação para a aprovação
pontifícia da Congregação por parte de Roma. A resposta negativa do Bispo apoia-se em vários motivos,
dos quais o P. Dehon demonstra facilmente a falta de consistência, numa nobre carta, enviada de Roma a
19 de Março de 1897, na qual expõe a objectiva situação da Congregação. Trata-se de uma panorâmica
muito preciosa e de um testemunho muito vivo da honradez moral do carácter do P. Dehon, para poder
deixar de ser citado. O P. Dehon escreve:

1504
Dossier de l’Evêché de Soissons, 24: AD, B 24/15.2.
1505
Dossier de l’Evêché de Soissons, 27-28: AD, B 24/15.2.
1506
Dossier de l’Evêché de Soissons, 29-31: AD, B 24/15.2.

297
“Vejo com pena que foi informado por pessoas que, ou não nos conhecem, ou não nos são
benévolos. A nossa situação geral é muito melhor do que Vossa Excelência pensa. Responderei com a
maior lealdade aos diferentes quesitos que me propõe.

1. A Congregação não soube realizar ainda nada de sólido.

- O Colégio S. João tem 20 anos de existência. É a única sólida instituição escolar livre na
diocese. A de Chauny fechou, a de Laon o mesmo, a de Vervins agoniza. O S. João continua bem e cada
ano diminui as suas dívidas. A casa do Sagrado Coração tem 19 anos de existência e está sem dívidas;
Sittart, 14 anos; Lille, 13 anos; Val-de-Bois, 10 anos; Clairefontaine, na Bélgica, 8 anos; Marsanne na
Drôme, 7 anos; Roma, 6 anos; etc. Muitas Congregações foram aprovadas antes de terem tantas obras
sólidas.

2. Onde está a casa-mãe?

- Evidentemente em S. Quintino: Mas poderá ser transferida para Roma, com o consentimento da
Santa Sé. Os nossos religiosos alemães e holandeses assim o desejam.

3. Não tem aglomerados (comunidades).

- O S. João tem três sacerdotes; O Sagrado Coração, 8; Fayette, 6; Clairefontaine, 6; Sittard, 5;


Lille, 5; Bruxelas, 4; etc. As nossas regras exigem só um mínimo de três religiosos por casa para constituir
comunidade.

4.Falta a formação religiosa.

- Os nosso candidatos fazem dois anos de noviciado em Sittard. O Mestre de noviços é um sacerdote

muito estimado, doutor em Teologia. (Era o P. Andé Prévot).

5. Falta a formação teológica

- Temos 18 estudantes em S. Sulpício. Serão estes os que carecem de formação? Temos 5 em


Roma, na Universidade Gregoriana; 7 em Lille, na Universidade Católica; 14 em Luxemburgo, onde
seguem os cursos do seminário, um seminário “élite”, equivalente a uma faculdade teológica, porque
confere o doutoramento com o consentimento do Papa. Que diocese dá uma formação teológica melhor aos
seus seminaristas? Julgam-se em Soissons os nossos 80 escolásticos em base dos dois ou três que seguem
um pequeno curso em S. Quintino. É justo?

6.Falta formação literária.

- As nossas três escolas apostólicas de Fayet, Sittard e Clairefontaine funcionam bem. Fayet dá-nos
bacharéis e já deu quatro licenciados em letras. Será que os seminários menores funcionam melhor?

7.Onde está a sede da vossa adoração e reparação?

- Temos a adoração do Santíssimo Sacramento exposto todos os dias no noviciado de Sittard (ou
seja a adoração por turnos). Em S. Quintino não se pode fazer, mais do que a simples bênção eucarística
(depois da meia hora de adoração). Uma casa de adoração que dure todo o dia requereria pelo menos 30
adoradores. Posso empenhar 30 Padres na Casa do Sagrado Coração? Que fariam?
Quanto à reparação: faz-se por meio das nossas orações e de toda a nossa vida interior...

298
8.Os vossos religiosos não perseveram e deixam a Congregação.

- Não mais que noutros lugares. Aceitámos para a tomada de hábito, em 20 anos, a 350 indivíduos.
Continuam 200, ou seja 60%. De estatísticas publicadas, resulta que nos jesuítas perseveram 25%; nos
dominicanos, 12%; nos trapistas, 4%. Não somos portanto os últimos em perseverança!

9. Todos os que se apresentam são admitidos.

Não é verdade, embora possa admitir que no passado tenha havido muita facilidade a que o último
Capítulo (1896) deu remédio.

10. As vossas Constituições são provisórias por muito tempo.

- As Constituições sempre são provisórias até a terceira aprovação. As nossas foram submetidas à
Santa Sé em 1887 e corrigidas. Vivemos segundo estas Constituições. A Santa Sé terá que revê-las ainda
duas vezes.

11. E o assunto do Santo Ofício?

- Não há nada de humilhante. O Santo Ofício declarou formalmente que só julgava as revelações da
Ir. Maria de Santo Inácio. Declarou que não podia aceitá-las como revelações, embora fossem exactas sob
o ponto de vista teológico. Se as tivéssemos apresentado como luzes de oração poderiam ter sido aceites.

12. Vós encontrais no santo Ofício uma fortíssima oposição.

- Não temos nenhuma oposição. (Na realidade não havia novos motivos por parte do Santo Ofício.
As oposições existentes fundavam-se nos factos que determinaram a supressão do Instituto em 1883 e aos
quais tanto o P: Dehon como as Servas tinham dado remédio, obedecendo às disposições do Santo Ofício.
Infelizmente faltavam os relatórios escritos dos Bispos de Soissons, como a própria Roma lamentava, que
testificassem esta pronta obediência). Somos muito bem considerados em Roma por todos, incluso o Santo
Ofício. Este não colocou nenhum obstáculo à nossa primeira aprovação em 1888. Pede só que não
retomemos o nome de Oblatos, que lembra as revelações.

13. Acaso Mons. Thibaudier não quis que fosseis simples sacerdotes missionários?

- Mons. Thibaudier considerou-nos como Congregação diocesana até à primeira aprovação. É o


direito comum. Ele mesmo pediu à Santa Sé, com outros 25 Bispos, que nos tornássemos uma
Congregação geral em 1887.

14. E as dificuldades pesoais?(do P. Dehon)

- Essas datam de há vários anos. O nosso Capítulo Geral julgou em Setembro (1896) que não se
deviam mais ter em conta.

Se pensei pedir a aprovação é porque aqui (em Roma), me animam a isso. O Santo Padre disse-me:
“Espero que tereis em breve a aprovação” O cardeal prefeito da Congregação dos Bispos e dos Religiosos,
e também o secretário disseram-me a mesma coisa.
Deram-nos já, por outro lado, com diversos indultos, o equivalente à aprovação. Temos uma casa
autorizada em Roma; temos também um Ordo particular; podemos incorporar membros e fazê-los ordenar
ad titulum mensae communis, a quocumque episcopo...

299
Facilmente obteria 25 cartas episcopais de recomendação, mas não as pedirei antes de ter a de
Vossa Excelência, que no-la dareis quando quiserdes. Faço apelo à vossa benevolência...
Vosso humilhíssimo e devoto filho, Leão Dehon”.1507
Como se vê, o P. Dehon é muito bom, mas sabe ser também muito enérgico.

UM CAMINHO LONGO E DIFÍCIL

A 23 de Agosto de 1897, Mons. Duval morre em Soissons. Sucede-lhe Mons. Agostinho Vítor
Deramecourt, nomeado a 22 de Março de 1898 e consagrado Bispo de Soissons a 4 de Junho de 1898.1508
A 30 de Outubro de 1898 o P. Dehon escreve ao novo Bispo de Soissons, Mons. Deramecourt:
“Desejo que Vossa Excelência me dê uma carta benévola para a aprovação do nosso Instituto.
Ordinariamente a carta é endereçada ao Papa e o Bispo atesta que o Instituto opera o bem na sua diocese e
veria com gosto a aprovação solicitada”.1509
É um necessidade para as obras do P. Dehon: para a missão do Congo, pelo facto de que, segundo a
praxe, transcorrem ordinariamente 5 anos entre o decreto de louvor e a aprovação definitiva, enquanto que
para a Congregação do P. Dehon já passaram quase 10 anos (Fevereiro de 1888-Novembro de 1897). O
Papa nomeou-o consultor de uma congregação romana e muitos cardeais são do parecer de que é necessária
a aprovação do Instituto.1510
As relações do P. Dehon com Mons. Deramecourt são boas, dado também o carácter conciliador do
prelado. “O nosso novo Bispo manifestou logo as suas boas qualidades: bondade, equilíbrio e grande
facilidade de palavra”.1511
A 1 de Fevereiro de 1899, por ocasião do envio de dois breves pontifícios para o título de cavaleiro
de S. Gregório Magno, pedidos em Outubro de 1898, o P. Dehon escreve de Roma, muito discretamente, a
Mons. Deramecourt: “Chegou o momento de pedir-vos uma breve carta para a nossa aprovação? Pedi-a aos
bispos que nos conhecem e responderam com a maior benevolência”. As cartas são já 29. Várias são de
cardeais e de arcebispos, e cita várias passagens. Acrescenta além disso, para seu conhecimento, cópia das
cartas do Cardeal Vigário de Roma e de Mons. Mignot, Bispo de Fréjus. Escreve o P. Dehon: “O
testemunho de Mons. Mignot pode ajudar Vossa Excelência a agir segundo consciência. Ele conhece a
força (os aspectos positivos) e a fraqueza da Obra”.1512
O P. Dehon, incapaz de duplicidade e sempre fiado na bondade das pessoas, enganava-se a
propósito de Mons. Mignot. O Bispo de Soissons, Mons. Deramecourt, tinha escrito a Mons. Mignot para
que ter o seu sincero parecer e tinha recebido sobre o P. Dehon e a sua Obra uma resposta desfavorável do
Bispo de Fréjus, a 8 de Março de 1899.1513
O P. Dehon necessita absolutamente da carta de Mons. Deramecourt, visto que na Diocese de
Soissons nasceu a Congregação e aí tem o maior número de obras. Chega até ao extremo de sugerir-lhe as
palavras: “Espero ao menos de V. Excelência uma breve carta, por fria que seja. Poderíeis dizer mais ou
menos isto: Os Sacerdotes do Sagrado Coração solicitam o nosso testemunho em favor da sua aprovação.
Estando eu em Soissons só desde há alguns meses, pessoalmente conheço-os pouco. Posso testemunhar,
todavia, que têm em S. Quintino um colégio, uma casa de missionários e uma escola apostólica, em que
trabalham uns 25 sacerdotes com boa vontade em favor das almas...”1514
Menos que isso não se podia pedir do Bispo de uma diocese onde a Congregação do P. Dehon
empenhava, apostolicamente, a maior parte das suas forças.
Podemos compreender a situação de incómodo em que se encontrava o novo Bispo de Soissons
que, provavelmente, nada tinha contra o P. Dehon e a sua Obra.. Esta incomodidade revela-a também
1507
Cf. AD, B 24/6.
1508
Cf. Dossier de l’Evêché de Soissons, 45-46.
1509
Cf. Dossier de l’Evêché de Soissons, 47-48.
1510
Cf. Dossier de l’Evêché de Soissons, 48-52.
1511
NQ XIII, 31: Junho de 1898.
1512
Dossier de l’Evêché de Soissons, 54-57.
1513
Cf. H. Dorresteinj scj, Vita e personalità di P. Dehon, 682.
1514
Dossier de l’Evêché de Soissons, 57-58

300
Mons. Mignot na sua carta de 8 de Março de 1899: “Fiquei muito embaraçado em relação ao P. Dehon e
penso que vós estejais ainda mais do que eu”.1515 As dificuldades de Mons. Deramecourt são expressas por
Mons. Mignot nas acusações de imoralidade (que em relação ao P. Dehon eram calúnias) propaladas entre
o clero de Soissons e que dividiam os espíritos na diocese acerca do P. Dehon e da sua Obra. Conselho
final de Mignot: Mons. Deramecourt: espere ainda um pouco antes de dar a sua carta de recomendação.
O Bispo de Soissons seguiu logicamente o autorizado conselho do seu entendido confrade no
Episcopado. Entretanto o P. Dehon, ignorando o contraditório serviço que lhe prestava o seu ex-colega de
vicariato, Eudócio Mignot, continuava a escrever a Mons. Deramecourt para pô-lo ao corrente da questão
da aprovação.1516 Agora tem 38 cartas episcopais, mas continuava faltando a mais importante e a mais
desejada, a do Bispo de Soissons: “Sei bem: em Soissons ouvis que se diz muito mal de nós. “Nemo
propheta in patria sua”. Mas penso que a carta de Mons. Mignot, que nos conhece muito bem, e as outras
cartas podem ajudar-vos a formar a vossa consciência”.1517
A 20 de Março de 1899, o P. Dehon volta a escrever de Roma a Mons. Deramecourt uma carta
comovedora, porque exprime a sua dor e a sua sofrida impotência de conseguir mesmo só um mínimo
testemunho do bem que ele e a sua Congregação fizeram e continuam a fazer na diocese de Soissons.
“Esperava maior misericórdia e mais benevolência da diocese de Soissons. Nela fiz tantos sacrifícios em 28
anos!”. Recorda todas as obras que fundou em S. Quintino, empenhando o seu património pessoal: 800.000
francos só no colégio... “Dei 20 sacerdotes à diocese. Porque é que tudo isto não pode fazer esquecer os
erros cometidos? Fiat! Aceito o que Deus quiser”.
Fala depois do próximo Capítulo Geral (o quinto, de 14-15 de Setembro de 1899), em S. Quintino,
em que fará votar a transferência da casa-mãe para Roma, com o consentimento da Santa Sé e do Bispo de
Soissons. “Assim vos libertaremos de qualquer situação embaraçosa. Tende a bondade de conservar-nos a
vossa benevolência enquanto for necessária. Receba, Monsenhor, a homenagem do mais profundo respeito,
com o qual sou de Vossa Excelência, o muito triste, mas sempre devoto servidor. L. Dehon”.1518
Dois dias depois, a 22 de Março de 1899, Mons. Deramecourt responde ao P. Dehon: “Compreendo
que vós não estejais contente pelo meu silêncio; mas, porventura, não o estaríeis mais ainda pela palavra do
Bispo de Soissons se, numa questão de tão grande importância, pensasse enviar a Roma um relatório
completo sobre a Obra, inspirando-se nas opiniões de todos os que o rodeiam e que rodearam os seus
predecessores?... Eu presto homenagem à vossa generosidade em S. Quintino, mas não se trata disso.
Participo nas vossas tristezas e rezo convosco e por vós”.1519
Certamente que um relatório para Roma por parte do Bispo de Soissons, fundando-se nas más
línguas, teria agravado irremediavelmente a situação do P. Dehon e da sua Congregação. Pode-se, pois,
compreender que, prudentemente, Mons. Deramecourt preferisse esperar segundo o conselho de Mons.
Mignot.
Todavia os anos passam e Mons. Deramecourt nunca se decide. De facto entre as cartas de
recomendação para a aprovação definitiva do Instituto em 1906, continua faltando a carta do Bispo de
Soissons. A conclusão mais natural é que Mons. Deramecourt nunca foi favorável à aprovação pontifícia
do Instituto do P. Dehon..

A INTERVENÇÃO DE PIO X E A APROVAÇÃO DEFINITIVA

Entretanto, durante alguns anos, o problema da aprovação papal, embora subsistindo, é ultrapassado
pela tempestade que a lei sobre as associações desencadeia nos institutos religiosos.
1515
Dossier de l’Evêché de Soissons, 57-58.
1516
Cf. Dossier de l’Evêché de Soissons, 58: carta de Roma do P. Dehon a Mons. Deramecourt, a 15.5.1899.
1517
Ibi.
1518
Dossier de l’Evêché de Soissons, 59-60.
1519
Dossier de l’Evêché de Soissons, 61.

301
Apesar da situação difícil da Congregação na França, o P. Dehon continua trabalhando para a
aprovação em Roma. Falou dela na audiência que lhe concedeu Pio X a 21 de Fevereiro de 1904:
“Daremos logo os passos necessários para a aprovação... Muito bem, respondeu o Papa, tende confiança, a
Santa Sé examinará a vossa petição com benevolência”.1520
Estamos nos princípios de 1906. O obstáculo maior à aprovação pontifícia da Congregação provém
do Santo Ofício que não esquece os rigores de 1883. O P. Dehon anota no Diário: “Estamos “avariados”
para a aprovação por causa de velhas histórias do Santo Ofício de 1883”.1521
Organiza então “uma espécie de assalto”. Aconselhado por Mons. Della Chiesa (o futuro Bento
XV), o bom P. Lepidi fala com o subcomissário do Santo Ofício, P. Pasqualigo, enquanto o P. Pio
Langogne falará com o assessor do Santo Ofício, Mons. Lugari, para “derrubar os antigos obstáculos”. 1522
O P. Dehon recobra a confiança.
Depois é a vez de sete cardeais. O Card. Rampolla recebe-o amavelmente, mas não vai ao Santo
Ofício. O mesmo acontece com o card. Merry del Val... O card. Steinhuber pensa que se trata de uma
simples formalidade. O card. Vivés, todo espiritual e de Deus, diz ao P. Dehon que será o ano da
canonização do seu Instituto. O único que promete empenhar-se pessoalmente para vencer o obstáculo do
Santo Ofício é o amigo do P. Dehon, o card. Domingos Ferrata. Era o Cardeal Prefeito da Congregação dos
Bispos e dos Religiosos.1523 O cardeal Ferrata, depois de sondar os humores do Santo Ofício, diz primeiro
ao P. Dehon que a aprovação pontifícia vai ser muito difícil; depois informa-o de que a situação lhe parece
sem saída. As dificuldades de 1883 agravaram-se porque alguns membros do Santo Ofício estão
convencidos que as famosas “revelações” da Ir. Maria de S. Inácio têm como autor o próprio P. Dehon.
Compromete-se assim a honra do Fundador, apelidando-o de falsário.
Na realidade, a Ir. Maria de Jesus, a irmã mais nova da Chère Mère, quando traduzia as “luzes de
oração” da Ir. Maria de S. Inácio do alemão para francês, fazia-o num estilo muito pessoal e assim as
enviava ao P. Dehon. Daí a infundada acusação de ser ele o autor das revelações. Uma segunda dificuldade
é constituída pelo capítulo das Constituições sobre a vida de amor e de imolação e é suscitada pelos
consultores da Congregação dos Bispos e Religiosos, pertencentes a Ordens antigas; é uma novidade pouco
compreensível e inaceitável.
O P. Dehon acorre então ao card. Rampolla, seu grande amigo, e abre-lhe o coração. O cardeal
compreende-o e diz-lhe simplesmente “vá lá cima!”, ou seja dirija-se ao Papa. A 9 de Abril de 1906, o P.
Dehon consegue uma audiência. Pio X ouve-o com muita bondade, olhando para o crucifixo da secretária.
Toma um pedaço de papel e escreve: “Quero que este assunto siga em frente e seja resolvido”, e despede o
P. Dehon com palavras de ânimo.1524
É o apoio mais poderoso. Pio X tinha já falado pessoalmente com o Assessor do Santo Ofício para
que qualquer obstáculo fosse superado.1525
Na audiência de 9 de Abril de 1906, Pio X tinha assegurado ao P. Dehon: “Não duvideis, sereis
aprovados”.1526
A aprovação pontifícia é uma questão de vida ou de morte para o jovem instituto.
A sua importância pode avaliar-se plenamente só quando se considera que à volta de 300 religiosos
pertencentes à Congregação sabem do pedido apresentado à Santa Sé, cujo resultado positivo implantará
para sempre o Instituto do P. Dehon na Igreja. A recusa teria provocado um desânimo mortal, um desastre
mais grave que o “Consumatum est”, de 1883.
Esta angustiante inquietação manifesta-se numa carta que o P. Dehon, apenas regressado a S.
Quintino, envia ao seu amigo o Cardeal Ferrata: “Vós me fizestes saber que em Roma temos inimigos que
nos caluniam odiosamente, fazendo-nos passar por visionários e outras coisas. Quem sabe terão crédito na
Santa Sé. Então destruir-nos-ão ou recusar-nos-ão a aprovação, o que viria dar ao mesmo resultado. Se
tudo isto tem de acontecer, rogo a vossa Eminência que se o faça o mais cedo possível. Vós podeis
1520
NQ XVIII, 130: 21.2.1904.
1521
NQ XX, 26 de Fevereiro de 1906.
1522
NQ XX, 26-27 de Fevereiro de 1906.
1523
Cf. NQ XX, 30-31: Fevereiro de 1906.
1524
Philippe (Mons.) scj- “Ricordi” 279-285.
1525
NQ XX, 29-30: audiência de 14.2.1906.
1526
NQ XX, 40-41: Abril de 1906.

302
compreender a minha angústia. Como posso ... animar todas as minhas obras? Quanto mais se esperar,
maior será o edifício a destruir e mais grave será o escândalo”.
Fala depois dos seus religiosos (mais de 300), dos novos alunos das escolas apostólicas (uns 40),
dos noviços (uns 20) e da responsabilidade para com as famílias ao acolhê-los num Instituto que a Igreja
está para destruir.
Três casas iniciam grandes construções: “é preciso construir ou demolir?”. O P. Dehon continua a
enviar missionários para o Congo. Pode mandar padres jovens “para um clima mortal ao serviço de uma
Obra que a Igreja está prestes a humilhar e destruir?”.
A seguir faz profissão da sua disponibilidade para obedecer às decisões de Roma, como sempre tem
feito: “Vós deveis compreender o meu estado de alma; a minha saúde ressente-se e peço-vos a graça de que
vos apresseis. Desde há 23 anos que estou nas garras da Inquisição”.1527
Finalmente, “a 11 de Junho de 1906, ``às treze, chega um bom despacho: ... é concedida a
aprovação da Congregação e as Constituições são aprovadas por 10 anos”.1528 O P. Dehon dá a notícia ao
Conselho e depois a todas as casas. “A 22 de Junho canta-se em toda a parte o “Magnificat” e todos
renovam os seus votos”.1529
Pio X tinha encarregado o Jesuíta P. Gennaro Bucceroni, professor de moral na Gregoriana, bom
jurista e grande perito na devoção ao Coração de Jesus, de defender na Congregação dos Bispos e
Religiosos a espiritualidade dehoniana de amor e de imolação expressa nos primeiros capítulos das
Constituições.
P. Bucceroni era um tipo franco, corajoso, com o seu toque de originalidade. Durante as suas aulas
resolvia os casos controversos de moral, proclamando solenemente: “Ego Januarius Bucceroni decido et
dico...”. Como bom napolitano, não tinha pêlos na língua. Quando na Congregação dos Bispos e Religiosos
viu que todos os consultores eram contrários à aprovação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, defendeu
corajosamente a sua espiritualidade, respondendo a todas as objecções e concluindo que, se se queria dar o
direito de cidadania aos Sacerdotes do Sagrado Coração na Igreja ( ou seja aprová-los) era preciso dar-lhes
a possibilidade de viver e agir segundo o espírito da devoção ao Coração de Jesus... e aqui não se trata de
outra coisa que da devoção ao Coração de Jesus, aprovada pela Igreja.1530
O decreto de aprovação pontifícia da Congregação e dos dez anos das Constituições tinha a data de
4 de Julho de 1906 e estava assinado pelo amigo do P. Dehon, o Cardeal Ferrata.

OS DEHONIANOS NA ITÁLIA

A audiência de Pio X ao P. Dehon a 9 de Abril de 1906 tem uma importância particular também
para a difusão dos Dehonianos em Itália.
Desde 1896, o P. Dehon tinha pensado em abrir uma Casa no Lazio: “Na Sabina há uma gente
inteligente, corajosa e trabalhadora. Em Olevano fiquei bem impressionado com o comportamento dos
jovens. Quando quiser recrutar italianos irei lá procurá-los”.1531
Como consequência dos contactos com Mons. Tiago della Chiesa (o futuro Bento XV) voltou a sua
atenção para a Ligúria. De facto, em Abril de 1904, voltando a França, detém-se em Cogoletto (Génova):
“Queria visitar a Cartuxa de Santa Ana (o actual “deserto” de Varazze), que me era oferecida para a
fundação da escola apostólica”.1532 Todavia, por falta de meios e de pessoal, tive que adiar a obra para
tempos melhores.1533
Em Janeiro de 1905, fora nomeado bispo de Bérgamo Mons. Tiago Radini Tedeschi, grande amigo
do P. Dehon. Este sentiu-se animado a orientar-se para aquela diocese: “Ser-nos-ia muito útil recrutar
italianos para propagar na Itália a nossa devoção reparadora e ajudar as nossas missões. Onde fundar uma
1527
AD,B 36/13.
1528
NQ XX, 50: Junho de 1906.
1529
NQ, XX, 50: Junho de 1906.
1530
Philippe (Mons.) scj, “Ricordi”, 283.
1531
NQ XI, 40: Fevereiro-Março de 1896.
1532
NQ XVIII, 140: Abril de 1904.
1533
Cf. NQ XVIII, 141: Abril de 1904.

303
escola italiana? Oferecem-me casas em Monteforte )(Avellino), em Salzano (Veneza), em Génova.
Preferiria Bérgamo. Na Lombardia há gente mais viril, mais activa e há recursos. Mons. Radini vê com
agrado este projecto; irei visitá-lo”.1534
Para conseguir o seu intento, o P. Dehon pôs-se em contacto com personalidades bergamascas:
Mons. Adami e o comendador Nicolau Rezzara;1535além disso, para maior segurança, na audiência privada
com Pio X de 9 de Abril de 1906, perguntou a opinião do Papa. “O lugar é bem escolhido – respondeu Pio
X; Bérgamo é uma excelente diocese, uma diocese modelo. O clero é bom, as famílias numerosas e
verdadeiramente cristãs. Há mesmo muitas vocações eclesiásticas; também as haverá para a vida
religiosa”.1536
A 14 de Abril de 1906, o P. Dehon chega a Bérgamo, hóspede durante dois dias de Mons. Radini-
Tedeschi. Assiste à liturgia pontifical de Páscoa, admira a boa música e os monumentos da cidade alta de
Bérgamo: “Com Monsenhor falamos da nossa fundação na diocese de Bérgamo. Ele tem em vista uma casa
com um bonito nome: “O Paraíso”, mas faltam-lhe pátios e horta. Esperarei”.1537 Isto é tudo no Diário do P.
Dehon.
Sabemos, por outra fonte,1538 que foi esperado na estação pelo secretário do Bispo, P. Ângelo José
Roncalli, o futuro Papa João XXIII, o qual acompanhou “a butes” o P. Dehon primeiro a Pontida, para
visitar a célebre abadia, então à venda e depois a Nembro-San Nicola, em Val Seriana, onde havia uma
vivenda com um denso parque, também à venda. Infelizmente o preço era demasiado alto para as fracas
finanças do P. Dehon.
As negociações continuaram por meio do P. Bartolomeu Dessons, encarregado pelo P. Dehon de
seguir a fundação, devendo ele deslocar-se ao Brasil, e do comendador Rezzara, encarregado por Mons.
Radini-Tedeschi. Foi mesmo através do comendador Rezzara que o P. Dessons conheceu o P. Frederico
Gambarelli. Este, um ex-cantor, desvanecida a sua iniciativa de fundar os “Santuaristas”, procurava uma
Congregação a quem confiar o santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, que tinha construído para
cumprimento de um voto, numa propriedade sua de Albino, em Val Sariana, a cerca de 12 Km. de
Bérgamo.1539
As negociações foram longas e laboriosas, tanto pelo difícil carácter de Gambarelli, como pela
tenaz oposição de P. Perani, pároco de Albino, sempre hostil, enquanto viveu, à nova fundação, mesmo
depois da intervenção do Bispo de Bérgamo, Mons. Radini-Tedeschi. Só nos princípios de 1907, o P.
Dessons assinou o contrato de compra e venda de uma parte da propriedade Gambarelli, aferecendo ao P.
Frederico uma pensão vitalícia.
Os primeiros padres foram as verdadeiras colunas da Congregação dehoniana na Itália: O P. Luís
Duborgel, savoiano, que italianizou o seu apelido para Delborgo; o P. José Goebels, de Colónia
(Alemanha), que assinava “Colognese” (e depois colaboraria com o P. Guilherme Zicke na fundação de
Espanha) e o P.Octávio Gasparri, sacerdote recém-ordenado, de Monteleone Calabro (actualmente Vibo
Valentia).
O P. Delborgo chegou a Albino a 11 de Maio de 1907. Encontrou os locais ocupados por inquilinos
e o santuário desprovido dos paramentos mais indispensáveis. A data oficial da fundação da casa de Albino
e do início da Congregação dehoniana na Itália é o dia 8 de Setembro de 1907, festa da Natividade de
Maria. O nome oficial da casa era “Escola Apostólica Nossa Senhora de Guadalupe”. De 1921 em diante
chamou-se “Escola Apostólica do Sagrado Coração”.
Frederico Gambarelli rodeado pelos pp. Dehonianos e por alguns sacerdotes diocesanos, cantou,
como quem era, a missa solene de inauguração. No primeiro ano a comunidade foi composta pelos três
supraditos padres, por um estudante religioso francês, Paulo Legay, e quatro rapazes.
A fundação revelou-se desde o princípio como uma obra de Deus pela pobreza, sofrimentos,
dificuldades e contrastes que a caracterizaram. A boa harmonia com Gambarelli durou bem pouco;
1534
NQ XX, 35: Quaresma 1906.
1535
Cf. NQ XX, 35-36: Março de 1906.
1536
NQ XX, 41-42: Abril de 1906.
1537
NQ XX, 44.
1538
Notícias dadas pelo Papa João XXIII ao P. Lourenço Ceresoli, dehoniano, numa audiência de 1960.
1539
Recolhemos estas informações de ª Vassena scj, Breve storia della provincia italiana, editada em Historia Congregationis,
II, CGS Roma 1978, p. 175 ss.

304
considerava-se mestre e senhor de tudo. Estava arrependido da venda feita e do contrato estipulado:
Acabou por levar os dehonianos a tribunal, primeiro civil e depois eclesiástico.
O P. Dehon, sempre homem de paz, mesmo tendo razão e o apoio de Mons. Radini-Tedeschi,
decidiu mudar a fundação para outro lugar. Foi assim que nos fins de 1908, a casa de Nossa Senhora de
Guadalupe, depois de infindas arrelias, foi vendida de novo ao P. Gambarelli.
Aconteceu a transferência para uma casa oferecida pelo notário Samuel Solari, de Dezembro de
1908 a Abril de 1910. Durante este tempo fizeram-se inumeráveis propostas e laboriosas investigações,
sempre na diocese de Bérgamo; até que enfim foi escolhido um bonito terreno, sobranceiro à povoação de
Albino e se começou uma nova construção no meio vários obstáculos.
O P. Dehon estava perto dos seus religiosos tão provados e em Abril de 1909 passou com eles dois
dias para os animar. Finalmente, a 2 de Maio de 1910, Mons. Radini-Tedeschi inaugurou e benzeu a nova
casa, com 9 alunos. Não cabiam mais.
A construção da Escola apostólica de Albino custou a todos grandes sacrifícios: o P. Dehon deu
45.000 francos de seu bolso; o P. Delborgo contraiu uma hipoteca de 25.000 liras, onerosa para aquele
tempo; o P. Gasparri esforçou-se pedindo por carta a benfeitores eventuais; enquanto alguns estudantes
religiosos iam de porta em porta pedindo esmola pelas povoações do bergamasco, do bresciano, do
comasco, com várias aventuras desagradáveis.
A província dehoniana de Itália tornou-se uma das mais florescentes províncias da Congregação.1540

A DIVISÃO EM PROVÍNCIAS

Entretanto, continuava a vida da Congregação.


De 15 a 16 de Dezembro de 1908, realiza-se em Lovaina, na Bélgica, o sétimo Capítulo Geral. A
Congregação conta com 293 religiosos. Os capitulares são 31. Prevalecem os jovens; são 21 com menos de
35 anos.1541 O problema fundamental é a divisão da Congregação em províncias. É uma divisão necessária
para facilitar a irradiação das energias e das iniciativas do jovem Instituto; mas também está cheia de
perigos por causa do aceso nacionalismo daqueles tempos. Pode levar à divisão da Congregação, como
sucedeu a outros institutos. Alguma cabeça quente entre os jovens capitulares perspectiva esta
eventualidade.
O P. Dehon, convencido de que só a humildade e a caridade podem assegurar o triunfo do
verdadeiro bem, dirige-se aos PP. Capitulares nestes termos: “Viemos ao Capítulo com grande humildade.
Sejamos humildes diante de Deus. Humilibus dat gratiam... Sejamos humildes diante dos nossos irmãos.
Não creiamos ter o monopólio da sabedoria. Mostremos consideração para com os anciãos... Desconfiemos
do que divide, do amor próprio, da estima do juízo próprio, das antipatias naturais, do patriotismo a todo o
custo. Amemo-nos uns aos outros”.1542
Faz-se o balanço dos seis anos passados e constata-se o desenvolvimento as Congregação.
Passa-se, em seguida, ao problema mais importante: a divisão da Congregação em províncias. Os
pareceres são discordantes. Não se tem nenhuma experiência sobre a organização de uma província
religiosa, as suas competências, etc. É uma situação delicada e ajudam muito os conhecimentos jurídicos e
o ascendente do P. Dehon, fortalecido com a aprovação pontifícia da Congregação, com a elevação da
missão do Congo a Vicariato Apostólico e com a nomeação do P. Grison ao Episcopado (12.3.1908).
A votação sobre a imediata divisão da Congregação em duas províncias (ocidental e oriental) dá 16
votos a favor, 8 contra e 6 abstenções. Todos os religiosos têm a liberdade de escolher a província no
prazo de dois meses.
O Superior da Província ocidental é o P. André Prévot, e o da oriental ou alemã é o P. José Tadeu
Böcker. São auxiliados por quatro conselheiros.
1540
Cf. ª Vassena scj, Breve storia della provincia italiana, pp. 175-262. A província italiana foi divididama 1.5.1960 em duas
províncias: setentrional e meridional. Para a Província meridinal cf. P. Cataneo scj, in Historia Congregationis, II, CGSmRoma
1978, pp. 153-174.
1541
Cf. M. Denis scj, Costituzioni scj e capitoli generali durante la vita del P. Fondatore,in “Dehoniana” 3 (1972), p. 25, nota
58.
1542
NQ XXIV, 46-47: Setembro de 1908.

305
A divisão em províncias revelou-se providencial para a vida da Congregação e também para a sua
sobrevivência, quando, depois do rebentar da primeira Guerra Mundial, foi praticamente impossível
qualquer comunicação. Com a divisão em províncias, o P. Dehon consegue também outro objectivo muito
importante: preparar homens capazes e responsáveis que continuassem a dirigir a Congregação depois dele.
Dizia um dia ao P. Philippe, referindo-se às Servas do Coração de Jesus: “Veja o que aconteceu
com a Chère Mère! Tinha tudo em suas mãos e tudo devia referir-se a ela. Quando morreu (17.3.1917) não
havia nenhuma religiosa preparada para dirigir a Congregação. Deixemo-los fazer (o P. Dehon referia-se
aos seus religiosos alemães), que se desenrasquem por si mesmos. Antes recebiam ordens e executavam-
nas, agora a responsabilidade recai sobre os seus ombros e devem decidir eles próprios. A responsabilidade
amadurece e forma os homens”.1543
Outra decisão importante foi a instituição do mês de renovamento espiritual que se deveria ter de
três em rês anos e de que o P. Dehon esperava “um bem imenso. Será a salvação da Obra”.1544 O mês de
renovação foi defendido vigorosamente pelo P. Dehon e pelo P. André Prévot, o santo Mestre de noviços.
Os capitulares aprovaram-no por unanimidade, para que se conservasse o fervor na Congregação.
Num Capítulo, com uma maioria de padres jovens, era um sinal de compromisso e de generosidade.
Comunicando a notícia do mês de renovamento, numa carta à Congregação (20.9.1908), o P. Dehon
escreve: “É bom que aumentemos o número e que desenvolvamos as nossas obras; mas de que serviria
tudo isso, se não fôssemos fervorosos e não tivéssemos o espírito da nossa vocação? Nosso Senhor não
sabe que fazer dos religiosos tíbios. Recordemos a máxima divina: “Nisi Dominus aedificaverit
domum...”.1545
A iniciativa do mês de renovamento, começada em 1909, continuou até o início da primeira Guerra
Mundial (1914). Pregadores foram o P. Dehon e o P. André Prévot. Durante o mês de renovamento
continuavam as ocupações ordinárias da comunidade. Pregavam-se duas meditações, uma de manhã e outra
à noite, e uma conferência antes do meio dia.
Apesar das esperanças repostas neste mês de renovamento, parece que os frutos desejados foram
bem escassos.1546 O compromisso é, sempre e sobretudo, pessoal.

1543
Cf. Philippe (Mons.) scj, “Ricordi”, 312-313.
1544
NQ XXIV, 48: Setembro de 1912.
1545
Cartas circulares, n. 182.
1546
Cf. Denis, Le projet du Père Dehon, 294-297.

306
Capítulo 21

Os últimos anos (1912-1925)

A volta ao mundo - A vida espiritual dos últimos anos - Uma profunda experiência de Deus - A devoção trinitária - Confinado em S. Quintino
pela guerra - O exílio e libertação - A reconstrução: o oitavo Capítulo Geral - O Templo de Cristo Rei - "Nunc dimittis..." - "Por ele vivo, por
ele morro" - "A caridade não acabará jamais" (1 Cor 13,8).

Em 1912, a actividade exterior do P. Dehon pode considerar-se concluída. Viaja ainda muito entre
1912 e 1914, mas só para as visitas canónicas às suas casas. Acaba de entrar no seu septuagésimo ano de
vida. Escreveu aos seus religiosos uma longuíssima carta intitulada: "Souvenirs", "Lembranças"
(14.3.1912). É um autêntico testamento no qual o Fundador, como um velho pai, evoca com os seus filhos
os acontecimentos da família: as origens da Congregação, a sua história, as suas obras.

A VOLTA AO MUNDO

Concluíu há pouco tempo uma grande viagem. De 10 de Agosto de 1910 a 2 de Maio de 1911, deu
a volta ao mundo. A ocasião para essa viagem foi a participação no congresso eucarístico de Montreal. "Os
meus amigos de Montreal e de Québec: Mons. Begin, Mons. Marois, o cónego Martin, Vigário Geral, e o
P. Volbart, Sulpiciano, tinham-me convidado insistentemente a ir.
"O meu amigo, Mons. Thiberghien ia também... Fizemos os nossos planos em Roma. Queríamos
visitar os Estados Unidos e o Canadá e chegarmos até à nossa missão em Alberta, para os lados do
Pacífico. Aí veríamos se seria possível voltar pela Ásia".1547
O regresso aconteceu de facto através do Japão, Coreia, China, Filipinas, Indonésia e Índia.
Numerosos cadernos do Diário do P. Dehon contam-nos esta sua viagem longuíssima, e são interessantes
pelas notícias e os testemunhos sobre um mundo para nós já desaparecido, todavia não acrescentam nada
de essencial ao conhecimento que já temos do P. Dehon. Seriam tão só notícias sobre os lugares por ele
visitados, sobre os povos e sobre as culturas com que entrou em contacto.
Quero recordar somente um encontro pessoal seu que teve lugar no seminário indígena de S. José
de Seul (Coreia): "O lugar é lindo - escreve no Diário -; os jardins sobem pelas colinas. Dali se divisa o
campo dos mártires, a planície onde foram justiçados os santos apóstolos da Coreia: Mons. Berneux, Mons.
Daveluy, Justo de Bretenières e outros mais. Os corpos destes santos mártires repousam na capela do
seminário junto com os restos do sacerdote indígena André Kim. É uma alegria para mim rezar nesse lugar.
O mártir Justo de Bretenières é meu conhecido. O seu irmão Cristiano era meu condiscípulo em Roma em
1865-1866. Justo escrevia da Coreia cartas maravilhosas pela sua delicadeza e santidade. Cristiano
emprestava-mas e eu copiava-as. Justo aspirava ao martírio sem atrever-se a esperá-lo. Considerava-se
indigno. "Eu não terei, dizia, mais que o martírio diário dos pequenos sacrifícios, das dificuldades e das
privações próprias do missionário". Alguns meses mais tarde chegou a notícia do seu heróico martírio".1548
O P. Dehon aprofunda as várias experiências feitas no contacto com tantos povos, com culturas e
religiões diferentes, recolhendo-se num curso de exercícios espirituais de 11 a 19 de Fevereiro de 1911,
enquanto navega pelo Mar Vermelho. Termina-o com uma segunda peregrinação à Terra Santa. A 21 de
Fevereiro está em Jerusalém. Passaram 46 anos desde a primeira peregrinação de 1865. Reaparecem
sentimentos e emoções profundas que só em pequena parte consegue exprimir no seu Diário.
Esta longa viagem foi julgada das mais diferentes maneiras. É certo que o interesse principal do P.
Dehon, na sua volta ao mundo, foi pelas obras de evangelização.1549

1547
NQ XXV, 51: Agosto de 1910.
1548
NQ XXV, 8-10: Novembro de 1910.
1549
Cf. C. Kanters scj, Le Très bon Père, 54-55.

307
Em todas as nações e colónias do Oriente visita as missões católicas e estuda os seus problemas. Ao
seu regresso apresenta um detalhado relatório à Propaganda Fide em que se declara favorável à
descolonização do apostolado missionário e à criação de uma jerarquia indígena.
O Prefeito de Propaganda Fide, o Cardeal Gotti, agradece-lhe o relatório a 18 de Maio de 1911 com
uma carta cheia de benevolência.1550 Mas já a 11 de Abril de 1911, o P. Dehon teve um colóquio com Pio X
sobre a situação das várias igrejas visitadas e especialmente sobre as missões.1551

A VIDA ESPIRITUAL DOS ÚLTIMOS ANOS

O ano de 1912 marca uma reviravolta também na vida espiritual do P. Dehon.


Avaliando os anos passados desde 1892 a 1912, descreve-os no Diário como "uma vida composta
de dias bons e de dias de grande miséria";1552 um tempo de "aridez e de luta".1553
Depois dos exercícios espirituais de Setembro de 1912, interroga-se se o período de 1892-1912
constituiu uma provação ou um castigo, e responde que foi "mais um castigo... Nosso Senhor permitiu ao
demónio desencadear-me contínuos assaltos. Recebia graças para os outros, mas não muito para mim
próprio... Santa Teresa (de Ávila) esteve 20 anos num estado de semi-tibieza, "si parva licet componere
magnis" (se se podem comparar os anões com os gigantes). Tudo revive depois dos exercícios de Setembro
de 1912. É outra vida. A vida de união renova-se e acentua-se... Nosso Senhor conduz-me depressa,
sensivelmente e com clareza a uma grande união".1554
O P. Dehon percorreu todos os degraus do amor que S. João da Cruz analisou admiravelmente na
"Noite escura".1555
"O primeiro degrau faz enfermar a alma proveitosamente... A alma... não pode achar gosto, arrimo,
nem consolo, nem assento em coisa alguma".1556 É o caminho da purificação que conduz à contemplação.
Leão Dehon "adoeceu" de amor de Deus desde a sua adolescência, libertando-se do pecado e de tudo o que
não é Deus. "Nosso Senhor tinha conquistado o meu coração para sempre". 1557 Refere-se aos anos passados
no colégio de Hazebrouck.
No segundo grau "a alma anda tão solícita que busca o Amado em todas as coisas; em tudo quanto
pensa, logo pensa no Amado; em tudo quanto diz, em todos os negócios que se oferecem, logo é falar e
tratar do Amado...".1558 Leão Dehon procurou incessantemente o Senhor em si mesmo, na oração, na
natureza, na arte, na história. Desta procura temos um testemunho vivo nas cartas que escreve do Oriente
aos seus pais, nas cartas do seminário, nas Memórias e no seu imenso Diário.
"O terceiro grau da escada amorosa é o que faz a alma agir e lhe dá calor, para não faltar.". Assim
realizou o P. Dehon o amor de Deus nas obras em favor dos jovens, dos operários, do clero, do povo de
Deus. Como diz S. João da Cruz, também o P. Dehon considerou "pequenas as obras grandes feitas pelo
Amado... defeituosas e imperfeitas" tirando de todas "confusão e pena" sem cair na "vanglória ou
presunção".1559 E é mesmo nas obras onde o P. Dehon constata mais a sua miséria, a sua facilidade para
dissipar-se e dispersar-se. São os "altos e baixos" sublinhados no Diário1560 quando, com austera e confiante
tristeza, afirma: "Teria alcançado tantos, tantos mais favores, se não tivesse desbaratado os dons que o
Senhor me tinha concedido... Como Deus foi misericordioso comigo! Ordinariamente não dá de novo a
1550
Cf. NQ XXXIV, 2: Março de 1911.
1551
NQ XXXIV, 5-9: Abril de 1911.
1552
NQ XXXIV, 6: Janeiro de 1913.
1553
NQ XXXIV, 176: Novembro de 1912.
1554
NQ XXXIV, 175-176: Novembro de 1912.
1555
Nos capítulos 19 e 20 do segundo livro de "Noite escura" S. João da Cruz explica dez degraus da escada mística do amor
divino segundo S. Bernardo e S. Tomás. Inspira-se numa obra de Elvico Teutónico. Papasogli, na sua biografia, aplica à vida
espiritual do P. Dehon os primeiros cinco degraus da escada de amor (G.Papasogli, P. Leone Dehon, Bolonha-Nápoles 1964, c.
XLI, pp. 376-387.
1556
Noite escura II, 19,1.
1557
NHV I, 30v.
1558
Noite escura II, 19,2.
1559
Noite escura II, 19,3.
1560
Cf. NQ XXXIV, 175-176. XXXV, 6.

308
união quando se a desperdiçou... A mim, agora, devolve-ma e espero que a tornará cada vez mais
profunda... Faço todos os dias a Via Sacra... Sou o último dos pecadores e cada estação despedaça-me a
alma".1561 Todavia em quantas circunstâncias, realizando mesmo as obras de Deus, lhe provou
heroicamente o seu amor com o sofrimento (quarto degrau): provações na saúde, o "Consumatum est", a
morte das pessoas mais queridas, as contradições e calúnias dentro e fora da Congregação e tantas, tantas
cruzes! O P. Dehon cada vez se abandona em Deus, pronunciando o seu "fiat".
É justamente neste abandono confiado e total em Deus que se realiza o quinto degrau de amor que
"faz com que a alma apeteça e anseie por Deus impacientemente. Neste degrau é tanta a veemência do
amante para compreender o Amado e se unir com Ele, que toda a dilação, por mínima que seja, faz-se-lhe
muito longa, molesta e pesada".1562
Assim se caracterizou a vida espiritual do P. Dehon nos fervorosos anos do seminário. É um fervor
que aparece sempre, ao menos como saudade, como lamento, nos anos intensos do apostolado paroquial e
social. É um fervor que perdura como um fogo vivo debaixo de camadas mais ou menos espessas de cinza.
É o estado de alma do P. Dehon depois dos exercícios espirituais de Setembro de 1912. Sente que a sua
união com Cristo se vai tornando cada vez mais profunda: "A oração tornou-se-me fácil e a união com
Nosso Senhor é intensa. Deo gratias!. Na oração e na adoração realiza-se o tu a tu com Jesus presente na
eucaristia. É um colóquio fácil e ardente". Com efeito, de manhã une-se a Jesus na vida oculta de Nazaret;
ao meio dia e à tarde está junto a Jesus no Calvário; à noite vive com ele no Getsémani. Conclui: "Assim
farei todos os dias da minha vida e, no fim, Jesus convidar-me-á a segui-Lo também na ressurreição".1563

UMA PROFUNDA EXPERIÊNCIA DE DEUS

Agora o P. Dehon vive estavelmente na vida unitiva. A união de amor torna-se a nota característica
da sua existência: domina tudo e dá forma a todos os acontecimentos.
Afirma S. João da Cruz: "O sexto degrau (de amor) faz correr ligeiramente a alma para Deus e
n’Ele dar muitos toques, e sem desfalecer corre pela esperança: porque aqui o amor que a fortaleceu a faz
voar ligeira".1564 "Nosso Senhor, - escreve o P. Dehon - quer uma amizade ardente e absoluta".1565 Aspira
ser para Jesus como S. João, o discípulo predilecto. Alguns anos mais tarde afirma com doçura e
humildade: "Deveria ser um S. João, um amigo, um consolador para com Jesus-Hóstia; porém estou bem
longe de o ser".1566
Em todo o caso a causa da "agilidade no amor que a alma tem... - escreve S. João da Cruz – é por a
caridade já estar nela muito dilatada, estando a alma já quase totalmente purificada... E assim, deste sexto
degrau a alma passa para o sétimo, que faz com que a alma se atreva com veemência... De aqui se segue o
que diz o apóstolo: "Que a caridade tudo crê, tudo espera, tudo pode" (1 Cor 13,7)... Não é lícito à alma
atrever-se a este degrau não sentindo o favor anterior do ceptro do rei inclinado para ela (Est. 8,4); para que
não venha, porventura, a cair dos demais degraus que até aí subiu, nos quais sempre se há-de conservar na
humildade".1567
Há humildade no P. Dehon. Aspira ser como S. João para o Coração de Jesus; mas reconhece estar
ainda muito longe do discípulo que Jesus amava. É na humildade e na caridade que o P. Dehon descobre
uma luz divina que ilumina certos acontecimentos do passado, que até então permaneciam obscuros.
Revelam-se como um caminho luminoso de graça, como a realização de um oculto desígnio de amor.
Quantas vezes no Diário dos últimos anos, o P. Dehon volta às graças de amor e de sofrimento dos
inícios da Congregação, para dar graças ao Senhor e pedir-lhe humildemente perdão!. "Foi preciso muito
tempo para eu compreender os desígnios de Deus... Nosso Senhor quis dar-nos o auxílio de luzes celestes
sem conceder-nos nenhuma honra. Nós vivemos efectivamente das luzes de oração da Ir. Maria de S.
1561
NQ XXXV, 6-8: Janeiro de 1913.
1562
Noite escura II, 19,5.
1563
NQ XXXIV, 174-175: Novembro de 1912.
1564
Noite escura II, 20,1.
1565
NQ XXXV, 31: Abril de 1913.
1566
NQ XLIII, 127: Setembro de 1920.
1567
Noite escura II, 20, 1-2.

309
Inácio... Nosso Senhor quis dar-nos luzes, mas quis também que, oficialmente, as sacrificássemos. Obra
reparadora, temos de passar sempre pelo "Consumatum est". As nossas graças foram cruzes".1568
"Nosso Senhor permitiu que nos servíssemos dos seus ensinamentos (Luzes de oração da Ir. Maria
de S. Inácio) de modo bastante desastrado... Agora vejo melhor o modo de actuar de Deus relativo à Obra
(a Congregação). Por minha parte, correspondi mal a tantas graças; mas que posso fazer agora, senão
chorar e pedir perdão...?".1569
São os anos em que as forças físicas do P. Dehon vão enfraquecendo, enquanto se intensificam as
suas exigências espirituais: "Aqui estou, débil e habitualmente doente... Aceito que cuidem de mim. Deve-
se cumprir o dever da prudência cristã, mas eu nunca mais ficarei totalmente curado; conservarei as minhas
doenças, que serão instrumentos de expiação e de imolação".1570
Além disso, juntam-se as preocupações por várias casas da Congregação, carregadas de dívidas ou
invadidas pelo mau espírito, enquanto os melhores Padres estão doentes. No princípio de 1914, escreve o P.
Dehon: "A cruz é pesada. É como uma desistência geral. Há uma onda inconsciente de crítica e de
desconfiança. Eu não tenho amparo nem amigos. E as cargas são tão pesadas em várias casas: Em S.
Quintino, em Lovaina, em Maastricht!... Um grande mal estar em Roma, mau espírito em vários lugares;
alguns doentes, que são os meus melhores elementos e que tenho medo de perder: o P. Philippe, o P.
Guillaume, o P. Gaborit, o P. Octávio (Gasparri), todos tão úteis nos lugares onde estão. 1571
E o P. Dehon conforta-se lendo a segunda carta de S. Paulo aos Coríntios, quando o apóstolo se
lamenta de estar sobrecarregado de pesos superiores às suas forças, de tal modo que aborrece a vida. (cf.
2Cor 1,8). Todavia, como o Apóstolo, o P. Dehon abandona-se em Deus e a sua confiança não fica
defraudada. Pouco a pouco as dificuldades são resolvidas e superadas.1572
A respeito da sua vida espiritual escreve no Diário: "Estou contente por encontrar numerosos
testemunhos que confirmam que a contemplação ou união passiva com Deus não é, em si, um dom
extraordinário, mas a conclusão normal da oração e da perfeição. Pode-se, pois, desejar e pedir esta união
com Deus. É a opinião do P. Schwahn no prefácio ao livro do P. Faucillon sobre a "Vida com Deus". Os
místicos dominicanos são unânimes em estimula o desejo desta graça... Para S. João da Cruz é um dever
atrair as almas fervorosas para este desejo sobre o caminho da perfeição. O estado místico é, pois, uma
graça sumamente desejável. Pode-se ter alguma sensação desse estado desde a via iluminativa, mas ele é
habitual apenas na via unitiva.
"Assim a vida mística é o fim normal da vida cristã... Como poderia não desejar, e com o desejo
mais ardente, esta união com Deus, cujo simples nome manifesta todo o fascínio e todo o valor?".1573
Quanto mais intensa e profunda se torna, no P. Dehon, a união de amor, mais oprimente resulta o
peso do pecado, como recusa do amor, como causa da paixão de Cristo. Em Janeiro de 1913 escreve: "Faço
todos os dias a Via Sacra, mas torna-se-me cada vez mais difícil. Sinto muito violentamente a parte de
responsabilidade que tenho nos sofrimentos do bom Mestre e nas dores de Maria".1574
A um certo momento a confiança no amor infinito de Cristo supera, no P. Dehon, o sentimento de
opressão do pecado: "Já não tenho a mesma impressão durante a Via-Sacra. Estou mais confiante, como
um pecador perdoado. Parece-me que Jesus e Maria me concedem esta confiança e me perdoam na
condição de manter o sentimento do meu nada e a contrição das minhas culpas: "Cor contritum et
humiliatum, Deus, non despicies"... Jesus, pregado na cruz, já perdoava: "Pater, dimitte illis". Maria
compartilhava certamente os seus sentimentos. Como não haveriam de perdoar mais hoje!".1575
Em 1917, apresenta assim a sua vida espiritual: "Para a minha vida interior já não desejo graças
extraordinárias. Aspiro a um crescimento diário da graça... santificante, mediante a oração, o dever, a
eucaristia, a prática das virtudes".1576

1568
NQ XXXIV, 181-182: Dezembro de 1912.
1569
NQ XL, 99-101: Fevereiro de 1917.
1570
NQ XXXV, 20: Fevereiro de 1913.
1571
NQ XXXV, 67-69: Janeiro-Fevereiro de 1914.
1572
Cf. NQ XXXV, 72-75: Abril-Junho de 1914.
1573
NQ XXXV, 3-5: Janeiro de 1913.
1574
NQ XXXV, 7-8: Janeiro de 1913.
1575
NQ XXXV, 21-22: Fevereiro de 1913.
1576
NQ XLI, 1-2:Junho de 1917.

310
Sempre tinha defendido o primado da contemplação; agora tem sede dela e muitas vezes suspira:
"Solidão e recolhimento!".1577
S. João da Cruz escreve: "O oitavo (degrau de amor) faz a alma agarrar e apertar sem largar o
Amado".1578 Todavia o santo particulariza: a união de amor com Deus não é contínua "porque se durasse
seria certa glória nesta vida, por isso a alma pousa muito poucos momentos nele".1579
Como orientação, esta é a experiência contemplativa de Leão Dehon durante os anos de
seminário1580 e é, certamente, a experiência habitual do P. Dehon entre os setenta e os oitenta anos.
Em Abril de 1923, lemos esta nota no seu Diário: "A nossa boa Irmã Inácio está sempre muito
unida a Nosso Senhor. Parece-lhe às vezes que o ouve durante a oração. Ultimamente, enquanto rezava
pelo T.B.P. (o P. Dehon) (era o dia 5 de Março, festa das cinco chagas) Nosso Senhor disse-lhe: "Tu deves
procurá-lo sempre na chaga do meu Coração". - Sim, é lá que realmente quero viver. Uno-me ao Coração
de Jesus para adorar e amar a Santíssima Trindade, para reparar, para orar. Lá faço a minha meditação, a
minha adoração e todos aqueles "sursum corda" que desejaria ainda fossem mais assíduos e fervorosos".1581
O oitavo degrau de amor - escreve S. João da Cruz - faz que a alma se prenda a Deus e o abrace
sem deixá-lo, em conformidade com aquilo que diz a esposa: "Encontrei aquele que a minha alma e o meu
coração amam, abracei-o e não o largarei" (Cant 3,4)".1582 O P. Dehon refugiou-se no Coração de Cristo,
chega ao coração do Pai, a uma intensa devoção à Santíssima Trindade que caracteriza a vida espiritual dos
seus últimos anos.

A DEVOÇÃO TRINITÁRIA

À medida que avança em idade, a vida íntima do P. Dehon caracteriza-se por uma contemplação
cada vez mais profunda e uma união de amor à Santíssima Trindade.
Em Janeiro de 1915, o P. Dehon lê a vida da beata Isabel da Trindade. Fica fascinado, como o foi
pela autobiografia e pela vida de infância espiritual de Santa Teresa de Lisieux. No caso da beata Isabel é a
atracção pela vida interior, para viver em comunhão de amor com os "Três". Desta vida de união está o P.
Dehon cada vez mais sedento. Como a pequena Teresa, a ir. Isabel tinha-se oferecido vítima pela Igreja e
pelos pecadores. "É preciso ler esta vida - escreve o P. Dehon no Diário - para saborear a devoção à
Santíssima Trindade".1583 Transcreve a elevação da beata Isabel, uma oração profunda que gostaria de
difundir e dar a conhecer a todos.
Estamos a quase dez anos antes da morte do P. Dehon. Escreverá ainda nove cadernos do seu Diário
e muitas vezes voltará à devoção trinitária, até que, no último caderno, o amor à Trindade torna-se numa
oração contínua. Todos os outros temas apenas são acenados em comparação com o pensamento e a
realidade da vida celeste, na posse do amor da Trindade bem aventurada.
Escreve ainda no Diário: "Desde há muito tempo procurava o meio dia às catorze horas, para honrar
e amar a santa Trindade. Queria sondar o seu mistério. Agora esta devoção parece-me deveras simples e
que fala ao coração. São as pessoas que são consideradas distintamente...".1584
"Devo viver neste pequeno cantinho do céu em mim, onde habita a Trindade santa. A graça ajudar-
me-á...; mas é preciso que seja dócil e viva na paz interior, no recolhimento e na união a Nosso Senhor".1585
"A minha oração! È assim neste último período da minha vida: Saúdo a Santíssima Trindade: o meu
Pai e criador; o Verbo de Deus, que se fez meu irmão e meu redentor; o Espírito Santo, que se constituíu

1577
H. Dorresteijn scj, Vita e personalità di P. Dehon, 488.
1578
Noite escura II, 20,3.
1579
Noite escura II, 20,3.
1580
Cf. pp. 546 ss da presente biografia.
1581
NQ XLIV, 74-75: Abril de 1923.
1582
Noite escura II, 20,3.
1583
NQ XXXVI, 37: Janeiro de 1915.
1584
NQ XL, 80-81: Novembro de 1916.
1585
NQ XLIV, 97: Janeiro de 1924.

311
meu guia e meu consolador. Assisto à grande Missa do céu: Jesus que se oferece a seu Pai, como o cordeiro
imolado desde o princípio...".1586
Estamos em Janeiro de 1925. O P. Dehon tem 81 anos: "Cada vez gosto mais da devoção à
Santíssima Trindade. Deus Pai é meu pai e criador. É meu pai bastante mais daquele que tive na terra.
Devo-lhe tanto, tanto: o ser e a vida. Amo-o muitíssimo e muito filialmente. Desejo a sua glória e o seu
reino. O Filho de Deus fez-se meu irmão com a encarnação. Deu a sua vida por mim, vem a mim na
eucaristia. Amo-o sem medida. Reclino a minha cabeça, sem cessar, sobre o seu peito como S. João, e
quero viver com ele e amá-lo cada vez mais. O Espírito Santo é o meu director, o meu guia, a alma da
minha alma, é como uma mãe para mim. Quero viver com Ele, escutá-Lo em tudo e mostrar-me seu
discípulo amante e fiel. O "Gloria Patri", o "Credo" são as homenagens à Trindade".1587
Segundo os mestres da vida espiritual o caminho de uma alma, que vive a graça até a união de
amor, termina com a experiência inefável da santíssima Trindade: "As pessoas divinas dão-se-nos a nós,
para que gozemos delas". É o ensinamento e a experiência de vida de S. Tomás de Aquino, de S. João da
Cruz, de santa Teresa de Ávila, e de tantas pessoas que, mesmo não canonizadas, como o P. Dehon,
corresponderam totalmente ao amor de Deus e viveram o mistério da graça.1588
Em Junho de 1925, dois meses antes da sua morte, escreve no Diário: "Glória ao Pai, ao Filho e ao
Espírito Santo... meu guia, alma da minha alma.
Glória a Jesus e ao Sagrado Coração, glória e amor ao esposo da minha alma. Abraço o teu
Coração, ó Jesus, com S. João no Cenáculo. Jesus menino, abraço-te ternamente com Maria e José em
Belém... Jesus misericordioso, abraço os teus pés com a Madalena... no Calvário; Jesus-hóstia... participo
no amor dos que são bons, gostaria de reparar por aqueles que são tíbios ou maus. Estes louvores e estes
actos de amor ofereço-tos muitas vezes durante a minha jornada, dia e noite. É a minha vida. Como uma
esposa amante quero pensar sempre em ti; a união contigo é a minha única alegria. Suspiro pelo momento
de viver contigo, junto a ti, na tua intimidade, na luz dos céus...".1589
São João da Cruz escreve que no nono degrau a alma arde de amor "com suavidade. Este degrau é o
dos perfeitos que já ardem em Deus suavemente. Porque o Espírito Santo causa-lhes este ardor suave e
deleitoso em razão da união quer têm com Deus... Dos bens e riquezas de Deus que a alma goza neste
degrau não se pode falar porque se a seu respeito se escrevessem muitos livros, o mais ficaria por dizer".1590
O P. Dehon é uma autêntica alma mística. Por alguns indícios do Diário vislumbram-se até
experiências extraordinárias, desnecessárias na verdadeira vida mística, pois que são só manifestações
acidentais, que nada acrescentam nem diminuem à santidade do P. Dehon. Quais foram estas experiências,
se realmente as teve, não o sabemos. É um segredo que o P. Dehon levou para a sepultura.
O décimo e último degrau da escada de amor - escreve S. João da Cruz - "não é desta vida". Este
degrau "faz a alma assemelhar-se totalmente a Deus, em razão da clara visão de Deus, que a alma possui
imediatamente quando, tendo chegado nesta vida ao nono degrau, ela sai da carne. Porque estes, que são
poucos, porquanto já estão purificadíssimos pelo amor, não entram no purgatório". 1591 Esta suprema
purificação realizar-se-á no P. Dehon no dia da sua santa morte, a 12 de Agosto de 1925.

CONFINADO PELA GUERRA EM S. QUINTINO

1586
NQ XLV, 11: Janeiro de 1925.
1587
NQ XLV, 16: Janeiro de 1925.
1588
Cf. A. Royo Marin, Teologia della perfezione cristiana, pp. 213-218.
1589
NQ XLV, 61-62: Junho de 1925.
1590
Noite escura II, 20,4.
1591
Noite escura II, 20,4-5.

312
Descrevendo a vida espiritual do P. Dehon na sua velhice, sobrevoamos muitos acontecimentos,
mesmo de importância mundial, que o afectaram; o mais importante é sem sombra de dúvida a primeira
Guerra Mundial.
Chegou de improviso como a infausta guerra de 1870: "A 2 de Agosto é ordenada a mobilização
geral. Voltam os tristes dias do 1870... A minha Congregação é dizimada: trinta e cinco franceses e outros
tantos alemães são afectados pela mobilização...".1592
A 20 de Agosto de 1914, morre Pio X. "Foi nosso amigo e nosso benfeitor. Deu-nos a aprovação.
Era um santo, rezo por ele e invoco-o. Como era bom, simples e familiar, quando ia visitá-lo".1593
A 3 de Setembro de 1914, é eleito Papa o Cardeal Della Chiesa, Bento XV. O P. Dehon recebe a
alegre notícia a 8 de Setembro: "É um dos nossos amigos. Era o confidente e o ajudante de Leão XIII e do
Cardeal Rampolla".1594
Durante o período angustiante da guerra, o P. Dehon encontra-se confinado durante três anos em S.
Quintino, ocupada pelos alemães a 28 de Agosto de 1914. Durante trinta meses a cidade treme noite e dia
sacudida pelo troar incessante dos canhões.
O P. Dehon demonstrou notável coragem e sangue frio. Nunca quis descer para a cave e durante os
recreios jogava ao tric-trac, como se as bombas explodissem longe e se estivesse em dias de paz.
Todavia as preocupações pela sua família, pela Congregação e pela pátria afectam-no. Juntam-se a
isso as habituais dores físicas, agravadas pela velhice. Escreve: "Não posso mais. A bronquite crónica faz-
me tossir e cuspir sangue".1595 A 31 de Outubro de 1915, durante a noite, um violento acesso de tosse
ameaça sufocá-lo: "Penso que faltou pouco para que tudo acabasse... sou um navio danificado".1596
Durante este longo retiro de três anos, o P. Dehon escreve o "Testamento espiritual" deixando aos
seus religiosos "o mais maravilhoso de todos os tesouros: o Coração de Jesus".1597 Assim começa a primeira
parte do testamento. A sua missão na Igreja é amar e oferecer reparações ao Coração de Cristo,
abandonando-se a Ele em espírito de vítima, suportando com paciência e também com alegria todas as
cruzes enviadas pela divina Providência. Para cumprir esta missão é necessária a vida interior, a meditação,
a adoração eucarística, uma grande regularidade e o silêncio religioso.
A segunda parte do testamento é mais estritamente pessoal. O P. Dehon pede perdão a seus filhos
por tê-los tão pouco edificado, pelos sofrimentos que lhes causou. Espera, contudo, salvar-se. Recomenda-
lhes que se amem fraternalmente, que respeitam os superiores, que sejam agradecidos às Irmãs Vítimas da
M. Verónica e às Servas do Coração de Jesus. "A última palavra" do P. Dehon é para "a adoração diária, a
adoração reparadora feita em nome da Igreja, para consolar Nosso Senhor e para apressar o Reino do
Sagrado Coração de Jesus nas almas e nas nações".1598
O testamento espiritual foi escrito em "S. Quintino, durante os tristes dias da guerra, em 1914".1599
Durante aquele terrível período, o P. Dehon vive intensamente a união de amor com Deus,
alimenta-a com a oração e com contínuas leituras de livros espirituais: "Omnia cooperantur in bonum. A
guerra oferece-me um retiro de seis meses: nada de jornais, nada de correspondência, nada de viagens,
nada de visitas; leitura espiritual de manhã à noite. A guerra inspira o temor de Deus, a necessidade de
rezar, de reparar, o abandono, a confiança na Providência...".1600
O P. Dehon oferece as suas reparações por todos, em especial pela sua pobre França, pelos
políticos, pelos magistrados, pelo exército, pelo clero: "Senhor... contentai-vos com os dez justos de Israel
e perdoai ao vosso povo...".1601
No meio de tantas dificuldades e angústias, Deus enche a alma do P. Dehon com a graça do seu
amor. Reza com a beata Ângela de Foligno: "Senhor, dá-me um sinal da tua união comigo... Este sinal, ei-

1592
NQ XXXV, 80: Agosto de 1914.
1593
NQ XXXV, 82: Agosto de 1914.
1594
NQ XXXV, 90: 8.9.1914.
1595
NQ XXXVIII, 114: Setembro de 1915.
1596
NQ XXXIX, 52.
1597
DS. n. 276.
1598
DS. n. 284.
1599
DS. n. 284
1600
NQ XXXVI, 115: Fevereiro de 1915.
1601
NQ XXXV, 186: Dezembro de 1914.

313
lo aqui... Eu coloco o amor em ti: tu serás incendiada, inflamada, embriagada sem canseira: suportarás
todas as tribulações por meu amor, e mais, desejá-las-ás, sentir-te-ás indigna de tanta graça e mostrarás
agradecimento". O P. Dehon conclui: "Senhor, dignaste-te dar-me ao menos em parte este sinal; confirma-
o em mim!".1602
Passa, depois, a descrever a oração de recolhimento e de quietude. Descreve praticamente a sua vida
mística, a sua união de amor com Deus: "Deus chama a alma, guarda-a docemente e torna-a atenta à
manifestação da sua presença. A alma, presa, fascinada, mantém-se na disposição silenciosa do respeito e
da admiração. O amor crescente fixa a alma na vontade de Deus. A alma então aprecia mais intimamente a
sua presença, saboreia mais detidamente a alegria de um estado sobrenatural de quietude: repousa no seu
objecto divino. Esta feliz assimilação enche-a de graças que aumentam os desejos da alma. Ela sente-se
trespassada pelos dardos de amor que suavemente a ferem, a inebriam e a fazem sair de si mesma. São
vivos arrebatamentos, santas impaciências que a inflamam cada vez mais e a lançam em direcção a Deus.
Finalmente, é elevada à consciência da união com Deus, consciência que no princípio pode ser débil e
fugaz para tornar-se mais frequente e continuar sem interrupção. Esta união conhecida, experimentada,
saboreada, que coloca todas as faculdades na posse de Deus, esta comunicação profunda, estável,
permanente da vida divina, assegurada não só pela fé e testemunhada pelas obras, mas acompanhada pelo
reflexo das graças íntimas, pelas impressões de alegria e de paz que a união consciente pode trazer à alma;
esta união é o fim das subidas crescentes da vida mística na luz e no amor".1603
O P. Dehon experimenta esta união; só deseja que seja cada vez mais intensa e profunda: "Domine,
da mihi hanc acquam!"1604 ou seja o amor verdadeiro, humilde, desinteressado, unitivo.

O EXÍLIO E A LIBERTAÇÃO

Na primavera de 1917, os alemães ordenam a evacuação de S. Quintino. O P. Dehon parte a 12 de


março. Tem quase 75 anos; leva uma pesada mochila aos ombros, sobe para um vagão de mercadorias,
deve ficar de pé todo o dia até que à noite chega a Enghien (Bélgica), esgotado. Atravessando as linhas
tropeça e cai. Sofre um ataque cardíaco e pensa que está a morrer. Levanta-se sangrando. É hospedado e
cuidado fraternalmente pelos jesuítas .
A 17 de Março, em Soignier (Bélgica), morre a Madre Maria do Coração de Jesus, a fundadora das
Servas. A 20 de Abril, o P. Dehon participa nos funerais, "É uma alma santa - escreve no Diário - que, do
céu, nos ajudará. Sempre teve uma fé pouco comum e um carácter de uma rara energia... Rezou e fez rezar
como mais ninguém no mundo".1605
Finalmente, a 19 de Abril de 1917, chega alquebrado e esgotado a Bruxelas: "Deus é sempre bom.
Mesmo quando prova, tem desígnios de misericórdia".1606
Quantas graças de união e de amor recebeu nos três anos de retiro em S. Quintino. "Era preciso
nada menos que um golpe da Providência como esta guerra para obter-me tais vantagens. O mesmo sucede
certamente com muitas pessoas. Deus é sempre bom!".1607
No mês de Outubro (1917), Bento XV intervém para conseguir para o P. Dehon um salvo-conduto
para Roma.. Lá chegará a 31 de Dezembro.
Antes de sair da Bélgica, traça no Diário o quadro desolador da Congregação duramente provada
pela guerra: "Não há somente as ruínas materiais de S. Quintino e de Fayet; o que é pior, é a esterilidade
das nossas obras de recrutamento e de formação. O Noviciado de Brugelette tem só um noviço, o de
Cinqfontaines, igualmente. O escolasticado de Lovaina está fechado, o de Luxemburgo quase vazio. Em
Roma ninguém, nenhum aluno em Mons nem em Tervuren; somente alguns em Clairefontaine. E na Itália?
Sofreremos por isso durante dez anos e mais... Deus pode reerguer-nos logo se for essa a sua vontade!".1608
1602
NQ XXXVI, 111-112: Fevereiro de 1915.
1603
NQ XXXVI, 112-114: Fevereiro de 1915.
1604
NQ XXXVI, 114: Fevereiro de 1915.
1605
NQ XL, 109-110: Maio de 1917.
1606
NQ XL, 137: Maio de 1917,
1607
NQ XL, 138: Maio de 1917.
1608
NQ XLI, 46-47: Outubro de 1917.

314
Finalmente a 13 de Dezembro de 1917, pode partir de Bruxelas. Através da Alemanha e da Suíça
chega a Evian, em França; depois vai a Paris onde fica de 20 a 28 de Dezembro; a 29 está em Turim e a 31
de Dezembro chega a Roma, hóspede do seminário de Santa Clara. A 3 de Janeiro de 1918, é recebido em
audiência por Bento XV, o seu grande amigo. Sucedem-se, a ritmo contínuo, as visitas e as entrevistas com
várias personalidades eclesiásticas e civis. A 25 de Abril tem uma audiência de despedida com o Papa.
Nesta audiência o P. Dehon pede ao Papa que se dedique um altar ao Coração de Jesus em S. Pedro, com
um mosaico que represente as aparições do Coração de Cristo a Santa Margarida Maria. O desejo do P.
Dehon tornou-se realidade.1609
Ao voltar de Roma, detém-se em Bolonha e passa o Verão na França. Finalmente, chega o dia do
armistício, a 11 de Novembro de 1918. Terminou a terrível e inútil guerra mundial.

A RECONSTRUÇÃO: O OITAVO CAPÍTULO GERAL

Nos princípios de Dezembro de 1918, o P. Dehon está de novo na Itália. A 17 de Dezembro chega a
Roma, hóspede uma vez mais do seminário francês, onde a 22 celebra o 50º aniversário da sua ordenação
sacerdotal: "No dia 22 canto a Missa da comunidade em Santa Clara como a tinha cantado em 1868.
Profunda emoção. Parece-me que aquela primeira missa tão longínqua fosse apenas de ontem: o mesmo
altar, a mesma missa do quarto domingo de Advento... É um dia de graças... Peço ao Sagrado Coração de
voltar a pôr-me nas disposições tão puras e generosas de há cinquenta anos atrás. Deveria ter progredido
tanto desde esse tempo!".1610 As festas do jubileu sacerdotal do P. Dehon culminam com a audiência de
Bento XV que lhe entrega uma medalha de ouro. Tem ainda outra audiência de despedida a 26 de
Fevereiro de 1919 em que o P. Dehon fala ao Papa da fundação de uma casa em Roma que se realizará com
a construção do templo de Cristo Rei.
Doravante o pensamento dominante do P. Dehon é a reconstrução da Congregação no interior e no
exterior. A 7 e 8 de Abril está em S. Quintino: "Passei dois dias na cidade mártir... É um espectáculo
angustiante. A impressão fez-me cair ao chão. Não vi nada de semelhante na minha vida, excepto, talvez,
Messina, depois da sua destruição. É um montão de ruínas sujas e tristes... E a nossa formosa catedral, sem
abóbadas, sem vitrais, sem altares, com todos os pilares perfurados pelas minas!... Aí estão 4 ou 5.000
habitantes, que parecem sobreviventes de um naufrágio".1611
A mesma devastação na Casa do Sagrado Coração, no Colégio S. João, na igreja de S. Martinho:
"Todas as estátuas das nossas capelas estão mutiladas, os altares destroçados. No S. João não há escadarias,
as paredes estão desventradas, grande parte do telhado só espera um golpe de vento para cair. De móveis
nem se fala. Toda a cidade está como leprosa. Em todas as ruas caíram bombas; as explosões descortiçaram
as fachadas. Várias ruas já foram libertas dos escombros; outras estão ainda impraticáveis".1612
A 10 de Abril de 1919, chega o P. Dehon a Bruxelas onde volta a encontrar "uma casa com uma
vida de comunidade. Estive errante durante dezasseis meses".1613 Para superar as dificuldades e resolver os
enormes problemas do momento, o P. Dehon procura contactar com todos os membros do Instituto
mediante uma abundante correspondência: "Dez ou quinze cartas por dia! O momento é delicado; é preciso
reanimar todas as boas vontades e reerguer todas as obras".1614
"Encontro descanso só na confiança no Sagrado Coração".1615 Com esta confiança prepara o oitavo
Capítulo Geral. "Para o Capítulo, a minha maior preocupação é a de reavivar o fervor, restituir à Obra toda
a sua regularidade e o seu verdadeiro espírito".1616
O Capítulo tem lugar em Heer, perto de Maastricht (Holanda) de 29 a 31 de Julho de 1919. "São
grandes jornadas - escreve o P. Dehon no Diário... Estamos presentes catorze. Tudo se desenrola na paz e
1609
Cf. NQ XLII, 52-53: Abril de 1918.
1610
NQ XLII, 21-22: Dezembro de 1918.
1611
NQ XLIII, 89-100: Abril de 1919.
1612
NQ XLIII, 101: Abril de 1919.
1613
NQ XLIII, 103: Abril de 1919.
1614
NQ XLIII, 103: Abril de 1919.
1615
NQ XLIII, 103: Abril de 1919.
1616
NQ XLIII, 104: Maio de 1919.

315
na caridade. Nomeiam-me o assistente que eu queria (o P. Lourenço Philippe). Habitará em Bruxelas onde
se encontrará a maioria do conselho".1617
A casa-mãe de Bruxelas converte-se na morada habitual do P. Dehon. Durante o capítulo tomaram-
se importantes resoluções para a renovação da vida interior, para a adoração, para o retiro de preparação à
festa do Sagrado Coração.
Publicam-se os "Regulamentos diversos", pequeno directório administrativo sobre usos e costumes
da Congregação. O P. Dehon conclui: "Parece-me que a organização da Obra vai deixar pouco a desejar.
Deo gratias!".1618

O TEMPLO DE CRISTO REI

Depois do furacão da guerra, a Congregação do P. Dehon conta com 500 professos e 80 noviços, e
manifesta uma surpreendente vitalidade. Abre-se o noviciado italiano em Albisola (24.8.1919). Em
Espanha, a primeira casa já tinha sido aberta em Puente la Reina em 1916, mas ficou organizada em
1919.1619 Mandam-se missionários para os Camarões, para o Congo e abrem-se as duas novas missões de
Gariep, na África do Sul (12.6.1923) e de Sumatra (27.12.1923).
A vida espiritual do P. Dehon é caracterizada por um aprofundamento da oblação de amor. Estuda a
teologia mística e enche cadernos inteiros em que transparece o seu desejo de intensificar a vida de união
no amor e na imolação.
A sua vida exterior é absorvida pelo governo da Congregação e pela realização da grande obra de
Roma: a construção do templo de Cristo Rei.
Na audiência de 28 de Fevereiro de 1919, o P. Dehon tinha falado com Bento XV da "casa de
Roma... Uma fundação num bairro novo seria de seu agrado"1620. A satisfação do Papa era evidente, já que
com a casa religiosa teria surgido uma igreja, assegurando o serviço religioso do novo bairro. Numa carta
escrita de Cannes a Mons. Grison, a 7 de Março de 1920, o P. Dehon afirma: "O Papa quer que nós
construamos em Roma uma basílica ao Sagrado Coração com um seminário para as missões".1621 Numa
carta de 9 de Fevereiro de 1920 do Cardeal Gasparri, fala-se explicitamente de uma igreja paroquial com
seminário anexo na Piazza d'Arni. Bento XV entregou a primeira oferta de 200.000 liras.1622
A 18 de Maio de 1920, há a cerimónia da bênção da primeira pedra pelo Cardeal Vigário Basílio
Pompili. Como a Basílica de Montmartre era o símbolo da consagração da França ao Sagrado Coração de
Jesus, o P. Dehon queria que o templo romano fosse o símbolo da consagração do mundo inteiro ao
Coração de Cristo. Tornou-se depois no templo de Cristo Rei.
O Projecto era esplêndido, mas as dificuldades, incluindo as financeiras, eram enormes. Os últimos
anos da sua vida empregou-os, em grande parte, o P. Dehon na humilde tarefa de pedir esmolas, mandando
milhares de cartas para reunir os meios financeiros necessários. A sua audácia causava medo a muitos, mas
o P. Dehon tinha confiança. "Este trabalho é totalmente para o Sagrado Coração e para o Papa".1623
Era uma tarefa árdua, monótona e, com frequência, infrutífera, dada a grave crise económica que
atravessava o mundo do pós guerra. "Faço o envio 4.000 cartas para a França e Bélgica em favor da obra
de Roma. Os recursos chegam, embora modestos e lentos".1624 "A nossa obra de Roma tem que assustar-
nos. È preciso um milhão em 1921 e meio milhão em 1922 para construir apenas a casa de habitação e os
fundamentos da igreja. E a minha propaganda produz tão pouco! È preciso que recorde o ensinamento do
Evangelho: a fé faz milagres".1625

1617
NQ XLIII, 110: Julho de 1919.
1618
NQ XLIII, 110: Julho de 1919.
1619
cf. NQ XLIII, 116: Dezembro de 1919.
1620
NQ XLIII, 91.
1621
AD, B 24/9.
1622
Cf. AD, B 21/2.
1623
NQ XLIII, 123: Agosto de 1920.
1624
NQ XLIII, 122: Julho de 1920.
1625
NQ XLIII, 131: Novembro de 1920.

316
Nesse trabalho monótono e, muitas vezes desanimador, o P. Dehon perseverou até ao fim da sua
vida. "Em cima da sua mesa de trabalho, no dia da sua morte, encontraram-se ainda cartas de propaganda
que preparava todas as manhãs, muito metodicamente, entre a meditação e a missa das sete, que desde
havia anos celebrava na capela de Bruxelas".1626

“NUNC DIMITTIS...”

Nos últimos anos da sua vida o padre Dehon continua a escrever e a publicar livros: a edição
definitiva do “Directório Espiritual”; dois volumes sobre “A Vida interior”, em 1919; a biografia do P.
Afonso Rasset, em 1920 e os dois volumes de “Estudos sobre o Sagrado Coração de Jesus”, em 1923.
Em Janeiro de 1922, morre Bento XV: “O nosso Papa do Sagrado Coração – escreve o P. Dehon –
o nosso Papa tão benevolente e tão querido! Sempre foi muito bom para connosco e em especial para
comigo. Ficou fel às nossas relações de amizade por 25 anos”.1627
O novo Papa Pio XI, já benfeitor da escola apostólica de Albino, a que envia uma das suas
primeiras bênçãos, anima a obra de Roma e oferece uma sua “primeira ajuda de 10.000 liras para a igreja,
emocionado até às lágrimas por não poder fazer mais. Tende confiança – diz-nos -, a obra far-se-á”. 1628
“Antes de morrer – escreve o P. Dehon no seu Diário – tenho a consolação de ver a obra bem
encaminhada”.1629
A 18 de Julho de 1922, o Papa confirma-o como Superior Geral vitalício, como já o tinha feito a sua
Congregação. “Não o desejei – escreve o P. Dehon – nem o pedi. Teria preferido acabar a minha vida no
recolhimento, na oração, na penitência. Mas direi como S. Martinho “Non recuso laborem”.1630
Em 1923, por ocasião do seu 80º aniversário, o P. Dehon escreve: “Enchem-me de provas de
simpatia e de benevolência: cartas de todos os lados, um breve do Papa, bonitas cartas dos cardeais
Gasparri e Laurenti e do bispo de Soissons (Henry.J Binet). É muito mais do que mereço”.1631
Mas o pensamento da proximidade da morte reaparece muitas vezes, com serena aceitação, nos
escritos do P. Dehon. Dialoga agora muito mais com os amigos do céu do que com os da terra. “Vivo com
todos os meus amigos do céu: a minha mãe tão piedosa, os meus santos directores... as nossas Irmãs... os
meus parentes e amigos, os meus filhos espirituais...”.1632 “São os últimos capítulos da minha vida na
antecâmara do céu”.1633 “Vivo muito com os meus mortos..., saúdo-os todas as manhãs e todas as noites,
com todos os meus protectores do céu”.1634 “Quase todos os meus familiares deixaram a terra. Vivo em
espírito com eles... Vivo com S. João na intimidade com Nosso Senhor”.1635 “Assisto à missa perene do
Céu”.1636 “Penso constantemente no céu. Vivo com os meus protectores e os meus amigos de lá de cima.
Suspiro por vê-los em breve: cupio dissolvi et esse cum Christo”.1637 “Preparo-me e penso todos os dias na
minha chegada lá acima”.1638
É uma despedida da terra, acompanhado por longos exames de consciência sobre a sua própria vida,
renovados constantemente no Diário, especialmente depois da aprovação definitiva das Constituições por
parte da Santa Sé, no dia 5 de Dezembro de 1923, “ao fim de quarenta e cinco anos de esforço e de
trabalho, através de mil dificuldades e contradições”. 1639 “A Santa Sé não mudou nada nas primeiras
páginas (das constituições) que nos indicam o fim e o espírito da Obra, porque a Igreja julga que o
1626
Philippe scj. Cartas circulares, 1, n. 9.
1627
NQ XLIV, 40: Janeiro de 1922.
1628
NQ XLIV, 48: Junho de 1922.
1629
NQ XLIV, 48: Junho de 1922.
1630
NQ XLIV, 48: Julho de 1922.
1631
NQ XLIV, 73: Março de 1923.
1632
NQ XLIV, 94: Novembro de 1923.
1633
NQ XLIV, 103: Abril de 1924.
1634
NQ XLIV, 139: Abril de 1924.
1635
NQ XLIV, 40: Dezembro de 1924.
1636
NQ XLV, 11: Janeiro de 1925.
1637
NQ XLV, 11: Janeiro de 1925.
1638
NQ XLV, 32: Fevereiro de 1925.
1639
NQ XLIV, 97: Dezembro de 1923.

317
Fundador tem uma graça especial para determinar tudo isso. Ele recebe de Nosso Senhor as luzes
necessárias. A fundação faz-se por inspiração divina”.1640
A aprovação definitiva das Constituições é uma grande graça...: “Nunc dimittis”. A Obra está
completa e dotada de todas as aprovações”.1641
Afectado por uma doença escreve: “Não estou mais apegado à vida. Cupio dissolvi et esse cum
Christo”.1642

POR ELE VIVO, POR ELE MORRO

Em Janeiro de 1925, começa assim o seu Diário o P. Dehon: “É o último caderno e, quem sabe, o
último ano. Fiat!... A minha carreira chega ao fim. É o crepúsculo da minha existência... O ideal da minha
vida, o voto que formulava por entre lágrimas na minha juventude era de ser missionário e mártir. Parece-
me que esse desejo se cumpriu. Missionário sou-o pelos meus mais de cem missionários que estão em
todas as partes do mundo. Mártir sou-o pelas consequências que Nosso Senhor deu ao meu voto de vítima,
especialmente de 1878 a 1884...”.1643
Até os problemas externos mais graves estão resolvidos e a organização do Instituto é mais sólida.
O P: Dehon compra a casa de Roma por 800.000 liras. Será a nova casa mãe. “Parece que a Congregação
se completa e organiza. Tudo isso ultrapassa as minhas previsões. É Nosso Senhor quem fez tudo, eu não
fiz mais que estorvar a sua obra”.1644
A 14 de Março de 1925, o ano do jubileu declarado por Pio XI, o P. Dehon completa 82 anos. Está
contente por poder ganhar na capela de Bruxelas as indulgências do jubileu: “É uma verdadeira alegria,
uma satisfação espiritual. Estou feliz... por ser purificado de todas as minhas culpas”.1645
Em Junho de 1925, escreve no seu Diário: “Para a festa do Sagrado Coração de Jesus faço meu este
pensamento de Santa Margarida Maria: Ó Coração de Jesus, esmoreço pelo desejo de unir-me a Ti, por
possuir-te, por abismar-me em Ti, que és a minha morada para sempre”.1646Estamos perto do “Último
degrau da escada secreta que torna a alma totalmente semelhante a Deus”.1647
Os dias do P. Dehon passam com a regularidade de um relógio. Levanta-se às cinco, celebra a
Missa às sete, segue pontualmente todos os exercícios comuns e, especialmente, as práticas de piedade.
Cada manhã, às oito, sai para comprar os jornais: “Saio todos os dias. Ao caminhar, leio o meu pequeno
livro: “Monita ad sacerdotes”. Fazendo isto comporto-me como S. Francisco: prego sem palavras”.1648
Em Julho de 1925, espalha-se por Bruxelas uma epidemia de gastrenterite e vários padres da
comunidade caiem doentes. O P. Dehon vai visitá-los e para todos tem uma boa palavra.
A 4 de Agosto, depois da missa, também o P. Dehon deve voltar para a cama. As suas condições
gerais são boas e os médicos estão optimistas. O próprio doente continua a ocupar-se dos assuntos da
Congregação com o seu assistente, o P. Philippe e, sobretudo, da preparação do nono Capítulo Geral que
deverá começar em Bruxelas a 15 de Setembro e continuar depois na casa de Lovaina.
A fonte mais autêntica e segura acerca dos últimos dias do P. Dehon é a longa carta escrita aos
membros da Congregação pelo P. Philippe, o seu primeiro sucessor, a 23 de Agosto de 1925, sobre a morte
do Fundador.1649
Durante as noites de insónia reza, oferece os seus sofrimentos pelo Instituto, passa em revista as
diversas Províncias e casas para ditar, no dia seguinte, “os seus desejos e as suas vontades” ao seu
Assistente Geral.

1640
NQ XLIV, 108: Maio de 1924.
1641
NQ XLIV, 79: Julho de 1923.
1642
NQ XLIV, 79: Julho de 1923.
1643
NQ XLV, 1-2: Janeiro de 1925.
1644
NQ XLV, 14: Janeiro de 1925.
1645
NQ XLV, 44 : Março de 1925.
1646
NQ XLV, 63: Junho de 1925.
1647
Noite escura II, 20,5.
1648
NQ XLV, 4: Janeiro de 1925.
1649
Cf. Philippe scj, Cartas circulares, 1, nn. 1-44.

318
Na noite de 9 para 10 de Agosto, o P. Dehon sofre um ataque agudo, acompanhado por uma notável
fraqueza do coração. Os médicos diagnosticam um perigo de morte.
A 10 de Agosto é o dia onomástico do Assistente Geral, o P. Lourenço Philippe. O P. Dehon manda
preparar flores, apresenta-lhe as suas felicitações e oferece-lhe um presente.
Também nos últimos dia da sua vida continua manifestando a sua nobreza de alma, o seu grande
coração, cheio de tacto e de solicitude para com todos; não se ouve nenhum lamento seu, antes expressa o
seu agradecimento pelo mais pequeno serviço, com uma palavra, um gesto amável. Está sempre contente.
Quer espalhar a alegria à sua volta. Enquanto as forças lho permitem, recebe os inumeráveis visitantes que
se interessam pela sua saúde, com a delicada bondade que lhe é habitual.
As últimas palavras escritas, quase ilegíveis, sobre uma folha de papel, foram para encarregar o P.
Philippe de enviara os parabéns a uma penitente do P. Prévot (Clara Baume), que celebrava o seu
onomástico a 12 de Agosto, festa de Santa Clara.
Se lamentava alguma coisa era o de ser pesado para alguém. “Ide descansar e não vos canseis”,
dizia aos confrades que queriam assisti-lo durante a noite.1650
Quanto aos seus parentes que acorreram a visitá-lo, parece que censure os seus religiosos por lhes
ter dado “um inútil incómodo” e desculpa-se “por não poder oferecer-lhes nem o jantar nem a hospedagem
para a noite”.1651
Todos à volta dele estão comovidos pela serenidade e abandono com que sofre as suas dores
agudas: “Sofro de manhã até à noite e da noite até a manhã”. De noite: “Fiz as catorze estações da Via-
Sacra”. Por vezes, aponta o crucifixo da cabeceira para dizer que está na cruz com Cristo e murmura com
frequência: “Expio pela Obra”.1652
Durante as intermináveis noites de insónia, a sua oração é contínua: “A noite convertia-se numa
comunhão espiritual” na espera da eucaristia que queria receber pela manhã, privando-se inclusivamente de
qualquer bebida: “Jesus é tudo, é o amigo. Trazei-me, pois, o meu Jesus”.1653
“Ao lado da cama tinha pedido que pusessem um postal que representava o conhecido quadro de
Ary Sceffer: S. João que descansa sobre o peito de Jesus. Dizia muitas vezes aos que o visitavam: Este é o
meu tudo, a minha vida, a minha morte, a minha eternidade”.1654
Nos primeiros dias de doença, o Assistente Geral, P. Philippe, propôs-lhe que se chamasse o seu
confessor ordinário, um Padre do SS. Sacramento. “Ele recusou dizendo: “Não é necessário, podeis vós
ouvir-me de confissão e dar-me a absolvição”. Antes de receber o Sagrado Viático quis renovar e acentuar
este acto de humildade, fazendo comigo a sua confissão geral”.1655
Até ao último suspiro conservará uma perfeita lucidez de espírito.
Encontrando-se por momentos a sós com o Irmão enfermeiro, a quem pouco antes tinha morrido o
pai, fá-lo tirar de uma gaveta do escritório um rosário, abençoa-o e oferece-lho sorrindo: “Não o digas a
ninguém; dentro em pouco irei para o céu a saudar o teu bom pai”.1656
Terça-feira, 11 de Agosto, o P. Philippe pergunta ao P. Dehon se quer receber a Unção dos
Enfermos. “Sim, sim, com todo o coração”, responde com estremecimentos de alegria, batendo palmas.1657
Antes de receber o Viático “renovou os seus votos de pobreza, castidade e obediência,
acrescentando “e de imolação”; repetiu várias vezes estas últimas palavras: “Por isto tenho necessidade da
cruz”.1658
Antes de receber a unção dos enfermos procura com o olhar todos confrades que estão à volta da
sua cama, chama-os um por um e sorri. Recorda todas as pessoas queridas e todos os seus filhos que estão
longe. “Dizei-lhes que penso em todos neste momento”. Agradece aos presentes os serviços que lhe

1650
Philippe, Cartas circulares, 1, n. 15.
1651
Philippe, Cartas circulares, 1, n.16.
1652
Philippe, Cartas circulares, 1, nn. 33-34.
1653
Philippe, Cartas circulares, 1, nn. 21-22.
1654
Philippe, Cartas circulares, 1, n. 22.
1655
Philippe, Cartas circulares, 1, n. 23.
1656
Philippe, Cartas circulares, 1, n. 18.
1657
Philippe, Cartas circulares, 1, n. 27.
1658
Philippe, Cartas circulares, 1, n. 27.

319
prestaram, pede perdão a Deus e aos homens das suas culpas, e o mesmo faz o P. Philippe em nome dos
membros da Congregação e pede para todos a sua bênção.
O P. Dehon abre os braços, traça o sinal da cruz, dizendo com voz clara e robusta: “Benedictio Dei
Omnipotentis: Patris et Filii et Spiritus Sancti descendat super vos et maneat semper, maneat semper,
maneat semper”; repete três vezes as últimas palavras, acompanhando-as de cada vez com um sinal da
cruz.1659
Quarta-feira pela manhã, 12 de Agosto, as crises cardíacas tornam-se sempre mais frequentes. O
fim já está eminente. “Sofro” diz o moribundo indicando o coração. O P. Philippe diz-lhe que se una ao
Coração de Jesus para a imolação total. “Sim”, murmura o P. Dehon, ao mesmo tempo que se ilumina o
seu olhar.1660
Cerca do meio dia entra em agonia. De repente, estende a mão até uma imagem do Coração de
Jesus e com voz clara exclama: “Por Ele vivo, por Ele morro”.1661 São as suas últimas palavras. Às 12,10
do dia 12 de agosto de 1925 exala o último suspiro.1662
As cerimónias fúnebres têm lugar em Bruxelas e, posteriormente, na basílica de S. Quintino a 19 de
Agosto de 1925. É nesta basílica, tão querida ao P. Dehon, que Mons. Binet, bispo de Soissons, pronuncia
a oração fúnebre na presença do Núncio apostólico Mons. Micara, de Mons. Grison, arcebispo de
Stanleyville (Kisangani-Zaire), dos vigários gerais, dos cónegos e de um grande número de párocos da
diocese de Soissons: “Uma página de grande história religiosa está para concluir-se...” assim começa
Mons. Binet. “A um dos filhos mais eminentes e mais ilustres do século XIX, a diocese de Soissons, da
qual eu também sou filho, oferece, através do meu ministério, as lágrimas de dor,... a imensa gratidão e
sobretudo o tributo de orações que se devem ao P. Dehon por muitos títulos”.
E os títulos são muito reais: antes de tudo as obras sociais realizadas em S. Quintino. O P. Dehon,
com os seus quatro doutoramentos podia “confinar-se... na torre de marfim da sua superioridade
intelectual”, mas, dando ouvidos ao convite de Leão XIII, foi ao povo. “Durante 20 anos qual é a grande
iniciativa levada a cabo em S. Quintino, no campo religioso, onde não se divise a mão e sobretudo a grande
alma do P. Dehon?”
Mons. Binet passa depois em revista o apostolado social do P. Dehon, o apostolado no campo da
educação e da formação da juventude, especialmente no colégio S. João por ele fundado e dirigido durante
tantos anos: “Com que veneração e com que emoção... os antigos alunos do S. João falam dele... Devia ser
verdadeiramente grande, sobretudo no coração, o P. Dehon, para ser tão querido!... Todavia às maiores
obras de Deus, às mais fecundas, não faltam contratempos... Para o P. Dehon... a montanha das bem-
aventuranças esteve perto do Calvário; mas não tinha ele emitido o voto de vítima? Seguindo um caminho
semeado de abrolhos e de espinhos, encontrou o Coração de Jesus, deu-se por inteiro a Ele com um bom
número de seus amigos... Mas também muitos sacerdotes do clero secular desta diocese devem o
desabrochar, o desenvolvimento e o cumprimento da sua vocação sacerdotal a este eminente e santo
sacerdote, de tão grande coração e tão disposto a dar..., que nunca se deteve perante as dificuldades, os
obstáculos, as desilusões; para o qual a palavra “impossível” não era francesa.
Como S. João Baptista, o P. Dehon não reservou zelosamente para si aqueles que tinha conquistado
nas ascensões espirituais, desde que fossem para Cristo e se pusessem ao seu serviço. Do dom de tantos
sacerdotes, a diocese de Soissons e os seus bispos, terão que estar eternamente gratos ao P. Dehon...”1663
Penso que para além das sombras e dos erros da vida terrena, também Mons. Thibaudier, Duval,
Deramecourt, se uniram a Mons. Binet na gratidão ao P. Dehon. A verdadeira história é sempre a do bem e
o que fica da vida é sempre e só o amor. Conforta-nos o juízo imparcial da história e mais ainda o de Deus.
Os restos mortais do P. Dehon foram colocados no túmulo da Congregação no cemitério S. João de
S. Quintino. Exumados em Outubro de 1963, descansam agora na igreja de S. Martinho, construída pelo P.
Dehon em 1890, num subúrbio de S. Quintino.
1659
Philippe, Cartas circulares, 1, n.17. 27-28. 40.
1660
Philippe, Cartas circulares, 1, n. 37.
1661
C.G. Kanters, Le T.R.P. Dehon, 85. P.L. Philippe na sua carta circular de 23 de Agosto de 1925 não alude a esta expressão
do P. Dehon moribundo. Mas é citada pelo P. Kanters no seu “Esboço biográfico” sobre o P. Dehon, escrito em 1932. Segundo o
P. H- Dorresteijn, o P. Kanters estava presente na agonia do P. Dehon. (Cf. Dorresteijn, Vita e personalità di P. Dehon, 313).
1662
Cf. Philippe, Cartas circulares, 1, n. 3.
1663
Cf. A. Ducamp scj, Le Père Dehon et son oeuvre, 555-559 e Notas e estudos, n. 16, P. da presente biografia.

320
Assim terminou a aventura terrena do Servo de Deus, o P. Leão Dehon. A sua causa de
beatificação, está introduzida em Roma. Estamos convencidos que um dia subirá à glória dos altares.

A CARIDADE NUNCA ACABARÁ

No final da vida não nos fica nada nas mãos, senão o amor. É um pensamento da pequena Teresa,
que o Padre Dehon assinou com gosto.1664
O P. Philippe escreve na carta sobre os últimos dias e sobre a morte do P. Dehon: “Entre os papéis
que contêm as suas últimas vontades, encontramos uma pasta com esta escrita: “Pacto com Nosso Senhor”.
O documento contém o seguinte texto escrito por sua mão: “Meu Jesus, diante de ti e de teu Pai celeste, na
presença de Maria Imaculada, minha mãe, e de S. José, meu protector, faço voto de consagrar-me por puro
amor ao teu Sagrado Coração, de dedicar a minha vida e as minhas forças à obra dos Oblatos do teu
Coração, aceitando desde já todas as provas e todos as sacrifícios que te aprouver pedir-me. Faço voto de
dar como intenção a todas as minhas acções o puro amor a Jesus e ao seu Sagrado Coração, e te suplico que
toques o meu coração e o inflames no teu amor para que não tenha só a intenção e o desejo de amar-te, mas
também a alegria de sentir, pela acção da tua santa graça, todos os afectos do meu coração centrados
unicamente em ti”.
A esta fórmula acrescenta a renovação diária assim concebida; “Jesus, renovo com amor o pacto
que fiz contigo: concede-me a graça de ser fiel”. Sobre o envelope, que contém este precioso documento,
está escrito: “Amicitiam tuam pretiosam, pauperculo tuo discipulo, reddere non dedigneris, Domine, fiat!,
fiat!. “Não desdenhes, Senhor, de dar a tua amizade ao teu pobre e pequeno discípulo, fiat!, fiat”.1665

1664
Cf. “Novissima Verba”: 12 de Julho de 1897.
1665
Philippe, Cartas circulares, 1, nn. 29-30.

321
Capítulo 22

Uma herança do P. Dehon: os escritos espirituais


O caminho da caridade - A oblação de amor - Experiência da cruz e infância espiritual - Nem quietismo nem dolorismo
- Misericórdia e perdão - Valorizar o sentimento - A Eucaristia - A efusão do Espírito - "A minha vocação é o amor!" - Limites e
fontes - "A devoção ao Sagrado Coração de Jesus, dom do nosso tempo e graça especial da França" (1885) - "Exercícios
espirituais do Sagrado Coração"(1897) - "O mês do Sagrado Coração de Jesus" (1900) - "O mês de Maria" (1900) - "A vida de
amor ao Sagrado Coração" (1901) - "Coroas de amor ao Sagrado Coração" (1905) - "O Coração sacerdotal de Jesus" (1907) - "O
ano com o Sagrado Coração" (1919) - "A vida interior" (1919) - Duas biografias (1914 e 1920) - "Estudos sobre o Sagrado
Coração de Jesus" (1922 e 1923) - Directório espiritual" (1919) - Outras obras (1914 e 1920).

O ensinamento do P. Dehon nos seus livros espirituais, centra-se na caridade. Esta é a verdadeira
originalidade do P. Dehon. Quem a procurasse noutra coisa ficaria desiludido.
As suas obras espirituais são principalmente "livros de meditação", nascidos de exigências
concretas e destinados a melhorar a vida dos seus leitores. É o Evangelho aplicado à vida. A algum crítico
esta aplicação pareceu excessiva. Daqui a acusação, em parte verdadeira, de moralismo.
Antes de nos determos sobre cada uma das obras do P. Dehon, procuremos analisar alguns temas
que caracterizam os seus escritos espirituais.

O CAMINHO DA CARIDADE

Os escritos do P. Dehon são interessantes quando tratam dos valores típicos do carisma dehoniano
e, especialmente, da oblação de amor. O que dá maior impacto é aquele seu olhar fixo na pessoa de Jesus.
Todas as suas meditações estão centradas nele. Parte da palavra de Deus e termina quase sempre com um
colóquio familiar entre o discípulo e o Mestre.
O P. Dehon faz sua a exortação do Apóstolo: “Tende em vós os sentimentos de Cristo Jesus" (Fil.
2,5), especialmente o seu amor. O caminho do amor torna a alma dócil à acção do Espírito : "Vivo em
vossos corações mediante o meu espírito (é Jesus quem fala)... É o meu coração que vive e reina mediante
o Espírito nos vossos corações. Escutai-me sempre".1666
Para o P. Dehon é essencial a conversão interior ao amor. Em 1896 escreve a sua primeira obra
espiritual "La Retraite du Sacré-Coeur" (O retiro do Sagrado Coração). Estamos no período mais intenso
do seu apostolado social. Pois bem, a sua experiência pessoal do amor de Cristo tem de estender-se a todos
os homens para que se realize o Reino do Coração de Jesus": "Reino de justiça, de caridade, de
misericórdia, de piedade para com os pequenos, os humildes e os que sofrem".1667
Em relação ao caminho do amor, O P. Dehon afirma: é "o caminho mais simples ... O amor tem um
só método: seguir o impulso da graça, que nos leva a amar. Tem uma só prática: amar em todo o tempo, em
todo o lugar, em todas as circunstâncias... Tem um só motivo: amar porque Ele ama. Um só fim: amar para
amar".1668
Daqui a centralidade para o P. Dehon do culto ao Coração de Cristo: para alimentar e conservar o
amor. É a finalidade do seu Instituto: "A vida de amor ao Coração de Jesus". Entre outras coisas diz o
Salvador: "Fazendo-me carne, revestindo uma forma sensível ... tornei palpável o amor divino, perceptível
aos sentidos dos homens".1669 E esta é a resposta do discípulo: "Compreendo a chamada do teu coração,
meu bom Mestre, e ardo no desejo de corresponder-te. Ofereço-me completamente a ti por teu amor. Quero
viver na tua dependência absoluta e fazer tudo contigo e por ti. Acolhe a minha oblação, abençoa-a,
fecunda-a com a tua graça para que seja generosa e perseverante".1670

1666
OSp I, 157.
1667
OSp I, 233.
1668
OSp II, 17-18.
1669
OSp II, 36-37.
1670
OSp II, 122.

322
Já conhecemos a crítica que fazia o P. Dehon aos Exercícios espirituais de S. Inácio (embora muito
os estimasse e praticasse) porque fazem esperar muito às portas do amor. Para o P. Dehon, o fundamento
de toda a vida espiritual é o amor. Não se pode entender o desígnio de Deus sobre a nossa vida e não se lhe
pode corresponder, se não se vê o amor. Por isso escreveu a sua primeira obra espiritual "Os exercícios
espirituais do Sagrado Coração": 40 meditações, que se referem todas ao amor, à bondade, à misericórdia,
começando pela primeira meditação: "Deus é amor".1671
Também as "Couronnes d'amour au Sacré-Coeur" (As Coroas de amor ao Sagrado Coração), são
um longo curso de exercícios espirituais (93 meditações) todas centradas no amor: "Queremos nestes
exercícios espirituais lançar as primeiras bases do nosso amor ao Sagrado Coração ... Antes de contemplar
o Coração de Jesus, é bom que nos detenhamos um pouco a considerar o próprio coração de Deus. Pode
dizer-se que desde o princípio da criação, muito antes de Deus nos dar o coração do seu Filho, a Santíssima
Trindade deu-nos o seu coração; ... "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança"(Gen. 1,26)".1672 O
amor de Deus que se revela desde o princípio da criação, manifesta-se mais sensivelmente na Incarnação,
na vida oculta de Cristo, na sua vida apostólica, na sua paixão, na eucaristia.
O P. Dehon admirava-se de haver um mandamento do amor. Eis a resposta do Mestre: "Vós não
deveríeis ter necessidade deste mandamento. A inclinação para o amor estava no íntimo do vosso ser. Amar
a Deus era o grito de toda a natureza humana depois da criação ... Como se não amar não fosse o maior de
todos os castigos!".1673 "Foi a recusa do amor, o pecado - escreve o P. Dehon - o que tornou necessário este
mandamento do amor... Preceito tão doce quanto justo",1674 especialmente depois da Incarnação do Verbo
de Deus: "A contemplação da minha santa humanidade - diz o Salvador - leva os corações a abandonarem-
se ao meu divino amor... Amando a minha humanidade, ama-se a mim e portanto ama-se a Deus, porque eu
sou Deus".1675

A OBLAÇÃO DE AMOR

À contínua e indefectível proposta de amor do Pai, do Filho, Verbo incarnado, Cristo Jesus, do
Espírito é preciso que o homem dê uma resposta de amor. À oblação de amor de Deus é necessário que
corresponda a oblação de amor do homem: "Nosso Senhor não nos pede conhecimentos profundos sobre a
perfeição; o que mais quer é que tenhais na vossa alma, no vosso coração, na vossa vontade uma só
preocupação: a de amá-lo e de demonstrar-lhe o vosso amor".1676 "Sim, meu bom Mestre, quero pensar em
ti, quero viver para ti, quero oferecer-te toda a minha vida, todas as minhas acções, todos os meus
sentimentos, com o amor a ti e com o agradecimento ao teu divino Coração".1677
Esta é a oblação de amor de toda a vida, expressa, segundo o P. Dehon, especialmente pelo "Ecce
venio": "Recordemos o "Ecce venio" de Cristo, que deve ser o lema preferido pelos amigos do seu
Coração. Este lema deve estar sempre em seus lábios, mas mais ainda em seu coração. Neste lema estão
contidos os três sacrifícios que resumem toda a sua vocação e a sua missão. Meu Deus, tu deste-me um
corpo para sacrificá-lo, ... um coração para amar..., uma vontade para imolá-la, como a mais preciosa das
vítimas, a mais agradável a Deus... Esta era também a disposição de Maria com o seu "Ecce Ancilla". "Ela
abandonava-se ao amor divino, disposta a sacrificar tudo à vontade divina". 1678 "Pronunciando o seu "Ecce
venio", o Sagrado Coração ofereceu-nos e continua a oferecer-nos com ele. Sem esta oferta, a nossa
oblação seria vã. Não pode ser agradável senão na sua oblação".1679
O "Ecce venio" caracteriza o sacerdócio de Cristo e o seu estado de vítima. O P. Dehon trata
abundantemente disto nas primeiras meditações da sua obra "O Coração sacerdotal de Jesus": "Ecce venio!

1671
Cf. OSp I, 33.
1672
OSp II, 189.
1673
OSp II, 26.
1674
OSp II, 26.
1675
OSp II, 37.
1676
OSp II, 123-124.
1677
OSp II, 126-127.
1678
OSp III, 33-34.
1679
OSp II, 206.

323
Nosso Senhor não é só sacerdote e vítima no Calvário; vem ter connosco como sacerdote e vítima no dia da
sua incarnação e continua para sempre".1680

EXPERIÊNCIA DA CRUZ E INFÂNCIA ESPIRITUAL

A oblação de amor para o P. Dehon inclui necessariamente, como para Cristo, a experiência da
cruz. O espírito de amor e de imolação caracteriza o carisma do P. Dehon.1681 "Um coração para amar, um
corpo para sofrer, uma vontade para ser sacrificada", escreve no Directório Espiritual para os seus
religiosos; 1682mas repete as mesmas palavras também a todos os amigos do Sagrado Coração. 1683 Se Jesus é
oblato de amor para sempre, como Ele, também devemos sê-lo nós.1684
Os conteúdos concretos da oblação de Cristo são: "O amor, a oração e o sacrifício. É toda a vida do
Sagrado Coração. É a sua oblação contínua. É também a nossa oblação". 1685 O P. Dehon insiste na oblação,
no espírito de infância espiritual,1686 feito de abandono e de amor confiante. "Ofereçamo-nos com
simplicidade; simplicidade no espírito, na fé sempre pronta e total; simplicidade no coração, no amor puro
e ingénuo; simplicidade na palavra; simplicidade nos desejos; simplicidade no nosso comportamento
exterior".1687
Deste "espírito de infância"1688, o P. Dehon tem uma especial predilecção pelo abandono de amor:
"Esta dependência de amor é um dos segredos do Coração de Jesus, uma verdade conhecida um pouco por
todos, mas praticada por poucos. Se a compreendermos bem, se vivermos habitualmente nesta dependência
amorosa, iremos longe e velozmente pelo caminho pelo qual Nosso Senhor nos quer conduzir".1689 E pouco
antes afirma: “Deve-se praticar esta dependência, não somente nas nossas acções externas, mas também na
nossa vida interior; não precedamos a hora da graça de forma imprudente, não façamos esforços humanos
para superar o grau de amor que quer colocar em nós; o que faz falta é boa vontade e contínua
disponibilidade; abandonemos o nosso espírito e o nosso coração nas suas mãos... Estejamos atentos para
não sermos surdos à sua palavra, aos apelos da graça... Sim, cada um dos nossos corações há-de ser uma
fibra do Coração de Jesus e não terá já mais pulsações, senão sob o impulso das pulsações do Coração de
Cristo".1690
Nas relações com as almas, às vezes "o nosso egoísmo abafa em nós a própria caridade do Coração
de Jesus".1691 O abandono traz consigo "a confiança no Coração de Cristo. É ao mesmo tempo um acto de
fé, de esperança, de caridade... A confiança levar-nos-á à vida interior, à contemplação...".1692

NEM QUIETISMO NEM DOLORISMO

Sabemos que, para o P. Dehon, a oblação de amor inclui a experiência da cruz. Assim se realiza a
reparação. O P. Dehon, assim como está longe do quietismo, também está longe do dolorismo. Escreve:
"Não há nem pequenas nem grandes cruzes; há só um pequeno e grande amor... Bebamos o amor a grandes
tragos e ser-nos-á fácil subir o monte Calvário; bebamos o amor, e as cruzes de madeira ou de ferro tornar-
se-ão de palha... Embora amando e praticando as mortificações ordinárias, não procuremos as
mortificações excepcionais, aceitemos as que o Mestre divino nos manda. É a característica da devoção de
1680
OSp II, 537.
1681
Constituições (1956), cap. II.
1682
DS, n. 6.
1683
OSp II, 34.
1684
Cf. OSp II, 215.537; III, 33-34.
1685
OSp II, 215.
1686
"L'esprit d'enfant dans l'Evangile... l'esprit d'enfance": OSp II, 221-222.
1687
OSp II, 216.
1688
OSp II, 222.
1689
OSp II, 243.
1690
OSp II, 243.
1691
OSp II, 276.
1692
OSp II, 282-283.

324
abandono e confiança no Coração de Jesus. Pertence-lhe escolher o que quer de nós... Determinar o modo,
o tempo, a duração da imolação... Os que se imolam a si mesmos, em lugar de deixar-se imolar, encontram-
se continuamente perturbados se a Providência mudar de improviso a cruz que eles próprios para si
escolheram. "De boa mente sofro as penas espirituais, mas a doença mete-me medo... Aceito a doença, mas
suportar o desprezo, as contrariedades..., não quero nem falar!"... Tudo isto demonstra que não amo
suficientemente o Sagrado Coração e, pelo contrário, amo muito a mim mesmo".1693

MISERICÓRDIA E PERDÃO

E é precisamente esta a primazia do amor e da oblação por amor o que preserva habitualmente o P.
Dehon de exageros, quando fala do pecado, da sua expiação, da justiça de Deus.
A expiação biblicamente entendida é já um caminho de amor visto que torna a alma agradável a
Deus. É o filho pródigo que, reconhecendo humildemente o seu pecado, se encaminha para o abraço do
Pai.
Nos tempos do P. Dehon, tinha-se uma visão muito negativa da expiação. Dominava uma
concepção humano-jurídica da justiça divina, que viciava a realidade bíblica da expiação. Um reflexo desta
concepção encontramo-lo no discurso do jovem coadjutor L. Dehon sobre a reparação, por ocasião das
Quarenta horas na Basílica de S. Quintino em 1874, onde coloca em relevo a justiça vindicativa da cólera
divina que é necessário aplacar. Era então muito jovem e a cultura do seu tempo pesava sobre ele. Insistia-
se muito na pregação daquele tempo sobre a justiça divina que exige um castigo adequado para o pecador;
este devia satisfazer o seu pecado com o sacrifício, em medida rigorosamente proporcional.1694
No plano teórico, predominava uma concepção da justiça divina de tipo comutativo: equação
perfeita entre quantidade de pecado e quantidade de expiação. Criava-se deste modo uma espécie de
rivalidade inaceitável entre justiça e misericórdia de Deus que obscurecia o aspecto profundo e misterioso
da justificação, ou seja, da justiça de Deus que torna justos, que salva e santifica o homem quando este se
abre à humildade e ao amor. Só assim a justiça de Deus é bondade, graça, misericórdia em Cristo Jesus.
Este é o desígnio salvífico de Deus.
Detivemo-nos sobre a noção de expiação que dominava na doutrina teológica e na pregação nos
tempos do P. Dehon e evidenciámos as sua carências. Lendo as suas obras espirituais, embora descobrindo
aqui e ali o eco desta doutrina, verificamos como não é predominante e como não corresponde às suas mais
profundas e pessoais convicções.
Colhemos o autêntico pensamento do P. Dehon quando ele afirma que Deus castiga para curar, para
perdoar e, sobretudo, que a expiação tem valor só se é inspirada pelo amor: "A justiça de Deus é para curar
e perdoar".1695 "Deus só tem desígnios de misericórdia para os seus filhos; se castiga é só para perdoar". 1696
"O que Nosso Senhor pede, especialmente para consolá-lo, é o amor dos nossos corações... Os outros actos
não lhe são agradáveis, se não na medida em que são ... uma efusão de amor".1697
Entre estes actos estão os sacrifícios, as preocupações, as dores. Sem amor, são apenas uma nua,
inútil cruz sem Jesus. O cristianismo, para o P. Dehon, não é a religião da dor, mas da caridade, mesmo se
a dor é uma expressão do amor. É a caridade que deve animar todos os acontecimentos, mesmo os mais
desagradáveis e dolorosos da vida; de outro modo não têm valor.1698
Por isso mesmo, falando da devoção ao Coração de Cristo, o P. Dehon chama-a uma "graça",
porque facilita a "vida de amor... Todos os amigos do Sagrado Coração podem repetir (as palavras de S.
João): "Nós acreditámos no amor" (cf. 1Jo 4,16) e contemplamos continuamente o seu símbolo no divino
Coração de Jesus".1699

1693
OSp II, 307.
1694
F. NHV X, 102.104-105.
1695
NQ XXXV, 103: Outubro de 1914.
1696
Cartas circulares, n. 220.
1697
OSp. III, 190..
1698
Cf. OSp III, 359-360
1699
OSp II, 382.

325
VALORIZAÇÃO DO SENTIMENTO

Com a devoção ao Coração de Cristo, o P. Dehon dá valor ao sentimento, respondendo a quem o


despreza: "Mas, dir-se-á: o sentimento é bem pouca coisa em si mesmo. É uma afirmação falsa. O
sentimento não é certamente o amor; isso é verdade; mas está intimamente unido ao amor e quando se
torna sobrenatural, como acontece na devoção ao Sagrado Coração de Jesus bem entendida, que efeitos
imensos não produz!... Preserva do sentimentalismo vago, feito de imaginação e de carne, que tantas
vítimas produz nos dias de hoje e é o oposto ao são sentimento que provém de um coração
sobrenaturalizado... Quem ousaria combater o amor de um filho pelo seu pai, de uma mãe pelos seus filhos,
com o pretexto de que este amor está baseado principalmente no sentimento? Nada de mais terno e, ao
mesmo tempo, de mais forte...".1700

A EUCARISTIA

A eucaristia e a efusão do Espírito Santo têm sempre uma importância única na vida e nos escritos
do P. Dehon.
"O perfeito Oblato do Coração de Jesus não deve ser só desprendido, já que um homem
simplesmente desprendido está sempre pronto a apegar-se a qualquer coisa; deve nadar no amor do
Coração de Jesus... Os mais avançados já ultrapassaram a fronteira do desprendimento e lançam-se nas
esferas do amor, ou seja na contemplação, já que contemplação e desprendimento são uma coisa só.
Conhecemos os meios para aí chegar: o desejo ardente, a mortificação das paixões, a elevação contínua dos
nossos afectos e dos nossos pensamentos para o Coração de Jesus E este é um meio que resume todos os
meios: as comunhões fervorosas, os colóquios ardentes com este divino Coração que mora no sacrário".1701
O P. Dehon trata da Eucaristia nos seus escritos com a maior frequência. À eucaristia está dedicada
a terceira parte das "Couronnes d'amour au Sacré-Coeur", 1702 assim como quase todo o mês de Junho de "O
ano com o Sagrado Coração",1703 para além do livro "O coração sacerdotal de Jesus".1704
Um estudo completo sobre a eucaristia e sobre o sacerdócio nos escritos do P. Dehon, com todas as
reflexões pessoais que contêm, aprofundará aspectos preciosos da sua experiência de fé e do seu carisma,
especialmente em relação à missa, à adoração, à reparação eucarística.
Referindo-se ao sacerdócio escreve: "Os sacerdotes são o coração da Igreja, o órgão mais íntimo e
mais activo de Jesus, o motor principal com o qual o seu sacerdócio leva a vida para todo o lado. É preciso
que o sacerdote seja o coração da Igreja com as suas virtudes, com a sua piedade..., o seu fervor, o seu
zelo".1705
"Um amigo do Coração de Jesus - termina o P. Dehon - deve ser uma missa perene com a vida de
amor e de imolação";1706por outras palavras, deve realizar a experiência mística do apóstolo Paulo: " Já não
sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20).

A EFUSÃO DO ESPÍRITO

O P. Dehon trata também demoradamente da efusão do Espírito, dos seus dons, dos seus frutos. A
isto dedica boa parte do mês de Maio na sua obra: "O Ano com o Sagrado Coração": 1707 "Seguir a guia do

1700
OSp II, 387.
1701
OSp II, 427.
1702
Cf. OSp II, 403-516.
1703
Cf. OSp II, 607-708.
1704
Cf. OSp II, 517-628.
1705
OSp II, 473.
1706
OSp II, 512.
1707
OSp III, 541-600. Relativamente à doutrina sobre o Espírito Santo, o P. Dehon inspira-se na obra de L. Lallemant, Dottrina
spirituale, Roma 1985, pp. 179-263, quaro princípio: "A docilidade à guia do Espírito Santo".

326
Espírito Santo, corresponder às inspirações divinas, esta há-de ser a minha constante ocupação e toda a
minha vida. Mediante o Espírito, o Coração de Jesus fala-me e conduz-me".1708 Segundo o P. Dehon, "os
dois pólos de toda a espiritualidade" são: "A purificação do coração e a direcção do Espírito... O fim a que
devemos tender, depois de nos termos exercitado muito na purificação do coração, é o de estar totalmente
possuídos e governados pelo Espírito Santo; que seja só Ele a guiar as nossas faculdades e todos os nossos
sentidos..., como guiava a santa humanidade do Salvador... Abandonemo-nos inteiramente a Ele...".1709
O P. Dehon, nos seus livros espirituais, é como uma árvore carregada de frutos. Nós escolhemos
alguns para experimentar o seu sabor. Todos têm o gosto doce e maduro da caridade, como frutos que são
do Espírito Santo: "A caridade é como o único fruto do Espírito Santo... que tem uma infinidade de
excelentes propriedades... A caridade é alegre, cheia de paz, paciente, benigna, repleta de bondade, doce,
fiel, modesta, continente, casta... é o fruto por excelência do Espírito...".1710

"A MINHA VOVAÇÃO É O AMOR"

O pensamento vai espontaneamente até a pequena Santa Teresa de Lisieux que experimenta em si
todas as vocações; mas como realizá-las? Lê então em S. Paulo: "Aspirai, porém, aos melhores dons. Aliás,
vou mostrar-vos um caminho que ultrapassa todos os outros" (1Cor 12,31). E o apóstolo explica como os
dons mais perfeitos não são nada sem a caridade. A caridade é o caminho por excelência que leva, com
segurança, até Deus.
"Finalmente, tinha encontrado a tranquilidade - continua a santa. Ao considerar o corpo místico da
Igreja, não conseguira reconhecer-me em nenhum dos membros descritos por S. Paulo ou, melhor, queria
identificar-me com todos eles. A caridade ofereceu-me a chave da minha vocação... Compreendi que a
Igreja tem um coração, um coração ardente de amor; compreendi que só o amor fazia actuar os membros
da Igreja e que, se o amor viesse a extinguir-se, nem os apóstolos continuariam a anunciar o Evangelho
nem os mártires a derramar o seu sangue; compreendi que o amor encerra em si todas as vocações, que o
amor é tudo e que abrange todos os tempos e lugares, numa palavra, que o amor é eterno".
"Então, com a maior alegria da minha alma arrebatada, exclamei: Ó Jesus, meu amor! Encontrei
finalmente a minha vocação. A minha vocação é o amor!" 1711 Esta mesma alegria pôde experimentá-la o P.
Dehon: "A minha vocação é o amor!".
Concluindo, apraz-me exprimir, acerca do P. Dehon, aquilo que ele diz dos verdadeiros apóstolos.
Aplica-se de modo surpreendente a ele, a todo o seu apostolado, também de escritor: "Entremos no
Coração de Jesus, tomemos o seu amor para pregar aos homens o amor".1712 Como Jesus, os verdadeiros
apóstolos devem "ser coração", devem haurir a sua palavra do Evangelho: "O livro que devem estudar
continuamente, meditar e até, por assim dizer, devorar... Assim realizarão o desejo ardente de Nosso
Senhor: "Vim à terra para atear-lhe o fogo, o fogo do amor...". Procurem pregar aos pobres, aos pequenos,
aos fracos, aos pecadores com simplicidade: "simplicidade na expressão, simplicidade nas ideias, o que não
exclui a profundidade. Que há de mais simples e de mais sublime que o Evangelho?".1713 "Pregai o grande
jubileu do amor e da misericórdia, ou seja a devoção ao Coração de Jesus que devemos anunciar a todos de
forma que incendeie o coração de todos. Para nós é o primeiro dos nossos deveres e cumpri-lo-emos bem,
se nós próprios estivermos cheios de um terno e generoso amor ao Coração de Jesus".1714
E insiste ainda: "O Evangelho é como a eucaristia, o Sacramento do Coração de Jesus. O Coração
de Jesus lá está, escondido com o seu amor e os seus tesouros de graça e de vida. Devemos amar e estudar
todos os evangelhos; mas de um devemos apaixonar-nos: do de S. João. Para ter êxito no anúncio da

1708
OSp III, 549.
1709
OSp III, 544. O P. Dehon segue quase literalmente Lallemant, o.c., pp. 187-188.
1710
OSp III, 571-572.
1711
S. Teresa do Menino Jesus, Gli scritti, Roma 1970, MA, 253-254.
1712
OSp II, 261.
1713
OSp II, 260-261.
1714
OSp II, 261.

327
palavra de Deus, o mais importante não é estudar Massillon, Bourdaloue e Bossuet: é preciso estudar o
Coração de Jesus no Evangelho; está tudo lá".1715

LIMITES E FONTES

Anunciar o Evangelho: é a finalidade que o P. Dehon se propôs com os seus escritos e com toda a
sua vida: mas é bom relevar, não só os aspectos positivos, mas também as várias limitações que têm os
escritos do P. Dehon nos conteúdos doutrinais.
Nos escritos do P. Dehon falta, geralmente, a originalidade do pensamento, a intuição pessoal e
profunda da verdade. Normalmente não é nem sequer um elaborador de ideias de outros, o que suporia uma
boa dose de originalidade; mas é mais um grande assimilador.
A originalidade típica do P. Dehon está no "coração": ele escreve verdadeiramente com o coração.
Por isso a preferência, nas obras espirituais, pelo diálogo familiar entre discípulo e Mestre; enquanto que
nas obras sociais, o ardor do seu coração se exprime em formas de apologia, para nós anacrónica, que
denota porém, no P. Dehon, um apaixonado amor à Igreja, num tempo de acentuado anticlericalismo, e um
desejo ardente do advento do Reino de Cristo "nas almas e nas sociedades" segundo o título programático
da sua revista mensal, publicada de 1889 a 1903.
Ir com o coração ao Coração de Cristo é a perspectiva verdadeira para avaliar, não só a vida, mas o
carisma do P. Dehon e os seus escritos.
Os escritos espirituais do P. Dehon, para serem plenamente avaliados e compreendidos, devem ser
estudados no contexto sócio-cultural-religioso, que caracterizou a França na segunda metade do século
XIX.
A sua visão teológica, exegética, moral é típica do período que precedeu e seguiu o concílio
Vaticano I. Já falámos disso. O P. Dehon, tão progressista no campo social, é muito prudente e conservador
no campo teológico e bíblico.
Uma parte da vida activa do P. Dehon, entre os 50 e os 70 anos, corresponde à crise modernista. Daí
a sua desconfiança pela crítica textual bíblica, isto é "a crítica interna e suas fantasias".1716 O P. Dehon,
nomeado por Leão XIII, em 1897, consultor do Índice, segue sempre as directrizes da Santa Sé por
convicção pessoal.
Como não é um teólogo de profissão, não é também um exegeta. Usa a Escritura em sentido literal
e, muitas vezes, recorre ao sentido acomodatício: "Servia-me, como faz a Liturgia, do sentido acomodatício
para os diversos textos da Escritura".1717
Tem uma especial predilecção pela interpretação simbólica da Escritura. É "um simbolista
apaixonado" diz Dorresteijn.1718 Se tivesse vivido nos tempos antigos ter-se-ia encontrado à sua vontade na
escola exegética alexandrina: inspira-se nesses Padres. E depois o simbolismo está tão presente na própria
Escritura, que o P. Dehon sente-se encorajado a usá-lo abundantemente.
Todos os acontecimentos da salvação explicam-se sempre e só pelo amor. No centro da história da
salvação está o coração: o Coração de Cristo: Tudo isto vale de modo especial para o Evangelho: "O
Coração de Jesus, o amor de Jesus é todo o Evangelho".1719 Noutros pontos doutrinais o P. Dehon
ressente-se das carências teológicas e bíblicas do seu tempo. Apresenta a revelação do amor de Deus nos
três mistérios: a incarnação, a paixão e a eucaristia; parece que lhe escape a centralidade do mistério pascal,
embora o trate na sua obra "O ano com o Sagrado Coração".1720 São deficiências que não destroem o
elemento fundamental e unificador dos escritos espirituais do P. Dehon: o amor e a oblação de amor.
As obras espirituais do P. Dehon, para além dos elementos caducos, moralistas, espiritualistas,
próprios do tempo em que viveu, conservam, em grande parte, uma viva actualidade, pela perspectiva do
1715
OSp II, 261-262.
1716
NQ XXIII, 49: Fevereiro de 1907.
1717
NHV IX, 180-181.
1718
H. Dorresteijn scj, Vita e personalità di P. Dehon, 330.
1719
OSp V, 447.
1720
Cf. OSp III, 373-393. No tempo pascal, o P. Dehon propões principalmente as meditações sobre o mandamento da caridade e
da oração de Jesus (c. 17 de S. João) cf. OSp III, 403-495.

328
amor presente em tudo, pela caridade que embebe quase cada página. Não há que admirar-se, pois, pelo
facto do amor ser o valor que sobressai do carisma dehoniano. O P. Dehon, falando ao coração é, em
muitos dos seus escritos, um mestre de espiritualidade sempre actual.1721
Quanto às fontes a que recorre o P. Dehon, temos uma preciosa indicação no prefácio de "O ano
com o Sagrado Coração" escrito em 1909: "A que fontes recorremos para nos ajudar? Às fontes divinas do
Evangelho de S. João, onde o espírito do Sagrado Coração se encontra apenas dissimulado sob um ligeiro
véu; depois, às cartas de S. Paulo, tão ricas em conselhos ascéticos; e também aos escritos dos que bem
podem ser chamados os evangelistas do Sagrado Coração, como Santa Gertrudes, Santa Margarida Maria e
São João Eudes. Fundamentamos também muitas reflexões nos melhores guias ascéticos, como S.
Francisco de Sales, o P. Saint-Jure, o P. Lallemant. Acerca de muitos temas seria um engano pretender
dizer algo de melhor do que dizem estes autores espirituais". 1722 É interessante pôr em relevo o facto de a
fonte principal dos escritos espirituais do P. Dehon ser a S. Escritura, especialmente o Evangelho de S.
João e as cartas de S. Paulo. De facto, as fontes da espiritualidade francesa do oitocentos são antes de mais
a Bíblia e depois as obras espirituais dos autores antigos e modernos.
Em Dezembro de 1900, escreve no Diário: "O meu 'Mês do Sagrado Coração' está a ser impresso;
corrijo as provas... corrijo também as provas das minhas conferências sociais, que se publicam em livro.
São trabalhos um pouco superficiais; mas o tempo está tão ocupado pela correspondência!".1723
Creio que o P. Dehon dê este desapaixonado juízo, em parte pelo conteúdo e pela sua apresentação
e em parte também pela quase total ausência, nas suas obras, de um aparato crítico. É uma empresa quase
desesperada chegar às fontes do texto e das numerosas citações. O P. Dehon não se preocupa dos críticos;
escreve para a vida, para ajudar os seus leitores a valorizá-la de modo melhor. Essa é a razão pela qual as
deficiências "científicas" das suas obras de espiritualidade não destroem a sua força vital: aquela caridade e
aquela oblação de amor que se desprendem quase de cada página das suas obras.
Revendo as meditações das "Couronnes d'amour au Sacré-Coeur" que tinha publicado, meditação a
meditação, na revista "Le Règne du Coeur de Jésus...", começando em Julho de 1901, o P. Dehon escreve
no seu Diário: "Completo estas meditações. É uma graça para mim. Coloco-me na disposição de um
ardente amor ao Sagrado Coração. É o único caminho pelo qual posso seguir com um pouco de
segurança... É a minha vida, a minha vocação".1724
Para reviver os sentimentos de Cristo, acolher os seus desejos, as suas ideias, os seus afectos, faz
falta a docilidade à acção do Espírito Santo: “Sou eu, é o meu coração que vive e reina por meio do
Espírito nos vossos corações. Escutai-me sempre". Assim fala o Mestre ao discípulo.1725
Não é suficiente preocupar-se da própria santificação pessoal; é preciso trabalhar pelo advento do
Reino de Cristo na sociedade, "reino de justiça, de caridade, de misericórdia e de piedade para com os
pequenos, os humildes, os que sofrem".1726

"A DEVOÇÃO AO SAGRADO CORAÇÃO"

Aflorámos os temas principais que o P. Dehon trata nos seus escritos espirituais, sem a pretensão de
apresentar uma síntese ou um estudo profundo; é só uma orientação, com a esperança de que os leitores
contactem os escritos espirituais do P. Dehon, os meditem e, alguns, os estudem em profundidade.
Deitamos agora um olhar sobre cada uma das suas obras.

1721
Além da publicação das obras espirituais do P. Dehon em sete volumes, publicou-se em dois volumes uma antologia dos seus
escritos espirituais de maior actualidade. Vita d'amore nel Cuore di Gesù, Milão 1980, pp. 298; Sì all'amore... nel Cuore di
Gesù, Milão 1985, pp. 318 por mão do P. Manzoni scj.
1722
OSp III, 9.
1723
NQ XVI, 45: Dezembro de 1900.
1724
NQ XIX, 69: Fevereiro de 1905. O núcleo de "Couronnes d'amour" encontra-se nos exercícios espirituais que o P. Dehon
pregou aos seus religiosos em 1881 (cf. AD, B 5/4). É um caderno que depois de uma meditação preliminar, refere o plano dos
exercícios: encarnação, paixão, eucaristia, e apresenta 20 meditações com o título geral: primeiro curso de exercícios espirituais:
Encarnação".
1725
OSp I, 157.
1726
OSp I, 233.

329
A devoção ao Sagrado Coração de Jesus, dom do nosso tempo e graça especial da França é um
opúsculo de 32 páginas. Reproduz o discurso sobre o Sagrado Coração feito por Leão Dehon na basílica de
S. Quintino a 12 de Junho de 1885.
Começa com a prescrição do Levítico (6,5) de ter sempre aceso o fogo do altar, sinal da
continuidade do culto de Israel a Deus.
Este fogo simboliza para o P. Dehon o culto de amor do Coração de Cristo ao Pai. Preanuncia o
fogo com que quer inflamar a terra (cf. Lc 12,49). Realizou-se com o dom do culto ao Sagrado Coração nos
nossos tempos, dom feito de modo particular à França.
O P. Dehon tece um quadro grandioso do sacerdócio de Cristo, segundo as diversas manifestações
ao largo da história da Igreja: desde a do Bom Pastor nas catacumbas, ao monograma da cruz, ao culto
eucarístico que levou Urbano IV a instituir a festa do Corpo de Deus (Corpus Christi), até às revelações do
Coração de Cristo a Santa Margarida Maria e às intervenções dos papas relativas ao culto do Sagrado
Coração de Jesus.
Passa depois a tratar dos benefícios e das graças feitas pelo Coração de Jesus à França durante os
séculos da sua história e, particularmente, à diocese de Soissons e Laon e à cidade de S. Quintino.
É um bonito discurso, comovedor, composto segundo os bons cânones da oratória do oitocentos.

"OS EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS DO SAGRADO CORAÇÃO"

La Retraite du Sacré-coeur é o primeiro dos numerosos livros de temas espirituais que o P. Dehon
publicou.1727
No prefácio à edição original francesa o P. Dehon afirma: "Há anos encontrei um ancião padre da
Companhia de Jesus, director de uma casa de Exercícios espirituais que me disse: "Reuni todos os livros de
exercícios espirituais editados até agora e não encontrei quaisquer exercícios espirituais à luz do Coração
de Cristo". Este pensamento impressionou-me. Pus mãos à obra e procurei compor um curso de exercícios
espirituais do Sagrado Coração".1728
No Diário, o P. Dehon escreve simplesmente: "O meu 'Retraite du Sacré-Coeur' veio à luz. Ofereci-
o ao Cardeal Rampolla e ele enviou-me uma carta muito estimulante".1729
E nas Memórias, recordando os primeiros exercícios espirituais feitos, como seminarista, em Santa
Clara (Roma), no Outono de 1865 e pregados pelo P. Rubillon, assistente geral dos Jesuítas. Leão Dehon
escreve: "Apreciei profundamente estes exercícios... Têm, porém, qualquer coisa que não se coaduna com
o meu temperamento e com a atracção da graça: Fazem esperar muitos dias antes de falar do amor de Deus.
"O homem foi criado, afirma S. Inácio, para louvar, honrar e servir a Deus e, com estes meios, salvar a sua
alma". Pessoalmente não me teria ficado por aí e o meu coração continua a dizer-me que o homem foi
criado sobretudo para amar a Deus. Não é porventura este o fim principal que Deus tem em vista? Não é
acaso isto que nos pede desde o princípio do decálogo?".1730
Talvez a crítica do jovem L. Dehon não era muito pertinente, pelo menos em relação aos conteúdos,
já que louvar a Deus é amar a Deus, honrá-Lo e servi-Lo, é manifestar-Lhe o próprio amor.
O P. Dehon, ao apresentar "La Retraite du Sacré-Coeur", reconhece a imperfeição da sua obra (e
quem pode pretender ser perfeito ao tratar do amor de Cristo?); nutre uma só esperança acerca do seu
esforço pessoal: guiar as almas que usarem as suas meditações, ao menos até ao limiar da porta do Coração
de Jesus. Confia que será depois o Bom Mestre aquele que acolherá estas almas e as introduzirá no seu
coração para transformá-las com o seu amor. E o P. Dehon termina assim: "Pedimos ao Sagrado Coração
que abençoe e dê fecundidade a este pequeno trabalho. Perdoar-nos-á o ter falado tão ’mal’ d'Ele".1731
As meditações de "La Retraite du Sacré-Coeur" têm, na obra original do P. Dehon, uma estrutura
típica ligada aos bons costumes dos tempos passados, quando cada religioso, à noite, antes de ir dormir,
1727
Cf. OSp I, 27-336.
1728
OSp I, 31.
1729
NQ XII, 14: Janeiro de 1897. O imprimatur de "La Retraite..." é de 18 de Julho de 1896. É um volume em 18, de 4l6 páginas,
editado por Casterman (Tournai, Bégica).
1730
OSp I. 31.
1731
OSp I, 31.

330
preparava a meditação do dia seguinte. Para a véspera o P. Dehon apresenta ao leitor um trecho evangélico,
ordinariamente abundante, primeiro em latim e depois em francês, e ainda um resumo da meditação.
Para o dia seguinte convida a ler de novo o trecho evangélico da véspera. Continua depois a
meditação, dividida em três pontos, em forma de diálogo entre o discípulo e o Salvador. Nascem
espontâneos os afectos e os propósitos. No fim é apresentado um “ramalhete espiritual”, com breves frases
da Escritura, que ajudam a alma a recordar mais facilmente, durante o dia, a meditação e os propósitos
feitos.
O diálogo entre o discípulo (a alma que medita) e o Mestre (Cristo, apresentado como amor no
Coração de Jesus) dá a cada meditação um tom de colóquio familiar, animado pela confiança, coração a
Coração, de acordo com os temas predominantes do amor e da misericórdia.
As meditações mais bonitas e emocionantes tratam da misericórdia do Coração de Jesus. São
considerações muito sóbrias, que expressam a fé e o amor a Cristo e ao Pai e um vivo sentimento de
humildade ao reviver a situação espiritual e psicológica dos personagens sobre os quais se derrama a
misericórdia do Pai e de Cristo: é o filho pródigo, Zaqueu, a Samaritana, a Madalena, Pedro, sem nunca
resvalar para um sentimentalismo vazio e fantasioso.
O tom de conversa familiar empregado pelo P. Dehon, é uma fórmula certamente feliz, que convida
à leitura do texto.
Na introdução ao original francês o P. Dehon escreve: "Deixemos falar, nestas meditações,
directamente a Nosso Senhor. Muitos pensarão que somos atrevidos e temerários. O autor da imitação de
Cristo e outros autores espirituais fizeram-no e nós imitámo-los. Queira Nosso Senhor falar ele mesmo à
alma em oração: "Atraí-la-ei a mim, levá-la-ei ao deserto e falarei ao seu coração" (Os 2,16). É preciso pôr
as almas na disposição de entender o Senhor e de escutá-Lo".1732
Entender e escutar o Senhor, com a vida, é uma meta espiritual muito sábia e parece-nos que o P.
Dehon a terá conseguido.

"O MÊS DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS"

O ano de 1900 é um ano de intensa actividade social e editorial do P. Dehon.


Publica a obra "La rénovation sociale chrétienne", ou seja as famosas conferências sociais feitas em
Roma em 1897 e nos anos seguintes; um total de nove conferências. Continua a publicação da sua revista
mensal "Le Règne du Coeur de Jésus..."; publica O mês do Sagrado Coração de Jesus, sobre as ladainhas
do Sagrado Coração e O mês de Maria, sobre a ladainha da Santíssima Virgem.
Escreve no Diário: "O mês de Outubro tem sido um mês de trabalho tranquilo e assíduo. Escrevi o
"Mês do Sagrado Coração" para o editor Klotz (era na realidade o director da editora René Haton).
Experimentei uma grande alegria e grande edificação neste trabalho. Espero que faça algum bem. Se
tivesse tempo suficiente escreveria a Suma do Sagrado Coração, onde reuniria tudo o que se refere a esta
querida devoção. Tenho já muito material recolhido". 1733 Em 1922-1923 publicará um contributo para esta
Suma com o título: "Etudes sur le Sacré-Coeur de Jésus" em dois volumes.
No mês de Novembro de 1900, o P. Dehon escreve no Diário: "Outro bom mês de trabalho. Escrevo
o Mês de Maria" com não menores alegrias espirituais que o Mês do Sagrado Coração. Estes dois meses
são para mim como um grande curso de exercícios espirituais".1734
Conhecendo o intenso apostolado social do P. Dehon, os seus muitos compromissos como
Fundador e Superior Geral, ficamos surpreendidos com a sua intensa actividade editorial. Embora não
sejam obras originais, são livros de profunda e sentida espiritualidade, ricos também no plano teológico,
bíblico e patrístico.
Apresentando "O Mês do Coração de Jesus", o P. Dehon descreve as suas características.
Deseja ser ao mesmo tempo, doutrinal e prático. Evitará toda a tendência sentimental e pietista. Ele
próprio se interroga se não há demasiados meses do Sagrado Coração que se apoiam excessivamente em

1732
OSp I, 31.
1733
NQ XVI, 40: outubro de 1900. Cf. OSp I, 413-602.
1734
NQ XVI, 41: Novembro de 1900. Cf. OSp I, 237-412.

331
impressões e sentimentos. A verdadeira devoção ao Coração de Jesus não se pode limitar aos sentimentos e
às impressões. Deste modo, afirma um Mestre de vida espiritual, o Jesuíta P. Grou (1731-1803), não se
ama o Coração de Jesus, mas a si próprios. Procura-se no divino Coração uma vã e estéril satisfação, que
leva a alma a acreditar que vive uma autêntica devoção, enquanto na realidade é uma ilusão. É preciso
encontrar a verdadeira finalidade desta devoção: reformar o próprio coração segundo o Coração de Jesus,
praticar as virtudes de que ele é o modelo e a vida. Imitar a sua mansidão, a sua humildade, a sua paciência,
a sua caridade. Reviver, numa palavra, as mesmas disposições de Cristo, os seus estados de alma, segundo
a exortação do apóstolo: "Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus" (Fil 2,5). Só assim se
venera verdadeiramente o Coração de Jesus e se percorre o caminho de uma devoção sólida e interior.
Esta é a finalidade que se propõe "O mês do Coração de Jesus" do P. Dehon: reviver, na prática da
nossa vida, a vida de Cristo, tendo como base doutrinal os princípios da teologia do sagrado Coração.1735
Estes são os ensinamentos teológicos que o P. Dehon desenvolve, apoiando-se nos melhores autores
(cita o tratado "De Verbo Incarnato" de Billot):
- A adoração dirige-se à humanidade de Cristo enquanto unida à pessoa do Verbo.
- Cristo tem um centro: o seu coração , a sua interioridade e, especialmente, o seu amor, o amor
infinito, incriado, que levou o Verbo a incarnar-se; o amor humano, unido ao divino, levou-O
até à morte e morte de cruz.
- No amor do Verbo incarnado, o P. Dehon é atraído sobretudo pela misericórdia. Do Coração de
Cristo nasceram todos os actos da nossa redenção. Nós invocamos o Coração de Cristo como fonte de todas
as graças. Verdadeiramente o Coração de Jesus não é só adorável, mas infinitamente amável.
- Finalmente, o Coração de Jesus participa agora da inefável glória da humanidade do Salvador. É
como o seu centro. Com alegria participamos, aclamando, na glória do seu triunfo.1736
As ladainhas do Coração de Jesus, tomadas como fio condutor das considerações do P. Dehon,
haviam sido aprovadas naqueles anos por Leão XIII. Têm a nota da novidade, além de serem profundas no
plano teológico e bíblico. O P. Dehon apresenta uma breve síntese delas. Todavia a sua obra parecer-lhe-ia
incompleta se a exactidão teológica não fosse enriquecida e avivada pela suavidade que o Coração de
Cristo espontaneamente difunde: "Não o sabendo fazer por nós próprios, recorremos à palavra dos santos,
sobretudo de Sta. Gertrudes e de Sta. Margarida Maria, que tiveram a missão de revelar os tesouros do
divino Coração.1737
Estas santas falam de uma maneira tão elevada e tão cheia de amor do Coração de Jesus que o P.
Dehon prefere aproximar-se da sua linguagem e da linguagem de outras almas santas. Faz então uma
selecção, até de páginas inteiras, das obras de S. Matilde, de S.. João Eudes, do piedoso monge cartuxo
Lanspergio, que foram mensageiros do Sagrado Coração: o mesmo faz com S. Agostinho, S. Bernardo, S.
Boaventura, S. Francisco de Sales, S. Afonso Maria de Liguori, doutores do Sagrado Coração. Não faltam
autores modernos, como o oratoriano inglês P. W. Faber e o Ven. F. Libermann.
O desejo do P. Dehon é fazer reviver nas almas, mesmo só por alto, a experiência do apóstolo
predilecto que reclina a sua cabeça sobre o peito de Jesus e ouve o bater do seu coração. É já experimentar
antecipadamente a alegria eterna do céu.1738
"O mês do Coração de Jesus" do P. Dehon apresenta-se como uma antologia do que os Padres, os
doutores da Igreja e os escritores espirituais pregaram ou disseram sobre o Coração de Cristo. A selecção
dos trechos é, em geral, acertada e a profundidade do pensamento teológico-bíblico é própria de cada um
dos autores citados. A elaboração do P. Dehon, nestes casos, limita-se a algumas boas intuições,
apropriadas reflexões e oportunas propostas práticas de vida.1739

"O MÊS DE MARIA"

1735
Cf. OSp I, 417.
1736
Cf. OSp I, 417-418.
1737
OSp I, 418.
1738
Cf. OSp I, 418-419.
1739
Os trechos mais actuais da obra O Mês do Coração de Jesus podem ler-se em Sì all'amore... nel Cuore di Gesù, pp. 69-146.

332
A respeito do Mês de Maria, tendo como argumento as ladainhas lauretanas que todos conhecem, o
P. Dehon afirma no prefácio que "as ladainhas são, como os cânticos, uma forma de oração poética e
popular. Acumulam-se nelas figuras e símbolos. Têm-se em conta assonâncias para ajudar a memória".1740
A doutrina teológica e bíblica das ladainhas não segue uma ordem lógica e didáctica. Por isso pode-se dizer
das ladainhas, segundo o P. Dehon, o que se diz das ondas: é uma "bela desordem". Segue-se o impulso do
coração e não o nexo lógico do raciocínio.
S. Francisco de Sales faz o mesmo com os cânticos de louvor que se encontram nos salmos:
"Considerai como o salmista convida todas as criaturas a louvar a Deus sem se preocupar da ordem nem da
lógica. Passa da terra ao céu e do céu à terra, dos peixes aos pássaros, das flores às montanhas. O
entusiasmo arrasta-o a esta desordem".1741
Esta é a primeira impressão que suscitam as ladainhas da Virgem. Todavia, ao reflectir, descobre-se
uma certa linha teológica. As primeiras invocações apresentam-nos a Virgem nos seus mais belos títulos:
Mãe de Deus e Mãe de Cristo. São os títulos da grandeza, do poder e de todas as glórias de Maria.
As invocações seguintes apresentam-nos a Maria como nossa mãe, nosso modelo, nossa protectora.
Neste momento as ladainhas tornam-se, claramente, uma improvisação poética, exaltam as virtudes da
Virgem e expressam as manifestações do seu amor.
Também o P. Dehon no seu "Mês de Maria", permitiu-se uma certa liberdade poética, agrupando,
por exemplo, invocações semelhantes entre si.
Como no "Mês do Sagrado Coração", também no "Mês de Maria", extrai dos Padres, dos Doutores
da Igreja e dos santos que melhor escreveram sobre Maria: "Teria sido loucura não se aproveitar deles...
Eles tinham a missão e a graça de falar de uma forma maravilhosa da Virgem santa".1742
Os exemplos escolhe-os o P. Dehon com o fim de mostrar que o século XIX é o século de Maria.
O autor predilecto neste livro sobre a Virgem é S. Afonso Maria de Ligório. Inspira-se
abundantemente na sua célebre obra As glórias de Maria. Outras fontes importantes são: S. Francisco de
Sales (Tratado do amor de Deus), S. João Eudes (O Coração admirável da santíssima Mãe de Deus),
Santa Matilde (O livro da graça especial), Santa Gertrudes (O arauto do amor divino), Bossuet e
Bourdaloue (Sermões).

"A VIDA DE AMOR AO SAGRADO CORAÇÃO"

De la Vie d'amour envers le Sacré-Coeur é certamente a mais bela das obras espirituais do P.
Dehon, a mais viva, a mais orgânica e completa sobre o tema da caridade.1743
A organização da obra está bem expressa no índice: 33 meditações, subdivididas em duas
meditações preliminares, sete meditações sobre os motivos do amor, seis sobre as formas do amor, treze
sobre os meios para alcançar o amor e cinco sobre os efeitos do amor.
São meditações de tal modo unitárias na inspiração e no estilo, que parecem escritas pelo P. Dehon
num mesmo estado de alma e num breve espaço de tempo. Dorresteijn supõe que tenham sido escritas no
inverno de 1901.1744 Contra esta suposição notamos que o P. Dehon escrevia, ordinariamente, as suas
meditações lenta e metodicamente, quando se sentia inspirado e tinha tempo livre.
Escreve em seu Diário: "Trabalho redigindo meditações... Será a ocupação de todos os meus tempos
livres durante vários meses".1745 "escrevo todos os dias as minhas duas páginas de meditação".1746
Foi assim com as meditações da "Vida de amor ao Sagrado Coração de Jesus". Escreve no Diário
(Março de 1897) que está muito ocupado na preparação das conferências romanas, na redacção mensal da

1740
OSp I, 241.
1741
OSp I, 241.
1742
OSp I, 242.
1743
Pela actualidade do seu conteúdo, esta obra foi publicada quase na íntegra em italiano: Vita d'amore nel Cuore de Gesù; cf.
OSp II, 7-172.
1744
Cf. Dorresteijn scj, Vita e personalità di P. Dehon, 221.
1745
NQ V, 6v: 18-22 de Junho de 1890.
1746
NQ XI, 1r: Janeiro de 1895.

333
revista (O Reino...), em actualizar antigas notas, em escrever vários artigos para revistas e jornais...
"Todavia ainda pude escrever algumas meditações sobre a vida de amor ao Coração de Jesus".1747
O mesmo fará com as meditações sobre o "Coração sacerdotal de Jesus"1748 e as meditações de "O
ano com o Sagrado Coração": "Escrevo meditações. Gostaria de preparar uma obra sobre o ano com o
Sagrado Coração".1749 "Continuo escrevendo quase duas meditações por dia".1750 "Trabalho sem interrupção
no meu ano de meditações. Escrevi durante quatro meses. Far-me-ia falta ainda um bom e tranquilo
inverno em Roma".1751 "Trabalhar sem parar" quer dizer para o P. Dehon, escrever todos os dias
normalmente as suas duas meditações, para além de atender aos seus compromissos de Superior Geral.
De facto as meditações de a "Vida de amor ao Sagrado Coração" foram publicadas na revista "Le
Règne...", iniciando a Julho de 1897 até Junho de 1901.1752
As únicas fontes, evidentes, da obra são a Sagrada Escritura, abundantemente citada e alguma rara
alusão aos escritos de Sta. Margarida Maria.
Na realidade, ao menos 11 meditações inspiram-se num livro do P. J. B. Grou, que se intitula "Les
Meditations en forme de retraite sur l'amour de Dieu".1753
Sem dúvida a influência do P. Grou na sua "A vida de amor..." é importante, porque se estende por
um terço do livro. Umas vezes é uma transcrição pura e simples, com alguma modificação, outras vezes
são breves sínteses de longas meditações. O P. Dehon faz seus os princípios de vida espiritual propostos
pelo P. Grou. Faz só alguns acrescentos como as introduções, os afectos, as alusões a Sta. Margarida Maria
e às revelações do Sagrado Coração.
A segunda fonte utilizada pelo P. Dehon é um manuscrito intitulado "La voie d'amour...". "O
caminho do amor ou a perfeição cristã adquirida mediante a devoção a Nosso Senhor e ao seu Coração".
Deste manuscrito não temos nem a primeira nem a segunda parte. A terceira parte intitula-se:
"Considerações que podem servir para orientar na vida religiosa os Sacerdotes consagrados ao Coração de
Nosso Senhor".
A doutrina do manuscrito está toda centrada na oblação ao Coração de Cristo e na consagração, em
perfeita sintonia com os temas expostos em "A vida de amor...".1754 A influência deste manuscrito na obra
do P. Dehon tem, pois, uma notável importância, mesmo se não é comparável à do P. Grou.
Outra fonte é o "Directório especial para os superiores e directores" cuja influência é limitada à 15ª
meditação. Outras fontes são várias meditações manuscritas, conservadas no arquivo dehoniano.1755
O critico confronta-se com um texto compósito. A análise das fontes da mais bela obra ascética do
P. Dehon pode ter produzido no leitor um sentimento de desilusão, desilusão mais que justificada no plano
crítico. Teria desejado que o P. Dehon fosse uma fonte, mas constata que também ele é um colector, um
canal distribuidor.
Importante é para nós o conhecer o pensamento do P. Dehon, a sua espiritualidade. O melhor mérito
de "A vida de amor...", para além do conteúdo, está no estilo discursivo, pessoal, como uma prolongada
conversa familiar.
As características do diálogo, coração a coração, entre a alma que medita e Cristo que fala, que
relevamos em "La retraite du Sacré-Coeur" assumem na "Vie d'amour..." um tom ainda mais íntimo, mais
profundo e aliciante.
Esta obra é também um excelente comentário ao valor fundamental do carisma dehoniano: a
oblação de amor.

1747
NQ XII, 41: Março de 1897.
1748
Cf. NQ XVIII, 56: 12-15 de Maio de 1903.
1749
NQ XXIV, 19: Fevereiro de 1908.
1750
NQ XXIV, 22: Abril de 1903.
1751
NQ XXIV, 25: Maio de 1908.
1752
As meditações publicadas em "Le Règne..." são 37, enquanto no livro: "De la vie d'amour..." são 33, das quais 31 são iguais
às publicadas em "Le Règne..." enquanto 2 são novas (a 16ª e a 17ª).
1753
O P. João Baptista Grou é um jesuíta, nascido em Calais em 1731 e falecido na Inglaterra em 1803. Escreveu várias obras de
espiritualidade. O P. Dehon cita-o várias vezes nos seus escritos e no Diário.
1754
Cinco meditações de "La vie d'amour..." repetem-se em cinco dos nove capítulos de "La voie d'amour..."
1755
Cf. Jean Corbanie, Recherche sur la formation de la Vie d'amour in "Etudes Dehoniennes", Cahiers Dehoniens 2, Lião 1966,
pp. 73-92. A. Cavagna scj, "Vie d'amour" e "Voie d'amour" in "Dehoniana" 5-6 (1973), 112-113.

334
Ao P. Dehon interessava o puro amor. Praticava-o fielmente na sua vida. Pois bem, "La vie
d'amour..." ensina o caminho mais curto para chegar ao amor puro: aprende-se a amar, amando.
O P. Dehon com "La vie d'amour..." seguiu o exemplo do apóstolo Paulo quando, escreve aos
Coríntios, dizendo: "Vou mostrar-vos um caminho, que ultrapassa todos os outros" (1Cor 12,31): "o da
caridade".

"COROAS DE AMOR AO SAGRADO CORAÇÃO"

Sabemos que os anos que vão de 1901 a 1906 foram cheios de grandes preocupações para o P. Dehon. O
Governo francês, além de expulsar da França os seus religiosos, estava para liquidar as casas e os bens
da Congregação. Em Roma pareciam insuperáveis as dificuldades para conseguir a aprovação pontifícia.
O P. Dehon guarda um maravilhoso equilíbrio psicológico, uma grande paz interior e escreve uma
obra que, em algumas passagens toca os cumes da mística: as Couronnes d'amour du Sacré-Coeur (as
coroas de amor ao Sagrado Coração",1756 e, ao mesmo tempo, escreve outra obra: "Le Coeur sacerdotal
de Jésus".1757
"As coroas de amor..." são 93 meditações que podem servir para um grande curso de exercícios
espirituais sobre o amor do Coração de Jesus. O P. Dehon contempla os mistérios da vida de Cristo, na
incarnação, na paixão, na eucaristia.
As últimas constituições dehonianas em língua latina continham este convite: "Nas diversas horas
do dia todos se unam aos mistérios da vida oculta, da agonia e da morte de Cristo, segundo a praxe em uso
na Congregação".1758 De facto, a 14 de Março de 1880, o P. Dehon falava assim aos noviços: "Devemos
passar o dia com Jesus: De manhã... em Nazaré; à tarde... no Calvário; à noite com Jesus sozinho no
Getsémani".1759 É uma devoção profundamente teológica e bíblica, típica da Escola francesa e adoptada
pelo P. Dehon para a sua Congregação, desde os primeiros anos.1760
O "rosário em honra do Sagrado Coração de Jesus" está composto segundo esta espiritualidade e
consta de três terços de cinco mistérios cada um como o rosário mariano.1761
Os amigos do Coração de Jesus devem reviver na sua vida, segundo o P. Dehon, a vida oculta,
amante, sofredora e apostólica de Cristo.

"O CORAÇÃO SACERDOTAL DE JESUS"

Dedicado especialmente aos seminaristas e aos sacerdotes é o opúsculo publicado em 1907: Le


Coeur sacerdotal de Jésus.1762 "A devoção ao Sagrado Coração - escreve o P. Dehon na introdução –
coloca-nos em relação com todos os mistérios e os estados (de vida) de Nosso Senhor. Esta devoção
explica tudo com uma só palavra: amor".
"Como os fiéis encontram nesta devoção todos os motivos de confiança e todos os incentivos para a
virtude, os sacerdotes aí encontrarão o ideal da vida sacerdotal e o modelo de que se devem aproximar".1763

1756
F. OSp II, 173-516. O original francês está em três volumes e completam 634 páginas. O Imprimatur é de 18 de Setembro de
1905. Há uma tradução italiana em três pequenos volumes com o título: I misteri d'amore 1. Incarnazione, Bolonha 1951, 176
pp.; 2 Passione, Pádua 1956, 164 pp.; 3. Eucaristia, Pádua 1956, 176 pp. Os trechos de maior actualidade podem ler-se em Sì
all'amore... nel Cuore di Gesù, pp. 147-274.
1757
Cf. NQ XVIII, 56: 12-15 de Maio de 1903.
1758
Constituições(1956) n. 98. A união aos mistérios da vida de Cristo é uma prática que remonta aos princípios da Congregação,
cf. Cahiers Falleur I, 77; III, 53-54; V, 104-105 e Constituições 1885, c. VIII, 92,§ 2, n. 4 in StD, 2, p. 47.
1759
Cahiers Falleur I, 77.
1760
As novas Constituições aludem aos mistérios da vida de Cristo no n. 77.
1761
Cf. OSp VII, 308-310.
1762
Cf. OSp II, 517-628.
1763
OSp II, 521.

335
O Coração de Jesus é, sobretudo, um coração de sacerdote e é vítima do seu sacerdócio, segundo o
belíssimo hino de Páscoa "Amor sacerdos immolat".
"Esta vida de sacerdote e de vítima, de que o Sagrado Coração é o princípio, sintetiza toda a vida,
todas as acções, tanto interiores como exteriores de Nosso Senhor. Os três grandes rios de amor da
Incarnação, da paixão e da eucaristia partem deste oceano (Cristo) e a ele voltam, depois de ter banhado o
mundo com o seu curso vivificante e salutar. Aí tudo se encontra: todos os mistérios da salvação, todos os
benefícios de Deus, todas as riquezas da sua graça e da sua misericórdia. O Coração de Jesus, sacerdote e
vítima de amor, encerra tudo isto".1764
O ensinamento do P. Dehon parece-nos podê-lo sintetizar assim: particularmente a cada sacerdote é
dirigido o convite de Cristo: "Aprendei de mim que sou manso e humilde de Coração"(Mt 11,29). É o
convite a reproduzir a interioridade de Jesus, os seus próprios sentimentos (cf. Fil 2,5). Tudo no sacerdote
tem de centrar-se em Cristo, tudo deve levar a Cristo e ao seu divino Coração: "Omnia per ipsum, cum
ipso, in ipso".
A vida do sacerdote gravita em volta da Incarnação, da paixão e da eucaristia, que são os três
grandes momentos sacerdotais de Cristo: a incarnação, porque funda o seu sacerdócio; a paixão, em que
oferece o sacrifício redentor; a eucaristia, em que renova o sacrifício da cruz e se oferece às almas. São as
três grandes revelações do amor de Cristo: "Sic Deus dilexit mundum..." (Jo 3,16), a incarnação; "Dilexit...
et tradidit semetipsum..." (Gal 2,20), a paixão; "In finem dilexit eos" (Jo 13,1), a eucaristia.
Os sacerdotes são os ministros do amor sacerdotal de Jesus, que jorra do seu coração.
Compenetrados e transformados pelo amor de Cristo, os sacerdotes devem vivificar e transformar a
humanidade.
O seu ministério é um ministério de amor. Por isso o Coração de Jesus é tudo para o sacerdote,
continuamente em contacto com o sacramento do amor e com o mistério de Deus-amor. O sacerdote
elimina os obstáculos ao amor, ou seja o pecado, com a reparação. O sacerdote dá às almas o amor, dando
Jesus; irradiando Deus, irradia o amor e atrai as almas ao Coração de Cristo. O sacerdote é fruto do amor.
A sua vida é fundada sobre o amor e é feita para o amor, ou seja para o Coração de Cristo.
Evidentemente, para o P. Dehon, todo o sacerdote é um "oblato do Coração de Jesus", é chamado a
reviver o mistério central da sua redenção: ser sacerdote e vítima para a glória do Pai e a salvação do
mundo.
"O Coração sacerdotal de Jesus" contém elevações místicas sobre o sacerdócio, às quais o P. Dehon
junta humildes conselhos, sugestões práticas para a vida diária do sacerdote, para os seus estudos, para a
sua pregação, para as relações com o mundo, com a vida social, com a família, para as possíveis tentações
e provações.
"O Coração sacerdotal de Jesus" teve um bom acolhimento da parte do público. O P. Dehon
ofereceu-o a Pio X durante a audiência de 30 de Janeiro de 1908 e o Papa manifestou o desejo de meditá-lo
durante um mês.1765

"O ANO COM O SAGRADO CORAÇÃO"

Em 1908, o P. Dehon está a escrever L'Année avec le Sacré-Coeur. Em Maio já terminou as


meditações para quatro meses.1766 Em Novembro o trabalho continua: "É uma graça; encontro aí um grande
proveito espiritual".1767
O prefácio tem a assinatura de 3 de Outubro de 1909. No mesmo ano o editor Casterman aceita a
impressão e a publicação da obra.1768 O trabalho tipográfico começa só em Janeiro de 1913;1769 mas é
suspenso por causa da guerra (1914-1918). A obra é publicada em 1919.1770

1764
OSp II, 524.
1765
Cf. NQ XXIV, 17: Janeiro de 1908.
1766
NQ XXIV, 25: Maio de 1908.
1767
NQ XXIV, 56: Novembro de 1908.
1768
Carta de 5.10.1909: AD, B 21/1.
1769
Cf. NQ XXXV, 2-3: Janeiro de 1913.

336
"O ano com o Sagrado Coração" é destinado, não só aos sacerdotes e religiosos, mas a todas as
pessoas piedosas. O P: Dehon propõe-se oferecer para cada dia "uma meditação bem adaptada ao espírito
do Sagrado Coração...: espírito de caridade..., de reparação e de sacrifício".1771
Deter-se-á nos mistérios de Cristo, apresentados pelo ciclo litúrgico: "Nosso Senhor dá as suas
graças em relação com os mistérios que a Igreja venera".1772 Várias meditações são dedicadas aos santos
que, segundo o P. Dehon, são nossos companheiros de caminho na devoção ao Sagrado Coração.
As fontes são sobretudo bíblicas, com uma predilecção particular pelo evangelho de S. João e pelas
cartas de S. Paulo.
A obra é de uma grande riqueza, já que apresenta o amor do Coração de Jesus sob os mais variados
aspectos. Sente-se que o P. Dehon nela se empenhou totalmente. Escreve no Diário: "Expressarei da
melhor maneira a minha doutrina no meu "Ano com o Sagrado Coração".1773

"A VIDA INTERIOR"

No mesmo ano de 1919, o P. Dehon publica La Vie intérieure. Sabemos que já em 1910 tinha
concluído um estudo sobre o tema: "Talvez o faça publicar. É o resumo dos meus exercícios que
preguei".1774 A publicação acontecerá nove anos mais tarde.1775
Em 1919 Bento XV instituiu uma cadeira de teologia espiritual na Universidade Gregoriana. Todos
os seminários têm de fazer o mesmo. O P. Dehon, que sofreu tão dolorosas consequências pela falta de
estudo da teologia espiritual e especialmente da mística, propõe-se oferecer, com a sua obra, um modesto
contributo. No primeiro volume apresenta os princípios teológicos da vida interior ou vida de amor, a sua
preparação, a vida de união segundo os mais seguros autores místicos e as várias escolas de espiritualidade.
Insiste sobre o puro amor que, mal compreendido, leva ao quietismo, mas entendido como amor
desinteressado, é uma participação na caridade divina. O amor puro anima a vida de intimidade com Nosso
Senhor e exprime-se no culto ao Coração de Cristo mediante a adoração, a reparação, a imolação.
O segundo volume propõe um curso de exercícios espirituais sobre a vida interior, sobre o puro
amor, sobre a união ao Coração de Jesus segundo o espírito do Evangelho de S. João.
A primeira semana dos exercícios de S. Inácio é ultrapassada, já que se supõe que a alma esteja
convertida ao amor divino e que queira aprofundar cada vez sempre mais a sua intimidade com Deus.
A purificação é sempre necessária, mas o que se deve cultivar acima de tudo é a união de amor,
revivendo os mistérios de Cristo, deixando agir em nós o seu Espírito, encontrando no Coração de Jesus a
fonte e o lugar privilegiado da nossa união com Ele.
Estas são as grandes etapas dos exercícios espirituais sobre a vida interior propostas pelo P. Dehon:
"Se purifier, s'eclairer, s'unir".1776 Não são etapas distintas e consecutivas. É preciso sempre "purificar-se,
esclarecer-se, unir-se". O trabalho de purificação é o que predomina no princípio; enquanto a união, que já
começa com a via iluminativa, se torna sempre mais profunda, até se transformar em vida de amor e
habitual repouso da alma.

DUAS BIOGRAFIAS

Aludimos agora às biografias escritas pelo P. Dehon: a da Irmã Maria de Jesus, de 1914, e a de P.
Afonso Rasset, de 1920.

1770
Cf. NQ XLIII, 109: Julho de 1919. Cf. OSp III, 7-716; IV, 7-618. É necessário corrigir a data da edição: 1909 por 1919. A
edição original francesa está em dois volumes de 698 e 592 páginas, respectivamente.
1771
OSp III, 9.
1772
OSP III, 9.
1773
NQ XXXV, 7: Janeiro de 1913.
1774
NQ XXV, 14: Fevereiro de 1910.
1775
NQ XLIII, 109: Julho de 1919. Cf. OSp V, 7-386.
1776
OSp V, 382-383.

337
A 20 de Agosto de 1912, o P. Dehon vai em peregrinação a Lisieux, onde a pequena Santa outorga
contínuas graças.1777 O P. Dehon recorda-se então de uma outra pequena santa que por ele ofereceu a vida,
morrendo com 24 anos apenas (a 27 de Agosto de 1879): Irmã Maria de Jesus, das Escravas do Sagrado
Coração.
O P. Dehon decide reunir num volume as cartas, as notas de direcção, o diário dos últimos meses da
jovem irmã. Há já uma sua biografia, escrita pela Ir. Maria de S. Gabriel.
Em Setembro (1912), ao regressar dos exercícios espirituais, o P. Dehon continua a preparar a
biografia da Ir. Maria de Jesus: "É um acto de reparação. Deixei-a muito tempo no esquecimento".1778
Mas, mais que uma biografia, é um retrato espiritual da Irmã, deduzido dos seus escritos. Com
efeito, o título é: "Uma vítima de amor ao Sagrado Coração de Jesus: IRMÃ MARIA DE JESUS, no século
Madalena Uhlrich, do Instituto das Escravas do Coração de Jesus de S. Quintino, 1865-1879, segundo os
seus apontamentos e suas cartas".1779 O P. Dehon limita-se a fornecer os dados biográficos essenciais e a
apresentar os vários escritos da Irmã, comentando-os brevemente.
Pede o imprimatur em Roma, mas o P. Lepidi não quer dá-lo, sobretudo porque a jovem irmã
demonstra uma excessiva dependência da superiora, Madre Maria do Coração de Jesus (la Chère Mère),
fundadora das Escravas e sua irmã mais velha.1780
O P. Lepidi fazia esta apreciação por causa das excessivas notas de direcção (e essa é também a
impressão do leitor), apresentadas seguidas, umas atrás das outras, enquanto na realidade havia entre elas
um certo intervalo de tempo. "O cardeal Ferrata - escreve o P. Dehon no Diário - fala de notas de direcção
escritas quatro ou cinco vezes ao dia. Na realidade, apresentamos 50 notas para um ano e meio de
noviciado: nem sequer uma cada 8 dias. Que diferença! É inútil discutir, é preciso deixar trabalhar a
Providência".1781 O P. Dehon teve que rever o trabalho e refazer toda a segunda parte. Finalmente, em Abril
de 1914, a biografia da Irmã Maria de Jesus apareceu em segunda edição.1782
Em 1920, o P. Dehon publicou a biografia do P. Afonso Rasset, o primeiro sacerdote que se juntou
a ele como religioso e foi sempre o seu assistente Geral até à morte, a 4 de Novembro de 1905.
A biografia intitula-se: "Um sacerdote do Sagrado Coração. Vida edificante do P. Afonso Rasset,
Assistente Geral dos Sacerdotes do Sagrado Coração de S. Quintino (1843-1905) segundo as suas cartas e
as suas notas".1783
O P. Dehon dedica o livro ao bispo e clero de Soissons porque naquela diocese o P. Rasset
consumiu toda a sua vida, dando-se especialmente aos sacerdotes e ao povo humilde como pregador de
missões. Esta biografia, para o P. Dehon é um manual de pastoral, útil para os sacerdotes e edificante para
os fiéis.
Raramente o P. Dehon usa palavras suas. Prefere deixar que falem os apontamentos do P. Rasset e
as cartas que ele escrevia a sua irmã Melânia, freira missionária na ilha de Haiti. A figura do P. Rasset
ressalta muito viva nas suas virtudes, nas suas dúvidas, nas suas pequenas manias e até nas suas fraquezas.
Domina sobre tudo isso o sacerdote generoso até o heroísmo, numa diocese que tinha muitas paróquias
reduzidas a um deserto.
A biografia do P. Rasset constitui assim um documento de grande importância para o conhecimento
da situação real da diocese de Soissons nos últimos decénios do século dezanove, além de constituir uma
fonte preciosa para a história da Congregação, já que o P. Rasset tinha conservado muitas notícias dos
primeiros anos: "Resume a história da Obra durante 30 anos" escreve o P. Dehon no Diário.1784

"ESTUDOS SOBRE O CORAÇÃO DE JESUS"


1777
Cf. NQ XXXIV, 136-138: 20.8.1912.
1778
NQ XXXIV, 168: Setembro de 1912.
1779
Cf. OSp VI, 6-150.
1780
Cf. NQ XXXV, 10: Fevereiro de 1913.
1781
NQ XXXV, 21: Fevereiro de 1913.
1782
Cf. NQ XXXV, 72-73: Abril de 1914.
1783
Cf. OSp VI, 151-386.
1784
NQ XLIII, 123: Agosto de 1920.

338
Chegamos assim aos Études sur le Sacré-Coeur de Jésus.
O P. Dehon já é octogenário. Também para esta obra apresenta-se um obstáculo: os escrúpulos de
um bom cónego de Bruges fazem suspender a impressão. Depois tudo se resolve.1785
Segundo o P. Dehon, a teologia clássica fala muito pouco do Coração de Jesus, enquanto, na
realidade, domina e ilumina toda a revelação.1786
Com muita modéstia o P. Dehon apresenta este seu último trabalho como um contributo para a
preparação de uma Suma doutrinal sobre o Coração de Cristo.
Nesta obra mostra o P. Dehon o seu gosto pelo simbolismo. No primeiro volume, contempla o
Coração de Jesus no plano divino, na criação, na natureza. Passa depois às figuras e profecias do Antigo
Testamento e contempla o Coração de Jesus no Evangelho.
Detém-se sobre a iconografia do Coração de Cristo nas catacumbas, nos primeiros séculos da Igreja.
Uma iconografia implícita, por exemplo, na figura do Bom Pastor. Estuda a sua devoção latente nos Padres
e nas grandes Ordens Religiosas.
No segundo volume, fala especialmente das revelações de Paray-le-Monial. Trata do Coração de
Cristo na teologia e na liturgia. Detém-se no reinado social do Coração de Jesus e nas várias devoções a ele
associadas. Fala das obras de reparação e do lugar da sua Congregação na Igreja.
São dois volumes que apresentam um grandioso projecto, apenas esboçado. Este foi também o
entender do P. Dehon que se propôs modestamente oferecer só um contributo para uma obra mais
elaborada e mais competente sobre o Coração de Cristo.1787

"DIRECTÓRIO ESPIRITUAL"

A obra mais característica do P. Dehon é o Directório espiritual dos Sacerdotes do Sagrado


Coração de Jesus. Este livrinho expressa de maneira completa a espiritualidade que quis deixar à sua
Congregação. Por isso, é dirigido de forma especial aos seus religiosos.1788
A história deste livro é muito complexa. A obra não foi escrita de uma só vez; mas foi nascendo
pouco a pouco, à volta de um núcleo inicial, com complementos e reformulações. É uma obra de
espiritualidade, portanto de vida vivida, dependente da caminhada interior do P. Dehon.
Provavelmente, o primeiro núcleo do Directório espiritual estava contido nas Constituições de 1881
das que só temos o primeiro capítulo. Com toda a segurança, podemos afirmar que o primeiro Directório
espiritual dos Sacerdotes do Coração de Jesus é constituído pelos capítulos VIII e IX das Constituições de
1885, aprovadas por Monsenhor Thibaudier.1789
De facto, o capítulo VIII destas Constituições tem como título: "As virtudes próprias dos Sacerdotes
da Congregação do Sagrado Coração de Jesus". Está dividido em dez parágrafos: o amor de Jesus Cristo, a
vida interior, a caridade, a humildade, a mortificação, a abnegação, a conformidade com a vontade de
Deus, a pureza de intenção, o zelo, o amor da cruz.
O capítulo IX das Constituições de 1885 trata dos exercícios de piedade e das práticas de perfeição.
Salta logo à vista como o amor a Cristo é a fonte e a orientação da vida espiritual do sacerdote do
Coração de Jesus. A união aos mistérios de Cristo leva-o a reviver a sua vida.
O Capítulo Geral de 1886 propõe uma melhor sistematização do "Directório espiritual" sob seis
títulos: a caridade; a humildade; a conformidade com a vontade de Deus e a pureza de intenção; a vida
interior; o zelo; a imolação.
A explicação desta nova ordem é dada na introdução e é interessante: "Nosso Senhor indicou-nos
ele mesmo as duas principais virtudes do seu divino Coração... Colocou em primeiro lugar a caridade e a
1785
Cf. OSP V, 387-718: A obra foi publicada por Desclé de Brouwer (Bruges 1922-1923) em dois volumes de 500 páginas ao
todo.
1786
Cf. NQ XLIV, 63: Outubro de 1922.
1787
Cf. OSp V, 389.
1788
Servi-me para este estudo da minha "História do Directório espiritual" que apresenta a terceira edição italiana do Directório
espiritual, Milão 1983, pp. 15-30. Para o texto francês, Cf. OSp VI, 391-532.
1789
Cf. StD 2, pp. 45-77.

339
humildade: "Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração". Sublinhou em terceiro lugar a
conformidade com a vontade divina... "Eis-me aqui, eu venho para fazer, ó Deus, a tua vontade". As outras
três virtudes resumem a vida terrestre de Cristo: a vida interior (a vida oculta de Nazaré); o zelo (a vida
pública); a imolação (a paixão perpetuada na eucaristia)".1790
Em 1891, editou-se o "Directório" junto com o "Thesaurus precum". Sob o ponto de vista doutrinal,
é um texto indubitavelmente melhor do que os textos anteriores.1791
O "Directório" de 1908 contém três apêndices: sobre a oração mental, sobre a direcção espiritual e
sobre a leitura espiritual com uma bibliografia de obras.
Especifica-se que a "profissão de imolação", não tendo sido permitida pela Santa Sé como voto,
deve ser uma "disposição da alma" para viver o espírito de amor e de imolação (ou de oblação). Esta
"disposição para o amor e a imolação dá à Congregação o carácter que lhe é próprio".1792
Num caderno, transcrição quase total do primeiro caderno intitulado "Notas sobre o espírito da
Obra" o P. Dehon escreve de seu punho este esclarecimento: "Estas directivas são conformes às luzes de
oração da Irmã Maria de santo Inácio. Sem reproduzi-las literalmente, contêm a sua doutrina".1793
Neste caderno lemos as duas primeiras partes do "Directório espiritual". "O espírito da nossa
vocação" e "Os modelos e padroeiros da nossa vocação" com pequenas variações. Estas duas partes
reflectem, portanto, as luzes de oração da Irmã Maria de S. Inácio. O mesmo podemos dizer, embora não
exactamente, da quinta e sexta parte: "Os exercícios de piedade" e "As virtudes próprias da nossa vocação".
Muito pequeno é o seu influxo na quarta parte: "As regras".
Numa carta escrita pelo P. Dehon à Ir. Maria de S. Inácio, a 9 de Dezembro de 1919, lemos:
"Envio-vos vários volumes. No "Directório" reconhecereis as luzes...".1794
Os cadernos autênticos que contêm as luzes de oração da Ir. Maria de S. Inácio encontram-se no
Santo Ofício.
Cerca de uma quarta parte do "Directório espiritual" tem como fonte as "luzes de oração" de Ir.
Maria de S. Inácio como as podemos saber dos três documentos conservados no arquivo dehoniano.
O primeiro e mais importante documento é um caderno de 64 páginas escrito à mão pelo P.
Dehon.1795 A este manuscrito alude no seu Diário quando diz: "Chegaram-me alguns apontamentos que o P.
Modesto sj tinha. A Providência permite que a Chère Mère mos empreste nestes dias. Copio-os e descubro
melhor a maneira como actua Nosso Senhor com a nossa Obra".1796
O segundo documento é um pequeno caderno, escrito à mão pelo P. Dehon e intitulado: "Índice das
luzes de oração da Ir. Maria de S. Inácio". 1797 Este índice, com data de 1 de Fevereiro de 1878 a 14 de
Outubro de 1880, contém para cada dia um título ou algumas palavras sobre o conteúdo das "luzes de
oração". Oito frases estão sublinhadas a vermelho pelo P. Dehon com esta anotação: "As palavras
sublinhadas a vermelho parecem ser locuções directas", ou seja parecem vir directamente de Nosso Senhor.
Estas frases referem-se à Congregação e às provações que terá de enfrentar, especialmente ao
"Consumatum est".
S. João da Cruz chama-as "palavras formais". Segundo o santo, não se devem ter em conta; podem
ser fonte de enganos.1798

1790
Cf. M. Denis scj, Le projet du Père Dehon, 350-351.
1791
As Constituições de 1891 já não contêm nenhum Directório espiritual. No Diário o P. Dehon escreve com data de 1890:
"Trabalho na cópia do Directório" (NQ V, 6v). A 6 de Agosto de 1890, por ocasião de uma visita a Fourdrain, o P. Dehon
escreve no seu Diário: "Deixo ali o novo Directório" (NQ V, 9v). De uma citação do Capítulo Geral de 1899 pode reter-se que o
Directório a que alude o P. Dehon é o texto metido no Thesaurus Precum de 1891 (pp. 131-165). Em 1905 e em 1908 temos
duas novas edições do "Directório espiritual". O texto de ambas é muito parecido e reproduzem o primitivo de 1885, com alguns
acrescentos.
1792
M. Denis scj, Le projet du Père Dehon, 270-271.
1793
AD, B 3,3.
1794
AD, B 19/2.
1795
AD, B 34/8.
1796
NQ XL, 100: Fevereiro de 1917.
1797
AD, B 34/7.
1798
Cf. Subida ao Monte Carmelo, II, 30, 1-6.

340
O terceiro documento contém três trechos enviados pelo P. Dehon a 23 de Novembro de 1878 ao P.
Eschbach, superior do Seminário francês de Santa Clara de Roma, para que lhe desse um conselho. Foi
encontrado nos arquivos do Seminário.1799
O P. Dehon faz uso das “luzes de oração” da Ir. Maria de S. Inácio com uma certa liberdade,
adapta-as aos temas que explica, todavia respeita os seus conteúdos, até as imagens e o estilo.
Em Outubro de 1917, o P. Dehon escreve no Diário que está levando a cabo a nova redacção do
Directório.1800
Encontramo-nos em plena Guerra Mundial e há mais de três anos que o P. Dehon está confinado em
S. Quintino. Tem, pois, todo o vagar para reviver os anos dos inícios da Congregação e para redigir a
edição definitiva do “Directório”.
No arquivo dehoniano há dois cadernos intitulados "Notes sur l'esprit de l'oeuvre", no princípio dos
quais o P. Dehon inseriu um folheto: "Estas notas foram utilizadas para a redacção do novo Directório". Na
primeira página do primeiro caderno repete: "Notas sobre o espírito da Obra" e continua "como nós o
concebemos no princípio (1877-1881), com a ajuda das nossas irmãs (Escravas) e a graça do Coração de
Jesus" .1801
Na edição impressa do "Directório espiritual" (1919), depois do título lemos: "Estas páginas
exprimem o espírito da nossa obra como a concebemos nos inícios (1877-1881), com o concurso de
algumas almas privilegiadas e a graça do Sagrado Coração de Jesus".1802
Entre estas almas privilegiadas devemos enumerar especialmente a Ir. Maria de S. Inácio: "As suas
luzes de oração deram-nos temas maravilhosos... para o nosso "Directório" e para as nossas orações".1803
O P. Dehon, a 40 anos de distância dos factos acontecidos nos inícios da Congregação, reconhece
que: "Fazia-nos falta um noviciado para a vida de vítima: Nosso Senhor encarregou-se dele. Dispunha de
um instrumento bem preparado: a Ir. Maria de S. Inácio... A partir de 2 de Fevereiro (1878), foi recebendo
luzes de oração acerca da nossa Obra e da nossa vocação. O ano 1878 foi para nós um verdadeiro
Noviciado. Os mistérios de Nosso Senhor, o "Ecce venio", o "Ecce ancilla", a vida oculta, a paixão, a
formação de S. João foram os temas daquelas luzes de oração, que nos forneceram um verdadeiro
directório sobre as virtudes da nossa vocação".1804
Sabemos que o juízo da comissão de Reims e do Santo Ofício sobre os escritos da Ir. Maria de S.
Inácio foi substancialmente positivo acerca da doutrina.
O P. Dehon tinha bem presente a avaliação do comissário do Santo Ofício, Mons. Sallua: "Se
tivésseis apresentado (os escritos da irmã) como luzes de oração, não teríamos nada a objectar". O P.
Dehon perguntou então: "Não pensais que venham de Nosso Senhor?". Mons. Sallua respondeu:
"Pessoalmente não o nego; mas vós não as podeis chamar revelações".1805
A doutrina que contêm essas luzes de oração está de tal maneira conforme com o carisma
dehoniano que o P. Dehon considera-a como um dom do Coração de Cristo e fá-la própria na edição
definitiva do "Directório espiritual" para os seus religiosos.
Isto é certo: as partes mais belas e mais inspiradas deste livrinho têm a sua origem nas luzes de
oração da Ir. Maria de S. Inácio.
A última edição do Directório espiritual (1919), durante a vida do fundador, impressa em Lovaino
por F. Ceuterick, consta de 216 páginas, enquanto a edição anterior de 1908, de formato semelhante, é de
só 108 páginas.
Conserva-se o núcleo original, mas o conteúdo é duplicado, com partes completamente novas, como
a primeira: "O espírito da nossa vocação" e a segunda: "Os modelos e padroeiros da nossa vocação".
Toda a primeira parte: "O espírito da nossa vocação", apresenta a vida espiritual dehoniana como
uma oblação de amor. A terminologia é do oitocentos. Cada século tem a sua forma de expressão. Ao leitor

1799
AD, B 36/2.
1800
NQ XLI, 25: Outubro de 1917.
1801
AD, B 3, 1-2.
1802
DS, p. 33.
1803
NQ XLIV, 109: Junho de 1924.
1804
NQ XL, 97-99: Fevereiro de 1917.
1805
NQ XXXIV, 180-181: Dezembro de 1912.

341
pertence compreendê-lo e não rejeitar uma doutrina riquíssima e positiva por uma questão de linguagem.
Seria uma falta de mentalidade histórica.
Estes são os temas principais: amor, imolação, sacrifício, amor puro e fiel, o dom de si mesmo, a
pura intenção, a abnegação e o abandono, a santidade sacerdotal, a reparação, a reparação sacerdotal, a
reparação mediante o amor, o exame sobre o espírito da vocação dehoniana, oração para pedir o espírito
desta vocação.
Particularmente bonito e comovedor é o parágrafo 7 sobre "A santidade sacerdotal".
A segunda parte do "Directório" apresenta os modelos e os padroeiros; o primeiro de todos é Jesus e
o seu divino Coração nos mistérios da sua vida, no "Ecce venio", em Nazaré, na paixão, na eucaristia.
Falando de Cristo esperar-se-ia do P. Dehon uma maior insistência sobre a experiência de Jesus-vida; no
entanto apresenta, muitas vezes, Jesus só como modelo.
A Santíssima Virgem é apresentada no "Ecce ancilla", no seu coração, na sua experiência dolorosa
no Calvário, na reparação pedida em La Salette e em Lurdes. Notável, pela inspiração teológica e real
beleza, é a importância dada à relação entre o "Ecce venio" de Cristo e o "Ecce ancilla" de Maria.
S. José é considerado como padroeiro e modelo dos sacerdotes do Coração de Jesus, especialmente
na vida de vítima.
De modo muito especial o P. Dehon detém-se em S. João, apresentado como o sacerdote ideal do
Coração de Jesus. Considera S. João na sua formação na escola de Cristo e na sua profissão no Calvário.
São considerações comovedoras, inspiradas nas luzes de oração da Ir. Maria de S. Inácio. Detém-se, em
seguida, sobre os apóstolos e sobre alguns santos e santas que tiveram uma relação especial com o Coração
de Jesus.
A terceira e quarta partes do "Directório" tratam fundamentalmente dos votos religiosos, da vida
religiosa, das regras, como nas edições anteriores. Notáveis são os acrescentos especialmente na quarta
parte.
A quinta parte trata dos exercícios de piedade, com um maior desenvolvimento e muitas aplicações
práticas. Encontramos a inspiração das luzes de oração da Ir. Maria de S. Inácio na reparação eucarística e
nas práticas reparadoras.
A sexta parte detém-se sobre as virtudes próprias da vocação dehoniana. São 24 parágrafos com
numerosos títulos novos. Também as virtudes tratadas nas precedentes edições do "Directório" são
reformuladas e completadas. Além disso, são retomados alguns temas desenvolvidos na primeira parte,
como o puro amor para com Deus (Par. 3), a fidelidade (par. 8) a pura (recta) intenção (par. 12), o
abandono e a conformidade com a vontade divina (par. 19), etc.
O "Directório espiritual" tem uma importância capital, já que é a expressão mais completa do
carisma do P. Dehon, mesmo se parte do céu para descer sobre a terra. Abraça e exprime , na sua
interioridade, toda a vida religiosa do P. Dehon, desde as origens (1878) até ao fim da sua vida (1925).
Condensa as longas reflexões do P. Dehon sobre a espiritualidade oblativa, até uma luminosa claridade e
uma compreensão vital do seu carisma de religioso e de fundador.
A linguagem, como já dissemos, é tipicamente do oitocentos, mas os conteúdos são de uma
actualidade profunda, porque convidam a reviver os mistérios de Cristo e particularmente a sua vida mais
íntima, como sacerdote e vítima, para a glória do Pai e para a salvação do mundo.

OUTRAS OBRAS

Além do "Directório Espiritual", o P. Dehon reservou outros livros para uso dos seus religiosos: As
"Constituições" a que faremos menção quando tratarmos do carisma dehoniano. Recordamos ainda os
"Noticiários", os "Avisos e Conselhos" e o "Thesaurus Precum".
O "Thesaurus Precum" tem as suas primeiras raízes numa colecção de orações que estiveram em
uso na Congregação desde 1881. Temos o seu texto com o título: "As nossas orações dos primeiros anos".
Como muito bem diz o P. M. Denis scj, que analisou amplamente estas orações, elas fornecem-nos "úteis
elementos para conhecer as orientações espirituais do Instituto nos seus primeiros anos. Mas a sua
autenticidade coloca problemas difíceis. É quase impossível dizer que textos terão sido compostos ou

342
escolhidos directamente pelo P. Dehon. Encontra-se, às vezes, este ou aquele texto escrito ou corrigido pela
sua mão, mas não se tem um verdadeiro e próprio texto original...".1806
Das orações do "Thesaurus precum", actualmente ficou só ao acto de oblação quotidiana. As
orações típicas da Congregação foram substituídas pela oração litúrgica das Horas.
Mesmo acolhendo, segundo as exigências dos tempos, estas mudanças, valoriza-se sempre mais a
preciosidade do "Theasurus Precum" que, nas orações de cada dia recordava e exprimia os valores
fundamentais do carisma dehoniano, segundo a axioma: "Lex orandi, lex credendi". "Como se reza, assim
se acredita" e, esperamos, assim se vive.1807

1806
Cf. M. Denis scj, Le projet du Père Dehon, 76-87. O Thesaurus Precum foi impresso primeiro em S. Quintino em 1886 com
o tìtulo Eucologium-Thesaurus Precum Sacerdotum Cordis Jesu. É um livrinho de 170 páginas: 74 de orações com o acrescento
de extractos das Constituições. Outras edições, revistas e corrigidas, foram publicadas. A última "típica" é de 1954. Algumas
orações possivelmente usadas pelas Escravas, são tipicamente dehonianas; outras provêm de S. João Eudes, de S. Cláudio de la
Colombière, de Olier e de outros autores espirituais. Cf. G. Recker scj, Le Père Dehon et l'Ecole Française d'après quelques
prières de notre Thesaurus Precum, Escolasticado Nossa Senhora do Congo, Lovaino 1946, 70 p.
1807
Cf. Notas e estudos, n. 17, p. da presente biografia.

343
Capítulo 23

Os escritos pessoais

Uma floresta onde é fácil perder-se – Os valores da vida – As “Memórias” (Notes sur l’Histoire de ma Vie) do P. Dehon – O “Diário” (Notes
Quotidiennes) do P. Dehon – Características do Diário: viagens e notas de leitura – O P. Dehon , como aparece no “Diário” – “Dias bons e dias
de grandes misérias” – O epistolário do P. Dehon – As cartas circulares e as “Recordações”.

UMA FLORESTA ONDE É FÁCIL PERDER-SE

O P. Dehon escreveu muitíssimo. Tem-se a impressão de entrar numa grande floresta com o perigo
de perder-se. Pensamos nos quatro volumes das “Obras sociais”, aos sete volumes das “Obras espirituais”,
na edição de “Opera omnia” que recolhem escritos já editados pelo P. Dehon durante a sua vida.1808
Existem depois os seus escritos pessoais, dos quais apenas se começou agora a publicação. Os
principais são: os 15 volumosos cadernos das “Memórias” (NHV), publicados em oito volumes
dactilografados; os 45 cadernos do “Diário” (NQ), dos quais se publicaram apenas os primeiros seis
cadernos; “O epistolário” (mais de cinco mil cartas, postais e bilhetes) inédito.1809 Existem ainda os
sermões, instruções, meditações. ForAm publicados os “Chiers Falleus”, ou seja, as instruções e
meditações do P. Dehon os primeiros noviços, de 1879 a 1881. Acrescentamos os pensamentos, as
máximas, as reflexões de carácter ascético ou histórico, as notas e reflexões de exercícios espirituais, as
notas de leitura, ainda inéditos: uma floresta onde se entra com o perigo de perder-se.

OS VALORES DA VIDA

“A verdadeira história é a dos acontecimentos interiores, das renovações espirituais; é única que,
desenvolvendo-se no tempo, desembocará na eternidade. Se todas as civilizações e todas as culturas estão
destinadas a desaparecer, as almas são imortais, as pessoas são permanentes ... Nesta perspectiva ... a
verdadeira história é a dos santos. Não é porventura neles que a eternidade se revela no tempo e que o
tempo se insere na eternidade?”. Esta reflexão do cónego Blanchard, no princípio do seu volumoso estudo
sobre Libermann, aplica-se maravilhosamente às Memórias (NHV) e ao Diário (NQ) do P. Dehon.1810
Não há nada de mais válido e de mais interessante que o conhecimento de um homem na sua
interioridade. Se depois este homem, além da sua experiência de vida, apresenta, como o P. Dehon, a sua
experiência de Deus, então torna-se para nós um guia espiritual.
Nós somos muito sensíveis aos valores que brotam da vida. A virtude pregada sem a virtude vivida
não convence, não nos arrasta.
Daí a importância de conhecer a vida do P. Dehon, nos seus elementos tristes ou alegres, e
sobretudo no espírito com que os viveu. É a sua história íntima que nos interessa. Compreendemos assim a
preciosidade das “Memórias”, do “Diário”, do “epistolário” que o P. Dehon nos deixou, não imitando nisto
a S. Inácio de Loyola que, no fim da vida, destruiu quase todos os seus escritos, porque neles tinha
“narrado “muitas graças extraordinárias que redundavam em sua honra”.1811
O P. Dehon, feito prudente pela dolorosa experiência do “Consumatum est”, não fala de graças
extraordinárias no seu Diário; acena-as apenas com muita discrição, quando, elencando os “fundamentos

1808
A publicação das “Oeuvres spirituelles” está em sete volumes. Das “Oeuvres sociales” falta o quinto volume.
1809
As “Notes sur l’Histoire de ma vie” (ou Memórias) vão desde o nascimento do P. Dehon (14.3.1843) até à audiência de Leão
XIII (6.9.1888). As “Notes Quotidiennes” (ou Diário) abarcam dois períodos: o período durante a vida do seminário, de 1867 a
1870, o segundo de 1886 a 1925.
1810
Cit. Por J. Ledure scj, Léon Dehon: Notes Quotidiennes, Introdução, p. VII.
1811
NQ XXXVIII, 57: 31.7.1915.

344
divinos da Obra” afirma: “Não digo nada das preciosas graças pessoais e dos lumes recebidos para a
preparação e a fundação...”1812.
O P. Dehon esteve sempre convencido da sua missão de fundador e precisamente os seus escritos
pessoais colocam em evidência a origem e os fundamentos teológicos do seu carisma e da sua obra, “a obra
do Sagrado Coração”, como ele chamava à sua Congregação.
Por estes motivos não seguiu o exemplo de S. Inácio na destruição dos seus escritos pessoais; mas
preferiu, amavelmente, conservá-los para nós. É como se tivéssemos herdado a casa paterna: uma casa
sagrada, de uma beleza única, qualquer seja a condição em que se apresenta.
Exactamente nas Memórias, no Diário, nas cartas do P. Dehon colhemos em cheio a sua experiência
de fé e de vida, como homem, como seminarista, sacerdote, religiosos, fundador.
A diferença entre as “Memórias”, por um lado, e o “Diário” e o “epistolário”, por outro, são
notáveis.

AS “MEMÓRIAS”

As “Memórias” (Notes sur l’Histoire de ma Vie” são escritas vários anos depois dos acontecimentos
narrados. Começadas a 3 de Março de 1886, parece terem sido escritas sobretudo nos anos 1897-1901. 1813
O P. Dehon, com espírito sereno, quase descansando em Deus, pôde reflectir sobre a sua vida e reviver as
suas complicadas vicissitudes, com suficiente desapego para descobrir as causas de certos acontecimentos,
ver as suas consequências e sobretudo descobrir a acção da Providência e a realização do desígnio de amor
de Deus.
Conhecemos assim, não só a história da sua vida, mas a história da sua alma: todo um mundo de
esperanças, de ideais, de propósitos , de virtudes, de alegrias e de cruzes.
As “Memórias” são uma autobiografia e ao mesmo tempo uma “teologia da vida” do P. Dehon, ou
seja uma procura e descoberta da presença activa do amor de Deus nos acontecimentos da sua vida. Como
dissemos, as “Memórias” abarcam os primeiros 45 anos da vida do P. Dehon : do nascimento, a 14 de
Março de 1843, à audiência de Leão XIII de 6 de Setembro de 1888.1814 Para os anos seguintes até à morte:
188-1925, o P. Dehon remete-nos para o “Diário” (Notes Quotidiennes).1815 Protagonista principal é Deus;
Leão Dehon é o seu humilde colaborador. É uma pequena “história da salvação” que realiza a exortação do
profeta Miqueias: “Eu te mostrarei, ó homem, o que te é bom, o que o Senhor requer de ti: É que pratiques
a justiça, que ames a misericórdia e que andes solícito com o teu Deus” (6,8).
Tudo isto não impede, antes confirma ainda mais a veracidade dos factos narrados, a sinceridade do
P. Dehon e dos juízos que exprime. É como se fossem “confessados” diante de Deus.
Nas “Memórias” o P. Dehon não se abandona à onda de recordações, como faz, por exemplo, mons.
Philippe nas suas “Recordações”; mas tece uma narração ordenada e bem documentada (especialmente
com cartas) dos primeiros 45 anos da sua vida. Não é uma narração fria, mas viva e familiar, mesmo se não
faltam alguns momentos passageiros de aridez.
Mais que uma autobiografia, as “Memórias” são, para o P. Dehon, uma história da sua alma, uma experiência de fé da
mais tenra infância, uma descoberta progressiva de Deus e da intimidade com Cristo, dos primeiros ensinamentos maternos, às
experiências íntimas do amor divino no colégio de Hazebrouck, ao progressivo aprofundamento da verdades cristãs no período
universitário em Paris, à experiência sempre mais profunda da união com Cristo durante os anos de seminário, culminada da
indizível alegria do sacerdócio. Partilha a ânsia de Cristo pela salvação e pela santificação das almas nos anos de vigário.
Confronta as suas aspirações a uma vida de oblação, de reparação e de imolação com a vida religiosa das Serva do Coração de
Jesus. Chega assim a fundar a congregação dos Oblatos e ao seu pessoal oferecimento ao Coração de Cristo, com a profissão
religiosa e o voto de vítima.
1812
NQ XLIV, 138: Outubro de 1924.
1813
Cf. NQ III, 10: 3.3.1886. Cf. A. Vassena scj, Introduction critique: “Notes Quotidiennes » CGS, Roma 1976, p. XIX-XXIV.
1814
1888 é uma data essencial na vida do P. Dehon e da sua congregação. Depois da fundação (1877-1878), a morte e
ressurreição da obra dos Oblatos (1883-1884), o decreto de louvor de 25 de Fevereiro de 1888 é uma “data sagrada”, é um
reconhecimento pontifício da congregação. O período de 1878-1888 é “a idade heóica dos inícios da obra” (NQ XLIV, 111:
Agosto de 1924), é o início também do “período apostólico” da Congregação, “iniciado com a missão do Equador” (NQ XLIV,
69: Dezembro de 1922). Cf. A. Bourgeois scj, Les Notes Quotidiennes du P. Dehon. Avant-propos à une édition, CGS, Roma
1984, p. 13.
1815
Cf. NHV XV, 83.

345
As “Memórias”, portanto, se são valiosas pelas notas biográficas, interessam-nos ainda mais pela
interpretação de fé que o P. Dehon dá dos acontecimentos da sua vida.
Como dissemos, em geral o P. Dehon confirma a narração das “Memórias” com documentos
contemporâneos, especialmente cartas. Muitos outros documentos pode fornecê-los o historiador, não só
com o epistolário, mas com uma parte do Diário (os primeiros três cadernos), com as notas de viagem, com
os relatos de testemunhas oculares, com os documentos da cúria de Soissons e com a revista da Diocese:
“La Semaine Religieuse de Soissons et Laon”. São tudo documentos contemporâneos.
O P. Dehon nunca altera a verdade. Algumas vezes repete-se, com algumas variantes.1816 Se
acontece alguma afirmação menos exacta é por aquela margem de erro involuntária comum à fragilidade
humana.
As “Memórias” são uma fonte preciosa para a biografia do P. Dehon e sobretudo para conhecer a
sua experiência de fé. Não têm porém a espontaneidade, a proximidade, a marca de vida vivida do “Diário”
e do “epistolário”, que muitas vezes actualizam e fazem viver a quente as alegrias, as dores, as esperanças e
as desilusões do P. Dehon.1817 No “Diário” o leitor vive muitas vezes dia a dia, acontecimento a
acontecimento, com o P. Dehon: alegra-se, sofre, comove-se com ele.

O “DIÁRIO”

Desde o princípio da sua vida seminarística Leão Dehon teve um diário espiritual: “Comecei desde
então (1865-1866) a anotar dia a dia as minhas impressões. Isto permite-me de encontrar de modo seguro
os traços da acção divina e do plano de Deus na minha pobre vida”. 1818 Na realidade, daqueles
primeiríssimos anos restam-nos poucas notas, transcritas nas “Memórias”.1819 Não temos já os originais. Os
primeiros dois cadernos do Diário são portanto uma transcrição incompleta do “Diário espiritual”,
começado por Leão Dehon em 1865 e continuado com algumas lacunas mais ou menos vastas até 1873.
Era um texto mais extenso, enquanto o actual (os primeiros dois cadernos) vai só de 13 de Dezembro de
1867 a 20 de Fevereiro de 1870.1820
O P. Dehon transmitiu-nos “aquela parte que considerava mais adequada a determinadas etapas da
sua “graça” de fundador” para que fosse útil aos seus religiosos e àqueles que viveriam o seu carisma. 1821 A
transcrição dos primeiros dois cadernos do Diário parece ter acontecido em S. Quintino depois de 1900 e
antes de Dezembo de 1915, num período de tempo em que o P. Dehon sente a exigência de reler com
grande atenção e devoção as suas notas de seminário, que escolheu e transcreveu nos primeiros dois
cadernos do Diário: “A vida interior atrai-me. Releio as notas que escrevi sobre este tema: união com Deus,
união com Nosso Senhor Jesus Cristo, presença de Deus, paz interior, intenção pura, contemplação...”.1822

1816
Cf. NHV XI, 74-84 reproduz o relato de NHV X, 140-152; NHV XII, 137-143 reproduz o texto de NHV XII, 27-33.
1817
É interessante confrontar os dois textos paralelos, das “Memórias” e do “Diário” dos anos 1886-1888. O texto do “Diário” é
imediato, expontâneo, quotidiano, mesmo se prevalecentemente espiritual; o texto das “Memórias” é um relato ordenado, bem
documentado, revisto e corrigido, com cabeça fria, escrito vários anos depois dos acontecimentos narrados. Tem o mérito de
apresentar, não só os factos, mas também as suas ligações e muitas vezes as suas causas: vê-se a acção do homem e a acção da
Providência, para a realização do desígnio de Deus.
1818
NHV IV, 183.
1819
Cf. NHV IV, 183-187 (anos 1865-1866); NHV V, 134-190 (anos 1866-1867); NHV VI, 1-24 (anos 1867-1868).
1820
Fazendo o exame comparado da escrita do P. Dehon, Ledure afirma que “a transcrição dos actuais primeiros dois cadernos
do “Diário” aconteceu provavelmente nos anos 1880-1886” (cf. Ledure, Léon Dehon, p. XV). O P. Ângelo Vassena, com base
em alguns indícios colhidos no “Diario” (cf. NQ XXXIX, 87), no género de cadernos usados pelo P. Dehon e fundamentando-se
no o exame comparado da escrita, afirma que os actuais primeiros dois cadernos do “Diário” foram escritos depois de 1900,
provavelmente entre 1907 e 1914 (cf. Vassena, Introduction critique, pp. XII ss).
1821
Cf. Vassena, Introduction critique, pp. XI. Citamos a edição dos primeiros dois cadernos do Diário do P. Dehon, feita por
CGS, ao cuidado de P. A. Vassena scj, Roma 1976, pp. L+114. Uma segunda edição crítica dos primeiros três cadernos do
Diário foi realizada pelo CGS, ao cuidado do P. A. Vassena scj, Roma 1985, pp. XXXVIII+318. Finalmente a edição crítica
definitiva é a editada pelo CGS, ao cuidado de P. G. Manzoni scj e p. A. Vassena scj, Ed. CEDAS, Andria 1988, pp. LII+570. O
vol. I contém os primeiros seis cadernos do Diário além do retiro de Braisne; o Vol. II chega até ao caderno XVIº (inclusive) do
Diário.
1822
NQ XXXIX, 87: Dezembro de 1915. Cf. Vassena, Introduction critique, pp. XII-XXII.

346
Na transcrição o P. Dehon foi substancialmente fiel como está demonstrado pela “Sinopse
comparada” dos primeiros dois cadernos do Diário. Temos duas e até três transcrições dos mesmos
textos.1823 Esta é para nós uma posterior prova da veracidade do P. Dehon nos seus escritos pessoais
(Memórias – Diário). Era fácil a tentação de mudar em textos tão longínquos no tempo, os pensamentos e
os sentimentos de uma idade mais madura. Em vez disso o sacerdote P. Dehon respeita a ingénua
espontaneidade do seminarista Leão Dehon.
Como dissemos, as notas de seminário que lemos nos primeiros dois cadernos do Diáruio abarcam
pouco mais de dois anos: de Dezembro de 1867 a Fevereiro de 1870. Em seguida Leão Dehon procurou,
diversas vezes, escrever as suas notas quotidianas. Consegue em Dezembro de 1872, mas interrompe-as em
Janeiro de 1873.1824
Acerca dos anos 1878-1879 escreve: “Para a minha vida interior não tinha tempo de escrever as
minhas impressões”.1825
A primeira nota do terceiro caderno do Diário tem a data de 28 de Janeiro de 1886.1826 Desde então,
seguindo ritmos diferentes, o P. Dehon foi fiel a escrever as suas notas diárias atéJulho de 1925, poucos
dias antes da sua morte. São 43 cadernos, aos quais se juntam os dois primeiros cadernos do seminário: no
total 45 cadernos. São 7087 páginas.1827 Se juntarmos as 322 páginas dos exercícios espirituais de Braisne
(mês de S. Inácio), atingimos as 7409 páginas.
O “Diário” do P. Dehon está escrito numa típica perspectiva pessoal e espiritual. O subtítulo do
primeiro caderno é “Lumina et proposita”.
De facto os primeiros dois cadernos do Diário são exclusivamente luzes de oraçõ, reflexões,
propósitos ou mais genericamente, segundo as próprias palavras do P. Dehon “impressões da sua alma”, de
modo a encontrar, com segurança, “as linhas da acção divina e do plano de Deus na sua pobre alma”.1828
No terceiro caderno do “Diário” (1886-1887), ao lado das notas espirituais o P.Dehon acene a
vários factos da sua vida. O quarto caderno (1887-1888) tem como subtítulo: “Acta – Lumina et
Proposita”. O motivo está claro: As Memórias chegam até a 6 de Setembro de 1888. Para os anos seguintes
o Diário tornar-se-á também uma continuação das Memórias: reportará os factos da vida do P. Dehon, com
referências aos principais acontecimentos do seu tempo.

CARACTERÍSTICAS DO “DIÁRIO”

O “Diário” tem um grande interesse e é fonte de informação única, muito rica acerca da vida íntima
do P. Dehon: graças, provas, luzes de oração, favores sobrenaturais, boas inspirações; sobre a sua
actividade externa: congressos, conferências, ministério, pregação, livros, revistas, viagens, peregrinações e
acerca da vida da sua Congregação.
Também o número das páginas dedicadas aos diversos anos varia muitíssimo: das 16 páginas de
1920 às 1199 páginas de 1910, das quais 1159 páginas para a viagem à volta do mundo, continuado em
outras 355 páginas em 1911.
677 páginas, em 1894, das quais, 557 para a viagem à Sicília, à África Setentrional, à Calábria,
Basilicata, Puglia; 360 páginas em 1899, das quais 204 para a viagem à Espanha; 481 páginas em 1906, das
quais 422 para a viagem à América Latina.
Assim, em 1915, 505 páginas, das quais 283 para resumos e notas de leitura. Em 1817, sobre 188
páginas, 111 são de notas de leitura.
Cadernos inteiros são ocupados com notas de viagens (cerca de 3000 páginas), ou então são
resumos de leituras e transcrições de trechos, textos de conferências e de pregações (mais de 500 páginas).
1823
Cf. A. Vassena scj, Synopse comparative des deux premiers cahiers du Journal de P. Dehon, CGS, Roma 1976, 202 p.
1824
Cf. NHV X, 25.
1825
NHV XIII, 150.
1826
Também o terceiro caderno do “Diário”, que temos, não é original. É uma transcrição, a quanto parece não integral, feita
provavelmente por volta de 1900 (cf. Vassena, Sinopse, pp. XXXIII-XXXIV).
1827
As páginas escritas do “Diário” (incluídos os índices e as capas com a numeração progressiva dos cadernos e dos anos),
tendo conta das páginas duplas e das páginas deixadas em branco, são 7087.
1828
NHV IV, 183.

347
Tudo isto comporta um claro desequilíbrio.1829 O próprio P. Dehon o sublinha, quando escreve que os
relatos das suas viagens “obstruem” o “Diário”. O motivo é o de fornecer material para os artigos do
“Règne...”.1830
Além disso, usando estas notas de viagem, o P. Dehon publica três volumes, editados por
Casterman: “A Sicília, a África do Norte e as Calábrias” (1897 – 296 p.); “Para além dos piirnéus” (1900 –
296 p.) e “Mil léguas na América do Sul : Brasil – Uruguai – Argentina” (1908 – 208 p.). São edições de
luxo, com ilustrações. O texto é elaborado de modo livre. Confrontando-o com o do “Diário” encontramos
omissões e acrescentos. Em primeiro lugar o P. Dehon descreve aquilo que vê; mas deixa espaço, com
sobriedade, também para as impressões e os juízos pessoais.
A viagem `volta do mundo foi publicada em parte, com várias omissões, no “Règne” de Lovaino de
1911 a 1914. Outras partes do Diário forneceram o material para diversos artigos da revista do P. Dehon:
“O Reino do Coração de Jesus nas almas e nas sociedades”.
As inúmeras viagens feitas elo P. Dehon durante a sua longa vida são um problçema também para
nós. Habituados a deslocar-nos rapidamente de avião de um continente para outro. O próprio P.
Dehonnuma nota do seu “Diário”, poucos meses antes da morte, escreve com muita sinceridade: “Viajei
muito. Talvez houvesse qualquer excesso. Todavia tinha sempre em vista a minha instrução, o crescimento
dos meus conhecimentos estéticos, geográficos, históricos e a confirmação da minha fé, constatando a
loucura das superstições pagãs, a variabilidade dos protestantes e o carácter glacial do seu culto.
Experimentei de perto que o homem é naturalmente religioso, que todos os povos sempre honraram a
divindade mais ou menos correctamente e que o ateísmo moderno é uma monstruosidade contra a
natureza”. Depois de ter citado o louvor de Sirácides o homem que viaja, o P. Dehon conclui: “A
Providência, fornecendo-me os recursos mediante a minha família ou mediante os benfeitores, parecia
encorajar este meu desejo de ver e de saber”.1831
Nas “Recordações” de 1912 escreve: “A propósito deste género de apostolado (social), quero
explicar porquê, quando se apresentava a ocasião, fiz de boa mente várias viagens. Para escrever e para
falar sobre questões sociais, é preciso ter visto muito, é preciso saber confrontar regimes sociais e
civilizações de povos diferentes. Conhecimentos mais vastos dão autoridade, permitem corrigir tantos erros
e fazem discernir a obra de Deus e a do seu eterno inimigo nas diferentes regiões da terra”.1832 Numa nota
intitulada “Acontecimentos da minha vida – Sumário” o P. Dehon enumera umas trinta viagens de 1858 a
1918 e indica a sua finalidade: “Estudos, instrução, edificação, saúde “ e depois de ter passado em revista
os acontecimentos da sua vida conclui: “Post hoc autem, labor et dolor”.1833 Estamos em 1923. O P. Dehon
tem 80 anos.
Também das suas notas de leitura, escritas no “Diário” e em cadernos fora do Diário, o P. Dehon
serviu-se delas para a redacção das suas últimas obras espirituais: “A Vida interior” e os “Estudos sobre o
Sagrado Coração de Jesus”.
Estas leituras e estas notas interessam particularmente a vida pessoal e espiritual do P. Dehon.
Escreve no Diário: “Estou tão perto do termo da minha vida, que deixo outros trabalhos, para me ocupar
somente de leituras espirituais e orações”.1834 O P. Dehon tem 72 anos. Está confinado em S. Quintino,
isolado de todos, durante a primeira guerra mundial. É impossível conhecer e compreender a fundo o P.
Dehon, na sua evolução espiritual de 1913 em diante, sem tomar em conta estas leituras e sua
característica orientação.
Certamente, o “Diário”, desimpedido das longas viagens e das notas de leitura, torna-se muito mais
“quotidiano” e permite-nos sintonizar com a vida do P. Dehon e segui-lo quase dia a dia.

O P. DEHON, COMO APARECE NO “DIÁRIO”

1829
Cf. Bourgeois, Les Notes Quotidiennes pp. 4-6.
1830
Cf. NQ X, 154: Dezembro de 1894.
1831
NA XLV, 48-49: Março de 1925.
1832
Cartas Circulares, n. 389.
1833
AD, B 25/2b.
1834
NQ XXXVIII, 80: Agosto de 1915.

348
Parece-nos inútil, além de impossível, sintetizar os variadíssimos temas e conteúdos do Diário;
queremos só precisar algumas características emergentes.1835 O P. Dehon é de temperamento optimista; é
incline a considerar o aspecto positivo da realidade e das pessoas; é bom, sensível e deseja que também os
outros sejam bons e sensíveis com Deus e com ele.
É uma aspiração ideal, muitas vezes dolorosamente desiludida. Tem um vivo sentido do pecado,
põe frequentemente em relevo as suas culpas e as faltas da sua obra, não para se debruçar sobre formas de
autolesionismo ou de pessimismo destrutivo; mas para se abrir à humildade, ao arrependimento e a se
elevar à confiança, à invocação, ao bom propósito, num renovado impulso de bem.
A acusação e o arrependimento são animados pelo mesmo espírito de fé, de confiança, de
abandono, de amor, de tal modo que reunindo as fragmentadas expressões negativas e positivas, os altos e
baixos, as penas e as alegrias, as fraquezas e os actos de generosidade, os dias de tentação e os dias de
graça, resulta um componente dominantemente positiva, optimista; o céu do P. Dehon está habitualmente
sereno.
O P. Dehon faz sua a atitude de Paulo: “Gloriar-me-ei... nas minhas fraquezas, para que habite em
mim o poder de Cristo” (2Cor 12,9). “Tudo posso naquele que me conforta” (Fil 4,13). De facto a 13 de
Fevereiro de 1886 o P. Dehon escreve no Diário: “Como se deve expiar e purificar para dar à obra a sua
vitalidade e a sua força! Mas porque não teremos confiança?... A glória do Sagrado Coração será maior, já
que se verá melhor que Ele fez tudo”.1836 É a fórmula do amor confiante. Encontra-se habitualmente no
Diário.
Inda no “Diário” o P. Dehon apresenta-se como fundador e superior, não tanto para cumprir uma
função, mas uma missão; não é um administrador, mas um pastor. As notas administrativas (finanças,
eleições...) são muito raras. Está preocupado com a Obra, ou seja a Congregação e a santidade dos seus
membros. Limito-me a duas citações: “Tenho fé e confiança na minha obra e na minha missão. O Coração
de Jesus ajudar-me-á. Ele quis esta obra, Ele encarregou-me dela. É a sua obra: descanso nele...”.1837 E eis o
seu tormento e o seu ardente desejo: “Nosso Senhor faz-me compreender o estado desolador da sua obra,
onde reina tão pouco espírito de amor e de imolação. Se a obra não lhe der aquilo que espera, destruí-la-á...
Seria preciso uma obra de santos... São necessárias almas generosas que se ofereçam como vítimas e nós
devemos dar o exemplo. Jesus quer vítimas eucarísticas e não tanto vítimas de penitência, mas vítimas de
amor e de abandono...”.1838
São constantes os exames de consciência sobre a missão de fundador e de superior. Renova o seu
empenho com o abandono em Deus, a confiante oração e a dedicação ao seu serviço. Firmeza e suavidade
caracterizam o seu estilo como superior e fundador. Duas realidades o preocupam muito: a união na
caridade: “Sint unum” e a fidelidade ao fim específico da obra: “A união na obra depende muito de mim.
Devo conquistar todos os meus irmãos com a caridade, interessando-me por todas as suas necessidades
espirituais e temporais”.1839
“Chamei e vi, em particular, vários padres e noviços para animá-los e repreendê-los. Deveria tê-lo
feito mais frequentemente. É meu dever e daí resultaria um grande bem”.1840
As correcções devem ser feitas docemente, raramente e a tu por tu, visto que todos ficam magoados
por repreensões secas como também pelas mais amáveis, mas feitas demasiado frequentemente e a
despropósito. Experimentei isso mil vezes”.1841
No dia de S. João, 27 de Dezembro de 1887, escreve: “De manhã, Nosso Senhor faz-me
experimentar a sua bondade. Ao meio dia diversas faltas de respeito e de obediência de vários padres
lançam-me no desânimo e na prostração. São porventura muitos os ramos mortos da obra? O Ecce venio, o
Sint unum da nossa vocação não são talvez muito esquecidos? Seria necessário apelar constantemente a
Nosso Senhor, para que nos dê a vida”.1842
1835
Para esta apresentação do P. Dehon no “Diário” de 1886 a 1888, inspirei-me num estudo do P. A. Bourgeois.
1836
NQ III, 4: 15.2.1886.
1837
NQ IV, 52r: 2.7.1888.
1838
NQ IV, 12r: 1.1.1888.
1839
NQ III, 11: 9.3.1886.
1840
NQ III, 24: 15.5.1886.
1841
NQ IV, 8r: 13.12.1887.
1842
NQ IV, 11r: 27.12.1887.

349
Sofre pelas suas limitações como superior: pela sua fraqueza, pela sua excessiva bondade. Escreve a
29 de Dezembro de 1887: “Dia de tristeza. Sinto hoje toda a minha fraqueza e a minha deficiência como
superior: Deixo subsistir os abusos e a tibieza. Não sei elevar o meu mundo e reanimá-lo”.1843
“Reconheço que usando mais autoridade e firmeza em certas circunstâncias consigo guiar melhor as
almas. Pequei muitas vezes por excesso de bondade. Não tomei suficientemente a peito os interesses de
Nosso Senhor. Não me apercebia que, tornando-me demasiado bom com os homens, não era
suficientemente bom com Nosso Senhor, que eu deixava ofender”.1844
“A minha consciência repreendia a minha fraqueza e a minha excessiva bondade”.1845As
observações autocríticas do P. Dehon são duras consigo próprio. São certamente verdadeiras, mas é preciso
completá-las e, em parte, corrigi-las, com o testemunho das pessoas que conheceram e viveram com ele,
relevando também a sua grande energia, quando era necessária.1846
Isto é seguro: que ele ama a sua obra (a congregação); ama-a como um paia criatura predilecta. Esta
predilecção vê-se nos qualificativos que usa: “pequena obra – querida pequena obra – nossa querida obra –
minha querida pequena obra – obra divina – a pequena obra privilegiado (do Coração de Jesus)...”. O P.
Dehon faz questão em conservar bem distinta a sua “querida pequena obra” das obras e teme que as muitas
obras a sufoquem: “Várias obras ocupam o meu espírito: ensino, círculo operário, missões; mas a maior das
minha obras, a mais fecunda para a Igreja, deve ser a obra sacerdotal, a obra da reparação ao Sagrado
Coração e de dedicação ao clero”.1847 “A nossa querida obra deve ser sobretudo interior. É a nossa graça.
Há neste momento um excesso de actividades. Sofremos com isso. É um perigo. É preciso que nos
reaproximemos do espírito dos primeiros anos”.1848
A sede de vida interior é o suspiro fundamental do espírito do P. Dehon e a força d sua obra. Só
assim se realizará o amor e a reparação nas mais diversas actividades apostólicas.
Aquilo que mais impressiona no “Diário” é a constante referência a Nosso Senhor. O fio condutor do Diário é o amor
de Jesus Cristo, as razões deste amor, as suas experiências, as suas belezas, as condições de autenticidade.
Do conhecimento e contemplação da vida de Jesus, dos seus mistérios, das suas “amabilidades”
derivam o desejo e a necessidade de dar alegria a Jesus, honrá-lo, consolá-lo, agradar-lhe, servi-lo, dar-se e
abandonar-se a ele, estabelecer-se nele, viver a sua vida. A orientação afectiva do P. Dehon para Cristo é
uma exigência da sua vida espiritual que se realiza na oblação de amor, isto é no espírito de caridade, que
é também sacrifício.
O “Diário” é sobretudo o livro de ouro das relações do P. Dehon com Cristo: “Impressiona-me um
pensamento do Ofício Divino: a Igreja, querendo absolutamente conquistar os nossos corações para Cristo,
aplica-lhe este pensamento que indica o afecto ardente que devemos ter por Ele: “Jesus decorus nimis et
amabilis super amorem mulierum”.1849 “Não posso viver senão na união com Nosso Senhor. Diversamente
é a perdição; a minha alma é como um navio à deriva”.1850
O P. Dehon é um contemplativo em acção. Os compromissos apostólicos são muitos, mas grande é
também a sua necessidade de solidão, de recolhimento, de oração: “a nossa vida de união e de reparação o
exige”.1851
A sua preocupação constante é o “dom do coração”, que não exclui nem o “saber” nem as “obras”,
mas é a sua alma com o amor.
A união de amor! Esta é a graça que o P. Dehon deseja, experimentando o estado de paz interior, de
alegria pura e doce, que são já vida eterna aqui na terra: “Gostaria de dar definitivamente e para sempre a

1843
NQ IV, 11v: 29.12.1887.
1844
NQ IV, 35v: 17.4.1888.
1845
NQ IV, 54v: 5-6.8.1888.
1846
Cf. G. Manzoni scj, Leone Dehon: vita, ideali e virtù, in Vita d’amore nel Cuore di Gesù, Milano 1980, pp. 11-60.
1847
NQ III, 67: 9.11.1887.
1848
NQ IV, 47v: 20.6.1888.
1849
NQ IV, 30r: 22.3.1888.
1850
NQ IV, 1r: 14.11.1887.
1851
NQ IV, 3r: 22.11.1887.

350
vitória ao Espírito de Deus! Só a este prezo terei a paz e a alegria”. 1852 “Só a união com Jesus pode dar-me
a paz e a alegria”.1853“A paz não é toda alegria, mas uma alegria doce”.1854

“DIAS BONS E DIAS DE GRANDE MISÉRIA”

O leitor terá notado que não percorremos todo o Diário, mas só uma amostra de três anos (1886-
1888) por evidentes motivos de maior uniformidade nos anos, na maturidade psicológica, nas situações
também externas da vida, certos de que as características fundamentais deste período da vida do P. Dehon
se colhem também nos outros períodos.
É preciso porém ter presente duas notas de 1912-1913, que não contradizem a nossa análise , mas
que nos leva a aprofundá-la.
O P. Dehon está no limiar dos 70 anos. Lança um olhar a toda a sua vida espiritual e assim a julga:
“Como foi misericordioso Nosso Senhor para comigo! Ordinariamente não volta a dar(a sua) união,
quando se a esbanjou. Pessoalmente gozei dela por muito tempo, talvez durante 26 anos: de 1866 a 1892.
Depois passei 20 anos de vida permeada de dias bons e de dias de grande miséria (1892-1912). O Senhor
volta a dar-me agora esta união e espero que se acentuará sempre mais”.1855
Estamos em Janeiro de 1913. O P. Dehon acabou de ler alguns estudos de teologia espiritual e
convenceu-se de que “a vida mística é o coroamento normal da vida cristã. Todo o cristão deve tender
desde esta terra à vida de união perfeita com Deus..., que vai a par e passo com a vida mística”.1856
Pouco tempo antes, em Novembro de 1912, tinha escrito no diário: “Depois dos exercícios
espirituais, a graça ajuda-me muito. A oração tornou-se-me fácil e a união com Nosso Senhor é intensa”. 1857
Tudo se renovou nele depois dos exercícios espirituais de Setembro de 1912, pregados pelo P. Reimsbach,
seu professor da Gregoriana e, naquele tempo, director de uma associação sacerdotal orientada para a
espiritualidade victimal.1858 “Éuma outra vid... Nosso Senhor conduz-me logo, sensivelmente e com clareza
a uma grande união...”1859
Sublinhamos a última afirmação: “uma grande união...”.
Os últimos 12 anos da vida do P. Dehon (1913-1925), são caracterizados pelo isolamento em S.
Quintino pela guerra (1914-1918): uma longa solidão de oração e de estudo das coisas de Deus, que
aprofundam a sua vida espiritual e o levam sempre mais para a devoção trinitária. É a meta normal das
almas que correspondem generosamente ao amor de Cristo: chegar o “seio do Pai”.
Em 1915, o P. Dehon fica profundamente atingido, como já dissemos, pela vida da beata Isabel da
Trindade. Copia a sua maravilhosa “elevação” e quer dá-la a conhecer: “Depois desta leitura compreendo
melhor a devoção à Santíssima Trindade”.1860
No último caderno do Diário, o do seu último ano de vida, lemos: “Saboreio sempre mais a devoção
à santíssima trindade”.1861

1852
NQ IV, 5r: 1.12.1887.
1853
NQ IV,39r: 6.5.1888.
1854
NQ IV, 8r: 15.12.1887.
1855
NQ XXXV, 6: Janeiro de 1913. Os vinte anos de 1893 a 1913, permeados de “dias bons e de dias de grande miséria”, aos
quais acena o P. Dehon, dividem-se claramente em dois decénios característicos. No primeiro, de 1893 a 1903, o P. Dehon
compromete-se intensamente no apostolado social. A 8 de Junho de 1893 assume a presidência da comissão dos estudos sociais
de Soissons. Em 1894 publica o Manual social cristão, participa em todos os congressos sociais, escreve artigos e livros sobre a
questão social, chega ao cume da sua actividade social em 1897, com as conferências sociais de Roma, participa na evolução da
democracia cristã. Em 1903, com a morte de Leão XIII (20 de Julho) pode-se considerar concluída a actividade social do P.
Dehon. No fim do ano suspende também a publicação da revista “Le Règne...”. O segundo decénio, de 1903 a 1913, é
caracterizado pela luta do P. Dehon para salvar a Congregação contra o combismo, pela internacionalização do seu Instituto e
pelas longas viagens (cf. Bourgeois, Les Notes Quotidiennes, pp. 10-13).
1856
NQ XXXV, 4-5: Janeiro de 1913.
1857
NQ XXXIV, 174: Novembro de 1912.
1858
Cf. NQ XXXIV, 149-168: Setembro de 1912.
1859
NA XXXIV, 176: Novembro de 1912.
1860
NQXXXVI, 47: Janeiro de 1915.
1861
NQ XLV, 16: Janeiro de 1925.

351
Pouco antes descreve a sua oração, neste último período da sua vida, como fundamentalmente
trinitária: “Saúdo a Santa Trindade: meu Pai e criador; o Verbo de Deus feito meu irmão e meu redentor; o
Espírito santo... meu guia e meu consolador”.1862
É um tema sobre o qual já nos detivemos e ao qual agora nos referimos, para uma melhor
compreensão do “Diário”. Toda a vida do P. Dehon torna-se um glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
Chegámos ao cume da sua experiência espiritual. Agora está pronto para o “comunicantes” eterno do
céu.1863

O EPISTOLÁRIO DO P. DEHON

O epistolário tem as mesmas características de espontaneidade e proximidade do “Diário”, portanto


a mesma importância para conhecer o P. Dehon sem superestruturas, para viver com ele os problemas, as
alegria, as preocupações da vida. Também as cartas são uma fonte de informação preciosa e uma
confirmação única, como fonte contemporânea, acerca da veracidade e da exactidão histórica das
“Memórias”.
As suas primeiras cartas, conservadas provavelmente, como as do seminário e dos primeiros anos
do sacerdócio, pela avó Henriqueta Gricourt,1864 remontam à viagem o Oriente (1864-1865). São 28 cartas,
escritas todas aos pais, excepto uma ao irmão Henrique. É interessante confrontá-las com as
contemporâneas notas de viagem, escritas com o amigo Leão Palustre. Salta aos olhos uma diferença
essencial: o diário de viagem, em sete cadernos, é exclusivamente turístico; as cartas pelo contrário
relevam, embora com sobriedade, os sentimentos da alma de Leão Dehon. Os problemas espirituais do
jovem são intuídos no seu preponderante interesse pelos factos religiosos. A meta autêntica da sua viagem
ao Oriente é a peregrinação a Jerusalém e aos lugares santos. A sua verdadeira intenção é chegar a Roma.
Já usámos frequentemente, nesta biografia, as cartas do seminário e as dos primeiros anos de
sacerdócio do P. Dehon, escritas sobretudo aos pais. Ajudaram-nos a reviver a sua “quotidianeidade” e os
momentos mais proeminentes da sua vida.
Tornado fundador de uma Congregação e alargando-se o seu apostolado, especialmente em campo
social, também o epistolário do P. Dehon torna-se mais variado e atinge pessoas de todas as classes sociais.
Do epistolário do P. Dehon está projectada uma edição crítica. Agora existem várias “colecções”
das suas cartas e é difícil fornecer seja um quadro, seja um número exacto, também porque outras se vão
descobrindo continuamente. São mais de 5.000 as cartas e os postais, alguns muito importantes, do
epistolário (correspondência enviada e correspondência recebida).
Até agora um estudo parcial do epistolário do P. Dehon como religioso, fundador e superior, foi
feito só pelo P. Denis scj, que também registou em fichas todas as cartas existentes no arquivo
dehoniano.1865
O epistolário é portanto um campo imenso. Em grande parte inexplorado. Mereceria um estudo
completo para se conhecer mais a fundo o P. Dehon: as riquezas e finuras da sua alma, que mais facilmente
se manifestam na espontânea intimidade de uma carta; a profundidade de uma vida espiritual, que se
manifesta sobretudo nas inumeráveis “chatices” que deve enfrentar por mais de 45 anos como fundador e
superior. No quotidiano do epistolário saltam à vista, evidentes, o grande equilíbrio, a virtude, a bondade
heróica do P. Dehon; mas também a sua grande energia. Se alguém concebeu uma ideia branda do “Três
bon Père”, lendo as suas cartas, modifica-a, completando, enriquecendo, conferindo algum traço bem
vigoroso à figura do P. Dehon. O seu estilo é sempre muito sóbrio: vai directo ao assunto; tem a coragem
de dizer, com garbo, a verdade mesmo que “queime”. As sus respostas são muitas vezes telegráficas, sem
nunca preterir uma expressão simples, sentida e sóbria de paternidade, de bondade, de fé.

1862
NQ XLV, 11: Janeiro de 1925.
1863
Cf. NQ XLV, 3: Janeiro de 1925; NQ XLV, 61: Junho de 1925.
1864
È provável que tenha sido, não a mãe, mas sobretudo a avó paterna (Henriqueta Ester Gricourt) a conservar as cartas para a
família do P. Dehon. De facto depois da morte da avó, acontecida no fim de Abril ou nos primeiros de Maio de 1874, são mais
raras as cartas existentes do P. Dehon à família.
1865
Cf. M. Denis scj, Le projet du Père Dehon, 302-343 ; ed. It., 403-462.

352
As cartas a madre Maria do Coração de Jesus (La Chère Mère) fornecem-nos muita luz sobre a vida
interior do P. Dehon.
Do Santuário de Notre-Dame de Liesse assim escreve: “Temos tantas graças a pedir a Nosso
Senhor, que se reduzem a uma só: o abandono à sua santa vontade, a imolação e o deixá-lo fazer”.1866
“Pedi ao Sagrado Coração de Jesus que possamos ter em breve um pequeno grupo de verdadeiros
reparadores na casa do Sagrado Coração. Que se votem totalmente à adoração e à vida interior. É
exactamente isso que alcançará as graças necessárias”.1867
Repensando n dolorosa prova do “Consumatum est” confia-lhe que agora a vê como uma graça:
“Não vos parece talvez que a terrível data de 28 de Novembro – 4 de Dezembro de 1883, a data do
Calvário, deva melhor transformar-se numa data de agradecimento? “Aquele Consumatum est” não é
talvez precioso para nós como o Calvário para a Redenção?”.1868 Numa carta, pouco ulterior, admite
humildemente: “Eu também penso como vós que desviámos um pouco do nosso fim e que é preciso voltar
ao nosso espírito inicial. É preciso organizar uma casa de adoração e de vida interior. Far-se-á em Roma.
Gostaria de começar imediatamente...”.1869 Era a mesma acusação de P. Blancal, nesse tempo capelão
oficial das Servas, e a acusação era sustentada também pela Chère Mère, testemunha privilegiada dos
primeiros tempos. Parece que mais tarde se tenha retratado da sua dureza, segundo quanto o P. Dehon
escreve ao P. Paris: “A Chère Mère estava mudada totalmente nos últimos anos. Era muito afável comigo.
Tinha compreendido um pouco tarde que estava um pouco rigorosamente fechada nas suas ideias. Mas
quem não tem defeitos?”.1870 O P. Dehon alude às dificuldades dos anos 1893-1896 quando a madre
respaldava um pouco levianamente o P. Blancal.
Um dos mais fiéis confidentes do P. Dehon foi indubitavelmente o P. Estanislau Falleur, ecónomo
geral da Congregação. O P. Dehon, além de superior, era também o seu director espiritual. Explica-se
assim a sua sincera confidência. Respondendo a uma carta, na qual o P. Falleur lhe falou só de questões
financeiras, escreve: “A vossa breve carta alcança-me em Alsácia, carta toda económica e que não me diz
nem uma palavra do amor do nosso Jesus...”. Responde-lhe acerca dos problemas económicos e conclui:
“Vós sois um dos nossos religiosos dos primeiros tempos. Jesus não pode conceder uma verdadeira
ressurreição à obra também externamente, se o espírito de puro amor não ressuscitar antes de tudo nos
nossos corações e especialmente no coração daqueles que foram, como vós, os seus primeiros filhos na
obra... Entregai-vos de novo a esta vida de amor e de sacrifício que é a nossa... Sede bom e paciente com
todos. Não julgueis. Deixai que a actuar e a converter as almas seja Jesus...”.1871 o P. Falleur era
afeiçoadíssimo ao P. Dehon, mas tinha um carácter impulsivo e bastante duro.
Numa outra carta diz-lhe: “Estou um pouco preocupado pela vossa alma. Não fizestes senão meio
curso de exercícios, com um bocado grande de distracções, por causa dos vossos afazeres. Devemos saber
ocupar-nos do temporal, sem perder o hábito da presença de Deus e da união com Deus. Velai sobre o
vosso carácter. Sabeis que Mons. Thibaudier não vos colocava entre os cordeiros e entre as pombas...”1872
O P. Falleur encontrava uma enorme dificuldade em dominar o seu carácter. Por isso o P. Dehon
exorta-o por diversas vezes: “Um oblato do Coração de Jesus não se abandona nem à cólera nem ao
desânimo”.1873 “Conservai a paz em vós e com todos. Não vos agiteis jamais. Sede doce e caridoso durante
a minha ausência”.1874 “Parece que maltrataste o bom Vilfort (um professor do S. João). A vossa falta de
cortesia humilha-me frequentemente. Pensai que Nosso Senhor considera feito a si opróprio quanto
fazemos ao próximo: “Qui dixerit fatue”...”.1875
Exorta-o a ser generoso como ecónomo: “Mostrai-vos bom para com todos. Mesmo observanso
exactamente a pobreza, não sejais duro. Se deveis fazer uma repreensão, fazei-a com os bons modos da

1866
AD, B 19/1: 19.9.1880.
1867
AD, B 19/1: 26.8.1886.
1868
AD, B 19/1: 24.5.1889. A data certa é : 3 de Dezembro de 1883.
1869
AD, B 19/1: carta ulterior a 1890
1870
AD, B 20/7.4: 31.12.1918.
1871
AD, B 20/2: 24.4.1889.
1872
AD, B 20/7.3 : 22.11.1922.
1873
AD, B 20/7: carta 72.
1874
AD, B 20/3: 6.8.1890.
1875
AD, B 20/3: 2.8.1891.

353
caridade. Quando fazeis o duro, fazeis uma desfeita comigo e à obra, porque me representais. Procurai
fazer-vos amar...”.1876
Convida-o a participar nos exercícios espirituais totalmente, sem se preocupar dos negócios
materiais: a reviver o espirito original da obra ; a fazer-se ajudar no seu ofício: “Tende maior cuidado dos
vossos grandes interesses e da vossa alma”.1877
Na abundante correspondência com o P. Falleur, o P. Dehon multiplica estas chamadas de atenção,
exprimindo aquilo que tem verdadeiramente a peito. Pede-lhe sobretudo de não criticar nem os ausentes,
nem as comunidades; de ser muito humilde, muito sobrenatural, entre as tantas preocupações materiais que
invadem a sua vida de ecónomo sobretudo em Fourdrain, uma propriedade bastante grande e absorvente na
administração.
Em Dezembro de 1900 escreve-lhe: “Não sois tão pouco sobrenatural? Tendes dois irmãos noviços,
que fazeis deles? Tiveram as suas conferências regulares neste mês...? Desejais irmãos cooperadoes; é
verdadeiramente para dardes sinceros servos ao Coração de Jesus ou para fazer deles palafreneiros? Sois
um religioso ou só um feitor? Em lugar de julgar severamente os outros, começai seriamente convosco
mesmo...”.1878
É uma carta severa. Recordemos que o P. Falleur foi noviço do P. Dehon de 1879 a 1881 e o P.
Dehon era sempre o seu mestre espiritual. Com ele, além disso, leva a pesada cruz dos débitos e também de
certos erros exactamente do P. Falleur que se deixou enganar por certos traficantes desonestos. No Diário
(1912) o P. Dehon escreve: “Tnho grandes aborrecimentos e sofrimentos que não posso dizer”.1879 O P.
Falleur tinha perdido uma enorme soma e a situação financeira apresentava-se dramática. O P. Dehon era
alheio ao apoio de projectos comerciais ou de empresas lucrativas. Desaconselhava o P. Falleur, que não se
continha diante dos riscos, de continuar com a sua fábrica de sabão em Fourdrain. Quando depois projecta
de desfrutar também uma pedreira, escreve-lhe de modo desabrido para Brugelette: “Um sacerdote não é
feito para ser um cortador de pedras”.1880
Todavia o P. Dehon sabia condimentar as suas admonições e também as suas repreensões com são
humorismo. Escreve-lhe de Roma: “Eis aqui em parte um projecto de brasão...” O P. Dehon recortou de um
impresso um pequeno quadro com duas figuras de escudo heráldico frente e frente: um leão e um urso. E
anota: “O superior e o seu ecónomo. Cada animal tem os seus defeitos; mas, no fundo, querem-se muito
bem; abrem os braços para se abraçarem”.1881
Examinámos, só para fazer uma amostra, dois correspondentes do P. Dehon: a Chère Mère e o P.
Falleur. Não quisemos alongar-nos sobre as interessantes cartas sobre a formação, trocadas com o P.
Guillaume, das quais resulta como o P. Dehon, embora considerando o P. André Prévot o seu “santo mestre
dos noviços”, não aprova completamente a sua formação muito rígida. É certo pois que o epistolário é uma
revelação interessante e renovada do autêntico P. Dehon, na luta, dia após dia, com os problemas concretos
da vida e das pessoas, na variedade das suas situações e dos seus caracteres.

AS CARTAS CIRCULARES E AS “RECORDAÇÕES”

Seria interessante determo-nos agora sobre as “cartas circulares” do P. Dehon, analisá-las


profundamente, porque põem em relevo a sua figura de fundador, como padre, religioso e sacerdote.
Revelam a sua alma: os seus desejos, as suas preocupações, todo o seu mundo espiritual. Não têm nada de
formal. São um colóquio directo, simples, familiar com os seus religiosos.

1876
AD, B 20/8: 16.1.1900.
1877
AD, B 20/2: sem data.
1878
AD, B 20/8: 30.12.1900.
1879
NQ XXXIV, 85: Abril de 1912.
1880
AD, B 20/4: 12.3.1904.
1881
AD, B 20/4: 17.4.1907. Todas as citações das cartas são tiradas do estudo de M. Denis sobre a correspondência do P. Dehon
(cf. M. Denis, scj, Le projet du Pare Dehon, 302-343; ed. It. 403-462).

354
São 38 cartas que abarcam mais de 40 anos de vida da Congregação do P. Dehon: vão desde 20 de
Dezembro de 1882 a 17 de Junho de 1925.1882
Não podendo alongar-nos sobre cada uma delas, por evidentes razões de equilíbrio e de sobriedade,
não queremos passar em silêncio uma longuíssima carta, que não é estritamente falando uma carta circular,
mas é mais importante que as cartas circulares. É chamada “Souvenirs: 1843-1877-1912” ou seja
“Recordações”. O P. Dehon envia-a de Roma a todos os seus religiosos, a 14 de Março de 1912, ao entrar
no seu 70º ano de vida.1883
Sente a necessidade, como um velho pai, de reviver os acontecimentos do passada com os seus
filhos: “Caríssimos filhos, entro hoje no meu 70º ano. É a velhice. Esta data recorda-me que a minha
permanência no meio de vós não será muito mais longa. Aproveito desta ocasião para entreter-me
paternalmente convosco, abrir-vos o meu coração, recordar-vos aquilo que quis fazer sob as inspirações da
graça divina e repetir-vos aquilo que espero de vós ou, melhor, aquilo que o Sagrado Coração de Jesus vos
pede. É como o meu testamento espiritual. Devo começar com um acto de humildade... Tenho consciência,
da minha parte, dos muitos erros cometidos... É um milagre de misericórdia, se Nosso Senhor nos suportou
e nos deixou a nossa missão... Ajudai-me a pedir perdão a Nosso Senhor de todas as faltas cometidas na
Congregação pela sua cabeça e pelos seus membros, desde os inícios”.1884
Percorrer, portanto, de novo a história do Instituto “para que saibais que toda a nossa obra é
sobrenatural, toda inspirada pela fé e pela graça”.1885 Recorda outras obras reparadoras, pouco adequadas
às suas aspirações, até que chegou à decisão de fundar os Oblatos com a aprovação do seu bispo, Mons.
Thibaudier.
Recorda os encorajamentos espirituais que teve de almas santas, de tantos bispos e prelados, a ajuda
generosa particularmente das Servas do Coração de Jesus; recorda as tantas muitas dolorosas, a supressão
do Instituto, a sua ressurreição, os encorajamentos da Santa Sé; recorda os primeiros padres e irmãos
passados para a Casa do Pai, depois de ter “oferecido a sua vida pelo reino do Sagrado Coração”,1886,
especialmente os 17 missionários mortos no Congo (Zaire): “Só o facto de irem para lá, expondo-se aos
perigos de uma morte iminente, mereceria para eles a palma do martírio”.1887 Era, nesse tempo, a dura
realidade.
Recorda as muitas obras fundadas em 35 anos; mas, antes de concluir com o agradecimento a Deus
e aos homens, escreve: “Comecei a minha carta com um acto de humildade; renovo-o aqui. Tínhamos uma
bela missão; aproximar os sacerdotes e o povo do Coração de Jesus. Estragámos muitas coisas, eu
sobretudo, e cumprimos mal o nosso dever... Além disso ficar-me-ia um peso no coração se não vos
pedisse a todos que perdoeis os meus defeitos pessoais. Bem sei que não vos edifiquei suficientemente.
Estou convencido disso mais do que quanto o possa exprimir”.1888
Alonga-se depois a falar de uma audiência de S. Pio X e das resoluções derivadas daquele encontro,
resoluções que propõe a si mesmo e a todos os seus religiosos: “Um zelo apostólico ardente, a adoração
reparadora (“devemos fazer questão”) e a oferta quotidiana de nós mesmos ao Sagrado Coração” (ou seja a
oblação de amor).1889
Conclui: “Rezai também por mim, para que Deus me conceda a graça de orientar-vos santamente e
de fazer-vos progredir na vida da virtude. Já estou velho. Quero acabar a minha exortação com as palavras
que o apóstolo S. João repetia na sua velhice: ‘amai-vos uns aos outros’. Suplico-vos, como fazia S. João:
não haja divisões entre nós. Passamos por cima de tudo, para permanecer unidos... Rezai por este velho que
vos abençoa com todo o coração. Rezai muito por ele, porque tem grande necessidade da divina
misericórdia”.1890

1882
Cf. P. L. Dehon, Lettere circolari. Texto original francês com tradução italiana, a cuidado de A. Tessarolo e G. Albiero,
Bolonha 1954, pp. 440.
1883
Cf. Lettere circolari, pp. 318-371.
1884
Lettere circolari, nn. 331-332.
1885
Lettere circolari, n. 333.
1886
Lettere circolari, n. 376.
1887
Lettere circolari, n. 338.
1888
Lettere circolari, nn. 392-393.
1889
Lettere circolari, nn. 399-401.
1890
Lettere circolari, n. 401.

355
É uma carta muito cheia de recordações alegres e tristes, na qual se revela a ternura do grande
coração do P. Dehon.
As últimas duas cartas circulares dizem respeito à preparação do nono capítulo geral, a realizar-se a
15 de Setembro de 1925 e que, como todo o capítulo, tinha como fim principal: “Promover o fervor”. 1891
Realizar-se-á porém em Roma, de 19 a 27 de Janeiro de 1926, por causa da morte do P. Dehon, acontecida
em Bruxelas, a 12 de Agosto de 1925.

1891
Lettere circolari, n. 316.

356
Capítulo 24

Mestre de vida

A piedade de um século – O culto ao Coração de Jesus - Uma devoção tipicamente eucarística – A espiritualidade
vitimal – A piedade mariana – O gosto pelo maravilhoso – O verdadeiro triunfo do ultramontanismo – Contemplativos em acção
– Um Mestre de vida espiritual – A espiritualidade e a missão dehonianas – Um estilo de vida e de apostolado –
Comportamentos dehonianos: um retrato do P. Dehon – Amor que se manifesta como bondade, cordialidade e nobreza de alma
- ... como generosidade - ... como equilíbrio, serenidade e optimismo - ... para os sacerdotes - ... para os pequenos - A
humildade, caminho da caridade - Ir à fonte: a eucaristia – Contemplativo em acção: extraordinário no ordinário – Homem de
fé, homem de Deus – A missão dehoniana.

A PIEDADE DE UM SÉCULO

A piedade do século em que se formou e mais tempo viveu o Padre Dehon, o oitocentos francês,
centra-se no culto da eucaristia, do Coração de Jesus e da santíssima Virgem Maria.
As manifestações exteriores podem estar aqui e ali, contaminadas por algum pietismo,
sentimentalismo, superstição; mas, no seu conjunto, manifestam uma sincera e profunda fidelidade a
Cristo, reconhecendo o seu amor divino e humano, e uma sentida devoção a Maria, venerada sobretudo na
sua maternidade.
Não faltam os escritos espirituais. O P. Dehon deu o seu contributo pessoal com dez obras de
espiritualidade.
Examinando a piedade típica do oitocentos francês, com um juízo objectivo e sereno, chega-se à
conclusão de que as manifestações positivas e vitais superam em muito as negativas.

O CULTO AO CORAÇÃO DE JESUS

O culto ao Coração de Jesus é uma característica da espiritualidade de quase todos os institutos


religiosos fundados em França no século dezanove.
Habitualmente o culto ao Coração de Jesus é acompanhado por uma especial atracção pela
eucaristia e pela paixão. O exercício da Via-Sacra, muito difundido, é, ao mesmo tempo, contemplação do
amor de Cristo e convite a segui-Lo até à imolação total, por amor, na cruz.
Nasce espontâneo um ardente amor a Cristo trespassado na cruz e um vivo espírito de reparação até
ao desejo de associar-se a Ele na entrega da vida para a glória do Pai e o serviço dos irmãos. É o espírito de
imolação ou de vítima tão característico na espiritualidade do século dezanove que se inspira no Coração
de Jesus.
O P. Dehon, nas suas Memórias, recorda como, no seu segundo ano de seminário (1866-1867), o
objecto habitual dos seus afectos era Jesus crucificado: “Fazia a Via-Sacra todos os dias. Era o meu recreio
da noite... Conservava no meu coração uma tristeza habitual e profunda ao pensar que Jesus não é
amado”.1892
Em consequência nasce uma necessidade de purificação profunda que dispõe o jovem seminarista
para a união de amor a Cristo, para a reparação, para a oferta da sua vida pela salvação dos pecadores.
Assim Leão Dehon vive antecipadamente alguns aspectos característicos da espiritualidade típica do
Instituto por ele fundado. Por isso considera os anos do seminário como o seu noviciado e os apontamentos
então escritos como um “directório espiritual” para os seus religiosos.1893
Na França, especialmente depois da revolução e das guerras napoleónicas, propaga-se
prodigiosamente a devoção ao Coração de Jesus. Todos conhecem o voto feito ao Coração de Cristo, por

1892
NHV, 70.
1893
Cf. NHV V, 129.133; VI, 47

357
Luís XVI, prisioneiro no Templo, mediante um livrinho difundido em milhares de exemplares: “A salvação
da França”.
À arquiconfraria do Sagrado Coração, fundada em Roma, associam-se centenas de confrarias de
todo o mundo. Os bispos consagram as suas dioceses ao Coração de Jesus. O primeiro mês do Coração de
Jesus celebra-se em Paris em 1833 e logo se difunde em toda a parte. Eclesiásticos e religiosos rivalizam
entre si pregando e escrevendo sobre o Coração de Cristo. Quase todos os fundadores de congregações e os
renovadores das grandes ordens são devotos do Coração de Jesus.
Multiplicam-se os institutos que ostentam o nome do Coração de Jesus. Eram só 4 nos anos
setecentos. No oitocentos são ao menos 15 masculinos (entre os quais os Oblatos do Coração de Jesus do P.
Dehon) e ao menos 20, talvez mais, femininos.
A 25 de Agosto de 1856 Pio IX prescreve a celebração da festa litúrgica do Sagrado Coração. Cada
vez se estende mais a prática da consagração. Pio IX dá o exemplo, consagrando privadamente a Igreja ao
Coração de Jesus a 16 de Junho de 1875, no segundo centenário das aparições de Paray-le-Monial. O P.
Dehon fala disso nas “Memórias”. Consagra ao Coração de Jesus o patronato de S. José: “Foi uma bonita
festa no Patronato. Amamos muito o Sagrado Coração...” 1894
Pede o diploma de agregação ao “Apostolado da Oração”, fundado em 1844 pelo Jesuíta P. X.
Gautrelet como “Liga de Oração em união ao Coração de Jesus” pela salvação das almas. “Os jovens mais
fervorosos do Patronato inscrevem-se nela”.1895 Finalmente Leão XIII, com a encíclica “Annum sacrum”,
manda que, no dia 11 de Junho de 1899, se faça em todas as igrejas a consagração do mundo ao Coração de
Jesus. O P. Dehon exulta de alegria: “É uma grande data. Já há anos que trabalho para tornar popular este
acto de homenagem. É a finalidade da nossa pequena revista “O Reino do Sagrado Coração...” que já tem
10 anos de vida”.1896
Entretanto continuou a expandir-se a espiritualidade reparadora, favorecida pela desastrosa derrota
de 1870, acompanhada pelas violências da comuna parisiense. Os católicos franceses batem no peito
sinceramente: a nossa pátria pecou. “Nenhuma nação sobreviveu à sua própria religião”, afirma Victor
Laprade e Luís Veuillot: “Nós perecemos por falta de fé, de lei, de justiça entre nós e dentro de nós”.1897
As manifestações populares de massa exprimem-se nas peregrinações a Paray-le-Monial, nas
consagrações, nos actos de penitência, num maior compromisso de vida sinceramente cristã. São aspectos
autenticamente religiosos, imensamente superiores a qualquer instrumentalização, especialmente
monárquica.
Neste clima de espiritualidade, centrado no amor ao Coração de Jesus e na reparação, nasce em
1877-1878 a Congregação do P. Dehon com o nome de Oblatos do Coração de Jesus.

UMA DEVOÇÃO TIPICAMENTE EUCARÍSTICA

A devoção ao Coração de Jesus, propagada a partir de Paray-le-Monial, é tipicamente eucarística. A


contemplação e o amor a Cristo-Eucaristia são a razão do nascimento de muitas congregações e de pias
associações fundadas em França nos anos oitocentos. A prática da adoração eucarística, da adoração
perpétua, da hora santa, muitas vezes com conotação reparadora, difundem-se por toda a parte.
Na espiritualidade do P. Dehon e do seu Instituto, a adoração eucarística adquire uma importância
fundamental, ligada à missa, “o grande acto do dia”1898 e é o seu complemento contemplativo.
Uma das aspirações mais sentidas do P. Dehon é a de fundar casas dedicadas completamente à
adoração. A última recomendação do seu testamento espiritual é a fidelidade à adoração quotidiana, vivida
no espírito contemplativo de “consolar a Nosso Senhor” e no espírito apostólico de “apressar o Reino do
Coração de Jesus nas almas e nas nações”.1899
A ESPIRITUALIDADE VITIMAL
1894
NHV XI, 140
1895
NHV XI, 144
1896
NQ XIII, 154-155:
1897
A. DANSETTE, Histoire religieuse, 340
1898
DE, PV, § 4.
1899
DS, Testamento espiritual do P. Dehon.

358
Mons. D’Hulst chamou ao século XIX: “O século do Sagrado Coração”, sobretudo, a partir
do pontificado de Pio IX (1846). Este Papa, ao proclamar primeiro venerável e depois beata em 1864 a
Margarida Maria Alacoque, difunde a mensagem de Paray, marcada não só pelo amor ao Coração de
Cristo, mas também pela reparação.
A união às dores de Cristo manifesta-se no culto ao Coração de Jesus sob várias formas: como
compaixão dolorosa pela vítima do Calvário, como reparação de amor pelas traições do "povo escolhido" e
pelos ultrajes dos pecadores, como missão apostólica para "completar o que falta aos sofrimentos de
Cristo" tomando sobre si, em união com Ele, por amor, as culpas dos homens, sentando-se à mesa com os
pecadores.
Ao longo do século XIX desenvolve-se e fortalece-se um movimento espiritual que leva as almas,
não só a reparar pelos pecadores, pelos ímpios e incrédulos, mas também a oferecer-se como “vítimas”,
com Jesus-vítima, pelos irmãos espiritualmente mais necessitados. São almas que compreenderam a
gravidade da miséria espiritual do pecado, como recusa do Amor, e a sua responsabilidade no mistério da
salvação do mundo. Com o voto de vítima põem em prática o que disse Cristo: "Ninguém tem um amor
maior que este: dar a vida pelos amigos"(Jo. 15,13). Os pecadores são para estas almas pobres irmãos,
amigos em necessidade extrema.
Também R. Aubert reconhece que nunca houve uma época que tenha visto florescer tantos
institutos com tantas almas votadas ao apostolado da imolação por amor, como o oitocentos.1900
O P. Dehon foi uma destas almas. Emitindo os votos religiosos a 28 de Junho de 1878, fez também
o voto de vítima. Funda assim uma congregação de sacerdotes vítimas, que ele chama com o nome de
Oblatos.
Esta espiritualidade vitimal, expressão da caridade, levada até ao heroísmo da imolação pelos
irmãos espiritualmente mais necessitados, conta com numerosos centros de irradiação na França.1901

A PIEDADE MARIANA

Do Filho passa-se espontaneamente para a Mãe. A piedade mariana na vida espiritual do oitocentos
francês floresce e propaga-se com as congregações marianas, com as numerosas pereginações aos
santuários da Virgem, com a prática do mês de Maio e o rosário vivo de Paulina Jaricot.
A proclamação do dogma da Imaculada em 1854 contribuiu para aumentar a devoção dos fiéis e o
interesse dos teólogos sobre os estudos marianos. As aparições da Virgem no oitocentos fizeram da França
a terra de Maria. Em 1830, temos em Paris as aparições a Santa Catarina Labouré e a difusão da medalha
milagrosa. Em Setembro de 1846, a Virgem aparece a dois pastorinhos Savoianos em La Salette. Maria
chora e pede reparação pelos pecadores. É uma das primeiras recordações na vida do P. Dehon; a mãe e as
tias falavam entre si destas aparições.1902 Mas as aparições que desencadearam um movimento de piedade
mariana, não só europeu mas mundial, foram as de Lourdes (1858). Outras aparições, embora menos
célebres, tiveram lugar em França na primeira e segunda metade do oitocentos.
É conhecida a devoção do P. Dehon a Nossa Senhora de Liesse, o santuário mariano mais célebre
da diocese de Soissons. Pelas "Memórias" e pelo "Diário" sabemos que aproveitava todas as ocasiões para
peregrinar até aos santuários marianos.
Muitas novas Congregações caracterizam-se por uma típica espiritualidade mariana que, muitas
vezes, se exprime na oblação de amor, no espírito de abandono, na penitência, na humilde entrega, na
infância espiritual. São atitudes espirituais gratas ao P. Dehon.
Já nas primeiras Constituições de 1881, se diz: "Os Oblatos do Coração de Jesus têm... uma
devoção particular ao Sagrado Coração de Maria e à Imaculada Conceição".1903 No "Directório Espiritual"
insiste-se sobre a devoção a Nossa Senhora das Dores.1904 O P. Dehon sente-se atraído pelo Coração
1900
Cf. R. AUBERT, Storia della chiesa, vol. XXI/2, 708-709
1901
Cf. M. DENIS scj, La spiritualité victimale en France, "Studia Dehoniana 11, CGS, Roma 1981, pp. 310.
1902
Leão Dehon tinha então três anos e meio (cf. NQ XXXV, 93-94: 19-20.9.1984).
1903
Cst. 1881, n.3
1904
Cf. DS, 48-50.

359
imaculado e doloroso de Maria. Também teve uma devoção particular a Nossa Senhora do Sagrado
Coração, venerada num santuário perto do Noviciado de Sittard (Holanda).
Escolheu como saudação habitual entre os seus religiosos a expressão: "Vivat Cor Jesu - Per Cor
Mariae". É uma saudação que exprime de forma simples o carisma dehoniano e as características da
devoção mariana no P. Dehon e no seu Instituto. “A vida (de Maria) é toda de amor, de união, de imolação.
O "Ecce ancilla" resume a vida de Maria, como o "Ecce venio" resume a vida de Jesus".1905

O GOSTO PELO MARAVILHOSO

Pensando nos milagres que acontecem nos santuários marianos e especialmente em Lourdes, é
preciso mencionar o gosto pelo maravilhosos, pelo "sobrenatural", típico da espiritualidade do oitocentos,
especialmente na França e na Itália. Parece que Deus se compraz em reagir contra o racionalismo
positivista da época, que nega toda e qualquer manifestação sobrenatural, multiplicando prodígios e
milagres. Basta pensar em Lourdes, no Cura de Ars na França, em S. João Bosco na Itália, mas também em
tantas almas humildes que deram exemplos heróicos de santidade, fundando muitas vezes, com uma
prodigiosa assistência da Providência, hospitais e orfanatos, interessando-se pelos anciãos, pelas crianças e
pela juventude.
Pio IX compraz-se em favorecer as canonizações, com um esplendor litúrgico que causa impacto
nos contemporâneos, chamando a atenção dos fiéis para as permanentes maravilhas da graça na Igreja.
É inevitável que se passe do exagerado rigorismo racionalista do setecentos, que confina no deísmo
e no cepticismo, para manifestações de fé que às vezes resvalam para a crendice.
Pessoas piedosas e fervorosos eclesiásticos consideram como uma falta de fé até a mais leve
reserva, a dúvida prudente, a exigência de provas válidas sobre os factos maravilhosos presentes e
passados. Muitos lançam-se, com curiosidade pouco louvável, sobre qualquer profecia, notícia de milagres,
fenómenos de estigmas, etc.; desenterram velhas lendas hagiográficas da Idade Média, sem um mínimo
sentido crítico.
O fenómeno alcança grandes dimensões em França, especialmente nos ultramontanos, muito
sensíveis às orientações de Roma e entusiastas das tradições medievais.
Alguns bispos franceses, como Dupanloup, reagem contra esta exaltação mística. Baseiam-se no
meritório trabalho dos Bolandistas e dos historiadores católicos alemães que, com rigoroso método crítico,
apresentam de novo a história da Igreja e a hagiografia com documentos certamente autênticos.
Nada disto perturba certos autores piedosos, como Mons. Gaume (1802-1879) que, sob o pretexto
de favorecer a devoção, aceitam todo e qualquer conto piedoso e certas lendas de santos, tanto mais
comoventes quanto mais inverosímeis, das quais Mobillon e Maurini tinham feito justiça já mais de um
século antes.1906
O P. Dehon é propenso ao maravilhoso, procura-o e acolhe-o com alegria.1907
Nisto julga bem Mons. Duval quando escreve ao Cardeal Monaco do Santo Ofício: "O P. Dehon é
um homem inteligente, activo, um pouco inclinado para o misticismo". 1908 O P. Dehon sempre sincero,
inclusive em reconhecer os lados defeituosos da sua personalidade, escreve no "Diário" em Agosto de
1890: "Às vezes, censuraram-me por ser demasiado crédulo de factos maravilhosos. Encontrei uma
passagem de S. Afonso de Ligório que me consola...: "Preferiria antes enganar-me ao acreditar demasiado
em milagres e êxtases do que em não acreditar, porque a fé alarga o coração ao amor divino e a prudência
humana, normalmente o aperta".1909 É uma preferência que roça a credulidade, mesmo que seja sustentada
por um santo.

1905
DS, 42; cf. DS, 8: cf. A. VASSENA, Breve storia del V.C.J. e da sigla S.C.J., in "Dehoniana" 1 (1979), 20-23.
1906
R. AUBERT, Storia della chiesa, vol. XXI/2, 713-714.
1907
Cf. NQ: XII, 144-145
1908
Carta de 30.1.1892: cf. Dossier de l'Evêché de Soissons, 21.
1909
NQ V, 12r: 29-30.8.1890.

360
Sobre este gosto do P. Dehon pelo maravilhoso, é interessante repassar as "Memórias" e o "Diário".
Referindo-se às numerosas aparições da Virgem, o P. Dehon é prudente; não se pronuncia nem a favor nem
contra; conclui que é necessário rezar e ter confiança.1910
O interesse do P. Dehon pelas almas favorecidas com graças místicas, como Luísa Lateau, 1911
Margarida Maria Doëns,1912 Maria Lataste1913 e numerosas outras almas, não é motivado por uma
superficial e mórbida curiosidade, mas pela convicção de que os encontros com estas pessoas são graças de
Deus para conhecê-Lo melhor, para unir-se mais a Ele e, sobretudo, para amá-lo com uma vida mais
generosa e mais santa. Nestas almas, muitas vezes desprovidas dos dons da natureza e desprezadas pelos
homens, encontra um exemplo vivo de oblação reparadora, de imolação e de heroísmo cristão.1914
Com idêntico espírito se interessa pelas numerosas profecias que circulavam por aqueles tempos
(estamos em Dezembro de 1911). Relata-as e depois conclui com muito bom senso: "Acontecerá o que o
céu quiser. Rezemos e santifiquemo-nos".1915

O VERDADEIRO TRIUNFO DO ULTRAMONTANISMO

P. Dehon é um homem muito equilibrado. Evita qualquer extremismo. Não é um fanático nem um
exaltado. É um homem de fé e de profunda oração; mas a sua piedade nem de longe recorda um certo rigor
jansenista, tipicamente francês; é do tipo ultramontano.
O verdadeiro triunfo do ultramontanismo, como já dissemos, está na difusão de uma piedade mais
calorosa, mais indulgente; uma piedade de tipo italiano, às vezes um pouco exterior e superficial, mas mais
humana, mais cordial e popular, dando livre curso ao sentimento, favorecendo a sua manifestação exterior
com uma maior frequência dos sacramentos e com as mais variadas práticas de piedade a Cristo (eucaristia,
crucifixo, Sagrado Coração), à Virgem e aos santos.
Mitiga-se assim aquela piedade sólida e profunda, austera e fria, típica de S. Sulpício, numa França
onde o rigorismo jansenista resiste a desaparecer.
A difusão também em França da moral de S. Afonso infligiu um golpe mortal às tendências
jansenistas. Ainda em 1845, no seminário de Chartres, S. Afonso era tratado publicamente como
"palhaço". Mas as congregações romanas apoiam-se cada vez mais no doutrina moral do grande santo e Pio
IX proclama-o doutor da Igreja em 1871. A espiritualidade deste "s. Francisco de Sales italiano" está toda
embebida de confiança na divina misericórdia, de terna devoção à eucaristia e à Virgem.
O P. Dehon, tendo estudado em Roma, tinha-se formado na moral de S. Afonso e tinha-se
alimentado com as suas obras espirituais. Escolhe "A verdadeira esposa de Jesus Cristo" para as suas
conferências espirituais às Servas1916 e para o "Mês de Maria" inspira-se nas "Glórias de Maria".
A orientação mais calorosa e mais popular da piedade é, para os defensores dos antigos costumes
galicanos, infectados de jansenismo, um dos principais crimes do ultramontanismo.
Objectivamente falando não se trata de uma piedade sem inconvenientes. Às vezes pode tender para
a superstição e para o sentimentalismo. Não faltam exageros nas devoções particulares, com a consequente
diminuição dos horizontes bíblicos e litúrgicos nos fiéis. Com a preocupação de ganhar indulgências e de
favorecer práticas externas de piedade, pode dificultar uma profundidade interior e uma séria
transformação de vida.
Fazendo porém um balanço sereno, esta evolução para uma piedade mais calorosa e popular,
mesmo com as suas escórias, foi benéfica. Aparece como uma sã reacção do sentido cristão contra um
cristianismo subserviente e quase viciado pelo racionalismo, próximo do deísmo, que tinha as suas origens
no iluminismo do setecentos.

1910
NQ XXXV, 150: Novembro de 1914.
1911
Cf. NHV X, 16-19.46-48; NHV 154-155; NQ XLI, 50-53; Outubro de 1917.
1912
Cf. NHV XXXV, 114-115: Novembro de 1914
1913
Cf. NQ XXXV, 120-121: Novembro de 1914
1914
Cf. NQ XXXV, 114-115: Novembro de 1914
1915
NQ XXXIV, 61: Dezembro de 1911
1916
Cf. NHV X, 24.

361
O P. Dehon é um defensor da piedade aberta à confiança na bondade de Deus, de Cristo e da
Virgem e propaga-a com a sua revista "Le Règne...", com as suas obras de espiritualidade e com a
associação reparadora "Adveniat regnum tuum", aberta ao clero e aos leigos.

CONTEMPLATIVOS EM ACÇÃO

Segundo H. Bremond os contemplativos, as almas autenticamente místicas, não faltam no


oitocentos francês, antes encontram-se váriose insignes em todos os extractos sociais. Cerca de trinta
homens e mulheres foram beatificados ou canonizados.
Além de fundadores e fundadoras de congregações religiosas, recordamos Santa Teresa de Lisieux,
S. Bernardete Subirous, S. Catarina Labouré, S. João Maria Vianney...; mas, sem nos adiantarmos ao juízo
definitivo da Igreja, pensamos em F. Ozanam, Rosalia Rendu, Paulina Jaricot, L. Harmel, Armando de
Melun, P. Dehon, P. André Prévot e tantos outros. Tem-se a convicção profunda de se encontrar perante
autênticos santos.
Pode-se concluir, sem medo de exagerar, que o oitocentos francês, tão volteriano, materialista e
anticlerical, é um século de místicos e de santos, comparável às melhores épocas da Igreja.
É uma mística, uma santidade pouco tratada nos escritos, porém muito vivida na vida e na
actividade apostólica. O Problema da descristianização é angustiante depois da grande revolução, no difuso
volterianismo e durante a terceira república maçónica e anticlerical. Apresenta-se, sob variados aspectos e
com várias causas, em todos os campos e extractos sociais. Mais que escrever, é preciso agir, para
recristianizar a França, reduzida a terra de missão. O P. Dehon dá o seu contributo em todos os campos:
apostólico, cultural e social.
Pourrat, na introdução ao estudo de espiritualidade do oitocentos francês, faz esta acertada
observação: "Durante este período de reorganização da cidade cristã, a espiritualidade está muito mais nas
obras, que se criam por todo o lado, do que nos livros, porque não havia tempo para escrevê-los".1917
Em geral, faz-se um juízo de valor mais favorável à vida espiritual da segunda metade do oitocentos
francês a que pertence também L. Dehon: muitas são as obras, frequentes os escritos e numerosas as
personalidades relevantes. Todavia a primeira metade do oitocentos, embora menos conhecida, tem a sua
importância: prepara a floração da segunda metade do século, floração que se manifesta, não só no campo
religioso, mas no campo cultural.
Como já acenámos, de 1875 para diante, fundam-se as universidades católicas, aprofundam-se os
estudos nos seminários, renova-se a exegese bíblica com o P. A.M. Lagrange, aprofundam-se os estudos
históricos com L. Duchesne e os litúrgicos com D. Guéranger.
Numerosas são as conversões à fé a partir de 1880 e constata-se um notável influxo cristão sobre a
geração que precede a primeira guerra mundial.
Muitos leigos constituem um testemunho vivo de fé no mundo universitário com a sua produção
literária e filosófica.
Filosofia e literatura aventuram-se corajosamente no mundo espiritual e religioso, com escritores e
pensadores católicos de fama mundial; basta pensar em Peguy, Bloy, Claudel, Bernanos ...
O oitocentos é um século espiritualmente rico, que suporta bem o confronto com os maiores séculos
da Igreja.

UM MESTRE DE VIDA ESPIRITUAL

Leão Dehon é um mestre de vida espiritual. Escreveu várias obras de espiritualidade, quase sempre
com intenções práticas. Em geral são livros de meditação: querem ajudar as almas a conhecer o amor de
Deus e a vivê-lo correspondendo a ele.
Mesmo se escritos para o grande público, servem em primeiro lugar para os religiosos da sua
Congregação.
1917
POURRAT, La spiritualité chrétienne, IV, 582.

362
Escreve no Diário: "Gostaria que a nossa meditação, (fala para os seus religiosos) fosse sempre
sobre Nosso Senhor e sobre a sua vida. Se tivesse o tempo disponível para escrever um livro de meditação,
dividiria o ano segundo os mistérios de Nosso Senhor",1918 como de facto o fez na obra "O ano com o
Sagrado Coração": "Deixarei a minha doutrina no meu Ano com o Sagrado Coração". 1919O P. Dehon não é
um escritor espiritual que propõe uma doutrina original; é um mestre de vida espiritual que ensina a viver
com o seu exemplo, com as obras que escreveu e os discípulos que formou.
A espiritualidade do P.Dehon estriba-se na vida vivida; a vida interior acima de tudo, caracterizada
pela oblação de amor, o espírito de piedade, a virtude praticada na vida quotidiana.
Mesmo os seus escritos espirituais surgem de uma profunda exigência de vida. Escreve no seu
Diário: "Sinto a necessidade de meditar mais habitualmente na vida de Nosso Senhor e de contemplá-Lo,
tanto na sua vida terrena como na sua vida eucarística. Gostaria de ter tempo para preparar meditações para
nós (os seus religiosos). S. Francisco Xavier meditava todos nos meses os mistérios de Nosso Senhor como
são apresentados nos Exercícios de S. Inácio".1920
Para a sua revista" O reino do Coração de Jesus...", fundada em 1889, escreve estudos e meditações.
A vida leva o P. Dehon a escrever: a sua vida pessoal, a dos seus religiosos e as exigências da vida
dos seus leitores.
Falámos longamente do P. Dehon e da Congregação por ele fundada (os Oblatos do Sagrado
Coração de Jesus), das suas numerosas obras e das iniciativas apostólicas que suscitaram na Igreja.
Também fizemos alusão ao carisma do P. Dehon.1921
Queremos agora aprofundar este tema essencial para um fundador e para a missão do seu Instituto
na Igreja.

A ESPIRITUALIDADE E A MISSÃO DEHONIANAS

É indispensável para um fundador, para um instituto, precisar o sentido de missão. No Directório


Geral Dehoniano lemos: "Na nossa vida religiosa, espiritualidade, vida comunitária, votos, trabalho e
ministérios, tudo é missão".1922 Se nesta biografia falamos de espiritualidade e missão, entendemos por
espiritualidade a alma da missão que deve vivificar a vida comunitária, a prática dos votos religiosos, os
trabalhos e ministérios de apostolado, como a alma vivifica o corpo e formam um todo no homem. Na
realidade, teria de dizer-se: a espiritualidade é missão e a missão é espiritualidade, como a contemplação é
acção e a acção é contemplação. Pelo menos é assim que deveria ser.
A experiência de fé do P. Dehon, pessoal e única, tem um valor exemplar para os seus religiosos e
para quem quer que se sinta atraído pelo seu carisma. Não se trata de uma imitação material. Seria uma
empresa inútil e estéril. Pelo contrário, é um compromisso de vida caracterizado pela fidelidade dinâmica
ao carisma do P. Dehon, dom do Espírito, para que, dilatando-se no plano eclesial, se converta numa
proposta significativa de vida evangélica para todos.
Viver plenamente a identidade espiritual para realizar em plenitude a missão apostólica.
A identidade espiritual dehoniana pode resumir-se nesta profissão de fé do apóstolo S. João: "Nós
conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele. Deus é amor, e quem permanece no amor
permanece em Deus, e Deus nele" (1Jo. 4,16). O amor de Deus, como foi manifestado no mistério de
Cristo, filho de Deus, na sua oblação de amor, constitui o elemento mais característico do carisma do P.
Dehon, da sua experiência religiosa e de todos aqueles que participam da sua herança espiritual.
O lado aberto e o Coração trespassado do Redentor constituem a expressão mais evocadora de tal
amor: "Como S. João, vemos no Lado aberto do Crucificado o sinal do amor que, na doação total de si
mesmo, recria o homem segundo Deus. Contemplando o Coração de Cristo, símbolo privilegiado desse
amor, somos fortalecidos na nossa vocação. Com efeito, somos chamados a inserir-nos nesse movimento

1918
NQ IV, 26v: 8.3.1888.
1919
NQ XXXV, 7: Janeiro de 1913.
1920
NQ IV, 26r: 6.3.1888.
1921
Cf. Capítulo XII da presente biografia, pp. 293 ss.
1922
NRV: Directório Geral, n. 34/2.

363
de amor redentor, doando-nos aos irmãos, com e como Cristo". 1923 Deste amor oblativo, que leva Cristo à
doação suprema de si mesmo, surge o dom da salvação e "nasce o homem de coração novo".1924
Consciente porém, dos males que afligem a Igreja e a sociedade, o P. Dehon, mesmo reconhecendo
que as causas imediatas terão de ser procuradas nos próprios indivíduos e em certas estruturas injustas da
sociedade, reconhece a sua causa mais profunda na recusa do amor de Cristo.1925 Por isso, a todos aqueles
que desejam comprometer-se como ele em levar remédio ou "reparar" pela raiz estes males, ele propõe, em
primeiro lugar, uma vida de união íntima a Cristo Redentor, fazendo própria a sua oblação de amor,
inseparável da experiência da Cruz. Esta é a reparação dehoniana, entendida como "acolhimento do
Espírito, como resposta ao amor de Cristo por nós, comunhão no seu amor ao Pai e cooperação na sua obra
redentora no coração do mundo".1926 Daqui a actividade apostólica incessante, para conseguir que todos
"acreditem no Amor", ou seja, para que se unam com toda a sua vida ao Amor, contribuindo assim para a
reconciliação dos homens com Deus e entre eles na caridade.1927
Sintetizando o carisma dehoniano, podemos afirmar que se exprime completamente na oblação de
amor. Por isso o nome, no princípio, foi de "Oblatos do Coração de Jesus". A reparação, a imolação, o
apostolado não são mais do que manifestações da oblação de amor, ou seja, o "sim" à cruz como prova de
amor (imolação); o "sim" ao apostolado como serviço aos irmãos: este "sim ao amor repara o "não" ao
amor que constitui o pecado, converte-se em oblação reparadora, não só individual mas também social.
O P. Dehon convida os seus filhos espirituais a ser na Igreja e no mundo os profetas do amor, os
servidores da reconciliação dos homens no Coração de Jesus, cujo corpo místico, apesar das feridas do
pecado e da injustiça, se edificada cada dia na caridade.1928
Como é fácil notar, a identidade espiritual dehoniana é fortemente caracterizada por algumas típicas
atitudes interiores: a oblação de amor, que é reparação, imolação e apostolado.1929
São atitudes interiores que permitem unir-se a Cristo na sua oblação de amor ao Pai e aos homens
(Ecce venio), segundo o exemplo de Maria (Ecce ancilla), para viver o espírito de abandono filial e o amor
puro.
Acolher o amor de Cristo na vida significa converter-se à fraternidade. Como Cristo, chamando a si
os apóstolos e os discípulos, quis que fossem uma coisa só na caridade (Sint unum), assim os religiosos do
P. Dehon, afirmando a primazia do amor oblativo, comprometem-se a viver o seu carisma não só
individualmente, mas também comunitariamente, formando fraternidades vivas e acolhedoras, disponíveis
para o serviço dos irmãos, como diz a "Regra de vida" dehoniana: "Fazemos profissão de tender à caridade
perfeita, consagrando-nos inteiramente ao amor de Deus e dos nossos irmãos".1930
O exemplo mais significativo desta caridade vem-nos do próprio P. Dehon. Toda a sua vida foi um
verdadeiro serviço ao Amor. Para ele era o advento do reino do Coração de Cristo: "O ideal da minha
vida... o meu ideal grandioso: conquistar o mundo para Jesus Cristo... instaurar o reino do Sagrado
Coração".1931
Nas "Recordações", o P. Dehon assim precisa a missão da Congregação: "Recebemos uma bela
missão: aproximar o sacerdote e a povo ao Coração de Jesus Cristo."1932
No que toca aos sacerdotes, nas Constituições de 1885, escreve: "As obras referentes aos
sacerdotes, à sua formação e à sua direcção, serão as obras preferidas". 1933 Assim se explica o seu empenho
na formação ao apostolado social dos sacerdotes e dos seminaristas nas assembleias de Val-des-Bois; o seu
zelo em suscitar vocações entre os alunos do S. João; as suas iniciativas para difundir entre os sacerdotes a
espiritualidade reparadora.
1923
NRV: Cst., n. 21.
1924
NRV: Cst., n. 3.
1925
Cf. NRV: Cst., n. 4.
1926
NRV: Cst., n. 23.
1927
Cf. NRV: Cst., nn.5-7.
1928
Cf. NRV: Cst., nn- 9-39.
1929
Cf. Capítulo XII desta biografia, pp. 233 ss.
1930
NRV: Cst., n. 14.
1931
NQ XLV, 1-3: Janeiro de 1925.
1932
Cartas circulares, n. 392.
1933
StD 2, p. 5.

364
Não foi menos ardente o empenho do P. Dehon na promoção da vida cristã e da justiça social no
povo. Baste recordar o seu zelo como coadjutor em S. Quintino, as missões populares e as pregações
assumidas na diocese de Soissons, a sua obra de educador no colégio S. João, o seu empenho e as suas
iniciativas de tipo social pelas justas reivindicações do mundo operário, o apostolado da imprensa, o
empenho e a dedicação para com as missões longínquas, o apostolado da adoração reparadora, para
propagar de todos os modos o reino do Coração de Jesus.
Pode-se afirmar, com toda a verdade, que a vida do P. Dehon foi uma concreta e coerente aplicação
do carisma e da missão do Instituto por ele fundado.
Como mestre de vida espiritual vê e sente as necessidades das almas, dá-lhes uma resposta,
orientando-as até uma relação de amizade cada vez mais íntima com Cristo. Neste sentido, é um guia, um
mestre de vida espiritual.
O P. Dehon escreveu muito e muitas vezes depressa, acossado pelas mais diversas circunstâncias;
daí decorrem as inevitáveis deficiências de estilo, prolixidades, etc. Quem se aproxima dele desde fora,
com o olhar frio do historiador ou do crítico, pode ficar um pouco desiludido e entregar-se a juízos de valor
superficiais e sumários. Doo P. Dehon há que aproximar-se desde dentro, vida com vida, fazendo próprios
os seus ideais, o seu carisma, a sua missão. Só assim, como rezando, se manifesta a sua riqueza espiritual, a
sua delicada fisionomia interior. Ele próprio resume-a nesta afirmação: "Há apenas uma prática: amar em
todos os tempos, em todos os lugares, em todas as situações". Precisamente por esta característica do amor,
muitos dos seus escritos espirituais são de uma surpreendente actualidade.1934
O P. Dehon amou o coração. Pretendeu ser, sempre e em toda a parte, "o servidor do único e
adorável Coração de Cristo".1935

UM ESTILO DE VIDA E DE APOSTOLADO

A "missão" dehoniana efectiva-se na espiritualidade e nas opções apostólicas típicas do Instituto: a


adoração eucarística, o ministério com os pequenos e os humildes, os operários e os pobres, a formação dos
sacerdotes e dos religiosos, a actividade missionária.1936
Estas orientações apostólicas são comuns também a outras congregações; surge então o problema:
como realizá-las de forma a apresentarem uma inconfundível característica dehoniana, não por mesquinho
espírito de gueto ou de partido, mas para valorizar o dom que o Espírito confiou ao P. Dehon e aos seus
religiosos, para o bem da Igreja e do mundo?1937
A mesma afirmação vale para o modo de realizar a vida comunitária, a prática dos votos, o trabalho,
a espiritualidade, tendo em conta que tudo é missão.
Pois bem, no Instituto dehoniano criou-se uma tradição, um estilo de vida, uma maneira de ser
servidores do Evangelho que remontam à quotidiana experiência de fé e de vida do P. Dehon. Assim se
exprimem as Constituições dehonianas: "Este Instituto tem a sua origem na experiência de fé do P.
Dehon".1938 O P. Dehon é um modelo que se tem de imitar no seu estilo de vida, não segundo a letra, mas
com fidelidade dinâmica.
Por isso não é possível ser simplesmente "bons sacerdotes seculares do Sagrado Coração",1939 ou
como dizia um bispo: "As vossas Constituições são muito bonitas. O que se vos propõe corresponde da
melhor maneira às esperanças do meu povo...; só que sois muito sacerdotes seculares e muito pouco
dehonianos".1940

1934
Osp II, 18 Cf. L. DEHON, Vita dámore nel Cuore di Gesù, Milão 1980, pp. 300: Sì all'amore... nel Cuore di Gesù, Milão
1985, pp. 320.
1935
L. CRISTIANI, Le Pére Dehon., 6.
1936
Cf. NRV: Cst., n. 31.
1937
Cf. A. PERROUX scj, Une pratique pastorale inspirée de notre spiritualité, CGS, Roma 1987, pp. 84.
1938
NRV: Cst., n. 2.
1939
PERROUX, Une pratique, p. 8.
1940
PERROUX, Une pratique, p. 8.

365
Não se trata de fazer mais, de assumir novos trabalhos; trata-se de infundir no apostolado os valores
de uma espiritualidade, cujo valor e actualidade tinham sido descobertos por aquele bispo, com um
correspondente estilo de vida.
Há um estilo dehoniano no modo de realizar os múltiplos compromissos apostólicos nas paróquias,
nas missões longínquas, na pregação e na direcção das almas, no mundo do trabalho, da escola, da
imprensa, da educação e formação dos adolescentes, dos jovens, etc.
Falando de estilo dehoniano, não nos referimos somente aos religiosos, mas também aos leigos. O
P. Dehon fundou para eles várias associações (por exemplo "Adveniat regnum tuum") e manteve-se em
constante e cordial contacto com os seus ex-alunos, com os seus amigos e benfeitores para que todos
cooperassem na instauração do reino do Coração de Jesus nas almas e nas sociedades.
O P. Dehon no "Directório espiritual", trata do espírito próprio da vocação dehoniana.1941 Inclusive,
apresenta as virtudes características: o amor, a oferta de si mesmo, a recta intenção, o abandono..., ou seja
comportamentos constantes, enraizados numa profunda experiência espiritual de que dimana um estilo de
vida feito de bondade, de cordialidade e nobreza de alma, de serenidade e de optimismo, de concórdia e de
bom humor. Ser homens de coração que praticam a humildade, retiram luz e força da eucaristia, vivem de
fé e de contemplação, partilham as situações dos irmãos, especialmente dos pobres, dos débeis e
marginados... São maneiras de ser e de agir vividas na vida e no apostolado segundo o estilo e "a herança
do P. Dehon". Dizem as Constituições dehonianas: "Sacerdotes do Coração de Jesus, vivemos hoje no
nosso Instituto a herança do P. Dehon.
A seu exemplo, por graça especial de Deus, somos chamados... a procurar e a realizar como o único
necessário, uma vida de união à oblação de Cristo. Esta consagração possui já, por si mesma, uma real
fecundidade apostólica".1942
Tudo isto é válido também para os leigos que, mesmo que não vivam em comunidade, se sentem
atraídos pelo Espírito a viver o carisma do P.Dehon.
Precisamente pelo facto de não estarmos vinculados a nenhuma actividade apostólica determinada,
é muito importante o modo, o estilo com que vivemos e praticamos qualquer acção. Daí a importância de
nos impregnarmos progressivamente dos valores evangélicos, segundo a experiência de fé e, portanto, de
vida do P. Dehon, antes de nos entregarmos à actividade apostólica. Antes de levar a outros o Evangelho, é
necessário tornar evangélica a própria vida. Importante é o que se faz; mas mais importante é o que se é e
como se faz, ou seja os valores espirituais que dão forma à nossa vida dehoniana para realizar em plenitude
a missão.

COMPORTAMENTOS DEHONIANOS

A referência à experiência de fé, e portanto à missão do P. Dehon, é uma exigência fundamental


para os religiosos e os leigos que nele se inspiram.1943
Precisamente para descobrir nas acções ordinárias de cada dia um estilo de vida tipicamente
dehoniano, cremos ser útil apresentar os comportamentos quotidianos do P. Dehon, o seu estilo de vida.
Estes mostrar-nos-ão, com uma eficácia superior a qualquer investigação, como se realiza a missão
dehoniana.
Para nos movermos na realidade concreta e histórica e não na poesia das "florinhas", valemo-nos
dos testemunhos dos que viveram com ele e o conheceram mais ou menos intimamente. Do que eles nos
dizem não se deve deduzir uma ausência de defeitos ou, menos ainda, uma espécie de impecabilidade no P.
Dehon; mas só tendências e atitudes habituais de vida. Se dizem que era bom, humilde, cordial, generoso,
sereno..., quer dizer que isto era habitual na sua vida sem excluir as fraquezas inerentes à humana
fragilidade. Pensar de outro modo é fazer apologética despropositada.

1941
Cf. DS primeira parte, nn. 4-26.
1942
NRV: Cst., nn. 26-27.
1943
Cf. NRV: Cst., nn. 2 e 16: G. MANZONI scj, Costituzioni nuove, in "Dehoniana" (1984), 122ss.

366
Antes de falar das virtudes características do P. Dehon, apoiando-nos nas acções quotidianas,
apresentaremos uma visão de conjunto, como se fosse a impressão com que se fica de um primeiro
encontro.
Colhe-se espontaneamente uma profunda harmonia entre o aspecto físico do P. Dehon, os seus
dotes morais, intelectuais e a sua vida espiritual. Sugerem-se e supõem-se mutuamente, como nem sempre
acontece, ao menos de modo tão evidente, em todas as pessoas.
O retrato físico mais verdadeiro e imediato apresenta-o o P. G.C. Kanters no seu esboço biográfico
do P. Dehon. O P. Kanters encontrou-o pela primeira vez, em 1886, na escola apostólica de Watersleyde
(Holanda). Era uma criança de 12 anos e o P. Dehon contava 43. Estava com os outros alunos num campo,
quando viu vir o P.Dehon. Era de estatura elevada, direito como um círio pascal. A atitude da pessoa era
nobre, distinta, os olhos vivos, o olhar penetrante. Causava imediatamente uma grande impressão. Mas
depois todos se encontravam à vontade, ao encontrá-lo frente a frente, sorridente, acariciador, de palavra
simples e paterna, tanto que os rapazes pediam para ir visitá-lo e o P. Dehon os acolhia com a melhor graça
do mundo.1944
O P. Dehon mostrava-se compreensivo e afável com todos. O seu trato e atitude era nobre e
delicado. Conversando, notava-se que era muito culto, sensível às belezas da natureza, às riquezas humanas
da história e da arte e, sobretudo, ao amor de Deus.
Era justamente a sua rica e amável humanidade que tornava atractiva a sua espiritualidade. Irradiava
uma misteriosa presença: a de Deus.
Actuando constantemente à luz da fé e no abandono ao Coração de Cristo, especialmente nas
circunstâncias difíceis da vida, o seu comportamento quotidiano caracterizava-se por um sereno equilíbrio
e um peso sobrenatural inconfundível; inspirava respeito e atraía espontaneamente as almas para Deus.
Possuía notáveis dotes de contacto humano, exercia uma influência extraordinária sobre as pessoas.
Nele, tudo era autêntico. Bastava olhá-lo nos olhos límpidos, vivos, inteligentes, para descobrir neles a pura
transparência da alma. Quem com ele falava sentia-se penetrado até o seu íntimo pelo seu olhar, que
reflectia uma bondade cheia de compreensão a que era impossível resistir.
Falando dele, pensa-se espontaneamente em S. Francisco de Sales, nobre e santo. Como o bispo de
Genebra, o P. Dehon sabe tornar amável a piedade, sem excluir nem tornar inútil a cruz.
Todas as pessoas que o conheceram ficaram impressionadas pelo seu sentido de moderação: um
equilíbrio simples entre a natureza e a graça, demonstrado habitualmente, dia a dia e percebido por quem
com ele convivia. Este equilíbrio era no P. Dehon um dom e uma conquista. Tinha uma natureza ardente. O
seu temperamento manifestava-se em certas reacções muito vivas, em discussões animadas, mas sem
azedume, no seu habitual optimismo, em suas amáveis brincadeiras e em seus rasgos de humor, em jogos
de palavras sem magoar.
O sereno equilíbrio do P. Dehon é uma conquista e um dom, fruto da sua relação contínua com
Deus e com o Coração de Cristo.

... BONDADE, CORDIALIDADE, NOBREZA DE ALMA

Se o equilíbrio do P. Dehon é a característica habitual do seu comportamento, a virtude que mais se


destaca nele é a bondade, inseparável da necessária energia.
O P. Dehon era familiarmente chamado o "Très bon Père" porque reflectia espontaneamente a
bondade de Deus, do Coração de Cristo.
O apelativo familiar de "Très bon Père" em forma superlativa, explica-se, para além da excepcional
bondade do P. Dehon, para distingui-lo do "Bon Père", o grande Leão Harmel.
A bondade do P. Dehon era atenta, delicada, compreensiva, plena de entrega, mas também
inteligente e sem fraquezas. Dava a impressão, a todo o interlocutor, de estar inteiramente à sua disposição,
disposto a compreendê-lo, sintonizando com a sua amplitude de onda, fosse quem fosse: jovem ou adulto,
pobre ou rico, sacerdote ou leigo. Era bem disposto para o diálogo, mesmo com os seus opositores. Era

1944
Cf. C.G.KANTERS, Le T.R.P. Dehon, 21-22.

367
uma bondade oferecida a todos, sem distinção, também a quem lhe era hostil fora ou dentro da
Congregação, como constatámos falando dos anos mais dolorosos, os do "Consumatum est".
O P. Dehon nunca aproveitou a mínima ocasião para vingar-se dos seus adversários; ao contrário,
encontrava para eles palavras de desculpa e de compreensão. No Diário, quando alude a situações
dolorosas e a comportamentos negativos das pessoas em relação a ele, prefere a discrição do silêncio.
Ordinariamente não cita os nomes e não recorda nunca os aspectos negativos de uma pessoa, mas os lados
positivos. Basta recordar a sua atitude com o P. Germano Blancal. Que o P. Blancal quisesse suplantar o P.
Dehon como Superior Geral, era coisa mais que evidente. As suas críticas sobre a recém nascida
Congregação eram fundadas, mas era bem fundada também a sua ambição.
O P. Dehon, depois da sua confirmação como superior geral no Capítulo de 1896, esteve como
desterrado de S. Quintino e especialmente da casa do Sagrado Coração (a casa mãe), de que era superior o
P. Blancal.
Havia também a questão política: o P. Dehon era democrático; o P. Blancal e os da sua camarilha
eram monárquicos. Além disso o P. Blancal tinha suplantado completamente o P. Dehon nas Servas do
Sagrado Coração e na confiança da sua fundadora, a madre Maria do Coração de Jesus.
P. Dehon não disse uma palavra sobre tudo isto e comportou-se sempre com grande nobreza de
alma. Atendeu ao conselho do P. Rasset para se comprometer a fundo no apostolado social.1945 Desde
então, começou a passar vários meses por ano em Roma, normalmente desde a festa de Todos os Santos até
à Páscoa.
Acerca das pessoas que o hostilizavam, deixou trabalhar a Providência. Da sua parte usou, em todas
as ocasiões, a paciência e a delicadeza da caridade. Dos seus colaboradores exigia que fizessem o
mesmo.1946
Na bondade longânime e paciente, o P. Dehon manifesta a sua fortaleza. Também o P. Blancal
mudou com o tempo. Uma testemunha afirma: "Vi muitas vezes o P. Dehon e o P. Blancal passar juntos o
recreio e falar longamente como amigos".1947
Quando o P. Blancal, já velho (78 anos) e doente, foi expulso da Casa do Sagrado Coração, por
causa da perseguição de Combes (estamos em 1903), o P. Dehon fê-lo transportar para Fayet, onde morreu
em seus braços, com a idade de 80 anos, no dia 1 de Dezembro de 1905. No seu Diário sublinha que foi um
apóstolo zeloso, piedoso, estimado e querido na diocese de Soissons.1948
Em Abril de 1916, durante a guerra, volta a ler os escritos do P. Blancal e fala só bem deles: "Era
uma alma cândida. Devia ter conservado intacta a sua inocência até os 80 anos. Que missionário mais
incansável! Pode-se compará-lo a S. Afonso de Liguório. Pregou uma infinidade de missões, de exercícios
espirituais, de quaresmas ... Edificava, comovia e ganhava a confiança. Era um bom director de almas..." 1949
De seguida recorda o P. Rasset, o seu fiel colaborador e defensor desde a primeira hora. Não há diferença
de apresentação.1950 Para o P. Dehon a história verdadeira é a do bem. Às misérias humanas refere-se só de
forma geral para confiar a todos e também a si próprio à misericórdia de Deus.
Comportou-se com a mesma generosa nobreza com o P. Delgoffe, que contra ele tinha escrito cartas
violentas ao bispo de Soissons, Mons. Duval, e com o P. Pedro Bertrand, com quem vivia na mesma casa
de Bruxelas. O P. Bertrand tinha um carácter difícil, maso P. Dehon tinha com ele muitas atenções,
desculpava-o e ajudava-o no ministério.
Também com as Servas do Coração de Jesus e com a sua fundadora, durante os terríveis anos da
primeira Guerra Mundial em S. Quintino, o P. Dehon comportou-se como sincero amigo e conselheiro de
confiança, no plano espiritual e também no económico, esquecendo que durante muitos anos o haviam
deixado de parte, preferindo o P. Blancal. A bondade e a nobreza de alma são partes essenciais do estilo
dehoniano de vida.

GENEROSIDADE
1945
Cf. AD, B 48/2d, doc. 4.
1946
AD, B 20/8.
1947
Cf. AD, B 48/3, p. 52.
1948
Cf. NQ XIX, 126.
1949
NQ XL, 29-30: Abril de 1916.
1950
Cf. NQ XL, 31: Abril de 1916.

368
A bondade do P. Dehon não era só um dom da natureza, mas era a bondade típica de um homem de
Deus. Toda a sua pessoa a irradiava.
Os estudantes religiosos, conhecendo a sua generosidade, aproveitavam-se com esperteza. Em lugar
de pedir livros, roupa e até malas ao superior da casa, pediam-nos ao P. Dehon.
Fazia suas as dificuldades dos outros, segundo o conselho do apóstolo (cf. Gal. 6,2) e não se dava
por vencido até que não as resolvesse.
Era de uma rara perseverança, pois se alguns prometem e não fazem nada, e outros param a meio, o
P. Dehon chegava sempre até ao fundo. Às vezes foi censurado pela sua excessiva generosidade,
especialmente em relação às mensalidades dos alunos que eram acolhidos gratuitamente em Fayet.
Em S. Quintino era muito querido pelas pessoas, devido à sua generosidade. Um sapateiro que o
acompanhava quando chegava tarde a casa, costumava dizer: "Ao primeiro que se atreva a tocar no P.
Dehon, espeto-o de lado a lado com a minha sovela".1951
Pessoalmente, quando era aluno na escola apostólica de Albino, conheci um velho professor leigo,
Máximo Carrara, que tinha uma mão ortopédica. Era uma oferta do P. Dehon. Sem que o interessado o
tivesse pedido, fez-lhe preparar um aparelho ortopédico para o braço esquerdo, tendo o sr. Carrara perdido
a mão , ainda jovem, na explosão de uma bomba.1952
Os religiosos doentes e os missionários eram objecto da especial solicitude do P. Dehon. Contraiu a
sua última doença (gastrenterite), causa da sua morte, visitando um doente. 1953 Preocupava-se, inclusive,
dos enfermos de longe. Escrevia a um seu religioso que por falta de saúde se tornou sacerdote diocesano:
"Primeiro curai-vos, depois voltareis"; e pediu pessoalmente ao superior dos Sulpicianos de Issy que
dessem a este estudante uma dieta especial.1954
Ao P. Máximo de Wulf, que lhe perguntou se podia enviar a sua mãe a pensão de invalidez de
guerra (1914-1918), o P. Dehon respondeu: "É mais que lógico, é um dever teu". 1955 Eram tempos de
grandes dificuldades económicas e as necessidades materiais da Congregação eram enormes.
Era muito generoso com os pobres, que abundavam numa cidade industrial como S. Quintino.
Superava as suas expectativas. Doava sempre moedas de prata, que nos tempos anteriores à primeira
Guerra Mundial, tinham valores diversos: desde os cinco francos até aos vinte cêntimos.
Uma das primeiras preocupações do P. Dehon, tanto no Patronato S. José como no Colégio S. João,
foi a de fundar as conferências de S. Vicente de Paulo para que os jovens se abrissem à generosidade. Ele
mesmo os acompanhava, quando podia, nas visitas aos pobres.1956
Ao P. Falleur, Ecónomo Geral e seu filho espiritual, escreve: "Quando és duro, desprestigias-me a
mim e à Obra, porque me representas. Procura fazer-te amar". 1957 O P. Falleur era mais violento de carácter.
Defendia duramente os interesses do Colégio S. João, não por avareza, sendo pessoalmente sóbrio e
austero, mas por sentido de justiça.1958 O P. Dehon escrevia-lhe com clareza e energia para moderar as suas
iniciativas mais ou menos acertadas... e o P. Falleur teve sempre para com o P. Dehon uma grande
veneração.1959 As cartas ao P. Falleur, às vezes "duro" e às vezes "imprudente", como Ecónomo Geral da
Congregação, são um exemplo de como o P. Dehon sabia ser bom e ao mesmo tempo enérgico. Muitas
vezes ponha em prática com ele a passagem do Apocalipse: "Aos que amo, eu os repreendo e castigo" (3,19).

EQUILÍBRIO, SERENIDADE E OPTIMISMO

1951
Cf. AD, B 48/2d. doc. 57.
1952
AD, B 48/2d. doc. 35.
1953
AD, B 48/2d. doc. 2.
1954
AD, B 48/2d. doc. 78.
1955
AD, B 48/2d. doc. 22.
1956
AD, B 48/2d. doc. 53.
1957
Carta de 15.6.1900 (AD, B 20/8).
1958
Cf. AD, B 48/2d. doc. 65.
1959
AD, B 48/2d. doc. 90.

369
A bondade do P. Dehon era acompanhada de uma habitual igualdade de humor, de grande
serenidade de alma e de optimismo. Também no seu apostolado social esteve aleado de toda a aspereza e
polémica. Era muito apreciado pelo seu tom pacato, sereno e equilibrado, tanto nas conversas como nos
escritos. Confiava na validade das boas razões, não na virulência do tom e do estilo.
Leão Harmel (júnior), impressionado pela constante serenidade do P. Dehon, pelo seu permanente
bom humor, afirmava: "Irradiava da sua pessoa uma sensação de quietude e de calma. A sua palavra
infundia paz na alma. Comunicava tanta confiança na Providência quanto mais graves eram as
dificuldades. "Tudo se arranja", costumava dizer. Irradiava realmente a bondade de Deus com a sua
simpatia acolhedora, acompanhada por um sorriso habitual".1960
Também o sobrinho do P. Dehon, Henri Malézieux-Dehon, recorda que o seu tio superava as mais
graves dificuldades dizendo: "Deus a tudo remediará!"; e não perdia a sua inalterável serenidade.1961
A serenidade, a calma e o equilíbrio nasciam, no P. Dehon, da sua profunda união com Deus. O
Pároco, arcipreste de Sissone, que foi noviço e professo de votos temporais na Congregação, conta:
"Desejava voltar para a diocese de Soissons e tinha falado com o vigário geral, Mons. Mennechet. Devia
manifestar ao P. Dehon a minha intenção de deixar a Congregação. Estávamos em Bruxelas. Encontrei o P.
Dehon no coro da Capela. Estava fazendo a adoração. Era visível a minha apreensão. Aproximei-me e
falei-lhe, mas ele não me respondeu. Estava abismado na oração, como em êxtase. Depois de alguns
momentos, o Padre deu-se conta da minha presença e saiu comigo sem dizer palavra. Durante a conversa
que se seguiu, parecia-me que ainda estivesse imerso na oração. Expus-lhe o meu desejo de deixar a
Congregação. Ele consentiu com simplicidade, dizendo-me: "A diocese de Soissons fez-me tantos serviços
que, por minha parte, não posso recusar". Depois deu-me conselhos sobre o sacerdócio, recordando-me os
perigos que podia encontrar um sacerdote diocesano. Recordo as suas últimas palavras: "Sobretudo
permanecei unido a Deus; não há melhor amigo que Ele". Fiquei muito edificado com o seu
comportamento: não via na minha saída uma perda para a Congregação, visto que seria um sacerdote
secular ao serviço do bom Deus".1962
O P. Dehon era bom com os seus religiosos, incluindo os sacerdotes que abandonavam a
Congregação. Nunca tinha sobre eles palavras de amargura. Era cheio de compreensão. Por exemplo, fez
todo o possível para manter na Congregação a um religioso italiano estudante de teologia, Pedro Orsi, mas
tudo foi inútil. Pois bem, no dia em que foi ordenado sacerdote (8 de agosto de 1909), o P. Dehon teve a
delicadeza de enviar-lhe uma nota de 100 francos. Pedro Orsi foi depois pároco de Capranica
Prenestina.1963

CONCÓRDIA E BOM HUMOR

Na vida comum, o P. Dehon abria os corações à alegria, comunicava o seu bom humor que a todos
mantinha alegres. Era a alma da conversa com a sua argúcia. Recorria muitas vezes a jogos de palavras
(fáceis na língua francesa), comprazia-se a espicaçar amavelmente as pessoas, sem humilhá-las nem
magoá-las. De boa mente jogava às cartas e ao dominó.1964 Era, simultaneamente, espiritual e alegre. No
momento oportuno preferia deixar os outros falar, especialmente os jovens, para que desabafassem e se
sentissem mais relaxados. Era uma das suas maneiras de exercitar a caridade.1965
Dava muita importância à concórdia na comunidade. Um dia, vendo desavindos dois dos seus
religiosos, ocorreu-lhe espontaneamente a ideia de levar os dois à capela para rezarem juntos. Assim se
reconciliaram.1966 Mantinha também boas relações com os religiosos de carácter difícil, com muita caridade
e serenidade.
1960
AD, B 48/2d. doc. 6.
1961
AD, B 48/2d. doc. 1.
1962
AD, B 48/2d. doc. 96.
1963
Cf. Carta de 6.9.1955 de P. Orsi (AD, B 48/3).
1964
Cf. AD, B 48/2d. doc. 2.
1965
AD, B 48/2d. doc. 77.
1966
AD, B 48/2d. doc. 117.

370
Nunca conservou amargura, menos ainda rancor ou espírito de vingança para com as pessoas que,
especialmente na Congregação, lhe causaram grandes desgostos.1967
Já falámos do P. Pedro Bertrand e do P. Paulo Delgoffe. Ambos eram da camarilha (do grupo) do P.
Blancal. Ao primeiro fê-lo provincial da Província franco-belga e ao segundo, superior do noviciado de
Brugelette. O P. Delgoffe, evacuado para Neussargues em 1940, durante a guerra, assim se exprimia com o
P. L. Gobin: "Sabeis que no passado me opus ao P. Dehon e gravemente. Lamento e lamentá-lo-ei por toda
a minha vida". O P. Gobin ficou impressionado pelo tom de sincero arrependimento do P. Delgoffe.1968
Quanto à nomeação para Provincial do P. Pedro Bertrand, o P. A. Guillaume, confidente predilecto
do P. Dehon, dizia um dia ao P. A. Jacquemin: "O P. Dehon foi graciosamente misericordioso com o P.
Pedro Bertrand, visto que o nomeou Superior Provincial!". Observação amavelmente irónica, que mostra
como sabem vingar-se os santos, pagando o mal com o bem.1969
Este ver muito mais o positivo que o negativo e saber descobrir o que o amor de Deus realiza em
cada pessoa é característico do P. Dehon. É um comportamento eucarístico, é uma celebração do amor, a
partir da vida, é uma expressão muito importante do estilo dehoniano.
Como dissemos já, o P. Dehon tinha muita estima e grande afecto pelo P. Adriano Guillaume. Nele
depositava grandes esperanças, porque tinha muito bons dotes, era muito inteligente e virtuoso. 1970 Via nele
um possível sucessor. Escolheu-o, sendo ainda muito jovem, para superior do escolasticado de Lovaina.
Esta escolha desencadeou as iras de um padre, um tanto original e de mau carácter, que aspirava àquele
cargo: uma explosão de violência e de cega inveja. O próprio interessado testemunhou mais tarde: "O P.
Dehon tinha uma paciência de anjo".1971
Pela sua excepcional bondade, o P. Dehon procurava sempre valorizar os motivos de união e de
concórdia e evitava, o mais possível, as soluções drásticas. Era generoso, paciente; dava tempo ao tempo e,
sobretudo, confiava, depois de ter feito todo o possível, na ajuda da providência de Deus. Assim salvou a
Congregação de uma divisão nos tempos do P. Blancal.1972
Precisamente pela sua habilidade em remover as dificuldades, em conciliar posições desencontradas
e harmonizar as coisas, os professores de S. João tinham apelidado, jocosamente, o P. Dehon: "J'entortille o
Jean tortille", pela habilidade da sua insinuante e paciente diplomacia ou também "Jean garbullion", no
melhor sentido da palavra, pelo seu tacto em saber insinuar-se nos espíritos, desenvencilhando soluções
difíceis e apaziguando as pessoas.1973 Era o homem que sabia "limar as arestas".1974
Na correcção fraterna O P. Dehon não se alterava nunca.1975 No Colégio S. João, quando tinha de
fazer observações a um aluno ou a um professor, primeiro informava-se, depois intervinha com delicadeza,
de tal modo que ninguém lhe guardava o menor rancor.
Embora de temperamento nervoso e de carácter vivo, não costumava impacientar-se nem zangar-se.
Experimentava aquele fruto do Espírito Santo que é o domínio de si mesmo.
Às vezes tinha momentos de abatimento, como na morte da sua mãe (19 de Março de 1883) a que
não esteve presente, tendo-se ausentado quando parecia que ela estava melhor. Voltando a La Capelle,
ouviu os sinais dobrar a mortos: "Meu Deus - exclamou - é demasiado!". Quando da morte de P. A.
Guillaume (28 de Julho de 1915) em quem tinha depositado tantas esperanças para o futuro da
Congregação, e que faleceu em Lovaina com apenas 29 anos, ficou dois dias sem dizer palavra, prostrado
pela dor.1976
Se, pelo seu temperamento vivo e nervoso, pensava ter magoado alguém, apressava-se a pedir
perdão e a prometer orações ou a dar uma bênção. Era a sua maneira de reparar, apagando assim dos
ânimos qualquer impressão de descontentamento ou de amargura.1977
1967
Cf. H. DORRESTEIJN scj, Vita e personatità di P. Dehon, 661-704, 769-792.
1968
Cf. AD, B 48/2d. doc. 72.
1969
AD, B 48/2d. doc. 98.
1970
AD, B 48/2d. doc. 90.
1971
Cf. AD, B 48/3, p. 111.
1972
Cf. H. DORRESTEIJN scj, Vita e personatità di P. Dehon, 695-700.
1973
Cf. AD, B 48/2d. doc. 60; AD, B 48/3, p. 139.
1974
Cf. Cf. AD, B 48/2d. doc. 65.
1975
AD, B 48/2d. doc. 2.
1976
AD, B 48/2d. doc. 4.
1977
AD, B 48/2d. doc. 59.

371
UM GRANDE CORAÇÃO

O P. Dehon tinha um grande coração. Uma síntese eficaz, na sua simplicidade, é-nos oferecida pelo
testemunho de um velho missionário, que assim exprime a lembrança que conservou do P. Dehon: "Senti
por ele um grande respeito, muita confiança, porque nele se encontrava um grande coração".1978
Sem dúvida que o P. Dehon, por temperamento, era propenso à bondade. Ele próprio o diz nas
Memórias: "Não tinha um temperamento de lutador. A minha natureza levava-me a ser bom com todos e
desejava que os outros também o fossem comigo".1979 A virtude da bondade, tão natural no P. Dehon,
aprofundou-se e reforçou-se na familiaridade com o Coração de Jesus, que lhe incutiu as suas próprias
disposições: fazer-se tudo para todos, adaptando-se a cada um segundo as suas necessidades; às crianças,
aos jovens, aos religiosos e aos sacerdotes, especialmente aos que estavam em crise, às religiosas, aos ex-
alunos já adultos e necessitados de uma ajuda espiritual e de conselhos para as suas famílias e também aos
empregados, que o P. Dehon tratava afavelmente e com os quais mantinha uma correspondência familiar.
A caridade para com Deus, a bondade para com os homens, formam aquela única caridade teologal
que transfigurou e aprofundou a bondade natural de Leão Dehon.
Ser homens de coração, de coração grande!... No princípio, no fim e durante toda a vida do P.
Dehon, está sempre e só o coração; quis ser, sempre e em toda a parte, "servidor do único e adorável
Coração de Cristo".1980
É a característica fundamental do comportamento do P. Dehon, o meio mais eficaz com o qual
realizou a missão dehoniana, sobretudo se se considerar que o valor base do seu carisma é a oblação por
amor.
Se o P. Dehon era tão delicado e cordial no amor para com os homens, muito mais o era no amor
para com Nosso Senhor; e mais, do Coração de Cristo tirava a força para não se cansar nunca de amar aos
homens, mesmo que seus adversários ou inimigos.
No Directório espiritual escreve: "O que Jesus nos pede, antes de tudo, são corações que tenham a
firme vontade de amá-Lo acima de tudo e que estejam prontos a sacrificar tudo por este amor, ainda aquilo
que lhes seja mais querido. Corações que não conheçam desejos próprios, interesses pessoais, mas que
tenham uma só coisa em vista: amar, consolar e desagravar o Coração de seu Deus, do seu Mestre e do seu
esposo, conquistar para Ele todos os corações e inflamá-los do seu amor1981. E esta é a primeira pergunta do
exame especial sobre o espírito da vocação dehoniana: "Tenho feito sérios esforços por agir em tudo por
puro amor ao Coração de Jesus?".1982
Todas as obras que o P. Dehon escreveu e publicou têm uma única finalidade: ensinar o caminho do
amor.
Tenhamos presente que o P. Dehon não caía no sentimentalismo romântico; para ele a prática do
amor não estava nunca separada da experiência da cruz.1983
A cordialidade com Deus e com os homens é o caminho do amor, necessário para realizar a missão
dehoniana. Servir e seguir a Cristo com um coração alegre, anunciar o seu Evangelho aos homens com
todo o coração; abrir-se ao Pai (Abba) no espírito da infância espiritual; abrir-se ao Espírito, aos seus dons,
aos seus frutos; pedir a Cristo para ter o seu próprio coração: são insubstituíveis experiências de vida para
realizar a cordialidade na vida espiritual, na vida religiosa, no apostolado (nada, nem a cultura, nem a
técnica, podem substituir o coração), para ser pessoas abertas ao encontro, à amizade, à confiança, ao
optimismo. Para tudo isto, a experiência de fé e de vida do P. Dehon, representa um valor exemplar único.

PARA COM OS SACERDOTES


1978
AD, B 48/2d. doc. 102.
1979
NHV XIII, 23.
1980
L. CRISTIANI, Le Père Dehon, 6.
1981
DE, I § 10.
1982
DE, I § 11.
1983
Cf. Oração para pedir o espírito da nossa vocação (DS, n. 26.)

372
Os sacerdotes diocesanos iam com gosto falar com o P. Dehon. Procuravam-no para confessor pela
sua bondade paternal. Tinha sobre eles um grande ascendente moral. O pároco de Fontanelle-en-Thièrache
recorda ter fito toda a espécie de esforços para trazer a bom caminho um sacerdote extraviado; mas tudo
tinha sido inútil. Persuadiu então aquele seu colega a ir ter com o P. Dehon e chegou um só encontro, para
que renunciasse à sua vida desordenada.1984
Até Mons. Duval, reconhecendo a bondade e o indiscutível ascendente espiritual do P. Dehon,
aconselhava os seus sacerdotes em dificuldade a irem ter com ele.1985
A Regra de Vida dehonina afirma: "O P. Dehon é muito sensível ao pecado que debilita a Igreja,
sobretudo o das almas consagradas".1986 Para ele a causa mais profunda da miséria humana é a "recusa do
amor de Cristo".1987 Esta sensibilidade ao pecado na sua tenebrosa realidade, como recusa do amor, vivida
na incansável ternura do amor de Deus e no dinamismo regenerador do seu perdão, mediante a "graça
redentora",1988 no sacramento da reconciliação, é típica do estilo de vida do P. Dehon. Ele é
verdadeiramente um profeta do amor e um servidor da reconciliação.1989
Na espiritualidade reparadora do P. Dehon, os sacerdotes ocupavam um lugar muito particular.
Projectou durante um certo tempo, em colaboração com o cónego Buchat de Namur, fundar um centro para
a reabilitação moral dos sacerdotes. Mas as dificuldades foram tantas e tais que não pôde realizá-lo.1990
A reparação pelos sacerdotes infiéis, afastados do Coração de Jesus, é uma característica do
Instituto do P. Dehon; mas, enquanto nos inícios se falava dela abertamente, depois, muito prudentemente,
preferiu-se o caminho da discrição.

PARA COM OS PEQUENOS

O coração do P. Dehon manifestava o amor do Coração de Cristo aos pequenos, aos pobres, aos
marginalizados. É uma característica da vida e do apostolado preferencial do P. Dehon. As obras que levou
a cabo em S. Quintino são para os pobres (o Patronato S. José) e para os “pequenos” (o Colégio S. João).
Nas "recordações", o P. Dehon indica entre as obras a preferir: "O ensino para a infância ... o ministério
entre os pequenos e humildes".1991
Insistimos no exemplo do P. Dehon como educador e formador de crianças, adolescentes e jovens,
porque é um exemplo significativo; revela um estilo de vida que supõe, indubitavelmente, dotes naturais;
mas é de uma eficácia única para realizar a missão dehoniana no difícil e delicado terreno da educação e da
formação.
Este é o testemunho de um aluno do Colégio S. João sobre o P. Dehon, resumo das impressões de
tantos outras testemunhas oculares: "Conservo dele uma recordação de um homem superior, que causava
impressão. Superior, não no sentido banal que se dá normalmente a esta palavra, mas no sentido vivo e
profundo. Manifestava não somente uma rara distinção de maneiras, mas uma autêntica nobreza. Ficava-se
impressionado pela chama espiritual dos seus olhos, às vezes perspicazes e astutos, mas sempre
manifestando uma grande bondade, confirmada por um sorriso habitual".1992
Muitos contemporâneos insistem no fascínio do olhar do P. Dehon. Ducamp, que escreveu a
primeira biografia do P. Dehon e que o conheceu pessoalmente, afirma que, desde o princípio das suas
relações, o P. Dehon tinha-o "siderado" sob todos os aspectos (como homem, como sacerdote e como
religioso). É um modo de falar familiar para apresentar uma personalidade magnética que provoca uma
extraordinária impressão, repleta de admiração, que não esmoreceu após tantos anos. Máximo Ducamp,

1984
Cf. AD, B 48/2d. doc. 50.
1985
AD, B 48/2d. doc. 70.
1986
NRV: Cst., n. 4.
1987
NRV: Cst., n. 4.
1988
NRV: Cst., n. 22.
1989
NRV: Cst., n. 7.
1990
Cf. AD, B 48/2d. doc. 18.
1991
Cartas circulares, n. 400; cf. NRV: Cst., n. 31.
1992
Cf. AD, B 48/2d. doc. 73

373
quando conheceu o P. Dehon, não era um rapazinho, mas um estudante de teologia no seminário maior de
Issy-les-Molineaux (Paris).1993
O P. Dehon era sempre senhor de si mesmo, mesmo durante as festas, quando todos se
abandonavam à alegria e à paródia. Nunca exagerava na bebida e na comida. Enquanto alguns professores
tinham um rosto acalorado, ele conservava a sua fisionomia tranquila, nobre, digna. 1994 A sua era uma
superioridade que se destacava, simples e espontânea. Não assumia poses. Não precisava de fazer a estátua
de si mesmo. Os seus modos eram delicados e familiares. Não fazia nada para se impor. Era
completamente espontâneo.
"Conservo dele a lembrança de um homem extraordinário em todos os aspectos. A meus olhos era
um santo".1995 "Causava uma profunda impressão ... Irradiava uma profunda vida interior. Atraía para Deus,
mesmo só a olhá-lo".1996 "Quando falava, notava-se que estava penetrado pelo amor de Deus".1997 "A
santidade transparecia em toda a sua pessoa sem assumir poses de santo".1998
O P. Dehon não precisava de exercer a autoridade: estava presente como superior mesmo à
distância. Assim afirma uma testemunha: "Via-se-o, às vezes, à sua janela do segundo piso, enquanto nós
estávamos no recreio. Saber que estava ali, bastava para nos acalmarmos. Gozava de um grande ascendente
sobre os professores e os alunos".1999 Emanava da sua pessoa uma força imperativa. A sua simples presença
no pátio entre os rapazes difundia uma sensação de ordem, de respeito, de paz.2000
Ninguém se aproximava dele sem um grande respeito. Os seus excepcionais dotes teriam podido
isolá-lo ou induzi-lo a fazer pesar a sua cultura e a sua superioridade; mas era a sua grande bondade, a sua
amável simplicidade que faziam dele um homem acessível e ao mesmo tempo de grande classe, amado por
todos, deixando em todos uma recordação imperecível.
Quando se o encontrava pela primeira vez, aproximava-se do visitante com passo seguro, um tanto
marcial, de cara séria, olhos penetrantes que, à primeira vista, imponham respeito e sujeição. Parecia
severo, depois bastava um sorriso, uma palmadinha na face, uma palavra cordial para pôr todos à vontade,
alunos e pais.2001
Não se tinha medo do P. Dehon. Não recorria a castigos. Impunha-se espontaneamente. Bastavam
poucas palavras. "Estava sempre entre nós - diz um ex-aluno do S. João - e bastava a sua postura para
manifestar-nos o que desejava e como devíamos comportar-nos. No colégio, às vezes, falava-se mal de um
ou outro professor, nunca do superior (o P. Dehon). Só dele conservei uma grande recordação. Em 81 anos
não conheci uma pessoa mais digna do que ele".2002
Depois de tudo o que dissemos sobre a rica personalidade do P. Dehon, é quase supérfluo falar dele
como educador. Notemos só que, na formação dos jovens, não há nada mais eficaz que o exemplo de vida.
Pois bem, a vida do P. Dehon, segundo os testemunhos dos que o conheceram, era uma educação contínua.
Era enérgico, mas não autoritário. Exercia o ofício de superior sem pinta de aspereza, com
afabilidade e benevolência paterna. Era ponderado nas decisões, mas quando eram tomadas, deviam ser
cumpridas. Às vezes expulsou alunos por graves motivos. Uma vez despediu um professor que abusava da
bebida.
Com frequência, a seu respeito, usa-se a comparação da "mão de ferro com luva de veludo". "Mão
de mestre". "Era um grande director, apesar disso tão bom!". Sabia fazer-se amar e respeitar. Suscitava
admiração e simpatia. Os alunos confiavam-se a ele como a um pai. Não recorria habitualmente a castigos,
"apelava à nossa sensatez: quem tem juízo que o use".2003
Paterno e simples, era avesso aos louvores e não era nada cerimonioso. Embora sendo-lhe habitual
o sorriso, nunca se abandonava a exageradas expressões de alegria. Com a ordem e com a disciplina
1993
AD, B 48/2d. doc. 73.
1994
AD, B 48/2d. doc. 63.
1995
AD, B 48/2d. doc. 62.
1996
AD, B 48/2d. doc. 58.
1997
AD, B 48/2d. doc. 56.
1998
AD, B 48/2d. doc. 65.
1999
AD, B 48/2d. doc. 82.
2000
AD, B 48/2d. doc. 82; 74.
2001
AD, B 48/2d. doc. 74.
2002
AD, B 48/2d. doc. 74.
2003
AD, B 48/2d. doc. 50; 51; 53; 57; 60; 63.

374
reinava no S. João um óptimo clima de estudo. Os excelentes resultados dos exames de estado
demonstravam isso mesmo, assim como o número sempre crescente de alunos e a confiança das famílias.
O colégio S. João gozava de uma grande fama, não só em Aisne, mas também em Paris, por causa da
excepcional personalidade do P. Dehon.
Mesmo quando, desde 1893 em diante, o P. Dehon já não era director do S. João, em S. Quintino e
arredores usava-se nas famílias a expressão: "Mandar os filhos ao P. Dehon", no sentido de mandá-los a
estudar no Colégio S. João.2004
Todos ficaram consternados, especialmente os pais de família, quando por ordem do bispo, Mons.
Duval, o P. Dehon foi substituído por D. Mercier.2005
Mesmo sem inventar nenhum método pedagógico, o P. Dehon foi um grande educador. Ele próprio,
mas Memórias, formulando um juízo sobre os primeiros nos do S. João, afirma: "Foram anos
particularmente belos: activos, prósperos, alegres e fecundos para a formação cristã dos jovens".2006

A HUMILDADE: CAMINHO DA CARIDADE

Se a bondade, a caridade e a cordialidade são essenciais para um estilo de vida dehoniano, também
é necessária a humildade e a simplicidade. Sem humildade não há bondade, nem caridade, nem
cordialidade. O egoísmo e o orgulho são a negação desta virtude. Se a oblação por amor é o valor central
do carisma dehoniano, o caminho que leva à oblação por amor é a humildade e a simplicidade. São
condições essenciais para realizar a missão dehoniana.
E o P. Dehon está convencido de que a santidade autêntica não se realiza sendo prodígios de
austeridade, mas sendo evangelicamente "pequenos", praticando a humildade, a simplicidade, o
escondimento. Assim escreve ao P. Guillaume: "Para ser santos são necessárias duas coisas: desprender-se
das criaturas e de si mesmos, amar a Deus e as almas em Deus. Façamo-nos santos; mas santos anónimos,
que tudo façam bem, sem ruído e sem ostentação".2007
Ao P. Gabriel Grison, missionário no Equador, dá estas orientações: "Continuai a fazer o bem
modestamente. Abandonai toda a turbação e toda a inquietação como tentações do demónio e frutos do
amor próprio. Sede sempre humilde e conservai a paz. Não vos desanimeis nunca. Cada dia começai de
novo suavemente e com paciência a obra da vossa santificação... Paciência, paz e doçura. Segui bem estas
orientações".2008
Assim é a santidade, segundo o P. Dehon; escondida, sem ruído, sem demonstrações vistosas...
"tornemo-nos santos e façamos santos". "O P. Dehon é um santo diferente do P. André Prévot. Este
praticava penitências impressionantes; o P. Dehon, pelo contrário, viveu o martírio do coração sem que
ninguém pudesse dar conta, visto que sempre se apresentava alegre, afável e sorridente".2009
Lendo o Diário do P. Dehon, ficamos admirados pela sua tendência em declarar-se culpado, não só
das suas faltas, mas também das dos seus colaboradores, dos seus religioso, dos seus alunos. Sente-se
miserável diante de Deus e pede-Lhe continuamente perdão.
Há uma tendência temperamental que leva o P. Dehon a esta atitude, uma espécie de complexo de
culpa. Sem dúvida, pelo seu espírito de fé, não cai no pessimismo nem no desespero, mas abre-se à
confiança e ao perdão. Descobrimos nele aquela humildade dos santos que classificam a culpa segundo as
exigências do amor e sofrem-na como uma recusa do Amor. Ele vê as suas faltas e as culpas que se
cometem no seu ambiente à luz do Coração de Cristo e da reparação que lhe é devida. Todo o pecado fere o
Coração de Jesus; por isso, toda a dor e toda a provação devem ser aceites com humildade como uma graça
de expiação e de maior abandono ao seu amor.
Quem o conheceu destaca de modo particular a grande humildade do P. Dehon. A fundadora das
Escravas do Sagrado Coração expressava-se assim numa conversa: O "Très bon Père (P. Dehon) tem mais
2004
AD, B 48/2d. doc. 104.
2005
Cf. H. DORRESTEIJN scj, Vita e personatità di P. Dehon, 683ss.
2006
NHV XIII, 21.
2007
Carta de Novembro de 1912, cit. Por M. DENIS scj, Le Projet du Père Dehon, 337.
2008
Carta de 5.5.1889 (AD, B 24/8).
2009
Cf. AD, B 48/2d, doc. 113.

375
humildade no seu dedo mendinho que toda a nossa comunidade". O testemunho é da Ir. Maria Matilde do
Sagrado Coração.
"Quatro vezes doutor e quatro vezes humilde", dizia, referindo-se aos quatro doutoramentos do P.
Dehon, o cisterciense P. Vítor Abdy, que teve com ele relações de amizade desde 1885 até 1912.
Nunca falava dos seus títulos universitários, nem das numerosas obras feitas, nem das relações
amistosas que tinha com as personalidades mais destacadas do seu tempo, tanto no âmbito religioso como
no social.2010
Causava Impressão o facto de um homem tão culto, ser tão jovial e simples com os jovens. Um dia
levou os seus estudantes clérigos a passeio pela campina romana. Entraram num restaurante. Alguns
vizinhos de mesa, ao irem-se embora, deixaram algumas garrafas de vinho. O P. Dehon aproveitou para dá-
lo a beber aos seus estudantes, afirmando que eram "res nullius".2011
Recusou todo o cargo eclesiástico, mesmo depois das famosas conferências romanas de 1897.
Aceitou somente a nomeação de Leão XIII para consultor da Congregação do Índice. Não gostava de
colocar-se em evidência nem com palavras nem com atitudes. Não mostrava sinais de vaidade ou de
complacência de si mesmo.2012
Em Fourdrain, um religioso pintou para o seu aniversário um quadro que representava uma
paisagem iluminada pelo sol na linha do horizonte: Um estudante fazendo-se engraçado disse: "é o sol
poente". Os outros religiosos reagiram: “É o sol a nascer”. O P. Dehon, sem alterar-se, observou:
"Nascente ou poente, a comparação com o sol é demasiado exagerada para mim ".2013
Escutava com gosto os outros e nunca impunha o seu ponto de vista. Falava familiarmente com os
operários e com os trabalhadores, apesar de haver quem o desaprovasse, vendo nisso uma excessiva
condescendência por parte do Superior Geral.2014
Mesmo eleito Superior Geral vitalício, em cada capítulo apresentou sempre a demissão e quis
submeter-se à reeleição.
No escolasticado de Luxemburgo fez publicamente "a culpa" como qualquer religioso jovem.2015
Um dia impôs uma penitência a um noviço, mas ele não a quis fazer. Então ajoelhou-se ele, à porta,
e beijou os pés de todos os noviços.2016
"Na Casa do Sagrado Coração - conta o empregado Júlio Buronfose – servia eu o café ao P. Dehon
e a outros Padres no jardim. Chega um Padre jovem, recém ordenado: Põe-se de joelhos para receber a
bênção do Padre Geral; mas este levanta-se e coloca-se, por sua vez, de joelhos, imitado por todos os
outros Padres e pede a bênção ao novo sacerdote. Só depois de a receber é que lhe deu a sua bênção".2017
Durante uma refeição, numa discussão com o P. Kanters, o P. Dehon defendia com certa vivacidade
o seu ponto de vista. A certo momento, o P. Kanters com muito pouco respeito, exclamou: "Não diga
tolices". E o P. Dehon baixou os olhos e não acrescentou palavra.2018 Idêntica reacção quando o P. Kusters,
um espírito particularmente cáustico, o acusou de ter "o talento de rodear-se de nulidades".2019 O P. Prévot,
o P. Rasset e o P. Charcosset não eram propriamente nulidades.
Uma vez, o P. Philippe mostrou-lhe um artigo do "Ami du Clergé" em que um bispo criticava os
dois volumes da obra do P. Dehon intitulada: "La vie interieure". "Este bispo - disse simplesmente o
Fundador - tem razão, porque, vedes, estes dois volumes são o fruto de um trabalho de guerra. Não tinha à
minha disposição nem livros nem documentos. Tinha previsto esta crítica e aconteceu".2020
A humildade do P. Dehon manifestava-se também no aceitar com humorismo certas expressões
bastante duras e até ofensivas. Um dia um sacerdote da diocese de Soissons permitiu-se um jogo de
2010
AD, B 48/2d, doc. 6.
2011
Cf. AD, B 48/3, p. 56.
2012
Cf. AD, B 48/2d, doc. 3; 9.
2013
AD, B 48/2d, doc. 78.
2014
AD, B 48/2d, doc. 24; 50.
2015
AD, B 48/2d, doc. 24. A "culpa" era um acto penitencial usado nas casas religiosas, no qual se acusavam em público as faltas
externas e se recebia a penitência do superior.
2016
Cf. H. DORRESTEIJN scj, Vita e personalità di P. Dehon, 110.
2017
Cf. AD, B 48/2d, doc. 59.
2018
AD, B 48/2d, doc. 92.
2019
AD, B 48/2d, doc. 61.
2020
AD, B 48/2d, doc. 24.

376
palavras sobre os religiosos do P. Dehon: para ele eram "déhontés" (desavergonhados). O P. Dehon não se
alterou; sorriu e disse: "Reverendo, quem sabe talvez tenha razão; mas a cada pecado a sua
misericórdia".2021
Às vezes recebeu cumprimentos irónicos da parte de alguns dos seus religiosos sobre o valor dos
seus livros; mas nunca reagiu nem se justificou.2022
O P. Dehon nunca fala de experiências místicas extraordinárias, embora algumas alusões do Diário
as façam supor.2023
Na sua acentuada humildade, decobrimos uma atitude de louvor e de gratidão: é a atitude de Jesus
diante do Pai: "Nesse mesmo instante, Jesus estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo e disse:
«Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes
e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado" (Lc. 10,21).
Atitude eucarística que é ao mesmo tempo de admiração no P. Dehon, por uma misteriosa presença
de amor na sua vida. Diz muito bem a Regra de Vida dehoniana, falando da experiência de fé do P. Dehon:
"O Lado aberto e o Coração trespassado do Salvador constituem para o P. Dehon a expressão mais
evocadora de um amor, cuja presença activa experimenta na sua vida". 2024 É próprio dos pequenos, dos
humildes e dos pobres a maravilha e a oração que dela derivam.
Estas são as exigências e as experiências de vida necessárias para realizar a missão dehoniana:
"Sedentos da intimidade com o Senhor, procuramos os sinais da sua presença na vida dos homens, onde
actua o seu amor salvador".2025 Não se alcança a intimidade com o Senhor sem uma profunda humildade.
"Contemplamos o amor de Cristo nos mistérios da sua vida e na vida dos homens". 2026 Aos
pequenos revelam-se os mistérios do Reino de Deus (cf. Mt. 11,25). É preciso a humildade para
experimentar na vida aquele amor de Deus que suscita a troca de amor, ou seja a oblação reparadora,
entendida como um sim ao Amor, como uma colaboração ao trabalho d’Aquele que está sempre “em
acção” (Jo. 5,17): a obra do amor. Daqui nasce a exigência do abandono, do amor puro, da disponibilidade,
da gratuidade, da infância espiritual, todas atitudes típicas da experiência de fé do P. Dehon e
comportamentos fundamentais para realizar a missão dehoniana.

IR À FONTE: A EUCARISTIA

Subamos agora à fonte da espiritualidade do P. Dehon, das suas disposições interiores


características e do seu comportamento exterior, numa palavra, da sua missão: a fonte é o Coração de
Cristo na Eucaristia. Lá "acolhemos Aquele que nos reúne em comunidade, que nos consagra a Deus e nos
lança, incessantemente, pelos caminhos do mundo ao serviço do Evangelho".2027
A Eucaristia não só constrói a comunidade na comunhão: "Sint unum"; mas é a força inspiradora da
missão: "Lança, incessantemente, ao serviço do Evangelho".2028
A piedade do P. Dehon é tipicamente eucarística. A sua é uma "Congregação adoradora".2029
Considera a Missa, não como uma prática de piedade, mas como o acto de culto mais importante do
dia, como diz no “Directório espiritual”: "O Santo Sacrifício da Missa é, para todos os Sacerdotes do
Coração de Jesus o grande acto do dia, o holocausto do perfeito amor e o sacrifício reparador por
excelência".2030

2021
Cf. AD, B 48/3, p. 48.
2022
Cf. AD, B 48/2d, doc. 24.
2023
Cf. H. DORRESTEIJN scj, Vita e personalità di P. Dehon, 845-847.
2024
NRV: Cst., n. 2.
2025
NRV: Cst., n. 28.
2026
NRV: Cst., n. 77.
2027
NRV: Cst., n. 82.
2028
NRV; Cst., n. 82.
2029
Cahiers Falleur II, Cf. G. MANZONI scj, Una Congergazione adoratrice,in "Dehoniana" (1083), 42-58.
2030
(DE, PV § 4.) DS, n. 128. Cf. Cahiers Falleurs III, 61.

377
Em duas conferências aos noviços de 6 e 8 de Agosto de 1880 afirma: " A missa é o acto divino ...
que nos caracteriza. Parece-me que é a razão de ser dos Oblatos. Exprimir-se-ia tudo o que devemos ser se
se dissesse: Os Oblatos celebram santamente a Missa (e portanto vivem-na). Na missa respondemos de
maneira especial à nossa vocação. Na missa, Jesus quer-nos mais Oblatos do que em qualquer outro lugar,
ou seja, ele quer que sejamos o que Ele é no Sacrifício da Missa. A Missa é o sol que ilumina as acções do
nosso dia".2031
O P. Dehon celebrava a Missa pausadamente, sem pressas, com grande recolhimento. Parecia
identificado com o sacrifício de Cristo. O tom da voz nas orações da Missa era um pouco cantante. Um
padre dizia: "Assim expressa a sua alegria e o seu fervor".2032Os jovens ficavam impressionados com o seu
modo de celebrar. Apresentava-se à sua imaginação com a auréola de um personagem bíblico. "Era um
grande favor ajudar-lhe à Missa ... Sentíamo-nos como noutro mundo".2033 A acção de graças depois da
missa durava uns dez minutos. O sacristão e o ajudante, colocando as coisas em seu lugar, faziam
necessariamente algum barulho, mas não distraíam o P. Dehon, absorto, como se estivesse rodeado do mais
completo silêncio".2034
A adoração eucarística absorvia-o inteiramente. Olhava para a hóstia e nada o distraía. Parecia em
êxtase.2035 Era para ele o prolongamento contemplativo da missa: "Não useis livros durante a adoração",
dizia aos seus religiosos.2036
Todas as quintas-feiras fazia a Hora Santa. Abria o sacrário e ficava de joelhos, com o roquete
vestido, a hora toda, apesar da sua avançada idade e do estado de debilidade por causa das privações da
guerra.2037
A adoração eucarística era a atracção e também como que o descanso do P. Dehon. Em Bruxelas
tinha como secretário, no peditório em favor do templo de Roma (1921-1922), o jovem Aquiles Jossa. Este
conta que, quando saíam a passear juntos por Bruxelas, entravam nas igrejas e aí permaneciam meia hora e
até uma hora inteira, quando o Santíssimo estava exposto.
Sobretudo pela sua piedade eucarística, irradiava Cristo. Sentia-se que era uma alma inteiramente
sacerdotal.2038
Pelo exemplo do P. Dehon, para além das suas palavras e escritos, compreendemos a importância
que tem o culto eucarístico na missão e portanto na espiritualidade do seu Instituto: "Na vida contemplativa
nós constituímos uma congregação adoradora".2039 "Nós teremos sempre obras, mas a ocupação principal
será a adoração do Santíssimo Sacramento".2040 A adoração diária é de meia hora. Só em casos
extraordinários pode ser reduzida a um quarto de hora.2041
Desde os princípios da Obra fazia-se a adoração todos os dias, mas não era permitida a exposição
do Santíssimo Sacramento. Quando finalmente chegou a licença de Mons. Thibaudier só para as primeiras
sextas-feiras do mês, a reacção foi de surpresa, de alegria e de assombro simultaneamente: "É uma notícia
que nos deve assombrar a nós, miseráveis, chamados a uma tal honra. Jesus quer encontrar aqui Nazaré e
Betânia. Sexta-feira será o primeiro dia regularmente autorizado. Dentro de alguns meses será todas as
sextas-feiras; dentro de um ano ou dois, todos os dias. Será o primeiro dos milhares e quiçá dos milhões de
dias de exposição nos Oblatos... Preparemo-nos nós, pobres pecadores, doze miseráveis, que nada
merecem..."2042
Não eram palavras ditas por conveniência, mas com profunda convicção, tanto que o P. Dehon
propôs aos seus noviços uma preparação especial para a primeira adoração eucarística: maior regularidade,

2031
Cahiers Falleurs III, 114-116.
2032
Cf. AD, B 48/2d, doc. 78.
2033
AD, B 48/2d, doc. 57.
2034
AD, B 48/2d, doc. 62.
2035
AD, B 48/2d, doc. 5.
2036
AD, B 48/2d, doc. 22.
2037
AD, B 48/2d, doc. 92.
2038
AD, B 48/2d, doc. 62.
2039
Cahiers Falleur I, 74: Conferência aos noviços de 12.3.1880.
2040
Cahiers Falleur III, 59: Conferência aos noviços de 1.8.1880.
2041
Cf. Cartas circulares nn. 91-93.
2042
Cahiers Falleur I, 62: Conferência aos noviços de 27.2.1880.

378
silêncio durante o recreio da noite, mais penitência (à base de cilício e disciplina), mais oração e uma
"novena de actos de humildade com outros tantos actos de amor".2043
A última recomendação do Testamento espiritual do P.Dehon a seus religiosos é para "a adoração
diária, a adoração reparadora oficial, que fazemos em nome da Igreja para consolar Nosso Senhor e para
apressar o Reino do Sagrado Coração de Jesus nas almas e nas nações". 2044 Notamos que o motivo íntimo
da consolação está integrado no motivo apostólico. São características da missão dehoniana para a difusão
do reinado de Cristo nas almas e nas sociedades. Não nos devemos admirar, portanto, de algumas
expressões muito fortes do P. Dehon a propósito da adoração eucarística: "Nenhum trabalho pode substituir
este importante exercício das nossas regras. Ao que habitualmente não faz a adoração, não o considero meu
filho espiritual";2045 seria faltar num ponto importante da missão dehoniana. Precisamente por esta
importância desejava que cada província tivesse uma casa de adoração onde se levasse uma vida
prevalecentemente contemplativa.2046
A 30 de Novembro de 1889, escreve no seu Diário que tinha recebido 30.000 francos para a uma
capela dedicada à adoração reparadora a dedicar ao Sagrado Coração. Esta obra foi realizada, com algum
sucesso, em Bruxelas.2047
Júlio Buronfosse, empregado da casa do Sagrado Coração de S. Quintino de 1913 a 1915,
levantava-se cedo de manhã para acender a lareira na capela. Chegava o P. Dehon e fazia uma profunda
prostração no chão, como uma oferenda de toda a sua pessoa a Deus. Era uma intensa, silenciosa oração
oblativa que causava grande impressão. Quem se dirigia à capela via o P. Dehon de joelhos, com a cabeça
entre as mãos, absorto em oração.2048 Com esta profunda adoração eucarística preparava-se para os suas
intensas joenadas de trabalho.

CONTEMPLATIVO NA ACÇÃO: EXTRAORDINÁRIO NO ORDINÁRIO

Desta intensa vida eucarística nasce para o P. Dehon a exigência de unir à vida activa uma profunda
vida contemplativa.2049
Esta componente contemplativa na missão dehoniana é hoje também uma espécie de desafio ao
mundo tão invadido pelo secularismo e pelo laicismo. É um "testemunho da transcendência de Deus e do
seu amor em Jesus Cristo".2050
Se há uma crise na missão dehoniana é uma crise de contemplação. Da intensa vida contemplativa
do P. Dehon provinha o seu zelo pela glória de Deus e a salvação das almas. A sua actividade era um
prolongamento da sua contemplação.
Assim tinha que ser para os seus religiosos. Durante o mês de renovação, pregado em Lovaina em
Janeiro de 1909, mostrou toda a sua dor pelos religiosos tíbios, que não cumpriam a regra sob pretexto de
que não obriga sob pena de pecado, e ouviu-se-o gritar: "Nunca quis fundar uma Congregação de
medíocres".2051
Na vida do P. Dehon, o que conta para a santidade é o extraordinário no ordinário. Até o voto de
vítima que o P. Dehon emitiu, juntamente com os seus votos religiosos, a 26 de Junho de 1878, reflecte o
seu estilo de vida e a sua santidade que evita as manifestações espectaculares ou mesmo só aparentemente
grandiosas. O P. Dehon oferece-se como vítima de amor. Prefere receber as cruzes da mão de Deus, não
procurá-las ele. É uma disposição que favorece a sua entrega por amor, o seu espírito de abandono, o "fiat"
que tantas vezes encontramos repetido no Diário, cada vez que alude às contrariedades e provações da sua
longa vida.

2043
Cahiers Falleur I, 63-64: Conferência aos noviços de 27.2.1880.
2044
DS, n. 284. (DE-Testamento espiritual).
2045
Cf. AD, B 48/2d, doc. 2.
2046
Cf. A. VASSENA, Casa di adorazione, in "Dehoniana" (1979), 208-212.
2047
Cf.NQ IV, 82.
2048
Cf. AD, B 48(2d, doc. 59; 57.
2049
Cahiers Falleur I, 74: Conferência aos noviços de 12.3.1880.
2050
NRV: Directório Geral, n. 34/2.
2051
Cf. AD. B 48/2d, doc. 18.

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Espontaneamente recordamos S. Teresa de Lisieux, quando, à sua morte, as irmãs não encontraram
nada para escrever no seu necrológio, porque tudo tinha sido tão ordinário na sua vida!.
Como esta pequena santa, o P. Dehon sofreu escondidamente tudo o que é possível sofrer tanto na
alma como no corpo, especialmente após ter-se oferecido como vítima de amor no mais completo
abandono à vontade de Deus. Nós agradecemos ao Senhor que a santidade do P. Dehon não tenha nada de
espectacular e apareça ao alcance de todos.
S. Pio X, que era perito em santidade, depois de uma audiência concedida ao P. Dehon, disse aos
presentes: "Procuram-se santos... e eis aqui um, este que está a sair".2052 Quase todos os que o conheceram,
intuíram a santidade do P. Dehon: "Deixou-me uma recordação de santidade"; "Aqui, (na paróquia de S.
Martinho, em S. Quintino), todos consideram o P. Dehon como um santo".2053
Era um santo simples e amável. Um sacerdote que conhecia o P. Dehon pelos seus escritos
ascéticos, quando veio a S. Quintino, pensa encontrar-se com um homem austero, grave, talvez um pouco
melancólico ... Pelo contrário, teve a surpresa de encontrar um sacerdote sorridente que gostava de gracejar
com as pessoas familiares, com elegância, sem ofensa.2054
Recordamos o testemunho de um missionário da Congregação: Considerei sempre o P. Dehon
como um homem eminente, verdadeiramente superior e muito sobrenatural. Sentíamo-nos elevados a Deus
pelo simples facto de estarmos na sua presença. Tendo regressado do Congo, o P. Dehon pareceu-me como
transformado; não parecia já deste mundo; estava inteiramente absorvido em Deus. Todavia ouvia muito
bem tudo quanto eu lhe dizia, enquanto os seus olhos estavam constantemente fixos numa pequena imagem
do Sagrado Coração que estava no seu escritório. Dava-me conta de que o seu pensamento estava lá".2055 O
testemunho deste missionário do Congo refere-se aos últimos anos de vida do P. Dehon. Eram os anos da
cada vez mais profunda experiência trinitária.
No Leito de morte, olhando para uma imagem de Cristo com S. João reclinando a cabeça no peito
do Senhor, o P. Dehon pronuncia as suas últimas palavras: "O Coração de Jesus!... Para ele vivo, para ele
morro".2056
O harmonioso equilíbrio que caracteriza a vida do P. Dehon, a que tantas vezes aludimos, é o
resultado de uma intensa vida contemplativa, de um excepcional domínio de si mesmo e de uma contínua
correspondência à graça.
No Diário, apenas vislumbramos um eco dos seus sofrimentos e das dolorosas provações da sua
longa vida. São notas muito sóbrias, que nada têm daquele desabafo humano que alivia muitas pessoas ao
escrever. Para o P. Dehon a única, verdadeira consolação é refugiar-se em Deus, é recordar-se do seu voto
de vítima e renová-lo, encontrando conforto, confiança e força no Coração de Cristo.

HOMEM DE FÉ, HOMEM DE DEUS

A característica bondade do P. Dehon e as suas outras virtudes levam-nos à sua fé, entendida
biblicamente, como adesão do coração e de toda a vida a Deus, ao Coração de Cristo.
A vida de fé do P. Dehon suscitou, em quem o conheceu, a impressão intensa de tratar com um
"homem de Deus". Tudo nele está impregnado pela fé, dum modo tão intenso e profundo que, entre os
sacerdotes e religiosos, não aparecia "como os outros" mesmo que fossem excelentes. Nele, o "homem de
Deus" tinha assumido a criatura humana, o “gentil-homem”, o amigo, o familiar, o sacerdote, o religioso, o
educador, o superior, o organizador, o professor, o apóstolo em todas as suas actividades, lutas e
preocupações. Não só a sua pregação e as suas conferências, mas também as suas conversas e os seus
juízos sobre qualquer tema, mesmo profano, expressos por palavras ou muitas vezes por escritos, eram
iluminados por uma luz de fé espontânea, sem afectação, alimentada pelo estudo e pela meditação da
palavra de Deus.
O princípio que animou toda a sua vida, tão longa e rica de acontecimentos, exprimia-o um dia
falando aos seus noviços dos santos, cada um dos quais tem o seu "fim sobrenatural", que o guia com
2052
AD. B 48/2d, doc. 24.
2053
AD. B 48/2d, doc. 57.
2054
AD. B 48/2d, doc. 55.
2055
AD. B 48/2d, doc. 55.
2056
KANTERS, Le T.R.P. Dehon,85.

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entusiasmo à santidade, de tal modo que “se pode dizer de cada um: "Non est inventus similis illi" (Sir
44,20)... Quanto a nós - diz o P. Dehon - o fim sobrenatural, pelo qual queria comunicar-vos um extremo
entusiasmo, é a glorificação do Coração de Jesus, vítima de amor e de reparação. Este é o nosso fim
especial e para este fim deve tender toda a nossa vida".2057

A MISSÃO DEHONIANA

Se a missão radica na espiritualidade e a própria espiritualidade é já missão, para não nos


perdermos em raciocínios mais ou menos inúteis, deve-se ter presente, como valor exemplar, a experiência
de fé e de vida do P. Dehon. Nele se realizou de maneira maravilhosa a missão dehoniana.
Nós falámos dela sem pretensão de ser exaustivos. Abrimos só algum caminho. Muitos mais se
podem descobrir. Os comportamentos do P. Dehon, vistos, não isoladamente, mas no seu conjunto, são
característicos da missão dehoniana, constituem um estilo de vida feito de bondade, de cordialidade, de
nobreza de alma, de amor à cultura sem exaltá-la nem fazê-la pesar, de generosidade, de serenidade e
optimismo, de humildade e modéstia, de concórdia e de bom humor. Ser como o P. Dehon homens de
coração, que praticam a humildade, que alcançam luz e força da eucaristia, vivem de fé e de contemplação,
partilham a vida dos irmãos, dos sacerdotes, dos religiosos, do povo de Deus, especialmente dos pequenos,
dos humildes, dos operários, dos pobres:2058 é realizar a missão dehoniana no plano pessoal, comunitário e
apostólico. Assim se exprime a "cultura" dehoniana, convertida em realidade e santidade de vida no P.
Dehon.2059

2057
Cahiers Falleuur V: 76. Conferência aos Noviços de 6.4.1881.
2058
Cf. NRV: Cst., n. 31.
2059
A Constituição pastoral Gaudium et spes apresenta a cultura como um desenvolvimento dos bens e valores da natureza: "A
palavra "cultura" indica, em geral, todas as coisa por meio das quais o homem apura e desenvolve as múltiplas capacidades do
seu espírito e do seu corpo; se esforça por dominar, pelo estudo e pelo trabalho, o próprio mundo; torna mais humana com o
progresso dos costumes e das instituições, a vida social, quer na família quer na comunidade civil; e, finalmente, no decorrer do
tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas obras, para que sejam proveito a muitos e até à inteira humanidade, as
suas grandes experiências espirituais e as suas aspirações" (n. 53). A cultura cristã (e portanto também dehoniana) enquanto
cultura, tem lugar na história, já que pertence à história, ao mundo da vida, à exigência do homem que procura compreender a si
mesmo e à sua posição no mundo; Porém enquanto cristã, está iluminada por verdades eternas, provém mais de Deus do que da
auto-compreensão humana e pertence à ordem espiritual. Assim o humano entra em relação com o divino, a natureza com a
graça, o caduco com o eterno, o finito com o infinito. O vértice da cultura cristã é a santidade, que assim se converte em fonte de
autêntica civilização e criatividade.(Cf. V. POSSENTI, Tra secolarizzazione e nuova cristianità, Bolonha, 1986, p. 116ss).

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