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Presidente da República

Luiz Inácio Lula da Silva CELLINA RODRIGUES MUNIZ


Ministro da Educação
Fernando Haddad //O R G A N I Z A D O R A \\
Universidade Federal do Ceará
REITOR
Prof. Jesualdo Pereira Farias
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Conselho Editorial
P RESIDENTE
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CONSELHEIROS
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Profa Ângela Maria Mota Rossas de Gutiérrez
Prof. Gil de Aquino Farias
Prof. Italo Gurgel
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Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira
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Chefe do Departamento de Fundamentos da Educação
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Cellina roDriGues Muniz
DIÁLOGOS INTEMPESTIVOS
C OORDENAÇÃO E DITORIAL DeMetrios GoMes GalVÃo
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Kelma Socorro Alves Lopes de Matos eVerton Moraes
Wagner Bandeira Andriola
elyDio Dos santos neto
C ONSELHO EDITORIAL FernanDa Meireles
Dra Ana Maria Iório Dias (UFC) Dr. Júlio Cesar R. de Araújo (UFC)
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Dra
Ângela Arruda (UFRJ)
Ângela T. Sousa (UFC)
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Dra
Justino de Sousa Júnior (UFMG)
Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (UFC)
Gazy anDraus
Dr. Antonio Germano M. Junior (UECE) Dra Luciana Lobo (UFC)
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Dra Dora Leal Rosa (UFBA) Dra Maria Nobre Damasceno (UFC)
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Dr. Enéas Arrais Neto (UFC) Dr. Nelson Barros da Costa (UFC)
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Dr. José Gerardo Vasconcelos (UFC) Dra Valeska Fortes de Oliveira (UFSM) Fortaleza
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Dr. Juarez Dayrell (UFMG) Dr. Wagner Bandeira Andriola (UFC) 2009
Fanzines: Autoria, Subjetividade e Invenção de Si SOBRE OS AUTORES
© 2009 Cellina Rodrigues Muniz (Organizadora).
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Normalização Bibliográfica Demetrios Gomes Galvão
Perpétua Socorro Tavares Guimarães – CRB 3 – 801 Graduado em História (UFPI). Poeta. Mestre em Histó-
Projeto Gráfico e Montagem da Capa ria do Brasil (UFPI) e doutorando em História do Brasil
carlosalberto.adantas@gmail.com
Capa
(UFPE). Desenvolve pesquisas sobre História, Cidade,
André Dias (a partir de imagens de Demetrios Galvão e Gazy Andraus) Fotografia, Subjetividade e Cultura Alternativa.
Revisão E-mail: demetrios.galvao@yahoo.com.br
Maria Vilaní Mano e Silva
Elydio dos Santos Neto
Graduado em Filosofia e Pedagogia. Doutor em Edu-
cação pela PUC-SP. Docente-pesquisador do Mestra-
do em Educação da Universidade Metodista de São
Paulo (UMESP). Pós-doutorando no Instituto de Artes
Editora filiada à da UNESP com uma pesquisa sobre quadrinhos poé­
tico-filosóficos. Coordenador do Grupo de Estudos e
Pesquisa Paulo Freire (GEPF-UMESP). Pesquisador do
Associação Brasileira das
Editoras Universitárias Observatório de Quadrinhos (ECA-USP) e do INTE-
RESPE.
Catalogação na Fonte
E-mail: elydio@gmail.com
M963f Muniz, Cellina Rodrigues
Fanzines: autoria, subjetividade e invenção de Everton Moraes
si. / Cellina Rodrigues Muniz. – Fortaleza: Edi- Mestrando em História Cultural na Universidade Fede-
ções UFC, 2009. ral de Santa Catarina (UFSC), atuando principalmente
nos seguintes temas: punk, escrita, ética, subjetividade
Isbn: 978-85-7282-366-1 e sensibilidade. 
139p. : il. E-mail: evermoraes@hotmail.com
1. Fanzines – Imprensa Alternativa  2.  I. Título
Fernanda Meireles
CDD: 070 Fernanda Meireles nasceu em Marabá, Pará, mas é
mais cearense que muita gente. Graduou-se em Letras
pela UECE e especializou-se em Arte-Educação pelo Ceará. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Filoso-
CEFET. Foi baixista da Alcalina, professora de inglês fia Política, Especialista em Filosofia Política, Mestre e
e operadora de praticagem. Sempre fez postais para Doutor em Sociologia e Pós-Doutor em Artes Cênicas.
vender por aí e sempre escreveu muitas cartas. Du- Coordena a linha de pesquisa de História e Memória
rante quase 2 anos coordenou o Literatura de Lua, da Educação e, ao mesmo tempo, é Vice-Coordenador
bate-papos semanais sobre literatura que acontecem do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasilei-
no Café Lua, na Livraria Lua Nova. Seu grande barato ra, da Universidade Federal do Ceará. Edita a Coleção
é gente e escrita, talvez por isso faça zines há 13 anos
Diálogos Intempestivos e a Revista Educação em De-
e trabalhe com oficinas de zines em Fortaleza e pelo
bate da FACED/UFC.
Brasil há 9. Publica espalhadamente em zines, postais
E-mail: gerardo.vasconcelos@bol.com.br
e por ali: http://esputinique.wordpress.com, entre ou-
tros cantos. MSN: jgerardovasconcelos@hotmail.com
E-mail: fernandaameireles@gmail.com
Luciana Lobo de Miranda
Gazy Andraus Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Uni-
Licenciado em Educação Artística pela FAAP, mestre versidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pro-
em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP, fessora do Programa de Mestrado em Psicologia da
Doutor em Ciências da Comunicação, na área de Inter- Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisadora
faces da Comunicação, pela ECA-USP, (premiado com do  Lapsus (Laboratório em Psicologia, Subjetividade
a melhor tese de 2006 pelo HQ-MIX-2007), professor e Sociedade) e coordenadora do Projeto de Extensão
da UNIFIG/UNIMESP, pesquisador do Observatório TVez: Educação para o Uso Crítico da Mídia, ambos
de HQ da USP e do INTERESPE - Interdisciplinaridade da UFC. Tem artigos publicados na interface subjetivi-
e Espiritualidade, editor e autor independente de his- dade, mídia e educação.
tórias em quadrinhos adultas de temática fantástico- E-mail: lu.lobo@uol.com.br
filosófica.
E-mail: gazya@yahoo.com.br Tiago Régis de Lima
Psicólogo graduado pela Universidade Federal do Cea­
Ioneide Santos do Nascimento rá (UFC) e mestrando do Programa de Pós-graduação
Graduada em Pedagogia e Educação Artística (UFPI). em Estudos da Subjetividade da Universidade Federal
Especialista em Arte-Educação (PUC-MG). Mestranda Fluminense (UFF), onde desenvolve uma pesquisa na
em Educação (UFPI). Docente da rede pública muni- interface das práticas de subjetivação com os modos
cipal (E. M. Angelim) e  estadual (Instituto Superior de de habitar a urbe.
Educação Antonino Freire) em Teresina-PI. E-mail: guttentak@gmail.com
E-mail: ione_renoir@yahoo.com.br

José Gerardo Vasconcelos


Professor Associado II, do Departamento de Funda-
mentos da Educação, da Universidade Federal do
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
José Gerardo Vasconcelos........................................... 11

NA DESORDEM DA PALAVRA: FANZINES


E A ESCRITA DE SI
Cellina Rodrigues Muniz ............................................ 15

DOS ZINES AOS BIOGRAFICZINES:


COMPARTILHAR NARRATIVAS DE VIDA E
FORMAÇÃO COM IMAGENS, CRIATIVIDADE
E AUTORIA
Elydio dos Santos Neto
Gazy Andraus ............................................................. 29

SUBJETIVIDADES DE PAPEL
Tiago Régis de Lima
Luciana Lobo Miranda ................................................ 48

A ESCRITA COMO GUERRA: ÉTICA E


SUBJETIVAÇÃO NOS FANZINES PUNK
Everton Moraes .......................................................... 66

RESSONÂNCIAS NO MEIO DO CAMINHO


E/OU NO CAMINHO DO MEIO: A POÉTICA
INFAME DOS FANZINES
Demetrios Gomes Galvão........................................... 81

ZINES EM FORTALEZA (1996-2009)


Fernanda Meireles ...................................................... 98

DA MARGINALIDADE À SALA DE AULA:


O FANZINE COMO ARTEFATO CULTURAL,
EDUCATIVO E PEDAGÓGICO
Ioneide Santos do Nascimento ................................. 121
APRESENTAçãO

Texto do professor Gerardo

Prof. Dr. José Gerardo Vasconcelos


Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq de História
e Memória da Educação – NHIME
Coordenador do Núcleo de História
e Memória da Educação – NHIME
Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação
em Educação Brasileira da UFC

11
12 13
NA DESORDEM DA PALAVRA: FANZINES E A
ESCRITA DE SI

Cellina Rodrigues Muniz

Narrar é narrar-se
Clarice Lispector

Rabiscos iniciais...

Se existir é inventar-se esteticamente, como fazer


da vida uma obra de arte? E mais: o que seria inventar-se
artisticamente através de fanzines?
O termo fanzine, que se origina da junção das
abreviações de “fanatic” (fã) e “magazine” (revista) (Cf.
MAGALHÃES, 1993), pode ser compreendido como um
tipo de “publicação independente e amadora, geralmente
de pequena tiragem e impressa em fotocópias ou peque-
nas impressoras.” (MAGALHÃES, 2004, p. 11). A partir da
década de 1930, os fanzines foram utilizados por leitores
de histórias de ficção para divulgar seus trabalhos autorais
fora do circuito profissional e comercial nos Estados Uni-
dos. Mas, com o passar do tempo, os fanzines tomaram o
mundo, servindo de canal para expressar desde os ideais
libertários do maio de 68 à máxima punk “do it yourself”,
sendo também fonte de expressão da poesia marginal e
da imprensa nanica brasileira. Rotulados como “boletins”,
“xeroxmania” ou simplesmente “zines”, pode-se pensar
que os fanzines são como define Fernanda Meireles, fan-
zineira de destaque na capital cearense:
Os fanzines, ou zines, são projetos pessoais que se
concretizam através da publicação em máquinas
fotocopiadoras (chamadas de “xerox”) ou gráficas
rápidas. Com tiragens pequenas, que podem variar
de 10 a 3.000 exemplares, são pequenas mídias e,
se comparadas aos veículos da grande imprensa,
são mídias minúsculas. É um veículo de comunica-

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cellina rodrigues muniz na desordem da palavra: fanzines e a escrita de si

ção que serve como suporte para uma mensagem Assim, partindo desses pressupostos, este artigo
com potencial de tornar-se vetor de uma rede de analisa um exemplo de fanzine produzido e distribuí-
interlocutores acerca de determinado assunto. É do na cidade de Fortaleza, Ceará, Brasil, nos primeiros
também uma obra de arte em si, dado o seu caráter anos de 2000, composto por um grupo de afinidades:
pessoal, artesanal e criado dentro de uma proposta
trata-se do PalavraDesordem, fanzine criado em 2002 e
estética. (MEIRELES, 2008, p. 10).
editado por Amanay Parangaba. Esse fanzine, nas treze
O que a autora chama “rede de interlocutores” edições realizadas, reúne textos diversos, verbais e não-
pode ser compreendido como grupos, tribos, agregações, verbais (ilustrações, contos, poemas, pequenos artigos e
comunidades. Encontro entre pessoas que criam entre si ensaios etc.) de um grupo de indivíduos que convive-
um vínculo pelas práticas de escrita e leitura que compar- ram (e convivem) no entorno da Universidade Federal
tilham. Em torno desse vínculo, uma infinidade de dese- do Ceará, com a qual tiveram ou não laços formais, no
jos e passionalidades inomináveis, mas passíveis de mate- Campus localizado no bairro Benfica, em uma convivên-
rialização plástica. E o que a autora chama de “proposta cia baseada, sobretudo, em ritos genéticos boêmios e
estética” pode ser compreendida como a artesania a que indisciplinares.1 O Palavra Desordem será tomado aqui
se refere Magalhães (2004), a experimentação de “novas como exemplo de como o fanzine pode ser compreen-
linguagens e ousadias conceituais”. dido como uma forma contemporânea de “cultura de si”
Assim, tradicionalmente produzidos e difundidos (Cf. FOUCAULT, 2005), em que a existência é tomada,
às margens dos circuitos profissionais e comerciais de literalmente, como uma arte.
escrita e leitura, os fanzines atuam como elos de laços Pretendo, então, apresentar um caso que proble-
sociais e veiculam afetos e estéticas particulares. O que matiza a relação entre a existência de um grupo e a es-
quero destacar, então, é que os fanzines implicam dois as- crita dessa existência, na convivência de indivíduos que
pectos fundamentais a serem considerados neste artigo: se manifesta discursivamente pelo exercício de autoria de
fanzines.
a) podem ser compreendidos, segundo Andraus Para isso, fundamento-me, principalmente, em
(2005, p. 66), como a expressão de uma “necessi- Foucault, buscando o apoio de seu rigor metódico para
dade ontológica de compartilhamento gregário”; interpretar as formas de si (FOUCAULT, 2007; 2005) que
isto quer dizer, em outras palavras, que os fanzi- podem ser interpretadas na escrita de fanzine.
nes materializam subjetividades e sociabilidades,
dando voz a indivíduos e grupos que encontram
no fanzine uma unidade de expressão de si, seja Foucault e a Relação entre Ética e Estética
na sua criação, seja na sua distribuição.
b) realizam-se a partir de um fator determinante, Correntemente, são apontadas três fases ao longo
como assinala Magalhães (2004, p. 12), que é da vida e obra de Michel Foucault: a primeira fase, em
o domínio do processo de produção, em que o que o autor se dedicou a interpretar a formação dos siste-
fanzineiro é responsável pela coleta de infor-
mações, diagramação, composição, montagem, 1A expressão ritos genéticos foi formulada por Maingueneau (2001)
edição, além da impressão e distribuição, o para se referir aos modos de vida em que ganha forma uma obra.
que lhe possibilita maior liberdade de criação Para ver os ritos implicados na criação e distribuição dos fanzines
e expressão. do grupo em questão, ver Muniz (2009).

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cellina rodrigues muniz na desordem da palavra: fanzines e a escrita de si

mas de pensamento e as condições de possibilidade dos zines podem ser compreendidos como uma manifestação
discursos, fase conhecida como arqueológica, marcada do que Foucault chamou artes da existência, isto é,
por trabalhos como O Nascimento da Clínica, As Pala-
um conjunto de práticas refletidas e voluntárias
vras e as coisas e Arqueologia do Saber; a segunda fase,
através das quais os homens não somente se fixam
em que o autor se deteve nos dispositivos e relações de regras de conduta, como também procuram se
poder de aparelhos disciplinares como escolas, hospitais transformar, modificar-se em seu ser singular, fazer
e prisões, fase conhecida como genealógica, em que se de sua vida uma obra que seja portadora de certos
destacam trabalhos como Vigiar e Punir e os artigos reu- valores estéticos e responda a certos critérios de
nidos n’A Microfísica do Poder; e, por fim, a terceira e estilo. (FOUCAULT, 2007, p. 15).
última fase da obra de Foucault, sintetizada nos três volu-
mes da História da Sexualidade, foi dedicada a elucidar Para analisar as práticas através das quais os indi-
a constituição da subjetividade, compreendida, pois, não víduos, na Antiguidade clássica, se reconheceram espe-
como reflexo de uma identidade natural e essencial, mas cificamente como sujeitos do desejo, Foucault se debru-
sim como resultado de um processo histórico. O próprio ça não sobre os comportamentos, ideias, sociedades ou
Foucault reconhece sua trajetória pautada por esses três ideo­logias, mas sim sobre as “problematizações através
das quais o ser se dá como devendo e podendo ser pen-
encaminhamentos:
sado.” (FOUCAULT, 2007, p. 15). Tomando o modelo
Um deslizamento teórico pareceu necessário de análise de Foucault como referência, procuro analisar,
para analisar o que frequentemente era ­designado neste artigo, como os fanzines atuam como expressão de
como progresso dos conhecimentos: ele me le- “uma relação de si para consigo na constituição de si mes-
vara a interrogar-me sobre as formas de práticas mo como sujeito.” (FOUCAULT, 2007, p. 11).
discursivas que articulavam o saber. E foi preciso
também um deslocamento teórico para analisar o Portanto, concebo que a escrita de fanzines atua
que frequentemente se descreve como manifes- como uma prática de invenção de si, com a qual os indi-
tações do “poder”: ele me levara a interrogar-me víduos se constituem e se reconhecem como sujeitos ao
sobretudo sobre as relações múltiplas, as estraté- experienciarem a função de autoria.
gias abertas e as técnicas racionais que articulam
o exercício dos poderes. Parecia agora que seria
preciso empreender um terceiro deslocamento a
Autoria, Subjetividade e a Escrita de Si no Fanzine
fim de analisar o que é designado como o “sujei- PalavraDesordem
to”; convinha pesquisar quais são as formas e as
modalidades da relação consigo através das quais O fanzine PalavraDesordem apresenta um traço
o indivíduo se constitui e se reconhece como fundamental: suas treze edições são compilações de tex-
sujeito. (FOUCAULT, 2007, p. 11). tos que, predominantemente, narram histórias cotidianas
vivenciadas pelos indivíduos e narradas em seus escritos,
É especificamente a partir desse terceiro marco que
assinados através de pseudônimos e alcunhas com que
meu artigo se orienta. Tal como na perspectiva foucaultia-
na, compreende-se “ética como elaboração de uma forma 2 É importante ressaltar que, além do fanzine PalavraDesordem, os
de relação consigo que permite ao indivíduo constituir- indivíduos que constituem esse grupo social também se expressaram
por escrito através do fanzine Sarrabuio de Tertúlia (em três edições)
se como sujeito de uma conduta moral.” (FOUCAULT, e da revista alternativa Pindaíba (em duas edições). Mais detalhes
2007, p. 219). Parto, assim, do pressuposto de que os fan- sobre essa escritura, ver MUNIZ (2009).

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cellina rodrigues muniz na desordem da palavra: fanzines e a escrita de si

se conhecem no grupo.2 Essa condição é enfatizada, por como foco de sua coerência.” (FOUCAULT, 2001, p. 26).
exemplo, na definição que traz o editorial de um dos nú- Por autor, então, compreende-se a “função que caracteri-
meros do PalavraDesordem, de 2005: za um modo de existência, de circulação e de funciona-
mento de alguns discursos na sociedade.” (FOCUCAULT,
PalavraDesordem é um zine coletivo de contos
1992, p. 46). Eu interpreto, assim, no seio da escrita do
e escritos livres feito por um grupo de afinidades
de Fortaleza, Ceará, Brasil. Fala sobre o cotidiano
PalavraDesordem, uma autoria plural e dinâmica que se
e sua recriação a partir da construção de uma constitui pelas seguintes formas de si:
cultura literária comum, na qual cantamos nossas
lendas e contamos nossas histórias (Zine Palavra- 1) o autor-editor, aquele que atua como o principal
Desordem, n. 8). responsável pela composição do fanzine e/ou da
revista, como a coleta e colagem dos textos, a
montagem, a produção das fotocópias e impres-
sões, a organização dos meios de custeio, bem
como a distribuição;
2) o autor-narrador, aquele que participa com
os textos propriamente, verbais (escritos) ou
não-verbais (imagéticos, visuais), sejam textos
assinados (e aí prevalecem os contos, poemas
e ilustrações, embora também apareçam outros
gêneros textuais, como resenhas acadêmicas e
artigos de opinião) ou anônimos, como no caso
de poesias-coletivas, muitas vezes escritas numa
mesa de bar ou em rodas afins;3
3) o autor-personagem, um caso à parte, e bem
significativo: trata-se de alguém do grupo que é
personificado em algum texto, transformado em
personagem através da narrativa de um episódio
vivenciado e redimensionado.

Não há autorias fixas: ora os indivíduos atuam como


Foto 1 – Capas dos fanzines PalavraDesordem, segunda e quarta autores-editores e narradores, ora somente como autores-
edições. narradores, às vezes apenas como autores-personagens. E
às vezes os membros do grupo são apenas leitores.
Esses indivíduos, nesses fanzines, assumem uma
3 De modo algum, portanto, a designação de autor-narrador se rela-
função de autoria que parece diluir-se em várias formas
ciona exclusivamente a textos de tipo narrativo (isto é, aqueles que
de exercício discursivo, já que por autor se pode com- apresentam uma estrutura específica marcada por elementos como
preender não exatamente o indivíduo que pronunciou ou personagens, desenvolvimento temporal de ações, espaço, foco nar-
escreveu um texto, mas “o princípio de agrupamento do rativo etc.). Trata-se, tão-somente, da designação que preferi tomar
discurso, como unidade e origem de suas significações, para nomear a função de “enunciador” ou “contador”.

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cellina rodrigues muniz na desordem da palavra: fanzines e a escrita de si

Esse exercício, assim, aponta para a questão das Para ilustrar essas considerações, tomo um exem-
identificações múltiplas, segundo propõe toda uma ­lógica plo dentre os muitos que se apresentam nos fanzines des-
das rupturas e descontinuidades em geral (FOUCAULT, se grupo que mostram uma (re)invenção de si através do
1995, 3-20), ao contrário da concepção de identidade exercício autoral.
una e essencial. No caso da autoria dessa escritura es- Na segunda edição do PalavraDesordem, de outu-
pecífica, isso se materializa, conforme já indiquei, na bro-novembro de 2002, lê-se um texto assinado por Cava-
forma de pseudônimos. Os pseudônimos demonstram a leiro das Tormentas, “O Dia em que o Magá Tentou Sair
condição paratópica da autoria literária e, obviamente, do Benfica”:
não são nenhuma novidade na escrita poética.4 Seu uso
nessa escritura, por um lado, demonstra a filiação a uma Quero lhes apresentar uma figura curiosíssima
tradição do campo literário e, por outro, evidencia que a que mora aqui pelas bandas do Benfica. Conhe-
subjetividade não se reduz nem à individualidade nem à cido como Magá, esse a quem me refiro está na
eminência de imortalizar-se como um tipo popular
autoria, e que cada um de nós indivíduos podemos mes-
do bairro.
mo ser continuamente reinventados, moldados em vários,
atravessados simultaneamente por condicionamentos his- Essas três formas de si – Amanay Parangaba, Cava-
tóricos e culturais, atavismos genéticos, instintos, desejos leiro das Tormentas e Magá – são as representações que
fortuitos e acasos imprevistos. os indivíduos fazem deles próprios e dos colegas, formas
A invenção de subjetividades materializada nesses de si assumidas através do exercício das autorias de edi-
escritos, através do exercício autoral, permite pensar a es- tor, narrador e personagem, respectivamente.
crita de fanzines dentro de uma “cultura de si”. Conforme O mesmo autor-personagem Magá aparece em ou-
demonstrou Foucault, a cultura de si remonta aos dois tros inúmeros textos, como, por exemplo, “A peleja de
primeiros séculos da cristandade. Mas, se o cuidado de Magá X Come-Gesso na serra de Guaramiranga”. ­Segundo
si então se apoiava, sobretudo, no princípio de “anulação o indivíduo que se identifica como Magá nesses escritos,
de si”, fosse pelas mortificações do corpo, fosse pela ver- em depoimento informal, trata-se de um relato sobre um
balização dos pensamentos (FOUCAULT, 2008), a escrita acampamento na serra durante um carnaval.
desses fanzines se ampara, principalmente, num caráter De acordo com ele, um aluno da UECE, do CH da
de paixão: a partir do que vivenciam “na pele”, em pe- UECE tomou chá de zabumba e tava comendo gesso lá.
quenos ritos locais que vão desde o prazer do riso que Daí, prossegue em seu depoimento: eu fiquei indignado
partilham entre si à dor da crueldade que impingem uns porque ele tava comendo gesso e dizia que era filho do
aos outros, os indivíduos metamorfoseiam-se em autores, cão. Esse encontro foi registrado por Amanay Parangaba
personagens e leitores para narrar, ler e interpretar a si (aí também na condição de autor-narrador) em crônica
mesmos através de seus escritos. publicada no PalavraDesordem de número 4, em que
se lê:
4 Para Maingueneau (2001), a paratopia diz respeito à condição de
Adormeci ouvindo os gritos de Magá, sozinho no
difícil localização social do indivíduo que é também autor literário: “A
pertinência ao campo literário não é, portanto, a ausência de qualquer meio do mato: “Eu sou de Ogum, tu é de Ogum?”
lugar, mas antes uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar, [...] E imaginem os outros quatro dias, quando
uma localização parasitária, que vive da própria impossibilidade de chegou um reforço moral considerável para Magá:
se estabilizar.” (MAINGUENEAU, 2001, p. 28). Os Cavaleiros das Tormentas!!

22 23
cellina rodrigues muniz NA DESORDEM DA PALAVRA: FANzINES E A ESCRITA DE SI

O que o caso do PalavraDesordem mostra é que os


A vivência de/em ambientes criativamente ricos são ne-
fanzines podem ser compreendidos como um canal para
cessários e imprescindíveis para o surgimento e desenvol-
vimento dos potenciais artísticos latentes nas/das pesso- que episódios vividos sejam reconfigurados como episó-
as. Em lugares instigantes – “ocupando e transformando dios narrados, em que os próprios colegas do grupo e os
espaços aparentemente estabelecidos em suas funções” acontecimentos vivenciados por eles são o cerne de seus
– a nossa criação surge com uma maior liberdade e inten- escritos. Ao exercerem a função de autores-editores, au-
sidade (ins-piração), isso nos trará uma vivência prática tores-narradores e autores-personagens de seus próprios
do que seja a arte decisiva no nascer de novas gerações fanzines, refletindo e escrevendo sobre suas aventuras e
de pessoas com uma visão desta una à vida cotidiana, ou desventuras particulares pelo Benfica e pelo mundo, esses
seja, não-artistas, mas pessoas livres para viver criando.
indivíduos criam para si uma outra existência na narrativa
Dessa vez custou, mas finalmente saiu... estávamos mui-
to ocupados em VIVER da forma mais ousada e arriscada de suas experiências:
possível! Contra hierarquias, preconceitos e toda forma
Somente na narração do que nos tem acontecido
de fascismo cotidiano, mais uma vez, contamos os nos-
no caminho (e do que nos pode acontecer) e do
sos causos. Coletivos de contos e escritos afins, compila-
que temos sido no que nos tem acontecido (e de
do entre dezembro de 2002 e agosto de 2003, na cidade
quem podemos ser no que pode acontecer), o
de Fortaleza, Ceará, Benfica... Se pensavam que tinha
que nos acontece e quem somos têm um sentido.
acabado... Agora começou!!!
(LARROSA, 1998, p. 469. Tradução minha).

Um Esboço de Conclusão...

Se por um lado, como sujeitos, somos seres con-


dicionados historicamente, determinados por amplas
formas de sujeição (das línguas, dos sistemas de pensa-
mento, das culturas, das ideologias, das estruturas e dis-
positivos diversos, das formações discursivas etc.), por
outro lado, como indivíduos, somos também seres sin-
gulares, imanentes, finitos, com nossas peculiaridades e
talentos dispostos ao acaso e aos riscos da vida. Essa vida
que, convergida em certos encontros, pode nos afetar de
um modo especial e remodelar nossas próprias formas de
ser e estar no mundo.
A subjetividade, assim, pode ser compreendida
como uma constituição tensa que se dá tanto pelo exer-
cício de práticas de sujeição quanto de práticas de re-
Figura 1: Representação de C. J., outro pseudônimo de Magá, sistência. Entre a certeza do fim e o mistério do devir,
pelo próprio, que exerce, assim, as funções de narrador e per- só nos resta fabular. Entre as ordens instauradas, só nos
sonagem no fanzine editado por Amanay Parangaba. resta desordenar. A arte, de modo geral, e a escrita de

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cellina rodrigues muniz na desordem da palavra: fanzines e a escrita de si

fanzines, especificamente, podem ser pensados, assim, LUYTEN, Sonia Bilbe (Org.). Cultura pop japonesa. São
como um bom modo de lidar com tanta tensão, como Paulo: Hedra, 2005.
pensa Nietzsche (1996): FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução
“A vida deve infundir confiança”: o problema, de Luiz Felipe Baeta Neves. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense
assim colocado, é descomunal. Para resolvê-lo Universitária, 1995.
o homem tem de ser mentiroso já por natureza, ______. O que é um autor? 3. ed. Tradução de António
precisa, mais do que qualquer outra coisa, ser Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Portugal, 1992.
artista. (NIETZSCHE, 1996, p. 49).
______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga
A criação artística expressa através da autoria do de Almeida Sampaio. 7. ed. São Paulo: Edições Loyola,
fanzine PalavraDesordem permite a expressão de sujeitos 2001. (Coleção Leituras Filosóficas).
da experiência, em uma “reflexão do sujeito sobre si mes- ______. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Tra-
mo como sujeito passional.” (LARROSA, 2004, p. 164). dução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. 12. ed.
Isso implica uma subjetividade baseada na capacidade
Rio de Janeiro: Edições Graal, 2007.
de sermos afetados por algo exterior e ressignificar a nós
mesmos com paixão, através do que nos passa, nos acon- ______. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Tradu-
tece, nos toca (LARROSA, 2004): ção de Maria Thereza da Costa Albuquerque. 8. ed. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 2005.
O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. Do
______. As técnicas de si. Tradução de Wanderson Flor do
ponto de vista da experiência, o importante não é
nem a posição (nossa maneira de pôr-nos), nem Nascimento e Karla Neves. Disponível em: <http://www.
a o-posição (nossa maneira de opor-nos), nem a unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/> Acesso em: 17 nov. 2008.
im-posição (nossa maneira de impor-nos), nem a MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literá-
pro-posição (nossa maneira de propor-nos), mas a ria. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Martins
exposição, nossa maneira de ex-por-nos, com tudo
Fontes, 2001.
o que isso tem vulnerabilidade e risco (p. 161).
MAGALHÃES, Henrique. A nova onda dos fanzines. João
O fanzine, através do que evidencia o exemplo do Pessoa: Marca de Fantasia, 2004.
PalavraDesordem, pode ser compreendido, então, como ______. O que é fanzine. São Paulo: Brasiliense, 1993
uma unidade expressiva que estabelece a íntima relação (Coleção Primeiros Passos).
entre o que é narrado e o que é vivido, uma ponte dio-
nisíaca para que, como diria Nietzsche (2006), o homem MEIRELES, Fernanda. Zines Yoyô: uma experiência ins-
ultrapasse a condição de artista, tornando-se a si próprio tintiva em arte-educação. Monografia de Especialização
uma obra de arte. em Arte-Educação. Fortaleza: Centro Federal de Educação
Tecnológica do Ceará, 2008.
Referências Bibliográficas LARROSA, Jorge. La experiência de la lectura: estudios
sobre literatura e formación. 2. ed. Barcelona: Editorial
Laertes, 1998.
ANDRAUS, Gazy. O fanzine de HQ, importante veícu-
lo de comunicação alternativa imagético-informacional: ______. Linguagem e educação depois de Babel. Tradu-
sua gênese e seus gêneros (e a influência do mangá). In: ção de Cynthia Farina. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

26 27
cellina rodrigues muniz

MUNIZ, Cellina Rodrigues. A experiência pedagógica de Dos Zines aos Biograficzines: compartilhar
uma escritura dionisíaca. Tese (Doutorado em Educação). narrativas de vida e formação com
Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2009. imagens, criatividade e autoria
NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Tradução de
Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, Elydio dos Santos Neto
1996. (Coleção Os Pensadores).
______. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessi-
mismo. 2. ed. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2006.

Fanzines

PalavraDesordem. Número 2. Fortaleza: 2002.


PalavraDesordem. Número 4. Fortaleza: 2004. Gazy Andraus
PalavraDesordem. Número 8. Fortaleza: 2005.
Introdução

O Biograficzine é um fanzine que tem por objeto as


histórias de vida: contar experiências de vida e formação
tendo como objetivos principais o autoconhecimento, a
partilha de narrativas pessoais com outros, o trabalho com
as imagens e o desenvolvimento de autoralidade. Esta ex-
periência tem sido vivida no Mestrado em Educação da
Universidade Metodista de São Paulo, pelo Elydio, com a
participação e o auxílio fundamental do Gazy. Já são dois
semestres nos quais a experiência foi oferecida: a primeira
vez, no primeiro semestre de 2008, no Seminário Temá-
tico Formação de Educadores, Narrativas Autobiográficas
e Histórias em Quadrinhos; a segunda vez, no primeiro
semestre de 2009, no Seminário Temático Cultura Visual
e Formação de Educadores: um estudo a partir das histó-
rias em quadrinhos.

Formação de Professores, Visualidade e Fanzinagem

Houve um tempo em que se acreditava que para


formar bem um professor/a era suficiente o domínio inte-

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gazy andraus • elydio dos santos neto dos zines aos biograficzines: compartilhar narrativas de vida
e formação com imagens, criatividade e autoria

lectual do conteúdo que ele/a iria ministrar, além, é claro, rias pessoais, desde nossa infância, uma experiência mui-
do conhecimento de algumas técnicas didáticas. De fato, to forte com as imagens, de modo especial, a experiência
durante um tempo em que as relações educativas estive- com as imagens no universo das histórias em quadrinhos.1
ram marcadas pela formalidade e, em muitos casos, pela Nossa formação e, posteriormente, nossos estudos acadê-
atitude burocrática tanto do professor/a como dos alunos/ micos nos levaram a compreender o ser humano como
as, talvez isso tenha sido suficiente, mas hoje, com cer- um ser imagético. Nossos mundos, objetivo e subjetivo,
teza, embora sejam saberes muito importantes não são, dependem fundamentalmente das imagens: daquelas que
contudo, suficientes. produzimos e daquelas que consumimos.
Vivemos um tempo em que está mais claro, para Por fim, vimos na experiência da fanzinagem uma
nós professores/as, que a construção do conhecimento possibilidade excelente para o exercício da criação, da
se faz no contexto da relação pedagógica, isto é, no en- expressão da própria forma de ver o mundo e também
contro entre o professor/a como pessoa e os/as alunos/as para o desenvolvimento da capacidade de autoria. Vimos
como pessoas. Percebeu-se a limitação das abordagens ainda a oportunidade de resgatar a experiência de com-
que privilegiavam ora o polo professor/a (o/a professor/a partilhar narrativas de histórias de vida e de formação,
como centro), ora o polo aluno/a (o/a aluno/a como cen- num momento em que, apesar de tantos recursos tecno-
tro). A construção do conhecimento se faz na relação, no lógicos possibilitarem uma comunicação mais fácil, assis-
encontro e, portanto, além do conhecimento intelectual timos a muitas pessoas viverem o drama da solidão.
crítico, exige também afetividade, diálogo e escuta sen- A seguir explicitamos, desde sua origem, porque o
sível. Estas exigências requerem do/a professor/a atitudes fanzine serviu a este propósito.
que tendem sempre mais para a autenticidade, para a
criatividade, para autoralidade e para a autonomia, afinal,
apesar de preparar-se antecipadamente para suas aulas,
A Origem Autoral dos Fanzines e suas Linguagens
Criativas e Criadoras
elas acontecerão, de fato, na atualidade de cada novo en-
contro com aquele grupo de alunos/as que, a cada dia,
traz desafios novos. Se o professor/a não tiver autonomia O que move o ser humano em sua busca por ex-
e capacidade de autoria não irá conseguir responder de plicações sobre a própria vida e suas produções culturais?
forma positiva a estas exigências. Uma das teorias possíveis diz que o homem, conforme
E como desenvolver capacidade dialogal, escuta foi se destacando da natureza na evolução de um ser pri-
sensível, autonomia e autoralidade sem autoconhecimen- mitivo a sapiens, começou a perceber uma autoconsciên-
to? Sem rever, nas raízes da própria trajetória formativa, cia que passou a perturbá-lo, eclodindo uma necessidade
as tendências educativas que estabeleceram as bases da gregária de partilhar sua busca, recriando elementos que
postura de hoje? Sem partilhar estas experiências com ou- lhe revivessem este sentimento, que se define como uma
tros/as colegas e, na troca, aprender com o/a outro/a? “morte”, uma separação da natureza. É simples entender:
um animal, em geral, é conectado à natureza de forma
Estas foram as nossas primeiras motivações que
nos levaram à experiência com o biograficzine. Mas a ela,
1 Gazy Andraus relata, com o trabalho da memória e de forma reflexi-
outras, igualmente importantes, foram se agregando.
va, sua história de vida com as histórias em quadrinhos, desde a sua
Outra, bastante importante, está vinculada ao fato infância até os dias de hoje no site IBAC – Instituto Brasileiro de Arte
de que nós, autores deste texto, trazemos em nossas histó- e Cultura: http://www.ibacbr.com.br/?dir=artigos&pag=013

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gazy andraus • elydio dos santos neto dos zines aos biograficzines: compartilhar narrativas de vida
e formação com imagens, criatividade e autoria

intuitiva, mas o homem possui vontade e inteligência que sejam ilustrações, desenhos, poesias e/ou histórias em
o fazem inquirir acerca de seu destino. Sentir dor é fa- quadrinhos, ao passo que os fanzines são revistas que
cultado aos animais e ao homem, mas ter consciência da publicam matérias e artigos teóricos acerca de assuntos
dor, isto é diferente! Porém, o mais imperioso é o senti- variados, quer música, ficção científica, cinema, anarquia
mento interno de uma busca do conhecer e de explorar e história em quadrinhos. Embora haja essa distinção, no
os enigmas da vida: de onde viemos, o que somos e para mundo todo se convencionou chamar de fanzines mesmo
onde seguiremos? Estas questões, segundo Costa (2002), as revistas alternativas, já que o espírito da publicação
criaram subjetivismos no espírito em humanização, que fraterna e criativa era (e ainda é) o essencial que permea­
precisava compartilhá-los a fim de (re)solver o “enigma”! va (e permeia) tais edições. De lá para cá, o fanzinato4
Assim é que as manifestações todas (artísticas e científicas) se espalhou pelo mundo tornando-se, em muitos países
fazem parte desta saga humana que precisa desvendar o como nos EUA, França e Japão, não só meio de ­escoar
mistério da existência. Tal investigação se converteu nas ideias e expressões artísticas de autores ou amadores,
realizações que temos feito (“boas” ou “más”, pacíficas como também laboratórios de desenvolvimento de ideias
ou belicosas). e até “portifólios” que permitem a editoras descobrirem
Assim, deste ponto de vista, os fanzines têm uma novos talentos.
história longa que vai das actas diurnas romanas, passando O alcance zineiro aumentou nas décadas de 1960
pelos menestréis e bardos medievais, trabalhos do artista e, principalmente, 1970, graças à insurgência do movi-
do século XVIII William Blake, bem como as cartas lidas mento punk inglês, que divulgava seus libelos anarquistas
e copiadas no Renascimento, encontrando os primórdios e shows punks, disseminando os fanzines cada vez mais
dos jornais e, por fim, chegando à criação de jornais, re- pelo mundo, ganhando notoriedade e volume. Enquan-
vistas e fotocopiadoras que baratearam e facilitaram esse to isso ocorria, Robert Crumb, considerado um dos pri-
desenvolvimento, até culminar nos fanzines (ou zines), meiros a autopublicar suas histórias em quadrinhos e a
mídias paratópicas2 e revistas independentes. vendê-las de mão em mão nos EUA, em fins da década de
Contudo, a gênese oficial dos zines data de 1930, 1960, tornou-se um dos pioneiros do chamado “fanzine”
nos EUA, graças a fãs da ficção científica, que escreviam de quadrinhos. No Brasil, em 12 de outubro de 1965, na
boletins de informação e artigos sobre esse gênero. Seu ­cidade de Piracicaba, Edson Rontani criou o primeiro fan-
batismo nominal se deu em 1941, por Russ Chauvenet, zine brasileiro chamado “Ficção” rodado em mimeógrafo,
que aglutinou duas palavras inglesas (fan + magazine) que abordava notícias e críticas sobre os quadrinhos (em
numa mistura criativa, resultando no neologismo original especial sobre Alex Raymond, criador de Flash Gordon).5
usado no mundo inteiro, e que foi até nome de programa Porém, é de se ressaltar algo que pouco tem sido
cultural na televisão brasileira.3 observado nos estudos acerca dos fanzines: a vontade de
Os próprios fanzines são ambíguos, conforme ex-
pôs Magalhães (1993), que os distingue das revistas alter- 4 Atualmente, a fanzinagem pode ser tida como “fanzineira”, e o
nativas: estas trazem em suas páginas formas artísticas, equivalente ao termo inglês fandom pode ser traduzido em português
como fanzinato.
2 Zavan (2004) esclarece que “paratopia” seria um lugar não definido, 5 Defende-se aqui a seguinte posição: já que há uma data específica

não estabilizado, no âmbito da sociedade. mundial em comemoração aos fanzines, o dia 29 de abril, propõe-se
3 O programa Fanzine da TV Cultura, que foi ao ar de 1992 a 1994, a inclusão do Dia Nacional dos Fanzines, em homenagem a Edson
apresentado por Marcelo Rubens Paiva. Rontani, que poderia ser no dia 12 de outubro.

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gazy andraus • elydio dos santos neto dos zines aos biograficzines: compartilhar narrativas de vida
e formação com imagens, criatividade e autoria

se expressar e criar um livro ou revista autoral (pessoal) espirituais e angelicais na infância, criava livros pessoais
foi bem marcante no século XVIII com o artista William com gravuras pintadas à mão, numa mistura de imagem e
Blake, que desenhava, pintava e criava gravuras, bem texto que lembra livros ilustrados atuais (desenho 1). Des-
como escrevia textos em tons místicos. É dele, por exem- sa maneira, pela proximidade de William Blake com o
plo, O casamento entre o Céu e o Inferno, e o Livro de espírito dos fanzineiros, já que ambos confeccionam suas
Urizen, tendo influenciado muitos outros, como Gibran próprias edições, arriscamos colocá-lo como o primeiro
Khalil Gibran, o vocalista Bruce Dickinson (que criou um fanzineiro da história humana.
cd chamado “The chemical wedding”, utilizando pinturas Durante as décadas de 1970 e 1980, os fanzines se
e trechos de poemas de Blake), Alan Moore (que já ren- alastraram, e passaram da tecnologia de mimeógrafos para
deu sua homenagem a ele no álbum “Do Inferno”) e ou- a de fotocopiadoras, cujo barateamento impulsionou-os
tros.6 Mas Blake, transitando entre a literatura e a arte ima- até o fim da década de 1990, quando começaram a ser
gética (tal qual nossos quadrinhistas), afora ter tido visões mais editados em gráficas, com papel de melhor quali-
dade e capas coloridas. Atualmente os fanzines também
migraram para a virtualidade dos computadores, pela
Internet, espalhando-se e recriando-se em sites e blogs.
Porém, é de se ressaltar que, no Brasil, especialmente,
os zines contribuíram para a resistência cultural e cria-
tiva dos autores de HQ, que não tendo como publicar
oficialmente suas histórias em quadrinhos, devido a um
mercado instável e que dava preferência ao material es-
trangeiro, escoavam sua produção no fanzinato.

O Fanzine como Mídia Incentivadora da Criatividade

Apesar da versatilidade formal e de conteúdo dos


fanzines, que favorecem um processamento criativo van-
tajoso aos seus criadores e leitores, são pouco conheci-
dos pela mídia em geral, e por muitos educadores. Zavan
(2004) percebeu a importância dos zines, já que ocupam
um terreno paratópico, ou seja, que está em “paralelo” à
oficialidade da editoração de livros e revistas, contribuin-
do como um espaço para as pessoas se autopublicarem,
independente de mercado ou permissões. Isto possibilita
que muitos não se ressintam de expor suas ideias e ex-
Desenho 1: William Blake em O livro de Jó. Raine: 1970, p. 187. pressões, impulsionando suas criatividades. Outro aspec-
to pouco conhecido concerne ao impacto que o fanzine
6Gazy Andraus criou uma HQ intitulada “Hurizen” com base na pode causar na psique humana: tanto aos que os leem,
personagem literária-imagética de William Blake. como aos que produzem, já que há uma variedade incrí-

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gazy andraus • elydio dos santos neto dos zines aos biograficzines: compartilhar narrativas de vida
e formação com imagens, criatividade e autoria

vel de formatos (desde minúsculos a maiores que jornais), dependendo do tipo de ações e pensamentos que o ser
bem como temas, gêneros e estética, muitas vezes de van- humano deflagra (Andraus, 2006). Nesse ponto, a cao-
guarda (foto. 1). ticidade criativa nos formatos e temas (além da visualida-
de e imagética) dos zines, incentiva o hemisfério direito,
como o fazem as histórias em quadrinhos e imagens em
geral.

Neocortical Límbico
Esquerdo Direito
Lógico Intuitivo

Reptílico
Central
Ação Prática

Figura 1 – Cérebro trino de De Gregori (1999-p24)

Foto. 2 – Fanzines de vários formatos e temas. Assim, a leitura, por exemplo, de imagens em his-
tórias em quadrinhos (ou ideogramas chineses) ativam
áreas do hemisfério direito do cérebro, distintamente
De certa maneira, o zine representa uma materiali-
da leitura estrita dos fonemas e dos textos lineares car-
zação de uma premência mental que parte do hemisfério
tesianos, principalmente. As revistas e livros já têm for-
direito cerebral (o criativo), o qual busca uma interação
matações padronizadas, que possivelmente não trazem
com o hemisfério esquerdo (que explica e organiza as
muitas novidades à mente humana, em contraponto aos
ideias criativas), em que ambos se conectam à porção
formatos diferenciados e “caóticos” dos zines, como se
central reptiliana (responsável pelo pragmatismo), con-
viu. O fanzine se torna, assim, preponderante, pois supre
fluindo numa conjunção triádica necessária a um melhor
a lacuna não incentivada pelos sistemas sociais vigentes,
funcionamento cerebral e mental, de acordo com a teoria
que pregam a “oficialidade” cartesiana, obedecendo mais
de De Gregori (1999). Para este autor, a utilização pro-
aos ditames (e)ditatoriais e educacionais, minimizando as
porcional das três vias traria um melhor equilíbrio à vida
possibilidades criativas.
humana, já que ocorre um mau uso desproporcionado
dos hemisférios (Figura 1). Estas assertivas são corrobora- Nos itens seguintes, veremos como os fanzines es-
das pelos estudos atuais, graças à tomografia computado- tão sendo usados em cursos da área de educação e peda-
rizada, que verificam as áreas e alocações que se ativam gogia, especialmente no mestrado, de maneira criativa e

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gazy andraus • elydio dos santos neto dos zines aos biograficzines: compartilhar narrativas de vida
e formação com imagens, criatividade e autoria

construtiva. A experiência que trazemos está ligada, de elementos teóricos e metodológicos básicos que nos guia-
modo especial, ao trabalho com as histórias de vida. ram no trabalho com histórias de vida. Também Paulo
Freire (1982, 1992) nos inspirou, seja por conta de sua
Histórias de Vida, Formação Humana e Formação de compreensão do ser humano como ser histórico e inaca-
Professores bado, seja pelo fato de, em toda sua obra, sempre tomar
como referência a própria história e experiência vivida. O
tempo todo esteve presente em nós a sua fala explicita-
Do ponto de vista da formação humana em ge- dora da necessidade de retomarmos, permanentemente,
ral, isto é, do complexo processo de constituição de nós nossas experiências e histórias de vida: “Só somos porque
mesmos como seres humanos, individuais e coletivos, estamos sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para
este processo nos sugere muitas necessidades. Quere- ser.” (Freire, 2003, p.33).
mos destacar duas: a primeira, a necessidade de resgatar
nossas histórias de vida e, com elas, a nossa capacida-
de de viver conscientemente experiências significativas O Biograficzine e seu Processo de Construção com os
para nossa própria constituição como seres humanos; a Mestrandos
segunda, retomar a prática de narrar e compartilhar nos-
sas experiências vividas. Parece-nos que aí estão duas Como já dissemos anteriormente, o Biograficzine é
perspectivas que podem nos auxiliar a viver nosso tempo um fanzine que une as duas necessidades formativas que
histórico, sem perdermos a capacidade de avançarmos destacamos acima. Retomar a trajetória formativa pessoal,
com o novo que tem sido produzido, mas também sem com a provocação da pergunta: Como me tornei o ser
perdermos o contato conosco e sem abrirmos mão da humano profissional que sou hoje? E partilhar, utilizan-
prática da partilha de nossas experiências, o que tem sido do imagens e a linguagem das histórias em quadrinhos,
uma estratégia interessante de aprendizagem, desde os a reflexão sobre a própria trajetória com outras pessoas
primórdios humanos. envolvidas no mesmo tipo de processo formativo.
Se isto é assim para o processo de desenvolvimen- Como foi desenvolvido num ambiente de mestra-
to humano em geral, entendemos que precisa ser assim do em educação, foi necessário estar atento àquilo que
também no processo de formação, inicial e continuada, são objetivos deste segmento formativo: a formação do
de professores/as, profissionais com grande responsabili- pesquisador na área da educação e o aperfeiçoamento de
dade em diferentes etapas formativas dos seres humanos, sua ação como docente do ensino superior. Para atender
da infância à vida adulta. É vital que professores/as res- a todas estas necessidades, o trabalho foi organizado por
pondam a si mesmos/as a pergunta: Como cheguei a ser etapas, ao longo das quais foi sendo construída, de ma-
o profissional que sou hoje? Como construí aquilo que neira crítica e reflexiva, a trajetória formativa e a elabora-
penso hoje sobre educação? A partir deste profissional ção do biograficzine. As etapas foram as seguintes:
em que me tornei, que tipo de profissional quero seguir
sendo? E, além disso, é importante também que estes pro- • Etapa 1- Problematização da formação dos pro-
fessores/as recuperem diferentes maneiras de narrar e de fessores/as no contexto de hoje;
compartilhar estas respostas com outros/as colegas. • Etapa 2- Narrativas Autobiográficas: fundamen-
Encontramos nas obras de Antonio Nóvoa (1988), tos epistemológico-políticos e possibilidades
Christine Josso (1988, 2004) e Franco Ferrarotti (1988) os metodológicas. Tarefa: Os mestrandos deveriam

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gazy andraus • elydio dos santos neto dos zines aos biograficzines: compartilhar narrativas de vida
e formação com imagens, criatividade e autoria

elaborar um texto com a própria trajetória for-


mativa;
• Etapa 3- Cultura Visual, desafios para a educação
e formação de educadores;
• Etapa 4- Histórias em Quadrinhos: razão e
sensibilidade na expressão de narrativas auto-
biográficas;
• Etapa 5- Oficina de Fanzines ministrada por Gazy
Andraus;
• Etapa 6- Construindo um biograficzine que
expresse minha reflexão sobre minha trajetória
formativa;
• Etapa Final: Partilha fanzineira dos ­biograficzines.

A Oficina de Fanzines de Gazy Andraus no Mestrado


em Educação

Foto 2 – Biograficzines, resultado das duas oficinas do mestrado.


A despeito de muitos educadores que desconhe-
cem os zines ou então o veem de forma preconceituosa
e negativa, há outros que, sabendo do valor que têm os
fanzines, promovem uma aproximação benéfica aos uni-
versitários em geral e discentes de pós-graduação. Elydio,
ao utilizar os quadrinhos e os fanzines em seu trabalho
de formação com mestrandos, de maneira a ampliar o
alcance e a criatividade dos educadores-pesquisadores,
criou os biograficzines (fig. 4) como parte de sua estraté-
gia didática, numa tentativa de favorecer a cada aluno se
conhecer melhor e a seu potencial criativo, muitas vezes
bloqueado pelos sistemas que nos engessam. Como con-
vidado a auxiliar nos biograficzines, Gazy proporcionou
duas oficinas, em que cada um dos mestrandos criava seu
próprio fanzine autobiográfico. De forma didática, Gazy
Desenho 2 – Capa e última capa do Biograficzine de Elydio.
buscou explicitar o que são fanzines, dando um histórico
sucinto via PowerPoint e amostragem, trazendo-lhes os
zines e sua riqueza temática e formal. Depois, passamos Gazy tentou, assim, mostrar aos alunos (que, em
a elaborar um fanzine, cada um (inclusive Gazy e Elydio), geral, já são professores) a riqueza que é trabalhar com
como resultante do apreendido, confraternizando-nos e os zines, as possibilidades interativas, interdisciplinares,
trocando-os entre nós. além do rico processo psíquico que se dá ao colocarem as
“mãos na massa”, já que o trabalho também pede ­bastante

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gazy andraus • elydio dos santos neto dos zines aos biograficzines: compartilhar narrativas de vida
e formação com imagens, criatividade e autoria

intervenção manual. Ao mesmo tempo, arriscam fazer material visual, cheio de concepções, história,
montagens, mudar diagramações, criar conceitos (neolo- etc. Essa construção gerou mudança e possibili-
gismos), esboçar desenhos, muitas vezes percebendo que tou conhecer-me um pouco mais. (Resposta da
sentiam falta do ato de desenhar, embora nem se dessem Alessandra). Informação verbal.
conta disso. Gazy também lhes explicou seu próprio pro- Ademais, o fanzine aproximava uns dos outros,
cesso criativo, que se dá sob a audição de músicas, o que exatamente como ocorre no fanzinato:
modifica o processamento mental, já que os sons interfe-
rem nos seus hemisférios cerebrais, alterando um pouco Como você avaliou o trabalho prático de realizar
sua consciência, tornando-a mais criativa. um fanzine a partir de seu relato ­autobiográfico?
Resposta: Percebi que tenho uma imensa difi-
culdade em desenhar (só me dei conta disso ao
Resultados fazer o fanzine) por isso fui garimpar umas figuras
na Internet. A elaboração do trabalho foi muito
Alguns resultados podem ser apontados a partir gostosa, a partir do momento que decidi o tema,
de nossa observação sobre as oficinas e, também, dos a história toda se delineou, inclusive os diálogos.
questionários de avaliação elaborados por Elydio. Nas O trabalho prático, na minha avaliação foi ótimo,
pois possibilitou que eu contasse parte de minha
oficinas, percebemos a motivação dos alunos no ato de
história e também conhecesse parte da história do
buscar conteúdos novos para se expressarem, bem como grupo. Reconheço que após este trabalho houve
dificuldades relatadas por eles para fazer algo tão distinto uma maior proximidade entre os participantes.
do habitual (um fanzine, e que ainda contenha uma ava- (Resposta da Neli). Informação verbal.
liação pessoal de suas próprias vidas).
Por fim, viam que os fanzines auxiliavam muito no
Muitos nos relatavam que se assustavam, ao final,
processamento criativo, mexendo em suas memórias:
com os resultados obtidos, e que não julgavam que conse-
guiriam realizar tal tarefa, pois, diziam eles, não pensavam O que você considerou mais difícil e problemá-
terem o “dom” artístico. Com isso percebiam que não era tico? Por que?
um dom, pois rememorando as explicações teóricas do Resposta: A confecção do autobiograficzine onde
Gazy, lembravam que havia a questão do estímulo ao fun- tive que rememorar coisas que há muito havia
cionamento cerebral, e esses “exercícios” com zines nada escondido em algum cofre no meu cérebro. Não
foi fácil achar a combinação para abri-lo, depois
mais eram que permitir-lhes usarem tal capacidade que
de algum tempo a gente esquece que esqueceu
simplesmente estava “desativada” por falta de estímulo. e é muito difícil reviver certas lembranças (mas
Ainda, perceberam que o manufaturar dos zines também é prazeroso). (Resposta da Neli) Infor-
lhes trazia um espelhamento, um reconhecimento de si mação verbal.
mesmos, conforme respostas dos questionários devolvi-
A maioria dos resultados foi interessante e sui gene-
das ao Elydio, tais como a seguinte:
ris, como um fanzine de uma aluna que simula sua antiga
O que você considerou mais difícil e problemá- caderneta, aludindo à questão da educação, do padrão
tico? Por quê? escolar, e da “quebra” por se colocar a si mesma num
Resposta: Acredito que durante o processo a maior fanzine, enquanto outra estampa seu RG na capa (Foto 3).
dificuldade foi reelaborar minha própria história Mais uma aluna, Helena, trabalhou sua vida em forma de
e articulá-la de forma criativa, para produzir um roteiro de HQ, enquanto seu irmão, José Luiz, que não

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gazy andraus • elydio dos santos neto DOS zINES AOS BIOGRAFICzINES: COMPARTILHAR NARRATIVAS DE VIDA
E FORMAçÃO COM IMAGENS, CRIATIVIDADE E AUTORIA

estava no curso, desenhou sua história (fig. 6). hemisfério direito cerebral), e avançar em seu processo
de humanização.
É interessante ressaltar que os zines não têm a ló-
gica comercial, pois não visam lucro, e estimulam a ami-
zade, a fraternidade, a troca de fanzines, os laços que se
ampliam no mundo inteiro (antes pelos correios, e agora
pela Internet). Estas qualidades dos zines, ou dos biogra-
ficzines, refletem-se onde quer que eles sejam vistos, e
mais ainda, utilizados, funcionando como excelente
agente que facilita o autoconhecimento, e a formação,
sensível e estética, de um/a profissional que tem grande
poder de intervenção social e que, portanto, pode ajudar
a criar um mundo com mais beleza, capacidade de justiça
e solidariedade.
Foto 3 – Acima: fanzine de Patrícia que simula caderneta escolar.

Desenho 3 – zine de Camila.

Considerações Finais
Desenho 4 – Capa e página interna do biograficzine de Helena com
Os Biograficzines, assim, podem produzir um arte por José Luiz
efeito transformador, que leva à noção paradigmática de
um ensino estanque para outro que defende o autoco-
nhecimento como premissa fundamental da estruturação Referências Bibliográficas
de um professor/a (e de um ser humano). Os fanzines,
por serem “livres” de amarras de padrões, são também ANDRAUS, Gazy. A independente escrita-imagética
“libertários”, por permitirem uma construção nova, em caótico-organizacional dos fanzines: para uma leitura/
que o autor se percebe capaz de criar (estimulando seu feitura autoral criativa e pluriforme. Trabalho apresentado

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gazy andraus • elydio dos santos neto dos zines aos biograficzines: compartilhar narrativas de vida
e formação com imagens, criatividade e autoria

ao Eixo 14 – Escritas, Imagens e Criação: Diferir no 17º. MAGALHÃES, Henrique. O que é fanzine. São Paulo:
COLE. Campinas, julho de 2009. Brasiliense, 1993.
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tez, 2004.

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subjetividades de papel

Subjetividades de Papel mento, e não de maneira linearmente evolutiva ao longo


do tempo.” (FAÉ, 2004, p.410).
Tiago Régis de Lima Cartografar é formular mapas, conectando os pon-
Luciana Lobo Miranda tos, as linhas, os traçados. Sempre aberto, o mapa é “co-
nectável em todas as suas dimensões, desmontável, rever-
e isto então? isto não é uma simples publicação. sível, suscetível de receber modificações constantemente.”
isto é injúria, calúnia difamação de caráter. isto (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.22). Significa compreen-
não é uma publicação, no sentido comum da der que as narrativas que compõem os mapas são parciais,
palavra. não, isto é um prolongado insulto, uma não totalizáveis, inacabadas, portanto, não constituem
cusparada na cara da arte, um pontapé no traseiro uma verdade única, pronta, fechada em si mesma.
de deus, do homem, do destino, do tempo, do
Na perspectiva cartográfica, as análises de docu-
amor, da beleza... e do que mais quiserem.
mentos e entrevistas dizem respeito a técnicas que poten-
(Henry Miller) cializam a pesquisa e as implicações do cartógrafo para
com o seu campo.2 É neste sentido que este escrito se
A leitura de um fanzine é, por vezes, um convite vale da participação em alguns encontros de zineiros, o
à leitura de um mundo usualmente não encontrado nas Zine-se, de alguns ditos de produtores de fanzines e de
revistas, jornais ou programas televisivos do dia a dia. documentos, alguns fanzines produzidos pelos entrevis-
Perscrutar essa leitura, as vidas que se espraiam em pe- tados.3 A opção pela realização das entrevistas reside na
daços de papéis xerocados e os itinerários que percorrem aposta de que a
tais mídias é deveras uma aposta política na contundência arte de contar resgata a memória para infinitos encon-
dos fanzines, como técnicas de produção de si; práticas tros que se realizam nas histórias. Por isto o dizer, o
de subjetivação que dizem de modos de relação consigo contar é uma arte do fazer, do produzir e do transfor-
e com os outros e materializadas em uma pesquisa mono- mar uma realidade que já existe em função do que
gráfica realizada na cidade de Fortaleza, em 2007.1 outrora foi falado (MAIRESSE, 2003, p.267).
Elegendo a relação dos fanzines com a cidade Trata-se, portanto, de escapar à limitação que posi-
como o recorte de análise, este artigo arrisca uma escrita ciona a fala como lugar de representação e lhe conferir o
cartográfica, entendida como um procedimento de pes- lugar de criação.
quisa que em seu fazer desconstrói a dicotomia sujeito-
2
objeto (‘sujeito’ que conhece e ‘objeto’ a ser conhecido), As implicações dizem respeito aos vínculos afetivos, políticos,
profissionais envolvidos nas situações de intervenção, seja na uni-
herança da pretensa neutralidade científica positivista. No versidade, na clínica, no hospital ou nas mais diversas instituições.
procedimento cartográfico, sujeito e objeto se imbricam Pôr em análise as implicações é pôr em análise o “sistema de lugares
num mesmo fieri, no mesmo processo. São efeitos de uma ocupados ou que se busca ocupar ou ainda do que lhe é designado,
pelo coletivo, a ocupar e os riscos decorrentes dos caminhos em
formação discursiva que emerge “em meio a um jogo de construção. A análise das implicações com as instituições em jogo
forças que se atualizam a cada nova relação, cada mo- nas situações afirma também a recusa da neutralidade do analista/
pesquisador, procurando romper com as barreiras entre sujeito que
1 Monografia intitulada ‘Subjetividades de Papel: um estudo carto- conhece e objeto a ser conhecido.” (ROCHA e AGUIAR, 2003).
3 Para a realização da monografia foram entrevistadas quatro pessoas,
gráfico dos fanzines em Fortaleza’, defendida em dezembro de 2007 zineiros com experiência de pelo menos 04 anos: Fernanda Meireles,
por Tiago Régis de Lima, no Departamento e Psicologia da UFC, e Roberta Félix, Alexandre Gomes e Jackson Júnior. Este artigo utiliza
orientada por Luciana Lobo Miranda. fragmentos de tais entrevistas.

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tiago régis de lima • luciana lobo de miranda subjetividades de papel

[En]torno das Práticas história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cul-
tura, os seres humanos tornaram-se sujeitos.” (p. 231). Ao
se opor à visão essencialista, que toma o sujeito como um
Fortaleza se destaca no Brasil como lugar de ebu- dado a priori, formula sua pesquisa em três modos de obje-
lição no que diz respeito à produção de fanzines, tivação que transformam os seres humanos em sujeitos: o
individualmente ou em grupo, chegando a espaços
campo dos saberes (arqueologia), as práticas do poder que
de educação formal e informal. (ZINCO, 2007).
divide e classifica (genealogia) e o modo como um indiví-
A frase em questão, impressa no folder de divulga- duo trabalha e pensa sobre si mesmo (ética), a subjetivação,
ção do Seminário Cabeças de Papel 2, diz de uma prática onde ele trabalha a partir do dispositivo da sexualidade.4
midiática na cidade que concentra força há alguns anos, São três dimensões irredutíveis, mas em implica-
particularmente desde a exposição de fanzines ‘Mídia Xe- ção constante, saber, poder e si. São três ‘ontolo-
rox’ realizada em 1993 pelo grupo Seres Urbanos, acon- gias’. Por que Foucault acrescenta que elas são
tecimento marcante no história dos zines em Fortaleza. históricas? Porque elas não designam condições
universais. (DELEUZE, 1991, p.121/122).
Prática esta que diz respeito ao um modo de ser,
estar, habitar o mundo. São as práticas “uma maneira Foucault opera, portanto, uma ruptura com a no-
de se relacionar consigo mesmo para se construir, para ção de sujeito moderno. Afirma que a noção de sujeito
se elaborar.” (GROS, 2006, p.128), ou seja, dizem dos está intrinsecamente ligada à noção de poder.5 “Há dois
­modos de subjetivação, perspectiva de trabalho dos úl- 4 Com noção de dispositivo Foucault (1979) tenta demarcar “um con-
timos escritos de Michel Foucault. O conceito de subje- junto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
tividade, para Foucault (2007-a, 2007-b), diz respeito ao organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
modo pelo qual o sujeito experiencia a relação consigo administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, mo-
rais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do
mesmo, perpassado por práticas, exercícios e técnicas dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes
que, por sua vez, são circunscritas em um determinado elementos.” (p. 244). Quanto ao dispositivo da sexualidade, Fraga
(2000) diz que “é um dos pontos mais significativos nas relações de
campo institucional e lugar social. poder, pois amplia as formas de regulação social pela estimulação dos
Subjetividade, aqui, não como uma substância ou corpos, intensificação dos prazeres, incitação ao discurso e formação
de conhecimentos sobre o próprio corpo” (p.131).
algo essencial, transcendental, que remeteria a uma di- 5 As análises de Michel Foucault sobre o poder vêm subverter a ideia

mensão interior do ser humano, caracterização esta típica de poder meramente associada às classes sociais, em que uns detêm
à Filosofia Moderna. e outros são submetidos, marcando, assim, uma ruptura com a visão
marxista de conceber o poder. Segundo a análise foucaultiana, não
se é possível ‘deter’ o poder, haja vista ele não possuir uma realidade
De acordo com essa construção, as fronteiras do ontológica, mas, sim, realizar um ‘exercício’ do poder. Neste sentido,
corpo delimitariam, como se por definição, uma empreenderá ele uma ‘microfísica do poder’, uma análise minuciosa
vida interior da psique, na qual estão inscritas as das práticas, dispositivos e relações de poder, compreendendo, acima
de tudo, que este é sobretudo produtivo e não apenas destrutivo. “Os
experiências de uma biografia individual. (ROSE, poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da
2001, p. 33). rede social e neste complexo os micropoderes existem integrados
ou não ao Estado [...]” (MACHADO in FOUCAULT, 1979, p. XII).
Impera, pois, a concepção de um sujeito a priori, Compreende, portanto, o poder como “um feixe de relações mais ou
menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos
entidade anterior e acima de sua própria historicidade. coordenado. […] se o poder na realidade é um feixe aberto, mais ou
Nos rastros da perspectiva já anunciada, o próprio menos coordenado (e sem dúvida mal coordenado) de relações, então
o único problema é munir-se de princípios de análise que permitam
Foucault afirma que o objetivo de sua obra “foi criar uma uma analítica das relações de poder.” (FOUCAULT, 1979, p. 248).

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significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo trutura totalmente caótica6 (textos em diferentes posições,
controle e dependência, e preso à sua própria identidade com fonte de letras diferentes, de tamanhos diversos, ou
por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos su- simplesmente manuscritas, riscos, sobrecolagens etc.).
gerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito A escolha do(s) tema(s), a seleção ou criação dos
a” (FOUCAULT, 1995, p. 235). Cai por terra aqui a ideia textos e sua escrita, à mão, em computador ou mesmo
de autonomia, tão cara à modernidade (projeto de sujeito em máquina datilográfica, a procura por figuras, o recorte
autônomo), haja vista os modos de subjetivação serem e colagem, a escolha do formato e a medição papel, a
efeitos do poder, localizados nas múltiplas práticas dis- reprodução, o corte e a montagem, e por fim, a distribui-
cursivas e não discursivas ao longo da trama histórica. Em ção ou venda.7 Os erros da gramática normativa também
suma, trata-se de pensar o ser humano não como a “base fazem parte do processo, não importando realmente se
eterna da história e da cultura humanas, mas um artefato eles foram conscientemente gerados ou não. Espaço so-
histórico e cultural.” (ROSE, 2001, p. 33) que prescinde bretudo de experimentação, o que praticamente inexiste
de uma linha evolutiva e contínua do tempo. nas publicações comerciais, os fanzines possibilitam ao
Pesquisar, pois, os modos de subjetivação intima- zineiro trabalhar texturas, dobraduras, sobreposição de
mente conectados a uma cultura zínica no contexto de camadas, sangramento ou mesmo acoplamentos com ou-
uma cidade, é atentar às minúcias, às diversas práticas co- tros materiais, criando assim outros suportes para além do
tidianas, ou ainda às ‘maneiras de fazer’, que, no dizer de papel,8 além das múltiplas possibilidades de trabalho da
Michel de Certeau (2008, p. 41), seriam “as mil práticas linguagem. “Experimenta, recicla, se não há computador
pelas quais usuários se reapropriam do espaço organiza- usa a máquina de escrever, se a máquina está danificada,
do pelas técnicas da produção sociocultural”.
6 Os fanzines anarquistas e punks muitas vezes apresentam estrutura
À medida que se propõe deslocar o foco de aná-
caótica de organização, decerto, uma opção estética. Aragão (1999)
lise do sujeito, unidade naturalmente singular e distinta, fala que os zines anarquistas e punks por vezes são panfletários e que
para o domínio das práticas, constituintes e coletivas, a eles “se fecharam em seus próprios guetos, às vezes porque evitam o
perspectiva em questão tangencia uma característica mar- envolvimento com os processos coletivos, outras vezes porque não
conseguem trabalhar uma linguagem mais estratégica que vise trazer
cante do fanzines, a saber, o fazer como prática coletiva. mais adeptos à comunidade” (p. 14).
Afinal, “a questão tratada se refere a modos de operação 7 Alguns zineiros vendem seus fanzines, contudo, essa venda é por

ou esquemas de ação e não diretamente ao sujeito que é vezes simbólica, cobrando-se apenas o preço da cópia ou, quando no
máximo, um pequeno acréscimo ao valor desta. Quando vendidos,
o seu autor ou seu veículo.” (CERTEAU, 2008, p. 38). ou são deixados em algumas livrarias ou através do próprio zineiro,
‘de mão em mão’. Portanto, historicamente não têm por objetivo
Produzindo Zines o lucro e nem competição com as demais produções editoriais do
mercado. Cabe aqui a indagação acerca da repercussão de um zine
produzido por alguém que vise unicamente o lucro. Importante ainda
Como produções que não possuem estrutura defi- esclarecer que na grande maioria das vezes é o próprio zineiro que
nida previamente, seja a escrita, o formato, o tamanho, o é o responsável pelos gastos de reprodução.
8 A textura diz respeito ao papel utilizado. Dobradura é a possibilidade
papel (geralmente são xerografados em papel branco, mas
de fazer dobras no papel. Sobreposição de camadas diz respeito à cria-
existem zines que circulam em papel colorido) ou mesmo ção de uma linguagem que utiliza peças sobrepostas a outras peças. Já
os recursos para reprodução, os zines geralmente passam o sangramento, “ao inverso da moldura, oferece a sensação de que o
incólumes à produção em série massificada, típica às pro- desenho da página vaza para além dela própria. É como se o editor não
se contentasse com a delimitação do espaço fornecida pelo tamanho da
duções grã-midiáticas. Sua disposição pode muito bem folha [...] e subvertesse esta informação criando a ilusão ótica de que este
obedecer a uma certa ordem ou podem apresentar uma es- espaço seria maior do que realmente é.” (LOURENÇO, 2006, p. 121).

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escreve os textos à mão, mas sobre todas as coisas divirta- possibilidades outras para além do tema em pauta. Nas
se”9 (UZCÁTEGUI, 2001, p. 31). Estética esta que privile- palavras de Meireles (2005), ele
gia a participação em todo o processo de produção e que
[...] é uma ocasião. Um encontro. Um happy hour.
elege o prazer, o divertimento e a experimentação como
Uma pequena farra. Um portal mágico, uma fenda
afetos de notada relevância à prática zínica. no tempo. Onde você pode ver zines, trocar zines,
Com uma linguagem aberta, despojada, liberta aos vender zines, distribuir zines, encontrar quem faz
padrões editorias de mercado, os zines hoje englobam zines, quem lê zines, quem já fez zines, quem tem
uma infinidade de temáticas, como poesia, quadrinhos, vontade de fazer zines, quem nunca viu zines,
etc. (p. 30).
música, política, futebol, direitos humanos, culinária,
zines ­catálogo e até zines sobre zines, uma espécie de De 2002 até hoje ocorreram por volta de 60 Zine-
meta-zine. Portanto, se.11 Como escrito acima, para além do interesse em fan-
desenvolvem um sistema gráfico simples onde zines, o encontro acabava sendo mote para outras ques-
tudo parece funcionar em (des)harmonia com o tões: um simples reencontro de amigos, uma ocasião para
erro, o acaso, o irre­verente, o vulgar, o residual, o conhecer outras pessoas, a possibilidade de estabelecer
risível, o brega, o banal, o proibido, o grotesco e o contatos em torno de outras temáticas, como articulações
escandaloso. (LOURENÇO, 2008, p.15). de militância (literária, estudantil, dentre outras), e ainda
uma vivência da cidade em seus diversos espaços, já que
Nestes termos, o fazer zínico pode ser evidenciado o Zine-se costumava acontecer nos mais diferenciados es-
como uma prática coletiva já desde o processo de produ- paços públicos de Fortaleza.
ção, à medida que, por diversas vezes, se vale de recortes
e colagens de outros veículos midiáticos, ou seja, da imbri- O lugar muda de vez em quando, mas o preferido
cação com outras produções. Contudo, decerto a evidência é a Praça da Gentilândia, quando o nome fica
ZINE-SE... NA PRAÇA. A gente põe os zines no
mor se aloja na profusão das relações e na formação de re- chão e conversa um bocado, enquanto as pessoas
des. Um fanzine não é feito para ser engavetado e adorado passam, algumas param, olham, descobrem, en-
individualmente no silêncio de quatro paredes. Sua própria fim, zinam-se12 (Fernanda). Informação verbal.
história confirma esta tese quando preconiza a formação
das redes de fãs ou aficcionados em torno de uma temática Arquitetando encontros e desencontros pelos ladri-
específica, como atesta Magalhães (1993, 2004). lhos citadinos, o Zine-se potencializava ocupações poé-
ticas na urbe. Mais do que uma concepção pragmática
Zinando na Cidade Solar 10 do termo ‘ocupação’, uma proposição poética [poiesis,

11 Além de cartazes espalhados em lugares estratégicos, o Zine-se,


Uma prática coletiva zínica peculiar à Fortaleza é o
desde 2004, passou também a ser convocado pelo sítio eletrônico do
Zine-se, um encontro nômade e gratuito que ocorreu qua- Orkut, através da comunidade virtual Zine-se, onde os participantes
se mensalmente na cidade, contudo sempre agenciando desta escolhiam a data e local do próximo encontro. Por conheci-
mento da própria comunidade, é possível evidenciar que o último
9 Tradução livre. No original: “Experimenta, recicla, si no hay com- Zine-se ocorreu em meados de 2008, não sendo possível delinear
putadora hazlo a máquina de escribir, si la máquina se daña escribe os porquês de seu término, pelo menos aparente.
12 A Praça da Gentilândia é um logradouro público localizado no
los textos a mano, pero sobre todas las cosas diviértete”
10 Referência que Fernanda Meireles faz à Fortaleza, sendo também tradicional bairro do Benfica, em Fortaleza, bastante conhecido na
homônimo de um de seus zines, que circulou durante todas as sema- cidade por abrigar diversos equipamentos culturais, universidades e
nas do ano de 2006 e tinha por temática a cidade de Fortaleza. pela intensa vida noturna.

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criação], de abertura de sentidos possíveis, localizada nas Participar de um Zine-se era, por vezes, realizar
incursões e no modos de habitar os espaços da cidade. um percurso urbano em Fortaleza, justamente pelo seu
Remando contra a maré da privatização do espaço públi- caráter nômade, explorando trilhas, ocupando praças,
co, que intensifica o recolhimento bosques, terminais de ônibus, teatros, universidades, bi-
bliotecas, espaços culturais e até mesmo calçadas, como
às ilhas de mesmice que com o tempo se transfor- foi o caso do 13o Zine-se, realizado em junho de 2003.13
ma no maior obstáculo ao convívio com a diferen-
Destarte, o Zine-se seria
ça – fazendo com que as habilidades do diálogo e
da negociação venham a definhar e desaparecer. um lugar onde as pessoas se encontram, ocupam
(BAUMAN, 2007, p.103), e ele vira outro, e depois que você dispersa ele
volta a ser o que era e só, mas pra quelas pessoas
o Zine-se possibilitava a reapropriação dos espaços e uma aquele lugar ficou marcado, por outra coisa. Existe
produção de sentidos em permanente processo de nego- outro significado pras pessoas, aquele lugar. Sig-
ciação com o outro. “É preciso aprender a falar com estra- nificados que vão se sobrepondo [...] (Fernanda).
nhos”, afirma Fernanda, pois Informação verbal.

você não pode se juntar a um grupo de pessoas Na ocasião dessa fala, Fernanda remete o Zine-se
que riem da mesma piada que você e acreditam a uma Zona Autônoma Temporária ou TAZ, conceito de
na mesma coisa que você a vida inteira, quer dizer, Hakim Bey.14 Em livro homônimo (2001), Bey prefere dis-
pode, mas se você quiser transformar algo, não é aí
que isso vai acontecer, porque aí já é tudo igual, aí correr sobre a TAZ ao invés de defini-la, afirmando que
você só vai pra curtir, pra relaxar. Pra trabalhar pela no final do livro o conceito tornar-se-á quase autoexpli-
transformação você tem que se meter nos cantos cativo. Em linhas gerais, a TAZ seria um tipo de enclave
mais áridos, hostis mesmo e falar com as pessoas, livre dentro do controle político da tecnologia.
outras, conversas outras, raciocínios outros, reali-
dades outras, aí sim algo muda, inclusive sua visão A TAZ é uma espécie de rebelião que não con-
de mundo. (Fernando). Informação verbal. fronta o Estado diretamente, uma operação de
guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo,
Trata-se do exercício comportar a diferença. Pen- de imaginação) e se dissolve para se re-fazer em
sar, agir com o outro que se mostra alheio e que se apre- outro lugar e outro momento, antes que o Estado
senta cotidianamente invisível, seja nos transportes cole- possa esmagá-la. (BEY, 2001, p.17).
tivos, nas calçadas da urbe ou mesmo nas mais diversas
instituições que permeiam a vida em sociedade. Varrer A TAZ opera na ocupação de lugares alheios a si,
para debaixo do tapete a poeira que traz consigo a alergia fendas que o sistema gera, empreendendo assim os motins,
à alteridade. O ‘falar com estranhos’ não se trata de sair navegando com a hábil mobilidade que lhe caracteriza.
literalmente falando com quem se apresenta à vista, mas Contudo, mais do que discorrer sobre a TAZ, a intenção
constitui uma proposta política. aqui é enfatizar uma das inspirações, fontes positivas da
TAZ, que revela ter grande relevância para esta discussão.15
Não existe uma regra pré-estabelecida de como
se comportar, não há, e as pessoas são diferentes. 13 O encontro deveria ter acontecido dentro de uma agência dos
Eu nunca posso dizer, se você vai pra um Zine- Correios do Centro da cidade. Como os participantes foram impedidos
se, você tem que olhar pra pessoa e dizer ‘oi, de fazer o Zine-se lá dentro, eles se reuniram na calçada da agência
meu nome é fulano’. Isso não existe! (Fernanda). (MEIRELES, 2005).
Informação verbal. 14 TAZ é a sigla inglesa para Temporary Autonomous Zone.

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Trata-se da configuração do bando, o qual Bey contrapõe reços ou telefones em papéis amassados, ou mesmo de
à família, que é caracterizada por ser fechada, imperan- afetos, simpáticos ou antipáticos. É neste sentido que o
do o poder da figura masculina sobre os demais membros, Zine-se recupera e agrega a si a noção de bando como um
sejam mulheres ou crianças, e por reproduzir um sistema grupo que resguarda um mínimo de afinidades.
hierárquico de relações sociais. Em contraposição,
Tem gente de vários pontos da cidade [...], pe-
o bando é aberto – não para todos, é claro, mas gando um ônibus pra ir pra outro bairro super
para um grupo que divide afinidades, os iniciados distante pra ver aquele lugar, ver aquelas pessoas
que juram sobre um laço de amor. O bando não e, sabe, aquela coisa que nasce daí. (Roberta).
pertence a uma hierarquia maior, ele é parte de Informação verbal.
um padrão horizontalizado de costumes, paren-
tescos, contratos e alianças, afinidades espirituais
Vagueando descontraidamente pela multiplicida-
etc. (BEY, 2001, p. 25). de que se impõe diante dos olhos, “pela sobreposição de
melodias e harmonias, ruídos e sons, regras e improvisa-
Visto sob esta ótica, Zine-se seria ­fundamentalmente ções.” (CANEVACCI, 1997, p.18), deslocando-se de um
marcado pelo estilo do bando, haja vista ser aberto e sem ponto a outro, em trajetos nômades, o bando do Zine-se
hierarquias. Embora algumas vezes houvesse uma ‘von- traz à tona a dimensão do encontro, em um mundo que
tade de legitimação’ de alguns participantes recém-che-
[...] a vida moderna da sociedade capitalista, con-
gados em torno de pessoas mais antigas na cena, o que sumista não se organiza em torno de um encontro
poderia desembocar na criação de ídolos, a horizontali- [...]. Estar num lugar por estar ali e interagir. É
dade nas relações e trocas prevaleciam. Impossível negar massa perceber como essas pessoas se misturam
a existência de referências na cultura zínica fortalezense, num Zine-se. (Fernanda). Informação verbal.
como a própria Fernanda. Contudo, ela mesma busca pre-
Profusão polifônica, misturas que se fazem pelo
servar a noção de independência que marca os fanzines,
olhares curiosos, gestos hesitantes (‘peço ou não aquele
evitando assim a construção em torno de si de uma ‘enti-
zine?’), diálogos intermitentes que logo cedem a uma voz
dade legitimadora’ das produções zínicas alheias.
alheia que anuncia a entrega ou troca de um fanzine.
pelo fato deu tá trabalhando com isso há muito A experiência que configura uma prática cole-
tempo, as pessoas costumam achar que a minha tiva zínica em Fortaleza também pode ser evidenciada
opinião sobre o que elas fazem conta muito, e
no ‘Palavra Desordem’, um zine coletivo organizado e
eu acho isso um saco, eu quebro logo de cara,
entendeu? Não é tipo a minha opinião não conta,
escrito por Alexandre; um bando que nasceu no bairro
é tipo, a opinião de ninguém devia contar, enten- do Benfica e se organiza em torno de afinidades, sendo
deu? (Fernanda). Informação verbal. estas, as ideias libertárias e suas derivadas, como a auto-
organização.16 O ‘Palavra Desordem’ é um zine que aos
Importante ainda notar essa noção de afinidades, o
16 O zine Palavra Desordem surgiu em 2001 e contabiliza hoje
que facilita as trocas feitas nos Zine-se, seja de fanzines,
em torno de 12ª edições. Também conta com um sítio eletrônico
olhares desengonçados, conversas despretensiosas, ende- (www.palavradesordem.siteonline.com) que disponibiliza os textos
digitalizados até a 8ª edição. Na produção do Palavra Desordem,
15 Bey coloca como fontes negativas o que ele chama de fim da Revo-
Alexandre, o faneditor (editor de fanzines), utiliza o pseudônimo
lução e o fechamento do mapa, e como positivas o bando, o caráter Amanay Parangaba, referência a um índio que habitou as terras do
festivo e o nomadismo psíquico. Para maiores detalhes, consultar hoje bairro de Parangaba, em Fortaleza, e que faz parte das suas
Bey (2001) na bibliografia. pesquisas de historiador.

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tiago régis de lima • luciana lobo de miranda subjetividades de papel

poucos foi se construindo como um zine de contos, mas cidade ta muito presente nos fanzines (Fernanda).
estilos literários diversos vão estar presentes [...]” (Alexan- Informação verbal.
dre). Informação verbal.
Narrada através de recortes, colagens, dobradu-
E que surge ras, imagens e manuscritos, a cidade é incessantemente
de um grupo de pessoas, de um grupo de amigos, montada em notas esparsas de papéis que circulam de
como a gente gosta de chamar, de um grupo de mão em mão. Assim, é ‘Nonsense’, que “falava sobre a
afinidades, [...] que vai fazer com que eles se reú- noite de fortaleza e as festas que eu presenciava” (Infor-
nam, e comunguem de certas ideias em comum. mação verbal), como conta Jackson, editor do zine. Ou
(Alexandre). Informação verbal. ainda o ‘Cidade Solar’, um zine de pequenas crônicas do
cotidiano alencarino, das alegrias e desventuras da vida
O ‘Palavra Desordem’ é um zine que costumeira-
na cidade, e o ‘Esputinique’, uma espécie de zine catá-
mente não circulava nos Zine-se, o que denota que as prá-
logo. Como afirma Fernanda, editora de ambos, “era no
ticas zínicas na cena alencarina são difusas, não girando
Esputinique que eu falava sobre fanzines, não só sobre o
em torno de um só grupo ou bando. Decerto, talvez isso
fanzine do fulano de tal, mas sobre a cena aqui em Forta-
aconteça devido estilos de vida outros, embora por vezes
leza e sobre fanzines mesmo, fazer fanzines.” (Fernanda).
ocupem os mesmos espaços (como o Benfica, por exem-
Informação verbal.
plo); bandos, pois, que têm afinidades diversas e propósi-
tos diferentes, o que não significa que sejam divergentes Afeitos
e não comunguem valores semelhantes.17 à importância dos detalhes, dos objetos e dos cos-
tumes cotidianos, das coisas pequenas que passam
Notas Esparsas em Pequenos Prazeres despercebidas de tão familiares que são; […] à
importância dos restos, daquilo que, geralmente,
é rejeitado como detrito ou lixo (GAGNEBIN,
Diversos fanzines que circulam em Fortaleza hoje 1992, p.44),
não possuem uma delimitação temática. Abrangendo vá-
rios assuntos numa escrita que se engendra como um diá- os zines não são apenas uma publicação, no dizer em
rio de uma vida ordinária, comum, a cidade se apresenta epígrafe de Henry Miller, mas um prolongado insulto,
subjetivada em preto e branco. uma cusparada na cara da arte e um equívoco ao fazer
grã-midiático.
Duas coisas que eu percebo muito aqui nos
fanzines em Fortaleza é que eles são pequenas Neste sentido, como práticas de constituição de si
crônicas do cotidiano da pessoa. Eles falam do em profusão aos arranjos coletivos da vida nas cidades,
que a pessoa vê na rua ou em casa, ou que pensa, os fanzines possuem notada consonância aos pequenos
sozinha. Então, a cidade tá muito presente nos detalhes, aos feitos diminutos, sem glória, infames, diria
fanzines. Fortaleza, o cotidiano de Fortaleza, tá Foucault (1992).
muito presente nos fanzines, a história recente da
Tive que recorrer, queiram me compreender, sem-
pre mais a pequenos prazeres, quase invisíveis,
17Nas entrevistas de campo não foi explorada tal questão, portanto substitutos... vocês não fazem idéia como, com
não há elementos aqui a configurar divergências e semelhanças do esses detalhes, alguém se torna imenso, é incrível
coletivo que produz o ‘Palavra Desordem’ com o Zine-se. como se cresce.

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tiago régis de lima • luciana lobo de miranda subjetividades de papel

assim o disse Witold Gombrowicz (apud CERTEAU, 2008, mados como uma revolução nos meios de comunicação
p. 53). Sem grandes pretensões, as produções zínicas de- ou mesmo nos processos de criação artística, haja vista,
veras estão inscritas na rede desses pequenos prazeres. como qualquer prática, serem passíveis de contradições
e capturas. Nesta perspectiva, este escrito não intenta de-
[…] com os fanzines eu tenho um controle maior marcar ‘a verdade’ em matéria de fanzines em Fortaleza,
sobre o que eu faço, e eu tenho uma pretensão
mas insistentemente afirmar uma prática.
modesta, eu acho. Pronto, eu acho que os fanzines
me bastam, é mais fácil de moldar, de refazer, de Marco Polo, perspicaz navegador veneziano, argu-
revisar. Fica todos os processos de composição mentando contra a diretiva do imperador tártaro Kublai
que tem a ver com escrita, todos, e com reescrita, e Khan, afirmou:
com distribuição, e com tudo, eu posso resolver, aí
quando você não quer muita coisa, é perfeito, [...] O propósito de minhas explorações é o seguinte:
Muito mais simples fazer fanzine (Fernanda). perscrutando os vestígios de felicidade que ainda
se entrevêem, posso medir o grau de penúria.
Informes e informais, simples em sua composição, Para descobrir quanta escuridão existe em torno,
fazem circular uma série de discursos atentos à uma dinâ- é preciso concentrar o olhar nas luzes fracas e
distantes. (CALVINO, 1990, p.57).
mica própria de produção de sentidos e referências. Im-
portante atentar que o discurso Eis aqui o direcionamento: luzes fracas e distantes,
não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) minuciosas e potencialmente criativas, sem qualquer pre-
o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; tensão de totalidade. Talvez sejam a estas luzes que os
[...] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz fanzines estejam atentos.
as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por
que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos Referências Bibliográficas
apoderar. (FOUCAULT, 2006, p. 10).

O discurso zínico, portanto, tanto comporta um ARAGÃO, Thais. Tupanzine: os indies do Brasil. 1999. Mo-
desejo quanto um poder, articulados intimamente na tra- nografia (conclusão de curso). Fortaleza, Universidade Fe-
ma de suas práticas. Assim é o Palavra Desordem, já que deral do Ceará, Curso de Comunicação Social, Fortaleza.
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge
sempre teve esse caráter de favorecer essa cria- Zahar Ed., 2007.
ção dessa rede de articulações, [...] dessa rede
articulada dessas organizações independentes, BEY, Hakim. Zona Autônoma temporária. São Paulo,
seja na área de literatura, vídeo, enfim, nas di- Conrad Editora do Brasil, 2001.
versas formas de comunicação [...] (Alexandre). CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Com-
Informação verbal. panhia das Letras, 1990.
Articulações desejantes em uma perspectiva de or- CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre
ganização de uma certa trama de poderes circunscritos a a antropologia da comunicação urbana. São Paulo: Studio
um coletivo. Nobel, 1997.
Contudo, embora partilhem de afetos e valores CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes
aversos à hegemonia midiática dos conglomerados co- de fazer. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994.
municacionais, fato é que os fanzines não podem ser to- DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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tiago régis de lima • luciana lobo de miranda subjetividades de papel

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a escrita como guerra: ética e subjetivação nos fanzines punk

A escrita como guerra: ética e sim como sobre aquilo que o provocou. Mas o que é isso
subjetivação nos fanzines punk que provoca essa explosão? São angústias e inquietações,
ódios e revoltas provocados pelo mundo em que se vive,
Everton Moraes
pelas condições em que nele se vive: “Você já parou pra
pensar no mundo em que você vive? A maneira como
você e as pessoas ao seu redor se comportam?”1 Ele se
Sobre a Composição do Fanzine pergunta sobre as próprias formas de vida, sobre o po-
der que perpassa as relações consigo mesmo e com os
O fanzine é uma produção que ocupa uma posição
outros. É contra esse poder que deve ser levada a cabo
singular entre as formas pelas quais o punk se manifes-
uma ­guerra movida pela revolta e pela indignação com os
ta; não se trata mais apenas da embriaguez e a catarse
modos de viver que somente depreciam a vida.
das bebedeiras, das aparições públicas e dos shows, do
choque que sua aparência provoca nas pessoas; se essas Seria, desse modo, o fanzine uma expressão de
práticas rompiam com a rotina sufocante e, ao mesmo guerra? Não se pode reduzi-lo a isso, ele é, sobretudo,
tempo, contestavam as formas de excitação passiva das uma das armas com as quais se luta. E isso de várias ma-
sociedades contemporâneas, inventando outras formas de neiras. Em primeiro lugar, a reflexão sobre as formas de
sociabilidade e outras maneiras de viver o tempo através vida de nossa atualidade, seja na forma de narração de
dos excessos e das paixões vividos no próprio corpo, o experiências pessoais ou não, funciona como um modo
fanzine é, por outro lado, o ato de dar sentido a um sen- de transformar em acontecimento, em contingência, tudo
timento, uma atitude sóbria, racional e reflexiva de criar isso que nos acostumamos a viver como necessidade.
significados a partir de uma “explosão”; uma explosão Você já pensou se todas as obrigações que você
que agora aparece como aquilo que deve ser trabalhado cumpre são mesmo necessárias? Você já parou pra pen-
em si e não mais como objetivo da ação. sar sobre si mesmo, na sua existência? Você já imaginou
Fazer um zine, pra mim, começa com esse senti- que tudo podia ser diferente? Cada vez mais eu vejo as
mento de explosão. Começa com a necessidade de espa- ­pessoas ignorando as possibilidades e se reduzindo a se-
lhar ideias e do pensamento de que é preciso fazer mais. res sem capacidade de questionamento.
Um dia abri os olhos e a luz me feriu por dentro. Desde A necessidade de escrever surge quando já não
então não tem sido fácil dormir, todas as noites. Fazer um se suporta mais essa situação em que os modos de vida
zine não deixa minhas noites mais tranquilas, pelo con- atuais, nossas práticas cotidianas e os usos da linguagem
trário, isso aumenta a intensidade da luz que me atinge e são pensados como se fossem os únicos possíveis. Nem
me afasta da paz que eu mesmo proclamo. Reconhecer sempre, no entanto, quem escreve, tem absoluta certeza
que as coisas não estão bem e tomar uma posição contra do motivo pelo qual o faz: “Eu não sei bem porque eu
a correnteza é tornar sua própria existência uma guerra.1 estou escrevendo esse texto... eu acho que é uma espé-
A escrita do fanzine é, portanto, uma tentativa de cie de desabafo”.2 Às vezes, a única coisa de que se tem
refletir sobre aquilo que acontece consigo mesmo. A par- absoluta certeza quando se escreve é de que é preciso de-
tir de um “sentimento de explosão”, o indivíduo põe-se sabafar, dizer ao máximo de pessoas possível aquilo que
a escrever para refletir sobre esse mesmo sentimento, as- se sente; que é preciso expressar o seu descontentamento
2 STRAIGHT AHEAD. Curitiba, 1998.
1 STRAIGHT AHEAD. Curitiba, 1998. Grifos meus. 3 NEW DIRECTION: HARDCORE ZINE, n. 2. Curitiba: 1998.

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everton moraes a escrita como guerra: ética e subjetivação nos fanzines punk

com a sociedade, com o punk, consigo mesmo; falar de ameaças que lhe cercam, também na situação contem-
como se lida com ele e o que se sente nessa situação; porânea os punks identificam o imperativo de sobreviver
falar, enfim, sobre o que fazer a partir dele: não importa a qual custo. Todas as perspectivas e possibi-
lidades de existência teriam sido reduzidas a um mínimo,
Temos que considerar todas as coisas que fize-
e nada mais restaria senão aquela vida besta já comentada
mos, que realizamos, como conduzimos nossos
relacionamentos. Pensar nisso tudo vale a pena.
antes. Dessa sociedade não cabe esperar nada, pois “nin-
Ultimamente tenho parado pra pensar em um guém dá a mínima”, é preciso criar novas armas contra
monte de coisas. Algo aconteceu que me fez rea- ela. Armas que possam reverter seu funcionamento. O
valiar minhas ideias. O que eu quero dizer é que fanzine é uma delas, uma tentativa de mostrar, tanto em
estava decepcionado [...], amargo, cansado. [...] sua simples existência (é possível criar outras formas de
Muitas coisas doem, muitas coisas machucam, e expressão), quanto em seus conteúdos, a narrativa de sua
cabe a nós mesmos nos curar. Não desistir. Não própria experiência, que é possível viver diferentemente.
desesperar. Ninguém mais fará isso por você. Nin- Assim, trata-se de, com essa narrativa, constituir-se como
guém se importa. Ninguém dá a mínima.4
exemplo para os outros, não porque suas atitudes deve-
A linguagem intensa, porém sóbria, expressa riam ser imitadas, mas porque elas deveriam suscitar o
uma diversidade de sentimentos: um sofrimento que desejo de uma experiência radical análoga.
­decepciona e que pode deixar marcas (a amargura e o Nessa guerra, é preciso lutar contra os hábitos
cansaço), que faz sentir a vertigem do “desespero”, da “consumistas” que a sociedade contemporânea sacraliza.
falta de referências, da perda de um mundo que ainda E quando eles falam em consumo, não se trata apenas de
estava baseado em uma ideia de confiança e na segurança objetos, mas de gestos, práticas e modos de vida. Dizem
que ela traz. A partir da abertura para os afetos do exte- que é preciso quebrar “os vícios da sociedade que ain-
rior, com a dor causada pelas perdas e feridas provocadas da nos resta”5. É para ajudar nesse trabalho de destruição
por esse encontro, é preciso parar para pensar e reavaliar daquilo que existe de nocivo em si mesmo que o fanzi-
o que está se fazendo de si mesmo. O sentimento de de- ne serve. Ajudar, à medida que incita o leitor a parar e
sespero deve ser convertido em trabalho sobre si, visando pensar, a buscar em si mesmo esses vícios que possui e
preparar-se para os combates diários em um mundo que nem sempre percebe, e o faz, antes de tudo, narrando as
já não é mais seguro. próprias experiências de subjetivação, ou antes, de des-
É nesse sentido, portanto, que deve se entender subjetivação, de eliminação desse mal que habita dentro
a guerra. É em nome desse descontentamento e contra de si, o próprio combate travado nesse guerra.
todas essas situações que o combate diário deve ser tra- E se essa narrativa de si é necessária, se falar sobre
vado. Pois se trata de uma “sociedade em que (apenas) a situação de combate cotidiano e sobre a forma como se
sobrevivemos”. E se a noção de “sobrevivência” é recor- age dentro dela é tão importante, era preciso também fa-
rente nos fanzines e nas letras de músicas, é que ela diz zer da guerra um tropos de linguagem, uma forma de nar-
respeito à essa crítica das necessidades, que é comum rar, para além da simples comunicação de um conteúdo:
à grande maioria das experiências punks. Ela é um dos
elementos que caracteriza a guerra na qual se vive. Pois Eu QUERO que o AW choque as pessoas. As
pessoas não serão acordadas através de palavras
se nela trata-se de preservar apenas a vida biológica das
4 5 Info-Punk, Coletivo do Squatt Kaazaa. n. 2. Curitiba, 1995.
APOCALYPSE WOW, n. 4. Curitiba, 1998.

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everton moraes a escrita como guerra: ética e subjetivação nos fanzines punk

bonitas e rebuscadas. ELAS PRECISAM SER ACOR- quer produzir no leitor, nas formas menos autoritárias de
DADAS COM UM BALDE DE ÁGUA FRIA! É o falar da própria experiência e das próprias ideias.
que eu penso pelo menos. Se o meu zine não
servir para chocar, irritar, levantar discussões e
levar pessoas a repensar opiniões[...] então eu “Comunicar Algo Incomunicável”
acho que ele não serve para nada.6
Diante de uma tão narrada angústia provocada
A estética espetacular que predomina nas experi-
pela situação contemporânea, em que há uma tomada
ências punks até o começo da década de oitenta, que ti-
cada vez mais totalizante da vida pelo poder, surge a ne-
nha o efeito sensorial do choque como objetivo principal,
cessidade de articular alguma forma de resistência que
é transformada ao longo dessa década em algo que, se
procure liberar a vida desse poder, ainda que provisória
ainda deveria chocar, não tinha esse dever como objetivo
e limitadamente. E ela aparece de duas maneiras: através
principal. O choque teria apenas o efeito de “balde de
da expressão – de testemunho8 – de uma sensibilidade e
água fria” que desperta do sono sensorial que impede de
através de uma criação artística.
ver as misérias do mundo. Depois de chocado, o leitor
deveria ser levado a repensar suas opiniões e colocá-las A escrita funciona como testemunho não somente
em dúvida. Seria preciso, então, um texto que fosse uma de uma realidade descrita no texto, nem de uma experi-
arma de guerra, figura de linguagem muito usada nos fan- ência vivida nessa realidade, mas das condições em que
zines (“Nossa união deveria ser uma de nossas grandes e essa experiência foi possível. Experiência de dor, sofri-
fortes armas, mas nossa arrogância e ignorância (por que mento, angústia e, ao mesmo tempo, de raiva, ódio e luta.
não?) não nos permite ser fortes[...]”).7 E era a forma literá- Para além da representação de uma subjetividade, essa
ria, tanto quanto o conteúdo do texto (vale lembrar que a escrita expressa uma sensibilidade, narra a angústia da-
argumentação ganha muita importância nessa nova esté- queles que sofrem, em todas as esferas da vida, com uma
tica da escrita punk), que tinha a função de transformá-lo violência que “aparece de forma fugidia, ­pretendendo
nessa arma. assim escapar a qualquer nomeação.”9 Uma violência co-
tidiana, mais afetiva do que física, que se manifesta em
A literatura punk pressupõe sempre uma angústia
um controle e em um condicionamento cada vez mais
e um sofrimento que atinge a existência daquele que es-
totalizante e eficaz em sua pretensão de domesticar as
creve, de sua comunidade, algo contra o qual é preciso
intensidades:
lutar. O que se testemunha é justamente essas relações
nas quais se é atingido por esses afetos tristes, e o embate 8 O testemunho é “de um lado, a necessidade premente de narrar a
contra eles, a luta constante que é necessária contra si experiência vivida; do outro, a percepção tanto da insuficiência da
mesmo, contra sua preguiça, para continuar escrevendo, linguagem diante de fatos (inenarráveis) como também – e com um
para não sucumbir ao desejo desse poder que quer con- sentido muito mais trágico – a percepção do caráter inimaginável dos
mesmos e da sua consequente inverosimilhança”SELIGMANN-SILVA,
trolar todas as esferas da vida. Não basta que simples-
Márcio (Org.). História, memória, literatura – O testemunho na era
mente se escreva aquilo que foi previamente pensado, é das catástrofes. Campinas: Editora Unicamp, 2003. p. 42.
necessário pensar em como escrever, nos efeitos que se 9 GRUNER, Clóvis. O espetáculo do horror: memória da loucura,

testemunhos da clausura em Diário do hospício e Cemitério dos


6Apocalypse Wow, n. 4. Curitiba, 1998. vivos. In: GRUNER, Clóvis; DENIPOTI, Cláudio (Orgs.). Nas tramas
7 Xmassive Attackx: Straightedgepessoalpolítico n. 1. Curitiba, da ficção: história, literatura e leitura. São Paulo: Ateliê Editorial,
2000. 2008. p. 122.

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everton moraes a escrita como guerra: ética e subjetivação nos fanzines punk

Toda forma de expressão, nessa sociedade man- em seus próprios ossos e que só pode ser experimentado
tida pela mentira é vista como loucura, algo a ser nesses ossos, dá sentido a acontecimentos que de outra
ridicularizado. Não sou louco, apenas consigo forma passariam despercebidos. “Dar ­sentido através dos
ver e sentir as desumanidades dessa vida. Louco nomes aos acontecimentos sem memória é (...) construir
são os mentirosos dessa sociedade, c/ seus condi-
linguagens de resistência. Dar nome é trazer à existência
cionamentos, seus vícios burgueses sociais, seus
machismos e moralismos[...] dogmatismos.10 o destino individual das vítimas.”12
E construir linguagens da resistência implica não
Narrar a angústia de não apenas ter sua vida condi- apenas descrever aquilo que se sente, mas usar a própria
cionada, mas também seu discurso desvalorizado, ­parece forma (no sentido literário do termo) do texto, dialogando
então ser condição sem a qual não seria possível contor- com outros “mundos”, para expressá-lo:
nar essa situação. A violência deve ser nomeada e denun-
ciada, e esta é uma das diversas séries de temas presentes Talvez o punk esteja limitado demais em sua for-
nos fanzines. Essas escritas denunciam um poder que fun- ma, no modo como contesta, nas possibilidades
revolucionárias que cria e aceita para si. A lingua-
ciona através de um anestesiamento massivo e relatam
gem provavelmente é uma barreira, por ficarmos
a experiência de um embate travado contra esse poder, tão preocupados em sermos compreendidos
do despertar de uma sensibilidade e da abertura para os deixamos de nos aprofundar. A necessidade de
afetos vindos de fora que esse despertar propicia. Essa agradar talvez atrapalhe também. Quem sabe seja
abertura traria, então, certa angústia e sofrimento, pois necessária uma viagem por mundos (­submundos)
a partir daí se receberia, sem proteções, os golpes dessa e pensamentos fora do hardcore/punk, para co-
violência. É esse choque que seria preciso narrar. Por isso, nhecermos coisas novas, aprimorarmos a crítica,
as falas sobre a angústia, sobre a necessidade de se aten- confrontarmos as ideias e fazer do punk uma
tar para o controle exercido pela mídia, sobre o “poder ameaça real.13
dentro da maioria das rádios e programas de televisão”11, Nesse sentido, não só os conteúdos, mas o próprio
sobre os protestos de rua, as experiências de convivência ato da escrita e o modo como se escreve são constante-
libertária, a música, etc. Seria preciso não simplesmente mente problematizados nos textos. A preocupação com
falar dessa violência, mas de seus efeitos e das lutas que o “ser entendido”, com a mera comunicação, pode difi-
se travam contra ela. Ao nomeá-la, essa escrita daria então cultar, desse modo, a transmissão ao leitor da profundida-
um testemunho de seu absurdo, alargando a espaço do de do que se pretende expressar. Assim, seria necessária
possível, abrindo a possibilidade para que outras vozes se uma reflexão sobre o modo como se está escrevendo e,
insurjam, outros corpos se rebelem. consequentemente, um trabalho sobre essa escrita, visan-
Mas esse testemunho é também criação, uma vez do torná-la mais eficaz na expressão do modo como se é
que a linguagem não é nunca transparente e a violência, afetado pelo mundo.
em todo o seu significado, nas marcas que escreve nos cor-
pos, nas singularidades que produz, é inenarrável. Cria-se
uma linguagem que, no intuito de, como disse Kafka, “co- 12 VILELA, Eugenia. Corpos inabitáveis. Errância, filosofia e memória.

municar algo incomunicável”, algo que só se pode sentir In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos (Org.). Habitantes de Babel:
políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
10 A Discórdia. Curitiba, [s.d.]. p. 248.
11 Choices of Hearth, n. 1, Curitiba, s/d. 13 VIDA SIMPLES, n. 2. Curitiba, 2000.

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everton moraes a escrita como guerra: ética e subjetivação nos fanzines punk

Uma Cultura Crítica de Si locam no cotidiano, do que Deleuze chamaria de “devir


revolucionário das pessoas”, ou seja, a capacidade que os
Essa guerra deveria ser travada também contra as sujeitos têm de transformarem a si mesmos, suas relações
práticas identitárias e autoritárias que se pretendiam punks. e seu meio mais próximo através do investimento em no-
Nesse sentido, reflexão sobre os modos de ser punk, so- vas formas de sociabilidade e convivência. Essas pessoas
bre quais são as melhores formas de proceder para atingir acabariam, então, reproduzindo as atitudes autoritárias
um determinado fim, sobre as formas não autoritárias de que criticavam e fechando o punk a tudo que viesse de
sociabilidade, é uma constante nos fanzines. E essas re- fora, mas também deixando sua atitude ser capturada pela
flexões funcionam como forma de problematizar constan- rede de um poder que atuava massificando e adestrando
temente o modo de vida no interior do próprio punk, de o que se pretende subversivo.
modo a traçar linhas de fuga nas malhas de um poder mo- Os modos de pensar que orientam as práticas co-
lecular que funciona capturando tudo aquilo que se torna tidianas são incessantemente problematizados na escrita
estático. Longe de devaneios revolucionários e de utopias punk. Não é raro encontrar esse modo de escrever em que
fundadas em uma dialética, o que começa a aparecer no se questiona o leitor sobre o que ele está fazendo de si
punk, então, é uma consciência de suas limitações, mas mesmo, se as condutas são as únicas possíveis, sobre que
que ao invés de suscitar uma imobilidade, tenta provocar caminho se está seguindo, a que essa ou aquela atitude
abalos locais naqueles dispositivos de poder que perpas- está levando e, principalmente, o que essas práticas e mo-
sam o cotidiano, minar as relações de poder lá onde elas dos de pensar implicam, que jogos de poder se escondem
parecem ser mais insignificantes e onde funcionam como por detrás deles sem que se perceba ou se reflita sobre
sustentação para a dominação política. O modelo clássico isso. Essa ausência de reflexão é tomada como a forma
do militante de esquerda, encarnado dessa vez na figu- mais fácil de passar a agir da “maneira errada”.15 Em suma,
ra do “militante punk/hardcore”, orgulhoso por continuar pensa-se o próprio pensamento para ultrapassá-lo, para
“sobrevivendo no inferno”, acreditando ser um “super-he- liberá-lo da necessidade, para poder decidir sobre o que
rói da resistência”, passa a ser duramente criticado: fazer de si mesmo, criar possibilidades de existência.16
Como eu odeio os tipos “heróicos”! [...] simples-
mente odeio aquelas pessoas que se gabam ou se “Ódio e Guerra”
vangloriam ou falam como se tivessem a verdade
absoluta nas mãos. [...] Pessoas que tentam fazer E eram os sentimentos de indignação e ódio que
como se o espírito do hardcore fosse algum super-
constituíam uma das bases da cultura punk. Com efeito,
poder que mudará o mundo um dia.14
pode-se dizer que a revolta, motivada pelo sentimento
A crítica se dirige, desse modo, à atualidade do de ódio, foi para a cultura punk, desde o início da dé-
punk, ao que acontece nessa atualidade. O principal mo- cada de oitenta, o operador ético da transformação de si
tivo dessa crítica àqueles que acreditam ser “revolucio- e da atualidade. “Destruir o sistema, destruir a religião”.
nários”, aos “tipos heróicos” que se preocupam com o A transformação social e subjetiva desejada sempre apa-
futuro da revolução, é que se crê que eles acabam por se recia sob o signo da destruição, do desfecho final da or-
esquecer do presente e das questões urgentes que se co-
15 CALAMARI. Curitiba, 1999.
14 APOCALYPSE WOW, n. 4. Curitiba, 1998. 16 STRAIGHT AHEAD. Curitiba, 1998.

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everton moraes a escrita como guerra: ética e subjetivação nos fanzines punk

dem vigente, dos valores estabelecidos. Porém, tudo leva construtivo, ou seja, uma subjetividade autônoma e
a crer que essa destruição reivindicada era apenas um equilibrada, ­l iberada das diversas sujeições que a co-
recurso ­retórico, ou antes, uma energia bruta que seria agiam do exterior e de dentro. Do exterior, pela cruel-
preciso domar. Para que se tornasse produtiva, a energia dade do “sistema”, pela alienação imposta por ele,
desse ódio não deveria ser apenas destrutiva, rancorosa seus mecanismos de controle social, suas estratégias
e caótica, ela deveria ser submetida e contida dentro de que tentam fazer da vida objeto de uma dominação
uma forma para que se pudesse chegar aos resultados de- cada vez mais totalizadora, pois atuam em todos os
sejados. As energias brutas deveriam se transformar em lugares e a todo momento na vida das pessoas. De
ação política: dentro, porque eram sujeições que exigem dos indiví-
duos não apenas a sua dedicação total, mas também
Espírito crítico, pensamento criativo, bah! Não são
sua alma; 18 isso à medida que sujeitam sua potência
saídas fáceis. São caminhos que decidimos trilhar.
Caminhos que nos levam a beira do precipício.
a uma organização padronizada, fazendo com que
Como Nietzsche, “você olha para o abismo e subjetivem formas de vida previamente codificadas.
ele olha de volta para você.” [...] não podemos Submeter essa força a uma forma, transformando-a em
desistir [...] Acho que da raiva, da frustração estilo (de vida) é, portanto, uma maneira de se ante-
e do ódio deve surgir algo de bom. Devemos cipar aos assujeitamentos e escapar a essas sujeições
canalizar isso para algo construtivo. Algo que que o atingiam, de resistir a elas, de encontrar saídas
mude. Estou cansado de autodestruição, pena lá onde o poder pretendia-se impermeável. E, para
de si mesmo, desespero. Vai de nós decidirmos tanto, é necessário realizar esse trabalho de domínio
se os sentimentos vão apenas virar rancor ou se
de si mesmo através da escrita, isto é, para que se
vão virar algo concreto, palpável, construtivo
tornasse produtiva, a energia desse ódio não pode ser
e bom. [...] Nossas energias têm que virar algo
além de ódio para nós mesmos e nossas ações. apenas destrutiva, rancorosa e caótica, ela deve ser
Algo além de alguém sentado na cama chorando submetida e contida dentro de uma forma para que se
à noite. Não sou ingênuo, nem tolo. Mas não há pudesse chegar aos resultados desejados.
por que ser amargo. Acho que ser hardcore/punk Para domar essa energia do ódio, é necessário um
é andar nessa linha, essa “corda bamba” (oh não, trabalho do sujeito sobre si mesmo, um trabalho de cui-
mais um chavão...). Os dois levam ao fracasso. O
dado de si, de governo das potências que se agitam em
importante é o equilíbrio. A revolução tem que
começar dentro de nós.17
si; é preciso um ascetismo, no sentido conferido por Mi-
chel Foucault ao termo como “esquemas que o indivíduo
Se a energia do ódio e da revolta, sozinhos, le- encontra na sua cultura e que lhe são propostos, sugeri-
vam à destruição niilista ou à autopiedade; se, como dos e impostos pela sua cultura, sociedade e seu grupo
diz Michel Onfray, a violência aparece no momento social.”19 Trata-se de formas de relação consigo, práticas
em que a energia transborda e se resolve na destrui-
ção e no negativo, era preciso que a energia desses 18 LAPOUJADE, David. O corpo que não agüenta mais. In: LINS,
sentimentos fosse, então, domada e contida dentro de Daniel; GADELHA, Silvio (Orgs.). In: Nietzsche e Deleuze: O que
uma forma para que então se transformasse em algo pode o corpo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. p. 81-90.
19 FOUCAULT apud. ORTEGA, Francisco. O corpo incerto: corporei-

dade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro:


17 APOCALYPSE WOW, Curitiba, n. 4, 1998. Garamond, 2008. p. 19.

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everton moraes a escrita como guerra: ética e subjetivação nos fanzines punk

e técnicas através das quais o sujeito visa à sua própria através da escrita, o que mobiliza uma série de processos
transformação, seja ela espiritual ou corporal. O asceta autônomos de subjetivação.
tanto pode integrar-se e reproduzir uma determinada for- Pergunto-me, então, qual o efeito provocado pelos
mação cultural, aceitando passivamente esses esquemas, fanzines nessas guerras e nesses combates na existência.
quanto transformá-la, ressignificado-os e fazendo de si Minha resposta incerta e provisória pode ser sintetizada
uma obra singular. na célebre frase de Kafka, várias vezes lembrada por De-
Esse ascetismo é, portanto, uma contenção das pró- leuze, que fala da necessidade de “detectar as potências
prias emoções realizada a partir de uma reflexão sobre diabólicas do futuro”,21 perceber as forças invisíveis que
aquilo que acontece consigo mesmo. Como afirma Nildo atravessam o cotidiano. Mais do que representar o modo
Avelino: de vida punk nessa guerra, ele funciona como arma de
luta, é um gesto em que homens infames põem a si mes-
Não basta estar convencido de um ideal, é pre-
ciso querê-lo e desejá-lo a ponto de transformar mo seu ser e seu modo de vida em jogo, realizando uma
a própria existência pessoal através de critérios demolição e uma reconstrução constante de si através de
de estilo. [...] Essa efetuação do pensamento em uma escrita que torna legíveis essas forças. O fanzine é,
vontade possui como operador ético, a revolta. desse modo, arma e testemunho dessa luta que tem as
É na revolta que se dá um estado de tensão que subjetividades como campo. Golpe desferido nessa luta,
exclui o indivíduo de toda autoridade que lhe é ele pode fazer sentir a vibração desta; relato preservado
exterior. [...] A revolta [...] acontece através dá dela, ele detecta (para a ação imediata) e salva (mesmo
[...] experiência do insuportável, [...] pressupõe sem a intenção de se fazer memória) do esquecimento
o afastamento dos “objetivos dominantes” e dos
uma infinidade de práticas de liberdade.
“padrões vigentes” que passam a ser considerados
arbitrários, fazendo-os perder com isso seu poder
de sujeição e legitimidade.20 Referências Bibliográficas
E a contenção em que venho insistindo é aquilo
que torna vivível essa revolta; era necessária uma suavi- AVELINO, Nildo. Revolta, ética e subjetividade anarquis-
zação das formas de atuação ou, mais precisamente, uma ta. Revista Verve: um incomodo. PUC-SP, n.6, 2004.
contenção em formas que pudessem conciliar a vivência DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio
cotidiana no espaço social com um estilo de vida que lhe de Janeiro: Zahar Editores, 2007.
fazia uma crítica profunda. É a partir dessa tentativa de GRUNER, Clóvis. O espetáculo do horror: memória da
conciliação que vai surgir uma discussão que transforma loucura, testemunhos da clausura em “Diário do hospí-
o punk de uma série de gestos de transgressão de resis- cio” e “Cemitério dos vivos”. In: GRUNER, Clóvis; DE-
tência para uma estética de existência crítica dos modos NIPOTI, Cláudio (Orgs.). Nas tramas da ficção: história,
de vida prescritos pelas sociedades ocidentais capitalistas literatura e leitura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
contemporâneas. Trata-se da criação de uma cultura da
LAPOUJADE, David. O corpo que não agüenta mais. In:
crítica constante de si mesmo e dos significados do punk
Daniel Lins & Silvio Gadelha (Orgs.). Nietzsche e Deleu-

20 AVELINO, Nildo. Revolta, ética e subjetividade anarquista. Revista


21 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro:
Verve, um incomodo. São Paulo, PUC-SP, n. 6. 2004. p. 178-180. Zahar Editores, 2007. p. 66.

78 79
everton moraes

ze: o que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Ressonâncias no Meio do Caminho e/ou
2002. no Caminho do Meio: a Poética Infame dos
ONFRAY, Michel. A política do rebelde: tratado de resis- Fanzines1
tência e insubmissão. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
ORTEGA, Francisco. O corpo incerto: corporeidade, tec- Demetrios Gomes Galvão
nologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janei-
ro: Garamond, 2008. O que conta em um caminho, o que conta em
uma linha é sempre o meio e não o início nem o
SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, memória,
fim. Sempre se está no meio do caminho, no meio
literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: de alguma coisa.
Editora Unicamp, 2003.
(Deleuze e Parnet)
VILELA, Eugenia. Corpos inabitáveis: errância, filosofia e
memória. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos (Org.). Ha-
Palavras ladram.
bitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001. Poetas é que levam uma vida de cão.
(Miró)

As paisagens contemporâneas têm se constituído


por desenhos opacos e, por vezes, ilegíveis. Pintadas não
mais por pincéis convencionais, mas compostas por cola-
gens, intervenções e sobreposições. As imagens que têm
estacionado sobre nossas retinas demarcam uma diferen-
ça entre a claridade das luzes e o embaralhamento dos
signos que montam tais paisagens. As dimensões existen-
ciais e as produções de sentido nos têm demonstrado que
nos afastamos das grandes narrativas tranquilizadoras, es-
táveis e centralizantes, tais como as ideologias políticas.
Por outro lado, as discussões que subjugavam a cultura
como um subproduto de estruturas políticas e econômi-
cas perderam espaço para uma nova sensibilidade que
compreende as produções econômicas e políticas perten-
centes ao campo da cultura.
Nessa perspectiva, a cultura ganha espaço de des-
taque, principalmente porque esse olhar tem se lançado

1Este artigo é o desdobramento de uma pesquisa de monografia


defendida no curso de História da Universidade Federal do Piauí,
em 2005, cujo título é “Fanzine: a cartografia rebelde de uma má-
quina de guerra”.

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demetrios gomes galvão ressonâncias no meio do caminho e/ou no caminho do meio:
a poética infame dos fanzines

às práticas de existência no cotidiano, às negociações que cionais, porque esses dessacralizam os espaços
os sujeitos realizam com seus lugares sociais na constitui- de significados formais construindo seus próprios
códigos e significados. (GALVÃO, 2005, p. 33).
ção de suas singularidades e ao poder em sua dimensão
molecular. Desse modo, há o deslizamento de um olhar A discussão será orientada por algumas questões,
que se pretendia como total e homogêneo para uma per- tais como: como se constituem os fanzines na órbita dos
cepção que compreende o espaço e as relações sociais a campos discursivos? Em que medida as invenções propor-
partir de linhas que se entrecruzam, se interpenetram e cionadas pela linguagem nesse espaço impresso vazam
coexistem na heterogeneidade de suas particularidades, a materialidade da folha e se tornam uma atitude e um
criando, assim, seus labirintos temporais e narrativos. estilo de vida? Que novidade essas publicações alternati-
Para penetrar nessas paisagens oscilantes, escolhi vas produzem nos espaços de dizibilidade da sociedade?
tomar uma certa produção de fanzines para discutir um Como pensar a história a partir de um suporte que não se
conjunto de práticas e de produções de sentido que dialo- tem como fixo ou instituído, e que se monta a partir de
ga com essas novas geografias informacionais. Mas, antes, fugas e de golpes?
é preciso dizer o que é um fanzine. Etimologicamente, Ziguezagueando pelos corredores da cultura, os
fanzine vem da junção das palavras “fã” e “magazine”, fanzines se apresentam como um elemento capaz de dar
seria então a revista do fã. Mas não qualquer revista, no a ver um conjunto de práticas atravessadas por existências
sentido convencional, e nem abordando apenas temáticas juvenis, práticas essas que transitam nos ­microespaços.
vinculadas à relação de fã. Os fanzines são marcados, pri- Assim, lá onde os olhares vigilantes procuram os gran-
meiramente, por uma atitude singular que tem por lema des acontecimentos, os fanzines circulam pelo cotidiano
o “faça você mesmo”, ou seja, não há de se esperar por das ruas, nos shows de rock, nos encontro de amigos
condições ideais para produzir e pôr em circulação uma em bares e em rodas de poesia. Lá onde o olhar domes-
determinada publicação. O desejo de produzir e ver o ticado não alcança as nuances dos detalhes e se perde
material pronto é urgente. Desse modo, não há, na maio- na dispersão do múltiplo, estão as práticas deslizantes
ria dos casos, uma diagramação convencional, seguindo desses jovens que se multiplicam inventando mundos
as regras de editoração. O trabalho segue o gosto de seu microscópicos.
produtor e de suas invenções, inclusive ganhando um
Essas práticas são realizadas por jovens e por gru-
caráter artesanal.2 Os fanzines têm como especificidade
pos de jovens. Mas há de se pensar esses jovens produto-
o fato de serem publicações de pequenas tiragens que
res de fanzines para além dos limites de idades ou mesmo
circulam por meio de trocas ou por distribuição gratuita,
das identidades fixas. Máximo Canevacci (2005) ajuda a
afastando-se de relações capitalistas de compra e venda.
pensar esses jovens como sujeitos transitivos, múltiplos,
Além de um descompromisso com a periodicidade e, em
potentes. Nos quais, segundo ele, assistimos a um
grade parte, com o regime de autoria.
[...]\conjunto de atitudes que caracterizam de
Temos, nos fanzines, um exemplo bem diferente
modo absolutamente único nossa era: as dila-
dos grandes instrumentos de codificação conven-
tações juvenis. O dilatar-se da auto-percepção
2Entendo por artesanal o ato de moldar, de misturar, de deformar e
enquanto jovem sem limites de idade definidos e
de dar forma a uma ideia, a um objeto. Tenho o produtor de fanzines objetivos dissolve as barreiras tradicionais, tanto
como um artesão da linguagem, que se utiliza de elementos diversos sociológicas quanto biológicas. (CANEVACCI,
para produzir seu artefato. 2005, p. 29).

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demetrios gomes galvão ressonâncias no meio do caminho e/ou no caminho do meio:
a poética infame dos fanzines

Seguindo os passos e as práticas desses jovens, fanzineiros, os sujeitos que produzem os fanzines, conso-
percebe-se que os fanzines se configuram como lugares mem essa imprensa para dela fazer recortes e realizar co-
de encontros, ao passo que se constituem como espaço lagens. Um consumo que deforma e ressignifica, na con-
propagador de ideias, além de possibilitarem outras práti- dição de produzir uma diferença. Além do mais, por não
cas de leituras. Os fanzines são trabalhos feitos por leito- funcionarem a partir de uma noção estável de acumulação
res, por consumidores de mídias e de signos, para os seus de dados. Os vestígios e “arquivos” gerados a partir dessas
pares, para aqueles que compartilham dos mesmos códi- publicações são sempre pessoais, pertencendo a alguém
gos, as mesmas sensibilidades. É importante ressaltar que que coleciona. Dessa forma, não instituindo um lugar de
uma prática interessante associada ao fanzine é o fato de memória como fixidez, como lugar de visitação pública
o leitor poder tornar-se um colaborador. Desse modo, as que pode ser acessado e consultado por todos de uma co-
dimensões hierárquicas e burocráticas são desmanchadas munidade. Ou seja, esse material é ausente do circuito
e as associações são compostas ao longo da caminhada, dos arquivos públicos. Justamente, porque não pertencem
ao passo que os atravessamentos vão ocorrendo e os en- ao universo dos monumentos, das grandes marcas ou das
contros se realizando. Sobre essa questão, David James grandes narrativas. No entanto, os fanzines são um lugar
(1993) comenta, a respeito dos fanzines, que de acontecimento e de produção de sentidos, como forma
Sua autoria distribui-se pela subcultura em geral; de se colocar no mundo e de interpretá-lo.
eles derivam dela, em vez de serem produzidos Esboçando as linhas gerais do universo ­pertencente
por profissionais para consumo da massa. [...] Essa aos fanzines, dedico minha atenção à relação entre fan-
plurivocalidade popular contrasta não apenas com zines e literatura. Assim, proponho-me a refletir sobre as
as revistas de consumo padronizadas, mas também práticas relacionadas à produção e circulação desses tex-
com essa outra forma de produção dos leitores.
tos, bem como as atitudes que os envolvem. A proposta
[...] O acesso aos fanzines é quase completamente
aberto e os valores grupais são tipicamente enfati- é pensar uma produção que não se apresenta na forma
zados. (JAMES, 1993, p.224). de livro, entendido como lugar legitimado do poder da
escrita e dos discursos, e, se ocorre em alguns casos, é
O que quero apontar, com a colaboração de Da- de pequeníssima expressão. Em sua grande maioria, são
vid James, é a existência de uma produção que, ao passo trabalhos confeccionados de forma artesanal, com poucas
que é subterrânea, também se movimenta pelos meios e páginas, e às vezes ocupando apenas o espaço de uma
se processa fora dos lugares legitimados de emissão dos folha, que se dobra em três partes e desdobra a folha em
discursos, longe dos manifestos de vanguarda ou mesmo seis páginas em formato de folheto.
de propostas estéticas elaboradas. Essa é uma literatura se-
Outro ponto dessa reflexão é a questão referente
melhante a uma névoa que se espalha sorrateiramente, se
ao autor. Aqui, ele é um sujeito, que muitas vezes não se
pulveriza pelas bordas e pelos “entres” e compartilha das
vê como escrito, esse ser individualizado com letra mai-
sensibilidades de nossa época e de uma gramática que
úscula, locus de uma fala especializada e legitimada por
tem como palavras-chave o instável, o volúvel e o fugaz.
seu lugar de fala em um mercado editorial, por uma crí-
Os fanzines não ocupam um lugar fixo de fala, de tica especializada ou por discussões acadêmicas. Longe
acumulação de ganhos e emanação de discurso através de dessas circunstâncias, a literatura dos fanzines são textos
meios de comunicação convencionais, tais como revistas que circulam de mão em mão, em espaços restritos e em
periódicas e jornais semanais. Na maioria das vezes os pequenas tiragens.

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a poética infame dos fanzines

O contrato que eles estabelecem entre si é o da


amizade, da fidelidade e da honestidade contra
as instituições. Na lógica dos fanzines, eu te dou
ou troco, e tu fazes o que quiseres com ele. (GAL-
VÃO, 2005, p. 33).

Ao que está sendo apontado, o editorial do fanzine


O Idealista é bem esclarecedor ao afirmar:
Se você gostou deste zine, recomende-o a alguém,
divulgue este endereço, empreste ou copie este
zine pra quem você quiser. Como sempre, este
zine é 100% livre de direitos autorais. Copie,
inteiro ou em partes, tudo o que achar útil ou
interessante. (IDEALISTA, s/d, nº2).

O que esta citação demonstra é outro modo de cir-


culação dos textos e da escrita. Dessa forma, a noção de
propriedade privada das idéias é fraturada e subvertida. Mas
vale ressaltar que essa questão não é uma regra fechada.
Mais um elemento singular desse universo diz res-
peito à produção e circulação, e como esses textos se dão
a ler. Pois os textos chegam até as pessoas em movimento
inverso ao costume regular em que as pessoas vão até uma
livraria comprar um livro. Assim, pretendo evidenciar uma
literatura que circula nos fanzines, mas que também se
materializam em forma de livretos, brochuras e livros de
pequenas tiragens. Os poetas desse contexto, em parte,
andam pela cidade distribuindo, trocando ou vendendo
(Tom Zine, Frei Gaspar-MG, n. 22, 1999)
a preços baratos sua produção. São poetas/escritores que,
além de escrever, produzem seus trabalhos artesanalmen-
minsk e Murilo Mendes, para montar seu fanzine, junta-
te e saem a andar pela cidade atrás de interlocutores. A
mente com os poemas de seus colaboradores. Ele arrasta
dimensão escritor-leitor, em que comumente existe uma
para seu trabalho referências e falas para compor ­aquilo
grande distância, aqui é quebrada. Nesse caso, o leitor
que ele quer comunicar. Dar visibilidade ao universo de
pode conversar e trocar ideias com o escritor e é impor-
sua preferência, que pertence e compartilha com outros.
tante pensar a quebra dessas distâncias e hierarquias – de
Além do que, não há pudor no momento de fazer os rou-
lugares de fala, de estatutos, de mercado, etc.
bos para as suas montagens. A disposição das poesias nas
Nessa imagem que mostra uma das páginas do páginas compõem um mosaico juntamente com a ima-
Tom Zine, o fanzineiro se apropria de uma imagem e de gem, essa relação de atravessamento mútuo da forma a
poemas de autores conhecidos, como por exemplo Le- um espaço de produção erótica que transita entre os se-

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a poética infame dos fanzines

xos sem limitações do desejo. Aqui, o corpo é apresenta- curtições – outros, uma perspectiva feminina e o erotis-
do como lugar do erotismo, circunscrito pela dimensão mo, já outros, tomam a palavra para falar de desigual-
do prazer. Em outra página do fanzine, escrito em letras dades sociais, repressão do corpo, ou, sobre liberdade e
garrafais: “a dor de amor da gente não sai nos jornais”. amor livre. O que eles têm em comum? O desejo de se
Mas, no entanto, essas dores estão marcadas nas páginas expressar, de tornar visível seus universos, pôr os vários
dessas publicações. Esses sentimentos suprimidos e re- universos pessoais em conexão, compondo relações de
primidos são apresentados de maneiras variadas nessas trocas. Esse é um cenário bastante diversificado que tem
publicações através de poemas de expressão livre e es- como influência a poesia irônica e mimeografada da dé-
pontânea, como imagens da vida cotidiana. cada de 1970, a literatura engajada dos anos de 1960, o
Seguindo o fluxo dos temas que ocupam as páginas espírito livre de autores como Rimbaud, a atitude “de pé
dos fanzines, trago para o diálogo o Dama da Noite, no na estrada” dos escritores beatniks americanos, além do
qual encontramos a seguinte passagem no seu editorial: “faça você mesmo” dos punks. Ao que está sendo dito, o
fragmento que segue do fanzine La Poem@ – Livre Asso-
Ayla Andrade não compôs Dama da Noite Vo- ciação de Poetas Marginais – é bem expressivo:
lume Um somente para mulheres – nem mesmo
para as inteligentes. O feminino, universo que é Das conversas de bar, esquinas, ruas, estradas, cartas,
exposto e questionado aqui, aparece sob a ótica da telefones, abraços, beijos, pequenas publicações,
irreverência e da força, da audácia e do cinismo” angústias e desejos que vem se construindo a partir
(Dama da Noite, v. 1). de nossa filha mãe[...[ L@ Poema. Este é mais um
fruto desse parto sem fim, desse gozo conjunto, dessa
Acompanhando a proposta do fanzine, segue-se farra profana (dessa fuzarca) que você está sendo
um poema que demonstra essa postura: convidad@ a participar colocando para fora um
pouco do que inunda sua imaginação, unindo forças,
trocando experiências, fazendo amizades e com-
Eu já apaguei a luz partilhando o novo, o desconhecido, o perigoso...
Eu já bati a porta nossa união, nosso interagir... [...]. Espontaneidade e
Declarei também os impostos dinamismo, intercâmbio e vitalidade. Contracultura
Já fiz as malas em movimento rompendo as grades desse cativeiro
Pintei um quadro cotidiano sentindo tesão pela vida e gozando da
Fiz sexo na pia existência (La Poem@, março de 2000).
Surrei meu vizinho
A fala expressa em La Poem@ aponta para uma
Eu já
outra racionalidade que orienta práticas de ser e de fazer,
e é a isso que estou chamando a atenção. Pois esse é
Eu já fui mulher suficiente pra ser seu homem
o campo de ação da contracultura e do “faça você mes-
(Ayla Andrade, em Dama da Noite, Fortaleza-CE, v. 1)
mo”. Um universo esfarelado, que se conecta e se expan-
de fragmentadamente, sem uma preocupação com uma
Seguindo a tônica do poema, de forma geral, os totalidade, uma imagem homogênea ou uma única voz.
textos que circulam nos fanzines falam sobre o cotidia- Pelo contrário, o movimento dessas ações se realiza e se
no, sobre a existência e sobre as relações sociais. Alguns propaga através de travessias táticas. Artes-manhas que se
exploram as experiências noturnas – bares, bebedeiras, dão no cotidiano, que jogam com os acasos para ganhar

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a poética infame dos fanzines

algo. São astúcias, dribles e pilhagens, que ao mesmo É aí, nesse interstício entre um pretenso controle social
tempo funcionam como defesa e ataque. São os golpes e as táticas caminhantes, que se pode situar o interesse
do fraco sobre o forte (CERTEAU, 1994). histórico dos fanzines: eles podem nos ajudar a per-
ceber que, sob a sombra das grandes teorias sociais,
A partir de Certeau podemos dizer que as práticas pulula um movimento surdo de micro-resistências que
que envolvem a linguagem produz travessias, realiza des- fundam micro-liberdades e deslocam as fronteiras da
locamentos, possibilita invenções que dribla o espaço, o dominação dos poderes sobre a multidão anônima.
tempo, os códigos de lei e os sistemas semióticos domi- (CASTELO BRANCO, 2008, p. 63).
nantes. Penso, portanto, os fanzines se processando por
essas práticas que daríamos o nome de delinquentes. De- Desse modo, a discussão que apreende a prática dos
linquentes no sentido de subversão criativa, de produção fanzines como de resistência não diz respeito a uma postu-
de mundos tangenciais, de subjetividades não serializa- ra engajada de militância partidária. Essas são resistências
das. Ou seja, de uma prática que “tem por especificidade e enfrentamentos que se realizam pela ironia, “tiração de
viver não à margem, mas nos interstícios dos códigos que onda”, pelo deboche e, em alguns casos, também, em for-
desmancha e desloca.” (CERTEAU, 1994, p. 216). ma de protesto. Essa movimentação é realizada por sujeitos
que estão produzindo suas subjetividades se afastando dos
Desse modo, os fanzines estão envoltos em práticas
processos de subjetivação autoritários de modo serializa-
que não esperam pelo que está circunscrito e ­anunciado,
dos. A resistência se dá na micropolítica.
elas inventam sua condição de existência e se lançam como
uma possibilidade – elas mesmas fraturam o espaço e reali- As táticas dos fanzineiros e o modo de operação
zam a travessia. Percorrem caminhos sem a preocupação de dos fanzines fazem pensar questões que se sintonizam
se estabilizar, de se fixar em um lugar, de tomar um lugar de com as preocupações de Félix Guattari e Suely Rolnik
autor-autoridade. Mas também é necessário fazer ressalvas, (1996), referente à produção de subjetividades que se
ao passo que há aqueles que decididamente não têm preten- constitua fora da esfera de uma semântica dominante, dos
sões de vida literária convencional, existem os que buscam cartéis semióticos que trabalham por uma subjetividade
o seu espaço no cenário literário de sua comunidade ou ci- autoritária. Para Félix Guattari, é necessário
dade. Nesse momento, é interessante se perguntar como os inventar um modo de produção cultural que quebre
fanzines se tornam produtos de uma sociedade e de um tem- radicalmente os esquemas atuais de poder nesse
po? Como essa produção de sentidos é consumida dentro campo, esquemas de que dispõe o Estado atualmen-
do campo instável dos signos e significados? te, através de seus equipamentos coletivos e de sua
Essas são ideias, sensibilidades que estão transitan- mídia” (GUATTARI e ROLNIK, 1996, p. 23).
do em paralelo e, ao mesmo tempo, nos interstícios dos A preocupação de Guattari está em desenvolver pro-
sistemas de signos e de poder. Eles se posicionam fora cessos de singularização que vazem a essa estrutura cultural
da superfície visível dos grandes acontecimentos, porque dominante que se fecha sobre si. Segundo os autores,
essas são práticas volúveis e de curta duração, é preciso
estar atento para perceber e embarcar em seu movimento. [...] o que caracteriza os modos de produção capitalís-
Nesse contexto, o ato de escrever, produzir e divulgar seu ticos é que eles não funcionam unicamente no registro
próprio material configura uma ação no campo das micro- dos valores de troca, valores que são da ordem do
políticas do cotidiano. Seguindo essa perspectiva, Edwar capital, das semióticas monetárias ou dos modos de
financiamento. Eles funcionam também através de
de A. Castelo Branco explica que,
modo de controle da subjetivação, que eu chamaria

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demetrios gomes galvão ressonâncias no meio do caminho e/ou no caminho do meio:
a poética infame dos fanzines

de ‘cultura de equivalência’ ou de ‘sistemas de equi- A colagem da capa do fanzine La Poem@ chama a


valência na esfera da cultura’. O capital ocupa-se da atenção para o corpo como um espaço que sofre diversos
sujeição econômica e a cultura da sujeição subjetiva. constrangimentos e repressões, atravessado por códigos
(GUATTARI e ROLNIK, 1996, p. 16). de leis, normatizações e convenções sociais. Esse é um
Assim, tangenciando as subjetividades da cultura corpo domesticado e que tem seu desejo subtraído. A
de equivalência, os fanzineiros são sujeitos astutos que imagem sugere que o corpo feminino exposto na cola-
negociam seu lugar social, driblam as formalidades, rein- gem é uma prisão: as mãos cobrindo o sexo, no ventre
ventam trajetos e dão seus golpes. O movimento transver- as grades de uma cela e sobre o restante do corpo vários
sal que invade o outro, que tira as coisas do lugar, desar- números simulando códigos. O corpo é dado a ver a par-
ruma o espaço, ressignifica os usos, provoca rachaduras tir de codificações que o apresentam como um espaço
e abre passagens no tempo. Essas práticas apontam para que sofre proibições e violências. As críticas construídas
deslizamentos que são possíveis através de táticas nos mi- nesse fanzine através de suas poesias e colagem têm uma
cro-espaços. Desse modo, realizam sua movimentações orientação libertária e anarquista, já que seus produtores
como micro-resistências, ou sejam, a própria existência são jovens Anarco-Punks.3 Para esses sujeitos, a poesia é
dessa produção já é um enfrentamento. Seguindo-se a dis- constituída como uma fala de contestação, como forma
cussão, tomo como exemplo a seguinte imagem: de expressar sua repulsa aos valores sociais dominantes e
de expor suas críticas à sociedade. Como pode ser perce-
bido no poema que segue:

... Meu sorriso reprimido emudece meu corpo calado.


Calos, cascos e couraças...
Lábios secos e olhares curtos,
O pão seco engana a fome...
De mentiras engasga o corpo.
Ousar romper... ousar tentar.
A experiência nos alimenta
Frutos sulcos da existência...
Chocar-se com o novo,
Rasgando as teias da velha moral,
Vomitando o veneno que bem cedo nos fizeram beber...
Infância reprimida, desejos amordaçados.
...luta interminável!!!
(Léo Lopes, La Poem@, Campinas-SP, s/n, s/d)

3 Anarco-punk: termo utilizado para designar expressões juvenis


urbanas, que surge da junção do Punk – movimento radical de
jovens insatisfeitos com o sistema e suas representações – com as
(La Poem@, Campinas-SP, s/n, s/d) ideias anarquistas do final do século XIX, que pretendiam pôr fim ao
capitalismo e criar uma sociedade igualitária para todos.

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demetrios gomes galvão ressonâncias no meio do caminho e/ou no caminho do meio:
a poética infame dos fanzines

É importante pensar as práticas e as falas que envol- de linguagens distintas, para a composição de uma ima-
vem os fanzines como um campo de ressonâncias, de sen- gem híbrida. São universos que emprestam sentidos um
sibilidades compartilhadas que se manifestam ­marcando ao outro. Há uma interpenetração do universo farmaco-
passos pelos caminhos do meio. Essa prática criativa, delin- lógico com o poético, da ciência exata e da fruição do
quente, que transita pelos interstícios, produz um univer- espírito. O que sugere a poesia como remédio para o
so heterogêneo extremamente contaminado, onde não há espírito ou que a poesia aqui presente é tarja preta, uma
sentido puro. É importante perceber nesse eco formado por poesia que pega pesado e que pode causar riscos para
essas muitas vozes, convergentes e dissonantes, o caráter um leitor desavisado. Nesse exemplo, o corpo toma a
babélico da linguagem através de suas fricções e profusões, expressão de doente, envolto num dizer metafórico, em
o que Lorge Larrosa explica da seguinte maneira: que códigos se misturam na produção de um híbrido.
A língua, qualquer língua, em qualquer momento
Essa é uma prática de apropriações que ressignifica os
de sua história e em qualquer contexto de uso, usos e os consumos. É a reutilização de objetos no pro-
dá-se em estado de confusão, em estado de dis- cesso da invenção, invenção essa que cria deslocamen-
persão; Babel significa que a palavra humana se tos semânticos, reinventa lugares e geografias de ação.
dá como confusa, como dispersa, como instável, Assim, o fanzineiro toma contornos de um artesão da
e, portanto, como infinita. Babel atravessa qual- linguagem, não só do texto escrito, mas do texto escrito
quer fenômeno humano da comunicação, ou que se funde com outros através de colagens, desenhos
de transporte ou de transmissão de sentido. E, e interferências. Nesse exemplo, as informações conti-
naturalmente, qualquer ato de leitura. (LARROSA, das nas caixas de remédio se transformam em outro texto
2004, p. 72).
juntamente com as poesias que se sobrepõem, criam ca-
Tomo essa passagem de Jorge Larrosa no sentido madas, texturas, tessituras de signos.
de pensar as fusões produzi- Acompanhando o percurso que se desenhou até
das nos fanzines como uma aqui, é possível dizer que existe uma relação íntima e di-
característica babélica. Poder reta entre as práticas de existências e as artes de fazer e de
pensar os fanzines como um dizer que envolvem os fanzines. Artes que, por vezes, se
campo de experimentação expressam de forma babélica ao produzir fusões e curtos-
da língua e da linguagem, circuitos entre elementos que parecem impossíveis de se
observando essas práticas juntar. Esse modo de dizer é que o torna singular e que
que fabricam textos e ima- provoca deslocamentos.
gens pelas junções, monta- Então como os fanzines se dão a ver e a ler? Eles
gens e agrupando elementos as fazem a partir de práticas variadas, ou seja, a partir
incongruentes – produção de de montagens (recorte e cole), através de uma estética
mundos através da lingua- caótica de sobreposições, tangenciando os canais insti-
gem bricolada. Desse modo, tuídos de emissão dos discursos, através de uma produ-
a imagem que se segue dá a ção alternativa e não comercial, circulando por caminhos
ver essa condição babélica: subterrâneos, paralelos, alternativos, provocando desvios
Nesse exemplo, há semânticos no meio do caminho e/ou no caminho do
uma colagem que se vale da (Sintezine, Teresina-PI, n. 11, meio, produzindo fragmentos perecíveis, expressando-se
sobreposição de universos e março de 2005) por meio de composições híbridas no devir das possibi-

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demetrios gomes galvão ressonâncias no meio do caminho e/ou no caminho do meio:
a poética infame dos fanzines

lidades ainda não realizadas e, inclusive, inventando sua mutações juvenis nos corpos das metrópoles. Rio de Ja-
própria linguagem. neiro: DP&A, 2005.
Assim, circulando pelas práticas e pela geografia es- CASTELO BRANCO, Edwar A. Artistas diaspóricos, litera-
pacial e informacional dos fanzines, percebo que existem tos desviados: fanzines, cultura ordinária e literatura me-
quatro pontos coextensivos que norteiam a reflexão de- nor. In: ADAD, Shara J. H.; BRANDIM, Ana C. M. de S. &
senvolvida nesse artigo. Em princípio, é a movimentação RANGEL, Maria do S. (Orgs.). Entre línguas: movimento e
dos fanzines, que se constitui pelos entres, pelos meios, a mistura de saberes. Fortaleza: Edições UFC, 2008.
partir de negociações na transversal. Posteriormente, é o CERTEAU, Michel. Relatos de espaço. In: ______. A in-
que diz respeito a sua produção de subjetividade, que os- venção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis: Rio de
cilam para fora de uma cultura de equivalência, como diz Janeiro: Vozes, 1994.
Felix Guattari e Suely Rolnik (1996). Conseguindo isto,
GALVÃO, Demetrios Gomes. Fanzine: a cartografia re-
a partir de sua prática de mutação e de refazer-se cons-
belde de uma máquina de guerra. Teresina: Universidade
tantemente. Depois, são as produções de sentido realiza-
Federal do Piauí. Monografia de final de curso – Licencia-
das por essa mídia minúscula que fabricam imagens da
tura Plena em História. 2005.
sociedade, do cotidiano e do universo dos movimentos
de juventude. Por último, é sua viabilidade como docu- GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Cultura, um conceito
mento histórico, para pesquisar os diversos movimentos reacionário? & Subjetividade e História. In: Micropolítica:
de linguagem e de juventude que fazem dos fanzines seu cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996.
canal de expressão. JAMES,  David E. Poesia/punk/produção: alguns textos re-
A dilatação do olhar do historiador sobre os frag- centes em Los Angeles. In: KAPLAN, E. A. O mal estar no
mentos do passado – indícios, vestígios – tem permitido pós-modernismo. Rio de janeiro: Zahar Editores, 1993.
enxergar práticas sociais e produções de sentidos que si- LARROSA, Jorge. Ler é traduzir. In: ______. Linguagem
nalizam um presente recente, um passado provável ou e educação depois de babel. Belo Horizonte: Autênti-
um pedaço dele. Os fanzines se apresentam como mais ca, 2004.
uma modalidade desses fragmentos que, junto de outros, RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento.
podem, articulados em narrativas historiadoras, produzir Campinas - São Paulo: Editora da UNICAMP, 2007.
uma dizibilidade e uma visibilidade (RICOEUR, 2007).
Assim, com a ampliação da noção de arquivo e do pró-
Fanzines
prio fazer historiográfico, tem possibilitado produzir o
passado no presente de modo mais complexo, ouvindo
um maior número de vozes e observando melhor os de- Dama da Noite. Fortealeza-CE, vol. 1, s/d.
talhes que se encontram ao lado e se sedimentam em ca- La Poem@. Campinas-SP. s/n, 2000.
madas pouco hierarquizadas. La Poem@. Campinas-SP, s/n, s/d.
O Idealista. Belo Horizonte-MG, s/n, s/d.
Referências Bibliográficas Sintezine. Teresina-PI, n.11, março de 2005.
Tom Zine. Frei Gaspar-MG, n. 22, 1999.
CANEVACCI, Maximo. Das contraculturas às culturas in-
termináveis. In: OLMI, Alba. (Trad.). Culturas extremas:

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zines em fortaleza (1996-2009)

Zines em Fortaleza (1996-2009) perimentação, de construção de uma linguagem, de uma


rede social e – sem que a maioria perceba – construção de
Fernanda Meireles uma parte de sua identidade mais íntima.
E voltando à imagem do jogo de dominó em pé: a
O texto a seguir é uma forma de transformar dis- regra é simples e o resultado inevitável: trata-se de afetar o
cretíssimos fatos históricos em um jogo de dominó em outro com seu movimento individual. Uma reação em ca-
pé e de quebra-cabeças. Digo discretos porque poucas deia com natureza voltada para a criação e troca. Suspeito
pessoas estavam prestando atenção no desenrolar desses que o zine preferido de muitos é independente de gênero,
fatos, e menos pessoas ainda, dentre as que reparam em tom ou formato, mas é o zine que deu vontade de... fazer
tudo, estavam refletindo sobre. As pessoas estavam ocu- um zine – ou outra coisa! Já falando do quebra-cabeças,
padas VIVENDO. Eram o fato em si. E estavam muito de imagine que o mundo dos zines é isso mesmo, mas com
passagem. É uma tentativa de dar um panorama-­flashback peças cujos moldes são improvisados, alterados de acor-
para quem esteve lá e para quem não esteve, situar e do com a vontade do jogador e a imagem ­resultante do
acender luzes. Aviso que se o seu interesse em zines for todo muda a cada fase de sua vida.
de longa data, é provável que tenha estado presente em Como toda obra pessoal, zine é um jogo de armar.
algum ponto dessa narrativa que se segue. Outro aviso: Planejar e executar o plano de capturar o leitor, nem que
o nome de todo mundo muito importante nessa história seja nos cinco minutos que dure uma leitura enquanto
não está aqui porque são muitas pessoas. Muitas mesmo, se espera numa parada de ônibus. São fisicamente tão
cada uma com sua importância. Esse é um relato pessoal. frágeis, rasgam, amarelecem, seus corpos são corroídos
Topei escrever esse arquivo menos como especialista em pelo grampo. Existe um caráter de despretensão reinante
Arte-Educação e mais como fanzineira apaixonada que nessas produções – no máximo uma pretensão ingênua,
ainda sou. Resolvi não pôr imagens porque já temos o que sempre me fez rir. Sorrir, aliás. Dos vários clichês
Google para facilitar a nossa vida e muito dessa história que encontramos por aí, existe o “Zines são, por natureza,
foi registrada/ilustrada na Grande Rede. toscos”. De fato, zines são experimentações amadoras, o
Zines são uma fase na vida das pessoas, sejam elas que pode mesmo ferir os olhos de quem busca requinte.
leitoras ou autoras. Mas embora tenha meus autores preferidos entre zineiros,
Não me dei conta disso logo, foi preciso o tempo a tosquice, o amadorismo, o mau-acabamento, os erros
passar, assim como o entusiasmo de muitos colegas – e o gramaticais, a qualidade ruim nunca me irritaram, pois
meu permanecer (faço zines há 13 anos, trabalho com ofi- o meu interesse pelos zines sempre esteve além do valor
cinas de zines há 9 anos). Nessa observação não há mérito estético – tão variável de acordo com nossos próprios gos-
nem culpa, muito menos nostalgia. Tenho repetido isso tos – mas pelo significado por trás de suas existências. A
por aí, nas oficinas, sublinhando que o caráter efêmero, ao Grande Vontade e a Teia Invisível.
contrário do que se prega, é mais um motivo para levar os Então... zines? Mensagem na garrafa jogada ao
zines divertidamente a sério, aproveitar, dar muito tempo mar, pequena 3x4 de papel do/de dentro da pessoa, pri-
e energia à sua produção, estar atento e aberto para as mo urbano do cordel (primo que brincou de videogame,
conexões que se formarão e esquecer o medo do ridículo, ouviu muito rock e gazeou muita aula), biscoitos finos
a censura, lançando-se corpo e alma a um período de ex- feitos nas coxas, um tipo de carta misturada com um tipo

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FERNANDA MEIRELES zines em fortaleza (1996-2009)

de diário, laboratório para algo que vem depois, passa- E as muitas linhas de ônibus do cruzamento Ave-
tempo, arma em forma de celulose, espelho e nave capaz nida 13 de Maio com Avenida da Universidade, cortando
de te levar para outros mundos. Um zine pode ser tudo Fortaleza de norte a sul e de leste a oeste num bairro boê­
isso. Os conceitos do que seja um fanzine e para que ele mio chamado Benfica, contribuem para explicar o fenô-
serve e porque ele é feito, com o passar do tempo, se meno dos zines aqui. Sim, a geografia de Fortaleza influi
multiplicam, mas não se anulam. Pelo contrário e para o nas pessoas. Qualquer geografia influi. Debrucemo-nos
desespero de acadêmicos, eles se sobrepõem, somam-se. sobre o Benfica, um instante. Ele sempre esteve no meio
E o universo se expande! do meu caminho para quase tudo que vou fazer na rua e
comecei a andar por lá quando gazeava aula do Colégio
A Cidade Solar e o Benfica Cearense no pré-vestibular e ia pra Casa de Cultura Alemã
assistir filmes de graça. Depois, quando entrei na faculda-
de e por volta de 2001, quando aconteciam as Feiras do
Nos últimos 13 anos, Fortaleza foi o lugar onde os Jeriquiti no estacionamento do CEFET e todo mundo ia
zines, seus conceitos, propósitos e significados se multi- beber na pracinha logo que acabava.
plicaram. Através de conversas em praças e paradas de
É nesse bairro que encontramos residências es-
ônibus, trabalhos acadêmicos, cartas, porres em mesas de
tudantis, residências comuns, a Rádio, o Teatro, [...] o
bar, escolas, Internet, Zine-ses, seminários, palestras, ofi-
Museu, e, em suas versões universitárias, os cursos de
cinas. Produção, fruição e crítica. É aqui que temos com
Humanas da UECE e UFC, árvores centenárias mantidas
frequência vários espaços (de tempo e espaço físico!) para
intactas bem no meio das ruazinhas, a antiga Escola Téc-
produzir sozinho ou em grupos, para apreciar o que é nica (depois CEFET e hoje IFETE-CE), a Biblioteca Muni-
produzido e para falar sobre isso, repartir impressões com cipal, sedes de sindicato, comitês (em geral de esquerda),
outros. Aprendemos muito mais quando não estamos so- bares, muitos bares, duas pracinhas (uma delas com bar-
zinhos nesse processo todo. A rede inclui até o leitor que raquinhas de comida), um animadíssimo pré-carnaval de
amassa e joga o zine no lixo, aquele que parou de respon- rua, escolas públicas, um shopping, uma aglomerado de
der cartas ou o zineiro que engaveta seu original antes de casinhas escondidas por trás da UFC (que volta e meia
tirar cópias. Qual foi o primeiro zine feito em Fortaleza? chamam de Favela da Marechal), um estádio de futebol,
Impossível dizer, assim como é impossível listar quantos sorveterias, livrarias, um motel, uma Igreja e um hospício
zines existem em qualquer cidade. Tantos podem estar (todos praticamente lado a lado) etc. Imagine que cada
nascendo nesse exato momento, essa lista estaria sempre lugar desse atrai para seu entorno um certo tipo de gente
incompleta e isso é algo bom. e você terá uma idéia do que pode encontrar no Benfica.
Brincar de olhar o mapa da cidade. Quinta maior Aliás, “encontro” é uma palavra-chave para que se enten-
capital do país (ou seria quarta?). Praias, forró e humor da o bairro e o que ele proporciona, já que se trata de um
escrachado para turistas, essas são as referências que se lugar realmente habitado de forma plural e pública. Um
têm daqui em qualquer lugar que se vá. Quem vive A lugar VIVO. Num único passeio (e as pessoas vão muito
cidade e NA cidade sabe que, na verdade, existem mil lá para isso mesmo) é possível ver, convivendo de perto:
cidades dentro de cada uma, mil bairros dentro de um só, seus moradores idosos, crianças brincando, seres da escu-
mil pessoas dentro de uma só. E dentro de cada uma, um ridão, estudantes e trabalhadores que curtem um happy
universo de histórias, impressões, expressões artísticas e hour por ali, acadêmicos, políticos, artistas, punks, muito
necessidade de se comunicar. jovens homossexuais que namoram em público e elege-

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FERNANDA MEIRELES zines em fortaleza (1996-2009)

ram uma das praças como ponto de encontro, skinheads Mas o maior diferencial do grupo era a capacidade de
(raro, mas tem), ladrões ocasionais, etc. funcionar em rede, bolando parcerias com outros grupos,
Mais uma coisa. Durante muito tempo era no Ben- buscando patrocínios e organizando eventos, festas.
fica que existia a loja Fanzine, em plena av.13 de Maio. Era uma manhã qualquer de 1996. Passando pelo
Nascida no centro como uma banquinha, cresceu, migrou Benfica, bem no cruzamento da 13 de Maio com Av. da
e mudou de nome. Hoje se chama Cultura, vende gibis Universidade, resolvi entrar no Mauc (Museu de Arte da
e revistas/livros usados e, se você procurar muito bem, UFC) pra ver sozinha aquela exposição. E foi ali dentro
talvez ache alguns zines. que uma das primeiras fichas caíram de fato. Todas as
paredes do Mauc – que são muitas e muito grandes –
estavam tomadas por reproduções de páginas de zine do
Seres Urbanos & Grapete Brasil e do mundo todo, de todos os gêneros e assuntos,
intercaladas por painéis imensos – tipo outdoor – pinta-
Os Seres Urbanos eram seis caras (Weaver, Mar- dos pelo Weaver. Passei horas lá dentro, encantada, rin-
cílio, Lupin, Galba, Kaos e Elvis) que se juntaram para do, sorrindo, imaginando que para cada folha ali colada
fazer zines no começo da década de 1990. A ousadia, havia por trás uma ou mais pessoas que sentiam a mesma
organização e diálogo com zineiros do país todo (e até de vontade: pôr no papel o que pensam e sentem, multi-
outros países) marcou a história dos zines em Fortaleza. plicar e se espalhar pelo mundo. Eu já havia conhecido
Mas não foram os únicos, outros grupos/indivíduos exis- o Grapete, zine da Thaís Aragão, logo que montamos a
tiram em torno de temas como quadrinhos (e a Oficina banda Devótchkas, meses antes. E na casa do meu avô,
entre Benfica e o Centro, onde ensaiávamos e passáva-
de Quadrinhos da UFC já dava suas crias), política (os
mos a tarde numa espécie de estufa criativa, passei tar-
centro acadêmicos sempre foram celeiros de zines), rock
des inteiras lendo uma pilha de zines levada pra lá pelo
(em Fortaleza os zines de heavy metal aparentam ser mais
Weaver, que colaborava com o zine da Thaís. Mas só no
numerosos e sistematizados que os zines punks) e litera-
meio do salão do Mauc, embasbacada com o número
tura (primos dos poetas de mimeógrafo dos anos 1970).
e a variedade de zines listados é que tive o impulso de
Durante muito tempo foi possível identificar facilmente a tomar nota de vários endereços (todos tinham o contato
qual desses gêneros o zine pertencia, assim como prever junto à reprodução exposta) e me trancar por uma se-
sua linguagem visual e textual. Viu um, viu todos, mais ou mana escrevendo a cada um, contando do lugar onde
menos isso. Um parecia a cópia do outro que, por sua vez, os encontrei, mesmo sem eles estarem lá. Não o fiz (só
buscava um padrão “oficial” de publicação, mesmo sem busquei a correspondência interestadual depois do Es-
querer, como um tique nervoso. Está lá praticamente uma putinique, em 2002), mas acabei fazendo meu primeiro
mesma sequência de perguntas com as bandas, as rosas e zine. Isso era a exposição Energetic Zines em sua terceira
corações ilustrando zines de poesia, os heróis inventados edição, montada aqui em Fortaleza pelos Seres Urbanos.
nas HQs e o tom de “nós da redação”. Os Seres Urba- Foi a primeira vez que tive a noção exata do tamanho gi-
nos foram os primeiros a produzir coisas estranhas, como gante da teia invisível que une os fanzineiros e curiosos.
por exemplo, ilustrar letras de músicas de bandas locais e O catálogo da exposição é um zine-pérola, bem grande,
lançá-las nos shows, incluir muitas experimentações com chamado Energetic Zines.
xérox ou os novos programas de computador no meio da Outro marco importante nos anos 1990 foi a pági-
HQ (eles trabalhavam numa gráfica, o que facilitava) etc. na PUB. Ela saía semanalmente no jornal O Povo, entre

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FERNANDA MEIRELES zines em fortaleza (1996-2009)

1997 e 1998, era feita por Thaís Aragão (mais tarde uma algo que eu já fazia e sempre gostei de fazer, planejando
das fundadoras da ONG Zinco) e Weaver Lima (na vida, conceito, formato e forma de distribuição com mais afin-
pós-Seres Urbanos). Com um visual gráfico ­revolucionário co. Veio o Missiva (sinônimo de carta, num português
(para profissionais de grande mídia que não se antenavam mais antiquado). Escrito explicitamente como carta aber-
com o que corria por fora) e lembrando a estética de um ta, distribuído via correios para pessoas que eu achava
zine (algo tão amplo, desculpem aí), ela trazia notícias interessante, mas não conhecia bem, depois de abordá-
sobre zines, outras publicações independentes, demos las e pedir-lhes o endereço físico. Enquanto a Internet
(de cassette para cd), festas, mostras... Enfim, tudo o que popularizava-se e muitos já haviam descoberto o e-mail,
corria por fora, e não só em Fortaleza, mas do Brasil e de as salas de bate-papo, e – os mais antenados – criavam
outros países. Como a página PUB não tinha anunciantes seus primeiros blogs, eu me lancei às cartas com todo o
e era um trabalho freelancer, um belo dia acabou, deixan- gás. O objetivo principal do zine era escrever sobre coi-
do uma lacuna na construção de pontes entre os vários sas cotidianas da cidade e fazer com que o leitor virasse
mundos alternativos de Fortaleza e além. coautor me escrevendo uma missiva de volta – publica-
da no número seguinte. Deu muito certo, logo o Missiva
Fimzine e Missiva tinha cerca de 40 correspondentes e passei a conviver de
perto com a agência de correios de meu bairro. Conhe-
cia os carteiros e notava uma certa simpatia deles para
Em 1996, ilhados na casa de praia do meu avô no com a correspondência. “Em tempos de e-mail e cartas
Icaraí, sozinhos, eu e meu amigo de infância, esperando comerciais, porque essa menina recebe tantas cartas e
os amigos que resolveram chegar apenas na manhã se- em envelopes tão esquisitos? E todas da mesma cida-
guinte... fizemos o original do primeiro Fimzine. Ou seja, de!”, era o que notavam. Muitas vezes ia buscar dentro
estávamos entediados, com tempo livre, entre amigos e da agência as cartas que chegavam e noto hoje que esse
com bons auspícios: condições mais que ideais para dar zine foi fundamental como uma das bases para tudo o
à luz a um primeiro zine. “Não, a gente não precisa de que ia acontecer em seguida. O Missiva proporcionava
computador! Vamo fazer tudo à mão.” E assim foi. Usa- um contato íntimo através do texto manuscrito com os
mos o que tínhamos ali: papel e caneta. Escrever de for- leitores/coautores, gente que, como eu, estava entrando
ma manuscrita sempre foi minha mais frequente opção. na faculdade e se transformando em gente grande, co-
Sim, existia em mim um grande desdém com relação aos meçando a produzir suas próprias coisas sem saber bem
computadores. Escrever cartas sempre foi algo frequente e onde ia dar. Gente que habitava a mesma cidade e que
prazeroso para mim, então porque depender de um com- comigo – me encontrando ou não na rua, nos lugares,
putador para fazer um zine? o que era muito possível – começava a olhar Fortaleza
O Fimzine durou dois anos e saiu em nove nú- muitos outros olhos. Porém, notei que o Missiva estava
meros, tinha seções fixas, nenhuma linha editorial es- se tornando um gozo em si, em que, ao invés de con-
pecífica, o formato cordel, colaboradores fixos e nele cretizar seus projetos individuais, muita gente parecia se
experimentávamos de tudo, seja em composição visual contentar em esboçá-los ou esperar parceiros para pô-los
ou conteúdo. Circulava mais entre amigos, entregue em em prática. Enchi o saco e o Missiva acabou no número
mão, numa tiragem pequena – 30 exemplares. Ao mudar 6, numa longa carta aberta em que eu instigava todos a
meu curso de História para Letras, cansei do Fimzine. partirem para outra, paras suas Coisas em Si, quem sabe
Em 1999, decidi criar um outro zine fundamentado em começando com seus próprios zines.

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FERNANDA MEIRELES zines em fortaleza (1996-2009)

Oficinas de Zine & os Zines Yoyô Aconteceram sete Oficinas Yoyô (como ficaram
conhecidas) entre agosto de 2001 e dezembro de 2002,
numa periodicidade mais ou menos bimestral. A perio-
Em 2000, quando minha banda Devótchkas virou
dicidade das oficinas é um elemento marcante hoje pelo
a Alcalina e púnhamos em prática um plano mirabolante
seu ineditismo até então, tendo influenciado a criação e
envolvendo shows, zines e venda de camisetas para a gra-
o fortalecimento da rede de produtores e interessados em
vação do CD, comecei a dar oficinas de zine. Primeiro nas
zines, já que virou também um ponto de encontro de zi-
universidades e em espaços culturais pequenos. Logo no-
neiros que participavam ou não das oficinas. Influenciou
tei que ser professora de inglês já não me dava o mesmo
também por me dar a oportunidade de iniciar um arqui-
tesão, assim como trabalhar com carga horária, programa
vo sistemático referente a originais de zines de oficinas,
e cronograma definidos. Sem perceber com clareza (já
planos de aula, observações metodológicas e a melhorar
que esses períodos de grande mudança só podem ser en-
minha capacidade de auto-observação como arte-educa-
tendidos com clareza depois que o tempo passa), ao deci-
dora. Investigando diferentes áreas de conhecimento que
dir abandonar essa profissão discreta, porém promissora,
convergiam e enriqueciam todos os encontros, eu era
que eu me lançava no desconhecido, num campo novo
posta sempre diante de novas situações.
de algo chamado Arte-Educação. Não haveria cadeira no
curso de Letras ou em qualquer outro curso que pudesse Os cartazes das oficinas no TJA eram feitos ar-
me proporcionar uma aprendizagem tão rica, sempre um tesanalmente e já traziam em si uma linguagem visual
ensaio e sempre valendo, para mim e para quem estivesse que sugeria o clima da oficina e os temas abordados.
junto. A frequência em a que as oficinas rapidamente pas- As inscrições eram feitas na portaria do TJA e não ha-
saram a acontecer, os diferentes espaços onde ocorreram via nenhum perfil prévio de público, o que resultou em
neste primeiro ciclo, a metodologia usada e transformada turmas mistas quanto à idade, formação, classe social e
baseada no manuscrito (era mais rápido e simples) mis- interesses. O programa inicial foi montado e dividido em
turando as cartas dentro da própria cidade caracterizou, três partes básicas: contexto histórico e conceito de zine,
sim, os tipos de zines que temos hoje em Fortaleza. passeio pelo centro da cidade e pelo TJA e confecção e
montagem do zine. Partes estas que se subdividiam em
Em 2001, surge o convite visionário de Fernanda momentos explorados em cerca de 12h de oficina, por
Oliveira e Izabel Gurgel, então da equipe de produção sua vez dividas em quatro ou cinco dias, consecutivos ou
cultural do Theatro José de Alencar, para a realização de alternados, em uma das salas do anexo do TJA. As turmas
oficinas de zine no local. Tais oficinas não seriam remu- variavam de três a quarenta participantes, mas em média
neradas, porém teriam inscrições pagas à facilitadora e a podemos chegar ao número de quinze.
contrapartida era a disponibilização do espaço e o custeio
do material de divulgação (cartazes e panfletos), um pe-
queno zine-apostila e as cópias do zine produzido banca- Pego o Meu Esputinique... e Vou pro Zine-se Acolá
das pela Fundação Amigos do Theatro José de Alencar. A
única exigência era que, além do tema “Fanzine”, o zine Depois do Missiva, meus zines passavam a ter
produzido falasse sobre o centro da cidade de Fortaleza títulos e propostas diferentes uns dos outros, raramente
e o próprio TJA, daí o batismo do produto final de Zine passando do segundo número. Estava experimentando
Yoyô, em homenagem ao bode andarilho e boêmio, parte conceitos, até mais que formatos. Até que veio o Esputi-
do folclore de Fortaleza do começo do século XX. nique, um zine-catálogo, com endereços de outros zines,

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FERNANDA MEIRELES zines em fortaleza (1996-2009)

que resolvi fazer para distribuir entre os participantes das uma população flutuante nas Oficinas Yoyô, gente que já
oficinas Yoyô, como uma espécie de material didático havia participado e voltava para ver quem estava na nova
mapa-da-mina e realia (quando o objeto real é usado em turma (e o fato dessas oficinas ser num prédio histórico no
sala para falar sobre o tema da bendita). Era também uma centro, cercado de linhas de ônibus, favoreceu muitíssi-
forma de organizar para mim mesma e compartilhar com mo essa conveniência), zineiros semiaposentados, pesso-
as pessoas os zines que começavam a chegar a minha casa as que passavam para distribuir novos zines ou curiosos.
em profusão, uma utilidade pública para quem queria se “Porque não fazer um encontro de zineiros?” Não lembro
aventurar conhecendo zineiros e escrevendo diretamente de quem foi a ideia, e isso é uma das belezuras da coi-
a eles. Ele existiu em nove números, entre 2002 e 2007 sa. O Zine-se era o encontro mensal, nômade e gratuito
com o formato cada vez maior e mais número de páginas. feito por e para curiosos e interessados em zine, zineiros
É muito provável que ter conhecido o Q.I, de Edgard Gui- ou não. Aconteceram mais de sessenta Zine-se, com um
marães, nessa época, também tenha me inspirado a fazer público variável de imprevisível que podia ir de cinco a
o Esputinique. Porém eu não tinha o mesmo método de oitenta pessoas, dependendo da fase. Não há uma pessoa
detalhamento e apresentação. As resenhas eram divididas que tenha ido a todos. Penso no Zine-se como uma TAZ
basicamente em duas seções: zines de Fortaleza e zines (Zona Autônoma Temporária, que é quando as pessoas
do resto do Brasil. Eu acabava falando mais do fanzineiro ocupam um lugar público e durante aquele espaço de
que do zine e só publicava trechos das páginas de zines tempo, elas viram outra coisa, dura pouco e, depois, to-
que realmente me tocavam. E avisava desde o início: es- dos se separam outra vez, mas o lugar ficou marcado para
tas resenhas são pessoais, tendenciosas e muito suspeitas, todos os envolvidos). Acontecia em espaços públicos dos
melhor você ir descobrir por si mesmo do que gosta. Com mais diferentes tipos, o que possibilitava uma exploração
o tempo passei a incluir pequenos textos reflexivos sobre da cidade, assim como envolver o público passante. A
fazer zines, escrever cartas, a cidade e o Zine-se. O Espu- cidade se abria para nós, zineiros, e vice-versa. Nele os
tinique tinha uma tiragem média de sessenta exemplares, zines eram distribuídos, trocados, vendidos e quem ia era
era vendido nos Zine-se e pelos correios. Era quase 90% anfitrião e convidado ao mesmo tempo. Mais de cinquen-
datilografado, o que me custava muito tempo e dor nas ta Zine-se aconteceram em seis anos. Houve uma época
costas, mas lhe dava um charme, é verdade. Havia um em que as pessoas passavam a produzir em função dele;
certo frisson a cada lançamento, pois já que eu nunca fui era comum fazer zine de véspera e levar para montar lá
muito de dizer o que penso para os autores, ficava implí- mesmo, segundos antes de vê-los sumir na mão de al-
cito que meu elogio era o espaço dedicado a tal zine no guém. Os ziones ficaram menores, sim. Mas como tama-
Esputinique. O último número trazia 123 resenhas apenas nho não diz muito sobre qualidade, vejo isso hoje como
de Fortaleza. E foi quando desisti de fazer, parei no meio algo muito positivo. Mesmo pessoas que lançaram um
do décimo perigando ser soterrada pelo tanto de zine que único zine na vida dificilmente terão isso para si como
me chegava pelo correio ou me eram entregues por aí. E uma experiência negativa, e mais: a popularização dos Zi-
nunca tive talento nem disposição para ser crítica de obra ne-se, seu caráter “é só chegar”, o espírito de acolhimen-
de seu ninguém, daí, chega. to e informalidade característico possibilitou também que
O Zine-se nasceu em março de 2002, de forma pessoas com um perfil muito distante de um fanzineiro
espontânea e coletiva. Inevitável, eu diria. Foi fruto direto (se é que esse perfil ainda existe) produzissem seus zines.
da série de oficinas no Theatro José de Alencar e aconte- E, claro, isso resultou em zines ainda mais fora do padrão
ceu por seis anos, até 2008. Tornou-se comum a visita de encontrado no resto do país e do mundo. Um coletivo

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e­ xtremamente descentralizado, de facetas múltiplas, sem com ONGs, nas mais diversas áreas de atuação, em For-
manifestos, sem base operacional (seria o Benfica?) estava taleza e no interior do estado. De novo lá estava eu numa
formado e as pessoas começavam a produzir em duplas situação de aprendizado concreto, dessa vez observando
e em trios e a, ocasionalmente, criar projetos artísticos como instituições se organizam e atuam enquanto reali-
em outras linguagens. Nessa época muita gente se achou, zava oficinas. Para cada nova oficina, eu adaptava a me-
seja no que diz respeito ao que se quer ser e/ou fazer para todologia de acordo com o perfil da turma, o contexto, o
o resto da vida, seja sobre as pessoas que você quer ter local, os recursos de tempo, material e espaço disponíveis
por perto para o resto da vida. Assim como quando eu e o programa da instituição que me convidava. Um novo
escolhia meus leitores para o Missiva, de novo exercitava mapa de Fortaleza, dessa vez pontuado por organizações
um dos meus motes principais: é preciso aprender a falar não governamentais, trabalhando com os mais diversos
com estranhos. Só que, dessa vez, eu não estava mais só. segmentos – e muitas vezes nos bairros mais afastados –
Ninguém estava, aliás, e foi quando as cartas mais cruza- começou a se descortinar para mim.
vam os bairros sem sair desta mesma Cidade Solar. Em paralelo, meu curso de Letras chegava na reta
Passei a usar e-mail só em 2004, depois que fui tra- final, com as disciplinas de Prática de Ensino 1 e 2, em
balhar de madrugada numa estação de praticagem, ­falando que temos que montar um curso aberto para a comuni-
com os navios que entravam e saíam do Porto de Fortaleza. dade. Com habilitação em inglês e português, montei os
Havia me formado em Letras e esse emprego “nada a ver” dois cursos inserindo zines na metodologia, e o mundo se
era ótimo para pensar na vida e trabalhar olhando a cidade, abriu. Agora eu tinha com quem conversar, com sorte por
pois ficava no alto de um prédio de vinte andares na av. Bei- ter pego professoras experientes e de espírito desbrava-
ra-Mar. Tínhamos acesso a Internet e como recebia visitas dor, que mesmo sem conhecer o mundo dos zines eram
de amigos, no mesmo dia passei a ter, duma vez só e-mail, curiosas do melhor jeito: com perguntas que me faziam
msn e orkut. Nessa época muitos zineiros já tinham seus pensar, na verdade, quebrar a cabeça, tentando construir
próprios blogs e, ao invés de migrarem totalmente para esse pontes entre teóricos da educação, práticas pedagógicas
canal, mantinham as duas formas de expressão em paralelo. tradicionais (ou não), autonomia criativa, leitura e escri-
O Zine-se já tinha uma comunidade no Orkut, na qual os ta... e os zines. Não só consegui como descobri que é
membros sugeriam, discutiam e decidiam os lugares onde o mesmo uma das coisas que mais gosto de fazer e quero
evento aconteceria. Curioso notar que dos mil membros que continuar fazendo por um bom tempo. E logo as oficinas
a comunidade chegou a ter, é provável que só uns cento e se estenderam como participações especiais nos progra-
cinquenta fossem de Fortaleza e desses cento e cinquenta, mas de algumas escolas públicas e particulares.
apenas uns sessenta interagissem postando comentários...
e desses comentários, apenas umas trinta pessoas de forma
mais assídua. Se por um lado o Orkut serviu para tornar o
Zinco – Zineiros com CNPJ?
Zine-se conhecido no Brasil todo, por outro acabou enfra-
quecendo e extinguindo a antiga forma de divulgação do O tempo passa, as pessoas viram gente grande, es-
Zine-se – por cartazes artesanais, cartas e telefonemas, con- tudam, precisam trabalhar e se aproxima o momento de
vites mais pessoais. E, devido a isso também, o público do escolher qual será seu ofício para o resto da vida. Ou qua-
Zine-se começou a minguar. se. É possível não abrir mão do que lhe dá prazer e trans-
Após a série de oficinas Yoyô no TJA, rapidamente formar isso num trabalho nobre, útil para a sociedade e
meu trabalho com as oficinas se estendeu em parcerias minimamente remunerado? Trabalhar com arte-educação

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FERNANDA MEIRELES zines em fortaleza (1996-2009)

(esse termo é novo) foi minha tentativa. A Zinco foi a se- O I Seminário Cabeças de Papel aconteceu em
gunda parte da escolha, incluindo gente com histórias, novembro de 2005 em parceria com o Centro Dragão
princípios e objetivos bem parecidos. do Mar de Arte e Cultura (CDMAC). Foram três dias de
Em 2004, fui convidada pelo Gapa-CE para plane- intensa programação que incluía debates, exibição de ví-
jar e realizar oficinas de fanzine em todas as onze institui- deos independentes, oficinas de zine e graffiti e o Zine-
ções socioeducativas do Ceará, ou seja, locais onde ficam se. Reunimos cerca de trezentas pessoas interessadas no
os jovens infratores. Logo vi que não teria tempo (eu tra- tema “Zines e Protagonismo”, dentre profissionais de mí-
balhava falando com navios, nessa época), nem estrutura dia, fanzineiros, estudantes e entidades do terceiro setor.
suficiente para fazer isso sozinha e foi quando convidei o Henrique Magalhães, da editora Marca de Fantasia, de
Tiago Montenegro (Nico), que já se aventurava sozinho João Pessoa, e autor de um dos primeiros livros sobre zi-
a dar oficinas de zines, para ser meu parceiro. Bolei uma nes no Brasil, foi um dos palestrantes.
estrutura de oficina envolvendo metodologia e programa De setembro de 2006 a março de 2007 a Zinco
especiais para a situação e aplicamos em todas as uni- idealizou e realizou em parceria com a Prefeitura de For-
dades. Essa experiência nos marcou profundamente. De taleza – Coordenadoria de Políticas Públicas pela Diver-
todo jeito. sidade Sexual e Secretaria de Educação e Assistência So-
Daí saiu a Zinco, no fim de 2004. Ideia da Tha- cial (então SEDAS) o Projeto Juventude Sem Homofobia.
ís, que vinha fazendo um trabalho freelancer grande de Tratava-se de oficinas em oito escolas municipais e quatro
visitar várias ONGs pelo Brasil todo para escrever sobre espaços de educação informal, espalhados pelas seis re-
suas atuações. O nome ZINCO, em si, é uma brincadei- gionais da cidade. Esse foi o maior desafio da Zinco, acho
ra com a expressão “ZINe COrporation”, mas seu traba- eu, algo que ia acabar acontecendo, mas que tivemos que
lho foi muito sério, assim como seu sobrenome: Centro descobrir como fazer... fazendo. Como no verso que ado-
de Estudo, Pesquisa e Produção em Mídia Alternativa. ro do Leminski: “nós que temos o know-how e o don´t
“Fanzineiros com CNPJ? O mundo está perdido!”, era know-how.” Aprender como funciona a “máquina” por
a grande piada. Queríamos aumentar o raio de alcance dentro, convênios, verba, diário oficial, empenho, atraso,
das oficinas, estar aptos a dialogar com instituições que relatórios, etc. E digo que ia acabar acontecendo porque
também trabalhavam com educomunicação, propor pro- desde 2004 – no mesmo ano de fundação da Zinco – For-
jetos e buscar financiamentos de empresas, participar de taleza passou por uma reviravolta em sua história política
editais e, sobretudo, criar uma zineteca em Fortaleza. O com a vitória da candidatura de Luizianne Lins, do PT,
grande enigma é se íamos dar conta de tudo. A Zinco era para a Prefeitura. Pronto, tínhamos agora uma prefeita jo-
formada por pessoas muito jovens, dos 15 aos 26 anos vem, jornalista, professora da universidade e que, quando
de idade, muitas nas faculdades de Jornalismo, Letras, vereadora, havia até patrocinado zines por aí. E estava
Artes Plásticas, muitas fora da faculdade ainda, poucas acontecendo o que prevíamos: grande parte do movi-
formadas em algo. Pelo estatuto oficial éramos uns quin- mento social organizado passou a integrar os quadros das
ze membros. Na prática, esse número podia cair – umas secretarias e/ou a realizar coisas em parceria direta com
seis ou sete pessoas que planejavam as ações e cuidavam a Prefeitura – como a Zinco fez. A grande vantagem que
da burocracia – ou subir – chegamos a ter vinte pessoas logo vi é que junto com essa juventude vieram novos mé-
trabalhando como Zinco para o II Seminário Cabeças de todos, novo gás, idealismo, (sim, por que não?), soluções
Papel. A metade de forma totalmente voluntária. criativas para problemas antigos em diversas áreas... só

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FERNANDA MEIRELES zines em fortaleza (1996-2009)

que um nó causado – acho eu – pela inexperiência no das. Entre os palestrantes pelo Brasil e trouxemos pessoas
que diz respeito ao funcionamento íntimo de uma gestão que estudam os zines nos mais diversos aspectos, como
pública para uma cidade deste tamanho. Mas ainda vale a Denise Lourenço (mestre em semiótica pela PUC/SP) e Io-
máxima do Leminski que citei antes nesse texto. neide dos Santos (professora da UFPI e também presente
Cerca de duzentos adolescentes e jovens de baixa neste livro). Tivemos a exposição de experiências locais
renda conheciam e discutiam questões ligadas à homo- com Sara Rebeca (professora de português em escola par-
fobia, leis, diversidade sexual e respeito através da pro- ticular na Cidade dos Funcionários) e Alexandre Barbosa
dução de fanzines e construção de uma rede de comu- (professor de inglês em escola pública no Bom Jardim),
nicação através de encontros, cartas, Internet e dos zines além dos próprios membros da Zinco.
produzidos coletivamente. A Zinco chegou a ter uma sede própria no Benfi-
Em julho de 2007 a Zinco realizou o II Seminário ca, o que serviu para descobrirmos, na prática, que ainda
Cabeças de Papel. Dessa vez, fomos contemplados pelo não estávamos prontos. Ou que, talvez, nunca estaremos
prontos para esse modelo de organização. O espaço fí-
edital das Artes da Prefeitura e com tema “Zines e Edu-
sico era perfeitamente dispensável, já que as reuniões
cação”, além de um prêmio de quase quinze mil reais,
podiam acontecer na casa de sócios, salas de faculdade
reunimos cerca de seiscentas pessoas, em cinco dias de
e barzinhos (as que menos funcionavam, claro). O fato
programação, que parecia não acabar jamais. Eram três
é que quase todos nós estávamos na grande encruzilha-
eixos: oficinas, palestras e exposição, tudo coroado com
da vida adulta-estudo-trabalho, e concluo, hoje, sem la-
um populoso Zine-se de encerramento, bem no meio da
mentações, que fizemos muito do que nos propomos. E
exposição “11 anos de Fanzines em Fortaleza”. As ofici-
mais: quem disse que é preciso pertencer à mesma ONG
nas tinham cinco temas (quadrinhos, literatura, rock, mí-
para fazer as coisas acontecerem? Aliás, quem disse que é
dia alternativa e zines em Fortaleza). As cinco turmas ti-
indispensável uma ONG ou qualquer instituição oficial?
nham cerca de quinze participantes e passavam por todos
Claro que ajuda, mas eu sempre lembro daquela música
os temas com facilitadores diferentes, em espaços físicos
do Capital Inicial (que podia ser um Hino Zineiro), cujo
diferentes, numa oficina de quinze horas, que durava a refrão diz: “Procuramos independência/Acreditamos na
semana inteira. As pessoas estavam praticamente moran- distância entre nós”. Se há um benefício enorme em se
do no Dragão do Mar, já que as palestras aconteciam à trabalhar junto, imagine em redes descentralizadas que se
noite e muitas viam à exposição, com calma, em outro unem e se separam de forma cíclica? Bem, aí esse já seria
horário. Essa exposição trazia quase seiscentas capas ou um tema para outro artigo!
trechos ampliados de zines, individuais ou fruto de ofi-
cinas, novos e mais antigos, daqui e de fora, em murais,
espaços confortáveis de leitura, caixa com exemplares de É, Acho que Preciso Estudar Mais
zines doados por zineiros daqui antes e durante o seminá-
rio, mapa da cidade de Fortaleza, lista de endereços de al- Depois de dois anos de graduada em Letras e re-
guns zineiros, e um ótimo apoio da Empresa de Correios, sistindo à lógica reinante de engatar um mestrado em
que colocou no meio da exposição uma caixa de coleta seguida, no fim de 2006 decidi fazer especialização em
de cartas simples (ao preço de 1 centavo e que podiam ser Arte-Educação no CEFET (hoje IFETE-CE). Passei a estudar
remetidas para todo o Brasil). A tal caixinha saiu cheia da e pensar zines entre artistas de várias linguagens, educa-
exposição e as mais de cem cartas foram, de fato, remeti- dores já experientes, gente que fazia as duas coisas e gen-

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te que não era nem um, nem outro. Cada aula era uma fato concreto: ter um centro cultural, cuja natureza está
caixinha de surpresas e uma oportunidade de enxergar voltada não só para a circulação de obras artísticas, mas,
os zines sobre outras óticas, mesmo que eles estivessem especialmente, para cursos de formação em diversas lin-
longe de ser o foco das discussões como linguagem. Espe- guagens. A experiência do CCBJ é única até agora, um
rava ter contato com mais experiências que trabalhassem exemplo admirável de como a arte-educação aliada a po-
pedagogicamente a produção de textos e a leitura num líticas públicas pode, de fato, transformar uma realidade
viés artístico, e assim, como na graduação, foram raras social. Minha missão lá é bolar oficinas junto aos mais
as oportunidades de troca dessas experiências. A grade diferentes públicos com o foco em criação de histórias em
curricular e as áreas de atuação de meus colegas de classe rede, registro do cotidiano do bairro, habilidades e técni-
eram em quase totalidade Artes Cênicas, Artes Visuais ou cas de leitura e escrita através dos zines. Trata-se do em-
Música. Novamente parecia que minhas áreas de interes- prego onde mais aprendi, por estar em contato com gente
se, (Literatura, Língua Portuguesa e Comunicação Alterna- tão disposta a trocas e a experimentações quanto eu. Sem
tiva) corriam por fora. falar do prazer que é poder – com o tempo, sempre ele –
Porém, depois de muito quebrar a cabeça e sob poder notar os resultados de um trabalho delicado.
a orientação de Miguel Leocádio, achei o caminho de Após dois anos e meio de trabalho, montamos dentro
minha pesquisa. Voltando à época das oficinas no TJA, da biblioteca do CCBJ um acervo aberto ao público com
investiguei como os universos dos zineiros-sem-preparo- todos os zines produzidos pela comunidade local (jovens,
acadêmico & professores-sem-prática-criativa poderiam professores, assistentes sociais, idosos, grupo de mulheres
colaborar em oficinas de zine. Esse trabalho foi funda- e, especialmente, crianças) em todas as oficinas – mais de
mental para que eu compreendesse minha própria traje- cinquenta turmas. Está lá muito do cotidiano do bairro, além
tória de arte-educadora e, para quem quiser se aprofundar de registros da memória afetiva de gente que se cruza todo
em diferentes metodologias de oficinas, minha monogra- dia e de crianças que acabaram de se alfabetizar e já sabem
fia da especialização “Zines Yoyô: uma experiência ins- muito bem como e por que fazer fanzine. A jovem equipe
tintiva em arte-educação” é um bom começo. do “venha ler”, que desenvolve atividades de leitura e escri-
ta com as crianças, realiza oficinas de zine constantemente,
Um Jardim de Gente e de Zines dando continuidade ao trabalho e à criação do acervo.

Depois de sete anos sem emprego fixo, fui con- E Agora?


vidada a integrar o quadro de professores de um novo
equipamento cultural mantido pelo Instituto de Arte e Tenho me dedicado cada vez mais à pesquisa e às
Cultura do Ceará (IACC, também responsável pelo Dra- oficinas, mas falando de produções individuais, faço os
gão do Mar e pela Escola de Artes e Ofícios) em parceria postais desde 2001 (essa é outra história) e continuo fa-
com o Governo do Estado. Trata-se do Centro Cultural zendo meus próprios zines, embora de forma mais esporá-
Bom Jardim (CCBJ), inaugurado no fim de 2006, no meio dica. Em 2006, pus em prática um projeto antigo que era
de um dos bairros periféricos mais problemáticos e fas- o de lançar um zine por semana durante um ano inteiro,
cinantes de Fortaleza. O Grande Bom Jardim é formado ou seja, um zine que durasse 52 números. Foi o Cidade
por cinco bairros e possui um histórico de organizações Solar, que é como chamo Fortaleza e como encabeçalho
sociais de peso, com participação decisiva em tornar esse todas as minhas missivas. Deu muito certo, tive muitos

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FERNANDA MEIRELES zines em fortaleza (1996-2009)

colaboradores/incentivadores (merci, Anna K.!) e todo o Já existe muita produção, já existe uma certa fa-
meu ano de 2006 está lá cifrado, as reflexões pessoais em miliaridade e abertura tanto nas instituições de ensino
relação à Fortaleza e questões mais íntimas, tudo registra- formal e de movimentos sociais e até na imprensa, que
do nesse zine em forma de pequenos textos, desenhos e muitas vezes já não iniciam suas matérias perguntando
recortes alterados. De lá pra cá, lancei títulos soltos, até o “o que é fanzine” (que alívio). Por outro lado, é notória
começo de 2009, quando desengavetei a história “Ama- a demanda por reflexões mais profundas tanto da parte
dores”, publicada em formato folhetim, toda semana, no de zineiros e professores (artistas, comunicadores, edu-
zine Domingo. Saíram dez números, mas quero retomar cadores), buscando então um equilíbrio entre produção,
no futuro. apreciação e crítica. Por isso são tão bem-vindos estudos
Atualmente a produção de zines em Fortaleza é plurais baseados no mundo dos zines (como esse livro),
dispersa, embora exista. Com a extinção do Zine-se fi- fundamentados no contexto sociocultural de nossa reali-
dade e que tente ser útil a essas novas demandas. Mais
cou mais difícil identificar zineiros criando em parce-
uma vez, é preciso aprender a falar com estranhos, domi-
rias e de forma contínua, mas eles devem existir por aí.
nar essa outra linguagem de ter ideias, saber pôr no papel,
É possível notar hoje como os zines foram absorvidos
propor com clareza, buscar parcerias para a concretiza-
como ferramenta por pessoas que trabalham nas mais
ção. Saber trabalhar só e em grupo. Fazer muito e esperar
diferentes frentes (institucionais ou não, com iniciativas
menos. Seguir fazendo.
maiores ou menores), acreditando no poder da comu-
nicação alternativa a serviço de cada pessoa e de cada
comunidade, para tornar mais suportável o mundo em Vou Repetir porque Acredito e isso é um Livro
que vivemos.
Com a Zinco tínhamos como uma das metas a cria- Acredito que a criatividade é um mito. Pessoas elo-
ção de uma zineteca em Fortaleza, o que não aconteceu giadas por serem “tão criativas” estão apenas AGINDO,
ainda. Penso nela como um espaço físico para troca de separando tempo das 24 horas que cada um tem para pôr
experiências, pesquisa e, sobretudo, onde cerca de 5 mil em prática uma característica natural a todo ser humano,
zines, daqui e de todo o Brasil, estarão catalogados e dis- que é de CRIAR. Não acredito na arte como uma ilumi-
postos ao público. Penso que acervo deve ser composto nação divina e, sim, como uma necessidade básica como
também de zines de oficinas e banco de dados metodoló- a de beber água, dormir, comer e abraçar amigos. Creio
gicos que sirvam como material didático de novas práticas que o lado lúdico das coisas não precisa excluir a serieda-
que incluam a comunicação real como estratégia política de com a qual tudo deve ser realizado. Aliás, acredito que
para a melhoria da educação local. A zineteca catalogará o bom-humor, o entusiasmo e a brincadeira são funda-
uma parte de nossa história registrada de forma espontâ- mentais para a dedicação sincera e o resultado autêntico
nea, por isso seu valor tão precioso; trata-se de patrimônio de um belo trabalho social que inclua arte, comunicação
histórico-cultural – material e imaterial. Desde que os fan- e educação.
zines foram incluídos como linguagem na modalidade de O mundo já é feio demais, pesado demais.
literatura do Edital das Artes da Prefeitura em 2006, passei O meu objetivo primeiro em fazer zine ou ofici-
a não achar impossível que um dia Fortaleza venha a ter a nas de zine é dar vontade às pessoas. Vontade de pu-
zineteca que merece e precisa, via poder público – o que lar, de beijar, de ajudar alguém, de correr para casa e
seria de fato um marco. desengavetar todos aqueles projetos esquecidos porque

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FERNANDA MEIRELES

o mundo real (ou vida moderna, ou medo do ridículo, ou DA MARGINALIDADE À SALA DE AULA: O FANZINE
necessidade de se enquadrar e ganhar dinheiro ou em- COMO ARTEFATO CULTURAL, EDUCATIVO E
pregos fixos ou satisfações a dar à sociedade) te obrigou PEDAGÓGICO
a deixar para depois. É mostrar que expor o que se pensa
é simples, fácil e infalível, já que não há um modelo a
Ioneide Santos do Nascimento
ser seguido. E que pode ser infinitamente divertido. Que
dê vontade de buscar as outras pessoas. Pessoas iguais a
você, por terem mil histórias para contar, pessoas diferen- Introdução
tes de você, porque cada pessoa tem a sua maneira de
contar uma história. É minha intenção explicitar neste trabalho como
A teia é imensa e feita de fios visíveis e invisíveis. percebo o fanzine a partir das leituras e das experiências
Só aparentemente frágeis. A gente só se completa quando que venho acumulando como professora de novos pro-
se mistura. E estamos todos juntos nessa. fessores no Curso Normal Superior e com estudantes do
Ensino Fundamental.
Ao longo dessa trajetória, tenho direcionado meu
trabalho como professora buscando alguns caminhos que
percebo como promissores para desencadear nos estu-
dantes um novo olhar diante do cotidiano, possibilitando
assim, um novo jeito de atuar e de se inserir na sociedade.
Em outras palavras, o trabalho que procuro desenvolver
na sala de aula, quer seja no ensino superior – formação
de professores para as séries iniciais, no ensino fundamen-
tal – nas aulas de arte, e, ainda, nas diversas oficinas para
professores e pedagogos – com o fanzine, por exemplo,
além de conduzir o aprendente a uma nova percepção do
mundo, permitirá o contato com texto e imagens, impul-
sionando-o a compreender os elementos constitutivos de
sua cultura e, por sua vez, ver-se inserido como sujeito
integrante de sua formação. Portanto, o fanzine funciona
como elemento de percepção sociohistórico-cultural do
indivíduo em seu ambiente coletivo.
A utilização educativo-pedagógica do fanzine per-
passa várias questões. O que vou tentar, entretanto, pro-
curando lançar mão do que já tenho lido e experenciado,
é a inserção do fanzine no âmbito da sala de aula sem,
no entanto, pedagogizá-lo, sem tomar “para si a tarefa da
imposição e do controle do sentido ‘correto’.”(LARROSA,
2006, p.130 ).

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ioneide santos do nascimento da marginalidade à sala de aula:
o fanzine como artefato cultural, educativo e pedagógico

Neste texto, procuro me movimentar no terreno diagramação em forma de “colcha de retalhos”, em que
que me é familiar, a experiência com fanzine fora do con- podem ser veiculados desde textos críticos e opinativos
texto escolar e como tenho experienciado sua aplicabi- sobre a produção cultural, como a republicação de traba-
lidade nas instituições escolares, tanto do ensino funda- lhos oriundos de outras publicações e/ou textos inéditos;
mental, como no curso de formação de professores, bem o fanzine aglomera vários tipos de textos verbais, além
como as experiências nas oficinas de fanzine destinadas de imagens coletadas em outros impressos ou desenhos
a professores. feitos para esse fim.
Se antes os fanzines eram reproduzidos em mime-
Para Início de Conversa... Mas o que É Mesmo ógrafos ou fotocopiadoras, com o avanço tecnológico,
Fanzine? muitos fanzines migraram para a rede – são os e-zines, ou
“eletronics magazines”, que, na minha opinião, carecem
de um estudo mais aprofundado e pontual, o que não é o
Num exame etimológico da palavra, fanzine vem
caso desse trabalho.
de “fanatic magazine” que literalmente significa “revista
de fã.” (MAGALHÃES, 2003). Ainda, segundo Magalhães, O fanzine ainda causa estranheza aos ouvidos de
o fanzine... quem desconhece esses impressos. Tenho ouvido muitas
perguntas, tais como: Franzine? Franzino? Sanzine? O que
[...] é uma a publicação independente e amadora, é isso? Essa palavra, desconhecida e nem sempre aceita
quase sempre de pequena tiragem, impressa em e que erroneamente muitos a consideram marginal num
mimeógrafo, fotocopiadoras ou pequenas impres-
sentido pejorativo, é considerada marginal por ser uma
soras offset. Para sua edição, contamos com fãs
isolados, grupos e associações ou fãs-clubes de
publicação que cresce à margem do que se oficializou
determinada arte, personagem, personalidade, como meio de comunicação impressa oficial – os jornais
hobby ou gênero de expressão artística, para um e revistas – e tem crescido nas últimas décadas. Se não
público dirigido, podendo abordar um único bastasse isso, o fanzine tem margeado a escola e, mesmo
tema ou mistura de vários. ( MAGALHÃES, 2003, sendo de baixo custo, não o incluímos na sala de aula
p. 27). como um recurso pedagógico que possibilita o exercício
da cidadania, da criatividade e da criticidade, além de
No alargamento dessa definição, posso dizer que ampliar o olhar ante às imagens que nos são postas.
se uma pessoa é fã de um determinado artista, seja ele
de qualquer linguagem (música, quadrinhos, literatura, Minha experiência com fanzines se iniciou no ano
cinema, ou de outros assuntos) e se dispõe a reunir suas 2000, quando participava de um grupo de discussão virtu-
ideias ou garimpar de outros, e as reúne, tendo por supor- al em que fãs de um artista da música popular brasileira,
te papel e cola, tesoura, caneta, elaborando um projeto utilizando-se das trocas de e-mails, discutiam o trabalho do
gráfico e depois o fotocopiando, temos aí um fanzine. artista Zeca Baleiro. Considerando a participação de vários
Seguindo esse propósito, compreendo o fanzine como internautas do grupo, uma das moderadoras sugeriu que cri-
um impresso que se assemelha a um jornal ou revista, ássemos um fanzine que reunisse as contribuições dos fãs.
pois agrega alguns de seus elementos, sendo composto Dessa forma surgiu o ZKzine. A capa do ZKzine trazia uma
por vários tipos de textos escritos para esse fim ou “toma- imagem do cantor num dos seus ­shows, feita por uma fã.
dos” de outros impressos. Isso faz com que, muitas vezes, No interior do fanzine podíamos ler relatos de
o fanzine se apresente de forma fragmentada, com uma ­shows, uma entrevista imaginada por uma fã, mas cujas

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o fanzine como artefato cultural, educativo e pedagógico

perguntas/respostas eram retiradas das letras de suas mú- interlocuções com o fazer cotidiano de nossos estudantes.
sicas. Esse fanzine só sobreviveu a duas edições. O que Concordo com Freire (2001), ao dizer que “ensinar não é
é comum acontecer no mundo zinesco. Segundo Maga- transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para
lhães (2004, p.12): a sua produção ou a sua construção”. Sendo assim, tenho
assumido o compromisso de direcionar minhas ações pe-
Os fanzines são quase sempre aperiódicos e
dagógicas de modo que contribuam para o despertar do
efêmeros. As dificuldades de se encontrar infor-
mações, os custos sempre crescentes, a renúncia
senso crítico, não apenas dentro de paredes intransponí-
ao lucro financeiro e o considerável trabalho que veis de sala de aula, mas em todo o meio social. Deste
é organizar novas edições de forma sistemática modo, sempre busquei uma metodologia de trabalho com
são fatores responsáveis pela extinção de muitos que pudéssemos – professora e estudantes – trilhar um ca-
fanzines. minho em que a aprendizagem pudessem estabelecer rela-
ções mais próximas pautadas no cotidiano dos estudantes.
Nesse caso, o mais evidente foi que as inúmeras
O fanzine, como prática social e cultural resultante
desavenças entre membros do grupo tomaram propor-
da iniciativa de pessoas que estão envolvidas numa ati-
ções maiores que contribuíram também para a dissolvi-
vidade cultural ou artística que está à margem do que se
ção do grupo.
oficializou como meio de comunicação impressa (jornais,
No entanto, pelo entusiasmo com a ideia, propus revistas etc.), e que na maioria das vezes está a serviço
a um outro grupo de discussão a produção de um zine de um “poder” (LOURENÇO, 2006), propicia no âmbi-
destacando o trabalho de um outro artista. Assim, surgiu to educacional, o desenvolvimento da capacidade dos
o DjavanZine, que, semelhante ao ZKzine, trazia relatos educandos de pesquisar informações relevantes, levantar
de shows, ilustrações de músicas, comentários de letras um olhar crítico sobre o cotidiano ou dos conteúdos pro-
de música etc. Os internautas enviavam por e-mail suas gramáticos das diversas disciplinas, além de produzir um
contribuições e eu as reunia e o resultado era enviado, material de comunicação que expresse suas ideias, incor-
sem custo aos participantes, pelos Correios. A contrário porando a união de desenhos e outras imagens tomadas
do ZKzine, aquele teve vida mais longa: quatro números. de outros meios, enfatizando a relação entre estes e des-
Nesse caso, o interesse da organizadora pelo tema/artista tacando as soluções mais criativas.
diminuiu e o citado fanzine teve vida efêmera.
Portanto, a prática zinesca veicula formas de apren-
Porém, outros fanzines, com temáticas diversas der, construindo e reconstruindo saberes que potenciali-
surgiram – Badulaques, Cidade Verde, Coisas & tal. No zem o poder de intervir como sujeitos pensantes no meio
entanto, apenas dois sobrevivem, tendo em vista minha sociocultural.
disponibilidade financeira, a escassez de material, bem
O fanzine apresenta uma diversidade de textos
como o acréscimo de outros afazeres e não com a mesma
imagéticos ou não que são frutos de informações e co-
periodicidade pensada anteriormente.
nhecimentos fabricados no mundo social, no cotidiano e
que, ao serem transportados para o impresso, instigam o
Considerações sobre Educação e Fanzine diálogo feito pelo fanieditor ou zineiro, suscitando a auto-
nomia de sujeitos aprendentes. O fanzine funciona como
Ensinar na escola contemporânea exige um olhar um veículo de disseminação de ideias, não se prendendo
atento a novas práticas que sejam capazes de estabelecer às amarras ditadas pela grande imprensa.

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o fanzine como artefato cultural, educativo e pedagógico

Uma outra vantagem é que o fanzine, que apresen- imagens, palavras e experimentações gráficas o que eles
ta num mesmo suporte imagens e textos verbais, revela-se pensavam sobre a temática, aprendendo as particularida-
também como um instrumento de “voz” dos estudantes, des e a riqueza de comunicação que o fanzine possibilita.
enriquecedor, comunicando significados, construindo e Desse modo, surgiram temas como violência, meio am-
reconstruindo saberes. biente, adolescência, sexualidade, namoro, amizade.
Nessa direção, as múltiplas visões de mundo, as O percurso iniciou-se quando levei para a sala
diferentes proposições estéticas e criativas que permeiam de aula de cada uma das séries em que leciono fanzines
o fanzine podem produzir experiências significativas, diversos, entre eles, um produzido por mim – o f de fan-
uma vez que possibilitam a integração e conexão entre zine – um fanzine metalinguístico que explica o que é um
sujeitos e o conhecimento. Sob este ponto de vista, os fanzine (ver Figura 1).
estudantes, ao produzirem fanzines, mostram no seu fa-
zer o pensamento elaborado e reelaborado a partir de
uma relação de conhecimento em que dão significado
ao mundo e à vida.

Falar, Recortar, Colar, Produzir: Compartilhando


Experiências com Fanzine na Escola

Trazer esse recurso que já permeava a minha vida


fora da escola surgiu quando participei de uma oficina
de fanzines. Antes já havia feito algumas tentativas, mas
motivos alheios à minha vontade não me permitiram
chegar a um produto final. Aliado a essa vontade e ao
fato de buscar alternativas que tornassem meu trabalho
mais significativo, propus aos estudantes do ensino fun-
damental (7º ano) a produção de um fanzine na sala de
aula. Embora professora de arte, minha preocupação não
foi, no primeiro momento, produzir um fanzine com um
conteúdo específico, mas fazer com que esses estudantes
se apropriassem de ideias, textos verbais e imagens, visto
que estamos num mundo visual em que os estudantes es-
tão em contato com essas imagens de forma insistente e
que, muitas vezes, não se dão conta das possíveis leituras
que podem fazer delas.
Pelo caráter de estarem juntos, imagens e palavras,
no fanzine, decidi colocar em prática um projeto de pro-
dução de fanzine através de discussões sobre uma temá-
tica escolhida por eles, em que pudessem produzir com Figura 1 – Capa do f de fanzine. Arquivo pessoal.

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ioneide santos do nascimento da marginalidade à sala de aula:
o fanzine como artefato cultural, educativo e pedagógico

O fanzine f de fanzine foi produzido com o ­intuito um é responsável pelo seu corpo, cada um pode tomar
de iniciar umas dicussões acerca do fanzine: história, ca- suas próprias decisões, sendo responsável por estas:
racterísticas, projeto gráfico e a partir daí propor aos estu- Na perspectiva de Freire (2001, p.152), as “rela-
dantes a produção de um fanzine coletivo. De posse de ções com os outros, que não fizeram as mesmas opções
revistas, tesoura, cola, papel e ideias, eles começaram a que fiz [...]” devem ser pautadas “no respeito às diferenças
produção. entre mim e eles ou elas, na coerência entre o que faço e
Considerando a produção de fanzine como uma o que digo”. Dessa forma, a experiência se mostrou satis-
tarefa aparentemente fácil, exigiu-se dos educandos cri- fatória para esses estudantes. Isso foi transcrito por eles no
ticidade na escolha das imagens, dos textos, informações momento final, após cada um ter o seu em mão, quando
adequando-os aos espaços onde esses dados seriam colo- produziram declarações como essas que trancrevo:
cados. Isso demandou atenção, leituras, discussões entre
Eu aprendi muitas coisas legais, incluindo a pro-
integrantes da equipe. Concomitante a isso, permitiu-se
dução do fanzine.Tem que colar, desenhar e até
que os alunos considerassem a opinião dos colegas, co- escrever poemas sobre o tema, que é claro, é o
nhecessem a organização e características do conteúdo do mais importante do fanzine.
fanzine, apropriando-se de novas informações, ressiginif-
cando-as, conti- Eu achei muito bom, vendo todos trabalhando,
disputando o título. Claro que ficou interessante,
tuindo artefatos
ficou muito melhor do que imaginávamos. Todos
simbólicos que estão de parabéns, inclusive eu. Caprichei bastante
potencializas- para ajudar; não só eu mais os outros também.
sem o poder de
intervir como Eu aprendi que fazer um fanzine não é pegar a
folha, colar e escrever, mas usar a cabeça e a
sujeitos pen-
criatividade.
santes.
Aprendi a trabalhar em grupo.
Um desses
fanzines pro- Como esses depoimentos sugerem, o trabalho com
duzidos trouxe o zine, de forma coletiva, proporciona aos estudantes a
como temática socialização de ideias, discutindo preferências estéticas
a sexualidade de cada um quanto às formas de organizar imagens e tex-
e mostrou o tos, visto que o fanzine não se limita a um padrão, como
ponto de vista acontece em outras publicações.
do grupo que o
produziu, colo- Uma outra experiência com estudantes do Ensino
cando em evi- Fundamental foi vivenciada num outro enfoque: nas au-
dência a possi- las de arte e após leituras de imagens, tendo em vista as
bilidade de um temáticas das imagens lidas. Numa sala, por exemplo,
diálogo com o propus a produção de um zine com a temática da infân-
outro ao enfa- Figura 2 – Página de um dos fanzines produ- cia. Entre o zines produzidos, a imagem abaixo mostra
tizar que cada novas formas de leitura da temática que não foram re-
zidos pelos alunos. Arquivo pessoal.
sultantes apenas da reprodução de uma imagem, o que

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o fanzine como artefato cultural, educativo e pedagógico

em muitas situações se contitui apenas de uma cópia da professor, junto aos estudantes, pautou os objetivos dessa
imagem apresentada. No fanzine – Um mundo chamado atividade em cada área do saber; no nosso caso, o fanzine
infância – os estudantes ousaram no projeto gráfico, na serviu para documentar a aula-passeio.
disposição das imagens e textos, não seguindo o padrão Ainda que apresentassem a mesma temática e o
de escrita e de leitura, tão pedagogicamente imposto mesmo formato – papel A4 dobrado ao meio –, percebe-
(LARROSA, 2006). mos a diversidade de construção que envolveu os fanzi-
nes, desde os textos produzidos até os diversos projetos
gráficos internos:

Figura 4 – Capas dos fanzines produzidos no Curso Normal


Superior. Arquivo pessoal.

Outras experiências se sucederam a essas, ­inclusive


algumas em forma de oficinas com professores e pedago-
gos que exercem a docência nos diversos níveis de ensino
e com professores das diversas áreas do saber.
Sobre essas experiências, é bom deixar claro que
Figura 3 – Fanzine Um mundo chamado infância (verso e as produções de fanzines, com estudantes do ensino fun-
anverso). Arquivo pessoal. damental ou nível superior ou nas diversas oficinas com
professores, não seguem um padrão de ensinamento de
A experimentação com fanzines no curso de for- como produzir um fanzine. Com os estudantes do ensino
mação de professores, especificamente no Curso Normal fundamental, minha experiência tem sido vivida tendo
Superior, foi iniciada a partir de um trabalho com outros em vista os conteúdos das aulas de arte e/ou do cotidiano;
professores no projeto de uma aula-passeio, em que cada nas oficinas, tem sido a construção de fanzines pessoais e/

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o fanzine como artefato cultural, educativo e pedagógico

ou temas ligados à educação. Afinal, na produção de fan- Considerações Finais


zines não há regra. Galvão (2006, p. 101) reafirma esse
pensamento quando diz que...
O que propus com este texto foi apontar as possi-
[...] normalmente não há padrão ou forma pré- bilidades do fanzine como um recurso pedagógico; não
estabelecida na feitura de um fanzine, sendo a como um fim em si mesmo, nem tampouco enfatizar a
inventividade o elemento primordial dessa espécie técnica pela técnica, mas como complemento e/ou pro-
de arte do precário, nessa ação que se dá na medi- dução do trabalho pedagógico e que os educadores (de
da do possível e às vezes do impossível. todos os níveis e áreas do conhecimento) percebam a im-
portância desempenhada por esse impresso na constru-
No entanto, Guimarães (2005) propõe que a ma-
ção de valores estéticos e éticos.
neira mais simples de fazer o original do fanzine é utili-
zar apenas papel, caneta e cola, escrevendo ou coletando Noutras palavras, procurei mostrar ao longo do texto
material escrito, escolhendo ilustrações, com montagem que o exercício de ensinar e aprender exige que se busquem
do material num papel no formato que vai ser reproduzi- novas práticas educativas num contexto de relações inter-
do. Todavia, isso não é uma regra. Cada um tem seu jeito culturais, dialógicas e de integração entre os ­estudantes.
de montar um fanzine; este é o que ele apresenta. Sob esse ponto de vista, o fanzine se configura
Quase ao fim, e, na verdade, no começo de um como um dos caminhos capazes de permitir ao educando
diálogo que pode se prolongar por muitas outras laudas, compreender o mundo, falando de seu tempo.
posso concluir que o trabalho com fanzine na sala de aula
permite uma aproximação dos estudantes com esse tipo Referências Bibliográficas
de mídia caracterizada pela liberdade temática, pela pro-
dução artesanal de pequena tiragem e pelo inerente ca- FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessá-
ráter contestador – tendo em vista que o fanzine procura rios à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
discutir assuntos não convencionais na mídia tradicional. GALVÃO, Demetrios Gomes. Juventude e Fanzine: a car-
Por um lado, o trabalho com fanzine permite que tografia de uma prática subversiva. In: MATOS, Kelma
os estudantes assumam seu papel de sujeitos desse pro- Socorro Lopes de et al.(Orgs.). Jovens e crianças: outras
cesso e se envolvam com mais entusiasmo em um projeto imagens. Fortaleza: Edições UFC, 2006. (Coleção Diálo-
que cada dia se torna mais autônomo. gos Intempestivos).
Por outro lado, ainda carece de maior divul- GUIMARÃES, Edgar. Fanzine. João Pessoa: Marca da Fan-
gação e discussão nos meios educacionais as várias tasia, 2005.
­possibilidades do fanzine como recurso pedagógico. LARROSA, Pedagogia profana: danças, piruetas e masca-
Os educadores precisam vislumbrar a importância de- radas. 4 ed. Tradução de Alfredo Veiga-Neto. Belo Hori-
sempenhada pelo fanzine na constituição de valores zonte: Autêntica, 2006.
éticos e estéticos no exercício da cidadania e constitui- LOURENÇO, Denise. Fanzine: procedimentos construti-
ção dos educandos. E que o fanzine na sala de aula seja vos em mídia tática impressa. Dissertação (Mestrado em
instrumento de ampliação dos horizontes, favorecendo Comunicação e Semiótica), São Paulo: PUC, 2006.
aos estudantes um processo de inserção crítica e reno- MAGALHÃES, Henrique. O rebuliço apaixonante dos
vadora do ambiente que o cerca. fanzines. João Pessoa: Marca da Fantasia, 2003.

132 133
COLEÇÃO DIÁLOGOS INTEMPESTIVOS

1. Ditos (mau)ditos. José Gerardo Vasconcelos; Antonio Germano Magalhães Junior e


José Mendes Fonteles (Orgs.). 2001. 208p. 2001. ISBN: 85-86627-13-5.
2. Memórias no plural. José Gerardo Vasconcelos e Antonio Germano Magalhães Junior
(Orgs.). 140p. 2001. ISBN: 85-86627-21-6.
3. Trajetórias da juventude. Maria Nobre Damasceno; Kelma Socorro Lopes de Matos
e José Gerardo Vasconcelos (Orgs.). 112p. 2001. ISBN: 85-86627-22-4.
4. Trabalho e educação face à crise global do capitalismo. Enéas Arrais Neto;
Manuel José Pina Fernandes e Sandra Cordeiro Felismino (Orgs.). 2002. 218p. ISBN:
85-86627-23-2.
5. Um dispositivo chamado Foucault. José Gerardo Vasconcelos e Antonio Germano
Magalhães Junior (Orgs.). 120p. 2002. ISBN: 85-86627-24-0.
6. Registros de pesquisa na educação. Kelma Socorro Lopes de Matos e José Gerardo
Vasconcelos (Orgs.). 2002. 216p. ISBN: 85-86627-25-9.
7. Linguagens da história. José Gerardo Vasconcelos e Antonio Germano Magalhães
Junior (Orgs.). 2003. 154p. ISBN: 85-7564084-4.
8. Esboços em avaliação educacional. Brendan Coleman Mc Donald (Org.). 2003. 168p.
ISBN: 85-7282-131-7.
9. Informática na escola: um olhar multidisciplinar. Edla Maria Faust Ramos; Marta Costa
Rosatelli e Raul Sidnei Wazlawick (Orgs.). 2003. 135p. ISBN: 85-7282-130-9.
10. Filosofia, educação e realidade. José Gerardo Vasconcelos (Org.). 2003. 300p. ISBN:
85-7282-132-5.
11. Avaliação: Fiat Lux em Educação. Wagner Bandeira Andriola e Brendan Coleman Mc
Donald (Orgs.). 2003. 212p. ISBN: 85-7282-136-8.
12. Biografias, instituições, ideias, experiências e políticas educacionais. Maria
Juraci Maia Cavalcante e José Arimatea Barros Bezerra (Orgs.). 2003. 467p. ISBN: 85-
7282-137-6.
13. Movimentos sociais, educação popular e escola: a favor da diversidade. Kelma
Socorro Lopes de Matos (Org.). 2003. 312p. ISBN: 85-7282-138-4.
14. Trabalho, sociabilidade e educação: uma crítica à ordem do capital. Ana Maria Dorta
de Menezes e Fábio Fonseca Figueiredo (Orgs.). 2003. 396p. ISBN: 85-7282-139-2.
15. Mundo do trabalho: debates contemporâneos. Enéas Arrais Neto, Elenice Gomes de
Oliveira e José Gerardo Vasconcelos (Orgs.). 2004. 154p. ISBN: 85-7282-142-2.
16. Formação humana: liberdade e historicidade. Ercília Maria Braga de Olinda (Org.).
2004. 250p. ISBN: 85-7282-143-0.

135
17. Diversidade cultural e desigualdade: dinâmicas identitárias em jogo. Maria de 36. Estágio nos cursos tecnológicos: conhecendo a profissão e o profissional. Gregório
Fátima Vasconcelos e Rosa Barros Ribeiro (Orgs.). 2004. 324p. ISBN: 85-7282-144-9. Maranguape da Cunha, Patrícia Helena Carvalho Holanda, Cristiano Lins de Vasconcelos
18. Corporeidade: ensaios que envolvem o corpo. Antonio Germano Magalhães Junior e (Orgs.). 93p. ISBN: 85-7282-215-1.
José Gerardo Vasconcelos (Orgs.). 2004. 114p. ISBN:85-7282-146-5. 37. Jovens e crianças: outras imagens. Kelma Socorro Lopes de Matos, Shara Jane Holanda
19. Linguagem e educação da criança. Silvia Helena Vieira Cruz e Mônica Petralanda Costa Adad e Maria Dalva Macedo Ferreira (Orgs.). 221p. ISBN: 85-7282-219-4.
Holanda (Orgs.). 2004. 369p. ISBN:85-7282-149-X. 38. História da educação no Nordeste brasileiro. José Gerardo Vasconcelos e Jorge
20. Educação ambiental em tempos de semear. Kelma Socorro Lopes de Matos e José Carvalho do Nascimento (Orgs.). 2006. 193p. ISBN: 85-7282-220-8.
Levi Furtado Sampaio (Orgs.). 2004. 203p. ISBN: 85-7282-150-3. 39. Pensando com arte. José Gerardo Vasconcelos e José Albio Moreira de Sales (Orgs.).
21. Saberes populares e práticas educativas. José Arimatea Barros Bezerra, Catarina Farias 2006. 212p. ISBN: 85-7282-221-6.
de Oliveira e Rosa Maria Barros Ribeiro (Orgs.). 2004. 186p. ISBN: 85-7282-162-7. 40. Educação, política e modernidade. José Gerardo Vasconcelos e Antonio Paulino de
22. Culturas, currículos e identidades. Luiz Botelho de Albuquerque (Org.). 231p. ISBN: Sousa (Orgs.). 2006. 209p. ISBN: 978-85-7282-231-2.
85-7282-165-1. 41. Interfaces metodológicas na história da educação. José Gerardo Vasconcelos,
23. Polifonias: vozes, olhares e registros na filosofia da educação. José Gerardo Vasconcelos, Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, Zuleide Fernandes de Queiroz e José Edvar
Andréa Pinheiro e Érica Atem (Orgs.) 274p. ISBN: 85-7282-166-X. Costa de Araújo (Orgs.). 2007. 286p. ISBN: 978-85-7282-232-9.
24. Coisas de cidade. José Gerardo Vasconcelos e Shara Jane Holanda Costa Adad. ISBN: 42. Práticas e aprendizagens docentes. Ercília Maria Braga de Olinda e Dorgival Gon-
çalves Fernandes (Orgs.). 2007. 196p. ISBN 978.85-7282.246-6 .
85-7282-172-4.
43. Educação ambiental dialógica: as contribuições de Paulo Freire e as representações
25. O caminho se faz ao caminhar. Maria Nobre Damasceno e Celecina de Maria Vera
sociais da água em cultura sertaneja nordestina. João B. A. Figueiredo. 2007. 385p. ISBN:
Sales (Orgs.). 2005. 230p. ISBN: 85-7282-179-1.
978-85-7282-245-9.
26. Artesania do saber: tecendo os fios da educação popular. Maria Nobre Damasceno
44. Espaço urbano e afrodescendência: estudos da espacialidade negra Urbana para
(Org.). 2005. 169p. ISBN: 85-7282-181-3.
o debate das políticas públicas. Henrique Cunha Júnior e Maria Estela Rocha Ramos
27. História da educação: instituições, protagonistas e práticas. Maria Juraci Maia Caval-
(Orgs.). 2007. 209. ISBN: 978-85-7282-259-6.
cante e José Arimatea Barros Bezerra. (Orgs.). 458p. ISBN: 85-7282-182-1.
45. Outras histórias do Piauí. Roberto Kennedy Gomes Franco e José Gerardo Vasconcelos.
28. Linguagens, literatura e escola. Sylvie Delacours-Lins e Sílvia Helena Vieira Cruz
2007. 197p. ISBN: 978-85-7282-263-3.
(Orgs.). 2005. 221p. ISBN: 85-7282-184-8.
46. Estágio supervisionado: questões da prática profissional. Gregório Maranguape
29. Formação humana e dialogicidade em Paulo Freire. Maria Ercília Braga de Olinda
da Cunha, Patrícia Helena Carvalho Holanda e Cristiano Lins de Vasconcelos (Orgs.). 2007.
e João Batista de A. Figueiredo (Orgs.). 2006. ISBN: 85-7282-186-4.
163p. ISBN: 978-85-7282-265-7.
30. Currículos contemporâneos: formação, diversidade e identidades em transição. Luiz 47. Alienação, Trabalho e emancipação humana em Marx. Jorge Luís de Oliveira. 2007.
Botelho Albuquerque (Org.). 2006. ISBN: 85-7282-188-0. 291p. ISBN: 978-85-7282-264-0.
31. Cultura de paz, educação ambiental e movimenos sociais. Kelma Socorro Lopes 48. Modo de brincar, lembrar e dizer: discursividade e subjetivação. Maria de Fátima
de Matos (Org.). 2006. ISBN: 85-7282-189-9. Vasconcelos da Costa, Veriana de Fátima Rodrigues Colaço e Nelson Barros da costa
32. Movimentos sociais, educação popular e escola: a favor da diversidade II. Sylvio (Orgs.). 2007. 347p. ISBN: 978.85-7282-267-1.
de Sousa Gadelha e Sônia Pereira Barreto (Orgs.). 2006. 172p. ISBN: 85-7282-192-9. 49. De novo ensino médio aos problemas de sempre: entre marasmos, apro-
33. Entretantos: diversidade na pesquisa educacional. José Gerardo Vasconcelos, Emanoel priações e resistências escolares. Jean Mac Cole Tavares Santos. 2007. 270p. ISBN:
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