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1 Para o texto de Górgias, servi-me de H. Diels-W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, zweiter
Band, Dublin/Zürich, 196612; tive também presente F. Donadi, Gorgia, Encomio di Elena, Texto cr.,
intr. Tr. e notas, Roma, 1982. As traduções são minhas. Sobre a importância do aspecto linguístico no
Perì tou me ontos, como na filosofia de Górgias, cfr. B. Cassin, L’effet sophistique, Paris, 1995; G.
Casertano, L’ambigua realtà del discorso nel Perì tou me ontos di Gorgia (con un accenno all’ Elena),
in Philosophica (5), 1995, pp. 3-18.
2 Hel.en. § 1.
3 Se se desejar, pode-se ver nisto a característica posição gorgiana acerca do problema que tanto
apaixonou os debates culturais da segunda metade do século V, a discussão sobre a relação entre
natureza e cultura, fuvsi" e novmo": para Górgias, como para Protágoras, há um mundo de valores
que é algo mais que um dado natural, na medida em que vem sendo “construído” pelo homem: Para a
relação entre fuvsi" e novmo" cfr. o nosso Natura e istituzioni umane nelle dottrine dei sofisti,
Nápoles, 1970. Este conceito liga-se, também, a uma outra característica típica do movimento dos
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sofistas: a de considerar cada técnica, e, por isso também a técnica do discurso, “neutra”
relativamente ao uso que dela se faz, um instrumento que se pode tornar bom ou mau, útil ou nocivo,
só em relação ao uso que lhe é dado. Tornaremos a isto. Contudo, posição não diversa expressou
também Platão no seu Górgias, quando, dando o exemplo de um pugilista que ataca os próprios
amigos, sustenta que o responsável da agressão não pode ser aquele que lhe ensinou a arte do
pugilismo (460c-d).
4 Inumeráveis são os exemplos desta perspectiva em Platão. Como título de exemplo, veja-se Soph.
262e-263b, onde se enunciam as duas características fundamentais de cada discurso: este deve ser
sempre “de qualquer coisa” (lovgo" tinov"), deve ter sempre um referente no plano da realidade,
e deve possuir sempre uma certa “qualidade” (poi'on, poi'ovn tina), ou seja, de ser
verdadeiro. Contudo, também para Platão, verdadeiro e falso são “qualidades” do discurso; uma
espécie de embelezamento, naturalmente em sentido forte: pensamos no Simpósio, onde se diz
claramente que o discurso deve dizer sempre coisas verdadeiras sobre cada objecto, e depois,
escolhendo as mais belas de entre as verdadeiras, deve dispô-las no modo mais apropriado (wJ"
eujprepevstata), construindo assim o seu “ornamento” (198d).
5 O discurso falso (yeudh;" lovgo") aparece no § 11: veremos em seguida, o sentido que tem.
6 Coerentemente com a perspectiva concreta da ética gorgiana: veja-se o elogio de Aristóteles, na
Política, onde se diz que “têm muito mais razão (polu; a[meinon levgousin) aqueles que
enumeram as virtudes, como faz Górgias, que aqueles que definem a virtude” (1260a27).
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trata de um discurso qualquer, e em particular não se trata de um discurso judiciário, de uma defesa
“de tribunal”. No parágrafo treze, os discursos judiciários definem-se precisamente como discursos
ajnagkaivoi, isto é, não só “logicamente convincentes”, mas também “sujeitos a necessidade”,
podendo-se dizê-los “obrigados” e “obrigantes”: obrigados, porque devem ter em conta a situação
particular em que vêm apresentados, a particularidade do auditório dos juízes, os seus humores, as
suas paixões, e, por conseguinte, discursos obrigados a uma certa estrutura da qual é bom que o
orador não se afaste, se quiser atingir o seu objectivo; enfim, obrigados também pelo tempo que é
concedido a cada um dos oradores para perorar sobre a sua causa7. Obrigantes, porque procuram
“constringir” os juízes a aderir à tese de quem fala. Neste contexto, aquele que vence não é
necessariamente o discurso inspirado na verdade, mas aquele que é escrito com arte (parágrafo
treze: tevcnh/ grafeiv", oujk ajlhqeiva/ lecqeiv"), que deleita e persuade a multidão.
Não é, pois, um discurso judiciário aquele que Górgias está a construir sobre Helena, porque,
claramente, este quer dizer a verdade, e não quer persuadir a multidão de nenhum tribunal: pelo
contrário, quer mesmo ir contra aquilo que a multidão pensa, contra a “fama” consolidada desde há
muito; por isso é um paivgnion, um jogo dialéctico, como será dito no final8, no duplo sentido de um
discurso livre, não ligado a exigências particulares e vinculadoras, de tempo ou de outra coisa, e de
um discurso livremente construído sobre um caso particular, tendente a veicular alguns significados, e
também alguns valores.
Aqui, o lovgo" de Górgias propõe-se servir de um método lógico particular, de uma
estrutura argumentativa particular (logismov") que desvela o significado, isto é, a sua verdade, e
assim, consegue o objectivo de fazer “cessar a ignorância”9: é pois, o discurso que, mostrando a
verdade, faz cessar a ignorância, a opinião difusa e repetida, a “fama” (fhvmh) de um facto, a
ignorância respeitante a um facto que se crê conhecer só porque se repete o que se ouviu dizer10; e a
verdade é, precisamente, aquilo que consegue a construção correcta deste discurso, aquilo que é
preciso mostrar, demonstrar com o próprio logismov", ajudando assim o próprio lovgo" , ou seja,
a própria tese11.
Mas como se constrói o discurso verdadeiro que elimina a ignorância? Parece-nos que a
resposta gorgiana é inequívoca: reconstruindo a “história” de que se pretende falar, neste caso, a
história de Helena; a verdade é dada pela “interpretação” da génese de um facto, que é aquilo que é,
mas que vem interpretado, porque, por si, não “significa” nada. Todo o Encómio é a reconstrução de
uma história, de um facto: como tal, é uma interpretação que se opõe à dada pelos poetas12.
Górgias dá por bem conhecido tudo aquilo que se transmite sobre Helena, ou simplesmente
faz um aceno a isso, declarando explicitamente não querer tratá-lo, ou melhor, dando uma justificação
teórica importante e interessantíssima para a razão desta sua escolha. Não se falará nem do seu
nascimento nem da sua estirpe13, nem da sua beleza semelhante à de uma deusa (ijsovqeon
kavllo"), nem do muito desejo amoroso que suscitou, nem dos que14 conquistou: tudo isto é
7 Recorde-se a esplêndida caracterização deste tipo de discursos e de oradores, delineada por Platão
no Teeteto, 172c sgg.
8 Hel.en. § 21.
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notório, tudo isto é facto. Então, dizer a verdade não é dizer o já conhecido, mas explicitar o seu
sentido: é precisamente esta descoberta do significado que se esconde atrás do facto, a descoberta
da “causa” do facto, que dá o verdadeiro “gozo” ao intérprete.
Leiamos: “o dizer a quem sabe aquilo que sabe acrescenta confiança (pivstin), mas não
traz gozo (tevryin). E por isso, passado com o discurso, o tempo de antes, … exporei as causas
(aijtiva") pelas quais era verosímil (eijkov") que acontecesse a partida de Helena para Tróia”15.
Há, pois, um dado conhecido por todos, que vem explicado e interpretado, e é esta explicação
que procura as causas de um facto para deleitar verdadeiramente o homem que indaga. Isto,
obviamente, através do discurso que vem sendo construído, cada vez que se examina o caso que se
está a indagar, em todos os seus aspectos. O discurso é pois aquilo que dá um significado às coisas
que todos já sabem, aos factos, e é este significado que é a verdade, enquanto “aquilo que já se
sabe” não é senão a opinião. E assim também em Górgias se faz uma nítida distinção entre verdade e
opinião, a qual, no entanto, se acha bem longe daquela a que estamos habituados, depois de séculos
de “platonismo”16. Mas atenção: o significado, a verdade, è eijkov", isto é, verosímil, provável. A
descoberta de uma verdade está ligada inevitavelmente a uma interpretação, ou seja, ao discurso que
nós, aqui e agora, estamos a construir, e, por isso, nunca é absoluta: é um discurso provável, por
estar ligado necessariamente a uma interpretação; tem os seus limites, além dos quais não pode ir, e
estes são constituídos precisamente pelo “já conhecido”, pelo “facto” que não é possível alterar ou
mudar. Mas as “causas” do já conhecido, que propomos com o nosso discurso, são fruto da nossa
leitura particular do facto, e, por conseguinte, são fruto da nossa interpretação: verdadeira, mas
provável.
Reconstruir a história de Helena significa então tornar a procurar as causas pelas quais ela
“fez aquilo que fez”. Como se sabe, Górgias identifica quatro: Helena 1) teve de ceder à vontade do
acaso (tuvch" boulhvmasi) à decisão dos deuses, ao decreto da necessidade (ajnavgkh")17; 2)
foi raptada com violência (biva/); 3) convenceram-na com discursos (lovgoi"); 4) enamorou-se ao
ver Alexandre18.
O logismov" de Górgias quer demonstrar que Helena não deve ser condenada mesmo que
um destes quatro tenha sido o motivo de ela ter feito o que fez; para o discurso que aqui estamos a
fazer, não nos interessa examinar nem os dois primeiros motivos19 nem o quarto. Se foi um discurso
a persuadi-la (§ 8: peivsa") e a enganar-lhe a alma (yuch;n ajpathvsa"), também isto se tolera
e se justifica. Vêm, pois, aqui imediatamente delineados o efeito do discurso e o âmbito no qual ele
age: o lovgo" age na alma, e os seus efeitos são o convencimento e o engano. A nós, interessa-nos
sobretudo ver como estes dois efeitos, persuasão e engano, estreitamente ligados ao discurso, não
são contrários, mas devem combinar-se para em conjunto determinarem o convencimento; e enfim,
como no horizonte semântico de Górgias, o engano seja coisa bem diversa do erro.
Portanto, o discurso é um “grande dominador (§ 8: dunavsth" mevga") que com um corpo
pequeníssimo e invisibilíssimo sabe cumprir coisas diviníssimas: acalma o medo, elimina a dor,
suscita o gozo, aumenta a piedade (§ 8). Como se vê, estão aqui delineados os efeitos do discurso;
esse, em primeiro lugar, está em relação íntima com a alma, e em particular com a esfera da
afectividade, e em duplo sentido pode: quer eliminar um afecto, ou mitigá-lo, quer fazer nascer um
novo, ou reforçá-lo. Mas não só Górgias institui aqui esta íntima relação entre lovgo" e pavqo",
mas delineia também a modalidade em que esta pode acontecer20, e ao assim fazê-lo, deixa-nos
antever em perspectiva uma sua concepção própria do ser e do padecer do homem.
Persuasão e engano; dissemos, invertendo os termos, Górgias começa com a demonstração
de como o discurso engana persuadindo, para logo concluir com a demonstração de como persuade
enganando. E começa com um exemplo “fácil”, o da poesia. Com efeito, esta não é outra coisa senão
um discurso: a sua particularidade, a de ter um “metro”21, não é, como se verá também em seguida,
mais que uma característica acessória. E apesar de tudo, ela “engana”: constrói personagens e
histórias inventadas, fortunas e infortúnios de factos e pessoas que não existem, que habitam um
mundo “diferente”22 do real.
Mas é mesmo este engano que move a alma: o auditor comove-se, é tomado por um arrepio
de temor (frivkh perivfobo"), por uma compaixão que arranca as lágrimas (e[leo"
poluvdakru") dá-se até ao desejo de se abandonar à dor (povqo" filopenqhv"). Tudo isto
sucede – e aqui Górgias parece instituir um princípio de carácter geral – porque “a alma padece, por
efeito dos discursos, o seu padecimento”23.
18 Diels propõe e[roti aJlou'sa, “tomada de amor”, na base do § 15; mas, na base do mesmo
parágrafo, Immisch tinha proposto o[yei ejrasqei'sa, “enamorada ao ver Alexandre”; F. Donadi
recuperou esta última variante, com boas argumentações, em Gorgia, Encomio di Elena, Texto cr.,
intr., tr. e notas, Roma, 1982.
19 De resto, pouco importantes também para Górgias, a partir do momento que a esses se dedicam
apenas os §§ 6-7, enquanto o desenvolvimento do terceiro compreende os §§ 15-19; os últimos dois
parágrafos representam a conclusão de todo o discurso.
20 § 8: wJ" ou{tw" e[cei.
21 § 9: lovgon e[konta mevtron.
22 § 9: ajllotrivwn.
23 § 9: i[diovn ti pavqhma dia; tw'n lovgwn e[paqen hJ yuchv.
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quem escuta. Tanto é assim, que não é para todos nem enganar nem ser capaz de ser enganado. Se
a tragédia, como toda a poesia, não é outra coisa senão um discurso com metro, esta, segundo
Górgias, pode ser definida precisamente como um engano (ajpavth), em que “quem engana age
melhor (dikaiovtero") que quem não engana, e quem é enganado é mais sábio (sofwvtero")
que quem não é enganado”30.
Vê-se então, que estar em posição de usar o engano significa ser capaz de encontrar a via da
persuasão e do envolvimento, e, por conseguinte, realizar melhor a finalidade de criador de discursos;
e ser enganado pressupõe uma sabedoria, diríamos hoje uma “cultura”, que permite entender o
discurso do outro e aderir a ele. Tanto é assim, que a uma pessoa qualquer que lhe perguntava:
“Porquê só aos Tessálios não enganas?”, Górgias respondeu: “Porque são demasiado ignorantes
para serem enganados por mim”31.
Os “enganos da opinião”, por conseguinte, são coisa bem diversa dos “erros da alma”. Estes
são o efeito de um discurso falso. Górgias di-lo explicitamente no início do § onze: “E quantos, a
quantos, em quantas coisas fizeram e fazem crer, forjando um discurso falso (yeudh' lovgon)”.
Então, a técnica que permite construir discursos falsos é outra coisa, em relação àquela que permite
enganar. Construir discursos falsos é, pois, o engano no sentido platónico, a retórica vazia no sentido
platónico, o sofisma no sentido platónico: o discurso que Górgias declara ser falso tem todas aquelas
características, isto é, que são atribuídas indiscriminadamente aos discursos dos “sofistas” no sentido
negativo que, de Platão em diante, a nossa cultura não cessou de lhes contestar.
Mas há mais. Górgias individualiza no “discurso falso” a verdadeira e própria violência que
quem fala é capaz de exercer no espírito de quem escuta, e individualiza na frágil disposição do
espírito de quem escuta, na sua credulidade, se quisermos na sua falta de “cultura”, a razão de uma
adesão que não tem o carácter alto do “engano”, mas o carácter baixo de um plágio. Por outros
termos, retomando o exemplo anterior, discurso falso não é o do poeta ou do orador que convencem
um auditório de Atenienses, mas o de quem convence simples Tessálios. Leiamos. “Se todos
tivessem acerca de todas as coisas, das coisas passadas recordação (mnhvmhn), das coisas
presentes consciência (e[nnoian), e das coisas futuras providência (provnoian), o discurso não
seria de igual eficácia; mas convence, porque se destina àqueles que não chegam nem a recordar o
passado, nem a indagar (skevyasqai) o presente, nem a predizer o futuro; pelo que, na maioria dos
casos, a maior parte oferece como conselheira (suvmboulon) à alma a própria opinião (dovxan). E
esta opinião, sendo falaz e incerta (sfalera; kai; ajbevbaio") em falazes e incertas condições
envolve quem dela se serve”32.
Como se vê, pois, o discurso falso, de um lado, baseia-se na “ignorância” de quem escuta, na
sua incapacidade de recordar, de ter consciência de si e do mundo, de indagar a realidade de si
mesmo e dos outros; por outro lado, isso não faz senão reforçar a dovxa, isto é, a impressão
imediata e irreflectida do momento, em vez de a fazer mudar. E aqui, Górgias, coerentemente com
tudo o que até agora disse, passa a examinar o caso da violência exercida sobre Helena, a partir de
um discurso falso, que em vez de “enganá-la”, vai contra ela33, reforçando os seus “erros”. Portanto,
neste caso, Helena foi compelida por palavras lisonjeiras, não por sua vontade: como se fosse
raptada com violência (biva). Este é o império da persuasão (peiqou'"), que, mesmo não
possuindo a aparência da necessidade (ajnavgkh), tem todavia a potência (duvnamin). Com efeito,
um discurso que tenha persuadido uma alma (lovgo" ga;r yuch;n oJ peivsa"), constringe-a
(hjnavgkase) a acreditar nos ditos e a consentir nos factos. Aquele que persuadiu, enquanto
exerceu uma constrição (ajnagkavsa"), é culpado; enquanto que quem foi persuadida, por ser
obrigada pela força dos discursos (ajnagkasqei'sa tw/' lovgw/), é difamada com injustiça34.
Como se vê, neste parágrafo há a assimilação da terceira causa do agir de Helena à primeira
e à segunda, no sentido que aparece sublinhada a verdadeira e autêntica violência, biva, exercida
sobre uma pessoa através do discurso. Biva e ajnavgkh, portanto, podem ser exercidas quer
fisicamente quer moralmente: pode-se constranger uma pessoa quer nos ditos quer nos factos, a agir
de um certo modo, contra a sua mesma vontade, e neste caso a pessoa que é constrangida não é
certamente culpada, mas inocente.
32 § 11.
33 Cfr. § 12: u{mno" hj~~lqen (e[rcomai): as palavras foram contra ela, afrontaram-na.
34 § 12.
9
A verdade é que esta violência do discurso não é a violência tout court de cada discurso, mas
apenas daquele “falso”, que não engana a alma, mas a domina, exercendo assim uma violência sobre
o outro que, mesmo não sendo assim tão evidente quanto a física, não é menos potente.
Aquilo que Górgias está aqui a sublinhar é propriamente o aspecto, podemos dizer “perverso”
de peiqwv, da persuasão, e não está a dizer que este aspecto é constitucionalmente inato em cada
discurso, é antes propriedade apenas daquele que é falso: tudo isto parece-nos claramente presente
no texto, o qual, precisamente agora com o § treze, começará a descrever os efeitos positivos de
peiqwv: como se estivesse a dizer-nos que existem dois tipos de persuasão (boa e má), que existem
dois tipos de discurso (verdadeiro e falso), dois tipos de técnicas do discurso, isto é, de fascinação e
magia (erros e enganos). E tudo isto será confirmado no final do tratamento desta terceira causa,
quando for estabelecida explicitamente a analogia entre o discurso e o fármaco.
Mas qual é a forma “boa” da persuasão? É aquela que, ao intervir no mundo da opinião
imediata, a transforma, no sentido de acrescer e reforçar a “cultura” da alma. Aqui, por um lado,
Górgias está plenamente inserido no horizonte “pedagógico” próprio do movimento dos sofistas,
empenhados num renovamento e numa apropriação crítica do património cultural do passado; e, por
outro lado, partilha com estes a convicção da “neutralidade” das técnicas, indiferentes, por si mesmas,
para o fim para que são usadas. A este propósito, a união do § treze é iluminadora. “E dado que a
persuasão, que acompanha o discurso, consegue dar à alma o cunho que quer, é preciso
compreender (maqei'n) …”35. Se é verdade, pois, que a persuasão acompanha sempre o discurso,
no sentido que um discurso, quando se possui a sua técnica, consegue sempre formar como quer a
alma de quem escuta, e se é verdade que a alma de quem é desprovido, isto é, de quem não tem
memória, consciência, inteligência, como tínhamos visto, está mais facilmente sujeita à necessidade e
à violência da persuasão do que as outras, então o remédio é compreender, ou seja, aprender, isto é,
potencializar e enriquecer a própria alma.
Como? “É preciso compreender, em primeiro lugar, os discursos dos astrónomos (tw'n
metewrolovgwn lovgou"), que, substituindo opinião por opinião (dovxan ajnti; dovxh"),
destruindo uma e construindo uma outra, fazem aparecer aos olhos da opinião aquilo que é
inacreditável e está escondido”36. As teorias científicas, aqueles discursos que os estudiosos dos
fenómenos naturais fazem, aparentemente em pleno contraste com a experiência sensível, são na
realidade precisamente a explicação da experiência sensível, constituem o primeiro exemplo deste
enriquecimento cultural: as suas opiniões, e são opiniões em contraste com aquelas imediatas das
35 § 13: o{ti d∆ hJ peiqw; prosiou'sa tw/' lovgw/ kai; th;n yuch;n ejtupwvsato
o{pw" ejbouvleto, crh; maqei'n...
36 § 13: ta; a[pista kai; a[dhla faivnesqai toi'" th'" dovxh" o[mmasin
ejpoivhsan. “Apista kai; a[dela são precisamente as coisas que nos fazem “ver” a ciência
daqueles que estudam os fenómenos naturais e constróem as próprias teorias, “opiniões” no léxico
gorgiano, a sua explicação: uma explicação que vai contra a imediatez do dado sensível e da opinião
construída sobre ela. “Adhlon, escondido, é precisamente aquilo que não é evidente à sensação
(claro!), mas que se torna evidente através do intelecto. A teoria dos terremotos de Tales, como o
processo do apeiron de Anaximandro, as quatro raízes de Empédocles, os spermata de Anaxágoras,
átomos e vazio de Demócrito, ou seja, cada “teoria” científica, são todos exemplo “daquilo que é
inacreditável e está escondido”.
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nossas impressões sensíveis: com efeito, a sua dialéctica é um óptimo exercício para a alma, porque
habitua-a a ampliar o horizonte das coisas que se podem “ver”, para lá daquilo que esta vê
“normalmente”.
Depois é preciso compreender “em segundo lugar, as polémicas, necessárias à vida civil, que
surgem por meio dos discursos37, nas quais um só discurso não inspirado na verdade, mas escrito
com arte, deleita e persuade a multidão”38. Também estes discursos, aqueles não inspirados na
“verdade”, porque visam a persuasão de uma assembleia ou de um júri num tribunal, devem ser
apreendidos, enquanto constituem um útil exercício dialéctico para aquele que quer potencializar a
própria mente e a própria inteligência39.
E depois é preciso compreender “em terceiro lugar, as controvérsias agradáveis dos
discursos filosóficos40, nas quais se revela também como a rapidez da inteligência (gnwvmh"
tavco") facilita a mudança de convicções da opinião (th;n th'" dovxh" pivstin)”. Também os
debates filosóficos, e talvez principalmente estes, através do constante empenho da inteligência, com
o educar a inteligência na mobilidade, fazem parte deste “programa educativo”, que outra coisa não é,
parece-me, que não o alargamento do próprio horizonte cultural.
Há a persuasão, que é sempre um fazer mudar uma opinião dada, mas depois há, por um
lado, uma persuasão má, que se exerce no espírito dos fracos, e os constrange com uma
necessidade que tem potência, mesmo não tendo a forma, da constrição física, da biva; esta pode
existir precisamente quando o espírito da maior parte não é “educado”, as suas opiniões são aquelas
imediatas da sensibilidade, da impressão do momento. E depois há, por outro lado, uma boa
persuasão, que se encontra diante a uma mente treinada, educada no debate, na pesquisa, a ver para
lá do imediato, a olhar além da aparência. De modo paradoxal, mas só aparentemente paradoxal,
quem muda facilmente o espírito e é presa fácil dos falsos discursos é propriamente aquele que é
habituado a estar fixo na própria opinião imediata, construída sobre a imediatez daquilo que lhe
aparece sensivelmente evidente; enquanto que aquele que está habituado à discussão, que é treinado
em cada tipo de discurso, que põe continuamente em discussão as próprias opiniões, que exercitou a
própria gnwvmh, a saber, mnhvmh, e[nnoia e provnoia, mesmo estando sujeito aos “enganos” da
opinião, será mais dificilmente presa dos discursos que induzem em “erros” no espírito.
O § catorze, que encerra esta terceira parte do Encómio com a discussão da natureza e dos
efeitos do lovgo", parece-me confirmar tudo quanto foi aqui dito. Este institui uma analogia entre o
discurso e o fármaco, característico das obras dos sofistas41, e depois frequentíssimo no corpus
37 tou;" ajnagkaivou" dia; lovgwn ajgw'na": trata-se precisamente dos debates políticos e
judiciários, “necessários” à vida civil e, portanto, necessariamente construídos com uma certa
estrutura.
38 § 13.
39 Sobre este tipo de discursos ajnagkaivoi veja-se quanto foi dito acima na p. 3, nota 7.
40 Assim, parece-me, dever ser compreendida a expressão filosovfwn lovgwn aJmivlla",
enquanto no termo amilla vem compreendido quer o sentido da luta, do combate, quer o do desejo:
cfr. Além do § 19, a expressão (quase uma hendíadis) proqumivan kai; a{millan e[rwto".
41 Cfr. a tevcnh ajlupiva" de Antífonte que conseguia curar com as palavras (dia; lovgwn
qerapeuvein): [Plutarch.] Vit. X orat.1 p.833 C = DK87A6; Antífonte, ele próprio, era denominado
“Nestor” porque, habilíssimo na arte de persuadir, conseguia convencer com tudo o que dissesse, e
11
platónico. Leiamos: “Há entre a potência do discurso e a disposição da alma, a mesma relação que
entre a função dos fármacos e a natureza do corpo42. Tal como certos fármacos eliminam do corpo
certos humores, e outros, outros, e alguns danificam a doença, outros a vida; assim também, dos
discursos, alguns produzem dor, outros deleite, outros medo, alguns inspiram coragem aos ouvintes,
outros com alguma persuasão má (peiqoi' kakhv) envenenam a alma e enfeitiçam-na”.
Como se vê, está muito claramente dito que o discurso é “neutro”, tal como o fármaco: assim
como este pode eliminar a doença, mas pode também eliminar a vida, também o discurso pode gerar
uma persuasão boa e uma má, inspirar sentimentos e afectos bons quanto maus.
Fica o problema, obviamente ético e político, do “controle” do discurso, de quem, como e
quando possa e deva exercê-lo: mas não é problema que aqui preocupe Górgias. A sua pesquisa
pretende ser, como o é, uma pesquisa sobre as “causas” do agir humano43, uma análise
desencantada da fenomenologia das acções, um diagnóstico, e não um prognóstico; e nisto também
o Leontinense não se aparta das impiedosas, ao mesmo tempo lúcidas e apaixonadas, análises da
vida humana que contemporaneamente vinham desenvolvendo um Pródico, um Hípias, um
Trasímaco, um Antífonte, aqueles sofistas que com justo direito foram indicados como os expoentes
do “Iluminismo” do quinto século antes de Cristo.
dava publicamente lições sobre a arte de mitigar a dor com as palavras: Philostr. V. soph. I 15, 2. Mas
veja-se principalmente a posição de Protágoras, e a famosa Apologia de Protágoras no Teeteto
platónico (166dsgg.), onde o orador e o sofista são assemelhados ao médico: como este sabe usar os
fármacos para curar o corpo do homem particular, os primeiros sabem usar os discursos para curar
os males da cidade. No entanto, a analogia médico/filósofo perpassa ao longo de toda a obra
platónica.
42 § 14: to;n aujto;n de; lovgon e[cei h{ te tou' lovgou duvnami" pro;" th;n
th'" yuch'" tavxin h{ te tw'n farmavkwn tavxi" pro;" th;n tw'n swmavtwn
fuvsin. Como se vê, trata-se de uma verdadeira e própria proporção, isto é, de uma analogia a um
quiasmo, com uma assimilação de duvnami" a fuvsi": a duvnami" tou' lovgou está para a
tavxi" th'" yuch'" como a tavxi" tw'n farmavkwn está para a fuvsi" tw'n swmavtwn.
43 A defesa de Helena com base na quarta causa, a saber, o amor, será desenvolvida nos §§ 15-19,
enquanto que os últimos dois parágrafos representam a conclusão da obra, com a declaração das
intenções que nos tínhamos proposto. Também a análise desta parte põe em evidência elementos
fundamentais e interessantíssimos, como a relação entre medo e lei, entre olho e paixões, e ainda
entre doença e ignorância, mas ultrapassa, todavia, os limites que me tinha imposto. Para uma
análise deste tipo de relações, veja-se G. Casertano, “I dadi di Zeus sono sempre truccati”
Considerazioni sulla parola, l’occhio e le passioni nell’Elena di Gorgia em, “Discorsi” II (1982), pp. 7-27.